Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS GARUBINOS
Ainda há cantos intocáveis, que roçam o mundo da pura utopia. Esses subterfúgios podem escavar-se no interior de cada um, como guardando um tesouro sem mapa. Ou podem encontrar-se com dificuldades, com alguma metafísica à mistura.
Havia, em certa região do globo, escondida dos satélites e da era das telecomunicações, uma comunidade de garubinos. Eram assim chamados os habitantes de baixa estatura, peito largo e olhos de um brilho nunca visto. Na verdade, esse brilho daria para cegar um comum mortal. Mas entre eles a luz era idolatrada, porque quase nunca tinham noite. E, quando esta acontecia, três dias ao ano, ninguém saía de casa, pensando que os monstros circundavam, carregando a escuridão eterna.
A comunidade chamava-se Trílis. Situava-se num vale de imensa frescura e dias temperados, onde as plantas nasciam sem a intervenção humana e os frutos apodreciam pela abundância. Rodeava o vale um círculo de montes despidos, de pedra vermelha e quente como chamas. Atrás destes montes, avistavam-se raios de luz brotando da terra, alcançando o céu e indo até ao infinito. Só nos três dias de trevas a luz desaparecia, como engolida pelo centro do planeta. Três dias de medo, de silêncios.
Ninguém ousava pensar em ultrapassar os limites dos raios.
Para o fazer, teriam de conseguir vencer o calor dos montes. Os que o tentavam nunca mais eram vistos. Apenas se avistava uma espécie de fogo de artifício, na altura em que, provavelmente, os aventureiros atravessavam a fronteira dos raios. Formavam-se lendas acerca do seu destino, todas elas relatando mortes bárbaras. Tentavam, porque sentiam o aperto do seu mundo, a necessidade de ver o que estaria para além dos raios limitadores. Eram loucos, diziam uns, traidores, diziam outros. Só por pensarem em sair de Trílis, poderiam facilmente ser mortos pelos próprios garubinos, irmãos de sangue. Ninguém se atrevia a pôr em causa a perfeição da vida da comunidade. Ali não se morria por doença, quase se adivinhava o momento do último suspiro. A terra gerava sementes para todas as maleitas, devidamente catalogadas. E resultavam, sem excepção.
O tronco largo dos garubinos permitia-lhes esforços físicos imensos, pois possuíam uma capacidade cardíaca admirável.
Eram autosuficientes. Comiam o que cultivavam. Alimentavam-se do que criava a terra e não de animais ou peixes, já que não tinham rio, apenas um lago morto, de onde canalizavam a água para banhos e outras utilidades, pois praticamente não bebiam, apenas sumos das frutas raras.
As habitações não se construíam, nem se compravam. O nome da comunidade devia-se à árvore trília, uma planta de grandes dimensões e que podia ocupar cem metros quadrados de superfície, ou até mais. Estas árvores eram ocas, deixando um grande espaço interior, facilmente adoptado como casa. Iam estreitando à medida que cresciam, tal como a forma de uma cebola. As suas folhas enormes e macias eram utilizadas no fabrico de vestuário. Revestiam-se de um material parecido com a cortiça, de maneira que eram de bom isolamento. A maior parte das trílias eram todas da cor original, acinzentadas. No entanto, alguns garubinos tingiam as suas habitações com tintas feitas de frutos, pelo que se via algumas árvores de tons quentes e fortes. Os que o faziam eram severamente criticados como inimigos da natureza ou presunçosos. A volta da casa-árvore, colocavam uma cerca, delimitando a propriedade. Ali cultivavam frutos e sementes, verduras e sicci, o açúcar.
Todos os pais educavam os filhos para que crescessem com alegria e tolerância. O respeito pela personalidade individual era lei, e estava consagrado na constituição garubina. Cada qual decidia o que fazer com a sua vida, e, quer houvesse acordo ou não, ninguém se impunha. Assim viviam alegres e cresciam sem barreiras.
Não tinham profissões castradoras. Não havia horários, nem honorários. Cada qual organizava a própria sobrevivência: quando tinha de cultivar ou apanhar determinado fruto ou vegetal, quando precisava de os trocar por roupa, alimentos ou sementes.
Todos os dias tratavam da sua saúde. Iam, normalmente, à tandeira mais próxima e tomavam conhecimento do seu estado e das alterações de medicação natural que teriam de efectuar. As tandeiras eram senhoras que viviam em constante reflexão e que se dizia terem poderes de tudo adivinhar. Assim, sabiam prescrever receitas milagrosas e detectar males antes de estes se desenvolverem. Com emplastros e milhares de associações de plantas e sementes, conseguiam manter a saúde da comunidade. Se alguma criança morria, era nas primeiras semanas de vida, com problemas natos. Se sobreviviam, só por acidente alguém falecia. E não se conseguia perceber a razão de tanta vida saudável, senão atribuindo-se a milagres das tandeiras.
Terim, um dos homens mais honrados da comunidade, por ser generoso e benemérito, sentia-se o homem mais feliz do mundo. A sua mulher, Afridi, estava grávida, e a tandeira vizinha previa o nascimento de um belo rapaz. Terim agradecia, por isso, todas as noites ao Grande Espírito, a entidade divina em que acreditavam.
- Afridi - disse ele um dia -, este nosso rebento será um visionário, irá conseguir ver o que mais ninguém na nossa comunidade conseguiu. Tive hoje um sonho que mo mostrou. Será o mais alto de todos os garubinos, conseguirá chegar o fruto da ritibeira sem vara, alcançará um destino diferente de todos.
- Não creio que essas palavras nos tragam muita alegria, Terim. Viver assim tão diferente de nós não pode ser uma coisa boa. Temos tudo o que precisamos: comida, saúde, alegria, união. Não pensemos nisso, ele saberá escolher o seu percurso nesta vida. E assim aprender para crescimento interior.
