Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Saga do Planeta “Duna”
OS FILHOS
Parte II
Conta-se que o Muad'Dib, certa vez, ao ver uma erva tentando crescer entre duas rochas, removeu uma das rochas. Mais tarde, quando a erva podia ser vista florescendo, ele a cobriu com a rocha remanescente. “Era o destino dela, explicou.
- Os Comentários Agora! gritou Ghanima.
Leto, dois passos adiante dela, chegando ao estreito corte nas rochas, não hesitou! Mergulhou na fenda, arrastando-se para dentro até que a escuridão o envolveu. Ouviu Ghanima entrar atrás dele, um súbito silêncio e a voz dela, nem apressada, nem temerosa.
— Estou presa.
Ele se levantou, sabendo que isso colocaria sua cabeça ao alcance das garras, virou-se dentro da estreita passagem e se arrastou de volta, até sentir a mão estendida de Ghanima.
— É o meu manto — ela disse. — Foi apanhado.
Ele ouviu rochas caindo diretamente abaixo, puxou a mão dela, mas sentiu-a ceder muito pouco.
Havia uma respiração ofegante abaixo deles, um rosnado.
Leto enrijeceu o corpo, prendendo os quadris como uma cunha entre as rochas, e puxou o braço de Ghanima. O tecido rasgou-se e ele sentiu que ela era puxada em sua direção. Ela assoviou e ele percebeu que ela sentia dor, mas puxou mais uma vez, com mais força. Ela penetrou mais no buraco e finalmente completou o caminho, caindo a seu lado. Estavam muito próximos da entrada da fenda, contudo. Ele virou-se, caiu de quatro e se arrastou mais para o fundo. Ghanima o acompanhou. Havia nos movimentos dela uma intensidade ofegante que lhe dizia que fora ferida. Chegou à extremidade da abertura e se virou, olhando para fora da estreita fenda de seu santuário. A entrada estava aproximadamente dois metros acima dele, cheia de estrelas. Alguma coisa grande cobriu as estrelas.
Um rugido trovejante encheu o ar ao redor dos gêmeos. Um som ancestral, profundo, ameaçador: o caçador falando à sua presa.
— Está muito ferida? — perguntou Leto, mantendo a voz calma.
Ela o igualou no tom de voz.
— Um deles me arranhou. Abriu meu traje-destilador ao longo da perna esquerda. Estou sangrando.
— Muito?
— Foi a veia. Não posso estancar o sangue.
— Use pressão — aconselhou ele. — Não se mexa. Cuidarei de nossos amigos.
— Tenha cuidado. São maiores do que eu esperava.
Leto desembainhou a faca cristalina e esticou-a para cima. Sabia que os tigres estariam sondando o que havia abaixo, garras varrendo o estreito espaço onde seus corpos não poderiam entrar.
Lentamente, bem lentamente, Leto foi estendendo a faca. De súbito, alguma coisa atingiu a ponta da lâmina. Ele sentiu o golpe ao longo de todo o braço, quase perdendo seu domínio sobre a faca. Sobre sua mão esguichou sangue, salpicando-lhe o rosto, e houve um imediato rugido que o ensurdeceu. As estrelas voltaram a ser visíveis. Alguma coisa se debateu e caiu das rochas em direção à areia, numa violenta cambalhota.
Uma vez mais, as estrelas foram obscurecidas e ele ouviu o rugido do caçador. O segundo tigre se colocara em posição, sem se importar com o destino de seu companheiro.
— Eles são persistentes — comentou Leto.
— Você pegou um com certeza — disse Ghanima. — Ouça. Os rugidos e convulsões abaixo deles estavam ficando mais fracos.
O segundo tigre permanecia, entretanto, como uma cortina tapando as estrelas. Leto embainhou a lâmina e tocou no braço de Ghanima.
— Dê-me a sua faca. Quero uma ponta limpa para ter certeza de que pegarei este.
— Acha que eles terão um terceiro de reserva? — perguntou ela.
— Não é provável. Os tigres Laza caçam aos pares.
— Igual a nós.
— Igual a nós — concordou ele. Sentiu o punho da faca cristalina de Ghanima escorregar em sua mão e o segurou firme. Uma vez mais, iniciou aquela cuidadosa sondagem para o alto. A lâmina encontrou apenas espaço vazio, mesmo quando ele se esgueirou, até um nível perigoso. Recuou, fazendo uma avaliação.
— Não pode encontrá-lo?
— Não está se comportando do mesmo modo que o outro.
— Ainda está aqui. Pode sentir o cheiro?
Ele engoliu com a garganta seca. Um hálito fétido, úmido com o odor almiscarado do felino, assaltou suas narinas. As estrelas continuavam bloqueadas à sua visão. Nada se ouvia do primeiro tigre o veneno da faca cristalina completara seu trabalho.
— Acho que vou ter que ficar de pé — disse Leto.
— Não!
— Ele tem de ser atraído ao alcance da faca.
— Sim, mas concordamos em que, se um de nós pudesse evitar ser ferido...
— E você está ferida, assim, você é que vai voltar — ele disse.
— Mas se você for gravemente ferido, não poderei deixá-lo.
— Tem uma idéia melhor?
— Me dê a faca de volta.
— Mas sua perna!
— Posso ficar de pé com a que está boa.
— Aquela coisa pode arrancar sua cabeça com uma patada. Talvez a maula...
— Se há alguém aí fora para ouvir, deve saber que viemos preparados para...
— Não gosto que assuma esse risco!
— Quem quer que esteja lá fora não deve saber que temos maulas. Não ainda. — Ela tocou-lhe o braço. Serei cuidadosa, manterei a cabeça baixa.
Como Leto permanecesse em silêncio, ela disse:
— Você sabe que sou eu que devo fazer isso. Devolva minha faca.
Relutantemente, ele sondou com a mão livre até encontrar a mão dela e lhe entregou a faca. Era a coisa lógica a fazer, mas a lógica entrava em choque com toda a emoção dentro dele.
Sentiu Ghanima afastar-se, ouviu o atrito do manto dela contra a rocha.
Ela ofegou e ele soube que ela devia estar de pé. “Tenha cuidado!”, pensou. E quase a puxou de volta para insistir no uso da pistola maula. Mas isso poderia prevenir qualquer um lá fora de que eles dispunham de tais armas. Pior, poderia afugentar o tigre para fora de alcance, e eles estariam presos ali dentro, com um tigre ferido esperando por eles em algum lugar desconhecido, lá fora nas rochas.
Ghanima respirou fundo e pressionou as costas contra a parede da fenda.
“Devo ser rápida”, pensou. Esticou a mão para cima, com a faca. A perna esquerda pulsava no lugar onde as garras a tinham arranhado. Sentiu a crosta de sangue coagulado em sua pele naquele ponto e o calor de um novo fluxo. “Bem depressa!” Mergulhou seus sentidos na calma preparação para crise que o Modo Bene Gesserit proporcionava, colocando a dor e todas as outras perturbações fora de sua consciência. O felino deve estender a pata para baixo! Lentamente, passou a lâmina ao longo da abertura. Onde estava o maldito animal? Uma vez mais, golpeou o ar. Nada. O tigre teria de ser estimulado ao ataque.
Cuidadosamente, sondou com seu sentido do olfato. Um bafo quente vinha da esquerda. Posicionou-se, respirou fundo e gritou:
— Tagwa! — O antigo grito de guerra dos Fremen. Seu significado encontrava-se nas mais antigas lendas: “O preço da liberdade!”
Com o grito, inclinou a lâmina e golpeou ao longo da abertura escura da fenda. Garras atingiram-lhe o cotovelo antes que a lâmina tocasse a carne do animal e ela só teve tempo de inclinar o pulso na direção da dor, antes que a agonia lhe rasgasse o braço do cotovelo até o pulso. Através da dor, sentiu a ponta envenenada mergulhar no tigre. A lâmina foi arrancada de seus dedos entorpecidos. Entretanto, novamente a estreita abertura da fenda se encontrava aberta para as estrelas, e o uivo do felino morrendo enchia a noite. Eles o acompanharam através de seus ruídos de agonia, debatendo-se em sua passagem pelas rochas. Daí a pouco veio o silêncio da morte.
— Ele pegou meu braço — disse Ghanima, tentando prender uma dobra solta de seu manto em torno da ferida.
— Muito ruim?
— Acho que sim. Não consigo sentir minha mão.
— Deixe-me acender uma luz e...
— Não, até que tenhamos cobertura.
— Vou me apressar.
Ela o ouviu se virando para alcançar seu estojo Fremen, sentiu o negrume escorregadio do escudo noturno sendo passado sobre sua cabeça e enfiado por trás. Ele não se importara em torná-lo impermeável à umidade.
— Minha faca está deste lado — ela disse. — Posso sentir o cabo com o joelho.
— Deixe-a por enquanto.
Ele acendeu um pequeno globo luminoso e o brilho a fez piscar. Leto colocou o globo no piso arenoso, de um lado, e emitiu uma exclamação de espanto ao ver o braço dela. A garra havia aberto um longo ferimento, um corte que descia do cotovelo, ao longo da parte de baixo do braço, até quase chegar ao pulso. Um ferimento que descrevia o modo como ela girara o braço para apresentar a ponta da faca ao alcance da garra do tigre.
Ghanima olhou uma vez para o corte, fechou os olhos e começou a recitar a litania contra o medo.
Leto percebeu-se compartilhando dessa necessidade, mas colocou de lado o clamor de suas próprias emoções enquanto tentava fechar o ferimento.
Tinha de ser feito cuidadosamente para deter o fluxo de sangue, embora mantendo a aparência de um curativo desajeitado que a própria Ghanima pudesse ter feito. Ele a fez prender o nó da atadura com sua mão livre, segurando uma das extremidades da bandagem com os dentes.
— Agora, vamos ver essa perna — ele disse.
Ela se virou para apresentar o outro ferimento. Não era tão ruim. Dois cortes rasos ao longo da barriga da perna. No entanto, haviam sangrado com abundância no traje-destilador. Ele os limpou da melhor maneira que podia e enfaixou o ferimento por baixo do traje-destilador, selando o traje sobre a bandagem.
— Deixei cair areia neles — ele disse. — Devem ser tratados assim que você voltar.
— Areia em nossos ferimentos — disse ela. — Essa é uma velha história para os Fremen.
Ele conseguiu sorrir e sentou-se. Ghanima inspirou profundamente.
— Nós conseguimos.
— Ainda não.
Ela engoliu em seco, lutando para se recuperar do choque. Seu rosto parecia pálido à luz do globo luminoso. E ela pensou: “Sim, devemos movimentar-nos rapidamente, agora. Quem controlava aqueles tigres pode estar lá fora neste momento.”
Leto, olhando para a irmã, sentiu uma súbita e esmagadora perda. Era como uma dor profunda disparando através de seu peito. Ele e Ghanima deviam separar-se agora. Por todos esses anos, desde o nascimento, haviam sido como uma única pessoa. Mas agora seus planos exigiam que sofressem uma metamorfose, seguindo caminhos distintos numa individualidade onde o compartilhar das experiências diárias nunca mais os uniria como no passado.
Refugiou-se nas coisas comuns e necessárias que precisavam ser feitas.
— Aqui está meu estojo Fremen. Tirei as bandagens de dentro dele. Alguém pode olhar.
— Sim. Trocaram seus estojos.
— Alguém lá fora tem um transmissor para aqueles felinos — ele disse. — E mais provável que esteja esperando perto do qanat para ter certeza de que nos pegou.
Ela tocou em sua pistola maula, apanhando-a de onde estava, em cima do estojo, para colocá-la no cinturão embaixo de seu manto.
— Meu manto está rasgado.
— Sim.
— Grupos de busca podem chegar aqui logo — advertiu ele. — Pode haver um traidor entre eles. É melhor você voltar sozinha. Fale com Hannah para escondê-la.
— Eu... eu começarei a busca do traidor assim que voltar — ela disse.
Fitou a face do irmão, compartilhando o doloroso conhecimento de que, desse ponto em diante, iriam acumular diferenças. Nunca mais seriam como um só, a partilhar conhecimentos que ninguém mais poderia compreender.
— Irei para Jacurutu — ele disse.
— Fondak — disse ela.
Ele acenou, concordando. Jacurutu/Fondak tinham de ser o mesmo lugar. Era o único modo pelo qual o lugar lendário poderia ter sido oculto. Os contrabandistas haviam feito isso, é claro. Como era fácil para eles converter um rótulo em outro, agindo sob a cobertura da tácita convenção pela qual se permitia existirem. A família governante de um planeta deve ter sempre uma porta dos fundos pela qual possa escapar em casos extremos. E uma pequena quota nos lucros do contrabando mantinha o canal aberto. Em Fondak/Jacurutu, os contrabandistas se haviam apoderado de um sietch completamente operacional sem terem de se incomodar com uma população residente. E haviam escondido jacurutu em campo aberto, sentindo-se seguros graças ao tabu que fazia com que os Fremen o evitassem.
— Nenhum Fremen pensaria em procurar por mim em tal lugar — disse ele. — Eles farão perguntas aos contrabandistas, é claro, mas Nós faremos como foi combinado disse ela.É só que Eu sei.
Ouvindo a própria voz, Leto percebia que ambos estavam arrastando esses últimos momentos de identidade. Um sorriso amargo surgiu-lhe na boca, acrescentando anos à sua aparência. Ghanima percebeu que o estava observando através dos véus do tempo, olhando para um Leto bem mais velho. Lágrimas queimavam-lhe os olhos.
— Você ainda não precisa dar água aos mortos — ele disse, passando o dedo sobre a umidade em seu rosto. — Irei para um lugar suficientemente distante, onde ninguém me ouça, e chamarei um verme. — Indicou os ganchos de Produtor, desarmados e amarrados do lado de fora de seu estojo. — Estarei em Jacurutu antes da aurora, daqui a dois dias.
— Cavalgue rápido, meu amigo — ela sussurrou.
— Voltarei para você, minha única amiga — disse ele. — Lembre-se de ser cuidadosa no qanat.
— Escolha um bom verme — ela disse, repetindo a saudação de partida dos Fremen.
Com a mão esquerda, apagou o globo luminoso, e a cobertura noturna assoviou enquanto a puxava para o lado, dobrando-a e colocando-a embaixo do estojo. Ouviu quando ele partiu, sons suaves desfazendo-se rapidamente no silêncio, enquanto Leto se esgueirava pelas rochas até o deserto.
Ghanima preparou-se então para o que tinha de fazer. Leto devia estar morto para ela. Tinha de acreditar nisso. Não podia existir nenhum jacurutu em sua mente, nenhum irmão lá fora buscando um lugar perdido na mitologia Fremen. Desse ponto em diante, não poderia pensar em Leto como numa pessoa viva. Devia condicionar a si própria para reagir com a crença absoluta de que o irmão fora morto, morto nesse lugar pelos tigres Laza.
Não havia muitos humanos que pudessem enganar uma Reveladora da verdade, mas ela sabia que poderia fazer isso... poderia ter de fazê-lo. As multividas que ela e Leto compartilhavam lhes haviam ensinado o modo: um processo hipnótico que já era velho nos tempos da Rainha de Sabá, embora ela provavelmente fosse o único ser humano vivo que pudesse relembrar a Rainha de Sabá como uma realidade. As profundas compulsões foram projetadas com cuidado, e por longo tempo depois que Leto partiu Ghanima reorganizou sua autoconsciência, construindo uma irmã solitária, a gêmea sobrevivente, até alcançar uma totalidade plausível. Ao consegui-lo, descobriu que seu mundo interior se tornava silencioso, impermeável a intromissões em sua consciência. Era um efeito colateral que não havia esperado.
“Se ao menos Leto tivesse vivido para aprender isto”, pensou, e não achou que o pensamento fosse um paradoxo. Ficando de pé, olhou para o ponto do deserto onde o tigre apanhara o irmão. Havia um som aumentando na areia lá fora, um som familiar a todos os Fremen: a passagem de um verme.
Embora se tivessem tornado raros nessas regiões, os vermes ainda apareciam. Talvez este tivesse sido atraído pela agonia do primeiro felino... Sim, Leto havia morto o primeiro antes que o segundo o pegasse. Era estranhamente simbólica a chegada de um verme. E tão profunda era sua compulsão que ela viu três pontos escuros, lá longe na areia: os dois tigres e Leto. Então, o verme veio e restou apenas a areia, com sua superfície quebrando-se em novas ondas pela passagem do ShaiHulud. Não tinha sido um verme muito grande... mas o suficiente. E sua compulsão não lhe permitiu ver a pequena figura montada no dorso anelado.
Lutando contra sua mágoa, Ghanima fechou o estojo Fremen e se arrastou cautelosamente para fora do esconderijo. Com a pistola maula na mão, observou a área. Nenhum sinal de um ser humano com um transmissor. Subiu as rochas e atravessou para o outro lado, esgueirando-se através das sombras do luar, esperando e esperando, até se certificar de que nenhum assassino espreitava em seu caminho.
Através do espaço aberto, podia ver tochas em Tabr, a ondulante atividade de uma busca. Uma mancha negra moveu-se através da areia em direção ao Criado. Ela escolheu um caminho que a conduzia ao norte do grupo que se aproximava, desceu para as areias e caminhou ao longo das sombras das dunas. Cuidadosa em fazer com que seus passos mantivessem um ritmo quebrado, que não atrairia um verme, começou a atravessar a solitária extensão que separava Tabr do lugar onde Leto morrera. Teria de ser cuidadosa no qanat, sabia. Nada deveria evitar que contasse como o irmão morrera para salvá-la dos tigres.
Os governos, quando se mantêm, tendem cada vez mais a assumir formas aristocráticas. Não se conhece nenhum governo na história que tenha fugido a esse padrão. E à medida que a aristocracia se desenvolve, o governo tende cada vez mais a agir exclusivamente no interesse da classe governante, da essa classe uma realeza hereditária, a oligarquia de um império financeiro ou a burocracia enraizada.
- “A Política como Fenómeno Cíclico”
Manual de Treinamento Bene Gererit
— Por que ele nos faz essa oferta? — perguntou Faradin. — Isso é essencial.
Ele e o Bashar Tvekanik encontravam-se na sala de estar dos alojamentos particulares do Príncipe. Wensicia sentava-se a um lado, sobre um divã azul baixo, quase como ouvinte em vez de participante. Reconhecia essa posição e se ressentia dela, mas Faradin passara por uma mudança aterrorizante desde aquela manhã, quando ela lhe revelara suas tramas.
Era o final da tarde no Castelo Corrino e a luz reduzida acentuava o conforto da sala, uma sala repleta de verdadeiros livros, reproduzidos em plastino, com prateleiras que revelavam uma horda de bobinas de reprodução, blocos de dados, rolos de shigafio, amplificadores mnemónicos. Por toda parte, indícios de que o aposento era muito usado: manchas de uso nos livros, metal brilhante nos amplificadores, cantos puídos nos blocos de dados. Havia apenas um divã, mas muitas cadeiras, todas elas flutuadores sensiformes projetados para o conforto discreto.
Faradin encontrava-se de pé, com as costas para uma janela. Usava uniforme de Sardaukar em cinza e negro, tendo como insígnias somente os símbolos da garra e do leão dourado no colarinho. Havia escolhido receber a mãe e o Bashar nessa sala esperando criar uma atmosfera de comunicação mais calma do que poderia conseguir num local mais formal. Mas Tvekanik, com seu constante “Meu Senhor isto”, “Minha Senhora aquilo”, mantinha a distância.
— Meu Senhor, não creio que ele fizesse essa oferta se fosse incapaz de entregá-la.
— É claro que não! — intrometeu-se Wensicia.
Faradin meramente olhou para a mãe, de modo a fazê-la calar-se, e indagou:
— Não fizemos qualquer pressão sobre Idaho, qualquer tentativa de fazê-lo concretizar a entrega devido à promessa do Pregador?
— Não, — respondeu Tvekanik.
— Então, por que Duncan Idaho, conhecido durante toda a sua vida por sua fanática lealdade aos Atreides, se oferece agora para entregar Lady Jessica em nossas mãos?
— Esses rumores sobre problemas em Arrakis... — arriscou Wensicia.
— Não-confirmados — cortou Faradin. — Seria possível que o Pregador houvesse precipitado tudo isso?
— Seria — respondeu Tvekanik. — Mas não consigo perceber o motivo.
— Ele fala em buscar asilo para ela — disse Faradin. — Isso seria lógico se os rumores fossem...
— Precisamente concordou sua mãe.
— Ou podia ser algum tipo de ardil — disse Tvekanik.
— Podemos fazer várias suposições e estudá-las — comentou Faradin. — Que tal se Idaho caiu em desgraça com sua Lady Alia?
— Isso podia explicar a questão — disse Wensicia. Mas ele...
Faradin interrompeu-a:
— Nenhuma notícia ainda dos contrabandistas? Por que não podemos...
— A transmissão é sempre lenta nesta estação — respondeu Tyekanlk.
— As necessidades da segurança Sim, é claro, mas ainda assim... — Faradin sacudiu a cabeça. — Não gosto dessa suposição.
— Não tenha pressa em abandoná-la — disse Wensicia. — Todas aquelas histórias a respeito de Alia e o tal sacerdote, qualquer que seja o seu nome...
— Javid — lembrou Faradin. — Mas o homem é obviamente...
— Tem sido valiosa fonte de informação para nós — disse Wensicia.
— Eu estava a ponto de dizer que ele é obviamente um agente duplo, — disse Faradin. — Como ele pôde se envolver nisso? Não é digno de confiança. Há muitos indícios.
— Não consigo percebê-los ela disse.
Faradin ficou subitamente furioso com a ingenuidade da mãe.
— Aceite minha palavra nisto, mãe! Os indícios estão lá, eu os explicarei depois.
— Receio ter de concordar — disse Tyekanlk.
Wensicia mergulhou num silêncio magoado. Como eles se atreviam a colocá-la fora do Conselho desse modo? Como se ela fosse uma mulher de cabeça vazia, sem qualquer...
— Não devemos esquecer que Idaho já foi um ghola — lembrou Faradin. — Os Tleilaxu... — Olhou de lado para Tyekanlk.
— Esse ângulo será explorado — disse Tyekanlk. Sentia-se admirando o modo como trabalhava a mente de Faradin: alerta, indagadora, perspicaz. — Sim, os Tleilaxu, ao restaurarem a vida de Idaho, podiam ter plantado nele algum condicionamento poderoso para seu próprio uso.
— Mas não consigo compreender os motivos dos Tleilaxu — confessou Faradin.
— Um investimento em nossa sorte — disse Tyekanlk. — Um pequeno seguro em troca de favores futuros.
— Um grande investimento, eu diria — disse Faradin.
— Perigoso — disse Wensicia.
Faradin tinha de concordar com ela. As habilidade de Lady Jessica eram notórias em todo o Império. Afinal, fora ela que treinara o Muad'Dib.
— Se ficarem sabendo que nós a prendemos... — advertiu Faradin.
— Sim, essa é uma espada de dois gumes — lembrou Tyekanlk. — Mas não é preciso que ninguém saiba.
— Vamos supor — disse Faradin — que aceitemos essa oferta. Qual seria o valor dela? Poderíamos trocá-la por alguma coisa de maior importância?
— Não abertamente — disse Wensicia.
— É claro que não! — Ele olhou para Tvekanik com expectativa.
— Isso terá de ser visto — respondeu Tyekanlk.
Faradin assentiu.
— Sim, acho que, se aceitarmos, devemos considerar Lady Jessica como dinheiro investido para uso indeterminado. Afinal, a riqueza não precisa necessariamente ser gasta em alguma coisa determinada. Ela é apenas... potencialmente útil.
— Vai ser uma prisioneira muito perigosa — advertiu Tyekanlk.
— Isso deve ser considerado, de fato. Disseram-me que suas habilidades de Bene Gesserit possibilitam que manipule uma pessoa unicamente através de um sutil emprego da voz.
— Ou do corpo — disse Wensicia. — Irulan certa vez me revelou algumas das coisas que aprendera. Ela estava se exibindo naquela época e eu não vi qualquer demonstração conclusiva. Ainda assim, é bastante forte a evidência de que as Bene Gesserits dispõem de meios para conquistar seus objetivos.
— Está sugerindo que ela poderia me seduzir? — perguntou Faradin.
Wensicia meramente encolheu os ombros.
— Eu diria que ela está um pouquinho velha para isso, não? — perguntou Faradin.
— Com uma Bene Gesserit, nada é certo — respondeu Tvekanik.
Faradin experimentou um arrepio de excitação temperada com medo. Jogar esse jogo para recolocar a Casa Corrino no poder era algo que simultaneamente o atraía e repelia. Como permanecia atraente a vontade de abandonar esse jogo em troca de suas atividades preferidas: a pesquisa histórica e o aprendizado das tarefas de governo em Salusa Secundus. A restauração de suas forças de Sardaukar era uma tarefa em si... e para esse trabalho Tvek ainda era um bom instrumento. Um planeta era, apesar de tudo, uma enorme responsabilidade. Mas o Império ainda era uma responsabilidade maior, muito mais atraente como instrumento de poder.
Quanto mais lia a respeito do Muad'Dib/Paul Atreides, mais fascinado se tornava Faradin com os usos do poder. Como chefe titular da Casa Corrino, herdeiro de Shaddam IV, que conquista não seria reconduzir sua linhagem ao trono do Leão. Ele o queria! Ele o queria! E Faradin descobrira que, ao repetir essa sedutora litania para si mesmo, várias vezes, conseguia superar dúvidas momentâneas. Tvekanik estava falando:
— ... e, é claro, a Bene Gesserit ensina que a paz encoraja as agressões, desse modo produzindo a guerra. O paradoxo da...
— Por que entramos nesse assunto? — perguntou Faradin, trazendo sua atenção de volta da arena das especulações.
— Porque — disse Wensicia docemente, ao notar a expressão de devaneio no rosto do filho — meramente indaguei se Tvek estava familiarizado com a filosofia que impulsiona a Irmandade.
— A filosofia deve ser abordada com irreverência — disse Faradin, virando o rosto para Tvekanik. — Quanto à oferta de Idaho, acho que devemos fazer mais consultas e investigações. Quando aChanios que sabemos alguma coisa, esse é precisamente o momento em que devemos examinar o assunto com maior profundidade.
— Será feito — comprometeu-se Tvekanik. Apreciava essa tendência cautelosa em Faradin, mas esperava que ela se estendesse às decisões militares que exigiam rapidez e precisão.
Com aparente irrelevância, Faradin comentou:
— Sabem o que eu acho mais interessante a respeito da história de Arrakis? Era costume entre os Fremen, em tempos primitivos, matar à primeira vista qualquer um que não estivesse usando um traje-destilador, que é facilmente visível com seu capuz característico.
— Por que esse fascínio pelo traje-destilador? — indagou Tvekanik.
— Então perceberam, hein?
— Como poderíamos deixar de notar? — disse Wensicia.
Faradin lançou um olhar irritado em direção à mãe. Por que ela o interrompia desse modo? Voltou a atenção para Tvekanik.
— O traje-destilador é a chave para a personalidade naquele planeta, Tvek. É a marca registrada de Duna. As pessoas tendem a prestar atenção às características físicas: o traje-destilador conserva a umidade do corpo, reciclando-a, e torna possível a existência no planeta. Sabe, o costume Fremen era ter um traje-destilador para cada membro da família, com a excessão dos que saíam para buscar alimentos. Estes tinham trajes sobressalentes. Mas, por favor, notem, vocês dois... — Faradin, com um movimento, incluiu a mãe na conversa... — como vestimentas que se parecem com trajes-destiladores, mas que realmente não o são, se tornaram alta moda em todo o Império. É característica dominante dos seres humanos copiaram o conquistador.
— Realmente, acha essa informação valiosa? — perguntou Tvekanik, num tom de voz intrigado.
— Tvek, Tyek, sem tais informações não se pode governar. Eu disse que o traje-destilador era a chave para a personalidade deles, e é! É uma coisa conservadora. E os enganos que eles cometerão serão enganos conservadores.
Tvekanik olhou para Wensicia que fitava o filho com expressão preocupada. Essa característica de Faradin ao mesmo tempo atraía e preocupava o Bashar. Era tão diferente do velho Shadam. Este fora essencialmente um Sardaukar: um matador militar com poucas inibições. Mas Shaddam fora derrotado pelos Atreides sob o comando daquele maldito Paul. De fato, o que ele lera a respeito de Paul Atreides revelara exatamente as características que Faradin agora exibia. Era possível que Faradin pudesse hesitar menos que o Atreides ante as necessidades mais brutais, mas isso seria devido ao seu treinamento como Sardaukar.
— Muitos já governaram sem usar esse tipo de informação — comentou Tvekanik.
Faradin meramente olhou para ele por um momento, e então disse:
— Governaram e fracassaram.
A boca de Tvekanik traçou uma linha rígida ante essa óbvia alusão ao fracasso de Shaddam. Fora um fracasso dos Sardaukar, igualmente, e nenhum Sardaukar podia lembrá-lo de modo leviano.
Tendo estabelecido seu ponto de vista, Faradin disse:
— Como vê, Tvek, a influência de um planeta sobre o inconsciente coletivo de seus habitantes nunca foi inteiramente considerada. Para derrotar os Atreides, devemos compreender não apenas Caladan, mas Arrakis: um, um planeta suave, o outro, um campo de treinamento para decisões difíceis. A união dos Atreides com os Fremen foi um evento único. Devemos saber como isso funcionou, ou não seremos capazes de igualá-los, para não falar em derrotá-los.
— O que isso tem a ver com a oferta de Idaho? — quis saber Wensicia.
Faradin olhou para a mãe com pena:
— Começamos a derrotá-los através do tipo de tensões que introduzimos em sua sociedade. Esta é uma ferramenta muito poderosa: a tensão. E a ausência dela é importante, também. Notou como os Atreides contribuíram para que as coisas se tornassem fáceis e suaves aqui?
Tvekanik permitiu-se um curto aceno de concordância com a cabeça. Esse ponto de vista era interessante. Os Sardaukar não se podiam permitir que se tornassem muito brandos. A oferta de Idaho ainda os incomodava, contudo. E ele disse:
— Talvez fosse melhor se rejeitássemos a oferta.
— Ainda não — disse Wensicia. — Temos um espectro de escolhas abertas para nós. Nossa tarefa é identificar o máximo possível desse espectro. Meu filho está certo: precisamos de mais informações.
Faradin olhou para ela, medindo-lhe as intenções, bem como o significado superficial de suas palavras.
— Mas saberemos quando tivermos passado do ponto além do qual não há mais alternativas? — perguntou.
Uma risada amarga veio de Tvekanik.
— Se me perguntasse, eu diria que já passamos há muito do ponto em que não há retorno.
Faradin inclinou a cabeça para trás a fim de rir alto:
— Mas ainda temos alternativas, Tvek! Quando chegamos ao fim da corda, ficamos num lugar interessante para reconhecer isso!
Nesta era, quando os meios de transporte humanos incluem engenhos capazes de atravessar as profundezas do espaço em transtempo, e outros que podem transportar pessoas rapidamente cobrem superficies planetárias virtualmente intransponíveis, parece estranho pensar na tentativa de fazer longas jornadas a pé. E no entanto esse permanece o principal meio de se viajar em Arrakis, fato atribuído parcialmente à preferência e parcialmente ao tratamento brutal que esse planeta reserva a qualquer coisa mecânica. Pelas restrições de Arrakis, a carne humana permanece a fonte de recursos mais duradoura e fidedigna para um Hajj. Talvez da a consciência implícita desse fato que faz de Arrakis o derradeiro lar para a alma.
- Manual do Hajj
Lenta e cautelosamente, Ghanima retornou a Tabr, mantendo-se nas sombras mais profundas das dunas, agachando-se quieta enquanto a equipe de buscas passava ao sul de sua posição. Uma terrível consciência a oprimia: o verme que pegara os tigres e o corpo de Leto, os perigos pela frente. Ele se fora, seu irmão gêmeo estava perdido. Colocou de lado todas as lágrimas e alimentou o ódio. E nisso ela era puramente Fremen. Sabia disso e se aproveitava.
Entendia o que diziam a respeito dos Fremen. Não se considerava que eles tivessem uma consciência, tendo-a perdido no fogo da vingança contra aqueles que os haviam arrastado de planeta em planeta numa longa peregrinação. Isso era tolice, é claro. Somente o primitivo mais bruto não possui consciência. A dos Fremen era altamente desenvolvida, voltada para seu próprio bem-estar como povo. Era apenas aos estrangeiros que eles pareciam brutos, exatamente como os estrangeiros pareciam aos Fremen. Cada Fremen sabia muito bem que poderia cometer um ato brutal sem sentir culpa. Os Fremen não se sentiam culpados pelos mesmos motivos que despertavam tais sentimentos em outros. Seus rituais proporcionavam-lhes a libertação de culpas que de outro modo poderiam tê-los destruído. Eles sabiam, nas profundezas de sua consciência, que qualquer transgressão poderia ser atribuída, ao menos em parte, a circunstâncias atenuantes bem conhecidas: “a falha da autoridade”, “uma natural tendência ao mal”
compartilhada por todos os seres humanos, ou a “má sorte” que qualquer criatura sensível deveria ser capas de identificar como a colisão entre a carne mortal e o caos exterior do universo.
Nesse contexto, Ghanima se sentia como pura Fremen, uma extensão cuidadosamente preparada da brutalidade tribal. Só precisava de um alvo, e esse era obviamente a Casa Corrino. Ansiava por ver o sangue de Faradin derramado no solo a seus pés.
Nenhum inimigo a aguardava no qanat. Até mesmo as equipes de buscas já se haviam deslocado para outros locais. Ela atravessou a água pela ponte de terra e se esgueirou através do capim alto, em direção à entrada secreta do sietch. De súbito, uma luz brilhou diante dela e Ghanima caiu deitada, olhando através das compridas hastes da alfafa gigante. Uma mulher havia penetrado na passagem, vinda do exterior, e alguém se havia lembrado de preparara passagem da maneira como se devia preparar qualquer entrada de sietch. Em tempos de crise, saudava-se qualquer um que entrasse no sietch com uma luz brilhante, cegando temporariamente o recém-chegado e dando aos guardas tempo para decidir. Entretanto, tal saudação não devia ser transmitida ao deserto exterior. Uma luz visível dali significava que os selos externos haviam sido deixados de lado.
Ghanima sentiu amargura ante essa traição à segurança do sietch: a luz brilhando. Os costumes dos Fremen de camisas rendadas podiam ser encontrados por toda parte!
A luz continuou a projetar seu facho sobre o solo na base do penhasco.
Uma jovem saiu correndo da escuridão do pomar e entrou na luz, revelando algum temor em seus movimentos. Ghanima pôde ver o círculo brilhante de um globo luminoso dentro da passagem, um halo de insetos em torno dele. A luz iluminava duas sombras escuras na passagem: um homem e a garota.
Estavam de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro.
Ghanima sentiu que havia alguma coisa suspeita naquele casal. Não era apenas um par de amantes escapando por um momento dos trabalhos de busca.
A luz estava suspensa acima e além deles na passagem. Os dois conversavam diante de um arco de luz que lançava suas sombras para a noite exterior, de onde qualquer um poderia observar-lhes os movimentos. De vez em quando, o homem deixava uma das mãos livre e gesticulava na luz, num movimento rápido e furtivo que, uma vez completo, conduzia a mão de volta às sombras.
Sons solitários de criaturas da noite preenchiam as sombras em torno de Ghanima, mas ela bloqueava tais distrações.
Que haveria de errado com aqueles dois?
Os movimentos do homem eram tão estáticos, tão cuidadosos.
Ele se voltou e a luz refletida pelo manto da mulher o iluminou, revelando um rosto vermelho com um nariz grande e manchado. Ghanima levou um susto ao reconhecê-lo. “Palimbasha!” Era o neto de um Naib cujos filhos haviam morrido a serviço dos Atreides. O rosto e uma outra coisa revelada pelo giro aberto de seu manto, enquanto ele se voltava traçou para Ghanima uma imagem completa. Ele usava um cinturão por baixo do manto e, presa nesse cinturão, havia uma caixa que brilhava com mostradores e chaves. Era um instrumento dos Tleilaxu ou ixianos, certamente. E tinha de ser o transmissor que controlara os tigres.
Palimbasha! Isso significava que outra família Naibate passara para o lado da Casa Corrino.
Quem seria a mulher, então? Não importava. Era alguém que estava sendo usado por Palimbasha.
Espontaneamente, um pensamento Bene Gesserit entrou na mente de Ghanima:
“Cada planeta tem seu próprio tempo, assim como cada vida.”
Ela se lembrava bem de Palimbasha, observando-o ali com aquela mulher, vendo o transmissor e os movimentos furtivos. Palimbasha era professor na escola do sietch. Matemática. Tratava-se de um rude matemático que tentara explicar o Muad'Dib através da sua matéria, até ser censurado pelo clero. Era um escravizador de mentes e seu processo de escravidão podia ser entendido com extrema simplicidade: transferia conhecimentos técnicos para os outros sem que esse conhecimento fosse acompanhado por uma transferência de valores.
“Eu devia ter suspeitado dele antes”, pensou ela. “Os indícios estavam todos aqui.”
Então, com um aperto ácido no estômago, ela lembrou: “Ele matou meu irmão!”
Procurou manter-se calma. Palimbasha também a mataria se ela tentasse passar por ele naquela entrada oculta. Agora, podia entender a exibição de luz, tão pouco característica dos Fremen, essa revelação aberta da entrada escondida. Eles estavam observando àquela luz para ver se alguma de suas vítimas escapara. Devia ser um terrível tempo de espera para eles, sem terem certeza. Vendo o transmissor, Ghanima pôde explicar os movimentos da mão: Palimbasha estava apertando o botão do transmissor frequentemente, num gesto furioso.
A presença desse par revelava muito a Ghanima. Era provável que cada entrada do sietch tivesse um observador semelhante em seu interior.
Passou a mão no nariz, onde a poeira causava coceira. A perna ferida ainda pulsava e o braço da faca doía, quando não ardia. Os dedos permaneciam entorpecidos. Se tivesse de usar uma faca, teria de ser com a mão esquerda.
Pensou em usara pistola maula, mas seu ruído característico atrairia atenções indesejadas. Algum outro modo teria de ser encontrado.
Palimbasha virou-se na entrada uma vez mais. Era uma figura escura delineada contra a luz. A mulher voltou sua atenção para a noite exterior enquanto falava. Havia uma vigilância treinada nos modos dela, uma impressão de que ela sabia como olhar nas sombras usando o canto dos olhos. Então, era mais que um instrumento útil. Era parte da grande conspiração.
Ghanima relembrava agora que Palimbasha aspirava a ser um Kavmakam, um governador sob a Regência. Devia fazer parte de um plano bem maior, isso era claro, e haveria muitos outros como ele, mesmo ali, em Tabr. Ghanima examinou os contornos do problema assim exposto, sondando seu interior.
Se pudesse pegar um desses guardiães vivo, muitos outros seriam apanhados.
O ruído de um pequeno animal bebendo no qanat atrás dela captou a consciência de Ghanima. Sons naturais e coisas naturais. Sua memória sondou através de uma estranha barreira silenciosa em sua mente e encontrou uma sacerdotisa de Jowf capturada na Assíria por Senanqueribe.
A memória daquela sacerdotisa revelou a Ghanima o que deveria ser feito.
Palimbasha e sua mulher eram apenas crianças teimosas e perigosas. Não sabiam de nada a respeito de Jowf e nem mesmo conheciam o nome do planeta onde Senanqueribe e a sacerdotisa haviam desaparecido na poeira. Aquilo que estava a ponto de acontecer ao par de conspiradores, se lhes fosse explicado, só o poderia ser em termos de início nesse lugar.
E término nele.
Rolando de lado, Ghanima soltou seu estojo Fremen e tirou o snorkel* de areia de seus prendedores. Desencapou o snorkel e removeu o longo filtro de seu interior. Agora, possuía um simples tubo aberto. Selecionou uma agulha no estojo de consertos, desembainhou a faca cristalina e inseriu a agulha no oco envenenado da ponta da faca, o local onde um dia se encaixara o nervo de um verme da areia. Seu braço ferido tornava o trabalho difícil. Movimentou-se com cuidado, lentamente, em especial ao manusear a agulha envenenada, enquanto retirava um pacote de fibra de especiaria de sua câmara no estojo. A agulha encaixou-se bem na fibra, formando um míssil que entrou apertado no tubo do snorkel de areia.
Segurando a arma horizontalmente, Ghanima arrastou-se para mais perto da luz, movendo-se com lentidão para causar o mínimo de perturbação na alfafa. Enquanto se movia, observava os insetos em torno da luz. Sim, havia mosquitos naquela nuvem tremulante que eram notórios apreciadores de sangue humano. O dardo envenenado poderia passar despercebido, arrancado como se fosse um mosquito mordendo. Só restava uma decisão: qual dos dois pegar o homem ou a mulher?
“Muriz.” O nome surgiu espontaneamente em sua mente. Esse era o nome da mulher. Lembrou-se de coisas que diziam a respeito dela. Era uma daquelas que rodeavam Palimbasha como os insetos em volta da luz. Era uma fraca, facilmente dominada.
Muito bem. Palimbasha havia escolhido a companheira errada para essa noite.
Ghanima levou o tubo à boca, com a memória da sacerdotisa de Jowf bem clara em sua consciência, visou cuidadosamente e expeliu seu fôlego num forte sopro.
Palimbasha bateu com a mão no rosto, retirando-a com um ponto de sangue.
A agulha desaparecera, arrancada pelo movimento da própria mão.
A mulher disse alguma coisa reconfortante e Palimbasha riu. Enquanto ria, suas pernas começaram a ceder. Caiu de encontro à mulher, que tentou segurá-lo. Ela ainda oscilava, tentando suportar o peso morto, quando Ghanima chegou ao seu lado e pressionou a ponta da faca cristalina, desembainhada, em sua cintura, dizendo de modo calmo:
— Não faça movimentos súbitos, Muriz. Minha faca está envenenada. Pode largar Palimbasha agora. Ele está morto.
Em todas as grandes forças socializantes, você encontrara um movimento subjacente para a obtenção e manutenção do poder através do uso de palavras. Do feiticeiro ao sacerdote, deste ao burocrata, tudo permanece igual.
Uma população governada deve ser condicionada à aceitação de palavras de fora como coisas reais, confundindo o sistema simbólico com o universo tangível. Na manutenção de tal estrutura de poder, certos símbolos são mantidos fora da compreensão geral, símbolos tais como os que lidam com a man pulmão econômica ou os que definem a interpretação local do que ja é a saúde mental. Uma simbologia secreta, dessa forma, leva ao desenvolvimento de sub-linguagens fragmentadas, cada uma tendo um indício de que aqueles que a usam estão acumulando poder de alguma forma. Com essa visão do processo de poder, nossas Forças de Segurança Imperiais devem estar sempre alertas quanto à formação de sublinguagens.
- Palestra da Princesa Irulan na Escola de Guerra Arrakeen
— Talvez seja desnecessário avisar-lhes — disse Faradin. — Mas, para evitar quaisquer erros, digo que um mudo foi posicionado com ordens para matar os dois se eu mostrar algum indício de estar sucumbindo à feitiçaria.
Ele não esperava ver algum efeito produzido por essas palavras. Ambos, Lady Jessica e Duncan Idaho, corresponderam às suas expectativas.
Faradin escolhera com cuidado o local para esse primeiro exame do par, o velho Salão de Audiências de Shaddam. O que ele tinha de pequeno era compensado em equipamentos e mobília exótica. Lá fora era uma tarde de inverno, mas nessa sala sem janelas a iluminação simulava um eterno dia de verão, banhado à luz dourada de globos luminosos feitos com o mais puro cristal ixiano e dispostos com um toque de arte.
As notícias de Arrakis enchiam Faradin de tranquilo júbilo. Leto, o gêmeo do sexo masculino, fora morto, morto por um tigre assassino. Ghanima, a irmã sobrevivente, encontrava-se sob custódia da tia e era considerada refém. Um relatório completo esforçava-se por explicara presença de Idaho e Lady Jessica: santuário era o que eles buscavam. Espiões de Corrino relatavam uma instável trégua em Arrakis. Alia havia concordado em se submeter a um teste Chamado “Julgamento de Possessão”, cujo propósito não fora plenamente explicado. Entretanto, nenhuma data fora marcada para esse teste e dois espiões de Corrino acreditavam que ele talvez nunca se realizasse. Uma coisa era certa, porém: tinha havido luta entre os Fremen do deserto e os Fremen Militares Imperiais, uma guerra civil malograda que levara o Governo a uma paralisação temporária. Os domínios de Stilgar eram agora campo neutro, estabelecido após uma troca de reféns, e Ghanima evidentemente fora considerada uma dessas reféns, embora o resultado das negociações permanecesse pouco claro.
Jessica e Idaho haviam sido trazidos a essa audiência seguramente amarrados em cadeiras suspensoras. Ambos eram contidos pelos fios finos e mortais do arame shiga, que cortaria a carne à menor resistência. Dois soldados Sardaukar os haviam trazido, verificado se estavam bem amarrados e partido.
O aviso fora realmente desnecessário. Jessica tinha visto o mudo armado diante de uma parede à sua direita, tendo à mão uma velha mas eficiente arma de projéteis. Ela permitiu que seu olhar vagueasse pelas incrustações exóticas da sala. Folhas largas de um raro arbusto ferroso tinham sido decoradas com pérolas-olhos e interlaçadas para formarem o crescente central de um teto abobadado. O piso embaixo deles era formado por blocos alternados de madeira-diamante e concha kabuzu, arranjados dentro de molduras retangulares de osso passaquet. Estes haviam sido colocados sobre suas extremidades, cortados com laser e polidos.
Materiais duros selecionados decoravam as paredes com desenhos trançados que delineavam as quatro posições do símbolo do Leão reivindicado pelos descendentes do falecido Shaddam IV. Os leões eram executados em ouro.
Faradin decidira receber os prisioneiros de pé. Usava um uniforme composto de calção e blusão dourado, de seda elfo, aberto no pescoço. A única condecoração era o asterisco principesco da sua família real, usado no lado esquerdo do peito. Era acompanhado pelo Bashar Tvekanik, usando traje Sardaukar cor de bronze e botas espessas, mais uma trabalhada arma laser colocada num coldre frontal preso ao fecho do cinto. Tvekanik, cujo semblante carregado era conhecido de Jessica através dos relatórios da Bene Gesserit, ficou três passos à esquerda e um pouco atrás de Faradin.
Um único trono de madeira negra fora colocado diante da parede mais próxima, diretamente atrás dos dois.
— Agora disse Faradin, falando com Jessica, — tem alguma coisa a dizer?
— Eu perguntaria por que estamos amarrados assim? — disse Jessica indicando o shigafio.
— Apenas acabamos de receber relatórios de Arrakis capazes de explicar sua presença aqui. Talvez eu os liberte dentro em pouco. — Ele sorriu: — Se vocês... Interrompeu enquanto sua mãe entrava pelas grandes portas atrás dos cativos.
Wensicia passou apressada por Jessica e Idaho, sem olhar para os dois, mostrou um pequeno cubo-mensagem para Faradin e o ativou. Ele estudou a face brilhante, olhando para Jessica ocasionalmente e então de volta para o cubo. A face luminosa ficou escura e ele devolveu o cubo à mãe, indicando que ela deveria mostrá-lo a Tvekanik. Enquanto ela fazia isso, ele olhava carrancudo para Jessica.
Daí a pouco, Wensicia colocou-se à direita de Faradin, o cubo escuro na mão direita, parcialmente oculto numa dobra de seu vestido branco.
Jessica olhou para Idaho à sua direita, mas ele se recusava a encará-la.
— As Bene Gesserits estão aborrecidas comigo — disse Faradin. — Acreditam que sou responsável pela morte de seu neto.
Jessica manteve o rosto sem demonstrar emoção, pensando: “Então, a história de Ghanima deve ser aceita, a menos que...” Não gostava de suas suspeitas.
Idaho fechou os olhos, abrindo-os a fim de olhar para Jessica. Ela continuava a fitar Faradin. Idaho lhe havia contado a respeito de sua visão Rhajia, mas ela não parecera preocupar-se. Ele não sabia como catalogar a ausência de emoções que ela demonstrava. Ela sabia de alguma coisa, obviamente, algo que não revelava.
— Esta é a situação — disse Faradin, e passou a explicar tudo que aprendera sobre os acontecimentos em Arrakis, sem omitir nada. E concluiu: Sua neta vive, mas se encontra sob custódia de Lady Alia. Isso deve deixá-la satisfeita.
— Você matou meu neto? — perguntou Jessica. Faradin respondeu com sinceridade:
— Eu não. Mas recentemente soube de uma trama que não foi elaborada por mim.
Jessica olhou para Wensicia, notando a expressão de regozijo naquele rosto em forma de coração, e pensou: “Ela o fez! A leoa conspira pelo filhote.” Esse era um jogo no qual a leoa podia viver para se arrepender.
Voltando sua atenção a Faradin, Jessica comentou:
— Mas a Irmandade acredita que você o matou.
Faradin olhou para a mãe.
— Mostre a ela. — Como Wensicia hesitasse, ele falou com um toque de fúria que Jessica anotou para uso futuro: — Eu disse para mostrar-lhe!
Com o rosto pálido, Wensicia apresentou a face do cubo com a mensagem, ativando-a. Palavras fluíram sobre a face, respondendo aos movimentos oculares de Jessica: “Conselho Bene Gesserits 1.Yallacb IX apresenta protesto formal contra a Casa Corrino pelo assassinato de Leto Atreide, o Debate e apresentação de evidências são confiados à Comissão de Segurança Interna da Landsmad. Um campo neutro será escolhido e os nomes dos juizes, serão submetidos à aprovação de todas as partes. Resposta imediata exigida. Sabit Rekush pela Landrmad. “
Wensicia retornou para o lado de seu filho.
— Como pretende responder? — perguntou Jessica.
Wensicia disse:
— Desde que meu filho ainda não foi formalmente investido como soberano da Casa Corrino, eu irei... Aonde vai? — A última pergunta fora dirigida a Faradin que, enquanto ela falava, caminhara em direção à porta lateral, perto do vigia mudo.
Faradin parou, virando-se apenas parcialmente.
— Estou voltando para os meus livros e as outras atividades pelas quais tenho muito mais interesse.
— Como se atreve!? — exclamou Wensicia. Um rubor escuro propagou-se-lhe do pescoço até as faces.
— Eu me atreverei a fazer umas poucas coisas em meu próprio nome — disse Faradin. — A senhora tomou decisões em meu nome, decisões que eu considerei extremamente desagradáveis. Ou eu tomo minhas próprias decisões de agora em diante ou então pode procurar outro herdeiro para a Casa Corrino!
Jessica olhou rapidamente para cada um dos participantes desse confronto, percebendo a verdadeira raiva de Faradin. O Auxiliar Bashar permanecia rígido em atenção, tentando aparentar que não ouvira nada. Wensicia hesitava, à beira de um ataque de fúria. Faradin parecia perfeitamente disposto a aceitar qualquer resultado desse dado que jogara. Jessica admirou-lhe a postura, vendo muitas coisas nesse confronto que poderiam ser-lhe de valor. Parecia que a decisão de mandar tigres assassinos contra seus netos fora tomada sem o conhecimento de Faradin. Havia poucas dúvidas quanto à sua sinceridade quando dizia que soubera da trama depois de iniciada. Nenhuma dúvida restava quanto à raiva sincera em seus olhos, enquanto ele permanecia ali, pronto a aceitar qualquer decisão.
Wensicia respirou fundo, de modo estremecido, depois disse:
— Muito bem, a posse formal terá lugar amanhã. Você pode agir antecipadamente a partir de agora.
Olhou para Tvekanik, que se recusou a encará-la.
“Uma vez que mãe e filho saiam daqui, vai haver uma discussão aos gritos”, pensou Jessica. “Mas acredito que ele venceu.” Permitiu que seus pensamentos se voltassem para a mensagem da Landsraad. A Irmandade julgara suas mensageiras com uma habilidade que dava crédito ao planejamento Bene Gesserit. Escondida na notícia formal de protesto, havia uma mensagem para os olhos de Jessica. A mensagem em si indicava que as espias da Irmandade conheciam a situação de Jessica e haviam avaliado Faradin com soberba perspicácia, ao supor que ele iria mostrá-la à prisioneira.
— Gostaria de uma resposta à minha pergunta — disse Jessica, falando com Faradin, enquanto ele se voltava para ela.
— Direi à Landsraad que nada tive a ver com esse assassinato — respondeu Faradin. — E acrescentarei que compartilho o desgosto da Irmandade pela maneira como foi feito, embora não possa ficar inteiramente insatisfeito com seus resultados. Minhas desculpas pelas tristezas que isso possa ter causado a vocês. A sorte passa em toda parte.
“A sorte passa em toda parte”, pensou Jessica. Esse fora um ditado favorito do seu Duque, e havia algo nos modos de Faradin que revelavam que ele já sabia disso. Obrigou-se a ignorar a possibilidade de que ele houvesse realmente assassinado Leto. Tinha de presumir que os temores de Ghanima quanto a Leto tivessem motivado uma completa revelação do plano dos gêmeos. Os contrabandistas colocariam Gurney em posição de encontrar Leto, nesse caso, e os desejos da Irmandade seriam realizados. Leto teria de ser testado. Teria de ser. Sem o teste, estava condenado, como Alia o estava. E Ghanima... bem, isso podia ser encarado mais tarde. Não havia meio de enviar os pré-nascidos diante de uma Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam.
Jessica respirou fundo.
— Cedo ou tarde — ela disse, — vai ocorrer a alguém que você e minha neta poderiam unir nossas duas Casas e curar velhas feridas.
— Isso já me foi mencionado como possibilidade — disse Faradin, olhando rapidamente para a mãe. — Minha resposta foi que preferia esperar o resultado dos recentes acontecimentos em Arrakis. Não há necessidade de uma decisão apressada.
— E há sempre a possibilidade de você já ter sido jogado nas mãos de minha filha — disse Jessica.
Faradin empertigou-se.
— Explique-se!
— As coisas em Arrakis não são aquilo que lhe podem parecer — revelou Jessica. — Minha filha joga seu próprio jogo, o jogo da Abominação. Minha neta encontra-se em perigo, a menos que Alia descubra um meio de usá-la.
— Espera que eu acredite que você e sua filha se opõem uma à outra? Que Atreides combate Atreides?
Jessica olhou para Wensicia e de volta para Faradin.
— Corrino combate Corrino.
Um sorriso maroto surgiu nos lábios de Faradin.
— Bem dito. Como eu teria sido colocado nas mãos de sua filha?
— Ao se tornar implicado na morte de meu neto, ao me raptar.
— Raptar?
— Não confie nessa bruxa — advertiu Wensicia.
— Eu escolherei em quem confiar, mãe — respondeu Faradin. — Perdoe-me, Lady Jessica, mas não entendo essa questão de rapto. Entendi que a senhora e seu fiel partidário...
— Que é marido de Alia... — disse Jessica.
Faradin voltou um olhar avaliador para Idaho, depois olhou para o Bashar.
— Que você acha, Tvek?
O Bashar aparentemente estava tendo pensamentos similares aos de Jessica. Ele disse:
— Gosto do raciocínio dela. Cuidado!
— Ele é um mentat-ghola — comentou Faradin. — Poderíamos testá-lo até a morte e não encontrar a resposta certa.
— Mas é seguro trabalhar na suposição de que possamos ter sido enganados — disse Tvek.
Jessica percebeu que chegara o momento de executar seu movimento nesse jogo. Se a mágoa de Idaho pudesse mantê-lo no papel que escolhera... Não gostava de usá-lo desse modo, mas havia prioridades maiores.
— Para começar — ela disse, — eu poderia anunciar publicamente que vim até aqui por minha própria escolha.
— Interessante — comentou Faradin.
— Você teria de confiar em mim conceder-me plena liberdade em Salusa Secundus. Não poderia haver aparência de eu ter falado sob coação.
— Não! — protestou Wensicia. Faradin a ignorou.
— Que motivo iria dar?
— Que sou a plenipotenciária da Irmandade enviada aqui para se encarregar de sua educação.
— Mas a Irmandade acusa...
— Isso exigiria uma ação decisiva de sua parte — explicou Jessica.
— Não confie nela — alertou Wensicia.
Com extrema polidez, Faradin olhou para a mãe e disse:
— Se me interromper uma vez mais, farei com que Tvek a retire daqui. Ele ouviu seu consentimento para minha posse formal. Isso volta sua lealdade para mim agora.
— Ela é uma bruxa, eu lhe digo! — E Wensicia olhou para o mudo junto da parede.
Faradin hesitou e então perguntou:
— Tvek, o que você acha? Terei sido enfeitiçado?
— Não em minha opinião. Ela...
— Os dois foram enfeitiçados!
— Mãe! — O tom de voz dele era calmo e decisivo. Wensicia comprimiu as mãos, tentou falar, depois se virou e saiu apressadamente da sala.
Dirigindo-se mais uma vez a Jessica, Faradin perguntou:
— E as Bene Gesserits consentiriam nisso?
— Sim.
Faradin absorveu as implicações de tudo e sorriu amarelo.
— Qual é o lucro da Irmandade em tudo isso?
— Seu casamento com minha neta.
Idaho lançou um olhar indagador para Jessica, parecendo que ia dizer alguma coisa, mas permaneceu em silêncio. Jessica perguntou:
— Ia dizer alguma coisa, Duncan?
— Eu ia dizer que as Bene Gesserits querem o que sempre desejaram: um universo que não interfira com elas.
— Conclusão óbvia — comentou Faradin. — Não consigo perceber por que declarou isso.
As sobrancelhas de Idaho se ergueram, fazendo o gesto que seus ombros não podiam, tolhidos pelo shigafio. Ele sorriu de modo desconcertante.
Faradin, notando o sorriso, voltou-se para confrontar Idaho.
— Eu o divirto?
— Toda esta situação me diverte. Alguém de sua família comprometeu a Corporação Espacial ao usá-la para transportar para Arrakis, instrumentos destinados ao assassinato, instrumentos cujo propósito não poderia ter sido oculto. Vocês ofenderam a Bene Gesserit ao matar um ser humano do sexo masculino que elas queriam para seu programa de pro...
— Está me Chamando de mentiroso, ghola?
— Não, acredito que não sabia a respeito da trama. Mas pensei que a situação devia ser definida.
— Não se esqueça de que ele é um mentat — advertiu Jessica.
— Estava pensando nisso — respondeu Faradin. Uma vez mais, encarou Jessica. — Digamos que eu a liberte e faça sua declaração. Isso ainda deixaria de fora a questão da morte de seu neto. O mentat está certo.
— Foi sua mãe? — perguntou Jessica.
— Meu Senhor! — advertiu Tvekanik.
— Tudo bem, Tvek — acenou Faradin. — E se eu disser que foi minha mãe?
Arriscando tudo ao testar essa divisão interna entre os Corrino, Jessica disse:
— Deve denunciá-la e bani-la.
— Meu Senhor disse Tyekanik, pode haver truques dentro de truques nisso tudo.
Idaho disse:
— E Lady Jessica e eu somos aqueles que serão enganados.
Os músculos do queixo de Faradin se contraíram.
Jessica pensou: “Não interfira, Duncan! Agora não!” Mas as palavras de Idaho haviam colocado em ação suas próprias capacidades de Bene Gesserit.
Ele a chocara. Começou a se indagar se haveria a possibilidade de que estivesse sendo usada de um modo que não pudesse compreender. Ghanima e Leto... Os pré-nascidos poderiam recorrer a incontáveis experiências, um repositório de conselhos muito mais extenso do que qualquer Bene Gesserit viva poderia usar. E havia outra pergunta. Sua própria Irmandade teria sido inteiramente sincera com ela? Elas ainda podiam desconfiar.
Afinal, ela as havia traído uma vez... com seu Duque.
Faradin olhou para Idaho com uma expressão intrigada.
— Mentat, preciso saber o que representa esse Pregador para você.
— Ele arranjou a passagem até aqui... Não trocamos 10 palavras. Outros agiram por ele. Ele poderia ser... Ele poderia ser Paul Atieides, mas não tenho informação suficiente para ter certeza. Tudo que sei com certeza é que era hora de partir e ele possuía os meios de transporte.
— Você falou em ser enganado — lembrou-lhe Faradin.
— Alia espera que você nos mate silenciosamente e oculte todas as evidências. Após livrá-la de Lady Jessica, não lhe sou mais útil. E Lady Jessica, tendo servido aos propósitos de sua Irmandade, não lhe é mais útil. Alia vai Chamar as Bene Gesserits para prestar contas, mas elas vão vencer.
Jessica fechou os olhos em concentração. Ele estava certo! Podia ouvir a firmeza mentat em sua voz, aquela profunda sinceridade em seu pronunciamento. O padrão caiu em seu lugar sem um tinido. Ela respirou fundo duas vezes e ativou o transe mnemónico, passando os dados por sua mente. Saiu do transe e abriu os olhos. Tudo acontecera enquanto Faradin caminhava de sua posição diante dela para ficar a meio passo de Idaho.
Uma distância de não mais que três passos.
— Não diga mais nada, Duncan — disse Jessica, lembrando-se tristemente de como Leto a avisara do condicionamento Bene Gesserit.
Idaho, a ponto de falar, fechou a boca.
— Eu dou as ordens aqui — disse Faradin. — Continue, mentat. Idaho permaneceu em silêncio.
Faradin virou-se para observar Jessica.
Ela olhava para um ponto distante na parede, revendo o que Idaho e o transe haviam montado: as Bene Gesserits não abandonaram a linhagem Atreides, era claro. Mas elas queriam o controle de um Kwisatz Haderach e haviam investido demasiado num longo programa de procriação selecionada.
Desejavam um choque aberto entre os Atreides e os Corrino, situação em que poderiam entrar como juizes. E Duncan estava certo. Elas sairiam com o controle de ambos, Ghanima e Faradin. Era o único compromisso possível.
Era de admirar que Alia não tivesse percebido isso. Jessica engoliu, sentindo um aperto na garganta. Alia... a Abominação! Ghanima tinha razão em ter pena dela. Mas quem restaria para ter pena de Ghanima?
— A Irmandade prometeu colocar você no trono, com Ghanima como sua mulher disse Jessica.
Faradin deu um passo para trás. A bruxa seria capaz de ler as mentes?
— Elas trabalharam em segredo e não através de sua mãe — continuou Jessica. — Contaram-lhe que eu não estava a par do plano delas.
Jessica percebeu a compreensão no rosto de Faradin. Quão acessível ele era. Mas era verdade, a coisa toda. Idaho tinha demonstrado uma capacidade de mestre como mentat ao enxergar através da trama com os dados limitados de que dispunha.
— Assim, elas fizeram jogo duplo com a senhora — comentou Faradin.
— Elas não me disseram nada a respeito disso. Duncan está certo. Me enganaram. — Ela assentiu para si mesma.
Fora uma clássica ação retardada no padrão tradicional da Irmandade. Uma história razoável, facilmente aceita por se enquadrar naquilo que se poderia imaginar como sendo os motivos delas. Mas elas queriam Jessica fora do caminho. Uma irmã imperfeita que já fracassara diante delas uma vez.
Tvekanik ficou ao lado de Faradin.
— Meu Senhor, esses dois são perigosos demais para...
— Espere um pouco, Tvek. Existem engrenagens dentro de engrenagens aqui. — Ele encarou Jessica. — Temos razões para acreditar que Alia pode oferecer-se como minha noiva.
Idaho teve um sobressalto involuntário, mas se controlou. O sangue começou a gotejar de seu pulso esquerdo, cortado pelo shigafio.
Jessica permitiu-se uma pequena resposta, um arregalar dos olhos. Ela, que conhecera o Leto original como amante, pai de seus filhos, confidente e amigo, via seus traços de frio raciocínio filtrando-se agora através da perversidade de uma Abominação.
— E vai aceitar? — perguntou Idaho.
— Está sendo considerado.
— Duncan, eu lhe disse para ficar quieto — disse Jessica, e falou com Faradin: — O preço dela eram duas mortes inconsequentes. Nós dois.
— Nós suspeitamos de traição — disse Faradin. — Não foi o seu filho que disse que “traição gera traição”?
— A Irmandade quer controlar ambas as Casas. Atreides e Corrino. Não é óbvio?
— Estamos considerando agora a idéia de aceitar sua oferta, Lady Jessica.
— Mas Duncan Idaho teria de ser mandado de volta para sua amorosa esposa.
“A dor é uma função dos nervos”, lembrou-se Idaho. “A dor vem como a luz chega aos olhos. A força vem dos músculos, não dos nervos.” Era um antigo exercício mentat, e ele o completou no espaço de uma respiração, flexionou o pulso direito e cortou uma artéria no shigafio.
Tvekanik saltou para a cadeira, acionando seu fecho para soltar as ligaduras e gritando por ajuda médica. Foi revelador que assistentes enxameassem pela sala, vindos de portas ocultas pelos painéis da parede.
“Houve sempre um bocado de insensatez em Duncan”, pensou Jessica.
Faradin observou Jessica por um momento, enquanto os médicos tratavam de Idaho.
— Eu não disse que ia aceitar sua Alia.
— Não foi por isso que ele cortou o pulso.
— Oh? Pensei que ele estivesse simplesmente se matando.
— Você não é tão estúpido. Pare de fingir comigo disse Jessica.
Ele sorriu.
— Eu estou bem ciente de que Alia me destruiria. Nem mesmo a Bene Gesserit pode esperar que eu a aceite.
Jessica lançou um olhar avaliador para Faradin. Quem era esse jovem rebento da Casa Corrino? Ele não era bom em bancar o tolo. Novamente, lembrou-se das palavras de Leto de que ela encontraria um aluno interessante. E o Pregador também desejava que isso acontecesse, assim dissera Idaho. Desejou ter podido encontrar esse Pregador.
— Vai banir Wensicia?
