Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS GALILEUS
Segunda Parte
Se não amasse Maria tanto como amava, José sentir-se-ia tentado a deixar Alexandria e voltar para Jerusalém, em vez de ficar ali para testemunhar o inevitável final da trágica corrida em que ela se empenhara. Mas, amando-a, não podia abandoná-la na altura em que ela talvez precisasse mais dele.
E, depois, havia Demetrius. O fabricante de liras sentia-se cada vez mais fraco, o seu corpo estava cada vez mais inchado e distorcido pela pletora e pela hidropisia, que piorara muito durante os meses de inverno. Na realidade, nem José nem ninguém poderia fazer muito por ele. Quando o fluido acumulado ameaçava afogar Demetrius nas secreções do seu próprio corpo, José ousou inserir calamos afiados no ventre tremendamente distendido, para o fazer sair, mas ambos sabiam que se tratava de uma medida temporária.
Depois disso, enquanto o velho se encontrava estendido no leito, começaram a falar de Maria. O jogo perigoso de manter Plotinus e Gaius Flaccus na expectativa, sem que se engalfinhassem, tomava-lhe a maior parte do tempo, pelo que José só raramente a via quando visitava Demetrius. - Sabes mais alguma coisa sobre o que Maria tenciona fazer? perguntou-lhe Demetrius.
- Não. Mas ela disse-me uma vez que toda a Alexandria saberá da hora da sua vingança.
- Então ela deve planear matá-lo publicamente. E, naturalmente, agradar-lhe-ia a maneira mais dramática de executar a vingança. Mas como saberia toda a Alexandria da hora?... Por Diana! exclamou. - O festival da Grande Dioni-síaca, evidentemente.
- Porquê a Grande Dionisíaca?
- É a maior festividade do ano em Alexandria. As pessoas enlouquecem durante três dias inteiros.
- Mas os alexandrinos adoram Dionisos? protestou José.
- Dionisos era originalmente o nome de Baco, explicou Demetrius. - Mas aqui, no Egipto, é considerado quase o mesmo que Serapis, que, como sabes, é o deus conjunto de Osiris e Apis, o boi sagrado. O seu culto alia muitas religiões, de modo que todas se reúnem neste festival anual em sua honra. Dá a toda a gente um pretexto para se embebedar e festejar o princípio da primavera com uma série de produções dramáticas. Recordo-me que Maria me disse que iam apresentar as Baccbae1 de Eurípedes, prosseguiu. - Nos antigos festivais das Grandes Dionisíacas, o deus é representado por um homem e tradicionalmente morto e ressuscitado dos mortos. Claro, a morte é apenas simbólica, tal como a ressurreição, mas, há muitos anos, um animal, e por vezes um homem que representava o deus, era realmente despedaçado pelas Bacantes no ponto culminante da cerimónia.
- Pensas que...? Mas isso seria fantástico.
- Não mais fantástico do que Maria pensar que pode matar um romano proeminente como Gaius Flaccus e escapar às consequências, disse Demetrius pesadamente. - Sim, aposto que é isso que ela vai fazer. Vai provavelmente conseguir que Gaius Flaccus personifique o deus; ele é suficientemente vaidoso para fazer exactamente o que ela quer. Em certas Dionisíacas celebra-se um casamento ritual entre Dionisos e Afrodite2 mesmo antes do climax do festival, quando o deus é morto e se ergue dos mortos. E em Alexandria quem
1 Bacchae. As Bacantes, tragédia de Eurípedes que tem como assunto o castigo e a morte de Pentcu, rei de Tebas, esquartejado pelas bacantes - sacerdotizas que celebravam os mistérios do culto de Baco - por se ter oposto ao culto de Baco. É uma das melhores tragédias no notável poeta grego (480-405 a. C.) (N. do T.)
2 Afrodite, deusa grega, da beleza, do amor e da vida universal. (N. do T.)
mais seria escolhido para o papel de Afrodite senão Maria?
- Poderemos impedi-la?
Demetrius abanou a cabeça. - Se a acusares às autoridades, será aprisionada ou executada. E já sabes como é inútil discutir com ela.
- Mas seria um assassínio.
- Assassínio? Não me parece. Segundo as leis dos judeus, um homem que seduz uma rapariga deve ser morto. Tradicionalmente, o pai ou os irmãos da rapariga tinham o direito de matar. Não tendo pai nem irmãos, Maria decidiu arrogar-se esse direito.
- Os tribunais romanos não reconheceriam tal direito, objectou José. - Especialmente quando o homem pertence à classe dominante.
- Não, confessou Demetrius. - Creio que não. Por isso, é contigo conseguir que ela fuja quando tiver terminado o seu acto.
- Comigo! - José olhou-o, irritado. - Porquê comigo?
- Se Gaius Flaccus fosse judeu, seria teu dever como noivo dela atirar a primeira pedra para a sua execução. Se ainda a amas, deves fazer com que ela fuja em segurança, para onde os romanos não possam fazer-lhe mal.
- Mas não podíamos voltar para Jerusalém ou para qualquer outro ponto do Império Romano.
- Porque não para a índia? Podes facilmente escapar de Alexandria pelo Nilo e pelo Canal que leva ao Mar Vermelho. Até um barco pequeno poderia chegar facilmente a Adana, na embocadura, e Hadja poderia arranjar refúgio para ambos entre as tribos do deserto. Ou podias tomar um barco de Adana para as cidades da costa indiana. Com a ajuda de Jivaka, terias êxito como médico em qualquer das cidades indianas.
Amaria suficientemente Maria para a ajudar a cometer um crime? perguntou José a si próprio. Porque era disso que se tratava. Não podia enganar-se a si próprio, pensando que era algo diferente. E amá-lo-ia suficientemente para desistir para sempre das belas terras da Galileia e da Judeia, das riquezas que tinha em Jerusalém, da sua elevada posição entre o seu povo? Sem dúvida, pensou, homem algum tivera jamais de fazer tão difícil escolha. E, contudo, a ideia de viver sem Maria, agora que a reencontrara, era desoladora, na realidade.
- Entreguei-te um pesado fardo, José. - Demetrius pousou a mão no ombro do jovem. - Mas não viverei muito tempo mais e gostava de estar certo de que alguém em quem confio olharia por Maria, depois de eu morrer. Mas não decidas já. Pensa no caso e fala com Bana Jivaka. A possibilidade de viver na costa do Maiabar pode ser mais agradável do que pensas, apesar de amares a tua terra. E não podes fazer parar Maria, agora. Pensa muito, José, e dá-me a tua resposta dentro de dias.
Antes de tomar uma decisão, José foi ter com Philon o Judeu. O chefe dos judeus era reconhecido como uma alta autoridade, não só nas leis do povo judeu, mas também nas dos romanos, e, especialmente, na ligação entre as leis romana e judaica. Como não podia mencionar o nome de Maria, e assim revelar os seus planos, José foi forçado a pôr o caso a Philon como se fosse o hipotético caso de uma rapariga sem pais nem irmãos, que tinha sido violentada.
- Estava noiva? - perguntou Philon.
- Sim, disse José, mas o noivado não era do conhecimento público.
- Isso não altera nada, disse Philon. - O acto teve lugar na cidade ou no campo?
- Na villa de Pontius Pilatus em Tiberíades.
O jurista franziu a testa. - Segundo a lei judaica, a rapariga, nessas circunstâncias, deveria ter gritado a pedir auxílio. Portanto, deveria ser lapidada conjuntamente com o homem, visto que é culpada do mesmo acto de adultério.
- Mas ela estava inconsciente na altura.
- Então está isenta de culpa, disse o jurista imediatamente. - O sedutor deverá ser morto sem que o seu executor incorra em responsabilidades. Não lhe deverá ser permitido que viva um dia, nem sequer uma hora.
- Às mãos de quem deverá morrer, então?
- A lei é muito clara nesse ponto, também, disse Philon. Os acusadores deverão ser os primeiros a lançar uma pedra. Se o pai ou os irmãos não mataram o homem, o tribunal poderá ordenar que isso seja feito.
- Mas sendo a rapariga órfã, é a própria acusação, objectou José. - Que fazer?
- Esse é um ponto difícil, confessou Philon. - Contudo, as leis da Grécia, tal como são interpretadas aqui no Egipto, dão à órfã o direito de agir por si própria. Em minha opinião, ela tem o direito de atirar a primeira pedra.
- Ao ponto de planear a morte desse homem por suas próprias mãos?
Philon cofiou a barba. - Estás a pedir-me que faça a distinção entre assassínio e o direito de executar, o que é difícil. Mas a lei é clara ao afirmar que um homem que seduz uma virgem prometida deve morrer. Tradicionalmente, tem sido sempre lapidado até à morte pelos seus acusadores, mas, se eu fosse juiz desse caso, ordenaria que a vida do culpado deve pertencer à mulher que seduziu. - Olhou para José atentamente: - Não se trata de um caso puramente hipotético, pois não?
- Não. Mas não posso dar-te detalhes, porque a mulher em questão se encontra em Alexandria, presentemente.
- E o homem a quem estava prometida?
- Sou eu, confessou José. - Mas o criminoso não é judeu; é um romano. E tu sabes bem que os tribunais romanos não o acusariam de culpas perante uma judia.
- Há uma lei mais alta que a de Roma, disse Philon em tom grave, a lei do Todo Poderoso. Se tivesses morto o homem quando isso sucedeu, José, judeu algum do mundo te acusaria de assassínio.
- Mas os tribunais romanos ter-me-iam crucificado, objectou José. - Um homem deverá causar a sua própria morte só para castigar o culpado de um crime? Quem teria ganho com isso?
- A lei ter-te-ia apoiado, e a lei está acima do próprio homem.
- Não reconheço lei alguma que me diga que eu devo matar o meu próximo, disse José firmemente. - As tábuas de Moisés dizem: Não matarás, e, enquanto eu viver, não causarei voluntariamente a morte a homem algum, seja qual for o seu crime. Prendam-no como castigo; uma tal vida deverá ser pior do que a morte. - Voltou-se para sair, mas Philon o Judeu disse: - Espera um pouco, José. Talvez tenhas razão, não sei. O que dizes aproxima-se muito dos ensinamentos daquele homem chamado Jesus.
- Jesus? É um nome vulgar entre os judeus.
- Mas ele não é um homem vulgar, disse Philon. - Este Jesus é um jovem mestre da Nazaré, que agora prega nas cidades da Galileia. Seguiu João mas não é um fanático que procura agitar o povo contra Roma. Em vez disso, ensina a paciência, o amor pelo próximo, e a piedade de Deus para perdoar os pecados.
- Esdras e Enoch1 dizem mais ou menos o mesmo, recordou-lhe José.
- Não há nada de novo no que ele diz, confessou Philon. - Poderia ser o filósofo grego Sócrates a ensinar na nossa língua, com excepção de que ele é jovem e ninguém consegue entender de onde lhe vem a sabedoria.
- Porque estás interessado nele?
- Ainda não te contei tudo, disse Philon em tom grave. - Muita gente da Galileia acredita que ele é o Messias.
- Os galileus sempre tiveram tendência para seguir falsos chefes, objectou José. - Já o fizeram antes.
- Mas ainda não viste esse mestre de Nazaré, José. Como podes saber que é falso?
- O Messias não viria como um obscuro mestre da Galileia, disse José positivamente. - Nem pensar nisso.
- Tens razão, sem dúvida, concordou Philon, pensativo. - Decerto, judeu algum espera o filho de Deus em tal forma. Mas, nos últimos anos, mestre algum impressionou o povo como o faz este Jesus, se as informações que tenho estão certas... nem sequer João o Baptista. Seria realmente mau para os judeus que ele fosse um novo Judas o Gaulonita.
Cerca de vinte anos antes, após a morte de Herodes o Grande, muitos judeus tinham resistido à ideia de se formar o reino da Judeia sob o domínio do seu sucessor, Arquelaus, e milhares deles haviam sido mortos na luta que resultou da sua insurreição. Um bando de patriotas, sob a chefia de um certo Judas, chamado o Galileu ou o Gaulonita, tinha chegado a tomar Séforis, a capital romana da Galileia. Para castigo desta afronta à dignidade de Roma, Varus, governador da Síria, tinha dominado os rebeldes com vinte mil homens. Dois mil Judeus foram crucificados, de uma só vez, trinta mil foram vendidos como escravos, e a cidade de Séforis foi destruída.
Uma delegação dos chefes judeus tinha ido a Roma, então,
1 Esdras, famoso Judeu do séc. V a. C. Restabeleceu a celebração regular do culto de Deus. Enoch, personagem do Antigo Testamento. (N. do T.)
fazer uma petição a Augustus para que acabasse com o reino da Judeia, e o transformasse numa província romana. Assim, o primeiro dos procuradores tinha vindo governar a província onde Jerusalém ficava situada. Esporadicamente irrompiam revoltas contra aqueles governantes estrangeiros, geralmente sob a chefia de Messias sui-generis. Mas, embora muitos dos judeus da judeia gostassem de ver os procuradores fora da sua terra, com o conflito constante sobre os emblemas romanos, disposição do dinheiro dos impostos e coisas semelhantes, que tinham constituído a praga do período de serviço de Pilatus, apenas os mais fanáticos nacionalistas, grandemente confinados à fértil província da Galileia, ousavam pensar em usurpar o poder de Roma pela revolução e pela nomeação do seu próprio rei.
Um grupo mais poderoso e muito melhor organizado, os Herodianos de Jerusalém, trabalhava no sentido de fazer Herodes Antipas, tetrarca da Galileia, rei da Judeia igualmente. José compreendia a preocupação de Philon quanto a qualquer Messias que pudesse perturbar este delicado equilíbrio e talvez provocar uma revolução entre os temperamentais galíleus. Tal revolta poderia levar a mais derramamento de sangue e à possível retaliação dos romanos sobre os judeus em todo o mundo romano. Como chefe reconhecido e porta-voz do maior núcleo de judeus existente fora de Jerusalém, a colónia judaica de Alexandria, Philon estaria seriamente ligado a uma questão tão importante.
- Eu esperava que voltasses brevemente a Jerusalém, disse o velho) jurista quando se separaram, para me poderes dizer o que achavas sobre esse Jesus de Nazaré.
- Decerto não pensas que esse mestre possa ser o verdadeiro Messias, protestou José.
Philon abanou a cabeça. - Custa-me a crer, embora Isaías fale de um homem que virá na humildade e no sofrimento. Para nós, que vivemos longe de Jerusalém há muitos anos, o Messias tornou-se uma figura de retórica em vez de uma pessoa real. - Sorriu, então. - Mas não digas isto em Jerusalém quando voltares, José. Há quem espere todos os dias que o Cristo desça dos céus envolto em glória. Considerar-me-iam blasfemo, se soubessem que eu dissera algo diferente.
A medida que os meses de Inverno iam passando, Deme-trius estava cada vez mais fraco. Em breve o fluido que se acumulava no seu corpo lhe atingia os pulmões, de tal modo que, quando respirava, se ouvia um ruído borbulhante, como o do ar a passar através da água. Tornava-se cada vez mais difícil extrair o fluído através dos calamos afiados, e finalmente, um dia, o velho fabricante de liras suplicou a José que não tentasse mais.
- Sei há muito que apenas posso viver mais uns meses, no máximo, José, disse. - Não receio morrer. Afinal, como Sócrates disse, é uma grande aventura. Já vi Maria triunfar, aqui, no teatro, coisa para que eu vivia desde que ela veio para o pé de mim, em Magdala. E agora que ela se lança na sua própria destruição, não sei se quero estar cá para a ver.
- Mas, Demetrius...
- Não vale a pena argumentar, José. De certo modo, desejo a morte, e só necessito de duas coisas, agora, para poder morrer em paz. Uma, é que me prometas que olharás por Maria, e a outra é saber que se casam logo que tudo isto termine.
- Prometo-te, garantiu-lhe José. - Falei com Philon há tempos, e ele concorda contigo, em que Maria tem direito, como órfã, à vida de Gaius Flaccus.
- Etu?
- Eu não tiro a vida a um homem voluntariamente, nem a ajudarei a fazer o que planeia, disse. - Mas quando tudo acabar, tentarei ajudá-la a fugir.
- Ninguém poderia pedir-te mais, concordou Demetrius. Tocou uma campainha que estava sobre uma mesa junto do seu leito e imediatamente apareceu à porta o escravo que cuidava dele. - Pede à minha filha que venha cá, por favor, ordenou Demetrius.
- M... mas... começou José a protestar.
- É melhor que isto fique resolvido de uma vez por todas, disse o velho com firmeza. - Sei como sofres ao vê-la, sabendo o que anda a fazer, mas isto tem que ser feito.
Maria chegou poucos minutos depois. Tinha estado a preparar-se para ir ao teatro e vestia a graciosa túnica grega com que dançava a história dos amantes galileus. - Mandei-te vir porque quero falar contigo e com José, juntos, sobre algo muito importante, disse Demetrius. - Vem sentar-te aqui com José junto da cama.
O velho acariciou ternamente os cabelos brilhantes de Maria. - Sei há muito tempo, minha querida, que pouco tenho para viver.
- Não, Demetrius, exclamou ela, abraçando-o. - Não digas isso.
- Não sofro, prosseguiu o velho músico. - E não tenho medo de morrer, agora que sei que alguém olhará por ti quando eu partir.
Ela ergueu a cabeça do peito dele. - Que... que queres dizer?
- José prometeu-me que ficará cá e olhará por ti.
- Mas ele não deve fazer isso! exclamou ela, voltando-se para José. - Eu disse-te que fosses para Jerusalém. Porque havias de ser morto por minha causa?
- Esperas morrer depois de teres executado o teu plano de vingança sobre o romano? perguntou Demetrius.
- José disse-me que as probabilidades de o fazer sem perder a vida são pequenas, confessou ela. - Mas sei o que estou a fazer!
- Nós também, disse-lhe Demetrius.
Ela fez um ar de espanto. - Mas eu não lhes disse.
- Planeias matar Gaius Flaccus durante o festival da Grande Dionisíaca.
- Nada vos direi, disse ela rapidamente, afastando o olhar, mas não antes de terem visto pela sua expressão que o seu cálculo estava certo. - A responsabilidade é apenas minha, acrescentou sombriamente.
- Mas não disseste que eu estava enganado, insistiu Demetrius.
- Suponhamos que tens razão. Ides avisar Gaius Flaccus?
- Não. Philon e Demetrius acham que tu tens o direito de lhe tirar a vida segundo as leis antigas, confessou José.
- Eu já to tinha dito. Está claramente escrito nos Livros da Lei - Não concordo, disse ele, mas já tinha planeado ajudar-te a fugir, mesmo antes de Demetrius mo pedir.
- Mas porque haverias de arriscar a tua vida por mim, José, quando não acreditas que eu tenha o direito de matar Gaius Flaccus?
- Estás há muito afastada do teu povo, Maria, disse ele simplesmente, caso contrário não terias esquecido as palavras de um sábio que disse: "O ódio provoca guerras, mas o amor cobre todos os pecados".
Os olhos dela encheram-se de lágrimas: - Meu querido e bom José, disse suavemente, e, por momentos, voltou a ser a rapariga que ele receava que tivesse deixado de existir. - Penso que o meu amor por ti é a única coisa boa que o demónio do ódio deixou no meu coração. Mas tu não deves tomar parte em tudo isto, disse ela firmemente.
- Não podes impedir-me de estar perto de ti, para o caso de precisares de ajuda.
- Que poderias fazer? O poder de Roma voltar-se-á contra mim.
- Com bons remadores e uma galé rápida podemos atravessar o canal do Mar Vermelho e chegar a Adana em menos de uma semana. Hadja poderia arranjar um lugar para nós entre as tribos do deserto ou em Petra. Ou poderíamos apanhar um barco para o Malabar. Bana Jivaka poderia mesmo ir connosco.
- Desistias da tua posição em Jerusalém e das riquezas que lá possuis por minha causa? perguntou ela suavemente.
- Esqueceste-te do voto de Rute? perguntou ele. - Foi feito por amor, e serve de guia a todos aqueles que se amam.
- "Não me peças que te abandone", repetiu ela suavemente, " ou que deixe de te seguir; pois para onde tu fores, eu irei; e onde tu viveres, viverei; o teu povo será o meu povo, e o teu Deus o meu Deus: onde tu morreres, morrerei, e aí serei, enterrada: que o Senhor me castigue se algo senão a morte-me separar de ti". - E, de súbito, Maria começou a chorar e correu para o seu quarto.
Demetrius morreu duas semanas depois, tranquilamente, durante o sono. Foi enterrado com a sua amada cítara entre as mãos, nas margens do Lago Mareótis. E, como tinha feito prometer a Maria que continuasse a cantar e a dançar como se nada se passasse, ela não fez luto.
Quando ela e José voltavam a pé para casa, ao longo da margem, junto dos altos muros do estádio onde o festival da Grande Dionisíaca se ia realizar, Maria ergueu os olhos para o grande edifício e estremeceu, como se sentisse medo.
- Espero que nunca saibas o que é sentir ódio na alma, José, disse ela.-É como um cancro que vai devorando tudo o que há de bom dentro de nós.
- Como cirurgião, cortava-o, se pudesse.
- Ninguém pode ajudar-me, disse ela, firmemente. - Uma parte de mim própria faria o que sugeres, José, e perdoaria a Gaius Flaccus. Mas a outra parte repete constantemente as palavras do Todo Poderoso: "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé". Como poderia eu ignoraras ordens de Deus?
- Deves fazer o que o teu coração te disser que faças. Ninguém pode fazer mais do que isso. Mas certifica-te de que estás a escutar o teu coração e não apenas o demónio do ódio.
- Então tenho que continuar, disse ela firmemente.
- E recusas-te a dizer-me como vais executar os teus planos?
Ela acenou afirmativamente. - Se não tomares parte da minha culpa, José, não tomarás parte no meu destino, seja ele qual for.
O festival da Grande Dionisíaca em Alexandria tinha tradicionalmente lugar em fins de Março, quando o frio da brisa invernil já não invadia a cidade, soprando do Grande Mar, e o ar estava já quente, com uma promessa de verão. As flores cresciam em grande profusão por toda a parte, nessa altura, e, durante os três dias do festival, os parques públicos, as ruas, os jardins junto das margens do Lago Mariótis, e as ilhas junto da costa constituíam um espectáculo de cor.
José tinha ouvido falar daquele festival, durante o qual o povo de Alexandria enlouquecia literalmente, no excesso e na busca do prazer, mas ainda lhe custava a crer, mesmo vendo-o com os seus próprios olhos. A época das corridas começou alguns dias antes da Grande Dionisíaca, e milhares de pessoas apinhavam-se diariamente no Grande Hipódromo, para lá do Portão de Canope. À noite, os estabelecimentos de bebidas estavam cheios e havia alegria por toda a parte. Dado que Dionisos era considerado pelos gregos como Baco e pelos egípcios como Osíris e Serapis sob outro nome, o festival da Grande Dionisíaca constituía um pretexto legal para todo o género de bacanais. Custava a crer que houvesse muita gente em Alexandria que conseguisse dormir durante todo o festival, porque as ruas estavam apinhadas toda a noite e todo o dia de gente que se divertia.
Cada dia era apresentado no teatro um dos grandes dramas gregos, culminando, no dia antes do casamento e morte simbólica do Deus, com uma representação das Baccbae de Eurípedes, em que Dionisos descia à terra, na cidade de Tebas, em forma humana, e oficiava o seu próprio culto. Rejeitado pelas mulheres, usava de feitiçaria para as colocar em êxtase de adoração pelo Deus Dion, o mesmo êxtase em que, nos tempos antigos, as mulheres tinham despedaçado homens e sacrificado crianças e mais tarde animais ao deus bacante. Quando, na peça, o rei de Tebas, Pentheus, se opôs às orgias selvagens do culto, Dionisos, ainda disfarçado, utilizou os seus talentos mágicos para enviar o rei para o meio das Bacantes, vestido de mulher. E, quando este foi descoberto, as mulheres, chefiadas pela sua própria mãe, despedaçaram-no num frenesi de extática loucura.
Maria fazia o papel de mãe de Pentheus, a chefe das Bacantes. Quando o trágico final da cena atingiu o climax inevitável, vinha a cambalear das colinas onde a tragédia final ocorrera, transportando nas mãos a cabeça a escorrer sangue do rei que fora seu filho. José não pôde deixar de estremecer de horror, tão realista era o seu último desempenho, mesmo nos últimos versos, quando compreendia o que fizera, e, revoltada, gritava contra o deus que a fizera matar o seu próprio filho.
Então o deus dizia: "Troçaste de mim, que sou Deus; é esta a tua recompensa". E ela respondia: "Deve um deus proceder como um homem orgulhoso, na sua ira?" antes de iniciar a trágica dança com que terminava a peça e que culminava na sua morte, às suas próprias mãos, para expiação do pecado cometido. Quando os aplausos da multidão trovejaram por todo o enorme teatro, José compreendeu que acabava de assistir ao que poderia ser muito bem a última actuação de uma extraordinária actriz numa peça real, e, talvez, pensou com um arrepio de medo, uma previsão do que sucederia no dia seguinte.
Embora Maria se recusasse permanentemente a dizer-lhe quais os meios por que tencionava executar a morte de Gaius Flaccus, José estava absolutamente certo de os conhecer, agora. Toda a Alexandria sabia que o novo praefectus vigi-lum, cuja posição na ordem equestre o colocava logo a seguir à própria família imperial em nobreza, seria o deus Dionisos. E que a mais bela e mais amada mulher de toda a Alexandria, a bailarina Flamen, representaria, naturalmente, Afrodite, a deusa do amor.
Com que génio diabólico Maria conseguiria realizar o triunfo da sua vingança durante o drama culminante do grande festival, só ela o sabia. Observando-a, nos últimos meses, José notara que grande tensão representava para ela voltar dois admiradores ciumentos e poderosos um contra o outro, para alcançar a sua própria ambição. Agora, como vagas ondulantes brotando com a força inexorável de um redemoinho, as correntes tinham entrado em movimento. Já nada podia detê-las. E, pensando no dia seguinte, José sentiu que lhe apertava o coração um medo gelado pela mulher que amava.
José teve oportunidade de falar com Maria na manhã seguinte, antes de ela partir para o ancoradouro nas margens do Lago Mareótis onde o deus Dionisos desembarcaria para reclamar a sua noiva, a divina Afrodite. Em virtude do espaço ocupado pela multidão, o festival realizar-se-ia no grande estádio e não no teatro. Ao fundo do anfiteatro tinha sido construído um palco com camarins por baixo. Sobre ele, o tálamo de casamento, através de cujos cortinados transparentes a assistência poderia partilhar, visualmente, a união ritual das deidades unidas pelo casamento. Aí Dionisos seria simbolicamente morto, para representar as sementes que são enterradas na terra. E, do leito nupcial, o deus morto erguer-se-ia, então, simbolizando a semente que brota do solo fértil. Depois viria a maior e mais louca de todas as celebrações, para terminar o festival de três dias da Grande Dionisíaca.
José, Matthat e Bana Jivaka assistiram juntos ao festival.
Reunia-se uma enorme multidão na margem perto do estádio, onde tinha sido construído um ancoradouro para galés e barcas particulares da corte real, quando estas iam assistir aos jogos de gladiadores. Ali desembarcaria o Deus Dionisos e aí encontraria a sua noiva, a deusa Afrodite. Seguindo em procissão triunfal pelas ruas da cidade, dirigir-se-iam ao estádio, onde tinha sido preparado um grande espectáculo em sua honra, antes do casamento divino. E, depois deste, teria lugar a morte ritual do deus, numa tragédia fingida que José contava absolutamente que se verificasse na realidade.
A multidão estava de tal modo comprimida que José e os seus amigos não conseguiram abrir caminho através dela, mas, dos degraus que davam para o estádio, puderam observar os acontecimentos à distância. As pessoas estavam numa disposição festiva, e ergueram-se gritos de "Flamen!" e "Afrodite!", quando a requintada liteira, com os cortinados corridos, era transportada até ao molhe onde o deus desembarcaria.
De trás de uma das oito ilhas do lago surgiu então uma enorme barca, impulsionada pelos remos de cem escravos. No grande trono de oiro que fora construído dentro da barca, sentava-se um homem, à volta do qual giravam e pousavam filas de belas dançarinas. Por trás do trono, um enorme escravo negro erguia a tradicional máscara representando a cabeça de boi do deus Apis, quando Dionisos aparecia sob essa forma.
Ao ver a barca, a multidão soltou um grande grito: "Avé, Dionisos! Avé, deus do vinho!". E, sobre o palco flutuante^ as bailarinas giravam num louco ritmo de adoração diante do trono, até a barca parecer uma ondulante massa constituída pelas cores dos seus diáfanos vestuários. Quando a barca acostou ao molhe e a ele foi presa, dois sacerdotes de Serapis, tonsurados, aproximaram-se e ajoelharam diante dela. Um deles agitava o sistro, um instrumento tradicional neste culto, enquanto o outro agitava uma fronde de palmeira, símbolo da paz e de boas-vindas.
Seguiam-nos duas belas sacerdotisas de Isis, com as fitas doiradas atadas em volta da testa de modo a darem a ideia da serpente sagrada da deusa. Atrás delas vinha a suma-sacerdotisa, trazendo sobre os ombros o manto sagrado, enfeitado com franjas, e a cobra doirada na testa. Transportava à sua frente um recipiente contendo água do Grande Nilo, tão sagrada que as suas mãos nem sequer podiam tocar no recipiente, que se encontrava protegido do contacto com a sua carne pela fímbria de um manto branco que lhe cobria a cabeça e lhe caía sobre os ombros. Quando as sacerdotisas de Isis se ajoelharam para receber o deus Dionisos, em nome da sua própria deidade, um outro sacerdote começou a dirigir, com gestos das mãos, um imenso coro, num hino de boas-vindas e louvor ao divino visitante.
Então os escravos que transportavam a liteira na qual Maria se encontrava, entronizada como Afrodite, ergueram os varais até aos ombros e dirigiram-se ao molhe, depondo a liteira mesmo por trás dos sacerdotes de Serapis e das sacerdotisas de Isis. Ao lado da deusa do amor marchava o gym-nasiarchus Plotinus, que dirigiria o festival, vestido de branco imaculado. - Benvindo a Alexandria, ó divino Dionisos! - gritou. - Nós te rogamos que deixes a tua nave e venhas juntar-te a nós, nesta festa em tua honra.
Um grito de aprovação saiu da multidão, quando Plotinus afastou os cortinados da liteira e ajudou a descer a encantadora mulher que nela viajava. - Flamen! Flamen! Afrodite! gritou a multidão, repetidas vezes, e passaram-se longos minutos antes de Plotinus conseguir fazer-se ouvir de novo.
- Trouxemos-te, neste dia, uma noiva divina, prosseguiu então, cuja beleza e graça é digna dos deuses. Avé, Afrodite! Deusa do Amor e da Beleza! Avé, Divina!
Maria conservava-se erecta. Parecia, na verdade, uma deusa do amor e da beleza, com o seu cabelo cor de cobre, atado apenas com um diadema branco, a brilhar ao sol da manhã, e o corte régio da sua túnica branca sublinhava ainda mais o encanto do seu corpo divino.
- Pelos profetas de Israel, arquejou Matthat. - Nunca houve mulher mais bela. É realmente a noiva perfeita para um deus.
Sob o sol da manhã, Gaius Flaccus parecia realmente um deus, com o seu corpo elegante e as suas belas feições, uma grinalda de oiro sobre o cabelo encaracolado e sandálias doiradas nos pés. Não trazia armadura, e a sua túnica curta, que lhe deixava à mostra as pernas musculosas e bem feitas, era de um tecido branco de neve, tal como o da túnica de Maria. As bailarinas de trajos transparentes saltaram da barca para o molhe, escoltando o deus, quando este desceu do seu trono e avançou, em passo majestoso, ao encontro da deusa. Diante dela, parou, enquanto Plotinus ajoelhava para o saudar e a turba gritava: - Dionisos! Afrodite! Dionisos! Afrodite!
- Benvindo a Alexandria, ó Divino, disse Maria, em voz clara. - Curvo-me em homenagem diante do meu futuro esposo. - Deixou-se cair graciosamente sobre um joelho, mas Gaius Flaccus, no seu papel de deus do vinho, estendeu as mãos e agarrou as dela, fazendo-a levantar-se. Quando a puxou para ele e a beijou nos lábios, a multidão voltou a gritar a sua aprovação, repetidas vezes. Depois, segurando a mão de Maria, o deus entrou com ela na liteira que os aguardava, e cujos cortinados se encontravam agora erguidos, para que toda a cidade pudesse ver o divino visitante e a sua futura esposa.
Os escravos avançaram então a correr com outra liteira preciosamente decorada, para Plotinus, que chefiaria a procissão. E, a uma ordem sua, iniciou-se a grande parada. Durante as horas seguintes percorreria todas as áreas da cidade, antes de regressar ao estádio, para a festa em honra do divino visitante. O casamento ritual, sua consumação, a morte e ressurreição do deus marcariam o início de uma nova estação para as culturas no ciclo de fertilidade da terra, crescimento, colheita, morte e renovação da vida na semente.
A frente seguia a liteira de Plotinus e, atrás dela, os mascarados, homens e mulheres em trajos fantásticos de todos os géneros, representando os inúmeros deuses adorados em Alexandria, cada um deles na forma em que se dizia aparecer. Seguia-se um grupo de meninas de branco, que espalhava flores pelo caminho, e atrás as bailarinas da barca, com os seus trajos brilhantes de seda, numa profusão de cores.
Vinham então os sacerdotes de Serapis, tonsurados e nus até à cintura, transportando as palmas rituais e agitando os sistros. Traziam na testa a marca sagrada do deus que recebera o seu nome de Osiris e do boi sagrado Apis. Nas mãos transportavam símbolos doirados do deus, lâmpadas em forma de barcos do Nilo, minúsculos altares sobre os quais o boi sagrado era sacrificado, e até uma imagem velada do próprio deus Serapis.
Atrás dos sacerdotes de Serapis marchavam os devotos de Isis, nunca muito amplamente separada do primeiro, pois Osiris tinha sido o senhor morto e ressuscitado de Isis e pai de seu filho, Horus, bem como o pai do deus criado pelos Ptolomeus, Serapis. As sacerdotisas de Isis eram escolhidas pela sua beleza e vestiam apenas uns panos de seda em volta das ancas e grinaldas de oiro com a cobra sagrada. Também elas agitavam guizos sagrados, enquanto entoavam uma canção de adoração à deusa, e a multidão bramiu o seu aplauso quando elas passaram sob o brilhante sol matinal.
Seguia-se a grande liteira, na qual eram transportados o deus visitante e a sua noiva. Gaius Flaccus, obviamente lisonjeado por constituir o centro de atracção, baixava a cabeça e sorria aos aplausos da multidão, mas Maria seguia erecta, sorrindo mecanicamente, com as faces da cor do seu vestido branco. Observando-a, entre a multidão, José perguntava a si próprio se ela conseguiria levar até ao fim aquilo que planeara, e encontrou-se a rezar para que ela recobrasse a razão e desistisse, no último momento. Contudo, lembrando-se de que os últimos cinco anos da sua vida tinham constituído uma preparação para o momento de triunfo sobre o homem que tão cruelmente a tratara, mal ousava ter esperanças de que a razão prevalecesse sobre a obcessão quase insana que arrastava Maria.
Atrás dos deuses, vinham centenas de mascarados, a marchar, a dançar, em cabriolas pelas ruas. Sátiros e silenos, bacantes, ménades, Bacchae, ninfas, vitórias, todos os tradicionais celebrantes dos festivais dionisíacos, realizados em todo o Império, enchiam as ruas, seguindo o par divino. E, atrás deles, vinha uma procissão de enormes carros alegóricos puxados por escravos cobertos de suor, vestidos com roupas douradas, enquanto os guardas marchavam ao seu lado, fazendo estalar chicotes.
Num dos carros, uma estátua de Nysa, com o dobro da altura de um homem e maravilhosamente real, erguia-se automaticamente para despejar leite de um vaso de oiro. E, sobre outro carro, cabriolavam sátiros, entre videiras, espremendo vinho que jorrava de fontes fixadas no carro, de modo que quem quer que recebesse uma taça das raparigas que as distribuíam, poderia bebê-lo. Outro carro representava, à frente, Zagreus, a criança com cornos, despedaçada pelos Titãs, enquanto que, ao centro, Zeus, seu pai, erguia uma taça de vinho na qual o coração da criança continuava a bater ritmicamente, provocando gritos de espanto da multidão. A parte fínal do carro representava o quarto nupcial de Semeie, onde ela fora impregnada pelo coração vivo de Zagreus, dando à luz o próprio Dionisos.
Sobre um outro carro, o jovem Dionisos brincava com um bando de ninfas nuas, numa caverna, da qual iam saindo pombos e andorinhas, para serem apanhadas pela assistência. O último e o maior dos carros alegóricos representava o deus do vinho. Sobre ele, uma grande imagem de Dionisos montava um elefante, cujo cornaca era um sátiro.
Depois dos carros grandes, vinham outros mais pequenos, com quadros vivos, representando os outros deuses adorados pelos alexandrinos. Aí se via Alexandre o Grande, endeusado e servido pelos seus patronos, Vitória e Atena. Seguia-se o faraó-deus Ptolomeu I e a sua rainha Berenice, o Imperador Augustus e o deus romano vivo, Tiberius. Seguiam-se, a cavalo e a pé, regimentos de soldados, de modo que, no conjunto, passaram-se mais de três horas desde que a procissão saiu do molhe onde a barca de Dionisos acostara, até ter dado a volta à cidade e regressado ao estádio, onde se realizaria o festival em honra do deus visitante.
Entronizados sobre o palco, num dos extremos do estádio, Dionisos e Afrodite foram então honrados com um vasto espectáculo. Diante deles, na arena, lutaram gladiadores com espada e com rede e tridente, e os condutores de carros lutaram entre si, dos seus veículos a grande velocidade, com espadas nuas. O chão relvado do grande anfiteatro em breve se tornava escorregadio com o seu sangue, mas a multidão gritava por mais espectáculos e maiores carnificinas.
À medida que a tarde passava, hábeis acrobatas executaram prodigiosos feitos de força e de perícia, intercalados com mimos que representavam acontecimentos da vida de Dionisos e Afrodite. E, grupo após grupo, bailarinos de diversas nacionalidades dançavam os bailados tradicionais dos seus povos, em honra do par de noivos.
Do seu lugar, perto de uma das vomitória, as passagens que conduziam aos camarins por baixo dos estrados, dos quais os actores saíam para o estádio, José foi vendo o espectáculo, horrorizado com toda aquela mascarada da adoração divina e tenso de ansiedade por Maria. E, à medida que a festa avançava em direcção ao ponto culminante do dia, em que o deus e a sua divina noiva se retirariam para o tálamo rodeado de cortinados transparentes, mesmo ao topo do palco, a sua tensão tornava-se quase insuportável. Algures, fora do palco, ressoava o ritmo sonoro dos tambores, como trovoada de verão, e, em frente da câmara nupcial delicadamente ornamentada, surgiu uma alta figura, mais alta do que qualquer outro homem que José jamais vira, vestindo uma couraça de prata e trazendo na cabeça a coroa dos deuses.
- É Júpiter, disse Matthat, que veio casar Dionisos com Afrodite. Já vi aquele homem representar o mesmo papel noutra altura.
A uma ordem do Pai dos Deus, Dionisos e a sua noiva ajoelharam diante dele e juntaram as mãos. Sobre a cabeça deles, o actor entoou as palavras solenes, unindo-os em casamento e, quando terminou, Gaius Flaccus ergueu Maria. Ela cambaleou, momentaneamente, e José julgou que fosse cair, com um dos desmaios que a afligiam quando rapariga. Contudo ela parecia ter-se libertado deles desde que viera para Alexandria, ocorrência não invulgar, poise frequente as raparigas, ao atingirem a maturidade, deixarem de sofrer de tais incómodos.
Mas Maria conseguiu controlar-se e, quando o deus Dionisos tomou nos seus braços a deusa da beleza e se curvou para depor nos seus lábios o beijo nupcial, a multidão enlouqueceu. Então ele pegou-lhe na mão e conduziu-a para a câmara nupcial, através de cujos cortinados transparentes todos os seus movimentos seriam visíveis para a audiência. E, quando os cortinados foram corridos, acendeu-se um archote por trás do quarto montado no palco, e as suas sombras destacaram-se, em silhuetas, numa brilhante pantomina.
Um grande Ahh" de emoção suspensa saiu da multidão quando Gaius Flaccus tomou a noiva nos seus braços e a transportou para o grande leito nupcial, envolvendo-a no amplexo que representava a consumação do casamento divino. Fez-se silêncio na assistência, enquanto esta esperava pelo acto seguinte do drama do casamento, a fecundação, morte da semente, e seu renascimento para a imortalidade.
José voltou a cabeça para o lado. Chegara o momento, ele bem o sabia, em que Maria levaria a cabo os seus propósitos, se chegasse a fazê-lo. Com Hadja algures nos bastidores para tratar dos pormenores, teria sido fácil substituir por uma adaga verdadeira a arma feita de pergaminho ou de qualquer outro material no género, que daria a impressão da realidade mas se amachucaria ao ser comprimida contra o corpo de Gaius Flaccus. A vítima não teria a menor suspeita, antes de a lâmina lhe atingir o coração, de que a arma era de aço, não de papel.
Sentado no seu lugar, dominado pelo horror e sem poderes para impedir o desencadear da tragédia, José lutava contra o impulso de se pôr em pé e gritar um aviso ao tranquilo Gaius Flaccus. Mas de nada teria servido se o fizesse, visto que, dada a vastidão do estádio, cheio de uma multidão que manifestava a sua aprovação pela fingida consumação da morte simbólica da semente, que se iria verificar, uma única voz, mesmo soltando um grito de aviso, dificilmente seria ouvida. E, se o fosse, apenas iria diminuir as probabilidades que Maria tivesse de fugir, executada a sua vingança.
Todos os olhares do estádio se concentravam na adaga que Maria segurava, quando, recortada no écran de gaze dos cortinados que rodeavam o tálamo nupcial, tão nitidamente como uma pintura feita a traços largos, o seu braço se ergueu sobre o corpo do amante divino apertado nos seus braços. Embora os espectadores de Alexandria estivessem absolutamente habituados a tal realismo e soubessem que a adaga se amachucaria ao tocar no corpo de Dionisos, uma súbita tensão dominava a multidão. Quando a lâmina mergulhou, essa tensão suspensa exprimiu-se num poderoso gemido, tão real era o drama que se desenrolava diante deles, na câmara nupcial onde o casamento dos deuses acabava de ser ritualmente consumado.
Então, o grito de dor de um homem ressoou pelo enorme estádio, quebrando o encantamento. Mal o som esmoreceu, Maria saltou do leito nupcial e correu os cortinados. Como uma deusa de vingança, destacou-se, recortada pela luz do archote por trás do palco, com a adaga ensaguentada erguida na mão direita. Era frequente derramar-se sangue, nas mortes fingidas do teatro grego, utilizando-se, para tal, pequenas bexigas, cheias de um líquido vermelho, de modo que a multidão não se apercebeu de que estava a assistir a uma tragédia real, não a uma pantomina. Mas, quando Maria se voltou e correu para os bastidores do palco improvisado, em vez de ficar para recebero deus renascido como seu consorte, alguns dos espectadores compreenderam que tinha havido algo mais do que realismo, naquele palco.
As pessoas começaram a levantar-se, então, galvanizadas pelo drama real a que assistiam. Nessa altura surgiu outra figura, que passou pelos cortinados corridos da câmara imperial. Era Gaius Flaccus, já sem o seu aspecto divino, porque o sangue manchava a sua imaculada túnica branca. - Ajudem-me! gritou, com a voz enrouquecida pelo terror. - Estou a morrer!
O estádio transformou-se então num pandemónio. E no meio dele, sem fazer sequer uma pausa para agradecer a Deus por Gaius Flaccus ainda estar vivo e Maria não ser ainda, pelo menos, uma assassina, José saltou sobre os bancos que ficavam abaixo dele e correu para a passagem através da qual os actores se dirigiam para os camarins por baixo do palco. Sabia vagamente que os camarins ficavam algures por baixo dele e, enquanto corria pelos corredores, um profundo rugido da turba revelou-lhe que as pessoas acabavam de compreender a que ponto tinham estado próximo de assistir a um assassínio real.
Os actores, actrizes, bailarinos, músicos e auxiliares do teatro circulavam pelos corredores por baixo do grande estádio. Na sua maioria, não tendo estado no palco, não sabiam do que sucedera.
Enquanto José hesitava, por momentos, descobriu um rosto conhecido entre a multidão. Era Albina que, quando ele a chamou, veio imediatamente ao seu encontro, com um rosto sombrio. - Maria fugiu agora mesmo para o seu camarim, José, disse, apressadamente. - Tinha a túnica manchada de sangue.
- Tentou matar Gaius Flaccus, disse ele, arquejante. - Onde é o camarim dela?
Albina não perdeu tempo com perguntas e conduziu-o imediatamente até uma porta sobre a qual fora pintado o archote, símbolo de Flamen. - Eu espero cá fora! sugeriu. - Se vierem à procura dela, talvez eu possa enviá-los para outro lado.
Ele concordou, com a cabeça, cheio de gratidão; não havia tempo para agradecimentos. Hadja guardava a porta de Maria. - Louvado seja Ahura-Mazda por teres vindo, José, disse com fervor. - Ela matou-o?
- Não. - José percorreu o corredor com um rápido olhar. Havia uma grande janela ao fundo, suficientemente larga para fugirem por ela, se tivessem tempo. - Abre aquela janela, ordenou. - Eu vou buscar Maria e tentaremos fugir na direcção do lago.
Enquanto José abria a porta do camarim de Maria, Hadja dirigiu-se para a janela. Se conseguissem sair do estádio e chegar ao lago, talvez fosse possível chamar um dos barcos de aluguer que percorriam a costa e fugir antes que a assistência do enorme estádio se recuperasse da paralisia momentânea provocada pelo drama inesperado que tinha presenciado, a culminar o festival de Dionisos.
Maria estava de pé, junto da mesa, com o rosto sem cor. Tinha os dedos e a túnica branca sujos de sangue e empunhava ainda a adaga, na mão direita. Os seus olhos estavam tão dilatados que pareciam não ter cor e as pupilas espelhavam um desespero absoluto. Não fez o mínimo sinal que revelasse ter reconhecido José quando este entrou na sala.
Quando se moveu, o gesto foi tão rápido que José por pouco não conseguia agarrar-lhe o pulso, no momento em que se preparava para fazer mergulhar a adaga no seu próprio peito. Não foi suficientemente rápido, mas conseguiu desviar a ponta aguçada da adaga, de modo que esta não encontrou o alvo a que se destinava, o coração. Rasgando o tecido branco da túnica, abriu-lhe uma ligeira ferida no seio, antes de cair dos seus dedos insensibilizados, no momento em que Maria, cambaleando, se deixou cair nos braços de José.
- Não ... não consegui, José, soluçou, num súbito ímpeto de palavras e lágrimas, agarrada a ele como uma criança aterrorizada. - Algo deteve o meu braço.
- O Todo Poderoso não te podia deixar cometer um assassínio, disse ele. - Temos que partir rapidamente. Ele nos ajudará a fugir.
A voz da multidão era agora um rugido profundo, como uma enorme e rosnante matilha de animais. Estava enfurecida pela afronta feita ao deus em cuja honra o festival se realizava, e o primeiro alvo da sua fúria seria, naturalmente, a mulher que tentara matar o deus personificado.
- Hadja espera lá fora, disse José a Maria urgentemente. - Se conseguirmos chegar ao lago, na escuridão, estaremos a salvo.
Mas ela limitou-se a abanar a cabeça. - Já causei complicações suficientes, disse, quase num suspiro. - Deixa-me, antes que seja tarde demais.
- Nunca te deixarei, Maria, dise ele simplesmente. - Se a multidão aqui chegar, morreremos juntos.
Nesse momento, Bana Jivaka irrompeu pela sala. - Depressa! gritou, arquejante. - A multidão vem quase atrás de mim.
- Tens que vir, Maria, suplicou José. - Morreremos todos, se ficares aqui.
Ela moveu-se, de súbito, e pegou uma vez mais na adaga, mas José agarrou-lhe na mão, impedindo-a de mergulhar a lâmina no peito. - Por favor, deixa-me morrer, José, suplicou. - É a única maneira de te salvar, agora.