Afridi afagou o ventre e passou as mãos pelo longo cabelo negro, como sempre fazia quando reflectia. Decidiu não deixar que a preocupação toldasse a sua alegria, nem que o pensamento se retivesse em pressupostos errados ou dúvidas pouco saudáveis. Não podia pôr em risco o sistema imunitário do bebé. Assim, decidiu também ela consultar a tandeira. Quando se aproximou da trília da tandeira, amarela pálida, rodeada de grandes arbustos e árvores de frutos encarnados, já ela a esperava, sentada numa das raízes saídas da árvore-casa.
- Entra, minha querida Afridi, - disse, lançando faíscas do olhar, como cristal. - Não te apoquentes mais, que sei o que te trouxe cá.
- Tu que adivinhas tudo, diz-me o que mais eu quero saber. Desejo um futuro equilibrado para o meu filho, mas Terim sonhou que a criança será diferente de nós. E eu não quero isso. Quero que seja como todos, que brinque com a terra e se suje, para ser lavado em água de flores, purificando-o. Quero que escolha uma trília espaçosa e que encontre uma mulher organizada, que não se esqueça dos plantios e das colheitas. Que troque os alimentos e utensílios necessários, que tenha bens para a troca e que sobrem para o lar. Quero que não pense em abandonar a comunidade, mas que lute para que sejamos mais unidos. Que não olhe para os raios além dos montes cor do inferno, e que esteja presente quando eu e Terim formos chamados pelo Grande Espírito.
- Muito pedes, não é próprio de um bom garubino. Não deves deixar que o destino do teu filho afecte a tua vida na comunidade. Depois de o criares seguindo todas as nossas leis, ele adquire uma personalidade que é livre e pode trilhar várias quelhas que não são as sonhadas pelos pais. Desde que não prejudique a comunidade, pode até ser um caminho de aprendizagem.
- Mas, diz-me, vês algo no futuro deste meu filho que justifique estes pensamentos indignos de garubino?
- Este teu filho trará luz e escuridão. Trará a vida e a morte, que não se podem dissociar. Será um anjo maldito. Libertador. E nada mais te direi, Afridi. Não te recordes mais desta conversa. Cria o teu filho com poderes de santa e ensina todos os mandamentos garubinos. O teu filho nascerá já com uma personalidade, não te esqueças. Mas não podes assustar-te com isso. Aceita o inevitável.
Afridi regressou a casa com uma sombra na alma, e tomou o chá de sementes que a tandeira lhe deu para as preocupações. Quando Terim regressou da feira de trocas diária, já Afridi se libertara do peso do pensamento e sorria sem medos escondidos.
Meses se passaram de completa harmonia. O filho de Terim e de Afridi nasceu sem complicações. O nome escolhido foi Tidi, união dos nomes dos pais.
Tidi foi sempre um jovem equilibrado. Afridi e Terim nunca tiveram de tratar qualquer impulso violento, nunca recorreram a nenhuma tandeira para o libertar de angústias ou pouca compreensão. Inteligente e bonito, crescera mais do que o normal para um garubino. Apele clareara um pouco mais e os olhos não eram pretos, como os da maior parte dos garubinos, mas de um cinzento lunar, próprio dos nossos lobos. O tronco era pouco desenvolvido, no entanto, o que previa uma tendência para as artes e não para os trabalhos físicos. Assim, quando entrara na idade do pensamento subjectivo, os pais colocaram-no como aprendiz de um artista, que trocava a sua arte variada por alimentos e utensílios. Assim, pouco a pouco
Tidi foi revelando a sua destreza e veia poética para trabalhos de escultura em pedra e em madeira e para a transformação de jardins em autênticas pinturas naturais. E, como não havia ninguém melhor do que ele, especializou-se em jardins. Fazia as mais impensáveis esculturas nas árvores, desenhos em arbustos e imagens com flores. Como era alto, conseguia alcançar o limite dos ramos e tecê-los como linho. Colocava outros trabalhos em madeira e pedra nos jardins, transformando-os em sítios de lazer únicos e quiméricos.
- Veja, minha mãe, consigo alcançar quase todos os ramos da ritibeira.
E a mãe via. Via as palavras passadas do marido bailarem diante de si. E percebeu que as preocupações não desaparecem, apenas ficam adormecidas.
- Meu filho Tidi... como és mais elevado que todos os garubinos!... Toda a gente te respeita por essa diferença. E soubeste aproveitá-la bem para a tua vida. Há quem não perceba as vantagem das suas diferenças e passe o tempo a tentar igualar-se aos demais. És virtuoso por isso e sentimos muito orgulho nessa tua inteligência, pois há muitas espécies de inteligência.
Afridi passou as mãos pelo longo cabelo negro e sentou-se numa escultura de pedra, talhada por Tidi.
- Senta-te comigo, Tidi.
O filho sentou-se junto da mãe, admirando a sua beleza.
- O que vês tu no teu futuro?
- Não penso muito nisso, minha mãe. Quer que consulte uma tandeira?
- Não, não é isso que quero.
Afridi receava a ida de Tidi a uma tandeira. Temia ouvir palavras que o seu coração de mãe já escrevia há muito.
- Com a tua beleza e inteligência, Tidi, és o mais perfeito de todos os jovens garubinos. Sabes utilizar a tua sabedoria para teres tudo o que queres. Chegou a hora de encontrares uma mulher equilibrada, que te dê a felicidade completa.
- Não acredito muito na felicidade completa, minha mãe. Para comermos todos os bagos dos ritibos temos de escolher primeiro os espetos, e mesmo assim acabamos muitas vezes com os dedos picados. Penso que há mais dor na vida do que aquela que é vista, há muito sofrimento escondido, muitos pensamentos imundos, que como nódoas são lavados das faces sorridentes. Mas, sim, é talvez hora de escolher uma mulher.
- Escolhe-a com os olhos da alma.
- E pode ser de outra forma, minha mãe? Como posso acreditar que o Risoldo, o vizinho, será feliz por ter escolhido propositadamente a Bidal, que tinha já a maior trília alguma vez vista?
