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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS FILHOS DO FLAGELO - P.2 / Filipe Faria
OS FILHOS DO FLAGELO - P.2 / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Aduz e Urit, dois batedores ocarr da tribo dos Gal Shamul, cavalgavam pelas estepes varridas por um vento pontilhado com flocos brancos. Envergavam peles e vestimentas de couro e as suas cabeças estavam resguardadas por barretes forrados, mas ainda assim sentiam o toque frio da estepe. Os seus hemíonos estavam cansados, os seus bafos arquejantes já se sobrepunham aos ventosos uivos, mas havia que chegar ao acampamento o quanto antes. O ayan tinha de ser informado acerca da profanação do Poço de Songul, tal acto não podia passar impune! Estivera estabelecido no Conclave Lunar que os Cho Tirr iriam passar pelo local nas passadas sete luas, pelo que só podiam ter sido eles. Teriam perguntas a responder, e muito lhes convinha que as respostas fossem satisfatórias, pois caso contrário seriam todos passados a fio de sabre, homens, mulheres e crianças. Tal heresia seria também, por acréscimo, a perfeita desculpa para os Gal Shamul se apossarem do gado dos Cho Tirr, e nenhuma outra tribo poderia dizer algo contra. Sim, pensavam ambos, seria algo que o ayan quereria ouvir com a maior brevidade possível. 

Os dois jovens ocarr haviam acordado em cavalgar todos os dias tanto quanto os hemíonos aguentassem, mas foram-se lentamente apercebendo de que o vento estava a secar as gargantas das suas montadas, que já tossiam e que corriam ainda o risco que se lhes formassem cristais de gelo dentro dos pulmões. Para além disso, sete dias de uma quase incessante cavalgada era potencialmente mortal, mesmo para os reputadamente incansáveis burros da estepe, pelo que Aduz e Urit decidiram parar. Nuvens de vapor saíam das narinas e bocas dos hemíonos enquanto estes abrandavam o passo gradualmente até pararem, lançando aliviados ofegos. Os dois ocarr desmontaram, cambaleando nos primeiros passos devido às coxas doridas, e apressaram-se a remover as selas e a carga dos hemíonos e a desenrolar cobertores para com eles cobrir os animais, que estavam quentes ao ponto de transpirar. Com a celeridade gerada por treino intensivo, trituraram partes da crosta da neve com os pés para os hemíonos beberem e acariciaram-lhes os pescoços com afecto fraternal, agradecendo-lhes o esforço.

 

 

 

 

Com os hemíonos fora de perigo e à procura de erva seca debaixo da crosta de neve, os jovens ocarr começaram a preparar a sua tenda, atando de cócoras a armação de madeira e osso com tendões. Os seus rostos de rotundos malares estavam mais secos e curtidos que os do típico ocarr, devido à prolongada exposição ao vento, e estavam vincados por rugas que não deveriam surgir senão numa idade mais avançada. Ainda assim, de cada vez que os seus olhares se cruzavam, os seus olhos estreitavam-se em frestas com pés-de-corvo e os seus dentes amarelados mostravam-se num sorriso. Era uma vida livre, a que levavam e partilhavam com os seus irmãos de quatro patas, e quando os Gal Shamul eliminassem os Cho Tirr, ambos cairiam sem dúvida nas boas graças do ayan e seriam louvados por terem sido os portadores da justificação do ataque. Enquanto Urit fazia os arranjos finais à tenda dentro desta, Aduz foi buscar o equipamento que haviam deixado numa pilha em cima das selas. Pôs a mochila das provisões e os estojos dos arcos ao ombro e agarrou numa das aljavas pela faixa de couro, que estalou, despejando o conteúdo da aljava na neve. Aduz praguejou, ajustou o seu gorro forrado e acocorou-se para recolher as setas, mas nesse momento ouviu resfôlegos nervosos. Olhou para os hemíonos e viu como estes batiam com os cascos no chão e erguiam os focinhos nervosamente. O jovem ocarr baixou o ombro e deixou o equipamento cair, pegando o seu arco recurvo e alojando uma flecha entre os seus dedos, apontando-a para várias direcções. Chamou por Urit enquanto se dirigia a passos lentos para perto dos hemíonos, que estavam a ficar cada vez mais nervosos, como se uma aproximação invisível os estivesse a assustar. O vento ululava parecendo ele próprio estar a fugir de algo, e os flocos de neve tornavam-se mais intensos, fustigando-lhe a cara. Aduz chamou por Urit uma vez mais, mas dentro da tenda e com a ventania o mais certo era o seu amigo não o ouvir, pelo que começou a recuar. Foi então que distinguiu dois pontos escarlates no meio do vento nevoso e retesou o fio do arco, perguntando quem se aproximava com um certo tremor na voz. Um hemíono empinou-se, orneando, e pareceu a Aduz ouvir uma abafada pergunta de Urit do interior da tenda. Assim que o vulto da... coisa que se aproximava tomou forma, o jovem ocarr largou o fio e a seta singrou na sua direcção, mas atirara contra o vento e o projéctil falhou o alvo por um dedo. Antes que Aduz pegasse noutra flecha, o rubor dos olhos do vulto intensificou-se, alumiando uma caveira desprovida de maxilar inferior. A sua capa negra sarapintada de branco contorcia-se violentamente ao vento e os dedos metálicos da sua manopla crispavam-se numa espada umbrosa e famélica. O batedor quis gritar, quis atirar o arco ao chão, quis fugir, quis fazer qualquer coisa que o tirasse dali, para longe daquele terrível olhar, mas o seu corpo não lhe obedecia e a única resposta que dele obteve foi o soltar da sua bexiga. Vapor formou-se nos seus pés quando urina quente derreteu a neve, mas nem o calor molhado nas suas trémulas pernas fez com que estas se mexessem. Os dois hemíonos ornearam em aterrado uníssono, empinando-se, e Urit gritou algo da tenda, tentando sair apressadamente mas conseguindo apenas que lona e armações quebradas pelo súbito movimento caíssem em cima de si. Aduz via cada passo lento do vulto com maravilhado temor à medida que este se aproximava, as suas órbitas vazias duas estrelas escarlates, duas promessas de morte.

 

Urit gritava pelo nome do seu amigo, debatendo-se com a lona e rebolando pelo chão, mas as únicas respostas eram os ornejos espavoridos dos hemíonos. Não foi senão quando algo caiu na neve ao seu lado e lhe tocou no ombro que o jovem ocarr conseguiu tirar a lona de cima de si, embora as suas pernas continuassem presas. Olhou na direcção do baque que ouvira e a sua voz enrolou-se-lhe numa bola seca na garganta. A cabeça de Aduz fitava-o de olhos vidrados, os derradeiros esguichos vermelhos do seu pescoço fumegantes e uma última expressão de terror inscrita na sua cara pálida. Urit gritou, estrebuchando para longe daquela macabra visão, e deparou com uma greva negra à sua frente. Olhou para cima e o sangue gelou-se-lhe ao ver a sua morte a resplandecer em dois pontos escarlates nas órbitas vazias de uma caveira. A descida da lâmina foi quase misericordiosa.

 

Baodegoth ergueu a espada porosa e cruenta, cuja vermelhidão fumegava. Estava saciado, não necessitaria sequer do sangue daqueles dois. Embainhou a lâmina e deixou-se estar, fitando um ponto longínquo no horizonte obscurecido pela neve. Ancalach bebera sofregamente algures na distância, executara a sua dança mortal e ceifara um grande número de vidas. E o chamamento continuava, tão forte como dantes, um luzir no escuro, um gemido na vastidão, um odor distinto num espaço aberto.

 

Ancalach... vociferou, retomando o passo de cabeça baixa contra o vento.

 

Tannath caminhava inseguro num longo e pardacento corredor arqueado. Não havia iluminação de qualquer espécie, tudo estava difuso e indistinto, mas o eahanoir conseguia ver aos seus lados paredes brancas lisas; à frente um fraco ponto de luz que o chamava e prometia libertação; atrás uma escuridão medonha, uma imensa mancha mais terrível que qualquer penumbra de Jazurrieh, que avançava lenta mas inexoravelmente, farejando-o como um imenso mastim negro. O eahanoir não sentia medo, mas a escuridão que o perseguia causava-lhe uma certa ansiedade que o impelia a andar em frente e o dissuadia de olhar para trás com muita frequência. Os seus passos ressoavam no chão branco e liso como as paredes, ora apressados, ora pausados, mas sempre em movimento. Contudo, não importava o quanto caminhasse, parecia estar sempre no mesmo lugar, pois o ponto de luz não se aproximava e a sombra não se distanciava, mas ainda assim Tannath continuava a andar, parar estava por alguma razão fora de questão.

 

Um indistinto rosnar fez-se ouvir pelo corredor.

 

Pela primeira vez, o eahanoir parou, escutando atentamente e movendo as pupilas azul e cinzenta para os cantos dos olhos amendoados, sem no entanto olhar para trás. Um segundo rosnido, desta vez mais intenso, confirmou os receios de Tannath. Vinha de trás, da sombra, o monstro faminto que se aproximava para o devorar. O eahanoir retomou e estugou o passo, impedindo-se a si mesmo de olhar para trás, tentando concentrar-se no dac, dac das suas botas na pedra lisa, mas o som repetia-se, cada vez mais intenso, cada vez mais próximo. As passadas aceleradas em breve se transformaram numa ligeira corrida quando o monstro rugiu pela primeira vez ao de leve, mas cedo se tornaram numa correria desenfreada à medida que a presença hostil lhe parecia roçar os pêlos do pescoço. Em breve Tannath corria pela sua vida, ouvindo as mandíbulas do monstro a estalarem atrás de si, as suas garras ferinas a rasparem o chão liso, sentindo o cheiro do seu hálito quente e húmido. O ponto de luz parecia distanciar-se cada vez mais e mais, e podia jurar que a sombra já lhe tocava os calcanhares. Reunindo toda a sua coragem, Tannath forçou-se a olhar para trás.

 

E então viu o monstro, presas cruentas e brilhantes e salivantes, garras curvas e ferozes, pelagem ensopada de vermelho, olhos que ardiam de raiva e furor assassinos. Em pânico, o eahanoir gritou e o sangue foi bombeado em jorros para as suas pernas. Correu e correu, sempre a ouvir os rosnidos e rugidos, correu e correu até mais não poder e tombar por fim no chão. Virou-se de barriga para cima e colocou os pés protectoramente entre si e o monstro, mas garras cruéis enterraram-se-lhe na carne das pernas, dilacerando-as. O eahanoir gritou de dor e os seus berros intensificaram-se quando todo o seu corpo foi selvaticamente mutilado por presas e garras afiadas que pareciam estar em toda a parte, esguichando as paredes brancas de vermelho, ateando fogos de agonia na sua carne, fazendo-o provar o sabor quente e férreo da sua própria essência vital...

 

Tannath despertou com um berro. Estava de tronco nu, deitado de barriga para baixo numa cama macia de lençóis ensopados no seu próprio suor. A sua cabeça estava quente, os seus braços estavam estendidos a seu lado e tanto eles como as pernas estavam amarrados ao leito, e um lençol húmido cobria-lhe as costas, que lhe doíam. Começou a estrebuchar, mas assim que ergueu a bacia, a pele nas suas costas crepitou e o eahanoir deixou-se cair de barriga na cama, acometido de dores.

 

Não te mexas assim ou magoas-te recomendou-lhe uma voz feminina.

 

Tannath olhou para o lado, fios de cabelo molhado a obstruírem-lhe parcialmente a visão, mas mesmo na iluminação esbatida do quarto onde se encontrava reconheceu a eahanoir que estava de braço encostado à parede.

 

Vinxenia! O que aconteceu? Onde estou? perguntou com uma voz febril.

 

A pequena boca em forma de coração da eahanna negra alinhou um sorriso e esta dirigiu-se a passos lânguidos para a cama.

 

Foste gravemente ferido. Estás num sítio seguro. Agora fica quieto ou vais magoar-te.

 

Que sítio é este? Por que estou amarrado? As veias dos compactamente musculados braços de Tannath dilataram-se, mas a força que fez no tronco atiçou-lhe faíscas de dor nas costas e o eahanoir grunhiu.

 

Se continuas assim, deixo-te sozinho até acalmares ameaçou Vinxenia, acocorando-se sorridente defronte da cara de Tannath, que relaxou resignadamente.

 

O que aconteceu? perguntou uma vez mais, a sua voz mais calma.

 

A besta por pouco não te rasgava as costas explicou Vinxenia, tirando as madeixas húmidas de frente da cara do eahanoir com delicados dedos. Atirou-te para dentro da arena, nem sei como não partiste nada... és duro de matar... comentou com um sorriso, esfregando-lhe as gotas de suor do queixo.

 

O eahan negro não estava com disposição para aquilo, e afastou a cara da mão de Vinxenia.

 

Então? Fui eu quem te rasgou as costas?

 

Continua... ordenou, algo contrariado com a situação.

 

Quando caíste na arena, começaste a esvair-te em sangue. Se tivesses perdido a consciência, o mais certo era estares morto por esta altura, mas de alguma forma despertaste e tiveste a presença de espírito para te atirares de costas para uma das fogueiras da arena... os olhos do eahanoir arregalaram-se com a memória avivada: o extremo esforço a arrastar-se para as labaredas, o ardor das feridas abertas das costas, o calor insuportável, o cheiro a carne queimada, a sua própria voz gritante a soar-lhe aos ouvidos ... rebolaste pela areia e apagaste as chamas das tuas roupas, e depois deves ter perdido a consciência. Foi muito esperto, cauterizaste as feridas e paraste o sangramento, mas ficaste com umas queimaduras muito feias nas costas...

 

Estou vivo... constatou, algo atordoado com a memória.

 

Lá isso estás. Agora deixa-me ver essas chagas... disse Vinxenia, erguendo-se e dirigindo-se a uma mesa com utensílios medicinais. Tens sede?

 

Sim respondeu Tannath relutantemente.

 

A eahanna negra serviu uma taça e levou-a à boca do seu contrariado paciente.

 

Mal empregado... comentou Vinxenia, passando as mãos por baixo da barriga de Tannath para lhe atar as ligaduras ao tronco.

 

Então por que não o fazes, agora que estou tão convenientemente amarrado? perguntou o eahanoir com um tom de voz que dava muito bem a entender o que faria caso estivesse solto.

 

Bem sabes como detesto derramamento de sangue desnecessário. É um atentado ao potencial de cada indivíduo, sim? E tu tens bastante...

 

O que queres de mim, Illoth? já estava Tannath a adivinhar.

 

Fui eu quem providenciou a fuga do antroleo confessou. Contava engendrar uma situação propícia na qual ele te pudesse matar, mas a tua inesperada visita forçou a uma alteração de planos, sim? Os olhos azul e cinzento de Tannath foram atiçados com estas palavras. Fora Illoth, então... O antroleo deixou-te por morto e fugiu com o seu amigo eahan e a... Slayra.

 

Então? Não faças tanta força com as costas que ainda abres as feridas... advertiu Vinxenia, atando uma ligadura.

 

Enquanto fugiam, o antroleo foi morto, mas pelo caminho mataram a shionna, cinco hasslir teus, sete sajellir meus e aleijaram o meu filho, que os devia ter recebido em meu lugar, sim?

 

”A Shanaya também...

 

Slayra,..”, pensava Tannath, aturdido com o relato.

 

Vou ser directo, sim? És um empecilho para mim, Tannath, e teria gosto em matar-te de forma lenta e de sobremodo dolorosa, mas um insulto como este que a mim foi proferido não pode passar impune. Ninguém me ludibria, mata os meus homens, aleija o meu filho e escapa incólume. Vais ficar aqui até te sentires restabelecido, e nessa altura irás em busca desse eahan e da Slayra e matá-los-ás a ambos. Decerto também sentes uma certa sede de vingança, sim? Tannath não respondeu. Estava atordoado com tantas revelações e com a menção de Slayra. Depois disso, nunca mais te quero ver em Jazurrieh. Os teus homens abandonaram-te e agora trabalham para mim, as tuas posses foram confiscadas e a tua casa apropriada. Nada mais te prende a esta cidade, o único propósito da tua vida está fora das muralhas e em fuga para partes incertas. Enviei batedores, mas perderam-lhes o rasto, e neste momento não tenho disponibilidade nem a inclinação para investir mais recursos na sua captura, pelo que te encarrego dela. Illoth respirou fundo. Espero ter sido claro. Que dizes da minha... proposta?

 

Tannath continuava atordoado. Slayra... o antroleo morto... o Quenestil com a Slayra... a Shanaya morta... ele ferido... num único dia, Illoth desapoderara-o de tudo, o antroleo ferira o seu corpo e Slayra chagara a sua alma. Eram muitas e violentas revelações, até mesmo para alguém com o sangue-frio de um assassino. Os dedos de Vinxenia nas suas costas pareciam prontos a crisparem-se no punho de um estilete e varar-lhe o coração. Apercebia-se agora também de que a eahanna trabalhara como espia para Illoth, e o facto de não se ter apercebido disso mais cedo era amargo como bile. Essa mesma amargura despertou-o e o eahanoir olhou Illoth nos olhos.

 

O que te garante que não volto para te matar? perguntou, consciente do quão vazia era qualquer ameaça a um etharr, principalmente Illoth.

 

O eahan negro de toga encolheu os ombros despreocupadamente.

 

O mais certo é morreres lá fora. Mas se porventura voltares, podes ter a certeza de que terei tomado as devidas precauções, sim? Então, que me dizes?

 

Acho que depois disto uma mudança de ares me fará bem...

 

Uma curta pausa. Aceito.

 

Esplêndido disse Illoth, batendo as palmas e levantando-se.

 

Deixo então a tua recuperação ao cargo da adorável Vinxenia. As melhoras, sim? e retirou-se, fechando a porta atrás de si.

 

A eahanoir acabou de atar as ligaduras e saiu de cima de Tannath, dando-lhe duas palmadas avaliadoras no traseiro.

 

Vou arranjar-te algo que comer. A febre deve ter-te esgotado, e não queremos perder a tonicidade desse corpo...

 

Foi por causa da Slayra? praticamente afirmou Tannath, fazendo com que Vinxenia parasse a meio caminho.

 

A eahanoir olhou por cima do ombro e o canto da sua boca cordiforme ergueu-se num sorriso.

 

Alguém que julga conhecer tão bem as mulheres faria bem em temer uma eahanoir ciumenta... limitou-se a dizer, saindo ela também da sala de seguida, deixando o eahanoir com o seu tormento pessoal.

 

Após os acontecimentos da noite do duelo entre Aewyre e Kror, o comportamento da tribo para com o grupo sofrera uma drástica mudança. Lhiannah salvara a criança ocarr da bruxa e fora recebida como uma heroína após Kror ter relatado os acontecimentos à xamã. Por arrastamento, os restantes companheiros tiveram um acolhimento parecido. Tamsagan, chamavam-lhes agora os ocarr: irmãos de sela. A consagração dera-se ao ar livre no dia seguinte, apesar do frio e do vento, pois exigia que cada um dos companheiros montasse um hemíono e cavalgasse em redor do acampamento, bebendo uma taça de boozlan ao fim de cada volta e continuando a fazê-lo até cair da montada. Allumno, prudente, fingira-se incapaz de subir a sela à segunda volta, Taislin caíra à terceira, Lhiannah à sétima, Aewyre prendera o pé no estribo à nona e Worick fizera com que o ayan perdesse a conta antes de escorregar da sela e adormecer no chão. Todos excepto Allumno foram transportados para uma tenda dentro da qual ardiam braseiros e onde dormiram durante longas horas, debaixo da vigília do mago. Aewyre despertou primeiro nessa noite, acordado pelo cavernoso ressonar de Worick. A sua boca parecia ter sido estofada com areia, tão seca estava ela, e as têmporas latejaram quando lhes encostou os nós dos dedos. Allumno estava sentado de pernas cruzadas, observando uma chaleira de cobre a aquecer em cima de um braseiro, erguendo o olhar quando ouviu o sofrido despertar do seu protegido.

 

Boas-noites, Aewyre saudou, passando-lhe uma tigela de água. O jovem olhou para o objecto, indeciso entre beber ou imergir a cara nele, acabando por fazer ambas as coisas. Que tal os privilégios de ser tamsagan?

 

Aewyre gemeu, pingando do nariz e dos cabelos, que puxou para trás.

 

Já te disse que os comentários parvos são comigo, Allumno... respondeu, coçando o já não tão módico crescimento piloso na face.

 

”Estúpidos”, ”comentários estúpidos”, para ser mais preciso, mas longe de mim roubar-tos, sejam eles quais forem... que fazemos agora?

 

Agora...? Os olhos do guerreiro estavam semicerrados de contrariedade. Agora o quê? Que dor de cabeça... lamentou-se, apoiando a testa nas mãos.

 

Agora que estamos de boas relações com a tribo. Aproveitamos para partir ou continuamos com eles?

 

Aewyre permaneceu em silêncio, amparando a cabeça para a manter no sítio enquanto o yugr andava à roda. Quando a tontura passou, bebeu o resto da água da tigela e atirou-a incerimoniosamente ao chão.

 

Andamos com eles enquanto eles se dirigirem para Norte. Assim que mudarem de rumo, separamo-nos.

 

Muito bem... olha, trouxe-vos comida. Allumno entregou a Aewyre uma tigela com bocados de carne.

 

Ratos? O mago acenou com a cabeça. Não tenho fome...

 

Passaste boa parte de um dia sem comer. Vai, mastiga isso e engole. Relutantemente, o guerreiro fê-lo, apesar de o boozlan ter queimado as suas papilas gustativas. Em relação ao que aconteceu na passada noite...

 

Nem me fales... interrompeu Aewyre de boca cheia.

 

Na verdade, estava à espera de que tu o fizesses... O jovem suspirou.

 

Lutámos. Eu ia-lhe cortando a perna, ele ia-me partindo o nariz. Apareceu aquela cabra de negro...

 

A harahan?

 

Sim. Apareceu com uma criança ocarr e obrigou-nos a parar. Disse-me para matar o Kror. Se não fosse a Lhiannah, tê-lo-ia feito...

 

A Lhiannah?...

 

Sim, ela apareceu também e cravou uma seta nas costas da cabra, que acabou por fugir... Distraído a falar, o jovem ia comendo.

 

Estou a ver... então e que farás em relação ao drahreg? continuou o mago, confirmando que manter o jovem a falar era a melhor maneira de fazer com que comesse.

 

Em relação a ele? O que é que eu hei-de fazer? Se estás com medo de que eu o enfrente outra vez, não te preocupes. Aprendi a lição.

 

Gostava de saber qual... sendo assim, posso presumir que o Kror seja agora um objectivo secundário?

 

O jovem mastigou pensativamente antes de responder.

 

Eu decidi segui-lo porque senão não ia conseguir seguir para Asmodeon descansado. E também porque julgava que ele estava com a cabra...

 

Tanto nome feio...

 

Com a harahan... sabes que andas cada vez mais chato, Allumno? O mago encolheu os ombros, dando um desconto ao jovem pela sua má disposição.

 

E ele irá cooperar? Também quer tréguas?

 

Não sei... admitiu Aewyre, terei de lhe perguntar. Mas é o que eu quero fazer.

 

Então e a... Essência da Lâmina? - mudou o mago de assunto. Outra pausa para a mastigação.

 

O meu pai é mais importante. Não tenciono morrer antes de saber o que lhe aconteceu. De repente, o jovem pareceu ficar algo sóbrio, esquecendo a dor de cabeça, Allumno suspirou perante a volubilidade do seu protegido, mas acedeu silenciosamente com um acenar de cabeça e deixou o guerreiro entregue à sua resolução, observando os restantes companheiros. Taislin tinha um braço em cima da cara de Worick, que resmungava impropérios mesmo em sonhos. Lhiannah mexia-se durante o seu sono irrequieto, esticando as pernas, curvando-se numa posição fetal, estendendo os braços e virando a cabeça para um lado e para outro. Numa das suas incursões ao espaço dos seus companheiros de tapete bateu com a testa no elmo de Worick, o que a despertou.

 

Boas-noites, Lhiannah saudou o mago.

 

A princesa piscou os olhos, esfregando-os e à testa, mas cedo se arrependeu de os ter aberto, pois algo parecia querer empurrá-los para fora das órbitas.

 

Ohhh... gemeu.

 

Toma disse Allumno enquanto lhe passava uma tigela de água, para apaziguar a garganta.

 

Garganta...? Preciso é de algo para a cabeça... Acquon me cure, tão cedo não volto a beber...

 

O mago abanou a cabeça como faria um pai perante filhos irresponsáveis que se apercebiam das consequências das suas travessuras.

 

Olhou para a chaleira de cobre, cujo conteúdo já fumegava, perto da temperatura ideal.

 

Vai bebendo água, Lhiannah. Estou a preparar-vos uma coisa para a ressaca...

 

”Ressaca”, Allumno? inquiriu a princesa, erguendo as sobrancelhas dos olhos semicerrados.

 

Foi o que eu disse...

 

Sim, mas... não sei, de ti esperava algo como ”mal-estar” ou uma coisa parecida... confessou, esfregando a testa com as palmas das mãos.

 

”Agora ela também? Andar ao laré, ressaca, mas já não posso falar à vontade?”, duvidou o mago. Esforço-me por ser claro... dispensou um olhar à chaleira, da qual já serpenteavam fios de fumo branco. Ah, está pronto. Isto deve ajudar... afirmou, pegando na asa da vasilha com um pano em volta da mão e vertendo o líquido que continha numa taça.

 

O que é isso? quis Aewyre saber, devolvendo a sua atenção ao mago.

 

Chá de urtigas.

 

Urtigas? Homem, tens uma floresta inteira dentro da tua sacola? admirou-se Lhiannah.

 

Apenas o estritamente necessário... respondeu Allumno, sentindo-se como uma desculpa para que os jovens não falassem um com o outro.

 

Seguiu-se um dos habituais silêncios que surgiam sempre que Aewyre e Lhiannah estavam juntos e o mago ocupou-se a verter o chá noutra taça. Os mudos companheiros de Allumno beberam sem trocar palavra.

 

Não prima pelo sabor, mas vai ajudar-vos com... o mal-estar. Ambos acenaram com as cabeças e o mero gesto fez com que estas lhes doessem, pelo que beberam um longo trago, como se dessa forma pudessem afogar a dor. Taislin acordou pouco depois, com a garganta tão seca que se viu incapaz de falar até esvaziar a sua taça de água. Como não estava particularmente ansioso por ouvir os queixumes do burrik, Allumno passou-lhe logo de seguida o chá e ficou sentado de pernas e braços cruzados a ver os três a sorverem o líquido com desagradada avidez.

 

Até quando ficará o Worick assim? perguntou a Lhiannah.

 

Podíamos acordá-lo agora, mas o melhor é deixá-lo estar sossegado. Esta tenda é pequena demais para o aturar.

 

O mago anuiu com a cabeça e esperou que todos acabassem de beber, incapaz de conter um modesto sorriso ao ver as caretas que faziam após cada trago. Assim que terminaram, tirou os seus unguentos da sacola.

 

Taislin e Lhiannah, cheguem-se aqui. Deixem-me ver as vossas feridas...

 

O burrik ergueu-se de imediato, despindo a sua camisola para mostrar a laceração ligada no seu flanco, e Lhiannah puxou a calça da perna ferida para cima. Aewyre ficou a olhar para o vazio enquanto Allumno tratava dos seus companheiros, e de repente pegou no casaco de couro e pele, vestiu-o, pôs-se de gatas e dirigiu-se à entrada da tenda.

 

Onde vais? perguntou o mago sem tirar os olhos da perna ferida de Lhiannah que tratava.

 

Falar com ele respondeu o jovem secamente. Não se preocupem, prometo que não vou lutar acrescentou.

 

Os três viram o jovem sair e Lhiannah continuou a fitar apreensivamente o reposteiro da tenda mesmo enquanto Taislin o fechava.

 

Não levou a Ancalach constatou o burrik. Ninguém disse nada.

 

A estepe deu as boas-vindas a Aewyre com uma gélida e prolongada lufada de vento. O jovem tirou as luvas forradas a pêlo de coelho do cinto e enfiou-as nas mãos, mexendo os dedos para esticar o couro pouco flexível. Olhou em redor e só viu yugrs com pequenas caudas de fumo a serpentearem dos buracos nos seus tectos; não havia vivalma fora do calor das tendas. Puxou pela cabeça e lembrou-se de que a lona da tenda da xamã estava pintada com símbolos estranhos, começando a procurá-la de seguida. Passou por uma ocarr que estava acocorada por cima de um buraco fumegante no chão e desviou educadamente o olhar. A mulher disse algo na sua língua, que tanto podia ser o desejo de uma boa noite como a vontade de o obrigar a comer aquilo que estava a fazer, pelo que o jovem se limitou a murmurar algo em resposta e continuou no seu caminho. Após algumas voltas ao acampamento, acabou por encontrar o yugr da xamã e, desconhecendo os gestos de cortesia ocarr, bateu ao de leve no reposteiro de lona. Como não obteve resposta alguma, tornou a bater. Após a terceira batida, achou que já fora educado o suficiente e curvou-se para entrar. O yugr da xamã estava escuro, com um único braseiro de estrume a arder no centro, e dentro dele pairava o inevitável odor a esterco misturado com um amargo perfume de artemísia. Penduricalhos, ossos e ossículos pendiam das armações da tenda, atados com tendões, e a cabeça do guerreiro fez com que vários chocalhassem e se lhe emaranhassem no cabelo, lembrando-lhe do quanto este crescera.

 

A xamã estava sentada de pernas cruzadas ao lado de Kror, esse deitado e envolto em peles. O queixo da anciã tocava-lhe a junção das clavículas, pelo que ou dormia ou meditava; era difícil de dizer com os olhos vendados e com a quase imperceptível respiração. Não pareceu reconhecer a presença de Aewyre de qualquer uma das formas. Kror estava desperto, e os seus orbes vermelhos haviam fitado o seu figadal adversário desde que este entrara. Instintivamente, os corpos de humano e drahreg retesaram-se com o puxão do ”tendão”, mas ambos conseguiram dominar os seus impulsos. Ainda assim, os olhos de Aewyre fixaram-se na trouxa de peles que pendia de uma armação e que o jovem sabia conter os dois estranhos alfanges.

 

Como está a perna? indagou, permitindo-se esse pequeno rodeio.

 

Bem respondeu o drahreg sem hesitar, destapando a perna enfaixada em ligaduras de lã. A ferida fora feia, mas a anciã fizera aparentemente um bom trabalho. O... nariz? perguntou ainda, erguendo o tronco para se colocar numa posição sentada.

 

Consigo respirar... O nariz ainda estava avermelhado, mas não fora partido. Temos de falar.

 

Sim... concordou Kror, indicando a Aewyre que se sentasse. O jovem assim fez, enclavinhou os dedos e os dois guerreiros ficaram a olhar como que hipnotizados para o estrume ruborizado. Tanto um como o outro tinham a sensação de que abrir a boca seria o equivalente a desembainhar uma espada. Aewyre perdeu a paciência primeiro e quebrou o silêncio que se instalara no yugr.

 

Como é que vai ser?

 

O olhar de Kror deu a entender que não percebera.

 

Como é que vamos fazer agora? Eu vou-me embora; e depois? O que é que tu vais fazer?

 

Ambos fitaram-se um ao outro durante um intervalo de várias batidas de coração, até que o drahreg respondeu.

 

Eu vou matá-la. Aewyre ergueu o sobrolho. Ela fez mal a mim e aos meus irmãos. Vou encontrá-la e vou matá-la.

 

Algo estalou no monte de estrume, e depois disso o silêncio tornou a reinar. Aewyre coçou a barba e pensou no que dizer.

 

E... tu? perguntou Kror.

 

Eu? Vou seguir o meu caminho. Eu nem queria entrar nas estepes, a culpa disso foi... Não, não iria causar conflito. Eu... e os meus amigos vamos para Norte, para fora das estepes. O drahreg acenou com a cabeça. Vamos ter problemas?

 

Kror encolheu os ombros.

 

Vocês são tamsagan. Os Cho Tirr não vos vão fazer mal.

 

Sim, já sei que os Cho Tirr são uns catitas, mas e as outras tribos? Os outros ocarr são tão simpáticos? Aewyre mordeu a língua pelo seu sarcasmo. O maldito ”tendão” desembainhara a sua língua na falta de Ancalach.

 

Aparentemente, a zombaria passou ao lado de Kror.

 

Vocês podem andar com os Cho Tirr enquanto quiserem, mas quando se forem embora, não sei o que os outros ocarr fazem, se há ocarr a Norte...

 

Pois... teremos de confiar na sorte. O drahreg acenou com a cabeça, apesar de Aewyre não ter a certeza se ele percebera. Então e depois de a matares, a harahan?

 

O nome nunca deixava de fazer Kror encolher-se involuntariamente.

 

Depois... não sei... admitiu o drahreg.

 

Pois, eu também não...

 

Pois...

 

Pois... insistiu o humano.

 

Outro momento de silêncio, que na verdade nem era de todo desconfortável para nenhum dos dois. Após dias de intensa tensão entre ambos, passarem um momento silencioso juntos perante um monte de estrume ardente era quase aliviante. A cabeça da xamã começou a abanar quando esta principiou a tartamudear palavras ininteligíveis, como em transe.

 

O que é que a... venerável está a fazer? perguntou Aewyre para mudar um pouco o assunto.

 

A pedir aos... espíritos que tratem da minha perna.

 

Ah.

 

Sim...

 

Pois...

 

A xamã calou-se. O yugr estava cada vez mais sossegado, apesar de dois dos presentes serem capazes de desencadear uma furiosa tempestade caso os sentidos certos fossem desencadeados por algum impulso. Mas ambos estavam calmos, estranhamente calmos, como se tivessem declarado tréguas não verbalizadas.

 

Aewyre limpou a garganta.

 

Depois de matares a harahan, vens atrás de mim, não vens? Kror pensou antes de responder, mas a resposta era óbvia.

 

Sim.

 

Pois... disse Aewyre resignadamente, como se o drahreg lhe tivesse confirmado que a estepe era fria no Inverno. E então... teremos de lutar.

 

Pois... Kror assimilava palavras depressa, notou o humano. Se passasse mais uns tempos com ele, tinha a certeza de que conseguiria falar Glottik fluentemente.

 

Bom, então só podemos esperar até que o dia chegue. Até lá também tenho coisas para fazer...

 

Pois... Agora já começava a parecer um corvo a crocitar palavras de volta.

 

Certo. Ainda bem que concordamos. O guerreiro levantou-se, mantendo a cabeça baixa. Então até amanhã.

 

Boa noite... desejou Kror, deitando-se outra vez.

 

Boa noite. Aewyre encaminhou-se até à saída do yugr, mas parou antes de a abrir e olhou para trás.

 

Kror retribuiu o olhar e nesse breve instante os dois guerreiros sentiram um afluxo quente no peito e as batidas dos seus corações retumbaram-lhes nos ouvidos. Os punhos de ambos cerraram-se e os pêlos nos seus pescoços eriçaram-se, mas assim que a xamã retomou a sua ladainha, veio a calma. Aewyre foi ter com Kror uma vez mais e estendeu-lhe a mão.

 

Enterraste os clérigos e poupaste a vida à Lhiannah e ao Taislin. O drahreg olhava para a mão estendida com um misto de curiosidade e apreensão. És um grande combatente e o melhor adversário que já enfrentei. Depois de nos separarmos, a próxima vez que nos virmos, será de espadas desembainhadas, e aí um de nós vai morrer. Eu... queria apenas que soubesses que te respeito. Kror.

 

O drahreg continuou a olhar para a mão de testa franzida, e Aewyre pensou que usara palavras demasiado complicadas, mas de alguma forma Kror entendera, pois acabou por lhe agarrar a mão, cautelosamente primeiro, e depois num franco aperto. Os dedos de ambos formigaram, e humano e drahreg apertaram com mais força que a que seria necessária, mas conseguiram reprimir os instintos de combate que os incitavam a atirarem-se um ao outro.

 

Eu... também te respeito. Aewyre.

 

Ambos puxaram então as mãos para longe uma da outra, levando-as ao cabelo e à barba como se de um movimento natural se tratasse.

 

És um drahreg estranho, e essas tuas espadas também são esquisitas. Mas não deves querer falar disso, pois não?

 

Se não tivesse olhado para o chão ao perguntá-lo, Aewyre teria visto um fugaz brilho nos olhos vermelhos de Kror, uma derradeira vontade de falar, de vazar tudo o que lhe ia na alma num único momento fraternal, que rapidamente se desvaneceu. Quando ergueu a cara, Kror já olhava para o braseiro de estrume outra vez.

 

Pois... bem, fica para outra vez então. Talvez. Boa noite e... desculpa lá a perna.

 

Isso Kror percebeu e estranhou, mas Aewyre não lhe viu a expressão franzida porque lhe virou as costas e caminhou para a saída do yugr. O drahreg sentiu necessidade de dizer uma última coisa, qualquer coisa, mas nada lhe ocorreu.

 

Pois... foi a única palavra que lhe saiu da boca quando Aewyre fechou o reposteiro. Kerhex e Sassiras’s chamavam-no sussurrantes da trouxa pendurada, e o drahreg convenceu-se de que fizera bem em os deixar fora do seu alcance.

 

Os companheiros continuaram com os Cho Tirr durante mais um mês após essa noite, acompanhando-os na sua migração para Norte. Não mais foram tratados como reféns hospedados, mas sim como verdadeiros membros da tribo, partilhando da taça de boozlan do ayan e compartilhando histórias com este à fogueira com a ajuda de Kror. Taislin participava nas gloriosas caçadas a ratos com as crianças, competindo nos lançamentos de funda com os mais hábeis dos jovens caçadores, e Allumno entretinha a tribo à noite com exibições luminosas criadas através da Palavra. Sempre que Kror estava ausente, Aewyre treinava duelando contra os jovens espadachins da tribo armados de sabres. Worick mantinha a sua distância e passava a maior parte dos dias pronto a ajudar Lhiannah contra as investidas do ayan, que a cortejava como um pombo ufano. A princesa recusara educadamente todos os seus avanços, apesar de não saber se se estava ou não a fazer entender ou se pelo contrário não estaria a encorajar o chefe ocarr.

 

O meu martelo ele compreende, ai disso não tenhas dúvida afirmara sempre Worick, mas por sorte a arinnir conseguira sempre evitar quaisquer excessos protectores do thuragar.

 

Ao fim da quarta semana, Kror informou os companheiros de que os Cho Tirr iriam por fim mudar o rumo para Oeste. Chegara a hora da despedida. Foi feita uma festa em honra dos tamsagan na última noite em que os companheiros dormiram no acampamento, com música, lombinhos de rato e muito boozlan, que todos menos Allumno uma vez mais beberam em excesso.

 

Na manhã seguinte o grupo acordou no yugr para o qual o mago os arrastara com a ajuda de uns prestáveis jovens que haviam treinado com Aewyre nos últimos dias. Com a excepção de Allumno, grande foi a surpresa de todos assim que saíram da tenda e a única coisa que viram foi Alfarna, que lhes orneou os bons-dias. Do acampamento não havia quaisquer vestígios, apenas umas trouxas com lombinhos de rato fumados encostadas ao yugr. Parecia que tinha sido arrancado pelo vento e arrastado para parte incerta.

 

Partiram de madrugada informou o mago, voltando para dentro da tenda.

 

Pedras me partam, não gostam mesmo de despedidas... comentou Worick.

 

Se calhar por isso é que ontem estavam tão efusivos... achou Aewyre, coçando a barba.

 

Gente estranha... disse Taislin, esfregando as mãos com o frio.

 

Lhiannah aconchegou-se na sua capa e fitou o pardacento céu matinal com os cabelos louros a abanarem ao vento.

 

E agora? perguntou, deixando incerto a quem se dirigia. Aewyre respondeu de qualquer maneira.

 

Continuamos para Norte disse, apontando nessa direcção, na qual ao longe já se distinguiam os picos de montanhas. Vai ser um alívio pisar terreno acidentado...

 

...e ver árvores... acrescentou Taislin.

 

... e rachar os chifres a um corço montanhês para o comer... ajuntou Worick.

 

E tomar um banho num regato adicionou Lhiannah, passando os dedos pelo cabelo sujo e peganhento. Pouco me importa que seja de água gelada.

 

... assá-lo bem devagarinho num espeto sobre brasas até a gordura começar a chiar... continuou o thuragar a fantasiar.

 

É capaz de ser um pouco frio demais, Lhiannah... advertiu Taislin, tapando as orelhas com o gorro vermelho.

 

Já disse, vou mergulhar na primeira poça que vir, nem que tenha gelo por cima.

 

... rasgar a carne bem tenrinha e comer o bicho até ao tutano...

 

Worick, pára, estás a fazer-me fome pediu Aewyre.

 

Allumno saiu do yugr e dirigiu-se a Lhiannah com um arco recurvo ocarr dentro de um estojo de couro e uma aljava cheia de setas ao ombro. Perante o ar confuso da princesa, o mago explicou.

 

Uma cortês prenda do ayan disse, estendendo-lha. Diz que espera um dia ter filhos teus de cabelos cor do sol e beber o teu leite fermentado.

 

Olhem, quem diria, o ayan é um romântico... comentou Worick.

 

Lhiannah corou, mas aceitou o arco de chifre, madeira e tendão e a aljava recheada como as prendas úteis que eram.

 

Leva isto também continuou o mago, estendendo o seu cajado à arinnir, que o olhou dubiamente. Eu monto a burra, não preciso dele. A tua perna ainda está ferida... explicou, estendendo-lho. Toma. Relutantemente, a princesa acabou por aceitar. Ah, o nosso amigo drahreg tinha umas palavras para ti, Aewyre.

 

Quais? Allumno tinha toda a atenção do guerreiro.

 

Agora não é a altura, mas ela virá. Deduzo que saibas o que quer dizer?

 

A memória do primeiro encontro de Aewyre com Kror assomou-se-lhe, um primeiro e fatídico cruzar de olhares. Ninguém percebeu o sorriso conformado que surgiu na cara do jovem.

 

Perfeitamente... vamos então?

 

Ninguém se opôs, pelo que começaram a desmontar o yugr com cuidado, pois as armações da tenda não eram tão sólidas quanto aquelas às quais os companheiros estavam habituados. Alfarna resfolegou de satisfação quando Allumno lhe subiu para a sela e os seus alforges foram carregados com o equipamento.

 

A burra está diferente constatou o mago, afagando-lhe o cachaço. Mais vigorosa. Os ocarr tratam bem os animais.

 

Pudera não, deve ter andado a pinar com aqueles burricos todos. Sempre soube que ela tinha um fraquinho por ruivos, a vagabunda...

 

Só Worick riu, pois a sua alusão a Quenestil avivou as saudades dos companheiros pela primeira vez em muitas semanas. Allumno limpou a garganta e Alfarna abanou as orelhas como se tivesse ouvido algo desagradável.

 

Vamos. Aewyre deu o primeiro passo e os companheiros não tardaram em o seguir.

 

Cambada de macambúzios... e depois dizem que o rezingão sou eu... resmungou o thuragar, ajustando as faixas da mochila aos ombros antes de dar início à caminhada.

 

Era tarde na Latvonia, mas estivera escuro o dia inteiro, com o céu esfarrapado por pardos cirros cinzentos que vaticinavam chuva para breve. Quenestil segurava a crina do garanhão negro com uma mão e cingia a cintura de Slayra à sua frente com o braço ferido de dedos ligados com a sua fita do cabelo. Fizera-lhe uma suspensão para o ombro com um bocado da capa negra desta, cortado à faca, e a eahanoir por sua vez ajudara o shura com o seu braço bom a tratar a ferida no seu trapézio, estofando-a com teia de aranha orvalhosa e enfaixando-a com outro pedaço de capa passado por baixo da axila oposta.

 

O cavalo caminhava debaixo do desnudo abrigo dos ramos de faias e bétulas a passo regular mas lânguido, obrigando Quenestil por várias vezes a puxar-lhe a crina para o impedir de parar para comer fetos. Estava sem dúvida contrariado por ter de levar duas pessoas às costas, e as palavras calmas e sossegadoras do eahan entravam por uma orelha arrebitada e saíam por outra a abanar. Era um animal mimado e soberbo, que aos olhos de Quenestil trazia consigo uma pequena parte de Jazurrieh, mas não se podia dar ao luxo de o mandar embora, não com os ferimentos de Slayra. Resignado, o shura olhava sempre em frente, a sua expressão rígida, os seus lábios fechados. O seu olho sarara no decorrer da semana que haviam passado a palmilhar os bosques latvonianos, embora ainda estivesse envolto por uma orla de pele amarelecida, mas pelo menos já conseguia ver bem. Slayra agarrava o pulso de Quenestil que lhe cingia a cintura, afagando-lhe o braço por vezes, mas parecia estar a acariciar granito. O eahan estava hirto, seco. Chorara todas as suas lágrimas naquele dia, e agora estava numa espécie de luto frio e taciturno, distante de tudo e todos, incluindo Slayra. Cuidava dela, claro, tratara do seu ombro, aliviara-lhe os inchaços na cara com compressas de musgo húmido e suturara o corte acima da sua sobrancelha com mordidas de enormes formigas, cujas mandíbulas das suas cabeças decapitadas com o seu estilete ainda lhe mantinham o corte fechado. Mas aquela distância, aquele silêncio, aquela hirsutez, aquela relutância em buscar conforto nos seus braços, tudo isso lhe era doloroso, até por que ela própria precisava de o abraçar, de chorar as suas mágoas, de ter a certeza de que não a culpava, mas dia após dia o silêncio apenas se agravava. A última vez que haviam falado fora há quase uma semana, quando decidiram o rumo a tomar. Slayra aconselhara que fossem para Leste, em direcção a uma aldeia costeira chamada Tomska, na qual poderiam apanhar um barco para Tanarch.

 

Os outros já têm um grande avanço sobre nós afirmara a eahanoir. Se formos pelas estepes, nunca mais os apanhamos. De barco, chegamos mais depressa a Tanarch e pode ser que os apanhemos no Istmo Negro.

 

O shura aceitara o seu conselho com um curto acenar de cabeça e ”nada mais dissera desde então. Slayra não o pressionara, mas custava-lhe muito não o fazer, quase tanto como lhe custava manter uma expressão serena na cara, visto não poder franzir a testa, correndo o risco de o aperto das mandíbulas das formigas se soltar e abrir a ferida.

 

Uma gota de água pingou-lhe na testa, escorrendo-lhe pelo lado do nariz até à ferida no seu lábio inferior.

 

Está a chover constatou, agasalhando-se com a capa, pois a única roupa que trazia vestida era um corpete, botas até aos joelhos e luvas até aos cotovelos de dedos cortados.

 

Hmmm e esse seria provavelmente o último som que o eahan proferiria nesse dia.

 

Puxou a crina do garanhão ao de leve e olhou em redor, procurando um abrigo à medida que a precipitação se intensificava. Slayra puxou o capuz da sua capa para a frente, mas Quenestil ignorava a chuva como se fosse um penedo. A água já lhe pingava do nariz quando incitou o garanhão a um passo mais apressado na direcção de uma faia particularmente grande, cujos ramos altos e amplos pareciam braços abertos a recebê-los. O shura desmontou e pegou Slayra delicadamente pela cintura para a tirar da sela, mas mesmo esse gesto foi maquinal, desprovido de qualquer emoção. Conduziu a eahanoir ao colo fetoso da árvore, deixando-a lá acocorada e minimamente abrigada da chuva enquanto atava as patas dianteiras do cavalo com um dos seus fios de arco sobressalentes, deixando-o folgado o suficiente para que o animal pudesse andar mas não conseguisse ir para muito longe. Feito isso, sentou-se ao lado de Slayra e ambos se aninharam no tronco, sendo invariavelmente acariciados pelos húmidos fetos abanados pelo vento.

 

O ombro? perguntou.

 

Há-de sarar...

 

Tens fome?

 

Nem por isso... Os nervos e a tristeza haviam tirado todo o apetite à eahanoir, e aparentemente a Quenestil também, pois este limitou-se a assentir guturalmente e apoiar a cabeça sobre os braços para dormir.

 

Slayra encostou a sua ao ombro do eahan, apesar de a casca da faia parecer menos dura, e passou-lhe parte da sua capa por cima dos ombros, agarrando-lhe a mão ferida. Passaram uma noite fria e molhada, aninhados nos fetos que cresciam na base da faia, e na manhã seguinte Slayra acordou rígida e com dores nos músculos ao levantar-se.

 

Vou arranjar qualquer coisa para comermos disse Quenestil, que não parecia ter dormido mal. Estava habituado a passar noites no ermo, e de qualquer forma era difícil ficar mais hirto ainda.

 

A chuva tornara-se num chuvisco que borrifava a cara de Slayra enquanto esta olhava para o céu, esperando pelo regresso do shura, uma solitária figura encapuzada no meio do bosque. As derradeiras palavras de Babaki haviam-na assombrado durante os últimos dias e repetiam-se constantemente na sua cabeça, apesar de mal se recordar de as ter ouvido. Eram memórias vagas: o rolar de rodas na calcetada, o passo cascoso de cavalos, abanões, o pêlo quente de Babaki atrás da sua cabeça, a sua voz calma e profunda a fazer-lhe confidências... isso e outra coisa. Enfiou os dedos entre os seus seios e do meio deles tirou uma nesga de cabelo louro entrançado, cabelo da Lhiannah.

 

”Eu amava-a, Slayra, e nunca lho cheguei a dizer...”

 

Até há bem pouco tempo atrás, essa frase ter-lhe-ia arrancado uma sonora e zombeteira gargalhada, mas após conhecer Quenestil a eahanoir mudara muito, tal como o shura não mais era o mesmo. Agora, esse último acto de amor trazia-lhe lágrimas mornas aos olhos frios. Pobre Babaki...

 

Assim que ouviu o restolhar dos passos de Quenestil, apressou-se a esconder a nesga no seu corpete e esperou que as gotas de chuva na sua cara lhe disfarçassem as lágrimas. O eahan trouxe consigo o cavalo, que se afastara do local durante a noite para ir beber a um regato, e a mesma ementa dos últimos dias: frutos amargos de faia e casca de bétula, tudo paladares estranhos aos quais Slayra ainda não se conseguira habituar mas se obrigava a engolir. Tomaram um pequeno-almoço silencioso antes de montarem o cavalo e retomarem a sua longa jornada até à costa latvoniana. Slayra estimava que ainda demorassem umas boas duas semanas até chegarem a Tomska, e a viagem não se lhes afigurava risonha, julgando pelo céu lúgubre. O único ruído que se ouvia no bosque, para além do resfolegar contrariado do garanhão, era o ocasional gloterar de uma cegonha. A meio da tarde, a chuva piorou, tornando-se num autêntico dilúvio castigador, e tornou-se necessário procurar outro abrigo.

 

Que tal ali? sugeriu Slayra, apontando com o seu braço bom para um barranco à beira da estrada com um tecto de raízes.

 

Vejo fumo mais adiante informou o shura, sem sequer olhar para onde a eahanoir apontara.

 

Slayra nada acrescentou e Quenestil obrigou o cavalo a virar para subir a ladeira que conduzia ao local de onde o fumo provinha. Encontraram um trilho lamacento que passava por um fetal, no qual assustaram uma raposa molhada que correu para longe dali com um coelho ensopado na boca, parando após alguns saltos para olhar para trás com indignação nas arrebitadas orelhas, que se abanavam constantemente para sacudir a água. Continuando pelo trilho, acabaram por chegar a uma pequena clareira no meio da qual viram uma diminuta cabana feita de tiras de madeira tecidas cobertas por uma camada de estrume, palha e barro. Um tentáculo de fumo cinzento serpenteava para fora de um buraco no tecto de colmo, dando sinais de habitação. Quenestil fez tenções de desmontar, mas Slayra agarrou-lhe o braço que lhe envolvia a cintura.

 

Espera. Latvonianos são traiçoeiros, canalhas de maus fígados, todos eles. Mais vale dormirmos ao relento.

 

Eahanoir também afirmou o shura categoricamente. Se dormirmos cá fora com esta chuva, ficamos doentes. E desmontou, deixando uma aturdida Slayra para trás, certo de que o significado das suas palavras fora claro. Ó da casa! gritou, esperando por uma resposta.

 

A única abertura do miserável casebre era a porta de tábuas de madeira mal pregadas e com fendas, e foi nela que Quenestil bateu, tornando a gritar pelos seus habitantes. Não foi senão à terceira vez que ouviu vozes lá de dentro e a porta foi aberta por um homem. Era um latvoniano de idade adiantada, com cabelo branco esparso na nuca e têmporas e manchas castanhas na calva. Usava um bigode cinzento que lhe tapava a boca debaixo de um nariz com um grande furúnculo avermelhado na narina direita. Alguns pêlos das suas sobrancelhas tinham um comprimento prodigioso, dando um ar desconfiado e velhaco aos seus olhos avermelhados pelo fumo da fogueira. Vestia um casaco de pele de cabra e teve o cuidado de manter a faca do seu cinto bem à vista quando ladrou algo incompreensível a Quenestil.

 

Eu falo Urial disse Slayra, que se aproximara com o cavalo. Ajuda-me a desmontar.

 

Quenestil assim fez e a eahanna puxou o capuz para trás quando o shura a pousou no chão, descobrindo o seu sedoso cabelo negro e os seus penetrantes olhos azuis. A sua cara pálida estava betada com manchas castanhas, resquícios dos inchaços. O homem arfou e os seus olhos irritados arregalaram-se. Começou a falar muito alto e a gesticular com as mãos, como se estivesse a afastar algum mal da porta da sua casa. Uma voz feminina veio de dentro da cabana, mas o homem pareceu mandá-la calar.

 

O que é que ele está a dizer? inquiriu Quenestil, puxando o cabelo molhado para trás.

 

É difícil perceber... Slayra disse algo em Urial, mas o homem falava um dialecto da região de tal forma cerrado e indistinto que a eahanoir teve extrema dificuldade em juntar as palavras que percebia.

 

Eahanoir, pena de nós! Tenho mulher e filha e menino pequenino! Não façam mal! foi o que Slayra julgou entender. Entretanto, aparecera a que devia ser a esposa do homem detrás das costas deste, meio encoberta por sombras.

 

Eles têm medo de eahanoir informou Slayra, como se já o soubesse de antemão. O homem continuava a falar, parecendo não se importar com o facto de os dois estranhos estarem à chuva.

 

Diz-lhe que só queremos um sítio seco para dormir até a chuva passar, que não incomodamos.

 

Slayra repetiu as palavras de Quenestil em Urial calmamente, e o homem calou-se e ouviu com atenção.

 

Diz-lhe que arranjamos a nossa comida.

 

O homem acalmou visivelmente quando a eahanoir traduziu essa frase e baixou a cabeça humildemente perante ela e o shura. Um rapaz de cara suja e cabelos negros espigados apareceu detrás da perna do velho, que disse à mulher que o levasse para dentro antes de recomeçar a falar.

 

Podemos... dormir com... a cabra! traduziu Slayra, dúbia. Quenestil esticou o pescoço para o lado, como se pudesse ver as traseiras da cabana.

 

Eles têm um curral informou. Diz-lhes que serve perfeitamente.

 

A eahanoir aceitou a oferta do homem e este executou um gesto largo com a mão como para dizer que podiam ir lá à vontade e fechou-lhes a porta na cara com uma certa premência. O eahan deu a volta à cabana, puxando o garanhão pela crina, e viu a entrada para o minúsculo curral, fechado com um portão de madeira podre. Lá dentro estava uma cabra de longa pelagem preta e castanha, orelhas descaídas e chifres espiralados a amamentar uma sôfrega prole. A chiba olhou para os dois eahan enquanto mastigava palha, questionando-se quanto à presença de estranhos. O curral era muito pequeno, com chão coberto de palha suja, e cheirava a fezes e bodum, mas aparentemente teria de servir. Sem nada dizer, Quenestil atou as patas do cavalo com um fio de arco, abriu o portão e entrou, e nesse instante a cabra parou de mastigar e virou-se para ele, baixando a cabeça. O eahan ajoelhou-se lentamente e murmurou palavras aquietadoras, executando gestos calmos com as mãos de palmas abertas. O animal inclinou a cabeça, fitando Quenestil, olhou para os lados e acabou por virar as costas ao eahan, retomando a sua refeição.

 

Já se pode entrar? perguntou Slayra, mais para ouvir Quenestil falar que por necessidade de resposta à pergunta.

 

O shura limitou-se a guturalizar afirmativamente e a fazer uma selecção de palha minimamente limpa para a empurrar para o canto afastado da cabra. Slayra suspirou tristemente e entrou, dando distraídos pontapés numa bola de palha e esterco seco enquanto Quenestil fazia a cama improvisada.

 

Vou buscar fetos disse de passagem a Slayra antes de sair para o fazer, sem sequer ver o resignado acenar da cabeça desta.

 

A eahanoir ficou à espera, observando as crias a balirem ruidosamente por tetas, lutando por aquela à qual achavam ter direito.

 

”O Babaki é que gostava tanto de animais...”, pensou, melancólica.

 

Quenestil voltou pouco depois, trazendo fetos verdes nos seus braços e a habitual refeição de cascas de árvore, que Slayra comeu sem apetite enquanto o eahan espalhava os fetos sobre o monte de palha no qual iriam dormir. Durante o resto do dia não mais viram os habitantes, e a única voz que ouviram era feminina, ruidosa e entaramelada. Se Quenestil estava minimamente curioso, não o mostrava, deixando-se estar deitado de costas e com os braços atrás da cabeça. Slayra estava deitada a seu lado, com a cabeça sobre o seu peito. Quase se deu por satisfeita pelo simples facto de sentir o coração do eahan a bater. Ficaram assim até anoitecer, e nessa altura a eahanoir sentiu necessidade de fazer algo, caso contrário entraria em paranóia. Começou por roçagar a coxa de Quenestil com as unhas e esfregar a cabeça no seu peito, mas como este não reagiu, deslizou a sua mão por entre as virilhas do eahan. Perante este gesto, os dedos do shura cerraram-se no seu pulso e os olhos cinzentos, mortiços nos últimos dias, avivaram-se de repente. Slayra interpretou mal esse gesto e passou a perna por cima da bacia de Quenestil, sentando-se em cima dele.

 

O que é que estás a fazer?

 

A eahanoir não respondeu e levou a mão atrás das costas para começar a desapertar o corpete.

 

Slayra, o que é que estás a fazer? pela primeira vez em dias, havia emoção de alguma espécie na voz do eahan, e só por isso Slayra continuou, olhando-o nos olhos. Slayra, pára! vociferou, puxando-lhe o braço bruscamente para a frente.

 

Isso! gritou a eahanoir, surpreendendo Quenestil. Grita comigo! Puxa-me! Bate-me! Ao dizer isto, desferiu um murro no ombro do eahan. Faz qualquer coisa que mostre que eu ainda existo!

 

Slayra, pára! Vais magoar-te! acautelou o shura, agarrando-lhe o pulso antes que lhe batesse outra vez.

 

Sim, magoa-me! Achas que só tu é que estás triste, que eu não me importava com ele? Achas que ele morreu por minha culpa? É isso? As lágrimas borraram-lhe os olhos enquanto gritava, e quando a sua visão clareou, Quenestil estava em cima dela com todo o cuidado para não lhe pressionar o ombro ferido, afagando-lhe a cabeça, sossegando-a com sons tranquilizadores ao ouvido enquanto ela chorava abraçada ao seu pescoço.

 

Os dois eahan demoraram boa parte da noite a habituarem-se ao cheiro do curral, e Slayra acordou pelo menos três vezes com a chiba a morder-lhe o cabelo, mas pelo menos o tecto de colmo deixava passar apenas umas poucas gotas de água e dormirem aconchegados em cima de palha e fetos sempre era mais quente que ao relento. Slayra acordou de manhã com a boca seca e a saber mal, provavelmente devido às coisas que andava a comer. De Quenestil não havia vestígios, mas a eahanoir já estava habituada às desaparições matinais do eahan. Sabia bem que todos os homens precisavam do seu tempo sozinhos, e o do eahan aparentemente era de manhã, pelo que se levantou para se espreguiçar. A cabra baliu-lhe à laia de cumprimento e as suas crias fitavam-na com grandes olhos pretos. Lá fora, continuava a chover, apesar de ter amainado para um chuvisco matinal, e Slayra distinguiu a silhueta de Quenestil e do garanhão a aproximarem-se. O animal parecia extremamente contrariado, e estava tão ensopado que o seu pêlo luzia como piche.

 

Este cavalo ainda fica doente disse o eahan, mas não há espaço para ele no curral.

 

Pois não... concordou Slayra com um pouco da secura que recebera do shura nos últimos dias.

 

Os dois ficaram a olhar um para o outro, Quenestil à chuva agarrado à crina do garanhão e Slayra encostada à entrada do curral. O eahan suspirou, baixando a cabeça.

 

Ouve, Slayra, em relação a ontem... Tornou a erguer a cabeça e largou a crina, indo ter com a eahanoir. Não preciso de te explicar por que estou assim, e acho que é por essa mesma razão que te zangaste ontem. Slayra ia dizer alguma coisa, mas o shura ergueu um dedo. Deixa-me acabar. E isto não é para ficares ofendida. Eu sei como os eahanoir encaram a morte, e não quero dizer que não estejas triste, mas é... diferente. Nós os dois estamos a lidar com o que aconteceu ao Babaki e tu ontem... quiseste confortar-me a mim e a ti, só que eu reagi mal porque isso para mim, para os do meu povo, era como uma falta de respeito para com o Babaki, e...

 

Quenestil, a vida continua... interrompeu Slayra, a morte do Babaki dói, dói muito, mas temos de nos apoiar um ao outro, não podes ficar isolado, sem falar comigo, como se eu não existisse...

 

Eu sei, eu sei... chama-me o que quiseres, mas é assim que eu sou. Mas tens razão numa coisa... pegou no queixo de Slayra podemos apoiar-nos um ao outro. Deu-lhe um beijo de lábios molhados e Slayra levou-lhe a mão à cara. Dá-me tempo, sim? Só te peço um pouco de paciência...

 

Quenestil... tu deves estar a pensar que eu sou a maior egoísta, quê isso está na minha natureza, e que eu...

 

O shura silenciou-a com outro beijo, mais prolongado e profundo.

 

Vamos lá para dentro. Preciso que me traduzas uma coisa disse, entrando com Slayra no curral. Tenho de lhes perguntar se posso fumigar isto na fogueira deles explicou, tirando outro fio de arco da sua bolsa.

 

A eahanoir traduziu e repetiu a frase várias vezes com Quenestil, embora não percebesse porquê.

 

Para que é que queres fazer isso?

 

Armadilha para coelhos. Precisamos de comer. Tenho de o fumigar para lhe tirar o meu cheiro. Já volto. Preparou-se para tornar a sair do curral, mas parou, lembrando-se de algo e voltou atrás para beijar Slayra uma vez mais.

 

Depois disso, foi bater à porta da cabana e esperou que o velho a abrisse. Mal viu o eahan de cabelos ruivos molhados começou a falar alto e a gesticular, como se estivesse surpreso por ainda não se terem ido embora, indicando o céu com as duas mãos, provavelmente querendo dizer que já se podia viajar com o tempo assim. O eahan estendeu-lhe a mão com o fio do arco e recitou a frase que Slayra lhe ensinara. O homem franziu a testa e virou a cara de lado para ouvir melhor. Quenestil reiterou pacientemente, esperando estar a dar a entoação correcta às palavras. O seu interlocutor palavreou qualquer coisa em Urial em resposta.

 

Sim, sim, posso entrar ou não? Como se tivesse percebido, o homem olhou para o chão, coçou o furúnculo no nariz e acabou por lhe indicar que entrasse. Obrigado.

