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OS GÊMEOS RIVAIS / Robert Ludlum
OS GÊMEOS RIVAIS / Robert Ludlum

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS GÊMEOS RIVAIS

 

9 de Dezembro de 1939 Salónica, Grécia

Um a um, sob a luz que antecedia o alvorecer de Salónica, os camiões trepavam penosamente a íngreme estrada. Todos eles aceleravam um pouco a marcha no cimo; os condutores estavam ansiosos por regressar à escuridão da estrada campestre descendente que sulcava as florestas em redor.

Todos os condutores se viam, porém, obrigados a dominar a ânsia. Nenhum deles podia deixar o pé escorregar do travão ou pisar o acelerador para além de um determinado ponto; tinham de semicerrar os olhos, para firmar melhor a vista, atentos a qualquer súbita paragem ou a uma curva inesperada no escuro.

Tudo estava escuro. Não havia faróis acesos; a coluna deslocava-se unicamente à luz da noite grega, com nuvens deslizando baixas a coar o luar grego.

A jornada era um exercício de disciplina. E a disciplina não era estranha para aqueles condutores, nem tão-pouco para os viajantes que seguiam ao lado dos condutores.

Todos eles eram sacerdotes. Frades. Da Ordem de Xenope, a mais austera irmandade monástica sob a autoridade do Patriarcado de Constantino. A obediência cega coexistia com a autoconfiança: eram disciplinados até ao instante da morte.

No camião que abria a marcha, o jovem sacerdote barbado despiu a sotaina, sob a qual trazia vestuário de trabalhador - uma camisa rústica e calças de tecido grosso. Enrolou a sotaina e colocou-a no vão atrás do assento de espaldar alto, enfiando-a sob peças desgarradas de lona e tecido. Dirigiu-se ao condutor de batina à sua ilharga.

- Já só faltam uns oitocentos metros. O trecho de linha férrea corre paralelamente à estrada cerca de noventa metros. Em descampado; há-de ser suficiente.

- O comboio estará lá? - perguntou o frade de meia-idade, a constituição robusta, com os olhos na escuridão.

- Sim. Quatro carruagens de mercadorias e um único maquinista. Não leva fogueiro. Não leva mais pessoal nenhum.

- Nesse caso vai servir-se de uma pá - disse o sacerdote mais velho, sorrindo mas sem ironia no olhar.

- Vou servir-me da pá - retorquiu simplesmente o mais jovem. - Onde está a arma?

- No compartimento das luvas.

O sacerdote vestido de trabalhador estendeu a mão para a frente e accionou o fecho da tampa do compartimento, que se abriu. Enfiou a mão no recesso e

tirou de lá uma pesada pistola de grosso calibre. Habilidosamente, o sacerdote retirou o carregador da coronha, verificou as munições e voltou a introduzi-lo com um estalido. O som metálico tinha o seu quê de peremptório.

- Um instrumento poderoso. Italiana, não é?

- É - respondeu o sacerdote mais velho, sem comentários, unicamente com tristeza na voz.

- Condiz. É uma bênção, creio bem. - O mais jovem introduziu a arma no cinto. - Telefona à família?

- Foram as ordens que me deram... - Era manifesto que o condutor tinha vontade de dizer qualquer coisa mais, mas dominou-se. Silenciosamente, agarrou-se ao volante com mais firmeza do que era necessário.

O luar rompeu momentaneamente através das nuvens nocturnas, iluminando a estrada que sulcava a floresta.

- Costumava brincar aqui em criança - disse o mais jovem. - Corria pelos bosques e encharcava-me nos ribeiros... Depois secava-me nas grutas da montanha e fingia ter visões. Fui feliz nestes montes. O Senhor quis que voltasse a vê-los. É misericordioso. É bom.

A lua desapareceu. Sobreveio novamente a escuridão.

Os camiões entraram numa curva ampla para oeste; o matagal tornou-se mais esparso e ao longe, quase indistintos, surgiram os contornos de postes telegráficos, hastes negras recortando-se contra a noite cor de cinza. A estrada tornava-se mais recta e larga, fundindo-se com uma clareira que se estendia talvez cem metros entre um maciço e outro: uma zona plana e árida inserida na miríade de montes e matas. No centro da clareira, com a carcaça obscurecida pelas trevas, encontrava-se um comboio.

Imóvel mas não destituído de movimento. Da locomotiva saíam anéis de fumo que se erguiam em espirais pela noite dentro.

- Em tempos que já lá vão - disse o sacerdote jovem - os agricultores reuniam as ovelhas e traziam os seus produtos para aqui. Havia sempre uma grande confusão, contava-me o meu pai. Estalavam constantemente disputas acerca do que pertencia a quem. Eram histórias divertidas... Lá está ele!

O feixe de uma lanterna rompeu as trevas. Descreveu um duplo círculo e a seguir imobilizou-se, agora com o foco branco assestado sobre o último vagão de mercadorias. O sacerdote trajado de operário tirou do bolso da camisa uma lanterna tipo lapiseira, apontou-a para diante e premiu o botão rigorosamente durante dois segundos. O reflexo, atravessando o pára-brisas, iluminou fugazmente o pequeno recinto. O olhar do mais novo foi rapidamente atraído para o rosto do seu irmão de confraria. Notou que o companheiro mordera o lábio; escorregou-lhe pelo queixo um fio de sangue, que se tornou baço na barba grisalha aparada rente.

Não havia motivo para tecer comentários ao facto.

- Encoste ao lado do terceiro vagão. Os outros vão dar a volta e começar a descarregar.

- Eu sei - disse simplesmente o condutor. Girou suavemente o volante para a direita e apontou o camião ao terceiro vagão de mercadorias.

O maquinista, de fato-macaco e barrete de pele de cabra, aproximou-se do camião quando o jovem sacerdote abriu a porta e saltou para o solo. Os dois homens olharam um para o outro e a seguir abraçaram-se.

Ficas diferente sem a sotaina, Petride. Já me tinha esquecido do teu aspecto...

- Ora vamos. Quatro anos em vinte e sete não é propriamente a maior parte do tempo.

- Não te vemos suficientemente amiúde. Toda a família comenta o facto. O maquinista retirou as mãos grandes e calosas dos ombros do sacerdote. A

lua voltou a romper por entre as nuvens e iluminou o semblante do ferroviário. Era um rosto vigoroso, mais próximo dos cinquenta que dos quarenta, sulcado pelas rugas de um homem que está constantemente a expor a pele ao vento e ao sol.

- Como vai a mãe, Annaxas?

- Bem. Um pouco mais fraca a cada mês que envelhece, mas sempre esperta.

- E a tua mulher?

- Outra vez grávida, e desta vez não lhe dá para rir. Resmunga comigo.

- É natural. És um desgraçado de um velho lúbrico, meu irmão. Mas mais vale servir a Igreja, folgo em dizê-lo. - O sacerdote riu-se.

- Eu conto-lhe que disseste isso - ripostou o maquinista, sorrindo. Registou-se um momento de silêncio antes que o jovem retorquisse.

- Isso. Conta-lhe. - Voltou-se para a actividade que se desenrolava nos vagões de mercadorias. As portas de carregamento tinham sido abertas e havia lanternas penduradas no interior, derramando a sua luz amortecida, suficiente para a carga, mas não tão intensa que se tornasse visível do exterior. As figuras dos sacerdotes com os hábitos começaram a movimentar-se velozmente de cá para lá entre os camiões e as portas, carregando engradados, caixas de cartão duro com armações de madeira. Cada um dos engradados exibia bem visível o crucifixo e os espinhos da Ordem de Xenope.

- É a comida? - inquiriu o maquinista.

- É - respondeu o irmão. - Fruta, hortaliça, carnes secas, cereais. As patrulhas da fronteira vão ficar satisfeitas.

- E então onde? - Não era necessário ser mais claro.

- Neste vagão. Na zona central da carruagem, debaixo das redes de tabaco. Tens os vigias a postos?

- Nos carris e na estrada; em ambas as direcções ao longo de mais de quilómetro e meio. Não te preocupes. Antes do romper do dia numa manhã de domingo, só vocês, padres e noviços, têm trabalho a fazer e sítios onde ir.

O jovem sacerdote deitou uma olhadela ao quarto vagão de mercadorias. O trabalho progredia velozmente. Todas aquelas horas de treino estavam a mostrar quanto valiam. O frade que servia de condutor deteve-se brevemente sob a luz amortecida da porta de carregamento, com uma caixa de cartão nas mãos. Trocou um olhar com o mais jovem e depois desviou a atenção com esforço, regressando à caixa de cartão, que lançou para o vão da carruagem de mercadorias.

O padre Petride voltou-se para o irmão.

- Quando pegaste no comboio, falaste com alguém?

- Só com o expedidor. Evidentemente. Tomámos chá preto.

- Que disse ele?

- Palavras com as quais eu não te ofenderia, no essencial. Os papéis dele diziam que os vagões seriam carregados pelos padres de Xenope nos depósitos afastados. Não fez qualquer pergunta.

O padre Petride lançou um olhar ao segundo vagão de mercadorias, à sua direita. Daí a minutos tudo estaria consumado: encontrar-se-iam prontos para o terceiro vagão.

- Quem preparou a locomotiva?

- Fogueiros e mecânicos. Ontem à tarde. As ordens diziam que se tratava de uma reserva; é coisa normal. O equipamento passa a vida a avariar. Em Itália riem-se de nós.

- O expedidor tinha alguma razão que o levasse a telefonar para os depósitos de carregamento? Onde é que estamos supostamente a carregar os vagões?

- Estava a dormir, ou pouco faltava, antes de eu sair da torre dele. O horário da manhã não começa... - o maquinista ergueu a vista para o negro céu pardacento - ... senão daqui a uma hora, no mínimo. Ele não teria motivo para telefonar a quem quer que fosse a não ser que o rádio comunicasse um acidente.

-? Os fios sofreram um curto-circuito: água numa caixa de terminais...

- Porquê?

- Para o caso de teres mesmo problemas. Não falaste com mais ninguém?

- Nem sequer com alguém de passagem. Revistei as carruagens para me certificar de que não havia ninguém lá dentro.

- A esta hora já analisaste o nosso horário. Que achas?

O ferroviário assobiou baixinho, abanando a cabeça.

-Acho que estou espantado, meu irmão. Será que tanta coisa... pode ser assim combinada?

- As combinações estão tratadas. E quanto ao tempo? O factor importante é esse.

- Se não houver deficiências nos carris, a velocidade pode ser mantida. A polícia de fronteira de Bitola está sedenta de subornos, e um carregamento grego em Banja Luka é trigo limpo. Não teremos problemas em Serajevo nem em Zagrebe; esses andam à cata de caça mais grossa que comida para os religiosos.

- O tempo; não são os subornos.

- Os subornos são realmente tempo. A pessoa sempre regateia.

?- Só se o facto de não regatear pudesse ser suspeito. Conseguiremos chegar a Monfalcone em três noites?

- Se as combinações que fizeram funcionarem, conseguem. Se perdermos tempo, podemos recuperá-lo durante o dia.

- Só como último recurso. Viajamos de noite.

- São obstinados.

- Somos cautelosos. - O sacerdote voltou a olhar em redor. O primeiro e o segundo vagões de mercadorias estavam prontos e o quarto ficaria carregado e estivado não tardaria um minuto. Virou-se de novo para o irmão: - A família pensa que vais levar um carregamento a Corinto?

- Pensa. A Navpaktos. Aos estaleiros do estreito de Patrai. Não me esperam de volta praticamente antes de uma semana.

- Há greves em Patrai. Os sindicatos andam assanhados. Se demorasses mais uns dias, haviam de compreender.

Annaxas fitou detidamente o irmão. Parecia surpreendido com os conhecimentos mundanos do jovem sacerdote. Houve uma certa hesitação na sua resposta.

- Haviam de compreender. A tua cunhada compreenderia.

- Óptimo. - Os frades tinham-se reunido junto ao camião de Petride e fitavam-no aguardando instruções. -Já vou ter contigo à locomotiva.

- Está bem - disse o ferroviário, enquanto se afastava, lançando um olhar aos sacerdotes.

O padre Petride tirou a lanterna tipo lapiseira do bolso da camisa e abeirou-se dos outros frades, junto do camião. Procurou e localizou o homem de compleição robusta que era o seu condutor. O frade percebeu e apartou-se dos outros, juntando-se a Petride ao lado do veículo.

- É a última vez que falamos - disse o jovem sacerdote.

- Que as bênçãos de Deus...

- Por favor - interrompeu Petride. - Não há tempo. Limite-se a guardar na memória cada um dos movimentos que aqui fazemos esta noite. Tudo tem de ser exactamente reproduzido.

- Sê-lo-á. As mesmas estradas, a mesma ordem nos camiões, os mesmos condutores, documentos idênticos à passagem das fronteiras até Monfalcone. Nada mudará, excepto faltar um de nós.

- É essa a vontade de Deus. Para glória de Deus. É um privilégio que ultrapassa o meu merecimento.

Havia dois cadeados no taipal do camião. Petride tinha uma chave; o seu condutor empunhou a outra. Juntos, aproximaram-se dos fechos e introduziram as chaves. Os aros saltaram; os ferrolhos foram levantados dos ganchos de aço, os ganchos desprenderam-se e as portas abriram-se. Penduraram uma lanterna bem alto na borda do taipal.

No interior encontravam-se os engradados com os símbolos do crucifixo e dos espinhos gravados dos lados entre as ripas de madeira. Os frades principiaram a retirá-los, manobrando como bailarinos, com os hábitos caindo soltos sob a luz fantasmagórica. Transportaram os caixotes até à porta de carregamento do terceiro vagão de mercadorias. Dois homens saltaram para o pavimento de grossas travessas da carruagem e começaram a empilhar as caixas numa das extremidades.

Decorrido um breve período, metade do camião estava vazio. No centro do furgão, separado dos caixotes circundantes, encontrava-se um único engradado envolvido por um pano preto. Era um tanto ou quanto maior que as embalagens de géneros e de forma não rectangular. Ao invés, era um cubo perfeito: um metro de altura, um metro de largura e um metro de fundo.

Os sacerdotes reuniram-se em semicírculo diante dos taipais abertos do camião. Raios de alvo luar filtrado misturavam-se com o jorro amarelo da lanterna. O efeito combinado da estranha conjugação de luz, do cavernoso camião e das figuras envolvidas nos hábitos fez o padre Petride pensar numa catacumba, bem no interior da terra, albergando as verdadeiras relíquias da Cruz.

A realidade não era muito diferente. Com a excepção de aquilo que se encontrava encerrado na arca de ferro - pois disso se tratava - ser infinitamente mais significativo que a madeira petrificada da crucificação.

Diversos frades tinham cerrado os olhos em oração; outros olhavam fixamente, paralisados pela presença do objecto sagrado, de pensamentos suspensos, com a fé a extrair sustento daquilo que julgavam estar dentro do cofre semelhante a um túmulo - ele próprio um cadafalso.

Petride observava-os, sentindo-se apartado deles, e era assim que devia ser.

seu espírito recuou, errante, àquilo que parecia apenas horas antes, mas que

na realidade eram seis semanas. Tinha recebido ordem para abandonar os

campos e fora conduzido aos aposentos de cimento branco do superior de

Xenope. Haviam-no levado à presença desse piedosíssimo padre; estava um outro sacerdote com o velho prelado, e mais ninguém.

- Petride Dadakos - principiara o santo homem, sentado à grossa mesa de madeira -, foi escolhido entre todos os restantes aqui em Xenope para a mais exigente tarefa da sua existência. Para glória de Deus e preservação da sanidade cristã.

O segundo sacerdote fora apresentado. Tratava-se de um homem de aparência ascética, com uns olhos grandes e penetrantes. Falava lentamente, com meticulosidade.

- Somos guardiões de uma arca, um sarcófago, se quiser, que durante mais de mil e quinhentos anos se conservou encerrado num túmulo nas profundezas da terra. Dentro dessa arca estão documentos que dilacerariam o mundo cristão, de tal maneira devastador é aquilo que rezam. São a prova definitiva das nossas mais sagradas crenças, e, não obstante, a sua divulgação lançaria religião contra religião, seita contra seita, povos inteiros uns contra os outros. Numa guerra santa... O conflito alemão está a alastrar. A arca tem de ser levada para fora da Grécia, pois há décadas que correm rumores sobre a sua existência. A busca visando a sua posse seria tão exaustiva como uma caça aos micróbios. Foram tomadas disposições com o objectivo de transferi-la para um local onde ninguém consiga encontrá-la. Melhor diria, a maior parte das disposições. É o irmão o componente final.

A viagem fora explicada. E as disposições igualmente. Em toda a sua majestade. E terror.

- Estará em contacto com um homem apenas. Savarone Fontini-Crísti, um grande padrone' do Norte de Itália, que vive nas extensas propriedades de Campo di Fiori. Eu próprio me desloquei lá e conversei com ele. É um homem extraordinário, de uma integridade sem paralelo e extrema dedicação aos homens livres.

- Pertence à Igreja Romana? - perguntara incredulamente Petride.

- Não pertence a Igreja nenhuma, e não obstante é de todas as Igrejas. É uma força poderosa para homens que fazem ponto de honra em pensarem por si próprios. É amigo da Ordem de Xenope. È ele quem vai esconder a arca... O irmão e ele apenas. E depois o irmão... Mas lá chegaremos; é o mais privilegiado dos homens.

- Dou graças ao meu Deus.

- E bem pode dá-las, meu filho - disse o santo padre de Xenope, de olhos fitos nele. Consta-nos que tem um irmão, maquinista dos caminhos-de-ferro.

- Tenho, sim.

- Confia nele?

- Confiar-lhe-ia a vida. Não conheço homem melhor.

- Fitará os olhos do Senhor - disse o santo padre - e não vacilará. Nos Seus olhos descobrirá a graça perfeita.

- Dou graças ao meu Deus - disse de novo Petride.

Sacudiu a cabeça e piscou os olhos, obrigando as reflexões a arredarem-se-lhe do espírito. Os sacerdotes junto do camião mantinham-se ainda imóveis; de lábios movendo-se rapidamente na escuridão provinha o sussurro de cânticos segredados.

Não havia tempo para meditação ou rezas. Não havia tempo para nada a

 

' Em italiano no original: «patrão», «proprietário». (N. do T.)

 

não ser movimento veloz: cumprir as determinações da Ordem de Xenope. Petride apartou suavemente os sacerdotes diante de si e saltou para o camião. Sabia por que razão fora escolhido. Era capaz de tal dureza; o santo padre de Xenope tinha-lho tornado claro.

Havia um tempo para homens como ele.

Deus lhe perdoasse.

- Vamos -- disse baixinho aos que estavam em terra. - Vou precisar de ajuda.

Os frades mais próximos do camião entreolharam-se com incerteza. Depois, um por um, cinco homens subiram para o furgão.

Petride retirou o manto negro que cobria a arca. Sob este, o piedoso receptáculo achava-se envolvido pelo cartão espesso, pelas armações de madeira e pelos símbolos gravados de Xenope, idêntico a todos os outros engradados excepto nas dimensões e forma. Porém o invólucro era a única semelhança. Foram precisas seis espáduas vigorosas, aos empurrões e puxões, para o impelirem até à extremidade do camião e passá-lo para o vagão de mercadorias.

Assim que ocupou o seu lugar, recomeçou a actividade, que lembrava uma dança. Petride manteve-se no vagão de mercadorias, dispondo os engradados por forma a encobrirem o objecto sagrado, tornando-o um entre tantos. Nada de invulgar, nada que desse nas vistas.

O vagão de mercadorias ficou cheio. Petride cerrou as portas e enfiou o cadeado de ferro. Olhou para o mostrador luminoso do relógio: a operação durara ao todo oito minutos e trinta segundos.

Tinha de ser, imaginava, mas mesmo assim contrariava-o: os seus colegas sacerdotes ajoelharam em terra. Um jovem - mais jovem que ele, um vigoroso servo-croata que ainda mal deixara o noviciado - não se conteve. Enquanto as lágrimas lhe corriam pela face, o jovem padre encetou o cântico de Niccia. Os outros juntaram-se-lhe e Petride ajoelhou também, com as suas vestes de operário, escutando as palavras sagradas.

Mas sem as pronunciar. Não havia tempo! Acaso não percebiam?

Que estava a acontecer-lhe? Com o objectivo de libertar o espírito dos piedosos murmúrios, enfiou a mão por dentro da camisa e verificou a bolsa de couro que trazia presa ao peito. Dentro daquela achatada e desconfortável pasta de viagem estavam as ordens que o conduziriam ao longo de centenas de quilómetros de incerteza. Vinte e sete páginas soltas. A bolsa estava bem presa; as tiras cravavam-se-lhe na pele.

Terminada a oração, os sacerdotes de Xenope ergueram-se em silêncio. Petride postou-se em frente deles e um de cada vez aproximou-se dele, abraçou-o e estreitou-o com amor. O último foi o seu condutor, o amigo mais querido que tinha na ordem. As lágrimas que lhe marejavam o rebordo dos olhos e escorriam pelo rosto vigoroso diziam tudo quanto havia a dizer.

Os frades precipitaram-se de novo para os camiões; Petride correu para a frente do comboio e trepou para a cabina do maquinista. Fez um aceno ao irmão, que começou a accionar alavancas e a girar volantes. A noite encheu-se

de silvos rangentes de metal contra metal.

Daí a minutos, a composição de mercadorias deslocava-se a grande velocidade.

Começara a viagem. A viagem para a glória de um Deus todo-poderoso. Petride aferrou-se a uma barra de ferro que sobressaía da antepara de ferro.

Fechou os olhos e deixou que o martelar das vibrações e o vento impetuoso lhe entorpecessem os pensamentos. Os receios.

A seguir abriu os olhos - por breves instantes - e viu o irmão debruçado à janela, com a robusta mão direita no registo e o olhar fixo nos carris à sua frente.

«Annaxas, o Forte», era como toda a gente lhe chamava. Mas Annaxas era mais do que forte: era bom. Quando o pai morrera, fora Annaxas quem tinha ido para os depósitos - um robusto rapaz de treze anos - e trabalhara durante as longas e penosas horas que deixavam os adultos exaustos. O dinheiro que Annaxas levara para casa mantivera-os todos unidos, possibilitara aos irmãos e irmãs obterem os estudos possíveis. E um irmão alcançara mais. Não para a família, mas para a glória de Deus.

O Senhor Deus punha os homens à prova. Como agora estava a pôr.

Petride inclinou a cabeça e as palavras, com um rasto de fogo, sulcaram-lhe o cérebro e escaparam-se-lhe da boca, num murmúrio que não chegava a ser audível.

«Creio em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor, Jesus Cristo, nascido do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado...»

Chegaram ao desvio de Edessa; houve uma agulha accionada por mãos invisíveis, não autorizadas, e a composição de mercadorias proveniente de Salonica mergulhou na escuridão do norte. A polícia fronteiriça de Bitola estava tão ávida de notícias gregas como de subornos gregos. O conflito do porte alastrava velozmente e os exércitos de Hitler estavam tresloucados; os Balcãs seriam os próximos a tombar, toda a gente o dizia. E os instáveis italianos enchiam as piazzas, a ouvir os gritos de guerra vociferados pelo louco Mussolini e pelos seus pomposos fascisti. Por toda a parte não se falava noutra coisa que não fosse invasão.

Os eslavos aceitaram vários engradados de fruta - a fruta de Xenope era a melhor da Grécia - e desejaram a Annaxas melhor sorte do que julgavam que ele teria, especialmente dado que se dirigia para norte.

Durante a segunda noite desfilaram rapidamente até Mitrovica. A Ordem de Xenope tinha feito o seu trabalho: foi libertada uma via na qual não havia qualquer comboio previsto e a composição de mercadorias vinda de Salonica continuou para leste, na direcção de Serajevo, onde um homem saiu das sombras e falou com Petride.

- Daqui a doze minutos vai ser feita uma agulha na linha. Dirigir-se-ão para norte, rumo a Banja Luka. Durante o dia permanecerão nos depósitos. Estão cheios de gente. Serão contactados ao cair da noite.

Nos enxameados depósitos de mercadorias de Banja Luka, precisamente às seis e um quarto da tarde, aproximou-se deles um homem de fato-macaco.

- Fizeram um bom trabalho - disse ele a Petride. - De acordo com os horários que o expedidor tem afixados, vocês não existem.

Às seis e trinta e cinco foi dado um sinal; houve outra agulha accionada e o comboio de Salonica entrou na via para Zagrebe.

À meia-noite, nos tranquilos depósitos de Zagrebe, outro homem, surgindo de outras sombras, entregou a Petride um comprido sobrescrito de papel pardo.

- São documentos assinados pelo Ministro di Viaggio de Duce. Dizem que a vossa composição de mercadorias faz parte do Ferrovia de Veneza. É o orgulho de Mussolini: ninguém o detém seja para o que for. Aguardarão no depósito de

Sezana e apanharão o Ferrovia à saída de Trieste. Não terão problemas com as patrulhas fronteiriças de Monfalcone.

Três horas mais tarde, aguardavam na via de Sezana, com a enorme locomotiva em ponto-morto. Sentado nos degraus, Petride via Annaxas manipular as válvulas e alavancas.

- És extraordinário - disse, sincero no elogio.

- Não é grande talento - retorquiu Annaxas. - Não são precisos estudos: basta fazê-lo uma porção de vezes.

- Eu acho que é um talento extraordinário. Nunca seria capaz de o fazer. O irmão baixou os olhos para ele; o brilho das brasas derramava-se-lhe pelo

rosto graúdo, de olhos afastados, tão firme, vigoroso e suave. Era um autêntico touro, aquele irmão. Um homem às direitas.

- Serias capaz de fazer o que quer que fosse - disse desajeitadamente Annaxas. - Tens uma cabeça para pensamentos e palavras que deixa a minha a perder de vista.

- Que disparate! - riu-se Petride. -Já foi tempo em que me davas uma palmada nas costas e me dizias que tratasse das minhas tarefas com mais miolos.

- Eras jovem; isso foi há muitos anos. Cuidaste dos teus livros, foi o que fizeste. Era melhor que os depósitos de mercadorias; livraste-te deles.

- Apenas devido a ti, meu irmão.

- Repousa, Petride. Temos ambos de repousar.

Já não havia nada em comum entre eles, e a razão para que não houvesse residia na bondade e generosidade de Annaxas. O irmão mais velho tinha propiciado meios para o mais novo se libertar, evoluir para além daquele que o proporcionara... até não haver nada em comum. O que tornava a realidade insofrível era que Annaxas compreendia o abismo que actualmente existia entre ambos. Em Bitola e Banja Luka tinha igualmente insistido para repousarem, em vez de falar. Teriam pouco tempo para dormir depois de atravessarem a fronteira em Monfalcone. Em Itália não dormiriam mesmo nada.

O Senhor Deus punha à prova.

No silêncio reinante na cabina aberta, com o negro céu por cima e a terra sombria por baixo, com o esforço incessante da caldeira da máquina a encher a noite, Petride experimentou uma invulgar suspensão do pensamento e das sensações. A razão e os sentimentos relegados, como se estivesse a analisar as experiências de um outro, postado em algum plano elevado, olhando para baixo através de um vidro. principiou a meditar sobre o homem com quem se encontraria nos Alpes italianos. O homem que tinha fornecido à Ordem de Xenope os complicados horários dos transportes através do Norte de Itália. Os círculos dentro de círculos que iam alargando e conduziam inexoravelmente ao outro lado da fronteira da Suíça, de tal maneira que era impossível descobrir a pista.

O nome era Savarone Fontini-Cristi. A sua propriedade chamava-se Campo de Fiori. Os superiores de Xenope diziam que os Fontini-Cristi eram a familia mais poderosa de Itália a norte de Veneza. Muito possivelmente, a mais rica a norte de Roma. O poder e a riqueza eram indubitavelmente testemunhados pelas vinte e sete folhas separadas na bolsa de couro, que tão bem presa trazia à volta do peito. Quem, a não ser um homem extraordinariamente influente, poderia proporcioná-los? E como teriam os superiores chegado a ele? Por que meios? E por que razão prestaria um homem chamado Fontini-Cristi,

cujas origens haviam forçosamente de ser da Igreja Romana, semelhante auxílio à Ordem de Xenope?

As respostas a estas perguntas ultrapassavam-no, mas apesar disso as perguntas queimavam. Sabia o que se encontrava encerrado na arca de ferro que vinha no terceiro vagão de mercadorias. Era mais do que aquilo que os sacerdotes seus companheiros acreditavam.

Muitíssimo mais.

Os superiores tinham-lho dito, para que compreendesse. Era na realidade a mais sagrada das motivações compulsivas que lhe permitiriam fitar Deus nos olhos sem dúvida ou hesitação. E precisava dessa garantia.

Inconscientemente, enfiou a mão por debaixo da camisa grosseira e apalpou a bolsa. Tinha-se formado uma erupção à volta das tiras; sentia o inchaço e a superfície áspera e abrasiva da pele. Não tardaria a infectar. Mas não antes de os vinte e sete papéis surtirem o seu efeito. Depois já não tinha importância.

Repentinamente, a oitocentos metros de distância na via norte, viu-se o Ferrovia de Veneza desfilando velozmente, vindo de Trieste. O contacto de Sezana saiu precipitadamente da torre de controlo e ordenou-lhes que seguissem sem demora.

Annaxas aumentou a pressão e acelerou a locomotiva, em ponto-morto, o mais possível e precipitaram-se para norte atrás do Ferrovia em direcção a Monfalcone.

Os guardas da fronteira aceitaram o sobrescrito pardo e deram-no ao oficial que os comandava. Este gritou a plenos pulmões ao mudo Annaxas que pusesse rapidamente a máquina em marcha. Sigam! A composição de mercadorias fazia parte do Ferrovia! O maquinista não devia atrasar-se!

A loucura principiou em Legnago, quando Petride deu ao expedidor o primeiro dos papéis de Fontini-Cristi. O homem empalideceu e tornou-se o mais obsequioso dos funcionários públicos. O jovem sacerdote bem via o expedidor a sondar-lhe o olhar, tentando desvendar o nível de autoridade que Petride representava.

Porque a estratégia congeminada por Fontini-Cristi era brilhante. A sua força residia na simplicidade, no seu poder sobre homens baseado no medo: a ameaça de imediata retaliação por parte do Estado.

A composição de mercadorias grega não era nenhuma composição de mercadorias grega. Era um dos comboios de investigação altamente secretos enviados pelo Ministério dos Transportes de Roma, o inspector-geral da rede ferroviária italiana. Comboios destes sulcavam as vias por todo o país, guarnecidos por funcionários com ordens para examinar e apreciar todas as operações ferroviárias e apresentar relatórios que alguns diziam serem lidos pelo próprio Mussolini.

O mundo ironizava sobre os caminhos de ferro do Duce, mas por detrás do humor havia respeito. A rede ferroviária italiana era a melhor da Europa. Mantinha a sua supremacia pelo método veneravelmente antigo do estado fascista: classificações secretas de eficiência, compiladas por investigadores desconhecidos. A subsistência de um homem - ou a sua ausência - dependia dos juízos dos esaminatori. Suspensões, promoções e despedimentos eram muitas vezes o resultado de uns breves instantes de observação. Era evidente que, quando um esaminatore se identificava, lhe eram prestadas absoluta colaboração e confidencialidade.

A composição de mercadorias de Salónica era agora um comboio italiano

com a dissimulada sanção de Roma por escudo. Os seus movimentos estavam apenas sujeitos às autorizações constantes dos papéis fornecidos aos expedidores. E as ordens que essas autorizações continham eram suficientemente excêntricas para serem provenientes das tortuosas maquinações do próprio Duce.

Iniciou-se o sinuoso trajecto. As cidades e vilas iam desfilando - San Giorgio, Latisana, Motta di Levenza - à medida que o comboio de mercadorias de Salónica se metia nos carris atrás de vagões de bagagens e composições de passageiros italianos. Treviso, Montebelluna e Valdagno, depois para oeste, em direcção a Malcesine, no lago de Garda; atravessando a ampla extensão de água no vagaroso barco de transporte e logo para norte, direito a Breno e a Passo delia Presolana.

Apenas encontravam temerosa colaboração. Em todo o lado.

Ao alcançarem Como, terminaram as voltas e principiou a desfilada. Lançaram-se velozmente para norte pela rota de terra e inflectiram para sul, rumo a Lugano, seguindo o caminho traçado pelas fronteiras com a Suíça para sul e novamente para oeste até Santa Maria Maggiore e penetrando na Suíça em Sans Fee, onde o comboio de mercadorias de Salónica reassumiu a sua identidade com uma alteração de somenos importância.

Foi esta determinada pela vigésima segunda autorização na bolsa de Petride. Fontini-Cristi proporcionara uma vez mais a explicação simples: a Comissão de Ajuda Internacional Suíça em Genebra tinha dado autorização à Igreja do Oriente para atravessar as fronteiras e reabastecer o seu retiro nos arredores de Vai de Gressoney. Aquilo que estava inplícito era que as fronteiras não tardariam a fechar-se a esses comboios de reabastecimento. A guerra ganhava um ritmo tremendo; não tardaria que não houvesse comboios alguns dos Balcãs ou da Grécia.

A partir de Saas Fee, a composição de mercadorias deslizou para sul, até aos depósitos de Zermatt. Era de noite; aguardariam que os depósitos cessassem as operações e um homem que viria ao seu encontro a confirmar que outra agulha fora accionada. Fariam a incursão para sul penetrando nos Alpes italianos de Champoluc.

Quando faltavam dez minutos para as nove, um ferroviário surgiu ao longe, emergindo das sombras e recortando-se contra os depósitos de mercadorias de Zermatt. Percorreu as últimas centenas de metros em corrida e ergueu a voz.

- Depressa! A via está desimpedida até Champoluc. Não há tempo a perder! A agulha está feita para uma linha principal; pode ser localizada. Ponham-se a andar daqui!

Annaxas entregou-se mais uma vez à tarefa de libertar as enormes pressões desenvolvidas nas fornalhas da fuselagem de ferro e o comboio precipitou-se de novo na escuridão.

O sinal apareceria nos montes, bem alto, perto de um desfiladeiro alpino. Ninguém sabia precisamente onde.

Apenas Savarone Fontini-Cristi.

Caía uma ligeira neve, juntando a sua fina camada à cobertura de alabastro do solo iluminado pelo luar. Atravessaram túneis escavados na rocha, inflectindo para oeste em volta da orla dos montes, com as íngremes gargantas ameaçadoramente abaixo deles à direita. Estava muito mais frio. Petride não contara com isso; não pensara em temperaturas. Na neve e no gelo; e agora havia gelo nos carris.

Cada quilómetro que progrediam dir-se-ia dez, cada minuto que decorria parecia uma hora. O jovem sacerdote espreitou pelo pára-brisas, vendo o feixe do farol do comboio a reflectir-se na neve que caía. Debruçou-se para o exterior: só conseguia ver as gigantescas árvores que se erguiam nas trevas.

Onde estaria? Onde estava o padrone italiano, Fontini-Cristi? Talvez tivesse mudado de ideias. Oh, Deus misericordioso, não podia ser! Não podia permitir-se pensamentos desses. O que transportavam naquela arca sagrada precipitaria o mundo no caos. O italiano sabia-o; o Patriarcado depositava inteira confiança no padrone...

Petride tinha a cabeça a doer e latejavam-lhe as têmporas. Sentou-se nos degraus do tênder; tinha de dominar-se. Olhou para o mostrador luminoso do relógio. Deus misericordioso! Tinham ido longe de mais! Daí a meia hora teriam saído das montanhas!

- Ali tens o teu sinal! - gritou Annaxas.

Petride pôs-se em pé de um salto e debruçou-se a um dos lados, com o pulso descontrolado e as mãos a tremer ao agarrar-se à escada do tejadilho. Quatrocentos metros adiante na via, quando muito, alguém estava a levantar e baixar uma lanterna, cuja luz bruxuleava através das delgadas cortinas de neve.

Annaxas aplicou os travões à locomotiva. A máquina emitiu os seus rugidos como gigantesca fornalha a apagar-se que era. Ao longe, iluminado pela neve e pelo luar, com a ajuda do único farol da locomotiva, Petride viu um homem de pé ao lado de um veículo de estranhas formas, numa pequena clareira ao lado dos carris. O homem vestia roupas grossas, de gola e barrete de peles. O veículo era um camião e ao mesmo tempo não o era. As rodas traseiras eram muito maiores que as da frente, como se pertencessem a um tractor. Contudo, a capota do motor não era de camião, nem de tractor, pensou o sacerdote. Assemelhava-se a outra coisa.

Que seria?

Percebeu então, e não conseguiu deixar de sorrir. Nos últimos quatro dias tinha visto centenas de equipamentos daqueles. À frente da capota do motor do estranho veículo estava uma plataforma de carga de comando vertical.

Fontini-Cristi era tão pródigo em recursos como os frades da Ordem de Xenope. E a verdade é que a bolsa que trazia presa ao peito já lho dissera.

- É o sacerdote de Xenope? - A voz de Savarone Fontini-Cristi era profunda, aristocrática e muito acostumada à autoridade. Era um homem alto e esguio por debaixo das roupagens alpinas, de olhos grandes e penetrantes engastados nos traços aquilinos do rosto. E era muito mais velho do que Petride o julgara.

- Sou, sim, signore - disse Petride, apeando-se na neve.

- É muito jovem. Os santos homens confiaram-lhe uma responsabilidade aterradora.

- Eu falo a língua. Sei que aquilo que faço está certo. O padrone fitou-o.

- Tenho a certeza de que sabe. Que mais lhe resta?

- Não acredita?

O padrone respondeu simplesmente:

- Só acredito numa coisa, meu jovem padre. Há unicamente uma guerra que tem de ser travada. Não pode haver divisões entre os que combatem os fascistas. Aí tem a dimensão daquilo em que acredito. - Fontini-Cristi ergueu abruptamente os olhos para o comboio: - Venham. Não há tempo a perder.

Temos de regressar antes do romper do dia. Há roupa para si no tractor. Recolha-a. Eu dou as instruções ao maquinista.

- Ele não fala italiano.

- Eu falo grego. Depressa!

O tractor foi colocado junto à composição de mercadorias. Passaram-se correntes de accionamento lateral à volta da arca sagrada e o pesado contentor de ferro envolvido em ripas de madeira foi puxado, a gemer sob a tensão, para a plataforma. Depois amarraram-no com as correntes na parte dianteira, e apertaram-no com cintas bem retesadas passadas por cima.

Savarone Fontini-Cristi experimentou a amarração por todos os lados. Dando-se por satisfeito, postou-se um pouco atrás, com o feixe da lanterna a iluminar os símbolos monásticos gravados no invólucro.

- Com que então, passados mil e quinhentos anos, sai da terra. Apenas para ser devolvida à terra - disse baixinho Fontini-Cristi. - Terra, fogo e mar. Devia ter escolhido os dois últimos, meu jovem sacerdote. O fogo ou o mar.

- Não é essa a vontade de Deus.

- Ainda bem que a sua comunicação é tão directa. Vocês, religiosos, nunca param de me espantar com o vosso sentido do absoluto. - Fontini-Cristi virou-se para Annaxas e falou fluentemente em grego: - Pare, para eu poder desimpedir os carris. Há uma via estreita do outro lado do arvoredo. Estaremos de volta antes do alvorecer.

Annaxas fez um aceno afirmativo com a cabeça. Sentia-se pouco à vontade na presença de um homem como Fontini-Cristi.

- Sim, excelência.

- Não sou semelhante coisa. E você é um esplêndido maquinista.

- Obrigado. - Annaxas, embaraçado, encaminhou-se para a locomotiva.

- Aquele homem é seu irmão? - perguntou Fontini-Cristi em voz baixa a Petride.

- É.

- Ele não sabe?

O jovem sacerdote abanou a cabeça.

- Nesse caso vai precisar do seu Deus. - O italiano virou-se com rapidez e dirigiu-se ao lugar do condutor do tractor coberto. - Vamos, padre. Temos trabalho a fazer. Esta máquina foi construída para as avalanches. Levará o nosso carregamento aonde nenhum ser humano poderia transportá-lo.

Petride trepou para o assento. Fontini-Cristi pôs o potente motor em funcionamento e engrenou habilmente as mudanças. A plataforma na frente da capota do motor foi abaixada, facultando a visibilidade, e o veículo precipitou-se para a frente, vibrando ao atravessar os carris e internar-se na floresta alpina.

O sacerdote de Xenope recostou-se no assento e cerrou os olhos em oração. Fontini-Cristi manobrou a potente máquina através do arvoredo ascendente na direcção dos trilhos mais elevados das montanhas de Champoluc.

- Tenho dois filhos mais velhos que o senhor - disse Fontini-Cristi decorrido um bocado. E depois acrescentou: - Vou levá-lo ao túmulo de um judeu. Acho que vem a propósito.

Regressaram à clareira alpina quando o céu negro estava a tornar-se cin zento. Fontini-Cristi fitou Petride enquanto o jovem sacerdote se apoiava na estranha máquina.

- Sabe onde eu vivo. A minha casa é sua.

- Todos residimos na casa do Senhor, signore.

- Assim seja. Deus esteja consigo.

- Se Ele assim quiser.

O italiano pôs a alavanca das mudanças na posição e afastou-se rapidamente, descendo a estrada, que mal se via abaixo dos carris. Petride compreendeu. Agora Fontini-Cristi não podia perder um minuto. Cada hora que estivesse ausente da sua propriedade contribuiria para aumentar o número de perguntas que podiam ser formuladas. Havia muita gente em Itália que considerava os Fontini-Cristi inimigos do Estado.

Eram vigiados. Todos eles.

O jovem sacerdote correu pela neve em direcção à locomotiva. E ao irmão.

O alvorecer surgiu sobre as águas do lago Maggiore. Encontravam-se na barcaça de transporte de Stresa; o seu passaporte era a vigésima sexta autorização da bolsa. Petride perguntava a si próprio o que os esperaria em Milão, embora se apercebesse de que na verdade não importava.

Agora nada importava. A viagem estava a chegar ao fim.

O objecto sagrado estava no seu lugar de repouso. Para não mais ser desenterrado durante anos; talvez para se conservar sepultado um milénio. Não havia maneira de saber.

Deslizaram velozmente para sueste na via principal, passando por Varese, até Castiglione. Não esperaram pelo cair da noite... Agora nada importava. Nos arredores de Varese, Petride viu um letreiro na estrada sob o luminoso sol italiano.

Campo di Fiori. 20 kil.

Deus escolhera um homem de Campo di Fiori. O piedoso segredo pertencia agora a Fontini-Cristi.

A paisagem campestre desfilava; o ar estava claro, frio e alegre. O perfil de Milão tornou-se visível. A névoa do fumo de fábricas imiscuía-se no céu de Deus e mantinha-se suspensa como um liso encerado cinzento sobre o horizonte. A composição de mercadorias afrouxou e entrou na via dos desvios dos armazéns. Detiveram-se num sinal de paragem até que um indiferente spedizio-niere com a farda dos caminhos-de-ferro estatais apontou para uma curva nos carris onde um disco verde se erguia em frente de outro vermelho. Era o sinal para entrar nos depósitos de Milão.

- Chegámos! - gritou Annaxas. - Um dia de descanso, e depois o regresso! Tenho de dizer que vocês são extraordinários.

- Sim - disse simplesmente Petride. - Somos extraordinários.

O sacerdote olhou para o irmão. Os ruídos do depósito de mercadorias eram música para Annaxas; estava a cantar uma canção grega, com toda a parte superior do corpo a oscilar ritmicamente consoante os compassos rápidos e bem marcados da melodia.

Era estranha, a canção que Annaxas cantava. Não se tratava de uma canção dos caminhos-de-ferro; pertencia ao mar. Um cântico que era um dos preferidos dos pescadores de Thermaikos. Havia qualquer coisa de apropriado, pensou Petride, numa canção daquelas em semelhante momento.

O mar era a fonte de vida de Deus. Fora do mar que Ele criara a terra.

«Creio em um só Deus... criador de todas as coisas...»

O sacerdote de Xenope tirou a grande pistola italiana de dentro da camisa. Deu dois passos em frente, na direcção do seu amado irmão, e ergueu o cano da arma. Estava a centímetros da base do crânio de Annaxas.

«...visíveis e invisíveis... e em um só Senhor, Jesus Cristo... nascido do Pai...»

Premiu o gatilho.

A explosão invadiu a cabina. Sangue, carne, e coisas do mais terrível voaram pelos ares e formaram uma amálgama com o vidro e o metal.

«...consubstanciado ao Pai... Deus de Deus... luz de luz... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro...»

O sacerdote de Xenope fechou os olhos e gritou, em exaltação, segurando a arma de encontro à própria têmpora:

- «...gerado, não criado! Olharei nos olhos o Senhor e não vacilarei!»

Disparou.

 

29 de Dezembro de 1939 Milão, Itália

Savarone passou pela secretária do filho a caminho do gabinete deste e atravessou o chão coberto por uma grossa alcatifa, dirigindo-se à janela que dava para o extenso complexo fabril que eram as Indústrias Fontini-Cristi. Claro que o filho não se encontrava em parte alguma. O seu filho, o filho mais velho, raramente se encontrava no respectivo gabinete; aliás, raramente se encontrava em Milão. O primeiro filho, o herdeiro presuntivo de tudo quanto era Fontini-Cristi, era incorrigível. E arrogante, e demasiado preocupado com o seu próprio conforto material.

Vittorio era também brilhante. Um homem muito mais brilhante do que o pai, que o tinha instruído. E esse facto apenas servia para enfurecer mais ainda Savarone; um homem possuidor de tais dotes tinha maiores responsabilidades que os outros homens. Ele não se satisfazia com as realizações quotidianas que surgiam naturalmente. Não andava em pândegas, metido com prostitutas, no jogo da roleta e do bacará. Nem desperdiçava noites em claro com as nuas filhas do Mediterrâneo. Tão-pouco virava costas aos acontecimentos que mutilavam o seu país, arrastando-o para o caos.

Savarone ouviu um leve tossicar atrás de si e virou-se. A secretária particular de Vittorio entrara no gabinete.

- Deixei recado para o seu filho na Borsa Valori. Julgo que se ia encontrar esta manhã com o corretor.

- Você pode julgar que sim, mas duvido que encontre tal coisa na agenda dele. - Savarone viu que a rapariga corava. - Desculpe. Você não é responsável pelo meu filho. Embora provavelmente já o tenha feito, sugiro que experimente os números particulares que ele porventura lhe tenha dado. Este gabinete é-me familiar. Eu espero.

Despiu o sobretudo de pêlo de camelo claro e tirou o chapéu tirolês, de feltro verde, atirando-os para cima da cadeira de braços que estava ao lado da secretária.

- Com certeza. - A rapariga saiu rapidamente, fechando a porta atrás de si.

Era mesmo um gabinete familiar, pensou Fontini-Cristi, embora tivesse sido preciso chamar a atenção da rapariga para o facto. Até há dois anos, fora o seu. Actualmente, muito pouco restava da sua presença: apenas os lambris de madeira escura. Toda a mobília fora substituída. Vittorio aceitara as quatro paredes; nada mais.

Savarone instalou-se na ampla cadeira articulada atrás da secretária. Não gostava daquelas cadeiras: era demasiado velho para deixar o corpo rodopiar subitamente e ser projectado para trás por molas invisíveis e rolamentos de esferas ocultos. Meteu a mão no bolso e tirou de lá o telegrama que o trouxera de Campo di Fiori até Milão, o telegrama proveniente de Roma dizendo que os Fontini-Cristi estavam marcados.

Mas marcados para quê? Por quem? Por ordem de quem?

Perguntas estas que não podiam ser feitas pelo telefone, visto que o telefone era um instrumento do Estado. Sempre o Estado. Visível e invisível. Observando, seguindo, escutando, espiolhando. Não se podia utilizar nenhum telefone nem podia ser dada resposta alguma pelo informador de Roma que utilizava os códigos simples.

«Não obtivemos resposta de Milão, pelo que tomámos a liberdade de escrever-lhe pessoalmente. Cinco remessas de martelos-pilÕes defeituosos. Roma insiste na substituição imediata. Repito: imediata. Favor confirmar telefonicamente até ao fim do dia».

O número «cinco» referia-se aos Fontini-Cristi, pois eram ao todo cinco os homens da família: pai e quatro filhos. Qualquer coisa relacionada com a palavra «martelo» significava perigo súbito e extremo. A repetição da palavra «imediato» não carecia de explicação: não havia um instante a perder, tinha de confirmar-se telefonicamente a recepção para Roma minutos decorridos sobre a chegada do telegrama a Milão. Outros homens seriam então contactados, analisar-se-iam estratégias e estabelecer-se-iam planos. Agora era demasiado tarde.

O telegrama fora enviado a Savarone nessa tarde. Vittorio devia tê-lo recebido às onze. E contudo o filho não respondera a Roma nem o alertara para Campo di Fiori. O dia estava quase a chegar ao fim. Tarde de mais.

Era imperdoável. Havia homens que arriscavam diariamente a própria vida e a dos familiares na luta contra Mussolini.

