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OS GAROTOS CORVOS / Parte II
Series & Trilogias Literarias
A voz de Blue estava no gravador, e Gansey se sentiu sem escolha. O que ele estava pensando, mas não queria dizer com Helen ouvindo, era: Você está certo, Ronan,
está começando, algo está começando. E também pensava: Me diga o que você acha dela, Adam. Me diga por que você confia nela. Pelo menos uma vez, não me obrigue a
decidir. Não sei se estou certo. Mas o que ele disse foi:
- De agora em diante, preciso que todo mundo seja sincero. Acabaram os joguinhos. Isso não vale só para a Blue; vale para todos nós.
- Eu sempre sou sincero - disse Ronan.
- Ah, cara, essa é a maior mentira que você já contou - respondeu Adam.
- Ok - disse Blue.
Gansey suspeitou que nenhum deles estava sendo completamente honesto em suas respostas, mas pelo menos ele lhes havia dito o que queria. Às vezes, tudo que ele podia
esperar era apenas deixar registradas suas palavras.
Os fones de ouvido ficaram em silêncio à medida que Adam, Blue e Gansey olhavam atentamente pela janela. Abaixo deles havia uma imensidão verde, tudo parecendo de
brinquedo e gracioso daquela altura, um set de campos de veludo e árvores de brócolis.
- O que estamos procurando? - perguntou Helen.
- O de sempre - disse Gansey.
- O que é "o de sempre"? - perguntou Blue.
O de sempre frequentemente eram hectares de nada, mas Gansey disse:
- Às vezes, as linhas ley são marcadas de forma visível. Por exemplo, no Reino Unido algumas das linhas são marcadas com cavalos entalhados em encostas.
Ele estivera em um avião pequeno com Malory da primeira vez que vira o Cavalo de Uffington, um cavalo de cem metros escavado na encosta de uma colina de calcário
na Inglaterra. Como tudo associado às linhas ley, o cavalo não era muito... comum. Era estendido e estilizado, uma silhueta misteriosa e elegante, mais parecida
com a sugestão de um cavalo real.
- Conte a ela sobre Nazca - murmurou Adam.
- Ah, certo - disse Gansey. Apesar de Blue ter lido grande parte do diário, havia muita coisa que não estava nele, e, diferentemente de Ronan, Adam e Noah, ela não
vivera naquele universo durante o último ano. Era difícil que ele não ficasse animado com a ideia de explicar tudo a ela. A história sempre soava mais plausível
quando ele colocava todos os fatos de uma vez só.
Gansey continuou:
- No Peru, existem centenas de linhas entalhadas no chão, no formato de coisas como pássaros, macacos, homens e criaturas imaginárias. Elas foram feitas há milhares
de anos, mas só fazem sentido do ar. De um avião. São grandes demais para serem vistas do chão. Quando você está parado ao lado delas, parecem apenas caminhos escavados.
- Você viu tudo isso pessoalmente - disse Blue.
Quando Gansey vira as linhas Nazca em primeira mão, enormes, estranhas e simétricas, percebera que não seria capaz de desistir até encontrar Glendower. A escala
das linhas fora o que havia lhe chamado atenção primeiro - centenas e centenas de metros de desenhos curiosos no meio do deserto. Ele ficara abismado com a precisão.
Os desenhos eram matemáticos em sua perfeição, sem falhas em sua simetria. E a última coisa que o atingira em cheio fora o impacto emocional, uma dor bruta e misteriosa
que não o deixava. Gansey sentiu como se não pudesse sobreviver sem saber se as linhas significavam algo.
Essa era a única parte de sua caçada por Glendower que ele nunca parecia conseguir explicar para as pessoas.
- Gansey - disse Adam -, o que é aquilo ali?
O helicóptero diminuiu a velocidade enquanto os quatro passageiros esticavam o pescoço. Àquela altura, eles estavam bem no meio das montanhas, e o chão se aproximava
em sua direção. Ao redor deles, havia encostas de florestas verdes e misteriosas, um mar negro e ondulante lá de cima. Entre os declives e valas, entretanto, via-se
um campo inclinado, como um carpete verde, marcado por linhas pálidas e fraturadas.
- Forma um desenho? - ele perguntou. - Helen, pare. Pare!
- Você acha que isto aqui é uma bicicleta? - perguntou Helen, sobrevoando o local.
- Olhe - disse Adam. - Tem uma asa ali. E ali um bico. É um pássaro?
- Não - disse Ronan, com a voz fria e neutra. - Não é apenas um pássaro. É um corvo.
Lentamente, a forma se tornou clara para Gansey, emergindo da relva crescida: um pássaro, sim, com o pescoço voltado para trás e as asas achatadas, como se estivessem
entre as páginas de um livro. A cauda estava aberta em leque, e as garras esboçadas.
Ronan estava certo. Mesmo estilizado, o domo da cabeça, a curva generosa do bico e o eriçamento de penas no pescoço faziam do pássaro, sem dúvida alguma, um corvo.
Ele sentiu a pele arrepiar.
- Pouse o helicóptero - disse Gansey imediatamente.
- Não posso pousar em uma propriedade particular - respondeu Helen.
Ele lançou um olhar suplicante para a irmã. Gansey precisava anotar as coordenadas do GPS, precisava tirar uma foto para os seus registros, precisava fazer um esboço
da forma em seu diário. Acima de tudo, precisava tocar as linhas do pássaro e torná-lo real em sua cabeça.
- Helen, dois segundos.
Ela respondeu com um olhar de entendimento; era o tipo de olhar condescendente que poderia ter causado discussões quando ele era mais jovem e se irritava com mais
facilidade.
- Se o proprietário me descobrir aqui e decidir me denunciar, eu posso perder minha licença.
- Dois segundos. Você viu. Não tem ninguém em um raio de vários quilômetros. Não tem casas.
O olhar de Helen era equilibrado.
- Preciso estar na casa da mamãe em duas horas.
- Dois segundos.
Por fim, ela revirou os olhos e se recostou no assento. Balançou a cabeça e se voltou para os controles.
- Obrigado, Helen - disse Adam.
- Dois segundos - ela repetiu, séria. - Se você não aparecer, vou decolar sem você.
O helicóptero pousou a cinco metros do coração do estranho corvo.
Tão logo o helicóptero pousou, Gansey saltou da cabine e saiu caminhando a passos largos na relva à altura dos joelhos, como se fosse o proprietário do lugar, com
Ronan ao lado. Pela porta aberta do helicóptero, Blue o ouviu dizer o nome de Noah no telefone antes de repetir as coordenadas do GPS. Ele estava energizado e poderoso,
um rei em seu castelo.
No entanto, Blue se sentia um pouco mais lenta. Por uma série de razões, suas pernas estavam um pouco moles após o voo. Ela não tinha certeza se não contar para
Gansey toda a verdade sobre a véspera do Dia de São Marcos era a decisão certa, e estava preocupada se Ronan tentaria falar com ela novamente.
O cheiro do campo era maravilhoso - tudo relva e árvores e, em algum lugar, água, muita água. Blue pensou que poderia viver bem feliz ali. Ao seu lado, Adam protegia
os olhos. Ele parecia em casa, os cabelos combinando com o marrom desbotado da relva seca. Parecia mais bonito do que Blue se lembrava. Ela pensou em como Adam havia
tomado sua mão antes, e concluiu que gostaria que ele fizesse aquilo de novo.
Com alguma surpresa, Adam disse:
- Aquelas linhas são bem difíceis de ver daqui.
Ele estava certo, é claro. Apesar de Blue ter visto o corvo bem pouco tempo atrás, enquanto eles pousavam ao seu lado, qualquer traço geográfico que dera sua forma
estava agora completamente escondido.
- Eu ainda odeio voar. Desculpe pelo Ronan.
- A parte do voo não foi ruim - disse Blue. Na realidade, tirando Ronan, ela havia gostado de certa forma, a sensação de estar flutuando em uma bolha muito barulhenta
em que todas as direções eram possíveis. - Achei que seria pior. Você tem que deixar rolar, não é? Aí é legal. Já o Ronan...
- Ele é um pit bull - disse Adam.
- Eu conheço alguns pit bulls bem simpáticos. - Um dos cães que Blue levava para passear toda semana era um pit bull com o pelo malhado e o sorriso mais simpático
que se poderia esperar de um canino.
- Ele é o tipo de pit bull que aparece no jornal da noite. O Gansey está tentando domesticar o Ronan.
- Que nobre.
- Isso faz com que ele se sinta melhor como Gansey.
Blue não duvidava disso.
- Às vezes ele é muito arrogante.
Adam olhou para o chão.
- Não é por mal. É todo aquele sangue azul nas veias dele.
Ele estava prestes a dizer outra coisa quando um grito o interrompeu:
- VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO, GLENDOWER? EU VOU ENCONTRAR VOCÊ!
A voz de Gansey, exaltada e ressonante, ecoou pelas encostas cobertas de árvores em torno do campo. Adam e Blue o viram parado no meio de uma trilha aberta e clara,
os braços abertos e a cabeça inclinada para trás enquanto gritava para o ar. A boca de Adam assumiu a forma sem som de uma risada.
Gansey abriu um largo sorriso para ambos. Ele era difícil de resistir deste jeito: brilhando com fileiras e fileiras de dentes brancos, como uma propaganda de universidade.
- Conchas de ostras - disse ele, inclinando-se para pegar um dos pedaços claros que formavam a trilha. O fragmento era de um branco puro, as bordas obtusas e gastas.
- É isso que forma o corvo. Como as que são usadas para pavimentar estradas nas regiões em que a maré avança. Conchas de ostras sobre rocha pura. O que vocês acham
disso?
- Acho que são muitas conchas de ostras para trazer da costa - respondeu Adam. - E também acho que o Glendower viria da costa.
Como resposta, Gansey apenas apontou para Adam.
Blue colocou as mãos nos quadris.
- Então você acha que eles colocaram o corpo do Glendower em um barco no País de Gales, vieram até a Virgínia e o trouxeram montanha acima? Por quê?
- Energia - respondeu Gansey, remexendo na sacola e tirando uma caixinha preta que parecia muito uma bateria de carro bem pequena.
Blue perguntou:
- O que é isso? Parece sofisticado.
Gansey mexia nos botões na lateral do aparelho enquanto explicava:
- Um frequencímetro eletromagnético. Ele monitora os níveis de energia. Algumas pessoas usam para caçar fantasmas. Supostamente, ele deve exibir uma leitura alta
quando você está próximo de um espírito ou de uma fonte de energia. Como uma linha ley.
Ela fez uma careta para o aparelho. Uma caixa de registrar magia parecia insultar tanto o portador quanto a magia.
- E é claro que você tem um... como é o nome? Eletromagnorífico de botão. Todo mundo tem um desses.
Gansey segurou o medidor acima da cabeça, como se estivesse chamando seres extraterrestres.
- Você não acha isso normal?
Blue podia perceber que ele queria muito que ela dissesse que não era normal, então respondeu:
- Ah, tenho certeza que é bastante normal em alguns círculos.
Ele pareceu um pouco magoado, mas a maior parte de sua atenção estava voltada para o medidor, que mostrava duas luzes vermelhas fracas. Gansey observou:
- Eu gostaria de estar nesses círculos. Então, como eu disse, energia. Outro nome para a linha ley é caminho dos...
- Caminho dos corpos - interrompeu Blue. - Eu sei.
Ele parecia satisfeito e magnânimo, como se ela fosse uma aluna destacada.
- Então me esclareça. Você provavelmente sabe melhor do que eu.
Como antes, seu sotaque era o antigo sotaque da Virgínia, aberto e glorioso, fazendo com que as palavras de Blue soassem desajeitadas perto dele.
- Eu só sei que os mortos viajam em linha reta - disse ela. - Que costumavam carregar os corpos em linha reta para as igrejas, para que fossem enterrados. Ao longo
do que você chama de linha ley. Acreditava-se que era muito ruim seguir por qualquer outra rota que não a escolhida por eles para viajar como espíritos.
- Certo - disse ele. - Então podemos concluir que tem algo a respeito da linha que fortalece ou protege o corpo. A alma. O... animus. A quididade dele.
- Gansey, sério - Adam interrompeu, para o alívio de Blue. - Ninguém sabe o que é quididade.
- A essência, Adam. O que torna uma pessoa o que ela é. Se tirassem o Glendower do caminho dos corpos, acho que a magia que o mantém adormecido seria quebrada.
- Basicamente, você quer dizer que ele morreria para sempre se fosse tirado da linha - disse ela.
- Sim.
As luzes que piscavam na sua máquina haviam começado a brilhar com mais intensidade, levando-os ao longo do bico do corvo e na direção da linha de árvores onde Ronan
já se encontrava. Blue levantou os braços para que o mato, que chegava à altura da sua cintura em alguns pontos, não acertasse o dorso das mãos.
Ela perguntou:
- E por que simplesmente não deixaram Glendower no País de Gales? Não é lá que eles querem que ele acorde e seja um herói?
- Foi uma insurreição, e ele era um traidor para a coroa inglesa - disse Gansey. A facilidade com que ele começou a história, ao mesmo tempo avançando a passos largos
pelo campo e cuidando do frequencímetro, deixou claro para Blue que ele já a havia contado muitas vezes antes. - Glendower lutou contra os ingleses durante anos.
Foi uma grande batalha entre famílias nobres, com alianças confusas. A resistência galesa fracassou. E então Glendower desapareceu. Se os ingleses soubessem onde
ele estava, vivo ou morto, certamente não tratariam o corpo como os galeses desejariam. Você já ouviu falar em ser pendurado e esquartejado?
Blue perguntou:
- É tão doloroso quanto conversar com o Ronan?
Gansey lançou um olhar para Ronan, que era uma forma pequena, indistinta, perto das árvores. Adam engoliu uma risada.
- Depende se ele está sóbrio - respondeu Gansey.
Adam perguntou:
- Falando nisso, o que ele está fazendo?
- Mijando.
- Confie no Lynch para vandalizar um lugar como esse cinco minutos depois de chegar aqui.
- Vandalizar? Ele está marcando território.
- Ele deve ser dono de mais territórios na Virgínia do que o seu pai, então.
- Pensando bem, acho que ele nunca usou uma privada.
Aquilo tudo parecia muito masculino e muito Aglionby para Blue, essa coisa de chamar os amigos pelo sobrenome e fazer piadas sobre hábitos urinários públicos. Também
parecia que aquilo poderia seguir por um bom tempo, então ela interrompeu, mudando o assunto de volta para Glendower.
- Eles realmente teriam todo esse trabalho para esconder o corpo dele?
Gansey disse:
- Bem, pense em Ned Kelly.
Ele proferiu o disparate de modo tão factual que Blue se sentiu repentinamente burra, como se talvez o sistema de ensino público realmente estivesse devendo alguma
coisa.
Então Adam disse, com um rápido olhar para Blue:
- Ninguém sabe quem é Ned Kelly também, Gansey.
- Sério? - perguntou Gansey, tão inocentemente sobressaltado que ficou claro que Adam estivera certo antes: ele não tinha a intenção de ser arrogante. - Ele foi
um fora da lei australiano. Quando os ingleses o pegaram, fizeram coisas terríveis com o corpo. Acho que o chefe de polícia usou a cabeça dele como peso de papel
por um tempo. Agora imagine o que os inimigos do Glendower fariam com ele! Se os galeses quisessem ter uma chance de ressuscitar o cara, teriam de manter o corpo
intacto.
- Mas por que as montanhas? - insistiu Blue. - Por que ele não está perto da costa?
Isso pareceu ter lembrado Gansey de algo, pois, em vez de responder, ele se virou para Adam:
- Liguei para o Malory para falar sobre aquele ritual, para saber se ele tinha tentado. Ele acha que o ritual não pode ser realizado em qualquer ponto da linha ley.
Que precisa ser feito no "coração" dela, onde está a maior parte da energia. Acho que quiseram colocar o Glendower em um lugar assim.
Adam se virou para Blue.
- E a sua energia?
A pergunta a pegou de surpresa.
- O quê?
- Você disse que fazia as coisas ficarem mais claras para outros médiuns - disse Adam. - Estamos falando de energia?
Blue se sentiu absurdamente satisfeita por ele lembrar, e também por responder a ela em vez de a Gansey, que agora estava espantando mosquitos e esperando por sua
resposta.
- Sim - disse ela. - Eu acho que torno mais fortes as coisas que precisam de energia. Sou como uma bateria ambulante.
- Você é a mesa que todo mundo quer no Starbucks - ponderou Gansey enquanto começava a caminhar novamente.
Blue piscou.
- Como?
Sobre o ombro, Gansey disse:
- Perto da tomada - e pressionou o frequencímetro ao lado de uma árvore, observando as duas coisas com grande interesse.
Adam balançou a cabeça para Blue e disse para Gansey:
- Estou dizendo que talvez ela possa transformar uma parte comum da linha ley em um lugar viável para o ritual. Espere, estamos entrando na mata? E a Helen?
- Não se passaram dois segundos - disse Gansey, embora claramente não fosse o caso. - Essa é uma ideia interessante sobre energia. Mas... a sua bateria pode ficar
fraca? Por questões além de conversas sobre prostituição?
Ela não honrou o comentário com uma resposta imediata. Em vez disso, pensou sobre como sua mãe tinha dito que não havia nada a temer dos mortos, e como Neeve parecera
descrente. A vigília na igreja havia obviamente tomado algo dela; talvez houvesse consequências piores que ela ainda viria a descobrir.
- Bem, isso é interessante - observou Gansey, atravessando um pequeno regato com um passo largo perto da borda da mata, mantendo um pé em cada margem. Era apenas
água que havia subido de uma fonte subterrânea, encharcando a relva. A atenção de Gansey estava focada no frequencímetro que ele segurava diretamente acima da água.
O medidor chegara ao máximo.
- A Helen - disse Adam, advertindo-o. Ronan havia se juntado novamente a eles, e os dois garotos olharam na direção do helicóptero.
- Eu disse: Isso é interessante - repetiu Gansey.
- E eu disse: A Helen.
- Só mais alguns metros.
- Ela vai ficar brava.
A expressão de Gansey era perversa, e Blue pôde ver que Adam não teria como detê-lo.
- Eu avisei - disse Adam.
O regato corria preguiçoso para fora da mata, por entre dois cornisos. Com Gansey à frente, todos seguiram a água por entre as árvores. Imediatamente, a temperatura
caiu vários graus. Blue ainda não havia percebido o enorme ruído de insetos no campo até que ele fosse substituído pelo ocasional canto de um pássaro debaixo das
árvores. Aquela mata era linda, antiga, toda de carvalhos enormes e freixos encontrando espaço em meio a grandes lajes de rocha partida. Samambaias brotavam das
pedras e o musgo verdejante subia pelos troncos. O próprio ar tinha um aroma verde, pujante, aquoso. A luz era dourada através das folhas. Tudo estava vivo, muito
vivo.
Blue sussurrou:
- Isso é lindo.
O comentário fora para Adam, não para Gansey, mas ela viu que ele olhou de relance por cima do ombro para ela. Ao lado dele, Ronan estava curiosamente calado. Algo
a respeito de sua postura era defensivo.
- O que estamos procurando mesmo? - perguntou Adam.
Gansey era um cão de caça guiado pelo frequencímetro ao longo do regato que se alargava. A água em movimento havia se tornado larga demais para manter um pé em cada
margem, e agora corria em um leito de seixos, fragmentos afiados de pedra e, de maneira bastante estranha, algumas conchas de ostras.
- O que estamos sempre procurando.
Adam avisou:
- A Helen vai te matar.
- Ela vai me mandar uma mensagem se estiver muito brava - disse Gansey, tirando o celular do bolso. - Humm... não tem sinal...
Dada sua localização nas montanhas, a falta de sinal não causava surpresa, mas Gansey parou onde estava. Enquanto os quatro formavam um círculo irregular, ele passava
as telas do celular com o polegar. Na outra mão, o frequencímetro brilhava com um tom vermelho sólido. Sua voz soou um pouco estranha quando ele perguntou:
- Alguém mais está usando relógio?
Fins de semana não eram geralmente dias de contar as horas para Blue, então ela não o usava, e Ronan tinha apenas suas tiras de couro entrelaçado em torno do braço.
Adam levantou o punho. Ele usava um relógio de aparência barata e pulseira encardida.
- Eu estou - disse ele, acrescentando pesarosamente: - Mas ele não parece estar funcionando.
Sem falar nada, Gansey voltou a tela do celular para eles. Ela estava na função relógio, e Blue levou um momento para perceber que nenhum dos ponteiros se mexia.
Por um longo momento, os quatro apenas olharam para os ponteiros parados no relógio do celular. O coração de Blue marcava cada segundo que o relógio não batia.
- Ele está... - começou Adam, e então parou e tentou de novo: - Será que a bateria está sendo afetada pela energia da linha?
A voz de Ronan soou cortante:
- Afetando o seu relógio? O seu relógio de corda?
- É verdade - respondeu Gansey. - Meu celular ainda está funcionando. Assim como o frequencímetro. É só a hora... Será que...
Mas não havia respostas, e todos eles sabiam disso.
- Quero seguir em frente - disse Gansey. - Só mais um pouco.
Ele esperou para ver se alguém o impediria. Ninguém disse nada, mas, quando Gansey partiu novamente, escalando o topo de uma pedra, com Ronan ao seu lado, Adam olhou
para Blue de relance. Sua expressão perguntava: Você está bem?
Ela estava bem, mas da maneira que estivera bem antes do helicóptero. Não que Blue tivesse medo das luzes piscando no frequencímetro ou do relógio de Adam se recusando
a funcionar, mas ela não saíra da cama de manhã esperando encontrar um lugar onde possivelmente o tempo não existia.
Blue estendeu a mão.
Adam a pegou sem hesitação, como se estivesse esperando que ela a oferecesse. Ele disse em voz baixa, apenas para ela ouvir:
- Meu coração está batendo como louco.
Estranhamente, não eram os dedos dele entrelaçados nos dela que mais afetavam Blue, e sim onde seu punho quente pressionava o dela, acima das mãos.
Eu preciso dizer ao Adam que ele não pode me beijar, ela pensou.
Mas ainda não. Nesse momento, ela queria sentir sua pele pressionada na dele, ambos os pulsos rápidos e incertos.
De mãos dadas, eles escalaram depois de Gansey. As árvores ficaram ainda maiores, algumas delas se juntando como castelos, imponentes e enormes. As copas pairavam
alto acima da cabeça deles, farfalhando e reverentes. Tudo era muito verde. Em algum lugar à frente, ouviram o ruído de algo se mexendo na água.
Por um breve momento, Blue achou que ouvia música.
- Noah?
A voz de Gansey soou desamparada. Ele havia parado perto de uma faia poderosa e agora procurava em volta. Blue o alcançou e percebeu que ele havia parado na margem
de um pequeno lago montanhoso que alimentava o regato que eles vinham seguindo. O lago tinha apenas alguns centímetros de profundidade e era perfeitamente limpo.
A água era tão transparente que implorava para ser tocada.
- Achei que tinha ouvido... - Gansey interrompeu o que dizia. Seus olhos caíram para onde Adam segurava a mão de Blue. Mais uma vez, seu rosto aparentou certa confusão
com o fato de os dois estarem de mãos dadas. Adam apertou a mão dela com mais força, apesar de Blue achar que essa não fosse sua intenção.
Era uma discussão sem palavras, embora ela não achasse que nenhum dos garotos soubesse o que estava tentando dizer.
Gansey se voltou para o pequeno lago. Em sua mão, o frequencímetro ficara escuro. Ele se agachou e passou a mão livre sobre a água. Os dedos estavam bem abertos,
quase tocando a superfície. Sob a mão, a água se mexeu e ficou escura, e Blue percebeu que havia milhares de peixinhos ali. Eles brilhavam, prateados e então pretos,
à medida que se moviam, apegando-se à sombra tênue que ele lançava.
Adam perguntou:
- Como é que há peixes aqui?
O regato que eles haviam seguido mata adentro era raso demais para ter peixes, e, acima dele, o pequeno lago parecia alimentado pela água da chuva da parte mais
alta da montanha. Peixes não vinham do céu.
Gansey respondeu:
- Não sei.
Os peixes se revolviam e cruzavam uns sobre os outros, movendo-se incessantemente, como pequenos enigmas. Novamente, Blue achou que tinha ouvido música, mas, quando
olhou para Adam, achou que talvez tivesse sido apenas o som de sua respiração.
Gansey olhou para os dois, e ela viu em seu rosto que ele adorava aquele lugar. Sua expressão indisfarçável trazia algo novo: não o prazer puro de encontrar a linha
ley ou o prazer dissimulado de caçoar de Blue. Ela reconheceu a estranha felicidade que vinha de amar algo sem saber por quê, aquela estranha felicidade que às vezes
era tão grande que parecia tristeza. Era a maneira como ela se sentia quando olhava para as estrelas.
Sem mais nem menos, ele pareceu mais com o Gansey que Blue tinha visto no adro da igreja, e ela achou que não suportaria olhar para ele.
Em vez disso, ela soltou a mão de Adam para ir até a faia ao lado da qual Gansey estava. Cuidadosamente, pisou nos nós expostos das raízes da árvore e então pousou
a palma sobre a casca suave e cinzenta. Como a árvore atrás de sua casa, a casca daquela faia era fria como o inverno e estranhamente confortante.
- Adam. - Era a voz de Ronan, e Blue ouviu os passos de Adam se movendo cuidadosa e lentamente em torno do pequeno lago. O som de ramos quebrando ficou mais baixo
à medida que ele se afastava.
- Não acho que esses peixes sejam de verdade - disse Gansey suavemente.
Era uma coisa tão ridícula de dizer que Blue se voltou para olhar para ele de novo. Ele corria os dedos para frente e para trás na superfície da água, enquanto a
observava.
- Acho que eles estão aqui porque eu pensei que eles deveriam estar aqui - disse Gansey.
Blue respondeu sarcasticamente:
- Tá bom, Deus.
Ele girou a mão novamente, e ela viu as formas dos peixes brilharem na água mais uma vez. Hesitante, Gansey seguiu em frente:
- Na leitura, o que foi que aquela mulher disse? Aquela do cabelo? Ela disse que a questão era a... percepção... não, a intenção.
- Persephone. A intenção é para as cartas - disse Blue. - Para uma leitura, para deixar alguém entrar na sua mente, para ver padrões no futuro e no passado. Não
para peixes. Como a intenção funcionaria com um peixe? A vida não é negociável.
Ele perguntou:
- Qual era a cor dos peixes quando chegamos?
Eles eram pretos e prata, ou pelo menos pareciam assim no reflexo. Ela tinha certeza de que Gansey estava buscando por sinais de magia inexplicável, mas ela não
seria influenciada tão facilmente. Azul e marrom poderiam parecer preto ou prata, dependendo da luz. Mesmo assim, Blue se juntou a ele, agachando-se na terra úmida
ao lado do pequeno lago. Os peixes eram todos escuros e indistintos sob a sombra de sua mão.
- Eu estava observando os peixes e pensando em como eles haviam chegado aqui, e então lembrei que existe uma espécie de truta que muitas vezes vive em regatos menores
- disse Gansey. - Acho que são chamadas de truta de ribeiro selvagem. Achei que isso faria um pouco mais de sentido. Talvez elas tenham sido introduzidas pelo homem
nesse laguinho, ou em outro mais para cima. Era nisso que eu estava pensando. As trutas de ribeiro são prateadas no dorso e vermelhas no ventre.
- Tudo bem - ela disse.
A mão estendida de Gansey estava absolutamente imóvel.
- Me diz que não tinha peixes vermelhos nesse lago quando chegamos.
Como Blue não respondeu, ele olhou para ela. Blue balançou a cabeça. Definitivamente não havia peixes vermelhos ali.
Gansey puxou a mão rapidamente.
O pequeno cardume disparou em busca de abrigo, mas não antes que Blue visse que cada um deles era prata e vermelho.
Não um vermelho fraco, mas vermelho-vivo, vermelho pôr do sol, vermelho como um sonho. Como se eles nunca tivessem sido de nenhuma outra cor.
- Não entendo - disse Blue. Algo nela doía, como se ela compreendesse, mas não conseguisse descrever com palavras. Algo embrulhava seus pensamentos. Ela sentia como
se fizesse parte de um sonho que aquele lugar estava tendo, ou que o lugar fizesse parte de um sonho dela.
- Eu também não.
Então os dois se viraram ao mesmo tempo, ao som de uma voz que vinha do lado esquerdo.
- Isso foi o Adam? - perguntou Blue. Parecia estranho que ela tivesse de perguntar, mas nada parecia muito definido.
Eles ouviram novamente a voz de Adam, dessa vez mais clara. Ele e Ronan estavam parados do outro lado do pequeno lago. Bem ao lado dele, havia um carvalho. Uma cavidade
apodrecida do tamanho de um homem se abria negra no tronco. No lago a seus pés, havia o reflexo de Adam e da árvore, uma imagem espelhada mais fria e mais distante
que a realidade.
Adam esfregava os braços ferozmente, como se estivesse com frio. Ronan estava ao lado dele, olhando sobre o ombro para algo que Blue não podia ver.
- Venha aqui - disse Adam. - Agora pare ali. E me diga se estou ficando louco.
Seu sotaque estava pronunciado, e Blue estava começando a entender que isso significava que ele estava preocupado demais para escondê-lo.
Blue espiou na cavidade. Como todos os buracos nas árvores, ele parecia úmido, irregular e escuro, o fungo na casca ainda trabalhando para aumentar a cratera. As
bordas da entrada eram irregulares e finas, fazendo com que a sobrevivência da árvore por tanto tempo parecesse milagrosa.
- Você está bem? - perguntou Gansey.
- Feche os olhos - Adam lhe disse. Seus braços estavam cruzados, as mãos segurando firmemente os bíceps. A forma que ele estava respirando lembrava Blue de como
ela se sentia ao acordar depois de um pesadelo, o coração batendo forte, a respiração aos trancos, as pernas doendo de uma perseguição que nunca existiu de verdade.
- Quer dizer, depois que você entrar lá dentro.
- Você entrou ali? - Gansey perguntou a Ronan, que balançou a cabeça.
- Foi ele quem encontrou o buraco - disse Adam.
Ronan disse, monótono como uma tábua:
- Não vou entrar aí.
A declaração soou como uma questão de princípio em vez de covardia, como a recusa de pegar uma carta na leitura.
- Eu não me importo - disse Blue. - Eu vou.
Foi difícil para ela se imaginar intimidada quando cercada por uma árvore, não importava quão estranha a floresta em torno dela pudesse ser. Ela entrou na cavidade
e se virou de maneira que ficasse de frente para o mundo exterior. O ar lá dentro tinha um cheiro úmido e pesado. Estava quente também, e, apesar de Blue saber que
devia ser por causa do processo de apodrecimento, isso fazia com que a árvore parecesse ter sangue quente como ela.
À sua frente, Adam ainda tinha os braços firmemente enlaçados em torno de si. O que ele acha que vai acontecer aqui?
Ela fechou os olhos. Quase imediatamente, pôde sentir o cheiro de chuva - não a fragrância da chuva que chega, mas o odor vivo e móvel de uma tempestade caindo,
o aroma aberto de uma brisa se deslocando pela água. Então ela sentiu que algo estava tocando seu rosto.
Quando abriu os olhos, ela estava ao mesmo tempo dentro de seu corpo e o observando de fora, longe da cavidade da árvore. A Blue diante dela estava a centímetros
de distância de um garoto com um blusão da Aglionby. Havia uma ligeira inclinação na postura dele, e seus ombros estavam salpicados de chuva. Foram os dedos dele
que Blue sentiu no rosto. Ele tocou a face dela com o dorso dos dedos.
Lágrimas correram pelo rosto da outra Blue. Por uma estranha magia, ela podia senti-las em seu rosto também. Ela podia sentir, igualmente, a angústia crescente e
doentia que sentira no adro da igreja, a tristeza que parecia maior do que ela. As lágrimas da outra Blue pareciam intermináveis. Uma lágrima seguia a outra, todas
traçando um caminho idêntico em seu rosto.
O garoto de blusão da Aglionby inclinou a testa e a encostou na dela. Blue sentiu a pressão da pele dele e, subitamente, sentiu cheiro de hortelã.
Vai ficar tudo bem, Gansey disse para a outra Blue. Ela podia dizer que ele estava com medo. Vai ficar tudo bem.
Inacreditavelmente, ela percebeu que a outra Blue estava chorando porque amava Gansey. E que a razão de Gansey tocá-la daquela forma, com mãos tão cuidadosas, era
porque ele sabia que o beijo dela poderia matá-lo. Ela podia sentir com que intensidade a outra Blue queria beijá-lo, mesmo que temesse isso. Embora ela não pudesse
entender por quê, a memória real, do dia atual na cavidade da árvore, estava obscurecida por outras memórias, falsas, dos lábios deles quase se tocando, uma vida
que aquela outra Blue já havia vivido.
Tudo bem, estou pronto - a voz de Gansey hesitou, só um pouco. Me beije, Blue.
Abalada, Blue abriu bem os olhos, viu a escuridão do espaço em volta de si e sentiu de novo o cheiro escuro e apodrecido da árvore. Seu estômago se embrulhou com
a tristeza assustadora e o desejo que havia sentido durante a visão. Ela se sentia enjoada e envergonhada e, quando saiu da árvore, não conseguiu olhar para Gansey.
- E então? - ele perguntou.
Ela disse:
- É... muitas coisas.
Como ela não disse mais nada, Gansey assumiu seu lugar na árvore.
Tudo parecera tão real. Aquilo era o futuro? Era um futuro alternativo? Ou apenas um sonho acordado? Ela não conseguia se imaginar apaixonada por Gansey, entre todas
as pessoas, mas, naquela visão, isso pareceu não somente possível, mas indiscutível.
Quando Gansey se virou para dentro da cavidade, Adam tomou o braço de Blue e a arrastou para perto. Ele não foi gentil, mas Blue não achou que ele tivesse a intenção
de ser bruto. No entanto, ela levou um susto quando Adam secou seu rosto com as costas da outra mão; ela estivera chorando de verdade.
- Quero que você saiba - sussurrou Adam furiosamente - que eu nunca faria aquilo. Não era real. Eu nunca faria aquilo com ele.
Seus dedos apertavam o braço dela, e ela sentiu que ele tremia. Ela piscou para Adam e secou o rosto. Levou um instante para perceber que ele devia ter visto algo
inteiramente diferente do que ela.
Mas, se Blue perguntasse a Adam o que ele vira, teria de lhe contar também.
Ronan encarava os dois descaradamente, como se soubesse o que havia acontecido na árvore, ainda que ele mesmo não tivesse tentado.
Alguns metros adiante, na cavidade, a cabeça de Gansey estava inclinada como em uma mesura. Ele parecia uma estátua em uma igreja, com as mãos unidas à frente. Havia
algo ancestral a respeito de Gansey naquele instante, com a árvore arqueada sobre ele e as pálpebras pálidas nas sombras. Gansey era ele mesmo, mas era algo mais
também - aquilo que Blue vira pela primeira vez nele na leitura dos garotos, aquele sentido de alteridade, de algo mais, que parecia irradiar daquele retrato imóvel
de Gansey preservado na árvore escura.
O rosto de Adam estava virado para o outro lado, e agora, agora, Blue sabia qual era a expressão dele: de vergonha. O que quer que ele tenha visto na árvore escavada,
ele tinha certeza de que Gansey estava vendo também, e não conseguia suportar.
Os olhos de Gansey se abriram de uma vez.
- O que você viu? - Blue perguntou.
Ele inclinou a cabeça para o lado. Foi um gesto lento, como se estivesse sonhando.
- Eu vi o Glendower - disse Gansey.
Como Adam avisara, eles não haviam levado dois segundos para explorar o corvo cunhado no chão, seguir o regato mata adentro, observar os peixes mudarem de cor, descobrir
uma árvore alucinatória e retornar até Helen.
Pelo relógio de Gansey, eles haviam levado sete minutos.
Helen estava furiosa. Quando Gansey lhe disse que sete minutos era um milagre, pois na verdade eles deviam ter ficado quarenta minutos ali, isso causou tamanha discussão
que Ronan, Adam e Blue tiraram os fones de ouvido para permitir que os irmãos resolvessem suas diferenças. Sem os fones, é claro, os três no banco de trás ficaram
impossibilitados de falar. A situação deveria ter criado um silêncio constrangedor, mas, em vez disso, foi mais fácil sem palavras.
- É impossível - disse Blue, no momento em que o helicóptero deixou o terreno em silêncio suficiente para que se pudesse falar. - O tempo não pode ter parado enquanto
a gente estava na mata.
- Não é impossível - respondeu Gansey, atravessando o estacionamento até o prédio. Ele escancarou a porta do primeiro andar da Monmouth e gritou para a escada sombria:
- Noah, você está em casa?
- É verdade - disse Adam. - De acordo com a teoria da linha ley, o tempo pode ser uma coisa fluida bem em cima da linha.
Aquele era um dos efeitos mais comumente relatados sobre as linhas ley, especialmente na Escócia. No folclore escocês, acreditava-se no mito de que os viajantes
podiam ser "levados por duendes" ou desorientados por fadas locais. Andarilhos partiam em uma trilha reta apenas para se encontrar inexplicavelmente perdidos, parados
em um local que eles não faziam a menor ideia de ter caminhado, com o relógio mostrando minutos antes ou horas depois de terem partido. Como se eles tivessem tropeçado
em uma dobra no espaço-tempo.
Era a energia das linhas ley pregando peças.
- E o que tinha naquela árvore? - perguntou Blue. - Aquilo foi uma alucinação? Um sonho?
Glendower. Foi Glendower. Glendower. Glendower.
Gansey não conseguia parar de vê-lo. Ele se sentia excitado, temeroso ou ambas as coisas.
- Eu não sei - disse ele, tirando as chaves do bolso e dando um tapa na mão de Ronan quando ele tentou pegá-las. Seria um dia gelado no verão da Virgínia quando
ele deixasse Ronan dirigir seu carro. Ele vira o que Ronan fizera com o próprio carro, e a ideia do que ele faria com algumas dezenas a mais de cavalos de potência
ao seu comando era impensável. - Mas pretendo descobrir. Vamos nessa.
- Vamos? Para onde? - perguntou Blue.
- Para a prisão - disse Gansey agradavelmente. Os outros dois garotos já a estavam empurrando na direção do Pig. Ele se sentia nas alturas como uma pipa, eufórico.
- Para o dentista. Para qualquer lugar terrível.
- Eu tenho que voltar às... - mas ela não terminou a frase. - Não sei quando. Numa hora razoável.
- O que é razoável? - perguntou Adam, e Ronan riu.
- Estaremos de volta antes que você vire abóbora - disse Gansey, prestes a acrescentar Blue no fim da frase, mas soava estranho chamá-la assim. - Blue é um apelido?
Ao lado do Camaro, as sobrancelhas de Blue ficaram subitamente angulosa.
Apressadamente, Gansey acrescentou:
- Não que não seja um nome legal. Só que é... incomum.
- Esquisitão - disse Ronan, enquanto mordia distraído uma das fitas de couro no pulso, de maneira que o efeito foi minimizado.
Blue respondeu:
- Infelizmente, não é nem um pouco normal. Não como Gansey.
Ele sorriu de maneira tolerante para ela. Coçou o queixo liso, com os pelos assassinados havia pouco, e a estudou. Blue mal batia no ombro de Ronan, mas era tão
grande e tão presente quanto ele. Gansey teve um sentimento incrível de coisa certa, com todos reunidos em torno do Pig. Como se Blue, e não a linha ley, fosse a
peça que faltava e de que ele estivera precisando todos aqueles anos, como se a busca por Glendower não estivesse verdadeiramente a caminho até que ela fizesse parte
dela. Ela parecia certa como Ronan parecera, como Adam parecera, como Noah parecera. Quando cada um deles havia se juntado a Gansey, ele sentira uma torrente de
alívio e, no helicóptero, se sentiu exatamente da mesma maneira quando percebeu que era a voz de Blue no gravador.