 

O shura baixou a cabeça e entrou dentro da cabana. Era um casebre muito pequeno e esquálido, com chão de terra calcada e uma atmosfera escura e fumarenta. A única mobília consistia de dois baús de dobras enferrujadas, uma tábua e cavaletes que serviam de mesa encostados a um canto e camastralhos de palha espalhados pelo chão. No centro estava uma fogueira cercada por pedras, e à volta dela a família do latvoniano: a esposa que cosia uma peça de roupa e cujos caracóis cinzentos lhe saíam rebeldes do toucado sujo, o rapaz de cabelos pretos espigados e olhos curiosos e uma rapariga que Quenestil não vira antes. Estaria perto da sua idade, talvez um pouco mais nova, mas devia ser mais alta que ele e era definitivamente mais corpulenta. Os seus caracóis de um castanho quase avermelhado tapavam-lhe a cara enquanto ela tecia algo invisível com os dedos e se balouçava para a frente e para trás, cantando na voz entaramelada que o eahan ouvira durante a noite. O rapaz era novo demais para ser filho da velha, pelo que a rapariga dos caracóis devia ser a mãe.

 

Bons dias cumprimentou Quenestil, recebendo um olhar de esguelha da matrona e uma contemplação curiosa da parte do rapaz.

 

A rapariga não reagiu, pelo que Quenestil pediu licença e acocorou-se à fogueira, enrolando o fio do arco num graveto e estendendo-o por cima da fumarenta fogueira, alheio à contemplação dos presentes. Ninguém falou durante o tempo que o eahan levou a fumigar o fio, porém a rapariga dos caracóis parou de se baloiçar a dada altura, apercebendo-se da presença do estranho e emitindo um som interrogativo. O shura ergueu os olhos para olhar para ela, baixou-os e tornou a erguê-los. A rapariga tinha uma dentição proeminente e amarelada no maxilar superior, que permanecia à mostra mesmo de boca fechada. Os seus olhos eram grandes e assimétricos, um deles maior que o outro e posicionado mais acima, e o seu nariz crescia para o lado, provavelmente partido. Ao ver que era fitada pelo eahan, mordeu os dedos de uma mão e emitiu grunhidos de contente, piscando os olhos díspares. Quenestil estava incerto quanto ao que demonstraria maior falta de tacto: ficar a olhar ou virar a cara. Ficou-se por um curto aceno da cabeça e tornou a focar a sua atenção no graveto. A rapariga emitiu mais alguns grunhidos, tentando chamar a atenção do estranho, mas Quenestil não lha deu e ela acabou por voltar à sua canção balouçante. Assim que o eahan achou que o fio já perdera o seu cheiro, ergueu-se e saiu, desejando um bom dia a todos sem que ninguém lhe respondesse. O homem trocou olhares com a esposa enquanto coçava o seu furúnculo.

 

O shura preparou a armadilha ainda de manhã e passou a tarde abraçado a Slayra a olharem para fora do curral, observando a chuva. Pela primeira vez em uma semana sentia fome, e Slayra também. Um coelho assado far-lhes-ia bem aos dois, pensou o eahan. Ao entardecer, quando a chuva tornou a amainar, levantou-se do leito de palha e fetos, esfregando a forragem para fora das suas peles de carcaju.

 

Onde vais? perguntou Slayra.

 

Ver se apanhei alguma coisa. O eahan espreitou para fora do curral, vendo as nuvens pintadas a roxo pelo Sol poente. Ficas bem?

 

Sim assegurou a eahanna, massajando o ombro suavemente.

 

Não demoro.

 

Quenestil seguiu o trilho lamacento até uma bifurcação, na qual subiu um carreiro que levava a um terreno mais elevado perfurado por tocas de coelhos. Assim que lá chegou, viu de imediato uma figura cinzenta e felpuda pendente da sua armadilha de puxão, constituída pelo fio do seu arco atado a um tronco flexível. O sacão partira a pata ao coelho, que pouco mais mexeu que o sempre farejante focinho ao ver o eahan, que o matou com uma pancada na nuca.

 

Tomo a tua vida para que eu possa viver. Desculpa-me pela dor que te causei recitou Quenestil, procedendo a esfolar o roedor e a cortar-lhe a cabeça e as patas com o estilete de Slayra, abrindo-lhe o abdómen de seguida para lhe remover as miudezas, que deixou juntamente com a pele para outros predadores.

 

Dirigiu-se de seguida ao regato para o qual o garanhão fugira na noite anterior e lavou bem a carcaça vermelha. Por alguma razão, o facto de estar acocorado à beira de um regato ao anoitecer a lavar o sangue das suas mãos trouxe-lhe a memória do ataque dos drahregs, no qual os companheiros souberam da maldição de Babaki pela primeira vez. O antroleo parecera tão sereno, afagando a ganacha do corço que matara, fitando o céu tristemente com Aewyre a seu lado... Aewyre... e Allumno, Lhiannah, Taislin, até o Worick... tinha saudades de todos.

 

”Vou tornar a ver-vos a todos, meus amigos, e morrerei antes que algo de mal vos aconteça a vocês”, jurou a si mesmo, enxugando as mãos na pele de carcaju e voltando para o trilho que conduzia à cabana.

 

A meio do caminho a chuva intensificou-se e o eahan estugou o passo, baixando a cabeça. Slayra esperava-o, aconchegada na sua capa e com o capuz puxado.

 

Grande caçada... comentou, arrancando a tentativa dum sorriso ao shura.

 

Agora só tenho de lhes pedir para assar o coelho na sua fogueira... Quando a eahanoir achou que Quenestil pronunciava bem a frase já era noite e o eahan bateu suavemente à porta. Após o habitual atraso, o homem veio entreabrir-lha, dizendo qualquer coisa que o shura não percebeu. No entanto, assim que Quenestil mostrou o coelho, nem foi preciso recitar a frase que Slayra lhe ensinara, pois o latvoniano escancarou-lhe a porta e fez-lhe menção que entrasse rapidamente. A sua voz assumiu então um tom quase suplicante, apontando para si e para a sua mulher e para a sua filha e para as barrigas de todos, executando gestos expressivos de miséria e azar e infortúnio. A mulher largou de imediato a peça de roupa que estava a coser e os olhos díspares da rapariga dos caracóis arrebitaram-se quando esta começou a salivar.

 

Pronto, pronto, eu partilho. Há que chegue para todos... Na verdade, o eahan estava algo contrariado, pois o casal concedera-lhes o imundo curral de má vontade e nem se mostraram minimamente preocupados com o frio ou a fome que poderiam estar a sentir.

 

Com um suspiro, desembainhou o estilete e cortou o coelho em duas partes, entregando uma ao homem e só então repetindo a frase de Slayra. O latvoniano desfez-se no que certamente eram agradecimentos e desejos de sorte e saúde para ele e para toda a sua família, e Quenestil acocorou-se diante da fogueira, atravessando o coelho com um ramo e deixando-o a assar. Reparou que o rapaz não estava presente e olhou em redor, esperando vê-lo escondido algures, mas não havia sinal dele na cabana. Encolheu os ombros e devolveu a sua atenção ao coelho, cuja gordura começava a chiar, mesclando-se ao burburinho segredado da família. O shura tornou a olhar para a frente e viu o agregado reunido de cócoras em volta do pai, que segurava a metade da carcaça com reverência. Havia algo de perturbador naquela cena, e Quenestil achou a visão da carne do coelho a tostar mais aprazível. Algum tempo depois, alguém abriu a porta e o vento chuvoso arrastou o silêncio para dentro da cabana, motivo suficiente para Quenestil olhar para trás do ombro. A silhueta molhada do rapaz delineada pelo luar estava postada à entrada a agarrar uma das tábuas soltas da porta. A mulher agarrou a manga do seu esposo, que trocou um olhar estranho com o rapaz. A rapariga dos caracóis grunhiu uma interrogação. O que se estava a passar?

 

Foi quando o relinchar do cavalo e o balir da cabra se fizeram ouvir que o caos entrou pela cabana adentro.

 

O rapaz foi violentamente empurrado para dentro e a porta foi destroçada por um pontapé para dar entrada a um corpulento homem andrajoso que empunhava uma adaga, seguido de outros dois, armados de porretes. Quenestil agiu por instinto. Deixou o coelho cair na fogueira e desembainhou o facalhão, mas não a tempo de aparar a investida impetuosa do seu primeiro atacante, cujo pulso agarrou e projectou-o por cima do seu ombro. A mulher gritava e a rapariga grunhia agudamente, encolhidas a um canto da cabana, mas Quenestil não lhes prestou atenção e recebeu o ataque dos outros dois agressores, que faziam tenções de lhe moer a cabeça à bordoada. Desviou-se da primeira oscilação transversal e aparou a segunda com a faca, cujo gume se embebeu até quase metade do porrete, ficando preso. O shura agarrou então o braço do homem e puxou-o para o lado, bloqueando o golpe do seu companheiro com a sua cabeça, que estalou e cujo nariz lhe respingou a cara com gotas de sangue. Quenestil aproveitou o breve instante durante o qual o outro atacante ficou estonteado com o que fizera para lhe arrancar o porrete das mãos e fazer bom uso dele na sua cara. Quando se ia a virar, braços fortes envolveram-lhe o pescoço e empurraram-no contra uma das traves que sustentavam a cabana, contra a qual embateu de testa, deixando o porrete cair. Uma voz rouca e rústica grunhiu-lhe ao ouvido. Cerrando os olhos para ignorar a tontura, o eahan pisou o pé do seu agressor com o calcanhar com toda a força, e o seu grito de dor quase lhe ensurdeceu o ouvido. Ainda de olhos fechados, o shura levou o seu cotovelo às costelas do indivíduo, que lhe exalou todo o ar dos pulmões acompanhado de saliva para cima do pescoço, e abriu os olhos para lhe desferir uma pancada com as duas mãos que o fez rolar em si antes de cair redondo ao chão. A família gritou em uníssono quando Quenestil lhes dirigiu o olhar, mas um grito de Slayra fez com que os esquecesse e desencravasse a faca do porrete enquanto saltava para fora da cabana.

 

Assim que o cavalo relinchou, todos os instintos de Slayra avisaram-na de que estava em perigo. Um vulto abriu o portão violentamente e obstruiu a entrada. A cabra baliu e as crias berregaram, amontoando-se atrás da mãe quando o homem entrou, olhos brilhantes e dentes sorridentes. Não era possível ver grande coisa dele, mas o seu cheiro cediço sobrepôs-se ao do estrume, ao qual Slayra já se acostumara.

 

Que temos nós aqui? perguntou o homem em Urial, embainhando a adaga e desatando prontamente as calças.

 

Slayra manteve a calma e não se mexeu enquanto o latvoniano retirava as ceroulas apressadamente, exibindo pernas peludas e sarnentas.

 

Anda, tira lá a capa. Vou ser o primeiro a ver a tua...

 

Assim que o indivíduo se aproximou, algo brilhante na mão de Slayra descreveu um arco à sua frente ao nível das partes baixas do homem, que estacou, incrédulo, e que ao olhar para baixo principiou a berrar, o seu corpo inteiro a tremer. Alguém mais entrou e empurrou-o para o lado, desferindo um pontapé na mão de Slayra, atirando o estilete sangrento para o canto do curral. A eahanoir gritou quando o novo agressor lhe agarrou o pulso e o braço ferido, cujo ombro latejou de dor, mas foi momentaneamente silenciada por uma forte bofetada com as costas da mão, que lhe reabriu a ferida no lábio.

 

O homem era pesado, estava em cima dela, a eahanna sentia-lhe o seu bafo azedo, o toque das suas mãos calosas... e de repente o peso foi-lhe tirado de cima. Quenestil atirou o latvoniano ao chão e espetou-lhe a faca no peito, embebendo a lâmina profundamente através da caixa torácica com um ruidoso estalo. O homem ainda estrebuchou, mas a vida abandonou-lhe o corpo em golfadas quando a faca foi retirada. Ao erguer-se, o shura parecia possesso, com pingos e manchas de sangue um pouco por todo o seu corpo, e Slayra teve de dizer o seu nome para se certificar de que era mesmo Quenestil. O eahan não pareceu ouvi-la e dirigiu-se ao homem seminu que mugia de dores de barriga para o chão, mãos por baixo da bacia. Levantou-lhe a cabeça pelos cabelos e passou-lhe o gume da faca pela garganta, substituindo os uivos de agonia por um aflito gorgolejar.

 

Quenestil... disse Slayra em surdina.

 

O shura olhou em redor, rosnando como um carcaju em busca de mais vítimas, e saiu do curral. Slayra reuniu toda a força do seu braço bom para se levantar e ir atrás dele.

 

Quenestil entrou de rompante pela cabana adentro, pingando sangue e água da chuva, e a família tornou a gritar, desta vez de puro terror. Havia um brilho quase maníaco nos olhos do eahan ruivo sarapintado de sangue e cujo facalhão cruento parecia ter sede de mais. O homem ajoelhou-se entre o shura e o seu agregado e ergueu os braços em gesto de súplica, mas Quenestil desferiu-lhe um pontapé em cheio na cara, deitando-o por terra. Slayra entrou a tempo de ouvir as súplicas abafadas pela mão que o latvoniano levara à boca sangrenta:

 

Família, pobre família! Olha o menino, a menina! Não faz mal a pobre família, senhor! Muito pobre, muito pobre, não tem dinheiro, não tem comida! Não faz mal, senhor, por favor...

 

Quenestil... tentou Slayra chamar-lhe a atenção. Na verdade, achava que esta família merecia ser toda degolada, pois estavam claramente em conluio com os bandidos. O rapaz era provavelmente filho da rapariga e de um fora-da-lei e o homem devia comprar a segurança do seu agregado abrigando viajantes para os entregar aos malfeitores. Mas não podia deixar Quenestil fazer algo do qual tinha a certeza de que ele se iria arrepender amargamente. Quenestil... repetiu a eahanoir, pousando-lhe a mão num ombro rijo como uma rocha. Não faças isso.

 

O eahan respirava ruidosamente como um animal selvagem e o homem continuava de costas no chão a implorar enquanto o resto da família chorava. Por fim, o toque de Slayra acabou por dissolver a tensão no ombro do shura e daí o resto do seu corpo.

 

Vai... o eahan inspirou fundo. Vai buscar as nossas coisas e o cavalo.

 

A eahanoir hesitou em largar-lhe o ombro, e apertou-lho antes de o fazer, saindo da cabana. Quenestil fitou a família longamente, esfregando a mão ferida que se ressentira com o esforço, e estes tremeram quando o shura avançou para tirar a metade de coelho que deixara cair na fogueira e que entretanto quase fora esturricada. Perante os olhos atemorizados envolveu a meia carcaça com o pedaço de pele de cabra que a matrona estivera a coser e pilhou os corpos, obtendo um espólio de uma adaga, um capuz e capelo de pele de cabra que o resguardariam da chuva, uma lasca de aço e pederneira, uma bexiga que passava por cantil, cinco carcomidas moedas de prata e um saco cheio de nozes. Retrocedeu para a entrada, lançando um último olhar na direcção da família e cuspindo o seu asco para o chão. O lamento do homem continuou a ouvir-se enquanto os dois eahan montavam o garanhão, que por sorte não fugira quando um dos malfeitores o tentara agarrar, e perdeu-se gradualmente nas árvores à medida que se embrenhavam na floresta.

 

Nenhum dos companheiros julgara alguma vez ficar tão contente por ver as montanhas azuladas cobertas de neve que se lhes depararam, altivos picos coroados pelas nuvens que recortavam o cerrado céu matinal, vertentes neblinadas e faces rochosas enrugadas como veneráveis semblantes anciãos. Porém, o vislumbre da escura linha arbórea que debruava a imensa barreira rochosa pareceu-lhes naquela altura de longe a mais portentosa visão das suas vidas.

 

Pedras me partam, nunca pensei que fosse ficar tão contente de ver árvores... confessou Worick. Estava capaz de matar um lenhador.

 

Nem todos partilhavam a vontade do thuragar, mas após a jornada de duas semanas o grupo inteiro era unânime no seu contentamento. Aewyre deu palmadas reconfortantes no flanco da Alfarna e Taislin abraçou-se alegremente à perna de Lhiannah, que entretanto sarara.

 

Vamos lá então fazer uma bela duma fogueira... propôs ainda o thuragar ao retomar o passo, esfregando as mãos enluvadas em antecipação.

 

Aewyre abriu a boca para proferir palavras de advertência, mas não disse nada e encolheu os ombros. Sentia-se capaz de enfrentar todas as tribos de Karatai se esse fosse o preço para se aquecer com uma fogueira decente... Allumno não achava prudente, mas sabia que os seus avisos cairiam em ouvidos moucos, pelo que pressionou os flancos da Alfarna com os calcanhares para que esta seguisse o seu protegido.

 

Tal era a pressa dos companheiros que estes comeram enquanto subiam o progressivamente mais íngreme terreno, e ao entardecer chegaram por fim ao sopé arborizado. Espruces e pinheiros solitários de ramos vergados pela neve pontilhavam prados brancos com cicatrizes acastanhadas de relva. Worick postou-se diante de um dos isolados espruces, braços cruzados e postura observante. Antes que alguém lhe perguntasse o que estava a fazer, o thuragar desafivelou a faldra da armadura e começou a desapertar as calças.

 

Worick? inquiriu Aewyre.

 

O thuragar estava de costas para o jovem, que apenas viu uma nuvem de vapor a erguer-se na base da árvore.

 

Ahhh... exclamou Worick, deliciado.

 

Mas... o que é que pensas que estás a fazer?

 

A apanhar cogumelos... estou a mijar, o que é que te parece que estou a fazer? Perante o silêncio geral, o thuragar continuou: Jurei que a primeira coisa que faria depois de sair da estepe seria mijar numa árvore. Algum problema?

 

Então e a conversa sobre matar lenhadores? lembrou Taislin.

 

Ela devia estar com frio... achou Worick, apertando as calças. Agora está bem quentinha... acrescentou, afivelando a faldra.

 

Aewyre abanou a cabeça e virou-se para trás, contemplando a imensa vastidão das estepes que deixara para trás de mãos na cintura e com exalações condensadas a saírem-lhe da boca. Kror estava ali, algures, envolvido na sua própria demanda pessoal contra a harahan.,,

 

”Agora não é a altura”, pensou ”mas ela virá...”

 

Ó Aewyre, mexe-te! berrou-lhe Worick. Já agora, subimos um bocadinho mais!

 

O guerreiro olhou para cima, para o meio do sopé, onde havia maior abundância de árvores e abrigo, e daí para os seus cansados companheiros, que apesar da fadiga já se aprontavam para retomar a marcha.

 

Está bem... concordou, desembainhando Ancalach. Mas primeiro deixem-me aproveitar para arranjar lenha...

 

Já era noite quando o grupo por fim assentou debaixo de um barranco quase vertical em cuja face crescia uma irregular barba de raízes. Os lariços e choupos que os rodeavam transmitiam uma certa sensação de segurança, após tantas semanas num espaço tão aberto e vazio como o das estepes. Aewyre cortou o pequeno pinheiro desbastado que Alfarna arrastara desde o início do sopé enquanto os restantes companheiros preparavam o yugr, e em pouco tempo ardia uma fogueira que desprendia um aprazível odor resinoso.

 

Bem melhor que o cheiro do estrume... achou Taislin, e nesse aspecto até Worick concordava com ele.

 

Comeram um jantar de tiras de carne salgada com raspas de queijo e o vinho que lhes restava. As rações que haviam trazido da Latvonia e mesmo os lombinhos de rato começavam também a escassear; em breve teriam de caçar ou arranjar outro método de subsistência, e Lhiannah era a única com um arco.

 

Nem pensem recusou prontamente a princesa, como que lendo os pensamentos do grupo. Hoje não dou nem mais um passo. Prefiro comer ratos.

 

Não se preocupem assegurou-lhes Taislin, amanhã vou caçar.

 

Se voltares com ratos, atiro-te de uma ravina ameaçou Worick.

 

Amuado pela rejeição da sua solicitude, o burrik calou-se, estendendo as mãos à fogueira e franzindo a zangada testa. Lhiannah suspirou e pôs-lhe a mão por cima do ombro, puxando-o para si.

 

Não lhe ligues, é um chato. Amanhã vamos os dois caçar.

 

Se trouxerem ratos, vão os dois pela ravina abaixo...

 

A arinnir ignorou o seu protector e ficou a olhar para a fogueira com o braço por cima dos ombros de Taislin, que ronronava e cujas pupilas se haviam tornado em frestas felinas perante a luz do fogo. Todos ficaram em silêncio enquanto a Lua subia no céu, uma bola selénica entrecortada pelas nuvens. Foi um longo momento de silêncio, durante o qual todos se deixaram hipnotizar pela dança ígnea das labaredas, acalentados pelo seu hálito, rendendo-se ao seu cálido abraço confortante. Taislin dormia pouco depois, e Lhiannah começava a vacilar, as suas pálpebras pesadas e a sua mão a afagar languidamente o cabelo do burrik, cuja cabeça lhe assentara na perna. Aewyre levantou-se e pegou em Taislin ao colo, levando-o para dentro do yugr, no qual a arinnir entrou pouco depois, desejando uma sonolenta boa-noite a todos. Aewyre sentou-se encostado ao barranco, trazendo um dos punhais de Taislin numa mão e uma pedra de amolar noutra.

 

O que é que estás a fazer com essa faca de cozinha? perguntou Worick, que entretanto retomara o seu trabalho de esculpir o pequeno bloco de pedra preso entre os seus joelhos.

 

Vou afiá-la. Sempre gostei de afiar lâminas, mas a Ancalach não precisa...

 

O thuragar grunhiu e nada mais disse. Allumno estava de capuz puxado para a frente e olhos fechados, mas os seus dois companheiros sabiam que estava a meditar e não a dormir, alheio ao áspero lamber do aço a pedra e ao bater agudo da cabeça do pequeno martelo no cinzel. Passado algum tempo, o amolar foi diminuindo e em breve apenas se ouvia o repique de metal contra metal e o crepitar da fogueira. Allumno despertou da sua meditação pouco depois, piscando os olhos e olhando em redor, vendo apenas Worick acordado. Puxou o capuz para trás e enclavinhou os dedos, contemplando a fogueira. Havia algo de estranhamente paternal naquela vigília por parte dos dois membros mais velhos do grupo, deu o mago consigo a pensar... Mas as crianças que os outros eram estavam a crescer a cada dia, amadurecendo com os dissabores, temperados pelas provações e pela dor, principalmente o Aewyre. Só tinha pena de que tivesse de ser assim, que tivessem de passar pelo fogo de modo a encontrarem o seu próprio brilho, mas fora o caminho que haviam escolhido...

 

Erguendo as sobrancelhas e estalando os lábios resignadamente, o mago deu a sua atenção a Worick, que parecia concentrado na sua obra.

 

Posso fazer-te uma pergunta, Worick?

 

Sem parar o seu trabalho, o thuragar ergueu os pequenos olhos, que de noite pareciam mais vivos e sagazes.

 

Não seria a primeira.

 

Nem a última, espero eu... por que é que um guerreiro de renome como tu venera Tharobar?

 

Worick pousou o martelo e o cinzel e tirou o bloco de pedra de entre os seus joelhos, perscrutando-o atentamente de vários ângulos. Estava lentamente a assumir forma, mas o mago não soube dizer de quê.

 

Gosto de umas boas cachaporradas, mago, mas no fundo sou um artífice. Olhou de relance para ver se Allumno rira, mas as feições do mago permaneciam inalteradas e atentas. Fui eu quem fez a armadura, a espada e o escudo da Lhiannah, tudo na minha forja em Vaul-Syrith (em cuja bigorna Sunlar vai mandar esmagar a minha cabeça, se eu voltar). Até lhe fiz o enfeite da gargantilha, aquela coisinha branca em forma de rosa...

 

Um trabalho exemplar.

 

É, não é? E quando ela era criança, eu fazia-lhe todo o tipo de brinquedos, cavalinhos de mármore, flores de pedras preciosas, bonecas de madeira que se mexiam e que ela vestia, essas coisas de que as meninas gostam... Distraído a falar de um tópico que o interessava, Worick apercebeu-se por fim de que a coisa estava a ficar demasiado íntima.

 

Bem, é isso. Sou um artífice e retomou a sua tarefa.

 

Estou esclarecido assegurou-lhe o mago, sem insistir no assunto. Apoiou as mãos nos joelhos e ergueu-se, esboçando uma fugaz careta de dor devido à rótula que provavelmente nunca iria sarar por completo. Vou deitar-me. Boa noite.

 

Worick resmoneou algo que podia passar por um desejo semelhante e o mago retirou-se para dentro do yugr, acordando Aewyre pelo caminho para que este também se fosse deitar. O thuragar ficou a olhar um pouco para o vazio e de seguida pegou nos seus instrumentos outra vez.

 

”Pedras me partam...”, pensava. ”Agora a abrir-me com o mago...” O repique agudo fez-se ouvir pelo sopé até tarde.

 

Os companheiros tiveram uma noite tranquila e acordaram refeitos na manhã seguinte. Refrescaram as gargantas com a água que gotejava das pontas das raízes do barranco e saudaram o fresco alvorecer de braços estendidos, espreguiçando-se. O facto de comerem um pequeno-almoço quente quase fez com que conseguissem ignorar a insulsez da comida.

 

Há muito tempo que não dormia assim tão bem... confessou Taislin.

 

Se gostaste tanto, eu posso fazer com que nunca mais acordes... - resmungou Worick, esfregando a barba.

 

Worick, que embirrante que tu estás! repreendeu-o Lhiannah. Andavas mais bem-disposto nas estepes!

 

Bom, levantemos o acampamento... interrompeu Allumno, incapaz de conter um breve sorriso, lembrando-se da noite anterior.

 

Esperem interveio Aewyre por sua vez, empunhando o punhal de Taislin que afiara a noite passada. Lhiannah, cortas-me o cabelo?

 

Fora das últimas coisas que qualquer um dos companheiros esperara ouvir. A arinnir ficou a olhar para o guerreiro, testa franzida, olhos a piscar e cabeça a abanar ligeiramente como se não estivesse a perceber. Aewyre estendeu-lhe o punhal, girando o punho para a frente.

 

O que é que estás a fazer com o meu punhal? perguntou o burrik, sem que ninguém lhe desse atenção.

 

Estás a gozar comigo? inquiriu Lhiannah, ainda sem perceber.

 

Falo a sério, ele está demasiado comprido. O Worick arrancava-me o escalpe, o Taislin ainda me pregava uma partida, o Allumno não está para estas coisas e eu não o consigo cortar sozinho explanou, tornando a estender-lhe o afiado punhal. Cortas-mo?

 

Hesitante, Lhiannah acabou por pegar no punho da arma, apesar de ainda não ter tomado nenhuma decisão. Mas que raio...?

 

Vá lá, é a tua oportunidade para me magoares um pouco. Só não me arranques tufos de cabelo...

 

A expressão da arinnir tornou-se firme então e esta crispou os dedos no punho da lâmina.

 

Senta-te praticamente ordenou, tirando as luvas, e Aewyre assentou-se numa rocha, mantendo as costas direitas.

 

A princesa começou por lhe remexer o comprido cabelo sujo, desenvencilhando com os dedos os nós e emaranhados que se haviam formado com semanas de desleixo.

 

Mas o meu punhal... tentou Taislin protestar.

 

Taislin, por que não aproveitas para caçar? sugeriu Aewyre. O burrik pensou em insistir, mas achou que não valia a pena e foi procurar pedrinhas para usar com a funda. Allumno decidiu dar de comer à Alfarna e Worick foi aquecer outra árvore enquanto Lhiannah remexia o cabelo do guerreiro.

 

Não mexas a cabeça avisou, esticando-lhe uma mecha e. cortando-a com um movimento de serra. Allumno, quando puderes aqueces-me uma taça de água, por favor? O mago assentiu com a cabeça e foi tratar de pôr a sua chaleira sobre a lareira.

 

Agua? ecoou Aewyre. Agua para quê?

 

Para as minhas mãos. Vou ficar com frieiras depois disto. E o teu cabelo está um nojo. Agora fica quieto.

 

Ah... O guerreiro não pensava porém que fossem essas as verdadeiras razões, embora desconhecesse a verdadeira.

 

Aewyre esperara que Lhiannah fosse bruta, que aproveitasse para se vingar de alguma forma, que lhe arrancasse alguns cabelos ou que lhe picasse a cabeça com a ponta do punhal. Contudo, os dedos da arinnir eram delicados e esta tinha o cuidado de não lhe magoar muito o couro cabeludo ao puxar e cortar os cabelos, algo certamente difícil quando feito com um punhal, por muito afiado que estivesse. O guerreiro notou que a princesa mordia o lábio inferior em concentração quando lhe começou a cortar o cabelo à frente. Nesgas negras caíam como a desfolha de uma árvore na neve suja e calcada.

 

Quando terminou, Lhiannah pôs os punhos nas ancas numa pose que sugeria estar a avaliar o seu trabalho. Aewyre passou a mão pelo cabelo e sentiu-o curto, um pouco mais curto do que o que customara usar. Pensou em perguntar que tal ficara, mas não esperava grande resposta da arinnir, pelo que se tentou levantar.

 

Bom, obri...

 

Onde é que vais? inquiriu a princesa, empurrando-o pelos ombros de modo a que se tornasse a sentar. Já me viste bem essas cerdas na cara? Allumno, trazes-me a água, se fazes favor?

 

O guerreiro não percebeu à primeira, mas assim que entendeu que Lhiannah se referia à sua barba, coçou-a nervosamente.

 

Eh... não faz mal. A barba não me atrapalha numa luta...

 

A tua cara parece um rabo de javali. Agora fica sentado e calado ordenou Lhiannah, girando a faca na mão, para a qual o guerreiro olhava com uma certa apreensão.

 

O mago trouxe uma taça de água quente, um pano, um odre com loção de barba e uma lâmina de barbear com dois gumes.

 

Tomei a liberdade... explicou enquanto entregava os objectos a Lhiannah, merecendo um suspiro de alívio de Aewyre por providenciar uma alternativa ao punhal de Taislin.

 

Obrigada agradeceu a princesa, enrolando o pano à volta do pescoço do guerreiro e chapinhando-lhe a cara com a água morna da taça. Apesar de não estar fria, Aewyre ainda cerrava os olhos e fazia caretas desagradadas ao contacto do líquido.

 

Com a barba do guerreiro devidamente ensopada, Lhiannah puxou-lhe a cabeça para si e inclinou-lha para o lado, deslizando a lâmina pelo crescimento a partir da orelha até à ponta do maxilar. A nuca de Aewyre assentou entre as saliências para o peito da armadura da arinnir, mas outras coisas ocupavam os seus pensamentos naquela altura, tais como a integridade da sua face. Ficou ainda mais nervoso quando Lhiannah passou para a barba debaixo do queixo e no pescoço, sentindo o gume afiado da lâmina a deslizar perigosamente por cima da sua jugular. E se lhe desse para isso? Um movimento brusco e... o guerreiro estremeceu quando a princesa inalou através dos dentes, apesar de não ter sentido o pequeno corte que Lhiannah inadvertidamente lhe infligira no queixo.

 

Desculpa pediu a arinnir em surdina, sem no entanto interromper o seu trabalho.

 

Ainda assim, as mãos de Lhiannah pegavam-lhe na face com uma gentileza quase maternal. Não eram macias como as das criadas de taberna e servas do palácio, tinham a aspereza e calosidades esperadas de quem manejava uma espada com frequência e se metia em situações como aquelas nas quais os companheiros se envolviam, mas o seu toque era estranhamente suave, como se os dedos transmitissem todo o cuidado que a arinnir estava a tomar. Quando terminou, Lhiannah vascolejou o odre, verteu na mão um pouco da loção de camomila e lavanda e espalhou-a pela cara de Aewyre, talvez batendo com força desnecessária, mas o guerreiro estava demasiado aliviado para reclamar, mesmo quando os cortes ligeiros na pele começaram a arder. Lhiannah pôs-se a avaliar o seu trabalho uma vez mais, limpando as mãos com o pano enquanto Aewyre passava a mão pela face, sentindo a pele macia ao toque pela primeira vez em mais de um mês.

 

Está... óptimo. Obrigado. Gostava de me ver ao espelho...

 

Ai é? Pois não penses que isto se vai tornar um hábito assegurou-lhe a princesa, atirando-lhe o pano à cara e retirando-se a passos aparentemente irritados.

 

O guerreiro tirou o pano da face.

 

Mas o que é que eu fiz desta vez? perguntou a ninguém em especial enquanto via Lhiannah a afastar-se tempestuosamente.

 

Allumno fingia-se distraído a meditar e Worick escolhera aquela altura para voltar da sua acção benevolente para com as árvores, pelo que Aewyre se levantou.

 

Pareces um cachopo imberbe outra vez... comentou o thuragar. Mas pelo menos já não estás com cabelo de rabilas.

 

Por que é que a Lhiannah ficou tão irritada? perguntou o guerreiro, tendo há muito aprendido a ignorar os insultos do thuragar.

 

Worick olhou na direcção que a princesa tomara, mas esta já desaparecera nas árvores e o thuragar encolheu os ombros. Já sabes como ela é...

 

Não, discordou o guerreiro, desta vez foi alguma coisa.

 

Os pequenos olhos pretos de Worick tornaram-se sérios, descontente por ter sido contestado, mas quase instantaneamente relaxou a paternal postura defensiva que sempre assumia em assuntos relacionados com Lhiannah.

 

Estás com sorte que eu hoje até nem acordei mal-disposto...

 

Tu és mal-disposto contrapôs o jovem, retribuindo os anteriores insultos.

 

Aaai... advertiu o thuragar. Tu não abuses. Queres ouvir ou não? - Conta.

 

Está com saudades do pai explicou sucintamente, encaminhando-se para a fogueira e sentando-se numa rocha.

 

Aewyre foi atrás e ficou a olhar para o thuragar de braços cruzados enquanto este contemplava as brasas, esperando. O acampamento ficou silencioso durante algum tempo, até Worick começar a sentir o peso dos olhos do jovem em cima de si.

 

O que é que foi? quis saber, olhando de lado.

 

Continua.

 

Continuo o quê? Já disse.

 

Tem saudades do pai...? ajudou o guerreiro, inclinando o tronco de braços cruzados para a frente.

 

Curioso dum raio... mas o que é que isso te interessa?

 

Se não me interessasse, não perguntava. Eu sei que te é difícil, mas tenta explicar-me.

 

Worick fitou Aewyre dubiamente, sem saber ao certo se devia sentir-se insultado ou não, mas acabou por ceder com um abespinhado suspiro.

 

A cachopa é mais ligada ao pai do que aquilo que quer fazer ’parecer começou, atirando um graveto para dentro das brasas.

 

Aquela couve com pernas que o Sunlar tomou como mulher nunca gostou particularmente dela, e acho que por isso ele serviu de pai e mãe para a Lhiannah, apesar de ter pouco tempo para ela... Aewyre estava ciente de que apanhara o thuragar num dos seus raros momentos de loquacidade e permaneceu em silêncio durante a pausa para não o quebrar. Uma das coisas que ela mais gostava de fazer era barbeá-lo. Quando era pequena, todas as manhãs ia ter ao quarto dele antes dos serviçais, acordava a couve, que depois se lamuriava o dia inteiro, e molhava a cara do pai enquanto este ainda estava meio a dormir. Worick soltou uma curta risada, sem nunca tirar os olhos das brasas. Depois chegava o barbeiro e ela insistia em fazer a barba ao pai e todos os dias o homem acabava por ceder e ensinava-a a barbear. A cachopa aprendeu e algum tempo depois a única penugem que o barbeiro tirava era a das galinhas na cozinha...

 

E depois de menina? arriscou Aewyre.

 

Continuou. Já não acordava o Sunlar de madrugada, mas todos os dias ia fazer-lhe a barba. Uma vez dormiu até tarde e o barbeiro teve de ser chamado à cozinha para fazer o serviço. A cachopa ficou fula quando acordou, gritava que a deviam ter acordado em vez de chamarem o barbeiro. Atirou a loção de barba à cara do homem e o desgraçado ficou com prurido nos olhos durante uma semana... Outra risadinha. Havia de ter levado das poucas e boas naquela cabeça teimosa depois disso, mas Tharobar bem sabe que eu nunca lhe bati quando o devia ter feito, pedras me partam... lamentou-se, cuspindo para as brasas.

 

Aewyre brincava pensativamente com o incisivo, começando a perceber a reacção da arinnir. Bom, perceber talvez não, mas pelo menos tornava-se mais compreensível à luz da explicação de Worick.

 

Não adivinhas qual foi a última coisa que ela fez antes de sair de Vaul-Syrith naquele desgraçado dia em que te encontrámos a ti e ao mago?

 

O guerreiro nem respondeu à pergunta.

 

Pois... uma última raspadela na cara do pai. Deve ter-se lembrado de alguma coisa enquanto fazia de ti um imberbe.

 

Hm-hm... no fundo, a Lhiannah foi o filho que Sunlar nunca teve. Ou, aliás, teve, mas... quer dizer... Tarde demais, Aewyre apercebeu-se de que tocara num ponto sensível e proibido. Acto contínuo, a expressão de Worick tornou-se severa e os pêlos da sua barba mexeram-se quando o seu maxilar se cerrou. Ah... eu... tentou ainda falar. ”Cala-te, já disseste porcaria que chegue...”

 

A postura do thuragar tornou-se rígida e o guerreiro achou melhor afastar-se, optando por ir arrumar as suas coisas para a barba, vilipendiando-se a si mesmo pela sua estupidez. Enfiou-se envergonhado no yugr e resolveu pôr-se a arrumar o equipamento na tenda, seu e dos seus companheiros. Quando saiu, Worick continuava sentado de costas para ele e Allumno estava a seu lado, mas Aewyre achou que o melhor era não interromper a sua meditação. Pensou em ir treinar um pouco, mas o terreno era íngreme demais e não lhe apetecia começar a suar com a loção impregnada na cara. Optou antes por subir a uma rocha e ficar a observar as estepes, das quais tinha uma boa vista. O guerreiro nunca reparara como aquela imensidão vazia era de certo modo relaxante, pelo menos agora que a mirava do lado de fora.

 

”Pela espada cruenta de Gilgethan, o que nós calcorreámos...”, admirou-se. ”Por esta altura já devíamos estar em Wolhynia, talvez mesmo em Tanarch...” Os seus cálculos levaram-no a pensar nos seus amigos eahan e antroleo. ”E tu, meu eahan exaltado... onde será que estão, tu e o Babaki e a Slayra? Será que alguma vez nos tornaremos a ver?”

 

Por qualquer razão, Aewyre foi acometido pela memória do seu primeiro encontro com o shura, durante um dos últimos concílios dos regentes de Nolwyn com a população eahan da Floresta de Lyr. Os eahan não estavam satisfeitos com as acções de lorde Tylon Nehin, que andava a abusar da floresta na qual também viviam, cortando árvores indiscriminadamente e matando demasiados animais para a crescente população de Lennhau. Uma delegação de eahan da montanha viera também, para discutir a construção de pontos de vigilância no Portão do Norte, e o seu mais jovem membro fora Quenestil. Aewyre nunca gostara de concílios, eram eventos chatos nos quais se ouviam homens chatos a discutir assuntos ainda mais chatos, mas Allumno sempre insistira que acompanhasse Aereth pelas mais variadas razões: que havia muito a aprender, que no caso de alguma infelicidade acontecer seria ele o regente de Thoryn e tinha de estar preparado, que um membro da casa de regência devia conhecer os seus pares... Nessa ocasião, ambos os rapazes se cumprimentaram um ao outro, e nesse preciso instante nasceu um estranho laço que desde logo os uniu. Nada tinham em comum: Aewyre tecia comentários pouco galantes acerca das eahannas presentes, Quenestil passava o tempo todo a falar de árvores e animais; o humano dizia ”fogo”, o eahan contrapunha ”água”; Aewyre defendia o confronto directo, quer com espadas ou palavras, Quenestil advogava a subtileza, tanto a ””combater como a dialogar. Mas algo tinham em comum, e era aquela amizade que ninguém percebia mas que todos viam que era algo para durar...

 

Passos despertaram Aewyre dos seus pensamentos e este viu Taislin a descer por entre as árvores com Lhiannah a seu lado. O burrik trazia duas lebres brancas que oscilavam frouxamente pelas orelhas; aparentemente a caçada correra bem. Desceu de cima da pedra e foi ter com os dois, contando à partida ser evitado pela arinnir, que ainda lhe lançou um olhar estranho mas sem dúvida pouco amistoso antes de seguir em frente.

 

Então, campeão? Arranjaste-nos um rico almoço para hoje laudou, ajoelhando-se para falar à altura de Taislin.

 

Pois foi. Mas vais ser tu a esfolá-los. Com o meu punhal... disse o burrik, deixando um admirado Aewyre para trás.

 

”Andava tudo tão bem-disposto...”, pensou, coçando a cabeça. ”Mais valia não ter cortado o cabelo...”

 

O guerreiro levantou-se e dirigiu-se resignadamente aos seus companheiros, que começaram a levantar o acampamento para retomarem a viagem.

 

Quenestil e Slayra haviam seguido para Leste durante uma semana, orientando-se através das montanhas da Cinta a Norte. Já haviam vadeado o rio Tunuza e a eahanoir afirmava que a vila costeira de Tomska estava a apenas alguns dias de viagem. Ainda bem, pensou Slayra para consigo, pois após o incidente da cabana Quenestil começara a agir de forma quase paranóica: passava grande parte das noites vigilantemente acordado e de cada vez que tinha de deixar a eahanoir sozinha, fosse para caçar ou qualquer outra actividade na qual Slayra não o podia acompanhar, ficava tão nervoso que as suas saídas eram pouco proveitosas, pois raramente regressava com alguma coisa. Um dia conseguira relaxar e manter um aperto suficientemente firme no arco com a mão ferida para abater uma perdiz, mas ao ouvir o garanhão a relinchar ao longe não hesitou em correr de volta, só para constatar que o animal apenas dera largas ao seu enfado e que Slayra estava perfeitamente bem. Previsivelmente, assim que regressou ao local de caça já a perdiz tinha sido levada por um predador menos desatento. A eahanoir nada dissera, mas isso não minorara o estado do shura, que se sentia frustrado e desalentado. Slayra queria abraçá-lo, confortá-lo, dizer-lhe que não se preocupasse tanto, mas apesar de Quenestil não estar tão distante como estivera nos primeiros dias após Jazurrieh, parecia impermeável às suas palavras.

 

Perdi o Babaki. Morrerei antes de te perder a ti também era só o que lhe dizia, passando de seguida um braço protector por cima do seu ombro bom e puxando-a para si.

 

Todas as noites assegurava-se de que a eahanoir estava bem agasalhada, comia apenas após ela estar saciada, verificava-lhe o ombro e dava-lhe um beijo na testa, esperando então que adormecesse nos seus braços. Slayra não reclamava, apesar de se sentir tratada como uma criança. Talvez fosse a maneira de o eahan lidar com a morte do Babaki, talvez fosse alguma depressão, mas fosse o que fosse, a eahanoir sabia que Quenestil precisava de o fazer e não lhe dificultou a tarefa como o seu orgulho lhe ordenava que fizesse. No mínimo, era uma forma de o eahan se distrair das melancólicas cismas acerca do seu amigo antroleo e do sentimento de culpa que o perseguiam. Na verdade, os cuidados do shura até nem eram de todo injustificados: a sua capa ficava ensopada ao fim de cada dia, o seu braço estava rígido e sentia-se exausta à noite apesar de montar a cavalo o tempo todo. Continuava com pouco apetite, e a única coisa que lhe soubera minimamente a comida nas últimas semanas fora a metade de coelho esturricada, que nem dois dias durara. Era normal acordar subitamente durante a noite e desatar a chorar no ombro de Quenestil, que desde a morte de Babaki adquirira uma consistência que parecia capaz de lhe absorver as lágrimas e toda a chuva que lhe caísse em cima. Por vezes, Slayra tinha a impressão de que ela própria era a única coisa que mantinha o shura vivo, e isso preocupava-a. Tinha o cuidado de lhe falar todos os dias dos seus amigos, da promessa de tornar a encontrar Aewyre, tudo o que pudesse atiçar o mais pequeno fulgor nas mortiças brasas da alma do eahan, mas Quenestil limitava-se a acenar com a cabeça e a assegurar-lhe de que não se esquecera, pedindo-lhe de seguida que dormisse. Assim fora quase todas as noites, e esta não seria diferente. Ou pelo menos assim o julgava.

 

Slayra? perguntou o shura perto da madrugada.

 

O quê? O que foi? sobressaltou-se a eahanoir, sentindo o seu coração a bombear repentinamente, gotas de orvalho a escorrerem-lhe pela capa abaixo com o movimento.

 

Nada, nada. É só... Quenestil hesitou.

 

Slayra pôs-lhe a mão na cara e olhou-o de frente, apesar de pouco conseguir ver na escuridão do abrigo de grossas raízes cobertas por fetos onde dormiam.

 

O que foi? tornou a perguntar.

 

O eahan ficou silencioso por momentos antes de responder.

 

O que é que o Babaki te disse na carruagem?

 

Slayra hesitou. Era a última pergunta que esperaria a meio da noite, e o seu silêncio confirmou as suspeitas de Quenestil, que o antroleo de facto falara com ela.

 

O que é que ele te disse?

 

Ele... eu só não te disse porque...

 

Deixa estar. Diz-me só quais foram as suas palavras, por favor o eahan não estava zangado, parecia apenas querer saber.

 

Slayra suspirou tristemente e recordou o que Babaki lhe dissera.

 

Ele pediu-me que te pedisse desculpa em seu nome... que sabia o quanto te iria custar, mas que não tinha alternativa, que nascera com a... fera, e que sem ela não podia viver. Quenestil ponderou silenciosamente. Ele só lamentava não se ter apercebido disto mais cedo, por ter causado tanto sofrimento a outros...

 

Eu sei interrompeu-a o eahan.

 

... o quê? Sabes?

 

Agora sei. Agora percebo porquê, por que é que ele teve de o fazer afirmou o shura, rodando nos seus dedos o dente de carcaju pendurado ao pescoço.

 

Mas...

 

Dorme. Está tudo bem assegurou-lhe, afagando-lhe o cabelo. Ainda falta algum tempo para o Sol nascer.

 

Slayra continuava sem compreender, mas não insistiu e tornou a adormecer pouco depois. A ascensão do Sol passou quase despercebida no céu densamente nublado, conseguindo pouco mais que orlar as nuvens de vermelho e trespassar pequenas frestas com os seus raios luminosos. Um deles incidiu sobre os dois eahan, atravessando os or- valhosos ramos desnudos, passando através das folhas húmidas dos frondosos fetos que lhes resguardavam as cabeças, e a sua luz acordou-os aos dois. Ambos ergueram-se, piscando e esfregando os olhos, e Quenestil foi buscar a bexiga que deixara encostada a uma bétula, na qual fizera uma incisão no dia anterior e que passara a noite inteira a sangrar a sua nutritiva seiva para dentro da bexiga, que passava por cantil. Slayra já se habituara ao líquido espesso, era como um desagradável xarope que sabia fazer-lhe bem mas que inevitavelmente sabia mal. Os seus dentes estavam botos com a acidez das plantas que comia, provavelmente amarelados, o seu cabelo estava em desalinho, a sua capa uma desgraça, as suas indecorosas roupas sujas e as suas unhas pretas. Estava grata por não haver nenhum espelho nas redondezas no qual pudesse contemplar a sua esqualidez, mas sabia que não podia estar muito melhor que o Quenestil, cujos cabelos ruivos estavam baços e pesados de sebo, as marcas de preocupação na sua testa delineadas a sujidade preta e as suas peles de carcaju imundas. Para além disso, os intestinos da eahanoir estavam a ter dificuldade em se adaptarem a uma dieta tão verde e ressentiam-se, forçando Slayra a limpar-se depois com musgo. Nunca se apercebera do quão bem carne de coelho sabia, esturricada ou não, e todos os dias acalentava esperanças de que o eahan apanhasse outro...

 

Vamos? interrompeu Quenestil os seus pensamentos negativos.

 

Vamos... concordou a eahanoir, limpando seiva do canto da boca com o polegar.

 

O shura ajudou-a a levantar-se e a montar no garanhão, que aprendera a odiar Slayra por todos os golpes de calcanhar que esta lhe dava de cada vez que se fazia teimoso. Segundo os cálculos da eahanna negra, deveriam chegar a Tomska pelo fim da tarde desse mesmo dia, e Quenestil queria lá chegar o quanto antes, apesar de não estar particularmente ansioso pela iminente viagem de barco. Quando o Sol já devia ter alcançado o seu zénite, pararam num ribeiro que roçagava o trilho que seguiam, onde o eahan foi buscar amentilhos à água, cujos rizomas descascou e ralou numa pasta branca. Enquanto Slayra comia, procurou chicória para mais tarde fazer uma infusão para os intestinos da eahanoir, que sabia estarem desregulados apesar de a eahanna não lho dizer. Após Slayra ter forçado a última mão-cheia de pasta de rizoma pela garganta abaixo, recomeçou a chover, o que forçou Quenestil a comer a sua porção apressadamente para seguirem caminho. As primeiras gotas haviam sido tímidas, mas outras bem menos discretas se lhes seguiram pouco depois e em bem maior quantidade. Pequenos ribeiros corriam pelas pregas e vincos da capa de Slayra, escorrendo pelos flancos do cavalo, que caminhava de focinho baixo. A chuva batia sonoramente no capuz de pele de cabra de Quenestil, borrava a visão de tudo o que estivesse à distância de vinte passos, tornava o trilho lamacento e enchia o ar com a sua sinfonia descendente. Como estavam de cabeça baixa, nenhum dos dois viu um grupo de pássaros que subitamente levantou voo de uma árvore, abanando os ramos, e devido ao barulho da chuva, não ouviram o aproximar de cavalos.

 

Um resfolegar alguns passos à frente alertou Quenestil, que largou Slayra e a crina do cavalo e saltou para o chão lamoso, já com o arco pronto e a tirar uma seta. Aproximavam-se três cavaleiros, todos de cabeça baixa e nenhum ainda ciente da presença dos dois eahan um pouco mais à frente. Não foi senão quando o da frente por acaso ergueu a cabeça e os avistou que ergueu a mão e vociferou algo que fez com que os seus companheiros parassem. Os três usavam bigodes compridos e barba curta que pingavam da chuva e envergavam capas de lã encharcadas sobre túnicas pretas debruadas a vermelho que lhes davam pelos joelhos. Traziam sobre as cabeças barretes cilíndricos de topo chato feitos de pele de gato selvagem e usavam calças folgadas apanhadas a partir do joelho com tiras de feltro que lhes enfaixavam pernas e botas. Todos tinham escudos redondos às costas e lanças na mão, bem como falchion embainhadas à cintura, que decerto sabiam usar. Nenhum assumiu uma postura agressiva, mas certamente não iriam deixar estes dois viajantes simplesmente passar.

 

Saudações. De onde vêm e qual o vosso destino? perguntou o que aparentava ser o líder, olhando para Quenestil, que mantinha uma seta pronta apontada ao chão. O eahan não percebeu e a resposta veio de Slayra.

 

Saudações, guerreiros. Eu e o meu escravo vimos de Jazurrieh. Temos assuntos a tratar em Tomska.

 

O interlocutor latvoniano não retorquiu logo, ficando a olhar para o curioso par à sua frente enquanto os seus dois companheiros falavam entre si, as suas vozes abafadas pela chuva. Slayra esforçou-se por manter um ar calmo e confiante. Sabia bem a reputação que os da sua raça tinham em Latvonia, tão temidos e detestados quanto em qualquer outro lugar de Allaryia, mas aqui a sua presença era tolerada devido aos espaços de entretenimento que as suas cidades providenciavam. Os serviços de assassinato e espionagem eram também muito apreciados, o que servia também como dissuasor de qualquer ataque às cidades eahanoir. Afinal, os eahan negros podiam não ter grandes hipóteses numa batalha em larga escala, mas a sua reputação de assassinos sombrios que vinham pela calada da noite matar quem os tivesse ofendido nos seus próprios aposentos era sobejamente conhecida, pelo que os senhores da guerra em geral os deixavam em paz. Deixá-los-iam estes energúmenos também?

 

Como te chamas, eahanoir?

 

O meu nome só a mim e aos meus superiores diz respeito, guerreiro.

 

O homem não pareceu ficar convencido e Quenestil puxou o fio do arco um pouco mais.

 

Meu senhor Vladan não gosta de eahanoir em Tomska. Vocês assustam a população.

 

Slayra não esperara tanta resistência. Estes obviamente não temiam eahanoir, e o facto de estar montada num cavalo sem sela, acompanhada por um eahan das montanhas armado e com um aspecto pouco apresentável não estava a ajudar o seu ardil. Pensou depressa, vendo que os dois outros latvonianos já crispavam os dedos nos cabos das lanças e que os seus cavalos estavam a ficar excitados, traindo as emoções dos seus cavaleiros.

 

Venho da parte de Tannath, o eahanoir do olho cinzento declarou em voz alta. Ele não gostará de saber que o seu nome foi ouvido e menos ainda que eu fui acossada enquanto cumpria as suas ordens.

 

Quenestil percebeu o nome do assassino e olhou para Slayra como se ela tivesse proferido o mais vil dos impropérios. A eahanoir não retribuiu o olhar; estava ocupada a orar enquanto mantinha os seus olhos fixos nos do latvoniano, procurando sinais de medo ou pelo menos hesitação. Tannath era conhecido, mas não sabia se a sua infâmia se estendia até ao litoral de Latvonia. Julgando pela hesitação do líder e pelo cessar da conversa dos outros dois, a resposta parecia afirmativa.

 

Desejo-te... boa viagem, eahanoir acabou o homem por dizer, conduzindo o cavalo até à beira do trilho e indicando aos outros que fizessem o mesmo.

 

Que as sombras vos ocultem, guerreiros retribuiu Slayra, incitando o cavalo a retomar o passo. Vem, Quenestil, mas não montes ainda disse em Glottik ao eahan com voz imperiosa.

 

Os dois eahan passaram pelo grupo, sentindo o peso dos seus olhos nas suas costas até entrarem numa curva que os colocou fora do alcance visual destes. Quenestil não tornou a montar senão muito mais à frente, quando se assegurou de que não estavam a ser seguidos.

 

Mesmo morto, o Tannath ainda nos persegue constatou ao saltar para as costas do cavalo.

 

Slayra nada disse, ciente de que esse era um assunto delicado que preferia esquecer. O shura dissera-lhe que Babaki rasgara as costas do eahanoir e atirara-o para dentro da arena, que não podia ter sobrevivido a um ferimento daqueles. A eahanna negra rezava para que estivesse certo.

 

Mais tarde nesse dia, as nuvens começaram a murchar como flores desidratadas e principiaram a dissipar-se lentamente, permitindo a passagem dos raios do Sol, que se começava a retirar atrás de Quenestil e Slayra. A luz vermelhusca criou um arco-íris no ar húmido com cheiro a terra molhada e começou a esticar longas e esbeltas sombras em frente dos dois eahan e do cavalo, providenciando-lhes um agradável calor nas costas molhadas. O shura puxou a crina do garanhão para que este se virasse e pudesse por fim olhar para o Sol, que há tanto tempo não via. O irmão dourado da Lua era uma incandescente bola vermelha no céu alaranjado e bordado com filamentos nublosos, coroando de ferrugem as copas das árvores à distância. Poucas vezes parecera tão belo aos olhos de ambos os eahan, que o admiraram em silêncio até ficar recortado por uma linha de árvores, lembrando-lhes de que tencionavam chegar à vila antes do anoitecer.

 

Começaram a ouvir os primeiros latidos quando as estrelas já despontavam na escurecida abóbada celeste. Tomska apareceu como que descortinada assim que Quenestil e Slayra saíram da orla do bosque: uma vila piscatória constituída por um amontoado de edifícios de madeira dos mais variados tamanhos à beira do mar. O cheiro a maresia e frescal chegava-lhes aos narizes mesmo àquela distância, acompanhado pelos odores de fogos de cozinha. A actividade nas suas ruelas lamacentas estava visivelmente a diminuir, os únicos sons eram os latidos dos cães, os ruídos de portas e adufas de janelas a serem fechadas e as vozes de mães que chamavam pelos filhos.

 

Ainda há sítios destes na Latvonia? admirou-se Quenestil, dando voz aos seus pensamentos.

 

Slayra suspirou com a ingenuidade do eahan, mas limitou-se a afagar-lhe o braço afectuosamente e nada mais foi dito durante o caminho que faltava percorrer até à aldeia. Os edifícios eram rusticamente simples, feitos de tábuas de madeira com tectos triangulares de colmo acinzentado. Enquanto andavam, interrompiam o emanar de feixes de luz dourada que saíam por entre as frestas das janelas e portas fechadas, criando silhuetas no chão sulcado e lamacento.

 

E agora? perguntou Quenestil.

 

Procuramos uma estalagem, a estas horas não deve haver barcos a partir. Temos dinheiro?

 

Cinco moedas de prata.

 

Deve chegar para aquele tugúrio... achou Slayra, apontando com o braço bom para o que só podia ser um estabelecimento, julgando pela sua porta aberta e iluminação.

 

Era dos maiores edifícios da vila, feito do mesmo material mas com um andar adicional e um tecto com águas-furtadas, mas fora isso nada indicava que se tratasse de uma estalagem, nem sequer uma insígnia ou tabuleta. Tinha, porém, um par de estalas atapetadas a palha e cobertas por um alpendre no seu flanco, uma das quais ocupada por um garrano castanho-escuro de crina negra. Sentado num banco encostado à parede estava um sonolento rapaz de encrespados caracóis cor de avelã de braços cruzados, que se levantou perante a aproximação dos estranhos. Tinha um nariz bolboso e uma boca pequena, que sibilava os esses.

 

Boas noites saudou, abafando um bocejo.

 

Boas noites, rapaz retribuiu Slayra enquanto Quenestil desmontava e a ajudava a fazer o mesmo. Tomas-nos conta do cavalo?

 

Só tomo conta dos cavalos de quem dorme na estalagem. É o que a avó desdentada diz.

 

A eahanoir ergueu uma fina sobrancelha.

 

Nós vamos dormir na estalagem da... avó, não te preocupes...

 

Então está bem concordou o rapazola, retomando o seu assento.

 

Slayra ficou à espera de que o catraio se levantasse e prendesse o cavalo numa das estalas, como achava que devia proceder, mas aparentemente o rapaz latvoniano não fazia tenções de se erguer, refastelando-se contra a parede de mãos atrás da cabeça.

 

Não amarras o cavalo? Se não estivesse tão ensonado, o rapaz ter-se-ia provavelmente assustado com a voz da eahanoir.

 

Do que é que vocês estão a falar? indagou Quenestil.

 

Só tomo conta dos cavalos... justificou-se o catraio despreocupadamente, fechando os olhos.

 

Slayra suspirou exasperadamente, com vontade de arrancar o capuz ’”e gritar ”eahanoir!” na cara do rapaz.

 

Vamos arrumar o cavalo... acalmou-se, afagando o ombro. O shura amarrou o garanhão com a corda de um anel metálico na

parede, evitando por pouco uma dentada do mal-humorado animal, ao qual não parecia agradar a perspectiva de passar a noite preso naquela estala malcheirosa. Seguiram então para dentro da estalagem que, tal como Slayra previra, era um autêntico tugúrio. Tratava-se de um estabelecimento pequeno e escuro, iluminado pelas diminutas chamas de velas coladas com o seu próprio unto derretido em cantos e por cima de mesas, libertando um odor a gordura rançosa. As tábuas do chão estavam soltas e rachadas em vários pontos, desajeitadamente tapados por conchas rachadas de variados tamanhos, e alguns passos escorregavam ligeiramente sobre o ocasional cuspe gosmento. Da trave principal pendiam búzios e esqueletos de peixes, que chocalhavam quase imperceptivelmente devido às correntes de ar que provinham da porta aberta e das inúmeras frestas nas paredes. Mesas redondas e molhadas estavam espalhadas pela sala, que tinha ainda um balcão sujo na parede oposta à da entrada e umas escadas pouco firmes que levavam ao segundo andar. Uma rapariga de longos cabelos castanho-claros limpava copos ao balcão e uma senhora idosa esfregava laboriosamente uma das imundas mesas. Havia três convivas na sala, dois homens que falavam silenciosamente e um outro que bebia descansado a um canto. Os dois eram latvonianos, julgando pelas suas roupas e bigodes, mas o outro, um indivíduo baixo e calvo com barba curta queimada pelo Sol e uma auréola de cabelo preto solto e despenteado, parecia ser estrangeiro. Os três dispensaram-lhes um mero olhar de curiosidade antes de retomarem as suas actividades, e a rapariga que se encontrava ao balcão a limpar copos mal olhou para os recém-chegados, apenas a velha lhes deu atenção.

 

Que é isto? Hóspedes? A estas horas? perguntou num agudo grasnar.

 

Cessou de limpar a mesa e postou-se diante dos dois eahan, pondo o pano sujo e molhado que usara atrás do ombro. Era uma mulher bastante velha, com uma cara profundamente vincada por rugas, uma boca desdentada de lábios chupados para dentro e um peludo queixo proeminente. Porém, aparentava ter um vigor incomum para a sua idade, visível nos seus brilhantes olhos azulados, na firmeza dos seus movimentos e no incessante bater do pé no chão. Por baixo de um casaco verde com tufos vermelhos espalhados pelo tecido vestia uma singela camisa branca e um avental bordado num colorido padrão com pompons amarelos na borda. Calçava botas de couro vermelho, usava um colar de conchas e o seu cabelo branco estava tapado por uma alaranjada mantilha bordada.

 

Boas-noites cumprimentou Slayra, puxando o capuz para trás. Queremos comida, cama e uma estala para o cavalo.

 

Os olhos da velha arregalaram-se momentaneamente ao ver a eahanoir à sua frente, mas depressa se recompôs. Avaliou os dois, mastigando de boca vazia, olhando-os de alto a baixo e erguendo um vincado sobrolho perante a estranheza do par.

 

Só tenho um quarto. Os outros estão ocupados. Pelos marinheiros.

 

Marinheiros?

 

De Tanarch.

 

Óptimo disse Slayra, mais para si que para a proprietária. Ficamos com esse quarto.

 

Só uma cama.

 

Não faz mal.

 

Muito bem acedeu a velha, virando-lhes as costas. Sentem-se. Há caldeirada de peixe. Ah lembrou-se, virando-se para Slayra e apontando-lhe um dedo caloso, têm como pagar?

 

A eahanoir olhou para o dedo, fazendo com que a velha o baixasse, e observou o estabelecimento com ar casual.

 

Para dormir e comer nesta espelunca, e alojar o meu cavalo, dou-lhe cinco moedas de prata. E estou a ser generosa.

 

Quenestil manteve-se calado, mas apercebeu-se de que estava a decorrer uma negociação quando viu a velha hesitar e lamber os lábios chupados.

 

Menos que sete não, eahanoir.

 

Slayra fitou a proprietária com um olhar gélido.

 

O meu escravo vai ter de dormir no chão. As estalas onde o meu garanhão está têm mais estrume que palha. Cinco moedas... havia uma ameaça não pronunciada na voz da eahanna, que fez com que a velha pensasse depressa e acabasse por reconsiderar.

 

cCinco moedas. Muito bem. Sentem-se e retirou-se contrariada para a cozinha pela porta atrás do balcão.

 

O que foi isso? quis Quenestil saber.