A mãe encheu-se de alegria com o pensamento equilibrado do filho. No entanto, o facto de ter comparado o sofrimento humano com um fruto não lhe pareceu de grande sensatez. As coisas naturais não serviam de exemplo para um garubino. Existiam para os servir, sem a pretensão de os ensinar. Além de que na constituição havia um artigo que referia que a dor humana só era válida em casos extremos, como falecimento de familiares. Em todas as outras situações, as tandeiras tinham a solução para cada caso. Viver sem sofrimento era o maior feito da história dos garubinos. E falar nesse lado obscuro era voltar ao passado que se queria esquecer. Àquele passado que dizia que Trílis fora formada por condenados de outras civilizações, renegados e forçados ao ostracismo. Que do erro nascera a perfeição. E que, como isso não era possível, que Trílis escondia nas suas veias sangue podre. Não, Afridi não podia acreditar nessa lenda. Preferia a história da origem natural dos garubinos, que dizia que nasceram primeiramente no seio das árvores trílias e que era por esse motivo que elas eram ocas, como se um ventre se tivesse esvaziado e mesmo assim permanecido pleno para acolher.
Tidi procurou, então, pensar numa possível mulher para si. Mas não era preciso rebuscar tanto assim. Desde pequeno que esculpia sempre a mesma face nos ramos dos arbustos e colocava a mesma cor das faces nos desenhos de flores. Era ela de uma beleza extrema, de cabelos tão escuros e longos como fios de sântio, a planta mais aproveitada para tecidos raros, pois era muito difícil fazê-la crescer.
Um dia, Tidi falou com Sali, a mulher escolhida pela sua alma. No brilho dos olhos de Sali saltava a mais nua ternura.
- Sali, não são necessárias palavras para expressar sentimentos. Se souberes ler no meu olhar, nada mais te peço para toda a vida. Há quem pense que é preciso sabedoria, eu penso que é preciso coração. E sabedoria há muita no mundo, de espécies infinitas, mas um verdadeiro coração têm-no poucos.
- Desde pequeno que te observo, meu querido. Ora no cimo das árvores, fazendo magia com os ramos, ora nos canteiros tão labirínticos de flores. Soube-o. Estive à espera deste dia desde sempre.
Um beijo abraçou as duas almas, como um selo de união. Tão difícil encontrar o amor, e para eles tão simples. Só quem não quer ver turva as águas límpidas da alma. Tidi e Sali anunciaram a pretensão de se unirem para sempre numa cerimónia, a comunhão garubina. Duas semanas duraram os preparativos. Tidi e Sali muito empenhados no discurso para a cerimónia, os pais ocupados, distribuindo tarefas pelos vizinhos, para que nada faltasse na celebração. Creidi, a mãe de Sali, cosia com afinco o vestido cerimonial para a filha, aproveitando pedras transparentes e brilhantes trazidas de uma gruta nos montes vermelhos por aventureiros. Pedras raras, para que o amor fosse de rara grandiosidade. O vestido era dourado, símbolo do sol, da luz. Afridi preparava a lista de manjares a constar do repasto. Assim, distribuiu por toda a vizinhança os afazeres: alguém cuidava dos sumos de frutas; uma família preparava as folhas trilianas para uma cobertura no espaçoso quintal dos pais de Sali; uns amigos tratavam dos legumes, vegetais e frutos esculpidos; outros das saladas e dos cremes; outros dos doces com ervas aromáticas. Enfim, uma grande azáfama. Todos queriam ajudar, porque isso os fazia felizes.
O dia da comunhão chegara. Pela manhã, Creidi e Tadio, o pai de Sali, espalharam pétalas de flores como tapete desde a entrada da vedação até ao local da celebração. Tidi fora o primeiro a chegar, acompanhado por seus pais. Não demorara tempo nenhum até todo o local estar repleto de garubinos, vestidos de diversas cores, com predominância do branco. Sentados em raízes da trília e em bancos improvisados, comiam alguns frutos. Chegado o momento da saída de Sali da casa dos pais, os convidados aplaudiram efusivamente. Sali caminhou lentamente ao encontro de Tidi, descalça, sentindo o toque aveludado das pétalas. Os dois ficaram a olhar-se longo tempo, defronte um do outro, de mãos dadas. O silêncio duradouro fazia parte da cerimónia. De seguida, proferiram o discurso preparado, que os faria marido e mulher.
- Sali, dou-te o meu coração. E transparentes serão os meus sentimentos. Todas as minhas palavras ouvirás, mesmo as mais escondidas. A minha alma encontrou a tua e juntas permanecerão junto do Grande Espírito, para que sejam uma só.
- Tidi, não mais me guardarei à chave. Serei transparente e todos os meus sentimentos te farei chegar, com palavras e no meu olhar. As nossas almas serão uma só junto do Grande Espírito.
Trocaram as coroas simbólicas. Tidi colocou no cabelo de Sali a coroa que fizera, com dezenas de flores diferentes, que causou grande admiração. Sali ofereceu a Tidi para que ele colocasse na cabeça uma coroa com pedras transparentes iguais ao do vestido, valiosas e raras. Beijaram-se rapidamente e novamente um silêncio duradouro. O brilho do olhar de Tidi e de Sali era um só, perpassava o corpo e a alma, como abrindo portas e saltando barreiras. Após esta paz, dois garubinos começaram uma melodia, acompanhados de um instrumento de sopro, que foi subindo de tom, e todos aplaudiram, levantando-se e cumprimentando Tidi e Sali e os seus pais.
A festa decorreu durante dois dias, altura em que o último convidado, enfastiado de tanto fiai, uma bebida alcoólica de frutos e sicci, decidiu descobrir de novo o caminho para a sua tília. Era o momento de despedida de Tidi e de Sali. Os respectivos pais nutriam sentimentos de alegria, pois tinham um novo elemento na família e porque os filhos podiam seguir seu rumo de felicidade, construindo bases para um equilíbrio renovado na comunidade e reorganizando a sua personalidade e carácter de rectidão.
Foram tempos de paz e de equilíbrio, como sempre em Trílis. Ninguém discutia, nem falava em voz alta. As tarefas rotineiras realizavam-se com tempo e pausas para convivência. Tidi e Sali viviam em harmonia, aproveitando todos os minutos para se encontrarem.