É claro, ela podia simplesmente cair fora.
Ela não vai, ele pensou. Ela também deve sentir isso.
E continuou:
- Eu sempre gostei do nome Jane.
Os olhos de Blue se arregalaram.
- Ja... o quê? Ah! Não, não... Você não pode simplesmente dar outro nome para as pessoas porque não gosta do nome verdadeiro delas.
- Eu gosto de Blue - disse Gansey. Ele não acreditava que ela estivesse realmente ofendida; seu rosto não parecia como parecera no Nino's, quando eles se encontraram
pela primeira vez e as orelhas dela ficaram vermelhas. Gansey pensou que possivelmente estava se saindo um pouco melhor em conseguir não ofendê-la, mesmo não conseguindo
parar de provocá-la. - Algumas das minhas camisas favoritas são azuis. Mas eu também gosto de Jane.
- Não vou nem responder.
- Eu não pedi que você respondesse. - Abrindo a porta do Camaro, ele empurrou o banco do motorista para frente, para que Adam entrasse atrás.
Blue apontou para Gansey.
- Não vou responder.
Mas ela entrou. Ronan procurou o aparelho de MP3 do BMW antes de entrar no banco do passageiro e, mesmo sabendo que o aparelho de CD barato que fora colocado no
Pig não estava funcionando direito, chutou o painel até que uma música eletrônica detestável e barulhenta começasse. Gansey escancarou a porta do motorista. Na verdade,
ele deveria estar cuidando para que Ronan fizesse o dever de casa antes que a Aglionby o expulsasse. Mas, em vez disso, gritou por Noah uma última vez e então entrou
no carro.
- Seu gosto para música é aterrorizante - ele disse a Ronan.
Do banco de trás, Blue gritou:
- Ele sempre cheira a gasolina?
- Só quando está ligado! - berrou Gansey de volta.
- Essa coisa é segura?
- Segura como a vida.
Adam deu um berro:
- Para onde estamos indo?
- Sorvete. A Blue vai nos contar como ela sabia onde estava a linha ley - disse Gansey. - Vamos bolar uma estratégia e decidir qual vai ser o próximo passo. Vamos
aprender com a Blue sobre energia. Adam, você vai me contar tudo que lembra sobre o tempo e as linhas ley, e, Ronan, quero que você me conte de novo o que descobriu
sobre o tempo do sonho e as trilhas do som. Antes de voltarmos lá, quero descobrir tudo que for possível para ter certeza que é um lugar seguro.
Mas não foi isso que aconteceu. O que aconteceu foi que eles dirigiram até o Harry's e estacionaram o Camaro entre um Audi e um Lexus, e Gansey pediu tanto sorvete
que a mesa não tinha espaço para mais nada, e Ronan convenceu os atendentes a aumentarem o volume das caixas de som, e Blue riu pela primeira vez de algo que Gansey
disse, e eles eram barulhentos e triunfantes e reis de Henrietta, pois tinham encontrado a linha ley e porque algo estava começando, tudo estava começando.
Energizado, Gansey mandou os garotos executarem tarefas realacionadas a Glendower nos três dias que se seguiram, e, para surpresa de Adam, Blue conseguiu dar um
jeito de acompanhá-los a cada uma delas. Apesar de ela nunca ter chegado a dizer isso, era claro que os mantinha em segredo, pois nunca os contatava por telefone
ou os encontrava próximo do número 300 da Rua Fox. Apesar da falta de planejamento formal e habilidade paranormal, todos eles tinham horários em grande parte ditados
pela escola, de maneira que conseguiam se encontrar com uma precisão extraordinária.
A exploração, no entanto, não incluiu voltar para a estranha mata. Em vez disso, ficaram na prefeitura, pesquisando quem era o proprietário da terra onde tinham
visto o desenho do corvo, examinando microfilmes na biblioteca de Henrietta, tentando determinar se a estranha mata tinha um nome, discutindo a história de Glendower,
marcando a linha ley no mapa, medindo quão larga ela parecia ser, percorrendo campos, virando pedras, fazendo círculos em rochas e medindo a energia que vinha delas.
Eles também comeram bastante comida barata de lojas de conveniência, por culpa de Blue. Depois daquela primeira festa do sorvete, Blue insistiu em pagar ela mesma
toda a comida que consumisse, o que limitava onde eles podiam comer. Ela detestava quando qualquer um dos garotos tentava comprar comida para ela, mas parecia odiar
ainda mais quando era Gansey quem oferecia.
Em uma loja, Gansey havia começado a pagar as batatas fritas de Blue e ela as arrancou de sua mão.
- Eu não quero que você compre comida pra mim! - disse Blue. - Se você pagar, é como se eu fosse... de... de...
- Devedora? Pra mim? - sugeriu Gansey agradavelmente.
- Não coloque palavras na minha boca.
- Foi a sua palavra.
- Você presumiu que era a minha palavra. Você não pode sair por aí presumindo coisas.
- Mas era o que você queria dizer, não é?
Blue fez uma careta.
- Essa conversa acabou.
Então ela comprou as próprias batatas, embora estivesse claro que o preço era caro para ela e nada para Gansey. Adam ficou orgulhoso dela.
Após o primeiro dia, Noah foi com eles também e isso agradou a Adam, pois ele e Blue se deram bem. Noah era um bom indicador para avaliar pessoas. Era tão tímido,
desajeitado e invisível que podia ser facilmente ignorado ou ridicularizado. Blue não era somente gentil com Noah, mas realmente parecia se dar bem com ele. Por
estranho que parecesse, isso aliviava Adam, que sentia como se a presença de Blue entre eles fosse em grande parte sua responsabilidade. A essa altura, Adam tomava
decisões sem Gansey, Ronan ou Noah tão raramente que duvidava de seu julgamento quando agia sozinho.
Os dias se passavam facilmente com os cinco fazendo tudo, exceto retornar para o lago estranho e a árvore sonhadora. Gansey seguia dizendo: "Precisamos de mais informações".
Adam disse a Blue:
- Acho que ele está com medo da árvore.
Ele sabia que ele estava. A visão marcante que ele teve na árvore seguia invadindo seus pensamentos. Gansey morto, morrendo, por causa dele. Blue olhando para Adam,
chocada. Ronan agachado ao lado de Gansey, o rosto miserável, rosnando: Está feliz agora, Adam? Era isso que você queria?
Aquilo fora um sonho? Uma profecia?
Gansey disse a Adam:
- Eu não sei o que foi aquilo.
Em ocasiões anteriores, essa frase havia sido uma maneira muito boa de perder o respeito de Adam. A única maneira de compensar a admissão de não saber algo era segui-la
imediatamente com as palavras "mas vou descobrir". Adam não dava muito tempo para as pessoas descobrirem: apenas o tempo que daria para si mesmo. Mas Gansey nunca
o deixara na mão. Eles descobririam o que era aquilo. Só que, dessa vez, Adam não tinha certeza se queria saber.
Ao fim da segunda semana, os garotos tinham estabelecido uma rotina de esperar por Blue na saída da escola e partir para qualquer que fosse a missão que Gansey lhes
havia designado. Era um dia de primavera encoberto que mais parecia de outono, frio e úmido, e cinzento como aço.
Enquanto esperavam, Ronan decidiu finalmente aceitar a tarefa de ensinar Adam a dirigir um carro com câmbio manual. Por vários minutos, parecia que tudo ia bem,
já que o BMW tinha uma embreagem macia. Ronan foi sucinto e direto ao ponto em suas instruções, e Adam era um aluno esperto, sem qualquer vaidade que atrapalhasse.
De um ponto de observação escondido ao lado do prédio, Gansey e Noah se juntaram e observaram enquanto Adam fazia círculos cada vez mais rápidos em torno do estacionamento.
De tempos em tempos, suas vaias eram ouvidas através das janelas abertas do BMW.
Então - isso tinha de acontecer uma hora ou outra -, Adam deixou o carro morrer. Era um animal magnífico, pelo que mostraram os barulhos e os últimos trancos que
o carro fez.
Do banco do passageiro, Ronan começou a xingar Adam. Foi um xingamento longo, confuso, com os mais escabrosos palavrões. Enquanto Adam olhava fixamente para o colo,
penitente, refletiu que havia algo musical a respeito de Ronan quando ele xingava, uma precisão cuidadosa e carinhosa na maneira como ele encaixava as palavras,
uma poesia pintada de negro. Soava muito menos odioso do que quando ele não xingava.
Ronan terminou com:
- Pelo amor de... Parrish, tome cuidado, isso aqui não é o Honda Civic 1971 da sua mãe.
Adam levantou a cabeça e disse:
- Só começaram a fazer o Civic a partir de 1973.
Houve um brilho de presas do banco do passageiro, mas, antes que Ronan tivesse tempo de atacar, ambos ouviram Gansey chamando afetuosamente:
- Jane! Achei que você não ia mais aparecer. O Ronan está ensinando o Adam a usar um câmbio manual.
Blue, com o cabelo desarrumado pelo vento, enfiou a cabeça através da janela do motorista. O perfume de flores silvestres acompanhava sua presença. Enquanto Adam
catalogava o aroma no arquivo mental de coisas que tornavam Blue atraente, ela disse animada:
- Parece que está indo bem. Que cheiro é esse?
Sem responder, Ronan desceu do carro e bateu forte a porta.
Noah apareceu ao lado de Blue. Ele parecia alegre e afetuoso como um cão labrador. Noah decidira quase imediatamente que faria qualquer coisa por Blue, um fato que
teria incomodado Adam se tivesse sido qualquer outra pessoa que não Noah.
Blue deixou que Noah arrumasse seu cabelo despenteado, algo que Adam também gostaria de fazer, mas sentia que significaria algo muito diferente vindo dele.
- Ok, vamos nessa - disse Gansey, agitado, abrindo o diário, conferindo o relógio e esperando que alguém lhe perguntasse para onde estavam indo.
Através da janela do carro, Adam perguntou:
- Para onde vamos hoje?
Gansey pegou uma mochila do chão.
- Para a mata.
Blue e Adam olharam um para o outro, sobressaltados.
- O tempo voa - disse Gansey pretensiosamente, passando a passos largos por eles na direção do Camaro.
Blue deu um salto para trás enquanto Adam lutava para sair do banco do motorista. Ela sussurrou para ele:
- Você sabia disso?
- Eu não sabia de nada.
- Temos que estar de volta em três horas - disse Ronan. - Acabei de dar comida para a Motosserra, mas depois ela precisa comer de novo.
- É por isso que eu não queria ter um filho com você - respondeu Gansey.
Eles se amontoaram no carro com o conforto da rotina, subindo no Camaro, embora toda a lógica sugerisse que eles pegassem o BMW. Ronan e Gansey lutaram brevemente
pelas chaves (Gansey venceu, como vencia tudo). Adam, Blue e Noah subiram no minúsculo banco de trás, nessa ordem. Noah se encolheu no canto do carro, tentando desesperadamente
não tocar em Blue. Adam não tomou tanto cuidado. Pelos primeiros dez minutos no primeiro dia, ele havia sido bastante educado, mas rapidamente ficou claro que Blue
não se importava quando a perna dele encostava na dela.
E para Adam tudo bem.
Tudo estava como antes, mas, por alguma razão, o coração de Adam batia forte. Era primavera, e novas folhas, sacudidas das árvores pelo vento subitamente frio, caíam
ao longo do estacionamento. Ele viu a pele arrepiada de Blue pela trama aberta do cardigã de crochê que ela vestia. Ela estendeu as mãos e pegou um punhado da camisa
dele e da de Noah, puxando os dois na direção dela, como cobertores.
- Você está sempre frio, Noah - disse ela.
- Eu sei - ele respondeu, triste.
Adam não estava certo sobre o que vinha primeiro com Blue - ela tratando os garotos como amigos ou todos eles se tornando amigos. Ele achava que essa maneira de
construir relações exigia uma boa dose de autoconfiança para ser levada adiante. Havia um tipo estranho de magia que fazia parecer que ela sempre estivera caçando
Glendower com eles.
Com o ombro pressionado contra o ombro coberto pelo casaco de crochê de Blue, Adam se inclinou para frente, entre os dois bancos dianteiros, e perguntou:
- Gansey, não tem aquecimento?
- Se o carro ligar...
O motor girava sem parar, e Adam sentia tanto frio que seus dentes batiam, mesmo não estando muito gelado. Ele sentia um frio vindo de dentro, então ordenou:
- Acelere. Pise fundo.
- Estou pisando.
Ronan pressionou a perna direita de Gansey para baixo, com a palma no joelho dele. O motor gemeu alto e pegou. Gansey agradeceu secamente a Ronan pela ajuda.
- Seu coração - disse Blue no ouvido de Adam. - Posso sentir seu coração no seu braço. Você está nervoso?
- Só... não tenho certeza para onde estamos indo.
Como estavam viajando de Camaro, e não de helicóptero, eles levaram mais tempo para chegar às coordenadas que Gansey havia marcado no diário. Quando chegaram, estacionaram
o carro em uma cabana de férias vazia e fizeram o resto do caminho a pé. Então viram que a mata tinha um aspecto bem diferente sob o céu enevoado. O corvo parecia
desolado e morto em meio à grama, e havia conchas brancas como ossos na folhagem. As árvores na beira da floresta pareciam mais altas que antes, gigantes em meio
às imponentes árvores montanhosas. Tudo parecia sombrio no dia sem sol, mas o trecho de relva mísera na borda da floresta parecia ainda mais escuro.
O coração de Adam ainda estava aos pulos. Ele teve de confessar para si mesmo que até aquele momento ele provavelmente nunca havia acreditado de verdade na explicação
sobrenatural de Gansey para a linha ley, não de uma maneira que ele tivesse realmente internalizado. Agora, isso era real. A mágica existia, e Adam não sabia quanto
isso mudava o mundo.
Por um longo momento, todos encararam silenciosamente a mata como se encarassem um adversário. Gansey passou um dedo sobre o lábio. Blue abraçou a si mesma, apertando
os dentes por causa do frio. Até Ronan parecia inquieto. Apenas Noah parecia como de costume, com os braços soltos e os ombros caídos.
- Eu me sinto observada - disse Blue por fim.
Gansey respondeu:
- Leituras altas de campo eletromagnético podem causar isso. Casos de assombração muitas vezes não passam de fiação elétrica velha e exposta. Leituras altas podem
fazer uma pessoa se sentir observada, nervosa, enjoada, apreensiva. Elas brincam com a fiação do cérebro.
Noah inclinou a cabeça bem para trás para olhar para as pontas das árvores que se moviam lentamente. Era o oposto do instinto de Adam - buscar por movimento entre
os troncos das árvores.
- Mas elas podem provocar a situação contrária também. Leituras altas podem dar aos espíritos o poder que eles precisam para se manifestar, certo? De maneira que
você tem mais chances de ser observado ou assombrado justamente quando está se sentindo observado ou assombrado - acrescentou Adam.
Gansey retrucou:
- E a água pode reverter isso, é claro. Pode tornar o campo eletromagnético e a energia sensações positivas.
- Daí - intercedeu Ronan, para não se deixar superar- toda essa bobagem de fontes de cura que circulam por aí.
Blue esfregou os braços.
- Bem, a água está lá dentro, não aqui fora. Vamos entrar?
As árvores suspiraram. Gansey estreitou os olhos.
- Nós fomos convidados? - perguntou Adam.
- Acho que você se convida - respondeu Noah.
Ele foi o primeiro a entrar. Ronan resmungou com raiva, provavelmente porque Noah - Noah - tivera mais coragem que qualquer um deles. E mergulhou na mata logo depois.
- Esperem - Gansey olhou para o relógio. - São 4h13. Precisamos lembrar disso mais tarde. - E seguiu Noah e Ronan.
O coração de Adam batia forte. Blue estendeu a mão, e ele a tomou. Não esmague os dedos dela, pensou.
E entraram na mata.
Debaixo da copa das árvores, estava ainda mais escuro que no campo. As sombras debaixo delas tinham um tom negro, opaco, e os troncos pareciam pintados de chocolate,
carvão e ônix.
- Noah - sussurrou Gansey. - Noah, para onde você foi?
A voz dele surgiu detrás.
- Eu não fui para lugar nenhum.
Adam se voltou, ainda segurando firmemente a mão de Blue, mas não havia nada ali a não ser ramos tremulando na brisa leve.
- O que você viu? - perguntou Gansey. Quando Adam se virou novamente, Noah estava parado um pouco à frente de Gansey:
Brincam com a fiação do cérebro.
- Nada.
Ronan, uma forma escura curvada a alguns metros de distância, perguntou:
- Para onde estamos indo?
Para qualquer lugar a não ser aquela árvore, pensou Adam. Eu não quero ver aquilo de novo.
Gansey remexeu na terra em busca de sinais do regato que eles haviam seguido antes.
- De volta ao mesmo caminho, eu acho. Um experimento adequado recria as condições, não é? Mas o regato está mais raso dessa vez. Difícil de ver. Não era longe, era?
Eles tinham caminhado apenas por alguns minutos pelo leito do regato raso quando ficou evidente que a paisagem não era familiar. As árvores eram altas, finas e delgadas,
todas inclinadas como em razão de algum vento forte. Grandes rochedos se projetavam sobre o solo pobre. Não havia sinal do leito do regato, do pequeno lago, da árvore
sonhadora.
- Fomos direcionados para o lugar errado - disse Gansey.
Seu tom era ao mesmo tempo cortante e acusatório, como se a própria mata tivesse feito isso.
- Além disso - destacou Blue, largando a mão de Adam -, vocês observaram as árvores?
Adam precisou de um instante para se dar conta do que ela estava querendo dizer. Algumas das folhas que se prendiam aos galhos ainda traziam um tom amarelo-pálido,
mas agora era o amarelo do outono, não da primavera. A maioria das folhas que os cercavam trazia o tom verde e vermelho-escuro característico do outono. As folhas
caídas a seus pés tinham um tom marrom e laranja, folhas mortas pelo começo do frio de um inverno que não deveria estar próximo.
Adam estava dividido entre o assombro e a ansiedade.
- Gansey - ele disse -, que horas são?
Gansey girou o punho:
- São 5h27. O ponteiro dos segundos ainda está correndo.
Em pouco mais de uma hora, eles tinham caminhado através de duas estações. Adam captou o olhar de Blue, que apenas balançou a cabeça. O que mais havia a fazer?
- Gansey! - chamou Noah. - Tem algo escrito aqui!
Do outro lado de um afloramento de rochas, Noah estava parado perto de um grande bloco de rocha que batia na altura de seu queixo. A face da rocha trazia cortes
e deformações e estava estriada com linhas como os esboços da linha ley de Gansey. Noah apontou para algumas dezenas de palavras pintadas na parte de baixo da pedra.
Qualquer que tivesse sido a tinta usada pelo autor, estava gasta e irregular: negra em alguns lugares, de um ameixa profundo em outros.
- Que língua é essa? - perguntou Blue.
Adam e Ronan responderam em uníssono:
- Latim.
Ronan se agachou rapidamente ao lado da rocha.
- O que está escrito? - perguntou Gansey.
Os olhos de Ronan disparavam de um lado para o outro enquanto examinavam o texto. Inesperadamente, ele sorriu com afetação.
- É uma piada. Essa primeira parte. O latim é bem ruim.
- Uma piada? - ecoou Gansey. - Sobre o quê?
- Você não acharia engraçada.
O latim era difícil, e Adam desistiu de tentar ler. Algo naquelas letras, no entanto, o perturbava. Ele não conseguia dizer o quê. A própria forma delas...
Desconfiado, ele perguntou:
- Por que tem uma piada escrita em uma pedra qualquer?
O contentamento deixou o rosto de Ronan. Ele tocou as palavras e tateou as letras. Seu peito arfava sem parar.
- Ronan? - perguntou Gansey.
- É uma piada - respondeu Ronan por fim, sem parar de olhar para as palavras - para caso eu não reconhecesse minha própria letra.
Adam se deu conta de que era aquilo que o incomodava a respeito das palavras. Agora era óbvio que a letra era de Ronan. Só que elas estavam muito fora de contexto,
pintadas com um pigmento misterioso, manchado e gasto pelo tempo.
- Eu não entendo - disse Ronan, continuando a traçar e a retraçar as letras. Ele estava realmente abalado.
Gansey se apressou em ajudar. Ele não suportava ver ninguém de sua turma amedrontado. Com a voz firme, como se tivesse certeza, como se estivesse dando uma aula
de história geral, disse:
- Nós vimos antes como a linha ley brinca com o tempo. Podemos ver agora, mesmo no meu relógio. O tempo é flexível. Você não esteve aqui antes, Ronan, mas isso não
quer dizer que não esteve aqui no futuro. Minutos mais tarde. Dias, anos, deixando uma mensagem para você mesmo, escrevendo uma piada de maneira que você acreditasse
que foi você. Sabendo que haveria uma chance de que o tempo colocasse você aqui para encontrar essa mensagem.
Muito bem, Gansey, pensou Adam. Ele havia elaborado uma explicação para apoiar Ronan, mas Adam também se sentiu mais bem amparado. Eles eram exploradores, cientistas,
antropólogos de magia histórica. Era isso que eles queriam.
Blue perguntou:
- E o que ela diz após a piada?
- Arbores loqui latine - respondeu Ronan. - As árvores falam latim.
A frase não fazia sentido, era um enigma talvez, mas mesmo assim Adam sentiu um arrepio na espinha. Eles olharam de relance para as árvores em volta: estavam cercados
por mil tons de verde diferentes, presos a um milhão de garras que se sacudiam com o vento.
- E a última linha? - perguntou Gansey. - A última palavra não parece latim.
- Nomine appellant - leu Ronan. - Chame-o pelo nome. - E fez uma pausa. - Cabeswater.
- Cabeswater - repetiu Gansey.
Havia algo mágico a respeito daquela palavra. Cabeswater. Algo ancestral e enigmático, uma palavra que não parecia pertencer ao Novo Mundo. Gansey leu o latim na
rocha novamente - a tradução parecia óbvia, uma vez que Ronan havia feito a parte pesada do trabalho - e então, como os outros, olhou à sua volta para as árvores
que os cercavam.
O que foi que você fez?, ele perguntou a si mesmo. Para onde você os trouxe?
- Eu voto para que a gente procure água - disse Blue. - Para que a energia faça o que o Ronan disse que ela faria melhor, seja o que for. E então... acho que devemos
dizer algo em latim.
- Parece um bom plano - concordou Gansey, refletindo sobre a estranheza daquele lugar, que uma sugestão tão sem sentido pudesse parecer tão prática. - A gente devia
voltar pelo caminho que viemos ou seguir em frente?
Noah disse:
- Seguir em frente.
Tendo em vista que ele raramente expressava uma opinião, sua palavra reinou. Partindo novamente, eles ficaram num vaivém sobre a própria trilha, à procura de água.
À medida que avançavam, as folhas caíam à sua volta, vermelhas e então cinzas, até que as árvores ficaram nuas. Apareceu gelo nas sombras.
- Inverno - disse Adam.
Era impossível, é claro, mas, novamente, tudo que viera antes disso também era. Como quando ele havia passado de carro pelo Lake District com Malory, pensou Gansey.
Após um tempo, havia uma quantidade incrível de beleza para processar, e ela se tornara invisível.
Era impossível que fosse inverno. Mas não era mais impossível do que qualquer outra coisa que havia acontecido.
Eles haviam chegado a um agrupamento de salgueiros desfolhados, sobre um ligeiro aclive, e abaixo deles havia a curva de um regato lento e raso. Malory havia dito
para Gansey certa vez que onde havia salgueiros, havia água. Salgueiros se propagavam, disse ele, largando sementes em água em movimento, que então as levava corrente
abaixo, permitindo que as árvores criassem raízes em alguma margem distante.
- E tem água - acrescentou Blue.
Gansey se virou para os outros. Sua respiração vinha em nuvens e todos eles pareciam terrivelmente malvestidos para o frio. Mesmo a cor da pele deles parecia errada:
bronzeada demais para aquele ar de inverno sem cor. Turistas de outra estação. Gansey percebeu que estava tremendo, mas não sabia se era por causa do frio invernal
ou da expectativa.
- Ok - ele disse para Blue. - O que você queria dizer em latim?
Blue se virou para Ronan.
- Você pode dizer simplesmente "oi"? É educado.
Ronan pareceu desgostoso; educado não era seu estilo. Mas disse:
- Salve. - Para Blue, ele explicou: - Na verdade, isso quer dizer Esteja bem.
- Excelente - ela respondeu. - Pergunte se elas querem falar com a gente.
Agora Ronan parecia ainda mais incomodado, pois isso o fazia parecer ridículo, o que era ainda menos seu estilo, mas ele inclinou a cabeça para trás e disse: - Loquere
tu nobis?
Eles ficaram parados em silêncio. Um sibilar parecia estar subindo, como se uma brisa ligeira de inverno farfalhasse nas árvores. Mas não havia mais folhas sobrando
nos ramos para farfalhar.
- Nada - respondeu Ronan. - O que você esperava?
- Silêncio - ordenou Gansey. Porque agora o sibilar era definitivamente mais que um farfalhar. Agora ele havia se transformado no que soava distintamente como vozes
secas, sussurradas. - Vocês estão ouvindo isso?
Todos, menos Noah, balançaram a cabeça.
- Eu estou - disse Noah, para o alívio de Gansey.
Gansey disse:
- Peça para elas falarem de novo.
Ronan pediu.
O farfalhar sibilado veio de novo, e agora parecia óbvio que era uma voz, que nunca haviam sido folhas. Gansey ouviu claramente uma declaração quebradiça em latim.
Ele gostaria que tivesse estudado com mais afinco enquanto repetia as palavras foneticamente para Ronan.
- Elas disseram que já estavam falando com você, mas que você não estava ouvindo - disse Ronan, e coçou a parte de trás da cabeça raspada. - Gansey, você está brincando
comigo? Você realmente está ouvindo alguma coisa?
- Você acha que o latim do Gansey é tão bom assim? - respondeu Adam, tenso. - Foi a sua letra na pedra, Ronan, que disse que elas falavam latim. Cale a boca.
As árvores sibilaram de novo, e Gansey repetiu as palavras para Ronan. Noah corrigiu um dos verbos que Gansey havia entendido errado.
Os olhos de Ronan se voltaram como dardos para Blue.
- Elas disseram que estão felizes em ver a filha da médium.
- Eu! - exclamou Blue.
As árvores sibilaram uma resposta e Gansey repetiu as palavras.
- Eu não sei o que isso quer dizer - disse Ronan. - Elas também estão felizes em ver mais uma vez... eu não sei que palavra é essa: Greywaren? Se é latim, eu não
conheço.
Ronan, sussurraram as árvores, Ronan Lynch.
- É você - disse Gansey assombrado, sentindo um arrepio. - Ronan Lynch. Elas disseram o seu nome. É você que elas estão felizes em ver de novo.
A expressão de Ronan era reservada, seus sentimentos, escondidos.
- De novo. - Blue pressionou as mãos contra as faces vermelhas de frio, os olhos arregalados e o rosto transparecendo todo o espanto e a animação que Gansey sentia.
- Incrível. As árvores? Incrível.
Adam perguntou:
- Por que só você e o Noah conseguem ouvir?
Em um latim trôpego - mesmo na aula, ele raramente falava latim, e era estranho tentar traduzir pensamentos de palavras que ele conseguia ver escritas na cabeça
para palavras faladas -, Gansey disse:
- Hic gaudemus. Gratias tibi... loquere... loqui pro nobis - e olhou para Ronan. - Como eu pergunto por que vocês não conseguem ouvir?
- Nossa, Gansey. Se você tivesse prestado atenção em... - Fechando os olhos, Ronan pensou por um momento: - Cur non te audimus?
Gansey não precisou de Ronan para traduzir a resposta sussurrada das árvores; o latim era simples o suficiente.
Ele disse em voz alta:
- O caminho não está desperto.
- A... linha ley? - sugeriu Blue. Um pouco triste, acrescentou:
- Mas isso não explica por que só você e o Noah podem ouvir.
As árvores murmuraram: Si expergefacere via, erimus in debitum.
- Se você despertar a linha, elas terão uma dívida com você - disse Ronan.
Por um momento, todos ficaram em silêncio, olhando uns para os outros. Era muita coisa para assimilar. Não era somente porque as árvores estavam falando com eles,
era porque elas eram seres conscientes, capazes de observar seus movimentos. Eram apenas as árvores naquela mata estranha, ou todas as árvores os observavam? Será
que elas sempre haviam tentado falar com eles? Não havia uma maneira de saber, também, se as árvores eram boas ou más, se amavam ou odiavam os humanos, se tinham
princípios ou compaixão. Eram como extraterrestres, pensou Gansey. Extraterrestres que tratamos muito mal, por muito tempo. Se eu fosse uma árvore, não teria nenhum
motivo para amar um humano.
Gansey disse:
- Pergunte se elas sabem onde está o Glendower.
Adam pareceu sobressaltado. Rapidamente, Ronan traduziu a pergunta.
Levou um momento para as vozes sussurradas responderem, e, mais uma vez, Gansey não precisou de tradução.
- Não - disse Gansey. Algo dentro dele havia se apertado e apertado e apertado até ele fazer a pergunta. Ele achava que, ouvindo a resposta, ficaria aliviado, mas
não foi assim. Todos olhavam para ele, mas Gansey não sabia por quê. Talvez algo em seu rosto estivesse errado. Parecia errado. Então ele desviou o olhar de todos
e disse: - Está muito frio. Valde frigida. Onde é a saída? Por favor? Amabo te, ubi exitum?
As árvores sussurraram e sibilaram, e Gansey percebeu que ele podia estar errado, que podia ter sido apenas uma voz o tempo inteiro. Ele não estava inteiramente
certo de que chegara a ouvi-la alto também, agora que pensava na questão. Era possível que ela tivesse sido dita em sua cabeça o tempo inteiro. Era um pensamento
desconcertante, e ele distraiu sua atenção. Noah teve de ajudá-lo a se lembrar de tudo que havia sido dito, e Ronan precisou pensar por um momento muito longo antes
que fosse capaz de traduzir.
- Desculpe - disse Ronan. Ele estava se concentrando demais para se lembrar de parecer descolado ou ranzinza. - É difícil. É... elas disseram que precisamos voltar
através do ano. Contra... o caminho. A linha. Elas disseram que, se voltarmos ao longo do regato e virarmos à esquerda na grande... figueira? Platanus? Acho que
é figueira. Então acharemos algo que elas acreditam que queremos achar. E aí seremos capazes de sair da mata e encontrar o caminho de volta para o nosso... o nosso
dia. Sei lá. Tem partes faltando, mas acho que... desculpem.
- Está tudo bem - disse Gansey. - Você está se saindo bem. - Em voz baixa, ele perguntou a Adam: - Você acha que devemos fazer isso? Me ocorreu agora que talvez
elas não sejam confiáveis.
O cenho franzido de Adam queria dizer que isso havia lhe ocorrido também, mas ele respondeu:
- Nós temos outra escolha?
- Acho que devemos confiar nelas - disse Blue. - Elas me conheciam, e conheciam o Ronan também. De alguma forma. E a rocha não disse para não confiar nelas. Certo?
Ela tinha razão. A caligrafia de Ronan, com seu grande cuidado para provar sua origem, tinha lhes dado a chave para falar com as árvores, não um aviso.
- Vamos voltar - disse Gansey. - Cuidado para não escorregar. - Então, mais alto, disse: - Gratias. Reveniemus.
- O que você disse? - perguntou Blue.
Adam respondeu por ele:
- Obrigado. E que vamos voltar.
Não foi difícil seguir as orientações que Ronan havia traduzido. O regato era largo ali, a água fria e lenta entre duas encostas brancas de gelo. Ele os levou firmemente
para baixo, e gradualmente o ar à volta deles começou a aquecer. Folhas vermelhas esparsas marcavam os galhos, e, no momento em que Blue apontou para uma enorme
figueira, com o tronco branco e cinza perdendo parte da casca e largo demais para que ela o abraçasse, eles se viram nas mãos pegajosas do verão. As folhas eram
vigorosas e verdes, movendo-se e esfregando-se umas nas outras em um constante farfalhar murmurado. Se havia uma voz agora, Gansey não tinha certeza se ele a ouvia.
- Nós pulamos o verão antes - Adam apontou. - Quando viemos pelo outro caminho, fomos direto para o outono.
- Mosquitos mágicos - disse Ronan, dando um tapa no braço. - Que lugar incrível é esse.
Seguindo as orientações da voz, eles viraram à esquerda na figueira enorme. Gansey se perguntou o que as árvores achavam que eles gostariam de encontrar. Ele achava
que só havia uma coisa que ele estava procurando.
Então as árvores se abriram em uma clareira de verão, e ficou óbvio o que a voz queria dizer.
Na clareira, inteiramente fora de lugar, havia um carro abandonado. Um Mustang vermelho. O último modelo do Mustang. Num primeiro momento, pareceu que ele estava
coberto de lama, mas uma inspeção mais atenta revelou que ele estava, na realidade, coberto por camadas e mais camadas de pólen e folhas caídas. Folhas haviam ficado
presas aos montes nas fendas do capô e embaixo do aerofólio, emboladas nos limpadores de para-brisas e em torno dos pneus. Uma muda de árvore crescia debaixo do
carro, enrolando-se em torno do para-choque dianteiro. A cena lembrava velhos naufrágios, barcos antigos transformados em barreiras de coral pelos estratagemas do
tempo.
Atrás do carro se estendia um caminho tomado completamente pelo mato e que parecia levar para fora dali; aquela devia ser a saída a que as árvores se referiam.
- Espalhafatoso - observou Ronan, chutando um dos pneus. O Mustang tinha pneus enormes, caros, e, agora que Gansey olhou para o carro mais de perto, viu que ele
estava cheio de acessórios: aros grandes, aerofólio novo, filme escuro nos vidros, escapamento duplo. Dinheiro novo, seu pai teria dito, queima no bolso.
- Olhem - disse Adam, passando um dedo sobre a poeira da janela de trás. Ao lado de um adesivo do Blink-182, havia outro da Aglionby.
- Lógico - disse Blue.
Ronan tentou a porta do motorista, que se abriu. Ele riu uma vez, de maneira cortante:
- Tem um hambúrguer mumificado aqui.
Todos se agruparam em volta dele para ver o interior, mas, fora o hambúrguer seco, meio comido, no banco do passageiro, ainda pousado sobre o embrulho, não havia
muito para ver.
Aquele carro também era um enigma, como a voz de Blue no gravador. Gansey sentia como se fosse dirigido especificamente a ele.
- Abra o porta-malas - ele ordenou.
Dentro do porta-malas tinha um casaco e, embaixo dele, uma coleção esquisita de varas e molas. Franzindo o cenho, Gansey retirou o dispositivo e o segurou pela haste
maior. As peças se ajeitaram em seus lugares, diversas varas suspensas que se retorciam debaixo da principal, e então ele compreendeu tudo.
- É uma vara de radiestesia.
Ele se virou para Adam, querendo uma verificação.
- Coincidência - disse Adam. É claro, querendo dizer que não era.
Gansey sentiu novamente o que sentira no estacionamento do Nino's, quando Adam o avisara que achava que havia outra pessoa procurando pela linha ley. Então ele percebeu
que Blue e Noah não estavam por ali.
- Cadê a Blue e o Noah?
Ao ouvir seu nome, Blue reapareceu, passando por cima de um tronco caído e voltando para a clareira. Ela disse:
- O Noah está passando mal.
- Por quê? - perguntou Gansey. - Ele está doente?
- Vou perguntar - ela respondeu. - Assim que ele terminar de botar as tripas pra fora.
Gansey fez uma careta.
- Acho que o Gansey prefere a palavra expelindo. Ou evacuando - disse Ronan animadamente.
- Acho que vomitando é a palavra mais específica neste caso - corrigiu Blue precisamente.
- Vomitando! - disse Ronan despreocupado; isso, finalmente, era algo que ele conhecia. - Onde ele está? Noah! - gritou, afastando-se do Mustang e voltando pelo caminho
de que ela tinha vindo.
Blue observou a vara de radiestesia nas mãos de Gansey.
- Isso estava no carro? Uma vara de radiestesia!
Ele não deveria ter ficado surpreso que ela soubesse do que se tratava. Mesmo que ela não fosse médium, sua mãe era, e aquela era tecnicamente uma ferramenta do
negócio.
- No porta-malas.
- Mas isso significa que outra pessoa estava procurando a linha ley!
Do outro lado do Mustang, Adam passou os dedos pelo pólen na lateral do carro. Ele parecia perturbado.
- E eles acharam que ela era mais importante que o carro.
Gansey olhou de relance para as árvores em volta deles, então para o carro caro. Ao longe, ouviu as vozes baixas de Ronan e Noah.
- Acho melhor a gente ir embora. Precisamos de mais informações.
Quando Blue se aprontou para sair no domingo seguinte, ela estava oficialmente dividida. Domingo era dia de levar os cães para passear. Na realidade, domingos e
quintas eram dias de fazer isso, mas Blue havia pedido para não trabalhar nas duas semanas anteriores para acompanhar os garotos, de maneira que fazia um longo tempo
que não via seus cães postiços. O problema era que ela estava ficando sem dinheiro e, além disso, a culpa por desobedecer Maura estava finalmente começando a pesar
sobre ela. A situação chegara a tal ponto que ela não conseguia olhar a mãe nos olhos durante o jantar, mas era impossível, agora, imaginar abandonar os garotos.
Ela tinha de encontrar uma maneira de conciliar as duas coisas.
Mas, primeiro, ela tinha de levar os cães para passear.
Já de saída para Willow Ridge, o telefone da cozinha tocou, e Blue, com um copo de suco de maçã em uma mão e os cadarços do tênis de cano alto na outra, atendeu.
- Alô?
- Eu gostaria de falar com a Blue, por favor, se ela estiver em casa.
Era a inconfundível e educada voz de Gansey, a que ele usava para transformar palha em ouro. Certamente, ele sabia que estava se arriscando ao ligar para a casa
dela e, certamente, tinha se preparado para falar com outra pessoa que atendesse. Apesar da crescente suspeita de que seu segredo não duraria, ela não sabia ao certo
como se sentia com o fato de que ele podia ter revelado o segredo.
- A Blue está se preparando para levar os cães de outras pessoas para passear - ela disse, largando o suco e amarrando os cadarços do tênis, com o telefone enfiado
entre a orelha e o ombro. - E que bom que foi ela que atendeu, e não outra pessoa.
- Eu estava preparado para essa eventualidade - disse Gansey. Era estranho ouvi-lo no telefone; a voz não combinava com o rosto. - De qualquer maneira, que bom que
você atendeu. Como vai? Acredito que bem.
Ele não está querendo ser arrogante, Blue disse a si mesma, várias vezes.
- Acreditou certo.
- Ótimo. Escute. O Adam está trabalhando hoje e o Ronan está na igreja com os irmãos, mas eu gostaria de dar uma volta só... para ver as coisas. - E acrescentou
rapidamente: - Não na mata. Eu estava pensando em ir até aquela igreja no seu mapa. Você quer...
Ele vacilou. Gansey vacilando? Blue levou um momento para perceber que ele estava perguntando se ela queria ir com ele. E levou outro momento para se dar conta de
que nunca estivera em qualquer lugar com ele sem os outros garotos.
- Eu preciso levar os cães para passear.
- Ah - ele respondeu, soando vazio. - Tudo bem.
- Mas só vai levar uma hora.
- Ah - ele repetiu, uns catorze tons mais brilhante. - Posso ir te buscar, então?