— Parece uma troca razoável — respondeu ele.
Jessica olhou para Idaho. Os médicos haviam terminado, e amarras menos perigosas o mantinham na cadeira flutuadora.
— Os mentats deviam acautelar-se com absolutos — ela disse.
— Eu estou cansado — respondeu Idaho. — Não faz idéia de como estou cansado.
— Quando é superexplorada, até mesmo a lealdade acaba se gastando disse Faradin.
Novamente Jessica lhe dirigiu aquele olhar avaliador.
Percebendo-o, Faradin pensou: “Em algum tempo, ela me conhecerá com certeza, e isso poderá ser valioso. Minha própria Bene Gesserit renegada! Essa é uma coisa que o filho dela teve e que eu não tenho. Deixe que ela tenha apenas um vislumbre de mim agora. Poderá ver o resto depois.”
— Uma troca razoável — repetiu Faradin. — Aceito a oferta em seus termos.
Sinalizou para o mudo diante da parede com um complexo tremular dos dedos. O mudo acenou. Faradin curvouse para os controles da cadeira e soltou Jessica.
Tvekanik indagou:
— Tem certeza, Meu Senhor?
— Não foi o que discutimos?
— Sim, mas...
Faradin riu subitamente, dirigindo-se a Jessica:
— Tvek suspeita de minhas fontes. Mas com livros e fitas só se aprende que certas coisas podem ser feitas. O verdadeiro aprendizado exige que a pessoa faça essas coisas.
Jessica meditou a respeito disso enquanto se levantava da cadeira. Sua mente retornou aos sinais que Faradin fizera com as mãos. Ele tinha uma linguagem de batalha ao estilo Atreides! Isso revelava uma análise cuidadosa. Alguém ali estava conscientemente copiando os Atreides.
— É claro — respondeu Jessica. — Você quer que eu lhe ensine do modo como as Bene Gesserits são ensinadas.
Faradin sorriu para ela.
— Uma oferta a que não posso resistir — ele disse.
Como vê, foi onde consegui este anel em forma de tartaruga. Estava no suk fora da cidade, onde tinha ido escondido pelos rebeldes. A senha? Oh, ela já foi mudada muitas vezes desde então. Era “Persistência”. E a contra-senha era “Tartaruga”. Foi o que me tirou de lá vivo. Foi por isso que comprei este anel, é uma lembrança.
- Tagir Mohandis: Conversas com um Amigo
Leto estava bem longe na areia quando ouviu o verme atrás dele, dirigindo-se ao batedor que ele deixara e ao pó de especiaria que espalhara em torno dos tigres mortos. Esse era um bom presságio para o começo de seu plano: os vermes eram muito escassos nessas regiões durante a maioria das estações. Não era essencial, mas ajudava. Não haveria necessidade de Ghanima explicar a falta de um corpo.
A essa altura, ele já sabia que Ghanima devia ter se condicionado à crença de que ele estava morto. Somente uma minúscula e isolada cápsula de consciência permaneceria nela, uma memória bloqueada que poderia ser reativada por palavras pronunciadas num idioma antiquíssimo, compartilhado apenas por eles dois em todo esse universo. “Secher Nbiw.” Se ela ouvisse estas palavras: “Caminho Dourado”... somente aí se lembraria dele. Até então estaria morto.
Agora Leto sentia-se completamente só.
Caminhava num passo descontínuo que produzia apenas os sons naturais ao deserto. Nada em sua passagem revelaria ao verme lá atrás que havia carne humana se mexendo por ali. Era um modo de caminhar tão profundamente condicionado que Leto nem precisava pensar a respeito. Os pés se moviam por si mesmos, nenhum ritmo mensurável em seus passos. Qualquer som que pudessem fazer seria atribuído ao vento, à gravidade. Nenhum ser humano passara por ali.
Quando o verme terminou seu trabalho, lá atrás, Leto agachou-se atrás da face escorregadia de uma duna e olhou na direção do Criado. Sim, já estava bem longe. Plantou um batedor e chamou seu transporte. O verme veio rapidamente, quase sem lhe dar tempo para se posicionar antes de engolfar o batedor. Enquanto ele passava, Leto subiu em seu dorso com os ganchos de Produtor, abrindo a sensível borda anterior do anel e fazendo a fera irracional voltar-se na direção sudeste. Era um verme pequeno, mas forte. Leto podia sentir-lhe a força em seu ondular, enquanto ele assoviava através das dunas. Havia uma brisa vinda de trás e ele sentia o calor da passagem do verme, a fricção que a criatura convertia no princípio da especiaria dentro de si mesma.
Enquanto o verme se movia, a mente de Leto também se movia. Stilgar o conduzira em seu primeiro passeio de verme. Leto só precisava deixar a memória fluir para ouvir a voz de Stilgar: calma, precisa, cheia da polidez de uma outra era. Não era para Stilgar o titubear ameaçador de um Fremen embriagado pela aguardente de especiaria. Não eram para Stilgar a voz alta e as fanfarronices desses novos tempos. Não, Stilgar tinha seus deveres. Era um instrutor da realeza:
— Nos velhos tempos, os pássaros eram conhecidos pelo seu canto. E cada vento tinha o seu nome. O vento de seis cliques era Chamado de Pastaza, o vento de 20 cliques era o Cueshma e o de 100 cliques, o Heinali-Heinali, o arrastador de homens. E havia também o vento do demônio no deserto aberto: o Hula-sikau Wala, o vento que come a carne.
E Leto, que já conhecia essas coisas, acenava de gratidão ante a sabedoria da instrução recebida.
Mas a voz de Stilgar carregava-se de muitas coisas valiosas.
— Nos tempos mais antigos, havia certas tribos cujos membros eram conhecidos como caçadores de água. Eles se chamavam Iduau, que significa “insetos da água”, pois não hesitavam em roubar a água de outros Fremen. Se eles o apanhassem sozinho no deserto, não lhe deixariam nem mesmo a água da carne. E havia esse lugar onde eles viviam: o Sietch Jacurutu. Foi onde as outras tribos se reuniram para exterminar os Iduau. Isso foi muito tempo atrás, antes mesmo de Kynes. Nos dias do avô de meu bisavô. E, daqueles dias até hoje, nenhum Fremen foi a Jacurutu. É tabu.
Assim Leto fora lembrado de conhecimentos que já se encontravam em sua memória. Fora uma lição muito importante a respeito do funcionamento da memória. Uma memória não era o bastante, mesmo para alguém cujo passado fosse tão multiforme quanto o dele, a menos que seu uso fosse conhecido e seu valor revelado para julgamento. Jacurutu devia ter água, uma armadilha de vento, todos os atributos de um sietch Fremen, mais o valor incomparável de que nenhum Fremen se aventuraria por lá. Muitos dos jovens nem mesmo saberiam que existira um lugar como Jacurutu. Oh, eles saberiam a respeito de Fondak, é claro, mas esse era um refúgio de contrabandistas.
Era o lugar perfeito para os mortos se esconderem. Entre os contrabandistas e os mortos de uma outra época.
“Obrigado, Stilgar.”
O verme cansou-se antes da aurora. Leto escorregou de seu dorso e observou a criatura enterrar-se nas dunas, movendo-se lentamente, segundo seu padrão familiar. Ele mergulharia bem para o fundo e ficaria amuado.
Devo descansar durante o dia pensou ele.
Ficou no topo de uma duna e observou à sua volta. Vazio, vazio e vazio.
Apenas a trilha ondulante do verme que desaparecera quebrava esse padrão.
O lento grito de um pássaro noturno desafiou a primeira banda de luz verde ao longo do horizonte leste. Leto escavou um abrigo na areia, inflando uma tenda destiladora em torno de seu corpo enterrado e enviando a ponta de um snorkel de areia para buscar o ar.
Por longo tempo, antes que o sono viesse, Leto ficou quieto na escuridão forçada, pensando a respeito da decisão que ele e Ghanima haviam tomado.
Não fora uma decisão fácil, principalmente para Ghanima. Ele não lhe contara toda a sua visão, nem todo o raciocínio que dela derivara. Era uma visão, não um sonho, agora em seu pensamento. Mas a peculiaridade dessa coisa era que ele a via como a visão de uma visão. E se existia algum argumento para convencê-lo de que seu pai ainda era vivo, este se encontrava nessa, visão-visão.
“A vida do profeta prende-se à sua visão”, pensou Leto. “E um profeta só pode separar-se da visão criando sua morte em divergência com essa visão.” Assim era como apareceria na dupla visão de Leto, e ele ponderava a respeito disso, na medida em que se relacionava com a escolha que havia feito. “Pobre João Batista”, pensou. “Se ao menos tivesse tido a coragem de morrer de algum outro modo... Mas talvez sua escolha tivesse sido a mais corajosa de todas. Como saberei que alternativas havia para ele? Só conheço as alternativas que se colocaram para o meu pai.”
Leto suspirou. Voltar as costas para o pai era como atraiçoar um deus.
Mas o Império Atreides precisava ser sacudido, havia caído no pior da visão de Paul. Com que descuido ele esquecera os homens. Fora feito sem pensar. A mola mestra de uma insanidade religiosa fora enrolada e deixada a tiquetaquear.
“E nós estamos presos à visão de meu pai.”
Uma fuga àquela loucura encontrava-se ao longo do Caminho Dourado, Leto bem o sabia. Seu pai o tinha visto. Mas a humanidade poderia sair daquele Caminho Dourado e olhar para trás, em direção ao tempo do Muad'Dib, vendo-o como uma época melhor. A humanidade precisava experimentar a alternativa ao Muad'Dib, contudo, ou nunca entenderia seus próprios mitos.
“Segurança... paz... prosperidade...”
Se lhes fosse dada a opção, havia poucas dúvidas quanto ao que a maioria dos cidadãos desse Império escolheria.
“Embora eles me odeiem”, pensou. “Embora Ghanima me odeie.”
Sua mão direita coçava, e ele pensou na terrível luva em sua visão-visão.
“É como vai ser”, pensou. “Sim, é como vai ser.”
“Arrakis, dê-me forças”, rezou Leto. Seu planeta permanecia forte e vivo abaixo dele e à sua volta. A areia fazia pressão sobre a tenda-destiladora.
Duna era um gigante contando suas riquezas acumuladas. Era uma entidade enganadora, ao mesmo tempo bela e grosseiramente feia. A única moeda que seus mercadores conheciam realmente era o pulso de seu próprio poder, não importando como esse poder pudesse ter sido adquirido.
Eles possuíam o planeta tal como um homem poderia possuir uma mulher aprisionada, ou do modo como as Bene Gesserits possuíam suas irmãs.
Não era de admirar que Stilgar odiasse os sacerdotes-mercadores.
“Obrigado, Stilgar.”
Leto relembrou então a beleza dos velhos modos do sietch, a existência vivida antes da chegada da tecnocracia do Império, e sua mente fluiu como ele sabia que fluíam os sonhos de Stilgar. Antes dos globos luminosos e dos lasers, antes dos omitópteros e dos tratores de especiaria, houvera outro tipo de vida: com mães de pele bronzeada e bebês nos quadris, lâmpadas que queimavam óleo de especiaria em meio a uma forte fragrância de canela.
Naibs que persuadiam seu povo, sabendo que ninguém poderia ser forçado a coisa alguma. Fora um enxamear de vida em buracos feitos nas rochas.
“Uma luva terrível vai restaurar o equilíbrio”, pensou Leto.
E daí a pouco dormiu.
Eu vi o seu sangue e um pedaço do manto que fora rasgado por garras afiadas. Sua irmã relata vividamente os tigres e a certeza de seu ataque.
Nós interrogamos um dos conspiradores e os outros estão mortos ou sob custódia. Tudo a ponta para uma trama dos Corrino. Uma Reveladora da Verdade atestou esse testemunho.
- Relatório de Stilgar à Comissão da Landsraad
Faradin observava Duncan Idaho através do circuito de espionagem, buscando um indício que explicasse o estranho comportamento daquele homem. Passava pouco do meio-dia e Idaho aguardava fora dos aposentos destinados a Lady Jessica, esperando ter uma audiência com ela. Ela iria consentir em vê-lo? Saberia que estavam sendo espionados, é claro. Mas iria concordar em vê-lo?
Faradin encontrava-se na sala de onde Tvekanik guiara o treinamento dos tigres Laza. Uma sala ilegal, na verdade, cheia como estava de instrumentos proibidos, produzidos pelas mãos dos Tleilaxu e dos ixianos.
Com um movimento dos botões à sua direita, Faradin poderia olhar para Idaho de seis ângulos diferentes, ou passar para o interior da suíte de Lady Jessica, onde os aparelhos de espionagem eram igualmente sofisticados.
Os olhos de Idaho incomodavam Faradin. Aquelas bolas de metal perfurado que os Tleilaxu haviam fornecido a seu ghola nos tanques de regeneração marcavam seu possuidor como profundamente diferente dos outros seres humanos. Faradin tocou nas próprias pálpebras, sentindo as superfícies duras das lentes de contato permanentes, que escondiam o azul total do vício da especiaria. Os olhos de Idaho deviam registrar um universo diferente. Como poderia ser de outro modo? Faradin quase ficou tentado a procurar os cirurgiões Tleilaxu e obter essa resposta por si mesmo.
“Por que Idaho tentou se matar?”
“Teria sido isso realmente o que ele tentou? Devia saber que não permitiríamos.”
“Idaho permanece um perigoso ponto de interrogação.”
Tvekanik desejava mantê-lo em Salusa ou matá-lo. Talvez isso fosse melhor.
Faradin mudou para uma visão frontal. Idaho sentava-se num banco duro ao lado da porta que dava para a suíte de Lady Jessica. Era um vestíbulo sem janelas, com paredes de madeira leve decoradas com flâmulas em lanças.
Idaho já se encontrava naquele banco há uma hora, e parecia disposto a esperar para sempre. Faradin inclinou-se para junto da tela. O leal mestre espadachim dos Atreides, instrutor de Paul Muad'Dib, fora tratado gentilmente durante o tempo que vivera em Arrakis. Ele chegara com uma elasticidade juvenil em seu andar. Uma contínua dieta de especiaria devia tê-lo ajudado, é claro. E aquele maravilhoso equilibrio metabólico que os tanques dos Tleilaxu sempre conferiam. Será que Idaho realmente se lembrava de seu passado antes dos tanques? Nenhum outro a quem os Tleilaxu houvessem revivido poderia afirmar isso. Que enigma era esse Idaho!
Os relatórios sobre sua morte encontravam-se na biblioteca. O Sardaukar que o abatera relatara sua destreza: 19 dos seus liquidados por Idaho antes que este tombasse. Dezenove Sardaukar! Sua carne bem que valia ser mandada para os tanques de regeneração. Mas os Tleilaxu haviam feito dele um mentat. Que estranha criatura viveria naquela carne regenerada... Como ele se sentiria sendo um computador humano, em acréscimo a todos os seus outros talentos?
“Por que ele tentou se matar?”
Faradin conhecia seus próprios talentos e tinha poucas ilusões a respeito deles. Era um historiador-arqueólogo e um juiz de homens. A necessidade o forçara a se tornar um conhecedor daqueles que o serviam a necessidade e um estudo cuidadoso dos Atreides. Ele via isso como um preço sempre cobrado à aristocracia. Governar exige julgamentos precisos e incisivos por parte daqueles que lidam com o poder. Mais de um governante caiu devido aos erros e excessos de seus subordinados.
Um estudo cuidadoso dos Atreides revelava um talento soberbo na escolha dos servos. Eles sabiam como manter a lealdade, como manter afiado o ardor de seus guerreiros.
Idaho não estava agindo de acordo.
“Por quê?”
Faradin estreitou as pálpebras, tentando enxergar através da pele daquele homem. Havia um toque de permanência em Idaho, um sentimento de que ele não poderia ser desgastado. Ele dava a impressão de ser fechado, num todo organizado e firmemente integrado. Os tanques dos Tleilaxu haviam colocado em movimento alguma coisa mais que humana, Faradin o sentia.
Havia um movimento auto-renovável naquele homem, como se ele agisse de acordo com leis imutáveis, recomeçando após cada final. Ele movia-se numa órbita fixa com a persistência de um planeta girando em torno de uma estrela. Ele responderia à pressão sem se quebrar apenas mudando ligeiramente sua órbita, sem contudo alterar qualquer coisa que fosse básica.
“Por que ele cortou o pulso?”
Qualquer que fosse o motivo, ele o fizera pela Casa Atreides, pela Casa que o governava. Os Atreides eram a estrela de sua órbita.
“De algum modo ele acredita que o fato de eu manter Lady Jessica aqui irá fortalecer os Atreides.”
E Faradin logo lembrou a si mesmo: “Um mentat pensa assim.”
Isso dava a tal pensamento uma profundidade extra. Os mentats cometiam enganos, mas não com muita frequência.
Tendo chegado a essa conclusão, Faradin quase convocou seus auxiliares para que mandassem embora Lady Jessica com Idaho. Esteve a ponto de agir, e então recuou.
Todos os dois o mentat-ghola e a bruxa Bene Gesserit permaneciam fichas de domínio desconhecido nesse jogo do poder. Idaho devia ser mandado de volta porque isso certamente agitaria os problemas em Arrakis. Jessica devia ser mantida ali, drenada em seus estranhos conhecimentos, para benefício da Casa Corrino.
Faradin sabia que fazia um jogo sutil e mortal. Entretanto, preparara-se para essa possibilidade durante anos, sempre, desde que perceberá que era mais inteligente, mais sensível que as pessoas a seu redor. Fora uma descoberta assustadora para uma criança, e a biblioteca constituíra seu refúgio, assim como seu professor.
As dúvidas o incomodavam agora, e ele se perguntava se estaria apto para esse jogo. Afastara sua mãe, perdendo seus conselhos, mas as decisões dela sempre tinham sido perigosas para ele. Tigres! Seu treinamento tinha sido uma atrocidade e seu uso, uma estupidez. Como era fácil descobrir-lhes a origem! Ela devia ser grata por não ter sofrido nada mais que o banimento. Nesse ponto, o conselho de Lady Jessica ajustara-se às suas necessidades com uma precisão adorável. Ela devia ser levada a revelar o método daquele pensamento Atreides.
Suas dúvidas começaram a se apagar. Pensou em seus Sardaukar, novamente duros e adaptáveis através do treinamento rigoroso e da negação do luxo, segundo suas ordens. Suas legiões permaneciam pequenas, mas eram uma vez mais equivalentes, homem-a-homem, aos Fremen. Elas quase não serviriam a propósito algum enquanto os limites impostos pelo Tratado de Arrakeen restringissem o tamanho relativo de suas forças. Os Fremen ainda podiam derrotá-las pela superioridade numérica a menos que estivessem contidos e enfraquecidos por uma guerra civil.
Ainda era muito cedo para uma batalha dos Sardaukar contra os Fremen. Ele precisava de tempo. Precisava de novos aliados entre as Casas Maiores descontentes e os novos governantes das Casas Menores. Necessitava de acesso ao financiamento da CHOAM. Precisava de tempo para que seus Sardaukar se tornassem fortes e os Fremen se enfraquecessem.
Novamente Faradin prestou atenção à tela que revelava o paciente ghola.
Por que Idaho desejaria ver Lady Jessica a essa hora? Devia saber que eram espionados, que cada palavra, cada gesto seriam gravados e analisados.
“Por quê?”
Faradin desviou o olhar da tela para a saliência ao lado de seu painel de controle. À pálida luz eletrônica, podia perceber os rolos contendo os últimos relatórios de Arrakis. Seus espiões eram meticulosos, tinha de lhes dar crédito. Havia muito para lhe dar prazer e esperança naqueles relatórios. Fechou os olhos e os pontos altos dos relatórios passaram através de sua mente numa forma curiosamente editorial, à qual ele reduzia esses carretéis para seu próprio uso:
“À medida que o planeta se torna fértil, os Fremen se libertam das pressões da terra e suas novas comunidades perdem sua característica tradicional de sietch-fortaleza. Desde a infância, na velha cultura dos sietches, os Fremen eram ensinados pela máxima: “Como o conhecimento de seu próprio ser, o sietch forma uma base sólida a partir da qual você caminhará em direção ao mundo e ao universo.”
“O Fremen tradicional diz: “Olhe para o Maciço”, querendo dizer com isso que a principal ciência é o Direito. Entretanto, a nova estrutura social está enfraquecendo essas velhas restrições legais, a disciplina se afrouxa. Os novos líderes Fremen conhecem apenas o Baixo Catecismo dos ancestrais, mais a história que se encontra camuflada na estrutura mítica de suas canções. As pessoas das novas comunidades são mais frívolas, mais abertas, discutem com maior frequência e são menos suscetíveis à autoridade. O velho povo dos sietches era mais disciplinado, mais inclinado a agir em grupo, e tinha uma tendência a se esforçar no trabalho, tendo mais cuidado com a preservação de seus recursos. Essa gente antiga acreditava que uma sociedade ordeira era a realização do indivíduo. Os jovens afastaram-se dessa crença. E os remanescentes da velha cultura olham para a juventude e dizem: “O vento da morte apagou-lhes o passado!”
Faradin gostava da precisão de seu sumário. A nova diversidade de Arrakis só poderia trazer a violência. Ele tinha os conceitos essenciais firmemente gravados nos carretéis.
“A religião do Muad'Dib baseia-se firmemente na velha tradição cultural Fremen dos sietches, enquanto que a nova cultura se afasta cada vez mais dessas disciplinas.”
Não pela primeira vez, Faradin se perguntava por que Tyekanik abraçara essa religião. Era curioso o modo como Tyekanik acreditava nessa nova moral. Parecia inteiramente sincero, mas se portava como se agisse contra a própria vontade. Parecia uma pessoa que penetrara num redemoinho para testá-lo e fora apanhada por forças além de seu controle. A conversão de Tyekanik aborrecia Faradin pelo caráter dessa mudança. Era uma reversão a costumes muito antigos dos Sardaukar. Ele advertira que os jovens Fremen poderiam sofrer um tipo semelhante de reversão e que as tradições inatas, enraizadas, poderiam prevalecer.
Uma vez mais, Faradin pensou naqueles rolos de relatórios. Eles revelavam uma coisa inquietante: a persistência de um resíduo cultural Fremen dos tempos mais antigos “A Agua da Concepção.” O fluido amniótico dos recém-nascidos era recolhido no parto e destilado para ser a primeira água servida à criança. O costume tradicional exigia uma madrinha para servir a água, dizendo: “Aqui está a água da tua concepção.” Mesmo os jovens Fremen ainda seguiam essa tradição com seus próprios recém-nascidos.
“A água da tua concepção.”
Faradin sentia-se repugnado ante a idéia de beber água destilada do fluido amniótico em que nascera. E pensou a respeito da gêmea sobrevivente, Ghanima, sua mãe morta quando ela tomara aquela estranha água. Teria ela refletido posteriormente sobre esse estranho elo com seu passado? Provavelmente não. Ela fora criada como Fremen. O que fosse natural e aceitável para os Fremen seria natural e aceitável para ela.
Momentaneamente, Faradin lamentou a morte de Leto II. Teria sido interessante discutir essa questão com ele. Talvez houvesse uma oportunidade de discuti-la com Ghanima.
“Por que Idaho cortou o pulso?”
A pergunta persistia cada vez que olhava para a tela de espionagem. Novas dúvidas o assaltavam. Ele ansiava pela capacidade de mergulhar naquele misterioso transe da especiaria, como fizera Paul Muad'Dib, a fim de vasculhar o futuro e conhecer as respostas para suas perguntas. No entanto, não importando quanto de especiaria ele tivesse ingerido, sua consciência comum persistia no fluxo singular do agora, a refletir um universo de incertezas.
A tela espiã mostrou uma serva abrindo a porta de Lady Jessica. A mulher fez sinal para que Idaho entrasse, ele se levantou do banco e atravessou a porta. A serva preencheria um relatório completo depois, mais a curiosidade de Faradin, uma vez mais totalmente despertada, o fez tocar outro botão no painel, observando Idaho entrar na sala de estar dos aposentos de Jessica.
Como ele parecia, calmo e contido. E quão insondáveis eram os olhos do ghola.
Acima de tudo, o mentat deve ser um generalista, não um especialista. É sábio ter decisões de grande importância conduzidas por generalistas. Os expert levam a pessoa rapidamente ao caos. Eles são uma fonte de busca inútil de coisas insignificantes, a discussão a respeito de uma vírgula. O mentat-generalista, por outro lado, deve levar o processo decisório a um saudável senso comum. Não se deve isolar da amplidão do que está acontecendo no universo. Deve permanecer capaz de dizer. “Não existe mistério algum quanto a este momento. Isso é o que nós testamos agora. Pode mostrar-se errado posteriormente, mas então nós o corrigiremos quando chegar a hora. “O mentat-generalista deve compreender que qualquer coisa que possamos identificar como sendo o nosso universo é meramente parte de um fenómeno maior. O especialista, por outro lado, olha para trás, para dentro dos padrões estreitos de sua própria especialidade. O generalista olha para fora: busca os princípios vitais, sabendo muito bem que tais princípios mudam e desenvolvem. São as características da própria mudança que o mentat generalista deve procurar. Não pode haver catálogo ou manual permanente para tais mudanças. Deve-se procurá-las com o mínimo de preconceitos possível, perguntando-se a si mesmo:
“Agora, o que essa coisa está fazendo?”
- Manual do Mentat
Era o dia do Kwisatz Haderach, o primeiro dia santo para os que seguiam o Muad'Dib. Com ele se reconhecia Paul Atreides endeusado como aquela pessoa que estava em toda parte simultaneamente. O Bene Gesserit macho que misturava a ancestralidade masculina e a feminina num poder inseparável para se tornar o Uno-com-Tudo. Os fiéis chamavam esse dia de Ayil, o Sacrifício, para comemorar a morte que fizera a presença dele “real em todos os lugares”.
O Pregador escolheu o início da manhã desse dia para aparecer uma vez mais na praça abaixo do templo de Alia, desafiando a ordem de prendê-lo, que todos sabiam ter sido emitida. Uma delicada trégua prevalecia entre o clero de Alia e as tribos do deserto que se haviam rebelado, mas sua presença podia ser sentida como uma coisa tangível, que deixava inquietos a todos em Arrakeen. O Pregador não dissipou esse clima.
Era o 28.° dia de luto oficial pelo filho do Muad'Dib, seis dias após os ritos comemorativos da Velha Passagem, que haviam sido retardados pela rebelião. A própria luta, contudo, não detivera o Hajj. O Pregador sabia que a praça estaria apinhada nesse dia. A maioria dos peregrinos tentava coincidir sua estada em Arrakis com a passagem do Anil, “para sentir então a Sagrada Presença do Kwisatz Haderach no Seu dia”.
O Pregador entrou na praça com a primeira luz do dia, encontrando o lugar já atravancado de fiéis. Manteve a mão levemente apoiada no ombro de seu jovem guia, sentindo o cínico orgulho nos passos do rapaz. Agora, quando o Pregador se aproximava, as pessoas sentiam cada nuança de seu comportamento. Tal atenção não era inteiramente desagradável para o jovem guia. E o Pregador meramente a aceitava como necessidade.
Tomando posição no terceiro degrau do Templo, o Pregador esperou que se fizesse silêncio. E quando o silêncio se havia propagado como uma onda através da multidão, e os passos apressados de outros, chegando para escutar, podiam ser ouvidos nos limites da praça, ele pigarreou. O frio da manhã ainda permanecia ao redor dele e a luz ainda não se derramara sobre a praça a partir dos topos dos prédios. Sentiu a pálida quietude da grande praça enquanto começava a falar:
— Eu vim para prestar homenagem e pregar em memória de Leto Atreides II, — disse ele com aquela voz forte, tão reminiscente de um cavaleiro dos vermes do deserto. — Faço isso em compaixão por todos aqueles que sofrem. E lhes digo o que o jovem Leto aprendeu: que o amanhã ainda não se realizou e talvez nunca se realize. Este momento aqui é o único lugar e o único tempo observáveis por nós em nosso universo. Eu lhes peço que saboreiem este momento e compreendam o que ele lhes ensina. Eu lhes digo que aprendam que o crescimento e a morte de um governo têm sua evidência no crescimento e na morte de seus cidadãos.
Um murmúrio de perturbação atravessou a praça. Será que ele zombava da morte de Leto II? Eles imaginavam se agora os Guardas-Sacerdotes correriam para prender o Pregador.
Alia sabia que não haveria tal interrupção. Era ordem sua que o Pregador não fosse molestado nesse dia. Ela se disfarçara com um bom traje-destilador e uma máscara captadora de umidade para lhe esconder a boca e o nariz, mais um manto e um capuz para lhe ocultar os cabelos. Encontrava-se no segundo degrau logo abaixo do Pregador, observando-o cuidadosamente. Seria Paul? Os anos poderiam tê-lo mudado desse modo. E ele sempre fora soberbo com a Voz, o que tornava difícil identificá-lo pela fala. E esse Pregador dominava sua voz, fazendo dela o que queria.
Paul não teria feito melhor. Alia sentia que tinha de conhecer a identidade desse homem antes de poder agir contra ele. Como suas palavras a deslumbravam!
Não sentira ironia nas declarações do Pregador. Ele estava usando a atração sedutora das frases definidas, pronunciadas com forte sinceridade. As pessoas podiam tropeçar apenas momentaneamente em seus significados, percebendo que ele desejara que elas titubeassem assim, aprendendo desse modo. De fato, ele captara a reação da multidão, dizendo:
— A ironia frequentemente mascara a inabilidade de raciocinar além dos próprios pressupostos. Não estou sendo irônico. Ghamina tem dito a vocês que o sangue de seu irmão não pode ser lavado. Eu concordo. E eu lhes direi que Leto foi para onde seu pai foi, e fez aquilo que seu pai fez. A Igreja do Muad'Dib diz que ele escolheu, em benefício de sua própria humanidade, um caminho que pode parecer absurdo e tolo, mas que a história irá validar. Que a história está sendo reescrita neste exato momento. Eu lhes digo que há outra lição a ser aprendida com essas vidas e seus términos.
Alia, alerta a cada nuança, se perguntou por que o Pregador dissera términos em vez de mortes. Estaria querendo dizer que um deles ou ambos não estavam verdadeiramente mortos? Como poderia ser? Uma Reveladora da Verdade havia confirmado a história de Ghamima. O que estava fazendo esse Pregador, então? Sua afirmação diria respeito ao mito ou à realidade?
— Prestem muita atenção nesta outra lição — trovejou o Pregador, erguendo os braços. — Se vocês possuem sua humanidade, abandonem o universo.
Abaixou os braços e apontou as órbitas vazias diretamente para Alia.
Parecia estar falando intimamente com ela, uma ação tão óbvia que várias pessoas a seu redor se voltaram para olhar indagadoramente em sua direção. Alia estremeceu ante o poder que emanava dele. Esse homem podia ser Paul! Sim, podia!
— Mas percebo que seres humanos não podem suportar muito bem a realidade — continuou. — Muitas vidas são uma fuga interior. A maioria prefere as verdades fixas. Vocês esticam suas cabeças nos estábulos e ruminam, contentes, até morrerem. Outros os usam para seus propósitos. E nenhuma vez vocês se afastam do estábulo para erguerem a cabeça e serem vocês mesmos. O Muad'Dib veio para lhes dizer isso. Sem entenderem sua mensagem, não podem reverenciá-lo!
Alguém na multidão, possivelmente um sacerdote disfarçado, não pôde aguentar mais. Sua rouca voz masculina elevou-se para gritar:
— Você não viveu a vida do Muad'Dib! Como se atreve a ditar aos outros o modo como devem reverenciá-lo?
— Porque ele está morto! — rugiu o Pregador.
Alia voltou-se para ver quem havia desafiado o Pregador. O homem permanecia oculto de sua vista, mas sua voz veio de entre as cabeças que o ocultavam num outro grito:
— Se acredita que ele está verdadeiramente morto, então você está sozinho daqui para a frente!
Certamente era um sacerdote, pensou Alia. Mas não conseguia reconhecer-lhe a voz.
— Eu vim apenas para fazer uma pergunta simples — disse o Pregador. — Será que a morte do Muad'Dib deve ser seguida pelo suicídio moral de todos os homens? Será esse o resultado inevitável da vinda de um Messias?
— Então admite que ele é o Messias! — gritou a voz no meio do povo.
— Por que não, sendo eu o profeta dos seus tempos? — respondeu o Pregador.
Havia uma confiança tão calma em seu tom de voz e em suas maneiras que até mesmo o provocador ficou em silêncio. A multidão respondeu com um murmúrio de desconforto, um som baixo e animal.
— Sim — repetiu o Pregador. — Sou um profeta destes tempos.
Alia, concentrando-se nele, detectou as sutis inflexões da Voz. Ele certamente controlava a multidão. Teria sido treinado pela Bene Gesserit?
Seria ele outro instrumento da Missionária Protetora? Não verdadeiramente Paul, apenas outra parte daquele interminável jogo de poder?
— Eu articulo o mito e o sonho! — gritou o Pregador. — Sou o médico que faz o parto e anuncia que a criança nasceu. E no entanto venho até vocês num tempo de morte. Será que isso não os perturba? Eu devia sacudir suas almas!
Mesmo sentindo-se irritada com essas palavras, Alia compreendia o modo dirigido do discurso. Com os outros, percebeu que se aproximava nos degraus, comprimindo-se na direção desse homem alto em trajes do deserto.
Seu jovem guia captou-lhe a atenção: como parecia insolente e esperto!
Teria o Muad'Dib se utilizado de um jovem tão cínico?
— Eu quero perturbar vocês! — gritou o Pregador. — Essa é a minha intenção! Vim aqui para combater a fraude e as ilusões de sua religião convencional e institucionalizada. Como todas as religiões desse tipo, sua instituição caminha em direção à covardia. Em direção à mediocridade, à inércia e à presunção.
Murmúrios furiosos começaram a se elevar no centro da multidão.
Alia sentiu as tensões e, exultante, se perguntou se não haveria conflito. Será que o Pregador poderia manipular essas tensões? Se não pudesse, era capaz de morrer ali mesmo!
— Aquele sacerdote que me desafiou! — O Pregador apontou em direção à multidão.
“Ele sabe!”, pensou Alia. Uma sensação percorreu-lhe o corpo, quase sexual em suas nuanças. Esse Pregador fazia um jogo perigoso, mas o fazia com perfeição.
— Você, sacerdote, em seu mufti! — Chamou o Pregador. — Você é um capelão dos presunçosos. Não vim aqui para desafiar o Muad'Dib, mas para desafiar vocês! Será verdadeira a sua religião quando nada lhes custa, nem implica riscos? Será verdadeira a sua religião quando engordam à custa dela? Será verdadeira a sua religião quando cometem atrocidades em seu nome? De onde vem a total degeneração que vocês causaram à revelação original? Responda-me, sacerdote!
Mas o provocador permaneceu calado. E Alia reparou que a multidão ouvia uma vez mais com ávida submissão, atenta a cada palavra do Pregador.
Atacando o clero, conquistava-lhe a simpatia! E se seus espiões estavam corretos, a maioria dos peregrinos e Fremen de Arrakis acreditava que esse homem fosse o Muad'Dib.
— O filho do Muad'Dib se arriscou! — gritou o Pregador, e Alia percebeu que havia lágrimas em sua voz. — O Muad'Dib se arriscou! Eles pagaram seu preço! E o que o Muad'Dib conseguiu? Uma religião que o está abandonando!
“Como essas palavras seriam diferentes se viessem do próprio Paul”, pensou Alia. “Devo descobrir!” Aproximou-se mais, subindo os degraus, e outros a seguiram. Espremeu-se na multidão até quase lhe ser possível estender a mão e tocar no profeta misterioso. Sentiu nele o cheiro do deserto, uma mistura de especiaria e pó de pedra. Ambos, o Pregador e seu jovem guia, estavam empoeirados, como se tivessem chegado recentemente do bled. Ela podia ver as veias grossas na mão do Pregador, ao longo da pele que saía dos fechos do punho do traje-destilador. Podia notar que um dedo de sua mão esquerda havia usado um anel, a marca permanecia. Paul usara um anel naquele dedo: o Falcão Atreides, que agora repousava no Sietch Tabr.
Leto o teria usado se vivesse... ou se ela lhe tivesse permitido ascender ao trono.
Novamente o Pregador voltou suas órbitas vazias para Alia e falou de modo pessoal, embora com sua voz que se propagava através da multidão.
— O Muad'Dib mostrou duas coisas a vocês: um futuro certo e um futuro incerto. Com uma percepção total, ele confrontou a incerteza final de um universo maior. Caminhou cegamente para fora de sua posição neste mundo. Ele nos mostrou o que os homens devem fazer sempre: escolher o incerto em lugar do certo.
Sua voz, Alia notou, assumiu um tom suplicante no final dessa declaração.
Alia olhou à sua volta e levou a mão ao cabo da faca cristalina. “Se eu o matasse agora mesmo, o que eles fariam?” Novamente sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. “Se eu o matasse e me revelasse, denunciando o Pregador como impostor e herege?”
Mas e se eles provassem que ele era Paul?
Alguém empurrou Alia para mais perto dele. Sentia-se cativada por sua presença, mesmo enquanto lutava para controlar sua raiva. Seria Paul?
Deus! O que ela poderia fazer?
— Por que outro Leto foi tirado de nosso convívio? — perguntou o Pregador. E havia mágoa verdadeira em sua voz. — Respondam-me se puderem! Ahhh, a mensagem deles é clara: abandonem a certeza! — E repetiu num grito estentóreo: — Abandonem a certeza! Essa é a ordem mais profunda da vida. É disso que se trata a vida. Nós somos uma sonda rumo ao desconhecido, à incerteza. Por que não ouvem o Muad'Dib? Se a certeza significa conhecer absolutamente um futuro absoluto, então é apenas a morte disfarçada! Tal futuro transforma-se no agora! Ele lhes mostrou isso!
Com uma precisão terrível, o Pregador estendeu a mão e agarrou o braço de Alia. Sem a menor hesitação, sem a necessidade de apalpar. Ela tentou fugir, mas ele a segurou com dolorosa firmeza e falou diretamente para o rosto dela, enquanto os outros ao redor recuavam em confusão.
— O que Paul Atreides lhe disse, mulher? — perguntou ele, exigindo resposta.
“Como ele sabe que sou uma mulher?”, ela se perguntou. Queria mergulhar em suas vidas interiores, pedir-lhes proteção, mas seu mundo interior permanecia assustadoramente silencioso, hipnotizado por essa figura do passado.
— Ele lhe disse que a consumação é igual à morte! — gritou o Pregador. — Previsão absoluta é consumação... é morte!
Alia tentou libertar seus dedos. Queria agarrar a faca e feri-lo para que a soltasse, mas não se atrevia. Nunca sentira tanto medo em toda a sua vida.
O Pregador ergueu o queixo para falar por sobre ela, dirigindo-se à multidão. Gritou:
— Eu lhes dou as palavras do Muad'Dib. Vou esfregar-lhes nos rostos as coisas que tentam evitar. Não acho estranho que só desejem acreditar naquilo que lhes conforta. De que outro modo os seres humanos criam as armadilhas que nos enganam na mediocridade? De que outro modo definimos a covardia? Isso é o que o Muad'Dib lhes contou!
De repente, soltou o braço de Alia, empurrando-a na multidão. Ela teria caído, não fosse a massa de gente para suportá-la.
— Existir é destacar-se, sobressair na paisagem. Vocês não estão pensando ou realmente existindo, a menos que se disponham a arriscar, até mesmo sua sanidade mental, no julgamento de suas próprias existências.
Descendo o degrau, o Pregador segurou uma vez mais o braço de Alia sem hesitar nem vacilar. Contudo, foi mais gentil dessa vez. Inclinou-se para perto dela, modulando a voz para que apenas seus ouvidos o captassem:
— Pare de tentar me empurrar uma vez mais para os bastidores, irmã.
E então, com a mão no ombro de seu jovem guia, ele desceu para o meio do povo. O caminho foi aberto para o estranho par. Mãos estenderam-se para tocar o Pregador, mas as pessoas tentavam alcançá-lo com incrível delicadeza, temerosas do que pudessem encontrar embaixo daquele poeirento manto Fremen.
Alia permaneceu sozinha, em estado de choque, enquanto a multidão se afastava atrás do Pregador.
Agora estava cheia de certeza. Era Paul. Não restavam dúvidas. Era seu irmão. Sentia o que a multidão sentia. Havia estado em sua sagrada presença e agora seu universo desabava em torno dela. E queria correr atrás dele, implorando para que a salvasse de si mesma, mas não conseguia se mover. Enquanto os outros se comprimiam para seguir o Pregador e seu guia, ela permanecia atordoada em desespero absoluto, uma aflição tão profunda que só podia tremer com ela, incapaz de controlar os próprios músculos.
“Que eu vou fazer? Que vou fazer?”, perguntava a si mesma.
Agora não tinha nem ao menos Duncan para se apoiar, nem sua mãe. As vidas interiores permaneciam em silêncio. Havia Ghanima, mantida sob guarda segura dentro do Castelo, mas Alia não podia transmitir sua aflição à gêmea sobrevivente.
“Todos se voltaram contra mim. Que poderei fazer?”
A visão monocular de nosso universo diz que não devemos olhar muito longe à procura de problemas. Tais problemas talvez nunca cheguem. Em vez disso, preocupem-se com os lobos dentro de suas cercas. As matilhas circulando lá fora podem nem existir.
- O Livro de Al har, Shamra 1:4
Jessica esperou por Idaho diante da janela de sua sala de estar. Era um lugar confortável, com divãs macios e cadeiras antigas. Não havia uma suspensora em qualquer um de seus aposentos e os globos luminosos eram feitos de cristal de outra era. Sua janela abria-se acima do jardim de um pátio interno, um andar abaixo.
Ela ouviu a serva abrira porta, o som dos passos de Idaho no piso de madeira, depois sobre o tapete. Ouviu sem se voltar, mantendo o olhar na luz mosqueada do solo verde do pátio. O silencioso e trêmulo estado de guerra em suas emoções devia ser eliminado agora. Respirou fundo várias vezes, de acordo com o treinamento prana-bindu, e sentiu fluir a calma forçada.
O sol alto lançava no pátio um facho de luz poeirenta, destacando a roda prateada de uma teia de aranha esticada sobre os ramos de uma árvore que chegava quase à sua janela. Fazia frio ali dentro, mas fora da janela selada o ar tremia com o calor. O Castelo Corrino colocava-se num lugar estagnado, que negava a presença do verde em seu pátio.
Ouviu Idaho parar diretamente atrás dela.
Sem se voltar, disse:
— O dom das palavras é o dom do engano e da ilusão, Duncan. Por que deseja trocar palavras comigo?
— Pode ser que apenas um de nós sobreviva — ele disse.
— E você deseja que eu faça um bom relatório de seus esforços?
Jessica se virou, notando quão calmamente ele permanecia ali, observando-a com aqueles olhos de metal cinzento que não possuíam centro de foco.
Como eram vazios!
— Duncan, será possível que esteja com ciúme de seu lugar na história?
Falava em tom acusador e lembrava-se de como se expressara naquela outra vez em que confrontara esse homem. Ele estava bêbado na ocasião, dividido por obrigações conflitantes ao receber a ordem de espioná-la. Mas aquele havia sido o Duncan pré-ghola. Esse não era o mesmo homem. Não estava dividido em suas ações, nem angustiado.
Ele provou o julgamento dela ao sorrir.
— A história tem seu próprio tribunal e faz seus próprios julgamentos — comentou. — Duvido que eu esteja preocupado quando do meu julgamento.
— Por que está aqui? — perguntou ela.
— Pela mesma razão pela qual está aqui, Minha Senhora. — Nenhum indício exterior traiu o poder chocante dessas simples palavras, mas Jessica refletiu a um ritmo furioso. “Será que ele realmente sabe por que estou aqui?” Como poderia? Somente Ghanima sabia.
Teria ele dados suficientes para uma computação mentat? Isso era possível. E se ela dissesse alguma coisa que a denunciasse? Teria ele agido desse modo se compartilhasse sua razão para estar ali? Ele devia saber que cada movimento seu, cada palavra, estava sendo observado por Faradin ou seus servos.
— A Casa Atreides chegou a uma amarga encruzilhada — disse Jessica. — A Família voltou-se contra si mesma. Você estava entre os homens mais leais de meu Duque, Duncan. Quando o Barão Harkonnen...
— Não vamos falar dos Harkonnen — ele disse. — Isso foi em outra era e seu Duque está morto. — E ele imaginou: “Será que ela não é capaz de perceber que Paul revelou o sangue dos Harkonnen nos Atreides?” Que risco fora isso para Paul, mas ligara Duncan Idaho ainda mais firmemente a ele. A confiança em tal revelação fora uma moeda quase grande demais para ser concebida. Paul sabia o que a gente do Barão tinha feito a Idaho.
— A Casa Atreides não está morta — disse Jessica.
— Que é a Casa Atreides? — ele perguntou. — Será a senhora a Casa Atreides? Será Alia? Ghanima? Serão as pessoas que servem a essa Casa? Olho para essas pessoas e elas trazem a marca do trabalho árduo, além das palavras! Como podem ser os Atreides? Seu filho falou com razão: perseguição e trabalho árduo é a sina de todos aqueles que me seguem. Eu me separaria disso, Minha Senhora.
— Realmente se aliou a Faradin?
— E não foi isso o que fez, Minha Senhora? Não veio aqui para convencer Faradin de que um casamento com Ghanima resolveria todos os nossos problemas?
“Será que ele realmente pensa isso?”, perguntou-se ela. “Ou estará falando para os espiões que nos vigiam?”
— A Casa Atreides sempre foi essencialmente uma idéia. Você sabe disso, Duncan. Nós compramos lealdade com lealdade.
— A serviço do povo — disse ele, sarcástico. — Ahh, quantas vezes ouvi seu Duque dizer isso. Ele deve estar inquieto em sua sepultura, Minha Senhora.
— Realmente acha que descemos tão baixo?
— Minha Senhora, não sabe que existem rebeldes Fremen que Chamam a si próprios de “Marqueses do Deserto Interior”, amaldiçoando a Casa Atreides e até mesmo o Muad'Dib?
— Ouvi o relatório de Faradin — respondeu ela, tentando imaginar para onde ele estava levando essa conversa e com que objetivo.
— Mais que isso, Minha Senhora. Mais que o relatório de Faradin. Ouvi a maldição deles por mim mesmo. É assim que ela é pronunciada: “Que o fogo os consuma, Atreides! Não deverão ter nem almas, nem espírito, nem corpos, nem sombras, nem mágica, nem ossos, nem cabelos, nem fala, nem palavras. Não deverão ter nem sepultura, nem casa, nem buraco, nem tumba. Não deverão ter nem jardim, nem árvore, nem arbusto. Não deverão ter água, nem pão, nem luz, nem fogo. Não deverão ter filhos, nem família, nem herdeiros, nem tribo. Não deverão ter cabeças, nem braços, nem pernas, nem andar, nem sementes. Não deverão ter assento em planeta algum. Não se deverá permitir que suas almas se ergam das profundezas, e nunca deverão estar entre aqueles que tiveram permissão para viver sobre a terra. Em nenhum dia deverão fitar o Shai-Hulud, mas devem ser presos e algemados na mais profunda abominação, e suas almas nunca deverão penetrar na gloriosa luz para todo o sempre.” Essa é a maldição, Minha Senhora. Consegue imaginar tamanho ódio partindo dos Fremen? Eles reservam a todos os Atreides um lugar à mão esquerda dos malditos, ao lado da Mulher-Sol, que é cheia de fogo.
Jessica permitiu-se um estremecimento. Idaho indubitavelmente pronunciara aquelas palavras com a mesma voz em que ouvira a maldição original. Por que revelava isso à Casa Corrino? Ela podia imaginar um Fremen irado, terrível em sua fúria, diante de sua tribo a enunciar a antiga maldição.
Por que Idaho queria que Faradin a ouvisse?
— Você cria um forte argumento em favor do casamento de Ghanima e Faradin — disse Jessica.
— A senhora sempre teve uma abordagem simples para os problemas — comentou ele.
— Ghanima é uma Fremen. Só pode casar-se com quem não pague o fai, a taxa de proteção. A Casa Corrino entregou toda a sua parte nas ações da CHOAM a seu filho e seus herdeiros. Faradin existe sob a tolerância dos Atreides. Lembra-se de quando seu Duque fincou em Arrakis a bandeira do Falcão? Lembra-se do que ele disse? “Aqui estou, aqui permaneço!” E seus ossos ainda estão lá. Faradin teria de viver em Arrakis, levando consigo seus Sardaukar.
Idaho sacudiu a cabeça ante a simples idéia de tal aliança.
— Diz o velho ditado que descascamos um problema como uma cebola — disse ela, a voz fria. “Como ele se atreve a falar comigo desse modo. A não ser que esteja desempenhando um papel ante os olhos vigilantes de Faradin...”
— De algum modo, não consigo ver os Fremen e os Sardaukar compartilhando um planeta — comentou Idaho. — Essa é uma camada que não vai sair da cebola.
Ela não gostava dos pensamentos que as palavras de Idaho iriam despertar em Faradin e seus assessores, e falou asperamente.
— A Casa Atreides ainda representa a lei deste Império! — E pensou: “Será que Idaho deseja que Faradin acredite poder obter o trono sem os Atreides?”
— Oh, sim — respondeu Idaho. — Quase me esqueci. A lei dos Atreides! Tal como é traduzida, é claro, pelos sacerdotes do Elixir Dourado. Só tenho de fechar os olhos para ouvir seu Duque me dizer que a terra é sempre conquistada e mantida pela violência, ou por sua ameaça. A sorte passa em toda parte, como Gurney costumava cantar. O fim justifica os meios? Ou será que misturei os provérbios? Bem, não importa se o punho coberto pela malha é brandido abertamente pelas legiões Fremen ou Sardaukar, ou se fica escondido na Lei dos Atreides o punho permanece lá. E a camada não sairá da cebola, Minha Senhora. Sabe, imagino qual o punho que Faradin lhe vai exigir...
“O que ele está fazendo?”, perguntou-se Jessica. A Casa Corrino iria sugar esse discurso e se banquetear com ele!
— Assim, você acha que os sacerdotes não permitirão que Ghamima se case com Faradin? — sondou Jessica, tentando perceber para onde conduziam as palavras de Idaho.
— Deixá-la? Deus! Os sacerdotes deixarão que Alia faça o que quiser decretar. Poderia casar-se com Faradin, ela própria.
“É isso que ele está sondando?”, imaginou Jessica.
— Não, Minha Senhora continuou Idaho. Essa não é a questão. O povo deste Império não pode distinguir entre o Governo dos Atreides e o Governo de Rabba, a Besta. Todo dia morrem homens nas masmorras de Arrakeen. Eu parti porque não podia oferecer meu braço ao serviço dos Atreides por mais uma hora que fosse. Não compreende o que estou dizendo, por que vim à sua presença como o representante mais próximo dos Atreides? O Império Atreides atraiçoou seu Duque e seu filho. Eu amava sua filha, mas ela seguiu um caminho e eu segui outro. E se chegarmos a determinado ponto, eu aconselharei Faradin a aceitar a mão de Ghanima ou de Alia mas somente sob seus próprios termos.
“Ahh, ele armou o palco para uma demissão formal, com honra, do serviço dos Atreides”, pensou Jessica. Mas aquelas outras questões sobre as quais falara, teria ele possibilidade de saber o quanto favoreciam o trabalho dela? Jessica olhou para ele aborrecida.
— Você sabe que os espiões estão escutando cada palavra, não sabe?
— Espiões? — Ele riu. — Eles ouvem como eu ouviria no lugar deles. Não sabe como minha lealdade se coloca de modo diferente? Muitas noites eu passei sozinho no deserto, e os Fremen estão certos quanto àquele lugar. No deserto, especialmente à noite, a gente enfrenta os perigos de pensar demasiado.
— Foi lá que ouviu os Fremen nos amaldiçoarem?
— Sim. Entre os al-Ourouba. A pedido do Pregador, eu me juntei a eles, Minha Senhora. Chamamos a nós mesmos de Zarr Sadus, os que se recusam a se submeter aos sacerdotes. Estou aqui para fazer a um Atreides meu anúncio formal de que estou passando para o território inimigo.
Jessica o observou, procurando minúcias reveladoras, mas Idaho não dava indicação de estar fingindo ou ocultando planos. Seria realmente possível que ele tivesse passado para o lado de Faradin? Ela se lembrou de uma máxima de sua Irmandade: “Em assuntos humanos, nada é duradouro, todos os assuntos humanos giram em espiral, movendo-se em torno e para fora.” Se Idaho tinha realmente abandonado o serviço dos Atreides, isso explicaria seu atual comportamento. Ele estava se movendo em torno e para fora. Ela tinha de considerar essa possibilidade.
“Mas por que tinha ele enfatizado que o fizera a pedido do Pregador?”
A mente de Jessica acelerava-se e, tendo considerado as alternativas, ela percebeu que poderia ser obrigada a matar Idaho. O plano em que colocara todas as suas esperanças permanecia tão delicado que nada devia ser deixado que pudesse interferir com ele. Nada. E as palavras de Idaho indicavam que ele poderia conhecer seu plano. Ela avaliou suas posições relativas na sala, caminhando e se virando a fim de se colocar em posição para um golpe mortal.
— Sempre achei que o efeito normalizador das faufreluches era o pilar de nossa força — ela disse. Que ele se perguntasse por que ela mudara a conversa para o sistema de distinção de classes. O Conselho das Grandes Casas na Landsraad, os Sysselraads regionais, todos merecem nossa...
— Não está conseguindo desviar minha atenção — disse ele.
E Idaho ficou admirado com a transparência que as ações dela haviam adquirido. Será que ela se tornara negligente na dissimulação, ou teria finalmente rompido as muralhas de seu treinamento como Bene Gesserit? A última hipótese, concluiu ele, era a verdadeira, mas parte estava nela mesma a mudança provocada pelo envelhecimento. Ele se entristecia por notar que os pequenos hábitos dos novos Fremen diferiam dos antigos. O esquecimento do deserto era o esquecimento de alguma coisa preciosa para os seres humanos, e ele não era capaz de descrever essa coisa, tal como não poderia descrever o que acontecera a Lady Jessica.
Jessica olhava para Idaho com evidente perplexidade, sem tentar ocultar esse sentimento. Será que ele podia registrá-lo tão facilmente?
— A senhora não vai me matar — ele disse, usando as palavras Fremen de advertência: — Não jogue seu sangue sobre minha faca. — E então pensou: “Tornei-me demasiado Fremen.” Dava-lhe um amargo sentido de continuidade perceber com que profundidade havia aceito os costumes do planeta que abrigara sua segunda vida.
— Acho melhor que você saia — disse ela.
— Não, até que aceite minha demissão do serviço dos Atreides.
— Está aceita! — disse ela bruscamente.
Só após pronunciar essas palavras é que ela percebeu o quanto essa discussão girara em torno de puros reflexos. Precisava de tempo para pensar e reconsiderar. Como Idaho podia saber o que ela iria fazer? Não o julgava capaz de saltar o Tempo, como no transe da especiaria.
Idaho recuou, sem lhe voltar as costas, até sentir a porta atrás de si.
Então fez uma mesura.
— Uma vez mais a chamo de Minha Senhora, e então nunca mais. Meu conselho a Faradin será que a mande de volta a Wallach, rápida e silenciosamente, na primeira oportunidade que surgir. Você é um instrumento muito perigoso para se manter. Embora eu não acredite que ele a considere um instrumento. Você está trabalhando para a Irmandade, não para os Atreides. E agora me pergunto se algum dia trabalhou para os Atreides. Vocês bruxas percorrem um caminho muito profundo e obscuro para que os meros mortais possam confiar.
— Um ghola se considera um mero mortal, — zombou ela.
— Comparado a você — replicou ele.
— Saia! — ela ordenou.
— Essa era minha intenção.
Ele deslizou por entre a porta, passando pelo olhar curioso da serva, que obviamente estivera escutando.
“Está feito”, pensou ele. “E eles só podem compreendê-lo de um único modo Somente no reino da matemática se poderá compreender a precisa visão de futuro do Muad'Dib. Assim, primeiro postularemos qualquer número de pontos-dimensões no espaço (esse é o clássico agregado de n-dobras estendido a n-dimensões). Nessa estrutura, o Tempo, tal como comumente entendido, se torna um agregado de propriedades unidimensionais.
Aplicando isso ao fenômeno do Muad'Dib, descobrimos que, ou somos confrontados com novas propriedades do Tempo, ou então (através da redução pelo cálculo infinitesimal) estamos lidando com sistemas distintos que contêm n-propriedades corporais. Com relação ao Muad'Dib, vamos assumir como verdadeira a última hipótese. Como foi demonstrado através da redução, os pontos-dimensões de n-dobras só podem ter existências distintas em diferentes molduras do Tempo. Demonstra-se desse modo que coexistem dimensões distintas do Tempo. Sendo essa uma realidade inescapável, as previsões do Muad'Dib exigiam que ele percebesse n-dobrar, não como um amplo agregado, mas como uma operação dentro de uma única estrutura. Com efeito, ele congelou seu universo dentro de uma única moldura, que era a sua visão do Tempo.
- Palimbasha: Palestras no Sietch Tabr
Leto encontrava-se deitado na crista de uma duna, observando, através de uma extensão de areia, um sinuoso afloramento de rochas. Elas eram como um imenso verme sobre a areia, chato e ameaçador ao sol da manhã. Nada se movia lá. Nenhum pássaro circulava acima, nenhum animal saltitava entre as rochas. Ele podia ver as fendas das armadilhas de vento, quase no centro das costas do “verme”. Devia haver água ali. O verme de pedra tinha aquela aparência familiar de um abrigo sietch, exceto pela ausência de criaturas vivas. Leto permaneceu quieto, confundindo-se com a areia e observando.
Uma das melodias de Gurney Halleck insistia em fluir através de sua mente, com uma persistência monótona:
Abaixo da colina onde as raposas correm.
Um rol mosqueado brilha fulgurante
Onde meu único amor parou.
Abaixo da colina, na moita de erva-doce,
Eu espiono meu amor que não pode despertar.
Abaixo da colina.
Onde ficaria a entrada para aquele lugar? Leto imaginava.
Sentia a certeza de que ali devia ser Jacurutu/Fondak, mas alguma coisa estava errada, além da ausência do movimento de animais. Alguma coisa tremulando nas bordas da percepção consciente o avisava.
Que se esconde abaixo daquela colina?
A ausência de animais era incomoda. Despertava seu senso Fremen de cautela: “Com relação à sobrevivência no deserto, a ausência revela mais que a presença.” Entretanto, havia uma armadilha de vento e, portanto, devia existir água potável. Esse era um lugar tabu que se ocultava atrás o nome de Fondak, sua outra identidade perdida até mesmo na memória da maioria dos Fremen. E nem pássaros nem outros animais podiam ser vistos por lá.
Nenhum ser humano e no entanto ali começava o Caminho Dourado.
Seu pai dissera certa vez:
O desconhecido nos cerca a cada momento. É aí que você busca o conhecimento.
Leto olhou à sua direita, por sobre os topos das dunas. Ocorrera uma tempestade muito grande recentemente. O lago Azrak, a planície de gesso, ficara exposto sem a sua cobertura de areia. A superstição Fremen dizia que quem quer que visse as Bivan, as Terras Brancas, teria direito a um desejo de dois gumes, um desejo que poderia destruí-lo. Leto via apenas uma planície de gesso ou gipsita, revelando-lhe que um dia houvera água ao ar livre em Arrakis.
Como ia existir uma vez mais.
Olhou para cima, observando em torno, em busca de algum movimento. O céu estava turvo após a tempestade. A luz que passava através dele gerava a sensação de uma presença leitosa, de um sol prateado perdido em algum ponto acima do véu de poeira que persistia nas altitudes elevadas.
Mais uma vez, Leto voltou sua atenção para a rocha sinuosa. Tirou o binóculo do estojo Fremen, focalizando suas lentes móveis e perscrutando aquela nudez cinzenta, o afloramento rochoso em que um dia viveram os homens de Jacurutu. A ampliação da imagem revelou um arbusto espinhoso, do tipo Chamado Rainha da Noite. O arbusto abrigava-se nas sombras de uma fenda que poderia conter a entrada para o velho sietch. Leto esquadrinhou o rochedo ao longo de seu comprimento. O sol prateado tornava cinzentos os vermelhos, produzindo uma aparência plana e difusa na longa extensão de rocha.
Leto girou, voltando as costas para Jacurutu, e observou a região à sua volta através do binóculo. Nada nessa desolação preservava as marcas da passagem humana. O vento já apagara sua trilha, deixando apenas uma vaga elevação arredondada no lugar onde ele saltara de seu verme durante a noite.
Novamente, olhou para Jacurutu. Exceto pela armadilha de vento, não havia sinal de que homens houvessem passado por aquele caminho. E sem aquela sinuosa extensão de rocha, nada restava ali para se subtrair da areia descorada, uma vastidão que se estendia de um horizonte a outro.
Leto sentiu subitamente que estava naquele lugar porque se tinha recusado a permanecer confinado ao sistema que seus ancestrais lhe haviam legado.
Pensou em como as pessoas olhavam para ele, aquele engano universal em cada olhar, exceto no de Ghanima.
“Exceto por aquela multidão esfarrapada de memórias, essa criança nunca foi criança.”
“Devo assumir a responsabilidade pela decisão que tomamos”, pensou.
Uma vez mais, esquadrinhou a extensão de rocha. Por todas as descrições, isso tinha de ser Fondak, e nenhum outro lugar poderia ser Jacurutu.
Sentia uma estranha relação ressonante com o tabu desse lugar. Ao modo Bene Gesserit, abriu a mente para Jacurutu, buscando não saber nada a seu respeito. Saber era uma barreira que dificultava o aprendizado. Por alguns momentos, permitiu-se apenas ressoar, sem fazer exigências ou perguntas.
O problema residia na falta de vida animal, mas havia algo especial que o alertava. Percebeu o que era, então: não havia pássaros carniceiros nada de águias, abutres ou falcões. Mesmo quando outro tipo de vida se ocultava, essa aparecia. Cada lugar com água nesse deserto tinha sua cadeia de vida. E no final da cadeia estavam os onipresentes comedores de carniça. Nada viera investigar sua presença. Quão bem ele conhecia os “cães de guarda do deserto”, aquela linha de pássaros empoleirados no alto do penhasco em Tabr, primitivos agentes funerários esperando por carne. Como os Fremen diziam, “nossos competidores”. Mas eles diziam isso sem qualquer mágoa, pois os pássaros vigilantes frequentemente alertavam quando estranhos se aproximavam.
“E se este Fondak foi abandonado até mesmo pelos contrabandistas?”
Leto parou para beber de um de seus tubos de recolhimento.
“E se não houver realmente água por lá?”
Reviu sua posição. Havia cavalgado dois vermes pela areia até chegar ali, dirigindo-os através da noite até deixá-los meio mortos. Esse era o Deserto Interior, onde se devia encontrar o refúgio dos contrabandistas.
Se existia vida ali, se ela pudesse existir, teria de ser na presença de água.
“E se não houver água? E se este lugar não é Fondak/Jacurutu?”
Uma vez mais, apontou o binóculo para a armadilha de vento. Suas bordas externas estavam marcadas pela areia e precisando de manutenção, mas o suficiente dela permanecia. Devia haver água.
“Mas e se não houver?”
Um sietch abandonado poderia perder sua água para o ar, em algum tipo de catástrofe. Por que não havia pássaros carniceiros? Teriam sido mortos por sua água? Por quem? Como todos eles teriam sido eliminados? Veneno?
“Agua envenenada.”
A lenda de Jacurutu não incluía qualquer menção a uma cisterna envenenada, mas isso podia ter acontecido. Se os bandos originais tivessem sido eliminados, já não estariam renovados a essa altura? Os Iduali tinham sido exterminados gerações atrás, e as histórias nunca mencionavam veneno. Examinou as rochas com o binóculo. Como um sietch inteiro podia ter sido eliminado? Certamente, alguns de seus membros deviam ter escapado. Raramente todos os habitantes de um sietch se encontravam no lar. Grupos percorriam o deserto, viajavam até as cidades.
Com um suspiro de resignação, Leto guardou o binóculo. Escorregou pela face oculta da duna, tendo um cuidado extra em enterrar sua tenda-destiladora e ocultar qualquer indício de sua presença, enquanto se preparava para passar ali as horas mais quentes do dia. Vagarosas correntes de fadiga tomavam conta de seus membros enquanto ele se fechava na escuridão. Dentro do espaço suarento da tenda, passou a maior parte do dia, dormitando e imaginando os enganos que poderia ter cometido. Seus sonhos eram defensivos, mas não podia haver autodefesa nesse teste que ele e Ghanima havia escolhido. Uma falha escaldaria suas almas. Comeu biscoitos de especiaria e dormiu, acordando para comer uma vez mais, beber e voltar a dormir. Fora uma longa jornada até esse lugar, um teste severo para músculos de criança.
Próximo do anoitecer, ele despertou, sentindo-se renovado, e escutou em busca de sinais de vida, depois, arrastou-se para fora de sua cobertura de areia. Havia poeira alta no céu, soprada em uma direção, mas ele podia sentir a areia picando seu rosto, vinda de outra direção. Indício certo de que haveria mudança de tempo. Podia sentir uma tempestade se aproximando.
Cautelosamente, subiu na crista de sua duna e olhou uma vez mais para aquelas rochas enigmáticas. O ar entre os dois lugares estava amarelo. Os sinais indicavam a aproximação de uma tempestade Coriolis, o vento que trazia a morte em seu interior. Haveria um grande lençol de areia impulsionada pelo vento que poderia estender-se por quatro graus de latitude. O vazio desolado da depressão de gipsita era agora uma superfície amarela, refletindo as nuvens de poeira. A falsa paz do entardecer o envolveu, e então o dia se acabou e já era noite, a noite que caía rapidamente no Deserto Interior. Nela, as rochas tornaram-se picos angulosos, prateados pela luz da Primeira Lua. Sentia espinhos de areia picando-lhe a pele. Um ribombo de trovão seco soou como um eco de distantes tambores, e no espaço entre o luar e a escuridão ele percebeu um movimento súbito: morcegos. Podia ouvir o bater de suas asas, seus pequenos guinchos.
