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OS FRUTOS DOURADOS DO SOL / Ray Bradbury
OS FRUTOS DOURADOS DO SOL / Ray Bradbury

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS FRUTOS DOURADOS DO SOL

 

  1. A Sirene do Nevoeiro

Em meio à água fria, longe da terra firme, esperávamos todas as noites pela chegada do nevoeiro, e ele vinha. Azeitá­vamos o mecanismo de bronze e acendíamos o farol no alto da torre de pedra. Sentindo-nos como duas aves suspensas no céu cinzento, McDunn e eu enviávamos o facho de luz — vermelho, branco, novamente vermelho — para guiar os bar­cos solitários. E caso não conseguissem ver nossa luz, havia também nossa Voz, o grito forte e profundo de nossa Sirene vibrando por entre os farrapos do nevoeiro, conseguindo assustar as gaivotas e espalhá-las como cartas de baralho ao vento, e fazendo as ondas crescer e espumar.

— É uma vida solitária, mas agora você já está acostu­mado, não é? — perguntou McDunn.

— É — respondi. — Você é bom de conversa, graças a Deus.

— Bem, amanhã é sua vez de ir à terra — disse Mc­Dunn sorrindo — dançar com as moças e beber gim.

— Em que você fica pensando quando o deixo aqui sozinho, McDunn?

— Nos mistérios do mar. — McDunn acendeu o ca­chimbo. Eram sete e quinze de uma noite fria de novembro, o aquecimento estava ligado, o farol sacudia sua cauda em duzentas direções, a Sirene rugia na garganta alta da torre. Não havia nenhuma cidade costeira num raio de cento e cinqüenta quilômetros, apenas uma estrada que atravessa isoladas terras mortas até o mar, freqüentada por poucos carros, um trecho de três quilômetros de água fria até nosso rochedo, e raríssimos barcos.

— Os mistérios do mar — disse McDunn, pensativo. — Você sabia que o oceano é o maior floco de neve que existe? Ele rola e ondula em milhares de formas e cores, sempre diferentes. É estranho. Certa noite, há muitos anos, eu estava aqui sozinho e todos os peixes do mar subiram para a superfície, lá fora. Alguma coisa fez com que eles nadas­sem para cá e ficassem na baía, meio trêmulos, olhando a luz do farol ficar vermelha, branca, vermelha, branca, pas­sando por eles, revelando seus olhos estranhos. Fiquei gela­do. Pareciam a cauda de um grande pavão, nadando, até a meia-noite. Aí, sem um som sequer, partiram, um milhão de peixes indo embora. Eu costumo pensar que talvez, de algum modo, eles tenham nadado toda essa distância para prestar adoração. É estranho. Mas pense como a torre deve aparecer para eles, vinte e cinco metros acima da água, emanando o Deus-luz e se manifestando com uma voz monstruosa. Eles nunca voltaram, os peixes, mas você não acha que por um instante acharam que estavam diante da Presença?

Estremeci. Contemplei o vasto gramado cinzento do mar, estendendo-se até nada e lugar nenhum.

— Ah, o mar está cheio. — McDunn soltou baforadas nervosas de seu cachimbo, piscando. Estivera nervoso o dia todo sem dizer por quê. — Com todas as nossas máquinas e os chamados submarinos, ainda vamos levar dez mil séculos até pormos os pés no verdadeiro fundo das terras afundadas, nos reinos encantados, e conhecermos o verdadeiro terror. Pense bem, lá embaixo ainda é o ano 300 000 a.C. Enquanto desfilamos por aqui, ao som de cometas, destruindo os paí­ses e as vidas uns dos outros, estão vivendo sob o mar a vinte quilômetros de profundidade, no frio e num tempo tão antigo como a cauda de um cometa.

— É, é um mundo antigo.

— Venha aqui. Há uma coisa especial que eu estava esperando para lhe contar.

Subimos os oitenta degraus, conversando, sem pressa. No alto, McDunn desligou as luzes da sala para que não houvesse reflexos no vidro das janelas. O grande olho do farol murmurava, girando com facilidade em sua órbita azei­tada. A Sirene soava regularmente, a cada quinze segundos.

— Parece o grito de um animal, não é? — McDunn assentiu com a cabeça para si mesmo. — Um grande ani­mal solitário gritando na noite. Parado aqui, à beira de dez bilhões de anos, gritando para as Profundezas: "Estou aqui, estou aqui, estou aqui". E as Profundezas respondem, res­pondem sim. Você já está aqui há três meses, Johnny, e é melhor que eu o prepare. Por volta desta época do ano — disse, examinando as trevas e o nevoeiro — alguma coisa vem visitar o farol.

— Cardumes de peixes, como você falou?

— Não, é outra coisa. Não quis lhe contar antes por­que você podia pensar que eu era doido. Mas não posso espe­rar mais, porque, se marquei direito em meu calendário do ano passado, esta é a noite em que ela virá. Não vou entrar em detalhes, você terá que ver com seus próprios olhos. Fique sentado aí. Se você quiser, amanhã poderá pegar suas coisas e levar a lancha, voltar à terra, entrar em seu carro estacionado no píer do cabo, voltar para alguma cidade do interior e ficar com as luzes acesas às noites, e não serei eu quem irá condená-lo por isso. Já é o terceiro ano em que isso acontece, e esta vai ser a primeira vez em que há outra pessoa comigo para comprovar. Espere e preste atenção.

Meia hora passou, e trocamos apenas algumas palavras sussurradas. Quando ficamos cansados de esperar, McDunn começou a descrever algumas de suas idéias. Tinha certas teorias sobre a própria Sirene.

— Um dia, há muitos anos, um homem caminhou pela costa fria e sem sol, ficou escutando o som do oceano e disse: "Precisamos de uma voz para gritar por sobre as águas, para alertar os navios; vou fazer uma voz, uma voz igual a todo o tempo e a todo o nevoeiro que já existiu; vou fazer uma voz que é como uma cama vazia a seu lado a noite inteira, como uma casa vazia quando você abre a porta, como árvores desfolhadas no outono. Um som como o das aves indo para o sul, gritando, um som como os ventos de novembro e o mar nas costas frias e duras. Vou criar um som tão diferente que ninguém poderá deixar de ouvi-lo, que todos que o escutarem chorarão por dentro, e as lareiras parecerão mais quentes, e estar dentro de casa parecerá melhor para todos os que o ouvirem em cidades distantes. Vou criar um som e um aparelho. Vão chamá-lo de Sirene do Nevoeiro, e todos que o escutarem hão de entender a tristeza da eternidade e a brevidade da vida".

A Sirene tocou.

— Eu inventei essa história — disse McDunn baixinho — para tentar explicar por que esta coisa continua a vir até o farol todo ano. A Sirene a chama, eu acho, e ela vem...

— Mas... — eu disse.

— Psst! — fez McDunn. — Olhe ali! — Apontou para as Profundezas.

Alguma coisa estava nadando em direção à torre do farol.

Era uma noite fria, como eu já disse; a torre alta estava fria, o clarão indo e voltando, e a Sirene gritando e gritando

através do emaranhado da névoa. Não se podia ver longe e não se podia ver bem, mas lá estava o mar profundo, movendo-se como sempre às margens da terra noturna, plano e silencioso, da cor de lama cinzenta; cá estávamos os dois, sozinhos no alto da torre, e lá longe, de início bem distante, vinha uma crista, acompanhada por uma onda, uma vaga, uma bolha, um pouco de espuma. E então surgiu da super­fície fria do mar uma cabeça enorme, escura, com olhos imensos, e depois um pescoço. E depois não o corpo, mas mais e mais pescoço! A cabeça se erguia a quase quinze metros da água, encimando um pescoço esguio e magnífico. Só então, como uma ilhota de coral negro, conchas e caran­guejos, o corpo se ergueu gotejante do subterrâneo. Pude ver um movimento da cauda. Ao todo, da cabeça à ponta da cauda, calculei que o monstro teria trinta ou trinta e cinco metros.

Não sei o que eu disse. Disse alguma coisa.

— Calma, rapaz, calma — sussurrou McDunn.

— É impossível!

— Não, Johnny, nós é que somos impossíveis. Ele é como era há dez milhões de anos. Ele não mudou. Nós e a Terra é que mudamos, ficamos impossíveis. Nós!

O monstro nadava lentamente e com uma grande ma­jestade negra pelas águas geladas, ao longe. O nevoeiro pas­sava por ele, ocultando às vezes suas formas. Um dos olhos do monstro capturou e refletiu nossa luz imensa, vermelho, branco, vermelho, branco, como um espelho erguido bem alto transmitindo uma mensagem em um código primitivo. Era tão silencioso como o nevoeiro através do qual nadava.

— É uma espécie de dinossauro! — Abaixei-me, agar­rando a balaustrada da escada.

— É, um dos membros da tribo.

— Mas eles desapareceram !

— Não, apenas se esconderam nas Profundezas. Bem no fundo das Profundezas mais profundas. Agora esta pala­vra ganha sentido, não é, Johnny? É uma palavra real, que diz tanto: as Profundezas. Todo o frio e toda a escuridão e toda a profundidade estão nesta palavra.

— E o que vamos fazer?

— Fazer? Temos nosso emprego, não podemos ir em­bora. Além disso, estamos mais protegidos aqui do que em um barco, tentando chegar à terra firme. Aquela coisa é do tamanho de um destróier, e quase tão rápida quanto um.

— Mas por que ela vem para cá, logo para cá?

No momento seguinte eu tive a resposta.

A Sirene tocou.

E o monstro respondeu.

Um grito atravessou um milhão de anos de água e ne­voeiro. Um grito tão angustiado e desolado que ressoou em minha cabeça e em meu corpo. O monstro gritou para a tor­re. A Sirene tocou. O monstro urrou novamente. A Sirene tocou. O monstro abriu sua boca de dentes enormes, e o som que saiu foi o som da própria Sirene. Desolado e vasto e distante. O som do isolamento, de um mar impenetrável, de uma noite fria, da solidão. Esse era o som.

— Agora — murmurou McDunn —, você sabe por que ele vem para cá?

Assenti com a cabeça.

— O ano todo, Johnny, aquele pobre monstro viven­do longe, a mil quilômetros da costa e talvez a trinta mil metros de profundidade, esperando. Talvez essa criatura te­nha um milhão de anos de idade. Pense um pouco: esperan­do há um milhão de anos; você seria capaz de esperar tanto assim? Talvez ele seja o último da espécie, e eu acho que é mesmo. De qualquer forma, os homens chegam aqui e constroem este farol, há cinco anos. E colocam a Sirene e a fazem tocar, tocar, chegando ao lugar onde você está mergulhado no sono e em memórias marinhas de um tempo em que você tinha milhares de semelhantes, mas agora você está só, inteiramente só em um mundo que não foi feito para você, um mundo onde você precisa se esconder.

"Mas o som da Sirene vai e vem, vai e vem, e você estremece no fundo lamacento das Profundezas, e seus olhos se abrem, como lentes de câmaras enormes, e você começa a se mover, lentamente, porque você suporta o oceano em seus ombros, pesando. Mas a Sirene chega, através de mil quilômetros de água, fraca e familiar, e a fornalha em seu ventre se aviva, e você começa a subir, devagar, devagar. Você se alimenta de grandes cardumes de bacalhaus e tainhas, de rios de medusas, você sobe devagar ao longo dos meses de outono, setembro, quando o nevoeiro começa, outu­bro, com mais nevoeiro, e a Sirene ainda a chamá-lo, e então, no final de novembro, depois de pressurizar-se dia após dia, subindo alguns metros por hora, você está perto da super­fície e ainda está vivo. Você precisa ir devagar; se você emergir de uma vez, poderá explodir. Assim, você precisa de três meses inteiros para atingir a superfície, e depois, vários dias nadando pela água fria até o farol. E aí está você, lá fora, na noite, Johnny, o maior monstro de toda a criação. E aqui está o farol, chamando-o, com um pescoço comprido como o seu saindo da água, e um corpo como o seu corpo, e, o que é mais importante, uma voz como a sua voz. Enten­deu agora, Johnny, entendeu?"

A Sirene tocou.

O monstro respondeu.

Eu vi tudo, eu compreendi tudo — um milhão de anos esperando sozinho, esperando a volta de alguém que nunca voltou. Um milhão de anos de isolamento no fundo do mar, enquanto o céu deixava de ter aves-répteis, os pântanos se­cavam nos continentes, as preguiças imensas e os tigres-dentes-de-sabre morriam e afundavam em poços de betume, e os homens se espalhavam como formigas brancas pelas colinas.

A Sirene tocou.

— No ano passado — disse McDunn — a criatura na­dou em torno do farol, dando voltas e mais voltas a noite inteira. Sem se aproximar muito, intrigada, eu acho. Talvez com medo. E um pouco enraivecida, depois de viajar tanto. Mas no dia seguinte, subitamente, o nevoeiro se dissipou, o sol surgiu reluzente e o céu ficou azul como uma pintura. E o monstro foi embora, nadando para longe do calor e do silêncio, e não voltou mais. Acho que ficou ruminando um ano, pensando no que aconteceu de todas as maneiras pos­síveis.

O monstro já estava a apenas cem metros de distância, trocando urros com a Sirene. Quando os clarões os atingiam, os olhos do monstro eram fogo e gelo, fogo e gelo.

— A vida é assim — disse McDunn. — Alguém está sempre esperando por alguém que nunca volta para casa. Alguém sempre ama alguma coisa mais do que a coisa o ama. E depois de algum tempo você quer destruir o que quer que seja essa coisa, para que não possa mais magoá-lo.

O monstro avançava velozmente para o farol. A Sirene tocou.

— Vamos ver o que acontece — disse McDunn. Desligou a Sirene.

O minuto de silêncio que se seguiu foi tão intenso que podíamos ouvir nossos corações pulsando na área envidraçada da torre, podíamos ouvir o giro lento e azeitado da luz do farol.

O monstro parou, imóvel. Seus grandes olhos piscaram. Sua boca se abriu. Deu uma espécie de rugido surdo, como um vulcão. Virou a cabeça para todos os lados, como se procurasse os sons que agora se dispersavam pelo nevoeiro. Encarou o farol. Rugiu novamente. Então, seus olhos se in­flamaram. Ergueu-se, espadanou na água, e arremeteu contra a torre, os olhos tomados por um tormento enraivecido.

— McDunn! — gritei. — Ligue a Sirene! McDunn alcançou o interruptor, mas ao mesmo tempo em que o ligava o monstro se erguia nas patas traseiras. Vi de relance suas patas gigantescas, as membranas translúcidas brilhando entre os dedos, procurando a torre. O olho enorme do lado direito de sua cabeça atormentada reluziu à minha frente como um caldeirão em que eu estivesse a ponto de cair, aos gritos. A torre estremeceu. A Sirene urrou; o mons­tro urrou. Agarrou a torre e abocanhou o vidro, que se es­patifou, caindo sobre nós.

McDunn agarrou meu braço. — Vamos descer!

A torre balançou, tremeu, e começou a ceder. A Sirene e o monstro urravam. Tropeçamos e quase rolamos a escada.

— Depressa!

Chegamos ao chão ao mesmo tempo em que a torre começava a ruir. Agachamo-nos sob as escadas no pequeno porão de pedra. Houve mil concussões à medida que as pe­dras choviam sobre o chão; a Sirene se calou abruptamente. O monstro jogou-se sobre a torre. A torre caiu. Abaixamo-nos juntos, McDunn e eu, segurando-nos com força, enquanto nosso mundo explodia.

E então tudo acabou, ficando apenas a escuridão e o rumor do oceano nas pedras.

E mais outro som.

— Ouça — disse McDunn baixinho. — Ouça.

Esperamos um pouco. E então comecei a ouvir. Primei­ro uma grande aspiração de ar, e depois o lamento, a confu­são, a solidão do grande monstro, dobrado por sobre nós, acima de nós. O cheiro nauseante de seu corpo enchia o ar, separado de nosso teto pela espessura de uma pedra. O monstro arfava e chorava. A torre se acabara, a luz se aca­bara. A coisa que o chamava através de um milhão de anos se acabara. E o monstro abria sua boca e emitia grandes sons, os sons de uma Sirene, repetidos. E barcos distantes, no mar, não vendo a luz do farol, não vendo nada, mas passando e ouvindo na noite, devem ter pensado: Lá está ele, o som solitário, a Sirene da baía Solitária. Tudo está bem. Já con­tornamos o cabo.

E assim foi por toda a noite.

O sol estava quente e amarelo na tarde seguinte, quando a turma de salvamento veio para nos retirar de nosso porão coberto de pedras.

— Apenas caiu, foi tudo — disse o Sr. McDunn em tom grave. — Sofremos algumas pancadas das ondas e ela simplesmente desmoronou. — Beliscou meu braço.

Não se via nada de anormal. O oceano estava calmo, o céu azul. A única coisa que havia era um grande mau-cheiro de algas que vinha da substância verde que cobria as pedras caídas da torre e as pedras da beira do mar. Moscas esvoaçavam. O mar batia vazio nas pedras.

No ano seguinte, construíram um novo farol, mas àque­la altura eu já tinha conseguido um emprego na cidadezinha, uma esposa e uma boa casinha quente que brilhava amarela nas noites de outono, com as portas trancadas e a chaminé soprando fumaça. Quanto a McDunn, era o mestre do novo farol, construído segundo suas próprias indicações, de con­creto reforçado com aço. — Por via das dúvidas — jus­tificou.

O monstro?

Nunca voltou.

— Ele foi embora — disse McDunn. — Voltou para as Profundezas. Aprendeu que não se pode amar demais nada neste mundo. Foi para as Profundezas mais fundas, esperar mais um milhão de anos. Coitado! Esperando e espe­rando, enquanto o homem vai e vem neste planeta insigni­ficante. Esperando, esperando.

Fiquei em meu carro, escutando. Não conseguia ver o farol ou a luz da baía Solitária. Só escutava a Sirene. Pare­cia o chamado do monstro.

Fiquei ali, desejando poder dizer alguma coisa.

  1. O pedestre

Ingressar no silêncio que era a cidade às oito de uma noite enevoada de novembro, pôr os pés na calçada irregular de concreto, evitando pisar nas fendas onde crescia o mato e ir em frente, mãos nos bolsos, através dos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Parava em uma esquina e olhava para as longas avenidas enluaradas que se estendiam nas quatro direções, decidindo para que lado ir. Na verdade, não fazia diferença. Estava só neste mundo de 2053 d.C, ou praticamente só, e tomando final­mente uma decisão, escolhendo um caminho, seguiria em frente, lançando baforadas de ar gelado como se fossem a fumaça de um charuto.

Às vezes, andava horas, quilômetros, e só voltava para casa à meia-noite. Passava por casas e apartamentos, com janelas escuras, e era como se andasse por um cemitério, onde apenas fracos lampejos da luz de vaga-lumes aparecessem brilhando brevemente, por trás das janelas. Súbitos fantas­mas azulados pareciam manifestar-se nas paredes das salas, quando as cortinas ainda não houvessem encerrado a noite do lado de fora; ou então, ouviam-se murmúrios e suspiros onde uma das janelas de um edifício parecendo um túmulo ainda estivesse aberta.

O Sr. Leonard Mead parava, escutava, olhava e pros­seguia, seus pés silenciosos na calçada arruinada. Já fazia muito tempo que havia decidido usar sapatos de tênis para andar à noite. Se usasse sapatos de sola de couro, os cães, em bandos intermitentes, acompanhariam seu passeio com um contraponto de latidos, e luzes poderiam se acender, rostos aparecer e uma rua inteira se assustar com a passa­gem daquela figura solitária no início de uma noite de no­vembro.

Nessa noite, havia iniciado seu passeio no rumo oeste, na direção do mar distante. Havia uma névoa gelada no ar,

cortando o interior do nariz e ardendo nos pulmões como uma árvore de Natal. Podia-se sentir as luzes geladas pis­cando, todos os galhos cobertos de uma neve invisível. Es­cutou satisfeito o rumor de suas solas de borracha pisando nas folhas secas, e soprou por entre os dentes um assovio quieto e gelado, às vezes colhendo de passagem uma folha e examinando o desenho de seu esqueleto à luz dos postes esparsos, aspirando seu cheiro de ferrugem.

— Alô — murmurava para todas as casas enquanto passava. — O que está passando hoje no canal 4, no canal 7 e no canal 9? Para onde estarão correndo os mocinhos? Será realmente a cavalaria que eu vejo no alto da colina, pronta a vir em seu socorro?

A rua estava silenciosa, longa e vazia, e apenas sua sombra se movia, como a sombra de um falcão no vôo. Se fechasse os olhos e ficasse parado, quieto, podia imaginar-se acima de uma planície, um deserto do Arizona no inverno sem vento, nenhuma casa à vista num raio de mil quilôme­tros, apenas as ruas — leitos secos de rios — por com­panhia.

— O que estará passando agora? — perguntou às ca­sas, olhando para seu relógio de pulso. — Oito e meia. Hora de uma dúzia de assassinatos de diversos tipos? Um pro­grama de perguntas e respostas? Um musical? Um come­diante caindo do palco?

Era mesmo o murmúrio de risos que vinha de uma casa branca como a lua? Hesitou um instante, mas prosseguiu quando viu que nada acontecia. Tropeçou em um trecho especialmente estragado da calçada. O cimento estava desa­parecendo sob flores e mato. Em dez anos de caminhadas diurnas e noturnas, tendo percorrido milhares de milhas, nunca havia encontrado outro caminhante. Nem um só, em todo esse tempo.

Chegou a um trevo silencioso, no ponto em que duas vias expressas cruzavam a cidade. Durante o dia, era uma torrente ruidosa de carros, os postos de gasolina abertos, um grande rumor de insetos e uma corrida incessante por me­lhores posições, enquanto os besouros, deixando escapar um leve incenso de seus escapamentos, deslizavam para longe no rumo de suas casas. Mas agora essas avenidas também pareciam riachos na seca, apenas pedras, leito e luar.

Tomou uma transversal, iniciando seu caminho de volta para casa. Estava a um quarteirão de seu destino quando um carro dobrou uma esquina e lançou sobre ele um cone branco de luz. Ficou transido como uma mariposa noturna, atur­dido pela luz e atraído por ela. Uma voz metálica falou:

— Pare. Fique onde está! Não se mexa! Parou.

— Levante as mãos!

— Mas...

— Mãos ao alto! Ou atiramos!

Era a polícia, é claro, mas que coisa rara e incrível! Em uma cidade de três milhões de habitantes, restava apenas um carro de polícia, não era assim? Um ano antes, em 2052, ano de eleições, a polícia havia sido reduzida de três carros para apenas um. O crime estava em extinção; agora não ha­via necessidade de polícia, com a exceção deste único carro, vagando e vagando pelas ruas vazias.

— Seu nome! — disse o carro de polícia em um tom metálico. Não podia ver os homens em seu interior devido à luz cegante em seus olhos.

— Leonard Mead.

— Mais alto!

— Leonard Mead!

— Ocupação?

— Acho que pode me considerar um escritor.

— Sem profissão — disse o carro de polícia, como se falasse sozinho. A luz o mantinha preso como um espécime de museu, o alfinete atravessando o peito.

— Pode-se dizer que sim — disse o Sr. Mead. Não escrevia nada havia anos. Não se compravam mais livros e revistas. Agora, tudo acontecia à noite nas casas tumulares, pensou, prosseguindo em sua fantasia. Os túmulos mal ilu­minados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como mortas, luzes azuladas ou multicoloridas banhando seus rostos, sem entretanto jamais tocá-los realmente.

— Sem profissão — disse a voz mecânica com um chiado. — E o que está fazendo na rua?

— Andando — disse Leonard Mead.

— Andando!

— Só andando — disse simplesmente, mas seu rosto ficou gelado.

— Andando, só andando, apenas andando?

— Sim, senhor.

— Andando para onde? Por quê?

— Para tomar ar. Para ver.

— Seu endereço!

— Saint James Street, número 11, sul.

— E o senhor tem ar em sua casa, não é? O senhor tem um condicionador de ar, não tem, Sr. Mead?

— Tenho.

— E o senhor tem uma tela em sua casa para assistir?

— Não.

— Não? — Houve um silêncio cheio de estalidos, que por si só valia como uma acusação.

— O senhor é casado, Sr. Mead?

— Não.

— Não é casado — disse a voz policial por trás do facho de luz. A lua estava alta e clara entre as estrelas, e as casas, cinzentas e silenciosas.

— Ninguém me quis — disse Leonard Mead com um sorriso.

— Não fale sem ser solicitado!

Leonard Mead esperou na noite fria.

— Só andando, Sr. Mead?

— É.

— Mas o senhor não explicou com que finalidade.

— Já expliquei: tomar ar, ver, e apenas andar.

— O senhor faz isso muitas vezes?

— Todas as noites, há anos.

O carro de polícia estava parado no meio da rua, com seu alto-falante zumbindo baixinho.

— Bem, Sr. Mead...

— Acabou? — perguntou delicadamente Mead.

— Sim — respondeu a voz. — Vamos. — Ouviu um chiado, um estalo, e a porta traseira do carro de polícia abriu-se. — Entre aqui.

— Espere aí, não fiz nada!

— Entre.

— Protesto!

— Sr. Mead. ..

Andou como se tivesse ficado bêbado de repente. Pas­sando pela janela da frente, olhou para dentro do carro. Como esperava, não havia ninguém no banco da frente, nin­guém dentro do carro.

— Entre.

Pôs a mão na porta e olhou para o banco de trás, que era uma pequena cela, uma pequena prisão preta com gra­des. Cheirava a aço. Cheirava a anti-séptico forte, tinha um odor limpo, duro e metálico demais. Não havia nada suave naquele carro.

— Se o senhor ainda tivesse uma esposa para lhe for­necer um álibi... — disse a voz de ferro. — Mas...

— Para onde está me levando?

O carro hesitou, ou melhor, produziu um leve estalido e um rumor de engrenagens, como se a informação, em algum lugar, estivesse sendo processada, passando em cartões e mais cartões perfurados à frente de uma célula fotoelétrica. — Para o Centro Psiquiátrico de Pesquisa de Tendên­cias Regressivas.

Entrou. A porta se fechou com um ruído seco. O carro de polícia partiu pelas avenidas da noite, lançando à frente suas luzes mortiças.

Pouco depois, passaram por uma casa em uma rua, uma casa em uma cidade inteira de casas escuras. Mas essa casa estava com todas as luzes acesas, brilhando, todas as janelas eram quadrados de um amarelo gritante, quente na escuri­dão fria.

— Aquela é a minha casa — disse Leonard Mead. Ninguém respondeu.

O carro prosseguiu pelas ruas vazias, que pareciam lei­tos secos de rios, e foi em frente, deixando-as para trás com suas calçadas vazias, e nenhum som e nenhum movimento por todo o resto de noite fria de novembro.

  1. A bruxa de abril

Pelo ar, por sobre os vales, sob as estrelas, acima de um rio, um lago, uma estrada, Cecy voava. Invisível como ventos novos da primavera, fresca como o aroma dos cravos que se desprende dos campos no crepúsculo, ela voava. Pla­nava em pombas macias como arminho, detinha-se em ár­vores e vivia nos botões de flores, espalhando-se em pétalas quando a brisa soprava. Pousava em uma rã verde, fria como hortelã, à beira de uma lagoa prateada. Trotava em um cão felpudo e latia para ouvir os ecos vindos de celeiros distan­tes. Vivia em folhas novas de grama, nascidas em abril, em líquidos mansos e claros que brotavam da terra úmida.

É primavera, Cecy pensou. Estarei em todos os seres vivos do mundo hoje à noite.

Habitava grilos afinados nas estradas de asfalto ou en­tão, feita orvalho, acariciava um portão de ferro. Sua mente era rápida e maleável, voando invisível nos ventos de Illi­nois, nesta noite de sua vida em que tinha apenas dezesse­te anos.

— Quero me apaixonar — disse.

Ela havia dito a mesma coisa durante o jantar. Seus pais arregalaram os olhos e retesaram as costas nas cadeiras. Tinham-lhe dado um conselho: — Paciência. Lembre-se de que você é especial. Toda a nossa família é diferente e es­pecial. Não podemos nos misturar ou casar com gente co­mum, ou perdemos nossos poderes mágicos. Você não iria querer perder seu poder de "viajar", não é? Então tome cuidado. Tome cuidado.

Mas em seu quarto, Cecy passou perfume no pescoço e se espreguiçou, trêmula e ansiosa, na cama de dossel, en­quanto a lua cor de leite se erguia sobre os campos, trans­formando os rios em creme e as estradas em platina.

— É verdade — suspirou. — Faço parte de uma fa­mília estranha. Dormimos de dia e à noite voamos ao vento,

como negros papagaios de papel. Se quisermos, podemos dormir em forma de toupeiras todo o inverno, debaixo da terra quente. Posso viver em qualquer coisa: uma pedra, uma flor de açafrão ou um louva-a-deus. Posso deixar meu corpo ossudo para trás e enviar minha mente para longe, em busca de aventura. Já!

E o vento a arrastou, por sobre campos e pradarias.

Viu as luzes quentes das casas e das fazendas, brilhan­do na primavera com as cores do crepúsculo.

Se não posso amar, por ser especial e diferente, hei de amar através de outra pessoa, pensou.

Do lado de fora de uma casa de fazenda, na noite de primavera, uma moça morena, de dezenove anos no máximo, tirava água de um profundo poço de pedra. Estava cantando.

Cecy caiu — uma folha verde — no poço. Deixou-se ficar no musgo macio do poço, olhando para cima através da fria escuridão. Depois, penetrou em uma ameba flutuante e invisível. Depois em uma gota d'água! Finalmente, em um copo frio, sentiu-se levada aos lábios cálidos da moça. Houve um suave som noturno de água sendo bebida.

Cecy contemplou o mundo pelos olhos da moça.

Entrou na cabeça coberta de cabelos escuros e olhou através dos olhos brilhantes para as mãos que puxavam a corda grossa. Escutou através das conchas dos ouvidos o mundo dessa moça. Aspirou seu universo particular pelas narinas delicadas, sentiu aquele coração batendo, batendo. Sentiu a língua alheia movendo-se a cantar.

Será que ela sabe que estou aqui?, pensou Cecy.

A moça teve um sobressalto. Examinou a campina en­volta na noite.

— Quem está aí? Nenhuma resposta.

— É só o vento — sussurrou Cecy.

— É só o vento — a moça riu de si mesma, mas teve um arrepio.

Era um bom corpo, o da moça. Tinha ossos delicados de marfim, esguios, cobertos de carnes arredondadas. O cé­rebro parecia uma rosa-chá suspensa na escuridão, e havia sabor de cidra em sua boca. Os lábios firmes cobriam den­tes muito brancos, as sobrancelhas enquadravam o mundo em arcos perfeitos, e o cabelo fino e macio caía mansamente sobre a nuca branca. Os poros eram pequenos, formando uma trama cerrada. O nariz se erguia para a lua e as faces ardiam como pequenas fogueiras. O corpo fluía, levíssimo, de um gesto a outro, e parecia cantar o tempo todo para si mesmo. Estar nesse corpo, nessa cabeça, era como gozar o calor de uma lareira, viver no ronronar de um gato adorme­cido, bulir nas águas mornas dos riachos que corriam à noite para o mar.

Vou gostar daqui, pensou Cecy.

— O quê? — perguntou a moça, como se ouvisse uma voz.

— Qual é o seu nome? — perguntou Cecy com cautela.

— Ann Leary. — A moça teve um sobressalto. — Mas por que preciso dizer isto em voz alta?

— Ann, Ann — sussurrou Cecy. — Ann, você vai se apaixonar.

Como em resposta, ouviu-se um grande ruído vindo da estrada, um estrépito e o chiado de rodas no cascalho. Um homem alto chegou conduzindo uma charrete, segurando firmemente as rédeas com seus braços enormes, o sorriso brilhante através do pátio.

— Ann!

— É você, Tom?

— E quem mais poderia ser?

Saltando da charrete, ele amarrou as rédeas na cerca.

— Não falo com você! — Ann virou-se bruscamente, e o balde em suas mãos derramou um pouco da água.

— Não! — gritou Cecy.

Ann ficou gelada. Olhou para as colinas e para as pri­meiras estrelas da primavera. Olhou para o homem chamado Tom. Cecy fez com que deixasse cair o balde.

— Olhe só o que você fez! Tom acorreu.

— Olhe só o que você me fez fazer!

Tom limpou os sapatos dela com o lenço, rindo.

— Vá embora! — Ann chutou suas mãos, mas ele tornou a rir, e, olhando para ele como se de muitos quilô­metros de distância, Cecy contemplou o formato de sua ca­beça, o tamanho do crânio, o relevo do nariz, o brilho dos olhos, a envergadura dos ombros, a força bruta das mãos, capazes de tamanha delicadeza com o lenço. Olhando de sua secreta clarabóia na cabeça adorável, Cecy puxou um fio de cobre oculto, como um ventríloquo, e a linda boca se abriu:

— Obrigada.

— Oh, quer dizer que você é realmente bem-educada?

— O cheiro de couro e o cheiro de cavalo subiam das roupas e das mãos de Tom e atingiam as suaves narinas. Cecy,

distante, distante, separada dali por campinas noturnas e campos floridos, estremeceu em sua cama como um sonho.

— Não, não para você! — gritou Ann.

— Calma, fale baixo — disse Cecy. Moveu os dedos de Ann, levando-os na direção da cabeça de Tom. Ann pu­xou-os de volta.

— Fiquei louca!

— Ficou sim — Tom concordou, sorrindo mas atur­dido. — Quer dizer que você ia me tocar?

— Não sei. Por favor, vá embora! — Nas faces de Ann, brilhavam brasas vivas.

— E por que você não corre? Não a estou segurando. — Tom levantou-se. — Mudou de idéia? Você vai comigo ao baile de hoje à noite? É um baile especial, depois explico por quê.

— Não — disse Ann.

— Vou! — gritou Cecy. — Nunca dancei. Quero dan­çar. Nunca usei um vestido longo e farfalhante. Quero ir. Quero dançar a noite inteira. Nunca soube qual é a sensa­ção de estar numa mulher, dançando; meu pai e minha mãe não deixam. Cães, gatos, gafanhotos, folhas, já conheci tudo o que há no mundo, numa ocasião ou noutra, mas nunca uma mulher na primavera, nunca em uma noite como esta. Por favor, precisamos ir a esse baile!

Expandiu seus pensamentos, como os dedos da mão em uma luva nova.

— Vou — disse Ann Leary. — Eu vou. Não sei por quê, mas vou ao baile com você hoje à noite, Tom.

— Agora para dentro, depressa! — gritou Cecy. — Você precisa se lavar, avisar seus pais, aprontar seu vestido, passá-lo a ferro!

— Mamãe — disse Ann. — Mudei de idéia!

A charrete saiu galopando pelo caminho e a casa se encheu de vida: água fervendo para o banho, o fogão de carvão aquecendo o ferro para passar o vestido, a mãe pressurosa, com uma franja de grampos na boca. — O que houve com você, Ann? Você não gosta do Tom!

— É verdade. — Ann parou em meio ao frenesi. Mas é primavera, pensou Cecy.

— É primavera — disse Ann.

E a noite está ótima para se dançar, pensou Cecy.

—   ...para dançar — murmurou Ann Leary.

Depois entrou na banheira, e o sabão envolveu os om­bros brancos, pequenos ninhos de espuma sob os braços, a carne quente dos seios ondulando em suas mãos e Cecy mo­vendo a boca, formando o sorriso, mantendo o corpo em movimento. Não pode haver nenhuma pausa, nenhuma hesi­tação, ou toda a pantomima corre o risco de desabar! Ann Leary deve ser mantida em ação, agitando-se, mexendo-se, lavar aqui, ensaboar ali, e agora sair da banheira! Esfregar-se com a toalha! Agora, perfume e pó-de-arroz!

— Você! — Ann surpreendeu-se no espelho, toda bran­ca e rosada como lírios e cravos. — Quem é você hoje à noite?

— Sou uma moça de dezessete anos. — Cecy contem­plou-a através de seus olhos violeta. — Você não pode me ver. Você sabe que estou aqui?

Ann Leary sacudiu a cabeça. — Na certa, meu corpo foi tomado por uma bruxa de abril.

— Você quase acertou, quase mesmo. — Cecy riu. — Agora, vamos vesti-la.

O prazer de sentir boas roupas cobrindo o corpo! E então, alguém a chamou lá fora.

— Ann, Tom já voltou!

— Diga-lhe para esperar. — Ann sentou-se de repente. — Diga a ele que não vou mais ao baile.

— O quê? — disse a mãe, na porta.

Cecy, num relance, voltou a assumir o controle. Havia sido um relaxamento fatal, um descuido fatal deixar o cor­po de Ann apenas por um instante. Ouvira o som distante dos cascos de cavalos e da charrete rodando através dos campos enluarados da primavera. Por um segundo, pensou: Vou encontrar Tom e pousar em sua cabeça para ver como é ser um rapaz de vinte e dois anos numa noite como esta. E partiu célere através de um campo de urzes, mas agora, como um pássaro engaiolado, voou de volta e bateu as asas, rodopiando dentro da cabeça de Ann.

— Ann!

— Diga a ele para ir embora!

— Ann! — Cecy se instalou e espalhou seus pensa­mentos.

Mas Ann havia tomado o freio nos dentes. — Não, eu o detesto!

Eu não devia ter saído, nem mesmo por um instante, repreendeu-se Cecy, e instilou sua mente nas mãos da moça, no coração, na cabeça, muito suavemente. Levante-se, pensou.

Ann levantou-se. Vista o casaco! Ann vestiu o casaco. Agora, em frente! Não! pensou Ann Leary. Em frente!

— Ann — disse a mãe —, não faça Tom esperar mais. Vá indo logo e deixe de bobagens. O que há com você?

— Nada, mamãe. Até logo. Vamos voltar tarde.

Ann e Cecy correram juntas para a noite de primavera.

Uma sala cheia de pombos dançando mansamente, agi­tando suas penas silenciosas e compridas, uma sala cheia de pavões, uma sala cheia de olhos e luzes irisadas. E no centro do salão, rodando, rodando, rodando, Ann Leary dançava.

— Oh, está uma noite linda — disse Cecy.

— Que noite linda — disse Ann.

— Você está estranha — disse Tom.

A música os arrastava, à meia-luz, em rios de melo­dias; flutuavam, mergulhavam, afundavam, emergiam para respirar, arquejavam, agarravam-se um ao outro como afo­gados e deixavam-se levar novamente, girando, aos sussurros e suspiros, ao som de Beautiful Ohio.

Cecy cantarolava. Os lábios de Ann se entreabriram e a música fluiu.

— Sim, estou estranha — disse Cecy.

— Você não é a mesma.

— Não, não esta noite.

— Você não é a Ann Leary que eu conheço.

— Não, não mesmo, não mesmo — murmurou Cecy, distante, muito longe dali. — Não, não mesmo — disseram os lábios.

— Estou sentindo uma coisa engraçada — disse Tom.

— O quê?

— É algo com você. — Afastou-se um pouco dela, sem interromper a dança, olhando para seu rosto brilhante, à procura de alguma coisa. — São seus olhos — disse. — Não consigo entender.

— Você não está me vendo? — perguntou Cecy.

— Estou vendo uma parte de você, Ann, mas há uma outra parte que não está aqui. — Tom a fez girar cuidadosa­mente, com uma expressão de desconfiança.

— É verdade.

— Por que você veio comigo?

— Eu não queria vir — disse Ann.

— Então por que veio?

— Alguma coisa me fez vir.

— O quê?

— Não sei! — A voz de Ann adquiriu um tom meio histérico.

— Calma, calma — murmurou Cecy. — Calma, assim. Girando, girando.

Murmuraram, farfalharam e ondularam pela sala escura, impelidos aos rodopios pela música.

— Mas você veio ao baile — disse Tom.

— Vim — disse Cecy.

— Venha cá — disse Tom, e a conduziu suavemente, dançando, através de uma porta aberta, levando-a em silên­cio para longe do salão, da música e das pessoas.

Subiram na charrete e sentaram-se lado a lado no banco.

— Ann — disse Tom, trêmulo, pegando suas mãos. — Ann.

Mas dizia esse nome como se não fosse o dela. Olhava o tempo todo para seu rosto pálido, e agora os olhos de Ann estavam novamente abertos.

— Você sabe que eu era apai­xonado por você — disse Tom.

— Sei.

— Mas você sempre foi caprichosa, e eu não queria me ferir.

— Fez muito bem, ainda somos muito jovens — disse Ann.

— Não...   quero dizer, sinto muito — disse Cecy.

— O que é que você quer dizer? — Tom largou suas mãos e retesou-se no assento.

A noite estava quente, o cheiro de terra se espalhava em torno deles e as árvores novas roçavam folha contra fo­lha, sacudindo-se e sussurrando.

— Não sei — disse Ann.

— Oh, mas eu sei — disse Cecy. — Você é alto, e é o homem mais bonito do mundo. A noite está linda, é uma noite de que vou me lembrar para sempre. — Estendeu a filão fria e alheia, encontrou a mão relutante do rapaz e a trouxe para junto de si, aquecendo-a e segurando-a com força.

— Mas hoje — disse Tom, piscando muito — você as vezes está perto, às vezes distante. Num momento, você está de um jeito, e no momento seguinte de outro. Eu só queria trazer você para esse baile por causa dos velhos tem­pos. Não queria mais nada. E aí, quando estávamos junto ao poço, senti que alguma coisa tinha mudado em você, mu­dado muito. Você estava diferente. Havia alguma coisa nova, suave, uma coisa ... — procurou a palavra — não sei, não sei dizer. O seu jeito. Alguma coisa em sua voz. E agora eu sei que estou novamente apaixonado por você.

— Não — disse Cecy. — Por mim, por mim.

— E estou com medo de estar apaixonado por você, porque você vai me ferir novamente.

— Pode ser — disse Ann.

Não, não, hei de amá-lo com todo o coração, pensou Cecy. Ann, diga a ele, diga por mim. Diga que há de amá-lo com todo o coração.

Ann não disse uma palavra.

Tom se aproximou, em silêncio, e pegou seu queixo com os dedos. — Estou indo embora. Ofereceram-me um emprego a cem quilômetros daqui. Você vai sentir minha falta?

— Vou — disseram Ann e Cecy.

— Posso beijá-la para me despedir, então?

— Pode — disse Cecy, antes que alguém mais pudesse falar.

Tom encostou seus lábios naquela boca estranha. Estava tremendo.

Ann ficou imóvel como uma estátua branca.

— Ann! — disse Cecy. — Mexa os braços, abrace-o! Ela continuou imóvel como uma boneca de madeira ao luar.

Tom beijou novamente seus lábios.

— Eu o amo de verdade — murmurou Cecy. — Estou aqui, sou eu que você viu nos olhos dela, sou eu, e eu o amo como ela nunca há de amar.

Tom se afastou. Sentia-se como se tivesse corrido uma grande distância. Sentou-se ao lado dela. — Não sei o que está acontecendo. Houve um momento, ali...

— O quê? — perguntou Cecy.

— Por um instante, achei... — Cobriu os olhos com as mãos. — Não tem importância. Quer ir para casa agora?

— Quero, por favor — disse Ann Leary.

Tom sacudiu frouxamente as rédeas, estalou a língua para o cavalo, e este começou a andar. Eles iam envoltos pelo ruído e pelo balanço da charrete na noite enluarada de primavera, ainda cedo, apenas onze horas, e os pastos brilhantes e campos perfumados de cravo deslizavam à sua passagem.

Então Cecy, olhando para os campos e os pastos, pen­sou que valeria a pena, valeria qualquer preço ficar com ele desta noite em diante. E ouviu de novo as vozes distantes de seus pais: "Tome cuidado. Você não quer perder seus poderes mágicos, casando-se com um simples mortal, não é? Tome cuidado. Você não iria gostar se isso acontecesse".

Quero, quero sim, pensou Cecy, desisto de tudo, aqui e agora, se ele me quiser. Eu não precisaria mais vagar pelas noites de primavera, não precisaria viver em pássaros e ca­chorros e gatos e raposas, bastaria apenas estar com ele. Só ele. Só ele.

A estrada corria por baixo da charrete com um mur­múrio.

— Tom — disse Ann finalmente.

— O que é? — Ele contemplava friamente a estrada, o cavalo, as árvores, o céu, as estrelas.

— Se nos próximos anos você passar algum dia, em qualquer época, por Green Town, Illinois, a alguns quilô­metros daqui, você me faria um favor?

— Pode ser.

— Você faria o favor de parar e visitar uma amiga minha? — disse Ann Leary aos arrancos, timidamente.

— Por quê?

— É uma grande amiga. Falei sobre você com ela. Eu vou lhe dar o endereço. Espere um pouco.

Quando a charrete parou em sua casa, pegou um lápis e uma folha de papel em sua bolsinha e escreveu à luz da lua, apoiando o papel no joelho. — Está aí. Você conse­gue ler?

Tom examinou o papel e assentiu, confuso.

— Cecy Elliot. Willow Street, número 12. Green Town, Illinois.

— Você irá visitá-la um dia? — perguntou Ann.

— Um dia — disse Tom.

— Jura?

— Mas o que isso tem a ver conosco? — perguntou Tom com raiva. — O que eu tenho a ver com nomes e papéis? — Amassou o papel, formando uma bolinha, e en­fiou-o no bolso do casaco.

— Jure, por favor!... — suplicou Cecy.

— ... jure... — disse Ann.

— Está bem, eu juro, mas agora me deixe em paz! — gritou Tom.

Estou cansada, pensou Cecy. Não posso ficar mais. Tenho que ir para casa. Estou ficando fraca. Só tenho forças para ficar algumas horas assim, fora, viajando na noite, via­jando. Mas antes de ir embora...

— ...antes de ir... — disse Ann. Beijou Tom nos lábios.

— Quem o está beijando sou eu — disse Cecy.

Tom pôs as mãos nos ombros de Ann Leary e a olhou bem no fundo dos olhos. Não disse nada, mas seu rosto começou a relaxar muito lentamente, as rugas desaparece­ram, sua boca perdeu a expressão dura, e fitou novamente o fundo do rosto enluarado que tinha à sua frente.

Então, ajudou-a a descer da charrete e, sem dizer sequer boa-noite, partiu rápido pela estrada.

Cecy desprendeu-se.

Ann Leary, chorando alto, como que libertada da pri­são, correu pelo caminho banhado de luar até a casa e bateu a porta.

Cecy ficou por ali apenas mais um pouco. Nos olhos de um grilo, contemplou o mundo noturno da primavera. Nos olhos de uma rã, pousou por um momento solitário às margens de uma lagoa. Nos olhos de uma ave noturna, do alto de um olmo que a lua clareava, viu a luz se apagando em duas casas de fazenda, uma aqui e outra a um quilô­metro de distância. Pensou em si mesma e em sua família, em seu estranho poder e no fato de nenhum membro da família poder casar-se com qualquer pessoa deste vasto mun­do que se estendia para além das colinas.

— Tom? — Sua mente enfraquecida voou em uma ave noturna, por sob as árvores e por sobre os campos escuros de mostarda silvestre. — Você guardou o papel, Tom? Você irá aparecer algum dia, num ano qualquer, de repente, para me ver? Irá me reconhecer, então? Irá olhar meu rosto e recordar naquele momento onde foi que você me viu antes, sabendo que você me ama como eu o amo, de todo o cora­ção e para todo o sempre?

Interrompeu-se no ar frio da noite, a um milhão de quilômetros das cidades e pessoas, acima de fazendas e con­tinentes e rios e colinas. Chamou baixinho: — Tom?

Tom estava dormindo. Era noite alta; suas roupas es­tavam penduradas em cadeiras ou cuidadosamente dobradas ao pé da cama. E em uma das mãos, imóvel e pousada sobre o branco travesseiro, perto de sua cabeça, havia um pedaci­nho de papel. Lentamente, lentamente, uma fração de cen­tímetro de cada vez, seus dedos fecharam-se sobre o papel, apertando com força. E Tom nem se moveu, nem reparou quando um melro, como uma aparição, bateu suavemente com as asas nos claros vidros enluarados da janela e depois, adejando em silêncio, partiu voando para o leste, por sobre a terra adormecida.