Blue olhou furtivamente sobre o ombro na direção da sala de estar.
- Ah, não... Eu, humm... te encontro no estacionamento.
- Ótimo - ele disse de novo. - De primeira. Acho que vai ser interessante. Te vejo em uma hora.
De primeira? Gansey sem Adam... Blue não tinha certeza como isso funcionaria. Apesar do interesse hesitante de Adam nela, os garotos pareciam agir como uma unidade,
uma única entidade com múltiplas cabeças. Ver qualquer um deles sem a presença dos outros parecia um pouco... perigoso.
Mas não havia outra opção a não ser ir com Gansey. Ela queria explorar tanto quanto ele.
Tão logo ela desligou o telefone, ouviu chamarem seu nome.
- Bluu-uuuu, minha menina, vem aqui!
Era a voz de Maura, e o ritmo cantado na maneira como ela falou era altamente irônico. Com uma sensação de afundamento, Blue seguiu até a sala de estar, onde encontrou
Maura, Calla e Persephone bebendo o que Blue suspeitava que fossem drinques de vodca com suco de laranja. Quando ela entrou na sala, as mulheres olharam para ela
com sorrisos indolentes. Um bando de leoas.
Blue ergueu as sobrancelhas diante dos coquetéis. A luz da manhã através das janelas transformava os drinques em um amarelo brilhante, translúcido.
- São dez da manhã.
Calla estendeu a mão, fechando o punho de Blue com os dedos, e a arrastou para a namoradeira verde-menta. Seu copo já estava quase vazio.
- É domingo. O que mais vamos fazer?
- Eu preciso levar os cães para passear - disse Blue.
Da cadeira com listras azuis do outro lado da sala, Maura bebericou seu drinque e fez uma careta de desagrado.
- Ah, Persephone. Você põe muita vodca nesses drinques.
- Eu sempre erro a mão - disse Persephone tristemente de um banco de vime na frente da janela.
Quando Blue começou a se levantar, Maura disse, com um quê de ligeira censura.
- Sente um pouco com a gente, Blue. Fale sobre ontem. E o dia anterior, e o outro. E... ah, vamos falar um pouco sobre essas últimas semanas.
Blue então percebeu que Maura estava furiosa. Ela só a tinha visto assim algumas vezes antes, e essa fúria direcionada a ela fez sua pele ficar instantaneamente
fria e úmida.
- Bom, eu estava... - ela deixou a frase inacabada. Uma mentira parecia não fazer sentido.
- Eu não sou seu carrasco - interrompeu Maura. - Eu não vou amarrar você no quarto ou te mandar para um convento, por favor. Então pode parar com essa coisa de sair
escondida agora mesmo.
- Eu não ia...
- Ia sim. Eu sou sua mãe desde que você nasceu e posso garantir que você ia. Vejo que você e o Gansey estão se dando bem, não é mesmo? - Maura tinha uma expressão
irritante de malícia.
- Mãe.
- A Orla me contou do carrão de oito cilindros dele - continuou Maura. Sua voz ainda estava brava e artificialmente animada. O fato de Blue estar bem consciente
de que merecia isso tornava a ferroada ainda pior. - Você não está planejando beijar aquele garoto, está?
- Mãe, isso nunca vai acontecer - assegurou Blue. - Você conheceu ele, não é?
- Eu não sabia que dirigir um Camaro velho e barulhento era o equivalente masculino de vestir camisetas rasgadas e grudar árvores de papelão nas paredes do quarto.
- Acredite em mim - disse Blue. - Eu e o Gansey não somos nem um pouco parecidos. E elas não são de papelão, são de lona reciclada.
- O meio ambiente suspira de alívio. - Maura deu mais um golinho em seu drinque, torceu o nariz e lançou um olhar irado para Persephone, que parecia martirizada.
Após uma pausa, Maura observou, com uma voz ligeiramente mais suave: - Eu não fico muito feliz que você esteja entrando em um carro sem air bags.
- Nem o nosso carro tem air bags - destacou Blue.
Maura pegou um longo fio do cabelo de Persephone da borda do copo.
- Sim, mas você sempre sai de bicicleta.
Blue ficou de pé, suspeitando que a penugem verde do sofá havia grudado na parte de trás de sua legging.
- Posso ir agora? Eu estou encrencada?
- Está. Eu disse para você ficar longe dele e você não ficou - disse Maura. - Eu só não decidi ainda o que fazer. Estou magoada. Conversei com várias pessoas, e
elas me disseram que eu tenho todo o direito de me sentir assim. Os adolescentes ainda ficam de castigo? Ou isso só acontecia nos anos oitenta?
- Eu vou ficar muito brava se você me colocar de castigo - disse Blue, ainda vacilante com a desaprovação pouco familiar de sua mãe. - Depois não reclame se eu me
rebelar e fugir pela janela do quarto numa corda de lençóis.
Sua mãe esfregou uma mão sobre o rosto. Sua ira tinha se consumido completamente.
- Você está bem envolvida nisso, não é? Não demorou muito.
- Se você não me proibir de ver meus amigos, não preciso te desobedecer - sugeriu Blue.
- É isso que você ganha, Maura, por usar o seu DNA para fazer um bebê - disse Calla.
Maura suspirou.
- Blue, eu sei que você não é idiota. Só que às vezes pessoas inteligentes cometem burrices.
Calla resmungou:
- Não seja uma delas.
- Persephone? - perguntou Maura.
Em sua voz pequena, Persephone disse:
- Não tenho nada a acrescentar. - Após um momento de consideração, no entanto, acrescentou: - Se você for dar um soco em alguém, não coloque o polegar dentro da
mão. Seria uma pena quebrá-lo.
- Ok - Blue disse apressadamente. - Estou saindo.
- Você poderia ao menos dizer que sente muito - disse Maura. - Finja que eu ainda tenho algum poder sobre você.
Blue não tinha certeza de como reagir àquilo. Maura tinha toda sorte de controle sobre Blue, mas não era normalmente o tipo que vinha com ultimatos ou castigo. Então
ela simplesmente disse:
- Desculpa. Eu devia ter te contado que eu ia fazer o que você não queria que eu fizesse.
Maura disse:
- Não era bem isso que eu queria ouvir.
Calla pegou a mão de Blue de novo, e, por um momento, Blue teve medo de que ela pudesse sentir o nível de estranheza que cercava a busca de Gansey. Mas então ela
deu o último gole no drinque, antes de dizer com uma voz ronronante:
- Com toda essa correria, não esqueça do nosso cinema na sexta à noite, Blue.
- Nosso... cinema... - Blue repetiu.
Calla franziu o cenho.
- Você prometeu.
Por um momento, Blue tentou lembrar quando havia falado sobre uma noite de cinema com Calla, e então se deu conta do que se tratava: a conversa de dias e dias atrás.
Sobre revistar o quarto de Neeve.
- Eu esqueci que era esta semana - respondeu Blue.
Maura mexeu o drinque, que ainda parecia praticamente cheio. Ela sempre preferia observar outras pessoas bebendo a fazê-lo ela mesma.
- Que filme?
- Até os anões começaram pequenos - respondeu Calla imediatamente. - No original alemão: Auch Zwerge haben klein angefangen.
Maura estremeceu, e Blue não sabia se era por causa do filme ou do sotaque de Calla. Então disse:
- Tanto faz. A Neeve e eu vamos sair na sexta à noite.
Calla ergueu uma sobrancelha e Persephone pegou uma ponta do cadarço do tênis.
- O que vocês vão fazer? - perguntou Blue. Procurar meu pai? Fazer leituras em poças?
Maura parou de agitar o drinque.
- Não vou sair com o Gansey.
Pelo menos Blue podia ter certeza de que sua mãe nunca mentiria para ela.
Ela simplesmente não diria nada.
- Por que a igreja? - Blue perguntou do banco do passageiro do Camaro. Ela nunca andara na frente antes, e, dali, a sensação de o carro ser alguns milhares de partes
voando em uma formação agitada era ainda mais pronunciada.
Gansey, instalado confortavelmente atrás da direção, com óculos escuros caros e top siders, respondeu calmamente:
- Não sei. Porque ela está na linha, mas não é como... o que quer que Cabeswater seja. Preciso pensar mais sobre Cabeswater antes de voltarmos.
- Porque parece que a gente está entrando na casa de alguém - disse Blue, tentando não olhar para os mocassins de Gansey. Ela se sentia melhor a respeito dele como
pessoa se fingisse que ele não os estava usando.
- Exatamente! É exatamente assim que parece - e apontou para ela como tinha apontado para Adam quando este fizera um comentário que ele aprovara. Então colocou a
mão de volta na alavanca do câmbio para parar com o barulho.
Na realidade, Blue achava uma ideia excitante que as árvores fossem criaturas pensantes, que elas pudessem falar. Que elas a conhecessem.
- Vire aqui! - ordenou Blue, enquanto Gansey quase passava pela igreja arruinada. Com um largo sorriso, ele virou a direção e reduziu algumas marchas. Com apenas
alguns ruídos de protesto da borracha, eles conseguiram chegar ao acesso tomado pela vegetação crescida, ao que o porta-luvas se abriu e atirou o que tinha dentro
no colo de Blue.
- Aliás, por que você tem esse carro? - ela perguntou. Gansey desligou o motor, mas as pernas dela ainda vibravam com ele.
- Porque é um clássico - ele respondeu formalmente. - Porque é único.
- Mas é uma lata-velha. Eles não fazem clássicos únicos que não... - Blue demonstrou seu argumento tentando fechar sem sucesso o porta-luvas algumas vezes. Nesse
instante, enquanto ela recolocava os objetos que estavam ali e batia a tampa, o porta-luvas ejetou novamente o conteúdo em suas pernas.
- Ah, fazem sim - disse Gansey, e ela sentiu uma ponta de irritação em sua voz. Não era raiva, realmente, mas ironia. Ele colocou uma folha de hortelã na boca e
saiu do carro.
Blue recolocou os documentos do carro e um velho pacote de carne desidratada no porta-luvas, então inspecionou o outro objeto que havia caído em seu colo. Era um
autoinjetor de adrenalina - uma seringa para ressuscitar o coração de uma pessoa no caso de uma reação alérgica grave. Diferentemente da carne, a data de validade
ainda não tinha vencido.
- De quem é isso? - ela perguntou.
Gansey já estava fora do carro, segurando o frequencímetro e se alongando como se tivesse dirigido por horas no carro em vez de trinta minutos. Ela observou que
ele tinha músculos impressionantes no braço, provavelmente relacionados ao adesivo da equipe de remo Aglionby que ela observara no porta-luvas. Gansey olhou sobre
o ombro para ela e respondeu, encerrando a questão:
- Meu. Você tem que virar a tranca para a direita para fechar.
Blue guardou o autoinjetor de adrenalina e fechou o porta-luvas.
Do outro lado do carro, ele inclinou a cabeça para trás para dar uma olhada nas nuvens de tempestade: coisas vivas, torres em movimento. Bem ao longe, elas eram
quase da mesma cor que o cume azul das montanhas. A estrada pela qual eles tinham vindo margeava um rio verde-azulado que serpenteava de volta na direção da cidade.
A luz indireta do sol era peculiar: quase amarela, espessa com a umidade. Fora os pássaros e o rugido lento e distante dos trovões, não havia nenhum outro barulho.
- Espero que o tempo não vire - ele observou.
Gansey seguiu a passos largos para a igreja arruinada. Blue havia descoberto que era assim que ele chegava aos lugares - a passos largos. Caminhar era para pessoas
comuns.
Parada ao lado dele, Blue achou a igreja mais sinistra à luz do dia, como sempre achava: crescendo entre paredes arruinadas, em meio a pedaços de telhado caído,
com a relva na altura dos joelhos e árvores da altura de Blue, que lutavam pela luz do sol. Não havia provas que um dia haviam existido bancos de igreja, ou qualquer
congregação. Havia algo triste e sem sentido a respeito do lugar: morte não seguida de vida.
Blue se lembrou de parar ali com Neeve, todas aquelas semanas atrás. Ela se perguntou se Neeve estava realmente procurando pelo seu pai, e, se estava, o que ela
pretendia fazer quando o encontrasse. Blue pensou nos espíritos caminhando para dentro da igreja e se perguntou se Gansey...
Ele disse:
- Eu sinto que já estive aqui antes.
Blue não sabia o que responder. Ela já havia lhe contado uma meia verdade sobre a véspera do Dia de São Marcos, e não tinha certeza se era certo contar a ele a outra
metade. Além disso, Blue não tinha certeza se isso parecia verdade. Parada ao lado dele naquele estado muito vivo, ela não conseguia imaginar que Gansey estaria
morto em menos de um ano. Ele estava usando uma camisa polo azul-petróleo, e parecia impossível que alguém em uma camisa polo azul-petróleo pudesse morrer de qualquer
outra coisa que não uma doença cardíaca aos oitenta e seis anos, possivelmente em uma partida de polo.
Blue perguntou:
- O que o seu medidor de mágica está fazendo agora?
Gansey se voltou para ela. Os nós de seus dedos estavam pálidos, os ossos pressionados através da pele. Luzes vermelhas brilharam ao longo da superfície do medidor.
Ele disse:
- Chegou ao máximo. Como na mata.
Blue examinou o entorno. Muito provavelmente, toda aquela propriedade era privada, mesmo o terreno onde se encontrava a igreja, mas a área atrás dela parecia mais
remota.
- Se formos por ali, acho que tem uma probabilidade menor de atirarem na gente por invasão de propriedade. Não tem como não chamar atenção com a sua camisa.
- Ciano é uma cor maravilhosa, e você não vai me deixar constrangido por causa disso - retorquiu Gansey. Sua voz estava um pouco fina, e ele olhou de relance para
a igreja mais uma vez. Naquele instante, ele pareceu mais jovem do que jamais antes, os olhos estreitados, o cabelo desarrumado, os traços relaxados. Jovem e, de
maneira bastante estranha, temeroso.
Blue pensou: Eu não posso contar para ele. Eu nunca vou poder contar para ele. Só preciso tentar impedir que aconteça.
Então Gansey, subitamente charmoso de novo, acenou ligeiramente na direção do seu vestido-túnica roxo.
- Vá na frente, berinjela.
Blue encontrou um pedaço de pau para cutucar o chão a fim de protegê-los das cobras antes que avançassem pela relva. O vento cheirava a chuva, o chão ribombava com
os trovões, mas o tempo se mantinha firme. A máquina nas mãos de Gansey piscava uma cor vermelha constantemente, apenas oscilando para o laranja quando eles pisavam
longe demais da linha invisível.
- Obrigado por ter vindo, Jane - disse Gansey.
Blue lhe lançou um olhar fuzilante.
- De nada, Dick.
Ele pareceu chateado.
- Por favor, não.
Aquela expressão genuína roubou toda a alegria de usar o seu nome verdadeiro. Ela seguiu caminhando.
- Você é a única que não parece perturbada com essa busca - ele disse, após um momento. - Não é que eu esteja acostumado com isso, mas já vi algumas coisas tão incríveis
antes, que acho que eu só... Mas o Ronan, o Adam e o Noah parecem todos... estupefatos.
Blue fingiu que sabia o que estupefatos queria dizer.
- Mas eu convivo com isso. Quer dizer, minha mãe é médium. Todas as amigas dela são paranormais. Isto é... bem, não é como se fosse normal. Mas é como eu sempre
achei que seria ser como elas. Sabe, ver coisas que as outras pessoas não veem.
- Eu passei anos tentando dar um jeito nisso - admitiu Gansey. Havia algo a respeito do timbre da voz dele que surpreendia Blue. Só quando ele falou novamente que
ela percebeu que ele estava usando o tom que ela o ouvira usar com Adam. - Passei dezoito meses tentando encontrar a linha de Henrietta.
- Era o que você esperava?
- Eu não sei o que eu esperava. Eu já tinha lido tudo sobre os efeitos da linha, mas nunca achei que eles fossem tão claros. Tão... Nunca esperei as árvores. Nunca
esperei que acontecesse tão rápido também. Estou acostumado a conseguir uma pista por mês, então checar todas as possibilidades até que outra apareça. Não isso.
- Gansey fez uma pausa e abriu um sorriso largo e generoso. - Isso é tudo por sua causa. Encontrar finalmente a linha. Eu poderia te dar um beijo.
Apesar de ele estar obviamente brincando, Blue se afastou para o lado.
- Por que você fez isso?
Ela perguntou:
- Você acredita em médiuns?
- Bom, eu fui a uma, não fui?
- Isso não quer dizer nada. Um monte de gente vai apenas para se divertir.
- Eu fui porque acredito. Bom, eu acredito naqueles que são bons no que fazem. Só acho que tem um monte de charlatões que se deve peneirar para chegar até eles.
Por quê?
Blue cravou violentamente o chão com seu pedaço de pau para espantar cobras.
- Porque desde que eu nasci a minha mãe me diz que, se eu beijar meu verdadeiro amor, ele vai morrer.
Gansey riu.
- Não ria, seu... - Blue ia dizer canalha, mas pareceu uma palavra forte demais e ela perdeu a coragem.
- Bom, é só aquele tipo de coisa que soa alarmante demais, não é? Não saia com um garoto ou você vai ficar cega. Beije seu verdadeiro amor e ele vai te morder.
- Não foi só ela! - Blue protestou. - Toda médium ou paranormal que eu conheço me diz a mesma coisa. Além disso, minha mãe não é assim. Ela não brincaria com uma
coisa dessas. Não é fingimento.
- Desculpe - disse Gansey, percebendo que ela estava realmente irritada com ele. - Eu estava sendo um idiota de novo. Você sabe como ele vai morrer, esse cara azarado?
Blue deu de ombros.
- Ah. O diabo está nos detalhes, imagino. Então você simplesmente não beija ninguém por precaução? - ele perguntou e a observou assentir com a cabeça. - Isso me
parece cruel, Jane. Não vou mentir.
Ela deu de ombros de novo.
- Eu não conto para as pessoas normalmente. Não sei por que te contei. Não conte para o Adam.
As sobrancelhas de Gansey se espetaram no centro da testa.
- É assim com ele, então?
O rosto dela ficou instantaneamente quente.
- Não. Quer dizer... Não. Não. É só que, como não é... como eu não sei... eu prefiro não dar sopa pro azar.
Blue fantasiou que o tempo havia voltado e começado de novo com eles saindo do carro e, em vez de ter essa conversa, eles falavam sobre o clima e quais aulas ele
estava fazendo. Parecia que seu rosto jamais pararia de queimar.
A voz de Gansey, quando ele respondeu, soou um pouco dura.
- Bom, se você matasse o Adam, eu ficaria bastante chateado.
- Vou fazer o meu melhor para isso não acontecer.
Por um momento, o silêncio foi desconfortável, então ele disse, com uma voz mais normal:
- Obrigado por me contar. Quer dizer, por me confiar algo assim.
Aliviada, Blue respondeu:
- Bom, você me contou como você se sentia em relação ao Ronan e ao Adam e aquela história de estupefatos. Tem só uma coisa que eu ainda quero saber... Por que você
está procurando? O Glendower?
Ele sorriu pesarosamente, e por um momento Blue temeu que ele estivesse prestes a virar o Gansey petulante e metido, mas no fim ele apenas disse:
- É uma história difícil de resumir.
- Você está numa escola que vai te levar para as melhores universidades do país. Tente.
- Tudo bem. Por onde começar? Talvez... Você viu a seringa de adrenalina. É para picadas. Eu sou alérgico. Muito alérgico.
Blue parou onde estava, alarmada. Marimbondos faziam ninhos no chão, e aquele era um território primordial para eles: áreas sossegadas, próximas de árvores.
- Gansey! Estamos no campo. Onde as abelhas vivem!
Ele fez um gesto desdenhoso, como se estivesse ansioso para encerrar aquele assunto.
- Continue cutucando as coisas com seu pedaço de pau e não vai acontecer nada.
- Meu pedaço de pau! Nós caminhamos a semana inteira na mata! Isso é terrivelmente...
- Descuidado? - sugeriu Gansey. - A verdade é que não faz nem sentido ter uma seringa de adrenalina. A última que me contaram foi que ela funcionaria apenas se eu
fosse picado uma vez, e mesmo assim eles não sabem. Eu tinha quatro anos a primeira vez que fui parar no hospital por causa de uma picada, e as reações só pioraram
depois disso. A verdade é essa. É isso ou viver numa bolha.
Blue pensou na carta da Morte e como sua mãe não a havia interpretado realmente para Gansey. Era possível, ela pensou, que a carta não tivesse sido de maneira alguma
sobre a tragédia prevista de Gansey, mas, em vez disso, sobre a vida dele, como ele caminhava lado a lado com a morte todos os dias.
Com o pedaço de pau, Blue dava pauladas no chão à frente deles.
- Ok, vá em frente.
Gansey apertou os lábios, então os soltou.
- Bom, sete anos atrás, eu estava em um jantar com meus pais. Não lembro o que era exatamente. Acho que um dos amigos do meu pai tinha sido indicado pelo partido.
- Para o... Congresso?
O chão debaixo dos pés deles ou o ar à sua volta vibrou com um trovão.
- Acho que sim. Não lembro. Sabe quando às vezes você não lembra de tudo direito? O Ronan diz que as memórias são como sonhos. Você nunca lembra como chegou até
a sala de aula pelado. Enfim, a festa estava chata, eu tinha nove ou dez anos. Estavam todos de vestidinho preto e gravata vermelha, e tinha todas as comidas que
você pudesse imaginar, desde que fosse camarão. Alguns meninos começaram a brincar de esconde-esconde. Lembro que eu me achava velho demais para brincar de esconde-esconde,
mas não tinha mais nada para fazer.
Blue e ele entraram em um capão estreito de árvores, esparsas o suficiente para que a relva crescesse entre elas, em vez de arbustos. Aquele Gansey, aquele Gansey
contador de histórias, era uma pessoa completamente diferente de qualquer uma das outras versões dele que ela havia encontrado. Ela não conseguia não ouvir.
- Estava quente como o Hades. Era primavera, mas parecia verão. Primavera na Virgínia, sabe como é. Pesada, de certa maneira. Não tinha sombra no quintal, mas tinha
um grande bosque ali perto. Escuro, verde e azul. Era como mergulhar em um lago. Então eu entrei nele, e era incrível. Em apenas cinco minutos eu não conseguia mais
ver a casa.
Blue parou de cutucar o chão.
- Você se perdeu?
Gansey balançou a cabeça um pouco.
- Eu pisei em um ninho. - Seus olhos estavam estreitados daquela maneira que as pessoas fazem quando estão se esforçando para parecer casuais, mas era óbvio que
aquela história era qualquer coisa menos casual para ele. - Marimbondos, como você disse. Eles fazem ninhos no chão. Não preciso dizer isso para você. Mas eu não
sabia na época. A primeira coisa que eu senti foi uma pequena alfinetada na meia. Achei que tinha pisado num espinho. Tinha uma tonelada deles, aqueles espinhos
verdes em forma de chicote. Mas então senti mais uma. Eram umas pontadas tão pequenas, sabe?
Blue se sentiu um pouco enjoada.
Ele continuou:
- Mas então eu senti uma na mão, e quando saltei para longe eu vi os marimbondos. Eles enchiam meus dois braços.
De algum modo, ele a levara até ali, até aquele momento de descoberta. Blue sentia o coração pesado, atingido por uma seta envenenada.
- O que você fez? - ela perguntou.
- Eu sabia que estava morto. Eu sabia que estava morto antes de começar a sentir tudo dar errado no meu corpo. Porque eu tinha ido parar no hospital por causa de
uma picada, e aquilo era, tipo, cem picadas. Eles estavam no meu cabelo, dentro dos meus ouvidos, Blue.
- Você ficou com medo?
Ele não precisou responder. Blue viu no vazio de seus olhos.
- O que aconteceu?
- Eu morri - ele disse. - Eu senti meu coração parar. Os marimbondos não se importaram. Eles continuavam me picando, mesmo eu já estando morto.
Gansey parou, depois disse:
- Agora vem a parte mais difícil.
- São as minhas favoritas - respondeu Blue. As árvores estavam em silêncio em volta deles; o único som eram os rugidos dos trovões. Após uma pausa, ela acrescentou,
um pouco envergonhada: - Desculpe. Não era minha intenção ser... mas a minha vida inteira tem sido a "parte mais difícil". Ninguém acredita no que a minha família
faz. Não vou rir.
Ele soltou o ar lentamente.
- Eu ouvi uma voz, um sussurro. Não vou esquecer o que ela disse. Ela disse: "Você vai viver por causa de Glendower. Alguém na linha ley está morrendo quando não
deveria, e assim você vai viver quando não deveria".
Blue estava em absoluto silêncio. O ar os pressionava.
- Eu contei para a Helen. Ela disse que foi uma alucinação. - Gansey afastou do rosto uma trepadeira suspensa. O mato estava ficando mais fechado ali, as árvores
mais próximas. Eles provavelmente deviam voltar. Sua voz era peculiar. Formal e determinada. - Não foi uma alucinação.
Aquele era o Gansey que havia escrito o diário. A verdade daquilo, a mágica daquilo, tomou conta dela.
Blue perguntou:
- E isso basta para fazer com que você passe a vida inteira procurando Glendower?
Gansey respondeu:
- Assim que Artur ficou sabendo que o Santo Graal existia, como ele poderia não procurar por ele?
Um trovão rosnou debaixo deles mais uma vez, o rosnar faminto de uma fera invisível.
Blue disse:
- Isso não é realmente uma resposta.
Ele não olhou para ela e respondeu com uma voz terrível:
- Eu preciso, Blue.
Todas as luzes no frequencímetro se apagaram.
Igualmente aliviada por estar de volta a um terreno seguro e desapontada por não espiar mais profundamente dentro do Gansey de verdade, Blue tocou a máquina.
- Nós saímos da linha?
Eles recuaram vários metros, mas a máquina não religou.
- A bateria está fraca? - ela sugeriu.
- Eu não sei como verificar. - Gansey a desligou e então a ligou de novo.
Blue estendeu a mão para o leitor. Assim que ela o tomou dele, as luzes irromperam num vermelho muito intenso. Ela o virou de um lado para o outro. Laranja para
a esquerda. Vermelho para a direita.
Os dois trocaram um olhar.
- Pegue o leitor de volta - disse Blue.
Mas tão logo Gansey tocou o frequencímetro, as luzes se apagaram de novo. Quando o trovão veio dessa vez, sedutor e crepitante, ela sentiu que ele fazia algo dentro
dela tremer, o que não parou após o som ter morrido.
- Eu fico achando que tem que ter uma explicação lógica - disse Gansey. - Mas não encontrei uma a semana inteira.
Blue pensou que provavelmente havia uma explicação lógica, e achou que era isto: Blue tornava as coisas mais perceptíveis. Só que ela não fazia ideia do que estava
amplificando no momento.
O ar estremeceu de novo enquanto um trovão grunhiu. Não havia sinal do sol agora. Tudo que sobrara era o ar verde e pesado em volta deles.
Ele perguntou:
- Para onde ele está nos levando?
Deixando que a luz vermelha sólida os levasse, Blue avançou hesitantemente pelas árvores. Eles tinham caminhado apenas alguns metros quando a máquina apagou de novo.
Dessa vez não adiantou trocar de mão e tentar mexer. O leitor não piscou mais.
Os dois pararam com a máquina entre eles, a cabeça baixa próxima uma da outra, olhando em silêncio para o visor escuro.
Blue perguntou:
- E agora?
Gansey olhou para o chão.
- Dê um passo para trás. Tem...
- Ai, meu Deus - exclamou Blue, distanciando-se com um pulo. Então, mais uma vez: - Ai, meu...
Mas ela não conseguiu terminar a frase, pois tinha acabado de tirar o pé de algo que parecia terrivelmente com o osso de um braço humano. Gansey foi o primeiro a
se agachar, tirando as folhas do osso. Certamente, debaixo do primeiro osso havia um segundo. Um relógio sujo envolvia o osso do pulso. Tudo parecia irreal, um esqueleto
na mata.
Isso não pode estar acontecendo.
- Ah, não - Blue sussurrou. - Não toque nele. Impressões digitais.
Mas o corpo já estava muito além de impressões digitais. Os ossos estavam limpos como peças de museu, a carne havia caído fazia tempo, restando apenas os farrapos
do que quer que a pessoa estivesse vestindo. Tirando cuidadosamente as folhas, Gansey descobriu o esqueleto inteiro. Ele repousava contorcido, uma perna torta para
cima, os braços esparramados de cada lado do crânio, o quadro congelado de uma tragédia. O tempo havia poupado determinados elementos e levado outros: o relógio
estava ali, mas a mão não. A camisa tinha se consumido, mas a gravata permanecia, ondulada sobre os montes e vales dos ossos das costelas. Os sapatos estavam sujos,
mas intactos. As meias também estavam preservadas dentro dos sapatos de couro, como sacos na altura dos tornozelos.
A maçã do rosto estava afundada. Blue se perguntou se fora assim que a pessoa havia morrido.
- Gansey - disse ela, com a voz inexpressiva. - Ele era um garoto. Ele era um garoto da Aglionby.
Ela apontou para a caixa torácica. Amarfanhada entre duas costelas nuas havia uma insígnia da Aglionby, as fibras sintéticas do ornamento impermeáveis ao tempo.
Eles se encararam sobre o corpo. Um raio iluminou o perfil de seus rostos. Blue estava absolutamente consciente do crânio por baixo da pele de Gansey, suas maçãs
do rosto tão próximas da superfície, altas e angulosas como aquelas na carta da Morte.
- Precisamos ligar para a polícia - disse ela.
- Espere - ele respondeu. Gansey só precisou de um momento para encontrar uma carteira debaixo do osso do quadril. Era de um couro bom, enlameada e manchada, mas
na maior parte inteira. Gansey a abriu, examinando as bordas multicoloridas dos cartões de crédito que se alinhavam de um lado. Ele viu a borda de cima de uma carteira
de motorista e a puxou com o polegar.
Blue ouviu a respiração de Gansey presa pelo choque absoluto.
O rosto na carteira de motorista era de Noah.
Às oito da noite, Gansey ligou para Adam na fábrica de trailers.
- Estou indo aí pegar você - disse e desligou.
Ele não disse que era importante, mas aquela foi a primeira vez que ele havia pedido que Adam deixasse o trabalho, então devia ser realmente importante.
Na rua, o Camaro rodava o motor em marcha lenta no estacionamento, com a vibração irregular ecoando pela escuridão. Adam entrou no carro.
- Eu explico quando chegarmos lá - disse Gansey.
Ele engatou a marcha e pisou fundo de tal maneira que os pneus de trás guincharam no asfalto quando eles partiram. Pela expressão de Gansey, Adam achou que algo
havia acontecido a Ronan. Talvez, finalmente, Ronan houvesse acontecido a Ronan. Mas não foi para o hospital que eles se dirigiram. O Camaro disparou direto para
o terreno do lado de fora da Indústria Monmouth. Juntos, eles subiram os degraus escuros e barulhentos que levavam para o segundo andar. Sob as mãos de Gansey, a
porta se escancarou, batendo contra a parede.
- Noah! - ele gritou.
O quarto se estendia sem limite no escuro. Contra as janelas, a Henrietta em miniatura era uma linha falsa da cidade. O despertador de Gansey tocava continuamente,
soando um alarme para uma hora que havia passado há muito tempo.
Os dedos de Adam procuraram sem sucesso pelo disjuntor da luz.
Gansey gritou mais uma vez:
- Nós precisamos conversar. Noah!
A porta para o quarto de Ronan se abriu, soltando um facho de luz. Ronan formava uma silhueta no vão da porta, uma mão fechada contra o peito, o filhote de corvo
encolhido entre os dedos. Ele tirou um par de fones de ouvido macios e caros dos ouvidos e os enrolou em torno do pescoço.
- Cara, você voltou tarde. Parrish? Achei que você estivesse trabalhando.
Então Ronan não sabia mais do que Adam. Adam sentiu uma ponta de alívio com aquilo, que rapidamente se extinguiu.
- Eu estava - disse ele finalmente, encontrando o disjuntor de luz. O quarto tinha virado um planeta crepuscular, os cantos vivos com sombras de línguas afiadas.
- Onde está o Noah? - demandou Gansey, puxando o cabo de alimentação do despertador da parede para silenciá-lo.
Ronan avaliou o estado de Gansey e ergueu uma sobrancelha.
- Saiu.
- Não - disse Gansey, enfático -, ele não saiu. Noah!
Ele recuou até o centro do quarto, virando-se para olhar nos cantos, nas vigas, procurando em lugares em que ninguém jamais acharia um colega de quarto. Adam hesitou
ao lado da porta. Ele não conseguia entender o que aquilo poderia ter a ver com Noah: Noah, que podia passar despercebido por horas, cujo quarto era intacto, cuja
voz nunca se elevava.
Gansey parou de procurar e se virou para Adam.
- Adam - ele demandou -, qual é o sobrenome do Noah?
Antes de Gansey perguntar, Adam sentia como se certamente soubesse. Mas agora a resposta escapou de sua boca e de seus pensamentos inteiramente, deixando seus lábios
entreabertos. Era como se perder a caminho da aula, se perder a caminho de casa, esquecer o número de telefone da Indústria Monmouth.
- Eu não sei - admitiu Adam.
Gansey apontou para o peito de Adam como se estivesse atirando com uma arma ou salientando um ponto.
- É Czerny. Zerny. Chér-ni. Qualquer que seja a pronúncia. Noah Czerny. - Jogando a cabeça para trás, ele gritou para o ar: - Eu sei que você está aqui, Noah.
- Cara - observou Ronan. - Você pirou.
- Abra a porta dele - ordenou Gansey. - Me conte o que tem ali.
Com um dar de ombros cortês, Ronan deslizou do vão da porta e virou a maçaneta da porta de Noah. Ela se abriu, revelando o canto de uma cama sempre arrumada.
- Como sempre, parece o quarto de uma freira - disse Ronan. - Ou de um hospício. O que eu estou procurando? Drogas? Garotas? Armas?
- Me diz - perguntou Gansey - que aulas você faz com o Noah.
Ronan bufou.
- Nenhuma.
- Eu também não - respondeu Gansey, olhando para Adam, que balançou a cabeça ligeiramente. - Nem o Adam. Como isso é possível? - Ele não esperou por uma resposta,
no entanto. - Quando ele come? Vocês já o viram comer?
- Eu não me importo, na verdade - disse Ronan, acariciando a cabeça de Motosserra com um único dedo, que virou o bico para cima em resposta. Foi um momento estranho
em uma noite estranha, e, se isso tivesse acontecido no dia anterior, teria chamado a atenção de Adam, pois ele raramente via uma bondade irrefletida como aquela
vindo de Ronan.
Gansey disparou perguntas para os dois:
- Ele paga aluguel? Quando ele se mudou para cá? Vocês já se perguntaram sobre isso um dia?
Ronan balançou a cabeça.
- Cara, você realmente saiu da casinha. Qual é o problema?
- Eu passei a tarde com a polícia - disse Gansey. - Fui com a Blue até a igreja...
Agora o ciúme atingiu Adam como uma facada, profunda e inesperada, uma ferida que seguia ardendo, não menos dolorosa por ele não ter certeza do que, precisamente,
o tinha atingido.
Gansey continuou:
- Não olhem para mim desse jeito, vocês dois. O fato é o seguinte: nós encontramos um corpo. Apodrecido até os ossos. Vocês sabem de quem era?
Ronan sustentou no seu o olhar firme de Gansey.
Adam sentiu como se tivesse sonhado a resposta para aquela questão.
Atrás deles, a porta para o apartamento subitamente se fechou com violência. Eles se viraram rapidamente para encará-la, mas não havia ninguém ali, apenas a vibração
dos cantos dos mapas na parede para mostrar que ela havia se movido.
Os garotos olharam fixamente para o movimento sutil do papel e ouviram o eco da batida.
Não ventava, mas Adam sentiu um arrepio na pele.
- Meu - disse Noah.
Como se fossem um, eles giraram de volta.
Noah estava parado no vão da porta do quarto.
Sua pele era pálida como um pergaminho, e seus olhos, sombreados e fora de foco, como sempre ficavam de noite. Havia a onipresente mancha em seu rosto, só que agora
parecia terra, sangue ou possivelmente com um buraco, os ossos esmigalhados por baixo da pele.
A postura de Ronan era rígida.
- Seu quarto estava vazio. Acabei de olhar.
- Eu disse para vocês - Noah falou. - Eu disse para todo mundo.
Adam teve de fechar os olhos por um longo momento.
Gansey parecia finalmente ter recuperado o controle. O que ele precisava da vida eram fatos, coisas que ele pudesse escrever em seu diário, coisas que pudesse citar
duas vezes e sublinhar, não importava quão improváveis elas fossem. Adam percebeu que o tempo inteiro Gansey não sabia realmente o que encontraria quando o levara
ali. Como ele poderia? Como alguém poderia realmente acreditar...
- Ele está morto - disse Gansey, com os braços cruzados firmemente sobre o peito. - Você está morto, não está?
A voz de Noah soou melancólica.
- Eu disse para vocês.
Eles olharam para ele, perto de Ronan. Realmente, ele era bem menos real do que Ronan, pensou Adam - aquilo deveria ter sido óbvio. Era absurdo que eles não tivessem
notado. Ridículo que não tivessem pensado em seu sobrenome, de onde ele tinha vindo, nas aulas a que ele ia ou deixava de ir. Suas mãos pegajosas, seu quarto intacto,
seu rosto manchado sempre igual. Ele estava morto desde que eles o conheciam.
A realidade era como uma ponte desmoronando debaixo de Adam.
- Que merda, cara - disse Ronan, por fim. E um pouco desesperado: - Todas essas noites que você me encheu sobre te deixar acordado, e você nem precisa dormir!
Adam perguntou com uma voz que mal se ouvia:
- Como você morreu?
Noah virou o rosto.
- Não - disse Gansey, a resolução cristalizada na palavra. - A questão não é essa, é? A questão é: quem matou você?
Agora Noah exibia a expressão reclusa que tinha quando algo o deixava desconfortável. O queixo virado, os olhos embaçados e alheios. Subitamente, Adam estava profundamente
consciente de que Noah era uma coisa morta e ele não.
- Se você puder me contar - disse Gansey -, eu posso descobrir uma maneira de colocar a polícia no caminho certo.
O queixo de Noah havia encolhido ainda mais, e sua expressão era, de algum modo, negra, as órbitas dos olhos vazias, lembrando uma caveira. Eles estavam olhando
para um garoto? Ou algo que parecia um garoto?
Adam queria dizer: Não o pressione, Gansey.
Nas mãos de Ronan, Motosserra começou a gritar. Guinchos desesperados que atravessavam o ar. Era como se não houvesse nada no mundo a não ser o ruído daqueles gritos
frenéticos. Parecia impossível que um corpo tão pequeno pudesse fazer um ruído tão grande.
Noah ergueu a cabeça, com os olhos bem abertos e normais. Ele parecia assustado.
Ronan tapou a cabeça do pássaro com uma mão até que ele se acalmou.
Noah disse:
- Eu não quero falar sobre isso.
Seus ombros estavam encolhidos próximos às orelhas, e ele parecia, agora, com o Noah que eles sempre conheceram. O Noah que eles nunca questionaram se era um deles.
Um dos vivos.
- Tudo bem - disse Gansey. Então, novamente: - Tudo bem. O que você gostaria de fazer?
- Eu gostaria... - Noah começou, deixando a frase inacabada como ele sempre fazia, sumindo de volta em seu quarto. Isso era o que Noah fazia quando estava vivo,
pensou Adam, ou seria um exercício de estar morto, de tentar manter uma conversa comum?