Nem sempre assim fora, pensou Savarone, mantendo os olhos cravados na porta, à espera de que a secretária do filho aparecesse a qualquer momento com notícias do paradeiro de Vittorio. Em tempos tudo fora bem diferente. Ao princípio, os Fontini-Cristi tinham sancionado il Duce. O fraco e indeciso Emanuel 1 estava a deixar morrer a Itália. Benito Mussolini propunha uma alternativa; fora pessoalmente a Campo di Fiori encontrar-se com o patriarca dos Fontini-Cristi, procurando uma aliança - tal como Maquiavel outrora buscara apoio dos príncipes - e mostrara-se animado, empenhado e cheio de promessas para toda a Itália.

Isso fora dezasseis anos atrás; desde então Mussolini alimentara-se da sua própria retórica. Privara a nação do direito de pensar e as pessoas da liberdade de escolher; enganara os aristocratas: utilizara-se deles e renegara os seus objectivos comuns. Mergulhara o país numa guerra completamente inútil em África. Tudo para glória pessoal daquele Cesar Maximus. Saqueara a alma da Itália, e Savarone jurara detê-lo. Fontini-Cristi reunira os «príncipes» do Norte e, silenciosamente, a revolta estava a dar-se.

Mussolini não podia arriscar-se a um corte aberto com os Fontini-Cristi. A menos que a acusação de traição pudesse ser sustentada com tanta clareza que até os mais incondicionais apoiantes tivessem de concluir que haviam sido

 

1. Trata-se de Vítor Emanuel III, que apoiou o regime fascista, tendo Mussolini como primeiro-ministro. (N. do T.)

 

- no mínimo - estúpidos. A Itália estava a preparar-se para entrar ela própria na guerra alemã. Mussolini tinha de ser cauteloso. Aquela guerra não gozava de popularidade, e os Alemães menos ainda.

Campo di Fiori convertera-se no local de encontro dos descontentes. Os extensos hectares de relvados, florestas, colinas e cursos de água prestavam-se à natureza clandestina dos colóquios, que geralmente se efectuavam à noite. Mas nem sempre: havia outras reuniões que decorriam de dia, nas quais os homens mais jovens eram adestrados por outros homens com experiência nas artes de uma nova e estranha guerra: a da navalha, corda, corrente e foice. Tinham até inventado um nome para si próprios: partigiani. Os resistentes. Um termo que alastrava de nação em nação.

Eram estes os jogos da Itália, pensou Savarone. «Os jogos da Itália», era como o filho lhes chamava, denominação proferida com escárnio por um aristocrático arrogante e egocêntrico que só levava a sério os seus prazeres... Não, aquilo não era inteiramente verdade. Vittorio levava também a sério a administração da Fontini-Cristi, desde que as pressões do mercado se conformassem com os seus horários. E fazia com que assim acontecesse. Utilizava impiedosamente o seu poder financeiro e os seus conhecimentos - os conhecimentos que adquirira junto do pai - com arrogância.

O telefone tocou; Savarone sentiu-se tentado a atendê-lo, mas não o fez. O gabinete era do filho, e o telefone também. Ao invés, levantou-se da terrível cadeira e cruzou a sala até à porta. Abriu-a. A secretária estava a repetir um nome.

- ... Signore Tesca?

Savarone interrompeu de modo desabrido:

- É o Alfredo Tesca?

A rapariga acenou afirmativamente.

- Diga-lhe que não desligue. Eu falo com ele.

Savarone regressou rapidamente ao gabinete do filho e ao telefone. Alfredo Tesca era o capataz de uma das fábricas; além disso, era partigiano.

- Fontini-Cristi - disse Savarone.

- Padrone? Ainda bem que é o senhor. A linha está desimpedida; verificamo-la todos os dias.

- Nada muda. Apenas se acelera.

- Pois é, padrone. Há uma emergência. Chegou um homem de Roma por via aérea. Tem de se encontrar com alguém da sua família.

- Onde?

- Na casa do Olona.

- Quando?

- O mais depressa possível.

Savarone olhou para o sobretudo e para o chapéu que atirara para cima da cadeira.

- Tesca? Lembra-se de há dois anos? Do encontro no apartamento do Duomo?

- Lembro, sim, padrone. São quase seis horas. Estarei à sua espera.

Fontini-Cristi pousou o aparelho e pegou no sobretudo e no chapéu. Colocou-os e consultou o relógio de pulso. Eram cinco e quarenta e cinco; tinha de esperar uns minutos. O trajecto até à fábrica pelo pátio de cimento era curto. Tinha de fazer tempo por forma a entrar no edifício na altura da maior aglomeração de gente, correspondente à saída do turno de dia e à chegada ao trabalho do turno da noite.

O filho tinha tirado o máximo partido da máquina de guerra de Il Duce. As Indústrias Fontini-Cristi trabalhavam vinte e quatro horas por dia. Quando o pai admoestara o filho, este retorquira:

-Nós não fabricamos munições. Não estamos equipados para isso. A conversão seria demasiado dispendiosa. Limitamo-nos a tirar lucros, pai.

O seu filho. O mais capaz de todos eles tinha qualquer coisa de oco.

O olhar de Savarone virou-se para a fotografia com uma moldura de prata na secretária de Vittorio. A própria existência desta era uma ironia cruel que ele infligia a si próprio. O rosto da fotografia era o de uma mulher jovem, bonita, com os traços petulantes e obstinados de uma criança mimada a atingir uma maturidade igualmente mimada. Fora mulher de Vittorio. Havia dez anos.

Não fora um casamento bem sucedido. Tinha sido mais uma aliança industrial entre duas famílias imensamente ricas. E a noiva pouco trouxera à união: era uma mulher mal-humorada e comodista cuja perspectiva era orientada pelos haveres.

Morrera num desastre de automóvel em Monte Carlo, de manhã cedo, depois de os casinos fecharem. Vittorio nunca falava dessa manhãzinha: não era ele quem ia com a mulher. Era outro.

O filho tinha passado quatro anos de turbulento mal-estar com uma mulher que não suportava, e apesar disso conservava a sua fotografia na secretária. Passados dez anos. Savarone perguntara-lhe certa vez porquê.

- O facto de ser viúvo confere uma certa respeitabilidade ao meu modo de vida.

Faltavam sete minutos para as seis. Era tempo de principiar. Savarone saiu do gabinete do filho e falou com a secretária.

- Faça o favor de telefonar lá para baixo e mandar trazerem-me o carro de volta até ao portão oeste. Diga ao meu motorista que tenho um encontro no Duomo.

- Sim, senhor... Quer deixar algum número para onde o seu filho possa contactar consigo?

- Campo di Fiori. Mas à hora a que ele telefonar hei-de estar com certeza a dormir.

Savarone tomou o elevador particular para o andar térreo e saiu pela entrada dos executivos para o cimento. A trinta metros dali, o seu motorista encaminhava-se para a limosina com o brasão dos Fontini-Cristi nos painéis das portas. Houve uma troca de olhares entre os dois homens. O motorista fez um leve aceno: sabia o que fazer. Era partigiano.

Savarone atravessou o pátio, consciente de que havia pessoas a observá-lo. Era bom: era como se passara dois anos antes, quando a polícia de Il Duce vigiava todos os seus movimentos, tentando descobrir o paradeiro de uma célula antifascista. As sereias da fábrica soaram; o turno de dia acabava e daí a minutos o pátio e os corredores estariam apinhados de gente. Os operários que entravam - que deviam encontrar-se nos seus postos às seis e um quarto - cruzavam em magote o portão oeste.

Subiu os degraus para a entrada dos empregados e penetrou no corredor enxameado e barulhento, despindo o sobretudo e tirando o chapéu na confusão. Tesca estava junto da parede, a meio caminho das portas que conduziam aos vestiários dos trabalhadores. Era alto e esguio, muito à semelhança de

Savarone, e pegou-lhe no sobretudo e no chapéu, ajudando Fontini-Cristi a envergar a sua própria coçada gabardina com um jornal no bolso. Depois passou a Savarone um grande boné de pala, de fazenda. A troca consumou-se sem palavras no meio da multidão que se acotovelava. Tesca aceitou o auxílio de Savarone para vestir o sobretudo de pêlo de camelo; o patrão reparou que o empregado se dera ao trabalho - tal como fizera havia dois anos - de vestir umas calças passadas e uma camisa branca, com gravata, bem como sapatos engraxados.

O partigiano juntou-se ao fluxo de tráfego humano em direcção às portas de saída. Savarone seguiu-lhe no encalço a dez metros de distância e depois postou-se imóvel na plataforma pejada de gente à saída das portas constantemente a abrir, fingindo ler o jornal.

Viu aquilo que pretendia ver. O sobretudo de pêlo de camelo e o chapéu tirolês verde distinguiam-se no meio dos puídos blusões de couro e roupas amarrotadas dos operários. Dois homens na retaguarda da multidão fizeram sinal um ao outro e iniciaram a perseguição, abrindo caminho o melhor que podiam por entre a turba, num esforço para lhe ganharem terreno. Savarone enfiou-se na torrente de trabalhadores e alcançou o portão a tempo de ver a porta da limosina dos Fontini-Cristi a fechar-se e o enorme automóvel entrar no trânsito da Via di Sempione. Os dois perseguidores estavam no passeio; um Fiat cinzento encostou à berma e eles entraram.

O Fiat retomou a perseguição. Savarone meteu para norte e caminhou velozmente em direcção à paragem de autocarro na esquina.

A casa à beira do rio era uma relíquia que em tempos, talvez há uma década, tinha sido pintada de branco. Do exterior afigurava-se degradada, mas lá dentro, as divisões, pequenas, estavam asseadas e organizadas; eram locais de trabalho: um quartel-general antifascista.

Savarone entrou na sala cujas janelas davam para as sombrias águas do rio Olona, que a escuridão da noite tornava negras. Três homens ergueram-se de cadeiras de espaldar direito dispostas à volta de uma mesa e cumprimentaram-no cordial e respeitosamente. Dois eram seus conhecidos; quanto ao terceiro, pressupôs que devia ser o proveniente de Roma.

- Esta manhã foi enviado o código do martelo - disse Savarone. - Que significa?

- O senhor recebeu esse telegrama? - perguntou incredulamente o homem de Roma. - Todos os telegramas para Fontini-Cristi, em Milão, foram interceptados. É por isso que aqui estou. Todas as comunicações para as suas fábricas foram interrompidas.

- Recebi o meu em Campo di Fiori. Pela estação telegráfica de Varese, estou em crer, e não a de Milão. - Savarone sentiu um pequeno alívio por saber que o filho não desobedecera. - Tem informações?

- Nem todas, padrone- retorquiu o homem. - Mas o suficiente para saber que é extremamente grave. E está iminente. De repente, os militares tornaram-se preocupadíssimos com o movimento do norte. Os generais querem-no neutralizado; fazem tenção de desmascarar a sua família.

- Como quê?

- Como inimigos da nova Itália.

- Com que bases?

- Por efectuar reuniões com carácter de alta traição em Campo di Fiori.

Por espalhar mentiras contra o Estado; por tentar minar os objectivos de Roma e corromper o braço industrial do país.

- Palavras...

- Não obstante, querem dar um exemplo. Exigem-no, dizem.

- Que disparate! Roma não se atreveria a dar um passo contra nós com bases tão frágeis.

- O problema é esse, signore - disse o homem, hesitante. - Não é Roma. É Berlim.

- O quê?

- Os alemães estão em toda a parte, dando ordens a toda a gente. Consta que Berlim quer os Fontini-Cristi privados de influência.

- Não há dúvida de que eles têm os olhos postos no futuro, não é? - declarou um dos outros dois homens, um partigiano mais velho, que tinha ido até à janela.

- Como se propõem eles conseguir isso? - perguntou Savarone.

- Intervindo numa reunião em Campo di Fiori e obrigando os que lá estiverem a testemunhar as traições dos Fontini-Cristi. Estou em crer que seria menos difícil do que pensa.

- De acordo. É essa a razão pela qual temos sido cautelosos... Quando acontecerá isso? Tem alguma ideia?

- Parti de Roma ao meio-dia. Só posso presumir que a palavra de código «martelo» foi correctamente utilizada.

- Há uma reunião hoje à noite.

- Nesse caso o «martelo» foi apropriado. Cancele-a,padrone. É evidente que houve uma fuga.

- Vou precisar da sua ajuda. Vou dar-lhe nomes... Os nossos telefones não são seguros. - Fontini-Cristi começou a escrever num bloco de apontamentos com um lápis fornecido pelo terceiro partigiano.

- Para quando é que está marcada a reunião?

- Dez e meia. Há tempo suficiente - redarguiu Savarone.

- Espero bem que sim. Em Berlim são minuciosos. Fontini-Cristi parou de escrever e olhou para o homem.

- É estranho que diga semelhante coisa. Os alemães podem vociferar ordens à vontade no Campidoglio; não estão em Milão.

Os três resistentes trocaram olhares. Savarone percebeu que havia notícias que não lhe haviam chegado. O homem de Roma falou por fim.

- Como lhe disse, as nossas informações não são completas, mas sabemos determinadas coisas. O grau de interesse de Berlim, por exemplo. O alto comando alemão quer que a Itália se declare abertamente. Mussolini vacila; por muitas razões, a menor das quais não será a oposição de homens tão poderosos como o senhor... - O homem interrompeu-se; sentia-se inseguro. Não, aparentemente, das suas informações, mas de como transmiti-las.

- Aonde quer chegar?

- Dizem que o interesse de Berlim pelos Fontini-Cristi é inspirado pela Gestapo. São os nazis quem exige o exemplo, quem tenciona esmagar a oposição a Mussolini.

- Isso entendi eu. E daí?

- Têm pouca confiança em Roma, e nenhuma na província. O grupo de assalto será comandado por alemães.

- Um grupo de assalto alemão nos arredores de Milão?

O homem fez um aceno afirmativo.

Savarone pousou o lápis e ficou a olhar para o homem de Roma. Os seus pensamentos, porém, não iam para ele: iam para uma composição de mercadorias grega proveniente de Salónica com a qual se encontrara no alto das montanhas de Champoluc. Para o carregamento que esse comboio transportava: uma arca do Patriarcado de Constantino, presentemente enterrada no solo gelado das terras mais altas.

Parecia incrível, mas o incrível era lugar-comum nestes tempos de loucura. Teria Berlim sabido do comboio de Salónica? Teriam os alemães conhecimento da arca? Mãe de Cristo, era preciso evitar que eles o soubessem! Eles e todos - todos - os que eram como eles!

- Têm a certeza dessa informação?

- Temos.

Roma podia ser convencida, pensou Savarone. A Itália precisava das Indústrias Fontini-Cristi. Porém, se a intrusão alemã estivesse relacionada com a arca de Constantino, Berlim não teria minimamente em consideração as necessidades de Roma. A posse da arca era tudo. E, por conseguinte, a protecção da arca era essencial, a todo o custo. Acima de tudo, o segredo não podia cair nas mãos do inimigo. Nunca numa altura destas. Talvez nunca na vida, mas por certo que não numa altura destas.

A chave era Vittorio. Era sempre Vittorio, o mais capaz de todos eles. Porque, a despeito de tudo o mais, Vittorio era um Fontini-Cristi. Honraria o compromisso da família; ele estava à altura de Berlim. Tinha chegado a ocasião de pô-lo a par do comboio vindo de Salónica. De especificar as combinações da família com a ordem monástica de Xenope. A ocasião era a indicada, a estratégia estava consumada.

Uma data inscrita na pedra, gravada para um milénio, era apenas uma sugestão, uma pista em caso de uma repentina falha do coração, de morte por causas abruptas, naturais ou não. Não bastava.

Vittorio tinha de ser posto ao corrente, sobrecarregado com uma responsabilidade que excedia o que quer que fosse na sua imaginação. Os documentos de Constantino faziam tudo o mais empalidecer até à insignificância.

Savarone ergueu os olhos para os três homens.

- A reunião de hoje à noite vai ser cancelada. O grupo de assalto encontrará apenas uma grande reunião de família. Um jantar de festa. Todos os meus filhos e os filhos deles. No entanto, para estar completa, é preciso que o meu filho mais velho esteja em Campo di Fiori. Tentei toda a tarde telefonar-lhe. Agora têm de encontrá-lo. Usem os vossos telefones. Liguem para toda a gente em Milão se preciso for, mas encontrem-no! Para o caso de se fazer tarde, digam-lhe que use a estrada das cavalariças. Entrar com o grupo de assalto de nada lhe valeria.

 

28 de Dezembro de 1939 Lago de Como, Itália

O Hispano-Suiza branco, de doze cilindros, com a capota de couro quase branca meio recolhida para trás, deixando a descoberto o banco da frente, de couro vermelho, entrou na longa curva a alta velocidade. Em baixo, do lado esquerdo, ficavam as águas azuis-inverno do lago de Como, e do lado direito as montanhas da Lombardia.

- Vittorio! - gritou a rapariga ao lado do condutor, segurando o cabelo desgrenhado pelo vento com uma das mãos e a gola de potro russo com a outra. - Vou ficar toda despenteada, meu cordeiro!

O condutor sorriu, com os olhos semicerrados firmes na estrada que desfilava sob a luz do sol e as mãos a sentir destramente, quase delicadamente, a folga no volante de marfim.

- O Suiza é um carro muito melhor que o Alfa-Romeo. O Rolls britânico não se lhe compara.

- Não precisas de mo provar a mim, querido. Meu Deus, recuso-me a olhar para o velocímetro! E vou ficar numa perfeita desgraça!

- Óptimo. Se o teu marido estiver em Bellagio, não te reconhecerá. Apresentar-te-ei como uma prima de Verona que é uma tremenda doçura.

A rapariga riu-se:

- Se o meu marido estiver em Bellagio, há-de ter uma tremenda doçura de uma prima para nos apresentar a nós.

Riram-se ambos. A curva terminou, a estrada tornou-se rectilínea e a rapariga deslizou para junto do condutor. Introduziu a mão sob a manga do casaco de camurça bege, enchumaçada pela grossa lã da camisola de gola alta branca que ele trazia por baixo; por instantes, encostou o rosto ao ombro dele.

- Foste um amor em telefonar. Tinha mesmo de escapar-me.

- Eu sabia. Via-se nos teus olhos ontem à noite. Estavas morta de tédio.

- Bem, meu Deus, e tu não estavas? Que jantar enfadonho! Conversa, conversa e mais conversa! Guerra para aqui, guerra para acolá. Roma isto, Roma aquilo, Benito a toda a hora. Estou positivamente farta! Gstaad fechada! Saint-Moritz cheio de judeus a atirarem o dinheiro à cara de toda a gente! Monte Carlo um completo fiasco! Os casinos estão para fechar, sabes? Toda a gente o diz. É tudo uma destas maçadas!

O condutor deixou tombar a mão direita do volante e procurou a dobra do casaco da rapariga. Afastou a pele e acariciou o interior da coxa tão habilmente como manejava o volante de marfim. Ela gemeu de desejo e estendeu o pescoço, colando-lhe os lábios ao ouvido e aflorando-o com a língua.

- Continua com isso, que ainda acabamos dentro de água. Desconfio que

deve estar fria como o diabo.

- Quem começou foste tu, meu adorável Vittorio.

- Eu paro - disse ele sorrindo e voltando a colocar a mão no volante.

Há-de passar muito tempo até que possa comprar outro carro como este. Hoje em dia é tudo tanques. Os tanques dão muito menos proveito.

- Por favor! Nada de conversas da guerra.

- Daqui não ouvirás nenhuma - disse Fontini-Cristi, voltando a rir. - A menos que queiras negociar uma compra por parte de Roma. Vendo-te o que quiseres, desde correias de transporte até motocicletas e fardas.

- Vocês não fazem fardas.

- Somos donos de uma empresa que as faz.

- Tinha-me esquecido. Os Fontini-Cristi são donos de tudo a norte de Parma e a oeste de Pádua. Pelo menos, é o que diz o meu marido. Com bastante inveja, claro.

- O teu marido, o conde sonolento, é um homem de negócios terrível.

- Não o faz por querer.

Vittorio Fontini-Cristi sorriu ao travar o comprido automóvel branco antes de uma curva a descer na estrada que levava à margem do lago. A meio da descida, no promontório que era Bellagio, ficava a elegante Villa Lario, baptizada em honra do antigo poeta de Como. Tratava-se de um pavilhão de veraneio famoso tanto pela extraordinária beleza como pelo vincado carácter selecto.

Quando a elite se transferia para o norte, divertia-se em Villa Lario. Dinheiro e família eram os seus métodos de admissão. Os commess eram tímidos e falavam em voz baixa, conhecedores de todas as propensões da sua clientela e extremamente atentos à marcação das reservas. Era pouco vulgar um marido ou mulher, um amante ou uma amante receberem um telefonema abafado de alerta a sugerir outra data de chegada. Ou uma rápida partida.

O Hispano-Suiza flectiu para o parque de estacionamento de ladrilhos azuis; dois recepcionistas uniformizados saíram correndo da cabina aquecida para ambos os lados do automóvel, abrindo as portas e fazendo uma reverência.

O recepcionista do lado de Vittorio disse:

- Bem-vindo a Villa Lario, signore.

Nunca era «Muito prazer em vê-lo novamente, signore».

- Obrigado. Não trazemos bagagem. Passamos apenas o dia de hoje. Veja o óleo e a gasolina. O mecânico está por aí?

- Está, sim, senhor.

- Diga-lhe que verifique o alinhamento. Está com demasiada folga.

- Com certeza, signore.

Fontini-Cristi saiu do carro. Era um homem alto, com mais de um metro e oitenta. O cabelo liso, castanho-escuro, caía-lhe para a testa; os traços eram angulosos - tão aquilinos como os do pai - e os olhos, ainda semicerrados sob o sol radioso, eram ao mesmo tempo passivos e vigilantes. Passou pela frente da capota branca do motor, apalpando distraidamente a tampa do radiador, e sorriu para a companheira, a Condessa d'Avenzo. Caminharam juntos até aos degraus de pedra que levavam à entrada da Villa Lario.

- Aonde disseste aos criados que ias? - perguntou Fontini-Cristi.

- A Treviglio. És um adestrador de cavalos que me quer vender um cavalo árabe.

- Lembra-me de te comprar um.

- E tu? Que foi que disseste no escritório?

- Para dizer a verdade, nada. As únicas pessoas que poderiam perguntar por mim eram os meus irmãos; todos os outros esperam pacientemente.

- Mas os teus irmãos não. - A Contessa d'Avenzo sorriu. - Gosto disso. O importante Vittorio é perseguido nos negócios pelos irmãos.

- Nem por isso! Os meus ricos irmãos mais novos têm no conjunto três mulheres e onze filhos. Os problemas deles são sempre e continuamente domésticos. Às vezes penso que sou um árbitro. O que é estupendo: eles mantêm-se ocupados e longe dos negócios.

Postaram-se no terraço do exterior das portas envidraçadas que davam para o átrio de entrada da Villa Lario e contemplaram lá em baixo o enorme lago e do outro lado as montanhas, mais afastadas.

- É lindo - disse a condessa. - Marcaste um quarto?

- Uma suite. O apartamento sobre o telhado. A vista é magnífica. -Já ouvi falar. Nunca estive lá em cima.

- Não há muita gente que tenha estado.

- Presumo que o tenhas alugado ao mês.

- Para dizer a verdade, não é preciso - disse Fontini-Cristi, voltando-se para as enormes portas envidraçadas. - É que por acaso sou dono de Villa Lario, sabes?

A Contessa d'Avenzo riu-se. Entrou no átrio à frente de Vittorio.

- És um homem impossível, um amoral. Enriqueces à custa da tua própria casta. Meu Deus, serias capaz de fazer chantagem com metade da Itália!

- Apenas da nossa Itália, minha querida.

- Essa basta!

- Nem por isso. Mas nunca tive de fazê-lo, se é que isso te sossega o espírito. Sou pura e simplesmente um hóspede. Espera aqui, por favor.

Vittorio caminhou até à recepção. O empregado de smoking que estava atrás do balcão de mármore cumprímentou-o.

- A sua visita dá-nos muito prazer, Signore Fontini-Cristi.

- Vai tudo bem?

- Às mil maravilhas. Deseja por acaso...?

- Não, não desejo - interrompeu Vittorio. - Presumo que os meus aposentos estejam prontos.

- Evidentemente, signore. Tal como pediu, está a ser confeccionado um jantar cedo. Caviar do Irão, pato enformado frio, Veuve Cliquot de vinte e oito.

- E mais?

- Há flores, evidentemente. O massagista está preparado para cancelar todas as outras marcações.

- E mais...?

- Não há complicações para a Contessa d'Avenzo - respondeu o empregado pronta e rapidamente. - Não se encontra cá ninguém do seu círculo.

- Obrigado. - Fontini-Cristi fez meia volta, para logo ser detido pela voz do empregado.

- Signore?

- Sim?

- Bem sei que não quer ser incomodado a não ser em caso de emergência, mas telefonaram do seu escritório.

- Do meu escritório disseram que era uma emergência?

- Disseram que o seu pai andava a tentar localizá-lo.

- Isso não é nenhuma emergência. É uma veneta.

- Acho que no fim de contas é capaz de ser o tal cavalo árabe, meu cordeiro - devaneou a condessa em voz alta, deitada ao lado de Vittorio no leito de penas. Tinha o edredão arredado até à cintura nua. - És maravilhoso. E muitíssimo paciente.

- Mas não suficientemente paciente, penso eu - retorquiu Fontini-Cristi. Sentou-se na cama, apoiando-se no travesseiro e baixou os olhos para a rapariga; fumava um cigarro.

- Não suficientemente paciente - concordou a Contessa d'Avenzo, virando o rosto e sorrindo-lhe; - Porque não apagas esse cigarro?

- Já apago. Podes ter a certeza. Queres vinho?- Fez um gesto na direcção do balde de gelo em prata ao alcance do braço. Estava em cima de um tripé; uma garrafa aberta, envolvida por um guardanapo, estava mergulhada no gelo moído a derreter.

A condessa fitou-o, com a respiração acelerada.

- Serve tu o vinho. Eu bebo do meu.

Com movimentos rápidos e suaves, a rapariga virou-se e procurou com ambas as mãos por debaixo da macia colcha o baixo-ventre de Vittorio. Levantou as cobertas e meteu a cara por baixo delas, por cima de Vittorio. A colcha voltou a tombar, tapando-lhe a cabeça, ao mesmo tempo que os gemidos dele aumentavam de intensidade e o corpo se lhe contorcia.

Os empregados retiraram os pratos e levantaram a mesa e um commesso acendeu o lume na lareira e serviu aguardente.

- Foi um dia encantador - disse a Contessa d'Avenzo. - Podemos fazer isto com frequência?

- Acho que devíamos estabelecer um horário. De acordo com o teu calendário, claro.

- Claro. - A rapariga soltou uma risada gutural. - És um homem muito prático.

- Porque não? É mais fácil.

O telefone tocou. Vittorio deitou-lhe um olhar de relance, contrariado. Levantou-se da cadeira em frente da lareira e cruzou iradamente o aposento até à mesa-de-cabeceira. Levantou o aparelho e falou com rispidez:

- Está?

A voz do outro lado era vagamente familiar.

- Fala Tesca. Alfredo Tesca.

- Quem?

- Um dos capatazes das fábricas de Milão.

- É o quê? Como é que teve o atrevimento de me ligar para aqui? Como foi que obteve este número?

Tesca manteve-se calado por momentos.

- Ameacei de morte a sua secretária, jovem padrone. E tê-la-ia matado se ela não mo desse. Pode despedir-me amanhã. Sou seu capataz, mas antes do mais sou um panigiano.

- Está mesmo despedido. Já. A partir deste momento!

- Assim seja, signore.

- Não quero ter nada que ver...

- Basta! - gritou Tesca. - Não há tempo! Anda toda a gente à sua procura. O padrone corre perigo. Toda a sua família corre perigo! Vá a Campo di Fíori! Imediatamente! O seu pai diz para ir pela estrada das cavalariças.

O telefone emudeceu.

Savarone atravessou o imenso átrio, entrando na enorme sala de jantar de Campo di Fiori. Tudo estava como devia ser. A sala estava cheia de filhos e filhas, maridos e mulheres e uma multidão extremamente ruidosa de netos. Os criados tinham colocado travessas de prata de antipasto1 em cima das mesas de mármore. Um esguio pinheiro que chegava ao tecto alto era uma majestosa árvore de Natal, com a sua miríade de luzes e ornamentações cintilantes a encher a sala de reflexos coloridos, que fazia realçar as tapeçarias e a mobília entalhada.

Lá fora, no largo circular fronteiro aos degraus de mármore da entrada, estavam quatro automóveis iluminados pelos projectores que incidiam dos beirais. Podiam ser tomados por veículos absolutamente vulgares, que era o que Savarone pretendia. Porque, quando o grupo de assalto chegasse, tudo o que se lhe depararia seria uma inocente e festiva reunião de família. Um jantar de festa. Nada mais.

A não ser um patriarca de um dos mais poderosos clãs de Itália autoritariamente ofendido. O padrone dos Fontini-Cristi, que exigiria saber quem era o responsável por tão bárbara intrusão.

Só faltava Vittorio; e a sua presença era vital. Podiam suscitar-se perguntas que levassem a outras perguntas. O relutante Vittorio, que escarnecia do trabalho deles, podia tornar-se um injustificado alvo de suspeitas. Que espécie de jantar festivo de família seria sem a presença do filho mais velho, o herdeiro principal? Além disso, se Vittorio surgisse durante a intrusão, arrogantemente avesso - como era seu costume - a dar contas da sua pessoa a quem quer que fosse, poderia haver complicações. O filho recusava-se a reconhecer até que ponto, mas Roma estava mesmo debaixo da pata de Berlim.

Savarone fez um gesto na direcção do segundo mais velho, o sisudo António, que estava junto da mulher, enquanto esta admoestava um dos filhos do casal.

- Sim, pai?

- Vai às cavalariças. Fala com o Barzini. Diz-lhe que, se o Vittorio chegar durante a visita dos fascistas, deve dizer que o demoraram numa das fábricas.

- Posso telefonar-lhe para as cavalariças.

- Não. O Barzini está a envelhecer. Finge que não, mas anda a ficar surdo. Certifica-te de que ele compreende.

O segundo filho assentiu obedientemente. - Sim, com certeza, pai. Como queiras.

Que fora, santo nome de Deus, que o pai fizera? Que podia ele fazer que desse a Roma a confiança, a desculpa, para avançar abertamente contra a casa dos Fontini-Cristi?

Em italiano no original: «antepasto», «aperitivo». (N. do T.)

«Toda a sua família corre perigo».

Absurdo!

Mussolini fazia namoro aos industriais do Norte; precisava deles. Sabia que na sua maioria eram velhos e conservadores, arreigados nos seus hábitos, e que podia conseguir mais com mel do que com vinagre. Que importava que uns quantos Savarones se entregassem aos seus disparatados jogos? A sua época já passara.

Contudo, a verdade é que havia apenas um Savarone. Distinto e à parte de todos os outros homens. Tinha-se tornado, talvez, nessa coisa terrível que era um símbolo. Com os seus disparatados e amaldiçoados partigiani. Lunáticos de meia-tigela que corriam pelos campos e pelos bosques de Campo di Fiori a fingir que eram membros de alguma tribo primitiva a caçar tigres e leões assassinos.

Jesus! Crianças!

Bem, tudo aquilo havia de acabar. Padrone ou não, se o pai fora demasiado longe e os deixara mal colocados, haveria uma confrontação. Havia dois anos, esclarecera bem Savarone de que, quando tomasse as rédeas das Indústrias Fontini-Cristi, isso queria dizer que ficaria com todas elas nas mãos.

De repente, Vittorio recordou-se. Havia duas semanas, Savarone tinha ido a Zurique por uns dias. Pelo menos, dissera que ia a Zurique. Não ficara bem claro: ele, Vittorio, não estava a ouvir com grande atenção. Durante aqueles escassos dias, porém, fora inesperadamente necessário apor a assinatura do pai em diversos contratos. Tão necessário que telefonara para todos os hotéis de Zurique, tentando localizar Savarone. Não o encontrara em parte alguma. Ninguém o vira, e o pai não era pessoa que passasse facilmente despercebida.

Além disso, de regresso a Campo di Fiori, negara-se a dizer onde tinha estado. Fora enlouquecedoramente enigmático, dizendo ao filho que daí a uns dias explicaria tudo. Registar-se-ia um incidente em Monfalcone e, quando ele se desse, Vittorio seria posto ao corrente. Vittorio tinha de ser posto ao corrente.

De que diabo estaria o pai a falar? Qual incidente em Monfalcone? Porque havia de dizer-lhes respeito algo que se passasse em Monfalcone?

Absurdo!

Todavia, Zurique não era de modo nenhum absurdo. Os bancos ficavam em Zurique. Teria Savarone manipulado dinheiro em Zurique? Teria ele transferido grandes quantias da Itália para a Suíça? Presentemente havia leis específicas contra isso. Mussolini precisava de cada lira que pudesse guardar. E Deus bem sabia que a família tinha reservas suficientes em Berna e Genebra; não havia falta de capital Fontini-Cristi na Suíça.

Fosse o que fosse que Savarone fizera, seria o seu último gesto. Se o pai se votava a tal empenhamento político, que fosse arranjar prosélitos para qualquer outro lado. Para a América, porventura.

Vittorio abanou lentamente a cabeça, destroçado, ao meter o Hispano-Suiza na estrada que saía de Varese. Que estava para ali a pensar? Savarone era... Savarone. O chefe da casa dos Fontini-Cristi. Por maiores que fossem os dotes ou os conhecimentos do filho, não era ele o padrone.

«...ir pela estrada das cavalariças».

Qual era o objectivo de tal coisa? A estrada das cavalariças principiava no extremo norte da propriedade, a cinco quilómetros do portão leste. Não obstante, usá-la-ia; o pai devia ter qualquer razão para dar essa ordem. Sem dúvida tão improvável como os disparatados jogos a que se entregava, mas impunha-se uma superficial obediência filial: o filho ia ser muito firme com o pai.

Que acontecera em Zurique?

Passou o portão principal na estrada que saía de Varese e continuou até à estrada para oeste que se cruzava com ela cinco quilómetros adiante. Virou à esquerda e percorreu quase três quilómetros até ao portão norte, tornando a meter para norte em direcção a Campo di Fiori. As cavalariças ficavam a um quilómetro da entrada; a estrada era de terra. Era mais suave para os cavalos, pois era essa a estrada utilizada pelos cavaleiros para os campos e veredas a norte e oeste da floresta que ficava no centro de Campo di Fiori. A floresta atrás da grande casa que era atravessada pelo largo curso de água que corria das montanhas de norte.

À luz dos faróis viu a figura do velho Guido Barzini a acenar com os braços, fazendo-lhe sinal para que parasse. O encarquilhado Barzini era qualquer coisa: uma peça do inventário que passara toda a vida ao serviço da casa.

- Depressa, Signore Vittorio! - disse Barzini pela janela aberta. - Deixe o carro aqui. Já não há tempo.

- Tempo para quê?

- O padrone falou comigo ainda não há cinco minutos. Disse que, se o senhor entrasse agora, devia falar-lhe pelo telefone das cavalariças antes de se dirigir à casa. Já passa quase meia hora do tempo.

Vittorio olhou para o relógio do painel de instrumentos. Passavam vinte e oito minutos das dez.

- Que se passa?

- Depressa, signore! Por favor! Os fascisti!

- Quais fascisti?

- O padrone. Ele lhe dirá.

Fontini-Cristi apeou-se do carro e seguiu Barziní, descendo a calçada de pedra para a entrada das cavalariças. Era um compartimento de artigos de montar: havia freios, arreios, cabeções e objectos de couro ordenadamente pendurados nas paredes, cercando inúmeras placas e fitas, testemunhos da superioridade das cores dos Fontini-Cristi. Igualmente na parede estava o telefone que ligava as cavalariças à casa grande.

- Que se passa, pai? Faz alguma ideia de quem me telefonou para Bellagío?

- Basta! - regougou Savarone pelo telefone. - De um momento para o outro eles estarão aqui. Um grupo de assalto alemão.

- Alemães?

- Sim. Roma pensa que surpreenderão ospartigiani em plena reunião. Sair-lhes-á o tiro pela culatra, é evidente. Apenas se lhes deparará um simples e inocente jantar de família. Não te esqueças! Tínhamos um jantar de família marcado. Demoraram-te em Milão.

- Que têm os alemães a ver com Roma?

- Eu explico-te mais tarde. Não te esqueças é...

De repente, pelo telefone, Vittorio ouviu os ruídos de pneus a chiar e de motores potentes. Uma coluna de automóveis, vinda do portão leste, avançava velozmente em direcção à grande casa.

- Pai! - gritou Vittorio. - Isto tem alguma coisa que ver com a tua deslocação a Zurique?

Houve um silêncio ao telefone. Por fim, Savarone falou.

- Pode ser que tenha. Tens de permanecer onde estás...

- Que sucedeu? Que sucedeu em Zurique?

- Não foi Zurique. Foi Champoluc.

- O quê?

- Mais tarde! Tenho de voltar para junto dos outros. Fica onde estás! Onde não te vejam! Falaremos depois de eles se irem embora.

Vittorio ouviu o estalido. Virou-se para Barzini. O velho encarregado das cavalariças estava a esquadrinhar uma cómoda baixa cheia de freios e arreios desemparelhados; descobriu aquilo que procurava: uma pistola e um binóculo. Tirou-os de lá e deu-os a Vittorio.

- Venha! - disse, com ira nos olhos cansados. - Vamos observar. O padrone vai dar-lhes uma lição.

Correram pela estrada de terra abaixo, em direcção à casa e aos jardins que ficavam acima e atrás dela. Quando a terra batida passou a pavimentação, cortaram à esquerda e subiram o talude sobranceiro ao largo da entrada. Estavam na escuridão; toda a área em baixo se achava banhada pela luz dos projectores.

Três automóveis passaram à desfilada pela estrada do portão leste: veículos compridos, negros e potentes, cujos faróis emergiam da escuridão, abafados pelos projectores que inundavam a área de luz branca. Os carros entraram no largo, guinando para a esquerda dos outros automóveis e parando de súbito, equidistantes uns dos outros, defronte dos degraus de pedra que conduziam às grossas portas de carvalho da entrada principal.

Dos carros saltaram homens. Homens vestidos de igual, de fato preto e sobretudo preto; homens armados.

Armados!

Vittorio ficou a olhar à medida que os homens - sete, oito, nove - subiam correndo os degraus até à porta. Um homem alto na dianteira assumiu o comando; levantou a mão para os que vinham atrás, ordenando-lhes que flanqueassem as portas, quatro de cada lado. Puxou a corrente da campainha com a mão esquerda, enquanto com a direita empunhava a pistola à ilharga.

Vittorio levou o binóculo aos olhos. O rosto do homem estava voltado para a porta, mas a arma que ele tinha na mão surgiu no seu campo visual. Tratava-se de uma Luger alemã. Vittorio virou o binóculo para os que estavam de um e outro lado das portas.

As armas eram todas alemãs. Quatro Luger e quatro pistolas-metralhadoras Bergmunn MP 38.

Vittorio sentiu uma repentina convulsão no estômago e uma fogueira consumiu-lhe o espírito ao observar com incredulidade. Que tinha Roma permitido? Era inacreditável!

Assestou o binóculo sobre os três automóveis. Havia um homem no interior de cada um deles; achavam-se todos na penumbra, vendo-se-lhes somente a nuca pelo vidro traseiro. Vittorio concentrou-se no carro mais próximo, no homem que se encontrava dentro desse carro.

O homem mudou de posição no assento e olhou para trás, para o lado direito, incidindo-lhe a luz no cabelo. Tinha-o curto, grisalho, mas com uma mancha branca que nascia na testa. Havia nele qualquer coisa de familiar- a forma da cabeça, a malha branca no cabelo -, mas Vittorio não conseguia localizá-lo.

A porta da casa abriu-se; apareceu uma criada no limiar, que se sobressaltou ao ver o homem alto com a pistola. Vittorio cravou os olhos, enfurecido, na cena lá em baixo. Roma pagaria pelo insulto. O homem alto empurrou a criada para o lado e irrompeu pela porta adentro, seguido pelo grupo de oito homens, que empunhavam as armas à sua frente. A criada desapareceu na falange de corpos.

Roma havia de pagar caro!

Ouviram-se gritos provenientes do interior. Vittorio distinguiu o bramido do pai e as subsequentes objecções vociferadas pelos irmãos.

Ouviu-se um es trépido sonoro, um misto de vidro e madeira partidos. Vittorio deitou a mão à pistola que tinha no bolso e sentiu uma mão vigorosa a travar-lhe o pulso.

Era Barzini. O velho encarregado da cavalariça prendia a mão de Vittorio, mas estava a olhar por cima do seu ombro, fitando a cena que se desenrolava lá em baixo.

- Há demasiadas pistolas. Não vai resolver coisa nenhuma - disse simplesmente.

Ouviu-se outro estrépito lá em baixo, desta vez mais próximo. A almofada da esquerda da enorme porta dupla de carvalho tinha sido aberta de par em par e viam-se silhuetas a sair. As crianças primeiro, desconcertadas, algumas chorando de medo. Depois as mulheres, as suas irmãs e as mulheres dos irmãos. A seguir a mãe, de fronte desafiadora, com a criança mais jovem nos braços. Seguiam-se o pai e os irmãos, violentamente empurrados pelas armas empunhadas pelos homens de fato preto.

Foram reunidos no passeio do largo da entrada. A voz do pai bramava por sobre as outras, exigindo saber quem era o responsável pela afronta.

Mas a afronta ainda não principiara.

Quando tal aconteceu, o cérebro do Vittorio Fontiní-Cristi estalou. Foi ensurdecido por trovões e cegado por relâmpagos. Lançou-se para a frente, cada grama do corpo a tentar libertar a mão do aperto de Barzini, torcendo-se, revolvendo-se, tentando desesperadamente soltar o pescoço e o queixo do aperto estrangulador de Barzini.

Porque os homens de fato preto lá em baixo tinham aberto fogo. As mulheres arremessavam-se sobre os filhos, os irmãos precipitavam-se contra as armas que dilaceravam a noite com fogo e morte. Os gritos de terror, sofrimento e afronta cresceram sob a luz ofuscante do campo de execução. Ergueram-se ondulações de fumo; havia corpos que ficavam paralisados em pleno ar, suspensos de roupagens empapadas de sangue. Crianças eram cortadas ao meio, bocas e olhos arrebatados pelas balas. Pedaços de carne, crânios e intestinos eram projectados através dos turbilhões de névoa. Um corpo de criança explodiu nos braços da mãe. E Vittorio Fontini-Cristi continuava a ver-se incapaz de soltar-se, de seguir os seus próprios ditames.

Sentiu um peso morto a empurrá-lo para baixo e a seguir um repuxar arrebatador e sufocante do maxilar inferior, que lhe silenciou todo o som dos lábios.

Foi então que as palavras trespassaram a cacofonia de tiros e gritos humanos lá de baixo. A voz era medonha e o seu troar retalhado pelo fogo de pistolas-metralhadoras, mas não silenciado.

Era o pai. Gritando-lhe sobre os abismos de morte:

- Champoluc... Zurique é Champoluc... Zurique é o rio... Ckampoluuuc...

Vittorio rangeu os dentes de encontro aos dedos que tinha dentro da boca arrancando o maxilar da articulação. Com um sacão, libertou momentaneamente a mão - a mão que empunhava a pistola - e tentou erguê-la e disparar lá para baixo.

Mas de repente não conseguiu. O mar de opressão estava de novo sobre ele e tinha o pulso intoleravelmente torcido; a pistola soltou-se com um sacão, A mão enorme que lhe tinha aferrado o maxilar estava a empurrar-lhe o rosto contra a terra fria. Sentiu o sangue na boca, nos lábios, misturado com lama.

E o horrível grito vindo do vórtice de morte chegou-lhe mais uma vez aos ouvidos:

- Ckampoluc!

E logo foi silenciado.

 

30 de Dezembro de 1939

«Champoluc... Zurique é Champoluc... Zurique é o rio...»

As palavras eram gritos e a agonia tornava-as indistintas. Os olhos da sua mente estavam inundados de luz branca, explosões de fumo e profundos laivos rubros de sangue; os seus ouvidos captavam os gritos de sobressaltado abalo, de terror, da afronta perante a dor infinita e a terrível chacina.

Tinha acontecido. Ele fora testemunha do quadro da execução: homens fortes, crianças trémulas, esposas e mães. A sua.

Oh, meu Deus!

Vittorio torceu a cabeça e enterrou a cara no pano grosseiro da cama primitiva, com as lágrimas a correrem pela cara. Era tecido, e não a lama fria e áspera; tinha sido deslocado. A última coisa que recordava era a sua cara a ser comprimida com uma força enorme contra a dura terra do talude. Comprimida e furiosamente imobilizada, os olhos cegos, os lábios cheios de sangue morno e terra fria.

Com os ouvidos apenas por testemunhas da angústia.

«Champoluc!»

Mãe de Deus, tinha acontecido!

Os Fontini-Cristi haviam sido chacinados sob as luzes brancas de Campo dí Fiori. Todos os Fontini-Cristi menos um. E esse um obrigaria Roma a pagar. O último Fontini-Cristi retalharia, camada por camada, a carne do rosto de il Duce; a última coisa seriam os olhos: a lâmina havia de entrar lentamente.

- Vittorio. Vittorio.

Ouvia o seu nome e no entanto não o ouvia. Era um sussurro insistente, e os sussurros eram sonhos de angústia.

- Vittorio.

O peso estava novamente sobre os seus braços; o sussurro vinha de cima, na escuridão. O rosto de Guido Barzini estava a escassos centímetros do seu; os olhos tristes e vigorosos do encarregado das cavalariças reflectiam-se num raio de luz débil.

- Barzini? - foi tudo quanto conseguiu dizer.

- Desculpe-me. Não havia por onde escolher, não havia outro processo. Teria sido morto juntamente com os outros.

- Sim, eu sei. Executado. Mas porquê? Em nome de Deus, porquê?

- Os alemães. É tudo quanto sabemos de momento. Os alemães queriam os Fontini-Cristi mortos. Querem-no morto. Os portos, os aeroportos, as estradas, todo o Norte da Itália está sob vigilância.

- Roma permitiu-o. - Vittorio ainda sentia o sabor do sangue na boca.

ainda sentia a dor no maxilar.

- Roma cala-se - disse abafadamente Barzini. - Só uns quantos falam.

- Que dizem eles?

- O que os alemães querem que eles digam. Que os Fontini-Cristi eram traidores, mortos pela sua própria gente. Que a família estava a ajudar os franceses enviando armas e dinheiro para além-fronteiras.

- Absurdo.

- Roma é absurda. E está cheia de cobardes. O informador foi descoberto. Está pendurado pelos pés, nu, na Piazza del Duomo, com o corpo crivado de balas e a língua pregada à cabeça. Houve um partigiano que pôs um letreiro por baixo a dizer: «Este porco traiu a Itália: o seu sangue corre dos estigmas dos Fontini-Cristi».

Vittorio virou a cara. As imagens queimavam: o fumo branco sob a luz branca, os corpos suspensos, abruptamente imobilizados na morte, um milhar de súbitas manchas de espesso vermelho; a execução de crianças.

- Champoluc - segredou Vittorio Fontini-Cristi.

- Como disse?

- O meu pai. Quando estava a morrer, quando o tiroteio o destroçava, gritou o nome «Champoluc». Aconteceu qualquer coisa em Champoluc.

- Que quer isso dizer?

- Não sei. Champoluc fica nos Alpes, em plenas montanhas. «Zurique é Champoluc. Zurique é o rio», foi o que ele disse. Gritou-o ao morrer. Contudo, não há nenhum rio no Champoluc.

- Não posso ajudá-lo - disse Barzini, sentando-se na cama, com ansiedade nos olhos interrogadores e no acanhado esfregar das grandes mãos uma na outra. - Não há muito tempo para insistir nisso, ou para pensar. Agora não.

Vittorio ergueu os olhos para o enorme e embaraçado criado de lavoura sentado na borda da primitiva cama. Encontravam-se num quarto construído de pranchas de madeira grossa. Havia uma porta, apenas parcialmente aberta, a três ou quatro metros. Notou a ausência de janelas. Viam-se várias outras camas; não sabia dizer quantas. Tratava-se de uma camarata para trabalhadores.

- Onde estamos?

- Do outro lado do Maggiore, a sul de Baveno. Numa herdade de criação de cabras.

- Como viemos aqui parar?

- Foi uma viagem tremenda. Os homens da beira-rio tiraram-nos de lá de carro. Vieram ter connosco num automóvel veloz, à estrada a poente de Campo di Fiori. O partigiano de Roma sabe de remédios: deu-lhe uma injecção hipodérmica.

- Você carregou comigo desde a margem até à estrada de poente?

- Sim.

- É mais de um quilómetro e meio.

- Talvez. O senhor é forte, mas não é assim tão pesado. - Barzini pôs-se de pé.