  1. Pioneiros

— Oh, afinal chegou a Hora...

Era a hora do crepúsculo, e Janice e Leonora arruma­vam diligentemente suas bagagens na casa de verão, cantan­do, comendo pouco e amparando-se mutuamente sempre que necessário. Mas nunca olhavam na direção da janela aberta para a noite profunda e as estrelas brilhantes e frias.

— Ouça! — disse Janice.

Um som parecido com o de uma barcaça a vapor, mas era um foguete cruzando o céu. E além desse som — ban­jos tocando? Não, apenas os grilos das noites de verão, nesse ano de 2003. Dez mil sons se elevavam da cidade. Janice, com a cabeça inclinada, escutava. Há muitos e mui­tos anos, em 1849, erguiam-se desta mesma rua as vozes de ventríloquos, pregadores, charlatães, doidos, sábios e joga­dores, reunidos nessa mesmíssima cidade, Independence, no Estado do Missouri. Esperando que a terra molhada secasse ao sol e que as marés de relva se erguessem altas o bastante para suportar o peso de suas carroças, de seus destinos inde­finidos, de seus sonhos.

"Oh, afinal chegou a Hora,

Estamos indo para Marte,

Cinco mil moças pelo céu

Semeadas na primavera!"

— É uma velha canção do Wyoming — disse Leonora. — Basta mudar a letra e ela se aplica perfeitamente a 2003.

Janice contemplou uma caixinha de pílulas alimentícias, tentando imaginar a quantidade de coisas carregadas nas carroças de eixos altos e fundos de tábuas. Para cada homem e cada mulher, uma tonelagem incrível! Presuntos, tiras de toucinho, açúcar, sal, farinha, frutas secas, bolachas, ácido cítrico, água, pimenta, gengibre — uma lista quase tão grande quanto o território! Hoje, porém, um punhado de pílulas podia alimentar uma pessoa não só entre Fort Laramie e Hangtown, mas por toda uma vasta jornada por entre as estrelas.

Janice escancarou a porta do armário e quase gritou. A escuridão, a noite e todos os espaços entre as estrelas estavam à sua frente.

Há muitos anos, duas coisas haviam acontecido. Um dia, sua irmã a trancou em um armário, aos gritos. E outra vez, em uma festa, brincando de esconder, atravessou na corrida a cozinha e chegou a um longo corredor escuro. Mas não era um corredor. Era o poço sem luz de uma escada, uma escuridão devoradora. Correndo, ela pisou no vazio, pedalou no ar, gritou e caiu. Caiu na mais negra escuridão. No porão. A queda levou muito tempo, o tempo de uma batida do coração. E ela ficou muito, muito tempo naquele armário, sem luz, sem amigos, sem ninguém que ouvisse seus gritos. Longe de tudo, trancada no escuro. Caindo no escuro. Gritando!

As duas lembranças.

Agora, com a porta do armário aberta, com a escuridão parecendo um manto de veludo posto à sua frente para ser acariciado pela mão trêmula, a escuridão como uma pantera negra e arquejante, fitando-a com seus olhos apagados, as lembranças emergiam. O espaço e a queda. O espaço e a prisão no armário, aos gritos. Ela e Leonora trabalhando muito, arrumando as malas e tomando cuidado para não olhar pela janela para a assustadora via-láctea e o vasto vazio. E tudo para que, afinal, o armário familiar, com sua noite própria, a fizesse lembrar de seu destino.

Era assim que as coisas seriam, lá, deslizando para as estrelas, na noite, no grande e terrível armário negro, gri­tando, sem ninguém para ouvir. Caindo para sempre por entre nuvens de meteoros e cometas cruéis. Cair no poço do elevador, num pesadelo, cair no vazio.

Ela gritou, mas nenhum som saiu de sua boca. O grito colidiu consigo mesmo em seu peito e em sua mente. Ela gritou. Bateu a porta do armário e apoiou-se nela. Sentiu a escuridão arquejando e gemendo contra a porta e fez força para mantê-la fechada, com os olhos cheios d'água. Ficou ali muito tempo, até que seu tremor desapareceu, vendo Leonora trabalhar. A histeria, ignorada, foi se esgotando e afinal passou. No quarto, um relógio de pulso tiquetaqueou, com um som claro de normalidade.

— Noventa milhões de quilômetros. — Dirigiu-se afinal para a janela, como se ela fosse um poço profundo. —

Não consigo acreditar que neste momento, em Marte, há ho­mens construindo cidades e esperando por nós.

— A única coisa em que precisamos acreditar é que vamos tomar nosso foguete amanhã.

Janice levantou nas mãos um vestido branco, criando a impressão de haver um fantasma no meio do quarto.

— É muito estranho. Casar-se...   em outro mundo.

— Vamos dormir.

— Não! A ligação vai ser feita à meia-noite. Eu não vou conseguir dormir, pensando como vou dizer a Will que decidi embarcar no foguete para Marte. Oh, Leonora, pense só, a minha voz atravessando noventa milhões de quilôme­tros para chegar até ele. Mudei de idéia tão depressa ... estou com medo!

— É a nossa última noite na Terra.

Agora, já concebiam e aceitavam o fato; agora, a com­preensão as havia atingido. Elas estavam indo embora, e talvez nunca mais voltassem. Estavam indo embora da cida­de de Independence, no Estado do Missouri, no continente da América do Norte, cercado por um oceano, que era o Atlântico, e por outro, o Pacífico, e não podiam levar nada daquilo em suas malas. Haviam evitado essa idéia tão defi­nitiva. Agora, ela estava diante delas. E elas estavam atô­nitas com aquela realidade.

— Nossos filhos não vão ser americanos, nem mesmo terrestres. Nós todos vamos ser marcianos pelo resto de nossas vidas.

— Não quero ir! — gritou Janice de repente. O pânico deixou-a gelada.

— Estou com medo! O espaço, a escuridão, o foguete, os meteoros! Deixar tudo para trás! Por que eu preciso ir?

Leonora segurou-a pelos ombros e abraçou-a com força, balançando-se. — É um mundo novo. É como nos velhos tempos. Os homens vão na frente e as mulheres depois.

— Por que, por que devo ir? Diga!

— Porque — disse afinal Leonora, em voz baixa, sentando-a na cama — Will está lá.

Era um nome bom de se ouvir. Janice sossegou.

— Os homens tornaram as coisas tão difíceis — disse Leonora. — Antes, se uma mulher viajava duzentos quilô­metros por causa de um homem, era uma coisa notável.

Depois, passou a ser mil quilômetros. E agora, há todo um universo entre nós. Mas não é isso que vai nos deter, não é?

— Estou com medo de fazer papel de idiota no fo­guete.

— Eu faço papel de idiota junto com você. — Leonora se ergueu. — Agora, vamos dar uma volta pela cidade e ver as coisas pela última vez.

Janice olhou a cidade pela janela. — Amanhã à noite tudo isto estará aqui e nós não. As pessoas vão acordar, comer, trabalhar, dormir, acordar de novo, e nós não vamos saber, e eles nunca darão por falta de nós.

Janice e Leonora deram voltas, como se não fossem capazes de encontrar a porta.

— Vamos.

Abriram a porta, apagaram as luzes e saíram.

No céu, havia um grande fluxo de chegada. Vastos movimentos floreados, grandes apitos e assovios, a queda de tempestades de neve. Helicópteros, flocos brancos, desciam em silêncio. Do oeste, do leste, do norte e do sul, as mu­lheres chegavam e chegavam. Em todo o céu noturno, po­diam-se ver os helicópteros descendo. Os hotéis estavam cheios, as casas de família acomodavam gente, cidades de barracas erguiam-se em pastos e nos campos, como flores estranhas e feias, e naquela noite a cidade e o campo esta­vam aquecidos por algo mais do que o verão. Aqueciam-se com as faces rosadas das mulheres e com as faces queimadas de sol de novos homens que olhavam para o céu. Atrás das colinas, foguetes testavam seus motores, e um som parecido com um órgão gigantesco, com todas as teclas apertadas ao mesmo tempo, fazia estremecer todos os vidros das janelas e todos os ossos do corpo. Podia-se senti-lo no maxilar, nos dedos dos pés e das mãos.

Leonora e Janice sentaram-se no bar, entre mulheres desconhecidas.

— Vocês são muito bonitas, mas estão com um ar muito triste — disse o homem do balcão.

— Dois chocolates maltados. — Leonora sorriu pelas duas, como se Janice fosse muda.

Contemplaram a bebida como se fosse um quadro raro em um museu. Chocolates maltados iriam ser escassos nos próximos anos, em Marte.

Janice remexeu em sua bolsa, pegou hesitante um en­velope e depositou-o no balcão de mármore.

— Will mandou isto para mim. Veio no foguete que chegou há dois dias. Foi isso que me fez decidir, que me fez resolver partir. Eu não contei antes, e quero que você veja agora. Vamos, leia o bilhete.

Leonora tirou o bilhete do envelope e leu em voz alta:

— "Querida Janice. Esta será a nossa casa se você re­solver vir para Marte. Will".

Leonora sacudiu o envelope, e uma fotografia em cores caiu, reluzente, no balcão. Era o retrato de uma casa cor de caramelo, antiga, acolhedora e confortável, com flores verme­lhas e samambaias verdes e frescas em toda a volta, e uma hera atrevidamente densa no portão.

— Mas, Janice!

— O que é?

— É um retrato de nossa casa, aqui na Terra, aqui em Elm Street!

— Não. Olhe bem.

E olharam novamente, juntas; dos dois lados da casa escura e confortável, e por trás dela, o panorama não era terrestre. O solo era de uma estranha coloração violeta, a relva de um vermelho desmaiado, o céu brilhava como um diamante cinzento e uma árvore torta e esquisita crescia em um dos lados, parecendo uma velha senhora com os cabelos brancos salpicados de cristais.

— É a casa que Will construiu para mim — disse Janice — em Marte. É bom olhar para ela. Todo o dia de ontem, sempre que eu podia, sozinha, nas horas em que fi­cava mais assustada ou mesmo em pânico, eu pegava o re­trato e olhava.

Ambas contemplaram a casa escura e confortável a milhões de quilômetros de distância, familiar e estranha, velha e nova, com uma luz amarela acesa na janela da direi­ta da sala de estar.

— Esse rapaz, o Will — disse Leonora, balançando a cabeça —, sabe exatamente o que está fazendo.

Terminaram seus chocolates. Lá fora, uma vasta mul­tidão de estranhos vagava e a "neve" continuava a cair do céu de verão.

 

Compraram muitas coisas bobas para levar, sacos de balas de limão, fulgurantes revistas de moda, frágeis perfumes; depois, saíram pela cidade e alugaram dois cinturões que se recusavam a aceitar a força da gravidade, imitando mariposas. Tocaram os controles delicados, e sentiram-se sopradas como pétalas brancas por sobre a cidade. — Qual­quer lugar — disse Leonora —, qualquer lugar.

Deixaram que o vento as levasse para onde quisesse; deixaram-se carregar através da noite de verão repleta de macieiras, através da noite de intensos preparativos, por so­bre a linda cidade, por sobre as casas da infância e de outros tempos, por sobre as escolas e avenidas, riachos, campinas e sítios tão conhecidos que cada grão de trigo tinha o valor de uma moeda de ouro. Foram levadas como são levadas as folhas pelo vento que prenuncia a tormenta, com rajadas de aviso e raios estalando entre as dobras das colinas. Viram as estradas brancas como leite em pó, por onde há muito tempo haviam passeado em helicópteros banhados pelo luar, girando em grandes redemoinhos de som, descendo para pousar ao lado de frescos riachos noturnos, com os rapazes que agora não estavam mais lá.

Flutuaram em um imenso suspiro por sobre a cidade, já tão remota mesmo à pequena distância que as separava do solo; uma cidade que ficava para trás, recuando como um rio negro e aproximando-se em uma onda enorme de luzes e cores, impalpável, um sonho, já borrado em seus olhos pela saudade, com um pânico de recordação que começava antes mesmo que acontecesse a separação,.

Impelidas levemente, à deriva, espiaram em segredo uma centena de rostos de amigos queridos que deixavam para trás, pessoas iluminadas por lâmpadas emolduradas por janelas que passavam, como que sopradas no vento. Era o Tempo que as carregava. Não houve árvore que não examinassem à procura de antigas confissões de amor nela entalhadas, nem calçada que não varressem com os olhos. Pela primeira vez, perceberam que a cidade era linda, os lampiões solitários e os tijolos antigos eram lindos, e ambas sentiram os olhos se arregalando com a beleza da festa que estavam dando para si mesmas. Tudo flutuava em um carrossel no­turno, com trechos de música boiando aqui e ali, e vozes chamando e murmurando em casas brancamente assombra­das pela televisão.

As duas moças passaram como agulhas, costurando uma árvore à outra com seu perfume. Seus olhos estavam reple­tos demais, e ainda assim continuavam a guardar cada deta­lhe, cada sombra, cada carvalho ou olmo solitário, cada carro que passava nas pequenas ruas serpenteantes, até que não só seus olhos, mas suas mentes e depois seus corpos ficaram repletos.

Sinto-me como se estivesse morta, pensou Janice, e num cemitério, em uma noite de primavera, tudo à minha volta vivo, todos em movimento e prontos para prosseguir a vida sem mim. É como eu me sentia na primavera, quan­do tinha dezesseis anos, passando pelo cemitério e chorando por eles, porque estavam mortos, e não era justo, em noites suaves como aquelas, que eu estivesse viva. Sentia-me cul­pada por viver. E agora, aqui, hoje, sinto que me tiraram do cemitério e me deixaram sair, por sobre a cidade, só mais uma vez, para ver como é estar vivo, ser uma cidade e pes­soas, antes de tornarem a fechar a porta negra sobre mim.

Mansamente, como duas lanternas brancas de papel num vento noturno, as moças voaram por sobre suas vidas e seu passado, por sobre os pastos onde os acampamentos luziam, e as estradas onde o grande movimento de caminhões de suprimentos continuaria até o amanhecer. Planaram na noite por muito tempo.

O relógio do tribunal tocava anunciando que eram onze e quarenta e cinco quando pousaram, como teias de aranha que descessem flutuando das estrelas, tocando a calçada cla­reada pela lua diante da velha casa de Janice. A cidade dor­mia, e a casa de Janice esperava que elas voltassem à pro­cura de seu sono, que não estava lá.

— Somos nós mesmas? — perguntou Janice. — Janice Smith e Leonora Holmes, no ano de 2003?

— Somos.

Janice passou a língua pelos lábios e retesou as costas. — Gostaria que fosse um outro ano.

—   1492? 1612? — Leonora suspirou, e o vento nas árvores suspirou com ela, despedindo-se. — É sempre o dia da descoberta da América ou o dia de Plymouth Rock, e não tenho a menor idéia do que nós, mulheres, podemos fazer a respeito.

[Plymouth Rock é o nome do rochedo de granito em que os peregri­nos do Mayflower desembarcaram na América, na cidade de Plymouth, Massachusetts, criando a primeira colônia permanente na Nova Ingla­terra. (N. do T.)]

— Ficar solteironas.

— Ou fazer exatamente o que estamos fazendo. Abriram a porta da casa na noite morna, os sons da cidade morrendo lentamente em seus ouvidos. Assim que fecharam a porta, o telefone começou a tocar.

— A ligação! — gritou Janice, correndo.

Leonora entrou no quarto atrás dela e Janice já havia levantado o fone, dizendo: "Alô, alô!", enquanto a telefo­nista, em uma cidade distante, ajustava a imensa aparelhagem que ligaria dois mundos. As duas moças esperaram, uma sentada e pálida, a outra de pé, mas igualmente pálida, in­clinada para a frente.

Houve uma longa pausa, cheia de estrelas e de tempo, uma espera que não era diferente do que os últimos três anos haviam sido para todos eles. E agora chegara o mo­mento, e era a vez de Janice telefonar através de milhares e milhares de quilômetros de meteoros e cometas, evitando o sol amarelo que podia queimar ou fazer ferver suas pala­vras, ou então crestar-lhes o sentido. Mas sua voz atravessou tudo como uma agulha de prata, cosendo pontos de fala na grande noite, reverberando nas luas de Marte. E, então, sua voz encontrou o caminho e chegou ao homem que estava em uma sala numa cidade em outro mundo, a cinco minutos de distância pelo rádio. E sua mensagem foi a seguinte:

— Alô, Will. Aqui é Janice. Engoliu em seco.

— Disseram   que não   tenho   muito   tempo.   Só um minuto.

Fechou os olhos.

— Eu queria falar devagar, mas disseram para falar depressa e dizer tudo de uma vez. Então, quero dizer que me decidi, e que estou indo. Vou partir no foguete de ama­nhã. Vou para perto de você, afinal. E eu o amo. Espero que você possa me ouvir. Eu o amo. Faz tanto tempo...

Sua voz deslocou-se a caminho daquele mundo nunca visto. Agora, depois de enviar a mensagem, dizer as palavras, ela queria chamá-las de volta, censurá-las, tornar a arrumá-las, formar uma frase mais bonita, uma explicação mais clara do que sentia. Mas as palavras já pendiam entre os planetas, e se pudessem ser iluminadas por alguma ra­diação cósmica, incendiar-se na distância etérea, seu amor poria fogo em uma dúzia de planetas, iniciando uma aurora prematura no lado escuro da Terra. Agora, as palavras já não eram mais suas, pertenciam ao espaço, não pertenciam a ninguém até chegar, e estavam viajando a trezentos mil quilômetros por segundo rumo a seu destino.

O que ele dirá para mim? O que ele irá responder no seu minuto de tempo? Ela girou e torceu o relógio no pulso, e o receptor do telefone em seu ouvido estalou e o espaço falou com ela, músicas e danças elétricas e auroras audíveis.

— Ele respondeu? — murmurou Leonora.

— Psst! — disse Janice, dobrando-se, como se tivesse ficado enjoada.

E então a voz dele chegou, através do espaço.

— É ele! — gritou Janice.

— O que ele está dizendo?

A voz partiu de Marte e atravessou lugares onde não há alvorada nem pôr-do-sol, apenas a noite com o sol no meio do negrume. E em algum ponto entre Marte e a Terra toda a mensagem se perdeu, talvez numa torre de gravidade eletrificada que acompanhasse o rastro de um meteoro, ou sofrendo a interferência de uma chuva de meteoros prateá-los. De qualquer forma, as palavras pequenas e menos importantes da mensagem foram apagadas. E a voz chegou dizendo apenas uma palavra:

—   ... amor...

Depois disso, restou apenas a noite enorme, o som das estrelas girando e dos sóis murmurando para si mesmos, e som de seu coração, como outro mundo no espaço, inva­dindo o fone.

— Você ouviu a voz dele? — perguntou Leonora. Janice só conseguiu assentir com a cabeça.

— E o que ele disse, o que ele disse? — gritou Leonora.

Mas Janice não podia contar para ninguém, era bom demais para ser contado. Ela ficou sentada, escutando aquela única palavra muitas vezes, enquanto a revirava na memória. Ficou escutando, enquanto Leonora tomou-lhe o fone sem que ela percebesse e o colocou no gancho.

Depois, já deitadas, com as luzes apagadas e o vento da noite soprando pelos quartos o cheiro da longa jornada pela escuridão e pelas estrelas, suas vozes falaram do dia seguinte e dos dias que viriam depois, que não seriam dias, mas dias-noites de tempo sem fim; suas vozes foram esmaecendo e cedendo ao sono, ou ao devaneio, e Janice se viu sozinha em sua cama.

Teria sido assim há mais de um século, perguntou-se, quando as mulheres, na noite da véspera, deitavam-se para dormir nas cidadezinhas do leste, ouvindo o rumor dos cavalos na noite e o rangido das carroças prontas para partir, o ruminar dos bois sob as árvores e o choro de crianças que sentiam antecipadamente a solidão? Todos os sons das che­gadas e partidas no fundo das florestas e dos campos, e os ferreiros trabalhando em seus rubros infernos particulares até a madrugada? E o aroma de presuntos e toucinhos pron­tos para a jornada, e a presença pesada das carroças, parecen­do navios carregados de víveres, com água até a borda das barricas de madeira para balouçar e respingar pelas pradarias, as galinhas histéricas em seus cestos presos à traseira das carroças e os cachorros correndo à frente e, assustados, correndo de volta com uma expressão de espaço vazio nos olhos? Teria sido assim, há tanto tempo? À beira do preci­pício, à beira do abismo de estrelas. No passado o cheiro de búfalo, e em nosso tempo o cheiro do foguete. Teria sido assim?

E ela decidiu, no momento em que o sono passou a cuidar dos seus sonhos, que sim, sem dúvida, indiscutivel­mente, as coisas tinham sido sempre assim, e continuariam a ser assim para sempre.

  1. As frutas do fundo da fruteira

William Acton pôs-se de pé. O relógio da prateleira marcava meia-noite.

Olhou para seus dedos e olhou para o salão à sua volta e olhou para o homem caído no chão. William Acton, cujos dedos haviam acionado teclas de máquinas de escrever, fei­to amor e fritado ovos com presunto para o café da manhã, tinha assassinado um homem com esses mesmos dez dedos.

Ele nunca se havia considerado um escultor, mas nesse momento, olhando por entre suas mãos para o corpo esten­dido no soalho de madeira encerada, percebeu que, escul­pindo a argila humana com pressões, modelagens e torções, havia agarrado o homem chamado Donald Huxley e modi­ficado sua aparência, o próprio aspecto de seu corpo.

Com uma torção dos dedos, havia removido o brilho absorvente dos olhos cinzentos de Huxley, substituindo-o pela opacidade cega de olhos fixos em suas órbitas. Os lá­bios, sempre rosados e sensuais, estavam separados, mostran­do os dentes eqüinos, os incisivos amarelos, os caninos sujos de nicotina, os molares obturados de ouro. O nariz, também rosado, estava agora pálido, descorado e manchado, como as orelhas. As mãos de Huxley, estendidas no chão, estavam abertas, pela primeira vez em sua existência, suplicando em vez de exigir.

Era, realmente, uma concepção artística. No geral, a modificação havia sido favorável a Huxley. A morte o transformara em um homem mais acessível. Agora, podia-se falar com ele com a certeza de que seria obrigado a ouvir.

William Acton contemplou seus dedos.

Estava feito. Ele não podia voltar atrás. Alguém teria ouvido? Apurou os ouvidos. Lá fora, os ruídos normais do tráfego continuavam. Ninguém estava batendo, não havia ombros arrebentando a porta e nem vozes pedindo para en­trar. O assassínio, o ato de esculpir a argila quente e transformá-la em uma obra fria, estava consumado, e ninguém sabia.

E agora? O relógio marcava meia-noite. Seu primeiro impulso, numa explosão, empurrou-o histericamente para a porta. Depressa, sair, correr, não voltar nunca, tomar um trem, chamar um táxi, fugir, escapar, andar, trotar, voar, mas ir embora dali imediatamente!

Suas mãos passaram em frente a seus olhos, flutuando, virando-se.

As fez girar lenta e deliberadamente; pareciam aéreas e leves. Por que as olhava daquele modo? perguntou a si mes­mo. Haveria nelas algo tão interessante que agora, depois de conseguir controlar-se, era preciso parar e examiná-las linha por linha?

Eram mãos comuns. Não eram grossas e nem finas, nem grandes nem pequenas, nem peludas nem glabras, nem manicuradas e nem sujas, nem macias e nem calejadas, nem enrugadas e nem lisas; não eram nem de longe mãos assas­sinas, mas também não eram inocentes. Parecia contemplá-las como se fossem verdadeiros milagres.

Não estava interessado nas mãos enquanto mãos, nem nos dedos enquanto dedos. No átimo de tempo que se se­guiu ao ato de violência, só encontrou interesse nas pontas de seus dedos.

O relógio funcionava sobre a prateleira.

Ajoelhou-se ao lado do corpo de Huxley, pegou um lenço no bolso do morto e começou a esfregar-lhe metodicamente o pescoço. Limpou-o e friccionou-o, esfregou o rosto e a nuca com uma energia feroz. Levantou-se.

Olhou para o pescoço. Olhou para o soalho encerado. Abaixou-se lentamente e espanou alguns pontos do soalho com o lenço, depois contraiu o rosto e passou a esfregar o chão; primeiro, perto da cabeça do cadáver, e depois perto dos braços. Então, poliu o chão por toda a volta do corpo. Poliu-o até a um metro do corpo por todos os lados. Depois, até a dois metros do corpo em todas as direções. Depois, até a três metros do corpo por toda a volta. Depois...

Parou.

 

Houve um momento em que viu a casa inteira, as pa­redes cobertas de espelhos, as portas entalhadas, os móveis esplêndidos. Então, como se ouvisse a repetição de palavra por palavra, escutou o que Huxley e ele próprio haviam dito uma hora antes.

Dedo na campainha de Huxley. A porta sendo aberta.

— Oh! — disse Huxley, surpreso. — É você, Acton.

— Onde está minha mulher, Huxley?

— Você acha que eu iria lhe dizer? Não fique parado aí, como um idiota. Se quer conversar a sério, entre. Por aqui, por essa porta. Aqui. Na biblioteca.

Acton havia tocado na porta da biblioteca.

— Aceita uma bebida?

— Aceito. Não posso acreditar que Lily tenha ido em­bora, que...

— Há uma garrafa de Borgonha, Acton. Pode pegá-la naquele armário?

Sim, pegá-la. Segurá-la. Tocá-la. Pegou a garrafa.

— Tenho umas primeiras edições interessantes, Acton. Sinta só esta encadernação. Sinta-a.

— Eu não vim ver seus livros, eu...

Ele havia tocado nos livros e na mesa da biblioteca, assim como na garrafa de Borgonha e nos copos.

Agora, agachado no chão ao lado do corpo frio de Huxley, com o lenço nas mãos, sem se mexer, passou os olhos pela casa, pelas paredes, pelos móveis. Arregalou os olhos, abriu a boca, fulminado pelo que compreendeu e pelo que viu. Fechou os olhos, deixou pender a cabeça, amarfanhou o lenço nas mãos, formando uma bola. Mordeu os lábios e conseguiu controlar-se.

As impressões digitais estavam em toda parte, em toda parte!

— Pode pegar o Borgonha, Acton? A garrafa de Borgonha, hein? Com seus dedos, hein? Estou muito cansado, você entende.

Um par de luvas.

Antes de mais nada, antes de limpar outra área, preci­sava encontrar um par de luvas, ou corria o risco de redis­tribuir sem querer sua identidade por um lugar que já esti­vesse limpo.

Pôs as mãos nos bolsos. Atravessou o salão até o cabide junto à porta. O sobretudo de Huxley. Esvaziou os bolsos do sobretudo.

Nada de luvas.

Com as mãos novamente nos bolsos, subiu as escadas, movendo-se com uma rapidez contida, sem se permitir nenhuma agitação, nenhum descontrole. Havia cometido o erro

inicial de não usar luvas (se bem que, afinal, não tivesse planejado um assassínio, e seu subconsciente, que poderia saber de antemão do crime, não tivesse sequer suspeitado que poderia precisar de luvas antes do final da noite), e agora estava pagando por seu pecado de omissão. Em algum lugar da casa devia haver pelo menos um par de luvas. Pre­cisava andar depressa; havia a possibilidade de que alguém viesse visitar Huxley, mesmo àquela hora. Amigos ricos que chegavam ou saíam bêbados da casa, rindo, falando alto, indo e vindo sem a menor cerimônia. Ele tinha tempo até, no máximo, seis da manhã, quando os amigos de Huxley viriam pegá-lo para ir ao aeroporto e partir para a Cidade do México...

Acton percorreu às pressas o andar de cima, abrindo gavetas, usando o lenço para não deixar impressões. Reme­xeu setenta ou oitenta gavetas em seis quartos, deixando-as, por assim dizer, com as línguas de fora, e abrindo novas ga­vetas. Sentia-se nu, incapaz de fazer qualquer coisa antes de encontrar luvas. Podia limpar a casa toda com o lenço, es­fregando todos os pontos onde houvesse a possibilidade de ter deixado impressões digitais, e esbarrar acidentalmente em uma parede qualquer, selando seu destino com um mi­croscópico símbolo concêntrico! Era o mesmo que estampar sua aprovação ao homicídio! Como os selos de cera dos tem­pos antigos, quando abria-se um pergaminho, floreava-se a escrita com pena e tinta, espalhava-se areia para secar a tinta e usava-se o anel de sinete para marcar o lacre vermelho ainda quente. O mesmo aconteceria se deixasse uma única impressão digital que fosse na cena do crime! Sua aprovação do crime, porém, não ia ao ponto de deixar a marca de seu selo.

Mais gavetas! Calma, curiosidade e método, pensou.

No fundo da octogésima quinta gaveta encontrou luvas.

— Meu Deus, meu Deus! — Apoiou-se na cômoda, respirando fundo. Vestiu as luvas, esticou-as, flexionou os dedos satisfeito e abotoou-as nos pulsos. Eram macias, cin­zentas, grossas, invioláveis. Agora, podia fazer qualquer coisa com as mãos, sem deixar rastros. Fez uma careta no espelho do banheiro, chupando os dentes.

— Não! — gritou Huxley.

Que plano malévolo!

Huxley havia caído no chão de propósito! Que sujeito esperto! Huxley caíra no soalho de madeira, com Acton atrás dele. Rolaram, brigaram e se agarraram no chão, es­tampando mil vezes suas impressões digitais! Huxley escor­regou um pouco para longe, e Acton se arrastou atrás dele para pôr as mãos em seu pescoço e apertar até que a vida escapasse como pasta de uma bisnaga!

Enluvado, William Acton voltou para o salão e se ajoe­lhou no chão, dedicando-se laboriosamente à tarefa de esfre­gar cada centímetro de soalho infestado. Centímetro por centímetro, esfregou-o até quase poder ver nele o reflexo de seu rosto concentrado e suado. Chegou então à mesa e esfre­gou as pernas, subindo e passando pelas bordas até chegar ao tampo. Alcançou uma fruteira com frutas de cera, poliu as filigranas de prata, esfregou as frutas uma por uma, com exceção das que estavam no fundo.

— Tenho certeza de que não toquei nestas.

Após esfregar a mesa, chegou a um quadro pendurado acima dela.

— Sei que não toquei nele. Ficou olhando para o quadro.

Examinou as portas do salão. Quais eram as portas que tinha usado naquela noite? Não se lembrava. Precisava polir todas, então. Começou pelas maçanetas, deixou todas bri­lhando, e depois esfregou as portas de cima a baixo, sem correr riscos. Depois foi de móvel a móvel do salão e limpou os braços das cadeiras.

— A cadeira em que você está sentado, Acton, é uma peça Luís XIV. Sinta a textura do material — disse Huxley.

— Não vim aqui para falar de mobília, Huxley! Vim para discutir sobre Lily!

— Ora, deixe disso, ela não significa tanto assim para você. Ela não o ama, você sabe disso. Ela me disse que parte comigo amanhã para a Cidade do México.

— Você e seu dinheiro, e seus malditos móveis!

— São belos móveis, Acton. Comporte-se como um bom hóspede e sinta só o estofamento.

Impressões digitais podem ser encontradas em tecidos.

— Huxley! — William Acton dirigiu-se ao corpo. — Você adivinhou que eu iria matá-lo? Seu subconsciente des­confiou, como o meu subconsciente suspeitava? E seu sub­consciente lhe disse para fazer-me andar pela casa pegando, tocando, manipulando livros, pratos, portas, cadeiras? Será que você era tão esperto e tão calculista assim?

Esfregou secamente as cadeiras com o lenço amarfanhado. E então lembrou-se do corpo; não tinha limpado o corpo. Foi até ele e virou-o para um lado e depois para o outro, e esfregou toda a sua superfície. Chegou até a polir os sapa­tos, sem cobrar nada.

Enquanto passava o lenço nos sapatos, surgiu um ligeiro tremor de inquietação em seu rosto, e ao fim de um instante levantou-se e foi até a mesa.

Pegou e esfregou as frutas de cera do fundo da fruteira.

— Melhorou — disse, e voltou para o corpo.

Mas enquanto se dedicava ao corpo suas pálpebras tre­miam, seu maxilar se movia de um lado para o outro e ele resmungava, até decidir-se a se erguer e voltar até a mesa.

Esfregou a moldura do quadro.

Enquanto limpava a moldura, descobriu...

A parede.

— Isto — disse — é uma bobagem.

— Oh!   — gritou Huxley, desviando-se. Empurrou Acton durante a luta. Acton caiu e levantou-se tocando a parede, e pulou novamente sobre Huxley. Estrangulou Hux­ley. Huxley morreu.

Acton deu as costas para a parede, decidido, com equi­líbrio e firmeza. As palavras e as ações violentas se apagaram em sua lembrança; escondeu-as. Olhou para as quatro pa­redes.

— É ridículo! — disse.

Com o canto dos olhos, viu alguma coisa em uma das paredes.

— Eu me recuso a dar atenção a isto — disse para distrair-se. — Vamos para a outra sala! Vou ser metódico. Vejamos: ao todo, estivemos no salão, na biblioteca, nesta sala, na sala de jantar e na cozinha.

Havia uma pequena mancha na parede atrás dele.

Ou não havia?

Voltou-se enraivecido. — Está bem, está bem, só para garantir. — Aproximou-se da parede e não conseguiu mais ver mancha nenhuma. Ou, sim, uma manchinha, bem... ali. Esfregou-a. De qualquer modo, não era uma impressão digi­tal. Terminou e, com a mão enluvada encostada na parede, contemplou toda a sua extensão, prolongando-se para a di­reita e para a esquerda, descendo até seus pés e subindo mais alto que sua cabeça. Disse baixinho: — Não! — Olhou para cima e para baixo, para os dois lados e disse: — Já é demais. — Quantos metros quadrados? — Não quero nem saber — disse. Entretanto, sem que seus olhos vissem, os dedos enluvados começaram a se mover ritmadamente na parede, como se quisesse esfregá-la.

Olhou para sua mão pousada no papel de parede. Olhou por cima do ombro para a outra sala. — Preciso ir lá e esfregar o essencial — disse para si mesmo, mas a mão continuou, como se sustentasse a parede ou seu corpo. Seu rosto contraiu-se.

Sem uma palavra, começou a esfregar a parede, para cima e para baixo, para os dois lados, para cima e para baixo, tão alto quanto podia alcançar e tão baixo quanto conseguia se curvar.

— É ridículo, meu Deus, é ridículo!

Mas é preciso ter certeza, disse-lhe seu pensamento.

— É, é preciso ter certeza — ele respondeu. Terminou uma parede, e então...

— Chegou a outra parede.

— Que horas serão?

Olhou para o relógio da prateleira. Passara-se uma hora.

Era uma e cinco.

A campainha tocou.

Acton ficou imóvel, olhando para a porta, para o reló­gio, a porta, o relógio.

Bateram com força na porta.

Passou-se um longo momento. Acton nem respirava. Sem ar renovado no corpo, começou a desmaiar, a oscilar; em sua cabeça, rugia o silêncio de ondas frias quebrando-se contra rochedos maciços.

— Ó de casa! — gritou uma voz pastosa. — Eu sei que você está em casa, Huxley! Abra a porta, seu cretino! Sou eu, Billy, bêbado como um gambá, Huxley, mais bêbado que dois gambás, meu velho!

— Vá embora — murmurou Acton sem produzir um som, grudado à parede.

— Huxley, eu sei que você está aí, estou ouvindo você respirar! — insistiu a voz pastosa.

— É, estou aqui — murmurou Acton, sentindo-se esti­cado ao comprido no chão, desengonçado, frio e imóvel. — Estou, sim.

— Que diabo! — disse a voz, desaparecendo no ne­voeiro. Os passos se arrastaram para longe. — Que diabo...

Acton ficou por muito tempo parado, sentindo o cora­ção vermelho bater por dentro de seus olhos fechados, no interior da cabeça. Quando afinal abriu os olhos, viu a outra parede bem à sua frente, e finalmente reuniu coragem para falar. — É bobagem — disse. — Esta parede está limpa. Não vou nem começar. Preciso andar depressa. Depressa. Tenho pouco tempo. Só algumas horas antes que esses ami­gos idiotas comecem a chegar! — E afastou-se.

Com o canto dos olhos, viu as pequenas teias. Quando virava as costas, as aranhas saíam dos frisos de madeira do teto e teciam delicadamente suas pequenas teias, frágeis e quase invisíveis. Não na parede à sua esquerda, que tinha acabado de limpar, mas nas três restantes. Sempre que as fitava diretamente, as aranhas retornavam para os frisos, mas recomeçavam a fiar assim que afastava os olhos. — Essas paredes estão limpas — insistiu, quase gritando. — Não vou nem tocar nelas!

Dirigiu-se a uma escrivaninha em que Huxley se sentara no começo da noite. Abriu uma gaveta e encontrou o que estava procurando. Uma pequena lente de aumento, que Huxley às vezes usava para ler. Pegou a lente e examinou a parede, inquieto.

Impressões digitais.

— Mas não são minhas! — riu instavelmente. — Não fui eu quem as pôs aí! Tenho certeza de que não fui eu! Foi um empregado, o mordomo, talvez a arrumadeira!

A parede estava coberta de impressões.

— Esta aqui, por exemplo — disse. — É alongada e mais fina na ponta. É de mulher, eu seria capaz de apostar.

— Seria mesmo?

— Seria!

— Tem certeza?

— Tenho!

— Tem mesmo?

— Bem... tenho!

— Absoluta?

— Tenho! Absoluta, sim!

— Limpe de qualquer modo, por que não?

— Pronto, por Deus!

— Menos uma maldita mancha, hein, Acton?

— E esta mancha aqui — disse Acton, zombeteiro — é a impressão digital de um homem gordo.

— Tem certeza?

— Não vamos começar tudo de novo! — atalhou, e limpou-a. Tirou uma das luvas e contemplou sua mão trêmula sob a luz forte.

— Isso não prova nada!

— Oh, está bem! — Com raiva, esfregou toda a parede com as mãos enluvadas, suando, gemendo, xingando, curvando-se, pondo-se nas pontas dos pés e ficando com o rosto cada vez mais vermelho.

Tirou o sobretudo e o colocou sobre uma cadeira.

— Duas horas — disse, terminando a parede e olhando o relógio.

Tornou a andar até a fruteira, retirou as frutas de cera, poliu as frutas do fundo e colocou-as de volta, esfregando depois a moldura do quadro.

Olhou para cima e viu o lustre.

Seus dedos tremeram.

A boca se abriu, a língua percorreu os lábios, olhou para o lustre, desviou os olhos, olhou de novo para o lustre, depois para o corpo de Huxley e de volta para o lustre de cristal com seus longos pingentes de prismas irisados.

Pegou uma cadeira e arrastou-a até sob o lustre, pôs um pé no assento, retirou o pé e, rindo, atirou violentamente a cadeira a um canto. Saiu apressadamente do salão, deixando uma parede por limpar.

Na sala de jantar, deparou-se com uma mesa.

— Quero lhe mostrar meus talheres do século XVI, Acton — disse Huxley. Oh, aquela despretensiosa e hipnó­tica voz!

— Não tenho tempo — disse Acton. — Preciso ver Lily...

— Bobagem, veja estes talheres, que trabalho precioso. Acton parou junto à mesa, onde os faqueiros estavam expostos, tornando a ouvir a voz de Huxley e rememorando todos os gestos e movimentos.

Depois, esfregou os garfos e as facas, retirou todas as bandejas e pratos de uma cerâmica especial da parede...

— Esta aqui é uma linda peça feita por Gertrude e Otto Natzler, Aoton. Conhece o trabalho deles?

— É realmente linda.

— Pode pegar. Veja como a travessa é fina e delicada, torneada à mão, fina como uma casca de ovo, é incrível. E o verniz tem um brilho fantástico, vulcânico. Pode pegar, meu caro, não há problema.

Pode pegar. Não faça cerimônia. Pegue!

Acton soltou um soluço entrecortado. Atirou a travessa na parede. Ela se despedaçou e espalhou-se, em estilhaços, por todo o chão.

No momento seguinte, ele já estava ajoelhado. Precisa­va achar todos os pedaços, todos os fragmentos. Idiota, idiota, idiota!, gritava para si mesmo, balançando a cabeça, abrindo e fechando os olhos e abaixando-se para entrar sob a mesa. Encontre todos os pedacinhos, seu idiota, não pode deixar nem um fragmento. Idiota, idiota! Recolheu os esti­lhaços. Estão todos aqui? Colocou-os sobre a mesa e con­templou-os. Olhou novamente debaixo da mesa, sob a cadeira e sob as mesinhas, encontrou mais um pedaço à luz de um fósforo e começou a polir todos os pequenos fragmentos, como se fossem pedras preciosas, e arrumou-os caprichosa­mente sobre a mesa reluzente, de tão polida.

— É uma porcelana linda, Acton. Pode pegar, vamos, pegue-a!

Tirou a toalha da mesa, limpou-a e esfregou as cadeiras, as mesinhas, as maçanetas, as vidraças, os caixilhos e as cor­tinas, esfregou o chão, e chegou à cozinha, ofegante, respi­rando com violência. Tirou o paletó, ajustou as luvas, esfre­gou os cromados brilhantes...

— Quero lhe mostrar minha casa, Acton — dissera Huxley. — Venha...

E limpou todos os utensílios, as torneiras e as travessas de prata, pois agora já não se lembrava mais em que coisas havia tocado. Huxley e ele haviam passado algum tempo ali na cozinha, Huxley orgulhoso de sua aparelhagem culinária, ocultando seu nervosismo ante a presença de um assassino potencial, querendo talvez ficar perto das facas, caso elas se tornassem necessárias. Ficaram lá algum tempo, tocando nisso e naquilo, em mais alguma coisa (não era possível lembrar em quê, em quais coisas ou em quantas). Acabou a cozinha e voltou através do vestíbulo para o salão onde Huxley jazia.

Gritou.

Tinha-se esquecido de esfregar a quarta parede do salão! E, enquanto esteve fora, as pequenas aranhas proliferaram e se espalharam, partindo da quarta parede e tomando as pa­redes que estavam limpas, sujando-as de novo! No teto, no lustre, nos cantos, no chão, milhões de pequenas teias emara­nhadas haviam sido tecidas, e ondularam ao sabor do seu grito! Teias pequeninas, ironicamente nunca maiores do que... um dedo!

Enquanto olhava, teias cobriram a moldura do quadro, a fruteira, o corpo, o chão. Impressões digitais se espalharam sobre a espátula, abriram gavetas, tocaram no tampo da mesa, tocaram, tocaram em tudo, em toda parte.

Esfregou o chão em desespero. Rolou o corpo e chorou sobre ele enquanto o esfregava, levantou-se e poliu as frutas do fundo da fruteira. Depois, trouxe uma cadeira para baixo do lustre, subiu no assento e esfregou cada pingente do lus­tre, sacudindo-o como um pandeiro, fazendo-o balançar-se no ar como um grande sino. Então, pulou da cadeira e limpou as maçanetas e subiu em outras cadeiras e esfregou as paredes cada vez mais alto e correu para a cozinha e pegou uma vassoura e limpou as teias que pendiam do teto e esfregou as frutas do fundo da fruteira e o corpo e as maçanetas e as pratarias, e esbarrou no corrimão do vestíbulo e seguiu as escadas até o andar de cima.

Três horas! Em toda parte, com uma intensidade mecâ­nica e feroz, relógios tiquetaqueavam! Havia doze cômodos no térreo e oito no andar de cima. Calculou a área que pre­cisava cobrir e o tempo necessário. Cem cadeiras, seis sofás, vinte e sete mesas, seis rádios. Por baixo, por cima e por trás. Desencostava com força os móveis das paredes e, solu­çando, esfregava-os, tirando a poeira de anos. Seguiu trôpego o corrimão, subindo as escadas, passando o lenço, esfregando, apagando, limpando, polindo, porque se deixasse uma única impressão digital ela se reproduziria, criando um milhão de impressões. Todo o trabalho precisaria ser refeito, e já eram quatro horas! Seus braços doíam e os olhos estavam inchados e fixos. Ele se movia aos trancos, sobre pernas estranhas, com a cabeça baixa, os braços se movendo, esfregando e limpando quarto por quarto, armário por armário...

Foi encontrado às seis e meia da manhã.

No sótão.

A casa inteira estava reluzente, polida. Vasos cintilavam como estrelas de vidro. As cadeiras brilhavam como se a cera fosse nova. Bronzes, alumínios e cobres faiscavam. O soalho parecia um espelho. Os corrimões reluziam.

Tudo brilhava. Tudo cintilava, tudo reluzia!

Encontraram-no no sótão, polindo velhos baús, velhos quadros, velhas cadeiras, velhos brinquedos e caixas de músi­ca, vasos, talheres, cavalos de brinquedo e moedas empoeiradas do tempo da Guerra Civil. Já tinha limpado meio sótão quando o policial chegou por trás dele com uma arma na mão.

— Pronto!

Ao sair da casa, Acton esfregou a maçaneta da porta da frente com o lenço e bateu-a com um gesto triunfal!

  1. O menino invisível

Ela pegou a grande colher de ferro e o sapo seco, deu-lhe uma pancada e transformou-o em pó. Falou com o pó enquanto o moia velozmente nas mãos fortes. Seus olhos cinzentos, pequenos como os de um pássaro, fitavam às vezes de relance o barracão. A cada vez que olhava, uma cabeça se abaixava na janela estreita, como se ela tivesse disparado um fuzil.

— Charlie! — gritou a Velha. — Saia já daí! Vou fazer um feitiço de lagarto para destrancar essa porta en­ferrujada! Saia daí agora, ou então eu vou fazer a terra tremer, as árvores pegarem fogo e o sol se pôr ao meio-dia!

O único som era o da luz quente da montanha nas árvores altas, um esquilo peludo chiando sobre um tronco coberto de musgo verde, as formigas andando em uma fila marrom perfeita aos pés descalços e cobertos de veias azuis da Velha.

— Você já está aí há dois dias sem comer, seu mal­dito! — Ela ofegou, batendo com a colher em uma pedra chata e fazendo balançar o saco de feitiço, cinzento e cheio, que pendia de sua cintura. Suando, levantou-se e dirigiu-se para a choupana, levando o sapo pulverizado. — Sai daí, vamos! — Lançou uma pitada de pó dentro da fechadura. — Está bem, então eu vou pegá-lo! — rouquejou.

Virou a maçaneta com a mão escura, para um lado e para o outro. — Senhor — entoou —, escancara esta porta!

Quando nada se escancarou, adicionou outra pitada e reteve o fôlego. Sua saia azul, comprida e maltratada, farfalhou quando ela olhou em seu saco de mistérios para ver se tinha algum monstro coberto de escamas, algum feitiço mais forte do que o sapo, sacrificado meses antes para uma situa­ção crítica como essa.

Ouviu a respiração de Charlie através da porta. Seus pais tinham viajado para alguma cidade nas montanhas Ozark no início da semana, deixando-o em casa, e ele tinha corrido quase dez quilômetros para ficar na companhia da Velha, que era uma espécie de tia ou prima, e para cujas manias ele não ligava muito.

Então, há dois dias, a Velha, acostumada com a pre­sença do garoto, decidiu que ele ia ficar. Espetou seu próprio ombro magro, recolheu três pérolas de sangue, cuspiu por sobre o cotovelo direito, pisou em um grilo e ao mesmo tempo estendeu a mão esquerda em garra para Charlie, dizendo: — Meu filho és, és meu filho, por toda a eter­nidade!

Charlie, saltando como uma lebre assustada, fugiu para o mato, dirigindo-se para casa.

Mas a Velha, célere como um lagarto, encurralou-o em um canto, e Charlie se abrigou naquele velho barracão de eremita, recusando-se a sair por mais que ela esmurrasse a porta, a janela ou os buracos dos nós da madeira com os punhos cor de âmbar, ou por mais que dispusesse de seus fogos rituais, explicando a ele que agora ele tinha se tor­nado seu filho com toda a certeza.