Ronan e Adam olharam ao mesmo tempo para Gansey. Parecia que não havia mais nada a ser feito ou dito. Até Ronan parecia vencido, com as farpas de sempre escondidas.
Até eles terem certeza de quais eram as novas regras, ele também parecia relutante em descobrir como o Noah de outro mundo poderia ser quando provocado.
Desviando o olhar dos outros, Gansey chamou:
- Noah?
O espaço no vão da porta de Noah estava vazio.
Na soleira do quarto, Ronan empurrou a porta, abrindo-a completamente. O cômodo parecia sério e intocado, a cama visivelmente não utilizada.
O mundo zunia à volta de Adam, subitamente carregado de possibilidades, nem todas agradáveis. Ele sentiu como se estivesse sonâmbulo. Nada era verdade até que ele
pudesse colocar as mãos nela.
Ronan começou a praguejar de maneira longa, suja e contínua, sem parar para respirar.
Preocupado, Gansey corria o polegar sobre o lábio inferior. Então perguntou a Adam:
- O que está acontecendo?
Adam respondeu:
- Estamos sendo assombrados.
Blue estava sofrendo mais do que achou que estaria pelo fato de Noah estar morto. Do contato com a polícia, era claro que ele nunca estivera vivo, pelo menos não
desde que ela o conhecera, mas mesmo assim ela sentia um curioso pesar em relação à história. Para começar, a presença de Noah em Monmouth mudou distintamente após
eles terem descoberto seu corpo. Eles nunca pareciam ter o Noah inteiro novamente: Gansey ouvia a voz dele no estacionamento, ou Blue via sua sombra se projetar
ao longo da calçada enquanto ia para Monmouth, ou Ronan encontrava arranhões em sua pele.
Ele sempre fora um fantasma, mas agora estava agindo como um.
- Talvez - sugeriu Adam - seja porque o corpo dele foi tirado da linha ley.
Blue não conseguia parar de pensar no crânio com o rosto afundado e em Noah passando mal ao ver o Mustang. Sem vomitar de verdade. Apenas fazendo as ações envolvidas
no ato, porque na verdade ele já estava morto.
Ela queria descobrir quem tinha feito aquilo e que apodrecesse em uma cela pelo resto da vida.
Blue estava tão absorta com a tragédia de Noah que quase esqueceu que ela e Calla haviam combinado de fazer uma busca no quarto de Neeve na sexta-feira. Calla devia
ter percebido que ela estava distraída, pois deixara um bilhete descaradamente óbvio na geladeira para que Blue visse antes de ir para a escola: BLUE - NÃO SE ESQUEÇA
DO FILME HOJE À NOITE. Blue surrupiou o lembrete da geladeira e o enfiou na mochila.
- Blue - disse Neeve.
Ela saltou tão alto quanto possível para um ser humano e girou ao mesmo tempo. Neeve estava sentada à mesa da cozinha, com uma xícara de chá diante dela e um livro
na mão. Usava uma camisa creme da mesmíssima cor das cortinas atrás dela.
- Eu não vi você aí! - disse Blue com a voz entrecortada. O bilhete na mochila parecia uma confissão abrasadora.
Neeve sorriu suavemente e colocou o livro de cabeça para baixo.
- Quase não vi você esta semana também.
- Eu... estive... fora... com... amigos. - Entre cada palavra, Blue dizia para si mesma para parar de soar suspeita.
- Eu fiquei sabendo sobre o Gansey - disse Neeve. - Avisei a Maura que não era inteligente tentar manter vocês dois separados. Está escrito claramente que o caminho
de vocês vai se cruzar.
- Ah. Hum... Obrigada mesmo.
- Você parece aflita - disse Neeve. Com uma de suas adoráveis mãos, ela bateu de leve no assento da cadeira ao lado dela. - Quer que eu olhe algo para você? Faça
uma leitura?
- Ah, obrigada, mas não posso. Tenho que ir para a escola - Blue disse rapidamente. Parte dela se questionou se Neeve perguntava essas coisas por gentileza ou como
uma psicologia invertida, porque ela sabia o que Calla e Blue estavam planejando. De qualquer maneira, Blue não queria ter nada a ver com as leituras que Neeve fazia.
Juntou suas coisas enquanto ia em direção à porta e fez um meio aceno descuidado por cima do ombro.
Ela tinha avançado apenas alguns passos quando Neeve disse:
- Você está procurando por um deus. Não suspeitou que tinha também um diabo?
Blue congelou no vão da porta. Ela virou a cabeça, sem encará-la realmente.
- Ah, eu não estive xeretando por aí - disse Neeve. - O que você está fazendo é grande o suficiente para que eu veja enquanto estou olhando para outras coisas.
Agora Blue a encarou. A expressão suave de Neeve não havia mudado; suas mãos estavam fechadas em torno da xícara.
- Números são fáceis para mim - disse Neeve. - Eles vieram primeiro. Eu sempre consegui tirá-los do nada. Datas importantes. Números de telefone. São os mais fáceis.
Mas a morte vem em segundo lugar. Posso dizer quando alguém a tocou.
Blue segurou firme as alças da mochila. Sua mãe e suas amigas eram estranhas, sim, mas elas sabiam que eram estranhas. Sabiam que estavam dizendo algo esquisito.
Neeve não parecia ter esse filtro.
Ela respondeu finalmente:
- Ele estava morto fazia tempo.
Neeve deu de ombros.
- Haverá mais antes que isso termine.
Sem saber o que dizer, Blue apenas balançou lentamente a cabeça.
- Eu só estou avisando - disse Neeve. - Cuidado com o diabo. Quando há um deus, sempre há uma legião de diabos.
Pela primeira vez na vida, Adam não estava feliz por ter um dia de folga em Aglionby. Sendo a sexta-feira um dia programado para o expediente dos professores, Gansey
fora relutantemente para a casa de seus pais, para o aniversário atrasado de sua mãe; Ronan, grosseiro como sempre, estava bebendo em seu quarto; e Adam estava estudando
na mesa de Gansey na Indústria Monmouth, na ausência dele. A escola pública estava tendo aulas normalmente, mas ele sempre podia ter a esperança de que Blue aparecesse
mais tarde.
O apartamento passava uma sensação opressiva sem ninguém mais na sala principal. Parte de Adam queria atrair Ronan para fora do quarto para ter companhia, mas a
maior parte dele percebia que Ronan estava, à sua maneira desagradável e muda, de luto por Noah. Então Adam permaneceu na mesa de Gansey, rabiscando uma tarefa de
latim, consciente de que a luz que entrava pelas janelas não parecia iluminar as tábuas do chão tão bem como de costume. As sombras se deslocavam e então se demoravam.
Adam sentiu o cheiro do vaso de hortelã na mesa de Gansey, mas também sentiu o cheiro de Noah - aquela combinação de desodorante, sabonete e suor.
- Noah - Adam disse para o apartamento vazio. - Você está aqui? Ou está assombrando o Gansey?
Não houve resposta.
Ele olhou para baixo, para o papel. Os verbos em latim pareciam sem sentido, uma linguagem fabricada.
- Podemos consertar isso, Noah? O que quer que tenha deixado você assim, em vez do jeito que era antes?
Adam deu um salto com o barulho de uma batida ao lado da mesa. Ele levou um momento para perceber que o vaso de hortelã de Gansey havia sido varrido para o chão.
Um único triângulo do pote de cerâmica havia se quebrado e pousava ao lado de um monte de terra.
- Isso não vai ajudar - disse Adam calmamente, mas ele estava perturbado. Entretanto, ele não tinha certeza do que ajudaria. Depois de terem descoberto os ossos
de Noah, Gansey havia chamado a polícia para aprofundar a investigação, mas eles não tinham descoberto muito mais, apenas que Noah tinha desaparecido havia sete
anos. Como sempre, Adam havia insistido que fossem reservados, e dessa vez Gansey tinha ouvido, não contando sobre a descoberta do Mustang para a polícia. O carro
os levaria a Cabeswater, e isso era complicado demais, público demais.
Ao ouvir uma batida na porta, Adam não respondeu logo em seguida, pensando que fosse Noah novamente. Mas então bateram de novo e surgiu a voz de Declan:
- Gansey!
Com um suspiro, Adam ficou de pé, recolocando o vaso de hortelã no lugar antes de ir abrir a porta. Declan estava parado na soleira, sem o uniforme de Aglionby nem
o terno de estagiário. Ele parecia uma pessoa diferente de jeans, mesmo que eles fossem impecavelmente escuros e caros. Parecia mais jovem do que Adam normalmente
o via.
- Oi, Declan.
- Onde está o Gansey? - Declan demandou.
- Não está aqui.
- Ah, fala sério.
Adam não gostava de ser acusado de mentir. Normalmente ele tinha meios melhores de conseguir o que queria.
- Ele foi para casa, para o aniversário da mãe dele.
- Onde está o meu irmão?
- Não está aqui.
- Agora você está mentindo.
Adam deu de ombros.
- Sim, estou.
Declan avançou para passar por ele, mas Adam estendeu o braço, bloqueando a porta.
- Agora não é uma boa hora. E o Gansey disse que não era uma boa ideia vocês dois conversarem sem ele por perto. E acho que ele está certo.
Declan não recuou. O peito dele pressionava o braço de Adam. Adam sabia apenas isto: não havia a menor possibilidade de que Declan pudesse falar com Ronan naquele
momento. Não se Ronan estivesse bebendo, não se Declan já estivesse irado. Sem Gansey ali, certamente haveria uma briga. Essa era a única coisa que importava.
- Você não vai brigar comigo, vai? - perguntou Adam, como se não estivesse nervoso. - Achei que isso era coisa do Ronan, não sua.
A colocação funcionou melhor do que Adam imaginara; Declan imediatamente deu um passo para trás. Do bolso de trás da calça, tirou um envelope dobrado. Adam reconheceu
o timbre da Aglionby no endereço do remetente.
- Ele está sendo expulso - disse Declan, enfiando o envelope na direção de Adam. - Gansey tinha me prometido que ia melhorar as notas dele. E isso não aconteceu.
Eu confiei no Gansey e ele me decepcionou. Quando ele voltar, diga que ele conseguiu fazer meu irmão ser expulso.
Aquilo era mais do que Adam podia suportar.
- Ah, não - disse ele, esperando que Ronan estivesse ouvindo. - O Ronan fez tudo isso sozinho. Eu não sei quando vocês dois vão perceber que só o Ronan pode resolver
essa situação. Algum dia ele vai ter que se virar sozinho. Até esse dia chegar, vocês dois estão perdendo tempo.
Não importava quanto fosse verdadeiro, não havia argumento que Adam Parrish pudesse apresentar, com seu sotaque de Henrietta, que demovesse alguém como Declan.
Adam redobrou o envelope. Gansey ficaria doente com aquilo. Por um brevíssimo momento, Adam considerou não repassar a carta até que fosse tarde demais, mas ele sabia
que seu caráter não lhe permitiria fazer isso.
- Fique tranquilo que a carta vai chegar às mãos dele.
- Ele vai embora daqui - disse Declan. - Lembre o Gansey disso. Sem Aglionby, nada de Monmouth.
Então você matou o seu irmão, pensou Adam, porque não podia imaginar Ronan vivendo sob o mesmo teto que Declan. Ele não podia imaginar Ronan vivendo sem Gansey,
ponto-final. Mas tudo o que disse foi:
- Vou dizer a ele.
Declan desceu as escadas, e, um momento mais tarde, Adam ouviu o carro dele deixando o estacionamento.
Adam abriu o envelope e lentamente leu a carta que havia dentro. Com um suspiro, retornou à mesa, pegou o telefone que se encontrava ao lado do vaso de hortelã quebrado
e digitou o número de memória.
- Gansey?
A várias horas de distância, Gansey estava começando a perder o interesse no aniversário da mãe. A ligação de Adam eliminou o pouco de leveza que ainda havia em
seu humor, e não demorou muito para que Helen e a mãe de Gansey se envolvessem em uma conversa educadamente queixosa que elas fingiam não ser sobre o prato que não
era de vidro presenteada por Helen. Durante um diálogo particularmente tenso, Gansey colocou as mãos nos bolsos e saiu para a garagem do pai.
Geralmente, sua casa - uma enorme mansão de pedra nas proximidades de Washington, D.C. - representava uma espécie de conforto nostálgico, mas, naquele dia, Gansey
estava sem paciência para ela. Ele só conseguia pensar no esqueleto de Noah, nas notas terríveis de Ronan e nas árvores que falavam latim.
E em Glendower.
Glendower, deitado em sua bela armadura, mal iluminado na escuridão de sua tumba. Na visão de Gansey na árvore, ele parecera tão real. Gansey havia tocado a superfície
coberta de pó da armadura, corrido os dedos sobre a ponta da lança que repousava ao lado dele, assoprado o pó da taça envolvida na manopla que cobria a mão direita
de Glendower. Quando chegou ao capacete, havia deixado que suas mãos pairassem sobre ele, sem que o tocassem. Aquele era o momento pelo qual estivera esperando,
a descoberta, o despertar.
E foi então que sua visão terminou.
Gansey sempre sentira como se existissem dois dele: o Gansey que estava no controle, capaz de lidar com qualquer situação, capaz de falar com qualquer pessoa, e
o outro, o Gansey mais frágil, ansioso e inseguro, embaraçosamente sério, movido por uma aspiração ingênua. Esse segundo Gansey se manifestava dentro dele agora,
mais do que nunca, e ele não gostava disso.
Ele apertou o código-chave (o aniversário de Helen) no painel perto da porta da garagem. Esta, tão grande quanto a casa, era toda de pedra, madeira e tetos em arco,
um estábulo que abrigava milhares de cavalos cobertos com capas.
Assim como Dick Gansey III, Dick Gansey II também adorava carros velhos, mas, diferentemente de Dick Gansey III, todos os carros do velho Gansey haviam sido restaurados
perfeita e elegantemente por especialistas familiarizados com termos como rotisserie e Barrett-Jackson. A maioria havia sido importada da Europa e muitos tinham
a direção do lado direito ou vieram com o manual do proprietário em uma língua estrangeira. E, mais importante, os carros do seu pai eram todos famosos de alguma
maneira: tinham sido de uma celebridade, parte da cena de um filme ou se envolvido num acidente de alguém famoso.
Gansey se ajeitou em um Peugeot da cor de um sorvete de creme que provavelmente havia sido de Lindbergh, Hitler ou Marilyn Monroe. Recostando-se no assento, com
os pés pousados sobre os pedais, Gansey percorreu os cartões de visita na carteira com o dedão e por fim ligou para o orientador educacional da escola, sr. Pinter.
Enquanto o telefone tocava, Gansey invocou aquela versão controlada de si mesmo que ele sabia que espreitava dentro dele.
- Sr. Pinter? Desculpe ligar para o senhor fora do expediente - disse Gansey, passando a pilha de cartões de crédito e de visita sobre a direção. Todo o interior
do carro lhe lembrava bastante a batedeira de sua mãe. O câmbio, pelo jeito, poderia fazer um merengue razoável, quando não estivesse movendo o carro da primeira
marcha para a segunda. - Aqui é Richard Gansey.
- Sr. Gansey - disse Pinter, levando um tempo muito longo para dizer as sílabas, durante o qual Gansey o imaginou lutando para colocar um rosto em um nome. Pinter
era um homem motivado e metódico que Gansey chamava de "muito tradicional" e que Ronan considerava "uma fábula moral".
- Estou ligando em nome de Ronan Lynch.
- Ah. - Pinter não precisou de tempo para associar um rosto ao nome. - Bem, eu não posso realmente discutir os detalhes da expulsão iminente do sr. Lynch...
- Com todo respeito, sr. Pinter - interrompeu Gansey, absolutamente consciente de que não estava concedendo respeito algum a ele ao fazer isso. - Não sei ao certo
se o senhor sabe da nossa situação específica.
Ele coçou a nuca com um cartão de crédito enquanto explicava o estado emocional frágil de Ronan, as provações agonizantes do sonambulismo, as alegrias reconfortantes
da Indústria Monmouth e os avanços que eles haviam alcançado desde que Ronan passara a viver com eles. Gansey concluiu com um resumo de tese sobre sua certeza de
quanto sucesso Ronan Lynch teria uma vez que ele encontrasse uma maneira de tapar o buraco, em forma de Niall Lynch, que sangrava em seu coração.
- Eu não estou inteiramente convencido de que o sucesso futuro do sr. Lynch seja do tipo que a Aglionby acalenta - disse Pinter.
- Sr. Pinter - protestou Gansey, apesar de estar inclinado a concordar com ele nesse ponto. E girou a manivela da janela. - A Aglionby tem um corpo discente variado
e complexo. Esse é um dos motivos por que meus pais a escolheram para mim.
Na verdade, haviam sido quatro horas de Google e um telefonema persuasivo com seu pai, mas Pinter não precisava saber disso.
- Sr. Gansey, eu estimo sua preocupação com seu ami...
- Irmão - interrompeu Gansey. - Eu passei a ver o Ronan realmente como um irmão. E para os meus pais ele é um filho. Em todos os sentidos da palavra. Emocionalmente,
praticamente, fiscalmente.
Pinter não disse nada.
- Da última vez que o meu pai visitou a biblioteca da Aglionby, ele achou que ela parecia um pouco desfalcada no departamento de história náutica - disse Gansey,
enfiando o cartão de crédito nas saídas de ar para ver até onde ele iria antes de encontrar alguma resistência. Gansey teve de segurar o cartão antes que ele desaparecesse
nas entranhas do carro. - Ele percebeu que a biblioteca parecia um... buraco de trinta mil dólares no orçamento.
A voz de Pinter soou um pouco mais grave quando ele disse:
- Creio que o senhor não compreende por que a permanência do sr. Lynch em Aglionby está sendo ameaçada. Ele não faz nenhum caso dos regulamentos da escola e não
parece ter nada além de desprezo pelos estudos. Nós demos um desconto para ele considerando suas circunstâncias pessoais extremamente difíceis, mas ele parece esquecer
que estudar na Academia Aglionby é um privilégio, e não um fardo. A expulsão dele deverá ser efetivada a partir de segunda-feira.
Gansey se inclinou para frente e descansou a cabeça na direção. Ronan, Ronan, por quê...
Ele disse:
- Eu sei que ele está estragando tudo. Sei que ele devia ter sido mandado embora faz tempo. Apenas me dê um tempo, até terminarem as aulas. Eu consigo fazer o Ronan
passar nos exames finais.
- Ele não tem ido a nenhuma aula, sr. Gansey.
- Eu consigo fazer o Ronan passar nos exames finais.
Por um longo momento houve silêncio. Gansey ouviu o ruído de uma televisão ligada ao fundo.
Finalmente, Pinter disse:
- Ele tem de conseguir B em todos os exames finais. E andar na linha até lá, ou estará fora da Aglionby. É a última chance dele.
Endireitando-se, Gansey soltou o ar.
- Obrigado, senhor.
- E não esqueça o interesse do seu pai na nossa seção de história náutica. Estarei atento.
E Ronan achava que não tinha nada a aprender com Pinter. Gansey sorriu penosamente para o painel, embora estivesse tão longe de se sentir feliz como jamais estivera.
- Os barcos sempre foram parte importante da nossa vida. Obrigado por me atender fora do expediente.
- Aproveite o fim de semana, sr. Gansey - respondeu Pinter.
Gansey encerrou a chamada e jogou o telefone no painel. Fechou os olhos e suspirou um palavrão. Gansey havia arrastado Ronan pelos exames semestrais. Certamente
poderia fazer isso de novo. Ele tinha de fazer isso de novo.
O Peugeot balançou quando alguém sentou no banco do passageiro. Por um momento ofegante, Gansey pensou: Noah?
Mas então seu pai disse:
- Você está sendo seduzido por essa belezinha francesa? Esse Peugeot faz aquele seu carro parecer bem grosseiro, não?
Gansey abriu os olhos. Ao lado dele, seu pai correu uma palma sobre o painel do carro e então verificou se havia pó. Ele encarou Gansey com os olhos semicerrados,
como se pudesse determinar o estado das capacidades mentais e físicas do filho meramente olhando para ele.
- Ele é bacana - disse Gansey. - Mas não faz realmente meu tipo.
- Estou surpreso que a sua lata-velha tenha trazido você até aqui - disse o pai. - Por que você não pega o Suburban para voltar?
- O Camaro está bom.
- Ele cheira a gasolina.
Agora Gansey conseguia imaginar seu pai pondo defeitos no Camaro estacionado na frente da garagem, com as mãos para trás enquanto cheirava se havia vazamentos de
óleo e observava os arranhões na pintura.
- Ele está bom, pai. Está impecável.
- Duvido - disse o seu pai, em tom amigável. Richard Gansey II raramente se apresentava de outro modo. "Um homem adorável, seu pai", as pessoas diziam a Gansey.
"Sempre sorrindo. Nada o tira do sério. Que figura." Essa última parte era porque ele colecionava coisas antigas estranhas, espiava por buracos nas paredes e mantinha
um diário de coisas que haviam acontecido no dia 14 de abril de todos os anos desde o começo da história. - Você sabe por que a sua irmã comprou aquele prato de
bronze horroroso por três mil dólares? Ela está brava com a sua mãe? Ou é uma brincadeira?
- Ela achou que a mamãe ia gostar.
- Não é vidro.
Gansey deu de ombros.
- Eu tentei falar para ela.
Por um momento eles ficaram ali. Seu pai perguntou:
- Você gostaria de dar partida nele?
Gansey não se importava, mas encontrou a chave na ignição e a virou. O motor girou no ato, despertando para a vida obediente, nada como o Camaro.
- Baia quatro, aberta - disse o pai, e a porta da garagem diante deles começou a se abrir automaticamente. Quando ele viu o olhar de Gansey, explicou:
- Eu instalei comandos de voz. O único problema é que, se você gritar muito alto na rua, a porta mais próxima de você vai abrir. Obviamente, isso é ruim para a segurança.
Estou trabalhando nisso. Nós tivemos uma tentativa de arrombamento algumas semanas atrás. Eles só conseguiram chegar até o portão da frente. Instalei um sistema
com pesos ali.
A porta da garagem se abriu para o Camaro, estacionado bem na frente deles, bloqueando a saída. O Pig era baixo, desafiador e nada sofisticado, em comparação ao
Peugeot reservado, contido e sempre sorrindo. Gansey sentiu um súbito e irrepreensível amor por seu carro. Comprá-lo fora a melhor decisão de sua vida.
- Nunca me acostumei com essa coisa - disse o pai de Gansey, olhando para o Pig sem rancor.
Uma vez Gansey ouvira seu pai dizendo: "Por que diabos ele preferiu aquele carro?", e sua mãe respondendo: "Ah, eu sei por quê". Um dia ele teria aquela conversa
com ela, pois queria saber por que ela achava que ele o havia comprado. Analisar o que o motivara a suportar o Camaro fazia Gansey se sentir perturbado, mas ele
sabia que tinha algo a ver com a maneira como dirigir aquele Peugeot perfeitamente restaurado o fazia se sentir. Um carro era um envoltório para o seu conteúdo,
ele achava, e, se ele parecesse por dentro como qualquer um dos carros naquela garagem parecia por fora, não poderia viver consigo mesmo. Por fora, ele sabia que
parecia bastante com seu pai. Por dentro, Gansey gostaria de parecer mais com o Camaro. O que significava dizer: mais com Adam.
Seu pai perguntou:
- Como está indo na escola?
- Muito bem.
- Qual é sua aula favorita?
- História geral.
- O professor é bom?
- Perfeitamente adequado.
- Como está indo o seu amigo bolsista? Achando as aulas mais difíceis do que na escola pública?
Gansey virou o espelho do lado do motorista, que refletiu o teto.
- O Adam está indo bem.
- Ele deve ser muito inteligente.
- Ele é um gênio - disse Gansey, sem hesitar.
- E o irlandês?
Gansey não conseguiu encontrar forças para elaborar uma mentira envolvendo Ronan. Não logo após ter conversado com Pinter. Só então ele sentiu o peso considerável
de ser Gansey, o Jovem. E respondeu: - O Ronan é o Ronan. É difícil para ele sem o pai.
Gansey Sênior não perguntou sobre Noah, e Gansey não conseguiu se lembrar de seu pai ter feito isso um dia. Na realidade, ele não conseguia se lembrar de algum dia
ter se referido a Noah para sua família. Ele se perguntou se a polícia ligaria para seus pais a respeito de ele ter achado o corpo. Se ainda não havia ligado, parecia
improvável que o fizessem. Eles haviam dado a Gansey e a Blue cartões com o número de um advogado, mas Gansey achava que provavelmente eles precisavam de um outro
tipo de ajuda.
- Como está a caçada à linha ley?
Gansey considerou quanto deveria dizer.
- Na verdade fiz alguns avanços que não estavam no programa. Henrietta parece promissora.
- Então as coisas não estão indo mal? Sua irmã disse que você parecia um pouco melancólico.
- Melancólico? A Helen é uma idiota.
Seu pai estalou a língua.
- Dick, você não quis dizer isso. Uma questão de escolha de palavras?
Gansey desligou o motor e trocou um olhar com o pai.
- Ela comprou um prato de bronze de aniversário para a mamãe.
Gansey Sênior fez um pequeno ruído que queria dizer que o filho tinha razão.
- Desde que você esteja feliz e se mantendo ocupado... - disse o pai.
- Ah - disse Gansey, pegando o telefone do painel. Sua mente já estava revolvendo como enfiar três meses de estudo no cérebro de Ronan, como devolver Noah à antiga
forma, como convencer Adam a deixar a casa dos pais mesmo que Henrietta não parecesse mais um tamanho caso perdido, que esperteza diria para Blue quando a visse
de novo. - Estou me mantendo ocupado.
Quando Blue bateu na porta da Indústria Monmouth após a escola, Ronan foi atender.
- Vocês não estavam esperando na rua - disse ela, sentindo-se um pouco constrangida. Após todo aquele tempo, ela nunca tinha entrado ali, e se sentia um pouco como
uma invasora meramente por estar parada na escada decrépita. - Achei que talvez vocês não estivessem aqui.
- O Gansey está festejando com a mãe dele - disse Ronan, cheirando a cerveja. - E o Noah está morto. Mas o Parrish está aqui.
- Ronan, deixe a Blue entrar - disse Adam, aparecendo atrás dele. - Oi, Blue. Você nunca entrou aqui, não é?
- É. Eu não devia...
- Não, entre...
Eles se atrapalharam um pouco, e então Blue entrou. A porta se fechou atrás dela, e os dois garotos ficaram observando sua reação cuidadosamente.
Blue olhou em volta, no segundo andar. Parecia a casa de um inventor maluco, um acadêmico obsessivo ou um explorador muito bagunçado; após se encontrar com Gansey,
ela estava começando a suspeitar que ele era todas essas coisas. E disse: - Como é o andar de baixo?
- Empoeirado - respondeu Adam, chutando discretamente um par de jeans sujos, com as cuecas ainda enfiadas dentro deles, para fora da linha de visão direta de Blue.
- Só concreto, e mais pó e sujeira.
- Fora isso, tem ainda mais pó - disse Ronan, caminhando em direção às duas portas na outra extremidade do andar.
Por um momento, Ronan e Adam esticaram o pescoço, olhando em volta para o amplo espaço, como se eles também o estivessem vendo pela primeira vez. O vasto aposento,
avermelhado com o sol da tarde que entrava pelas dezenas de vidraças, era bonito e atulhado de coisas. Lembrava a Blue o sentimento que ela tivera quando vira pela
primeira vez o diário de Gansey.
Então, pela primeira vez em dias, ela pensou sobre a visão dos dedos dele pousando em seu rosto.
Blue, me beije.
Por meia respiração, Blue fechou os olhos para reconfigurar os pensamentos.
- Preciso dar comida para a Motosserra - disse Ronan, uma frase que não fez sentido algum para Blue. Ele desapareceu no escritório minúsculo e fechou a porta atrás
de si. Um guincho inumano foi emitido lá dentro, o qual Adam não comentou.
- Estamos de folga hoje, obviamente - disse Adam. - Quer ficar por aqui?
Blue olhou à sua volta em busca de um sofá. Seria mais fácil ficar por ali com um sofá. Havia uma cama desfeita no meio do aposento, uma poltrona de couro de aparência
bastante cara (o tipo com parafusos de bronze lustrosos segurando o couro) na frente de uma das janelas que iam do chão ao teto, e uma cadeira de escrivaninha com
papéis espalhados sobre ela. Mas nada de sofá.
- E o Noah...?
Adam balançou a cabeça.
Blue suspirou. Talvez, ela pensou, Adam estivesse certo a respeito do corpo de Noah. Talvez o fato de tirá-lo da linha ley houvesse roubado sua energia.
- Ele está aqui? - ela perguntou.
- Parece que sim. Não sei.
Blue disse para o ar vazio:
- Você pode usar minha energia, Noah. Se precisar.
A expressão de Adam era enigmática.
- Isso foi corajoso de sua parte.
Blue achava que não; se ela precisasse ser corajosa em relação a isso, ela tinha certeza de que sua mãe não a levaria junto na vigília da igreja.
- Eu gosto de ser útil. Então, você mora aqui também?
Adam balançou a cabeça, com os olhos na extensão de Henrietta do lado de fora das janelas.
- O Gansey gostaria que eu morasse. Ele gosta de ter todas as coisas dele num lugar só. - Sua voz soava um pouco mais amarga, e, após uma pausa, ele acrescentou:
- Eu não devia dizer essas coisas. Ele não é mal-intencionado. E nós estamos... é só que este lugar é do Gansey. Tudo aqui é do Gansey. Eu preciso ser um igual,
e não conseguiria morando aqui.
- Onde você mora?
A boca de Adam estava muito tensa.
- Num lugar feito para ser deixado.
- Isso não é realmente uma resposta.
- Não é realmente um lugar.
- E seria terrível morar aqui? - ela perguntou, inclinando a cabeça para trás para olhar para o teto lá no alto. O lugar inteiro tinha um cheiro empoeirado, mas
da boa e velha maneira de uma biblioteca ou um museu.
- Sim - respondeu Adam. - Quando eu sair de casa, vai ser para algum lugar que eu mesmo fiz.
- E é por isso que você estuda na Aglionby.
Ele a olhou nos olhos.
- E é por isso que eu estudo na Aglionby.
- Mesmo que você não seja rico.
Ele hesitou.
- Adam, eu não me importo - disse Blue. De forma geral, não foi realmente a frase mais corajosa já dita, mas pareceu corajosa a Blue quando ela a disse. - Eu sei
que outras pessoas se importam, mas eu não.
Ele fez uma pequena careta, então inclinou a cabeça, anuindo muito ligeiramente.
- Mesmo que eu não seja rico.
- Uma confissão de verdade - disse Blue. - Eu também não sou rica.
Adam riu alto, e Blue descobriu que estava começando a gostar muito daquela risada que irrompia de dentro dele e parecia surpreendê-lo a cada vez. Ela estava um
pouco assustada com a ideia de que estava começando a gostar daquilo.
Ele disse:
- Ei, vem cá. Você vai gostar disso.
Com o piso estalando sob os pés, ele tomou a frente, passando pela escrivaninha até as janelas na outra extremidade. Blue tinha uma sensação de altura vertiginosa
ali; aquelas enormes e velhas janelas de fábrica começavam apenas alguns centímetros acima das velhas e largas tábuas, e o primeiro andar era muito mais alto que
o primeiro andar da sua casa. Adam se agachou e começou a remexer numa pilha de caixas de papelão encostadas nas janelas.
Finalmente, ele arrastou uma das caixas e gesticulou para que Blue se sentasse ao lado dele. Ela o fez. Adam se endireitou para ficar mais confortável, o osso do
seu joelho pressionado contra o de Blue. Ele não estava olhando para ela, mas havia algo na postura dele que traía o reconhecimento de sua presença. Blue engoliu
em seco.
- Essas são algumas coisas que o Gansey encontrou - disse Adam. - Coisas que não eram interessantes o suficiente para museus, ou que eles não conseguiam provar a
antiguidade, ou que ele não quis passar adiante.
- Nesta caixa? - perguntou Blue.
- Em todas as caixas. Essa é a caixa da Virgínia. - Ele a inclinou de maneira que o conteúdo se esparramou entre eles, com uma quantidade prodigiosa de terra.
- Caixa da Virgínia? Humm... De onde são as outras caixas?
Havia algo de infantil no sorriso dele.
- País de Gales, Peru, Austrália, Montana e outros lugares estranhos.
Blue tirou um galho em forma de garfo da pilha.
- Isso é mais uma varinha de radiestesia?
Embora ela nunca tivesse usado uma, sabia que alguns paranormais a usavam como ferramenta para concentrar sua intuição e os levar na direção de objetos perdidos,
cadáveres ou lençóis de água escondidos. Uma versão de tecnologia simples para o frequencímetro bacana de Gansey.
- Acho que sim, mas pode ser apenas um galho. - Adam mostrou a ela uma velha moeda romana. Blue a usou para raspar a poeira secular de um cãozinho esculpido em pedra.
Faltava uma perna de trás do cão; a ferida dentada revelava uma pedra mais clara que o resto da superfície encardida.
- Ele parece um pouco faminto - comentou Blue. A estrutura estilizada do cão a fazia lembrar o corvo entalhado na encosta do morro, a cabeça inclinada para trás,
o corpo alongado.
Adam pegou uma pedra com um buraco e olhou para ela através dela. A forma da pedra cobria perfeitamente os últimos resquícios do seu machucado.
Blue escolheu uma pedra que casava com aquela e olhou para ele através do buraco similar. Um lado do seu rosto estava vermelho com a luz da tarde.
- Por que elas estão na caixa?
- A água fez esses buracos - disse Adam. - A água do mar. Mas ele encontrou essas pedras nas montanhas. Acho que ele disse que elas casavam com algumas das pedras
que ele encontrou no Reino Unido.
Ele ainda estava olhando para Blue através do buraco, a pedra parecendo um estranho monóculo. Ela observou sua garganta se mover, e então Adam estendeu a mão e tocou
seu rosto.
- Você é muito bonita - ele disse.
- É a pedra - ela respondeu de imediato. A pele de Blue estava quente, e a ponta do dedo de Adam tocou apenas o canto de sua boca. - Ela tem propriedades embelezadoras.
Adam tirou delicadamente a pedra da mão dela e a colocou nas tábuas do assoalho entre eles. Entre os dedos, ele envolveu um dos cachos rebeldes junto ao rosto dela.
- Minha mãe costumava dizer: "Não desperdice elogios enquanto eles forem de graça". - O rosto de Adam estava muito sério. - Esse elogio não era para custar nada,
Blue.
Ela brincou com a bainha do vestido, mas não desviou o olhar dele.
- Eu não sei o que dizer quando você fala essas coisas.
- Você pode me dizer se quer que eu continue falando.
Ela estava dividida pelo desejo de encorajá-lo e o temor de aonde aquilo iria levar.
- Eu gosto quando você diz essas coisas.
Adam perguntou:
- Mas o quê?
- Eu não disse mas.
- Você ia dizer. Eu ouvi.
Blue olhou para o rosto dele, frágil e estranho por baixo do machucado. Era fácil fazer uma leitura dele como frágil ou problemático, ela pensou, mas ele não era
nenhuma das duas coisas. Noah era. Mas Adam era apenas calado. Não que lhe faltassem palavras. Ele era observador.
Mas saber essas coisas sobre ele não a ajudava a responder à pergunta: Ela deveria lhe contar sobre o perigo do beijo? Fora tão mais fácil contar para Gansey, quando
parecia que realmente não importava. A última coisa que ela queria fazer era assustar Adam lançando frases como verdadeiro amor logo após tê-lo conhecido. Mas se
ela não dissesse nada, havia uma chance de que ele pudesse roubar um beijo e então ambos teriam problemas.
- Eu gosto quando você diz essas coisas, mas... tenho medo de que você me beije - admitiu Blue. Já de saída, parecia um caminho insustentável para se percorrer.
Como ele não disse nada na hora, Blue se apressou: - A gente acabou de se conhecer. E eu... eu tenho... eu sou muito nova.
Na metade do caminho, Blue perdeu a coragem de explicar a profecia, mas não tinha certeza de qual parte dela sentia que aquela era uma confissão melhor para deixar
escapar. Eu sou muito nova. Ela se contorceu.
- Isso parece... - Adam buscou as palavras - muito sensato.
O adjetivo preciso que Neeve havia encontrado para Blue logo na primeira semana. Então ela era verdadeiramente sensata. Isso era penoso. Ela sentia como se tivesse
trabalhado tanto para parecer o mais excêntrica possível, e ainda assim, quando a avaliavam, ela era sensata.
Tanto Adam quanto Blue ergueram o olhar com o som de passos cruzando o piso na direção deles. Era Ronan, segurando algo embaixo do braço. Ele se abaixou cuidadosamente
até se sentar de pernas cruzadas ao lado de Adam e então suspirou pesadamente, como se tivesse sido parte da conversa até aquele ponto e isso o tivesse cansado.
Blue estava igualmente aliviada e desapontada com sua presença efetivamente encerrando qualquer conversa sobre beijos.
- Quer segurar? - perguntou Ronan.
Foi então que Blue descobriu que a coisa que Ronan estava segurando estava viva. Por um breve momento, ela se sentiu incapaz de fazer qualquer coisa a não ser contemplar
a ironia de que um dos garotos corvos possuía de fato um corvo. Àquela altura, estava claro que Ronan havia decidido que a resposta era não.
- O que você está fazendo? - perguntou Blue, enquanto ele recuava a mão. - Eu quero.
Ela não estava exatamente certa de que queria - o corvo parecia muito frágil -, mas era uma questão de princípios. Blue percebeu, mais uma vez, que estava tentando
impressionar Ronan apenas porque era impossível impressioná-lo, mas se consolou com o fato de que pelo menos tudo que estava fazendo em busca de sua aprovação era
segurar o filhote de um pássaro. Ronan aninhou o corvo nas mãos dela em concha. O filhote parecia não pesar nada, e sua pele e penas pareciam úmidas onde haviam
estado em contato com as mãos de Ronan. O corvo inclinou a cabeça enorme para trás e arregalou os olhos para Blue e então para Adam, com o bico aberto.
- Como é o nome dela? - perguntou Blue. Segurá-lo era aterrorizante e adorável; era uma vidinha tão pequena, tão frágil, o pulso batendo rapidamente contra a pele
de Blue.
Adam respondeu de maneira fulminante:
- Motosserra.
O corvo abriu bem o bico, arregalando mais ainda os olhos.
- Ela quer você de novo - disse Blue, pois era claro que queria. Ronan aceitou o pássaro e acariciou as penas na parte de trás da cabeça dela.
- Você parece um supervilão com seu assistente - disse Adam.
O sorriso de Ronan cortou seu rosto, mas ele parecia mais amável do que Blue já o tinha visto um dia na vida, como se o corvo em sua mão fosse seu coração, finalmente
exposto abertamente.
Todos eles ouviram uma porta se abrir do outro lado do aposento. Adam e Blue olharam um para o outro. Ronan baixou a cabeça, só um pouco, como se estivesse esperando
um golpe.
Ninguém disse nada enquanto Noah se ajeitava no espaço entre Ronan e Blue. Ele estava como Blue se lembrava dele, os ombros curvados para frente e as mãos se mexendo
inquietamente de um lugar para o outro. A onipresente mancha em seu rosto claramente ficava onde ele havia sido atingido. Quanto mais ela o encarava, mais certa
ficava de que estava vendo ao mesmo tempo seu corpo morto e seu corpo vivo. Aquela mancha era a maneira que seu cérebro encontrara para reconciliar esses fatos.
Adam foi o primeiro a dizer alguma coisa.
- Noah - ele levantou o punho.
Após uma pausa, Noah o cumprimentou com um toque de mãos. Então esfregou a nuca.