- Salvou-me a vida. - Vittorio apoiou as mãos com força no cobertor grosseiro e ergueu-se até ficar sentado, com as costas contra a parede.

- Não é na própria morte que a pessoa encontra a vingança.

- Compreendo.

- Temos ambos de partir. O senhor para fora de Itália, eu para Campo di Fiori.

- Vai regressar?

- É lá que mais posso fazer de bem. De mal.

Fontini-Cristi fitou Barzini por um momento. Quão rapidamente o inimaginável se transformava na realidade prática! Quão rapidamente os homens reagiam barbaramente ao que era bárbaro; e quão necessária era essa reacção! Mas não havia tempo. Barzini tinha razão: a reflexão viria mais tarde.

- Há alguma maneira de eu sair do país? Você disse que todo o Norte da Itália estava sob vigilância.

- Todas as vias habituais. É uma caçada ao homem montada por Roma e dirigida pelos alemães. Há outras maneiras. Os britânicos vão ajudar, ao que consta.

- Os britânicos?

- É o que corre. Estiveram a noite inteira em rádios de partigiani.

- Os britânicos? Não compreendo.

O veículo era um velho camião agrícola com maus travões e a embraiagem a patinar, mas suficientemente robusto para o mau piso das estradas do interior. Não se comparava com as motocicletas ou os automóveis oficiais, mas era excelente para viajar de um ponto a outro na região rural: um camião mais transportando umas quantas cabeças de gado que sacolejavam irregularmente na caixa aberta de ripas.

Vittorio estava vestido, tal como o seu condutor, com a roupa suja, entranhada de estrume e manchada de suor de um trabalhador rural. Tinham-lhe arranjado um sebento e mutilado bilhete de identidade que lhe conferia o nome de Aldo Ravena, ex- soldato semplicé do Exército italiano. Podia pressupor-se que a sua instrução escolar era mínima; qualquer conversa que porventura tivesse com a polícia seria simples, rude e talvez um tudo-nada hostil.

Rolavam desde o alvorecer, para sudoeste, rumo a Turim, onde inflectiram para sueste, em direcção a Alba. Caso não houvesse interrupções de monta, alcançariam Alba ao cair da noite.

Num café da praça principal de Alba, San Giorno, estabeleceriam contacto com os britânicos: dois operacionais enviados pelo MI 6. A sua missão consistiria em conduzirem Fontini-Cristi até ao litoral, passando pelas patrulhas que vigiavam cada quilómetro da costa de Génova até San Remo. Pessoal italiano, eficiência alemã, soubera Vittorio.

Aquela zona da costa no golfo de Génova era considerada a mais propícia a infiltrações. Durante anos fora uma rota de abastecimento primordial para os contrabandistas corsos. Efectivamente o Urdo Corso reivindicava como suas as praias e as escarpas rochosas do oceano. Chamavam àquela costa a barriga mole da Europa; conheciam-na a palmo.

O que era óptimo, pela parte que tocava aos britânicos. Contratavam os corsos, cujos serviços eram postos à disposição de quem fizesse a melhor oferta. O Corso ajudaria Londres a fazer passar Fontini-Cristi pelas patrulhas

 

' Em italiano no original: «Soldado raso». (N.. do T.)

No original, «expresso bar», isto é, um café onde se serve essencialmente a típica bebida que lhe dá o nome. (N.. do T.)

 

e até ao mar, onde, num encontro prefixado a norte de Rogliano, na costa corsa, um submarino da Royal Navy viria à superfície e recolhê-lo-ia.

Foram estas as informações prestadas a Vittorio- pela ralé de lunáticos de que escarnecera como sendo crianças entregues a jogos primitivos. Os maltrapilhos e esgazeados loucos que haviam estabelecido uma indefensável aliança com homens como o seu pai tinham-lhe salvo a vida. Estavam a salvar-lhe a vida. Franzinos e rufiões camponeses que tinham comunicações directas com os longínquos britânicos... Longínquos, mas não tão distantes como tudo isso. Não mais distantes que Alba.

Como? Porquê? Que estavam os ingleses a fazer, santo nome de Deus? Por que razão o faziam? Que estavam a fazer homens que ele mal reconhecera, aos quais mal falara alguma vez na vida - a não ser para dar ordens e ignorá-los -, que estavam eles a fazer? E porquê? Ele não era um amigo; não seria porventura um inimigo, mas amigo é que não era.

Eram estas as perguntas que atemorizavam Vittorio Fontini-Cristi. Um pesadelo explodira em luz branca e morte, e ele não era capaz de compreender - mesmo que o quisesse - a sua própria sobrevivência.

Estavam a treze quilómetros de Alba, numa sinuosa estrada de terra que corria paralelamente à auto-estrada principal de Turim. O partigiano que conduzia estava fatigado, com os olhos injectados pelo longo dia de sol radioso. As sombras do entardecer começavam a pregar-lhe partidas à visão; doíam-lhe visivelmente as costas do esforço constante. Excepto as raras paragens para reabastecer, não se levantara do assento. O tempo era vital.

- Deixe-me conduzir um bocado.

- Estamos quase a chegar, signore. Não conhece a estrada, e eu conheço. Vamos entrar em Alba pelo lado oriental, pela auto-estrada de Canelli. Pode haver soldados na fronteira do município. Lembre-se do que deve dizer.

- O menos possível, penso eu.

O camião entrou no trânsito moderado da Via Canelli e manteve uma velocidade constante juntamente com os outros veículos. Tal como o condutor dissera, havia dois soldados na fronteira do município.

Por uma qualquer de dezenas de razões, o camião foi mandado parar. Saíram da estrada, encostando à berma de areia, e aguardaram. Um sargento aproximou-se da janela do condutor e uma praça postou-se laconicamente junto à de Fontini-Cristi.

- De onde é que vocês são? - perguntou o sargento.

- De uma herdade a sul de Baveno - respondeu o partigiano.

- Vêm lá de cascos de rolha para uma remessa tão pequena? Vejo aí apenas cinco cabras.

- Gado reprodutor. São animais melhores do que parecem. Dez mil liras os machos e oito mil as fêmeas.

O sargento ergueu o sobrolho. Não sorriu ao falar.

- Tu não pareces valer isso, paisan'. A tua identificação?

O resistente meteu a mão no bolso de trás e puxou de uma carteira coçada. Tirou de lá o bilhete de identidade e estendeu-o ao soldado.

- Aqui diz que és de Varallo.

- Sou natural de Varallo. Trabalho em Baveno.

 

' Existe a forma napolitana paisà, por paesatw, «patrício». (N. do T.)

 

- A sul de Baveno - corrigiu friamente o soldado.

- Tu! - disse o sargento, dirigindo-se a Vittorio. - A tua identificação. Fontini-Cristi enfiou a mão no blusão, passando ao lado da coronha da

pistola, e tirou o cartão. Estendeu-o ao condutor, o qual o passou ao soldado.

- Estiveste em África?

- Estive, sim, meu sargento - retorquiu Vittorio abruptamente.

- Que regimento?

Fontini-Cristi manteve-se calado. Não tinha resposta. Principiou a pensar a toda a velocidade, tentando recordar das notícias um número ou um nome.

- O Sétimo - respondeu.

- Estou a ver. - O sargento devolveu-lhe o cartão, e Vittorio respirou fundo. Mas o alívio foi de pouca dura. O soldado deitou a mão ao puxador da porta, baixou-o com um puxão e abriu a porta de rompante. - Saiam! Os dois!

- O quê? Porquê? - objectou o resistente com um queixume sonoro. - Temos de fazer a entrega até ao anoitecer! Já quase não temos tempo.

- Cá para fora. - O sargento tinha sacado o revólver do coldre de couro preto e apontava-o aos dois homens. Sobre a capota do motor, regougou a ordem à praça: - Tira-o cá para fora! Cobre-o!

Vittorio olhou para o condutor. O olhar do resistente disse-lhe que fizesse o que lhe mandavam. Mas que se mantivesse preparado para entrar em acção: o olhar do homem dizia-lhe também isso.

Fora do camião, na berma de areia, o sargento ordenou aos dois homens que se dirigissem para o posto da guarda, que ficava junto de um poste telefónico. Um fio de telefone pendia em arco de uma caixa dejunção e estava ligado ao telhado do pequeno cubículo; a porta, estreita, estava aberta.

Na Via Canelli o trânsito do crepúsculo era agora mais intenso; ou então parecia mais intenso a Fontini-Cristi. Havia sobretudo automóveis, com uma diminuta quantidade de camiões, que não deixavam de parecer-se com o camião agrícola que eles conduziam. Uma porção de condutores afrouxava perceptivelmente ao ver os dois soldados, de armas aperradas, escoltando os dois civis até ao posto da guarda. Depois aceleravam, ansiosos por se afastarem dali.

- Não têm o direito de nos deter - exclamou o resistente. - Não fizemos nada de ilegal. Não é nenhum crime ganhar a vida!

- É um crime prestar informações falsas, paisan.

- Nós não prestámos informações falsas! Somos trabalhadores de Baveno e, pela Mãe de Deus, é a pura verdade!

- Tem cuidado - disse sarcasticamente o soldado. - Olha que acrescentamos o sacrilégio às acusações. Lá para dentro!

O posto da guarda à beira da estrada parecia ainda mais pequeno do que se afigurava da Via Canelli. Não tinha mais de metro e meio de fundo, e talvez dois de comprimento. Quase não havia espaço para os quatro. E a expressão do olhar do resistente disse a Vittorio que a proximidade era uma vantagem.

- Revista-os - ordenou o sargento.

A praça pousou a espingarda no chão, com o cano para cima. O condutor resistente fez uma coisa estranha. Levantou os braços cruzados sobre o peito, preventivamente, por cima do casaco, como se fosse um acto consciente de desafio. Porém, o homem não estava armado; tinha-o esclarecido bem com Fontini-Cristi.

- Vocês vão-me roubar! - disse, mais alto do que era preciso, fazendo vibrar a choupana de madeira com as palavras. - Os soldados roubam!

- Não queremos saber das tuas liras para nada, paisan. Há carros na auto-estrada que dão mais nas vistas. Tira as mãos do casaco.

- Até em Roma se dão razões! Il Duce em pessoa diz que não se devem tratar assim os trabalhadores! Eu marcho com os guardas fascistas; o meu passageiro serviu em África!

«Que estava o homem a fazer?», pensou Vittorio. «Por que razão se comportava daquela maneira? Apenas irritaria os soldados».

- Estás a pôr a minha paciência à prova, sebentão! Andamos à procura de um homem do Maggiore. Todos os postos de estrada procuram esse homem. Vocês foram mandados parar porque a matrícula do vosso camião é do distrito de Maggiore... Levanta os braços!

- Baveno! Não é Maggiore! Nós somos de Baveno! Onde é que estão as mentiras?

O sargento olhou para Vittorio.

- Não há nenhum soldado que diga que esteve em África no Sétimo Regimento. Essa unidade ficou desonrada.

Mal o guarda do exército acabava, quando o resistente gritou a sua ordem:

- Agora, signore! Agarre o outro!

A mão do motorista baixou, descrevendo um arco, precipitando-se para o revólver que o sargento empunhava, a centímetros apenas do seu estômago. A brusquidão da atitude e o rugido demolidor da voz do resistente no acanhado cubículo tiveram o efeito de uma colisão inesperada. Vittorio não teve tempo de observar; só pôde fazer votos para que o seu companheiro soubesse o que estava a fazer. A praça tinha mergulhado para se apossar da espingarda, com a mão esquerda no cano e a direita a lançar-se à coronha. Fontini-Cristi arremessou todo o seu peso sobre o homem, lançando-o contra a parede, com ambas as mãos dos lados da cabeça da praça, esmagando-a de encontro à rija superfície de madeira. O boné da praça caiu; o sangue alastrou imediatamente por toda a extensão da raiz do couro cabeludo e escorreu pela cabeça do homem, que se abateu no solo.

Vittorio voltou-se. O sargento estava encurralado no canto da pequena casa da guarda, com o resistente por cima dele, a golpeá-lo repetidamente com a própria pistola. A cara do soldado era uma massa de carne dilacerada, de sangue e de pele rasgada.

- Depressa! - gritou o resistente quando o sargento tombou. - Traga o camião para a entrada! Mesmo para a entrada: enfie-o entre a estrada e o posto da guarda. Mantenha o motor a trabalhar.

- Muito bem - disse Fontini-Cristi, aturdido pela brutalidade e pelo desfecho da acção.

- E, signore! - exclamou o resistente, quando Vittorio tinha já um pé fora da porta.

- Sim?

- A sua arma, por favor. Deixe-me usá-la. Este armamento da tropa faz uma barulheira que parece um trovão.

Fontini-Cristi hesitou e a seguir sacou da arma e passou-a ao homem. Depois, o resistente estendeu a mão para o telefone de manivela da parede e arrancou-o.

Vittorio levou o camião para a frente do posto da guarda, com os pneus da

esquerda necessariamente sobre a superfície dura da auto-estrada; não havia espaço suficiente na berma para encostar deixando completamente a estrada. Fez votos para que os farolins traseiros fossem suficientemente potentes para os carros que passavam à desfilada - agora em muito maior número - verem o obstáculo e contornarem-no.

O resistente saiu da casa da guarda e falou pela janela.

- Acelere o motor, signore. Com tanta força e barulho quanto possa. Fontini-Cristi assim fez. O resistente regressou correndo ao posto da

guarda. Na mão direita empunhava a pistola de Vittorio.

Os dois disparos foram cavos e distintos: detonações abafadas que constituíram explosões súbitas e terríveis dentro dos sons do trânsito que passava impetuosamente e do motor em regime acelerado. Vittorio ficou a olhar, tendo como emoções um misto de respeitoso temor, medo e, inexplicavelmente, pesar. Tinha entrado num mundo de violência que não compreendia.

O resistente emergiu do posto da guarda, fechando a estreita porta atrás de si. Saltou para o camião, bateu com a porta do seu lado e fez um aceno de cabeça a Vittorio. Fontini-Cristi aguardou durante alguns momentos uma aberta no trânsito e depois aliviou a embraiagem. O velho camião avançou aos sacões.

- Há uma garagem na Via Monte que vai esconder o camião, pintá-lo e trocar as chapas de matrícula. Fica a menos de um quilómetro e meio da Piazza San Giorno. Vamos da garagem para lá a pé. Eu digo-lhe onde voltar.

O resistente estendeu a pistola a Vittorio.

- Obrigado - disse Fontini-Cristi, acanhadamente, ao enfiar a arma no bolso do blusão. - Matou-os?

- Claro - foi a resposta simples,

- Suponho que tinha de o fazer.

- Naturalmente. Quanto a si, estará em Inglaterra, signore. Eu, em Itália, podia ser identificado.

- Compreendo - respondeu Vittorio, com hesitação na voz.

- Não pretendo faltar-lhe ao respeito, Signore Fontini-Cristi, mas não me parece que compreenda mesmo. Para os senhores, de Campo di Fiori, tudo isto é novidade. Para nós não é novidade nenhuma. Há vinte anos que estamos em guerra; eu, por mim, há dez.

- Guerra?

- Sim. Quem é que pensa que dá instrução aos vossos partigiani?

- Que quer dizer com isso?

- Sou comunista, signore. Quem mostra aos poderosos, aos capitalistas Fontini-Cristi como lutar são comunistas.

O camião avançava velozmente; Vittorio segurava firmemente o volante, admirado mas estranhamente impassível perante as palavras do seu companheiro.

- Não sabia disso - respondeu.

- É singular, não é? - tornou o resistente. - Nunca ninguém perguntou.

 

28 de Dezembro de 1939 Alba, Itália

O café estava à cunha, as mesas cheias e as vozes soavam altas. Vittorio seguiu o resistente por entre a mole de mãos a gesticular e corpos que se afastavam relutantemente contra o balcão; mandaram vir café com Strega.

- Além - disse o resistente, indicando uma mesa ao canto com três operários sentados, cuja condição era testemunhada pelas roupas sujas e barba crescida. Havia uma cadeira vaga.

- Como é que sabe? Pensava que tínhamos ficado de encontrar-nos com dois homens, e não três. E britânicos. Além disso, não cabemos: só há uma cadeira.

- Olhe para o homem mais corpulento, à direita. A identificação está nos sapatos. Têm salpicos de tinta cor de laranja, não muitos, mas visíveis. Esse é que é o corso. Os outros dois são ingleses. Vá até lá e diga: «A nossa viagem correu sem novidade», e mais nada. O homem dos sapatos há-de levantar-se; ocupe o lugar dele.

- E você?

- Vou ter convosco daqui a um minuto. Tenho de falar com o corso. Vittorio fez o que o outro lhe dizia. O homem corpulento dos pingos de tinta

nos sapatos levantou-se, soltando um suspiro de incómodo; Fontini-Cristi sentou-se. O britânico que estava defronte dele falou: o seu italiano era gramaticalmente correcto, mas hesitante; tinha aprendido a língua, mas não a maneira de falar.

- Os nossos mais sentidos pêsames. Absolutamente horrível. Vamos levá-lo daqui.

- Obrigado. Não prefere falar inglês? Eu falo-o fluentemente.

- Óptimo - disse o segundo homem. - Não tínhamos a certeza. Tivemos pouco tempo para nos documentarmos a seu respeito. Enfiaram-nos esta manhã num avião em Lakenheath. Os corsos foram buscar-nos a Pietra Ligure.

- Aconteceu tudo muito depressa - disse Vittorio. - O choque ainda não passou.

- Nem vejo como poderia ter passado - disse o primeiro homem. - Mas ainda não estamos a salvo. Vai ter de conservar a cabeça no lugar. As nossas ordens são para garantirmos, sob palavra de honra, o seu regresso a Londres: não voltar sem o senhor, isso é ponto assente.

Vittorio olhou alternadamente para ambos os homens.

- Posso perguntar-lhes porquê? Compreendam, por favor, que estou agradecido, mas a vossa preocupação parece-me invulgar. Por que razão sou eu tão importante para os britânicos?

- Diabos nos levem se sabemos - retorquiu o segundo agente. - Mas o que lhe posso dizer é que ontem à noite andou tudo numa fona. Toda a noite. Estivemos desde a meia-noite até às quatro da manhã no Ministério da Aeronáutica. Todos os quadrantes dos rádios em todas as salas de operações brilhavam como doidos. Estamos a trabalhar com os corsos, sabe?

- Sim, já me disseram.

O resistente abriu caminho até à mesa por entre a multidão. Puxou uma cadeira vaga e sentou-se, com um copo de Strega na mão. A conversa prosseguiu em italiano.

- Tivemos um problema na estrada de Canelli. Um posto de controlo. Foi preciso suprimir dois guardas.

- Qual é o intervalo? - perguntou o agente à direita de Fontini-Cristi. Era um homem esguio, um tanto ou quanto mais enérgico que o parceiro. Ao ver a expressão intrigada do rosto de Vittorio, esclareceu: - Quanto tempo pensa ele que temos até ser dado o alarme.

- Meia-noite. Quando chegar o turno da meia-noite. Ninguém se rala com telefones que não respondem. O equipamento está constantemente a avariar.

- Bom trabalho - disse o agente do outro lado da mesa. Tinha uma cara mais cheia do que o compatriota; falava mais devagar, como se estivesse constantemente a escolher as palavras. - Imagino que é bolchevista.

- Sou, sim - respondeu o resistente, com a hostilidade a vir ao de cima.

- Não, não, por favor - aduziu o agente. - Eu gosto de trabalhar com a vossa gente. É muito meticulosa.

- O MI Seis é delicado.

- A propósito - disse o britânico à direita de Vittorio -: eu sou o «Maçã», e ele é o «Pêra».

- Sabemos quem o senhor é - disse «Pêra» a Fontini-Cristi.

- O meu nome não tem importância - disse o resistente com uma ligeira risada. - Eu não vou com vocês.

- Vamos tratar disso, sim? - «Maçã» estava ansioso, mas controlado ao ponto de ser reservado. - Da ida. Além disso, Londres quer estabelecer comunicações mais sólidas.

- Sabíamos que Londres havia de querê-lo.

Os três homens entregaram-se a uma conversa profissional que Vittorio achou extraordinária. Falavam de rotas, códigos e frequências de rádio como se estivessem a discutir cotações na Bolsa. Abordaram a necessidade de suprimir, aniquilar diversas pessoas em posições específicas - não homens, não seres humanos, mas factores que tinham de ser eliminados.

Que género de homens eram aqueles três? «Maçã», «Pêra», um bolchevista sem nome, apenas um bilhete de identidade falso. Homens que matavam sem raiva, sem remorso.

Pensou em Campo di Fiori. Sobre ofuscantes projectores brancos, tiroteio e morte. Ele agora podia matar, perversa, selvaticamente, mas não era capaz de falar da morte como aqueles homens falavam.

- ... arranjar-nos um arrastão conhecido das patrulhas costeiras. Compreende? - «Maçã» estava a falar com ele, mas ele não o escutara.

- Desculpe - disse Vittorio. - estava a pensar noutra coisa.

 

Em italiano no original: «seis». (A. do T.)

 

- Temos muito para andar - retrucou «Pêra». - Mais de oitenta quilómetros até à costa e a seguir um mínimo de três horas na água. Pode acontecer muita coisa.

- Procurarei manter-me mais atento.

- Faça melhor do que tentar - redarguiu «Maçã», num tom de irritação controlada. - Não sei o que fez o senhor aos Negócios Estrangeiros, mas o certo é que é um indivíduo de elevada prioridade. Se não o sacamos daqui, dão-nos cabo do canastro. Portanto, escute! Os corsos vão transportar-nos até à costa. Haverá quatro mudanças de veículos...

- Espere! - O resistente estendeu a mão sobre a mesa e agarrou o braço de «Maçã». - O homem que estava aqui sentado convosco, o dos sapatos salpicados de tinta: onde foi que o apanharam? Depressa.

- Aqui em Alba. Há uns vinte minutos.

- Quem foi que estabeleceu contacto primeiro?

Os dois ingleses olharam um para o outro. Fugazmente, com imediata preocupação.

- Foi ele - respondeu «Maçã».

- Ponham-se a andar daqui. Já! Usem a cozinha!

- O quê? - «Pêra» estava a olhar para o balcão do café.

- Vai a caminho da saída - disse o resistente. - Devia esperar por mim. O homem corpulento abria caminho por entre a turba até à porta. Fazia-o o

mais discretamente possível: dir-se-ia porventura um bebedor dirigindo-se aos lavabos.

- Que acha? -.- perguntou «Maçã».

- Acho que há uma boa quantidade de homens por Alba fora com tinta nos sapatos. Estão à espera de estrangeiros cujos olhos vagueiam pelo chão. - O comunista levantou-se da mesa. - O código de contacto foi furado. Acontece. Os corsos vão ter de mudá-lo. Agora, desandem!

Os dois ingleses levantaram-se das cadeiras sem quaisquer mostras de pressa. Vittorio aproveitou a deixa e pôs-se de pé. Estendeu a mão e tocou na manga do resistente. O comunista ficou espantado: tinha os olhos pregados no homem corpulento, que estava prestes a enfiar-se pelo meio da multidão.

- Quero agradecer-lhe.

O resistente fitou-o por um instante.

- Está a desperdiçar tempo - observou.

Os dois britânicos sabiam exactamente onde ficava a cozinha e, por conseguinte, a saída para onde dava a cozinha. O beco lá fora era imundo: havia latas de lixo em fila contra as paredes de estuque, com o entulho a transbordar. O beco fazia ligação entre a Piazza San Giorno e a rua traseira, mas tão mal iluminado e semeado de porcaria que as pessoas não o utilizavam.

- Por aqui - disse «Maçã», virando à esquerda, afastando-se da piazza. - Depressa, agora.

Os três homens abandonaram o beco em corrida. A rua estava suficientemente cheia de transeuntes e lojistas para lhes proporcionar cobertura. «Maçã» e Pêra» assumiram um passo descuidado; Vittorio seguiu-lhes o exemplo. Apercebeu-se de que os agentes se tinham disposto de maneira a enquadrá-lo.

- Não sei bem se o bolchevistazito teria razão - comentou «Pêra». - O nosso corso podia simplesmente ter visto um amigo. Foi tremendamente convincente.

- Os corsos têm a sua própria linguagem - interpôs Vittorio, pedindo desculpa quando por pouco não chocou com um transeunte que vinha em sentido contrário.

- Não poderia descobrir falando com ele?

- Não faça isso - disse incisivamente «Maçã»,

- O quê?

- Não seja tão tremendamente delicado. Não condiz lá muito com a maneira como está vestido. Para responder à sua pergunta, os corsos utilizam contactos regionais por toda a parte. Todos o fazemos. São de nível inferior, meros mensageiros.

- Estou a ver. - Fontini-Cristi olhou para o homem que se intitulava «Maçã». Caminhava descuidadamente, mas os olhos não paravam de perscrutar toda a rua envolta na noite. Vittorio virou a cabeça e fitou «Pêra». Estava a fazer precisamente o mesmo que o seu compatriota: observava os rostos na multidão, os recessos nos edifícios de cada um dos lados da rua.

- Aonde vamos? - perguntou Fontini-Cristi.

- Até um quarteirão de distância do local onde o nosso corso nos disse para estarmos - respondeu «Maçã».

- Mas pensava que vocês suspeitavam dele. Foi «Pêra» quem falou:

- Eles não nos verão porque não sabem o que procurar. O bolchevista vai apanhar o corso napiazza. Se tudo estiver em regra, chegarão juntos. Se não, e se o seu amigo for competente, será ele o único.

A zona das lojas flectia para a esquerda, em direcção à entrada sul da Piazza San Giorno. A entrada era assinalada por uma fonte, com a bacia circular da base emporcalhada de lixo de origem vária. Havia homens e mulheres sentados na borda a mergulhar as mãos na água suja; crianças gritavam e corriam nas pedras da calçada, sob o olhar vigilante dos pais.

- A estrada que fica para lá - disse «Maçã, acendendo um cigarro e fazendo um gesto na direcção do largo passeio que se via através do repuxo da fonte - é a Via Ligata. Leva à auto-estrada costeira. Duzentos metros abaixo fica uma rua lateral onde o corso disse que estaria um táxi à espera.

- Não será a rua lateral por acaso um beco sem saída? - «Pêra» formulou a pergunta com um certo desdém. Não esperava verdadeiramente uma resposta.

- Não é mesmo uma coincidência? Estava a pensar a mesma coisa. Vamos tirá-lo a limpo. O senhor - disse «Maçã», a Vittorio - fica com o meu parceiro e faz exactamente o que ele disser.

O agente atirou o fósforo para o chão, puxou uma grande baforada do cigarro e encaminhou-se rapidamente para a fonte. Quando se achou a uns metros da bacia, afrouxou e a seguir, para espanto de Vittorio, desapareceu, completamente perdido na multidão.

- Faz aquilo com bastante limpeza, não faz? - perguntou «Pêra».

- Não consigo distingui-lo. Não o vejo.

- Não está previsto que veja. Um bom corre-e-some, feito à luz devida, pode ser muito eficiente. - Encolheu os ombros: - Vamos andando. Mantenha-se ao meu lado e converse um bocado. E faça gestos. Vocês gesticulam como doidos.

Vittorio sorriu perante a banalidade do inglês. No entanto, à medida que avançavam para o interior da turba, tomou consciência de mãos a mexer, braços fustigando o ar e súbitas exclamações. O britânico conhecia os italianos. Conservou-se a par do agente, fascinado pelo espírito decidido do homem. De repente, «Pêra» apertou o braço a Vittorio e puxou-o para a esquerda, indo ambos em direcção a um espaço que vagara recentemente na borda do fontanário. Fontini-Cristi ficou surpreendido: pensava que o objectivo era alcançar a Via Ligata o mais rápida e discretamente possível.

Foi então que percebeu. Os olhos experientes e profissionais do britânico tinham visto aquilo que o amador não vira: o sinal.

Vittorio sentou-se do lado direito do agente, de cabeça baixa. Os primeiros objectos em que a sua vista se focou foram um par de sapatos estafados com salpicos de tinta cor de laranja no couro gasto. Um único par de sapatos imóveis nas sombras animadas de corpos em movimento. Depois Vittorio ergueu a cabeça e quedou-se paralisado. O resistente que servira de condutor amparava o corpo entroncado do contacto corso, como se estivesse a auxiliar um amigo que tivesse bebido de mais. Mas o contacto não estava bêbado. Tinha a cabeça tombada e os olhos abertos, cravados na escuridão móvel em baixo. Estava morto.

Vittorio recostou-se na borda da bacia, hipnotizado pelo que os seus olhos viam ali em baixo. Um fino e regular fio de sangue empapava as costas da camisa do corso, escorrendo pela pedra da parede interna do fontanário, misturando-se com a água e fazendo círculos e remoinhantes semicírculos sob a luz intermitente dos candeeiros da piazza.

A mão do resistente estava fincada no tecido, amarfanhando a camisa em volta da zona encharcada de sangue, com os nós dos dedos e o pulso ensopados. E tinha no punho o cabo de uma faca.

Fontini-Cristi procurou recuperar do abalo.

- Estava a fazer votos por que você parasse - disse o comunista ao inglês.

- Pouco faltou para que não parasse - retorquiu «Pêra», no seu italiano excessivamente gramatical. - Foi só quando vi aquele par levantar-se daqui. - O agente apontou para a borda onde ele e Vittorio estavam sentados. - São seus, imagino.

- Não. Quando vocês estavam mais perto, disse-lhes que o meu amigo estava à beira de vomitar. É uma cilada, claro. Do tipo rede de pesca: não sabem o que irão apanhar. Furaram o código; ontem à noite. Há para aí uma dúzia de provocatori1 na área, a obrigar a exporem-se quantos alvos podem. Uma batida.

- Nós dizemos aos corsos.

- Não servirá de grande coisa. O código muda amanhã.

- Nesse caso, o ardil é o táxi?

- Não. É o segundo engodo. Eles não estão a correr riscos. O táxi leva os alvos até à rede. A única pessoa que sabe onde fica é o motorista: está ao nível mais elevado.

- Deve haver outros próximos. - «Pêra» levou a mão à boca; era um gesto de reflexão.

- Com certeza.

- Mas quais?

- Há uma maneira de descobrir. Onde está o «Maçã»?

 

' Em italiano no original: «provocadores». (N. do T.)

 

- A estas horas, na Via Ligata. Quis que nos separássemos, para o caso de você ter problemas.

- Vão ter com ele. O problema não foi meu.

- Sim. Bem vejo...

- Mãe de Deus! - exclamou Vittorio em voz abafada, incapaz de manter silêncio. - Estão agarrados a um morto no meio da piazza e põem-se para aqui a tagarelar como mulheres!

- Temos coisas a dizer, signore. Esteja calado e escute. - O resistente volveu o olhar para o inglês, que quase não dera atenção à explosão de Fontini-Cristi. - Vou dar-lhe dois minutos para alcançar o «Maçã». Depois deixo o nosso amigo corso deslizar para o tanque, de costas para cima e com a faca à vista. Vai ser um pandemónio. Serei eu mesmo a iniciar a gritaria. Há-de ouvir-se longe. Será o bastante.

- E nós mantemos os olhos no táxi - interrompeu «Pêra».

- Sim. À medida que a gritaria for aumentando, veja quais as pessoas que falam uma com a outra. Veja quem é que sai para investigar.

- Depois apanhem o raio do táxi e ponham-se a mexer - acrescentou peremptoriamente o agente. - Saiu-se muito bem. Terei muito prazer em voltar a trabalhar consigo.

O britânico pôs-se de pé; Vittorio fez o mesmo, sentindo a mão de «Pêra» no braço.

- O senhor - disse o resistente, erguendo os olhos para Vittorio ao mesmo tempo que amparava o corpo frouxo e entroncado na escuridão ruidosa que se acotovelava, repleta de sombras. - Uma coisa a não esquecer. Uma conversa no meio de muita gente é na maioria das vezes a mais segura. E uma faca na multidão é o mais difícil de investigar. Não se esqueça destas coisas.

Vittorio baixou o olhar para o homem, sem saber bem se o comunista pretendia ou não que as palavras fossem ofensivas.

- Não me esquecerei - respondeu Vittorio.

Seguiram velozmente para a Via Ligata. «Maçã» encontrava-se do outro lado, a abrir lentamente caminho rumo à rua lateral onde o contacto corso dizia que o táxi estaria à espera. Os candeeiros eram mais mortiços que os da piazza.

- Agora, depressa. Lá está ele - anunciou «Pêra» em inglês. - Dê passadas largas, mas não corra.

- Não devíamos ir ter com ele? - inquiriu Vittorio.

- Não. Uma pessoa a atravessar a rua dá menos nas vistas que duas... Pronto. Pare agora..

«Pêra», tirou do bolso uma caixa de fósforos e riscou um. Assim que este se acendeu, apagou-o com uma sacudidela, arremessando-o para o passeio - como se a chama lhe houvesse queimado o dedo - e riscou imediatamente outro, levando-o ao cigarro que tinha posto nos lábios.

Tinham passado menos de dois minutos quando «Maçã» se lhes reuniu junto a um prédio. «Pêra» pô-lo a par da estratégia do resistente. Caminharam os três em silêncio, pelo meio dos transeuntes, percorrendo o passeio até ao fim do quarteirão fronteiro à rua lateral. Do outro lado, sob o débil clarão branco da luz dos candeeiros de iluminação pública, estava o táxi, a cem escassos metros da esquina.

- Não é mesmo uma coincidência? - comentou «Maçã», erguendo o pé contra uma saliência baixa do prédio e puxando a peúga para cima. - É um beco sem saída.

- As tropas não podem estar longe. Aplicou o silenciador?

- Sim. Monte o seu.

«Pêra» virou-se para o prédio e tirou uma automática do interior do blusão. Levou a outra mão ao bolso e extraiu um cilindro com cerca de dez centímetros de comprimento, crivado de perfurações na superfície do ferro, e enroscou-o no cano da arma. Voltou a meter a pistola no blusão, precisamente no momento em que se começou a ouvir gritos provenientes da piazza.

A princípio isolados, quase inaudíveis, depressa se tornaram num pandemónio:

«Polizia! «A quale punto polizia!»; «Assassínio!»; «Omicidío! Mulheres e crianças fugiam correndo da praça; seguiam-se-lhes homens gritando ordens e informações para ninguém e para toda a gente. Entre os gritos surgiram as palavras: «Uomo con arancia scarpe»2, um homem com sapatos cor de laranja. O resistente executara bem o seu trabalho.

A seguir surgiu o próprio resistente no meio da multidão, correndo pelo passeio. Parou a três metros de Fontini-Cristi e dos dois ingleses e berrou em voz alta para quem quer que ouvisse:

- Eu vi-o! Vi-os! Estava mesmo ao lado dele! Aquele homem... tinha os sapatos pintados... Cravaram-lhe uma faca nas costas!

Do sombrio recesso de um edifício, apareceu uma figura correndo pela rua, em direcção ao resistente.

- Você! Chegue aqui!

- O quê!

- Sou da Polícia. Que foi que você viu?

- A polícia. Graças a Deus! Venha comigo! Eram dois homens! De camisola...

Antes que o agente pudesse acertar o passo pelo dele, o resistente largou a correr por entre a turba de regresso à entrada da piazza. O polícia hesitou e a seguir olhou para a rua, frouxamente iluminada. Três homens caminhavam juntos uns metros à frente do táxi. O polícia gesticulou; dois dos homens separaram-se e precipitaram-se no encalço do polícia, que agora corria direito a San Giorno e ao resistente que desaparecia.

- O homem que ficou ao pé do carro. É o condutor - disse «Maçã». - Vamos a isto.

Os momentos que se seguiram foram como que uma névoa. Vittorio seguiu os dois agentes pela Via Ligata até à rua lateral. O homem junto ao táxi tinha-se instalado no lugar do condutor. «Maçã» abeirou-se do carro, abriu a porta e, sem dizer uma palavra, ergueu a pistola. Uma explosão abafada irrompeu da boca do revólver, e o homem tombou para diante; «Maçã» fê-lo rolar sobre o assento até à porta do outro lado. «Pêra» dirigiu-se a Fontini-Cristi:

- Lá para trás! Agora depressa!

 

«Maçã ligou a ignição; o táxi era velho, mas o motor novo e potente.

1. Em italiano no original. Embora um tanto estropiado, parece corresponder a: «Polícia»; «Polícia àquele sítio!»; «Assassínio!»; «Homicídio!». (N. do T.)

' Em italiano no original, todavia com a particularidade de o autor, sem dúvida familiarizado com a construção inglesa, colocar erradamente o adjectivo antes do substantivo. A frase correcta seria Uomo con scarpe arancia. (N. do T.)

 

A marca do automóvel era a trivial Fiat, pensou Víttorio, mas o motor era um Lamborghini.

O carro precipitou-se em frente, virou à direita na esquina e ganhou velocidade na Via Ligata. «Maçã» falou por cima do ombro, dirigindo-se a Pêra»:

- Verifica aí no compartimento das luvas, sim? Este raio desta geringonça pertence a gente muito importante. Iria jurar que não se portaria nada mal em Le Mans.

«Pêra» debruçou-se no assento do carro à desfilada, sobre o encosto de feltro e do cadáver do italiano. Abriu a portinhola do compartimento das luvas e pegou nos documentos, segurando-os num maço na mão. Quando fazia pressão no painel dos instrumentos para regressar ao assento, o carro guinou: «Maçã», tinha virado o volante a fim de ultrapassar dois automóveis. O corpo do italiano morto caiu por cima do braço de «Pêra», que lhe agarrou no pescoço e arremessou violentamente o cadáver de novo para o canto.

Vittorio contemplou a cena embasbacado, com repugnância e incompreensão. Atrás deles, um homem encorpado flutuava sem vida num fontanário da piazza, com o cabo de uma faca a sair da camisa empapada de sangue. Ali, num carro da polícia sem identificação, lançado a toda a velocidade e dissimulado de táxi, estava um homem tombado no banco da frente, com uma bala no corpo inanimado. A quilómetros dali, num pequeno posto da guarda da Via Canelli, jaziam outros dois homens sem vida, mortos pelo comunista que lhe salvara a vida. O pesadelo constante estava a aniquilar-lhe a mente. Susteve a respiração, tentando desesperadamente encontrar um instante de sanidade.

- Ora aqui está! - exclamou «Pêra», brandindo uma folha rectangular de papel grosso que estivera a examinar à débil luz. - Meu Deus, é uma autêntica porta aberta!

- Um salvo-conduto interno, espero bem - disse «Maçã», afrouxando à aproximação de uma curva da estrada.

- É mesmo! O diabo do veícolo está distribuído ao ufficiale segreto. Essa malta tem acesso ao próprio Mussolini.

- Tinha de ser qualquer coisa assim - concordou «Maçã», acenando com a cabeça. - O motor que esta chocolateira tem dentro é uma autêntica maravilha.

- É um Lamborghini - disse Vittorio em voz baixa.

- O quê? - «Maçã» levantou a voz a fim de fazer-se ouvir sobre o rugido do motor na estrada, agora em linha recta. Aproximavam-se os arredores de Alba.

- Disse que é um Lamborghini.

- Sim - retorquiu «Maçã», manifestamente desconhecedor do motor. - Bem, continue a sair-se com coisas desse género. Coisas em italiano, quero eu dizer. Vamos precisar das suas palavras antes de chegarmos ao litoral.

«Pêra» virou-se para Fontini-Cristi. O rosto simpático do inglês mal se distinguia na escuridão. Falou com suavidade, mas a calma insistência da sua voz era inconfundível.

- Estou certo de que tudo isto é muito estranho para si e estou em crer que

 

1 Aqui como mais adiante, incorrectamente grafado Lamborgini. (N. do T.)

 

2 Em italiano no original. Provavelmente o autor pretende com a expressão (à letra, oficial secreto), designar um serviço secreto. (N. do T.)

 

tremendamente desagradável. Mas aquele bolchevista tinha razão. A parte mais difícil deste trabalho não é o fazer: é a pessoa habituar-se a fazê-lo se é que me faço entender. Aceitar que o facto é real, esse é que é o empurrão de que um fulano precisa. Todos nós passámos por isso. É tudo tremendamente revoltante, de certo modo. Mas alguém tem de fazê-lo; é o que nos dizem a nós. E eu sempre lhe direi uma coisa: está a ter um treino em acção bem prático. Não concorda?

- Sim - disse baixinho Vittorio, virando-se para a frente, com os olhos hipnotizados pela estrada que ia desfilando, delineada pelos feixes dos faróis, e a mente paralisada pela súbita pergunta que não conseguia evitar: treino para o quê?

 

31 de Dezembro de 1939 Celle Ligure, Itália

Foram duas horas de loucura. Abandonaram a auto-estrada costeira e transportaram o corpo do motorista para um campo, despindo-o por completo e retirando toda a identificação.

Voltaram à auto-estrada e avançaram velozmente para sul, em direcção a Savona. Os controlos de estrada eram semelhantes aos da Via Canelli: postos de guarda simples ao lado de cabinas telefónicas, com dois soldados de serviço em cada um. Havia quatro postos de controlo; três foram passados com facilidade. O grosso documento oficial que proclamava o veículo como atribuído ao ufficiale segreto era lido com respeito e não pouco temor. Em qualquer dos três postos, foi Fontini-Cristi quem se encarregou das despesas da conversa.

- O senhor é rápido como o diabo - disse «Maçã» lá da frente, abanando a cabeça de comprazida surpresa. - E tinha razão quanto ao ficar aí atrás. Abre essa janela como um príncipe do Penjabe.

O letreiro da estrada revelou-se sob a luz dos faróis.

Entrare Montenotte Sud!

Vittorio reconheceu o nome: era uma daquelas cidades de dimensão média que circundavam o golfo de Génova. Conhecia-a de uma década atrás, quando ele e a mulher tinham percorrido a estrada litoral na sua última viagem a Monte Carlo. Uma jornada que havia culminado uma semana depois em morte. Num automóvel lançado em plena noite.

- A costa fica a cerca de vinte e cinco quilómetros daqui, julgo eu - disse «Maçã», de modo hesitante, interrompendo os pensamentos de Fontini-Cristi.

- Mais para os treze - emendou Vittorio.

- Conhece esta zona? - perguntou «Pêra».

- Fui várias vezes a Cap Ferrat e Villefranche. - «Por que razão não dizia Monte Carlo? Seria que o nome constituía um símbolo?» - Normalmente pela estrada de Turim, mas muitas vezes pela estrada interior que vem de Génova. Montenotte Sud é conhecida pelas suas pousadas.

- Sendo assim, conhece por acaso uma estrada de terra que vai do norte de Savona (pelo meio de uns montes, ao que sei) a Celle Ligure?

- Não. Montes, há-os por todo o lado... Mas conheço Celle Ligure. Fica à

 

1 Sic. A forma correcta seria Entrate Montenotte Sud, ou seja: «Estão a entrar em Montenotte Sud». (N. do T.)

 

beira-mar, logo a seguir a Albisolla. É para lá que vamos?

- É - respondeu «Maçã». - É o nosso ponto de encontro de recurso com os corsos. Caso acontecesse alguma coisa, ficámos de ir até Celle Ligure, a um porto de pesca que fica a sul da marina. Há-de estar assinalado por uma manga de vento verde.

- Bem, alguma coisa, como eles dizem, aconteceu mesmo - interpôs «Pêra». - Tenho a certeza de que há um corso a deambular por Alba perguntando a si mesmo onde estaremos.

Alguns metros adiante, sob o clarão dos faróis, estavam dois militares postados no meio da estrada. Um tinha uma espingarda cruzada à frente do corpo; o outro levantava a mão, fazendo-lhes sinal de paragem. «Maçã» abrandou o andamento do Fiat, obrigando o motor a soltar os sons abafados da potência a ser reduzida.

- Faça o seu papel de grande senhor - disse para Vittorio. - Seja arrogante como o caraças!

O britânico manteve o carro no meio da estrada, sinal de que os ocupantes não esperavam qualquer interrupção: era escusado encostar à berma.

Um dos militares era um tenente, e o companheiro um cabo. O oficial aproximou-se da janela aberta de «Maçã» e fez uma elegante continência ao desleixado civil.

Demasiado elegante, pensou Vittorio.

- A sua identificação, signore - disse cortesmente o militar. Demasiado cortesmente.

«Maçã» ergueu o grosso documento oficial e gesticulou na direcção do desleixado civil. Era a deixa de Vittorio.

- Somos o uficiale segreto, divisão de Génova, e vamos cheios de pressa. Temos trabalho a fazer em Savona. Já fez o seu trabalho; deixe-nos passar imediatamente.

- As minhas desculpas signore. - O oficial pegou no grosso papel na mão de «Maçã» e examinou-o detidamente. Franzia as rugas à medida que os olhos iam esquadrinhando o papel à luz debilíssima. Continuou delicadamente: - Tenho de ver a vossa identificação. Há pouquíssimo trânsito na estrada a esta hora. Todos os veículos têm de ser controlados.

Com súbita irritação, Fontini-Cristi desferiu um murro no cimo do encosto do banco dianteiro:

- Você está a exorbitar! Não se deixe iludir pela nossa aparência. Encontramo-nos em serviço oficial e estamos atrasados para Savona!

- Sim. Bem, tenho de ler isto...

Mas não estava a lê-lo, reflectiu Vittorio. Um homem com luz inadequada não dobrava uma folha de papel para si; se acaso a dobrasse, seria para fora - a fim de apanhar mais luz. O militar estava a ganhar tempo. Quanto ao cabo, tinha-se deslocado para a parte dianteira do Fiat, com a espingarda ainda em diagonal contra o peito, mas com a mão esquerda a segurar o cano mais abaixo. Qualquer caçador conhecia a postura: estava pronto a disparar.

Fontini-Cristi recostou-se no assento, praguejando furiosamente ao fazê-lo.

- Exijo o seu nome e o do seu comandante!

Na parte da frente, «Maçã» tinha deslocado sub-repticiamente os ombros para a direita, tentando ver pelo retrovisor, incapacitado de o fazer sem se tornar evidente. Na sua fingida ira, porém, Fontini-Cristi não experimentava semelhante dificuldade. Levantou a mão num gesto brusco atrás dos ombros

de «Pêra», como se a irritação houvesse atingido o ponto de ruptura.

- Talvez não me tenha ouvido, militar! O seu nome e o do seu comandante!

Viu-o pelo espelho retrovisor. Bastante longe, para lá do alcance nítido do espelho, não se distinguindo facilmente sequer pelo vidro. Um carro saíra da estrada, metendo para a berma... tanto, que se encontrava meio enfiado no campo que ladeava a auto-estrada. Dois homens apeavam-se dos assentos dianteiros, mal se lhes distinguindo as figuras, que se moviam lentamente.

- ... Marchetti, signore. O meu comandante é o coronel Balbo. Regimento de Génova, signore.

Vittorio captou a expressão de «Maçã» no retrovisor, acenando levemente, e deslocou a cabeça num lento arco em direcção ao vidro traseiro. Ao mesmo tempo, tamborilou rapidamente com os dedos no pescoço de «Pêra» em plena escuridão. O agente percebeu.

Sem aviso, Vittorio abriu a sua porta. O cabo que empunhava a espingarda fez um movimento brusco com ela para a frente.

- Largue isso, cabo. Uma vez que o seu superior acha bem tomar o meu tempo, vou ocupá-lo em qualquer coisa de útil. Sou o major Aldo Ravena, ufficiale segreto, de Roma. Vou inspeccionar as vossas instalações. E aproveito para fazer uma necessidade.

- Signore. - gritou o oficial, do lado de lá da capota do motor do Fiat.

- Está a dirigir-se a mim? - perguntou arrogantemente Fontini-Cristi.

- As minhas desculpas, major. - O oficial não se conteve: lançou uma rápida olhadela para o lado direito, na direcção da estrada. - Não há instalações sanitárias no posto.

- Com certeza que o senhor não há-de ter as entranhas imaculadas. O campo deve ser incómodo. Talvez Roma trate desse assunto. Hei-de ver.

Vittorio adiantou-se velozmente até à porta da pequena estrutura. Tal como esperava, o cabo foi com ele. Entrou rapidamente pela porta dentro. Mal o cabo cruzou a porta atrás de si, Fontini-Cristi virou-se e cravou-lhe a pistola sob o queixo. Enterrou a arma na garganta do militar e, com a mão esquerda, apossou-se do cano da espingarda.

- Se você tossir, só por isso, ver-me-ei obrigado a matá-lo - sussurrou Vittorio. - Não sinto vontade de fazer tal coisa.

Os olhos do soldado arregalaram-se sob o efeito do abalo: não tinha estômago para heroísmos. Fontini-Cristi pegou na espingarda e deu a ordem em voz baixa e com precisão.

- Chame o oficial. Diga que eu estou a utilizar o seu telefone e que não sabe o que fazer. Diga-lhe que estou a falar para o regimento de Génova. Para o coronel Balbo. Já!

O cabo gritou as palavras, transmitindo quer a sua confusão quer o medo. Vittorio coseu-se à parede junto da porta. A resposta do tenente denunciava medo; talvez tivesse cometido um tremendo erro:

- Estou apenas a cumprir ordens! Recebi ordens de Alba!