Até que chegou a altura dos três dias de trevas e de absoluta escuridão. Os garubinos preparavam esta fase do ano com grande antecedência, abastecendo atrília de todos os alimentos necessários. Ninguém saía de casa enquanto a luz estivesse escondida por negritude. Explicação não havia, muitos temores e superstições surgiam. Diziam que os raios limítrofes de Trílis desapareciam para que passassem seres malignos, procurando vingança da sua dor na alegria dos outros. No dia anterior à escuridão, Tidi e Sali estiveram juntos com os pais. Uniram as mãos, sentindo a presença de todos, partilhando da força e coragem. Partilharam da mistura de ervas e sementes que todos os anos as tandeiras faziam propositadamente. Era uma mescla destinada a expulsar dos corações garubinos toda e qualquer depressão, tristeza, ansiedade ou medo. O resultado era uma enorme sonolência, o que lhes permitia dormir imenso, até que novamente a luz fosse restituída.
- Minha mãe, por três dias que nos fecharemos. Por três dias reflectiremos sobre a nossa existência e percurso. - Disse Tidi, próximo já da despedida. A luz lentamente ia desaparecendo no horizonte.
- Não vos deveis demorar mais. A reflexão sobre a nossa vida, como dizes, meu filho, só pode levar-nos a uma conclusão. Nós, comunidade, existimos como um só ser, uns para os outros, em perfeito entendimento. Somos a alegria, temos paz.
- Sim, mãe. Mas como surgiram essas preocupações de manter a alegria e a paz? Leva-nos a pensar que num passado remoto a tristeza predominaria e as lutas seriam violentas. Tudo tem um oposto, também nós.
Nesse momento, Afridi sentiu uma tristeza inexplicável, que não deu a perceber. Sentia que o destino apertava o tempo e que algo estava prestes a acontecer.
- Sali, não podes permitir que Tidi tenha um pensamento negativo destes, afecta-vos e afecta todos os que vos rodeiam. Como afirmar que a tristeza pode ter alguma vez sido dominante, se somos um ser tão perfeito, quase divino? Temos de aprender a olhar só para as coisas boas da vida, as más atraem pensamentos destrutivos. E não há qualquer tipo de destruição em Trílis.
- Vou dedicar estes três dias ao pensamento do oposto. Há tanto para pensar que nunca foi pensado!...
- Meu filho, que estes dias sejam de descanso e de bom sono. Não provoques a ira do destino, que te espera para te desviar.
- O que quer a mãe dizer sobre isto, meu pai?
Terim acenou com a cabeça negativamente e encolheu os ombros, como se a nada disso desse importância.
- Nada, meu filho, as tuas palavras perturbam, nada mais.
E despediram-se dos pais de Tidi. Passaram depois pela tília dos pais de Sali e também se despediram por três dias.
Tílis ficou imersa numa cegueira profunda. A ignorância do negrume permitiu à comunidade cair num sono de medos e falsidades.
Tidi não dormiu. Sentiu a paz daqueles dias, sem que nenhum ruído se ouvisse no horizonte distante e desconhecido. Não foi rodeado de medos e ansiedades, mas amou todos os momentos de trevas, que lhe permitiam uma paz como em nenhuma outra ocasião. E não percebia esta realidade, concluindo que seria diferente de todos os outros garubinos. Teve vontade de sair da trília e passear nos montes escaldantes, que talvez estivessem a uma temperatura normal, alcançar o local dos raios circundantes, tentando apreender como desapareciam nesses dias. Que fenómeno seria aquele? E lembrou-se que na constituição garubina não era permitido pôr em causa a alegria, a organização e o equilíbrio da comunidade. Que a própria constituição não previa nenhum castigo para os que a transgredissem. Os garubinos acreditavam que os que fugissem à lei garubina seriam castigados pela mãe natureza, sem que tivessem que intervir directamente. Sabia que estava a pôr em causa todo o pensamento segundo o qual fora educado. Sentia que havia muito mais além raios para descobrir, um novo mundo, repleto de alegrias novas e de dor e sofrimento. Talvez assim desse mais importância aos momentos de paz e de felicidade. E não queria adormecer, queria sofrer com isso, exorcizar todos os anos de alegrias e saúde. Queria ser frágil, sentir cansaço. Queria chorar como as crianças. Sentia nascer dentro de si um novelo de perguntas, de insatisfação. Teve vontade de elevar a voz, ouvir até onde chegaria o seu grito de procura. Sali dormia.
Quando se passaram os três dias de trevas, todos saíram quase ao mesmo tempo dos seus nichos. Abraçaram-se, cumprimentaram-se, riram e reuniram-se em festa. Era a maior festa do ano. Havia danças e música, comida e fiai, a bebida alcoólica. Todos participavam, sem excepção. Também a família de Tidi esteve toda reunida no imenso jardim da comunidade.
Tidi fingia alguma satisfação por aquela efusão de júbilo. No entanto, notava os olhares inquisidores de sua mãe. - Parabéns pelo trabalho maravilhoso, Tidi! As plantas parecem esculturas. Temos sorte em ter na nossa comunidade alguém tão talentoso! - Exclamou alguém, abraçando Tidi e dançando um pouco com os seus braços, como se não controlasse o próprio corpo.
Tidi sorriu sem vontade e reparou no entendimento da própria mãe.
Primeiro teria que falar com Sali, sua mulher. Para ela tudo em primeiro lugar. Pegou-a ao colo, como tomado também pelo espírito festivo, levando-a para um local mais recatado.
- Sali, chegou a hora de te abrir os meus pensamentos. Nada dormi estes dias. Disparates bailam no centro de mim e não consigo explicar-te como tenho sofrido comprazer.
- Não te apoquentes. Sei o que me queres dizer. Há muito que te adivinho. Também o meu coração não me deixa sossegada. E talvez não sejamos só nós, meu querido. Já pensaste que todos os garubinos podem ter as mesmas dúvidas, as mesmas tristezas escondidas? Nunca disse isto a ninguém, mas considero que nós, garubinos, perfeitos de mais, escondemos a nossa verdadeira essência. Fico feliz por esta conversa.