— Charlie, você está aí? — perguntou, perfurando as tábuas da porta com seus pequenos olhos escorregadios e brilhantes.

— Sim, estou — ele respondeu afinal, exausto. Talvez ele caísse no chão a qualquer momento. Ela lutou com a maçaneta, cheia de esperanças. Talvez ela tivesse exagerado no pó de sapo, emperrando a fechadura. Seus feitiços eram sempre de mais ou de menos, pensou enraive­cida; não conseguia nunca fazer as coisas na medida exata, que diabo!

— Charlie, eu só quero alguém para conversar de noi­te, alguém para estar a meu lado, aquecendo as mãos no fogo. Alguém para catar gravetos para mim de manhã e espantar os espíritos que escapam dos nevoeiros nas primei­ras horas do dia! Não quero prender você, garoto, só quero sua companhia — estalou os lábios. — Ouça aqui, Charlie, saia daí que eu lhe ensino umas coisas!

— Que coisas? — ele perguntou, desconfiado.

— Posso ensinar a comprar barato e vender caro: você pega uma doninha, corta a cabeça, e a carrega ainda quente no bolso das calças. Pronto!

— Hum! — disse Charlie.

Ela apressou-se. — Ensino você a ficar à prova de balas, e se alguém atirar em você com um revólver não acontece nada.

Charlie ficou em silêncio, e ela passou-lhe o segredo em um sussurro alto e trêmulo: — Desencave raízes de orelha-de-rato numa sexta-feira de lua cheia, enrole e costure num pedaço de seda branca, e use a trouxa pendurada no pescoço.

— Você é doida — disse Charlie.

— Posso lhe ensinar a estancar o sangue, fazer os bi­chos ficarem imóveis ou devolver a visão a cavalos cegos, posso lhe ensinar tudo isso!   Ensino você a curar vacas inchadas ou a tirar feitiços de bodes. Posso ensinar você a ficar invisível.

— Oh! — murmurou Charlie.

O coração da Velha bateu como um pandeiro do Exér­cito de Salvação.

A maçaneta girou.

— Você está brincando — disse Charlie.

— Não, não estou — exclamou a Velha. — Eu posso, sim, Charlie, eu posso, vou fazer você ficar igual a uma janela, vai ser possível enxergar através de você. Você vai ver só, rapaz!

— Invisível de verdade?

— De verdade!

— Você não vai me enfeitiçar se eu sair?

— Não toco num fio de seu cabelo, rapaz!

— Bom — Charlie arrastou as palavras. — Está bem. A porta se abriu. Charlie estava descalço, de cabeça baixa, o queixo apoiado no peito. — Faça-me ficar invisível.

— Primeiro, temos que pegar um morcego — disse a Velha. — Comece a procurar!

Ela lhe deu um naco de carne-seca para matar a fome e o acompanhou com os olhos enquanto ele subia em uma árvore. Ele subiu, subiu, e era bom assistir, era bom tê-lo ali depois de tantos anos sozinha sem ninguém a quem dizer bom-dia, além de titica de passarinho e rastros gosmentos de caracóis.

Logo depois, um morcego com uma asa quebrada caiu adejando da copa da árvore. A Velha recolheu o animal, quente e palpitante, chiando por entre os dentinhos brancos como porcelana, e Charlie desceu logo depois, agarrando-se nos galhos e gritando de triunfo.

À noite, quando a lua mordiscava as pinhas aromáticas dos pinheiros, a Velha extraiu uma longa agulha de prata de sob o largo vestido azul. Contendo sua excitação e sua secreta ansiedade, brandiu com toda a firmeza a agulha, visando o morcego morto.

Ela já percebera havia muito tempo que seus feitiços, apesar de toda a transpiração e todos os sais e todos os enxofres, não funcionavam. Mas continuava a sonhar que um dia poderiam começar a dar certo, desabrochando em flores carmesins e estrelas prateadas para provar que Deus a havia perdoado por seu corpo rosado e pelos pensamentos rosados, o corpo quente e os pensamentos quentes que tive­ra quando moça. Mas até então Deus não havia dado ne­nhum sinal, não havia dito nada, e a única que sabia disso era a Velha.

— Está pronto? — perguntou a Charlie, que estava sentado no chão com as pernas graciosas cruzadas e seguras pelos braços arrepiados e compridos, a boca aberta, mos­trando os dentes. — Pronto — ele respondeu, trêmulo.

— Agora! — Mergulhou a agulha inteira no olho di­reito do morcego. — Assim!

— Oh! — gritou Charlie, cobrindo o rosto.

— Agora eu enrolo tudo num pano, e tome, ponha no bolso e guarde tudo. Tome aqui!

Ele pôs o feitiço no bolso.

— Charlie! — ela gritou assustada. — Charlie, onde é que você foi? Não estou vendo você, rapaz!

— Estou aqui! — Ele pulou, e a luz correu em estrias vermelhas por sobre seu corpo. — Estou aqui! — Olhou espantado para seus braços, suas pernas, seu peito, seus pés. — Aqui!

Os olhos dela pareciam acompanhar a dança de mil vaga-lumes no ar da noite.

— Oh, Charlie, foi muito depressa. Foi rápido como um beija-flor! Oh, Charlie, volte!

— Mas eu estou aqui! — ele choramingou.

— Onde?

— Perto do fogo, do fogo! E eu ... eu estou me vendo. Não estou nem um pouco invisível!

A Velha balançou o corpo magro. — É claro que você pode se ver! Todas as pessoas invisíveis enxergam a si mesmas. Se não, como é que você poderia comer, andar, ou deixar de esbarrar nas coisas? Charlie, encoste a mão em mim, para eu poder sentir você.

Embaraçado, ele estendeu a mão.

Ela fingiu se assustar e encolheu o braço a seu to­que. — Ah!

— Quer dizer que você não consegue mesmo saber onde estou? — perguntou Charlie. — De verdade?

— Nem mesmo um pedaço do seu traseiro!

Ela encontrou uma árvore para ficar olhando. Fitou-a fixamente com seus olhos brilhantes, tomando cuidado para não olhar na direção do menino. — Veja só, desta vez eu realmente consegui! — Suspirou, maravilhada. — Rapaz! Eu nunca tinha feito ninguém ficar invisível tão depressa! Charlie, Charlie, como é que você está se sentindo?

— Estou tremendo como água de riacho.

— Logo você vai se sentir firme.

Depois de uma pausa, acrescentou. — Bom, e o que é que você vai fazer agora, Charlie, agora que você ficou invisível?

Coisas de todo tipo cruzaram a mente do menino, ela sabia. Aventuras surgiram e dançaram em seus olhos como fogos-fátuos, e a boca, aberta, falava do que significava ser um garoto que se imaginava transparente como os ventos das montanhas. Em pleno devaneio, ele disse: — Vou correr pelos campos de trigo, escalar montanhas de neve, roubar galinhas brancas das granjas. Vou chutar os porcos quando não estiverem olhando. Vou beliscar as pernas das meninas bonitas enquanto dormem, puxar suas meias nas salas de aula. — Charlie olhou para a Velha, e com o canto dos olhos brilhantes ela viu o rosto do menino tomando uma expressão malvada. — E vou fazer outras coisas, também. Vou sim — disse.

— Não tente fazer nada comigo — avisou a Velha. — Eu sou frágil como o gelo na primavera e não agüento nada

— e acrescentou: — E seus pais?

— Meus pais?

— Você não pode ir para casa desse jeito. Vai dar um susto horrível neles. Sua mãe vai desmaiar e cair para trás feito uma árvore cortada. Você acha que eles vão querer você em casa, para ficar tropeçando em você? Para sua mãe ter que chamar você a cada três minutos apesar de você estar na sala juntinho dela?

Charlie não tinha pensado nisso. Ele procurou se acal­mar e murmurou baixinho: — Nossa! — apalpando lenta­mente seus ossos compridos.

— Você pode acabar se sentindo sozinho. As pessoas olhando através de você, como se você fosse um copo d'água, esbarrando em você porque não podem vê-lo. E as mulheres, Charlie, as mulheres...

Ele engoliu em seco. — O que têm as mulheres?

— Nenhuma mulher vai olhar para você. E nenhuma moça há de querer ser beijada pela boca de um rapaz que ela nem pode enxergar!

Charlie enterrou os dedos do pé descalço na terra, con­templativo. Deu um muxoxo. — Bem, de qualquer modo eu vou ficar invisível por algum tempo. Vai ser divertido. Só vou tomar muito cuidado. Não vou passar na frente de carroças e cavalos, ou perto do pai. Ele atira ao menor baru­lho. — Piscou muito os olhos. — Bem, eu estando invisível o pai pode ir lá e me encher de chumbo grosso um dia, pensando que eu sou um esquilo no quintal. Oh...

A Velha assentiu para a árvore. — Pode ser.

— Bem — decidiu lentamente —, vou ficar invisível só esta noite, e amanhã você pode me fazer ficar normal novamente.

— Vejam só esta criatura, sempre querendo ser o que não pode — comentou a Velha para um besouro que esca­lava um tronco.

— Como assim? — perguntou Charlie.

— Ora — explicou —, foi bem difícil fazer você ficar assim. Vai levar algum tempo para isso passar. Como uma camada de tinta que se vai gastando.

— Você, sua...! — ele gritou. — Você fez isso comigo! Agora você vai me trazer de volta, vai me deixar visível!

— Calma — disse a Velha. — Isso acaba se gastando, um pé ou uma mão de cada vez.

— E como é que vai ser, eu andando pelas colinas só com uma das mãos aparecendo?

— Vai parecer um pássaro de cinco asas, voando entre as pedras e as moitas.

— Ou só um dos pés!

— Um coelhinho cor-de-rosa pulando no meio das plantas.

— Ou minha cabeça flutuando!

— Um balão cabeludo no parque de diversões!

— E quanto tempo vai levar para eu ficar inteiro? Ela decidiu que podia muito bem levar um ano.

Ele gemeu. Começou a soluçar, a morder os lábios, e cerrou os punhos. — Você me enfeitiçou, você fez essa... essa coisa comigo, e agora eu não vou poder voltar para casa!

Ela piscou. — Mas você pode ficar aqui, rapaz! Ficar aqui comigo, com muito conforto, e eu mantenho você gordo e forte!

Ele rebateu imediatamente. — Você fez de propósito! Sua bruxa velha e malvada, você quer que eu fique aqui!

Atravessou as moitas em um segundo, e foi embora correndo.

— Charlie, volte aqui!

Nenhuma resposta, só os passos na relva macia e escura e o choro sufocado que foi sumindo aos poucos na distância.

Ela esperou e depois acendeu o fogo. — Ele há de voltar — murmurou. É, no seu íntimo, disse: — Agora eu vou ter companhia até o fim da primavera e durante todo o verão. Então, quando ficar cansada dele e quiser um pouco de sossego, eu mando o menino de volta para casa.

Charlie retornou em silêncio com o primeiro clarão da aurora, escorregando por sobre a relva coberta de geada até onde a Velha estava estendida, como um galho desbotado diante das cinzas espalhadas.

Sentou-se em uns seixos e olhou para ela.

Ela não ousava fitá-lo ou olhar em sua direção. Ele não havia feito barulho, então como ela poderia saber que ele estava por perto? Não podia.

Ele ficou sentado ali, com sombras de lágrimas no rosto.

Fingindo ter despertado naquele instante — apesar de não ter conciliado o sono do início ao fim da noite —, a Velha se levantou, gemendo e bocejando, e voltou-se para a aurora.

— Charlie?

Seus olhos passearam pelos pinheiros, pelo solo, pelo céu, pelas colinas distantes. Ela chamou seu nome repetidas vezes, contendo um forte desejo de encará-lo. — Charlie? Charlie! — gritou, e ficou ouvindo o eco repetir seu cha­mado.

Ele continuou sentado, começando a sorrir de leve ao perceber que estava perto dela e que, apesar disso, ela devia estar se sentindo só. Talvez ele tenha sentido a conquista de um certo poder, talvez tenha se sentido protegido do mun­do, era certo que estava contente com sua invisibilidade.

Ela disse alto: — Mas onde é que esse garoto está?

Se ele fizesse um barulho eu saberia por onde ele anda, e talvez preparasse alguma coisa para ele comer.

Ela cozinhou a refeição da manhã, irritada com o silên­cio constante do menino. Pôs o toucinho para fritar em um espeto de nogueira. — Este cheiro vai atrair o nariz dele — murmurou.

Quando virou as costas, Charlie se apoderou de todo o toucinho frito e devorou-o às pressas.

Ela se virou, gritando: — Meu Deus!

Olhou desconfiada para a clareira. — Charlie, é você?

Charlie limpou a boca com os punhos.

Ela percorreu a clareira a passos rápidos, fingindo que estava tentando localizá-lo. Afinal, com uma idéia engenhosa, fazendo-se de cega, dirigiu-se direto para ele, com as mãos estendidas: — Charlie, onde é que você está?

Como um raio, o menino desviou-se dela, abaixando-se e pulando de lado.

Ela precisou reunir toda a sua força de vontade para não sair a persegui-lo; mas não é possível ir atrás de meninos invisíveis, de modo que sentou-se, com uma careta, ofegando, tentando fritar mais toucinho. Mas cada fatia que cortava era roubada, ainda fervendo, do fogo, e levada para longe pelo menino. Finalmente, com o rosto incendiado, ela gritou: — Eu sei onde você está! Bem ali! Estou ouvindo seus pas­sos! — Apontou para perto dele, sem ser precisa demais. Ele correu de novo. — Agora está lá! — gritou. — Ali, ali! — apontando para todos os lugares por onde ele passou nos cinco minutos seguintes. — Estou ouvindo você pisar numa folha de grama, derrubar uma flor, estalar um graveto. Tenho ótimos ouvidos, ouvidos finos. Posso ouvir até as estrelas!

Em silêncio, ele galopou para longe por entre os pi­nheiros, a voz chegando até ela. — Não pode me ouvir pa­rado em cima de uma pedra, e é isso que eu vou fazer!

Passou o dia inteiro sentado em seu observatório, na pedra, ao vento claro, imóvel e sugando a própria língua.

A Velha juntou lenha no fundo da floresta, sentindo que os olhos dele lhe percorriam a espinha. Sentiu vontade de admitir logo, zombando dele: — Estou vendo você, estou vendo! Eu só estava brincando! Você não está invisível, está bem aí! — mas engoliu a raiva, sufocando-a na garganta.

Na manhã seguinte, ele começou a ficar inconveniente. Pulava de árvores. Fazia caretas para ela, caras de sapo, de lagarto e de aranha, apertando os lábios com os dedos, arre­galando os olhos, puxando tanto as narinas para cima que era quase possível ver o cérebro em funcionamento através delas.

Num certo momento, a Velha deixou cair sua carga, e fingiu que um passarinho a tinha assustado.

Ele fez um gesto, como se ameaçasse estrangulá-la.

Ela estremeceu de leve.

Ele fez outro movimento, ameaçando chutá-la na canela e cuspir em seu rosto.

Ela agüentou esses trejeitos sem pestanejar ou mover a boca.

Ele esticou a língua, fazendo ruídos estranhos. Sacudiu as orelhas, fazendo-a ficar com vontade de rir, e afinal ela riu e logo justificou-se, dizendo: — Sentei numa salamandra! Ah, como fedia!

Ao meio-dia, aquela loucura chegou ao auge.

Pois foi naquele exato momento que Charlie desceu correndo para o vale, inteiramente nu!

Por pouco a Velha não caiu dura com o choque!

— Charlie! — quase gritou.

Charlie subiu correndo, nu, a encosta de uma colina, e desceu correndo, nu, pelo outro lado: nu como o dia, nu como a lua, pelado como o sol ou um pinto recém-nascido, os pés tremulando e correndo como as asas de um beija-flor voando baixo.

A língua da Velha trancou-se em sua boca. O que podia dizer? Charlie, vá se vestir! Charlie, que vergonha! Pare com isso! Ela não podia dizer nada. Oh, Charlie, Charlie, pelo amor de Deus! Podia dizer isso agora? Podia?

No alto da pedra grande, ela o viu dançar, nu como no dia em que veio ao mundo, sapateando com os pés descalços, batendo com as mãos nos joelhos, encolhendo e distendendo a barriga branca como se enchesse e esvaziasse um balão de gás.

Ela cerrou os olhos com força e começou a rezar.

Ao cabo de três horas, ela gritou: — Charlie! Charlie! Venha cá! Tenho uma coisa para lhe dizer!

Como uma folha que caísse no outono, ele veio, nova­mente vestido, graças a Deus.

— Charlie — ela disse, olhando para os pinheiros. — Estou vendo o dedão do seu pé direito. Ali.

— Está vendo mesmo? — disse ele.

— Estou — disse a Velha com grande tristeza. — Está ali, parecendo um sapo cascudo, na grama. E ali, no alto, dá para ver sua orelha esquerda pendurada no ar feito uma borboleta cor-de-rosa.

Charlie dançou de alegria. — Estou tomando forma, estou tomando forma!

A Velha assentiu. — Acabou de aparecer seu calcanhar!

— Devolva meus dois pés! — ordenou Charlie.

— Estão de volta.

— E as mãos?

— Estou vendo uma delas, se arrastando pelo joelho feito um pernilongo.

— E a outra?

— Está se arrastando também.

— Meu corpo já voltou?

— Está começando a aparecer.

— Eu preciso de minha cabeça para voltar para casa! Para voltar para casa, ela pensou, ressentida. — Não! — disse, teimosa e irada. — Não, a cabeça ainda não voltou. Nada de cabeça — ela gritou. Isso ficaria para o final. — Nada de cabeça — insistiu.

— Nada de cabeça? — ele choramingou.

— Oh sim, meu Deus, sim, sim, já está voltando, sua maldita cabeça! — ela respondeu, cedendo. — Agora devol­va meu morcego com a agulha enfiada no olho!

Ele o atirou para ela, com um berro de triunfo que tomou todo o vale, e muito depois de ele ter partido correndo de volta para casa ela ainda ouvia seus ecos.

Então, recolheu seus gravetos com um cansaço seco, e começou a voltar para casa, suspirando e falando sozinha. E Charlie a seguiu o tempo todo, agora realmente invisível, sem que ela o pudesse ver, apenas ouvindo ruídos como o da queda de uma noz ou de um esquilo escalando um galho; ela e Charlie sentaram-se junto ao fogo, à hora do crepúsculo, ele tão invisível e ela dando-lhe pedaços de toucinho, que ele não aceitava, e então ela mesma comia. Depois, ela fez uma mágica e adormeceu junto com Charlie, feito de galhos, far­rapos e pedregulhos, mas ainda quente e filho dela, ressonando em seus braços trêmulos de mãe... e falaram sobre coisas lindas com vozes cansadas até que a aurora fez com que o fogo fosse morrendo lentamente, lentamente.. .

  1. Máquina de voar

No ano 400 d.C, o Imperador Yuan reinava próximo à Grande Muralha da China, a chuva enverdecia a terra que se preparava para a colheita, havia paz e o povo que vivia em seus domínios não era nem feliz e nem infeliz em demasia.

De manhã bem cedo, no primeiro dia da primeira se­mana do segundo mês do novo ano, o Imperador Yuan bebia chá e abanava-se com um leque para se defender da brisa morna que soprava, quando um servo atravessou correndo as pedras vermelhas e azuis do piso do jardim, gritando: — Imperador, imperador, um milagre!

— É verdade — disse o imperador. — A temperatura está realmente agradável esta manhã.

— Não, não, um milagre! — disse o servo, fazendo uma rápida reverência.

— E este chá está muito saboroso, isso certamente é um milagre.

— Não, não, majestade.

— Deixa-me adivinhar, então. O sol se levantou e um novo dia nasceu sobre nós. Ou o mar está azul. Isso, sim, é o maior de todos os milagres.

— Majestade, um homem está voando!

— O quê? — O leque do imperador se deteve.

— Eu o vi no céu, um homem voando com asas. Ouvi uma voz chamando lá de cima, e quando olhei, lá estava ele, um dragão nos céus com um homem na boca, um dragão de papel e bambu, das cores do sol e da grama.

— É muito cedo — disse o imperador —, e tu acabas de despertar de um sonho.

— É cedo, mas eu vi o que vi! Vinde, e vós vereis também.

— Senta-te aqui comigo — disse o imperador. — Bebe um pouco de chá. Deve ser uma coisa estranha, se realmente for verdade, ver um homem voando. Tu precisas de tempo para pensar sobre isso, tanto como eu preciso de tempo para preparar-me para tal visão. Beberam o chá.

— Por favor — disse o servo, finalmente. — Ele pode ir embora.

O imperador ergueu-se, pensativo. — Agora podes mos­trar-me o que viste.

Caminharam por um jardim, atravessaram uma touceira de capim, uma pequena ponte, um bosque, e subiram uma pequena colina.

— Lá! — disse o servo.

E no céu, tão alto que quase não se ouvia o som de seu riso, havia um homem; o homem estava envolto em papéis coloridos e bambus, formando asas e uma linda cauda amare­la, e deslizava no ar como a maior ave de um universo de aves, como um dragão novo em uma terra de velhos dragões.

Do alto, o homem gritou para eles, e sua voz foi trazida pelos frescos ventos da manhã: — Estou voando, estou voando!

O servo acenou para ele. — Estás sim, estás sim!

O Imperador Yuan não se moveu. Em vez disso, olhou para a Grande Muralha da China, que começava a se delinear por entre a neblina que envolvia as verdes montanhas, como uma esplêndida serpente de pedra majestosamente estirada por todo o país. Aquela muralha maravilhosa que desde tem­pos imemoriais os protegia de hordas de inimigos e preser­vava a paz, havia muitos e muitos anos. Viu a cidade come­çando a despertar, aconchegada por um rio, uma estrada e uma montanha.

— Escuta — disse ao servo. — Alguém mais viu esse homem voador?

— Fui o único, majestade — disse o servo, sorrindo para o céu e acenando.

O imperador tornou a olhar para cima por um momen­to e disse: — Chama-o para mim.

— Ei, desce, desce! O imperador quer ver-te! — gri­tou o servo, pondo as mãos em concha em torno da boca.

O imperador olhou para todos os lados enquanto o homem voador descia no vento da manhã. Viu um fazen­deiro, que madrugava em seus campos, olhando para o céu, e assinalando o lugar onde ele estava.

O homem voador pousou, com um farfalhar de papel e um rangido de bambus. Dirigiu-se cheio de orgulho para o imperador, desajeitado em seus atavios, e finalmente fez uma reverência diante do velho.

— O que fizeste? — perguntou o imperador.

— Voei pelos céus, majestade — respondeu o homem.

— O que fizeste? — repetiu o imperador.

— Acabei de vos dizer! — gritou o homem voador.

— Tu não me disseste absolutamente nada. — O impe­rador estendeu sua mão delicada e tocou o lindo papel e a estrutura do aparelho, semelhante à de um pássaro. Tinha um cheiro fresco de vento.

— Não é belo, majestade?

— Sim, é belo demais.

— É único no mundo! — O homem sorriu. — E fui eu que o inventei!

— É o único no mundo?

— Posso jurar!

— Quem mais sabe disso?

— Ninguém. Nem mesmo minha mulher, que iria pen­sar que o sol me enlouqueceu. Ela pensou que eu estava fazendo um papagaio de papel. Levantei-me durante a noite e caminhei até os penhascos distantes. Quando a brisa da manhã começou a soprar e o sol se ergueu, reuni toda a minha coragem e saltei do penhasco. E voei! Mas minha mulher não sabe de nada.

— Melhor para ela, então — disse o imperador. — Vem comigo.

Caminharam de volta até o palácio. O sol brilhava alto no céu, e o cheiro da grama era refrescante. O imperador, o servo e o homem voador de tiveram-se no imenso jardim.

O imperador bateu palmas. — Guardas!

Os guardas vieram correndo.

— Prendei este homem.

Os guardas agarraram o homem voador.

— Chamai o carrasco — disse o imperador.

— Mas o que é isto? — gritou o homem, atônito. — O que foi que eu fiz? — começou a chorar, e a linda arma­ção de papel rangeu.

— Eis um homem que construiu uma determinada má­quina — disse o imperador — e é ele quem nos pergunta o que foi que criou. Ele mesmo não sabe. Basta que tenha criado, sem saber por que o fez ou para que serve esta coisa.

O carrasco chegou correndo com um afiado machado de prata. Ficou parado, com os braços nus e musculosos prontos, o rosto coberto por uma imaculada máscara branca.

— Um momento — disse o imperador. Dirigiu-se até uma mesa próxima, sobre a qual havia uma máquina que ele próprio criara. O imperador pegou uma minúscula chave de ouro que trazia em seu pescoço. Enfiou a chave na peque­na e delicada máquina, deu-lhe corda e ela se pôs em mo­vimento.

A máquina era um jardim de metal e pedrarias. Quando começou a funcionar, pássaros cantaram em pequenas árvo­res de metal, lobos atravessaram florestas em miniatura, e homens e mulheres minúsculos correram de um lado para outro, do sol para a sombra, abanando-se com leques di­minutos, escutando pequenos pássaros de esmeralda e pa­rando junto a fontes incrivelmente pequenas mas murmu­rejantes.

— Não é lindo? — perguntou o imperador. — Se tu me perguntasses o que eu fiz, eu poderia responder muito bem. Fiz os pássaros cantarem, fiz florestas sussurrarem, coloquei pessoas andando por essa terra, apreciando as fo­lhas, as sombras e o canto dos pássaros. Foi isso que eu fiz.

— Mas, imperador — implorou de joelhos o homem voador, com as lágrimas correndo-lhe pelo rosto —, eu fiz algo parecido! Encontrei a beleza. Voei no vento da manhã. Olhei para baixo e vi os jardins e as casas adormecidas. Senti o cheiro do mar e pude até mesmo vê-lo, além das monta­nhas, das alturas onde estive. Voei como um pássaro. Oh, não posso explicar como é lindo lá em cima, no céu, com o vento à minha volta, o vento me soprando ora como uma pena, ora como um leque, o cheiro que o céu tem de manhã! E a gente se sente tão livre! Isto é lindo, imperador, isto também é lindo!

— Sim — disse o imperador com tristeza. — Sei que deve ser verdade. Porque senti meu coração voar contigo pelos ares e pensei: Como será? Qual será a sensação? Como serão os lagos distantes vistos de tão alto? E minhas casas e meus servos? Parecerão formigas? E as cidades ao longe, ain­da adormecidas?

— Poupai-me, então!

— Mas há momentos — disse o imperador, mais tris­temente ainda — em que devemos abrir mão de uma beleza se desejamos preservar a pequena beleza que já temos. Não é a ti que eu temo, mas a um outro homem.

— Que homem?

— Um outro homem que, vendo-te, construirá um apa­relho de papel colorido e bambu, como este. Mas esse outro homem terá um rosto cruel e um coração cruel, e a beleza desaparecerá. É a esse homem que eu temo.

— Por quê? Por quê?

— Quem é que pode dizer se um dia um homem assim, em um aparelho de papel e caniços como esse, não voará pelo céu para deixar cair grandes pedras sobre a Grande Muralha da China? — perguntou o imperador.

Ninguém se moveu ou disse uma palavra.

— Cortai-lhe a cabeça — disse o imperador. O carrasco brandiu seu machado de prata.

— Queimai o papagaio e o corpo do inventor, e en­terrai juntas suas cinzas — disse o imperador.

Os servos retiraram-se para obedecer.

O imperador voltou-se para seu servo pessoal, que ha­via visto o homem voando. — Guarda segredo. Foi tudo um sonho, um triste e lindo sonho. E dize ao fazendeiro no cam­po distante, que também viu, que será melhor para ele considerar que foi apenas uma visão. Se algum dia essa história se espalhar, tu e o fazendeiro morrerão na mesma hora.

— Vós sois misericordioso, imperador.

— Não, não sou misericordioso — disse o velho. Do outro lado do muro do jardim, viu os guardas queimando a linda máquina de papel e bambu, que tinha o cheiro do vento da manhã. Viu a fumaça escura que subia para o céu. — Não, estou apenas confuso e amedrontado. — Viu os guardas cavando um pequeno buraco para enterrar as cinzas. — O que é a vida de um homem comparada a um milhão de outras? Preciso me consolar com esta idéia.

Pegou a chave que trazia na corrente presa ao pescoço e mais uma vez deu corda no lindo jardim em miniatura. Ao longe, viu a Grande Muralha, a cidade pacífica, as plantações verdes, os rios e os regatos. Suspirou. O delicado mecanismo . escondido do pequeno jardim foi acionado e começou a mo­vimentar-se; pequenos homens caminharam pelas florestas, pequenos animais de lindas pelagens brilhantes atravessaram clareiras iluminadas pelo sol, e por entre as pequeninas ár­vores voaram fragmentos de canto e cores brilhantes, azuis e amarelos, voando, voando, voando naquele pequeno céu.

— Oh — disse o imperador, fechando os olhos. — Olhai os pássaros, olhai os pássaros!

  1. O assassino

A música o acompanhava pelos brancos corredores. Passou pela porta de uma sala: A valsa da viúva alegre. Outra porta: Prelúdio à tarde de um fauno. Uma terceira: Beije-me novamente. Tomou outro corredor em um cruza­mento: A dança do sabre o cobriu de tímpanos, pratos, tambores, panelas, potes, facas, garfos, trovões e relâmpagos de alumínio. Tudo desapareceu quando entrou em uma ante-sala onde uma secretária estava elegantemente sentada, ator­doada pela Quinta sinfonia de Beethoven. Passou diante da moça como a mão que se passa à frente dos olhos: ela não o viu.

Seu rádio de pulso tocou.

— Alô?

— É Lee, papai. Não se esqueça de minha mesada.

— Está bem, meu filho. Agora eu estou ocupado.

— Eu só queria que você não se esquecesse, pai — disse o rádio de pulso. Romeu e Julieta, de Tchaikovsky, afogou a voz, e logo foi tragada pelos longos corredores.

O psiquiatra continuou a andar pela colméia de salas, na polinização cruzada de temas, Stravinsky acasalando-se com Bach, Haydn tentando repelir Rakhmanínov sem su­cesso, Schubert abatido por Duke Ellington. Acenou com a cabeça para as secretárias que cantarolavam e para os mé­dicos que assobiavam, dispostos para seu trabalho matinal. Em sua sala, conferiu alguns papéis com a estenógrafa, que cantava baixinho, e depois telefonou para o capitão de po­lícia, que estava no andar de cima. Pouco depois, uma luz vermelha piscou e uma voz disse do teto:

— O prisioneiro foi entregue na Sala de Entrevistas número 9.

Destrancou a porta da sala de entrevistas, entrou e ouviu a porta trancar-se novamente atrás de si.

— Vá embora — disse o prisioneiro, sorrindo.

— Ou seja?

— Derramei um copo de papel cheio de água no siste­ma de comunicações internas.

O psiquiatra anotou algo em seu bloco.

— E o sistema entrou em curto?

— Lindamente! Fogos de artifício! Meu Deus, as estenógrafas começaram a correr sem rumo, sentindo-se per­didas. Que loucura!

— E o senhor se sentiu melhor, temporariamente?

— Eu me senti ótimo! Então, ao meio-dia, tive a idéia de pisotear meu rádio de pulso na calçada. Justamente quan­do uma voz aguda estava gritando: "Esta é a pesquisa nú­mero 9. O que o senhor comeu no almoço?", eu esmaguei o diabo do rádio de pulso!

— E aí sentiu-se ainda melhor, hein?

— Tive uma inspiração! — Brock esfregou as mãos. — E por que eu não começava uma revolução solitária para libertar o homem de certas "vantagens"? "Vantajosas para quem?", gritei. Vantajosas para os amigos: "Ei, Al, resolvi ligar para você aqui do vestiário do clube de golfe. Acabei de completar um maldito buraco em uma tacada! Uma ta­cada, Al! Que dia maravilhoso. Estou tomando um uísque agora. Achei que você ia gostar de saber, Al!" Vantajosas para meu escritório, porque quando saio com o rádio de meu carro não há nenhum momento em que eu não esteja em contato com eles. Em contato! Que expressão inadequa­da. Em contato o diabo! Nas mãos! Ou melhor, nas garras! Espancado, massageado e golpeado por vozes em FM. Você não pode sair do carro sem dar o aviso: "Parei para ir ao toalete do posto de gasolina". “Ok, Brock, pode ir!" "Brock, por que você demorou tanto?" "Desculpe." "Veja lá da pró­xima vez, Brock." "Sim, senhor." O senhor quer saber o que é que eu fiz então, doutor? Comprei meio litro de sorvete de chocolate, que enfiei às colheradas no rádio do carro.

— Haveria alguma razão especial para escolher sorvete de chocolate para entupir o rádio do carro?

Brock refletiu e sorriu. — É o meu sorvete preferido.

— Oh — disse o médico.

— Eu achei que o que era bom para mim era bom para o rádio do meu carro.

— E o que lhe deu a idéia de enfiar sorvete no rádio?

— O dia estava quente. O médico fez uma pausa.

— E o que aconteceu depois?

— O silêncio. Meu Deus, foi lindo. O rádio do carro cacarejando o dia inteiro: Brock, vá ali; Brock, venha cá; Brock, entre em contato; Brock, rompa o contato; Ok, Brock; hora de almoço, Brock; fim do almoço, Brock; Brock, Brock. O silêncio era tanto que parecia que eu tinha posto sorvete nos ouvidos.

— O senhor parece gostar muito de sorvete.

— Eu fiquei simplesmente passeando e sentindo o si­lêncio. É um enorme tampão, feito da flanela melhor e mais macia que existe. Eu fiquei sentado no meu carro, sorrindo, sentindo aquela flanela nos ouvidos. Fiquei embriagado com a liberdade!

— Continue.

— Então, tive a idéia da máquina portátil de diatermia. Aluguei uma, e levei-a comigo no ônibus para casa à noite. Todos os passageiros, cansados, estavam com seus rádios de pulso, falando com suas mulheres: "Agora estou na Rua 43, agora estou na 44, já estou na 49, agora entrei na 61". Um marido reclamava: "Bem, agora saia desse maldito bar, e vá para casa começar a preparar o jantar. Já estou na rua 70!" E o sistema de rádio do ônibus tocava Contos dos bos­ques de Viena, e um canário cantou um comercial sobre flocos de trigo de primeira qualidade. Então, eu liguei a máquina de diatermia! Estática! Interferência! Todas as mu­lheres desligadas de seus maridos, que resmungavam sobre o dia duro que tinham tido nos escritórios. Todos os mari­dos desligados das mulheres que tinham acabado de ver o filho quebrar uma vidraça! Os Bosques de Viena abatidos, o canário esfrangalhado! Silêncio! Um silêncio terrível, ines­perado. Os passageiros do ônibus diante da contingência de falarem uns com os outros. Pânico! Pânico absoluto, irra­cional!

— A polícia o prendeu?

— O ônibus teve que parar. Afinal, a música estava sofrendo interferência, os maridos e as mulheres tinham perdido o contato com a realidade. Pandemônio, confusão e caos. Esquilos chiando nas gaiolas! Um pelotão de emergên­cia chegou, calculou imediatamente minha posição, passou-me uma repreensão, uma multa, e mandou-me para casa, sem meu aparelho de diatermia, em tempo recorde.

— Sr. Brock, posso dizer que até agora seu padrão de comportamento não foi muito, como direi, prático. Se o se­nhor não gostava de rádios nos ônibus, nos escritórios e no carro, por que não entrou para uma associação de inimigos dos rádios, passou abaixo-assinados ou tentou ações legais e constitucionais? Afinal, estamos em uma democracia.

— E eu — disse Brock — sou o que se chama de minoria. Eu entrei para associações, fiz piquetes, passei abai­xo-assinados, abri processos. Protestei anos a fio. Todos riam. Todo mundo adorava rádios e comerciais nos ônibus, eu é que estava por fora.

— Neste caso, o senhor devia ter aceito o fato como um bom soldado, não acha? A vontade da maioria.

— Mas eles foram longe demais. Se um pouco de mú­sica e "contato" era ótimo, eles acharam que muito mais seria dez vezes melhor. Fiquei louco! Cheguei a casa e en­contrei minha mulher histérica. Por quê? Porque ela tinha perdido o contato comigo desde o meio-dia. O senhor deve se lembrar que eu tinha sapateado no meu rádio de pulso. Então, naquela noite, eu comecei a planejar o assassínio da minha casa.

— O senhor tem a certeza de que é isso o que o senhor quer que eu anote?

— Semanticamente é a expressão precisa. Matá-la, bem morta. É uma dessas casas que falam, cantam,"informam o tempo, recitam poemas, lêem romances, contam piadas e cantam canções de ninar na hora de dormir. Uma casa que berra ópera quando você está no chuveiro e lhe ensina espa­nhol durante o sono. Uma dessas cavernas barulhentas em que todo tipo de oráculos eletrônicos fazem você sentir-se um pouco maior que um dedal, com um fogão que diz: "Sou uma torta de pêssego e estou pronta", ou "Sou um rosbife bem-feito, preciso ser regado com molho!" e outras babo­seiras do gênero. Com camas que balançam para você dormir e o sacodem para acordar. Na verdade, é uma casa que mal tolera seres humanos. A porta da frente grasna: "O senhor está com lama nos pés!" E um aspirador eletrônico vai fare­jando atrás de você de quarto em quarto, engolindo cada unha ou cinza que você deixa cair. Deus do céu, Deus do céu!

— Calma — sugeriu o psiquiatra.

— Passei a noite toda fazendo uma lista de minhas desavenças. De manhã, bem cedo, comprei uma pistola. Sujei meus pés de lama de propósito. Parei diante da porta da frente, e ela gritou com voz aguda: "Pés sujos, enlameadinhos! Limpe os pés, quero pés limpinhos!" Dei-lhe um tiro no buraco da fechadura. Corri para a cozinha, onde o fogão estava choramingando: "Vire-me, vire-me!" No meio da omelete mecânica, liquidei o fogão. Ele gritou: "Estou em curto!" Então, o telefone tocou, insistindo como um menino mimado, e eu o joguei no incinerador-triturador. Devo dizer aqui que não tenho nada contra o incinerador-triturador; ele era um espectador inocente. Agora eu sinto remorsos, era um aparelho realmente prático, que nunca dizia nada, passava a maior parte do tempo ronronando como um leão sonolento e digerindo nossos restos. Vou mandar consertá-lo. Depois, entrei na sala e atirei no aparelho de TV, aquela fera trai­çoeira, aquela Medusa, que transforma em pedra um bilhão de pessoas toda noite, todos olhando fixamente para aquela Sereia que chamava e cantava e prometia tanto, e que no fim das contas dava tão pouco, mas eu sempre retrocedia, esperando, até que — bang! Minha mulher, cambaleando como um peru degolado, saiu correndo pela porta da frente. A polícia chegou. Eis-me aqui.

Recostou-se contente e acendeu um cigarro.

— E ao cometer esses crimes o senhor tinha consciên­cia de que o rádio de pulso, o rádio do carro, o sistema de intercomunicações, o rádio do ônibus, o telefone, eram todos alugados ou propriedade de alguma outra pessoa?

— Se fosse o caso, doutor, eu faria tudo de novo, com a ajuda de Deus.

O psiquiatra ficou exposto à radiação daquele sorriso beatífico.

— O senhor quer mais alguma ajuda do Instituto de Saúde Mental? Está pronto para enfrentar as conseqüências?

— Isto é só o começo — disse o Sr. Brock. — Sou a vanguarda do pequeno público que não agüenta mais o ba­rulho, que não suporta mais que tirem vantagem deles, que os empurrem, que gritem com eles, música o tempo todo, o tempo todo em contato com alguma voz em algum lugar, faça isso, faça aquilo, depressa, agora isso, agora aquilo. O senhor vai ver. A revolta está começando. Meu nome vai entrar para a história!

— Hum... — o psiquiatra parecia refletir.

— Vai levar algum tempo, é claro. Tudo era tão en­cantador no início. A idéia dessas coisas, da utilidade prática, era maravilhosa. Eram quase brinquedos, mas as pessoas se envolveram demais, foram longe demais, enredaram-se em um padrão de comportamento social e não conseguiram mais sair. Não conseguiam sequer admitir que estavam envolvidas nele. Aí, racionalizaram a situação e passaram a ignorar seus próprios nervos. "A idade moderna", diziam. "Condições."

"Estresse." Mas preste atenção no que lhe digo, a semente foi lançada. Tive uma cobertura mundial: TV, rádio, filmes; eis aí a ironia. Já faz cinco dias. Um bilhão de pessoas ficou me conhecendo. Dê uma olhada na seção financeira dos jornais. Logo. Talvez hoje mesmo. Aguarde um pique súbito, um aumento nas vendas de sorvete de chocolate!

— Entendo — disse o psiquiatra.

— Posso voltar agora para minha agradável cela par­ticular, onde poderei ficar sozinho e quieto por seis meses?

— Pode — disse o psiquiatra em voz baixa.

— Não se preocupe comigo — disse o Sr. Brock, levantando-se. — Vou ficar simplesmente sentado por muito tem­po, enfiando tampões de material abafador nos dois ouvidos.

— Hum... — disse o psiquiatra, dirigindo-se para a porta.

— Saúde — disse o Sr. Brock.

— Sim — disse o psiquiatra.

Fez um sinal em código, apertando um botão oculto, a porta se abriu e ele saiu. A porta se fechou e se trancou. Sozinho, caminhou pelas salas e pelos corredores. Nos pri­meiros vinte metros, foi acompanhado por Tamborim chinês. Depois foram Tzigane, a Passacaglia e fuga em alguma coisa menor de Bach. A dança do tigre e O amor é como um cigarro. Tirou o rádio quebrado do bolso. Parecia um louva-a-deus morto. Entrou em sua sala. Um carrilhão tocou; uma voz falou do teto: — Doutor?

— Já acabei a entrevista com Brock — disse o psi­quiatra.

— Diagnóstico?

— Parece completamente desorientado, mas sociável. Recusa-se a aceitar as realidades mais simples de seu meio e trabalhar com elas.

— Prognóstico?

— Indeterminado.

Três telefones tocaram. O rádio de pulso de reserva tocou em uma das gavetas de sua mesa, zumbindo como um grilo ferido. O telefone interno acendeu uma luz cor-de-rosa e deu um estalido. Três telefones tocavam. A gaveta zumbia. Música invadiu a sala pela porta aberta. O psiquia­tra, cantando com a boca fechada, ajustou o novo rádio no pulso, atendeu o telefone interno, falou um pouco, atendeu um dos três telefones, falou, levantou o fone do segundo, falou, atendeu o terceiro telefone, falou, apertou o botão do rádio de pulso e falou calmamente, em voz baixa, com o rosto sereno e impassível, em meio à música e ao brilho das luzes, dois dos telefones tocando novamente, suas mãos em movimento, e o rádio de pulso zumbindo, os telefones inter­nos chamando, e vozes falando do teto. E ele continuou pelo resto da tarde fresca, refrigerada e longa; telefone, rádio de pulso, telefone interno, telefone, rádio de pulso, telefone interno, telefone, rádio de pulso, telefone interno, telefone, rádio de pulso, telefone interno, telefone, rádio de pulso...

  1. O papagaio de papel dourado, o vento prateado

— Na forma de um porco? — gritou o mandarim.

— Na forma de um porco — disse o mensageiro, e partiu.

— Oh, que dia mau de um ano mau — lamentou-se o mandarim. — A cidade de Kwan-Si, do outro lado da colina, era muito pequena na minha infância. Agora, cresceu tanto que estão finalmente construindo seus muros.

— Mas por que seus muros, a três quilômetros daqui, fariam meu pai ficar tão triste e irado de um momento para outro? — perguntou, em voz baixa, sua filha.

— Eles estão construindo os muros — disse o man­darim — na forma de um porco! Percebeste? Os muros de nossa cidade têm a forma de uma laranja. O porco faminto vai nos devorar!

Ah...

Os dois se sentaram, pensativos.

A vida era cheia de símbolos e presságios. Demônios se escondiam em toda parte. A morte nadava na umidade de um olho, a curvatura da asa de uma gaivota significava chuva, um leque nesta posição, a inclinação de um telhado, e até mesmo os muros de uma cidade tinham uma importân­cia imensa. Vigilantes e turistas, caravanas, músicos, artistas, chegando às duas cidades e julgando os indícios, diriam: "A cidade em forma de laranja? Não! Vou entrar na cidade que tem a forma de porco e prosperar, comendo tudo, engordando com a boa sorte e a fartura!"

O mandarim chorou. — Tudo está perdido! Estes sím­bolos e sinais são terríveis. Nossa cidade terá maus dias.

— Então — disse a filha — chamai vossos pedreiros e construtores de templos. Vou ficar escondida atrás do biombo de seda e sussurrar tudo o que vós devereis dizer.

O velho bateu palmas, desesperado. — Pedreiros! Cons­trutores de cidades e palácios!

Os homens que conheciam o mármore e o granito, o ônix e o quartzo vieram depressa. O mandarim recebeu-os em grande aflição, esperando ele mesmo um sussurro vindo do biombo de seda atrás de seu trono.

— Chamei-vos aqui — disse o murmúrio.

— Chamei-vos aqui — disse o mandarim em voz alta — porque nossa cidade tem a forma de uma laranja, e a maldita cidade de Kwan-Si tomou esses dias a forma de um porco esfomeado...

Nesse ponto, os pedreiros começaram a chorar e a gemer. A morte fazia soar seu cajado no pátio. A pobreza produzia um som de tosse seca nas sombras do salão.

— E assim — disse o murmúrio e disse o mandarim —, vós construtores de muros, deveis empunhar vossas pás e empilhar pedras, para mudar a forma de nossa cidade!

Os arquitetos e os pedreiros ficaram atônitos. O pró­prio mandarim ficou estupefato com o que dissera. O mur­múrio soprou. O mandarim prosseguiu: — E vós dareis a nossos muros a forma de um bastão, para bater no porco e afugentá-lo!

Os pedreiros se ergueram de um salto, gritando. Até mesmo o mandarim, deliciado com as palavras de sua boca, aplaudiu e desceu do trono. — Depressa! — gritou. — Ao trabalho!

Quando seus homens partiram, sorridentes e atarefados, o mandarim voltou-se com grande amor para o biombo de seda. — Filha — murmurou. — Devo beijar-te.

Não houve resposta. Olhou atrás do biombo, e ela havia partido.

Quanta modéstia, pensou. Ela desapareceu e deixou-me com um triunfo, como se fosse meu.

A notícia se espalhou pela cidade; o mandarim foi aclamado. Todos carregaram pedras para os muros. Fogos de artifício foram acesos e os demônios da morte e da po­breza não se manifestaram, enquanto todos trabalhavam juntos. Ao cabo de um mês, os muros tinham se transfor­mado. Agora, formavam um temível bastão, pronto a afugen­tar porcos, javalis selvagens ou até mesmo leões. O mandarim dormia todas as noites como uma raposa contente.

— Só queria ver o mandarim de Kwan-Si quando ele souber da notícia. Um pandemônio, histeria;   é provável que ele se atire de uma montanha! Um pouco mais daquele vinho, ó filha-que-pensa-como-um-filho!

O prazer, porém, foi como uma flor de inverno; mor­reu logo. Naquela mesma tarde, o mensageiro irrompeu na corte. — Ó mandarim, doença, dor prematura, avalanchas, pragas de gafanhotos e águas envenenadas nos poços!

O mandarim estremeceu.

— A cidade de Kwan-Si — disse o mensageiro —, que havia tomado a forma de um porco — animal que afugentamos transformando nossos muros em um grande bastão —, acaba de transformar nosso triunfo em cinzas. Mudaram seus muros, fazendo-os tomar a forma de uma grande fogueira para queimar nosso bastão!

O coração do mandarim apertou-se em seu peito, como o fruto de uma velha árvore no outono. — Ó deuses! Via­jantes hão de nos ignorar. Os comerciantes, lendo os sinais, trocarão o bastão, tão fácil de destruir, pelo fogo, que tudo vence!