 

Nada. Falar sobre dinheiro com latvonianos é sempre assim. Anda disse, agarrando o braço do eahan, vamos sentar-nos.

 

As cadeiras rangeram quando o par nelas assentou, e a superfície das mesas não era minimamente convidativa para os cotovelos.

 

E então? O que é que vamos fazer? perguntou Quenestil, olhando em redor e especialmente para os convivas.

 

Já disse, dormimos aqui e amanhã apanhamos um barco. A velha disse que há marinheiros de Tanarch a dormirem na estalagem, podemos falar com eles.

 

E como é que pagamos a viagem?

 

Simples. Vendemos o cavalo.

 

O eahan pensou em algo mais para perguntar, mas como nada lhe ocorreu, calou-se e ficou a olhar para as marcas de facadas na mesa de cotovelos apoiados nos joelhos. Não estava habituado a este tipo de coisas, pelo que o melhor era mesmo deixar Slayra tratar delas. A eahanoir leu-lhe os pensamentos e agarrou-lhe a mão debaixo da mesa, mas largou-lha assim que a velha regressou e lhes pôs dois pratos de barro à frente e um caldeiro fumegante com postas de peixe, mexilhões de cascas entreabertas e caranguejo.

 

Paga já? inquiriu a velha com um ar algo desconfiado.

 

Sim. A comida, a cama e a estala disse Slayra, pondo-lhe cinco moedas de prata na mão. A velha raspou-as com uma chave, grunhiu aprovadoramente, entregou a chave à eahanoir e retirou-se.

 

O caldo cheirava a cebola e alho e soube deliciosamente aos dois eahan, que o devoraram quase até às espinhas, tal era a fome. Slayra esqueceu por momentos a dignidade e lambeu o prato de barro quando achou que ninguém estava a olhar enquanto Quenestil mastigava as folhas de salsa que haviam sobrado.

 

Deuses, cinco moedas de prata por isto é pouco... afirmou a eahanoir convictamente, lambendo os cantos da boca.

 

O shura não lhe secundou a opinião, mas era óbvio que se deliciara tanto como ela, e pouco depois veio a rapariga do balcão levantar os pratos. O seu simples vestido cinzento estava ruço e a saia tinha nódoas.

 

Desejam algo para beber...? perguntou cabisbaixa enquanto pegava na louça e no caldeiro.

 

Quenestil começava a ficar farto de ser posto de parte nas conversas, mas resignou-se com o facto de não perceber uma palavra de Urial.

 

Não, mas responde-me a umas perguntas...

 

Eu... é melhor falar com a avó...

 

Espera, rapariga! Não te vás embora! A criada virara fugazmente as costas à eahanoir mas deu meia volta. Vocês têm marinheiros de Tanarch a dormir aqui, não é? A rapariga acenou com a cabeça. Algum deles está aqui, na sala? Relutantemente, a criada apontou para o homem isolado. Óptimo. Obrigada, podes ir.

 

O que é que se passou? perguntou o eahan enquanto a criada se retirava com injustificada pressa.

 

Aquele atrás de nós é um marinheiro indicou. Devíamos falar com ele.

 

O eahan encolheu os ombros em resignada concordância e levantou-se. O marujo recebeu os dois com um olhar baixo e desconfiado, que rapidamente cintilou de interesse ao assentar em Slayra. Pousou a caneca, puxou o cabelo desgrenhado nas têmporas para trás com as duas mãos e tirou uma comprida espinha dos despojos do seu prato para começar a palitar os dentes acastanhados, aguardando.

 

Boas saudou Slayra em Urial.

 

Se falas latvoniano, o melhor é ficares calada enquanto fazes o serviço, moça. Não tenho pachorra para paleios nessa língua, prefiro ouvir peidos de cachalotes resmungou o marinheiro num Glottik pegado e com um estranho sotaque de ch guturais.

 

A eahanoir sorriu, embora Quenestil não tivesse gostado do que o homem dissera.

 

Estás com azar, marujo, porque não é para isso que eu vim.

 

E que mais pode uma cabra eahanoir fazer? retorquiu com um sorriso acastanhado e com dentes em falta.

 

Quenestil deu um passo em frente e Slayra teve de o refrear com o braço bom, o que chamou a atenção dos outros presentes.

 

Confusão aqui não! grasnou a velha detrás do balcão. Vão para a rua!

 

Está tudo bem, minha senhora assegurou-lhe a eahanna em Urial. Quero comprar passagem para dois no teu navio, marujo.

 

A única passagem que te arranjo é com estes dois disse o homem, afagando grosseiramente as partes baixas.

 

Quenestil pressionou o seu avanço e Slayra teve de o empurrar com mais força para trás.

 

Talvez mais tarde. A promessa velada pareceu interessar o marinheiro. Por agora quero apenas passagem no navio.

 

O homem reflectiu, devorando a eahanoir com os olhos enquanto palitava pedaços de peixe para fora dos dentes. Slayra sentia o rosnar do eahan no peito deste enquanto o mantinha afastado com a mão. Por fim, o marinheiro pareceu chegar a uma decisão.

 

Como pagas? A pergunta era obviamente condicionada, mas a eahanoir tinha outros planos.

 

Tenho um belo garanhão negro para venda informou, descobrindo o seu apertado corpete lentamente. Vale bastantes moedas de ouro... acrescentou com voz requebrada, enfatizando com um sugestivo flectir da perna em frente da coxa.

 

O capitão não compra cavalos... respondeu o homem, olhando fixamente para as formas da eahanoir, enfiando a espinha na boca e pegando na caneca.

 

Slayra achou que a altura era certa e tornou a cobrir-se.

 

Pena... disse, virando as costas ao marinheiro e puxando Quenestil consigo enquanto se retirava.

 

O homem não demorou mais de três passos para mudar de ideias.

 

Espera aí, cabra! Slayra parou e olhou por cima do ombro. Um cavalo pela vossa passagem?

 

Foi o que disse...

 

O marujo reflectiu um pouco mais, manobrando a espinha com os lábios, avaliando Slayra como o faria com mercadoria.

 

”... mata-se o bicho amanhã, salga-se... e sempre poupamos na carne...”, pensou. Está bem. Acho que convenço o capitão.

 

Slayra largou Quenestil, encaminhou-se na direcção do homem e pousou as mãos por cima da mesa deste, inclinando-se sorridente para ele.

 

Esplêndido. Quando partimos?

 

Amanhã... pela tarde.

 

A eahanoir piscou o olho ao marinheiro e mandou-lhe um beijo antes de se retirar, bamboleante. Os músculos do maxilar de Quenestil estavam hirtos, e Slayra achou melhor puxá-lo consigo para as escadas enquanto desejava uma falsamente cordial boa-noite aos convivas. Assim que acabaram de subir os instáveis degraus rangedores, o shura agarrou-a pelo ombro bom e encostou-a à parede.

 

O que é que foi isso? perguntou exasperadamente, surpreendendo a eahanoir.

 

Que queres dizer...?

 

Sabes muito bem, andares a oferecer-te àquele cretino! O que foi isso?

 

Slayra abriu a boca de incredulidade, tendo dificuldade em fazer as palavras saírem quando estas lhe ocorreram.

 

Quenestil, tu achas mesmo que... como é que querias convencê-lo a... tu... A eahanoir empurrou-o e afastou-se repentinamente, dirigindo-se à porta mais próxima.

 

O shura ficou no mesmo sítio, parado a olhar enquanto Slayra tentava sem sucesso enfiar a chave na fechadura, tremendo visivelmente. Passou para a próxima porta e também nesta teve dificuldades em acertar, os seus movimentos bruscos e trémulos. Na terceira, acabou por atirar a chave ao chão e bateu com o punho na porta, à qual encostou a cabeça, soluçando e originando protestos por parte de outros hóspedes.

 

A mão de Quenestil pousou-lhe suavemente no ombro, hesitou, e puxou a eahanoir para si, abraçando-a. Slayra retribuiu e encostou a cabeça à espádua do shura, chorando.

 

Desculpa pediu o eahan, enfiando a cara nos cabelos de Slayra. Desculpa...

 

A travessia das montanhas durou umas penosas duas semanas ao frio e ao ar rarefeito das alturas da Cinta. Cada dia fora extenuante para os companheiros e para a mula, forçados a enfrentar a neve, os ventos fortes e o hálito gélido que dançava pelas escarpas, arrastando perigosas pedras e penedos. O mais difícil fora subir, mas mesmo agora que se encontravam na recta final da descida, livres por fim dos incessantes ventos ululantes, os companheiros tinham de permanecer atentos a fendas e quedas de pedra, que lhes podiam cobrar muito caro um passo em falso. Haviam descido o dia inteiro mas era difícil medir os seus progressos, visto encontrarem-se ao nível das nuvens e a visibilidade ser bastante reduzida, sendo-lhes também impossível procurar sinais de civilização no vale em baixo. Segundo os cálculos de Allumno, deviam estar em Tanarch, embora não soubesse precisar a região e se recusasse a dar nomes de cidades.

 

Estamos em Tanarch, isso vo-lo garanto assegurou-lhes o mago, atento aos passos que Alfarna dava no tortuoso desfiladeiro como se a estivesse a conduzir.

 

Temente do abismo que abria as suas enevoadas e escarpadas mandíbulas aos companheiros à esquerda, Taislin caminhava de tal forma encostado à rocha que roçava nela com o ombro. Worick empunhava o seu martelo com a corrente do pomo atada ao pulso, pronto a usar o bico recurvo da arma como picareta, caso fosse necessário. O thuragar tropeçou, caiu de frente e proferiu um sonoro impropério, que lhe saiu num jorro condensado da boca e ecoou pelas encostas.

 

Não tão alto, Worick! advertiu Lhiannah enquanto se ajoelhava para impedir que o thuragar escorregasse e ajudá-lo a levantar-se. Uma pequena cascata de neve precipitou-se pela borda do desfiladeiro fora juntamente com algumas pedras devido ao estrebuchar de Worick.

 

Sim, queres que nos caiam as montanhas em cima? perguntou Taislin.

 

Se estás com medo, posso atirar-te daqui para baixo para te despachares... rabujou o thuragar, ajeitando o elmo.

 

Continuem... disse Aewyre vários passos à frente com a voz abafada pelo denso nevoeiro. O carreiro começa a alargar-se.

 

Não te afastes muito preveniu-o Allumno, temos de ficar juntos. O jovem parou, pois sabia que quando o mago afirmava que tinham de fazer algo em vez de sugerir o que deviam fazer era porque estava de facto preocupado. Com cuidado agora. Continuemos... não pode faltar muito para chegarmos ao vale.

 

Já perdi a conta das vezes que disseste isso, mago resmoneou Worick, sem sequer olhar para trás.

 

Se não estivesses sempre a cair, se calhar já lá tínhamos chegado opinou Taislin, batendo com o ombro contra uma saliência na parede de rocha.

 

Se tu não estivesses no grupo, se calhar já tínhamos...

 

Chega... interrompeu Allumno. Quanto mais falam, mais se cansam e correm o risco de desencadear uma avalancha. Mais um pouco de paciência, já devemos estar a chegar...

 

O thuragar ia continuar a sua ladainha, mas Lhiannah pôs-lhe as mãos por cima das espaldeiras e empurrou-o em frente, suspirando.

 

Ei! Não sou nenhuma mula, cachopa! Está quieta, ainda me fazes cair!

 

Então anda e pára de te portar como uma, Worick...

 

Felizmente para o grupo, o nevoeiro dissipou-se antes que o thuragar pudesse insistir na discussão, revelando perante todos o frondoso vale coberto de neve que se estendia em frente. Os companheiros pararam e ficaram a contemplar a paisagem em silêncio, quase avassalados pela bucólica visão dos vastos prados alpestres e brenhas níveas que se lhes deparavam, cortados ao meio por um sinuoso curso de água e granidos por pequenos pontos fumegantes, provavelmente quintas e cabanas de lenhadores. A tardia Primavera ainda não se mostrara em todo o seu colorido esplendor e o único florescimento era o das raízes que haviam sido espremidas para fora da terra pelo degelo. Ao fundo do vale avistavam-se as altas muralhas com passadiços carregados de neve de uma cidade, um marco de civilização que lhes pareceu mais belo do que na realidade seria noutras circunstâncias. O Sol estava prestes a pôr-se, colorindo de laranja as nuvens, o vale e os telhados das casas da distante cidade enquanto procurava o seu ocaso atrás das montanhas. Taislin abraçou a perna de Lhiannah, que lhe pôs a mão na cabeça embarretada e mesmo Worick grunhiu de satisfação, apoiando o martelo ao ombro. Aewyre ousou mesmo abrir os braços e soltar uma sonora risada de contentamento, que se propagou pouco devido à atmosfera carregada, merecendo ainda assim os olhares surpresos do grupo.

 

O que foi? Alegrem-se! Árvores, casas de madeira, até uma cidade com uma muralha! Não é lindo?

 

Worick abanava a cabeça, mas os restantes companheiros, mesmo Lhiannah, não puderam evitar meios sorrisos, pois estavam de facto contentes por terem abandonado o imenso vazio das estepes e o inferno álgido das montanhas.

 

Olhem, ali indicou Taislin com o pequeno dedo.

 

Um casarão. Todos olharam na direcção para a qual o burrik apontara e viram o que devia ser o solar de uma família abastada. O fumo que dele provinha indicava que estava habitado. O que é que vos parece?

 

Parece-me o sítio ideal para passar a noite. Andor, pode ser que tenham soyg. Sei que há comunidades thuragar por esta zona. Ou pelo menos havia, há muitos anos atrás, quando Allaryia ainda era um lugar civilizado... respondeu Worick, começando a descer sem esperar pelos outros.

 

Apesar da fome e do cansaço, o grupo retomou a descida com reavivado alento, até porque o pedregoso carreiro se começava a nivelar e alargar à medida que se aproximavam do prado que precedia o penhasco no qual o solar se localizava. Coníferas despontaram à frente dos companheiros, tapando-lhes a visão conforme iam descendo, mas mesmo através delas o fumo que o solar libertava cada vez parecia menos o de uma chaminé. Madeira que não a de lenha fora queimada. O grupo parou, cada um levando as mãos às armas. O Sol já desaparecera e o vale estava escuro, silencioso... não, ouvia-se algo. Neve a ser esmagada... passos?

 

Alguém se aproxima constatou Allumno, desmontando com vagar.

 

A Lua abriu lentas brechas por entre as nuvens, banhando o vale com o seu fulgor selénico. Lhiannah pousou um joelho no chão, ombreando-se a um pinheiro e preparando uma seta enquanto Aewyre fincava os pés na crosta de neve, agarrando Ancalach de lado com as duas mãos. Worick posicionou-se com o escudo da manopla de frente, Taislin desembainhou os punhais e correu a esconder-se atrás de uma árvore e a gema na testa de Allumno cintilou. Lentamente, começaram a ouvir-se os ofegos e arquejos de quem corria na sua direcção, aproximando-se. Os companheiros prepararam-se para o pior.

 

Uma rapariga de curtos cabelos desgrenhados surgiu do arvoredo, correndo ofegante e trôpega, mas a escuridão tornava difícil ver nela mais pormenores. Assim que avistou o grupo, estacou, encolhendo-se e olhando em redor como um animal encurralado, agarrando algo ao peito. Tanto a rapariga como os companheiros ficaram parados por momentos, presos em surpresa recíproca, e antes que qualquer um pudesse dizer ou fazer algo, um chuço de caçar javalis espetou-se no chão a uma mão cerrada dos pés da fugitiva, que gritou e desatou a correr para o lado. Foi então que os seus perseguidores surgiram, um grupo de homens armados com chuços e escudos redondos e machados ao cinto. Ao contrário dos companheiros, não hesitaram quando os viram e a sua primeira reacção foi a de investir contra os estranhos, prontos a arremessar uma salva de chuços enquanto um deles corria atrás da rapariga. A Palavra ecoou pelo prado e a neve aos pés dos atacantes entrou em erupção, cegando-os e enchendo-lhes as bocas com gelo pulverizado. Lhiannah soltou uma flecha, que se alojou no braço direito de um homem, e correu atrás do outro que perseguia a rapariga, decidida a ajudá-la.

 

Lhiannah, espera! pediu Allumno em vão no momento em que Aewyre e Worick correram pelo prado abaixo, abatendo-se sobre o desorientado grupo com um efeito desbaratador. O martelo do thuragar despedaçou um escudo, Ancalach decepou as cabeças de três chuços com um só golpe e vários homens caíram feridos por terra com o seguimento.

 

Enquanto Allumno hesitava, indeciso entre ajudar os dois guerreiros ou ir atrás de Lhiannah, um outro atacante perdeu os dedos ao tentar agredir Aewyre com a haste e o seu companheiro foi projectado para trás com uma martelada que precariamente defendeu com o escudo. Numa questão de instantes, o ataque transformara-se numa retirada caótica, mas mais ruídos vinham detrás das árvores, anunciando a iminente chegada de reforços. Aewyre e Worick optaram por deixar os restantes fugir, recuando para não se afastarem demasiado dos outros, mas assim que os atacantes em fuga desapareceram nas árvores, outros surgiram de imediato para os substituir, liderados por um humanóide baixo e atarracado. Era careca, tinha a cara rapada, envergava uma armadura metálica completa e empunhava dois manguais de correntes com esferas espinhosas.

 

ANIMAL! urrou o pequeno guerreiro, iniciando uma corrida desvairada em direcção a Aewyre e Worick, com outros homens armados na sua alçada a uma respeitosa distância.

 

Um thuragar?! admirou-se Worick.

 

Allumno fez uso da Palavra de modo a parar a ensandecida investida, mas a Essência dissolveu-se nos resquícios de Entropia do corpo do atacante. Sem abrandar com o feitiço, o thuragar abateu-se sobre Worick e Aewyre, rodopiando os seus manguais num furioso remoinho farpado. O humano desviou-se do ataque, mas o thuragar recebeu-o de frente, erguendo o escudo.

 

IMANAL! berrou o thuragar desbarbado quando uma das suas esferas espinhosas embateu contra o metal do escudo de Worick, amolgando-o e furando-o.

 

Os outros homens atacaram Aewyre com golpes de chuço antes que este pudesse responder à investida do seu líder, mas o jovem brandiu Ancalach e varreu o ar à sua frente, cortando abruptamente o ímpeto à arremetida dos seus agressores, já de si difícil devido ao alcantilado do terreno. Em vez de recuar, pressionou o ataque, castigando os escudos de madeira e as hastes dos chuços dos homens, que tentavam a todo o custo bloquear os rápidos golpes do guerreiro, e forçando-os a retirar para cima dos seus companheiros que ainda subiam.

 

Ao ver o número de inimigos que se aproximavam, Allumno principiou a recitar algo que teria efeitos mais drásticos que uma mera erupção de neve, mas ouviu passos apressados no seu flanco e antes que se pudesse virar para ver quem se aproximava, um pequeno corpo colidiu contra as suas pernas e deitou-o por terra ao mesmo tempo que ouvia algo silvar-lhe perto da cabeça. Rebolou pela crosta nevosa abaixo até conseguir parar e tirar Taislin de cima de si.

 

Taislin, o que...?

 

Um arqueiro avisou o burrik, apontando e olhando para a luta que se desenrolava alguns passos mais abaixo. Os seus olhos estavam grandes e pretos. Mantém-te baixo recomendou ainda antes de gatinhar apressadamente para trás de uma árvore.

 

O mago olhou na direcção para a qual Taislin dirigira o seu olhar, reforçando os seus olhos com pura Essência, e de facto distinguiu para além dos combatentes um homem meio escondido atrás de uma árvore, empunhando um arco longo e preparando outra seta. Alfarna orneou, subindo a encosta.

 

Os dois thuragar combatiam acirradamente e os sonoros clangores de metal ressoavam pelo prado de cada vez que os manguais atingiam o escudo e o martelo atingia a armadura.

 

NI AM AL! bramiu o thuragar careca, espumando da boca e amolgando mais um pouco o escudo do seu adversário.

 

Berra algo que se perceba, pedras me partam! respondeu Worick, batendo com força na manopla do seu agressor e fazendo com que este largasse um mangual.

 

AMINAL!

 

Arre!

 

Os guerreiros digladiaram-se como dois pequenos colossos encouraçados, fazendo o metal das suas armaduras gritar e gemer e criando uma área vazia em seu redor na qual ninguém ousava penetrar.

 

Sozinho, Aewyre retardava o avanço do grupo de homens armados, que se viram forçados a adoptar uma postura puramente defensiva contra os ataques de tão determinado guerreiro, que aproveitava muito bem a sua posição superior. Os seus escudos estavam quase fendidos pelos incessantes golpes de Ancalach e muitos dos seus números já haviam caído, feridos, mas um novo combatente entrou na pugna sem qualquer aviso. Envergava uma veste de couro fervido reforçada com rebites de aço e empunhava um estoque, uma comprida espada que na verdade pouco mais era que uma rígida vara desprovida de gume com uma ponta aguçada, destinada a bater e penetrar em armaduras. Agarrando a arma pelo punho e pela base como um cajado, o recém-chegado desviou um revés de Ancalach e varreu os pés do guerreiro para fora do chão, causando a sua queda. Aewyre deixou-se ir, apoiou a queda com a mão, girou em si e retribuiu com outra varredela, que teria decepado os pés do seu adversário se este não tivesse saltado. Em pleno ar, o homem virou a ponta do estoque para baixo e preparou-se para a cravar na garganta de Aewyre ao descer, mas o jovem inverteu a direcção de Ancalach, agarrou-a com as duas mãos e desviou o estoque com a base da lâmina por um triz, ouvindo a ponta a espetar-se na crosta de neve ao lado da sua cabeça. Antes que o seu adversário a pudesse retirar, Aewyre encostou-lhe o pé à barriga e empurrou-o para longe de si. Ao ver a quantidade de homens que estavam prontos a cravá-lo contra o chão com chuços pensou que estava em sérios apuros, mas então ouviu a voz de Allumno e um clarão de luz explodiu em silêncio atrás da sua cabeça, cegando os seus atacantes, que levaram as mãos aos olhos.

 

No meio do barulho da escaramuça, o mago ainda ouviu o silvo de uma flecha por cima de si, e sorriu ao constatar que o arqueiro também fora afectado pelo fulgor. Acocorou-se e principiou a recitar algo para auxiliar Aewyre.

 

Um pedaço do escudo de Worick voou com outro golpe do mangual do thuragar careca, que espumava da boca como um cão raivoso.

 

Fui eu quem fez este escudo, seu filho duma croça! vituperou Worick, concutindo o adversário com uma martelada no flanco, que lhe amolgou as escarcelas. Bestiaga dum cabrão, barrelona que te pariu! continuou com uma estocada com o espeto do martelo, que encalhou na fresta da espaldeira do oponente.

 

MAINAL! respondeu o thuragar ensandecido, malhando o que sobrava do escudo de Worick.

 

Aewyre nem teve tempo para se ocupar dos inimigos cegos que o rodeavam, visto que o homem do estoque aparentemente evitara o clarão e tornara a atacar, desferindo um golpe de cima ao qual o guerreiro respondeu cruzando o pulso esquerdo sobre o direito, volteando a espada e dessa forma desviando o ataque e estocando em frente, perfurando a ombreira de couro do adversário e escoriando-lhe o ombro. O homem recuou, tentando ganhar distância, mas Aewyre pressionou com uma investida frontal. Fora precisamente essa a intenção do seu adversário, que surpreendeu o jovem dando um passo lateral, torcendo os pulsos para agarrar a base e a ponta do estoque, de modo a usar a arma como um martelo num inesperado ataque vindo de cima. Aewyre só teve tempo para se encolher e receber o golpe dos copos da arma na espaldeira esquerda, que lhe ressoou ao ouvido e lhe magoou o pescoço. O seu adversário deu um passo atrás, colocou a mão no pomo do estoque e empurrou a ponta, direccionando-a com a outra mão para a garganta do jovem, que apenas o evitou com uma rápida torção dos pulsos de modo a interpelar a fatal estocada com Ancalach.

 

A litania arcana de Allumno originou uma baforada de ar quente que varreu o chão níveo debaixo dos pés dos homens cegos, que de imediato começaram a tropeçar e escorregar na neve parcialmente derretida. O mago deu-se então ao luxo de avaliar a situação: Aewyre estava de mãos cheias com o seu adversário, Worick e o outro thuragar pareciam querer matar-se um ao outro, Lhiannah fora atrás da rapariga e Taislin pura e simplesmente desaparecera... O mago optou por ajudar Worick e murmurou palavras de sono e cansaço com os quais

pretendia impregnar o thuragar careca que urrava desmedidamente. Só não reparou numa coisa: a seta que o visava. O arqueiro escondido ainda não recuperara totalmente a visão, mas já conseguia distinguir o suficiente para ver o brilho vermelho da gema e dos olhos do mago. O seu antebraço de músculos nodosos estava hirto e firme à medida que puxava com o corpo o tenso fio do arco até sentir a já familiar carícia das penas de ganso na orelha. A cabeça da seta estava alinhada com o corpo do mago, era um tiro que certamente iria acertar... possivelmente matar... era só largar...

 

O fio estalou por baixo e roçou-lhe a cara num movimento de chicote. A haste da flecha deslizou-lhe pelo antebraço e caiu no chão. Antes que o arqueiro pudesse sequer admirar-se com o que sucedera ao fio que tivera o máximo cuidado de manter seco, algo aguçado picou-lhe as partes baixas ao de leve.

 

Não sei se me percebes... ouviu uma voz diminuta dizer. Mas acho que o que tens aqui em baixo fala por si. Arco para o chão e mãos em cima da cabeça, vá.

 

Taislin fora aparentemente claro, pois o arqueiro largou a sua arma e pôs lentamente as mãos atrás da nuca.

 

Muito bem, agora diz aos teus amigos que parem e... Devido aos ruídos da luta que se desenrolava em frente, o burrik não ouviu os passos atrás de si e só se apercebeu de que alguém se aproximara quando uma mão lhe tocou o ombro e outra lhe apareceu por cima para tocar no do arqueiro. O corpo de Taislin tensionou-se para reagir, levar a cabo a sua ameaça e espetar o novo inimigo com o outro punhal, mas um inesperado calor balsâmico no seu corpo fez com que deixasse de parte todas as suas intenções agressivas e baixasse as suas armas, a ideia de fazer mal a alguém inesperada e subitamente abjecta. O arqueiro também não reagiu e pareceu relaxar como o burrik, virando-se para a pessoa que lhe tocara e sorrindo-lhe.

 

As palavras de Allumno tornaram os olhos do thuragar careca pesados, os seus membros afrouxaram, os seus golpes tornaram-se lerdos. Antes que pudesse combater o repentino torpor, Worick desferiu-lhe uma forte martelada de lado, que o enviou a rebolar pela encosta abaixo na direcção de Aewyre e do outro espadachim. Furioso, o veterano correu atrás do seu rebolante adversário, brandindo o martelo enquanto urrava de raiva e atropelando pelo caminho alguns dos homens que haviam escorregado. Contudo, um deles já recuperara a visão e atirou-se às curtas pernas de Worick, envolvendo-as num forte amplexo pelos joelhos e derrubando-o, rolando com ele pela neve. Ancalach e o estoque silvavam um no outro como duas cobras assanhadas, precedidas pelos grunhidos e arfares dos guerreiros que os empunhavam. A acerada canção foi interrompida pelo corpo encouraçado do thuragar careca quando este rebolou pelo meio de ambos, que tivera de saltar para trás para o evitar. Antes que pudessem retomar o combate, uma voz feminina gritou.

 

Parem!

 

A ordem não fora proferida num tom imperioso, antes pelo contrário, fora quase um pedido, suave mas bem vozeado, brusco na sua inflexão porém brando, e funcionou, pois todos os envolvidos na escaramuça pararam e olharam na direcção da voz. Conduzindo Taislin e um homem alto pelas mãos, uma mulher caminhava calmamente, aproximando-se do thuragar careca, que embatera contra uma rocha e que estrebuchava devido aos seus membros dormentes. A mulher largou as mãos do burrik e do humano, que a fitaram com olhares adoradores, e tocou na testa do thuragar, murmurando-lhe palavras aquietadoras. O guerreiro cessou as suas convulsões e ficou parado a olhar para ela, sorrindo-lhe como uma criança.

 

Animal disse, sossegado.

 

Enquanto a mulher o ajudava a levantar-se, os outros guerreiros, feridos e trôpegos, foram na sua direcção e cercaram-na protectoramente. A mulher recebeu-os a todos com um sorriso e deu então a sua atenção aos desconhecidos que a fitavam numa mistura de admiração e surpresa.

 

Saudações, estranhos cumprimentou, afagando a cara de Taislin, que permanecia a seu lado como uma criança perto da mãe. Falava Leochlan, a língua de Tanarch, suficientemente parecida com Glottik para que os companheiros entendessem. Afinal, era directamente derivada d’a Palavra, a mãe de todas as línguas.

 

Mamã, por que falas com os asseclas? acautelou-se um dos homens, empunhando um machado ao ver que o mago se juntava aos seus amigos.

 

Não são Filhos do Flagelo, Luthim assegurou-lhe a mulher, sorrindo para Taislin. Eles nunca aceitariam um burrik entre eles.

 

Inamal concordou o thuragar careca.

 

Saudações, senhora retribuiu Aewyre apreensivamente, pois a mulher tinha Taislin em sua posse. Não temos contenda convosco, mas fomos atacados.

 

Perante o ar desconfiado do jovem guerreiro, a senhora à qual haviam chamado ”mamã” pegou na mão de Taislin e encaminhou-se na sua direcção. O arqueiro acordou da sua calmaria e, juntamente com o espadachim e o thuragar, seguiram a mulher, acompanhando-a lado a lado. Worick empunhava o seu martelo com uma mão apenas, trocando olhares belicosos com o seu adversário desbarbado. O braço do escudo pendia, sangrando dos rombos e furos na manopla, cotoveleira e braçal.

 

O que é que ela fez ao burrik? perguntou em surdina a Aewyre. Está com um ar ainda mais parvo do que é costume na cara.

 

Parece enfeitiçado... admitiu Allumno.

 

A estranha procissão parou à distância de um golpe do estoque do espadachim, perto o suficiente para que Aewyre os pudesse ver bem, graças ao luar. A mulher vestia um dominó vermelho, um traje formado de uma longa túnica, capuz e mangas, com um cachecol escarlate de casimira ao pescoço, do qual pendia um colar com uma rosa no meio de um anel dourado: o símbolo de Assana, deusa do amor. Os cabelos que lhe saíam do capuz eram castanhos com as listras prateadas da idade, os seus olhos tinham papos em baixo e o sorriso com o qual os presenteou revelava um incisivo alongado e torto no maxilar superior. Havia, no entanto, algo de carinhoso e terno no seu olhar, cada gesto seu denotava um afecto maternal por aqueles que a rodeavam, e isso fez com que mesmo Worick relaxasse a sua postura agressiva. O arqueiro era visivelmente mais velho que a mulher, com um tufoso bigode cinzento que lhe tapava a boca, vincando-se nos cantos e descaindo para o queixo, pele trigueira de montanhês, cabelos pardos presos com uma fita na testa vincada e sobrancelhas acentuadamente arqueadas. Os seus antebraços resguardados por braçais de couro tinham os nodosos músculos de um arqueiro veterano, embora, para a surpresa dos companheiros, lhe faltassem os dedos anelar e mínimo da mão direita. O espadachim, que agarrava o ombro que Aewyre ferira, era mais novo que o seu adversário, com feições alongadas, cabelos pretos encaracolados e uns grandes olhos com pestanas quase femininas. O thuragar careca, que sangrava de vários golpes e cuja couraça e espaldeiras estavam amolgadas, tinha um brilho maníaco, quase animalesco nos pequenos olhos escuros. Os cantos da sua boca estavam espumosos e os seus pronunciados maxilares moviam-se como se estivesse a rilhar os dentes de boca fechada. Uma cicatriz redonda no crânio rapado podia ser a explicação para o seu comportamento selvático.

 

A líder do grupo largou a mão de Taislin, que pareceu despertar e se afastou de imediato dela, refugiando-se atrás das pernas de Aewyre. A mulher sorriu.

 

Não vos desejamos mal, asseguro-vo-lo...

 

Imagina só se desejassem... resmoneou Worick, pousando a mão que agarrava o martelo no braço ferido.

 

Foi um mal-entendido. A nossa luta não era convosco, mas os rapazes viram-vos, e...

 

Por que razão perseguia um grupo de homens armados aquela rapariga? quis Aewyre saber, ainda na defensiva.

 

A mulher suspirou como uma mãe faria perante a teimosia de uma criança.

 

A rapariga pretencia aos Filhos do Flagelo, cujo solar acabámos de atacar. Pode parecer cruel, mas ninguém devia ter sobrevivido ao ataque...

 

Os quê?

 

Espera aí interrompeu Worick, olhando para trás, onde está a Lhiannah?

 

Ela foi atrás da rapariga... recordou Allumno.

 

E um daqueles marmanjos também! lembrou-se o thuragar, principiando a correr pela encosta acima, parando de seguida ao ver a arinnir emergir das árvores.

 

Cachopa, estás bem?

 

Lhiannah não respondeu, limitando-se a continuar a descer na direcção do grupo. A sua espada estava desembainhada e havia sangue na lâmina.

 

Lhiannah, o que aconteceu? inquiriu Aewyre, sem na verdade esperar uma resposta. Sentiu a tensão na mulher e nos seus acompanhantes atrás de si quando estes viram o sangue mal limpo na espada da princesa.

 

Sem parar a descida, a arinnir fitou Ancalach por sua vez, constatando que também estava manchada de sangue, e passou por Worick sem uma troca de olhares sequer. O thuragar franziu o cenho.

 

Matei o homem que perseguia a rapariga, mas ela fugiu informou Lhiannah, acercando-se de Aewyre.

 

A cabeça da mulher descaiu e o arqueiro agarrou-lhe os braços de modo a apoiá-la, mas depressa se restabeleceu, dispensando a ajuda.

 

Morreram vários dos meus rapazes hoje, e mais ainda foram feridos. Espero que este tenha sido o último... por favor pediu, estendendo a mão aos companheiros, que se viraram para ela, aceitem a nossa oferta. Permitam-nos atenuar as dores que aqui foram infligidas e lamentem connosco os que hoje morreram. Partilhem connosco o vosso amor.

 

Sobrancelhas franzidas foram a reacção geral no seio dos companheiros, menos Lhiannah, que olhava inexpressivamente para aqueles que há bocado haviam sido seus adversários. Não obstante, havia algo de terno e maternal na voz da mulher, algo que atenuava a desconfiança e os assegurava de que não corriam perigo. Allumno quebrou o silêncio.

 

Certamente. Lamentamos este incidente e ajudaremos como pudermos. O mago foi então alvo do escrutínio conjunto dos companheiros e dos acompanhantes da mulher. Impassível, Allumno retribuiu com o seu típico olhar que dava a entender que sabia muito bem o que fazia e que discussões seriam fúteis. Digam-nos apenas: quem são? Clérigos de Assana? E que querela têm vocês com os Filhos do Flagelo?

 

Os quem? tornou Aewyre a perguntar.

 

A mulher sorriu, contente e indicou os seus acompanhantes e o grupo atrás deles com um gesto da mão.

 

Fiéis. Somente devotos fiéis da guardiã do leito conjugal. Somos os Corações Quebrados. Todos assentiram com a cabeça, como se tivessem orgulho no nome do grupo ao qual pertenciam. Explicar-vos-emos tudo a seu devido tempo, mas por ora devíamos retirar-nos para um lugar seguro. Se a rapariga fugiu, inimigos não tardarão a aparecer.

 

Muito bem... conseguiu Aewyre dizer, apesar de ainda não saber o que os Filhos do Flagelo eram, aceitamos.

 

A mulher revelou o seu incisivo torto com mais um sorriso, mas um apertar da sua manga indicou que o arqueiro lhe puxava uma prega do dominó enquanto lhe segredava algo ao ouvido. Aewyre e Allumno permaneceram em educado silêncio, mas Worick não gostou do que viu.

 

Quando acabarem de cochichar, podem partilhar isso connosco? Ou há alguma coisa que não devíamos saber?

 

O arqueiro calou-se, obviamente desagradado com a interrupção, mas a mulher limitou-se a sorrir de forma quase condescendente.

 

Evidentemente, os rapazes têm dificuldades em confiar em vocês... admitiu, avançando para os companheiros e erguendo uma mão para indicar aos seus homens que não desejava protecção. Por essa razão vos peço: abram-me os vossos corações.

 

Perdão? pediu Aewyre.

 

Abram os vossos corações, permitam-me tenteá-los... a mulher postou-se diante dos companheiros e fechou os olhos. Aewyre olhou para Allumno, confuso, mas o mago limitou-se a encolher os ombros e fechar os olhos. O jovem procurou apoio em Worick, mas o thuragar nada mais fez para além de postar a cabeça do martelo no chão e pôr as duas mãos no pomo, aguardando com uma expressão determinada na cara. Resignado, o guerreiro preparava-se para seguir o exemplo de Allumno quando sentiu algo a afagar-lhe o peito por dentro, como se suaves dedos invisíveis lhe estivessem a acarinhar o coração. Aewyre levou as mãos ao peito e olhou alternadamente para baixo e para a mulher, que permanecia de olhos serenamente fechados, e assim ficou até os tornar a abrir, momento no qual a sensação de carícias no seu coração terminou. Vocês têm as almas puras, e são capazes de dar e receber amor, exceptuando o thuragar, claro está disse com mais um sorriso maternal, olhando para Worick, mas mesmo ele é um bom homem. Já a jovem...

 

Todos se viraram para Lhiannah, que enfrentava o olhar da mulher de braços cruzados numa obstinada postura.

 

O coração é meu e não é para tu espreitares afirmou a arinnir.

 

Como queira suspirou a mulher, parecendo subitamente cansada, não posso obrigar ninguém a abrir a sua alma. Venham então disse, virando-lhes as costas e originando uma organizada debandada com esse gesto enquanto pedia a dois homens que fossem buscar o seu companheiro morto. Maneta ficou para trás com três outros homens, avaliando os companheiros.

 

A Mamã confia em vocês, mas não gostei que a menina não lhe tenha aberto o coração confessou. Vou tê-la debaixo de olho.

 

Lhiannah encarou o velho arqueiro com ar desafiador, mas o homem ainda não acabara.

 

Homens nossos morreram neste ataque. Portem-se bem que as emoções estarão voláteis terminou em tom de aviso, fazendo-lhes sinal de que começassem a andar e dando a entender que começaria a vigiá-los naquele preciso momento.

 

Corações Quebrados... murmurou Aewyre, seguindo caminho resignadamente após lançar um último olhar dúbio à princesa.

 

Mas por que é que de cada vez que somos atacados nos pedem desculpas e nos querem compensar? admirou-se Taislin, saltitando ao lado de Allumno.

 

Devias estar grato por ser assim, meu pequeno amigo replicou o mago, chamando Alfarna, que entretanto se aproximara.

 

O velho arqueiro.

 

Sem esperar que a burra regressasse, Lhiannah foi atrás de Aewyre, ignorando Worick.

 

Está tudo bem, cachopa?

 

Tudo respondeu a arinnir sucintamente sem sequer olhar para trás.

 

O thuragar continuava sem perceber, mas a princesa ignorou as suas perguntas subsequentes, recusando-se a abrandar o passo e de olhos postos no guerreiro.

 

Escondida dos olhares do grupo, uma figura observava a cena detrás de um cerrado pinheiro de ramos baixos. Aí permaneceu, imóvel, até ver o arqueiro e os três Corações Quebrados a desaparecerem nas árvores, retirando-se então sorrateiramente para as sombras do bosque.

 

O uivo da demoníaca criatura esquelética gerou o pânico nas montadas dos Gal Shamul que a cercavam, fazendo as bestas empinarem-se de medo e derrubarem os seus cavaleiros. Uma chuva de setas trespassou-a quando se aproximava para matar os guerreiros caídos, mas os projécteis não a pareciam incomodar de sobremodo, apesar de estar crivada deles. Os irmãos que haviam voltado do grupo de batedores que fora em busca de Aduz e Urit bem os haviam avisado de que a criatura era um terrível monstro que matara metade do seu número em poucas batidas de coração, mas nenhum esperara encontrar tão feroz e terrífico adversário. Ainda assim, as mortes dos seus irmãos seriam vingadas, e a dívida de sangue para com os Gal Shamul apenas aumentava a cada guerreiro tombado.

 

O monstro degolou outro irmão com a sua espada negra mas um cavaleiro partiu uma lança contra o seu flanco e deitou-a por terra. Antes que esta se pudesse erguer, outros surgiram e vararam-na contra o chão com as suas lanças enquanto ocarr a pé corriam de sabres desembainhados e escudos de vime empunhados, uivando de raiva e orando aos espíritos da estepe que os protegessem, confiando plenamente nos amuletos com os quais a xamã os presenteara para os ajudar em tão importante e perigosa missão. A criatura uivou em resposta, mas naquele momento os guerreiros da estepe estavam acometidos por um vingativo júbilo de batalha e o uivo não teve o habitual efeito aterrador. Quando o primeiro sabre se abateu sobre a sua armadura, o monstro contorceu-se violentamente, partindo uma lança e ameaçando ripostar, mas outro se lhe seguiu e depois outro e outro e mais outro até que os uivos da criatura foram abafados pelo choro clangoroso do metal da sua negra armadura. A sua espada cruenta ainda se ergueu num derradeiro gesto, mas a ponta de um sabre penetrou-lhe a fresta da manopla e cravou-a contra o chão, imobilizando-a. Os cavaleiros presenteavam os ventos da estepe com hinos de vingança, levando os queixos acima e cantando com toda a força dos pulmões. Os clangores foram diminuindo até ao último golpe, que fendeu a fronte do elmo do monstro, rachando-lhe o crânio e o maxilar superior. Todo o movimento cessou então e os Gal Shamul pararam de cantar, deixando o vento a entoar um solitário cântico. Os guerreiros apeados recuaram, observando o monte de metal negro despedaçado aos seus pés, sem uma única gota de sangue sequer vertida pelas mortes que causara. Um autêntico monstro, uma afronta às estepes, aos espíritos e aos seus antepassados de duas e quatro pernas... Os guerreiros que estavam montados desmontaram e, tal como os seus irmãos a pé, ajoelharam-se, abrindo os braços e remerceando a benesse que lhes fora concedida para derrotar a criatura. Todos recolheram um pouco de neve manchada de sangue nas mãos enluvadas e atiraram-na ao ar, proferindo os seus agradecimentos em voz alta. Executado o ritual, ergueram-se e trataram de preparar os esquifes com arreios ”e mantas para levarem os irmãos que haviam tombado no combate de volta ao acampamento. Ia ser uma longa e triste viagem, mas haviam cumprido a sua missão e seriam sem dúvida agraciados pelo ayan.

 

Ninguém reparou no difuso brilho escarlate numa das órbitas rachadas do monstro, que se apagou vagarosamente, deixando uma cavidade escura.

 

Slayra e Quenestil haviam passado a manhã inteira à espera da partida do navio, jejuando forçosamente devido à falta de dinheiro. A eahanoir informara-se nas docas acerca do barco no qual iriam viajar, e descobrira que pertencia a mercadores de Tanarch que tratavam da importação de mel e de pedra-íman, dois recursos abundantes na Latvonia e muito apreciados no Norte, principalmente o segundo, necessário para os compassos dos navegadores tanarchianos. Era um navio de dimensões modestas, destinado a pequenas cargas, com uma grande vela quadrada, um pendente com a insígnia da companhia que servia no topo do mastro e uma carranca de proa na forma de um peixe-espada, cujo esporão servia de gurupés. A insígnia representava o que aparentava ser um compasso amarelo num fundo azul como o mar.

 

Os dois eahan observaram a tripulação a empurrar os barris de mel por rampas acima, a carregar pesados caixotes cheios de pedra-íman e participaram, inclusive, na matança do garanhão, executada em segredo pelo cozinheiro do navio e os seus ajudantes. Quenestil desferira a facada de misericórdia na garganta do animal, pedindo-lhe perdão em surdina, e os auxiliares do cozinheiro apressaram-se a esfolar e despedaçá-lo com facas, cutelos e machados, parecendo fruir de um estranho gozo por serem os únicos a conhecer a origem da carne que iriam dar aos seus companheiros. Já devidamente preparados, os pedaços foram então enfiados em barris com salmoura e transportados a bordo do navio com os restantes mantimentos.

 

Os homens da tripulação não pareciam piores que quaisquer outros marinheiros, no ver de Slayra, mas a perspectiva de passar semanas trancafiado com aqueles homens não parecia agradar minimamente a Quenestil, que os fitava desconfiado.

 

Não me agradam dizia, lacónico.

 

Pouco mais restava à eahanoir que suspirar. De facto, cada um daqueles marinheiros rudes, barbudos, pouco limpos e de pés descalços parecia querer comê-la com os olhos e não só, mas tinham de aproveitar este barco, caso contrário nunca mais encontrariam os outros. Resignada, Slayra olhou para o céu coberto de cirros escuros. Perto da costa pairavam as omnipresentes lânguidas silhuetas de gaivotas, cujos grasnidos compunham a sinfonia matinal da vila, juntamente com o bater dos cascos das embarcações contra os cais, o praguejar das vozes grosseiras dos marinheiros, o lamber das ondas na areia e o som de pesados objectos a serem arrastados e rolados sobre o convés.

 

Então cabra, satisfeita? perguntou uma voz atrás dos dois eahan, que se viraram para dar de caras com o marinheiro da estalagem de braços cruzados. À luz do dia puderam vê-lo melhor. A pele da sua cara que não estava tapada por barba queimada pelo Sol era morena e curtida pelo vento, que também desalinhara permanentemente o cabelo escuro que lhe sobrava, restando na sua tostada calva apenas alguns sobreviventes isolados do que antes fora uma farta cabeleira. Uma barriga protuberante esticava a sua camisa de cárbaso de mangas curtas até aos limites, pendendo por cima da linha das calças de lona que lhe davam pelas canelas. Tinha uma faca e um esporão de veleiro no apertado cinto e caminhava descalço como se estivesse a bordo do navio, exibindo os pés peludos e calosos quase com orgulho.

 

Ainda bem que tudo pôde ser levado a cabo sem problemas e com tanta rapidez respondeu Slayra.

 

Pois olha que eu não vou ser rápido. Eu ponho sempre o peixe a render...

 

É o mais indicado... interrompeu a eahanoir, atenta ao temperamento de Quenestil, que fitava o homem como um carcaju prestes a saltar. Ouvia-se um leve rosnar gutural.

 

E vê se pões o teu cão ruivo na ordem. Se ele se arma em esperto comigo, varo-o com o espeto e dou-o de comer aos caranguejos... ameaçou o marinheiro, acariciando o esporão de veleiro.

 

O silêncio do shura era o de um animal selvagem antes do ataque. Slayra pôs-lhe a mão no ombro.

 

Ele é muito protector, e é também para isso que ele serve.

 

O marujo ia dizer outra coisa, mas alguém o chamou do navio e o homem viu-se forçado a acatar o chamamento, resmungando o que parecia ser uma promessa à eahanoir e fitando Quenestil com ar desafiador enquanto se retirava a passos apressados.

 

Não me agradam repetiu o eahan, sem tirar os olhos das costas do marinheiro.

 

Quenestil, são homens, e são homens que passam semanas enfiados num barco explicou Slayra, exasperada. O shura não parecia convencido. Todos os marinheiros são assim. Preferes ir a pé até Tanarch? Por Karatai?

 

Não gosto especialmente dele acrescentou, parecendo nem sequer estar a ouvir.

 

Ele também não morre de amores por ti, Quenestil.

 

Slayra agarrou-o pelo braço e forçou-o a olhar para ela, não te preocupes. Eu não deixo que ele ou os outros me façam nada, e tu estás comigo. Acariciou-lhe a face. O que é que eu tenho a temer contigo ao meu lado?

 

O eahan fechou os olhos, suspirou e pegou na mão de Slayra, beijando-lhe os dedos. Os dois ficaram de mãos dadas no cais, esperando e deixando o tempo passar, alheios a ele. O sino que anunciava a partida do navio não tardou a tocar.

 

Slayra observava de cima do tombadilho a ondulante planura cerúlea que se estendia à sua volta e até onde a vista alcançava. O Sol descia no horizonte, dourando as resplandecentes águas ondeantes. A eahanoir desistira de puxar o capuz, visto que o vento salgado acabava sempre por lho tirar enquanto olhasse em frente, e os seus longos cabelos negros serpenteavam ao sabor das rajadas. A costa ainda estava à vista, uma discreta linha escura coroada de nuvens no horizonte, mas ainda assim a eahanoir padecia de uma estranha apreensão, como se estivesse a afastar-se de tudo o que lhe era familiar e a entrar num mundo novo e desconhecido. Até certo ponto era verdade, pois apesar de navios não lhe serem estranhos, nunca embarcara numa viagem prolongada em alto mar, e também nunca estivera tão fora do seu meio, cercada por homens potencialmente perigosos que não conhecia... Slayra despertou desses pensamentos e ocupou o espírito a olhar em redor em vez de manter os olhos fixos no infindável azul, que a fazia sentir-se tão pequena. A tripulação atarefava-se no convés, desapertando as amuras, afrouxando as arrotaduras, ajustando o cordame, baixando as velas, dispensando um olhar ocasional ou um fortuito piscar de olho à eahanoir, mas os homens descalços eram acima de tudo diligentes e não permitiam que a bela eahanna os distraísse. Muito. Já perdera a conta dos piropos ordinários que lhe haviam sido dirigidos, e isto contando apenas aqueles que percebera, pois o Leochlan dos marinheiros era carregado e rude. Olhou então para cima, para a vela aconcavada pelo fustigar do vento. Havia um homem sentado na gávea no topo do mastro, tocando flauta alegremente como um menestrel, o que Slayra estranhou.

 

Está a tocar para os deuses disse uma voz salivante atrás da eahanoir, seguida de dois passos que posicionaram o homem que a proferira a seu lado. Se eles gostarem da música, sopram o seu agrado e dão-nos bons ventos para a viagem.

 

Acho que ainda não fomos apresentados... constatou Slayra.

 

Sou o capitão. No meu barco, chamam-me capitão, e não há razão para vocês dois eahan me chamarem por outro nome, por isso chamem-me capitão. O seu Leochlan era claro e inteligível, apesar da quantidade de dentes que lhe faltavam, diferindo do Glottik quase apenas no sotaque. Era um homem alto e espadaúdo, de barba já quase inteiramente branca mas com a postura altiva de um rapaz com metade da sua idade e músculos que mais pareciam nós de cordame. Da sua dentadura apenas um incisivo era visível, e não devia haver muitos mais, julgando pela maneira de falar do homem. Os seus olhos eram castanhos, ladeados por inúmeras estrias e pés de galinha, e um deles tinha a pupila enevoada por uma catarata. Não lhe restava um único fio de cabelo, pelo que a sua farta barba encaracolada devia ser o seu orgulho, julgando pelo bom estado no qual se encontrava, decerto fruto de um cuidadoso tratamento. Olhava em frente com os braços cruzados atrás das costas, balouçando uma chibata numa mão e fazendo trejeitos estranhos com os lábios carnudos e gretados.

 

Certo... capitão. A eahanoir pensou em algo para dizer. Obrigada... obrigada por nos aceitar a bordo.

 

Foram vocês que pagaram com uma vaca, não foi ? Slayra foi incapaz de esconder um sorriso e o homem grunhiu perante o seu acenar afirmativo. Não costumo aceitar pagamentos desses. E não julguem que escapam se nos deram carne manhosa. Não vamos comer outra coisa até ela acabar, e ai de vocês se alguém ficar doente.

 

Garanto que ninguém ficará doente. O animal era forte e saudável. Até aqui, nenhuma mentira.

 

O homem assentiu com um grunhido.

 

As regras a bordo são simples, e conto com o seu cumprimento. Vocês eahanoir não têm a melhor das reputações, mas os latvonianos é que sujam as calças só de vos ver. Não sei o que fizeram nem o que querem fazer em Tanarch, e também não me interessa, desde que se portem bem a bordo. No meu navio não há discriminações, mas quem sai da linha é posto a ferros, passageiro ou tripulante.

 

É justo... assentiu Slayra.

 

Não há cabinas para mais ninguém, mas mesmo que houvesse, vocês pagaram com uma vaca, por isso vão dormir como uma, no porão, com os rapazes.

 

A eahanoir concordou em silêncio. Fizera uma visita passageira ao improvisado dormitório com Quenestil, e não podia dizer que fora das mais agradáveis. Os marinheiros acomodavam-se em apertados beliches de madeira pregados lateralmente ao casco, dormindo em camastralhos de palha e tela num ambiente pesado e bafiento com o pungente odor a suor e pés sujos descalços.

 

É capaz de ser chato para a menina... bom, os rapazes voltam esvaziados lá da vila, por isso devem portar-se bem durante uns dias, mas nunca se sabe. Se os deixo de âncora levantada, caem-lhe em cima que nem um cardume de sardinhas, por isso, se algum deles se armar em esperto, diga-me logo que eu desanco-o à chibatada.

 

Obrigada, capitão. Assim farei.

 

O capitão tornou a grunhir. Ainda não olhara para a eahanoir uma única vez.

 

Onde está o outro eahan?

 

Slayra apontou para o corpo dobrado sobre a borda do navio. O shura apoiava-se precariamente com as mãos no resguardo, estava quieto, mas as suas costas contorceram-se subitamente em convulsões.

 

Primeira vez num barco? A eahanna anuiu. Passa em três dias. Ele que olhe para o horizonte e mude a posição da cabeça frequentemente. Não comer e beber muito, mas se não gosta de cerveja, está bem arranjado.

 

Acho que não se importa...

 

Ainda bem. Vamos servir o jantar daqui a pouco. Se tiver problemas com os rapazes, já sabe terminou o capitão, retirando-se sem ter pousado os olhos uma única vez sobre a eahanoir.

 

Obrigada, capitão... Bom, pelo menos nem todos na tripulação eram rufias. Claro que as aparências podiam enganar, mas o capitão parecia ser um homem honesto e isso melhorava um pouco a perspectiva da viagem.

 

Slayra agasalhou-se com a capa e decidiu ir partilhar estas notícias com Quenestil. A sua breve caminhada pelas escadas abaixo e pelo convés não passou despercebida, principalmente quando o vento lhe descobriu as pernas, mas manteve-se serena perante os apupos. Pousou a mão nas costas do shura, esfregando-lha entre as omoplatas.

 

Estás bem?

 

Não... admitiu o eahan com voz nauseada, erguendo a cabeça. Estava pálido, tinha os lábios molhados e o seu hálito estava azedo.

 

O capitão disse para olhares para o horizonte e mudares a posição da cabeça frequentemente. Dá-me a mão...

 

O capitão...? perguntou Quenestil, deixando que Slayra lhe agarrasse o pulso.

 

Estive agora a falar com ele. Parece ser um homem decente... pelo menos se o compararmos aos outros... disse a eahanoir, aplicando pressão no pulso do shura com o polegar.

 

Que estás a fazer...?

 

A ajudar-te com o enjoo. Ensinaram-me isto quando estive num barco pela primeira vez. Quenestil gemeu resignadamente. Pobrezinho... queres que te vá buscar cerveja?

 

A cerveja aqui é ainda pior que a das tabernas...

 

Tens de beber alguma coisa. Vomitaste a tarde inteira lembrou-lhe a eahanoir com voz preocupada.

 

Como para lhe dar razão, Quenestil libertou o braço bruscamente para se apoiar no resguardo e vomitar pouco mais que suco gástrico borda fora.

 

Anda, o melhor é mesmo ficares deitado... aconselhou, cingindo o tronco do eahan com o braço e puxando-o sem que ele resistisse na direcção da escotilha que ia dar ao porão.

 

Os marinheiros teceram comentários certamente pouco elogiosos acerca do estado do shura, acompanhados de risos de chacota e divertidas fungadelas. Slayra ignorou-os e abriu a escotilha com o pé, começando a descer os íngremes degraus cuidadosamente com Quenestil à sua frente, sendo quase atirada pelas escadas abaixo por uma oscilação mais forte do navio. Ambos os eahan caminharam tropegamente pelo porão, apoiando-se nos caixotes e barris empilhados e evitando tropeçar nos amontoados de cordame enrolado. Estavam presentes quatro marinheiros, dois sentados em cima de caixotes, um deitado num beliche com uma perna de fora e outro de pernas cruzadas no chão, entretido a fazer nós com fios de cordame. A sua indumentária era praticamente igual à do marinheiro da taberna, diferindo apenas na cor e no número de rasgos, e o cheiro que permeava o lugar podia muito bem provir dos seus pés descalços. Os quatro pareciam estar entretidos a falar, mas perderam o interesse na conversa quando o casal apareceu e olharam-nos com curiosidade.

 

Boas, marinheiros. O jantar está quase servido informou Slayra casualmente enquanto conduzia Quenestil a um beliche, os seus movimentos atentamente seguidos. A eahanoir ajudou o shura a enfiar-se dentro de um apertado camarote baixo, no qual este se aconchegou como pôde, deitando alguma palha fora com os seus movimentos.

 

Mãe, isto é um inferno... queixou-se, levando a mão à cabeça. Havia vómito coagulado nos cantos da sua boca seca.

 

Eu sei... fecha os olhos, é melhor, e mexe a cabeça... recomendou Slayra, afagando-lhe o cabelo. Tens de beber alguma coisa...

 

Cerveja sugeriu um marujo. A eahanoir deu-lhe a sua atenção e viu que o homem, um dos que estavam sentados em cima de um caixote, lhe estendia um odre. Cerveja repetiu, atirando-lho para as mãos. Muito bom.

 

Primeiro hesitante, Slayra optou por aceitar a oferta do marinheiro.

 

Obrigada agradeceu, tirando a rolha do bocal de osso. Ouviu risadas atrás de si que a aconselharam a cheirar o conteúdo do odre antes de o servir a Quenestil, mas o odor era o de cerveja, embora de qualidade duvidosa, pelo que a deu de beber ao shura.

 

Descansa agora. Vou ver se como qualquer coisa e depois volto.

 

Tem cuidado... advertiu o eahan, desembainhando o seu facalhão e escondendo-o atrás das costas.

 

A eahanoir sorriu e retirou-se, devolvendo o odre ao marinheiro com um agradecimento que o homem aceitou com um grunhido. Os seus companheiros pareciam estar a gozá-lo. Enquanto subia os degraus, Slayra pensou naquilo que faria durante a noite. Os beliches eram apertados e estavam sobrepostos, pelo que o melhor seria deitar-se nos de cima, o que a colocaria numa boa posição para enxotar eventuais intrusos ao pontapé, caso fosse necessário.

 

Quando chegou ao convés, já a tripulação estava disposta em fila frente à porta do paiol, onde o cozinheiro distribuía o jantar. Acto contínuo, o estômago de Slayra rosnou e a eahanna negra pôs-se logo na fila para o aquietar, o que tardou em acontecer, visto que fora a última. A noite descera entretanto, unindo o seu manto negro às águas escuras do mar e reflectindo nele as suas cintilantes estrelas. Quando a vez de Slayra chegou por fim, foi-lhe oferecida uma caneca de cerveja e uma porção de farelentos biscoitos secos e carne salgada, que a eahanoir prontamente devorou, empurrando os nós duros de comida pela garganta abaixo com a cerveja velha, lambendo o sal e as migalhas que ficaram nos dedos. Semanas a comer plantas e cascas de árvore haviam-na deixado esfomeada e ávida de comida sólida, o que fez com que mesmo tão frugal refeição lhe soubesse deliciosamente. Saciada, Slayra olhou em redor e viu que os marinheiros ainda comiam, e como fazia tenções de passar o menos tempo possível trancafiada no fedorento porão, optou por observar o mar e encaminhou-se para a borda do navio, na qual apoiou o cotovelo. O seu braço ferido já quase não lhe doía, mas o ideal era mesmo deixá-lo em repouso total até recuperar completamente.

 

A noite estava tranquila, embalada pelo meigo lamber das ondas no casco do navio, os queixumes estalantes de tábuas betumadas e o ranger de cordas como os ligamentos de um velho gigante. Slayra fechou os olhos, encheu os pulmões com a salgada brisa nocturna e deixou-se ficar assim, permeando o seu espírito com aquela calmaria e serenidade que há tanto tempo estavam ausentes da sua vida e pelas quais o seu espírito conturbado tanto ansiava. A vida parecera tão simples antes de ter embarcado naquela fatídica missão de reconhecimento na fronteira, antes de conhecer Quenestil... alguma vez se teria imaginado assim, suja, de roupas esfarrapadas, com um ombro deslocado, enfiada num barco com um eahan da montanha enjoado em direcção a Tanarch, onde esperava encontrar um grupo que até há bem pouco tempo a desejara morta? Decididamente... E o que sentia por Quenestil? Era de loucos! Nem sequer sabia que eahanoir podiam sentir essas coisas, ia contra a sua natureza, embora essa mesma natureza não passasse de um mero aviltamento das idiossincrasias dos eahan, levada a cabo não por uma Entidade, mas pelo Flagelo, o Bastardo que nutrira exacerbadas quimeras de divindade. Era tão estranho, mas ao mesmo tempo tão bom...

 

Passos no convés despertaram a eahanoir dos seus devaneios. Slayra notou que a tripulação desaparecera quase toda, reparando apenas em algumas sombras isoladas que realizavam o turno da noite. Apercebeu-se de que estava com sono e achou que talvez já fossem horas de se retirar para o porão, por muito que o lugar lhe desagradasse, e tentar dormir um pouco, rezando para que a noite passasse depressa.

 

”Vão ser umas semanas longas...”, suspirou a eahanoir, encaminhando-se para a escotilha.

 

Uma gota de água caiu-lhe no nariz e a eahanoir tornou a olhar em redor. O mar estava calmo, pelo que olhou para o céu e viu a Lua parcialmente tapada por nuvens, que começaram a chorar. Slayra apressou o passo e abriu a escotilha, fechando-a por cima da cabeça após entrar. Percorreu o lance de íngremes degraus, tendo o cuidado de manter a cabeça baixa, e o ruído dos seus passos fez companhia ao ressonar e roncar dos marinheiros adormecidos nos seus beliches no compartimento ao lado. Slayra estendeu logo a mão assim que chegou ao fim da escada, tacteando pelo manipulo da porta, mas em vez do toque frio do metal apalpou uma volumosa barriga. O seu corpo subitamente tenso, a eahanna afastou-se, ficando de costas para a parede e com os degraus a seu lado.

 

Estás com pressa, cabra? A visão da eahanoir ainda não se adaptara à escuridão, mas a voz que trazia consigo o fedor a cerveja barata era a do marinheiro que abordara na taberna.

 

Não, só com sono. Com licença...

 

Espera aí. Pelo pouco que conseguia ver, o homem cobria a porta com todo o seu porte, e não parecia fazer tenções de sair dali para a deixar passar. Fiz o que pediste, mas não penses que foi um favor.

 

Nunca me passou pela cabeça. Agora queres sair-me da frente? O marujo riu ao de leve, mas não arredou pé. Slayra ouviu-o estalar os dedos das mãos e mesmo à distância a que se encontrava dele pôde sentir uma baforada pungente de cerveja.

 

Vamos lá agora, sem barulho. Não queres que os outros ouçam, pois não? indagou o homem, denotando a sua falta de interesse numa resposta através de um primeiro passo, seguido de outro.

 

O capitão não vai gostar de saber... avisou a eahanoir, ainda de costas para a parede. O seu braço iria ser um empecilho.

 

O capitão não te pode ouvir. E se lhe contares, corto o carapau do teu namorado enquanto ele vomita as entranhas borda fora...