- Aliviado fica o meu coração. Receava não ter a tua compreensão. Como podes saber tanto? Vou tomar uma decisão e preciso saber o que pensas.
Durante longo tempo os dois amados conversaram, ora abraçando-se, ora demonstrando alguma preocupação e tristeza, o que atraiu olhares inquisidores. A determinada altura, Afridi aproximou-se com duas taças de fiai.
- É disto que precisam, meus filhos, - disse-lhes, estendendo a bebida alcoólica para que eles a aceitassem. - Já estão a chamar demasiado as atenções de quem não nos interessa. Tidi, o momento está a chegar. Quase adivinho o que me dirás. E também sei que os pais de Sali estão preparados para a vossa decisão. A lei garubina diz-nos que devemos respeitar a personalidade dos filhos, as suas opções e a sua individualidade. E não pretendo fazer outra coisa. Mas nem que a lei nada dissesse a esse respeito. Sei que sofrerei muito com o que me dirás, meu Tidi, artista e pensador. Por enquanto, beberemos e sorriremos, até chegar o momento de regressarmos às nossas tílias.
E assim fizeram. Beberam e partilharam da alegria excessiva da comunidade.
Quando regressaram a suas casas, Tidi reuniu a família, os pais de Sali e os seus pais. E, de mãos dadas com Sali, falou pelos dois.
- Amamo-vos como a ninguém. Nós dois somos um só e temos um único pensamento e um único destino, que vos queremos comunicar. Há muito tempo que também Sali comunga das mesmas preocupações e dúvidas que eu. Só agora o descobrimos. Ahistória dos garubinos explica-se sem ser posta em causa. Não há divergência de opiniões, não há confronto de ideias, para que surja uma explicação mais próxima da realidade. Sentimos que vivemos uma mentira, que os três dias de trevas duram o ano inteiro, sem nos apercebermos. Que a escuridão começa dentro de nós. Que nem tudo o que existe serve para todos e que a individualidade de cada um, no fundo, não é admitida.
- Queremos dar aos nossos filhos um mundo maior, - continuou Sali. - Não nos basta explicar-lhes que os primeiros garubinos nasceram do ventre de uma árvore. Não nos basta dizer-lhes para reprimirem as lágrimas e tomarem ervas para a alegria. Queremos que observem o horizonte como uma meta e não com medo. E o horizonte é a própria vida.
- Uma vida na sua plenitude, com dores, com angústia, com melancolia. Com liberdade de sentimentos, com diversidade de teorias e de especulações. Queremos procurar os nossos limites. Dedicar a nossa vida a uma eterna busca.
Afridi afundou-se em lágrimas. Terim abraçou-a e disse:
- Somos vossos pais. Estaremos sempre convosco, mesmo quando não vos vermos. Ter-nos-ão ao vosso lado, junto dos vossos passos, embalando os vossos filhos, cantando para que eles adormeçam. Ficaremos convosco no nosso coração para a eternidade, sem vos condenarmos em nada. E convosco levam o nosso amor, dedicação e admiração. Procurem o que vos falta, encontrem paz de espírito. Sigam o caminho que vos espera, levando-nos convosco nas recordações. Abraçaram-se e beijaram-se. Não eram necessárias outras palavras. Tudo em excesso cai em descrença. Tidi e Sali não comunicaram as suas pretensões a ninguém mais. Passaram dias nos preparativos. Coseram folhas da tília para nelas levar alimentos e outros utensílios, que pudessem servir de troca em outras paragens. Levaram também uma bolsa de pedras retiradas das grutas nos montes, umas verdes, outras vermelhas, outras transparentes, de um brilho imenso e potente. Sabiam que podiam ser valiosas. Idealizaram um calçado de um material semelhante à cortiça, de maneira a conseguirem suportar o calor dos montes. E sem lágrimas abandonaram a sua tília. Vizinhos perceberam o que se passava e, pouco a pouco, uma multidão silenciosa juntou-se ao casal, perseguindo os seus passos, perguntando-se o que sucederia. Os pais de ambos também faziam parte dessa comitiva. A dado ponto, os garubinos pararam e só Tidi e Sali continuaram a caminhada. -Adeus, - disseram os dois. E os pais acenaram tristemente.
- Há que saber que a constituição salvaguarda momentos como este para a demonstração da tristeza, - disse uma vizinha. - Pois é como se os filhos caminhassem para a morte, que outra coisa não os pode esperar.
A terra vermelha dos montes acolhia agora a passagem do casal. E Tidi fez sinal que tudo estava bem, como se nada custasse aquela etapa. Quase deixaram de se ver, à medida que avançavam para os limites de Trílis. Quando alcançaram o local dos raios, a multidão presenciou duas explosões, como se dois foguetes de fogo de artifício tivessem sido lançados. E esses raios penetraram no infinito do céu. Regressaram todos à vida da comunidade, feliz e pacífica. Ninguém se perguntara porque Tidi e Sali decidiram tal fim. Tãojovens e com uma respeitabilidade intocável! Afridi e Terim, Creidi e Tadio foram visitados por uma tandeira, sem que a chamassem. Levou-lhes sementes, ervas e muitas misturas de frutos secos. Recomendou como os deveriam comer, de que maneira, em que quantidades. Mas Afridi quase não escutou os conselhos. Não queria esquecer a partida do filho, ninguém podia entender a dor da perda. Queria viver com ela enquanto ela vivesse e fazer do sofrimento um modo de vida, dedicada ao filho. Creidi e Tadio quase não falaram e voltaram para a sua casa com as ervas catalogadas. - Não serve de nada conservares a memória do que já não existe, se apenas servir para sofreres, Afridi, - disse a tandeira, antes de sair. - Toma o que te recomendo e vive de novo, interagindo com a nossa alegre comunidade. Quando a tandeira saiu, Afridi abriu todos os pequenos sacos de sementes, ervas e frutos, misturou-os e levou-os para o quintal, enterrando-os.