— Não — disse um murmúrio leve como um floco de neve por trás do biombo de seda.

— Não — disse o mandarim, surpreso.

— Dizei a meus pedreiros — disse a voz que era uma gota de chuva a cair — que mudem a forma de nossos muros, transformando-os em um lago reluzente.

O mandarim proferiu em voz alta essas palavras e seu coração aqueceu-se.

— E com esse lago de água — disseram o murmúrio e o velho — vamos apagar o fogo e rescaldá-lo para sempre!

A cidade rejubilou-se ao saber que mais uma vez havia sido salva pelo magnífico imperador das idéias. Correram para os muros e os reconstruíram segundo a nova visão, cantando, não tão alto quanto antes, é claro, porque esta­vam cansados, e nem tão depressa, pois da primeira vez haviam levado um mês construindo os muros, e fora pre­ciso abandonar os negócios e a lavoura, e, portanto, estavam um pouco mais fracos e um pouco mais pobres.

Depois, houve uma sucessão de dias horríveis e maravilhosos, uns saindo dos outros como uma sucessão de caixinhas de surpresa.

— Ó imperador! — gritou o mensageiro. — Kwan-Si reconstruiu seus muros, dando-lhes a forma de uma boca para beber todo o nosso lago!

— Então — disse o imperador, muito perto do biom­bo de seda — dai a nossos muros a forma de uma agulha, para costurar essa boca!

— Imperador! — berrou o mensageiro. — Transfor­maram os muros em uma espada para quebrar nossa agulha!

O imperador apoiou-se, trêmulo, no biombo de seda. — Então mudai as pedras de lugar, para formar uma bainha e cobrir essa espada!

— Tende piedade — lamentou-se o mensageiro na manhã seguinte. — Eles trabalharam a noite inteira e deram a seus muros a forma de um raio, para atingir e destruir a bainha!

A doença se espalhou pela cidade como um bando de cães danados. Lojas e oficinas se fecharam. A população, que trabalhava sem parar há muitos meses na modificação dos muros, parecia a própria Morte, chocalhando os ossos brancos ao vento como instrumentos musicais. Cortejos fú­nebres começaram a percorrer as ruas, apesar de ser pleno verão, um tempo em que todos deveriam estar colhendo e cuidando de suas plantações. O mandarim sentia-se tão mal que ordenou que ocultassem sua cama atrás do biombo de seda e lá ficou, mal podendo dar suas ordens arquitetônicas. A voz que vinha do biombo também soava fraca e rouca, como o murmúrio do vento nas folhas.

— Kwan-Si é uma águia. Então, nossos muros devem ser uma rede para capturá-la. Kwan-Si virou um sol para queimar nossa rede. Então, construiremos uma lua para eclipsar o sol!

Como uma máquina enferrujada, a cidade acabou pa­rando.

Finalmente, o murmúrio por trás do biombo de seda disse:

— Em nome dos deuses, mandai chamar Kwan-Si!

No último dia do verão, o mandarim de Kwan-Si, muito abatido e pálido, entrou na corte de seu vizinho carregado por quatro servos esfomeados. Os dois mandarins foram soerguidos e postos frente a frente. Suas respirações vaci­lavam em suas bocas como o vento do inverno. Uma voz disse:

— Vamos acabar com isso. Os velhos concordaram.

— Isso não pode continuar — disse a voz fraca. — Nossos povos só fazem reconstruir nossas cidades dia após dia, hora após hora. Não têm mais tempo para caçar, pescar, amar, honrar seus antepassados e os filhos de seus ante­passados.

— Concordo com isso — disseram os mandarins das cidades da Rede, da Lua, da Lança, do Fogo, da Espada e de muitas outras coisas.

— Levai-os para a luz do sol — disse a voz.

Os velhos foram carregados para fora, sob a luz do sol, para o alto de uma pequena colina. Na brisa do fim do verão, algumas crianças muito magras empinavam papagaios de todas as cores do sol, das rãs e da relva, da cor do mar, da cor das moedas e do trigo.

A filha do primeiro mandarim postou-se ao lado de sua cama.

— Vede — ela disse.

— São apenas papagaios de papel — disseram os dois velhos.

— Mas o que é um papagaio de papel no solo? — disse a moça. — Não é nada. De que ele precisa para sus­tentar-se, tornar-se lindo e ganhar alma?

— Do vento, é claro! — disseram os outros.

— E de que precisam o céu e o vento para ficarem lindos?

— De um papagaio de papel, é claro. De vários papa­gaios, para quebrar a monotonia, a uniformidade do céu. Papagaios de papel colorido, voando!

— Então — disse a filha do mandarim — vós, de Kwan-Si, mudareis pela última vez a forma de vossa cidade, que deverá assemelhar-se a nada mais nada menos do que o vento. E nós daremos à nossa cidade a forma de um pa­pagaio de papel dourado. O vento embelezará o papa­gaio e o elevará a alturas magníficas. E o papagaio que­brará a monotonia da existência do vento, dando-lhe um sentido e uma finalidade. Um, sem o outro, não é nada. Juntos, tudo será beleza e cooperação, uma vida longa e duradoura.

Ao ouvir essas palavras, os mandarins rejubilaram-se tanto que se alimentaram pela primeira vez em muitos dias, e logo recuperaram as forças, abraçaram-se e trocaram home­nagens. Disseram que a filha do mandarim era um rapaz, um homem, uma coluna de pedra, um guerreiro, um filho verdadeiro e inesquecível. Logo depois, separaram-se e cor­reram para suas cidades, chamando seus súditos e cantando, fracos ainda, mas felizes.

Assim, em pouco tempo, as cidades se tornaram a Ci­dade do Papagaio de Papel Dourado e a Cidade do Vento Prateado. E as colheitas foram colhidas, os negócios vol­taram a prosperar, as carnes retornaram, e a doença fugiu como um chacal assustado. Em todas as noites do ano, os habitantes da Cidade do Papagaio de Papel Dourado ouviam o vento benéfico e claro a sustentá-los no ar. E os habitantes da Cidade do Vento Prateado ouviam o papagaio de papel cantando, sussurrando, flutuando e enchendo-os de beleza. — Assim seja — disse o mandarim diante de seu biom­bo de seda.

  1. Até nunca mais ver

Bateram de leve na porta da cozinha, e quando a Sra. O'Brian a abriu, encontrou na soleira seu melhor pensionis­ta, o Sr. Ramirez, ladeado por dois policiais. O Sr. Ramirez não fez menção de entrar nem de falar, acuado e pequenino.

— Mas o senhor, Sr.   Ramirez! — disse a Sra. O'Brian.

O Sr. Ramirez estava arrasado. Não parecia sequer poder explicar o que estava acontecendo.

Chegara à pensão da Sra. O'Brian havia mais de dois anos, onde morava desde então. Havia tomado um ônibus da Cidade do México para San Diego, e depois subira até Los Angeles. Lá, encontrou o quartinho limpo, forrado de linóleo azul brilhante, com quadros e folhinhas nas paredes flo­ridas, e a Sra. O'Brian, que tratava os hóspedes com seve­ridade mas gentilmente. Durante a guerra, trabalhou na fábrica de aviões, produzindo peças para aeroplanos que voavam para longe, e até hoje, terminada a guerra, ainda estava no mesmo emprego. Desde o início, ganhava muito dinheiro. Guardava uma parte, e se embebedava apenas uma vez por semana, privilégio que, no entender da Sra. O'Brian, todo bom trabalhador merecia, isento de questionamentos ou repreensões.

Dentro da cozinha da Sra. O’Brian havia tortas assando no forno. Logo elas sairiam, parecidas com o rosto do Sr. Ramirez: escuras, luzidias e secas, com fendas para a passa­gem do ar que lembravam as fendas dos olhos escuros do Sr. Ramirez. A cozinha cheirava bem. Os policiais se in­clinaram para a frente, atraídos pelo aroma. O Sr. Ramirez fitava os próprios pés, como se fossem eles que o houvessem levado a se meter naquela confusão.

— O que houve, Sr. Ramirez? — perguntou a Sra. O'Brian.

Ao levantar os olhos, o Sr. Ramirez viu, por trás da Sra. O’Brian, a grande mesa posta com uma toalha limpa de linho branco e uma bandeja, copos brilhantes, um jarro de água com pedras de gelo boiando, uma travessa de salada de batatas recém feita e outra com pedacinhos de banana e la­ranja cobertos de açúcar. À mesa, estavam sentados os filhos da Sra. O'Brian: os três rapazes crescidos, comendo e con­versando, e as duas filhas mais moças, que fitavam os poli­ciais enquanto comiam.

— Estou aqui há trinta meses — disse o Sr. Ramirez em voz baixa, fitando as mãos gordas da Sra. O'Brian.

— São seis meses além da conta — disse um dos po­liciais. — Ele tinha apenas um visto temporário. Acabamos tendo que vir atrás dele.

Logo depois de chegar, o Sr. Ramirez comprara um rádio para seu quartinho; às noites, ligava-o muito alto, e tinha verdadeira adoração por ele. Depois, comprara um re­lógio de pulso, que também adorava. E em muitas noites andava pelas ruas vazias olhando as roupas coloridas nas vitrines, comprando algumas, olhando as jóias e também comprando algumas para suas amigas. Durante algum tempo, ia ao cinema cinco noites por semana. Também andava de bonde — às vezes a noite inteira —, farejando a eletricidade, os olhos negros devorando os anúncios, sentindo as rodas trovejar sob seu corpo e vendo passar as pequenas casas adormecidas e os grandes hotéis. Além disso, ia a grandes restaurantes, onde comia jantares de muitos pratos, e à ópera e ao teatro. Havia comprado um carro que depois, quando se esqueceu de pagar, o vendedor irritado veio recuperar.

— Bom, eu vim aqui — disse o Sr. Ramirez — para dizer à senhora que vou deixar meu quarto, Sra. O'Brian. Vim buscar minha bagagem e minhas roupas, e depois vou-me embora com estes senhores.

— De volta para o México?

— É. Para Lagos. Uma cidadezinha ao norte da Ci­dade do México.

— Sinto muito, Sr. Ramirez.

— Estou pronto — disse o Sr. Ramirez com voz rouca, piscando muito os olhos escuros e torcendo deploravelmente as mãos. Os policiais nem o tocavam. Não era necessário.

— Tome sua chave, Sra. O'Brian — disse o Sr. Ra­mirez. — A mala já está comigo.

Só então a Sra. O'Brian percebeu a mala pousada na soleira atrás de seu hóspede.

O Sr. Ramirez tornou a olhar para dentro da cozinha enorme, contemplando os talheres reluzentes, os jovens co­mendo e o chão brilhando de tão encerado. Virou-se e exa­minou longamente o edifício ao lado, com três andares, alto e belo. Olhou para as varandas, as saídas de incêndio e as escadas dos fundos, as cordas com roupas batendo ao vento.

— O senhor foi um bom pensionista — disse a Sra. O’Brian.

— Obrigado, obrigado, Sra. O'Brian — disse o Sr. Ramirez suavemente, fechando os olhos.

A Sra. O'Brian ficou segurando a porta entreaberta. Um de seus filhos disse que o jantar estava esfriando, mas ela sacudiu a cabeça e voltou-se para o Sr. Ramirez. Lembrava-se de um passeio que fizera uma vez a algumas cidadezinhas mexicanas da fronteira: os dias quentes, os infindáveis gri­los, pulando ou caindo mortos no chão, secos e quebradiços como as cigarrilhas das vitrines das lojas, os canais levando a água do rio para as plantações, as estradas de terra, a pai­sagem árida. Lembrava-se do silêncio, da cerveja morna, da comida quente e pesada todos os dias. Lembrava-se dos ca­valos pachorrentos se arrastando e dos cadáveres dos coelhos esmagados nas estradas. Lembrava-se das montanhas de ferro e dos vales empoeirados, das praias que se estendiam por centenas de quilômetros, visitadas somente pelas ondas; nem um carro, nem uma casa, nada.

— Sinto muito mesmo, Sr. Ramirez — disse.

— Eu não quero voltar, Sra. O'Brian — ele disse com voz sumida. — Eu gosto daqui, quero ficar aqui. Trabalhei, ganhei dinheiro. Estou bem, não estou? E não quero voltar!

— Sinto muito, Sr. Ramirez — disse a Sra. O'Brian. — Gostaria de poder fazer alguma coisa.

— Sra. O'Brian! — ele gritou subitamente, com lágri­mas correndo de sob suas pálpebras. Estendeu a mão e tomou a dela febrilmente, apertando-a, torcendo-a, agarrando-se a ela. — Sra. O'Brian, até nunca mais ver, até nunca mais ver!

Os policiais sorriram, mas o Sr. Ramirez não percebeu, e logo eles pararam de sorrir.

— Adeus, Sra. O'Brian. A senhora foi boa para mim. Adeus, Sra. O'Brian. Até nunca mais ver!

Os policiais esperaram que o Sr. Ramirez se virasse, pegasse a mala e começasse a andar. Então, seguiram-no, despedindo-se da Sra. O'Brian com um toque na pala- dos quepes. Ela ficou olhando enquanto desciam os degraus da entrada, e depois fechou a porta sem fazer ruído e voltou lentamente para sua cadeira. Puxou-a e sentou-se à mesa. Pegou sua faca e seu garfo reluzente e recomeçou a comer seu bife.

— Depressa, mamãe — disse um dos filhos —, vai esfriar.

A Sra. O'Brian pôs um pedaço de carne na boca e mas­tigou-o por muito tempo, lentamente. Depois, olhou para a porta fechada. Pousou o garfo e a faca.

— Que é que há, mamãe? — perguntou o rapaz.

— Acabo de compreender — disse a Sra. O'Brian, passando uma das mãos pelo rosto — que nunca mais irei ver o Sr. Ramirez.

  1. O bordado

A penumbra da varanda no fim da tarde estava povoa­da de lampejos de agulhas, como o movimento de insetos prateados atraídos pela luz. As três mulheres repuxavam a boca enquanto bordavam. Seus corpos se inclinavam para trás e logo, imperceptivelmente, para a frente, de modo que as cadeiras de balanço oscilavam e murmuravam. Cada uma delas olhou para as próprias mãos, como se de súbito visse nelas seu coração batendo.

— Que horas são?

— Dez para as cinco.

— Daqui a um minuto eu preciso me levantar e ir des­cascar as ervilhas para o jantar.

— Mas... — disse uma delas.

— É verdade, eu me esqueci. Que bobagem, a minha... — a primeira mulher interrompeu-se, pousou o bordado e a agulha, e através da porta aberta da varanda, através do cálido interior da casa quieta, olhou para a cozinha silen­ciosa. Sobre a mesa, como o mais autêntico símbolo da vida doméstica, estava o monte de ervilhas recém lavadas, ainda envoltas em suas bainhas limpas e maleáveis, esperando que seus dedos as trouxessem ao mundo.

— Vá descascá-las, se isso a faz se sentir melhor — disse a segunda mulher.

— Não — disse a primeira. — Não vou.

A terceira mulher suspirou. Bordava uma rosa, uma folha e uma margarida sobre um fundo verde. A agulha emergia e tornava a mergulhar.

A segunda mulher trabalhava no bordado mais fino e delicado dos três, enfiando, volteando e puxando a agulha hábil e veloz em carreiras inumeráveis. Seu olhar vivo e negro acompanhava cada movimento. Uma flor, um homem, uma estrada, um sol, uma casa; sua mão fazia a cena crescer, uma maravilha em miniatura, perfeita em cada detalhe.

— São cinco horas.

A estas palavras, em silêncio, as três se entregaram ao trabalho. Os dedos voavam. Os rostos se debruçavam sobre o movimento dos dedos, que executavam desenhos frenéticos. Lilases e gramados e árvores e casas e rios no pano bordado. Elas não diziam nada, mas podia-se ouvir sua respiração no ar quieto da varanda.

Passaram-se trinta segundos.

Finalmente, a segunda mulher suspirou e começou a relaxar.

— Acho que, afinal de contas, vou mesmo debulhar as ervilhas para o jantar — disse. — Eu...

Mas não teve nem mesmo tempo de levantar a cabeça. Em algum lugar, no limite de seu campo de visão, ela viu o mundo iluminar-se e começar a pegar fogo. Manteve a cabeça abaixada, porque sabia o que era. Não olhou para cima, nem ela nem as outras, e até o último instante seus dedos voavam; não olharam para ver o que estava aconte­cendo com o campo, a cidade, a casa, ou até mesmo com a varanda. Mantinham os olhos presos aos desenhos que suas mãos não paravam de bordar.

A segunda mulher viu desaparecer uma flor bordada. Tentou bordá-la novamente, mas ela se desfez, e logo em seguida desapareceu a estrada, e depois o gramado. Viu o fogo, quase em câmara lenta, envolver a casa bordada, destelhá-la, arrancar as folhas bordadas da pequena árvore verde da curva do caminho, e viu o próprio sol desintegrar-se no desenho. O fogo alcançou então a ponta da agulha, enquanto esta ainda refulgia em movimento; ela viu o fogo percorrer seus dedos, seus braços e seu corpo, desenrolando o novelo de seu ser com tamanho cuidado que ela podia vê-lo, em toda a sua beleza diabólica, descascar a estrutura do material atingido. Ela nunca chegou a saber o que o fogo fez com as outras mulheres, com os móveis ou com o olmo do jardim. Porque neste momento, neste exato momen­to, ele puxou o fio do alvo bordado de sua carne, a linha rosada de suas faces, e finalmente alcançou seu coração, uma suave rosa vermelha costurada com fogo, e queimou as fres­cas pétalas bordadas, uma a uma, delicadamente...

  1. O grande jogo entre brancos e negros

O público tomava todos os lugares em redor do alambrado, esperando. Nós, os garotos, ainda molhados da água do lago, passamos correndo pelas casinhas brancas e pelo hotel, gritando, e nos sentamos nas arquibancadas, onde deixamos a marca de nossos traseiros molhados. O sol quente atravessava as copas dos grandes carvalhos que cercavam o campo de beisebol. Os pais, de roupa esporte, e as mães, com vestidos leves de verão, ralharam conosco e nos fizeram ficar quietos em nossos lugares.

Olhávamos com grande expectativa para a porta trasei­ra da vasta cozinha do hotel. Algumas mulheres de cor começaram a atravessar a área manchada de sombras que ia do hotel ao campo, e ao fim de dez minutos as arquibancadas da esquerda estavam tomadas pela cor de seus rostos e braços recém lavados. Depois de todos esses anos, sempre que me recordo desse dia, ainda sou capaz de ouvir os sons que faziam. O som de sua conversa, percorrendo o ar cálido, parecia o arrulhar suave de pombos.

Todos foram ficando animados, e risos subiram ao céu azul-claro do Wisconsin quando a porta da cozinha se abriu e surgiram os pretos: garçons, porteiros, motoristas, rema­dores, cozinheiros, lavadores de pratos, jardineiros e corta­dores de grama. Altos e baixos, escuros e mulatos, vinham saltitando, mostrando os belos dentes brancos, orgulhosos de seus uniformes novos riscados de vermelho, os sapatos relu­zentes subindo e pisando a grama verde enquanto ladeavam as arquibancadas e entravam no campo com uma rapidez pre­guiçosa, cumprimentando a tudo e a todos.

Nós, os meninos, gritando. Lá estavam Long Johnson, que cortava o gramado, e Cavanaugh, que servia no bar, e Shorty Smith e Pete Brown e Jiff Miller!

E lá estava Big Poe! Nós, os meninos, berrávamos e aplaudíamos!

Big Poe era quem cuidava da máquina de pipoca toda noite no luxuoso pavilhão de baile, que ficava logo abaixo do hotel, à beira do lago. Todas as noites, eu comprava pipocas de Big Poe, e ele colocava um montão de manteiga em cima delas.

Bati os pés e gritei: — Big Poe! Big Poe!

Ele olhou para mim, repuxou os lábios para exibir os dentes, acenou e riu alto.

Mamãe olhou para a direita, para a esquerda e para trás com olhos preocupados, e segurou meu cotovelo. — Fique quieto — disse. — Quieto.

— Ora vejam só — disse a senhora ao lado de minha mãe, abanando-se com um jornal dobrado. — É um dia e tanto para os empregados negros, não é? É o único dia do ano em que podem ficar à vontade. Passam o verão inteiro esperando o grande jogo de negros contra brancos. Mas isso não é nada. A senhora já viu o baile que eles costumam dar?

— Comprei entradas — disse mamãe. — Hoje à noite no pavilhão. Um dólar por cabeça. É bem caro, não é?

— Mas eu sempre achei — disse a mulher — que uma vez por ano é preciso gastar. E vale a pena vê-los dançar. Eles têm uma coisa natural...

— Ritmo — disse mamãe.

— É isso — disse a senhora. — Ritmo. Eles têm mui­to ritmo. A senhora precisava ver as empregadas negras do hotel. Faz um mês que elas estão comprando peças de cetim na grande loja de Madison. E passam todo o tempo de folga costurando e rindo. E vi algumas das plumas que com­praram para os chapéus. Cor de mostarda, vinho, azul e violeta. Oh, vai ser um espetáculo e tanto!

— Os homens puseram os smokings para arejar — eu disse. — Deixaram as roupas penduradas nas cordas atrás do hotel a semana inteira!

— Olhe para eles pulando — disse mamãe. — Até parece que acham que vão ganhar o jogo dos nossos rapazes.

Os negros corriam de um lado para outro e gritavam com suas vozes agudas e aflautadas, e com suas vozes graves, arrastadas, intermináveis. Até o outro extremo do campo podia-se ver o lampejo dos dentes, os negros braços nus er­guidos, girando e batendo nos flancos enquanto saltavam no mesmo lugar ou corriam como coelhos, exuberantes.

Big Poe pegou um punhado de tacos, colocou-os todos no ombro forte, e saiu pavoneando-se pela linha da primeira base, jogando a cabeça para trás, com a boca aberta num sorriso largo, a língua agitando-se, cantando:

". .. gonna dance out both of my shoes,

When they play those Jelly Roll Blues;

Tomorrow night at the

Dark Town Strutters' Ball!"

Seus joelhos erguiam-se, desciam e se deslocavam para os lados; giravam os tacos como se fossem batutas de or­questra. Uma explosão de aplausos e risos abafados veio das arquibancadas da esquerda, onde todas as moças negras, jovens e agitadas, sentavam-se impacientes e descontraídas, com os olhos brilhantes. Faziam movimentos rápidos, que eram agradáveis e graciosos, talvez por causa de seu colorido. Seus risos pareciam pássaros tímidos; acenavam para Big Poe, e uma delas gritou com voz aguda: — Oh, Big Poe! Big Poe!

A parte branca aderiu polidamente aos aplausos quando Big Poe acabou sua dança. — Ei, Poe! — gritei novamente.

— Pare com isso, Douglas! — disse mamãe, olhando-me fixamente.

Agora, os homens brancos chegaram, correndo unifor­mizados por entre as árvores. Houve um grande rumor e gritos em nossas arquibancadas, enquanto todos se punham de pé. Os brancos corriam pelo gramado verde.

— Oh, olhe lá o tio George! — disse mamãe. — Olhe só, ele não está bonito? — E lá estava meu tio George arrastando os pés em seu uniforme, que não era exatamente do seu tamanho, porque ele era barrigudo e tinha um papo que cobria qualquer colarinho que usasse. Estava andando depressa, tentando respirar e sorrir ao mesmo tempo, er­guendo suas perninhas gorduchas. — Mas eles estão tão bonitos — disse mamãe, entusiasmada.

Sentado nas arquibancadas, eu observava os movimentos dos jogadores. Mamãe estava sentada a meu lado, e acho que ela também estava comparando e pensando, e o que ela via a deixava surpresa e desconcertada. A corrida dos negros tinha sido tão natural, parecendo antílopes e gazelas em câ­mara lenta nos documentários sobre a África, parecendo coisas de sonho. Moviam-se como belos animais marrons e luzidios, que não sabiam que estavam vivos, mas viviam. E quando corriam e estendiam suas pernas flexíveis, longas, preguiçosas, concatenando-as com seus braços grandes e co­leantes e com seus dedos fortes, sorrindo ao vento, suas expressões não diziam: "Olhe aqui eu correndo, veja como eu corro!" Não, nem de longe. Seus rostos diziam, sonha­dores: "Meu Deus, como é bom correr! Está vendo o chão ondular suavemente sob meus pés? Que coisa boa. Meus músculos estão se movendo como óleo pelos meus ossos, e correr é a melhor coisa do mundo". E eles corriam. Corriam por correr, pela alegria e pela vida.

Os brancos se empenhavam na corrida, como se empe­nhavam em tudo. Quem assistia ficava encabulado por eles, porque estavam vivos demais, da maneira errada. Sempre espiando com o canto dos olhos para ver se alguém estava olhando. Os negros não se importavam em saber se alguém estava olhando ou não; eles continuavam a viver, a mover-se. Eram tão seguros do que faziam que nem pensavam nisso.

— Os homens de nosso time estão tão bonitos — disse minha mãe, repetindo-se num tom inexpressivo. Ela havia visto e comparado os dois times. Por dentro, vira como os negros estavam seguros, descontraídos em seus uniformes, e como os brancos estavam estofados, enfiados e afivelados em seus uniformes, tensos e nervosos.

Acho que foi então que a tensão começou.

Acho que todo mundo sabia o que estava acontecendo. Todos viam como os brancos pareciam senadores de roupa de banho. E admiravam a graciosa despreocupação dos ho­mens de cor. E como sempre acontece, a admiração deu lugar à inveja, ao ciúme, à irritação, traduzindo-se em conversas assim:

— Olhe lá meu marido, Tom, na terceira base. Por que ele não faz um aquecimento? Ele fica lá parado!

— Não se preocupe, não se preocupe. Ele vai jogar direitinho na hora certa!

— É o que eu acho! Olhe só o meu Henry, por exem­plo. Ele pode não ser ativo o tempo todo, mas quando chega a hora... espere só para ver! Bem... eu só queria que ele desse um adeus. Ei! Ei, Henry!

— Olhe só o Jimmie Cosner!

Olhei. Um branco de altura mediana, ruivo e sardento, estava se exibindo no meio do campo, equilibrando um taco na testa. Houve risos nas arquibancadas dos brancos. Mas eles soavam como o riso que se solta quando alguém nos dei­xa constrangido por alguma coisa.

— Vamos jogar! — disse o juiz.

A moeda foi atirada ao ar. Os negros eram os primeiros a rebater.

— Que diabo — disse minha mãe.

Os negros se reuniram de um dos lados do campo, alegremente.

Big Poe era o primeiro a rebater. Aplaudi. Pegou o taco com uma das mãos como se fosse um palito, andou devagar até a posição do rebatedor e apoiou o taco no vasto ombro, sorrindo por cima de sua superfície polida para as arquibancadas onde as mulheres negras estavam sentadas, com seus vestidos floridos ondulando sobre as pernas, pen­duradas nos intervalos entre os degraus como troncos novos de canela; todas estavam com os cabelos penteados com cuidado, deixando as orelhas à mostra. Big Poe olhava espe­cialmente para as formas pequenas e delicadas de sua namo­rada Katherine. Era ela quem fazia as camas no hotel e nos chalés, todo dia, e batia na porta como um passarinho e perguntava delicadamente se você já tinha acabado de sonhar, porque se você já tivesse levantado ela ia espanar todos os pesadelos velhos e trazer um monte de novos — mas é favor só usar um de cada vez. Big Poe sacudiu a cabeça olhando para ela, como se não pudesse acreditar que ela estava lá. Depois virou-se, com uma das mãos equilibrando o taco e a outra caída ao lado do corpo, esperando os arremessos de treinamento. Eles passaram direto, espatifando-se na boca aberta da luva do apanhador, e foram lançados de volta. O juiz grunhiu. O próximo arremesso era o começo do jogo.

Big Poe deixou a bola passar.

— Primeira tacada! — anunciou o juiz. Big Poe piscou amigavelmente para os brancos. Bang! — Segunda tacada! — gritou o juiz.

A bola veio pela terceira vez.

Subitamente, Big Poe transformou-se em uma máquina lubrificada, girando; a mão solta agarrou o extremo do taco, o taco descreveu um arco, encontrou a bola — e a bola subiu no céu, na direção da linha irregular dos carvalhos, e depois desceu rumo ao lago, onde um veleiro branco deslizava em silêncio. O público gritou, e eu gritei ainda mais alto! Lá se foi o tio George, correndo com as perninhas grossas enfiadas em meias de lã, diminuindo com a distância.,

Big Poe ficou um instante parado, assistindo ao vôo da bola. E então começou a correr. Passou por todas as bases, correndo sem se esforçar, e no caminho entre a terceira base e a base inicial acenou alegremente e com ar natural para as moças negras, que acenaram de volta, de pé nos assentos e gritando.

Dez minutos depois, com as bases ocupadas e uma volta sendo completada atrás da outra, Big Poe voltou para re­bater. Minha mãe virou-se para mim. — Eles não têm um pingo de consideração — disse.

— Mas o jogo é assim — respondi. — Eles só erraram duas vezes.

— Mas o jogo está sete a zero — protestou minha mãe.

— É, mas espere só até os nossos começarem a rebater

— disse a senhora ao lado de minha mãe, espantando uma mosca com a mão pálida riscada de veias azuis. — Esses negros estão indo longe demais.

— Segunda tacada! — disse o juiz, quando Big Poe brandiu o taco, errando.

— Durante toda a semana passada — disse a mulher ao lado de minha mãe, encarando fixamente Big Poe — o serviço do hotel esteve horrível. As arrumadeiras só fazem falar do baile, e sempre que a gente pede água gelada demo­ram meia hora para trazer. Elas estão tão ocupadas cos­turando!

— Bola fora do alcance! — disse o juiz.

A mulher se agitou: — Tomara que esta semana acabe logo, é o que tenho a dizer.

— Segunda fora do alcance! — disse o juiz para Big Poe.

— Será que eles vão deixá-lo avançar andando, sem rebater? — perguntou-me minha mãe. — Ficaram loucos?

— E para a mulher a seu lado: — É verdade. Andaram esquisitos a semana toda. Ontem à noite eu precisei dizer duas vezes a Big Poe para colocar uma porção extra de manteiga nas minhas pipocas. Eu acho que ele estava fa­zendo economia, ou coisa assim.

— Terceira fora de alcance! — disse o juiz.

De repente, a mulher ao lado de minha mãe deu um grito, abanando-se furiosamente com o jornal. — Eu estava só pensando. Não seria horrível se eles ganhassem o jogo? É possível, você sabe. Eles podem até ganhar.

Minha mãe contemplou o lago, as árvores, suas mãos.

— Não sei por que o tio George resolveu jogar. Fazendo papel de bobo. Douglas, vá correndo dizer a ele que saia já do jogo. É ruim para o coração dele.

— Desclassificado! — gritou o juiz para Big Poe.

— Ah! — suspiraram as arquibancadas.

Os times trocaram de posição. Big Poe pousou suave­mente seu taco e saiu andando pela linha das bases. Os brancos se reuniram no meio do campo, vermelhos e irrita­dos, com grandes ilhas de suor sob as axilas. Big Poe olhou para mim. Pisquei o olho. Ele piscou de volta. Aí compreen­di que ele não era idiota.

Tinha errado as tacadas de propósito.

Long Johnson ia arremessar para o time negro.

Com passos miúdos, dirigiu-se a sua posição, apertando os pulsos com os dedos para desenferrujá-los.

O primeiro branco a rebater era um homem chamado Kodimer, que vendia ternos em Chicago durante o ano.

Long Johnson arremessou as bolas para o rebatedor com uma precisão casual, despretensiosa e controlada.

O Sr. Kodimer fendeu o ar. O Sr. Kodimer girou em falso. Finalmente, o Sr. Kodimer acertou uma tacada fraca na bola, que a amorteceu, mandando-a até antes da linha da terceira base.

— Fora na primeira base — disse o juiz, um irlandês chamado Mahoney.

O segundo rebatedor era um jovem sueco chamado Moberg. Acertou uma tacada alta na direção do meio do campo, que foi aparada por um negro baixinho e rechonchudo, que não parecia gordo porque se deslocava como uma gota re­donda e lisa de mercúrio.

O terceiro rebatedor era um chofer de caminhão de Milwaukee. Deu uma tacada reta na direção do meio do campo, uma boa tacada. Só que ele tentou fazer duas bases, e, quando chegou à segunda, lá estava Emancipated Smith, com uma pelota branca em sua mão muito escura, esperando.

Minha mãe afundou-se em seu assento, respirando com força. — Ora, vejam só.

— Está ficando quente — disse a senhora ao lado. — Eu acho que vou dar uma volta pela beira do lago daqui a pouco. Está quente demais para ficar sentada assistindo a um jogo bobo. A senhora não quer vir comigo? — perguntou a mamãe.

Continuou assim por cinco períodos.

A contagem era de onze a zero, e Big Poe já tinha sido desclassificado três vezes de propósito, e foi na última me­tade do quinto período que Jimmie Cosner veio rebater de novo pelo nosso lado. Estava se esforçando a tarde inteira, fazendo palhaçadas, dando ordens, dizendo a todos onde ia mandar a bola quando a pegasse de jeito. Dirigiu-se para o centro do campo confiante, falando alto. Sopesou seis tacos com as mãos finas, examinando-os criticamente com seus brilhantes olhinhos verdes. Escolheu um, largou os outros e correu até o lugar do rebatedor, arrancando ilhotas do gramado verde novo com as traves metálicas de seus sapa­tos. Levantou o boné, descobrindo parte dos cabelos verme­lhos cor de ferrugem. — Olhem só! — gritou para as senho­ras. — Fiquem olhando que eu vou mostrar uma coisa a esses escurinhos!

Long Johnson, no montinho do arremessador, girou o braço lentamente. Parecia uma cobra num galho de árvore, desenrolando-se, lançando-se subitamente num bote. Num segundo, a mão de Johnson estava diante .dele, aberta, como garras negras, vazia. E a bola branca passou pelo rebatedor com um som de navalha cortando o ar.

— Primeira tacada!

Jimmie Cosner abaixou o taco e encarou fixamente o juiz. Ficou muito tempo calado. Depois, cuspiu proposital-mente perto do pé do apanhador, agarrou novamente o taco amarelo e balançou-o de modo que o sol se refletisse em sua ponta, produzindo um halo luminoso. Flexionou ligeiramente os braços e apoiou o taco no ombro ossudo e sua boca se abriu e fechou sobre os dentes grandes e sujos de nicotina.

Clap! fez a luva do apanhador.

Cosner virou-se, olhou.

O apanhador, como um mágico negro, com os dentes brancos cintilando, abriu sua luva oleosa. Lá, como uma flor branca desabrochada, estava a bola.

— Segunda tacada! — disse o juiz, longe, no calor. Jimmie Cosner apoiou o taco no chão e colocou as mãos sardentas nos quadris. — O senhor está querendo dizer que essa bola foi boa?

— Foi o que eu disse — falou o juiz. — Apanhe o taco.

— Só se for para dar na sua cabeça! — ripostou seca­mente Cosner.

— Jogue ou vá para o chuveiro!

Jimmie Cosner tentou recolher bastante saliva em sua boca para cuspir, depois engoliu-a enraivecido e praguejou furioso. Pegou o taco e pousou-o no ombro como se fosse uma carabina.

E lá veio a bola! Começou pequena e foi crescendo à sua frente. Bam! Uma explosão no taco amarelo. A bola subiu e subiu, em espiral. Jimmie disparou para a primeira base. A bola parou em pleno vôo, como se refletisse sobre a gravidade, suspensa no céu. Uma onda veio até a borda do lago e se desmanchou. O público gritou. Jimmie Cosner corria. A bola se decidiu e começou a descer. Um mulato claro estava junto ao fim de sua trajetória. A bola tocou o gramado, foi apanhada e lançada para a primeira base.

Jimmie viu que não chegaria a tempo. Então, pulou para a base com os pés estendidos à sua frente.

Todos viram as traves de seu sapato cravando-se no tornozelo de Big Poe. Todos viram o sangue vermelho. Todos ouviram o grito, o urro, as nuvens pesadas de poeira se erguendo.

— Consegui! — protestou Jimmie dois minutos depois. Big Poe estava sentado no chão. Todo o time negro o rodeou. O médico se inclinou, examinou o tornozelo de Big Poe, disse — Hum... — e — está mal. Vamos ver. — Passou um remédio na ferida e cobriu-a com uma gaze branca.

O juiz dirigiu um olhar gelado para Cosner. — Para o chuveiro!

— De jeito nenhum! — disse Cosner. E plantou-se na primeira base, soprando as bochechas, balançando as mãos sardentas do lado do corpo. — Eu consegui! E vou ficar aqui, sim senhor! Nenhum crioulo me tirou do jogo!

— Não — disse o juiz. — Foi um branco: eu. Fora!

— Ele largou a bola! Faz parte das regras! Eu ganhei a base!

O juiz e Cosner encararam-se longamente.

Big Poe levantou os olhos de seu tornozelo ferido. Sua voz estava grave e suave, e seus olhos examinaram gentil­mente Jimmie Cosner.

— É verdade, ele ganhou a base, senhor juiz. Pode deixar. Ele está certo.

Eu estava perto. Ouvi tudo. Eu e outros garotos tínha­mos corrido para junto do campo para ver melhor. Minha mãe ficou me chamando de volta para a arquibancada.

— É, ele ganhou a base — tornou a dizer Big Poe. Todos os homens negros protestaram.

— O que deu em você, rapaz? Levou uma pancada na cabeça?

— Eu já disse — respondeu Big Poe calmamente. Olhou para o médico que o enfaixava. — Ele ganhou a base. Podem deixá-lo ficar.

O juiz praguejou.

— Está bem, está bem. Então ele ganhou a base!

O juiz se afastou, com as costas rígidas e o pescoço muito vermelho.

Ajudaram Big Poe a se levantar. — É melhor não se apoiar nesse pé — avisou o médico.

— Dá para andar — murmurou Big Poe, cautelosa­mente.

— É melhor parar de jogar.

— Dá para jogar — disse Big Poe em voz baixa, com segurança, sacudindo a cabeça, rastros úmidos secando-se sob seus olhos brancos. — Dá para jogar bem. — Olhou para lugar nenhum. — Dá para jogar muito bem.

— Oh! — disse o homem negro da segunda base. Era um som estranho.

Todos os negros se entreolharam, olharam para Big Poe e depois para Jimmie Cosner, para o céu, para o lago e para o público. Caminharam em silêncio para suas posi­ções. Big Poe levantou-se, com seu pé ferido mal tocando o chão, equilibrando-se. O médico tentou discutir. Big Poe afas­tou-o com um gesto.

— Próximo rebatedor! — gritou o juiz. Sentamo-nos novamente nas arquibancadas. Minha mãe beliscou-me a perna e perguntou por que eu não podia ficar quieto em meu lugar. A tarde ficou mais quente. Três ou quatro ondas se quebraram na beira do lago. Por trás do alambrado, as senhoras abanavam seus rostos úmidos e os homens avançaram alguns centímetros nas pranchas de ma­deira da arquibancada, segurando jornais sobre os olhos para ver Big Poe, de pé como uma sequóia junto à primeira base, e Jimmie Cosner, à sombra daquela árvore imensa. O jovem Moberg veio rebater para o nosso lado.

— Vamos lá, sueco! Vamos lá, sueco! — foi o grito, o grito isolado como o de uma águia, que partiu do gramado verde e escaldante. Era Jimmie Cosner. Todo o público olhou em sua direção. As cabeças pretas da assistência viraram-se e olharam para Jimmie Cosner, medindo-o, fitando suas costas magras e nervosamente arqueadas. Ele era o cen­tro do universo.

— Vamos lá, sueco! Vamos mostrar para os crioulos! — riu Cosner.

Calou-se. Houve um silêncio completo. Só o vento se movia por entre as árvores altas e iluminadas pelo sol.

— Vamos lá, sueco! Dê uma pancada firme nessa bola! Long Johnson, no montinho do arremessador, inclinou a cabeça. Lentamente, deliberadamente, mediu Cosner com os olhos. Trocou um olhar com Big Poe. Jimmie Cosner viu a troca de olhares, calou-se e engoliu em seco.

Long Johnson girou o braço sem pressa.

Cosner ameaçou deixar a base.

Long Johnson interrompeu seu movimento.

Cosner voltou para a base, beijou a mão, e plantou o beijo no centro da base. Então, olhou para cima e sorriu para todos os lados.

O arremessador tornou a girar o braço longo e flexível, segurando a pelota de couro com dedos escuros e amorosos. Recuou o braço — e Cosner partiu da primeira base. Cosner ficou pulando como um macaco. O arremessador nem olhou para ele. Seus olhos observavam em segredo, obliquamente, com um ar divertido, de lado. Então, girando a cabeça, fez que ia lançar a bola e forçou Cosner a voltar à base. Cosner voltou e zombou de Johnson.

Na terceira vez que Long Johnson ameaçou arremessar a bola, Jimmie Cosner já estava longe da base, correndo para a segunda.

A bola partiu da mão do arremessador e explodiu na luva de Big Poe, na primeira base.

Tudo ficou como que congelado. Por um segundo.

Havia o sol no céu, o lago e os barcos, as arquibanca­das, o arremessador no montinho com a mão estendida após ter lançado a bola; havia Big Poe com a bola em sua mão negra e forte; havia mais um jogador negro, olhando a cena, e havia Jimmie Cosner correndo, levantando poeira, a única coisa móvel em todo o mundo naquele verão.

Big Poe inclinou-se para a frente, visou a segunda base, recuou sua forte mão direita e lançou a bola branca em linha reta, ao longo da risca entre as bases, até atingir a cabeça de Jimmie Cosner.

No segundo seguinte, quebrou-se o encanto.

Jimmie Cosner estava estirado na grama quente. Gente fervilhava nas arquibancadas. Ouviam-se ameaças, gritos de mulheres e um som de tábuas batendo, enquanto os homens pulavam de degrau em degrau das arquibancadas, descendo para o campo. O time negro correu todo para o centro do gramado. Jimmie Cosner continuava estendido. Big Poe, com o rosto despido de expressão, saiu mancando do campo, afastando de si os brancos que tentavam detê-lo como se fossem pregadores de roupa. Simplesmente pegava-os e os jogava longe.

— Vamos, Douglas! — gritou mamãe, agarrando-me.

— Vamos para casa! Eles podem estar com navalhas! Oh, meu Deus!

 

À noite, após a quase batalha daquela tarde, meus pais não saíram e ficaram lendo revistas. Todos os chalés à nossa volta estavam iluminados. Ninguém saiu. Ouvi música a distância. Escapei pela porta dos fundos na escuridão opor­tuna da noite de verão e corri para o pavilhão de baile. Todas as luzes estavam acesas, e havia música tocando.

Mas não havia nenhum branco nas mesas. Ninguém tinha vindo ao baile.

Só havia negros. Mulheres com vestidos de cetim ver­melho e azul, belas meias e luvas macias, chapéus com plumas cor de vinho, e homens com smokings cintilantes. Rindo e dançando, agitando os sapatos bem engraxados aos passos do cakewalk, estavam Long Johnson, Cavanaugh, Jiff Miller, Pete Brown e — mancando — Big Poe com sua namorada, Katherine, e todos os outros jardineiros, remado­res, porteiros e arrumadeiras, todos na pista ao mesmo tempo.

Estava muito escuro em volta do pavilhão; as estrelas brilhavam no céu negro, e fiquei do lado de fora, com o nariz encostado na janela, olhando em silêncio por muito tempo.

Fui para a cama sem contar para ninguém o que tinha visto.

Fiquei deitado no escuro, sentindo o cheiro das maçãs maduras na penumbra e ouvindo sons do lago à noite, escu­tando ao longe a música maravilhosa. Antes de adormecer, ouvi novamente as últimas notas:

 

"... gonna dance out both of my shoes,

When they play those Jelly Roll Blues;

Tomorrow night at the Dark Town Strutters' Ball!"

  1. Um som de trovão

O cartaz na parede parecia vacilar sob uma fina camada de água quente corrente. Eckels sentiu suas pálpebras pis­cando por sobre seu olhar fixo, e o cartaz ardia nessa escuri­dão momentânea:

 

CIA. SAFARI DO TEMPO.

SAFÁRIS   EM   QUALQUER ANO   DO   PASSADO.

VOCÊ ESCOLHE O ANIMAL.

NÓS O LEVAMOS ATÉ ELE.

VOCÊ O MATA.

 

Um fluido morno se juntou na garganta de Eckels; ele engoliu e o forçou a descer. Os músculos em torno de sua boca formaram um sorriso quando estendeu lentamente sua mão pelo ar. Nela havia um cheque de dez mil dólares, que apresentou ao homem por trás do balcão.

— O safári garante que eu voltarei vivo?

— Não garantimos nada — respondeu o funcionário — ...além dos dinossauros. — Virou-se. — Este é o Sr. Travis, o guia de seu safári no passado. Ele lhe dirá quando e em que deve atirar. Se ele disser para não atirar, não atire. Se o senhor desobedecer às instruções, cobramos multa de mais de dez mil dólares, além de um possível processo na justiça quando o senhor voltar.

Eckels contemplou a massa enredada de fios e caixas de aço vibrando do outro lado do vasto escritório, cercada de uma aura brilhante, ora cor de laranja, ora prateada, ora azul. Havia um som semelhante ao ronco de uma gigantesca fogueira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários de papelão, todas as horas formando uma pilha alta que ia sendo consumida pelas chamas.

Apenas um toque dos dedos e essa queima se inverte­ria instantaneamente. Eckels lembrava-se perfeitamente das palavras dos anúncios. Dos escombros e das cinzas, do pó e do carvão, como salamandras douradas, os velhos anos, os verdes anos, podem ressurgir; rosas adoçam o ar, cabelos brancos tingem-se de negro, rugas desaparecem; tudo, todas as coisas revertem à semente, fogem da morte, retornam a seu início. O sol se ergue no ocidente e se põe gloriosamen­te no oriente, as luas se sucedem na ordem inversa à costu­meira, tudo e todas as coisas encaixam-se umas nas outras como caixinhas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todas as coisas retornando à morte fértil, à morte da semente, à morte verde, ao tempo anterior ao início. Bastava um toque de mão, um mero toque.

— Caramba — respirou Eckels, a luz da máquina cla­reando seu rosto magro. — A verdadeira máquina do tem­po. — Balançou a cabeça. — Dá o. que pensar... Se as eleições tivessem ido mal ontem, eu poderia estar aqui agora fugindo do resultado. Graças a Deus, Keith venceu, e vai ser um bom presidente para os Estados Unidos.

— É mesmo — disse o homem por trás do balcão. — Sorte a nossa. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos o pior tipo de ditadura. É um homem anti-tudo, militarista, anticristão, anti-humano, anti-intelectual. Recebemos uns telefonemas, de brincadeira, mas não muito, dizendo que se Deutscher fosse eleito eles queriam ir viver em 1492. É claro que nosso negócio não é levar fugitivos, mas fazer safáris. De qualquer modo, Keith foi eleito. E o senhor só precisa pensar...

— Em atirar no meu dinossauro — completou Eckels.

— Um Tyrannosaurus rex. O lagarto do trovão, o pior monstro que já existiu. Assine este formulário. Se alguma coisa lhe acontecer, não somos responsáveis. Esses dinossau­ros vivem famintos.

Eckels ruborizou-se, irado: — Tentando me amedrontar?

— Falando com franqueza, estou. Não queremos que ninguém chegue lá para entrar em pânico ao primeiro tiro. Seis guias morreram no ano passado, além de uma dúzia de caçadores. Tentamos dar aos clientes a maior emoção que um caçador de verdade pode encontrar. Levá-los a sessenta milhões de anos atrás para pegar a maior caça de todos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.

O Sr. Eckels contemplou longamente o cheque. Seus dedos tremeram.

— Boa sorte — disse o homem atrás do balcão. — Sr. Travis, ele é todo seu.