 

Slayra desferiu um pontapé, contando atingir o homem nas virilhas, mas calculou mal a distância devido à escuridão e o seu pé atingiu apenas uma grossa coxa. A mão sapuda do marinheiro veio em resposta de encontro à cara da eahanoir, fazendo com que perdesse o equilíbrio e caísse de lado para as escadas. Com um golpe de rins, Slayra conseguiu dar as costas aos degraus, evitando embater neles com o seu ombro, mas ainda assim este latejou de dor com o impacto, forçando a eahanna a cerrar os olhos. Antes que os pudesse abrir, os dedos grossos do marinheiro crisparam-se nos seus tornezelos, fazendo força para lhe apartar as pernas enquanto arfava de antecipação. Slayra estrebuchou, mas o aperto do homem manteve-se firme e este não tardou a afastar-lhe as coxas e pousar nela parte do seu peso. Slayra começou a gritar, mas o seu ombro gritava mais alto ainda, ardendo na articulação.

 

Cala-te cabra, ou eu... O marujo engasgou quando os dedos hirtos da eahanoir quase se afundaram na sua garganta, travando-lhe a respiração. Quando o homem levou as mãos ao pescoço, Slayra conseguiu colocar uma perna entre ela e o seu agressor e tirá-lo de cima de si, empurrando-o para longe com força.

 

Já se ouviam vozes incomodadas no porão, mas a atenção do homem estava toda na eahanoir quando este se ergueu com raiva nos olhos e um esporão de veleiro empunhado. Com a dor no braço, Slayra falhara o golpe, caso contrário o homem estaria a contorcer-se no chão de cara azulada com a laringe esmagada.

 

Devias ter ficado quieta... agora levas primeiro com o veleiro, e depois com o carapau... ameaçou com a voz sufocada, avançando de esporão em riste.

 

Slayra deu um passo atrás, subindo um degrau, mas sabia que se virasse as costas ao marinheiro, seria varada contra as escadas, pelo que esperou. O seu adversário oscilava o esporão, dando passos bruscos para a assustar, mas a eahanoir limitou-se a subir outro degrau. O homem investiu, tencionando picar a coxa de Slayra, que inesperadamente saltou, levando as pernas atrás, e o esporão bateu apenas num degrau. Ainda no ar, a eahanoir desferiu um certeiro pontapé na cara do marujo, que largou a sua arma para levar as mãos ao nariz, urrando e cambaleando para trás. As vozes incomodadas no porão transformaram-se em gritos agitados, mas Slayra não lhes podia dar atenção visto que o homem, cego de raiva e com sangue a tingir-lhe a barba de vermelho, tornava a investir, desta vez só com o seu corpo como arma. Sem sítio para onde se desviar e com a capa no caminho de uma passada para trás, a eahanoir desembainhou o seu estilete e recebeu o ataque com um pouco elegante golpe que cortou a palma da mão esticada do marinheiro, dando-lhe seguimento com uma punção na barriga que Slayra cria ter gordura suficiente para proteger as entranhas. O homem retrocedeu, agarrando a barriga ferida em pânico e olhando para a eahanoir com olhos arregalados.

 

À primeira sobrevives. A próxima mata. Sai já da minha vista ou eu...

 

A porta que ia dar ao porão abriu-se, irradiando o corredor de luz de lamparinas antes que Slayra pudesse terminar e dela saíram vários marinheiros, que estacaram perante a cena.

 

Então foi o caos. O marinheiro, indicando a sua barriga e mão feridas e o sangue na cara, apontava para a eahanna, berrando num Leochlan demasiado rápido para Slayra perceber, e os outros seguiram-lhe o exemplo, parecendo todos dizer ”eahanoir” numa ou noutra altura com vozes acusadoras. A eahanna negra tentou falar, mas um homem agarrou-lhe o pulso e quando tentou resistir outros fizeram o mesmo, abatendo-se sobre ela como um mar de mãos grosseiras que a agarravam com excessiva firmeza. Duas pegaram-lhe o braço ferido e aí Slayra gritou, o que lhe custou um par de bofetadas silenciadoras. Pareceu-lhe ouvir a voz de Quenestil a tentar sobrepôr-se no meio do tumulto, depois os baques surdos de murros e gritos ininteligíveis e por fim o próprio eahan lhe apareceu à frente, preso por inúmeras mãos que o seguravam. Como uma massa disforme que obedecia ao mesmo comando, os marinheiros procederam então a arrojar os dois eahan pelas escadas acima, um apressado percurso no qual muitas cabeças bateram contra o tecto e muitos tropeções ocorreram. Quenestil e Slayra pouco mais puderam fazer que deixarem-se arrastar pela turba.

 

Quando chegaram ao convés, já o capitão aguardava, decerto avisado pelos membros da tripulação que haviam subido primeiro. Chovia com força e o homem estava descalço e de tronco nu, vestindo apenas as suas calças e não parecia nada satisfeito quando ergueu as mãos e berrou por silêncio. Os marujos obedeceram e de repente o único som que se ouvia a bordo era o da chuva e o grunhir de um marinheiro que subia pela escotilha acima com esforço. Slayra e Quenestil ainda estavam agarrados com firmeza.

 

O que é que aconteceu? quis o capitão saber, dando desde logo a entender que não estava interessado em desculpas. Pequenos rios de água escorriam pelo seu tronco nu abaixo e a sua barba pingava.

 

A tripulação continuou em silêncio, olhando uns para os outros como se estivessem à espera de que alguém falasse. Slayra estava prestes a tentar, quando o marujo que a atacara surgiu, empurrando o seu caminho por entre a pequena multidão enquanto se dirigia ao capitão, ostentando a palma da sua mão ferida como prova. O seu nariz estava vermelho, a sua barba tinta de sangue e tinha uma mancha escura na barriga. Apontou um dedo molhado à eahanna, proferindo a palavra ”eahanoir” com asco, e assim que Slayra abriu a boca para falar em sua defesa o homem deu duas passadas inesperadamente rápidas para o seu peso e esmurrou a eahana brutalmente no estômago, forçando-a a expelir todo o ar dos pulmões num único e violento arquejo. O tempo pareceu parar por breves instantes, nos quais apenas se ouviu o aflito e prolongado arquejo de Slayra. Ninguém tentou impedir o marinheiro quando este mostrou vontade de continuar, erguendo o punho redondo para esse efeito, mas então Quenestil libertou-se e abateu-se sobre ele em desenfreada fúria e o tempo tornou a parar. Todos ficaram paralisados enquanto o eahan caía em cima do marujo, rosnando como um carcaju e rebolando com ele pelo convés molhado. O shura acabou por ganhar a posição superior e, mantendo a cabeça do homem no chão com uma mão, começou literalmente a moer-lhe a cara com murros, que nela despediu com abandono e de dentes cerrados. Quando a presença de espírito de três marinheiros regressou e estes se apressaram a agarrar no ensandecido eahan, Quenestil abocanhou o antebraço de um, ferrando os dentes nele e estrebuchou como um animal capturado quando outros se juntaram à pequena refrega para o tirar de cima do marujo caído, que se mexia debilmente no chão com boa parte da cara a sangrar. A situação no convés tornou-se caótica, com gritos, pragas e ordens a serem proferidos ao mesmo tempo numa autêntica cacofonia centrada na massa de gente que se aglomerava em volta de Quenestil. O shura soltou o braço do marinheiro que abocanhara e rosnou, desferindo uma cabeçada a alguém que o agarrava por trás, exibindo dentes vermelhos e agitando a cabeça, espalhando água da chuva em redor. O capitão berrava, mas nem a sua voz de estentor conseguia impor a ordem, até que surgiu um marinheiro a empunhar um prepau com o qual tencionava aniquilar o eahan. Os outros deram-lhe passagem e assim que estava ao alcance de Quenestil, o marujo tentou atingi-lo na cabeça, mas com o estrebuchar do seu alvo acabou por acertar na testa de um membro da tripulação, que o fitou com olhar esgazeado e foi como que engolido de seguida pela pequena multidão ao cair. O marujo berrou algo e os amplexos que restringiam Quenestil ficaram mais apertados, tentando mantê-lo quieto, mas o shura ainda desferiu um pontapé no estômago de um indivíduo que lho tentara segurar antes de o marinheiro o atingir na têmpora com um coque seco e certeiro do prepau. A pancada ensurdeceu Quenestil e cobriu o seu mundo de escuridão, entorpecendo-lhe braços e pernas. Slayra tentou gritar, mas estava demasiado ocupada a tentar respirar de barriga para o convés, esquecida por todos menos o capitão, que a fitava e ao eahan ruivo alternadamente, gritando palavras que chegavam distorcidas pela chuva e pelo barulho aos ouvidos da eahanoir. A tripulação ergueu Quenestil, cujos membros pingavam e pendiam frouxamente como se estivesse morto, e gritava pelo que só podia ser a sua morte. O capitão agitava os braços freneticamente, vociferando ordens que passavam despercebidas no encolerizado bulício do navio.

 

Quenestil...! A exasperada exclamação foi pouco mais que um sussurro quando a eahanoir plantou as mãos no convés molhado e fez força para se levantar. Outras duas agarraram-na pela cintura e ajudaram-na a erguer-se antes que Slayra tivesse sequer tempo para se alarmar.

 

Virou-se rapidamente, assustada e ainda sem fôlego, mas o homem que a ajudara estava calmo e sereno e parecia querer dizer-lhe qualquer coisa. As únicas palavras que a eahanna ouviu, no entanto, foram as da tripulação.

 

Para a água! Para a água com ele!

 

A fera que afogue!

 

Vai para o mar!

 

Slayra deu as costas ao homem que a ajudara, ignorando-o por completo.

 

Deuses, não... No momento em que Slayra se virou, viu vários braços a arremessarem o corpo frouxo do seu amado para fora do navio. QUENESTIL!

 

Apelando a uma desconhecida reserva de forças, as pernas da eahanoir foram acometidas de um súbito vigor e esta precipitou-se pela multidão adentro, empurrando os marinheiros para fora do seu caminho e saltando também ela borda fora, para grande espanto da tripulação. As frias águas do mar deram as boas-vindas a Slayra, envolvendo o seu corpo com um abraço que tanto podia estar gélido como a ferver e silenciando o mundo, saudando-a com uma promessa de paz e tranquilidade. A eahanna recusou a oferta e chicoteou com as pernas até à superfície, arfando por ar, cuspindo cabelos ensopados para fora da boca e gelando a cara com uma lufada de vento acompanhado de fustigantes gotas de chuva. O frio molhado entorpecera-lhe o braço ferido, de modo que quase não sentia a cruciante dor de o estar a mexer. Slayra olhou em redor e gritou pelo nome de Quenestil, agradecendo a todos os deuses pelos respectivos nomes quando distinguiu um vulto a flutuar precariamente à superfície.

 

Nadou a custo na sua direcção e agarrou-o pela cintura com o braço ferido, o que ainda lhe causou dor suficiente para ter de ser expelida por um grunhido de dentes cerrados. A eahanoir viu o barco a afastar-se, lenta mas progressivamente. Batia freneticamente na água com o braço livre e agitava as pernas incessantemente, mas sabia que não iria aguentar-se a si e ao corpo inerte de Quenestil muito tempo. Iam morrer.

 

Curiosamente, os únicos momentos da sua vida que a eahanoir viu passar à frente dos seus olhos foram aqueles preciosos e poucos que partilhara com Quenestil; nenhuma memória da sombria Jazurrieh, nenhuma recordação dos da sua espécie, nenhuma lembrança da sua existência antes de ter conhecido o shura. Nenhuma.

 

Os salsos beijos do mar tornavam-se insistentes na sua face, salgando-lhe a boca com demasiada frequência. Quenestil pesava no seu braço ferido, e uma das suas pernas esticou-se numa dolorosa cãibra, por pouco não arrastando os dois eahan para baixo da superfície. As dúvidas acerca da futilidade de resistir já se haviam começado a infiltrar na alma de Slayra quando distinguiu no meio da chuva o ruído de algo a cair levemente na água a curta distância. A eahanoir olhou na direcção do som e viu algo a flutuar. Acometida de novo alento, a eahanoir encontrou forças que já não esperava ter para nadar rumo ao que orava que pudesse ser a sua salvação. O grito que soltou ao fincar as unhas na superfície cortiçada do objecto foi de alívio e profundo agradecimento e os seus pensamentos centraram-se momentaneamente à volta da dúvida acerca de quem lho atirara. O capitão? O marinheiro desconhecido que a ajudara? Um deus? Não interessava, concluiu. Tinha era de se manter viva. Pensando já na eventualidade de ficar ali muito tempo, envolveu o tronco de Quenestil com as pernas para descansar o braço magoado e manteve um firme aperto na bóia de cortiça com o outro. Não sabia quão longe estariam da costa ou se o frio os mataria antes de sequer poderem pensar em alcançá-la. Só sabia que tinham de sobreviver. Ainda assim vieram-lhe à mente as histórias que lhe haviam contado nas suas primeiras viagens de barco, contos de seres do mar que devoravam homens, surgindo das obscuras profundezas para os engolirem inteiros. A despeito da futilidade do gesto, Slayra olhou para baixo, vendo apenas a superfície negra do mar. Sentiu um arrepio nas pernas, que se podia dever ao frio ou à estranha impressão de que haviam mandíbulas escancaradas bem debaixo dela. O frio da água começava também a fazer-se sentir nas suas extremidades, trazendo consigo as primeiras picadas de dor. Nesse momento só quis que Quenestil acordasse para a confortar e assegurar-lhe naquele seu tom de entendido de que não havia perigo, que estava tudo bem. Mas estava sozinha, Quenestil estava inconsciente (a eahanoir descartou de imediato qualquer outra possibilidade) e ambos dependiam só dela. Slayra teve medo.

 

Os companheiros seguiam o grupo contra o qual há pouco haviam lutado, deixando-se conduzir pelo carreiro do vale abaixo. Os feridos eram transportados aos ombros e às costas, e estes não faziam o mínimo esforço para disfarçar a falta de apreço que sentiam para com quem lhes infligira os ferimentos. Na retaguarda do grupo estavam três homens e o arqueiro, cujo arco longo parecia pronto a cravejar os companheiros de setas pelas costas caso lhe dessem algum motivo para o fazer. Worick olhava desconfiado para os desconhecidos, principalmente o thuragar que combatera e que lhe magoara o braço, mas nada dizia, limitando-se a manter-se junto de Lhiannah. A princesa continuava a agir de forma invulgarmente calma para a situação na qual se encontravam, pensava Worick. Mas também... sempre dissera que a arinnir era tão previsível como uma tempestade de montanha, e Lhiannah costumava ficar retraída após matar alguém, coisa que passara a acontecer frequentemente durante o meio ano que passara com os companheiros. Provavelmente desataria a responder mal em pouco tempo, e a esse comportamento seguir-se-ia uma irascibilidade que duraria uns quantos dias até por fim amainar. O thuragar já aprendera que o melhor era esperar, e tinha a paciência para o fazer mas não para tentar saber o que lhe ia na cabeça...

 

Taislin saltitava como um coelho curioso em redor do díspar grupo, estudando as caras novas com interesse felino. Os homens tentavam ignorá-lo por poderem dar-se ao luxo de o fazer, visto não trazerem consigo posses para além das suas armas, mas ainda assim os estrídulos e inoportunos quesitos do burrik não tardaram a irritar alguns deles, que cedo manifestaram o seu desagrado com verborreias pouco lisonjeiras em Leochlan.

 

O carreiro continuava a descer e conduzia o grupo perpendicularmente ao declive do vale, em direcção ao aglomerado de casas de uma aldeia na vertente da montanha. Porém, a dada altura os Corações Quebrados pararam, viraram-se para a ladeira e, um por um, começaram a descer por ela abaixo, para surpresa dos companheiros.

 

O que...? tentou Aewyre perguntar, sendo prontamente esclarecido pela mulher, que esperara por eles.

 

Temos um esconderijo lá em baixo. Andem com cuidado que isto pode ser traiçoeiro à noite, recomendou, levantando as saias e sendo assistida na descida por um dos seus ”rapazes”.

 

Os companheiros hesitaram, mas ao ver que cinco Corações Quebrados aguardavam que começassem a descer, Allumno tomou a iniciativa e incitou Alfarna a um passo cuidadoso para descender a ladeira. Lhiannah seguiu o mago prontamente e os outros não tardaram a ir atrás, mas não sem antes lançarem olhares prudentes para os homens que iriam descer atrás deles. A pedregosa ladeira não devia ser particularmente segura durante o dia, e de noite era de facto traiçoeira, como Aewyre e Worick puderam constatar através de duas quedas cada que por pouco não descambaram em rebolantes descidas pelo barranco abaixo. O solo tornou-se menos íngreme quando chegaram a uma área de blocos de pedra branca toscos e escarpados cujas fendas eram preenchidas por urze. Perante os olhares desconfiados dos homens que iam atrás de Worick, o thuragar acocorou-se por breves momentos para tactear o chão.

 

Pedra calcária rachada... informou ao erguer-se, parecendo inesperadamente satisfeito. Estamos em cima de uma caverna. Antes que Aewyre pudesse comentar, o grupo chegou a um algar, uma grande fissura no solo, cuja entrada estava vincada pelas rotas que a água da chuva tomara como suas para dentro dela escorrer ao longo dos anos, cobrindo-as de verde musgoso no processo. Já começo a gostar mais destes Corações Quebrados... pelo menos tiveram bom gosto na escolha do covil.

 

Nenhum dos companheiros respondeu, pois Worick era o único a quem viajar debaixo do solo não causava qualquer apreensão. Na solarenga Ul-Thoryn, sempre haviam dito a Aewyre que os homens precisavam de Sol, que só thuragar podiam viver debaixo de terra, indicando sempre os defeitos da raça e as enfermidades das quais os mineiros humanos sempre padeciam. Isso para não falar das criaturas da Sombra que se haviam retirado da face de Allaryia, retraindo-se nas suas entranhas, prontas para voltar na altura apropriada. Muito do que o jovem ouvira eram apenas histórias, mas a ideia de entrar naquela fenda fê-lo reconsiderar subitamente o convite dos Corações Quebrados.

 

O que fazemos com a mula? perguntou Allumno a ninguém em especial.

 

Ela não vai conseguir descer... concordou Mamã, soando como se estivesse a repreender-se por não se ter lembrado disso. Terá de ficar cá fora.

 

Mamã, o animal pode chamar atenções... advertiu-a Maneta.

 

Uma mula a pastar descansadamente num local cheio de urze? Não te preocupes.

 

Estás a ser descuidada, Mamã... admoestou-a o velho arqueiro.

 

Aminal pareceu o thuragar careca anuir, e o rapaz do estoque acenou a sua concordância com a cabeça.

 

Aqueles três pareciam ocupar posições importantes na hierarquia do grupo, constatou Aewyre, pois eram os únicos que contestavam as decisões da mulher que, para todos os efeitos, era a líder, e os outros ouviam-nos sempre com atenção. Mamã pareceu contrariada como só uma mãe podia ficar ao ser contestada pelos seus filhos, mas duas sentinelas saídas da entrada da fenda vieram em seu auxílio.

 

Boas-noites, rapazes dispensou-lhes, virando-se de seguida para os que com ela discutiam. E que sugerem vocês, que se mate a mula? Deixem o pobre do animal a pastar descansado e venham daí. Vá, todos para dentro.

 

A contragosto, o arqueiro e o espadachim assim fizeram, mas o thuragar ficou para trás, postando-se ao lado da mulher como um cão de guarda perante os desconhecidos.

 

Por favor, entrem. Lá dentro há comida, água e unguentos para as vossas feridas. Estarão seguros assegurou, acariciando o topo da cabeça calva do thuragar.

 

Amanil secundou este.

 

Apesar de todos os instintos de Aewyre lhe dizerem que não

 

aceitasse o convite, o jovem assim fez, agradecendo e acenando um cumprimento com a cabeça às duas sentinelas pelas quais passou.

 

O algar era uma profunda ferida infligida às pedras brancas pelo escorrer da chuva, que havia providenciado vários apoios escorregadios para mãos e pés na curta descida, que pôde ser efectuada sem grandes dificuldades pelos companheiros. Lá dentro aguardava outra sentinela, empunhando uma tocha para iluminar o caminho pela galeria seca que continuava em frente pela escuridão adentro, na qual só se ouvia o indistinto eco de Leochlan, passos arrastados, o retinir de armas e o ranger de couro. Um inesperado odor a comida ao lume pairava pelo túnel. A sentinela, armada com uma espada curta e envergando uma túnica de cota de malha, perscrutou os estranhos atentamente, estranhando a sua presença, antes de encolher os ombros e lhes fazer sinal que continuassem a andar, agitando a tocha.

 

Continuem, por favor pediu-lhes a voz de Mamã. Estou atrás de vós e os companheiros fizeram-lhe a vontade.

 

Umas dezenas de passos à frente estava postada outra sentinela com uma tocha, e após mais umas quantas passadas chegaram ao covil dos Corações Quebrados. Tratava-se de uma caverna alta, iluminada por candeias de óleo posicionadas em nichos naturais nas paredes húmidas, com estranhas formações calcárias que pendiam do tecto como cortinados ondulantes e duas varandas acessíveis através de escadas nas quais estavam guardados víveres e apetrechos vários. A caverna terminava abruptamente num grande monte de cascalho que só podia ter resultado de um desabamento e cuja fronteira estava bem demarcada com uma cerca improvisada. O chão e as paredes irregulares estavam decorados com despretensiosas tapeçarias de lã, cuja função era sobretudo reter calor. Dentro da caverna atarefavam-se uns vinte homens que recebiam os feridos que os recém-chegados traziam, pousando-os em cobertores dispostos no chão irregular e molhado e procedendo a tratar dos seus ferimentos como se de família se tratasse. Espalhadas pelo chão ardiam várias fogueiras em volta das quais os presentes se haviam aquecido antes da chegada do grupo e sobre as quais ferviam potes e chaleiras que exalavam o odor a cozinhado que os companheiros haviam captado no túnel. Para além dos humanos presentes, Aewyre constatou ainda que ao lado destes trabalhavam várias figuras baixas e entroncadas, corcovadas, peludas e com barbas abundantes, quase desprovidas de roupa e que caminhavam com as mãos a roçarem o chão.

 

Thuragar? duvidou.

 

Não exactamente... corrigiu Worick, apoiando a cabeça do martelo no seu ombro. São garigonor.

 

Gari quê?

 

Garigonor, escravos. Mais toupeiras que thuragar. Não faço ideia do que estão aqui a fazer com estes...

 

Creio que umas apresentações seriam apropriadas agora... disse Mamã, achegando-se a Aewyre e Worick com Allumno a seu lado e o thuragar careca aos seus calcanhares. A caverna tornou-se silenciosa de repente e toda a actividade cessou, excepto a assistência aos feridos.

 

Aewyre hesitou antes de responder, sentindo o peso dos olhares de todos em cima de si e pedindo ajuda a Allumno em silêncio.

 

A senhora conhece os nossos corações, Aewyre... afirmou o mago, sorrindo para Mamã. Pouco mais podes dizer que a verdade.

 

Aliviado com a confiança que Allumno parecia depositar na líder do bando, o jovem fez-lhe a vontade.

 

Saudações a todos. Sou Aewyre e estes são Allumno, de Ul-Thoryn, Lhiannah e Worick, ambos de Vaul-Syrith e Taislin Mãosdelã. Preocupado em manter o anonimato, o guerreiro não mencionou os respectivos apelidos e rapidamente mudou de assunto. Nós... pedimos desculpa por eventuais males causados, mas devido a um mal-entendido, vimo-nos confrontados com uma situação de perigo e tivemos de nos defender e...

 

Isso já foi esclarecido, Aewyre... assegurou-lhe a mulher com toda a familiaridade. Por aqui, nós tratamo-nos de forma diferente, por isso peço-vos que não pensem que vos escondemos os nossos verdadeiros nomes por malícia ou desconfiança. Os rapazes chamam-me Mamã, o arqueiro que gosta de me contrariar é o Maneta, o rapaz calado da espada sem gume é o Pestanas e o adorável thuragar é o Animal. Os outros que me desculpem mas não os vou apresentar a todos um por um, dêem-se vocês a conhecer. Worick e Animal, devíamos tratar de vocês... e não estou a gostar nada desse ombro, Pestanas.

 

Mamã, Maneta, Pestanas e Animal? segredou Taislin a Lhiannah. E depois gozam com o meu nome?

 

A arinnir nada disse, observando de braços desconfiadamente cruzados os que a cercavam. Worick mostrou certa relutância em deixar-se tratar, mas perante a maternal e persistente insistência de Mamã, acabou por aceder a que lhe tirassem as placas de aço que lhe resguardavam o braço ferido.

 

Aewyre, Allumno, Taislin e Lhiannah, vocês que não estão feridos, queiram sentar-se comigo, por favor pediu, indicando-lhes um dos tapetes de lã que cercavam uma fogueira. Os rapazes prepararam-nos um repasto de ganso com cogumelos, e vocês parecem estar com fome...

 

Animal ajudou a líder a sentar-se enquanto Maneta e Pestanas auxiliavam os restantes Corações Quebrados nos seus afazeres. Os companheiros assentaram-se quando Mamã disse ao thuragar que fosse tratar dos ferimentos e foram-lhes prontamente oferecidas taças de madeira por garigonor. A luz da fogueira era possível reparar em mais características dos estranhos thuragar: os seus olhos eram inteiramente pretos e pequenos como contas negras, os dedos curtos das suas mãos em forma de pás encontravam-se munidos de grossas garras recurvas e as suas barbas e bigodes eram hirsutos. Assemelhavam-se de facto a toupeiras, como Worick dissera.

 

O que fazem garigonor convosco? quis Allumno saber, esfregando as bordas da sua taça com os polegares.

 

Ia perguntar o mesmo acerca de tão díspar grupo, mas julgo que como anfitriã cabe-me a mim responder primeiro às vossas perguntas disse Mamã com um sorriso. Os garigonor que aqui vêem, bem como o Animal, são os últimos sobreviventes de um desastre subterrâneo. A mulher, cruzou as pernas e assentou as suas nádegas, como se se preparasse para contar uma longa história. Estas cavernas fazem parte de um antigo complexo thuragar, serviam de posto avançado para as transacções com a superfície, neste caso Val-Oryth, a cidade que devem ter visto lá de cima. Sirvam-se, por favor. Usem a colher. Aewyre tomou a iniciativa e estendeu a mão para Mamã, pedindo-lhe o prato. A mulher aceitou com um sorriso e continuou enquanto o jovem a servia. Os garigonor labutavam sobretudo aqui, pois a terra ainda é relativamente macia para as suas garras. Cavavam túneis de comunicação e procuravam lençóis de água para alimentar os engenhos que os thuragar usavam para trabalhar nos níveis inferiores. Obrigada agradeceu quando Aewyre lhe devolveu a taça. Infelizmente, esses mesmos engenhos que tanta prosperidade trouxeram aos thuragar acabaram por ser a sua ruína. Uns quantos anos atrás, houve um Inverno particularmente chuvoso, e as torrentes subterrâneas tornaram-se uma autêntica enchente. As cavernas dos níveis inferiores, fragilizadas pelo peso dos engenhos e pelas intensas escavações, ruíram em grande parte, arrastando consigo muitos thuragar. Podem imaginar a tragédia só de olharem para o monte de cascalho ali... Que nós saibamos, só os garigonor, que trabalhavam aqui perto da superfície, sobreviveram. Dos outros nunca mais se ouviu...

 

Que triste... opinou Taislin, enfiando um bocado de pato na boca com os dedos. O prato estava delicioso e para os companheiros era um autêntico manjar após a longa temporada a subsistir à custa de ratos das estepes.

 

A ambição acarreta sempre um elevado preço... comentou Allumno.

 

É bem verdade concordou Mamã. Mas duvido de que essa fosse a vossa única pergunta...?

 

Não foi confessou Aewyre. Antes de mais nada, o que são vocês? E quem são os Filhos do Flagelo?

 

Mamã colheu delicadamente um pedaço de pato com os dedos e mastigou-o antes de responder.

 

Saibam que, acima de tudo, somos fiéis de Assana explicou, tirando o cachecol de casimira escarlate para melhor exibir a rosa cercada por um anel dourado que trazia ao pescoço. Tanarch já há muito que é uma terra fria e inclemente, e as suas gentes estão a ficar parecidas com ela. Falta-lhes carinho, falta-lhes amor. Deduzo que saibam o que se passa em Tanarch? Os companheiros acenaram afirmativamente com a cabeça, mas Taislin não.

 

Eu não sei!

 

Mamã tornou a sorrir, exibindo o seu incisivo torto e alongado. Apesar disso, das estrias prateadas do seu cabelo e dos papos cansados debaixo dos seus olhos que traíam a sua idade, ainda era uma mulher bonita.

 

Conheces Sirulia, Taislin?

 

Sim, é a terra dos sirulianos, que são altos e jeitosos como o Aewyre e que estão entre Allaryia e Asmodeon, mas que deixam sempre os drahregs passar e...

 

Exactamente. E sabes por que é que a Sirulia é tão pequena? O burrik abanou a cabeça negativamente. Porque os sirulianos são cada vez menos. As suas mulheres estão todas em Tanarch, já que os seus homens são da opinião de que a qualquer momento podem entrar em guerra com as forças de Asmodeon. Quando acham que é chegada a altura de espalharem a sua semente, os sirulianos vêm cá e voltam meses mais tarde para colherem os frutos. Se forem varões, fortes e de puro sangue siruliano, vão com os pais aprender a serem soldados. Senão, ficam com as mães. Achas que alguma criança se pode sentir amada assim, sem pai?

 

Bem, depende, eu gostava muito do meu pai, mas um conhecido meu tinha um que era mesmo chato. Já era gordo e velho, sem pachorra para nada, e de cada vez que esse meu conhecido... não, não era esse, era outro. Este de que eu estava agora a falar era o filho do moleiro, ou se calhar era aquele que...

 

Mamã sorriu para si mesma e abanou a cabeça perante a futilidade de tentar ter uma conversa séria com um burrik. Aewyre calou-o para que pudesse continuar.

 

Como estava a dizer, Tanarch, tal como todos nós, precisa de amor e eu e os rapazes fazemos o que podemos para que assim seja. Eu sei que devem estranhar o facto de portarmos armas, mas existem aqueles dispostos a fazer uso da violência para nos impedir, e temos de nos defender, por vezes de forma igualmente violenta, infelizmente, suspirou.

 

Mas afinal, o que fazem vocês? insistiu Aewyre, limpando molho de cogumelos do queixo com as costas da mão.

 

Corrigimos injustiças, ajudamos os que precisam, acolhemos os necessitados e os abandonados... tudo em nome da guardiã do leito conjugal e para propagar o amor.

 

Estou a ver comentou o jovem, estranhamente cativado pela procrastinação da mulher. E o nome...?

 

Corações Quebrados? Bem, todos nós tivemos os nossos dissabores na vida. Eu encontrei apoio e conforto no regaço de Assana, e procuro partilhá-lo com os outros. Ali o Pestanas, por exemplo apontou para o jovem, que supervisionava o tratamento dos feridos, nunca conheceu o pai. Aprendeu a lutar com um mestre de armas velho que o adoptou e que subiu à sua montanha passados alguns anos. De certa forma, teve dois pais e perdeu-os a ambos, e apesar de não o mostrar, o pobre rapaz é carente, e raramente profere uma palavra. Já o Maneta... apontou para o arqueiro veterano, que preparava um novo fio para o arco era um excelente espadeiro. Casou muito jovem, e quando a sua mulher morreu, a sua única paixão passou a ser as espadas. Tornou-se num mercenário, um bom mercenário, mas foi capturado e cortaram-lhe os dedos anelar e mínimo. Quando o encontrei, era pouco mais que uma casca vazia, mas cedo encontrou uma nova vocação no arco, que esperou tornar-se numa nova paixão, mas há coisas que não podem ser preenchidas tão facilmente... O Animal indicou o thuragar, que estava completamente nu e a ser tratado ao lado de Worick foi outro dos sobreviventes do desastre nas cavernas. Pouco mais sabemos sobre ele, já que bateu com a cabeça e quando os garigonor no-lo trouxeram parecia que os seus olhos iam saltar devido ao sangue que lhe estava a encher a cabeça. Um dos nossos homens teve de lhe fazer um furo no crânio para aliviar a pressão, mas ele nunca recuperou completamente, como terão visto.

 

A trepanação é sempre um risco... comentou Allumno.

 

Não sei, disso não percebo nada. Só sei que é uma pobre e boa alma que só precisa de carinho.

 

Uma necessidade pouco usual para um thuragar...

 

Mas uma necessidade não obstante. Ele tem vindo a aprender, e apesar das virtudes da sua raça, sinto que ele gosta tanto como qualquer outro de um pouco de amor.

 

Boa! Vamos bater na cabeça do Worick com uma pedra! sugeriu Taislin, recebendo olhares ralhadores de todos menos Lhiannah e Mamã. Não era giro? Imaginem-no só a grunhir ”Worick, Riwock, Irwock”!

 

Mamã riu, mas Aewyre deu uma palmada na nuca do burrik, que olhou para Lhiannah a pedir protecção, mas a princesa não parecia disposta a fazê-lo, limitando-se a comer de olhos postos na tigela e aparentemente alheia à conversa.

 

É feio gozar com as enfermidades dos outros, Taislin admoestou a líder dos Corações Quebrados, mas sei que não o fazes por malícia. Em relação à outra pergunta do Aewyre, parece-me pela curta conversa que tive com o Allumno no túnel que ele sabe tanto sobre os Filhos do Flagelo como eu, por isso, se ele não se importar...

 

De modo algum. Nem sequer a deixaram comer com todas as perguntas... predispôs-se o mago.

 

A mulher sorriu e pôde por fim começar o seu repasto. Allumno limpou a garganta antes de tomar a palavra.

 

Como sabem, ninguém viu o Flagelo morrer na Guerra da Hecatombe, só é sabido que as criaturas da Sombra estão em aparente torpor e que desde então nunca mais tomaram uma acção em larga escala. No início da guerra, após a retirada dos sirulianos, Tanarch foi a primeira nação a sentir o seu poder e o povo foi subjugado. Os soldados de Sirulia e uns fragmentos do exército tanarchiano conseguiram refugiar-se em Wolhynia e lá se fortificaram enquanto os exércitos d’O Flagelo passavam pela Cicatriz. A guerra vocês já sabem como decorreu, mas o que muitos ignoram é que a ferida que deixou em Tanarch nunca sarou completamente, pior, infectou ao longo dos anos. Aewyre revirou os olhos. Allumno era capaz de dramatizar uma história de berço. O povo conquistado sobreviveu, mas muitos se passaram para a Sombra durante a ocupação, tanto por ressentimento para com os sirulianos como por simples medo do poder d’O Flagelo, e esses sentimentos perduraram mesmo após a sua morte. Muitos os ignoram ou fingem desconhecer a sua existência, talvez por medo, talvez por vergonha, talvez por os acharem inofensivos, mas ainda existem aqueles que proferem o nome do Anátema à noite, na esperança de que Ele volte, os Saudosistas da Sombra, os Filhos do Flagelo...

 

Mas se vocês os atacaram é porque não são tão inofensivos assim... interrompeu Aewyre, ciente de que o mago tão cedo não pararia.

 

Obrigada, Allumno. É um notável orador. Não, Aewyre, não são de todo inofensivos, muito pelo contrário, são muito perigosos. Não se limitam a orar pelo regresso do seu senhor, propagam activamente aquilo que julgam ser a vontade Dele. Há mesmo quem afirme que participam em rituais obscuros, cerimónias de sangue e sacrifício em honra do seu senhor, mas ninguém que conheço o pode confirmar. Tal como O Flagelo, são manhosos e subtis, e o facto de a maior parte das pessoas escolher ignorar a sua existência só lhes dá maior liberdade para agir.

 

É verdade que O Flagelo não dá sinais de vida há vinte anos, mas a fé é algo de poderoso, e também há muitos que se juntam às seitas apenas por partilharem dos ideais pouco íntegros dos asseclas, ladrões, assassinos e rufias sem escrúpulos na sua maioria. Os sirulianos impuseram leis severas aos Filhos do Flagelo, mas não dispõem dos homens necessários para as aplicar e a simpatia do povo de Tanarch também não está do lado deles, pelo que não podem contar com grande ajuda para erradicar os asseclas antes que se tornem uma ameaça séria. A verdade é que a maior parte das gentes duvida de que o venham a ser, mas nós não, e faremos o que for necessário para os impedir de virem a tornar-se verdadeiramente perigosos.

 

O ressentimento de Tanarch para com Sirulia é mesmo assim tão grande? inquiriu Aewyre, embrenhado na conversa de Mamã.

 

Infelizmente, Aewyre, infelizmente... Tanarch cresceu e tornou-se numa grande nação, mas o medo de Asmodeon ainda é grande e Sirulia é a única barreira de que dispomos. O povo habituou-se aos sirulianos, e muitos ainda os vêem com uma certa reverência, mas as animosidades escondidas são as que mais azedam, sobretudo com o passar do tempo. Imaginem uma nação vizinha que fazia incursões periódicas na vossa, agindo como se fossem reis e tratando-vos como meros lacaios, deixando as suas mulheres ao vosso cargo e impedindo-vos de terem intimidades com elas. Passado algum tempo, voltam para fazer filhos e, tal como se estivessem a criar cavalos para a guerra, levam os varões e deixam as raparigas e as crianças que consideram fracas convosco, punindo aqueles que tiveram qualquer tipo de contacto com as mulheres sirulianas. Conseguem imaginar? Como reagiriam? Aewyre olhou de soslaio para Lhiannah, esperando uma reacção efusiva da parte dela, mas a princesa limitava-se a comer calmamente, dispensando apenas um ou outro olhar aos que a rodeavam.

 

Pois... é uma situação complicada, e temo pelo que possa vir a acontecer. O povo também tem o seu ponto de ruptura, e Tanarch está a crescer enquanto Sirulia enfraquece...

 

Está a sugerir que existe a possibilidade de anexação violenta? - perguntou Allumno.

 

Não sei... mas dia após dia, a minha sensação é de que bastará uma pequena faísca para atear um fogo que poderá muito bem deixar Sirulia em cinzas. As próprias sirulianas nutrem ressentimentos para com os seus homens que as abandonaram; já se sentem mulheres de Tanarch e anseiam pela liberdade de poderem escolher o esposo que quiserem e viver as suas vidas. Não as posso censurar, acho desumano aquilo que os sirulianos fazem, mas o meu medo é que a situação se descontrole...

 

O que diz o Triunvirato?

 

O quê? quis Taislin saber.

 

O conselho de magos que rege Tanarch esclareceu Mamã.

 

Os Três não se importam. Sirulia não interfere de modo algum na economia, e é aí que residem os seus interesses. Se os tanarchianos se insurgirem, certamente não será contra eles e nessa altura duvido de que se incomodem sequer em puxar as rédeas do povo. Os sirulianos para eles não passam de meros guardas de fronteira, e se o pagamento que exigem pelos seus serviços consiste de umas quantas mulheres que no fundo nem são de Tanarch, tanto melhor para eles.

 

Entendo. Agora que falamos do Triunvirato, os Corações Quebrados são sancionados pelos Três? questionou o mago.

 

Mamã esboçou um sorriso quase envergonhado.

 

Não, as nossas acções não são aprovadas, porque não agimos apenas contra os Filhos do Flagelo. As injustiças que corrigimos e os necessitados que ajudamos nem sempre correspondem aos planos e intenções do Triunvirato...

 

Apesar de a terem ouvido proclamar-se abertamente como fora-da-lei, nenhum dos companheiros conseguiu censurar ou desconfiar de Mamã, de tão afável e dada que a mulher era, e começavam a perceber os motivos pelos quais recebera tal alcunha no grupo. Para os Corações Quebrados e provavelmente para todos os que necessitassem de afecto, tinham a certeza de que Mamã faria jus ao nome.

 

Bom, agora se me dão licença pediu a mulher, erguendo-se de mãos apoiadas nos joelhos, tenho de tratar dos rapazes. Estejam à vontade e descansem; há cobertores ali nas varandas. Estão em segurança e entre amigos.

 

Os companheiros agraciaram-na com sorrisos e viram-na ir ter com os feridos, passando por Worick pelo caminho e supervisionando o enfaixar do seu braço.

 

Podemos confiar nela, não? perguntou Aewyre a Allumno.

 

Nela sim, os outros não sei, mas já que eles obedecem a cada comando seu como filhos...

 

Pois, também acho... ainda assim, vamos embora amanhã.

 

É óbvio que os Corações Quebrados gostam de se meter em problemas...

 

Mais ainda do que nós? duvidou Taislin, arrancando um sorriso ao guerreiro.

 

Tens alguma razão nessa. Então pronto, não precisamos de mais problemas para além dos nossos. Está melhor assim? O burrik anuiu, satisfeito. Óptimo. Que dizes tu, Lhiannah?

 

A arinnir demorou a perceber que o jovem se estava a dirigir a ela, notando que todos os olhos do grupo estavam postos em si.

 

Que... digo eu? De quê? A princesa parecia ter despertado de um sonho.

 

Achas que devemos ficar mais algum tempo com eles, para descansar e saber mais sobre Tanarch, ou vamos já para a cidade?

 

Lhiannah franzia o cenho, estranhando a desagradável atenção de cada um dos companheiros e fitando cada um por sua vez.

 

Não sei... façam como quiserem acabou por sugerir, escondendo os olhos de seguida na taça vazia que tinha nas mãos.

 

Aewyre ergueu o sobrolho para Allumno, mas o mago deu a entender que nada iria dizer acerca do assunto com um desinteressado encolher de ombros. Worick veio quebrar o desconfortável silêncio que se instalara em volta da fogueira.

 

Então? Estes também nos querem compensar? Vamos ser o quê desta vez, irmãos do coração? perguntou, abanando o braço enfaixado como se as ligaduras o incomodassem e sobraçando com o outro as placas danificadas que o haviam coberto.

 

Como está o braço? inquiriu Allumno.

 

Bah, isso é o menos. O que me irrita é que vou ter de encontrar um ferreiro para reparar o braçal, a cotoveleira e a manopla. Do escudo nem se fala, aquela azémola esfrangalhou-mo bem e vai custar-me os dois túbaros fazer um novo. Pedras me partam... então e tu, cachopa? Já encontraste a língua?

 

Vendo que se estavam a dirigir a ela uma vez mais, Lhiannah tornou a erguer a cara, parecendo arreliada.

 

Querem deixar-me em paz? exclamou, levantando-se e afastando-se do grupo, o que lhe mereceu olhares dos outros presentes na caverna para além dos companheiros.

 

O que se passa com a Lhiannah? estranhou Taislin, coçando o barrete.

 

Ninguém soube responder.

 

A arinnir percorreu a caverna em passos furiosos até perto da entrada do túnel, onde foi abordada por um dos guardas.

 

Onde é que a menina vai? quis saber, agarrando-lhe o braço. Lhiannah libertou-se com brusquidão e afastou-se numa postura defensiva.

 

Vou apanhar ar, ou não posso? perguntou em voz alta.

 

O homem estava pronto para lhe explicar muito claramente o que podia ou não fazer, mas Mamã interveio.

 

Deixa-a, Albeirin. Lhiannah, és livre de ir e vir quando quiseres. Não és nenhuma prisioneira aqui.

 

A princesa fungou em desdém, olhando o guarda de alto a baixo, e retirou-se pelo túnel sem se dignar sequer a dirigir uma palavra de agradecimento à sua anfitriã. Mamã suspirou e sossegou o guarda, erguendo as palmas das mãos. Aewyre ergueu-se, indignado e pronto a segui-la, mas foi Worick quem o impediu, pondo-se no seu caminho.

 

O que é que estás a fazer?

 

A evitar mais cenas. Deixa-a estar. Já sabes como a cachopa é, isto passa-lhe...

 

Worick, ela matou um deles e agora ainda se põe com...

 

Se fores ter com ela, acabam à castanhada outra vez. Eu até gostaria de ver, mas acho que não queres fazer isso à frente da Mamã, pois não?

 

A vontade do jovem era discordar, mas o thuragar tinha razão. Lhiannah parecia estar particularmente volátil, e qualquer aproximação da sua parte só poderia causar faíscas. Resignado, retomou o seu assento de pernas cruzadas defronte da fogueira e esperou que Worick fizesse o mesmo.

 

Agora, o que é que há para comer? Se forem ratos, juro que corro tudo nesta caverna à cachaporrada, pedras me partam...

 

O mundo de Quenestil era escuridão, silenciosa e envolvente, isolando-o das sensações mundanas como um manto mortuário.

 

A sua primeira chispa de consciência foi de que estava morto. O seu corpo não reagiu, pois parecia que ainda não havia entrado completamente nele, que flutuava sobre uma figura inanimada de carne e osso que lhe recusava obstinadamente a entrada. No entanto, um por um, os seus sentidos foram regressando. Aos seus ouvidos chegaram-lhe ruídos indistintos que não soube identificar. Rangidos? Madeira? Era difícil dizer. A sensação seguinte foi a de sal na boca salsa e seca, isso e uma camada de algo seco e quebradiço que lhe cobria a pele. Esse desconforto inicial despertou-o para outro bem mais agudo.

 

Dor.

 

A sua cabeça latejava de dor, que lhe tapou os ouvidos acabados de despertar. O eahan grunhiu e os seus lábios gretados estalaram dolorosamente quando cerrou os dentes. Algo ardente lhe puncionava a testa e fez com que Quenestil abrisse por fim os olhos, e então sentiu um tipo diferente de dor quando a luz lhos queimou.

 

O shura grunhiu, abrindo os cantos gretados da boca enquanto escudava com as mãos os olhos da ardente luz que os castigava, fazendo estalar a camada seca que lhe cobria a pele. Algo... alguém lhe agarrou os pulsos, e uma voz tentava a custo fazer-se ouvir.

 

Quenestil! Quenestil, sou eu, Slayra, Slayra! Quenestil, pára, está tudo bem!

 

O shura acalmou de imediato. Duas mãos pegaram-lhe gentilmente a cara e uma sombra abrigou-lhe os olhos da luz. Quando os tornou a abrir, Quenestil viu apenas um vulto escuro, que lentamente se transformou numas feições borradas, que acabaram por se moldar no belo semblante de uma eahanna.

 

Slayra...? rouquejou.

 

A eahanoir abraçou-lhe o pescoço, e esse aperto pareceu reter toda a pressão na sua cabeça dorida de forma penosa. O grunhido do shura fez com que Slayra o libertasse, mas não antes de o beijar com lábios e língua salgados, humedecendo a sua boca ressequida.

 

Fica quieto, meu amor. Tens a cabeça ferida, deixa-me tratar-te...

 

Onde estamos...? perguntou, olhando em redor mas distinguindo pouco com a ainda fraca visão. Algo lhe pendia defronte do olho esquerdo e o shura fez tenções de o remover, mas Slayra agarrou-lhe a mão.

 

Não tires, são pontos! Estamos a salvo, não te preocupes. Agora fica quieto e...

 

Que sítio é este? insistiu o eahan, sentindo o toque de madeira quando apoiou as mãos no chão para se erguer.

 

Slayra tentou impedi-lo, mas o shura acabou por cambalear para os seus pés e a eahanoir optou por o apoiar, segurando-lhe o braço. Uma brisa salgada saudou Quenestil quando este se ergueu, avivando-lhe os sentidos. Esfregou os olhos com pestanas encrostadas de sal e tornou a olhar em redor, apercebendo-se pela primeira vez de que estavam numa bizarra embarcação, uma enorme jangada de madeira com mastro e vela. Com os sentidos mais avivados, começou a sentir a camada cerosa e seca que lhe cobria a pele, mas antes que a tentasse raspar, o eahan sentiu outra presença para além de Slayra e virou-se para a confrontar, levando a mão ao punho do facalhão embainhado, que por sorte não se soltara. Os seus músculos retesaram-se e um rosnido escapou-se-lhe da garganta assim que viu o homem que os observava sentado de pernas cruzadas, mas Slayra envolveu-lhe o tronco num amplexo restnngente.

 

Quenestil, está tudo bem! Este homem salvou-nos, foi ele quem nos tirou do mar! Se não fosse ele, podíamos estar mortos, acalma-te!

 

Era demasiada informação para alguém que acabara de despertar após um incidente tão violento como o que vitimara ambos os eahan, e Quenestil não estava disposto a confiar em nada para além dos seus instintos.

 

Quem é você? perguntou, mais um rosnar que uma série de palavras. Slayra ainda o agarrava, mas o shura permanecia de pernas flectidas e músculos tensos.

 

O indivíduo sentado limitava-se a olhar, inclinando a cabeça com curiosidade enquanto estudava Quenestil. Era um homem velho, idoso mesmo, com uma longa barba e bigode brancos que se aninhavam no regaço formado entre as pernas cruzadas pela sua toga azul desbotada pelo Sol, que também lhe tostara a pele após o que só podiam ter sido anos seguidos de exposição. A sua testa alta, que ganhava terreno com a progressiva perda de cabelo níveo, estava vincada por rugas como um campo sulcado, com um par de sobrancelhas brancas farfalhudas no lugar de arbustos por desmoitar por cima de olhos estreitos e um nariz de grandes narinas. O cabelo estava apanhado na nuca num comprido rabo-de-cavalo e dele pendiam o que pareciam ser algas ressequidas. A sua única peça de indumentária era a desbotada toga azul, de resto andava descalço e adornava-se com oferendas do mar: um colar de conchas ao pescoço, brincos de pequenos caramujos nas orelhas, pulseiras de osso e pele de peixe nos pulsos, um enorme búzio a fazer de espaldeira ao ombro e inúmeros penduricalhos de espinhas e ossículos na barba. Vendo que o seu escrutínio estava a deixar Quenestil impaciente, o homem falou.

 

Saudações, shura. Folgo em ver que o teu ferimento não é tão grave quanto parecia...

 

Quem é você? interrompeu o eahan.

 

Apenas um humilde servo da Mãe. Vendo que isso não aquietara o seu interlocutor, o homem ergueu-se com a ponderabilidade dos anos. Apesar de compreensível, a tua postura é injustificada. Estão em segurança na minha jangada e não tenho motivo algum para vos querer mal, pois nada fizeram nos meus domínios que pudesse ser considerado desrespeitoso... e há tanto tempo que não tenho uma boa conversa...

 

Quenestil ainda estava hesitante, pois ainda não se sentia capaz de confiar em nada para além dos seus instintos, mas teve a presença de espírito para se aperceber de que estava a falar com um druida azul, um protector dos mares.

 

Ouve o que ele diz, Quenestil. Agora pára de ser teimoso e senta-te para eu te tratar dessa ferida! repreendeu-o Slayra, puxando o shura, que se deixou sentar.

 

Eu... peço desculpas, Guardião disse o eahan, meio atabalhoado.

 

São aceites, shura. Ambos passaram por uma dura provação, pelo que a menina me contou...

 

Quenestil fechou e abriu os olhos, mas quando tentou esfregar as têmporas, Slayra esbofeteou-lhe a mão.

 

Não mexas aí! Tens uma ferida feia e eu ainda não acabei de a tratar disse a eahanoir, pegando numa espinha e no que pendia à frente do olho do eahan, um fio de barba de baleia que usara na falta de linha para suturar o corte por cima do sobrolho do eahan. Agora fica quieto enquanto eu coso isto.

 

Slayra parecia quase alheia à presença do druida, que permanecia de pé e de braços cruzados, mas Quenestil não o conseguia ignorar e fitava-o com atenção recíproca.

 

O que aconteceu? perguntou a Slayra, cerrando o olho quando sentiu o picar da espinha na sua pele.

 

Não enrugues a testa! exclamou a eahanoir num misto de comiseração e irritação. Foi tudo muito rápido, tu atacaste o marinheiro, os outros caíram-te em cima e um deles acertou-te com um pau na cabeça. Atiraram-te ao mar depois disso e eu mergulhei atrás de ti. Com um olho entreaberto, Quenestil olhou brevemente para Slayra com o outro, e nesse fugaz vislumbre a eahanna viu mais amor que durante todas as semanas que passara com o shura no ermo desde Jazurrieh. E... e...

 

Sim...?

 

... e alguém nos atirou uma bóia. O capitão, aquele marujo que te deu a cerveja, ou se calhar foi só algo que caiu na confusão, não sei, mas eu deitei-lhe a mão e foi isso que nos salvou, porque com o meu ombro e contigo inconsciente eu nunca teria conseguido aguentar com nós os dois. Slayra calou-se por momentos para puxar o fio de barba de baleia pela nova punção que fizera na testa do eahan. Não sei quanto tempo ficámos ali a flutuar; não sabia qual a direcção da costa, não valia a pena seguir o navio e acho que também não me aguentava se tivesse começado a nadar, mas a meio da noite distingui uma embarcação no escuro e comecei a gritar. Era esta jangada, e aquele senhor salvou-nos: tirou-nos da água e ajudou-me a cobrir-te com gordura para não morreres de frio. Quenestil olhou para o seu antebraço e viu com outros olhos a camada gretada que lhe cobria a pele.

 

Gordura de gaivota esclareceu o druida. Pode raspá-la agora, se quiser, bem sei que é incómoda, foi só para não morrer de frio. Quenestil semicerrou o olho por cima do qual estava a ferida que Slayra suturava e tentou acalmar-se para reflectir sobre tudo o que acontecera. Fora tudo tão rápido e desordenado desde a morte de Babaki... A menina disse-me que pretendem ir para Tanarch. Por coincidência, é para lá que me dirijo, e terei todo o gosto em vos escoltar até lá, isto é, a menos que não o queiram. Posso levar-vos para terra e daí seguem o vosso rumo, se assim o desejarem... Slayra sorriu, sem tirar os olhos daquilo que estava a fazer.

 

Acho que essa hipótese nem se põe... Olhou para Quenestil como a pedir concordância, mas o eahan não correspondeu.

 

Muito bem... estejam à vontade. Dêem-me só uns momentos... O druida sentou-se, pegou em dois búzios e colocou-os por cima dos ouvidos. Slayra olhou para a bizarra figura que o homem fazia e devolveu a sua atenção a Quenestil, falando em voz baixa.

 

Pareces um eahanoir. Nós podemos confiar nele; se nos quisesse mal, já o podia ter feito há muito, estivemos nas suas mãos e ele só nos ajudou. O shura fitou a eahanna nos olhos, desfocando o fio de barba de baleia que se interpunha entre as faces de ambos. Poderia confiar nele, em quem quer que fosse? A primeira coisa da qual se lembrara fora o sério revés às suas convicções que sofrera às mãos do druida negro de Moorenglade, isso e a cilada armada pela família latvoniana, bem como o recente ataque dos marinheiros. Naquele momento, não se sentia muito inclinado a confiar num desconhecido, mesmo que Slayra se fiasse nele, mesmo que se tratasse de um Guardião. A eahanoir leu tudo isso nos olhos de Quenestil e suspirou. Qual dos dois havia mudado mais; e para melhor ou para pior? Executou uma última punção nos lábios da ferida na testa do shura, que lançou um último estremeção e soltou o comprimento de fio que sobrava na espinha, descartando-a.

 

Bom, já está.

 

Quenestil tacteou o ferimento suturado e ergueu-se. A cabeça ainda lhe doía e os lábios gretados da boca sangravam das inúmeras pequenas aberturas que fizera ao abri-la e cerrar os dentes. Apoiou-se no mastro da jangada, cuja vela de lona se encontrava remendada em vários sítios com pele de animais marinhos, e observou o mar que o rodeava até onde a vista alcançava. O céu estava claro, com alguns isolados farrapos de nuvens errantes, e a luz do Sol reflectia-se nas águas cerúleas, criando estonteantes padrões luminescentes dos quais achou melhor desviar o olhar. A jangada em questão era de construção simples, constituída por troncos sólidos escurecidos pela água, um mastro com vela, um pequeno abrigo improvisado de madeira com um sobrecéu de lona e uma pequena cerca coberta por mais lona onde o druida guardava as suas posses. Na parte traseira da embarcação havia ainda uma armação de madeira e rede atrelada à jangada. Havia algo de meticuloso e arrumado na estranha embarcação: cada concha aparentava ter o seu lugar, os esqueletos de peixe davam a ideia de estarem pendurados numa ordem específica e as linhas de pesca estavam ordeiramente enroladas nas varas atadas aos postes dispostos na borda. Tudo indicava que a jangada era também a casa do druida, um lar que podia ser percorrido de uma ponta à outra em quatro passos, sem contar com a armação atrelada. O homem continuava sentado de pernas cruzadas, de olhos fechados e com os búzios enfiados nos ouvidos, como se estivesse a auscultar as redondezas.

 

Quanto tempo...? perguntou a Slayra sem tirar os olhos do homem que, sem aviso prévio, pousou os búzios e levantou-se em resposta.

 

Oito mudas da Lua, shura. Isto se as condições continuarem favoráveis, é claro... com estas correntes e ventos é difícil precisar.

 

Os olhos do eahan arregalaram-se e Slayra pôs-lhe de imediato a mão no ombro.

 

Não sei quanto isso é, mas não pode ser mais do que demoraríamos se fôssemos por terra...? duvidou a eahanoir, algo incerta.

 

Não... acabou Quenestil por concordar. Não pode.

 

Não costumo ter visitas... comentou o druida, alheado das trocas de palavras dos eahan. O peixe que tenho é pouco para três bocas, e a água que apanhei das últimas chuvas não vai durar muito, principalmente porque vocês vão ter de lavar o sal dessas vossas delicadas peles. Para além disso, as noites são frias e as vossas roupas, principalmente as da menina, não são adequadas. Hummm, vamos ter de tratar disso tudo... Ambos os eahan ficaram a olhar em silêncio para o druida, que continuou a murmurar sem esperar qualquer resposta deles. Mas não temam. A Mãe é generosa, e o mar providencia-nos aquilo de que necessitamos se soubermos procurar... bom, primeiro, se calhar teremos de beber água do mar para conservar a doce de que dispomos...

 

Água do mar?!

 

Não tenham medo que ela não vos faz mal nenhum. Convém começar a bebê-la logo de início, pouco, não mais que uns quantos goles, os vossos corpos hão-de se habituar... bom, tenho a certeza de que tudo se resolverá a seu tempo. Se me dão licença... O druida puxou a túnica despudoradamente por cima da sua cabeça e pendurou-a numa das cordas do mastro. Tanto Quenestil como Slayra ergueram as sobrancelhas perante o longilíneo e atlético corpo daquele homem que certamente teria mais anos que os dois eahan juntos. Décadas a nadar no mar haviam-lhe esculpido o tronco, visivelmente dotado de vigorosos pulmões, e as suas pernas pareciam alongadas como barbatanas. Como eremita que era, padecia de uma certa falta de modéstia, que se manifestava na maneira despreocupada como caminhava desnudo pela jangada enquanto fazia as últimas preparações antes de mergulhar.

 

Têm peixe ali na despensa, comam à vontade convidou, indicando a cerca coberta de lona. Lá dentro há também umas carapaças de tartaruga com água doce; só vos peço que tenham muito cuidado para não a entornar... ah, mas a menina já sabe, eu já lhe disse isto tudo, não foi? Óptimo, então estejam à vontade que eu já volto e antes que o pudessem impedir, o homem pulou jangada fora, mergulhando com toda a elegância de um peixe e desaparecendo da vista dos dois eahan.

 

Será que também vais ser assim quando fores mais velho? perguntou Slayra pouco depois, jocosa, pois eahan não enfezavam como os humanos e conservavam uma aparência saudável mesmo durante a velhice, apesar de dificilmente poderem almejar um porte atlético como o do druida.

 

O shura pareceu não ligar, olhando apreensivamente em redor, principalmente para o ponto do mar no qual o druida desaparecera e ao qual afloravam bolhas. Ainda não estava sossegado. A eahanoir suspirou e agarrou-o pelos ombros, forçando-o a cruzar o olhar com o seu.

 

Quenestil, estamos juntos, estamos a salvo e estamos a dirigir-nos para Tanarch. O que é que tens?

 

O eahan ruivo tinha muita coisa naquele momento, mas os olhos azul-claros de Slayra, inchados e avermelhados com a falta de sono e contacto com o sal, despertaram-no para outras preocupações.

 

O teu ombro? perguntou, pegando-lhe delicadamente o cotovelo do braço ferido.

 

Olha... no meio disto tudo quase me ia esquecendo dele apercebeu-se a eahanoir. Já deve estar quase bom. Deve estar, se aguentei contigo agarrada a uma bóia de cortiça durante a boa parte de uma noite e...

 

O beijo inesperado de Quenestil abafou-lhe as palavras. Braços fortes apertaram-na contra o tronco do eahan num cuidadoso amplexo abaixo das omoplatas, que ainda assim não passou despercebido ao ombro ferido de Slayra, que o ignorou por completo. Lábios secos e estalados arranhavam-lhe a boca, mas a eahanna recebeu-os com avidez, deixando-se levar pelo arrebatador abraço. Quando foi liberta, Slayra pendia languidamente dos braços do shura, vendo finalmente algo mais que dureza e mágoa nos olhos cinzentos pelos quais se apaixonara.

 

Para que foi isso...?

 

Para o braço explicou Quenestil, esboçando um sorriso com os lábios feridos e limpando com o polegar as pequenas manchas de sangue que deixara nos da eahanoir. Tens fome?

 

A eahanna acenou positivamente com a cabeça, sem tirar os olhos dos do shura, sem nada dizer, temendo quebrar aquele momento.

 

Sabes onde ele guarda os peixes? perguntou o eahan.

 

Sim, ele mostrou-me umas carapaças de tartaruga cheias de sal com peixes lá dentro.

 

Isso come-se? duvidou Quenestil, que só agora começava a sentir a secura na sua garganta.

 

Acho que sim, mas não antes de bebermos qualquer coisa... Slayra virou de imediato o olhar para o abrigo do druida. Ele deu-me de beber antes de acordares. Vem, eu mostro-te convidou, puxando-o pelo braço e destapando a cerca que servia de despensa.

 

Lá dentro havia várias sacolas de pele de peixe, três carapaças de tartaruga cheias de sal e duas grandes com água que oscilava consoante o vacilar da jangada. Com muito cuidado, Quenestil pegou numa delas pelas bordas e ergueu-a para fora, repreendendo-se por algumas gotas entornadas. A primeira reacção do eahan perante a mera visão de água foi a de a atirar à cara para a beber, mas por sorte Slayra foi rápida o suficiente para o impedir.

 

Calma! Não o ouviste? Temos de a poupar.

 

Algo envergonhado com a sua reacção, o shura nada disse.

 

Toma, usa isto sugeriu a eahanoir, passando-lhe um coniforme búzio rosado que aparentemente servia de copo. Humedece bem a boca primeiro e gorgoleja um pouco, foi o que ele me disse.

 

Quenestil assim fez e bebeu a água salobra avidamente, fingindo não ouvir Slayra enquanto sorvia uma segunda dose e apenas conseguindo controlar-se antes de ingerir a quarta.

 

Deuses... exalou, aliviado. Parecia que me tinham enchido a boca de sal.

 

Foi mais ou menos o que aconteceu... observou Slayra, bebendo comedidamente. Vamos experimentar aquilo então?

 

Os dois eahan tiveram de desenterrar os peixes dos seus jazigos salinos dentro das carapaças, abrasando as feridas nos dedos, e assim que os provaram questionaram-se de imediato se o esforço valera a pena. Para além de intensamente salgada, a carne tinha uma consistência correenta e parecia sugar toda a saliva que tinham na boca. Não obstante, era um alimento sólido, e os seus estômagos estavam vazios, pelo que começaram a engolir forçadamente os salgados filetes. Cuspindo espinhas para o mar e apaziguando as gargantas suplicantes com moderados goles de água, os eahan comeram com o único intuito de dar energia aos seus corpos cansados. No fim da pouco agradável refeição aperceberam-se do quanto já haviam drenado da carapaça de tartaruga e decidiram parar, embora a sede os continuasse a atormentar mesmo após terem bebido por três vezes um último trago.