- Estou me sentindo melhor - ele disse, como se estivesse doente em vez de morto. As coisas da caixa ainda estavam espalhadas por todo o chão, e ele começou a remexê-las.
Pegou algo que se parecia com um pedaço de osso talhado; devia ter existido ali um desenho maior, mas tudo que sobrara agora era algo que parecia a borda de uma
folha de acanto e possivelmente alguns arabescos. Noah o segurou contra a garganta como um amuleto. Seus olhos não miravam nenhum dos outros dois garotos, mas seu
joelho tocava o de Blue.
- Eu gostaria que vocês soubessem - disse Noah, pressionando com força o osso entalhado contra o pomo de adão, como se fosse arrancar as palavras dele - que eu era....
mais... quando estava vivo.
Adam mordeu o lábio, procurando por uma resposta. No entanto, Blue achava que sabia o que ele queria dizer. A semelhança de Noah com a foto fingidamente sorridente
na carteira de motorista que Gansey havia descoberto era comparável à semelhança de uma fotocópia com uma pintura original. Ela não conseguia imaginar o Noah que
ela conhecia dirigindo aquele Mustang envenenado.
- Você é o suficiente agora - disse Blue. - Senti sua falta.
Com um sorriso abatido, Noah estendeu a mão e acariciou o cabelo de Blue, bem como costumava fazer. Ela mal podia sentir seus dedos.
Ronan disse:
- Ei, cara. Todas aquelas vezes que você não me passava a matéria porque dizia que eu devia ir às aulas. Você nunca foi às aulas.
- Mas você ia, não é, Noah? - Blue interrompeu, pensando no emblema da Aglionby que ela havia encontrado com o corpo. - Você era aluno da Aglionby.
- Sou - disse Noah.
- Era - disse Ronan. - Você não vai às aulas.
- Nem você - respondeu Noah.
- E ele está prestes a virar um era também - intercedeu Adam.
- Ok! - gritou Blue, com as mãos no ar. Ela estava começando a sentir uma profunda sensação de frio, à medida que Noah sugava energia dela. A última coisa que ela
queria fazer era ficar completamente exaurida, como havia acontecido no adro da igreja. - A polícia disse que você estava desaparecido há sete anos. É isso mesmo?
Noah piscou os olhos para ela, vago e alarmado.
- Eu não... eu não posso...
Blue ofereceu a mão.
- Pegue minha mão - disse ela. - Quando estou nas leituras com a minha mãe e ela precisa se concentrar, ela segura a minha mão. Talvez ajude.
Hesitante, Noah pegou a mão dela. Quando ele pousou a palma da mão contra a dela, Blue ficou chocada com como ela estava gelada. Não era apenas fria, mas de certa
maneira vazia também, uma pele sem pulso.
Noah, por favor, não morra de verdade.
Ele soltou um longo suspiro.
- Meu Deus - disse.
E sua voz soou diferente do que antes. Agora ela soava mais próxima do Noah que ela conhecera, o Noah que havia se passado por um deles. Blue sabia que ela não fora
a única a perceber isso, pois Adam e Ronan trocaram intensos olhares.
Ela viu o peito dele arfar, sua respiração se tornar mais regular. Blue realmente não havia notado, antes, se ele estava mesmo respirando.
Noah fechou os olhos. Ele ainda segurava frouxamente o osso entalhado na outra mão, pousada com a palma para cima sobre os mocassins.
- Eu consigo lembrar das minhas notas, a data delas... sete anos atrás.
Sete anos. A polícia estava certa. Eles estavam falando com um garoto que tinha morrido havia sete anos.
- O mesmo ano em que o Gansey foi picado por marimbondos - Adam observou. Então ele disse: - Você vai viver por causa de Glendower. Alguém na linha ley está morrendo
quando não deveria, e assim você vai viver quando não deveria.
- Coincidência - disse Ronan, porque não era.
Os olhos de Noah ainda estavam fechados.
- Era para ter acontecido alguma coisa com a linha ley. Não lembro o que ele disse que era para ter acontecido.
- Despertar a linha ley - sugeriu Adam.
Noah anuiu, com as pálpebras ainda fechadas. O braço inteiro de Blue estava gelado e insensível.
- É, isso mesmo. Eu não me importava. Era sempre o lance dele, e eu só ia junto porque era algo para fazer. Eu não sabia que ele ia...
- Esse é o ritual de que o Gansey estava falando - disse Adam para Ronan. - Alguém tentou. Com um sacrifício como a maneira simbólica de tocar a linha ley. Você
era o sacrifício, não era, Noah? Alguém te matou para isso.
- Meu rosto - disse Noah suavemente e virou o rosto para o lado, pressionando a bochecha arruinada contra o ombro. - Não lembro quando deixei de ser vivo.
Blue estremeceu. A luz do fim da tarde banhando os garotos e o chão lembrava a primavera, mas parecia inverno em seus ossos.
- Mas não funcionou - disse Ronan.
- Eu quase despertei Cabeswater - sussurrou Noah. - Nós estávamos muito perto de fazer isso. Não foi por nada. Mas fico contente que ele nunca o encontrou. Ele não
sabe. Ele não sabe onde Cabeswater está.
Blue se arrepiou por dentro, resultado tanto da mão fria de Noah quanto do horror da história. Ela se perguntou se era assim para sua mãe, suas tias e as amigas
de sua mãe, quando elas estavam fazendo uma sessão espírita ou uma leitura.
Será que elas seguram as mãos de pessoas mortas?
Ela havia pensado que morto era algo mais permanente, ou pelo menos algo mais claramente não vivo. Mas Noah parecia incapaz de ser ambas as coisas.
Ronan disse:
- Tudo bem, é hora de parar com a brincadeira. Quem fez isso, Noah?
No aperto de Blue, a mão de Noah tremeu.
- Sério, cara. Pode falar. Não estou perguntando sobre notas. Estou perguntando quem arrebentou a sua cabeça.
Quando Ronan disse isso, soou como algo irado e sincero, mas era uma ira que também incluía Noah e que, de certa maneira, o tornava culpado.
Havia humilhação em sua voz quando Noah respondeu:
- Nós éramos amigos.
De maneira um tanto mais feroz do que um momento antes, Adam disse:
- Um amigo não mataria você.
- Você não compreende - sussurrou Noah. Blue temia que ele desaparecesse. Ela compreendia que aquilo era um segredo, carregado dentro dele por sete anos, e que ele
ainda não queria confessá-lo. - Ele estava transtornado. Tinha perdido tudo. Se ele estivesse pensando direito, não acho que teria... Ele não queria... Nós éramos
amigos como... Vocês têm medo do Gansey?
Os garotos não responderam; não precisavam. O que quer que Gansey fosse para eles, era algo à prova de balas. Novamente, no entanto, Blue viu a vergonha passar rapidamente
pela expressão de Adam. O que quer que tenha acontecido entre os dois na visão dele, ainda o preocupava.
- Vamos lá, Noah. Um nome. - Era Ronan, a cabeça aprumada, intenso como seu corvo.
Noah ergueu a cabeça e abriu os olhos. Tirou a mão da de Blue e a colocou no colo. O ar estava frígido em volta deles. O corvo estava encolhido bem no fundo do colo
de Ronan, e ele segurava uma mão protetora sobre o pássaro.
Noah disse:
- Mas vocês já sabem.
Estava escuro quando Gansey deixou a casa dos pais. Ele estava cheio da energia angustiada e insatisfeita que ultimamente sempre parecia se instalar em seu coração
depois de visitar a casa dos pais. Tinha algo a ver com o conhecimento de que a casa deles não era mais verdadeiramente sua - se é que fora um dia - e com a percepção
de que eles não haviam mudado, mas Gansey havia.
Ele baixou a janela e colocou a mão para fora enquanto dirigia. O rádio tinha parado de funcionar novamente, e a única música que se ouvia era a do motor; o Camaro
era mais barulhento depois de escurecer.
A conversa com Pinter corroía Gansey por dentro. Suborno. Então era a esse ponto que a coisa havia chegado. Ele desconfiou que o sentimento que possuía dentro de
si era vergonha. Não importava quanto se esforçasse, ele sempre voltava a ser um Gansey.
Mas de que outra maneira conseguiria manter Ronan em Aglionby e em Monmouth? Ele repassou os pontos principais de sua futura conversa com Ronan, e todos eles soaram
com coisas a que Ronan não daria atenção. Era tão difícil assim para ele ir às aulas? Quão difícil poderia ser passar só mais um ano na escola?
Gansey ainda tinha meia hora de estrada até chegar a Henrietta. Em uma cidadezinha que consistia apenas de um posto de gasolina artificialmente luminoso, Gansey
parou no semáforo que ficou vermelho para o cruzamento de um tráfego invisível.
Tudo que Ronan tinha de fazer era ir às aulas, fazer as tarefas, conseguir as notas. E então ele estaria livre e receberia seu dinheiro de Declan e poderia fazer
o que bem entendesse.
Gansey conferiu o telefone. Nenhum sinal. Ele queria falar com Adam.
A brisa que entrava pela janela enchia o interior do carro com aromas de folhas e de água, coisas em crescimento e coisas secretas. Mais do que qualquer coisa, Gansey
queria passar mais tempo em Cabeswater, mas as aulas tomariam tempo demais na semana seguinte - não poderia haver mais tolerância para nenhum dos dois após a conversa
com Pinter - e, depois da escola, ele tinha de arrastar Ronan para o dever de casa. O mundo estava se abrindo na frente de Gansey, Noah precisava dele e Glendower
parecia uma possibilidade novamente. E, em vez de sair à caça e aproveitar a oportunidade, Gansey tinha de dar uma de babysitter. Maldito Ronan.
A luz ficou verde. Gansey pisou tão forte no acelerador que os pneus guincharam e fizeram fumaça. O Pig partiu como um foguete. Maldito Ronan. Gansey foi passando
as marchas, muito rápido. O motor afogando a batida do seu coração. Maldito Ronan. O ponteiro subiu no velocímetro e tocou a área de advertência vermelha.
Gansey havia atingido o limite de velocidade. O carro tinha muito mais para dar. O motor se saía bem naquele ar frio, era rápido e descomplicado, e Gansey queria
realmente ver o que aconteceria se corresse mais.
Ele se recompôs, soltando um suspiro áspero.
Se tivesse sido Ronan, ele teria seguido em frente. A questão quanto a Ronan era que ele não tinha limites, temores, fronteiras. Se Gansey tivesse sido Ronan, ele
teria afundado o pé no acelerador até que a estrada, um policial ou uma árvore o tivessem parado. Ele faltaria à aula no dia seguinte para ver a floresta. Ele diria
a Ronan, caso este se desse o trabalho de ouvi-lo, que ser expulso era problema dele.
Gansey não sabia ser essa pessoa.
Abaixo dele, o Camaro estremeceu abruptamente. Gansey aliviou o acelerador e conferiu todos os medidores mal iluminados, mas nada chamou sua atenção. Logo em seguida,
o carro estremeceu de novo e Gansey sabia que estava com problemas.
Ele só teve tempo de encontrar um local ligeiramente plano para parar o carro quando o motor morreu, como havia feito no Dia de São Marcos. Enquanto margeava a estrada
abandonada, ele tentou a chave, mas não havia nada.
Gansey se permitiu o prazer escasso de um palavrão suspirado, o pior que ele conhecia, e então saiu do carro e abriu o capô. Adam havia lhe ensinado o básico: mudar
as velas de ignição, drenar o óleo. Se houvesse uma correia solta ou a extremidade de uma mangueira recentemente rasgada saindo para fora das entranhas do carro,
ele talvez fosse capaz de consertar. Do jeito que estava, o motor era um mistério.
Ele tirou o telefone do bolso de trás e descobriu que só tinha um fiapo de sinal. O suficiente para provocá-lo, mas não para fazer uma ligação. Gansey caminhou ao
redor do carro como a Estátua da Liberdade. Nada.
Amargamente, ele se lembrou da sugestão do pai de que pegasse o Suburban para voltar.
Ele não estava certo sobre a distância que havia percorrido desde o posto de gasolina, mas parecia estar próximo do limite de Henrietta. Se começasse a caminhar
na direção da cidade, ele poderia conseguir um sinal antes de chegar ao próximo posto. Talvez ele devesse apenas ficar onde estava. Às vezes, quando o Pig parava,
começava a funcionar de novo após o motor ter esfriado um pouco.
Mas ele estava agitado demais para ficar parado.
Ele mal tinha terminado de trancar o carro quando luzes de faróis pararam atrás do Camaro, cegando-o. Gansey desviou o rosto e ouviu a porta de um carro bater e
passos rangendo sobre o cascalho solto ao lado da estrada.
Por um piscar de olhos, a figura à sua frente não lhe pareceu familiar, um homúnculo em vez de um homem. Então Gansey o reconheceu.
Ele disse:
- Sr. Whelk?
Barrington Whelk usava uma jaqueta escura e tênis de corrida, e havia algo estranho e intenso nos traços exagerados de seu rosto. Era como se ele precisasse fazer
uma pergunta, mas não conseguisse achar as palavras.
Ele não disse "Problemas com o carro?" ou "Sr. Gansey?" ou qualquer uma das coisas que Gansey achou que ele poderia dizer.
Em vez disso, lambeu os lábios e soltou:
- Eu quero aquele seu livro. E é melhor me passar o celular também.
Gansey achou que só podia ter ouvido mal, então perguntou:
- Como?
Whelk tirou uma arma pequena, impossivelmente real, do bolso da jaqueta escura.
- Aquele livro que você leva para a aula. E o celular também. Vamos.
De certa maneira, era difícil processar a arma. Era difícil passar da ideia de que Barrington Whelk era um sujeito horripilante de uma maneira a respeito da qual
era divertido brincar com Ronan e Adam para a ideia de que Barrington Whelk tinha uma arma e a estava apontando para Gansey.
- Bom - Gansey piscou. - Tudo bem.
Não parecia haver nada mais a dizer. Ele preferia sua vida a quase todos os seus bens, com a possível exceção do Camaro, e Whelk não havia pedido o carro. Gansey
passou o celular para Whelk.
- O diário está no carro - explicou.
- Vá pegar - ordenou Whelk, apontando a pistola para o rosto de Gansey.
Gansey destrancou o Camaro.
Na última vez em que o tinha visto, Whelk estava entregando um teste sobre a quarta declinação dos substantivos em latim.
- Nem pense em tentar fugir nessa coisa - disse Whelk.
Não havia ocorrido a Gansey que, se o Camaro estivesse funcionando, fugir seria uma opção.
- Também quero saber por onde você andou esta semana - disse Whelk.
- Perdão? - perguntou Gansey educadamente. Ele estivera remexendo o banco de trás em busca do diário, e os papéis amarfanhados haviam abafado a voz de Whelk.
- Não teste a minha paciência - disparou Whelk. - A polícia ligou para a escola. Não posso acreditar. Depois de sete anos. Agora eles vão fazer um milhão de perguntas
e só vão precisar de dois segundos para responder a um monte delas com o meu nome. Isso é tudo culpa sua. Sete anos e eu achei que estava... Estou ferrado. Você
me ferrou.
Quando Gansey saiu do Camaro com o diário nas mãos, ele se deu conta do que Whelk estava dizendo: Noah. Aquele homem à sua frente havia matado Noah.
Gansey começara a sentir algo em algum ponto de suas entranhas. Ainda não parecia medo. Era algo tenso como uma ponte de cordas. Era a suspeita de que nada mais
na vida de Gansey havia sido real, exceto aquele momento.
- Sr. Whelk...
- Me diz onde você esteve.
- Nas montanhas, perto de Nethers - disse Gansey, com a voz remota. Era verdade, e, de qualquer maneira, não importava se ele tinha mentido ou não; ele havia incluído
as coordenadas do GPS no diário que estava prestes a passar adiante.
- O que você encontrou? Encontrou Glendower?
Gansey se encolheu, e o gesto o surpreendeu. Ele havia se convencido, de alguma forma, de que aquilo estava relacionado a alguma outra coisa, mais lógica. Por isso,
ao ouvir o nome de Glendower, ele ficou chocado.
- Não - respondeu Gansey. - Nós encontramos um desenho entalhado no chão.
Whelk estendeu a mão para o diário. Gansey engoliu em seco.
Então perguntou:
- Whelk... senhor... tem certeza que essa é a única maneira?
Ouviu-se um inconfundível e suave clique. Era um som que ele conhecia de tanto assistir a filmes de ação e videogames. Apesar de Gansey nunca o ter ouvido pessoalmente
antes, sabia exatamente que som uma pistola fazia quando a trava de segurança era removida.
Whelk colocou o cano da arma na testa de Gansey.
- Não - disse Whelk. - Esta é a outra maneira.
Gansey teve o mesmo sentimento de distanciamento que tivera na Indústria Monmouth olhando para a vespa. Ele viu a realidade imediatamente: uma arma pressionada contra
sua pele, acima das sobrancelhas, tão fria a ponto de parecer afiada - e também a possibilidade: o dedo de Whelk puxando para trás, uma bala entrando em seu crânio,
a morte em vez do caminho de volta para Henrietta.
O diário pesava em suas mãos. Ele não precisava dele. Gansey sabia tudo que havia ali.
Mas o diário era ele. Gansey estava abrindo mão de tudo que havia trabalhado para conquistar.
Vou conseguir um novo.
- Se você tivesse perguntado - disse Gansey -, eu teria contado a você tudo que tem nele. Teria sido um prazer. Não era um segredo.
A arma tremeu contra a testa de Gansey. Whelk disse:
- Não acredito que você está argumentando quando eu tenho uma arma apontada para a sua cabeça. Não acredito que você tenha se dado o trabalho de dizer isso.
- É assim - respondeu Gansey - que você sabe que é verdade. - Ele deixou Whelk tomar o diário.
- Tenho nojo de você - disse Whelk, segurando o livro contra o peito. - Você se acha invencível. Sabe de uma coisa? Eu também achava.
Quando ele disse isso, Gansey soube que Whelk iria matá-lo. Pois não havia como alguém ter tanta raiva e rancor na voz segurando uma arma e não puxar o gatilho.
O rosto de Whelk ficou tenso.
Por um instante, não houve tempo: apenas o espaço entre uma respiração que escapava e outra que acorria.
Sete meses antes, Ronan havia ensinado a Gansey como aplicar um gancho.
Bata com o corpo, não apenas com o punho.
Olhe onde você está socando.
Cotovelo a noventa graus.
Não pense em quanto isso vai doer.
Gansey, repito: não pense em quanto isso vai doer.
E ele golpeou.
Gansey se esqueceu de quase tudo que Ronan havia lhe dito, mas se lembrou de olhar, e foi apenas isso - e um pouco de sorte - que derrubou a arma no cascalho ao
lado da estrada.
Whelk deu um grito sem palavras.
Ambos se lançaram sobre a arma. Gansey, caindo sobre um joelho, chutou cegamente na direção dela. Ele ouviu o pé fazer contato com algo. O braço de Whelk primeiro,
então algo mais sólido. A arma voou no chão, indo para perto das rodas traseiras do carro, e Gansey chegou tateando até o outro lado do Camaro. A luz dos faróis
do carro de Whelk não alcançava aquele lado. Seu único pensamento era encontrar cobertura e ficar imóvel na escuridão.
Havia silêncio do outro lado do carro. Lutando para manter a respiração ofegante sob controle, Gansey encostou o rosto contra o metal quente do Pig. O polegar da
mão latejava onde ele havia atingido a arma.
Não respire.
Ao lado da estrada, Whelk praguejava de novo, e de novo, e de novo. O cascalho rangeu quando ele se agachou ao lado do carro. Ele não conseguia encontrar a arma
e praguejou de novo.
Longe dali, um motor zuniu. Outro carro, possivelmente vindo naquela direção. Alguém para salvá-lo, ou pelo menos uma testemunha.
Por um momento, Whelk ficou completamente em silêncio, e então, abruptamente, saiu correndo, seus passos desaparecendo na distância à medida que voltava para o próprio
carro.
Gansey abaixou a cabeça e espiou embaixo da carroceria do Pig, que dava estalidos enquanto esfriava. Ele viu a silhueta delgada da arma entre os pneus traseiros,
iluminada por trás pelos faróis do carro de Whelk.
Gansey não tinha certeza se Whelk estava batendo em retirada ou indo buscar uma lanterna. Recuou mais ainda na escuridão. Então esperou ali, com o coração palpitando
nos ouvidos e a grama arranhando seu rosto.
O carro de Whelk acelerou na estrada, rugindo na direção de Henrietta.
O outro carro passou logo depois, sem notar nada.
Gansey ficou deitado na grama por um longo tempo, ouvindo o zunido dos insetos nas árvores à sua volta e os sons da respiração que o Pig emitia enquanto o motor
esfriava. O polegar estava começando a doer bastante onde ele havia acertado a arma. Realmente, Gansey havia escapado com pouco mais que isso. Mas mesmo assim doía.
E o diário. Gansey se sentia ferido: a crônica de seus desejos mais intensos havia sido arrancada dele à força.
Como o carro de Whelk não voltou, Gansey se pôs de pé e foi até o outro lado do Camaro. Ele se ajoelhou e rastejou até onde pôde por baixo do carro, pescando a ponta
da arma com o polegar bom. Devagar, acionou a trava de segurança. Gansey podia ouvir a voz de Blue quando eles encontraram o corpo de Noah: impressões digitais!
Movimentando-se como em um sonho, Gansey abriu a porta do carro e largou a arma no banco do passageiro. Parecia que em outra noite, em outro carro, outra pessoa
havia deixado a casa dos pais.
Ele fechou os olhos e virou a chave.
O Pig tossiu, tossiu, e então o motor pegou.
Ele abriu os olhos, e nada naquela noite parecia ser como antes.
Ligou os faróis e dirigiu de volta para a estrada. Pressionou o pedal do acelerador e testou o motor. Ele se manteve, sem nenhum soluço.
Então ele acelerou fundo e correu na direção de Henrietta. Whelk havia matado Noah, e ele sabia que seu segredo havia sido descoberto. Para onde quer que ele estivesse
indo em seguida, não tinha mais nada a perder.
Blue nunca havia sido uma grande fã do sótão, mesmo antes de Neeve ter se mudado para lá. Numerosas vigas inclinadas do telhado proporcionavam dezenas de oportunidades
para bater a cabeça no teto em declive. No piso, tábuas carcomidas e áreas remendadas com compensados cheios de farpas eram inimigas de pés descalços. O verão transformava
o sótão em um inferno. Além disso, geralmente não havia nada lá a não ser poeira e vespas. Maura era uma não acumuladora convicta e, assim, qualquer coisa que não
fosse usada era doada para os vizinhos ou para uma instituição de caridade. Realmente, não havia nenhuma razão para visitar o sótão.
Até aquele momento.
Como estava ficando tarde, Blue havia deixado Ronan, Adam e Noah para trás para discutir se era possível implicar o professor de latim dos garotos na morte de Noah
e se a polícia já não tinha estabelecido um elo. Adam havia ligado apenas cinco minutos após ela ter chegado em casa para lhe contar que Noah havia desaparecido
no instante em que ela partira.
Então era verdade. Ela realmente era a mesa no Starbucks que todos queriam.
- Acho que temos uma hora - disse Calla enquanto Blue abria a porta do sótão. - Elas devem voltar lá pelas onze. Eu vou primeiro. Caso...
Blue ergueu uma sobrancelha.
- O que você acha que ela tem lá em cima?
- Eu não sei.
- Furões?
- Não seja ridícula.
- Magos?
Calla se esgueirou para passar por Blue e começou a subir os degraus. A única lâmpada que iluminava o sótão não ia longe escada abaixo.
- Isso é mais provável. Nossa, que cheiro.
- São os furões.
Do alto da escada, Calla lançou um olhar para Blue que ela suspeitou ser mais perigoso que qualquer coisa que elas encontrariam no sótão. No entanto, Calla estava
certa. O ar que se movia lentamente à volta delas era um tanto fétido; Blue não conseguia dizer ao certo qual era o cheiro, embora ele lembrasse coisas familiares,
como pés e cebolas podres.
- Cheira a enxofre - disse Blue. - Ou a um defunto.
Pensando na voz terrível vinda da boca de Neeve antes, ela não se surpreenderia com nenhum dos dois.
- Cheira a assa-fétida - corrigiu Calla gravemente.
- O que é isso?
- Algo que fica delicioso no curry, e algo que é muito útil na bruxaria.
Blue tentou respirar pela boca. Era difícil imaginar alguma coisa que cheirava a pé de defunto sendo delicioso em qualquer coisa.
- Qual dos dois você acha que é?
Calla havia chegado ao topo da escada.
- Não é o curry - disse ela.
Agora que Blue estava no alto da escada, pôde ver que Neeve havia transformado o sótão em algo bem diferente do que ela lembrava. Um colchão coberto com tapetinhos
estava no chão. Em torno do aposento, velas apagadas de diferentes alturas, tigelas escuras e copos de água estavam reunidos em grupos. Uma fita adesiva colorida
desenhava padrões no chão entre alguns dos objetos. Ao lado dos pés de Blue, o talo de uma planta meio queimada repousava sobre um prato coberto de cinzas. Em uma
das trapeiras estreitas, dois espelhos de corpo inteiro estavam colocados frente a frente, refletindo imagens espelhadas de um para o outro, in perpetuum.
Também estava frio. O sótão não deveria estar frio após o calor do dia.
- Não toque em nada - Calla disse a Blue. O que Blue achou irônico, considerando o motivo pelo qual elas tinham vindo.
Blue não tocou em nada, mas avançou aposento adentro, examinando uma estátua pequena de uma mulher com olhos na barriga. O sótão inteiro estava lhe deixando com
uma sensação de formigamento.
- Ela deve estar fazendo um monte de curry.
Atrás delas, os degraus rangeram, e tanto Calla quanto Blue deram um salto.
- Posso subir? - perguntou Persephone. Era uma pergunta irrelevante, pois ela já tinha subido. Usando uma túnica de renda que Blue havia feito para ela, Persephone
parou no alto da escada. Seu cabelo estava amarrado firmemente, o que sinalizava que ela não estava com medo de sujar as mãos.
- Persephone - bradou Calla, superando o susto, mas com raiva por ter ficado chocada. - Você devia fazer algum barulho quando entrasse num quarto.
- Eu deixei a escada ranger - salientou Persephone. - A Maura disse que vai voltar à meia-noite, então estejam prontas até lá.
- Ela sabe? - perguntaram Blue e Calla em uníssono.
Persephone se agachou para examinar uma máscara de couro preta com um longo bico pontudo.
- Vocês não acharam que ela tinha acreditado na história do filme dos anões, acharam?
Calla e Blue trocaram um olhar. Blue refletiu sobre o que aquilo queria dizer: que Maura queria saber mais sobre Neeve, tanto quanto elas.
Blue perguntou:
- Antes de começarmos, você vai explicar o que a Neeve disse que estava fazendo aqui em Henrietta?
Calla caminhou pelo aposento esfregando as mãos, como se estivesse se aquecendo ou planejando o que pegar primeiro. - Isso é fácil. A sua mãe chamou a Neeve aqui
para encontrar o seu pai.
- Bem - corrigiu Persephone -, isso não é totalmente verdade. A Maura me disse que a Neeve a procurou primeiro. A Neeve disse que talvez fosse capaz de encontrá-lo.
- Do nada? - Calla perguntou, pegando uma vela. - Parece estranho.
Blue cruzou os braços.
- Ainda faltam muitos detalhes.
Calla passou a vela da mão esquerda para a direita. - Basicamente, o seu pai apareceu dezoito anos atrás, roubou o coração da Maura, a tornou uma amiga absolutamente
inútil por um ano, a engravidou e então desapareceu depois que você nasceu. Ele era bonito e cheio de segredos, então presumi que fosse um pobretão que morava em
um trailer e tinha ficha na polícia.
- Calla! - Persephone a advertiu.
- Isso não me incomoda - respondeu Blue. Como ela poderia se incomodar com o passado de um estranho? - Eu só quero saber os fatos.
Persephone balançou a cabeça. - Você precisa ser tão sensata?
Blue deu de ombros e perguntou a Calla:
- O que a vela está lhe dizendo?
Com a vela distante do corpo, Calla semicerrou os olhos. - Apenas que ela foi usada para uma leitura. Para localizar objetos, que é o que eu esperaria.
Enquanto Calla remexia em mais coisas, Blue pensou no que ela havia acabado de saber sobre seu pai e se deu conta de que mantinha o mesmo carinho infundado por ele.
Ela também gostou de saber que ele era bonito. E disse: - Eu ouvi minha mãe dizer para a Neeve procurar meu pai como uma busca online.
- Acho que sim - disse Calla. - Era apenas uma curiosidade. Ela não estava querendo encontrá-lo de verdade.
- Ah - murmurou Persephone -, não tenho tanta certeza.
Isso fez os ouvidos de Blue formigarem com interesse.
- Espere, você acha que a minha mãe ainda está apaixonada por... ele tem um nome?
- Filhote - respondeu Calla, e Persephone deu uma risadinha, claramente se lembrando de Maura cega de paixão.
- Eu me recuso a acreditar que minha mãe um dia chamou um homem de filhote - disse Blue.
- Ah, mas ela chamou. E também de amor. - Calla pegou uma tigela vazia. Havia uma crosta no fundo, como se ela tivesse contido um dia um líquido relativamente espesso.
Como pudim. Ou sangue. - E chuchu.
- Você está inventando isso. - Blue estava envergonhada por sua mãe.
Persephone, um pouco vermelha por tentar não rir, balançou a cabeça. Grandes madeixas de cabelo escaparam do nó, fazendo-a parecer que havia escapado de um tornado.
- Temo que não.
- Por que alguém chamaria uma pessoa...
Virando-se para Blue com as sobrancelhas extremamente desalinhadas, Calla disse: - Use sua imaginação - e Persephone não se conteve e explodiu em um acesso de riso.
Blue cruzou os braços. - Ah, é mesmo? - Sua seriedade só serviu para dissipar qualquer autocontrole que as duas mulheres ainda tivessem. Rindo sem parar, elas começaram
a trocar outros nomes carinhosos que Maura aparentemente havia cunhado dezoito anos atrás.
- Senhoras - disse Blue num tom sério. - Temos apenas quarenta e cinco minutos. Calla, toque naquilo - e apontou para os espelhos. De todas as coisas esquisitas
no aposento, Blue achou os espelhos as mais horripilantes, e essa parecia uma razão tão boa quanto qualquer outra para tentá-los.
Engolindo uma risada, Calla se dirigiu até os espelhos. Havia algo angustiante a respeito da absoluta impraticabilidade de duas superfícies refletoras apontadas
apenas uma para a outra.
- Não fique entre eles - avisou Persephone.
- Não sou idiota - rebateu Calla.
Blue perguntou:
- Por quê?
- Vai saber o que ela faz com eles. Não quero que a minha alma seja colocada em uma garrafa em outra dimensão ou algo assim. - Calla segurou a borda do espelho mais
próximo, tomando cuidado para ficar fora do campo de visão do outro. Franzindo o cenho, estendeu sem jeito uma mão na direção de Blue, que prestativamente deu um
passo à frente para permitir que Calla pressionasse os dedos em seu ombro.
Um momento se passou em silêncio, exceto pelo barulho dos insetos do lado de fora da janela.
- Nossa pequena Neeve é ambiciosa - resmungou Calla finalmente, aumentando a intensidade do aperto dos dedos em Blue e no espelho. - Pelo visto sua fama não é o
bastante para ela. Programas de TV são para joões-ninguém.
- Não seja sarcástica, Calla - disse Persephone. - Nos conte o que você está vendo.
- Eu a vejo usando aquela máscara negra ali, parada entre estes espelhos. Eu a vejo de costas em qualquer direção, pois ela tem quatro espelhos. Dois outros espelhos
grandes atrás de cada um desses. Posso vê-la em cada um dos quatro espelhos, e ela está usando a máscara em todos eles, mas parece diferente em cada um. Está mais
magra em um deles, e vestida de preto em outro. A pele dela parece esquisita em mais um. Não sei direito o que são... Podem ser possibilidades. - Calla parou, e
Blue sentiu um ligeiro arrepio com a ideia de quatro Neeves. - Me traga a máscara. Não, você não, Blue, fique aqui. Persephone...?
Persephone buscou a máscara animadamente. Mais uma vez, houve uma pausa enquanto Calla lia o objeto, os nós dos dedos brancos com a pressão.
- Ela estava decepcionada quando comprou isso - disse Calla. - Tinha recebido uma crítica ruim, eu acho, de um de seus livros? Ou de um de seus programas? Não. Ela
tinha visto os números de um ou do outro, e eles foram decepcionantes. Eu definitivamente vejo os números, e é isso que ela estava pensando quando comprou a máscara.
Ela estava se comparando com Leila Polotsky.
- Quem é ela? - perguntou Blue.
- Uma médium mais famosa que a Neeve - disse Calla.
- Eu não sabia que isso era possível - respondeu Blue. Um programa de televisão e quatro livros pareciam o ápice a que qualquer médium poderia almejar em um mundo
descrente.
- Ah, é muito possível - disse Calla. - Pergunte a Persephone.
- Não sei não - disse Persephone. Blue não tinha certeza se ela estava falando sobre ser famosa ou sobre perguntar a ela.
Calla seguiu em frente:
- Seja como for, nossa querida Neeve gostaria de viajar o mundo e conquistar algum respeito. E essa máscara a ajuda a visualizar isso.
- O que isso tem a ver com ela estar aqui? - perguntou Blue.
- Ainda não sei. Preciso de um objeto melhor. - Calla soltou o espelho e retornou a máscara ao gancho na parede.
Elas bisbilhotaram o quarto. Blue encontrou um chicote feito de três varas amarradas com uma fita vermelha e uma máscara da mesma cor fazendo par com a preta. Próximo
da janela, encontrou a fonte do cheiro horroroso: um saquinho de pano com algo costurado.
Ela passou o saco para Calla, que o segurou por apenas um momento antes de dizer desdenhosamente:
- É a assa-fétida. É apenas um amuleto de proteção. Ela ficou assustada com um sonho e fez isso.
Persephone se agachou e pairou as mãos sobre uma das tigelas. O modo como ela mantinha as palmas abertas e os dedos mal se movendo fez Blue se lembrar de Gansey
com a mão sobre o lago raso de água em Cabeswater. Persephone disse:
- Tem muita incerteza em tudo isso, não tem? É isso que eu sinto. Talvez a questão seja simples assim: ela veio para ajudar a Maura, mas está se deixando levar um
pouco por Henrietta.
- Por causa do caminho dos mortos? - perguntou Blue. - Eu peguei a Neeve fazendo uma leitura no meio da noite e ela me disse que o caminho dos mortos tornava fácil
ser médium aqui.
Calla sorriu com pouco caso antes de começar a remexer nas coisas ao lado da cama.
- Mais fácil e mais difícil - disse Persephone. - A cidade tem bastante energia, então é como ter você no quarto o tempo inteiro. Mas também é como os seus garotos.
Bastante ruidoso.
Meus garotos!, pensou Blue, primeiro ofendida, depois lisonjeada, então ofendida de novo.
Persephone perguntou:
- Calla, o que você está descobrindo?
Calla estava de costas para elas quando respondeu.
- Onze meses atrás, um homem telefonou para Neeve para perguntar se podia trazê-la a Henrietta com todas as despesas pagas. Enquanto ela estivesse aqui, deveria
usar qualquer meio à sua disposição para apontar com precisão uma linha ley e um "lugar de poder" que ele sabia estar próximo, mas não conseguia encontrar. Ela disse
a ele que não estava interessada, mas depois decidiu que poderia investigar essa possibilidade sozinha. A Neeve achou que a Maura a deixaria ficar na cidade se ela
oferecesse ajuda para encontrar seu antigo namorado.
Persephone e Blue tinham a mesma expressão de espanto.
- Isso é incrível! - disse Blue.
Calla se virou. Estava segurando um pequeno caderno de notas, que acenou para elas.
- Esta é a agenda da Neeve.
- Que tecnologia - suspirou Persephone. - Acho que ouvi um carro. Já volto.
Enquanto ela descia com cuidado os degraus, tão silenciosamente quanto havia subido, Blue se aproximou discretamente de Calla, erguendo o queixo sobre o ombro dela,
para poder ver por si mesma a agenda.
- Onde diz tudo isso?
Calla folheou as páginas com a caligrafia de Neeve e mostrou a Blue as páginas de anotações rotineiras sobre horas de consultas, datas finais de publicações e datas
de almoços. Então chegou às anotações relativas ao telefonema do homem de Henrietta. Era tudo como Calla havia dito, com uma exceção notável. Neeve também tinha
anotado o nome e o número de telefone do homem.
Todos os músculos de Blue se afrouxaram.
Porque o nome do homem que havia ligado para Neeve meses atrás era bastante peculiar, e Blue, àquela altura, o conhecia muito bem: Barrington Whelk.
Atrás delas, o único degrau rangeu de novo. Persephone disse algo parecido com um ãhã.
- Isso foi um pouco sinistro - disse Calla, se virando.
As mãos de Persephone estavam unidas diante dela. - Tenho duas notícias ruins - e se virou para Blue. - Em primeiro lugar, seus garotos corvos estão aqui, e um deles
parece ter quebrado o polegar em uma arma.
Atrás de Persephone, houve outro rangido quando uma segunda pessoa subiu a escada. Blue e Calla se contraíram ligeiramente enquanto Neeve aparecia ao lado de Persephone,
com o olhar eterno e inabalável.
- Em segundo lugar - acrescentou Persephone -, Neeve e Maura chegaram mais cedo.
A cozinha estava bastante cheia. Para começo de conversa, nunca fora uma cozinha grande, e, quando três garotos, quatro mulheres e Blue estavam ali, a sensação era
de que ela não fora construída com chão suficiente. Adam era educado e ajudava Persephone a fazer chá para todos, apesar de que tinha de seguir perguntando: "Onde
estão as xícaras? E as colheres? E o açúcar?" Ronan, entretanto, mais do que compensava a calma de Adam - ele ocupava espaço suficiente para três pessoas com seu
andar agitado de um lado para o outro. Orla desceu, atraída pela fofoca, mas olhava com tamanha admiração para Ronan que Calla mandou que ela saísse para dar mais
espaço para todos.
Neeve e Gansey se sentaram à mesa da cozinha. Adam e Ronan pareciam exatamente como antes, quando Blue os vira pela última vez, mas os olhos de Gansey estavam diferentes.
Ela passou um longo minuto tentando descobrir o que era - por fim, achou que era uma combinação entre estarem um pouco mais brilhantes e a pele em volta deles estar
um pouco mais tensa.
O braço de Gansey se estendeu sobre a mesa, deixando à mostra o polegar imobilizado.
- Alguém poderia tirar essa tala? - ele pediu. Havia algo corajoso e agitado na maneira deliberadamente espontânea como ele havia feito o pedido. - Me sinto um inválido.
Por favor.
Passando para ele uma tesoura, Persephone observou:
- Blue, eu disse para você colocar o polegar fora da mão se fosse acertar alguém.
- Você só não me falou para dizer isso a ele - retrucou Blue.
- Tudo bem - disse Maura do vão da porta, coçando a testa. - Tem algumas coisas acontecendo aqui, obviamente. Alguém tentou matar você há pouco. - Aquilo era para
Gansey. - Vocês dois estão me dizendo que o amigo de vocês foi morto pelo homem que tentou matá-lo há pouco. - Aquilo era para Ronan e Adam. - Vocês três estão me
dizendo que a Neeve falou ao telefone com o homem que matou o amigo deles e acabou de tentar matar o Gansey. - Aquilo era para Blue, Persephone e Calla. - E você
está me dizendo que não teve nada a ver com ele desde o telefonema.