“Morcegos.”
Por intenção ou acidente, esse lugar transmitia um sentimento de abandonada desolação. Encontrava-se onde deveria estar a semi-lendária fortaleza dos contrabandistas: Fondak. Mas e se não fosse Fondak? E se o tabu ainda permanecesse e essa fosse apenas a concha vazia do fantasmagórico Jacurutu?
Leto agachou-se a sotavento de sua duna e aguardou que a noite assumisse seus ritmos próprios. Paciência e cautela, cautela e paciência. Por algum tempo, ele se divertiu, relembrando o percurso de Chaucer, de Londres a Canterbury, enumerando os lugares a partir de Southwark: duas milhas até o bebedouro em St. Thomas, cinco milhas até Deptford, seis milhas até Greenwich, 30 milhas até Rochester, 40 milhas para chegar a Sittingbourne, 55 milhas até Boughton under Blean, 58 milhas até Harbledown e 60 milhas até Canterbury. Saber que poucos nesse universo se lembrariam de Chaucer ou conheceriam uma Londres exceto o vilarejo de Gensireed dava-lhe o sentimento de flutuar além do Tempo. St. Thomas fora preservada na Bíblia Universal Laranja e no livro de Azhar, mas Canterbury se fora das memórias dos homens, assim como o planeta que a conhecera. Lá estava a carga de sua memória, de todas aquelas vidas que ameaçavam engolfá-lo.
Ele próprio fizera aquela viagem a Canterbury, uma vez.
Sua presente viagem, entretanto, era mais longa, e mais perigosa.
Daí a pouco ele subiu para a crista da duna e seguiu em direção às rochas iluminadas pelo luar. Tentou confundir-se com as sombras, escorregando através das cristas sem fazer qualquer som que pudesse assinalar sua presença.
A poeira se fora, como frequentemente acontecia antes de uma tempestade, e a noite estava brilhante. O dia não revelara movimento algum, mas agora ele podia ouvir pequenas criaturas correndo na escuridão, à medida que se aproximava das rochas.
Na depressão entre duas dunas, encontrou uma família de gerbos que correram ante sua aproximação. Arrastou-se sobre a crista seguinte, suas emoções tomadas pela ansiedade. Aquela fenda que vira, será que conduziria a uma entrada? E havia outras preocupações: os antigos sietches sempre eram guarnecidos por armadilhas: fossos com farpas envenenadas, plantas com espinhos venenosos. Sentia-se dominado pela expressão Fremen: “A noite volta-se para os ouvidos.” E pensando nisso aguçava os ouvidos em busca dos menores sons.
Agora, as rochas cinzentas elevavam-se acima dele, parecendo gigantescas em sua proximidade. Enquanto ouvia, escutou pássaros invisíveis no penhasco, o suave Chamado de uma presa alada. Eram sons de pássaros diurnos, mas ouvidos à noite. Que teria virado do avesso o mundo desses animais? Predadores humanos?
De súbito, Leto gelou de encontro à areia. Havia fogo no penhasco, um bale de jóias brilhantes e misteriosas contra o tecido negro da noite, o tipo de sinal que um sietch enviaria a caminhantes através do bled. Quais seriam os ocupantes desse lugar? Esgueirou-se para a frente nas profundas sombras da base do penhasco, tateando a rocha com a mão e escorregando o corpo para trás, enquanto buscava a fenda que vira à luz do dia.
Localizou-a no oitavo passo e então retirou de seu estojo o snorkel da areia, sondando com ele a escuridão. Ao caminhar, sentiu alguma coisa cair sobre seus ombros, apertando-o e enlaçando-o pelos braços para imobilizá-lo.
“Trepadeira-prendedora!”
Resistiu ao impulso de lutar: isso só faria a trepadeira apertar ainda mais. Deixou cair o snorkel e flexionou os dedos da mão direita, tentando alcançar a faca na cintura. Sentia-se um inocente indefeso por não ter jogado alguma coisa naquela fenda, a distância, a fim de testar os perigos na escuridão. Sua mente estivera ocupada com o fogo sobre o penhasco.
Cada movimento fazia a trepadeira apertar ainda mais, mas afinal seus dedos tocaram o cabo da faca. Furtivamente, fechou a mão em torno do cabo, começando a retirar a faca.
Uma luz cegante o envolveu, imobilizando seus movimentos.
— Ahh, uma ótima pescaria em nossa rede.
Era uma voz grossa, masculina, vinda de trás, com alguma coisa vagamente familiar em seu tom. Tentou virar a cabeça, consciente da perigosa propensão da trepadeira a esmagar um corpo que se movesse com muita liberdade.
Uma mão tomou-lhe a faca antes que pudesse ver seu captor. Depois, moveu-se com habilidade através de seu corpo, retirando todos os pequenos artefatos que ele e Ghanima carregavam para a sobrevivência. Nada escapou à revista, nem mesmo o garrote de shigafio escondido em seu cabelo.
E Leto ainda não pudera ver o homem.
Dedos fizeram alguma coisa à trepadeira-prendedora e ele percebeu que podia respirar com mais facilidade. Entretanto, o homem avisou:
— Não resista, Leto Atreides. Tenho sua água em minha xícara.
Com um supremo esforço, Leto permaneceu calmo, e disse:
— Sabe meu nome?
— É claro! Quando se prepara uma armadilha é para um propósito específico.
— Uma presa específica, não?
Leto permaneceu em silêncio, mas seus pensamentos giravam.
— Sente-se traído! — disse a pesada voz. Mãos viraram seu corpo de modo gentil, mas com óbvia demonstração de força. Um adulto estava mostrando a essa criança quais eram as suas chances.
Leto olhou para o clarão de duas tochas flutuadoras e viu os negros contornos de uma face mascarada pelo traje-destilador, um capuz. À medida que seus olhos se ajustavam ao brilho, percebeu uma tira escura de rosto, os olhos inteiramente sombreados pelo vício da especiaria.
— Imagina por que nos demos a todo esse trabalho — disse o homem, sua voz partindo da parte inferior do rosto, coberta, de modo curiosamente abafado, como se ele quisesse esconder o sotaque.
— Há muito deixei de me admirar com o número de pessoas que desejam ver mortos os gêmeos Atreides — respondeu Leto. — Suas razões são óbvias.
Enquanto falava, a mente de Leto lançava-se de encontro ao desconhecido como se este fosse as barras de uma jaula. Buscava loucamente por respostas. Uma armadilha com isca? Mas quem teria conhecimento, exceto Ghanima? Impossível! Ghanima não trairia o irmão. Então, alguém o conhecia tão bem a ponto de prever suas ações? Quem? Sua avó? Como poderia?
— Você não podia ter permissão de continuar da maneira que é — disse o homem. — Muito ruim. Antes de ascender ao trono, precisa ser educado. E os olhos sem branco o fitaram diretamente. Está imaginando como alguém poderia ter a presunção de educar uma pessoa como você? Você, que tem o conhecimento de multidões em suas memórias? Mas é exatamente isso, percebe? Você se julga instruído, mas não passa de um depósito de vidas mortas. Ainda não possui vida própria. É apenas um excesso ambulante de outras vidas, todas com um único objetivo buscar a morte. Isso não é bom num governante, ser um perseguidor da morte. Você encheria de cadáveres o mundo à sua volta. Seu pai, por exemplo, nunca entendeu...
— Como se atreve a falar dele desse modo?
— Muitas vezes me atrevi. Ele era apenas Paul Atreides, apesar de tudo. Bem, garoto, bem-vindo à sua escola.
O homem ergueu a mão que estivera debaixo do manto e tocou a face de Leto. Ele sentiu a sacudidela de um disparo e se viu girando numa escuridão onde ondulava uma bandeira verde. Era a bandeira verde dos Atreides, com seus símbolos da noite e do dia, seu bastão de Duna que ocultava um tubo de água. Ouviu a água gorgolejando enquanto a inconsciência o envolvia. Ou seria a risada de alguém?
Ainda podemos nos lembrar dos dias áureos antes de Heisenberg, que mostrou aos seres humanos as muralhas que encerram nossas discussões pré-destinadas. As vidas dentro de mim acham isso divertido. O conhecimento, como podem ver, não tem utilidade se não tiver um propósito, mas é o propósito que constrói as muralhas que nos tolhem.
- Leto Atreides II. Sua Voz
Alia estava falando asperamente aos guardas que confrontara no vestíbulo do Templo. Havia nove deles nos uniformes verdes poeirentos da patrulha suburbana, e todos ainda estavam ofegando e suando pelo esforço feito. A luz do final da tarde entrava pela porta atrás deles. A área fora evacuada dos peregrinos.
— Assim, minhas ordens não significam nada para vocês? — ela perguntou.
Admirava-se com sua própria raiva, não tentando contê-la, mas deixando que prosseguisse. Seu corpo tremia com tensões não-liberadas. Idaho se fora... e Lady Jessica... nenhum relatório... somente rumores de que ambos estavam em Salusa. Por que Idaho não enviara uma mensagem? Que teria feito ele? Teria finalmente descoberto a respeito de Javid?
Alia usava o amarelo do luto em Arrakeen, a cor do sol flamejante da história Fremen. Dentro de alguns minutos, estaria liderando a segunda e derradeira procissão à Velha Fenda, para completar o marco de pedra em honra ao sobrinho perdido. O trabalho seria terminado à noite, homenagem adequada a uma pessoa que fora destinada a liderar os Fremen.
Os guardas sacerdotais pareciam desafiantes em face de sua raiva, e nem um pouco envergonhados. Enfileiravam-se diante dela, delineados pela luz decrescente. O odor da transpiração era facilmente identificável através de seus leves e ineficientes trajes-destiladores de habitantes da cidade.
Seu líder, um rapaz alto e louro, com símbolos da família Cadelam em sua bourka, lançou para o lado a máscara do traje, de modo a poder falar mais claramente. Sua voz era cheia das entonações orgulhosas que seriam de se esperar em um descendente da família que um dia governara o Sietch Abbir.
— É claro que tentamos capturá-lo!
O homem estava obviamente ofendido com o ataque de Alia.
— Ele fala blasfêmias! Nós conhecemos suas ordens, mas o ouvimos com nossos próprios ouvidos!
— E falharam em capturá-lo — disse Alia, a voz baixa e acusadora.
Outro guarda, uma mulher baixa e jovem, tentou defendê-los.
— A multidão é compacta por aqui! Juro que as pessoas nos atrapalharam!
— Vamos continuar a persegui-lo — disse o Cadelam. — Nem sempre fracassamos.
Alia olhou, furiosa.
— Por que não me entendem e obedecem?
— Minha Senhora, nós...
— Que vai fazer, filho de Cadelam, se o capturar e descobrir que, na verdade, é meu irmão?
Ele obviamente não percebera a ênfase especial que ela colocara em seu nome, embora não pudesse ser um guarda sacerdotal sem alguma instrução e a inteligência para usá-la. Será que ele desejava sacrificar-se?
O guarda engoliu em seco e disse:
— Devemos matá-lo nós mesmos, pois ele traz a desordem.
Os outros pareceram aterrorizados ao ouvirem isso, mas ainda assim desafiantes. Sabiam o que tinham ouvido.
— Ele convoca as tribos para se unirem contra a senhora — disse o Cadelam.
Alia sabia como lidar com ele agora. Falou em tom calmo e trivial:
— Percebo. Então, você deverá sacrificar-se desse modo, atingindo-o abertamente para que todos vejam quem você é e o que fez. Aí, creio que deve...
— Sacrificar-me...
Ele interrompeu-se, olhando para os companheiros. Como aza desse grupo, seu líder nomeado, ele tinha o direito de falar por eles, mas mostrava indícios de desejar que tivesse ficado calado. Os outros guardas se remexiam, desconfortáveis. No calor da perseguição, haviam desafiado Alia. Só podiam refletir agora a respeito de tal desafio ao “Ventre Celestial”. Com óbvio desconforto, os guardas abriram um pequeno espaço entre si mesmos e seu aza.
— Pelo bem da Igreja, nossa reação oficial terá de ser severa — disse Alia. — Compreende isso, não?
— Mas ele...
— Eu mesma o ouvi — ela disse. — Mas este é um caso especial.
— Ele não pode ser o Muad'Dib, Minha Senhora!
“Quão pouco você sabe!”, pensou ela, e disse:
— Não podemos nos arriscar atingindo-o em campo aberto, ferindo-o onde outros possam ver. Mas, é claro, se alguma outra oportunidade se apresentar...
— Ele está sempre cercado por multidões atualmente.
— Então, temo que deva ser paciente. É claro que, se insiste em me desafiar... — Ela deixou as consequências em suspenso, sem verbalizá-las, mas bem entendidas. O Cadelam era ambicioso, com uma carreira brilhante pela frente.
— Não pretendemos desafiá-la, Minha Senhora. — O homem se controlara agora. — Agimos apressadamente, posso ver isso. Perdoe-nos, mas ele...
— Nada aconteceu, nada há para se perdoar — ela disse, usando a fórmula Fremen habitual nessas situações.
Era um dos muitos modos pelos quais uma tribo mantinha a paz em suas fileiras, e esse Cadelam ainda era bastante Fremen Antigo para se lembrar disso. Sua família tinha longa tradição de liderança. A culpa era o chicote do Naib, a ser usado com parcimônia. Os Fremen serviam melhor quando livres da culpa e do ressentimento.
Ele demonstrou compreender o julgamento dela, inclinando a cabeça e dizendo:
— Pelo bem da tribo, eu compreendo.
— Vão refrescar-se — ela disse. — A procissão começa dentro de alguns minutos.
— Sim, Minha Senhora. — Saíram apressados, cada movimento revelando o alivio que sentiam nessa escapada.
Dentro de Alia, uma voz grave roncou:
— Ahhh, você lidou habilmente com isso. Um ou dois deles ainda acreditam que você quer o Pregador morto. Eles encontrarão um meio.
— Cale-se! — sussurrou ela. — Cale-se! Eu nunca devia tê-lo escutado! Olhe o que você fez...
— Coloquei-a no caminho da imortalidade — disse a voz grave. Ela sentia aquilo ecoar em seu crânio como uma dor distante, e pensou: “Onde posso me esconder? Não há lugar para onde fugir!”
— A faca de Ghanima é afiada — disse o Barão. — Lembre-se disso.
Alia piscou os olhos. Sim, essa era uma coisa boa de se lembrar. A faca de Ghanima era afiada, e essa faca ainda poderia cortar as amarras representadas pelos atuais problemas.
Se a pessoa acredita em certas palavras, então acredita nas idéias que lhes são subjacentes. Quando se acredita que alguma coisa é certa ou errada, verdadeira ou falsa, então se crê nos pressupostos contidos nas palavras que expressam essa coisa. Tais pressupostos são frequentemente repletos de erros, mas permanecem muito preciosos para os que deles estão convencidos.
- “A Prova Aberta” da Panóplia Profética
A mente de Leto flutuava num vapor de fortes odores. Ele reconheceu o cheiro carregado de canela da melange, o suor confinado de corpos trabalhando, o cheiro acre de um alambique da morte descoberto, mais muitos tipos de poeira, com a predominância de pó de pedra. Esses odores formavam uma trilha através da areia dos sonhos, criando formas na neblina de uma terra morta. Ele sabia que esses cheiros deviam revelar-lhe alguma coisa, mas parte dele ainda não podia ouvir.
Pensamentos flutuavam como espectros através de sua mente: “Neste tempo, eu ainda não tenho feições determinadas, sou todos os meus ancestrais. O sol se pondo na areia é o sol se pondo em minha alma. Um dia, essa multidão dentro de mim foi grande, mas isso terminou. Sou um Fremen e terei a morte de um Fremen. O Caminho Dourado terminou antes de ter começado. Não é nada mais que pegadas apagadas pelo vento. Nós Fremen conhecemos todos os truques para nos ocultarmos: não deixamos fezes, nem água, nem rastros... Agora, veja como meus rastros se apagam.”
Uma voz masculina falou junto de seu ouvido:
— Eu poderia matá-lo, Atreides, eu poderia matá-lo, Atreides. — Isso foi repetido interminavelmente, até perder o significado, até se tornar uma coisa muda que trazia para os sonhos de Leto uma litania do tipo: “Eu poderia matá-lo, Atreides.”
Leto pigarreou e sentiu a realidade desse simples ato sacudir-lhe os sentidos. Sua garganta seca conseguiu perguntar:
— Quem...
A voz ao lado dele respondeu:
— Eu sou um Fremen instruído e já matei homens. Vocês nos tiraram nossos deuses, Atreides. Por que vamos nos importar com seu fedorento Muad'Dib? Seu deus está morto!
Seria essa a verdadeira voz de um Ouraba ou seria outra parte do sonho?
Leto abriu os olhos e se viu livre, deitado sobre um leito duro. Olhou para cima e viu rocha, globos luminosos de pouca intensidade e um rosto sem máscara olhando para ele, tão perto que podia sentir-lhe o hálito, com os odores familiares de uma dieta de sietch. O rosto era o de um Fremen. Não havia engano: pele escura, feições severas e carne carente de água. Não era um gordo habitante da cidade. Ali estava um Fremen do deserto.
— Sou Namri, pai de Javid — disse o Fremen. — Agora você me conhece, Atreides.
— Conheço Javid — respondeu Leto com a voz rouca.
— Sim, sua família conhece meu filho muito bem. Tenho orgulho dele. Você, Atreides, poderá conhecê-lo melhor muito em breve.
— O que...
— Sou um de seus mestres, Atreides. Só tenho uma função: sou aquele que pode matá-lo. E farei isso com satisfação. Nesta escola, ser aprovado significa viver, fracassar é ser entregue às minhas mãos.
Leto percebeu a implacável sinceridade daquela voz. Isso o deixou arrepiado. O homem era um gom jabbar humano, um inimigo arrogante destinado a testar seu direito de entrada no gênero humano. Leto sentia nisso a mão de sua avó, e por trás dela as multidões sem face das Bene Gesserits. Ele estremeceu ante esse pensamento.
— Sua educação começa comigo — disse Namri. — Isso é justo. É adequado. Porque ela pode terminar comigo. Escute-me com cuidado, agora. Cada palavra minha traz consigo a sua vida. Tudo em mim contém a sua morte.
Leto deu uma olhada em direção à sala ao redor: paredes de rocha nua somente o sofá, os globos luminosos mortiços e uma passagem escura por trás de Namri.
— Você não passaria por mim — ele advertiu, e Leto acreditou nele.
— Por que está fazendo isso?
— Isso já foi explicado. Pense nos planos que estão em sua cabeça! Você está aqui e não pode ter um futuro em sua presente condição. Os dois não se ajustam: o agora e o futuro. Mas se realmente conhecer seu passado, se olhar para trás e vir onde já esteve, talvez haja razão uma vez mais. Senão, haverá sua morte.
Leto notou que o tom de voz de Namri não era inteiramente inamistoso, mas era firme e não negava a possibilidade de morte.
Namri apoiou-se nos calcanhares, olhando para o teto de rocha.
— Em tempos antigos, os Fremen fitavam o leste durante a aurora. Você sabia? Isso significa aurora em um dos antigos idiomas.
Com um orgulho amargo em sua voz, Leto disse:
— Eu falo esse idioma.
— Você não me escutou, então — disse Namri, e havia o gume cortante de uma faca em sua voz. — A noite era o tempo do caos. O dia era o tempo da ordem. Era assim na época desse idioma que você diz que fala: escuridão-desordem, luz-ordem. Nós Fremen mudamos isso. Eos era a luz na qual não confiávamos. Preferíamos a luz da lua ou das estrelas. A luz significava ordem em demasia, e isso pode ser fatal. Percebe o que vocês Atreides fizeram? O homem é uma criatura que pertence apenas à luz que o protege. O sol era nosso inimigo em Duna. — E Namri fez o olhar retornar para Leto. — Qual a luz que prefere, Atreides?
Pela atitude séria de Namri, Leto sentiu que essa pergunta era muito importante. O homem iria matá-lo se deixasse de dar a resposta correta?
Era possível. Leto viu a mão de Namri repousando junto ao cabo polido de uma faca cristalina. Um anel em forma de tartanzga mágica brilhava na mão do Fremen.
Leto apoiou-se nos cotovelos e pôs a mente a sondar as crenças dos Fremen. Eles confiavam na Lei e adoravam ouvir suas lições expostas em forma de analogia. Esses velhos Fremen... A luz da lua?
— Eu prefiro... a luz do Lisanu Lhagg — disse Leto, vigilante quanto a reações sutis da parte de Namri. O homem pareceu desapontado, mas sua mão se afastou da faca. — É a luz da verdade, a luz do homem perfeito no qual a influência do al-Mutakallim pode ser vista claramente — prosseguiu Leto. — Que outra luz um homem preferiria?
— Você fala como quem recita, não como quem acredita.
E Leto pensou: “Eu realmente recitei.” Mas começava a sentir o rumo dos pensamentos de Namri, como suas palavras se filtravam através de um treinamento precoce no antigo jogo de enigmas. Milhares dessas charadas eram usadas no treinamento de um Fremen, e Leto só tinha de focalizar sua atenção nesse costume para inundar sua mente com exemplos. “Desafio: Silêncio? Resposta: O amigo dos perseguidos.”
Namri assentiu para si mesmo, como se tivesse compartilhado desse pensamento, e disse:
— Existe uma caverna que é a caverna da vida para os Fremen. É uma verdadeira caverna que o deserto ocultou. Shai-Hulud, o grande bisavô de todos os Fremen, selou a entrada dessa caverna. Meu tio Ziamad contou-me a respeito disso, e ele nunca me mentiu. Tal caverna existe.
Leto ouviu o silêncio desafiador quando Namri acabou de falar. “A caverna da vida?”
— Meu tio Stilgar também me falou a respeito dessa caverna — disse ele. — Foi fechada para evitar que os covardes se ocultassem nela.
O reflexo dos globos luminosos brilhou nos olhos sombreados de Namrin.
Ele indagou:
— Vocês Atreides abririam essa caverna? Vocês buscam controlar a vida através de um ministério, que Chamam de Ministério Central de Informação, Auqaf e Hajj. O Maulana encarregado Chama-se Kausar. Ele percorreu um longo caminho desde as origens de sua família nas minas de sal de Niazi. Diga-me, Atreides, o que está errado em seu ministério?
Leto sentou-se, consciente agora de estar em meio a um jogo de charadas com Namri, no qual errar era morrer. O homem dava todos os indícios de que usaria a faca cristalina ante a primeira resposta incorreta.
Namri reconheceu essa compreensão em Leto e disse:
— Creia-me, Atreides. Eu sou o esmagador dos tolos. Sou o Martelo de Ferro.
Agora Leto compreendia. Namri via a si mesmo como Mirzabah, o Martelo de Ferro com que os mortos são espancados quando não respondem satisfatoriamente às perguntas que devem responder antes de entrarem no paraíso.
“Que haveria de errado com o ministério central que Alia e seus sacerdotes haviam criado?”
Leto pensou nos motivos que o haviam levado ao deserto, e reacendeu-se nele uma pequena esperança de que o Caminho Dourado ainda pudesse aparecer em seu universo. O que a pergunta de Namri implicava não era nada mais que o motivo que levara o próprio filho do Muad'Dib ao deserto.
— Deus deve mostrar o caminho — respondeu Leto.
O queixo de Namri moveu-se bruscamente para baixo e ele olhou severamente para Leto.
— É verdade que acredita nisso? — ele quis saber.
— É por isso que estou aqui — disse Leto.
— Para encontrar o caminho?
— Para encontrá-lo para mim mesmo. — Leto colocou os pés sobre a borda do catre. O piso de rocha não tinha tapete, era frio. — Os sacerdotes criaram seu ministério para ocultar o caminho.
— Você fala como um verdadeiro rebelde — disse Namri, e esfregou o anel de tartaruga no dedo. — Veremos. Ouça com cuidado uma vez mais. Você conhece a elevada Muralha Escudo em Jalalud-Din? Aquela Muralha tem as marcas de minha família, gravadas lá nos primeiros dias. Javid, meu filho, já viu essas marcas. Abedi Jalal, meu sobrinho, as viu. Mujahid Shafqat, dos outros, também viu nossas marcas. Na estação das tempestades, perto de Sukkar, eu desci com meu amigo Yakup Abad próximo daquele lugar. Os ventos eram terríveis, como os redemoinhos dos quais aprendemos nossas danças. Não tivemos tempo de ver as marcas porque a tempestade bloqueava o caminho. Mas quando a tormenta passou tivemos a visão do Thatta sobre a areia soprada. A face do Shakir Ali estava lá por um momento, olhando para baixo sobre sua cidade das tumbas. A visão se foi num instante, mas nós todos a tivemos. Diga-me, Atreides, onde poderei encontrar a cidade das Tumbas?
“Os redemoinhos dos quais aprendemos nossas danças”, pensou Leto. “A visão de Thatta e Shakir Ali.” Essas eram palavras dos Viajantes Zensunni, aqueles que se consideravam os únicos e verdadeiros homens do deserto.
“E os Fremen eram proibidos de ter tumbas.”
— A cidade das tumbas encontra-se no final da trilha que todos os homens seguem — disse Leto. E enumerou as beatitudes Zensunni: — Fica num jardim com mil passos quadrados. Há um lindo corredor de entrada com 233 passos de comprimento e 100 passos de largura, todo pavimentado com mármore da antiga Jaipur. Lá se encontra ar-Razzaq, aquele que fornece alimento a todos que lhe pedem. E no Dia do julgamento, todos aqueles que se erguerem e procurarem a cidade das tumbas não deverão encontrá-la. Pois está escrito: Aquilo que conheces num mundo, não deverás encontrar em outro.
— Novamente você recita sem acreditar — zombou Namri. — Mas vou aceitar isso por enquanto, pois creio que sabe por que está aqui. — Um frio sorriso tocou-lhe os lábios. — Eu lhe concedo um futuro provisório, Atreides.
Leto estudou o homem cautelosamente. Seria isso outra pergunta disfarçada?
— Ótimo! — exclamou Namri. — Sua consciência foi preparada. Eu atingi os alvos. Mais uma coisa, então: ouviu dizer que eles usam imitações de trajes-destiladores na distante Kadrísh?
Enquanto Namri esperava, Leto movimentou sua mente em busca de um significado oculto. “Imitações de trajes-destiladores? Eram usadas em muitos planetas.”
— Os hábitos afetados de Kadrish são uma velha história, frequentemente repetida. Sábio é o animal que se confunde com seu ambiente.
Namri assentiu lentamente, depois disse:
— Aquele que o aprisionou e o trouxe aqui virá vê-lo dentro em breve. Não tente sair deste lugar. Seria sua morte. — Levantando-se enquanto falava, Namri saiu pela passagem escura.
Por muito tempo depois que ele se fora, Leto continuou olhando para aquela passagem. Podia ouvir sons vindos de lá, as vozes abafadas de homens em trabalho de guarda. A história de Namri a respeito de uma visão-miragem permanecia em sua mente. Relembrava-lhe a longa travessia do deserto até aquele lugar. E não mais importava se era ou não Jacurutu/Fondak. Namri não era contrabandista, mas alguém muito mais poderoso. E o jogo que ele fazia cheirava a Lady Jessica, recendia a Bene Gesserit. Percebendo isso, Leto sentiu o perigo fechando-se sobre si. Mas aquela passagem escura por onde Namri se fora era a única saída do aposento. E lá fora havia um sietch estranho, com o deserto adiante. A dura severidade desse deserto, seu caos ordenado com miragens e intermináveis dunas, surgia para Leto como parte da armadilha em que fora apanhado. Ele poderia tornar a atravessar aquela areia, mas aonde isso o levaria? Esse pensamento era como água estagnada. Não lhe saciava a sede.
Devido à consciência unidirecional do Tempo, na qual a mente convencional permanece imersa, os seres humanos tendem a pensar em tudo como se fosse uma estrutura sequencial, orientada por palavras. Isso é uma armadilha mental que produz conceitos de curto prazo em matéria de eficácia e consequências, condição em que as respostas as crises são constantes e não-plantadas.
- Liet-Kynes Manual de Arrakis
“Palavras e movimentos simultâneos”, lembrou-se Jessica enquanto voltava seus pensamentos para os preparativos mentais necessários ao encontro iminente.
Era pouco após o desjejum, com o sol dourado de Salusa Secundus apenas começando a tocar o muro oposto ao jardim interno visto de sua janela.
Vestira-se cuidadosamente: o manto negro com capuz de Reverenda Madre, mas com o brasão dos Atreides bordado em ouro em torno da bainha e do punho de cada manga. Jessica ajeitou meticulosamente o drapejado de seu traje, enquanto voltava as costas para a janela, colocando o braço esquerdo sobre a cintura de modo a exibir o símbolo do Falcão.
Faradin reparou nos símbolos dos Atreides, comentando a respeito deles enquanto entrava, mas sem revelar raiva ou surpresa. Ela detectou um humor sutil na voz dele e se perguntou sobre sua razão. Notou que ele vestira uma malha cinza, como ela tinha sugerido. Agora se sentava num divã verde, baixo, para o qual ela o dirigira, relaxando com o braço direito ao longo do recosto.
“Por que confio nela?”, ele pensava: “Essa é uma bruxa Bene Gesserit.”
Jessica, lendo o pensamento pelo contraste entre o corpo descontraído e a expressão do rosto, sorriu, dizendo:
— Você confia em mim porque sabe que nosso acordo é bom e quer o que lhe posso ensinar.
Notou o toque da zanga em sua testa e acenou com a mão esquerda para acalmá-lo.
— Não, eu não leio pensamentos. Leio a face, o corpo, os maneirismos, o tom de voz, a disposição dos braços. Qualquer um pode fazê-lo, desde que aprenda o Modo Bene Gesserit.
— E a senhora vai me ensinar?
— Tenho certeza de que estudou os relatórios a nosso respeito — ela disse. — Existe em algum lugar um relatório que diga que deixamos de cumprir uma promessa direta?
— Não, mas...
— Nós sobrevivemos, em parte, pela confiança que as pessoas têm em nossa sinceridade. E isso não mudou.
— Acho isso razoável — ele disse. — E estou ansioso para começar.
— Surpreende-me que nunca tenha solicitado à Bene Gesserit que lhe enviasse uma professora. Elas teriam pulado de satisfação ante a oportunidade de colocá-lo em débito para com elas.
— Minha mãe nunca me escutou quando eu insistia para que fizesse isso — ele disse. — Mas agora... — Encolheu os ombros num eloquente comentário sobre o banimento de Wensicia.
— Devemos começar?
— Seria melhor ter começado isso quando era bem mais jovem. Vai ser mais duro para você agora — explicou Jessica. — Vai tomar-lhe muito mais tempo. Terá de começar aprendendo a ter paciência, extrema paciência. Rezo para que não ache o preço demasiado elevado.
— Não com a recompensa que oferece.
Ela ouviu a sinceridade, a pressão das expectativas e o toque de admiração em sua voz. Isso proporcionava as condições para o início. E ela disse:
— A arte da paciência, então... começando com alguns exercícios elementares prana-bindu para as pernas e os braços, para a respiração. Deixaremos as mãos e os dedos para depois. Está pronto?
Sentou-se num banco diante dele.
Faradin assentiu com a cabeça, mantendo no rosto uma expressão de expectativa para esconder um súbito medo. Tvekanik o advertira de que poderia haver um truque na súbita oferta de Lady Jessica, alguma coisa arranjada pela Irmandade.
— Não se pode acreditar que ela as abandonou de novo, ou que elas a abandonaram.
Faradin interrompera essa argumentação com uma súbita explosão de raiva pela qual se lamentara imediatamente. Sua reação emocional o fizera concordar mais rapidamente com as precauções de Tvekanik. Olhou para os cantos da sala, e para o brilho sutil das jems no teto. Toda aquela cintilação não provinha de verdadeiras jems, e tudo na sala seria gravado para que boas mentes pudessem rever cada nuança, cada palavra, cada movimento.
Jessica sorriu, notando-lhe a direção do olhar, mas sem revelar que sabia para onde a atenção dele se desviara. Ela disse:
— Para aprender paciência do Modo Bene Gesserit, você deve começar por reconhecer a estabilidade crua e essencial de nosso universo. Nós chamamos de natureza significando sua totalidade em todas as suas manifestações o Derradeiro Não Absoluto. Para libertar sua visão e permitir que reconheça esse caráter mutável, condicional à natureza, você esticará os braços ao máximo, mantendo as mãos diante de si. Olhe para suas mãos estendidas, primeiro as palmas, depois o dorso. Examine os dedos, a parte da frente e a de trás. Faça isso.
Faradin obedeceu, mas se sentiu tolo. Essas eram suas próprias mãos, ele as conhecia.
— Imagine suas mãos envelhecendo — disse Jessica. — Elas devem se tornar muito velhas diante de seus olhos. Muito, muito velhas. Repare como a pele está seca...
— Minhas mãos não mudaram — ele disse. Já podia sentir os músculos do antebraço tremendo.
— Continue a olhar para suas mãos. Faça-as velhas, tão velhas quanto puder imaginar. Pode levar tempo. Mas quando as vir envelhecer, reverta o processo. Faça suas mãos ficarem jovens novamente tão jovens quanto puder torná-las. Esforce-se por levá-las da infância até a idade avançada, à sua vontade, para trás e para frente, para trás e para frente.
— Elas não mudam! — protestou ele. Seus ombros doíam.
— Se você exigir isso de seus sentidos, então suas mãos irão mudar — ela disse. — Concentre-se em visualizar o fluxo de tempo que deseja: da infância à velhice, da velhice à infância. Pode levar horas, dias, meses. Mas pode ser conseguido. Reverter esse fluxo mutável vai ensiná-lo a ver cada sistema como algo girando em estabilidade relativa... apenas relativa.
— Pensei que estivesse aprendendo paciência. — Ela ouviu a raiva na voz dele, uma ponta de frustração.
— E estabilidade relativa — respondeu ela. — Essa é a perspectiva que você cria com suas próprias crenças, e as crenças podem ser manipuladas pela imaginação. Você aprendeu apenas um modo limitado de olhar para o universo. Agora, deve fazer do universo sua própria criação. Isso lhe permitirá dominar qualquer estabilidade relativa para seu próprio uso, para quaisquer usos que for capaz de imaginar.
— Quanto tempo disse que leva?
— Paciência — ela relembrou-lhe.
Um sorriso espontâneo tocou-lhe os lábios. Seus olhos desviaram-se em direção a ela.
— Olhe para suas mãos! — ela gritou.
O sorriso desapareceu. Seu olhar voltou à concentrada fixação sobre as mãos estendidas.
— Que é que eu faço quando meus braços se cansarem?
— Pare de falar e se concentre — disse ela. — Se ficar muito cansado, pare. Volte a fazê-lo após alguns minutos de relaxamento e exercício. Deve persistir nisso até ter sucesso. Em seu atual estágio, isso é mais importante do que possa perceber. Aprenda essa lição ou as outras não virão.
Faradin respirou profundamente, mordeu o lábio e tornou a fitar as mãos estendidas. Voltou-as lentamente: frente, dorso, frente, dorso... seus ombros tremiam de fadiga. Frente, dorso... Nada mudava.
Jessica levantou-se e atravessou a sala em direção à porta.
Ele falou sem tirar a atenção das mãos:
— Para onde está indo?
— Você exercitará isso melhor se ficar sozinho. Voltarei em uma hora. Paciência.
— Eu sei!
Ela o observou por um momento. Como ele parecia concentrado. De repente, lembrava-lhe o próprio filho perdido, e ela se permitiu um suspiro.
— Quando voltar, vou ensinar-lhe exercícios para aliviar os músculos. Dê tempo ao tempo. Ficará surpreso com o que pode levar seu corpo e seus sentidos a fazerem.
Ela saiu.
Os onipresentes guardas tomaram posição três passos atrás dela, seguindo-a enquanto caminhava ao longo do corredor. A admiração e o temor que sentiam eram óbvios. Eles eram Sardaukar, bem advertidos quanto à destreza de Jessica, criados ouvindo histórias a respeito de sua derrota pelos Fremen de Arrakis. Essa bruxa era uma Reverenda Madre Fremen, uma Bene Gesserit e uma Atreides.
Olhando para trás, Jessica viu suas faces ríspidas como marcos em seus planos. Tornou a olhar para a frente, desceu as escadas e atravessou uma passagem estreita para entrar no jardim sob suas janelas.
“Agora, se apenas Duncan e Gurney fizerem suas partes”, pensou, enquanto sentia a trilha de cascalho sob os pés, vendo a luz dourada a se filtrar através das plantas.
Você aprenderá os métodos de comunicação integrada enquanto completa o próximo passo em sua educação mental. Essa é uma função gestáltica que sobreporá trilhas de dados em sua consciência, resolvendo complexidades e massas de dados a partir de técnicas de indexação-catalogação mentat que já terá dominado. Seu problema inicial ,Terá a quebra das tensões que surgem da montagem divergente de dados/ minúcias cobre assuntos. Fique alerta.
Sem a integração sobreposta mentat, você pode ficar mergulhado no Problema de Babel, que é o rótulo que damos aos perigos onipresente, de se chegar a combinações erróneas a partir de uma informação precisa.
- Manual do Mentat
O som de tecidos roçando lançou centelhas de consciência através de Leto.
Ele ficou surpreso por ter afinado sua sensibilidade ao ponto de identificar automaticamente os tecidos a partir de seu som: a combinação ouvida provinha de um manto Fremen roçando nas cortinas rústicas de uma porta. Voltou-se em direção ao som. Ele vinha da passagem por onde Namri se fora, minutos atrás. Ao se virar, Leto viu entrar seu captor. Era o mesmo homem que o havia aprisionado: a mesma faixa de pele escura acima da máscara do traje-destilador, os olhos cauterizantes. O homem ergueu a mão para a máscara, tirando das narinas o tubo captador, abaixando a máscara e, num movimento idêntico, colocando o capuz de volta no lugar.
Antes mesmo que seus olhos focalizassem a cicatriz do chicote inkvine ao longo do queixo, Leto o reconheceu. O reconhecimento era total em sua consciência, com a busca dos detalhes confirmadores vindo depois. Não havia engano a esse respeito: essa massa informe de humanidade, esse guerreiro-trovador era Gurney Halleck!
Leto comprimiu as mãos, dominado momentaneamente pelo choque do reconhecimento. Nenhum partidário dos Atreides fora mais leal. Ninguém era melhor que ele na luta com escudos. Este fora o mestre confidente de Paul.
E era o criado de Lady Jessica.
Esse reconhecimento, e mais ainda, fluiu pela mente de Leto. Gurney era seu captor. Gurney e Namri estavam juntos nessa conspiração. E a mão de Jessica também agira ali.
— Percebo que esteve com nosso Namri — disse Halleck. — Acredite nele, jovem senhor, ele tem uma função e somente uma. Ê capaz de matá-lo se surgir a necessidade.
Leto respondeu automaticamente no tom de voz de seu pai.
— Então você se uniu a meus inimigos, Gurney! Nunca pensei que o...
— Não tente nenhum de seus truques diabólicos comigo, garoto — disse Halleck. — Estou protegido de todos eles. Sigo as ordens de sua avó. Sua educação foi planejada até o último detalhe. Foi ela que aprovou minha escolha de Namri. O que vem a seguir, doloroso como possa parecer, é feito por ordem dela.
— E o que ela ordena?
Halleck tirou uma das mãos de entre as dobras de seu manto, exibindo um injetor Fremen, primitivo, mas eficiente. Seu tubo transparente estava carregado de um fluido azul.
Leto recuou sobre o leito, até ser detido pela parede. Enquanto ele se movia, Namri entrou, ficando ao lado de Halleck, com a mão sobre a faca cristalina. Juntos, eles bloqueavam a única saída.
— Vejo que reconheceu a essência de especiaria — disse Halleck. — Você vai fazer a viagem do verme, garoto. Deve passar por ela. De outro modo, o que seu pai se atreveu a fazer e você não se atreve irá pairar sobre a sua mente pelo resto de seus dias.
Leto sacudiu a cabeça sem dizer palavra. Essa era a coisa que ele e Ghanima sabiam que poderia dominá-los. Gurney era um tolo ignorante! Como Jessica podia... Leto sentiu a presença paterna em suas memórias. Aquilo entrou em sua mente, tentando arrancar-lhe as defesas. Leto queria gritar indignado, mas não conseguia mover os lábios.
Essa era a coisa que sua consciência pré-nascida mais temia: o transe da presciência, a percepção do futuro imutável, com toda a sua invariabilidade e os seus terrores. Certamente, Jessica não podia ter ordenado tal provação para seu neto. Mas a presença dela assomava em sua mente, enchendo-a de argumentos aceitáveis. Até mesmo a litania contra o medo era pressionada sobre sua mente numa ladainha repetitiva: “Não devo temer. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que traz o esquecimento total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim. E quando ele houver passado...”
Com uma praga que já era antiga quando a Caldéia era jovem, Leto tentou se mover, tentou saltar sobre os dois homens diante de si, mas os músculos recusaram-se a obedecer. Como se já estivesse em transe, viu a mão de Halleck se mover e o injetor se aproximar. A luz do globo luminoso cintilou no fluido azul e o injetor tocou o braço esquerdo de Leto. A dor se propagou através dele, disparando para os músculos da cabeça.
De repente, ele viu uma mulher jovem agachada do lado de fora de uma tenda tosca, à luz da aurora. Abaixada diante dele, ela assava grãos de café até ficarem marrons, adicionando-lhes melange e cardomom. O som de uma rabeca ecoava em algum lugar atrás dele. Uma música que ecoava e ecoava, entrando em sua cabeça e ainda ecoando. Aquilo preencheu todo o seu corpo e ele se sentiu grande, muito grande, e não mais uma criança. E sua pele não era mais a sua. Conhecia essa sensação! A pele que não era sua. Calor espalhando-se pelo corpo. E tão abruptamente quanto na primeira visão, ele se encontrou de pé na escuridão. Era noite. Estrelas, como uma chuva de brasas, caíam aos montes de um cosmo brilhante.
Parte dele sabia não haver escapatória, mas ainda assim tentou lutar até que a presença paterna interferiu:
— Eu o protegerei no transe. Os outros dentro de você não irão tomá-lo.
O vento derrubou Leto, fazendo-o rolar, assoviando, lançando pó e a areia sobre ele, cortando seus braços e seu rosto, puindo suas roupas e arrancando as extremidades rasgadas do tecido, agora inútil. Entretanto, ele não sentia dor e via os ferimentos cicatrizarem-se tão rapidamente quanto apareciam. Ainda assim, rolava no vento e sua pele não era mais a sua.
“Vai acontecer!”, pensou.
Mas o pensamento era distante e vinha como se não lhe pertencesse realmente, não mais do que aquela pele era sua.
A visão o absorveu. Evoluía numa memória estereológica que separava passado e presente, futuro e presente, futuro e passado. Cada separação reunia-se num foco triocular que ele sentia como um mapa de relevo multidimensional mostrando sua própria existência futura.
Pensou: “O Tempo é uma medida do espaço, tal como o é um medidor de distâncias, mas o ato de medir prende-nos ao lugar que medimos.”
Sentiu o transe aprofundar-se. Aquilo vinha como uma ampliação da consciência interior que sua auto-identidade absorvia e através da qual ele se sentia mudando. Era um Tempo vivo e ele não conseguia apoderar-se nem mesmo de um instante dele. Fragmentos de memória, futuro e passado o afogavam. Entretanto, eles existiam como uma montagem em movimento. Seus relacionamentos submetiam-se a uma dança contínua. Sua memória era uma lente, um holofote brilhante que captava fragmentos, isolando-os, mas sempre fracassando na tentativa de deter o movimento incessante, as modificações que fluíam para dentro de sua visão.
Aquilo que ele e Ghanima haviam planejado atravessava agora o foco do holofote, dominando tudo mais. Entretanto, agora essa visão o aterrorizava. Era uma realidade dolorosa e sua inevitabilidade não- crítica fazia com que seu ego se encolhesse.
E sua pele não era sua pele! Passado e presente rolaram através dele, avançando em ondas através das barreiras de seu horror. Era incapaz de separá-los. Num momento, sentiu-se iniciando o Jihad Butleriano, ávido por destruir qualquer máquina que simulasse a consciência humana. Isso tinha de ser o passado terminado, acabado. E no entanto seus sentidos se lançavam através dessa experiência, absorvendo os mais insignificantes detalhes. Ele ouvia um colega sacerdote falando de um púlpito: “Devemos negar as máquinas-que-pensam. Os humanos devem estabelecer suas próprias linhas de orientação. Isso não é algo que as máquinas possam fazer. O raciocínio depende da programação, não do equipamento, e nós somos o derradeiro programa!”
Ele ouvia a voz claramente, conhecia esse ambiente um amplo salão forrado em madeira com janelas escuras. A luz provinha de chamas crepitantes. E o colega sacerdote dizia: “Nosso Jihad é um 'programa de eliminação'. Eliminamos as coisas que destroem nossa humanidade!”
Em sua mente, Leto sabia que o orador fora um servo dos computadores, alguém que os conhecia e consertava. Mas a cena desapareceu e agora Ghanima se encontrava diante dele, dizendo: “Gurney sabe, ele me contou. São as palavras de Duncan, e Duncan estava falando como mentat. “Ao fazer o bem, evite a notoriedade, ao fazer o mal, evite a autoconsciência.”
Isso tinha de ser o futuro um futuro distante. Mas ele sentia sua realidade. Algo tão intenso quanto qualquer passado de suas múltiplas vidas. E ele sussurrou:
— Não é verdade, pai?
Mas a presença paterna dentro dele advertiu: “Não atraia o desastre! Agora você está aprendendo sobre a consciência estroboscópica. Sem ela você poderia atropelar-se, perder seu marco-lugar no Tempo.”
E as imagens em baixo-relevo persistiram, intrusões martelando-lhe a consciência. Passado-presente-agora. Não havia uma verdadeira separação.
Sabia que precisava fluir com essa coisa, mas a corrente o aterrorizava.
Como poderia retornar a qualquer lugar reconhecível? No entanto, sentia-se forçado a eliminar toda resistência. Não podia perceber seu novo universo imobilizado, transformado em elementos rotulados. Nenhum fragmento se detinha. Nem sempre as coisas podiam ser ordenadas e formuladas. Precisava encontrar o ritmo da mudança e enxergar, entre as mudanças, o próprio processo de mudança. Sem saber onde aquilo começava, sentiu que se movia dentro de um gigantesco momento bienheureux, capaz de ver o passado no futuro, o presente no passado e o agora dentro de ambos, passado e futuro. Era a acumulação dos séculos sendo vivenciada entre uma batida do coração e a batida seguinte.
A consciência de Leto flutuou livre, sem uma psique objetiva para compensar a consciência, sem barreiras. O “futuro provisório” de Namri permanecia ligeiramente em sua memória, mas compartilhava a percepção de muitos outros futuros. E, nessa consciência demolidora, todo o seu passado, cada vida interior, tornava-se sua própria vida. Com a ajuda do maior de todos dentro dele, Leto as dominou. Elas eram suas.
Pensou: “Quando se estuda um objeto a distância, apenas seu princípio pode ser visto.” Havia conseguido essa distância e agora podia ver sua própria vida: o multipassado, com suas memórias, era o seu fardo, sua alegria e sua necessidade. Mas a viagem do verme adicionara outra dimensão, e o pai não mais montava guarda em seu interior porque tal necessidade não mais existia. Leto via claramente através das distâncias passado e presente. E o passado apresentava-lhe um derradeiro ancestral, alguém chamado Harum, sem o qual o futuro distante não existiria. Essas distâncias nítidas forneciam novos princípios, novas dimensões no compartilhar. Qualquer que fosse a vida que agora escolhesse, ele a viveria numa esfera autônoma de experiência de massa, um rastro de existências tão intrincado que nenhum tempo de vida único poderia contar as gerações nele contidas. Despertada, essa experiência de massa tinha o poder de dominar sua personalidade. Aquilo poderia influenciar uma pessoa, uma nação, uma sociedade ou uma civilização inteira. Fora por isso, é claro, que Gurney aprendera a temê-lo, que a faca de Namri o aguardava. Eles não podiam ver esse poder dentro dele. Ninguém poderia vê-lo em sua totalidade... Nem mesmo Ghanima.
Daí a pouco Leto se sentou e viu que apenas Namri permanecia vigiando.
Com voz cansada, Leto disse:
— Não existe um conjunto único de limites para todos os homens. A presciência universal é um mito vazio. Somente as mais poderosas correntes locais do Tempo podem ser previstas. Mas, num universo infinito, local, pode abranger algo tão gigantesco que sua mente se encolhe diante dele.
Namri sacudiu a cabeça sem compreender.
— Onde está Gurney? — indagou Leto.
— Saiu para que não tivesse de me ver matá-lo.
— Você vai me matar, Namri? — Era quase uma súplica para que o homem o fizesse.
Namri afastou a mão da faca.
— Como me pede para fazê-lo, não o farei. Se fosse indiferente, entretanto...
— A doença da indiferença destrói muitas coisas — disse Leto, assentindo para si mesmo. — Sim... até mesmo civilizações morrem de indiferença. É como se esse fosse o preço cobrado para se conquistar novos níveis de complexidade ou consciência. — Olhou para Namri. — Assim, eles lhe disseram para buscar em mim sinais de indiferença? — E percebeu que Namri era mais que um assassino: Namri era maquiavélico.
— Como sinal de poder desenfreado — disse Namri, mas estava mentindo.
— Poder indiferente, sim — disse Leto, sentando-se e respirando profundamente. — Não havia grandeza moral na vida de meu pai, Namri, apenas uma armadilha local que ele armou para si mesmo.
Oh Paul, teu Muad'Dib, Mahdi de todos os homens, Teu hálito exalado Lançou o furacão.
- Canções do Muad'Dib
— Nunca! — disse Ghanima. — Eu o mataria em nossa noite de núpcias.
Falava com uma teimosia que até agora resistira a todos os apelos. Alia e suas assessoras haviam passado metade da noite tentando, com isso mantendo os alojamentos reais em estado de agitação, mandando vir novas assessoras, pedindo comida e bebida. Todo o Templo e o Castelo adjacente fervilhavam com as frustrações causadas por decisões ainda não tomadas.
Ghanima sentava-se muito calma numa cadeira flutuadora verde, dentro de seus próprios aposentos, uma sala grande com ásperas paredes cor de bronze para simular a rocha de um sietch. O teto, entretanto, era um cristal imbar que tremulava com luz azul, e o piso era de azulejo negro.
A mobília era escassa: uma pequena mesa para escrever, cinco cadeiras flutuadoras e o estreito leito colocado numa alcova à maneira Fremen.
Ghanima usava o manto amarelo do luto.
— Você não é uma pessoa livre que possa decidir cada aspecto de sua vida — disse Alia, talvez pela centésima vez. “A pequena tola deve conscientizar-se disso, cedo ou tarde! Deve aprovar o noivado com Faradin. Ela deve! Que o mate depois, mas o noivado exige uma aceitação aberta daquela que é comprometida pelos Fremen.”
— Ele matou meu irmão — disse Ghanima, agarrando-se à única coisa que a sustentava. — Todos sabem disso. Os Fremen cuspiriam à menção de meu nome se eu consentisse nesse noivado.
“E essa é uma das razões pelas quais deve consentir”, pensou Alia. Ela disse:
— Foi a mãe dele que o fez. Ele a baniu por isso. Que mais você deseja dele?
— Seu sangue — respondeu Ghanima. — Ele é um Corrino.
— Mas denunciou a própria mãe — protestou Alia. — E por que você deveria preocupar-se com a ralé Fremen? Eles aceitarão o que quer que eu lhes diga que aceitem. Gham, a paz do Império exige que...
— Não consentirei — disse Ghanima. — Você não pode anunciar o noivado sem mim.
Irulan, entrando na sala enquanto Ghanima falava, olhou de modo indagador para Alia e as duas assessoras, que permaneciam desanimadas ao lado dela.
Alia ergueu os braços para o alto, em desalento, e deixou-se cair numa cadeira de frente para Ghanima.
— Fale você com ela, Irulan — pediu Alia.
Irulan puxou uma flutuadora e sentou-se ao lado de Alia.
— Você é uma Corrino, Irulan — advertiu Ghanima. — Não abuse de sua sorte comigo.
Ghanima levantou-se, atravessou a sala em direção ao leito e nele se sentou com as pernas cruzadas, olhando para as duas mulheres. Irulan, ela via, tinha se vestido com o manto aba negro, para igualar o de Alia, o capuz jogado para trás a revelar os cabelos dourados. Era um cabelo cor de luto sob a luz amarela dos globos flutuantes que iluminavam o aposento.
Irulan olhou para Alia, levantou-se e caminhou até ficar de frente para Ghanima.
— Ghani, eu me mataria se esse fosse o modo de resolver esta questão. E Faradin é do meu sangue, como você tão gentilmente enfatizou. Mas você tem obrigações muito maiores do que sua dedicação aos Fremen...
— Isso não soa melhor partindo de você do que da parte de minha preciosa tia — respondeu Ghanima. — O sangue de um irmão não pode ser esquecido. Isso é muito mais que um pequeno aforismo Fremen.
Irulan comprimiu os lábios e disse:
— Faradin mantém sua avó prisioneira. Duncan também é seu prisioneiro e se nós...
— Não estou satisfeita com suas histórias a respeito de como tudo isso aconteceu — disse Ghanima, olhando para Alia por sobre Irulan. — Uma vez, Duncan morreu para evitar que inimigos alcançassem meu pai. Talvez essa nova carne-ghola não seja mais a mesma que...
— Duncan foi encarregado de proteger a vida de sua avó! — disse Alia, girando em sua cadeira. — Confio em que ele escolheu o único modo de fazê-lo. — E pensou: “Duncan! Duncan! Não devia tê-lo feito desse modo.”
Ghanima, percebendo o tom de falsidade na voz de Alia, olhou diretamente para a tia.
— Você está mentindo, Ventre Celestial! Ouvi a respeito de sua discussão com minha avó. Que é que você tem medo de nos contar a respeito dela e de seu precioso Duncan?
— Você já ouviu tudo — respondeu Alia, sentindo o golpe do medo ante essa acusação aberta e tudo que ela implicava. A fadiga tornara-a descuidada, percebia agora. Levantou-se, dizendo: — Tudo que eu sei você sabe. — Voltou-se para Irulan. — Fale com ela. Ela deve ser levada a...
Ghanima interrompeu com um rude palavrão Fremen que parecia chocante partindo de lábios tão imaturos. No rápido silêncio que se seguiu, ela disse:
— Você pensa em mim como sendo apenas uma criança, você tem anos de maturidade em relação a mim e no final me fará aceitar. Pense novamente, ó Regente Celestial! Você conhece melhor que ninguém os anos de experiência que tenho dentro de mim. Ouvirei a eles, não a você.
A custo Alia suprimiu uma resposta furiosa, e olhou duramente para Ghanima. Abominação? Quem era essa criança? Um novo temor com relação a Ghanima começou a crescer dentro de Alia. Teria ela feito seu próprio acordo com as vidas contidas numa pré-nascida? Alia disse apenas:
— Ainda há tempo para que raciocine.
— Pode ainda haver tempo para que eu veja o sangue de Faradin esguichar em torno de rainha faca — disse Ghanima. — Acredite nisso. Se algum dia eu for deixada sozinha com ele, um de nós morrerá com certeza.
— Você pensa que amava seu irmão mais do que eu? — disse Irulan. — Você faz o jogo dos tolos! Eu era mãe para ele como fui para você. Eu era...
— Você nunca o conheceu — respondeu Ghanima. — Todos vocês, exceto, às vezes, minha amada tia, persistem em pensar em nós como crianças. Vocês são tolos! Alia sabe! Olhe como ela foge de...
— Eu não fujo de nada — disse Alia, mas voltou as costas para Irulan e Ghanima, olhando para as duas amazonas, que fingiam não estar ouvindo a discussão. Elas obviamente haviam desistido de convencer Ghanima e talvez até simpatizassem com ela. Com raiva, Alia as mandou embora da sala, e o alivio era óbvio em seus rostos ao obedecerem.
— Você foge — insistiu Ghanima.
— Escolhi um modo de vida que me é adequado — disse Alia, voltando-se a fim de olhar para Ghanima, sentada de pernas cruzadas sobre a cama.
Seria possível que ela tivesse feito aquele terrível acordo interior?
Alia tentou ver-lhe os sinais em Ghanima, mas foi incapaz de enxergar um único indício. E pensou: “Será que ela o viu em mim? Mas como poderia?”
— Você teve medo de ser uma janela para uma multidão — acusou Ghanima. — Mas somos pré-nascidas e sabemos. Você será a janela deles, consciente ou inconscientemente. Não pode negá-los.
E Ghanima pensou: “Sim, eu a conheço, Abominação. E talvez acabe como você, mas por hora só posso ter pena de você e desprezá-la.”
Fez-se o silêncio entre Ghanima e Alia, algo quase palpável que alertou o treinamento Bene Gesserit de Irulan. Ela olhou primeiro para uma, depois para a outra, e perguntou:
— Por que ficaram tão quietas subitamente?
— Acabo de pensar numa coisa que exige considerável reflexão — disse Alia.
— Reflita à vontade, querida tia — zombou Ghanima. Alia, dominando a raiva estimulada pela fadiga, disse:
— Basta por hora! Deixe que ela pense. Talvez tome juizo.
Irulan levantou-se, dizendo:
— Está quase amanhecendo, de qualquer modo. Gham, antes de sairmos se importaria de ouvir a última mensagem de Faradin? Ele...
— Eu não quero — respondeu Ghanima. — E daqui para a frente pare de me chamar por esse ridículo diminutivo. Gham! Ele apenas reforça o ridículo preconceito de que sou uma criança que vocês podem...
— Por que você e Alia ficaram tão subitamente caladas? — perguntou Irulan, de volta à primeira questão, mas agora formulando-a num delicado tom da Voz.
Ghanima lançou a cabeça para trás numa gargalhada.
— Irulan! Você tenta usar a Voz em mim?
— O quê? — Irulan estava perplexa.
— Você ensinaria sua avó a fritar ovos — disse Ghanima.
— Eu o quê?
— O fato de eu me lembrar dessa expressão e você nunca a ter ouvido antes devia fazê-la pensar — advertiu Ghanima. — Era uma velha expressão de desdém quando a sua Bene Gesserit ainda era jovem. Mas se isso não lhe serve de lição, pergunte a si mesma o que seus pais reais não deviam estar pensando quando a chamaram de Irulan? Ou seria Ruinan?
A despeito de seu treinamento, Irulan corou.
— Está tentando me provocar, Ghanima?
— E você tentou usar a Voz contra mim! Lembro-me das primeiras tentativas humanas nesse sentido. Lembro-me dessa época, ruinosa Irulan. Agora, saiam daqui todas vocês.
Mas Alia agora estava intrigada, presa por uma sugestão interior que lhe abafara a fadiga.
— Talvez eu tenha uma sugestão que possa mudar sua opinião, Gham.
— Ainda insiste nesse nome! — Ghanima deixou escapar uma risadinha e depois disse: — Reflita por um momento: se eu desejo matar Faradin, tudo que tenho a fazer é concordar com seus planos. Presumo que já pensou nisso. Tenha cuidado quando Chani se comporta com muita docilidade. Vêem, estou sendo totalmente sincera com vocês.
— Isso é o que eu esperava disse Alia. Se você...
— O sangue de um irmão não pode ser esquecido. Não me colocarei diante de meus amados Fremen como uma traidora, fazendo isso. “jamais perdoar, jamais esquecer.” Não é esse o nosso lema? Aviso-as aqui, e direi isto publicamente: vocês não podem me fazer aceitar o noivado com Faradin. Quem, me conhecendo, acreditaria nisso? O próprio Faradin não acreditaria. Ouvindo falar em tal noivado, os Fremen iriam rir e dizer: “Estão vendo? Ela o atrai para a armadilha.” Se vocês...
— Compreendo isso — disse Alia, caminhando para ficar ao lado de Irulan.
Esta, ela notara, estava ouvindo em silêncio, chocada, já consciente do rumo que tomava a conversa.
— E assim eu o estaria atraindo para uma armadilha. Se isso é o que você deseja, eu concordo, mas pode ser que ele não caia. Se deseja esse falso noivado como uma moeda oca para comprar de volta minha avó e seu precioso Duncan, então assim seja. Mas está em sua consciência. Traga-os de volta, mas Faradin é meu. Eu o matarei.
Irulan girou para encarar Alia antes que pudesse falar:
— Alia! Se faltarmos com nossa palavra...
Não terminou a frase, deixando as coisas no ar, enquanto Alia, sorrindo, refletia sobre a cólera potencial entre as Grandes Casas, nas Faufreluches em Assembléia, as consequências destrutivas para a crença na honra dos Atreides, a perda da confiança religiosa, todos os tijolos, grandes e pequenos, de uma construção que desabaria.
— O resultado nos seria contrário — protestou Irulan. — Toda a crença na profecia de Paul seria destruída. E... o Império...
— Quem se atreveria a questionar nosso direito de decidir o que é errado e o que é certo? — perguntou Alia, a voz branda. — Nós mediamos entre o bem e o mal. Só preciso proclamar...
— Você não pode fazer isso! — protestou novamente Irulan. — A memória de Paul...
— É apenas outro instrumento da Igreja e do Estado — disse Ghanima. — Não diga tolices, Irulan. — Ghanima tocou a faca cristalina em sua cintura e olhou para Alia. — Subestimei a sagacidade de minha tia, Regente de tudo o que é sagrado no Império do Muad'Dib. De fato a subestimei. Atraia Faradin para nossa sala de visitas, se quiser.
— Isso é uma temeridade — queixou-se Irulan.
— Você concorda com esse noivado, Ghanima? — indagou Alia, ignorando Irulan.
— Nos meus termos — disse Ghanima, a mão ainda sobre a faca cristalina.
— Eu lavo minhas mãos — disse Irulan, na verdade apertando as mãos. — Desejava argumentar em benefício de um verdadeiro noivado que serviria para curar...
— Nós lhe daremos uma ferida muito mais difícil de curar, Alia e eu — respondeu Ghanima.
— Traga-o rapidamente, se é que ele vem. E talvez venha. Quem suspeitaria de uma criança tão nova? Vamos planejar uma cerimônia formal de noivado que exija a presença dele. Haverá oportunidade para que eu fique a sós com ele... apenas um minuto ou dois...
Irulan estremeceu ante essa evidência de que Ghanima era, afinal de contas, inteiramente Fremen, uma criança que não se diferenciava dos adultos nessa terrível sangreira. Afinal, as crianças Fremen se acostumavam a matar os feridos nos campos de batalha, poupando as mulheres dessa tarefa para que elas pudessem coletar os corpos e levá-los para os alambiques da morte. E Ghanima, falando com a voz de uma criança Fremen, empilhava horror sobre horror na estudada maturidade de suas palavras, no antigo senso de dever, a que flutuava suspenso como uma aura em torno dela.
— Está feito — disse Alia, e tentou evitar que sua voz ou seu rosto revelasse a satisfação que sentia. — Prepararemos a carta formal do noivado e faremos com que as assinaturas sejam testemunhadas pelos representantes adequados das Grandes Casas. Faradin não poderá duvidar...
— Ele vai desconfiar, mas virá — disse Ghanima. — E terá guardas. Mas eles não pensarão em protegê-lo de mim.
— Pelo amor de tudo que Paul tentou fazer — protestou Irulan. — Vamos pelo menos fazer com que a morte de Faradin pareça um acidente, ou resultado de malícia da parte de alguém de fora...
— Terei prazer em exibir minha faca ensanguentada ao meu povo — disse Ghanima.
— Alia, eu lhe imploro — pediu Irulan. — Abandone essa insanidade. Declare kanly contra Faradin, qualquer coisa que não...
— Não precisamos de uma declaração formal de vendetta contra ele — respondeu Ghanima. — Todo o Império sabe como nos devemos sentir. — E apontou para a manga de seu manto. — Nós usamos o amarelo do luto. E quando eu o trocar pelo negro do noivado Fremen, será que isso vai enganar alguém?
— Reze para que engane Faradin — disse Alia. — E os delegados das Grandes Casas que vamos convidar para testemunhar a...
— Cada um desses delegados se voltará contra você — disse Irulan. — Você sabe disso.
— Ótima lembrança — respondeu Ghanima. — Escolha os delegados com cuidado, Alia. Devem ser do tipo que não nos importaremos em eliminar posteriormente.
Irulan ergueu os braços em desespero, virou-se e saiu.
— Coloque-a sob severa vigilância para o caso de tentar avisar o sobrinho — disse Ghanima.
— Não tente me ensinar a conduzir uma trama — disse Alia. Ela virou-se e seguiu Irulan, mas a um passo mais lento. As guardas do lado de fora e os criados à espera foram sugados em seu rastro como partículas de areia atraídas para o redemoinho causado por um verme se erguendo.
Ghanima sacudiu tristemente a cabeça, enquanto a porta se fechava, pensando: “É como o pobre Leto e eu pensamos. Deus! Queria que o tigre tivesse me matado em vez dele.”
Muitas forças lutaram para controlar os gêmeos Atreides e quando a morte de Leto foi anunciada, esse movimento de tramas e contra-tramas se ampliou. Notem-se as motivações relativas: a Irmandade temia Alia, uma Abominação adulta, mas ainda de, fracas características genéticas transportadas pelos Atreides.