 

E agora? inquiriu o shura, olhando em redor. Esperamos?

 

Que mais podemos fazer...? Olha, ali está ele! disse Slayra, indicando um pequeno ponto branco na água que depressa tornou a submergir. Espero que esteja à pesca.

 

Sim... concordou Quenestil, absorto, puxando a eahanoir para si, sem tirar os olhos de onde o druida desaparecera. Era evidente que uma tempestade de pensamentos se estava a desenrolar na cabeça do shura.

 

O que se passa? quis Slayra saber. O eahan suspirou longamente.

 

Nada... tudo... nem sei ao certo. Tenho de pôr as coisas em ordem na minha cabeça. A eahanoir encostou a sua ao ombro tenso de Quenestil, que nela apoiou o lado do rosto. Mas pelo menos tenho-te comigo.

 

Sim... concordou Slayra por sua vez, abraçando a cintura do eahan com o braço bom. Pelo menos estamos juntos.

 

”Juntos...”, repetiu o shura na cabeça, conjurando imagens de um passado não muito distante...

 

Não te vamos deixar enfrentar os perigos que te esperam sozinho assegurou Babaki. Estamos todos contigo.

 

Muito obrigado, meus amigos. Não sabem o quanto isto significa para mim.

 

O antroleo pôs a sua enorme mão no ombro do seu amigo. Juntos?

 

Aewyre parou e colocou a sua mão por cima da de Babaki. Juntos enfatizou...

 

... juntos... reiterou Quenestil, mirando as nuvens revoltas no céu, imaginando-as como campos níveos nos quais um antroleo para sempre rugiria, eterno.

 

O silêncio reinava incontestado na húmida caverna. Extenuados e feridos, os Corações Quebrados que haviam participado na incursão convalesciam no sono dos justos, cobertos por quentes mantas de lã. Aewyre estava deitado de barriga para cima, Ancalach a seu lado, Allumno permanecera na sua posição sentada de pernas e braços cruzados e cabeça baixa, parecendo meditar em vez de dormir, Lhiannah oscilava entre o sonho e o mundo real, executando gestos nitidamente despertos e Worick por uma vez encontrara a posição certa para o pescoço e não ressonava. Apenas Taislin permanecia acordado, agarrado às pernas e de queixo apoiado nos joelhos, balanceando-se para a frente e para trás enquanto entoava uma quase inaudível canção gutural. Era sempre assim, locais novos com pessoas novas tiravam-lhe o sono, queria conhecer, falar, observar, cheirar, e fatalmente todos acabavam por adormecer quando o burrik ainda estava a meio das suas explorações.

 

”Cambada de chatos, dorminhocos...”, pensou, erguendo-se num brusco movimento, cheio de energia por gastar.

 

Os olhos felinos de Taislin aproveitavam a luz das mortiças brasas das fogueiras e moribundas lamparinas e o burrik conseguia ver tão bem como se estivesse no exterior ao entardecer, observando as filas de corpos refastelados que respiravam regularmente. Lhiannah mexeu-se mais um pouco e olhou em redor, sem reparar no burrik que permanecia nas sombras, e tornou a deitar-se sem no entanto dar mostras de adormecer. Taislin considerou a hipótese de ir falar com a princesa, mas a arinnir estivera tão assanhada após o combate que reconsiderou e optou por dar o seu terceiro passeio nocturno pela caverna. Entreteve-se a caminhar aos pinotes, saltando por cima dos corpos e aterrando com destreza entre pernas e braços sem nunca tocar em ninguém. Aproximou-se da cerca que separava o resto da caverna do monte de cascalho para uma melhor observação, mas a luz era insuficiente para ver algo que lhe satisfizesse a curiosidade, apenas pedregulhos e calhaus enormes entre cujas frestas e debaixo dos quais os garigonor dormiam, enterrados como toupeiras. Taislin achara piada à cena da primeira vez, mas já não lhe via a graça e suspirou de enfado, tornando a palmilhar o seu percurso de corpos adormecidos na direcção do túnel que dava para o exterior. Já saíra uma vez para fazer as suas necessidades e não achara minimamente difícil passar pelas entediadas sentinelas da sinuosa galeria.

 

”Pelo menos lá fora sempre se passa alguma coisa. Se calhar dou uma volta com a Alfarna, ou vou apanhar ratos, ou então ponho-me a fazer barulho para acordar estes chatos...”, matutou o burrik enquanto deslizava com pés de lã pelo túnel, atento ao piso irregular. Havia duas sentinelas no turno da noite; uma a meio do túnel e outra postada à entrada, nenhuma das quais fora particularmente difícil de evitar.

 

Foi com um certo desapontamento que Taislin constatou que a cadeira da primeira sentinela estava vazia, iluminada por uma candeia aninhada num nicho na parede. Que chatos, nem sequer essa satisfação lhe davam! Ainda se permitiu uma réstia de esperança ao ouvir um ruído vindo do fim do túnel, mas não era o de passos e não se repetiu. Suspirando como uma criança à qual fora tirado um brinquedo, Taislin avançou resignado com uma curta e aborrecida caminhada. No entanto, o ruído acabou por se repetir e o burrik parou tão bruscamente que dava a ideia de que todos os seus músculos haviam gelado. Não fora o ruído de passos de bota, mas sim algo cuidadoso e sorrateiro, um deslize de alguém que não queria ser ouvido.

 

Um deslize de alguém que vinha na sua direcção.

 

O burrik recuou uns passos, acocorou-se como um gato e apurou olhos e orelhas em frente. Conseguia distinguir agora os passos cuidadosos de um grupo, certamente mais do que dois homens, tão cautelosos que apenas o mero peso dos seus números os tornava audíveis. Após mais alguns passos entraram no campo de visão de Taislin, que engasgou ao ver os feixes amarelos coados de uma lanterna esburacada carregada por um dos sorrateiros desconhecidos que caminhavam de pernas flectidas e lâminas desembainhadas.

 

O guincho que lhe escapou da garganta foi agudo e ecoou pelo túnel e pela caverna adentro. Os intrusos pararam, surpresos, mas o burrik ergueu-se de um salto e principiou a correr para trás.

 

Acordem, acordem! berrou Taislin, correndo como poucas vezes correra. As suas pernas começaram a mexer-se de sua própria vontade quando passos pesados e vozes fragosas estrondearam atrás de si com matança no seu intento. O burrik pegou na candeia ao passar pelo posto da sentinela e atirou-a para a retaguarda, estilhaçando-a e espalhando o seu conteúdo numa pequena carpete flamejante que esperava conseguir-lhe mais uns instantes para se distanciar dos seus perseguidores pernilongos. Acordem! ACORDEM! Inimigos!

 

A caverna na qual entrou não parecia a mesma. Homens agitados levantavam-se atarantadamente, tropeçando e estendendo as mãos às armas que mantinham perto de si. O burrik desembainhou dois punhais e, virando-se para trás, arremessou-os contra o intruso que carregava a lanterna, alojando-lhos no tórax. O homem engasgou-se e levou as mãos ao peito, largando a lanterna e caindo de joelhos. Os outros entraram de armas em riste, gritando em Leochlan e prontos para a matança.

 

Aewyre fora dos últimos a adquirir controlo sobre o seu corpo dormente, mas crispar os dedos no punho de Ancalach fora das primeiras acções involuntárias que tomara. Estava escuro e os seus olhos tardaram em adaptar-se às condições de luz enquanto o guerreiro fazia uma fútil tentativa de se levantar, conseguindo apenas acocorar-se. O pé de um desconhecido pisou-lhe a lâmina da espada e manteve-a contra o chão, impedindo Aewyre de a erguer. Com um novo jorro de calor a afoguear-lhe o peito, o guerreiro olhou para cima para ver quem pisava Ancalach, mas um outro pé atingiu-o em cheio no queixo, projectando-o para trás antes que os seus olhos pudessem distinguir o seu agressor e fazendo com que largasse a espada. Os seus dentes estalaram com força uns contra os outros e o guerreiro ficou estendido de costas no chão, atordoado e à mercê de quem o atacara.

 

Allumno fora arrancado da sua meditação à força pelos gritos de Taislin e os seus ensonados joelhos cambaram quando o mago se tentou levantar. Por sorte, meditara com o cajado estendido sobre as pernas e teve a presença de espírito para o agarrar e nele apoiar o seu peso enquanto canalizava Essência quase inconscientemente para os seus olhos de modo a ver o que se estava a passar, apesar de ter de imediato percebido que estavam a ser atacados graças ao estertor da luta que começou. O seu primeiro instinto foi o de focar a sua atenção em quem estivesse mais perto da entrada da caverna e lá viu vultos a combater. O cântico arcano que recitou teria resultado em vários feixes energéticos que atingiriam os atacantes, mas a voz do mago saiu-lhe indistinta, as palavras atabalhoadas, a sua mente desfocada, e o feitiço não resultou. Foi o som de passos atrás de si e o silvo do aço que verdadeiramente avivaram o mago, clareando-lhe a mente. Allumno reforçou o seu cajado com a Palavra e com ele varreu para trás de si, bloqueando no último instante uma espadada lateral. Nos movimentos borrados do combate, não distinguiu o seu adversário, mas também estava mais preocupado com as duas espadas que este empunhava. Sabia que o seu cajado não iria aguentar outro embate assim que viu o seu oponente levar as duas armas acima para desferir um mortífero duplo golpe lateral. Por sorte, o seu adversário atrapalhou-se com o piso irregular da caverna e o mago limitou-se a acompanhar a desajeitada cutelada e desviá-la, ficando cara a cara com o atacante e vendo quem era.

 

Lhiannah...? pasmou-se.

 

A princesa rosnou e puxou a espada para trás, agredindo Allumno na cara com o pomo rosáceo da arma e derrubando-o. Ergueu a outra mão, que empunhava Ancalach, e preparou-se para acutilar o pescoço do mago tombado, mas todo o peso de Aewyre abateu-se sobre a sua ilharga numa desesperada carga de ombro, deitando-a por terra e privando-a de ambas as espadas.

 

Como já era hábito, Worick dormira dentro da sua armadura (sentindo-se nu com o braço do escudo enfaixado e descoberto), pelo que para o belicoso thuragar fora apenas uma questão de pegar no martelo e levantar-se assim que ouvira os primeiros gritos. A luta começara pouco depois e, vendo melhor que qualquer um dos presentes na escuridão, o general em Worick avaliou de imediato a situação. Sete indivíduos seguramente bem armados e bem treinados contra vinte e cinco acabados de acordar e de roupa interior.

 

A coisa podia correr mal...

 

Com um urro, o thuragar precipitou-se sobre a pugna, aproveitando o espaço deixado por um Coração Quebrado que tombara agarrado à barriga. Investiu em frente com o espigão do seu martelo, obrigando um dos intrusos a recuar, e antes que alguém pudesse reagir, puxou-o para trás e varreu com ele o ar à sua frente. Em perfeita sincronia, os atacantes recuaram, relaxando e expandindo a refrega, mas de pouco mais serviu, pois os Corações não sabiam o que esperar de Worick e baixaram as cabeças e recuaram eles também.

 

AMANIL! urrou o thuragar careca, lançando-se desarmado contra um dos agressores, que lhe desferiu um corte no abdómen antes de cair violentamente ao chão com o desenfreado guerreiro por cima.

 

Um dos atacantes preparava-se para ajudar o seu companheiro, mas Worick deu-lhe uma boa razão para se preocupar consigo mesmo na forma de uma oscilação de martelo destinada ao seu ombro. O homem evitou-a com um passo lateral e respondeu com uma estocada que rompeu as ligaduras do ombro descoberto do thuragar e lhe puncionou a carne.

 

Pedras me partam, e eu ainda estou a ajudar a alimária que me partiu a armadura do braço?!? espumou Worick, varrendo em fúria e mantendo amigo e inimigo à distância.

 

Animal! bramiu o próprio como em resposta, esmigalhando com uma cabeçada o nariz do atacante que derrubara.

 

Lhiannah, o que é que estás a fazer? perguntava Aewyre incrédulo, agarrando os pulsos da princesa, que se debatia furiosamente debaixo de si. Pára!

 

A arinnir esticou o pescoço para o lado e, ao ver Ancalach fora do seu alcance, devolveu a sua atenção a Aewyre com uma cabeçada na boca e uma pancada na face com a palma da mão que o tirou de cima de si. Começou a arrastar-se na direcção da Espada dos Reis e estendeu a mão para a agarrar, mas Aewyre pegou-lhe o tornozelo e puxou-a para trás. Lhiannah escoiceou com o pé livre, mas o guerreiro prendeu-lho entre o braço e o tronco e manteve o aperto numa tentativa de impedir a princesa de se mover, mas era a mesma coisa que tentar reter uma gata pegando-a pela cauda e Lhiannah continuou a contorcer-se em violentas convulsões para se libertar. A arinnir parecia possessa, totalmente indiferente à sua integridade física e apenas preocupada em ter Ancalach em sua posse a todo o custo. Com os espasmos do seu tronco ia arrastando Aewyre para a frente e para perto de Ancalach, esticando o seu braço até ao limite para a agarrar.

 

Lhiannah, pára! O que é que estás a fazer?

 

Com uma derradeira contorção, a princesa conseguiu chegar perto o suficiente da Espada dos Reis para a tomar em mão. Aewyre arregalou os olhos ao ver o princípio do golpe em arco descendente que lhe iria partir a cabeça em dois e largou as pernas de Lhiannah para se desviar para o lado, sentindo nos pés a vibração causada pelo estrídulo embate da lâmina de Ancalach na pedra. O guerreiro sabia que a força do golpe percorreria o braço da arinnir e faria com que os seus dentes rangessem, mas se a princesa o sentira não deu mostras disso, pois a sua acção seguinte foi tentar varar Aewyre ao chão, o que o guerreiro evitou rebolando para o lado e deixando a princesa cravar a ponta de Ancalach em pedra calcária. Apoiando-se com as mãos contra o chão, Aewyre varreu a espada das mãos de Lhiannah com o pé e a lâmina deslizou pelo piso irregular, clangorando para trás da cerca que os separava da parte ruída da caverna e embatendo contra um dos pedregulhos, assustando os já apavorados garigonor, que se escondiam gemebundos entre as frestas dos penedos. A arinnir perdeu então todo o interesse no guerreiro e correu atrás da arma, alheia ao combate e aos gritos e clangores. Aewyre levantou-se e perseguiu a princesa, saltando-lhe em cima assim que alcançou a distância desejada e despedaçando a frágil cerca ao cair agarrado a Lhiannah, que rebolou com o guerreiro pelo chão até o ímpeto de ambos ser bruscamente travado por um penedo. Os dois guerreiros lutaram brevemente pela posição superior e Aewyre, mais forte e pesado, ganhou, embora fosse um triunfo de pouca dura, pois as unhas de Lhiannah ferraram-se-lhe na cara e perto o suficiente dos olhos para cegar o guerreiro momentaneamente. Aewyre não viu nem pôde evitar que o pé da arinnir lhe batesse no peito e foi uma vez mais descartado pela princesa, cujos passos ouviu a arrastarem-se para perto do local onde Ancalach encalhara. O guerreiro tacteou cegamente com uma mão enquanto a outra lhe resguardava os olhos lesados, procurando algo em que se pudesse apoiar, e assim que encontrou um amparo, levantou-se de imediato, tentando enxergar. Ouviu Ancalach silvar ao ser erguida do chão e soube que estava em apuros mesmo antes de conseguir distinguir vagamente a silhueta atacante da princesa. Desviou-se de um golpe e de outros mais que se lhe seguiram numa fulminante e desajeitada sequência na qual a lâmina vibrava e tinia ao embater contra pedra, faiscando e fazendo entalhes na rocha. Um calhau deslizou do seu encaixe assim que Aewyre o pisou, fazendo com que o guerreiro tropeçasse e forçando-o a tentar transferir o seu peso para outro, que também não aguentou e cedeu, afundando-se. Ancalach seguia cada movimento seu, silvando e faiscando como uma serpente acerada sequiosa de enterrar as suas presas em carne, e foi necessária toda a perícia do guerreiro só para se conseguir levantar sem perder um membro ou a cabeça. Lhiannah grunhia ferozmente enquanto ambos saltavam pelos enormes pedregulhos numa furiosa dança de caçador e presa, tropeçando e rebolando até que, por fim, um pedregulho surgiu detrás das costas de Aewyre, bloqueando-lhe o caminho. O guerreiro ponderou instintivamente as rotas alternativas para os lados, mas a arinnir não lhe deu tempo de escolher e investiu, orientando a ponta de Ancalach para o estômago de Aewyre, que a evitou com um golpe de ancas, deixando-a embater agudamente contra a pedra.

 

Chega! gritou o guerreiro e, antes que a princesa pudesse puxar a espada para trás, não se conteve e desferiu um sólido murro na cara de Lhiannah, que expeliu saliva com a força do golpe, girou em si e baqueou redonda. Ancalach tiniu de alívio, caindo a seu lado e o guerreiro ficou momentaneamente parado, ofegando e mantendo o punho cerrado enquanto olhava para o agora inerte corpo da arinnir, que jazia de barriga para o chão.

 

Alarmado pelos ruídos da refrega, pegou na espada e decidiu pensar mais tarde acerca do que se passara, mas antes que pudesse levar a cabo as suas intenções, o pedregulho sobre o qual estavam inclinou-se bruscamente, forçando o jovem a agitar os braços para manter o equilíbrio.

 

Mas que raio...? praguejou antes de se aperceber de que a pedra estava a inclinar-se cada vez mais e que Lhiannah começava a escorregar. Algo rachou ruidosamente debaixo dos seus pés e cascalho principiou a escorrer.

 

Aewyre agarrou o pulso de Lhiannah, mas uma súbita inclinação do pedregulho impossibilitou-o de puxar a princesa para trás e o guerreiro também escorregou, derrapando com o traseiro pela pedra e para a escuridão em baixo. Instintivamente, largou Ancalach e agarrou Lhiannah com as duas mãos, abraçando-a protectoramente.

 

Uma súbita sensação de vazio fez-se sentir quando nada se interpôs entre Aewyre e as trevas ascendentes para as quais estava a cair, montando uma onda de penedos e pedregulhos.

 

Pedra a rachar, fender e estalar por todo o lado.

 

Dor nos embates contra rocha fria e dura.

 

O coração a bombear, retumbante.

 

Sangue a pulsar nos ouvidos.

 

Os seus amigos em perigo.

 

O corpo de Lhiannah.

 

Quenestil, Babaki.

 

Um grito mudo.

 

Iam morrer.

 

O seu pai.

 

Ancalach.

 

Nabella.

 

Caindo.

 

Negro.

 

Breu.

 

Não.

 

Sangue quente escorria no lado da face de Allumno, proveniente do lanho causado pela pancada de Lhiannah. O mago mantinha-se cambaleante em pé com a ajuda do cajado, avaliando a situação. Os seus sentidos haviam-se apagado por momentos e agora não via a princesa em lado nenhum, pelo que se concentrou no furioso combate à entrada da caverna e em como podia ajudar os Corações Quebrados na difícil situação em que se encontravam. Todos haviam sido violentamente despertos pelo guincho de Taislin e, à excepção de Worick, nenhum envergava armadura de qualquer tipo. Os seus movimentos eram lerdos e desajeitados comparados às investidas e golpes fulminantes dos seus adversários, que, apesar de em menor número, pareciam estar a comandar a refrega e a causar mais baixas. Apenas cinco dos sete atacantes permaneciam de pé, mas o mago viu pelo menos dez Corações Quebrados caídos, e como não via suficientemente bem para saber se algum deles se tratava ou não de Aewyre, exaltou-se e o único intuito das palavras arcanas que seguidamente proferiu foi o de provocar o caos. A ponta do seu cajado explodiu em luz escarlate, que pouco mais fez que cegar os intrusos e quebrar-lhes momentaneamente o ímpeto. Apesar de virados de costas para o mago, nem todos os Corações deixaram de ser afectados pelo clarão de Allumno e alguns também levaram as mãos aos olhos. O mago preparava outro feitiço, mas Mamã aproveitou a abertura presenteada pelo fulgor escarlate e abriu os braços, partilhando com todos o amor de Assana e prolongando dessa forma o breve cessar do combate que o mago causara. Infelizmente para os companheiros, o amor da deusa estendia-se a todos e os Corações não puderam aproveitar a oportunidade.

 

Um brusco silêncio instalou-se na caverna.

 

Worick, refractário a carícias de qualquer espécie, quebrou-o com um possante urro e o seu martelo clamou um dos atacantes, despedaçando-lhe a cabeça e reabrindo as hostilidades. Maneta esmagou a laringe de um adversário com um golpe da ponta do arco ao qual tirara o fio e que usava como cajado na falta de outra arma. Um intruso ergueu-se, encalhou o golpe de um Coração com a adaga que empunhava numa mão e cortou-lhe a garganta com a espada curta da outra, mas foi a última vida que tomou antes de ser varado de um lado ao outro pelo estoque de Pestanas. Os três sobreviventes aperceberam-se de que o balanço fora invertido e tomaram a sábia decisão de retirar, embora nenhum dos Corações estivesse disposto a deixar que o fizessem. Porém, um deles bradou algo em Leochlan e brandiu a sua curta espada, varrendo o ar à sua frente e precipitando-se com abandono sobre os seus adversários enquanto os outros dois fugiam. Várias lâminas recompensaram o acto ousado do intruso, atravessando-o friamente, mas este agia como se não as sentisse, oscilando maquinalmente com a espada curta, cortando um nariz e parte dum escalpo. O martelo de Worick partiu-lhe o ombro e a clavícula, mas com um braço para além de inutilizado, o outro esticou-se em frente numa convulsão, falhando a garganta de Worick apenas graças ao gorjal do thuragar, no qual a lâmina resvalou.

 

Pedras me partam! barafustou, recuando de surpresa enquanto os Corações Quebrados faziam de tudo para derrubar o adversário, de cuja boca começou a escorrer fleuma negra. Que bruxaria é esta?

 

Os olhos do homem permaneciam vidrados em Worick enquanto este tentava avançar, impedido de o fazer pelas lâminas que lhe mutilaram as pernas. Os dedos de uma mão ainda se fincaram no tornozelo de um Coração, mas foram prontamente cortados.

 

Afastem-se do corpo! gritou Mamã com urgência e os seus homens obedeceram prontamente mesmo antes de verem com os próprios olhos a razão de tanta premência: o cadáver principiou a definhar a olhos vistos, a sua carne a apodrecer e a abrir-se em feridas das quais escorriam os seus infectos fluidos.

 

Faíscas da Bigorna! tornou o thuragar a praguejar enquanto via o corpo a decompor-se a uma velocidade estonteante.

 

Mainal... secundou Animal, franzindo o cenho manchado de sangue espargido à cabeçada.

 

A dádiva negra...! murmuraram os Corações, tementes e apreensivos.

 

Presos pelo horror da visão que se lhes deparava, ninguém pensou sequer em perseguir os dois atacantes que haviam escapado. Taislin, Allumno e Mamã não tardaram a juntar-se ao grupo para observarem o grotesco espectáculo. A líder agarrou-se ao braço do mago, perturbada e mesmo o burrik arregalou os olhos.

 

Que nojo... comentou.

 

Morto ou não, o toque do Flagelo ainda se faz sentir disse Allumno, estendendo a mão ao cadáver putrefacto e fazendo uso da Palavra para o atear em chamas.

 

Os Corações Quebrados recuaram perante o fogo e fitaram o mago com uma certa apreensão nas suas expressões. Finda a batalha, alguns começavam a pensar nas razões do ataque e os estranhos tornaram-se o centro das desconfiadas atenções.

 

Ainda bem que vos avisei a tempo gabou-se Taislin com a sua característica intempestividade. Imaginem se eles vos tinham apanhado a dormir...

 

Ninguém parecia disposto a agradecer-lhe e um desconfortável silêncio instalou-se. Os garigonor começaram a convergir lenta e nervosamente ao ajuntamento num misto de curiosidade e receio.

 

Estão a olhar para nós para quê? E onde está a Lhiannah? inquiriu Worick, olhando em redor. Ei! Onde está a Lhiannah?

 

E o Aewyre? acrescentou Taislin, emulando os movimentos do thuragar.

 

Allumno perguntava-se o mesmo, mas manteve a boca sensatamente fechada, pois apercebeu-se da delicada situação na qual se encontravam. Maneta, Pestanas e os restantes Corações pareciam ter encontrado alguém para culpar pelo ataque, e ao mago nada ocorria para os demover.

 

Onde é que eles estão? Lhiannah! berrou Worick, preocupado, preparando-se para virar a caverna do avesso à procura da sua protegida.

 

Maneta postou-se à sua frente, empunhando o seu longo arco com as duas mãos.

 

Vamos com calma, thuragar... aconselhou vivamente.- Passa-se aqui algo de que eu não estou a gostar.

 

E vais gostar ainda menos se não saíres do meu caminho rosnou Worick em resposta, cingindo o aperto no cabo do martelo com as duas mãos. Os garigonor recuaram por prudência, sentindo a hostilidade crescente.

 

Por favor, acalmem-se todos pediu Mamã. Não se exaltem.

 

Mamã, de alguma forma os Filhos souberam onde nós estávamos escondidos disse o velho arqueiro enquanto Pestanas se postava a seu lado, achando por bem manter o seu estoque em riste.

 

E o grandalhão e a loura desapareceram notou um dos Corações, que não se esforçava por disfarçar a adaga que tinha desembainhada.

 

Estão a insinuar o quê? quis Worick saber, cada vez mais colérico. Querem que vos rache os chifres a todos?

 

Acalmem-se, por favor! suplicou Mamã, demasiado perturbada para interferir e ciente de que dificilmente conseguiria demover o thuragar.

 

Animal juntou-se aos seus companheiros, parecendo ansioso por reatar o seu combate com Worick, e o thuragar deu a entender que correspondia a esse desejo.

 

Taislin? disse Allumno ao burrik a seu lado, mantendo os olhos em Worick.

 

Sim?

 

Se o que eu vou fazer não resultar, tenta impedir que o Worick mate alguém ou a mim.

 

Como...?

 

O mago nada mais adiantou e pronunciou palavras arcanas, apontando para o thuragar que se preparava para fazer uso do martelo e orando para que resultasse. Suspirou de alívio assim que Worick paralisou subitamente e permaneceu de pé, imóvel mas na mesma posição. Os Corações Quebrados dirigiram-se quase todos ao mago, apontando-lhe lâminas e vociferando ameaças, mas Allumno ergueu as mãos e baixou a cabeça.

 

Fi-lo apenas para evitar hostilidades. Não desejo lutar, mas sim esclarecer este assunto declarou, abrigando Taislin atrás das suas pernas. Os homens continuavam desconfiados e o mago sabia que não os podia culpar por isso, mas felizmente Mamã conseguiu manter a cabeça fria e acalmou os seus rapazes. Obrigado. Eu também não sei ao certo o que se passou, mas admito a possibilidade de um de nós ter sido o responsável por este ataque.

 

O quê? guinchou Taislin.

 

Já agitados devido ao combate, os Corações por pouco não se exaltaram com a confissão do mago. Mamã fez os possíveis para impedir os ânimos de se inflamarem, mas era evidente que aquilo de que os homens mais necessitavam naquele momento era de um bode expiatório, e os companheiros afiguravam-se como os candidatos ideais.

 

Ouçam-me, por favor pediu o mago. Os nossos dois companheiros desapareceram. Não tenho como vos provar que não fomos nós quem trouxe os Filhos do Flagelo, mas...

 

Ai não? Então por que é que só fez aquele brilho, que nos atrapalhou tanto como aos Filhos? quis um Coração saber.

 

O thuragar matou um... lembrou outro, saltando inesperadamente em defesa dos companheiros.

 

Os Filhos são ardilosos e matam os seus sem problemas proclamou Maneta, convicto.

 

Chega! interrompeu Mamã. Eu senti-lhes os corações. Eles não são Filhos do Flagelo.

 

E a menina que não quis ser posta à prova? recordou o arqueiro.

 

A essa questão a mulher não soube responder e olhou para Allumno a pedir ajuda, mas o mago também não sabia ao certo o que dizer.

 

Eu... acreditem que estou tão confuso como vocês. A Lhiannah atacou-me indicou a ferida na maçã do rosto, que ainda sangrava, mas não sei porquê, e agora ela e o Aewyre desapareceram. Ninguém os terá porventura visto durante o combate?

 

Os Corações trocaram breves olhares e encolheres de ombros, e nenhum aparentou ter visto Aewyre ou Lhiannah durante o combate.

 

Ninguém os viu? insistiu Allumno, olhando para os corpos em redor. Quantas saídas tem esta caverna?

 

Só aquela por onde entraram... respondeu Mamã. Essa e... quer dizer... o monte de cascalho ali bloqueia o acesso às cavernas mais profundas...

 

O monte? Oh não... O mago só pensava em Lhiannah armada com a espada e Aewyre desprevenido, e fez tenção de se dirigir à zona ruída da caverna, mas os Corações Quebrados não lhe saíram do caminho. Posso pelo menos procurá-los? Compreendo as vossas suspeitas, mas acho que já dei provas suficientes de que pelo menos não fomos nós os três irritou-se o mago. Os homens hesitaram, mas Mamã repreendeu-os e puxou-os para trás pelos colarinhos, abrindo o caminho a Allumno. Obrigado. Taislin, vai procurá-los.

 

O burrik correu prontamente para o monte de cascalho, perseguido por vários garigonor, e o mago foi ter com Worick, que continuava paralisado. Sabia que o thuragar estivera a ouvir a conversa toda, apesar de ter estado virado de costas para o grupo, e tinha a certeza de que não gostaria de ouvir os seus pensamentos naquele momento. Allumno suspirou e pôs-se em frente de Worick, baixando-se para o fitar nos olhos. Os Corações Quebrados prepararam as armas, tendo já visto uma amostra do temperamento do thuragar.

 

Worick, sei que estás furioso comigo e tens razões de sobra para isso, mas tive de o fazer para evitar mais confrontos. Eu vou libertar-te agora e vamos procurar a Lhiannah, está bem? Os teus músculos vão relaxar de repente, provavelmente de forma dolorosa, e pode ser que caias, por isso prepara-te. Fazendo breve uso da Palavra, o mago desfez o feitiço que retesara os músculos do thuragar aquele tempo todo. As pernas de Worick vacilaram e todos os seus músculos se ressentiram do súbito aliviar de tensão, mas conseguiu manter-se de pé graças ao aviso de Allumno, que se preparou para o pior assim que o thuragar retomou o controlo sobre os seus membros.

 

A minha vontade era fazer-te a gema saltar da testa mago admitiu, mas vamos primeiro procurar a Lhiannah.

 

Sim... vamos. Allumno achou melhor deixar o assunto por ali e foi atrás do thuragar com os Corações Quebrados aos calcanhares. Taislin já calcorreava o monte de cascalho, perseguido por inúmeros garigonor curiosos.

 

Só eles é que andam nesse sítio disse Mamã. Nós nunca pusemos os pés aí, e acho que vocês também não deviam...

 

De pedras entendo eu, mulher afirmou Worick, transpondo a cerca partida de imediato. Isto já estava assim?

 

Não... ninguém mexeu na cerca, pois não?

 

Eles estiveram aqui então asseverou, dando leves batidas nos enormes pedregulhos que o rodeavam. Dizes tu que ela te atacou, mago?

 

Com violência, devo acrescentar.

 

Já viste alguma coisa, ó mafarrico? berrou Worick para se fazer ouvir por Taislin.

 

Está aqui alguma coisa! respondeu a voz estridente do burrik.

 

O thuragar galopou de imediato na direcção do grito e Allumno quis fazer o mesmo, mas Mamã refreou-o fisicamente.

 

É demasiado perigoso. O Taislin é pequeno e leve e o Worick é um thuragar, mas ainda acontecia alguma coisa ao Allumno. E devia tratar desse lanho na cara; está a sangrar. O mago dispensava cuidados materiais mas sabia que a mulher tinha razão, pelo que aceitou o lenço que ela lhe ofereceu e limitou-se a esperar.

 

Worick chegou ao local onde Taislin estava acocorado e rodeado por garigonor, olhando para um buraco no chão.

 

Pedras me partam, oh pedras me partam...

 

Eu, ah... parece que houve uma derrocada aqui e...

 

Isso vejo eu, porra! Pedras me partam, Lhiannah. LHIANNAH! berrou o thuragar para o buraco, sendo preciso Taislin a agarrá-lo para o impedir de se aproximar demasiado. Oh porra, está fresco, acabou de acontecer... Que profundidade é que isto tem? Uma tocha, ninguém aqui tem o raio duma tocha? Preciso de ver se é muito fundo! Oh, pedras me partam...

 

Calma Worick! guinchou Taislin, esforçando-se ao máximo para restringir o thuragar no seu fraco amplexo.

 

O que é que se passa? gritou Allumno, sem obter resposta.

 

Maldição... praguejou e, ignorando os conselhos de Mamã, aventurou-se pelo monte de cascalho adentro, mantendo o lenço sobre a ferida com a mão livre.

 

Larga-me! vociferou Worick, libertando-se do burrik e circundando o buraco, inspirando fundo numa tentativa de se acalmar.

 

Worick, Taislin, o que é que se passa? perguntou Allumno assim que chegou.

 

Não vês o buraco, porra? O que é que achas que aconteceu?

 

chispou o thuragar, circulando à volta da abertura como uma barata decapitada.

 

Oh não... esmaeceu o mago, deixando o lenço sangrento cair. Oh não.

 

O burrik tartamudeava incoerentemente numa tentativa de acalmar o thuragar, que percorria o buraco de um lado ao outro, mas foi completamente ignorado até que Worick finalmente parou e o empurrou para fora do seu caminho ao dirigir-se aos garigonor. Os corcovados humanóides assustaram-se inicialmente com a aproximação do thuragar, mas Worick gritou algo em Garogar, a língua subterrânea do seu povo, e acto contínuo os seus animalescos conterrâneos foram aplacados. O bastão de Allumno luzia enquanto o mago se aproximava tanto quanto possível da orla do buraco, gritando os nomes de Aewyre e Lhiannah. Taislin achou melhor ir ajudá-lo e deixar Worick com os garigonor, que o estavam a ouvir atentamente. As frases em Garogar eram lentas e ponderadas como o moroso deslizar de uma placa tectónica, embora se notasse uma certa premência na voz de Worick, transmitida pelas enfáticas pancadas que dava no chão com o pomo do seu martelo. A língua dos thuragar era a língua da terra, a língua de um mundo desprovido de sons fortes e audíveis, arrastada e com inflexões parecidas com o rachar de pedra e estalos de língua à semelhança dos pingos de estalactites. Como bons escravos, os garigonor ouviam obedientemente e respondiam quando lhes era requisitado, totalmente alheios aos gritos de Allumno e aos guinchos de Taislin. Quando achou que extraíra toda a informação possível, Worick retirou-se sem uma única palavra de agradecimento, pois o reconhecimento era negado aos garigonor, cujo mero conceito desconheciam.

 

Worick, onde vais? perguntou Allumno com o que parecia ser desespero na voz ao reparar que o thuragar estava a voltar para a caverna.

 

Anda mago, aqui não temos mais nada a fazer disse Worick com tal convicção que Allumno e Taislin o seguiram prontamente.

 

O que é que eles te disseram? Por que é que não procuramos no buraco?

 

O thuragar nem sequer olhou para o mago ao responder.

 

É fundo demais, não há luz para ver nem corda que chegue até lá abaixo; foram parar aos níveis inferiores das cavernas, e aí há água. Há umas nascentes do outro lado do vale, é por aí que a água lá de baixo sai. Se eles forem espertos, segui-la-ão. Senão, vamos à procura deles, e para os infernos com todo o resto.

 

Mas uma queda daquelas...

 

Não quero ouvir isso, mago! gritou Worick, virando-se bruscamente para trás e apontando um dedo ameaçador a Allumno. Não quero mesmo... e continuou a andar, resoluto.

 

Allumno queria acreditar no thuragar, mas a sua mente analítica não lho permitia. Mesmo assim, levaria a cabo o empreendimento que Worick lhe propunha, nem que fosse só para levar o corpo de Aewyre para casa... não, não podia pensar nisso. Tinha de ter esperança.

 

Worick ordenou a Taislin que recolhesse o equipamento, incluindo o de Aewyre e Lhiannah, e pegou nas armaduras de ambos antes de ir ao encontro dos Corações Quebrados com uma determinação acerada na sua postura que dava a entender que não aceitaria contrariedades. Mamã foi a primeira a tentar dirigir-lhe palavra, mas nem isso o thuragar lho permitiu.

 

Vamos lá ver se nos entendemos... começou, pousando as armaduras que carregava. A minha cachopa e o rapazola caíram num buraco desta vossa pedreira e foram parar aos níveis inferiores das cavernas. Eu, o mago e o caganito vamos sair daqui, contornar a montanha e vamos à procura deles. Se alguém se puser no nosso caminho, damos-lhe cabo do canastro. Fui claro? Ou preferem que seja o meu martelo a explicar?

 

Allumno estava demasiado aturdido para exercer a sua habitual função de diplomata, na qual Worick deixava muito a desejar. Maneta foi o primeiro a dar-lho a entender.

 

Você não pense que vamos simplesmente...

 

Pelo amor de Assana, Maneta, deixa-os estar! rogou-lhe Mamã, farta de hostilidades. O rapaz é...

 

Mamã, foi um deles o responsável! recordou-lhe um dos Corações.

 

Perdemos mais de metade dos nossos homens continuou Maneta, não podemos deixá-los agora...

 

Animal! protestou o próprio.

 

Eu estou-vos a avisar...

 

Não é com ameaças que nos convences, thuragar.

 

Por favor, parem! Ouçam-me!

 

... e agora querem sair? Isso é que era...

 

Worick, espera...

 

Amanil!

 

O Aewyre é filho de Aezrel Thoryn! gritou Mamã por fim. Os três companheiros ficaram a olhar para a mulher, espantados, e as caras dos Corações não lhes ficaram muito atrás. A mera menção do rei sem linhagem tirara a voz a todos, desbaratara as hostilidades.

 

Como sabe ela? segredou Taislin audivelmente.

 

Aezrel Thoryn...? redisse um homem, incrédulo.

 

Aquele rapazola é o filho de Aezrel Thoryn? duvidou um outro.

 

Sim, é Aewyre Thoryn, o segundo filho de Aezrel Thoryn, e a espada que portava era Ancalach.

 

Ancalach? repetiram os Corações em uníssono.

 

Mamã... tens a certeza? duvidou Maneta.

 

Niamal?

 

Descrês da minha palavra e da de Assana? Eu toquei o coração do jovem e ele revelou-se-me pelo que é. Agora, ainda querem matar os amigos dele?

 

Todos ruminaram a inesperada revelação em silêncio, sentindo que estavam a tomar parte numa das histórias da Guerra da Hecatombe com as quais muitos haviam crescido e que haviam feito parte do passado de outros tantos. O filho de Aezrel Thoryn e Ancalach, o Flagício da Sombra, haviam estado entre eles... e desaparecido debaixo das suas barbas, talvez vitimizados pelo ataque dos asseclas do Flagelo. Uma mistura de culpa e vergonha fez com que todos baixassem as cabeças, prontos a acatar qualquer decisão.

 

Desculpa-nos, thuragar pediu Maneta. Ainda não sei ao certo o que se passou, mas ajudar-vos-emos a encontrar o filho de Aezrel Thoryn.

 

Worick fitou os Corações um por um e pediu silenciosamente conselho a Allumno antes de tomar uma decisão, mas o próprio mago parecia incerto quanto ao que fazer.

 

A mim parece-me bem... opinou Taislin.

 

O thuragar grunhiu, mas acabou por assentir.

 

Muito bem. Podem vir connosco se quiserem. Só não se metam no caminho... rosnou, tornando a pegar nas armaduras e seguiu em frente, deixando que lhe dessem passagem para avançar.

 

Mamã e os outros então olharam para Allumno e Taislin enquanto os restantes Corações preparavam o equipamento e as provisões.

 

Vamos Allumno? inquiriu Taislin, carregado com as mochilas de Aewyre e Lhiannah para além da sua.

 

Sim, vamos? perguntou Mamã, aliviada.

 

O mago suspirou. Mesmo estando aturdido, as pessoas continuavam a pedir-lhe conselhos e a esperar que tomasse a iniciativa certa. Como pudera isto acontecer? A Lhiannah e o Aewyre... a demanda do seu protegido começava a transformar-se numa tragédia, e parte da responsabilidade seria sempre sua por não o ter retido em Ul-Thoryn.

 

Vamos.

 

Maneta deu ordem de partida, organizando um grupo separado com a função de levar os feridos e mortos para um lugar seguro, e os Corações Quebrados começaram a preparar o seu equipamento com rigor marcial. Enquanto o faziam, Mamã achegou-se de Allumno e puxou-o pela manga para lhe segredar ao ouvido.

 

Perdoe-me, Allumno. Não queria revelar o segredo do Aewyre, mas tive de o fazer, senão...

 

Minha senhora... interrompeu o mago, segurando-lhe a mão. O toque maternal dos dedos da mulher era para ele como um bálsamo para a sua aflita consciência, um refolgo para as suas preocupações. Os Corações observavam-nos como crianças ciosas da sua mãe, o que não lhe passou despercebido. Acredite que foi o melhor que podia ter feito. Agora limpou a garganta, afastando-se da mulher para lhe falar de costas, o melhor é ir andando antes que o Worick decida ir sozinho...

 

Mamã pegou na sua mão enquanto via o mago desaparecer no túnel, lágrimas nos olhos e de coração desfeito pelo que sentira quando Allumno quase se lhe entregara a chorar nos braços.

 

Contrariando todas as expectativas de Quenestil e Slayra, o tempo que ambos passaram na jangada com o druida acabou por ser um período de repouso e calmaria como há muito tempo não tinham. A Primavera parecia ter finalmente chegado, o céu ia clareando dia após dia e o sol deixara de ser um estranho aos eahan. Os primeiros dias haviam sido penosos devido aos enjoos de Quenestil e à quase abstinência de água doce, que tivera de ser substituída por água salgada e pelo líquido aquoso dos olhos e ossos de peixes, mas cedo as chuvas primaveris começaram, enchendo as carapaças de tartaruga sem desencadear tempestades, e o shura acabou por se habituar às oscilações da jangada. As peles sensíveis dos eahan foram inicialmente castigadas pelo Sol, avermelhando-se como carapaças de lagostas, e o contacto frequente com sal secara-as e produzira feridas, mas cedo aprenderam a proteger-se das queimaduras aplicando a gordura das aves marinhas que apanhavam e a tratar das feridas enfaixando-as com pele de peixe embebida em água doce. Arranjar comida tão-pouco fora um problema: durante a noite penduravam búzios cheios de óleo ardente, cuja luz atraía cardumes de peixes voadores, que aterravam sobre a lona dependurada e lá aguardavam o seu destino. Quenestil aperfeiçoara as suas técnicas de caça com um arpão improvisado de madeira e ossos afiados e iscas espalhadas no mar para apanhar gaivotas, cuja carne lhes parecia deliciosa e cuja medula, gordura e penas aproveitavam para comer, proteger a pele e insular as roupas respectivamente. O druida apanhava peixe diariamente com redes, e quase todos os anzóis que pendiam das varas da jangada estavam mordidos ao final do dia. A armação de madeira era afinal uma espécie de viveiro, em cuja rede coberta de algas os eahan apanhavam lapas, mexilhões e outros pequenos inquilinos de casca. Por recomendação do seu anfitrião e para evitarem escorbuto, Quenestil e Slayra comiam também o plancto que era apanhado durante a noite, ignorando o cheiro repugnante das minúsculas criaturas e removendo laboriosamente as suas substâncias espinhosas e tentáculos picantes.

 

Os eahan passavam a maior parte dos seus dias sozinhos na jangada, visto que o druida desaparecia todas as manhãs, voltando esporadicamente para comer e apenas assentando à noite. Nessas alturas comiam, molhavam os pés na água, banhavam-se ocasionalmente no viveiro, tratavam das linhas e das redes e protegiam-se do Sol repousando debaixo da lona no abrigo do seu anfitrião. Slayra tirara a capa e as botas; Quenestil andava descalço e de tronco nu, pois queria evitar ao máximo molhar as suas peles de carcaju com água salgada. O shura parecia mais calmo, mas Slayra sabia muito bem que toda aquela falta de actividade, o facto de nada poder fazer além de esperar até chegarem a terra firme, atormentavam-no dia e noite. Após a morte de Babaki, a eahanoir estava certa de que Quenestil nunca mais ficaria descansado enquanto não estivesse perto dos seus amigos para se certificar de que nada de mal lhes acontecera.

 

Na segunda semana, o druida apareceu com uma enorme tartaruga marinha. Havia perseguido o animal e conduzira-o até perto da jangada, arpoando-o então na garganta e içando-o a bordo com a ajuda dos eahan.

 

Muito bem, quem quer aprender a preparar uma tartaruga? perguntou o homem na habitual vontade de partilhar os seus conhecimentos que demonstrara durante todo o tempo que passara com Quenestil e Slayra.

 

O shura voluntariou-se e o druida cruzou os braços de surpreendentes músculos luzidios a brilharem ao Sol.

 

Muito bem. Primeiro, corta-se a cabeça. Temos de a sangrar, senão a carne fica rançosa muito depressa e é mais difícil de secar.

 

Quenestil desembainhou o seu facalhão e assim fez, deitando a cabeça fora e procedendo a erguer a traseira do pesado animal, cujo comprimento excedia a sua altura, para que o sangue escorresse todo para fora da jangada, deixando um trilho escarlate na água. Slayra observava sem estar verdadeiramente interessada.

 

É um belo exemplar constatou o homem enquanto a tartaruga era sangrada. E logo uma fêmea. Os seus ovos são uma delícia.

 

Normalmente não as apanho porque são muito pesadas para eu levar, mas agora que tenho mais duas pessoas para me ajudarem... e também são mais duas bocas para alimentar, senão não a apanhava de qualquer forma. Já viu o tamanho do animal? Nem numa semana eu acabava isto... e por essa altura já a carne estaria rançosa com toda a certeza... Quenestil acenou com a cabeça, embora não tivesse grande paciência para a conversa do druida. Todos os dias sem excepção passava-os a nadar até a noite chegar, e quando voltava, não se calava até os eahan adormecerem. Os três esperaram pacientemente até a tartaruga ficar exangue.

 

Muito bem, acho que já chega. Vire-a de barriga para cima. Agora, enfie aí a lâmina nessa racha entre as carapaças superior e inferior... isso... como uma serra, agora, vá cortando à volta, siga a linha da carapaça, muito bem... óptimo, assim mesmo. Já a pode arrancar. O shura assim fez e continuou a seguir as instruções do druida, colhendo os viscosos ovos da tartaruga com cuidado, colocando-os numa concha que Slayra lhe estendeu e removeu todos os órgãos para servirem de isco menos o coração, que o druida insistia ser um regalo. Muito bem. O resto já sabem fazer, não? Cortar a carne em tiras e deixá-las a secar, agora que temos Sol. Não se esqueçam da gordura e da medula dos ossos. E guardem a carapaça; estão a ver a pele lisa e macia que a cobre? Vou fazer-vos roupas novas com ela, ficam tão boas como couro. Bom, tenham o resto de um bom dia e mergulhou, desaparecendo da vista dos eahan.

 

Ele não é bem o anfitrião ideal, pois não? perguntou Slayra, cortando a carne da tartaruga com o seu afiado estilete. O ombro da eahanoir sarara graças à água salgada e aos banhos de algas no viveiro, segundo o druida.

 

Não respondeu o shura sucintamente, concentrando-se em arrancar nacos de carne para Slayra cortar em filetes.

 

Também se compreende. Há quanto tempo achas que ele não falava com pessoas?

 

Demasiado.

 

A eahanoir suspirou.

 

Ficares assim não faz a viagem passar mais depressa.

 

Não comeces. Outro suspiro, desta vez mais exasperado, que Quenestil não pôde deixar de ouvir. Desculpa... isto está a roer-me a paciência. Se pelo menos estivéssemos em terra só dependeríamos dos nossos pés...

 

... tínhamos de atravessar as estepes...

 

... pelo menos teria a sensação de estar a fazer alguma coisa! Aqui estamos deitados de barrigas para o Sol, a amanhar peixes e a orar por vento!

 

Mas se nós... olha, sabes? Esquece! Tornas-te insuportável com essas tuas teimas! estalou Slayra, levantando-se, atirando o seu filete de tartaruga para a cara do eahan e afastando-se para o viveiro no outro lado da jangada, em cuja borda se sentou, agarrada às pernas e de queixo apoiado nos joelhos.

 

Passaram-se alguns momentos até a mão de Quenestil pousar no seu não mais ferido ombro e o shura se sentar a seu lado, puxando-a para si.

 

Desculpa pediu o eahan, beijando-lhe a têmpora. Slayra aninhou as suas pernas sobre as coxas de Quenestil e abraçou-lhe o pescoço. Às vezes consigo ser um autêntico cretino.

 

Pois consegues concordou a eahanna com o resquício de um tom de amuo na voz.

 

Eu mereço... reconheceu o shura. Deita-te. Já sei de que é que tu precisas. Quenestil pegou-lhe nos tornozelos e puxou-lhe as pernas, forçando-a a deitar-se.

 

Está quieto! protestou a eahanoir alegremente. Pára com...! Mmm... Calou-se quando Quenestil lhe pressionou a palma do pé com os polegares Mais abaixo... Eahan da montanha sabiam bem como tratar pés exauridos por árduas caminhadas pelos montes, e os dedos do shura pareciam pressionar-lhe toda a tensão para fora do corpo ao carregar. Deve haver eahannas muito felizes nas montanhas...

 

O canto da boca do shura ergueu-se num meio sorriso, o primeiro genuíno desde Jazurrieh.

 

Só as que o merecem.

 

Slayra sorriu e espreguiçou-se enquanto o seu pé era massajado.

 

Já pensaste no que vamos fazer depois disto tudo? Quenestil ergueu uma dúbia sobrancelha. Eu sei que ainda é cedo, mas já pensaste nisso? Depois de encontrarmos os outros, depois de o Aewyre fizer o que tem a fazer em Asmodeon... o que vai ser de nós?

 

Eu... realmente ainda não pensei nisso.

 

Mentiroso acusou a eahanoir, batendo-lhe com o calcanhar do pé livre na coxa. Eu sei que já pensaste, não me tentes enganar.

 

Não sei... viajar um pouco por Allaryia. Há tanto para ver e tanto que eu te queria mostrar...

 

Ah sim? Não posso dizer que esteja ansiosa. Se forem parecidos com os sítios onde me tens levado desde que te conheço...

 

Tais como?

 

Moorenglade, para não dizer mais... O shura mordeu-lhe o dedo grande do pé em represália. Slayra riu histericamente e estrebuchou. Aíí! E ainda por cima perdeste-te lá...! Quenestil rosnou e trincou-lhe o dedão até a eahanoir bater com as mãos nos troncos da jangada em sinal de desistência, e só nessa altura o eahan retomou a massagem. Agora a sério... inspirou limpando as lágrimas, já pensaste nisso? Num futuro mais... longínquo?

 

A resposta de Quenestil tardou ao ponto de a eahanoir pensar que não a obteria, mas por fim o shura limpou a garganta para falar.

 

Bem sabes que eu prefiro pensar no dia em que acordei, em como sobreviver e passar para a manhã seguinte. É isso que me mantém vivo. Slayra ouvia com atenção, deitada com as mãos atrás da cabeça. Mas desde que ando em grupo, desde aquele dia em que me ias estrangulando, tenho de facto pensado no futuro.

 

Uma longa pausa.

 

E...? puxou a eahanoir.

 

E não é nada fácil. Sei lá o que vai acontecer amanhã ou na semana que vem ou no próximo mês. Mas... uma coisa sei.

 

O quê?

 

Não vai ser nada como os meus pais me disseram. Slayra piscou os olhos sem compreender. Não vou voltar para casa no fim, não podia mesmo se quisesse. Não contigo... O próprio eahan se debatia com as suas palavras, sem saber se estava a ofender ou a elogiar Slayra. O que eu quero dizer é: também não me importo, não me importo de não poder voltar, de não passar o resto dos meus dias entre os da minha espécie. É contigo que os quero passar, e é só isso o que eu sei... e o que importa. E... pois, é isso.

 

Foi a vez de a eahanna ficar em silêncio, e Quenestil não parecia ter pressa de o quebrar, pois nem a olhava nos olhos, limitando-se a massajar-lhe o outro pé. De repente, Slayra ergueu o tronco e pôs-se ao colo do shura, abraçando-lhe o pescoço e beijando-o apaixonadamente. Quenestil largou-lhe o pé e correspondeu com igual ardor, apertando-a a si com tal força que a eahanoir cedo ficou sem ar e teve de recuar, inspirando fundo. Ambos se contemplaram mutuamente, acariciando as faces um do outro.

 

Vamos fazer um bebé disse a eahanna. O shura engasgou.

 

Slayra agarrou-lhe os cabelos com força e tornou a beijá-lo sem lhe dar hipótese de sequer responder.

 

Vamos. Aqui. Agora A eahanoir levantou-se, postando-se defronte de um atónito Quenestil antes de levar as mãos atrás das costas e começar a desatar o corpete.

 

Slayra... eu...

 

Não digas nada praticamente ordenou, deixando o seu corpete deslizar pelo corpo até aos pés e enfiando os polegares nas calcinhas. Não digas mais nada...

 

O shura permaneceu imóvel e silencioso, tentando articular palavras que se recusavam a sair-lhe dos lábios. Slayra estava desnuda à sua frente e Quenestil deu consigo a pensar que já se esquecera do quão bela era a mulher que amava. Ergueu-se lentamente e estendeu a mão para lhe tocar, mas a eahanna recuou como um cervo espantado e mergulhou fugidia para dentro do viveiro, ressurgindo à tona de cabelos puxados para trás pela água. Slayra ficou a nadar no mesmo sítio, olhando para Quenestil com olhos brilhantes à espera de que este se decidisse e dando-lhe a entender que a sua decisão já estava tomada. O eahan ainda hesitou, mas lentamente os seus dedos dirigiram-se aos cordões das suas calças e principiaram a desatá-los à medida que ia ficando mais resoluto. Quando baixou as calças, o seu corpo estava tenso e erecto, mas desta vez Quenestil sabia que não eram apenas os seus instintos a ditarem-lhe o curso de acção; era algo que ele queria fazer. Sem mais hesitações, mergulhou na água e nadou de encontro a Slayra, envolvendo-a nos seus braços e contemplando a sua face para uma derradeira confirmação. O coração da eahanna retumbava contra o seu peito, as suas pupilas estavam dilatadas, os seus lábios escurecidos, a sua pele arrepiada. Parecia tudo tão certo, tão perfeito... As costas de Slayra foram acariciadas pelas algas que revestiam a rede do viveiro quando o shura a empurrou lentamente contra a borda, à qual se agarrou enquanto a eahanna lhe envolvia o tronco com as pernas. Os pequenos ocupantes de barbatanas do viveiro mordiscavam-lhe a pele, fazendo-lhe arrepiantes cócegas. Tudo lhes pareceu estranhamente familiar: ambos sozinhos, o frio, um local isolado; só que desta vez cada investida de Quenestil era carregada de uma paixão que a eahanoir não sentira naquela toca que haviam escavado nas montanhas, algo mais que o ardor animal que então o instigara, algo mais profundo, mais belo e terminantemente sublime. Ambos alcançaram o pináculo do seu prazer aquando do embate de uma pequena onda, que coincidiu com o fecundo ímpeto final do shura.

 

As duas semanas seguintes passaram-se na mesma relativa calmaria, e o druida previa que faltava pouco tempo para que alcançassem terra. Os dois eahan estavam estendidos na jangada nos braços um do outro, deitados languidamente a apanhar sol. Para além das suas roupas maltratadas, ambos vestiam bizarras togas pequenas de pele de tartaruga, semelhante a couro macio, que lhes chegavam às coxas. O mar lambia docemente a embarcação, embalando-a e aos seus passageiros com um afecto quase maternal, exalando o seu perfume salgado. Os dedos de Quenestil e Slayra estavam entrelaçados e o shura passava a sua mão pelo descoberto ventre liso e avermelhado da eahanoir, questionando-se sobre a semente que dentro dele plantara.

 

Eu sinto-o disse Slayra de olhos fechados, sorridente.

 

Está a crescer dentro de mim. O nosso bebé...

 

Por alguma razão absurda, Quenestil pensou em Tannath e no seu olho cinzento tatuado. Escorraçando esse odioso pensamento, acariciou a barriga da eahanna e beijou-lhe a testa.

 

Como é que o vamos chamar?

 

Hmm, não sei... diz-me tu. Se for rapaz?

 

Rapaz? Talvez...

 

Não finjas que não andaste a pensar nisso! riu-se Slayra”

 

Vá, diz-me lá.

 

Pronto, pronto. Se for rapaz, que tal Gifeahn?

 

É bonito. E se for rapariga?

 

Innala?

 

Slayra fez um delicado esgar.

 

Eh... Alilya?

 

A eahanoir torceu o nariz.

 

Pronto, que nome sugeres tu?

 

Estava a pensar em algo como... Kyrina.

 

Kyrina? Parda?...

 

Como os lindos olhos do pai. O que é que achas? sugeriu a eahanoir, dando um piparote no nariz do shura.

 

Dito assim, como posso recusar? perguntou o eahan, trocista.

 

Gifeahn ou Kyrina... são os dois bonitos sorriu Slayra.

 

Será menino ou menina?

 

Isso só a Mãe o sabe... para mim é igual.

 

É mesmo? Muito bem... como achas que vai ser? Cabelos ruivos fogosos e olhos azuis? perguntou, enroscando uma nesga do cabelo do eahan com o indicador. Ou uma cabeleira negra como a noite e uns duros olhos de pedra?

 

Quenestil riu.

 

Já imaginaste isso tudo?

 

Não tenho pensado noutra coisa... admitiu a eahanoir.

 

Olha a terra! gritou a voz do druida, assustando os eahan, que se sobressaltaram. O homem apoiava-se na borda da jangada de barba e cabelo a escorrerem, mas as suas pernas ainda estavam dentro da água.

 

Era verdade, a costa aproximava-se, assinalada por um cúmulo de acinzentadas nuvens fixas rodeadas por um numeroso séquito de gaivotas, cujo canto já era audível mesmo àquela distância. Os dois eahan levantaram-se de imediato, esquecendo o raspanete que lhes havia ocorrido para o indiscreto druida e pegando nas mãos um do outro.

 

Oito mudas de Lua, que disse eu? Heh, heh, esta cabeça velha ainda consegue calcular!

 

O par permaneceu em silêncio, encantados como estavam perante a visão de terra firme pela qual tanto haviam ansiado. A linha da costa era bem visível, uma mancha cinzenta orlada de branco espumoso, mas para Quenestil e Slayra era uma visão quase quimérica.

 

Chegámos... constatou o shura. Chegámos! repetiu, puxando Slayra para si para a beijar.

 

Sem sair da água, o druida ficou a observar as carícias dos eahan.

 

Fazem um casal adorável... comentou. A minha altura já passou, infelizmente, mas foi uma escolha que fiz ao aceitar o abraço da Mãe. Não que me arrependa, longe disso... quer dizer, uma vez ou outra vou pensando em como teria sido se, mas remoer acerca de escolhas feitas no passado é tão útil como devolver os ovos a um peixe depois de fritos...

 

Quenestil e Slayra suspiraram e apoiaram as testas uma na outra, sorrindo apesar de tudo. A travessia acabara por fim e estavam mais perto dos seus amigos. Não demoraram muito a chegar à pedregosa costa, na qual a jangada encalhou sem grande delicadeza, fazendo seixos e calhaus saltarem com o impacto. Quenestil pulou com Slayra de mãos dadas para fora da embarcação, chapinhando na água fria com os pés a caminho da maravilhosamente horrenda areia, sobre a qual se atiraram de joelhos e com a qual encheram as mãos, levando-a à cara.

 

Esta é a areia mais feia que já vi! gritou o eahan, deixando-a escorrer pelos braços.

 

Slayra ria como uma criança, rebolando despreocupadamente pela areia húmida. O druida continuava a observar os dois, sorrindo de braços cruzados com aquela demonstração de cândida felicidade.

 

Bom, trouxe-vos onde queriam. Suponho que seja a altura de dizer adeus?

 

As palavras do homem fizeram com que ambos parassem, apercebendo-se que devido ao entusiasmo haviam esquecido o homem que os trouxera ali. Envergonhados, os eahan levantaram-se, esfregaram as mãos na água e dirigiram-se ao druida.

 

Desculpe, Guardião pediu Quenestil, embaraçado.

 

Ora essa! Se eu não pusesse os pés em terra umas quantas vezes por ano, também ficaria assim. Estejam à vontade, jovens. Ainda bem que vos pude ajudar... vá, vão lá à vossa vida que já devem estar fartos deste velho chato...

 

O shura tornou a subir à jangada e estendeu a mão ao druida.

 

Obrigado, Guardião. Pelo que fez por nós... e por mais do que pode saber.

 

É mesmo? riu o homem, apertando a mão de Quenestil.

 

E que coisas foram essas?

 

Por me ter ajudado a reencontrar... algo que julgava ter perdido.

 

Falas por enigmas, shura!

 

Ele é sempre assim quando se lhe pede para falar do que sente... - ralhou Slayra alegremente, puxando o braço do eahan para abraçar o druida. Obrigada por tudo.

 

Com um sorriso quase paternal, o homem deu palmadinhas nas costas da eahanoir.

 

Ah, antes que me esqueça... lembrou-se subitamente, vasculhando os bolsos no interior da sua toga azul desbotada. Tomem. Seriam uma prenda bonita para a menina, mas acho que vos servirão mais para se desenrascarem em Tanarch. Posso ser um velho eremita, mas ainda sei muito bem o que faz o mundo dos homens mover-se. Infelizmente, há coisas que não mudam...

 

O druida pegou na mão de Slayra e presenteou-a com um colar de contas de translúcidas pedras amareladas. O azul dos olhos da eahanoir avivou-se perante a preciosidade que tinha em mãos.

 

É âmbar. Devem poder vendê-lo por um bom preço...

 

Guardião interrompeu Quenestil, já fez tanto...

 

Disparate recusou o homem, abanando o indicador e a cabeça. Fiquem com isso que bem vão precisar. A mim de nada serve.

 

Muito obrigada agradeceu Slayra, levando o colar ao peito com as duas mãos e pondo-se em pontas de pés para beijar a face do druida.

 

Bela recompensa, sim senhor! alegrou-se o idoso, levando a mão à bochecha curtida. A carícia dos suaves lábios de uma bela eahanoir por um colar de ranho de baleia! Adeus, queridos eahan! Este velho eremita agradece-vos a companhia e deseja-vos sorte, mas agora é tempo de irem. Ainda são jovens e a vida guarda-vos demasiadas coisas para a passarem aqui atracados numa praia com um velho senil.

 

Os dois eahan recolheram as suas parcas posses e Quenestil ajudou a empurrar a jangada até a água lhe chegar aos joelhos e aí se deixou ficar, acenando ao druida, que retribuía enquanto manejava a vela para se afastar da costa.

 

Não se esqueçam! gritava o homem. Façam bem as vossas escolhas que a vida não vos deixa voltar atrás! Lembrem-se disso...!