Essa última foi para Neeve. Embora Maura tivesse falado com cada um deles, todos seguiam olhando para Neeve.
- E você deixou que elas mexessem nas minhas coisas - respondeu Neeve.
Blue esperava que sua mãe parecesse repreendida, mas, em vez disso, Maura pareceu ficar mais altiva.
- E por uma boa razão, obviamente. Não posso acreditar que você não tenha me contado a verdade. Se você queria brincar pelo caminho dos corpos, por que simplesmente
não me pediu? Como você sabe que eu teria dito não? Em vez disso, você fingiu que estava comprometida com...
Ela fez uma pausa e olhou para Blue, que terminou a frase:
- Encontrar o Chuchu.
- Ah, meu Deus - disse Maura. - Calla, isso é culpa sua, não é?
- Não - disse Blue. Ela fez um grande esforço para fingir que os garotos não estavam olhando para ela e continuou: - Acho que também posso estar brava aqui. Por
que você simplesmente não me contou que não conhecia realmente o meu pai e me teve sem estar casada? Por que isso é um grande segredo?
- Eu nunca disse que não o conhecia realmente - respondeu Maura, com a voz vazia. Ela tinha uma expressão no rosto que Blue não gostava; era um pouco emocional demais.
Então Blue olhou para Persephone.
- Como você sabe que eu simplesmente não ficaria contente com a verdade? Eu não me importo que meu pai fosse um vagabundo chamado Chuchu. A essa altura, isso não
muda nada.
- O nome dele não era Chuchu mesmo, era? - Gansey perguntou a Adam em voz baixa.
A voz de Neeve, suave como sempre, trespassou a cozinha.
- Acho que a questão toda foi simplificada demais. Eu estava procurando pelo pai da Blue, só que isso não era tudo que eu estava procurando.
Calla disse abruptamente:
- Por que então esse segredo todo?
Neeve olhou séria para o polegar imobilizado de Gansey.
- É o tipo de descoberta que pode se tornar perigosa. Certamente todas vocês sentiram necessidade de agir em segredo também, ou teriam compartilhado com a Blue tudo
que sabem.
- A Blue não é médium - disse Maura em tom enérgico. - A maior parte do que não passamos adiante são coisas que têm significado apenas quando fazemos uma leitura
ou uma adivinhação no caminho dos corpos.
- Você também não me contou - disse Gansey, olhando para o polegar com o cenho franzido. Subitamente, Blue percebeu o que parecia diferente nele: ele estava usando
óculos com armação de metal. Eram finos, discretos, aqueles que você normalmente não nota até chamarem sua atenção. Eles o faziam parecer ao mesmo tempo mais velho
e mais sério, ou talvez fosse apenas a expressão dele no momento. Embora jamais fosse lhe confessar, ela preferia esse Gansey àquele levado pelo vento, de beleza
fácil. Ele seguiu em frente:
- Na leitura, quando eu perguntei sobre a linha ley, você não dividiu essa informação comigo.
Agora Maura parecia um pouco arrependida.
- Como eu podia saber o que você ia fazer com isso? Onde está esse homem agora? Barrington? Esse é realmente o nome dele?
- Barrington Whelk - Adam e Ronan responderam em uníssono, trocando um olhar esquisito.
- No hospital, a polícia me disse que estão procurando por ele. A polícia de Henrietta e a polícia do estado - disse Gansey. - Mas disseram que ele não estava em
casa e que aparentemente tinha ido embora.
- Acredito que ele tenha dado no pé, como se diz - disse Ronan.
- Você acredita que ele ainda tem algum interesse em você? - perguntou Maura.
Gansey balançou a cabeça.
- Não sei se ele já chegou a se importar comigo. Não acho que ele tivesse um plano. Ele queria o diário. Ele quer Glendower.
- Mas ele não sabe onde está Glendower?
- Ninguém sabe - respondeu Gansey. - Eu tenho um colega - Ronan conteve um riso quando Gansey usou a palavra colega, mas ele seguiu em frente - no Reino Unido que
me contou sobre o ritual que o Whelk usou com o Noah. É possível que ele tente de novo em um lugar diferente. Como Cabeswater.
- Acho que devíamos despertá-la - disse Neeve.
Todos a encararam novamente. Ela parecia imperturbável, um mar de calma, com as mãos cruzadas à frente.
- Como? - demandou Calla. - Até onde eu sei, isso envolve uma morte.
Neeve ergueu a cabeça.
- Não necessariamente. Um sacrifício nem sempre significa uma morte.
Gansey pareceu um pouco hesitante.
- Mesmo que isso seja verdade, Cabeswater é um lugar um pouco estranho. Como seria o resto da linha ley se nós a despertássemos?
- Não tenho certeza, mas posso te dizer que ela vai ser despertada - disse Neeve. - Nem preciso de minha tigela de leitura para ver isso. - E se voltou para Persephone.
- Você discorda?
Persephone segurou a xícara na frente do rosto, escondendo a boca.
- Não, eu também vejo isso. Alguém vai despertá-la nos próximos dias.
- E eu não creio que você queira que seja o sr. Whelk - continuou Neeve. - Quem quer que venha a despertar o caminho dos mortos vai ser favorecido por ele. Tanto
quem fizer o sacrifício quanto quem for sacrificado.
- Favorecido como o Noah? - interrompeu Blue. - Ele não parece muito sortudo.
- Pelo que eu soube aqui, ele estava vivendo uma vida física em um apartamento com esses meninos - observou Neeve. - Isso parece muito melhor do que uma existência
espiritual tradicional. Eu contaria isso como uma coisa favorável.
Gansey correu um dedo pensativo sobre o lábio inferior e disse:
- Não estou certo quanto a isso. O favorecimento do Noah também está ligado à linha ley, não é? Quando o corpo dele foi retirado de lá, ele perdeu bastante presença.
Se um de nós fizesse o ritual, estaríamos ligados à linha ley da mesma maneira, mesmo se o sacrifício não envolvesse morte? Tem muita coisa que não sabemos. É mais
prático impedir Whelk de realizar o ritual de novo. A gente podia simplesmente dar a localização de Cabeswater para a polícia.
- NÃO - Neeve e Maura disseram ao mesmo tempo. Neeve, no entanto, venceu pela impressão geral, ao combinar sua exclamação com um salto da cadeira.
- Achei que vocês tinham ido a Cabeswater - ela disse.
- Nós fomos.
- Vocês não sentiram o lugar? Querem vê-lo destruído? Quantas pessoas vocês querem pisoteando por ali? Parece um lugar que pode viver cheio de turistas? Ele é...
sagrado.
- Eu não gostaria - disse Gansey - nem de mandar a polícia a Cabeswater nem de despertar a linha ley. Eu gostaria de descobrir mais sobre Cabeswater e então encontrar
Glendower.
- E o Whelk? - perguntou Maura.
- Eu não sei - ele admitiu. - Simplesmente não quero me preocupar com ele.
Vários rostos exasperados se voltaram para Gansey. Maura disse:
- Bom, ele não vai simplesmente desaparecer porque você não quer lidar com ele.
- Eu não disse que seria possível - respondeu Gansey, sem deixar de olhar para sua tala. - Só disse que era o que eu gostaria.
Foi uma resposta ingênua, e Gansey sabia disso.
Então ele continuou:
- Vou voltar a Cabeswater. Ele pegou meu diário, mas não vou deixar que pegue Glendower também. Não vou parar de procurar só porque ele também está procurando. E
vou ajudar o Noah. De algum jeito.
Blue olhou para sua mãe, que observava de braços cruzados. E disse:
- Eu vou ajudar você.
- Última parada - disse Ronan, puxando o freio de mão. - Lar, merda de lar.
No escuro, a casa pré-fabricada da família Parrish era uma caixa cinza melancólica com duas janelas iluminadas. Uma silhueta na janela da cozinha abriu as cortinas
para olhar para o BMW. Ele e Adam estavam sozinhos no carro; Gansey tinha dirigido o Camaro do hospital até a Rua Fox, então o levou de volta para Monmouth. Era
um acerto bastante cômodo; Adam e Ronan não estavam brigados, e ambos estavam sobressaltados demais pelos eventos do dia para começar uma nova briga.
Adam buscou no banco de trás a pasta a tiracolo, o único presente que ele havia aceitado de Gansey, e apenas porque ele não precisava dela.
- Obrigado pela carona.
Outra silhueta, distintamente o pai de Adam, havia se juntado à primeira na janela. O estômago de Adam gelou. Ele apertou os dedos em torno da alça da pasta, mas
não saiu do carro.
- Cara, você não precisa descer - disse Ronan.
Adam não comentou a oferta; não ia ajudar. Em vez disso, perguntou:
- Você não tem dever de casa para fazer?
Mas Ronan, o mestre das observações irônicas, era à prova delas. Seu sorriso era implacável no brilho do painel.
- Sim, Parrish. Acho que tenho.
Adam, contudo, não saiu. Ele não gostou da agitação da silhueta do pai. Mas era pouco inteligente se demorar no carro - especialmente naquele carro, inegavelmente
de Aglionby -, ostentando suas amizades.
- Você acha que eles vão prender o Whelk antes da aula amanhã? - perguntou Ronan. - Porque, se eles prenderem, não vou precisar ler nada.
- Se ele aparecer para a aula - respondeu Adam -, acho que a leitura vai ser a menor das suas preocupações.
Houve um silêncio, então Ronan disse:
- É melhor eu ir dar comida para o pássaro.
Ele olhou para baixo, para o câmbio, com os olhos perdidos e prosseguiu:
- Eu fico pensando no que teria acontecido se o Whelk tivesse atirado no Gansey hoje.
Adam não insistira nessa possibilidade. Sempre que seus pensamentos chegavam perto de tocar a quase perda, surgia algo escuro e afiado dentro dele. Era difícil lembrar
como a vida em Aglionby havia sido antes de Gansey. As memórias distantes pareciam difíceis, solitárias, mais povoadas por noites tardias em que Adam se sentava
nos degraus da casa pré-fabricada, piscando lágrimas dos olhos e se perguntando por que se importava. Ele era mais jovem naquela época, apenas pouco mais de um ano
atrás.
- Mas ele não atirou.
- É - disse Ronan.
- Que sorte que você ensinou aquele gancho para ele.
- Eu nunca ensinei ele a quebrar o polegar.
- Esse é o Gansey. Aprende o suficiente para ser superficialmente competente.
- Perdedor - concordou Ronan, voltando a ser ele mesmo.
Adam anuiu, buscando coragem.
- Nos vemos amanhã. Obrigado de novo.
Ronan desviou o olhar da casa para o campo escuro, e sua mão mexeu na direção. Algo o estava frustrando, mas com ele não dava para saber se ainda era Whelk ou algo
completamente diferente.
- Tudo bem, cara. Nos vemos amanhã.
Com um suspiro, Adam desceu do carro, bateu no capô do BMW e Ronan arrancou lentamente. No céu, as estrelas eram enormes e brilhantes.
Quando Adam subiu os três degraus para entrar em casa, a porta da frente se abriu e a luz jorrou sobre suas pernas e pés. Seu pai deixou a porta aberta e parou no
vão, encarando o filho.
- Oi, pai - disse Adam.
- Não me venha com "oi, pai" - ele respondeu, já esquentado. Ele cheirava a cigarro, embora não fumasse. - Chegando em casa à meia-noite. Tentando se esconder das
suas mentiras?
Com cuidado, Adam perguntou:
- O quê?
- A sua mãe esteve no seu quarto hoje e encontrou algo. Você faz ideia do que seria?
Os joelhos de Adam começaram a derreter. Ele fazia o melhor que podia para manter a maior parte de sua vida na Aglionby escondida do pai, e ele podia pensar em diversas
coisas a respeito de si mesmo e de sua vida que não agradariam a Robert Parrish. Não saber exatamente o que havia sido encontrado era agonizante. Ele não conseguia
olhar o pai nos olhos.
Robert Parrish segurou o colarinho de Adam, forçando seu queixo para cima.
- Olhe para mim quando estiver falando com você. Um holerite. Da fábrica.
Ah.
Pense rápido, Adam. O que ele precisa ouvir?
- Eu não entendo por que você está bravo - disse Adam, tentando manter a voz o mais equilibrada possível, mas, agora que ele sabia que a questão dizia respeito a
dinheiro, não fazia ideia de como sair da situação.
O pai puxou o rosto de Adam para bem perto do seu, de maneira que o garoto pudesse sentir as palavras, além de ouvi-las.
- Você mentiu para a sua mãe sobre o seu salário.
- Eu não menti.
Aquilo foi um erro, e Adam soube disso tão logo as palavras deixaram sua boca.
- Não olhe na minha cara e minta para mim! - gritou seu pai.
Mesmo sabendo que o golpe estava vindo, o braço de Adam foi lento demais para proteger o rosto.
Quando a mão do pai o atingiu, foi mais um som que um sentimento: uma batida como um martelo distante acertando um prego. Adam lutou para se equilibrar, mas o pé
errou a beirada da escada e seu pai o deixou cair.
Quando o lado da cabeça de Adam acertou o corrimão, foi uma catástrofe de luz. Ele viu todas as cores se combinando para fazer o branco em um único momento.
A dor sibilava dentro da cabeça.
Adam estava no chão junto à escada e não conseguia se lembrar daquele segundo entre acertar o corrimão e o chão. Seu rosto estava coberto de poeira, até a boca.
Adam tinha de colocar em funcionamento os mecanismos de respirar, abrir os olhos, respirar de novo.
- Ah, vamos lá - disse o pai, cansado. - Levanta. Sinceramente...
Adam se levantou devagar, apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Ele se agachou, os joelhos firmes no chão, enquanto os ouvidos zuniam, zuniam, zuniam. Quando o barulho
parou, não havia nada além de um lamento crescente.
A meio caminho da estrada, ele viu as luzes de freio do BMW de Ronan.
Apenas vá, Ronan.
- Não acredito que você está fazendo esse jogo! - disparou Robert Parrish. - Não vou parar de falar sobre isso só porque você se jogou no chão. Eu sei quando você
está fingindo, Adam. Não sou idiota. Não acredito que você ganharia esse dinheiro todo e jogaria fora naquela maldita escola! E todas as vezes que você ouviu a gente
falar sobre a conta de luz, de telefone?
Seu pai estava longe de ter terminado. Adam podia ver sua perturbação, pela maneira como ele erguia os pés a cada passo quando desceu a escada. Adam trouxe os cotovelos
para junto do corpo, escondendo a cabeça e querendo que seus ouvidos clareassem. O que ele precisava fazer era se colocar no lugar do pai e imaginar o que precisava
dizer para apaziguar a situação.
Mas ele não conseguia pensar. Seus pensamentos se chocavam explosivamente na terra à sua frente, no ritmo do coração. A orelha esquerda gritava com ele, tão quente
que parecia úmida.
- Você mentiu - rosnou o pai. - Você disse pra gente que a escola estava te dando uma bolsa de estudos. Você não me disse que estava ganhando - ele parou tempo suficiente
para tirar um pedaço de papel castigado do bolso da camisa - dezoito mil, quatrocentos e vinte e três dólares por ano!
Adam arfou uma resposta.
- Como é que é? - Seu pai se aproximou, pegou o colarinho do filho e o puxou para cima, tão fácil quanto levantaria um cão. Adam ficou de pé com dificuldade. O chão
estava fugindo, e ele tropeçou. Ele teve de lutar para encontrar as palavras de novo; algo havia se quebrado dentro dele.
- Parcial - Adam respirou com dificuldade. - Bolsa parcial.
Seu pai berrou algo mais para ele, mas foi na orelha esquerda, e não havia nada a não ser um rugido daquele lado.
- Não me ignore - rosnou o pai. E então, inexplicavelmente, ele desviou a cabeça de Adam e gritou: - O que você quer?
- Fazer isso - Ronan Lynch respondeu rispidamente, acertando o punho no rosto de Robert Parrish. Atrás dele, o BMW estava parado, com a porta do motorista aberta
e os faróis iluminando nuvens de poeira na escuridão.
- Ronan - disse Adam. Ou talvez apenas pensou. Sem seu pai o segurando, ele cambaleou.
O pai de Adam agarrou a camisa de Ronan e o jogou na direção da casa pré-fabricada. Mas Ronan precisou de apenas um momento para voltar a ficar de pé, e seu joelho
encontrou a barriga de Parrish. Dobrado ao meio, o homem lançou o braço na direção de Ronan. Seus dedos passaram sobre a cabeça raspada do garoto sem lhe causar
dano. Isso o fez recuar apenas meio segundo, e Parrish bateu com a cabeça no rosto de Ronan.
Com o ouvido direito, Adam ouviu sua mãe gritando para eles pararem. Ela estava segurando o telefone e acenando o aparelho para Ronan, como se isso fosse fazê-lo
parar. Mas havia apenas uma pessoa que poderia parar Ronan, e a mãe de Adam não tinha esse número.
- Ronan - disse Adam, e dessa vez ele estava certo de que dissera em voz alta. Sua voz soava estranha para ele, obstruída com algodão. Ele deu um passo e o chão
sumiu de seus pés completamente. Levante-se, Adam. Ele se apoiou com as mãos e os joelhos. O céu parecia o mesmo que o chão. Adam se sentia todo quebrado e não conseguia
ficar de pé. Só conseguia observar seu amigo e seu pai se agarrando a alguns metros de distância. Adam era um par de olhos sem corpo.
A luta era suja. Em determinado momento, Ronan foi ao chão e Robert Parrish deu um chute forte no rosto dele. Os antebraços de Ronan se ergueram por puro instinto
para se proteger. Parrish investiu para abri-los à força. A mão de Ronan avançou como uma cobra, trazendo Parrish para o chão com ele.
Adam viu alguns trechos da briga: seu pai e Ronan rolando, se agarrando e socando. Luzes estroboscópicas brilhantes, vermelhas e azuis, ricocheteavam nas paredes
da casa pré-fabricada, iluminando os campos por um segundo de cada vez. Eram os policiais.
Sua mãe ainda estava gritando.
Havia barulho por toda parte. Adam precisava ficar de pé, caminhar, pensar, e então ele poderia parar Ronan antes que algo terrível acontecesse.
- Garoto? - perguntou um policial, ajoelhando-se ao seu lado. Ele cheirava a zimbro. Adam pensou que ia sufocar com aquilo. - Você está bem?
Com a ajuda do policial, Adam se levantou cambaleante. Outro policial arrastou Ronan para longe de Robert Parrish.
- Eu estou bem.
O tira soltou seu braço e então, tão rapidamente quanto, pegou-o de novo.
- Rapaz, você não está bem. Você andou bebendo?
Ronan deve ter ouvido a pergunta, pois, do outro lado do terreno, gritou uma resposta que envolvia uma série de palavrões e a frase bate até quase matar.
A visão de Adam sumia e voltava, sumia e voltava. Ele conseguia distinguir Ronan vagamente. Chocado, perguntou:
- Ele está sendo algemado?
Isso não pode acontecer. Ele não pode ser preso por minha causa.
- Você andou bebendo? - repetiu o tira.
- Não - respondeu Adam, com as pernas ainda frouxas; o chão ondulava a cada movimento de cabeça. Adam sabia que parecia bêbado. Ele precisava se aprumar. Naquela
tarde mesmo, ele havia tocado o rosto de Blue. A sensação que tivera era de que qualquer coisa era possível, como se o mundo decolasse à sua frente. Ele tentou canalizar
aquela sensação, mas ela pareceu apócrifa. - Eu não...
- Eu não o quê?
Não escuto nada com o ouvido esquerdo, pensou Adam.
Sua mãe estava parada na varanda, observando o filho e o policial, com os olhos estreitados. Adam sabia o que ela estava pensando, pois eles haviam tido aquela conversa
muitas vezes antes: Não diga nada, Adam. Diga para ele que você caiu. Na realidade foi um pouco sua culpa, não foi? Vamos lidar com isso em família.
Se Adam entregasse o pai, tudo desmoronaria à sua volta. Se Adam o entregasse, sua mãe nunca o perdoaria. Se Adam o entregasse, ele nunca mais poderia voltar para
casa.
Do outro lado do terreno, um dos policiais colocou a mão na nuca de Ronan, guiando-o para dentro da viatura.
Mesmo sem escutar com o ouvido esquerdo, Adam ouviu a voz de Ronan claramente:
- Eu disse que não preciso de ajuda, cara. Você acha que nunca andei num desses antes?
Adam não podia ir morar com Gansey. Ele havia feito tanto para ter certeza de que, quando saísse de casa, seria de acordo com seus termos. Não com os de Robert Parrish.
Não com os de Richard Gansey.
De acordo com os termos de Adam Parrish. Era isso ou nada.
Adam tocou o ouvido esquerdo. A pele estava quente e dolorida, e, sem a audição para lhe dizer que seu dedo estava próximo da cavidade da orelha, seu toque parecia
imaginário. O ruído no ouvido havia diminuído e agora não havia... nada. Nada mesmo.
Gansey dissera: "Você não vai cair fora por causa do seu orgulho?"
- O Ronan estava me defendendo. - A boca de Adam estava seca como a terra à sua volta. A expressão do policial se concentrou nele enquanto ele prosseguia. - Do meu
pai. Tudo isso... é por causa dele. Meu rosto e meu...
Sua mãe o encarava.
Ele fechou os olhos. Adam não conseguiria olhar para ela e dizê-lo. Mesmo com os olhos fechados, ele sentia como se estivesse caindo, como se o horizonte se movesse,
como se sua cabeça pendesse para o lado. O mal-estar de Adam lhe indicava que seu pai havia conseguido acertar algo vital.
E então ele disse o que antes não conseguia dizer. Adam perguntou:
- Posso... posso dar queixa?
Whelk sentia falta da comida boa que vinha com o fato de ser rico.
Quando ele voltava para casa de Aglionby, nem sua mãe nem seu pai cozinhavam. Eles haviam contratado uma chef para vir a cada duas noites fazer o jantar. Carrie
era uma mulher efusiva, mas intimidante, que adorava picar coisas com facas. Nossa, ele sentia falta do guacamole dela.
Naquele momento, Whelk estava sentado no meio-fio de um posto de atendimento fechado, comendo um hambúrguer seco que havia comprado em uma lanchonete a vários quilômetros
dali; era o primeiro lanche de fast-food que ele comia em sete anos. Sem saber quanto os policiais estariam procurando seu carro, ele o estacionou fora do alcance
da luz da rua e voltou ao meio-fio para comer.
Enquanto mastigava, um plano tomava forma, e envolvia dormir no banco de trás do carro e elaborar outro plano de manhã. Não era algo que inspirasse confiança, e
seu ânimo estava baixo. Ele devia ter raptado Gansey, agora que considerava a questão, mas um rapto exigia muito mais planejamento que um roubo, e, ao sair de casa,
ele não tinha se preparado para colocar alguém no porta-malas. Ele devia ter aproveitado a oportunidade quando o carro de Gansey quebrara. Se ele tivesse realmente
considerado a questão, teria raptado Gansey para o ritual mais tarde, após chegar ao coração da linha ley.
Só que Gansey jamais seria um bom alvo; a caçada humana por seu assassino seria monumental. Realmente, Parrish teria sido uma aposta melhor. Ninguém sentiria falta
de um garoto nascido em um trailer. Contudo, ele sempre entregava o dever de casa pontualmente.
Whelk deu outra mordida raivosa no hambúrguer empoeirado, o que não ajudou em nada para melhorar seu humor.
Ao lado dele, o telefone público começou a tocar. Até então, Whelk nem tomara conhecimento de que o telefone estava ali; ele achava que os celulares haviam varrido
do mercado os telefones públicos. Olhou para o único outro carro parado no estacionamento para ver se alguém estava esperando uma chamada. No entanto, o outro veículo
estava vazio, e o pneu direito esvaziado indicava que ele estava estacionado ali há mais tempo que alguns minutos.
Ele esperou ansiosamente enquanto o telefone tocou doze vezes, mas ninguém apareceu para atender. Whelk se sentiu aliviado quando ele parou, mas não o suficiente
para continuar onde estava. Embrulhou a outra metade do hambúrguer e se pôs de pé.
Mas então o telefone começou a tocar de novo.
E tocou o tempo inteiro enquanto ele caminhava até a lata de lixo do outro lado da porta do posto de atendimento (SEJA BEM-VINDO, ESTAMOS ABERTOS!, mentia o letreiro
reversível pendurado na porta). E não parou de tocar enquanto ele voltava para o meio-fio para recuperar uma das batatas fritas que havia deixado. E ainda tocou
enquanto ele caminhava de volta para onde estacionara o carro.
Whelk não era dado à filantropia, mas lhe ocorreu que quem quer que estivesse do outro lado do telefone público estava realmente tentando entrar em contato com alguém.
Ele voltou para o telefone, que ainda estava tocando - um toque tão antiquado, pensou, telefones não soavam mais assim -, e tirou o fone do gancho.
- Alô?
- Sr. Whelk - disse Neeve suavemente. - Espero que esteja tendo uma noite agradável.
Whelk se agarrou ao telefone.
- Como você sabia onde me encontrar?
- Números são algo muito simples para mim, sr. Whelk, e o senhor não é difícil de ser encontrado. Eu também tenho um pouco do seu cabelo. - A voz de Neeve era suave
e esquisita. Nenhuma pessoa viva, pensou Whelk, deveria soar tanto como o menu de uma secretária eletrônica computadorizada.
- Por que você está me ligando?
- Que bom que perguntou - observou Neeve. - Estou ligando a respeito da ideia que o senhor propôs da última vez que conversamos.
- Da última vez que conversamos, você disse que não estava interessada em me ajudar - respondeu Whelk. Ele ainda estava pensando sobre o fato de que aquela mulher
havia coletado um fio de cabelo dele. A imagem dela se mexendo lenta e suavemente pelo seu apartamento escuro e abandonado não era agradável. Ele virou as costas
para o posto de atendimento e olhou para dentro da noite. Possivelmente ela estava lá, em algum lugar; talvez o tivesse seguido e fora assim que ela soubera para
onde ligar. Mas Whelk sabia que aquilo não era verdade. A única razão para que ele a tivesse contatado em primeiro lugar era porque ele sabia que Neeve era real.
- Então, sobre ajudar você - disse Neeve. - Eu mudei de ideia.
- Ei, Parrish - disse Gansey.
O Camaro estava estacionado na sombra do caminho para pedestres, junto das portas de vidro do hospital. Enquanto Gansey esperava Adam sair, ele as observara abrir
e fechar para pacientes invisíveis. Agora ele estava atrás do volante enquanto Adam se abaixava para entrar no banco do passageiro. Estranhamente, Adam não trazia
nenhuma marca; normalmente, após encontros com o pai, havia hematomas ou arranhões, mas dessa vez a única coisa que Gansey podia ver era um ligeiro vermelhão na
orelha dele.
- Eles disseram que você não tinha seguro - disse Gansey. E também que Adam provavelmente nunca mais voltaria a escutar com o ouvido esquerdo. Essa era a informação
mais difícil de absorver, que algo permanente, mas invisível, havia acontecido. Gansey esperou que Adam lhe dissesse que encontraria uma maneira de pagar a conta.
Mas Adam só ficava girando o bracelete do hospital no pulso.
Gansey acrescentou delicadamente:
- Eu já cuidei da conta.
Aquele era o momento em que Adam sempre dizia algo. Ou ele ficava bravo, ou disparava: "Não, não vou aceitar seu maldito dinheiro, Gansey. Você não pode me comprar".
Mas ele apenas continuou virando o bracelete em torno do pulso.
- Você venceu - disse Adam por fim, passando a mão no cabelo despenteado. Ele parecia cansado. - Me leve pra casa para pegar minhas coisas.
Gansey ia ligar o Camaro, mas tirou a mão da ignição.
- Eu não venci nada. Você acha que era assim que eu queria que as coisas acontecessem?
- Sim - respondeu Adam, sem olhar para Gansey. - Sim, eu acho.
Dor e raiva brigaram furiosamente dentro de Gansey.
- Não seja um pé no saco.
Adam não parava de mexer na ponta desigual onde o bracelete de papel fechava.
- Estou dizendo que você pode dizer "Eu avisei". Diga: "Se você tivesse ido embora antes, isso não teria acontecido".
- Eu disse isso algum dia? Você não precisa agir como se fosse o fim do mundo.
- É o fim do mundo.
Uma ambulância estacionou entre eles e as portas do hospital; as luzes não estavam ligadas, mas os paramédicos saltaram da cabine e correram para a parte de trás
para atender a alguma emergência silenciosa. Algo queimava por trás das costelas de Gansey.
- Sair da casa do seu pai é o fim do mundo?
- Você sabe o que eu queria - disse Adam. - Você sabe que não era isso.
- Você fala como se a culpa fosse minha.
- Me diz que você não está feliz com o desfecho disso tudo.
Gansey não mentiria; ele queria ver Adam fora daquela casa. Mas nunca existira uma parte dele que quisesse ver o amigo machucado para conseguir isso. Nunca existira
uma parte dele que quisesse que Adam tivesse de fugir de casa em vez de sair de lá triunfalmente. Nunca existira uma parte dele que quisesse que Adam olhasse para
ele como estava olhando agora. Então era verdade quando Gansey respondeu:
- Eu não estou feliz com o desfecho disso tudo.
- Até parece - disparou Adam de volta. - Você queria que eu saísse de lá para sempre.
Gansey não gostava de levantar a voz (na sua cabeça, sua mãe dizia: As pessoas gritam quando não têm palavras para sussurrar). Quando percebeu que isso estava acontecendo,
fez um esforço e manteve a voz estável.
- Não assim. Mas pelo menos você tem um lugar para ir. "Fim do mundo"... Qual é o seu problema, Adam? Quer dizer, tem algo na minha casa que seja repulsivo demais
para você se imaginar vivendo lá? Por que tudo que eu faço de generoso você encara como pena? Como caridade? Pois vou dizer a verdade: estou de saco cheio de ficar
pisando em ovos por causa dos seus princípios.
- Meu Deus do céu, não aguento mais a sua arrogância, Gansey - disse Adam. - Não tente fazer com que eu me sinta burro. Quem é que fala uma palavra como repulsivo?
Não finja que você não está tentando me fazer sentir burro.
- Eu falo assim. Desculpe se o seu pai nunca lhe ensinou o significado de repulsivo. Ele estava ocupado demais batendo sua cabeça contra a parede do trailer enquanto
você pedia desculpas por existir.
Os dois pararam de respirar.
Gansey sabia que tinha ido longe demais. Longe demais, tarde demais, coisas demais.
Adam escancarou a porta.
- Vá se foder, Gansey. Vá se foder - ele disse, com a voz baixa e furiosa.
Gansey fechou os olhos.
Adam bateu a porta, e então a bateu de novo quando o trinco não fechou. Gansey não abriu os olhos. Ele não queria ver o que Adam estava fazendo. Não queria ver se
as pessoas estavam observando um garoto brigando com o outro em um Camaro laranja brilhante e com um blusão da Aglionby. Só então ele odiou seu uniforme com o corvo
no peito e seu carro chamativo e todas as palavras de três e quatro sílabas que seus pais haviam usado em conversas casuais na mesa do jantar. E também odiou o pai
abominável de Adam e a mãe permissiva de Adam e, mais do que tudo, o som das últimas palavras de Adam se repetindo sem parar.
Ele não suportava tudo aquilo dentro dele.
No fim das contas, ele não era ninguém para Adam nem para Ronan. Adam cuspia as palavras de volta para ele, e Ronan desperdiçava todas as chances que ele lhe dava.
Gansey era apenas um cara com um monte de coisas e um buraco dentro dele que mastigava um pedaço a mais de seu coração a cada ano.
Os amigos estavam sempre se afastando dele. Mas ele nunca parecia capaz de se afastar deles.
Gansey abriu os olhos. A ambulância ainda estava ali, mas Adam tinha partido.
Ele levou alguns momentos para localizá-lo. Adam já estava a alguns metros de distância, atravessando o estacionamento na direção da estrada, sua sombra uma coisa
pequena e azul ao seu lado. Gansey se esticou para o lado do carro para baixar a janela do passageiro e então deu partida no Pig. Após dar a volta em torno da área
de carga para chegar ao estacionamento, Adam havia chegado à pista de quatro faixas que corria ao largo do hospital. Havia um pouco de tráfego, mas Gansey encostou
perto de onde Adam caminhava, fazendo com que os carros na faixa da direita o ultrapassassem, alguns buzinando.
- Para onde você está indo? - ele gritou. - Para onde você precisa ir?
É claro que Adam sabia que ele estava ali - o Camaro era mais alto que qualquer coisa -, mas apenas seguiu caminhando.
- Adam - repetiu Gansey. - Só me diga que não vai voltar pra lá.
Nada.
- Não precisa ser Monmouth - Gansey tentou uma terceira vez. - Mas me deixe te levar para onde você está indo.
Por favor, apenas entre no carro.
Adam parou. Entrou no carro abruptamente e fechou a porta. Como não bateu com força suficiente, teve de tentar duas vezes mais. Eles ficaram em silêncio enquanto
Gansey voltava para o tráfego. As palavras pressionavam sua boca, implorando para serem ditas, mas ele se manteve calado.
Adam não olhou para ele quando disse, finalmente:
- Não importa como você diga isso. No fim, é o que você queria. Todas as suas coisas num só lugar, debaixo do mesmo teto. Tudo que você tem sob sua vista...
Mas então ele parou. Deixou cair a cabeça nas mãos. Os polegares trabalharam em meio ao cabelo acima das orelhas, de novo e de novo, os nós dos dedos brancos. Quando
inspirou com força, foi o som áspero que vinha de tentar não chorar.
Gansey pensou em uma centena de coisas que poderia dizer para Adam sobre como ficaria tudo bem, como tudo mudaria para melhor, como Adam Parrish era dono do próprio
nariz antes de ter conhecido Gansey, e não tinha como ele deixar de ser independente apenas mudando de casa, como em alguns dias Gansey gostaria de estar na pele
dele, porque Adam era tão real e verdadeiro, de uma maneira que Gansey nunca parecia capaz de ser. Mas as palavras de Gansey tinham se tornado armas inconscientes,
e ele não confiava em si mesmo para não descarregá-las acidentalmente de novo.
Então ele dirigiu em silêncio para buscar as coisas de Adam, e, quando eles deixaram o parque dos trailers pela última vez, sua mãe observando por detrás da janela
da cozinha, Adam não olhou para trás.
Quando Blue chegou à Indústria Monmouth aquela tarde, pensou que o armazém estava vazio. Sem nenhum carro no estacionamento, a quadra inteira tinha um ar abandonado
e triste. Ela tentou se imaginar como Gansey, vendo o armazém pela primeira vez, decidindo que ali seria um grande lugar para viver, mas não conseguiu. Assim como
não conseguia imaginar olhar para o Pig e achar que ele era um grande carro para dirigir, ou ver Ronan e pensar que ele era um bom amigo para se ter. Mas, de certa
maneira, a coisa funcionara, pois ela adorava o apartamento, e Ronan estava começando a crescer a seus olhos, e o carro...
Bem, o carro ela ainda poderia viver sem.
Blue bateu na porta.
- Noah! Você está aí?
- Estou aqui.
Blue não se surpreendeu quando sua voz surgiu atrás dela em vez de ecoar do outro lado da porta. Quando ela se virou, pareceu ver primeiro as pernas dele, e então,
lentamente, todo o resto. Ela ainda não tinha certeza se ele estava realmente lá ou se estivera lá o tempo inteiro - era difícil tomar uma decisão sobre a existência
de Noah ultimamente.
Ela deixou que ele acariciasse seu cabelo com os dedos gelados.
- Não está tão espetado como sempre - ele disse tristemente.
- Eu não dormi o suficiente. Preciso dormir para ficar com o cabelo bem espetado. Que legal ver você.
Noah cruzou os braços, então os descruzou, então colocou as mãos nos bolsos, então as tirou.
- Eu só me sinto normal quando você está por perto. Quer dizer, normal como eu era antes de encontrarem o meu corpo. Mesmo assim, eu ainda não era o que eu era quando
estava...
- Não acho que você era tão diferente quando estava vivo - disse Blue. Mas a verdade é que ela ainda não conseguia ligar Noah àquele Mustang vermelho abandonado.
- Eu acho - disse Noah cuidadosamente, se lembrando - que eu era pior na época.
Como aquela discussão parecia prestes a fazê-lo desaparecer, Blue perguntou rapidamente:
- Onde estão os outros?
- O Gansey e o Adam foram pegar as coisas do Adam para que ele possa se mudar pra cá - disse Noah. - O Ronan foi para a biblioteca.
- Se mudar pra cá! Achei que ele tinha dito... Espera... Aonde o Ronan foi?
Após uma série de pausas e suspiros mirando as árvores na rua, Noah descreveu os eventos da noite anterior e concluiu:
- Se o Ronan tivesse sido preso por socar o pai do Adam, ele estaria fora da Aglionby, não importa o que tenha acontecido. De maneira alguma eles deixariam uma acusação
de agressão passar batido. Mas o Adam deu queixa para que o Ronan não fosse preso. É claro que isso quer dizer que o Adam tem que se mudar, porque o pai dele o odeia
agora.
- Mas isso é terrível - disse Blue. - Noah, isso é terrível. Eu não sabia sobre o pai do Adam.
- É assim que ele queria que fosse.
Um lugar feito para ser deixado. Ela se lembrou de como Adam se referira à sua casa. E agora, é claro, ela se lembrou de seus machucados horrorosos e de um monte
de comentários entre os garotos que haviam parecido inexplicáveis à época, todas referências veladas à sua vida em família. Seu primeiro pensamento foi estranhamente
desagradável - que ela não havia sido uma amiga boa o suficiente para que Adam pudesse compartilhar aquilo com ela. Mas a ideia foi fugaz, substituída quase imediatamente
pela percepção horrível de que Adam não tinha família. Quem ela seria sem a sua?
Então ela perguntou:
- Ok, mas por que o Ronan está na biblioteca?
- Está enfiado nos livros - disse Noah. - Para um exame na segunda-feira.
Era a coisa mais bacana que Blue já tinha visto Ronan fazer.
O telefone tocou alto no andar de cima.
- Você devia atender! - disse Noah abruptamente. - Rápido!
Blue tinha vivido tempo demais com as mulheres da Rua Fox, 300, para questionar a intuição de Noah. Correndo em um trote rápido para acompanhá-lo, ela o seguiu até
a porta do andar superior. Estava trancada. Noah fez uma série de gestos incompreensíveis, mais agitado que de costume.
Ele irrompeu:
- Eu conseguiria se...
Se ele tivesse mais energia, pensou Blue. Ela tocou o ombro dele na mesma hora. Imediatamente fortalecido pela energia dela, Noah se inclinou na direção do trinco,
soltou a tranca e liberou a porta. Blue se atirou ao telefone.
- Alô? - ela arfou. O telefone sobre a mesa era preto e antigo, daqueles de disco, combinando completamente com o amor de Gansey pelo bizarro e pelo quase não funcional.
Conhecendo-o, era possível que ele tivesse uma linha fixa só para justificar ter aquele telefone em particular sobre a mesa.
- Ah, olá, querida - disse uma voz estranha do outro lado da linha. Blue percebeu um forte sotaque. - Richard Gansey está?
- Não - respondeu Blue. - Mas posso anotar o seu recado.
Esse, ela sentia, havia sido seu papel na vida até aquele momento.
Noah a cutucou com um dedo frio.
- Diga a ele quem é você.
- Eu estou trabalhando com o Gansey - acrescentou Blue. - Na linha ley.
- Ah! - disse a voz. - Bem, que ótimo conhecê-la. Como é mesmo o seu nome? Eu me chamo Roger Malory.
Ele estava fazendo algo extremamente complicado com seus Rs que dificultavam compreendê-lo.
- Blue. Meu nome é Blue Sargent.