"Deixa-me morrer! É a única maneira!" As palavras dela explodiram no espírito de José como uma revelação. A morte - ou a aparência da morte - poderia ser, efectivamente, a melhor solução naquele momento, tal como Maria dissera, para escapar à fúria da multidão. Rapidamente, voltou-se para Bana Jivaka: - Disseste-me uma vez que podias provocar um transe tão profundo que não se conseguia distinguir da morte. Conseguirias fazê-lo agora de modo que ela parecesse morta?
O espírito arguto de Jivaka apreendeu imediatamente a ideia. - Com a ferida no peito ... a adaga ... Sim, poderia ser a solução.
José tirou a adaga da mão de Maria, que não resistiu - Tens que fazer exactamente o que Jivaka te disser, minha querida, disse rapidamente. - Ele talvez nos consiga salvar da multidão, se tu ajudares.
Ela cambaleou ligeiramente, amparando-se a ele, como se fosse desmaiar, e, sem esperar resposta, ele tomou-a nos braços e deitou-a no chão junto da mesa. - Olha para Jivaka, ordenou-lhe. - E faz exactamente o que ele te disser.
O médico indiano já tinha tirado do bolso a esmeralda que sempre trazia consigo. Enquanto a segurava diante dos olhos de Maria, a jóia começou a brilhar à luz dos dois círios que ardiam sobre a mesa. - Vais dormir, Maria de Magdala, começou a dizer, numa cantilena profunda e monótona. - Tens que dormir... dormir... dormir.
Albina tinha feito bem o se papel, enviando Plotinus para uma direcção errada quando ele apareceu, furioso, em busca de Maria. Só cinco minutos depois o gymnasiarchus, com Gaius Flaccus e um par de musculosos soldados com as espadas desembainhadas irrompeu pela porta sobre a qual se encontrava pintado o archote. O tribuno estava pálido e a sua túnica ainda ensanguentada, mas a ferida pouco profunda feita no seu peito pela adaga de Maria tinha sido facilmente tratada com uma ligadura. Atrás dos romanos vinha a guarda avançada da multidão gritando o seu desejo de sangue, mas os soldados detiveram-na à entrada da porta.
Aos olhos dos espectadores deparou-se uma cena dramática. Maria jazia no chão, tendo a adaga sangrenta apertada na mão direita, com a ponta a tocar na ferida aberta no local em que tinha cortado atravessa pele e do músculo. O fio vermelho de sangue que lhe atravessava o peito sobressaía terrivelmente contra a palidez de alabastro da sua pele, e mesmo observadores mais atentos do que os excitados romanos teriam acreditado que ela se apunhalara no coração e retirara a adaga, na agonia da morte.
- Pelos deuses! exclamou Gaius Flaccus. - Ela matou-se! - E as pessoas que estavam por trás dele ouviram esta exclamação e passaram-na a toda a multidão. - Flamen está morta! Morta por suas próprias mãos!
Plotinus pareceu ficar abalado, por momentos, e depois voltou-se para os dois médicos. - Porque estão aqui? perguntou em tom selvagem, como se os culpasse por não encontrar Flamen viva.
- Eu era o médico do pai dela, disse José, e amigo dela. Vim logo atrás dela, receando que fizesse algo deste género. Já tinha tentado matar-se uma vez, em Magdala.
- Então é realmente judia como tu dizias, disse o gymnasiarchus a Gaius Flaccus. - Mas porque havia ela de querer matar-te?
Antes que o tribuno pudesse responder, José disse rapidamente: "Ele seduziu Maria de Magdala, há muito tempo, quando era uma rapariguinha. A vida do tribuno Gaius Flaccus estava condenada, desde então, segundo as antigas leis do povo judeu.
- E cinco anos mais tarde ela quis matar-me? Gaius Flaccus cambaleou e amparou-se num dos soldados. - Vamo-nos embora daqui, disse, com dificuldade. - O cheiro do sangue enjoa-me.
- Que disparate é este? exclamou Plotinus. - Os romanos não são governados pelas leis judias.
- O pai desta mulher era cidadão romano, disse-lhe José. - Como tal, ela tem direito à Justiça, mesmo que tenha tentado matar o homem que a seduziu.
Plotinus encolheu os ombros. - Sou eu quem faz aqui justiça em nome de Roma, disse friamente. - E considero a mulher chamada Flamen uma assassina, mesmo depois de morta. Levem o corpo dela, ordenou aos soldados. - Enterrem-na esta mesma noite na margem do Lago, no terreno comum destinado aos criminosos.
José empalideceu. As coisas não estavam a passar-se como imaginara, pois tinha calculado que o corpo de Maria lhe seria entregue para que fizesse o enterro. Então ele e Jivaka fá-la-iam regressar à vida e fugiriam da cidade, pelo Lago Mareótis e pelo Nilo. - Ela era judia, disse ao gymnasiar-chus. - Permite-me que a leve e a enterre à maneira do nosso povo.
Plotinus nem sequer respondeu. - Quero o túmulo dela guardado, disse aos soldados, e, voltando-lhe as costas, saiu da sala, seguido pela sua escolta. Ficaram para trás dois soldados, como guardas, até chegarem os escravos com uma liteira para levar o corpo de Maria para o terreno onde se enterravam os criminosos, mas nenhum dos guardas permitiu a José ou a Bana Jivaka que se aproximassem do corpo.
Algum tempo depois, conduzida por dois escravos com archotes, uma macabra procissão saiu do estádio. O corpo de Maria foi estendido numa liteira transportada por quatro escravos. Tão profundo era o transe em que Jivaka tinha conseguido mergulhá-la, que José, observando-a sempre que podia e, de vez em quando, conseguindo aproximar-se suficientemente dela para lhe tocar na pele, não podia afirmar que ela estivesse viva. José e Bana jivaka seguiam, com Hadja, na cauda da procissão, cada um deles espremendo os miolos em busca de um estratagema para levar o corpo de Maria para um local onde Bana Jivaka pudesse arrancá-la do seu torpor. Mas nenhum deles conseguia descobrir um meio, e, à medida que cada passo os aproximava cada vez mais do túmulo onde os romanos a enterrariam viva, as suas esperanças de salvar a vida de Maria iam-se tornando cada vez mais ténues.
Ao longo das ruas turbulentas da cidade, a pequena procissão avançou, através dos escuros e fantasmagóricos monumentos da Necrópole, para lá do Canal de Agathada-emon. E José continuava a não descortinar a maneira por que pudessem ter esperanças de salvar Maria de ser enterrada viva. Então, já perto do Portão da Necrópole, repartiu num edifício que tinha diversas caixas alongadas encostadas à parede. Era a loja de um fabricante de caixões, logicamente situada ali, à entrada da Cidade dos Mortos. - Quanto tempo poderia ela viver em transe se fosse enterrada dentro de um caixão? perguntou num sussurro, a Jivaka, apertando-lhe o braço e puxando-o para o lado, para que os outros não o ouvissem.
O espírito arguto do indiano apreendeu imediatamente a sua ideia. - Vi certa vez um mágico, na índia, ser retirado vivo de um caixão ao fim de seis horas, murmurou. - Mas o caixão era muito grande.
- Alto! gritou José aos escravos que transportavam a liteira. - Temos que parar para arranjar um caixão.
- Plotínus não nos falou disso, objectou o soldado encarregado da guarda, quando a procissão parou.
- Serias capaz de roubar aos mortos um repouso decente? perguntou José severamente. - Podes estar certo de que a tua alma te atormentará por toda a eternidade se o fizeres.
O soldado estremeceu. - É verdade que o gymnasiarcbus não proibiu que ela fosse enterrada dentro de um caixão, confessou.
- então não há motivo para que o não seja. - Antes que o soldado pudesse objectar algo mais, José começou a bater à porta do fabricante de caixões. - Acorda! - gritou. - Precisamos dos teus serviços.
Os escravos tinham pousado a liteira, satisfeitos por ter uma oportunidade de descansar. Minutos depois surgiu o proprietário da loja, a esfregar os olhos, ainda com o barrete de dormir enfiado na cabeça. José já tinha percorrido a fila de caixões encostada ao prédio e escolhido o maior que encontrou. - Fico com este, disse. - Quanto custa?
- Para que precisas de um tão grande? resmungou o soldado. - Só representa um peso maior para carregar.
- Este é o de melhor madeira, explicou José. - Vai durar mais tempo. - Pagou ao fabricante de caixões e chamou Hadja para ajudar a carregar o caixão grosseiro.
A pequena procissão pôs-se de novo a caminho. Agora seguiam já dentro da própria Cidade dos Mortos e, enquanto avançavam em direcção ao local reservado aos pobres e aos criminosos, perto da margem do Lago Mareótis, o som dos gritos e das orgias que atravessava o canal, proveniente da cidade, tornava-se cada vez mais distante. Finalmente, quase à beira da água, chegaram a um espaço vazio, e o soldado que seguia à cabeça do grupo mandou-o parar.
Não se podia cavar muito profundamente ali junto da água sem que o túmulo se transformasse num poço, pelo que as covas eram baixas, com a areia empilhada por cima do caixão, se os mortos tivessem sorte de repousar luxuosamente dentro de um. Fragmentos de madeira podre que saíam do chão à volta deles mostravam os locais onde outros haviam jazido e, em certos pontos, projectavam-se ossos para fora do solo, embranquecidos pelo ar salgado do mar que soprava através da estreita faixa de terra sobre a qual se situava a Necrópole.
Os escravos cavaram rapidamente uma cova baixa, que mal chegava para enterrar o caixão. José não insistiu em que a fizessem mais profunda, porque, se conseguisse levar a cabo o seu plano - que era efectivamente desesperado - cada minuto perdido a destapar o corpo de Maria poderia significar a diferença entre a vida e a morte para ela. Não quis permitir-se pensar que o seu plano desesperado pudesse falhar; a ideia de a sua amada morrer asfixiada, ali, na escuridão, por baixo da terra, era superior às suas forças. Contudo, não via outro sistema, outro caminho melhor, porque os três, desarmados, não ter-iam qualquer hipótese de dominar os guardas e os escravos. E se eles morressem numa luta fútil, desapareceriam todas as hipóteses de salvar Maria.
José colocou ele próprio o corpo de Maria dentro do espaçoso caixão. Depois de coberto, conseguiu abrir um buraco na tampa de madeira, sobre o pretexto de colocar um pedaço de madeira solta, a marcar o lado da cabeça. Tinha deixado propositadamente a tampa por pregar, na esperança de que se filtrasse algum ar através da terra solta, pelo menos o suficiente para lhe conservar a vida até que ele pudesse executar o seu plano.
Terminado o enterro, os escravos partiram apressadamente, ansiosos por se verem longe daquele reino dos mortos. José sentiu-se aliviado ao ver que apenas um soldado ficava a guardar o corpo. Era mesmo próprio dos romanos, pensou, imaginar que um soldado armado bastava para três homens, especialmente sendo um deles judeu. Na realidade, não fazia parte do seu plano atacar o guarda, pois mesmo que o matasse, outro viria substituí-lo dentro de horas, suficientemente cedo para alarmar a cidade e os interceptar antes de poderem levar a cabo o plano de fuga pelo Nilo. Para que todos ficassem absolutamente seguros, era importante que Plotinus pensasse que Maria estava morta.
José puxou Bana Jivaka para um lado, de modo que o guarda não pudesse ouvi-lo. - Quanto tempo nos resta? perguntou ansiosamente.
- O caixão é grande e, em transe, ela respira muito levemente, murmurou Jivaka. - Pode ter várias horas. É difícil dizer.
Hadja fechava e abria os seus grandes punhos. - Mete conversa com o soldado, José, suplicou. - Eu deslizo por trás e estrangulo-o.
José abanou a cabeça. - É melhor que eles não saibam que roubámos o corpo, explicou. - Temos que esperar um pouco mais.
- Mas não podemos deixá-la ali enterrada, para morrer por asfixia.
- Estou tão preocupado como tu, Hadja, confessou ele. - Acredita, o que eu quero fazer é o melhor, mas tenho que apressar-me.
O soldado parou de caminhar, com o seu passo firme, de um lado para o outro da sepultura, quando José se aproximou dele. - Que queres, judeu? perguntou, desembainhando a espada.
- Essa mulher era minha noiva, explicou José. - Tu nunca amaste uma mulher?
O guarda descontraiu-se. - Era muito bonita, confessou. – Vi-a-a dançar uma vez, no teatro. Mas, quanto a mim, prefiro as mulheres das casas de bebidas que dançam nuas.
José apontou, com o queixo, na direcção de Rhakotis, a pouca distância, do outro lado do canal. Os sons de canções e risos de bêbados chegavam até eles, flutuando sobre as sepulturas. - Haverá muitas dessas nas tabernas, esta noite, sugeriu. - Porque não hás-de ir vê-las?
- Ordenaram-me que ficasse aqui até ser revezado.
- E quando é isso?
- Daqui a quatro horas, pelo menos. Nessa altura o meu substituto provavelmente já estará bêbado e pronto para mais uma ânfora.
- Com certeza que ninguém se preocupará se matares a tua sede no Rhakotis durante uma hora, enquanto eu vigio o túmulo da minha amada.
- Estava perdido se descobrissem, disse o soldado, hesitante, mas José compreendeu, com uma satisfação crescente, que ele estava tentado a ceder.
- Os mortos podem falar? perguntou. - Eu pagaria bem por uma hora a sós com ela. - Ergueu a bolsa e deixou que o homem se apercebesse de que estava bem recheada.
A visão do dinheiro liquidou as dúvidas do soldado. Recebeu a generosa mão cheia de moedas que José lhe deu e partiu a correr em direcção ao portão que dava para a cidade e para o alegre bairro de Rhakotis. Logo que ele desapareceu da sua vista, José assobiou para Hadja e Jivaka e, deixando-se cair de joelhos, começou a escavar a terra da sepultura baixa.
Rapidamente, destaparam o caixão e retiraram-no. Maria jazia lá dentro, tal como José a colocara, mas a pele das suas mãos e dos seus pés estava tão gelada como o mármore com que se parecia, e não dava sinais de vida. - Está morta, Jivaka, disse José desanimado, enquanto a levantavam e a depunham no chão, sobre as suas capas. - Esperei tempo demais para subornar o guarda.
- Não percas tempo com autocensuras, disse Jivaka. - Pousa a tua boca sobre a dela e respira para dentro do corpo dela enquanto Hadja e eu tapamos a sepultura de novo. Éum método que usei frequentemente para trazer à vida os bebés mortos à nascença.
Ajoelhando-se junto de Maria e cobrindo a boca dela com a sua, forçou a respiração a passar por entre os seus lábios. Lenta e firmemente respirou para dentro do corpo dela, sentindo os seios erguerem-se, à medida que o ar penetrava nos seus pulmões. E, quando se afastou, ouviu um som suave do ar que saía pelo nariz e pela boca dela. Continuou firmemente a utilizar o mesmo sistema, enquanto Bana Jivaka e Hadja trabalhavam rapidamente, cobrindo o caixão de modo que o soldado não suspeitasse que lhe tinham tocado. Quando terminaram, o médico indiano ajoelhou junto de Maria e tomou-lhe o pulso.
- Consegues senti-lo? perguntou José ansiosamente. Jivaka abanou a cabeça. - Não. Notaste algum sinal devida?
- Não tenho a certeza. Os seus lábios estão mais quentes, mas pode ser dos meus.
- Espera! disse jivaka. - Talvez consiga saber. - Rapidamente, tirou do bolso a pedra verde que tinha usado para provocar o transe. Poliu-a na manga até brilhar à luz fraca do luar, e colocou-a em frente da boca e das narinas de Maria durante uns momentos; depois ergueu-a e estudou a jóia cuidadosamente. - Parece-me ver uma névoa, disse. - Mas temos que a levar para qualquer lado onde a possamos aquecer.
- O Rhakotis está fora de questão, disse José.
- Ou qualquer outro ponto da cidade, concordou Jivaka. - Com tanta gente nas ruas, viam-nos com certeza.
- E não temos um barco para a levar para a sua villa pela água, acrescentou Hadja, desesperançado.
- As catacumbas! exclamou José. - Porque não me lembrei antes?
- As catacumbas?
- Achillas e o seu bando vivem aqui. E devem-se um favor.
- Mas conseguirias encontrar um esconderijo de ladrões, na escuridão? perguntou Jivaka, duvidoso.
- Tenho a certeza de lembrar-me da sociedade cujo nome está gravado na entrada da cripta, explicou José. Vamos até lá imediatamente para procurar.
- E o romano? perguntou Hadja. - É capaz de dar o alarme.
- O soldado nunca saberá que retirámos o corpo, objectou José. - Essa era a parte mais importante do meu plano. E decerto não irá contar que esteve ausente do seu posto.
Os três transportaram o corpo inconsciente de Maria através da sepulcral Cidade dos Mortos. José calculava que os ladrões estivessem em grande actividade nessa noite, pois haveria muitos bêbados na cidade e seria fácil extorquir-lhes as bolsas. Mas não acreditava que o próprio Achillas tivesse
saído, porque o velho ainda não se recuperara totalmente da longa doença. Contava que Achillas ou qualquer outro se encontrassem no quartel general subterrâneo.
A memória de José não o traiu, e, sem dificuldade, descobriu a entrada para as catacumbas onde fora levado para tratar o empiema do velho ladrão. Mas, quando começou a bater à porta interna sem receber resposta, as suas esperanças de encontrar ali alguém começaram a desvanecer-se. Então, brilhou uma luz lá dentro e surgiu um rosto por trás da pequena janela gradeada. Era Achillas e José ergueu o seu próprio archote, que tirara do suporte junto da porta, para que o ladrão lhe pudesse ver a cara.
- É o José da Galileia, disse. - Precisamos de ajuda.
A porta abriu-se imediatamente. - Por Serapis! exclamou o velho quando viu o fardo que eles transportavam. - Que é isso, um cadáver?
- É a bailarina chamada Flamen, explicou José. - Está mergulhada num profundo transe e temos que tentar salvar-lhe a vida.
Achillas não perdeu tempo com perguntas. Levou-os imediatamente para o local onde podiam depor Maria sobre o seu próprio leito, e, enquanto José começava de novo a respirar para dentro dela, apressou-se a ir buscar cobertores quentes para a envolver e a pôr pedras a aquecer na braseira sempre acesa. Bana Jivaka trabalhava junto de José, massajando as mãos e os pés de Maria para restaurar a circulação enfraquecida.
Passaram-se longos minutos, sem quaisquer indícios de êxito. As pedras e os cobertores trouxeram algum calor ao corpo de Maria, mas parecia que ela já não conseguia gerar vida dentro de si própria. Depois, de súbito, enquanto comprimia os lábios contra os dedos e respirava suavemente para dentro dos seus pulmões, José sentiu um movimento convulsivo no peito dela, como se tentasse respirar por si própria. E, quando lhe tomou o pulso com os dedos trementes, mal ousando esperar ainda que os seus sentidos não o tivessem enganado, detectou um ténue e rápido movimento.
- Ela está viva, Jivaka! exclamou exultante. - Graças ao Todo Poderoso, está viva!
- É um milagre! - Os olhos do médico indiano estavam húmidos. - Um milagre de fé, José. Porque tu não querias acreditar que ela morresse, o teu Deus devolveu-ta.
Inspirados por aquela promessa de êxito, renovaram os seus esforços para fortalecer a vida que recomeçava a agitar-se dentro do corpo de Maria. Em breve começou a respirar fraca e rapidamente, e depois mais lentamente, quando o seu corpo voltou de novo à vida. - E o transe? perguntou José. - Achas que devemos fazer alguma coisa para a tirar dele?
- Receio o choque de um súbito acordar, disse Jivaka. - É preferível que ela recupere a consciência lentamente e por sua própria vontade.
Era já manhã lá fora e os membros do bando de Achillas tinham voltado havia muito das suas aventuras nocturnas, quando Maria abriu os olhos. - Onde estou? murmurou. - Não me recordo deste local.
- Estás nas catacumbas da Necrópole, disse-lhe José. - Uns amigos meus que aqui vivem deram-nos abrigo.
- Pa... parece-me recordar-me de ter tido um pesadelo. Como se estivesse num sítio escuro, como um... como um túmulo.
- Não penses nisso agora, suplicou ele. - Estiveste muito perto da morte, mas conseguimos fazer-te regressar. É o que importa. Estarás segura aqui até podermos fugir de Alexandria.
- Matei Gaius Flaccus?
- Não. Foi uma ferida superficial. A adaga não penetrou fundo.
- A minha mão não me obedeceu, disse ela lentamente. - Algo a deteve.
- Foi o poder do Todo Poderoso. Ele não permitiu que o demónio que te habitava te levasse ao crime.
Os olhos dela percorreram o quarto, pousaram em Bana Jivaka, de pé junto do leito, no alto e sorridente nabateu e em Achilas que soprava os carvões do braseiro para aquecer mais pedras. Os outros membros do bando concentravam-se em volta do segundo braseiro, ao canto, sobre o qual fervilhava a habitual panela de guisado.
Todos se sentiam felizes por ver uma tão bela mulher voltar à vida, todos, isto é, todos excepto o filho Manetho, que parecia carrancudo por natureza. Quando o olhar de José se encontrava casualmente com o do jovem ladrão, aquele ficava chocado pelo ódio que encontrava nos olhos de Manetho. Durante momentos, não conseguiu descobrir o motivo para tal, mas, de súbito, compreeendeu a verdade.
Após a morte de seu pai, Manetho seria o chefe do bando. Achillas tinha estado muito perto de morrer poucos meses antes e só fora salvo devido à perícia de José. E, no seu espírito distorcido pelo ódio, a mão que impedira Manetho de vir a ser o chefe do bando, apesar de ter salvo a vida de seu pai, erguera-se contra ele. Observando o carrancudo ladrão sentado a um canto, José sentiu um arrepio de medo percorrer-lhe o corpo.
- Achillas é o pai de Albina, que dança no teatro, disse a Maria. - Estes são os seus filhos e os homens que trabalham para ele.
Maria sorriu. - A sua filha é uma excelente bailarina. Será ela a figura principal, agora.
O velho ladrão inclinou a cabeça e levou os pálidos dedos da rapariga à testa. - Ninguém jamais será igual a Flamen. Disse uma oração em louvor de Isis por teres sido poupada à morte. - Ninguém lhe levava a mal que tivesse tentado matar um romano; de certo modo, ligava-os a ela o facto de terem um inimigo comum.
A meio da manhã, Maria sentiu-se suficientemente recuperada para beber um caldo. Enquanto não estava inconsciente, José tinha-lhe tratado da ferida superficial no peito, onde a adaga deixara a sua marca. Agora, vestindo um dos trajos de Albina, nem parecia ter estado tão perto da morte.
Ao princípio da tarde, Hadja foi enviado à cidade com uma nota para Matthat, pedindo-lhe que entregasse ao nabateu o dinheiro que José deixara à sua guarda. Com uma parte dele, Hadja deveria alugar uma galé rápida que os aguardaria na embocadura do canal de Agathadaemon, nessa mesma noite. No dia seguinte ja estariam a subir o Nilo, a caminho do local onde o canal do Mar Vermelho se abria para o rio. Uma vez longe de Alexandria, teriam aberto o caminho da liberdade. Hadja tinha também instruções para ir a casa de Maria buscar os seus vestidos e jóias e despedir os criados.
José não esperava que Hadja voltasse muito antes do anoitecer, mas o músico estava de volta daí a três horas. O seu rosto estava sombrio e, notando que Maria estava a dormir, no leito, puxou José para o corredor que levava ao refúgio subterrâneo de Achillas e do seu bando de ladrões. - Tenho más notícias, José, disse imediatamente. - Plotinus está a utilizar a tentativa feita por Maria para matar Gaius Flaccus como pretexto para perseguir os judeus de Alexandria.
- Mas porquê? Eles são respeitados aqui.
- Na cidade, dizem que Flamen arruinou o gymnasiar-chus. Ele deve muito dinheiro aos agiotas judeus e espera matá-los nesta oportunidade, para não ter de pagar-lhes.
- Encontraste Matthat?
Hadja abanou a cabeça. - Havia uma grande multidão que seguia pelas ruas a arrombar as lojas dos judeus. Vi-os arrombar a porta da loja de Matthat, mas ele não estava lá, de modo que não pude trazer o dinheiro.
Eram notícias muito pouco tranquilizadoras, porque José tinha depositado uma soma substancial junto do mercador de jóias e contava com aquele dinheiro para pagar as despesas deles até poder ser feita uma transferencia de fundos de Jerusalém para a cidade em que se fixassem depois de fugirem de Alexandria.
- Apenas possuo algumas moedas, acrescentou Hadja, mas são tuas. - José apertou o braço do alto nabateu, com gratidão. - Deve haver outro processo, disse. - Talvez Achil-las me faça um empréstimo em troca de um saque sobre os meus banqueiros de Jerusalém.
Nesse momento, ouviram a porta exterior ranger, ao abrir-se. Murmurando uma praga, Hadja puxou da longa adaga que usava sempre sob as roupas, e encostaram-se à parede do túnel. Momentos depois acendeu-se um archote, diminuindo a escuridão do túnel, e a luz começou a aproximar-se deles. José ia perguntar quem era o visitante, mas Hadja pousou-lhe os dedos sobre os lábios e apertou a adaga com mais força.
Em breve surgiram duas pessoas, um homem e uma mulher. Quando José reconheceu Albina e Matthat, deixou escapar um longo suspiro de alívio. Sentia-se razoavelmente seguro de que Plotinus não teria processo de descobrir o estratagema, mas também não podia deixar-se surpreender pelo inimigo. Quando avançou para o meio do corredor, ficando sob a luz, Matthat soltou um grito de medo e deixou cair o archote, mas Albina exclamou: - Louvada seja a sagrada Isís, estás salvo José! E Flamen?
- Está aqui, disse-lhe José. - Mas, que vos sucedeu? As roupas deles estavam rasgadas e salpicadas de lama, e o rosto de Matthat estava cheio de equimoses e feridas. Cambaleava um pouco, e José deu-lhe o braço para o amparar.
- Maus dias chegaram a Alexandria, gemeu Matthat. - Malditos sejam os romanos. - Apoiado por José e Hadja, conseguiu chegar à sala e deixou-se cair sobre uma pilha de tapetes a um canto. - Fala baixo, avisou José. - Maria está a dormir.
Mas Matthat apenas gemia e foi Albina quem relatou o que estava a passar-se em Alexandria. - Fui à loja de Matthat esta manhã, disse cia, para tentar saber alguma coisa sobre o que lhes tinha acontecido depois de saírem do estádio com o corpo de Flamen. A multidão estava já a arrombá-la, mas encontrei Hadja na rua e ele contou-me o que se passara.
Parou para respirar, antes de prosseguir. - Pensei conseguir saber algo mais sobre o que Plotinus tencionava fazer no teatro, por isso fui até lá. - Parou, por um momento, como se sentisse relutância em continuar. - Manetho foi ter com Gaius Flaccus c Plotinus e contou-lhes que Flamen não morreu, José.
- O meu filho é um traidor! agitou Achillas, irado. - Mato-o com as minhas próprias mãos.
- Felizmente Manetho não disse onde Maria está escondida, continuou Albina. - Fingiu que não sabia. Plotinus está furioso e prendeu Philon e outros chefes judeus. Ameaça matar todos os judeus de Jerusalém, a menos que encontre Flamen.
Matthat já podia falar, agora. - está a levá-los para o teatro, onde se reuniu uma multidão, conseguiu dizer, arquejante. - A multidão não cabe no Fórum. Também me tinham apanhado, mas consegui escapar-me. Albina encontrou-me escondido e trouxe-me para aqui.
- Plotinus já estava a inflamar a turba contra os judeus antes de eu chegar ao teatro, acrescentou Albina. - Quando estiverem todos excitados, soltá-los-á contra Philon e os outros. Depois começarão a atacar judeus por toda a cidade.
José olhou para Maria que dormia no leito. Imaginara que os seus problemas terminariam quando a salvara de morrer enterrada viva. Mas agora havia inocentes a sofrer por causa do que eles tinham feito e outros mais perderiam as suas vidas, se ninguém interviesse. Não queria sequer pensar em entregar Maria a Plotinus para acalmar a sua ira. Nem acreditava que isso garantisse, necessariamente, a segurança de Philon e dos outros chefes judeus, uma vez que era do interesse do gymnasiarcbus que os homens a quem devia grandes somas fossem mortos pela violência da turba.
Contudo, havia uma outra possibilidade. Se José afirmasse que a culpa era sua, Plotinus talvez fosse obrigado a aceitá-lo como refém pela segurança de Philon e dos outros judeus. Com a carta que trazia de Pontius Pilatus para o governador de Alexandria, poderia estar certo de um julgamento justo no tribunal. A justiça romana era lenta mas justa e, uma vez que lhe fosse permitido apresentar o seu caso contra Gaíus Flaccus e Plotinus num Tribunal aberto, havia a possibilidade de ser tomada uma decisão a seu favor. De qualquer modo, o processo levaria muito tempo; o tempo suficiente, decerto, para que Maria chegasse a um local seguro. Mas primeiro precisava de arranjar dinheiro para alugar uma galé que a levasse em segurança para fora de Alexandria.
- Podes emprestar-me cinco mil denarii1 sobre uma carta para os meus banqueiros em Jerusalém? pediu a Achillas.
- Empresto-tos sem qualquer garantia, disse imediatamente o velho. - Afinal, não salvaste tu a minha vida?
- Prefiro dar-te a carta, insistiu José. - Para o caso de... - Não terminou a frase, mas todos sabiam bem o que queria dizer. Havia tabuinhas enceradas sobre uma mesa a um canto e, aquecendo a superfície de uma delas rapidamente com a chama de uma vela, para apagar uma inscrição anterior, escreveu sobre ela com o estilete de metal. - Quando terminarem os motins, disse a Achiílas, leva-a a um banqueiro daqui. Ele enviará isto para Jerusalém e dar-te-á o dinheiro quando ele cá chegar.
Achiílas dirigiu-se a uma arca ao canto da sala subterrânea para contar os cinco mil denarii. Enquanto ele o fazia, José puxou Hadja para um lado. - Escuta-me atentamente, meu amigo, disse. Vou entregar-te tudo aquilo que amo. Leva o dinheiro que Achiílas te vai dar e aluga uma galé, a mais rápida que arranjares. Esta noite tens que levar Maria a bordo dela, com Bana Jivaka, e têm que deixar Alexandria imediatamente. Leva-os ambos pelo canal até Arsinoé, à entrada do Mar Egípcio. Irei encontrar-me aí convosco, quando estiver livre.
- Mas tu... começou a protestar o nabateu.
Em latim no texto. Denarius / Denarii - Denário/s. (N. do T.)
- Jura-me que farás o que te digo, insistiu José.
- Juro por Ãhura Mazda, o deus do próprio sol, que farei o que me pedes, disse Hadja com ar grave. - Mas a Chama Viva não vai querer ir.
- Diz-lhe que eu vou ter convosco a Arsinoé, então, disse José impacientemente. - Mas leva-a contigo, nem que tenhas que a amarrar.
- Que vais fazer?
- Vou ao teatro tentar salvar Philon e os outros. Albina ouviu-os. - Eles vão matar-te, José, protestou. -
Qualquer judeu encontrado nas ruas está sujeito a ser despedaçado pela multidão.
- Tenho que correr esse risco, insistiu José. - Se eu conseguir chegar junto de Plotinus e Gaius Fiaccus, talvez consiga convencê-los de que sou o único responsável pela fuga de Maria.
- Vais sacrificar-te por ela, protestou a jovem. - Ela não quereria que o fizesses, se soubesse.
José abanou a cabeça. - Maria está salva, uma vez que Manetho não revelou onde ela está. Mas não posso deixar os romanos entregarem Philon e os outros à multidão quando a culpa é minha, e não deles. Plotinus vai ter de me prender e, como eu tenho uma carta de Pontius Pilatus para o governador de Alexandria, terão de me proporcionar um julgamento justo. Philon defender-me-á, se não há autoridade mais respeitada tanto em leis judaicas como romanas.
- Eu senti o que se passa com a multidão, objectou Mat-taht. - Vão matar-te, José, tal como diz Albina.
Mas José sabia o que tinha que fazer. Valia mais arriscar-se à morte do que deixar que homens inocentes fossem mortos por causa do que ele tinha feito.
- Deixa-me ir contigo, suplicou Bana Jivaka, quando ele saía já das catacumbas, mas José abanou a cabeça firmemente. - Nada tens que ver com isto, meu amigo, disse, abraçando-o. - Tu conheces a rota do canal para o Mar Egípcio. Vai com Hadja e Maria e faz com que ela chegue em segurança. Ajudas-me mais assim do que de outro modo.
José nunca tinha visto o Rhakotis em tal confusão. Existia um natural antagonismo entre os habitantes daquela área poliglota e os do Bairro Judeu, mais vasto, cujos residentes eram geralmente mais abastados do que os habitantes do Rhakotis, e agora a populaça de todas as nacionalidades agitava-se pelas ruas, caçando todos os judeus que tinham a infelicidade de lhes passar junto das mãos. José foi forçado a esconder-se de casa em casa para lhes escapar. Ainda não ia longe quando compreendeu a total impossibilidade de atravessar a cidade e atingir o teatro sem ser apanhado pela turba e morto à paulada antes de conseguir falar sequer. Havia apenas um meio possível de chegar ao teatro - pela água.
Passando sub-repticiamente da sombra de uma casa para outra, José conseguiu atingir a ponte onde a Rua de Canope cruzava o canal de Agathadaemon, perto do Portão da Ne-crópolc. As águas lentas e oleosas do canal arrastavam-se preguiçosamente quase aos seus pés, enquanto se escondia nas sombras por baixo da ponte, na esperança de que passasse um dos barcos de aluguer.
Vindos do Rhakotis, ouviam-se distintamente os gritos da populaça que caçava judeus pelo bairro fora. Olhando para a água, José pensou quantos judeus seriam encontrados no dia seguinte a flutuar nelas, com os corpos feridos, cheios de equimoses e despedaçados a ponto de não ser possível identificá-los. Sabia que poderia bem ser um deles e a ideia trouxe-lhe um arrepio de medo.
A lógica dizia-lhe que um homem só nada podia fazer para salvar os chefes judeus da ira de Plotinus e da multidão. Ainda estava a tempo de voltar para as catacumbas onde se encontravam Maria e os outros, e fugir com eles. Tinha feito a sua tentativa de ir até ao teatro e falhara. Nada mais, além da sua consciência, lhe dizia que podia fazer mais.
Enquanto José lutava com a sua consciência, por baixo da ponte surgiu uma galé de passeio, vinda do Lago Marcótis, com um archote a iluminar a proa e quatro escravos ao remos. Reclinado sobre as almofadas vinha um gordo grego, que vestia uma túnica belamente pregueada, decerto um homem abastado. Vivia provavelmente numa villa nas margens do Lago Mareótis, pensou José, e, por isso, nada devia saber do que se passava na cidade. E, além disso, os gregos e os judeus davam-se melhor do que quaisquer outras nacionalidades de Alexandria, pois muitos judeus eram parcialmente gregos.
Se fizesse sinal à galé, José sabia que conseguiria provavelmente atingir os cais do Brucheion, apenas a cerca de um quarteirão do teatro. Mas, ao fazê-lo, atravessaria o seu próprio Rubicão particular, pois, uma vez na cidade, não poderia voltar para trás. O archote na proa de madeira trabalhada da galé encontrava-se agora mesmo à sua frente, e, se queria chaniá-la, teria que se apressar.
Passou pelo espírito de José a sedutora imagem de si próprio, com Maria, Hadja e Bana Jivaka, numa galé como aquela, mas maior, subindo o Nilo em direcção ao Canal do Mar Egípcio e à liberdade. Mas depois outra imagem se sobrepôs àquela ideia feliz, a de uma cena que sabia que estava provavelmente a ocorrer dentro do grande teatro de Alexandria: o uivar da multidão que desejava a morte de Philon e dos patriarcas judeus, e o rosto duro e frio do gymnasiarchus Plotinus que a agitava.
A sua decisão cristalizou-se e José não esperou mais. - Espere, por favor, gritou para a galé e saiu para a luz, para que o vissem. - Sou médico e tenho um amigo a morrer do outro lado da cidade, explicou. - Poderia fazer-me o favor de me levar?
A uma ordem do amo, os escravos inclinaram-se sobre os remos, parando o barco. José desceu até à beira da água, ficando dentro do círculo de luz do archote da proa. - Estou só, disse, erguendo as mãos. - Se me ajudar, isso poderá significar a vida do meu amigo. - Não estava propriamente a mentir, pois esperava salvar a vida do seu amigo Philon.
- Encostem a galé à margem, ordenou o grego aos escravos e, quando o barco encostou a terra, estendeu a mão cortesmente para ajudar José a firmar-se e subir para bordo. - Vou a um jantar em casa de Alcibíades, disse jovialmente. - Se a comida não for melhor do que é habitual, eu próprio precisarei dos serviços de um médico antes do fim da noite.
A galé avançou rapidamente através do Canal de Agatha-daemon para o Porto do Feliz Regresso, voltando então para nordeste para passar sob a ponte do Heptastadium mais próxima da cidade. Nessa altura do dia, a grande artéria que levava ao Pharos estava normalmente apinhada, mas naquela noite encontrava-se deserta.
- Devem estar todos ainda bêbados desde a Dionisíaca, observou o grego. - Nunca vi esta rua tão deserta.
José limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça, embora conhecesse as causas. A caça aos odiados judeus devia constituir muito maior atracção para os caprichosos gostos dos alexandrinos do que o vulgar prazer de passear pelo cais.
- Estiveste no estádio ontem? prosseguiu o grego. - Ouvi dizer que Flamen tentou matar o tribuno Gaius Flaccus.
- Sim, estive lá, confessoujosé.
- Desta vez o deus não ia ressuscitando, observou o outro com um sorriso. - Foi pena que ela tivesse falhado.
- Aprovas a acção dela? perguntou José, espantado.
- Uma mulher tão bela como Flamen não pode fazer mal. Qualquer homem estaria pronto a morrer abraçado a ela. Dizem que ela não chegou a morrer, no entanto. Houve um judeu que fez uma mágica qualquer para a salvar quando parecia morta.
- Ouvi dizer isso. - José conservava um tom de indiferença.
- Para onde vais? perguntou o grego. - Eu vou para o acampamento no sopé do Promontório de Lochias.
- Qualquer ponto me serve.
- Que tal achas o Porto Pequeno depois de Timonium?
- Está perfeito. - Era realmente uma sorte, porque os cais protegidos por trás da ilha em forma de meia lua que fechava o Porto Pequeno ficavam a curta distância do Fórum e do teatro. Não tendo que andar mais do que essa distância, deveria conseguir chegar ao palco.
Quando a galé atingiu o cais de pedra e acostou, José saltou para terra e agradeceu cortesmente ao seu benfeitor. O cais também se encontrava deserto mas do teatro próximo chegava o som de muitas vozes, e em breve começou a ver uma enorme multidão. As pessoas empurravam-se e chocavam por toda a parte, gritando em todas as línguas, lutando umas com as outras, rindo e resmungando alternadamente, num espectáculo verdadeiramente selvagem. José não conseguiu abrir caminho e compreendeu que, a qualquer momento, poderia ser reconhecido como judeu. Sabia, sem dúvida, o que sucederia então, e a ideia oprimiu-lhe o coração. Não era ainda tarde demais para regressar à segurança, mesmo naquele momento, aconselhava-lhe a prudência. Phi-lon e os outros não poderiam decerto ser ajudados, quando uma turba como aquela uivava pelo seu sangue.
- Que está a passar-se? perguntou a um homem alto contra cujo corpo fora prensado pela força da multidão.
- Plotinus está a atiçar as pessoas contra os judeus, disse o homem. - Antes de isto acabar, correrá sangue pelas ruas de Alexandria.
- Já os prendeu?
- Prendê-los! - O homem riu-se. - Para quê prender vampiros que nos arrancam o dinheiro pela agiotagem? A multidão se encarregará de Philon e dos outros, podes apostar nisso o teu oiro. - Baixou o olhar e, de súbito, a suspeita brilhou nos seus olhos: - Espera, mas tu és um ... começou ele, mas José, invadido por uma onda de terror de que a sua identidade fosse revelada ali, no meio da multidão, empurrou o homem tão violentamente que este cambaleou e por pouco não caiu.
- Um judeu! Um judeu! Matem o judeu! berrou o homem, mas José empurrou os que o cercavam e começou a fugir. Houve uma lufada de excitação e, como um pequeno remoinho no meio da corrente, foi empurrado de mão em mão até chegar a outra zona da multidão. O barulho engoliu o homem em quem ele tinha batido, e José encontrou-se, a suar e a tremer, dentro de outro grupo de pessoas que lutavam. Esperou, momentaneamente paralisado, que o grito de "Matem o judeu!" soasse de novo, mas, para aqueles que agora o rodeavam, não passava de mais uma pessoa que se comprimia dentro do teatro a transbordar.
Com um esforço de vontade, José conseguiu controlar-se. Recordando aquele momento de cego pânico, compreendeu que jamais perdoaria a si próprio se a ele tivesse cedido. E, contudo, a selvajaria nas vozes dos homens que o rodeavam ao gritarem pelo sangue de um judeu, seu ou de qualquer outro, não lhe deixava qualquer dúvida quanto ao destino que teria se fosse lançado à multidão. Tal como Albina o avisara, seria feito em pedaços mais rapidamente do que os leões no circo despedaçavam homens e mulheres indefesos.
Vendo que o esperavam ou o fracasso ou a morte - e muito provavelmente ambos - José fez a única coisa que sabia fazer, a única coisa que um judeu devoto podia fazer em tais circunstâncias. Rezou silenciosamente ao Todo Poderoso para que o guiasse. E ali, no meio de uma multidão confusa e praguejante, ansiosa pela destruição de todos os membros da raça odiada, o jovem sentiu-se, de súbito, como se estivesse só, longe de todos os perigos e de todas as ameaças. Pareceu-lhe então ouvir uma voz que lhe falava, dentro dele, de modo que ninguém mais a podia ouvir, a voz do profeta Isaías, cujos ensinamentos aprendera em pequeno, dizendo-lhe:
"Nada receies; porque estou contigo; Não desanimes, porque sou o teu Deus: Eu te darei forças, sim, eu te ajudarei; Sim, eu te ampararei com a mão direita da minha justiça."
José sentiu uma nova força e uma nova calma invadirem a sua alma. Os perigos continuavam a existir, mas já não os receava. E agora que conseguia pensar claramente, sem medo, compreendeu que conseguiria entrar no teatro.
- Levem-me a Plotinus! gritou. - Trago notícias de Fla-men!
A multidão reagiu imediatamente ao grito. Agarraram José e passaram-no de mão em mão até ser finalmente levado diante dos guardas junto do portão do teatro. Estes baixaram as espadas para impedir a passagem, mas, quando José reiterou o seu desejo de ser levado a Plotinus para lhe dar notícias de Flamen, guiaram-no ao longo de um dos vomitória até uma passagem que conduzia à orquestra, da qual Plotinus arengava à tribuna, lançando-lhe ferozes invectivas contra os judeus. Uma vez que o gymnasiarchus estava a meio do discurso, os guardas não o interromperam, limitando-se a empurrar José para a plataforma perto da qual Philon e uma dúzía ou mais de outros chefes judeus se encontravam sob guarda.
Olhando em volta, José viu que Gaius Flaccus estava sentado mesmo por trás da orquestra. O "pano" tinha sido levantado, tapando completamente o grande palco e a maquinaria àosskene eeccyclema da vista da multidão uivante que enchia por completo o teatro, tanto os assentos como as coxias e o espaço aberto geralmente ocupado pelos músicos.
Phiton e os outros não tinham sido gravemente feridos, por enquanto, embora alguns deles mostrassem equimoses nos rostos e tivessem as roupas rasgadas. O jurista enfrentava calmamente os seus captores, tal como alguns dos judeus mais velhos, mas havia outros que choravam, obviamente dominados pelo terror.
E o discurso ia prosseguindo, acusando os judeus de crimes de todos os géneros, com os velhos lugares comuns e pretextos que são sempre desenterrados pelos agitadores sem escrúpulos para inflamar uma multidão e fazê-la seguir os seus fins. Plotinus, orador emérito, jogava com as emoções inconstantes da multidão, tal como um músico hábil tange as cordas de um instrumento ou sopra uma trombeta. A cada nova mentira, a cada nova acusação, a multidão rugia num correspondente ataque de fúria, e, quando decidiu chegar ao fim da sua torrente de invectivas, a turba continuou a uivar durante longos minutos. Finalmente, voltou-se e apontou para o venerável doutor de leis que estava junto dos outros prisioneiros sobre a plataforma: - Philon! gritou. - Confessa agora os teus pecados aos teus pares, se não tens medo.
Havia desprezo em cada movimento deliberado do velho advogado, ao sacudir as mãos dos soldados romanos que o empurravam para a frente, e ao avançar até junto do seu carrasco. - Será que não existe em Alexandria a tão gabada justiça romana, Plotinus, perguntou severamente, para ousares voltar a multidão contra pessoas honestas? O Imperador é um homem justo; a tua cabeça cairá por isto.
As costas da mão do gymnasiarchus atingiram o velho judeu na boca e fez-se um súbito silêncio na multidão, porque o nome de Philon tinha sido sempre respeitado em Alexandria. - Sabemos que o suicídio da judia Flamen foi um truque mágico para escapar ao justo castigo da morte, berrou Plotinus. - Onde é que vós, os judeus, a haveis escondido?
- Nada sei sobre essa mulher, disse Philon tranquilamente. - E o meu povo nada tem a ver com a magia.
- Mentes! gritou Plotinus. - Os judeus esconderam uma assassina, troçando da justiça romana de que tanto falas.
- Quem morreu às mãos dela? perguntou Philon com desprezo. - Este homem? apontou para Gaius Flaccus. - Parece-me bem vivo. - A multidão começou a rir, ao ouvir esta astuta invectiva. - Diz a verdade ao povo, prosseguiu Philon sarcasticamente. - Diz-lhe que pediste dinheiro emprestado a agiotas lícitos para o gastar com mulheres e vinho, e que agora não podes pagar, de modo que tentas matar todos aqueles a quem deves para não teres de pagar as tuas dívidas.
Plotinus ergueu o punho para voltar a bater no velho indefeso, mas, antes que o golpe caísse, José avançou. - Bate-me antes a mim, romano, disse com voz suficientemente alta para que a multidão o pudesse ouvir. - Eu sou o único responsável pela fuga de Maria de Magdala a que chamam Flamen.
O gymnasiarchus ficou petrificado e baixou o punho. Um silêncio súbito caiu sobre a multidão, perante aquela dramática viragem dos acontecimentos. - A mulher encontra-se segura num local onde jamais a poderás encontrar, prosseguiu José. - Nem Philon nem os outros que aqui se encontram sabem onde ela está.
- Mas tu sabes? Plotinus recuperara finalmente a voz.
- Sei, disse José tranquilamente. Mas tu nunca o saberás de mim, nem sequer pela tortura.
Algo na tranquilidade com que ele falava convenceu o romano irado de que José dizia a verdade. E o facto de compreender que jamais descobriria o paradeiro de uma mulher que odiava tão violentamente por o ter usado como um instrumento ainda mais enfureceu Plotinus. - Cão judeu! rosnou. - Dá-me um motivo para não te abater já aqui.
José voltou-se para Gaius Flaccus, e a multidão, pressentindo um novo drama, aquietou-se. - Pergunta ao tribuno Gaius Flaccus por que motivo a mulher a quem chamam Flamen tentou matá-lo. Ele sabe que ela tinha direito à vida dele.
O medo apareceu nos olhos de Gaius Flaccus, pois sabia bem quão facilmente a multidão em fúria - gente de distritos que se haviam revoltado mais de uma vez contra o Império - poderia voltar-se contra os romanos. Os ódios nacionalistas inflamavam-se facilmente, do mesmo modo que Plotinus acabava de utilizar o tradicional ódio de muitos deles pelos judeus, cujo êxito como mercadores e agiotas em todo o Império fazia crescer contra eles os ressentimentos das pessoas com quem comerciavam.
- É mentira! gritou Gaius Flaccus. - Nada devo a essa mulher.
Antes que Plotinus pudesse intervir, José gritou para a multidão: - Flamen é metade judia e metade grega. - Entre eles, os judeus e os gregos constituíam, de longe, o maior grupo populacional da cosmopolita Alexandria, e, se ele conseguisse criar a divisão entre romanos e gregos, uma grande parte da multidão passaria para o seu lado. - O gymnasiarchus Plotinus odeia-a porque não conseguiu comprar os seus favores com o dinheiro que os judeus lhe emprestaram, continuou. - Quando era mais nova, foi seduzida pelo tribuno Gaius Flaccus. E, segundo a lei judaica, a vida dele pertence-lhe, a ela e à família dela, pelo que estava dentro da lei quando tentou matá-lo. Os romanos falam muito de justiça quando lhes convém. Ides vós, os gregos, permitir que um romano assassine homens justos para fugir a pagar as suas dívidas?