Atravessaram a sala em silêncio, carregando suas ar­mas, até a máquina, até o metal prateado e a luz cegante.

 

Primeiro um dia, depois uma noite, depois um dia, de­pois uma noite, e então dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano, uma década! 2055 d.C, 2019 d.C, 1999!, 1957! Pronto! A máquina começou a roncar.

Vestiram os capacetes e testaram os microfones e o fornecimento de oxigênio.

Eckels girou no assento estofado, pálido, com os maxi­lares contraídos. Sentiu o tremor nos braços, olhou para baixo e viu as mãos apertando o rifle novo. Havia quatro outros homens na máquina. Travis, o guia, e seu assistente, Lesperance, e dois outros caçadores: Billings e Kramer. To­dos sentados, entreolhavam-se enquanto os anos passavam num relance.

— Essas armas podem realmente derrubar um dinos­sauro? — Eckels sentiu sua boca dizer.

— Se o senhor acertar onde deve — disse Travis pelo microfone. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro mais abaixo, na espinha. Evitamos caçar os que são desse tipo, porque seria querer abusar da sorte. Os dois primeiros tiros devem ser nos olhos, para cegá-los e atingir o cérebro.

A máquina urrava. O tempo era um filme passado ao inverso. Sóis corriam e dez milhões de luas corriam atrás deles.

— Meu Deus — disse Eckels. — Qualquer caçador que já tenha vivido morreria de inveja de nós. Isto faz a África parecer o Illinois.

A máquina desacelerou; seu rugido reduziu-se a um murmúrio. A máquina parou.

O sol parou no céu.

O nevoeiro que envolvia a máquina dissipou-se e eles estavam no passado, um passado muito remoto, três caça­dores e dois guias com suas armas de metal azulado deitadas nos joelhos.

— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não subiu o monte para falar com Deus, as Pirâmides ainda estão na terra, esperando ser desencavadas, cortadas e empilhadas. Lembrem-se de que nem Alexandre, nem César, nem Napoleão, nem Hitler, nenhum deles existe. Os homens assentiram com a cabeça.

— Temos aqui — disse Travis — a floresta de ses­senta milhões, dois mil e cinqüenta e cinco anos antes da eleição do Presidente Keith.

Apontou uma pista de metal que atravessava a mata verde, por sobre o pântano enevoado, por entre samambaias e palmeiras gigantes.

— E ali — disse — está a pista, colocada pela Safári do Tempo para seu uso. Ela flutua a quinze centímetros do solo, sem encostar sequer em uma folha de grama, uma flor ou uma árvore. É feita de metal anti-gravidade, e foi colo­cada ali para evitar que os senhores toquem neste mundo do passado. Fiquem na pista. Não saiam. Vou repetir. Não saiam da pista. Em hipótese alguma! Se alguém cair, paga multa. E só atirem nos animais autorizados.

— Por quê? — perguntou Eckels.

Estavam em meio à selva arcaica. Gritos distantes de aves passavam no vento, junto com o cheiro de betume e de um antigo mar salgado, de relva úmida e de flores cor de sangue.

— Não queremos alterar o futuro. Estamos deslocados aqui no passado. O governo não gosta que venhamos aqui. Pagamos uma fortuna para renovar nossa licença. Máquinas do tempo são um negócio complicado como o diabo. Sem saber, podemos matar um animal importante, um passari­nho, uma barata, até mesmo uma flor, e destruir uma cadeia vital de uma espécie em crescimento.

— Não entendi — disse Eckels.

— Vou explicar — continuou Travis. — Digamos que, por acidente, nós matemos um rato aqui. Isto significa que todas as futuras famílias desse determinado rato são destruí­das, certo?

— Certo.

— E todas as famílias desse rato! Com uma pisada, aniquila-se primeiro um, depois uma dúzia, depois mil, um milhão, um bilhão de possíveis ratos!

— Sim, eles morrem — disse Eckels. — E daí?

— E daí? — repetiu Travis. — E o que me diz das raposas que vão precisar desses ratos para sobreviver? Por falta de dez ratos, uma raposa morre. Por falta de dez ra­posas, um leão morre de fome. Por falta de um leão, todo tipo de insetos, abutres, bilhões de formas de vida caem no caos e na destruição. No fim das contas, o que acontece é o seguinte: daqui a cinqüenta e nove milhões de anos, um homem das cavernas, um entre uma dúzia em todo o mundo, sai para caçar javalis ou um tigre-dentes-de-sabre. Mas o senhor, meu amigo, pisou em todos os tigres daquela região, esmagando um único rato. Daí, o homem das cavernas morre de fome. E esse homem das cavernas, note bem, não é ape­nas mais um homem mortal. Não! Ele é toda uma nação futura. Ele teria tido dez filhos. Estes, cem filhos, e daí por diante, até chegarmos a uma civilização. Destruindo esse homem, o senhor destrói uma raça, um povo, toda uma par­te da história. É o mesmo que matar um dos netos de Adão. Essa pisadela em um rato pode provocar um terremoto, cujos efeitos podem abalar as fundações de nossas terras e de nossos destinos através de todo o tempo. Com a morte da­quele homem das cavernas, um bilhão de outros homens ainda por nascer são extintos. Roma talvez nunca venha a ser construída nas sete colinas. A Europa talvez fique sendo para sempre uma floresta cerrada, e apenas a Ásia surja rica e poderosa. Basta pisar num rato para esmagar as Pirâmides, para deixar uma pegada do tamanho do Grand Canyon im­pressa em toda a eternidade. A Rainha Elizabeth talvez nun­ca venha a nascer, George Washington pode nunca vir a cruzar o Delaware, os Estados Unidos podem, simplesmente, nunca vir a existir. Por isso, tomem cuidado. Fiquem na pista, e não saiam nunca!

— Entendi — disse Eckels. — Na verdade, não vale a pena nem tocar na grama.

— É verdade. Esmagar certas plantas pode provocar alterações infinitesimais. Um pequeno erro aqui pode se multiplicar ao longo de sessenta milhões de anos e deixar tudo fora de proporção. É claro que a nossa teoria pode estar errada. O tempo talvez não possa ser modificado por nós, ou talvez só possa ser mudado de maneira sutil. Um rato morto aqui provoca um desequilíbrio na vida dos in­setos, uma desproporção na população mais tarde, uma co­lheita insuficiente no futuro, uma depressão, fome, e, final­mente, uma modificação no temperamento social de países distantes no tempo. Algo muito mais sutil, como vê; talvez apenas um sussurro, uma migalha, pólen no ar, uma trans­formação tão ligeira que só possa ser vista se olhada muito de perto. Quem pode saber? Quem pode realmente dizer que sabe? Nós não sabemos, estamos supondo. Mas até sa­bermos com certeza se nossos deslocamentos no tempo podem provocar uma reviravolta ou só um desvio ínfimo na história, tomamos o máximo de cuidado. Esta máquina, esta pista, suas roupas e seus corpos foram esterilizados, como os senhores sabem, antes da viagem. Usamos estes capacetes para não introduzir nossas bactérias em uma atmosfera antiga.

— E como vamos saber quais são os animais em que podemos atirar?

— Estão marcados com tinta vermelha — disse Travis. — Hoje, antes de nossa viagem, mandamos Lesperance para cá na máquina. Ele veio a esta época e seguiu certos animais.

— Para estudá-los?

— É — disse Lesperance. — Eu os sigo por toda sua existência, observando quais deles têm vida mais longa. São poucos. Quantas vezes eles se acasalam. Poucas vezes. A vida é curta. Quando encontro um que vai morrer esma­gado pela queda de uma árvore, ou afogado em um poço de betume, anoto o momento exato, a hora, o minuto e o se­gundo, e atiro uma bomba de tinta que deixa uma marca vermelha no couro, bem visível. Então, planejo nossa che­gada no passado de modo que encontremos esse monstro a não mais de dois minutos do momento em que ele iria mor­rer de qualquer maneira. Assim, matamos apenas animais sem futuro, que nunca mais se acasalariam. Estão vendo como somos cuidadosos?

— Mas se você voltou no tempo hoje de manhã — disse Eckels, curioso —, você deve ter se encontrado co­nosco, com nosso safári! E como foi? Acabou bem? Todos nós chegamos ao fim... vivos?

Travis e Lesperance se entreolharam.

— Isso seria um paradoxo — disse o último. — O tempo não permite esse tipo de confusão, como o encontro de um homem consigo mesmo. Quando há risco de ocorrer tal situação, o tempo se desvia. Como um avião que passa por um bolsão de ar. O senhor sentiu a máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, de vol­ta para o futuro. Não vimos nada. Não há maneira de dizer se a expedição foi um sucesso, se matamos o monstro, se todos nós escapamos ou mesmo se o senhor, Sr. Eckels, so­breviveu.

Eckels deu um riso esmaecido.

— Pare com isso — disse Travis secamente. — Todos de pé.

Estavam prontos para deixar a máquina.

A selva era alta e vasta, a selva era o mundo inteiro para todo o sempre. Sons musicais e sons que lembravam lonas batendo ao vento encheram o céu, e surgiram pterodátilos voando com asas cinzentas e cavernosas, morcegos gigantescos saídos de um delírio ou de uma noite de febre. Eckels, equilibrando-se na pista estreita, fingiu apontar seu rifle.

— Pare! — disse Travis. — Nunca aponte o rifle de brincadeira! Se a arma disparar...

Eckels ruborizou-se. — Onde está o nosso tiranossauro?

Lesperance consultou seu relógio de pulso. — Ali em frente. Vamos cruzar seu caminho daqui a sessenta segundos. Procurem a tinta vermelha, pelo amor de Deus. Não atirem antes de nós darmos a ordem. Fiquem na pista. Fiquem na pista!

Avançaram no vento da manhã.

— É estranho — murmurou Eckels. — Daqui a ses­senta milhões de anos, acabaram as eleições. Keith foi eleito presidente. Todo mundo está festejando. E nós estamos aqui há milhões de anos, e eles não existem. As coisas que nos preocuparam durante meses, a vida inteira, ainda nem sur­giram, ou ainda não foram sequer imaginadas.

— Podem destravar as armas! — autorizou Travis. — Eckels, o primeiro tiro é seu. Billings fica com o segundo e Kramer, com o terceiro.

— Já cacei tigres, javalis, búfalos, elefantes, mas isto é que é a verdadeira caçada, por Deus — disse Eckels. — Estou tremendo como um menino.

— Ah! — disse Travis. Todos pararam.

Travis apontou. — Lá adiante — murmurou. — No nevoeiro. Lá está Sua Majestade.

A selva era ampla e estava cheia de chilreios, farfalhares, murmúrios e suspiros.

De repente, tudo cessou, como se alguém tivesse fecha­do uma porta.

Silêncio.

Um som de trovão.

E de dentro do nevoeiro, a cem metros de distância, emergiu o Tyrannosaurus rex.

— Meu Deus do céu! — murmurou Eckels.

— Quieto!

Ele avançava sobre as pernas luzidias, flexíveis e ágeis.

Erguia-se dez metros acima de quase todas as árvores, man­tendo suas garras dobradas junto ao oleoso peito de réptil. Cada pata inferior parecia um pistão, quinhentos quilos de ossos brancos atados com grossas cordas de músculos, en­voltos no brilho de uma pele escamada como a cota de ma­lha de um terrível guerreiro. Cada coxa era uma tonelada de carne, marfim e tela de aço. E da grande caixa torácica, no alto do tronco, pendiam os dois braços delicados, braços com mãos que poderiam pegar e examinar homens como se fossem brinquedos, enquanto o pescoço de cobra se contorcia. A cabeça, uma tonelada de pedra esculpida, erguia-se com leveza para o céu. A boca estava escancarada, exibindo uma fileira de dentes que mais pareciam punhais. Os olhos rolavam, ovos de avestruz, vazios de qualquer expressão, exceto a de fome. Fechou a boca, em um meio sorriso mor­tífero. Corria, derrubando árvores e arbustos com o osso pélvico, socando a terra úmida com os pés em garra, que deixavam pegadas de quinze centímetros de profundidade. Corria com um passo deslizante de bale, surpreendentemen­te elegante e equilibrado para suas dez toneladas. Chegou desconfiado a uma clareira batida de sol, apalpando o ar com suas belas mãos de réptil.

— Meu Deus! — Eckels torceu a boca. — Ele seria capaz de alcançar a lua!

— Fique quieto! — reagiu com violência Travis. — Ele ainda não nos viu!

— Não vamos conseguir matá-lo. — Eckels pronunciou seu veredicto em voz baixa, como se não pudesse haver dis­cussão. Havia avaliado os fatos e essa era sua opinião final. O rifle em suas mãos parecia uma espingarda de rolha. — Foi bobagem vir. É impossível.

— Cale-se — atalhou Travis.

— É um pesadelo!

— Vire-se — comandou Travis. — Ande devagar para a máquina. Nós devolvemos metade do seu dinheiro.

— Eu não sabia que ele ia ser tão grande — disse Eckels. — Calculei mal, é só. E agora eu quero ir embora.

— Já nos viu!

— Lá está a tinta vermelha no peito!

O lagarto do trovão ergueu-se. Sua carne blindada bri­lhou como mil moedas verdes. As moedas, cobertas por uma camada de limo, fumegavam. No limo, pequenos insetos se agitavam, de modo que todo o corpo parecia mover-se e ondular, mesmo quando o próprio monstro não se movia. Ele bufou, e o fedor de carne crua invadiu a selva.

— Tirem-me daqui — disse Eckels. — Nunca foi assim, eu sempre tive a certeza de que iria sair vivo. Tinha bons guias, estava em bons safáris, sentia-me seguro. Desta vez eu calculei mal. Reconheço que exagerei. É demais para mim.

— Não corra — disse Lesperance. — Vire-se. Escon­da-se na máquina.

— Está bem. — Eckels parecia em estado de choque. Olhou para os próprios pés como se tentasse fazê-los mover-se. Grunhiu de desespero.

— Eckels!

Ele deu alguns passos, piscando, arrastando os pés.

— Não é por aí!

O monstro, ao primeiro movimento, saltou para a fren­te com um grito terrível. Percorreu cem metros em quatro segundos. Os rifles se ergueram e cuspiram fogo. Um fura­cão vindo da boca do animal envolveu-os no fedor de limo e sangue velho. O monstro urrou, com os dentes brilhando ao sol.

Eckels, sem olhar para trás, andou às cegas até a beira da pista; com a arma solta nos braços, desceu da pista e, sem perceber, andou pela selva. Seus pés se afundaram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e distante dos acontecimentos.

Os rifles dispararam novamente. O som se perdeu no urro do enorme réptil. A grande alavanca da cauda do mons­tro ergueu-se e fendeu o ar como um chicote. Árvores ex­plodiram em nuvens de folhas e galhos. O monstro torceu suas mãos de joalheiro e tentou estendê-las para pegar os homens, parti-los ao meio, esmagá-los como frutas, levá-los aos dentes e à garganta ululante. Seus olhos enormes nive­laram-se com os caçadores. Eles se viram refletidos. Atiraram nas pálpebras metálicas e na íris negra brilhante.

Como um ídolo de pedra, como uma avalanche, o tiranossauro caiu. Em meio a um barulho ensurdecedor, agar­rou-se às árvores e derrubou-as em sua queda. Mordeu e dilacerou a pista de metal. Os homens recuaram e fugiram. O corpo tombou, dez toneladas de carne fria e pedra. As armas dispararam. O monstro bateu no chão com a cauda blindada, abriu e fechou as mandíbulas de cobra, e ficou imóvel. Um esguicho de sangue jorrou de sua garganta. Em algum ponto no interior do seu corpo, um saco de fluido se rompeu. Torrentes nauseabundas ensoparam os caçadores, que ficaram imóveis, de pé, vermelhos e luzidios.

O trovão calou-se.

A selva retornou ao silêncio. Após a avalanche, uma paz verde. Ao fim do pesadelo, a manhã.

Billings e Kramer sentaram-se na pista e vomitaram. Travis e Lesperance seguravam seus rifles, emitindo um fluxo regular de palavrões.

Na máquina do tempo, deitado de bruços, Eckels tre­mia. Havia conseguido voltar à pista, e subir na máquina.

Travis retornou, olhou para Eckels, tirou pacotes de gaze de uma caixa de metal e voltou para junto dos outros, sentados na pista.

— Limpem-se.

Limparam o sangue de seus capacetes, e começaram a dizer palavrões também. O monstro estava deitado, uma montanha de carne. Dentro de seu corpo, podiam-se ouvir suspiros e rumores à medida que todos os sistemas iam pa­rando, os órgãos falhando, líquidos correndo pela última vez de uma vesícula para um vaso e do vaso para uma víscera, tudo se interrompendo e parando para sempre. Era o mesmo que ficar ao lado de uma locomotiva ou de uma escavadeira quando são desligadas, todas as válvulas sendo abertas ou fechadas. Ossos estalaram; a tonelagem de sua própria car­ne, desequilibrada, transformada em peso morto, quebrou os antebraços delicados, presos sob o corpo. A carne acabou de assentar com os últimos frêmitos.

Outro estalo. No alto, um gigantesco galho de árvore partiu-se e caiu pesadamente, atingindo o animal morto com precisão.

— Aí está. — Lesperance conferiu no relógio. — Bem na hora. Esta é a árvore gigante que deveria cair e origi­nalmente matar o animal. Olhou para os dois caçadores. — Querem a foto-troféu?

— O quê?

— Não podemos levar um troféu para o futuro. O corpo deve ficar bem onde teria morrido originalmente, para que os insetos, as aves e as bactérias possam consumi-lo, como estava previsto. Tudo em equilíbrio. O corpo fica. Mas podemos tirar um retrato dos senhores ao lado dele.

Os dois homens tentaram pensar, mas desistiram, ba­lançando a cabeça.

Deixaram-se conduzir pela pista de metal. Caíram exaus­tos nos assentos da máquina. Olharam novamente para o monstro em ruínas, o monte imóvel, onde estranhas aves reptilianas e insetos dourados já começavam a atacar a ar­madura fumegante.

Um som no piso da máquina do tempo sobressaltou-os. Eckels estava sentado, tremendo.

— Desculpe — disse afinal.

— Levante-se — gritou Travis. Eckels ergueu-se.

— Volte para a pista sozinho — ordenou Travis. Apon­tou o rifle. — Você não vai voltar na máquina. Vamos dei­xá-lo aqui.

Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...

— Não se meta! — Travis sacudiu a mão. — Esse idiota quase nos matou. Mas não é tanto por isso. Não, senhor. São os sapatos! Olhe só! Ele saiu da pista. Meu Deus, estamos arruinados! Só Deus sabe o quanto nós va­mos ter de pagar. Dezenas de milhares de dólares de seguro! Nós garantimos que ninguém sai da pista. E ele saiu, o gran­de cretino! Vou ter que contar para o governo, e eles podem até cassar nossa licença de viagem. Só Deus sabe o que ele causou ao tempo, à história!

— Calma, ele só pisou na terra.

— Como é que podemos saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!

Eckels mexeu nos bolsos. — Eu pago o que quiserem. Cem mil dólares!

Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O monstro está perto da pista. Enfie os braços até o cotovelo na boca do dinossauro e eu deixarei você voltar conosco.

— Isso não tem sentido!

— O monstro está morto, seu covarde! São as balas. As balas não podem ficar. Elas não fazem parte do passado, e podem modificar alguma coisa. Tome a minha faca, e arran­que as balas!

A selva tinha voltado à vida, cheia de velhos tremores e gritos de aves. Eckels voltou-se lentamente, e contemplou aquele monte de despejos primevo, aquela colina de pesa­delo e terror. Ao fim de muito tempo, como um sonâmbulo, afastou-se pela pista arrastando os pés.

Voltou, trêmulo, cinco minutos depois, com os braços ensopados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Em cada uma, trazia várias balas de aço. Depois, caiu e ficou imóvel.

— Você não precisava forçá-lo a fazer isso — disse Lesperance.

— Não? É cedo demais para dizer. — Travis cutucou o corpo imóvel. — Ele vai sobreviver, e da próxima vez não vai se meter a caçar esse tipo de bicho. Bem — fez um gesto cansado para Lesperance —, pode ligar. Vamos para casa.

1492... 1776... 1812...

Limparam as mãos e os rostos. Mudaram as camisas e as calças endurecidas de sujeira. Eckels estava novamente de pé, em silêncio. Travis o encarou por dez minutos, sem parar.

— Não fique olhando para mim — gritou Eckels. — Não fiz nada!

— Tem certeza?

— Eu só saí da pista, só isso, peguei um pouco de lama nos sapatos. O que você quer que eu faça, que me ajoelhe e comece a rezar?

— Pode ser preciso. Estou lhe avisando, Eckels. Eu ainda posso matá-lo. Minha arma está pronta.

— Mas eu estou inocente. Não fiz nada! 1999... 2000... 2005...

A máquina parou.

— Saia — disse Travis.

A sala estava lá como antes, mas não era exatamente a mesma. O mesmo homem estava sentado atrás do mesmo balcão. Mas o mesmo homem não estava exatamente sentado atrás do mesmo balcão.

Travis olhou em volta rapidamente. — Tudo em ordem por aqui? — perguntou.

— Tudo. Bem-vindos de volta!

Travis não se acalmou. Parecia examinar os próprios átomos do ar, a maneira dos raios de sol penetrarem por uma janela aberta.

— Está bem, Eckels, saia. E não volte nunca mais. Eckels estava farejando o ar, e havia algo nele, uma diferença química tão sutil, tão leve, que apenas um aviso fraco de seus sentidos subliminares o avisou que ela existia. As cores, branco, cinza, azul, vermelho, na parede, nos mó­veis, no céu por trás da janela, estavam... estavam... E havia uma sensação. Sua carne tremia. Suas mãos tremiam. Bebeu a estranheza com os poros do corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando um desses apitos que só os cães podem ouvir. Seu corpo emitia silêncio em resposta. Fora desta sala, além desta parede, além deste homem, que não era exatamente o mesmo homem sentado atrás do balcão, que não era exatamente o mesmo balcão... Havia um mundo inteiro de ruas e pessoas. E não havia modo de saber em que espécie de mundo ele se tinha transformado. Chegava quase a sentir as pessoas se deslocando lá fora, por trás das paredes, como peças de xadrez impelidas por um vento seco.. .

Mas o que percebeu de imediato foi o cartaz pregado na parede da sala, o mesmo que havia lido antes, quando entrara.

De algum modo, o cartaz estava mudado:

 

CIA. SAFARE DO TENPO.

SAFARES EN CUALQUER ANO DO PAÇADO.

VOSSÊ ESCOGLE O ANIMAU.

NOZ O LEVAMUS ATEH ELLE.

VOSSÊ O MATTA.

 

Eckels sentiu-se desabar numa cadeira. Remexeu aluci­nado a grossa camada de lama de suas botas. Pegou um torrão de terra, tremendo. — Não, não pode ser! Uma coisa tão pequenina, não pode ser!

Enterrada na lama, brilhando, verde, dourada e negra, havia uma borboleta linda e morta.

— Uma coisa pequena assim, não é possível. Uma bor­boleta! — gritou Eckels.

A borboleta caiu no chão, uma coisa bela, uma coisa pequena que podia desfazer equilíbrios e derrubar uma fi­leira de pequenos dominós e depois dominós grandes e de­pois dominós gigantescos, ano após ano ao longo do tempo. A cabeça de Eckels girava. As coisas não podiam ser mu­dadas por tão pouco. Matar uma borboleta não podia ser tão importante assim! Ou podia?

Seu rosto estava frio. A boca tremeu, e perguntou:

— Quem... quem ganhou as eleições para a presidência ontem?

O homem atrás do balcão riu. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, é claro! Quem mais poderia ser? Aquele fracote, Keith? Agora temos um líder de verdade, um homem de coragem. — O funcionário se interrompeu.

— O que é que há?

Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Agarrou a borboleta dourada com mãos trêmulas. — Será que não podemos — suplicou para o mundo, para si mesmo, para os funcionários, para a máquina —, será que não podemos levá-la de volta, fazê-la viver de novo? Não podemos começar tudo de novo? Não podemos...

Ficou imóvel. Com os olhos fechados, esperou, trêmu­lo. Ouviu Travis respirar fundo na sala; ouviu Travis agar­rar o rifle, destravá-lo e fazer pontaria.

Houve um som de trovão.

  1. O vasto mundo lá fora

Era um dia para se pular da cama, puxar cortinas e escancarar janelas. Era um dia capaz de encher o coração com o ar cálido da montanha.

Cora, sentindo-se como uma menina num vestido velho e amassado, sentou-se na cama.

Era cedo, o sol acabara de aparecer no horizonte, mas os passarinhos já deixavam os galhos dos pinheiros e dez bilhões de formigas vermelhas desciam de seus formigueiros cor de bronze junto à porta da cabana. O marido de Cora, Tom, dormia como um urso em uma hibernação nevada de lençóis ao lado dela. Será que meu coração irá acordá-lo?, ela se perguntou.

E nesse momento descobriu por que esse dia tinha algo de especial.

— Benjy está chegando!

Ela imaginou-o lá longe, saltando por pastos verdes, vadeando riachos pelos quais a primavera impelia seu pró­prio avanço em cores frias de musgo e água clara na direção do mar. Ela viu os sapatos grandes do rapaz levantando a poeira dos caminhos e batendo nas estradas pedregosas. Viu seu rosto sardento ensolarado, olhando com vertigens do alto de seu corpo para as mãos distantes, que voavam para a frente e para trás de seu corpo, acompanhando seu andar.

Vamos, Benjy, chegue logo!, pensou, abrindo uma ja­nela com gestos rápidos. O vento soprou seus cabelos, for­mando uma teia de aranha grisalha em torno de suas orelhas geladas. Agora Benjy está em Iron Bridge, agora em Meadow Pike, agora no alto de Creek Path, além de Chesley's Field...

Em algum ponto das montanhas do Missouri, estava Benjy. Cora piscou os olhos. Essas estranhas colinas altas, além das quais ela e Tom conduziam duas vezes por ano sua carroça e seu cavalo até a cidade, e através das quais, trinta anos antes, ela quisera correr para sempre, dizendo: — Oh, Tom, vamos seguir e seguir até chegarmos ao mar... — Mas Tom a olhara como se ela o tivesse esbofeteado, e havia feito meia-volta com a carroça e seguido para casa, conver­sando com a égua. E se havia gente morando no litoral, onde o mar chegava como uma tempestade, às vezes mais forte, às vezes mais fraco, todo dia, ela não sabia. E se havia ci­dades onde as luzes dos anúncios pareciam gelo rosado, menta verde e fogos de artifício vermelhos, acesos todas as noites, ela também não sabia. Seu horizonte, em todas as direções, norte, sul, leste e oeste, era esse vale, e nunca havia sido outra coisa.

Mas hoje, ela pensou, Benjy está vindo do mundo lá de fora; ele viu, cheirou esse mundo, e vai me contar tudo. E ele sabe escrever. Olhou para suas próprias mãos. Ele vai passar um mês inteiro aqui, e vai me ensinar. Então, vou poder escrever para esse mundo e trazê-lo para a caixa de cartas que vou fazer Tom construir hoje. — Levante-se, Tom! Está me ouvindo?

Estendeu a mão e empurrou o monte de neve ador­mecido.

 

Por volta das nove horas, o vale estava cheio de grilos que pulavam no ar azul e perfumado, enquanto a fumaça erguia-se em espirais para o céu.

Cora, cantando para seus potes e panelas enquanto os areava, viu seu rosto enrugado refletir-se no fundo de cobre de uma panela, fresco e bronzeado. Tom rosnava como um urso sonolento diante do mingau, enquanto o canto da mu­lher esvoaçava à sua volta como um pássaro preso em uma gaiola.

— Alguém está muito feliz — disse uma voz.

Cora transformou-se em uma estátua. Com o canto dos olhos, viu uma sombra atravessar a sala.

— Sra. Brabbam? — perguntou Cora a seu pano de prato.

— Eu mesma! — E lá estava a viúva, arrastando seu vestido de chitão pela poeira quente, levando suas cartas na mão, que mais parecia uma pata de galinha. — Bom dia! Estou vindo de minha caixa de cartas. Recebi uma carta de meu tio George, de Springfield, que é uma beleza! — A Sra. Brabbam cravou em Cora um olhar que parecia uma agulha de prata.

— Faz quanto tempo que a senhora não recebe uma carta do seu tio?

— Todos os meus tios morreram — não foi propria­mente Cora, mas sua língua, quem mentiu. Quando chegasse a hora, Cora sabia, seria só a língua quem precisaria comun­gar e confessar seus pecados na terra.

— É realmente ótimo receber cartas. — A Sra. Brab­bam sacudiu sua correspondência no ar da manhã, como se suas cartas formassem uma canastra real.

Sempre enfiando o dedo ria ferida. Há quanto tempo isso vinha acontecendo, pensou Cora, a Sra. Brabbam e seus olhos sorridentes, falando alto da correspondência que rece­bia, querendo dizer que ninguém mais sabia ler nas redon­dezas? Cora mordeu os lábios e quase lhe atirou uma panela, mas pousou-a na pia, rindo. — Esqueci de contar-lhe. Meu sobrinho Benjy está chegando; os pais dele não estão bem de vida e ele chega hoje para passar o verão conosco. Ele vai me ensinar a escrever. E Tom vai fazer uma caixa de correio para nós, não vai, Tom?

A Sra. Brabbam apertou suas cartas com força. — Mas não é maravilhoso? Que mulher de sorte! — E subitamente não havia mais ninguém na porta. A Sra. Brabbam havia ido embora.

Mas Cora seguiu-a. Porque naquele instante divisara algo como um espantalho, algo como um raio da luz pura do sol, algo como uma truta nadando rio acima, pulando a cerca do quintal. Viu uma enorme mão acenando e pássaros levantando vôo da macieira, aterrorizados.

Cora correu pelo caminho, deixando o mundo para trás. — Benjy!

Correram um para o outro como os pares de um baile de sábado, deram-se os braços, apertaram-se e valsaram. — Benjy!

Cora olhou rapidamente para a orelha do rapaz.

Sim, lá estava o lápis amarelo.

— Benjy, seja bem-vindo!

— Que é isso, tia? — Afastou-a de si, segurando-a pelos braços. — O que é isso, tia, a senhora está chorando!

— Este é o meu sobrinho — disse Cora.

Tom levantou o rosto franzido de seu mingau de fari­nha de milho.

— Muito prazer — sorriu Benjy.

Cora segurava seu braço com força para não deixá-lo desaparecer. Sentiu uma fraqueza, uma vontade de sentar-se, levantar-se, correr, mas apenas seu coração batia mais depressa, e ela ria em momentos estranhos. Agora, de um momento para outro, as terras distantes se aproximaram; aqui estava esse rapaz alto, iluminando a sala como uma tocha de pinheiro, esse rapaz que tinha visto cidades e mares, e que tinha estado em muitos lugares quando as coisas corriam melhor para seus pais.

— Benjy, temos ervilhas, milho, toucinho, mingau, sopa e feijão. O que você quer comer?

— Espere aí — disse Tom.

— Fique quieto, Tom, o rapaz está fraco de fome de­pois de andar tanto. — Voltou-se para o rapaz; — Benjy, conte-me tudo sobre você. Você foi mesmo à escola?

Benjy tirou os sapatos. Com um pé descalço, traçou uma palavra nas cinzas da lareira.

Tom franziu a testa. — O que quer dizer?

— Quer dizer — disse Benjy — C e O e R e A. Cora.

— É meu nome, Tom, veja só! Oh, Benjy, que bom que você sabe mesmo escrever, meu filho. Uma vez, há mui­to tempo, esteve aqui um primo que dizia que sabia soletrar qualquer coisa, até de trás para a frente. Por isso, nós demos montes de comida para ele e ele escreveu muitas cartas, mas nós nunca recebemos resposta. Depois de algum tempo, des­cobrimos que ele só sabia escrever o bastante para mandar cartas para a seção de correspondência extraviada. Meu Deus, Tom bateu no rapaz até achar que tinha descontado os dois meses de comida, e ele saiu correndo pela estrada com Tom atrás, batendo nele com um pau de cerca.

Riram nervosamente.

— Eu sei escrever direito — disse o rapaz, com ar sério.

— É só isso que queremos saber. — Cora passou-lhe uma fatia de torta de amoras. — Vamos, coma.

 

Por volta de dez e meia, com o sol alto no céu, depois de ver Benjy devorar pratos e mais pratos de comida, Tom deixou intempestivamente a cabana, enfiando o boné na ca­beça. — Vou sair e derrubar metade da floresta, por Deus! — disse com raiva.

Mas ninguém ouviu. Cora estava sentada sem respirar, enfeitiçada. Olhava para o lápis atrás da orelha de Benjy.

Vira-o apalpá-lo casualmente, com ar preguiçoso e indiferen­te. Oh, não seja tão descuidado, Benjy, pensou. Trate-o como se trata um ovo de pintassilgo. Ela queria tocar o lápis, mas há muitos anos não pegava em um lápis porque isso a fazia sentir-se tola, e depois deixava-a zangada e finalmente triste. Torcia as mãos no colo.

— Tem papel em casa? — perguntou Benjy.

— Oh, céus, não pensei nisso — gemeu Cora, e as paredes da sala escureceram. — O que vamos fazer?

— Acontece que eu trouxe papel. — Tirou um bloco de sua sacola. — Quer escrever uma carta para algum lugar?

Ela deu um sorriso desmesurado. — Quero escrever uma carta para... para... — seu rosto desmanchou-se. Olhou à volta, procurando alguém na distância. Olhou as montanhas ao sol da manhã. Ouviu o mar batendo em praias amarelas a mil quilômetros dali. Os pássaros voavam por sobre o vale, voltando para o norte, a caminho de inúmeras cidades indiferentes ao que ela precisava naquele instante.

— Ora, Benjy, só agora é que pensei nisso. Não co­nheço ninguém no mundo lá fora. Só minha tia. E se eu escrevesse para ela, ela iria sentir-se muito mal, a cem qui­lômetros daqui, tendo que encontrar alguém para ler a carta para ela. Ela é muito orgulhosa, ia ficar nervosa pelos próxi­mos dez anos, com a carta na prateleira da lareira de casa. Não, para ela não. — Os olhos de Cora desviaram-se das montanhas e do oceano invisível. — Para quem, então? Para onde? Alguém. Eu simplesmente preciso receber cartas.

— Espere aí. — Benjy pescou uma revista barata no bolso de seu casaco. Na capa vermelha, uma moça nua fugia gritando de um monstro verde. — Aqui há todo tipo de endereços.

Folhearam juntos a revista: — O que é isso? — Cora indicou um anúncio.

— "Receba gratuitamente o plano de exercícios mais músculos. Envie seu nome e endereço" — leu Benjy — "para a Seção M-3, e receba seu Mapa de Saúde grátis!"

— E este aqui?

— "Detetives para investigações secretas. De­talhes grátis. Escreva para a Escola de Detetives G. D. M."...

— Tudo grátis. Muito bem, Benjy. — Olhou para o lápis na mão dele. Ele aproximou a cadeira. Ela ficou olhan­do enquanto ele girou o lápis no dedo, fazendo pequenos ajustes. Viu-o morder delicadamente a ponta da língua. Viu-o apertar os olhos. Conteve a respiração. Inclinou-se para a frente. Apertou os próprios olhos e mordeu a língua.

Agora, agora Benjy levantou o lápis, lambeu-o, e pou­sou-o no papel.

Pronto, pensou Cora.

As primeiras palavras. Formaram-se vagarosamente no incrível papel.

Prezada Companhia Mais Músculos

Caros senhores

A manhã desvaneceu-se no vento, a manhã escoou pelo riacho, a manhã voou com uns corvos, e o sol ardia no teto da cabana. Cora não se voltou quando ouviu alguém raspar a porta quente e ensolarada. Tom estava lá, mas não estava no mesmo mundo; diante de Cora havia apenas uma série de páginas manuscritas, um lápis murmurante, e a mão de Ben­jy compondo uma caligrafia caprichada. Cora movia a cabeça, acompanhando cada o, cada l, cada pequena colina do m; a cada ponto sua cabeça bicava como a de uma galinha; cada traço do t fazia sua língua passar pelo lábio superior.

— É meio-dia e eu estou com fome! — disse Tom, quase junto dela.

Mas Cora agora era uma estátua, fitando o lápis como se acompanhasse um caramujo que ia deixando um rastro ex­cepcional sobre uma pedra chata numa manhã bem cedo.

— É meio-dia! — tornou a gritar Tom. Cora ergueu os olhos, espantada.

— Ora, parece que foi há apenas um momento que nós escrevemos para aquela Companhia de Coleções de Moedas da Filadélfia, não é mesmo, Benjy? — Cora sorriu um sorri­so vivo demais para uma mulher de cinqüenta e cinco anos. — Enquanto você espera sua comida, Tom, será que não po­dia fazer a caixa de cartas? Maior que a da Sra. Brabbam, por favor.

— Vou pregar uma caixa de sapatos no poste.

— Tom Gibbs. — Ela se levantou alegremente. Seu sorriso dizia que era melhor andar depressa, trabalhar logo e acabar logo. — Eu quero uma caixa de cartas grande e boni­ta. Toda branca, para Benjy pintar nosso nome em letras pretas. Eu não quero receber minha carta de verdade numa caixa de sapatos.

E assim foi feito.

Benjy escreveu na caixa, quando ficou pronta: Sra. Co­ra Gibbs, enquanto Tom rosnava atrás dele.

— O que está escrito?

— Sr. Tom Gibbs — disse Benjy calmamente, sem pa­rar de pintar.

Tom ficou olhando para a caixa e piscando os olhos em silêncio durante um minuto e finalmente disse: — Ainda es­tou com fome. Alguém precisa acender o fogo.

 

Não havia selos. Cora empalideceu. Tom foi obrigado a atrelar o cavalo e ir até Green Fork para comprar alguns se­los vermelhos, um verde e dez selos cor-de-rosa com o dese­nho de senhores muito dignos. Mas Cora foi junto, para certificar-se de que Tom não jogaria as primeiras cartas no riacho. Quando voltaram para casa, a primeira coisa que Cora fez, com o rosto radiante, foi olhar dentro da nova caixa de cartas.

— Está doida? — disse Tom.

— Não faz mal olhar.

Naquela tarde, foi seis vezes até a caixa de cartas. Na sétima, um esquilo pulou de dentro. Tom ficou parado na porta, rindo e dando palmadas nos joelhos. Cora expulsou-o da casa, ainda rindo.

Ficou então na janela, olhando para sua caixa de cartas bem em frente à da Sra. Brabbam. Dez anos antes, a viúva havia plantado sua caixa de cartas bem debaixo do nariz de Cora, quando poderia perfeitamente tê-la construído mais perto de sua própria casa. Mas era uma boa desculpa para a Sra. Brabbam descer o caminho de sua casa como uma flor que desce boiando o rio, abrir a caixa entre muitas tossidelas e barulhos, espiando de quando em vez para ver se Cora es­tava olhando. Cora sempre estava olhando. Quando era apa­nhada, fingia que estava regando as flores com um regador vazio, ou colhendo cogumelos na estação errada.

 

Na manhã seguinte, Cora levantou-se antes de o sol aquecer a plantação de morangos ou de o vento sacudir os pinheiros.

Benjy estava sentado em seu catre quando Cora voltou da caixa de cartas. — Cedo demais — disse. — O carro do correio ainda não pode ter passado.

Carro?

— Quando o lugar é longe assim, eles vêm de carro.

— Oh! — Cora sentou-se.

— Está passando mal, tia Cora?

— Não, não — pestanejou. — É só que não me lembro de ter visto ou ouvido nenhum carro do correio por aqui nos últimos vinte anos. Em todo esse tempo, também não vi nenhum carteiro.

— Talvez ele venha quando você não está por perto.

— Eu sempre acordo com a neblina e vou dormir com as galinhas. Nunca pensei muito nisso, é claro, mas... — Virou-se para olhar pela janela, para a casa da Sra. Brabbam. — Benjy, estou com um pressentimento. — Levantou-se e saiu da cabana, pelo caminho empoeirado, seguida por Benjy, cruzando a estrada estreita, até a caixa de cartas da Sra. Brab­bam. Os campos e montanhas estavam silenciosos. Era tão cedo que só se podia falar aos cochichos.

— Não desrespeite a lei, tia Cora!

— Psst! Olhe aqui. — Ela abriu a caixa e introduziu nela a mão, como alguém que mexesse em uma toca de mar-mota. — E aqui, e aqui — jogou algumas cartas nas mãos do rapaz.

— Ora, mas estas cartas já foram abertas! A senhora abriu as cartas, tia Cora?

— Meu filho, eu nem toquei nelas! — O rosto dela exibia uma expressão atônita. — É a primeira vez na vida que eu deixo minha sombra se aproximar desta caixa.

Benjy virou as cartas diversas vezes, balançando a cabe­ça. — Ora, tia Cora, estas cartas têm mais de dez anos!

— O quê? — Cora agarrou-as.

— Tia Cora, esta senhora vem recolhendo as mesmas cartas todos os dias, há anos. E elas nem mesmo foram man­dadas para a Sra. Brabbam, são para uma mulher chamada Ortega, em Green Fork.

— Ortega,   a   mexicana   do   armazém!   Todos   esses anos... — sussurrou Cora, contemplando as velhas cartas em suas mãos. — Todos esses anos...

Olharam para a casa da Sra. Brabbam, adormecida na manhã fresca e calma.

— Oh, essa mulher sonsa, fazendo cena com as suas cartas, fazendo-me sentir diminuída. Toda cheia de si, se mostrando, lendo sua correspondência.

A porta da frente da casa da Sra. Brabbam abriu-se.

— Ponha as cartas de volta, tia Cora!

Cora teve tempo bastante para fechar a portinhola da caixa de cartas.

A Sra. Brabbam veio descendo o caminho, detendo-se aqui e ali, calmamente, para olhar os botões de flores silves­tres que desabrochavam.

— Bom dia — disse suavemente.

— Sra. Brabbam, este é o meu sobrinho Benjy.

— Que beleza! — A Sra. Brabbam, com uma grande rotação de seu corpo e um floreio das mãos alvas como fari­nha, bateu na caixa como para desprender as cartas que esta­vam dentro, abriu a portinhola, e extraiu a correspondência, escondendo seus gestos com o corpo. Fez alguns movimen­tos, e virou-se novamente, pestanejando. — Que beleza! Ve­jam só, uma carta do meu querido tio George!

— Oh, mas que beleza! — disse Cora.

 

Depois, vieram os dias de verão cheios de expectativa, borboletas saltando amarelas e azuis pelo ar, flores balançando-se ao vento perto da cabana, e o som áspero e constante do lápis de Benjy escrevendo até o fim da tarde. A boca de Benjy estava sempre cheia de comida, e Tom estava sempre irrompendo porta adentro para encontrar o almoço ou o jan­tar atrasado, frio, ou então as duas coisas, e às vezes absolutamente nada.

Benjy manejava o lápis com um delicioso movimento de suas mãos ossudas, desenhando amorosamente cada vogai ou consoante, enquanto Cora flutuava à sua volta, evocando palavras, fazendo-as rolar na língua, deliciando-se cada vez que as via passadas para o papel. Mas ela não estava aprendendo a escrever. — É tão bom ver você escrever, Benjy. Amanhã eu começo a aprender. Agora escreva outra carta!

Percorreram anúncios que falavam de asma, hérnias e mágica, aderiram aos rosa-cruzes, ou pelo menos escreveram pedindo um livro selado grátis sobre toda a sabedoria que havia sido condenada ao esquecimento, segredos de antigos templos ocultos e de santuários enterrados. Depois pediram amostras grátis de sementes de girassol gigante, e algo sobre azia. Já haviam chegado à página 127 da Revista de Crimes e Mistério, numa luminosa manhã de verão, quando...

— Ouça! — disse Cora. Escutaram.

— É um carro — disse Benjy.

Subindo as colinas azuis e atravessando os altos pinheiros, verdes e batidos de sol, percorrendo quilômetro a quilô­metro a estrada poeirenta, vinha o som de um carro se aproximando, até que finalmente, na curva, apareceu em to­do o seu fragor, e Cora disparou correndo pela porta, e en­quanto corria ouviu, viu e sentiu muitas coisas. Primeiro, com o canto do olho, viu a Sra. Brabbam deslizando pela estrada, vindo da direção oposta. A Sra. Brabbam ficou imó­vel quando viu o carro verde brilhante fervendo na subida. Ouviu-se o silvo de um apito prateado e um velho se inclinou para fora do carro pouco antes de Cora chegar, dizendo: — Sra. Gibbs? — Sou eu! ela gritou. — Cartas para a se­nhora — disse o velho, e estendeu-as para ela. Ela esticou o braço e depois o recolheu, lembrando-se de algo. — Oh — disse —, por favor, será que o senhor se importava, será que o senhor podia, por favor, colocá-las na minha caixa de car­tas? — O velho apertou os olhos, fitou-a, olhou para a caixa, olhou de novo para ela, e riu. — Não me importo — disse, e fez o que ela havia pedido, pôs as cartas na caixa.

A Sra. Brabbam ficou parada onde estava, imóvel, com os olhos esgazeados. — O senhor trouxe cartas para a Sra. Brabbam? — perguntou Cora.

— É só isso. — E o carro partiu levantando a poeira da estrada.

A Sra. Brabbam ficou parada, torcendo as mãos. Então, sem olhar para sua própria caixa de cartas, virou-se e subiu apressada o caminho de casa, até desaparecer.

Cora deu duas voltas em torno de sua caixa, lentamente, sem ousar tocá-la. — Benjy, recebi cartas! — Estendeu a mão delicadamente, retirou as cartas e revirou-as, colocando-as suavemente nas mãos do rapaz. — Leia para mim. O meu nome está no envelope?

— Sim, senhora. — Abriu a primeira carta com o cui­dado devido e leu em voz alta na manhã de verão:

— "Cara Sra. Gibbs..."

Interrompeu-se e deixou-a saborear aquele início, com os olhos semi-cerrados, a boca formando as palavras. Benjy repetiu a introdução para obter uma ênfase artística, e pros­seguiu: — " Enviamos anexo o folheto grátis da Escola Intercontinental, com detalhes sobre a inscrição em nosso curso de Engenharia Sanitária por Correspondência..."

— Benjy, Benjy, estou tão feliz! Comece de novo!

— "Cara Sra. Gibbs" — leu Benjy.

Depois desse dia, a caixa nunca mais ficou vazia. O mundo penetrou nela depressa, amontoando-se notícias de lugares que nunca tinha visto, de que nunca tinha ouvido falar, onde nunca estivera. Folhetos de viagem, receitas de bolo, e até mesmo a carta de um senhor idoso que procurava uma senhora " ... de cinqüenta anos, com temperamento afável e algum dinheiro, para fins de matrimônio". Benjy es­creveu em resposta: "Já sou casada, mas agradeço sua consi­deração gentil e atenciosa. Cordialmente, Cora Gibbs".

E as cartas continuavam a chegar, atravessando as coli­nas: catálogos de coleção de moedas, livros em oferta, listas de números mágicos, instruções para o combate à artrite, amostras de mata-pulgas. O mundo enchia sua caixa de car­tas, e subitamente não estava mais sozinha ou distante das pessoas. Se alguém enviava uma carta-circular a Cora sobre a revelação dos mistérios dos antigos maias, era extremamen­te provável que recebesse na semana seguinte três cartas de Cora, fazendo com que seu contato formal desabrochasse em uma calorosa amizade. Ao final dos dias particularmente tra­balhosos, Benjy era forçado a deixar a mão de molho em sais de Epsom.

Ao fim da terceira semana, a Sra. Brabbam já não descia mais até sua caixa de cartas. Ela nem mesmo saía de sua cabana pela porta dianteira para tomar ar, porque Cora estava sempre na estrada, sorrindo para o carteiro.