- Estou cansada, Terim. Desculpa-me pela minha falta de sensatez. Não posso acreditar que Tidi e Sali morreram, que provas é que tem a comunidade? Como me podem pedir para esquecer e continuar com a minha vida? Como será isso possível?
- Não me peças desculpas, que penso o mesmo. Eu vi com os meus olhos Tidi e Sali a aproximarem-se dos raios, vi a explosão, mas nada nos garante que é sinal de morte. Mesmo que fosse, e não um sinal de passagem para outro local, não podíamos voltar as costas à melhor parte da nossa vida. O nosso filho existirá sempre em nós, e acredito que precisaremos de muito tempo, se não de toda a nossa vida, para nos habituarmos a ficar sem ele. Não posso concordar com o que diz a comunidade, algo está errado. Que sentido de fraternidade é este, se Tidi é tão facilmente renegado? Que sentido de união é este, quando repudiam o sofrimento dos outros como se fosse um bicho?
- Ainda bem que assim pensas. Partilhamos a mesma dor, mesmo que mais ninguém nos entenda. O problema é que temos de a esconder, para que a comunidade nos aceite e continuemos integrados nela. Há regras, temos de as respeitar.
- E o que nos acontecerá, Afridi?
- Nada, tudo continuará igual, sempre igual, sem avanços ou recuos, sempre com alegrias e prazeres. E assim com falsidades, como dizia Tidi. Será que também nós até aqui fomos falsos?
- Não conhecíamos outra coisa, dávamos valor à nossa comodidade de sentimentos. Agora conhecemos a perda. Abrimos uma porta difícil de fechar novamente.
- E se outros pensarem como nós? E se todos pensarem como nós, mas não tiverem coragem de se insurgir contra a lei garubina?
- É possível, também Sali pensava como Tidi. Não poderemos saber o que vai na alma das pessoas.
Enquanto conversavam, não notaram a aproximação sorrateira da tandeira vizinha. Quando perceberam que alguém estava à porta da sua tília, sobressaltados, correram para a entrada.
- Não se preocupem, sou eu, a tandeira. Sei das vossas angústias. Venho dizer-vos que devem lutar pelo que acreditam, pelos vossos ideais. Lembrem-se disto: os finais acontecem quando todas as portas se fecham.
Olhou para a cara assustada de ambos.
- Os adormecidos também se acordam. - Concluiu, afastando-se.
E foi embora, andando lentamente, de ombros curvados, costas largas e tortas. Afridi e Terim tentavam decifrar os enigmas lançados pela tandeira. Abraçaram-se para que sentissem algum conforto físico naquele momento de confusão. O que queria a tandeira dizer?
- Meu querido Terim, acredito que a hora chegou. Lançarei palavras de honestidade para o vento e os raios solares bailem nas hastes das minhas dores. Todos ouvirão os meus gritos de mãe e verão as minhas lágrimas de perda lavarem uma boca sem sorriso. Tomei uma decisão: vou à procura de Tidi. E também de respostas. E de uma vida verdadeira. Não me julgues louca por isto.
- Terás o meu apoio para tudo, o meu abraço e a minha sombra. Não te deixarei sozinha nunca, nem nos caminhos mais tortuosos da vida, nem nas loucuras mais difíceis de compreender. Mas julgo que temos a fazer outra coisa: libertar...
- Libertar? - Perguntou Afridi, interessada.
- Libertar toda a comunidade do sufoco da perfeição. Dar lugar ao erro, à morte, ao sofrimento. Como fazê-lo? De forma política.
- O que significa política? - Afridi mostrava-se admirada com os súbitos conhecimentos do marido.
- Política é uma arte de palavras, dirigindo a opinião do ouvinte, utilizando argumentos de uma astúcia velada. Assim, podes fazer com que todos te sigam, mesmo que pensem de maneira diferente.
- Não. Quero que a verdade seja lema, que a sua procura se faça com convicção e princípios. Nada de escondidas, ou permanecíamos tal como estamos. Sim, abriremos o nosso coração e colocaremos as nossas dúvidas à comunidade. Depois iremos àprocura de Tidi e de Sali.
Afridi percorreu os caminhos de Trílis e viu as árvores esculturais, tratadas pelo seu filho e os canteiros de flores, já um pouco desarranjados. Pensou que tudo o que fazemos nesta vida tem uma duração mais curta do que imaginamos, e que o valor de cada arte ou ofício permanece por si só, sem precisar da existência do artista. Quem produz é mais dispensável do que o produzido. Assim, o filho tivera razão em imaginar outro mundo. Onde houvesse dor e respeito pela debilidade e fraqueza, onde os sentimentos fossem completos, com o lado negativo e o lado positivo. Talvez nesse mundo se desse mais valor às alegrias e aos momentos de felicidade, já que também existia a tristeza. Seria um mundo rico, onde todos contassem pela essência do seu ser e não pelo produzido. Onde não se fugisse de quem sofre e se entendesse a perda.
Afridi caminhava e chorava, o que provocava a perplexidade de quem por ela passava.
- Como queres que te entendamos, se não sabemos o que é o sofrimento? - Perguntou Ancar, uma vizinha.
- Através do que tenho para vos dizer. Vou reunir toda a comunidade para explicar...
- Não creio que alguém queira abandonar o seu nicho de felicidade para te ouvir, minha amiga.
- Tu não me ouvirias, Ancar? - Questionou Afridi.
E Afridi, com a ajuda de Ancar e de outros vizinhos, com o apoio do marido e dos pais de Sali, começou a engendrar um plano para uma sessão de esclarecimento de emoções. Assim, juntaram-se todos os adjuvantes para que soubessem o que dizer à comunidade. Posteriormente, cada qual se dirigiu para um ponto de Trílis e publicitou o local e a data da sessão de Afridi. Venham todos, diziam eles, que a lei garubina estabelece a união de acção dos garubinos; quando há reunião, é para toda a comunidade.
E a curiosidade aumentava em Trílis. Esclarecimento de emoções? Que ridículo! E, no seu passeio diário, os garubinos faziam um desvio pela casa de Afridi e Terím, que já estavam a ficar muito incomodados com aromaria constante.