- Diga-lhe que o coronel Balbo vem ao telefone - segredou-lhe Fontini-Cristi. -Já!

O cabo assim fez. Vittorio ouviu os passos do oficial a correr do Fiat para o posto da guarda.

- Se quer manter-se vivo, tenente, tire o cinturão da pistola (limite-se a desapertar ambas as correias) e junte-se ao cabo além na parede.

O tenente ficou aturdido. Deixou descair o maxilar e os lábios descerraram-se-lhe de temor. Fontini-Cristi empurrou-o com a espingarda, espicaçando-o com o cano no estômago. O desconcertado oficial estremeceu e arfou ao fazer o que lhe diziam. Vittorio gritou para o exterior, em inglês:

- Já os desarmei. Agora não sei bem o que fazer. Chegou-lhe a exclamação semi-sussurrada de «Pêra»:

- O que fazer? Meu Deus, o senhor é uma autêntica maravilha! Torne a mandar o oficial cá para fora. Certifique-se de que ele sabe que temos as nossas armas assestadas sobre ele. Diga-lhe que volte imediatamente para o pé da janela do «Maçã». Depois é connosco.

Fontini-Cristi traduziu as instruções. O oficial, empurrado pelo cano da pistola de Vittorio, transpôs a porta a cambalear e atravessou-se velozmente à frente do feixe dos faróis do carro, dirigindo-se para a janela do lado do condutor.

Dez segundos mais tarde ouviram-se os gritos do oficial lá fora na estrada:

- Ó homens de Alba! Não é este o veículo! Houve um engano. Decorreu um momento até responderem outras vozes. Duas, altas e irritadas.

- Que foi que aconteceu? Quem são eles?

Vittorio distinguiu as figuras de dois homens emergindo da escuridão do campo. Eram soldados e traziam pistolas à cintura. O oficial respondeu:

- São segreti de Génova. Também andam à procura do veículo de Alba.

- Mãe de Cristo! Quantos é que há, afinal?

Subitamente, o oficial afastou-se da janela de rompante, gritando ao mesmo tempo que mergulhava direito à frente do automóvel:

- Disparem! Abram fogo! São...

Fizeram-se ouvir as explosões abafadas das pistolas britânicas.

«Pêra» saltou da porta traseira do lado direito, coberto pelo automóvel, e disparou contra os soldados que se aproximavam. Uma espingarda replicou: foi um tiro às cegas que produziu um baque surdo no asfalto da estrada, disparado por um homem a morrer. O tenente do posto de controlo pôs-se em pé de um salto e principiou a correr em direcção ao campo do outro lado, na escuridão. «Maçã» fez fogo: três disparos abafados acompanharam os clarões nítidos e abruptos da sua pistola. O oficial gritou e arqueou as costas, tombando na terra da berma.

- Fontini! - gritou «Maçã». - Mate o seu homem e venha para aqui! Os lábios do cabo tremeram e os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Tinha

ouvido as explosões abafadas e compreendera a ordem.

- Não - ripostou Fontini-Cristi.

- Diabos o levem! - rugiu «Maçã». - Faça o que lhe digo! O senhor está sob as minhas ordens! Não podemos perder tempo nem correr riscos!

- Engana-se. Perderíamos mais tempo e correríamos mais riscos se não conseguíssemos descobrir a estrada para Celle Ligure. Este soldado há-de por certo conhecê-la.

E conhecia. Vittorio ocupou-se do volante, com o soldado junto a si no assento dianteiro. Fontini-Cristi conhecia a área; se surgissem problemas, poderia desenvencilhar-se. Já o provara.

- Descontraia-se- disse Vittorio em italiano ao atemorizado cabo. Continue

 

' italiano no original: «secretas». (N. do T.)

 

a ser prestável, que não lhe acontece nada.

- Que vai ser de mim? Hão-de dizer que abandonei o meu posto.

- Nada disso. Foi vitima de uma emboscada, forçado à ponta de uma pistola a acompanhar-nos e a servir de escudo. Não teve outro remédio.

Entraram em Celle Ligure às dez e quarenta; as ruas da vila de pescadores estavam quase desertas. A maioria dos habitantes começava o dia às quatro da manhã; dez da noite era tarde. Fontini-Cristi meteu o carro na área arenosa de estacionamento que ficava em frente da ampla marginal. Do outro lado ficava a parte principal da marina.

- Onde estão as sentinelas? - perguntou «Maçã». - Onde é que se encontram?

Inicialmente o cabo pareceu confundido. Vittorio explicou:

- Quando está de serviço aqui, onde é que faz meia volta?

- Estou a ver. - O cabo ficou aliviado; estava manifestamente a tentar ajudar. - Não é aqui, não é nesta zona. É mais lá para cima; quero eu dizer, mais lá para baixo.

- Diabos o levem! - «Maçã» adiantou-se do banco traseiro, agarrando o italiano pelos cabelos.

- Assim não vai a lado nenhum - disse Vittorio em inglês. - O homem está assustado.

- Também eu estou! - contrapôs o agente. - Há além uma doca com uma manga de vento verde, e um barco dentro dessa doca que temos de descobrir! Não sabemos o que aconteceu na nossa retaguarda; há soldados armados no cais: um tiro alertará toda a área. E não fazemos ideia das ordens que terão sido transmitidas por rádio às patrulhas no mar. Estou muito assustado!

- Já me lembro! - exclamou o cabo. - A esquerda. Ao cima da rua, à esquerda! Os camiões paravam e nós seguíamos pelo cais fora e esperávamos pelo homem de serviço. Ele dava-nos a folha de patrulha e era rendido.

- Onde? Exactamente onde, cabo? - Havia um tom de premência na voz de «Pêra».

- Na próxima rua. Tenho a certeza.

- São mais ou menos cem metros, não lhe parece? - perguntou «Pêra», olhando para Fontini-Cristi. - E a rua abaixo desta outros cem, mais coisa, menos coisa.

- Que ideia é sua? - «Maçã» tinha largado o cabo, mas conservava as mãos ameaçadoramente sobre o encosto do assento.

- A mesma que a sua - retorquiu «Pêra». - Dominar a sentinela a meio caminho; há menos hipóteses de ser vista aí. Depois de ela sair, caminhamos para sul em direcção à manga de vento, onde, espero bem, há-de aparecer um corso ou dois.

Atravessaram a marginal, rumo a um beco que dava para o complexo portuário. O cheiro a peixe e os ruídos de meia centena de barcos rangendo em rítmico repouso nas estacas enchiam a escuridão. Havia redes penduradas por toda a parte; ouvia-se o marulhar das ondas para lá do passadiço de pranchas que ficava em frente do cais. Umas quantas lanternas oscilavam, suspensas de cabos sobre os conveses; uma concertina tocava ao longe uma melodia simples.

Vittorio e Pêra» saíram descuidadamente do beco, com os passos abafados pelas tábuas molhadas. O passadiço era resguardado por uma balaustrada de tubos metálicos sobre a água que esparrinhava.

- Está a ver aquela sentinela? - perguntou baixinho Fontini-Cristi.

- Não, mas oiço-a - respondeu o agente. - Está a dar pancadinhas no tubo à medida que caminha. Escute.

Vittorio levou vários segundos a conseguir distinguir os ténues sons de metal no meio dos rangidos rítmicos de madeira na água. Mas lá estavam eles. O inconsciente tamborilar incerto de um homem enfastiado a desempenhar uma tarefa enfadonha.

Uma ou duas centenas de metros a sul no passadiço, a figura do soldado surgiu sob o jorro de luz de um candeeiro do cais, com a espingarda segura no braço esquerdo obliquamente ao solo. Estava ao lado da balaustrada, com a mão direita a martelar vagamente o ritmo dos passos.

- Quando chegar aqui, peça-lhe um cigarro - disse baixinho «Pêra». - Finja que está bêbedo. Eu faço outro tanto.

A sentinela aproximou-se. Assim que os viu, ergueu prontamente a espingarda e armou a culatra, imobilizando-se a cinquenta metros de distância.

- Alto! Quem está aí?

- Dois pescadores sem cigarros - respondeu Fontini-Cristi, arrastando as palavras. - Seja boa pessoa e dê-nos um par deles. Nem que seja um; nós dividimo-lo.

- Está bêbedo - disse o soldado. - Esta noite foi decretado o recolher obrigatório no cais. Como é que vocês andam aqui? Passou-se todo o dia a anunciá-lo pelos altifalantes.

- Estivemos com duas prostitutas em Albisolla - retorquiu Vittorio, cambaleando e amparando-se à balaustrada. - A única coisa que ouvimos foi música num gira-discos e camas a ranger.

- Bem bom - resmoneou «Pêra».

A sentinela abanou a cabeça, em ar de reprovação. Baixou a espingarda e aproximou-se, metendo a mão no bolso da capa à procura de cigarros.

- Vocês, os Ligurini, são piores que os Napolitani. Já fiz serviço por lá.

Atrás do soldado, Vittorio distinguiu «Maçã» emergindo das sombras. Tinha obrigado o cabo a manter-se deitado na esquina do beco; o homem não se mexeria. Nas mãos de «Maçã» estavam dois novelos de cordel.

Antes que Vittorio conseguisse aperceber-se do que estava a acontecer, «Maçã» saltou do passadiço, de braços estendidos e virados para cima. Em dois rápidos movimentos, as mãos do agente abateram-se sobre a cabeça da sentinela e, enfiando-lhe o joelho pelas costas dentro, deu-lhe um violento puxão, fazendo o guarda arquear espasmodicamente o corpo para logo tombar por terra.

O único ruído foi uma abrupta e sinistra eliminação de ar e a muda queda do corpo do homem na madeira mole e molhada.

«Pêra» precipitou-se para o cabo e encostou-lhe a pistola à têmpora:

- Nem um pio, entendido? - Era uma ordem que não admitia discussão. O cabo ergueu-se silenciosamente.

Fontini-Cristi baixou os olhos, à luz mortiça, para o guarda no passadiço, e desejou não ter visto o que viu. O pescoço do homem estava meio separado do corpo e o sangue escorria, num fio vermelho-escuro, do que outrora fora a garganta. Por um espaço largo na balaustrada, «Maçã» fez rebolar o corpo, que caiu na água com um chape abafado. «Pêra» empunhou a espingarda e falou em inglês.

- Vamos embora. Por aqui adiante.

- Venha - disse Fontini-Cristi, com a mão no braço do trémulo cabo. - Não tem por onde escolher.

A manga de vento verde pendia, frouxa, na ausência de qualquer brisa que lhe enfunasse o pano. O cais, que se achava com poucos barcos acostados, parecia prolongar-se mais pela água dentro que os outros. Desceram os quatro os degraus, «Maçã» e Pêra» à frente, com as mãos nos bolsos. Os dois ingleses estavam obviamente hesitantes, o que não passava despercebido a Vitorio.

Sem aviso nem quaisquer ruídos, apareceram repentinamente alguns homens de um e outro lado deles, de armas em punho. Estavam nos conveses dos barcos; cinco, não, seis homens vestidos de pescadores.

- Você ser Jorge Quinto? - perguntou a voz áspera do homem mais próximo do agente, de pé no convés de um pequeno arrastão.

- Graças a Deus! - disse «Pêra», aliviado. - Passámos um mau bocado. Ao ouvir-se o inglês falado, as armas voltaram aos cinturões e aos bolsos. Os

homens juntaram-se-lhes, e começaram a falar ao mesmo tempo. A língua era o corso. Um homem, obviamente o chefe, virou-se para «Maçã»:

- Vá até ao fim do cais. Temos um dos arrastões mais velozes de Bastia. Nós encarregamo-nos do italiano. Hão-de levar um mês a encontrá-lo!

- Não! - Fontini-Cristi adiantou-se para o meio dos dois homens. - Demos a nossa palavra que, se colaborasse, poupar-lhe-íamos a vida.

«Maçã» replicou, como alternativa, com a voz sussurrante forçada por efeito da irritação:

- Ora muito bem, escute cá. O senhor ajudou-nos, não vou negá-lo, mas não é o senhor que está à frente disto. Vá para o raio do barco.

- Só quando este homem tiver regressado ao passadiço. Demos a nossa palavra! - Dirigiu-se ao cabo. - Volte para trás. Ninguém lhe faz mal. Risque um fósforo quando alcançar uma passagem para a marginal.

- E se eu disser que não? - disse «Maçã», agarrando a capa do soldado.

- Nesse caso ficarei aqui.

- Raios! - «Maçã» libertou o soldado.

- Caminhe com ele durante parte do trajecto - disse Fontini-Cristi ao corso. - Certifique-se de que os seus homens o deixam passar.

O corso cuspiu no cais.

O cabo correu com tanta velocidade quanta podia em direcção à base da doca. Fontini-Cristi fitou os dois ingleses.

- Desculpem - disse simplesmente. -Já houve mortes que cheguem.

- O senhor é um tonto chapado! - replicou «Maçã».

- Depressa - disse o chefe corso. - Quero largar. O mar está bravo para lá dos rochedos. E vocês são doidos!

Caminharam até ao extremo do longo cais, saltando um a um sobre a borda para o convés do grande arrastão. Ficaram dois corsos na doca junto aos cabeços, a largar os grossos cabos gordurosos enquanto o apressado capitão punha os motores a trabalhar.

Aconteceu sem aviso.

Uma fuzilaria proveniente do passadiço. A seguir o feixe ofuscante de um projector rasgou a escuridão, acompanhado dos gritos de soldados no começo do cais. Distinguia-se a voz do cabo.

- Além ao fundo! No extremo da doca! O arrastão! Lancem o alarme!

Um dos corsos foi atingido e atirou-se para o chão, libertando no derradeiro segundo o cabo do cabeço.

- A luz! Disparem sobre a luz! - gritava o corso da casa do leme aberta embalando os motores em direcção ao mar largo.

«Maçã» e Pêra» desenroscaram os silenciadores para conseguir maior precisão. «Maçã» foi o primeiro a erguer-se sobre a protecção da borda; premiu repetidamente o gatilho, firmando a mão na amurada de madeira. Ao longe, o projector estilhaçou-se. Simultaneamente, houve uma projecção de fragmentos de madeira em volta de «Maçã» e o agente cambaleou para trás, gritando de dor.

Tinha a mão despedaçada.

O corso, porém, tinha levado o veloz arrastão para o negrume protector do mar. Estavam safos de Celle Ligure.

- O nosso preço aumenta, inglês! - gritou o homem do leme. - Seus filhos da mãe, seus filhos de uma prostituta! Hão-de pagar por esta loucura! - Olhou para Fontini-Cristi agachado atrás da borda, a estibordo. Os olhares de ambos cruzaram-se e o corso cuspiu com fúria.

«Maçã» recostou-se, transpirando, de encontro a um rolo de cabos. A luz da noite, que reflectia o espumejar das vagas, Vittorio viu que o inglês estava a olhar fixamente para a sangrenta massa de carne que era a sua mão, segurando-a pelo pulso.

Fontini-Cristi pôs-se de pé e avançou até junto do agente, rasgando parte da camisa enquanto o fazia.

- Deixe-me ligar-lha. Estancar o sangue...

«Maçã» ergueu a cabeça com um sacão e falou com surda ira:

- Mantenha-se mas é longe de mim, caraças! Os seus princípios saem demasiado caros.

O mar estava agitado, o vento rijo e as ondas violentas e abruptas. Havia quarenta minutos que sulcavam as ondas do mar aberto, que tudo encharcavam. Haviam sido tomadas disposições e o bloqueio fora furado; os motores do arrastão estavam agora em marcha lenta.

Para lá das vagas, Vittorio distinguiu um pequeno disco azul cintilante: acendia durante um segundo, apagava durante outro segundo. O sinal de um submarino. O corso à popa, que tinha uma lanterna, principiou o seu próprio sinal. Levantava e baixava a candeia, utilizando a borda como obturador, a imitar o ritmo do disco azul, a meia milha de distância nas águas.

- Não pode comunicar com ele por rádio? - «Pêra» gritou a pergunta.

- As frequências estão sob controlo - redarguiu o corso. - Os barcos de patrulha viriam cercá-lo; não podemos subornar toda a gente.

Os dois navios iniciaram as cautelosas manobras no mar revolto, cabendo a maior parte delas ao arrastão, até que o enorme submarino ficou mesmo pelo través de estibordo. Fontini-Cristi ficou hipnotizado com o seu tamanho e negra imponência.

Os dois barcos deixaram-se vogar ao sabor das águas até ficarem a quinze metros um do outro, o submarino consideravelmente mais alto nas vagas alterosas. Viam-se três homens no convés; estavam agarrados a uma balaustrada metálica, tentando os dois do meio manobrar uma máquina qualquer.

Uma grossa espia fustigou o ar e caiu a meia-nau do arrastão. Dois corsos precipitaram-se para ela, agarrando-a desesperadamente, como se o cabo tivesse uma vontade própria hostil. Passaram o cabo a um guincho de ferro a meio do convés e fizeram sinal aos homens do submarino.

A acção foi repetida. Porém, o segundo cabo não foi a única coisa a ser disparada do submarino. Havia um saco de lona com aros metálicos nas bordas, e de um desses aros saía um grosso cabo de arame que se estendia até à guarnição no convés do submarino.

Os corsos abriram o saco de lona e tiraram de lá umas alças. Fontini-Cristi reconheceu-as imediatamente: era um aparelho utilizado para atravessar fendas nas montanhas.

Amparando-se ao mesmo tempo que avançava, cambaleando, pelo convés oscilante, «Pêra» abeirou-se de Vittorio:

- É um tanto ou quanto arrepiante, mas é seguro! - gritou. Vittorio berrou a réplica:

- Mande primeiro o seu homem, «Maçã». Precisa de tratar da mão.

- A prioridade é o senhor. E, com franqueza, se essa porcaria não aguentar, prefiro que o descubramos consigo!

Fontini-Cristi sentou-se no beliche de ferro dentro do acanhado compartimento metálico e bebeu o café pela grossa caneca de porcelana. Passou o cobertor da Royal Navy pelos ombros, sentindo por baixo as roupas molhadas. O desconforto não o incomodava: sentia-se grato por estar sozinho.

A porta do pequeno compartimento de metal abriu-se. Era «Pêra». Trazia uma braçada de roupa, que deixou cair no beliche.

- Aqui tem uma muda de roupa seca. Não convinha nada ir agora desta para melhor com uma pneumonia. Era de caírem os tomates aos pés a uma pessoa, não acha?

- Obrigado - disse Vittorio, pondo-se de pé. - Como está o seu amigo?

- O médico de bordo receia que perca o uso da mão. O médico não lhe disse nada, mas ele sabe.

- Lamento. Fui ingénuo.

- Pois foi - concordou simplesmente o britânico. - Foi ingénuo. Saiu, deixando a porta aberta.

Nos estreitos corredores metálicos exteriores ao minúsculo compartimento, houve um súbito ruído. Pela porta passavam homens à desfilada, correndo todos eles na mesma direcção, para a proa ou para a popa, Fontini-Cristi não conseguia distinguir. Pelo sistema de transmissão de ordens do navio ouviu-se um lancinante e ensurdecedor apito que guinchava sem parar; portas de metal fechavam-se violentamente e a gritaria aumentava.

Vittorio precipitou-se para a porta aberta e parou de respirar. Apossou-se dele o pânico da impotência debaixo do mar.

Chocou com um marinheiro britânico. Porém, o rosto do homem não estava desfigurado pelo medo. Nem pelo receio. Nem por qualquer outra coisa que não fosse o riso descuidado.

- Feliz ano novo, camarada! - exclamou o marinheiro. - É meia-noite, parceiro! Estamos em mil novecentos e quarenta. Numa década nova, caramba!

O marinheiro correu para a escotilha mais próxima, que abriu. Para lá dela, Fontini-Cristi distinguiu o refeitório. Havia homens reunidos em volta, com canecas na mão, nas quais os oficiais deitavam uísque. Os gritos amalgamavam-se em gargalhadas. Os compartimentos de metal principiaram a encher-se de Auld Lang SjineK

A nova década.

A velha culminara em morte. Morte por todo o lado, da maneira mais horrível, sob a branca luz ofuscante de Campo di Fiori. Pai, mãe, irmãos, irmãs. As crianças. Desaparecidos. Desaparecidos num momento de desintegradora violência que estava gravada a fogo no seu espírito. Uma recordação com a qual viveria a vida inteira.

Porquê? Porquê? Nada fazia sentido.

Foi então que se lembrou: Savarone dissera que fora a Zurique. Mas não a Zurique: tinha ido a outro sítio qualquer.

Era nesse outro sítio qualquer que se encontrava a resposta. Mas o quê?

Vittorio entrou no pequeno compartimento do submarino e sentou-se na borda de ferro da cama.

Principiara a nova década.

1. Nome de uma canção extremamente popular, da autoria de Robert Burs (1789), que celebra os tempos idos. (N. do T.)

 

2 de Janeiro de 1940 Londres, Inglaterra

Sacos de areia.

Londres era uma cidade de sacos de areia. Por todo o lado. Nas soleiras das portas, nas janelas, nas montras das lojas, empilhados aos molhos às esquinas das ruas. O saco de areia era o símbolo. Do outro lado da Mancha, Adolf Hitler jurara a destruição de toda a Inglaterra; calmamente, os ingleses acreditavam na ameaça e fleumática e firmemente couraçavam-se de antemão.

Vittorio tinha chegado tarde ao aeródromo militar de Lakenheath na noite anterior, no primeiro dia da nova década. Tinham ido esperá-lo a um avião sem identificação enviado de Maiorca e haviam-no despachado logo para operações cujo objectivo consistia em confirmar a sua identidade junto do Ministério da Marinha. Agora que se achava a salvo no país, as vozes tornavam-se subitamente calmas e solícitas: quereria repousar depois da esgotante viagem? Talvez no Savoy, não? Constava que os Fontini-Cristi se hospedavam no Savoy quando passavam por Londres. Dar-lhe-ia jeito uma reunião amanhã à tarde, pelas catorze horas? No Almirantado, Sector Cinco das Informações. Operações Estrangeiras.

«Com certeza. Claro que sim, pelo amor de Deus! Por que razão fizeram vocês, ingleses, o que fizeram? Tenho de sabê-lo, mas manter-me-ei calado até que vocês mo digam».

A recepção do Savoy pós à sua disposição artigos de higiene e roupa de dormir, incluindo um roupão do hotel. Tinha posto a correr um banho muito quente na enorme banheira e manteve-se dentro dele durante tanto tempo que ficou com a pele das pontas dos dedos toda encarquilhada. Depois meteu-se a beber demasiados copos de aguardente e caiu na cama.

Pedira que o acordassem às dez, mas, evidentemente, fora desnecessário: às oito e meia já estava completamente desperto e às nove tinha o chuveiro tomado e a barba feita. Mandou vir um pequeno-almoço inglês pelo empregado do piso e, enquanto esperava, telefonou para Norcross, Limited, em Savile Row. Precisava de roupa. Não podia andar a passear-se por Londres com uma gabardina emprestada, uma camisola de lã e as calças que lhe assentavam mal fornecidas por um agente chamado «Pêra» num submarino em águas do Mediterrâneo.

Ao pousar o telefone no descanso, Vittorio deu-se conta que não tinha dinheiro para além das dez libras, graças às dispersões de Lakenheath. Partiu do princípio de que tinha crédito; mandaria transferir fundos da Suíça. Não tivera tempo para se concentrar nos aspectos logísticos da vida: andara demasiadamente ocupado a manter-se vivo.

Ocorreu a Fontini-Cristi que tinha muitas coisas a fazer. E - quanto mais não fosse para afastar a terrível recordação, a dor infinita, de Campo di Fiori - urgia manter-se activo. Obrigar o espírito a concentrar-se primeiro nas coisas simples, nas coisas do dia-a-dia. Porque, quando as grandes coisas lhe apareciam nítidas, sentia-se à beira da loucura quando ponderava nelas.

«Por favor, meu bom Deus, as pequenas coisas! Concede-me tempo para recuperar o equilíbrio».

Viu-a pela primeira vez no outro extremo do átrio do Savoy enquanto esperava que o gerente lhe providenciasse algum dinheiro. Estava sentada numa poltrona a ler o Times, envergando o austero uniforme de um ramo do serviço feminino, qual não fazia a menor ideia. Sob o boné de oficial, o cabelo escuro da morena tombava em cachos pelos ombros, emoldurando-lhe o rosto. Era um rosto que já vira anteriormente: tratava-se de uma cara que não se esquecia. Mas era uma versão mais jovem daquela cara que permanecia gravada na sua recordação. A mulher andaria porventura pelos trinta e tal; o rosto de que se lembrava não tinha mais de vinte e dois ou vinte e três. Os malares eram altos e o nariz mais celta do que inglês: afilado, ligeiramente arrebitado e fino sobre os lábios carnudos. Não conseguia distinguir bem os olhos, mas sabia como eles eram: de um azul intenso, tão azul como jamais vira nos olhos de uma mulher.

Era aquilo que recordava. Uns irados olhos azuis erguidos para os seus, fitando-o. Irados e carregados de desdém. Não se lhe tinha deparado muitas vezes essa reacção, e sentira-se irritado.

Por que razão se lembrara? Quando fora?

- Signore Fontini-Cristi. - O gerente do Savoy saiu vivamente do arco da caixa com um sobrescrito na mão. - Tal como pediu, mil libras.

Vittorio pegou no sobrescrito e enfiou-o no bolso da gabardina.

- Obrigado.

- Arranjámos-lhe a limosina, senhor. Deve estar a chegar. Se quiser voltar para a sua suite, telefonamos-lhe assim que ela aparecer.

- Espero aqui. Se vocês conseguem suportar esta roupa, também eu consigo.

- Por favor, signore. É sempre um imenso prazer acolher um membro da família Fontini-Cristi. O seu pai virá ter consigo nesta deslocação? Esperamos que esteja bem.

«A Inglaterra marchando ao som dos repentinos tambores de guerra e o Savoy a perguntar pela família das pessoas».

- Não vem ter comigo, não. - Vittorio não viu motivo para mais explicações. A notícia ainda não chegara a Inglaterra, ou, caso tivesse chegado, os despachos de guerra tornavam-na insignificante. - A propósito, conhece aquela senhora? A que está sentada. De farda.

O gerente lançou um olhar discreto ao átrio pouco concorrido.

- Conheço, sim, senhor. É Mistress Spane. Devia dizer antes que era Mistress Spane: divorciaram-se. Creio que voltou a casar. Não é frequente aparecer por aqui.

- Spane?

- Sim, senhor. Vejo que está na Defesa Aérea. É uma gente que não anda a brincar, isso posso garantir-lho.

- Obrigado - disse Vittorio, despedindo cortesmente o gerente. - Vou

ficar à espera do carro.

- Com certeza. Se houver alguma coisa que possamos fazer para tornar-lhe a estada mais agradável, não hesite em contactar connosco.

O gerente fez um aceno de cabeça e afastou-se. Fontini-Cristi voltou a olhar para a mulher. Esta lançou uma mirada ao relógio de pulso e regressou à leitura.

Lembrava-se do nome Spane devido à sua fonética e, por arrastamento, do indivíduo. Fora há onze; não, há doze anos: tinha acompanhado o pai a Londres a fim de o observar em negociações com a British Havilland, constituindo essa observação parte do seu adestramento. Spane fora-lhe apresentado uma noite em Les Ambassadeurs, um homem bastante jovem, dois ou três anos mais velho do que ele. Achara o inglês algo divertido, mas basicamente cansativo. Spane era um produto de Mayfair que se satisfazia integralmente com o usufruto das actividades ancestrais, não contribuindo ele próprio com grande coisa, a não ser os seus conhecimentos em matéria de corridas. O pai não gostava de Spane e confiara-lho, o que, muito naturalmente, levara o filho a manter com ele relações superficiais.

Não obstante, Vittorio recordou-se repentinamente porquê. O facto de não lhe ter vindo antes à mente apenas constituía uma prova adicional de que ele banira da mente a recordação da sua existência: não da mulher sentada no átrio, mas da sua mulher.

A mulher dele tinha vindo para Inglaterra com eles havia doze anos, achando o padrone que a sua presença exerceria uma influência moderadora num filho obstinado e inconstante. Mas Savarone não conhecia assim tão bem a nora; veio a conhecê-la mais tarde, mas na altura não. A atmosfera capitosa de Mayfair no auge da temporada era para ela um tónico.

A mulher dele sentira atracção por Spane; um dos dois seduzira o outro. Ele não prestara grande atenção; também andava ocupado.

E em determinada ocasião tinha havido uma confrontação desagradável. Houvera recriminações gritadas e os irados olhos azuis tinham-se erguido para fitar os seus.

Vittorio atravessou o átrio em direcção à poltrona. A senhora Spane ergueu a vista à sua aproximação. Houve um momento de hesitação nos seus olhos, como se estivesse insegura. A seguir ficou mesmo segura e não houve qualquer hesitação: a hesitação foi substituída pela expressão desdenhosa de que ele se recordava tão vividamente. Os olhares cravaram-se um no outro por um segundo - não mais - e ela regressou ao jornal.

- Mistress Spane? Ela ergueu os olhos:

- O nome é Holcroft.

- Já nos conhecemos.

- Pois já. É Fontini... - Fez uma pausa.

- Fontini-Cristi. Vittorio Fontini-Cristi.

- Sim. Há muito tempo. Há-de desculpar, mas tenho um dia muito cheio. Estou à espera de uma pessoa e não vou ter ocasião de tornar a dar uma vista de olhos no jornal. - Voltou à leitura.

- Vê-se livre de mim de uma maneira eficiente - disse Vittorio, sorrindo.

 

' A pronúncia do nome equivale à de Spain, isto é, «Espanha». (N. do T.)

 

- Acho muito simples fazê-lo - retorquiu ela, sem olhar para ele.

- Mistress Holcroft, já lá vai uma porção de tempo. Um poeta inglês diz que não há nada que se transforme tanto em mudança como os anos.

- O poeta inglês sustenta igualmente que ninguém muda a sua maneira de ser. Palavra que estou muito ocupada. Bom dia.

Vittorio preparava-se para se afastar com um aceno, quando viu que lhe tremiam muito ligeiramente as mãos. Mrs. Holcroft estava um tanto ou quanto menos confiante do que o seu comportamento dava a entender. Não tinha bem a certeza da razão pela qual permaneceu; era uma ocasião para estar só. As horríveis recordações de luz branca e morte escaldavam: não lhe apetecia compartilhá-las. Por outro lado, sentia desejos de falar. Com uma pessoa qualquer. Fosse do que fosse.

- Acha que é tarde de mais para apresentar desculpas por um comportamento infantil de há uma década?

A tenente olhou para ele:

- Como está mesmo a sua mulher?

- Morreu num desastre de automóvel há dez anos.

A expressão dos olhos dela era firme; a hostilidade abrandou. Pestanejou, pouco à vontade, moderadamente embaraçada:

- Sinto muito.

- É a minha vez de pedir desculpa. Há doze anos a senhora procurava uma explicação. Ou consolo. E eu não tinha nem uma coisa nem outra para dar.

A mulher permitiu-se a sombra de um sorriso. Os seus olhos azuis tinham qualquer coisa - se era apenas qualquer coisa - de cordial.

- O senhor era um jovem cheio de arrogância. E eu receio bem que fosse pouco compreensivo sob pressão. É claro que tudo muda.

- A senhora valia mais do que as brincadeiras a que nos entregávamos. Eu devia ter percebido.

- Isso é uma frase bastante desarmante... E acho que já falámos o suficiente sobre o assunto.

- A senhora e o seu marido quererão ter a gentileza de jantar comigo esta noite, Mistress Holcroft? - Ouviu as palavras que pronunciara, sem ter bem a certeza de tê-las dito. Fora o impulso do momento.

Ela fitou-o por breves instantes antes de responder:

- Está a ser sincero, não está?

- Com certeza. Parti de Itália um tanto ou quanto à pressa, graças ao seu Governo, como tenho estas roupas graças aos seus compatriotas. Há vários anos que não venho a Londres. Tenho muito poucos conhecimentos cá.

- Ora aí está o que se chama uma frase estimulante.

- Como?

- Que partiu de Itália à pressa e traz a roupa de outra pessoa. Levanta questões.

Vittorio hesitou, e depois falou calmamente:

- Gostava que a senhora tivesse a compreensão que me faltou há dez anos. Preferia que essas questões não fossem levantadas. Mas gostaria de jantar consigo. E com seu marido, evidentemente.

Ela sustentou-lhe o olhar, fitando-o com curiosidade. Os seus lábios distenderam-se num sorriso suave: tinha tomado uma decisão.

- O nome do meu marido era Spane. Holcroft é o meu. Jane Holcroft. E vou jantar consigo.

O porteiro do Savoy interrompeu:

- Signore Fontini-Cristi, o seu carro já chegou, senhor.

- Obrigado - respondeu ele, com os olhos em Jane Holcroft. -Já lá vou.

- Pois sim, senhor. - O porteiro fez um aceno e afastou-se.

- Posso vir buscá-la ao fim da tarde? Ou mandar o meu carro buscá-la?

- A gasolina está a rarear. Encontro-me consigo aqui. Oito horas?

- Oito horas. Arrivederci!

- Até logo.

Percorreu o comprido corredor do Almirantado escoltado por um tal comandante Neyland, que tinha vindo recebê-lo ao balcão de entrada. Neyland era um homem de meia-idade, adequadamente militar, e bastante impressionado com a sua própria pessoa. Ou talvez os italianos não o impressionassem nada. A despeito da fluência do inglês de Vittorio, Neyland insistia em empregar os termos mais simples, e levantava a voz como se estivesse a falar com uma criança atrasada. Fontini-Cristi estava convencido de que Neyland não tinha ouvido as suas respostas; um homem não ouvia falar em perseguições, morte e fuga respondendo com banalidades tais como «Não me diga...» «Estranho, não é?...» «O golfo de Génova em Dezembro é por vezes muito agitado, não é?»

À medida que iam caminhando, Vittorio contrabalançava a reacção negativa ao capitão-de-mar-e-guerra com a gratidão para com o velho Norcross, de Savile Row.

Enquanto o capitão-de-mar-e-guerra gaguejava, Norcross cumpria. O velho alfaiate tinha-o vestido em questão de horas.

As pequenas coisas; concentrara-se nas coisas do dia-a-dia.

Sobretudo, conservar um domínio que roçasse o gelo durante a reunião com o que quer, ou quem quer, que constituísse o Sector Cinco das Informações. Havia imensas coisas a apreender, a entender. Imensas coisas que estavam para além do seu entendimento. No frio relato dos acontecimentos que constituíam o horror de Campo di Fiori, não podia deixar que a angústia lhe obnubilasse as percepções; o relato, por conseguinte, seria mesmo frio e comedido.

- Por aqui, meu velho - disse Neyland, indicando um vão de porta em forma de arco de catedral que mais lembrava qualquer venerável clube masculino que um edifício militar. O capitão-de-mar-e-guerra abriu a pesada porta, a reluzir de ferragens, e Vittorio entrou.

Não havia nada na ampla sala que desmentisse a noção de um clube masculino portentosamente equipado. Duas janelas enormes davam para um pátio; tudo era pesado e cheio de enfeites: os cortinados, a mobília, os candeeiros, e em certa medida os três homens que se achavam sentados à volta da pesada mesa de mogno no centro. Dois estavam fardados: as insígnias e as medalhas ao peito proclamavam postos elevados que Fontini-Cristi desconhecia. O homem trajando à civil tinha um ar sobremaneira diplomático, completado por um elegante bigode. Homens daquele género tinham entrado e saído em Campo di Fiori. Falavam em surdina e com palavras ambíguas: era uma gente que procurava a elasticidade. O civil ocupava a cabeceira da mesa e os oficiais sentavam-se de um e outro lado. Havia uma cadeira vaga, que lhe

 

1. Em italiano no original: «até à vista». (N. do T.)

 

estava obviamente destinada.

- Meus senhores - disse o capitão-de-mar-e-guerra Neyland, como se estivesse a anunciar um requerente no Tribunal de St. James. - O Signore Savarone Fontini-Cristi, de Milão.

Vittorio olhou fixamente para o fátuo inglês: não ouvira uma única palavra do que ele dissera.

Os três homens que estavam à mesa levantaram-se simultaneamente. Foi o civil quem falou:

- Dá-me licença que me apresente? Chamo-me Anthony Brevourt. Durante uma porção de anos fui embaixador da Coroa junto da corte grega de Jorge Segundo em Atenas. À minha esquerda, está o vice-almirante Hackett, da Royal Navy. À minha direita o general de brigada Teague, das Informações Militares.

Inicialmente, houve formais acenos de cabeça à guisa de reconhecimento, mas Teague logo quebrou o formalismo contornando a cadeira e estendendo a mão a Vittorio.

- Folgo em vê-lo entre nós, Fontini-Cristi. Recebi os relatórios preliminares. O senhor passou por coisas tremendas.

- Obrigado - respondeu Vittorio, apertando a mão ao general.

- Sente-se, sente-se - disse Brevourt, indicando a cadeira destinada a Vittorio e voltando à sua. Os dois oficiais ocuparam os lugares respectivos, Hackett de modo muito formal, mesmo pomposamente, e Teague com bastante descontracção. O general do exército tirou do bolso uma cigarreira e ofereceu-a a Fontini-Cristi.

- Não, obrigado - disse Vittorio. Fumar na companhia daqueles homens sugeriria um à-vontade que não sentia nem queria que eles pensassem que sentia. Uma lição de Savarone.

Brevourt prosseguiu rapidamente.

- Creio que o melhor é começarmos com isto. Estou certo de que o senhor está informado do motivo da nossa urgência. A encomenda grega.

Vittorio olhou para o embaixador e a seguir para os dois oficiais. Estes fitavam-no, aparentemente na expectativa.

- Grega? Não sei nada de nenhuma «encomenda grega». No entanto, sei da gratidão que sinto. Não há palavras para a exprimir em nenhuma das línguas. Os senhores salvaram-me a vida; houve homens que se sacrificaram por mim. Que mais posso dizer?

- Acho - disse lentamente Brevourt - que gostaríamos de ouvi-lo dizer qualquer coisa sobre uma entrega bem incomum feita à família Fontini-Cristi pela Irmandade Oriental de Xenope.

- Como diz? - Vittorio estava aturdido. As palavras não tinham para ele o menor significado. Houvera algum tremendo engano.

- Já lhe disse. Fui embaixador da Coroa em Atenas. Durante o exercício do meu cargO estabeleceram-se relações diplomáticas por todo o país, incluindo, evidentemente, com os religiosos. Porque, apesar do tumulto em que a Grécia está mergulhada, a hierarquia da Igreja continua a ser uma força poderosa.

- Não tenho dúvidas de que assim seja - concordou Vittorio -, mas não faço ideia do que tenha isso a ver comigo.

Teague inclinou-se para diante, com o fumo a descrever espirais diante da cara e olhos cravados em Fontini-Cristi.

Por favor. Nós fizemos a nossa parte, bem sabe. Como disse (acho que

com toda a propriedade), salvámos-lhe a vida. Enviámos os nossos melhores homens, pagámos milhares aos corsos, corremos riscos consideráveis em aventuras perigosas com um submarino (coisa que temos em pouquíssima quantidade) e accionámos uma rota de fuga aérea ainda mal estabelecida. E tudo isto para o tirar de lá. - Teague fez uma pausa, pousou o cigarro e sorriu muito levemente: - Toda a vida humana é porventura sagrada, mas há limites para os custos em que uma pessoa incorre para a prolongar.

- Falando pela Marinha - disse Hackett com controlada irritação

cumprimos cegamente o determinado, dispondo unicamente de escassíssimos elementos, compelidos pelas mais eminentes figuras do Governo. Pusemos em perigo úma área de operações vital, decisão que pode custar um bom número de vidas no futuro próximo. Os nossos gastos foram consideráveis. E ainda não apareceu a conta toda.

- Estes cavalheiros (o próprio Governo) agiram com base nos meus mais instantes pedidos - disse o embaixador Anthony Brevourt com comedida precisão. - Eu estava convicto, para além de qualquer dúvida, de que, fosse qual fosse o custo, era imperioso tirá-lo de Itália. Posta a questão com toda a simplicidade, Signore Fontini-Cristi, não era a sua vida. Era a informação de que o senhor é detentor relativa ao Patriarcado de Constantino. Foi essa a minha directriz. Agora, se faz favor, o local da entrega. Onde está a arca?

Vittorio devolveu o olhar fixo de Brevourt até sentir os olhos a arderem. Ninguém falou; o silêncio era tenso. Faziam-se alusões a coisas que moviam os mais altos escalões do governo e Fontini-Cristi sabia ser ele mesmo o fulcro. Mas era tudo quanto sabia.

- Não posso dizer-lhes aquilo de que nada sei.

- O comboio de mercadorias de Salónica. - A voz de Brevourt era cortante. A palma da sua mão abateu-se delicadamente sobre a mesa, sendo a macia palmada da carne contra a mesa tão surpreendente como abrupta. - Dois homens mortos nos depósitos dos caminhos-de-ferro de Milão. Um deles sacerdote. Algures a seguir a Baja Luka, a norte de Trieste, depois de Monfalcone, algures em Itália, ou na Suíça, o senhor foi ao encontro do comboio. Ora bem, onde?

- Não fui ao encontro de nenhum comboio, signore. Não sei nada acerca de Banja Luka nem de Trieste. De Monfalcone sim, mas tratou-se apenas de uma frase, e sem significado para mim. Um «incidente» havia de «dar-se em Monfalcone». Foi tudo. O meu pai não entrou em pormenores. A posição dele era que a informação me seria dada depois do incidente em Monfalcone, não antes.

- E os dois homens mortos em Milão? Nos depósitos dos caminhos-de-ferro? - Brevourt não descansava; a sua intensidade era eléctrica.

- Li qualquer coisa sobre os homens de que fala: abatidos a tiro nos depósitos de mercadorias de Milão. Veio um artigo nos jornais. Não me pareceu excepcionalmente importante.

- Eram gregos.

- Eu percebi.

- O senhor avistou-se com eles. Fizeram a entrega a si.

- Não me avistei com gregos nenhuns. Ninguém me fez entrega alguma.

- Oh, meu Deus! - Brevourt deixou escapar as palavras num sussurro dolorido. Era evidente para todos que o diplomata se via subitamente a braços com o seu próprio temor privado; não estava a simular para efeitos negociais.

- Calma - disse tolamente o vice-almirante Hackett.

O diplomata recomeçou a falar, lenta e cautelosamente, como se estivesse a pôr os pensamentos em ordem.

- Houve um acordo estabelecido entre os superiores de Xenope e os italianos Fontini-Cristi. Tratava-se de uma questão de incalculável prioridade. Numa dada ocasião, entre os dias nove e dezasseis de Dezembro (as datas em que o comboio saiu de Salónica e em que chegou a Milão), alguém foi ao encontro dele e tirou um engradado do terceiro vagão de mercadorias. Esse carregamento era de um valor tal que o itinerário do comboio foi preparado por fases isoladas. Havia um único plano director, ele próprio uma sequência de documentos, na posse de um só homem, um sacerdote de Xenope. Também estes foram destruídos antes de o sacerdote ter executado o maquinista e suicidar-se. Só ele sabia onde se efectuaria o transbordo, onde devia ser descarregada a arca. Ele e os responsáveis pela sua remoção. Os Fontini-Cristi. - Brevourt fez uma pausa, de olhos fundos cravados em Vittorio: - Isto são factos, senhor; foram-me comunicados por um mensageiro do Patriarcado. Em conjunção com as medidas que o meu governo tomou, presumo que sejam suficientes para o convencerem a facultar-nos a informação.

Fontini-Cristi mudou de posição na cadeira e desviou o olhar do rosto serenamente enérgico do embaixador. Tinha a certeza de que os três homens pensavam que estava a dissimular; teria de dissuadi-los dessa convicção. Mas primeiro tinha de pensar. Com que então, era aquela a razão. Um comboio desconhecido proveniente de Salónica levara o Governo britânico a tomar medidas excepcionais para - o que fora que Teague dissera? - prolongar a sua vida. Contudo, não era a vida dele que se revestia de importância, conforme Brevourt deixara claro. Era a informação que eles supunham estar na sua posse.

Coisa que, evidentemente, não acontecia.

Nove a dezasseis de Dezembro. O pai partira a doze para Zurique. Mas Savarone não tinha ido a Zurique. E recusara-se a dizer ao filho onde estivera... Brevourt podia muito bem ter motivos para as suas inquietações. Ainda assim, havia outras questões: o quadro era nebuloso. Vittorio voltou-se de novo para o diplomata.

- Seja indulgente comigo. Alude aos Fontini-Cristi. Emprega o plural. Um pai e quatro filhos. O nome do pai era Savarone. O vosso comandante Neyland apresentou-me erradamente com esse nome.

- Sim. - A voz de Brevourt mal se ouvia, como se ele estivesse a ser obrigado a uma conclusão que se negava a aceitar. - Dei-me conta disso.

- Por conseguinte, Savarone é o nome que receberam dos gregos. É isso?

- Ele não podia tê-lo feito sozinho. - Brevourt tornou a falar com uma voz que quase não passava de um sussurro. - O senhor é o filho mais velho; é o senhor quem dirige as empresas. Ele havia de tê-lo informado. Precisava da sua ajuda. Havia mais de vinte documentos individuais a preparar, isso sabemos nós. Precisava de si!

- Isso é o que aparentemente, talvez desesperadamente, os senhores querem acreditar. E, como acreditaram, tomaram medidas excepcionais para me salvar a vida, para me evacuarem de Itália. É evidente que sabem o que se passou em Campo di Fiori.

Foi o brigadeiro Teague quem falou:

- Soubemo-lo primeiro pelos resistentes. Os gregos não estavam muito

atrás. A Embaixada grega em Roma andava a vigiar de perto os Fontini--Cristi; ao que parece, não estava informada do motivo. A conduta de Atenas chegou ao embaixador e este, por sua vez, entrou em contacto connosco.

- E agora o senhor dá a entender - acrescentou glacialmente Brevourt - que foi tudo para nada.

- Não dou nada a entender. Estou a afirmá-lo. Durante o período que referem, o meu pai disse que ia a Zurique. Lamento não ter prestado grande atenção na altura, mas alguns dias mais tarde surgiu-me um motivo urgente para pedir-lhe que regressasse a Milão. Tentei contactar com ele: telefonei para todos os hotéis de Zurique e não o localizei em nenhum. Nunca me disse onde esteve. É esta a verdade, meus senhores.

Os dois oficiais olharam para o diplomata. Brevourt recostou-se lentamente na cadeira: era um gesto de impotência e exaustão; cravou os olhos no tampo da mesa. Finalmente, falou:

- O senhor tem a sua vida. Signore Fontini-Cristi. Para bem de todos nós, espero que o preço não tenha sido demasiado alto.

- Não posso responder a isso, claro. Por que razão foi esse acordo estabelecido com o meu pai?

- A isso sou eu quem não pode responder - retorquiu Brevourt, de olhos ainda pregados na mesa. - Aparentemente, alguém, algures, acreditava que ele era suficientemente engenhoso, ou suficientemente poderoso, para o cumprir. Uma ou ambas as coisas têm de ser confirmadas. Talvez nunca venhamos a saber...

- O que é que estava no comboio de Salónica? O que é que havia na arca para os levar a fazer o que fizeram?

Anthony Brevourt ergueu a vista e olhou para Vittorio, mentindo:

- Não sei.

- Isso é absurdo.

- Não tenho dúvidas de que assim há-de parecer. Só conheço as... implicações da sua importância. Essas coisas não têm preço. Trata-se de um valor abstracto.

- E foi com base nesse juízo que tomou estas decisões, que convenceu as suas autoridades supremas a tomarem-nas? Que persuadiu o seu governo?

- Foi, sim, senhor. E fá-lo-ia de novo, e é tudo quanto direi sobre o assunto, - Brevourt levantou-se da mesa. - É escusado prosseguir. Outros podem contactar consigo. Passe bem, Signore Fontini-Cristi.

A atitude do embaixador surpreendeu os dois oficiais, que, no entanto, nada disseram. Vittorio levantou-se da cadeira, fez um aceno de cabeça e encaminhou-se silenciosamente para a porta. Virou-se e fitou Brevourt: a expressão do homem era reservada.

No exterior, Fontini-Cristi surpreendeu-se ao ver o comandante Neyland em sentido no meio de duas praças. O Sector Cinco das Informações, Operações Estrangeiras, não corria riscos. A porta da sala de reuniões estava a ser guardada.

Neyland voltou-se, com o espanto gravado no rosto. Era evidente que esperava que o encontro durasse muito mais.

- Vejo que foi libertado.

- Não sabia que estava detido - ripostou Vittorio.

- Figura de retórica.

- Nunca me tinha apercebido do quanto é antipática. Vai escoltar-me até à recepção?

- Sim, vou autorizar a sua saída.