A multidão começou a gritar a sua aprovação, mas, antes que José pudesse voltar a falar, Plotinus empurrou-o rudemente e berrou: - Quem manda em Alexandria? Roma ou os judeus? Não tendes orgulho, cidadãos de Alexandria? Ou preferis rebaixar-vos a agiotas e mercadores?
Alguém gritou: - Não! e a multidão seguiu esse grito. Depois, um agitador - sem dúvida colocado no meio da multidão por Plotinus para esse fim - gritou: - Morte aos judeus! e os berros e vociferações recomeçaram.
- Morte aos judeus! Crucifiquem os mercadores e os agiotas! Os animais uivavam de novo por sangue.
Desanimado, José compreendeu que perdera. Era evidente que Plotinus chegara ao ponto que desejava. Bastava-lhe soltar os prisioneiros à fúria da turba, e, fingindo que as coisas se tinham descontrolado de tal modo que perdera a força para deter a multidão, escaparia às culpas do que sucedesse, quando a justiça romana, à sua lenta maneira, finalmente viesse investigar o assunto. Coisas daquele género já tinham sido feitas antes pelos romanos, para destruir os judeus a quem deviam dinheiro; e, sem dúvida, voltariam a ser feitas.
As pessoas que estavam nas primeiras filas da multidão começavam já a subir à orquestra para agarrar os prisioneiros, quando um súbito silêncio caiu sobre a multidão. José compreendeu pelos olhares de surpresa dos homens que estavam prestes a alcançá-lo, e pelo modo como recuaram, que estava a suceder algo de invulgar, mas não conseguiu fazer a menor ideia do que seria, até escutar um forte ranger de metal contra metal, por trás dele. Voltou-se, então, e viu, com espanto, que o grande pano, movido por alguém nos bastidores, descia para dentro da sua abertura no solo. O ar de assustado espanto nos rostos de Plotinus e de Gaius Flaccus disse-lhe que aquilo, pelo menos, não fazia parte do seu plano.
A multidão conservou-se em silêncio enquanto o pano descia até desaparecer, deixando ver o palco propriamente dito. Este encontrava-se totalmente despido de cenários, mas, ao fundo, ardiam quatro archotes, na parede, nos locais onde costumavam ser colocados para iluminar o palco depois do cair da noite. E, como estava quase escuro, agora, o desenho móvel das luzes e das sombras no chão dava àquela vasta abertura, revelada pela descida do pano, um aspecto estranhamente macabro, como se fosse concedida à assistência uma visão do inferno, deixando-a na expectativa da aparição, de um momento para o outro, dos demónios que o povoavam.
De súbito, os sons vibrantes de uma grande cítara, um instrumento cujas notas José teria reconhecido em qualquer ponto do mundo, encheram o grande teatro. E, quando os seus ecos esmoreceram, apareceu uma mulher no ponto superior do palco, recortada em silhueta pela luz das tochas que ali ardiam. Por momentos pareceu que ela nascera das próprias chamas, porque, através da seda diáfana que vestia o seu corpo, a carne brilhava como se também fosse de fogo. E, com os cabelos vermelhos soltos sobre os ombros, a ilusão de um archote vivo era tão grande que a multidão gritou, num rugido espontâneo e poderoso: - Flamen! Afrodite! Flamen! Afrodite!
Durante um longo momento, enquanto as ondas de eco soavam e ressoavam pelo vasto teatro, Maria conservou-se ali parada. Depois, o seu corpo começou a cantar um poema de amor como, em todo o mundo, apenas Flamen de Alexandria poderia fazê-lo. Um silêncio profundo e pulsante caiu sobre a multidão; não se ouvia qualquer som, com excepção das notas vibrantes da grande cítara e da respiração da assistência.
José nunca tinha visto aquele bailado. Na verdade, ninguém vira ainda Maria dançá-lo, porque era a primeira vez que o desempenhava. Ela própria apenas o vira uma única vez, quando a escrava Thetis o dançara para Pontius Pilatus e seus convivas no palácio de Pilatus em Tiberíades. Mas ela sabia que ele poderia dominar as emoções dos homens que o vissem dançar, fazendo-os esquecer-se de tudo aquilo que um homem procura, mas raramente encontra, nos braços da sua amada.
O bailado da escrava Thetis não passava de um convite ao deboche, com os seus movimentos lascivos e poses sugestivas, através das contorções do corpo. Mas Maria era uma artista, acima de tudo, e aquele era o seu maior, talvez o último espectáculo, tão belo e tão terno como qualquer dos poemas de amor que frequentemente cantava no palco. No entusiasmo de a observarem, os guardas que tomavam conta dos prisioneiros aproximaram-se também, esquecendo os seus deveres, até não haver nada entre os homens condenados e a liberdade, além da passagem que levava à parte inferior do teatro e às ruas.
José tinha afastado o olhar logo no início da dança ao verificar que Maria vestia apenas uma túnica leve de seda transparente. Sabia o que ela pretendia fazer e porque o fazia, mas não suportava olhar para ela. Agora, ao notar que os soldados tinham deixado de guardar os prisioneiros, acercou-se do que estava mais próximo e disse-lhe baixo: - Sai pela porta enquanto os guardas não estão a olhar. Reúne todos os judeus, e fá-los armarem-se e barricarem os edifícios mais resistentes.
Dadas as dimensões da população judaica de Alexandria, José sabia que não haveria tropas suficientes na cidade para a deter, uma vez armada e postada atrás de barricadas. Agitar uma multidão e levá-la a matar durante um motim era uma coisa, mas ordenar aos soldados que matassem gente inocente que não infringira lei alguma era muito diferente. O governador de Alexandria, embora geralmente fizesse o jogo de Plotinus, nã ousaria ir tão longe. Nem Gaius Flaccus se arriscaria a tanto, pois isso poderia fazê-lo incorrer no desagrado do Imperador Tiberius, que se orgulhava de ser um homem de paz.
A medida que a ordem sussurrada percorria a fila dos prisioneiros, estes começaram a abandonar a bancada da orquestra. Estava já muito escuro agora e apenas a zona do palco onde Maria dançava se encontrava iluminada pelos archotes. Mas, mesmo que fosse em pleno dia, a multidão muito dificilmente teria reparado na fuga dos judeus, pois todos os olhares estavam concentrados na encantadora figura que dançava no palco.
Agora girava como o archote do qual tirara o nome, e o seu cabelo era uma nuvem de fogo em volta da coluna brilhante do seu corpo. Tinha astutamente calculado chamar a atenção da multidão, pois, ao contrário das outras bailarinas do Teatro de Alexandria, Flamen nunca dançara nua. Agora, à medida que os véus diáfanos que a envolviam caíam um a um, flutuando como nuvens na semi-escuridão do palco, o seu corpo, de uma beleza gloriosa, ia sendo gradualmente revelado.
Um profundo suspiro saiu da multidão quando o penúltimo véu que envolvia o seu corpo caiu. Agora a carne brilhava através da seda. E, quando ela parou, durante a dança, ainda envolta num último pedaço de tecido, um poderoso grito saiu da assistência: - Flamen! Afrodite! Flamen! Afrodite! gritava a multidão repetidamente, aclamando-a como a personificação da deusa do amor e da beleza, cujo culto se confinava agora grandemente a Alexandria.
José sentiu que uma mão lhe tocava o braço e, ao olhar, notou que apenas Philon se encontrava no local onde antes estivera uma fila de prisioneiros. O chefe judeu fez-lhe sinal para que o seguisse, mas José abanou a cabeça. Apesar de a multidão estar enfeitiçada pelo bailado, Plotínus seria ainda capaz de voltar de novo a sua ira contra Maria. E, uma vez que ela arriscara a'vida vindo ali, colocando-se nas mãos do irado gytnnasiarchus e de Gaius Flaccus, José sabia que nada mais podia fazer além de ficar junto dela.
Rapidamente, a dança chegava agora ao seu ponto culminante e, quando o último véu se separou do seu corpo, Maria ficou parada, como a própria Afrodite personificada, com o seu corpo de gloriosa beleza envolto apenas na cinta doirada que as bailarinas usavam em volta dos rins. Então, quando os aplausos faziam estremecer o teatro uma vez mais, deixou-se cair no chão, com os braços estendidos, e a chama dos seus cabelos cobriu-a como um manto protector. Dos bastidores, onde esperara sem ser vista, surgiu Albina a correr com uma longa capa branca em que envolveu o corpo de Maria.
Quando ela se pôs de pé, já coberta com a capa, os aplausos ainda trovejavam por todo o edifício, mas Maria não ficou a agradecê-los. Em vez disso, correu pelo palco fora até ao local onde José se encontrava sozinho, como se não visse Plotínus e os outros que estavam na plataforma, e lançou-se nos seus braços. Abraçada a ele, enquanto recuperava o fôlego, contou-lhe como acordara nas catacumbas e soubera que ele tinha ido ao teatro na fútil esperança de salvar Philon e os outros da ira de Plotinus, e como ela e Albina tinham chegado ao teatro no momento em que José era levado ao palco pelos guardas. - Era a única maneira de te salvar a ti e aos outros, murmurou, mesmo que tivesse de dançar nua. - E enterrou o rosto no peito dele.
Ele beijou-a, sem se importar que o vissem. Com o seu belo corpo esbelto envolto na capa branca e os cabelos soltos sobre os ombros, estava inefavelmente bela. Demasiado bela para morrer, pensou ele, pois podia muito bem ser esse o preço que ambos teriam de pagar pela salvação de Philon e dos outros judeus.
- Flamen! Flamen! rouquejava a multidão repetidamente. E não se acalmou sem que Maria avançasse até à beira do palco e agradecesse, com uma vénia, atirando-lhe beijos com os dedos. Plotinus parecia atordoado com aquela súbita viragem dos acontecimentos, mas Gaius Flaccus devorava-a com o olhar.
Quando os aplausos finalmente começaram a esmorecer, Plotinus voltou-se, furioso, para o local onde os judeus cap-tivos haviam estado. Quando notou que eles tinham fugido, abriu a boca de surpresa. - Onde estão eles? gritou para os guardas, e estes ficaram também a olhar estupidamente para a plataforma vazia, enquanto a multidão voltava a rir. - Tu! disse, voltando-se para José. - Para onde foram eles?
- Para as suas casas, convocar todos os judeus de Alexandria, disse José. - E Philon está, neste momento, a pedir protecção ao governador em nome do Imperador. Esqueces-te de que muitos judeus de Alexandria são cidadãos romanos.
A tez pálida do gymnasiarchus tornou-se mais pálida ainda perante esta ameaça. - Então vais morrer, rosnou - E às minhas próprias mãos. - Subitamente, arrancou a espada ao soldado mais próximo e avançou para Maria e José com a lâmina erguida para os matar. Indefesos e desarmados, não teriam qualquer hipótese de salvação, evidentemente, mas José conseguiu cobrir o corpo de Maria com o seu.
O auxílio surgiu fortuitamente de outro lado. Uma mão forte agarrou o pulso de Plotinus antes de a espada atingir os corpos desprotegidos. - Louco! gritou Gaius Flaccus, detendo o pulso do gymnasiarchus. - A multidão faz-nos aos pedaços se a matas agora.
Um grande rugido de ira saíra da multidão ao ver Maria ameaçada e, apesar de o golpe ter sido sustido, havia já homens que subiam ao palco, prontos a atacar Plotinus com as suas próprias mãos. - Mata o médico das sanguessugas, se queres derramar sangue, suplicou Gaius Flaccus em voz baixa. - As pessoas não se importarão.
Lentamente o desvario abandonou o olhar do romano. - És tu o responsável pelo truque que a fez parecer morta? perguntou a José.
- Sou, confessou José. Não valia a pena implicar Bana Jivaka e o plano tinha sido efectivamente seu. - Ela estava dominada por mim quando tentou matar Gaius Flaccus, acrescentou, na esperança de que a sua mentira afastasse a ira deles de Maria.
- Isso não é verdade, protestou Maria. - A culpa é minha. Eu quis vingar-me de uma coisa que ele me fez.
Plotinus voltou-se para Gaius Flaccus: - É verdade o que este homem disse ontem? perguntou. Tu seduziste-a?
- Já foi há muito tempo, disse o tribuno, desajeitadamente. - Eu... eu tinha-me esquecido disso.
- Não me interessam os restos de outros homens, disse o gymnasiarchus com desprezo. - Esta mulher é tua, faz dela o que quiseres.
- Que vais fazer de José? perguntou Maria rapidamente.
- Ela tem de morrer, disse Plotinus redondamente, por ter ajudado os judeus a fugir.
- Mas fui eu quem lhes deu tempo para fugir, protestou Maria. - A culpa é minha.
- Ajoelha-te, sanguessuga, ordenou Plotinus. - A tua cabeça vai rolar às minhas próprias mãos!
Como José ficasse de pé, orgulhosamente, recusando-se a ajoelhar, Plotinus lançou uma ordem e dois dos soldados agarraram-no violentamente e forçaram-no a ajoelhar-se. Compreendendo que não conseguiria influenciar Plotinus, Maria voltou-se, desesperada, para Gaius Flaccus. - Salva a vida de José e serei tua escrava, suplicou. - Se ele morrer, mato-me.
Gaius Flaccus hesitou. A sua posição não era tão elevada como a de Plotinus, mas conhecia Maria suficientemente bem para saber que ela levaria a cabo a sua ameaça. Ao ver a hesitação dele, Maria acrescentou: - Eu sou rica. Tu e Plotinus podem dividir a minha riqueza, se pouparem José.
Plotinus estava a ouvi-la. Não era segredo para ninguém em Alexandria que estava sempre cheio de dívidas. Ao ouvir falar das riquezas de Maria, os seus olhos começaram a brilhar, e baixou lentamente a espada. - Quanto vales tu? perguntou.
- Cem talentos áticos de prata. Talvez mais. Plotinus praguejou entre dentes e os seus olhos brilharam mais de cupidez. Cem talentos áticos era mais dinheiro do que a maioria dos homens ricos possuía durante a vida.
- Não faças isso, Maria, suplicou José. - Antes quero que me tirem a vida do que saber-te escrava de Gaius Flaccus.
- Sou eu a única culpada de tudo isto, disse ela em voz baixa. - Tu não deves sofrer por mim, José. Que dizes? perguntou, voltando-se para Plotinus.
Plotinus entregou a espada que empunhara ao soldado de cuja bainha a arrancara. - Está combinado, então, disse, obviamente ansioso por tomar posse do dinheiro. - Flamen será tua escrava, Gaius Flaccus, durante toda a tua vida. E as suas posses serão divididas entre ambos. Levantem-no, disse aos soldados que seguravam José. - Levem-no até ao cais e metam-no no primeiro barco para a Judeia. E digam ao comandante que eu o considero pessoalmente responsável se o médico das sanguessugas não for bem guardado até o barco sair do porto.
- Vem judeu, ordenou o soldado, empurrando José com o pé. Ele não teve outra hipótese senão obedecer e nem conseguiu falar de novo com Maria. Na última visão que teve da sua amada, estava ela de pé, entre os dois romanos, com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, os braços estendidos para ele, num gesto de despedida. Vendera-se como escrava pelo preço da sua vida.
EMAÚS
O outono voltara a Jerusalém. Sobre as colinas escarpadas, cinzentas e nuas à brisa fria do nordeste, as árvores agarravam-se precariamente ao solo fino, estendendo os ramos desprovidos de folhagem. A madrugada estava a romper e a grande cidade branca emergia lentamente das sombras da noite. Do cume das colinas, o sol nascente começara já a dourar a cúpula do templo. E, para lá do Vale de Kedron, a fortaleza Antónia, sombria lembrança de que Roma governava até à cidade santa dos Judeus, erguia-se como uma ameaça sobre a cidade adormecida. Numa manhã como aquela, vários anos antes, a populaça descobrira, ao acordar, que Pontius Pilatus, Procurador da Judeia, tinha cumprido a sua ameaça de expor as águias de Roma em Jerusalém, trazendo-as sob guarda armada, durante a noite, e colocando-as sobre a fortaleza.
Pilatus tinha sido suficientemente esperto, nessa altura, para não vir ele próprio a Jerusalém. E, uma vez que apenas ele podia dar ordem para que os estandartes fossem abaixados, uma enorme multidão viu-se forçada a percorrer as montanhas e os vales estreitos, numa viagem de dois dias a Cesareia, a pé, para lho pedir. Durante quatro dias, os judeus esperaram pacientemente na praça, lamentando aquela ignomínia que lhes era imposta em nome de Roma, visto que ia contra as antigas leis entregues a Moisés que se erguesse em Jerusalém "qualquer imagem esculpida". Talvez Pilatus, numa daquelas iras negras que às vezes o assaltavam, esperasse que os judeus resistissem. Assim, poderia ordenar aos soldados que dominassem o povo, tal como tinha feito noutras alturas. Mas, nessa altura, a resistência foi apenas passiva. Finalmente, incapaz de lidar com um povo que se limitava a ficar ali parado a lamentar o seu Deus pela afronta que Lhe tinha sido feita, Pilatus dera ordem para que os estandartes fossem baixados.
Agora, quando o sol subia pelas arestas da grande fortaleza e penetrava no pátio, as águias de Roma já não se exibiam perante o povo, a recordar-lhe a sua situação de país conquistado. Mas as vestes de cerimónia do sumo-sacerdote e seus assistentes continuavam fechadas dentro de arcas na fortaleza Antónia. E, antes de cada festa religiosa, os sacerdotes eram forçados a ir ao quartel general dos romanos pedir às autoridades permissão para os usar.
O Monte de Sion foi o primeiro a emergir totalmente sob a luz do Sol, porque sobressaía entre as outras cinco colinas sobre a qual a cidade estava construída, com as suas vertentes cobertas com os palácios e as villas dos ricos. O terreno baixo, para norte, onde se amontoavam as cabanas e telheiros dos pobres, estava ainda às escuras, mas já aí havia gente que se movia, pois um homem precisava de todas as horas do dia para ganhar o pão para a sua família, se tivesse sorte de ter trabalho, ou para pedir nas ruas, se não a tivesse.
Do templo vinha o tinir de aço contra aço, o bater de pés em marcha, e o som das agudas vozes de comando, pois a guarda romana fazia o último turno de inspecção da noite, antes de regressar a Antónia, onde a guarnição se encontrava. Dia e noite, as espadas dos conquistadores eram desembainhadas diante dos portões do santuário dos judeus, para que não esquecessem que, embora o seu Deus reinasse sobre os terraços exteriores, era Roma quem tinha o poder de vida ou de morte nos dezanove degraus que levavam aos níveis superiores.
Lentamente, a luz do sol penetrava nas ruelas estreitas, e a cidade acordava. Homens que bocejavam e se espreguiçavam erguiam as esteiras e dobravam os tabiques que tinham servido para esconder as portas abertas das lojas, durante a noite. Surgiam mulheres nos pátios mais pequenos, onde canos abertos forneciam a todos a água trazida de nascentes distantes pelo aqueduto construído por Pontius Pilatus e pago com o "tributo do templo", outro acto de propositada crueldade devido ao qual os judeus nunca deixariam de odiar o Procurador romano. Enchendo as suas bilhas, corriam para casa antes que os homens se começassem a lavar e descobrissem que as suas mulheres tinham sido imprevidentes ao ponto de não trazer água na noite anterior para as abluções matinais que judeu algum ousava omitir.
Um vendedor ambulante, seguido da sua mula, atravessou as ruas estreitas, escorregando aqui e além, porque as pedras do chão estavam húmidas do orvalho da noite. Apregoava o seu azeite, o seu pão e os saquinhos de figos e tâmaras, para que ninguém que não tivesse conseguido preparar comida no dia anterior precisasse de sair sem uma crosta de pão molhada em azeite, alguns figos e tâmaras, ou uma caneca de leite de cabra do odre que trazia pendurado no dorso da mula.
Nas lojas, os artífices estavam já a preparar as ferramentas dos seus ofícios e os materiais em que trabalhavam durante o dia, os martelos e as punções, pequenas bigornas, furadores para cabedal, fio encerado e agulhas de aço de Damasco para coser, teares para fiar, e potes com tintas para tingir. Os escribas preparavam as suas tabuinhas de cera e rolos de papiro para elaborarem cartas e documentos legais, pequenos tinteiros e estiletes de metal para escreverem sobre cera. Por toda a parte surgia a actividade apressada que caracterizava o dia, e alguém que se pusesse à escuta, no cimo do Monte de Sion, poderia ouvir a voz da cidade a erguer-se, ainda abafada pelos resíduos do sono, mas ganhando volume e força, à medida que os minutos passavam nos relógios de água.
Logo que acordavam, os judeus de Jerusalém começavam a dirigir-se para o templo, que era o centro da vida da cidade, o próprio coração da sua existência. No mais baixo dos três terraços, o Pátio dos Pagãos, com as suas inscrições em diversas línguas, avisando os não crentes de que não deveriam subir as escadas proibidas até ao andar superior, enchia o ar um tinir de moedas, pois os cambistas começavam a dispor as suas mesas. Aí quaisquer peregrinos poderiam trocar o ouro romano, proibido para uso em sacrifícios porque tinha a imagem gravada do Imperador, por uma moeda judaica aceitável, o "Shekel do templo"1. O facto de ele ser geralmente escandalosamente enganado em tal troca era aceite com naturalidade por todos, pois não era verdade que os lucros entravam nos cofres do templo e se tornavam também numa oferta a Jeová?
Construído em forma de quadrado com quinhentas varas de lado, o grande templo encontrar-se-ia dentro de pouco tempo apinhado de gente de todas as nações, na sua maioria judeus em peregrinação ao santuário de Jerusalém, que todo o devoto adorador de Jeová tentava fazer com a maior frequência possível. Contudo, grande número dos visitantes
Antiga moeda hebraica de prata. (N. do T.)
era constituído por turistas, porque Jerusalém se encontrava bem situada nas rotas das caravanas para o Egipto e também da Grande Estrada Central que atravessava as terras altas da Judeia e se dirigia para norte.
Sobre o segundo andar do templo, reservado apenas a judeus, ficava o terceiro e último andar, onde apenas os sacerdotes podiam entrar. E aí, escondido do olhar de todos, com excepção dos sumamente devotos, ficava o Santo dos Santos, onde repousava a Arca da Aliança. Quando o sol começava a aquecer o terraço dos sacerdotes, aqueles que tinham sido seleccionados para oficiar haviam terminado as abluções rituais e envergado os imaculados trajos brancos que lhes competiam. O primeiro sacrifício jazia sobre o altar e o archote para inflamar a oferenda a queimar ardia no seu suporte. Um profeta de Israel falara um dia contra aquela rígida cerimónia, por vezes tão pormenorizada que o seu propósito acabava por ser esquecido. Chamava-se Mica e dissera:
Com que devo apresentar-me diante de Jeová e curvar-me diante do Deus poderoso? Deverei apresentar-me diante dele com oferendas queimadas, com vitelos de um ano? Bicará Jeová satisfeito com milhares de carneiros, com dez milhares de rios de azeite? Deverei dar-lhe o meu primogénito pelas minhas faltas, o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma? Ele mostrou-te, ó homem, o que é bem feito; e que deseja Jeová de ti, senão que procedas justamente, que ames a bondade, que sejas humilde diante de Deus?
Mas o poder dos Fariseus dava grande importância ao modo como se fazia o culto do Todo Poderoso em Jerusalém. E os Saduceus da classe sacerdotal reconheciam o amor do povo pela forma e pelo ritual, de modo que a solene vigarice do templo prosseguia todos os dias.
Agora as trombetas faziam ecoar um som alto e claro, proveniente do andar superior, e as suas notas flutuavam sobre a cidade no ar frio da manhã. Os grandes portões abriram-se no momento em que a faca ritual do sacerdote baixava certeira para cortar a garganta ao cordeiro do sacrifício. O sangue jorrou e um suspiro saiu das bocas da assistência reunida para assistir ao início do culto do dia,
A música das harpas e das cítaras e as notas claras das trombetas caíram sobre a cidade que despertava, vindas do alto do templo. Os judeus devotos baixaram as cabeças, enquanto que os que se encontravam no andar inferior do templo se prosternavam. O archote largou fogo à oferenda e o fumo do incenso subiu para o céu no ar parado da manhã, enquanto os levitas batiam os seus discos de metal, e um coro entoava um poema de adoração ao Todo Poderoso.
Começara um novo dia em Jerusalém, a Cidade Santa dos Judeus.
Os raios do sol que se elevava penetraram suavemente no jardim de José em Jerusalém. O outono tinha chegado, mas o jardim continuava belo, porque as laranjeiras e os limoeiros não perdiam as suas folhas, assim como as oliveiras, e havia ainda muitos frutos suspensos nas árvores. As abelhas zumbiam por entre as folhas e a fragrância das madeiras perfumadas enchia o ar. Embora fosse rico, José não habitava no Monte de Sion, na zona superior da cidade, onde os palácios dos muito ricos pontilhavam a vertente. Quando chegara a Jerusalém, comprara um pedaço de terreno na vertente ensolarada da colina ocidental da Área Superior, ao seu tio e homónimo, José de Arimateia. O velho mercador gozava de pouca saúde e chegara ao ponto de ter mandado escavar o seu túmulo num maciço de granito que se elevava a um canto do jardim. José sabia que devia muito do seu êxito como médico ao facto de o tio o ter recomendado a Pontius Pilatus e o ter ajudado a obter a posição de medicus viscerus no templo. Por isso, tinha ficado satisfeito quando José de Arimateia se oferecera para lhe vender uma parte da sua propriedade em Jerusalém, de modo que o jovem médico pudesse estar sempre convenientemente perto quando o mercador sofresse de um dos seus ataques de dores e dificuldade em respirar, que, por vezes, lhe punham a vida em perigo.
Nessa manhã José encontrava-se no jardim desde muito cedo, caminhando pelos carreiros molhados pelo orvalho, entre as árvores e as videiras, e conversando com o velho que trabalhava como seu jardineiro. Desde a morte de sua mãe, alguns anos antes, vivia só, e apreciava especialmente aqueles curtos momentos da manhã, observando as árvores e as flores e as canções matinais dos pássaros que ali acorriam porque eram diariamente alimentados. Um outro motivo porque gostava do jardim era o de lhe recordar um outro que dava para o Mar da Galileia, em Magdala. Só faltava uma coisa para completar a cena, contudo - a voz de uma rapariga erguendo-se numa canção, uma rapariga cujos cabelos eram tão vermelhos como as romãs que ali cresciam na sua época.
Parecia-lhe que tinham decorrido mais de seis meses e meio, pensou José, desde que fora arrancado aos braços de Maria no palco do grande teatro de Alexandria e forçado a seguir para o porto, sob guarda armada. Mas a recordação dela, ali, de pé, com o seu corpo encantador envolto numa capa branca e os cabelos caídos sobre os ombros como uma nuvem cobreada, jamais o abandonaria. Na realidade, ela encontrava-se agora mais perto dele, porque Gaius Flaccus tinha sido mandado para Séforis, a capital de Herodes Anti-pas na Galileia, como comandante de todas as tropas romanas na área, tal como ele próprio predissera. Séforis ficava a cerca de três dias de viagem, de mula, ou dois de camelo, mas José não tentara vê-la, pois sabia que isso apenas serviria para abrir novas feridas e provocar-lhe maior infelicidade.
Contudo, havia grande movimento entre a corte de Herodes e Jerusalém, pelo que era inevitável que ele tivesse notícias de Maria, de vez em quando. Ela vivia, ao que se dizia, como amante ou companheira de Gaius Flaccus, uma posição pouco melhor do que a escravidão para que se oferecera em troca da vida de José e das vidas dos judeus de Alexandria. Os galileus, pelo que ouvia, chamavam-lhe concubina e acusavam-na de adultério, pois nem era propriamente casada com o homem com quem vivia, nem era propriamente uma escrava.
Segundo as informações que José recebia, Gaius Flaccus tratava-a mal, exibindo-a aos seus visitantes não como uma esposa, mas como uma amante, e nunca se esquecendo de lhe recordar a sua posição na casa dele. Conhecendo o espírito orgulhoso de Maria, José perguntava por vezes a si próprio como é que ela conseguia aguentar um tal tratamento. Por vezes, quando a saudade dela lhe parecia insuportável, pensava em ir a Séforis e arrancá-la de casa de Gaius Flaccus. Mas um tal gesto seria uma loucura, porque o poderio de Roma não poupava pessoa alguma, naquele país conquistado, e do seu acto impetuoso poderia facilmente resultar a morte para ambos.
Quando José acabou de dar as suas instruções ao jardineiro, o liberto Rufus, que se ocupava da sua casa, chegou ao jardim: - O nobre Nicodemus mandou-te dizer que tomaria o pequeno almoço contigo, senhor, disse lhe. - Já mandei pôr dois lugares na mesa do terraço.
Nicodemus atravessava já o portão que dava para a propriedade vizinha, e José apressou-se a ír saudá-lo. Dez anos mais velho do que José, era um brilhante estudante de leis e membro do Sinédrio, o conselho governativo dos judeus. O seu trabalho de leis levava Nicodemus a todas as partes da Judeia, Galileia, Pereia, e mesmo até Antióquia, capital de toda a província, pois era respeitado tanto por judeus como por romanos. Era alto e tinha um ar de autoridade, com os cabelos grisalhos nas têmporas. Tal como José, Nicodemus parecia pessoa altamente reservada até sorrir, mas, nessa altura, o calor do seu olhar demonstrava a profundidade do seu carácter e da sua compreensão.
- Shalom, amigo dos amigos, disse o advogado, olhando atentamente para José. - Pareces fatigado, talvez devesses viajar também.
- Não tenho tempo para andar para cá e para lá como tu, disse José, sorrindo. - Já me basta ter de visitar Cesareia todos os meses para tratar de Procula.
- Ela e Pontius Pilatos estão em Tiberíades agora. Ouvi dizer que lá passarão o inverno.
José sentiu que o seu coração dava um salto ao ouvir boas notícias. Com Claudia Procula e Pilatus em Tiberíades, teria um motivo legítimo para voltar à Galileia. E talvez conseguisse ver Maria, mesmo que fosse à distância. - Quais são as notícias da Galileia? perguntou. - Herodes Antipas continua a conspirar para libertar a Judeia dos seus procuradores?
- Incansavelmente. Mas, quanto mais conheço aquele aborto de Herodes o Grande, mais respeito os romanos.
- Incluindo Pontius Pilatus?
Nicodemus encolheu os ombros. - Não existe um romano bom, penso eu. Disseram-me em Séforis que Pilatus está cada vez mais caprichoso e temperamental. E aquele sobrinho dele, o Gaius Flaccus, é o homem mais odiado de toda a Galileia.
José afastou o olhar, para não revelar as perturbantes sensações que lhe causava ouvir falar de Séforis e de Gaius Flaccus.
- Fui jantar ao palácio de Herodes, prosseguiu Nicode-mus. - Gaius Flaccus estava presente e levou com ele a mais bela ruiva que jamais vi. Há quem diga que é uma escrava, mas é evidente que é uma senhora, e outros afirmam que é sua amante.
- É conhecida assim em Séforis? José conseguiu, com esforço, controlar a voz.
- E em toda a Galileia, concordou Nicodemus. - Odiando Gaius Flaccus como odeia, seria difícil de esperar que o povo da Galileia amasse uma judia que vive com ele, mesmo que estivessem casados.
- Mas ela entregou-se a Gaius Flaccus para salvar alguém que amava, exclamou José indignado.
- Sim? - Os olhos de Nicodemus brilharam de interesse. - Como sabes tudo isso?
José não tinha outra alternativa além de contar-lhe toda a história. - É estranho, disse Nicodemus, mas eu teria jurado que Maria de Magdala já não odeia Gaius Flaccus, embora tivesse todos os motivos para isso, dada a maneira como ele a trata.
Seria possível que Maria tivesse começado a amar o homem que odiara ao ponto de lhe querer tirar a vida? perguntava José a si próprio. O simples facto de o pensar era uma deslealdade para com ela, e, contudo, a sua experiência como médico revelara-lhe que o coração de uma mulher é algo que um homem nunca pode esperar compreender. Recordava-se agora do que Demetrius dissera havia longo tempo, que uma mulher nunca conseguia vencer por completo o choque emocional de ser possuída por um homem, e que algo dentro dela, um qualquer instinto selvagem para além da razão, poderia arrastá-la de novo para ele.
- Não diria que ela o ame como uma mulher ama o marido, no entanto, acrescentou Nicodemus. - Na realidade, o modo como ela se comporta com Gaius Flaccus assemelha-se mais ao modo como agem aqueles que se encontram sob o encanto de Jesus de Nazaré.
- Tu viste-o ? perguntou José surpreendido. Não esperava que um doutor em leis como Nicodemus prestasse atenção àquele género de fanáticos que estavam sempre a provocar agitação naquela região turbulenta. Mas Jerusalém fervilhava, ultimamente, com notícias dos feitos do Nazareno, de modo que José sentia interesse, mesmo que fosse só por curiosidade.
- Sim, vi-o, disse Nicodemus lentamente, com a voz subitamente distante. - Vi-o em Cafarnaum. E quase me senti persuadido a segui-lo.
- Apercebes-te do que estás a dizer? perguntou José, incrédulo. Uma coisa era os galileus darem grande importância ao homem chamado Jesus. Toda a gente sabia que as suas emoções eram inconstantes e que eles já tinham antes seguido falsos chefes apesar dos grandes desgostos que isso lhes trouxera. Mas Nicodemus era um aristocrata de Jerusalém, um fariseu entre fariseus, e um membro do próprio Sinédrio. Para ele, aceitar o mestre de Nazaré, cujos feitos atraíam cada vez mais as atenções da Cidade Santa, era quase um endosso do próprio sumo-sacerdote Caifás.
- Também me sinto espantado, quando penso como estive perto de abandonar tudo e juntar-me à multidão de galileus que segue Jesus, confessou Nicodemus.
- O homem deve ser um feiticeiro, então, para te ter assim perturbado.
Nicodemus abanou a cabeça. - Não é um fanático, como tantos houve na Galileia. Na realidade, Jesus pode muito bem ser aquilo que muitos dos seus seguidores crêem que seja, o Messias.
- Conta-me o que se passou, sugeriu José, pois era óbvio que Nicodemus não estava a pensar claramente.
- Fui a Cafarnaum resolver uma questão legal de um homem chamado Zebedeu, que possui a maior peixaria do lago, explicou Nicodemus. - Os filhos de Zebedeu e um homem chamado Simão, que era o chefe dos pescadores, tornaram-se todos discípulos de Jesus, de modo que o velho se viu forçado a vender a loja.
- Certa vez tratei Simão de um braço partido durante uma zaragata por causa do Messias. Ele já tinha defendido antes causas radicais, assim como os filhos de Zebedeu.
- Não foi o fanatismo que levou Simào e os outros a seguir Jesus, insistiu Nicodemus. - O mestre vinha a descer a costa, certo dia, quando Simào e André, seu irmão, lançavam as redes. Ele apenas lhes disse: "Segui-me e farei de vós pescadores de homens". Foi o suficiente para que eles largassem as redes e se tornassem seus discípulos. O mesmo sucedeu com os filhos de Zebedeu, João e Tiago.
- Como consegue ele enfeitiçar as pessoas? perguntou José.
- Só escutando-o compreenderias, explicou José. - O que Zebedeu me disse despertou a minha curiosidade, pelo que me juntei a uma multidão que escutava Jesus. Digo-te, José, que havia ali gente não só da Galileia, mas das cidades do Decapolis, de Jerusalém e da Judeia, e mesmo das regiões para lá do Jordão. O mestre teve que subir a vertente da montanha para que todos o ouvissem.
- Recordas-te do que ele ensinou?
- Isso também é muito estranho. O que ele disse ficou tão gravado na minha memória com os textos que aprendi para o Bar Mitzvah. Eram coisas simples, tais como:
Bem aventurados os pobres em espírito, pois deles será o reino dos céus.
Bem aventurados os que sofrem, pois serão confortados.
Bem aventurados os mesquinhos, por herdarão a terra.
Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos.
Bem aventurados os misericordiosos, porque obterão misericórdia.
Bem aventurados os que têm um coração puro porque verão a Deus.
Bem aventurados os pacíficos porque serão chamados filhos de Deus.
Bem aventurados são aqueles que os homens insultam e perseguem e falsamente acusam de todos os males por causa de mim. Alegrai-vos e sede felizes, pois a vossa recompensa será grande nos céus.
- E um bom conjunto de princípios, confessou José, mas não são novos. Os filósofos gregos disseram mais ou menos o mesmo, e outro tanto fez um escritor da nossa própria raça no Testamento de Deus. Ainda na noite passada o li. - Foi a casa e voltou com um rolo. - Ora ouve:
"O ódio é pois um mal, porque constantemente se alia à mentira, falando contra a verdade; e aumenta as coisas pequenas e faz com que a luz seja escuridão e chama doce ao que é amargo, e ensina a calúnia e alimenta a ira, e agita a guerra, e a violência, e a cobiça; enche o coração de venenos maléficos e diabólicos.
A justiça expulsa o ódio, a humildade destrói a inveja. Porque aquele que é justo e humilde envergonha-se de fazer o que é injusto, sendo reprovado não pelos outros, mas pelo seu próprio coração, pois o Senhor vela pelas suas inclinações. "
- As suas doutrinas são semelhantes, confessou Nicode-mus. - Lembrei-me do Testamento de Deus e dos ensinamentos de Esdras1, enquanto o escutava.
- Mas ainda há mais, prosseguiu José:
"E agora, meus filhos, exorto-vos a que cada um ame o seu irmão e afaste o ódio do coração, a que vos ameis uns aos outros em actos e em palavras, e dentro das vossas almas.
Se um homem prosperar mais do que vós, não vos sintais envergonhados, mas antes rezai por ele, para que possa ter uma perfeita prosperidade. Pois é isso que é conveniente. E se ele se elevar ainda mais, não deveis sentir inveja dele, lembrando-vos de que toda a carne deve morrer; e oferecei louvores ao Senhor, que dá todas as coisas boas e vantajosas aos homens."
Quando José enrolou o pergaminho, Nicodemus esfregou o queixo pensativamente. - Reconheço que os ensinamentos de Jesus não são novos, confessou. - Mas há algo no homem propriamente dito, algo que não se pode transmitir por palavras, que nos faz desejar segui-lo.
- Como é ele?
- É alto e bem proporcionado. E o seu rosto está cheio de bondade. Usa o cabelo comprido e uma barba como a dos nazarenos.
- Essa descrição adapta-se a qualquer outro judeu com bom aspecto, objectou José, sorrindo.
- Na verdade, recordei-me de ti, quando o vi pela primeira vez, disse Nicodemus. - Tens a mesma bondade no teu rosto. Mas os olhos de Jesus são impressionantes. São azuis e muito brilhantes, como se pudesse ver para dentro da nossa própria alma. E as suas mãos são mãos de quem sabe curar, José, muito semelhantes às tuas.
1 Esdras, famoso doutor Judeu. Séc. V a. C. (N. do T.)
- Viste-o fazer algumas curas? perguntou muito interessado o jovem médico. - Se ele é o Messias como dizem, deveria ser capaz até de ressuscitar mortos.
- Ao que sei, Jesus apenas afirma ensinar as palavras do Todo Poderoso e a vinda do reino de Deus aos corações e às almas dos homens através do arrependimento e de uma vida justa. Mas murmura-se que, quando ele o disser, milhares de galileus que crêem que ele é o Messias, erguer-se-ao contra Roma, acreditando que o Todo Poderoso entregará os seus inimigos nas suas mãos.
- São ensinamentos perigosos. Relataste-os ao Sinédrio? Nicodemus abanou a cabeça. - São coisas que as pessoas espalham, José, mas Jesus nada ensina desse género. E estou certo de que ele não encorajou aqueles que lhe chamam o Messias.
- Ele vive no território de Herodes Antipas, salientou José. - É de calcular que Herodes se sinta perturbado com isso.
- Provavelmente sente-se, admitiu Nicodemus. - Caifás pediu-me que investigasse Jesus, nesta viagem. Creio que suspeita de que Herodes planeia usar o mestre para agitar o povo e talvez dar início a uma rebelião. Acabando com ela, Herodes conseguiria convencer Tiberius de que poderia governar todos os judeus.
- Que vais dizer ao sumo-sacerdote?
- Só aquilo de que estou certo, disse Nicodemus. - Que Jesus é apenas um grande mestre, ou talvez mesmo mais um profeta, a menos que... - Parou e depois prosseguiu de novo: - A menos que seja realmente o Messias e o Filho de Deus.
Cerca de uma semana após a sua conversa com Nicodemus, ao chegar a casa, certa noite, José viu uma mula coberta de poeira e suor em frente da porta. No átrio, um homem alto, vestindo roupas brancas sujas de poeira, discutia com Rufus, o seu escravo liberto.
- Hadja! Meu velho amigo! - José abraçou o músico nabateu. - Onde tens estado?
- Vivo na casa de Demetrius em Magdala, para estar perto da Chama Viva.
- Mas tudo o que ela possuía foi para Gaius Flaccus e Plotinus.
- A casa pertencia a Demetrius. Não fazia parte da lista das suas posses.
José observou a magreza de Hadja e as marcas da fome no seu rosto. - Porque não vieste ter comigo para que te ajudasse? perguntou. - Julgas que te deixaria passar faltas enquanto tivesse um pedaço de pão para comer e um tecto sobre a minha cabeça?
Hadja sorriu. - Nós, os homens do deserto, somos rijos. Um pouco de fome não me faz mal. Mas a Chama Viva precisa de ti em Séforis, José. Pediu-me que te dissesse que lá fosses o mais depressa possível.
- Está doente ? perguntou José, imediatamente alarmado.
- Nada mais me disse, respondeu Hadja enigmaticamente. - Mas sei que não é para ela que precisa de ti.
José não perdeu tempo com perguntas. Maria tinha-o mandado ir de Jerusalém a Séforis; tanto lhe bastava. Ela nunca lhe teria pedido ajuda se não precisasse realmente dele.
A viagem de noite não era aconselhável pelas longas rotas das caravanas para o norte porque os terrenos montanhosos e selvagens eram frequentados por bandos de ladrões e gaíi-leus rebeldes. Enquanto José e Hadja comiam a refeição da noite, Rufus foi comprar dois camelos rápidos. A madrugada do dia seguinte encontrou-os na Via Central que atravessava as cordilheiras de Samaria em direcção ao norte, passando por Beeroth, Sechem, e a própria cidade de Samaria, até Engannim, onde se juntava à Estrada do Mar, desde Joppa até às cidades da planície da Galileia.
Ao fim do segundo dia, chegaram ao cume de uma colina e avistaram a cidade de Nazaré, situada perto do cimo de uma íngreme vertente, a poucas milhas de distância das colinas da Galileia. Aí pararam para permitir aos camelos cansados que recuperassem o fôlego.
José encontrava-se extremamente fatigado, porque não estava habituado a viagens tão rápidas, mas, mesmo assim, conseguia apreciar a rude beleza daquela região montanhosa, entre o lago e o mar. Para oeste, as alturas do Monte Carmel revelavam a situação da costa marítima, a menos de cinquenta milhas romanas de distância, e, para sul, ficava a vasta planície de Esdraelon, que eles tinham acabado de atravessar. A leste erguia-se o Monte Tabor, e, lá muito longe, para norte, brilhava ao sol da tarde o cume nevado do Monte Hermon. O cenário pacífico, embora majestoso, trouxe-lhe à memória as palavras do Salmo:
O Norte e o Sul, Tu os criaste:
Tabor e Hermon dão graças ao Teu nome.
- Séforis fica além, para o norte. - A voz de Hadj a fez José regressar ao presente. - Daqui podes ver facilmente o teatro.
A cerca de cinco milhas erguia-se uma grande cidade, entre colinas. Tendo sido, em determinada altura, o maior centro da Galileia, Séforis fora sede do governo daquele distrito, durante séculos. Judas o Gaulonita tinha-a capturado durante a sua fatídica pretensão ao Messianato e a consequente revolução. Na vertente da colina em frente da cidade dois mil judeus haviam sido pregados em cruzes, pelos romanos, como retaliação pelo levantamento abortado. Séforis tinha sido queimada por completo e os seus habitantes vendidos como escravos, como aviso solene aos galileus de que era Roma quem ali mandava e não toleraria qualquer deslealdade.
Herodes Antipas tinha reconstruído Séforis havia poucos anos, contudo, tornando-a, por algum tempo, a mais brilhante jóia entre as cidades da fértil província. Depois, os seus interesses, sempre caprichosos, tinham-se voltado para a cidade mais recente de Tiberíades, na margem do lago. Agora, o palácio de Séforis estava ocupado apenas durante parte do ano, mas a cidade continuava a ser o quartel general da grande guarnição romana que se encontrava sempre a postos na intranquila Galileia.
Os camponeses que tinham ido cultivar os seus campos durante o dia enchiam as estradas que levavam a Séforis, ao fim da tarde, empurrando à sua frente mulas carregadas de produtos para o mercado. Os camelos foram forçados a andar a passo, quando José e Hadja penetraram nas ruas apinhadas, até que chegaram ao magnífico grupo de palácios que constituíam o centro do governo de Herodes e os alojamentos dos romanos. Em frente de uma villa de pedra branca, a que apenas era superior em magnificência a própria residência de Herodes, Hadja fez parar os animais. - Este é o palácio de Gaius Flaccus, disse. - A patrícia Claudia Procula deve estar aqui, e talvez mesmo o Procurador também. A Chama Viva mandou-os chamar antes de eu chegar.
Levando debaixo do braço o nartik que continha os seus remédios e instrumentos, José passou por dois soldados que guardavam o portão e entrou no vasto e fresco átrio que constituía o centro da casa. Quase imediatamente, veio ao seu encontro Claudia Procula, com as mãos estendidas em sinal de boas-vindas - Maria e eu temos estado a rezar para que viesses depressa, José, disse ela. - Todos nos sentiremos melhor, agora que tu chegaste.
- Vim o mais depressa que pude, disse ele, curvando-se numa vénia cortês.
- Tanto Pontius como eu ficámos muito satisfeitos por Maria te ter mandado chamar. Sabíamos que se alguém pudesse salvar Gaius Flaccus, serias tu.
- Gaius Flaccus?
- Mas sabias que ele está doente, não sabias?
José abanou a cabeça. - Sabia apenas que Maria precisava de mim.
- Está gravemente doente, disse ela. - Sei que tens todos os motivos para odiar Gaius Flaccus, José. Mas Maria perdoou-lhe o que ele lhe fez e eu sei que lhe salvarás a vida, se puderes.
- Ela perdoou-lhe? - Aquele dia era cheio de surprezas. Procula acenou afirmativamente. - Os ensinamentos de
Jesus parecem transformar as pessoas por completo, na verdade, mesmo quando ouvidos através de outrém.
- Maria segue o mestre de Nazaré? perguntou ele incrédulo.
- Sim. E há mais gente na Galileia que o segue do que julgarias possível. Se eu tivesse a coragem de admitir aquilo que sei ser verdade, no meu coração, estaria entre essa gente.
- Talvez seja melhor irmos ver o doente, disse José, um pouco confuso. - Ouvi dos teus lábios palavras que me custam a compreender. Contudo, sei que a patrícia Claudia Procula fala sempre a verdade.
- Obrigada, José, dise ela com gratidão. - Deus me dê forças para a dizer aos outros como te disse a ti.
O acidente que sucedera a Gaius Flaccus, segundo a história que Procula contou a José, poderia ter sucedido a qualquer outra pessoa. O seu cavalo tinha caído, durante uma caçada ao veado, mas a ferida que ele fizera na perna parecia insignificante. Alguns dias mais tarde, a pele em torno dele tornara-se vermelha e a perna começara a inchar. Seguiram-se rapidamente arrepios e febre e nos últimos dias tinha sido assolado pelo delírio.
Claudia Procula não entrou no quarto do doente com José, mas ele nem o notou, pois apenas viu a mulher ajoelhada a um canto do quarto, com os olhos fechados e os lábios movendo-se numa oração. Era um quadro que jamais esqueceria, porque aquela era uma nova Maria de Magdala, um pouco mais magra desde a última vez em que a vira, um pouco mais pálida, mas com os seus gloriosos cabelos de cobre bem vivos e um rosto ainda mais belo, na sua tristeza, do que ele jamais se recordava de o ter visto. Porque agora havia paz e serenidade naquelas feições que tanto recordara, bem como uma sensação de confiança num poder oculto.