A hierarquia da Igreja do Auqaf e do Hajj via somente o poder implícito no controle dos herdeiros do Muad'Dib. A CHOAM queria uma porta aberta para as riquezas de Duna. Faradin e seus Sardaukar buscavam um retorno às glórias da Casa Corino. Os membros da Corporação Espacial temiam o resultado da equação Arrakis=melange, já que sem a melange eles não poderiam navegar. Jessica desejava reparar aquilo que sua desobediência à Bene Gesserit havia causado. Poucos pensaram em indagar aos gêmeos quais poderiam ser os seus planos, até que já era muito tarde.
- O Livro de Kreos
Pouco após a refeição da tarde, Leto viu um homem passar diante do portal em arco de seu aposento, e sua mente acompanhou esse homem. A passagem fora deixada aberta e Leto podia ver alguma atividade lá fora: cestos de especiaria sendo transportados, três mulheres com a sofisticação no vestir característica de estrangeiras, que as marcava como contrabandistas. Esse homem, que levou a mente de Leto a vaguear, podia não ter sido diferente, exceto por caminhar como Stilgar, um Stilgar muito mais jovem.
E foi uma caminhada peculiar aquela seguida pela mente de Leto. O Tempo preenchia sua consciência como um globo estelar. Ele podia ver infinitos espaços-tempos, mas tinha de se lançar em seu próprio futuro antes de saber em que momento se encontrava sua carne. Suas vidas-memórias multifacetadas avançavam e recuavam, mas eram suas agora. Como ondas numa praia, exceto que, caso se erguessem muito, ele poderia controlá-las e elas recuariam, deixando apenas o nobre Harum para trás.
Agora e novamente, ele ouviria essas vidas-memórias. Uma delas se ergueria, como o responsável pelo ponto num teatro, colocando a cabeça para fora de uma abertura no palco e dando as deixas para seu comportamento. Seu pai apareceu durante essa caminhada mental e disse:
— Você é uma criança querendo ser um homem. Quando for um homem, vai procurar em vão pela criança que um dia foi.
Durante todo o tempo, ele sentia o corpo sendo incomodado pelas pulgas e piolhos de um velho sietch cuja manutenção era deficiente. Nenhum dos criados que traziam essa comida cheia de especiaria parecia incomodado por essas criaturas. Será que essa gente teria imunidade contra tais coisas ou apenas vivia com elas há tanto tempo que havia aprendido a ignorar o desconforto?
Quem seriam essas pessoas reunidas em torno do Gurney? Como tinham chegado a esse lugar? Isso seria Jacurutu? Suas multi-memórias produziam respostas de que ele não gostava. Eram pessoas feias e Gurney era a mais feia de todas. A perfeição flutuava ali, embora dormente e aguardando por baixo de uma feia superfície.
Parte dele sabia permanecer ligada à especiaria, mantida sob seu domínio pelas fortes doses de melange em cada refeição. Seu corpo de criança queria rebelar-se, enquanto sua persona delirava com a presença imediata de memórias vindas de milhares de vidas.
Sua mente retornou da caminhada e ele não teve certeza se seu corpo havia realmente ficado para trás. A especiaria confundia-lhe os sentidos.
Sentia as pressões de suas autolimitações acumulando-se contra ele, tal como as longas dunas baracan de um bled lentamente construíam uma rampa em direção a um penhasco do deserto. Um dia, alguns punhados de areia fluiriam sobre o penhasco, depois mais e mais... até que somente a areia permaneceria sob o céu.
Mas o penhasco ainda existiria lá embaixo.
“Ainda estou dentro do transe”, pensou ele.
Sabia que logo atingiria uma ramificação de vida e morte. Seus captores continuavam a mandá-lo de volta ao delírio da especiaria, insatisfeitos com suas respostas após cada retorno. Sempre o traiçoeiro Namri estava lá com sua faca. Leto conhecia incontáveis passados e futuros, mas ainda lhe restava descobrir qual deles satisfaria a Namri... ou a Gurney Halleck. Eles queriam alguma coisa fora de suas visões. A ramificação entre a vida e a morte atraía Leto. Sua vida, sabia, teria de possuir algum significado interior que a elevasse acima das circunstâncias e pormenores da visão. Pensando nessa exigência, sentia que sua consciência interior era sua verdadeira existência, e que a existência exterior era o transe. Isso o aterrorizava. Não queria voltar para esse sietch com suas pulgas, seu Namri e seu Gurney Halleck.
“Sou um covarde”, pensou.
Mas um covarde, mesmo um covarde, poderia morrer bravamente com apenas um gesto. Onde estaria esse gesto que o tornaria uno uma vez mais? Como poderia acordar do transe e da visão para o universo que Gurney exigia?
Sem essa volta, sem um despertar de visões sem objetivo, sabia que poderia morrer numa prisão de sua própria escolha. E nisso, afinal, chegara a cooperar com seus captores. Em algum lugar, precisava encontrar sabedoria, um equilíbrio interior que se refletiria sobre o universo e retornaria a ele numa imagem de calma e força. Somente então poderia buscar o Caminho Dourado e sobreviver à pele que não era a sua.
Alguém estava tocando baliset lá fora no sietch. Leto sentia que seu corpo provavelmente ouvia a música no presente. Sentia o leito sob suas costas. Podia ouvir a música. Era Gurney tocando o baliset. Outros dedos não poderiam igualar esse domínio do mais difícil dos instrumentos. Ele tocava uma velha canção Fremen, do tipo chamado hadz'th em razão da narrativa que encerrava e da voz que evocava os padrões necessários à sobrevivência em Arrakis. A canção falava das ocupações humanas dentro de um sietch.
Leto sentiu a música transportá-lo através de uma caverna maravilhosa e ancestral. Via mulheres pisando sobre resíduos de especiaria para produzir combustível, coalhando especiaria para fermentação, trançando tecidos de especiaria. A melange estava em toda parte no sietch.
Havia momentos em que Leto não era capaz de distinguir entre a música e as pessoas na caverna-visão. O gemido e a batida de um tear eram o gemido e a batida do baliset. Entretanto, seus olhos interiores viram tecidos de cabelo humano, as longas peles de ratos mutantes, fios de algodão do deserto e tiras enroladas da pele de pássaros. Viu uma escola de sietch.
A eco-linguagem de Duna lançou-se furiosamente em sua consciência sobre suas asas musicais. E ele viu uma cozinha a energia solar, uma longa câmara onde trajes-destiladores eram feitos e recebiam manutenção. Viu os previsores do tempo lendo os bastões que haviam trazido das areias.
Em algum ponto ao longo dessa jornada, alguém lhe trouxe comida e a colocou em sua boca, colherada por colherada, enquanto segurava sua cabeça com braço forte. Ele percebia isso numa sensação de tempo real, mas o maravilhoso jogo de movimentos continuava dentro dele.
É como se ocorresse no instante seguinte à refeição carregada de especiaria, viu cair uma tempestade de areia. Imagens móveis em seu hálito de areia tornaram-se reflexões douradas nos olhos de uma mariposa, e toda a sua vida, não mais que a .trilha viscosa de um inseto rastejante.
Palavras da Panóplia Profética passaram por sua mente: “Diz-se que não existe nada firme, nada equilibrado, nada permanente em todo o universo que nada permanece em sua condição. A cada dia, por vezes a cada hora, ocorre uma mudança.”
“A velha Missionária Protetora sabia o que estava fazendo”, pensou. “Elas sabiam a respeito dos Terríveis Propósitos. Sabiam como manipular pessoas e religiões. Nem mesmo meu pai lhes escapou, não no final.”
Ali se encontrava o indício que estivera buscando. Leto o estudou. Sentia a força retornando à sua carne. Todo o seu ser multifacetado virou-se e olhou para o universo. Ele se sentiu e se viu sozinho numa cela sombria, iluminada apenas pela luz da passagem exterior, por onde um homem passara carregando sua mente uma era atrás.
— Boa sorte para todos nós! — exclamou ele, à maneira Fremen tradicional.
Gurney Halleck apareceu na passagem arqueada, sua cabeça formando uma silhueta negra contra a luz exterior.
— Traga luz — pediu Leto.
— Deseja ser testado ainda mais?
Leto riu.
— Não, é minha vez de testar vocês.
— Veremos.
Halleck virou-se e retornou instantes após com um brilhante globo luminoso azul preso debaixo do braço. Soltou-o na cela, deixando que flutuasse acima de suas cabeças.
— Onde está Namri? — perguntou Leto.
— Bem aí fora, onde posso chamá-lo.
— Ahh, o Velho Pai Eternidade sempre espera com paciência.
Sentia-se curiosamente livre, erguendo-se à beira de uma descoberta.
— Você Chama Namri pelo nome reservado ao Shai-Hulud?
— Sua faca é um dente de verme. Assim, ele é o Velho Pai Eternidade.
Halleck sorriu amargamente, mas não disse nada.
— Você ainda espera para me julgar — disse Leto. — E não existe meio de se trocar informação, admito, sem fazer julgamentos. Mas você não pode pedir ao universo que seja exato.
Um som de tecidos roçando atrás de Halleck alertou Leto da aproximação de Namri. Ele parou meio passo à esquerda de Halleck.
— Ahh, a mão esquerda dos malditos — disse Leto.
— Não é sábio brincar com o Infinito e o Absoluto — resmungou Namri. Ele olhou de lado para Halleck.
— Por acaso você é Deus, Namri, que pode invocar absolutos? — perguntou Leto. Mas mantinha a atenção voltada para Halleck. O julgamento viria dali.
Ambos os homens meramente o fitaram, sem responder.
— Cada julgamento oscila à beira do erro — explicou Leto. — Afirmar-se na posse do conhecimento absoluto é se tornar monstruoso. O conhecimento é uma aventura sem fim nas fronteiras da incerteza.
— Que jogo de palavras é esse? — quis saber Halleck.
— Deixe-o falar — disse Namri.
— É um jogo no qual Namri me iniciou — disse Leto, e viu a cabeça do velho Fremen acenar em concordância. — Certamente reconhecera o jogo de enigmas. Nossos sentidos sempre funcionam em dois níveis.
— Trivialidade e mensagem — disse Namri.
— Excelente! — disse Leto. — Você me fornece trivialidade, eu lhe forneço mensagens. Eu vejo, ouço, sinto odores, toco, sinto mudanças na temperatura, no paladar. Sinto a passagem do tempo. Posso captar amostras de emoções. Ahhh! Eu sou feliz. Estão vendo? Gurney? Namri? Não existe mistério quanto à vida humana. Ela não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser vivenciada.
— Você abusa de nossa paciência, garoto — disse Namri. — Este é o lugar onde deseja morrer?
Mas Halleck estendeu a mão para contê-lo.
— Primeiro, não sou um garoto — disse Leto. Ele fez o sinal em seu ouvido direito. — E você não vai me matar. Coloquei uma dívida de água sobre você.
Namri sacou a faca cristalina meio para fora da bainha.
— Não lhe devo nada!
— Mas Deus criou Arrakis para treinar os fiéis. Eu não apenas lhe mostrei minha fé — disse Leto, — mas o tornei consciente de sua própria existência. A vida exige a disputa. Você foi levado ao conhecimento por mim! de que sua realidade difere de todas as outras, é assim que você sabe que está vivo.
— A irreverência é um jogo perigoso para se fazer comigo — advertiu Namri, mantendo a faca cristalina meio desembainhada.
— A irreverência é o ingrediente mais necessário em uma religião — replicou Leto. — Para não falar em sua importância na filosofia. A irreverência é o único meio que nos resta para testar nosso universo.
— Assim, você pensa que compreende o universo? — indagou Halleck, abrindo um espaço entre ele e Namri.
— Sssim — disse Namri, e havia morte em sua voz.
— O universo pode ser compreendido apenas pelo vento — disse Leto. — Não existe um poderoso trono da razão dentro do cérebro. Criação é descoberta. Deus descobriu-nos no Vazio porque nos movíamos contra um fundo que Ele já conhecia. A parede estava branca. Então, havia movimento.
— Você brinca de esconder com a morte — advertiu Halleck.
— Mas vocês dois são meus amigos — disse Leto, e encarou Namri. — Quando você apresenta um candidato a Amigo de seu Sietch, não sacrifica um falcão e uma águia como oferendas? E não é esta a resposta: “Deus envia cada homem a seu destino, e assim acontece com os falcões, as águias e os amigos”?
A mão de Namri soltou a faca e a lâmina escorregou de volta em sua bainha. Olhou para Leto de olhos arregalados. Cada sietch mantinha secreto o seu ritual de amizade, e no entanto ali estava uma parte exclusiva do rito.
Halleck, entretanto, indagou:
— Este lugar é o seu destino?
— Eu sei o que você precisa ouvir de mim, Gurney — respondeu Leto, observando a passagem da esperança e da suspeita no rosto feio. Tocou seu próprio peito e disse: — Esta criança nunca foi criança. Meu pai vive dentro de mim, mas eu não sou ele. Você o amou e ele era um ser humano galante, com objetivos elevados e honrados. Sua intenção era terminar com o ciclo das guerras, mas ele agiu sem levar em conta o movimento infinito, tal como expresso pela vida. Isso é Rhajia! Namri sabe. Seu movimento pode ser percebido por qualquer mortal. Cuidado com os caminhos que levam à possibilidade de futuros estreitos. Tais trilhas o afastam da infinidade e o levam a armadilhas letais.
— E o que é que eu preciso ouvir de você? — perguntou Halleck.
— Ele está apenas jogando com as palavras — avisou Namri, mas sua voz revelava profunda hesitação e dúvida.
— Eu me aliarei a Namri, contra meu pai — disse Leto. — E meu pai dentro de mim se alia conosco contra o que foi feito dele.
— Por quê? — quis saber Halleck.
— Porque é o amor fati que eu trago para a humanidade, o ato final de auto-exame. Neste universo, escolho me unir contra qualquer força que traga a humilhação para a humanidade. Gurney, Gurney! Você não nasceu e cresceu no deserto. Sua carne não conhece a verdade do que falo. Mas Namri conhece. Em terreno aberto, uma direção é tão boa quanto outra.
— Ainda não ouvi o que devo ouvir — resmungou Halleck.
— Ele fala de guerra e contra a paz — disse Namri.
— Não — disse Leto. — E nem meu pai falou contra a guerra. Mas olhe no que ele foi transformado. A paz só tem um significado neste Império. Ela é a manutenção de um único modo de vida. Você é dirigido a se sentir satisfeito. A vida deve ser uniformizada em todos os planetas do modo como ela é no Governo Imperial. O maior objetivo de estudo dos sacerdotes é encontrar as formas corretas de comportamento humano. Para isso eles buscam as palavras do Muad'Dib! Diga-me, Namri, você está satisfeito?
— Não. — A resposta veio franca, numa rejeição espontânea.
— Então você blasfema?
— Claro que não!
— Mas você não está satisfeito. Está vendo, Gurney? Namri prova isso para nós. Cada pergunta, cada problema, não possui uma única resposta correta. Deve-se permitir a diversidade. Um monólito é algo instável. Então, por que você exige de mim uma única declaração correta? Será essa a medida para seu monstruoso julgamento?
— Vai me forçar a mandar matá-lo? — perguntou Halleck, e havia agonia em sua voz.
— Não, eu terei pena de você — respondeu Leto. — Mande dizer a minha avó que eu vou cooperar. A Irmandade pode vir a lamentar essa minha cooperação, mas um Atreides deu sua palavra.
— Uma Reveladora da Verdade deverá verificar isso — disse Namri. — Esses Atreides...
— Ele terá sua chance de dizer à avó o que deve ser dito — disse Halleck, e acenou com a cabeça em direção à saída.
Namri parou antes de sair e olhou para Halleck.
— Eu rezo para que tenhamos feito a coisa certa deixando-o vivo.
— Vão, amigos — disse Leto. — vão e reflitam. — Enquanto os dois homens partiam, Leto se jogava de costas sobre o catre, sentindo o frio do leito sobre a espinha. O movimento fez sua cabeça girar sobre a borda de uma consciência carregada pela especiaria. E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade, cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados. Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores. Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades. Como um gigantesco desdobramento dentro dele, Leto via nessa revelação o que ela devia ser: uma janela para as partes invisíveis da sociedade. Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela. Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo. Começou a perscrutar as janelas, um voyeur cósmico.
Era isso que sua avó e a Irmandade buscavam! Ele sabia. Sua consciência fluía num nível novo e mais elevado. Sentia o passado carregado em suas células, em suas memórias, nos arquétipos que assombravam suas conjecturas, nos mitos que o envolviam, em suas linguagens e seus detritos pré-históricos. Tudo eram formas saídas de seu passado humano e não-humano, todas as vidas que agora comandava, todas elas nele integradas, afinal. E se sentia uma coisa num fluir e refluir de nucleotídeos. Contra o pano de fundo do infinito, ele era uma criatura protozoária, cujo nascimento e morte eram virtualmente simultâneos. Mas ele era tanto infinito quanto protozoário, uma criatura de memórias moleculares.
“Nós humanos somos uma espécie de colônia de organismos!”, pensou.
Eles queriam sua cooperação. Ao lhe prometer cooperar, conquistara outra prorrogação da morte pela faca de Namri. Buscando a cooperação, eles buscavam reconhecer uma cura.
Mas ele pensou: “Entretanto, eu não lhes trarei a ordem social do modo como a esperam!”
Uma careta contorceu a boca de Leto. Sabia que não seria tão inconscientemente malévolo quanto seu pai o fora despotismo em uma extremidade e escravidão na outra, mas esse universo poderia orar por aqueles “bons e velhos tempos”.
Seu pai, em seu interior, falou-lhe então, sondando cautelosamente, incapaz de exigir atenção, mas suplicando por uma audiência.
E Leto respondeu:
— Não. Daremos a eles complexidades que ocupem suas mentes. Há muitos modos de se fugir do perigo. Como eles saberão que sou perigoso, a não ser que me conheçam durante milhares de anos? Sim, pai interior, nós lhes daremos pontos de interrogação.
Não existe culpa ou inocência em vocês. Tudo isso é passado. A culpa espanca o morto, e eu não sou o Martelo de ferro. Vocês, multidão de mortos, são meramente pessoas que fizeram certas coisas, e a memória dessas coisas ilumina meu caminho.
- Leto II a suas Vidas-Memórias de acordo com Harq al-Ada
— Ele se move por si mesmo! — disse Faradin, a voz não mais que um sussurro.
Encontrava-se junto à cama de Lady Jessica, um grupo de guardas logo atrás dele. Lady Jessica se erguera da cama. Estava usando um vestido de parasseda branco, brilhante, com uma fita da mesma cor sobre os cabelos cor de cobre. Faradin avançara correndo sobre ela, momentos antes. Usava a malha cinza e seu rosto estava suado com a excitação e o esforço de sua corrida através dos corredores do palácio.
— Que horas são? — perguntou Jessica.
— Horas? — Faradin parecia intrigado. Um dos guardas disse:
— É a terceira hora após a meia-noite, Minha Senhora.
E o guarda olhou temeroso para Faradin. O jovem príncipe viera correndo através dos corredores iluminados para a noite, arrastando guardas espantados em seu rastro.
— Mas ele se move — disse Faradin. Estendeu a mão esquerda e depois a direita. — Vi minhas próprias mãos se encolherem até se tornarem pequenos punhos rechonchudos, e então me lembrei! Eram minhas mãos quando eu era um bebê. E me lembrei de como era ser um bebê, e era uma memória... mais clara. Eu estava reorganizando velhas lembranças.
— Muito bom — disse Jessica. A excitação dele era contagiante. — E o que aconteceu quando suas mãos se tornaram velhas?
— Minha mente era lerda — ele disse. — Eu sentia uma dor nas costas. Bem aqui.
E tocou num lugar sobre o rim esquerdo.
— Você aprendeu uma lição muito importante — disse Jessica. — Sabe que lição é essa?
Ele abaixou as mãos e olhou para ela. Então disse:
— Minha mente controla minha realidade. — Seus olhos cintilaram e ele repetiu, mais alto dessa vez: — Minha mente controla minha realidade!
— Isso é o começo do equilíbrio prana-bindu — explicou Jessica. — Mas somente o princípio.
— O que eu faço em seguida? — perguntou ele.
— Minha Senhora — o guarda que havia respondido à pergunta sobre as horas agora se aventurava a interromper. — A hora ele disse.
“Será que seus postos de espionagem não são guarnecidos a esta hora?”, pensou Jessica, e disse:
— Vá embora. Temos trabalho a fazer.
— Mas Minha Senhora — insistiu o guarda, olhando temeroso de Faradin para Jessica e novamente para Faradin.
— Acha que vou seduzi-lo? — perguntou ela. O homem ficou rijo.
Faradin riu, uma alegre liberação de tensões. Acenou com a mão, dispensando os homens.
— Vocês a ouviram. Vão embora.
Os guardas se entreolharam, mas obedeceram. Faradin sentou-se à beira da cama.
— O que vem em seguida? — Sacudiu a cabeça. — Eu queria acreditar na senhora, mas não acreditava. Então... Foi como se minha mente se derretesse. Eu estava cansado. Minha mente abandonou a luta contra a senhora e aquilo aconteceu. Só isso! — Ele estalou os dedos.
— Não era contra mim que sua mente lutava — disse Jessica.
— É claro que não — ele admitiu. — Eu estava lutando contra mim mesmo, com todas as tolices que aprendi. O que vem em seguida?
Jessica sorriu.
— Confesso que não esperava que obtivesse sucesso tão rapidamente. Faz apenas oito dias desde que...
— Eu fui paciente — disse ele, sorrindo.
— E também começou a aprender paciência.
— Comecei?
— Você acaba de se arrastar sobre a borda desse aprendizado. Agora, é verdadeiramente um bebê. Antes... era somente um potencial, nem sequer nascido.
Os cantos da boca de Faradin curvaram-se para baixo.
— Não fique tão desanimado, você conseguiu. Isso é que é importante. Quantos podem dizer que nasceram de novo?
— E o que vem em seguida? — ele insistiu.
— Você deverá praticar o que aprendeu. Quero que seja capaz de fazer isso à vontade, facilmente. Mais tarde, encontrará em sua consciência um novo lugar, que isso abriu. Ele será preenchido por sua habilidade de testar qualquer realidade contra suas próprias exigências.
— É tudo que farei agora... praticar o...
— Não. Agora pode começar o treinamento muscular. Diga-me, pode mover o dedo mindinho do pé esquerdo sem mover qualquer outro músculo do corpo?
— Meu... — Ela percebeu uma expressão reservada surgir em seu rosto enquanto ele tentava mover o dedo. Ele olhou para o pé daí a pouco, fitando-o enquanto o suor surgia em sua testa. Um suspiro profundo escapou-lhe. — Não posso fazer isso.
— Sim, pode... Vai aprender a fazê-lo. Aprenderá sobre cada músculo de seu corpo. Conhecerá esses músculos do modo como conhece suas mãos.
Ele engoliu em seco ante a magnitude dessa perspectiva. Depois disse:
— O que está fazendo comigo? Quais são seus planos para mim?
— Pretendo soltá-lo no universo — respondeu ela. — E você se tornará o que quer que mais profundamente deseje.
Ele meditou por um momento.
— Qualquer coisa que eu deseje?
— Sim.
— Isso é impossível!
— A menos que aprenda a controlar seus desejos da maneira como controla sua realidade — respondeu ela enquanto pensava: “Aí está! Deixe que seus analistas examinem isso. Eles aconselharão a uma aprovação cautelosa, mas Faradin se colocará um passo mais próximo de perceber o que estou fazendo realmente.”
Ele provou suas conjecturas ao dizer:
— Uma coisa é dizer a uma pessoa que ela realizará aquilo que seu coração desejar. Outra coisa propiciar essa realização.
— Você já chegou mais longe do que pensei — disse Jessica. — Muito bem. Prometo-lhe uma coisa: se completar este programa de aprendizado, terá o controle sobre si mesmo. O que quer que faça será porque realmente o deseja.
“E deixe que uma Reveladora da Verdade tente analisar isso”, pensou ela.
Ele se levantou, mas sua expressão era calorosa, um sentimento de camaradagem.
— Sabe, acredito na senhora. Maldito seja se sei por quê, mas acredito. E não vou dizer uma palavra a respeito das outras coisas que estou pensando.
Jessica o observou ir embora, vendo-o sair de seu quarto. Depois, desligou os globos luminosos e se deitou. Esse Faradin era astuto. Quase lhe contara que estava começando a ver seus planos, mas se unia à conspiração pela própria vontade.
“Espere até que ele comece a dominar as próprias emoções”, pensou ela.
Com isso, se ajeitou para voltar a dormir. O dia seguinte, sabia, seria cheio de encontros casuais com gente do palácio fazendo perguntas aparentemente inócuas.
A humanidade vive periodicamente uma aceleração dos acontecimentos, experimentando portanto uma corrida entre a renovável vitalidade da vida e a atraente adulteração da decadência. Nessa corrida periódica, qualquer pausa se torna um luxo.
Somente então se pode refletir que tudo é permitido, tudo é possível.
- Os Apócrifos do Muad'Dib
“O toque da areia é importante”, pensou Leto.
Podia sentir a aspereza abaixo de si, no lugar onde se sentava sob um céu brilhante. Eles o haviam forçado a ingerir outra forte dose de melange, e a mente de Leto se voltava sobre si mesma como um redemoinho. Uma pergunta ainda não respondida encontrava-se bem no fundo desse redemoinho: “Por que eles insistem em que eu diga isso?” Gurney era teimoso, não havia dúvida quanto a isso. E ele seguia as ordens de Lady Jessica.
Eles o haviam trazido para a luz do dia, fora do sietch, para essa “lição”. Tinha a estranha sensação de ter deixado o corpo fazer o curto passeio, do sietch até esse lugar, enquanto seu ser interior mediava uma batalha entre o Duque Leto 1 e o velho Barão Harkonnen. Eles haviam lutado dentro dele e através dele, pois ele próprio não permitiria que se comunicassem diretamente. A luta lhe ensinara o que acontecera com Alia.
Pobre Alia.
“Eu tinha razão em temer a viagem da especiaria”, pensou.
Uma crescente amargura com relação a Lady Jessica preenchia-lhe o ser.
Ela e seu maldito gom jabbar! Lute e vença, ou morra tentando. Ela não podia colocar uma agulha envenenada de encontro ao seu pescoço, mas podia mandá-lo para o vale do perigo que consumira sua própria filha.
Sons abafados penetraram em sua consciência. Eles ondularam, tornando-se cada vez mais altos, depois suaves, depois altos... suaves. Não havia meio de determinar se eram reais ou se provinham da especiaria.
O corpo de Leto vergou-se sobre seus braços cruzados. Sentia a areia quente através de suas nádegas. Havia um tapete diretamente à sua frente, mas Leto sentava-se sobre a areia. Uma sombra aparecia do outro lado do tapete: Namri. Leto olhou para a textura nodosa do tapete, sentindo bolhas brotarem sobre ele. Sua consciência deslizou, contudo, em sua própria correnteza, através de uma paisagem que se estendia até o horizonte coberto de verde.
Seu crânio pulsava com tambores. Sentia calor, febre. A febre era a pressão de alguma coisa queimando que preenchia seus sentidos, agrupando a consciência carnal até que ele só podia sentir as sombras móveis de seus perigos. Namri e a faca. Pressão... pressão... Leto encontrou-se suspenso, afinal, entre o céu e a areia, sua mente inconsciente a tudo, menos à febre. Agora, aguardava que alguma coisa acontecesse, sentindo que qualquer ocorrência seria a primeira e a única coisa.
A luz do sol quente estourava brilhante em torno dele, sem tranquilidade, sem remédio. “Onde está o meu Caminho Dourado?” Por toda parte, insetos rastejavam. Por toda parte. “Minha pele não é minha pele.” Enviou mensagens ao longo de seus nervos, aguardando as respostas lentas e estranhas à sua pessoa.
“Para cima”, disse ele a seus nervos.
Uma cabeça que poderia ter sido a sua ergueu-se lentamente, olhando para as extensões de brancura numa noite brilhante.
Alguém sussurrou:
— Agora ele está em transe bem profundo.
Nenhuma resposta.
O fogo do sol queimando, acumulando calor.
Lentamente, curvando-se para fora, a corrente de sua consciência o levou flutuando através da última tela de vazio verde, e lá, além das dunas que se curvavam suavemente, a não mais que alguns quilômetros da linha branca de um penhasco, lá estava o futuro verde germinando, crescendo, fluindo num verde interminável, propagando-se, verde, verde, expandindo-se interminavelmente.
Em todo aquele verde não restava um só grande verme.
Riquezas crescendo, luxuriantes, mas em parte alguma o Shai-Hulud.
Leto sentia que se aventurara através de velhas fronteiras até uma nova terra que somente a imaginação havia testemunhado, e agora olhava diretamente, através do véu seguinte, que uma humanidade bocejante chamara Desconhecido.
Era uma realidade sangrenta.
Sentia a fruta vermelha de sua vida oscilando num ramo, seu suco escapando-lhe, e o suco era a essência da especiaria fluindo através de suas veias.
Sem o Shai-Hulud não haveria mais especiaria.
Ele vira um futuro sem o verme-serpente de Duna, grande e cinzento. Sabia disso, e no entanto não podia fugir ao transe para escapar a tal passagem.
De repente, sua consciência mergulhou de volta de volta, para longe desse futuro mortífero. Os pensamentos mergulharam em suas entranhas, tornando-se primitivos, movidos apenas por emoções intensas. Percebeu-se incapaz de focalizar qualquer aspecto particular de sua visão ou do ambiente à sua volta, mas havia uma voz dentro dele. Falava num idioma muito antigo, mas ele o entendia perfeitamente. A voz era musical e cadenciada, mas suas palavras o ameaçavam.
— Não é o presente que influencia o futuro, seu tolo, mas sim o futuro que forma o presente. Você percebeu tudo ao contrário. Uma vez que o futuro está estabelecido, um desdobramento de eventos vai assegurar que ele seja fixo e inevitável.
Essas palavras o transpassaram. Sentiu o terror enraizar-se na matéria pesada de seu corpo. Com isso, sabia que seu corpo ainda existia, mas a natureza incontrolada e o enorme poder de sua visão faziam-no sentir-se contaminado, indefeso, incapaz de sinalizar a um músculo e obter-lhe a obediência. Sabia estar se submetendo mais e mais ao assalto daquelas vidas coletivas, cujas memórias certa vez o haviam levado a se acreditar real. O medo tomava conta dele. Pensou que poderia estar perdendo seu controle interior, tornando-se, afinal, uma Abominação.
Leto sentiu o corpo contorcer-se de horror.
Tornara-se dependente dessa vitória e da cooperação benevolente dessas memórias, recentemente conquistada. Elas se haviam voltado contra ele agora, todas elas até mesmo o nobre Harum, em quem confiara. Estava tremulando numa superfície sem raizes, incapaz de conferir qualquer expressão à sua própria vida. Tentou concentrar-se numa imagem mental de si mesmo e foi confrontado por uma superposição de quadros, cada um numa idade: desde um bebê até um trêmulo ancião. Lembrou-se do treinamento inicial de seu pai: deixe suas mãos se tornarem jovens, e então velhas.
Mas todo o seu corpo mergulhava agora nessa realidade perdida, e toda a progressão de imagens se fundiu a outros rostos, as feições daqueles que lhe haviam dado suas memórias.
Um relâmpago de diamantes o atingiu.
Leto sentiu fragmentos de sua consciência se separando, e no entanto retinha um senso de si mesmo em algum lugar entre o ser e o não-ser. A esperança se acelerou, sentiu o corpo respirar. Para dentro... para fora.
Respirou fundo: yin. Deixou o ar escapar: yang.
Em algum lugar, pouco além de seu alcance, se achava o local da suprema independência, da vitória sobre toda a confusão inerente à sua multidão de vidas não um falso sentido de comando, mas uma verdadeira vitória.
Agora sabia qual fora o seu erro: buscara o poder na realidade de seu transe, preferindo isso a enfrentar os temores que ele e Ghanima haviam alimentado um ao outro.
“O medo derrotou Alia.”
Mas a busca do poder reservava outra armadilha, afastando-o no rumo da fantasia. Percebeu a ilusão. Todo o processo de ilusão deu meia-volta e agora ele percebia o centro do qual poderia observar, sem propósito, a passagem de suas visões, de suas vidas interiores.
A alegria o inundou. Fazia com que tivesse vontade de rir, mas ele negou a si mesmo esse luxo, sabendo que isso fecharia as portas da memória.
“Ahh, minhas memórias”, ele pensou. “Percebi sua ilusão. Vocês não me criam mais o momento seguinte. Apenas me mostram como criar novos momentos. Não vou me prender aos velhos rumos.
Os pensamentos passaram através de sua consciência como se fossem um pano deixando limpa uma superfície, e no seu rastro ele sentiu seu corpo inteiro, um einfalle que relatou os mais diminutos detalhes de cada célula, de cada nervo. Entrou num estado de calma intensa. Nessa quietude, ouviu vozes, sabendo que vinham de grande distância, embora as ouvisse claramente, como se ecoassem num abismo.
Uma das vozes era a de Halleck:
— Talvez tenhamos dado uma dose muito forte.
Namri respondeu:
— Demos exatamente o que ela nos disse para lhe dar.
— Talvez devêssemos voltar lá fora e dar outra olhada nele — sugeriu Halleck.
— Sabiha é boa nessas coisas. Ela nos chamará se acontecer alguma coisa errada, — disse Namri.
— Não gosto desse negócio de Sabiha — disse Halleck.
— Ela é um ingrediente necessário — replicou Namri.
Leto sentia uma luz brilhante fora de si mesmo, e uma escuridão interior, mas a escuridão era reservada, protetora e morna. A luz começou a queimar, subindo, e ele sentiu que ela vinha da escuridão interior, rodopiando para fora como uma nuvem brilhante. Seu corpo tornou-se transparente, arrastando-o para o alto, e no entanto ele retinha aquele contato einfalle com cada célula e cada nervo. A multidão de vidas interiores caía num alinhamento, nada confuso nem misturado. Elas se tornaram muito quietas, duplicando seu próprio silêncio interior, cada vida-memória distinta, uma entidade incorpórea e indivisível.
Leto lhes disse então:
— Eu sou seu espírito. Sou a única vida que podem perceber. Sou uma casa para seus espíritos na terra que não é parte alguma, a terra que é seu único lar remanescente. Sem mim, o universo inteligível reverte ao caos. O criativo e o abismal encontram-se inexoravelmente ligados em mim: só eu posso intermediar entre eles. Sem mim, a humanidade mergulharia na lama e na vaidade do conhecer. Através de mim, vocês e eles encontrarão a única saída do caos: “o entendimento através da vida”.
Com isso, libertou-se e se tornou ele mesmo, sua própria pessoa compreendendo a totalidade de seu passado. Não era vitória nem derrota, mas uma nova coisa a ser compartilhada com qualquer vida interior que escolhesse. Leto saboreou essa novidade, deixando que ela possuísse cada célula, cada nervo, liberando aquilo que o einfalle lhe fornecera e recuperando a totalidade no mesmo instante.
Depois de algum tempo, despertou numa escuridão branca. Num clarão de consciência, sabia onde se encontrava sua carne: estava sentado na areia, a aproximadamente um quilômetro do penhasco que marcava a extremidade norte do sietch. Agora conhecia aquele sietch: Jacurutu, com certeza... e Fondak. Mas era muito diferente dos mitos e lendas, bem como dos rumores que os contrabandistas permitiam escapar.
Uma jovem estava sentada num tapete diretamente em frente a ele, com um brilhante globo luminoso preso à manga esquerda, flutuando bem acima de sua cabeça. Quando Leto olhava para longe do globo luminoso, havia estrelas. Conhecia essa moça: estivera em uma de suas visões anteriores, a que torrava café. Era a sobrinha de Namri, tão hábil com a faca como o tio. Lá estava a faca no colo dela. Ela usava um manto verde simples sobre um traje-destilador cinzento. Sabiha era o seu nome. E Namri tinha seus próprios planos para ela.
Sabiha notou o despertar em seus olhos e disse:
— Está quase amanhecendo. Você passou a noite inteira aqui.
— E a maior parte do dia — ele disse. — Você faz um bom café.
Essa declaração a intrigou, mas foi ignorada com uma determinação que indicava que um duro treinamento e instruções explícitas controlavam seu presente comportamento.
— É a hora dos assassinos — disse Leto. — Mas sua faca não é mais necessária.
Olhou para a faca cristalina no colo dela.
— Namri decidirá isso — ela disse.
“Não é o Halleck, então.” Ela apenas confirmava seu conhecimento interior.
— O Shai-Hulud é um grande coletor de lixo e ótimo quando se trata de apagar evidências indesejáveis — disse Leto. — Eu mesmo o usei.
Ela colocou a mão levemente sobre o punho da faca.
— Quanta coisa é revelada pelo lugar onde nos sentamos e pelo modo como fazemos — ele comentou. — Você se senta sobre um tapete, e eu, sobre a areia.
A mão dela se fechou sobre o cabo da faca. Leto bocejou, abrindo a boca e esticando-a tanto que os maxilares doeram.
— Tive uma visão que a incluía.
Os ombros dela relaxaram-se levemente.
— Temos sido muito parciais com relação a Arrakis — disse ele. — É bárbaro de nossa parte. Há um certo momentum no que estivemos fazendo, mas agora devemos desfazer parte de nosso trabalho. As balanças devem ser colocadas num equilíbrio melhor.
Uma expressão intrigada tocou o rosto de Sabiha.
— Minha visão — continuou ele. — A menos que restauremos a dança da vida aqui em Duna, o dragão do leito do deserto não existirá mais.
Como ele usara o velho nome Fremen para o grande verme, ela o entendeu por um momento. Então disse:
— Os vermes?
— Estamos num caminho sombrio. Sem especiaria, o Império vai desmoronar. A Corporação ficará parada. Os planetas perderão lentamente as memórias claras um do outro. Eles se voltarão sobre si mesmos. O espaço se tornará uma fronteira quando os Navegadores da Corporação perderem seu domínio. Nós nos agarraremos aos topos de nossas dunas e ficaremos ignorantes do que está acima e abaixo de nós.
— Você fala de modo muito estranho — disse ela. — Como foi que me viu em sua visão?
“Confie na superstição dos Fremen”, pensou ele, e disse:
— Eu me tornei pasigráfico. Sou um hieróglifo vivo destinado a registrar as mudanças que devem acontecer. Se eu não registrá-las, você encontrará tamanha mágoa que nenhum ser humano deveria experimentá-la.
— Que palavras são essas? — indagou ela. Mas sua mão permanecia levemente apoiada na faca.
Leto voltou sua cabeça em direção aos penhascos de Jacurutu, vendo o brilho inicial da Segunda Lua, fazendo sua passagem pré-alvorecer por trás das rochas. O grito de morte de uma lebre do deserto o chocou. Viu Sabiha estremecer. Lá vinha o bater de asas um pássaro predador, criatura noturna do local. Viu o brilho de brasa de muitos olhos enquanto passavam acima dele, dirigindo-se para as fendas no penhasco.
— Devo seguir as instruções de meu novo coração — disse Leto. — Você me vê como apenas uma criança, Sabiha, mas...
— Eles me avisaram a seu respeito — respondeu Sabiha, e agora seus ombros estavam rígidos em alerta.
Ele percebeu o medo na voz dela e disse:
— Não tenha medo de mim, Sabiha. Você viveu oito anos a mais do que esta minha carne. Por isso eu a respeito. Mas eu tenho incontáveis milhares de anos a mais, de outras vidas, muitas mais do que conhece. Não me veja como uma criança. Atravessei muitos futuros e num deles nos vi enlaçados no amor. Você e eu, Sabiha.
— O que é... isso não pode... — Ela se interrompeu, confusa.
— Você poderá se acostumar à idéia — ele disse. — Agora, ajude-me a voltar para o sietch, pois estive em muitos lugares distantes e estou cansado de minhas viagens. Namri deve ouvir sobre onde eu estive. — Percebeu a indecisão dela e disse: — Não sou o Hóspede da Caverna? Namri deve saber sobre o que aprendi. Temos muito a fazer para que nosso universo não se degenere.
— Não acredito naquilo a respeito dos vermes — disse ela.
— Nem a respeito de nós, unidos no amor?
Ela sacudiu a cabeça. Mas ele podia ver os pensamentos flutuando na mente da moça como penas sopradas pelo vento. Suas palavras a haviam atraído e ao mesmo tempo repelido. Ser consorte do poder, isso certamente exercia grande fascínio. E no entanto lá estavam as ordens de seu tio. Mas um dia esse filho do Muad'Dib poderia governar Duna e as mais distantes vastidões desse universo. Ela experimentou, então, uma aversão extremamente Fremen a tal futuro. A consorte de Leto seria vista por todos, seria objeto de mexericos e especulações. Teria riqueza, entretanto, e...
— Sou o filho do Muad'Dib, capaz de ver o futuro — ele disse. Lentamente, ela recolocou a faca em sua bainha e se levantou com facilidade do tapete, colocando-se ao lado dele e o ajudando a se levantar. Leto achou divertidas as suas ações seguintes: ela dobrou o tapete cuidadosamente e o colocou sobre o ombro direito. Notou que avaliava seus tamanhos diferentes, refletindo sobre suas palavras:
“Enlaçados no amor?”
“O tamanho é outra coisa que muda”, pensou ele.
Ela colocou a mão sobre seu braço para ajudá-lo e controlá-lo. Leto tropeçou e ela falou severamente.
— Estamos muito longe do sietch para isso. — Queria dizer que o som indesejado poderia atrair um verme.
Leto sentia que seu corpo se tornara uma casca oca como aquelas abandonadas pelos insetos. Conhecia essa casca: estava ligada à sociedade que fora erguida sobre o comércio da melange e sua Religião do Elixir Dourado. Fora esvaziada por seus excessos. Os objetivos elevados do Muad'Dib haviam desabado numa prestidigitação sustentada pelo poder militar do Auqaf. E a religião do Muad'Dib tinha outro nome agora, era Shien-san-Shao, rótulo ixiano que designava a violência e a loucura daqueles que pensavam poder transformar o universo num paraíso pela ponta de uma faca cristalina. Mas isso também mudaria, como Ix tinha mudado. Pois ele era apenas o nono planeta a partir de seu sol, e seus habitantes tinham até mesmo esquecido a linguagem que lhe dera nome.
— O Jihad foi um tipo de loucura de massa — ele murmurou.
— O quê?
Sabiha estivera concentrada no problema de fazê-los caminhar sem ritmo, ocultando sua presença na areia. Focalizou por um momento a atenção em suas palavras, para interpretá-las como outro produto de seu óbvio cansaço. Sentia a fadiga nele, o modo como fora esgotado pelo transe.
Parecia sem sentido e cruel para ela. Se ele devia ser morto, como Namri dizia, então que isso fosse feito rapidamente, sem todo esse jogo.
Entretanto, Leto falara de uma maravilhosa revelação. Talvez fosse isso que Namri buscava.
Certamente, esse devia ser o motivo por trás do comportamento da própria avó da criança. Por que outra razão Nossa Senhora de Duna daria sua aprovação a esses atos perigosos contra uma criança?
“Criança?”
Novamente ela refletiu sobre as palavras dele. Agora se encontravam na base do penhasco e ela parou, deixando que ele relaxasse por um momento ali, onde era mais seguro. Olhando para ele, à fraca luz das estrelas, perguntou:
— Como não poderia haver mais vermes?
— Somente eu posso mudar isso — respondeu ele. — Não tema. Posso mudar tudo. Algumas perguntas não têm respostas — ele disse. — Eu vi esse futuro, mas as contradições somente a confundiriam. Este é um universo mutável e nós somos a mais estranha de todas as mudanças. Entramos em ressonância com muitas coisas. Nossos futuros exigem uma constante atualização. Agora, existe uma barreira que precisamos remover. Isso exige que façamos coisas brutais, que nos voltemos contra nossos desejos mais básicos, mais acalentados... Mas deve ser feito.
— O que deve ser feito?
— Alguma vez matou um amigo? — indagou ele e, voltando-se, liderou a caminhada pela fenda, que subia até a entrada oculta do sietch. Andava tão rapidamente quanto a fadiga do transe lhe permitia, mas ela continuava bem atrás dele, agarrando seu manto e forçando-o a parar.
— Que história é essa de matar um amigo?
— Ele vai morrer de qualquer maneira — respondeu Leto. — Eu não tenho de fazê-lo, mas poderia evitar. E se eu não evitar não é o mesmo que matá-lo?
— Quem é esse... quem vai morrer?
— A alternativa me mantém calado — ele disse. — Posso ser obrigado a entregar minha irmã a um monstro.
Novamente ele se virou, afastando-se dela, e quando ela o puxou pelo manto, ele resistiu, recusando-se a responder suas perguntas. “É melhor que ela não saiba até chegar a ocasião”, pensou ele.
A seleção natural tem sido feita como um peneiramento seletivo de um meio ambiente para separar aqueles que deixarão descendentes. Mas, no que concerne aos seres humanos, esse é um ponto de vista extremamente limitado. A reprodução através do sexo tende à experimentação e à inovação. Isso levanta muitas questões, incluindo-se aquela antiga pergunta quanto a se o ambiente é um agente seletivo depois que a variação ocorre, ou se o ambiente desempenha um papel pré-seletivo ao determinar as variações que são produzidas. Duna realmente não respondeu essas perguntas, apenas suscitou novas questões que Leto e a Irmandade poderão tentar responder nas próximas 500 gerações.
- A Catástrofe de Duna segundo Harq al-Ada
As nuas rochas marrons da Muralha Escudo assomavam na distância, visíveis para Ghanima como uma personificação daquela aparição que lhe ameaçava o futuro. Estava no jardim suspenso, no teto do Castelo, com o sol poente às suas costas. O sol apresentava um profundo brilho alaranjado devido às nuvens de poeira no ar, uma cor tão rica quanto a da franja da boca de um verme. Ela suspirou, pensando: “Alia... Alia... Será que o seu destino virá a ser o meu?”
As vidas internas se haviam tornado crescentemente barulhentas nos últimos tempos. Havia alguma coisa quanto ao condicionamento feminino numa sociedade Fremen, talvez fosse uma verdadeira diferença sexual, mas, o que quer que fosse, tornava a mulher mais suscetível a essa maré interior. Sua avó a havia advertido a respeito disto, enquanto elas conspiravam, reunindo a sabedoria acumulada das Bene Gesserits, mas despertando o conhecimento da ameaça dentro de Ghanima.
— A Abominação — dissera Jessica, — nosso termo para designar os pré-nascidos, tem atrás de si uma longa história de experiências amargas. O modo como ocorre parece indicar que as vidas interiores se dividem. Elas se separam no benigno e no maligno. O benigno permanece tratável, útil. O maligno parece unir-se numa poderosa psique, tentando assumir o controle da carne viva e de sua consciência. Sabe-se que o processo leva um tempo considerável, mas seus indícios são bem conhecidos.
— Por que você abandonou Alia? — perguntou Ghanima.
— Eu fugi apavorada com o que havia criado — confessou Jessica em voz baixa. — Desisti e meu fardo agora é... talvez eu tenha desistido muito cedo.
— Que quer dizer?
— Não posso explicar ainda, mas... talvez... não! Não lhe darei falsas esperanças. Ghafla, a abominável loucura, tem uma longa história na mitologia humana. Era chamada de muitas coisas, mas principalmente de possessão. Isso é o que parece ser. Você perde o seu rumo na malignidade e ela toma posse de você.
— Leto... temia a especiaria — disse Ghanima, descobrindo que podia falar a respeito dele calmamente. O terrível preço exigido deles!
— E sabiamente — disse Jessica. Não diria mais nada.
Mas Ghanima se arriscara a uma explosão de suas memórias interiores, perscrutando através de um véu curiosamente enevoado e expandindo futilmente seus temores de Bene Gesserit. Explicar o que havia acontecido a Alia não facilitava nem um pouco. No entanto, a acumulação de experiências Bene Gesserit apontava para uma possível fuga da armadilha, e quando Ghanima se arriscou a compartilhar informações com as memórias interiores, primeiro invocou o Mohalata, a parceria do lado benigno que poderia protegê-la.
Relembrava aquele encontro sob o brilho do poente, na extremidade do jardim suspenso. Imediatamente, sentiu a presença-memória de sua mãe.
Chani estava lá, uma aparição entre Ghanima e os penhascos distantes.
— Entre aqui e você comerá do fruto de zaqquum, o alimento do inferno! — dissera Chani. — Feche essa porta, minha filha, é sua única segurança.
O clamor interno elevou-se ao redor da visão e Ghanima fugiu, mergulhando sua consciência no Credo da Irmandade, reação mais de desespero que de confiança. Rapidamente, recitou o Credo, movendo os lábios e deixando a voz se elevar num sussurro:
“A religião é a imitação do adulto pela criança. A religião é um enquistamento de crenças passadas: a mitologia, que é a suposição, os pressupostos ocultos de confiança no universo, os pronunciamentos que os homens fazem em busca de poder pessoal, tudo misturado com fragmentos de esclarecimento. E sempre aquele derradeiro mandamento não-verbalizado: Não deverás questionar! “Mas nós questionamos. Nós quebramos esse mandamento por uma questão de lógica. O trabalho ao qual nos dedicamos é o de liberar a imaginação, dirigi-la ao mais profundo senso humano de criatividade.”
Lentamente, um sentimento de ordem retornou aos pensamentos de Ghanima.
Sentia o corpo tremendo, contudo, e sabia como era frágil essa paz que conquistara e aquele véu enevoado permanecia em sua mente.
— Leb amai — sussurrou ela. — Coração de meu inimigo, esse não será meu coração.
E procurou relembrar as feições de Faradin, aquele rosto jovem, melancólico, com as sobrancelhas grossas e a boca firme.
“O ódio me tornará forte”, pensou. “No ódio posso resistir ao destino de Alia.”
Mas a trêmula fragilidade de sua posição permanecia, e tudo que ela conseguia pensar era no quanto Faradin lembrava seu tio, o falecido Shaddam IV.
— Aqui está você!
Era Irulan aproximando-se pela direita de Ghanima, caminhando ao longo do parapeito com movimentos que lembravam os de um homem. Voltando-se, Ghanima pensou: “E ela é a filha de Shaddam.”
— Por que persiste em se esgueirar sozinha? — perguntou Irulan, parando em frente a Ghanima e se erguendo diante dela com o rosto zangado.
Ghanima preferiu não dizer que não estava sozinha, que os guardas a tinham visto sair para o telhado. A raiva de Irulan dirigiu-se ao fato de que ali estavam em campo aberto, onde uma arma distante poderia atingi-las.
— Você não está usando um traje-destilador — reparou Ghanima. — Sabia que, nos velhos tempos, uma pessoa apanhada fora do sietch sem traje-destilador era automaticamente morta? Desperdiçar água era colocar a tribo em perigo.
— Agua! Água! — retrucou Irulan. — Quero saber por que você se arrisca desse modo. Volte para dentro. Você cria problemas para todos nós.
— Que perigo existe aqui, agora? — perguntou Ghanima. — Stilgar expurgou os traidores. A guarda de Alia está por toda parte.
Irulan olhou para cima, em direção ao céu que escurecia. Estrelas já eram visíveis contra um fundo cinza azulado. Voltou sua atenção para Ghanima.
— Não vou discutir. Fui mandada aqui para lhe dizer que recebemos notícias de Faradin. Ele aceita, mas por alguma razão deseja retardar a cerimônia.
— Porquanto tempo?
— Ainda não sabemos. Está sendo negociado. Mas Duncan vai ser mandado de volta.
— E minha avó?
— Preferiu ficar em Salusa, por enquanto.
— Quem pode culpá-la? — perguntou Ghanima.
— Aquela briga tola com Alia!
— Não tente me enganar, Irulan! Aquilo não foi uma briga tola. Ouvimos as histórias.
— Os temores da Irmandade...
— São reais — disse Ghanima. — Bem, você me passou a mensagem. Vai usar esta oportunidade para tentar outra vez me dissuadir?
— Eu desisti.
— Já devia saber que não pode mentir para mim — disse Ghanima.
— Muito bem! Vou continuar tentando dissuadi-la. Este curso de ação é uma loucura. — E Irulan imaginou por que deixara Ghanima tornar-se tão irritante. Uma Bene Gesserit não precisa ficar irritada com coisa alguma. Ela disse: — Estou preocupada com o extremo perigo que você corre. Sabe disso, Gham, Gham... você é a filha de Paul. Como pode...
— Porque sou sua filha — respondeu Ghanima. — A linhagem Atreides se estende até Agamenon, e sabemos o que está em nosso sangue. Nunca se esqueça disso, esposa sem filhos de meu pai. Nós Atreides possuímos uma história sangrenta e ainda não a encerramos.
Desatenta, Irulan perguntou:
— Quem foi Agamenon?
— Como é escassa a sua famosa educação Bene Gesserit. Sempre esqueço que vocês resumem a história. Mas as minhas memórias recuam até... — Ela se interrompeu, preferindo não despertar aquelas sombras de seu frágil sono.
— Do que quer que se lembre, deve saber como é perigoso esse caminho para...
— Eu o matarei — insistiu Ghanima. — Ele me deve uma vida.
— E eu evitarei isso se puder.
— Nós já sabemos disso. Você não terá tal oportunidade. Alia vai mandá-la para o sul, para uma das novas cidades, até que tudo esteja terminado.
Irulan sacudiu a cabeça, desanimada.
— Gham, eu jurei que a guardaria contra qualquer perigo. E farei isso com minha própria vida, se necessário. Se pensa que vou definhar em alguma djedida de tijolos enquanto você...
— Sempre restará o Huanui — disse Ghanima, falando suavemente. — Temos o alambique da morte como alternativa. Lá, tenho certeza de que você não poderia interferir.
Irulan ficou pálida e levou uma das mãos à boca, esquecendo-se por um momento de todo o seu treinamento. Era uma medida do quanto ela se importava com Ghanima esse quase completo abandono a tudo, exceto o medo animal. Falou com uma emoção esmagadora, permitindo que seus lábios tremessem.
— Gham, não temo por mim mesma. Eu me jogaria na boca de um verme por você. Sim, eu sou aquilo que você me chama, a esposa sem filhos de seu pai, mas você é a criança que eu nunca tive. Eu lhe suplico... — Lágrimas brilharam nos cantos de seus olhos.
Ghanima lutou contra um aperto na garganta e disse:
— Existe outra diferença entre nós. Você nunca foi Fremen, eu não sou nada mais que isso. Esse é o abismo que nos separa. Alia sabe. O que mais ela possa ser, ela sabe disso.
— Você não pode dizer o que Alia sabe — disse Irulan amargamente. — Se eu não a conhecesse como Atreides, juraria que ela está determinada a destruir a própria família.
“E como você sabe que ela ainda é Atreides?”, pensou Ghanima, admirando-se com a cegueira de Irulan. Era uma Bene Gesserit, e quem conheceria melhor que elas a história da Abominação? E ela nem mesmo se permitia pensar a respeito disso, quanto mais acreditar. Alia devia ter feito alguma bruxaria com essa pobre mulher.
Ghanima disse:
— Tenho uma dívida de água para com você. Por esse motivo, protegerei sua vida. Mas seu primo está perdido. Não diga mais nada a esse respeito.
Irulan controlou o tremor dos lábios, enxugou os olhos.
— Eu amei seu pai — sussurrou. — Eu nem sabia disso até que ele já estava morto.
— Talvez ele não esteja morto — disse Ghanima. — Esse Pregador...
— Gham! Algumas vezes eu não a entendo. Paul iria atacar a própria família?
Ghanima encolheu os ombros, olhou para o céu que escurecia.
— Ele pode achar divertido tal...
— Como pode falar disso com tanta leviandade?
— Para me afastar das profundezas escuras. Não estou zombando de você. Os deuses sabem que não. Mas sou apenas a filha de meu pai. E sou cada pessoa que contribuiu para a semente dos Atreides. Você não quer pensar em Abominação, mas eu não posso pensar em outra coisa. Sou uma pré-nascida. Sei o que está dentro de mim.
— Aquela velha superstição tola a respeito de...
— Não! — Ghanima estendeu a mão em direção à boca de Irulan. — Eu sou cada Bene Gesserit de seu maldito programa de procriação, até e incluindo minha avó. E sou muito mais. — Arranhou a palma esquerda, tirando sangue com a ponta da unha. — Este é um corpo jovem, mas suas experiências... Oh, deuses, Irulan! Minhas experiências! Não! — Estendeu a mão uma vez mais enquanto Irulan se aproximava. — Conheço todos os futuros que meu pai explorou. Tenho a sabedoria de tantas vidas, e toda a ignorância também... todas as fraquezas. Se quer me ajudar, Irulan, primeiro aprenda quem sou.
Instintivamente, Irulan se curvou e tomou Ghanima em seus braços, abraçando-a fortemente, rosto contra rosto.
“Não deixe que eu tenha de matar esta mulher”, pensou Ghanima. “Não deixe isso acontecer.”
Enquanto esse pensamento passava em sua mente, todo o deserto mergulhou na noite.
Um pequeno pássaro Chamou Com um bico manchado de vermelho. Ele gritou uma vez sobre o Sietch Tabr E tu avançaste na Planície Funerária.
- Lamento por Leto II
Leto acordou com o tilintar dos anéis de água no cabelo de uma mulher.
Olhou para o portal aberto de sua cela e viu que Sabiha estava sentada lá. Com a consciência semi-submersa na especiaria, ele a via delineada por tudo que sua visão lhe revelara a respeito dela. Já passara dois anos da idade em que a maioria das mulheres Fremen estava casada, ou pelo menos noiva. Sua família, portanto, devia estar reservando-a para alguma coisa... ou para alguém. Ela estava em idade de casamento... isso era óbvio. Seus olhos enevoados pela visão percebiam-na como uma criatura vinda do passado terreno da humanidade: cabelo escuro e pele pálida, olhos fundos com uma tonalidade esverdeada no azul total. Tinha nariz pequeno e boca ampla acima de um queixo pontudo. E era um sinal vivo para ele de que o plano das Bene Gesserits era conhecido ou pelo menos se suspeitava dele em Jacurutu. De modo que elas esperavam reviver o Imperialismo Faraonico através dele, não esperavam? Então, qual era seu trunfo para forçá-lo a se casar com a irmã? Certamente, Sabiha não poderia evitar isso.
Seu captores conheciam esse plano, contudo. E como o teriam descoberto?
Não tinham partilhado de sua visão. Não o haviam acompanhado até o lugar onde a vida se tornava uma membrana móvel em outras dimensões. A subjetividade reflexiva e circular das visões que revelaram Sabiha era sua, e só sua.
Outra vez, os anéis de água tilintavam no cabelo de Sabiha e o som produzido perturbou-lhe as visões. Sabia onde estivera e o que havia aprendido. Nada poderia apagar isso. Agora não estava viajando no grande palanquim do Produtor, o tilintar dos anéis de água entre os passageiros como um ritmo para suas canções. Não... Estava ali, numa cela de Jacurutu, envolvido na mais perigosa de todas as jornadas: saindo e voltando do Ahl ar-sunna waljamar, saindo do mundo real dos sentidos e a ele retornando.
Que estaria ela fazendo ali com os anéis de água tilintando em seu cabelo? Oh, sim. Estava preparando mais do caldo com que pensavam mantê-lo cativo: comida misturada com essência de especiaria para mantê-lo meio fora do universo real até que, ou ele morresse-se, ou o plano de sua avó obtivesse êxito. E cada vez que ele pensava que tinha ganho, eles o enviavam de volta. Lady Jessica estava certa, é claro... a velha bruxa!
Mas que coisa para se fazer. A lembrança total de todas aquelas vidas dentro dele não tinha utilidade alguma, até que ele pudesse organizar os dados e recordá-los à vontade. Aquelas vidas tinham sido a matéria-prima da anarquia. Uma ou todas elas podiam tê-lo dominado. A especiaria e esse cenário peculiar em Jacurutu haviam sido uma aposta desesperada.
“Agora, Gurney espera por um sinal que eu me recuso a lhe dar. Quanto tempo vai durar sua paciência ?”
Paciência.
Olhou para Sabiha. Ela jogara o capuz para trás, revelando assim as tatuagens tribais em suas têmporas. Leto não reconheceu as tatuagens, a princípio, então, lembrou-se de onde se encontrava. Sim, Jacurutu ainda vivia.
Não sabia se devia sentir-se grato com relação à avó ou se devia odiá-la.
Ela queria que ele tivesse instintos em nível de consciência. Mas os instintos eram apenas memórias raciais sobre como enfrentar as crises.
Suas memórias diretas de todas aquelas outras vidas lhe revelavam muito mais que isso. Ele tinha tudo aquilo organizado agora, e podia ver o perigo de se revelar a Gurney. Não havia modo de ocultar a revelação de Namri. E Namri era outro problema.
Sabiha entrou na cela com a tigela nas mãos. Ele admirou o modo como a luz exterior criava círculos de arco-íris nas extremidades dos cabelos da moça. Gentilmente, ela ergueu-lhe a cabeça e começou a alimentá-lo com o que havia na tigela. Foi só então que ele percebeu como estava fraco.
Permitiu que ela o alimentasse enquanto sua mente vagueava, relembrando a sessão com Gurney e Namri. Eles acreditavam nele! Namri mais do que Gurney, mas mesmo Gurney não podia negar o que seus sentidos já lhe haviam relatado a respeito desse planeta.
Sabiha enxugou-lhe a boca com a bainha de seu manto.
“Ahh, Sabiha”, ele pensou, relembrando aquela outra visão que lhe enchia o coração de dor. “Muitas noites eu sonhei ao lado de uma extensão de água, ouvindo os ventos soprarem acima. Muitas noites minha carne se encontrou ao lado do ninho da serpente e eu sonhei com Sabiha no calor de um verão. Eu a vi armazenando pão de especiaria assado em folhas de plasteel aquecidas até o rubro. Vi a água clara no qanat, calma e brilhante, mas um vento de tempestade soprou em meu coração. Ela bebe o café e come. Seus dentes brilham nas sombras. Eu a vejo prendendo meus anéis de água em seu cabelo. A fragrância de âmbar no peito dela atinge meus sentidos mais profundos. Ela me atormenta e me oprime por sua própria existência.”
A pressão de suas multimemórias fez explodir o englobamento de tempo congelado ao qual ele tentara resistir. Sentiu corpos se enlaçando, os sons do sexo, ritmos fundindo-se a cada impressão sensorial: lábios, respiração, suspiros úmidos, línguas. Em algum ponto de sua visão se encontravam formas helicoidais, cor de carvão, e ele sentia a batida dessas formas enquanto elas giravam dentro dele. Uma voz suplicou no interior de seu crânio:
— Por favor, por favor, por favor...
Havia um intumescer adulto em seu baixo-ventre e ele sentiu sua boca se abrir, segurando, agarrando-se à forma do êxtase. Então, um suspiro, uma prolongada suavidade decrescente, uma queda.
Oh, como fora doce deixar aquilo acontecer!
Sabiha sussurrou ele. Oh minha Sabiha.
Quando ele mergulhou profundamente no transe, após a refeição, Sabiha pegou a tigela e saiu, parando na porta para falar com Namri.
— Ele chamou meu nome de novo.
— Volte e fique com ele — disse Namri. — Tenho de encontrar Halleck e discutir isso com ele.
Sabiha depositou a tigela ao lado da porta e retornou para a cela.
Sentou-se na beira do catre, olhando para o rosto sombreado de Leto.
Daí a pouco ele abriu os olhos e estendeu a mão, tocando-lhe a face.
Começou a falar com ela, então, contando-lhe a respeito da visão em que ela vivera.
Ela cobriu-lhe a mão com a sua enquanto ele falava. Como ele era terno... como era ter... Ela tombou no catre, amparada pela mão dele, já inconsciente antes que ele retirasse a mão. Leto levantou-se, sentindo as profundezas de sua fraqueza. A especiaria e as visões o haviam esgotado.
Procurou, através de suas células, cada centelha sobressalente de energia, e saiu do catre sem perturbar Sabiha. Tinha de partir, mas sabia que não chegaria muito longe. Lentamente, selou seu traje-destilador, colocou o manto à sua volta e deslizou através da passagem para o poço exterior. Havia algumas pessoas lá fora, ocupadas em seus próprios afazeres. Elas o reconheceram, mas ele não era sua responsabilidade.
Namri e Halleck deviam saber o que ele estava fazendo, Sabiha não podia estar longe.
Ele encontrou o tipo de passagem lateral de que necessitava e caminhou atrevidamente ao longo dela.
Lá atrás, Sabiha dormiu calmamente até que Halleck a acordou.
Ela se sentou, esfregou os olhos, viu o catre vazio, viu seu tio de pé atrás de Halleck, a raiva em seus rostos.
Namri respondeu à expressão no rosto dela.
— Sim, ele se foi.
— Como pôde deixá-lo escapar? — perguntou Halleck, furioso. — Como isso foi possível?
— Ele foi visto caminhando em direção à saída inferior — disse Namri, a voz estranhamente calma.
Sabiha encolheu-se diante deles, lembrando-se.
— Como? — quis saber Halleck.
— Não sei. Não sei.
— É noite e ele está fraco — disse Namri. — Não irá longe.
Halleck virou-se bruscamente para encará-lo.
— Você quer que o garoto morra!
— Isso não me desagradaria. — Novamente, Halleck confrontou Sabiha.
— Diga-me o que aconteceu.
— Ele tocou minha face. E ficou falando a respeito de sua visão... de nós dois juntos. — Olhou para o catre vazio. — Ele me fez dormir. Fez alguma mágica comigo.
Halleck olhou para Namri.
— Poderia estar se escondendo aqui dentro em algum lugar?
— Em parte alguma aqui dentro. Ele será encontrado, será visto, Dirigia-se à saída. Está lá fora.
— Mágica — murmurou Sabiha.
— Não foi mágica — disse Namri. — Ele a hipnotizou. Quase fez isso comigo, lembra-se? Disse que eu era seu amigo.
— Ele está muito fraco — comentou Halleck.