Aproximaram-se da enorme secretária de entrada do Almirantado. Neyland consultou o relógio e deu o último nome de Vittorio ao guarda. Pediram a Fontini-Cristi que rubricasse a hora de saída; ele assim fez e, ao endireitar-se diante da secretária, foi saudado com a continência muito formal do capitão-de-mar-e-guerra. Dirigiu-lhe um aceno - com formalismo -, fez meia volta e percorreu o pavimento de mármore até às enormes portas duplas para a rua.

Ia no quarto degrau quando lhe vieram à mente as palavras. Trespassavam as remoinhantes névoas de luz branca e o stacatto desintegrador dos tiros.

«Champoluc... Zurique é Champoluc... Zurique é o rio!»

E depois mais nada. Apenas os gritos, a luz branca e os corpos suspensos na morte.

Deteve-se no degrau de mármore, sem ver nada além das visões terríveis da sua mente.

«Zurique é o rio! Champoluc...»

Vittorio dominou-se. Parou e respirou fundo, apercebendo-se vagamente de que as pessoas no passeio e nos degraus estavam a olhar fixamente para ele. Perguntou a si mesmo se devia voltar a franquear as portas do Almirantado e cruzar um longo corredor até ao arco de catedral que era a sala de reuniões do Sector Cinco das Informações.

Calmamente, tomou a sua decisão. «Outros poderão contactá-lo». Os outros que viessem. Não compartilharia nada com Brevourt, o homem em busca da elasticidade que lhe mentira.

- Se me dá licença, Sir Anthony - disse o vice-almirante Hackett -, acho que havia muito mais terreno que podíamos ter coberto...

- Concordo - atalhou o general de brigada Teague, notando-se-lhe a irritação. - O almirante e eu temos as nossas divergências, mas nisto não, sir. Mal esgaravatámos a superfície. Realizámos um investimento excepcional e não obtivemos nada em troca; havia que extrair mais.

- Era escusado - disse fatigadamente Brevourt, aproximando-se lentamente da janela com cortinados que dava para o pátio. - Lia-se-lhe nos olhos. O Fontini-Cristi estava a dizer a verdade. Ficou aturdido com a informação. Não sabe de nada.

Hackett aclarou a garganta, prelúdio para um juízo:

- Não me pareceu que estivesse a espumar. Afigura-se-me que aceitou a coisa com bastante naturalidade.

O diplomata olhou distraidamente pela janela ao responder baixinho:

- Se ele tivesse espumado, eu tê-lo-ia mantido naquela cadeira durante uma semana. Comportou-se exactamente da maneira como um homem do género reage a notícias profundamente perturbadoras. O abalo foi demasiado grande para teatros.

- Admitindo a sua premissa - redarguiu friamente Teague -, isso não elimina a minha. Ele pode não se aperceber do que sabe. As informações secundárias conduzem frequentemente a uma fonte primária. No nosso ofício isso acontece quase sempre. Tenho de objectar, Sir Anthony.

- Tomo nota da sua objecção. Tem toda a liberdade de estabelecer futuros contactos; deixei isso claro. Mas não apurará mais do que apurámos esta tarde.

- Como é que pode estar tão seguro? - inquiriu prontamente o homem das Informações, cuja irritação depressa se transformava em fúria.

Brevourt virou as costas à janela, com uma expressão dolorida e olhar reflexivo.

- Porque conheci Savarone Fontini-Cristi. Há oito anos, em Atenas. Era um emissário neutral, penso que é o termo, de Roma. O único homem em quem Atenas confiava. As circunstâncias não interessam para aqui; o que interessa são os métodos de Fontini-Cristi. Era um homem possuidor do sentido da discrição. Era capaz de mover montanhas económicas, de negociar os mais difíceis acordos internacionais, porque todas as partes sabiam que a sua palavra valia mais do que qualquer contrato escrito. De uma forma estranha, era por isso que o temiam: cuidado com o homem de integridade total. A nossa única esperança era que ele tivesse chamado o filho. Caso precisasse dele.

Teague digeriu as palavras do diplomata e a seguir inclinou-se para diante, com os braços em cima da mesa.

- O que é que havia no comboio de Salónica? Nessa amaldiçoada arca?

 

Brevourt fez uma pausa antes de responder. Os dois oficiais compreenderam que, fosse o que fosse que o embaixador dissesse, seria tudo quando diria.

- Documentos escondidos do mundo durante catorze séculos. Poderiam dilacerar o mundo cristão, lançar Igrejas contra Igrejas... porventura nações contra nações; obrigar milhões de pessoas a tomar partido numa guerra como a de Hitler.

- E, ao fazê-lo - interrompeu Teague à guisa de pergunta -, dividir os que combatem a Alemanha.

- Sim, Inevitavelmente.

- Nesse caso o melhor é rezarmos para que não sejam encontrados - concluiu Teague.

- Reze fervorosamente, general. É estranho. Ao longo dos séculos, houve homens que deram de bom grado a vida para proteger a santidade desses documentos. Agora desapareceram. E todos os que sabiam onde eles estão morreram.

 

Janeiro de 1940 a Setembro de 1945 Europa

O telefone tocou na secretária antiga da suite do Savoy. Vittorio estava à janela de caixilhos a olhar o Tamisa, vendo as barcaças a subir e descer vagarosamente o rio sob a chuva da tarde. Consultou o relógio: eram exactamente quatro e meia. A chamada tinha de ser de Alec Teague, do MI 6.

Nas últimas semanas, Fontini-Cristi tinha sabido muitas coisas acerca de Teague: uma delas era que o homem era extremamente pontual. Se dissesse que telefonava por volta das quatro e meia, fazia-o às quatro e meia. Alec Teague governava a vida pelo relógio, o que dava azo a conversas abruptas.

Vittorio levantou o auscultador:

- Sim?

- Fontini? - O homem das Informações era também dado a abreviar no que tocava a nomes. Aparentemente, não via razão para acrescentar o Cristi quando Fontini era suficiente.

- Viva, Alec, estava à sua espera.

- Tenho os papéis - disse rapidamente Teague. - E as suas ordens. Os Negócios Estrangeiros estavam relutantes. Tanto podiam estar preocupados com o seu bem-estar como pensarem que você apresentaria uma conta à Coroa.

- A última é que sim, pode ter a certeza. O meu pai era uma «águia para os negócios», acho que é este o termo. Francamente, nunca percebi a frase: alguma vez se pode ser uma pomba nos negócios?

- Diabos me levem se sei - Teague não estava na verdade a ouvi-lo. - Acho que devíamos encontrar-nos imediatamente. Como é que está a sua noite?

- Vou jantar com Mistress Holcroft. Dadas as circunstâncias, posso cancelá-lo, claro.

- Holcroft? Ah, sim, a Spane.

- Acho que ela prefere Holcroft.

- Sim, não posso criticá-la. Ele é um pateta alegre. Mesmo assim, não pode renegar a etiqueta.

 

' O trocadilho original, de difícil reconstituição em português, é feito entre a expressão idiomática to drive a hatd bargain, isto é, «conseguir um negócio extremamente lucrativo», e a oposição entre o significado literal da palavra hard e o seu antónimo soft: o que Vittorio na realidade refere é a sua incredulidade perante a possibilidade de os negócios (bargains) poderem alguma vez ser soft, isto é, «macios», «brandos». (N. do T.)

 

- Ela faz o que pode por isso, acho eu. Teague riu-se:

- A danada da rapariga é tesa como tudo. Acho que havia de gostar dela.

- O que quer dizer que não a conhece, e quer que eu saiba que deu ordens para me seguirem. Nunca lhe referi o nome de casada dela.

Teague voltou a rir-se:

- Para seu próprio bem, não para o nosso.

- Quer que eu cancele?

- Não se mace. Quando é que estará despachado?

- Despachado?

- Do jantar. Oh, diabo, já me esquecia: você é italiano.

Vittorio sorriu. A lembrança de Alec surgira com toda a sinceridade.

- Posso acompanhar a senhora a casa às dez e meia... dez horas. Depreendo que quer encontrar-se comigo hoje à noite.

- Receio bem que tenha de ser. As suas ordens exigem que parta amanhã. Para a Escócia. De manhã.

O restaurante em Holborn chamava-se Fawn's. As janelas estavam cobertas por cortinas negras corridas, retesadas e fixadas com pregos, de modo a impedir a passagem de todo e qualquer raio de luz do interior para o exterior. Ele achava-se no bar, sentado num banco de canto, com a vista desimpedida para o salão e a entrada encoberta. Ela devia estar a chegar de um momento para outro, e sorriu para consigo, apercebendo-se de que queria imenso vê-la.

Sabia quando tinha começado com Jane, aquela relação de rápido avanço que daí a pouco conduziria ao esplêndido conforto da cama. Não fora o encontro no átrio do Savoy; nem a primeira noite que haviam passado um com o outro. Essas eram distracções agradáveis: ele não procurava mais, não pretendia mais.

O início fora cinco dias depois, quando estava sozinho, sentado nos seus aposentos. Ouvira uma batida na porta do átrio de entrada. Abrira. Jane estava de pé na entrada. Tinha na mão um exemplar levemente manuseado do Times. Ele não o vira.

- Por amor de Deus, que aconteceu? - perguntou ela.

Ele tinha-a feito entrar sem responder, sem saber bem o que quereria ela dizer. Ela estendera-lhe o jornal. No canto inferior esquerdo da primeira página, via-se um pequeno artigo circundado a lápis vermelho:

«Milão, 2 de Janeiro (REUTER) - Um véu de silêncio desceu hoje nesta cidade relativamente a qualquer notícia sobre as Indústrias Fontini-Cristi, quando funcionários governamentais assumiram o controlo da gestão empresarial. Desconhece-se o paradeiro de qualquer dos membros da família e a polícia selou a propriedade em Campo di Fiori. Correm inúmeros boatos quanto ao destino desta poderosa família, chefiada pelo financeiro Savarone Fontini-Cristi e pelo seu filho mais velho, Vittorio. Fontes dignas de crédito indicam que poderão ter sido mortos por patriotas enfurecidos com as recentes decisões da empresa, que muitas pessoas tinham por hostis aos interesses da Itália. Soube-se que o corpo mutilado de um "informador" (que o jornalista não viu) apareceu enforcado na Piazza del Duomo, com um letreiro que parece confirmar os rumores de execução. Roma emitiu uma declaração segundo a qual os Fontini-Cristi eram inimigos do Estado».

Vittorio pousara o jornal e atravessara o compartimento, afastando-se da rapariga. Sabia que a intenção dela era boa; não lhe censurava o cuidado. Não obstante, ficara profundamente contrariado. A angústia era somente sua e não estava disposto a compartilhá-la. Ela intrometera-se.

- Desculpa - disse ela baixinho. - Foi um atrevimento da minha parte. Não tinha o direito de fazer o que fiz.

- Quando foi que leste isso?

- Há menos de meia hora. Tinham-no deixado em cima da secretária. Falei de ti a pessoas amigas. Não via razões para não o fazer.

- E vieste logo para aqui?

- Sim.

- Porquê?

- Fiquei em cuidado - foi a singela resposta da rapariga. A honestidade da réplica comovera-o. - Agora vou-me embora.

- Por favor...

- Queres que fique?

- Sim. Acho que sim.

E, desta maneira, contara-lho. Primeiro num tom comedido, em que as frases iam ganhando ímpeto à medida que se aproximava da noite hedionda de luz branca e morte que era Campo di Fiori. Sentia a garganta seca. Não tinha vontade de continuar.

E Jane fez uma coisa estranha. Afastada dele pela curta distância entre as cadeiras defronte uma da outra, sem esboçar um movimento para encurtar essa distância, obrigou-o a continuar.

- Por amor de Deus, di-lo. Tudo!

Disse isto num sussurro, mas o sussurro era uma ordem e, na sua confusão e angústia, ele acatou-a.

Quando terminou, sentiu-se inundado de alívio. Pela primeira vez em vários dias, tinha-se libertado de um peso insuportável. Não definitivamente: ele havia de voltar. Mas de momento recobrava a sanidade; recobrara-a mesmo, não se tratava de uma simulação imposta que lhe deixava sempre a respiração um pouco oprimida.

Jane tinha visto aquilo que ele não compreendera. E dissera-o:

- Julgavas que podias continuar a guardar tudo lá dentro? Sem dizeres as palavras, sem as ouvires? Que espécie de homem julgas afinal que és?

Que espécie de homem? Não sabia bem. Nunca tinha pensado realmente na espécie de homem que era: não se tratava de uma questão que o tivesse preocupado para além de determinados limites. Era Vittorio Fontini-Cristi, filho primogénito de Savarone. Agora ia descobrir o que mais era. Perguntava a si mesmo se Jane poderia fazer parte do seu novo mundo. Ou se o ódio e a guerra fariam estiolar tudo. Sabia apenas que a guerra - e o ódio - eram os seus trampolins para voltar à vida.

Razão essa pela qual encorajara Alec Teague quando o homem do MI 6 contactara com ele na sequência da desastrosa reunião no Sector Cinco das Informações. Teague pretendia documentação sobre antecedentes: conversas aparentemente desprovidas de importância, observações espontâneas, palavras singularmente repetidas - tudo quanto pudesse relacionar-se com o comboio de Salónica. Mas Vittorio queria também qualquer coisa. De Teague. Por conseguinte, isolou os fragmentos dispersos de informação: um rio

que podia estar ou não relacionado com Zurique, um distrito dos Alpes italianos que tinha o nome de Champoluc, mas não incluía rio nenhum. Fosse qual fosse o enigma, as peças permaneciam por juntar. Mesmo assim, Teague sondava.

E, enquanto ele sondava, Vittorio inferia as opções concebíveis que o MI 6 poderia ter para ele. Falava fluentemente inglês e italiano e era mais que versado em francês e alemão; possuía um íntimo conhecimento prático de uma porção de indústrias europeias e tinha negociado com as principais figuras financeiras de toda a Europa. Isso era decerto qualquer coisa.

Teague disse que iria ver. Ontem Teague dissera que lhe telefonaria hoje às quatro e meia; podia ser que houvesse alguma coisa. Nessa tarde, às quatro e meia em ponto, Teague telefonara; tinha as «ordens» de Vittorio. Houvera mesmo qualquer coisa. Fontini-Cristi perguntava a si mesmo o que seria, e mais ainda, o porquê do carácter repentino da sua partida para a Escócia.

- Estás há muito tempo à espera? - perguntou Jane Holcroft, subitamente ao seu lado no bar debilmente iluminado.

- Oh, desculpa! - Vittorio sentia-se efectivamente em falta: não a tinha visto no salão. - Não, não, quase nada.

- Estavas a quilómetros daqui. Olhaste mesmo para mim e, quando eu sorri, carregaste o sobrolho. Espero bem que isso não seja sintomático.

- Não, santo Deus! Tinhas razão: estava a quilómetros daqui. Na Escócia.

- Como?

- Conto-te à mesa. O que sei... o que é bem pouco. Foram conduzidos à mesa e mandaram vir bebidas.

-Já te falei do Teague - disse ele, acendendo-lhe o cigarro e aproveitando a chama do fósforo para o seu.

- Sim. O homem das Informações. Não disseste grande coisa acerca dele. Apenas que parecia ser boa pessoa e que fez uma porção de perguntas.

- Não tinha outro remédio. A minha família exigia-o. - Fontini-Cristi não falara a Jane do comboio de mercadorias de Salónica: não merecia a pena. - Há uma data de semanas que ando a serraziná-lo para me arranjar trabalho.

- No serviço?

- Em qualquer serviço. Era o homem lógico a abordar: conhece gente em toda a parte. Concordámos ambos que tenho qualificações que podem ser úteis para alguém.

- Que vais fazer?

- Não sei, mas, seja o que for, principia na Escócia.

O criado chegou com as bebidas. Vittorio agradeceu com um aceno de cabeça, cônscio de que Jane mantinha o olhar no seu rosto.

- Há campos de treino na Escócia - disse ela baixinho. - Há muitos que se contam entre os altamente classificados- São muito secretos e fortemente guardados.

Vittorio sorriu.

- Não hão-de ser demasiado secretos.

A rapariga devolveu-lhe o sorriso, com a explicação integral nos olhos e apenas metade nas palavras.

- Há um complicado sistema de retransmissores de alarme de defesa aérea ao longo das áreas. Sectores sobrepostos: extremamente difíceis de penetrar por aviões. Especialmente monomotores ligeiros.

-Já me esquecia. O gerente do Savoy disse que vocês não eram para graças.

- Também recebemos uma instrução muito completa sobre todos os sistemas existentes. Bem como dos que estão em fase de desenvolvimento. Os sistemas variam consideravelmente de um sector para outro. Quando é que partes?

- Amanhã.

- Estou a ver. Por quanto tempo?

- Não sei.

- Claro. Já o tinhas dito.

- Fiquei de encontrar-me com o Teague à noite. Depois do jantar, mas não há necessidade de pressas. Só vou ter com ele às dez e meia. Presumo que nessa altura saberei mais.

Jane manteve-se calada durante alguns instantes. Cravou os olhos nos dele e a seguir falou com simplicidade:

- Depois de acabar o teu encontro com o Teague, vais ter comigo? Ao meu apartamento? Contar-me o que puderes?

- Vou, sim.

- Não importa as horas que sejam. - Poisou a mão sobre a dele. - Quero que estejamos juntos.

- Também eu.

O general de brigada Teague desfez-se do amarrotado boné de oficial e do sobretudo do Exército e atirou-os para cima da cadeira do Savoy. Desabotoou o jaquetão e o colarinho e aliviou a gravata. Inclinando-se, descansou a larga e poderosa ossatura no macio sofá e exalou um suspiro de descontracção. Dirigiu um largo sorriso a Fontini-Cristi, que estava de pé junto de uma poltrona em frente e tinha as mãos postas numa atitude suplicante.

- Dado que ando nisto desde as sete da manhã, acho que devia oferecer-me uma bebida. Uísque puro seria esplêndido.

- Com certeza. - Vittorio dirigiu-se ao pequeno bar junto à parede, encheu dois copos baixos e regressou com as bebidas.

- Mistress Spane é uma mulher muitíssimo atraente - disse Teague. - E tem toda a razão, sabe? Prefere mesmo o nome de solteira. No Ministério da Aeronáutica, o «Spane» fica entre parênteses. Tratam-na por tenente-aviadora Holcroft.

- Tenente-aviadora? - Vittorio não sabia porquê, mas o título afigurava-se-lhe levemente divertido. - Nunca a tinha imaginado em termos tão militares.

- Sim, compreendo o que quer dizer. - Teague terminou rapidamente a bebida e pousou o copo na mesinha de café. Vittorio fez menção de servir-lhe outra bebida. - Mais não, obrigado. Está na hora de falarmos de coisas sérias. - O homem das Informações consultou o relógio de pulso; Fontini-Cristi perguntou a si próprio se Teague estabeleceria mesmo meio minuto preciso para conversas sociais.

- Que há na Escócia?

- O seu local de residência durante o próximo mês, ou perto disso. Caso aceite as condições de emprego. O ordenado não é exactamente aquilo a que está habituado, receio bem. - Teague voltou a exibir um sorriso rasgado. - Para dizer a verdade, equiparámo-lo um tanto ou quanto arbitrariamente ao de um capitão. Não tenho os números de cor.

- O que me preocupa não são os números. Diz que eu tenho a prerrogativa da escolha, mas anteriormente disse que as minhas ordens tinham chegado. Não compreendo.

- Não temos qualquer controlo sobre você. Pode rejeitar o emprego, e eu anulo as ordens. É tão simples como isto. Contudo, a fim de poupar tempo, fiz o ajuste antecipadamente. Para falar com franqueza, no intuito de certificar-me de que podia ser feito.

- Muito bem. De que se trata?

- É bastante difícil de responder assim do pé para a mão. Se é que é sequer possível. Não sei se está a ver: depende muito de si.

- De mim?

- Sim. As circunstâncias de que se rodeou a sua evacuação de Itália foram excepcionais, todos compreendemos isso. Mas você não é o único continental que fugiu da Europa. Temos dezenas e dezenas deles. E já não falo dos judeus e dos bolchevistas: esses são aos milhares. Refiro-me a muita gente como o senhor. Homens de negócios, profissionais, cientistas, engenheiros, universitários, que, por uma ou outra razão (nós gostamos de pensar que foi por repugnância moral), não conseguiam funcionar no local onde viviam. É mais ou menos onde estamos.

- Não compreendo. Onde é que vocês estão?

- Na Escócia. Juntamente com quarenta ou cinquenta vulgares continentais (todos eles bastante bem sucedidos nas suas actividades anteriores) à procura de um chefe.

- E acha que esse chefe podia ser eu?

- Quanto mais penso nisso, mais convencido fico. Qualidades mais ou menos naturais, creio. Você movimentava-se nos círculos das pessoas endinheiradas, fala as línguas. Acima de tudo, é um homem de negócios, criou mercados em toda a Europa. Meu Deus, homem, as Indústrias Fontini-Cristi são imensas e você era o seu principal gestor. Adapte-se à situação. Faça aquilo que fez maravilhosamente durante a última meia dúzia de anos, ou perto disso. Simplesmente, faça-o do ponto de vista contrário. Má gestão.

- Mas do que é que o senhor está a falar?

O general de brigada prosseguiu, falando rapidamente:

- Temos na Escócia homens que trabalharam em muitas ocupações e profissões em todas as principais cidades da Europa. Um passo leva sempre a outro, não é assim?

- É com isso que o senhor está a contar, não é? Ambos fazemos perguntas. Teague inclinou-se para diante, repentinamente meditativo:

- Vivemos tempos febris e complexos. Há mais perguntas do que respostas. Mas havia uma resposta que estava mesmo diante do seu nariz, só que você não a viu. Estávamos a treinar estes homens para as coisas erradas! Isto é, não sabíamos bem para o quê é que estávamos a treiná-los: vagamente para contactos clandestinos, surtidas de informação de rotina, era tudo amorfo. Há qualquer coisa de melhor; diabolicamente engenhoso, ainda que seja eu próprio a dizê-lo. A estratégia, o conceito, é mandá-los de volta para desmembrarem o mercado, causarem estragos: não tanto sabotagem física, que nisso já temos gente que chegue, mas o caos burocrático. Deixá-los operar nos seus antigos cargos. Gabinetes de contabilidade sistematicamente com as contas erradas, conhecimentos de carga constantemente inexactos, prazos de entrega a trouxe-mouxe, confusão nas fábricas: exemplar má gestão a todo o custo!

Teague estava excitado e o seu entusiasmo era contagiante. Vittorio experimentou dificuldade em concentrar-se na essência da questão inicial.

- Mas por que razão tenho de partir de manhã?

- Para falar com toda a franqueza, disse que poderia perdê-lo se houvesse qualquer demora mais.

- Mais? Como é que pode dizer uma coisa dessas? Cheguei aqui ainda não há...

- Porque - atalhou Teague - apenas cinco pessoas em Inglaterra sabem por que razão efectivamente o evacuámos de Itália. A sua total falta de informações acerca do comboio de Salónica deixou-as estupefactas. Correram um risco extraordinário e perderam. O que você me disse não leva a nada; os nossos agentes em Zurique, em Berna, em Trieste, em Monfalcone... não podem seguir pista alguma. De maneira que me saí com uma versão diferente do motivo por que lhe deitámos a mão e salvei umas quantas cabeças com o negócio. Disse que esta nova operação era ideia sua. Eles deitaram-se a ela como gato a bofe! No fim de contas, você é um Fontini-Cristi. Aceita?

Vittorio sorriu:

- «Má gestão a todo o custo» Trata-se de um lema que duvido tenha precedentes. Sim, estou a ver as possibilidades. Agora se são imensas, ou teóricas, é o que resta ver. Aceito.

Teague sorriu maliciosamente.

- Há mais uma coisa. Quanto ao seu nome...

- Victor Fontine? - Jane desatou a rir, ao seu lado no sofá do apartamento de Kensington, aquecido pelo fulgor das achas a arder na lareira. - Se isso não é descaramennto inglês, não sei o que seja! Colonizaram-te!

- E no meio disso fizeram-me oficial - riu entre dentes o capitão Victor Fontine, erguendo o sobrescrito na mão e deixando-o cair na mesinha de café. - O Teague foi divertido. Abordou a questão mais ou menos da maneira como uma pessoa espera no cinema. «Temos de arranjar-lhe um nome. Qualquer coisa que seja imediatamente identificável, fácil de usar em telegramas». Fiquei intrigado. Iam dar-me um nome de código, qualquer coisa bastante teatral, imaginava eu. Uma pedra preciosa, talvez, com um número. Ou o nome de um animal. Em vez disso, limitou-se a anglicizar o meu nome e cortar-lhe um bocado. - Victor riu-se. - Hei-de habituar-me a ele. Não é para toda a vida.

- Eu não sei se serei capaz, mas vou tentar. Para falar com franqueza, é uma bela decepção.

- Todos nós temos de fazer sacrifícios. Não estou enganado pressupondo que um capitano é hierarquicamente superior a um tenente-aviador?

- O tenente-aviador» não tenciona dar ordens. Não me parece que nenhum de nós seja lá muito militar. E Kensington tão-pouco. E quanto à Escócia?

Ele contou-lho vagamente, não especificando os factos que conhecia. Enquanto falava, via e sentia os seus olhos invulgarmente azuis-claros sondando os dele, a olharem para lá das frases improvisadas, cientes decerto de que havia mais, ou viria a haver. Vestia um confortável roupão amarelo-pálido, que lhe realçava o cabelo castanho muito escuro e fazia sobressair o azul dos olhos. Por baixo do roupão, entre as lapelas largas, ele distinguia o branco suave da camisa de noite e percebeu que ela queria que ele a visse e lhe apetecesse tocá-la.

Era tudo extremamente confortável, pensava Fontine. Não dava a noção de urgência nem de estratagema. A certa altura do monólogo, tocou no ombro dela; ela ergueu lenta e brandamente a mão e apertou a dele, com os dedos a acariciarem os de Victor. Guiou-lhe a mão até ao regaço e cobriu-lha com a outra mão quando ele terminou.

- Portanto, aí está. «Má gestão a todo o custo» onde quer que possa ser implantada.

Ela manteve-se calada por momentos, com os olhos ainda a sondá-lo, e depois sorriu:

- É uma ideia maravilhosa. O Teague tem razão: as possibilidades são imensas. Quanto tempo vais estar na Escócia? Ele disse?

- Não especificamente. «Umas quantas semanas». - Retirou a mão da sua e, de uma maneira descuidada, natural, passou o braço por cima dos ombros dela e puxou-a para si. Ela apoiou a cabeça na parte superior do peito dele, que lhe beijou o cabelo macio. Ela endireitou-se para trás e ergueu os olhos para ele - sempre a perscrutá-lo. Descerrou os lábios ao mover-se para ele, pegou-lhe na mão e, de uma maneira descuidada, perfeitamente natural, conduziu-a por entre as lapelas do roupão e colocou-a no seio. Quando os lábios de ambos se encontraram, Jane gemeu e abriu mais a boca, acolhendo toda a humidade da dele.

- Foi muito tempo - sussurrou por fim.

- És maravilhosa - respondeu ele, afagando-lhe o cabelo macio com a mão e beijando-lhe os olhos.

- Quem me dera que não tivesses de partir! Não quero que vás! Estavam de pé em frente do pequeno sofá. Ela ajudou-o a despir o casaco,

fazendo uma pausa para comprimir o rosto de encontro ao peito dele. Voltaram a beijar-se, abraçando-se primeiro com suavidade, mas depois com crescente intensidade. Por um brevíssimo espaço de tempo, Victor poisou-lhe as mãos e fê-la recuar; o rosto encantador da rapariga estava em plano inferior ao seu e ele falou para os seus olhos azuis:

- Vou sentir terrivelmente a tua falta. Deste-me imenso.

- E tu deste-me aquilo que eu receava encontrar - respondeu ela, esboçando com os lábios um sorriso suave e calmo. - Receava procurar, aliás. Meu Deus, ficava paralisada!

Pegou na mão dele e atravessaram a sala até uma porta, a do quarto; um único candeeiro de marfim estava aceso numa mesa-de-cabeceira; a luz branco-amarelada iluminava as paredes azuis-claras e a mobília simples, cor de marfim. A colcha de seda que cobria a cama era, também ela, azul e branca e coberta dos complicados círculos de um desenho floral. Era tudo tão sereno,

tão distante, tão encantador como Jane era encantadora.

É . . um quarto muito íntimo. E cheio de calor - disse Fontine, impressionado com a singela beleza. - É um quarto extraordinário, porque é o teu quarto e tu gostas dele. Pareço-te disparatado?

- Pareces italiano - respondeu ela baixinho, sorrindo, com os olhos repletos de amor e urgência. - A intimidade e o calor são para tu partilhares. Quero que os compartilhes.

Dirigiu-se para um dos lados da cama, e ele para o outro. Juntos, dobraram para trás a colcha de seda; as mãos de ambos tocaram-se e olharam um para o outro. Jane contornou a cama, direita a ele. Ao fazê-lo, levantou as mãos e desabotoou a parte de cima do penteador, após o que desapertou a fita da

camisa de noite. O tecido escorregou-lhe pelo corpo e os seus seios redondos e cheios emergiram das dobras da seda, com os bicos rosados e tesos.

Ele tomou-a nos braços, com os lábios a procurar os dela, numa excitação húmida e suave. Jane apertou o corpo contra o dele. Victor não se lembrava de alguma vez se ter sentido tão completo, tão totalmente excitado. As compridas pernas dela tremiam e voltou a apertá-lo contra si. Abriu a boca e os seus lábios cobriram os dele, arrancando-lhe da garganta gemidos abafados de doce prazer.

- Oh, meu Deus, toma-me, Vittorio. Depressa, depressa, meu amor!

O telefone tocou na secretária de Alec Teague. Ele olhou para o relógio de escritório da parede e a seguir para o de pulso. Faltavam dez minutos para a uma hora da manhã. Levantou o auscultador.

- Fala Teague.

- Aqui Reynolds, de sentinela. Temos o relatório. Ainda está em Kensington, no apartamento da Holcroft. Pensamos que vai passar lá a noite.

- óptimo! Estamos à tabela. Tudo conforme o plano.

- Quem me dera saber o que foi dito! Podíamos ter arranjado isso, sir.

- Perfeitamente escusado, Reynolds. Registe uma anotação para os dossiers, amanhã de manhã: contactar com Parkhurst, do Ministério da Aeronáutica. Há que ter uma certa condescendência e flexibilidade para com a tenente-aviadora Holcroft, incluindo uma deslocação aos retransmissores de alarme de Loch Torridon, na Escócia, se isso se puder arranjar discretamente. Agora, vou-me embora, ver se durmo um bocado. Boa noite.

Loch Torridon ficava a oeste das terras altas de noroeste, à beira de água, a origem do braço de mar que levava às Hébridas. No interior havia muitas ravinas profundas, com rios que se precipitavam das regiões mais elevadas, água gélida e transparente e formava bolsas de charcos. O aquartelamento ficava entre a costa e os montes. O terreno era acidentado. Isolado, invulnerável, patrulhado por guardas armados e cães. Oito quilómetros a nordeste ficava uma pequena vila com uma única rua principal que serpenteava por entre umas quantas lojas e se transformava numa estrada de terra na periferia.

Os montes propriamente ditos eram alcantilados e os desfiladeiros, abruptos, profusamente cobertos de árvores altaneiras de espessa folhagem. Era nos montes que os continentais se submetiam aos rigores do treino físico. Mas o treino era lento e laborioso. Os recrutas não eram soldados, mas homens de negócios, professores e profissionais, pouco preparados para suportar esforços físicos violentos.

O denominador comum era o ódio aos Alemães. Vinte e dois tinham raízes na Alemanha e na Áustria; havia também oito polacos, nove holandeses, sete belgas, cinquenta e três cidadãos outrora respeitáveis que tinham feito os seus próprios cálculos meses atrás.

Sabiam que um dia seriam enviados de volta para as suas pátrias. Mas, como Teague observara, era um tipo de objectivo informe. E esta participação indefinida, aparentemente inferior, era inaceitável para os continentais; ouviam-se correntes subterrâneas de descontentamento nas quatro casernas ao meio do campo. Quando as notícias de vitórias alemãs surgiram com alarmante rapidez pela rádio, as frustrações redobraram.

«Por amor de Deus! Quando? Onde? Como? Estamos a perder-nos!»

O comandante do campo saudou Victor Fontine com não pouca fadiga. Era um oficial do exército regular sem papas na língua e licenciado pelas diversas escolas de operações secretas do MI 6.

- Não vou fingir que percebo muita coisa - disse ele na primeira reunião. - As minhas instruções são nebulosas, como se pretende que sejam, imagino eu. Vai passar três semanas, mais ou menos, até que o general Teague nos dê a ordem, a treinar com o nosso grupo como qualquer um dos homens. Fará tudo o que eles fizerem, nada de fora do vulgar.

- Sim, com certeza.

Com estas palavras, Victor entrou no mundo de Loch Torridon. Um mundo estranho, embrulhado, que tinha pouco de comum com tudo o que lhe acontecera até então. E compreendia, embora não tivesse a certeza da razão, que as

lições de Loch Torridon se fundiriam com os ensinamentos de Savarone e moldariam os restantes anos da sua vida.

Deram-lhe um fato-macaco de combate e equipamento da ordenança, incluindo uma espingarda e uma pistola (sem munições), uma baioneta de carabina que se dobrava como um canivete, uma mochila de campanha e um cobertor. Passou às casernas, onde foi cumprimentado sem grande deferência, com o menor número de palavras possível e sem curiosidade. Aprendeu depressa que não havia grande camaradagem em Loch Torridon. Aqueles homens viviam dentro e na companhia do seu passado próximo: não procuravam amizades.

As horas do dia eram longas e fatigantes; as noites, passadas a decorar códigos e mapas e no sono profundo necessário para aliviar o corpo dorido. De certo modo, Victor começou a encarar Loch Torridon como um prolongamento de outros jogos recordados. Dir-se-ia que estava de regresso à universidade, em competição com os colegas no campo, nos recintos desportivos, nos tapetes, ou nas encostas a correr pela vertente abaixo em contra-relógio. Com a diferença de que os colegas de Loch Torridon eram diferentes; na sua maioria eram mais velhos do que ele e nenhum tinha conhecido, mesmo que vagamente, o que era ser um Fontini-Cristi. Isso apurou ele através de breves conversas; era fácil manter-se fechado em si mesmo e por conseguinte competir consigo próprio. Tratava-se da mais cruel competição.

- Viva. O meu nome é Mikhailovic. - O homem que sorria e falava com Victor atirou-se para o chão, respirando profundamente. Aliviou as correias da mochila de campanha e deixou o volumoso saco de lona escorregar-lhe pelas costas. Estavam a meio de um intervalo de dez minutos entre uma marcha forçada e um exercício de manobras tácticas.

- O meu é Fontine - respondeu Victor. O homem era um dos dois novos recrutas que tinham chegado a Loch Torridon, havia menos de uma semana. Tinha vinte e tal anos e era o instruendo mais novo do aquartelamento.

- É italiano, não é? Da Caserna Três?

- Sim.

- Eu sou servo-croata, Caserna Um.

- O seu inglês é muito bom.

- O meu pai é exportador... era, digo. O dinheiro está nos países de língua inglesa.

Mikhailovic tirou um maço de cigarros do bolso do fato-macaco e ofereceu-o a Fontine.

- Não, obrigado, ainda agora acabei um.

- Estou com o corpo todo dorido - disse o eslavo, acendendo um cigarro. - Não sei como é que os velhos se safam.

- Já cá andamos há muito tempo.

- Não me refiro a si. Refiro-me aos outros.

- Obrigado. - Victor perguntou a si mesmo por que razão se queixaria Mikhailovic. Era um homem entroncado, de constituição vigorosa, pescoço de toiro e ombros largos. Havia ainda outra coisa nele que era estranha: não se via a menor transpiração na testa de Mikhailovic, ao passo que a de Fontine estava coberta de suor.

- Saiu de Itália antes que Mussolini fizesse de si um lacaio da Alemanha, não?

- Mais ou menos isso.

- O Machek vai pelo mesmo caminho. Não há-de tardar muito que mande na Jugoslávia inteira, tome nota do que lhe digo.

- Não sabia disso.

- Não há muita gente que saiba. O meu pai sabia. - Mikhailovic puxou uma fumaça do cigarro, alongando o olhar pelos campos fora. - Acrescentou em voz baixa: - Executaram-no.

- Lamento. É doloroso, bem sei.

- Sabe? - O eslavo virou-se: havia uma expressão desconcertada nos seus olhos.

- Sei. Mais tarde falamos. Temos de concentrar-nos na manobra. O objectivo é alcançar o cimo do próximo monte pelo meio do arvoredo sem sermos seguidos. - Victor pôs-se de pé e estendeu a mão. - O meu primeiro nome é Victor... Victor. Qual é o seu?

O servo-croata aceitou firmemente o aperto de mão.

- Petride. É grego. A minha avó era grega.

- Bem-vindo a Loch Torridon, Petride Mikhailovic.

À medida que os dias passavam, Victor e Petride funcionavam bem em conjunto. Tão bem, aliás, que os sargentos do aquartelamento os emparelhavam contra grupos numericamente superiores nos exercícios de infiltração. Petride foi autorizado a transferir-se para a caserna de Victor.

Para Victor, foi como se um dos seus irmãos mais novos tivesse voltado repentinamente à vida: curioso, muitas vezes desconcertado, mas forte e obediente. Em certos aspectos, Petride preenchia um vazio, mitigava a dor das suas recordações. Se havia algum ónus no relacionamento entre eles, era meramente o do exagero por parte do servo-croata. Petride era demasiado falador, passava o tempo a fazer perguntas e estava constantemente a prestar informações espontâneas sobre a sua vida particular, esperando que Victor retribuísse.

A partir de determinado ponto, Fontine não era capaz. Não estava pura e simplesmente inclinado a fazê-lo. Tinha compartilhado a angústia de Campo di Fiori com Jane; não haveria mais ninguém. De vez em quando, achava necessário repreender Petride Mikhailovic.

- Você é meu amigo, e não o meu padre.

- Tinha algum padre?

- Para dizer a verdade, não. Era uma figura de retórica. - A sua família era religiosa. Deve ter sido.

- Porquê?

- O seu verdadeiro nome. «Fontini-Cristi». Quer dizer «fontes de Cristo», não quer?

- Numa língua que tem vários séculos. Não somos religiosos no sentido convencional; desde há muito tempo.

- Eu sou muito religioso.

- Está no seu direito.

A sexta semana começou e terminou e continuava a não haver notícias de Teague. Fontine perguntava a si mesmo se não fora esquecido, se o MI 6 não teria reconsiderado o conceito de «má gestão a todo o custo». Independentemente disso, a vida em Loch Torridon tinha-lhe varrido do espírito as autodestruidoras recordações; sentia-se na realidade novamente forte e capaz.

Os tenentes do aquartelamento haviam idealizado aquilo a que chamavam um exercício de «perseguição longa» para esse dia. As quatro casernas operavam em separado, ocupando cada uma delas quarenta e cinco graus da agulha magnética num raio de dezasseis quilómetros centrado em Loch Torridon. Era dado um quarto de hora de avanço a dois homens de cada caserna antes de os recrutas se lançarem na sua peugada, consistindo o exercício na tentativa de os perseguidos escaparem aos perseguidores durante o maior espaço de tempo possível.

Era natural que os sargentos escolhessem os dois melhores de cada caserna para iniciar o exercício. Victor e Petride foram os primeiros fugitivos da Caserna Três.

Correram pela encosta rochosa abaixo, direitos ao arvoredo de Loch Torridon.

- Depressa agora! - ordenou Fontine. ao embrenharem-se na densa folhagem do bosque. - Metemos pela esquerda. Pela lama; entre pela lama dentro! Quebre o maior número de galhos que possa.

Não chegaram a correr mais de cinquenta metros, batendo com os pés na húmida picada de terra macia que se internava pelo bosque. Victor deu a segunda ordem:

- Alto! Já estamos suficientemente longe. Agora, com cuidado. Vamos deixar pegadas na terra seca... Já chega. Muito bem; agora caminhe para trás, com os pés mesmo em cima das pegadas. Pelo meio da lama... óptimo. Agora vamos voltar para trás.

- Voltar para trás? - perguntou Petride, desorientado. - Voltar para trás para onde?

- Para a orla do bosque. Para onde entrámos. Ainda temos oito minutos. É o suficiente.

- Para quê? - O servo-croata olhava para o amigo mais velho como se Fontine fosse divertidamente louco.

- Para subirmos a uma árvore. Onde não nos vejam.

Victor escolheu um alto pinheiro-bravo no meio de um tufo de árvores de menor porte e principiou a trepar, alcandorando-se até ao primeiro nível de ramadas. Petride seguiu-lhe no encalço, com o rosto infantil exultante. Chegaram ambos a três quartos da altura do pinheiro, agarrando-se bem ao tronco. Embora ficassem quase escondidos pelas ramagens, conseguiam ver o terreno em redor.

- Temos ainda cerca de dois minutos - murmurou Victor, olhando para o relógio. - Faça força com os pés para deitar abaixo alguma pernada solta. Assente solidamente o peso do corpo.

Decorridos dois minutos e trinta segundos, os perseguidores passaram bem longe lá em baixo. Fontine inclinou-se para o jovem servo-croata.

- Vamos dar-lhes dois minutos de avanço e depois descemos. Seguimos direito ao outro lado do monte, onde há uma zona que fica em frente de uma ravina. É um bom esconderijo.

- À distância de uma pedrada da linha de partida! - observou Petride com um sorriso largo. - Como é que se lembrou de tal coisa?

- Você nunca teve irmãos com quem brincar. O jogo das escondidas era uma das brincadeiras preferidas.

O sorriso de Mikhailovic desvaneceu-se.

 -Tenho muitos irmãos - disse enigmaticamente, desviando o olhar. Não havia tempo para aprofundar a afirmação de Petride. Nem tão-pouco

Victor o desejava. No decurso dos últimos oito dias, mais ou menos, o jovem servo-croata tinha-se comportado de uma maneira bem estranha, ora taciturno, ora grotesco, e a fazer incessantes perguntas que passavam os limites de uma amizade de seis semanas. Fontine consultou o relógio.

- Desço eu à frente. Se não houver ninguém à vista, puxo os ramos. E o sinal para você me seguir.

No chão, Victor e Petride agacharam-se e correram para leste pela orla do arvoredo, o sopé do monte de partida. A trezentos metros, em torno da periferia do monte, havia uma vertente de rochedos escarpados sobranceiros a uma profunda ravina. Tinha sido esculpida no monte pela fractura de um glaciar eras atrás, um refúgio natural. Avançaram literalmente através do desfiladeiro. Respirando pesadamente, Fontine baixou-se, ficando sentado, com as costas apoiadas na escarpa rochosa. Abriu o bolso do blusão de campanha e tirou de lá um maço de cigarros. Petride sentou-se defronte dele, com as pernas sobre a borda da saliência. O poleiro isolado não tinha mais de dois metros de largura e talvez metro e meio de fundo. Victor tornou a olhar para o relógio. Agora já não havia necessidade de falar em surdina.

- Daqui a meia hora, subimos ao cume e surpreendemos os tenentes. Um cigarro?

- Não, obrigado - respondeu abruptamente Mikhailovic, de costas para Fontine.

A entoação de zanga não podia passar despercebida.

- Que foi? Magoou-se?

Petride virou-se. Os seus olhos poisaram em Victor.

- Por assim dizer, magoei-me.

- Não vou tentar perceber isso. Ou se magoou ou não se magoou. Não estou interessado em coisas que são por assim dizer.

Fontine resolveu que, se aquele ia ser um dos períodos de depressão de Mikhailovic, podiam muito bem passar sem conversas. Começava a pensar que, por detrás daquela inocência de olhos arregalados, Petride Mikhailovic era um jovem perturbado.

- Você escolhe o que lhe interessa, não escolhe, Victor? Desliga o mundo a seu bel-prazer. Com um interruptor na sua cabeça, é tudo vazio. Nada.

O servo-croata fitava Fontine à medida que falava.

- Esteja calado. Aprecie a paisagem, fume um cigarro e deixe-me em paz. Está a tornar-se maçador.

Mikhailovic puxou lentamente as pernas para si por cima do rebordo, com os olhos ainda cravados em Victor.

- Não deve repelir-me. Não pode. Partilhei os meus segredos consigo. Abertamente, de livre vontade. Agora você deve fazer o mesmo.

Fontine olhou para o servo-croata, subitamente apreensivo.

- Acho que está enganado acerca da nossa relação. Ou talvez tenha sido eu que me enganei acerca das suas preferências.

- Não me insulte.

- Simples clarificação...

- O meu tempo esgotou-se! - Petride levantou a voz; as suas palavras formaram um grito, ao mesmo tempo que os olhos permaneciam muito abertos, sem pestanejar. - Você não é cego! Não é surdo! No entanto, finge sê-lo!

- Saia daqui - ordenou calmamente Victor. - Volte para a linha de partida. Para junto dos sargentos. O exercício terminou.

- O meu nome - sussurrou Mikhailovic, com uma perna puxada para

cima, sob o vigoroso corpo acocorado. - Desde o princípio que se recusa a reconhecê-lo! Petride!

- É o seu nome. Eu reconheço-o.

- Nunca o ouviu? É isso que está a dizer?

- Se ouvi, não me causou impressão especial.

- Isso é mentira! É o nome de um sacerdote. E você conheceu esse sacerdote! - As palavras voltaram a erguer-se nos ares, um grito solto em desespero.

- Conheci uma porção de sacerdotes. Nenhum com esse nome...

- Um sacerdote num comboio! Um homem devotado à glória de Deus! Que trilhava na graça da Sua santa obra! Você não pode, não deve renegá-lo!

- Mãe de Cristo! - Fontine falou inaudivelmente: o choque foi avassalador. - Salónica. O comboio de mercadorias de Salónica.

- Sim! Esse sacratíssimo comboio: documentos que são o sangue, a alma, da Igreja una, incorruptível, imaculada! Você tirou-no-los!

- Você é um sacerdote de Xenope - disse Victor, incrédulo perante a revelação. - Meu Deus, você é um monge de Xenope!

- Com todo o meu coração! Com toda a minha mente, a minha alma e o meu corpo!

- Como veio aqui parar? Como é que penetrou em Loch Torridon? Mikhailovic puxou a outra perna para si; agora estava inteiramente agachado, um animal louco preparado para o salto.

- Não interessa. Tenho de saber para onde é que a arca foi levada, onde foi escondida. Diga-mo, Vittorio Fontini-Cristi! Não tem outro remédio!

- Dir-lhe-ei o mesmo que disse aos britânicos. Não sei nada! Os ingleses salvaram-me a vida; por que razão havia de mentir?

- Porque.deu a sua palavra. A outro.

- A quem?

- Ao seu pai.

- Não! Mataram-no antes de ele poder dizer as palavras! Se você sabe alguma coisa, há-de saber isso!

Os olhos do sacerdote de Xenope ficaram repentinamente imóveis. O seu olhar era velado, as pálpebras dilatadas. Meteu a mão por baixo do blusão de campanha e tirou de lá uma pequena automática, de forma achatada. Com o polegar, destravou a patilha de segurança.

- Você é insignificante. Somos ambos insignificantes - murmurou. - Não somos nada.

Victor susteve a respiração. Puxou os joelhos para si; aproximava-se a fracção de segundo em que teria a única oportunidade de salvar a vida, em que lançaria os pés para diante contra o sacerdote alienado. Uma bota contra a arma, a outra na perna de Mikhailovic que lhe sustentava o peso, lançando-o no precipício. Era tudo quanto restava... se pudesse fazê-lo.

Abruptamente, numa surpreendente transição vocal, o sacerdote falou num tom de quem entoasse um cântico:

- Você está a dizer-me a verdade - disse, fechando os olhos. - Disse-me a verdade - repetiu hipnoticamente.

- Sim. Fontine inspirou profunda, muito profundamente. Quando expirasse, sabia que dispararia as pernas para a frente: chegara o momento.

Petride pôs-se de pé, dilatando-se-lhe o peito vigoroso por baixo das vestes de soldado. Mas a pistola já não estava apontada a Victor. Ao invés, ambos os braços de Mikhailovic estavam estendidos numa postura de crucificação. O sacerdote ergueu a cabeça para o céu e gritou.

- Creio num só Deus, Pai todo-poderoso! Fitarei nos olhos o Senhor e não vacilarei!

O sacerdote de Xenope curvou o braço direito e encostou o cano da automática à têmpora. Disparou.

- Foi a sua primeira morte - disse despreocupadamente Teague, sentado numa cadeira em frente da secretária de Fontine, no abafado cubículo.

- Não o matei!

- Não interessa como acontece nem quem puxa o raio do gatilho. O resultado é o mesmo.

- Pela razão errada! Aquele comboio, aquele amaldiçoado, aquele medonho comboio! Quando é que acabará? Quando se irá embora?

- Era seu inimigo. É tudo quanto eu estou a dizer.

- Se fosse, você devia tê-lo sabido, tê-lo detectado! Você é um trouxa, Alec. Teague mudou a posição das pernas, irritado.

- Isso é uma linguagem bastante desabrida para um capitão empregar com um general de brigada.