Depressa demais, chegou o fim do verão, ou, pelo me­nos, da parte mais importante do verão: a visita de Benjy. Sobre a mesa da cabana, seu grande lenço vermelho envolvia sanduíches frescos temperados com cebola, atados com ramos de hortelã para manterem-se perfumados; no chão, estavam seus sapatos, engraxados, e o próprio Benjy estava sentado na cadeira, tendo à mão seu lápis, que já havia sido longo e amarelo, mas que agora era um simples toco mastigado. Cora segurou o queixo do rapaz e virou seu rosto, como se exa­minasse uma variedade incomum de abóbora.

— Benjy, eu lhe devo desculpas. Acho que não olhei nem uma vez para seu rosto esse tempo todo. Parece que conheço todas as verrugas de sua mão, todas as unhas, todos os calos e todas as linhas, mas poderia passar por seu rosto no meio da multidão e não reconhecê-lo.

— Não é um rosto para se olhar — disse Benjy, enver­gonhado.

— Mas eu seria capaz de reconhecer sua mão entre um milhão de outras — disse Cora. — Se mil pessoas apertarem minha mão no escuro, eu seria capaz de dizer: "Esta aqui é a mão de Benjy". — Cora sorriu suavemente e andou até a porta aberta. — Estive pensando — olhou para uma cabana distante —, não vejo a Sra. Brabbam há semanas. Agora ela passa o tempo todo dentro de casa. Acho que a culpa é mi­nha. Eu agi por orgulho, fiz com ela coisa muito pior do que ela fazia comigo, um pecado bem maior. Tirei a razão da vida dela. Foi uma maldade, agi por despeito e estou en­vergonhada. — Olhou para o alto da colina, para a casa si­lenciosa e trancada. — Benjy, você me faz um último favor?

— Faço, tia Cora.

— Escreva uma carta para a Sra. Brabbam.

— O quê?

— É, escreva para uma dessas companhias pedindo um folheto grátis, uma amostra, qualquer coisa, e assine o nome da Sra. Brabbam.

— Está bem — disse Benjy.

— Assim, daqui a uma semana ou um mês o carteiro chega e apita, e eu digo a ele para ir até a porta da casa dela, especialmente para entregar a carta. E vou cuidar para estar no meu jardim nesta hora, para poder ver e para a Sra. Brab­bam poder ver que estou vendo. E eu aceno para ela com as minhas cartas e ela acena para mim com as cartas dela, e nós duas vamos sorrir.

— Está bem — disse Benjy.

Escreveu três cartas, lambeu cuidadosamente os envelo­pes, e colocou-os no bolso. — Eu as ponho no correio quan­do chegar a St. Louis.

— Foi um belo verão — ela disse.

— Foi mesmo.

— Mas, Benjy, eu não aprendi a escrever, não é? Eu queria receber cartas, fazia você escrever até tarde da noite, e nós ficávamos tão ocupados mandando cupons e recebendo amostras que parecia que não sobrava tempo para as aulas. E isso quer dizer...

Ela sabia o que isso queria dizer. Apertou a mão dele, de pé junto à porta da cabana. — Obrigado — ela disse. — Por tudo.

Depois ele partiu, correndo. Correu até a cerca do pas­to, saltou-a com facilidade, e quando ela quase não podia mais vê-lo ele ainda estava correndo, abanando as cartas es­peciais, de partida para o vasto mundo além das colinas.

As cartas continuaram a chegar por uns seis meses de­pois que Benjy foi embora. O carrinho verde do carteiro che­gava, havia o grito agudo de bom-dia, ou o silvo do apito, e ele enfiava dois ou três envelopes cor-de-rosa ou azuis na caixa de cartas bem-feita.

E houve o dia especial em que a Sra. Brabbam recebeu sua primeira carta de verdade.

Depois disso, as cartas começaram a chegar com inter­valos de uma semana, depois de um mês, e finalmente o car­teiro parou de chegar, não se ouvia mais o som do carro subindo por aquela estrada solitária nas montanhas. Primei­ro, uma aranha alojou-se na caixa de cartas, e depois uma andorinha.

E Cora, enquanto as cartas duraram, agarrava-as em suas mãos maravilhadas, fitando-as em silêncio até que a pressão dos músculos de seu rosto produzia gotas claras, re­dondas e brilhantes de água que corriam de seus olhos. Ela erguia um envelope azul. — De quem é?

— Não sei — dizia Tom.

— E diz o quê? — gemia.

— Não sei — dizia Tom.

— O que estará acontecendo nesse mundo lá fora, oh, eu nunca vou saber, eu nunca mais vou saber — disse. — E esta carta, e esta, e estai — Revolveu os montes e montes de cartas que haviam chegado depois da partida de Benjy. — Todo mundo e todas as pessoas e todos os acontecimen­tos, e eu sem saber. Todo mundo querendo receber notícias nossas, e nós deixando de escrever, e eles nunca escrevendo de volta!

Finalmente, chegou o dia em que o vento derrubou a caixa de cartas. E todas as manhãs Cora ficava de pé na porta aberta da cabana, escovando o cabelo grisalho lentamente, sem falar, contemplando as colinas. E em todos os anos se­guintes nunca houve uma vez em que passasse pela caixa de cartas tombada sem se abaixar em vão, enfiando a mão na caixa e retirando-a vazia antes de sair novamente para o campo.

  1. Casa de força

Os cavalos foram parando suavemente, e o homem e sua mulher contemplaram o vale seco e arenoso. A mulher estava meio perdida em sua sela; não dizia nada havia horas, não lhe ocorria uma boa palavra para dizer. Sentia-se encur­ralada entre a pressão quente e escura do céu do Arizona, coberto de nuvens, e a pressão dura, granítica, das monta­nhas castigadas pelo vento. Algumas gotas de chuva fria caíram em suas mãos trêmulas.

Olhou com ar cansado para o marido. Ele montava com desembaraço seu cavalo empoeirado, com uma calma firme. Ela fechou os olhos e pensou em todos esses anos tranqüilos, até então. Queria rir da imagem que via refletida no espelho que segurava à sua frente, mas não havia sequer como fazê-lo; seria meio louco. Afinal, podia ser apenas a impressão deste clima sombrio, ou o telegrama que haviam recebido pela manhã, trazido por um mensageiro montado, ou a longa viagem que estavam fazendo naquele momento até a cidade.

Ainda tinham pela frente um mundo vazio para atraves­sar, e ela estava com frio.

— E sou eu a moça que nunca ia precisar da religião — disse em voz baixa, com os olhos fechados.

— O quê? — Berty, o marido, olhou para onde ela estava.

— Nada — murmurou, sacudindo a cabeça. Em todos esses anos, sempre tinha tido a certeza de que nunca iria precisar de uma igreja. Ouvia pessoas decentes falando e fa­lando da religião, dos bancos encerados, dos lírios brancos em grandes vasos de bronze e dos vastos sinos, em igrejas onde a voz do pregador ressoava como uma batida à porta; ouvia falar o tipo de gente que grita e o tipo fervoroso, sussurrante, e era sempre a mesma coisa. Ela simplesmente não tinha uma espinha que se ajustasse a bancos de igreja.

— É que eu nunca tive razões para me sentar em uma igreja — respondia. Não era veemente a respeito. Simples­mente, andava e vivia e movia as mãos, que eram lisas e pe­quenas como seixos. O trabalho havia polido as unhas dessas mãos com um esmalte que não vinha em vidros. Tocar crian­ças as havia suavizado, criar crianças as havia feito modera­damente severas, e o amor de um marido as havia feito gentis.

E agora, a morte as fazia tremer.

— Vamos — disse o marido. E os cavalos levantaram a poeira do caminho até onde se erguia um estranho prédio ao lado de um leito seco de rio. O prédio tinha janelas ver­des reluzentes, máquinas azuis, telhas vermelhas, e fios. Os fios corriam, montados em torres de alta-tensão, para os pon­tos mais distantes do deserto. Ela os viu partir em silêncio e, ainda envolta em seus pensamentos, tornou a olhar para as estranhas janelas verdes e para os tijolos cor de terra quei­mada.

Nunca havia marcado com uma fita um versículo espe­cial da Bíblia, porque, apesar da vida no deserto ser uma vida de granito, sol e evaporação das águas de sua carne, nunca representara uma ameaça. As coisas sempre se tinham resol­vido antes de serem necessárias madrugadas insones e rugas na testa. De algum modo, as coisas venenosas da vida ha­viam passado ao largo. A morte era um rumor remoto de tempestade por detrás da serra mais distante.

Vinte anos haviam passado desde que viera para o oes­te, pusera no dedo a aliança de ouro desse caçador solitário e aceitara o deserto como o terceiro elemento, constante, de sua vida em família. Nenhum de seus quatro filhos jamais estivera muito doente ou perto da morte. Ela nunca se havia ajoelhado, salvo para esfregar o chão sempre bem esfregado.

Agora, isso mudara. Ali estavam, a caminho de uma cidade distante, porque um simples pedaço de papel amarelo chegara dizendo em poucas palavras que sua mãe estava mor­rendo.

E ela não conseguia imaginar esse fato, por mais que virasse a cabeça para ver ou movesse sua mente para olhar dentro de si mesma. Não havia em lugar nenhum um apoio onde se escorar, para subir ou descer, e sua mente, como uma bússola exposta a uma súbita tempestade de areia, fora liberada de todas as direções antes claras, todos os pontos de referência perdidos, a agulha, à toa, girando, girando. Mesmo com os braços de Berty em suas costas, não bastava. Parecia o final de uma boa peça e o começo de uma peça má. Alguém que ela amava ia realmente morrer. Era im­possível!

— Preciso parar — disse, sem confiar em sua voz, fa­zendo-a soar irritada para encobrir seu medo.

Berty a conhecia, e sabia que não era mulher de se irri­tar. Por isso, a irritação não se transmitiu para ele. Ele era um jarro tampado; o conteúdo era de confiança. Podia cho­ver do lado de fora que a mistura não se alterava. Ele fez seu cavalo andar de lado até onde ela estava e pegou gentil­mente sua mão. — Claro — disse. Olhou para o céu a leste. — As nuvens estão se juntando daquele lado. Vamos espe­rar um pouco. Pode chover, e eu não quero pegar essa chuva.

Agora ela estava irritada com sua própria irritação, uma aumentando com a outra, e não podia fazer nada para parar. Mas em vez de falar e correr o risco de desencadear nova­mente o ciclo, ela desabou para a frente e começou a solu­çar, deixando seu cavalo andar sozinho até parar, pateando, junto ao prédio de tijolos vermelhos.

Escorregou como um fardo para os braços do marido, e ele a abraçou quando ela se aninhou em seu ombro; depois, pousou-a e disse: — Parece que não há ninguém aqui — e chamou: — Ei! — e olhou para o aviso preso na porta: "Pe­rigo! Companhia de Energia Elétrica".

Havia um grande inseto cujo zumbido enchia o ar. Can­tava uma nota contínua, grave, que às vezes subia um pouco, às vezes caía um pouco, mas sempre no mesmo tom. Parecia uma mulher cantando com os lábios cerrados enquanto pre­parava a comida na hora do crepúsculo em um fogão quente. Não se via nenhum movimento dentro da casa, só se ouvia o zumbido gigantesco. Era o tipo de ruído que se esperava que o brilho do sol produzisse estremecendo por sobre os dormentes de uma estrada de ferro, quando há silêncio e se pode ver o ar tremulando, agitado e ondulante, e se imagina que o processo tenha algum som mas não se ouve nada, apenas uma tensão arqueada nos tímpanos e o silêncio inquieto.

O zumbido subiu por seus calcanhares, por suas pernas meio finas e chegou a seu corpo. Alcançou seu coração e to­cou-o, como o tocava a simples visão de Berty sentado na trave mais alta da cerca do curral. Depois, chegou à sua ca­beça e desencadeou uma música suave nos menores nichos de seu crânio, a mesma música que antigamente começava a tocar quando ouvia canções de amor ou lia um bom livro.

O zumbido estava em tudo. Fazia parte do solo, tanto quanto os cactos, e fazia parte do ar, tanto quanto o calor.

— O que é isso? — ela perguntou, vagamente per­plexa, examinando a casa.

— Não sei exatamente, só sei que é uma casa de força — disse Berty. Tentou abrir a porta. — Está aberta — dis­se, surpreso. — Eu queria que houvesse alguém aqui. — A porta se abriu e o rumor pulsante, mais alto, os atingiu co­mo uma lufada de vento.

Entraram juntos na casa solene e sonora. Ela agarrava com força o braço do marido.

Era um lugar sombrio e submarino, liso, limpo e polido, como se alguma coisa estivesse sempre passando e nada fi­casse nunca, mas houvesse sempre um movimento invisível, uma agitação que nunca se acalmava. Em cada lado, em duas fileiras, havia o que parecia ser, à primeira vista, pessoas de pé, imóveis. Aos poucos, à medida que avançavam, percebe­ram que eram máquinas arredondadas, parecidas com con­chas*, que emitiam o zumbido. Cada máquina, negra, cinzenta ou verde, estava presa a cabos dourados e a fios esverdeados, e havia bolsas quadradas de metal prateado com rótulos ver­melhos e letras brancas pintadas. Havia também um buraco parecido com um tanque de lavar roupa, em que alguma coi­sa girava muito rápido, como se enxaguasse panos invisíveis a uma velocidade invisível. A centrífuga rodava tão depressa que parecia imóvel. Imensas serpentes de cobre pendiam do teto obscuro e tubos verticais erguiam-se entre o chão de cimento e a parede de tijolos rubros. A casa era limpa como um raio de energia verde, e também cheirava a limpeza. Ha­via um estalido, um farfalhar seco como o de folhas de pa­pel; chispas de fogo azul dançavam, chiavam, brilhavam, assobiavam onde os fios encontravam bobinas de porcelana e vidro verde isolante.

Lá fora, no mundo real, começou a chover.

Ela não queria ficar nesse lugar; não era um lugar para se permanecer, povoado não por gente mas por máquinas sombrias, e repleto de uma música que parecia o acorde uniforme de um órgão em que se pressionasse ao mesmo tempo uma tecla grave e outra aguda. Mas a chuva batia nas jane­las, e Berty disse:.— Parece que vai durar. A gente pode ter que passar a noite aqui mesmo. De qualquer maneira, já é tarde. É melhor eu trazer as coisas aqui para dentro.

Ela não disse nada. Queria ir em frente, mesmo sem sa­ber o que iria encontrar, em qual lugar. Na cidade, pelo me­nos, apertando o dinheiro na mão, compraria as passagens, que seguraria com força. Entraria em um trem que, correndo e fazendo muito barulho, atravessaria centenas de quilô­metros. Desceria do trem, arranjaria outro cavalo, ou entraria em um carro, e finalmente chegaria junto de sua mãe, viva ou morta. Era tudo uma questão de tempo e de fôlego. Passa­ria por muitos lugares, mas nenhum deles lhe ofereceria mais que chão para pisar, ar para respirar e comida para sua boca indiferente. E isso era pior do que nada. Por que ir até onde estava sua mãe, dizer palavras e fazer gestos? Para quê?

O chão era limpo como um rio sólido sob seus pés. Quando pisava, produzia ecos que estalavam por todos os lados, como tiros de espingarda fracos e distantes. Qualquer palavra que fosse dita ecoava como em uma caverna de granito.

Atrás dela, ouviu Berty arrumando as coisas. Ele esticou dois cobertores cinzentos e dispôs no chão uma pequena fi­leira de latas de conserva.

Era noite. A chuva ainda batia nas janelas de vidro ver­de, lavando-as e produzindo reflexos de seda, que fluíam e se combinavam em cortinas suaves e claras. Havia trovões ocasionais que caíam e quebravam-se sobre si mesmos em avalanches de chuva gelada e de ventos que açoitavam areia e pedra.

Sua cabeça estava pousada em um pano dobrado, e, por mais que a virasse, o zumbido da imensa casa de força atra­vessava o tecido e penetrava em sua cabeça. Virou-se, cerrou os olhos e mudou de posição, mas o zumbido persistiu. Sen­tou-se, ajeitou o pano dobrado e deitou-se de novo.

Mas o zumbido não cedia.

Sem olhar, por algum sentido oculto no fundo de si mes­ma, sabia que seu marido estava acordado. Ela sempre sabia. Era uma diferença sutil na respiração de Berty. Na verdade, era a ausência de som; nenhum som de respiração, exceto a intervalos cuidadosamente estudados. Ela sabia que ele a estava olhando na escuridão chuvosa, preocupado com ela, mui­to atento a sua própria respiração.

Ela virou-se na escuridão. — Berty?

— Hein?

— Também estou acordada — disse.

— Eu sei — ele disse.

Ficaram deitados, ela muito esticada, muito tensa, e ele meio encolhido, meio dobrado sobre si mesmo, mas relaxa­do. Ela percebeu a curva escura de seu corpo e sentiu-se in­vadida por um incompreensível maravilhamento.

— Berty — perguntou, e ficou muito tempo em silên­cio —, como é... como é que você é do jeito que é?

Ele esperou um pouco. — O que você quer dizer?

— Como é que você consegue descansar? Interrompeu-se. A frase soava muito mal. Soava como uma acusação, mas na verdade não era. Ela sabia que ele era um homem preocupado com tudo, um homem que poderia ver na escuridão e não se gabar disso. Ele estava preocupado com ela, e com a morte ou a vida de sua mãe, porém tinha um jeito de preocupar-se que parecia indiferente e irresponsável, mas que não era assim. A preocupação o tomava inteiro, profundamente, mas convivia com uma fé, uma convicção, que aceitava, recebendo-a sem resistir. Algo nele precipitava-se e se apossava da dor, tomava conhecimento dela, descobria ca­da um de seus arabescos antes de transmitir a mensagem que seu corpo todo esperava. Em seu corpo, a fé era como um labirinto, no qual a dor que o atingia ia se dissipando e de­saparecia antes de chegar ao ponto onde queria atingi-lo. Às vezes essa fé provocava nela uma raiva sem sentido, de que ela se recuperava logo, sabendo o quanto era inútil criticar algo que era tão essencial e arraigado quanto o caroço em um pêssego.

— Por que você nunca me passou essa coisa? — ela disse afinal.

Ele riu um pouco, de leve. — Que coisa?

— Você me passou todo o resto. Você me mudou em muitas outras coisas. Eu não sabia nada, só o que você me ensinava... — calou-se. Era difícil explicar. A vida deles tinha sido como o sangue quente de uma pessoa, passando mansamente pelos tecidos, nos dois sentidos. — Tudo menos a religião — disse. — Nunca peguei a religião de você.

— Isso não pega — ele disse. — Chega um dia em que você simplesmente relaxa, e ela aparece.

Relaxar, ela pensou. Relaxar o quê? O corpo. Mas como é que se relaxa a mente? Seus dedos estremeceram ao lado do corpo. Seus olhos percorreram o vasto interior da casa de força, sem se fixar. As máquinas se erguiam em silhuetas escuras, onde apontavam pequenas fagulhas. O zumbido per­corria seus membros.

Com sono. Cansada. Ela cochilou. As pálpebras bate­ram, fecharam-se, tornaram a bater e a se fechar. O zumbido a invadira como se houvesse beija-flores voando dentro de seu corpo e de sua cabeça.

Acompanhou com os olhos os tubos que mal se viam até o teto, viu as máquinas e ouviu o movimento invisível de peças. Subitamente, ficou muito atenta em sua sonolência. Seus olhos moveram-se rapidamente para cima, para bai­xo e para os lados, e o zumbido, o canto das máquinas, ficou cada vez mais alto. Seus olhos moveram-se, seu corpo rela­xou, e ela viu, nas janelas altas e verdes, as sombras dos fios de alta tensão que se lançavam na noite chuvosa.

Agora o zumbido estava nele, seus olhos se agitaram e ela se sentiu violentamente puxada para cima. Sentiu-se to­mada por um dínamo, a girar, girando e girando, para fora de si, para o interior de invisibilidades giratórias, introduzi­da, aceita por mil fios de cobre, e lançada, num instante, por sobre a terra!

Ela estava em toda parte ao mesmo tempo!

Saltando, em segundos, de uma torre gigantesca para outra, zunindo entre altos postes em que pequenas peças de vidro, como pássaros de cristal verde, seguravam os fios em seus bicos não-condutores, ramificando-se em quatro dire­ções, oito direções secundárias, encontrando vilas, cabanas, cidades, correndo para fazendas, ranchos, sítios, ela cobriu suavemente, como uma teia de aranha de malhas largas, mi­lhares de quilômetros quadrados de deserto!

Subitamente, a terra era mais que várias coisas separa­das, mais do que casas, pedras, estradas de concreto, um cavalo aqui ou ali, um homem em um barranco, um túmulo, um espinho de cacto, uma cidade repleta de sua própria luz cercada pela noite, um milhão de coisas isoladas. Subitamen­te, tudo formava um padrão, envolvido e sustentado pela rede elétrica, que pulsava.

Ela derramou-se, por momentos, em quartos onde a vi­da surgia da palmada no traseiro nu de uma criança, em quartos onde a vida estava deixando corpos como a luz que se vai extinguindo em uma lâmpada: o filamento bruxuleando, esmorecendo, e finalmente a escuridão. Ela estava em todas as cidades, em todos os quartos, traçando desenhos de luz sobre centenas de quilômetros de terras; vendo, ouvindo tudo, não mais só, mas uma entre milhares de pessoas, cada uma com suas idéias e suas crenças.

Seu corpo, um galho sem vida, ficou deitado, pálido e trêmulo. A mente, em toda a sua tensão elétrica, era levada de um lado para outro, pela vasta rede de tributários da casa de força.

Tudo se equilibrava. Em um quarto, viu a vida se es­vaindo; em outro, a um quilômetro dali, viu copos de vinho erguidos a um recém-nascido, charutos sendo distribuídos, sorrisos, cumprimentos, gargalhadas. Viu os rostos pálidos e tensos de pessoas estendidas em seus leitos de morte, ouviu como entendiam e aceitavam a morte, viu seus gestos, sentiu seus sentimentos, e viu que elas também estavam isoladas em si mesmas, sem meios para alcançar o mundo e ver o equilíbrio, vê-lo como ela o estava vendo agora.

Engoliu em seco. Suas pálpebras estremeceram e sua garganta ardia sob os dedos que se fechavam em seu pescoço.

Ela não estava só.

O dínamo, girando, a havia lançado como força centrí­fuga ao longo de mil linhas, em milhões de cápsulas de por­celana presas a telhados, transformando-se em luz pelo aper­tar de um botão, pelo giro de um interruptor, ou por um puxão em uma corda.

A luz podia estar em qualquer quarto: bastava apertar o botão. Todos os quartos eram escuros até que a luz che­gasse. E ela estava ali, em todos eles ao mesmo tempo. E não estava só. Sua dor não era mais do que parte de uma vasta dor, seu medo apenas um entre muitos outros. E esta dor era apenas algo pela metade. Havia a outra metade: coisas que nasciam, consolo na forma de uma criança nova, alimen­to no corpo aquecido, cores para os olhos, sons para os ou­vidos que despertavam, e flores na primavera para o olfato.

Sempre que uma luz se apagava, a vida apertava um outro botão, novos quartos se iluminavam.

Ela esteve com os Clark e os Gray e os Shaw e os Mar­tin e os Hanford, os Fenton, os Drake, os Shattuck, os Hubbell e os Smith. Estar só não era a solidão, exceto na mente. Na cabeça, há todo tipo de mirantes. É uma visão estranha e tola, mas havia esses mirantes, para se olhar através deles e ver que o mundo está lá, povoado de gente tão embaraçada e atrapalhada quanto você; e havia as passagens para ouvir, e a passagem para falar de sua dor e livrar-se dela, e passa­gens para conhecer as mudanças de estação conforme os per­fumes: trigo no verão, gelo no inverno ou fogueiras no ou­tono. Estavam lá para ser usadas, para que ninguém ficasse sozinho. A solidão era fechar os olhos. A fé era simplesmen­te abri-los.

A rede de luz caiu sobre todo o mundo que ela conhecia há vinte anos, e ela se misturou com todos os fios. Brilhou, pulsou e foi gentilmente incluída no grande tecido que co­bria toda a terra como uma colcha suave, cálida e murmurante. Ela estava em toda parte.

Na casa de força, as turbinas giraram e zumbiram, e as fagulhas elétricas, como pequenas velas votivas, saltavam e se acumulavam nos cotovelos dos tubos metálicos e nas jun­tas de vidro. E as máquinas pareciam santos e coros, rodea­das por auréolas que variavam, passando do amarelo para o vermelho e depois para o verde, e um canto percorria o vão do telhado, ecoando em hinos e cânticos intermináveis. Lá fora, o vento castigava as paredes de tijolo e alagava as ja­nelas com a chuva; no interior, ela estava deitada sobre seu pequeno travesseiro e subitamente começou a chorar.

Ela não sabia se era compreensão, aceitação, alegria ou resignação. A cantoria continuou, cada vez mais alta, e ela .estava em toda parte. Estendeu a mão, tocou em seu marido, que ainda estava acordado, com os olhos fixos no teto. Tal­vez ele também tivesse corrido por toda parte nesses instantes, através da rede de luz e força. Mas na verdade ele sem­pre estivera em todo lugar ao mesmo tempo. Ele se sentia como parte de um todo, e portanto era estável; para ela, a unidade era nova e a abalava. Ela sentiu os braços dele, que a envolviam, e apoiou com força o rosto em seu ombro por muito tempo, pressionando, enquanto o zumbido aumentava, e ela chorou livremente, dolorosamente, contra seu om­bro .. .

De manhã, o céu do deserto estava muito claro. Saíram andando calmamente da casa de força, selaram os cavalos, amarraram a bagagem e montaram.

Ela se ajeitou e ficou sentada na sela, sob o céu azul. E pouco a pouco tomou consciência de suas costas, que estavam eretas, e contemplou suas mãos estranhas nas rédeas. Haviam parado de tremer. Vislumbrou as montanhas distantes; não havia falta de nitidez e nem um desbotamento das coisas. Tudo era pedra sólida tocando pedra, e pedra tocando areia, e areia tocando flor silvestre, e flor silvestre tocando o céu em um fluxo claro e contínuo, tudo definitivo e formando um só bloco.

— Vamos! — gritou Berty, e os cavalos puseram-se lentamente em marcha, afastando-se do prédio de tijolos no ar fresco e doce da manhã.

Ela montava bem, fazendo uma bela figura, e nela, co­mo o caroço em um pêssego, havia um sentimento de paz. Chamou o marido quando diminuíram a marcha em uma su­bida: — Berty!

— O que é?

— Será que nós podemos... — perguntou.

— Podemos o quê? — ele disse, sem ouvi-la da pri­meira vez.

— Podemos voltar aqui qualquer dia? — ela disse, apontando com a cabeça para a casa de força. — De vez em quando? Num domingo?

Ele olhou para ela e assentiu lentamente com a cabeça. — Acho que sim. Claro. Acho que sim.

E enquanto continuavam o caminho até a cidade, ela cantava de boca fechada, cantava uma canção estranha e sua­ve, e ele olhou para ela e ficou ouvindo aquele som. Era o tipo de ruído que se esperava que o brilho do sol produzisse estremecendo por sobre os dormentes de uma estrada de ferro, quando há silêncio e se pode ver o ar tremulando, agi­tado e ondulante; era uma única nota contínua, grave, elevando-se um pouco, caindo um pouco, zumbindo, zumbindo, mas constante, mansa e maravilhosa de se ouvir.

  1. En la noche

A Sra. Navarrez gemia a noite inteira, os gemidos en­chiam o prédio como uma luz acesa em todos os quartos, e ninguém conseguia dormir. Ela mordia o travesseiro e torcia as mãos magras a noite inteira, gritando: — Meu Joe!

Os outros moradores, às três da manhã, concluíram fi­nalmente que ela nunca iria calar a boca pintada de verme­lho. Levantaram-se, sentindo calor e com uma sensação áspe­ra na pele, e vestiram-se para pegar um ônibus até o centro da cidade e ir a um cinema aberto a noite toda: lá, o Roy Rogers perseguia bandidos entre nuvens de fumaça estagnada e dizia suas falas em meio a roncos suaves na penumbra da platéia.

Quando amanheceu, a Sra. Navarrez ainda estava solu­çando e gritando.

Durante o dia não era tão mau assim. O coro dos bebês, chorando aqui ou ali pelo prédio, criava um local misericor­dioso que era quase uma harmonia. Havia também o turbi­lhão das máquinas de lavar no térreo, e as mulheres de rou­pão de chenile andando pelas tábuas ensopadas e escorrega­dias, falando muito depressa seus mexericos mexicanos. Mas de vez em quando, acima da conversa aguda, da lavagem, dos bebês, podia-se ouvir a Sra. Navarrez, como um rádio ligado no máximo volume: — Meu Joe, oh, meu Joe! — gritava.

Agora, no final da tarde, os homens chegavam com o suor do trabalho sob os braços. Mergulhados em banheiras de água fria por todo o prédio super aquecido, maldiziam e tapavam os ouvidos com as mãos.

— Ela não pára! — diziam com raiva inútil. Um ho­mem chegou a chutar sua porta. — Cale a boca, mulher! — Mas isso só fez a Sra. Navarrez gritar ainda mais alto. — Oh, Joe, oh, Joe!

— Hoje nós vamos comer fora! — disseram os homens para as mulheres. Por todo o prédio, utensílios de cozinha foram guardados e portas foram trancadas, enquanto os ho­mens apressavam suas mulheres, perfumadas, levando-as pe­los corredores seguras pelos cotovelos.

À meia-noite, o Sr. Villanazul, destrancando sua porta velha e descascada, fechou os olhos castanhos e ficou por um instante quieto, oscilando. Sua mulher, Tina, estava a seu lado com seus três filhos e duas filhas, uma delas de colo.

— Oh, meu Deus — murmurou o Sr. Villanazul. — Ó doce Jesus, desce da cruz e vem calar a boca dessa mulher.

— Entraram em seu pequeno quarto mal-iluminado e olha­ram para o candeeiro azul bruxuleando sob um crucifixo so­litário. O Sr. Villanazul sacudiu a cabeça, filosoficamente.

— Ele continua na cruz.

Deitaram-se em suas camas como churrascos ardentes, regados pela noite de verão com seu próprio suco. O prédio queimava com o grito doentio da mulher.

— Estou sufocando! — O Sr. Villanazul desceu cor­rendo até a entrada do prédio com a mulher, deixando as crianças, que tinham o grande e milagroso talento de dormir em qualquer situação.

Figuras sombrias ocupavam a portaria do prédio, uma dúzia de homens calados, acocorados, com cigarros fumegando e brilhando em seus dedos escuros, e mulheres vestidas com robes de chenile, aproveitando o que havia de vento na noite de verão. Moviam-se como figuras de sonho, como bo­necos vestidos movidos por arames e engrenagens. Os olhos estavam inchados e as línguas espessas.

— Vamos até o quarto dela, estrangulá-la — disse um dos homens.

— Não, não seria correto — disse uma das mulheres.

— Vamos atirá-la pela janela.

Todos riram, cansados.

O Sr. Villanazul pestanejou estupidamente, olhando-os. Sua mulher movia-se pesadamente a seu lado.

— Até parece que Joe foi o único homem do mundo a entrar para o exército — disse uma voz irritada. — A Sra. Navarrez, ora! Esse marido dela, o Joe, vai descascar bata­tas; será o homem mais seguro de toda a infantaria.

— É preciso fazer alguma coisa — disse o Sr. Villana­zul. Espantou-se com a firmeza de sua própria voz. Todos olharam para ele.

— Nós não vamos agüentar outra noite — continuou o Sr. Villanazul.

— Quanto mais a gente bate na porta, mais ela grita .— explicou o Sr. Gomez.

— O padre veio hoje à tarde — disse a Sra. Gutierrez. —- Mandamos chamá-lo em desespero de causa. Mas a Sra. Navarrez não o deixou nem passar pela porta, por mais que ele implorasse. O padre foi embora. Chamamos o guarda Gilvie para gritar com ela também, mas vocês acham que ela ligou?

— Precisamos tentar outra coisa, então — meditou o Sr. Villanazul. — Alguém precisa ser... compreensivo... com ela.

— E qual é o outro jeito? — perguntou o Sr. Gomez.

— Se houvesse... — ponderou o Sr. Villanazul após refletir um momento — se houvesse um homem solteiro no prédio...

Lançou a idéia como uma pedra fria em um poço. Dei­xou que chegasse até o fundo e que as ondas acabassem de se espalhar.

Todos suspiraram.

Era como se uma brisa noturna tivesse soprado. Os ho­mens se retesaram um pouco; as mulheres se agitaram.

— Mas nós todos somos casados — respondeu o Sr. Gomez, emergindo enfim. — Não há nenhum homem sol­teiro.

— Oh! — disseram todos, e assentaram-se no leito quente e vazio do rio da noite, o pó elevando-se em silêncio.

— Então — ripostou o Sr. Villanazul, erguendo os om­bros e apertando os lábios — precisa ser um de nós!

O vento noturno soprou novamente, agitando as pes­soas atônitas.

— Não é hora de egoísmos! — declarou Villanazul. — Um de nós tem que fazê-lo! Ou isso ou então passar outra noite queimando no inferno!

Agora, as pessoas na entrada afastavam-se dele, piscan­do muito. — O senhor vai lá, é claro, não é, Sr. Villanazul? — queriam saber.

Ele ficou rígido. O cigarro quase caiu de seus dedos.

— Oh, mas eu... — objetou.

— O senhor o quê? — disseram.

Sacudiu febrilmente as mãos. — Eu tenho mulher e cinco filhos, um de colo!

— Mas nenhum de nós é solteiro, a idéia é sua e o se­nhor deve ter a coragem de obedecer a suas convicções, Sr. Villanazul! — disseram todos.

Ele ficou muito assustado e quieto. Olhava de relance para a mulher.

Ela oscilava pesadamente no ar da noite, tentando en­xergá-lo.

— Estou tão cansada — queixou-se.

— Tina — disse ele.

— Eu morro se não dormir — ela disse.

— Oh, mas Tina...

— Eu morro, vão mandar flores e eu vou ser enterrada se não descansar um pouco — ela murmurou.

— Ela está com péssima aparência — disseram todos. O Sr. Villanazul hesitou só mais um instante. Tocou os dedos quentes e inertes da mulher, e encostou os lábios em seu rosto ardente.

Em silêncio, deixou a entrada.

Todos ouviram seus passos subindo as escadas escuras do prédio, dando voltas ascendentes para chegar ao terceiro andar, onde a Sra. Navarrez se lamentava e gritava.

Aguardaram na entrada.

Os homens acenderam novos cigarros e jogaram fora os palitos de fósforo apagados, falando baixo como o vento, as mulheres vagueando entre eles, todos se aproximando e fa­lando com a Sra. Villanazul, que, com rugas sob os olhos cansados, apoiava-se no corrimão da entrada.

— Agora — murmurou um dos homens — o Sr. Villa­nazul chegou ao último andar!

Todos se calaram.

— Agora — sussurrou teatralmente o homem — o Sr. Villanazul está batendo na porta!

Todos escutaram, prendendo o fôlego.

— Agora, a Sra. Navarrez, diante das batidas, começa a chorar mais ainda!

Do alto do prédio, ouviu-se um grito.

— Agora — imaginou o homem, acocorado, movendo delicadamente a mão pelo ar — o Sr. Villanazul fala e fala, baixinho, de mansinho, pela porta trancada.

Todos os que estavam na entrada ergueram o queixo, tentando ver através de três pisos de madeira e gesso, es­perando.

Os gritos pararam.

— Agora, o Sr. Villanazul está falando depressa, pe­dindo, murmurando, prometendo — disse o homem, bai­xinho.

Os gritos reduziram-se a soluços, os soluços a um gemido, e finalmente tudo se acalmou, transformando-se em respiração e na batida atenta dos corações.

Após uns dois minutos de espera e suor, todos que estavam na entrada ouviram a fechadura da porta distante estalando, abrindo-se e, um segundo depois, fechando-se com pouco ruído.

A casa ficou em silêncio.

O silêncio invadiu cada quarto, como uma luz apagada. O silêncio escorreu como um vinho gelado pelos corredores. O silêncio entrou pelos basculantes abertos como um hálito frio vindo do teto. Todos respiraram seu frescor.

— Ah — suspiraram.

Os homens jogaram fora os cigarros e andaram na pon­ta dos pés pelo prédio silencioso. As mulheres os seguiram. Logo, a entrada estava vazia. Seguiram pelos corredores fres­cos de quietude.

A Sra. Villanazul, em um estupor hipnótico, destrancou a porta de seu apartamento.

— Precisamos dar um banquete ao Sr. Villanazul — murmurou uma voz.

— Amanhã vou acender uma vela para ele. As portas se fecharam.

A Sra. Villanazul deitou-se em sua cama. Ele é um homem que pensa nos outros, ela sonhou, com os olhos fe­chados. É por essas coisas que eu o amo.

O silêncio parecia uma mão fria, acariciando-a até que adormeceu.

  1. Sol e sombra

A câmara dava estalidos, como um inseto. Era azul e metálica, como um grande besouro gordo seguro nas mãos cuidadosas e atarefadas do fotógrafo. Reluziu num raio de sol.

— Psst, Ricardo, saia daí.

— Você aí! — gritou Ricardo pela janela.

— Ricardo, pare!

Virou-se para sua mulher. — Não me diga para parar, diga a eles que parem. Vá lá e diga a eles, ou está com medo?

— Eles não estão fazendo mal a ninguém — disse a mulher, pacientemente.

Ele a afastou para um lado e inclinou-se para fora da janela, olhando para o beco. — Você aí! — gritou.

No beco, o homem com a câmara olhou para cima e depois continuou a fazer foco com sua máquina para foto­grafar a moça de short branco, sutiã branco e lenço verde de xadrez no pescoço. Ela estava apoiada no reboco rachado da casa. Atrás dela, um menino moreno sorria, com a mão na boca.

— Tomás! — gritou Ricardo. Virou-se para a mulher.

— Oh, Jesus abençoado, Tomás está na rua, meu próprio filho, rindo, lá embaixo. — Ricardo começou a sair.

— Não faça nada! — disse a mulher.

— Vou cortar as cabeças deles! — disse Ricardo, e saiu.

Na rua, a moça lânguida estava agora encostada na tinta azul de uma balaustrada que começava a descascar. Ri­cardo chegou à rua a tempo de vê-la apoiada no balaústre.

— Ei, isso é meu! — disse.

O fotógrafo se apressou. — Não, não, só estamos tiran­do fotografias. Está tudo bem. Já vamos sair.

— Não está tudo bem — disse Ricardo, com os olhos castanhos cintilando. Gesticulou com a mão enrugada. — Ela está encostada na minha casa.

— Estamos tirando fotografias de moda — sorriu o fotógrafo.

— E o que quer que eu faça? — perguntou Ricardo ao céu azul. — Que eu adore a notícia? Que eu saia dan­çando feito um santo epiléptico?

— Se o problema é dinheiro, bem, tome uma nota de cinco pesos — sorriu o fotógrafo.

Ricardo empurrou a mão. — Costumo trabalhar para ganhar dinheiro. O senhor não está entendendo. Por favor, vá embora.

O fotógrafo ficou atônito. — Espere...

— Tomás, vá para casa!

— Mas, papá... .

— Gaaaaah! — berrou Ricardo. O menino sumiu.

— Isso nunca aconteceu antes — disse o fotógrafo.

— Já estava na hora de acontecer. Nós somos o quê? Um bando de covardes? — perguntou Ricardo ao mundo.

Uma multidão começou a se formar. Murmuravam e sorriam, acotovelando-se. O fotógrafo, com a paciência irri­tada, fechou sua máquina e disse por sobre o ombro para a modelo:

— Está bem, vamos usar a outra rua. Vi uma bela parede rachada e umas sombras bem profundas. Se andarmos depressa...

A moça, que durante toda essa conversa ficara torcen­do nervosamente o lenço no pescoço, agarrou seu estojo de maquilagem e passou célere por Ricardo, mas não conseguiu evitar que ele tocasse seu braço. — Não me entenda mal — disse depressa. Ela parou, piscando muito. Ele continuou:

— Não é de você que eu estou com raiva. Nem de você — disse para o fotógrafo.

— Então por quê... — respondeu o fotógrafo. Ricardo abanou a mão. — Vocês são empregados, eu sou empregado. Todos somos empregados. Devemos nos entender. Mas quando vocês chegam a minha casa com essa máquina fotográfica, que mais parece um olho de mosca preta, o entendimento acaba. Não vou deixar que usem o meu beco por causa de suas belas sombras, que usem meu céu por causa do sol, ou que usem minha casa porque tem uma rachadura interessante na parede bem ali. Está vendo? Que beleza! Encoste-se aqui! Fique ali! Sente-se lá! Abaixe-se aqui! Assim! Eu ouvi tudo. Vocês acham que eu sou estúpido? Tenho livros no meu quarto. Estão vendo aquela janela? Maria!

A cabeça de sua mulher apareceu. — Mostre os meus livros para eles! — gritou.

Ela reclamou e resmungou, mas um instante depois exibia um livro, depois dois, e depois meia dúzia de livros, com os olhos fechados e a cabeça virada para o outro lado, como se fossem peixes velhos.

— E tenho mais umas duas dúzias lá em cima! — gri­tou Ricardo. — Vocês não estão falando com um bicho do mato, estão falando com um homem!

— Escute — disse o fotógrafo, guardando rapidamente os filmes. — Nós já vamos embora. Não precisa se inco­modar.

— Mas antes de ir vocês precisam entender o que eu quero dizer — disse Ricardo. — Não sou mau. Mas posso ficar com muita raiva. Por acaso eu pareço um cartaz de papelão?

— Ninguém disse que o senhor se parecia com coisa nenhuma. — O fotógrafo recolheu sua bolsa e fez menção de ir embora.

— Há um fotógrafo a dois quarteirões daqui — disse Ricardo, barrando-lhe o caminho — que tem uns cartazes de papelão para usar nas fotografias. Você fica na frente deles. Um dos cartazes tem uma tabuleta, escrita grande hotel. Eles tiram um retrato seu e parece que você está no Grande Hotel. Entenderam? Meu beco é meu beco, minha vida é minha vida, meu filho é meu filho. Meu filho não é papelão! Eu vi o senhor colocar meu filho encostado na pa­rede, assim, no fundo da fotografia. Como é que se diz... para criar um clima? Para formar um conjunto atraente, com a linda moça na frente dele?

— Está ficando tarde — disse o fotógrafo, suando. A modelo seguiu-o, andando depressa.

— Nós somos gente pobre — disse Ricardo. — A tin­ta das nossas portas descasca, nossas paredes estão rachadas e esburacadas, nossos esgotos correm pelas ruas, nossos be­cos estão em pandarecos. Mas eu fico com uma raiva terrível quando vejo alguém encarar essas coisas como se elas tivessem sido planejadas assim, como se eu tivesse feito a parede rachar, anos atrás. Vocês acham que eu sabia que iam che­gar e então envelheci a pintura? Ou que, sabendo que vocês vinham, fiz meu filho vestir suas roupas mais sujas? Nós não somos um estúdio! Nós somos gente e precisamos de atenção como gente. Ficou mais claro agora?

— Até demais — disse o fotógrafo, sem olhar para ele, apressado.

— Agora que vocês ficaram conhecendo meus desejos e meu raciocínio vão agir como amigos e ir embora para casa?

— O senhor é muito engraçado — respondeu o fotó­grafo. — Ei! — Avistaram um grupo de cinco outras mo­delos e outro fotógrafo ao pé de uma vasta escadaria de pedra que levava em camadas, como um bolo de noiva, até a praça branca da cidade. — Como vai indo, Joe?

— Tiramos umas fotos ótimas perto da Igreja da Vir­gem, com umas estátuas sem narizes, um material ótimo — disse Joe. — E que tumulto é esse?

— O nosso amigo Pancho ficou enfurecido. Até parece que nos encostamos na casa dele até derrubá-la.

— Meu nome é Ricardo, e minha casa está perfeita­mente intacta.

— Vamos tirar as fotos aqui, querida — disse o pri­meiro fotógrafo. — Fique de pé junto à arcada daquela loja, que tem uma bela parede antiga. — Olhou para os mistérios do interior de sua câmara.

— Ah, é? — Uma calma terrível apossou-se de Ricar­do. Acompanhou os preparativos, e, quando estavam prontos para tirar a fotografia, precipitou-se, chamando o homem que estava de pé em um portal. — Jorge, o que é que você está fazendo?

— Nada — disse o homem.

— Escute — disse Ricardo —, aquela arcada não é sua? E você vai deixar eles usarem a sua arcada?

— Não me incomoda — disse Jorge.

Ricardo sacudiu seu braço. — Eles estão tratando sua propriedade como se fosse um cenário de cinema. Você não acha que é um insulto?

— Não pensei nisso. — Jorge enfiou um dedo no nariz.

— Jesus santíssimo, homem, pense!

— Não vejo mal nisso — concluiu Jorge.

— Será que eu sou a única pessoa do mundo que tem uma língua na boca? — disse Ricardo para suas mãos vazias. — E gosto na língua? Será que essa cidade é feita de cená­rios e painéis de fundo? Ninguém mais vai tomar uma ati­tude, só eu?

A multidão os havia seguido pela rua, atraindo mais gente enquanto se deslocava; agora o grupo já estava de bom tamanho e mais gente estava chegando, atraída pelos urros taurinos de Ricardo. Ele batia os pés, cerrava os pu­nhos, cuspia. O fotógrafo e as modelos o observavam ner­vosamente. — O senhor quer um tipo realmente exótico no fundo? — disse furioso para o fotógrafo. — Então eu vou posar. Quer que eu fique junto da parede, com o chapéu assim, os pés assim, e a luz batendo assim nas sandálias que eu mesmo fiz? Quer que eu aumente um pouco este rasgão na minha camisa, hein, assim? Meu rosto está bastante sua­do? Meu cabelo está bem comprido, caro senhor?

— Pode ficar aí se quiser — disse o fotógrafo.

— Eu não vou olhar para a lente — tranqüilizou-o Ricardo.

O fotógrafo sorriu e ergueu a máquina. — Chegue um passo para a esquerda, querida. — A modelo deslocou-se. — Agora vire um pouco a perna direita. Isso. Está ótimo, ótimo. Já!

A modelo ficou imóvel, com o queixo erguido.

Ricardo deixou cair as calças.

— Oh, meu Deus! — disse o fotógrafo.

Algumas modelos gritaram. A multidão riu e trocou cotoveladas leves. Ricardo levantou calmamente as calças e se apoiou na parede.

— Foi bem exótico? — perguntou.

— Meu Deus! — disse o fotógrafo entre dentes.

— Vamos para o porto — sugeriu seu assistente.

— Acho que eu também vou — sorriu Ricardo.

— E agora, o que vamos fazer com esse cretino? — murmurou o fotógrafo.

— Comprá-lo!

— Já tentei!

— Mas não ofereceu o bastante.

— Olhe, vá buscar um policial. Vou pôr um paradeiro nisso.

O assistente saiu correndo. Todos ficaram por ali, fu­mando nervosamente seus cigarros, observando Ricardo. Um cachorro apareceu e urinou brevemente contra uma parede.

— Olhem só! — gritou Ricardo. — Quanta arte! Que desenho! Rápido, antes que o sol seque a mancha!

O fotógrafo deu-lhe as costas e voltou-se para o mar.

O assistente vinha correndo pela rua. Atrás dele, um policial nativo caminhava placidamente. O assistente preci­sou correr de volta para pedir ao policial que se apressasse.

O policial garantiu-lhe à distância, com um gesto, que o dia ainda não tinha acabado e que logo chegariam à cena do desastre, fosse qual fosse.

O policial tomou posição atrás dos dois fotógrafos. — Qual é o problema?

— Aquele homem ali. Queremos que ele seja retirado daqui.

— Aquele homem parece estar apenas encostado na parede — observou o guarda.

— Não, não, não é que ele esteja encostado, é que... Oh, que diabo — respondeu o fotógrafo. — A única ma­neira de explicar é fazer uma demonstração. Faça a pose, querida.