Quando Maria abriu os olhos e viu José, o seu rosto iluminou-se e a cor acudiu-lhe às faces.
- José! exclamou, e o coração dele deu um salto de alegria ao ouvir o som da sua voz.- Sabias que virias.-Abraçou-o e beijou-o na face, apertando-o fortemente e conservando-se encostada a ele por momentos, como se necessitasse da força e da segurança da sua presença.
Ao vê-la de novo e ao recordar a luz que notara nos seus olhos ao vê-lo, José compreendeu que o amor dela ardia ainda tão fortemente como o seu. - Sinto-me feliz por te ver de novo, Maria, disse tranquilamente. - Estavas a rezar por Gaius Flaccus quando entrei?
- Sim. Custa-te a crer?
- Aprendemos, quando crianças, a advertência do Todo Poderoso: "Ama o próximo como a ti mesmo". Mas, se cu estivesse na tua situação, confessou, creio que não sentiria vontade de rezar por ele.
Ela sorriu. - Jesus diz "Ama os teus inimigos, abençoa os que te maldizem e reza por aqueles que te fazem mal e te perseguem".
O homem que estava no leito rangeu os dentes e praguejou. Os dois escravos que estavam junto dele correram a segurá-lo. Mas José fez-lhes sinal para se afastarem e pousou a mão sobre a testa do doente. Como se a consciência daquele gesto suave penetrasse na sua mente febril, Gaius Flac-cus acalmou-se um pouco. A pele estava quente e seca, por baixo dos dedos de José, o seu pulso era rápido e cheio, como se pretendesse rebentar a pele a cada pulsação. O estertor da sua respiração enchia o quarto e, enquanto balbuciava palavras e praguejava no seu delírio, os dedos percorriam constantemente as roupas da cama e o corpo, como se procurassem animais invisíveis.
À memória de José acorreu uma passagem dos escritos de Hipócrates:
Em caso de febres agudas... as mãos movem-se em frente do rosto, procurando agarrar algo, no espaço vazio, como se recolhessem pedaços de palha, arrancando os pelos da manta ou raspando a parede - todos estes sintomas são graves e mortais.
José encostou o ouvido à pele quente do peito do doente. Escutou em diversos pontos e, finalmente, detectou na zona inferior esquerda o sinal que procurava, um som seco, como o de couro contra couro, que revelava uma pleuresia profundamente enraizada. E, ao examinar o abdómen, o seu ar tornou-se mais sombrio, porque, ao mais leve toque, Gaius Flaccus se encolhia com dores, mesmo no seu delírio.
Na virilha esquerda ao cimo da perna ferida havia um grande inchaço vermelho, que parecia prestes a rebentar. Abaixo dele, todo o membro tinha uma cor de um vermelho vivo e o tecido parecia endurecido ao tocar-lhe. A ferida superficial propriamente dita parecia insignificante, quando José retirou as ligaduras. Era apenas um corte pouco fundo, mas os seus rebordos apresentavam-se nodosos e descoloridos, e saía da ferida um fino líquido seroso, o que constituía um sintoma muito mais grave do que se houvesse uma forte supuração.
Terminado o exame, José voltou a ligar o golpe e lavou as mãos cuidadosamente, pois sabia por experiência que as inflamações daquele género se transferiam muito facilmente de uma pessoa para outra, entrando num golpe ou arranhão tão rapidamente como haviam invadido a ferida inicial. Pensara muitas vezes como era aquilo possível, mas ainda não tinha encontrado a resposta, embora fosse certo que o físico Marcus Terentius Varro escrevera, centenas de anos antes:
"Talvez nos locais pantanosos vivam pequenos animais que não podem ser vistos, e que entram no corpo através da boca e das narinas e causam sérias perturbações."
Isto poderia bem explicar como se contraem certas doenças, acreditava ele. Mas ali parecia evidente que aquilo que estava a causar a perturbação tinha entrado pela ferida, pois esta era o centro do grave processo inflamatório. Seria possível que os minúsculos animais de que Varro falara entrassem no corpo pelas quebras dos tecidos? pensou ele. Se assim fosse, isso era um bom motivo para observar a máxima limpeza ao tratar de feridas, como Hipócrates defendia, e como José sempre procedera rigorosamente.
- Não há esperanças, disse Maria em voz baixa. - Vejo-o no teu rosto.
- O veneno invadiu o corpo inteiro, confessou José. - Até oiço o roçar das membranas inflamadas dentro do seu peito.
- Não podes fazer nada?
- O pulso bate com muita força, indicando uma pletora aguda. Vou sangrá-lo e envolver a parte inferior do corpo em fomentações quentes. Às vezes ajuda a acalmar o delírio.
Enquanto Maria mandava os escravos trazerem lençóis e água quente, José abriu o seu nartik e retirou dele um fino prego de aço, a lâmina usada para perfurar veias. Depois explicou a um dos escravos como devia apertar o braço de Gaius Flaccus por cima do cotovelo, distendendo os vasos sanguíneos já inchados. Rapidamente, mergulhou a lâmina, de um golpe, perfurando a pele e a parede da veia, vo!tando-a para separar os rebordos da minúscula abertura. Um fino fio de sangue, de cor escura e pouco saudável, correu para dentro da pequena tijela que um escravo segurava. Conservou a ferida aberta até ter enchido uma taça e depois retirou o prego e ligou o braço sem apertar.
Em seguida, José torceu os lençóis mergulhados em água quente e com eles envolveu os membros e a parte inferior do corpo do paciente numa espécie de casulo de tecido quente e húmido. Quando acabou, conseguiu convencer Gaius Flaccus a beber uma mistura de vinho e folhas de papoila, e, pouco depois, o tribuno acalmou-se e adormeceu naturalmente, pela primeira vez em vários dias.
Maria e José comeram juntos a refeição da noite numa pequena sala, ao lado do quarto do doente. Embora ela fosse tecnicamente uma escrava, ele notou que toda a criadagem a tratava com deferência e era obviamente muito respeitada e amada. - Mudaste desde que saiste de Alexandria, José, disse ela, quando a refeição terminou. - Es feliz em Jerusalém?
- Como podia ser feliz sabendo-te escrava? perguntou ele.
- Ajudar-te-ia saber que eu não me importo de ser escrava?
- Mas continuas a pertencer a outro homem.
Ela pousou a mão sobre a dele. - O meu corpo pode pertencer a Gaius Flaccus, disse ela com simplicidade - mas sabes que o meu coração é teu. Sempre foi, desde uma certa tarde em Tiberíades, há muito tempo.
Ele sorriu. - Quando me recordaste que nào era um médico mas sim um aplicador de sanguessugas? E que, além disso, devia tudo ao meu tio, José de Arimateia?
- Eras um bom aplicador de sanguessugas, disse ela calorosamente. - Tal como és um bom médico e um bom homem. O povo necessita de homens como tu, José. Deves tentar ser feliz com o teu trabalho.
- Estar aqui e ver-te fez-me feliz por algum tempo, pelo menos, confessou ele. - Mas gostava de voltar àqueles dias em Magdala.
- Estive na casa de Magdala algumas horas, na semana passada. Quase... quase me senti como a rapariga que era antes de tudo isto acontecer.
- Foi assim tão mau, então?
Ela estremeceu involuntariamente, ao recordar-se. - Por vezes pensei em matar-me, apesar da promessa que te fiz. Mas Claudia Procula tem sido muito bondosa. Pontius Pila-tus anda muito perturbado ultimamente, mas penso que, à sua maneira, também sente pena de mim. Nunca se sabe, com ele, é tão estranho, na maior parte do tempo ... Ultimamente, no entanto, Gaius Flaccus anda a beber mais do que o habitual, e houve alturas... - parou e a sua mão subiu, inconscientemente, à garganta. José reparou então numa nódoa negra que marcava a pele branca do seu pescoço, perto do local onde pulsava lentamente uma veia, no côncavo da garganta.
- Ele tentou estrangular-te! exclamou indignado. - Ainda vejo as marcas.
- Mal conseguia engolir durante vários dias, confessou ela. - Claudia Procula levou-me para casa até eu melhorar. E, enquanto eu cá não estava, ele foi à caçada.
- Pensar eu que vivia confortavelmente em Jerusalém, enquanto tu sofrias tais torturas porque te sacrificaste para me saYvar, censurou-se ele, amargamente. Como poderei alguma vez compensar-te, Maria?
- A culpada fui eu, insistiu ela. Foi por minha causa que estiveste tão perto da morte em Alexandria. Mas eu era outra pessoa, então, José. Algo de mau tinha tomado posse de mim.
- Estavas possuída por um demónio. Não era tua a culpa. Maria abanou a cabeça. - Demetrius tinha razão ao dizer:
"Os demónios que possuem os homens nascem dentro deles próprios". Quando era pequena, odiava o meu pai porque não podia ter as coisas que tanto desejava, brinquedos, felicidade, roupas como as das outras crianças, e tudo aquilo que uma rapariga gosta de ter, mesmo em pequena.
- Tinhas razão em odiá-lo. No fundo, ia vender-te como escrava.
Maria abanou a cabeça. - Deus tem razão ao dizer-nos que devemos honrar pai e mãe, José. Nada se ganha em odiar sejam quem for. Tive realmente que vir a ser escrava para compreender que podia, de facto, perdoar a meu pai até isso, se realmente o desejasse. Sei agora que carregava o fardo do ódio desde criança e já mesmo em rapariga, prosseguiu ela. - O que sucedeu com Gaius Flaccus em Tiberíades apenas me fez odiar mais intensamente, até toda a minha vida ficar dominada pelo ódio.
- Podias nunca ter vindo a ser a favorita de Alexandria, recordou-lhe ele, se o teu desejo de vingança não te tivesse forçado a alcançar o sucesso.
- Era outra pessoa a que viveu em Alexandria, José, disse ela seriamente. E essa pessoa morreu há muitos meses. Até acordar nas catacumbas da Necrópole e me dizerem que tu tinhas ido ao teatro tentar salvar Philon e os outros, eu apenas pensava em mim e no meu desejo de vingança. Mas algo me sucedeu ali no teatro. Senti que o Todo Poderoso aprovava finalmente o que eu estava a fazer, mesmo que a maior parte das pessoas me chamasse desavergonhada, por dançar nua perante a multidão, enquanto Philon e os outros fugiam. Nesse dia saiu finalmente de cima da minha alma o fardo do pecado e da culpa. Desde então, tenho sido uma pessoa diferente.
- "Quem me encontra, encontra a vida", são as palavras de Deus, recordou-lhe José, e o autor do salmo disse também: " Fazer justiça e actuar justamente é mais aceitável para o Senhor do que o sacrifício".
- Estou certa de ter encontrado de novo o Todo Poderoso, por me sentir disposta a sacrificar-me por aqueles cujas vidas estavam quase perdidas por minha culpa, concordou ela. - Mas não compreendi realmente o que estava a passar-se até ter conhecimento de Jesus.
- Fala-me dele, suplicou José.
Os olhos de Maria adquiriram um brilho quente. Por um rápido momento, José sentiu um espasmo de ciúme em relação àquele homem que jamais vira, e que parecia ter um tal poder sobre todos qu,e o escutavam. - íamos a passar por Cafarnaum, certo dia, disse ela, e fomos detidos por uma multidão, tendo os soldados que abrir caminho para nós. As pessoas odeiam-me porque vivo com Gaius Flaccus, mas têm medo de o amaldiçoar, de modo que se voltam contra mim por ser judia e chamam-me mulher perdida.
- Mas isso não é verdade...
- Não serviria de nada contar-lhes a verdade. Nesse dia começaram a chamar-me "Prostituta"! e "Adúltera!" porque sabiam que os soldados não podiam alcançá-los através da multidão. Sei que Jesus não os ouviu nem me viu, porque eu mal conseguia vê-lo. Mas, não sei como, as suas palavras chegaram aos meus ouvidos tão claramente como estou a ouvir-te agora,e pareceu-me que falava apenas para mim, Nicodemus rinha dito a mesma coisa, recordou-se José. Que estranho poder possuiria aquele mestre, que os homens não conseguiam esquecer as coisas que ele ensinava, quando esqueciam tão facilmente o que tinham aprendido em crianças, com os seus pais e na sinagoga?
As palavras de Maria interromperam-lhe os pensamentos. - Ouvi Jesus dizer: "Abençoados sejam aqueles que os homens atacam e perseguem e contra quem falsamente lançam todo o género de calúnias" ... É estranho, José, acrescentou ela. - Eu tremia de medo quando me chamavam "prostituta", e "adúltera", mas a partir dali deixei de me importar. Parecia que ele me tinha dado forças para suportar os insultos e ignorá-los ... Se o ouvisses, perceberias o que quero dizer. E Simão diz.. - Parou, de súbito, como se estivesse prestes a revelar algo que deveria esconder.
- O quê, Maria? perguntou ele. - Ou preferes que eu não o saiba? "
- Prometi a Simão não contar a ninguém, mas sei que ele não se importaria de que tu o soubesses. Ele diz que Jesus é o Messias.
- Mas se o Nazareno é realmente o Esperado, protestou José, a boa nova devia ser proclamada aos quatro ventos.
- Penso que Simão quer que ele tenha um número muito maior de seguidores antes de ser revelada a verdade.
José abanou a cabeça sobriamente. - Judas o Gaulonita também afirmava que era o Messias, recordou-lhe racionalmente, e Séforis foi o centro da sua rebelião. Mas dois mil judeus foram crucificados aqui pelos romanos e todos os habitantes da cidade forem vendidos como escravos. Isso voltará a suceder se os galileus forem suficientemente loucos para seguir outro falso messias.
Poucas horas após a chegada de José, Gaius Flaccus começou a piorar gravemente. Dormiu um pouco, sob o efeito da droga, e acordou num frenesim de delírio, afastando violentamente os escravos que tentavam conservá-lo deitado no leito e amaldiçoando-os em altos gritos, enquanto o estertor da sua respiração ressoava por toda a villa. No auge do delírio, começou de súbito a inclinar a cabeça para trás e todo o corpo ficou rígido e esticado, enquanto os braços e as pernas se agitavam num espasmo contínuo. José olhou-o e abanou a cabeça, sem esperanças. - A doença atingiu o cérebro, disse a Maria. - Uma convulsão como esta apenas pode significar uma coisa.
- É ... o fim?
- Dentro em breve. Fazias melhor em mandar chamar Pontius Pilatus e Claudia Procula.
- Ela volta com o Procurador depois da refeição da noite. Devem estar a chegar.
Gaius Flaccus estava dominado pelos espasmos de uma nova convulsão quando Procula chegou sozinha. O seu rosto empalideceu ao vê-la e levou a mão à garganta. - Está a morrer? perguntou, num murmúrio.
- Dei-lhe um sedativo, explicou José. - Mas a inflamação parece ter atingido o cérebro. Quando isso acontece, é ... Deteve-se, relutando cm pronunciar a palavra fatal.
- Então só nos resta rezar ao Todo Poderoso, disse Maria tranquilamente.
Com grande espanto de José, Claudia Procula ajoelhou, com Maria, a um canto do quarto e começou a rezar. José caiu também ee joelhos e procurou na memória qualquer oração da sua infância adequada à presença da morte. Foi esta a cena que se deparou aos olhos do Procurador da Judeia quando entrou no quarto do doente.
As duas mulheres ajoelhadas constituíam um espectáculo encantador, com os olhos erguidos para o tecto, os lábios a mover-se num prece sussurrada, cada uma delas extremamente bela à sua maneira, embora fossem tão nitidamente diferentes. Claudia Procula era pequena, requintada, e estava ricamente vestida, como um figurino elaborado pelas mãos de um extraordinário artista. O cabelo de Maria, maravilhosamente colorido, estava acamado e preso na nuca. O seu rosto estava pálido, mas o fogo interior que sempre a caracterizara brilhava através da pele translúcida. Em comparação com a mulher de Pilatus, estava grosseiramente vestida, contudo a sua beleza era mais notável do que a da patrícia romana, cujos antepassados eram imperadores.
Ao olhar para Pontius Pilatus, José viu o seu rosto tornar-se vermelho de ira, mas foi o inferno que leu nos olhos do Procurador, como se Pilatus estivesse a ver algo que receava, mas em que, até esse momento, não quisesse crer. Depois, o olhar transformou-se, de súbito, numa fúria gelada, quase demoníaca, numa daquelas abruptas mudanças de disposição que frequentemente o tomavam.
- Procula! gritou. - Que estás a fazer?
Claudia Procula ergueu-se, tremendo sob o choque daquela pergunta violenta. - Nós ... eu estava a rezar por Gaius Flaccus, gaguejou.
- Isto é coisa tua, disse Pilatus, voltando-se de súbito para Maria. Mas, antes que ela pudesse falar, Procula disse firmemente: - Estás enganado, Pontius. Já há muito tempo que rezo secretamente a Jeová, Maria nada tem a ver com isso, exceptuando o facto de me mostrar o que pode fazer a crença n'Ele.
Maria não mostrou qualquer sinal de medo perante a ira do oficial romano. Era como se o poder de uma visão que eles não podiam conhecer a mantivesse separada de todos.
- Nós, os que governamos em nome de Roma, adoramos o Imperador como sendo divino, Procula, disse Pilatus asperamente. - Mas o Deus judeu não reconhece outros deuses. Quando lhe rezas, blasfemas contra o Imperador. E tu! - Voltou-se de novo para Maria, com um ar selvagem. - A partir de agora adorarás os deuses da casa do teu amo.
- São estas as palavras de Jeová, disse Maria tranquilamente. "Eu sou o Senhor teu Deus. Não adorarás outros deuses diante de mim".
Por momentos José pensou que Pontius Pilatus ia agredir Maria, e deslocou-se rapidamente, para se colocar entre ambos. Os seus olhos enfrentaram o olhar irado do Procurador mas não os baixou, enquanto esperava, apesar de saber bem a que castigo se sujeitava se fosse forçado a resistir-lhe.
O rosto de Pontius Pilatus revelou o seu espanto. - Qual é o castigo por bater em quem governa em nome de Roma, José? perguntou, num tom diferente.
- A crucificação! - José sentiu-se surpreendido ao constatar que a sua voz estava calma e nítida.
- E ousarias agredir-me por castigar uma escrava?
- Ela é apenas escrava de Gaius Flaccus, disse José calmamente. - Devo-lhe a vida e protegê-la-ia, se pudesse, mesmo contra o Imperador.
- E se ela for contra as leis de Roma?
- Roma garantiu aos judeus no seu próprio país o direito de adorar o seu Deus, recordou-lhe José. - E Maria, sendo filha adoptiva de um cidadão romano, está protegida pela própria lei romana.
- Devias ter sido doutor em leis, José, disse então Pilatus, com benevolência. - Pelo menos tens inteligência, o que já não posso dizer de algumas pessoas com quem tenho de tratar em Jerusalém. Mas esqueces-te de que eu sou o juiz e o promotor público, segundo as leis. - Voltou-se para o leito. - Podes salvar o meu sobrinho?
José soltou um longo suspiro de alívio. - Extraí-lhe sangue e tentei conservar-lhe as forças, explicou, mas o delírio piorou. Agora foi atacado por graves convulsões.
- Já ví casos destes resultantes de feridas feitas em batalhas, concordou Pilatus. - Não havia esperanças para ele desde o início, mas estou satisfeito por Maria te ter mandado chamar. - Voltou-se para ela, e, por momentos, José pensou que ele fosse pedir-lhe desculpa, mas limitou-se a dizer: - Sofreste muito às mãos deste meu parente, Maria de Magda-la. Como podes rezar por ele se a sua cura significaria continuares a ser escrava?
- Há quem diga "Ama os teus inimigos", disse ela simplesmente.
- Os judeus não sabem fazer outra coisa além de citar textos dos dizeres do vosso Deus? perguntou Pilatus sarcasti-camente.
- Esta frase foi dita por um homem, disse-lhe Maria. - Pelo mestre Jesus de Nazaré.
Antes que Pilatus pudesse falar, Claudia Procula disse em tom suplicante: - Diz-se que Jesus faz milagres, Pontius. Se lhe pedíssemos que aqui viesse...
- Não quero fanáticos religiosos em casa de um parente meu, exclamou Pilatus.
- Mas... mas...
- Não digas mais, Procula! José é o melhor médico desta região. Se ele diz que não há esperanças para Gaius Flaccus, não há mesmo esperanças. Vem. Voltamos para Tiberíades esta noite. Esta sarnenta capital de Herodes não me agrada.
Quando Pilatus e sua mulher partiram, Maria disse suavemente: - Fizeste uma coisa muito corajosa, José, e amo-te por isso, mas teria sido melhor deixares que ele me batesse e não pores a tua vida em perigo. Não me custaria a suportar a dor.
- Ele não tinha o direito de te culpar pelas crenças de Claudia Procula.
- Pilatus é um homem perturbado, José. Claudia Procula diz que ele ultimamente parece fora de si, às vezes, mas ela não sabe o que o preocupa. Por vezes, chega a abordar viajantes, nas estradas, a perguntar-lhes: - O que é a Verdade?
José sorriu. - Os filósofos fazem isso desde o princípio dos tempos. É a sua pergunta favorita.
- Penso que ele conhece a verdade real, que tudo vem do Todo Poderoso, e receia acreditá-la.
- Porque havia alguém de recear adorar o Deus vivo?
- Poderia Pilatus reconhecer então o Imperador como divino? Ou permitir que as águias de Roma sejam expostas diante do seu palácio? Já podes ver o que isso significa para um romano.
- Sim, concordou José. - Porque é que ele objectou tão violentamente quando Claudia Procula sugeriu que se pedisse a Jesus que viesse ver Gaius Flaccus?
- Penso que seja por causa de Pila.
- O menino do pé boto? Vi-o quando era pequeno mas nada pude fazer por ele.
- Desde que Jesus ressuscitou a filha de Jairo, Procula ganhou fé em que ele poderia endireitar o pé de Pila, explicou Maria.
- Havia um Jairo que dirigia a sinagoga de Cafarnaum. Tratei-o, certa vez.
- É o mesmo homem, confirmou Maria. - Procula conhecia Jairo e a mulher. Quando ouviu contar o milagre, quis levar Pila a Jesus, mas Pilatus recusou. Agora ela pensa que ele não se preocupa com o filho.
- Porque é que Pilatus se recusou a levar Pila ao mestre?
- Deve ser porque Jesus cura em nome do Todo Poderoso. Se o próprio filho de Pilatus fosse curado por ele, o Procurador teria de reconhecer o poder de Deus.
- E não poderia fazê-lo quando nega a própria existência do Todo Poderoso, concordou José pensativo. - Deve ter sido uma decisão difícil de tomar, uma vez que implica o seu próprio filho.
- Tentei dizer isso a Procula, disse Maria, mas ela é a mãe de Pila, e as coisas parecem-lhe diferentes.
José sorriu. - Certa vez fiz-te uma prelecção sobre os teus direitos para com Deus. Agora ensinas-me humildade.
- Mas toda a gente sabe que tu és bom, José.
Ele olhou para Gaius Flaccus, que, naquele momento, repousava mergulhado em torpor, tendo dispendido todas as suas forças nas convulsões.
- Sou? - disse lentamente. - Jurei pensar apenas no bem dos doentes, mas se Gaius Flaccus morrer tu ficarás livre. Creio que não conseguiria rezar por ele como tu disseste, Maria, sabendo o que significa para ti a sua cura.
- Quando vires Jesus, disse cia suavemente, compreenderás como posso rezar pela vida de Gaius Flaccus, mesmo sabendo que amanhã ele poderia chicotear-me e dar-me a qualquer homem que visite esta casa. Só de olhar para Jesus e ouvi-lo falar, tornamo-nos pessoas diferentes.
À a noite, o doente caiu em coma, como se o veneno da infecção tivesse completado a conquista do corpo. Pontius Pilatus e a mulher regressaram a Séforis, vindos de Tibería-des, pela manhã, e estavam presentes quando tudo terminou.
- Procula, disse o Procurador quando José confirmou a morte de Gaius Flaccus, devemos seguir os costumes romanos, apesar de estarmos longe da pátria.
Ela colocou-se junto do leito, com Maria um pouco atrás.
- Gaius Flaccus, levanta-te! gritou Pilatus diversas vezes, e Procula repetiu os chamamentos. Era o antigo grito do condamatio, a "chamada" dos mortos, habitual nas casas romanas.
- Condamatum est - o chamamento foi feito, anunciou Pilatus formalmente. - Podes mandar chamar os embalsa-madores, José. Dentro de três dias entregaremos o seu corpo à pira, com todas as honras próprias de um comandante militar, e enviaremos as suas cinzas para Roma.
Os embalsamadores eram hábeis e fizeram bem o seu trabalho. Primeiramente, o corpo foi conservado e metido numa toga limpa decorada com as inúmeras insígnias militares e civis que o morto usara em vida. Depois foi colocado em câmara ardente sobre um leito funerário, no átrio, com os pés voltados para a porta e uma moeda de oiro na boca do morto, para que ele tivesse dinheiro para pagar a passagem, na sua viagem final através do rio Estígio1.
1 Estígio ou Estige ou ainda Styx, rio que rodeava sete vezes os infernos. As suas águas tornavam invulnerável quem neles se banhava. Tétis, mãe de Aquiles, mergulhou no Estígio o jovem herói, segurando-o por um calcanhar. Foi o único sítio que ficou vulnerável e onde mais tarde foi ferido mortalmente por Paris ou Apoio disfarçado em Paris. (N. do T.)
Antes de se abrirem as portas àqueles que desejassem entrar e prestar tributo ao morto, foi feita uma efígie em cera do rosto do tribuno, chamada imago. Seria enviada posteriormente para Roma, onde ocuparia um nicho numa das duas alae aos cantos do átrio da casa da sua família, juntamente com uma inscrição, ou titulus, relatando os seus feitos. O privilégio de poderem expor estas imagines estava limitado às pessoas de alta posição.
Pontius Pilatus tinha decidido que o seu sobrinho fosse cremado com todas as honras militares e civis, tal como teria sucedido se estivesse em Roma. A cerimónia, calculou José, destinava-se também a recordar a Herodes Antipas e aos galileus que Roma ainda ali mandava. Herodes Antipas não ousou opor-se às honras prestadas àquele que fora o favorito do Imperador Tiberius, mesmo que a cerimónia representasse uma poderosa exibição de armas e um ostensivo aparato da autoridade e da pompa romana na capital de uma tetrarquia judaica.
José ficou surpreendido quando, a meio dos preparativos, foi chamado a visitar o Procurador, em Tiberíades. Hadja acompanhou-o; enquanto desciam a íngreme e estreita estrada de Magdala para Tiberíades, abriu-se diante deles todo o panorama do lago e das cidades ricas e populosas que o rodeavam. Para norte, por trás da cidade de Cafarnaum, estendia-se o tapete verde dos pomares e dos campos da Planície de Genesaré. Dali provinham, na primavera, os frutos e os vegetais para os mercadores de Jerusalém, os melhores do seu género em todo o mundo. Eram de tal modo apetitosos que, por vezes, os sacerdotes do templo tentavam evitar que chegassem aos mercados nos dias festivos, para que os adoradores não se sentissem tentados a apreciar os melões e outros frutos, esquecendo os seus deveres para com Deus.
Um pouco a norte de Cafarnaum ficava um local onde brotavam das rochas nascentes de água altamente mineral. José tinha lá ido muitas vezes para engarrafar aquela água como remédio, especialmente para tratar aqueles que acumulavam excessos de humores e precisavam de ser purgados. E, para além da zona das nascentes, havia uma pequena cratera, de formato quase semi-circular, um lugar tão tranquilo e pacífico que um homem que se encontrasse na margem poderia falar em voz normal e ser ouvido na vertente da montanha.
De onde se encontrava, bastante acima do local, José via uma grande multidão que enchia a cratera, chegando mesmo a ocupar os barcos dos pescadores, que flutuavam, com as suas velas coloridas enroladas, perto da margem. Daquela altura, os barcos de pesca pareciam brinquedos e as pessoas que constituiam a multidão pouco maiores do que formigas.
- Jesus está hoje a ensinar na cova, explicou Hadja. - É um dos seus locais favoritos, porque ali toda a gente o pode ouvir.
- É a maior multidão que já vi na Galileia, observou José. - Ele junta sempre tanta gente?
- Os doentes seguem-no para toda a parte, explicou Haj-da. - Porque cura muitos deles.
- Já viste isso com os teus próprios olhos, Hadja?
O alto músico acenou afirmativamente. - Certa vez Jesus curou um homem que foi descido até ele através do telhado, porque havia uma multidão a encher a casa. E em Gadara expulsou demónios e transformou-os em porcos, que correram para o lago e se afogaram.
- Porque o segues, Hadja? perguntou José, enquanto conduziam os camelos pela estreita estrada. - Afinal, tu não és judeu.
- No meu país, os nobres oprimem os pobres, explicou o nabateu, tal como sucede em todas as partes do mundo onde estive. O mestre da Nazaré diz-me que todos os homens são iguais à face de Deus. E, como sei, no meu coração, que isso é uma coisa boa, acredito naquilo que ele ensina.
- Ele tenciona afastar os opressores do poder pela força?
- Não oiço isso nas coisas que ele me diz.
- Então como é que ele vai libertar os homens daqueles que os oprimem?
Hadja sorriu. - Se toda a gente pudesse ser tão boa e generosa no seu coração, como tu e a Chama Viva são, José, não existiria injustiça entre um homem e o seu irmão. Jesus quer mudar os corações dos homens e restabelecer o reino de Deus de que fala. Então, os homens serão livres.
Pontius Pilatus estava no jardim entre a sua villa e a água, lendo um pequeno pergaminho, num pavilhão que dava para o lago. Ergueu o olhar e sorriu quando o nomenclator introduziu José no jardim.
- A paz seja contigo, José da Galileia, disse cortesmente, e ergueu o pergaminho que estava a ler. - Já leste os poemas de Virgílio?
José abanou a cabeça. - Tratar dos doentes deixa-me pouco tempo para outras coisas.
- Em Roma, os médicos são frequentemente filósofos. Ouvi um deles, um grande sábio, dizer que a maioria das doenças do homem vem da alma e não do corpo.
- Os gregos ensinavam uma doutrina semelhante, admitiu José.
- E tu?
- Não nego que de um espírito melancólico resulta frequentemente um descontrole, confessou José.
- Eu próprio já experimentei isso, concordou Pilatus. - Não é tarefa fácil governar um povo contencioso como os judeus, José. Na Cesareia, onde os encargos do meu ofício são pesados, a minha gota torna-se sempre mais penosa. E ainda piora em Jerusalém.
- Pode ser do clima.
Pilatus abanou a cabeça. - O frio do inverno já anda no ar, aqui, mas eu mal sinto dores no meu dedo gotoso. Deves ter notado como é tudo mais pacífico aqui na Galileia, junto ao lago, do que em Jerusalém ou na Judeia. Pode-se pensar aqui sem termos de escutar as conversas fúteis das pessoas que procuram alcançar o poder. - Pegou no rolo. - Ouve estes versos: foram escritos na Itália mas descrevem igualmente a Galileia:
"Mas as vinhas férteis e as oliveiras carregadas, E as colheitas abundantes, com a sua carga compensadora, Adornam os nossos campos; e na verdura alegre Vêem-se os rebanhos que pastam e as manadas que mugem...
Perpétua primavera apresenta sempre o nosso feliz clima, Alimentando duas vezes o gado e fazendo as árvores crescer o dobro, E os sóis do verão retrocedem lentamente".
Pilatus enrolou o pergaminho e voltou-se para José. - Hoje encontraste-me realmente melancólico, José, disse, com um suspiro, mas tenho preocupações, até aqui em Tibe-ríades. - Ergueu-se e protegeu os olhos com a mão contra o sol da tarde. - Gostava de saber onde estarão esta tarde os barcos de pesca. Geralmente voltam a esta hora carregados.
- Reuniu-se uma grande multidão do outro lado do lago, explicou José. - Vi lá muitos barcos quando descíamos a estrada de Magdala.
O rosto de Pilatus tomou um tom sombrio. - Quando os galileus se reúnem em magotes, não se prevê nada de bom, José. Que estão eles a fazer? A gritar contra Roma?
- Hadja diz que estavam a escutar o mestre chamado Jesus de Nazaré.
- Aquele que afirma curar as pessoas?
- Sim. Mas muitos já o afirmaram anteriormente.
- Eu sei, concordou Pilatus. - Herodes anda a tentar convencer-me de que esse homem está a levantaro povo para uma revolta, mas eu tenho que procurar dois sentidos naquilo que ele me diz. Achas que eu devia levar Pila a Jesus? - perguntou abruptamente.
Surpreendido pela pergunta, José começou a procurar uma resposta. Mas, antes, que ele pudesse falar, Pilatus disse: - Deixa lá. És suficientemente honesto para discordar de mim se achares que o deves fazer. E depois eu posso zangar-me contigo. Estou resignado ao facto de que o meu filho será sempre um aleijado, José. Eaz parte de um destino injusto que me isolou na Judeia quando eu poderia ter tido um alto cargo no Império. Contudo... - Deteve-se e não falou durante algum tempo. - Ouviste dizer que Jesus ressuscita pessoas?
- Falaram-me do milagre, confessou José. - Se realmente foi milagre.
- Então também duvidas?
- Vi morrer muitas pessoas mas nunca vi nenhuma voltar à vida. Se a rapariga estivesse morta como afirmam, e ressuscitasse, eu acreditaria num milagre.
- Foi mesmo por isso que te mandei chamar, disse-lhe Pilatus. - Quero que fales com esse Jairo de Cafarnaum e descubras a verdade. E, enquanto estiveres a tratr disso, poderias ir ouvir Jesus de Nazaré e dizer-me se ele prega alguma coisa contra Roma... Não, emendou. - Não seria justo fazer-te espiar a tua própria raça. Tenho modos de descobrir essas coisas por mím próprio. Investiga só o regresso à vida da criança.
O funeral de Gaius Flaccus foi realizado no terceiro dia após a sua morte. Muito antes de começar, a cidade já estava cheia com os carros e liteiras dos oficiais romanos e funcionários civis. A posição do tribuno morto na ordem equestre e o seu cargo como comandante de todas as tropas romanas naquela região tinham proporcionado a Pontius Pilatus a oportunidade de fazer uma impressionante exibição do poderio militar romano, não só para desencorajar os galileus de quaisquer ideias que pudessem ter quanto a rebelião, mas também para recordar a Herodes Antipas que Pontius Pilatus, na sua qualidade de mais elevado oficial romano na região, com excepção do Legado da Síria, ainda controlava um poder considerável.
Muito antes da hora do início da procissão, o dissignator, como se chamava o oficial romano encarregado das cerimónias, tomou lugar em frente da casa e começou a preparar a ordem de marcha. Ao seu lado estavam os seus lictores com os fasces, o emblema universal da justiça civil romana. O corpo do comandante morto foi trazido sobre o esquife sumptuosamente entalhado que se encontrava no átrio, com as velas dos altos candelabros doirados lançando sombras móveis sobre as coroas de flores, com fitas, colocadas sobre o corpo e em volta dele.
No momento indicado, soaram as trombetas das tropas pessoais de Gaius Flaccus e os encarregados de transportar o caixão, oficiais do seu próprio comando, avançaram e ergueram a urna aberta, colocando-a sobre os ombros. No exterior esperava o carro do tribuno, puxado por quatro cavalos rápidos que ele adorara conduzir a velocidades loucas através de aldeias e cidades, deixando frequentemente corpos esmagados e mutilados, à sua passagem. Tinha sido feita uma estrutura especial na quadriga ricamente ornamentada, para sobre ela se colocar a urna baixa, que foi cuidadosamente poisada sobre o carro e fixada com correias para evitar que os fogosos cavalos a fizessem cair, quando o carro saltasse sobre as pedras do caminho.
À frente da procissão seguia o carro do dissignator com seis trombeteiros de uniforme a marchar adiante, para abrir caminho. Seguia-se uma dupla fila de lictores e, atrás deles, as carpideiras profissionais, vestidas de branco e entoando monotonamente as palavras solenes de um hino fúnebre. Faziam estranho contraste com as carpideiras, cujos rostos estavam pintados de branco e que batiam no peito para manifestar o seu desgosto, os bailarinos e pantomimeiros que as seguiam. Alguns tocavam flauta enquanto outros representavam em pantomimas os triunfos do falecido nos campos de batalha e na vida política.
Atrás deles vinha o elegante carro do próprio Pontius Pilatus. O Procurador seguia erecto, frio e altivo, com o seu uniforme e as suas medalhas, não olhando nem para a direita nem para a esquerda, enquanto a quadriga estrondeava sobre as pedras da rua. Num funeral realizado na cidade natal do falecido, uma longa fila de homens tê-lo-ia seguido, com os uniformes dos antepassados ilustres do morto, cada um deles com uma das imagines, as máscaras de morte que repousavam ao longo dos tempos nos alae que se abriam no átrio da sua casa. Assim, o morto avançaria para a pira funerária precedido por uma longa fila dos seus antepassados em efígie. Mas, dado que as imagines da linha de Gaius Flaccus se encontravam em Roma, eram transportados pequenos cartazes com os nomes e os feitos mais importantes dos seus famosos antepassados por alguns oficiais que seguiam a quadriga de Pontius Pilatus. Atrás deles, vinha a patrícia Claudia Procula, na liteira de Pilatus, com os cortinados corridos.
A requintada liteira com as águias de Roma era seguida pelo alazão favorito de Gaius Flaccus, resplandecente nos seus arreios doirados, com uma sela vazia sobre o dorso, que o palafreneiro do comandante levava pela rédea. Atrás marchava uma coluna de soldados, com as insígnias do morto e os trofeus dos seus feitos de armas em batalhas. A seguir à parada das insígnias, avançavam mais cinquenta lictores, com os fasces apontados para baixo, seguidos de outro grupo com archotes acesos, apesar de ser de dia, relíquias do velho costume romano de enterrar os mortos à noite.
Em seguida avançava, trovejante, a quadriga funerária, com a urna aberta. Os embalsamadores tinham-se aperfeiçoado na sua arte. Ali estendido, resplandecente no uniforme de gala de púrpura gritante, a cor dos oficiais de alta patente, Gaius Flaccus parecia simplesmente adormecido.
Maria preferira seguir a pé entre os outros escravos que se haviam tornado libertos, como era costume, por testamento do seu amo morto. Vestia de negro e tinha o cabelo comple-tamente coberto, mas era tal a sua beleza, que se destacava entre os outros como uma jóia preciosa numa pilha de enfeites de vidro. José não seguia no cortejo, mas caminhava ao lado dos escravos, junto da multidão.
O povo da Galileia não amara Gaius Flaccus, de modo que não se viam sinais de luto à passagem da procissão. Se tivesse havido menos aparato bélico, alguns teriam ousado escarnecê-lo, mas todos se conservavam em silêncio, até os escravos e Maria passarem. Então, com grande surpresa de José, um murmúrio de ressentimento perpassou entre a multidão, como uma onda num lago. E, quando Maria passou, uma mulher cuspiu a palavra que ele ouvira ser-lhe aplicada, muitos anos antes, nas ruas de Tiberíades: Meretrix!
- Porque lhe chamas isso? perguntou à mulher uma dona de casa com um ar rabujento. - Ela é uma escrava como os outros.
A mulher olhou-o, com suspeita. - És estranho nesta região?
- Sou médico de Jerusalém, disse ele, com razoável sinceridade.
- A mulher de preto que ali vês é Maria de Magdala, explicou-lhe a sua informadora. - Mas não é uma escrava. É uma judia, uma antiga bailarina que preferiu seguir o romano em vez de viver com os da sua raça.
- Como sabes isso?
- Toda a Galileia o sabe. O tribuno Gaius Flaccus não se gabava disso nas tabernas, porque sabia que os judeus se sentiriam envergonhados por saber que uma mulher da sua raça era uma adúltera?
- Mas ela segue entre os escravos, protestou José.
- É só para esconder o seu pecado, agora que o homem que era o seu desejo já não existe. Maria de Magdala devia ser lapidada como qualquer outra prostituta.
Maria tinha seguido enquanto José ficava a falar com a mulher, e as tropas romanas estavam agora a passar em parada, pelo que o ressoar dos seus pés calçados de couro sobre as pedras da rua abafou a conversa. Centúria após centúria, passavam em uniforme de gala, conduzidos pelos centuriões, os capitães de cem homens. E atrás deles vinha a cavalaria, de lanças erguidas, com os coloridos pendões a flutuar nas suas pontas. Finalmente avançavam, rangendo, as máquinas de guerra, enormes aparelhos chamados ballis-tae que podiam catapultar uma pedra com metade do peso de um homem até um oitavo de milha de distância, o onagro e a catapulta, arcos gigantescos que desferiam grandes flechas a arder a longas distâncias, e outras máquinas igualmente formidáveis.
Era efectivamente um espectáculo impressionante, mas José estava demasiado preocupado com o que a mulher lhe tinha dito sobre Maria para o poder apreciar. Teria ela alcançado a liberdade em segurança, pela morte de Gaius Flaccus, pensou, apenas para se meter em maiores problemas só porque pessoas, cujos parentes ela muito provavelmente salvara em Alexandria, ainda pensavam mal dela? Era uma ideia inquietante.
No cemitério, no exterior dos portões da cidade, tinha sido erigida uma enorme pira funerária. Ali o corpo do morto seria consumido pelas chamas c as suas cinzas seriam recolhidas e enviadas para Roma, a fim de serem guardadas no columbarium onde repousavam os restos dos seus antepassados. A medida que os soldados iam chegando ao cemitério, dispunham-se segundo as instruções àodissignator em frente de uma plataforma elevada diante da pira. Dessa plataforma, Pontius Pilatus fez uma longa oração de louvor ao morto, acrescentando-lhe astutamente um aviso de que o poder de Roma ali exposto também poderia servir para meter os judeus na ordem, se decidissem rebelar-se contra a autoridade romana. A lição era ainda mais viva porque, directamente visível do cemitério, ficava o local onde Judas o Gau-lonita tinha sido crucificado com dois mil judeus, do que ainda bem se recordavam muitos dos que o escutavam e olhavam para o local.
Terminada a oração, a urna enfeitada foi transportada até ao cimo da pira e aí disposta no local devido. Por ordem do dissignator, a liteira de Claudia Procula foi levada dali, assim como as mulheres da casa de Gaius Flaccus. O próprio Pontius Pilatus lançou um archote para cima do material inflamável colocado na base da pira. Esta começou imediatamente a arder e as chamas percorreram a madeira seca, transformando-a num abrasador holocausto em poucos segundos.
José não ficou até ao final da cerimónia, voltando apressadamente para a cidade, atrás da liteira que transportava Claudia Procula e das escravas que a seguiam. A multidão continuava muito cerrada e ele ia avançando lentamente, de modo que, quando ele chegou à villa, Maria tinha ido descansar para o jardim parcialmente fechado que constituía parte proeminente das casas naquele clima agradável. Tinha profundas olheiras e José notou o cansaço no seu rosto, quando chegou junto dela, porque o dia tinha sido fatigante. Mas o sorriso que abriu quando ele entrou no jardim fez com que o seu pulso se acelerasse. Quando lhe estendeu as mãos, ele ajoelhou-se e levou-as aos lábios. - Estás livre, Maria, exclamou. - Finalmente livre.
- Querido José. - Ela deixou-se apertar no círculo dos seus braços como se tivesse desejado estar entre eles durante todos aqueles meses, desde que ele deixara Alexandria. - Que faria eu sem ti?
- Não precisas de estar sem mim, disse ele, beijando-a suavemente.
- Não calculas o que significa para mim ter de novo alguém que olhe por mim, murmurou ela. - Como teria sido tudo bem mais simples se cu tivesse escutado o meu coração em Magdala, quando começamos a amar-nos. Mas nesse caso, acrescentou, tu terias ficado em Magdala, como médico de aldeia, e nunca serias mcdicus viscerus do templo nem o mais famoso médico da Judeia e da Galileia.
- Desistiria de tudo isso, se tu o quisesses. Volta comigo para Jerusalém, agora, suplicou ele, ou então eu fico em Magdala, como preferires. Nada deverá separar-nos de novo.
- Que ouviste tu hoje que te preocupa, José? - Ela olhava-o fixamente. - Passa-se alguma coisa?
- Nada. Apenas falatórios.
- Eu ouvi pessoas na multidão dizerem que eu vivia com Gaius Flaccus por ser uma desavergonhada. Não é a primeira vez que o dizem.
- Quem te conhece nunca os acreditaria.
- Sim, concordou ela. - Quem me conhece, compreende-me. Quanto aos que não me conhecem, não importa o que dizem.
- Então voltas comigo, agora?
Ela abanou a cabeça, gentilmente. - Ainda não, José. Sendo judeu, sabes o que é estar-se impuro. Tenho que purificar a minha alma pela oração e pela meditação, à maneira do nosso povo. Amanhã, Hadja e eu voltamos para a casa de Magdala e, durante o inverno, viverei lá tranquilamente e rezarei para voltar a estar pura e compreender melhor a vontade de Deus. Além disso, quero escutar os ensinamentos de Jesus, porque parecem trazer paz à minha alma. Quando a primavera chegar à Galileia, casar-nos-emos, como deveríamos ter feito há muitos anos. Então decidiremos para onde vamos viver.
- Mas, Maria...
- Dá-me estes meses para me purificar do aviltamento que sofri, suplicou ela. - Depois poderei ir para ti pura e inteira de novo, como teria ido se o destino e o Todo Poderoso nos deixassem ficar em Magdala.
Ele não discutiu mais porque compreendia o motivo real por que ela desejava esperar. Porque não podia oferecer-lhe em casamento um corpo que tinha sido contaminado pela semente do mal.
- Estarás segura em Magdala? perguntou.
- Hadja estará comigo, garantiu-lhe ela. - E tu sabes que os falatórios nada significam; passam logo que surja outro assunto de que falar. Voltas para Jerusalém amanhã? José abanou a cabeça. - Pilatus pediu-me que investigasse a ressurreição da filha de Jairo.
- Porquê?
- Creio que ele quer ter a certeza de que não vale a pena levar Pila a Jesus. No fundo, Pilatus é humano e ama o filho.
- Se Pilatus deixasse que Pila fosse levado a Jesus, isso ajudaria a resolver as disputas entre ele e Procula, disse Maria, pensativa. - Eu sei que ela poderia perdoar-lhe a crueldade e os caprichos, mas não que ele prive deliberada-mente Pila da possibilidade de se curar. Tenta descobrir a verdade, José, suplicou ela. - Se Jesus realmente ressuscitou a menina, poderá haver esperanças para Pila, e para Pontius Pilatos também. Depois teríamos que ter fé na misericórdia do Todo Poderoso.
Deixando Maria na casa de Magdala com Hadja, José pôs-se a caminho, na tarde seguinte, para visitar Jairo. Era apenas uma curta distância, descendo a vertente inclinada desde Magdala e seguindo a margem do lago, até à cidade de Cafarnaum que junto dele se estirava. Descobriu que ainda se recordava do caminho para a casa onde Jairo vivia, a poucas portas da grande Sinagoga de Cafarnaum. Sendo um dos mais velhos e por isso o mais sábio entre os homens da congregação judaica, Jairo fazia parte dos anciãos, frequentemente chamados os "governantes da sinagoga", que se sentavam na plataforma de honra, acima da congregação. Respeitados e honrados por todos pela sua piedade e sabedoria, eram frequentemente consultados por judeus estranhos à sinagoga sobre questões de conduta e problemas relacionados com a observância da lei.
Jairo estava a trabalhar na sua loja quando José chegou, mas conduziu cortesmente o jovem médico para junto de uma árvore frondosa, no pequeno jardim em volta do qual tanto a casa como a loja estavam construídas.-Nós aqui, na região do lago, temos muito orgulho no teu êxito em Jerusalém, José, disse-lhe o velho amavelmente. - Especialmente por tu seres um galileu.
Durante a habitual colação de vinho e bolos de especiarias, José disse, com ar casual: - Ouvi dizer que a tua filha esteve recentemente muito doente.
- Que procuras aqui, José? - Jairo olhou fixamente para ele. - Aqueles que governam o templo em Jerusalém estão preocupados com os milagres feitos por Jesus de Nazaré?
- Ouvimos falar de Jesus em Jerusalém, confessou José. - Mas tenho um propósito diferente, ao vir aqui. Se o Nazareno realmente ressuscita, como me disseram, talvez possa curar o filho de Pontius Pilatus.