- Blair?
- Blue.
- Blaize?
Ela suspirou.
- Jane.
- Ah, Jane! Achei que você estava dizendo Blue por alguma razão. Prazer em conhecê-la, Jane. Acho que tenho más notícias para o Gansey. Diga a ele que eu tentei
aquele ritual com um colega... aquele camarada de Surrey que eu mencionei antes, um sujeito cativante, mas com um hálito terrível... e o ritual simplesmente não
deu muito certo. Meu colega vai ficar bem, os médicos dizem que vai levar algumas semanas para a pele dele sarar. Os enxertos estão funcionando esplendidamente,
eles disseram.
- Espere - disse Blue, pegando o pedaço de papel mais próximo que havia na mesa de Gansey, no qual parecia ter um cálculo ou algo do gênero. Ele já havia rabiscado
ali um gato atacando um homem, então Blue pensou que não haveria problemas em usá-lo. - Estou anotando tudo isso. Esse é o ritual para despertar a linha ley, certo?
O que exatamente deu errado?
- É muito difícil dizer, Jane. Basta afirmar que as linhas ley são ainda mais poderosas do que o Gansey e eu havíamos imaginado. Elas podem ser magia, podem ser
ciência, mas são inegavelmente energia. Meu colega saiu de sua pele com bastante facilidade. Eu estava certo de que o havia perdido; eu não achava que um homem pudesse
sangrar tanto sem sucumbir. Ah, quando você contar tudo isso para o Gansey, não conte essa parte. O garoto tem uma questão e tanto com a morte, e não quero angustiá-lo.
Blue não notara que Gansey tinha uma "questão" com a morte, mas concordou em não contar para ele.
- Mas o senhor ainda não me falou o que o senhor tentou - destacou Blue.
- Ah, não falei?
- Não. O que significa que podemos fazer a coisa acidentalmente, se a gente não souber o que é.
Malory deu uma risadinha. Aquilo soava muito com tomar somente o chantili do chocolate quente.
- De fato, você está certa. Era bastante lógico, realmente, e foi baseado em uma das antigas ideias do Gansey, para lhe dizer a verdade. Nós montamos um novo círculo
de pedras usando algumas que descobrimos terem excelentes leituras de energia... São termos de radiestesia, é claro, Jane, não sei quanto você conhece a respeito
de todas essas coisas, mas é bacana ver uma garota envolvida com tudo isso. Linhas ley tendem a ser uma coisa de homens, e é bacana ouvir uma senhorita como você...
- Sim - concordou Blue. - É fantástico. Estou me divertindo. Então, o senhor montou um círculo de pedras?
- Ah, sim, certo. Nós colocamos sete pedras em um círculo sobre o que eu esperava ser o centro da linha ley e mexemos em suas posições até termos uma leitura de
energia bastante alta no meio. Mais ou menos como posicionar um prisma, creio eu, para focar a luz.
- E foi então que a pele do seu parceiro se desprendeu?
- Mais ou menos isso. Ele estava fazendo uma leitura no meio e... É triste, mas não sei descrever exatamente o que ele falou, porque fiquei tão entretido pelo que
veio depois... Mas enfim, ele fez uma observação ou piada ou sei lá o quê... Você sabe como são os jovens, o próprio Gansey pode ser bastante dado a leviandades...
Blue não estava certa se Gansey era bastante dado a leviandades, mas fez uma anotação mental para reparar nisso no futuro.
- ... e ele disse algo sobre perder a pele ou deixar cair a pele ou algo do gênero. E aparentemente essas coisas são bastante literais. Não estou certo de como as
palavras dele provocaram algum tipo de reação, e acho que não despertamos a linha, pelo menos não do modo correto, mas enfim. Decepcionante, realmente.
- Exceto que o seu parceiro viveu para contar a história - disse Blue.
Malory respondeu:
- Bem, sou eu quem está tendo de contá-la.
Blue achou que aquilo era uma piada. De qualquer maneira, ela riu e não se sentiu mal por causa disso. Então agradeceu a Malory, trocou gentilezas com ele e desligou.
- Noah? - ela perguntou ao aposento vazio, pois ele havia desaparecido. Não houve resposta, mas, na rua, ela ouviu portas de carro batendo e vozes.
Blue repetiu a frase em sua cabeça: Meu colega saiu de sua pele com bastante facilidade. Blue não tinha uma "questão" com a morte, mas até ela achou que a cena pintava
uma imagem um tanto horrível e vívida.
Um momento depois, ela ouviu a porta bater quando se fechou no primeiro andar e passos na escada.
Gansey foi o primeiro a entrar no aposento. Certamente ele não esperava encontrar ninguém ali, pois seus traços não haviam se composto nem um pouco para disfarçar
seu sofrimento. Quando viu Blue, ele imediatamente conseguiu tirar um sorriso cordial de algum lugar.
E ele era tão convincente. Ela vira sua expressão apenas um segundo antes, mas, mesmo a tendo visto, era difícil lembrar que aquele sorriso era falso. O motivo pelo
qual um garoto com uma vida tão despreocupada como a de Gansey precisou aprender a fazer uma expressão falsa de felicidade de um modo tão rápido e convincente estava
além de sua compreensão.
- Jane - ele disse, e Blue achou que ouviu um pouco da infelicidade dele na voz radiante, mesmo se seu rosto não a traísse mais. - Desculpe por não estar aqui para
te receber.
A voz de Noah, e nada mais, se manifestou no ouvido de Blue, um sussurro gelado: Eles brigaram.
Adam e Ronan entraram. Ronan estava curvado com uma sacola de lona e uma mochila nas costas, e Adam carregava uma caixa de cereal amassada, dentro da qual um Transformer
espiava para fora.
- Belo Transformer - disse Blue. - É o do carro de polícia?
Adam olhou para Blue sem sorrir, como se não a tivesse visto realmente. Então, um segundo tarde demais, respondeu:
- É.
Ronan, ainda curvado sob o peso da bagagem, atravessou o aposento na direção do quarto de Noah, rindo de maneira sincronizada com seus passos. Era o tipo de risada
que denunciava que uma única pessoa ria.
- Esse cara ligou - disse Blue, segurando o pedaço de papel em que havia anotado o nome. O lugar onde ela o havia escrito fazia parecer como se o gato ali desenhado
estivesse chamando alguém.
- Malory - disse Gansey, não tão entusiasmado como de costume. Enquanto Adam carregava a caixa atrás de Ronan, Gansey observou suas costas com olhos estreitos. Somente
após a porta de Noah ter se fechado atrás dele, Gansey desviou o olhar e encarou Blue. O apartamento parecia vazio sem os outros, como se eles tivessem ido para
outro mundo em vez de para outro quarto.
Gansey perguntou:
- O que ele queria?
- Ele tentou o ritual na linha ley e disse que deu errado. E que uma outra pessoa... seu, humm, colega?... se machucou.
- Se machucou como?
- Apenas se machucou. Feio. Por causa da energia - disse Blue.
Gansey chutou com força os sapatos para longe. Um voou sobre sua Henrietta em miniatura e o outro percorreu todo o caminho até cair do lado da mesa, batendo com
força na madeira velha e escorregando até o chão. Com um murmúrio, ele disse:
- Uhuu.
Blue observou:
- Você parece chateado.
- Pareço? - ele perguntou.
- Por que você e o Adam brigaram?
Gansey lançou um olhar para a porta fechada de Noah.
- Como você sabe? - perguntou desconfiado, jogando-se na cama desfeita.
- Por favor - disse Blue, porque, mesmo que Noah não tivesse contado, ela teria sabido.
Ele murmurou algo para os lençóis e gesticulou com uma mão no ar. Blue se agachou ao lado da cama e apoiou os braços na beirada.
- O quê? Você pode falar sem o travesseiro na boca dessa vez?
Gansey não virou a cabeça, de maneira que sua voz continuou abafada.
- Minhas palavras são ferramentas certeiras de destruição, e não consigo fazer nada para mudar isso. Você acredita que eu só estou vivo porque o Noah morreu? Que
belo sacrifício foi esse, que bela contribuição para o mundo eu sou.
Ele fez outro pequeno volteio com a mão sem tirar o rosto do travesseiro. A intenção provavelmente era fazer parecer que ele só estava brincando. Ele seguiu em frente:
- Ah, eu sei que estou com pena de mim mesmo. Não ligue. Então o Malory acha que é uma má ideia despertar a linha ley? É claro que ele acha. Eu adoro becos sem saída.
- Você está com pena de si mesmo. - Mas Blue gostava disso de certa maneira. Ela nunca tinha visto Gansey ser tão verdadeiro por tanto tempo de uma só vez. Só era
uma pena que ele tivesse de estar por baixo para que isso acontecesse.
- Já estou terminando. Você não vai precisar aguentar muito mais.
- Eu prefiro você assim.
Por alguma razão, admitir aquilo fez seu rosto ficar rubro; Blue ficou bastante satisfeita que ele ainda tivesse o rosto pressionado no travesseiro e os outros garotos
ainda estivessem no quarto de Noah.
- Destruído e quebrado - disse Gansey. - Bem do jeito que as mulheres gostam. Ele disse que o cara se machucou muito?
- Sim.
- Bom, então está cancelado. - Ele rolou de costas e olhou para Blue de cabeça para baixo, onde ela se inclinara sobre a cama. - Não vale o risco.
- Achei que você tinha dito que precisava encontrar o Glendower.
- Eu preciso - disse Gansey. - Eles não.
- Então você vai fazer isso sozinho?
- Não, vou encontrar outra maneira. Eu adoraria ter o poder da linha ley apontando setas gigantes para onde ele está, mas vou apenas seguir me arrastando ao longo
do velho caminho. Que tipo de ferimento esse cara teve?
Blue fez um ruído evasivo, lembrando-se do aviso de Malory de lhe poupar os detalhes.
- Blue. Que tipo? - Seu olhar era resoluto, como se encará-la fosse mais fácil com seus rostos de cabeça para baixo um em relação ao outro.
- Ele disse algo sobre perder a pele e aí parece que a pele dele caiu. O Malory não queria que eu te contasse isso.
Gansey apertou os lábios.
- Ele ainda se lembra de quando eu... Esqueça. A pele dele caiu? Isso é terrível.
- O que é terrível? - perguntou Adam, atravessando o aposento.
Notando a postura de Blue e Gansey, Ronan observou:
- Se você der uma cuspida, Blue, vai acertar bem no olho dele.
Gansey passou para o lado contrário da cama com uma agilidade surpreendente, olhando de relance para Adam e desviando o olhar tão rapidamente quanto.
- A Blue disse que o Malory tentou despertar a linha e o homem que estava com ele ficou muito ferido. Então nós não vamos fazer nada. Não agora.
Adam disse:
- Não me importo com o risco.
Ronan palitou os dentes.
- Eu também não.
- Você não tem nada a perder - disse Gansey, apontando para Adam. Em seguida, olhou para Ronan. - E você não se importa se vai viver ou morrer. Isso incapacita vocês
como juízes.
- Você não tem nada a ganhar - salientou Blue. - Isso torna você um juiz igualmente ruim. Mas acho que eu concordo. Quer dizer, veja o que aconteceu com o seu amigo
inglês.
- Obrigado, Jane, por ser a voz da razão - disse Gansey. - Não me olhe desse jeito, Ronan. Desde quando nós decidimos que despertar a linha ley é a única maneira
de encontrar Glendower?
- Nós não temos tempo para encontrar outro caminho - insistiu Adam. - Se o Whelk despertar a linha, ele vai ter uma vantagem. Além disso, ele fala latim. E se as
árvores souberem? Se encontrar o Glendower, ele recebe o favor e se livra da morte do Noah. Fim do jogo, o bandido ganha.
Qualquer traço de vulnerabilidade havia desaparecido do semblante de Gansey enquanto ele passava as pernas sobre o lado da cama.
- É uma má ideia, Adam. Arrume um jeito de fazer o ritual sem machucar ninguém e estou junto nessa. Até lá... vamos esperar.
- Nós não temos tempo - disse Adam. - A Persephone disse que alguém vai despertar a linha ley nos próximos dias.
Gansey ficou de pé.
- Adam, o que está acontecendo agora é que alguém do outro lado do mundo não tem pele porque brincou com a linha ley. Nós vimos Cabeswater. Isso não é um jogo. É
muito real e muito poderoso e não vamos mexer com isso.
Ele manteve o olhar de Adam por um longo momento. Havia algo pouco familiar na expressão de Adam, algo que fazia Blue pensar que ela não o conhecia de verdade.
Em sua mente, Blue o imaginou passando a carta de tarô para sua mãe e, enquanto se lembrava de como Maura havia interpretado o dois de espadas, ela pensou, tristemente:
Minha mãe é muito boa no que faz.
- Às vezes - disse Adam - eu não sei como você consegue viver consigo mesmo.
Barrington Whelk não estava satisfeito com Neeve. Para começo de conversa, desde que ele entrara no carro, ela não fizera nada além de comer homus e bolachas, e
a combinação do cheiro de alho e da mastigação de bolachas era incrivelmente irritante. O pensamento de que ela estava enchendo o banco do carro dele com migalhas
era um dos mais perturbadores que ele tivera em uma semana de pensamentos extremamente perturbadores. Também, a primeira coisa que ela havia feito após eles terem
trocado cumprimentos foi usar seu taser nele. Isso foi seguido pela infâmia de ser amarrado na parte de trás de seu próprio carro.
Como se não bastasse eu ter que suportar esse carrinho de merda, pensou Whelk, agora vou morrer nele.
Ela não havia dito que sua intenção era matá-lo, mas Whelk tinha passado os últimos quarenta minutos sem conseguir ver grande coisa a não ser o assoalho atrás do
banco do passageiro. Havia uma tigela larga e rasa de cerâmica com uma coleção de velas, tesouras e facas. As facas eram de um tamanho considerável e sinistro, mas
não uma garantia de assassinato iminente. As luvas de borracha que Neeve usava, e o par extra dentro da tigela, eram.
Da mesma maneira, Whelk não podia ter certeza se eles se dirigiam para a linha ley, mas, pelo tempo que Neeve passara examinando o diário antes de seguir em frente
pela estrada, ele suspeitava se tratar de um bom palpite. Whelk não era dado a suposições - mas ele pensou que seu destino provavelmente estava fadado a ser o mesmo
de Czerny, sete anos atrás.
Uma morte ritual, então. Um sacrifício, com seu sangue penetrando a terra até alcançar a linha ley adormecida embaixo. Esfregando os punhos amarrados um contra o
outro, ele virou a cabeça para Neeve, que segurava a direção com uma mão, enquanto comia as bolachas e o homus com a outra. Para agravar ainda mais a situação, ela
estava ouvindo algum tipo de CD de sons da natureza em batida trance no rádio do carro. Talvez se preparando para o ritual.
Sua morte na linha ley, pensou Whelk, teria uma espécie de circularidade.
Mas ele não se importava com a circularidade. Ele se importava com seu carro perdido, com seu respeito perdido. Ele se importava com a capacidade de dormir à noite.
Ele se importava com línguas mortas há tanto tempo que não mudariam em seu tempo de vida. Ele se importava com o guacamole que a antiga chef de seus pais costumava
fazer.
E também com o fato de que Neeve não o havia amarrado firme o suficiente.
Após deixar a Indústria Monmouth, Blue voltou para casa e se retirou para o canto mais distante da faia no quintal para tentar fazer o dever de casa. Mas ela se
viu passando menos tempo tentando solucionar x e mais tempo tentando solucionar Noah ou Gansey ou Adam. Ela havia desistido e se recostado quando Adam apareceu.
Ele adentrou a sombra verde e suave da árvore pela lateral da casa.
- A Persephone disse que você estava aqui. - Ele apenas ficou parado ali, na beira da sombra.
Blue pensou em dizer Sinto muito pelo seu pai, mas em vez disso apenas estendeu uma mão na direção dele. Adam deu um suspiro inseguro do tipo que ela poderia ver
a dois metros de distância. Sem dizer uma palavra, ele se sentou ao lado dela e colocou a cabeça em seu colo, com o rosto nos braços.
Sobressaltada, Blue não reagiu imediatamente, fora olhar de relance sobre o ombro para ter certeza de que a árvore os escondia da casa. Ela se sentiu um pouco como
se tivesse sido abordada por um animal selvagem, ao mesmo tempo lisonjeada por sua confiança e preocupada com o fato de que teria de espantá-lo dali. Após um momento,
acariciou com cuidado alguns fios finos e empoeirados de cabelo enquanto olhava para a nuca dele. Blue sentiu o peito se aquecer ao tocá-lo e ao sentir seu cheiro
de poeira e óleo.
- Seu cabelo é da cor da terra - ela disse.
- Ele sabe de onde veio.
- Engraçado - observou Blue -, porque então o meu devia ser dessa cor também.
Os ombros dele se moveram em resposta. Após um momento, ele disse:
- Às vezes tenho medo de que ele nunca me compreenda.
Blue correu um dedo ao longo da parte de trás da orelha dele. Parecia perigoso e emocionante, mas não tão perigoso e emocionante como teria sido tocá-lo enquanto
ele olhava para ela.
- Só vou dizer isso uma vez, depois não toco mais no assunto - ela disse. - Mas acho que você é tremendamente corajoso.
Ele ficou em silêncio por um longo momento. Um carro zuniu pelo bairro. O vento passou pelas folhas da faia, revirando-as de um jeito que prenunciava chuva.
Sem erguer a cabeça, Adam disse:
- Eu gostaria de te beijar, Blue, nova ou não.
Os dedos dela pararam de se mover.
- Eu não quero te machucar - ela disse.
Adam se livrou dela e se sentou a poucos centímetros de distância. Sua expressão era fria, nem um pouco parecida com quando ele quisera beijá-la antes.
- Eu já estou todo machucado.
Blue não achou que a questão realmente tivesse algo a ver com beijá-la, e isso fez suas faces arderem. Não era para acontecer um beijo de forma alguma, mas, se fosse,
ele definitivamente não deveria ser assim. Ela disse:
- O pior ainda está por vir.
Alguma coisa naquele comentário fez com que Adam engolisse em seco e desviasse o rosto. Suas mãos estavam largadas no colo. Se eu fosse qualquer outra pessoa no
mundo, ela pensou, teria sido o meu primeiro beijo. Ela se perguntou como teria sido beijar aquele garoto ansioso e desolado.
Os olhos de Adam se moveram, seguindo a luz que se deslocava através das folhas no alto. Ele não olhou para ela quando disse:
- Eu não lembro como a sua mãe disse que eu devia resolver o meu problema. Na leitura. A escolha que eu não podia fazer.
Blue suspirou. Essa era a verdadeira questão, e ela soubera o tempo inteiro, mesmo que ele não soubesse.
- Faça uma terceira opção - disse ela. - Da próxima vez você devia trazer um caderno.
- Eu não lembro dela dizendo a parte do caderno.
- Sou eu quem está te dizendo isso. Da próxima vez que alguém ler cartas para você, tome nota. Assim você pode comparar com o que realmente acontece, e você vai
saber se a médium é boa.
Adam olhou para ela, mas Blue não tinha certeza se ele estava realmente olhando para ela.
- Vou fazer isso.
- Dessa vez vou te poupar o trabalho - Blue acrescentou, inclinando a cabeça para trás enquanto ele se punha de pé. Seus dedos e sua pele desejavam o garoto com
o qual ela ficara de mãos dadas dias antes, mas ele não parecia ser o garoto de pé à sua frente. - Minha mãe é uma boa médium.
Enfiando as mãos nos bolsos, ele coçou o rosto no ombro.
- Então você acha que eu devo dar atenção a ela?
- Não, você deve dar atenção a mim.
O sorriso apressadamente delineado era tão tênue que podia se romper.
- E o que você diz?
Blue ficou subitamente com medo por ele.
- Continue sendo corajoso.
Havia sangue por toda parte.
- Está feliz agora, Adam? - rosnou Ronan. Ele se ajoelhou ao lado de Gansey, que convulsionava no chão. Blue encarou Adam, e o horror no rosto dela era a pior parte.
A culpa era dele. O rosto de Ronan estava transtornado pela perda. - Era isso que você queria?
Num primeiro momento, quando Adam abriu os olhos do sonho sangrento, com os membros formigando com a adrenalina, ele não tinha certeza de onde estava. Ele sentia
como se levitasse; o espaço à sua volta estava todo errado, com muito pouca luz, muito espaço acima da cabeça, nenhum som de sua respiração voltando para ele das
paredes.
Então ele se lembrou de onde estava, no quarto de Noah, com suas paredes fechadas e seu teto altíssimo. Uma nova onda de angústia o varreu, e ele pôde identificar
sua fonte muito precisamente: saudades de casa. Por incontáveis minutos, Adam ficou deitado, acordado, debatendo consigo mesmo. Logicamente, ele sabia que não tinha
nenhum motivo para sentir saudades, que ele efetivamente era vítima da síndrome de Estocolmo, identificando-se com seus raptores, considerando uma bondade quando
seu pai não batia nele. Obviamente, ele sabia que sofria abuso. Ele sabia que o dano era mais profundo que qualquer machucado que já apresentara na escola um dia.
Adam podia dissecar interminavelmente suas reações, duvidar de suas emoções, perguntar se ele também bateria no próprio filho.
Contudo, deitado na escuridão da noite, tudo em que conseguia pensar era: Minha mãe nunca mais vai falar comigo. Não tenho um lar.
O espectro de Glendower e a linha ley perduravam na mente de Adam. Eles pareciam mais próximos do que nunca, mas a possibilidade de um resultado bem-sucedido também
parecia mais tênue do que nunca. Whelk estava solto por aí, e ele estivera procurando por isso por mais tempo ainda do que Gansey. Certamente, se o deixassem agir
livremente, ele encontraria o que procurava mais cedo do que eles.
Precisamos despertar a linha ley.
A cabeça de Adam era uma confusão de pensamentos: a última vez em que o pai havia batido nele, o Pig encostando ao lado dele com Gansey dentro, o sósia de Ronan
na caixa registradora naquele dia em que decidira que precisava ir para Aglionby, o primeiro golpe de Ronan no rosto do pai. Ele tinha tantos anseios, todos tão
importantes, tão urgentes. Não precisar trabalhar tantas horas, entrar para uma boa faculdade, ficar bem de terno, não se sentir ainda com fome após comer o sanduíche
fino que levava para o trabalho, dirigir o Audi reluzente que Gansey havia parado para olhar uma vez com ele depois da escola, ir para casa, bater ele mesmo no pai,
ser dono de um apartamento com balcões de granito e uma televisão maior que a mesa de Gansey, pertencer a algum lugar, ir para casa, ir para casa, ir para casa.
Se eles despertassem a linha ley, se eles encontrassem Glendower, ele poderia ter todas essas coisas. A maioria delas.
Mas, novamente, ele viu Gansey ferido, e viu também o rosto de Gansey ferido antes, quando eles haviam brigado. Simplesmente não havia a possibilidade de Adam colocar
a vida de Gansey em perigo.
Mas também não havia nenhuma possibilidade de ele deixar Whelk se intrometer e tomar o que eles tinham trabalhado tão duro para conseguir. Esperar! Gansey sempre
poderia se dar ao luxo de esperar. Adam não.
Ele estava decidido, então. Andando furtivo e silencioso pelo quarto, colocou algumas coisas na mochila. Era difícil prever o que deveria levar. Adam puxou a arma
que estava debaixo da cama e a olhou por um longo momento, uma forma escura e sinistra nas tábuas do chão. Mais cedo, Gansey o tinha visto tirando-a de suas coisas.
- O que é isso? - perguntara, horrorizado.
- Você sabe o que é - Adam havia respondido. Era a arma do pai dele, e, apesar de ele não ter certeza se seu pai a usaria um dia contra sua mãe, ele não correria
o risco.
A ansiedade de Gansey ao ver a arma havia sido palpável. Era possível, pensou Adam, que fosse por Whelk ter enfiado uma arma na cara dele.
- Eu não quero isso aqui.
- Não posso vender - Adam havia dito. - Eu já tinha pensado nisso. Mas legalmente eu não posso. Está registrada no nome dele.
- Com certeza existe um jeito de se livrar dela. Enterre.
- E correr o risco de alguma criança encontrar?
- Eu não quero isso aqui.
- Vou encontrar uma maneira de me livrar dela - Adam havia prometido. - Mas não posso deixar a arma lá. Não agora.
Adam não queria levá-la com ele essa noite, não mesmo.
Mas ele não sabia o que precisaria sacrificar.
Ele conferiu a trava de segurança e colocou a arma na mochila. Ficou de pé, se virou na direção da porta e conseguiu abafar um som. Noah estava parado bem na sua
frente, os olhos vazios alinhados com os de Adam, a face afundada alinhada com o ouvido arruinado de Adam, a boca sem respiração alinhada com a respiração entrecortada
de Adam.
Sem Blue ali para torná-lo mais forte, sem Gansey ali para torná-lo humano, sem Ronan ali para fazê-lo pertencer, Noah era algo assustador.
- Não jogue fora - sussurrou Noah.
- Estou tentando não fazer isso - Adam respondeu, pegando a bolsa a tiracolo. A arma a deixava estranhamente pesada. Eu conferi a trava de segurança, não? Sim. Eu
sei que sim.
Quando ele se endireitou, Noah já tinha partido. Adam caminhou através do ar escuro e frio onde ele estivera há pouco e abriu a porta. Gansey estava encolhido na
cama, com tampões de ouvido e olhos fechados. Mesmo sem a audição no ouvido esquerdo, Adam podia ouvir o ruído baixinho da música - o que quer que Gansey tivesse
colocado para lhe fazer companhia e induzi-lo ao sono.
Eu não estou traindo o Gansey, pensou Adam. Nós ainda estamos fazendo isso juntos. Só que, quando eu voltar, seremos iguais.
Seu amigo não se mexeu enquanto Adam passava pela porta. Quando ele partiu, o único barulho que ouviu foi o sussurro do vento noturno nas árvores de Henrietta.
Gansey acordou no meio da noite e se deparou com a lua inteira sobre seu rosto.
Então, quando abriu os olhos de novo, despertando de verdade, percebeu que não era a lua - as poucas luzes de Henrietta refletiam um roxo fosco por causa de uma
faixa de nuvens baixa, e as janelas estavam salpicadas com gotas de chuva.
Não havia lua, mas algo como uma luz o havia acordado. Ele achou que tinha ouvido a voz de Noah ao longe. Os pelos dos braços se arrepiaram devagar.
- Não consigo te entender - ele sussurrou. - Desculpe. Você pode falar mais alto, Noah?
Os pelos da nuca também se arrepiaram. Uma nuvem de respiração perdurou na frente da boca, no ar subitamente frio.
A voz de Noah disse:
- Adam.
Gansey pulou da cama, mas era tarde demais. Adam não estava no antigo quarto de Noah. Suas coisas estavam espalhadas. Ele havia feito as malas, havia partido. Mas
não - suas roupas tinham ficado para trás. Adam não pensara em partir para sempre.
- Ronan, levante - disse Gansey, escancarando a porta do quarto dele. Sem esperar por resposta, foi até a escada e, da plataforma, olhou pela janela quebrada que
dava para o estacionamento. A chuva caía como uma garoa, um spray fino que fazia halos em torno das luzes de casas distantes. De certa maneira, Gansey já sabia o
que encontraria, mas mesmo assim a realidade foi um choque. O Camaro não estava no estacionamento. Era mais fácil para Adam fazer uma ligação direta no Camaro do
que no BMW de Ronan. Provavelmente o que acordara Gansey fora o ronco do motor, a luz do luar meramente uma memória.
- Gansey, cara, o que foi? - perguntou Ronan, parado no vão da porta, coçando a parte de trás da cabeça.
Gansey não queria dizer. Ele tinha medo de que, se dissesse em voz alta, aquilo se tornasse real, palpável, verdadeiro. Não teria sido um problema se fosse Ronan;
esse era o tipo de coisa que ele esperaria de Ronan. Mas era Adam. Adam.
Eu disse para ele, não disse? Eu disse que a gente devia esperar. Ele me entendeu muito bem.
Gansey tentou várias formas de pensar na situação, mas não havia nada que a retratasse de uma maneira que doesse menos. Algo continuava se dilacerando dentro dele.
- O que está acontecendo? - O tom da voz de Ronan havia mudado. Não havia mais nada a fazer a não ser dizê-lo.
- O Adam foi despertar a linha ley.
A apenas um quilômetro e meio dali, na Rua Fox, 300, Blue levantou o olhar quando ouviu uma batida leve na porta rachada de seu quarto.
- Você está dormindo? - perguntou Maura.
- Sim - respondeu Blue.
Maura entrou no quarto.
- A sua luz estava acesa - ela observou e, com um suspiro, se sentou na beirada da cama de Blue, tão suave quanto um poema na luz fraca. Por longos minutos, ela
não disse absolutamente nada, repassando as escolhas de leitura de Blue empilhadas na mesa de cartas enfiada na extremidade do colchão. Não havia nada de estranho
naquele silêncio entre elas; desde quando Blue podia se lembrar, sua mãe entrava em seu quarto à noite, e juntas elas liam livros, cada uma num canto da cama. Seu
velho colchão duplo parecia ter mais espaço quando Blue era pequena, mas, agora que ela tinha o tamanho de uma adulta, era impossível que elas se sentassem sem que
joelhos ou cotovelos se tocassem.
Após alguns momentos de impaciência com os livros de Blue, Maura pousou as mãos no colo e olhou ao redor, para o pequeno quarto da filha. Ele estava iluminado por
uma luz verde fraca da lâmpada na mesa de cabeceira. Na parede do outro lado da cama, Blue havia disposto árvores de lona, decoradas com uma colagem de folhas naturais
e papel reciclado, e havia colado flores secas sobre toda a porta do armário embutido. A maioria delas ainda parecia bastante bem, mas algumas estavam um pouco passadas.
O ventilador de teto estava enfeitado com penas coloridas e rendas. Blue vivera ali todos os dezesseis anos de sua vida, e o quarto não deixava dúvidas quanto a
isso.
- Acho que eu devia me desculpar - disse Maura finalmente.
Blue, que estivera lendo e relendo sem grande sucesso um dever sobre literatura americana, largou o livro.
- Por quê?
- Por não ter sido franca, eu acho. Sabe, é muito difícil ser mãe. Eu culpo o Papai Noel. Você passa tanto tempo trabalhando duro para que seu filho não perceba
que ele não existe que não sabe quando parar.
- Mãe, eu vi você e a Calla embrulhando meus presentes quando eu tinha, sei lá, seis anos.
- Foi uma metáfora, Blue.
Blue tamborilou no livro de literatura.
- Uma metáfora deve esclarecer algo com um exemplo. Isso não esclareceu nada.
- Você sabe o que eu estou querendo dizer ou não?
- O que você está querendo dizer é que lamenta por não ter me contado sobre o Chuchu.
Maura olhou furiosa para a porta, como se Calla estivesse parada atrás dela.
- Eu gostaria que você não o chamasse assim.
- Se tivesse sido você quem tivesse me contado sobre ele, eu não estaria usando o nome que a Calla me contou.
- Muito bem.
- Então, qual era o nome dele?
Sua mãe se recostou na cama. Ela estava de atravessado, de maneira que teve de recolher os joelhos para segurar os pés na beirada do colchão, e Blue teve de tirar
as próprias pernas para evitar que fossem esmagadas.
- Artemus.
- Não é à toa que você preferiu Chuchu - disse Blue. Mas, antes que sua mãe tivesse tempo de dizer algo, ela acrescentou: - Espere... Artemus não é um nome romano?
Latino?
- É. E eu não acho um nome feio. Eu não eduquei você para julgar os outros.
- Claro que educou - disse Blue. Ela estava se perguntando se era coincidência ter tanto latim em sua vida no momento. Gansey estava começando a contagiá-la, pois
coincidências não pareciam mais tão coincidentes.
- Provavelmente - concordou Maura após um momento. - Escute. Isso é o que eu sei. Acho que o seu pai tem algo a ver com Cabeswater ou com a linha ley. Lá atrás,
antes de você nascer, Calla, Persephone e eu estávamos envolvidas com coisas que provavelmente não deveríamos estar...
- Drogas?
- Rituais. Você está envolvida com drogas?
- Não. Talvez rituais.
- Drogas talvez sejam melhores.
- Não estou interessada nelas. Seus efeitos são comprovados. Onde está a graça disso? Conta mais.
Maura tamborilou um ritmo na barriga enquanto olhava para cima. Blue havia copiado um poema no teto, e era possível que ela estivesse tentando lê-lo.
- Bom, ele apareceu após um ritual. Acho que ele estava preso em Cabeswater e nós o soltamos.
- Você não perguntou?
- A gente não tinha... esse tipo de relação.
- Eu nem quero saber de que tipo era, se ela não envolvia conversar.
- A gente conversava. Ele era uma pessoa muito decente - disse Maura. - Era muito generoso. As pessoas o incomodavam. Ele achava que nós devíamos estar mais preocupadas
com o mundo à nossa volta e como as nossas ações afetariam as coisas no futuro. Eu gostava dessa parte dele. Ele não era dado a sermões, era assim mesmo.
- Por que você está me contando isso? - perguntou Blue, porque ela estava um pouco incomodada ao ver a pressão inconstante dos lábios de Maura um contra o outro.
- Você disse que queria saber sobre ele. Eu estava te contando porque você lembra muito o Artemus. Ele teria gostado de ver o seu quarto, com todas essas merdas
que você colocou nas paredes.
- Nossa, valeu - disse Blue. - Então, por que ele foi embora?
Logo após ter feito a pergunta, Blue percebeu que talvez tivesse sido direta demais.
- Ele não foi embora - disse Maura. - Ele desapareceu. Bem quando você nasceu.
- Isso se chama ir embora.
- Não acho que ele fez de propósito. Bom, num primeiro momento eu achei. Mas agora, pensando melhor e aprendendo mais sobre Henrietta, eu acho... Você é uma garota
estranha. Eu nunca encontrei ninguém que fizesse médiuns ouvirem as coisas melhor. Eu não tenho certeza se não fizemos acidentalmente outro ritual quando você nasceu.
Quer dizer, um ritual em que a parte final era você ter nascido. Isso pode ter prendido ele lá de novo.
Blue disse:
- Você acha que a culpa é minha!
- Não seja ridícula - disse Maura, endireitando-se. Seu cabelo estava todo amassado de se deitar sobre ele. - Você era apenas um bebê, como alguma coisa poderia
ser sua culpa? Eu só pensei que talvez tenha sido isso que aconteceu. Foi por isso que eu liguei para a Neeve para ela procurá-lo. Eu gostaria que você entendesse
por que eu liguei para ela.
- Você conhece a Neeve de verdade?
Maura balançou a cabeça.
- Pff. Nós não crescemos juntas, mas nos reunimos algumas vezes ao longo dos anos, apenas um dia ou dois, aqui ou ali. Nunca fomos amigas, muito menos irmãs de verdade.
Mas a reputação dela... Nunca achei que a situação ficaria esquisita como ficou.
Elas ouviram passos avançando suavemente no corredor, então Persephone parou no vão da porta.
- Eu não queria interromper, mas em três ou sete minutos - disse Persephone - os garotos corvos vão encostar o carro na rua e esperar na frente da casa enquanto
tentam encontrar uma maneira de convencer a Blue a escapulir com eles.
Maura coçou a pele entre as sobrancelhas.
- Eu sei.
O coração de Blue disparou.
- Isso parece terrivelmente específico.
Persephone e sua mãe trocaram um rápido olhar.
- Isso é outra coisa sobre a qual eu não fui muito sincera - disse Maura. - Às vezes Persephone, Calla e eu somos muito boas com questões específicas.
- Só às vezes - ecoou Persephone. Então, um pouco tristemente: - Cada vez mais, pelo visto.
- As coisas estão mudando - disse Maura.
Outra silhueta apareceu no vão da porta, e Calla disse:
- A Neeve ainda não voltou também. E ela mexeu no carro. Ele não liga.
Do lado de fora da janela, todas ouviram o som de um carro estacionando na frente da casa. Blue olhou suplicante para a mãe.
Em vez de responder, a mãe olhou para Calla e para Persephone.
- Diga que estamos erradas.
Persephone disse do seu jeito suave:
- Você sabe que eu não posso dizer isso, Maura.
Maura se pôs de pé.
- Vá com eles. Nós cuidaremos da Neeve. Espero que você entenda como isso é sério, Blue.
- Eu faço uma ideia - a garota respondeu.
Existem árvores, e existem árvores à noite. Árvores depois de escurecer se tornam coisas móveis, sem cor e sem tamanho definido. Quando Adam chegou a Cabeswater,
o local parecia um ser vivo. O vento entre as folhas era como a brisa de uma expiração, e o sibilar da chuva nas copas, como um suspiro contido. O ar cheirava a
terra molhada.
Adam lançou um facho da lanterna para a entrada da mata. A luz mal penetrou as árvores, engolida pela chuva de primavera intermitente que começava a encharcar seu
cabelo.
Pena que não pude fazer isso durante o dia, ele pensou.
Ele não tinha fobia do escuro. Uma fobia significava um medo irracional, e Adam achava que tinha motivos suficientes para estar com medo em Cabeswater após o pôr
do sol. Pelo menos, ponderou, se o Whelk estiver aqui com uma lanterna, eu o verei.
Não chegava a ser um grande consolo, mas Adam tinha vindo de muito longe para voltar. Lançou mais um olhar à sua volta - você sempre se sentia observado naquele
lugar - e então avançou na direção do gorgolejar invisível do pequeno regato, mata adentro.
Estava claro.
Baixando subitamente o queixo e com os olhos quase fechados, Adam protegeu o rosto com sua lanterna. As pálpebras queimavam vermelhas com a diferença da escuridão
para a luz. Lentamente, ele as abriu de novo. Em toda parte ao seu redor, a floresta brilhava com a luz da tarde. Hastes de ouro em pó penetravam a copa das árvores
e cobriam de manchas o regato diáfano à sua esquerda. Sob a luz oblíqua, as folhas se tornavam amarelas, marrons, cor-de-rosa. O líquen peludo nas árvores era laranja-escuro.
Sua mão se tornara rosa e bronzeada. O ar se movia lento em torno de seu corpo, de certa maneira tangível, folheado a ouro, como se cada grão de poeira fosse uma
lanterna.
Não havia sinal da noite, e não havia sinal de ninguém mais nas árvores.
Lá no alto, um pássaro cantou, o primeiro que Adam se lembrava de ouvir na mata. Foi um canto longo e agudo, somente quatro ou cinco notas. Era como o som que as
cornetas de caça faziam no outono. Longe, longe, longe. O canto deixou Adam maravilhado e entristecido ao mesmo tempo, a marca de Cabeswater de beleza agridoce.
Este lugar não deveria existir, pensou Adam, e imediatamente pensou o contrário. Cabeswater ficara claro assim que Adam desejara que ele não estivesse escuro, como
havia mudado a cor dos peixes no laguinho tão logo Gansey pensou que seria melhor se eles fossem vermelhos. Cabeswater era tão literal quanto Ronan. Ele não sabia
se poderia pensá-lo até que se esvanecesse, e não queria descobrir.
Adam precisava cuidar de seus pensamentos.
Ele desligou a lanterna, guardou-a na mochila e avançou ao longo do pequeno regato que eles haviam seguido da primeira vez. O riozinho estava cheio pela água da
chuva, o que tornava mais fácil acompanhar a direção da nascente, seguindo um caminho de relva recentemente pisada montanha abaixo.
Adiante, Adam viu reflexos se movendo com lentidão nos troncos das árvores, a forte luz oblíqua da tarde se espelhando na superfície do laguinho misterioso que eles
haviam encontrado no primeiro dia.
Ele estava quase lá.
Tropeçou. Seu pé havia virado sobre algo duro e inesperado.