 

A voz do druida acabou por se confundir com os sons da praia e os dois eahan limitaram-se a acenar até a jangada se tornar um ponto no horizonte marítimo. Quenestil arrastou as pernas para fora da água e pegou nas mãos de Slayra enquanto lançavam um último olhar à já distante jangada.

 

Coitado... compadeceu-se o eahan. Agora que se foi embora, fiquei com pena de não ter sido melhor companhia.

 

Só a nossa presença bastava-lhe consolou a eahanoir, entrançando o colar por entre os dedos da sua outra mão. O homem entretia-se a falar, não precisava de respostas.

 

Espero que tenhas razão... O shura olhou para trás, para o penhasco que demarcava os limites da praia e para o trilho rochoso que para fora dela conduzia. Onde vamos agora?

 

Com um suspiro, Slayra obrigou-se a si mesma a despertar do sonho azulado que vivera nas últimas semanas e acordar para a realidade.

 

O melhor é dirigirmo-nos à cidade mais próxima. Aí compramos aquilo de que precisarmos, comida, roupas, um mapa, e pedimos direcções.

 

Para onde?

 

A eahanoir encolheu os ombros.

 

Eles vieram das estepes. Não devem ter ficado longe da Cinta, a menos que estejam muito atrasados ou adiantados em relação a nós...

 

”Ou que tenham morrido...”, pensou o shura naquilo que a eahanoir não verbalizara, matando de imediato o aziago pensamento.

 

... o que não quer necessariamente dizer que eles tenham ficado à nossa espera na cidade em questão. Vamos ter de os procurar, e não vai ser nada fácil... quer dizer...

 

O quê? Quer dizer o quê?

 

Eu... bem, lembras-te do que eu disse acerca dos eahanoir e os outros? Que houve algo que os atraiu?

 

O que é que queres dizer?

 

Essa coisa... também me atraiu, seja lá o que ela for. Se os outros estiverem por perto, devo conseguir levar-nos até eles, e é importante que os encontremos o quanto antes. Se eahanoir foram atraídos e eles estão perto de Asmodeon, então correm perigo. Só não disse antes porque julguei que fosse impressão minha, mas desde que soube em Jazurrieh...

 

Está bem. O melhor é começarmos a andar, nesse caso. Sinto-me capaz de palmilhar meia Allaryia. E tu...? O eahan pareceu lembrar-se de algo. Mas... o bebé...

 

Slayra sorriu e deu-lhe a mão.

 

Ainda temos muito tempo. Mas para conseguirmos chegar a Asmodeon antes de eu ficar barriguda e com tetas de vaca, o melhor é despacharmo-nos. Vá, anda disse, puxando Quenestil, que acabou por ceder.

 

És maluca...

 

Deve ser por isso que gostas de mim...

 

Ambos riram, deixando sulcos na areia cinzenta enquanto corriam pela praia acima na direcção do trilho rochoso. Ambos sentiam que” aqueles podiam bem ser os últimos momentos despreocupados que passariam juntos em tempos vindouros.

 

Ancalach jazia caída no chão, brilhando com uma luz própria que produzia um globo luminoso na vasta e escura caverna. Aewyre estava sentado sobre os escombros da derrocada, dedos enclavinhados e queixo apoiado neles enquanto observava a Espada dos Reis. Lhiannah permanecia inconsciente a seu lado, espraiada de barriga para o ar na mesma posição na qual o jovem a deixara. Por vezes, tirava os olhos de Ancalach e olhava em redor, observando a princesa e a caverna na qual haviam caído, tentando ordenar os eventos na sua cabeça.

 

A sua vida a passar-lhe à frente dos olhos, tudo à volta a desmoronar, o corpo inerte de Lhiannah nos seus braços... e de repente, fora como se tudo tivesse subitamente parado. Tivera a sensação de que flutuava no ar, sentindo as rochas, penedos e pedregulhos mergulharem inofensivamente à sua volta, ouvindo-os estilhaçarem-se com grande estrépito no solo uns poucos pés abaixo. Surgira então uma luz proveniente de Ancalach, que girava em pleno ar um pouco acima do guerreiro e Aewyre pensou que começara a subir a sua montanha e que Lhiannah tivera o mesmo destino. Contudo, a espada principiou a descer, sem nunca parar de girar, e os dois guerreiros acompanharam-na involuntariamente na lenta descida até ao chão repleto de escombros, sobre os quais Ancalach caiu assim que os pés de Aewyre assentaram. Depois disso, o guerreiro pousara Lhiannah e tivera de se sentar de modo a impedir o coração de lhe saltar para fora do peito, tal era a força com que ele lhe batia. O jovem desconhecia o tempo que passara sentado a olhar para a Espada dos Reis e para a caverna, mas um fraco ruído de movimento despertou-o repentinamente para a realidade.

 

Lhiannah mexia-se.

 

As memórias anteriores à queda assomaram-se-lhe: a arinnir a atacar Allumno e a luta na qual a princesa tentara matá-lo com Ancalach. Um jorro de adrenalina percorreu-lhe os membros e Aewyre praticamente saltou para cima de Lhiannah, agarrando-lhe os pulsos com uma força que noutras circunstâncias consideraria excessiva. A arinnir acordou com um ofego, arregalando os olhos sem parecer conseguir reconhecer quem via diante de si.

 

O que é que se passa contigo, Lhiannah? O que é que se passa contigo? exigiu o guerreiro saber, apertando-lhe ainda mais os pulsos e sacudindo-a. O que é que pensavas que estavas a fazer? Eu dou cabo de ti!

 

Aewyre? Aewyre? A princesa parecia confusa, as palavras saíam-lhe arquejantes. Oh, Aewyre, és tu! Desculpa...!

 

Desculpa?

 

É isso que tens a dizer? Tu fazes ideia do que é que...?

 

Não era eu, Aewyre! Não era eu! Juro! A resposta de Lhiannah e o tom quase suplicante da sua voz tiveram o mesmo efeito que um coice no guerreiro, que piscou os olhos e relaxou o seu aperto nos pulsos da arinnir enquanto as suas feições relaxavam e as rugas de raiva suavizavam; toda a sua agressividade esvaneceu como uma pedra fervente imersa em água. Foi o colar da rapariga! Foi ela, eu não sabia o que estava a fazer, não me conseguia controlar! Eu nunca vosiria fazer mal, juro! Tens de acreditar...!

 

Calma, calma, calma! pediu o jovem, tornando a sacudir Lhiannah. Explica lá isso, devagar solicitou, mais brando.

 

A princesa respirou fundo antes de continuar.

 

A rapariga, aquela que estava a fugir dos Corações Quebrados, eu fui atrás dela e do homem que a perseguia. Quando os apanhei, ela parecia estar a dominar a situação: o tipo estava parado de pé, a olhar embasbacado para ela, e a rapariga estava quieta. Não percebi o que tinha acontecido e aproximei-me dela, pensei que precisasse de ajuda, mas então ela sacou de um amuleto e disse umas palavras esquisitas, parecidas com o que o Allumno costuma dizer, e eu... eu... não sei o que se passou, ficou tudo escuro durante algum tempo, mas depois disso foi como se eu estivesse dentro do meu corpo mas não o conseguisse controlar! Foi bruxaria, de certeza! Eu desembainhei a espada, matei o homem e a rapariga ficou a olhar para mim com... olhos vidrados, mandou-me embora sem dizer palavra. E então eu voltei para junto de vocês, mas não era eu a falar, não era eu a andar... era outra pessoa, era ela. A expressão de Aewyre tanto podia ser céptica como hesitante. Tens de acreditar em mim, Aewyre! Tens de acreditar! Eu nunca faria nada que vos magoasse!

 

O guerreiro tentava ler os olhos da princesa à luz de Ancalach. Não se considerava grande juiz de carácter, mas julgando pelos grandes olhos azuis de Lhiannah, a sua testa franzida de preocupação e a sua respiração ofegante davam-lhe a impressão de que estava a dizer a verdade, pelo que exalou longamente e a largou, saindo-lhe de cima com cuidado. A arinnir esfregou o princípio de nódoas negras nos pulsos e sentou-se de pernas cruzadas, olhando em redor pela primeira vez.

 

Onde est... Uma súbita dor estalou-lhe na cabeça, à qual levou as mãos. Auuu... bateste-me lembrou-se.

 

Aewyre não conseguiu evitar uma divertida fungadela.

 

Eu bati-te? retorquiu de sobrancelhas incredulamente erguidas. Tu deste-me uma cabeçada na boca, uma pancada na cara e um pontapé no peito. Tentaste cortar-me às postas e espetar-me contra a parede, e isto para não falar dos raspões e do cotovelo esfolado que consegui enquanto caíamos!

 

Caíamos...? Onde estamos nós? inquiriu, esfregando as têmporas e encolhendo-se ao tocar na equimose.

 

O guerreiro tornou a acalmar-se e cruzou os braços, observando as redondezas com um suspiro.

 

Não faço ideia. Uma caverna qualquer bem mais abaixo do sítio onde estávamos. Quando te apaguei as velas, o pedregulho em cima do qual nós estávamos ruiu e nós caímos com ele.

 

Deuses... A arinnir viu os escombros que a rodeavam. Como é que nós...? O que é aquilo? Reparara pela primeira vez em Ancalach e na luz que dela provinha.

 

Aquilo é a Ancalach, acho eu... Como é que nós sobrevivemos à queda? Acho que também foi ela. Só não me perguntes como...

 

Onde estão os outros?

 

Só sei que estão lá em cima. Não faço ideia do que lhes aconteceu.

 

Oh, deuses. A princesa cobriu a cara com as mãos. Desculpem-me...

 

Deixa estar... disse o guerreiro, desacostumado a ver Lhiannah tão desalentada. Agora temos é que nos preocupar em sair daqui. Aewyre deu consigo a pôr a mão no ombro da princesa, mas esta pareceu recuperar a sua postura do costume e empurrou-a para longe.

 

Sim concordou a arinnir, levantando-se. Vamos sair daqui e encontrar os outros. O Worick ensinou-me umas coisas sobre cavernas...

 

Muito bem... concordou o guerreiro, pegando em Ancalach e virando-a na sua mão como se estivesse a estudar um objecto desconhecido. Não temos comida e o nosso único equipamento são as roupas que temos vestidas. O resto ficou tudo lá em cima.

 

Água. Temos de encontrar água continuou Lhiannah, parecendo não ouvir o que Aewyre dizia. Se encontrarmos água, podemos seguir-lhe o curso e acabaremos por dar com uma nascente.

 

Está bem... presumo que aquelas poças sejam um começo? gozou o jovem, indicando com Ancalach um conjunto de charcos alguns passos à frente. Lhiannah olhou para o guerreiro e franziu-lhe o nariz sem achar piada alguma, dando a entender que o acto de donzela indefesa já acabara. Fungou com desdém e tomou a iniciativa de começar a caminhada. Força, ilumina o caminho...

 

A arinnir parou, baixou a cabeça e cerrou os punhos. Dignou-se a olhar de lado para Aewyre para lhe conceder a sua pequena vitória.

 

Vai em frente...

 

Por estranho que parecesse ao próprio, irritar Lhiannah não deu ao guerreiro o gozo do costume e Aewyre deu consigo a lamentar tê-lo feito após a quase proximidade que haviam por momentos partilhado. Empunhou Ancalach em riste como uma tocha e avançou, sem se esforçar por esconder o seu genuíno suspiro pela oportunidade que sentia ter acabado de perder.

 

Um grupo de figuras encapadas e encapuzadas estava reunido numa obscura alcova, cercando uma mulher que se encontrava numa espécie de transe. À semelhança dos outros presentes, a mulher chamada Linsha envergava uma larga túnica negra, embora a sua fosse desprovida de capuz e mangas e lhe deixasse expostos os delgados braços adornados com apertadas argolas e braceletes prateados. O seu negro cabelo curto, desgrenhado e selvagem que mal lhe chegava aos ombros pendia-lhe em desalinhadas madeixas defronte da cara, riscando as suas feições. A sala era fracamente iluminada por diminutas candeias de ferro penduradas nas paredes e o silêncio, sepulcral. As figuras permaneciam imóveis como estátuas, observando Linsha a agarrar um amuleto com as duas mãos, que lho encostavam ao peito. O talismã tinha a forma de uma garra provida de três dedos de obsidiana que agarravam um olho humano envolto em cristal e pendia de uma corrente de ferro preto. O olho tetro que a mulher segurava, fora usado para se apossar do corpo da guerreira loura que a perseguira após o ataque dos Corações Quebrados. Fora o veículo ideal para descobrir o covil dos desgraçados foras-da-lei e para se aproximar do homem que empunhava Ancalach, cuja mera presença fora como um sino a ressoar na cabeça de cada um dos Filhos, um apelo às armas do seu Senhor. Quase conseguira apossar-se da Espada dos Reis, mas o guerreiro derrotara a sua portadora e Linsha perdera o controlo sobre ela, embora ainda retivesse uma empatia sensorial. Era essa mesma empatia que naquele momento lhe permitia ouvir as conversas dos dois, sentir o cheiro húmido subterrâneo e observar as costas do guerreiro como se este caminhasse à sua frente empunhando a detestada Ancalach, que luzia com uma luz sobrenatural. Contudo, por mais que tentasse e por muito frustrante que fosse, era impossível a Linsha controlar as acções da mulher. A perda de consciência quebrara a sua influência sobre a portadora, embora o elo permanecesse intacto, e isso teria de chegar.

 

Os seus olhos abriram-se e Linsha endireitou a cabeça, fazendo com que os desgrenhados fios do seu cabelo lhe descortinassem a face. Tinha feições exóticas, com uns felinos olhos castanhos debaixo de graciosas sobrancelhas arqueadas, uma tez muito branca e uma boca petulante. Os lóbulos das suas orelhas estavam cravejados com dois pares de brincos em forma de garras e o seu pescoço era cingido por uma grotesca gargantilha de ferro com um pingente vermelho.

 

Eles vivem declarou e encaminham-se para a saída das cavernas.

 

Encontrá-la-ão? questionou uma das figuras.

 

Eventualmente. Uma alternativa seriam as nascentes disse outra, áspera.

 

Quantas existem na outra face da montanha?

 

Cinco das quais se tem conhecimento.

 

Devemos vigiá-las, então.

 

Sem dúvida.

 

Senhora, com a vossa permissão, destacaremos sentinelas? perguntou uma última

 

Façam o que deve ser feito respondeu Linsha. Não desaponteis mestre Malagor.

 

Nunca, senhora.

 

Pel’O Flagelo, pela glória de Seltor entoaram todos antes de se retirarem como sombras perante a aproximação da luz.

 

Aewyre e Lhiannah caminharam durante o que lhes pareceu ser a maior parte da noite, o sono, a fome e o cansaço duas preocupações menores. A apreensão que haviam sentido antes de entrar na caverna dos Corações Quebrados e que haviam momentaneamente esquecido após a queda transformara-se num nervoso miudinho que se manifestava num escrutínio demasiado atento a todas as sombras produzidas pela luz de Ancalach. Decididamente, os humanos haviam sido feitos para viver na superfície; só mesmo os thuragar podiam habitar aquele vasto mundo escuro e húmido no qual as rochas frias murmuravam segredos milenares entre si, segredos que ninguém do mundo exterior devia ouvir, segredos há muito guardados nas cavernosas vísceras de Allaryia. O parco descanso que permitiram a si mesmos foi irrequieto e pouco revitalizante, servindo a única função de enganar o corpo com uma ilusão de repouso. A Espada dos Reis luzia como uma tocha de aço, irradiando um brilho que, sem ofuscar, alumiava o corredor descendente com todo o fulgor do Sol, apesar de ironicamente manter Aewyre no escuro quanto à causa de tão repentina transformação. Desde que a tirara do pedestal de mármore em Allahn Anroth, Ancalach nunca dera mostras de ser algo mais que uma soberba espada de inigualável fabrico, e agora de repente salvava-o de uma queda e brilhava como as espadas mágicas faziam nas histórias. Se pelo menos estivesse com o Allumno... ele haveria de saber; o mago tinha uma resposta para quase tudo...

 

Não se ouvia a água que Lhiannah procurava, apenas os ecos indistintos de pingos ao longe; fora isso, apenas os sons dos passos dos dois humanos se faziam ouvir. Aewyre olhou para trás para a princesa e esta desviou de imediato o olhar, ganhando um súbito interesse no tecto rugoso do corredor que percorriam e parecendo ver nele virtudes que não existiam no guerreiro, julgando pelo tempo que passou de olhos fixos nele, o suficiente até Aewyre virar a cara, suspirando.

 

Há quanto tempo estamos nisto, Lhiannah? perguntou, tendo de esperar alguns momentos até obter resposta.

 

Não sei disse a arinnir secamente. Seis horas, talvez sete... já deve ser manhã.

 

Não era isso que eu queria dizer deixou o jovem pendente, certo de que Lhiannah havia percebido. Contudo, o silêncio da princesa levou-o a parar, virar-se e confrontá-la. Vamos lá ver, há quanto tempo saímos de Vau do Caar? Cinco meses? Seis? A arinnir dignara-se por fim a olhá-lo nos olhos, fosse por que razão fosse. Meio ano a ignorar-me, a desprezar-me, a insultar-me, a contestar tudo o que digo e faço? Raios partam, Lhiannah, não achas que já chega?

 

O jovem levantara a voz e as suas palavras ecoaram pelo túnel abaixo quando acabou de falar. Baixara Ancalach e a luz da lâmina incidia-lhes debaixo dos queixos, sombreando-lhes as faces austeramente. Lhiannah não respondia, mas Aewyre estava disposto a ficar ali à espera até que a princesa o fizesse. Daquela não passava, desta vez não haveria passos atrás nem amuos nem escapadelas a meio da conversa. A arinnir pareceu ler isso nos determinados olhos do jovem, pois os seus punhos cerraram-se naquilo que podia ser frustração.

 

Achas que não tive razões de sobra para isso? inquiriu com um raivoso nó na garganta.

 

Razões de sobra? grasnou o jovem, incrédulo e de sobrancelhas bem erguidas. Bebemos os dois, ficámos um pouco alegres e fomos para a cama! Qual é o teu grande problema para me odiares assim tanto?!

 

Tu embebedaste-me de propósito...

 

Ai agora fui eu? Aewyre tocou jocosamente no seu peito ”com o indicador. Obriguei-te a beber? Enfiei-te a cabeça dentro das pipas?

 

Podia ter engravidado... rilhou Lhiannah.

 

Mas não engravidaste, eu usei a porra da tripa de porco! Qual é o teu problema? Não gostas de homens? És frígida? És...

 

Foi a minha primeira vez! gritou a princesa, batendo com os braços no ar. Percebeste? Foi a minha primeira vez! O guerreiro calou-se, atordoado, esmagando todas as outras palavras que lhe iriam sair com um engasgo e ficando a olhar para Lhiannah de boca aberta. Percebes agora? A minha primeira vez e fui embriagada e montada como uma cadela! Lágrimas cintilaram à luz de Ancalach debaixo dos olhos da princesa.

 

Enquanto Lhiannah fungava e esfregava a cara, trémula, Aewyre permaneceu mudo, incapaz de formular qualquer frase coerente para lhe dizer, incapaz de sequer pensar. A primeira vez?

 

Achas bonito? perguntou a arinnir de voz apertada, olhando para o chão e afagando o braço.

 

É deste tipo de coisas que te costumas gabar aos teus amigos, que desfloraste uma princesa depois de a embebedar?

 

A boca do jovem mexeu-se, mas nada dela saiu. Lhiannah virou-lhe as costas, cruzando os braços e encostando a cabeça à parede.

 

”A primeira vez, repetia Aewyre incessante e incredulamente na sua cabeça, dando consigo a pensar nas histórias que Worick lhe contara acerca da arinnir. ”A primeira vez?”

 

A súbita vontade que sentia de confortar a princesa era esmagadora, mas tinha quase a certeza de que seria rejeitado e afastado como todas as outras vezes. Que podia dizer? Que devia dizer? Que tinha que dizer?

 

Eu... não sabia saiu-lhe, e o guerreiro repreendeu-se logo de seguida por essa patética tentativa de desculpa.

 

E se soubesses? Terias agido de forma diferente? duvidou a arinnir, falando contra a parede.

 

Se eu soubesse... Todas as lições de retórica de Allumno esvaneceram-se-lhe da mente naquele preciso momento. Se eu tivesse sabido na altura... não, não teria agido de forma diferente.

 

Lhiannah virou-se para Aewyre com as pestanas molhadas, as suas feições cobertas por uma máscara de ambiguidade. Se eu tivesse sabido... agora... não o teria feito. Era difícil dizer se a princesa o compreendera ou não, pois a sua expressão mantinha-se inalterada.

 

O que eu quero dizer é... O jovem coçou a cabeça como se esperasse que alguma ideia de lá lhe saltasse. Desculpa.

 

Nenhum dos dois proferiu uma única palavra durante longos momentos. Aewyre olhava para o chão mas sentia o peso do escrutínio de Lhiannah sobre si.

 

Desculpa repetiu, suspirando e inclinando o pescoço para trás de olhos fechados e mão livre na anca, baixando a cabeça de seguida para a abanar em consternação. Ancalach quase imitava a postura cabisbaixa de quem a empunhava.

 

A princesa continuou sem nada dizer e o guerreiro não insistiu, disposto a esperar pelo veredicto em silêncio.

 

Está bem. Aewyre ergueu os olhos ao ouvir estas palavras.

 

Podemos ir?

 

O guerreiro achou que faltava alguma coisa no meio daquilo tudo, pelo que hesitou em se mexer apesar de Lhiannah parecer pronta para continuar a caminhada. Hesitante, estendeu a mão livre e, após o que pareceu uma eternidade, pousou-a sobre o ombro da arinnir que, para grande surpresa do jovem, não recuou nem lha esbofeteou para longe.

 

Eu... estava a falar a sério. Quando pedi desculpa. Mesmo. Eu sei que já te pedi, não por... aquilo, por outras coisas, mas parece que isso nunca resolve nada... eu gostava de fazer mais, quero fazer mais, se pelo menos soubesse o quê. Diz-me se há alguma coisa... que eu possa fazer. Pela primeira vez em muito tempo, demasiado tempo, os olhos de ambos cruzaram-se sem qualquer animosidade ou rancor. O brilho infantil dos orbes de Aewyre dera lugar a uma invulgar seriedade e franqueza e o ressentimento desaparecera por fim dos de Lhiannah. Se tu me pedires, eu...

 

Cala-te interrompeu Lhiannah, erguendo a mão como para pedir silêncio. Vais dizer algum disparate, de certeza. Não digas mais nada... O guerreiro levantou as suas mãos e baixou a cabeça em sinal de desistência. Eu também já estou cansada, cansada de lutar contigo, cansada de estar sempre a discutir, cansada de infernizar a vida dos outros por nossa causa. Vamos... vamos começar de novo, sim? Esquecer tudo o resto, esquecer o que se passou, esquecer que és um arrogante, emproado, presumido...

 

Começamos bem.

 

Desculpa... Lhiannah inspirou fundo. Podemos fazê-lo?

 

Claro. E... uma boa ideia. Começamos agora?

 

Sim, agora.

 

Óptimo.

 

Sim...

 

Por falta de palavras providas de significado, ambos ficaram calados. Aewyre apercebeu-se de que a sua mão ainda estava no ombro de Lhiannah, notando que este não se encontrava tenso. O tecido da camisa vermelha estava ruço e gasto e o guerreiro deu consigo a deslizar-lhe os dedos pela espádua até tocar na pele macia do braço. Um calor aflorou ao peito de ambos e a arinnir fechou os olhos, mas nenhum recuou. As pontas dos dedos do jovem continuaram o seu percurso pelo antebraço, roçando nos mitenes de cabedal até chegar à mão da princesa, na qual se fecharam gentilmente, originando arrepiamentos pelos membros de cada um. Lhiannah acabou por colocar a sua mão livre por cima das duas como para selar o pacto e Aewyre acenou com a cabeça, fechando ele também os olhos. Levou as duas mãos aos lábios e beijou-as suavemente, e foi quando a princesa não se alvoroçou que o guerreiro soube que estava perdoado.

 

Vamos então? sugeriu.

 

Sim, quero sair destas cavernas o quanto antes... A arinnir levou repentinamente a mão ao temporal e cambaleou por breves instantes.

 

O que foi? perguntou Aewyre, segurando-a pelo braço.

 

Nada... valente soco, o que me deste... O guerreiro sentiu-se visivelmente mal. Mas também não escapaste sem mossa... veio o orgulho à tona.

 

Lá isso não admitiu o jovem, esfregando o lábio superior inchado devido à cabeçada que levara.

 

Eu estou bem. Podemos ir disse Lhiannah, presenteando o jovem com um sorriso.

 

De certeza?

 

Sim. Aewyre duvidava claramente. Ou talvez não...

 

Estamos os dois cansados. Aproveitamos para dormir um pouco aqui? Apontou com a ponta da espada para um recesso na parede do túnel, esperando que a princesa recusasse. Uma vez mais, foi surpreendido quando Lhiannah assentiu e se recolheu no recanto que indicara, e ainda por cima certificando-se de que havia espaço para o guerreiro!

 

Aewyre acoitou-se no apertado esconso, acomodando-se junto de Lhiannah com cuidado para não parecer demasiado ansioso. A arinnir tentou dar-lhe o maior espaço possível, mas consigo dentro daquele nicho húmido e gotejante, o espadaúdo jovem dificilmente caberia confortavelmente pelo que, após alguma hesitação, Lhiannah deu-lhe o lugar e encostou-se ao seu tronco, ficando praticamente sentada ao seu colo. Boquiaberto, Aewyre nada disse e deixouque a princesa se aconchegasse ao seu peito retesado. O que estava ela a fazer?

 

Aewyre?

 

Sim...?

 

Não te vais pôr com ideias, pois não? A cara do jovem afogueou-se com tal rubor que Aewyre julgou que brilhava no escuro. Estás perdoado, só isso. Bocejou e nada mais disse.

 

Não te preocupes... asseverou o confuso guerreiro em surdina. Está descansada...

 

Após o prolongado repouso, os dois puseram-se a caminho uma vez mais, Ancalach servindo-lhes de estrela-guia naquele mundo de noite eterna. O túnel que percorriam ia descendo gradualmente, para grande preocupação de ambos. Água havia-a por todo o lado, mas ainda não haviam encontrado um único curso que pudessem seguir e a noção de progresso era mínima. Tinham a impressão de que desciam cada vez mais fundo, de que eram intrusos num domínio ao qual não pertenciam. Os antebraços de Aewyre estavam cansados de empunhar Ancalach alternadamente e as suas pernas ressentiam-se do parco descanso após dias de intensa caminhada, mas tanto ele como Lhiannah estavam determinados a voltar o quanto antes à superfície.

 

A dada altura o túnel começou a alargar-se progressivamente, acabando por se abrir numa enorme caverna. Ancalach iluminou uma vasta gruta de cujo tecto pendiam estalactites castanho-alaranjadas em forma de sincelos das quais as lágrimas das cavernas pingavam regularmente. O pranto gotejava sobre charcos arredondados represados por crustas de minerais, que constituíam um padrão alveolar no chão da caverna, ecoando serenamente pelas paredes rochosas. Dentro dos charcos encontravam-se montículos, pequenas ilhotas calcárias que provavelmente não passavam de estalagmites em fase de concepção. O ar ali dentro era ancestral, nele o odor de séculos aprisionados era pungente, pouco ou nada diluído pela passagem do tempo, que naquelas cavernas parecia não ter significado.

 

Magnífico... admirou-se Aewyre, percorrendo a caverna com os olhos e com a luz da espada.

 

Magnífico... concordou Lhiannah

 

Afinal, os thuragar não são assim tão miseráveis por viverem onde vivem achou o guerreiro, retomando o passo, de Ancalach em punho.

 

Há grande beleza que se esconde debaixo da terra. O Worick contava-me histórias de oceanos subterrâneos, estalagmites mais altas que palácios, grutas de cristais brilhantes...

 

Pois, mas eles nem têm luz para o ver...

 

Não precisam, os thuragar têm uma sensibilidade diferente da nossa. Eles vêem bem no escuro, mas aquilo que não conseguem ver sentem-no com dedos e pés, conseguem dizer-te de que tipo de pedra se trata só de lhe tocar. A língua deles tem centenas de palavras só para descrever a textura de uma rocha, outras tantas para a sua densidade e mais algumas só para o som que fazem quando se lhes bate com diferentes tipos de metal.

 

Impressionante. Aewyre estava a gostar de ouvir a voz da princesa dirigida a si, o que o levava a alimentar uma conversa que, noutra ocasião, provavelmente o enfadaria.

 

E mesmo. Todos pensamos neles como anões truculentos, toscos e desajeitados, mas a verdade é que os thuragar são todos eles potenciais artistas... Os dois guerreiros caminhavam cuidadosamente por entre os charcos, cuja água tinha à superfície uma até então intocada crosta calcária que estalava a cada passo seu. Subitamente, Lhiannah estacou, engasgando ao olhar para uma das ilhotas no meio de um charco.

 

O que foi? perguntou Aewyre, apontando a ponta de Ancalach na direcção em que a arinnir fixara os olhos. Que se passa?

 

Oh não...

 

Lhiannah, o que é que foi? repetiu o guerreiro, quebrando com um apressado passo uma crusta mineral que represava um charco.

 

Está quieto! vociferou a princesa, levantando a mão de palma estendida. Estamos num cemitério!

 

O quê...?

 

Isto é um cemitério thuragar!

 

Aewyre não dava mostras de estar a perceber, pelo que Lhiannah o ajudou, apontando para a ilhota da qual ainda não tirara os olhos.

 

Olha bem para ali.

 

Aonde? O jovem achegou a ponta de Ancalach à estalagmite embrionária. Não vejo... ah... Debaixo da camada calcária era visível um maciço crânio ao qual um elmo estava atado, cujas pontas dos chifres ainda não haviam sido cobertas e espetavam para fora. Um escrutínio mais atento revelou entre outros o gume de um martelo e o rebordo de uma espaldeira; o indivíduo fora ali colocado envergando uma armadura completa. O que é isto?

 

Os thuragar são ”enterrados” assim explicou Lhiannah, que não dera nem mais um passo. Deixam-nos deitados debaixo de estalactites com as suas armas e armaduras e esperam que calcifiquem.

 

Mas... o tempo que isso demora...?

 

Muito. Os cadáveres aguentam-se um pouco mais com o ar das cavernas, mas não chega para impedir que apodreçam antes de estarem devidamente... sepultados. Não deve ser bonito de se ver.

 

Não se podia esperar muito mais de thuragar... mas não digas ao Worick que eu disse isso. Lhiannah não achou piada, pois sentia que estava a profanar solo sagrado.

 

Anda, vamos sair daqui e contornar isto. Não me sinto bem a pisar estes charcos.

 

O guerreiro estava de acordo e assim fizeram, voltando atrás e procurando uma rota alternativa para atravessarem a caverna. Optaram por usar as estalagmites de topo arredondado que cresciam coladas à parede e que serviam como degraus rudimentares.

 

Escuta, ouves isto? perguntou a arinnir, equilibrando-se sobre as estalagmites. Havia de facto um ruído no ar que se assemelhava vagamente ao rumorejar de água em cachão. Deve ser mais lá à frente. Vamos.

 

Findo o trajecto improvisado, os guerreiros, moralizados pelo som pelo qual tanto haviam ansiado, estugaram o passo. A caverna na qual se encontravam bifurcava-se em vários túneis, mas apenas de um provinha o ruído de água a escorrer, qual chamamento da liberdade, e foi esse que ambos rapidamente calcorrearam. Chegaram a uma nova caverna, mais pequena que a anterior, e a luz de Ancalach incidiu numa superfície aquosa que a reflectiu, uma lagoa subterrânea alimentada por lacrimosas estalactites e por um curso de água que vertia do tecto, abatendo-se na superfície em borbulhantes borbotões.

 

Muito bem, encontrámo-la. E agora? indagou Aewyre, erguendo Ancalach como uma tocha.

 

Agora... será que acaba aqui? Vamos andar mais um pouco. Assim fizeram, iluminando cada recanto da gruta com a Espada dos Reis à procura de uma saída ou de algum fio de água que estivesse a escorrer para o exterior, mas não tiveram sucesso. A lagoa, no entanto, estreitava-se em frente e continuava num pequeno rio para longe dos guerreiros. Lhiannah coçou a cabeça em apreensão com a mão livre e Aewyre enfiou Ancalach na água para ver a profundidade.

 

Sabes nadar? perguntou o jovem.

 

Claro que sei! replicou a princesa, ofendida.

 

Só estava a perguntar... a tua casa não é perto do mar.

 

Nadei em rios. Qual é a grande diferença?

 

Nenhuma, nenhuma... olha, isto não parece muito fundo. Pronta para um mergulho?

 

Lhiannah olhou inquieta para a lagoa escura.

 

Quer dizer... a margem do rio não era assim tão funda... reparou, acocorando-se na borda e tacteando a água. Nem tão fria...

 

Pois, o Estuário do Suão também era um pouco mais quente... Aewyre inverteu o aperto no punho de Ancalach. Mas dá-me a ideia de que o único caminho é mesmo em frente.

 

Será...? Havia outros túneis... enganou-se a arinnir a si mesma, pois sabia muito bem que caso se aventurassem pelas outras galerias, o mais certo era perderem-se de vez. Não, a água era a única solução... Esquece, esquece. Vamos lá ao banho.

 

Inspirando fundo e aquecendo os membros, o par preparou-se para saltar para dentro de água, embora nenhum mostrasse vontade de mergulhar primeiro.

 

Bom, o melhor é eu ir à frente, não? Para iluminar o caminho? Lhiannah não contestou. Ora muito bem... O jovem abanou mais um pouco as pernas. ”Vamos morrer ali dentro... ninguém nunca nos encontrará”, pensou antes de inspirar fundo e se atirar de cabeça à água, cuja superfície perfurou com grande estrépito. Lhiannah seguiu-se-lhe de imediato e as cabeças de ambos vieram rapidamente à tona.

 

Está gelada! arfou a princesa.

 

Vamos mas é pôr-nos a nadar! balbuciou Aewyre, dando o exemplo.

 

Os dois guerreiros esbracejaram pela lagoa fora, alcançando o rio em poucas braçadas e não tardaram a ser puxados pela corrente. Aewyre agarrava Ancalach de lâmina para baixo, mas mesmo assim a espada era um fardo dentro de água e dificultava-lhe a natação. A marcha da água arrastava-os com pouca delicadeza e crescente força pelo curso descendente como um traiçoeiro amante que os puxava para um envolvente e fatal abraço.

 

Rocha! gritou o jovem, engasgado.

 

O quê?

 

Rocha à frente! Mergulha! ” Ancalach iluminara um local no qual o tecto da estreita gruta se

 

afundava e contra o qual estavam prestes a ser esmagados. Incapaz de ajudar Lhiannah, Aewyre apenas pôde orar para que a princesa o tivesse ouvido e enfiou a cabeça debaixo de água. Todo o ruído desapareceu então e o mundo ficou calmo e silencioso. A Espada dos Reis alumiava as sinuosas paredes moldadas pelo correr do rio e as depressões e concavidades por cima, nas quais residiam inalcançáveis bolsas de ar, mas o tecto parecia prolongar-se até onde a curta vista alcançava. O guerreiro olhou para trás e viu Lhiannah de bochechas cheias a nadar com aflitas braçadas, os seus longos cabelos a esvoaçarem como um véu dourado. Os seus pulmões começaram a contrair-se-lhe dentro do tórax, aguardando ar que não estava a entrar. Ancalach iluminava apenas pedra. Pânico quente aflorou-se-lhe ao torso. Pedra e água, só pedra e água, nada mais para além de pedra e água...

 

A luz da espada atravessou subitamente a conturbada superfície do rio. Aewyre esbracejou freneticamente para cima e inalou o ar roucamente, enchendo os pulmões até estes quase rebentarem. Lhiannah produziu ruídos semelhantes quando surgiu à tona, mas antes que qualquer um pudesse falar, aperceberam-se de que ainda eram arrastados, embora os seus pés já roçassem o chão. Tropeçando ao tentarem manter-se de pé, nenhum reparou na parede em frente e ambos embateram desprevenidos contra ela. A água acachoava para fora da parede e um ruidoso borborejar enchia o ar.

 

Encontrámo-la! proclamou Lhiannah, triunfante. Chegámos à nascente!

 

Estou a ver que sim... Aewyre olhava em redor, para as apertadas paredes nas quais os raios de luz de Ancalach reverberavam, distorcidos pela água. E agora?

 

Tão repentinamente quanto aparecera, o entusiasmo da arinnir esfumou-se assim que se apercebeu do obstáculo que ainda se lhes deparava na forma da parede calcária em frente. Tinha um buraco, e a Espada dos Reis fazia ressair as suas rachas e fendas, das quais provinha ar do exterior, mas ainda assim parecia sólida o suficiente para deitar fracas esperanças por terra.

 

Oh não... lamentou-se a princesa, apoiando as mãos na pedra húmida da parede, como se a pudesse empurrar. Raios, não! Não pode ser...! praguejou, esmurrando a rocha.

 

Alheio aos vitupérios de Lhiannah, Aewyre olhou quase involuntariamente para Ancalach. Desde a queda, a espada já o surpreendera várias vezes e das mais inesperadas formas. Seria possível...? Não custava tentar.

 

Afasta-te pediu em voz alta para se fazer ouvir no meio do borborejar, arrastando os pés pela água turbulenta.

 

A arinnir fitou-o com cabelos molhados colados à cara, um brilho nos olhos que mais pareceu um fulgor de esperança reavivada que o reflexo de Ancalach e fez como lhe fora pedido. Aewyre empunhou a espada com as duas mãos, relaxou os dedos, crispando-os de seguida, e investiu, grunhindo enquanto orientava a lâmina num poderoso golpe descendente. O impacto contra a pedra foi sólido e estrídulo, mas pouco mais causou que um talho na rocha, umas dolorosas vibrações pelos braços do jovem acima e um pungente ranger nos seus dentes. Para grande consternação de Lhiannah, Aewyre chamou a si mesmo todos os insultos possíveis e imaginários, e foi por sorte que não perdeu a espada. Daveanorn ter-se-ia rido às gargalhadas.

 

Estúpido... resmoneou o guerreiro, afagando os maxilares com a mão livre enquanto estudava a parede mais atentamente. Os

esperançosos olhos de Lhiannah pesavam-lhe nas costas. Assim não... talvez... hmmm... sim, por que não? O que é que o Worick chamou a esta pedra?

 

O que é que ele...? Como?

 

Ele deu-lhe um nome especial. Como é que lhe chamou?

 

O nome? Ele disse que era pedra calcária rachada... mas o que é que isso interessa? Estamos presos...

 

Pedra calcária rachada... reiterou o guerreiro.

 

O que é que vais fazer? Em resposta, o jovem enfiou bruscamente a lâmina por uma das frestas da parede adentro, deixando-a pendente um pouco acima do buraco pelo qual a água saía. Largou o punho para relaxar, estender e estalar os dedos, girar o pescoço e rodar os ombros. Aewyre?

 

O jovem tornou a agarrar o punho de Ancalach com as duas mãos, apoiou o pé na parede e, inspirando fundo, começou a puxar. O seu penoso grunhido de dentes cerrados ouviu-se mesmo com o constante correr da água. Lhiannah ergueu as sobrancelhas ao ver os músculos palpitantes dos braços de Aewyre e as veias pulsantes no seu pescoço. Ancalach dobrava, flexível, mas a pedra não cedia. O guerreiro exalou e descansou por breves instantes, voltando à carga pouco depois e tornando a grunhir, mais audivelmente assim que lhe pareceu que o bloco de pedra se mexera, ajudado pela corrente. Lhiannah cerrava os punhos em expectativa, murmurando silenciosas palavras de encorajamento. Com um novo grunhido que mais parecia um grito, Aewyre tornou a deslocar o bloco, alargando o buraco na parede. A princesa começou a ajudar, desferindo pontapés alimentados pelo desespero na teimosa pedra enquanto o jovem fazia um derradeiro apelo às suas forças. Com um rachão de protesto, o bloco cedeu à vontade dos humanos e o empurrão decisivo foi desferido pela inexorável corrente, que o arrancou do seu milenar posto, enchendo a diminuta gruta com a luz do Sol e cegando os dois guerreiros. Desequilibrados, ambos caíram desajeitadamente à água e foram arrastados para fora pela borbulhante nascente, esmagando crustas de tufo e gelo ao atingirem o solo escorregadio do regato que ali se formava. Apoiando-se em Ancalach, Aewyre ergueu-se, puxando os cabelos molhados para trás e exalando um sonoro suspiro de alívio. Lhiannah também se levantou, balbuciando ruidosamente e abraçando-se para se resguardar do vento frio com o qual o exterior os bafejou. A espada deixara de brilhar, mas o jovem estava demasiado aliviado para dar muita atenção a esse facto e olhou para a princesa, sorridente. Os cantos dos seus lábios nivelaram-se ao ver as roupas reveladoramente ensopadas da arinnir que, com os cabelos a escorrerem-lhe pelas costas e ombros abaixo, mais parecia uma nayana de cabeleira dourada. O escrutínio não passou despercebido a Lhiannah, que se preparou para dizer algo antes de um virote chapiscar na água perto dos seus pés.

 

Por instinto, Aewyre postou-se em frente da princesa, assumindo uma postura de combate com Ancalach em riste. Quatro figuras aguardavam-nos na margem esquerda da nascente, dois empunhavam bestas que visavam o par.

 

Allumno nadava no mar etéreo do Pilar de Allaryia, a gema na sua testa a fulgir como um farol escarlate. A imensidão incolor era pontilhada por pequenos pontos cintilantes ao longe, formas de vida que brilhavam com a sua própria energia vital, totalmente alheias à Essência que permeava toda Allaryia. De breve passagem pelo que devia ser a caverna dos Corações Quebrados, o mago distinguiu vultos brilhantes que só podiam ser garigonor. Os enfezados thuragar tinham um medo irracional do exterior e decerto teriam mais hipóteses de sobreviver a um eventual novo ataque dos Filhos do Flagelo dentro das suas cavernas que fora delas. De qualquer forma, nem sequer as palavras carinhosas de Mamã haviam sido suficientes para que os garigonor mudassem de ideias, e qualquer tentativa de os tirar de lá à força resultaria apenas numa debandada, pelo que haviam decidido respeitar a decisão dos corcovados humanóides. Desejando-lhes sorte, Allumno prosseguiu o seu caminho, singrando como um veloz peixe num oceano transparente.

 

”O medo protege-nos”, reflectiu o mago, ainda a pensar nos garigonor ”mas a existência que procura salvaguardar é uma de sobrevivência, e quantos se contentam com isso? Ainda assim, preferia que o Aewyre fosse um pouco mais receoso por vezes...”

 

Allumno acalmara aquando da saída das cavernas, pois doutro modo não poderia entrar no transe requerido para se submergir nas águas sidéreas do Pilar. Era o tutor do filho mais novo da casa de Thoryn e tornara a falhar na missão que ele próprio se incumbira de o proteger. Isso e o afecto quase paternal que o mago sentia pelo rapaz que, embora nunca traduzido por palavras, era o laço mais forte que unia a ambos e que apenas se reforçara desde a ”fuga” de Ul-Thoryn meses atrás.

 

”Mas que Kispryn lhe estenda a mão decepada, o inconsciente só me dá preocupações... deixaste-nos com um verdadeiro garanhão selvagem, Aezrel Thoryn. Igual a ti em tantas coisas... as marteladas da vida moldaram-te no que te tornaste, e temo que ele também só venha a aprender dessa forma. Todos aqueles dentro dos quais arde um fogo têm de o usar para alguma coisa, para forjar o corpo e o espírito antes que se queimem a eles mesmos e àqueles que os rodeiam, mas o Aewyre embate contra tudo o que lhe surge no caminho, esquece-se de que demasiadas marteladas estragam o molde...”

 

Um excelente ensaio de metáforas, pupilo disse a voz de Zoryan. Sem estar verdadeiramente surpreendido, Allumno olhou para a projecção do seu mestre, que voava a seu lado. Senti a tua chamada urgente, mas foi-me difícil manifestar-me aqui. O Pilar torna-se insistente...

 

Problemas, mestre? inquietou-se Allumno, sem grande disposição para mais preocupações.

 

Nada de grave. A gema é a minha âncora, e enquanto ela existir o Pilar nunca me absorverá por completo. Mas por vezes ele parece tornar-se... insistente, como um cão que me mordeu mas não consegue puxar e não pode largar. Enfim, um assunto de somenos importância. O Aewyre desapareceu?

 

Sim, ele e a princesa de Syrith caíram numa derrocada subterrânea. Temo pela vida de ambos.

 

Zoryan franziu o seu etéreo cenho.

 

Esperemos que não haja razão para tal... estás a sentir isto?

 

Sim, mestre. Ancalach dificilmente passa despercebida. A Espada dos Reis praticamente ardia na translúcida imensidão, um pequeno mas roaz fogo à distância, um som pulsante parecido com o bater de um ardoroso coração. E alguém a empunha! Impelido por um surto de energia, Allumno singrou na direcção da fulguração, deixando o seu mestre para trás por breves instantes antes de este o tornar a apanhar. O mago achegou-se das duas figuras ambulantes e tocou-lhes, sentindo as suas essências e suspirando de alívio ao reconhecer o âmago familiar de ambos. São eles... e estão vivos.

 

Folgo em saber. A minha ajuda não será necessária, então.

 

Perdoe o incómodo mestre, mas como pode calcular...

 

Ora essa... claro que entendo a tua preocupação. Ainda bem que me chamaste, e deves fazê-lo sempre que achares necessário. Consegues orientar os teus companheiros? O mago hesitou, apercebendo-se de que devido ao desassossego não estivera a prestar atenção, e as direcções no Pilar eram algo relativas. Zoryan presenteou-o com um sorriso de simpatia:

 

Dirigem-se para Leste. O que não quer dizer que venham a chegar a algum lado...

 

Obrigado, mestre. Até à nossa próxima lição... despediu-se o mago sucintamente, dissipando-se sem qualquer cerimónia nas águas etéreas do Pilar.

 

Zoryan suspirou, cruzando pensativamente os braços atrás das costas. O Allumno era demasiado rigoroso com ele próprio. Não se deixava enganar pela fachada despreocupada do seu mestre e dava sempre o seu máximo em tudo, sem nunca se permitir algum gozo com os sucessos e repreendendo-se implacavelmente a cada fracasso. Não havia um único monótono dia que passasse no qual o arquimago não se repreendesse pelo que havia feito a um simples rapaz camponês. Sentira um imenso potencial no jovem, era certo, mas o facto de o ter praticamente forçado a tornar-se na pessoa que hoje era, sem lhe ter apresentado qualquer tipo de escolha... Zoryan não se sentia bem com isso, havia roubado a juventude ao seu pupilo e temia algum ressentimento da sua parte, apesar de achar tal reacção perfeitamente compreensível. Qual teria sido a resposta dele caso lhe tivesse sido permitido escolher entre uma simples e despreocupada vida no campo e a ascese da alma da qual todos os magos padeciam? Perguntas a que o arquimago, a despeito de todo o seu poder, nunca conseguira responder nem fazer àquele que lhe era como um filho.

 

Estás a ficar velho, Zoryan... lamentou-se como se alguém o pudesse ouvir. Imortal, porém cada vez mais velho, e os problemas irresolutos que deixaste para trás vão atormentar-te. O arquimago tornou a suspirar, dissolvendo-se no Pilar ao qual negava a sua essência. Nada que não mereças, seu velho idiota...

 

O corpo de Allumno mexeu-se e os seus olhos estremeceram antes de abrir. À medida que a vida voltava aos seus membros, o mago levou o seu tempo para se ajustar à solidez e consistência de Allaryia, observando o que o rodeava. Estava no interior de uma cabana com uma atmosfera quente e acolhedora, acompanhado pelos seus companheiros e os Corações Quebrados. Haviam sido acolhidos por um velho pastor viúvo, que aparentemente já conheciam há muito e que não hesitara em lhes oferecer guarida. O homem colocara a sua casa e comida à disposição do grupo, como se lhes devesse algo que por fim tinha a ocasião de retribuir. O fogo no centro da sala crepitava e tremeluzia, ataviando as caras cismáticas dos presentes com tons dourados. Todos se sentavam e deitavam no chão, apoiando as cabeças em travesseiros feitos com as suas roupas, afiando facas, cofiando bigodes, jogando silenciosas partidas de dados, mastigando as sobras do jantar de queijo de cabra e murmurando entre si. A apreensão de Worick era visível na fúria comedida com a qual trabalhava o seu bloco de pedra e mesmo Taislin brincava pensativamente com os seus punhais, rodopiando-os com destreza pelo ar. Animal recitava o seu nome de variadas formas, encolhido a um canto, Pestanas piscava-as absortamente, silencioso como sempre, Mamã desembaraçava os cabelos com um pente de osso, sentada de pernas cruzadas defronte da fogueira e Maneta encerava distraidamente o fio do seu arco. Os restantes dormiam no curral, pois não havia lugar para todos na modesta cabana. Allumno levantou-se lentamente, descruzando as pernas dormentes com vagar antes de se erguer, o que suscitou uma reacção geral em todos os presentes, sendo a de Worick a mais enfática.

 

Onde estão eles, mago? perguntou, pisando mãos e pernas ao galgar a distância que o separava de Allumno com um salto e umas passadas.

 

Estão vivos os dois assegurou-lhe o mago, erguendo as mãos para o acalmar. Dirigem-se para Leste.

 

Para o outro lado das montanhas... concluiu o thuragar, mais tranquilo. Dizem vocês que há umas cinco nascentes por aí? indagou, dirigindo-se aos Corações.

 

Pelo menos respondeu um Coração barbudo com ar rústico e falhas na dentadura.

 

Muito bem, teremos de procurar então. Amanhã pomo-nos logo a caminho de madrugada, e vai ser passo de partir costas até os encontrarmos.

 

Quem é que pôs o thuragar no comando? quis um outro saber.

 

O meu martelo...

 

Rapazes... admoestou-os Mamã pacientemente enquanto se penteava. Portem-se bem. Eles são os amigos de Aewyre Thoryn e estão preocupados.

 

A mera presença da mulher era o mais forte dissuasor de qualquer agressividade, e o tom maternal da sua voz não deixava espaço nem vontade para discussão. Mesmo Worick era refreado pela sua firme brandura.

 

Vou dormir. Amanhã acordo tudo à cachaporrada... resmungou quase imperceptivelmente.

 

Allumno suspirou e foi ter com Mamã, sentando-se a seu lado debaixo do olhar de cada Coração presente na sala.

 

Desculpe o Worick.

 

Não há motivo para isso, Allumno asseverou a mulher, pousando o pente. Não preciso do toque de Assana para perceber que ele tem uma ligação muito especial com a rapariga.

 

É verdade, mas eu também queria pedir desculpa por toda esta situação. Ainda não compreendi ao certo o que se passou com a Lhiannah, mas ela afigura-se-me como a responsável pelo ataque que vitimou os seus. Mamã levou a mão ao peito, como para acalmar uma dor no coração. Perdão. É um assunto certamente doloroso no qual não me encontro no direito de tocar...

 

Sei que não o fez por mal, Allumno, e agradeço a sua preocupação sorriu-lhe a mulher, se bem que fracamente. Admito que a Lhiannah me pareceu estranha, até porque foi a única que me vedou o seu coração, mas duvido muito de que ela vos acompanhasse se ele fosse impuro.

 

Por alguma razão, o mago lembrou-se de Slayra, mas a eahanoir não era um assunto pertinente para discussão e descartou a memória.

 

Como disse, é um mistério por descortinar. Queria apenas dizer-lhe que... lamento. Ainda não tivera ocasião de o fazer.

 

Mamã sorriu outra vez. A mulher era uma fonte infindável deles, independentemente da situação.

 

Obrigada. A sua ferida...? perguntou, indicando a cara do mago.

 

Allumno levou a mão à cataplasma que Mamã lhe pusera no lanho causado por Lhiannah, encolhendo os ombros resignados. Pareceu querer dizer mais alguma coisa, mas mudou de ideias e levantou-se.

 

Bom... com licença. Boa noite desejou, retirando-se para a sua manta estendida no chão.

 

Mamã viu-o afastar-se, seguindo atentamente cada movimento seu e compadecendo-se do mago. Via nele uma alma sofredora, um homem que há muito carecia de carinho, de um pouco de afecto, mas que por alguma razão nunca se dignaria a pedi-lo ou oferecê-lo.

 

”Que Assana te acarinhe, Allumno. Se tu lho permitires...”, foi a resignada prece que lhe ofereceu.

 

As ruas de Val-Oryth estavam lamacentas e alagadiças devido ao degelo da Primavera; sulcadas pelas rodas de vagões, que represavam pequenos charcos nas vias e apinhadas da imundície da cidade. Durante a noite ouvia-se o gelo a ranger, enfraquecido mas recusando-se teimosamente a ceder o seu lugar, encorajado pelo frio da noite e a ausência do impiedoso Sol primaveril. O Distrito das Choças fora particularmente atingido pelo alagamento, como o era todos os anos assim que o Inverno terminava, retirando grande parte do prazer que os seus pobres habitantes poderiam sentir com o início da época floral. O distrito fazia jus ao nome, sendo constituído por miseráveis casebres e tugúrios que albergavam a escumalha e os menos favorecidos da cidade tanarchiana. Escondida dentro de uma dessas esquálidas habitações, dormia Hazabel. A harahan estava com um aspecto lastimoso e famélico, o resultado das semanas de privação que passara nas estepes. Os seus dedos estavam enclavinhados como as garras de um animal selvagem, os seus olhos escuros ferinos, as suas feições emaciadas, o seu corpo esgalgado como o de um cão vadio. O seu sono era perturbado e inquieto, pouco descanso para o corpo e nenhum para o espírito, assombrado por recordações do quão perto estivera da morte. A seu lado jaziam os corpos de seis crianças de pele exangue, as suas barrigas esventradas. Crianças. Descera ao ponto de ter de matar crianças para sobreviver. O acto em si não lhe causava remorsos de qualquer espécie, mas o fígado de crianças era inocente, o fel insonso, praticamente desprovido de animosidade, de cólera, de amargura. Era-lhe quase repugnante bebê-lo, mas pelo menos matava a sua ávida fome. Hazabel acordou, desistindo de dormir. Aewyre Thoryn, a culpa era toda do maldito Aewyre Thoryn, dele e do seu detestado mestre que a incumbira de lhe trazer Ancalach. A harahan acordou assim que se lembrou do maldito, lembrando-se de que já não dava notícias há meses. Era certo que nada tivera a dizer, o seu mestre nunca estivera particularmente interessado em ouvir as suas desgraças e insucessos, mas deixara bem claro que queria ser mantido ao corrente. A contragosto, Hazabel vasculhou a sua sacola, procurando a tiara que lhe permitiria comunicar com o desgraçado. Encontrou o ob-jecto dourado com pouca dificuldade, pois tivera de fazer uso de quase todos os seus subterfúgios para sobreviver e encontrar o seu caminho para fora das estepes, pelo que a sacola estava praticamente vazia. Hesitante, acabou por colocar a tiara na testa e fechar os olhos, embrenhando-se nas névoas da sua mente e lançando o chamamento ao seu mestre, que surgiu sem demoras na forma de um nublado vulto. Cabra desgraçada! foi a mensagem de boas-vindas. Estás a brincar comigo? Hazabel ficou em silêncio. Não te disse para me manteres informado sobre tudo o que se passava? Não foi o que te ordenei?

 

Mestre... A harahan ainda mal havia dito uma palavra e os seus dentes já rangiam.

 

Cala-te estúpida! Não quero ouvir as tuas desculpas! Já tens a Ancalach?

 

Não...

 

Maldita bruxa imprestável, lazarenta! Não posso confiar em ti para nada, só serves para abrir as malditas pernas e parir rebentos?

 

O silêncio de Hazabel foi gelado. Há mais de meio ano que andas atrás do jovem Thoryn e nem chegaste perto da espada? Onde é que estás, sua vagabunda? Eu devia...

 

Seu homenzinho insignificante! interrompeu a harahan.

 

Eu vou encontrar a maldita espada, e quando o fizer, vou voltar para ta entregar e assim que o nosso pacto for selado, vou arrancar as tuas tripas azedas e enfiá-las pela tua garganta abaixo! Ouviste bem? Assim que eu tiver a espada, és meu! Vou matar-te, estupor! Vais sofrer! Vou matar-te com as minhas próprias mãos, maldito desgraçado!!! gritou, arrancando a tiara da testa e atirando-a com toda a força contra a parede, na qual embateu antes de cair no imundo chão.

 

Hazabel fervia de raiva, rilhava os dentes, agarrava os cabelos e arranhava o escalpo com as unhas. Ruídos no exterior impediram-na de se automutilar em fúria e distraíram-na momentaneamente da sua cólera. Havia alguém no exterior, alguém que estava a forçar as tábuas pregadas do casebre que serviam de porta improvisada. A harahan ouviu vozes rudes antes de a porta ceder e dois homens vestidos de trapos e ligaduras nos sórdidos pés e mãos entrarem, as suas costas iluminadas pelo luar. Olharam em redor, farejando como cães, e os seus olhos recaíram sobre a mulher de negro encolhida a um canto. Hazabel não percebeu muito bem o Leochlan cerrado do primeiro homem, o maior, mas sabia que não podia ser coisa boa. Na verdade, nem precisava de ter ouvido, pois o sorriso amarelento do maltrapilho quase luzia no escuro. A harahan nada fez nem disse, permaneceu quieta e silenciosa, deixando que os dois se aproximassem enquanto tacteava o chão com as unhas negras. O fel das crianças apesar de tudo dera-lhe forças. Agora iria saciar-se...

 

Saudações, filha da Sombra cumprimentou o andrajoso homem em Olgur, para grande surpresa de Hazabel, que permaneceu em surpreso silêncio.

 

Há já algum tempo que te procurávamos disse o outro, as tuas actividades não passaram despercebidas. Tens sorte que tenhamos sido nós a encontrar-te e não os lacaios dos Três...

 

”Filhos do Flagelo...?”, pensou Hazabel.

 

A senhora Lmsha deseja falar-te... e ordenou-nos que te déssemos isto o homem mais pequeno tirou de uma bolsa presa à cintura algo que fez um ruído molhado ao ser atirado aos pés da harahan, como prova de boa vontade.

 

Hazabel tacteou a oferenda e constatou que se tratava de um fígado. Olvidando a sua dignidade, agarrou-o com as duas mãos e espremeu sofregamente o fel para dentro da boca, deleitando-se com toda a amargura e malquerença que lhe escorria pela garganta abaixo. Saciada, atirou o órgão para o lado e ergueu-se com renovado vigor nos membros. Os dois vagabundos vacilaram quando os olhos negros da harahan recaíram sobre eles com uma intensidade faminta e animalesca. Hazabel sorriu com fel a correr-lhe pelos cantos da boca.

 

Gostaria de conhecer a vossa senhora...

 

Devia ter sido uma noite calma para Figor, um soldado do senhor da guerra Vladen. Fora destacado com os seus companheiros para Tomska, mais uma recompensa que uma incumbência, pois as raparigas da aldeia eram bonitas e desavergonhadas, o peixe era fresco e a ””cerveja era boa, ao contrário da mistela choca que bebiam nos seus postos habituais. Havia apenas uma rapariga na taberna, mas os seus companheiros não se importavam de partilhar e tudo correra de feição até entrar o eahanoir com uma tatuagem no olho que agora estava defronte de Figor, empunhando duas lâminas com as quais lhe desenhara uma segunda boca na garganta. O latvoniano levou as mãos ao pescoço, tentando sem sucesso impedir a sua vida de lhe jorrar para fora. Mais morto que vivo, ainda ouviu os seus companheiros desembainharem as falcbion, mas a vida abandonou-o antes que pudesse ver o fulminante desfecho do combate.

 

Os dois outros soldados tombaram, agarrando feridas que falhavam em perceber como lhes haviam sido infligidas. A criada de longos cabelos castanho-claros estava encostada à parede, aterrorizada. Os soldados haviam-lhe deixado marcas no pescoço e a sua blusa estava reveladoramente aberta, mas havia esquecido toda e qualquer modéstia assim que vira o eahanoir deslizar pelos seus atormentadores como uma faca quente por manteiga. A avó desdentada permanecia ao balcão, imóvel e atordoada com a rapidez com que tudo se passara.

 

Tannath olhou para os cadáveres em redor e para o corte no seu braço esquerdo. Estava destreinado, era certo, os seus reflexos ressentiam-se das semanas de imobilidade e a pele nas suas costas ainda estava tenra, mas o golpe da falckion podia muito bem ter-lhe podado o braço; era indesculpável. Não se podia permitir deslizes desses, a margem de erro era inexistente, agora que se encontrava a operar sozinho e por conta própria. Mas havia muito tempo para se reprovar a ele mesmo, naquele momento precisava de informação e havia trabalho para fazer. Os seus olhos cinzento e azul dardejaram para a criada, trespassando-a como virotes e cravando-a arfante à parede. Fez o mesmo à velha, que estava tão ocupada com preces mudas e a manter-se de pé com as suas velhas pernas trémulas que o eahanoir duvidava de que ela sequer se mexesse, pelo que foi de encontro à rapariga. Era uma jovem bonita, com uma cara pueril e luzidios cabelos castanhos acabados de lavar, mas as suas feições estavam retesadas pelo terror e o seu corpo tremia.

 

Não há razão para medo, linda menina... estes tratantes já não te podem fazer mal assegurou-lhe Tannath em Urial, tocando-lhe na face com o lado do seu estilete. O toque do aço quente de sangue causou um estremeção na rapariga, que se prolongou enquanto o eahanoir lhe deslizou a lâmina pelo pescoço e peito abaixo para a limpar, deixando um trilho vermelho. Diz-me, como te chamas?

 

S-S-Slavinia... conseguiu a rapariga gaguejar de olhos fechados. Tannath percorria-lhe a linha da cintura com o quebra-espadas, limpando-lhe o sangue na saia cinzenta.

 

Um nome lindo. Eu só quero saber uma coisa, Slavinia: viste uma eahanoir acompanhada por um eahan ruivo? Pensa bem antes de responder. Uma eahanoir muito bonita e um eahan ruivo...

 

A criada fechou os olhos e começou a soluçar, implorando-lhe balbuciante que não a matasse. Tannath ouviu passos e viu pelo canto do olho azul a velha a tentar fugir de saias levantadas. O quebra-espadas singrou pelo ar e enterrou-se entre as omoplatas da idosa, que levou as encarquilhadas mãos às costas e caiu de cara no chão. Slavinia gritou, soluçando e Tannath afagou-lhe a cabeça, mas o toque da sua mão era como o deslizar de uma serpente.

 

Shhh... não chores Slavinia. Não iria matar uma rapariga tão bonita como tu. Diz-me; viste uma eahanoir acompanhada de um eahan ruivo?

 

S-s-sim... semanas... há semanas. Uma eahanoir e um eahan... ruivo. Oh, Gorfanna, por favor...

 

Muito bem sorriu Tannath, acariciando a face da jovem com o indicador. Agora olha para mim com esses lindos olhos escuros e diz-me para onde foram.

 

Slavinia debatia-se com o medo que lhe obscurecia a memória, mas por fim, engolindo em seco, conseguiu reunir coragem suficiente para olhar o eahanoir nos olhos. Era o homem mais lindo que alguma vez vira, mas a sua beleza era fria, aterradora, com uma velada promessa de morte nos hipnotizantes olhos exóticos.