— Somente no corpo — replicou Namri. — Não irá longe, contudo. Desmontei as bombas de calcanhar em seu traje-destilador. Morrerá sem água se não o encontrarmos.
Halleck quase se voltou para golpear Namri, mas se manteve sob rígido controle. Jessica o avisara que Namri poderia ser obrigado a matar o rapaz. Deus! A que ponto haviam chegado. Atreides contra Atreides. Ele disse:
— Seria possível que ele apenas estivesse vagueando sob o transe da especiaria?
— Que diferença isso faz? — perguntou Namri. — Se nos escapar, deve morrer.
— Começaremos a busca à primeira luz do dia — disse Halleck. — Será que ele levou um estojo Fremen?
— Há sempre alguns ao lado do selo da porta. Ele teria sido tolo de não levar um. E de algum modo ele nunca me pareceu tolo.
— Então, mande uma mensagem para nossos amigos. Diga-lhes o que aconteceu.
— Não haverá mensagens esta noite — disse Namri. — Há uma tempestade se aproximando. As tribos estiveram a rastreá-la nos últimos três dias. Estará aqui pela meia-noite. As comunicações já foram interrompidas. Os satélites comunicaram o desligamento deste setor duas horas atrás.
Um profundo suspiro sacudiu Halleck. O garoto morreria, certamente, se a tempestade de areia o apanhasse. Ela comeria a carne de seus ossos e os lixaria até reduzi-los a fragmentos, A morte encenada se tornaria real.
Golpeou a palma aberta com o punho. A tempestade os prenderia ali no sietch. Não poderiam nem mesmo montar uma busca. E a estática da tempestade já isolara o sietch.
— Distrans — disse ele, imaginando que poderiam imprimir uma mensagem na voz de um morcego e enviá-lo com o alarme.
Namri sacudiu a cabeça.
— Morcegos não voam durante uma tempestade. Vamos, homem. São mais sensíveis que nós. Se abrigarão nos penhascos até que ela passe. Melhor esperar que os satélites nos captem novamente. Então poderemos tentar encontrar seus restos.
— Não se ele levou um estojo Fremen e se ocultou na areia — disse Sabiha.
Praguejando em silêncio, Halleck voltou-se e caminhou para o sietch.
A paz exige soluções, mas nunca obtemos soluções exatas, apenas trabalhamos nesse sentido. Uma solução fixa é, por definição, uma solução morta. O problema da paz é que ela tende a punir os erros em vez de recompensar o brilhantismo.
- As Palavras de Meu Pai: um Relato do Muad'Dib segundo a versão de Harq al-Ada
— Ela o está treinando? Está treinando Faradin?
Alia olhou para Duncan Idaho com uma premeditada mistura de raiva e incredulidade. O heighliner da Corporação havia entrado na órbita de Arrakis ao meio-dia local. Uma hora depois, um transporte ligeiro deixara Idaho em Arrakeen, sem ser anunciado, mas sem segredo, informalmente. Em questão de minutos, um tóptero o depositara no topo do Castelo. Avisada de sua chegada iminente, Alia o recebera ali, friamente formal diante de suas guardas, mas agora se encontravam nos alojamentos dela, abaixo da extremidade norte. Ele havia acabado de fazer seu relatório, falando a verdade com precisão e enfatizando cada dado à maneira mentat.
— Ela perdeu o juízo — disse Alia.
Ele tratou dessa declaração como se fosse um problema mentat:
— Todas as indicações apontam que ela permanece bem equilibrada e sã. Eu diria que seu índice de sanidade permanece...
— Pare com isso! — retrucou Alia. — No que ela pode estar pensando?
Idaho, que sabia que seu próprio equilíbrio emocional dependia agora de um recuo para a frieza mentat, disse:
— Eu cômputo que ela está pensando no noivado de sua neta. — Suas feições permaneceram cuidadosamente calmas, mascarando a mágoa profunda que ameaçava engolfá-lo. Não havia Alia alguma ali. Alia estava morta. Por algum tempo, ele mantivera uma Alia mítica ante seus sentidos, alguém que ele criara a partir de seus próprios desejos, mas um mentat só podia manter essa auto-ilusão por tempo limitado. Essa criatura metida num disfarce humano estava possuída, uma psique demoníaca a dominava. Seus olhos de aço, com as miríades de facetas disponíveis à vontade, reproduziam sobre seus centros de visão uma multiplicidade de Alias míticas. Mas quando ele as combinava numa única imagem, o resultado não era Alia. Suas feições moviam-se sob outras exigências. Ela era uma casca dentro da qual se haviam cometido ultrajes.
— Onde está Ghanima? — indagou ele. Ela não deu importância à pergunta:
— Eu a mandei com Irulan para ficar sob a guarda de Stilgar.
“Território neutro”, pensou ele. “Então, houve outra negociação com as tribos rebeladas. Ela está perdendo terreno e não percebe isso... ou será que percebe? Haverá outra razão? Terá Stilgar passado para o lado dela?”
— O noivado — meditou Alia. — Qual é a situação na Casa Corrino?
— Salusa enxameia de parentes, todos bajulando Faradin, na esperança de compartilharem de sua volta ao poder.
— E ela o está treinando no modo Bene Gesserit...
— Não é adequado ao esposo de Ghanima?
Alia sorriu para si mesma, pensando na raiva permanente de Ghanima. Que Faradin fosse treinado. Jessica estava treinando um cadáver.
— Devo refletir sobre isso com calma — ela disse. — Você está muito quieto, Duncan.
— Espero por suas perguntas.
— Percebo. Sabe que fiquei furiosa com você. Levá-la para Faradin!
— Você me ordenou que fizesse a coisa parecer real.
— Fui forçada a redigir um relatório dizendo que os dois haviam sido capturados.
— Obedeci suas ordens.
— Você age de modo tão literal às vezes, Duncan. Quase me assusta. Mas se não tivesse, bem...
— Lady Jessica está fora do caminho — ele disse. — E para o bem de Ghanima, devemos ser gratos de que...
— Extraordinariamente gratos — concordou ela. Mas pensava: “Ele não é mais digno de confiança. Tem aquela maldita lealdade aos Atreides. Devo conseguir uma desculpa para mandá-lo embora... e fazer com que seja eliminado. Um acidente, é claro.”
Tocou-lhe a face.
Idaho forçou-se a responder à carícia, segurando-lhe a mão e a beijando.
— Duncan, Duncan, como isto é triste — ela disse, — mas não posso mantê-lo aqui comigo. Muita coisa está acontecendo e tenho muito poucas pessoas em que possa confiar totalmente.
Ele soltou-lhe a mão e esperou.
— Fui forçada a mandar Ghanima para Tabr. As coisas estão muito agitadas por lá. Atacantes das Terras Partidas romperam os qanats na Bacia de Kagga e derramaram toda a água na areia. Arrakeen sofre escassez de rações. A Bacia está repleta de trutas da areia devorando nossa colheita de água. Estamos cuidando delas, é claro, mas estamos muito enfraquecidos.
Ele já notara quão poucas amazonas da guarda de Alia podiam ser vistas no Castelo. Por isso pensou: “Os Maquis do Deserto Interior continuarão sondando nossas defesas. Será que ela não percebe isso?”
— Tabr ainda é território neutro — disse ela. — As negociações continuam por lá neste momento. Javid está lá com uma delegação dos sacerdotes. Mas eu gostaria que você ficasse em Tabr para vigiá-los, especialmente Irulan.
— Ela é uma Corrino — concordou ele.
Mas notou em seus olhos que ela o estava rejeitando. Como essa criatura-Alia se tornara transparente! Ela acenou com a mão.
— Vá agora, Duncan, antes que eu amoleça e o mantenha aqui a meu lado. Senti tanta falta de você.
— E eu de você — respondeu ele, permitindo que toda a mágoa fluísse em sua voz.
Ela olhou para ele, surpreendida por sua tristeza. Então disse:
— É para o meu bem, Duncan. — E enquanto pensava: “Muito mal, Duncan”, ela acrescentou: — Zia o levará para Tabr. Precisamos que o tóptero volte para cá.
“Sua amazona favorita”, pensou ele. “Devo ter cuidado com ela.”
— Eu compreendo — respondeu, uma vez mais segurando e beijando a mão dela.
Olhou para a adorada carne que uma vez fora a sua Alia. Não conseguiu obrigar-se a olhar para o rosto dela enquanto saía. Alguém mais olhava para ele com aqueles olhos.
Enquanto subia para a plataforma no topo do Castelo, Idaho experimentava um crescente sentimento de questões não-respondidas. O encontro com Alia fora extremamente penoso para sua parte mentat, que continuava lendo indícios de dados. Esperou ao lado do tóptero na companhia de uma das amazonas do palácio, olhando sombriamente para o sul. A imaginação levou sua visão para além da Muralha Escudo, até o Sietch Tabr. “Por que Zia tem de me levar para Tabr? Trazer um tóptero de volta é tarefa servil. Por que esse atraso? Será que Zia está recebendo instruções especiais?”
Idaho olhou para a guarda vigilante e subiu para a posição do piloto dentro da cabina. Inclinando-se para fora, disse:
— Diga a Alia que mandarei o tóptero de volta imediatamente com um dos homens de Stilgar.
Antes que a guarda pudesse protestar, ele fechou a porta e acionou os motores. Podia vê-la de pé, indecisa. Quem questionaria o consorte de Alia? Pôs o tóptero em vôo antes que ela pudesse decidir o que fazer.
Agora, sozinho no tóptero, permitiu que sua mágoa desabafasse em grandes e trêmulos soluços. Alia se fora. Eles se haviam separado para sempre.
Lágrimas fluíram de seus olhos Tleilaxu e ele sussurrou:
— Deixem todas as águas de Duna fluir para as areias. Elas não igualarão as minhas.
Isso fora um excesso não-mentat, contudo, e ele o reconheceu como tal, forçando-se a sua sóbria avaliação das necessidades do momento. O tóptero exigia sua atenção. E as reações necessárias à pilotagem trouxeram-lhe algum alivio, fazendo-o sentir-se uma vez mais controlado.
“Ghanima novamente com Stilgar. E Irulan.”
Por que Zia fora designada para acompanhá-lo? Transformou a pergunta num problema mentat e a resposta o arrepiou: “Eu devia sofrer um acidente fatal.”
Este santuário do crânio de um governante não aceita preces. Ele se tornou o túmulo das lamentações. Somente o vento, ouve a voz deste lugar. Os gritos das criaturas da noite e a maravilha mutável das duas luas, todos dizem que seu dia terminou.
Suplicantes não chegam mais. Os convivas partiram do banquete. Como é árido o caminho que desce desta montanha.
- Inscrições no Santuário de um Duque Atreides Anônimo
A coisa tinha uma aparência de ilusória simplicidade para Leto: evitar a visão, fazer aquilo que não fora visto. Conhecia a armadilha em seu pensamento, o modo como os fios ocasionais de um futuro fechado se enrolavam até prenderem a pessoa rapidamente, mas tinha um novo domínio sobre aqueles fios. Em parte alguma, vira a si mesmo fugindo de Jacurutu.
O fio que levava a Sabiha devia ser cortado primeiro.
Agachava-se agora, à última luz do dia, na extremidade ocidental da rocha que protegia Jacurutu. Seu estojo Fremen fornecera-lhe tabletes energéticos e comida, e agora esperava que lhe retornassem as forças. A oeste se encontrava o lago Azrak, a planície de gipsita onde um dia houvera água a céu aberto, nos tempos anteriores aos vermes. Fora de visão, a leste, estava Bene Sherk, um grupo de novos povoados que invadiam o bled aberto. Ao sul ficava Tanzerouft, a Terra do Terror: 3.800 quilômetros de vastidão, interrompida apenas pelas manchas verdes das dunas aprisionadas pelo capim e por armadilhas de vento destinadas a fornecer água - o trabalho de transformação ecológica que refazia a paisagem de Arrakes. Eram mantidas por equipes enviadas por via aérea, nenhuma das quais nelas permanecia por muito tempo.
“Eu irei para o sul”, pensou ele. “Gurney vai esperar que eu faça exatamente isso.” Mas esse não era o momento para realizar o totalmente inesperado.
Logo estaria escuro e ele poderia abandonar seu esconderijo temporário.
Olhou para a linha do horizonte, ao sul. Havia uma tira de céu pardo ao longo daquele horizonte, rolando como fumaça, ondulando como uma linha flamejante de poeira, uma tempestade. Observou o centro elevado da tormenta erguendo-se da Grande Planície como um verme sondando. Durante um minuto inteiro, ficou olhando esse centro, percebendo que ele não se deslocava para a direita ou para a esquerda. Um velho ditado Fremen saltou em sua mente: “Quando o centro não se move, você está no seu caminho.”
A tempestade mudava tudo.
Por um momento, olhou de volta na direção oeste, a direção do Tabr, sentindo a enganadora paz cinza-bronze de um entardecer no deserto, vendo a planície de gesso circundada de rochas arredondadas pelos ventos, um vazio desolado, com sua superfície irreal de branco brilhante a refletir as nuvens de poeira. Em parte alguma de sua visão ele tinha visto a si mesmo sobrevivendo à serpente cinzenta de uma grande tempestade, ou se enterrando profundamente na areia para sobreviver. Havia apenas aquela visão de rolar no vento... mas isso poderia vir depois.
Mas uma tempestade estava lá, serpenteando através de muitos graus de latitude, chicoteando esse mundo para submetê-lo. Podia ser enfrentada.
Havia velhas histórias, sempre contadas entre amigos, de que se poderia prender na superfície um verme esgotado, encaixando-se um gancho de Produtor debaixo de um de seus largos anéis e, tendo-o imobilizado, passar a tempestade à sombra de seu lado oposto ao vento. Havia uma linha divisória entre a audácia e a imprudência que o tentava com relação a essa idéia. Aquela tempestade não chegaria antes da meia-noite, na pior das hipóteses. Havia tempo. Quantas linhas de tempo não podiam ser cortadas ali? Todas, incluindo a derradeira?
“Gurney deve esperar que eu vá para o sul, mas não ao encontro de uma tempestade.”
Olhou para o sul, buscando uma trilha, e viu o rabisco fluido, cor de ébano, de uma garganta profunda curvando-se através da rocha de Jacurutu.
Viu areia ondulando para dentro das profundezas da garganta, areia quimera. Era como um riacho lançando-se para dentro da planície, como se fosse água e não areia. O sabor arenoso da sede tocou-lhe a boca enquanto ele colocava o estojo Fremen sobre os ombros e descia a trilha que conduzia ao canyon. Ainda restava luz suficiente para que pudesse ver, mas sabia que estava jogando com o tempo.
Quando chegou à borda do canyon, o rápido anoitecer do deserto caiu sobre ele. Ficou apenas o brilho do luar para iluminar seu caminho em direção a Tanzerouft. Sentiu seu coração acelerar-se com todos os temores que suas ricas memórias proporcionavam. Sentia poder estar indo ao encontro da Huanuinaa, como os temores Fremen rotulavam as maiores tempestades: o Alambique Mortal da Terra. Mas o que quer que viesse viria sem visões.
Cada um de seus passos deixava mais para trás a dhyana induzida pela especiaria, aquela crescente consciência de sua natureza intuitivo-criativa, com seus desdobramentos no sentido da corrente imóvel da casualidade. A cada 100 passos que ele dava agora, devia dar pelo menos um passo para o lado, além das palavras e em comunhão com sua nova realidade interior, recentemente compreendida.
“De um modo ou de outro, pai, estou indo a seu encontro.”
Havia pássaros invisíveis nas rochas à sua volta, fazendo-se presentes apenas com seus guinchos. Com a sabedoria Fremen, ele escutou seus ecos para lhe guiar o caminho onde não podia ver. Frequentemente, ao passar por fendas, observava os malignos olhos verdes de criaturas agachadas em esconderijos, pois sabiam que uma tempestade se aproximava.
Saiu da garganta para o deserto. A areia era uma coisa viva que parecia se mover e respirar abaixo dele, revelando-lhe movimentos profundos e fumarolas latentes. Olhou de volta, em direção às coberturas de lava tocadas pelo luar dos montes de Jacurutu. Aquela estrutura toda era metamórfica, formada principalmente por pressão. Arrakis ainda tinha alguma coisa a dizer quanto a seu próprio futuro. Leto plantou um batedor para chamar um verme e, enquanto começava a bater na areia, tomou posição para ouvir e observar. Inconscientemente, sua mão direita estendeu-se para o anel do falcão Atreides, escondido numa dobra amarrada de seu dirshsasha. Gurney o havia encontrado, mas o deixara no lugar. Em que teria pensado ao encontrar o anel de Paul?
“Pai, espere-me em breve.”
O verme veio do sul, desviando-se para evitar as rochas. Não era tão grande quanto ele esperara, mas isso não podia ser remediado. Avaliou seu movimento e plantou os ganchos, subindo pelo lado escamoso numa rápida carreira, enquanto a criatura passava sobre o batedor lançando um jato de poeira. O verme voltou-se, obediente sob a pressão de seus ganchos, e o vento de sua velocidade começou a lhe chicotear o manto. Leto curvou-se, olhando as estrelas do sul, pálidas através da poeira, e apontou o verme naquela direção.
“Direto para a tempestade.”
Enquanto a Primeira Lua se elevava, Leto mediu a altura da tempestade e fez uma estimativa quanto à sua chegada. Não antes do raiar do dia.
Estava se espalhando, reunindo mais energia para um grande salto. Haveria muito trabalho para as equipes de transformação ecológica. Era como se ali o planeta as combatesse com uma fúria consciente, que aumentava na medida em que a transformação reclamava mais terras.
Durante toda a noite ele pressionou o verme para o sul, sentindo-lhe as reservas de energia nos movimentos transmitidos através de seus pés.
Ocasionalmente, deixava a criatura desviar-se para oeste, o que ela persistia em fazer, seguindo as fronteiras invisíveis de seu território ou movida por uma profunda consciência da tempestade que se aproximava.
Os vermes costumavam enterrar-se para escapar ao impacto da areia carregada pelos ventos, mas esse não afundaria sob o deserto enquanto os ganchos de Produtor mantivessem aberto ao menos um de seus anéis.
À meia-noite, o verme mostrava muitos sinais de exaustão. Leto moveu-se para trás, ao longo de sua garupa, permitindo que ele reduzisse a velocidade, mas mantendo o impulso rumo ao sul.
A tempestade chegou logo após o raiar do dia. Primeiro houve a imobilidade da aurora no deserto, pressionando as dunas umas sobre as outras. Depois, a poeira avançando fez com que ele fechasse a máscara facial. Na poeira cada vez mais espessa, o deserto tornava-se uma imagem cinzenta, sem contornos. Então, agulhas de areia começaram a lhe ferir as faces, picando-lhe as pálpebras. Sentiu os grãos grossos em sua língua e percebeu que havia chegado o momento de decisão. Devia arriscar-se a testar as velhas histórias, imobilizando o verme quase exaurido? Levou apenas o tempo de uma batida de coração para afastar essa hipótese, caminhando para a cauda do verme e afrouxando-lhe os ganchos. Quase sem se mover agora, o verme começou a se enterrar. Mas os excessos do sistema de transferência de calor da criatura ainda agitavam um forno ciclônico em sua traseira, dentro da tempestade que aumentava rapidamente. As crianças Fremen aprendiam os perigos dessa posição, próximo à cauda de um verme, em suas primeiras histórias infantis. Os vermes eram fábricas de oxigênio e o fogo queimava selvagemente à sua passagem, alimentado pela abundante exalação das adaptações químicas à fricção que produziam.
A areia começou a chicotear junto de seus pés. Leto soltou os ganchos e saltou para longe, a fim de evitar a fornalha da cauda do verme. Tudo dependia agora de entrar embaixo da areia no lugar onde o verme a deixara fofa.
Agarrando a ferramenta de compactação estática com a mão esquerda, enterrou-se na face escorregadia de uma duna, sabendo que o verme devia estar muito cansado para se virar e engoli-lo com sua enorme boca branco-alaranjada.
Enquanto escavava com a mão esquerda, a direita retirava a tenda destiladora do estojo Fremen e a preparava para ser inflada. Estava feito em menos de um minuto: colocara a tenda num bolsão de areia de paredes rígidas, a sotavento da duna. Inflou a tenda e se arrastou para dentro dela. Antes de fechar o esfíncter, estendeu a mão com a ferramenta de compactação em ação reversa. A face escorregadia da duna deslizou sobre a tenda, mas apenas alguns grãos penetraram enquanto ele fechava a abertura.
Agora, tinha de trabalhar ainda mais rapidamente. Nenhum snorkel de areia poderia estender-se lá fora a fim de lhe fornecer o ar para a respiração.
Essa era uma grande tempestade, do tipo a que poucos sobreviviam. Iria cobrir esse lugar com toneladas de areia. Somente a bolha macia da tendadestiladora, com sua concha exterior compactada, poderia protegê-lo.
Leto deitou-se de costas, esticado, colocou as mãos sobre o peito e induziu-se ao transe dormente, no qual seus pulmões fariam apenas um movimento a cada hora. Nisso, entregou-se ao desconhecido. A tempestade iria passar e, se ela não expusesse seu frágil bolsão, ele poderia emergir... ou então entrar no Madinat Assalan, o Domicílio da Paz. O que quer que acontecesse, sabia que havia rompido as linhas, uma por uma, deixando apenas o Caminho Dourado. Seria isso ou não retornaria ao califado dos herdeiros de seu pai. Não mais viveria a mentira daquele Despoyni, o terrível califado que celebrava o demiurgo de seu pai. Não mais se manteria em silêncio enquanto um sacerdote declamava tolices ofensivas: “Sua faca cristalina dissolverá os demônios.”
Com essa decisão, a consciência de Leto escorregou para a teia intemporal do dão.
Existem óbvias influências de ordem mais elevada em qualquer sistema planetário. Isso é frequentemente demonstrado pela introdução da vida deforma terrena em planetas recentemente descobertos. Em todos os casos, a vida, em áreas similares, desenvolve formas de adaptação extraordinariamente similares. Isso significa muito mais do que forma, indica uma organização para a sobrevivência e o relacionamento entre tais organizações. A busca, porparte dos homens, dessa ordem inter-dependente e de nosso nicho dentro dela representa uma necessidade profunda. Essa busca pode, contudo, degenerar no domínio conservador da uniformidade. Isso sempre se revelou mortífero para todo o sistema.
- A Catástrofe de Duna segundo Harq al-Ada
— Meu filho não via verdadeiramente o futuro, via o processo de criação e seu relacionamento com os mitos sobre os quais dormem os homens — disse Jessica.
Falava depressa, mas sem dar a impressão de estar apressando o assunto.
Sabia que os observadores ocultos encontrariam um meio de interrompê-la assim que percebessem o que estava fazendo.
Faradin estava sentado no chão, delineado por um raio de luz do sol da tarde que penetrava, inclinado, através da janela atrás dele. Jessica podia ver apenas o topo de uma árvore no jardim do pátio quando olhava para o lado oposto à sua posição, em pé diante da parede em frente a ele.
Era um novo Faradin que ela via: mais esguio, mais vigoroso. Os meses de treinamento haviam produzido nele sua mágica inevitável. Seus olhos brilhavam quando ele a fitava.
— Ele viu as formas que as forças existentes iriam criar, a menos que fossem desviadas — disse Jessica. — Para não se voltar contra seus companheiros, voltou-se contra si próprio. Recusou-se a aceitar aquilo que o confortava porque isso significaria covardia moral.
Faradin havia aprendido a escutar em silêncio, testando, sondando, guardando suas perguntas até que estivessem bem afiadas. Ela estivera falando sobre a visão Bene Gesserit da memória molecular expressa como ritual e então, muito naturalmente, se desviara para o modo pelo qual a Irmandade analisava Paul Muad'Dib. No entanto, Faradin percebia um jogo de sombras em suas palavras e ações, uma projeção de formas inconscientes de variação junto com a intenção superficial de suas declarações.
— De todas as nossas observações, esta é a mais crucial — dizia ela agora. — A vida é uma máscara através da qual o universo se expressa. Nós aceitamos que toda a humanidade, com as formas de vida que a sustentam, representa uma “comunidade natural”, e que o destino de toda vida está em jogo no destino do indivíduo. Assim, quando chegamos ao derradeiro auto-exame, o amor-fati, paramos de brincar de deus e revertemos ao ensinamento. No final, selecionamos os indivíduos e os colocamos tão livres quanto formos capazes.
Ele percebia agora para onde ela se estava dirigindo e, conhecendo o efeito que isso teria sobre os que vigiavam, conteve o impulso de lançar um olhar de apreensão em direção à porta. Somente um olho treinado teria notado esse desequilíbrio momentâneo, mas Jessica o viu e sorriu. Um sorriso, afinal, podia significar qualquer coisa.
— Esta é uma espécie de cerimônia de graduação — ela disse. — Estou muito satisfeita com você, Faradin. Quer se levantar, por favor?
Ele obedeceu, bloqueando-lhe a visão do topo da árvore através da janela.
Jessica manteve os braços rígidos nos lados do corpo e disse:
— Estou encarregada de lhe dizer isto agora: eu me coloco na sagrada presença humana. Como o faço agora, assim você se colocará um dia. Oro em sua presença para que assim seja. O futuro permanece incerto e assim deve ser, pois ele é a tela em que pintamos nossos desejos. Desse modo, a condição humana encara sempre um lindo quadro em branco. Temos apenas este momento para nos dedicarmos continuamente à sagrada presença que compartilhamos e criamos...
Enquanto Jessica terminava de falar, Tvekanik entrou pela porta à esquerda, caminhando com pretensa calma, na face a carranca habitual.
— Meu Senhor — ele disse.
Mas já era muito tarde. As palavras de Jessica e todos os preparativos realizados anteriormente haviam feito seu trabalho. Faradin não era mais um Corrino. Ele agora era Bene Gesserit.
O que vocês da diretoria da CHOAM parecem incapazes de compreender é que no comércio raramente se encontra a verdadeira lealdade. Qual foi a última vez que ouviram dizer que um escrevente deu a vida por sua companhia? Talvez sua deficiência resida no falso presuposto de que podem obrigar homens a pensar e cooperar. Essa tem sido a falha de todos, da religião aos estados-maiores, através da história. Os estados-maiores possuem um longo registro de destruição de suas próprias nações. Quanto à religião, recomendo uma lleitura de Tomás de Aquino. E quanto a vocês da CHOAM, em que tolices acreditam! Os homens devem deixar fazer coisas a partir de seus próprios impulsos interiores. São as pessoas, e não as organizações comerciais ou as cadeias de comando, que fazem as grandes civilizações funcionarem. Cada civilização depende da qualidade dos indivíduos que produz. Se vocês super-organizam os seres humanos, super-legalizam, suprimem seu impulso de grandeza, eles não podem agir e sua civilização desmorona.
- Uma carta à CHOAM Atribuída ao Pregador
Leto saiu do transe numa transição tão suave que não definia uma condição como distinta da outra. Um nível de consciência simplesmente se transformara em outro.
Sabia onde se encontrava. Uma restauração de energia fluiu através dele, mas Leto sentiu outra mensagem no ar viciado, esgotado de oxigênio, dentro da tenda-destiladora. Caso se recusasse a se mover, sabia que continuaria preso a essa teia intemporal, o eterno agora em que todos os eventos coexistiam. A perspectiva o atraía. Via o Tempo como uma convenção moldada pela mente coletiva de todos os seres sensíveis. Tempo e Espaço eram categorias impostas ao universo por sua Mente. Só tinha de se livrar da multiplicidade para onde as visões prescientes o atraíam.
Uma escolha ousada mudaria os futuros provisórios. Que ousadia exigia esse momento?
O estado de transe o atraía. Leto sentia ter saído do alam al-mythal para o universo da realidade apenas para achá-los idênticos. Desejava manter a mágica dessa revelação, mas a sobrevivência exigia que tomasse decisões. Seu incansável gosto pela vida enviou os sinais ao longo de seus nervos.
De repente, estendeu a mão para o lugar onde deixara a ferramenta de compactação de areia. Agarrou-a, rolou sobre seu estômago e abriu o esfíncter da tenda. Um punhado de areia escorregou sobre suas mãos.
Trabalhando na escuridão, estimulado pelo ar viciado, agiu com rapidez, escavando um túnel ascendente num ângulo íngreme. Subiu seis vezes o comprimento de seu corpo antes de sair para a escuridão da noite e o ar livre.
Deslizou para baixo, na face iluminada pelo luar de uma longa duna curva, e se encontrou a um terço do caminho que levava ao topo da duna.
A Segunda Lua encontrava-se acima dele. Movia-se rapidamente, ocultando-se por trás da duna, e as estrelas se estenderam por sobre ele como pedregulhos brilhantes ao lado de um caminho. Leto procurou a constelação do Caminhante, encontrou-a e deixou seu olhar percorrer o braço estendido até a luz brilhante da Foum al-Hout, a estrela polar do sul.
“Eis aí seu maldito universo!”, pensou. Visto de perto, era um lugar de movimento, com toda a areia à sua volta, um lugar de mudança, de singularidade sobre singularidade. Visto a grande distância, somente as configurações se revelavam, e estas poderiam tentar uma pessoa a crer em absolutos.
“Crendo em absolutos, podemos perder nosso rumo.” Isso o fez lembrar-se de uma advertência contida numa antiga canção Fremen: “Quem perde o rumo em Tanzerouft perde a vida.” As configurações poderiam guiá-lo ou prendê-lo numa armadilha. Era preciso lembrar que as configurações mudam.
Respirou fundo e se colocou em movimento. Mergulhando de volta ao longo da passagem que abrira, esvaziou a tenda, puxou-a de volta e reembrulhou o estojo Fremen.
Um brilho cor de vinho começou a se desenvolver ao longo do horizonte leste. Leto colocou a mochila sobre os ombros e subiu a crista da duna, ficando lá a sentir o ar frio anterior à aurora, até que o sol nascente lhe aquecesse o rosto. Em seguida, pintou uma nódoa escura em torno das órbitas para reduzir o reflexo da luz, sabendo que deveria cortejar o deserto, em vez de combatê-lo. Quando colocou a tintura de volta no estojo e sugou a água de um dos tubos de recolhimento, conseguiu apenas um punhado de gotas, depois ar.
Sentando-se na areia, começou a examinar o traje-destilador até chegar, afinal, às bombas de calcanhar. Tinham sido cortadas habilmente com uma faca-agulha. Retirou o traje-destilador e o consertou, mas o dano já fora feito. Pelo menos metade da água de seu corpo se perdera. Não fosse pelo que a tenda recuperara... Meditou sobre isso enquanto recolocava o traje, pensando em como era estranho que não o tivesse antecipado. Ali estava um dos perigos óbvios de um futuro sem visões.
Agachou-se no topo da duna, então, deixando que a solidão desse lugar o absorvesse. Deixou o olhar vaguear, observando a areia em busca de algum orifício assoviante, qualquer irregularidade nas dunas que pudesse indicar especiaria ou atividade de verme. Mas a tempestade cobrira a terra com uniformidade. Daí a pouco, removeu um batedor de seu estojo, armou-o e o fez girar para convocar o Shai-Hulud de suas profundezas. Em seguida, afastou-se para esperar.
O verme levou um bom tempo para chegar. Leto o ouviu antes que o visse, voltando-se para leste, onde aquele sussurro de terra sacudida fazia o ar tremer, e esperou pelo primeiro vislumbre alaranjado de uma boca elevando-se da areia. O verme ergueu-se das profundezas numa gigantesca cascata de areia que lhe obscureceu os flancos. Passou por Leto como uma grande parede curva, cinzenta, e ele plantou-lhe os ganchos, subindo facilmente para o dorso. Desviou o verme para o sul numa grande trilha curva, ainda enquanto subia.
Sob o estímulo de seus ganchos, o verme ganhou velocidade. O vento chicoteou o manto a seu redor. Sentia-se tão estimulado como o verme, uma intensa corrente de criação em suas entranhas. Cada planeta tinha seu próprio tempo, e assim era com cada vida, relembrou-se.
Esse verme era do tipo que os Fremen chamavam de “rosnador”.
Frequentemente enterrava suas placas frontais enquanto a cauda se mantinha a impulsioná-lo. Isso produzia sons estrondantes e fazia com que parte de seu corpo se erguesse numa corcova. Mas era um verme rápido e, quando apanhavam um vento na mesma direção em que seguiam, a exalação quente da cauda lançava uma brisa morna sobre Leto. Um vento cheio de odores acres, carregado de oxigênio.
Enquanto o verme acelerava para o sul, Leto permitia que sua mente corresse livre. Tentava pensar nessa passagem como uma nova cerimônia em sua vida, uma cerimônia que lhe evitava pensar no preço que teria de pagar por seu Caminho Dourado. Como os antigos Fremen, sabia que teria de adotar muitos ritos para evitar que sua personalidade se dividisse em suas memórias constituintes, para manter afastados os caçadores famintos de sua alma. Imagens contraditórias, nunca unificadas, deviam agora ser enraizadas numa tensão vital, uma força polarizadora que o impulsionasse a partir de dentro.
“Sempre a novidade”, pensou. “Devo encontrar sempre novas linhas fora de minha visão.”
No cair da tarde, sua atenção foi captada por uma protuberância à sua frente, ligeiramente à direita do curso que seguia. Lentamente, a protuberância tornou-se um monte isolado e íngreme, uma rocha erguendo-se precisamente no lugar onde esperava que se erguesse.
“Agora, Namri... Agora, Sabiha. Vamos ver como seus irmãos recebem a minha presença.” Essa era a linha mais delicada à sua frente, mais perigosa por suas tentações que por suas ameaças.
O monte passou longo tempo mudando de dimensões. E pareceu às vezes que se aproximava dele, em vez de ser ele a se aproximar.
O verme, cansado agora, insistia em se desviar para a esquerda. Leto escorregou ao longo da imensa curva para plantar seus ganchos de novo e manter o gigante em curso retilíneo. Um suave cheiro de melange chegou às suas narinas, sinal de um rico veio. Passaram pelas manchas leprosas de areia violeta, onde um estouro de especiaria fizera sua erupção, e ele manteve o verme firme em seu curso até ultrapassarem o veio. A brisa, perfumada pelo cheiro de canela, os perseguiu por algum tempo, até que Leto forçou o verme a tomar novo curso, seguindo diretamente para a rocha elevada.
De repente, cores cintilaram bem longe, ao sul, bled adentro: o descuidado lampejo de arco-íris de um artefato feito pelo homem no meio daquela imensidão. Leto ergueu seu binóculo, focalizando as lentes de óleo, e viu na distância as asas inclinadas de um rastreador de especiaria brilhando à luz do sol.
Abaixo dele, uma grande colhedora soltava suas asas, qual crisálida, antes de se mover lentamente. Quando abaixou o binóculo, a colhedora se transformou num ponto e ele se sentiu dominado pela hadhdbab, a imensa onipresença do deserto. Isso lhe revelava como aqueles caçadores de especiaria deviam vê-lo, um ponto negro entre o céu e o deserto, o símbolo Fremen para o “homem”. Eles o tinham visto, é claro, e deveriam estar cautelosos. Iam esperar. Os Fremen eram sempre desconfiados ao encontrar alguém no deserto, até reconhecerem o recém-chegado ou verificarem com certeza que ele não representava ameaça. Mesmo dentro da patina da civilização imperial e suas sofisticadas regras, ainda permaneciam selvagens semidomados, sempre conscientes de que uma faca cristalina se dissolvia na morte de seu dono.
“Isso é o que pode salvar-nos”, pensou ele. “Essa rebeldia selvagem.”
Na distância, o rastreador inclinou-se à esquerda, depois à direita, num sinal para o solo. Imaginou seus ocupantes observando o deserto atrás dele, em busca de um indício de que ele pudesse ser mais que um único cavaleiro num só verme.
Leto fez o verme rolar para a esquerda, manteve-o na curva até que tivesse revertido seu curso, escorregou pelo flanco e saltou longe. O verme, livre de seu controle, parou na superfície para respirar um pouco e então afundou um terço da parte dianteira de seu corpo, ficando imóvel, recuperando-se. Sinal seguro de que fora cavalgado durante muito tempo.
Leto afastou-se do verme, que agora ficaria ali. O rastreador circulava acima do trator-colhedora, ainda fazendo sinais com as asas. Eram renegados pagos pelos contrabandistas, com certeza, cautelosos quanto a comunicações eletrônicas. Esses caçadores deviam estar atrás de especiaria. Essa era a mensagem transmitida pela presença do trator.
O rastreador circulou uma vez mais, inclinou as asas e saiu do círculo, dirigindo-se diretamente para Leto. Ele reconheceu a máquina como um modelo de tóptero ligeiro, que seu avô havia introduzido em Arrakis. A aeronave circulou uma vez acima dele, passou por sobre a duna onde se encontrava e mergulhou para pousar contra a brisa. Desceu a 10 metros dele, escorregando em meio à poeira levantada. A porta do lado voltado para ele se abriu o suficiente para que dela saísse uma única figura em pesado manto Fremen com o símbolo da lança sobre o lado direito do peito.
O Fremen aproximou-se lentamente, dando a cada um dos dois tempo suficiente para observar o outro. O homem era alto, com o azul total da especiaria nos olhos. A máscara do traje-destilador ocultava a metade inferior de sua face e o capuz fora puxado para proteger a testa. O movimento do manto revelava uma mão debaixo dele, segurando uma pistola maula.
O homem parou a dois passos de Leto e olhou para ele com um franzir intrigado da pele em torno dos olhos.
— Boa sorte para nós todos — disse Leto.
O homem olhou ao redor, perscrutando a vastidão vazia, e então voltou sua atenção para Leto.
— O que é você, criança? — perguntou ele, a voz abafada pela máscara. — Está tentando servir de rolha para um buraco de verme?
Novamente, Leto usou a fórmula Fremen tradicional:
— O deserto é meu lar.
— Henn? — quis saber o homem. — “Para que lado vai?”
— Eu viajo para o sul de Jacurutu.
Uma risada abrupta partiu do homem.
— Bem, Batigh! Você é a coisa mais estranha que jamais vi em Tanzerouft.
— Não sou seu Pequeno Melão — disse Leto, respondendo ao termo Batigh. Esse era um título com sentido lúgubre. O Pequeno Melão da orla do deserto proporcionava água a qualquer um que o encontrasse.
— Não vamos bebê-lo, Batigh — disse o homem. — Sou Muriz, o arifa deste taif. — E indicou o distante trator de especiaria com um movimento da cabeça.
Leto notou que o homem se intitulava o juiz de seu grupo e se referia aos outros como taif, um bando ou companhia. Não eram ichwan, não eram um grupo de irmãos. Renegados pagos, sem dúvida. Aqui se encontrava o fio de que necessitava.
Quando Leto continuou em silêncio, Muriz indagou:
— Você tem um nome?
— Batigh servirá.
Uma risadinha estremeceu Muriz.
— Ainda não me contou o que faz aqui.
— Sigo as pegadas de um verme — respondeu Leto, usando a frase religiosa que dizia que ele se encontrava num hajj por sua própria umma, sua revelação pessoal.
— Uma pessoa tão jovem? — indagou Muriz. Ele sacudiu a cabeça. — Não sei o que fazer com você. Você nos viu.
— E o que foi que eu vi? — perguntou Leto. — Falo de Jacurutu e você não me dá resposta.
— Um jogo de charadas — disse Muriz. — O que é aquilo, então? — E indicou a elevação distante.
Leto falou guiado por sua visão:
— Apenas Shuloch.
Muriz se enrijeceu e Leto sentiu o próprio pulso acelerar-se.
Um longo silêncio se seguiu, e Leto podia notar que o homem estava examinando e descartando várias respostas. “Shuloch!” Na hora calma das histórias, após uma refeição no sietch, as histórias sobre Shuloch eram frequentemente repetidas. Os ouvintes sempre presumiam que Shuloch era um mito, um lugar para coisas interessantes acontecerem, somente em benefício da história. Leto lembrava-se de uma dessas histórias a respeito de Shuloch: um rapaz era encontrado na orla do deserto e trazido para um sietch. A principio, recusava-se a responder às perguntas de seus salvadores, e depois, quando falou, ninguém conseguiu compreender suas palavras. À medida que os dias se passavam, ele continuava a não cooperar, recusando-se a se vestir ou fazer qualquer outra coisa. E cada vez que era deixado sozinho fazia estranhos movimentos com as mãos. Todos os especialistas do sietch foram chamados para estudá-lo, mas não chegaram a resposta alguma. Então, uma mulher muito velha passou pela porta, viu as mãos se movendo e riu.
— Ele apenas imita o pai, que enrola fibras de especiaria para fazer cordas — explicou. — É desse modo que eles ainda fazem em Shuloch. Só está tentando sentir-se menos solitário. — E a moral da história: “Nos velhos costumes de Shuloch, existe segurança e um sentimento de pertencer ao fio dourado da vida.”
Como Muriz permanecesse em silêncio, Leto disse:
— Sou o rapaz de Shuloch que só sabe mover as mãos.
No rápido movimento da cabeça do homem, Leto percebeu que Muriz conhecia a história. Ele respondeu lentamente, com a voz baixa e carregada de ameaça.
— Você é humano?
— Tanto quanto você — respondeu Leto.
— Você fala de modo muito estranho para uma criança. Quero lembrá-lo de que sou um juiz que pode responder ao tagwa.
“Ah, sim”, pensou Leto. Na boca de tal juiz, o tagwa significava uma ameaça imediata. Tagwa era o temor acarretado pela presença de um demônio, uma crença muito real entre os Fremen mais velhos. O arifa conhecia os modos de se matar um demônio e era sempre o escolhido, “pois possui a sabedoria para ser implacável sem ser cruel, para saber quando a bondade é de fato um caminho para uma crueldade maior.”
Mas isso tinha de chegar ao ponto que Leto buscava, e ele disse:
— Posso me submeter ao Mashhad.
— Eu serei o juiz de qualquer teste espiritual — respondeu Muriz. — Você aceita isso?
— Bi-lal taifa — disse Leto. “Sem restrição.”
Uma expressão maliciosa surgiu no rosto de Muriz. Ele disse:
— Não sei por que permito isso. Melhor seria matá-lo aqui mesmo, mas você é um pequeno Batigh e eu tive um filho que morreu. Vamos, nós iremos para Shuloch e eu reunirei o Isnad para tomar uma decisão a seu respeito.
Leto, notando como cada maneirismo do homem traía uma decisão mortífera, imaginou como alguém seria enganado desse modo. Ele disse:
— Sei que Shuloch é o Ahl as-runna wal famas.
— O que uma criança conhece do mundo real? — perguntou Muriz, indicando a Leto que caminhasse na frente rumo ao ornitóptero.
Leto obedeceu, mas escutou cuidadosamente o som dos passos do Fremen.
— O modo mais seguro de se manter um segredo é fazer com que as pessoas acreditem que já conhecem a resposta — disse Leto. — Nesse caso, elas não fazem perguntas. Foi muito hábil da parte de vocês, que foram banidos de Jacurutu. Quem acreditaria que Shuloch, o lugar mítico das histórias, existe realmente? E como é conveniente para os contrabandistas ou para alguém mais que deseje ter acesso a Duna.
Os passos de Muriz pararam. Leto virou as costas para o lado do tóptero, com a asa à sua esquerda.
Muriz encontrava-se a meio passo de distância, com sua pistola maula apontada diretamente para Leto.
— Então, você não é uma criança — ele disse. — Um maldito anão vem nos espionar! Pensei que você falava muito sabiamente para uma criança, mas você falou cedo demais.
— Não o suficiente — disse Leto. — Sou Leto, o filho de Paul Muad'Dib. Se me matar, você e a sua gente afundarão na areia. Se me poupar, eu os conduzirei à grandeza.
— Não tente suas manobras comigo, anão — retrucou Muriz. — Leto se encontra no verdadeiro Jacurutu, de onde você diz que...
Não terminou a frase. A mão com a arma se abaixara ligeiramente, enquanto uma expressão intrigada fazia suas pálpebras se comprimirem.
Era a hesitação pela qual Leto esperara. Ele fez cada indicação muscular de um movimento para a esquerda, o qual, desviando seu corpo não mais que um milímetro, lançou a arma do Fremen girando loucamente contra a ponta da asa. A pistola maula foi arrancada da mão de Muriz e, antes que ele pudesse recuperar-se, Leto estava atrás dele, com a faca do próprio Muriz pressionando as costas do homem.
— A ponta está envenenada — disse Leto. — Diga ao seu amigo no tóptero que deve permanecer exatamente onde está, sem se mexer. De outro modo, serei forçado a matá-lo.
Muriz, esfregando a mão ferida, sacudiu a cabeça para a figura dentro do tóptero e disse:
— Meu companheiro Behaleth o ouviu. Ficará imóvel como uma rocha.
Sabendo que tinha muito pouco tempo antes que os dois homens elaborassem um plano de ação ou que seus amigos viessem investigar, Leto falou rapidamente:
— Você precisa de mim, Muriz. Sem mim, os vermes e sua especiaria desaparecerão de Duna.
Sentiu o Fremen ficar rígido.
— Mas como você sabe a respeito de Shuloch? — perguntou Muriz. — Sei que eles não falaram nada em Jacurutu.
— Assim, admite que sou Leto Atreides?
— Quem mais poderia ser? Mas como você?
— Porque você está aqui — respondeu Leto. — Shuloch existe, portanto, o resto é completamente simples. Vocês são os Banidos que escaparam quando Jacurutu foi destruído. Eu os vi sinalizando com as asas, o que significa que não usam engenhos que possam ser ouvidos a distância. Vocês colhem especiaria, portanto comerciam. Só poderiam comerciar com os contrabandistas. Você é um contrabandista e no entanto é um Fremen. Portanto, deve ser de Shuloch.
— Por que me tentou para que o matasse?
— Porque você teria me matado de qualquer modo quando retornássemos a Shuloch.
Uma violenta rigidez dominou o corpo de Muriz.
— Cuidado, Muriz — advertiu Leto. — Sei a seu respeito. Está em sua história que vocês tomam a água de viajantes descuidados. Agora, isso deve ser um ritual comum entre vocês. De que outro modo poderiam silenciar aqueles que por acaso os encontram? De que outro modo manteriam seu segredo? Batigh! Você me seduzia com palavras bondosas e apelidos gentis. Por que desperdiçar minha água sobre a areia? E se eu desaparecesse como tantos outros... bem, Tanzerouft teria dado cabo de mim.
Muriz fez o sinal dos Chifres do Verme com a mão direita, para afastar o Riham que as palavras de Leto invocavam. E Leto, sabendo como os velhos Fremen desconfiavam dos mentats ou de qualquer outra coisa que os confundisse com uma ampla exibição de lógica, reprimiu um sorriso.
— Mani falou a nosso respeito em Jacurutu — disse Muriz. — Eu terei sua água quando...
— Você não terá nada senão areia se insistir em bancar o tolo. O que vai fazer, Muriz, quando todo o planeta se tornar capim verde, árvores e água a céu aberto?
— Isso nunca acontecerá!
— Está acontecendo diante dos seus olhos.
Leto ouviu os dentes de Muriz rangendo de ódio e frustração. Daí a pouco, o homem falou entre os dentes:
— Como você evitaria isso?
— Conheço todo o plano de transformação — respondeu Leto.
— Conheço cada fraqueza que existe nele, cada força. Sem mim, o Shai-Hulud desaparecerá para sempre.
Com o tom matreiro retornando à sua voz, Muriz perguntou:
— Bem, por que discutirmos isso aqui? Estamos num impasse. Você tem sua faca, pode me matar, mas Behaleth atiraria em você.
— Não antes que eu apanhasse sua pistola. E então eu teria o seu tóptero. Sim, posso pilotá-lo.
Uma expressão carrancuda enrugou a testa de Muriz por baixo do capuz.
— E se você não for quem diz ser?
— Meu pai não vai me identificar? — perguntou Leto.
— Ahhh, foi assim que você aprendeu, não? Mas... — Ele se interrompeu novamente, sacudiu a cabeça. — Meu próprio filho lhe serve de guia. Ele diz que vocês dois nunca... Como poderia...
— Então você não acredita que o Muad'Dib prevê o futuro.
— É claro que acredito! Mas ele diz a respeito de si mesmo que... — Novamente Muriz não terminou a frase.
— E você pensa que ele está inconsciente da sua desconfiança — disse Leto. — Vim a este lugar exato, nesta exata ocasião, para encontrá-lo, Muriz. Sei tudo a seu respeito porque vi você... e seu filho. Sei como vocês se julgam seguros, como zombam do Muad'Dib e como conspiram para preservar seu pequeno trecho de deserto. Mas sem mim seu pequeno trecho de deserto está condenado, Muriz. Perdido para sempre. Já se foi muito longe aqui em Duna. Meu pai quase esgotou sua visão e vocês só podem recorrer a mim.
— Aquele cego... — Muriz se interrompeu, engoliu em seco.
— Ele logo voltará de Arrakeen — disse Leto. — E então veremos quanto ele é cego. Até onde você se afastou dos velhos costumes Fremen, Muriz?
— O quê?
— Ele é Yadguiyas com vocês. Sua gente o encontrou sozinho no deserto e o trouxe aqui para Shuloch. Que rica descoberta ele não era! Mais valioso que um veio de especiaria. Yadguiyas! Ele tem vivido com vocês, sua água misturou-se com a de sua tribo. Ele é parte de seu Rio Espiritual. E Leto pressionou sua faca contra o manto de Muriz. — Cuidado, Muriz. — Ergueu a mão esquerda e soltou a máscara facial do Fremen, deixando-a cair.
Sabendo o que Leto planejava, Muriz disse:
— Para onde você iria se nos matasse a ambos?
— De volta a Jacurutu.
Leto pressionou a parte carnuda de seu polegar contra a boca de Muriz.
— Morda e beba, Muriz. Faça isso ou então morra.
Muriz hesitou, depois mordeu violentamente a carne de Leto. Leto observou a garganta do homem, viu-o engolir convulsivamente, então afastou a faca e a devolveu.
— Lyadguiyas — disse Leto. — Devo ofender sua tribo antes que você possa tirar minha água.
Muriz assentiu.
— Sua pistola está ali. Leto indicou-a com o queixo.
— Confia em mim agora? — indagou Muriz.
— De que outro modo eu poderia viver entre os Banidos? — Novamente, Leto percebeu o olhar matreiro de Muriz, mas dessa vez era algo avaliador. O homem virou-se com uma rapidez que indicava decisões secretas, apanhou a pistola maula e se voltou para o degrau da asa.
— Venha ele disse. Já nos demoramos muito no covil de um verme.
O futuro da presciência nem sempre pode estar preso às regras do passado. Os fios da existência se emaranham de acordo com muitas leis desconhecidas. O futuro-presente insiste em ter suas próprias regras.
Não se ajustará ao pensamento ordeiro dos Zensunni ou ao ordenamento da ciência. A presciência constrói uma integridade relativa. Ela exige um trabalho neste instante, sempre o advertindo de que não pode tramar cada fio no tecido do passado.
- Kalima: As Palavras do Muad'Dib O Comentário de Shuloch
Muriz trouxe o ornitóptero até Shuloch com a facilidade que vem com a prática. Leto sentava-se ao lado dele, sentindo a presença armada de Behaleth atrás de si. Tudo agora dependia de confiança e do delgado fio da visão, ao qual ele se agarrava. Se aquilo falhasse, Allahu akbahr.
Por vezes devemos submeter-nos a uma vontade mais elevada.
A montanha de Shuloch era impressionante nesse deserto. Sua presença não-assinalada revelava muitos subornos e muitas mortes, e muitos amigos em lugares importantes. Leto podia ver o coração de Shuloch como uma depressão cercada de penhascos, com canyons sem saída levando até ela.
Arbustos salgados e sombreiras, formando um bosque espesso e amplo, delineavam as bordas inferiores desses desfiladeiros, com um anel interno de palmeiras indicando que o lugar era rico em água. Toscas construções de capim verde e fibra de especiaria haviam sido erguidas além das palmeiras, parecendo botões verdes espalhados pela areia. Lá deviam viver os banidos dos Banidos, aqueles que não poderiam descer mais, senão com a morte.
Muriz pousou na depressão junto à base de um dos canyon. Uma única estrutura se erguia da areia, diretamente à frente do tóptero: uma choupana de trepadeira do deserto e folhas de bejato, tudo revestido com tecido de especiaria fundido pelo calor. Tratava-se de uma réplica viva das primeiras e toscas tendas-destiladoras e revelava a degradação de alguns dos que viviam em Shuloch. Leto sabia que tal lugar devia vazar umidade e estar cheio de insetos picadores vindos da vegetação próxima.
Então, era assim que seu pai vivia. Pobre Sabiha. Ali seria a sua punição.
A uma ordem de Muriz, Leto deixou o tóptero, saltando para a areia e caminhando em direção à choupana. Podia ver muitas pessoas trabalhando perto do canyon, entre as palmeiras. Pareciam pobres, esfarrapadas, e o fato de quase não olharem para ele ou para o tóptero era um indício da opressão que devia reinar por ali. Leto pôde notar a orla de pedra de um qanat além dos trabalhadores, e não havia engano no sentimento de umidade no ar: água a céu aberto. Passando pela choupana, Leto viu que era tão tosca quanto havia esperado. Seguiu até o qanat e olhou para baixo, vendo o rodopiar de peixes predadores entre o fluxo escuro. Os trabalhadores, evitando seu olhar, continuaram limpando a areia da linha de aberturas na rocha.
Muriz veio por trás dele e disse:
— Você está no limite entre o peixe e o verme. Cada um desses desfiladeiros tem o seu verme. Este qanat foi aberto e dentro em breve nós retiraremos os peixes para atrair a truta da areia.
— É claro — disse Leto. — Viveiros de criação. Vocês vendem vermes e trutas da areia para fora do planeta.
— Foi sugestão do Muad'Dib!
— Eu sei. Mas nenhum de seus vermes ou trutas da areia sobrevive muito tempo longe de Duna.
— Ainda não disse Muriz. Mas algum dia...
— Nem em 10 mil anos — disse Leto, voltando-se para observar a confusão no rosto de Muriz.
As perguntas fluíam ali como a água no qanat. Esse filho do Muad'Dib seria realmente capaz de enxergar o futuro? Alguns ainda acreditavam que o Muad'Dib fizera isso, mas... Como se poderia julgar uma coisa assim?
Daí a pouco, Muriz voltou-se, conduzindo-o para a choupana. Abriu um tosco selo de umidade na porta e fez sinal para que Leto entrasse. Lá dentro havia uma lâmpada de óleo de especiaria queimando junto à parede dos fundos, e uma pequena figura agachada abaixo dela, de costas para a porta. A queima do óleo produzia forte perfume de canela.
— Eles mandaram uma nova prisioneira para cuidar do sietch do Muad'Dib — resmungou Muriz. — Se ela nos servir bem, poderá conservar sua água por algum tempo. — Confrontou Leto. — Alguns dizem que é ruim tirar essa água. Aqueles Fremen de camisas rendadas agora fazem pilhas de lixo em suas novas cidades! Pilhas de lixo! Quando foi que Duna teve pilhas de lixo! Quando pegamos alguns como essa aí... — e gesticulou para a figura abaixo da lâmpada — geralmente estão meio loucos de medo, perdidos para sua própria gente e nunca aceitos entre os verdadeiros Fremen. Está me entendendo, Leto-Batigh?
— Eu o compreendo.
A figura agachada não se movera.
— Você fala em nos liderar. Os Fremen são liderados por homens que derramaram sangue. No que você nos poderia liderar?
— Kralizec — disse Leto, mantendo a atenção sobre a pessoa agachada.
Muriz olhou para ele, as sobrancelhas contraídas sobre os olhos azuis.
— Kralizec? — Isso não era meramente uma guerra ou revolução, isso era a Luta do Tufão. Uma palavra tirada das mais antigas lendas Fremen: a batalha no fim do universo. — Kralizec?
O alto Fremen engoliu convulsivamente. Esse garoto era tão imprevisível quanto um almofadinha da cidade! Voltou-se para a figura agachada.
— Mulher! Liban wahid! — ordenou. “Traga-nos a bebida de especiaria.”
Ela hesitou.
— Faça como ele diz, Sabiha, — disse Leto.
Ela ficou de pé num movimento brusco, girando a fim de olhar para ele e incapaz de tirar os olhos de seu rosto.
— Você conhece essa aí? — perguntou Muriz.
— Ela é a sobrinha de Namri. Ela ofendeu Jacurutu e eles a mandaram para você.
— Namri? Mas...
— Liban wahid — disse Leto.
Ela passou correndo por ele, deixou atrás de si o selo da porta e eles ouviram seus passos apressados.
— Ela não irá longe — disse Muriz. Tocou o lado do nariz com o dedo. — Uma parenta de Namri, hein? Interessante. O que ela fez para ofendê-los?
— Permitiu que eu escapasse — respondeu Leto, voltando-se e seguindo Sabiha.
Encontrou-a de pé na beira do qanat. Colocou-se ao lado dela e olhou para a água. Havia pássaros nas palmeiras próximas e ele ouviu seus chamados, o bater de suas asas. Os trabalhadores produziam sons ásperos enquanto removiam a areia. Imóvel, ele fez o que Sabiha fazer, olhando para a água e seus reflexos. Pelos cantos dos olhos, via periquitos azuis entre as folhas das palmeiras. Um deles voou sobre o qanat e Leto o viu refletido sobre o brilho prateado dos peixes, peixes que nadavam juntos, tal como os pássaros e os predadores nadavam no mesmo firmamento.
Sabiha pigarreou.
— Você me odeia — disse Leto.
— Você me envergonhou. Envergonhou-me diante de meu povo. Eles tiveram um Isnad e me mandaram aqui para perder minha água. Tudo por sua culpa!
Muriz riu, bem atrás deles.
— Agora está vendo, Leto-Batigh, que nosso Rio Espiritual tem muitos tributários.
— Mas minha água flui nas suas veias — replicou Leto, virando-se para ele. — Este não é um tributário. Sabiha é o destino da minha visão e eu a sigo. Fugi através do deserto para encontrar meu futuro aqui em Shuloch.
— Você e... — Ele apontou para Sabiha e lançou a cabeça para trás numa gargalhada.
— Não será como nenhum de vocês pensa — disse Leto. — Lembre-se disso, Muriz. Encontrei as pegadas de meu verme. — Sentiu lágrimas escorrendo de seus olhos então.
— Ele dá água para os mortos — sussurrou Sabiha.
Até mesmo Muriz olhou para ele espantado. Os Fremen nunca choram a menos que se trate da mais profunda dádiva para a alma. Quase embaraçado, Muriz puxou a máscara sobre a boca e abaixou o capuz de seu djeballa sobre as sobrancelhas.
Leto olhou além do homem e disse:
— Aqui em Shuloch, eles ainda rezam por orvalho na orla do deserto. Vá, Muriz, e reze por Kralizec. Prometo-lhe que virá.
O discurso Fremen implica grande concentração e um senso preciso de expressão. Está imerso na ilusão do absoluto. Seus pressupostos são campo fértil para religiões absolutistas. Além disso, os Fremen gostam de moralizar. Eles confrontam a terrível instabilidade de todas as coisas com declarações institucionalizadas. Dizem: “Sabemos que não existe a summa de todo o conhecimento disponível, isso é privilegio de Deus. Mas o que quer que os homens possam aprender, os homens podem conter. “ Com essa abordagem incisiva do universo, esculpem uma crença fantástica em sinais e profecias e em seu próprio destino. Essa é a origem de sua lenda do Kralz'.Zec: a guerra do fim do universo
- Relatório Particular Bene Gesserit/ folha 800.881
— Eles o mantêm a salvo num lugar seguro — disse Namri, sorrindo para Gurney Halleck, do outro lado da sala quadrada, escavada na pedra. — Pode relatar isso aos seus amigos.
— E onde fica esse lugar seguro? — perguntou Halleck.
Ele não gostava do tom de voz de Namri e se sentia tolhido pelas ordens de Jessica. Maldita bruxa! Suas explicações não faziam sentido, exceto a advertência a respeito do que poderia acontecer caso Leto fracassasse em dominar suas terríveis memórias.
— É um lugar seguro — repetiu Namri. — Isso é tudo que me permitiram dizer-lhe.
— Como sabe disso?
— Recebi um distrans. Sabiha está com ele.
— Sabiha! Mas foi ela que...
— Não desta vez.
— Vai matá-lo?
— Isso não depende mais de mim.
Halleck contraiu o rosto. Distrans. Qual seria o raio de ação daqueles malditos morcegos de caverna? Ele os vira frequentemente esvoaçando através do deserto, com mensagens ocultas impressas em seus guinchos. Mas até onde eles poderiam ir nesse planeta infernal?
— Devo vê-lo pessoalmente — disse Halleck.
— Isso não é permitido.
Halleck respirou fundo para se acalmar. Havia passado dois dias e duas noites esperando pelos relatórios de buscas. Agora, era outra manhã e ele sentia seu papel se dissolvendo à sua volta, deixando-o nu. Nunca apreciara o comando, de qualquer modo. Os comandantes sempre esperam enquanto os outros fazem as coisas interessantes e perigosas.
— Por que não é permitido? — indagou. Os contrabandistas que haviam arranjado esse sietch seguro haviam deixado muitas perguntas sem resposta e ele não queria a mesma coisa de Namri.
— Alguns acham que você viu demais quando viu este sietch. — Halleck ouviu a ameaça e relaxou sua posição descansada do lutador treinado, a mão próxima, mas não sobre a faca. Sentia falta de um escudo, mas isso estava fora de cogitação, dado seu efeito sobre os vermes e sua vida curta na presença das cargas estáticas geradas pelas tempestades.
— Esse segredo não era parte dê nosso acordo — disse Halleck.
— Se eu o tivesse matado, isso teria sido parte de nosso acordo? — Novamente, Halleck sentia o movimento de forças invisíveis a respeito das quais Lady Jessica não o avisara. Esse maldito plano dela! Talvez fosse certo não confiar nas Bene Gesserits. Imediatamente, sentiu-se desleal. Ela havia explicado o problema, e ele entrara em seus planos com a expectativa de que, como todos os planos, esse iria necessitar de ajustamentos posteriores. Ela não era uma Bene Gesserit qualquer, era Jessica dos Atreides, que nunca fora outra coisa senão sua amiga e patrocinadora. Sem ela, sabia que teria sido lançado à deriva num universo mais perigoso que esse onde agora habitava.
— Não pode responder minha pergunta — disse Namri.
— Você devia matá-lo apenas se ele mostrasse estar... possuído — disse Halleck. — Abominação.
Namri levou o punho junto ao ouvido direito.
— Sua Senhora sabia que tínhamos testes para verificar isso. Foi sábio da parte dela deixar tal julgamento em minhas mãos.
Halleck comprimiu os lábios, frustrado.
— Você ouviu as palavras que a Reverenda Madre me dirigiu — continuou Namri. — Nós Fremen entendemos tais mulheres, mas vocês estrangeiros nunca as compreendem. As mulheres Fremen muitas vezes enviam seus filhos para a morte.
Halleck falou entre os dentes.
— Está querendo me dizer que o matou?
— Ele vive. Está em lugar seguro. Vai continuar a receber a especiaria.
— Mas eu devo escoltá-lo de volta à sua avó se ele sobreviver — disse Halleck.
Namri apenas encolheu os ombros.
Halleck percebeu que essa era toda a resposta que conseguiria. Maldição!
Não poderia voltar para Jessica com tais perguntas sem respostas! Sacudiu a cabeça.
— Por que questionar o que não pode mudar? — indagou Namri. — Você está sendo bem pago.
Halleck olhou carrancudo para o homem. Fremen! Acreditavam que todos os estrangeiros eram influenciados principalmente pelo dinheiro. Mas Namri estava verbalizando mais que um preconceito Fremen. Outras forças se encontravam em ação por ali, isso era óbvio para quem fora treinado nos modos de observação Bene Gesserit. Toda essa coisa tinha o cheiro de um estratagema dentro de um estratagema dentro de um...
Mudando para a forma de insulto comum, Halleck disse:
— Lady Jessica ficará furiosa. Ela poderá mandar legiões contra...
— Zanadz'g! — amaldiçoou Namri. — Seu mensageiro oficial! Você fica fora do Mohalata! Terei prazer em obter sua água para o Nobre Povo.
Halleck descansou a mão sobre sua faca e preparou a manga esquerda, onde havia guardado uma pequena surpresa para possíveis atacantes.
— Não vejo nenhuma água derramada aqui — ele disse. — Talvez você esteja cego pelo orgulho.
— Você vive porque eu quis que você aprendesse, antes de morrer, que sua Lady Jessica não enviará legiões contra ninguém. Você não será atraído silenciosamente para o Huanui, escória estrangeira. Eu pertenço ao Nobre Povo e você...
— E eu sou apenas um servo dos Atreides — disse Halleck com a voz calma. — Nós somos a escória que tirou a canga dos Harkonnen de cima de seu pescoço fedorento.
Namri mostrou os dentes brancos numa careta de ódio.
— Sua Senhora é prisioneira em Salusa Secundus. As mensagens que julgou serem dela vieram de sua filha!
Com um supremo esforço, Halleck conseguiu manter a voz calma.
— Não importa. Alia irá... — Namri sacou da faca cristalina.
— O que você sabe do Ventre Celestial? Eu sou seu servo, seu prostituto. Faço a vontade dela quando tiro sua água! — E saltou através da sala num tolo movimento direto.
Halleck, sem se deixar enganar pela aparente ingenuidade, sacudiu a manga esquerda de seu manto, soltando o comprimento extra de tecido pesado que ele costurara ali e deixando que o pano recebesse o golpe da faca de Namri. Nesse mesmo movimento, Halleck lançou as dobras da roupa sobre a cabeça de Namri e golpeou com sua faca por sob e através do tecido, apontando diretamente para o rosto do Fremen. Sentiu a ponta da faca atingir o alvo enquanto o corpo de Namri se chocava contra ele com uma dura superfície de armadura metálica por baixo do manto. O Fremen emitiu um guincho, saltou para trás num movimento convulsivo e caiu. Ficou no chão, o sangue esguichando de sua boca enquanto seus olhos fitaram Halleck e então ficaram vidrados.