- O menino do pé boto? Sim, calculo que Pilatus tivesse querido saber. Mas Jesus cura pela fé do Todo Poderoso. Pontius Pilatus tem essa fé?
- Penso que não. Mas pediu-me que viesse.
- O procurador não perde nada do que se passa com os judeus, seja na Judeia, na Galileia ou em qualquer outro lado. Tens a certeza de que ele não te mandou espiar o mestre de Nazaré?
- Eu não sou um espião, disse José indignado. - Apenas procuro saber como é que Jesus cura os doentes, e se consegue realmente ressuscitar os mortos.
Jairo acenou afirmativamente. - Tens fama de ser um homem bom, José da Galileia, concordou. - Que queres saber sobre a minha filha?
- É verdade que Jesus da Nazaré realmente a ressuscitou, como me disseram?
- Fazes-me uma pergunta a que não posso responder-te verdadeiramente, confessou Jairo. - Vou contar-te o que me sucedeu e tu julgarás por ti próprio. A minha filha estava doente com o que parecia ser uma febre que a fazia dormir a maior parte do tempo. Recordas-te do médico Alexandre Lysímaco, não te recordas?
- Muito bem. Fui seu aluno em Magdala.
- Sim. Agora me lembro. Então sabes que é um bom médico e um homem honesto. Alexandre Lysímaco não nos deu esperanças pela vida da minha filha, pelo que fui ter com Jesus, que estava a pregar junto ao mar, pensando pedir-lhe que viesse curá-la, como curara outras pessoas. Quando cheguei junto do mestre, ajoelhei-me aos seus pés e disse-lhe: "A minha filha está a morrer. Vem e impõe-lhe as tuas mãos para que se cure e viva".
- Que respondeu ele?
- Não disse uma palavra, confessou Jairo. - Mas olhou para mim como se pudesse ver dentro da minha alma e depois sorriu e desceu do rochedo de onde tinha estado a pregar. Também parecia saber exactamente onde ir, embora nunca me tivesse visto antes.
- A multidão conhecia-te, visto que és um dirigente da sinagoga, objectou José. - Ele podia simplesmente deixar que ela o conduzisse.
- Isso é verdade, admitiu Jairo. - Não digo que ele conhecia o caminho, mas apenas que parecia conhecê-lo. Antes de chegar a casa, alguns daqueles que eu aqui tinha deixado vieram ao nosso encontro, gritando que a menina tinha morrido.
- A-lexandre Lysímaco considerou-a morta?
Jairo baixou a cabeça. - O médico não estava cá nessa altura. Aqueles que estavam a vigiá-la afirmaram que a vida a abandonara, mas quando Jesus a viu, disse: Porque fazeis um tal tumulto e chorais? A criança não está morta, apenas dorme".
- Tens a certeza de que foram essas as suas palavras exactas? perguntou José rapidamente. Ali estava, ao que lhe parecia, aquilo que procurava.
- Disse-te exactamente o que ele disse. É estranho, prosseguiu Jairo. - Conheci Jesus quando trabalhava em Nazaré eSéforis como carpinteiro econstrutor. Nessa altura era uma pessoa vulgar, mas agora o poder do Todo Poderoso parece ter descido sobre ele. As pessoas da casa riram-se dele quando disse que a minha filha não estava morta, porque já tinham coberto o seu rosto com o lençol. Mas, quando ele lhe pegou na mão e disse: "Criança, digo-te que te levantes", ela ergueu-se imediatamente e começou a andar.
- Como está ela agora?
- Tão bem como tu ou como eu. O Mestre deu-nos instruções para não falarmos disto, mas tanta gente a viu morta que não se podia manter segredo.
- O próprio Jesus disse que ela estava a dormir, não morta, segundo a tua história, recordou-lhe José.
- É verdade, confessou Jairo. - Mas quando cu olhei para ela, também tive a certeza de que já não pertencia ao número dos vivos.
- Então acreditas que ela foi ressuscitada?
Jàiro acenou afirmativamente, com um ar solene. - Vieram cá no dia seguinte alguns escribas e Fariseus, tentando fazer-me dizer que ela não estava morta, mas eu disse-lhes exactamente o que te disse a ti. Eles gostariam de fazer Jesus cair numa armadilha se pudessem, mas não os ajudei.
- Porque haviam de querer fazer-lhe uma armadilha? perguntou José, cheio de curiosidade.
- O Nazareno prega o perdão dos pecados, tal como alguns profetas, explicou Jairo. - Mas aqueles que dão grande importância às leis procuram fazê-lo dizer coisas contrárias a ela, no género de que aqueles que cometem pecados não devem ser punidos. Se conseguissem levar Jesus a falar contra a lei, poderiam levá-lo diante do conselho e acusá-lo de blasfémia.
- Mas porque é que alguém havia de querer fazer-lhe mal, quando ele só parece fazer bem?
Jairo encolheu os ombros. - Para os Fariseus, a lei é mais importante do que os bons actos, pois obedecendo-lhe pensam assegurar a vida após a morte. Se as pessoas começarem apensar que o Todo Poderoso lhes perdoa facilmente os seus pecados, quem seguiria os escribas e os Fariseus?
José sabia, pela sua própria experiência adquirida em Jerusalém, que Jairo falava verdade. Os espíritos tacanhos obcecados pelos severos códigos das leis recebidas no Monte Sinai, e pelos inúmeros pormenores em conflito daquilo a que se chamava a "lei moral", esqueciam por vezes comple-tamente os ensinamentos de Deus de que os homens deviam amar-se uns aos outros e proceder com justiça. No seu zelo, não hesitariam em lapidar até à morte o melhor dos homens, se ele não respeitasse a lei como eles achavam que devia ser respeitada.
Tendo sabido de Jairo tudo o que podia, José voltou a subir a colina para Magdala. Mas, mal tinha chegado aos subúrbios da cidade, apercebeu-se de que estava a suceder algo fora do normal. As ruas exteriores estavam estranhamente desertas, mas da Rua dos Gregos vinha um troar de vozes e gritos, como se ali se tivesse concentrado uma multidão. Subitamente apreensivo, começou a correr e em breve chegava junto da turba que enchia a rua.
Ninguém parecia saber exactamente qual o motivo daquela excitação, mas, como sucede com todas as multidões, a tensão crescia cada vez mais e poderia tornar-se perigosa para aqueles contra quem se dirigiam as inconstantes emoções da turba. Finalmente, quando já não conseguia avançar mais, José tentou atrair a atenção de um vendedor ambulante que estava em pé em cima do seu carrinho, para poder ver sobre as cabeças da multidão. - O que está a suceder? perguntou, puxando pelas roupas do homem.
O vendedor olhou para baixo e, vendo que José estava bem vestido, respondeu respeitosamente: - Os escribas e Fariseus prenderam uma mulher acusada de adultério e estão a incitar a multidão contra ela.
- Quem é ela? gritou José, recordando-se do que vira no funeral de Gaius Flaccus.
- Não sei, mas tem um cabelo tão vermelho como o cobre de Chipre e encontra-se diante de uma casa da Rua dos Gregos, ao lado de um alto homem do deserto que está a protegê-la.
- Maria! exclamou ele, subitamente dominado pelo medo. Teria ela escapado à escravatura para enfrentar a fúria de uma multidão de judeus pronta a castigar uma infracção à sua preciosa lei? Era aquilo que ele receara. Rapidamente, José tirou um denarius de oiro da bolsa e meteu-o na mão do homem do carro. - Diz-me tudo o que vês, disse. - Já começaram a lapidá-la? - A lapidação era o método tradicional de execução para as infracções à lei dos judeus, assim como a crucificação era peculiar aos romanos.
- Está outro homem junto da mulher, gritou o informador, e os acusadores parecem estar a discutir o caso com ele. Vejo-o bem agora, acrescentou excitado. - É o mestre a quem chamam Jesus de Nazaré. Devem estar a pedir-lhe que a julgue.
José compreendeu então que Maria seria um caso perfeito para aqueles que tentavam apanhar Jesus numa armadilha, visto que os judeus da Galileia acreditavam que ela vivera com Gaius Flaccus por sua própria vontade, considerando-a portanto verdadeiramente adúltera. Alguém deveria dizer a verdade ao povo, compreendeu, mas apenas Maria, Hadja e ele próprio o poderiam fazer. A multidão dificilmente escutaria Maria ou Hajda, mas José da Galileia era vastamente conhecido e teriam que deixá-lo falar em sua defesa.
Quando tentou abrir caminho através da multidão, contudo, pareceu-lhe que chocava contra uma parede. Aqueles que empurrava davam-lhe pontapés e amaldiçoavam-no sem lhe permitirem a passagem. Apenas um ariete teria podido abrir caminho, pensou, e, numa súbita inspiração, compreendeu como poderia fazê-lo. Rapidamente, tirou diversas moedas de oiro da bolsa e entregou-as ao vendedor ambulante que estava sobre o carro. - Faz-me passar entre a multidão com a tua mula e esse dinheiro é teu.
O homem acenou afirmativamente e arrebanhou as moedas da mão de José. Dentro do mesmo movimento, chicoteou o dorso da mula. O jovem médico mal teve tempo de saltar para o carro, quando o animal, sacudido pela dor, baixou a cabeça e avançou direito à multidão. Sacudido no fundo do carro, José teve dificuldade em pôr-se de pé, mas pouco segundos se passaram antes de se encontrar à frente da multidão, perante um quadro estranhamente dramático.
Maria estava de pé, encostada à sua casa, onde vivera com Demetrius. Hadja estava ao seu lado. Ela tinha a cabeça coberta com um manto e usava o mesmo vestido preto que usara no dia anterior, no funeral. Mas, embora enfrentasse uma multidão irada e acusadora, não revelava medo no rosto e não afastou o olhar de Jesus, durante a confusão que a chegada de José provocou. Havia nos seus olhos um estranho brilho, como que de adoração, e de profunda confiança.
Era esta a primeira vez que José via o jovem mestre, mas Jesus era tão semelhante à descrição que Nicodemus lhe fizera, que o rosto dele lhe pareceu familiar. E compreendeu imediatamente o motivo por que Nicodemus dissera: - "Não são só os ensinamentos de Jesus que nos fazem desejar segui-lo. Há algo no próprio homem, algo que não é fácil transcrever em palavras".
Jesus estava tranquilamente junto de Maria eHadja, escutando a apaixonada oração de um homem alto, cuja túnica franjada revelava ser um Fariseu. Era esbelto e de altura um pouco superior à média, com um rosto inteligente e bondoso. Mas a característica mais impressionante eram os seus olhos extremamente brilhantes como se o fogo da alma que havia dentro do seu corpo ardesse mais fortemente do que nos outros homens. Era um pouco pálido e as suas feições eram mais as de um sábio e de um sonhador do que de um homem dado a lutas e a feitos de força. Contudo, tinha conseguido fazer com que homens de acção o seguissem, homens como Simão e os filhos de Zebedeu, que agora se encontrava atrás dele. Enquanto ouvia a furiosa tirada do Fariseu, a expressão de Jesus era pensativa, sem revelar qualquer censura ou ressentimento contra os modos carregados de desprezo com que o homem denunciava Maria.
- Mestre, argumentava o Fariseu, esta mulher praticou adultério. Ora, segundo a lei, Moisés ordenou que fosse lapidada. Que tens a dizer?
Jesus não respondeu imediatamente. Em vez disso, fez algo bastante estranho. Inclinando-se, começou a escrever com a ponta do dedo na poeira da rua, como se não os tivesse ouvido e se tivesse esquecido completamente do local onde se encontrava. O acusador torceu o pescoço para ver o que o homem de Nazaré estava a escrever, mas não conseguiu decifrá-lo e repetiu impaciente: - Que tens a dizer sobre ela?
Jesus continuou a escrever um pouco mais, depois endireitou-se e limpou a poeira dos dedos. Quando falou, a sua voz era baixa, mas era tal o seu poder de penetração que toda a multidão ouviu as suas palavras. - Aquele que entre vós não tenha pecados que lhe atire a primeira pedra, disse suavemente. E, inclinando-se de novo, recomeçou a escrever no chão.
o Fariseu que tinha actuado como acusador público olhou para jesus, por momentos, cheio de espanto. Depois, olhou hesitante para aqueles que com ele tinham vindo ao ataque como que a perguntar-lhes qual deles ousava afirmar-se livre de pecados para atirar a primeira pedra. O ar de confusão do seu rosto era tão cómico que alguém na multidão começou a rir perante o desconcerto do homem que, poucos minutos antes, estava tão arrogantemente seguro de fazer cair numa armadilha o mestre de Nazaré. E, numa daquelas súbitas mutações de emoções que se verificam na multidão, um coro de gargalhadas saiu dos espectadores.
Um dos acusadores começou a tentar escapar-se e, ao vê-lo, os risos da multidão tornaram-se mais altos e mais notórios. Os escribas e os Fariseus, compreendendo que a sua causa estava perdida, começaram a subir a rua, ansiosos por se afastarem daquele homem que podia, com uma simples palavra, reduzir a pó os seus planos mais elaborados. e, uma vez que o drama terminara, a multidão dispersou-se, até que, em breve, José se viu só com Maria, Hadja, o mestre e os seus discípulos.
Jesus ergueu então o olhar e disse a Maria: - Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?
- Ninguém, Senhor, disse ela em voz baixa, e ele disse tranquilamente: - Também eu não te condeno: vai e não voltes a pecar. - E, voltando-se, começou a descer a rua, seguido pela maioria dos seus discípulos.
Maria conservou-se onde tinha estado durante todo este dramático episódio, com os olhos postos na figura esbelta vestindo uma túnica grosseira tecida à mão, com a luz do sol a brilhar como um halo sobre a cabeça descoberta. Só quando Jesus desapareceu se voltou, e José viu que no seu rosto havia uma grande glória e uma grande satisfação.
Essa noite em casa de Demetrius foi como as dos velhos tempos, com excepção do facto de todos sentirem a falta do velho músico, com o seu ventre maciço e os seus pontos de vista sobre a vida cheios de humor. Maria e José insistiram com Simão para que ceasse com eles. A princípio, o enorme pescador argumentou que, uma vez que Jesus ia para Nazaré nessa noite, a pé, deveria acompanhar o mestre, mas, quando José prometeu levá-lo lá na manhã seguinte de camelo, o pescador concordou em ficar. Pela primeira vez em muitos anos, na casa de Demetrius soou música alegre, com Hadja a 'tocar a sua cítara i Maria a cantar as canções dos poetas que tinham amado aquela bela região da Galileia. Depois de terem comido e quando estavam a beberricar o vinho, sem o qual refeição alguma ficava completa, Maria perguntou em voz baixa: - Como é Jesus, Simão?
- O mestre? - Um tom de reverência surgiu na voz animada do pescador. - Aquilo que se sente por ele está dentro dele e dentro de nós. Fala sem palavras.
- Quando ele me falou hoje, ali, im frente da multidão, todos os meus receios desapareceram, concordou Maria. - Foi como se ele tivesse aberto os céus e me mostrasse o próprio trono do Todo Poderoso.
Simão olhou para José. - Que pensaste de Jesus? perguntou.
- Salvou Maria das pedras, disse José com simplicidade.- Quanto mais não fosse por isso, daria a minha vida por ele.
Todos estavam fatigados do longo dia e a festa terminou cedo. Quando Simão e Hadja subiram para o quarto do nabateu, onde dormiriam, deixando José e Maria sós no jardim, ele tomou-a nos seus braços. - Que bom é estar em casa de novo, disse ela suavemente.
- Mas estarás segura? Podem voltar a causar-te problemas.
- Jesus me protegerá, disse ela, com confiança.
- Ele já deixou Magdala, objectou José.
- Vou amanhã para Nazaré com Simão, José, disse ela então. - Quando Jesus me disse que me fosse e não pecasse mais, senti que devia segui-lo.
A decisão que ela tomara não constituiu total surpresa para José. Quando notara o olhar de Maria, ao observá-la, junto da multidão, nessa tarde, tinha compreendido que estava a suceder algo mais do que o simples facto de ela ser salva da lapidação. - Isso quer dizer que temos de pôr de parte os nossos próprios planos? perguntou.
- Há coisas que estão acima dos desejos humanos. - Maria pousou a mão sobre o braço dele, num gesto de súplica. - E ambos nos sentiremos mais felizes, no fim, porque pensámos em alguém mais, para além de nós. Jesus é o Messias, José. Quem mais poderia perdoar os meus pecados?
José teve então a resposta à sua pergunta. Tinha-a encontrado - e perdera-a de novo.
Nazaré fica numa concavidade natural nas colinas sobre a Planície de Esdraelon, perto da Via Maris. Encontraram Jesus a pregar na praça do mercado, mas havia apenas um pequeno número de pessoas à sua volta, nada que se parecesse com as grandes multidões que o seguiam quando falava nas cidades populosas junto à margem do lago. Quando se aproximaram da multidão, José notou um pequeno grupo de homens e mulheres de pé, perto do ajuntamento, como se hesitassem em aproximar-se. Pareciam perturbados com qualquer coisa, e compreendeu o motivo quando um homem se acercou de Jesus e lhe disse: - A tua mãe e teus irmãos estão além, a perguntar por ti.
Jesus ergueu a cabeça. - Quem são a minha mãe e os meus irmãos? - A sua voz chegou até eles, tranquilamente, através da multidão.
O homem que trouxera o recado olhou para ele, incrédulo, como se um-homem que não conhecesse a sua própria família, na cidade onde crescera, fosse um louco. Mas Jesus limitou-se a erguer as mãos num gesto que parecia atrair a multidão para ele. - Eis a minha mãe e os meus irmãos, disse. - Quem cumprir a vontade de Deus é meu irmão, minha irmã, minha mãe.
Como ele não fizesse qualquer movimento no sentido de se aproximar da sua família e saudá-la, algumas das pessoas que constituíam a multidão começaram a murmurar contra ele. Falavam em voz baixa, mas Jesus parecia possuir uma misteriosa capacidade de ouvir até os pensamentos das pessoas, porque disse num tom de suave censura: - Um profeta nunca deixa de ter honra, excepto no seu próprio país e na sua própria casa.
Mal passara metade da manhã quando Jesus terminou a sua pregação e, seguido pelos seus discípulos, seguiu pela estrada que levava de novo ao Mar da Galileia. A multidão estava desapontada porque esperava que ele fizesse algum dos milagres de que tinha ouvido falar através de pessoas que o haviam visto em Cafarnaum e em outras cidades do lago. Mas ele nada fez para os impressionar.
- Temos que nos ir embora, Maria, disse Simão. - Vens connosco?
Ela voltou-se para José e os seus olhos estavam cheios de lágrimas. - Tenho que ir, murmurou. - Tu sabes que tenho que ir, não sabes?
Ele apenas conseguiu acenar afirmativamente, porque a dor de voltar a perdê-la não o deixava falar. Suavemente, beijou-a na testa e apertou-lhe as mãos com força, durante um momento, antes de a deixar partir. Simão e Hadja já tinham começado a afastar-se e, quando ela correu para os alcançar, José pensou na última vez em que se tinham separado, aparentemente para sempre. Nessa altura ele tinha sido arrastado por soldados romanos para fora do palco do grande teatro de Alexandria, deixando ali Maria entre Gaius Flaccus e Plotinus. E, fechando os olhos, rezou silenciosamente ao Todo Poderoso para que, tendo-os reunido de novo, não permitisse que aquela nova separação durasse muito tempo.
A sinagoga de Nazaré ficava junto à praça do mercado, à sombra de altas árvores. A aparição da família de Jesus perto da multidão, nessa manhã, e o aparente desinteresse do mestre por ela, tinham despertado a curiosidade de José. Agora que estava só, ocorreu-lhe que talvez o chazan da sinagoga pudesse esclarecê-lo sobre aquele estranho acontecimento e o ajudasse a tomar uma decisão quanto à informação que deveria levar a Pontius Pilatus acerca de Jesus.
Havia um velho no interior da sinagoga. Ao ouvir os passos de José no vestíbulo, chegou à porta e espreitou para fora, para o sol brilhante. - Sou Jonas, o chazan, disse delicadamente a José. - Vieste rezar ao Todo Poderoso? - O chazan era também chamado o apóstolo da congregação e era o seu chefe espiritual.
José apresentou-se e os dois homens conversaram amavelmente por momentos. Depois, o jovem médico perguntou: - Que pensam do mestre chamado Jesus, aqui em Nazaré?
O velho suspirou. - Esse trouxe grande desgosto à sua família. Ainda hoje me vieram consultar sobre o que deveriam fazer a respeito dele.
- Que queres dizer?
- Alguns pensam que está louco e querem fechá-lo em qualquer parte, para que não lhe suceda mal. Deves ter ouvido dizer que João o Baptista foi morto por Herodes por andar a agitar o povo? A família de Jesus receia que lhe possa suceder o mesmo.
- Então não o consideram grande aqui em Nazaré?
O velho encolheu os ombros. - Jesus cresceu aqui e aqui foi carpinteiro, com pequenos lucros. Onde é que esse homem obteve a sabedoria que dizem ter? E as grandes obras que dizem ter feito?
- Alguns acreditam que ele seja o Messias, objectou José. O chazan abanou a cabeça - Está escrito no livro do profeta Daniel: "Saibam portanto que, segundo a ordem para restaurar e construir Jerusalém até à vinda do Messias, o Príncipe, irão sete semanas mais sessenta e duas semanas: a rua deverá ser reconstruída e bem assim o muro, mesmo em tempos perturbados".
- Recordo-me dessa passagem, confessou José.
- O homem chamado Jesus de Nazaré é filho de um carpinteiro, não é um príncipe! - A voz do velho judeu ergueu-se indignada. - A sua mãe não se chama Maria? E os seus irmãos não se chamam Tiago e José, e Simão, e Judas? E não estão todas as suas irmãs aqui?
- Eu apenas o vi ontem e nada sei sobre ele, além daquilo que oiço, explicou José.
- Digo-te a verdade, disse o chazan com convicção. - Onde é que esse homem foi buscar tudo aquilo? como pode o Príncipe da Paz provir de uma cidade como esta? - O velho parou para recuperar o fôlego e depois prosseguiu: - Há quem veja em todos os que erguem a voz na praça do mercado um salvador de Israel, porque esperam que Deus lhes fale através dos ouvidos e não através do coração. Mas esquecem-se dos Livros da Lei e dos Profetas que prevêem a verdadeira chegada do Esperado exactamente como ela deverá ser. Queres mais alguma coisa de mim, meu rapaz?
José abanou a cabeça. - Disseste-me tudo o que eu queria saber. Shalom!
- Shalom, meu filho! Que o Todo Poderoso te dê sabedoria e livre Israel dos falsos profetas.
Já era tarde quando José chegou à villa de Pontius Pilatus em Tiberíades. O Procurador recebeu-o no jardim que dava para o lago. - Esperei-te ontem, disse abruptamente - Viste Jairo?
- Sim, disse-lhe José. - Mas quis também vero que conseguia descobrir sobre o mestre, Jesus de Nazaré, por isso fui à terra dele, Nazaré, esta manhã.
- Que diz Jairo? perguntou Pilatus impacientemente. - A rapariga ressuscitou mesmo?
- Há uma diferença de opiniões, explicou José. - Jairo e as pessoas que cuidavam da menina doente têm a certeza de que estava morta. Mas, quando Jesus chegou, disse-lhes: "A menina não está morta, mas sim a dormir". E fê-la levantar-se.
Um olhar de alívio surgiu no rosto de Pontius Pilatus e José compreendeu por que motivo o Procurador andava tão perturbado. Se José lhe levasse a notícia de que Jesus tinha efectivamente ressuscitado a criança, Pilatus teria sido forçado, pelo seu amor por Pila e por sua mulher, a levar o rapaz ao curandeiro, colocando-se na posição de suplicar a um judeu que salvasse o seu filho. Para um romano orgulhoso, teria sido algo realmente difícil.
- Conta-me toda a história em pormenor, ordenou Pilatus. - E não quero que omitas seja o que for.
José fez-lhe um relato completo da sua conversa com Jairo em Cafarnaum. - A rapariga estava viva, então, disse Pilatus firmemente. - As palavras do próprio mestre o provam.
- A menos que Jesus tentasse impedir que as pessoas se apercebessem do que fizera, objectou José.-Jairo diz que ele os avisou de que não deveriam dizer nada.
- Achas que algum curandeiro quereria impedir as pessoas de saberem que era capaz de ressuscitar os mortos? contrapôs Pilatus. - É porque a criança não estava morta. É um charlatão. O que me disseste não me deixa dúvidas a esse respeito.
- Jesus não é apenas mais um fanático, disso estou certo, objectou José. - Possui um estranho poder sobre as pessoas.
- Qualquer louco que trepe a um lugar alto e grite para o povo da Galileia encontrará seguidores, disse Pilatus com desprezo. Repara como os judeus seguiram aquele João o Baptista. Ouvi dizer que houve quem o considerasse o Messias de que estais sempre a falar, mas não conseguiu salvar a cabeça do machado de Herodes.
- E verdade que João foi morto para satisfazer uma mulher?
Pilatus encolheu os ombros. - João tinha de morrer. Tinha demasiados seguidores e tinha começado a criticar o próprio Herodes. Mas havia outros processos dele se ver livre de João Baptista sem o meter na prisão ou sem entregar a cabeça do homem numa bandeja a essa prostituta da Salomé. Não podemos aceitar lealdades divididas entre aqueles que vivem sob o jugo de Roma, José. Quando as pessoas seguem um chefe que não é um delegado de Roma, esse chefe tem que ser destruído.
- Isso quer dizer que Jesus também terá de ser condenado?
- Eventualmente, se continuar a ter cada vez mais seguidores. Mas desta vez espero que Herodes seja mais sensato. A prisão e o martírio não são o destino dos fanáticos. - Sorriu frouxamente. - Já ouviste falar dos sicarii, evidentemente.
José acenou afirmativamente. Os assassinos profissionais, chamados sicarii, eram fanáticos renegados. Muitos deles eram antigos seguidores de Judas o Gaulonita, e nem todos eram judeus, de modo algum. Infestavam todo o país e constituíam uma fonte de lutas constantes entre os romanos e as autoridades judaicas.
- Então sabes que as adagas dos sicarii estão ao serviço de qualquer pessoa por um determinado preço, prosseguiu Pilatus. - O erro de Herodes foi ter começado por meter João na prisão. Se for esperto, livrar-se-á desse Jesus muito mais simplesmente.
No dia seguinte, de manhã cedo, José partiu para Jerusalém, pela estrada do vale que seguia a margem ocidental do lago e o rio Jordão para o sul. A poucas milhas a sul de Tiberíades, passou por Hamath, cujos banhos quentes medicinais eram famosos em toda a região. Os doentes, muitos deles dobrados e aleijados devido às suas articulações inflamadas e rígidas, seguiam já penosamente para os banhos, em poças formadas nas rochas. Mais para norte, perto do local onde a cidade de Cafarnaum se aninhava contra a margem, José pôde claramente ver a água que brotava das rochas e a que chamavam as Sete Fontes, um local favorito dos viajantes que tomavam a Via Maris.
À medida que avançava para o sul, ao longo da margem do lago, em direcção a Tarichae, o pungente odor do peixe a secar encheu-lhe as narinas, logo à entrada da cidade. Nos enormes telheiros brancos junto da água trabalhavam centenas de mulheres, a limpar, a cortar e a salgar peixe às toneladas, para os mercados de todo o mundo. O tagarelar de muitas línguas femininas dava à cidade uma voz muito própria.
No rebordo oriental da concha dentro da qual o lago se encontrava, do lado de lá do verde esmeralda da água que brilhava à luz do sol matinal, fila após fila, encantadoras villas romanas subiam a vertente íngreme, cada uma delas com o seu pátio luxuriante e jardins em terraço descendo até à água. Havia barcos de todos os géneros ancorados junto dos molhes ao fim da longa escadaria de mármore que levava até às casas, e muitas das villas estavam quase totalmente ocultas pelas árvores e vinhas que cresciam em extraordinária profusão ao longo da colina em terraços.
Mais adiante, nos montes, havia um grande acampamento romano que abrigava a guarnição de que Gaius Flaccus tinha sido comandante, com as tendas das legiões dispostas em linhas geométricas pelas encostas e as casas brancas dos oficiais mais perto do lago. Para lá do acampamento romano, José conseguia ver parte das cidades gregas de Hippos e Gadara, nas colinas, com os seus teatros apalaçados e anfiteatros, os seus fóruns cheios de colunas e as largas praças do mercado, e com as cúpulas brancas dos templos a brilhar ao sol. Embora fizessem parte do Decápolis, como se chamava às dez cidades gregas para oriente, estavam estreitamente ligadas às cidades da Galileia. A influência grega desta região tinha afectado materialmente as vidas das gentes dessa populosa região muito mais do que na Judeia e em Jerusalém, onde os Fariseus, especialmente, continuavam a resistir teimosamente a qualquer infiltração de pensamentos e costumes estrangeiros.
Não era de admirar que aqueles que passassem alguns dias naquele paraíso terrestre nunca mais deixassem de o amar, pensou José, do alto do seu camelo, na estreita passagem onde o Jordão se precipitava sobre os rochedos, transportando as águas do Lago para o Mar Morto, mais para sul. Por muito longe que estivesse, aguardava sempre ansiosamente o regresso ao Mar da Galileia, que tanto amava, e àquelas cidades florescentes e turbulentas situadas nas suas margens. Sentia-se relutante em fazer avançar o camelo, pois assim deixaria de ver o lago.
Era mais do que nostalgia pela beleza terrestre que o arrastava de novo para o lago, no entanto, pois sentia ali uma paz e uma alegria que nunca conhecera em Jerusalém. E, olhando para o passado, compreendeu que, apesar de todas as suas riquezas e da sua elevada posição, tinha sido mais feliz quando era jovem, conduzindo a sua mula pelas estradas íngremes que rodeavam o lago, com a sua garrafa cheia de sanguessugas e o seu nartik cheio de ligaduras, instrumentos e remédios, a balouçar sobre o flanco do animal.
José não ficou surpreendido quando, alguns dias após o seu regresso a Jerusalém, recebeu uma convocação para visitar o velho sumo-sacerdote Anãs, na sua casa perto do templo, nem quando verificou que a indisposição do velho não passava de uma coisa insignificante. Embora diversos filhos de Anás tivessem ocupado a posição de sumo-sacerdote desde que ele se retirara, e agora o seu genro Caifás estivesse nessa mesma posição, era bem sabido em Jerusalém que o próprio Anás era quem detinha as rédeas e que os outros apenas faziam o que ele mandava. Contudo, um dos filhos, Jónatas, tinha sido posto de parte e sabia-se que andava constantemente a conspirar com Herodes Antipas para fazer daquele astuto governante da Galileia rei em Jerusalém. Pouca coisa sucedia entre os judeus, mesmo na Galileia, que não fosse imediatamente relatada ao velho sumo-sacerdote.
Elias, o doutor em leis sob cujo exame José tinha sido nomeado rophc uman, estava em casa de Anás, com Caifás e diversos outros, quando o jovem médico chegou. Depois de José ter receitado uma mistura calmante para a tosse do velho e fechado o seu nartik, Caifás aclarou a garganta com ar solene. Era um homem alto e magro, com um aspecto cruel e uns olhos que quase nunca fitavam directamente as pessoas com quem estava a falar, de modo que raramente havia possibilidades de se adivinharem os pensamentos através do seu frio aspecto exterior. - Estiveste recentemente na Galileia, creio eu, disse a José, depois de observadas as formalidades das saudações.
- Fui chamado para tratar do tribuno Gaius Flaccus na sua última doença.
- Falaste com o Procurador Pontis Pilatus?
José relatou a sua conversa com Pilatus e a sua missão junto de Jairo. Podia ver o interesse da audiência aumentar e, quando terminou, Caifás perguntou-lhe: - Sabes então, positivamente, que a criança não ressuscitou?
- Tenho apenas a palavra de Jairo, observou José. - Segundo ele, toda a gente pensou que a criança estivesse morta, mas Jesus, quando chegou, disse que não estava.
- Recordas-te das palavras exactas que o Nazareno usou? interveio Elias.
- Ouvi-as de Jairo apenas, não do próprio Jesus.
- Jairo é um bom homem e chefe da sinagoga de Cafar-naum, disse Caifás impacientemente. - Não teria qualquer motivo para mentir a este respeito.
- Segundo Jairo, disse-lhes José, Jesus chegou a casa dele e perguntou: "Porque fazeis tão grande tumulto e porque chorais? A criança não está morta, apenas dorme". Depois disse: - Criança, digo-te que te levantes". E ela levantou-se imediatamente do leito.
- Viste o o próprio Jesus de Nazaré? perguntou Elias.
- Sim. Ouvi-o pregar em Magdala e também em Nazaré...
- Dizes que ouviste Jesus falar? interrompeu Caifás. - Que pensaste dele?
- Possui um grande poder sobre as pessoas. Mas nada ouvi dos seus lábios que os nossos próprios profetas e mestres não tivessem ensinado já.
- Ele prega a revolução contra Roma e contra os chefes legais do templo, exclamou Caifás.
- Não ouvi tais coisas, insistiu José.
- Como explicas então que esse Nazareno conte entre os seus seguidores um homem chamado Simão o Zelote, que se sabe ter sido seguidor de Judas o Gaulonita e dos revolucionários galileus? perguntou Caifás em tom trocista. - E um outro homem chamado Simão, que era um agitador, quando pescador em Cafarnaum, assim como os filhos de Zebedeu, Tiago e Simão. Por esse mesmo motivo, os galileus chamam-lhes os Filhos do Trovão.
- Ouvi algumas pessoas dizerem que Jesus é o Messias, admitiu José, mas não ouvi falar em rebelião.
- Tens a certeza absoluta de que não ouviste qualquer blasfémia? perguntou Anás de novo.
- Nenhuma, disse José firmemente. - Ensinou apenas coisas que eu já tinha ouvido ensinar aos mestres do Pórtico de Salomão, aqui no templo.
Quando José contou a Nicodemus a sua visita a casa de Anás, o advogado disse imediatamente: - Estiveste perante o Sinédrio político.
- Penso que tens razão, concordou José. Toda a Jerusalém sabia que havia efectivamente dois conselhos governativos dos judeus, embora apenas um fosse legalmente reconhecido. O Grande Sinédrio era o conselho tradicional destinado a resolver questões religiosas. Poderia, se o achasse conveniente, aplicar uma sentença de morte legal, segundo a lei judaica, por lapidação, sujeita, evidentemente, à aprovação do governador romano. O outro grupo não tinha situação oficial mas possuía grande poder. Ocupava-se principalmente de assuntos de estado quando estes diziam respeito às relações entre a hierarquia sacerdotal e as leis dos Romanos. Naturalmente, era composto por Saduceus, classe da qual provinham os sacerdotes.
- Caifás domina o Sinédrio político por completo, prosseguiu Nicodemus. - Mesmo Elias, que é absolutamente honesto, crê que a paz sob as ordens de Roma e Caifás é preferível à luta pela liberdade. E, evidentemente, os mercadores, os sacerdotes e os cobradores de impostos não desejam mudanças na Judeia, enquanto Roma lhes deixar liberdade para enriquecerem.
- Porque pensas que eles estejam tão preocupados com a ideia de que Jesus ressuscitou alguém?
Nicodemus encolheu os ombros. - Tu estudaste a lógica grega, José. Um homem vulgar poderia fazer os mortos voltarem à vida?
- Não. Apenas o poder do Todo Poderoso o poderia fazer.
- Então, se Jesus tivesse o poder de controlar a morte, isso significaria que é um enviado de Deus.
- E portanto que é o verdadeiro Messias, concordou José pensativamente. - Compreendo agora por que motivo eles ficaram tão aliviados por ele não afirmar que tinha ressuscitado a criança.
Nicodemus acenou afirmativamente. - Caifás quer conservar o poder, evidentemente, e para tal corteja os favores de Pontius Pilatus. Mas não ousaria opor-se ao verdadeiro Messias, que virá do Todo Poderoso.
- A rapariga poderia encontrar-se em estado letárgico, admitiu José. - Por vezes saem de tal estado sem motivo aparente, pelo que este caso nada prova.
- Para ti, talvez não. Mas Caifás não quer acreditar que Jesus de Nazaré seja o Cristo, e por isso aceitou as tuas provas prontamente. O sumo-sacerdote não pode atribuir um bom motivo ao Nazareno, porque ele ousa dizer às pessoas a verdade acerca dos próprios sacerdotes, prosseguiu Nicodemus. - Mas Caifás também sabe que as pessoas estão a seguir Jesus em grandes multidões, por isso nada fará. Imagino que ele espera mesmo que Herodes cometa outro erro com Jesus, como cometeu com João o Baptista, porque tudo o que Herodes faça para irritar as pessoas diminui as suas hipóteses de se sentar no trono da Judeia.
- Não deveríamos avisar Jesus acerca de Simão o Zelote? sugeriu José. - Talvez ele não se aperceba de como uma pessoa desse género pode ser perigosa.
Nicodemus sorriu. - De certo modo, penso que o Nazareno já sabe o que está dentro do coração dos homens que o seguem, José. Na minha última visita a Roma, ouvi Séneca falar no Senado. Disse algo acerca de Diógenes de que eu ultimamente me tenho lembrado com frequência em relação a Jesus:
Vale um reino ser-se, num mundo de impostores, assassinos e raptores, a única pessoa a quem ninguém pode atingir. "
A vida em Jerusalém parecia, de certo modo, ter perdido todo o encanto para José, e, por isso, não ficou muito aborrecido quando, algumas semanas mais tarde, recebeu uma mensagem de Tiberíades, pedindo-lhe que fosse imediatamente tratar da patrícia Claudia Procula. Tinha agora um camelo rápido nos seus estábulos, para o caso de Maria necessitar da sua ajuda, pelo que fez a viagem à Galileia em menos de metade do tempo que levaria numa mula. Embora ainda retida no leito por um forte ataque de asma e uma leve congestão pulmonar, a mulher de Pilatus estava fora de perigo quando ele chegou, mas não teve dificuldade em convencer-se a si próprio de que deveria ficar na Galileia durante alguns dias para estar certo de que a sua doente não sofreria uma recaída.
Pontius Pilatus estava de muito mau modo quando o jovem médico o viu, nessa tarde. O Procurador voltara a sofrer da sua gota, e, enquanto José preparava a aplicação de sanguessugas no dedo gotoso, Pilatus protestava contra He-rodcs Antipas e os galileus, e contra Jesus da Nazaré em particular, por agitar o povo excitável da região do lago. - Eu próprio enviaria os sicari ao Nazareno, berrou, mas depois Herodes mandava dizer para Roma que eu estava a interferir no seu reinado. Nada serviria melhor os seus planos de se sentar no trono da Judcia, com Jónatas como sumo-sacer-dote, do que a influência do Imperador contra mim.
- Então sabes disso? perguntou José, espantado.
- o ouro romano pode sempre comprar espiões. - Pilatus sorriu sombriamente. - Até sei que tu compareceste diante do sumo-sacerdote, José, e tentaste convencê-lo de que Jesus não planeia uma revolta.
- Mas estou certo de que não a planeia.
- Os homens bons como tu são facilmente enganados, disse Pilatus, com certa bondade. - Como explicas a presença de homens como Simãoo Zelote e Judas lscariotes entre os discípulos de Jesus? Judas até controla o dinheiro, a parte mais importante de qualquer revolta.
Aquele era exactamente o argumento que Caifás tinha usado em Jerusalém, recordou-se José. P. Pilatus tinha tido um conhecimento pormenorizado da sua conversa com o Sinédrio político, o que significava que as relações entre Pontius Pilatus e o sumo-sacerdote eram tão íntimas quanto geralmente se cria serem. - Então porque é que Herodes não prende Jesus? perguntou.
- O nobre Antipas está a sofrer os rebates de consciência, disse Pilatus com desprezo. - Dizem-me até que ele pensa ouvir em Jesus o espírito de João o Baptista que voltou para o perseguir. O que ele realmentequer é que o Nazareno vá para Jerusalém. Então será Pontius Pilatos quem terá de haver-se com ele. Mas eu já me ocupei de galileus antes disto, acrescentou asperamente. - Certa vez tive até que abater um grupo de rebeldes nos próprios degraus do templo.
- Ouvi contar isso, admitiu José, enquanto retirava uma sanguessuga gorda e aplicava uma magra. A ocorrência tivera lugar antes de ele ir viver para Jerusalém. Era apenas um mais na longa lista de motivos pelos quais os judeus odiavam Pontius Pilatus.
- Se quiseres salvar os teus amigos galileus de um destino semelhante, avisou Pilatus, é melhor recordares-lhes o que sucedeu aos outros. Serão tratados de modo diferente em Jerusalém, se cometerem o erro de tentar agitar a multidão ali.
Na manhã seguinte, muito cedo, José partiu para Magdala para ver Maria, mas a casa estava vazia e havia traves nas portas. Através de um vizinho, soube que nem Maria nem Hadja tinham estado em Magdala havia mais de uma semana.
- Maria de Magdala acompanha Jesus, informou o vizinho. - E ele ensina aos seus discípulos que não se preocupem com o local onde comem ou dormem. Mas sempre conseguem comer, prosseguiu o homem. - Ainda na semana passada o Nazareno e os seus discípulos deram de comer a cinco mil pessoas com alguns pães e peixes.
- Cinco mil! - José estava espantado. Nunca se tinha ouvido falar de tais multidões, mesmo naquela populosa região. - Tu próprio viste esse milagre? perguntou.
- Com os meus olhos, não, confessou o informador. - Mas foi-me contado por alguém que o ouviu de lábios que provaram o pão e o peixe. Diz que todos ficaram satisfeitos e depois reuniram doze cestos de pedaços de pão e peixe, para dar aos pobres. Desde então, os seus seguidores começaram a intitular-se a Companhia do Peixe.
- Foi realmente um milagre, admitiu José, se sucedeu tal como tu contas.
- Cada dia há mais pessoas que contam no mercado as coisas maravilhosas que o Nazareno faz. - O homem baixou a voz, como se fosse revelar-lhe um segredo. - Muitos dizem que ele é o.Messias e que, quando chegar o momento, as pessoas se erguerão em toda a parte e o proclamarão rei.
José compreendeu que precisava de encontrar Maria rapidamente e avisá-la do que as pessoas andavam a dizer sobre Jesus. Coisas daquele género poderiam convencer ainda mais fortemente Pilatus e Herodes de que o Nazareno andava efectivamente a agitar as pessoas para uma revolução.
- Esteve aqui um homem há vários dias, à procura de Maria de Magdala. - A voz do vizinho interrompeu-lhe os pensamentos. - Era Chuza, um dos servidores de Herodes Antipas.
José recordou-se de que Maria lhe dissera como o intendente de Herodes e sua mulher tinham sido bondosos para ela durante a sua estada em Seforis, em casa de Gaius Flaccus. Se ela ainda estivesse na Galileia, Chuza ou a sua mulher talvez soubessem onde a poderiam encontrar, pensou, e dirigiu o seu camelo para Séforis.
A casa de Chuza ficava a pequena distância do luxuoso palácio de Herodes em Séforis. Era um homem pequeno com movimentos rápidos e nervosos e um ar de profunda sinceridade. O seu rosto iluminou-se quando José se apresentou. - A minha mulher Joana e eu gostamos muito de Maria de Magdala, disse. - Ouvimo-la falar frequentemente de ti.
- Disseram-me em Magdala que foste procurar Maria.
- Sim. A minha mulher foi ontem avisá-la.
- Avisá-la? perguntou José, cuja apreensão aumentou. - Ela está em perigo?
O intendente hesitou; depois, concluindo que podia confiar em José, explicou: - Herodes poderá actuar contra Jesus em qualquer momento. Tenho esperanças de que Maria consiga persuadir o mestre a atravessar o Jordão e a entrar no território de Filipe.
- Achas que o mestre será preso?
Chuza abanou a cabeça. - Prisão alguma da Galileia o poderá deter; as pessoas arrancariam as pedras dos muros da prisão com as mãos nuas. Herodes tem esperanças de que Jesus se dirija para o território de Pilatus, mas receia esperar mais tempo. Dizem-lhe em toda a parte que Simão o Zelote e os outros proclamarão Jesus rei da Galileia a qualquer momento e, se Herodes permitir que isso suceda, os romanos tirar-lhe-ão o seu reino.
- Ouvi hoje esse mesmo boato em Magdala.
- As histórias são verdadeiras. Conheço esses Zelotes, José. - Arriscam tudo para libertar os judeus de Roma.
- Mas o povo da Galileia seguiria Jesus se ele o guiasse contra Herodes e Pontius Pilatus?
- Creio que sim. Uma tal revolta seria como um incêndio desencadeado, mal salta a primeira faúlha. Por isso Herodes contratou os sicarii para matarem o Nazareno.
- Podes dizer-me quais os seus planos? - perguntou José rapidamente.
Chuza abanou a cabeça. - Não ouvi pormenores, mas o modo mais simples seria dar origem a um tumulto entre a multidão. Depois, os assassinos matariam Jesus facilmente, no meio da confusão.
- Vou imediatamente avisar Maria para que ela o diga a Jesus, decidiu José. - Sabes onde posso encontrá-la?
- Estiveram em Cafarnaum até ontem, disse o intendente. - Mas se Joana os encontrou, talvez já tenham ido para Bethsaida, no território de Filipe. Procura as multidões e encontrarás Jesus entre elas, a curar doentes e a pregar.
Dirigindo-se para norte pela Estrada Romana, José perguntava a si próprio qual viria a ser o desfecho do drama que se aproximava. Chegara a altura, parecia-lhe, de Jesus de Nazaré se proclamar o Messias - se o era efectivamente.
A cidade de Bethsaida - coloquialmente conhecida por "Cidade do Peixe" - ficava situada numa pequena baía no extremo norte do Mar da Galileia, a oriente do ponto onde as águas frias do Jordão se precipitavam no lago. Perto de Bethsaida, as nascentes de Ain-et-Tabigliag lançavam a sua água no lago, através de um aqueduto romano, atingindo a corrente fria do jordão, do lado norte, e provocando uma corrente em torvelinho que arrastava peixes em grandes quantidades. Enquanto cavalgava o seu camelo, José podia vê-los, aos saltos, em grandes cardumes, que faziam com que a própria água parecesse viva. Os barcos de pesca pululavam na região, e, por vezes, os pescadores mal conseguiam puxar as redes, tão carregadas esravam de peixe. Contudo, por estranho que parecesse, naquele dia poucos barcos se viam na água.
Para lá de Cafarnaum, onde a estrada para Damasco voltava para norte, em direcção ao cume nevado do Monte Hermon e ao Vau das Filhas de Jacob, erguia-se um posto alfandegário que marcava a fronteira entre as tetrarquias de Herodes Antipas e seu irmão Filipe. José nada levava sobre que pudesse pagar direitos, pelo que lhe permitiram que passasse e prosseguisse em direcção a Bethsaida.
Verificou que Chuza tivera razão ao dizer que não teria dificuldade em descobrir Jesus, pois encontrou logo uma multidão, ainda a uma milha de Bethsaida. Olhando sobre as cabeças das pessoas, à medida que o seu camelo avançava lentamente, José ficou impressionado com a variedade dos rostos que constituíam a multidão. Havia judeus por toda a parte, evidentemente, na sua maioria camponeses fortes e vigorosos da Galileia. Mas aqui e além viam-se os rostos magros e ascéticos dos Fariseus e escribas de classes mais cultas, entre mercadores, artesãos, pescadores, viajantes, romanos de togas e uniformes militares. Beduínos dos desertos do sul e de leste, sírios da região de Antióquia, a norte, alguns escuros egípcios das caravanas que passavam perto, pela Via Maris, persas, fenícios e até um núbio, ocasionalmente, apesar de bem longe das costas de África. era uma multidão quase tão cosmopolita como a que vira no cais de Alexandria, e a quantidade de barcos arrastados para a praia, lado a lado, explicava o motivo por que vira tão poucos na água.
Como sempre, onde quer que Jesus estivesse, os doentes constituíam uma parte substancial da multidão. Os mendigos arrastavam-se pelo pó, com as chagas hediondas e purulentas empapadas de sujidade. Homens com articulações inchadas pelas inflamações do reumatismo avançavam coxeando, apoiados em bordões ou em grosseiras muletas. Alguns, incapazes de andar, eram transportados pela família em liteiras improvisadas. Os cegos guiavam-se uns aos outros, chocando contra os que podiam ver, e estes, por sua vez, amaldiçoavam-nos e empurravam-nos com rudeza.