A moça armou a pose. Ricardo também, sorrindo descuidadamente.

— Agora!

A moça ficou imóvel.

Ricardo deixou cair as calças.

A máquina fez clique.

— Ah — disse o policial.

— A prova está bem aqui na foto, se o senhor precisar! — disse o fotógrafo.

— Ah — repetiu o policial, imóvel, com a mão no queixo. — Sei. — Observou a cena como se fosse um fo­tógrafo amador. Viu a modelo com seu rosto branco de mármore ruborizado, as ruínas, a parede, e Ricardo. Ricardo fumava majestosamente um cigarro à luz do sol do meio-dia, sob o céu azul, com as calças onde raramente se encontram as calças de um homem.

— E então, guarda? — perguntou o fotógrafo, em expectativa.

— E o que quer o senhor que eu faça? — perguntou o policial, tirando o quepe e enxugando a testa morena.

— Prenda este homem! Por atentado ao pudor!

— Ah! — disse o policial.

— E então? — perguntou o fotógrafo.

A multidão irrompeu em murmúrios. Todas as lindas modelos contemplavam as gaivotas e o oceano.

— Aquele homem encostado na parede — disse o guarda — é meu conhecido. Seu nome é Ricardo Reyes.

— Como vai, Esteban? — disse Ricardo.

O policial respondeu ao cumprimento. — Bem, e você, Ricardo?

Trocaram acenos.

— Eu não vi esse homem fazer nada de mais — disse o policial.

— Como assim? — perguntou o fotógrafo. — Ele está inteiramente nu. Isso é imoral!

— Aquele homem não está fazendo nada de imoral. Só está de pé ali — disse o policial. — Se ele estivesse fazendo alguma coisa com as mãos ou com o corpo, alguma coisa que ofendesse a vista, eu agiria imediatamente. No en­tanto, já que ele está simplesmente encostado na parede, sem mover um músculo, não há nada errado.

— Mas ele está nu, nu! — gritou o fotógrafo.

— Não estou entendendo — o policial pestanejou.

— As pessoas simplesmente não andam por aí nuas, é só!

— Há pessoas nuas e pessoas nuas — explicou o po­licial. — Boas e más. Sóbrias e bêbadas. Acredito que esse homem não consumiu bebida, é um homem de boa repu­tação; está nu, sim, mas não está fazendo nada com sua nudez que possa de algum modo ofender a comunidade.

— E você, por acaso é irmão dele? Cúmplice dele? — perguntou o fotógrafo. Parecia que a qualquer momento ia perder a cabeça, começar a latir, a bufar, a morder e a correr em círculos sob o sol escaldante. — Onde está a jus­tiça? O que está acontecendo aqui? Vamos embora, meni­nas, vamos para algum outro lugar!

— Que tal a França? — disse Ricardo.

— O quê? — o fotógrafo voltou-se.

— Eu disse que tal a França, ou a Espanha — sugeriu Ricardo. — Ou a Suécia? Já vi umas belas fotos de muros da Suécia. Mas não têm muitas rachaduras. Perdoe minha sugestão.

— Nós vamos tirar as fotografias, mesmo que você não queira! — O fotógrafo sacudiu a máquina e o punho.

— Eu vou estar lá — respondeu Ricardo. — Amanha, depois, nas touradas, no mercado, em qualquer lugar, em toda parte, onde quer que vocês forem eu também irei, cal­mamente, com garbo. Com dignidade, para fazer meu papel necessário.

Olhando para ele, perceberam que era a pura verdade.

— Mas quem é você... quem diabos você pensa que é? — gritou o fotógrafo.

— Estava esperando que você perguntasse — disse Ricardo. — Pense em mim. Vá para casa e pense bem. Enquanto houver um homem como eu em uma cidade de dez mil pessoas, o mundo segue em frente. Sem mim, tudo seria o caos.

— Boa noite, enfermeira — disse o fotógrafo, e todo o bando de moças, caixas de chapéu, máquinas fotográficas e estojos de maquilagem bateu em retirada, tomando uma ladeira que descia até o porto. — Hora do almoço, queridas. Vamos pensar numa solução depois!

Ricardo viu-os partir em silêncio. Não havia deixado sua posição. A multidão ainda o olhava, sorrindo.

Agora, pensou Ricardo, vou subir a rua até minha casa, que tem tinta soltando da porta no lugar onde rocei mil vezes ao passar, e vou andar pelas pedras que eu gastei em quarenta e seis anos de caminhadas, e vou passar a mão pela rachadura da parede de minha casa, que foi feita pelo terremoto de 1930. Eu me lembro bem daquela noite, nós todos na cama, Tomás ainda não era nascido, e Maria e eu muito apaixonados, pensando que era o amor que fazíamos que provocava o estremecimento da casa na noite quente; mas era a terra tremendo, e de manhã, aquela rachadura na parede. E vou subir os degraus da escada até a varanda com grade de ferro trabalhado da casa do meu pai, que ele fez com as suas próprias mãos, e vou comer a comida que mi­nha mulher serve para mim na varanda, com os livros ao alcance da mão. E com meu filho Tomás, que eu criei a partir de puro tecido, de lençóis, a bem da verdade com a ajuda de minha boa mulher, E vamos ficar sentados, co­mendo e conversando, que é o que não fazem fotografias, nem cenários, nem painéis. Somos atores, todos nós, na ver­dade bons atores.

Como em apoio a este último pensamento, um som chegou a seus ouvidos. Solenemente, com dignidade e graça, estava em pleno gesto de levantar as calças para prendê-las com o cinto quando ouviu um lindo som. Parecia o suave bater de asas de pombos no ar. Eram aplausos.

A pequena multidão, com os olhos postos nele, acom­panhando a representação da última cena da peça antes do intervalo para o almoço, viu com que beleza e com que de­coro cavalheiresco estava erguendo suas calças. Os aplausos irromperam como uma onda breve na arrebentação do mar próximo.

Ricardo fez um gesto de agradecimento e sorriu para todos.

A caminho de casa, subindo a rua, cumprimentou o cachorro que havia urinado na parede.

  1. A pastagem

Uma parede desmorona, seguida de outra e mais outra; com um rumor surdo, uma cidade desfaz-se em ruínas.

O vento noturno sopra.

O mundo fica envolto em silêncio.

Londres foi destruída durante o dia. Port Said foi arra­sada. San Francisco caiu em pedaços. Glasgow já não existe.

Foram-se, para sempre.

Tábuas batem suavemente ao vento, a poeira geme e se ergue em pequenas tempestades de areia no ar parado.

Pela estrada, dirigindo-se para as ruínas descoradas, vem vindo o velho vigia noturno destrancar o portão da alta cerca de arame farpado. Fica algum tempo olhando para dentro.

À luz da lua, lá estão Alexandria, Moscou e Nova York. À luz da lua, podem-se ver Joanesburgo, Dublim e Esto­colmo. E Clearwater, no Kansas. Provincetown e Rio de Janeiro.

Naquela mesma tarde, o velho acompanhou tudo. Viu o carro chegar até junto da cerca de arame farpado, viu os homens elegantes e bronzeados no carro, com luxuosos ter­nos de flanela, abotoaduras de ouro, relógios de pulso de ouro reluzentes e anéis cintilantes, acendendo seus cigarros de ponta de cortiça com isqueiros gravados...

— Aqui está, senhores. Que mixórdia! Olhem só o efeito do clima.

— É verdade, Sr. Douglas, está muito mal.

— Nós podíamos ter salvo Paris.

— Sim, senhor.

— Mas a chuva acabou com tudo. Hollywood é assim! Desmontar! Limpar! Essa área pode ser útil. Mandem uma equipe de demolição para cá hoje.

— Sim, Sr. Douglas!

E depois viu o carro partindo com um ronco, até de­saparecer.

 

Agora é noite. O velho vigia noturno está junto ao portão.

Recorda o que aconteceu naquela mesma tarde quando os demolidores chegaram.

Batidas de martelo, arrancos, empurrões; uma queda e um grande rumor. Poeira e barulho, barulho e poeira.

E todos arrancando pregos, retirando as escoras, o gesso, as colunas, as janelas de celulóide, enquanto cidade após cidade caía achatada no chão, reduzida a silêncio.

Um tremor, um ruído ao longe, e então, mais uma vez, apenas o vento quieto.

O vigia noturno percorre lentamente as ruas vazias.

Num instante, está em Bagdá, com mendigos espojando-se numa sujeira incrível e mulheres com olhos claros de safira sorrindo veladamente das janelas altas e estreitas.

O vento sopra areia e confete.

As mulheres e os mendigos desaparecem.

E tudo são novamente tapumes, tudo papier-mâché, telões pintados a óleo e tabuletas com o nome do estúdio. Por detrás das fachadas não há nada além da noite, do espa­ço e das estrelas.

O velho pega um martelo e alguns pregos grandes em sua caixa de ferramentas; procura em meio aos destroços até achar uma dúzia de tábuas em bom estado e um pedaço de lona sem rasgões. Toma os pregos brilhantes de aço nos dedos grossos, pregos sem cabeça.

Começa a reconstruir Londres, martelando, tábua por tábua, parede por parede, janela por janela, martelando, mar­telando com força, aço no aço, aço na madeira, madeira con­tra o céu, trabalhando noite adentro, martelando e conser­tando e tornando a martelar incessantemente.

— Ei, você! O velho pára.

— Ei, vigia!

Um estranho de macacão sai apressado das sombras, gritando:

— Ei, você!

O velho vira-se. — Meu nome é Smith.

— Está bem, Smith, o que é que você pensa que está fazendo?

O vigia encara o estranho em silêncio. — E quem é você?

— Kelly, capataz da equipe de demolição.

O velho sacode a cabeça. — Ah! O pessoal que destrói tudo. Vocês trabalharam muito hoje. Por que é que não está em casa, contando vantagem?

Kelly limpa a garganta e cospe. — Eu tinha que ver umas máquinas no cenário de Cingapura. — Limpa a boca. — E você, Smith, que diabo acha que está fazendo? Largue esse martelo. Você está construindo tudo de novo! Nós bo­tamos abaixo e você constrói. Está louco?

O velho concorda com a cabeça. — Talvez. Mas alguém precisa construir tudo de novo.

— Olhe aqui, Smith. Eu faço o meu trabalho, você faz o seu, e todo mundo fica contente. Mas eu não posso deixar você se meter, entendeu? Vou denunciar ao Sr. Douglas.

O velho continua a martelar. — Pode falar com ele. Mande ele vir até aqui. Eu quero falar com ele. É ele quem está louco.

Kelly ri. — Está brincando? Douglas não fala com ninguém! — Faz um gesto peremptório com a mão, e depois examina melhor o trabalho que Smith acabou de fazer. — Ei, espere aí! Que tipo de pregos você está usando? Pregos sem cabeça! Pare com isso agora mesmo! Vai ser o diabo arrancar esses pregos amanhã.

Smith volta-se e olha por um instante para o outro ho­mem. — Bem, parece óbvio que não se pode construir o mundo com pregos de cabeça e tachas. São fáceis demais de arrancar. É preciso usar pregos sem cabeça, e enfiá-los bem fundo. Assim!

Dá uma tremenda martelada em um prego de aço, cravando-o inteiramente na madeira.

Kelly põe as mãos nos quadris. — Vou lhe dar outra oportunidade. Pare de reconstruir e eu acerto as coisas com você, tranqüilamente.

— Meu jovem — diz o vigia noturno, continuando a martelar enquanto fala, pensa e continua a falar. — Eu já estava aqui muito antes de você nascer. Eu já estava aqui quando tudo isso era só uma pastagem. E havia um vento que fazia o capim ondular. Por mais de trinta anos eu vi tudo crescer, até virar o mundo inteiro. Eu vivia aqui com ele. E vivia bem. Agora, esse é que é o mundo real para mim. O mundo lá fora, do outro lado da cerca, é onde eu passo meu tempo dormindo. Eu tenho um quartinho numa ruazinha, olho as manchetes e leio sobre guerras e pessoas estranhas e más. Mas aqui eu tenho o mundo inteiro, e todo em paz. Costumo andar pelas cidades deste mundo desde 1920. Sempre que me dá vontade, tomo um lanche à uma da manhã num café dos Champs-Elysées! Posso tomar um xerez amontilhado num bar de calçada em Madri, se eu quiser. Ou então, eu e as gárgulas de pedra, lá no alto — está vendo, no alto de Notre-Dame? — podemos debater grandes ques­tões de Estado e chegar a grandes decisões políticas!

— Claro, vovô, claro — Kelly gesticula impaciente.

— E agora você chega e derruba tudo e deixa só aquele mundo lá fora que ainda nem começou a aprender o que seja a paz que eu conheço, de tanto ver esta terra cercada de arame farpado. E aí você chega e destrói tudo e acaba com a paz. Você e os demolidores, orgulhosos do serviço. Pondo abaixo cidades, bairros, países inteiros!

— A gente precisa ganhar a vida — diz Kelly. — Eu tenho mulher e filhos.

— É o que todo mundo diz. Mulheres e filhos. E eles continuam, destruindo, arrasando, matando. Eles obedecem a ordens! Alguém mandou. Eles tinham que fazê-lo!

— Ora, cale a boca e me dê esse martelo!

— Não se aproxime!

— Ora, seu velho maluco...

— Este martelo não serve só para bater pregos! — O velho faz o martelo sibilar no ar; o demolidor salta para trás.

— Diabo — diz Kelly —, você está louco! Vou ligar para a sede do estúdio; vão mandar uns guardas para cá depressa. Meu Deus do céu, agora você só está construindo coisas e falando besteiras, mas como é que eu vou saber se daqui a dois minutos você não vai ficar doido varrido e co­meçar a derramar querosene e riscar fósforos?

— Eu não seria capaz de fazer mal ao menor pedaço de madeira deste lugar, você sabe disso — diz o velho.

— Pode até queimar tudo — diz Kelly. — Escute, vovô, fique esperando bem aí!

O demolidor gira sobre si mesmo e corre pelas aldeias, cidades arruinadas e vilas bidimensionais, adormecidas na­quele mundo noturno, e depois de o ruído de seus passos desaparecer ouve-se a música que o vento toca nos longos arames farpados da cerca, e o velho martela e martela, esco­lhe tábuas e escora paredes até finalmente abrir a boca à procura de ar, com o coração a ponto de explodir; o martelo cai de seus dedos abertos, os pregos de aço tilintam como moedas nas pedras do calçamento e o velho se queixa para si mesmo:

— Não adianta, não adianta. Não posso construir tudo antes de eles chegarem. Preciso de ajuda, e não sei o que fazer.

O velho deixa o martelo jogado na rua e começa a andar sem rumo, sem objetivo aparente, pensando apenas em fazer uma última ronda e olhar tudo pela última vez, despedindo-se de tudo que há ou houve naquele mundo. Anda cercado pelas sombras, sombras que habitam toda essa terra onde já é realmente muito tarde. As sombras são de todos os tipos e tamanhos, sombras de prédios e sombras de pessoas. Ê não olha direto para elas. Não, porque se olhar direto, elas desa­parecem. Não, simplesmente continua a andar, pelo meio de Piccadilly Circus... o eco de seus passos... ou pela Rue de la Paix... o som de seu pigarro... ou pela Quinta Avenida... e não olha para a direita nem para a esquerda. E em toda a volta, nas portas escuras e nas janelas vazias estão seus muitos amigos, seus bons amigos, seus ótimos amigos. Ao longe, ouve-se o chiado do vapor e o murmúrio suave de uma máquina de café expresso, prateada e cromada, e um eco de canções italianas... o esvoaçar de mãos no escuro por sobre as bocas abertas das balalaicas, o sus­surro das palmeiras, um rufar de tambores com um repique de sinos e o toque de címbalos, um som de maçãs caindo na grama macia da noite em pleno verão, mas não são maçãs, é o movimento de pés descalços de mulher, dançando leve­mente ao toque fraco dos címbalos e ao som de pequenos sinos de ouro. Há o rumor de grãos de milho sendo tritu­rados em mós de pedra vulcânica preta, o chiado de tortillas mergulhadas na banha quente, a bulha de um braseiro lan­çando ao ar mil fagulhas, ao sopro de uma boca e ao abano de uma folha de mamoeiro; em toda parte rostos e formas, em toda parte movimentos e gestos, fogos-fátuos formando rostos mágicos de ciganos espanhóis, iluminados por tochas, flutuando no ar como se boiassem em água tingida de fogo, cantando as canções que falam da estranheza, do prodígio e da tristeza da vida. Em toda parte sombras e pessoas, em toda parte pessoas e sombras e música e canto.

É só uma coisa trivial — o vento?

Não. Estão todos aqui. Estão aqui há muitos anos. E amanhã?

O velho pára, e aperta o peito com as mãos.

Não vão mais estar aqui.

Uma sirene toca!

Fora da cerca de arame farpado — o inimigo! Do lado de fora da cerca, a uns cinco quilômetros, um pequeno carro negro da polícia e uma grande limusine negra do próprio estúdio.

A sirene toca!

O velho agarra o corrimão de uma escada e sobe, o som da sirene impelindo-o mais e mais para cima. O portão se abre com estrépito; o inimigo entra rugindo.

— Está lá!

Os holofotes cegantes da polícia brilham sobre as cida­des da pastagem; revelam os cenários de lona de Manhattan, Chicago e Chung-king! A luz cintila nas torres de pedra falsa da Catedral de Notre-Dame, subindo e subindo até onde a noite e as estrelas giram lentamente.

— Está lá em cima, Sr. Douglas! Lá no alto!

— Deus do céu! As coisas estão de um jeito que nem se pode mais passar tranqüilamente a noite em uma festa, sem que...

— Ele acendeu um fósforo! Chame os bombeiros!

No alto de Notre-Dame, o vigia noturno, olhando para baixo, abrigando o fósforo do vento suave, vê a polícia, os trabalhadores e o produtor, num terno escuro, um homem alto, olhando para cima, para ele. Então, o vigia noturno gira lentamente o fósforo, protegendo-o, e encosta-o na ponta de seu charuto, que acende em baforadas lentas.

— O Sr. Douglas está aí? — grita.

Uma voz responde: — O que você quer comigo? O velho sorri: — Venha até aqui, sozinho! Pode trazer um revólver se quiser! Eu só quero conversar um pouco! Vozes ecoam no vasto pátio da catedral:

— Não faça isso, Sr. Douglas!

— Dê-me sua arma. Vamos acabar logo com isso para eu poder voltar para minha festa..Fiquem me, cobrindo, eu vou tomar todo o cuidado. Não quero que esse cenário pegue fogo. Só de madeira há aqui dois milhões de dólares. Pronto? Já vou.

O produtor sobe até o alto das escadas escuras, esca­lando a meia cúpula de Notre-Dame, até o ponto onde o velho se apóia em uma gárgula de gesso, fumando calma­mente seu charuto. O produtor pára, com a arma apontada, metade do corpo para fora de um alçapão aberto.

— Muito bem, Smith. Fique parado aí.

Smith tira o charuto da boca em silêncio. — Não fique com medo de mim. Sou uma pessoa razoável.

— Eu não tenho a menor certeza disso.

— Sr. Douglas — diz o vigia noturno —, o senhor já leu a história do homem que viajou para o futuro e encon­trou todos loucos? Todos. Mas já que todos eram loucos, não sabiam que eram loucos. Todos agiam do mesmo modo, e então achavam que eram normais. E nosso herói era o único que não era louco, e então era anormal; portanto, ele é que era o louco. Para eles, pelo menos. Sim, senhor, Sr. Douglas, a loucura é relativa. Depende de quem tranca quem em qual jaula.

O produtor pragueja em voz baixa. — Eu não subi aqui para conversar a noite inteira. O que você quer?

— Eu quero falar com o Criador. É o senhor, Sr. Dou­glas. O senhor criou isso tudo. O senhor chegou aqui um belo dia, bateu na terra com seu talão de cheques de condão e disse: "Faça-se Paris!" E fez-se Paris: ruas, bistrôs, flores, vinho, barracas de livros e tudo o mais. E o senhor bateu palmas de novo: "Faça-se Constantinopla!" E pronto! O se­nhor bateu palmas mil vezes, e de cada vez surgiu algo novo, e agora o senhor acha que basta bater palmas pela última vez para transformar tudo em ruínas. Mas não é tão fácil assim, Sr. Douglas!

— Eu tenho cinqüenta e um por cento das ações desse estúdio!

— Mas o estúdio pertence realmente ao senhor? Já lhe ocorreu alguma vez vir até aqui no meio da noite e subir nesta catedral, ver que mundo maravilhoso o senhor criou? Já pensou que poderia ser uma boa idéia sentar-se aqui em cima comigo e com meus amigos e tomar um copo de xerez amontilhado conosco? Vá lá, o amontilhado tem cheiro e gosto de café. Imaginação, Sr. Criador, imaginação. Mas não, o senhor nunca veio, nunca subiu aqui, nunca olhou ou ficou escutando, nunca ligou. Sempre havia uma festa em algum outro lugar. E agora, muito tarde, sem perguntar o que é que achamos, o senhor quer destruir tudo. O senhor pode ser dono de cinqüenta e um por cento das ações, mas o se­nhor não é dono deles!

— Deles! — grita o produtor. — Que história é essa de eles?

— É difícil explicar. As pessoas que vivem aqui. — O vigia noturno aponta com a mão, no ar vazio, para as meias-cidades e a noite. — Muitos filmes foram feitos aqui em todos esses anos. Figurantes andaram pelas ruas fantasiados, falaram mil línguas, fumaram cigarros, cachimbos compridos e até narguilés persas. Bailarinas dançaram. E brilharam, oh, como brilharam! Mulheres com véus sorriram em suas altas varandas. Soldados marcharam. Crianças brincaram. Cavaleiros duelaram em armaduras prateadas. Havia casas de chá, onde as pessoas tomavam chá com sotaque inglês. Gongos soaram. Barcos vikings navegaram pelos mares in­teriores.

O produtor acaba de passar pelo alçapão e senta-se nas tábuas, com a arma mais solta na mão. Parece olhar para o velho primeiro com um olho, depois com o outro, ouvindo-o com um ouvido, depois com o outro, balançando de leve a cabeça para si mesmo.

O vigia noturno continua:

— E de algum modo, depois que os figurantes e todos os técnicos das equipes foram embora, fechando o portão e embarcando em grandes ônibus, uma parte desses milhares de pessoas deu um jeito de ficar. As coisas que elas foram, ou fingiram ser, ficaram. As línguas estrangeiras, as roupas, as coisas que fizeram, os pensamentos que tiveram, as reli­giões, as músicas, todas essas coisas ficaram. As visões de lugares distantes. Os cheiros. O vento salgado. O mar. Está tudo aqui hoje à noite — basta prestar atenção.

O produtor fica prestando atenção, e o velho fica pres­tando atenção, trepados nos altos andaimes da catedral, com o luar cegando os olhos das gárgulas de gesso e o vento fazendo as bocas de pedra falsa murmurar. Os sons de mil terras em um mesmo lugar, ao nível do chão, sopram e voam e passam naquele vento, mil minaretes amarelos, torres bran­cas, avenidas verdes ainda intocadas entre as centenas de ruí­nas recentes, e em tudo o murmúrio do arame e das escoras, como uma grande harpa de madeira e aço tangida na noite, e o vento trazendo aquele som que ele próprio produzia até aqui em cima, onde os dois homens ouvem, cada um por si.

O produtor dá um riso curto e balança a cabeça.

— O senhor ouviu — diz o vigia noturno. — O senhor ouviu mesmo, não foi? Estou vendo no seu rosto.

Douglas guardou a arma no bolso do paletó. — Você pode ouvir qualquer coisa, se ficar tentando escutar. Eu cometi o erro de tentar. Você devia ter sido escritor. Ia dei­xar seis dos meus melhores roteiristas sem emprego. Bom, e agora: está pronto para descer?

— O senhor está falando num tom quase respeitoso — diz o vigia noturno.

— Não vejo por que estaria. Você estragou minha bela noite.

— É mesmo? Não foi muito mau, foi? Um pouco dife­rente, digamos. Estimulante, talvez.

Douglas riu em silêncio. — Você não é nada perigoso. Você só precisa de companhia. É seu trabalho, é tudo se acabando, e você está sozinho. Mas eu não consigo entender você direito.

— Não me diga que eu lhe dei o que pensar — diz o velho.

Douglas faz um gesto de pouco-caso. — Depois de viver algum tempo em Hollywood, você encontra gente de todo tipo. Além disso, eu nunca tinha subido aqui antes. É uma vista e tanto, como você disse. Mas eu não tenho a menor idéia da razão que fez você se preocupar tanto com esse lixo todo. O que isto significa para você?

O vigia noturno põe um joelho no chão e bate as palmas das mãos, para ilustrar sua idéia. — Escute. Como eu disse antes, o senhor chegou aqui há muitos anos, bateu palmas, e trezentas cidades surgiram do nada! Então, o senhor acres­centou quinhentos outros países, Estados, pessoas, religiões e situações políticas, por dentro da cerca de arame farpado. E houve problemas! Oh, nada que aparecesse. Estava tudo no vento e nos espaços vazios. Mas era o mesmo tipo de proble­ma que existe no mundo lá fora, do outro lado da cerca: con­flitos, rebeliões, brigas, guerras invisíveis. Mas finalmente os problemas acabaram. Quer saber por quê?

— Se eu não quisesse, não estaria congelando aqui em cima.

Um pouco de música noturna, por favor, pensa o velho, e move sua mão no ar, como se tocasse a linda música apro­priada para servir de fundo para as coisas que tem a dizer...

— Porque o senhor fez Boston junto a Trinidad — diz em voz baixa. — Fez parte de Trinidad invadir Lisboa, parte de Lisboa encostar-se em Alexandria, Alexandria ao lado de Xangai, e um monte de pregos e escoras reunindo Chattanooga, Oshkosh, Oslo, Sweet Water, Soissons, Bei­rute, Bombaim e Port Arthur. Um homem leva um tiro em Nova York, cambaleia e vai cair morto em Atenas. Você aceita um suborno político em Chicago e alguém vai para a cadeia em Londres. Você enforca um negro no Alabama e o povo da Hungria é que tem que enterrá-lo. Os judeus mortos na Polônia enchem as ruas de Sydney, Portland e Tóquio. Você enfia uma faca na barriga de um homem em

Berlim e ela sai pelas costas de um fazendeiro de Memphis, no Tennessee. Está tudo tão perto, tão junto. É por isso que temos paz por aqui. É tudo tão amontoado que tem que haver paz, ou nada sobraria! Um incêndio destruiria nós todos, onde quer que começasse ou qualquer que fosse sua razão. Assim, todas as pessoas, as memórias, ou seja qual for o nome que se dê a elas, que estão aqui, chegaram a um arranjo e esse é o mundo delas, um mundo bom, um belo mundo.

O velho se interrompe, passa lentamente a língua pelos lábios, e respira fundo. — Ê amanhã — diz — tudo isso vem abaixo.

O velho fica ali por mais um momento, acocorado, de­pois se levanta e contempla as cidades e os milhares de som­bras que as povoam. A grande catedral de gesso geme e oscila no ar noturno, para a frente e para trás, balançando nas marés do verão.

— Bem — diz Douglas afinal —, vamos. .. vamos descer agora?

Smith concorda. — Já disse tudo o que queria.

Douglas desaparece, e o vigia ouve-o descendo pelas escadas e pelos andaimes escuros. Depois, ao fim de alguma hesitação, o velho agarra a escada, murmura alguma coisa para si mesmo, e começa a longa descida pelas sombras.

 

A guarda de segurança do estúdio, os poucos trabalha­dores e alguns executivos menos importantes vão embora. Só um grande carro negro espera junto ao portão de arame farpado enquanto os dois homens continuam a conversar nas cidades da pastagem.

— O que o senhor vai fazer agora? — pergunta Smith.

— Acho que vou voltar para minha festa — diz o produtor.

— Vai estar divertida?

— Vai... — o produtor hesita. — É claro que vai! — Olha para a mão direita do vigia noturno. — Não me diga que você achou o martelo que Kelly disse que você estava usando? Você vai começar a construir de novo, vai? Você não desiste, não é?

— O senhor desistiria, se fosse o último construtor e todos os outros fossem demolidores?

Douglas começa a andar com o velho. — Bem, talvez eu volte a vê-lo, Smith.

— Não — diz Smith. — Eu não vou estar aqui. Nada disso vai estar aqui. Quando o senhor voltar, vai ser tarde demais.

Douglas pára. — Mas que diabo! O que você quer que eu faça?

— Uma coisa simples. Deixe isso tudo de pé. Deixe essas cidades inteiras.

— Não posso! São negócios, que diabo. Elas têm que ser demolidas.

— Um homem com faro para os negócios e alguma imaginação poderia pensar em uma razão lucrativa para não derrubar tudo — diz Smith.

— Meu carro está esperando! Como é que eu saio daqui?

O produtor sobe em um monte de entulho, atravessa metade de uma ruína desmoronada, chutando tábuas, apoiando-se por um momento em fachadas de gesso e em andaimes. Poeira chove do céu.

— Cuidado!

O produtor tropeça em meio a um turbilhão de poeira e em tijolos que caem em uma avalanche; tateia, vacila e é agarrado pelo velho que o empurra.

— Pule!

Eles pulam, e metade da construção desmorona, desaba em montes de papelão velho e sarrafos. Uma grande nuvem de pó sobe pelo ar.

— O senhor está bem?

— Estou. Obrigado. Obrigado. — O produtor olha para o cenário caído. A poeira assenta. — Você provavel­mente salvou minha vida.

— Nem tanto. Quase todos os tijolos são de papelão. O senhor só iria se arranhar um pouco.

— De qualquer modo, obrigado. Que construção era essa?

— Uma torre de aldeia normanda, construída em 1925. Não chegue perto dos restos; podem desabar.

— Vou tomar cuidado. — O produtor anda cautelosa­mente até se colocar ao lado do cenário. — Mas pode-se derrubar um prédio desses com uma só mão. — E ao de­monstrar, toda a construção se inclina, estremece e range. O produtor recua vivamente. — Pode-se derrubá-la em um segundo.

— Mas o senhor não faria isso — diz o vigia.

— Será que não? O que representa uma casa francesa a mais ou a menos a esta hora da madrugada?

O velho toma seu braço. — Dê a volta por aqui até o outro lado desta casa. Dão a volta.

— Agora, leia aquela tabuleta — diz Smith.

O produtor acende o isqueiro, ergue a chama para en­xergar melhor e lê:

— THE FIRST NATIONAL BANK, MELLIN TOWN — pausa — illinois — completa, muito lentamente.

O cenário ergue-se à luz aguda das estrelas e à luz bran­da da lua.

— De um lado — Douglas faz a mão oscilar como uma balança — uma torre francesa. Do outro... — anda sete passos para a direita, contorna a fachada, dá sete passos para a esquerda e olha. — the first national city bank. Banco. Torre. Torre, banco. Ora, ora, macacos me mordam!

Smith sorri e diz: — Ainda quer derrubar a torre fran­cesa, Sr. Douglas?

— Espere um pouco, espere um pouco, só um minuto — diz Douglas, e subitamente começa a ver o que tem diante de si. Dá um giro completo ao redor de si mesmo, lentamente; seus olhos se movem em todas as direções; seus olhos saltam de um ponto a outro, vêem isso e aquilo, examinam, separam, arquivam e tornam a examinar. Come­çam a andar em silêncio. Percorrem as cidades da pastagem, pisando na relva e nas flores silvestres, examinando por fora e por dentro ruínas e meias-ruínas, examinando e percorren­do avenidas e aldeias e cidades completas.

Começam um recital que continua enquanto andam, Douglas perguntando e o vigia noturno respondendo, Dou­glas perguntando e o vigia noturno respondendo.

— O que é isto aqui?

— Um templo budista.

— E do outro lado?

— A cabana de troncos onde Lincoln nasceu.

— E aqui?

— A Igreja de St. Patrick, de Nova York.

— E nas costas?

— Uma igreja ortodoxa russa, de Rostov!

— E o que é isto?

— O portão de um castelo do Reno!

— E lá dentro?

— Um bar de Kansas City!

— E aqui? E aqui? E ali? E o que é aquilo? — per­gunta Douglas. — O que é isto? E aquilo ali? E lá?

Tem-se a impressão de que percorrem e atravessam todas as cidades, gritando um para o outro, aqui, ali, em toda parte, para cima, para baixo, para dentro, para fora, escalando, descendo, espiando, mexendo, abrindo e fechando portas.

— E aqui, e aqui, e aqui, e aqui? O vigia noturno diz tudo o que sabe.

As sombras dos dois homens estendem-se diante deles em becos estreitos, e em avenidas largas como rios de pedra e areia.

Dão uma grande volta, conversando. Percorrem tudo e voltam ao ponto inicial.

Ficam novamente em silêncio. O velho se cala depois de ter falado tudo o que havia para ser dito, e o produtor se cala depois de ter escutado, registrado e gravado tudo em sua mente. Distraidamente, procura sua cigarreira nos bolsos. Leva um bom minuto para abri-la, ponderando e meditando sobre cada gesto, e oferece um cigarro ao vigia.

— Obrigado.

Acendem os cigarros, mergulhados em seus pensamen­tos. Sopram a fumaça e olham enquanto ela se dispersa no ar. Douglas diz: — Onde está aquele seu martelo?

— Aqui — diz Smith.

— Você tem pregos também?

— Sim, senhor.

Douglas dá uma longa tragada em seu cigarro e sopra a fumaça. — Muito bem, Smith, ao trabalho.

— O quê?

— Você ouviu. Pregue o que você puder, enquanto puder. Quase tudo que já foi demolido está perdido. Mas torne a montar qualquer coisa que ainda se agüente em pé com uma aparência decente. Graças a Deus ainda há muita coisa de pé. Levei muito tempo para entender. É como você disse: um homem com faro para os negócios e alguma imaginação. Isto é o mundo, como você disse. Eu devia ter visto isso anos atrás. Aqui tudo está dentro da cerca, e eu cego demais para ver o que poderia ser feito com isto. A federação mundial em meu próprio quintal e eu derru­bando tudo. O que nós precisamos é de mais doidos e vigias noturnos.

— Sabe de uma coisa — diz o vigia noturno —, eu estou ficando velho e esquisito. O senhor não está zom­bando de um velho esquisito, não é?

— Não vou fazer promessas que não possa cumprir — diz o produtor. — Só prometo tentar. Temos uma boa chance de que dê certo. Daria um belo filme, não há dúvida. Podemos fazê-lo todo aqui, dentro da cerca, e acabar de filmar antes do Natal. Não há problemas quanto à história, também. Você já forneceu a história. A sua. Não vai ser difí­cil colocar alguns escritores para trabalhar no roteiro. Bons escritores. Talvez uns vinte minutos de filme, o bastante para mostrar todas as cidades e países que temos aqui, apoiados um no outro, duas faces da mesma armação. Eu gosto da idéia. Gosto muito mesmo, pode acreditar. Podemos passar um filme como esse para qualquer um, em qualquer lugar do mundo, e o público vai gostar. Não poderiam igno­rá-lo, seria um filme importante demais.

— É bom ouvir o senhor falar desta maneira.

— E eu espero continuar falando desta maneira — diz o produtor. — Não se pode confiar muito em mim. Eu mesmo não confio. Às vezes eu fico animado, lá no alto um dia, lá no fundo no outro. Talvez você precise me dar com o martelo na cabeça para não me deixar parar.

— Com prazer — diz Smith.

— E se nós fizermos o filme — diz o mais jovem dos dois — acho que você pode ajudar. Você conhece os cenários, provavelmente melhor do que ninguém. Aceitamos com prazer qualquer sugestão que você possa fazer. Então, depois de fazer o filme, acho que você não vai se importar se nós derrubarmos o resto do mundo, não é?

— Tem a minha permissão — diz o vigia.

— Bom, então vamos suspender os trabalhos por uns dias e ver o que acontece. Amanhã vou mandar uma turma de filmagem para começar a escolher uns ângulos. Vou man­dar também os escritores. Talvez vocês todos possam bater um papo. Acho que vai dar certo, com os diabos! — Dou­glas virou-se para o portão. — Nesse meio tempo, vá usando seu martelo o quanto quiser. Até logo. Deus do céu, que frio!

Andam depressa até o portão. No caminho, o velho en­contra sua marmita no lugar onde a deixara algumas horas antes. Levanta-a do chão, pega sua garrafa térmica e a sa­code. — Que tal beber alguma coisa antes de ir embora?

— E o que tem aí? O tal amontilhado de que andou se gabando?

— Safra de 1876.

— Mas é claro! Vamos provar um pouco disto.

A garrafa térmica é destampada e o líquido vertido na

tampa, fumegando.

— Pronto — diz o velho.

— Obrigado. À sua saúde — o produtor bebe. — Que delícia! Ah, está bom demais!

— Pode ter um gosto parecido com café, mas eu ga­ranto que é o melhor amontilhado que já se engarrafou no mundo.

— Tem toda a razão.

Os dois deixam-se ficar entre as cidades do mundo ao luar, tomando a bebida quente, e o velho lembra-se de algo. — Há uma velha canção que se aplica aqui, uma canção de bar, eu acho, uma canção que todos nós que vivemos do lado de dentro da cerca cantamos quando estamos nesse estado de espírito, quando eu escuto da maneira certa e quando o vento bate do jeito certo nos fios de telefone. É assim:

 

"Estamos todos indo para casa

Num só grupo, no mesmo rumo,

Todos indo para casa.

A festa não precisa chegar ao fim:

Vamos todos ficar bem juntos, como

a hera no velho muro do jardim..."

 

Acabam de tomar o café no meio de Porto Príncipe.

— Ei! — diz o produtor subitamente. — Cuidado com esse cigarro! Quer pôr fogo no mundo inteiro?

Os dois olham para o cigarro e sorriem.

— Eu vou tomar cuidado — diz Smith.

— Até logo — diz o produtor. — Eu estou realmente muito atrasado para a festa.

— Até logo, Sr. Douglas.

A fechadura do portão abre-se e fecha-se ruidosamente, os passos vão sumindo, a limusine dá a partida e se afasta ao luar, deixando as cidades do mundo e um velho sentado no meio dessas cidades do mundo, a mão erguida, acenando.

— Até logo — diz o vigia noturno. E então ouve-se apenas o vento.

  1. O lixeiro

Seu trabalho era assim: levantava-se às cinco horas, no frio e na escuridão da manhã, lavava o rosto com água quente, se o aquecedor estivesse funcionando, ou com água fria, se não. Barbeava-se com cuidado, falando com sua mu­lher, que na cozinha preparava presunto com ovos, panque­cas ou alguma outra coisa. Às seis horas saía para o traba­lho sozinho em seu carro, e o estacionava no grande pátio onde todos os outros manobravam enquanto o sol se erguia. As cores do céu, àquela hora da manhã, eram laranja, azul e violeta, e às vezes muito vermelho e às vezes amarelo, ou de uma cor clara, como água sobre pedra branca. Certas manhãs, conseguia ver sua respiração no ar, e em outras, não. Mas enquanto o sol ainda estava raiando ele batia com o punho fechado na porta do seu lado do caminhão verde, e o motorista, sorrindo e dando bom-dia, subia do outro lado, e eles partiam pela grande cidade, descendo as ruas até chegar ao lugar onde começavam a trabalhar. Às vezes, para­vam no caminho para tomar um café preto e depois conti­nuavam, levando o calor no peito. E começavam a trabalhar, o que queria dizer que ele descia diante de todas as casas, recolhia as latas de lixo e as levava até o caminhão, tirando as tampas e batendo as latas contra a beira da caçamba, o que fazia com que as cascas de laranja e de mamão e o pó de café usado se descolassem e caíssem, começando a encher o caminhão vazio. Havia sempre ossos de boi, cabeças de peixe e pedaços de cebolinha e aipo estragado. Se o lixo era novo, não era muito ruim, mas se era velho, sim. Ele não sabia se gostava ou não do emprego, mas era seu tra­balho, e ele trabalhava direito, às vezes falando muito sobre ele, às vezes passando bastante tempo sem sequer pensar a respeito. Havia dias em que o serviço era ótimo, porque saía à rua cedo e o ar ainda estava frio e fresco depois de ele já ter trabalhado muito, e só então o sol esquentava e o lixo começava a fermentar. O que contava é que era um trabalho que o mantinha ocupado e calmo, olhando para as casas e para os gramados aparados por que passava, vendo como todos viviam. E uma ou duas vezes por mês descobria, surpreso, que amava seu serviço, e que era o melhor trabalho do mundo.

Foi assim por muitos anos. E então, de repente, o tra­balho mudou para ele. Mudou em apenas um dia. Mais tarde, admirou-se muitas vezes ao pensar em como um trabalho pode mudar tanto em apenas algumas horas.

 

Entrou no apartamento, não viu sua mulher nem ouviu sua voz, mas ela estava lá. Caminhou até uma cadeira; a mulher ficou longe dele, observando-o enquanto ele estendia a mão para tocar a cadeira e sentava-se nela sem dizer pa­lavra. Ficou sentado lá muito tempo.

— Qual é o problema? — afinal sua voz chegou até ele. Ela já devia ter feito a pergunta três ou quatro vezes.

— Problema? — olhou para a mulher. Sim, era real­mente sua mulher, alguém que ele conhecia, e estavam no seu apartamento, de pé-direito alto e tapetes gastos.

— Aconteceu uma coisa no trabalho hoje — disse. Ela esperou.

— No meu caminhão, aconteceu uma coisa. — Sua língua percorreu, seca, os lábios, e os olhos fecharam-se so­bre sua visão até que só houve escuridão, sem nenhum tipo de luz. Era como se estivesse de pé em algum canto do quarto depois de se levantar no meio de uma noite escura. — Acho que vou deixar o emprego. Tente entender.

— Entender! — protestou ela.

— Não há nada a fazer. É a coisa mais estranha que já aconteceu em minha vida. — Abriu os olhos e ficou sentado, sentindo as mãos frias enquanto esfregava o polegar nos outros dedos. — A coisa que aconteceu foi muito estranha.

— Bom, fale logo, não fique aí sentado!

Ele tirou uma folha de jornal do bolso do casaco de couro. — Este jornal é de hoje — disse. — Dez de dezem­bro de 1951. O Times de Los Angeles. O boletim da Defesa Civil. Diz que vão comprar rádios para os caminhões de lixo.

— Bem, e o que há de mau em ouvir um pouco de música?

— Não é música. Você não está entendendo. Não é música.

Abriu sua mão grossa e riscou a palma com uma unha limpa, lentamente, tentando colocar tudo ali, onde ele e a mulher pudessem ver. — Neste artigo, o prefeito diz que vão colocar transmissores-receptores em todos os caminhões de lixo da cidade. — Olhou fixamente para a mão. — Depois que as bombas atômicas caírem na cidade, os rádios vão falar conosco. E aí, nossos caminhões de lixo vão recolher os corpos.

— Bom, eu acho que é uma coisa prática. Quando...

— Os caminhões de lixo — ele repetiu — vão sair e recolher todos os corpos.

— Não se pode deixar os corpos espalhados, não é? Alguém precisa recolhê-los e...   — a mulher se calou e fechou a boca lentamente. Piscou os olhos, uma vez apenas, e também muito lentamente. Ele ficou vendo seus olhos piscarem, lentamente. E então, com um giro do corpo, como se outra pessoa a tivesse feito girar, foi até uma cadeira, parou, pensou de que modo iria sentar-se, e o fez de maneira muito tensa e em posição ereta. Não disse nada.

Ele ouviu seu relógio de pulso batendo, mas só com uma parte de sua atenção.

Finalmente, ela riu. — Eles devem estar brincando!

Ele sacudiu a cabeça. Sentiu a cabeça movendo-se da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, lenta­mente, como tudo o que vinha acontecendo. — Não. Hoje eles instalaram um rádio no meu caminhão. E disseram que em caso de alerta, se eu estivesse trabalhando, devia despe­jar o lixo em qualquer lugar. "Quando nós chamarmos, vá lá e recolha os mortos."

Uma chaleira de água ferveu na cozinha. Ela deixou-a ferver por alguns segundos e depois agarrou o braço da ca­deira com uma das mãos, levantou-se, foi até a porta da cozinha e desapareceu. O som da fervura parou. Ela tornou a aparecer na porta e depois foi até onde ele ainda estava sentado, imóvel, com a cabeça na mesma posição.

— Está tudo planejado. Eles organizaram batalhões com sargentos, capitães, cabos, tudo — disse. — Já sabemos até para onde devemos levar os corpos.

— E então você passou o dia inteiro pensando nisso — ela disse.

— O dia todo, desde a manhã. Pensei: talvez agora eu não queira mais ser lixeiro. Tom e eu costumávamos nos divertir com uma brincadeira. A gente precisa se divertir. O lixo é desagradável, mas se você se esforçar pode até brincar. Eu e Tom brincávamos de ver que tipo de lixo as pessoas jogavam fora. Ossos de filé em casas ricas, alface e cascas de laranja nas casas pobres. É uma bobagem, eu sei, mas as pessoas devem trabalhar da melhor maneira possível, se não, qual é a vantagem de trabalhar? De certo modo, no caminhão, você não tem patrão. Você se levanta de manhã cedo e, de qualquer maneira, é um trabalho ao ar livre; você vê o sol nascer, vê a cidade acordar, e isso não é nada mau. Mas agora, hoje, deixou, de repente, de ser o tipo de traba­lho que eu quero.

Sua mulher começou a falar depressa. Enumerou muitas coisas e falou sobre muitas outras, mas antes que se esten­desse muito ele atalhou gentilmente. — Eu sei, eu sei, as crianças e a escola, o carro, eu sei — disse. — E as contas e o dinheiro e o crédito. Mas e aquele sítio que meu pai me deixou? Por que não podemos nos mudar para lá, para lon­ge da cidade? Eu sei mais ou menos como se deve cuidar de um sítio. Podemos guardar comida, cavar um abrigo, armazenar o bastante para viver meses se alguma coisa acontecer.

Ela não disse nada.

— É claro que todos os nossos amigos estão aqui na cidade — continuou, razoável. — E os cinemas, os teatros, os amigos das crianças, e...

Ela respirou fundo. — Não podemos levar mais alguns dias para resolver?

— Não sei. Fico com medo. Fico achando que se eu for pensar melhor no meu caminhão e na minha nova tarefa, eu vou acabar me acostumando. E, em nome de Cristo, não acho direito que um homem, um ser humano, se deixe acos­tumar com uma idéia dessas.

Ela sacudiu a cabeça lentamente, olhando para as jane­las, para as paredes cinzentas, para os quadros escuros nas paredes. Apertou as mãos, e começou a abrir a boca.

— Vou pensar esta noite — ele disse. — Vou ficar acordado algum tempo. De manhã, terei resolvido o que nós vamos fazer.

— Tome cuidado com as crianças. Não seria bom que elas soubessem disso tudo.

— Vou tomar cuidado.

— Então não vamos mais falar nisso. Vou preparar o jantar. — Ergueu-se de um salto, passou as mãos no rosto, depois olhou para elas e para a luz do sol nas janelas. — As crianças vão chegar a qualquer momento.

— Não estou com muita fome.

— Você precisa comer, você precisa ir em frente. — Ela saiu apressada, deixando-o sozinho no meio da sala, em que nem uma brisa agitava as cortinas e apenas o teto cin­zento se erguia acima dele, com uma lâmpada solitária apa­gada como uma lua velha no céu. Ele ficou quieto. Esfregou o rosto com as duas mãos. Levantou-se e andou até a porta da sala de jantar, onde ficou parado. Continuou andando e percebeu que se sentava em uma das cadeiras da sala de jantar. Viu suas mãos estendidas à sua frente sobre a toalha branca, abertas e vazias.

— Fiquei pensando — disse. — A tarde inteira.

Ela andava pela cozinha, fazendo tinir os talheres, ba­tendo com as panelas no silêncio onipresente.