 

Ul-Syth... lembrou-se a rapariga. Foram num barco para Ul-Syth.

 

Tannath tornou a sorrir e pegou-lhe delicadamente pelo queixo.

 

Obrigado, linda Slavinia agradeceu, roçando-lhe os lábios com os seus. As pernas da rapariga tremiam descontroladamente e esta deixou as costas derraparem pela parede abaixo quando Tannath lhas virou, embainhando o estilete, colhendo o quebra-espadas das costas da velha e caminhando a passos ressoantes para a saída.

 

A noite recebeu-o com uma amena brisa marítima. A vila estava sossegada e o rapaz das estalas ressonava sentado no seu banco, de braços e cabeça pendentes e costas encostadas à parede. Tannath inspirou fundo e permitiu-se aquele breve momento de descontracção. Finalmente, um indício claro do destino de Slayra. Ao sair de Jazurrieh, lembrara-se da conversa da eahanoir, na qual ela referira ”que o líder do grupo que a havia ”capturado” fazia tenções de ir para Asmodeon. Sem qualquer outra pista, tivera de se orientar pelo senso comum, pensando no que faria se quisesse ir de Latvonia para Asmodeon, excluindo atravessar as estepes ou dar a volta à Cinta. Apanhar um barco afigurara-se-lhe como a solução mais óbvia. Tomska era o porto mais a Norte da Latvonia, pelo que Tannath decidira tentar a sua sorte na vila, e fora com redobrada satisfação que ouvira a rapariga da estalagem confirmar o seu raciocínio. Agora, tudo o que tinha a fazer era arranjar um barco para Ul-Syth, e depois ir até Asmodeon se necessário fosse...

 

Uma dor na omoplata fez com que o eahanoir esboçasse um esgar. As suas costas haviam ficado cobertas de cicatrizes de queimaduras e das garras do antroleo que durariam para toda a vida, mas apesar de tudo não eram essas as que mais lhe doíam. A dor no seu peito era bem mais difícil de suportar. O seu coração não mais sangrava; desde que saíra de Jazurrieh, passara a segregar bile rancorosa e abrasante que azedava a cada dia que passava. A vingança era agora o seu único propósito, a única coisa que fazia com que se levantasse a cada manhã para continuar a sua vida e cumprir o seu derradeiro objectivo.

 

Matar Slayra e Quenestil.

 

Aewyre arfou violentamente ao ser esmurrado no estômago e caiu de joelhos, agarrado pelos braços por um rufia. O seu agressor segurou a mão que queimara ao pegar em Ancalach, que jazia no chão, fumegando do punho com restos de carne queimada. Lhiannah estrebuchava no forte amplexo de um enorme homem careca de barba e bigode aparados, debaixo do olho de um quarto, que montava um cavalo e empunhava uma besta carregada. Os quatro haviam-nos apanhado como ratos numa armadilha debaixo da mira das suas bestas e Aewyre não tivera outra opção que não entregar a espada, embora estivesse ciente das consequências do acto. A Espada dos Reis chiara ao ser empunhada pelo rufia, queimando-lhe a mão, e o homem evidentemente não gostara.

 

Parem, seus cobardes! gritou Lhiannah, chicoteando com as pernas no ar, mas um aperto de fazer ranger as costelas aquietou-a.

 

Os rufias tinham todo o ar de serem habitantes da região, envergando casacos de lanuda pele de cabra com capas de lã e grosseiras botas de montanha. Não estavam particularmente bem armados, pois as suas bestas tinham ferrugem nos eixos e pareciam ter caído em desuso durante um longo período de tempo. Traziam ainda facalhões embainhados ao cinto, mas aparentemente faziam tenções de usar apenas os punhos, coisa que lhes parecia dar singular prazer, julgando pelo entusiasmo com o qual o rufia que segurava Aewyre incitou o seu companheiro a continuar. O homem da mão queimada não se fez de rogado e, assim que o seu camarada ergueu o guerreiro, presenteou-o com um soco na cara que o deitou ao chão.

 

O que... é que vocês querem? tossiu Aewyre, cuspindo sangue para o chão. As suas mãos ardiam com o toque álgido da neve, mas o sangue que lhe estava a ser bombeado pelas veias permitia-lhe ignorar o frio das suas roupas e cabelos molhados.

 

A única resposta que obteve foi um pontapé na barriga que o virou de costas. Lhiannah tornou a gritar e mais uma vez foi silenciada por um esmagador aperto do enorme rufião que a agarrava.

 

Fiquem com eles disse o homem montado num Leochlan claro e inteligível, apoiando a besta no ombro. Vou tratar de informar a senhora Linsha. Não se esqueçam, ela disse ”capturem-nos”, por isso não se excedam. E não percam o Flagício de vista!

 

Com isto, incitou o cavalo a um galope e rapidamente desapareceu nas árvores. O agressor de Aewyre pegou num pouco de neve com a mão ferida, esmagando-a para aliviar a pele queimada.

 

O que é que ele quis dizer com exceder? perguntou ao seu companheiro ao pisotear o abdómen de Aewyre, fazendo com que o jovem se encaracolasse de mãos na barriga. Eu não percebi admitiu, desferindo-lhe um pontapé na cara e salpicando a neve com gotas vermelhas.

 

Eu também não... anuiu o outro empolgadamente enquanto levantava Aewyre.

 

Larguem-no, seus porcos...! berrou Lhiannah, contorcendo-se como uma gata agarrada pela cauda. O rufião que a agarrava grunhiu incomodado e apertou a princesa bruscamente, cortando-lhe a voz.

 

Espera pela tua vez, lindinha... disse o que batia em Aewyre.

 

Não toquem nela, seus... Um murro no queixo calou o guerreiro, seguido de outro.

 

Mas o cachopo tem medo que eu lhe bata no nariz! riu o rufia, sacudindo a neve da mão ferida enquanto flectia a outra de nós já doridos.

 

Parte-lho! Parte-lho! afoitou o outro, excitado.

 

Não querendo desapontar o seu companheiro, o homem correspondeu, agarrando Aewyre pelos cabelos e levando-lhe o joelho à cara. O jovem, no entanto, baixou a testa e foi com ela que colidiu contra a rótula do seu agressor.

 

Seu filho da puta! rosnou o rufia, deitando Aewyre por terra com um furioso murro e agarrando o joelho magoado. Agora vou exceder-me...

 

Chega-lhe! Chega-lhe!

 

Cada baque surdo de pontapé fazia com que Lhiannah se contorcesse mais, ignorando a pressão crescente do amplexo do enorme homem que a segurava. Contudo, quando lhe bateu na perna com o calcanhar, o rufião rosnou e aplicou uma violenta pressão no tronco da arinnir, cuja visão se encheu de pontos negros e cujos membros caíram, pendendo frouxamente. O homem grunhiu uma interrogação e, ao constatar que Lhiannah não se mexia, deixou-a cair ao chão como um saco de nabos, coçou a cabeça e foi ter com os seus companheiros, que se pareciam estar a divertir mais do que ele.

 

Aewyre sufocou com um golpe nas costelas e viu-se incapaz de se mexer para evitar que o seu agressor lhe segurasse a cabeça e lhe desferisse um soco certeiro que por pouco não lhe deslocou o queixo. O canto da sua boca sangrava copiosamente... ou talvez fosse algum dente partido... era difícil dizer, tudo da cintura para cima era dor...

 

Posso? perguntou o rufião como uma criança que também queria brincar. Os seus dois companheiros olharam para ele, surpresos.

 

Onde está a...?

 

Com um grito, Lhiannah saltou para as costas do homem que a prendera, agarrando-se ao seu pescoço com um braço e cravando-lhe no peito o punhal que tinha escondido na bota. Aproveitando o ímpeto do salto, oscilou a cintura e atingiu com os pés a barriga do rufia que segurava Aewyre, empurrando-o para trás, mas antes que pudesse continuar, o rufião surpreendeu-a, grampeando-lhe com poderosos dedos o pulso do braço que empunhava o punhal que ainda estava cravado no seu peito e invertendo o movimento com uma torção do seu corpo, que atirou a arinnir ao chão. O rufia da mão queimada chamou algo abominável à princesa e preparou-se para lhe cair em cima, mas Aewyre ergueu-se, rosnando, e carregou sobre ele, empurrando-o com os ombros contra uma árvore, que despejou sobre ambos uma chuva de neve aquando do impacto. Antes que o homem recuperasse, Aewyre levantou a cabeça bruscamente, chocando com a nuca contra o queixo do rufia, cujos dentes estalaram, cortando-lhe a língua. Ignorando a dor na sua cabeça, o jovem pegou no seu adversário pelo pescoço e puxou-o para si, esmagando-lhe a barriga contra o joelho não uma, mas três vezes. O rufia gritou sufocado, escorrendo sangue da língua cortada e Aewyre, furioso, agarrou-o pelos cabelos e desferiu-lhe um murro ascendente no lado do queixo, tombando-o e caindo ele também com a força do selvagem golpe. O homem que o havia agarrado levantava-se com uma mão na barriga, ofegante e de facalhão desembainhado.

 

Lhiannah rebolou pela neve e pôs-se numa posição acocorada para enfrentar o seu adversário. O enorme rufião olhou para o punhal espetado abaixo da sua clavícula e para a princesa, parecendo estabelecer por fim uma ligação entre ambos. Quando o fez, rosnou, arrancou a lâmina da sua carne como se de uma incómoda picada se tratasse, descartou-a e avançou para a arinnir de mãos erguidas para a esmagar. Lhiannah levantou-se, olhando em redor para ponderar as suas opções. Se o energúmeno não era maior que Aewyre, certamente era mais pesado, e decerto não se iria conter. Worick falara-lhe inúmeras vezes ao longo dos anos acerca de enfrentar adversários mais altos, mas naquele momento não se lembrava de nenhum dos conselhos do thuragar. À medida que o rufião se ia agigantando à sua frente, Lhiannah sabia que as suas opções iam sendo reduzidas, mas estava a sentir dificuldade em tomar a iniciativa de atacar desarmada a montanha de músculos que se aproximava. Hesitante, flectiu as pernas, esperando uma oportunidade que surgiu quando o homem estendeu a mão para a agarrar pelos cabelos. Lhiannah agarrou-lhe o pulso, puxou-o para si e pontapeou com toda a força na direcção da virilha, mas o rufião era rápido para o seu tamanho e agarrou-lhe o tornozelo. Dando nova mostra da sua surpreendente agilidade, conseguiu ainda agarrar o braço da arinnir e arremessá-la para longe. Lhiannah voou contra uma árvore e nela embateu de costas, expelindo o ar para fora dos pulmões e caindo de cara na neve.

 

O rufia armado aproximava-se hesitante de Aewyre, vendo a raiva nas sangrentas feições do acocorado jovem. O corpo do seu companheiro estava hirto e imóvel no chão, com uma auréola vermelha na neve rodeando a sua cara enterrada. O guerreiro não se levantava, embora estivesse tenso como um arame e de mãos nuas enfiadas na crosta nívea. Incapaz de tolerar a tensão, o homem gritou e investiu, tencionando cravar o seu facalhão pela garganta de Aewyre abaixo, mas o jovem retribuiu o grito e levantou as mãos, desenterrando um calhau com o qual bateu no punho do adversário, desarmando-o com o golpe. Assim que o homem agarrou a mão em dor, o guerreiro oscilou violentamente o calhau com as duas mãos, estalando o crânio do rufia.

 

Lhiannah ainda estava a tentar respirar quando os dedos rudes do rufião se cerraram no seu pescoço e o chão desapareceu debaixo dos seus pés. A ferida no peito do homem vertia sangue, mas se ele sentia qualquer dor, ignorava-a muito bem, pois a sua atenção estava toda centrada na princesa e em esmagar-lhe a traqueia. Agora que estava perto do homem, podia sentir o seu hálito quente na cara, ver o quão feio era, com um nariz partido e uma boca de dentes furiosamente cerrados com os lábios fendidos pela cicatriz de um corte de lâmina. Lhiannah estrebuchou, rasgando a carne dos braços do rufião com as unhas e dando fracos pontapés na barriga deste, mas faltavam-lhe o ar e as forças para se libertar, e os dedos iam apertando mais e mais. Os pontos negros tornaram a aparecer, mas desta vez de nada lhe serviria fingir perder a consciência; ele ia espremer-lhe a garganta, ia matá-la... Algo quente e molhado respingou a cara da arinnir, abrindo-lhe os olhos. Os do rufião estavam atonitamente arregalados, mas algo vermelho se interpunha entre as caras de ambos e Lhiannah focou a visão inconscientemente para constatar que se tratava da ponta de uma espada. Os dedos na sua garganta afrouxaram e a princesa caiu de traseiro na neve, ficando aos pés do gigante, tossindo e incapaz de mover o seu corpo com a excepção da cabeça, que inclinou para cima para ver a ponta retrair-se para dentro do peito do rufião, que levou as mãos à sangrenta fresta e se virou para confrontar a sua morte. Aewyre varreu o ar com Ancalach e a cabeça do homem rodopiou, criando um obsceno padrão escarlate no vento, que rapidamente se esparramou na neve na qual pesados joelhos se afundaram, seguidos do resto do corpo, que nela entornou o seu fumegante conteúdo. Lhiannah ficou a fitar o guerreiro com uma estuporada expressão na cara molhada com o sangue do morto, vendo como ele ofegava condensação, empunhando a espada com as duas mãos e mantendo-se de pé sobre duas trémulas pernas.

 

Lhiannah... arquejou. Estás...? antes que pudesse terminar a frase, o jovem caiu e nesse momento a arinnir despertou do seu torpor causado pelo fugaz beijo que dera aos lábios da morte.

 

Aewyre! vociferou, tropeçando na direcção do guerreiro. Aewyre, estás bem?

 

Não... confessou o guerreiro, tentando levantar-se com braços vacilantes.

 

Lhiannah ajudou-o, atirando o braço do jovem por cima dos seus ombros e grunhindo com o peso ao erguê-lo.

 

Estás muito ferido?

 

Um pouco...

 

A arinnir carregou com o pesado guerreiro até ao regato, ajudando-o a sentar-se num penedo. Aewyre pousou Ancalach a seu lado, uniu as mãos em concha na água gelada e levou-as à cara, esfregando o sangue e os futuros inchaços nas zonas insensibilizadas.

 

Filho da mãe... praguejou o jovem, tossindo e abanando a cara.

 

Eu... vou ver se podemos usar as roupas deles... disse Lhiannah, abanando a água das mãos que usara para limpar o sangue do rufião na cara. Ficas bem?

 

Acho que sobrevivo... afirmou Aewyre, chapinhando mais um pouco a face.

 

A princesa acenou com a cabeça e encaminhou-se para o local do combate, rejeitando de imediato o cadáver decapitado do rufião e perscrutando os outros dois.

 

Estão mortos? perguntou em voz alta.

 

Acho que sim... respondeu o guerreiro. Não tenho a certeza. Lhiannah franziu o nariz, indecisa, mas sabia bem que as roupas molhadas certamente iriam matá-la e a Aewyre, pelo que acabou por se ajoelhar para despir os corpos. Para além das roupas, os frutos que a sua busca rendeu foram uma sacola de couro com as sobras de uma rodela de queijo, dois cantis com cerveja e uma besta com uma pequena aljava de virotes. Espirrando com o sopro frio do vento nos seus cabelos ensopados, a princesa apressou-se para o regato com o espólio aos braços.

 

Toma. Roupa de mortos disse a Aewyre, estendendo-lhas. Esgotada a adrenalina, os dentes do guerreiro tiritavam e os seus braços tremeram ao pegar nas rudes vestimentas. O jovem estendeu uma trémula capa à sua frente, ocultando Lhiannah da sua vista enquanto a princesa trocava a sua indumentária e, apesar das suspeitas da arinnir, esteve demasiado ocupado a combater o frio para pensar em baixar a capa para um olhar indiscreto. Quando Aewyre já estava prestes a tecer um comentário pertinente a mulheres, roupas e tempo, a princesa anunciou que estava pronta e foi a sua vez de resguardar a privacidade do guerreiro. Tal era o frio que Aewyre nem pensou duas vezes ao tirar as calças e vestir as de um homem que provavelmente matara, ignorando também quaisquer questões higiénicas. Quando terminou, puxou o capuz de lã da capa para abrigar os cabelos molhados e cruzou os braços para se envolver com ela.

 

O melhor é sairmos daqui. O outro é capaz de voltar, e deve trazer amigos sugeriu entredentes tiritantes.

 

Sim... concordou Lhiannah após um espirro, e os dois puseram-se a andar.

 

Evitaram o caminho que o cavaleiro seguira e arrastaram-se pelo trilho nevoso que acompanhava o regato originário da nascente pela qual haviam saído, lembrando-se mais tarde de caminharem pela margem para não deixarem pistas. Não sabiam aonde se estavam a dirigir nem se importavam, queriam apenas afastar-se tanto quanto possível do local e dificultar a vida a eventuais perseguidores. Apenas a exaustão causada por fome e falta de sono os forçou a parar após o que parecia ter sido o passar de horas, julgando pelo cabisbaixo Sol. Ambos ofegavam e já não sentiam as pernas quando pararam junto a um regato, apoiando-se com as mãos nos joelhos. Havia algo de sossegado naquele local, algo que os persuadira a cessar a corrida para além do cansaço e das tonturas causadas pela fome. Encontravam-se em terreno nivelado, no qual o riacho se dispersava por entre seixos antes de tornar a descer pela encosta abaixo. Uma estranha melodia distinguia-se por entre o rumorejar da água, semelhante a guizos que o par veio a constatar tratarem-se de contas de gelo agarradas a juncos que chocalhavam com o correr da água. O dia punha-se lentamente, adumbrando o local com descontraídas sombras e despertando os ralos para afinarem os seus instrumentos em preparação da sua sinfonia nocturna.

 

Eles... vão... apanhar-nos... constatou Aewyre.

 

Sinceramente... não me interessa... confessou Lhiannah não aguento... mais. Tenho fome... tenho sono... e estou exausta.

 

Está bem... vamos descansar... um pouco.

 

O par sentou-se no chão, cobrindo os traseiros com as capas, e inspiraram fundo para recuperarem o fôlego. Lhiannah abriu a sacola que pilhara aos rufias e tirou uma mão-cheia de bocados de queijo, que prontamente enfiou na boca, oferecendo o resto ao seu companheiro.

 

Aewyre aceitou e mastigou os bocados com sofreguidão, sendo surpreendido por uma lancinante dor num dente, que fez com que levasse a mão à boca, grunhindo.

 

Que foi? assustou-se a princesa, deixando a sacola cair. O que saiu da boca do jovem foi uma série de vitupérios e urros abafados pela mão que a tapava enquanto a outra batia furiosamente no chão. Aewyre, o que é que se passa?

 

O meu dente! berrou o guerreiro em resposta cuspindo sangue e bocados de queijo.

 

Está quieto! Deixa-me ver! Lhiannah pegou Aewyre pelos braços, virando-o para o Sol poente para ter um mínimo de luz. Abre a boca, deixa-me ver.

 

De olhos cerrados, o jovem tornou a cuspir antes de agir em conformidade com o pedido da arinnir, que lhe encostou uma mão à testa e pegou pelo dorido queixo com a outra para lhe abrir a boca. Franzindo o cenho, Lhiannah observou o interior da boca de Aewyre e inalou através dos dentes ao ver a causa da dor.

 

Tens o dente partido!

 

Oh boa... lamentou-se o guerreiro, cuspindo mais um pouco de sangue.

 

A sério, ele está mesmo feio! Tens de arrancar isso!

 

Aewyre empalideceu como se lhe tivessem dito que teria de amputar a mão da espada.

 

Dá-me a cerveja...

 

Não comeste nada... tens a certeza...?

 

Dá-me a cerveja! insistiu o jovem. Por mais que não seja, desinfecta o dente.

 

Lhiannah ainda achava que era um disparate, mas compadeceu-se de Aewyre e passou-lhe o cantil, cujo conteúdo o guerreiro prontamente bebeu, bochechando e tornando a cuspir. A cerveja choca entrou-lhe em ebulição no estômago vazio e o jovem fez uma desagradada careta, levando a mão ao queixo.

 

Assim que chegarmos à cidade, temos de encontrar quem te arranque isso...

 

Perante essa perspectiva, foi quase com alegria que Aewyre ouviu o som de passos e vozes a aproximarem-se do local onde se encontravam. Os dois ergueram-se de imediato, Lhiannah de besta em mão e Aewyre empunhando Ancalach com as duas, exaustos e desanimados mas prontos a enfrentar quem quer que aparecesse. Os seus perseguidores surgiram descendo pela encosta abaixo, um grupo de homens apeados armados com machados liderados por um cavaleiro, o mesmo que os havia capturado com os três rufias naquela manhã. Aewyre flectiu as pernas e crispou os dedos no punho da espada, sentindo tonturas causadas pela fermentação da cerveja no seu estômago vazio. Lhiannah fez pontaria com a besta e pressionou o gatilho, mas o cordão estivera retesado o dia inteiro e perdera a força, lançando um vacilante virote que acabou por derrapar pelo chão. A arinnir praguejou e desembainhou o seu punhal da bota, postando-se ao lado e ligeiramente atrás do seu companheiro. Sete... eram sete machados a mais para enfrentarem no estado em que se encontravam, mais o cavaleiro que lhes apontava a sua besta com um cordão certamente acabado de retesar e que ordenou à sua montada que parasse, assestando a sua arma na direcção do par.

 

Rendam-se recomendou numa voz totalmente desprovida de emoção enquanto os seus homens se espalhavam num círculo em redor do par. Não têm hipóteses.

 

Os teus amigos também pensavam isso... provocou o guerreiro em bravata, embora o mundo estivesse desfocado e as suas pernas ameaçassem ceder sob o peso do seu corpo.

 

Vendo a mulher loura concordar silenciosamente com o jovem, o homem montado apontou-lhe a besta, lembrando-se do seu companheiro decapitado. Um projéctil sibilou pelo ar e atingiu-o em cheio no peito, derrubando-o do cavalo. Palavras arcanas ressoaram no ar antes de o corpo do cavaleiro bater no chão, causando uma pequena explosão de água no regato, que se espalhou pelo ar e choveu por cima de todos.

 

Animal! berrou o próprio, carregando pela encosta abaixo lado a lado com Worick, manguais e martelo erguidos no ar. Atrás deles vinham Pestanas e um grupo de Corações Quebrados ansiosos por retribuir o ataque dos Filhos do Flagelo.

 

Um dos homens armados de machado recuperou-se da surpresa antes de Aewyre e atacou-o com um golpe descendente. O jovem varreu desajeitadamente com Ancalach, cortando a arma pelo cabo mas ficando numa posição de desequilíbrio da qual não se iria recobrar antes que o seu atacante lhe partisse a cabeça com o que sobrava do cabo do machado. O punhal de Lhiannah impediu-o de efectuar o ataque ao rodopiar pelo ar e pela sua garganta adentro. A corrente de um dos manguais de Animal enrolou-se à volta do machado do seu adversário, tirando-lhe a arma do caminho para lhe dar um esmagador beijo na cara com o seu par. Worick desviou-se de uma machadada diagonal e ripostou com uma martelada lateral que estilhaçou o joelho do adversário. Agarrando o estoque com as duas mãos, Pestanas afastou um golpe e, girando em si, cravou a ponta da espada na ilharga do oponente. Numa questão de instantes, quatro Filhos haviam caído e apenas três permaneciam de pé, mas não se aperceberam disso e os Corações não se incomodaram em lhes chamar a atenção para esse facto. Outra seta de Maneta tirou a vida a um quinto e os dois últimos tentaram tarde demais retirar perante o ataque vingativo dos Corações que se abateram sobre eles, desfazendo-os sem qualquer misericórdia.

 

Todos ficaram parados no breve rescaldo da escaramuça, arquejando, deixando o coração atenuar, dando tempo aos tremores dos membros resultantes da adrenalina que ficara por gastar. Lhiannah foi a primeira a quebrar a folga.

 

Worick!

 

Cachopa!

 

Protector e protegida correram um para o outro e a arinnir abraçou o seu mentor afectuosamente, que retribuiu passivamente. Aewyre ofegava, apoiando-se em Ancalach com as duas mãos para se manter fixo num ponto do mundo que girava à sua volta. Os Corações acercaram-se dos três, praticamente ignorando a princesa e o thuragar e de olhos postos naquele que empunhava o Flagício da Sombra.

 

Obrigado... pela ajuda agradeceu o guerreiro, alheio ao atento escrutínio do qual estava a ser alvo. Nem fazem ideia do...

 

Aewyre! Lhiannah! guinchou Taislin, galopando pela encosta abaixo com Allumno, Mamã e Maneta no seu encalço.

 

A arinnir largou Worick para abraçar o burrik e o thuragar foi ter com Aewyre, apertando-lhe a mão e dando-lhe palmadas encorajadoras no braço. Allumno chegou pouco depois e dirigiu-se ao seu protegido, mas Lhiannah correu a abraçar o mago, surpreendendo-o vivamente. Mamã sorria de braços cruzados, contente com a alegria dos companheiros.

 

Oh Allumno, desculpa! pediu a princesa, passando-lhe os dedos pela ferida coberta de cataplasma seca na face. Não era eu, foi aquela rapariga que eles estavam a perseguir, ela mostrou-me um colar, disse umas palavras estranhas e eu... ela controlou-me, não era eu! A atenção dos Corações que se haviam reunido à volta dos companheiros desviou-se momentaneamente de Aewyre para a revelação de Lhiannah, que se apercebeu disso e aproveitou para se dirigir a eles. Por favor, desculpem-me. A culpa foi minha, mas... não era eu.

 

O silêncio foi a única resposta daqueles aos quais o pedido de perdão fora dirigido. Maneta e Pestanas permaneciam inexpressivos e Animal não dava mostras de entender o que se estava a passar, habituado a celebrar as vitórias com os seus companheiros quando estas eram alcançadas.

 

Um olho tetro! sobressaltaram-se Allumno e Mamã em uníssono, apercebendo-se subitamente das implicações da confissão da princesa e suscitando um rebuliço de compreensão entre os Corações Quebrados. De gema refulgente na testa, o mago pegou na cara de Lhiannah e olhou-a nos olhos. Não te mexas. Isto não vai doer nada.

 

O que tentou Lhiannah perguntar antes de ser silenciada pela sensação de algo a desembaraçar-lhe um novelo dentro da cabeça, puxando-lho para fora pelos ouvidos. A intervenção feita com Essência durou pouco e o único resquício que deixou foi uma leve vertigem.

 

Está feito suspirou Allumno de alívio. Pela minha parte, estás desculpada; foi um poder negro que te enfeitiçou. Espero que os outros compreendam... acrescentou, olhando para Mamã e a sua comitiva.

 

Silêncio.

 

Worick postou-se ao lado de Lhiannah, pelo sim e pelo não.

 

Foste uma vítima da insídia dos Filhos, Lhiannah reconheceu Mamã, aquietadora. E aquilo que nós jurámos fazer foi ajudar as vítimas.

 

Worick relaxou e Lhiannah sorriu tristemente.

 

Perdoem-me pela dor e pelas perdas que vos causei... não há nada que eu possa...

 

Mamã pôs essa hipótese de lado com um gesto de mão.

 

A culpa não foi tua, Lhiannah. Trata-se de mais um acto vil pelo qual os Filhos do Flagelo pagarão. Vocês estão bem? inquiriu, referindo-se à arinnir e a Aewyre.

 

Esclarecido o assunto, os Corações devolveram a sua atenção ao filho de Aezrel Thoryn, que olhou em redor para as estranhas expressões que o fitavam.

 

O que foi?

 

Pelo amor de Assana, é mesmo Ancalach... exclamou Maneta, torcendo o tufoso bigode.

 

O Flagício da Sombra... assombraram-se os restantes, acercando-se do jovem. O próprio Pestanas piscou-as, incrédulo, e emitiu um som gutural de espanto.

 

O que é que se passa aqui? quis Aewyre saber, olhando à volta.

 

Não sabes que não podes esconder nada a uma mãe? questionou Taislin, piscando o olho a Mamã.

 

Esconder...? Oh não... lamentou-se o jovem, apoiando a consternada testa nas duas mãos por cima do pomo de Ancalach.

 

Um dos Corações ajoelhou-se perante ele, estendendo a mão para tocar nos copos da Espada dos Reis, sem contudo ousar fazê-lo.

 

Vosso pai foi uma lenda, Aewyre Thoryn explicou o suplicante. Será para mim uma honra servi-lo.

 

A cabeça de Aewyre ergueu-se de sobressalto e os seus olhos arregalaram-se.

 

E para mim disse outro, seguindo o exemplo do seu companheiro.

 

E para mim.

 

Para mim também.

 

Como podemos ajudar?

 

Em pouco tempo e para grande espanto dos companheiros, os Corações Quebrados estavam todos de joelhos menos Mamã e os seus três tenentes, que também não haviam esperado uma reacção tão efusiva.

 

Olha que esta... admirou-se Worick, coçando a cabeça.

 

Eu não posso crer... suspirou Aewyre. Ouçam, eu caí numa derrocada subterrânea, ia morrendo afogado, fui espancado, parti um dente, quase morri de frio e há dois dias que não como. Salvaram-me a vida e estou-vos muito grato, mas eu passei por Tanarch com um único propósito: vou para Asmodeon descobrir o que aconteceu ao meu pai e...

 

Um nobre fim! declamou um dos suplicantes.

 

Iremos ajudá-lo!

 

E purgaremos Tanarch dos Filhos do Flagelo!

 

O Flagício regozijar-se-á uma vez mais com o sangue da Sombra!

 

Ouçam! exaltou-se o jovem. Muito obrigado, vocês honram-me, mas eu não quero a vossa ajuda. Já permiti que demasiadas coisas me desviassem do meu propósito e não vou permitir que outra o faça. Vocês têm um conflito por resolver com os Filhos do Flagelo e acho muito bem que acabem com a raça deles, mas eu já passei por isto antes e os meus amigos e todos os que nos ajudaram iam morrendo quando metemos o nariz onde não éramos chamados. O meu pai é mais importante e eu jurei que não morreria antes de saber o que lhe aconteceu. Percebem?

 

Silêncio.

 

Fizera-se noite, entretanto, e as sombras reflectiram a disposição dos Corações perante o desabafo daquele que haviam momentaneamente imaginado como o filho pródigo do homem que havia salvo Tanarch e toda Allaryia. A surpresa cedo deu lugar ao desapontamento, que não tardou a evolver para uma sensação de revolta que fez com que se levantassem e se afastassem do presunçoso jovem. Aewyre considerou que talvez tivesse sido ríspido demais, mas naquele momento parecera-lhe a coisa acertada a fazer, pelo que permaneceu calado e deixou que o ressentimento afastasse os Corações. Os seus companheiros nada disseram e teve de ser Mamã a dar o primeiro passo para quebrar o silêncio.

 

Respeitamos a tua decisão, Aewyre assegurou, avançando na sua direcção. Não deves de forma alguma sentir-te em dívida para connosco; ajudámos-vos porque era a coisa certa a fazer. A mulher pôs-lhe a mão no ombro. Desejo-te sorte. Se precisarem de mais alguma coisa...

 

O guerreiro agarrou-lhe a mão, sentindo um agradável formigueiro com o ternurento toque dos seus dedos.

 

Já fizeram mais do que aquilo que alguma vez poderíamos esperar de desconhecidos, Mamã disse, cansado. Sinto-me um ingrato, mas...

 

Não digas isso rejeitou Mamã, indicando a Aewyre que se calasse. Não te sintas culpado. A realidade nunca corresponde àquilo que os homens idealizam segredou-lhe, dando um passo atrás. Que Assana te acarinhe. E a vocês todos.

 

Mainal pronunciou Animal atrás da sua líder.

 

Maneta e Pestanas avançaram para se despedirem dos companheiros, embora dessem a impressão de que o seu verdadeiro interesse residia em ver Ancalach mais de perto antes de se irem embora.

 

Tomem cuidado convosco, jovens aconselhou o velho arqueiro, excluindo Worick e Allumno com respeitosos acenos de cabeça. Desejo-vos sorte.

 

Pestanas emitiu qualquer coisa gutural e esboçou um sorriso de lábios enfiados na boca. Os companheiros retribuíram os acenos de cabeça e nada mais foi dito enquanto os Corações Quebrados se retiravam silenciosamente pela encosta acima, lançando um ocasional olhar para trás na direcção de Aewyre e Ancalach. Quando o último desapareceu na noite, Allumno limpou a garganta e dirigiu-se ao seu protegido, pousando-lhe a mão no ombro.

 

É bom ver-te são e salvo, Aewyre.

 

É bom ver-vos a vocês também, Allumno... O jovem olhou para Worick e Taislin, que tornou a abraçar a perna de Lhiannah. As nossas coisas...?

 

O mago assobiou e obteve um zurro em resposta, que anunciou o princípio da descida de Alfarna pela vertente com o equipamento dos companheiros às costas. Ninguém trocou palavra enquanto Aewyre e Lhiannah tiravam as capas para vestirem as armaduras, apercebendo-se pela primeira vez da sensação de nudez que os acompanhara desde que haviam caído nas cavernas.

 

Qualquer dia estamos como tu e já não nos conseguimos livrar destas coisas, Worick gozou Aewyre.

 

Era o melhor que tinhas a fazer. Talvez assim não partisses dentes.

 

É verdade lembrou-se Allumno, que conversa foi essa de um dente partido?

 

Estava demasiado escuro para que alguém visse a súbita palidez de Aewyre.

 

Oh, isso? Não foi nada, levei uns socos...

 

Partiram-lhe um dente interrompeu Lhiannah, puxando uma correia da armadura. Vai ter de o arrancar antes que aquilo infecte; está bastante feio.

 

Deixa-me ver... pediu o mago, fazendo tenções de pegar na cara do seu protegido, que se afastou como se uma praga se aproximasse.

 

Nós devíamos era pôr-nos a caminho em vez de olharmos para os meus dentes! insistiu o guerreiro.

 

Aewyre, não sejas criança! admoestou a princesa, levando as mãos às ancas. Se isso infecta, podes perder bem mais que um dente.

 

Perante a obstinada recusa do jovem em permitir que Allumno o observasse, o mago suspirou.

 

Como queiras. Para onde vamos agora? perguntou, cruzando os braços.

 

Aewyre pensou enquanto apertava as últimas correias da sua armadura, mantendo-se atento aos seus companheiros, não fosse um deles agarrá-lo pelas costas para que Allumno lhe arrancasse o dente. Ou o Worick...

 

Vamos para a cidade. Quero dormir numa cama debaixo de um tecto sólido, comer uma boa refeição quente com cerveja, ouvir mercadores a gritarem aos meus ouvidos... levou a mão ao maxilar e ir a um templo de Acquon...

 

Acquon não te vai fazer outro dente repisou Lhiannah, embainhando a sua espada.

 

Isso vamos nós ver. A que distância fica a cidade... como é que ela se chama?

 

Val-Oryth! esclareceu Taislin prontamente.

 

Val-Oryth. Fica muito longe?

 

Se seguirmos o ribeiro, acabamos por lá chegar respondeu Worick. Se fôssemos agora, chegávamos de manhã...

 

Acho que apenas tu te encontras em condições de o fazer, Worick explicou Allumno, apoiando-se com ar cansado no cajado. Fizemos marcha forçada e o Aewyre e a Lhiannah devem estar exaustos, não? O par acenou afirmativamente. Pois bem, proponho que nos afastemos deste local infausto e que montemos acampamento. De manhã seguimos para a cidade.

 

Cambada de rabos moles... resmungou o thuragar, pondo-se prontamente a caminho de martelo ao ombro. Andem daí então. Quero que me contem melhor essa história das cavernas.

 

Há muito para contar... adiantou Aewyre, muita coisa que espero que sejas capaz de me explicar, Allumno.

 

O guerreiro e o mago foram atrás de Worick, seguidos por Taislin, Lhiannah e Alfarna. O burrik saltitava alegremente ao lado da princesa, parecendo tudo menos cansado e com disposição para falar e ouvir.

 

O que se passa contigo e o Aewyre?

 

A arinnir estranhou a pergunta e franziu o sobrolho.

 

Que queres dizer?

 

Bom, para já, não se mataram um ao outro. E parecem... não sei. Mais calmos, deixaram de parecer cão e gato. Lhiannah nada disse, limitando-se a ajeitar o arco ocarr ao ombro. Fizeram alguma coisa nas cavernas?

 

Taislin!

 

Uii! Houve malandrice!

 

O que é que houve? perguntou Worick, vários passos à frente.

 

Taislin, está calado!

 

O burrik ria e saltaricava como um demonete, orgulhando-se da sua perspicácia e proclamando-a para que todos ouvissem. Os companheiros não tiveram outra escolha que não ignorá-lo até encontrarem um local para montarem o acampamento.

 

Linsha caminhava pelos escuros corredores iluminados por bruxuleantes tochas das masmorras de Val-Oryth, conduzida pelo meirinho da cidade, um indivíduo alto e gordo que empunhava o ceptro prateado do seu ofício com orgulho, que também transparecia na sua altiva maneira de andar. O homem vestia um apertado e pretensioso gibão cor de vinho com gola de pele de lebre, calças cinzentas justas e um par de sapatos pretos com pontas alongadas. Ao seu pescoço trazia um pesado colar com o símbolo de Bellex, um punho de ferro erguido pronto a castigar os culpados colado a uma mão aberta pronta a conceder misericórdia a quem a merecia. Claro que a corrente de ouro do ornamento destoava um pouco do sóbrio dogma do deus da justiça, mas isso era uma questão da vaidade do meirinho... Linsha também não se encontrava no direito de criticar a fatuidade de ninguém e sabia-o, pois, apesar de cultivar uma cabeleira despenteada, a sua indumentária nada ficava a dever ao vestuário da mais abastada burguesa. O seu vestido era constituído por duas camadas, sendo a superior de fina lã roxa que terminava em sinuosos filamentos afilados nos ombros e nos joelhos e a inferior de linho preto. Os seus sapatos negros de cordovão deslizavam silenciosamente pelas lajes do corredor e a sua gargantilha ornada brilhava à luz das tochas.

 

Será sábio mantê-la aqui, minha senhora? duvidou o homem. As crianças desaparecidas agitaram a população. Se alguém descobre...

 

Os meus homens estavam a seguir as minhas ordens quando a trouxeram cá, meirinho esclareceu Linsha bruscamente. Mestre Malagor conferiu-me total autoridade para lidar com esta situação.

 

Bem sei, senhora, mas questiono a sensatez de...

 

Contestais a vontade do Alto Vulto? A mulher parou subitamente e o meirinho achou por bem virar-se para ela, ciente de que se excedera.

 

As minhas desculpas, senhora Linsha. Sobrelevei-me admitiu, baixando a cabeça em deferência.

 

A fungadela da mulher deu a entender que não toleraria mais deslizes e o homem retomou o passo obedientemente, guardando as suas dúvidas e pensamentos para si mesmo. Tornou a parar quando chegaram ao fundo do corredor, no qual se encontrava uma porta de madeira reforçada com placas e rebites de ferro. Murmurando qualquer coisa, remexeu no molho de chaves que trazia ao apertado cinto e escolheu a certa à terceira tentativa.

 

Há muito que os níveis inferiores não são usados. Fostes sábia em ordenar aos vossos homens que a levassem lá bajulou o meirinho numa tentativa de se redimir enquanto acendia uma lanterna de ferro.

 

Na verdade, foi uma recomendação dos vossos prestáveis servos. O homem não proferiu nem mais uma palavra durante a descida pelas húmidas escadas em espiral e a breve passagem pelas bafientas galerias dos níveis inferiores, cujos únicos pormenores de relevo eram os braços esqueléticos desgraçadamente estendidos por entre as grades seladas, de dedos cravados por entre as frestas das frias lajes do chão. Por fim, chegaram a um corredor no meio do qual ardia um vigoroso archote.

 

Seguimos a vossa recomendação de manter uma fonte de luz forte à porta tornou o meirinho a tentar.

 

Se não o tivessem feito, poderiam estar mortos comentou Linsha secamente. Pode retirar-se.

 

Senhora?

 

O que vamos discutir não é para os seus ouvidos.

 

Mas senhora, deixar-vos sozinha com...

 

A mulher proferiu uma brusca e enfática frase com a Palavra e executou um movimento para trás com o delgado braço, derrubando o meirinho com uma força invisível. O homem abateu-se no chão com toda a sua corpulência, grunhindo como um porco empanturrado e a chama da vela na lanterna morreu quando esta caiu ao chão, atenuando a iluminação do corredor.

 

Quereis porventura proteger-me? indagou Linsha, farta de ouvir o meirinho.

 

O homem inalou com dificuldade antes de responder.

 

Perdão... senhora... não queria...

 

Desapareça! Pergunte pela saída aos seus amigos ratos se se perder!

 

Temente da voz da feiticeira e dos efeitos desta, o homem ergueu-se atabalhoadamente e desapareceu na escuridão, deixando no ar um som de pesados passos apressados. Linsha suspirou exasperadamente. Mestre Malagor já várias vezes lhe dissera para ter tento na língua e rédeas no temperamento, mas o que verdadeiramente lhe faltava era a calma do seu mentor, e não tinha paciência para pessoas estúpidas. Permitindo-se algum tempo para que os vapores da fervura na sua cabeça se dissipassem, Linsha então deu os passos que faltavam para se postar defronte do gradeado por cima do qual ardia a única tocha daquele nível. A mulher pela qual se dignara a percorrer aquele esquálido percurso estava de costas para ela, mesclada às sombras forçosamente recolhidas a um canto devido à luz do archote.

 

Peço desculpa pelas acomodações. Não foi possível trazê-la directamente à minha presença. Desejo falar consigo.

 

A harahan virou-se, o seu corpo dividido entre a fronteira da luz e da sombra.

 

Conduziram-me para dentro de uma cela com fígados... como a um animal. Linsha tencionou explicar-se, mas Hazabel deu um passo em frente. Desceram a grade e plantaram um archote, para me manter presa cá dentro... como a um animal. Outro passo e a feiticeira teve de engolir em seco ao ver as feições ferinas da mulher, comparáveis às de uma fera enjaulada. Deixaram-me aqui uma noite inteira, presa, sem nada dizer, como a um animal. E agora com um célere salto, Hazabel atirou-se contra as grades, embatendo nelas com a testa e atravessando-as com os braços, que só não alcançaram Linsha graças ao atempado passo que deu para trás querem falar?!

 

As garras negras da harahan pareciam cravadas no ar enquanto a feiticeira esperava que as frenéticas batidas do seu coração amainassem. Ambas as mulheres ficaram em silêncio, estudando-se mutuamente como duas adversárias. Linsha considerou usar a Palavra para pôr a harahan na ordem, mas Malagor instruíra-a especificamente para não antagonizar a filha da Sombra.

 

Como estava a tentar dizer... retomou peço imensa desculpa pela forma como foi tratada. As circunstâncias assim o exigiram... e não podíamos deixar que a primeira filha d’A Sombra a pisar Val-Oryth em anos nos escapasse, principalmente agora.

 

Hazabel pareceu acalmar e afastou-se da grade, esfregando a testa.

 

Agora? O que é que se passa agora? E fui a primeira em anos?

 

Sim. Desde que o nosso Senhor se ausentou, os filhos d’A Sombra tornaram-se dormentes, esconderam-se com medo. A sua presença aqui não só é portentosa como também fortuita...

 

Dispenso a bajulice. Que tem esta altura de importante? Linsha sorriu, contente por estar a lidar com outra pessoa que

 

dispensava formalidades.

 

Aewyre Thoryn está em Tanarch, e traz consigo o maldito Flagício...

 

Eu sabia! exclamou Hazabel, achegando-se uma vez mais da grade. Onde está o desgraçado?

 

São... conhecidos?

 

A harahan agarrou as barras e enfiou a cabeça por entre elas, sibilante.

 

O maldito é meu. Diz-me onde ele está.

 

A feiticeira não esperara uma reacção tão efusiva e esqueceu-se momentaneamente do que estivera para dizer, lembrando-se pouco depois.

 

O nosso interesse não é o jovem, mas o Flagício e...

 

Para chegarem à maldita espada, têm de matar o desgraçado, seus idiotas!

 

Mas o meu mestre... não podemos simplesmente matar o legatário ao trono de Ul-Thoryn. As atenções que recairiam sobre Tanarch...

 

Eu mato-o! Soltem-me e eu mato-o sozinha! Não se preocupem com os vossos preciosos segredos, não temam ser descobertos, Aewyre Thoryn foi morto por uma harahan, o seu fígado arrancado e bebido até à última gota! Ninguém suspeitará de uma cabala de adoradores de Seltor!

 

Linsha começava a gostar da harahan. A mulher era perspicaz, apesar de ter uma percepção errada da situação.

 

Aewyre Thoryn e os seus companheiros deram mostras de serem... capazes. Se os conhece, já devia saber isso; já agora, satisfaça-me a curiosidade: como os conhece?

 

São assuntos que só a mim dizem respeito. Por que querem vocês Ancalach?

 

Linsha fez uma desagradada careta, como se tivesse ouvido uma palavra maldita.

 

São assuntos que só a nós dizem respeito.

 

Os lábios negros de Hazabel torceram-se num sardónico sorriso.

 

É justo. Agora, vais soltar-me ou não? Digam-me apenas onde o jovem Thoryn se encontra que ele deixará de ser um problema.

 

Repito, o jovem e os seus amigos não representam perigo algum. E o que ele porta, é que nós desejamos, nada mais.

 

Pois bem, digam-me onde o posso encontrar que eu trago-vos Ancalach.

 

Linsha tornou a retrair-se ao ouvir o nome da Espada dos Reis.

 

Como pode uma filha d’A Sombra pronunciar o nome do Seu Flagício com tanta leviandade?

 

Poupa-me, rapariga.

 

”Rapariga?”, indignou-se a feiticeira, embora conseguisse não o exteriorizar.

 

Podemos deixar-nos de cerimónias. Não sei quem o teu mestre é nem me interessa; de mestres já eu estou farta. Vocês querem o Flagício, eu quero o jovem Thoryn. Vocês soltam-me, eu mato-o, vocês ficam com a espada. Coisas mais simples há poucas na vida. Que me dizes?

 

Linsha cerrou os punhos para se acalmar, repetindo as recomendações de mestre Malagor na sua cabeça de modo a não se exaltar, e reflectiu acerca da proposta da harahan. Não fora bem isso que o seu mestre tivera em mente: lançar uma cadela raivosa contra Aewyre Thoryn, mas havia certas vantagens nessa possibilidade e pelo menos teriam um bode expiatório credível.

 

Muito bem... concordou por fim. Contudo, Aewyre Thoryn não está sozinho, e os seus companheiros já provaram ser formidáveis. Imagino que necessite de ajuda?

 

O orgulho de Hazabel gritava o contrário, mas a sua experiência levou-a a concordar com a jovem feiticeira.

 

Seria útil algum apoio... mas aí vocês serão envolvidos.

 

Não se preocupe com isso. Temos os nossos... joguetes assegurou-lhe Linsha com um sorriso malicioso.

 

Entendo. Mas então qual é a minha utilidade?

 

Bem visto, mas os nossos joguetes não são particularmente capazes. Serviriam apenas como distracção, para lhe abrir caminho ou dar tempo. Que me diz?

 

Hazabel meditou, olhando para nenhum ponto em especial enquanto apertava as grades. Ia ser usada, isso era óbvio, e o mais certo era ser descartada assim que tivesse cumprido o objectivo proposto, possivelmente eliminada. Não obstante, estava a ser-lhe concedida uma oportunidade para acabar com o jovem Thoryn de vez, e desde que saíra das estepes a harahan temera nunca mais lhe encontrar o rasto outra vez.

 

”Pois bem, deixa-os pensar que te têm na mão. Mato o jovem Thoryn, mato esta estouvada e depois levo a Ancalach ao maldito. E depois...”, pensou Hazabel, agradada com a perspectiva. Aceito.

 

Linsha sorriu. Mestre Malagor iria ficar satisfeito.

 

Comparada com Ul-Thoryn ou Vaul-Syrith, Val-Oryth não era uma cidade grande, embora fosse uma grande cidade de Tanarch, e um dos mais industriais burgos do Norte de Allaryia graças à sua proximidade das montanhas ricas em minérios da Cinta. Altas muralhas de granito sustentavam passadiços carregados de teimosa neve que, à semelhança do resto da paisagem, denegava a vinda da Primavera, um fardo que tardava em desaparecer. O degelo era, porém, implacável e as ruas estavam lamarosas e alagadiças, ladeadas por uma crusta de neve e gelo pretos. A entrada pelo portão a Sul ia dar directamente ao Distrito dos Ferreiros (conhecido pelos locais como o Distrito do Chinfrim), e os fumos escuros das fornalhas já eram visíveis fora das muralhas, dando a ideia de que as nuvens pardacentas no céu eram originadas pelos labores dos operários do distrito que, apesar do nome, albergava ferreiros, correeiros, ourives, carpinteiros entre outros. Os companheiros passaram pelo portão do Sul sem grandes problemas, embora os guardas tivessem lançado olhares pouco amigáveis a Aewyre e decidido fazer mais perguntas ao grupo do que aquilo que certamente era habitual. Já dentro da cidade, pararam e deixaram-se mergulhar no civilizado turbilhão de impressões que de imediato os acometeu: o repique de martelos, o cheiro a carvão de lenha, a rapsódia de vozes, o soprar de foles, o raspar de couro, a farfalheira das aparas de madeira, as ondas de calor humano e de chamas, a pungente fragrância de excrementos de cães e farelo fermentado usados pelos correeiros, os gemidos do ferro a ser moldado contra a sua vontade, o leve tinir dos destros pregos dos ourives e o omnipresente murmúrio de fundo dos locais densamente populados.

 

Alguém me explica por que é que eu estou tão contente por ouvir esta balbúrdia? perguntou Aewyre.

 

Ninguém o soube fazer, mas todos sentiam o mesmo ou algo parecido, uma sensação de familiaridade, de segurança, quase como... um regresso a casa. O grupo deixou-se ficar por longos momentos no mesmo lugar, cinco vigas contra uma maré de gente que por elas passava, incomodada, apressada e atarefada; aprendizes sujos de fuligem com aventais de cabedal, correeiros que exalavam um nauseante aroma a fezes, carpinteiros com aparas de madeira nos cabelos e serradura nas pestanas, todos lançavam mais que um olhar indiscreto ao jovem guerreiro que, com uma cabeça acima da multidão, não podia deixar de chamar a atenção. Contudo, Aewyre estava demasiado enlevado com as vicissitudes urbanas para reparar na animosidade que lhe era direccionada.

 

Estamos no caminho fez Allumno notar, puxando Alfarna pelas rédeas para a impedir de afocinhar os transeuntes.

 

É melhor irmos andando.

 

Os companheiros acataram a recomendação do mago e deixaram-se arrastar pela maré de corpos, bebendo da loucura urbana com um gozo que, a menos que tornassem a passar uma temporada nas estepes, certamente nunca mais sentiriam.

 

Então e agora? perguntou Worick. Para onde vamos? E tu fica quieto... ameaçou, vendo que Taislin começava a esticar as mãos para as bolsas dos pedestres.

 

Porquê? indagou o burrik inocentemente. Aquela pobre gente estava tão afadigada e ainda carregavam aqueles fardos à cintura...

 

Está quieto, Taislin... disse Lhiannah, dando-lhe uma suave palmadinha na cabeça. Não nos arranjes problemas.

 

Sim, porque os olhares que estamos a receber não são particularmente amistosos... reparou Allumno, lembrando-se da explicação de Mamã ao olhar em redor.

 

Aewyre tomou nota pela primeira vez.

 

Não morrem de amores pelos sirulianos aqui, pois não?

 

Parece que é mesmo verdade... Embora estivesse a ser controlada pela rapariga do olho tetro aquando da conversa, Lhiannah ainda se lembrava do que a líder dos Corações Quebrados lhes havia contado.

 

Pois... Uma súbita dor no dente impediu Aewyre de falar e o jovem levou a mão ao maxilar, o que não passou despercebido aos companheiros.

 

Temos de procurar um barbeiro afirmou Allumno.

 

Não... é só um bocado de comida e...

 

Tiveste de comer queijo triturado lembrou Lhiannah. Não tens nada encravado coisa nenhuma. Já te disse que esse dente está partido e tem de ser arrancado, a menos que queiras perder os outros quando isso infectar.

 

O jovem gemeu e teve de se contentar com o facto de não haver nenhum barbeiro por perto, mas os seus companheiros seguiram diligentemente para fora do Distrito dos Ferreiros e entraram no centro de Val-Oryth, no qual se localizava o Distrito do Mercante, em cujas ruas circulavam bastantes mais cidadãos que no anterior. As roupas dos tanarchianos eram muito coloridas, contrastando com a monotonia da sua paisagem castigada pelos rigores dos longos invernos da sua terra. Os vestidos e adornos com os quais as mulheres se passeavam eram de uma quase ofuscante pletora de cores, mas os homens não lhes ficavam atrás, vestindo compridos casacos e chamativos barretes altos. Todos usavam tamancos devido ao estado das ruas, que não tardaram a enlamear as botas dos incautos companheiros.

 

O quarteirão no qual entraram era composto por uma série de ruelas apertadas de altos edifícios inclinados cujos topos praticamente se encostavam uns aos outros e, como era de esperar, estava apinhado de estabelecimentos comerciais. Cada loja era uma baia com um par de portadas horizontais, sendo a portada superior apoiada por dois postes que a convertiam num toldo e a inferior, pousada sobre duas pernas, servia de balcão onde as mercadorias eram expostas. Naturalmente, os comerciantes não se confinavam dentro dos seus estabelecimentos e faziam questão de sair repentinamente à rua, tecendo elogios acerca da óbvia capacidade de discernimento do transeunte abordado, proclamando a superioridade dos seus artigos e impingindo-lhos com toda a eloquência de um magistrado. Os companheiros declinaram luvas, sapatos, tesouras, bordados, tamancos, barretes, potes, brincos, anéis, bainhas, velas, carvão, louça e uma tal profusão de produtos e serviços que a dada altura já nem olhavam para aquilo que lhes era exposto, recusando de imediato assim que eram abordados. Contudo, Aewyre parou num estabelecimento no qual eram vendidos lenços e outras peças de roupa, alegando que lhe causava impressão andar com o pescoço a descoberto desde que usara o seu lenço para tratar uma ferida na perna de Lhiannah nas estepes. A vendedora era uma pequena mulher com o cabelo branco preso num coque e uma cara sorridente que lhe custara as profundas rugas que lhe vincavam a face e os alegres olhos estreitos.

 

Bons-dias, minha senhora cumprimentou o jovem em voz alta para se fazer ouvir no meio do ruído do distrito. Glottik?

 

Não, não... respondeu a velha enfaticamente, abanando com a mão sem deixar de exibir o seu sorriso com dentes em falta.

 

Só Leochlan, é? Vamos lá ver se eu a percebo, então. Lenços vermelhos, tem? Vermelho repetiu, indicando o barrete de Taislin, a única parte do burrik que a senhora via atrás do balcão.

 

Sim, sim! Vermelho! Muito bonito! exclamou a senhora num cerradíssimo Leochlan, vasculhando os artigos expostos no seu balcão e pescando um lenço da cor que o jovem pedira.

 

Aewyre estendeu-o para testar a resistência e encostou-o ao peito.

 

Muito bonito, muito bonito! elogiou a vendedora.

 

A Mamã não disse nada sobre o que as mulheres de Tanarch pensavam dos sirulianos... segredou Taislin a ninguém em especial.

 

Só porque a senhora o diz... Apesar de seguramente não ter percebido, a mulher sorriu. Quanto é? Espere... O guerreiro reparara que as mulheres naquela cidade usavam lenços e toucados e lembrou-se de Lhiannah. Para a menina, que cor? Um lenço para ela, de que cor? perguntou, indicando uma surpresa arinnir.

 

A mercadora tornou a exibir os seus dentes em falta, franziu os lábios em reflexão e escolheu um comprido lenço azul-claro, estendendo-o a Aewyre.

 

Muito bonitos... disse, apontando para os olhos estreitos e para a princesa. Lenço muito bonito.

 

Fica bem com os olhos, é? A senhora é que sabe. Chega-te aqui, Lhiannah.

 

A arinnir assim fez, mais por surpresa que por vontade, e o jovem envolveu-lhe a cabeça com o lenço, atando-lho debaixo do cabelo seguindo as instruções pouco claras da vendedora. As pontas eram mais compridas que o cabelo da princesa e chegavam-lhe à cintura.

 

Muito bonita! galreou a mulher.

 

Também acho. Quanto é, minha senhora? Isto chega? Aewyre estendeu uma mão com duas plumas, a mais pequena moeda de prata de Nolwyn, e a vendedora aceitou-as, rindo alegremente com o piscar de olho do jovem. Tenha um óptimo dia.

 

Os companheiros reentraram na maré de gente e deixaram-se arrastar uma vez mais. Lhiannah tenteava o lenço, ajeitando-o ao cabelo, e os seus olhos cruzaram-se fortuitamente com os de Aewyre.

 

Obrigada agradeceu com um indecifrável tom. Aewyre sorriu. Mas não penses que é por isso que te escapas ao barbeiro. O sorriso desapareceu.

 

E ainda por cima se calhar deste demasiado dinheiro à velha...

 

resmoneou Worick. Olha! Olha o que eu estou a ver.

 

Para Aewyre, a insígnia de uma tesoura que viu pendurada por cima de uma porta foi tão ou mais atemorizante que a imagem que as histórias conjuravam do estandarte de guerra d’O Flagelo.

 

A sério... já não me dói quase nada.

 

Deixa-te de mariquices resmungou Worick, empurrando o jovem. Vai lá, ou arranco-te eu o dente.

 

Anda, Aewyre. Para surpresa de todos, Lhiannah puxou-o pelo braço. Não sejas medricas.

 

Nós ficamos cá fora... ou precisas de companhia? zombou o thuragar, apelando ao orgulho de Aewyre, que cedeu e se deixou arrastar pela arinnir.

 

Taislin, vai ao apotecário pelo qual passámos há pouco pediu o mago, remexendo na sua bolsa para dar três réis prateados ao burrik.

 

Compra raiz de valeriana, palpita-me que o Aewyre vai sentir algumas dores...

 

Bah! Então ele é alguma donzela? Leva porrada a torto e a direito e agora precisa de ervinhas? Mas que...

 

O par não ouviu o resto, pois entraram no estabelecimento antes que Worick entrasse em pormenores pouco lisonjeiros. Dentro da barbearia pairava um agradável odor a rosmaninho, camomila e lavanda, cujas relaxantes fragrâncias de nada serviram para acalmar Aewyre. O proprietário, um homem pequeno e robusto que vestia uma camisa azul de mangas largas, calças alaranjadas e um barrete vermelho do qual escapava uma cascata de cabelos grisalhos encaracolados estava atarefado a desbastar a farta barba de um cliente com lâmina e tesoura, atapetando o chão com pêlos castanhos. Sem sequer olhar para quem entrara, recitou algo que Aewyre e Lhiannah tiveram dificuldade em perceber, mas que provavelmente lhes pedia que esperassem.

 

Ele está ocupado... vamos embora tentou o guerreiro.

 

Nem penses. De hoje não passa.

 

Lhiannah... eu conheci um rapaz que partiu o maxilar quando lhe arrancaram um dente...

 

Não quero saber de histórias. Esse dente partido vai ter de sair; deixa de ser medricas firmou a princesa, mantendo o seu aperto no braço de Aewyre para o impedir de fugir. Que disse o Allumno acerca daquilo da Ancalach? Vocês ontem falaram até tarde.

 

Ele não soube explicar... redarguiu Aewyre, olhando nervosamente em redor. Disse-me que a Ancalach ”pulsa” com um imenso poder, que sempre ”pulsou” desde que saímos de Ul-Thoryn, mas que nunca ouviu falar de espadas flutuantes e brilhantes.

 

Se nem ele sabe... continuou para manter o guerreiro distraído.

 

Ele disse que teríamos de esperar para ver, que se calhar ela está a adaptar-se a mim, ou eu tenho de provar o meu valor e essas balelas...

 

O barbeiro terminou o seu trabalho e interrompeu o jovem ao anunciá-lo, esfregando os pêlos do seu avental e virando-se para o par, franzindo o cenho ao ver o jovem.

 

O que é que quer? perguntou, recebendo o pagamento do seu cliente, que evitou o jovem ao sair.

 

Ele precisa de arrancar um dente esclareceu Lhiannah, indicando Aewyre e executando um gesto brusco com a mão para fora da boca.

 

A disposição do barbeiro alterou-se espontaneamente e o homem pareceu então muito solícito e disposto a fazer o que lhe era pedido. Empurrou uma cadeira com braços na direcção do par e foi buscar os seus instrumentos, um alicate e uma bacia de estanho. Os lábios do guerreiro empalideceram e o branco dos seus olhos ficou bem visível.

 

Vá, coragem. Não vai durar nada... encorajou a arinnir, embora a súbita disposição do barbeiro também a pusesse pouco à vontade.

 

Com os nervos à flor da pele, Aewyre deixou-se sentar e o homem cobriu-lhe os ombros com uma toalha, entregando a bacia a Lhiannah e estalando o alicate em antecipação. Involuntariamente, a princesa deu consigo a pegar na mão do jovem e cedo se arrependeu quando dedos fortes se crisparam nela. O barbeiro garganteava qualquer coisa em Leochlan enquanto abria a boca de Aewyre e espreitava lá para dentro, grunhindo aprovadoramente ao ver o bom estado geral da dentição e erguendo as sobrancelhas ao ver o dente partido no maxilar inferior, abanando a cabeça em plangência. Empurrando a cabeça do guerreiro para trás pela testa, o homem prendeu o dente partido com o alicate e começou a puxar com força. O fragmento quebrado rachou com a força e Aewyre grunhiu de dor, apertando a mão de Lhiannah. Perante a teimosia do dente, o barbeiro puxou com mais força e menos delicadeza e a maxila do jovem rangeu, lançando-lhe arroubos cruciantes pelo maxilar fora que o fizeram gritar. Os nós dos dedos de Lhiannah roçaram uns contra os outros e a arinnir mordeu o próprio lábio para não guinchar. O suplício de Aewyre terminou quando a raiz cedeu com um estalo e a cabeça do guerreiro escoiceou em frente para cuspir o sangue para dentro da bacia. Lhiannah suspirou de alívio quando o aperto de fazer gemer ligamentos cessou e pegou na sua mão, constatando que os nós estavam brancos. O barbeiro atirou o dente para dentro do sangue na bacia e deu um pano ao guerreiro para pôr na boca antes de ir arrumar o alicate.

 

Vês? Não custou assim tanto, pois não? perguntou a princesa com a testa dolorosamente franzida enquanto agarrava a mão.

 

A única resposta do jovem foi mais uma cuspidela vermelha, seguida de um lamento abafado pelo pano. Lhiannah pagou ao barbeiro, que parecia invulgarmente satisfeito pelo serviço que prestara, e fez tenções de sair, mas por alguma estranha razão o guerreiro ainda quis tirar o seu dente da bacia e metê-lo na sua bolsa. A princesa estranhou mas não fez perguntas e arrastou um cambaleante Aewyre para fora do estabelecimento. Lá fora, não viram os restantes companheiros à primeira, pois estes estavam de costas para eles, formando uma pequena ilha no mar de gente e parecendo estar a falar com alguém. Aewyre franziu o sobrolho e tirou o pano da boca, revelando dentes ensanguentados, e os dois vadearam apressadamente a corrente de corpos humanos. Allumno e os outros estavam a falar com quem?