- Calma, - sossegou Terim. - Sabes o que isto significa? Que todos comparecerão à nossa sessão. É preciso concentração no teu discurso. Nada pode falhar.
O tempo foi passando e o burburinho dos garubinos à porta dos pais de Tidi aumentando.
Quando chegou o dia do discurso, Afridi e Creidi estiveram toda a manhã a colocar num local mais elevado plantas e flores coloridas, para que o momento estivesse em comunhão com a natureza. O terreno não era regular e Afridi discursaria no cimo de um pedregulho. Bem cedo, enquanto elas trabalhavam, já grande parte da comunidade ali se encontrava, tendo levado petiscos, alguns garubinos já começando a abusar do fiai.
Afridi iniciou o discurso, quando toda a comunidade se encontrava presente. Nunca tinha sido feito nada igual e todos faziam silêncio para que percebessem tal mistério. Junto a Afridi estava Terim, também ele nervoso, e os pais de Sali.
E disse Afridi:
- Amigos garubinos, comunidade de Trílis, somos todos iguais por natureza. Estou aqui não por querer ser mais ou por saber mais, mas para ser verdadeira convosco. Há uma lei que há muito é cumprida e todos a respeitamos acima de qualquer suspeita. Essa lei prevê a honestidade. Essa lei valoriza o autêntico. Não é assim? Não concordam? Os garubinos orgulham-se por não esconderem nada. As suas casas não têm protecção, acreditamos em todos e temos de permanecer unidos. Mas dentro de nós escondemos algumas dúvidas, alguns receios. E será justo bani-los com plantas e ervas de tandeiras? E será justo esquecer o que nasce dentro de nós, combatendo-o com o que nasce na natureza? Não temos combates entre nós, a paz é uma certeza, mas dentro de cada um há uma batalha diária que ninguém adivinha. Quem não trava duelos infinitos com as questões que guardamos diariamente? Vamos deixar que se enterrem para sempre no escuro das nossas almas? Deixemos que a luz ilumine todos os nossos sentimentos e emoções! Venham os raios! Que trespassem anos de agonias e angústias solitárias disfarçados com sorrisos de ervas!
Neste momento, toda a comunidade aplaudiu entusiasticamente, e Afridi pôde recuperar novo fôlego e sentir maior segurança para a continuação da assembleia.
- Comunidade tão elucidada, tão avançada como a nossa!... Banimos a dor, destruímos a doença!... Temos medo de quê agora? De ir mais além? De transpor limites? O horizonte é o nosso destino. Vamos optar pela expansão. Estamos circunscritos a um pouco de terreno, quando podemos ter o mundo inteiro por descobrir. Quem não sente curiosidade? Vamos descobrir!...
E novamente os garubinos aplaudiram, desta vez ainda mais animadamente.
- Sabem que tenho um filho, Tidi, e uma filha, Sali. Não morreram, apenas partiram em busca de outra vida, diferente da que levamos. Há quem diga que só podemos estar satisfeitos com as nossas rotinas. Há quem pense que além dos raios existe só miséria e dor. Mas eu sei que o meu filho está bem, que todos os que partiram se perderam na infinidade de descobertas a realizar. Vamos ser corajosos, enfrentaremos os nossos medos, suportaremos a dor sem ervas! E assim seremos a maior comunidade de todas, a que deixou a perfeição para cair na incerteza, a que abdicou da paz para enfrentar as guerras diárias, solitárias ou não. Seremos grandes, e um dia olharemos os raios com ironia.
- O que pedes tu, garubina? O que queres que façamos, se concordarmos com tudo isso que dizes? - Perguntou um elemento da comunidade, mais alto que os demais, fazendo lembrar Tidi.
- Vamos alargar território, ultrapassaremos os raios todos juntos, de mãos unidas. O que for para uns, é para todos. Daremos uma grande festa antes de partirmos. Terá de ser antes dos três dias de trevas. Faremos uma grande despedida de Trílis, e lançaremos a sorte ao vento!
- Estou contigo! Vamos lutar contra as nossas fraquezas! Quem está connosco? - Questionou o mesmo garubino alto.
Todos se manifestaram num grande alarido. Era difícil conseguir perceber se todos respondiam afirmativamente.
O garubino alto saltou para o pedregulho e gritou para toda a comunidade:
- Quem não está connosco?
E ninguém respondeu. O garubino fez um gesto de reverência a Afridi e desceu novamente do improvisado púlpito.
- Muito bem, - continuou Afridi. - Quando as flores de fiósis despontarem, começaremos a preparação da nossa festa grandiosa. Faremos sapatos como os que fez o meu filho e prepararemos comida e pedras das grutas para levar, que podem servir de troca. Até lá, todos unidos, somos luz!
E toda a comunidade repetiu, num clamor ecoado nos montes vermelhos:
- Todos unidos somos luz!
Todos felicitaram Afridi pelas sábias palavras utilizadas. Mas era uma Afridi pensativa que regressava a casa com Terim.
- Foste exímia, minha querida. Mas conheço-te tão bem, que adivinho que novas dúvidas apoquentam o teu coração.
- Terim, não te parece que foi muito fácil? Como é possível convencer de um momento para o outro todo um povo a deitar para trás a sua história e caminhar para o desconhecido, quer isso seja bom ou mau? Se é assim simples dominar o pensamento alheio, já pensaste que os garubinos poderão ter concordado comigo por eu parecer poderosa e segura, e não por ser o caminho mais adequado e escolhido voluntariamente por eles?
- Claro que o escolheram voluntariamente, não digas o contrário. Ninguém os obrigou e foram dadas alternativas. O poder de que falas é impositivo, não deixa margens a pensamentos diferenciados.
- Eu sei disso, mas será que todos o perceberam? Que tinham liberdade de escolha?
- Claro que sim - Garantiu Terim, abraçando a mulher na altura em que entram em casa.
- Então é assustador. É acessível a qualquer um o domínio de todos os pensamentos de uma comunidade, de todas as leis, pois parece fácil a sua aceitação.