— Fiquei pensando — continuou ele — se devia colo­car os corpos no caminhão ao comprido ou no sentido da largura, com a cabeça para a direita ou com os pés para a direita. Homens e mulheres juntos, ou separados? As crian­ças num caminhão à parte, ou junto com os homens e as mulheres? Cachorros em caminhões especiais, ou deixamos os cachorros lá mesmo onde estiverem? Calculando quantos corpos cabem em um caminhão de lixo. E pensando se devia empilhar os corpos e, finalmente, vendo que íamos acabar tendo que empilhá-los. Não consigo entender. Não consigo imaginar. Eu tento, mas não consigo ter uma idéia, a menor idéia, de quantas pessoas se podem empilhar em um ca­minhão.

Ficou lembrando como era o final de seu dia de traba­lho, o caminhão cheio e a lona cobrindo a carga de lixo, tão grande que dava à lona a forma de um monte irregular. E o que acontecia se você puxava a lona de repente e olhava para o lixo?» Por alguns segundos, podia ver coisas brancas parecidas com pedaços de macarrão, só que as coisas brancas estavam vivas e se mexiam, aos milhões. E quando as coisas brancas sentiam o impacto do calor do sol, paravam, estre­meciam, enterravam-se e desapareciam na alface, nos restos de carne moída, no pó de café ou nas cabeças brancas de peixe. Ao fim de dez segundos de luz do sol, as coisas bran­cas, que pareciam pedaços de macarrão, sumiam e o grande monte de lixo ficava silencioso e imóvel. A carga era nova­mente coberta com a lona e você via a lona desdobrar-se irregularmente por sobre o resultado oculto da coleta. Por baixo, você sabia que estava novamente escuro, e que aquelas coisas começavam a se mexer novamente, como sempre se mexem quando a escuridão retorna.

Ele ainda estava sentado na sala vazia quando a porta da frente do apartamento se escancarou. Seu filho e sua filha entraram correndo, rindo, viram-no sentado ali e pararam de chofre.

A mãe veio depressa até a porta da cozinha, encostou-se e contemplou sua família. Eles viram seu rosto e ouviram sua voz:

— Sentem-se, crianças, sentem-se — ergueu uma das mãos e abaixou num gesto imperativo. — Chegaram bem na hora!

  1. O grande incêndio

Na manhã em que o grande incêndio começou, ninguém na casa pôde apagá-lo. Quem estava em chamas era a sobri­nha de mamãe, Marianne, que estava passando um tempo conosco enquanto seus pais estavam na Europa. Por isso, ninguém podia quebrar o vidro da caixa vermelha da esquina e o botão para chamar as mangueiras de pressão e os bom­beiros de chapéu vermelho. Ardendo como celofane em com­bustão, Marianne desceu as escadas, deixou-se cair com um gemido ou um lamento alto na cadeira da mesa do café da manhã, e recusou-se a comer o bastante para encher o buraco de um dente.

Mamãe e papai afastaram-se da mesa, devido ao calor excessivo que reinava na sala.

— Bom dia, Marianne.

— O quê? — Marianne olhava através das pessoas e falava de modo vago. — Oh, bom dia.

— Dormiu bem, Marianne?

Mas eles sabiam que ela não tinha dormido. Mamãe deu um copo d'água a Marianne, e todos ficaram esperando para ver se a água não ia evaporar-se em sua mão. De sua cadeira, vovó percebeu os olhos febris de Marianne. — Você está doente, mas não é nenhum micróbio — disse ela. — Nunca conseguiriam vê-lo ao microscópio.

— O quê? — disse Marianne.

— O amor é padrinho da burrice — disse papai com ar indiferente.

— Ela vai ficar boa — respondeu mamãe. — As moças só ficam parecendo burras porque quando se apaixonam fi­cam surdas.

— Afeta o labirinto — disse papai. — Faz com que muitas moças caiam, bem nos braços de um rapaz. Eu sei como é. Uma vez eu quase fui esmagado por uma mulher que vinha caindo, e nem queiram saber. ..

— Pst! — Mamãe franziu as sobrancelhas, olhando para Marianne.

— Ela não está ouvindo nada do que estamos dizendo; está em estado cataléptico.

— Ele vem buscá-la hoje de manhã — sussurrou ma­mãe para papai, como se Marianne nem estivesse na sala. — Vão passear no calhambeque dele.

Papai limpou a boca com um guardanapo. — Nossa filha era assim, mãe? — quis saber. — Faz tanto tempo que ela se casou e foi embora que já esqueci. Não me lembro de ela ter ficado tão boba. Nessas horas, ninguém diria que a moça tem um pingo de inteligência na cabeça. É isso que engana os homens. Eles pensam: que moça adorável e desmiolada, ela me ama, acho que vou me casar com ela. Ca­sam-se e um belo dia ele acorda e a encontra sem o jeito so­nhador, com a inteligência recuperada. Já desfez as malas e está pendurando roupas de baixo por toda a casa. O homem começa a tropeçar em cordas e varais. Vê-se de repente em uma pequena ilha deserta, uma pequena sala de estar isolada no meio do universo, com uma gatinha que virou uma fera, uma borboleta metamorfoseada em vespa. Imediatamente, adota um passatempo: coleção de selos, reunião do clu­be, ou...

— Mas como você fala! — gritou mamãe. — Ma­rianne, fale-nos desse rapaz. Como era mesmo o nome dele? Isak Van Pelt? — O quê? Oh... sim, Isak. — Marianne tinha passado a noite rodando pelo quarto, folheando livros de poesia e lendo versos inacreditáveis, deitada na cama de costas, imóvel, ou então de bruços, olhando pela janela para uma paisagem de sonho, banhada pela lua. O perfume de jasmim insistira em invadir o quarto durante toda a noite, e o calor excessivo do início da primavera (o termô­metro marcava trinta e um graus) não a deixara dormir. Se alguém a visse pelo buraco da fechadura, a acharia parecida com uma borboleta agonizante.

Ao romper da manhã, havia se espreguiçado em frente ao espelho, e descido para tomar café, lembrando-se à última hora de enfiar um vestido.

Vovó ria baixinho durante todo o café da manhã. Final­mente disse: — Você precisa comer, menina, comer. — Em resposta, Marianne brincou com uma torrada e engoliu um pedacinho. Nesse exato momento ouviu-se uma buzi­nada estrepitosa. Era Isak! Em seu calhambeque!

— Opa! — gritou Marianne, e correu para cima.

O jovem Isak Van Pelt foi trazido para dentro e apre­sentado a todos.

Quando Marianne finalmente partiu, papai sentou-se, enxugando a testa. — Eu não sei. Isso é demais.

— Foi você que sugeriu que ela começasse a sair com os rapazes — disse mamãe.

— E estou muito arrependido — disse ele. — Mas ela está conosco há seis meses, e ainda tem outros seis pela frente. Eu achei que se ela conhecesse algum rapaz sim­pático ...

— ... e eles se casassem... — sugeriu vovó num tom acusador. — Aí Marianne poderia mudar-se quase imediata­mente... não é isso?

— Bem... — disse papai.

— Sim, senhor — disse vovó.

— Mas agora a coisa ficou muito pior do que antes — falou papai. — Ela fica vagando por aí, tocando esses infer­nais discos românticos e falando sozinha. A resistência de um homem tem limites. Além disso, agora a coisa chegou a um ponto tal que ela fica rindo o tempo todo. É comum moças de dezoito anos irem parar no hospício?

— Ele parece um rapaz direito — disse mamãe.

— É, sempre podemos rezar para que seja — disse papai, erguendo um pequeno copo de licor. — Um brinde a um casamento rápido.

Na outra manhã, Marianne saiu de casa como um fo­guete assim que ouviu a buzina do calhambeque. Não houve tempo para o rapaz chegar até a porta. Vovó foi a única a vê-los arrancar juntos no carro, da janela da sala de visitas.

— Ela quase me derrubou. — Papai alisou o bigode.

— O que é isso? Ovos mexidos? Bom.

De tarde, Marianne, de novo em casa, perambulou pela sala de estar até a vitrola e os discos. O chiado da agulha encheu a casa. Ela tocou That old black magic vinte e uma vezes, cantarolando enquanto deslizava de olhos fechados pela sala.

— Fiquei com medo de entrar em minha própria sala — disse papai. — Eu me aposentei para poder fumar meus charutos e aproveitar a vida, e não para ficar com uma sobrinha anormal cantarolando debaixo do lustre da sala.

— Pst! — fez mamãe.

— É uma crise em minha vida — anunciou papai. — Afinal, ela está apenas passando uns tempos conosco.

— Você sabe como são as moças quando saem para passar uns tempos longe de casa. Pensam logo que estão em Paris, capital da França. Ela vai embora em outubro. Não é tão horrível assim.

— Vejamos — calculou papai vagarosamente. — Quan­do o dia chegar, eu só vou estar enterrado há cento e trinta dias no Cemitério Jardim. — Levantou-se e jogou no chão seu jornal, que formou uma pequena tenda branca. — Por Deus, mãe, vou falar com ela agora mesmo.

Saiu e parou na porta da sala, observando Marianne enquanto ela valsava, cantarolando junto com a música. Pigarreando, ele entrou na sala.

— Marianne — disse.

— That old black magic... — cantava Marianne. — O que é?

Ele olhou as mãos dela mo vendo-se no ar. Ela olhou-o com olhos subitamente ardentes enquanto dançava.

— Quero falar com você. — Ele ajeitou a gravata.

— Da-dum-da-da-da-dum-dum-dum-da-da — cantou ela.

— Você está me ouvindo? — perguntou papai.

— Ele é tão lindo — disse ela.

— É evidente.

— Você sabe que ele se inclina e abre as portas como um porteiro e toca pistom como Harry James e me trouxe margaridas hoje de manhã?

— Não duvido.

— Tem olhos azuis. — Ela olhou para o teto. Ele não encontrou nada no teto para olhar.

Ela continuou a olhar para o teto enquanto dançava, e ele se aproximou e parou junto dela, olhando para cima, mas não havia sinal de goteira ou rachadura no teto, e ele suspirou. — Marianne...

— E nós comemos lagosta naquele bar junto do rio.

— Lagosta. Sei, mas nós não queremos que você se esgote, que fique fraca. Um dia, amanhã, você precisa ficar em casa e ajudar sua tia Math a fazer tapeçaria...

— Está bem, titio. — Ela sonhava pela sala com as asas abertas.

— Você ouviu o que eu disse? — perguntou ele.

— Ouvi — ela sussurrou. — Ouvi — falou de olhos fechados. — Oh, ouvi sim. — Sua saia dançava pela sala. — Titio — disse, e sua cabeça pendeu para trás.

— Você vai ajudar sua tia a fazer tapeçaria? — gri­tou ele.

— ...a fazer tapeçaria — ela murmurou.

— Pronto! — Ele sentou-se na cozinha, e recolheu o jornal. — Falei com ela!

Mas na manhã seguinte ainda estava sentado na beira da cama quando ouviu o barulho do escapamento do bólido envenenado e escutou Marianne despencando pela escada, detendo-se dois segundos na sala de jantar para tomar café, hesitando no banheiro o tempo necessário para julgar se ia sentir-se mal ou não, e então o barulho da porta da frente batendo, o calhambeque roncando rua abaixo, levando duas pessoas a cantar fora do tom.

Papai segurou a cabeça com as mãos. — Tapeçaria — disse.

— O quê? — perguntou mamãe.

— Pescaria — disse papai. — Vou até a beira do rio ver quem está pescando por lá.

— Mas ninguém vai estar pescando a esta hora.

— Eu fico esperando — decidiu papai, com os olhos fechados.

Naquela e em sete outras terríveis noites, o balanço da varanda cantava uma pequena canção de rangidos, para a frente e para trás, para a frente e para trás. Papai, escondido na sala de estar, podia ser visto num relevo inflamado cada vez que aspirava a fumaça de seu charuto barato e a luz vermelha iluminava seu rosto intensamente trágico. O balan­ço da varanda rangia. Ele esperava o rangido seguinte. Ouvia pequenos sons vindos de fora, sutis como borboletas, peque­nas palpitações de risos e de doces bobagens ditas em orelhas miúdas. — Minha varanda — dizia papai. — Meu balanço — sussurrava para o charuto, fitando-o. — Minha casa. — Aguardava o próximo rangido. — Deus do céu — disse.

Dirigiu-se para a prateleira de ferramentas e apareceu na varanda escura com uma brilhante lata de óleo. — Não, não precisam se levantar. Não se incomodem. Pronto, e pronto — azeitou as juntas do balanço. Estava escuro. Não conseguia ver Marianne, ma6 sentia seu cheiro. O perfume quase o derrubou sobre a roseira. Também não conseguiu ver seu amigo. — Boa noite — disse. Entrou e sentou-se, e não houve mais rangidos. Agora tudo o que podia ouvir era algo que soava como o adejar de mariposas do coração de Marianne.

— Ele deve ser um rapaz direito — disse mamãe da porta da cozinha, enxugando a louça do jantar.

— É o que espero — sussurrou papai. — É por isso que os deixo ficar na varanda todas as noites!

— Tantos dias seguidos — disse mamãe. — Uma ga­rota não sai tantas vezes com um rapaz direito se a coisa não for séria.

— Talvez ele peça a mão dela hoje à noite! — foi o feliz pensamento de papai.

— É cedo demais. E ela é tão jovem.

— Ainda assim — murmurou ele — poderia acontecer. Tem que acontecer, pela graça de Deus.

Vovó riu de sua espreguiçadeira no canto da sala. O som parecia o das páginas de um livro antigo sendo viradas.

— Qual é a graça? — perguntou papai.

— Espere e verá — disse vovó. — Amanhã.

Papai olhou sem entender, mas vovó não disse mais nada.

 

— Bem, bem — disse papai na mesa do café. Inspe­cionou seus ovos mexidos com um olhar paternal e bondoso.

— Bem, bem, sim, senhor, na noite passada, na varanda, houve mais conversa em voz baixa. Como é o nome dele? Isak? Bom, se eu entendo um pouco da coisa, acho que Isak pediu Marianne em casamento na noite passada, foi sim, tenho certeza absoluta!

— Seria lindo — disse mamãe. — Um casamento na primavera. Mas é tão cedo.

— Olhe — disse papai, com uma lógica de boca cheia.

— Marianne é o tipo de moça que se casa cedo. Nós não podemos atrapalhar sua vida, não é?

— Pela primeira vez na vida acho que você está com a razão — disse mamãe. — Um casamento seria ótimo. Flo­res de primavera e Marianne linda naquele vestido que vi na loja Haydecker a semana passada.

Todos olharam ansiosos para a escada, esperando Ma­rianne aparecer.

— Desculpem — rouquejou vovó, erguendo os olhos de sua torrada. — Mas eu não falaria em livrar-me de Ma­rianne agora, se eu fosse vocês.

— E por que não?

— Porque sim.

— Porque o quê?

— Detesto ter que estragar seus planos — disse vovó, rindo. Gesticulou ironicamente com a cabeça pequena e bran­ca. — Mas enquanto vocês se preocupavam em casar Ma­rianne, eu a observava. Faz sete dias que eu olho esse rapaz quando ele chega de carro e buzina lá fora. Ele deve ser ator, especialista em disfarces ou coisa assim.

— O quê? — perguntou papai.

— É — disse vovó. — Porque um dia ele era louro, no outro, moreno. Na quarta-feira era um rapaz de bigode castanho, na quinta tinha cabelos crespos e vermelhos, e na sexta era mais baixo, com um Chevrolet todo desmontado em vez de um Ford.

Mamãe e papai estacaram por um minuto como se ti­vessem levado uma martelada bem atrás da orelha esquerda.

Finalmente, papai, com o rosto afogueado, gritou: — Você está querendo dizer... ? Você ficou aí sentada, mulher, e todos esses homens, e você...

— Você estava se escondendo o tempo todo — fuzilou vovó — para não estragar as coisas. Se você tivesse apare­cido, teria visto o que eu vi. Eu nunca disse nada. Ela vai sossegar. É que agora é o momento dela. Toda mulher passa por isso. É duro, mas elas sobrevivem. Um homem novo a cada dia faz maravilhas pelo ego de uma moça!

— Você, você, você, você, sua... — Papai engasgou-se, com os olhos arregalados, o pescoço inchado até não caber mais no colarinho. Caiu na cadeira, exausto. Mamãe ficou sentada, sem voz.

— Bom dia, todo mundo! — Marianne desceu correndo as escadas e sentou-se. Papai olhou para ela.

— Você, você, você, você, sua...! — tornou a acusar vovó.

Vou correr pela rua gritando, pensou papai com selvageria, quebrar o vidro do alarma de incêndio, apertar o botão, chamar os carros de bombeiros e as mangueiras. Ou talvez caia uma nevasca atrasada, e então eu deixo Marianne do lado de fora, para esfriar.

Mas não fez nem uma coisa nem outra. Como o calor na sala era excessivo para o que indicava o calendário da parede, todos saíram para o frescor da varanda enquanto Marianne ficava sentada, olhando para seu suco de laranja.

  1. O eterno adeus

Mas é claro que ia embora, não havia mais nada a fazer, a hora tinha chegado, a corda do relógio se tinha esgotado e ele estava indo para muito, muito longe. A mala estava arru­mada, os sapatos engraxados, o cabelo escovado, e tinha, inclusive, lavado atrás das orelhas. Agora, só precisava des­cer as escadas, sair pela porta da frente, subir a rua até a pequena estação onde o trem pararia só para ele. Depois, a cidade de Fox Hills, em Illinois, ficaria bem para trás, no passado. E ele iria em frente, talvez até Iowa, talvez até Kansas, talvez até fosse para a Califórnia; era um menino de doze anos. Na mala, levava uma certidão de nascimento que mostrava que nascera há quarenta e três anos.

— Willie! — chamaram de baixo.

— Já vou!

Levantou a mala. No espelho do quarto, viu um rosto que lembrava dentes-de-leão em junho, maças em julho e leite morno nas manhãs de verão. Como sempre, tinha um ar angelical e inocente, que não devia mudar nunca, para o resto de sua vida.

— Está quase na hora — disse a voz de mulher.

— Está bem! — e desceu as escadas, resmungando e sorrindo. Na sala, Anna e Steve o esperavam, muito bem vestidos.

— Cheguei! — gritou Willie na porta do vestíbulo. Anna parecia que ia chorar. — Oh, meu Deus, não é verdade que você vai embora, é, Willie?

— As pessoas estão começando a falar — disse Willie calmamente. — Já faz três anos que estou aqui, e quando as pessoas começam a falar eu sei que é hora de pegar meu chapéu e comprar uma passagem de trem.

— Mas é tão estranho. Eu não consigo entender. Assim tão de repente — disse Anna. — Willie, vamos sentir sua falta.

— Prometo que vou escrever todo Natal. Não me es­crevam.

— Foi um grande prazer, uma honra — disse Steve, sentado, com as palavras do tamanho errado na boca. — É pena que tenha sido preciso acabar. É pena que você tenha contado a verdade. É uma lástima que você não possa mais ficar.

— Vocês são a melhor família que eu já tive — disse Willie, um metro e vinte de altura, imberbe, com o sol no rosto.

Nesse momento, Anna começou realmente a chorar. — Willie, Willie. — Sentou-se e parecia que queria abraçá-lo mas tinha medo de fazê-lo agora; olhava para ele com um ar chocado e espantado, com as mãos vazias, sem saber o que fazer.

— Não é fácil ir embora — disse Willie. — Você se acostuma com as coisas, e então quer ficar. Mas não dá certo. Uma vez, eu tentei ficar depois que as pessoas come­çaram a desconfiar. As pessoas diziam: "Que coisa horrível! Todos esses anos brincando com nossos filhos inocentes sem que nós percebêssemos! Que horror!" E no final das contas, certa noite, tive simplesmente que ir embora da cidade. Não é fácil. Vocês sabem o quanto eu amo vocês dois. Obrigado por esses três anos maravilhosos.

Foram todos até a porta da frente. — Willie, para onde você vai?

— Não sei. Eu simplesmente começo a viajar. Quando vejo uma cidade com um ar verde e simpático, eu me instalo.

— E você vai voltar algum dia?

— Vou — disse com empenho em sua voz fina. — Daqui a uns vinte anos, a idade deve começar a aparecer em meu rosto. Quando isso acontecer, vou fazer uma grande viagem para visitar todas as mães e pais que já tive.

Ficaram na varanda, fresca em pleno verão, relutando em dizer as últimas palavras. Steve olhava fixamente para um olmo. — Com quantas famílias você já viveu, Willie? Quantas adoções?

Willie fez as contas. — São cinco cidades e cinco casais, e mais de vinte anos desde que comecei a viajar.

— Bem, não podemos nos queixar — disse Steve. — Melhor ter tido um filho durante trinta e seis meses do que nunca.

— Bem — disse Willie, e beijou Anna rapidamente, agarrou sua bagagem e partiu pela rua à luz verde do meio-dia sob as árvores, um menino muito novo, sem olhar para trás, correndo sempre.

 

Os meninos estavam jogando no campo de beisebol do parque quando ele chegou. Ficou algum tempo parado à sombra dos carvalhos, vendo-os atirar a bola branca no ar quente do verão. Viu a sombra da bola voar como um pás­saro preto por sobre a grama, viu as mãos se abrindo como bocas para aparar aquele pedaço veloz do verão, que parecia ser tão importante agarrar. As vozes dos meninos berravam. A bola brilhou no gramado aos pés de Willie.

Pegando a bola e deixando a sombra, pensou nos últi­mos três anos, agora gastos até a última gota, e nos cinco anos anteriores, e assim por diante, até o ano em que tinha realmente onze, doze, catorze anos, e as vozes dizendo: "O que há com o Willie?" "Será que seu filho Willie está com o crescimento atrasado, Sra. B.?" "Willie, você anda fuman­do charuto?" Os ecos morreram na luz e na cor do verão. A voz de sua mãe: "Hoje Willie faz vinte e um anos!" E mil vozes dizendo: "Volte aqui quando fizer quinze anos, meu filho; aí vou ver se posso lhe arranjar um emprego".

Contemplou a bola em sua mão trêmula, como se fosse sua vida, uma bola de intermináveis anos enrolados em voltas e mais voltas, que sempre acabavam em seus doze anos. Ouviu os meninos se aproximando de onde estava; sentiu-os bloquear o sol, e eles eram mais velhos, de pé à sua volta.

— Willie! Onde é que você está indo? — Chutaram sua mala.

Como eram altos na luz clara da manhã! Nos últimos meses, parecia que o sol tinha passado a mão por cima de suas cabeças, com um gesto, e que eles tinham virado metal quente, derretendo e esticando para cima; pareciam caramelo dourado, puxado para o céu por uma imensa força de gravi­dade, com treze, catorze anos, olhando para baixo para encarar Willie, sorrindo, mas já começando a rejeitá-lo. Desta vez, tinha começado havia quatro meses:

— Vamos escolher os times. Quem vai ficar com Willie?

— Ah, não, Willie é pequeno demais; a gente não joga com "crianças"!

E corriam adiante dele, atraídos pela lua e o sol e as estações passageiras de folha e vento, e ele continuava com doze anos e deixava de ser um deles. E as outras vozes retomavam o antigo refrão, terrivelmente familiar e cruel: "É melhor dar umas vitaminas para o garoto, Steve". "Anna, há muita gente baixa na sua família?" E o punho gelado tornando a atingir o coração, quando viu que as raízes pre­cisavam ser arrancadas mais uma vez depois de tantos anos bons com a "família".

— Willie, aonde você está indo?

Sacudiu a cabeça. Estava novamente em meio aos rapa­zes altos que o cercavam como torres, fazendo sombra e parecendo gigantes inclinados para beber água em um be­bedouro.

— Vou passar uns dias visitando um primo.

— Oh!

Houve um tempo, um ano atrás, em que se importariam muito com sua ausência. Mas agora havia apenas curiosidade por sua bagagem, o fascínio por trens, viagens e lugares distantes.

— Que tal uma partidinha rápida? — disse Willie.

Ficaram com um ar de dúvida, mas em vista das circuns­tâncias concordaram. Ele largou a mala e correu; a bola bran­ca subiu ao sol, voou na direção dos rostos brancos que se queimavam no campo distante, subiu novamente ao sol, rá­pida, a vida fluindo e refluindo. Aqui, ali! Sr. e Sra. Robert Hanlon, Creek Bend, Wisconsin, 1932, o primeiro casal, o primeiro ano! Aqui, ali! Henry e Alice Boltz, Limeville, Iowa, 1935! A bola voando. Os Smith, os Eaton, os Robinson! 1939! 1945! Marido e mulher, marido e mulher, casal sem filhos, sem filhos, sem filhos! Uma batida nesta porta, outra naquela.

— Desculpe. Meu nome é William. Queria saber se...

— Quer um sanduíche? Entre, sente-se. De onde você vem, meu filho?

O sanduíche, um copo grande de leite, os sorrisos, os gestos, a conversa descontraída e confortável.

— Parece até que você andou viajando muito, meu filho. Você fugiu de algum lugar?

— Não.

— Você é órfão, menino? Outro copo de leite.

— Sempre quisemos ter filhos. Nunca conseguimos. E nunca soubemos por quê. É assim. Bom, está ficando tarde, meu filho. Você não acha melhor voltar logo para casa?

— Não tenho casa.

— Um menino como você? Com as orelhas limpas? Sua mãe vai ficar preocupada.

— Não tenho casa nem família em lugar nenhum. Será que... será... que eu posso dormir aqui hoje à noite?

— Escute, meu filho, bem, eu não sei. Nunca pensamos em ter... — dizia o marido.

— Temos frango para o jantar de hoje — dizia a espo­sa. — Dá para um convidado, para termos companhia...

E os anos vinham e voavam, as vozes, os rostos, as pessoas, e sempre as mesmas primeiras conversas. A voz de Emily Robinson, em sua cadeira de balanço em plena noite escura de verão, na última noite que passou com ela, na noite em que revelou seu segredo, a voz dela dizendo:

— Eu costumo olhar para os rostos das crianças que passam. E às vezes penso que é uma pena, uma pena que todas essas flores precisem ser cortadas, que todas essas luzes brilhantes precisem ser apagadas. Que pena que todos esses meninos que se vêem nas escolas ou que passam correndo tenham que ficar altos e feios, enrugados e grisalhos ou calvos, e finalmente, ossos e respiração rouca, tenham que morrer e ser enterrados. Quando eu os ouço rir, não consigo acreditar que vão acabar seguindo o mesmo caminho que eu. No entanto, já estão seguindo. Ainda me lembro do poema de Wordsworth: "Quando, de repente, eu vi um bando, uma hoste de asfódelos dourados, Junto ao lago, sob as árvores, Flutuando e dançando na brisa". É assim que eu vejo as crianças, por mais cruéis que às vezes sejam, por mais mesquinhas que eu saiba que possam ser, mas ainda sem exibir a mesquinharia em volta dos olhos ou no fundo do olhar, sem ainda estar cheios de cansaço. Têm tamanha fome de tudo! Eu acho que é isso que faz falta nas pessoas mais velhas, a fome de viver, a ânsia que desaparece em nove de cada dez adultos, o frescor, tanto impulso e tanta vida perdidos. Eu gosto de assistir à saída da escola todo dia. É como se alguém atirasse um monte de flores pelo portão da escola. Qual é a sensação, Willie? Como é que alguém que é sempre jovem se sente? Qual é a sensação de parecer sempre uma moeda de prata recém cunhada? Você é feliz? Está tão bem quanto parece?

A bola desceu zumbindo do céu azul e ferroou sua mão como um grande inseto claro. Recolhendo-a, ouviu a memó­ria dizendo:

— Usei os recursos que eu tinha. Depois da morte de meus pais, depois que descobri que não conseguia um em­prego de adulto em lugar nenhum, tentei os circos, mas eles riram: "Meu filho", disseram, "você não é um anão, e mes­mo que fosse, você parece um menino! Queremos anões com cara de anão! Desculpe, rapaz". Então eu fui embora, e co­mecei a viajar, pensando: O quê eu era? Um menino. Eu parecia um menino, tinha voz de menino, então eu podia continuar a ser um menino. Não adiantava tentar resistir. Não adiantava gritar. O que eu podia fazer? Que trabalho? E então, certo dia, vi um homem em um restaurante olhando retratos dos filhos de outro homem. "É claro que eu queria ter filhos", ele disse, "é claro que eu queria." Ele balançava a cabeça o tempo todo. E eu estava sentado perto dele, com um sanduíche nas mãos. Fiquei sentado lá, imóvel! Naquele momento, percebi qual ia ser meu trabalho pelo resto de minha vida. Havia um trabalho para mim, afinal. Tornar felizes pessoas solitárias. Manter-me ocupado. Brincar para sempre. E soube que precisava brincar para sempre. Distri­buir jornais, fazer algumas entregas, às vezes cortar a grama dos jardins. Mas não havia jeito de trabalhar de verdade. Tudo o que eu precisava fazer era ser um filho carinhoso para a mãe e um orgulho para o pai. Virei-me para o homem sentado no balcão perto de mim. "Desculpe", eu disse. Sorri para ele...

— Mas, Willie — disse a Sra. Emily, há muito tempo —, você não se sentia só? Nunca queria... as coisas... que os adultos queriam?

— Resolvi esse problema sozinho — disse Willie. — Pensei: Sou um menino, vou ter que viver num mundo de meninos, ler livros juvenis, jogar jogos de menino, afastar-me de todo o resto. Não posso ser as duas coisas ao mesmo tempo. Só posso ser uma coisa jovem. Então, passei a brincar disso. Não foi fácil. Houve ocasiões... — ficou em silêncio.

— E a família com quem você vivia, eles nunca sou­beram?

— Não. Contar para eles estragaria tudo. Eu dizia que estava fugindo; deixava que verificassem nos canais oficiais, junto à polícia. Então, como não havia registro, eu deixava que eles decidissem me adotar. Isso era o melhor de tudo; enquanto eles não desconfiavam. Mas ao fim de três anos, ou cinco, eles começavam a suspeitar, ou aparecia um caixeiro viajante, ou um empregado do circo me via, e era o fim. Sempre tinha de acabar.

— E você se sente feliz? É bom ser criança por mais de quarenta anos?

— É um modo de vida, como se diz. E quando você faz outras pessoas felizes, você se sente quase feliz também. Tenho um trabalho a fazer e faço. De qualquer modo, vou entrar na segunda infância daqui a alguns anos. Todas as febres vão me deixar, todas as coisas não preenchidas e quase todos os sonhos. Aí eu talvez possa relaxar, e represen­tar meu papel até o fim.

Lançou a bola de beisebol pela última vez e interrom­peu seu devaneio. Depois, correu para pegar a bagagem. Tom, Bill, Jamie, Bob, Sam — os nomes percorreram seus lábios. Eles ficaram sem jeito com seu cumprimento solene.

— Ei, Willie, afinal você não está indo para a China, e nem para Timbuctu.

— É verdade. É mesmo. — Willie não se moveu.

— Até logo, Willie, até a semana que vem!

— Até logo, até logo!

E ele partiu novamente com sua mala, olhando para as árvores, deixando os meninos e a rua em que tinha morado, e na hora em que virava a esquina um apito de trem soou e ele começou a correr.

A última coisa que viu e ouviu foi uma bola branca sendo atirada contra um muro alto, indo e voltando, indo e voltando e duas vozes gritando um refrão enquanto a bola subia, descia e subia novamente no céu, um refrão que pare­cia o grito de aves emigrando para o sul.

De manhã cedo, com o cheiro do nevoeiro e do metal frio, com o cheiro de ferro do trem a toda a volta e uma noite inteira de viagem sacudindo os ossos e o corpo, e o cheiro do sol por trás do horizonte, acordou e viu uma cidadezinha acabando de acordar. Luzes se acendiam, vozes mansas mur­muravam, um sinal vermelho balançava para a frente e para trás no ar frio. Havia o silêncio sonolento em que os ecos são dignificados pela clareza, em que os ecos se desnudam e aparecem isolados e nítidos. Um bilheteiro apareceu, som­bra nas sombras.

— Moço — disse Willie. O bilheteiro parou.

— Que cidade é essa? — sussurrou o menino no es­curo.

— Valleyville.

— Quantos habitantes?

— Dez mil. Por quê? Você vai descer aqui?

— Parece verde.

Willie contemplou longamente a cidade na manhã fria.

— Parece uma cidade boa e calma — disse Willie.

— Meu filho — perguntou o bilheteiro —, você sabe para onde está indo?

— Para cá — respondeu Willie, e se levantou em silên­cio na manhã quieta, fria, cheirando a ferro, no escuro do trem, com um farfalhar e um repelão.

— Espero que você saiba o que está fazendo, rapaz — disse o bilheteiro.

— Sim, senhor — disse Willie. — Eu sei o que estou fazendo.

Desceu pelo corredor escuro, recebeu a bagagem das mãos do bilheteiro, e saiu na manhã fumarenta, fria, que mal começava a clarear. Ficou algum tempo a contemplar o bilheteiro e o trem de metal negro contra as poucas estrelas que restavam. O trem soprou um longo apito lamentoso, os bilheteiros gritaram ao longe na plataforma, os vagões deram um solavanco, e seu bilheteiro especial acenou e sorriu para o menino, o menino pequeno, com a grande mala, que gritava alguma coisa para ele, ao mesmo tempo em que o apito voltava a soar.

— O quê? — gritou o bilheteiro, com a mão em con­cha junto ao ouvido.

— Deseje-me boa sorte! — gritou Willie.

— Boa sorte, meu filho — disse o bilheteiro, acenando, com um sorriso. — Boa sorte, rapaz!

— Obrigado — disse Willie, em meio ao grande rumor do trem, em meio ao vapor e ao barulho.

Acompanhou com os olhos o trem negro até ele desa­parecer completamente. Não se moveu enquanto o trem partia. Ficou parado, quieto, um menino de doze anos na plataforma gasta de madeira, e só depois de três minutos completos virou-se afinal para fazer frente às ruas vazias.

Então, enquanto o sol se erguia, começou a andar muito depressa para se manter aquecido, entrando na nova cidade.

  1. Os frutos dourados do sol

— Para o sul — disse o capitão.

— Mas simplesmente não há direções aqui no espaço — respondeu um tripulante.

— Quando você viaja rumo ao sol — disse o capitão — e tudo vai ficando amarelo e quente e abafado, você só pode estar indo em uma direção. — Fechou os olhos e pensou na terra enevoada, quente e distante, respirando de leve. — Para o sul. — Balançou lentamente a cabeça, confirmando.

— Para o sul.

O foguete era o Copa de Oro, também chamado Prometheus e Icarus, e seu destino era realmente o próprio sol abrasador. Com excelente disposição, os tripulantes haviam armazenado duas mil garrafas de soda limonada e mil de cerveja especial para essa jornada ao vasto Saara. E agora que o sol fervia, cada vez mais perto, lembravam-se de versos e citações:

— "Os frutos dourados do sol"?

— Yeats.

— "Deixai de temer o calor do sol"?

— Shakespeare.

— "Taça de ouro"? Steinbeck. "O cântaro de ouro"? Stephens. E o pote de ouro no final do arco-íris? E que tal este nome para a nossa missão, Arco-íris, é claro!

— Temperatura?

— Quinhentos graus centígrados!

O capitão olhou para fora pelo vidro escuro da cabine de comando, e lá estava realmente o sol. Chegar até o sol, tocá-lo e roubar parte dele para sempre era sua idéia única e serena. Nessa nave combinavam-se espíritos delicados e friamente práticos. Por corredores de gelo e frio intenso, soprava o inverno de amoníaco e voavam flocos de neve em turbilhão. Qualquer centelha daquela vasta fornalha que ardia além do casco espesso da nave, qualquer bafo de calor que conseguisse se infiltrar, encontraria o inverno, ressonando aqui como as horas mais frias de fevereiro.

O áudio-termômetro murmurou no silêncio ártico: — Temperatura: mil graus!

Caindo, pensou o capitão, como um floco de neve no colo de junho, nos dias quentes de julho e nas temperaturas tórridas e sufocantes de agosto.

— Mil e quinhentos graus centígrados!

Sob camadas de gelo, motores giravam, bombeando a quinze mil quilômetros por hora os refrigerantes que circu­lavam pelas serpentinas cobertas de geada.

— Dois mil graus centígrados! Meio-dia. Verão. Julho.

— Dois mil e quinhentos graus centígrados!

E finalmente o capitão falou, com todo o silêncio da viagem na voz:

— Agora, estamos chegando ao sol.

Os olhos de todos, ao pensarem no que estava aconte­cendo, pareciam ouro líquido.

— Quatro mil graus!

É estranho como um termômetro mecânico pode assu­mir um tom excitado, apesar de possuir apenas uma voz metálica desprovida de emoção.

— Que horas são? — perguntou alguém. Todos tiveram que sorrir.

Porque agora havia apenas o sol, o sol e o sol. Era todo o horizonte, era todas as direções. Queimava os minutos, os segundos, as ampulhetas, os relógios; consumia em chamas todo o tempo e toda a eternidade. Queimava as pálpebras e os humores do mundo escuro por trás das pálpebras, a retina, o cérebro oculto; queimava o sono, as doces memó­rias do sono e dos frescores do anoitecer.

— Cuidado!

— Capitão!

Bretton, o primeiro-imediato, caiu estirado no convés tomado pelo inverno. Seu traje protetor deixou escapar com um assovio, por um rasgão, seu calor, seu oxigênio e sua vida, num jorro de vapor congelado.

— Depressa!

Por dentro da viseira de plástico do capacete de Bretton, cristais leitosos já se formavam em estruturas invisíveis. In­clinaram-se para ver.

— Um defeito estrutural no traje, capitão. Está morto.

— Congelado.

Olharam todos para o outro termômetro, que acompa­nhava o desenrolar do inverno dentro da nave coberta de geada. Quinhentos graus abaixo de zero. O capitão contem­plou a estátua congelada e os cristais cintilantes que se for­mavam, cobrindo-a. Ironia das mais amargas, pensou; um homem que se defende do fogo e morre de frio.

O capitão afastou-se. — Não há tempo. Não há tempo. Podem deixá-lo aí mesmo. — Sentiu sua língua movendo-se.

— Temperatura?

Os mostradores deram um salto de dois mil graus.

— Olhem. Olhem só!

O gelo estava começando a derreter-se.

O capitão, com um movimento brusco da cabeça, olhou para o teto.

Como se um projetor de cinema lançasse um único quadro nítido da memória na tela de sua cabeça, sua mente focalizou inapelavelmente uma cena tirada de sua infância.

Quando menino, nas manhãs do início da primavera, debruçava-se na janela de seu quarto, no ar cheirando a neve, para ver o sol desfazendo os últimos pingentes de gelo do inverno. Vinho branco gotejando, o sangue do mês de abril, ainda frio mas cada vez mais ameno, caía daquela lâmina clara de cristal. Minuto a minuto, o punhal de de­zembro ia ficando menos perigoso. E então, finalmente, o pingente de gelo caía com o som de uma única batida de sino no chão coberto de cascalho.

— A bomba auxiliar quebrou, capitão. É a refrigeração. O gelo está indo embora!

Uma torrente de chuva morna caía sobre eles. O capitão balançou a cabeça com violência, de um lado para o outro.

— Você está conseguindo ver o defeito? Não fique aí parado, por Deus! Não temos tempo!

Os homens se apressaram; o capitão abaixou-se sob a chuva morna, praguejando, sentiu suas mãos percorrerem a máquina fria, sentiu-as procurar e escavar, e enquanto tra­balhava viu o futuro sendo-lhes negado por um simples sopro. Viu a pele destacando-se da fuselagem do foguete, os homens, assim desprotegidos, correndo, correndo, as bocas abertas gritando sem produzir nenhum som. O espaço era um poço negro coberto de musgo em que a vida afogava seus urros e seus terrores. Por mais que o grito seja forte, o es­paço o abafa antes mesmo de deixar a garganta. Homens correndo desorientados, formigas em uma caixa de fósforos em chamas; a nave virando lava gotejante, uma nuvem de vapor, nada!

— Capitão?

O pesadelo se dissipou.

— Aqui. — Continuou trabalhando em meio à chuva morna e fraca que caía do convés superior. Mexeu na bomba auxiliar. — Diabos! — encontrou o cabo de alimentação. Quando chegar, vai ser a morte mais rápida de toda a his­tória da morte. Num instante, os gritos; um clarão e depois os bilhões e bilhões de toneladas de espaço-fogo dariam apenas um sussurro, inaudível no vácuo. Estourariam como pipocas em uma fornalha, enquanto seus pensamentos per­sistiriam por alguns segundos no ar incandescente, depois de seus corpos terem virado brasas e gás fluorescente.

— Diabos!   — Golpeou a bomba auxiliar com uma chave de fenda. — Deus do céu! — Estremeceu. A aniquilação completa. Cerrou os olhos e os dentes. Meu Deus, pensou, estamos acostumados a mortes mais fáceis, medidas em minutos e horas. Até mesmo vinte segundos seriam agora uma morte lenta, se comparada a esse louco faminto, espe­rando para nos devorar!

— Capitão, vamos embora ou ficamos?

— Apronte a Taça. Venha cá, termine esse conserto. Agora!

Virou-se e colocou as mãos no mecanismo de comando da imensa Taça; enfiou os dedos na luva de controle remoto. Com uma ligeira torção dos dedos, comandava a mão gigan­tesca, com dedos gigantescos de metal, que traziam no inte­rior da nave. Agora, agora, a grande mão de metal deslizou para fora, levando a imensa Copa de Oro para mergulhá-la na fornalha ardente, no corpo incorpóreo e na carne impalpável do sol.

Um milhão de anos atrás, pensou o capitão, muito de­pressa, enquanto comandava a mão e a Taça, há um milhão de anos um homem nu em uma trilha solitária do norte viu um raio atingir uma árvore. E enquanto seus compa­nheiros de tribo fugiam, pegou com as mãos nuas um tição, queimando a carne dos dedos, e carregou-o, correndo em triunfo, abrigando-o da chuva com o corpo, para sua caverna, onde lançou-o com uma grande risada em um monte de folhas, ofertando o verão para seu povo. Seus companheiros de tribo finalmente foram se aproximando, trêmulos, do fogo, e todos estenderam as mãos encolhidas e sentiram a chegada da nova estação à sua caverna; perceberam que aquele pequeno ponto amarelo trazia a mudança do tempo e, finalmente, também eles sorriram, nervosamente. E conquistaram o dom do fogo.

— Capitão!

A mão enorme levou quatro segundos completos para levar a Taça vazia até o fogo. E aqui estamos de novo, hoje, em outra trilha, pensou o capitão, tentando recolher uma taça de gases raros e vácuo, um punhado de fogo diferente, com o qual vamos correr de volta pelo espaço frio, iluminan­do nosso caminho, levando para a terra o dom de um fogo que pode arder para sempre. Por quê?

Ele já sabia a resposta, antes mesmo de perguntar.

Porque os átomos que trabalhamos com nossas mãos, na terra, são insignificantes; a bomba atômica é insignificante e pequena, nosso conhecimento é insignificante e pequeno, e apenas o sol sabe realmente o que queremos saber, só o sol possui o segredo. E além disso, é uma aventura, um risco, é uma grande façanha vir até aqui, atingir o objetivo, pegar o que se quer e sair correndo. Na verdade, não havia motivo, exceto o orgulho e a vaidade dos pequenos insetos humanos, que esperavam ferroar o leão e escapar de suas mandíbulas. Meu Deus, vamos dizer "Conseguimos!" E aqui está nossa taça de energia, fogo, vibração, dê-lhe o nome que quiser, que pode fornecer energia para nossas cidades, impelir nossos navios, iluminar nossas bibliotecas, bronzear nossos filhos, assar nosso pão diário, e ferver o conhecimento que temos de nosso universo por uns mil anos, até que fique no ponto. Aqui está, homens da ciência e dá religião: podem beber desta taça! Podem aquecer-se depois da noite de ignorância, das longas neves da superstição, dos ventos gelados da descrença e do grande medo da escuridão que há em cada homem. É assim: estendemos nossa mão com a gamela do mendigo...

— Ah...

A Taça mergulhou no sol. Recolheu um pouco da carne de Deus, do sangue do universo, do pensamento ardente, da cegante filosofia que se manifestou e gerou uma galáxia, que manteve e fez mover-se planetas, criou e destruiu vidas e modos de vida.

— Agora, devagar — murmurou o capitão.

— O que vai acontecer quando a trouxermos para dentro? Todo esse calor extra, agora, a esta altura, capitão?

— Só Deus sabe.

— A bomba auxiliar já está inteiramente consertada, capitão.

— Ligue!

A bomba entrou em ação. — Agora vou fechar a tampa da Taça e trazê-la para dentro, bem devagar.

A mão magnífica do lado de fora da nave estremeceu, imagem ampliada de seu próprio gesto, e penetrou com um silêncio lubrificado no interior do foguete. A Taça, com a tampa fechada, gotejando flores amarelas e estrelas brancas, deslizou até as profundezas do corpo do foguete. O áudio-termômetro gritou. O sistema de refrigeração disparou; o amoníaco líquido latejava nas paredes do foguete como san­gue no crânio de um louco enfurecido.

Fechou-se a escotilha externa.

— Pronto.

Aguardaram. O pulso do foguete acelerou-se. O coração da nave se apressou, bateu, e tornou a se apressar, com a Taça de ouro bem guardada em seu interior. O sangue frio fluía, percorrendo todo o corpo do foguete.

O capitão expirou lentamente.

O gelo parou de gotejar do teto. Tornou a solidificar-se.

— Vamos embora daqui.

O foguete deu a volta e partiu a toda a velocidade.

— Ouçam.

O coração do foguete estava batendo mais devagar. Os mostradores giravam, as agulhas zumbiam, invisíveis. A voz do termômetro cantava a mudança das estações. Todos pen­savam juntos: vamos embora, para longe do fogo e das chamas, do calor e da fusão, do amarelo e do branco. Para o frio e a escuridão. Dentro de vinte horas, eles até mesmo poderiam desmontar alguns dos refrigeradores e deixar o inverno morrer. Logo estariam atravessando uma noite tão fria que talvez fosse necessário utilizar a nova fornalha do foguete, usar o calor do fogo que carregavam como se fosse uma criança ainda por nascer.

Estavam voltando para casa.

Estavam voltando, e o capitão teve algum tempo, en­quanto cuidava do corpo de Bretton, que jazia em um banco de neve branca, para lembrar-se de um poema que havia escrito muitos anos antes:

 

"Às vezes eu vejo o sol, uma árvore em chamas,

Seus frutos dourados pendendo brilhantes no ar sem ar,

Suas maçãs bichadas pelo homem e pela gravidade,

A adoração emanando delas por toda parte,

Enquanto o homem vê o sol como árvore em chamas..."

 

O capitão ficou sentado durante longo tempo junto ao corpo, sentindo muitas coisas diferentes. Estou triste, pen­sou, e estou me sentindo bem, estou me sentindo como um menino que volta para casa da escola levando uma braçada de dentes-de-leão.

— Bem — disse o capitão, sentado, com os olhos fe­chados, suspirando. — Para onde vamos agora, hein, para onde estamos indo? — Sentiu seus homens de pé ou senta­dos à sua volta, passado o terror, com a respiração de volta ao normal. — Quando você viaja muito, chega ao sol, toca nele, demora-se um pouco e depois vai embora correndo, para onde é que você vai? Quando se deixa para trás o calor, a luz do meio-dia e o mormaço, para onde se vai?

Os outros esperaram que ele mesmo dissesse. Esperaram que ele reunisse todo o frescor, a brancura, o conforto e o clima refrescante da palavra que tinha em mente, e viram-no separar a palavra em sua boca como um pedaço de sorvete, fazendo-a rolar gentilmente na língua.

— Só há uma direção no espaço para se sair daqui — disse finalmente.

Os outros aguardavam. Esperaram enquanto o foguete corria veloz pela escuridão fria, afastando-se da luz.

— Para o norte — murmurou o capitão. — O norte. E todos sorriram, como se um vento houvesse surgido de repente no meio de uma tarde quente.

 

                                                                                Ray Bradbury  

 

                      

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