- Nesse caso, terei o maior prazer em tomar conta do seu comando e pôr as coisas no lugar - disse Victor, voltando aos papéis dentro de sobrescritos de papel pardo na secretária.

- Na vida militar não há disso.

- É a única razão da vossa continuidade. Se você fosse um dos meus quadros, não durava uma semana no lugar.

- Não posso acreditar! - exclamou Teague, espantado. - Eu aqui sentado, a ser demitido por um reles macarrone!

Fontine soltou uma gargalhada.

- Não exagere. Estou só a fazer aquilo que me mandou. - Fez um gesto na direcção dos sobrescritos de papel pardo em cima da secretária. - Aperfeiçoar Loch Torridon. Nesse processo, tentei descobrir como foi que aquele sacerdote de Xenope, o tal Mikhailovic, conseguiu enfiar-se lá.

- E descobriu?

- Acho que sim. É uma deficiência básica em todos estes dossiers. Não há avaliações financeiras claras; há palavras, histórias, juízos intermináveis... mas muito poucos números. Isto deve ser corrigido onde quer que seja possível antes de tomarmos as decisões finais em termos de pessoal.

- De que diabo está você a falar?

- De dinheiro. Os homens orgulham-se dele: é um símbolo da sua produtividade. Pode ser detectado, confirmado, de uma dúzia de maneiras diferentes. Há registos a dar com um pau. Sempre que possível, quero relatórios financeiros de cada recruta de Loch Torridon. Não havia nenhum de Petride Mikhailovic.

- Relatórios financeiros...

- Um relatório financeiro - completou Fontine - é uma visão extraordinariamente aprofundada do carácter de um homem. Aqui há, em termos gerais, homens de negócios e profissionais. Hão-de prestar-se a isso da melhor vontade. Aqueles que o não fizerem, interrogá-los-emos a fundo.

Teague descruzou as pernas e disse com voz respeitosa:

- Lá chegaremos: há maneiras de fazer esse tipo de coisas.

- Caso contrário - disse Victor, erguendo fugazmente a vista, - qualquer

banco ou casa de corretagem pode fornecê-los. Quanto mais complexos melhor.

- Sim, claro. E, afora isso, como vão as coisas?

Fontini encolheu os ombros, voltando a abanar a mão sobre a rima de pastas de arquivo em cima da secretária.

- Devagar. Li várias vezes todos os dossiers, tomando notas, catalogando-os por profissões e profissões correlativas. Separei padrões geográficos, compatibilidades linguísticas. Mas aonde me conduziu tudo isso, ainda não sei bem. Vai levar tempo.

- É uma data de trabalho - interrompeu Teague. - Lembre-se do que eu lhe dizia.

- Sim. E disse também que valeria a pena. Espero que não se engane. Teague inclinou-se para a frente:

- Tenho um dos melhores peritos do serviço para trabalhar consigo. Será o seu homem das comunicações durante a cena toda. É um barra: conhece mais códigos e cifras que quaisquer dez dos nossos melhores criptógrafos. E tremendamente decidido, um ás em decisões rápidas. Que é o que você vai querer, claro.

- Só daqui a muito tempo.

- Antes do que pensa.

- Quando é que o conheço? Como é que ele se chama?

- Geoffrey Stone. Trouxe-o comigo até cá.

- Está em Loch Torridon?

- Sim. Sem dúvida na secção cripto. Quero que ele se inteire desde o início. Victor não soube bem porquê, mas a informação de Teague perturbou-o.

Queria trabalhar sozinho, sem distracções.

- Muito bem. Suponho que o verei ao jantar no refeitório. Teague voltou a sorrir e consultou o relógio:

- Bem, não sei bem se você quererá jantar no refeitório de Torridon.

- Uma pessoa nunca janta no refeitório, Alec. Come.

- Sim; bem, apesar da cozinha. Tenho uma notícia para si. Tem uma pessoa amiga no sector.

- Sector? Loch Torridon é um sector?

- Para retransmissões de alarmes aéreos.

- Meu Deus! A Jane está cá?

- Descobri-o anteontem à noite. Anda numa deslocação pelo Ministério da Aeronáutica. Claro que não fazia ideia de que você estava na área, a não ser quando contactei com ela ontem. Estava em Moray Firth, no litoral.

- Você é um manipulador tremendo! - riu-se Fontine. - E não disfarça nada! Onde diabo está ela?

- Juro-lhe - disse Teague com convincente inocência - que não sei nada. Pergunte-lho você. Há uma estalagem nos arredores da cidade. Ela estará lá às cinco e meia.

«Meu Deus, senti a falta dela! Senti mesmo a falta dela». Era uma coisa excepcional: não se tinha apercebido da profundidade do que sentia. O rosto dela, com os seus traços vigorosos e no entanto delicados; o cabelo escuro e macio que lhe caía tão graciosamente nos ombros; os olhos, de um azul tão intenso, tudo isso estava gravado no seu espírito.

- Suponho que me dará um salvo-conduto para eu poder sair do aquartelamento.

Teague acenou afirmativamente.

- E arranjo-lhe uma viatura. Mas ainda tem tempo antes de se pôr a caminho. Vamos ocupá-lo com os pormenores. Bem sei que ainda agora começou, mas deve ter chegado a uma ou duas conclusões.

- Pois cheguei. Estão aqui cinquenta e três homens. Duvido que vinte e cinco resistam a Loch Torridon, da maneira como julgo que deveria ser orientado...

Falaram durante cerca de uma hora. Quanto mais Fontine expunha as suas opiniões, mais completamente, ao que se dava conta, Teague as aceitava, óptimo, pensou Victor. Ia fazer muitos pedidos, incluindo uma contínua caça ao talento de Loch Torridon. Mas agora os seus pensamentos concentravam-se em Jane.

- Acompanho-o à sua caserna - disse Teague, apercebendo-se da impaciência do outro, - Podemos passar pelo clube de oficiais por um minuto... Prometo que não será mais que isso. A esta hora o capitão Stone deve lá estar; tem de travar conhecimento com ele.

Contudo, não foi necessário passar pelo clube de oficiais para encontrar o capitão Geoffrey Stone. Quando iam a descer as escadas do complexo, Victor distinguiu a figura de um homem alto com um sobretudo militar. Estava de pé a cerca de quinze metros de distância no aquartelamento, de costas para eles, a falar com o sargento-mor. Havia qualquer coisa de familiar na estatura do oficial, uma espécie de descaimento dos ombros pouco militar. A mão direita do homem chamava especialmente a atenção. Achava-se envolvida por uma luva vários tamanhos acima para ser normal. Tratava-se de uma luva medicinal: a mão estava ligada por baixo do couro negro.

O homem virou-se; Fontini imobilizou-se a meio do caminho, com a respiração suspensa.

O capitão Geofrey Stone era o agente chamado «Maçã», que fora alvejado no cais em Celle Ligure.

Abraçaram-se. Nenhum deles falou, pois as palavras eram desnecessárias. Tinham passado dez semanas desde que haviam estado juntos. Dez semanas desde os momentos esplendorosos e excitantes do acto de amor.

Na estalagem, a velhota que estava sentada numa cadeira de baloiço atrás do balcão da recepção cumprimentou-o.

- A tenente-aviadora Holcroft chegou há uma hora. Penso que o senhor seja o capitão, embora a roupa não diga que o é. Ela disse para o senhor subir, se está para aí virado. É uma cachopa directa. Aquela não se põe com palavras fingidas. Ao cimo das escadas, vire à esquerda, quarto número quatro.

Tinha batido à porta de leve, com um latejar no peito ridiculamente adolescente. Perguntou a si mesmo se ela experimentaria a mesma tensão.

Estava de pé no interior do quarto, com a mão no puxador da porta e os olhos inquiridores mais azuis e perscrutadores do que ele jamais se recordava de tê-los visto. A tensão estava lá, mas no entanto havia também confiança.

Entrou e pegou-lhe na mão. Fechou a porta; venceram a distância entre eles e estenderam lentamente os braços um para o outro. Quando os lábios de ambos se tocaram, todas as perguntas foram sepultadas, as respostas óbvias no silêncio.

- Estava com medo, sabes? - sussurrou Jane, segurando o rosto dele nas mãos e beijando-lhe os lábios terna e repetidamente.

- Sim. Porque eu também estava com medo.

- Eu não sabia bem o que ia dizer.

- Nem eu. E, portanto aqui estamos a falar das nossas incertezas. É saudável, penso eu.

- E provavelmente infantil - disse ela, delineando-lhe a testa e a face com os dedos.

- Eu acho que não. Querer... precisar de alguém... com tamanho sentimento é uma coisa ímpar. A pessoa receia que não seja retribuído.

Tirou a mão dela do seu rosto e beijou-a, beijando-lhe depois os lábios e a seguir o macio cabelo, que tombava, emoldurando a pele suave do rosto encantador. Passou o braço em torno dela e atraiu-a a si, abraçando-a muito e segredando:

- Preciso mesmo de ti. Senti a tua falta.

- És um amor em dizê-lo, meu querido, mas é supérfluo. Eu não tenho necessidade disso, nem to pedirei.

Victor afastou-se suavemente e envolveu-lhe o rosto com as mãos, olhando-a bem nos olhos, muitíssimo próximos dos seus.

- Não se passa o mesmo contigo?

- Passa-se qualquer coisa de muito parecido. - Inclinou-se para ele, com os lábios encostados ao seu rosto. - Penso em ti com demasiada frequência. E sou uma rapariga muito ocupada.

Ele sabia que Jane o desejava tão total e completamente como ele a ela. A tensão que um e outro sentiam transferiu-se para os corpos, só podendo encontrar-se alívio no acto do amor. Contudo, a crescente e dolorosa urgência que havia neles não exigia rapidez. Ao invés, enlaçaram-se na tépida excitação do leito e exploraram-se mutuamente com ternura e progressiva insistência. E falavam mansamente em sussurros à medida que a excitação de ambos aumentava.

«Oh, senhor, amava-a tanto!»

Estavam deitados, nus debaixo das cobertas, esgotados. Ela soergueu-se sobre o cotovelo e passou a mão por cima do seu corpo, tocando-lhe o ombro e percorrendo-lhe a pele com os dedos até às coxas. O seu cabelo escuro caía sobre o peito dele; atrás dele, por baixo da face delicada e dos penetrantes olhos azuis, os seios dela estavam suspensos sobre a pele de Victor. Este mexeu a mão direita e estendeu-a para ela, um sinal de que o acto de amor ia começar de novo. E ocorreu repentinamente a Vittorio Fontini-Cristi, enquanto ali estavam ambos deitados, nus, que não queria perder nunca aquela mulher.

- Quanto tempo é que podes ficar em Loch Torridon? - perguntou ele, fazendo a cara dela descer para junto da sua.

- És um horroroso e manipulador assaltante de raparigas já não muito novas - segredou ela, rindo baixinho junto do seu ouvido. - Ando presentemente num estado de ânsia erótica, com a lembrança de faíscas e prazer erógeno ainda a agitar o mais íntimo do meu ser... e perguntas-me quanto tempo posso ficar! Para todo o sempre, evidentemente. Até regressar a Londres dentro de três dias.

- Três dias! É melhor que dois dias. Ou que vinte e quatro horas.

- Para quê? Para ficarmos ambos reduzidos a dois idiotas balbuciantes?

- Estaremos casados.

Jane ergueu a cabeça e olhou para Victor. Olhou-o durante muito tempo antes de falar, com os olhos cravados nos dele.

- Passaste por muito sofrimento. E uma terrível confusão.

- Não queres casar comigo?

- Mais do que a vida, querido. Meu Deus, mais que tudo no mundo...

- Mas não dizes que sim.

- Sou tua. Não precisas de casar comigo.

- Eu quero casar contigo. Tem algum mal?

- É o que de melhor eu posso imaginar. Mas tens de ter a certeza.

- Tu tens a certeza?

Ela baixou a face sobre a dele.

- Tenho. Tu é que não. Tu tens de ter a certeza.

Ele afastou-lhe o macio cabelo da face e respondeu-lhe com os olhos.

O embaixador Anthony Brevourt estava sentado à enorme secretária do seu gabinete vitoriano. Era quase meia-noite, a criadagem recolhera-se e a cidade de Londres estava às escuras. Havia por toda a parte homens e mulheres nos telhados, no rio e nos parques, falando em voz baixa para aparelhos de rádio e a olhar para os céus. Esperando o cerco que pressentiam, mas ainda não principiara.

Era questão de semanas; Brevourt sabia-o e os relatórios perspectivavam-no. Mas não podia manter a atenção nos horrores que haviam de alterar a história tão inevitavelmente como os acontecimentos progrediam. Achava-se assoberbado por outra catástrofe. Menos imediatamente espectacular, mas, sob muitos aspectos, não menos profunda. Constava do dossier que tinha na frente. Olhou fixamente o nome de código que tinha inventado para si próprio. E para um escasso número - muito escasso - de outros.

Salónica

Tão simples na leitura e contudo tão complexo no significado!

«Como, em nome de Deus, podia aquilo ter acontecido? Que imaginavam eles? Como podiam os movimentos de uma única composição de mercadorias, através de meia dúzia de fronteiras, ser impossíveis de reconstituir? A chave tinha de estar na posse do sujeito».

Em baixo, numa gaveta fechada da secretária, um telefone tocou. Brevourt abriu a gaveta e levantou o auscultador.

- Sim?

- Loch Torridon - foi a resposta concisa.

- Sim, Loch Torridon? Estou sozinho.

- O sujeito casou ontem. Com a candidata.

Brevourt parou momentaneamente de respirar. A seguir inspirou profundamente. A voz do outro lado da linha tornou a falar.

- Está lá, Londres? Está a ouvir-me?

- Estou, sim, Torridon. Ouvi, sim. É mais do que poderíamos esperar, não é? O Teague está satisfeito?

- Nem por isso. Acho que preferia uma relação cómoda. Não o casamento. Não me parece que estivesse preparado para isso.

- É provável que não. A candidata pode ser considerada um obstáculo. O Teague terá de conformar-se, Salónica tem uma prioridade muitíssimo maior.

- Nunca diga semelhante coisa ao MI 6, Londres.

- Nesta conjuntura - disse friamente Brevourt -, espero bem que todos os arquivos relativos a Salónica tenham sido retirados do MI 6. Era esse o nosso entendimento, Loch Torridon.

- Está correcto. Nada lá resta.

- óptimo. Vou com o Churchill a Paris. Pode comunicar comigo através do canal oficial dos Negócios Estrangeiros, Código Maginot. Permaneça em contacto; o Churchill quer ser mantido ao corrente.

 

Londres

Fontine entrou na correnteza de transeuntes que se dirigiam para a estação de Paddington. Havia nas ruas um torpor, uma sensação de incredulidade que se traduzia em bolsas de silêncio. Os olhares sondavam-se entre si, os estranhos davam-se conta dos outros estranhos.

A França capitulara.

Victor virou para Marylebone; viu pessoas a comprarem jornais em silêncio. Tinha acontecido; tinha acontecido na realidade. O inimigo estava do outro lado da Mancha, vitorioso, invencível.

Os barcos de Dover vindos de Calais já não traziam multidões de risonhos turistas em férias. Agora havia um tipo diferente de viagens; toda a gente tinha ouvido falar nelas. Os barcos de Calais navegavam a coberto da noite, enquanto homens e mulheres, ensanguentados uns, incólumes outros, todos eles desesperados, vinham acocorados sob o convés, escondidos por redes ou lonas, trazendo consigo as histórias de sofrimento e derrota que eram a Normandia, Ruão, Estrasburgo e Paris.

Fontine recordou-se das palavras de Alec Teague: « O conceito, a estratégia, é enviá-los de volta para desmembrarem o mercado... causarem estragos! Má gestão a todo o custo!»

O mercado era presentemente toda a Europa Ocidental. E o capitão Victor Fontine estava pronto para expedir os seus maus gestores de Loch Torridon para esse mercado.

Dos primitivos cinquenta e três continentais, restavam vinte e quatro; outros se lhes juntariam - devagar, selectivamente -- consoante as baixas exigissem. Esses vinte e quatro eram tão diferentes quanto consumados, tão inventivos como tortuosos. Tratava-se de alemães, austríacos, belgas, polacos, holandeses e gregos, mas as suas nacionalidades eram secundárias. Todos os dias era expedida mão-de-obra pelas fronteiras. Porque, em Berlim, o Reich-rninisterium da Indústria estava a integrar à força no serviço gente de todos os territórios ocupados: era uma política global que iria ser acelerada à medida que novas terras fossem caindo sob o seu domínio. Não era invulgar um holandês trabalhar numa fábrica de Estugarda. Dias apenas após a queda de Paris, já havia belgas a serem enviados para fábricas ocupadas em Lião.

Agindo com base neste conhecimento, os chefes da Resistência andavam a passar a pente fino as listas de transferência de mão-de-obra. Objectivo: encontrar «emprego» especializado temporário para vinte e quatro profissionais qualificados.

Na confusão que resultava da obsessão alemã da máxima produtividade, desencantavam-se vagas em toda a parte. A Krupp eal.G. Farben estavam a exportar tantos especialistas para pôr fábricas e laboratórios a funcionar em países ocupados que os industriais germânicos se queixavam amargamente a Berlim. Isto conduzia a uma organização improvisada e a uma gestão descurada e reduzia a eficiência das fábricas e escritórios alemães.

Era neste atoleiro que os franceses, holandeses, belgas, polacos e resistentes alemães se infiltravam. Directivas de recrutamento para lugares vagos eram expedidas por correios da espionagem para Londres, a fim de serem analisadas pelo capitão Victor Fontine.

Rubrica: Francoforte, Alemanha. Fornecedor subsidiário da Messerschmidt. Três capatazes de fábrica, precisam-se.

Rubrica: Cracóvia, Polónia. Divisão de eixos, fábrica de automóveis. Desenhadores precisam-se.

Rubrica: Antuérpia, Bélgica. Estaleiro de caminho-de-ferro. Divisões de mercadorias e de horários. Escassez de gestores.

Rubrica: Manheim, Alemanha. Serviços da imprensa oficial. Necessidade imperiosa de tradutores técnicos bilingues.

Rubrica: Turim, Itália. Aviões de Turim. Origem partidária. Engenheiros mecânicos em falta.

Rubrica: Linz, Áustria. Berlim reclama sistemático pagamento em excesso a companhia de têxteis. Analistas de custos, precisam-se.

Rubrica: Dijon, França. Departamento jurídico da Wehrmacht. Advogados, pretendem as forças de ocupação... («Era mesmo característico dos franceses», pensara Victor. «No meio da derrota, o espírito gaulês procurava o debate em legalismos práticos».)

E assim por diante. Uma porção de «requisitos», dezenas de possibilidades que havia de aumentar de número à medida que as exigências de produtividade dos Alemães crescessem.

Havia trabalho a obter, a realizar, pela pequena brigada de continentais de Loch Torridon. Agora não era mais que uma questão de distribuição apropriada, e Fontine supervisionava pessoalmente os pormenores. Levava na pasta uma tira muito pequena de fita adesiva reutilizável que podia ser presa a qualquer parte do corpo. A cola tinha a resistência do aço, mas podia ser removida com uma simples solução de água, açúcar e sumo de citrino.

Dentro dessa fita estavam vinte e quatro pontos, contendo cada um deles um microfilme. Em cada microfilme havia uma fotografia microscopicamente reduzida e um breve resumo de talentos. Seriam utilizados de acordo com os chefes da Resistência. Encontrar-se-iam vinte e quatro postos de emprego... temporariamente, está bem de ver, pois pessoal tão qualificado havia de ser desejável em muitos lugares durante os meses próximos.

Mas cada coisa a seu tempo, e a primeira rubrica da agenda de Fontine era uma viagem de negócios de duração indeterminada. Seria largado de pára-quedas em França, na província da Lorena, perto da fronteira franco-suíça. A sua primeira reunião efectuar-se-ia na pequena cidade de Montbéliard, onde permaneceria durante vários dias. Tratava-se de um ponto geográfico estratégico, que permitia uma acessibilidade máxima aos resistentes a partir do Norte e Centro da França e do Sul da Alemanha.

De Montbéliard seguiria para norte, pelo Reno, até Wiesbaden, onde contingentes de anti-reichistas de Bremen, Hamburgo, Berlim e pontos a norte e oeste convergiriam para reuniões. A partir de Wiesbaden seguiria as rotas da

resistência para leste, rumo a Praga, e depois para noroeste, penetrando na Polónia e em Varsóvia. Seriam criados horários, aperfeiçoar-se-iam códigos e fornecidos documentos de trabalho oficiais para eventual reprodução em Londres.

De Varsóvia regressaria à Lorena. Seria então decidido se rumaria para sul, em direcção à sua amada Itália. O capitão Geoffrey Stone manifestava-se em princípio contra isso. O agente que Fontine conhecera como «Maçã» esclareceu bem esse ponto. Tudo o que era italiano enchia Stone de relutância, remontando essa repulsa a um cais em Celle Ligure e a uma mão esfacelada por causa da ingenuidade e traição italianas. Stone não via motivo para desperdiçarem os seus recursos em Itália: havia demasiados outros pontos de pressão. A nação de incompetentes era o pior inimigo que ela própria tinha.

Fontine chegou a Paddington e esperou pelo autocarro de Kensington. Tinha descoberto os autocarros em Londres; até aí, nunca na vida andara em transportes públicos. A descoberta era em parte defensiva. Sempre que se utilizavam carros oficiais, havia que compartilhá-los, o que suscitava conversas entre os passageiros. Num autocarro ninguém era interpelado.

Havia, evidentemente, ocasiões em que levava para casa matéria altamente sensível para ler, ocasiões essas em que Alec Teague se recusava pura e simplesmente a conceder-lhe a sua recém-descoberta indulgência. Era demasiado perigoso. Esta noite tinha sido o caso, mas Victor contrariara o seu superior: o automóvel oficial tinha mais dois passageiros e ele queria pensar. Era a sua última noite em Inglaterra. Tinha de contar a Jane.

- Por amor de Deus, Alec! Vou percorrer muitos milhares de quilómetros em território hostil. Se perdesse uma pasta que levo amarrada ao pulso com uma fechadura de segredo, acho que estávamos todos metidos num enorme sarilho!

Teague capitulara, verificando ele próprio a corrente e a fechadura.

O autocarro encostara à berma e ele subira, abrindo caminho pela coxia apinhada até um lugar à frente. Era junto de uma janela; pôs-se a olhar lá para fora e deixou o pensamento deter-se primeiramente em Loch Torridon.

Estavam realmente prontos. O conceito era mesmo válido. Podiam efectivamente colocar o seu pessoal em sucessivos postos de gestão. Agora só faltava despoletar a estratégia e era sobre isso que iria tratar na sua deslocação. Encontraria os postos indicados para o pessoal indicado... e o caos e os estragos não tardariam a emergir.

Estava pronto para o momento da partida. Contudo, não estava verdadeiramente preparado para aquilo que presentemente se lhe deparava: dizer a Jane que chegara finalmente o momento.

Tinha-se mudado para o andar dela em Kensington ao regressar da Escócia. Ela rejeitara a sua oferta de aposentos consideravelmente mais amplos. E as últimas semanas haviam sido as mais felizes da sua vida.

E agora era chegado o momento e o medo substituiria o conforto da existência quotidiana na companhia um do outro. Não fazia diferença que milhares e milhares estivessem a passar pela mesma experiência: a matemática não era consolação.

A sua paragem era a próxima. O crepúsculo de Junho lavava as árvores e esfregava as casas. Kensington estava sereno, a guerra longínqua. Apeou-se do autocarro e começou a descer a rua tranquila, quando de repente a sua atenção foi desviada do portão da entrada. Tinha aprendido no decurso dos últimos meses a não trair a sua preocupação, de forma que fingiu dirigir um aceno a um vizinho invisível numa janela do outro lado. Fazendo isso, ao mesmo tempo que semicerrava os olhos de encontro ao sol que se punha, logrou ver mais distintamente o pequeno Austin estacionado do lado oposto da rua, a cinquenta metros em diagonal adiante de si. Era cinzento. Já tinha visto aquele Austin cinzento. Exactamente há cinco dias. Lembrava-se vividamente. Ele e Stone tinham ido de carro a Chelmsford para entrevistar uma judia que trabalhara no funcionalismo civil de Cracóvia até pouco antes da invasão. Haviam parado numa estação de serviço à saída de Brentwood.

O Austin cinzento viera de trás deles e dirigira-se à bomba ao lado. Victor só reparara porque o empregado que metera a gasolina fora sarcástico ao ver a bomba registar menos de nove litros... e o depósito do Austin ficar cheio.

«Ele sempre há gente muito gulosa!», dissera o homem.

O condutor, algo embaraçado, ligara a ignição e arrancara pela estrada fora.

Fontine tinha notado porque o condutor era um padre. O condutor do Austin cinzento que estava agora do outro lado era um padre. Via-se-lhe distintamente o colarinho branco.

E o homem, sabia-o, estava a olhá-lo fixamente.

Fontine caminhou descuidadamente até ao portão de entrada da casa. Levantou o ferrolho, entrou, virou-se e fechou o portão; o padre do Austin cinzento mantinha-se imóvel, de olhos - por detrás daquilo que pareciam ser uns óculos grossos - ainda assestados nele. Victor aproximou-se da porta e entrou. Mal se achou no vestíbulo, fechou a porta e deslocou-se rapidamente para a estreita coluna de janelas que flanqueava o caixilho da porta. Havia uma cortina de ocultação de luzes corrida por cima do vidro; arredou-a na orla e espreitou para o exterior.

O sacerdote deslizara até ao vidro da direita do carro e estava a olhar para fora, erguendo os olhos para a fachada do prédio. O homem era grotesco, pensou Fontine. Extremamente pálido e franzino, tinha óculos de lentes grossas.

Victor deixou a cortina voltar à posição inicial e encaminhou-se rapidamente para as escadas, subindo os degraus a dois e dois até ao terceiro andar, aquele que ocupavam. Ouviu música lá dentro: o rádio estava ligado; Jane encontrava-se em casa. Ao fechar a porta atrás de si, ouviu-a cantarolando no quarto. Não havia tempo para gritar nenhuma saudação; queria alcançar a janela. E não pretendia alarmá-la, desde que pudesse evitá-lo.

O binóculo achava-se na estante da parede da lareira. Tirou o estojo do meio de uma secção de livros, sacou o binóculo, dirigiu-se à janela e focou as lentes lá para baixo.

O sacerdote estava a falar com alguém no assento traseiro do pequeno automóvel. Fontine não tinha visto mais ninguém no carro. O banco de trás achava-se na penumbra e ele concentrara-se no condutor. Desviou lentamente o binóculo para trás do padre e reajustou a focagem.

Victor ficou paralisado e subiu-lhe o sangue à cabeça.

Era um pesadelo! Um pesadelo que se repetia! Que se alimentava de si próprio!

A malha branca no cabelo cortado rente! Tinha visto aquela mancha branca de um talude... dentro de um automóvel... sob as luzes ofuscantes... que daí a pouco haviam de romper em fumo e morte em Campo di Fiori!

O homem no banco de trás do Austin cinzento era o que ocupava outro assento traseiro! Fontine vira-o de cima, da escuridão, e agora estava a vê-lo a milhares de quilómetros de distância, numa rua de Kensington! Um dos comandantes alemães! Um dos carrascos alemães!

- Santo Deus! Assustaste-me - disse Jane, entrando na sala. - Que estás tu a...?

- Telefona ao Teague. Imediatamente! - gritou Victor, deixando cair o binóculo e debatendo-se com o fecho de segredo da pasta.

- Que se passa, querido?

- Faz o que te disse! - Lutou para conservar o autodomínio. Os números apareceram e o fecho abriu-se.

Jane ficou a olhar para o marido; marcou rapidamente o número do telefone, sem fazer mais perguntas.

Fontine correu ao quarto. Tirou o revólver de serviço do meio de uma pilha de camisas e arrancou-o do coldre, regressando a correr à sala de estar, direito à porta.

- Victor! Pára! Pelo amor de Deus!

- Diz ao Teague que venha cá! Diz-lhe que está ali em baixo um alemão de Campo di Fiori!

Precipitou-se para o corredor e lançou-se pela estreita escada abaixo, movimentando o polegar por baixo do cano a fim de destravar a patilha de segurança. Ao alcançar o cimo do primeiro lanço, ouviu o acelerar de um motor. Soltou um grito e correu em direcção ao vestíbulo; alcançou a porta da frente, dando um puxão enfurecido na maçaneta e abrindo a porta com tal força que ela embateu na parede com fragor. Disparou direito ao portão do exterior..

O Austin cinzento já seguia velozmente pela rua abaixo; havia peões nos passeios. Fontine perseguiu-o, evitando dois carros que vinham em sentido contrário, cujos pneus chiaram ao travar. Homens e mulheres gritaram-lhe; Victor compreendeu: um homem a correr em plena rua às sete da tarde, de pistola em punho, assustava toda a gente. Mas não podia deter-se em tais pensamentos; havia apenas o Austin cinzento e o homem no banco traseiro com uma malha branca no cabelo.

O carrasco!

O Austin virou à direita na esquina! Oh, Senhor! O trânsito na artéria era reduzido, apenas poucos táxis e carros particulares! O Austin acelerou, ganhando velocidade, e meteu-se por entre os outros veículos. Passou um sinal vermelho, evitando por pouco um camião de carga, que travou com um sacão, impedindo a passagem e a visão para o outro lado da rua.

Tinha-o perdido. Parou, com o coração a bater violentamente e o suor a escorrer-lhe pela cara abaixo, de arma em punho. Mas não perdera tudo. A chapa de matrícula do Austin cinzento tinha seis algarismos. Conseguira fixar quatro deles.

- O automóvel em questão está registado em nome da Embaixada grega. O adido a quem está distribuído argumenta que deve ter sido retirado do recinto da embaixada ao fim da tarde de hoje.

Teague falava rapidamente, contrariado não só com a sua informação presumivelmente falsa, mas com todo o incidente em si. Era um obstáculo, um

obstáculo sério. A operação Loch Torridon não podia tolerar entraves naquele momento.

- Porquê o alemão? Quem é ele? O que ele é, sei eu. - Victor falava serenamente, com imenso sentimento.

- Estamos a juntar todos os indícios que podemos desencantar. Temos uma dúzia de homens com experiência de campo a passar os arquivos em revista. Estão a recuar anos, a pegar em tudo quanto possuímos. A descrição que você fez ao artista é boa; o esboço dele é bastante rigoroso, segundo você disse. Se lá figurar, havemos de encontrá-lo.

Fontine levantou-se da cadeira, dirigiu-se à janela e viu que tinham sido corridas espessas cortinas negras, tapando completamente a luz. Virou-se e olhou distraidamente para um grande mapa da Europa na parede de Teague. Havia dezenas de alfinetes de cabeça vermelha que sobressaíam do papel grosso.

- É o comboio proveniente de Salónica, não é? - Fez a pergunta em voz baixa, sem precisar de resposta.

- Isso não explicaria o alemão. Se é que ele é alemão.

- Eu já lhe disse - interrompeu Victor, voltando-se de frente para o brigadeiro. - Ele estava lá. Em Campo di Fiori. Lembrei-me nessa altura que me parecia já o ter visto antes.

- E nunca foi capaz de se recordar onde?

- Não. Há alturas em que isso me põe doido. Não sei!

- Não é capaz de associar? Recue no tempo. Pense em termos de cidades, ou de hoteis; principie por contactos de negócios, contratos. A Fontini-Cristi tinha investimentos na Alemanha.

- Tentei tudo isso. Não há nada. Apenas a cara, e mesmo essa não é lá muito nítida. A malha branca no cabelo, essa é que me ficou na memória. - Fatigadamente, Victor regressou à cadeira e voltou a sentar-se. Recostou-se para trás, com ambas as mãos sobre os olhos fechados. - Oh, meu Deus, Alec, sinto um medo de morte.

- Não tem razão para isso.

- Você não estava em Campo di Fiori naquela noite.

- Não se há-de repetir em Londres. Nem em nenhum outro sítio, aliás. Amanhã de manhã a sua mulher será acompanhada ao Ministério da Aeronáutica, onde passará todo o trabalho (arquivos, cartas, mapas, tudo) a outro oficial. O ministro garantiu-me que a entrega pode ficar concluída ao princípio da tarde. A seguir, será conduzida de automóvel a aposentos muito confortáveis no campo. Isolados e totalmente seguros. Manter-se-á ali até você regressar, ou até encontrarmos o nosso homem. E dominarmo-lo.

Fontine baixou as mãos dos olhos e mirou inquiridoramente Teague.

- Quando é que você tratou disso? Não tem havido tempo.

Teague sorriu, mas não foi o sorriso inquietante a que Victor estava habituado. Se alguma característica tinha, era ser suave.

- Tem sido um plano de recurso desde que você casou. Passadas horas, para dizer a verdade.

- Ela ficará em segurança?

- Não haverá uma pessoa em Inglaterra que o esteja mais. Para falar com franqueza, tenho um duplo motivo. A segurança da sua mulher está directamente relacionada com o seu estado de espírito. Você tem um trabalho a fazer, de forma que eu faço o meu.

Teague olhou para o relógio de parede e depois para o de pulso. O relógio de parede tinha-se atrasado quase um minuto desde que o acertara. Quando fora mesmo isso? Devia ter sido há oito, dez dias; teria de levá-lo novamente ao relojoeiro da Leicester Square.

Era uma preocupação pueril, ao que supunha, aquela obsessão com o tempo. Tinha ouvido os nomes: «Cronometro Alec», «Teague Temporizador». Os colegas repreendiam-no frequentemente: não teria aquela tremenda mania do tempo se tivesse mulher e miúdos a fazerem barulho pelos cantos. Mas ele tomara essa decisão havia anos: na sua profissão estava melhor sem tais prisões. Não era nenhum monge. Houvera, evidentemente, mulheres. Mas nada de casamento. Estava fora de questão: era um empecilho, um obstáculo.

Esses pensamentos passivos deram origem a uma consideração activa: Fontine e o seu casamento. O italiano era o coordenador perfeito para a Operação Loch Torridon, e contudo presentemente havia um obstáculo: a mulher.

Diabos levassem aquilo! Tinha colaborado com Brevourt porque queria mesmo utilizar Fontini-Cristi. Se uma relação adequada com uma rapariga inglesa servia ambos os objectivos, estava na disposição de alinhar. Mas não até àquele ponto!

E agora, onde raio estava Brevourt? Tinha desistido. Sumira-se depois de ter feito tremendas exigências a Whitehall em nome de um desconhecido comboio de mercadorias proveniente de Salónica.

Ou teria pura e simplesmente fingido que se sumira?

Parecia que Brevourt sabia quando minimizar os prejuízos, quando recuar de um malogro embaraçador. Não houvera mais instruções relativamente a Fontine: presentemente, ele era propriedade do MI 6. Assim do pé para a mão. Era como se Brevourt quisesse colocar-se o mais longe possível do italiano e do amaldiçoado comboio. Quando o relatório do sacerdote de Xenope infiltrado foi dado a Brevourt, este simulou apenas um interesse moderado, atribuindo o episódio a um fanático solitário.

Para um homem que tinha conseguido levar o seu governo a fazer o que fizera, aquilo não era natural. Porque o sacerdote de Xenope não tinha agido sozinho. Teague sabia-o; Brevourt sabia-o também. O embaixador estava a reagir com demasiada simplicidade, o seu súbito desinteresse era demasiado evidente.

E aquela rapariga, a mulher de Fontine. Quando aparecera, Brevourt tinha-se apoderado da existência dela como se fosse um verdadeiro funcionário do MI 6. Ela era uma âncora de amarra curta. Podia ser solicitada, utilizada. Se o comportamento de Fontine se tornasse repentinamente estranho, se encetasse ou procurasse contactos anormais que pudessem ser relacionados com o comboio de Salónica, chamá-la-iam e dar-lhe-iam as instruções: «Comunique tudo». Era uma patriota inglesa. Havia de obedecer.

Contudo, ninguém tinha sequer encarado o casamento. Isso sim, é que era má gestão a todo o custo! A uma cómoda amante podiam dar-se instruções; a uma esposa não.

Brevourt havia acolhido a novidade com uma equanimidade que, também ela, não era natural.

Tinha acontecido qualquer coisa que Teague não compreendia. Experimentava a incómoda sensação de que Whitehall estava a utilizar o MI 6 e isso queria dizer utilizá-lo a ele, tolerar Loch Torridon porque este poderia levar

Brevourt a um objectivo maior do que a dispersa desagregação da indústria inimiga.

Voltando ao comboio de Salónica.

Por conseguinte, havia duas estratégias paralelas que estavam a ser seguidas: Loch Torridon e a busca dos documentos de Constantino. Admitiam-no na primeira; arredavam-no da segunda.

Arredavam-no e deixavam-no com um oficial das Informações casado: a espécie mais vulnerável.

Faltavam dez minutos para as três da manhã. Daí a seis horas estaria a conduzir rumo a Lakenheath com Fontine para se despedir dele.

Um homem com uma mancha branca no cabelo. Um esboço que escapava a milhares de fotografias e descrições de arquivo, uma perseguição que não levava a lado algum. Uma dúzia de funcionários do MI 6 estavam encafuados nos arquivos prosseguindo a busca. O agente no campo que descobrisse a identidade não seria esquecido quando houvesse distribuição de missões seleccionadas.

O telefone tocou, sobressaltando-o.

- Sim?

- É Stone, sir. Acho que tenho qualquer coisa.

- Vou já aí abaixo.

- Se para si for indiferente, preferia ir eu aí acima. É um bocado louco. Gostava mais de falar consigo a sós.

- Muito bem.

Que teria Stone descoberto? O que poderia ser tão singular que exigisse segurança mesmo dentro da casa?

- Aqui está o esboço que o Fontine aprovou, meu general - disse o capitão Geoffrey Stone, de pé em frente da secretária de Teague, poisando o retrato a carvão no mata-borrão. Tinha um sobrescrito desajeitadamente apertado entre o braço e o peito, por cima da mão direita imóvel, enluvada. - Não condizia com nada nos arquivos do Himmler, nem em nenhuma outra fonte alemã (ou aparentada com fontes alemãs), incluindo círculos colaboracionistas na Polónia, Checoslováquia, França, nos Balcãs e na Grécia.

- E Itália? Quanto aos italianos?

- Foi essa a nossa primeira suposição. Independentemente do que o Fontine sustente ter visto naquela noite em Campo di Fiori, ele é, afinal, italiano. Os Fontini-Cristi granjearam inimigos entre os fascistas. Mas não encontrámos nada, ninguém que se pareça minimamente com o sujeito em questão. Foi então, com toda a franqueza, sir, que comecei a pensar no homem. No casamento dele. Não estávamos à espera disso, pois não, sir?

- Não, capitão. Não estávamos à espera disso.

- Um pequeno vicariato na Escócia. Uma cerimónia anglicana. Não é propriamente o que se pensaria.

- Porquê?

- Eu já fiz os sectores italianos, sir. A influência católica é muito generalizada.

- O Fontine não é religioso. Aonde diabo quer você chegar?

- Apenas a isso. Tudo é uma questão de grau, não é? Uma pessoa nunca é exactamente isto ou aquilo. Especialmente um homem que deteve tanto poder. Voltei ao dossier dele; temos fotocópias de todo o raio de coisas a que conseguimos deitar a mão. Incluindo o requerimento e a certidão de casamento. Sob o

título «religião», ele colocou uma palavra: «Crista».

- Vá direito ao assunto.

- É o que estou a fazer. Uma coisa leva sempre a outra. Uma família imensamente rica e poderosa num país católico, e o filho sobrevivente renega deliberadamente qualquer ligação à sua igreja.

Teague semicerrou os olhos.

- Continue, capitão.

- Ele estava a renegá-la. Talvez inconscientemente, não sabemos. «Cristã» não é nenhuma religião. Estávamos à procura dos italianos errados, a retirar os dossters que não interessam. - Stone ergueu o sobrescrito com a mão esquerda, desenrolou o pequeno cordel e abriu a dobra. Tirou de lá um recorte de jornal, uma fotografia recortada de um homem de cabeça descoberta com uma mancha branca no cabelo escuro. O homem de cabeça descoberta envergava as vestes negras da igreja; a fotografia tinha sido tirada no altar de S. Pedro. O homem estava ajoelhado, virado para a cruz. Sobre ele via-se um par de braços abertos que seguravam o barrete de três bicos dos cardeais.

- Meu Deus! - espantou-se Teague, erguendo os olhos para Stone.

- Os arquivos do Vaticano. Mantemos registos de todas as elevações eclesiásticas.

- Mas este...

- É, sim, sir. O nome do sujeito é Guillamo Donatti. É um dos mais poderosos cardeais da Cúria.

MONTBÉLIARD

O avião iniciou a sua rotação de noventa graus. Encontravam-se a novecentos metros de altitude, a noite estava limpa e o vento que soprava junto da escotilha aberta tinha uma força tal que Fontine pensou que ia ser sugado para o exterior antes que a luz vermelha por cima dele se apagasse e fosse substituída pelo brilho da lâmpada branca, que era a sua indicação para saltar. Agarrou-se às pegas de um e outro lado da escotilha, preparando-se; tinha as grossas botas firmemente assentes no pavimento de aço do bombardeiro Haviland: esperava a ocasião de saltar.

Pensou em Jane. Inicialmente, formulara vigorosas objecções ao confinamento. Conquistara a posição que detinha no Ministério da Aeronáutica e semanas e meses de «puro e simples trabalho de moura» eram agora postos de lado numa questão de horas. Depois parara abruptamente ao ver - ele tinha a certeza disso - a dor nos seus olhos. Queria-o de volta. Se o isolamento no campo contribuísse para o seu regresso, iria.

Pensou, também, em Teague: em parte no que ele dissera, mas principalmente no que não dissera. O MI 6 tinha uma orientação relativamente ao carrasco alemão, ao homem-monstro da mancha branca no cabelo que assistira friamente ao horror de Campo di Fiori. O serviço tinha-o por membro importante do Geheimdienst Korps, a polícia secreta de Himmler, um homem que ficava bem distante na retaguarda, nunca esperando ser identificado. Alguém que tivesse porventura estado colocado no Consulado grego em Atenas.

«Tinha-o por...»; «Porventura...» Palavras equívocas. Teague estava a ocultar informações. A despeito de toda a sua experiência, o homem das Informações não conseguia esconder as suas omissões. E tão-pouco era inteiramente convincente quando encetava subtilmente um assunto que pouco tinha a ver com o que quer que fosse.

- ...È procedimento de rotina; Fontine. Quando um homem parte em missão, registamos a sua religião. É como uma certidão de nascimento ou um passaporte...

Não, não tinha religião formal. Não, não era católico, e isso nem sequer era invulgar: havia mesmo gente não católica em Itália. Sim, Fontini-Cristi era uma combinação derivativa que se traduzia por «fontes de Cristo»; sim, a família tinha sido durante séculos aliada da Igreja, mas havia umas décadas rompera com o Vaticano. Mas não, ele não colocava uma ênfase indevida nessa ruptura; raramente pensava nisso.

Que procurava Teague?

A luz vermelha apagou-se. Victor flectiu os joelhos como tinha aprendido e susteve a respiração.

A lâmpada branca começou a piscar. Ouviu-se a pancada: nítida, segura, sólida. Fontine lançou as mãos de forma a agarrar-se ao contrário aos manípulos do fecho, inclinou-se para trás e impeliu o corpo através da escotilha aberta contra a furiosa deslocação de ar produzida pelas hélices do avião. Foi violentamente arrebatado da enorme fuselagem, sentindo o corpo esmagado pela força do vento com a súbita velocidade e peso de uma gigantesca onda.

Estava em queda livre. Fez força para colocar as pernas em V, sentindo as correias do pára-quedas a enterrarem-se nas coxas. Estendeu os braços para a frente e em diagonal para os lados. A configuração de águia de asas estendidas fez o que se esperava que fizesse: estabilizou-lhe a queda através do céu, apenas o suficiente para Victor se concentrar na terra escura lá em baixo.

Viu-os! Dois minúsculos fachos à sua esquerda.

Encolheu a mão contra o vento impetuoso e puxou uma pequena argola ao lado do dispositivo de largada do pára-quedas. Houve um clarão momentâneo acima dele, como um crepitar imediatamente apagado de um tubo de fogo-de-artificio. Seria o bastante para ser avistado pelos que estavam no solo. O momento dissipou-se de novo na escuridão; ele deu um puxão na argola de abertura do pára-quedas. As enfunadas dobras do tecido dispararam do invólucro: sobreveio o forte sacão, que o fez deitar o ar fora, com todos os músculos tensos para contrabalançar o puxão.

Flutuou, oscilando em quartos de círculo no céu nocturno, em direcção ao solo.

As conferências em Montbéliard correram bem. Era estranho, pensou Victor, mas, a despeito do ambiente rústico, mesmo primitivo - um armazém abandonado, um celeiro, um pasto semeado de rochedos -, as conferências não deixavam de assemelhar-se a reuniões de gestão serenamente conduzidas, com ele a servir de consultor enviado da sede. O objectivo de todas as conversações com as equipas de chefes da Resistência que faziam as suas incursões até à Lorena era o mesmo: recrutamento projectado para o agrupamento de pessoal qualificado presentemente exilado em Inglaterra.

Havia procura de gestores em toda a parte, pois em todo o lado do crescente âmbito do Terceiro Reich as unidades produtivas eram imediatamente anexadas e orientadas para a máxima produção. Mas havia uma deficiência essencial na obsessão alemã com a eficiência máxima: a direcção permanecia em Berlim. Os pedidos eram tratados pelo Reichsministerium da Indústria e Armamento; eram autorizadas e emitidas ordens a milhares de quilómetros do local de origem.

As ordens podiam ser interceptadas no trajecto; os pedidos podiam ser alterados na origem, dentro dos ministérios, e ser objecto de infiltrações a nível de funcionários de secretaria.

Podiam inventar-se postos de trabalho; o pessoal podia ser substituído. No caos que era a febre berhnense da eficiência imediata e total, o medo era inerente. As ordens raramente eram postas em questão.

Em toda a parte o ambiente burocrático estava maduro para Loch Torridon.

Vai ser conduzido até ao Reno e metido a bordo de uma barcaça fluvial em Neuf-Brisach - disse o francês, dirigindo-se à pequena janela da casa de

hóspedes que dava para a Rue de Bac de Montbéliard. - O seu acompanhante trará os papéis. Ao que sei, descrevem-no como escumalha do rio de costas fortes e cabeça fraca. Um estivador de carga que passa a maior parte do tempo acordado bêbedo com vinho barato. - Isso deve ser interessante.

O Reno

Não era. Era fatigante, fisicamente exaustivo e tornado quase intolerável pelo fedor reinante abaixo do convés. Patrulhas alemãs deambulavam pelo rio, mandando continuamente parar barcos e submetendo as tripulações a infindáveis interrogatórios. O Reno era uma rota de mensageiros da Resistência; não era preciso ser muito perspicaz para o saber. E, como a «escumalha» do rio não merecia melhor, as patrulhas deliciavam-se em brandir mocas e coronhas de espingardas quando o objecto do impacte eram ossos e carne. O disfarce de Fontine era bem sucedido, conquanto repugnante. Bebia bastante vinho ordinário e provocava suficientes vómitos para lhe dar ao hálito o fedor pútrido de um consumado e desleixado alcoólico.

O que o impediu de perder por completo a sensibilidade foi o companheiro. O nome do homem era Lúbok, e Victor sabia que, fossem quais fossem os riscos que corresse, os de Lubok eram bem maiores.

Lúbok era um judeu homossexual. Tratava-se de um mestre de bailado, de meia-idade, de cabelo loiro e olhos azuis, cujos pais, checoslovacos, tinham emigrado para Berlim havia trinta anos. Fluente tanto nas línguas eslovacas como em alemão, dispunha de documentos que o identificavam como tradutor para a Wehrmacht. Juntamente com os documentos havia diversas cartas timbradas do Alto Comando que proclamavam a lealdade de Lubok ao Reich.

Os documentos e os cabeçalhos das cartas eram genuínos, mas a lealdade falsa. Lúbok tinha operado como mensageiro da resistência através das fronteiras checoslovaca e polaca. Nessas ocasiões utilizava escandalosamente as inclinações homossexuais que tinha de reserva; era do conhecimento comum que existiam círculos desses no seio dos oficiais. Os postos de verificação nunca sabiam quem era obsequiado por homens vigorosos que preferiam dormir com outros homens. E o mestre de bailado de meia-idade era uma enciclopédia de verdades, meias verdades e boatos no tocante às práticas sexuais e aberrações exercidas pelo Alto Comando alemão num dado sector ou zona em que entrava. Era o seu inventário; era a sua arma.

Lúbok oferecera-se à missão de Locn Torridon, para ser o acompanhante do Mi 6 de Montbéliard, através de Wiesbaden, para leste até Praga e para norte até Varsóvia. E, à medida que a jornada prosseguia e os dias e os quilómetros se iam sucedendo, Fontine sentia-se grato. Lúbok era do melhor. Por baixo dos fatos bem cortados havia um homem poderoso cuja língua ácida e olhar fulminante eram penhor de um génio arrebatado mas inteligente.