- Bom, não penses nisso, pois temos muitas coisas para fazer e organizar. Vamos procurar o nosso filho e vamos encontrá-lo.
- E descobriremos as respostas que nos faltam.
- Lembra-te disto, minha querida Afridi, nunca saberemos todas as respostas, persistirão sempre inevitáveis dúvidas. Não teremos a chave para todas as portas, nem a erva para todas as tristezas. Teremos que viver com isso, caminhando para resolver os enigmas, principalmente os interiores, na perspectiva de que jamais poderemos alcançar o verdadeiro saber.
Afridi e Terim abraçaram-se e descansaram, preparando-se para os afazeres que se seguiriam.
Foram tempos de azáfama. Deixar o lugar onde sempre se viveu não é tarefa branda. As tandeiras não tinham mãos a medir com tantos pedidos de ervas para variados cansaços, tristezas e ansiedades. Mas ninguém falava em desistir. Ao mesmo tempo que um medo inexplicável derrubava as intenções de partida, uma vontade de pular para o outro lado, deixar tudo para trás e começar de novo soltava os gestos e os passos.
Fizeram-se novas vestimentas, colheram-se frutos e outros alimentos, fabricaram-se em série sapatos da fibra que revestia as trílias. Um grupo habitual de aventureiros entrou nas grutas dos montes e recolheram inúmeras pedras de variadas cores, todas brilhando tanto quanto o sol.
A hora da grande festa aproximava-se. Colocaram no grande recinto mesas e cadeiras, locais próprios para se dormir um pouco. Os garubinos deixaram as suas trílias com grandes carregos de roupas e comidas e levaram-nos para o sítio da festa. Dali partiriam para o desconhecido. Também Afridi e Terim deixaram a sua casa para sempre, demorando a despedida em cada canto, recordando os momentos de felicidade que ali ficariam guardados. Afridi não conteve as lágrimas, que saltavam furiosas.
- E se tudo isto é um erro, meu Terim? E se convenci a comunidade a suicidar-se?
- Não podes vacilar. É natural que com o aproximar da hora te sintas insegura. Mas segues o teu coração e o teu instinto maternal, que te diz que Tidi está vivo. E, por mais leve que seja a suposição, devemos fazer de tudo para nos juntarmos a ele e à nossa família. Estamos a libertar Trílis. E se a morte nos esperar, finalmente teremos as respostas às nossas questões. O Grande Espírito nos libertará desse sono. Continuar com esta vida, após as dúvidas que a desmembram, também é viver de forma incompleta e morrermos todos os dias um pouco.
- Sempre sapiente, meu Terim. Que sentimento tão raro que experimento nesta hora da despedida! Nunca pensei existir sentimento tal, que se assemelhasse a este. Quase sinto fisicamente a partida, como se me arrancassem um braço ou uma perna.
- Também eu. Brindaremos com fiai a esta nova descoberta. Vamos chorar até não poder mais!
E Afridi riu, chorando ao mesmo tempo.
A festa começara. Todos comiam, cantavam, alguns dançavam num espaço próprio. As reservas de fiai eram para esgotar, de maneira que já muitos garubinos haviam perdido a lucidez e mostravam facetas inesperadas, fazendo rir os demais. O que ninguém esperava é que, numa festa, além do riso, estivessem presentes também lágrimas. Um grupo de garubinas começou a chorar, gritando. Esta demonstração de tristeza foi de tal ordem contagiosa, que rapidamente toda a comunidade chorava. E ao mesmo tempo ria, porque nunca tinham chorado na vida. As tandeiras ofereciam misturas de ervas e sementes, mas ninguém as aceitava. Estavam a gostar de sentir as lágrimas caírem pela face abaixo, era uma sensação nova. E choravam como loucos, como se o choro fosse também ele libertador. E a loucura foi tal, que ninguém escapou à lamúria geral. E o clamor espantava os montes em redor.
Três dias durou a reunião. Começou a escassear a comida e pouco havia de fiai. Assim, o momento da decisão aproximava-se.
Afridi subiu para uma mesa e disse:
- Comunidade de Trílis, vamos mostrar a nossa força e o nosso poder. Temos força para ir mais além e poder para ultrapassar a barreira dos raios. Lembrem-se, juntos somos luz!
E todos repetiram em coro.
- Sairemos de mãos dadas e ao mesmo tempo alcançaremos os limites de Trílis. Alguma pergunta? Então, vamos a isto!
Os garubinos pegaram nas pequenas coisas a que se resumia a sua vida, as tandeiras também os acompanhavam, levando inúmeras ervas catalogadas. Cantavam, enquanto abandonavam os seus lares, a sua história, indo de encontro ao desconhecido. Cantavam e choravam.
Afridi ia de mão dada com Terim e com Creidi, a mãe de Sali. E todos seguiam a passo lento, para que chegassem ao mesmo tempo. Ao aproximarem-se dos montes, começaram a sentir o calor que deles emergia. No entanto, ao pisarem a terra árida e tórrida com os sapatos novos, verificaram que nada sentiam de diferente, que era fácil a travessia. Começavam a sentir o calor infernal, mas era suportável. O pior era o esforço de transportarem os embrulhos com os seus pertences.
A medida que se aproximavam dos raios, cantavam mais alto. Quanto mais elevado era o canto, mais aflitivo o choro. Os raios eram mais brilhantes do que supunham e quase deixaram de ver.
- Não olhem para os raios! - Avisou Terim. - Podem cegar. Fechem os olhos e caminhem em frente sem hesitação e sempre no mesmo passo. Lembrem-se, juntos somos mais fortes que esta luz!
E cantavam de olhos fechados, enquanto os passos eram dados às cegas, apenas confiando que o garubino do lado também caminhava para o mesmo destino.
E o som da canção era tão elevado, que parecia diminuir a dimensão dos raios limitadores.
Foi então que garubinos e raios foram um só. Na altura da passagem, uma explosão iluminou os céus durante longo tempo, o fogo de artifício mais soberbo de todos os tempos. E uma chuva de pequeninas estrelas vestiu a despida Trílis.
Regina Samagaio
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