A um lado, um pequeno grupo ocupava um pequeno espaço aberto entre a multidão. O seu próprio isolamento teria revelado a natureza da sua impura doença, se os seus membros atrofiados, as mãos sem dedos, os rostos onde se escancaravam feridas, expondo as narinas abertas, não a indicassem ainda mais claramente. Tinha constado que Jesus curava os leprosos e agora todos os que existiam, por todas as milhas em redor, o seguiam, na esperança de que os tratasse. A pouca distância dos leprosos, um outro grupo transportava um homem, atado de pés e mãos, que amaldiçoava as pessoas e se babava, dominado por uma fúria insana, enquanto lutava contra os laços que protegia a multidão da sua loucura. Mulheres com doenças de todos os géneros arrastavam-se por entre a multidão, algumas pálidas como mármore pela perda de sangue, outras escondendo sob as roupas sujas os fedorentos cancros que lhes consumiam as carnes.
O choramingar dos mendigos, os gritos de dor daqueles que eram impiedosamente empurrados pela multidão e a berraria do louco, formavam uma áspera cacofonia, que igualava na sua repulsividade e horror as próprias chagas dos leprosos. Olhando para aquela massa de humanidade miserável e sofredora, que amaldiçoava e suplicava, José compreendeu por que motivo Pontius Pilatus, que naturalmente não podia suportar gente daquela, chegara quase a odiar o homem cujos seguidores atravancavam as boas estradas romanas. Coisas daquele género violavam o sentido de ordem que enchia naturalmente o espírito de um militar. Especialmente humilhante para Pilatus seria a ideia de que a sua mulher, uma patrícia romana, com sangue de imperadores nas veias, acreditava secretamente nos ensinamentos daquele carpinteiro de Nazaré.
Enquanto deixava descansar o seu camelo, diante da multidão comprimida, José podia ver facilmente Jesus, porque o mestre se sentara numa pequena saliência da rocha sobre a praia que formava como que um púlpito natural. Não conseguia ver Maria, nem Simão Pedro, mas Hadja encontrava-se junto dele. Um grupo de Fariseus, reconhecíveis tanto pelos modos como pelos trajos, reunia-se em volta de Jesus. - Dás-nos um sinal, bom mestre? - ouviu José um dos Fariseus pedir. - Um sinal do céu, para mostrar que o Todo Poderoso vos nomeou seu profeta?
Jesus ergueu a cabeça e José sentiu-se impressionado pela mudança que nele se notava, desde o dia em que vira o Nazareno pela primeira vez, em frente da casa de Maria. O seu corpo e o seu espírito pareciam curvados como se o dominasse um grande desgosto ou desapontamento. Contudo José não conseguia compreender porquê, uma vez que jamais vira uma tão grande multidão na Galileia. Devia ser, pensou, ainda superior à dos cinco mil que se dizia ter Jesus alimentado com alguns pães e peixes.
Como Jesus não respondesse imediatamente, o Fariseu que o interrogara insistiu: - Os profetas dos outros tempos deram-nos sinais. Moisés fez brotar água de uma rocha e alimentou os filhos de Israel com um maná caído do céu.
- Porque é que esta geração pretende um sinal ? - perguntou então Jesus tranquilamente. - Na verdade vos digo que sinal algum será dado a esta geração.
Um outro grupo de Fariseus abrira caminho através da multidão e aproximava-se agora do rochedo onde Jesus se sentara. - Foge daqui, disse um deles em voz alta, porque Herodes quer matar-te.
Um profundo rosnido de ira saiu da multidão, mas Jesus levantou uma mão e o povo acalmou-se. - Ide dizer a essa raposa, disse-lhes ele: "olhai, eu expulso demónios e faço curas hoje e amanhã, mas no terceiro dia termino a minha passagem". Contudo, tenho que prosseguir o meu caminho hoje e amanhã e no dia seguinte; porque um profeta não deve perecer longe de Jerusalém. - Depois a sua voz alterou-se e transformou-se num grito de angústia: - Oh Jerusalém, Jerusalém! Matas os profetas e lapidas aqueles que te são enviados! Quantas vezes eu reuniria os teus filhos, como uma galinha reúne os seus pintos por baixo das asas, e tu não o queres! Olhai que abandonais a vossa casa! E eu digo-vos que não me vereis antes de dizerdes: "Abençoado aquele que vem em nome do Senhor".
José ficou impressionado pelo grito apaixonado de Jesus. Assim mesmo, pensou, numa súbita inspiração, teria falado o verdadeiro Filho de Deus, o Esperado, se tivesse vindo chefiar os judeus e fosse rejeitado pelos seus governantes, tal como estava a sê-lo pelos escribas e os Fariseus que o interpelavam onde querque estivesse, procurando arrancar-lhe uma declaração que violasse a lei. Pela primeira vez, a convicção de José de que Jesus não poderia ser o Messias, foi severamente abalada. Movido por um súbito impulso, desceu do camelo e abriu caminho através da multidão, esperando chegar junto de Jesus e fazer-lhe uma pergunta directa que revelasse a verdade.
Nesse momento, porém, Jesus ergueu-se, como que impaciente perante a rectidão dos Fariseus e a sua eterna solicitação de sinais. A multidão abriu caminho diante dele, até à água. Só quando ele entrou para um dos barcos puxados para terra compreenderam que se ia embora e começaram a protestar, pedindo-lhe que ficasse e curasse milagrosamente. Alguns deles tentaram mesmo agarrar o barco e detê-lo, mas os barqueiros saltaram para bordo e forçaram o barco a entrar na água com os remos. Erguendo as velas, partiram, em direcção a Bethsaida.
A multidão estava irada. Os doentes que não tinham conseguido aproximar-se do Nazareno praguejavam e murmuravam contra ele, e os sãos, cujo avanço era impedido pelos doentes, que se moviam lentamente, empurravam os que se encontravam à sua volta, batendo-lhes. Desencadearam-se lutas esporádicas e o povo movia-se de um lado para o outro, sem um propósito determinado, resmungando e chegando a amaldiçoar o próprio mestre.
Que sucedera? perguntou José a si próprio. A tristeza de Jesus, o desapontamento que ele nada fizera para esconder, e agora a impaciência da multidão que antes o seguira cegamente- tudo isto parecia marcar uma diferença qualquer. A lógica dizia-lhe que era apenas o desagrado natural das pessoas perante alguém que esperavam ver fazer milagres e curar todos aqueles que vinham ao seu encontro, e que o não fizera. A recusa de Jesus em dar um sinal aos Fariseus significaria que não tinha poderes para o fazer? Ou possuí-los-ia, como era natural se fosse realmente o esperado, mas, por qualquer motivo, recusava-se a usá-los?
Hadja avistara José e o seu camelo e veio ao seu encontro, para o saudar. - Que te traz de novo à Galileia, tão cedo?
- A patrícia Claudia Procula estava doente e mandou-me chamar.
- Ouvimos dizer isso. Maria rezou todos os dias pelas suas melhoras.
José olhou-o surpreendido. - Porque é que já não lhe chamas a Chama Viva?
- Aquela a quem eu chamava a Chama Viva era outra pessoa, explicou Hadja simplesmente. - Agora é apenas Maria de Magdala, uma das mulheres que servem Jesus.
- Schuza disse-me que ela é a chefe dessas mulheres.
- É verdade. Talvez porque o ama mais do que as outras. José sentiu, por momentos, um espasmo de ciúme pelo mestre de Nazaré. Mas afastou-o imediatamente do seu coração, porque sabia que o amor de Maria por ele, e o seu amor por Jesus, eram duas emoções diferentes. Um era o amor de uma mulher pelo homem com quem pensava casar, o outro o amor que uma pessoa apenas dedica a Deus.
- Estamos acampados nas colinas por trás de Bethsaida, disse Hadja. - Maria ficará contente por te ver.- A multidão tinha-se dispersado um pouco e puderam avançar pela estrada que seguia para leste da cidade.
- Vim avisar-vos que Herodes planeia matar Jesus, disse José ao nabateu. - Mas os Fariseus que acabam de falar chegaram antes de mim.
- Nós sabemos que Herodes contratou os sicarii, admitiu Hadja. - Por isso viemos para o reino de Filipe. Agora estou sempre ao lado de Jesus, quando ele está a pregar, acrescentou sombriamente, com a minha faca pronta na cinta.
Hadja levou José até aos montes que davam para Bethsaida. Enquanto caminhavam, podiam ver, lá em baixo, o barco dentro do qual Jesus se afastara, navegando para além da cidade. Em breve chegaram a um pequeno edifício em volta do qual tinham sido armadas tendas de pele de cabra. Havia diversas mulheres a trabalhar junto às fogueiras ao ar livre, por trás da casa, mas nenhuma delas ostentava os cabelos vermelhos de Maria. - é possível que ela tenha ido fazer qualquer coisa à cidade, sugeriu Hadja. - Vou perguntar às mulheres.
José tinha visto muitos acampamentos como aquele no exterior das cidades por que passavam caravanas. As pessoas viajavam geralmente em grupos pelas estradas daquele país turbulento, juntando-se para se protegerem dos ladrões e salteadores que infestavam a zona montanhosa. O chefe e a sua família costumavam dormir numa casa que alugavam pelo curto período da sua estada, enquanto os outros dormiam nas suas tendas no inverno, ou no chão no verão, envoltos em peles, em mantas ou tapetes, porque fazia frio nas manhãs de inverno e, mesmo no verão, o ar tornava-se fresco antes do amanhecer.
De súbito chegaram aos ouvidos de José as vozes de várias pessoas a falar ao mesmo tempo, provenientes do interior do pequeno edifício junto do qual se encontrava. Reconheceu a voz trovejante de Simão e aproximou-se, certo de que o seu velho amigo de Cafarnaum teria prazer em vê-lo. Contudo, mesmo à entrada da porta parou, ao compreender que os homens lá dentro estavam a discutir.
- Eu digo que o proclamemos rei já amanhã, dizia uma voz profunda e irada. - Filipe é fraco e não se oporá a nós. Antes de perceber o que sucedeu, já teremos reunido forças suficientes, para caírem sobre a Galileia e tomá-la pela força.
- Mas se o mestre recusar? perguntava Simão.
- Poderá ele recusar ser rei de Israel quando lhe colocarmos a coroa na cabeça? dizia a voz profunda.
- Digo-te que Jesus não quer ser rei.-José ficou espantado, ao ouvir a voz de Maria. - Não conseguis compreender qual é o seu propósito?
- Ele tem que ser rei, disse positivamente a voz profunda. - Não está escrito nos Salmos de Salomão:
Ouve, Senhor, e apresenta-lhes o seu rei, o filho de David, Na altura em que vires, Senhor, que ele deve reinar em Israel, teu servo. E guia-o com a tua força para que ele possa destroçar os governantes injustos E para que possa livrar Jerusalém das nações que a pisam e querem destruí-la. Com um bastão de ferro ele quebrará todos os seus recursos E destruirá as nações sem Deus, com uma só, palavra da sua boca.
- Dir-se-ia que temos a promessa do Todo Poderoso de que Jesus será rei, confessou Simão.
José já compreendera que estava a escutar um plano para forçar Jesus a tornar-se rei da Galileia, numa preparação, sem dúvida, para a marcha sobre a própria Jerusalém. Sabia que, sendo um estranho, não tinha o direito de escutar aquela conversa. Mas disse a si próprio que Maria estava lá dentro, e o que lhe dizia respeito também lhe dizia respeito a ele.
- Dir-se-ia, imitou sarcasticamente a voz profunda. - A tua fé será tão pequena, Simão, que duvides de que Jesus é o Messias? - Ninguém me poderá considerar desleal para com o mestre, gritou o pescador furioso. Mas, antes que ele prosseguisse, Maria disse com firmeza: - Simão a que chamam Pedro seguiu Jesus muito antes de Simão o Zelote. Nem sois vós quem tem o direito de resolver isto. É o próprio mestre quem deve decidir.
- Mas ele disse que ia para Tiro, objectou o homem a quem chamavam o Zelote. - Seria desastroso deixar a Galileia agora. O povo está pronto a coroá-lo rei.
De súbito, José sentiu que uma mão de ferro lhe apertava o ombro. No mesmo instante, a ponta aguda de uma adaga atravessava as suas roupas e tocava-lhe a pele. - Não te mexas, ordenou uma voz áspera.
José não conseguia ver o seu captor, nem ousava gritar por Simão Pedro e Maria, receando que o homem lhe enterrasse a adaga nas costas. - Quem te enviou? inquiriu a voz áspera. - Herodes Antipas?
- O meu nome é José da Galileia, conseguiu gaguejar o jovem médico.
- És um dos sicarii. Caso contrário, não estarias a escutar a conversa de homens honestos.
- Leva-me para dentro da casa, suplicou José. - Maria de Magdala e Simão Pedro conhecem-me bem.
- Anda, então, ordenou o seu captor. - Mas nada de movimentos falsos.
Quando passavam pela porta, José conseguiu ver, de relance, o homem que lhe apontava a adaga. Era um judeu alto, com as maçãs do rosto proeminentes, um nariz adunco, olhos ardentes e cabelos que começavam a tornar-se grisalhos nas têmporas. Não era um rosto que se esquecesse facilmente, especialmente naquelas circunstâncias.
Maria foi a primeira a vê-los e avançou rapidamente, agarrando o braço do homem alto. - Larga essa adaga, Judas de Kerioth! exclamou indignada. - José é o meu noivo e amigo de todos nós.
Simão olhava-os, espantado, mas foi para o outro homem que se voltaram os olhos de José. Aquele a quem chamavam Zelote, sem dúvida para o distinguir de Simão o Pescador, era baixo e atarracado, com ombros largos e longos braços. Tinha um pescoço curto e uma cabeça pequena, o que lhe dava uma aparência estranhamente assustadora. Ergueu-se, praguejando entre dentes. - Que se passa, Judas? perguntou.
O homem a quem Maria chamara Judas de Kerioth, embainhou a adaga com relutância. - Encontrei-o a escutar-vos à porta, explicou.
- Então ouviu tudo o que dissemos, resmungou o Zelote. - Es tu o José da Galileia que é medicus viscerus do templo e amigo de Pontius Pilatus?
- José não escuta as conversas dos outros, exclamou Maria indignada. Ele pode explicar o que estava a fazer.
- Hadja e eu vínhamos do local onde Jesus esteve a pregar junto ao lago, explicou José. - Ele foi procurar-te, Maria, mas eu ouvi a tua voz e a de Simão dentro de casa e ia a entrar para lhes falar. Quando compreendi que conversavam com outra pessoa, decidi não entrar.
- Mas ficaste em posição de poder escutar, objectou Simão Zelote. Voltou-se para o outro Simão: - E se ele vai contar a Pontius Pilatus?
- José não é em delator, insistiu Maria. - Mas até gostava que fosse. O que estais a planear é mau. O mestre vos dirá o que deveis fazer; não sereis vós a dizer-lho.
- Conheço José da Galileia há muito tempo, concordou Simão Pedro. - Se ouviu algo que não devesse ouvir e lhe pedirmos que o guarde para si, fa-lo-á.
- O que ouvi não será revelado a ninguém, disse José. - Juro-o pela minha honra de médico.
Resmungando, os dois homens aceitaram a palavra de José, mas ele sabia que as suas suspeitas não estavam inteiramente afastadas. Judas de Kerioth também era conhecido, soube depois, por Judas Iscariotes. Tanto ele como Simão Zelore pertenciam a um grupo de fanáticos galileus chamados Zelotes, muitos dos quais tinham estado ao lado do outro Judas, o Gaulonita, que desencadeara a cólera de Roma sobre a cidade de Séforis. José perguntava a si próprio se deveria revelar-lhe que Pontius Pilatus já conhecia as suas intenções, mas preferiu não aumentar as suas suspeitas. Talvez Maria conseguisse convencer Jesus de que não deveria segui-los naquilo que seria, inevitavelmente, uma imprudência. E, contudo, sentia-se seguro, de certo modo, de que o suave carpinteiro de Nazaré sabia bem tomar conta de si próprio.
A tensão era grande no acampamento, naquela noite. Judas e Simão Zelote esperavam que Jesus chegasse para o convencerem do levantamento projectado, e Simão Pedro estava quase convencido a apoiá-los. Mas sucedeu algo de inesperado. Tiago e João, os filhos de Zebedeu, regressaram de Bethsaida com a notícia de que o seu chefe os mandara regressar e tinha ido para as colinas orar. E revelaram igualmente que o mestre estava firme na sua decisão de abandonar a Galileia imediatamente e seguir para a região de Tiro, perto da orla marítima.
Terminada a refeição da noite, os outros reuniram-se em conferência sobre este novo acontecimento, mas Simão demorou-se um pouco junto de José e de Maria.
- Vi Jesus na praia, esta tarde, disse José. - Que lhe sucedeu? Parecia triste.
- Está desapontado porque os seus discípulos não o compreendem, disse Maria imediatamente. - Eles pensam em termos de reino da terra, quando Jesus apenas deseja modificar o coração dos homens.
- Mas ele é o Cristo, insistiu Simão. - O Messias enviado por Deus para libertar os judeus da opressão.
- Que provas tens, Simão, de que Jesus é realmente o Esperado? perguntou José.
- De que provas necessito, além das suas palavras?
- Ele próprio to disse?
Simão acenou afirmativamente. - Foi aqui em Bethsaida, já há algum tempo. Jesus perguntou-nos: "Quem dizeis que eu sou? Eeu respondi: "O Cristo, vindo de Deus". Então ele ordenou-nos que não o disséssemos a ninguém.
- E porque lhe respondeste isso? perguntou José.
- Era uma coisa que eu sabia, disse Simão com simplicidade, tal como sei que estou aqui contigo e com Maria, nesta noite.
- Mas se Jesus é realmente o Messias, protestou José, porque não o anuncia publicamente?
- Ainda não chegou a altura, explicou Simão. - Mas nós estamos prontos. Se o mestre não tivesse partido, tê-lo-íamos proclamado rei e marchado sobre Séforis e Tiberíades amanhã mesmo. Seguir-se-ia Jerusalém e depois o Ungido de Deus reinaria em todo o Israel.
- Então achas que Jesus tenciona realmente estabelecer um reino na terra?
- Por que outro motivo viria o Messias? - Simão olhou-o espantado. - Não está escrito que ele libertará os judeus do cativeiro e os fará dominar todos os povos do mundo?
- Mas os soldados de Roma...
Simão ergueu-se, com o rosto subitamente congestionado pela ira. - Tem cuidado, José, avisou-o. - Quando dizes que o poder do Todo Poderoso não é superior aos poderes terrenos, mesmo ao de Roma, blasfemas contra Deus. - E, sem esperar por uma resposta, saiu da sala.
José fez menção de levantar-se para seguir Simão, mas Maria colocou a mão sobre o seu braço. - Não vale a pena discutires com ele, disse. - Ele e Simão Zelote e Judas Iscariotes e os filhos de Zebedeu só pensam em estabelecer um reino na terra.
- Sei que tu não concordas. Porquê?
- Os Fariseus perguntaram um dia a Jesus quando chegaria o reino de Deus. Ele disse-lhes: "O reino de Deus não virá com sinais que possam ser observados. Nem se dirá: Olhai! Ele aí está! Ou: aí o tendes! Pois, notai, o reino de Deus está entre vós." A mensagem de Jesus não se destina aos nossos olhos ou aos nossos ouvidos, disse ela. - É para os nossos corações.
Ele sentiu-se tentado a concordar, pela sua tranquila convicção e pelo amor que sentia por ela. Contudo, o homem que ele ouvira falar dos rochedos junto à praia, nessa tarde, era totalmente diferente daquilo que lhe tinham ensinado desde pequeno, do libertador que seria conhecido por o Cristo.
- Vem passear comigo pela praia, José, disse Maria, pondo-se de pé. - Jesus talvez volte mais tarde. Se o fizer, tenho que estar aqui para lhe lavar os pés e ungir a sua cabeça com óleos e preparar-lhe uma túnica lavada para amanhã, mas podemos estar algum tempo juntos, até ele vir.
A lua já se tinha erguido sobre as colinas íngremes a oriente, onde ficavam as cidades gregas do Decápolis. Sobre a água estendia-se uma vasta faixa prateada, quebrada ocasionalmente por pequenas ondas quando um peixe saltava e agitava a superfície espelhada. José pegou na mão de Maria e caminharam ao longo da praia, muito juntos, tanto em corpo como em espírito.
- Lembras-te de quando passeámos juntos ao pé da água pela última vez? perguntou ela.
- Foi em Alexandria, junto do lago Mareótis, no jardim da tua villa.
- Tentaste persuadir-me então a não matar Gaius Flaccus. Ergueu a mão dele e levou-a aos lábios. - Querido e bom José, disse suavemente, se eu te tivesse dado ouvidos...
- Poderias ter sido uma das mulheres mais ricas do mundo.
- Mas não teria conhecido Jesus.
- para conhecê-lo vale a pena teres perdido tudo o que poderias ter tido?
- Se fosse tão rica agora como era em Alexandria, disse ela simplesmente, daria tudo em troca da honra de servir Jesus. No fundo da minha alma, mesmo no fundo, sei que estava destinada a isto.
- Ensina-me a conhecer Jesus como o conheces, Maria, suplicou ele, impulsivamente, mas ela abanou a cabeça. - Apenas te posso mostrar o caminho para veres por ti próprio, José. Hoje és como aqueles de que dizia Isaías: " Vós ouvireis mas nunca me compreendereis". Talvez apenas uma mulher possa realmente compreender o íntimo do coração de Jesus, prosseguiu ela. - O amor que ele sente pelo mundo é como o de uma mãe pelo seu filho, algo que todas as mulheres sentem dentro de si. - Voltou os olhos para as colinas por trás de Bethsaida. - Algures, lá em cima, ele está só, José, rezando a seu Pai, para que abra os olhos dos homens, para que eles o vejam como ele é. Há muitos que olham para ele apenas para que os cure, e os Fariseus procuram um sinal dos céus, enquanto Simão Zelote e Judas apenas o vêem a conduzir os judeus ao triunfo contra Roma. Nenhum deles parece poder compreender que, tendo fé e seguindo Jesus, os seus corações poderão mudar até verem a glória do Todo Poderoso sobre a própria terra.
- Então ele falhou na sua missão?
- Não, José. O Messias não pode falhar, mas aqueles que ele ama é que falharam. A família chama-lhe louco e quer encerrá-lo. Os seus discípulos - até mesmo Simão Pedro, a quem ele ama mais do que aos outros-só conseguem pensar nele como um rei na terra. E Pontius Pilatus e Herodes Antipas chamam-lhe criminoso mas não ousam prendê-lo porque receiam as consequências.
- Que pode ele fazer, então, além de ir-se embora?
- Não sei, confessou Maria. - Mas tenho a certeza de que tomou qualquer decisão e que o afastarmo-nos da Galileia nesta altura faz parte dela. Disse-nos, não há muito tempo: "O Filho do Homem terá de sofrer muitas coisas e ser rejeitado pelos Anciãos, e pelos sacerdotes supremos e pelos escribas, e ser morto, e ao terceiro dia ressuscitará."
- Que espécie de homem é ele, para profetizar a sua própria morte? perguntou José incrédulo.
- Quem poderia profetizá-la? Quem, senão o Filho de Deus?
Jesus não voltou ao acampamento nessa noite e, de manhã cedo, chegou um mensageiro da parte dele, pedindo aos outros que tomassem a estrada de Tiro. José viu-os desmantelar o acampamento e começar a avançar para norte. Judas, os dois Simões e os filhos de Zebedeu, estavam irados, mas nada mais podiam fazer além de obedecer às ordens do seu chefe. Proclamar um rei quando não havia rei para coroar seria pior do que loucura.
José despediu-se de Maria e partiu de camelo para Cafar-naum, a caminho de Jerusalém. Não avançara ainda muito quando se apercebeu de que estava a ser seguido. era evidente que Simão Zelote e judas de Kerioth não queriam correr o risco de que o seu plano fosse revelado a Herodes Antipas ou a Pontius Pilatus.
Durante toda a manhã, Zelote perseguiu José. Só parou quando chegaram à Planície de Esdraelon, na Estrada Central, para lá de Séforis. Ao observar a figura distante que descansava a sua mula numa colina de onde pudesse vê-lo seguir pela estrada, José pensou, numa súbita inspiração, que Simão e o resto do bando de revolucionários chamado Os Zelotes constituíam uma ameaça muito maior para Jesus de Nazaré e para a semente que ele tentava implantar no coração dos homens do que Herodes ou Pilatus jamais constituiriam.
O inverno era um período muito atarefado para um médico em Jerusalém e especialmente para o médicus viscerus do templo. Os soalhos de pedra do velho santuário eram frios e húmidos e os pés e as pernas dos sacerdotes, geralmente homens corpulentos e dados a banquetes, costumavam inchar e abrir fendas. Essa doença, conhecida coloquialmente pelo "pé de templo" ou "pé de sacerdote", era extremamente dolorosa. José tinha-se tornado muitíssimo hábil a tratá-la, com ligaduras confortáveis e bálsamos tranquilizantes, mas a colocação das ligaduras levava muito tempo e estas tinham que ser substituídas com frequência, de modo que ele passava longas horas nos aposentos dos sacerdotes. O clima de inverno em Jerusalém era húmido e frio, durante a maior parte do tempo, e havia muitas doenças na cidade, especialmente entre os peregrinos que lá chegavam, idos de climas mais quentes, com roupas insuficientes para o inverno.
José pensava frequentemente em Maria, mas tinha poucas notícias dela. Através de informações trazidas por Nicode-mus, nas suas viagens pelo país, parecia que Jesus evitava a Galíleia, talvez receando que um regresso ao local onde obtivera maiores êxitos fizesse renascer o espírito revolucionário dos seus discípulos e do povo que o seguia.
Sendo um judeu devoto, José sempre considerara o templo como o símbolo de tudo o que havia de sublime no culto do Todo Poderoso, um lugar santo dedicado a fim sagrado. Mas agora começava a ver coisas que, na sua preocupação pelos mais altos princípios da adoração a Deus, ainda não tinha notado.
As tendas daqueles que vendiam animais, especiarias e outros artigos preciosos para serem oferecidos em sacrifícios ao Todo Poderoso constituíam, bem o sabia, uma parte necessária e natural do culto do templo. Mas agora via as fraudes que ali se faziam. Um cordeiro tenro e puro vendido de manhã a um peregrino de Chipre e entregue aos sacerdotes para ser morto e queimado sobre o altar reaparecia frequentemente na tenda do mesmo vendedor nessa tarde, enquanto era morto em seu lugar um animal sarnento que custava menos de um terço daquilo que o peregrino tinha pago.
O andar inferior do templo fervilhava de vendedores ambulantes que vendiam todo o género de curiosidades aos peregrinos que ali se apinhavam. E, uma vez que apenas poderiam ser dadas como oferenda moedas do templo, os cambistas faziam um próspero negócio, trocando moedas das centenas de cidades do Império pela moeda aprovada, com um lucro tremendo. Diariamente José via mensageiros das sinagogas de Israel em longínquos países do Império acorrerem ao templo, trazendo o "tributo" exigido a todos os judeus, que eles pagavam com prazer como seu dever perante Deus. Mas, enquanto os sacerdotes viviam na magnificência e no luxo, os pobres que tinham rapado do seu último dinarius para pagar o tributo ao templo passavam fome e frequentemente nem tinham onde se abrigar. E, entretanto, a hierarquia sacerdotal estava cada vez mais rica, em cada ano que passava.
Em momentos de auto-exame - que a sua profissão lhe concedia com pouca frequência - José confessava a si próprio que não tinha havido mudança no templo e nas suas práticas. Aquelas injustiças prosseguiam havia séculos. O que tinha sucedido era uma mudança dentro dele próprio, uma nova visão que lhe permitia ver através do brilho exterior para dentro da tacanhez interior, para a ultrajante ladroeira mascarada sob o culto, e as constantes conspirações políticas entre os grupos dos Saduceus que controlavam o templo e, portanto, a vida religiosa de Israel.
Nem os Fariseus eram melhores, via agora, embora sempre se tivesse orgulhado de pertencer àquele grupo selecto. Na tacanhez com que observavam os detalhes, tinham perdido de vista por completo a noção de que cada homem, individualmente, era importante aos olhos de Deus.
"Que é o homem, para vos preocupardes com ele?" perguntara o autor do Salmo. E depois prosseguira: - Vós o fizesteis um pouco inferior aos anjos". Agora José compreendia o que agradava tanto ao povo nos ensinamentos de Jesus. Era o facto de que o Nazareno lhes assegurava que o Todo Poderoso amava cada um deles como indivíduos. Não poderia haver maior garantia da sua preocupação pelos indivíduos do que nas palavras de Jesus: "Não se vendem cinco pardais por duas moedas? E nenhum deles é esquecido aos olhos de Deus. Pois até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos numerados. Não receeis; tendes mais valor do que muitos pardais."
Que conforto representava aquela garantia do amor de Deus por todos os homens para um povo curvado sob o peso da lei que os Fariseus adoravam com tal devoção. Era fácil compreender porque seguiam alguém que lhes garantia o perdão para os seus pecados e o interesse do Pai por todos eles.
Cada vez mais, à medida que os meses iam passando, José se sentia tentado a abandonar toda aquela impostura e fingimento, aquela desonestidade, gula e luxúria, sob o disfarce do culto de Deus, que caracterizavam Jerusalém e o seu templo. Se pensasse que Maria o acompanharia, teria desistido de boa vontade da sua carreira tão cheia de êxito e regressado a Magdala, para aí viver com ela. E quanto mais pensava no tranquilo jardim da casa de Demetrius, voltado para o lago, e na voz feliz de Maria a cantar, dentro dele, mais se convencia de que apenas na Galileia poderia encontrar a paz de que parecia necessitar cada vez mais.
Nicodemus regressou de uma das suas viagens, ao fim de certa tarde, a meio do inverno. José acabava de voltar das visitas aos seus doentes, e, quando viu o séquito do seu amigo em frente da casa, correu acumprimentaro advogado.-Vim a toda a pressa de modo a chegar a Jerusalém antes de anoitecer, disse Nicodemus abraçando José, porque trago más notícias.
José reteve a respiração. - Acerca de Maria?
- Não. Ela estava bem quando a vi pela última vez. Jesus vem a caminho de Jerusalém, José. - O rosto de Nicodemus estava grave. - Vem meter-se nas mãos de Pontius Pilatus e Caifás.
- Mas eu pensava que ele ainda estava em Tiro.
- Saiu de lá há várias semanas e tem viajado pela Galileia sem atrair a atenção do povo.
- Herodes Antipas sabia que ele estava na Galileia?
- Talvez. Mas Jesus teve o cuidado de não agitar o povo e Herodes deve ter tido satisfação em deixá-lo passar.
- Viste-o?
- Sim, encontrei a Companhia do Peixe, como agora se intitulam, por acaso, em Tarichae, no extremo sul do lago. Jesus começava a descer a estrada do vale com os seus discípulos. A tua noiva seguia com eles e manda-te o seu amor. Espera ver-te aqui dentro de dias.
José sentiu um calor de felicidade invadi-lo à ideia de voltar a ver Maria.
- Ouvi Jesus pregar, durante algum tempo, prosseguiu Nicodemus. - E, quando ele parou, algo me fez perguntar-lhe: "Bom mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?"
- Que disse ele?
- Limitou-se a olhar para mim, durante um momento, prosseguiu Nicodemus. - E depois perguntou: "Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão o próprio Deus. Conheces os mandamentos: Não matarás. Não cometerás adultério. Não roubarás. Não levantarás falsos testemunhos. Não espoliarás. Honrarás teu pai e tua mãe". Então eu disse a Jesus:
"Mestre, sempre observei tudo isso desde a juventude. - Isso é verdade, disse josé" com lealdade. - Não há homem mais piedoso do que tu em toda a Judeia.
- Então sucedeu a mais estranha das coisas, disse o seu amigo. - Senti o amor de Jesus por mim, como se fosse um braço em volta dos meus ombros para me amparar, ou a mão de Deus estendida para mim. <• Falta-te uma coisa", disse-me ele. "Vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem comigo, segue-me". Eu quis segui-lo, José, disse Nicodemus seriamente, desejei-o mais do que qualquer outra coisa na vida. Mas as minhas riquezas eram como cadeias em volta dos meus tornozelos, retendo-me.
- Voltaste a vê-lo?
O advogado abanou a cabeça. - Não. Tinha de voltar por Séforis, para terminar uns assuntos com os intendentes de Herodes. Mas, durante todo o caminho de regresso para Jerusalém, vim a pensar no que ele me dissera e no modo como o seu amor me rodeou. - Parou e respirou fundo. - Tomei a minha decisão, José. Vou fazê-lo.
- Vais vender tudo isto? perguntou José, incrédulo.
- Sim. Vai ser feito um registo de tudo o que possuo. Depois de terminado, venderei tudo e darei o dinheiro aos pobres. Se Jesus me quiser nessa altura, serei um dos seus discípulos.
- Mas tu és um homem rico, protestou José. - Dás trabalho a muita gente e dás muito aos pobres. Quem defenderá os pobres gratuitamente nos tribunais, se tu deixares Jerusalém?
- Nada disso importa, agora que sei a verdade, respondeu seriamente Nicodemus.
- A verdade? José franziu a testa. - Que queres dizer?
- Jesus é o Messias, José. Estou convencido disso, agora.
Quanto mais José pensava nesta conversa com Nicodemus, mais certo se sentia de que devia avisar Simão Pedro e os outros dos perigos em que incorriam vindo a Jerusalém. As pessoas da capital não eram como os galileus, inflamados por um nacionalismo patriótico que ardia mais forte que a prudência. Havia muito habituados a serem dominados pelos romanos, e tirando proveito desse domínio, as gentes da Judeia não se deixariam facilmente voltar contra os senhores romanos, que lhes proporcionavam excelente vida. Nem os sacerdotes quereriam perturbar o culto no templo, a não ser para aclamar o verdadeiro Messias, que decerto não acreditariam que fosse Jesus de Nazaré.
Vendo bem, José estava seguro de que uma visita do Nazareno a Jerusalém apenas podia significar problemas, por isso decidiu partir na manhã seguinte e dirigir-se para oriente, para a Estrada do Vale, na esperança de encontrar a Companhia do Peixe e de talvez conseguir convencê-los a não irem para a Judeia.
A estrada para o Jordão, saindo de Jerusalém, dirigia-se para nordeste até Jericó. Ainda não era meio dia quando o rápido camelo de José passou pela animada estância. Simples aldeia antes de Herodes o Grande a transformar numa popular estação balnearia, Jericó tinha passado a ser utilizada por grande número de romanos como estância de inverno. Herodes tinha erguido um palácio de inverno e trouxera até ali as águas medicinais das fontes termais de Callirhoe, perto do Mar Morto, por meio de um aqueduto. Um grande teatro, mercados públicos e o inevitável Fórum traíam a influência romana, e as ruas estavam sempre apinhadas de gente das mais diferentes nacionalidades.
José fez uma pausa para comer um pouco de pão, tâmaras e queijo, que levara consigo, e para dar de beber ao seu camelo e a si próprio, antes de prosseguir para norte, ao longo da estrada paralela ao Jordão. Não tinha avançado muito quando encontrou um grupo de pessoas junto da estrada, num pequeno vale. A presença de grande número de doentes e dementes ter-lhe-ia revelado que encontrara os que procurava, mesmo que não tivesse visto o próprio Jesus no centro do grupo, nem descoberto entre as mulheres uma figura graciosa, cujos cabelos, brilhando como fogo ao sol do meio dia, apenas poderiam pertencer a Maria de Magdala.
Atando o seu camelo a uma árvore, perto da multidão, José dirigiu-se para o local onde Maria se encontrava. Ela beijou-o no rosto e pegou-lhe na mão, mas levou os dedos aos lábios, avisando-o de que devia ficar calado porque Jesus estava a falar. A pregação terminou pouco depois, e, quando a multidão começou a dispersar, o mestre veio, com os seus discípulos, comer aquilo que Maria e as outras tinham preparado.
José nunca tinha estado tão perto de Jesus antes, excepto naquele dia, em frente da casa de Maria, quando furava a multidão para tentar ajudá-la. Enquanto esperava com as mulheres, estudou o homem de Nazaré. A certa altura, quando ele ergueu o olhar, José cruzou directamente o olhar com o de Jesus e, de súbito, sentiu o que Nicodemus lhe descrevera, uma sensação como se um braço protector, cheio de amor, pousasse sobre os seus ombros. Era uma sensação estranha, aquela súbita impressão de paz e certeza que o invadiu, sensação que não se recordava de ter desde quando era ainda uma criança na Galileia, muitos anos antes, e o seu pai falara aprovativamente de algo que ele tinha feito.
Quando acabou de comer, Jesus ergueu-se e avançou até à entrada do vale, onde passava a estrada para Jericó. E, como Simão Pedro e os outros o seguissem, voltou-se e falou com eles.
- Escutai, disse, vamos para Jerusalém; e o Filho do Homem será entregue aos sacerdotes supremos e aos escribas e estes o condenarão à morte, e o entregarão aos gentios1; e estes troçarão dele, e o cuspirão, e o vergastarão, e o matarão; e, ao fim de três dias, ele ressuscitará.
Então Tiago e João, os filhos de Zcbedeu, avançaram com um ar importante: - Mestre, disse Tiago, queremos que faças por nós o que te pedirmos.
- Que quereis que faça por vós? perguntou Jesus.
- Concede-nos que nos sentemos, disse Tiago prontamente, um à tua mão direita e o outro à tua esquerda, na tua glória.
Jesus ergueu a cabeça. - Não sabeis o que estais a pedir, disse tranquilamente. - Sois capazes de beber a taça que eu bebo ou de ser baptizados com o baptismo com que eu estou baptizado?
- Somos capazes, disseram em coro os filhos de Zebedeu.
- Bebereis a taça que eu beber, prometeu Jesus então.
1 Os não hebreus. (N. do T.)
- E com o baptismo com que estou baptizado sereis vós baptizados. Mas sentar-vos à minha mão direita ou à minha mão esquerda, não posso eu conceder-vos; é para aqueles a quem isso foi destinado.
Um murmúrio de irritação subiu dos outros discípulos que se ressentiam da posição de preferência que João e Tiago sempre tinham exigido por serem dos primeiros seguidores de Jesus. Mas, antes que alguém pudesse falar contra eles, ele disse reprovadoramente: - Sabeis que aqueles que devem governar os gentios tomam atitudes de grandes senhores, e os seus superiores exercem autoridade sobre eles. Mas não será assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós deverá ser vosso servidor. Porque o Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir, e para dar a sua vida em resgate pela humanidade. - Voltou-se então e dirigiu-se para Jericó.
José seguiu a pé com Maria, deixando que Hadja carregasse o camelo com quantas tendas e acessórios de cozinha desejasse. - Porque vieste, José? perguntou Maria. - Mandei-te dizer pelo teu amigo Nicodemus que te veria dentro de dias.
- Quero que digas a Jesus que haverá problemas se ele for a Jerusalém, explicou.
- Porque não lho disseste há pouco? Vi-te a olhar para ele.
- Sucedeu-me algo, além. Pareceu-me que Jesus tinha estendido um braço e me envolvera nele, embora estivesse pelo menos a vinte passos de distância, e pareceu-me esquecer-me de tudo o mais, por um momento.
- José! exclamou Maria, com os olhos a brilhar. - Tinha tantas esperanças que isso sucedesse. Agora já sabes o que ele significa para todos os que o amam.
- Sinto-me um tanto diferente, talvez mais perto dele, confessou José. - Mas, se ele é realmente o Messias, não o deveria ter reconhecido de súbito, como que num clarão?
- O reconhecimento de Jesus surge a cada um de nós de modo diferente, disse Maria tranquilamente. Olhou para a multidão que caminhava atrás de Jesus, a falar, a protestar e a discutir, e acrescentou tristemente: - Para alguns nunca surge.
- Não o compreendem melhor, agora?
Maria abanou a cabeça. - SimãoZelote e Judas mantem-nos sempre agitados. Não conseguem pensar noutra coisa que não seja um reino na terra.
- Ainda esperam coroar Jesus em Jerusalém?
- Sim. E a maioria dos outros acredita neles, agora.
- Mas Jesus deve saber o que eles pensam. Porque não lhes ensina o contrário?
- Penso que ele decidiu que existe apenas uma maneira de fazer as pessoas compreenderem porque veio ele ao mundo, explicou ela. - Ouviste o que disse há pouco; já disse o mesmo diversas vezes antes.
- Mas porque vai ele a Jerusalém, sabendo que isso lhe pode custar a vida?
- Não percebes? disse ela. - Jesus está disposto a morrer se assim puder mostrar às pessoas o caminho de regresso a Deus.
José recordou-se das coisas que observara no templo e em Jerusalém, nos últimos meses, desde que os seus olhos pareciam ter-se aberto. Os judeus tinham-se efectivamente afastado muito de Deus, ao empolarem a forma e o ritual e ao adorarem as leis em lugar do Todo Poderoso, que criara as leis e o homem. - então vim aqui para nada, confessou tristemente.
- O que te sucedeu há pouco, no vale, é mais importante do que teres podido avisar Jesus, disse Maria rapidamente. - Significa que tu e eu poderemos viver juntos na vida e depois da morte, por toda a eternidade - com ele.
Jesus e o seu grupo passaram essa noite em Jericó, e, de manhã, puseram-se de novo a caminho de Jerusalém, agora apenas a quinze milhas de distância. A saída de Jericó, um homem que tinha estado sentado sossegadamente ao lado do portão, com um bordão como os que os cegos usam para tactear o caminho, gritou: - Jesus, Filho de David! Tem piedade de mim!
- Que queres que faça por ti? perguntou Jesus.
- Mestre, suplicou ele, faz com que eu veja a luz. - Jesus disse: - Segue o teu caminho; a tua fé curou-te.
Durante um momento, o cego pareceu não compreender, depois caiu de joelhos no chão, gritando: - Vejo! Vejo! Abençoado o nome daquele que vem em nome do Todo Poderoso!
O povo começou a juntar-se em volta dele, ansioso por ver o milagre, pois muitos deles eram de Jericó e conheciam o homem, mas Jesus contornou-os e continuou a caminhar em direcção a Jerusalém.
- Fica para trás e observa-o, se desejas, José, sugeriu Maria. - Facilmente nos apanharás na estrada.
José queria efectivamente examinar mais de perto aquele aparente milagre. Quando as pessoas que rodeavam o ex-cego se afastaram, disse-lhe: - Sou médico. Podes dizer-me como foste curado?
O mendigo pôs-se de pé. Parecia ter ganho nova estatura e já não se rojava pelo pó. - Tu és um dos Fariseus que duvidam de tudo o que faz Jesus de Nazaré? perguntou suspeitoso.
- Também amo Jesus, explicou José. - Mas haverá em Jerusalém quem me faça perguntas. - Que curas viste o mestre fazer? E eu gostava de lhes responder com segurança.
- Diz-lhes a verdade, então, diz-lhes que Bartimaeus, filho de Timaeus, voltou a ver. Todos os que passam entre Jericó e Jerusalém me conhecem.
- Então não eras cego de nascença?
- Há dez anos, numa altura em que cometi muitos pecados, o Todo Poderoso cegou-me, para castigo dos meus erros. Hoje, quando ouvi passar o Esperado, soube que poderia curar-me, se quisesse. Por isso lhe gritei: "Filho de David, tem piedade de mim!" Ouviste o que ele disse?
- Disse que a tua fé te tinha curado.
- Foi como se tivessem caído as escamas que me cobriam os olhos e, de súbito, voltei a ver.
- Não me podes dizer mais?
- Que mais há para dizer? Jesus curou-me e eu segui-lo-ei até ao fim do mundo. Tu vais com ele para Jerusalém?
- Vou.
- Então seguiremos juntos, pois já não me recordo bem do caminho. Já há dez anos que não vejo esta estrada.
Bartimaeus não conseguia andar depressa, de modo que Jesus e o seu grupo estavam quase em Jerusalém quando os alcançaram. De Bethpagé e Betânia, subúrbios da cidade do templo, tinham vindo muitas pessoas para o ver e a sua entrada na cidade foi uma procissão triunfal.
José abriu caminho com dificuldade por entre a multidão, mas Maria viu-o chegar e correu a dar-lhe as mãos. Os seus olhos brilhavam. - O povo conhece-o, José! exclamou. - Deus mostrou ao povo de Jerusalém quem ele é.
José não pôde deixar de se sentir contagiado pelo entusiasmo e o êxtase que haviam tomado todos os outros. Simão Zelote marchava com um largo sorriso de satisfação no rosto, como se aquilo fosse o culminar de tudo o que planeara. E até Judas Iscariotes, que raramente sorria, parecia feliz com a recepção.
Simão Pedro viu José e atravessou a multidão para lhe bater nas costas. - As tuas dúvidas eram inúteis, José, exclamou, tal como te disse que seriam. - Ergueu os braços e a sua voz ribombou por sobre a multidão: - Escutai, povo de Jerusalém, gritou. - Escutai as palavras do profeta Zacarias:
"Alegrai-vos, ó filha de Sion Gritai, ó filha de Jerusalém! Olhai que o vosso rei vem ao vosso encontro! Ele é justo e traz a salvação: humildemente, montado num burro ou na cria de um jumento.
E eu abandonarei o carro de Efraim e o cavalo de Jerusalém, e o arco de guerra será posto de parte; e ele falará de paz aos pagãos: e o seu domínio irá de mar a mar e do rio até aos confins da terra".
Houve um momento de silêncio antes que o significado da profecia alcançasse o espírito da multidão. Depois todos compreenderam que Simão Pedro estava a proclamar Jesus o Esperado, o Messias predito pelos profetas, que conduziria Israel a dominar todos os povos da terra. E quando Simão Zelote gritou: - Hosanna! ao filho de David! Abençoado aquele que vem em nome do Senhor! - a multidão juntou-se ao seu grito, num poderoso bramido de exultação.
Assim, em triunfo, entrou Jesus de Nazaré em Jerusalém.
Nicodemus e José ofereceram ambos as suas casas e propriedades a Jesus e aos seus seguidores, mas o mestre preferiu ficar em Betânia, nos arredores da cidade. Nos dias que se seguiram, parecia que se repetiam os êxitos da Galileia.
Na manhã seguinte, após a sua entrada na cidade, Jesus foi ao templo e pregou no Pórtico de Salomão, que estava reservado aos mestres e seus alunos. Mas, enquanto os outros mestres eram diariamente rodeados por um pequeno grupo de dedicados seguidores, aqueles que vieram ouvir Jesus encheram o pórtico e os degraus do terraço inferior, espalhando-se pelas ruas. E, como sempre, o número de doentes excedia o dos sãos.
Durante as horas em que pregou, todas as funções do templo foram forçadas a parar, porque a multidão era tão grande que os peregrinos não podiam entrar nem sair do templo. A entrada de dinheiro foi insignificante e, quando o sumo-sacerdote apareceu para inspeccionar o ajuntamento, quase ninguém reparou nele. Para um homem como Caifás, este foi o supremo insulto, ainda superior ao facto de um humilde nazareno tentar usurpar o lugar dos mais famosos expoentes da lei em Jerusalém.
Tal como sucedera na Galileia, os sacerdotes, Fariseus e escribas, reuniram-se em volta de Jesus, tentando apanhá-lo numa armadilha. - Com que autoridade fazes estas coisas e quem ta deu? perguntaram-lhe.
- Vou também fazer-vos uma pergunta, disse-lhes Jesus.
- E, se me derdes a resposta, então eu vos direi com que autoridade faço estas coisas. O baptismo de João, de onde veio? Do céu ou dos homens?
José encontrava-se perto, porque sentia curiosidade em ver se os peritos em religião de Jerusalém, que se orgulhavam do seu pormenorizado conhecimento da lei e da história da sua religião, seriam capazes de apanhar Jesus com argumentos melhores do que os da Galileia. Ouviu-os discutir entre si:
- Se dissermos "do céu", ele dir-nos-á "Então porque não acreditam nele?". Mas se dissermos "dos homens", a multidão voltar-se-á contra nós, pois o povo crê que João era um profeta. - Finalmente um dos sacerdotes disse: - Não sabemos.
- Então não vos direi com que autoridade faço estas coisas, disse-lhes Jesus. Falou para a multidão ainda durante algum tempo, depois voltou-se para os Fariseus que continuavam a importuná-lo. - Na verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas entrarão mais facilmente do que vós no reino dos céus, pois João aproximou-se de vós pelo caminho da rectidão e vós não o crestes. Mas os cobradores de impostos e as prostitutas acreditaram nele; e mesmo depois de o verdes, não vos arrependesteis nem acreditasteis nele.