Halleck deixou o ar escapar por entre os lábios. Como aquele tolo Namri poderia ter julgado que alguém deixaria de notar a presença de uma armadura por baixo de seu manto? Halleck dirigiu-se ao cadáver, enquanto recuperava a manga-armadilha, limpava a faca e a embainhava:
— Como você achava que nós, os servos Atreides, somos treinados, idiota?
Respirou fundo, pensando. “Bem, e agora? Em que estratagema eu me encontro?” Houvera verdade nas palavras de Namri. Jessica prisioneira dos Corrino e Alia realizando seus próprios esquemas maquiavélicos. Jessica o advertira de muitas contingências em que Alia seria o inimigo, mas não previra que ela própria poderia ser aprisionada. Ele tinha suas ordens a obedecer, contudo. Primeiro, havia a necessidade de sair daquele lugar.
Felizmente, um Fremen envolto em mantos parecia-se com qualquer outro.
Rolou o corpo de Namri para um canto e o cobriu com colchões, puxando um tapete para ocultar o sangue. Isso feito, ajustou os tubos do nariz e da boca de seu traje-destilador, colocou a máscara como alguém preparado para enfrentar o deserto, puxou o capuz sobre a cabeça e saiu para a longa passagem.
Os inocentes caminham calmamente pensou, andando como se apenas passeasse. Sentia-se curiosamente livre, como se estivesse dirigindo-se para fora do perigo e não para dentro dele.
“Nunca gostei do plano dela com relação ao garoto”, pensou. “E vou lhe dizer isso se a vir. Se.” Pois se Namri falara a verdade, o mais perigoso plano alternativo entrava em ação. Alia não o deixaria viver muito tempo se o apanhasse, mas sempre havia Stilgar um bom Fremen com boas superstições Fremen.
Jessica lhe explicara:
— Existe uma camada muito fina de comportamento civilizado sobre a natureza original de Stilgar. E este é o modo como lhe arrancará essa camada...
O espírito do Muad'Dib é mais que palavras, mais que a lei que se eleva em seu nome. O Muad'Dib deve ser, sempre uma ira interior contra a complacência dos poderosos, contra os charlatães e os fanáticos dogmáticos. E essa ira interior deve expressar-se porque o Muadbib nos ensinou uma coisa acima de todas as outras: que os seres humanos podem prosperar a penas na fraternidade de uma justiça social
- O Tratado Fedaykin
Leto estava sentado de costas para a parede da choupana, sua atenção voltada para Sabiha, observando os fios de sua visão se desenrolarem. Ela havia preparado o café e o colocara de lado. Agora, estava agachada diante dele, remexendo sua refeição noturna. Era uma sopa carregada de melange. As mãos dela moviam-se rapidamente com a concha, e o liquido azul manchava as bordas da tigela. Sabiha curvava o rosto magro sobre a tigela, misturando o concentrado. A tosca membrana que transformava a palhoça em tenda-destiladora fora remendada com um material mais fino, bem atrás dela, e isso formava um halo cinzento sobre o qual sua sombra dançava à luz tremulante da chama de cozinhar e da única lâmpada.
A lâmpada intrigava Leto. Essa gente de Shuloch esbanjava óleo de especiaria: uma lâmpada, não um globo luminoso. Eles mantinham escravos banidos dentro de suas muralhas, à maneira revelada pelas mais antigas tradições Fremen. E no entanto empregavam ornitópteros e as mais modernas colhedoras de especiaria. Eram uma tosca mistura do mais antigo e do mais moderno.
Sabiha empurrou a tigela de sopa em sua direção e apagou a chama de cozinhar. Leto ignorou a comida.
— Serei punida se você não comer isso — ela disse.
Ele olhou para ela, pensando: “Se eu a matar, isso destruirá uma das visões. Se lhe contar os planos de Muriz, isso destruirá outra visão. Se eu esperar aqui por meu pai, esse fio de visão se tornará uma corda poderosa.”
Sua mente selecionava as linhas. Algumas tinham uma suavidade que o assombrava. Um futuro com Sabiha tinha uma realidade fascinante dentro de sua consciência presciente. Ele ameaçava bloquear todos os outros até o seguir para suas agonias finais.
— Por que você olha para mim desse modo? — perguntou ela.
Ele ainda não respondeu.
Ela empurrou a tigela para mais perto dele.
Leto tentou engolir com a garganta seca. O impulso de matar Sabiha crescia dentro de si. Sentiu-se tremendo com essa tentação. Como seria fácil destruir uma visão e deixar a selvageria correr livre!
— Muriz ordenou isso — ela disse, tocando a tigela.
— Sim, Muriz ordenou. — A superstição conquistava tudo. Muriz queria uma visão revelada para que ele a interpretasse. Era um antigo selvagem pedindo ao feiticeiro para jogar os ossos do boi e interpretar a posição em que haviam caído. Muriz levara o traje-destilador de seu prisioneiro, como “simples precaução”. Havia uma zombaria implícita dirigida a Namri e Sabiha naquele comentário: “Só os tolos deixam um prisioneiro escapar.”
Muriz tinha um profundo problema emocional, contudo: o Rio Espiritual. A água do prisioneiro fluía nas veias de Muriz. E Muriz buscava um indício que lhe permitisse lançar uma ameaça de morte sobre Leto.
“Tal pai, tal filho”, pensou Leto.
— A especiaria só lhe dará visões — disse Sabiha. Os longos silêncios a incomodavam. — Eu ja tive visões na orgia muitas vezes. Elas não significam nada.
“É isso!”, pensou ele, seu corpo prendendo-se numa quietude que lhe deixava a pele fria e úmida. O treinamento Bene Gesserit dominou sua consciência, um ponto luminoso que se espalhava além dele para lançar a luz brilhante da visão sobre Sabiha e todos os seus companheiros Banidos.
O antigo aprendizado Bene Gesserit era explicito:
“As linguagens são formadas para refletirem uma especialização no modo de vida. Cada especialização pode ser reconhecida por suas palavras, seus pressupostos e suas estruturas raciais. Preste atenção às paradas. As especializações representam lugares onde a vida se detém, onde o movimento é represado e congelado.” Percebia Sabiha, então, como uma criadora de visões, ela própria, e todos os outros seres humanos tinham o mesmo poder. E no entanto ela desdenhava suas visões na orgia da especiaria. Elas lhe causavam inquietação e por isso deviam ser colocadas de lado, deliberadamente esquecidas. Seu povo orava ao Shai-Hulud porque o verme dominava muitas dezes suas visões. Eles oravam pela umidade na orla do deserto porque a umidade limitava suas vidas. E no entanto nadavam em riqueza de especiaria e atraíam trutas da areia para qanats abertos.
Sabiha o alimentava com visões prescientes com uma insensibilidade natural, e no entanto, em suas palavras, ele via os sinais esclarecedores: ela dependia de absolutos, buscava limites finitos, e tudo por ser incapaz de lidar com os rigores de terríveis decisões que lhe tocavam a própria carne. Ela se agarrava à sua visão simples do universo, tão parada no tempo e tão generalizante como poderia ser, pois as alternativas a aterrorizavam.
Em contraste, Leto sentia o movimento puro dentro de si mesmo. Era uma membrana coletando dimensões infinitas e, já que via essas dimensões, poderia tomar as decisões terríveis.
“Como fez meu pai.”
— Você deve comer isto! — disse Sabiha, a voz petulante.
Leto via agora todo o padrão de suas visões e sabia a linha que deveria seguir. “Minha pele não é minha pele.” Levantou-se e ajustou o manto ao seu redor. O tecido parecia estranho, roçando em sua pele, sem o traje-destilador para lhe proteger o corpo. Seus pés estavam nus sobre o tecido fundido de especiaria que formava o piso, sentindo a areia que fora arrastada para dentro.
— Que está fazendo? — perguntou Sabiha.
— O ar esta ruim aqui. Vou lá fora.
— Você não pode fugir — ela avisou. — Cada canyon tem seu verme. Se ultrapassar o qanat, os vermes sentirão sua presença pela umidade. Esses vermes cativos são muito alertas... Não são como os do deserto. Além disso... — como sua voz se tornou zombeteira! — Você não tem um traje-destilador.
— Então, por que se preocupa? — indagou ele, imaginando se ainda poderia provocar uma reação verdadeira da parte dela.
— Porque você não comeu.
— E você será punida.
— Sim!
— Mas eu já estou saturado de especiaria. Cada momento é uma visão. — Indicou a tigela com o pé descalço. — Derrame isso na areia. Quem é que vai saber?
— Eles vigiam — sussurrou ela.
Leto sacudiu a cabeça, livrando-a de suas visões, e sentiu uma nova liberdade a envolvê-lo. Não era preciso matar esse pobre peão. Ela dançava por outra música, nem mesmo conhecendo seus passos, acreditando ainda poder compartilhar o poder que atraía os piratas famintos de Shuloch e Jacurutu. Leto foi até o selo da porta e colocou a mão sobre ele.
— Quando Muriz chegar — ela disse, — vai ficar furioso.
— Muriz é um mercador do vazio — respondeu Leto. — Minha tia o esgotou.
Ela se levantou.
— Vou com você.
E ele pensou: “Ela se lembra de como lhe escapei. Agora sente a fragilidade de seu domínio sobre mim. Suas visões se agitam dentro dela.”
Mas ela não iria ouvir essas visões. Só tinha de refletir: como ele poderia dominar um verme cativo em seu estreito canyon? Como poderia viver em Tanzerouft sem traje-destilador ou estojo Fremen?
— Devo ficar só para consultar minhas visões — ele disse. — Você ficará aqui.
— Aonde vai?
— Ao qanat.
— As trutas da areia vêm em enxames durante a noite.
— Elas não vão me comer.
— Algumas vezes os vermes descem até perto da água — ela disse. — Se você atravessar o qanat... — Não terminou a frase, tentando colocar um tom de ameaça em suas palavras.
— Como eu poderia montar um verme sem ganchos? — indagou ele, imaginando se ela ainda poderia lembrar algum fragmento de suas visões.
— Vai comer quando retornar? — perguntou ela, agachando-se uma vez mais junto da terrina, apanhando a colher e recomeçando a mexer o caldo azul.
— Tudo em seu devido tempo — ele disse, sabendo que ela seria incapaz de detectar seu apurado uso da Voz, o modo como insinuava seus próprios desejos no processo de decisão dela.
— Muriz virá a saber se você teve uma visão — advertiu ela.
— Lidarei com Muriz à minha maneira — ele disse, notando como os movimentos dela tinham se tornado lentos e pesados. O padrão de todos os Fremen prestava-se naturalmente ao modo como ele a guiava agora. Os Fremen eram pessoas de extraordinária energia ao nascer do sol, mas uma profunda e letárgica melancolia frequentemente os dominava ao cair da noite. Ela já queria mergulhar no sono e nos sonhos.
Leto saiu sozinho para a noite.
O céu cintilava com estrelas e ele podia ver a massa da montanha ao seu redor delineada contra a sua configuração. Caminhou por sob as palmeiras até o qanat.
Por longo tempo, Leto ficou agachado à beira do qanat, ouvindo o incansável assoviar da areia no canyon. Tratava-se de um pequeno verme, pelo ruído que fazia, escolhido, sem dúvida, por essa razão. Um verme pequeno seria mais fácil de transportar. Pensou na captura do verme. Os caçadores o atordoavam com uma névoa de água, usando o método Fremen tradicional de pegar um verme para o ritual da orgia/transformação.
Entretanto, esse verme não seria morto por imersão. Seguiria num heighliner da Corporação, destinado a algum esperançoso comprador cujo deserto provavelmente seria demasiado úmido. Poucos estrangeiros percebiam o dessecamento básico que a truta da areia havia mantido em Arrakis. Havia mantido. Pois mesmo aqui em Tanzerouft haveria muitas vezes mais umidade no ar do que qualquer verme jamais conhecera, exceto durante sua morte numa cisterna Fremen.
Ouviu Sabiha remexendo-se na choupana atrás dele. Estava inquieta, excitada por suas próprias visões reprimidas. Imaginou como seria viver fora de uma visão com ela, compartilhando cada momento quando viesse, por si mesmo. O pensamento o atraía, muito mais forte que qualquer visão de especiaria. Havia certa pureza em enfrentar um futuro desconhecido.
“Um beijo num sietch vale por dois na cidade.”
A velha máxima Fremen dizia tudo. O velho sietch contivera uma selvageria reconhecida misturada com timidez. Havia traços dessa timidez na gente de Jacurutu/Shuloch, mas somente traços.
Isso o entristecia por lhe revelar o que fora perdido.
Lentamente, tão lentamente que o conhecimento do que acontecia estava pleno em sua mente antes que reconhecesse suas origens, Leto tornou-se consciente do suave sussurro de muitas criaturas à sua volta.
“Trutas da areia.”
Logo seria hora de passar de uma visão para outra. Sentia o movimento das trutas como um movimento dentro de si mesmo. Os Fremen tinham vivido com essas estranhas criaturas por gerações, sabendo que, se alguém arriscasse um pouco de água como isca, poderia atraí-las ao alcance da mão. Muitos Fremen, morrendo de sede, haviam arriscado suas últimas gotas de água nessa aposta, sabendo que o doce xarope verde extraído de uma truta da areia poderia fornecer uma pequena fonte de energia. Entretanto, as trutas da areia eram principalmente um brinquedo para as crianças que as apanhavam para o Huanui. E para brincar.
Leto estremeceu ante o pensamento do que aquela “brincadeira” lhe significaria agora.
Sentiu uma das criaturas escorregar sobre seus pés descalços. Ela hesitou e então prosseguiu, atraída pela maior quantidade de água no qanat.
Por um instante, entretanto, sentiu a realidade de sua terrível decisão.
“A luva de truta da areia.” Era uma brincadeira de crianças. Se alguém segurava uma truta com a mão, esticando-a sobre a pele, a criatura formava uma luva viva. Os traços de sangue nos capilares da pele poderiam ser sentidos por ela, mas alguma coisa misturada com a água do sangue as repelia. Cedo ou tarde, a luva escorregaria para a areia, para ser apanhada num cesto de fibra de especiaria. A especiaria as acalmava até serem jogadas num alambique da morte.
Podia ouvir as trutas se atirando no qanat e o redemoinho dos predadores a devorá-las. Água amolecia as trutas da areia, tornando-as flexíveis. As crianças aprendiam isso bem cedo. Um pouco de saliva fazia com que soltassem o xarope doce. Leto escutou o agitar da água. Era a migração das trutas sobre o qanat aberto, mas elas não podiam conter o fluxo de um qanat patrulhado por peixes predadores.
Ainda assim, continuavam vindo, continuavam caindo.
Leto tateou a areia com a mão direita até seus dedos encontrarem a pele coriácea de uma truta. Era a grande que esperava encontrar. A criatura não tentou fugir dele, movendo-se avidamente em direção à sua carne. Ele explorou seus contornos com a mão livre - tinha aproximadamente a forma de um diamante. Não tinha cabeça, extremidades nem olhos, mas infalivelmente encontraria água. Uniria o corpo ao de suas companheiras, prendendo-se uma à outra pelo áspero entrelaçamento de cílios que se projetavam, até que o todo resultante se tornava um grande organismo em forma de saco, envolvendo a água e assim contendo o veneno que mataria o gigante em que as trutas um dia se transformariam: o Shai-Hulud.
A truta se contorcia em sua mão, alongando-se, esticando-se. Enquanto isso, ele sentia um alongamento e uma extensão equivalentes da visão que havia escolhido. “Este fio, não aquele.” Sentiu que a truta da areia se adelgaçava, cobrindo mais e mais sua mão. Nenhuma truta da areia jamais encontrara uma mão como essa, cada célula supersaturada de especiaria.
Nenhum outro ser humano jamais vivera ou raciocinara nessas condições.
Delicadamente, Leto ajustou seu equilibrio enzimático, contando com a certeza que obtivera do transe da especiaria. O conhecimento das incontáveis vidas que se fundiam dentro dele proporcionava a certeza com que escolhia os ajustes precisos, prevenindo a superdose mortal que o abateria se ele se relaxasse em sua vigilância durante apenas uma batida do coração. Ao mesmo tempo, ele se fundia à truta da areia, alimentando-se nela, alimentando-se e aprendendo. Sua visão proporcionava-lhe o padrão, e ele o seguia precisamente.
Leto sentiu a truta tornar-se fina, espalhando-se sobre uma área cada vez maior de sua mão, até chegar ao braço. Localizou outra e a colocou sobre a primeira. O contato ativou um contorcer frenético nas duas criaturas.
Seus cílios se trançaram e elas se tornaram uma única membrana que agora o envolvia até o cotovelo. A truta se ajustava à luva viva da brincadeira infantil, mas se tornava mais fina e mais sensível, na medida em que ele a atraía para o papel de pele simbiótica. Estendeu a mão com sua luva viva, sentindo a areia, cada grão distinto aos seus sentidos. Aquilo não era mais uma truta da areia, era mais resistente, mais forte. E iria tornar-se cada vez mais forte...
Apalpando, sua mão encontrou outra truta, que se uniu às duas anteriores, adaptando-se à nova função. Uma maciez coriácea insinuou-se por seu braço, até chegar ao ombro.
Com um terrível direcionamento de concentração, ele obteve a união da nova pele com seu corpo, evitando a rejeição. Nenhum recanto de sua percepção teve a permissão de divagar sobre as horrorosas consequências do que fizera. Só importavam as necessidades de seu transe-visão. Apenas o Caminho Dourado poderia resultar dessa provação.
Leto despiu o manto e se deitou nu sobre a areia, o braço enluvado estendido sobre a rota de migração das trutas. Lembrava-se de que certa vez ele e Ghanima haviam apanhado uma truta e a raspado na areia até que ela se contraísse numa criança-verme, um tubo rígido com o interior prenhe do xarope verde. Mordia-se suavemente uma extremidade, sugando-a depressa, antes que o ferimento se fechasse, para obter alguma gotas de doçura.
Agora elas cobriam seu corpo. Podia sentir o pulsar de seu sangue contra a membrana viva. Uma delas tentou cobrir-lhe o rosto, mas ele a moveu asperamente, até que ela se alongou num fino rolo. A coisa cresceu mais que uma criança-verme, permanecendo flexível. Leto mordeu sua extremidade, provando um fino fluxo de doçura que continuou por muito mais tempo do que qualquer Fremen jamais experimentara. Podia sentir a energia daquele liquido doce fluindo através de si. Uma curiosa excitação tomou conta de seu corpo. Ficou ocupado por algum tempo, rolando a membrana para fora de seu rosto até construir uma borda ou orla rígida que lhe circundava a face desde a testa até o queixo, deixando as orelhas expostas. Agora era hora de testar a visão.
Ele se levantou, virando-se para correr em direção à choupana, mas ao andar sentiu que o movimento de seus pés era demasiado rápido para que se equilibrasse. Mergulhou na areia, rolando e saltando de novo para cair em pé. O salto o levou a dois metros de altura e, quando caiu de volta, tentando caminhar, novamente se movia com demasiada rapidez.
“Pare!”, ordenou a si mesmo. Entrou no relaxamento forçado prana-bindu, unindo seus sentidos no redemoinho da consciência. Isso focalizou as ondulações interiores do constante-agora através do qual Leto vivencíava o Tempo, e ele permitiu que a exaltação da visão o aquecesse. A membrana funcionava precisamente como a visão havia previsto.
“Minha pele não é minha pele.”
Seus músculos precisavam de algum treinamento para se acostumarem a esse movimento ampliado. Quando caminhava, caía rolando. Daí a pouco ele se sentou. Na quietude, a orla abaixo de seu queixo tentou tornar-se uma membrana, cobrindo-lhe a boca. Ele cuspiu nela e a mordeu, sentindo a doçura do xarope. A coisa enrolou-se para baixo sob a pressão de sua mão.
Havia-se passado tempo suficiente para que se formasse a união com o corpo. Leto esticou-se no chão, rolando com o rosto para baixo. Começou a rastejar, raspando a membrana contra a areia. Podia sentir bem a areia, mas nada lhe feria a pele. Com apenas algumas braçadas, ele cruzou 50 metros de areia. A reação física a essa fricção induzida era uma sensação de aquecimento.
A membrana não mais tentava cobrir-lhe o nariz ou a boca, mas agora ele iria deparar-se com o segundo maior passo no Caminho Dourado. Seus exercícios o haviam conduzido além do qanat, para o canyon onde se encontrava o verme aprisionado.
Ele o ouviu assoviando em sua direção, atraído por seus movimentos.
Leto saltou para ficar de pé e esperar, mas a ampliação do movimento o lançou 20 metros para dentro do desfiladeiro. Controlando suas reações com um terrível esforço, ficou de cócoras e endireitou o corpo. Agora, a areia começava a inchar diante dele, elevando-se numa monstruosa curva iluminada pelas estrelas. Abriu-se a apenas dois corpos de distância, dentes de cristal cintilando à luz mortiça. Ele viu a caverna de uma boca se escancarando, com o pálido bruxulear de uma chama lá no fundo. O cheiro de especiaria derramou-se sobre ele, mas o verme parou. E permaneceu diante dele, enquanto a Primeira Lua se elevava sobre o penhasco. A luz, refletindo-se nos dentes do verme, delineava o brilho irreal dos fogos químicos que queimavam nas profundezas da criatura.
Tão forte era o temor inato aos Fremen que Leto se viu dividido pelo desejo de fugir. Sua visão, entretanto, o mantinha imóvel, fascinado por esse momento prolongado. Ninguém jamais se colocara tão próximo à boca de um verme vivo e sobrevivera. Suavemente, Leto moveu o pé direito, encontrou um monte de areia e, reagindo com muita rapidez, foi impulsionado em direção à boca do verme. Conseguiu parar de joelhos no chão.
Ainda assim, o verme não se moveu.
A criatura sentia apenas a presença da truta, e não atacaria o vetor da areia profunda pertencente à sua própria espécie. Atacaria outro verme em seu território e viria ao encontro de especiaria exposta ao ar livre.
Somente uma barreira de água poderia detê-lo e a truta da areia, como uma cápsula de água, era uma barreira.
Experimentalmente, Leto moveu uma das mãos em direção àquela boca espantosa. O verme recuou um metro.
Com a confiança restaurada, Leto se afastou do verme e começou a ensinar os músculos a viverem com o novo poder. Cautelosamente, caminhou de volta ao qanat. O verme permaneceu imóvel atrás dele. Quando se encontrou além da barreira de água, Leto saltou com alegria, cruzando 10 metros sobre a areia, caiu esparramado, rolou e riu.
Uma luz projetou-se para fora quando o selo da porta da choupana foi aberto. Sabiha olhava para ele, delineada pelo brilho amarelo e roxo da lâmpada.
Rindo, Leto tornou a correr para o outro lado do qanat, parou em frente do verme, virou-se e a encarou de braços abertos.
— Olhe! — gritou. — O verme faz o que eu mando!
Enquanto a moça ficava imóvel pelo choque, ele girou, saiu correndo em torno do verme e para dentro do canyon. Ganhando experiência com a nova pele, descobriu que podia correr com um ligeiro flexionar dos músculos. Quase sem esforço. Quando se esforçava para correr, voava sobre a areia, com o vento a lhe queimar o círculo de pele exposta no rosto. No beco sem saída do final do canyon, saltou em vez de parar, subiu 15 metros, arrastou-se penhasco acima, agarrando-se às pedras, subindo como um inseto, e afinal chegou à crista acima de Tanzerouft.
O deserto estendia-se diante dele, uma vasta ondulação prateada sob a luz do luar.
A alegria maníaca que o dominara refreou-se.
Agachando-se, sentiu como seu corpo lhe parecia leve. O esforço produzira uma delgada película de transpiração que um traje-destilador teria absorvido e dirigido através do tecido de transferência, que removeria os sais. Enquanto relaxava, a película desapareceu, absorvida pela membrana mais rapidamente do que o seria por um traje-destilador. Pensativo, Leto fez rolar um trecho da membrana sob seus lábios, puxou-o para a boca e bebeu o liquido doce.
Sua boca, contudo, não estava mascarada. Com a sabedoria dos Fremen, ele sentia a umidade de seu corpo sendo desperdiçada a cada respiração. Então colocou uma seção da membrana sobre a boca, enrolando-a para trás ao tentar fechar as narinas, e manteve-a assim até que a barreira enrolada permaneceu no lugar. À maneira do deserto, ele assumiu a respiração automática: inspirar pelo nariz, expirar pela boca. A membrana sobre sua boca formou numa pequena bolha, mas permaneceu no lugar. Nenhuma umidade se coletava sobre seus lábios e as narinas permaneciam abertas. A adaptação prosseguia, então.
Um tóptero voou entre Leto e a Lua, curvou-se e desceu para um pouso com as asas estendidas sobre o topo do rochedo, talvez 100 metros à sua esquerda. Leto olhou para ele e se virou para ver por onde viera, subindo o canyon. Muitas luzes podiam ser vistas lá embaixo, além do qanat, o movimento de uma multidão. Ouviu gritos fracos, sentiu histeria nos sons.
Dois homens do tóptero se aproximavam dele, o luar cintilando em suas armas.
“O Mashhad”, pensou Leto, e foi um pensamento triste. Ali estava o grande salto para o Caminho Dourado. Vestira o traje-destilador vivo e automantenedor de uma membrana de truta da areia, coisa de valor imensurável em Arrakis... até que se entendesse o preço. “Não sou mais humano. As lendas a respeito desta noite vão crescer e ampliar-se além de qualquer coisa reconhecível por seus participantes. Mas a lenda se tornará real.”
Olhou para baixo do penhasco, estimando que o solo do deserto se encontrava a 200 metros. A lua delineava fendas e saliências na face íngreme do rochedo, mas nenhuma trilha. Leto ficou de pé, inalou profundamente, olhou para os homens que se aproximavam e então caminhou para a beira do abismo e se lançou no espaço. Uns 30 metros abaixo, suas pernas flexionadas encontraram uma estreita saliência. Os músculos ampliados absorveram o choque e o lançaram num salto para o lado, em direção a outra saliência, onde ele agarrou uma estreita projeção de rocha com as mãos, caiu mais 20 metros, saltou para outro apoio, e uma vez mais caiu, saltando, pulando, agarrando estreitas saliências na pedra. Os últimos 40 metros foram atravessados num único salto, com os joelhos dobrados e rolando, que o fez mergulhar pela face escorregadia de uma duna, num chuveiro de areia e pó. No fundo, ele ficou de pé e se lançou para a crista da próxima duna num único pulo. Podia ouvir gritos roucos do topo do penhasco, mas os ignorou, concentrando-se em pular do topo de uma duna para outro.
Enquanto se acostumava à ampliação dos músculos, sentiu uma alegria sensual que não antecipara nesses movimentos devoradores de distâncias.
Era um balé no deserto, um desafio a Tanzerouft que ninguém mais experimentara.
Quando achou que os tripulantes do ornitóptero já se haviam recuperado do choque para persegui-lo uma vez mais, mergulhou na face sombreada de uma duna e se enterrou nela. A areia era como um líquido denso ante sua nova força, mas a temperatura se elevava perigosamente quando se movia com muita rapidez. Saiu livre no outro lado da duna e descobriu que a membrana lhe cobrira as narinas. Removeu-a, sentindo a nova pele pulsando sobre seu corpo em seu trabalho de absorver a transpiração.
Leto moldou um tubo em sua boca e bebeu o xarope enquanto observava o céu estrelado. Estimou que percorrera uns 15 quilômetros desde Shuloch. Daí a pouco, um tóptero lançou sua sombra através das estrelas, como uma grande silhueta de pássaro, seguida por outra e mais outra. Ele ouviu o suave sussurro de suas asas, o assovio abafado de seus jatos.
Sugando pelo tubo vivo, ele esperou. A Primeira Lua passou por seu caminho, e depois a Segunda.
Uma hora antes da aurora, Leto subiu ao topo da duna e examinou o céu.
Não havia mais caçadores. Agora, sabia ter embarcado numa jornada sem retorno. Adiante se encontrava a armadilha do Tempo e do Espaço que fora preparada como uma lição inesquecível para ele mesmo e para toda a humanidade.
Voltou-se para nordeste e atravessou outros 50 quilômetros antes de se enterrar na areia para passar o dia, deixando somente um minúsculo orifício de comunicação com a superfície, que mantinha aberto com o tubo de truta da areia. A membrana estava aprendendo a viver com ele, assim como ele aprendia a viver com ela. Tentou não pensar nas outras coisas que aquilo estava fazendo à sua carne.
“Amanhã, atacarei Gara Rulen”, pensou. “Destruirei seu qanat e farei sua água perder-se na areia. Então, irei para Windsack, Old Gap e Harg. Num mês, a transformação ecológica ficará atrasada uma geração inteira. Isso nos dará espaço para desenvolver um novo cronograma.”
E a culpa recairia nas tribos selvagens, é claro. Alguns reviveriam memórias de Jacurutu. Alia ficaria com as mãos cheias. Quanto à Ghanima... Silenciosamente, para si mesmo, Leto relembrou as palavras que lhe restaurariam a memória. Haveria tempo para isso, depois... se eles sobrevivessem a essa terrível mistura das linhas.
O Caminho Dourado o atraía lá fora, no deserto, quase como uma coisa física que pudesse ser vista de olhos abertos. E ele imaginou como era: tal como os animais se movem através da terra, suas existências dependiam do movimento da alma da humanidade bloqueada durante eras, precisando de uma trilha sobre a qual pudesse caminhar.
E então pensou em seu pai, dizendo para si mesmo: “Logo disputaremos de homem para homem, e somente uma visão emergirá...”
Os limites de sobrevivência são estabelecidos pelo clima, as longas mudanças que uma geração pode deixar de notar. E são os extremos do clima que estabelecem o padrão. Os seres humanos, solitários e finitos, podem observar províncias climáticas, flutuações anuais, e ocasionalmente observar coisas como: “Este foi o ano mais frio que já tivemos. “ Tais coisas são sentidas. Mas os humanos raramente tomam consciência de uma alteração na média que leve um longo período de tempo. E é precisamente com essa consciência que eles aprendem a sobreviver em qualquer planeta.
Eles devem conhecer o clima.
- Arrakis, a Transformação segundo Harq al-Ada
Alia estava sentada com as pernas cruzadas em sua cama, tentando recompor-se recitando a Litania contra o Medo. Entretanto, uma risonha zombaria ecoava dentro de seu crânio, bloqueando cada um de seus esforços. Ela podia ouvir a voz que controlava seus ouvidos e sua mente.
— Que tolice é essa? Que é que você tem a temer?
Os músculos da barriga da perna se contraíram quando seus pés tentaram fazer movimentos de corrida. Não havia para onde correr.
Ela usava apenas uma beca dourada, da mais pura seda Paliana, e isso revelava a gordura que começava a lhe inchar o corpo. A Hora dos Assassinos acabara de passar, a aurora estava próxima. Relatórios cobrindo os últimos três meses encontravam-se diante dela, sobre o cobertor vermelho. Podia ouvir o zumbido do condicionador de ar, e a ligeira brisa agitava as etiquetas dos rolos de shigafio.
Ajudantes haviam-na despertado temerosamente, duas horas antes, trazendo notícias sobre a última infâmia, e Alia pedira os rolos de relatórios, buscando um padrão inteligível.
Desistiu da Litania.
Esses ataques tinham de ser obra dos rebeldes. Obviamente. Mais e mais dentre eles voltavam-se contra a religião do Muad'Dib.
— E o que há de errado nisso? — a voz zombeteira indagou dentro dela.
Alia sacudiu a cabeça violentamente. Namri lhe falhara. Fora uma tola em confiar numa faca de dois gumes tão perigosa. Suas ajudantes sussurravam que Stilgar era o culpado, que ele era secretamente um rebelde. E o que acontecera com Halleck? Oculto entre seus amigos contrabandistas?
Possivelmente.
Pegou um dos rolos do relatório. “E Muriz!” O homem estava histérico.
Essa era a única explicação possível. De outro modo, ela teria de acreditar em milagres. Nenhum ser humano, muito menos uma criança (nem mesmo uma criança como Leto), podia saltar do penhasco de Shuloch e sobreviver para fugir pelo deserto, em saltos que o levavam da crista de uma duna para outra.
Alia sentia na mão a frieza do shigafio.
Onde estaria Leto, então? Ghanima recusava-se a acreditar que ele não estivesse morto. Uma Reveladora da Verdade confirmara-lhe a história:
Leto morto por um tigre Laza. Então, quem seria a criança dos relatos de Namri e Muriz?
Ela estremeceu.
Quarenta qanats haviam sido fendidos, suas águas perdidas na areia. Os Fremen leais e mesmo os rebeldes não passavam de caipiras supersticiosos, todos eles! Seus relatórios estavam cheios de ocorrências misteriosas.
Trutas da areia saltando nos qanats e se dividindo para se tornarem bandos de pequenas réplicas. Vermes afogando-se deliberadamente. Sangue gotejava da Segunda Lua e caía em Arrakis, onde formava grandes tempestades. E a frequência das tempestades estava aumentando!
Pensou em Duncan, incomunicável em Tabr, angustiado com os impedimentos que ela conseguira de Stilgar. Ele e Irulan quase só falavam do significado real por trás desses augúrios. Tolos! Até mesmo seus espiões revelavam a influência dessas histórias infames!
Por que Ghanima insistia em seu relato do tigre Laza?
Alia suspirou. Somente um dos relatórios no shigafio a tranquilizava.
Faradin enviaria um contingente de sua guarda palaciana “para ajudá-la a enfrentar os problemas e preparar o caminho para o Rito Oficial do Noivado”. Alia sorriu para si mesma e compartilhou a gargalhada que lhe estremeceu o crânio. Aquele plano, pelo menos, permanecia intacto.
Explicações lógicas seriam encontradas para afastar todas as bobagens supersticiosas.
Enquanto isso, ela usaria os homens de Faradin para ajudá-la a fechar Shuloch e prender os dissidentes conhecidos, especialmente entre os Naibs. Pensou num movimento contra Stilgar, mas a voz interior a advertiu contra isso.
— Ainda não.
— Minha mãe e a Irmandade têm algum plano, elas próprias — sussurrou Alia. — Por que ela está treinando Faradin?
— Talvez isso a excite — disse o Velho Barão.
— Não aquela geladeira.
— Não está pensando em pedir a Faradin que a mande de volta?
— Sei dos perigos que isso encerra.
— Ótimo. Enquanto isso, e aquele jovem criado que Zia trouxe? Creio que seu nome é Agarves Buer Agarves. Se o convidasse para vir aqui esta noite...
— Não!
— Alia...
— Está quase amanhecendo, seu velho tolo e insaciável! Vai haver um Conselho Militar esta manhã, os sacerdotes terão...
— Não confie neles, querida Alia.
— É claro que não!
— Muito bem, agora esse Buer Agarves...
— Eu disse não!
O Velho Barão permaneceu em silêncio dentro dela, mas Alia começou a sentir uma dor de cabeça. Uma dor lenta que subia de sua face para o lado esquerdo do crânio. Uma vez, ele a fizera correr pelos corredores com esse truque. Agora ela resolveu resistir.
— Se persistir, tomarei um sedativo — ela disse.
Ele percebeu que era sério. A enxaqueca começou a diminuir.
— Muito bem — disse ele, insolente. — Em outra ocasião, então...
— Em outra ocasião — concordou ela.
“Tu dividiste a areia com tua força, tu quebraste a cadeia dos dragões no deserto. Sim. Eu te vi como a besta caindo das dunas, tu possuis os dois chifres do cordeiro, mas falas como o dragão. “
- Bíblia Universal Laranja Revisada Arran 11:4
Era a imutável profecia, as linhas tornando-se uma corda, coisa que Leto agora parecia ter conhecido por toda a vida. Ele olhava através das sombras do entardecer em Tanzerouft. Cento e setenta quilômetros ao norte estava Old Gap, a Velha Fenda, aquela abertura profunda e tortuosa através da Muralha Escuro pela qual os primeiros Fremen haviam emigrado para o deserto.
Leto já não tinha dúvidas. Sabia por que se encontrava ali, sozinho no deserto, e no entanto cheio de um sentimento como se essa terra inteira lhe pertencesse e fosse executar a sua vontade. Tinha aquele desejo que o ligava a toda a humanidade, aquela profunda necessidade de um universo de experiências que fizessem sentido lógico, um universo de regularidades reconhecíveis dentro de suas perpétuas mudanças.
“Eu conheço este universo.”
O verme que o levara até ali fora atraído pelas batidas de seu pé e se erguera diante dele, parando como um animal obediente. Leto saltara-lhe no dorso e, apenas com as mãos, ampliadas pela membrana, levantara a borda anterior de um anel do verme para mantê-lo na superfície. O verme se esgotara nessa corrida noturna para o norte. Sua fábrica interna, movida a silício e enxofre, havia funcionado a plena capacidade, exalando abundantes jorros de oxigênio que um vento de cauda lançara em redemoinhos em torno de Leto. Às vezes os sopros quentes o deixavam tonto, enchendo sua mente de estranhas percepções. A subjetividade circular e reflexiva de suas visões voltava sobre ele sua ancestralidade, forçando-o a reviver porções de seu passado terreno e então comparar essas porções com o seu atual eu mutável.
Já podia sentir o quanto se afastara de qualquer coisa reconhecível como humana. Seduzida pela especiaria que ele engolira a cada vestígio que encontrara, a membrana que o cobria não era mais truta da areia, tal como ele não era mais humano. Cílios haviam penetrado em sua carne, formando uma nova criatura que buscaria sua própria metamorfose, nas eras que viriam pela frente.
“Você viu isto, pai, e o rejeitou”, pensou ele. “Era uma coisa terrível demais para se encarar.”
Leto sabia o que se acreditava de seu pai e por quê.
“O Muad'Dib morreu de presciência.”
Mas Paul Atreides passara do universo da realidade para o alam al-mythal enquanto ainda vivia, fugindo dessa coisa a que seu filho se atrevera.
E agora havia apenas o Pregador.
Agachado na areia, Leto manteve a atenção voltada para o norte. O verme viria daquela direção, e em seu dorso cavalgariam duas pessoas: um jovem Fremen e um homem cego.
Um bando de pálidos morcegos passou sobre sua cabeça, mudando seu curso para sudeste. Eram pontos casuais no céu que escurecia, e o olho treinado de um Fremen poderia refazer seu caminho para descobrir onde se encontrava o abrigo naquela direção. Mas o Pregador evitaria esse abrigo.
Seu destino era Shuloch, onde não se permitia a existência de morcegos selvagens que pudessem guiar estranhos até o lugar secreto.
O verme surgiu primeiro como um movimento escuro entre o deserto e o céu do norte. Matar, a chuva de areia caindo de grandes altitudes, levada por um vento de tempestade que passava, obscureceu sua visão por alguns minutos, depois ela retornou, mais nítida e mais próxima.
A linha fria na base da duna onde Leto se abaixara começou a produzir sua umidade noturna.
Ele saboreou essa frágil umidade em suas narinas e ajustou sobre a boca a bolha da membrana. Não havia mais necessidade de procurar “esponjas” ou “poços de sugar”. Dos genes de sua mãe, possuía o grande intestino dos Fremen, mais longo e mais largo para retirar água de tudo que surgisse pelo caminho. Esse traje-destilador vivo captava e retinha cada partícula de umidade que encontrava. E mesmo enquanto ele estava sentado ali, a parte da membrana que tocava na areia emitia cíliospseudópodes para caçar frações de energia que pudesse armazenar.
Leto observou o verme que se aproximava. A essa altura, sabia que o jovem guia o tinha visto, notando o ponto no topo da duna. A distância, o cavaleiro do verme não discerniria qualquer característica nesse objeto, mas esse era um problema que os Fremen já tinham aprendido a enfrentar.
Qualquer objeto desconhecido era perigoso. As reações do jovem guia seriam bem previsíveis, mesmo sem a visão.
Correspondendo à previsão, o curso do verme mudou ligeiramente, apontando na direção de Leto. Os vermes gigantes eram uma arma que os Fremen haviam empregado muitas vezes. Tinham ajudado a derrotar Shaddam, em Arrakeen.
Mas esse verme deixou de cumprir a vontade de seu cavaleiro. Parou a 10 metros de distância e nenhum estímulo o faria cruzar outro grão de areia.
Leto levantou-se, sentindo os cílios tornarem a entrar na membrana atrás de si. Livrou a boca e clamou:
— Achlan, wasachlan! — “Bem-vindo, duas vezes bem-vindo!”
O homem cego levantou-se atrás de seu guia, no topo do verme, uma das mãos sobre o ombro do rapaz. O homem mantinha o rosto erguido, o nariz apontado acima da cabeça de Leto como se tentasse farejar essa interrupção. O poente pintava sua testa de laranja.
— Quem está aí? — indagou o cego, sacudindo o ombro de seu guia. — Por que paramos? — Sua voz era anasalada pelos tampões do traje-destilador.
Temeroso, o jovem olhou para Leto e disse:
— É apenas uma pessoa sozinha no deserto. Uma criança, pela aparência. Tentei lançar o verme sobre ele, mas o verme se recusa.
— Por que não me disse? — quis saber o cego.
— Pensei que era apenas uma pessoa sozinha no deserto! — protestou o jovem. — Mas é um demônio.
— Fala como um verdadeiro filho de Jacurutu — disse Leto. — E o senhor é o Pregador.
— Sim, sou. — E havia medo na voz do Pregador, pois afinal havia encontrado seu próprio passado.
— Este não é um jardim — disse Leto, — mas o senhor é bem-vindo para compartilhar este lugar comigo esta noite.
— Quem é você? Quis saber o Pregador. Como parou nosso verme? — Havia um sombrio tom de reconhecimento na voz do Pregador. Agora ele relembrava as memórias de sua visão alternativa... sabendo que poderia chegar e terminar nesse lugar.
— É um demônio! — protestou o jovem guia. — Devemos fugir deste lugar ou nossas almas...
— Silêncio! — rugiu o Pregador.
— Sou Leto Atreides. Seu verme parou porque eu ordenei — respondeu Leto.
O Pregador gelou em silêncio.
— Venha, pai — insistiu Leto. — Desmonte e passe a noite comigo. Eu lhe darei o mais doce xarope para sugar. E vejo que possui estojos Fremen com comida e jarros de água. Compartilharemos nossas riquezas aqui na areia.
— Leto ainda é uma criança — protestou o Pregador. — E dizem que está morto, vítima da traição dos Corrino. Não existe infância em sua voz.
— O senhor me conhece — disse Leto. — Sou pequeno para minha idade, assim como o senhor foi, mas minha experiência é ancestral e minha voz tem aprendido.
— Que faz aqui no Deserto Interior? — perguntou o Pregador.
— Bu ji — disse Leto. “Nada por nada.” Era a resposta de um caminhante Zensunni, alguém que estava apenas em posição de repouso, sem esforço e em harmonia com o ambiente ao redor.
O Pregador sacudiu o ombro de seu guia.
— É uma criança? Verdadeiramente uma criança?
— Alya — respondeu o jovem, mantendo uma atenção temerosa sobre Leto.
Um grande e estremecido suspiro sacudiu o Pregador e ele disse:
— Não.
— É um demônio em forma de criança — disse o guia.
— Vai passar a noite aqui — disse Leto.
— Faremos como ele diz — concordou o Pregador.
Soltou o ombro do guia e escorregou por um anel ao longo da lateral do verme, saltando para longe quando seus pés tocaram na areia. Virando-se, disse:
— Leve o verme para longe e mande-o de volta para a areia. Está cansado e não nos irá incomodar.
— O verme não se move! — protestou o jovem.
— Ele irá — disse Leto. — Mas se você tentar fugir nele, deixarei que o coma.
Caminhou para um lado, fora do campo sensorial do verme, e apontou na direção pela qual eles tinham vindo.
— Vá por lá.
O jovem bateu com um agulhão contra o anel atrás dele e mexeu num gancho onde mantinha o anel aberto. Lentamente, o verme começou a escorregar sobre a areia, virando-se quando o jovem mudou o gancho para um lado.
O Pregador, seguindo o som da voz de Leto, subiu pela encosta da duna e ficou a dois passos de distância. Fez isso com uma segurança que revelou a Leto que essa não seria uma disputa fácil.
Aqui as visões se separavam. Leto disse: — Remova sua máscara facial, pai.
O Pregador obedeceu, deixando cair a dobra de seu manto e retirando a cobertura bucal.
Conhecendo sua própria aparência, Leto estudou esse rosto, vendo as linhas de semelhança como se elas estivessem delineadas com luz forte.
Formavam uma reconciliação indefinível, uma trilha de genes sem fronteiras nítidas, e nelas não havia engano. Aquelas linhas vinham até Leto desde os dias florescentes, dos dias repletos de água, dos mares milagrosos de Caladan. Mas agora se encontravam num ponto divisório em Arrakis, enquanto a noite aguardava para se desdobrar sobre as dunas.
— Aqui, pai — disse Leto, olhando para a esquerda, onde podia ver o jovem guia caminhando de volta, do ponto onde o verme fora abandonado.
— Mu zein! — disse o Pregador, fazendo um gesto de corte com a mão direita. “Isto não é bom!”
— Koolish zein — disse Leto com voz suave. “Este é todo o bem que poderemos ter.” E acrescentou, falando na linguagem Chakobsa, a linguagem de batalha dos Atreides: — Aqui estou, aqui permaneço! Não nos podemos esquecer disso, pai.
Os ombros do Pregador se curvaram. Levou ambas as mãos às órbitas vazias num gesto que há muito não fazia.
— Eu lhe dei a visão dos meus olhos, uma vez, e peguei suas memórias — disse Leto. — Conheço suas decisões e estive no lugar onde se escondeu.
— Eu sei. — O Pregador abaixou as mãos. — Vai permanecer?
— Você me balizou com o nome do homem que colocou em seu brasão “Jyruisy reste!”.
O Pregador suspirou profundamente.
— Até onde já foi essa coisa que você fez consigo mesmo?
— Minha pele não é mais a minha, pai.
O Pregador estremeceu.
— Então, sei como me encontrou aqui.
— Sim, prendi minha memória a um lugar que minha carne nunca conhecera — disse Leto. — Preciso de uma noite com meu pai.
— Não sou seu pai. Sou apenas uma pobre cópia, uma relíquia. — Voltou a cabeça na direção do guia que se aproximava. — Não busco mais meu futuro em minhas visões.
Enquanto ele falava, a escuridão cobriu o deserto. Estrelas saltaram acima deles e Leto também se voltou para o guia que se aproximava.
— Wubakh ul kuhar! — gritou Leto para o jovem. “Saudações!”
De volta veio a resposta:
— Subakh un nar!
Falando num sussurro rouco, o Pregador disse:
— Esse jovem, Assan Tariq, é perigoso. — Todos os Banidos são perigosos — concordou Leto.
— Mas não para mim. — Falou em tom baixo e calmo.
— Se essa é sua visão, não a compartilharei — disse o Pregador.
— Talvez não tenha escolha. Você é o filhaguiga, a Realidade. Você é Abu Dhur, Pai das Indefinidas Estradas do Tempo.
— Não sou mais que uma isca numa armadilha — disse o Pregador, a voz cheia de amargura.
— E Alia já comeu dessa isca — disse Leto. — Mas eu não aprecio o seu gosto.
— Você não pode fazer isso — sussurrou o Pregador.
— Já fiz. Minha pele não é mais a minha.
— Talvez não seja tarde demais para você...
— É tarde demais.
Leto inclinou a cabeça para um lado. Podia ouvir Assan Tariq subindo pela encosta da duna em direção a eles, vindo ao encontro do som de suas vozes.
— Saudações, Assan Tariq de Shuloch — disse Leto.
O jovem parou na encosta, logo abaixo de Leto, uma sombra negra sob a luz das estrelas. Havia indecisão na posição de seus ombros, no modo como inclinava a cabeça.
— Sim — disse Leto. — Eu sou aquele que escapou de Shuloch.
— Quando eu ouvi... — começou a dizer o Pregador. E novamente: — Você não pode fazer isso!
— Estou fazendo. Que importa se ficou cego uma vez mais?
— Pensa que tenho medo disso? indagou o Pregador. — Não vê o ótimo guia que me forneceram?
— Eu o vejo. — Novamente, Leto encarou Tariq. — Não está me ouvindo, Assan? Sou aquele que escapou de Shuloch.
— Você é um demônio — disse o jovem, trêmulo.
— Seu demônio — disse Leto. — Mas você é o meu demônio. — E Leto sentiu que a tensão crescia entre ele e seu pai. Era um jogo de sombras em torno deles, uma projeção de formas inconscientes. E Leto sentia as memórias de seu pai, uma forma de profecia às avessas, que buscava visões da realidade familiar desse momento.
Tariq também sentia a batalha de visões. Recuou vários passos duna abaixo.
— Você não pode controlar o futuro — sussurrou o Pregador, e o som de sua voz revelava um esforço, como se estivesse levantando um grande peso.
Então, Leto sentiu a dissonância entre eles. Era um elemento do universo com o qual sua vida inteira havia lutado. Ele ou então seu pai seria forçado a agir logo, tomando uma decisão nesse ato, escolhendo uma visão.
E seu pai estava certo: tentar um controle final sobre o universo faz com que você construa armas com as quais o universo acabará por derrotá-lo.
Escolher e dominar uma visão exige que você se equilibre numa linha tênue fazendo o papel de Deus equilibrado num arame muito alto, com a solidão do cosmo de ambos os lados. Nenhum dos competidores podia retirar-se para a morte-como-fim-do-paradoxo. Ambos conheciam as visões e as regras. E todas as antigas ilusões estavam morrendo. Quando um competidor se movia, o outro devia fazer um movimento em oposição. A única verdade real que lhes importava agora era a que os separava do cenário da visão. Não existia um lugar seguro, apenas uma mudança transitória de relacionamentos marcados dentro de limites que eles agora se impunham e aos quais se prendiam com vistas às mudanças inevitáveis. Cada um deles só podia contar com uma coragem solitária e desesperada, mas Leto tinha duas vantagens: entregara-se a um destino do qual não havia retorno e aceitara as terríveis consequências que resultariam para si mesmo. Seu pai ainda esperava que houvesse outro caminho de volta, e não tomara essa decisão final.
— Você não deve! Você não deve! — disse o Pregador, a voz rouca.
“Ele percebe minha vantagem”, pensou Leto.
Leto falava em tom de conversa, ocultando suas próprias tensões e o esforço de equilíbrio que essa disputa, em outro nível, exigia.
— Não tenho nenhuma crença apaixonada na verdade, nenhuma fé senão aquela que eu crio — ele disse.
Sentia então o movimento entre si mesmo e seu pai, alguma coisa com características granulares que tocava apenas a própria crença ardente que Leto possuía, subjetivamente, em si mesmo. Com tal crença, sabia que colocara os marcos no Caminho Dourado. E algum dia tais marcos indicariam aos outros como serem humanos, estranha dádiva de uma criatura que naquele dia não mais seria humana. Contudo, tais marcos sempre eram erguidos por jogadores. Leto os sentia espalhados pela paisagem de suas vidas interiores, e sentindo isso tomou posição para a derradeira aposta desse jogo.
Lentamente, cheirou o ar, buscando o sinal que ambos, ele e o pai, sabiam que viria. Uma questão permanecia: seu pai iria advertir o jovem guia aterrorizado sobre quem aguardava lá embaixo?
Daí a pouco, Leto sentiu ozônio em suas narinas, o odor que denunciava um escudo. Fiel às ordens dos Banidos, o jovem Tariq estava tentando matar esses dois perigosos Atreides, sem saber os horrores que isso precipitaria.
— Não, — sussurrou o Pregador.
Mas Leto sabia que o sinal era autêntico. Sentira o ozônio, mas não havia sensação de arrepio na pele. Tariq usava um pseudo-escudo do deserto, arma desenvolvida exclusivamente para Arrakis. Seu Efeito Holtzman chamaria um verme e o enlouqueceria. Nada deteria o verme nessas condições nem água, nem a presença de trutas da areia... nada. Sim, o jovem havia plantado o engenho na encosta da duna, e estava começando a se afastar da zona de perigo.
Leto lançou-se do alto da duna, ouvindo seu pai gritar em protesto.
Todavia, o espantoso ímpeto dos músculos ampliados de Leto lançou seu corpo como um míssil. Uma mão estendida agarrou a gola do traje-destilador de Tariq, a outra golpeou em torno para agarrar o manto do jovem condenado pela cintura. Houve um único estalido quando o pescoço se partiu. Leto rolou na areia, erguendo seu corpo como um instrumento esplendidamente equilibrado, que mergulhou diretamente na areia onde o pseudo-escudo fora escondido. Seus dedos encontraram o objeto e ele o retirou da areia, lançando-o num longo arco para o sul.
Daí a pouco se ouviu um grande ruído de alguma coisa se batendo e chiando, lá no deserto, onde o pseudo-escudo havia caído. O ruído logo diminuiu e desapareceu.
Leto olhou para o topo da duna onde seu pai se encontrava, ainda altivo, mas derrotado. Aquele lá em cima era Paul Muad'Dib, cego, furioso, quase desesperado com as consequências de ter fugido de uma visão que Leto aceitara. A mente de Paul estaria refletindo agora a respeito do Longo Koan Zensunni: “No ato único de predizer um futuro preciso, o Muad'Dib introduziu um elemento de desenvolvimento e crescimento na própria presciência através da qual ele via a existência humana. Com isso, atraiu a incerteza sobre si mesmo. Buscando o absoluto da previsão ordenada, ele ampliou a desordem, distorcendo a previsão.”
Retornando ao topo da duna num único salto, Leto disse:
— Agora, sou seu guia!
— Nunca!
— Voltaria a Shuloch? Mesmo que lhe dessem as boas-vindas quando chegasse sem Tariq, para onde se foi Shuloch agora? Seus olhos vêem isso?
Paul confrontou o filho, então, apontando as órbitas vazias para Leto.
— Conhece realmente o Universo que criou aqui?
Leto percebeu aquela ênfase particular. A visão que ambos sabiam ter sido colocada em terrível movimento nesse lugar exigira um ato de criação em certo ponto do tempo. Naquele momento, todo o universo consciente compartilhava uma visão linear do tempo que possuía características de progressão ordeira. Eles haviam penetrado nesse tempo como se estivessem pulando para dentro de um veículo em movimento, e só poderiam abandoná-lo do mesmo modo.
Contra isso, Leto mantinha suas rédeas de muitos fios, equilibrando-se em sua própria visão iluminada do tempo como multi-linear e feito de muitas laçadas. Ele era o homem dotado de visão num universo de cegos. Somente ele poderia semear a racionalidade ordeira, pois seu pai não mais segurava as rédeas. Na visão de Leto, um filho havia alterado o passado. E um pensamento ainda nem sonhado, num futuro distante, poderia refletir-se sobre o agora e mover sua mão.
Somente a sua mão.
Paul sabia disso porque não mais conseguia perceber como Leto poderia manipular suas rédeas sobre o tempo, só conseguia reconhecer as consequências inumanas que Leto aceitara. E pensou: “Aqui se encontra a mudança pela qual rezei. Por que tenho medo dela? Porque é o Caminho Dourado!”
— Estou aqui para conferir propósito à evolução, e portando conferir propósito às nossas vidas, — disse Leto.
— Realmente deseja viver aqueles milhares de anos, mudando como agora sabe que irá mudar?
Leto reconheceu que o pai não estava falando a respeito de mudanças físicas. Ambos sabiam quais seriam as consequências físicas: Leto se adaptaria e se adaptaria, a pele que não era a sua também ia adaptar-se. O impulso evolutivo em cada uma das partes se fundiria um no outro e disso emergiria uma única transformação. Quando viesse a metamorfose, se viesse, uma criatura pensante de espantosas dimensões emergiria sobre o universo e esse universo a adoraria.
Não... Paul estava se referindo às mudanças interiores, aos pensamentos e decisões impostos aos adoradores.
— Aqueles que pensam que está morto — disse Leto, — sabe o que dizem a respeito de suas últimas palavras.
— É claro.
— Agora, faz aquilo que toda vida deve fazer a serviço da vida — disse Leto. — Você nunca disse isso, mas um sacerdote, que achou que você nunca retornaria para chamá-lo de mentiroso, colocou essas palavras em sua boca.
— Eu não o chamaria de mentiroso. — Paul respirou fundo. — Eram ótimas palavras finais.
— Vai ficar aqui ou retornar àquela palhoça na bacia de Shuloch? — indagou Leto.
— Este é o seu universo agora — disse Paul.
As palavras, carregadas de derrota, penetraram em Leto. Paul tentara guiar os últimos fios da sua visão pessoal, uma escolha que ele fizera anos antes no Sietch Tabr. Para isso, aceitara seu papel como instrumento de vingança dos Banidos, os últimos remanescentes de Jacurutu. Eles o haviam contaminado, mas ele aceitara isso em lugar da visão de universo que Leto escolhera.
A tristeza de Leto foi tão grande que ele não conseguiu falar por vários minutos. Quando pôde controlar sua voz, ele disse:
— Vai receber de volta seu anel do falcão? — perguntou Leto. Paul sentou-se subitamente na areia, uma mancha negra sob a luz das estrelas.
— Não!
“Assim, ele sabe da futilidade desse caminho”, pensou Leto. Isso revelava muita coisa, mas não tudo. A disputa de visões passara do delicado plano das escolhas para um vulgar descarte de alternativas. Paul sabia que não poderia vencer, mas ainda esperava anular aquela visão única a que Leto se agarrara.
Daí a pouco, Paul disse:
— Sim, fui contaminado por Jacurutu. Mas você contaminou a si próprio.
— Isso é verdade — admitiu Leto. — Sou seu filho.
— E é um bom Fremen?
— Sim.
— Vai permitir que um cego finalmente parta para o deserto? Vai deixar-me encontrar a paz em meus próprios termos? — Ele golpeou a areia ao seu lado.
— Não, não permitirei isso — respondeu Leto. — Mas é seu direito cair sobre a própria faca, se insistir nisso.
— E você teria o meu corpo!
— Certo.
— Não!
“Então, ele conhece esse caminho”, pensou Leto. O corpo do Muad'Dib sendo colocado em relicário pelo próprio filho seria uma forma de cimentar a visão de Leto.
— Você nunca lhes contou, contou, pai?
— Nunca lhes contei.
— Mas eu contei. Contei a Muriz sobre Kralizec, a Luta do Tufão.
Os ombros de Paul arriaram.
— Você não pode — sussurrou ele. — Não pode.
— Agora sou uma criatura deste deserto, pai. Você falaria assim com uma tempestade Coriolis?
— Acha que sou covarde por recusar esse caminho — disse Paul, a voz rouca e trêmula. — Oh, eu o entendo muito bem, filho. Augúrios e arúspices sempre foram seus próprios tormentos. Mas nunca me perdi nos futuros possíveis porque este é impronunciável!
— Seu Jihad será um piquenique de verão em Caladan, em comparação — concordou Leto. — Eu o levarei para Gurney Halleck, agora.
— Gurney! Ele serve à Irmandade através de minha mãe. — Agora Leto compreendia a extensão da visão de seu pai.
— Não, pai, Gurney não serve mais a ninguém. Conheço o lugar onde encontrá-lo e posso levá-lo para lá. É tempo para que se crie uma nova lenda.
— Vejo que não posso mudar sua opinião. Deixe-me tocá-lo, então, pois você é meu filho.
Leto estendeu a mão direita ao encontro dos dedos que tateavam, sentiu-lhes a força e a igualou, resistindo a cada mudança de movimento do braço de Paul.
— Nem mesmo uma faca envenenada pode me ferir agora — disse Leto. — Já possuo uma química diferente.
Lágrimas escorreram dos olhos vazios e Paul soltou a mão do filho, deixando seu braço cair ao lado do corpo.
— Se eu tivesse escolhido o seu caminho, teria me tornado o bicouros de shaitan. O que você se tornará?
— Durante algum tempo, eles me chamarão de missionário de shaitan, também. Então, começarão a se questionar e finalmente vão entender. Você não levou sua visão suficientemente longe, pai. Suas mãos realizaram coisas boas e coisas más.
— Mas o mal só foi conhecido depois do acontecimento!
— Que é o caminho para as piores maldades — retrucou Leto. — Só atravessou uma parte de minha visão. Será que sua força não era suficiente?
— Sabe que eu não poderia permanecer lá. Nunca fiz uma coisa ruim que eu soubesse ser ruim antes de fazê-la. Não sou Jacurutu. — Ele se levantou. — Acha que sou daqueles que riem sozinhos durante a noite?
— É triste você nunca ter sido realmente um Fremen — comentou Leto. — Nós Fremen sabemos como autorizar o arifa. Nossos juizes podem escolher entre os males. Foi sempre desse modo conosco.
— Fremen, não é? Escravos do destino que você ajudou a criar? — Paul aproximou-se de Leto, estendendo a mão num movimento curiosamente tímido para tocar o braço do filho e examiná-lo até onde a membrana deixava exposta a orelha, então a face e finalmente a boca. — Ahhh, esta ainda é sua própria carne — ele disse. — Aonde irá levá-lo esta carne?
Abaixou a mão.
— A um lugar onde os seres humanos possam criar seus futuros de um instante para outro.
— Assim você diz. Uma Abominação poderia dizer o mesmo.
— Não sou Abominação, embora pudesse ter sido. Vi o que aconteceu com Alia.
— Um demônio vive dentro dela, pai. Gham e eu conhecemos esse demônio. É o Barão, seu avô.
Paul mergulhou o rosto em suas mãos. Seus ombros sacudiram-se por um momento, depois ele abaixou as mãos e sua boca estava comprimida numa linha de determinação.
— Existe uma maldição sobre nossa Casa. Eu rezei para que você atirasse aquele anel na areia, que me negasse e fugisse para construir... outra vida. Ela estava lá para você.
— A que preço?
Depois de um longo silêncio, Paul disse:
— O fim ajusta a trilha que vem até ele. Somente uma vez eu falhei na luta por meus princípios. Só uma vez. Aceitei o Mahdinato. Eu o fiz por Chani, mas isso fez de mim um mau líder.
Leto sentiu que não poderia responder a isso. A memória dessa decisão estava lá, dentro dele.
— Não posso mentir para você, tanto quanto não poderia mentir para mim mesmo — continuou Paul. — Eu sei disso. Cada homem devia possuir semelhante juiz. Só vou perguntar-lhe uma coisa: a Luta do Tufão é mesmo necessária?
— Será ela ou então os seres humanos serão extintos.
Paul ouviu a verdade nas palavras de Leto. Falou numa voz baixa que reconhecia a extensão maior da visão de seu filho.
— Eu não vi isso entre as escolhas.
— Acredito que a Irmandade suspeite disso — disse Leto. — Não posso aceitar qualquer outra explicação para a decisão de minha avó.
O vento da noite soprou frio ao redor deles, chicoteando o manto de Paul em torno de suas pernas. Ele tremeu. Vendo isso, Leto disse:
— Tenho um estojo, pai. Vou inflar a tenda e passaremos esta noite em conforto.
Mas Paul só pôde sacudir a cabeça, sabendo que não teria nenhum conforto nessa noite ou em qualquer outra. O Muad'Dib, o Herói, devia ser destruido. Ele mesmo dissera isso. Somente o Pregador poderia continuar agora.
Os Premera foram os primeiros seres humanos a desenvolverem uma simbologia consciente-inconsciente através da qual sentiam os movimentos e as relações de seu sistema planetário. Eles foram as primeiras pessoas de qualquer lugar a expressarem o clima em termos de linguagem matemática cujos símbolos escritos incorporam (e internalizam) relacionamentos exteriores. A linguagem em si era parte do sistema descrito. Sua forma escrita implicava o aspecto da coisa descrita. O conhecimento local, íntimo, daquilo que se achava disponível para sustentar a vida estava implícito nesse desenvolvimento. Pode-se medir a extensão dessa interação sistemas- linguagem pelo fato de os Premera verem a si mesmos como animais de pastagem e pilhagem.
- A História de Lyet-Kynes por Harq al-Ada
— Kaveh Wahid — disse Stilgar. “Traga café.”
Fez sinal com a mão erguida para um ajudante que se encontrava ao lado da única porta que dava para o austero aposento de paredes de pedra onde ele havia passado essa noite de vigília. Esse era o lugar onde o velho Naib Fremen geralmente fazia seu desjejum espartano, e era quase hora do desjejum. Mas depois de uma noite como essa ele não sentia fome.
Levantou-se e esticou os músculos.
Duncan Idaho, sentado numa almofada baixa, perto da porta, tentou suprimir um bocejo. Acabara de perceber, enquanto falavam, que ele e Stilgar haviam passado a noite em claro.
— Perdoe-me, Stil — disse ele. — Eu o mantive acordado a noite toda.
— Ficar acordado a noite toda acrescenta um dia à vida da gente — disse Stilgar, aceitando a bandeja de café que lhe era passada desde a porta.
Puxou um banco baixo em frente a Idaho e sobre ele colocou a bandeja, sentando-se diante de seu hóspede.
Ambos usavam os mantos amarelos do luto, mas o de Idaho era emprestado, usava-o porque as pessoas de Tabr se haviam ressentido do verde Atreides de seu uniforme de trabalho.
Stilgar derramou a bebida escura do jarro largo de cobre, provou-a primeiro e ergueu a xícara num sinal para Idaho, o antigo costume Fremen:
“É seguro. Eu mesmo tomei dele.”
O café era trabalho de Harah, feito exatamente como Stilgar o preferia: os grãos torrados até um marrom-claro, depois moídos num pilão de pedra até se tornarem um fino pó que era fervido imediatamente, e ao qual se acrescentava uma pitada de melange.