O que é isso?
A seus pés, havia uma tigela larga e vazia, de um roxo feio e brilhante, estranho e artificial para estar naquele lugar.
Confusos, os olhos de Adam deslizaram da tigela seca para outra, a aproximadamente dez metros dali, igualmente proeminente em meio às folhas cor-de-rosa e amarelas
no chão. A segunda tigela era idêntica à que estava a seus pés, à diferença de que essa última estava cheia até a borda com um líquido escuro.
Adam se espantou mais uma vez pelo fato de aquele objeto tão artificial estar ali, em meio às árvores. Então se sentiu confuso novamente quando percebeu que a superfície
da tigela estava inalterada e perfeita; nenhuma folha, lodo, galhos ou insetos desfiguravam o líquido escuro. O que significava que a tigela havia sido cheia recentemente.
O que significava...
A adrenalina atingiu seu sistema um segundo antes de ele ouvir uma voz.
Amarrado no banco de trás do carro, Whelk estava tendo dificuldade em decidir quando tomaria a iniciativa para se libertar. A questão era que Neeve claramente tinha
um plano, o que era muito mais do que Whelk poderia dizer de si mesmo. E parecia extremamente improvável que ela tentasse matá-lo até que tivesse arrumado todos
os detalhes do ritual. Então Whelk deixou que ela o levasse em seu próprio carro, agora com um ranço de alho e cheio de migalhas, até a entrada da mata. Como Neeve
não era corajosa o suficiente para tirar o carro da estrada - fato pelo qual ele era muito grato -, ela o estacionou em uma pequena rotatória de cascalho, e eles
fizeram o restante do trajeto a pé. Ainda não estava escuro, mas mesmo assim Whelk tropeçou sobre montículos de relva no caminho.
- Desculpe - disse Neeve. - Eu procurei no Google Maps um lugar mais próximo para estacionar.
Whelk, incomodado por absolutamente tudo a respeito de Neeve, das mãos delicadas e fofas à saia longa e rodada e o cabelo ondulado, respondeu sem grande civilidade:
- Por que você se dá ao trabalho de pedir desculpas? Não está planejando me matar?
Neeve fez uma careta.
- Eu gostaria que você não falasse assim. Você está destinado a ser um sacrifício. Ser um sacrifício é algo admirável, uma adorável tradição. Além disso, você merece
isso. É justo.
Whelk disse:
- Se você me matar, quer dizer que alguém deve matá-la por uma questão de justiça? No futuro?
Ele tropeçou em mais um feixe de relva, e dessa vez Neeve não se desculpou nem respondeu a suas perguntas. Em vez disso, fiou nele um olhar de uma duração interminável.
Era tão profundamente penetrante quanto exaustivamente comprido.
- Por um breve momento, Barrington, admito que senti um ligeiro arrependimento por ter te escolhido. Você parecia muito agradável até eu lhe aplicar o taser.
É difícil manter uma conversa civilizada após a lembrança de que alguém usou um taser no outro. Então, os dois terminaram a caminhada em silêncio. Era um sentimento
estranho para Whelk estar de volta à mata onde ele vira Czerny vivo pela última vez. Ele havia pensado que uma mata era somente isso e que ele não seria afetado
ao voltar, especialmente em uma hora diferente do dia. Mas algo a respeito da atmosfera imediatamente o levou de volta para aquele momento, com o skate na mão, a
pergunta triste presa na respiração agonizante de Czerny.
Os sussurros sibilavam e pipocavam em sua cabeça, como um fogo prestes a ser aceso, mas Whelk os ignorava.
Ele sentia falta da sua vida. Ele sentia falta de tudo a respeito dela: a despreocupação, os Natais extravagantes em família, o pedal do acelerador embaixo do pé,
o tempo livre que parecia uma bênção em vez de uma maldição vazia. Sentia falta de matar aulas e de participar delas, de pichar a placa de Henrietta na I-64 depois
de ficar extraordinariamente bêbado no seu aniversário.
Ele sentia falta de Czerny.
Ele não se permitira pensar nisso nem uma vez nos últimos sete anos. Ao contrário, Whelk havia tentado se convencer da inutilidade de Czerny e da praticidade da
morte.
No entanto, ele se lembrou do som que Czerny fez na primeira vez em que ele o acertou.
Neeve não precisou dizer para Whelk se sentar calmamente enquanto ela arranjava o ritual. Enquanto ela arrumava os cinco pontos do pentagrama, com uma vela apagada,
uma vela acesa, uma tigela vazia, uma tigela cheia e três pequenos ossos dispostos em forma de triângulo, ele se sentou com os joelhos dobrados perto do queixo e
as mãos ainda amarradas nas costas, desejando encontrar forças para chorar. Algo para aliviar aquele peso terrível dentro dele.
Neeve o olhou de relance e imaginou que Whelk estava chateado com sua morte próxima.
- Ah - ela disse suavemente -, não fique assim. Não vai doer muito. - Depois reconsiderou o que havia dito e corrigiu: - Pelo menos não por muito tempo.
- Como você vai me matar? Como funciona esse ritual?
Neeve franziu o cenho.
- Não é uma pergunta fácil. É como perguntar a um pintor por que ele escolheu aquelas cores. Às vezes não é um processo, mas um sentimento.
- Muito bem, então - disse Whelk. - O que você está sentindo?
Neeve pressionou no lábio uma unha malva perfeitamente cuidada enquanto examinava seu trabalho.
- Eu fiz um pentagrama. É uma forma forte para qualquer tipo de feitiço, e eu trabalho bem com ele. Alguns o consideram desafiador ou muito limitante, mas ele me
satisfaz. Tenho a vela acesa para dar energia e a vela apagada para chamar energia. A tigela de leitura para ver o outro mundo e a tigela vazia para o outro mundo
enchê-la. Cruzei os ossos das pernas de três corvos que matei para mostrar ao caminho dos mortos a natureza do feitiço que quero fazer. E então acho que vou sangrar
você no centro do pentagrama enquanto invoco a linha para despertar.
Ela olhou duro para Whelk ao dizer isso, e então acrescentou:
- Talvez eu mude um pouco o ritual ao longo da execução. Essas coisas precisam ser flexíveis. As pessoas raramente demonstram interesse na mecânica do meu trabalho,
Barrington.
- Eu estou muito interessado - disse ele. - Às vezes o processo é a parte mais interessante.
Quando ela deu as costas para pegar as facas, ele escorregou as mãos do laço. Então escolheu um galho caído e acertou a cabeça de Neeve com toda a força que conseguiu
reunir. Whelk não achou que seria suficiente para matá-la, pois o galho ainda era verde e macio, mas certamente a deixou de joelhos.
Neeve gemeu e balançou a cabeça lentamente, e Whelk lhe acertou mais um golpe para não ter dúvidas. Ele a amarrou com o laço do qual tinha conseguido se desvencilhar
- fez um nó bem apertado, tendo aprendido com os erros dela - e a arrastou meio desmaiada até o centro do pentagrama.
Quando ele ergueu o olhar, viu Adam Parrish.
Era a primeira vez que Blue sentia como se fosse verdadeiramente perigoso para ela estar em Cabeswater - perigoso porque ela tornava as coisas mais intensas. Mais
poderosas. Ao chegarem à mata, a noite já parecia carregada. A chuva havia dado lugar a um chuvisqueiro intermitente. A combinação do sentimento carregado e da chuva
fez Blue olhar com bastante ansiedade para Gansey quando ele saiu do carro, mas seus ombros mal estavam úmidos e ele não estava usando o uniforme da Aglionby. Ele
definitivamente estava usando o blusão com o corvo quando ela o viu na vigília da igreja, e seus ombros estavam definitivamente mais molhados. Certamente ela não
havia conseguido mudar o futuro dele o suficiente para tornar aquela noite a ocasião em que ele morreria, não é? Certamente ela estivera fadada o tempo inteiro a
encontrá-lo, tendo em vista que deveria matá-lo ou se apaixonar por ele. E certamente Persephone não os teria deixado ir se sentisse que aquela era a noite em que
Gansey morreria.
Eles abriram caminho com o facho das lanternas e encontraram o Pig estacionado próximo de onde haviam encontrado o Mustang de Noah. Vários caminhos pisoteados levavam
do carro para a mata, como se Adam tivesse sido incapaz de decidir por qual vereda entrar.
Ao ver o Camaro, o rosto de Gansey, que já era sério, ficou realmente duro como uma pedra. Nenhum deles falou enquanto eles passavam pela linha das árvores.
Na beira da mata, o sentimento de carga, de possibilidade, imediatamente ficou mais pronunciado. Lado a lado, eles entraram em meio às árvores e, entre um piscar
e outro de olhos, se viram cercados por uma luz sonhadora e vespertina.
Mesmo tendo se preparado para a magia, Blue estava atônita com o que via.
- O que está se passando na cabeça do Adam? - murmurou Gansey, mas para ninguém em particular. - Como ele pode brincar com... - e perdeu o interesse em responder
à própria pergunta.
Diante deles estava o Mustang de Noah, na luz dourada de outro mundo, parecendo ainda mais surreal que da primeira vez em que eles o tinham encontrado. Raios de
sol pálidos atravessavam a copa das árvores, formando listras sobre o teto coberto de pólen.
Parada na frente do carro, Blue chamou a atenção dos garotos. Eles se juntaram a ela, olhando fixamente para o para-brisa. Desde que eles haviam estado pela última
vez na clareira, alguém havia escrito uma palavra no vidro empoeirado. Em letras arredondadas e escritas à mão, lia-se: ASSASSINADO.
- Noah? - perguntou Blue para o ar vazio, embora ele não parecesse tão vazio. - Noah, você está aqui com a gente? Foi você quem escreveu isso?
Gansey disse:
- Ah.
Foi um ruído abafado e, em vez de pedir que ele esclarecesse, Blue e Ronan seguiram seu olhar para a janela do lado do motorista. Um dedo invisível estava no processo
de desenhar outra letra no vidro. Embora Blue achasse que só podia ser Noah quem escrevera a primeira palavra, em sua cabeça ela ainda o imaginava tendo um corpo
enquanto escrevia. Observar as letras aparecerem espontaneamente era muito mais difícil. Fazia com que ela pensasse em Noah com os buracos escuros no lugar dos olhos,
a face esmagada, a forma quase desumana. Mesmo na tarde quente da mata, ela sentiu frio.
É o Noah, ela pensou. Drenando energia de mim. É isso que eu sinto.
No vidro, a palavra tomou forma.
ASSASSINADO.
Mais uma palavra começou a ser desenhada. Não havia espaço suficiente entre o O e a próxima palavra, então esta obliterou parcialmente a primeira.
ASSASSINADO.
E de novo, de novo, de novo, uma sobre a outra:
ASSASSINADO.
ASSASSINADO.
ASSASSINADO.
A escrita continuou até que o vidro do lado do motorista ficou limpo, inteiramente varrido por um dedo invisível, até que havia tantas palavras que nenhuma delas
podia ser lida. Então era apenas uma janela em um carro vazio com a memória de um hambúrguer sobre o banco do passageiro.
- Noah - disse Gansey. - Eu sinto muito.
Blue secou uma lágrima.
- Eu também.
Ronan deu um passo à frente, se inclinou sobre o capô do carro, pressionou o dedo contra o para-brisa e, enquanto eles observavam, escreveu:
LEMBRADO.
A voz de Calla falou na cabeça de Blue, tão claramente que ela se perguntou se alguém mais podia ouvi-la: Um segredo matou o seu pai e você sabe qual era.
Sem nenhum comentário, Ronan colocou as mãos nos bolsos e se embrenhou mata adentro.
A voz de Noah sibilou no ouvido de Blue, fria e urgente, mas ela não conseguia compreender o que ele estava tentando dizer. Ela pediu que ele repetisse, mas não
adiantou. Esperou em vão por mais alguns segundos, mas ainda assim - nada. Adam estava certo: Noah estava ficando cada vez menos presente.
Agora que Ronan tinha tomado a dianteira, Gansey parecia ansioso em seguir em frente. Blue compreendeu totalmente. Parecia importante manter todos dentro do campo
de visão uns dos outros. Cabeswater parecia um lugar onde as coisas se perderiam a qualquer momento.
- Excelsior - disse Gansey sombriamente.
Blue perguntou:
- Isso quer dizer alguma coisa?
Gansey olhou para ela por cima do ombro. Ele estava, mais uma vez, um pouco mais parecido com o garoto que ela vira no adro da igreja.
- Adiante e acima.
- Pelo amor de Deus - disse Whelk quando viu Adam parado ao lado da tigela que ele tinha chutado havia pouco. Whelk brandia uma faca enorme de aparência bastante
eficiente. Estava sujo e com a barba por fazer. Parecia um garoto da Aglionby depois de um fim de semana ruim. - Por quê?
Sua voz tinha um tom genuíno de agravo.
Adam não via o professor de latim desde que havia descoberto que ele matara Noah, e ficou surpreso com a torrente de emoções que a visão de Whelk lhe provocou. Especialmente
quando ele percebeu que aquele era mais um ritual, com mais um sacrifício. Naquele contexto, levou um momento para reconhecer o rosto de Neeve - aquela noite na
Rua Fox, 300. Neeve olhou para ele do centro, feito a partir dos pontos em um pentagrama. Adam achou que ela não parecia tão apavorada quanto se poderia esperar
de uma pessoa amarrada no meio de um símbolo diabólico.
Adam pensou em dizer várias coisas, mas, quando abriu a boca, não foi nenhuma dessas coisas que saiu.
- Por que o Noah? - ele perguntou. - Por que não alguém horrível?
Whelk fechou os olhos por um mero segundo.
- Não vou discutir isso. Por que você está aqui?
Era óbvio que ele não tinha certeza sobre o que fazer com o fato de Adam estar ali - o que era justo, porque Adam não tinha ideia do que fazer com o fato de Whelk
estar ali. A única coisa que ele tinha de fazer era evitar que Whelk despertasse a linha ley. Tudo o mais (colocá-lo fora de combate, salvar Neeve, vingar Noah)
era negociável. Ele lembrou, de uma hora para outra, que tinha a arma do pai na mochila. Era possível que conseguisse apontá-la para Whelk e convencê-lo a fazer
algo, mas o quê? Nos filmes, isso parecia simples: quem quer que tivesse a arma vencia. Mas, na vida real, ele não podia apontar a arma para Whelk e amarrá-lo ao
mesmo tempo, ainda que tivesse algo para amarrá-lo. Whelk poderia dominá-lo. Talvez Adam pudesse usar o laço de Neeve para...
Adam sacou a arma. Parecia pesada e malévola em sua mão.
- Estou aqui para evitar que isso aconteça de novo. Desamarre ela.
Whelk repetiu:
- Pelo amor de Deus.
Então deu dois passos até Neeve e colocou a faca em um lado do rosto dela. Neeve apertou a boca apenas um pouquinho. Ele disse:
- Ponha a arma no chão, senão eu retalho o rosto dela. Ou melhor, jogue a arma para cá. E verifique se acionou a trava de segurança antes de jogar, ou você pode
acabar atirando nela.
Adam desconfiava secretamente de que, se fosse Gansey, ele teria sido capaz de sair daquela situação com seu poder de convencimento. Ele endireitaria os ombros,
pareceria impressionante e Whelk faria o que ele lhe dissesse. Mas Adam não era Gansey, então tudo que conseguiu pensar em dizer foi:
- Eu não vim aqui para que alguém morresse. Vou jogar a arma longe, mas não na sua direção.
- Então eu vou retalhar o rosto dela.
O rosto de Neeve estava bastante tranquilo.
- Você vai estragar o ritual se fizer isso. Você não estava me ouvindo? Achei que estivesse interessado no processo - ela disse.
Adam tinha a sensação curiosa e desconcertante de ver algo extraordinário quando a olhava nos olhos. Era como se ele visse um breve flash de Maura, Persephone e
Calla neles.
Whelk disse:
- Muito bem. Jogue a arma pra lá, mas não se aproxime. - Para Neeve, ele perguntou: - O que você quer dizer com estragar o ritual? Você está blefando?
- Pode jogar a arma - Neeve disse para Adam. - Não me importo.
Adam jogou a arma no matagal. Ele se sentiu péssimo quando fez isso, mas mesmo assim era melhor do que segurá-la.
Então Neeve declarou:
- Barrington, o ritual não vai funcionar porque precisa de um sacrifício.
- Você estava planejando me matar - disse Whelk. - Você espera que eu acredite que o ritual não vai funcionar de modo contrário?
- Sim - respondeu Neeve, sem desviar o olhar de Adam. Mais uma vez, ele teve a impressão de ver um flash de algo quando olhou para o rosto dela: uma máscara negra,
dois espelhos, o rosto de Persephone. - Tem de ser um sacrifício pessoal. Não vai adiantar me matar. Eu não sou nada para você.
- E eu não sou nada para você - disse Whelk.
- Mas matar é - ela respondeu. - Eu nunca matei ninguém. Eu abro mão da minha inocência se fizer isso. É um sacrifício incrível.
Quando Adam falou, ficou surpreso com quão claramente o desprezo que sentia veio à tona.
- E você já matou uma pessoa, então não tem isso para abrir mão.
Whelk começou a praguejar muito suavemente, como se ninguém mais estivesse ali. Folhas da cor e do formato de moedas esvoaçavam em volta deles. Neeve ainda estava
encarando Adam. A sensação de ver algum outro lugar em seus olhos agora era inegável. Era um lago espelhado e negro, era uma voz profunda como a terra, eram dois
olhos vítreos, era outro mundo.
- Sr. Whelk!
Gansey!
A voz de Gansey vinha logo de trás da árvore oca divinatória, e então o resto dele a seguiu, enquanto ele entrava no campo de visão. Atrás dele estavam Ronan e Blue.
O coração de Adam era um pássaro e uma pedra; seu alívio era palpável, assim como sua vergonha.
- Sr. Whelk - disse Gansey. Mesmo de óculos e com os cabelos de quem acabou de acordar, ele aparentava o esplendor absoluto de Richard Gansey III, reluzente e poderoso.
Ele não olhou para Adam. - A polícia está a caminho. É melhor se afastar da mulher para não piorar as coisas.
Whelk fez menção de responder, mas não respondeu. Em vez disso, todos olharam para a faca que ele tinha na mão e para o chão logo abaixo dela.
Neeve havia sumido.
Imediatamente, todos olharam em torno do pentagrama, para a árvore oca, para o pequeno lago - mas era ridículo. Neeve não poderia ter deslizado para longe sem que
ninguém a visse, não em dez segundos. Ela não havia se movido. Ela havia desaparecido.
Por um momento, nada aconteceu. Todos estavam congelados em um diorama de incerteza.
Whelk mergulhou para fora do pentagrama. Adam precisou de apenas um segundo para perceber que ele estava arremetendo na direção da arma.
Ronan se jogou na frente de Whelk no mesmo instante em que este se levantou com o revólver. Whelk deu uma coronhada no queixo de Ronan, o que fez a cabeça dele dar
um estalo para trás.
Então Whelk apontou a pistola para Gansey.
Blue gritou:
- Pare!
Não havia tempo.
Adam se atirou no meio do pentagrama.
Curiosamente, não havia nenhum ruído ali, não que se pudesse ouvir de maneira razoável. O fim do grito de Blue foi abafado, como se tivesse sido mergulhado em água.
O ar estava parado à sua volta. Era como se o tempo tivesse se tornado um ente letárgico, mal existindo. A única sensação verdadeira que Adam sentia era a da eletricidade
- o ligeiro formigar de uma tempestade elétrica.
Neeve havia dito que a questão não era a morte, mas o sacrifício. Era óbvio que isso havia travado Whelk completamente.
Mas Adam sabia o que significava sacrifício, mais do que Whelk ou Neeve já haviam precisado saber na vida, ele acreditava. Ele sabia que sacrifício não tinha a ver
com matar alguém ou desenhar uma forma feita de ossos de pássaros.
Em última análise, Adam vinha fazendo sacrifícios havia muito tempo, e ele sabia qual era o mais difícil.
Em seus termos ou de maneira alguma.
Ele não sentia medo.
Ser Adam Parrish era algo complicado, um prodígio de músculos e órgãos, sinapses e nervos. Ele era um milagre em vida, um estudo sobre a sobrevivência. A coisa mais
importante para Adam Parrish, no entanto, sempre fora o livre-arbítrio, a capacidade de ser seu próprio mestre.
Era isso que importava.
A questão mais importante sempre fora essa.
Era isso que significava ser Adam.
Ajoelhando-se no meio do pentagrama e enfiando os dedos no relvado suave e musgoso, ele disse:
- Eu me sacrifico.
O grito de Gansey saiu aflito:
- Adam, não! Não.
Em seus termos ou de maneira alguma.
Serei suas mãos, pensou Adam. Serei seus olhos.
Houve um barulho como o de uma enorme onda se quebrando. Um estalo.
Debaixo deles, o chão começou a tremer.
Blue foi jogada sobre Ronan, que já estava agachado, levantando-se de onde Whelk o havia acertado. Na frente dela, as lajes enormes de pedra entre as árvores ondulavam
como se fossem água, e o pequeno lago transbordou e se derramou para fora das margens. Havia um ruído enorme ao redor, como um trem caindo sobre eles, e tudo que
Blue conseguia pensar era: Nada de realmente ruim jamais aconteceu comigo.
As árvores se inclinavam na direção umas das outras, como se fossem se soltar do solo. Folhas e galhos cobriam o chão, grossos e furiosos.
- É um terremoto! - gritou Gansey para eles. Ele tinha um braço erguido sobre a cabeça e o outro agarrado em torno de uma árvore. Seu cabelo estava coberto de poeira.
- Olha o que você fez, seu filho da mãe maluco! - Ronan gritou para Adam, que estava imóvel no pentagrama. Seu olhar era atento e cortante.
Será que vai parar?, Blue se perguntou.
Um terremoto era algo tão chocante, tão errado, que não parecia impossível acreditar que o mundo havia se partido para nunca mais voltar a se endireitar novamente.
Enquanto o chão se deslocava e rosnava em volta deles, Whelk se pôs de pé aos tropeços, com a arma na mão. Tudo ficou mais escuro e mais feio do que antes, um mundo
em que a morte era injusta e instantânea.
Whelk conseguiu manter o equilíbrio. O sacolejar das rochas estava começando a diminuir, embora tudo ainda pendesse para lá e para cá como um brinquedo de parque
de diversões.
- O que você saberia fazer com o poder? - ele disparou para Adam. - Que desperdício. Que maldito desperdício.
Whelk apontou a arma para Adam e, sem qualquer cerimônia, puxou o gatilho.
Em volta deles, o mundo parou. As folhas tremiam e a água se derramava lentamente sobre as margens do pequeno lago, mas, fora isso, o chão havia parado.
Blue gritou.
Todos os olhos estavam em Adam, que permanecia estático no meio do pentagrama. Sua expressão era perplexa. Então ele olhou para o peito e para os braços. Não havia
uma marca sequer.
Whelk não havia errado o tiro, mas Adam também não havia sido atingido, e os dois fatos eram de alguma maneira a mesma coisa.
Havia uma tristeza esmagadora no rosto de Gansey quando ele olhou para Adam. Essa foi a primeira pista que Blue teve de que algo estava inerentemente diferente,
irrevogavelmente alterado. Se não no mundo, então em Cabeswater. E, se não em Cabeswater, então em Adam.
- Por quê? - Gansey perguntou a Adam. - Eu fui tão terrível assim?
- Isso nunca teve a ver com você - disse Adam.
- Mas, Adam - Blue exclamou -, o que você fez?
- O que precisava ser feito - ele respondeu.
A alguns metros dali, Whelk emitiu um ruído sufocado. Quando a bala não feriu Adam, ele largou a arma, derrotado como uma criança em um jogo de faz de conta.
- Acho que você devia me devolver isso - disse Adam para Whelk, tremendo um pouco. - Não acho que Cabeswater queira que você fique com ela. Acho que, se você não
me devolver essa arma, a linha pode tomar de você.
Subitamente, as árvores começaram a sibilar, como se uma brisa estivesse passando por elas, embora nenhum vento tocasse a pele de Blue. O rosto de Adam e de Ronan
exibia a mesma expressão de choque, e, um momento mais tarde, Blue percebeu que não era um sibilar: eram vozes. As árvores estavam falando, e agora ela podia ouvi-las
também.
- Protejam-se! - gritou Ronan.
Houve outro ruído como um farfalhar, só que ele se transformou muito rapidamente em um som mais concreto, de algo enorme se deslocando através das árvores, quebrando
galhos e pisoteando a mata rasteira.
Blue berrou:
- Alguma coisa está vindo!
Ela agarrou o braço de Ronan e de Gansey, puxando suas mangas. Alguns metros atrás deles, estava a boca disforme da árvore oca divinatória, e foi para lá que ela
os levou. Por um momento, antes que a magia da árvore os envolvesse, eles tiveram tempo de ver o que caía sobre eles - um bando de feras com chifres brancos despencando
como uma onda enorme, pelos reluzindo como neve enregelada, rosnados e guinchos que sufocavam o ar. Elas vinham lado a lado, febris e imprudentes. Quando jogaram
a cabeça para trás, Blue viu que elas eram de certo modo parecidas com o corvo entalhado na encosta do morro, como aquela escultura de um cão que ela segurara, estranha
e sinuosa. O estrondo que faziam, com seus corpos comprimidos, retumbou no chão como outro terremoto. O bando, resfolegando, começou a se dividir em torno do círculo
marcado pelo pentagrama.
Ao lado dela, Ronan suspirou um palavrão baixo, e Gansey, pressionado contra a parede quente da árvore, desviou o rosto como se não suportasse ver aqueles animais.
A árvore os jogou em uma visão.
Nela, a noite untava de reflexos brilhantes o chão molhado que exalava vapor, as luzes de um semáforo trocando do verde para o vermelho. O Camaro estava estacionado
junto ao meio-fio, e Blue, no banco do motorista. Tudo cheirava a gasolina. Ela viu de relance uma camisa no banco do passageiro; era Gansey. Ele se inclinou sobre
o câmbio na direção dela, pressionando os dedos no lugar em que sua clavícula estava exposta. A respiração dele era quente na nuca de Blue.
- Gansey - ela avisou, sentindo-se instável e perigosa.
- Eu só quero fazer de conta - disse Gansey, as palavras vaporizando na pele dela. - Quero fazer de conta que eu posso.
Na visão, Blue fechou os olhos.
- Talvez não tivesse problema se eu beijasse você - ele disse. - Talvez seja apenas se você me beijar...
Na árvore, Blue foi empurrada pelas costas, o que a sacudiu da visão. Ela só teve tempo de ver Gansey - o Gansey de verdade - com os olhos arregalados, passando
por ela e saindo da árvore.
Gansey se permitiu apenas um momento confuso de uma visão - seus dedos, de alguma maneira, tocando o rosto de Blue - e então se jogou para fora da árvore, empurrando
a Blue de verdade para longe de seu caminho. Ele precisava ver o que havia acontecido com Adam, embora em seu coração ele sentisse uma premonição terrível, como
se já soubesse o que veria.
De fato, Adam ainda estava parado no círculo, incólume, com os braços largados ao longo do corpo e a arma pendurada em uma das mãos. A apenas alguns metros de distância,
fora do círculo, Whelk estava no chão, arruinado. Seu corpo estava coberto de folhas mortas, como se estivesse ali havia anos, e não minutos. Não havia muito sangue,
como seria de esperar de um corpo pisoteado, mas mesmo assim havia algo destruído em sua aparência. Uma espécie de aparência amarrotada.
Adam apenas o encarava. Seu cabelo desalinhado estava sujo na parte de trás, e essa era a única pista de que ele tinha se mexido desde que Gansey o vira da última
vez.
- Adam - chamou Gansey, com a voz entrecortada. - Como você conseguiu a arma?
- As árvores - disse Adam, com aquele distanciamento frio na voz que significava que o garoto que Gansey conhecia estava oprimido bem no fundo dele.
- As árvores? Meu Deus! Você atirou nele?
- É claro que não - disse Adam, colocando a arma no chão cuidadosamente. - Eu usei a arma apenas para evitar que ele viesse até aqui.
O horror crescia dentro de Gansey.
- Você o deixou ser pisoteado?
- Ele matou o Noah - disse Adam. - É o que ele merecia.
- Não. - Gansey pressionou as mãos no rosto. Havia um corpo ali, um corpo, e ele estava vivo alguns minutos atrás. Eles não tinham autoridade nem para escolher uma
bebida alcoólica, que dirá decidir quem merecia viver ou morrer.
- Você realmente queria que eu deixasse um assassino ficar aqui? - demandou Adam.
Gansey não conseguia nem começar a explicar o tamanho do horror. Ele só sabia que aquilo irrompia dentro dele, de novo e de novo, toda vez que o considerava.
- Ele estava vivo agora há pouco - disse desamparadamente. - Ele nos ensinou quatro verbos irregulares na semana passada. E você o matou.
- Pare de dizer isso. Eu não o salvei. Pare de me dizer o que eu devo considerar certo ou errado! - gritou Adam, mas seu rosto parecia tão miserável quanto Gansey
se sentia. - Agora a linha ley está desperta e podemos encontrar o Glendower e tudo será como deveria ser.
- Nós precisamos chamar a polícia. Nós precisamos...
- Nós não precisamos fazer nada. Vamos deixar o Whelk apodrecendo aqui, exatamente como ele deixou o Noah.
Gansey virou o rosto, enjoado.
- E a justiça?
- Isso é justiça, Gansey. Isso é justiça de verdade. Este lugar tem a ver com ser real. Com ser justo.
Tudo aquilo parecia inerentemente errado para Gansey. Era como a verdade, mas virada do avesso. Ele seguia olhando e olhando, e ainda havia ali um jovem morto que
parecia demais com o esqueleto estropiado de Noah. E então havia Adam, com a aparência inalterada, mas mesmo assim - havia algo em seus olhos. Na linha de sua boca.
Gansey teve um sentimento de perda.
Blue e Ronan haviam saído da árvore, e a mão de Blue cobria a boca com a visão de Whelk. Ronan tinha um hematoma feio crescendo na testa.
Gansey disse simplesmente:
- Ele morreu.
- Acho que a gente devia cair fora daqui - disse Blue. - Terremotos e animais e... Eu não sei quanto efeito eu estou tendo nisso, mas as coisas estão...
- Sim - disse Gansey. - Precisamos ir embora. Podemos decidir o que fazer com o Whelk lá fora.
Esperem.
Todos eles ouviram a voz dessa vez. Em inglês. Nenhum deles se mexeu, inconscientemente fazendo o que a voz pedira.
Garoto. Scimus quid quaeritis.
(Garoto. Nós sabemos o que você está procurando.)
Mesmo sendo possível que as árvores estivessem se referindo a qualquer um dos garotos, Gansey sentiu que as palavras eram dirigidas particularmente a ele. Em voz
alta, ele perguntou:
- O que eu estou procurando?
Em resposta, houve um balbuciar em latim, as palavras tropeçando umas sobre as outras. Gansey cruzou os braços sobre o peito, com as mãos fechadas. Todos olharam
para Ronan em busca de tradução.
- Elas disseram que sempre houve rumores de um rei enterrado em algum lugar ao longo desse caminho espiritual - disse Ronan, olhando-o nos olhos. - Elas acham que
ele pode ser seu.
Era um dia bonito e ensolarado, bem no começo de junho, quando eles enterraram os ossos de Noah. Havia levado várias semanas para que o departamento de polícia terminasse
o trabalho de investigação, e assim era o final do ano acadêmico antes do funeral. Muita coisa havia se passado entre a morte de Whelk e o funeral de Noah. Gansey
havia recuperado seu diário e abandonado a equipe de remo. Ronan havia passado raspando nos exames finais, para a satisfação de Aglionby, e sem tanto sucesso assim
arrumara a fechadura da porta do apartamento. Adam, com a provável ajuda de Ronan, se mudara da Indústria Monmouth para um quarto pertencente à Igreja de Santa Inês,
uma distância sutil que afetava ambos os garotos de maneiras diferentes. Blue triunfantemente dera boas-vindas para o fim do ano acadêmico e para o início de um
período de mais liberdade para explorar a linha ley. Quedas de energia elétrica atingiram a cidade de Henrietta por nove vezes, e o sistema telefônico deixou de
funcionar umas quatro. Maura, Persephone e Calla deram uma geral no sótão e desmontaram as coisas de Neeve. Elas disseram a Blue que ainda não estavam muito certas
do que havia acontecido quando elas rearranjaram os espelhos naquela noite.
- Nós queríamos que ela fosse neutralizada - reconheceu Persephone. - Mas, pelo visto, fizemos a Neeve desaparecer. É possível que ela reapareça em algum momento.
E, lentamente, suas vidas encontraram equilíbrio, embora não parecesse que retornariam ao normal um dia. A linha ley estava desperta e Noah havia praticamente desaparecido.
A magia era real, Glendower era real e algo estava começando.
- Jane, não quero ser grosso, mas isso aqui é um funeral - disse Gansey para Blue, enquanto ela atravessava o campo na direção deles. Ronan e ele, de terno preto
impecável, pareciam os padrinhos do noivo.
Blue, na falta de uma roupa preta no guarda-roupa, havia costurado alguns metros de renda preta barata sobre uma camiseta verde que ela havia transformado num vestido
meses atrás. Ela sibilou furiosamente:
- Foi o melhor que eu pude fazer!
- Como se o Noah se importasse - disse Ronan.
- Você trouxe algo para depois? - perguntou Gansey.
- Não sou idiota. Onde está o Adam?
- Trabalhando. Ele vem mais tarde - disse Gansey.
Os ossos de Noah estavam sendo enterrados no jazigo da família Czerny, em um cemitério remoto no vale. A cova ficava perto do muro do terreno extenso e em declive,
na encosta de uma colina pedregosa. Uma lona cobria o monte fresco de terra diante dos olhos entristecidos. A família de Noah estava parada bem próxima do buraco.
O homem e as duas meninas choravam, mas a mulher olhava fixamente ao longe para as árvores, sem uma lágrima nos olhos. No entanto, Blue não precisava ser médium
para ver como ela estava triste. Triste e orgulhosa.
A voz de Noah, fria e quase ausente, sussurrou em seu ouvido:
- Por favor, diga algo para eles.
Blue não respondeu, mas virou a cabeça na direção da voz. Ela quase podia senti-lo, parado logo atrás do seu ombro, com a respiração em sua nuca e a mão pressionada
ansiosamente em seu braço.
- Você sabe que eu não posso - ela respondeu em voz baixa.
- Você tem que fazer isso.
- Eu ia parecer uma maluca. Que bem isso poderia trazer? O que eu iria dizer?
A voz de Noah era fraca, mas desesperada. Sua angústia zuniu através de Blue.
- Por favor.
Blue fechou os olhos.
- Diga a ela que peço desculpas por ter bebido o licor de aniversário dela - sussurrou Noah.
Por Deus, Noah!
- O que você está fazendo? - Gansey se esticou e pegou o braço de Blue enquanto ela caminhava na direção da cova.
- Me humilhando! - ela respondeu, livrando-se dele. Enquanto Blue se aproximava da família de Noah, ensaiou maneiras de soar menos insana, mas não gostou de nenhuma
delas. Blue estivera com sua mãe o suficiente para suspeitar como aquilo se desenrolaria. Noah, só por você... Ela olhou para a mulher triste e orgulhosa. De perto,
sua maquiagem era impecável, e seu cabelo, cuidadosamente ondulado nas pontas. Tudo estava ajeitado e pintado meticulosamente. Toda aquela tristeza estava enfiada
tão fundo dentro dela que seus olhos não estavam nem vermelhos. Blue não se deixou enganar.
- Sra. Czerny?
Os pais de Noah se viraram para ela. Blue passou a mão por uma das nesgas de renda, constrangida.
- Eu me chamo Blue Sargent. Eu, hum, queria dizer que sinto muito por sua perda. Além disso, minha mãe é médium. Eu tenho... - as expressões deles já haviam se transformado
desagradavelmente - uma mensagem do seu filho.
O rosto da sra. Czerny se escureceu imediatamente. Ela balançou a cabeça e disse, de maneira bastante calma:
- Não, você não tem.
- Por favor, não faça isso - disse o sr. Czerny. Ele estava fazendo o maior esforço possível para ser cortês, o que era mais do que Blue poderia esperar. Ela se
sentiu mal por ter interrompido aquele momento de privacidade. - Por favor, vá embora.
- Diga a ela - sussurrou Noah.
Blue tomou fôlego.
- Sra. Czerny, ele pede desculpas por ter bebido o licor do seu aniversário.
Por um momento houve silêncio. O sr. Czerny e as irmãs de Noah olharam de Blue para a sra. Czerny. O pai de Noah abriu a boca, e então sua esposa começou a chorar.
Nenhum deles notou quando Blue se afastou da cova.
Mais tarde, eles o desenterraram. Na entrada da estrada de acesso, Ronan se recostou ao lado do BMW com o capô aberto, atuando ao mesmo tempo como bloqueio da estrada
e vigia. Adam operou a escavadeira que Gansey havia alugado. E Gansey transferiu os ossos de Noah para um saco de lona enquanto Blue focava uma lanterna sobre eles
para ter certeza de que estavam todos ali. Adam enterrou novamente o caixão vazio e deixou tudo como estava antes.
Quando eles correram de volta ao BMW, atordoados e esbaforidos com o crime, Ronan disse a Gansey:
- Isso vai voltar com tudo para incomodar você um dia... Quando você estiver concorrendo ao Congresso.
- Cale a boca e dirija, Lynch.
Eles enterraram novamente os ossos de Noah nas ruínas da velha igreja, ideia de Blue.
- Ninguém vai incomodar o Noah aqui - disse ela. - E sabemos que é na linha ley. E é solo sagrado.
- Bom - disse Ronan -, espero que ele goste. Distendi um músculo.
Gansey zombou:
- Fazendo o quê? Você estava de vigia.
- Abrindo meu capô.
Após terminarem de cobrir o último dos ossos, eles pararam em silêncio entre as paredes em ruínas. Blue olhou para Gansey, que tinha as mãos nos bolsos e a cabeça
inclinada para baixo, na direção de onde eles haviam enterrado Noah. Parecia que não havia passado tempo nenhum e todo o tempo do mundo desde que ela vira o espírito
dele naquele mesmo caminho.
Gansey. É só isso.
Blue prometeu que não seria ela quem o mataria.
- Podemos ir embora? Esse lugar me dá arrepios.
Eufóricos, todos se viraram. Noah, amarfanhado e familiar, estava parado sob o vão em arco da porta da igreja, mais inteiro do que Blue se lembrava de tê-lo visto
um dia. Inteiro em sua forma. Ele espiou as paredes desmoronadas à sua volta com uma expressão receosa.
- Noah! - exclamou Gansey alegremente.
Blue lançou os braços em torno do pescoço dele. Ele pareceu assustado e então satisfeito, e em seguida acariciou os tufos dos cabelos dela.
- Czerny - disse Ronan, experimentando a palavra.
- Não - protestou Noah, abraçado a Blue. - Estou falando sério. Esse lugar me dá arrepios mesmo. Podemos ir?
O rosto de Gansey se abriu em um largo sorriso aliviado.
- Sim, vamos para casa.
- Eu não vou comer pizza - disse Noah, deixando a igreja com Blue.
Ronan, ainda nas ruínas, olhou sobre o ombro para eles. Sob a luz fraca das lanternas, o gancho tatuado que aparecia acima do seu colarinho lembrava uma garra, um
dedo ou parte de uma flor-de-lis. Era quase tão cortante quanto seu sorriso.
- Acho que agora seria um bom momento pra contar pra vocês - ele disse. - Eu tirei a Motosserra dos meus sonhos.
Maggie Stiefvater
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