Varsóvia, -Polónia

Lubok conduzia a motocicleta com Victor no sidecar, envergando o uniforme de um Oberst da Wehrmacht em serviço nos Transportes de^ Ocupação. Percorreram velozmente Lodz pela estrada para Varsóvia, alcançando o último posto de verificação um pouco antes da meia-noite.

Lúbok representava escandalosamente diante das patrulhas, atirando com os nomes de «Kommandanten» e «Oberíuhrerin» com desenvoltura e insinuando toda a gama de represálias se o seu veículo fosse demorado. Os guardas, embaraçados, não mostravam grande empenho em examiná-lo. Fizeram sinal para a motocicleta passar; entraram na cidade.

Reinava o caos. Embora estivesse escuro, distinguia-se entulho por todo o lado. Rua após rua, todas estavam desertas. Ardiam velas nas janelas: enormes zonas da cidade estavam privadas de electricidade. Viam-se fios eléctricos a oscilar, automóveis e camiões imobilizados; uma porção deles encontravam-se de rodas para o ar, tombados como gigantescos insectos de aço à espera de serem empalados numa mesa de laboratório.

Varsóvia estava morta. Os seus assassinos armados passavam em grupos, eles próprios com medo do cadáver.

- Vamos direitos ao Gasímir - disse baixinho Liibok. - A resistência está à sua espera. Fica apenas a umas dez ruas daqui.

- O que é o Casimir?

- É um antigo palácio no Bulevar Kraków. No meio da cidade. Durante anos foi a universidade; presentemente os alemães utilizam-no para aquartelamento e gabinetes.

- E nós vamos entrar lá? Lúbok sorriu na escuridão. .

- Podem meter-se nazis na universidade, que isso não é garantia de instrução. As equipas de manutenção de todos os edifícios são podziemna. Para si, resistentes. Ou pelo menos o embrião disso.

Lúbok enfiou a motocicleta entre dois carros oficiais no Bulevar Kraków, a meio do quarteirão, do lado oposto ao portão principal de entrada no Casimir. Excepto os guardas na guarita junto do portão, a rua encontrava-se deserta. Só estavam dois candeeiros de iluminação pública acesos, mas no interior do Casimir havia projectores cujos feixes apontavam da relva para o ar, iluminando as frontarias ornamentadas dos edifícios.

Das trevas, um soldado alemão surgiu, uma praça. Abeirou-se de Lúbok e falou baixinho em polaco. Lubok fez um aceno afirmativo; o alemão continuou em diagonal através do amplo bulevar em direcção ao portão do Casimir.

- Está com os podziemna - disse Lubok. - Costumava corrigir códigos. Disse que você devia entrar à frente. Pergunte pelo capitão Hans Neumann, Bloco Sete.

- Capitão Hans Neumann - repetiu Victor. - Bloco Sete. E depois?

- É o contacto desta noite no Casimir. Ele levá-lo-á aos outros.

- E você?

- Eu devo esperar dez minutos e entrar a seguir. Fiquei de perguntar por um tal Oberst Schneider, Bloco Cinco.

Lúbok parecia preocupado. Victor compreendia. Até então nunca se tinham separado nos pontos de contacto com os dirigentes da resistência.

- É um procedimento pouco habitual, não é? Você parece perturbado.

- Devem ter as suas razões.

- Mas você não sabe quais elas são. E aquele fulano não lhas disse.

- Não deve saber. É um mensageiro.

- Pressente alguma cilada?

Lúbok olhou de frente para Fontine. Estava a pensar ao mesmo tempo que falava.

- Não, isso não é realmente possível. O comandante deste sector foi comprometido. Em filme. Não vou maçá-lo com pormenores, mas a sua propensão para as crianças foi devidamente registada. Os resultados foram-lhe mostrados e dito que existiam negativos. Ele vive atemorizado, e nós vivemos com ele... É um menino bonito de Berlim, amigo íntimo de Goering. Não, não é uma cilada.

- Mas você está preocupado.

- Escusadamente. Ele tinha os códigos: são complicados e muito precisos. Até depois.

Victor apeou-se do acanhado sidecar e atravessou o bulevar em direcção às portas do Casimir. Mantinha uma postura erecta, preparado para exibir arrogantemente os documentos falsos que lhe franqueariam a entrada.

Ao percorrer o recinto do Casimir iluminado pelos projectores, distinguia soldados alemães caminhando aos pares e aos trios pelos arruamentos. Havia um ano aqueles homens poderiam ser estudantes ou professores, a rever as notas do dia académico. Agora eram conquistadores, pacificamente arredados da devastação que se via por todo o lado fora das paredes do Casimir. Havia morte, fome e mutilação ao alcance das suas vozes de comando, e contudo falavam em voz baixa em arruamentos bem cuidados, alheados das consequências dos seus actos.

«Campo di Fiori. Havia projectores em Campo di Fiori. E morte acompanhada de mutilação».

Arredou com esforço as imagens do espírito: não podia permitir que a concentração enfraquecesse. O portal de entrada com o arco de filigrana a emoldurar as grossas portas duplas sob o número sete encontrava-se mesmo em frente. Um guarda da Wehrmacht estava postado em sentido no único degrau de mármore.

Fontine reconheceu-o: era o soldado que tinha segredado em polaco a Lúbok no Bulevar Kraków.

- Você é eficiente - disse Victor baixinho em alemão.

O guarda respondeu com um aceno de cabeça, estendeu a mão para a porta e abriu-a.

- Agora apresse-se. Tome mesmo pela escadaria à sua esquerda. Virão ao seu encontro no primeiro patamar.

Fontine cruzou rapidamente a porta, entrando na enorme antecâmara de mármore, dirigiu-se às escadas e principiou a subir. A meio caminho do patamar afrouxou o passo. Houve como que um alarme accionado pelo seu cérebro.

A voz do guarda, o seu alemão. As palavras eram esquisitas, estranhamente inusitadas: «Apresse-se... Tome mesmo pela escadaria...»

«Atenção à ausência de construções idiomáticas, ao excessivamente gramatical; ou, inversamente, às sílabas finais desirmanadas» (Loch Torridon).

O guarda não era alemão. No entanto, porque havia de sê-lo? Pertencia aos podziemna. No entanto, mais uma vez, não haviam de arriscar-se...

Apareceram dois oficiais alemães no patamar, de pistolas em riste e apontadas na sua direcção. O homem da direita falou.

- Bem-vindo ao Casimir, Signore Fontini-Cristi.

- Por favor não pare, padrone. Temos de nos despachar - disse o segundo homem.

A língua que falavam era italiano, mas a maneira de falar não era de naturais. Victor reconheceu a origem. Os oficiais que estavam ali em cima eram tão alemães como o guarda. Eram gregos. O comboio de Salónica voltava a aparecer!

Ouviu-se o estalido de uma culatra de pistola atrás de si, seguido de rápidas passadas. Passados segundos, enfiavam-lhe o cano nos rins, impelindo-o pela escada acima.

Não havia qualquer acção a tomar, nenhuma diversão a que pudesse recorrer para distrair os opositores. Estava coberto por armas, havia olhos a fitarem-lhe as mãos e balas metidas nas câmaras.

Lá em cima, algures num corredor desconhecido, ouviu risos. Talvez se gritasse, dando o alarme a um inimigo dentro do campo inimigo; o círculo concêntrico do pensamento era entorpecedor.

- Quem são vocês? - Palavras. Começar por palavras. Se conseguisse levantar a voz em sequência, numa sequência natural que minimizasse a probabilidade de os gatilhos serem premidos... - Vocês não são alemães!

Mais alto. Agora mais alto.

- Que estão vocês a fazer aqui?

O cano da pistola subiu-lhe pelas costas acima e enterrou-se-lhe na base do crânio. O sacão fê-lo parar. Um punho fechado atingiu-o no rim esquerdo; tombou para a frente, amparado pelos gregos silenciosos e expectantes à sua frente.

Começou a gritar; não havia outra maneira. O riso lá em cima tornava-se mais alto, mais próximo. Havia outros homens a descer a escada.

- Aviso-os...

De repente, puxaram-lhe ambas as mãos para trás, torcendo e imobilizando-lhe os braços, com os pulsos virados para dentro. Enfiaram-lhe um grande pano grosseiro de encontro à cara, saturado de um líquido acre e malcheiroso.

Vendaram-no; estavam a impor-lhe um vácuo opressivo, sem luz, sem ar. Arrancaram-lhe o dólman, arrebatando-lhe do peito as tiras cruzadas. Tentou libertar os braços com um arranco.

Ao fazê-lo, sentiu a comprida agulha a entrar na carne; não sabia bem onde. Instintivamente, ergueu as mãos num protesto. Estavam soltas, e eram tão inúteis como a sua resistência era vã.

Ouviu novamente o riso: era ensurdecedor. Apercebeu-se de que era empurrado para a frente e para baixo.

Mas isso foi tudo.

- Trai aqueles que lhe salvaram a vida.

Abriu os olhos; lentamente, as imagens foram-se tornando nítidas, havia uma sensação de queimadura no braço, ou ombro, esquerdo. Levou lá a mão: o contacto foi doloroso.

- Está a sentir o antídoto - disse a voz da figura indistinta algures à sua frente. - Deixa um vergão, mas não é nocivo.

A visão de Fontine principiou a aclarar. Estava sentado num chão de cimento, encostado a um muro de pedra. Do outro lado, talvez a uns seis metros, estava um homem de pé diante de outra parede. Encontravam-se numa qualquer plataforma elevada num largo túnel. O túnel parecia situar-se a grande profundidade, escavado na rocha, desaparecendo ambas as extremidades na escuridão. No pavimento do túnel viam-se carris antigos e estreitos! estavam quebrados, enferrujados. A luz provinha de diversas velas grossas enfiadas em antigos suportes nas paredes.

Com as imagens mais focadas, Fontine concentrou-se no homem à sua frente. Estava vestido de preto, e em volta do pescoço tinha um colarinho branco. O homem era padre.

Era calvo, mas não da idade. Tinha a cabeça rapada; o homem não teria mais de quarenta e cinco ou cinquenta anos e possuía um rosto ascético e um corpo franzino.

Ao lado do sacerdote estava o guarda com a farda da Wehrmacht. Os dois gregos que se faziam passar por oficiais alemães achavam-se de pé junto de uma porta de ferro na parede da esquerda virada para o túnel. O sacerdote falou.

- Seguimo-lo desde Montbéliard. Está a mil e seiscentos quilómetros de Londres. Os ingleses não podem protegê-lo. Temos rotas para o sul de que eles não têm conhecimento.

- Os ingleses? - Fontine olhou, aparvalhado, o sacerdote, tentando compreender. - Vocês são da Ordem de Xenope.

- Somos, sim.

- Por que motivo lutam contra os ingleses?

- Porque Brevourt é um mentiroso. Falta à palavra.

- Brevourt? - Victor estava atordoado; nada fazia sentido. - Não está bom da cabeça! Tudo, tudo quanto ele fez foi em vosso nome! Por vós!

- Por nós, não! Pela Inglaterra. Ele pretende a arca de Constantino para a Inglaterra! Churchill exige-o! É uma arma mais poderosa do que cem exércitos e todos eles o sabem! Nunca mais a veríamos! - O sacerdote tinha os olhos muito abertos, enfurecido.

- Acredita nisso?

- Não seja idiota! - disparou o monge de Xenope. - Da mesma maneira que Brevourt faltou à sua palavra, nós furámos o código Maginot. Houve mensagens interceptadas; comunicações entre.. digamos, partes interessadas.

- É doido! - Fontine tentou pensar. Anthony Brevourt tinha-se sumido; nunca mais se ouvira nada dele... ou sobre ele... havia meses. - Diz que me seguiram desde Montbéliard. Porquê? Eu não tenho aquilo que querem! Nunca o tive! Não sei nada do amaldiçoado comboio!

- O Mikhailovic acreditou em si - disse baixinho o padre. - Eu não.

- O Petride... - A visão do infantil monge a atentar contra a vida na saliência rochosa de Loch Torridon veio novamente à lembrança de Victor.

- O nome dele não era Petride...

- Vocês mataram-no! - exclamou Fontine. - Mataram-no tão seguramente como se tivessem sido vocês mesmos a premir o gatilho. São loucos! Todos vocês.

- Ele falhou. Sabia o que o esperava. Estava determinado.

- Vocês são doentes! Contagiam todos aqueles que tocam! Podem acreditar em mim ou não, mas estou a dizer-vo-lo pela última vez! Não tenho a informação que pretendem!

- Mentiroso!

- Vocês são doidos!

- Nesse caso porque foi que se deslocou com o Lubok? Diga-me isso, Signore Fontini-Cristi! Porquê o Lubok?

Victor recuou: o abalo do nome de Lubok fê-lo arquear as costas de encontro à pedra.

- Lubok? - sussurrou incredulamente. - Se conhecem o trabalho dele, sabem a resposta a isso.

- Loch Torridon? - perguntou sarcasticamente o padre.

- Nunca na vida tinha ouvido falar em Lubok. Só sei que cumpre a sua missão. É judeu, é... Corre grandes riscos.

- Trabalha para Roma! - rugiu o sacerdote de Xenope. - Faz chegar ofertas a Roma! As suas ofertas!

Victor calou-se; o seu espanto era tão completo que não tinha palavras. O monge de Xenope prosseguiu, em voz baixa, penetrante.

- Estranho, não é? De todos os acompanhantes nos territórios ocupados, o escolhido é o Lubok. Aparece assim sem mais nem menos em Montbéliard. Espera que acreditemos nisso?

- Acreditem no que quiserem. Isto é loucura.

- É traição! - voltou a exclamar o padre, afastando-se vários passos da parede. - Um degenerado que é capaz de pegar num telefone e fazer chantagem com metade de Berlim! E absolutamente escandaloso... para si... um cão que trabalha para o monstro de...

- Fontine! Mergulhe! - A ordem lancinante vinha do buraco negro do túnel. Tinha sido gritada na voz aguda de Lubok, cujo som ressoava nas paredes cavadas na rocha, sobrepondo-se aos gritos do sacerdote.

Victor cambaleou e saltou para a frente, rebolando ao longo da parede de pedra e atirando-se da plataforma para o rijo solo junto aos velhos carris enferrujados. Sobre ele ouviu o crepitar de balas rasgando o ar, seguido por duas atordoadoras detonações de Lugers sem silenciador.

A luz bruxuleante distinguiu as figuras de Lubok e vários outros cambalearem da escuridão, apontando as armas, fazendo rápida e rigorosa pontaria, disparando e rodando novamente para a protecção da rocha.

Terminou em segundos. O sacerdote de Xenope tombara; fora atingido no pescoço e a orelha direita fora-lhe arrebatada da cabeça. Rastejara até à borda da plataforma, moribundo, cravando os olhos em Fontine lá em baixo. Na iminência da morte a sua voz murmurante produzia um som áspero.

- Nós... não somos seus inimigos. Pela misericórdia divina, traga-nos os documentos...

Ouviu-se um derradeiro crepitar abafado e a fronte do sacerdote explodiu por cima dos olhos fixos.

Victor sentiu um aperto no braço esquerdo, que lhe causou dores lancinantes ao longo de todo o ombro e peito. Estava a ser posto de pé aos puxões.

- Levante-se! - foi a ordem de Lubok. - Os tiros podem ter sido ouvidos. Corra!

Precipitaram-se pelo túnel dentro. O feixe de uma lanterna, na mão de um dos homens de Lubok lá à frente, rasgou as trevas. O homem segredou as suas instruções em polaco. Lubok traduziu-as para Fontine, que corria ao seu lado.

- Cerca de duzentos metros lá para o fundo há uma gruta de um monge. Estaremos em segurança.

- Uma quê?

- Gruta de um monge - respondeu Lubok, respirando apressadamente. - A história do Casimir remonta a séculos atrás. Eram precisas vias de fuga.

Rastejaram por um estreito e escuro corredor aberto na rocha, que conduzia às profundas de uma gruta. O ar modificou-se repentinamente: havia uma abertura algures ali adiante na escuridão.

- Tenho de falar consigo - disse rapidamente Victor.

- Para responder às suas perguntas, o capitão Hans Neumann é um dedicado oficial do Reich com um primo na Gestapo. O Oberst Schneider não constava do alarde: isso foi complicado. Sabíamos que era uma armadilha... Para falar com toda a franqueza, não esperávamos encontrá-lo no túnel. Foi um golpe de sorte. íamos a caminho do Bloco Sete. - Lubok virou-se para os seus camaradas. Falou em polaco e a seguir fez a tradução para Fontine. - Ficamos aqui um quarto de hora, deve ser o suficiente. Depois continuamos até ao ponto de encontro no Sete. Vai tratar do seu assunto a horas.

Fontine agarrou Lubok pelo braço e afastou-o dos podziemna. Dois dos homens tinham acendido as lanternas. Havia luz suficiente para se ver a cara do correio de meia-idade, e Victor sentiu-se grato por isso.

- Não foi nenhuma armadilha dos alemães! Aqueles homens de há bocado eram gregos! Um deles era padre! - sussurrou Fontine, mas a intensidade da voz era iniludível.

- Está doido - disse Lubok despreocupadamente, com o olhar inexpressivo.

- Eram de Xenope.

- De quê?

- Bem me ouviu.

- Ouvi, mas não faço a menor ideia daquilo de que está a falar.

- Diabos o levem, Lubok! Quem é você?

- Muita coisa para muita gente, graças aos céus.

Victor agarrou o loiro checo pelas bandas do casaco. Os olhos de Lubok tornaram-se subitamente distantes, enchendo-se de uma raiva fria.

- Eles disseram que você trabalhava para Roma. Que faria chegar ofertas a Roma! Que ofertas? Que quer isso dizer?

- Não sei - respondeu lentamente o checo.

- Para quem trabalha você?

- Trabalho para muita gente. Contra os nazis. É tudo quanto você tem de saber. Mantenho-o vivo e velo por que você complete as suas negociações. A maneira como o faço não é da sua conta.

- Não sabe nada de Salónica?

- É uma cidade da Grécia, no mar Egeu... Agora tire as mãos de cima de mim. Fontine manteve o aperto e não abrandou a pressão.

- Não vá... não vá por acaso, incluir homens interessados nesse comboio de Salónica; eu não sei nada. Nunca soube.

- Se o assunto alguma vez surgir, e não posso imaginar porque há-de vir à baila, eu transmito a informação. Agora poderei concentrar-me nas suas negociações em Varsóvia? Temos de arrumá-las hoje à noite. De manhã foram tomadas disposições para dois correios seguirem de avião na carreira militar de Berlim. Eu próprio verificarei o aeródromo antes do alvorecer. Sairemos em Múlheim. Fica perto da fronteira franco-suíça, é uma noite de viagem até Montbéliard. O que tem a fazer na Europa fica terminado.

- De avião? - Victor retirou as mãos. - Num avião alemão?

- Gentilmente cedido por um comandante de Varsóvia muito perturbado. Viu demasiados filmes em que desempenhava um papel principal. Pura pornografia.

Corredor aéreo, Munique-Oeste

O trimotor Fokker achava-se na pista enquanto equipas de manutenção verificavam os motores e um camião de combustível enchia os depósitos. Estavam em Munique; tinham partido de Varsóvia de manhã cedo, com escala em Praga. A maioria dos passageiros tinha saído em Munique.

A próxima escala era Miilheim, a última etapa da sua jornada. Victor estava incomodamente sentado ao lado de Lubok, aparentemente descontraído, a bordo do avião. Havia outro passageiro: um cabo de licença, já maduro, cujo destino era Estugarda.

- Ficava mais satisfeito se houvesse mais umas quantas pessoas à boleia - segredou Lubok. - Sendo tão poucos, o piloto é capaz de insistir para que toda a gente permaneça a bordo em Mulheim. Pode reabastecer-se rapidamente e continuar viagem. Mete a maioria dos passageiros em Estugarda.

Foi interrompido pelo som martelado de passos nos degraus de metal à entrada do avião. Um riso rouco e desinibido acompanhava o martelar inseguro, subindo de intensidade à medida que os novos passageiros se aproximavam da porta da cabina. Lubok olhou para Fontine e sorriu aliviado. Voltou ao jornal fornecido pelo assistente de bordo e tornou a afundar-se no assento. Victor voltou-se: o contingente de Munique surgiu à vista.

Eram três oficiais da Wehrrnacht e uma mulher. Estavam embriagados. A rapariga trazia um casaco de fazenda de cor clara; foi empurrada através da estreita porta por dois dos homens da Wehrmacht e arremessada para um banco pelo terceiro. Não objectou: ao invés, riu-se e fez caretas. Um brinquedo solícito, participante.

Tinha vinte e bastantes anos e era simpática, mas não atraente. O seu rosto tinha qualquer coisa de frenético, uma intensidade que a fazia parecer algo gasta. O cabelo, castanho-claro, desgrenhado pelo vento, era um pouco basto de mais: não se soltara com o vento. A pintura em redor dos olhos era demasiado pronunciada, o bâton excessivamente vermelho e o rouge demasiado carregado.

- Para onde está você a olhar?

A pergunta, vociferada, ouviu-se sobre o rugido dos motores a embalarem. Quem a formulou fora o terceiro oficial da Wehrmacht, um homem de tronco largo, musculado, dos seus trinta e tal anos. Passou à frente dos dois camaradas e dirigiu-se a Victor.

- Desculpe - disse Fontine, com um sorriso pálido. - Não foi minha intenção ser grosseiro.

O oficial semicerrou os olhos; tratava-se de um fanfarrão, não havia que enganar.

- Olha um delicadinho! Oiçam-me só o calças-de-renda!

- Não quis ofender.

O oficial virou-se para os camaradas: um deles tinha puxado a rapariga nada relutante, para o colo; o outro estava na coxia.

- O calças-de-renda não quis ofender! Não é bonito?

Os dois camaradas do oficial gemeram de modo escarninho. A rapariga riu-se: demasiado histericamente, pensou Victor. Virou-se para a frente, fazendo votos para que o rústico da Wehrmacht se fosse embora.

Em lugar disso, uma mão enorme estendeu-se para o assento e agarrou-o pela omoplata.

- Isso não chega. - O oficial olhou para Lubok. - Mudem os dois lá para a frente.

Os olhos de Lúbok procuraram os de Victor. A mensagem era clara: faça o que o homem diz.

- Com certeza.

Fontine e Lubok levantaram-se e avançaram prontamente pela coxia fora. Nenhum deles falou. Fontine ouviu garrafas a serem desrolhadas. A festa da Wehrmacht começara.

O Fokker percorreu velozmente a pista e levantou voo. Lubok tinha-se instalado no assento da coxia, deixando-lhe a janela. Cravou os olhos no céu, retirando-se para dentro da sua própria concha, esperando produzir um vazio que fizesse a viagem até Miilheim passar mais depressa. Não podia passar suficientemente depressa.

O vazio não surgia. Em lugar disso, involuntariamente, pensou no sacerdote de Xenope no túnel do Casimir.

Você desloca-se com o Lubok. O Lubok trabalha para Roma».

Lubok.

«Não somos seus inimigos. Pela misericórdia divina, traga-nos os documentos».

Salónica. Sempre presente. A arca de Constantino era capaz de dividir violentamente homens que combatiam um inimigo comum.

Ouviu risos provenientes da retaguarda da cabina e a seguir uma voz sussurrada atrás de si.

- Não! Não se volte. Por favor! - Era o assistente de bordo, mal se ouvindo através do acanhado espaço entre os assentos. - Não se levante. São Komandos. Estão simplesmente a descarregar, de modo que não se ralem. Finjam que não é nada.

- Komandos? - sussurrou Lubok. - Em Munique? Eles estão colocados a norte, nas regiões do Báltico.

- Estes não. Estes operam nas montanhas nos sectores italianos. Equipas de execução. Há muitas...

As palavras atingiram-no com o impacte de trovões silenciosos. Victor inspirou; os músculos do estômago retesaram-se-lhe numa parede de pedra.

«... equipas de execução...»

Aferrou-se aos braços do assento e arqueou as costas. Depois, comprimindo as espáduas contra o banco, esticou o pescoço e virou os olhos para a parte de trás da cabina, sobre o rebordo de metal do encosto de cabeça. Não pôde acreditar no que viu.

A rapariga de olhar tresloucado achava-se por terra, com o casaco aberto; estava nua, com excepção da roupa interior rasgada, tinha as pernas abertas e movia as nádegas. Um oficial da Wehrmacht, com as calças e as cuecas arriadas pelo joelho, descia sobre ela, trespassando-a com o pénis. De joelhos, por cima da cabeça da rapariga, encontrava-se um segundo alemão com as calças despidas e uma erecção a despontar pela abertura das cuecas. Segurava a rapariga pelos cabelos e investia com a sua erecção à volta do rosto dela; ela abria a boca e aceitava-a, gemendo e tossindo. O terceiro achava-se sentado, curvado por cima do braço da cadeira sobre a violação. Respirava ofegantemente por entre os lábios entreabertos, de mão esquerda estendida, a esfregar os seios da rapariga a um ritmo condizente com os movimentos de masturbação da mão direita.

- Animal! - Fontine saltou do assento, arrancando os dedos de Lubok do seu pulso e precipitando-se em frente. Os da Wehrmacht ficaram demasiado aturdidos para se mexerem, completamente avassalados pelo choque. O oficial que estava no braço do assento abriu a boca de espanto. A mão aberta de Fontine agarrou-o pelos cabelos e arremessou a cabeça do homem de encontro ao rebordo metálico do assento. O crânio estalou; um jorro de sangue esparrinhou a cara do alemão que estava deitado entre as pernas abertas da rapariga. O oficial tropeçou com os joelhos nas calças; tombou de borco por cima da rapariga, fustigando o ar com as mãos à procura de apoio. Rolou sobre as costas, apertando a rapariga na estreita coxia. Fontine ergueu o tacão da bota direita e disparou-o contra a garganta mole do da Wehrmacht. O golpe foi terrível: as veias do pescoço do alemão intumesceram, transformando-se em enormes tubos de um negro-azulado sob a pele. Os olhos rolaram-lhe nas órbitas, as pupilas convertidas numa gelatina branca inexpressiva e hedionda.

Os gritos da rapariga por baixo dele misturavam-se agora com os berros de sofrimento do terceiro oficial, que se lançara para a frente, saltando do pavimento do Fokker em direcção à antepara de ré. A roupa interior do homem estava coberta de sangue.

Fontine precipitou-se sobre ele; o alemão esquivou-se, rebolando histerica-mente. Levou a mão ensanguentada e trémula ao interior do dólman; Victor sabia o que ele procurava: o punhal de dez centímetros dos Komandos, amarrado junto à carne sob a axila. O alemão sacou da faca - curta, afiada como uma lâmina - e vibrou uma cutilada em diagonal em frente dele. Fontine levantou-se da posição de agachado, preparado para saltar.

De súbito, um braço apertou-se em torno do pescoço de Victor. Ripostou com os cotovelos, mas o aperto era impossível de vencer.

O pescoço foi puxado para trás e uma longa faca cruzou velozmente os ares, enterrando-se profundamente no peito do alemão. O homem morreu antes de o corpo se abater no pavimento da cabina.

O pescoço de Fontine foi abruptamente libertado. Lubok pregou-lhe uma bofetada, com um golpe poderoso, magoando-lhe a carne.

- Basta! Pare com isso! Não estou para morrer por si!

Atordoado, Victor olhou em redor. Às gargantas dos outros dois da Wehrmacht tinham sido cortadas. A rapariga afastara-se, rastejando, vomitava e

'Em italiano no original: «animais». (N. do T.)

chorava entre dois assentos. O assistente de bordo jazia estendido na coxia morto ou inconsciente, não havia maneira de saber.

E o cabo veterano, que olhava o vazio - de medo - ainda há minutos estava de pé, junto da porta da cabina de pilotagem, empunhando uma pistola.

Subitamente a rapariga pôs-se a gritar, ao mesmo tempo que se erguia.

- Eles matam-nos! Oh, meu Deus! Porque fez você isso?

Aturdido, Fontine ficou a olhar para a rapariga e falou baixinho, com o fôlego que lhe restava.

- Você? Como é que você pode fazer semelhante pergunta?

- Sou! Oh, meu Deus! - Embrulhou-se o melhor que podia no casaco sujo. - Eles matam-me. Eu não quero morrer!

- Não há-de querer viver daquela maneira.

Ela devolveu-lhe tresloucadamente o olhar fixo, com a cabeça a tremer.

- Eles trouxeram-me dos campos -- sussurrou. - Eu compreendi. Davam-me drogas quando eu precisava, quando eu queria. - Arregaçou a manga direita: tinha uma porção de marcas que iam do pulso até ao antebraço. - Mas eu compreendi. E mantive-me viva!

- Basta! - troou Victor, dando um passo na direcção da rapariga e levantando a mão. - O facto de você viver ou morrer não é importante para mim. Não agi por sua causa.

- O que fez está feito, capitão - disse rapidamente Lúbok, tocando-lhe no braço. - Deixe lá isso! Já teve a sua confrontação, e não pode haver mais nenhuma. Percebeu?

Fontine viu a força nos olhos de Lúbok. Respirando pesadamente, Victor apontou com espanto para o cabo quarentão silenciosamente postado junto da porta da cabina, de arma em riste.

- É um dos seus, não é?

- Não - respondeu Lúbok. - É um alemão dotado de consciência. Não sabe quem somos nem o que somos. Em Múlheim há-de estar inconsciente, um inocente espectador que lhes pode contar o que quiser. Suspeito que não contará coisa nenhuma. Fique com a rapariga.

Lúbok tomou conta das operações. Voltou aos corpos dos alemães e tirou-lhes os documentos e as armas. No dólman de um deles encontrou um estojo hipodérmico e seis ampolas de narcótico. Deu-os à rapariga, que estava sentada junto da janela ao lado de Fontine. Ela aceitou-os gratamente e, sem sequer olhar para Victor, passou imediatamente à acção de quebrar uma cápsula, encher a seringa e introduzir a agulha no braço esquerdo.

- Sente-se melhor? - perguntou Fontine.

Ela virou-se e olhou para ele. Agora o seu olhar era mais calmo, apenas se espelhando nele o desdém.

- Compreenda uma coisa, capitão. Eu não sinto. Não há sentimentos. Uma pessoa vai pura e simplesmente vivendo, e mais nada.

- Que vai você fazer?

Ela desviou os olhos dele e voltou à janela. Respondeu-lhe de modo sereno, sonhador:

- Viver, se puder. Não depende de mim. Depende é de si.

Na coxia, o assistente de bordo mexeu-se. Sacudiu a cabeça e pôs-se de joelhos. Antes que conseguisse focar a vista, Lúbok estava diante dele, com a Pistola encostada à sua cabeça.

- Se quiser salvar a pele, terá de me obedecer cegamente quando chegarmos a Miilheim.

Lia-se a concordância nos olhos do soldado. Fontine pôs-se de pé.

- E a rapariga? - sussurrou.

- Que tem? - contrapôs Lubok.

- Gostava de levá-la connosco.

O checo passou uma mão exasperada pelo cabelo.

- Oh, Cristo! Bem, ou isso ou matá-la. Sei que me denunciaria por uma gota de morfina. - Baixou o olhar para a rapariga. - Ela que se arranje. Há uma gabardina lá atrás. Pode vesti-la.

- Obrigado - disse Victor.

- Deixe-se disso - retorquiu Lubok. - Se pensasse que era a melhor solução, matava-a já. Mas ela pode ser valiosa: esteve numa unidade de Komandos numa zona onde nós desconhecíamos que existisse alguma.

Os combatentes da Resistência esperavam o automóvel numa estrada secundária de Lonrach, perto da fronteira franco-suíça. Victor recebeu roupa lavada mas andrajosa para substituir o uniforme alemão. Atravessaram o Reno ao cair da noite. A rapariga foi levada para um campo da Resistência nos montes; estava demasiado drogada, demasiado insegura para fazer a viagem para sul até Montbéliard.

O assistente de bordo foi pura e simplesmente levado. Fontine guardou os seus projectos para si. Já houvera outro cabo de outro exército num cais em Celle Ligure.

- Agora vou deixá-lo - disse Lubok, vindo até junto dele na margem do rio. O checo tinha a mão estendida.

Fontine ficou surpreendido. O plano previa que Lubok o acompanharia até Montbéliard. Londres podia ter novas instruções para ele. Apertou a mão de Lubok, protestando.

- Porquê? Pensava...

- Bem sei. Mas as coisas mudam. Há problemas em Wiesbaden. Victor tomou a mão direita do checo na sua, cobrindo-a com a esquerda.

- É difícil saber o que dizer. Devo-lhe a vida.

- Fosse o que fosse que eu fiz, você teria feito o mesmo. Nunca duvidei disso.

- Você, além de valente, é generoso.

- Aquele tal padre grego disse que eu era um degenerado capaz de fazer chantagem com metade de Berlim.

- E era capaz?

- Provavelmente era - respondeu rapidamente Lubok, olhando lá para diante, para um francês que lhe fazia sinal para entrar no barco. Correspondeu com um aceno de cabeça. Voltou-se novamente para Victor: - Escute-me - disse baixinho, retirando a mão. - Esse padre disse-lhe outra coisa. Que eu trabalhava para Roma. Você disse que não sabia o que isso queria dizer.

- E não sei, especificamente. Mas não sou cego; tem a ver com o comboio de Salónica.

- Tem tudo a ver com ele.

- Nesse caso, trabalha mesmo para Roma? Para a Igreja?

- A Igreja não é sua inimiga. Acredite.

- A ordem de Xenope sustenta que ela não é minha inimiga. No entanto o certo é que tenho um inimigo. Mas não respondeu à minha pergunta. Trabalha para Roma?

- Sim. Mas não da maneira que você pensa.

- Lubok! - Fontine agarrou no checo de meia-idade pelos ombros. - Eu não penso coisa alguma! Não sei! Será que não percebe isso?

Lubok ficou a olhar para Victor; à difusa luz nocturna, os seus olhos eram perscrutadores.

- Acredito em si. Dei-lhe uma dúzia de oportunidades, e você não aproveitou nenhuma delas.

- Oportunidades? Que oportunidades?

O francês que estava junto do barco tornou a chamar, desta vez imperiosamente.

- Você! «Pavão»! Vamos embora daqui.

- Vamos já - respondeu Lubok, com os olhos ainda em Fontine. - Pela última vez. Há homens... de ambos os lados... que acham que a guerra é insignificante comparada com a informação que julgam que você possui. Sob certos aspectos, concordo com eles. Mas você não a tem, nunca a teve. E esta guerra tem de ser travada. E ganha. Na verdade, o seu pai era mais esperto que todos eles.

- Savarone? Que é que você...?

- Agora vou-me embora. - Lubok ergueu as mãos, com força mas sem hostilidade, e retirou os braços de Victor. - Por esta ou outras razões, fiz aquilo que fiz. Muito em breve saberá. Aquele padre no Casimir tinha razão: são monstros. Ele próprio o era. Há outros. Mas não culpe as Igrejas: estão inocentes Albergam os fanáticos, mas são inocentes.

- «Pavão»! Não se atrase mais!

- Lá vou - disse Lubok num sussurro gritado. - Adeus, Fontine. Se pensasse por um minuto que você não era o que diz ser, eu próprio o teria torturado para me dar a informação. Ou matava-o. Mas você é aquilo que é, apanhado no meio de tudo isto. Agora vão deixá-lo em paz. Por uns tempos.

O checo tocou leve e suavemente o rosto de Victor e correu para o barco.

As luzes azuis piscaram sobre o campo de Montbéliard precisamente à meia-noite e cinco. De repente, acenderam-se duas fiadas de pequenas chamas: a pista estava assinalada e o avião descreveu um círculo a fim de aterrar.

Fontine atravessou o campo a correr, levando a pasta. Ao chegar junto do avião, que deslizava pela pista, a escotilha abriu-se; havia dois homens de pé enquadrados no vão da abertura, de braços estendidos. Victor atirou a pasta para o interior e estendeu a mão que agarrou a do homem à sua direita. Aumentou a velocidade da corrida, saltou e foi içado pela abertura, ficando deitado de borco no pavimento. A escotilha foi fechada com força, houve uma ordem gritada ao piloto e os motores roncaram. O avião lançou-se em frente com um sacão, e pouco depois estavam no ar.

Fontine ergueu a cabeça e rastejou até à parede logo a seguir à escotilha. Puxou a pasta para junto de si e respirou profundamente, deixando a cabeça tombar de encontro ao metal.

- Oh, meu Deus! - ouviram-se as palavras pronunciadas sobressaltadaente na escuridão. - É você!

Victor rodou instantaneamente a cabeça para a esquerda, na direcção do

vulto que falava com tanto alarme na voz. Os primeiros raios de luar infiltraram-se pela janela da cabina de pilotagem, que estava aberta. Os olhos de Fontine foram atraídos pela mão direita do homem que falara. Estava coberta por uma luva preta.

- Stone? Que faz você aqui?

Porém, Geoffrey Stone estava incapacitado de responder. O luar tornou-se mais claro, iluminando a concha vazia que era a cabina do aparelho. Stone tinha os olhos arregalados e os lábios entreabertos, imóveis.

- Stone? É mesmo você?

- Oh, Jesus! Fomos levados. Eles conseguiram!

- De que está você a falar?

O inglês prosseguiu, em tom monocórdico:

- Foi referenciada a sua morte. Capturado e executado no Casimir, Disseram-nos que só um homem escapara. Com os seus documentos...

- Quem?

- O correio, Lubok.

Victor pôs-se inseguramente de pé, agarrando-se a uma pega de metal saliente da parede do avião, que vibrava. As peças geométricas começavam a juntar-se.

- Onde obteve essa informação?

- Foi-nos transmitida esta manhã.

- Por quem? Quem foi que a captou? Quem foi que a retransmitiu?

- A Embaixada grega - respondeu Stone, numa voz que pouco mais era que um murmúrio.

Fontine voltou a deixar-se cair no pavimento do avião. Lubok tinha dito estas palavras: «Dei-lhe uma dúzia de oportunidades, e você não aproveitou nenhuma. Há homens que acham que esta guerra é insignificante... Por esta e outras razões fiz o que fiz. Muito em breve saberá... Agora vão deixá-lo em paz. Por uns tempos».

Lubok fizera a sua jogada. Verificara um aeródromo em Varsóvia antes do raiar do dia e enviara uma mensagem falsa para Londres.

Não era precisa grande imaginação para saber o que essa mensagem continha.

- Estamos imobilizados. Expusemo-nos e fomos postos fora de combate. Agora vigiamo-nos uns aos outros, mas ninguém pode dar um passo, nem reconhecer aquilo que procuramos. Ninguém pode permitir-se esse luxo. - Brevourt falava de pé junto da janela de caixilhos de chumbo que dava para o pátio das Operações Estrangeiras. - Xeque-mate.

Do outro lado da sala, de pé junto à comprida mesa de reuniões, estava um enfurecido Alec Teague. Encontravam-se sós.

- Não quero saber disso para nada! O que me preocupa é a sua estrondosa manipulação das Informações Militares! Você pôs toda um rede em xeque. Loch Torridon pode muito bem ter ficado inutilizado.

- Invente outra estratégia - disse Brevourt distraidamente, olhando pela janela. - É esse o seu trabalho, não é?

- Diabos o levem!

- Por amor de Deus, Teague, pare com isso! - Brevourt fez meia volta, afastando-se da janela. - Alguma vez lhe passou pela cabeça que eu fosse a autoridade última?

- Acho que você comprometeu essa autoridade! Eu devia ter sido consultado!

Brevourt começou a ripostar, mas depois parou. Acenou com a cabeça ao mesmo tempo que atravessava lentamente a sala até à mesa em frente a Teague.

- Pode ser que tenha razão, general. Diga-me, você que é o especialista. Qual foi o nosso erro?

- O Lubok - disse friamente o general de brigada. - Ele cobriu a vossa parada. Abotoou-se com o vosso dinheiro e virou-se para Roma, e a seguir decidiu-se. Era o homem errado.

- Era o vosso homem. Das vossas fichas.

- Não para esse trabalho. Você interferiu.

- Pode ir para qualquer parte da Europa - continuou Brevourt quase lamuriosamente, como se Teague não tivesse interrompido. - É intocável. Se o Fontini-Cristi se tivesse escapado, o Lúbok podia tê-lo seguido para onde quer que fosse. Mesmo até à Suíça.

- Você estava à espera disso, não estava?

- Para falar com franqueza, estava. Você é demasiado bom vendedor, general. Acreditei em si. Pensei que Loch Torridon fosse mesmo fruto da cabeça do Fontini-Cristi. Tudo parecia tremendamente lógico. O italiano regressa sob um disfarce perfeito para tomar as suas próprias disposições.

Brevourt sentou-se fatigadamente, entrelaçando as mãos sobre a mesa à sua frente.

- Não lhe ocorreu que, se fosse esse o caso, ele ter-se-ia dirigido a nós? A si?

- Não. Nós não podíamos devolver-lhe as terras ou as fábricas.

- Não o conhece - concluiu Teague peremptoriamente. - Nunca se deu a esse trabalho. Foi esse o seu primeiro erro.

- Sim, quer-me parecer que foi. Tenho passado a maior parte da vida no meio de mentirosos. Os corredores da falsidade. A verdade simples é esquiva. - Brevourt ergueu subitamente os olhos para o homem das Informações. O seu rosto era patético, a tez pálida e as órbitas cavadas testemunhos de exaustão. - Você não acreditou, pois não? Não acreditou que ele tivesse morrido.

- Não.

- Eu não podia correr o risco, compreende? Aceitei o que você disse, que os alemães não o executariam, que se poriam na pista dele, descobririam quem ele era, utilizá-lo-iam. Mas o relatório dizia outra coisa. Portanto, se ele tivesse mesmo morrido, isso quereria dizer que quem o matara eram os fanáticos de Roma ou de Xenope. E eles não fariam tal coisa, a não ser... a não ser... que tivessem obtido o seu segredo.

- E, se o tivessem obtido, a arca seria deles. Não sua. Não da Inglaterra. Para já, nunca foi sua.

O embaixador desviou os olhos de Teague e voltou a afundar-se na cadeira, fechando os olhos.

- E tão-pouco se podia deixar que ela caísse nas mãos de loucos. Nesta altura, não. Sabemos quem é o louco em Roma. Agora o Vaticano vai andar de olho no Donatti. O Patriarcado vai suspender as actividades; foi-nos dada essa garantia.

- O que era o objectivo de Lubok, claro.

Brevourt abriu os olhos.

- Seria mesmo?

- Na minha opinião, era. O Lúbok é judeu. Brevourt virou a cabeça e cravou o olhar em Teague.

- Não vai haver mais interferências, general. Continue lá com a sua guerra. A minha está em suspenso.

Anton Lubok atravessou a Praça Venceslau, de Praga, e subiu os degraus da catedral bombardeada. Lá dentro, o sol do final da tarde coava-se por entre as enormes fendas na pedra onde as bombas da Luftwaffe tinham explodido. Haviam sido destruídas secções inteiras da parede da esquerda, e por toda a parte se viam andaimes primitivos à guisa de escoramento.

Parou na nave mais à direita e consultou o relógio. Estava na hora.

Um velho padre saiu da abside coberta por um reposteiro e passou pela frente dos confessionários. Deteve-se por breves instantes na sala. Era o sinal de Lúbok.

Percorreu cuidadosamente a nave, fixando a atenção na dúzia de fiéis, aproximadamente, que havia na igreja. Ninguém o observava. Afastou as cortinas e entrou no confessionário. Ajoelhou diante do pequeno crucifixo da Boémia; a luz bruxuleante da vela de orações projectava sombras nas paredes revestidas de cortinas.

- Perdoai-me, padre, porque pequei - principiou baixinho Lúbok. - Pequei em excesso. Aviltei o corpo e o sangue de Cristo.

- Não podemos aviltar o Filho de Deus - ouviu-se a resposta adequada por detrás das cortinas. - Só podemos aviltar-nos a nós próprios.

- Mas nós somos feitos à imagem de Deus. Como Ele próprio era.

- Uma imagem fraca e imperfeita - foi a resposta. Lúbok expirou lentamente: o exercício estava terminado.

- O senhor é Roma?

- Sou o canal - disse a voz, com serena arrogância.

- Não julgava que fosse a cidade, seu palerma dos diabos!

- Estamos na casa de Deus. Cuidado com a língua.

- E o senhor ultraja esta casa - sussurrou Lubok. - Todos os que trabalham para Donatti a ultrajam.

- Silêncio. Nós somos o caminho de Cristo!

- Vocês são lama! O vosso Cristo cuspiria sobre vós.

A respiração do outro lado da cortina estava cheia de controlada aversão.

- Rezarei pela sua alma - ouviram-se as palavras forçadas. - Que há do Fontini-Cristi?

- Não tinha outro objectivo a não ser Loch Torridon. As vossas extrapolações estavam erradas.

- Isso não serve! - O sussurro do padre era estridente. - Ele tinha de ter outros objectivos! Temos a certeza absoluta!

- Nunca saiu de ao pé de mim desde o momento em que nos conhecemos, em Montbéliard. Não houve mais nenhuns contactos a não ser aqueles de que tínhamos conhecimento.

- Não! Não acreditamos nisso!

- Daqui a uma questão de dias não fará qualquer diferença aquilo que acreditam. Estão arrumados. Todos vocês. Há gente boa que se encarregará disso.

Que fez você, judeu? - A voz por detrás das cortinas era agora abafada, e a aversão total.

- O que tinha de ser feito, padre.

Lubok pôs-se de pé e levou a mão esquerda ao bolso. Com a direita puxou repentinamente as cortinas na sua frente.

O padre surgiu à vista. Era enorme; as vestes negras davam-lhe uma aparência de imensidão. O seu rosto era o rosto de um homem que odiava profundamente; os olhos eram os olhos de um predador.

Lubok tirou um sobrescrito do bolso e deixou-o cair no genuflexório, diante do padre estupefacto.

- Aqui tem o seu dinheiro. Devolva-o a Donatti. Queria saber qual era o seu aspecto.

O padre respondeu calmamente:

- O melhor é saber o resto. O meu nome é Gaetamo. Enrici Gaetamo. E hei-de voltar à sua procura.

- Duvido - retorquiu Lubok.

- Não duvide - disse Enrici Gaetamo.

Lubok manteve-se de pé por um momento a olhar para o padre, sentado. Quando os olhares de ambos se cravaram um no outro, o loiro checo humedeceu os dedos da mão direita e estendeu-os para a vela de orações, extinguindo a chama. Tudo ficou na escuridão. Afastou as cortinas e saiu do confessionário.

 

A casa de campo ficava nos terrenos de uma extensa propriedade a oeste de Aylesbur, no Oxfordshire. A área era cercada por altos postes metálicos unidos por arame farpado electrificado. O enorme conjunto achava-se guardado por ferozes cães.

Havia uma única entrada, um portão, no início de um comprido caminho de acesso rectilíneo flanqueado por relvados abertos. Na casa principal, a quatrocentos metros do portão, a álea bifurcava-se para a direita e para a esquerda, voltando depois a dividir-se em diversos caminhos mais pequenos que levavam às várias casas de campo.

Havia ao todo catorze casas de campo, erigidas dentro e à volta do arvoredo da propriedade. Os ocupantes eram homens e mulheres que necessitavam de segurança: desertores e suas famílias, agentes duplos, correios que tinham sido expostos - alvos marcados para a bala de um assassino.

A casa de campo de Jane tornou-se o lar de ambos e Victor sentia-se grato pelo seu carácter recôndito. Porque todas as noites a Luftwaffe sulcava os céus, os incêndios de Londres aumentavam e a batalha da Inglaterra tinha começado.

E também Loch Torridon.

Durante períodos de várias semanas, Victor afastava-se da pequena casa do Oxfordshire e de Jane com o espírito sereno porque ela estava em segurança. Teague transferiu o quartel-general de Loch Torridon para as caves do MI 6. Noite e dia não tinham significado especial. Os homens trabalhavam a toda a hora com arquivos e rádios de onda curta e com equipamento que reproduzia perfeitamente os documentos necessários nas terras ocupadas: papéis de trabalho, autorizações de viagem, salvo-condutos do Reichsministerium dos Armamentos e Indústria. Outros homens eram chamados às caves e recebiam instruções dadas pelos capitães Fontine e Stone. E eram enviados para Lakeheath e lugares mais afastados.

Da mesma maneira que Victor num crescente número de ocasiões. Em tais alturas, sabia que Alec Teague tinha razão: «A segurança da sua mulher está directamente relacionada com o seu estado de espírito. Você tem um trabalho a fazer; eu farei o meu».

Jane não podia ser tocada pelos loucos de Roma ou Xenope. Era tudo quanto importava. O comboio de mercadorias de Salónica tornou-se uma estranha e dolorosa recordação. E a guerra continuava.

24 de Agosto de 1940 Antuérpia, Bélgica

(Despacho interceptado - duplicado - do comandante das Forças de Ocupação, Antuérpia, para o Reichsminister Speer, Armamento.)