Idaho inalou o rico aroma da especiaria e sorveu o liquido com cuidado, mas fazendo barulho. Ainda não sabia se havia convencido Stilgar. Suas faculdades mentat começavam a funcionar com lentidão nas primeiras horas da manhã, todas as suas computações afinal confrontadas pelos dados escapáveis fornecidos pela mensagem de Gurney Halleck.
Alia soubera a respeito de Leto! Ela soubera. E Javid devia ter compartilhado tal conhecimento.
— Devo ficar livre de suas restrições — disse por fim Idaho, reiniciando a discussão.
Stilgar manteve-se inflexível.
— O acordo de neutralidade exige que eu faça julgamentos duros. Gham está segura aqui. Você e Irulan estão seguros aqui. Mas você não pode enviar mensagens. Receber mensagens, sim, mas não enviá-las. Dei a minha palavra.
— Esse não é um tratamento que se deva dispensar a um convidado e velho amigo que compartilhou riscos com você — disse Idaho, sabendo que já usara esse argumento antes.
Stilgar colocou sua xícara sobre a bandeja, ajeitando-a no lugar cuidadosamente e mantendo sua atenção voltada para ela enquanto falava.
— Nós Fremen não sentimos culpa pelas mesmas coisas que produzem tais sentimentos em outros — disse ele. E voltou sua atenção para o rosto de Idaho.
“Ele deve ser levado a pegar Gham e fugir deste lugar”, pensou Idaho. E disse:
— Não era minha intenção erguer uma tempestade de culpa.
— Compreendo — disse Stilgar. — Levantei essa questão para fazê-lo entender nossa atitude enquanto Fremen, pois é com isto que estamos lidando aqui: Fremen. Até mesmo Alia pensa como Fremen.
— E os sacerdotes?
— Eles são outro assunto — disse Stilgar. — Desejam que as pessoas inalem o vento cinzento do pecado, levando isso para a eternidade. Essa é uma grande mácula pela qual buscam conhecer sua própria misericórdia.
Falava com a voz calma, mas Idaho percebeu nela a amargura e se admirou com o fato de isso não mudar a opinião de Stilgar.
— É um truque velho, muito velho, dos governos autocráticos — disse Idaho. — Alia sabe muito bem. Bons súditos devem sentir-se culpados e a culpa começa com um sentimento de fracasso. O bom autocrata oferece muitas oportunidades de fracasso à sua população.
— Já reparei — disse Stilgar secamente. — Mas deve perdoar-me se eu menciono uma vez mais de que é de sua esposa que está falando. Da irmã do Muad'Dib.
— Ela está possuída, pode acreditar.
— Muitos dizem isso. Ela terá de se submeter ao teste, um dia. Enquanto isso, existem outras considerações mais importantes.
Idaho sacudiu a cabeça com tristeza.
— Tudo que lhe contei pode ser verificado. A comunicação com Jacurutu sempre se deu através do Templo de Alia. A trama contra os gêmeos tinha cúmplices lá. O dinheiro da venda dos vermes para fora do planeta vai para lá. Todas as ligações levam ao escritório de Alia, à Regência.
Stilgar sacudiu a cabeça e respirou fundo.
— Este é território neutro. Dei minha palavra.
— As coisas não podem prosseguir desse modo! — protestou Idaho.
— Concordo — assentiu Stilgar. — Alia está presa dentro de um círculo e a cada dia o círculo se torna menor. Como nosso velho costume de possuir muitas esposas. Isso denuncia a esterilidade masculina. — Curvou-se, lançando sobre Idaho um olhar questionador. — Você diz que ela o enganou com outros homens... “usando o sexo como uma arma”, acho que foi desse modo que se expressou. Então você tem uma abordagem perfeitamente legal disponível. Javid está aqui em Tabr com mensagens de Alia. Você só tem de...
— Em seu território neutro?
— Não, mas lá fora, no deserto...
— E se eu aproveitasse a oportunidade para escapar?
— Não teria tal oportunidade.
— Stil, eu lhe juro, Alia está possuída. Que preciso fazer para convencê-lo da...
— É uma coisa difícil de se provar — disse Stilgar. Era um argumento que ele usara muitas vezes durante a noite.
Idaho relembrou as palavras de Jessica e disse:
— Mas vocês possuem meios de prová-lo.
— Um meio, sim. — Novamente Stilgar sacudiu a cabeça. — Doloroso, irreversível.
— É por isso que eu lhe relembrei de nossa atitude com relação à culpa. Nós podemos libertar-nos de culpas que nos poderiam destruir em todas as situações, exceto no julgamento de Possessão. Para isso o tribunal, que são todas as pessoas, assume plena responsabilidade.
— Mas vocês já o fizeram antes, não fizeram?
— Tenho certeza de que a Reverenda Madre não omitiu nossa história em sua exposição. Sabe muito bem que já foi feito antes.
Idaho reagiu à irritação na voz de Stilgar.
— Não estava tentando induzi-lo à falsidade. É apenas que...
— É a longa noite, as perguntas sem resposta — disse Stilgar. — Mas agora é de manhã.
— Devo ter permissão de enviar uma mensagem para Jessica.
— Isso significaria uma mensagem para Salusa — lembrou Stilgar. — Eu não faço promessas para serem quebradas. Minha palavra deve ser mantida, é por isso que Tabr é território neutro. Eu o manterei em silêncio. Empenhei a palavra de toda a minha família.
— Alia deve ser levada ao seu julgamento!
— Talvez. Primeiro devemos descobrir se existem circunstâncias atenuantes.
— Uma falha de autoridade, possivelmente. Ou mesmo má sorte. Poderia ser um caso de tendência negativa que todos os seres humanos compartilham, e não uma verdadeira possessão.
— Você quer ter certeza de que não sou apenas o marido traído buscando outros para executarem sua vingança.
— Esse pensamento ocorreu a outros, não a mim — disse Stilgar. Sorriu para que suas palavras não fossem ofensivas. — Nós Fremen temos nossa ciência da tradição, nosso hadz'th. Quando tememos um mentat ou uma Reverenda Madre, recorremos ao hadz'th. Costuma-se dizer que o único medo que não podemos enfrentar é o medo de nossos próprios erros.
— Lady Jessica deve ser avisada — insistiu Idaho. — Gurney disse...
— A mensagem pode não ter sido enviada por Gurney Halleck.
— Não o foi por mais ninguém. Nós Atreides temos modos de verificar a procedência das mensagens. Stil, pelo menos não quer examinar algumas das...
— Jacurutu não existe mais — continuou Stilgar, inflexível. — Foi destruído há muitas gerações. — Tocou a manga de Idaho. — E de qualquer modo não posso dispor de meus combatentes. São tempos difíceis estes, a ameaça aos qanats... você compreende? — Sentou-se novamente. — Agora, quanto a Alia...
— Não existe mais Alia.
— Assim diz você. — Stilgar bebeu outro gole de café e recolocou a xícara no lugar. — Vamos deixar isto assim, amigo Idaho. Muitas vezes não há necessidade de se arrancar um braço para remover uma farpa.
— Então vamos falar a respeito de Ghanima.
— Não há necessidade. Ghanima tem minha proteção, minha palavra. Ninguém pode feri-la aqui.
“Ele não pode ser tão tolo”, pensou Idaho.
Mas Stilgar estava se levantando para indicar que a entrevista terminara.
Idaho se ergueu, sentindo a rigidez dos joelhos. As batatas das pernas pareciam dormentes. Enquanto se levantava, um auxiliar entrou e se colocou ao lado da porta. Javid entrou atrás dele.
Idaho voltou-se. Stilgar encontrava-se a quatro passos de distância. Sem qualquer hesitação, Idaho puxou de sua faca e num único movimento rápido a enfiou no peito de Javid, que de nada suspeitara. O homem cambaleou para trás, fazendo com que a faca saísse de seu corpo. Virou-se e caiu de rosto no chão. Suas pernas se debateram por um instante, e ele estava morto.
— Isso foi para silenciar os mexericos — disse Idaho.
O auxiliar ficou perplexo, com a faca desembainhada, indeciso quanto ao modo de reagir. Idaho já embainhara a sua, deixando uma mancha de sangue na borda do manto amarelo.
— Você manchou minha honra! gritou Stilgar. — Este é território neutro...
— Cale-se! — Idaho virou-se para o chocado Naib. — Você usa uma coleira, Stilgar!
Era um dos três piores insultos que poderiam ser dirigidos a um Fremen. O rosto de Stilgar ficou pálido.
— Você é um servo — continuou Idaho. — Vendeu os Fremen em troca de sua água.
Esse era o segundo pior insulto, aquele que destruíra o Jacurutu original.
Stilgar trincou os dentes e levou a mão à faca cristalina. O auxiliar afastou-se do corpo na porta.
Voltando as costas para o Naib, Idaho caminhou em direção à porta, passando pela pequena abertura ao lado do corpo de Javid e falando sem se voltar, para dirigir o terceiro insulto.
— Você não possui imortalidade, Stilgar. Nenhum de seus descendentes carrega o seu sangue!
— Aonde vai agora, mentat? gritou Stilgar, enquanto Idaho continuava a se afastar do aposento. E a voz de Stilgar era fria como o vento dos pólos.
— Encontrar Jacurutu — disse Idaho, ainda sem se virar. Stilgar puxou da faca.
— Talvez eu possa ajudá-lo.
Agora Idaho estava na passagem. Ainda sem se deter, disse:
— Se quer me ajudar com a sua faca, ladrão de água, por favor o faça em minhas costas. Seria adequado para alguém que usa a coleira do demônio.
Com dois saltos, Stilgar atravessou o aposento, passou por cima do corpo de Javid e agarrou Idaho na passagem exterior. Com a mão crispada, virou Idaho, forçando-o a parar, e o confrontou com a boca contraída num esgar, a faca na mão. Tamanha era sua ira que Stilgar nem ao menos percebeu o sorriso curioso no rosto de Idaho.
— Saque sua faca, escória mentat! — rugiu Stilgar.
Idaho riu. E esbofeteou Stilgar com força mão esquerda e mão direita, golpeando nos dois lados da cabeça.
Com um grito incoerente, Stilgar enterrou sua faca no abdômen de Idaho, golpeando para cima, através do diafragma, até o coração.
Idaho tombou sobre a faca, sorrindo para Stilgar, cuja ira se dissolveu num choque gelado.
— Duas mortes pelos Atreides — disse Idaho com a voz rouca. — A segunda por uma razão tão boa quanto a primeira.
Tombou para o lado, caindo com o rosto no piso de pedra. O sangue espalhou-se a partir do ferimento.
Stilgar olhou para o corpo por sobre sua faca gotejante e deixou escapar um trêmulo suspiro. Javid estava morto atrás dele. E o consorte de Alia, o Ventre Celestial, estava morto pelas próprias mãos de Stilgar. Podia-se argumentar que o Naib apenas protegera a honra de seu nome, vingando uma ameaça à sua prometida neutralidade. Mas o homem morto era Duncan Idaho.
Não importavam os argumentos disponíveis, não importavam as “circunstâncias atenuantes”, nada poderia apagar tal fato. Mesmo se Alia o aprovasse em particular seria forçada a responder publicamente com a vingança. Afinal, ela era Fremen. Para governar os Fremen, não lhe era possível fazer outra coisa.
Só então Stilgar percebeu que essa situação era precisamente o que Idaho buscara conseguir com sua “segunda morte”.
Stilgar ergueu os olhos, vendo o rosto chocado de Harah, sua segunda esposa, a olhar para ele do meio da multidão que se reunia. Para onde quer que Stilgar se voltasse, havia rostos com expressões idênticas: o choque e a compreensão das consequências.
Lentamente, Stilgar ficou ereto, limpou a lâmina em sua manga e a embainhou. Falando para os rostos em tom calmo, disse:
— Aqueles que virão comigo devem arrumar as malas imediatamente. Envie homens para chamar os vermes.
— Para onde vai, Stilgar? — perguntou Harah.
— Para o deserto.
— Eu irei com você — ela disse.
— Claro que vai comigo. Todas as minhas esposas irão comigo. E Ghanima. Vá buscá-la, Harah. Imediatamente.
— Sim, Stilgar agora mesmo — hesitou. — E Irulan?
— Se ela quiser...
— Sim, marido. — Ela ainda hesitava. — Vai levar Gham como refém?
— Refém? — Ele ficou genuinamente surpreso com tal pensamento. — Mulher...
Tocou no corpo de Idaho suavemente com o dedo do pé.
— Se este mentat estava certo, sou a única esperança de Gham. — E se lembrou do aviso de Leto: “Cuidado com Alia. Você deve pegar Gham e fugir.”
Depois dos Fremen, todos os planetólogos vêem a vida como expressões de energia e buscam os relacionamentos predominantes. Em pequenos pedaços, fragmentos e parcelas que se desenvolveram até um entendimento geral, a sabedoria racial dos Fremen foi traduzida em uma nova certeza. Aquilo que os Fremen possuem como povo, qualquer povo poderá ter. Só é necessário desenvolver um senso de relacionamentos energéticos. Só é preciso notar que a energia inunda os padrões das coisas e molda esses padrões.
- A Catástrofe de Arrakeen segundo Harq al-Ada
Era o Sietch de Tuek, na borda interior da Falsa Muralha. Halleck encontrava-se à sombra de um contraforte rochoso que abrigava a elevada entrada para o sietch, esperando que os de dentro decidissem se lhe dariam abrigo. Voltou o olhar para o deserto ao norte e depois para cima, em direção ao céu cinza azulado da manhã. Os contrabandistas do lugar tinham ficado perplexos ao saberem que ele, um estrangeiro, havia capturado e cavalgado um verme. Mas Halleck ficara igualmente admirado com a reação deles. Essa era uma coisa simples para um homem ágil que já vira sendo feita muitas vezes.
Halleck voltou sua atenção para o deserto, para o deserto prateado das rochas brilhantes e dos campos verde-acinzentados onde a água realizara sua mágica. De subito, tudo isso lhe pareceu um recipiente tremendamente frágil para conter a energia, a vida tudo ameaçado por uma brusca alteração no padrão das mudanças.
Conhecia a origem dessa reação. Era a movimentação no solo do deserto abaixo dele. Recipientes com trutas da areia mortas eram rolados para dentro do sietch para destilação e recuperação de sua água. Havia milhares dessas criaturas. Elas tinham vindo em resposta a um derramamento de água. E fora esse transbordamento que fizera disparar a mente de Halleck.
Olhou para baixo, em direção aos campos do sietch e da fronteira do qanat, que não mais fluía com sua preciosa água. Tinha visto os buracos nas paredes rochosas do qanat, o despedaçado forro de pedra por onde a água se derramara na areia. Que teria produzido aqueles buracos? Alguns se estendiam por 20 metros nas seções mais vulneráveis do qanat, em lugares onde a areia fofa conduzia a depressões capazes de absorver a água. Eram essas depressões que enxameavam de trutas da areia. As crianças do sietch as estavam matando e capturando.
Equipes de reparos trabalhavam nas paredes despedaçadas do qanat. Outras transportavam um mínimo de água para irrigar as plantas mais necessitadas. A fonte da água, a gigantesca cisterna abaixo da armadilha de vento de Tuek, fora fechada para evitar que o liquido continuasse a fluir para o qanat rompido. As bombas movidas a energia solar haviam sido desligadas. A água para irrigação vinha das poças que diminuíam no fundo do qanat e, laboriosamente, da cisterna no interior do sietch.
A moldura de metal do selo da porta, atrás de Halleck, estalou com o calor crescente do dia. Como se o som tivesse movido seus olhos, Halleck percebeu que seu olhar se desviava para a curva mais distante do qanat, para o lugar onde a água se estendera com maior imprudência na direção do deserto. Os esperançosos planejadores desse sietch haviam plantado ali uma árvore especial, e ela estava condenada, a menos que o fluxo de água fosse logo restaurado. Halleck viu a tola e ondulante folhagem do salgueiro sendo despedaçada pelo vento e pela areia. Aquela árvore simbolizava a nova realidade, para ele e para Arrakis.
“Ambos somos estrangeiros aqui.”
Eles estavam levando um longo tempo a discutir a decisão lá no sietch, mas tinham necessidade de bons combatentes. Contrabandistas sempre necessitam de bons combatentes. Halleck não tinha ilusões a respeito deles. Os contrabandistas dessa época não eram aqueles que o tinham abrigado, tantos anos atrás, quando ele fugira da desintegração do feudo do Duque. Não, estes eram de um novo tipo, rápidos em buscar o lucro.
Novamente voltou os olhos para o tolo salgueiro. Ocorreu-lhe que os ventos tempestuosos da nova realidade poderiam destroçar esses contrabandistas e todos os seus amigos. Poderiam destruir Stilgar, com sua frágil neutralidade, e levar consigo todas as tribos que permaneciam leais a Alia. Eles se haviam tornado colonizados. Halleck já vira isso acontecer antes, conhecendo seu gosto amargo em seu próprio mundo. Podia ver claramente, relembrando os maneirismos dos Fremen das cidades, a configuração dos subúrbios e os hábitos inconfundíveis dos sietches rurais, que afetavam até mesmo esse esconderijo de contrabandistas. Os distritos rurais eram colônias dos centros urbanos. Eles haviam aprendido a usar uma canga acolchoada, conduzidos a ela por sua cobiça, se não por suas superstições. Mesmo ali, especialmente ali, as pessoas tinham uma postura de população submissa, não de homens livres. Eram defensivas, evasivas, dissimuladas. Qualquer manifestação de autoridade era sujeita a ressentimento qualquer que fosse a autoridade: a Regência, Stilgar, seu próprio Conselho...
“Não posso confiar neles”, pensou Halleck. Só podia usá-los e nutrir sua desconfiança pelos outros. Era triste. Fora-se o velho dar e receber dos homens livres. Os velhos costumes haviam sido reduzidos a palavras ritualísticas, suas origens perdidas na memória.
Alia fizera bem o seu trabalho, punindo a oposição e recompensando os aliados, mudando as forças imperiais ao acaso, ocultando os maiores elementos de seu poder imperial. Os espiões! Deus, os espiões que ela devia ter!
Halleck quase podia ver o ritmo mortífero de movimento e contramovimento através do qual Alia esperava manter a oposição desequilibrada.
“Se os Fremen continuarem adormecidos, ela vencerá”, pensou ele.
O selo da porta atrás dele estalou e se abriu. Um funcionário do sietch, de nome Melides, emergiu. Era um homem baixo com o corpo em forma de cabeça que terminava em pernas finas, a feiúra acentuada pelo traje-destilador.
— Você foi aceito — disse Melides.
E Halleck percebeu a dissimulação matreira na voz do homem. O que essa voz lhe revelava era que o santuário ali seria apenas por tempo limitado.
“Somente até que eu possa roubar-lhes um de seus tópteros”, pensou.
— Minha gratidão ao seu Conselho — disse ele.
E pensou em Esmar Tuek, cujo nome fora dado a esse sietch. Esmar, há muito tempo morto pela traição de alguém, teria cortado a garganta desse Melides à primeira vista.
Qualquer caminho que estreite as possibilidades futuras pode tornar-se uma armadilha letal. Os seres humanos não estão procurando seu caminho através de um labirinto, eles perscrutam um vasto horizonte cheio de oportunidades únicas. O ponto de vista limitante do labirinto deveria atrair a penas criaturas que têm seus narizes enterrados na areia. As singularidades e diferenças sexualmente produzidas são a proteção vital das espécies.
- Manual da Corporação Espacial
— Por que não sinto a dor? — Alia dirigiu a pergunta ao teto de sua pequena câmara de audiências, aposento que ela podia atravessar com 10 passadas em uma direção e 15 na outra. Havia duas janelas altas e estreitas que se abriam diretamente para os topos dos telhados de Arrakeen e a Muralha Escudo.
Era quase meio-dia e o sol queimava sobre a depressão em que a cidade fora erguida.
Alia baixou o olhar para Buer Agarves, o antigo Tabrita e atual auxiliar de Zia, que comandava a guarda do Templo. Agarves trouxera a notícia de que Javid e Idaho estavam mortos. Uma multidão de sicofantas, auxiliares e guardas viera com ele, e outros se aglomeravam na passagem rebaixada lá fora, revelando que já conheciam o teor da mensagem de Agarves.
As más notícias andavam depressa em Arrakis.
Era um homem pequeno, esse Agarves, com um rosto muito redondo para um Fremen, quase infantil em sua forma. Pertencia à nova geração, dos que haviam engordado na abundância de água. Alia o via como se tivesse sido dividido em duas imagens: uma com o rosto sério e olhos de um azul opaco, uma expressão preocupada em torno da boca. A outra imagem era sensual e vulnerável, excitantemente vulnerável. Ela apreciava especialmente a grossura de seus lábios.
Embora ainda não fosse meio-dia, Alia sentia alguma coisa, no silêncio à sua volta, que falava de poente.
“Idaho deve ter morrido no poente”, disse ela a si mesma.
— Como foi, Buer, que se tornou portador dessas notícias? — indagou ela, notando a rápida expressão vigilante que surgiu no rosto do homem.
Agarves tentou engolir e falou com a voz rouca, pouco mais que um sussurro.
— Eu acompanhei Javid, lembra-se? E quando... Stilgar me enviou ao seu encontro, mandou que eu lhe dissesse que trazia a sua obediência final.
— Obediência final — repetiu Alia. — O que ele quis dizer com isso?
— Eu não sei, Lady Alia — disse ele em tom de súplica.
— Explique-me novamente o que você viu — ordenou ela, admirando-se com a frieza que sentia em sua pele.
— Eu vi... — Ele inclinou a cabeça, nervoso, e olhou para o chão em frente de Alia. — Vi o Sagrado Consorte morto sobre o piso da passagem central, e Javid também morto, próximo, em uma passagem lateral. As mulheres já os estavam preparando para Huanui.
— E Stilgar o chamou para ver essa cena?
— É verdade, Minha Senhora., Stilgar me chamou. Ele mandou Modibo, o Torto, seu mensageiro no sietch. Modibo não me avisou de nada. Apenas me disse que Stilgar queria me ver.
— E você viu o corpo de meu marido lá no chão?
Ele a olhou nos olhos rapidamente, voltando sua atenção uma vez mais para um ponto no piso à sua frente, antes de assentir.
— Sim, Minha Senhora. E Javid estava morto, perto. Stilgar me contou... contou que o Sagrado Consorte havia matado Javid.
— E meu marido, você disse que Stilgar...
— Ele me falou de sua própria boca, Minha Senhora. Stilgar disse que tinha feito aquilo. Disse que o Sagrado Consorte tinha provocado a sua ira.
— Ira — repetiu Alia. — Como foi feito?
— Ele não disse. Ninguém disse. Eu perguntei e ninguém disse.
— E foi quando o mandaram até minha presença com as notícias.
— Sim, Minha Senhora.
— Não havia nada que pudesse ter feito?
Agarves umedeceu os lábios com a língua e depois respondeu:
— Stilgar me ordenou, Minha Senhora. Era o seu sietch.
— Percebo. E você sempre obedeceu a Stilgar.
— Sempre, Minha Senhora, até que ele me libertou de minha obrigação.
— Quando você foi mandado para me servir, quer dizer?
— E obedeço apenas à Senhora, agora.
— Isso é verdade? Diga-me, Buer, se eu lhe mandasse matar Stilgar, seu antigo Naib, você faria isso?
Ele a encarou com crescente firmeza.
— Se ordenasse, Minha Senhora.
— Eu o ordeno. Tem alguma idéia de para onde ele foi?
— Para o deserto. Isso é tudo que se sabe, Minha Senhora.
— Quantos homens ele levou?
— Talvez metade dos efetivos.
— E Ghanima e Irulan foram com ele?
— Sim, Minha Senhora. Os que partiram estão sobrecarregados com suas mulheres, crianças e bagagens. Stilgar ofereceu a todos uma escolha: acompanhá-lo ou ficarem livres da lealdade para com ele. Muitos preferiram liberdade. Vão escolher um novo Naib.
— Eu escolherei o novo Naib para eles! E será você, Buer Agarves, no dia em que me trouxer a cabeça de Stilgar.
Agarves podia aceitar a escolha através da batalha. Era o modo Fremen.
Ele disse:
— Como ordenou, Minha Senhora. De que forças posso...
— Veja com Zia. Não posso ceder-lhe muitos tópteros para a busca. Eles são necessários em outra parte. Mas terá um número suficiente de combatentes. Stilgar difamou sua honra. Muitos o servirão com alegria.
— Eu o conseguirei então, Minha Senhora.
— Espere!
Ela o observou por um momento, pensando em quem poderia mandar para vigiar essa criança vulnerável. Ele precisaria ser bem vigiado até que tivesse provado sua capacidade. Zia saberia quem mandar.
— Ainda não estou dispensado, Minha Senhora?
— Ainda não. Devo consultá-lo em particular e demoradamente quanto a seus planos para pegar Stilgar. — Levou a mão ao rosto. — Não assumirei o luto até que você tenha obtido a minha vingança. Dê-me alguns minutos para me recompor. — Ela abaixou a mão. — Uma de minhas auxiliares lhe mostrará o caminho. — Fez um sinal sutil com a mão para uma de suas atendentes, e sussurrou para Salus, sua nova criada. — Façam com que ele seja lavado e perfumado antes de ser trazido a mim. Ele fede a verme.
— Sim, Minha Senhora.
Alia voltou-se então, fingindo a mágoa que não sentia, e correu para seus aposentos particulares. Lá, em seu quarto, bateu a porta, praguejou e bateu com o pé no chão.
“Maldito Duncan! Por quê? Por quê?”
Sentiu uma provocação deliberada da parte de Idaho. Ele matara Javid e provocara Stilgar. Aquilo revelava que ele sabia a respeito de Javid. A coisa toda devia ser tomada como uma mensagem de Duncan Idaho, um gesto final.
Novamente bateu com o pé no chão, e mais uma vez, andando furiosa pelo quarto.
“Maldito! Maldito! Maldito!”
Stilgar passara-se para os rebeldes, e Ghanima com ele. Irulan também.
“Malditos sejam todos eles!”
Seus pés, pisando com força, encontraram um obstáculo doloroso. A dor a fez gritar, olhando para o chão e descobrindo que ferira o pé numa fivela metálica. Apanhou-a e ficou imóvel ao ver o que tinha nas mãos. Era uma velha fivela, uma das originais de platina e prata vindas de Caladan, concedidas pelo Duque Leto Atreides ao seu mestre espadachin Duncan Idaho. Vira Duncan usando aquilo muitas vezes. E ele a jogara fora ali.
Os dedos agarraram convulsivamente a fivela. Idaho a tinha deixado ali quando... quando...
Lágrimas escorreram de seus olhos, forçadas contra o poderoso condicionamento Fremen. Sua boca imobilizou-se numa careta, enquanto ela sentia a velha batalha começar dentro de seu crânio, estendendo-se para as pontas dos dedos, para os pés. Sentia ter se tornado duas pessoas. Uma delas olhava com espanto para essas contorções carnais. A outra buscava submeter-se à enorme dor que se espalhava em seu peito. Agora, as lágrimas fluíam livremente de seus olhos, e o atônito dentro de si perguntava queixosamente:
— Quem chora? Quem é que chora? Quem está chorando agora?
Mas nada detinha as lágrimas, e ela sentia a dor queimando em seu colo enquanto lhe impulsionava a carne, atirando-a sobre a cama.
E alguma coisa continuava a perguntar com aquele profundo espanto:
— Quem chora? Quem é que...
Através desses atos, Leto II afastou-se da sucessão evolutiva. E o fez um deliberado gesto de cortesia dizendo: “Ser independente é ser afamado”. Ambos os gêmeos enxergavam além das dificuldades da memória como um processo de medida, isto é, um processo de determinar sua distância em relação às suas origens humanas. Entretanto, ficou para Leto II a realização da coisa audaciosa, reconhecendo que a verdadeira criação deve ser independente de seu criador. Ele se recusou a reordenar a sequência evolutiva, dizendo: “isso também me leva para mais longe da humanidade.” Ele percebia as implicações: não podem existir sistemas verdadeiramente fechados na vida.
- A Sagrada Metamorfose por Harq al-Ada
Havia pássaros vicejando dos insetos que fervilhavam na areia úmida além do qanat rompido: papagaios, pombas, gaios. Essa fora uma djedida, uma das últimas cidades novas, construída sobre fundações de basalto exposto.
Estava abandonada agora. Ghanima, usando as horas da alvorada para explorar a área além das plantações originais do sietch abandonado, detectou movimento e viu um lagarto listrado. Antes fora um pica-pau gila fazendo seu ninho num paredão de barro da djedida.
Ela pensava no lugar como um sietch, mas era de fato um conjunto de muros baixos, feitos de tijolos de barro estabilizado, cercados por plantações destinadas a conter as dunas. Encontrava-se bem dentro de Tanzerouft, 600 quilômetros ao sul da cordilheira Sihava. Sem mãos humanas para mantê-lo, o sietch já começava a se dissolver no deserto, suas paredes gastas pela areia dos ventos, seus vegetais morrendo, sua área de plantações fendida pelo sol quente.
Entretanto, a areia além do qanat permanecia úmida, atestando o fato de que a armadilha de vento ainda funcionava.
Nos meses decorridos desde sua fuga de Tabr, os fugitivos haviam buscado a proteção de vários lugares como esse, tornados inabitáveis pelo Demônio do Deserto. Ghanima não acreditava no Demônio do Deserto, embora não houvesse como negar a evidência visível da destruição dos qanats.
Ocasionalmente, eles recebiam notícias dos povoados do norte através de encontros com caçadores de especiaria rebeldes. Alguns tópteros, não mais que seis, realizavam vôos de busca, procurando por Stilgar, mas Arrakis era grande e seu deserto, amistoso para com os fugitivos. Havia relatos sobre uma força-tarefa de busca e destruição encarregada de encontrar o bando de Stilgar, mas esta, liderada pelo antigo Tabrita Buer Agarves, tinha outras missões e retornava com frequência a Arrakeen.
Os rebeldes diziam que ocorriam poucas lutas entre seus homens e as tropas de Alia. As depredações aleatórias do Demônio do Deserto faziam da Guarda Doméstica a primeira preocupação de Alia e dos Naibs. Mesmo os contrabandistas haviam sido atingidos, mas se dizia que eles também estavam percorrendo o deserto em busca da recompensa pela cabeça de Stilgar.
Stilgar trouxera seu bando para essa djedida pouco antes do escurecer do dia anterior, guiado pelo infalível senso de umidade de seu velho nariz de Fremen. Prometera que logo se dirigiriam para os palmeirais do sul, mas se recusava a marcar a data em que isso ocorreria. Embora estivesse com a cabeça a prêmio, por uma quantia que em certa época teria comprado um planeta, Stilgar parecia o mais feliz e despreocupado dos homens.
— Este é um bom lugar para nós — dissera ele, mostrando que a armadilha de vento ainda funcionava. — Nossos amigos nos deixaram um pouco de água.
Eles eram agora um bando pequeno, 60 pessoas ao todo. Os velhos, os doentes e os muito jovens haviam sido levados para o sul, para os palmeirais, recolhidos por famílias de confiança. Somente os mais rijos permaneciam, e estes tinham muitos amigos no norte e no sul.
Ghanima imaginava por que Stilgar se recusava a discutir o que estava acontecendo com o planeta. Será que ele não enxergava? Os qanats estavam sendo rompidos, os Fremen recuavam para o norte e para o sul, em direção às fronteiras que um dia haviam marcado os limites das suas terras. Esse movimento só podia ser um sinal do que devia estar acontecendo ao Império. Uma situação era o espelho da outra.
Ghanima passou a mão sob a gola de seu traje-destilador e a fechou novamente. A despeito de suas preocupações sentia-se extraordinariamente livre nesse lugar. Suas vidas interiores não mais a incomodavam, embora algumas vezes lhes sentisse as memórias inseridas em sua consciência.
Sabia, a partir dessas memórias, como fora esse deserto antes do trabalho de transformação ecológica. Ele fora mais seco, por exemplo. Aquela armadilha de vento abandonada ainda funcionava por estar processando ar úmido.
Muitas criaturas que haviam evitado esse deserto agora se aventuravam a viver nele. Muitos do bando observavam como proliferavam as corujas diurnas. Mesmo agora, Ghanima podia ver papaformigas. Esses pássaros saltitavam e dançavam ao longo das linhas de insetos que enxameavam na areia úmida, no final do qanat rompido. Poucos texugos podiam ser vistos ali, mas havia ratos-cangurus em número incontável.
Um medo supersticioso dominava os novos Fremen, e Stilgar não era diferente dos outros. Essa djedida fora devolvida ao deserto depois de ter seu qanat destruído pela quinta vez em 11 meses. Por quatro vezes haviam consertado os devastadores estragos causados pelo Demônio do Deserto, até não haver mais excedente de água para se arriscarem a outra perda.
Acontecera o mesmo em todas as outras djedidas e em muitos dos velhos sietches. Dos nove povoados novos, oito haviam sido abandonados. Muitas das antigas comunidades sietch estavam mais apinhadas que em qualquer outra época de sua história. E enquanto o deserto entrava nessa nova fase, os Fremen retornavam aos velhos costumes. Em tudo viam presságios.
Os vermes tornavam-se cada vez mais escassos, exceto em Tanzerouft? Era o julgamento do Shai-Hulud. E vermes mortos tinham sido vistos sem nada que revelasse por que haviam morrido. Logo após a morte, eles retomavam ao pó do deserto, mas suas carcaças em decomposição, que os Fremen por acaso encontravam, enchiam de terror os observadores.
O bando de Stilgar encontrara uma carcaça assim no mês anterior e levara quatro dias para que seus membros se libertassem do sentimento de desgraça. A coisa fedia a ranço e putrefação venenosa. E seu corpo decomposto fora encontrado no topo de um gigantesco estouro de especiaria, quase toda ela arruinada.
Ghanima voltou as costas ao qanat, olhando de volta para a djedida.
Diretamente em frente a ela se encontrava um muro quebrado que um dia protegera o murhtamal, um pequeno jardim anexo. Ela havia explorado o lugar com uma forte dependência em relação à própria curiosidade, encontrando um suprimento de pão de especiaria, chato e não-fermentado, dentro de uma caixa de pedra.
Stilgar o destruíra, dizendo:
— Os Fremen nunca deixariam comida em bom estado.
Ghanima suspeitara de que ele estivesse errado, mas não valia a pena discutir ou correr o risco. Os Fremen estavam mudando. Em outra época, movimentavam-se livremente através do bled, atraídos por necessidades naturais: água, especiaria, comércio. A atividade dos animais dava-lhes a orientação necessária. Mas agora os animais se comportavam seguindo ritmos novos e estranhos, enquanto a maioria dos Fremen se agrupava perto de suas antigas cavernas-alojamentos, sob a sombra norte da Muralha Escudo. Caçadores de especiaria eram raros em Tanzerouft, e apenas o bando de Stilgar se movia segundo os antigos costumes.
Ela confiava em Stilgar e em seu medo de Alia. Irulan reforçava seus argumentos agora, revertendo a estranhas meditações Bene Gesserit.
Todavia, no distante Salusa, Faradin ainda vivia. Algum dia teria de haver um ajuste de contas.
Ghanima olhou para o céu cinza-prata da manhã, a mente cheia de dúvidas.
De onde poderia vir a ajuda? Onde existia alguém para ouvir quando ela revelasse o que vira acontecendo à sua volta? Lady Jessica permanecia em Salusa, se é que os relatórios mereciam confiança. E Alia era uma criatura num pedestal, envolvida apenas na tentativa de parecer um colosso enquanto se afastava cada vez mais da realidade. Gurney Halleck não era encontrado em parte alguma, embora fosse visto em toda parte.
O Pregador se escondera, seus discursos heréticos tornando-se uma memória que se apagava.
E Stilgar.
Olhou para o outro lado do muro quebrado, onde Stilgar ajudava a consertar a cisterna. Ele adorava seu papel de fantasma do deserto, o prêmio por sua cabeça crescendo a cada mês.
Nada mais fazia sentido. Nada.
Quem seria esse Demônio do Deserto, essa criatura capaz de destruir os qanats como se fossem falsos ídolos a serem derrubados na areia? Seria um verme enlouquecido? Seria uma terceira força na rebelião, muitas pessoas?
Ninguém acreditava que fosse um verme. A água mataria qualquer verme que se aventurasse contra um qanat. Muitos Fremen acreditavam que o Demônio do Deserto era realmente um bando de revolucionários dedicados à derrubada do Mahdinato de Alia e à volta de Arrakis a seus antigos costumes. Aqueles que acreditavam nisso diziam que seria uma boa coisa.
Livrar-se dessa gananciosa sucessão apostólica que fazia pouco mais que manter erguida a própria mediocridade. Retornar à verdadeira religião que o Muad'Dib esposara.
Um profundo suspiro fez Ghanima estremecer. “Ó Leto”, pensou ela. “Quase fico feliz por você não ter visto estes dias. Eu me juntaria a você, caso não tivesse uma faca que ainda precisa ser banhada em sangue. Alia e Faradin. Faradin e Alia. O Velho Barão é o demônio dela, e isso não pode ser permitido.”
Harah saiu da djedida, aproximando-se de Ghanima com passo firme. Parou em frente dela e perguntou:
— Que está fazendo sozinha aqui fora?
— Este é um lugar estranho, Harah. Devíamos partir.
— Stilgar espera encontrar alguém aqui.
— Oh? Ele não me disse isso.
— Por que deveria lhe dizer tudo? Maku? — Harah bateu na bolsa de água, que fazia volume na frente do manto de Ghanima. — Já é uma mulher crescida para estar grávida?
— Já estive grávida tantas vezes que nem posso contá-las. Não faça comigo essas brincadeiras de adulto com criança!
Harah recuou um passo ante o rancor na voz de Ghanima.
— Vocês são um bando de estúpidos — disse ela, acenando com a mão para abranger a djedida e as atividades de Stilgar e sua gente. — Eu nunca deveria ter vindo com vocês.
— Estaria morta a esta altura se não tivesse vindo conosco.
— Talvez. Mas vocês não enxergam o que está bem diante de suas caras! Quem é que Stilgar espera encontrar aqui?
— Buer Agarves.
Ghanima olhou perplexa para ela.
— Ele está sendo trazido aqui secretamente por amigos do Sietch Abismo Vermelho — explicou Harah.
— O brinquedinho de Alia?
— Está sendo trazido de olhos vendados.
— Stilgar acredita realmente nisso?
— Buer pediu para parlamentar. Concordou com todos os nossos termos.
— Por que não me contaram isso?
— Stilgar sabia que você seria contra.
— Seria contra... isso é loucura!
Harah olhou carrancuda.
— Não se esqueça de que Buer é...
— Da Familia! — retrucou Ghanima. — Ele é neto do primo de Stilgar. Eu sei. E Faradin, cujo sangue derramarei um dia, é meu parente igualmente próximo. Acha que isso vai deter minha faca?
— Nós recebemos um distrans. Ninguém está seguindo seu grupo.
Ghanima falou em voz baixa.
— Nada de bom vai advir disso, Harah. Devíamos partir imediatamente.
— Você leu um presságio? — indagou Harah. — Aquele verme morto que nós vimos! Era...
— Enfie isso no seu ventre e lhe dê à luz em outro lugar! — praguejou Ghanima, furiosa. — Eu não gosto desse encontro nem deste lugar. Isso não é o bastante?
— Direi a Stilgar o que você...
— Eu mesma lhe direi!
Ghanima passou por Harah, que às suas costas fez o sinal dos chifres do verme para afastar o mal.
Mas Stilgar apenas riu dos temores de Ghanima e a mandou procurar uma truta da areia, como se ela fosse apenas outra criança. Ela fugiu para uma das casas abandonadas do djedida, agachando-se num canto para controlar a raiva. Mas a emoção passou rapidamente, sentiu um agitar das vidas internas e relembrou-se de alguém dizendo:
— Se pudermos imobilizá-los, as coisas correrão como planejamos.
“Que pensamento curioso.”
Não conseguia relembrar quem pronunciara tais palavras.
O Muad'Dib foi deserdado e falou para os deserdados de todas as épocas.
Ele gritou contra aquela profunda injustiça que aliena o indivíduo daquilo em que a prendeu a acreditar, daquilo que lhe foi apresentado como um direito seu.
- Uma análise do Mahdz'nato por Harq al-Ada
Gurney Halleck estava sentado no alto do monte em Shuloch com o baliset ao seu lado, sobre um tapete de fibra de especiaria. Abaixo dele, a depressão fechada enxameava de trabalhadores plantando a próxima colheita. A rampa de areia pela qual os Banidos tinham atraído os vermes com um rastro de especiaria fora bloqueada com um novo qanat. Para contê-lo, plantações estendiam-se elevação acima.
Era quase hora do almoço e Halleck estivera no alto desse morro por mais de uma hora, buscando privacidade para pensar. Seres humanos faziam o trabalho lá embaixo, mas tudo que ele via era obra da melange. A estimativa pessoal de Leto era de que a produção de especiaria logo decairia para se estabilizar em um décimo de seu pico durante os anos de Governo Harkonnen. Através do Império, os estoques dobravam de valor a cada nova avaliação. Trezentos e vinte e um litros era o que se dizia ter comprado metade do planeta Novebruns da Família Metulli.
Os Banidos trabalhavam como homens impulsionados por um demônio, e talvez o fossem. Antes de cada refeição, voltavam-se para Tanzerouft e rezavam ao Shai-Hulud personificado. Era assim que viam Leto e, através de seus olhos, Halleck enxergava um futuro onde a maior parte da humanidade compartilharia esse ponto de vista. Halleck não estava certo de que essa perspectiva o agradasse.
Leto estabelecera esse padrão quando trouxera Halleck e o Pregador para esse lugar, no tóptero roubado de Halleck. Com as mãos nuas, Leto rompera o qanat de Shuloch, lançando grandes pedras a mais de 50 metros de distância. Quando os Banidos tentaram intervir, Leto decapitou o primeiro a alcançá-lo, usando não mais que um rápido movimento do braço, tão rápido que fora difícil notá-lo. Lançara os outros de volta sobre os companheiros e rira de suas armas. Com voz de demônio, ele rugira para eles:
— O fogo não me tocará! Suas facas não podem me ferir! Eu uso a pele do Shai-Hulud!
Então os Banidos o reconheceram e relembraram sua fuga, saltando da montanha “diretamente para o deserto”. Prostraram-se diante dele e Leto deu suas ordens:
— Eu lhes trago dois hóspedes. Vocês deverão guardá-los e honrá-los. Vão reconstruir o qanat e começar a plantar um jardim-oásis. Um dia, farei deste lugar o meu lar. Vocês o prepararão para ser a minha casa. Não venderão mais especiaria, mas armazenarão cada porção que coletarem.
E continuou a dar suas instruções, os Banidos ouvindo cada palavra, vendo-o com olhos esgazeados pelo medo, com uma admiração terrível.
Ali estava o Shai-Hulud erguendo-se da areia, afinal!
Não houvera indícios dessa metamorfose quando Leto encontrara Gurney Halleck com Ghadhean al-Fali, num dos pequenos sietches rebeldes em Gare Ruden. Com seu companheiro cego, Leto saíra do deserto seguindo a velha rota da especiaria, viajando de verme numa região onde os vermes eram agora uma raridade. Falara em vários desvios que fora forçado a fazer pela presença de umidade na areia, suficiente para envenenar um verme.
Chegaram logo após o meio-dia e foram trazidos para a sala de hóspedes, de paredes de rocha, pelos guardas.
Agora a memória assombrava Halleck.
— Então, este é o Pregador — ele dissera.
Caminhando à volta do cego, observando-o, Halleck relembrara as histórias a seu respeito. Nenhuma máscara de traje-destilador ocultava a velha face dentro do sietch, e as feições estavam lá para que a memória fizesse comparações. Sim, o homem se parecia com o velho Duque, de quem Leto recebera o nome. Seria essa uma semelhança casual?
— Conhece as histórias a respeito deste homem? — indagara Halleck, falando para Leto. — De que ele é seu pai que voltou do deserto?
— Ouvi as histórias.
Halleck voltou-se para examinar o garoto. Ele usava um estranho traje-destilador, com bordas enroladas em torno do rosto e das orelhas. Um manto negro o cobria e botas de areia abrigavam seus pés. Havia muito a ser explicado quanto à sua presença ali. Como ele conseguira escapar uma vez mais.
— Por que você trouxe o Pregador até aqui? — perguntou Halleck. — Em Jacurutu, dizem que ele trabalha para eles.
— Não trabalha mais. Eu o trago aqui porque Alia o quer morto.
— Verdade? E você acha que este é um santuário?
— Você é o santuário.
Durante todo esse tempo, o Pregador permaneceu perto deles, ouvindo mas sem dar sinal algum de que se importava com os rumos da discussão.
— Ele me serviu bem, Gurney — disse Leto. — A Casa Atreides não perdeu todo o senso de obrigação para com aqueles que nos servem.
— A Casa Atreides?
— Eu sou a Casa Atreides.
— Você fugiu de Jacurutu antes que eu pudesse completar os testes que sua avó ordenou — disse Halleck com a voz fria. — Como pode pretender...
— A vida deste homem deve ser guardada como se fosse a minha — disse Leto como se não houvesse discussão alguma, encarando o olhar de Halleck sem vacilação.
Jessica treinara Halleck em muitos dos refinamentos de observação da Bene Gesserit, e ele nada detectara em Leto que não revelasse mais que uma calma confiança. Mas as ordens de Jessica ainda permaneciam.
— Sua avó me encarregou de completar a sua educação e me certificar de que não se encontra possuído.
— Eu não estou possuído. — Apenas uma declaração segura.
— Por que fugiu?
— Namri tinha ordens para me matar, não importando o que eu fizesse. Suas ordens vinham de Alia.
— Você é um Revelador da Verdade, então?
— Sou. — Outra declaração calma, cheia de autoconfiança.
— E Ghanima também?
— Não.
O Pregador quebrou seu silêncio, voltando as órbitas vazias para Halleck, mas apontando para Leto.
— Acha que pode testá-lo?
— Não interfira quando não conhece nada do problema ou de suas consequências — ordenou Halleck, sem olhar para o homem.
— Ah, mas eu conheço muito bem as consequências — disse o Pregador. — Eu fui testado certa vez por uma velha que pensava saber o que estava fazendo. Como se revelou, ela não sabia.
Halleck olhou para ele, então.
— Você é outro Revelador da Verdade?
— Qualquer um pode ser, até mesmo você — respondeu o Pregador. — É uma questão de honestidade quanto à natureza de seus próprios sentimentos. Exige que você tenha um acordo interior com a verdade que permita um pronto reconhecimento.
— Por que você interfere? — perguntou Halleck levando a mão à faca cristalina. Quem era esse Pregador?
— Eu sou responsável por estes eventos — disse o Pregador. — Minha mãe pode colocar seu próprio sangue sobre o altar, mas eu tenho outros motivos. E posso perceber o seu problema.
— Ah? — Halleck estava verdadeiramente curioso agora.
— Lady Jessica ordenou-lhe que diferenciasse entre o lobo e o cão, entre Ze'eb e ke'lob. Pela definição dela, um lobo é alguém que possui o poder e o usa para o mal. Contudo, entre lobo e cão há um período de crepúsculo em que não se pode distinguir entre eles.
— Está bem perto da resposta — disse Halleck, notando como mais e mais gente do sietch se aglomerava na pequena sala para ouvir. — Como sabe disso?
— Porque eu conheço este planeta. Você não entende? Pense em como ele é. Debaixo da superfície existem rochas, poeira, sedimentos, areia. Essa é a memória do planeta, uma imagem de sua história. É a mesma coisa com os seres humanos. O cão relembra o lobo. Cada universo gira em torno de um núcleo do ser, e para fora desse núcleo vão todas as memórias, direto para a superfície.
— Muito interessante — disse Halleck. — Como é que isso me ajuda a cumprir minhas ordens?
— Reveja a imagem de sua história, que está dentro de você. Comunique-se como os animais o fariam.
Halleck sacudiu a cabeça. Havia integridade nesse Pregador, uma qualidade que ele reconhecera muitas vezes nos Atreides, e havia mais que um indício de que o homem estava empregando os poderes da Voz. Halleck sentiu seu coração bater mais rápido. Seria possível?
— Jessica queria um derradeiro teste através do qual o tecido subjacente de seu neto ficasse exposto — disse o Pregador. — Mas o tecido sempre esteve lá, aberto ao seu olhar.
Halleck voltou-se para fitar Leto. O movimento fora espontâneo, compelido por forças irresistíveis.
O Pregador continuava como se desse uma aula para um aluno obstinado.
— Este jovem o confunde porque não é uma criatura singular. Ele é uma comunidade. E, como qualquer comunidade sob tensão, qualquer de seus membros pode assumir o comando. Esse comando nem sempre é benigno, e assim temos nossas histórias de Abominação. Mas você já feriu bastante essa comunidade, Gurney Halleck. Não percebe que já ocorreu uma transformação? Este jovem conquistou uma cooperação interior que é extremamente poderosa e não pode ser subvertida. Sem olhos, eu vejo isso. Uma vez eu me opus a ele, agora sigo suas ordens. Ele é o Curandeiro.
— Quem é você? — quis saber Halleck.
— Eu não sou nada além do que vê. Não olhe para mim, olhe para essa pessoa que recebeu ordens para testar e ensinar. Ela foi formada pela crise. Sobreviveu a um ambiente letal. Está aqui.
— Quem é você? — insistiu Halleck.
— Eu lhe digo que olhe apenas para este jovem Atreides! Ele é o sistema de retroalimentação final do qual depende nossa espécie. Ele tornará a inserir no sistema os resultados de seus desempenhos no passado. Nenhum outro ser humano pode conhecer seus desempenhos do passado como ele os conhece. E você pensa em destruir tal pessoa!
— Recebi ordens para testá-lo e não tive...
— Mas você teve!
— E ele é uma Abominação?
Um riso cansado sacudiu o Pregador.
— Você persiste com a tolice da Bene Gesserit. Como elas criam os mitos sobre os quais dormem os homens!
— Você é Paul Atreides? — perguntou Halleck.
— Paul Atreides não existe mais. Ele tentou colocar-se como um supremo símbolo moral enquanto renunciava a todas as exigências morais. Ele se tornou um santo sem um deus, cada palavra sua uma blasfêmia. Como pode pensar...
— Porque você fala com sua voz.
— Vai testar a mim agora? Cuidado, Gurney Halleck. — Halleck engoliu em seco e forçou a atenção de volta para o impassível Leto, que permanecia calmamente observando.
— Quem está sendo testado? — — perguntou o Pregador. — Será, talvez, que Lady Jessica esteja testando você, Gurney Halleck?
Halleck achou esse pensamento profundamente perturbador, perguntando-se por que deixava que as palavras desse Pregador o influenciassem. Mas era uma coisa profunda nos servos Atreides a obediência à mística autocrática. Explicando isso, Jessica tornara o assunto ainda mais misterioso. Halleck agora sentia alguma coisa mudando dentro de si mesmo, alguma coisa cujas bordas haviam sido apenas tangenciadas pelo treinamento Bene Gesserit que Jessica lhe impusera. Uma fúria inarticulada elevou-se dentro dele. Não queria mudar!
— Qual de vocês brinca de Deus e com que finalidade? — perguntou o Pregador. Não pode confiar apenas na razão para responder essa pergunta.
De modo lento e deliberado, Halleck ergueu sua atenção de Leto para o cego. Jessica sempre dizia que ele devia atingir o equilíbrio do kairzts “tu deves tu não deves”. Ela o chamava de disciplina sem palavras nem frases, sem regras nem argumentos. Era o gume afiado de sua própria verdade interior, a tudo abrangendo. Alguma coisa na voz desse cego, seu tom, seus modos, acendera uma fúria que se queimara até restar uma calma oftuscante dentro de Halleck.
— Responda a minha pergunta — disse o Pregador. Halleck sentiu que as palavras aprofundavam sua concentração sobre esse lugar, esse momento e todas as suas exigências. Sua posição no universo era definida apenas por sua concentração. Nenhuma dúvida permaneceu nele. Esse era Paul Atreides, não morto, mas retornando. E essa não-criança, Leto. Halleck olhou uma vez mais para Leto e o viu realmente. Viu os sinais de tensão em torno dos olhos, o senso de equilíbrio em sua postura, a boca passiva com seu estranho senso de humor. Leto destacava-se do ambiente como que iluminado pelo foco de uma luz cegante. Ele conquistara a harmonia simplesmente por aceitá-la.
— Diga-me, Paul — perguntou Halleck, — sua mãe sabe?
O Pregador suspirou.
— Para a Irmandade, todos conquistam a harmonia simplesmente por aceitá-la.
— Diga-me, Paul — insistiu Halleck, — sua mãe sabe?
Novamente o Pregador suspirou.
— Para a Irmandade, toda ela, eu estou morto. Não tente me reviver.
Ainda sem olhar para ele, Halleck perguntou:
— Mas por que ela...
— Ela faz o que deve. Constrói sua própria vida julgando governar muitas vidas. Assim, todos brincamos de deus.
— Mas você está vivo — sussurrou Halleck, agora dominado por essa compreensão, voltando-se finalmente para olhar o homem, mais jovem que ele, mas tão envelhecido pelo deserto que parecia ter duas vezes a sua idade.
— O que é isto? — Paul perguntou. — Vivo?
Halleck olhou à volta para os Fremen que observavam, suas faces indecisas entre a dúvida e a admiração.
— Minha mãe nunca teve de aprender minha lição. — E era a voz de Paul. — Ser um deus pode, no final, tornar-se aborrecido e degradante. Haverá razão suficiente para a invenção do livre arbítrio! Um deus pode desejar fugir para o sono e ficar vivo apenas nas projeções inconscientes de suas criaturas de sonho.
— Mas você está vivo! — exclamou Halleck, agora mais alto. Paul ignorou a excitação na voz do velho companheiro e perguntou:
— Você teria realmente colocado este jovem contra sua irmã no teste-Mashhad? Que tolice mortal! Cada um teria dito: “Não! Mate-me! Deixe o outro viver!” E aonde esse teste levaria? Quem deveria então ficar vivo, Gurney?
— Não era esse o teste — protestou Halleck. Não gostava do modo como os Fremen se apinhavam em torno deles, observando Paul e ignorando Leto.
Mas Leto intercedia agora.
— Olhe para o tecido, pai.
— Sim... sim... — Paul erguera a cabeça como se farejasse o ar. — É Faradin, então!
— Como é fácil sentir nossos pensamentos em vez de nossos sentidos — disse Leto.
Halleck fora incapaz de seguir esse pensamento e, a ponto de perguntar, foi interrompido pela mão de Leto sobre seu braço.
— Não pergunte, Gurney. Você poderia voltar a suspeitar que sou uma Abominação. Não! Deixe acontecer, Gurney. Se tentar forçar, só vai destruir a si mesmo.
Mas Halleck sentia-se assaltado por dúvidas. Jessica o havia advertido:
“Eles podem ser muito sedutores, esses pré-nascidos. Conhecem truques que você nem mesmo sonhou.” Sacudiu a cabeça lentamente. É Paul! Deus do céu!
Paul vivo e aliado a esse ponto de interrogação que havia gerado!
Os Fremen à volta deles não podiam mais se conter. Abriram caminho entre Halleck e Paul, entre Leto e Paul, empurrando os dois para o fundo. O ar estava cheio de perguntas ásperas.
— Você é o Muad'Dib? É verdadeiramente o Muad'Dib? É verdade o que ele diz?
— Diga-nos!
— Devem pensar em mim somente como o Pregador — respondeu Paul, tentando empurrá-los para sair. — Não posso ser Paul Atreides ou o Muad'Dib nunca mais. Não sou marido de Chani nem Imperador.
Halleck, temendo o que poderia acontecer se essas perguntas frustradas não encontrassem uma resposta lógica, estava a ponto de agir quando Leto se moveu à frente dele. Foi quando Halleck viu pela primeira vez um elemento da terrível mudança que se operara em Leto. Uma voz estrondosa rugiu:
— Afastem-se!
E Leto avançou, lançando Fremen adultos para a direita e para a esquerda, derrubando-os, socando-os com suas mãos, puxando facas pelas lâminas e arrancando-as das mãos deles.
Em menos de um minuto, os Fremen que ainda estavam de pé encontravam-se pressionados contra as paredes em silenciosa consternação. Leto colocara-se ao lado do pai.
— Quando o Shai-Hulud fala, vocês obedecem — disse Leto. E quando alguns dos Fremen começaram a questionar, Leto arrancara um pedaço de rocha da parede da passagem ao lado da saída da sala e o triturara com as mãos nuas, sorrindo todo o tempo. — Eu destruiria este sietch debaixo de seus narizes — ele disse.
— O Demônio do Deserto — alguém sussurrou.
— E seus qanats — concordou Leto. — Eu os arrebentaria. Nós não estivemos aqui, estão me ouvindo?
Cabeças balançaram de um lado para o outro em aterrorizada submissão.
— Ninguém aqui nos viu — disse Leto. — Um sussurro da parte de vocês e voltarei para jogá-los no deserto sem água.
Halleck viu mãos sendo levantadas no gesto de cautela, o sinal do verme.
— Vamos partir agora, meu pai e eu, acompanhados por nosso velho amigo — disse Leto. — Preparem nosso tóptero.
E então Leto os guiara para Shuloch, explicando no caminho por que deviam agir rapidamente:
— Faradin estará aqui em Arrakis muito em breve. E, como meu pai disse, então você verá o verdadeiro teste, Gurney.
Olhando para baixo, do alto da montanha de Shuloch, Halleck se perguntava uma vez mais, como fazia todo dia:
Que teste? Que ele quis dizer?
Mas Leto não se encontrava mais em Shuloch e Paul se recusava a responder.
A Igreja e o Estado, o raciocínio científico e a fé, o indivíduo e sua comunidade, até mesmo o progresso e a tradição, tudo isso pode ser reconciliado nos ensinamentos do Muad'Dib. Ele nos ensina que não existem opostos absolutos, exceto nas crenças dos homens. Qualquer um pode penetrar nos véus do Tempo. Você pode descobrir o futuro no passado ou em sua própria imaginação. Fazendo isso, reconquista sua consciência em seu ser interior. Então fica sabendo que o universo é um todo coerente e que você é indissociável dele.
- O Pregador em Arrakeen segundo Harq al-Ada
Ghanima sentava-se longe, fora do círculo de luz das lâmpadas de especiaria, e observava o tal Buer Agarves. Não gostava do rosto redondo e das sobrancelhas agitadas, nem de seu modo de mover os pés enquanto falava, como se suas palavras fossem uma música oculta sob a qual dançasse.
“Ele não está aqui para parlamentar com Stil”, disse Ghanima a si mesma, vendo isso confirmado em cada palavra e movimento desse homem. Afastou-se mais ainda do círculo do Conselho.
Em cada sietch havia uma sala como essa, mas o salão de reuniões da djedida abandonada parecia a Ghanima um lugar apertado em razão de seu teto baixo. Sessenta pessoas do bando de Stilgar, mais nove que tinham vindo com Agarves, preenchiam somente uma extremidade do salão. Lâmpadas de óleo de especiaria lançavam uma luz refletida sobre as vigas baixas que suportavam o teto. As sombras dançavam sobre as paredes e uma fumaça acre enchia o lugar com o perfume de canela.
O encontro começara no cair da noite, depois das preces da umidade e da refeição noturna. Seguia há mais de uma hora agora, e Ghanima não conseguia sondar os motivos ocultos no desempenho de Agarves. Suas palavras pareciam bem claras, mas seus gestos e o movimento dos olhos não concordavam com elas.
Agarves estava falando agora, respondendo uma pergunta de uma das tenentes de Stilgar, uma sobrinha de Harah Chamada Rapa. Ela era uma mulher jovem e ascética, cuja boca, com os cantos voltados para baixo, lhe conferia um ar de perpétua desconfiança. Ghanima achava essa expressão satisfatória nas presentes circunstâncias.
— Certamente acredito que Alia concederá um total e completo perdão a todos vocês — dizia Agarves. — De outro modo, eu não estaria aqui com esta mensagem.
Stilgar interveio quando Rapa tentou falar uma vez mais.
— Não estou tão preocupado quanto à nossa confiança nela como estou com a confiança dela em você. — A voz de Stilgar tinha um tom queixoso. Sentia-se pouco à vontade ante essa sugestão de que recuperaria seu antigo status.
— Não importa se ela confia em mim — disse Agarves. — Para ser franco a esse respeito, não creio que confie. Passei muito tempo procurando por você sem encontrá-lo. Mas sempre senti que ela não desejava realmente que fosse capturado. Ela estava...
— Ela era a esposa do homem que matei — disse Stilgar. — Eu lhe garanto que ele pediu por isso. Podia igualmente ter caído sobre sua própria faca. Mas essa nova atitude cheira a...
Agarves dançou com os pés, o ódio pleno em sua face.
— Ela o perdoa! Quantas vezes preciso dizer? Fez com que os sacerdotes fizessem um grande espetáculo pedindo orientação divina para...
— Você só levantou outra questão. — Era Irulan falando, inclinando-se à frente de Rapa, a cabeça loura destacando-se contra a cor escura da jovem.
— Ela o convenceu, mas pode ter outros planos.
— O clero tem...
— Mas existem todas essas histórias — disse Irulan. — Que você é mais que apenas um assessor militar, que você é o seu...
— Basta! — Agarves estava fora de si de raiva. Sua mão pairou perto da faca. O conflito de emoções revelava-se abaixo da superfície de sua pele, contorcendo-lhe as feições. — Acreditem no que desejarem, mas eu não aguento aquela mulher! Ela me desonra! Ela suja tudo que toca! Fui usado, corrompido. Mas não ergui minha faca contra minha gente. Agora chega!
Vendo isso, Ghanima pensou: “Afinal, uma verdade saindo dele.”
Surpreendentemente, Stilgar começou a rir.
— Ahhh, primo. Perdoe-me, mas existe sinceridade na ira.
— Então concorda?
— Não disse isso. — Ele ergueu a mão quando Agarves ameaçou outra explosão de raiva.
— Não estou aqui sozinho, Buer, existem todos, estes outros. — Gesticulou à sua volta. — Eles são minha responsabilidade. Vamos considerar, por um momento, que reparações Alia oferece.
— Reparações? Não houve nenhuma palavra quanto a reparações. Perdão, mas não...
— Então, o que ela oferece como garantia de sua palavra?
— O Sietch Tabr e você como Naib, total autonomia e neutralidade. Ela compreende agora como...
— Não voltarei ao seu séquito nem lhe fornecerei combatentes — avisou Stilgar. — Isso está entendido?
Ghanima notou que Stilgar começava a enfraquecer e pensou: “Não Stil, não!”
— Não há necessidade disso — disse Agarves. — Alia só quer Ghanima de volta para ela é a realização da promessa de noivado que ela...
— Então é isso! — disse Stilgar, as sobrancelhas contraindo-se. — Ghanima é o preço do meu perdão. Será que ela me julga...
— Ela o julga sensato — argumentou Agarves, voltando a se sentar.
Alegremente, Ghanima pensou: “Ele não vai fazê-lo. Poupe seu fôlego. Ele não vai fazê-lo.”
Enquanto pensava nisso, Ghanima ouviu um suave farfalhar atrás dela, à esquerda. Começou a se voltar e sentiu que mãos poderosas a agarravam. Um pano grosso, fedendo a drogas narcotizantes, cobriu-lhe o rosto antes que ela pudesse gritar. A consciência se apagou enquanto ela se sentia carregada em direção a uma porta no lado mais escuro do salão. Ela pensou: “Eu devia ter calculado. Devia estar preparada!” Mas as mãos que a seguravam eram adultas e fortes. Não podia desvencilhar-se delas.
A última impressão sensorial de Ghanima foi o ar frio e um vislumbre de estrelas. Uma face envolta em manto que olhava para ela e indagava:
— Ela não foi ferida, foi?
A resposta se perdeu enquanto as estrelas giravam e corriam através de sua visão, esvaindo-se num clarão de luz que era o núcleo da sua consciência.
O Muad'Dib nos forneceu um tipo muito particular de conhecimento a respeito da visão profética, do comportamento que circunda tal visão e de sua influência sobre eventos que só vimos como “álinhados”. Isto é, eventos estabelecidos para ocorrerem dentro de um sistema relacionado que o profeta revela e interpreta) Como já se observou em outras ocasiões, tal visão opera como uma armadilha particular para o profeta. Ele pode tornar-se uma vítima daquilo que ele sabe o que é uma falha humana bastante comum. O perigo é que aqueles que prevêem acontecimentos reais podem deixar de considerar o efeito polarizador produzido por uma confiança excessiva em sua própria verdade. Eles tendem a esquecer que nada pode existir, num universo polarizado, sem apresença de seu oposto.
- A Visão presciente por Harq al-Ada
A areia soprada pelo vento erguia-se como névoa no horizonte, obscurecendo o sol nascente. Ela estava fria nas sombras das dunas. Leto encontrava-se do lado de fora do anel de palmeiras, olhando para o deserto. Sentia o cheiro do pó e o aroma das plantas espinhosas, ouvindo os sons matinais de animais e pessoas. Os Fremen não mantinham nenhum qanat nesse lugar. Só possuíam um mínimo de plantações irrigadas pelas mulheres, que carregavam a água em bolsas de pele. Sua armadilha de vento era uma coisa frágil, facilmente destruída pelos ventos das tempestades, mas facilmente reconstruída também. Uma existência dura, os rigores do comércio de especiaria e a aventura eram o modo de vida no lugar. Esses Fremen ainda acreditavam que o céu era o som da água corrente, mas nutriam um antigo conceito de liberdade que Leto compartilhava.
“A liberdade é um estado solitário”, pensou ele.
Ajustou as dobras do manto branco que cobria seu traje-destilador vivo.