A multidão murmurou a sua aprovação perante este golpe à presunção e auto-eficiência dos Fariseus, que nem sempre eram muito populares junto da gente vulgar por causa da sua constante intromissão nas actividades normais das pessoas, através da sua interpretação da lei. Mas os homens da lei estavam habituados a essa impopularidade e continuaram a insistir, ignorando a desaprovação da multidão. - Mestre, perguntou um deles, qual é o grande mandamento da lei?
Jesus sorriu ligeiramente e José notou que ele tinha percebido a finalidade da pergunta. Uma vez que ele admitisse que uma parte da enorme massa de leis de acordo com as quais os judeus devotos viviam era mais importante do que outra, ficaria exposto a intermináveis questões sobre pequenos detalhes.
- Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma e com todo o teu espírito, disse simplesmente. - É este o primeiro e o maior dos mandamentos. E há um segundo como este. Amarás o próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.
Num outro dia em que José escutava Jesus que pregava no Pórtico de Salomão, ouviu-o perguntar a um dos Fariseus que estava a incomodá-lo, como habitualmente, tal como os mosquitos incomodam os homens no verão: - Que pensas do Cristo? De quem é filho?
- Filho de David, respondeu um deles prontamente.
- Como é então, disse Jesus, que David, inspirado pelo Espírito, lhe chama Senhor, dizendo:
O Senhor disse ao meu Senhor
Senta-te à minha direita,
Até eu calcar aos pês os teus inimigos.
Se assim David lhe chama senhor, prosseguiu Jesus, como pode ser seu filho?
Os Fariseus entreolharam-se espantados, mas nenhum tentou responder.
- Os escribas e os Fariseus sentam-se no lugar de Moisés, disse Jesus, voltando-se para a multidão e para os discípulos, que estavam aos seus pés. - Por isso observai e praticai tudo o que eles vos disserem, mas não o que eles fazem; porque eles pregam mas não praticam. Atam pesados fardos, difíceis de suportar, e colocam-nos sobre os ombros dos homens; mas eles nem sequer mexem um dedo para os mover. Fazem todos os seus actos para serem vistos pelos homens; pois usam as suas filactérias largas e as suas franjas compridas. E gostam de ter o lugar de honra nas festas e os melhores lugares nas sinagogas, e gostam de ser saudados na praça do mercado, e de que os homens lhes chamem rabis.
- Mas não deveis receber o nome de rabi, clamou. - Pois tendes um mestre e sois todos irmãos. E não deveis chamar a homem algum pai, sobre a terra, pois tendes um Pai, que está no céu. Nem deveis ser chamados mestres, pois só tendes um mestre, o Cristo. Aquele que for o maior entre vós, será o vosso servidor. Aquele que se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado.
E agora a sua voz soava como a de um juiz que aplicava a sentença a quem errara: - Mas ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas! Porque atravessais mares e terra para obter um novo prosélito, e fazei-lo ainda mais filho do inferno do que vós sois.
Os Fariseus retorciam-se e tinham os rostos vermelhos de vergonha. Jesus apontava-lhes com inexorável lógica a taca-nhez e a falta de importância das próprias coisas que eles haviam colocado ao mesmo nível da adoração a Deus. A multidão estava a apreciar aquela prelecção feita a seres tão superiores, rindo-se à socapa, encantada, a cada ponto que Jesus marcava, e gritando a sua aprovação quando a sua voz denunciadora prosseguiu:
- Ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas! Pois cobrais a dízima em dinheiro e especiarias, e haveis esquecido os pontos mais importantes da lei, da justiça, da misericórdia e da fé. Destes deveríeis ter cuidado, sem esquecer os outros, vós, guias cegos, que espremeis um mosquito e engolis um camelo!
O povo expressou ruidosamente a sua aprovação por esta perfeita comparação e, por momentos, Jesus foi impedido de prosseguir devido ao tumulto. Fora aquela a primeira vez que José vira o Nazareno realmente irritado. Os seus olhos brilhavam agora de indignação, enquanto ia expondo as suas acusações, uma a uma, denunciando os aduladores Fariseus, sacerdotes e escribas, que tinham ousado decidir por si própríos aquilo que constituía o verdadeiro culto de Deus.
- Ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas! - A frase condenatória vergastava os homens que o rodeavam como um chicote. - Pois sois como túmulos caiados, que parecem belos exteriormente, mas por dentro só têm ossos dos mortos e podridão. Também vós pareceis justos exteriormente, mas dentro de vós só há hipocrisia e iniquidade.
Jesus deteve-se e, quando voltou a falar, a sua voz era triste, já despida de ira. - Por isso vos envio profetas e homens sensatos e escribas, alguns dos quais vós matais e crucificais. E alguns são açoitados nas vossas sinagogas e perseguidos de cidade em cidade, de modo que sobre vós cai todo o sangue dos justos da terra, desde o sangue do inocente Abel ao sangue de Zacarias, filho de Barachiah, que assassi-nasteis entre o santuário e o altar. Na verdade vos digo que tudo isto cairá sobre a vossa geração.
- Ó Jerusalém! ó Jerusalém! - era o mesmo grito que José o ouvira soltar nas margens do lago, quando os Fariseus lhe exigiam um sinal. - Matas os profetas e lapidas aqueles que te são enviados! Olhai que a vossa casa foi esquecida e está abandonada. Pois eu vos digo que não voltareis a ver-me antes de dizerdes "Abençoado aquele que vem em nome do Senhor". - Jesus ergueu-se, de súbito, e fez com o braço um gesto circular que abrangia o grande templo sobre a colina, com os seus mármores e o seu oiro a brilhar, e a bela cidade branca que o rodeava. - Todos vedes isto, não é assim? Na verdade vos digo que não restará pedra sobre pedra. - Depois, abruptamente, abandonou o templo, descendo os degraus sem olhar para os lados nem falar com pessoa alguma.
Maria e um grupo de outras mulheres estavam hospedadas em casa de José, enquanto que os homens, com excepção de alguns que eram mais íntimos de Jesus e o acompanhavam sempre, se encontravam acampados no terreno adjacente que pertencia a Nicodemus. Embora o advogado se tivesse definitivamente tornado um seguidor do mestre nazareno, continuava a manter a sua posição no Grande Sinédrio. Nicodemus aproximou-se, nessa noite, do local onde José e Maria passeavam no jardim. O seu rosto estava grave, quando os saudou.
- Porque estás tão triste? perguntou-lhe Maria, sorrindo. - José disse-me que és um dos nossos e aqueles que seguem Jesus conhecem uma alegria que não pode ser encontrada em mais parte alguma.
- Toda a área do templo fervilha com as notícias de que o mestre aplicou uma vergastada verbal, esta manhã, aos sacerdotes, aos escribas e aos Fariseus, disse Nicodemus. - Agora ainda o odiarão mais do que antes.
- Eu estava lá, adiantou José. - Zurziu-os impiedosa mas justamente.
- Quanto mais pequena é a alma, maior o ódio por aqueles que lhe demonstram a sua pequenez, para que todos a vejam, disse Nicodemus. - O Sinédrio político reuniu esta tarde. Levariam Jesus diante do conselho e lapidá-lo-iam, se ousassem.
- A multidão não lho permitiria, protestou Maria. - O número dos que amam Jesus é superior ao dos sacerdotes e escribas e até Fariseus. Expulsariam os Saduceus do templo e da cidade, se eles ousassem tocar-lhe num só cabelo.
- É o medo da multidão que detém Caifás, concordou Nicodemus. - Isso e o facto de Ponsius Pilatus não se encontrar em Jerusalém.
- Achas que ele ousaria mandar chamar Pilatus? disse José rapidamente.
Nicodemus abanou a cabeça. - O Procurador odeia Jerusalém no inverno; só o próprio Imperador conseguiria fazê-lo vir antes da Páscoa. Então vem sempre com um número extra de soldados, para o caso de a multidão se indisciplinar.
- Que pode Caifás fazer? perguntou Maria. - Nós guardamos o mestre tão de perto que nem os sicarii conseguem chegar junto dele.
- E, além disso, acrescentou José, um assassino contratado seria despedaçado pela multidão logo que a sua faca desse um golpe. Todos eles o sabem, por isso é pouco provável que atentem contra a sua vida aqui em Jerusalém.
- Caífás sabe tudo isso, concordou Nicodemus. - Contudo não pode deixar que Jesus tenha cada vez mais seguidores quando há tantos Zelotes em Jerusalém. Especialmente agora que têm um chefe.
- Simão Zelote! exclamou Maria. - Em Bethsaida esteve pronto a proclamar Jesus rei.
Nicodemus abanou a cabeça. - Simão Zelote não é o verdadeiro chefe. Esqueces o homem de Kerioth.
- Judas? Mas ele pouco fala. É sempre Simão a falar.
- E a dizer o que Judas lhe manda dizer, acrescentou Nicodemus. Mas penso que podemos ter a certeza daquilo que o sumo-sacerdote fará.
- O que será?
- A lei é um cutelo que os sacerdotes e os Fariseus detêm suspenso sobre o povo, visto que só eles a podem interpretar legalmente. Jesus não poderá falar muito frequentemente tão abertamente como o fez hoje sem quebrar pelo menos algumas leis orais. E, logo que o faça, acusá-lo-ão de blasfémia. Nada excita tanto a multidão como uma acusação de blasfémia ou de alguém falar contra o templo.
José sentiu um súbito arrepio de premonição, porque se recordava das palavras de Jesus nessa manhã: "Na verdade vos digo que não restará pedra sobre pedra".
Quando relatou o facto a Nicodemus e Maria, o rosto do advogado tornou-se muito grave. - Rezemos para que Caifás não saiba das palavras exactas do mestre, disse. - Mesmo Jesus talvez não conseguisse salvar-se se fosse acusado de blasfémia contra o templo de Deus.
Maria estremeceu e José envolveu-a com um abraço. Sabia que ela se recordava do dia em que Jesus a salvara da lapidação. Ambos sabiam o que podia significar a fúria da multidão. Nem sequer, como Nicodemus dissera, poderia o actual apreço do povo de Israel por Jesus salvá-lo necessariamente de um tal destino. Contra ele se levantariam os parasitas do templo, os vendedores de pergaminhos, e todas as centenas de outros que viviam do templo e dos negócios que dele resultavam. Eram gente rica e influente, e, uma vez reunidos em número suficiente para fazer frente comum contra um homem que tinham todos os motivos para odiar, a violência poderia irromper a qualquer momento.
- Que achas que devemos fazer, Nicodemus? perguntou Maria.
- Jesus tem de deixar Jerusalém, disse o advogado enfaticamente. - Não vejo outra resposta.
- Mas as pessoas acorrem a vê-lo e ganha novos adeptos em cada dia.
- Eu sei isso, admitiu Nicodemus. - Mas, na sua maioria, são Zelotes ou simpatizantes da sua causa.
- Tu és, de todas as mulheres, a que mais perto está dele, Maria, sugeriu José. - Talvez tu consigas convencê-lo a partir. Jesus deve saber que tu és uma das poucas pessoas que o ama pelo que ele é, sem qualquer ideia de vantagens.
- Vós ambos também o amais sem egoísmo, observou ela.
- Tu aceitaste-o como o Cristo, disse ele. - Mas, por qualquer motivo, eu ainda não estou bem certo, no meu coração, de que ele seja o Esperado.
- Quando chegar a altura de veres o Messias em Jesus, terás a certeza, disse Maria com confiança. - É algo que cada um de nós tem de sentir por si próprio. O mestre regressará deBetânia de manhã, prosseguiu ela, e vou tentar persuadi-lo a deixar Jerusalém. Mas, de certo modo, penso que ele já está a planear partir.
Nicodemus olhou-a, espantado, mas José já sabia como era digna de confiança aquela profunda compreensão que ela parecia ter do mestre nazareno e dos seus propósitos.
- Porque dizes isso, Maria? perguntou Nicodemus, - O êxito de Jesus aqui em Jerusalém é grande, talvez maior do que foi na Galileia, disse Maria. - Mas quem vem ao encontro dele? Os Fariseus que procuram fazê-lo cair numa armadilha. Os sacerdotes dos Saduceus que o odeiam. Os doentes que querem ser curados. E os fanáticos que vêem nele um Messias que os chefiará contra Roma. Apenas poucos o seguem porque ele fala de um reino maior do que qualquer um que possa estabelecer na terra, o reino de Deus no coração dos homens.
Os dois homens ficaram em silêncio, pois não podiam negar a força da sua lógica. - Certa vez, antes, prosseguiu ela, Jesus afastou-se quando queriam coroá-lo rei na Galileia. Penso que fará o mesmo agora. A menos que... - Deteve-se e uma grande tristeza surgiu no seu rosto. - A menos que ele saiba que apenas pode mostrar aos homens o significado do reino de Deus morrendo por ele.
- Sendo o Messias, deve sabê-lo, disse Nicodemus logicamente. - Se é isso o que deve suceder.
- Ele próprio o predisse, objectou José. - E todos o ouviram afirmar que um profeta não deve morrer fora de Jerusalém.
- Tudo isto deve fazer parte do esquema, disse Maria, pensativamente. - Sendo o Cristo, Jesus poderia salvar-se, se quisesse. Mas, tendo decidido que tem de morrer para fazer compreender aos homens por que motivo veio à terra, não usará desse poder.
- Então nada podemos fazer, disse José tristemente.
- Talvez tenhas razão, concordou Maria. - Mas falarei com ele logo que possa. Talvez ele me diga o que se vai passar.
- De qualquer modo, Caifás não ousa prendê-lo agora, acrescentou Nicodemus. - Por isso teremos tempo para fazer planos para proteger o mestre, se ele se recusar a sair da cidade.
Mas aí enganava-se Nicodemus.
Embora passasse a maior parte do dia a escutar Jesus, José tinha ainda de desempenhar os seus deveres como medicus viscerus do templo. Fazia-o geralmente de manhã, imediatamente após os sacrifícios de abertura. Encontrava-se no templo, como habitualmente, na manhã depois do dia em que Jesus tão violentamente denunciara os Fariseus do Pórtico de Salomão, a ligar os pés dos sacerdotes que sofriam de "pé de templo ", a tratar daqueles cuja digestão se encontrava sobrecarregada por demasiados festins, cuidando, de maneira geral, de toda a população do templo. Acabava precisamente de aplicar uma das ligaduras justas que usava para tratar o "pé de templo", quando um súbito clamor irrompeu do terraço inferior, por vezes chamado o Pátio dos Pagãos. Segundos depois, um dos Levitas passou a correr em direcção à sala onde o sumo-sacerdote passava a maior parte do dia. - O profeta de Nazaré está a voltar as mesas dos cambistas, gritou. - Luta-se no terraço inferior.
José deixou cair o seu nartik no chão, tomado de um súbito receio. Seria o início da desgraça que temia? Rapidamente, voltou-se e correu pelo terraço fora, descendo as escadas até ao andar inferior. Dos degraus podia ver uma massa de homens que se empurravam, gritavam e maldiziam, enchendo o terraço. E, quando chegou ao local onde eram dispostas as mesas dos cambistas, deparou-se-lhe um quadro dramático.
A confusão era geral, excepto no centro de um pequeno círculo dentro do qual Jesus avançava calmamente pelo terraço, voltando as pequenas mesas sobre as quais os cambistas empilhavam as suas moedas, espalhando o dinheiro pelo chão e deixando que as mesas fossem pisadas e despedaçadas pelas pessoas que lutavam umas com as outras e se arrastavam sobre as pedras, para apanhar as moedas. Quando chegou às gaiolas dos vendedores de animais, Jesus quebrou-as e abriu-as, e assim prosseguiu por todo o terraço, destruindo os sítios onde os vendilhões e os cambistas intrujavam os que vinham oferecer sacrifícios e partilhavam os seus lucros com os funcionários do templo.
Os sacerdotes pareciam paralisados por aqueles actos sem precedentes e os rostos do pequeno grupo de discípulos que rodeava Jesus demonstravam o seu horror perante o que ele estava a fazer. Uma ou duas vezes um deles chegou a estender a mão para deter o seu chefe, mas afastou-se perante a ira patente no rosto do mestre.
José nunca tinha visto Jesus tão furioso nem sequer quando vergastara os Fariseus. Os seus olhos ardiam e os seus movimentos, quando derrubava as mesas frágeis e quebrava as gaiolas, eram propositados e fortes. Só depois de ter terminado o circuito de um dos lados do terraço parou e enfrentou a multidão. Os que estavam mais perto dele tremeram diante da sua ira, e tentaram fugir. - Está escrito, gritou-lhes ele, "A minha casa será uma casa de oração", mas vós transformaste-la num covil de ladrões!
Nessa altura, um grupo daqueles mesmos Fariseus que ele denunciara na véspera já conseguira reunir alguns guardas do templo. Abriram caminho por entre a multidão e um deles, mais ousado do que os outros, perguntou em voz alta: - Quanto tempo nos vais manter em suspenso? Se és o Cristo, di-lo claramente.
- Eu disse-vos - as palavras de Jesus feriam-nos como chicotadas - e vós não acreditais. As obras que eu faço em nome de meu Pai são o meu testemunho. Mas vós não acreditais, porque não sois as minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha voz e eu conheço-as e elas seguem-me. E eu dou-lhes a vida eterna, e jamais morrerão, e ninguém poderá afastá-las de mim.
Fez uma pausa e olhou para a multidão. José notou então que a ira tinha desaparecido do seu olhar, e que a tristeza a
substituíra. - O meu Pai, que mas deu, é maior do que todos, e ninguém as poderá arrancar das mãos do meu Pai. Eu e o meu Pai somos um só.
Por momentos, as implicações daquela declaração não penetraram nos espíritos dos homens que o interpelavam. - Quando isso sucedeu, os Fariseus começaram de súbito a gritar: - Ele blasfemou! Lapidai-o! Lapidai-o! - Alguns deles chegaram a avançar para agarrar Jesus, mas ele ergueu a mão e a força da sua tranquilidade e da sua segurança detiveram-nos.
- Mostrei-vos muitas boas obras feitas em nome do Pai, disse. - Por qual delas ides lapidar-me?
- Não te lapidamos por qualquer boa obra, mas por causa de uma blasfémia, gritou o porta-voz dos Fariseus. - Porque tu, sendo um homem, queres passar por Deus. - O povo vulgar pouco compreendia das minúcias da lei tão cara aos Fariseus, cuja quebra era chamada blasfémia. Mas, em questões de religião, estavam habituados a seguir a orientação dos Fariseus e, quando os ouviram gritar blasfémia, muitos os acompanharam.
Jesus olhou severamente para aqueles que o atormentavam. Não está escrito na vossa lei "Eu disse que vós éreis deuses"? Se Ele chamava deuses àqueles a quem a palavra de Deus chegava (e a escritura não pode ser quebrada), como podereis dizer daquele que o Pai consagrou e enviou para o mundo "Estás a blasfemar" porque eu disse "Eu sou o Filho de Deus "? - Deteve-se e prosseguiu: - Se eu não estou a fazer as obras do meu Pai, então não acrediteis em mim. Mas se as faço, apesar de não acreditardes em mim, acreditai nas obras, para que possais saber e compreender que o Pai está em mim e eu estou no Pai.
- Blasfémia! voltaram a gritar os Fariseus. - Blasfemou contra o Todo Poderoso. Lapidemo-lo.
Simão Pedro e os filhos de Zebedeu encontravam-se perto de Jesus, mas pareciam paralisados por aquele súbito acontecimento. José não tinha visto Maria, mas, quando a multidão começou a berrar pela vida de Jesus, ela avançou, como que para protegê-lo. José abriu então caminho rapidamente, à cotovelada, por entre a multidão, até ficar junto dela, colocando o seu próprio corpo entre Jesus e a multidão. - Judeus de Jerusalém! gritou. - Sabeis quem eu sou, José da Galileia. Eu liguei as vossas feridas e tratei-vos até recuperardes a saúde quando estáveis doentes. Escutai-me.
Um silêncio momentâneo caiu sobre a multidão, porque muitas das pessoas presentes tinham sido curadas pelos seus remédios e pela sua ciência, e respeitavam-no e confiavam nele como qualquer homem confia naturalmente no seu médico. - Todos sabeis que sempre respeitei a lei desde jovem, disse-lhes José. - Estes Fariseus querem levar-vos a lapidar um bom mestre, porque ele vos mostrou o que eles eram, sepulcros caiados, hipócritas, mentirosos. Assim poderão depois dizer: "Não fomos nós, foi a multidão".
- Ele mente, gritou o chefe dos Fariseus. - José da Galileia está enfeitiçado pela mulher de Magdala que segue Jesus. Vede, ela ali está.
Com os seus cabelos brilhantes e a sua beleza, Maria destacava-se da multidão, como um lírio se destacaria entre cardos. E muitos dos homens entre a multidão, ao verem a luz dos olhos dela ao fitar José, sentiram inveja dele e odiaram-no pela sua sorte.
- Lapidai o blasfemo! gritaram de novo os Fariseus. - Para os portões! - E a multidão gritou com eles, uma vez mais.
As suas roupas eram já rasgadas por mãos semelhantes a garras, e tudo parecia realmente perdido, quando José ouviu o som de pés a marchar. Ergueu o olhar e viu um grupo de soldados, chefiados por um centurião, que atravessava o terraço inferior, de regresso a Amónia, após o primeiro período de guarda do dia. Reconheceu o oficial Trojanus, cuja mulher José curara de uma grave febre, poucos meses antes.
- Trojanus! bradou desesperado.-Trojanus! Queres que o médico de Pontius Pilatus seja morto pela multidão?
O romano voltou-se e os seus olhos apreenderam rapidamente a situação. Toda a guarnição sabia que José era amigo de Pilatus e da sua mulher, pelo que também tratava as tropas romanas. A uma ordem rápida de Trojanus, os soldados baixaram os escudos e, utilizando os copos das espadas como cacetes, mergulharam na multidão. Como um aríete, a coluna abriu facilmente caminho até junto da massa de gente que rodeava, praguejando e contorcendo-se, o pequeno grupo que constituía o alvo dos golpes da multidão. - Que se passa aqui? perguntou o centurião.
- Os Fariseus querem que sejamos lapidados, explicou José ofegante. - Podes guardar-nos até à estrada que leva a Jericó?
Trojanus olhou-o, suspeitoso, até José acrescentar: - Responsabilizo-me pessoalmente perante Pontius Pilatus pelas tuas acções!
- Então arranja uma boa história, disse, sorrindo, e José compreendeu que vencera. - Conta-lhe como salvei a tua vida quando corrias grave perigo.
Escoltado pelos soldados, o pequeno grupo saiu do templo e atravessou a cidade até ao portão onde começava a estrada para Jericó. Não foi seguido por muita gente. Uma coisa era arrastar um judeu indefeso acusado de blasfémia até aos portões e lapidá-lo, outra era atacar soldados romanos e atrair a ira de Pontius Pilatus sobre todos os judeus de Jerusalém. Quando chegaram aos portões, apenas uma pequena multidão de curiosos os seguia, de modo que, quando o grupo se pôs em marcha em direcção a Jericó, não foi molestado.
Jesus não falara durante o dramático salvamento. Vendo a tristeza e o desapontamento que o seu rosto agora reflectia, José pensou que Maria devia ter razão, Jerusalém não o compreendera, tal como a Galileia, e Jesus deveria sentir-se feliz por partir.
O mestre seguia à frente, sozinho e perdido no seus pensamentos, enquanto os discípulos seguiam atrás, discutindo entre eles sobre a má sorte que os forçava a sair de Jerusalém quando parecia que estavam prestes a alcançar o auge do êxito. Nenhum deles ousava atribuir culpas ao seu chefe por ter precipitado a controvérsia nessa manhã, mas alguns censuraram José por os ter feito sair da cidade sob a escolta dos romanos, insistindo em que teriam conseguido esconder-se no interior das muralhas e assim prosseguir os seus planos para coroar Jesus em Jerusalém.
Em Jericó, depois de se certificar de que ninguém os perseguia, José regressou a Jerusalém. Tanto ele como Maria consideravam importante ter alguém em quem pudessem confiar dentro da cidade do templo, para os manter ao corrente do que lá se passava. - Tem cuidado, José, suplicou ela, quando se despediam. - Fizeste de Caifás um perigoso inimigo ao salvar Jesus. Pode tentar castigar-te.
- Penso que não, garantiu-lhe ele. - Jesus respondeu aos Fariseus esta manhã e demonstrou-lhes que não havia blasfémia no que tinha dito. Eles estavam a tentar levar a multidão a lapidá-lo, para se verem livres dele sem serem culpados da sua morte. Caífás teria que levar-me à presença do Sinédrio, e então saber-se-ia que ele tentara fazer a multidão assassinar Jesus. - Deteve-se, mas Maria viu que algo o perturbava e perguntou: - O que tens, José?
- Há uma coisa que me perturba, confessou ele. - O Cristo teria podido fazer parar o tumulto e passar através deles sem que lhe tocassem, mas Jesus nada fez. Não é que eu duvide, Maria. Só queria compreender o que realmente se passou.
- Limpar o templo pode ter sido o seu último acto em Jerusalém, antes de deixar a cidade, disse ela. - Lembra-te que ele não se opôs a sair de Jerusalém, por isso talvez já estivesse decidido a deixá-la.
- Mas a profecia...
- De que seria morto em Jerusalém? Sim, também pensei nisso. Mas recorda-te de que ele não disse quando. Disse simplesmente: "O Filho do Homem será entregue aos sumos-sacerdotes e escribas, e eles o condenarão à morte e o entregarão aos gentios; e por eles será escarnecido e cuspido e açoitado e eles o matarão". Nem sempre podemos compreender a vontade de Deus, José, mas podemos obedecer-lhe porque é sempre justa e perfeita.
Recordou-se muitas vezes destas palavras de Maria nos meses que se seguiram, enquanto o inverno morria e os primeiros rebentos da primavera começaram a aparecer, uma vez mais. Mas tinha coisas mais importantes do que as recordações a ocuparem-lhe o espírito, pois, no dia a seguir ao seu regresso a Jerusalém, recebeu uma convocação secreta para se apresentar nos aposentos do velho sumo-sacerdote Anás. Calculando, e com razão, que iria comparecer perante o Sinédrio político, José tomou, desta vez, a precaução de levar consigo Nicodemus para que Caifás e os outros não o fizessem cair numa armadilha, na base de qualquer insignificante aspecto da lei.
Esperava-o o mesmo grupo, mas foi o sumo-sacerdote Caífás, com o seu olhar frio, quem, furioso, começou a atacá-lo, ainda antes de terminar a curta troca de saudações que a cortesia exigia.
- Porque não ficaste com o blasfemo a que chamam Jesus de Nazaré? perguntou.
- Não ouvi qualquer blasfémia pronunciada por Jesus, disse José resolutamente.
Caifás ignorou a sua negação com desprezo. - És um espião que mandaram voltar para se manterem em contacto com os Zelotes que conspiram com o Nazareno. Que pensará o teu amigo Pontius Pilatus quando eu lhe contar tudo isto?
- Pontius Pilatus sabe que eu digo sempre a verdade, disse José tranquilamente. - Acreditará em mim, quando eu negar essa acusação falsa.
Caifás empalideceu e mordeu o lábio superior de tal modo que parecia que os dentes iriam penetrar na carne. Para diminuir um pouco a tensão, Elias perguntou: - Para onde foi Jesus de Nazaré, José?
- Eu deixei-os em Jericó. Mas falaram em ir para Peraea.
- Tal como pensámos, lançou Caifás. - Fugiu para o território do tetrarca Filipe.
- Jesus não teria que partir, a menos que o desejasse, disse tranquilamente Nicodemus.
- Porquê? perguntou Caifás, voltando-se de súbito para ele.
- Porque ele é o Cristo, disse o advogado simplesmente. - Jesus poderia ter-te fulminado, a ti e aos seus lacaios, se o tivesse desejado.
- Sabemos de onde vem esse homem, trovejou Caifás. - É um carpinteiro da Galileia. Quando o Cristo vier, ninguém saberá de onde vem.
- Esqueceste as profecias de Isaías? recordou Nicodemus. Caifás encolheu os ombros. - O Cristo terá que vir da
Galileia? perguntou. - As Escrituras não dizem que o Cristo descende de David e vem de Belém, a cidade onde viveu David?
- Muitas profecias se referem à vinda do Messias, objectou Nicodemus. - Compreendemos algumas, outras não. Como podes dizer que ele só poderá vir de um determinado sítio ou de outro quando não podemos estar certos do seu significado? - Era um ponto importante, pois até os mais sábios Fariseus discutiam frequentemente entre si quanto ao significado de muitas coisas nos Livros da Lei e dos Profetas.
- Jesus é blasfemo, disse Caifás redondamente. - Tanto basta para merecer uma sentença de morte.
- Então porque não o trazes à presença do conselho, perguntou José, em vez de enviares homens para agitar a multidão e levá-la a lapidá-lo? A nossa lei julga um homem sem primeiro o ouvir e sem saber o que ele fez?
- Tu és da Galileia, escarneceu Caifás. - Investiga e verás que não surgirá qualquer profeta da Galileia.
- Acabas de acusar José de ser um espião, Caifás, disse Nicodemus calmamente. - Não foi uma acusação impensada. Levemo-lo ao Grande Sinédrio e esclareçamos este assunto. Há muitos homens justos no conselho que não gostarão de saber que enviaste os teus mercenários para que agitassem a multidão contra Jesus. Provocar a morte de um homem fora da lei é assassínio e punível com a morte. Nem mesmo o sumo-sacerdote está imune à justiça do Todo Poderoso.
Caifás empalideceu perante a ameaça. Sabia que Nicodemus, um dos mais respeitados doutores de leis, e José, o medicus viscerus, seriam cuidadosamente ouvidos e as suas acusações devidamente consideradas pelo Sinédrio. - Eu... eu falei por ira, admitiu desajeitadamente. - Ninguém acusa José da Galileia de infringir a lei. Podem sair ambos.
- Tem cuidado, José, avisou Nicodemus quando saíram do edifício. - O sumo-sacerdote é um homem venenoso e íntimo de Pontius Pilatus. Não podemos saber que mentiras contará ao Procurador, nem que conspirações preparará contra ti.
Alguns dias depois, José soube que Jesus tinha atravessado o Jordão e fora pregar numa cidade chamada Ephraim, onde João o Baptista tinha conseguido um dos seus maiores êxitos. Com o Nazareno agora tão longe de Jerusalém, parecia ter diminuído a efervescência resultante da sua aparição no templo da cidade. Ainda havia muitos Zelotes na cidade, e José soube, por portas travessas, que andavam a trabalhar activamente, preparando o dia em que proclamariam Jesus rei da Judeia. Mas não consultaram nem José nem Nicodemus, sem dúvida por saberem que eles tinham pouca simpatia por um movimento desse género.
E assim o resto do inverno passou, sem acontecimentos. José tinha já perdido toda a esperança de conseguir casar brevemente com Maria. Para esquecer um pouco o sofrimento que a solidão lhe causava, atirou-se ao trabalho e dedicou-se a manter vivo, através de ensinamentos e tratamentos aos doentes e aos pobres, o grupo leal de seguidores que Jesus conseguira formar durante a sua curta estada em Jerusalém. Entre os crentes havia diversos membros do Sinédrio e muitos mestres influentes, assim como mercadores e artesãos, judeus devotos que viam nas pretensões dos Fariseus e na importância excessiva que atribuíam à forma e à acumulação de riquezas, que caracterizava a classe dos sacerdotes, um verdadeiro disfarce das coisas que o culto do Todo Poderoso representava para um judeu realmente devoto.
Com a vinda da primavera, toda a cidade começou a preparar-se para a maior de todas as festividades religiosas, a Festa da Páscoa, para a qual vinham a Jerusalém judeus aos milhares, das mais remotas cidades do Império. Era então que os filhos de Israel enterravam tradicionalmente quaisquer rancores que pudessem existir entre eles, numa acção de graças comum pela sua libertação do Egipto, séculos antes. Era também chamada a Festa da Passagem, porque comemorava o modo como foram poupados os primogénitos quando Deus passou pelas casas dos judeus no Egipto, levando em vez deles os primogénitos egípcios, e era caracterizada por se comer pão ázimo, simbolizando a libertação do Egipto, de acordo com a promessa feita por Deus a Moisés, chefe dos judeus, e ervas amargas, representando o sofrimento por que tinham passado os filhos de Israel enquanto escravos dos faraós.
No templo e nas sinagogas, a cerimónia do culto incluía uma oração de graças e recitação de louvores "Aquele que lavrou para nós todos estes milagres. Ele trouxe-nos do cativeiro para a liberdade, da tristeza para a alegria, do luto para as festas, da escuridão para a luz do dia, da opressão para a libertação".
E, como sempre antes da Páscoa, Pontius Pilatus regressou a Jerusalém com grande reforço da guarnição habitual de tropas romanas, para evitar que os judeus excitáveis, inflamados por uma nova febre de nacionalidade durante essa semana de festividades, em que eram diariamente recordados os tempos em que se tinham libertado como nação do pesado jugo de outro opressor, no Egipto, fossem tentados pela ideia da revolta.
José foi visitar o Procurador, logo que este se instalou no seu palácio. O desconforto da viagem desde Tiberíades tinha feito piorar a gota de Pilatus, apesar de ter viajado num carro real, e estava mais irascível do que nunca. Enquanto José aplicava sanguessugas no dedo inchado, Pilatus falava irritadamente contra Herodes Antipas, a população de Jerusalém e aquela parte do mundo em geral.
- Espero que a patrícia Claudia Procula se encontre de boa saúde, disse José delicadamente, quando Pilatus parou para recuperar o fôlego.
- Passou um inverno melhor do que o habitual, confessou Pilatus, e acrescentou impacientemente: - Mas atribui o facto à sua fé no mestre, nesse Jesus de Nazaré, em vez de o atribuir ao clima, que tem estado mais favorável do que era costume há muito tempo.
- Já notei que aqueles que sentem o espírito tranquilo estão doentes com menos frequência que aqueles que se encontram perturbados.
Pilatus lançou-lhe um olhar surpreendido. - Até mesmo no caso da gota?
- É possível.
- Absurdo! gritou Pilatus. - De que poderá servir andar por aí a pensar na vida eterna e a fazer bem aos outros? O poder é a única coisa que conta neste mundo ou em qualquer outro que eu não conheça.
José conhecia a maneira de pensar de Pilatus e não lhe interessava nada entrar em discussão com ele sobre a filosofia do poder. Para mudar de assunto, perguntou: - Claudia Procula veio contigo para Jerusalém?
Pilatus abanou a cabeça. - Quis ficar em Jericó até as vossas festas terminarem e podermos ir para Cesareia. Herodes Antipas pôs o seu palácio lá à nossa disposição, mas prefiro estar aqui, para o caso de haver problemas.
- Jericó é agradável nesta época do ano. E os banhos decerto farão bem à sua saúde.
- Ela não ficou por lá por causa dos banhos, disse Pilatus laconicamente. - Jesus de Nazaré está de novo em Jericó ...
- Em Jericó! - José ficou tão surpreendido que deixou cair a sanguessuga que estava a tirar do frasco. - Julguei que ele estava em Ephraim.
Pilatus olhou-o interrogativamente: - É verdade o que ouvi dizer, José? És realmente um dos seus seguidores?
- Sim, confessou José. - Estou seguro de que os ensinamentos de Jesus constituem o melhor modo de vida para todos os homens.
- Não estou a falar de filosofia, disse Pilatus impaciente.
Muitos disseram as mesmas coisas. Acreditas que ele é o Cristo que os judeus aguardavam?
- Não sei, confessou José.
- Já o ouviste afirmar que é o Messias? José abanou a cabeça. - Nunca ouvi.
Mas Pilatus era persistente. - E do teu conhecimento que alguém o tenha ouvido afirmá-lo?
- Não é do meu conhecimento.
O Procurador olhou-o pensativamente, com os lábios apertados. - Tu não me mentias, pois não, José? disse. - Estou certo de que, digam de mim o que disserem, sou um homem justo. Se eu escutasse Caifás, prenderia Jesus e executá-lo-ia já amanhã por se proclamar rei dos judeus. Contudo, se ele o exigir, não tenho outra alternativa. Só pode haver um chefe para a Judeia, ou para qualquer outro sítio, José: o Imperador em nome de quem eu governo.
- Tenho a certeza de que Jesus não deseja ser rei dos judeus, disse José seriamente. - Apenas tenta modificar os corações e as almas dos homens, não as suas crenças políticas nem o seu governo.
- O que dizes pode ser verdade em relação ao homem propriamente dito, admitiu Pilatus. - Para mim, não passa de mais um fanático, como aqueles que Herodes matou. Mas os Zelotes estavam prontos a aclamá-lo rei da Galileia no outono passado, quando subitamente se retirou para as colinas. E andavam a preparar-se para fazer o mesmo aqui em Jerusalém, quando ele se retirou para a cidade de Peraea.
- Pareces saber muito sobre as suas acções.
- Faz parte do meu trabalho saber essas coisas. A Judeia está em paz há muitos anos porque eu sei geralmente o que está para acontecer antes de acontecer.
- O facto de Jesus se retirar dessas vezes não prova que ele não pretende ser um chefe temporal? sugeriu José.
- Talvez. - Pilatus encolheu os ombros. - Mas também se poderá argumentar que os seus seguidores estavam demasiado entusiasmados antes de ter chegado a altura própria para a rebelião que andam a planear.
- Que vais fazer? perguntou José, tentando conservar um tom desinteressado.
Pilatus riu-se. - Nunca darias um bom conspirador, José. Lêem-se os teus pensamentos na tua cara. Mas podes dizer a Nicodemus e aos outros que seguem o Nazareno que eu não tenho qualquer desejo de o destruir, desde que não caia na loucura de permitir que os exaltados que conta entre os seus discípulos o proclamem rei. Então, não teria outra alternativa. O Imperador Tiberius é quem governa a Judeia, José, com Pontius Pilatus como seu delegado. Nunca te esqueças disso.
Com a Festa da Páscoa apenas a uma semana, Jerusalém fervilhava de viajantes e peregrinos de todas as partes do Império Romano. Os alojamentos da cidade encontravam-se rapidamente cheios e o excedente de viajantes espalhou-se pelas aldeias circundantes, Betefagé, Betânia e outras, chegando até Emaús, a cerca de sete milhas de distância. Aí Nicodemus tinha uma casa de campo, um sítio encantador ao cimo de um pequeno vale, para onde gostava de ir na primavera, quando as flores e os campos começavam a acordar para uma nova vida. Quando José recebeu um recado para ir visitar o seu amigo em Emaús, ficou satisfeito por ter uma oportunidade para se afastar das ruas apinhadas da cidade e da constante babel de vozes em todas as línguas que caracterizava Jerusalém em tempo de Páscoa.
Nicodemus não estava muito doente. José diagnosticou apenas uma daquelas febres intermitentes, que ali apareciam e desapareciam, piorando frequentemente na primavera, com a chegada do tempo quente. Receitou uma poção amarga e bebidas quentes com especiarias, para provocar suores e fazer baixar a febre, e pôs-se a caminho da cidade, porque ainda tinha de ver muitos doentes nessa tarde.
As colinas estavam cobertas com as flores da primavera, ao longo do caminho por que José cavalgava. Floriam narcisos por toda a parte, entremeados por moitas de chalotas, as flores de Sharon1, com a sua corola estrelada de um branco puríssimo. Ocasionalmente, um grupo de "flores-do-cuco"2, com as corolas em forma de avental, fazia contrastar o seu lilás vivo com o branco. E por toda a parte se viam os cardos e a pimpinela, com os seus espinhos e minúsculas folhas de um verde muito escuro e flores vermelhas como gotas de sangue. A pimpinela era simultaneamente útil e bela, visto que era usada para aquecer os fornos de cal, bem como para os grosseiros fornos caseiros das gentes dos campos.
Enquanto cavalgava pela estrada das colinas em direcção à grande cidade visível à distância, José ia tão absorvido nos seus pensamentos que nem reparou na multidão que se concentrava à sua frente, perto do portão que levava à cidade. Então ouviu os brados. E, porque não lhe eram desconhecidos, o seu coração começou a bater com mais força e obrigou o camelo a trotar.
- Hosanna! gritava a multidão. - Abençoado aquele que vem em nome do Senhor! gritavam as pessoas, enquanto estendiam sobre a estrada os seus mantos e ramos recém-cortados nos campos em volta da estrada. Nem precisou de ver a figura solitária e de certo modo isolada que seguia montada numa mula à cabeça da pequena procissão, para saber o que se passava.
Jesus de Nazaré tinha voltado a Jerusalém.
O coração de José batia violentamente enquanto colocava o seu camelo atrás da procissão que avançava para a cidade, porque já tinha avistado uma figura graciosa e bem conhecida, uma mulher cujo cabelo vermelho de cobre não conseguia ocultar-se sob o manto que lhe cobria a cabeça. Contudo, não conseguiu reprimir uma sensação de angústia e apreensão, porque não se tratava agora das espontâneas exclamações de multidões como as que tinham saudado Jesus quando da sua visita a Jerusalém poucos meses antes. Se fossem necessárias mais provas de como o povo de Jerusalém esquecera rapidamente o mestre Nazareno cujos seguidores criam ser o Messias, bastava a pergunta que José ouviu fazer por várias vezes aos curiosos na berma da estrada: - Quem é este?
Sbaron, planície da Palestina. (N. do T.) Cardaminas, (H. do T.)
Apenas ocasionalmente alguém respondia: - É o profeta Jesus de Nazaré, da Galileia.
A procissão tinha já entrado na cidade quando José alcançou Maria. Ela agarrou-o pelo braço e ele viu que os seus olhos estavam avermelhados, como se tivesse chorado, mas a alegria de estar perto dele iluminou-lhe o rosto.
- Porque voltou ele, Maria? perguntou, embora conhecesse a resposta antes de ela falar.
- Chegou o momento, José, disse ela simplesmente. - Veio para que se cumpram as profecias.
- Mas Pílatus está em Jerusalém. Ele e Caifás irão decerto considerar a aparição de Jesus aqui, nesta altura, como um sinal de que deseja ser proclamado rei.
- Talvez ele morra, disse ela. - A morte de um rei significa mais do que a morte de um profeta.
Com Jerusalém cheia até mais não poder de peregrinos, a procissão que acompanhava Jesus foi em breve engolida pelo vaivém da multidão. Junto dos degraus do templo, os discípulos começaram a gritar de novo: - Hosanna no mais alto dos céus! Abençoado seja o reino de nosso pai David que está para vir! - E, quando alguns dos Fariseus no terraço inferior do templo os admoestavam pelo barulho que faziam, o próprio Jesus disse: - Digo-vos que, se estes estivessem silenciosos, até as pedras gritariam.
Nos degraus que levavam ao segundo andar, parou e olhou para a multidão. No seu rosto havia uma grande pena, não de si próprio, José estava certo, mas da insensibilidade, da cobiça e da pretensão daquela cidade que se chamava santa, mas que o tinha rejeitado a ele e aos seus ensinamentos. Depois voltou-se e entrou para orar.
José esperava que houvesse perturbações quando Jesus visitou o templo, especialmente por parte dos Fariseus e sacerdotes que ali já tinham tentado apanhá-lo numa armadilha. Mas o Nazareno apenas se demorou o tempo suficiente para rezar e olhar em volta, como qualquer outro peregrino teria feito; depois, seguido pelos seus discípulos, desceu os degraus para o andar inferior e dirigiu-se para a cidade. Observando Simão Pedro e os outros quando seguiam o mestre, José notou que estavam confusos e inseguros. Até mesmo Simão Zelote parecia ter perdido grande parte da sua segurança e do seu zelo fanático.
Atrás do grupo dos discípulos caminhava um homem, um pouco afastado deles. Era Judas Iscariotes, com os seus olhos frios e brilhantes e o seu nariz adunco. Mas o seu olhar era diferente, agora, parecia conter simultaneamente desapontamento e decisão, embora fossem sentimentos difíceis de combinar.
- Judas mudou, Maria, disse José rapidamente. - Que lhe sucedeu?
- Tem andado mais afastado de nós do que habitualmente, nos últimos tempos, confessou ela. - Julgo que compreendeu finalmente que Jesus não se deixará proclamar rei.
- Os outros também parecem deprimidos.
- Estão todos desapontados porque Jesus não quer colaborar na rebelião, explicou ela. - Simão Pedro e os filhos de Zebedeu e Simão Zelote são os mais desapontados de todos. Judas nunca revela muito os seus sentimentos, mas é ele o chefe dos que planearam a revolta e suponho que, de certo modo, é o que mais tem a perder - com excepção de Jesus. - Agarrou-se ao braço de José, como para receber a força dele. - Ajuda-me a rezar, querido, para que a nossa fé seja suficientemente forte para o que quer que... para o que quer que suceda.
Apesar de a tranquilizar, José não compreendeu de momento a que se referia. Mais tarde sabê-lo-ia, contudo.
Aquela teria sido a melhor das ocasiões para Jesus mergulhar a cidade apinhada num frenesi religioso, através de um milagre extraordinário que poderia muito bem culminar na sua proclamação como Cristo e rei da Judeia, mas ele nada fez para atrair as atenções sobre si. Contudo, quando se sentou para pregar, a sua audiência era muitíssimo superior às que rodeavam outros mestres, que, naquela época de entusiasmo religioso, costumavam reunir gente para a ensinar. Contudo, não censurou os Fariseus e os sacerdotes pelos seus pecados, como tinha feito antes. Nem perturbou as operações do templo, que tinham voltado à forma antiga, quase logo após ele ter voltado as mesas dos cambistas, alguns meses antes. Seguindo Jesus pela cidade, José sentia-Se confuso. Quase parecia que o mestre esperava algo, mas não conseguia perceber por que esperava ele.
José não imaginava, nem por um momento, que Caifás, odiando Jesus como odiava, desistisse da esperança de o prender e mandar executar. Mas a multidão que seguia o mestre Nazareno, embora muito menor do que anteriormente ainda era demasiado grande para que o sumo-sacerdote se atrevesse a prendê-lo à luz do dia. Porque nesse caso o povo acorreria em massa ao julgamento no Sinédrio que inevitavelmente se seguiria, e, dado o movimento que existia dentro do próprio Sinédrio a favor do gentil mestre de Nazaré, Caifás teria poucas hipóteses de o condenar por blasfémia. Àqueles que eram considerados profetas tinha sempre sido permitido que falassem muito mais livremente do que àqueles que não reclamavam tal inspiração divina. E Jesus já tinha sido considerado um profeta por muitos dos judeus.
E assim nada sucedeu durante quase uma semana. Dentro de poucos dias terminaria o período da Páscoa e muitos daqueles que apinhavam as ruas e escutavam os mestres no Pórtico de Salomão regressariam às suas casas. No dia antes da Páscoa propriamente dita, Maria acompanhou José quando este se dirigia à cidade de manhã cedo, para visitar os doentes. Ela tinha-se conservado na propriedade dele, durante a maior parte do tempo, pois apenas o círculo íntimo dos discípulos acompanhava o mestre nas suas visitas nocturnas a Betânia. José ficou surpreendido ao vê-la dirigir-se para a cidade, com algumas das mulheres que acompanhavam Jesus.
- Vais sair cedo, disse-lhe, pegando-lhe na mão, enquanto caminhavam.
- Jesus pediu-nos que ajudássemos Maria, a mulher de Marco, a preparar uma ceia para ele e para os doze, esta noite, explicou. Aquela Maria era irmã de Barnabé, o chefe dos habitantes de Jerusalém que seguiam o Nazareno. O seu filho Marco era ainda um rapaz apenas, mas tão crente como sua mãe. Quando estavam na cidade, Jesus e os doze ficavam frequentemente em sua casa, antes de irem para Betânia à tarde.
- Mas porquê esta noite? perguntou José surpreendido. - A festa da Páscoa é só amanhã à noite.
- Não sei, confessou Maria. - O mestre insistiu em comer com os doze em casa de Maria esta noite. - Apertou a mão dele com força. - Já reparaste nos olhos dele, ultimamente, José? Sinto um medo terrível do que vejo neles.
- Nada do que receávamos sucedeu, protestou ele. - E a Páscoa está quase terminada.
- E se Jesus sabe que chegou a hora e esta é a refeição de despedida aos seus discípulos?
- Os profetas falam frequentemente por parábolas que não conseguimos compreender, confortou-a José. - Pode ter querido dizer qualquer outra coisa quando falou em ser morto.
- Promete-me que guardarás a casa onde ele come esta noite, suplicou Maria. - É a única noite, desde que voltou a Jerusalém, que Jesus fica na cidade.