 

Quando viu a cabeleira ruiva, o guerreiro atirou o pano vermelho ao chão e precipitou-se para cima de Quenestil, esquecendo a dor na boca e envolvendo-o num esmagador e fervoroso abraço.

 

Grande selvagem! berrou o jovem, rindo alegremente e fustigando as costas do eahan com fortes e efusivas pancadas. Meu grande selvagem!

 

O shura também ria, tossindo, e retribuía as pancadas como podia. Aewyre agarrou-o pelos cabelos e beijou-lhe a face, sempre a rir e nunca afrouxando o amplexo.

 

Olha para ti, todo vermelho! E já me viste essa trunfa? reparou o guerreiro, pegando-lhe a cabeça e dando-lhe uma leve cabeçada na testa.

 

E tu? O que é que te fizeram ao cabelo? replicou o eahan, despenteando o seu amigo.

 

Os dois riram e tornaram a dar ruidosas pancadas nas costas um do outro antes de se largarem.

 

Lhiannah cruzou olhares com Slayra, mas limitou-se a reconhecer a presença da eahanoir com um aceno de cabeça, que lhe foi retribuído, e assim que viu que Quenestil estava livre, correu a abraçar-lhe o pescoço. Slayra sorriu para Aewyre, mas guinchou de surpresa quando o guerreiro lhe levantou os pés do chão com um abraço e lhe beijou a face, abanando-a no ar como a uma boneca. Todos falavam ao mesmo tempo, tentando articular os pensamentos para fazer a pletora de perguntas que lhes vinham à cabeça. O que haviam feito? Por onde haviam viajado? Por que estavam tão vermelhos? O que acontecera ao arco? Como os haviam encontrado? Mas a primeira e a mais premente saiu da boca de Aewyre. Onde está o Babaki?

 

Lhiannah olhava pela janela aberta do seu escuro quarto com ombro e cabeça encostados à parede para a lamacenta rua apinhada de gente em baixo. Após a terrível notícia, Allumno e Worick tiveram de conduzir o grupo a uma estalagem na qual alugaram quartos individuais, e a princesa passara o dia inteiro no seu. Os seus olhos estavam avermelhados e de pestanas coladas e o nariz pingava-lhe, obrigando-a a um fungar constante. Afagando os seus braços, a arinnir observava absortamente o fluir das ruas, tentando em vão ocupar a mente com o despreocupado andar dos transeuntes, os passos molhados em solo lamacento, o ranger e estalar do gelo no tecto da estalagem... nada, nada conseguia por um momento que fosse fazer desaparecer da sua mente a imagem de Babaki a abraçá-la e as palavras do antroleo...

 

Guardá-lo-ei como uma recordação da tua beleza e coragem, Lhiannah, para que delas não me esqueça até ao dia em que os deuses me concedam a dádiva de te ver outra vez.

 

A sua nesga de cabelo... lágrimas tornaram a brotar dos olhos que a princesa julgara já secos e Lhiannah tapou a boca com a mão, soluçando de olhos fechados. Babaki... pobre, querido Babaki... morto. Nunca mais ouviria a sua voz calma e indulgente, nunca mais sentiria o seu toque forte e reconfortante, nunca mais veria os seus olhos brandos e pacíficos. Nunca mais...

 

Alguém bateu à porta.

 

Lhiannah não respondeu nem quando o toque se repetiu. Dera a entender que não desejava ser incomodada antes de vir para o quarto, mas quem estava a bater era insistente e acabou por entrar após a terceira batida, fechando a porta silenciosamente atrás de si.

 

Vai-te embora... disse a arinnir sem sequer virar a cara para ver quem entrara.

 

A sua visita permaneceu quieta à entrada, mas não saiu.

 

Eu disse... Lhiannah emudeceu ao ver Slayra.

 

A hesitante eahanoir estava encostada à porta e de mãos atrás das costas, olhando para os lados como se procurasse a sua língua. Arranjara roupas negras novas, mas parecia ter envelhecido desde a última vez que a princesa a vira. As duas mulheres ficaram nas mesmas posições durante o que pareceu uma eternidade, ambas questionando-se acerca da razão da presença de Slayra, pois a própria eahanna não tinha a certeza de a conhecer.

 

Eu... A eahanoir olhou Lhiannah por fim nos olhos. ”Eu o quê? Ela despreza-me e cospe no chão que eu piso. O que é que estou aqui a fazer?” A arinnir nada fez ou disse para desdizer o que Slayra pensava. Eu sei que não deves querer companhia, mas...

 

Tens razão. Não quero. Lhiannah tornou a olhar pela janela. Vai-te embora.

 

A eahanoir suspirou.

 

Lhiannah...

 

Sai. Por favor.

 

Ouve-me só...

 

Pedi delicadamente. Não o vou fazer outra vez. Vai-te embora.

 

Tenho uma coisa do Babaki para ti.

 

Após proferir essas palavras, Slayra teve toda a atenção da princesa, que se afastou bruscamente da janela e se aproximou alguns passos da eahanoir antes de se forçar a parar.

 

É alguma das tuas brincadeiras?

 

Não... Slayra estendeu uma mão enluvada e abriu-a, mostrando uma nesga de cabelo louro entrançado. Acho que isto te pertence...

 

A expressão de Lhiannah traiu as emoções que procurava esconder da eahanoir, mas como se a arinnir se recusasse a avançar, Slayra tomou a iniciativa e tornou a estender-lhe a mão. Após mais algumas hesitações, Lhiannah acabou por ceder e pegou na nesga do seu cabelo com uma mão trémula. Enrolando-a nos seus dedos, foi incapaz de conter as lágrimas, para grande desconforto da eahanoir, que baixou a cabeça em sinal de respeito para com a dor daquela que, quer gostasse quer não, era a sua companheira. Sentia-se compelida a dizer alguma coisa, mas não sabia o quê.

 

Ele disse... titubeou. ”Deuses, mulher, o que é que vais dizer? Que ele a amava? Ela não está já a sofrer o suficiente?”, pensou.

 

Ele disse, que tu e ele poderiam ser felizes... noutra altura, noutro lugar.

 

A princesa soluçou ruidosamente, levando a nesga à cara chorosa. Slayra desesperava. Sentia que só estava a piorar a situação, a tornar tudo mais doloroso. O que é que estava ali a fazer?

 

Eu... sinto muito...

 

Sentes o quê?! estalou Lhiannah, levando os braços abaixo.

 

Que sabes tu? Que podes tu saber? Que pode uma maldita eahanoir sem sentimentos saber? Nunca falavas com ele, nunca lhe davas atenção, sua hipócrita! Slayra ficou muda perante a explosão de Lhiannah, cujos olhos marejados lhe alagavam a cara. A culpa disto é toda tua! Tu é que fugiste, foi por tua causa que o Babaki morreu! Se ele não tivesse ido atrás de ti, ainda estaria vivo! Ainda estaria vivo! apontou a princesa acusadoramente, arrancando o lenço da cabeça e atirando-o ao chão. E agora vens aqui com falinhas mansas, as mesmas que usaste para enganar o Quenestil e dar-lhe a volta à cabeça! Doutra forma ele nunca teria ido procurar-te e o Babaki não teria ido com ele! Lhiannah virou as costas à eahanoir e levou as mãos à cabeça, puxando os cabelos enquanto se afastava, para logo se virar repentinamente para continuar a dar largas à sua fúria. E tu...!

 

Os olhos de Slayra cintilavam mesmo na lúgubre escuridão doquarto. As feições da princesa ainda estavam contorcidas de raiva e a sua boca permanecia entreaberta, mas nenhuma palavra dela saiu. Algo brilhou no canto do amendoado olho da eahanoir, escorrendo-lhe de seguida pela face abaixo. Lhiannah baixou os braços, fungando e pingando lágrimas do queixo, e viu como os lábios da eahanna tremiam. Slayra estava a chorar.

 

A arinnir estava sem palavras, por muito que as procurasse. Outra gota salgada traçou o seu sinuoso caminho na face pálida da eahanoir.

 

Slayra... pelo amor de Assana, não. Tu não. Não faças isso. Uma mulher tão digna... Outra lágrima. Pára com isso. Por favor...

 

Lhiannah abanava a cabeça de olhos fechados, tentando negar o que se estava a passar, mas eram mesmo lágrimas que corriam dos olhos da eahanna negra, lágrimas de dor. Oh, Slayra...

 

A princesa deu dois rápidos passos e eahanoir e humana abraçaram-se com força. Ambas choraram nos ombros uma da outra, partilhando da sua solidariedade feminina e pranteando juntas a morte de Babaki.

 

A projecção de Linsha nadava pelo Pilar, percorrendo velozmente a distância que a separava do seu mestre e que demoraria umas boas semanas a palmilhar por meios convencionais. A feiticeira não podia evitar ressentir-se por vezes do facto de Malagor nunca se dignar a comparecer perante ela, ou pelo menos calcorrear ele também um pouco da distância que Linsha era forçada a cobrir de cada vez que era convocada. Nisso Malagor era algo indelicado, na sua opinião. Os homens decentes de Tanarch, mesmo os que não a temiam, tratavam-na com a devida cortesia, como o faziam com todas as mulheres, mas com o seu mestre não havia galanterias nem facilidades. Era aprendiza e como tal era tratada, fim de discussão. Lançando um suspiro etéreo, a feiticeira singrou por cintilantes formas de vida sem lhes dar qualquer atenção. Sabia muito bem que Malagor possuía o poder necessário para criar objectos que lhe facilitariam o acesso ao seu covil, mas não o faria, claro que não! Havia que obrigar a Linsha a ficar de pernas cruzadas no chão e vagear pela entediante imensidão monocromática do Pilar de cada vez que queria falar. Como se isso não bastasse, a maior parte das vezes era dispensada sem cerimónia assim que o seu mestre lhe havia espremido todas as informações, enviada para casa como uma mera serviçal. Enfurecedor, no mínimo, mas Linsha não era estúpida ao ponto de manifestar o seu desagrado de uma forma descarada perante Malagor. O Alto Vulto era um homem perigoso, e em sua presença e apesar dos seus consideráveis talentos Linsha sentia-se sempre inferiorizada.

 

O brilho quase encandeante de uma massa de formas de vida assinalava a chegada a Dul-Goryn e a feiticeira concentrou-se para encontrar a do seu mestre no meio da multidão. Felizmente, Malagor era como uma pira ardente no meio de brasas, não por a sua essência vital e mágica brilhar mais que as restantes, mas devido às protecções que mantinha sempre em seu redor, barreiras roxas de pura Essência com a função de o proteger do escrutínio de outros magos. Linsha achegou-se das defesas e executou a combinação de feitiços que o seu mestre lhe ensinara para chamar a sua atenção. Como era costume, a mulher teve de aguardar antes de Malagor se projectar nas águas do Pilar com a sua habitual postura confiante e circunspecta. Linsha sabia que não se podia julgar um homem pela sua projecção, mas mesmo para um leigo Malagor afigurar-se-ia correctamente como um homem baixo, bem alimentado e com mais de meio século vivido. Contudo, a feiticeira sabia bem que havia muito mais por detrás da singela impressão que o homem deixava em quem o conhecia. Muito mais. Saudações, mestre.

 

Saudações, Linsha cumprimentou o homem com uma voz calma e ponderada, parecendo pesar e medir cada palavra antes de a pronunciar. Que novidades me trazes?

 

Lá estava ele outra vez com as irritantes perguntas tendenciosas, partindo logo do princípio de que teria sempre notícias de cada vez que a chamasse!

 

A harahan foi coagida. Nós...

 

Coagida? Tiveste de usar a Palavra? Eu disse-te que...

 

Não, mestre! Ela vai ajudar-nos com Aewyre Thoryn de livre vontade.

 

Por que empregaste o termo ”coagida”, então? Coagir implica compelir, forçar. Questões semânticas, Linsha, nunca as deves descurar. Teremos de abordar esse tema numa próxima lição.

 

Por sorte, a irritação da feiticeira não se manifestou na sua projecção.

 

Sim mestre...

 

Quanto às novidades...?

 

Como estava a dizer a mulher permitiu-se essa pequena insolência, temos a harahan a trabalhar para nós. Aewyre Thoryn e os seus companheiros já se encontram na cidade e sabemos onde irão passar a noite. Para apoiar a harahan, destacámos o bando do Ruinen.

 

”Destacámos”? Esses indivíduos encontram-se empregues por nós? Linsha foi incapaz de esconder um suspiro. As minhas rectificações incomodam-te, pupila? A feiticeira cerrou os lábios e não respondeu. A correcção é de sobremodo importante para quem faz uso da Palavra, julgo já to ter explicado.

 

Sim, mestre... peço desculpa. Não, o bando do Ruinen não se encontra empregue por nós. Acontece apenas que o dono da estalagem na qual o jovem Thoryn e os seus companheiros se encontram está em dívida para com Ruinen. Foi apenas necessário um pequeno toque de dedo da nossa parte para os incitar a... cobrarem a dívida esta noite. Para todos os efeitos, não estaremos envolvidos no que irá suceder.

 

Muito bem. E o Flagício?

 

A harahan não me disse como, mas assegurou-me de que no-lo traria. Pelo que me contou, já tivera encontros com Aewyre Thoryn no passado.

 

Intrigante. Sabia da espada, portanto?

 

Sabe mais sobre eles que nós, mestre, mas revelou pouco. A harahan parece uma fera enjaulada, pronta a estalar as mandíbulas a quem primeiro lhe tentar tocar.

 

Uma sugestiva metáfora... podemos confiar nas suas capacidades, na sua diligência?

 

Ela irá despedaçar o jovem Thoryn se tiver ocasião; parece-me ser esse o seu único interesse. Quanto a trazer-nos Ancalach... eu própria me assegurarei de que ela o fará.

 

Uma empresa arriscada...

 

Serei discreta...

 

Careces de subtileza...

 

Deixe-me tentar mestre, por favor!

 

Malagor meditou em silêncio e Linsha teve de aguardar, como sempre fazia quando o seu mestre pensava.

 

É um plano com várias falhas de funcionamento... mas quer falhe quer resulte, não nos incriminará. Concedo-te essa oportunidade, Linsha. Não me falhes.

 

Obrigada, mestre agradeceu a feiticeira.

 

Mantém-me informado. Podes retirar-te...

 

Mestre, espere! pediu Linsha antes que a projecção de Malagor se dissipasse.

 

Tenho assuntos prementes a tratar. Que queres de mim?

 

Tenho uma pergunta... premente, e peço-lhe que me conceda uma resposta,

 

Sê sucinta.

 

Queremos o Flagício... para quê?

 

A feiticeira viu pela hesitação do seu mestre que este não esperara a questão.

 

É um quesito de difícil resposta, mas pela tua iniciativa, conceder-ta-ei. Primeiro, o aparecimento da espada em Tanarch é portentoso e poucos foram os Filhos que não o sentiram. Torna-se desde logo urgente que nos apossemos discretamente do Flagício antes que alguma seita menos comedida o faça impensadamente, correndo o risco de revelar a nossa existência. Segundo, o valor simbólico da espada é só por si de proporções lendárias, e possuí-la seria para nós um significativo trunfo, bem como um eventual impulso que poderia bem levar a que as seitas dos filhos se unissem de vez. Terceiro, eu próprio não sei que segredos poderiam ser descortinados através do Flagício, segredos pertinentes à ausência d’Ele, segredos que porventura nos permitiriam auxiliá-Lo no Seu regresso. Compreendes agora, Linsha?

 

Quase embriagada pela rara torrente de esclarecimentos concedida pelo seu mestre, a feiticeira limitou-se a acenar com a cabeça e a projecção de Malagor dissipou-se sem mais uma palavra. Linsha sentia-se orgulhosa por ter compartilhado de tão sigilosas informações e foi com um sorriso nos lábios que se dissolveu nas águas etéreas do Pilar de Allaryia.

 

Com a excepção de Aewyre, todos os companheiros estavam reunidos na sala comum da estalagem, sentados numa mesa redonda com pratos e canecas cheios debaixo de taciturnos semblantes. As lâmpadas de óleo penduradas nas traves de madeira luziam amarelentas, projectando as frenéticas sombras de traças que tremulavam em seu redor. Allumno apoiava os cotovelos sobre a mesa (o mais claro sinal do seu desalento) e amparava o queixo sobre os polegares de mãos pensativamente fechadas. Taislin soluçava baixinho abraçado a Lhiannah, que lhe apertava a cabeça ao peito, afagando-lhe o cabelo e Quenestil e Slayra estavam de mãos dadas por cima da mesa, penando com feridas reabertas. Worick era o único que ia mordiscando e beberricando, embora se mantivesse em respeitoso silêncio e não proferisse comentários impróprios. A noite já havia caído há algum tempo, pois os dias em Tanarch eram curtos mesmo na Primavera, e a eahanoir e a princesa haviam descido as escadas juntas antes de o Sol se pôr.

 

O estalajadeiro mantinha-se ocupado atrás do balcão, inventando tarefas para cumprir devido à falta de clientela e à mudez dos seus únicos fregueses, que não tocavam na comida pela qual haviam pago. Com a excepção da mulher loura, nem sequer haviam deixado as armas e armaduras no quarto, mas como eram os únicos presentes na sala e como abundavam rumores nas ruas sobre uma criatura da noite que andava a matar crianças, achou que não valia a pena íncomodá-los. O mais estranho de tudo fora o facto de nem sequer terem reclamado, ou mesmo notado que cobrara mais pelo quarto do rapaz siruliano, o que lhe tirara parte do gozo ao fazê-lo. Como qualquer tanarchiano que se prezasse, gostava de mostrar o seu desagrado perante a presença de sirulianos, mas se o raio do rapaz nem reparava... o homem torceu o bigode farfalhudo em desdém, lançando mais que um olhar ao lugar vazio da mesa, sobre a qual um naco de alcatra de porco com molho de nozes no qual o estalajadeiro cuspira aguardava o jovem siruliano. Não, assim não dava gozo nenhum...

 

Quenestil debicou uma noz do molho do seu prato, forçando-se a engoli-la apesar de não lhe saber a coisa alguma. Slayra também não tocara na sua refeição e o eahan questionava-se acerca da conversa que a sua amada tivera com Lhiannah, mas nada perguntou, sentindo uma espécie de solidarização mútua entre ambas que meses atrás não julgaria possível. Todos haviam mudado desde Nolwyn. Pouco ou muito, mas todos haviam mudado.

 

”Bom, excepto talvez o Worick... e o Allumno. Ainda não os vi verter uma lágrima, e parecem os mesmos que conheci há meio ano atrás. Esses duvido de que mudem...”, pensou o eahan sem qualquer censura, apenas constatando. Todos lamentavam a morte de Babaki, cada um à sua maneira. Se calhar devíamos ir chamar o Aewyre... sugeriu.

 

Allumno esfregou as mãos antes de responder em voz baixa.

 

Não me parece boa ideia. Ele e o Babaki eram chegados, mas não só. O Aewyre foi escolhido como líder. O grupo que liderava separou-se, e um dos seus membros morreu. Não está habituado a esse tipo de responsabilidades, e agora que sente que falhou, nada do que nós, os restantes membros do grupo que ele se propôs a comandar, possamos dizer poderá amainar a culpa que sente Worick grunhiu e abanou a cabeça em concordância. Esse era um sentimento que o thuragar infelizmente conhecia muito bem, uma das consequências negativas de ter convivido tanto tempo com humanos. Quenestil queria refutar o argumento do mago, mas nada lhe ocorreu que o pudesse fazer. Slayra sentiu a frustração do eahan e apertou-lhe a mão, pousando-lhe a outra em cima. O shura levou ambas à face, beijando-as, e nada mais disse. Lhiannah escutara atentamente e olhava em redor para as pesarosas caras dos seus companheiros, afagando o rebelde cabelo do burrik que lhe cingia a cintura com os braços.

 

Quenestil, tu és o melhor amigo dele. Não podes...?

 

Não, Lhiannah interrompeu o eahan. Infelizmente, o Allumno tem razão. Nada que eu possa dizer irá aliviá-lo da culpa que sente.

 

A princesa, porém, não se deu por satisfeita com a resignação do grupo. Pegou delicadamente em Taislin pelos braços e olhou para a eahanoir.

 

Slayra...?

 

Palavras não foram necessárias e a eahanna largou a mão de Quenestil para pegar no burrik e puxá-lo para si. Taislin aceitou a troca e aninhou-se soluçante no colo de Slayra. Lhiannah levantou-se, arrastando a cadeira, puxou a camisa para baixo e dirigiu-se às escadas. Ninguém a tentou impedir.

 

Aewyre estava deitado na cama de mãos atrás da cabeça, fitando as vacilantes sombras nas traves escuras do tecto lançadas pela lamparina que ardia na mesa-de-cabeceira a seu lado. As persianas da janela do seu quarto (judiciosamente escolhido pelo estalajadeiro) estavam encravadas, permitindo a entrada a uma fresca aragem nocturna, mas o guerreiro estava demasiado imerso em reflexões para reparar no frio. Somente Babaki ocupava os seus pensamentos. Babaki, o pacífico antroleo, o seu nobre amigo, o guerreiro atormentado que tantas vezes lhe salvara a vida, a si e aos outros.

 

Morto.

 

Com a sua amizade, Aewyre ajudara-o a controlar a fera, vira nos seus tristes olhos o fugaz brilho de esperança, desenterrara a fé de poder viver livre do jugo do legado shakarex.

 

Morto.

 

Como os rebeldes de Alyun.

 

Como Nabella.

 

Como tantos Corações Quebrados.

 

Quantos mais se lhe seguiriam? Quantos mais seriam mortos e descartados pelo caminho enquanto levava a cabo esta sua aventura? Quantos?

 

Aewyre não chorava, não se enraivecia, não estava triste nem amargurado nem tão-pouco deprimido. Sentia-se seco por dentro, embora soubesse que as lágrimas aguardavam nos seus olhos como dois rios solidamente represados. A sua garganta estava igualmente seca e com blocos de areia nela enfiados que o impediriam de falar mesmo se assim o desejasse. Sentia também a comichão das picadas de pulgas nos seus braços, mas dispensava-lhes pouco mais atenção que a necessária para as coçar. A dor na boca desaparecera e o guerreiro entretinha-se a enfiar a língua no novo espaço vazio entre dois dentes, roçando a cavidade tenra na gengiva com a ponta. Os outros deviam estar à sua espera, mas Aewyre não sabia o que lhes dizer e não estava com paciência para as suas inevitáveis palavras de consolo.

 

Extenuado com a sua autocomiseração, o jovem tapou os olhos com as palmas das mãos, esfregando-os e suspirou longa e profundamente. Teve a sensação infantil de que dessa forma se podia esconder do mundo, mas cedo se desenganou e destapou resignadamente a sua cara.

 

Para ver um vulto em pleno ar, saltando-lhe em cima.

 

Num movimento puramente reflexivo, Aewyre rebolou para fora da cama, caindo de cotovelos ao chão e ouvindo o vulto a cair sobre o colchão, escarpelando os lençóis com as unhas. O guerreiro bateu com a cabeça na mesa-de-cabeceira e derrubou a lamparina, mergulhando o quarto em escuridão. Rolara para o lado contrário ao qual onde pousara Ancalach e estava desarmado, pelo que se afastou cambaleante da cama para avaliar o seu atacante. Uma voz feminina rosnou de raiva e saltou da cama para cima de Aewyre como uma gata, abatendo-se sobre ele e ambos rebolaram pelo chão. Reconhecendo a selvajaria e a dor das unhas que se lhe cravaram na carne, o guerreiro soube de imediato que teria de afastar a mulher ou seria despedaçado membro por membro. Conseguiu assentar-lhe o pé no estômago e impulsionou-a com força contra a parede, erguendo-se desajeitadamente de seguida. A mulher fez o mesmo e ambos pararam para se estudarem mutuamente. A luz que provinha da janela aberta era fraca, um mero facho de luar que atravessava os apertados topos dos edifícios da rua, mas a viva memória que Aewyre tinha da harahan dispensava iluminação para a visualizar.

 

Tu outra vez...

 

Sim, eu outra vez, jovem Thoryn. E desta vez morres.

 

Que queres tu, mulher?

 

Há quem queira a tua espada, mas o que eu quero não é nada que me possas dar enquanto vivo! gritou Hazabel, investindo.

 

Cego pela dor que o lacerava por dentro e furioso por o seu luto ter sido interrompido, Aewyre atacou imprudentemente em vez de correr a apanhar Ancalach, enfrentando a arremetida da harahan, cujas garras rasgaram o ar por cima da sua cabeça. O jovem ripostou com um murro no estômago, seguido por um soco no queixo, mas só veio a perceber que não era só ele que estava furioso quando o punho cerrado de Hazabel lhe explodiu na cara, lançando-o rodopiante pelo ar.

 

Lhiannah subiu os primeiros degraus de cabeça pensativamente baixa, apoiando-se no corrimão enquanto ponderava o que iria dizer.

 

O chiar das dobradiças da porta da estalagem chamou a atenção de Worick, que viu entrar um grupo de homens mal encarados. Por precaução, o thuragar chamou a atenção dos seus companheiros com uma exalação pelos dentes enquanto agarrava o martelo por baixo da cabeça, pronto a puxá-lo da correia do cinto. Quinze indivíduos com ar de rufias armados de porretes entraram, fechando a porta atrás de si, e o súbito nervosismo do estalajadeiro confirmou as suspeitas do thuragar.

 

Vai haver molho... sussurrou.

 

Enquanto tentava levantar-se, Aewyre esbofou todo o ar que inalara quando Hazabel lhe desferiu um pontapé na barriga, cuja força o atirou contra a mesa encostada à parede, despedaçando-a. Antes que pudesse sequer pensar em tornar a erguer-se, a mão da harahan agarrou-o pelos colarinhos e poupou-lhe esse trabalho. Agindo já sem pensar, o guerreiro agarrou atempadamente a mão de garras negras que o teriam esventrado, pegou na nuca da mulher e abriu-lhe o sobrolho com uma cabeçada. Hazabel rugiu e retribuiu a carícia com força redobrada, mas acertou o pico da testa do guerreiro e o golpe magoou-a mais que ao jovem, que não hesitou em lhe desferiram doloroso murro no peito para a afastar.

 

A meio caminho, a arinnir parou.

 

”O que estás a fazer, mulher?”, questionou-se, incerta. ”O que é que lhe vais dizer? Ainda acabas por piorar as coisas...” Lhiannah deu um passo atrás.

 

Hazabel rugiu e as suas garras silvaram, abrasando quatro linhas vermelhas no lado da face de Aewyre. Debatendo-se como um animal ferido, o jovem retorquiu com uma pancada com as costas da mão cerrada e empurrou a harahan contra a parede com o seu próprio corpo. O joelho de Hazabel enterrou-se raivosamente na barriga de Aewyre, que se dobrou com a força do golpe, e uma cotovelada nas suas costas soltou uma colónia de formigas dentro dos seus ossos. A força da harahan era... impossível. Foi o instinto de sobrevivência que o obrigou a agarrar-lhe as pernas e trazê-la ao chão, no qual se debateram como dois animais numa dança de morte.

 

Lhiannah levantou a cabeça ao ouvir um estrondo no corredor. Antes que pudesse dar um passo em frente, ouviu vários na sala de estar. A indecisão paralisou-a e a princesa ficou imóvel a meio do vão de escadas.

 

Gritando para que os seus companheiros se afastassem, Worick levantou a mesa redonda e empurrou-a contra os rufias, que se separaram para se desviarem da grande peça de mobília. Quenestil puxou Slayra para trás de si, rosnando enquanto desembainhava o seu facalhão. Taislin já tinha os seus punhais nas mãos, bem como uma invulgar determinação férrea na sua cândida face que dava a entender que não iria permitir que ninguém tocasse nos seus amigos. O cajado de Allumno caiu ao chão, mas o mago ergueu-se a começou a gesticular, proferindo a Palavra em voz alta. O estalajadeiro gritou, exasperado, e escondeu-se atrás do balcão.

 

Aewyre sempre fora aplicado nas sessões de luta livre durante os seus treinos em Ul-Thoryn, mas nunca enfrentara um adversário com a força de uma harahan. As garras da mulher laceravam-lhe braços e pernas sempre que o guerreiro a tentava imobilizar, e as suas selváticas convulsões tornavam a tarefa de a reter tão difícil como domar um cavalo bravio com as mãos nuas. O guerreiro deu-lhe uma cotovelada na cara e tentou colocar o seu braço numa posição de luxação, mas as garras que se afundaram no seu flanco despertaram-no para o assunto mais premente que era a sua sobrevivência. Largou o braço e desferiu outra cotovelada na cara de Hazabel. A harahan escorria sangue negro dos lábios feridos e cortes na cara, que lhe tingia os arreganhados dentes de preto, mas estava longe de estar tão exaurida como o jovem, que mal comera o dia inteiro e que, abalado pela terrível notícia, ainda mal recuperara da sua provação nas montanhas.

 

As pernas de Hazabel surgiram do nada enquanto os dois rebolavam pelo chão, prendendo o pescoço de Aewyre entre as coxas. Foi aí que o guerreiro percebeu que estava perdido.

 

Um rufia gritou quando as suas roupas pegaram fogo atiçado pela Palavra. Um dos seus companheiros correu a atacar o mago, mas Worick surgiu-lhe no caminho e cravou-lhe o espeto do seu martelo na barriga, puxando-o de seguida para desviar um golpe com o cabo. Taislin passou os seus punhais pelos jarretes do rufia que atacara o thuragar, que esmagou metade da cabeça do homem com uma brutal oscilação.

 

Baixa-te, Quenestil! gritou Slayra, arremessando por cima da cabeça do eahan um punhal que se afundou no peito de um dos rufias que o atacavam

 

O outro pensou ver uma abertura quando o shura se baixou e investiu com o porrete, mas a única abertura foi a da sua garganta quando Quenestil combinou um movimento para se desviar do ataque e desferir-lhe um corte reverso no pescoço.

 

Lhiannah, cuidado! berrou Worick para avisar a sua protegida enquanto aparava uma porretada com a manopla amolgada onde antes tivera o seu escudo.

 

As pernas de Hazabel apertavam-lhe implacavelmente o pescoço como tenazes, bloqueando a passagem do ar e em breve o correr do sangue. Aewyre estrebuchava com o seu braço livre, já que a harahan mantinha o outro num aperto firme como um torno, mas de nada lhe servia beliscar ou arranhar as pernas da mulher Nada faria Hazabel parar até a sua garganta estar esmagada. O mundo ficou turvo, depois ainda mais escuro e os seus ouvidos começaram a zumbir, abafando as palavras da harahan.

 

Vou beber o teu fel com prazer, desgraçado.

 

Por estranho que ao próprio lhe parecesse, a única coisa na qual Aewyre pensava era que nunca imaginara que iria morrer entre as pernas de uma mulher.. Ouviu um estrondo, que provavelmente seria uma veia na sua cabeça a rebentar...

 

Lhiannah arrombara a porta com um pontapé e os seus olhos arregalaram-se ao ver Aewyre estendido no chão, mexendo-se debilmente com a sua cabeça entre as pernas da mulher de negro cuja cara se virou bruscamente para a entrada. Após breves instantes de surpresa imobilidade, a arinnir explodiu em movimento e correu na direcção dos dois

 

Larga-o, sua bruxa! gritou, desferindo um pontapé na cabeça da mulher, que cuspiu sangue negro contra a parede.

 

Hazabel relaxou o aperto e Aewyre contorceu-se para longe das suas pernas, inalando ar em roucos arquejos. Assim que a harahan se tentou levantar, Lhiannah dirigiu-lhe outro pontapé à cabeça, mas a mulher agarrou-lhe o tornezelo e torceu-lho brusca e dolorosamente, atirando a princesa ao chão. Hazabel saltou para cima da arinnir, mas a perna de Lhiannah chicoteou em frente, atingindo a harahan em cheio na cara, e a princesa sentiu o esmagar de um nariz debaixo da sola da sua bota. Hazabel uivou de dor e levou as mãos à cara, cambaleando de costas contra a parede. Lhiannah levantou-se, mancando de um pé, e a harahan tirou as mãos da cara, vendo o sangue escuro que as cobria.

 

O meu nariz... outra vez...

 

Os seus olhos fixaram-se em Lhiannah e, com um urro animalesco, Hazabel precipitou-se sobre aquela que iria matar a todo o custo.

 

Madeira estilhaçou-se quando seis vultos negros saltaram através das janelas da estalagem, juntando-se à refrega que se desenrolava na sala de jantar. Vestiam de negro, mas as suas caras estavam caiadas de branco e as lâminas que empunhavam resplandeciam como estrelas à luz das lanternas. Contudo, surpreenderam os companheiros ao não os atacar mas sim aos rufias que se encontravam entre os dois grupos.

 

A tua vida pelo Seu regresso entoou um dos homens de face caiada ao empalar um rufião pelas costas.

 

A tua vida pelo Seu regresso repetiu outro, atravessando o pescoço do homem à sua frente.

 

Mas o que é isto? bradou Worick, arrancando o queixo do rufia que se distraíra à sua frente.

 

A resposta não pôde vir de Quenestil, que se viu frente a frente com um dos recém-chegados que cortara a cabeça ao seu adversário. A face caiada do homem era desprovida de qualquer expressão, e os seus olhos estavam unicamente focados no intento de tirar a vida a quem estivesse à sua frente; o shura naquele caso. Havia uma estranha rigidez nos seus movimentos, notou, mas isso não os tornava necessariamente lentos. A longa lâmina cruenta dardejou em frente para lhe atravessar a garganta, mas Quenestil desviou-se e talhou o antebraço do homem, cortando-lhe os tendões. Sem força na mão, o adversário do eahan largou a espada, agarrando-a em pleno ar com a outra e, girando em si, desferiu um golpe lateral que podia ter decapitado o shura se este não se tivesse baixado. Slayra atacou-o por trás, deslizando-lhe estilete e quebra-espadas pela garganta, e nesse instante o homem estacou, desferindo de seguida um golpe para trás com o braço hirto, que derrubou a eahanoir.

 

Slayra! gritou Quenestil, baixando-se de outro golpe de espada e penetrando na defesa do adversário adentro, enterrando-lhe o facalhão pelo tronco acima e alçando o homem com a força do golpe.

 

Olhos vidrados fitaram o shura e sangue morno escorreu-lhe pelos braços abaixo quando dedos hirtos lhe subiram pela nuca acima, procurando alcançar os olhos para os arrancar. Gritando de medo e nojo, o eahan empurrou o cadáver que se mexia para longe de si com a sua arma ainda nele cravada.

 

Lhiannah ficou sem ar ao embater ruidosamente contra a parede, empurrada pela desenfreada investida da harahan. As costas de uma mão rebentaram-lhe um lábio e um punho trovejou na sua cabeça, afundando-se de seguida duas vezes na sua barriga, fazendo costelas estalar. Dedos furiosos crisparam-se nos seus cabelos, puxando-lhe a cabeça para baixo e contra um joelho contra o qual embateu violentamente, sendo de seguida puxada para cima outra vez para ser esmurrada no queixo, ensurdecendo-lhe um ouvido. Outro murro fez com que batesse violentamente para trás com a nuca na parede.

 

Aewyre estava de gatas, tossindo e agarrando a garganta com uma mão, quando viu Lhiannah a ser brutalmente espancada.

 

”Deuses, está a matá-la!”, apercebeu-se.

 

Com um repentino surto de energia alimentado pelo desespero, o jovem agarrou numa das pernas da mesa despedaçada e atacou, gritando. Hazabel virou-se para receber o golpe que não vira e que lhe acertou em cheio no braço pelo cotovelo, que estalou. A harahan dobrou-se e uivou de agonia enquanto Lhiannah desfalecia ao chão como se os músculos das suas pernas se tivessem liquefeito, a sua cabeça pendendo frouxamente por cima do ombro. Com redobrada fúria, Aewyre vergastou a cara da mulher com a perna da mesa, derrubando-a e, levando a sua arma improvisada atrás, preparou-se para matar Hazabel, que ergueu uma suplicante mão sangrenta.

 

Não! A tua filha, Aewyre Thoryn! A tua filha! O jovem estacou.

 

O quê...?

 

Com um grito horriestridente, a harahan mesclou-se às sombras do quarto, voando na forma de um vulto sombrio à volta do guerreiro e lançando-se para cima dele com garras negras prontas a dilacerá-lo. Aewyre defendeu-se com a perna de mesa, que Hazabel agarrou com as duas mãos, e girou em si, arremessando a demoníaca mulher com todo o ímpeto contra a parede. Todas as tábuas do quarto tremeram com o violento impacto e Hazabel caiu em forma humana no chão, gritando ao embater com o braço partido. O tempo que o jovem levou para se recompor foi o suficiente para que a harahan se tornasse a mesclar às sombras, uivando de raiva, dor e frustração ao saltar janela fora. Aewyre correu a olhar para o exterior, apoiando-se no peitoril e esticando o pescoço ao máximo, mas a noite era o domínio da harahan e não a viu em lado algum, embora o uivo perdurasse. Contudo, os seus olhos captaram movimento num telhado a poucos pés da janela, no qual se encontrava um vulto feminino de capa esvoaçante recortado contra a Lua, que fugiu de imediato ao perceber que fora descoberto. O jovem quis gritar, pegar em Ancalach, saltar para a rua e matar a maldita harahan, mas bastou percorrer o quarto com o olhar e ver Lhiannah desfalecida para esquecer tudo. Deixando a perna da mesa cair, Aewyre correu para junto da princesa, ajoelhando-se e tirando-lhe os cabelos de frente da cara, que sangrava de inúmeros ferimentos, nos quais se começavam a formar inchaços azul-escuros. O seu maxilar inferior pendia, lasso, e do seu ouvido esquerdo escorria um corrimento amarelado e sanguinolento.

 

Pela ânfora de Acquon... Lhiannah... Lhiannah! O guerreiro olhou para as suas mãos e viu nelas o sangue da princesa. Alguém me ajude! Aewyre ouviu os tumultosos ruídos de uma escaramuça vindos da sala da estalagem e foi buscar Ancalach em pânico, correndo desesperadamente para fora do quarto.

 

Allumno gesticulou freneticamente enquanto dava passos atrás para lançar um feitiço ao homem de cara caiada que contra ele investia. Um corisco da palma da mão do mago estalou com um ruidoso estampido contra o peito do atacante, chamuscando-o e projectando-o contra uma mesa que deixou de o ser, mas o mago tropeçou numa cadeira partida e caiu, ficando com a cabeça a poucas passadas dos pés desvairados de um rufia e um dos atacantes de negro que se tentavam matar um ao outro. Taislin saltou de uma mesa com os pés para cima de uma cara caiada, impulsionando-se nela para longe e derrubando o homem ao mesmo tempo. O rufia aproveitou a vantagem e malhou a cabeça do indivíduo com o seu porrete, partindo-a. Inesperadamente para o rufia, o braço do homem que julgara ter acabado de matar vasquejou para a frente de espada em riste, aguilhoando-lhe as entranhas.

 

A tua vida pelo Seu regresso proferiu com voz alquebrada o homem de cabeça partida, cuja máscara de cal se encontrava manchada de sangue no nariz.

 

Worick defrontou um dos recém-chegados que matara o rufião que estivera a combater e que empunhava com as duas mãos uma ornada espada bastarda de lâmina cruenta. Sem qualquer subtileza, o homem de cara caiada investiu, levando a espada abaixo para cortar o thuragar ao meio. Worick enfrentou o golpe directamente, aparando-o com a cabeça do martelo, encalhando a lâmina com o espeto através de uma torção de pulsos e desviando-a para o lado. A defesa tornou-se num devastador contra-ataque quando o thuragar empurrou a lâmina, deixando a guarda do homem aberta e trazendo o seu martelo com abandono para baixo e contra a cabeça do homem, que rebentou com a força do golpe.

 

Quenestil e Slayra flanqueavam o autêntico morto-vivo que os enfrentava com o facalhão do shura profundamente enterrado no peito. O homem decompunha-se a olhos vistos: o seu cabelo caía, os seus membros enfezavam, a sua pele esticava-se, os seus dentes soltavam-se, mas ainda empunhava a sua espada, desferindo desajeitados golpes com o derradeiro intento de matar os dois eahan. Os estouvados ataques eram fáceis de evitar, mas um dos companheiros do moribundo aproximava-se pelas costas da eahanoir.

 

Slayra, atrás de ti! gritou Quenestil, aparando um golpe com a cadeira despedaçada que empunhava.

 

A eahanna virou-se a tempo de desviar uma espadada com o seu quebra-espadas, atravessando a garganta do seu agressor de um lado ao outro com o estilete. O seu companheiro de cara caiada não estava disposto a ignorar as costas voltadas da eahanoir e atacou, forçando Quenestil a saltar-lhe em cima e arremeter a sua cara contra o chão. O indivíduo cuja garganta Slayra estocara estacou momentaneamente, varrendo-a de seguida para longe com a oscilação de um braço hirto. Quenestil agarrou na cabeça do homem em cima do qual se encontrava e tornou a empurrá-la com força contra o chão, só que dessa vez os cabelos ficaram-lhe na mão. Enojado, o shura constatou que o indivíduo estava a decompor-se debaixo de si e praticamente saltou de cima dele. O homem de garganta atravessada reparou no shura e cambaleou na sua direcção, empunhando a espada de ponta para baixo com as duas mãos, mas umas palavras de Allumno criaram uma conduta de fogo entre as mãos do mago e as costas do morto-vivo, cujas roupas começaram a arder. No entanto, a distracção momentânea de Allumno permitiu a aproximação de dois homens de cara caiada, um dos quais com estrias sangrentas e uma nódoa vermelha no nariz a mancharem-lhe a máscara, que se preparavam de armas em riste para abater o mago.

 

Allumno, cuidado! guinchou Taislin, rebolando às cambalhotas debaixo de uma mesa que foi fendida em dois pela cutilada de um agressor de peito chamuscado e cabelos eriçados.

 

O mago virou-se mas os seus lábios não teriam o tempo necessário para proferir palavras que o pudessem proteger das lâminas cruentas que já se encontravam erguidas para o talhar.

 

A tua vida pelo Seu... O silvo de Ancalach interrompeu-o, e quando o homem deu outro passo em frente, a sua cabeça caiu ao chão, seccionada do pescoço por um corte limpo da Espada dos Reis.

 

O seu companheiro virou-se e bloqueou um revés do Flagício, retribuindo com um corte transversal, que Aewyre desviou com um toque de Ancalach, penetrando pela defesa do adversário adentro e passando-lhe a lâmina pela garganta. O homem levou a mão ao pescoço e caiu de joelhos, fumegando pelas frestas da sua roupa e principiando a decompor-se. Allumno ia proferir palavras de cautela ao seu protegido, mas o jovem empurrou-o e correu na direcção do indivíduo que perseguia Taislin à espadeirada, ultrapassando Worick. O burrik guinchava aflito enquanto rebolava pelo chão para evitar os brutais golpes que o visavam, mas pôde recuperar o fôlego quando o homem se apercebeu da investida de Aewyre e se virou para o enfrentar, brandindo uma espada longa. O guerreiro estocou com Ancalach em frente, empunhando-a com ambas as mãos, e o homem interceptou o golpe com a sua arma, deslizando pela lâmina e visando a garganta do jovem com a ponta. Aewyre patinou lateralmente com a perna da frente, evitando a estocada mortal e, ombro a ombro com o seu adversário, empurrou o pomo de Ancalach para a frente, levando a lâmina de encontro à garganta do oponente, e cortando-lha com um brusco movimento de serra. A cortadela não fora forte e só com sorte teria atingido a jugular, mas o ferimento começou a fumear de imediato e o homem largou a arma para levar as duas mãos ao pescoço, escorrendo fleuma negra da boca. Aewyre não se apercebeu disso e ainda varou aquilo que já era um cadáver decomposto e fumegante antes que este caísse ao chão.

 

O jovem olhou em redor, mantendo os dedos crispados na Espada dos Reis, sangrando dos quatro cortes na face, ofegando a um ritmo quase delirante e de olhos bem abertos como um cavalo assustado. Os vinte rufias jaziam todos mortos e os seis corpos de negro decompunham-se a uma velocidade estonteante, criando purulentas poças tintas em seu redor. Um nauseante odor a morte e decomposição pairava na estalagem e o seu proprietário gemia atrás do balcão fora da vista de todos, orando a todos os deuses em Leochlan.

 

Aewyre o que...? tentou Allumno perguntar antes de o jovem percorrer a distância que os separava em dois saltos, quase derrubando Worick pelo caminho e agarrando o mago pelas pregas da sua capa com a mão livre.

 

Allumno, a Lhiannah! Ajuda-a! Ajuda-a! gritou o guerreiro, quase levantando o mago do chão.

 

O pânico do jovem contagiou o thuragar assim que este ouviu as suas palavras.

 

O quê? O que é que foi? Onde está ela?

 

Os restantes companheiros, Allumno incluído, ainda estavam demasiado abalados para reagir, forçando um balbuciante Aewyre a praticamente arrastar o mago até às escadas, nas quais tropeçou. Worick correu atrás de ambos, passando por cima deles enquanto se encontravam caídos.

 

Cachopa! berrava o thuragar, subindo os degraus com braços e pernas.

 

Quenestil, Slayra e Taislin seguiam-nos atarantados, sem saber o que fazer.

 

Pelos deuses, Aewyre, o que é que se passa? inquiriu Allumno atrapalhadamente ao ser erguido pelo braço do guerreiro, que o empurrou escada acima.

 

Anda, Allumno, anda! Tu tens de a ajudar! era a única coisa que o jovem dizia.

 

LHIANNAH! berrou Worick em desespero do quarto de Aewyre.

 

Os companheiros encontravam-se todos reunidos em silêncio de volta da cama na qual Lhiannah jazia, Worick sentado numa cadeira a um dos lados do leito e Aewyre de joelhos no outro, agarrando a pálida mão da princesa com as suas. A bela face da arinnir era uma máscara de violência, manchada por inchaços acastanhados e riscada por cortes, com uma ligadura em volta da cabeça e do queixo que lhe mantinha fixo o maxilar deslocado e uma compressa no ouvido esquerdo. As suas pálpebras estavam escurecidas e os seus lábios inchados, contrastando com a palidez da cara.

 

Assim que vira Lhiannah no quarto de Aewyre, sangrando de um ouvido e com vários indícios de violentas pancadas na cabeça, Allumno temera o pior. De início não se atrevera a fazer mais que lhe tirar os dois molares partidos da boca para evitar que a princesa os engolisse e remover os coágulos de sangue para lhe facilitar a respiração e colocá-la numa posição segura no chão que permitisse a drenagem do fluido. Os companheiros haviam sido forçados a agarrar Worick para o impedir de mexer na sua protegida, pois o thuragar recusava obstinadamente as recomendações do mago. Enquanto os seus companheiros se haviam ocupado de Worick, Taislin fora a mando de Allumno à cozinha da estalagem buscar os instrumentos de que necessitaria para tratar minimamente dos ferimentos da arinnir. Para grande alívio do estalajadeiro, a guarda de Val-Oryth chegara pouco depois, irrompendo pelo quarto adentro e forçando os companheiros a restringirem uma vez mais um colérico Worick e também Aewyre antes que a situação se intensificasse. A presença de uma eahanoir não ajudara nada, mas por sorte o arrependido estalajadeiro intervira a favor dos companheiros, relatando como lhe haviam salvo o estabelecimento e a vida. Em troco da promessa de um detalhado depoimento, os guardas haviam então acordado em escoltar o grupo ao templo de Acquon, no qual presentemente se encontravam.

 

Os companheiros haviam pago por um quarto individual, pois Worick nunca consentiria que a sua protegida fosse colocada na nave do templo com filas de gente doente a tossir, e não houvera ninguém que discordasse do thuragar. O aposento não era barato, mas pelo menos era aquecido pelo fogo de uma lareira ornada com motivos ondeantes e uma janela com um vitral branco e azulado podia ser aberta para o arejar. Os clérigos haviam-nos assegurado de que a princesa iria sobreviver, mas nada podiam adiantar quanto à sua recuperação, garantindo-lhes, no entanto, que não podia estar em melhores mãos que nas de Acquon, e isso nem mesmo Worick podia refutar. Não haveria curas milagrosas como em Vau do Caar, pois essa fora uma rara bênção concedida pelo deus da medicina como recompensa pela purga que o grupo efectuara no seu santuário corrompido, mas os seus clérigos eram sem sombra de dúvida os mais capazes indivíduos em Allaryia no tratamento de feridas e males do corpo.

 

Aewyre e o thuragar haviam passado a noite em branco enquanto os companheiros dormiam em cobertores no chão, concedidos pelos clérigos por respeito à situação excepcional (e aos cordões soltos das tilintantes bolsas do grupo). O guerreiro nem se lembrava que um clérigo lhe havia feito um emplastro para os profundos arranhões na cara e foi com surpresa que nele reparou ao coçar a cara de manhã. Uma refeição frugal de queijo e cerveja fora servida aos companheiros após as batidas matinais dos sinos e chegara perfeitamente para o fraco apetite de todos. Quenestil andava por vezes em silêncio de um lado para o outro, pois de todos era o que pior se sentia dentro de espaços fechados, mas naquela situação não iria reclamar. Allumno coçava os olhos sonolentos, mas mantinha-se de pé e de braços cruzados atrás de Aewyre. Slayra afagava a cabeça de Taislin, que abraçava a sua perna como uma criança. Ninguém dissera nada desde a noite passada; palavras eram lâminas que podiam cortar o ténue fio que separava a calma do desespero que todos haviam sentido perante a perspectiva de perderem mais um amigo enquanto ainda lamentavam a morte do primeiro. No entanto, Aewyre surpreendeu todos ao levantar-se e ser o primeiro a falar.

 

Allumno? chamou com voz rouca, sem se virar para o mago.

 

Sim?

 

Quem eram eles?

 

O mago ponderou, questionando-se quanto à pergunta e às implicações da resposta antes de a transmitir ao jovem.

 

Fadados. Uma seita dos Filhos do Flagelo. Todos marcados pela dádiva negra, acreditam que cada morte que causam, incluindo as suas, apressará o regresso do seu mestre...

 

Um silêncio confrangedor, durante o qual todos esperaram pelas palavras de Aewyre.

 

Eu disse... limpou a garganta crua que nada mais me desviaria do caminho para Asmodeon. Os companheiros escutaram com atenção e mesmo Worick ergueu a cara. Jurei que não morreria antes de saber o que aconteceu ao meu pai.

 

Seguiu-se outra pausa silenciosa, durante a qual o guerreiro pareceu debater-se com as palavras.

 

Mas isto... não lhes perdoo. À harahan, aos Filhos do Flagelo. Não lhes perdoo.

 

Aewyre... tentou Allumno temperar.

 

É a Ancalach que eles querem? indagou, desembainhando a espada que refulgiu na luz branca e azulada projectada pelo vitral. Então vão tê-la. Entregue de ponta em riste. Na barriga.

 

O mago calou-se. Não adiantaria.

 

Se a querem assim tanto, perseguir-nos-iam de qualquer forma. Mas não será necessário. Ela irá ter com eles concluiu, embainhando a lâmina.

 

Nenhuma das palavras do jovem envolvera ou mencionara os companheiros, mas os seus endurecidos olhos, não mais os de uma criança grande, fitaram os seus amigos um por um, esperando por uma reacção.

 

Allumno foi o primeiro a pousar-lhe a mão no ombro.

 

Já sabes. Apoio-te nas decisões que tomas. Sempre.

 

Quenestil seguiu-se-lhe com Slayra no seu encalço. O eahan postou-se defronte do seu amigo, falando-lhe em silêncio, dispensando palavras.

 

Juntos? perguntou por fim, estendendo a mão ao guerreiro.

 

A memória foi dolorosa e ao mesmo tempo alentadora, pois por detrás daquele gesto e daquela palavra Aewyre sentiu a força de Babaki, a sua incondicional amizade e uma promessa de esperança que ficara por cumprir. Os dois amigos apertaram os pulsos um do outro com as mãos, selando o pacto.

 

Juntos.

 

Não havia nenhum sorriso sardónico na cara de Slayra quando a eahanoir se lhe dirigiu.

 

Eles vão pagar garantiu, acariciando o lado ferido da face do guerreiro, que acenou de olhos fechados com a cabeça. Vamos fazer com que paguem bem caro.

 

Taislin estendeu-lhe a pequena mão sem nada dizer e Aewyre agarrou-a, admirado com a austeridade da expressão do burrik e a dureza do seu olhar, algo que não julgara possível nos da sua raça.

 

Worick levantou-se da cadeira e deu a volta à cama em ponderosos passos, observado por todos os companheiros. Levava os braços atrás das costas e a cabeça baixa, mantendo essa postura mesmo quando parou diante do grupo que se reunira à volta de Aewyre. Velhas memórias atormentavam-no, mas o thuragar sabia bem que só havia uma decisão a tomar quando olhou para Lhiannah.

 

Pedras me partam... praguejou num murmúrio, levantando a cara. Vamos dar cabo deles.

 

Aewyre estendeu um determinado punho cerrado à sua frente e, uma por uma, as mãos dos seus amigos assentaram sobre ele. Palavras não foram necessárias. Estavam juntos outra vez. Unidos. Como um. E os Filhos do Flagelo que temessem.

 

Linsha temia a reacção do seu mestre ao executar a sequência de feitiços na sua barreira protectora. Falhara na sua incumbência, e Malagor não tolerava fracassos, muito menos em assuntos delicados. Um claro indício do quão desapontado estava foi a rapidez com a qual se projectou no Pilar, flutuando em silêncio e de braços cruzados diante da feiticeira.

 

Mestre... titubeou a mulher.

 

Tens o Flagício em tua posse? inquiriu Malagor, embora já soubesse perfeitamente o que se havia passado.

 

Não...

 

O homem nada disse. Permaneceu silente, pairando ominosamente sobre Linsha, que se vergou imperceptivelmente debaixo do peso do seu olhar. A feiticeira não soube dizer se o seu mestre pensava um severo castigo ou se esperava que a sua pupila falasse, embora se inclinasse mais para a segunda hipótese. A sua vontade era dissolver-se, sair do Pilar e esconder-se, mas não se atrevia a arriscar a ira de Malagor com um tal impensado acto de cobardia.

 

Olha para mim, Linsha.

 

A feiticeira assim fez, cruzando olhares etéreos com os orbes do seu mestre, que mesmo diluídos pelas águas incolores do Pilar eram ameaçadores, insinuando um terrível poder oculto.

 

Falhaste, mas a culpa não foi apenas tua. Eu já sei que os Fadados interferiram. Linsha suspirou, pois fora essa a desculpa que pretendera oferecer a Malagor. O que nós temíamos aconteceu, as outras seitas estão a agir e as suas acções imprevistas podem comprometer os nossos planos e a nossa presença em Val-Oryth. O tempo já não é uma comodidade, Linsha. Temos de nos apossar de Ancalach o quanto antes.

 

Sim, mestre... concordou a feiticeira, aliviada.

 

Age com cuidado e subtileza. Faz uso das influências do meirinho se necessário for, mas sê discreta; nem todos os membros da guarda estão debaixo da nossa alçada, e a palavra certa no ouvido errado pode ser-nos caro.

 

Sim, mestre.

 

E acautela-te com as outras seitas, especialmente os Fadados, e agora a harahan também. Sabes do seu paradeiro?

 

Não, mestre.

 

Terás de lhe antecipar os movimentos então e, se possível, impedi-la. Isto aplica-se às outras seitas também. Não desejamos a morte de Aewyre Thoryn nem de Lhiannah Syndar, lembra-te disso. Somente em último recurso.

 

Os outros...?

 

Mata-os se necessário for. O importante é o Flagício... Malagor calou-se a meio da frase, como se tivesse ouvido algo. Tenho de ir.

 

A minha atenção é requerida noutras partes. Não tornes a falhar, Linsha. Se eu tiver de me envolver pessoalmente neste assunto, não serei tão complacente... terminou, dissolvendo-se.

 

A feiticeira deixou-se ficar no Pilar mais algum tempo, meditando. Tinha consciência de que tivera a rara sorte de lhe ser concedida uma segunda oportunidade por Malagor, pois o seu mestre não consentia reveses e quem o desapontava pagava sempre caro. Afinal, talvez fosse mesmo uma privilegiada... mas sabia que não se podia escudar sempre no facto de ser a pupila do Alto Vulto. Desta vez, não haveria margem de erro; as instruções de Malagor teriam de ser seguidas à risca.

 

Determinada a não tornar a falhar, Linsha dispersou-se nas águas do Pilar.

 

Gul-Yrith era conhecida como o Quebra-Mar, pois a sua posição na ponta Oeste do Istmo Negro expunha-a às agressivas ondas causadas pelas fortes tempestades marítimas do Mar do Norte. As suas muralhas altas e cobertas de cicatrizes e remendos eram o duradouro legado de incontáveis batalhas, em muitas das quais a fortaleza fora posta a ferro e fogo e os seus defensores passados a fio de espada. Gul-Yrith era a última barreira entre Asmodeon e o resto de Allaryia, e como tal um dos mais cruciais pontos defensivos do continente. Guerra da Hecatombe fora há duas décadas atrás e a fortaleza fora quase nivelada, embora a grande custo para os invasores, pois cada passo que os defensores haviam sido forçados a ceder estivera ensopado de sangue das hostes d’O Flagelo. Mesmo após ter sido tomada, Gul-Yrith atormentara os seus invasores: blocos de pedra caíam, esmagando todos debaixo do seu secular peso, passadiços cediam, o espólio de comida estava envenenado e espíritos vingativos de sirulianos uivavam na noite, surgindo das fundas catacumbas da fortaleza para se vingarem daqueles que os haviam morto. As forças d’O Flagelo foram literalmente escorraçadas da caída Gul-Yrith, deixando-a em chamas para trás. Sem que as hordas negras o soubessem, os ”espíritos” eram na verdade os sobreviventes do ataque que se haviam refugiado nas labirínticas catacumbas da fortaleza, fazendo uso das suas inúmeras passagens secretas para acossarem os invasores durante a noite, e foram esses mesmos que se atarefaram a reconstruir Gul-Yrith aquando do fim da guerra.

 

Pearan e Pedron eram dois irmãos de puro sangue siruliano, arrancados do colo das suas mães em Tanarch e forçosamente desleitados em tenra idade, instruídos e treinados na rigorosa fortaleza até atingirem a maturidade para fazerem a sua jura de sangue de defender Allaryia das forças d’O Flagelo com a própria vida, se necessário fosse. Ambos eram altos e espadaúdos, fortes e bem constituídos, com vivos cabelos negros, penetrantes olhos cinzentos e um excepcional vigor orientado por anos de estrita disciplina que os impelia a cumprir as suas tarefas com o maior brio e eficiência. No presente mês haviam sido designados para o posto de Sentinelas do Olho, uma tarefa de longa tradição que implicava ficar de permanente vigia no farol plantado a meio do Istmo Negro, um edifício que se mantivera firme e estóico ao longo dos séculos como aqueles que o haviam construído. Era uma simples estrutura cilíndrica, de construção maciça com a sólida base enegrecida pela água, quatro janelas gradeadas em cada um dos três andares e uma entrada que se elevava a vários pés do nível do solo, com uma grua recolhida com a função de baixar um barco que também servia de elevador. Era no topo que se via a estrutura mais elaborada do farol: um enorme revérbero de cobre com uma fornalha alimentada a fole que servia de iluminação para que as sentinelas pudessem continuar a sua vigília durante a noite. Ia ser um mês longo e entediante para Pearan e Pedron, pois pouco mais havia para fazer para além de alternar turnos consoante o ciclo do Sol e da Lua, comer peixe seco, polir as suas armas e armaduras, fazer a barba, medir a maré, verificar o suprimento de carvão e lenha, limpar os seus aquartelamentos e olear as engrenagens do revérbero. Os irmãos não se queixavam. Cada tarefa era acatada com igual empenho, todas eram zelosamente cumpridas com esmero, de forma a deixar o farol para os próximos exactamente como quando haviam entrado nele, e atentavam tanto aos cuidados pessoais como se o seu comandante pudesse aparecer a qualquer momento para verificar. Assim era o modo de vida siruliano. Disciplina era vital. Obediência era esperada. O dever era tudo.

 

Era no cumprimento do dever que Pearan manuseava a grua para baixar o barco com Pedron lá dentro. O Sol alcançara o seu zénite por detrás das nuvens pardas e era hora de medir a maré. O farol tinha várias marcas nas suas pedras deixadas por sentinelas ao longo dos séculos para demarcarem os níveis das marés, linhas horizontais subscritas com o ano no qual haviam sido assinaladas. Pedron trazia. consigo um martelo e cinzel caso verificasse um aumento ou decréscimo substancial, algo que não fora necessário fazer desde o fim da Guerra da Hecatombe, pelo que colegas seus lhe haviam contado.

 

O canal mantinha-se estável há vinte anos, mas durante esses vinte anos as Sentinelas do Olho haviam continuado a verificar os níveis e continuariam a fazê-lo, pois era esse o seu dever. Na noite passada, a maré baixara o suficiente para que o Istmo se revelasse em toda a sua extensão, algo que não acontecia frequentemente desde a Guerra da Hecatombe, quando as forças d’O Flagelo atravessaram a pé a ponte de terra que unia Asmodeon a Allaryia. O facto não era necessariamente preocupante a menos que no dia seguinte a maré subisse para uma marca freneticamente cinzelada, que demarcava o mais alto nível da história do Istmo, bem como o início da Guerra da Hecatombe. O barco prosseguia com a sua oscilante descida e não foi sem alguma apreensão que Pedron constatara que ainda não vira a maré tão alta como naquela manhã.

 

A querena bateu na água, parando a descida da embarcação. Pedron viu as arrebatadas cinzeladuras manchadas de vermelho desbotado pelo tempo e pela intempérie serem lambidas pela maré alta e ergueu-se de sobressalto, removendo os ganchos da grua dos aros metálicos do barco e pegando nos remos. Pearon não precisou de perguntar o que se passava nem de saber por que é que o seu irmão começou a remar na direcção de Gul-Yrith como se a sua vida disso dependesse.

 

Era urgente informar os seus superiores.

 

Pois as Marés Negras haviam voltado.

 

 

 

POSFÁCIO

A jornada dos companheiros prossegue, quiçá de formas que não haviam imaginado, seguramente de feição que não haviam desejado. Todos sofreram um duro golpe na forma da morte de um dos seus: Babaki, o antroleo exilado que apenas na morte encontrou a verdadeira e derradeira paz. Que o último dos shakarex tenha alcançado o pináculo da sua montanha... Tirar Ancalach de Ul-Thoryn desencadeou uma série de eventos, muitos dos quais Aewyre Thoryn e os seus amigos ainda nem se aperceberam e outros tantos que não conseguiriam possivelmente conceber. Trazê-la para Tanarch de todas as nações aquela que mais sofreu debaixo do jugo d’O Flagelo e cujas cicatrizes ainda não sararam foi um acto inconsciente que despertou os Filhos do Flagelo e toda a Sua progénie do seu torpor. Resta-nos ver até que ponto a Sombra foi atiçada pela proximidade da Espada dos Reis, pois a sua presença, embora subtil, permanece forte na adjacência da negra Asmodeon, na qual já se ouvem sussurros e murmúrios de vozes ásperas há muito emudecidas e cujas sombras se mexem uma vez mais. Há um silêncio no ar, uma tensão quase palpável, uma tempestade que se arma furtivamente; sinto-o eu sem a ninguém o poder transmitir, pois a minha tarefa é meramente observar. Apenas posso esperar e aguardar pelo que o destino reserva, como os comuns mortais que fariam bem em se precaverem nos tempos vindouros. Até lá, que os Deuses estejam connosco.

                    Pearnon, o Escriba Crónicas de Allaryia

  

                                                                                                    Filipe Faria

 

 

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