Podia sentir como a membrana de truta da areia o havia mudado e, sempre que vinha esse sentimento, era forçado a dominar uma profunda sensação de perda. Não era mais totalmente humano. Coisas estranhas nadavam em seu sangue. Cílios de truta da areia haviam penetrado em cada órgão, ajustando-o, modificando-o. A própria truta também estava mudando, adaptando-se. E Leto, sabendo disso, sentia-se despedaçado pelas velhas linhas de sua humanidade perdida, sua vida apanhada numa angústia primal, com sua continuidade ancestral destruída. No entanto, conhecia a armadilha existente em permitir tal emoção. Conhecia muito bem.
“Deixe o futuro acontecer por si mesmo”, pensou. “A única regra que governa a criatividade está no próprio ato da criação.”
Era difícil afastar o olhar das areias, das dunas, do grande vazio. Ali, na extremidade do deserto, se encontravam algumas rochas, mas elas levavam a imaginação para fora, em direção aos ventos, à poeira, aos espaços e solitários animais e plantas, duna fundindo-se em duna, deserto em deserto.
De trás dele veio o som de uma flauta tocada para a prece matinal, o cântico da umidade que agora era uma serenata sutilmente adaptada ao novo Shai-Hulud. Esse conhecimento na mente de Leto conferia à música um sentido de eterna solidão.
“Eu podia apenas caminhar para dentro daquele deserto”, pensou ele.
E tudo mudaria, então. Uma direção seria tão boa como qualquer outra. Já aprendera a viver uma vida livre de posses. Tinha afiado a mística Fremen até atingir um terrível gume: tudo que levava consigo era necessário, e isso era tudo que levava. Mas não levava coisa alguma, exceto o manto em suas costas, com o anel do falcão Atreides oculto em uma das dobras, e a pele que não era a sua.
Seria fácil ir embora dali.
Um movimento no céu captou-lhe a atenção: a fenda nas pontas das asas identificou um abutre. A visão encheu-lhe o peito de mágoa. Como os Fremen selvagens, os abutres também viviam nessa terra porque era ali que haviam nascido. Não conheciam nada melhor e o deserto os moldara naquilo que eram.
Uma outra raça de Fremen, contudo, estava surgindo no rastro do Muad'Dib e de Alia. Eles eram a razão pela qual não podia permitir-se caminhar deserto adentro, como seu pai havia feito. Leto relembrou as palavras de Idaho nos primeiros dias:
— Estes Fremen são magníficos. Nunca encontrei um Fremen ganancioso.
Havia uma grande quantidade de Fremen gananciosos agora.
Uma onda de tristeza fluiu sobre Leto. Estava comprometido num curso de ação que mudaria isso tudo, mas a um preço terrível. E o controle desse rumo tornava-se cada vez mais difícil, à medida que se aproximavam do vértice.
Kralizec, a Luta do Tufão, encontrava-se adiante... mas Kralizec ou o pior seria o preço de um passo em falso.
Vozes soaram atrás de Leto, e então o som claro de uma criança falando:
— Aqui está ele.
Leto voltou-se.
O Pregador saía do palmeiral, conduzido por uma criança.
“Por que ainda penso nele como o Pregador?”, perguntou-se Leto.
A resposta estava lá, num nítido bloco de sua mente: “Porque ele não é mais o Muad'Dib, não é mais Paul Atreides.” O deserto o transformara no que ele era agora. O deserto e os chacais de Jacurutu, com suas superdoses de melange e suas constantes traições. O Pregador envelhecera antes do tempo, não a despeito da especiaria, mas por causa dela.
— Disseram que queria me ver agora — disse o Pregador, falando enquanto a criança que o guiava se detinha.
Leto olhou para a criança dos palmeirais, uma pessoa quase tão alta quanto ele próprio, dotada de uma admiração temperada pela curiosidade ávida. Os olhos jovens cintilavam, escuros, acima da máscara infantil do traje-destilador.
Leto acenou com a mão.
— Deixe-nos a sós.
Por um momento, houve um sinal de rebelião nos ombros da criança, então, a admiração e o respeito dos Fremen pela privacidade predominaram.
A criança partiu.
— Sabe que Faradin está aqui em Arrakis? — indagou Leto.
— Gurney me contou quando voamos para cá na noite passada.
E o Pregador pensou: “Como suas palavras são friamente calculadas. Ele é como eu era nos velhos dias.”
— Eu enfrento uma escolha difícil — disse Leto.
— Pensei que já tivesse feito todas as escolhas.
— Conhecemos muito bem esta armadilha, pai.
O Pregador pigarreou. As tensões revelavam-lhe como estavam perto da crise demolidora. Agora, Leto não estaria mais dependendo da visão pura e sim da administração dessa visão.
— Precisa de minha ajuda? — perguntou o Pregador.
— Sim, estou voltando para Arrakeen e gostaria de ir como seu guia.
— Com que finalidade?
— Pregaria uma vez mais em Arrakeen?
— Talvez, existem coisas que eu não disse a eles.
— Não voltará para o deserto, pai.
— Se eu for com você?
— Sim.
— Farei o que quer que você decida.
— Já pensou em tudo? Faradin estará lá, e sua mãe estará com ele.
— Sem dúvida.
Uma vez mais, o Pregador pigarreou. Era um indício de nervosismo que o Muad'Dib nunca teria permitido escapar. Essa carne estivera por muito tempo afastada do velho regime de auto-disciplina, sua mente com muita frequência arrastada à loucura por Jacurutu. E o Pregador pensou que talvez não fosse sábio retornar a Arrakeen.
— Não precisa voltar lá comigo — disse Leto. — Mas minha irmã está lá e eu preciso voltar. Você pode ir com o Gurney.
— E você iria para Arrakeen sozinho?
— Sim, preciso encontrar Faradin.
— Eu irei com você — suspirou o Pregador.
E Leto sentiu um indício da velha loucura da visão nos modos do Pregador, pensando: “Será que ele esteve fazendo o jogo da presciência?” Não. Nunca faria isso de novo. Conhecia a armadilha de um comprometimento parcial.
Cada palavra do Pregador era uma confirmação de que ele havia entregue as visões ao filho, sabendo que tudo nesse universo fora previsto.
Eram as velhas polaridades que assombravam o Pregador agora. Ele tinha fugido de paradoxo em paradoxo.
— Vamos partir dentro de alguns minutos, então — disse Leto. — Vai dizer a Gurney?
— Gurney não vai conosco?
— Quero que Gurney sobreviva.
O Pregador então se abriu para as tensões. Elas estavam no ar à sua volta, no solo sob seus pés, uma coisa móvel que se focalizava sobre essa falsa criança que era seu filho. O grito abrupto das velhas visões aguardava na garganta do Pregador.
“Esta maldita santidade!”
O sumo arenoso de seus temores não podia ser evitado. Ele sabia o que iam enfrentar em Arrakeen. Iriam jogar uma vez mais contra forças mortais, aterrorizantes, que nunca mais os deixariam ter paz.
A criança que se recusa a andar no colo do pai, esse é o símbolo da capacidade mais singular do ser humano. “Eu não tenho de ser o que meu pai era. Não tenho de obedecer às regras de meu pai ou mesmo acreditar em tudo que ele acreditara. É minha hora como ser humano que eu possa escolher por mim mesmo aquilo em que acreditar, ou o que ser e o que não ser.”
- A Biografia de Leto Atreides II por Harq al-Ada
Peregrinas dançavam ao som de flautas e tambores na praça do Templo, sem nada a lhes cobrir as cabeças, braceletes nos pescoços, vestidos finos e reveladores. Seus cabelos longos e negros eram lançados ao redor, envolvendo-lhes os rostos enquanto elas giravam.
Alia olhou para a cena do alto de seu nicho no Templo, sentindo-se a um tempo atraída e repelida. Era o meio da manhã, hora em que o aroma do café de especiaria começava a flutuar através da praça, a partir dos vendedores abrigados nas sombras dos arcos. Logo ela teria de sair para saudar Faradin, apresentar-lhe os presentes formais e supervisionar o primeiro encontro com Ghanima.
Tudo estava funcionando de acordo com o plano. Ghanima o mataria e, no choque resultante, somente uma pessoa estaria preparada para juntar os pedaços. As marionetes dançavam quando se puxavam os cordões. Stilgar tinha morto Agarves, exatamente como ela esperava que fizesse. E Agarves tinha levado os raptores à djedida sem saber, com um transmissor secreto escondido nas novas botas que ela lhe dera. Agora, Stilgar e Irulan aguardavam nas masmorras do Templo. Talvez devessem morrer, mas poderia haver outros usos para eles. Não havia mal em esperar.
Reparou no modo como os Fremen da cidade observavam as dançarinas-peregrinas lá embaixo, seus olhos atentos, sem se desviarem. Uma básica igualdade sexual viera do deserto e persistira na cidade dos Fremen, mas as diferenças sociais entre masculino e feminino já se estavam fazendo sentir. Isso também seguia de acordo com o plano. Dividir e enfraquecer.
Alia podia sentir as mudanças sutis no modo como os Fremen observavam aquelas mulheres estrangeiras em sua dança exótica.
“Deixe que olhem. Deixe que encham suas mentes com ghafla.”
As venezianas da janela de Alia tinham sido abertas e ela podia sentir o forte aumento do calor que, nessa estação, começava com o nascer do sol e chegava ao pico no meio da tarde. A temperatura no calçamento de pedra da praça ficaria muito elevada. Seria desconfortável para aquelas dançarinas, mas elas ainda rodopiavam e se curvavam, sacudindo os braços e o cabelo no frenesi de sua homenagem. Haviam dedicado sua dança a Alia, o Ventre Celestial. Uma auxiliar viera sussurrar isso para Alia, olhando com desprezo para essas mulheres estrangeiras e seus costumes peculiares.
E a ajudante explicara que as mulheres eram de Ix, onde remanescentes da ciência e da tecnologia proibidas ainda permaneciam.
Alia cheirou o ar. Aquelas mulheres eram tão ignorantes, tão supersticiosas e atrasadas quanto os Fremen do deserto... como aquela ajudante zombeteira tinha dito, tentando lisonjeá-la ao relatar a quem dedicavam a dança. E nem a ajudante nem as ixianas sabiam que Ix era meramente um número de uma linguagem esquecida.
Rindo baixinho para si mesma, Alia pensou: “Deixe que elas dancem.” A dança consumia energias que poderiam ser voltadas para ações mais destrutivas. E a música era agradável, um agudo lamento tocado contra a batida de tambores e palmas.
Subitamente, a música se afogou debaixo de um rugido de muitas vozes, do outro lado da praça. As dançarinas perderam o passo, recobrando-se numa breve confusão, mas perdendo a singela sensualidade, e mesmo a atenção delas se voltava para o portão mais afastado da praça, onde uma multidão podia ser vista espalhando-se sobre as pedras como se fosse água correndo através da válvula aberta de um qanat.
Alia olhou para a onda que se aproximava.
Agora ouvia palavras, uma delas elevando-se acima de todas as outras:
— Pregador! Pregador!
Então ela o viu, caminhando na frente da onda, uma das mãos sobre o ombro de seu jovem guia.
As dançarinas peregrinas desistiram de seus rodopios e se retiraram para os degraus dos terraços abaixo de Alia. A elas se juntou a audiência, e Alia sentia a admiração nos observadores. Sua própria emoção era o medo.
“Como ele se atreve!”
Chegou a se virar para chamar a guarda, mas outros pensamentos a detiveram. A multidão já enchia a praça. Podia tornar-se violenta se fosse frustrada em seu desejo de ouvir esse visionário cego.
Alia cerrou as mãos.
“O Pregador!” Por que Paul estava fazendo isso? Metade da população o considerava “o louco do deserto” e, portanto, sagrado. Outros sussurravam nos bazares e lojas que ele devia ser o Muad'Dib. Por que outro motivo o Mahdinato permitiria que ele proferisse tão violentas heresias?
Alia podia ver refugiados no meio da multidão, remanescentes dos sietches abandonados, seus mantos esfarrapados. Ficaria perigoso lá embaixo, erros poderiam ser cometidos.
— Senhora?
A voz vinha de trás de Alia. Ela se virou e viu Zia de pé sob o arco da porta que dava para a câmara exterior. A Guarda Armada da Casa encontrava-se atrás dela.
— Sim, Zia?
— Minha Senhora, Faradin está lá fora pedindo audiência.
— Aqui? Em meus aposentos?
— Sim, Minha Senhora.
— E ele está sozinho?
— Com dois guarda-costas e Lady Jessica.
Alia levou a mão à garganta, relembrando o último encontro com sua mãe.
Mas os tempos haviam mudado. Novas condições governavam esse relacionamento.
— Como ele é impetuoso — disse Alia. — Que razão ele deu?
— Ele ouviu a respeito do Pregador — Zia apontou para a janela sobre a praça. — Diz que lhe contaram que a Senhora tem o melhor ponto de observação.
Alia franziu a testa.
— Você acredita nisso, Zia?
— Não, Minha Senhora. Penso que ele ouviu os rumores. Quer observar sua reação.
— Minha mãe o levou a isso!
— Muito possivelmente, Minha Senhora.
— Zia, minha querida, quero que você cumpra um conjunto específico de ordens muito importantes para mim. Venha cá.
Zia aproximou-se até um passo de distância.
— Minha Senhora?
— Faça com que Faradin, sua guarda e minha mãe sejam admitidos. Em seguida, prepare-se para trazer Ghanima. Ela deve ser vestida como uma noiva Fremen em todos os detalhes, todos.
— Com uma faca, Minha Senhora?
— Com uma faca.
— Minha Senhora, isso é...
— Ghanima não representa ameaça para mim.
— Minha Senhora, há razões para crer que ela fugiu com Stilgar mais para protegê-lo do que por qualquer outra...
— Zia!
— Minha Senhora?
— Ghanima já fez seu apelo pela vida de Stilgar, e Stilgar permanece vivo.
— Mas ela é a herdeira presumível!
— Apenas execute minhas ordens. Que Ghanima esteja preparada. Enquanto estiver fazendo isso, mande cinco auxiliares do clero do Templo para a praça. Eles devem convidar o Pregador para vir até aqui. Faça com que eles aguardem uma oportunidade e falem com ele, nada mais. Não devem fazer uso da força. Quero que eles façam um convite educado. Nada de força. E, Zia...
— Minha Senhora? — como ela parecia mal-humorada agora.
— O Pregador e Ghanima devem ser trazidos à minha presença simultaneamente. Devem entrar juntos ao meu sinal. Está entendendo?
— Eu conheço o plano, Minha Senhora, mas...
— Então execute-o! Juntos. — E Alia acenou para que sua amazona saísse. Enquanto Zia se virava para sair, ela disse: — Quando sair, mande o grupo de Faradin entrar, mas cuide para que eles sejam precedidos por 10 dos nossos elementos de maior confiança.
Zia olhou para trás, mas continuou andando em direção à saída.
— Será feito como ordenou, Minha Senhora.
Alia voltou-se para olhar pela janela. Em mais alguns minutos, o plano produziria seu fruto sangrento. E Paul estaria ali quando sua filha desse o coup de grace em suas sagradas pretensões. Alia ouviu a guarda de Zia entrando. Logo, tudo estaria acabado. Tudo acabado. Olhou para baixo com um sentimento crescente de triunfo, enquanto o Pregador tomava sua posição no primeiro degrau. Seu jovem guia agachara-se ao lado dele. Alia viu os mantos amarelos dos sacerdotes do Templo aguardando à esquerda, mantidos a distância pela pressão da multidão. Mas eles eram experientes com multidões, e encontrariam um meio de se aproximarem de seu alvo. A voz do Pregador trovejou sobre a praça, e a multidão aguardou, ouvindo com arrebatada atenção. Que eles escutem! Logo suas palavras ganhariam significados diferentes do que ele pretendera. E não haveria Pregadorpara protestar.
Ouviu o grupo de Faradin entrar e a voz de Jessica.
— Alia?
Sem se voltar, Alia disse:
— Bem-vindos, Príncipe Faradin, mamãe. Venham e apreciem o espetáculo.
Olhou para trás, então, e viu o enorme Sardaukar, Tvekanik, olhando carrancudo para a guarda que lhe bloqueava o caminho.
— Mas isso não é hospitaleiro — disse Alia. — Deixem que eles se aproximem.
Dois guardas, obviamente agindo sob as ordens de Zia, vieram até junto de Alia, colocando-se entre ela e os outros. O resto da guarda moveu-se para o lado. Alia recuou para o lado direito da janela e fez um sinal.
— Este é verdadeiramente o melhor ponto de vista.
Jessica, usando o tradicional manto aba negro, olhou furiosa para Alia e escoltou Faradin para junto da janela, colocando-se entre ele e a guarda de Alia.
— Isso é muita bondade de sua parte, Lady Alia — disse Faradin. — Ouvi falar tanto a respeito desse Pregador.
— E lá está ele em carne e osso — disse Alia.
Ela notou que Faradin usava o traje cinzento de um comandante Sardaukar, cheio de condecorações. Caminhava com uma graça esguia que Alia admirava.
Talvez houvesse mais que um fútil divertimento nesse Príncipe Corrino.
A voz do Pregador ribombava na sala através dos fones amplificadores ao lado da janela. Alia sentia estremecerem seus ossos e começou a ouvir suas palavras com crescente fascinação.
— Eu me encontrei no deserto de Zan — gritou o Pregador, — naquela vastidão uivante. E Deus me ordenou que tornasse limpo aquele lugar. Pois nós fomos provocados no deserto, e ofendidos no deserto, e fomos tentados naquela vastidão desolada para que abandonássemos os nossos costumes.
“Deserto de Zan”, pensou Alia. Esse era o nome dado ao lugar da primeira provação dos Caminhantes Zensunni, dos quais se dizia que os Fremen se haviam originado. Mas suas palavras! Estaria ele assumindo o crédito pela destruição dos baluartes sietch das tribos leais?
— Bestas selvagens estendem-se sobre nossas terras! — gritou o Pregador, sua voz ribombando pela praça. — Criaturas aflitas enchem suas casas. Vocês, que fugiram de seus lares, não mais multiplicam seus dias sobre as areias. Sim, vocês, que esqueceram nossos costumes, vocês vão morrer num ninho corrompido se continuarem nessa trilha. Mas, se seguirem meu conselho, o Senhor os levará através da terra das covas até as Montanhas de Deus. Sim, Shai-Hulud os levará.
Fracos gemidos ergueram-se da multidão. O Pregador fez uma pausa, virando suas órbitas vazias de um lado para o outro e ouvindo o som. Então, abriu os braços, esticou-os e gritou:
— Oh Deus, minha carne anseia por teu rumo numa terra seca e sedenta!
Uma velha na frente do Pregador, obviamente uma refugiada pela aparência remendada e gasta de suas vestes, estendeu as mãos para ele e suplicou:
— Ajude-nos, Muad'Dib. Ajude-nos!
Sentindo um aperto de medo no peito, Alia se perguntou se a aquela velha realmente conhecia a verdade. Olhou para sua mãe, mas Jessica permanecia impassível, sua atenção dividida entre a guarda de Alia, Faradin e a vista da janela. Faradin permanecia imóvel em fascinada atenção.
Alia olhou para a janela, tentando enxergar os sacerdotes do Templo. Não pôde vê-los e suspeitou que eles abriam caminho abaixo dela, junto às portas do Templo, buscando uma rota direta através dos degraus.
O Pregador apontou a mão direita sobre a cabeça da velha e gritou:
— Vocês são a única ajuda remanescente! Vocês são rebeldes. Vocês trazem o vento seco que não limpa nem refresca. Vocês transportam a carga do nosso deserto e o redemoinho se lança daquele lugar, daquela terra terrível. Eu estive naquela vastidão. A água corre sobre a areia, saída dos qanats rompidos. Arroios sulcam o solo. Agua que caiu do céu no Cinturão de Duna! Ah, meus amigos, Deus me ordenou. Cave no deserto uma rodovia que leve diretamente ao nosso Senhor, pois eu sou a voz que os chama da desolação.
Ele apontou para os degraus abaixo de seus pés, com o dedo trémulo.
— Esta não é uma djedida perdida, que nunca mais será habitada! Aqui nós comemos o pão celestial. E aqui o ruído dos estrangeiros nos tirou de nossas casas! Eles criaram para nós a desolação, uma terra que nenhum homem habita, em que nenhum homem passará.
A multidão se agitava desconfortavelmente, refugiados e Fremen da cidade, olhando para os peregrinos do Hajj que se destacavam entre eles.
“Ele pode começar um distúrbio sangrento!”, pensou Alia. “Bem, deixe-o, meus sacerdotes podem agarrá-lo na confusão.”
Então ela viu os cinco sacerdotes, um nó apertado de mantos amarelos abrindo caminho nos degraus por trás do Pregador.
— As águas que derramamos sobre o deserto converteram-se em sangue — dizia o Pregador, sacudindo os braços abertos. — Sangue sobre nossa terra! Olhem nosso deserto que podia desabrochar e nos alegrar. Ele atraiu o estrangeiro e o seduziu em nosso meio. Eles vêm para a violência! Seus rostos se fecham como se esperassem o último vento do Kralizec! Eles coletam a escravidão das areias. Eles sugam a abundância da areia, o tesouro escondido em suas profundezas. Olhem para eles enquanto prosseguem em seu trabalho maligno. Pois está escrito: “E eu me coloquei sobre a areia e vi a besta se erguer, e sobre a cabeça dessa besta estava o nome de Deus!”
Murmúrios furiosos ergueram-se da multidão. Punhos levantaram-se e se sacudiram.
— Que ele está fazendo? — sussurrou Faradin.
— Eu queria saber — disse Alia.
Ela levou a mão ao peito, sentindo a temerosa excitação desse momento. A multidão ia voltar-se contra os peregrinos se ele continuasse com isso!
Mas o Pregador se virou e apontou as órbitas vazias na direção do Templo, erguendo a mão para a alta janela de onde Alia observava.
— Uma blasfêmia permanece! — gritou. — Blasfêmia! E o nome da blasfêmia é Alia!
Um silêncio chocado dominou a praça.
Alia ficou imóvel, consternada. Sabia que a multidão não poderia vê-la, mas se sentiu exposta, dominada por um sentimento de vulnerabilidade. Os ecos das palavras tranquilizadoras dentro de seu crânio competiam com as batidas de seu coração. Só podia olhar para aquela cena incrível. O Pregador permanecia com a mão apontada para a janela.
Mas suas palavras haviam sido demasiadas para os sacerdotes. Eles quebraram o silêncio com gritos furiosos e desceram os degraus, lançando as pessoas para os lados. Enquanto eles se moviam, a multidão reagia, quebrando-se como uma onda sobre os degraus, arrastando as primeiras linhas de observadores e levando o Pregador à sua frente. Ele tropeçava cegamente, separado de seu jovem guia. Então, um braço com a manga amarela elevou-se no aperto da massa, na mão uma faca cristalina. Ela viu a faca golpear para baixo, enterrando-se no peito do Pregador.
O estrondo trovejante das gigantescas portas do Templo sendo fechadas tirou Alia do estado de choque. A guarda, obviamente, tinha fechado as portas contra o assalto da multidão. Mas as pessoas já estavam recuando, abrindo espaço em torno da figura caída sobre os degraus. Um silêncio estranho desceu sobre a praça. Alia via muitos corpos, mas somente esse se destacava por si mesmo.
Então, uma voz gritou no meio da multidão:
— Muad'Dib! Mataram o Muad'Dib!
— Deus! — exclamou Alia, trêmula. — Deus do céu!
— Um pouco tarde para isso, não acha? — indagou Jessica. Alia virou-se bruscamente, notando a reação espantada de Faradin ao ver a ira em seu rosto.
— Aquele que eles mataram era Paul! — gritou Alia. — Aquele era seu filho! Quando confirmarem isso, sabe o que vai acontecer?
Jessica permaneceu imóvel por um longo momento, pensando haver escutado alguma coisa que já sabia. A mão de Faradin sobre seu ombro destruiu o momento.
— Minha Senhora — ele disse, e havia tamanha compaixão em sua voz que Jessica pensou que poderia morrer disso ali mesmo.
Seus olhos correram da raiva fria no rosto de Alia para a tristeza e a compaixão nas feições de Faradin, e pensou: “Talvez eu tenha feito meu trabalho bem demais.”
Não havia como duvidar das palavras de Alia. Jessica lembrava-se de cada entonação na voz do Pregador, ouvindo nela seus próprios truques, os longos anos de instrução que ela consumira com um jovem destinado a ser o Imperador, mas que agora se reduzira a um monte destroçado de trapos sangrentos sobre os degraus do Templo.
“Ghafla cegou-me”, pensou Jessica.
Alia gesticulou para uma de suas auxiliares.
— Tragam Ghanima, agora.
Jessica forçou-se a identificar o significado dessas palavras: “Ghanima?
Por que Ghanima agora?”
A ajudante voltou-se para a porta externa, fazendo sinal para que fosse aberta, mas antes que se pudesse pronunciar uma palavra a porta inchou, as dobradiças saltaram. Uma barra se partiu e a porta, uma espessa massa de plasteel, feita para aguentar energias terríveis, caiu dentro do aposento. Guardas saltaram para evitar-lhe o impacto, sacando suas armas.
Jessica e os guarda-costas de Faradin reuniram-se em torno do Príncipe Corrino.
Mas a abertura revelava apenas duas crianças: Ghanima à esquerda, vestida em seu manto negro de noivado, e Leto à direita, o cinza brilhante de um traje-destilador abaixo de um manto branco sujo pelo deserto.
Alia olhou para a porta derrubada e para as crianças, e descobriu-se tremendo incontrolavelmente.
— A família está aqui para nos saudar — disse Leto. — Vovó — ele acenou para Jessica e voltou sua atenção para o Príncipe Corrino. — E este deve ser o Príncipe Faradin. Bem-vindo a Arrakis, Príncipe.
Os olhos de Ghanima pareciam vazios. Ela mantinha a mão direita sobre a faca cerimonial em sua cintura, e parecia estar tentando escapar de Leto, que lhe segurava o braço. Leto sacudiu-lhe o braço e todo o seu corpo tremeu.
— Olhem para mim, membros da família — disse Leto. — Eu sou Ari, o Leão dos Atreides. E aqui... — Novamente sacudiu o braço de Ghanima com aquela poderosa facilidade que fazia todo o corpo dela estremecer... — aqui está Aryeh, a Leoa Atreides. Viemos para colocá-los no Secher Nbiw, o Caminho Dourado.
Ghanima, absorvendo as palavras-chaves, Secher Nbiw, sentiu a consciência fluir solta em sua mente. Foi um fluxo de precisão linear, com a consciência interior de sua mãe flutuando, ao lado dela, uma guardiã no portal. E Ghanima soube naquele instante que havia conquistado seu passado vociferante. Tinha um portal através do qual poderia olhar, quando necessitasse, para aquele passado. Os meses de supressão auto-hipnótica haviam construído para ela um lugar seguro do qual podia dominar a própria carne. Começou a se voltar para Leto, com a necessidade de explicar isso que estava a impulsioná-la, quando se tornou consciente de onde estava e com quem. Leto soltou-lhe o braço.
— Nosso plano funcionou? — sussurrou Ghanima.
— Suficientemente bem — respondeu Leto. Recuperando-se do choque, Alia gritou para um grupo da guarda à sua esquerda:
— Prendam-nos!
Mas Leto se abaixou, pegou a porta caída com uma das mãos e a lançou, escorregando através do aposento, em direção aos guardas. Dois deles foram esmagados contra a parede. Os outros fugiram, aterrorizados. A porta pesava meia tonelada e aquela criança a tinha jogado.
Alia, tornando-se consciente de que o corredor além da porta continha guardas caídos, percebeu que Leto devia ter cuidado deles, que aquela criança havia destruído uma porta inexpugnável.
Jessica também vira os corpos, o espantoso poder de Leto, e chegara a conclusões similares, mas as palavras de Ghanima tocavam um núcleo de disciplina Bene Gesserit que forçava Jessica a manter a compostura. Esse neto falava de um plano.
— Que plano? — indagou Jessica.
— O Caminho Dourado, nosso plano imperial para o nosso Império — respondeu Leto, e então acenou para Faradin. — Não pense mal de mim, primo. Estou agindo por você também. Alia esperava que Ghanima o matasse. Prefiro que você viva a sua vida com algum grau de felicidade.
Alia gritou para seus guardas encolhidos na passagem:
— Eu ordeno que os prendam!
Mas os guardas recusaram-se a entrar no aposento.
— Espere por mim aqui, mana — disse Leto. — Tenho uma tarefa desagradável a realizar.
E caminhou em direção a Alia.
Ela recuou para um canto e se agachou, sacando sua faca. As jóias verdes de seu cabo faiscavam à luz que vinha da janela.
Leto apenas continuou a avançar, as mãos vazias, mas preparadas.
Alia saltou com a faca.
Leto pulou quase até o teto e golpeou com o pé esquerdo. Atingiu Alia com um golpe de raspão na cabeça que a lançou ao chão com uma marca sangrenta na testa. A faca escapou-lhe da mão e deslizou pelo piso. Alia correu atrás da faca, mas encontrou Leto de pé à sua frente.
Alia hesitou, reunindo tudo que sabia do treinamento Bene Gesserit. Levantou-se com o corpo frouxo e preparado.
Uma vez mais, Leto avançou sobre ela.
Alia fingiu que golpeava para a esquerda, mas seu ombro direito se ergueu e o pé direito lançou-se num chute preciso, que teria estripado um homem se o acertasse com precisão.
Leto aparou o golpe com o braço e agarrou-lhe o pé, erguendo-a por ele e girando Alia acima de sua cabeça. A velocidade com que a girava no ar, segura pelo pé, produziu um som de panos batendo e assoviando através do aposento, enquanto o manto dela golpeava seu próprio corpo.
Os outros se abaixaram, afastando-se.
Alia gritava e gritava, mas ainda assim ele continuava a girá-la. Daí a pouco ela silenciou.
Lentamente, Leto reduziu a velocidade dos giros e a abaixou gentilmente até o chão. Ela caiu encolhida e ofegante.
Leto inclinou-se sobre ela.
— Eu poderia tê-la atirado através de uma parede — ele disse. — Talvez isso tivesse sido melhor, mas agora nos encontramos no centro da luta. Você merece a sua chance.
Os olhos de Alia moviam-se loucamente de um lado para o outro.
— Eu conquistei aquelas vidas interiores — disse Leto. — Olhe para Ghani. Ela também pode...
Ghanima interrompeu:
— Alia, posso mostrar a você.
Não.
A palavra foi arrancada de Alia. Seu peito subia e descia, arfante, e vozes começaram a sair de sua boca. Eram desconexas, praguejando e suplicando.
— Você viu! Por que não ouviu?
E novamente:
— Por que está fazendo isso? Que está acontecendo?
E outra voz:
— Detenha-os! Faça-os parar!
Jessica cobriu os olhos e sentiu a mão de Faradin a apoiá-la. Alia ainda delirava:
— Eu vou matá-lo!
Maldições terríveis escapavam de sua boca.
— Vou beber o seu sangue!
E os sons de muitos idiomas começaram a sair dela, todos misturados e confusos.
Os guardas apinhados na passagem externa fizeram o sinal do verme, em seguida levaram os punhos fechados à orelha. Ela estava possuída!
Leto levantou-se, sacudindo a cabeça. Caminhou até a janela e, com três rápidos golpes, espatifou o vidro reforçado com cristal, supostamente inquebrável, de sua moldura.
Uma aparência matreira surgiu no rosto de Alia. Jessica ouviu alguma coisa como sua própria voz partindo daquela boca contorcida, uma paródia do controle Bene Gesserit.
— Todos vocês! Fiquem onde estão!
Abaixando as mãos, Jessica encontrou-as úmidas de lágrimas. Alia rolou de joelhos, ficando de pé.
— Não sabem quem eu sou? — perguntou ela. Era sua antiga voz, aquela voz suave e musical da jovem Alia que não mais existia. — Por que estão todos olhando para mim desse jeito? — Voltou os olhos suplicantes para Jessica. — Mãe, faça-os parar.
Jessica só conseguia sacudir a cabeça de um lado para o outro, consumida pelo derradeiro horror. Todas aquelas antigas advertências da Bene Gesserit eram verdadeiras. Olhou para Leto e Gham, lado a lado, junto de Alia. O que tais avisos significariam para esses pobres gêmeos?
— Vovó — disse Leto, e havia uma súplica em sua voz. — Devemos ter um julgamento de Possessão?
— Quem é você para falar em julgamento? — perguntou Alia, e sua voz era a de um homem queixoso, um homem autocrático e sensual, profundamente mergulhado na auto-indulgência.
Leto e Ghanima reconheceram a voz. O Velho Barão Harkonnen. Ghanima ouviu a mesma voz começando a ecoar em sua própria cabeça, mas o portal interior foi fechado, e ela sentiu sua mãe de guarda lá dentro.
Jessica permaneceu em silêncio.
— Então, a decisão é minha — disse Leto. — E a escolha é sua, Alia. Julgamento de Possessão ou... — Ele acenou em direção à janela aberta.
— Quem é você para me oferecer uma escolha? — perguntou Alia, e sua voz ainda era a do Barão.
— Demônio! — gritou Ghanima. — Deixe ela fazer sua própria escolha!
— Mamãe — suplicou Alia com sua voz de garotinha. — Mamãe, o que eles estão fazendo? O que você quer que eu faça? Ajude-me.
— Ajude-se você mesma — ordenou Leto, e por um instante ele viu a presença fragmentada de sua tia nos olhos dela, um olhar de desesperança que o fitou e se foi.
Mas o corpo dela se movia rígido, forçado. Ela oscilou, tropeçou, afastou-se de seu caminho, mas retornou a ele, cada vez mais perto da janela aberta.
Agora, a voz do Velho Barão escapava-lhe dos lábios:
— Pare! Pare, eu digo! Eu lhe ordeno! Pare! Sinta isto! — Alia levou as mãos à cabeça e cambaleou mais próxima da janela. Tinha a sacada contra suas coxas, então, mas a voz ainda delirava.
— Não faça isso! Pare e eu a ajudarei. Tenho um plano. Escute-me. Pare, eu digo. Espere! — Mas Alia afastou as mãos da cabeça, agarrou a moldura da janela e, num movimento convulsivo, empurrou o corpo sobre o parapeito e se foi. Nem mesmo um grito lhe escapou enquanto caía.
Na sala, eles ouviram a multidão gritar, a pancada úmida quando Alia atingiu os degraus lá embaixo. Leto olhou para Jessica.
— Nós lhe dissemos para ter pena dela.
Jessica se virou e mergulhou o rosto na túnica de Faradin.
O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela uma perigosa ignorância. Essa tem sido frequentemente a abordagem ignorante daqueles que Chamam a si mesmos de cientistas e tecnólogos.
- O Jihad Butleriano por Harq al-Ada
— Ele corre à noite, primo, — disse Ghanima. — Ele corre. Já o viu correndo?
— Não, — respondeu Faradin.
Ele esperava com Ghanima fora do pequeno salão de audiências do Castelo, para onde Leto os convocara. Tvekanik encontrava-se a um lado, desconfortável junto a Lady Jessica, que parecia distante, como se sua mente vivesse num outro lugar. Passava pouco mais de uma hora dá refeição matinal, mas muitas coisas já tinham sido colocadas em movimento. Uma chamada à Corporação, mensagens para a CHOAM e a Landsraad.
Faradin achava difícil entender esses Atreides. Lady Jessica o havia advertido, mas a realidade deles ainda o deixará intrigado. Eles ainda falavam em noivado, embora a maioria das razões políticas para isso parecesse se haver dissolvido. Leto ia assumir o trono, poucas dúvidas pareciam restar quanto a isso. Sua estranha pele viva teria de ser removida, é claro... mas, com o tempo...
— Ele corre para se cansar — disse Ghanima — É o Kralizec personificado. Nenhum vento jamais correu como ele corre. Ele é um borrão no topo das dunas. Já o vi. Ele corre e corre. E quando fica exausto, finalmente retorna e repousa a cabeça no meu colo “Peça à nossa mãe, dentro de você, para que ela ache um meio de eu morrer”, ele suplica.
Faradin olhou para ela. Na semana que se passara, desde o distúrbio na praça, o Castelo agitava-se com estranhos ritmos, misteriosas idas e vindas. Havia histórias sobre lutas violentas além da Muralha Escudo, que chegavam a ele através de Tvekanik, cuja assessoria militar fora solicitada.
— Eu não entendo você — disse Faradin. — Encontrar um meio para ele morrer?
— Ele me pediu que o preparasse — respondeu Ghanima. Não era a primeira vez que ela se impressionava com a curiosa inocência desse Príncipe Corrino. Seria algo que Jessica fizera ou alguma coisa nata nele?
— Para o quê?
— Ele não é mais humano — explicou Ghanima. — Ontem você me perguntou quando ele ia remover a pele viva. Nunca. É parte dele agora, e ele é parte dela. Leto calcula que talvez tenha 4 mil anos de vida antes que a metamorfose o destrua.
Faradin tentou engolir, sentindo a garganta seca.
— Percebe por que ele corre? — indagou Ghanima.
— Mas se ele vai viver tanto tempo e ser tão...
— Porque a memória como ser humano é muito rica dentro dele. Pense em todas aquelas vidas, primo. Não. Você não pode imaginar o que é porque não tem experiência disso. Mas eu sei. Eu posso imaginar sua dor. Ele deu mais que qualquer um antes dele. Nosso pai caminhou para o deserto, tentando fugir disso. Alia tornou-se uma Abominação pelo medo que sentia. Nossa avó possui apenas uma infância indistinta nessa condição, e no entanto deve usar cada ardil Bene Gesserit para viver com isso que é para o que serve o treinamento de Reverenda Madre. Mas Leto! Ele está completamente só, nunca haverá nada igual.
Faradin sentia-se atordoado por essas palavras. Imperador por 4 mil anos?
— Jessica sabe — disse Ghanima, olhando para a avó. — Ele contou a ela na noite passada.
— Chamou a si mesmo de primeiro autêntico planejador a longo prazo na história humana.
— O que... ele planeja?
— O Caminho Dourado. Ele lhe explicará depois.
— E ele tem um papel para mim... nesse plano?
— Como meu marido — disse Ghanima. — Ele está assumindo o programa de procriação controlada da Irmandade. Tenho certeza de que minha avó lhe falou a respeito do sonho da Bene Gesserit de uma Reverenda do sexo masculino com poderes extraordinários. Ele está...
— Você quer dizer que nós vamos ser apenas...
— Não apenas. — Ela segurou-lhe o braço, apertando-o com calorosa familiaridade. — Ele vai ter muitas tarefas de grande responsabilidade para nós. Isto é, quando não estivermos produzindo filhos.
— Bem, você é um pouco jovem ainda — disse Faradin, retirando o braço.
— Nunca mais cometa esse erro — ela disse, e havia um tom gelado em sua voz.
Jessica aproximou-se deles com Tvekanik.
— Tvek contou-me que a luta se espalhou para fora do planeta — disse Jessica. — O Templo Central de Biarek encontra-se sitiado.
Faradin achou-a estranhamente calma ao fazer tal declaração. Ele revira os relatórios com Tvekanik durante a noite. O fogo selvagem da rebelião estava se espalhando pelo Império. Seria apagado, é claro, mas Leto teria um triste Império para restaurar.
— Aí vem Stilgar — disse Ghanima. Eles estavam esperando por ele. E uma vez mais segurou o braço de Faradin.
O velho Naib Fremen havia entrado pela porta mais afastada, escoltado por dois antigos Comandos da Morte, companheiros de seus dias no deserto.
Todos estavam vestidos com mantos negros formais, com fímbrias brancas e tiras amarelas na cabeça, em sinal de luto. Aproximaram-se com passos firmes, mas Stilgar mantinha sua atenção sobre Jessica. Parou diante dela e inclinou a cabeça, atencioso.
— Você ainda se preocupa com a morte de Duncan Idaho — disse Jessica. Não apreciava essa preocupação em seu velho amigo.
— Reverenda Madre — ele disse.
“De modo que vai ser desse jeito!”, pensou Jessica. “Tudo formal e de acordo com o código Fremen, com sangue difícil de eliminar.”
Ela disse:
— Do nosso ponto de vista, você apenas desempenhou o papel para o qual Duncan o escolheu. Não é a primeira vez que um homem dá a sua vida pelos Atreides. Por que eles o fazem, Stil? Você esteve pronto para isso mais de uma vez. Por quê? Será que vocês sabem o quanto os Atreides dão em troca?
— Fico feliz pelo fato de a senhora não buscar desculpa para a vingança — respondeu Stilgar. — Mas esses são assuntos que devo discutir com seu neto. Esses assuntos podem separar-nos de vocês para sempre.
— Quer dizer que Tabr não irá homenageá-lo? — perguntou Ghanima.
— Quero dizer que reservo meu julgamento. — Olhou friamente para Ghanima. — Não gosto daquilo em que meus Fremen se tornaram — resmungou. — Voltaremos aos nossos velhos costumes. Sem vocês, se for preciso.
— Por algum tempo, talvez — disse Ghanima. — Mas o deserto está morrendo, Stil. O que vocês vão fazer quando não houver mais vermes, não houver mais deserto?
— Não acredito nisso!
— Dentro de mais 100 anos — disse Ghanima, — haverá pouco mais de 50 vermes, e estes serão doentes, mantidos em reservas cuidadosamente preservadas. Sua especiaria será apenas para a Corporação Espacial, e o preço... — Ela sacudiu a cabeça. — Vi os números de Leto. Ele esteve pelo planeta inteiro. Ele sabe.
— Esse é outro truque para manter os Fremen como seus vassalos?
— Quando é que você foi meu vassalo? — indagou Ghanima. Stilgar franziu a testa. Não importava o que ele fizesse ou dissesse, esses gêmeos sempre faziam parecer um erro seu!
— Na noite passada ele me contou a respeito de seu Caminho Dourado — disse Stilgar intempestivamente. — Não gostei dele!
— Isso é estranho — comentou Ghanima, olhando para a avó. — A maior parte do Império vai lhe dar as boas-vindas.
— Destruição para todos nós — murmurou Stilgar.
— Mas todos anseiam pela Idade de Ouro — disse Ghanima. — Não é assim, vovó?
— Todos — concordou Jessica.
— Eles desejam o Império Faraônico que Leto lhes proporcionará — continuou Ghanima.
— Desejam uma paz rica, com colheitas abundantes, comércio pleno e igualdade para todos, exceto o Governante Dourado.
— Será a morte dos Fremen! — protestou Stilgar.
— Como pode dizer isso? Não vamos precisar de soldados e homens de bravura para enfrentar uma insatisfação ocasional? Por quê, Stil? Você e os bravos companheiros de Tvek serão duramente pressionados para fazerem o trabalho.
Stilgar olhou para o oficial Sardaukar e uma estranha luz de compreensão passou entre eles.
— E Leto controlará a especiaria — relembrou-lhes Jessica.
— Ele a controlará totalmente — acrescentou Ghanima.
Faradin, ouvindo com a nova percepção que Jessica lhe ensinara, sentiu uma coisa ensaiada, um espetáculo preparado entre Ghanima e a avó.
— A paz vai perdurar, perdurar e perdurar — continuou Ghanima. — A memória da guerra quase desaparecerá. Leto conduzirá a humanidade através desse jardim por pelo menos 4 mil anos.
Tvekanik lançou um olhar indagador para Faradin e pigarreou.
— Sim, Tvek? — perguntou Faradin.
— Eu queria falar com o senhor em particular, Meu Príncipe. — Faradin sorriu, conhecendo a pergunta que estaria na mente militar de Tvekanik, sabendo que pelo menos dois outros entre os presentes também reconheceriam essa questão.
— Eu não vou vender os Sardaukar — ele disse.
— Não é preciso — disse Ghanima.
— Escutou essa criança? — perguntou Tvekanik.
Estava indignado. O velho Naib ali entendia os problemas trazidos por toda essa trama, mas ninguém mais conhecia nada da situação!
Ghanima sorriu severamente e disse:
— Diga-lhe, Faradin.
Faradin suspirou. Era fácil esquecer a estranheza dessa criança que não era criança. Podia imaginar uma vida inteira casado com ela, as reservas ocultas em cada intimidade. Não era uma perspectiva totalmente agradável, mas ele estava começando a reconhecer sua inevitabilidade. O absoluto controle dos suprimentos de especiaria, que se estavam reduzindo! Nada se moveria no universo sem a especiaria.
— Depois, Tvek — disse Faradin.
— Mas...
— Depois, eu disse! — Pela primeira vez ele usou a Voz com Tvekanik, viu o homem piscar, surpreso, e ficar em silêncio.
Jessica controlou um sorriso.
— Ele fala de paz e morte ao mesmo tempo — murmurou Stilgar. — Idade de Ouro!
Ghanima disse:
— Ele vai liderar os seres humanos através do culto da morte até o ar livre da vida exuberante! Ele fala de morte porque isso é necessário, Stil. É uma tensão através da qual os vivos saberão que estão vivos. E quando seu Império cair... Oh, sim, ele cairá. Você pensa que isto agora é o Kralizec, mas o Kralizec ainda virá. E quando vier os seres humanos terão renovada sua memória de o que é estar vivo. E a memória persistirá enquanto existir um único ser humano vivo. Nós passaremos por essa prova uma vez mais, Stil. E sairemos dela. Sempre nos erguemos de nossas próprias cinzas. Sempre.
Faradin, ouvindo suas palavras, agora entendia o significado do que ela dissera a respeito de Leto correndo. “Ele não será humano.”
Stilgar ainda não se convencera.
— A extinção dos vermes — resmungou.
— Ah, os vermes voltarão — assegurou Ghanima. — Todos estarão mortos dentro de 200 anos, mas retornarão.
— Como... — Stilgar não terminou a frase.
Faradin sentiu sua mente inundada pela revelação. Ele sabia o que Ghanima ia dizer, antes que ela falasse.
— A Corporação apenas sobreviverá nos anos mais difíceis, e somente por causa de suas reservas e das nossas — explicou ela. — Mas haverá abundância após o Kralizec. E os vermes retornarão depois que meu irmão voltar às areias.
Como aconteceu com tantas outras religiões, o Elixir Dourado da Vida do Muad'Dib degenerou numa mágica exterior. Seus signos místicos tornaram-se meros símbolos para profundos processos psicológicos, e esses processos, é claro, descontrolaram-se. O que eles necessitavam era de um deus vivo, e não possuíam um. Uma situação que o filho do Muad'Dib tem corrigido.
- Declaração atribuída a Lu Tungpm (Lu, o Hóspede da Caverna)
Leto estava sentado no trono do Leão para aceitar a homenagem das tribos.
Ghanima encontrava-se ao seu lado, um degrau abaixo. A cerimônia no Grande Salão prosseguiu por horas. Tribo após tribo, os Fremen passaram diante dele, através de seus delegados e seus Naibs. Cada grupo trazia presentes adequados a um deus dotado de terríveis poderes. Um deus da vingança que lhes prometia a paz.
Ele os assustara até a submissão na semana anterior, realizando seus feitos para a arifa reunida de todas as tribos. Os juizes o tinham visto caminhar através de um fosso de fogo e emergir ileso para demonstrar que sua pele não tinha marcas, convidando-os a observá-lo de perto. Ordenara então que eles o golpeassem com facas, e sua pele impenetrável cobrira-lhe o rosto enquanto eles o esfaqueavam inutilmente. Ácidos escorreram sobre ele deixando apenas uma leve névoa. Ele tomara seus venenos e rira deles.
No final, chamara um verme e ficara em frente a ele, olhando-o na boca.
Caminhara então até o campo de pouso de Arrakeen, onde atrevidamente derrubara uma fragata da Corporação, erguendo-a por uma de suas aletas de pouso.
A arifa relatara tudo isso com uma admiração temerosa, e agora os delegados tribais vinham para selar sua submissão.
O espaço abobadado do Grande Salão, com seus sistemas de isolamento acústico, tendia a absorver ruídos agudos, mas um constante arrastar de pés se movendo insinuava-se nos sentidos, juntamente com a poeira e ,os odores de pedra pulverizada trazidos do exterior.
Jessica, que se recusara a participar, observava de um alto orifício de espionagem atrás do trono. Sua atenção fora captada por Faradin e pela compreensão de que ambos, ela e Faradin, haviam sido manobrados. É claro que Leto e Ghanima haviam previsto as ações da Irmandade! Os gêmeos podiam consultar dentro de si próprios um conjunto de Bene Gesserits maior do que todas as que agora viviam no Império.
Ela sentia uma amargura especial pelo modo como a mitologia da Irmandade havia levado Alia à destruição. “Medo erguido sobre o medo!” Os hábitos de gerações haviam imprimido nela o destino da Abominação. Alia não conhecera qualquer esperança e é claro que havia sucumbido. O destino dela tornava a conquista de Leto e Ghanima ainda mais difícil de aceitar.
Não apenas um escapara à armadilha, mas dois. A vitória de Ghanima sobre suas vidas interiores e sua insistência em que Alia só merecia piedade eram a coisa mais amarga de todas. A supressão hipnótica sob tensão, aliada ao namoro de um ancestral benigno, tinha salvado Ghanima. Isso podia ter salvo Alia, mas, sem esperanças, nada fora tentado, até que fosse muito tarde. A água de Alia fora derramada na areia.
Jessica suspirou e voltou sua atenção para Leto, no trono. Um gigantesco canopo, contendo a água do Muad'Dib, ocupava um lugar de honra à sua direita. Ele se gabara para Jessica de que seu pai dentro dele rira desse gesto, ainda que o admirasse.
A jarra e a ostentação haviam firmado sua resolução de não participar da cerimônia. Enquanto vivesse, sabia que nunca aceitaria Paul falando pela boca de Leto. Estava alegre pelo fato de a Casa Atreides ter sobrevivido, mas as coisas-que-podiam-ter-sido eram demais para que pudesse suportar.
Faradin estava sentado com as pernas cruzadas ao lado da jarra com a água do Muad'Dib. Era a posição do escriba real, honraria recentemente concedida e aceita.
Faradin sentia que se ajustava muito bem a essa nova realidade, embora Tvekanik ainda estivesse furioso e previsse terríveis consequências.
Tvekanik e Stilgar haviam formado uma sociedade na desconfiança que parecia divertir Leto.
Nas horas da cerimônia de homenagem, Faradin passara da admiração ao tédio, e de volta à admiração. Eram um interminável fluxo de humanidade, esses inigualáveis combatentes. Sua lealdade renovada ao Atreides no trono não podia ser questionada. Colocavam-se em submisso terror diante dele, totalmente amedrontados pelo que a arifa tinha relatado.
A cerimônia foi atingindo o seu término. O último Naib colocou-se diante de Leto Stilgar, na “posição de honra à retaguarda”. Em vez de cestos carregados de especiaria, jóias de fogo ou qualquer outro presente caro, como os que se encontravam em montes ao redor do trono, Stilgar trazia uma faixa de pano para a testa, feita de fibra de especiaria trançada. O Falcão Atreides fora bordado nela em verde e ouro.
Ghanima o reconheceu e olhou de lado para Leto.
Stilgar deixou a faixa no segundo degrau abaixo do trono e se curvou.
— Eu lhe trago a faixa usada por sua irmã quando a levei para o deserto a fim de protegê-la, — ele disse.
Leto controlou um sorriso..
— Sei que você atravessou um período difícil, Stilgar — disse Leto. — Existe alguma coisa aqui que você deseje receber como pagamento? — E indicou as pilhas de dispendiosos presentes.
— Não, Meu Senhor.
— Eu aceito seu presente, então — disse Leto. Inclinou-se para diante, pegou a bainha do manto de Ghanima e lhe arrancou uma fina tira. — Eu lhe dou em troca uma tira do manto de Ghanima. O manto que ela usava quando foi raptada de seu acampamento no deserto, forçando-me a salvá-la.
Stilgar aceitou o pano com a mão trêmula.
— Zomba de mim, Meu Senhor?
— Zombar de você? Por meu nome, Stilgar, eu nunca zombaria de você. Eu lhe dei uma dádiva sem preço. Eu lhe ordeno que a leve sempre junto a seu coração, como uma lembrança de que todos os seres humanos são sujeitos a erro e que todos os lideres são humanos.
Um fino riso escapou de Stilgar.
— Que Naib o senhor teria dado!
— Que Naib eu sou! Naib dos Naibs. Nunca se esqueça disso!
— Como diz, Meu Senhor! — E Stilgar engoliu em seco, relembrando o relatório da arifa. E pensou. “Uma vez eu pensei em matá-lo. Agora, é muito tarde.”
Seu olhar voltou-se para a jarra, de um dourado opaco e gracioso, com o topo verde.
— Aquela é água da minha tribo.
— E da minha — disse Leto. — Eu lhe ordeno que leia a inscrição. Leia alto, para que todos possam ouvir.
Stilgar lançou um olhar indagador para Ghanima, mas ela o devolveu erguendo o queixo, uma fria resposta que o fez sentir um arrepio.
Estariam esses moleques Atreides tentando pegá-lo para responder por sua impetuosidade e seus enganos?
Leia insistiu Leto, apontando.
Lentamente, Stilgar subiu os degraus e se curvou para olhar a jarra. Daí a pouco ele leu em voz alta:
— Esta água é a derradeira essência, fonte de criatividade fluindo para o exterior. Embora imóvel, simboliza todo o movimento. — E sussurrou para Leto: — O que isto significa, Meu Senhor?
Sentia-se admirado com as palavras, tocado dentro de si próprio num lugar que não podia entender.
— O corpo do Muad'Dib é uma concha oca, como a que é abandonada por um inseto — explicou Leto. — Ele dominou o mundo interior enquanto desprezava o exterior, e isso levou à catástrofe. Ele dominou o mundo exterior enquanto excluía o mundo interior, e isso entregou seus descendentes aos demônios. O Elixir Dourado desaparecerá de Duna, e no entanto a semente do Muad'Dib prossegue, e sua água move o nosso universo.
Stilgar curvou a cabeça. Coisas místicas sempre o deixavam confuso.
— O início e o fim são unos — continuou Leto. — Você vive no ar, mas não o vê. Uma fase terminou. E desse término se desenvolve o início do seu oposto. Assim, nós teremos o Kralizec. E tudo retornará depois, de uma forma alterada. Você sente pensamentos em sua cabeça, seus descendentes os sentirão em seus estômagos. Volte para o Sietch Tabr, Stilgar. Gurney Halleck se reunirá a você lá, como meu assessor em seu Conselho.
— Não confia em mim, Meu Senhor?
A voz de Stilgar era baixa.
— Totalmente, de outro modo não lhe mandaria o Gurney. Ele começará a recrutar a nova força de que logo necessitaremos. Aceito seu juramento de fidelidade, Stilgar. Está dispensado.
Stilgar se curvou e recuou, descendo os degraus e se voltando para o lado esquerdo do Salão. Os outros Naibs o seguiram, de acordo com o princípio Fremen de que “os últimos serão os primeiros”. Mas algumas de suas perguntas podiam ser ouvidas do trono, enquanto se afastavam.
— Do que estavam falando lá em cima, Stil? E o que significam aquelas palavras na água do Muad'Dib?
Leto disse a Faradin:
— Pegou tudo isso, Escriba?
— Sim, Meu Senhor.
— Minha avó me diz que o treinou bem nos processos mnemónicos da Bene Gesserit. Isso é bom. Não o quero escrevendo ao meu lado.
— Como ordenar, Meu Senhor.
— Venha e fique ao meu lado — disse Leto.
Faradin obedeceu, grato, mais do que nunca, pelo treinamento de Jessica.
Quando se aceitava o fato de que Leto não era mais humano e não mais podia pensar como os pensam os humanos, o curso de seu Caminho Dourado se tornava ainda mais assustador.
Leto olhou para Faradin. Os guardas encontravam-se muito longe para poderem ouvir. Somente os conselheiros da Presença Interior permaneciam no piso do Grande Salão, e eles se reuniam em grupos subservientes, bem além do primeiro degrau. Ghanima aproximara-se para repousar um braço no recosto do trono.
— Ainda não concordou em me entregar seus Sardaukar — disse Leto. — Mas o fará.
— Eu lhe devo muito, mas não tanto — disse Faradin.
— Você acha que eles não se casarão bem com os meus Fremen?
Tão bem quanto aqueles dois novos amigos, Stilgar e Tvekanik.
— E no entanto recusa?
— Eu aguardo sua oferta.
— Então, eu devo fazer a oferta, sabendo que nunca irá repeti-la. Rezo para que minha avó tenha feito bem a sua parte e que você esteja preparado para entender.
— O que devo entender?
— Existe sempre uma mística predominante em qualquer civilização — disse Leto. — Ela se ergue como uma barreira contra a mudança, e isso sempre deixa as gerações futuras despreparadas ante a traição do universo. Todas as místicas são iguais ao construírem essas barreiras: a mística religiosa, a mística do herói-líder, a mística do messias, a mística da ciência-tecnologica, ou a própria mística da natureza. Nós vivemos num Império moldado por essa mística, e agora esse Império está desabando porque a maioria das pessoas não distingue entre a mística e o seu universo. Está vendo, a mística é como uma possessão demoníaca, ela tende a dominar a consciência, tornando-se todas as coisas para o observador.
— Eu reconheço a sabedoria de sua avó nessas palavras — disse Faradin.
— Muito bem, primo. Ela me perguntou se eu era uma Abominação e eu respondi negativamente. Essa foi minha primeira traição. Percebe? Ghanima escapou disso, mas eu não. Fui forçado a equilibrar as vidas interiores sob a pressão de doses excessivas de melange. Tive de buscar a cooperação ativa dessas vidas dentro de mim. Fazendo isso, evitei as mais malignas e escolhi uma ajuda dominante, um auxiliar lançado sobre mim pela consciência interior, que era meu pai. Não sou, em verdade, meu pai ou esse auxiliar. E então, novamente, não sou o Segundo Leto.
— Explique-me.
Você tem um modo direto admirável. Eu sou uma comunidade dominada por alguém que era o mais antigo e o mais poderoso. Ele foi o pai de uma dinastia que perdurou por 3 mil dos nossos anos. Seu nome era Harum, e até que sua linhagem desaparecesse, nas fraquezas congênitas e superstições dos descendentes, seus súditos viveram numa grandeza rítmica. Eles se moviam inconscientes às mudanças das estações. Geravam indivíduos que tendiam a ter vida curta, ser supersticiosos e facilmente liderados pelo deus-rei. Tomados como um todo, eram um povo poderoso. Sua sobrevivência como espécie transformou-se num hábito.
— Eu não gosto do jeito disso — disse Faradin.
— Nem eu, realmente, mas é o universo que vou criar.
— Por quê?
— É uma lição que aprendi em Duna. Nós mantemos a presença da morte como um espectro dominante entre os que vivem aqui. Com essa presença, os mortos mudam os vivos. As pessoas de tal sociedade voltam-se para seus próprios ventres. Mas quando vier a época do oposto, quando eles se erguerem, serão grandes e belos.
— Isso não respondeu a minha pergunta — protestou Faradin.
— Não confia em mim, primo?
— Nem a sua avó confia.
— E com boa razão. Mas ela aquiesce porque deve. As Bene Gesserits são pragmáticas, no final. Eu compartilho a visão que elas têm de nosso universo, você sabe. Você traz as marcas desse universo. Você retém os hábitos do governo, catalogando tudo à sua volta em termos de sua possível ameaça ou valor.
— Concordei em ser seu escriba.
— Porque o divertia e lisonjeava seu verdadeiro talento, que é o de historiador. Você é um gênio para ler o presente em termos do passado. Você me antecipou em várias ocasiões.
— Não gosto de suas insinuações veladas.
— Bom. Você veio da ambição infinita até o seu presente estado inferiorizado. Será que minha avó não lhe advertiu quanto ao infinito? Ele nos atrai como um farol na noite, cegando-nos para os excessos que pode inflingir sobre o que é finito.
— Aforismos da Bene Gesserit! — protestou Faradin.
— Mas muito mais precisos — continuou Leto. — A Bene Gesserit acreditava poder prever o curso da evolução. Mas deixou de levar em conta suas próprias mudanças no curso dessa evolução. Elas presumiram que ficariam estáticas enquanto seu plano de procriação evoluía. Não tenho tal cegueira reflexiva. Olhe cuidadosamente para mim, Faradin, pois não sou mais humano.
— Assim me assegurou sua irmã. — Faradin hesitou, e então perguntou: — Abominação?
— Pela definição da Irmandade, talvez. Harum é cruel e autocrático. Eu compartilho sua crueldade. Marque-me bem: tenho a crueldade de um lavrador, e este universo humano é a minha fazenda. Os Fremen um dia tiveram águias domesticadas como animais de estimação, mas eu terei um Faradin domesticado.
O rosto de Faradin ficou vermelho.
— Cuidado com minhas garras, primo. Bem sei que meus Sardaukar cairiam diante de seus Fremen. Mas iríamos feri-los gravemente, e existem chacais esperando para pegar os fracos e feridos.
— Vou usá-lo bem, isso eu prometo — disse Leto. Inclinou-se para diante. — Não lhe disse que não sou mais humano? Acredite-me, primo. Eu não gerarei nenhum descendente, pois não possuo mais órgãos genitais. E isso força minha segunda traição.
Faradin esperou em silêncio, percebendo afinal a direção dos argumentos de Leto.
— Devo me voltar contra cada preceito dos Fremen — disse Leto. — Eles irão aceitar, pois não podem fazer mais nada. Eu o mantenho aqui sob a atração do noivado, mas não haverá noivado entre você e Ghanima. Minha irmã se casará comigo!
— Mas você...
— Casar-se, eu disse. Ghanima deve continuar a linhagem Atreides. Existe também a questão do programa de procriação Bene Gesserit, que agora é o meu programa de procriação.
— Eu recuso — disse Faradin.
— Recusa-se a ser o pai de uma dinastia Atreides?
— Que dinastia? Você ocupará o trono por milhares de anos.
— E moldarei seus descendentes à minha imagem. Será o mais intensivo e abrangente programa de treinamento em toda a história. Nós seremos um ecossistema em miniatura. Percebe? Seja qual for o sistema que um animal escolha para sobreviver, deve basear-se num padrão de comunidades interligadas, interdependentes, trabalhando juntas para o objetivo comum que é o sistema. E esse sistema produzirá os governantes mais inteligentes jamais vistos.
— Você usa palavras extravagantes na mais desagradável...
— Quem irá sobreviver ao Kralizec? — perguntou Leto. — E eu lhe prometo, o Kralizec virá.
— Você é um homem louco! Vai destruir o Império.
— É claro que vou... e não sou um homem. Mas criarei uma nova consciência em todos os homens. Eu lhe digo que debaixo do deserto de Duna existe um lugar secreto com o maior tesouro de todos os tempos. Eu não minto. Quando o último verme morrer e a última colheita de melange for extraída de nossas areias, esses tesouros profundos saltarão pelo nosso universo. E enquanto o poder do monopólio da especiaria se apaga e as reservas ocultas deixam sua marca, novos poderes surgirão através de nosso reino. É tempo de os humanos aprenderem uma vez mais a viver seus instintos.
Ghanima tirou o braço do recosto do trono, veio para junto de Faradin e segurou-lhe a mão.
— Como minha mãe não era esposa, você não será marido — disse Leto. — Mas talvez haja amor, e isso será o bastante.
— Cada dia, cada momento, traz a mudança — disse Ghanima. — Nós aprendemos ao reconhecer esses momentos.
Faradin sentiu o calor da mãozinha de Ghanima como uma presença insistente. Reconheceu os recuos e fluxos dos argumentos de Leto, mas nem uma vez a Voz fora usada. Era um apelo às entranhas, não à mente.
— É isso que oferece por meus Sardaukar? — indagou ele.
— Muito, muito mais, primo. Eu ofereço aos seus descendentes o Império. E a você ofereço a paz.
— E qual será o resultado de sua paz?
— O oposto — disse Leto, a voz calmamente zombeteira. Faradin sacudiu a cabeça.
— Acho muito alto o preço para meus Sardaukar. Mas devo permanecer como o Escriba, o pai secreto de sua linhagem real?
— Deve.
— Vai tentar forçar-me a seu hábito de paz?
— Vou.
— Resistirei a você em cada dia de minha vida.
— Mas isso é o que espero de você, primo. Foi por isso que o escolhi. E vou fazê-lo oficialmente. Vou lhe dar um novo nome. A partir deste momento, você será Chamado Aquele que Quebra o Hábito, que em nossa língua é Harq al-Ada. Vamos, primo, não seja obtuso. Minha mãe o ensinou bem. Dê-me seus Sardaukar.
— Dê-os a ele — ecoou Ghanima. — Ele os terá, de um jeito ou de outro.
Faradin sentiu o medo pela primeira vez na voz dela. Amor, então? Leto apelava, não à razão, mas a um salto intuitivo.
— Leve-os — disse Faradin.
— Por certo — disse Leto.
Ele se ergueu do trono num movimento curiosamente fluido, como se mantivesse seu terrível poder sob o mais delicado controle. Desceu até o nível em que Ghanima estava e moveu-a gentilmente, até que ela olhasse na direção oposta a ele. Voltou-se e colocou as costas contra as dela.
— Observe isto, primo Harq al-Ada. Este é o modo como sempre será conosco. Permaneceremos assim quando estivermos casados. Costas contra costas, um olhando para longe do outro a fim de proteger a única coisa que sempre fomos. — Voltou-se, olhando zombeteiramente para Faradin e abaixando a voz: — Lembre-se disso, primo, quando estiver face-a-face com Ghanima. Lembre-se disso quando sussurrar o amor e as coisas suaves, quando estiver mais tentado pelos hábitos de minha paz e de meu contentamento. Suas costas permanecerão expostas.
Afastando-se deles, Leto desceu os degraus para os cortesãos que esperavam, arrastando-os em sua esteira, como satélites, e deixando o salão.
Ghanima uma vez mais tomou a mão de Faradin, mas seu olhar ainda fitava além da extremidade do salão, muito depois de Leto ter partido.
— Um de nós tinha de aceitar a agonia — ela disse. — E ele sempre foi o mais forte.
Frank Herbert
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