- Eu vigiarei, prometeu-lhe. E Hadja estará comigo. Se vier alguém, daremos o alarme.
A escuridão caíra já quando José e Hadja tomaram o seu lugar no exterior da casa. A noite estava quente e os cortinados das janelas do andar superior onde Jesus ceava com os seus discípulos tinham sido corridos. De vez em quando, as vozes dos que estavam no festim tornavam-se suficientemente altas para que José as pudesse ouvir, enquanto esperava, escondido na sombra de uma noite. Hadja encontrava-se do outro lado, para abarcar a rua na outra direcção.
Maria saiu para trazer comida e uma pequena garrafa de vinho a José e Hadja. Abraçou-se a José, por momentos, nas sombras, como se pretendesse receber forças dele, como tinha feito tantas vezes, desde que Jesus regressara a Jerusalém. - Vigia bem, José, suplicou. - Tenho um pressentimento de que o fim está próximo.
A medida que a festa no andar superior prosseguia sem que nada sucedesse, José começou a sentir-se cada vez mais seguro de que tinham interpretado erradamente as palavras de Jesus quanto a ser preso e condenado à morte em Jerusalém. Então, de súbito, a voz do mestre sobrepujou todas as outras da sala. - Na verdade vos digo, ouviu-o José dizer, que um de vós me trairá, um daqueles que hoje está a comer comigo.
Seguiu-se imediatamente uma confusão de perguntas, quando, um após outro, os discípulos perguntaram: - Sou eu?
- É um dos doze, disse Jesus, um dos que molha o pão no mesmo prato que eu.
José sentiu um medo súbito cravar-se-lhe no coração, porque a voz de Jesus era resignada como se, com a sua visão profética, já soubesse exactamente o que ia suceder. Seriam justificados os receios de Maria? A intuição dele constituiria realmente um pressentimento de que algo terrível iria suceder ali em Jerusalém, na Páscoa?
Pouco depois todos começaram a cantar um hino e José compreendeu que a ceia terminara e o grupo ia separar-se. Soltou um suspiro de alívio, pois agora eles iriam abandonar a cidade e ficaria afastada qualquer ameaça que pendesse sobre Jesus, pelo menos até ao dia seguinte, quando regressasse.
José ia chamar Hadja para que que se recolhesse nas sombras, de modo que os outros não percebessem que tinham estado a vigiar, quando a porta da casa se abriu e dela saiu um homem. A alta figura, com o seu perfil de falcão e o cabelo de um cinzento de ferro, era inconfundível, e, quando o homem de Kerioth passou por ele a correr, José viu de relance a sua face, à luz da lanterna que ardia no exterior da casa de Maria. Tinha afivelado uma máscara ainda mais dura do que habitualmente, e ele compreendeu, de súbito, que algo de importante tinha sucedido naquela sala para encher Judas de tão feroz propósito. Quando avançou pela rua, quase a correr, José, obedecendo a um súbito impulso, resolveu segui-lo.
Judas caminhou rapidamente através da cidade já silenciosa, com José atrás dele, acompanhando-o com dificuldade. Judas nunca olhou para trás e só parou quando chegou ao palácio de Caifás e foi interpelado pelo guarda armado que estava diante da porta. Contudo a interpelação era apenas um proforma, e o guarda deixou-o entrar mal viu quem ele era. Era óbvio, compreendeu José, ao recolher-se nas sombras para que o guarda não o visse, que Judas era aguardado.
José apercebeu-se então do ruído feito por homens que se moviam e falavam no átrio da casa de Caifás. Algumas vozes eram judias, mas o entrechocar de armas e as palavras rudes usadas pelos soldados romanos traíam o facto de que um grupo de militares de Pilatus se encontrava entre aqueles que esperavam, talvez, por um homem que os conduzisse à sua presa. José tinha agora a certeza de que Judas viera ali para trair Jesus, para informar Caifás do local onde o mestre de Nazaré poderia ser capturado, à noite, sem que as multidões interferissem.
Mas por que motivo decidira aquele homem taciturno e estranho, chamado Judas Iscariotes, vender a informação da presença do seu mestre na cidade, naquela noite, ao sumo-sacerdote e seus lacaios? perguntava José a si próprio. O homem de Kerioth tinha mudado ultimamente, dissera Maria. José pensou que talvez fosse por ter compreendido finalmente que Jesus não tinha qualquer intenção de se deixar proclamar rei da Judeia e da Galileia, como os Zelotes planeavam. Ou podia ser que Judas esperasse, através da prisão de Jesus, fazer entrar em acção os milhares de pessoas da cidade que o arrancariam das mãos dos soldados e o colocariam no trono da Judeia, desafiando o sumo-sacerdote e Pontius Pilatus. E Caifás, ao que parecia, actuava em conluio com o Procurador. A presença de soldados romanos entre o grupo que esperava a chegada de Judas não podia querer dizer outra coisa.
Então abriram-se os portões do pátio e saiu um vigoroso oficial romano, acompanhado por um capitão dos guardas judeus do templo. Atrás deles vinha um grupo de pelo menos cinquenta homens, mais de metade dos quais eram soldados da corte que provia a guarnição romana de Jerusalém. Quando Judas saiu da casa e se juntou aos chefes, no exterior dos portões, José compreendeu, com desesperada urgência, que não poderia demorar-se ali mais tempo. Jesus e os discípulos não deviam ter saído da cidade ainda e era absolutamente indispensável que não fossem apanhados dentro dos portões da cidade, nessa noite. Apesar de exausto, José compreendeu que teria de atravessar de novo a cidade a correr para os avisar, na esperança de chegar suficientemente adiantado em relação às tropas mais lentas, e esconder Jesus em qualquer lugar seguro, antes que eles chegassem à casa onde a ceia se realizara.
Mas quando José chegou à casa, Jesus e os discípulos tinham partido, Maria estava com as outras mulheres, arrumando os restos do festim. Foi logo ter com José. - Hadja contou-me que Judas saiu a correr e que tu o seguiste, disse-lhe. - Estava tão preocupada.
- Judas vai trazer Caifás e os romanos aqui, disse José, sem fôlego. - Eu vim avisar Jesus.
- Judas! arquejou ela. - Claro, tinha que ser ele.
- Foram para Betânia?
Maria abanou a cabeça. - O mestre já não volta aqui esta noite. Quando saíram, Simão disse-me que iam para o Monte das Oliveiras, rezar no Jardim de Getsemané.
- Os soldados estão a chegar aqui, temos que enviá-los para outro lado, disse José. - Vai dizer às mulheres que não revelem para onde foi Jesus, e eu corro ao jardim a avisá-los.
- Mas Judas sabia que Jesus ia orar com os discípulos para o Jardim de Getsemané, José.
- Então vai conduzir os soldados ao jardim e não para aqui! exclamou José. - Se eu tivesse ficado para ver para onde iam, acrescentou amargamente, mas agora é tarde de mais.
- Tu não conseguirias avisar Jesus e os outros a tempo, objectou Maria logicamente. - Não compreendes? É tal como Jesus disse. Um dos discípulos traiu-o e será levado ao sumo-sacerdote e aos escribas. Tinha que suceder assim, José.
E isso, como descobriram quando encontraram os soldados que voltavam com Jesus atado, no meio deles, perto do sopé do Monte das Oliveiras, foi exactamente o que sucedeu. Conduzidos pelo traidor Judas, os guardas do Templo e o destacamento romano tinham cercado Jesus enquanto orava no jardim e tinham-no feito prisioneiro, sem resistência. Dos onze que o acompanhavam nem um ficou ao seu lado naquela hora de provação, nem se ofereceu para partilhar o seu destino.
Rodeado como Judas estava por cerca de cinquenta guardas, qualquer tentativa de resistência teria sido uma loucura. Maria e José seguiram-nos o mais perto possível, enquanto o grupo regressava pelo mesmo caminho e voltava a entrar no pátio de Caifás. Só algumas pessoas puderam entrar na sala onde os sacerdotes interrogavam Jesus, mas José foi reconhecido pelo guarda, e ele e Maria conseguiram abrir caminho através da multidão, até um local donde pudessem ver e ouvir o julgamento, se é que assim podia chamar-se-lhe.
Não se tratava de um interrogatório formal diante do Sinédrio legalmente constituído. Caifás e Anás, o velho sumo-sacerdote, com Elias, e diversos outros do mesmo grupo que tinha interrogado José após o seu regresso da Galileia, constituíam o tribunal perante o qual Jesus foi levado. Era aquilo a que Nicodemus chamava o Sinédrio político, o pequeno corpo de sacerdotes e doutores da lei influentes que, embora sem existência legal, governava o povo, na medida em que os judeus podiam governar-se a si próprios, com uma mão inflexível.
Jesus conservou-se de pé, tranquilamente, com as mãos algemadas, diante deles. Já se viam equimoses na sua pele clara, nos locais onde os guardas o tinham agarrado brutalmente, e escorria sangue de um pequeno golpe no pulso, onde os ferros tinham sido cruelmente aplicados. O desgosto que José e Maria tinham notado tão claramente no seu rosto, naqueles últimos dias, desaparecera. Tinha sido substituído por um olhar quase de exaltação, como se Deus lhe tivesse realmente dado qualquer fonte especial de energia, naquela hora de provação. Não mostrava medo, apenas uma calma resignação diante do que estava para vir.
As testemunhas, Fariseus que José reconheceu serem os mesmos que costumavam interpelar Jesus quando pregava, encontravam-se a um dos lados. Quando Caifás lhes fez sinal com a cabeça, o chefe deles disse ansiosamente: - Ouvi-o dizer "Eu destruirei este templo feito com as mãos, e em três dias construirei outro não feito com as mãos".
Caifás sentia-se obviamente triunfante perante aquela blasfémia contra o templo, mas quando Jesus olhou para o Fariseu que testemunhava contra ele, o homem começou a gaguejar uma versão diferente da sua história. Irritado, Caifás mandou-o voltar para o grupo das testemunhas, mas quando um após outro tentaram explicar como Jesus blasfemara, com histórias que cada vez se tornavam mais confusas, a turba começou a murmurar perante aquela mascarada de julgamento.
Caifás corou diante da reacção da multidão e disse asperamente a Jesus: - Não tens uma resposta para me dar? O que é isto que estes homens afirmam contra ti?
Jesus não falou, mas o sumo-sacerdote disse asperamente: - Es tu o Cristo, o Filho do Abençoado?
Lentamente, os olhos do prisioneiro percorreram a sala e fixaram-se na figura do sumo-sacerdote que o atormentava. Perante a tranquilidade daquele olhar, até a segurança de Caifás pareceu desvanecer-se um pouco. Quando Jesus falou, a sua voz era alta e distinta, como se quisesse que não fosse apenas ouvida na sala, mas também pela pequena multidão que enchia o pátio. - Sou, disse, e tu verás o Filho do Homem sentado à mão direita do poder, descendo com as nuvens do céu.
Então Caifás, subitamente triunfante, rasgou as suas vestes e gritou: - Para que precisamos de testemunhas? Ouviram-no blasfemar. Qual é a vossa decisão?
E, tal como lhes tinha sido ensinado, os membros daquele conselho fingido responderam-lhe: - Merece a morte!
- Atem-no e levem-no a Pontius Pilatus para que o julgue, ordenou Caifás exultante. Aquela era a sua hora de triunfo. O homem que ousara escarnecer dos sacerdotes e dos Fariseus diante do povo estava à sua mercê, condenado pelas suas próprias palavras.
Os soldados convergiam de novo para Jesus, mas antes que o levassem da sala, ele olhou em volta e viu José e Maria, angustiados com aquele pretenso julgamento, mas incapazes de fazer qualquer coisa. Um sorriso pareceu aquecer-lhe os lábios, por um momento, um sorriso de encorajamento para eles, apesar de ser a sua vida, não a deles, que corria perigo.
Quando os olhos de José encontraram os de Jesus, foi como se uma luz súbita irrompesse no seu cérebro. E, numa revelação ofuscante que apenas podia provir do próprio Deus, compreendeu que a única coisa que lhe faltara até então, já não lhe faltava. Porque tinha olhado nos olhos o Filho de Deus e neles vira a glória de uma revelação que procurava mas não tinha conseguido encontrar, até ao momento em que ouvira Jesus proclamar-se o Cristo.
O choque e a glória da revelação fizeram José cambalear um pouco, pelo que teve de agarrar-se ao braço de Maria para se apoiar. E ela, compreendendo o que lhe acontecera, porque tinha sentido a mesma glória ofuscante, pôs o braço em volta dele e apertou-o contra si, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. E assim ficaram, enquanto os soldados levavam Jesus da sala e a multidão saía, deixando-os sós.
- Ele é realmente o Filho de Deus, Maria, murmurou José, quando saíam para o pátio. - Soube-o agora mesmo, como se o Todo Poderoso tivesse aberto uma página e me deixasse ler as palavras nela escritas.
- Eu sei, querido, disse ela suavemente. - Sempre soube que, quando chegasse a altura, o próprio Jesus te revelaria a verdade. - Depois a sua voz cedeu à aflição. - Mas que podemos fazer, José? Pilatus vai condená-lo de manhã e crucificá-lo-ão. E o sistema dos romanos.
José endireitou os ombros. - Tenho que falar com Pilatus esta noite. Talvez consiga persuadi-lo da verdade.
Mas também aí foi derrotado, porque tinha sido postada uma guarda dupla em redor do palácio do Procurador e havia ordens estritas para que ninguém o incomodasse, em circunstância alguma. Se precisassem de mais uma prova de que tudo tinha sido planeado por Caifás e Pilatus, ela alí estava.
Por momentos, não conseguiam lembrar-se de nada que pudesse ajudar Jesus. Então José teve uma inspiração. - Claudia Procula está em Jericó, disse. - Se eu lá for de camelo é lhe pedir que venha imediatamente para Jerusalém, talvez possa influenciar Pontius Pilatus.
- Podes tentar, concordou Maria. - Sei que ela ama suficientemente o marido para fazer tudo o que puder para o impedir de crucificar o Filho de Deus.
A madrugada nascera muito antes de o rápido camelo de José ter entrado no pátio de Herodes em Jericó, onde Claudia Procula estava instalada. Como o guarda era um membro da casa militar de Pilatus e o reconheceu, foi admitido imediatamente. O nomendator informou-o de que a mulher do Procurador ainda dormia, mas, perante a insistência de José, acordaram-na. Pouco tempo depois, Claudia Procula surgiu na sala, envolta num rico roupão, com o rosto ainda congestionado pelo sono. Quando viu quem era o visitante, abriu muito os olhos e levou a mão ao peito. - Porque estás aqui, José! exclamou. - Pontius está doente?
- O Procurador está de boa saúde, ao que me disseram. - Ajoelhou-se diante dela. - Venho suplicar-te que salves Jesus de Nazaré.
- Que salve Jesus? Que sucedeu?
- Caifás prendeu-o por blasfémia e condenaram-no à morte. O Procurador dará hoje a sua sentença.
- A crucificação! arquejou ela.
- É o método romano de execução.
- Mas porquê? Julgava que tinham concluído que ele era inofensivo.
- Caifás teme Jesus, explicou José, receando que os seus ensinamentos acabem com o poder que o sumo-sacerdote tem sobre o povo. Deve ter convencido o Procurador de que a morte de Jesus é melhor para o estado.
Claudia Procula fechou os olhos. - É fácil convencê-lo, José. Pontius ordenou-me que não escutasse Jesus e eu recusei. Por isso não fui para Jerusalém.
- Deves ir agora, insistiu ele, ou o teu marido crucificará o Filho de Deus.
Ela olhou-o atentamente e viu que ele acreditava na verdade do que dissera. - Sei que Maria acredita há muito tempo que ele é o Messias, disse. - Mas não pensei que tu o acreditasses. Que te fez mudar de ideias, José?
- Esta manhã ele revelou-se-me, disse ele simplesmente. - Já não tenho dúvidas.
Claudia Procula respirou fundo. - E se ele é realmente o Cristo... - Empalideceu. - Pontius não pode fazer isso, José! exclamou. - Vai mandar preparar um carro. Seguimos já para Jerusalém.
A grande multidão reunida em volta ao praetorium, onde o Procurador julgava quando estava em Jerusalém, indicava que o julgamento de Jesus, se é que ia haver um julgamento, já estava em execução. Mas as águias do carro em que seguiam, assim como a visão da mulher de Pontius Pilatus, de pé, erecta e bela, sobre o veículo, abriram-lhes caminho através da massa de gente. Olhando em volta, José viu muitos dos rostos que tinham constituído a multidão, naquela manhã, vários meses antes, em que Jesus quase tinha sido apedrejado e Trojanus os tinha salvo.
Não eram as pessoas simples da cidade que escutavam o mestre nazareno e o amavam. Era evidente que o sumo-sacerdote e os seus sicofantas tinham avisado do julgamento de Jesus aquelas pessoas que estariam interessadas em que ele fosse destruído, os cambistas cujas mesas tinham sido voltadas no templo, os vendedores de animais para sacrifícios, cujas instalações tinham sido quebradas, os sacerdotes menores que viviam luxuosamente do tributo do templo, os Fariseus emproados, de longas vestes franjadas, e os altivos escribas, trazendo a tiracolo os recurvos tinteiros feitos de chifre, símbolos da sua profissão. Das mãos de homens daqueles, Jesus não receberia misericórdia, porque todos eles o odiavam.
Foram directamente para os aposentos de Procula e lá encontraram Maria que os esperava. Enquanto as duas mulheres se abraçavam, Claudia perguntou: - Que devo fazer para impedir esta coisa terrível, Maria?
- Jesus está agora diante do Procurador no praetorium, disse-lhe Maria. - Se fores ter com ele, talvez se decida por uma sentença mais leve.
- Pontius ressentir-se-á da minha interferência em público, objectou Procula. - Vou escrever-lhe um bilhete. Há uma alcova por trás do trono. Iremos espreitar daí e um dos criados levar-lho-á.
Escreveu rapidamente numa tabuinha encerada e, chamando um soldado, deu-lhe ordem de a levar imediatamente ao Procurador, mesmo que tivesse de interromper o processo. Depois conduziu José e Maria à alcova perto do trono, de onde poderiam ver toda a sala onde o julgamento estava a ser efectuado.
Pontius Pilatos estava sentado num estrado elevado, ladeado pelos funcionários. Rodeavam-no os lictores, cujos fasces erguidos indicavam que aquele tribunal era civil. O processo estava já a começar e eles viram Jesus ser trazido, com as mãos ainda acorrentadas, entre dois soldados romanos. José notou que o mestre tinha sido cruelmente tratado durante a noite, porque tinha o rosto inchado e cheio de equimoses, e havia marcas de chicote em todo o seu corpo. Mas brilhava a mesma luz nos seus olhos, como se estivesse a ver algo para lá daquilo que o rodeava, e nos seus lábios havia o mesmo meio sorriso de piedade. Depois dele entraram os sacerdotes, com Caifás à frente, com a boca de lábios estreitos bem apertados e os olhos frios e cheios de ódio pelo prisioneiro.
- De que acusais este homem? perguntou Pilatus formalmente ao sumo-sacerdote.
- Afirma ser o rei dos judeus, disse Caifás, olhando em volta para os outros. - Todos nós o ouvimos afirmá-lo.
Um coro de vozes confirmou a declaração. - És o rei dos judeus? perguntou o Procurador directamente a Jesus.
Jesus voltou-se para o olhar, mas, por um momento, não falou. Depois, disse tranquilamente: - Tu o disseste.
Pilatus ficou obviamente surpreendido pela resposta, e a incerteza espelhou-se-lhe no rosto. Caifás e os outros irromperam imediatamente num acumular de acusações contra Jesus, para evitar que o Procurador se deixasse influenciar pela tranquilidade do prisioneiro, mas Pilatus fê-los calar com a mão erguida. Enquanto a conissão esmorecida, o soldado dirigiu-se ao trono e entregou-lhe a tabuinha que Claudia Procula escrevera. Pilatus leu-a rapidamente e havia um olhar de espanto no seu rosto quando se voltou e olhou para a alcova. Vendo ali a sua mulher, suplicando-lhe compaixão, sem palavras, pareceu hesitar, por momentos.
Observando o Procurador, José quase podia ler-lhe os pensamentos. Porque Pontius Pilatus, apesar da sua crueldade, não era um homem de acção directa e firme. Por duas vezes afrontara profundamente os judeus, insistindo em que os costumes de Roma tivessem precedência sobre as leis antigas. E de cada vez que eles resistiam passivamente, ele tinha sido forçado a ceder. Ao olhá-lo, José viu que Pilatus estava fortemente tentado a soltar Jesus, apesar de ter que enfrentar uma quebra de relações com Caifás, juntamente com o qual tinha planeado a destruição daquele homem que ameaçava constituir um problema para o sumo-sacerdote e para o seu grupo, assim como para os romanos, se o cadinho sempre efervescente da revolta contra Roma algum dia transbordasse.
Pilatus voltou-se de novo para Jesus e perguntou-lhe: - Vê quantas acusações se apresentam contra ti. Não tens resposta a dar-lhes?
O prisioneiro não respondeu e o Procurador franziu a testa e olhou para Caifás, como que a pedir-lhe conselho. Algo no olhar do sumo-sacerdote, talvez o seu desprezo pela incerteza do romano, pareceu espicaçar Pilatus e surgiu um fraco rubor nas suas faces descoradas. Então o seu rosto endureceu e endireitou os ombros, postando-se mais erecto, como se tivesse tomado uma decisão.
- Pontius! Não! gritou Claudia Procula em voz destroçada. Mas, nessa altura, um homem gritou entre a multidão: - Libertai um prisioneiro, como é costume neste dia. - O som da súplica dela foi abafado por centenas de vozes que apoiaram o pedido, exigindo que o governador romano observasse o costume da Páscoa, em que era tradicionalmente libertado quem a multidão pedisse.
O rosto de Pilatus desanuviou-se. Ali estava um meio de sair da dificuldade, porque, se a multidão exigisse a libertação de Jesus, teria bons motivos para a satisfazer. – Quereis que solte o rei dos judeus? perguntou.
Então revelou-se o resultado final do plano de Caifás. Porque o sumo-sacerdote conhecia o seu colega na conspiração e a sua fraqueza e preparara-se inteligentemente contra ela. Da fila da frente da multidão, um grupo de parasitas do templo gritou: - Não! Não! Liberta Barrabás!
Barrabás era um criminoso endurecido, um revolucionário conhecido que tinha assassinado um homem durante uma das disputas entre Zelotes e guardas do templo que tão frequentemente se verificavam. Pilatus ficou obviamente espantado perante aquele veemente pedido. - Que hei-de fazer com o homem a que chamais rei dos judeus? perguntou.
- Crucifica-o! gritaram os da frente. - Crucifica-o! - As palavras temidas rolaram pela multidão, avolumadas pelos gritos de cem gargantas sedentas de sangue, satisfeitas pela oportunidade de castigar aquele homem que ousara desmascarar o modo por que haviam transformado numa palhaçada e numa vergonha o culto de Deus e o Seu templo sagrado.
Espantado pela ferocidade do seu grito, Pilatus perguntou de novo: - Porquê? Que mal fez ele? - Mas a pergunta foi abafada pela resposta: - Crucifica-o! Crucifica-o!
- Assim seja! disse resignadamente, - Ele que seja açoitado e levado para o local de execução. - Fez sinal aos soldados e estes levaram Jesus.
A escuridão caíra, e, embora se estivesse na Páscoa, altura em que todos os judeus alegravam-se em tomar em conjunto a refeição ritual, milhares de pessoas encontravam-se ainda reunidas nas encostas da colina de Gólgota, por baixo das três cruzes recortadas contra a luz das tochas transportadas pelos guardas romanos que as vigiavam. Aqueles não faziam parte do grupo sedento de sangue que enchera o praetorium nessa manhã, exigindo que Pontius Pilatus soltasse não Jesus de Nazaré, que estava inocente, mas sim um notório criminoso, Barrabás. Aqueles eram os judeus que tinham amado Jesus e escutado nos seus ensinamentos uma nova esperança, uma nova prova de que Deus os amava por si próprios, não pelos seus sacrifícios, pela minuciosa observância da lei, como os Fariseus chamavam, ou pela sua pretensa piedade. Aqueles prostravam-se na poeira do local da execução e choravam pela pálida figura branca no centro da cruz, cujas mãos tinham sido pregadas à trave chamada patibulum.
Os soldados romanos que tinham recebido a ordem de execução, tinham tentado fazer Jesus carregar a sua cruz, como era costume, mas ele não era suficientemente forte, pelo que a transferiram para os ombros largos de Simão o Cireneu. Tinham espancado Jesus e tinham escarnecido dele, vestindo-lhe uma túnica cor de púrpura. E tinham-lhe enfiado cruelmente na cabeça uma coroa de espinhos, até os picos afiados penetrarem na pele e rodearem o seu rosto com um halo de sangue.
Por cima da sua cabeça havia um cartaz que Pilatus lá mandara colocar, com uma frase zombeteira: "O Rei dos Judeus".
José e Maria tinham estado juntos aos pés da cruz desde o princípio do fim. Tinham estremecido ao ver penetrar os cravos naquelas mãos cheias de ternura que tinham aliviado da dor tantos doentes e aflitos. E tinham ficado maravilhados quando ouviram Jesus orar por aqueles que o atormentavam: - Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem. - Até os rudes soldados que jogavam aos dados a sua túnica ficaram silenciosos, por momentos, nessa altura.
E finalmente José e Maria, com alguns dos outros que tinham reencontrado a sua coragem e tinham vindo ver a morte do seu mestre, ouviram o patético grito que saía da cruz: Eloi! Eloi! lama sabachtani! - O grito do moribundo que, na sua agonia, se sentiu totalmente abandonado, até mesmo pelo Pai. Depois disso, Jesus pareceu cair na inconsciência. Nem sequer se moveu quando um dos soldados, pensando fazer uma mercê ao condenado, lhe enfiou uma lança no lado, libertando-o assim do sofrimento e apressando o fim inevitável.
Durante a tarde, José tinha enviado uma mensagem a Pontius Pilatus, através do seu tio e homónimo, José de Arimateia, pedindo-lhe que lhe permitisse preparar o corpo para o enterro e depô-lo no túmulo. E agora, vendo que Jesus deixara de respirar, ele e o seu tio aproximaram-se do centu-rião encarregado da guarda e pediram-lhe que mandasse baixar a cruz e lhes entregasse o corpo, de acordo com a ordem de Pilatus.
O próprio centurião os ajudou a levantar da cruz o corpo, quebrado e ferido, e a colocá-lo sobre o lençol em cima de uma padiola. Endireitando-se, o romano disse tranquilamente: - Este homem era decerto o Filho de Deus. - Hesitou um momento e acrescentou: - Depois de o colocardes no túmulo, fugi da cidade. Ouvi os guardas do templo. Esperam apanhar todos os que eram próximos do mestre esta noite e matá-los.
- Teremos cuidado, prometeu José. - E podes estar certo de que Deus te abençoará por nos avisares.
Maria e José seguiram a padiola, que foi levada pela colina abaixo por quatro fortes homens da casa do seu tio, atravessando a cidade, até um túmulo aberto na rocha, a um canto do seu jardim. A mão de Maria agarrou a de José enquanto seguiam na escuridão, atrás da padiola, sobre a qual repousava o corpo do homem que eles sabiam ser o Filho de Deus. - Ainda acreditas que ele ressuscitará, querida? perguntou ele suavemente.
- Sei que ressuscitará, disse ela, cheia de confiança, porque ele disse uma vez: que o escarneceriam e cuspiriam, e o açoitariam e o matariam; e que ao fim de três dias ressuscitaria.
Os seguidores de Jesus que tinham ousado ir ver a sua morte, seguiram a padiola com o corpo do seu mestre. Colocaram-se em volta da entrada do túmulo, enquanto José pousava o corpo sobre um lençol branco limpo e lhe aplicava as especiarias e as ervas que eram habituais, até ficar preparado para o enterro, depois de ter passado o Sabbath, que era no dia seguinte.
As feridas eram dolorosamente visíveis, no corpo de Jesus, que José preparava para o enterro, com as suas próprias mãos, à luz dos archotes que seguravam aqueles que rodeavam o túmulo. Todos os que o olhavam podiam ver a marca dos cravos nas suas mãos e nos seus pés, e as minúsculas feridas dos espinhos, onde a coroa cruel tinha sido enterrada na cabeça, até os picos penetrarem na pele. A leve ferida no seu pulso, no local onde os ferros o tinham cortado, também era visível e, no seu lado, havia uma ferida aberta feita pela lança bem intencionada do soldado romano.
José tinha quase acabado, quando ouviu um tumulto no exterior e surgiu um homem que se atirou para o chão de pedra ao lado da urna sobre a qual repousava o corpo de Jesus. A princípio, José não reconheceu Simão Pedro, porque as suas roupas estavam rasgadas e cobertas de poeira e ele soluçava perdidamente. Continuou a chorar enquanto José acabava de preparar o corpo e, quando acabou, o jovem médico fez levantar o homem e afastou-o do túmulo. - Jesus prometeu que ressuscitará, Simão, disse Maria, tentando confortá-lo e colocando um braço em volta dele, ao abandonarem o túmulo. - Temos essa garantia.
Um grande soluço estertoroso fez estremecer o enorme corpo. - Mas eu neguei o meu Senhor, gemeu Simão. - Neguei três vezes no pátio do sumo-sacerdote, na noite passada.
- Talvez não fosse o próprio Jesus que estavas a negar, Simão, disse Maria, com aquela estranha intuição em relação ao mestre que parecia vir das profundidades do seu grande amor por ele.
- Mas eu estava a olhar para ele, protestou o homem. - E, contudo, neguei-o.
- Estavas a negar a mesma coisa que Judas negou quando traiu Jesus, explicou Maria. - Aquilo que querias que ele fosse, não aquilo que realmente era. Agora sabes o que Cristo realmente significa e por que motivo ele veio.
Simão Pedro olhou para ela sem compreender, durante um momento, depois uma luz de esperança, quase de alegria, brilhou nos seus olhos. Vendo-a, José disse tranquilamente: - O centurião avisou-me de que as nossas vidas podem correr perigo, Simão. Tu eras o chefe, depois de Jesus. Chama os outros e iremos para a casa de Nicodemus em Emaús, onde estaremos seguros.
Era um novo homem, aquele que se voltou para o pequeno grupo de figuras amontoadas nas sombras e lhe falou. E, como carneiros seguindo o pastor, todos seguiram a figura alta e autoritária de Simão Pedro, seu novo chefe, quando este se pôs a caminho de Emaús.
- Se eu não soubesse já porque te amo, José de Galileia, disse Maria suavemente, ficaria a sabê-lo agora. - Com os dedos entrelaçados, seguiram o novo chefe.
O dia seguinte era o Sabbath, pelo que os espalhados seguidores do crucificado ficaram em Emaús, a cerca de sete milhas de Jerusalém, nas colinas. Contudo, a casa de campo de Nicodemus era pequena, pelo que Maria e José, com Simão Pedro e alguns outros, ficaram na casa de um homem chamado Cleopas, que também seguira Jesus.
De manhã cedo, depois do Sabbath, José e Maria, com alguns dos outros, dirigiram-se a Jerusalém para prestar o tributo final ao mestre crucificado, o embalsamamento e a preparação do seu corpo para o enterro final, depois do qual o túmulo no jardim de José de Arimateia seria selado. Não tinha havido tempo na noite da crucificação para executar esses detalhes finais, pois, segundo a lei judaica, eles não podiam ser feitos no Sabbath.
Maria já não se encontrava deprimida quando seguiam pela estrada para Jerusalém, porque havia flores por toda a parte e nas árvores surgiam as primeiras folhas verdes da primavera. - Compreendo agora porque Jesus escolheu esta ocasião para a sua morte, disse ela suavemente. - Tal como a semente que é semeada na primavera, tinha que morrer para poder renascer, para mostrar a todos o caminho da vida eterna através dele.
José olhou-a, impressionado uma vez mais pela sua percepção no que se referia a Jesus. - E se ele não ressuscitar?
- Há-de ressuscitar, disse ela, sem hesitação. - Prometeu-nos que o faria e o Filho de Deus não pode mentir.
- Gostava de ter a tua fé, querida, disse José com profunda sinceridade.
Ela sorriu e apertou-lhe a mão. - Tens, José, mas eu acredito no que sei, em meu coração, que é verdadeiro, enquanto tu só acreditas no que os teus sentidos e a tua mente te dizem ser verdadeiro. Ainda duvidas de que Jesus é o filho de Deus?
- Não. Acredito-o para além de qualquer sombra de dúvida.
- Ele há-de ressuscitar dos mortos, disse ela cheia de confiança. - E tu estarás também seguro da sua ressurreição quando ele decidir revelar-ta.
Caminharam durante algum tempo em silêncio, com os olhos postos na grande cidade branca que se espalhava pelas colinas em frente deles. Depois José disse, um pouco hesitante, porque receava a resposta que poderia receber para a sua pergunta: - E nós, Maria, agora que Jesus foi crucificado?
- Ele cumpriu o seu propósito, disse ela simplesmente, e já não precisa de mím. - Depois sorriu: - Vê, as flores estão a abrir, as folhas estão a crescer de novo, e nós estamos juntos - tal como te prometi que estaríamos.
- As nossas vidas voltarão a ser as mesmas que dantes? perguntou ele,
Maria abanou a cabeça. - Ninguém pode seguir Jesus e voltar a ser o mesmo, José. Mas quem desejaria sê-lo, depois do que ele nos deu?
Os olhos de José estavam postos na cidade que brilhava diante deles ao sol da manhã. Para um peregrino que se aproximasse de Jerusalém, excitado pela adoração com que todos os judeus devotos olhavam para a Cidade Santa, devia constituir uma visão cuja magnificência apenas seria ultrapassada pelo próprio trono de Deus. Mas ele sabia demasiado bem o que existia sob a brilhante fachada de mármore e oiro, o desejo de poder e a ganância pela riqueza, a miséria e o sofrimento, a capacidade dos que eram ricos em bens mas pobres em espírito, a exploração feita aos peregrinos em nome de uma corrupta hierarquia do templo cujos dedos ávidos se estendiam para arrancar o tributo ao mais ínfimo vendedor de recordações do Pátio dos Pagãos, o falso orgulho dos Fariseus que rebaixavam o culto de Deus, transformando-o num culto das leis e dos cânticos e do credo, os escribas que passavam horas infindas em discussões inúteis quando podiam estar a servir o próximo - tudo isso fazia parte da Jerusalém que viam os olhos plenos de adoração dos peregrinos. E aqueles mesmos homens tinham crucificado o Esperado que viera mostrar-lhes, de novo, o propósito elevado que eles tinham gradualmente perdido, ao longo dos séculos, desde a altura em que os judeus tinham derramado o sangue do cordeiro pascal sobre o lintel das suas cabanas, para que a ira vingadora do seu Deus pudesse desencadear-se livremente sobre o povo que oprimia os seus filhos.
- Gostarias de regressar à Galileia e recomeçar a vida? perguntou José, de súbito.
A sua resposta e a sua recompensa surgiram na glória que brilhou nos olhos da sua amada. - Tinha esperanças de que dissesses isso, José, disse ela, estendendo a mão para agarrar a dele. - Mas não iremos começar de novo. Regressaremos simplesmente ao princípio do caminho que começámos a percorrer, num dia como este, em Tiberíades.
Junto dos portões da cidade, José deixou os outros e foi às lojas de especiarias comprar os produtos necessários para preparar o corpo de Jesus para o funeral. Fez as suas aquisições rapidamente e voltou para junto do túmulo onde estava depositado o corpo de Jesus.
Não sentia a mínima tristeza perante a ideia de que aquela poderia ser a última vez que percorria Jerusalém. A recordação da jóia verde que era o Mar da Galileia, os ricos vinhedos e pomares de Genesaré, os cardumes saltitantes de peixes que se juntavam diante de Bethsaida, e as velas de cores berrantes dos pescadores que regressavam a casa ao fim da tarde constituíam espectáculo muito mais belo do que tudo o que os seus olhos já tinham visto. E, evidentemente, com Maria junto dele, nada mais lhe faltaria.
Quando atravessou o portão da quinta de seu tio, com as compras feitas, Maria surgiu a correr pelo jardim, com os braços estendidos, o rosto brilhante de alegria. - José! - gritou - Sucedeu! Jesus ressuscitou!
Era simples a história que Maria lhe contou do facto miraculoso que se verificara, enquanto lágrimas de alegria lhe corriam pelo rosto e o clarão de um glorioso conhecimento lhe ardia no olhar. Ela e as mulheres tinham-se dirigido ao túmulo, perguntando umas às outras quem poderiam ir buscar para afastar a pedra que o cobria. Mas a pedra estava afastada e encontraram o túmulo vazio, sem o corpo de Jesus dentro dele, e algumas das mulheres correram a chamar Simão Pedro. Este tinha vindo ver o túmulo e apenas encontrara o lençol sobre o qual tinha sido deposto o corpo de Jesus.
Os outros tinham ido para casa, então, mas Maria ficara junto do túmulo, a chorar, receando que Caifás, ou talvez Pontius Pilatus, tivessem roubado o corpo para o exibir mais tarde, como prova de que Jesus não pudera levar a cabo, morto, a promessa que fizera em vida de ressuscitar.
Algum tempo depois - contou Maria a José.- olhara de novo para o túmulo, constatando que continuava vazio. Mas, quando se voltou, viu um homem junto dela. - Mulher, porque choras? perguntou-lhe ele. - Quem procuras?
Ela não o reconheceu e, pensando que fosse o jardineiro de José de Arimateia, disse-lhe: - Senhor, se o levaste, diz-me onde o colocaram e eu irei buscá-lo.
Jesus falara-lhe então com a sua própria voz e ela reconheceu-o e gritou: - Rabboni! - Mas, quando quis tocar-lhe, ele disse-lhe: - Não me detenhas, porque ainda não ascendi para junto do Pai, mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que vou ascender ao meu Pai e vosso Pai, ao meu Deus e vosso Deus.
Quando José chegou junto do túmulo, viu que a pedra tinha sido removida, apesar de terem sido necessários vários homens fortes para a colocarem sobre o túmulo, na altura em que o corpo lá tinha sido depositado. E a forma do corpo de Jesus era ainda visível no lençol em que José o envolvera, pois as marcas do sangue das suas feridas ainda o manchavam.
Nenhum dos outros, além de Maria, tinha visto Jesus, e José sabia que tribunal algum aceitaria a sua afirmação de que o vira, sem provas, pois era sabido que ela amara profundamente o mestre e estava firmemente convencida de que ele regressaria. Ninguém podia afirmar que ela não tivesse tido uma visão, no seu desejo intenso de saber que Jesus não estava morto. Quanto a ele, José, sentia-se fortemente tentado a acreditar que ela tinha visto Jesus na realidade, mas, bem no seu íntimo, experimentava a mesma incerteza que sentira em relação ao facto de ser ele o Messias, até que recebera a revelação, numa luz ofuscante, quando olhava para o mestre, durante o julgamento.
- Pensas que eu tive uma visão, disse Maria rapidamente, tal como os loucos por vezes vêem coisas que não existem.
- Eu sei que Jesus apareceu - para ti.
- Mas não acreditas que aparecesse realmente?
- É isso o que os outros pensarão, objectou José.
- Mas se ele me pôde aparecer, exclamou ela, poderá fazer-se visível a todos nós, quando o desejar.
- Rezemos para que a nossa fé receba então dele a força final, disse José simplesmente. - Entretanto, temos que proteger-te.
- Proteger-me? De quê?
- Os outros já andam a percorrer a cidade, proclamando que Jesus ressuscitou e te apareceu. Pensa no que isso significa para Caifás e Pontius Pilatus.
Ela reteve a respiração. - Uma vez que só eu vi Jesus ...
- Têm que silenciar-te, custe o que custar. Porque se as pessoas acreditarem que Jesus ressuscitou realmente, saberão, sem sombra de dúvida, que ele é o Cristo e insistirão em coroá-lo rei da Judeia.
- Mas ele não ficará aqui, objectou Maria. - As suas palavras foram: "Não me detenhas, porque ainda não ascendi para junto do Pai, mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes que vou ascender ao meu Pai e vosso Pai, ao meu Deus e vosso Deus". Jesus vai deixar a terra, José. Ele próprio mo disse.
- Pilatus e Caifás acreditá-lo-ão sem o verem eles próprios?
- Não, confessou Maria tristemente. - Tu próprio não estás certo disso, portanto não podemos esperar que eles compreendam.
- Só há uma coisa a fazer, disse ele apressadamente. - Tens que sair de Jerusalém, antes que Pontius Pilatus saiba do que se passou e te mande prender.
- Mas, e os outros? E tu?
- Tu és a única testemunha da ressurreição de Jesus. Até ele aparecer a todos nós, não correremos perigo.
- Vem comigo, José, suplicou ela. - Não quero que voltemos a separar-nos.
- Vou tratar dos meus assuntos na cidade e irei para Emaús esta tarde, prometeu ele. - Amanhã iremos para a Galileia. Se Herodes Antipas não nos conceder refúgio, iremos para o território de Filipe, ou mesmo para Antióquia. O legado proteger-nos-á; está em dívida para comigo por lhe ter curado o filho de uma grave doença.
- Mas eu não cometi crime algum, protestou Maria. - Porque tenho de esconder-me como uma criminosa?
- Tu possuis um conhecimento que pode incendiar o mundo inteiro, objectou ele sombriamente. - E temos que preservar essa chama para que não a apaguem, antes de poder arder com mais força.
- írei para Emaús e esperarei por ti em casa de Cleopas, prometeu ela então. - Mas tem cuidado, José. Eu morreria, se algo te acontecesse, agora que Jesus vai para junto do Pai.
Durante todo o dia, a cidade fervilhou com a notícia de que o homem tão vergonhosamente crucificado ressuscitara. Vieram centenas de pessoas ao jardim para ver o túmulo vazio, com o lençol ainda sobre a urna, com a marca do seu corpo e as manchas do seu sangue. Algumas troçavam, dizendo que não passava de uma mistificação para os fazer crer que o morto tinha ressuscitado. Mas muitos dos que tinham conhecido Jesus acreditavam e estavam convencidos de que ele era o verdadeiro Messias, cuja vinda isaías predissera.
Só ao fim da tarde José conseguiu partir para Emaús. Cleopas ia com ele e, enquanto caminhavam, iam conversando sobre os excitantes acontecimentos dos últimos dias.
Nenhum deles reparou no homem que começara a caminhar ao lado deles, até erguerem o olhar, interrompendo a conversa, e o verem. Era esbelto, vestia uma longa túnica com um capuz sobre a cabeça, que lhe escondia o rosto quase por completo. As suas mãos estavam também escondidas pelas mangas largas. José achou que havia nele algo de conhecido, mas não sabia o quê exactamente.
José e Cleopas saudaram amavelmente o estranho. - De que falavam enquanto caminhavam? perguntou este delicadamente.
- Serás o único visitante de Jerusalém que não sabe das coisas que por lá se passaram nos últimos dias? perguntou Cleopas admirado.
- Que coisas?
- O que se passou com Jesus de Nazaré, que era um grande profeta, em feitos e em palavras, diante de Deus e de todo o povo? E de como os nossos sacerdotes e governantes o condenaram à morte e o crucificaram?
Observando o estranho, enquanto Cleopas lhe relatava o que sucedera nessa manhã, José não conseguia pôr de parte a sensação de que conhecia aquele homem, talvez muito bem até. Se conseguisse ver os seus olhos, parecia-lhe que o reconheceria, mas o estranho conservava o capuz puxado para diante.
- Não era necessário que o Cristo sofresse todas essas coisas para alcançar a glória? perguntou o estranho, quando Cleopas terminou o relato de como Maria vira Jesus.
- Creio que era necessário, disse José sinceramente. - Porque eu sei que Jesus de Nazaré é o Cristo.
O estranho não falou, mas José sentiu uma onda de calor invadir-lhe o coração e experimentou uma sensação estranha, muito semelhante àquela que tivera quando o seu olhar encontrara o de Jesus no palácio de Caifás, três dias antes, inundando-o com a certeza divina da sua identidade. ;
- Como podes dizer que ele é o Cristo, José, quando o viste morrer da lançada no peito? argumentou Cleopas, - quando, com as tuas próprias mãos, depositaste o seu corpo morto dentro do túmulo?
- Sei que ele é o Filho de Deus, disse José com simplicidade. - E quem vem de Deus não pode ser vencido, nem sequer pela morte.
Quando voltou a falar a voz do estranho era mais suave, e, à medida que iam caminhando pela estrada fora, ele foi falando, com espantosa sabedoria, das profecias contidas nos Livros da Lei e dos Profetas sobre o Cristo que estava para vir, demonstrando-lhes como se ajustavam, como roupa feita por medida, a Jesus de Nazaré.
A casa de Cleopas ficava à entrada de Emaús, na estrada que levava a Jerusalém. Quando chegaram ao caminho que conduzia à porta, o estranho começou a afastar-se, mas José disse impulsivamente: - Fica connosco, pois a tarde está no fim e o dia terminará em breve.
Quando Cleopas insistiu também, o viajante ainda desconhecido aquiesceu finalmente e tomou com eles o caminho que levava à casa. Cleopas foi imediatamente buscar vinho e um cesto de pão, para se refrescarem do longo caminho, como era costume quando surgia um convidado. Depois de colocar o pão sobre a mesa, disse cortesmente: - Queres abençoá-lo e reparti-lo, senhor?
O estranho estendeu a mão e tirou um pedaço de pão do cesto. Quando o fez, as mangas da sua túnica afastaram-se das mãos e José viu-as pela primeira vez. E então compreendeu por que motivo o homem que se lhes juntara na estrada de Emaús lhe parecera conhecido. Ainda que houvesse dois pares de mãos no mundo com aquelas mesmas marcas dos cravos nela pregados, era muito difícil que tivessem também uma ferida idêntica no pulso, onde a pele tinha sido cortada pelas algemas colocadas pelos guardas, naquela noite, no Monte das Oliveiras e no jardim de Getsemané. Enquanto José olhava, custando-lhe ainda a crer no que os seus olhos viam, o visitante ergueu uma mão e retirou o capuz. José viu então de novo aqueles mesmos olhos gentis e ternos de que tão bem se recordava e a pequena fileira de marcas na testa, onde os espinhos da coroa rudemente enfiada pelos soldados tinham penetrado na pele.
Começou a erguer-se da mesa, mas nesse momento Jesus principiou a abençoar o pão e o vinho, e foi forçado a calar-se. Quando ele terminou, José ouviu a voz de Maria na sala ao lado e, pedindo desculpa, correu a dar-lhe as boas novas e a trazê-la a Jesus, para que pudessem ajoelhar-se e adorar juntos o Senhor ressuscitado.
- Jesus está aqui, Maria, gritou-lhe. - Juntou-se-nos na estrada e agora está na outra sala.
- Oh, Deus seja louvado! exclamou ela, com os olhos a brilhar. - Rezei tanto para que ele se te revelasse!
- Vi as marcas dos cravos nas suas mãos, o golpe no seu pulso e os cortes dos espinhos na sua testa. - Estendeu-lhe as mãos. - Vem. Adorá-lo-emos juntos.
Mas, quando chegaram à sala, apenas lá estava Cleopas, com um ar espantado, junto do móvel onde tinha ido buscar mais vinho.
- O estranho partiu, José, disse. - Voltei-lhe as costas um momento, para vir buscar o vinho, e, quando olhei de novo, tinha desaparecido.
- Estava aqui quando fui buscar Maria, disse José, confuso. Sei que era Jesus pelas marcas das mãos. - Voltou-se de súbito para Maria: - Tu não duvidas de que eu o vi, pois não?
- Eu sabia que ele havia de se revelar, quando achasse que era a altura de tu conheceres toda a verdade, exclamou ela com os olhos brilhantes, enquanto lágrimas de alegria lhe corriam pelas faces.
- Mas Cleopas estava aqui também e não o reconheceu.
- Foi assim que o mestre quis, disse ela suavemente. - Tu és médico, José. Sabias que ele estava morto, porque depuseste o seu corpo no túmulo. Mas agora sabes que ele vive de novo, porque viste no seu corpo ressuscitado as mesmas feridas que notaste ao colocá-lo no túmulo. Juntos proclamaremos ao mundo a verdade que te foi revelada na estrada de Emaús. A verdade que Jesus, tendo sido crucificado, ressuscitou da morte. Ninguém poderá deixar de reconhecer que ele é realmente o Filho de Deus.
Frank G. Slaughter
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