«Os estaleiros ferroviários de Antuérpia estão um caos! Os comboios de abastecimento que atravessam o rio Escalda são sobrecarregados devido a incúria nas ordens de carregamento, o que origina fendas em toda a estrutura da ponte. Horários e códigos alterados sem o devido aviso. A partir de serviços dirigidos por pessoal alemão! Represálias caricatas. Irresponsabilidade estrangeira. Há comboios a cruzar-se com outros em direcção oposta na mesma via! Há composições de mercadorias a pararem em cais e armazéns onde não aparecem camiões! Não há remessas! A situação é intolerável e tenho de instar com o Reichsministerium para que coordene mais minuciosamente...»

19 de Setembro de 1940 Verdun-sur-Meuse, França

(Excertos de uma carta recebida no gabinete jurídico do segundo comando do Gesetzbuch Besitzergreifung - remetida por um tal coronel Grepschedit, Verdun-Meuse.)

«... Ficou acordado que redigiríamos normas de ocupação específicas para arbitrar disputas entre nós e os vencidos que depuseram as armas. A regulamentação foi implementada. Depara-se-nos agora regulamentação adicional - posta em circulação pelos seus serviços -, que colide com secções inteiras do normativo anterior. Estamos em constante discussão mesmo com aqueles que nos receberam de bom grado! Gastam-se dias a fio com audiências de ocupação. Os nossos oficiais vêem-se confrontados com ordens contraditórias dos vossos correios - tudo isto devidamente assinado e autenticado com os vossos selos. Estamos em ponto de ebulição devido a incongruências. Estamos a perder a cabeça...»

 

20 de Março de 1941 Berlim, Alemanha

(Acta extraída da reunião entre estabilizadores de contas do Finanzminis-terium e dos funcionários do Reichsordnung. Dossier retirado - duplicado.)

«... A essência das intermináveis dificuldades da Manutenção deve ser assacada aos sistemáticos enganos do Finanzministerium nas atribuições de fundos. Passam-se meses que as contas não são corrigidas, os pagamentos são mal calculados, são transferidas verbas para os entrepostos de distribuição errados... Frequentemente para sectores geográficos errados! Há batalhões inteiros que não receberam os vencimentos porque os fundos se encontravam algures na Jugoslávia, quando deviam estar em Amesterdão!...»

 

23 de Junho de 1941 Brest-Litovsk, frente russa

(Despacho através de um correio do general Guderian para o seu comandante, general Bock, Quartel-General em Pripet, na Polónia. Intercepção: Bialystok. Não chegou ao destinatário.)

«... Em dois dias de ofensiva estamos a quarenta e oito horas de Minsk. O Dniepre vai ser atravessado em questão de semanas; o Don e Moscovo não estão muito mais longe! A rapidez da nossa progressão exige comunicações imediatas, essencialmente comunicações de rádio, mas existem crescentes dificuldades com o nosso equipamento de transmissões. Especificamente, naquilo que os engenheiros me dizem ser a calibração da frequência. Mais de metade do equipamento sob a nossa jurisdição está regulado em frequências diferentes. A menos que se tomem extremas cautelas, há comunicações enviadas em frequências insólitas, muitas vezes frequências inimigas. Trata-se de um problema de fabrico. A nossa preocupação reside na impossibilidade de determinar quais os equipamentos que vêm com calibração defeituosa. Eu próprio iniciei uma comunicação com Kleist, no flanco sul de Rundstedt, e dei por mim a falar com a Lituânia Oriental...»

 

2 de Fevereiro de 1942 Berlim, Alemanha

(Retirado do arquivo de correspondência de Manfried Probst, funcionário do Reichsindustrie, por Hiru Kayanaka, adido à Embaixada do Japão em Berlim.)

«Caro Reichsofíiziell Probst:

Uma vez que somos actualmente tanto camaradas de batalha como camaradas em espírito, temos de tentar esforçar-nos mais pela perfeição que os nossos chefes esperam de nós.

Passemos ao assunto, meu caro Reichsoffiziell. Como sabe, os nossos governos encetaram experiências de radar conjuntas.

Enviámos por via aérea - com grande risco - os nossos mais eminentes cientistas de electrónica a Berlim para participarem em conferências com o vosso pessoal. Isto passou-se há seis semanas e ainda não se realizou qualquer conferência. Fui informado de que os nossos mais ilustres sábios foram, por engano, enviados por via aérea para Greifswald, no mar Báltico. Eles não estão interessados em experiências com foguetes, mas sim com radar, meu caro Reichsoffiziell. Infelizmente, nenhum deles fala a vossa língua e os intérpretes que vocês lhes destinaram não são propriamente fluentes na nossa.

Chegou há uma hora à minha secretária notícia de que os nossos mais eminentes cientistas estão presentemente a caminho de Wiirzburg, onde há transmissores de rádio. Meu caro Reichsoffiziell, nós não sabemos onde fica Wurz-DUrg. E os nossos mais eminentes cientistas não estão interessados em transmissores de rádio, mas sim em radar!

Poderá por favor localizar os nossos mais eminentes cientistas? Quando são

as conferências sobre radar? Com que objectivo andam os nossos mais eminentes cientistas a viajar por toda a Alemanha?...»

 

25 de Maio de 1942 St. Valéry-en-Caux, França

(Relatório elaborado pelo capitão Victor Fontine, largado de pára-quedas na retaguarda das linhas, no distrito de Héricourt. Regressado via arrastão, ilha de Wight.)

«... As remessas de armamento ao longo das regiões costeiras são primordialmente de natureza ofensiva, dando-se pouca importância ao armamento defensivo. Os carregamentos são expedidos de Essen, via Dusseldórfia, passando a fronteira até Roubaix e seguindo depois até à costa francesa. A chave é o combustível. Colocámos homens nossos nos depósitos de gasolina. Eles recebem contínuas «instruções» do Reichsministerium da Indústria no sentido de desviarem remessas de gasolina directamente de Bruxelas para Roterdão, donde partem vagões para a frente russa. Segundo as últimas notícias, havia duzentos e trinta quilómetros de veículos com armamento convencional bloqueados nas estradas entre Lovaina e Bruxelas, com os depósitos vazios. E, evidentemente, não houve represálias. Calculamos que o empreendimento permanecerá em condições de ser processado durante mais quatro dias, findos os quais Berlim será obrigada a entrar e o nosso pessoal terá de sair. Coordenar ataques aéreos nessa ocasião...»

(Nota: Comando de Loch Torridon. Para arquivar. Despacho do general de brigada Teague: concedida licença ao capitão Victor Fontine após o regresso de Wight. Recomendação para promoção a major aceite...)

Fontine saiu velozmente de Londres pela estrada de Hempstead, rumo ao Oxfordshire. Pensara que o briefing com Teague e Stone nunca mais acabaria! Meu Deus! As repetições! O seu co-administrador, Stone, ficava sempre furioso quando ele regressava de uma das suas deslocações à retaguarda das linhas alemãs. Era um trabalho que Stone fora treinado para executar, mas que agora lhe era impossível. A mão esfacelada punha fora de causa incursões daquelas, e ele descarregava a ira em Victor. Costumava submeter Fontine a um interrogatório rápido, desabrido e repetitivo, procurando erros em todas as fases de uma missão. Todo e qualquer carinho que outrora Victor tivesse sentido pelo criptógrafo desaparecera ao longo dos meses. Meses? Mãe de Cristo, já lá iam quase dois anos e meio!

Contudo, esta noite as tácticas dilatórias de Stone eram imperdoáveis. Os ataques da LuftwafFe sobre a Inglaterra tinham abrandado, mas não terminado. Caso as sereias de alarme aéreo começassem a tocar, podia ser-lhe impossível sair de Londres.

E Jane estava perto do fim do tempo. Os médicos tinham dito que era questão de uma quinzena. Isso fora há uma semana, quando ele seguira de avião de Lakenheath para França e fora largado nos campos de pastagem de Héricourt.

Alcançou os arredores de Aylesbury e olhou para o relógio, segurando-o por baixo da luz mortiça do painel de instrumentos do automóvel. Eram duas e

vinte da manhã. Ambos haviam de rir daquilo: ele estava constantemente a voltar para junto dela a horas disparatadas. Mas voltava. Daí a dez minutos chegaria ao complexo.

Atrás de si, ao longe, ouviu o gemido das sereias aumentando e diminuindo de intensidade em lamuriosas fugas. Não sentiu a ansiedade acompanhada de um baque e da opressão no peito que costumava acompanhar o som terrível. O próprio som tinha acabado por revestir-se de um certo cansaço: a repetição embotara-lhe o terror.

Rodou o volante do automóvel para a direita; encontrava-se presentemente na estrada secundária que levava à propriedade do Oxfordshire. Mais quatro ou cinco quilómetros e estaria com a mulher. Carregou com o pé no acelerador. Não havia carros na estrada: podia andar depressa.

Instintivamente, os ouvidos puseram-se à escuta do ribombar distante do bombardeamento. Mas não se ouviu nenhum trovejar longínquo; apenas o incessante gemido das sereias. De repente, houve sons que se intrometeram onde não devia haver sons; susteve a respiração, apercebendo-se de imediato do regresso da esquecida ansiedade. Perguntou a si mesmo por um momento se a sua exaustão não lhe estaria a pregar partidas...

Não era partida! Não se tratava de partida nenhuma! Os sons estavam por cima dele e eram inconfundíveis. Tinha-os escutado demasiado amiúde, tanto sobre Londres como em pleno canal, numa porção de lugares diferentes, secretos.

Aviões Heinkel. Bombardeiros bimotores alemães de longo alcance. Tinham passado Londres. E, se Londres tinha sido passada em claro, havia boas probabilidades de que os Heinkel rumassem em direcção ao distrito de Birmingham e às fábricas de munições.

Meu Deus! Os aviões estavam a perder altitude! Estavam a picar, numa descida rápida.

Mesmo por cima dele!

À sua frente!

Um bombardeamento! Um ataque aéreo em pleno campo, no Oxfordshire! Em nome de Deus, que...?

O complexo!

O único lugar em Inglaterra que não tinha paralelo em segurança. De terra, mas não dos ares!

Tinha sido ordenado um ataque aéreo a baixa altitude contra o complexo!

Fontine pisou o acelerador a fundo, com o corpo a tremer e a respiração a sair-lhe em curtos arrancos, de olhos cravados na estrada que ia desfilando velozmente.

O céu explodiu. Os silvos dos aviões em voo picado misturaram-se com o trovejar de origem humana: detonações atrás de detonações. Enormes clarões brancos e amarelos - angulosos, informes, horríveis - invadiram os espaços abertos sobre e entre o arvoredo de Oxfordshire.

Alcançou a entrada do complexo, fazendo guinchar os pneus ao travar a fim de entrar numa curva. Os portões de ferro estavam abertos.

Evacuação.

Enterrou o pé no pedal do acelerador e percorreu a toda a velocidade a extensa recta do arruamento de acesso. Ao fundo havia fogo por toda a parte, explosões por toda a parte, pessoas correndo em pânico - por toda a parte.

A casa principal fora atingida em cheio. Toda a parede fronteira do lado

direito voara pelos ares; o telhado ruía num sobrenatural esplendor informe, numa cascata de tijolo e pedra que desabava no solo. O fumo evolava-se em turbilhões verticais de cor negra e cinzenta e deixava ver os focos de incêndios amarelos, aterradores.

Um estrondo ensurdecedor: o carro foi sacudido, o solo elevou-se e as janelas estilhaçaram-se, projectando fragmentos de vidro em todas as direcções. Fontine sentiu sangue a escorrer-lhe pela cara, mas conseguia ver, e isso era tudo o que importava.

A bomba acertara a menos de cinquenta metros à sua direita. À luz dos incêndios viu a terra escalavrada do relvado. Guinou para a direita, contornou a cratera e cortou a direito pela relva em direcção à estrada de terra que levava à casa de campo que ocupavam. As bombas não acertavam duas vezes no mesmo alvo, pensou.

A estrada achava-se obstruída: tinham abatido árvores e o fogo consumia-as - por toda a parte.

Saltou do carro e correu por entre as barreiras em chamas. Viu a casa deles. Um enorme carvalho fora arrancado do solo e o seu maciço tronco abatera-se sobre o telhado de telha ondulada.

- Jane! Jane!

«Deus do ódio, não me faças isso! Não voltes a fazer-me isso!» Atirou-se contra a porta, fazendo-a saltar dos gonzos. Lá dentro reinava a mais completa destruição: havia mesas, candeeiros e cadeiras espalhadas, de pernas para o ar, estilhaçadas em mil e um fragmentos. Havia fogo - no sofá, no telhado aberto onde o carvalho se abatera.

- Jane!

- Aqui...

A voz dela vinha da cozinha. Cruzou o estreito vão da porta em corrida e sentiu por um instante que devia tombar de joelhos numa súplica. Jane estava de pé, agarrada à borda do balcão, de costas para ele, o corpo a tremer e a cabeça a acenar para cima e para baixo. Precipitou-se para ela e agarrou-a pelos ombros, encostando o rosto à sua face, sem que o ritmo espasmódico dos movimentos dela se interrompesse.

- Minha querida.

- Vittorio... - De súbito, Jane teve uma contracção violenta, ofegando ao mesmo tempo: - Lençóis... Lençóis, meu amor. E cobertores. Acho que não tenho bem a certeza, palavra...

- Não fales. - Pegou nela e viu-lhe a dor no rosto, na escuridão. - Vou levar-te à clínica. Há uma clínica, um médico, enfermeiras...

- Não conseguimos lá chegar! - gritou ela. - Faz o que te digo. - Tossiu, num espasmo de dor: - Eu mostro-te. Pega em mim.

Apertava uma faca na mão. Estivera a esterilizá-la com água quente, preparando-se para provocar o parto, sozinha.

No meio das detonações incessantes, Victor conseguiu ouvir os aviões a subir, rumo a maiores altitudes. O ataque estava a terminar: os rugidos longínquos e furiosos dos Spitfire convergindo para o sector eram um sinal que a nenhum piloto da Luftwaffe passava despercebido.

Fez o que a mulher lhe dizia, segurando-a nos braços e recolhendo desajeitadamente o que quer que ela lhe mandava.

Abriu caminho a pontapé por entre os destroços e as chamas que alastravam e carregou a mulher para o exterior. Como um animal buscando um

refúgio, correu para o arvoredo e descobriu um antro que era só deles

Estavam juntos. O frenesi de morte que se encontrava a várias centenas de

metros de distância não podia deter a vida. Ajudou a mulher a trazer ao

mundo duas crianças do sexo masculino. Tinham nascido os filhos de Fontini-Cristi.

A fumaça erguia-se preguiçosamente em espirais, rolos verticais de vapor digno e morto que se interpunha na trajectória dos raios do sol do princípio da manhã. Havia macas por todo o lado. Cobertores tapavam a cara dos mortos; os vivos e os parcialmente vivos olhavam fixamente para cima, de boca aberta, num estado de choque estupidificado. Viam-se ambulâncias por toda a parte. E bombas de incêndio e veículos da polícia.

Jane jazia numa ambulância, uma unidade médica móvel, que eles tinham chamado. Os filhos dele estavam com a mãe.

O médico saiu do avançado de lona no prolongamento do estranho veículo e atravessou o curto trecho de relvado até junto de Victor. O rosto do médico apresentava um ar macilento: tinha escapado à morte mas vivia entre os moribundos.

- Ela passou um mau bocado, Fontine. Eu disse-lhe que, em circunstâncias normais, ela havia de...

- Ela vai ficar bem? - interrompeu Victor.

- Vai ficar bem, sim. No entanto, vai precisar de um repouso muito prolongado. Tinha-lhe dito há vários meses que desconfiava de um parto múltiplo. Ela não estava... digamos... concebida para um parto desses. De certo modo, até é de admirar que se tenha safado.

Fontine ficou a olhar para o homem.

- Ela nunca me falou disso.

- Era de esperar que não. Você anda numa vida precária. Não pode ter demasiadas coisas em que pensar.

- Posso vê-la?

- Só daqui a mais um tempo. Ela está profundamente adormecida; as crianças estão sossegadas. Deixe-a estar.

O médico pousou-lhe suavemente a mão no braço, arredando-o da ambulância na direcção ao que restava da casa principal. Um oficial abeirou-se deles e chamou Victor de parte.

- Encontrámos aquilo de que andávamos à procura. Sabíamos que havia de estar por cá, ou isso ou coisa parecida. O ataque foi demasiado preciso. Nem os instrumentos alemães seriam capazes de tal coisa, e o voo nocturno está fora de causa; verificámos isso. Não havia marcações nem fachos.

- Aonde é que vamos? De que está você a falar? - Victor ouvira o oficial, mas as palavras dele eram crípticas.

- ... transmissor de arco voltaico.

As palavras continuavam a não entrar.

- Desculpe. Que foi que disse?

- Disse que o compartimento ficou de pé. Fica nas traseiras da ala direita. O filho da mãe estava a operar um simples transmissor de arco voltaico.

- Um transmissor?

- Sim. Foi assim que os boches acertaram mesmo em cheio. Foram guiados por uma emissão rádio. Os tipos do MI Cinco e Seis não põem objecções a que eu lhe mostre. Aliás, acho que até ficaram satisfeitos. Receiam que, no meio desta confusão toda, alguém remexa nas coisas. O senhor pode confirmar que não o fizemos.

Abriram caminho através do entulho e dos montes de destroços fumegantes, até ao flanco direito da casa grande. O major abriu a porta e meteram à direita por um corredor que parecia estar dividido há pouco tempo, como se fosse para formar gabinetes.

- Uma emissão de rádio poderia trazer uma esquadrilha até à área - disse Fontine, caminhando ao lado do oficial. - Mas apenas até à área, não ao alvo. Eram bombardeiros. Eu vinha na estrada; eles mergulharam até à altitude crítica. Teriam de ser orientados por equipamento mais sofisticado que um simples transmissor de arco voltaico...

- Quando eu disse que não havia marcações nem fachos - interrompeu o major -, referia-me a determinado esquema: de um ponto A para um ponto B, e deste para um ponto C. Logo que os alemães sobrevoaram o alvo, o filho da mãe limitou-se a abrir a janela e a lançar foguetes iluminantes. Nessa altura utilizou realmente fachos. Um sacana de um caixote inteiro, a julgar pelo que encontrámos no terreno.

Ao fundo do corredor havia uma porta guardada por dois soldados. O oficial abriu-a e entrou, seguido de Victor.

A sala estava imaculada, miraculosamente poupada à carnificina circundante. Numa mesa encostada à parede via-se uma mala aberta, da qual saía uma antena circular, ligada a um equipamento de rádio por baixo, encerrado na mala.

O oficial fez um gesto para a esquerda, na direcção da cama, que não era visível à primeira vista do vão da porta.

Fontine quedou-se imobilizado. Os seus olhos ficaram pregados à visão que tinha naquele momento diante de si.

Na cama estava o corpo de um homem, com a nuca esfacelada e uma pistola na mão direita. Na mão esquerda segurava um grande crucifixo.

O homem envergava as vestes negras dos sacerdotes.

- É estranho como os diabos! - comentou o major. - Os documentos dele dizem que era membro de uma dada irmandade monástica grega. A Ordem de Xenope.

Jurou-o! Não haveria mais.

Jane e os dois bebés foram secretamente levados para a Escócia. Para norte de Glásgo, para uma casa isolada no campo em Dunblane, Victor não estava disposto a confiar em complexos «sem paralelo em segurança», nem tão-pouco em garantias algumas por parte do MI 6 ou do Governo britânico. Ao invés, utilizou os seus próprios fundos, contratou antigos soldados, exaustivamente investigados por ele próprio, e transformou a casa e o terreno anexo numa pequena mas inexpugnável fortaleza. Negou-se a tolerar quer as sugestões, quer as objecções, quer as desculpas de Teague. Estava a ser perseguido por forças que não conseguia compreender, por um inimigo impossível de controlar, independente da guerra e contudo parte dela.

Perguntava a si próprio se seria assim durante o resto da vida. Mãe de Cristo, porque não acreditavam nele? Como podia chegar até aos fanáticos e aos assassinos e vociferar os seus desmentidos? Não sabia nada! Nada! Um comboio tinha largado de Salónica havia três anos, na madrugada do dia 9 de Dezembro de 1939, e ele não sabia nada! Apenas da sua existência. Nada mais!

- Tenciona manter-se aqui até ao fim da guerra?

Teague tinha ido passar o dia a Dunblane; passeavam pelos jardins das traseiras da casa, à vista do alto muro de tijolos e dos guardas. Fazia cinco meses que se haviam encontrado, embora Victor permitisse chamadas através de telefones com misturadores de voz, retransmitidos. Fazia demasiado parte de Loch Torridon; os seus conhecimentos eram vitais.

- Você não tem qualquer poder sobre mim, Alec. Eu não sou britânico. Não lhe jurei fidelidade.

- Nunca me pareceu que isso fosse necessário. No entanto, a verdade é que o promovi a major. - Teague sorriu.

- Sem que eu fosse sequer formalmente admitido ao serviço? Você é a vergonha da tradição militar.

- Disso não há dúvida. Consigo que as coisas se façam. - O general de brigada interrompeu-se. Curvou-se a fim de colher uma longa folha de erva e ergueu-se, olhando para Fontine. - O Stone não pode fazê-lo sozinho.

- Porque não? Você e eu falamos várias vezes por semana. Eu digo-lhe o que puder. O Stone acelera as decisões. É uma combinação sólida.

- Não é a mesma coisa, e você sabe-o.

- Terá de servir. Eu não posso travar duas guerras. - Fontine fez uma pausa, recordando: - Savarone tinha razão.

- Quem?

- O meu pai. Devia saber que aquilo que o comboio transportava, fosse o que fosse, podia tornar os homens inimigos mesmo quando lutavam pela sobrevivência comum.

Alcançaram a beira do caminho. Havia um guarda a trinta metros, para lá do relvado, junto ao muro; sorriu e afagou o pêlo de um cão dinamarquês preso, que rosnou ao ver e farejar o estranho.

- Um dia terá de decidir-se - disse Teague. - Você, a Jane, as crianças: não pode viver com isso às costas durante a vida inteira.

-Já o disse a mim mesmo vezes sem conta. Mas não sei bem como poderá ser.

- Talvez eu saiba. Pelo menos, estou na disposição de tentar. E tenho à minha disposição o melhor serviço de informações que existe.

Victor deitou-lhe um olhar de soslaio, interessado:

- Por onde começaria?

- A questão não é onde, mas sim quando.

- Então, quando?

- Quando esta guerra terminar.

- Por favor, Alec, mais palavras não; nada de estratégias. Nem de estratagemas.

- Não há estratagema nenhum. É uma combinação simples, sem qualquer complicação. Preciso de si. A guerra levou uma reviravolta; Loch Torridon está a entrar na fase mais importante. Tenciono velar por que alcance o seu objectivo.

- Você está obcecado.

- Também você. E com toda a razão. Mas não há-de descobrir nada de «Salónica. é o nome de código do Brevourt, a propósito) enquanto não se ganhar a guerra, pode crer. E a guerra há-de ser mesmo ganha.

Fontine sustentou o olhar de Teague:

- Quero factos, e não retórica.

- Muito bem. Temos nomes que você não tem; e tão-pouco lhos vamos revelar, para sua própria segurança e segurança da sua família.

- O homem que estava no carro? Em Kensington, em Campo di Fiori? O da malha branca? O carrasco?

- Sim.

Victor susteve a respiração, dominando um impulso quase irresistível de agarrar o inglês e arrancar-lhe as palavras pela força.

- Você ensinou-me a matar; seria capaz de matá-lo por isso.

- Com que objectivo? Eu protegê-lo-ia com a minha própria vida, e você sabe-o. A questão é que ele está imobilizado. Dominado. Se é que, efectivamente, foi ele o carrasco.

Victor expeliu lentamente o ar. Os músculos do maxilar doíam-lhe da tensão.

- Que outros nomes?

- Dois superiores do Patriarcado. Por intermédio do Brevourt. São eles que chefiam a Ordem de Xenope.

- Nesse caso são responsáveis por Oxfordshire. Meu Deus, como é que você pode...?

- Não são, não - atalhou rapidamente Teague. - Ficaram, se isso é possível, mais abalados do que nós. Conforme foi realçado, a última coisa que pretendiam era a sua morte.

- O homem que orientou aqueles aviões era um sacerdote! De Xenope!

- Ou alguém preparado para passar por tal.

- Matou-se - disse baixinho Fontine - da maneira estabelecida.

- Ninguém tem um contingente de fanáticos.

- Continue. - Victor empreendeu o caminho de regresso pela vereda, afastando-se do guarda e do cão.

- Aqueles indivíduos são a pior espécie de extremistas. São místicos; julgam que estão empenhados numa guerra santa. A sua guerra só permite a confrontação pela violência, e não a negociação. Mas nós conhecemos os pontos de pressão, aqueles cuja palavra pode ser desobedecida. Podemos provocar uma confrontação através da pressão de Whitehall, se preciso for, e exigir uma resolução. Pelo menos uma que o arrede das preocupações deles, de uma vez por todas. Você não pode fazê-lo por si só. Nós podemos. Voltará?

- Se voltar, tudo isso será posto em movimento? Fazendo eu próprio parte do planeamento?

- Montá-lo-emos com a precisão com que montámos Loch Torridon.

- O meu disfarce em Londres manteve-se integralmente?

- Sem uma mossa. Você está algures no País de Gales. Todos os nossos telefonemas são dirigidos para a área de Swansea e transferidos para norte. A correspondência é expedida para uma caixa de correio na vila de Gwynliííen, onde é discretamente metida noutros sobrescritos e remetida apenas para mim. Neste preciso momento, se precisar de mim, o Stone faz uma chamada para um número de Swansea.

- Ninguém sabe onde nós estamos? Ninguém?

- Nem sequer o Churchill.

- Eu falo com a Jane.

- Uma coisa - disse Teague, com a mão no braço de Fontine -: dei a minha palavra ao Brevourt. Não vai haver mais deslocações ao lado de lá do canal para si.

- Ela vai gostar disso.

Loch Torridon ia de vento em popa. O princípio da má gestão a todo o custo tornou-se um espinho na carne alemã.

Nas oficinas de impressão de Manheim, 130 000 Manuais do Comandante para Ocupação saíram da tipografia com todas as negativas em restrições vitais. Remessas destinadas às fábricas Messerschmidt de Francoforte eram desviadas para as linhas de montagem Stuka, de Leipzig. Em Kalach, na frente russa, verificou-se que três quartos do material de transmissão estava presentemente a operar em frequências diversificadas. Nas fábricas Krupp, de Essen, erros de cálculo de engenharia redundaram em deficiências nos mecanismos de disparo de todos os canhões com o número de alma 712. Em Cracóvia, na Polónia, nas fábricas de uniformes, o tecido não passou por um processo de saturação química e foram expedidas 200 000 unidades sujeitas a inflamabilidade espontânea. Em Turim, na Itália, onde os alemães dirigiam as fábricas de aviões, foram executados projectos que provocavam fadiga do metal após vinte horas de voo; houve secções inteiras de esquadrilhas que se desintegraram estruturalmente em pleno voo.

Em fins de Abril de 1944, Loch Torridon concentrou-se nas patrulhas ao largo de toda a costa da Normandia. Foi concebida uma estratégia que alterava os horários de patrulha tal como eram comunicados ao pessoal da Marinha alemã pela base em Barfleur. O general de brigada Teague trouxe o relatório ao Quartel-General Supremo do Comando Aliado e entregou-o pessoalmente a Dwight Eisenhower.

«As patrulhas alemãs antes do alvorecer vão ser retiradas das zonas da Normandia durante os primeiros onze dias de Junho. É esse o alvo em termos de datas. Repito: 1 a 11 de Junho».

O comandante supremo teve a resposta apropriada:

- Macacos me mordam...

A operação Overlord foi executada e os exércitos invasores avançaram. Sob a direcção de Badoglio e Grandi, as linhas gerais da colaboração italiana foram negociadas em Lisboa.

Tratou-se de uma deslocação que Alec Teague permitiu ao major Fontine. Ele tinha direito a ela.

E, num pequeno compartimento em Lisboa, fora um Badoglio fatigado que se confrontara com Victor.

- Com que então o filho de Fontini-Cristi traz-nos o ultimato. Deve haver nisto uma certa satisfação para si.

- Não - replicou simplesmente Victor. - Apenas desdém.

 

26 de Julho de 1944 WOLFSSCHANZE, PrÚSSIA ORIENTAL

{Enxertos do inquérito da Gestapo à tentativa de assassínio de Adolf Hitler no Quartel-General do Alto Comando em Wolfschanze. Ficha retirada e destruída.)

«... Os cúmplices do traidor general Claus von Staufenberg fraquejaram e descreveram uma conspiração generalizada envolvendo generais como Ol-bricht, Von Falkenhausen, Hoepner e possivelmente Kluge e Rommel. Esta conspiração não poderia ter sido coordenada sem auxílio inimigo. Foram evitados todos os canais normais de comunicação. Utilizou-se uma rede de correios desconhecida, e veio à tona um nome de código que nunca fora ouvido anteriormente. É de origem escocesa e trata-se do nome de um distrito ou vila: Loch Torridon... Capturámos...»

Alec Teague estava de pé em frente do mapa de parede do gabinete. Fontine encontrava-se sentado numa cadeira junto da secretária de Teague e fitava-o.

- Foi uma jogada - disse Teague. - Perdemos. Não podemos esperar ganhar de todas as vezes. Vocês tiveram derrotas a menos, o vosso problema é esse: não estão habituados a elas. - Tirou três alfinetes do mapa e regressou à secretária. Sentou-se devagar e esfregou os olhos. - Loch Torridon foi uma operação extremamente eficaz. Temos todos os motivos para nos orgulharmos.

Fontine sobressaltou-se:

- Pretérito perfeito?

- Sim. A ofensiva terrestre aliada em direcção ao Reno vai encetar o esforço máximo no dia um de Outubro. O Comando Supremo não quer complicações; antevêem deserções generalizadas. Nós somos uma complicação, possivelmente uma coisa nociva. Loch Torridon vai ser desmantelado no decurso dos próximos dois meses.

Victor observou Teague, enquanto o general de brigada pronunciava a sentença. Uma parte do velho soldado morria com as palavras. Era doloroso olhar para Alec. Loch Torridon era o seu momento de glória militar: jamais estaria tão perto, e a inveja não estava fora de causa no seu encerramento. Mas as decisões tinham sido tomadas. Eram irrevogáveis, e contestá-las era questão que nem se punha. Teague era um soldado.

Fontine analisou os seus próprios pensamentos. Inicialmente não experimentou júbilo nem depressão: tratava-se mais de uma suspensão, como se o tempo houvesse parado abruptamente. Depois, lenta e dolorosamente, sobreveio a sensação momentânea de: e agora? Que é feito do meu objectivo? Que faço?

E logo, repentinamente, estes vagos cuidados foram prontamente substituídos. A obsessão que nunca estava longe do seu espírito tornou-se vividamente distinta. Ergueu-se da cadeira e postou-se diante da secretária de Alec.

- Nesse caso reclamo a sua dívida - disse serenamente a Teague. - Há outra operação que tem de ser montada «com toda a precisão de Loch Torridon». Foi dessa maneira que você exprimiu.

- E sê-lo-á. Dei-lhe a minha palavra. Os Alemães não podem durar um ano: já nos chegam indícios de rendição por parte dos generais. Seis, oito meses, e a guerra terá terminado. «Salónica» será montada nessa ocasião. Com toda a precisão de Loch Torridon.

Foram precisas doze semanas para fechar os livros e trazer os homens de volta para Inglaterra. Loch Torridon terminava: tudo o que restava eram vinte e dois gabinetes de realizações. Foram fechados, selados e a documentação guardada nos cofres das Informações Militares.

Fontine regressou do complexo isolado na Escócia, para junto de Jane e dos gémeos, Andrew e Adrian - baptizados em honra do santo britânico e de qualquer um dos diversos romanos aceitáveis. Mas não eram santos nem imperiais: tinham dois anos e meio e toda a energia que a idade implicava.

Victor passara toda a vida adulta rodeado pelos filhos dos irmãos, mas estes eram seus. Já de si eram diferentes. Seriam os únicos a perpetuar o nome dos Fontini-Cristi. Jane não podia ter mais filhos: os médicos tinham sido unânimes quanto a isso. Os ferimentos em Oxfordshire haviam sido demasiado extensos.

Era estranho. Depois de dez anos de furiosa actividade e tensão, achava-se súbita, abrupta e totalmente passivo. Os cinco meses em 42 que permanecera em Dunblane não podiam considerar-se um período de tranquilidade. A recuperação de Jane fora lenta e melindrosa; a consolidação do complexo tinha-o obcecado. Nessa altura não houvera alívio da pressão.

Ele dava-se agora. E a transição era insuportável. Tão insuportável como a espera pelo início de «Salóníca». Era a inactividade que o consumia: não era homem para estar ocioso. Apesar de Jane e das crianças, Dunblane tornou-se o seu cárcere. Havia homens lá fora, do lado de lá do canal, profundamente internados na Europa e no Mediterrâneo, que o procuravam tão denodadamente como ele os procurava a eles. Não haveria nada até poder iniciar-se esse passo.

Teague não voltaria com a palavra atrás; Victor apercebia-se disso. Mas tão-pouco ele se afastaria dela. O final da guerra assinalaria o início da estratégia que levaria aos homens de Salónica. Não seria antes. A cada nova vitória, a cada nova penetração na Alemanha, o cérebro de Fontine desarvorava. A guerra estava ganha; não acabara, mas estava vencida. Em todo o mundo havia vidas que tinham de ser retomadas, peças que era preciso voltar ajuntar e decisões a tomar, pois era necessário refazer a vida. Para ele, para Jane, tudo dependia das forças que procuravam uma arca que saíra da Grécia havia cinco anos: ao alvorecer do dia 9 de Dezembro.

A inactividade era o seu inferno privado.

Durante a espera tomara uma decisão: não regressaria a Campo di Fíori após a guerra. Quando pensava na sua casa e olhava para a mulher, via outras mulheres chacinadas, nas névoas brancas de luz. Quando via os filhos via outros filhos, impotentes, aterrados, dilacerados pela metralha. Os tormentos do espírito achavam-se ainda demasiado nítidos. Não podia regressar ao campo do morticínio nem a nada ou ninguém com ele relacionado. Construiriam uma nova vida noutro local qualquer. As Indústrias Fontini-Cristí ser-lhe-iam devolvidas: o Tribunal de Reparações de Roma fizera-o saber a Londres.

E ele mandara dizer de volta, por intermédio do MI 6, que as fábricas, as oficinas, todas as terras e propriedades - excepto Campo di Fiori - iriam para o maior licitante. Relativamente a Campo di Fiori, tomaria disposições independentes.

Era a noite de 10 de Março. As crianças estavam a dormir no outro extremo do corredor; os últimos ventos do Inverno sopravam em rajadas no exterior da janela do quarto deles. Victor e Jane estavam debaixo das cobertas, com as brasas da lareira a projectar no tecto um fulgor alaranjado. E falavam em voz baixa, como sempre falavam nas derradeiras horas do dia.

- É o Barclay quem vai tratar de tudo - disse Victor. - Trata-se de um leilão simples, na verdade. Estabeleci um valor mínino para o total; a maneira como repartirão a venda global é com eles.

- Há compradores? - perguntou Jane, deitada sobre o cotovelo, a olhar para ele.

Fontine riu-se baixinho:

- Montes deles. Especialmente na Suíça, e também americanos. Há fortunas a ganhar na reconstrução. Os que possuírem bases de fabricação estarão em vantagem.

- Pareces um economista a falar.

- Espero sinceramente que pareça. O meu pai ficaria terrivelmente desapontado se assim não fosse. - Calou-se. Jane afagou-lhe a testa, arredando o cabelo.

- Que foi?

- Estava só a pensar. Não tarda a terminar. Primeiro a guerra, depois «Salónica»; isso há-de terminar também. Confio no Alec. Há-de levar a coisa a bom termo, nem que tenha de fazer chantagem com todos os diplomatas dos Negócios Estrangeiros. Os fanáticos serão obrigados a aceitar o facto de que eu não sei patavina do seu amaldiçoado comboio.

- Estava convencida de que o consideravam tremendamente abençoado. - Sorriu.

- Inconcebível. Que espécie de deus o permitiria?

- Xeque-mate, meu querido.

Victor soergueu-se na almofada. Olhou para as janelas: uma neve de Março deslizava suavemente pelas escuras vidraças, batida pelo vento. Virou-se para a mulher:

- Não posso voltar a Itália.

- Eu sei. Já mo disseste. Eu compreendo.

- Mas não quero ficar aqui. Em Inglaterra. Aqui hei-de ser sempre Fontini-Cristi. Filho da família de padrones chacinada. Realidade, lenda e mito em partes iguais.

- Mas és mesmo Fontini-Cristi.

Victor baixou os olhos para Jane à luz mortiça da fogueira.

-Já lá vão cinco anos que sou Fontine. Já estou bastante habituado. Que achas tu?

- Não perde grandemente com a tradução - disse Jane, tornando a sorrir. - Excepto, porventura, um certo sabor a pequena nobreza fundiária.

- Isso é parte do que eu quero dizer - retorquiu ele prontamente. - O Andrew e o Adrian não têm de ser sobrecarregados com disparates desses. Os tempos já não são o que eram; essa época jamais voltará.

- É possível que não. É um pouco triste vê-la desaparecer, mas creio bem que é pelo melhor. - A mulher pestanejou de súbito e ergueu interrogativamente o olhar para ele. - Sem ser a Itália, ou a Inglaterra, então onde?

- Na América. Serias capaz de viver na América? Jane olhou-o fixamente, com o olhar ainda perscrutador.

- Claro. Acho que isso é deveras emocionante... Sim, está certo. Para todos nós.

- E o nome? Não te importas mesmo, pois não?

Ela riu-se, estendendo a mão para lhe acariciar o rosto.

- Não tem importância. Casei com um homem, não com um nome.

- Quem tem importância és tu - disse ele, puxando-a para si.

Harold Latham saiu do velho elevador de grades de bronze e olhou para as setas e números na parede. Há três anos que fora transferido para o teatro de operações da Birmânia; fazia muito tempo que não andava pelos corredores do MI 6 de Londres.

Puxou as bandas do casaco novo. Agora era civil; tinha de estar continuamente a recordá-lo a si próprio. Não tardaria que houvesse milhares e mais milhares de novos civis. A Alemanha soçobrara. Tinha apostado cinco libras em como o anúncio formal da rendição surgiria antes do princípio de Maio. Faltavam três dias, e não queria saber das cinco libras para nada. Estava terminada, e isso era tudo quanto importava.

Principiou a percorrer o átrio de entrada em direcção ao gabinete dv1 Stone. O velho, pobre e agastado Geofrey Stone. A «Maçã» da sua «Pêra». Fora um grande azar, a mão do velho «Maçã» esfacelada por causa de um macarrone empertigado; e ainda por cima logo no início.

Mesmo assim, aquilo podia muito bem ter-lhe salvo a vida. Um sem--número de operacionais com as duas mãos não lograram regressar. Em certos aspectos, Stone era um felizardo dos diabos. Apanhara com pedaços de metal nas costas e no estômago, mas se tivesse cuidado ficaria fino, praticamente normal, diziam eles. E além disso passara à disponibilidade mais cedo.

«Maçã» e Pêra» tinham sobrevivido. Haviam conseguido! Que diabo, aquilo estava mesmo a pedir um mês de uísques!

Tentara telefonar a Stone, mas não conseguira contactar com ele. Telefonara dois dias a fio, mas sempre sem resposta. Não valia a pena deixar recados; os seus planos eram tão baralhados que não tinha a certeza do tempo que poderia estar em Londres.

Era melhor assim. Entrar por ali adentro sem mais nem menos e perguntar por que razão tinha o velho «Maçã» levado tanto tempo a ganhar a guerra.

A porta estava fechada à chave. Bateu, e não houve resposta. Raios! Stone tinha a entrada registada na recepção; isso queria dizer que não registara a saída na noite anterior, nem na anterior a essa, o que nos tempos que corriam não era invulgar. Nos tempos que corriam os sofás dos gabinetes tornavam-se

camas. Todos os serviços das Informações trabalhavam vinte e quatro horas por dia, correndo os arquivos, destruindo dossiers que podiam ser embaraçosos e provavelmente salvando com isso uns quantos milhares de vidas. Quando a poeira da vitória e da derrota assentava, os informadores eram os sobreviventes que gozavam de menor popularidade.

Bateu com mais força. Nada.

No entanto, via-se luz através da estreita nesga lateral da porta. Talvez Stone tivesse saído por um minuto. Para ir à casa de banho ou à cantina.

Foi então que o olhar de Latham, circunvagando, pousou no canhão da fechadura. Havia qualquer coisa de estranho, qualquer coisa que não estava bem. Dir-se-ia que havia uma mancha cinzenta baça agarrada ao latão, com uma minúscula arranhadura por cima, à direita do buraco da fechadura. Latham olhou mais de perto: puxou de um fósforo e riscou-o, quase temeroso do que estava prestes a descobrir.

Segurou a chama mesmo por baixo da substância cinzenta. Derreteu-se instantaneamente e escorreu: solda.

Era também um estratagema obscuro, mas longamente provado, da predilecção de «Maçã». Tinha-se servido dele em numerosas ocasiões em que haviam trabalhado juntos.

Latham nem se lembrava de mais alguém alguma vez o usar.

Derreter a ponta de um pequeno fio de solda e enfiar o líquido mole dentro da fechadura juntamente com a chave. Encravava os picoletes mas não impedia a chave de entrar.

Evitava apenas que qualquer chave abrisse a fechadura. Em situações calmas, isso proporcionava um pouco de tempo enquanto um homem se esgueirava de um alçapão, concedia esse tempo sem despertar quaisquer alarmes súbitos. Uma fechadura de aspecto absolutamente vulgar que não funcionava bem; a maior parte das fechaduras eram velhas. Uma pessoa não ia arrombar a porta: chamava um serralheiro.

Teria «Maçã» precisado de tempo? Haveria um alçapão?

Havia mesmo qualquer coisa que não estava bem.

- Bom Deus! Não mexam em nada! Chamem um médico! - gritou Teague, precipitando-se pelo gabinete adentro através da porta arrancada dos gonzos. - E mantenham sigilo sobre isto!

- Está morto - disse Latham baixinho ao lado do general de brigada.

- Isso sei eu - retorquiu concisamente Teague. - O que eu quero saber é há quanto tempo está morto.

- Quem é ele? - perguntou Latham, baixando os olhos sobre o morto. O corpo havia sido despojado da roupa; restavam apenas as cuecas e os sapatos. Havia um único ferimento, limpo, de uma bala na parte superior do peito nu; o fio de sangue secara.

- Coronel Aubrey Birch. Oficial dos cofres. - Teague virou-se e falou com os guardas que seguravam a porta. Um terceiro soldado tinha ido chamar o médico privativo do MI 6 ao segundo piso. - Tornem a colocar a porta. Não deixem entrar ninguém. Não digam nada. Venha comigo, Latham.

Seguiram no elevador até às caves. Latham notou que Teague não estava apenas em estado de choque: achava-se amedrontado.

- Que pensa que sucedeu, sir?

Dei-lhe anteontem à noite os papéis de licenciamento. Ele ficou a detestar-me por isso.

Latham ficou calado por um momento. Depois falou sem olhar para Teague, com os olhos fixos à sua frente.

- Sou civil, e por conseguinte vou dizê-lo. Foi um raio de uma coisa horrível que o senhor fez. O Stone foi em tempos o melhor homem que o senhor teve.

- Tomo boa nota da sua objecção - disse o general de brigada com frieza. - Não é você o homem a quem chamavam «Pêra»?

- Sou.

Teague lançou um olhar ao agente das Informações licenciado; a luz do painel indicava que tinham chegado às caves.

- Pois bem, a Maçã» azedou, senhor «Pêra». Ficou rançosa. O que me preocupa agora é até onde entrou a podridão.

A porta abriu-se. Saíram do elevador e viraram à direita encaminhando-se para uma parede de aço que limitava o corredor. No centro da parede via-se uma grossa porta de aço, cuja moldura mal se distinguia. Tinha uma placa de vidro à prova de bala na porção superior, com um botão preto à esquerda, uma estreita ranhura de borracha por baixo e um letreiro de metal por cima.

área de segurança

Proibida a Entrada sem Devida Autorização. Toque a Campainha - Deposite a Autorização na Ranhura

de Vácuo

Teague aproximou-se do vidro, carregou no botão e falou com firmeza.

- Código Jacinto. Nada de demoras, por favor; proceda à confirmação visual. Fala o general de brigada Teague. Estou acompanhado por um tal Mister Harold Latham, autorizado por mim.

Ouviu-se um zumbido e a porta de aço recuou, após o que foi manualmente afastada para o lado. Um oficial do outro lado fez continência.

- Boa tarde, meu general. Aqui não chegou nenhuma comunicação de Jacinto.

Teague correspondeu à continência com um aceno de cabeça.

- Sou eu mesmo que estou a fazê-la, major. Não pode sair nada daqui até nova ordem. Que diz o livro de registo acerca do coronel Birch?

O oficial voltou-se para uma secretária metálica junto à parede.

- Aqui está, sir - disse, mantendo aberto um livro de registo de couro preto. - O coronel Birch registou a saída anteontem à noite às dezanove zero zero. Deve voltar de manhã. Às zero sete zero zero, sir.

- Estou a ver. Estava alguém com ele?

O major voltou a consultar o grande livro de registo.

- Estava, sim, sir. O capitão Stone, sir. A hora de saída foi a mesma.

- Obrigado. Mister Latham e eu estamos no Cofre Sete. Pode dar-me as chaves, se faz favor? E os números do segredo.

- Com certeza..

Dentro do compartimento de metal havia vinte e dois armários de arquivo. Teague parou junto do quarto, encostado à parede mais afastada do lado oposto à porta. Olhou para a página de números que tinha na mão e começou a manobrar a fechadura de segredo do lado superior direito do armário de arquivo. Ao mesmo tempo que o fazia, estendeu a página com os números a Latham.

- Economize tempo - disse bruscamente, com voz rouca - : localize o arquivo que tem o dossier Brevourt. B-r-e-v-o-u-r-t. Tire-o cá para fora.

Latham pegou no papel, regressou à parede do lado esquerdo e descobriu o arquivo.

O fecho saltou. Teague estendeu a mão e puxou a segunda gaveta do arquivo. Os seus dedos separaram rapidamente os dossiers.

Depois voltou a separá-los. Lentamente, percorrendo-os um por um.

Não estava lá. O dossier sobre Victor Fontine tinha desaparecido.

Teague fechou a gaveta do arquivo e endireitou-se. Olhou para Latham, que estava ajoelhado junto da gaveta de baixo do armário de arquivo, com uma pasta aberta na mão. Fitava-a com uma expressão de aturdida estupefacção.

- Pedi-lhe que a localizasse, e não que a lesse - observou glacialmente o general de brigada.

- Não há nada para ler - tornou serenamente Latham, retirando da pasta uma única folha. - Excepto isto... Que raio fizeram vocês, seus filhos da mãe?

O papel era uma fotocópia. Tinha uma cercadura preta, com espaço na parte inferior para dois selos de homologação. Ambos os homens sabiam exactamente do que se tratava.

Uma ordem de execução. Uma autorização oficial para matar.

- Quem é o alvo? - perguntou Teague em tom monocórdico, mantendo-se junto do arquivo.

- Vittorio Fontini-Cristi.

- Quem foi que a homologou?

- Tem o selo dos Negócios Estrangeiros e a assinatura de Brevourt.

- Quem mais? Têm de ser duas pessoas!

- O primeiro-ministro.

- E o executor é o capitão Stone...

Latham fez um aceno de cabeça, embora Teague não tivesse feito uma pergunta.

- Sim.

Teague respirou fundo, fechando os olhos por um momento. Abriu-os e falou.

- Até que ponto é que conhecia o Stone? Os métodos dele?

- Trabalhámos dezoito meses juntos. Éramos como irmãos.

- Irmãos? Nesse caso recordo-lhe, Mister Latham, que, apesar do seu licenciamento do serviço, continua vinculado ao Decreto sobre Segredos Oficiais.

Teague falou pelo telefone com frases precisas e tom cortante.

- Desde o princípio que ele era o seu homem. Desde o dia em que o colocámos em Loch Torridon. As suas interrogações, as perguntas intermináveis. O nome de Lúbok nos nossos arquivos, as armadilhas. Todos os movimentos de Fontine lhe eram comunicados.

- Não vou apresentar desculpas - replicou Anthony Brevourt do outro lado da linha. - Por razões que bem conhece. «Salónica» era, e ainda continua a ser, uma das mais elevadas prioridades para os Negócios Estrangeiros.

- Quero uma explicação para aquela ordem de execução! Nunca foi autorizada, nunca foi comunicada...

- Nem era para ser - atalhou Brevourt. - Essa ordem era o nosso recurso. O senhor pode acreditar na sua própria imortalidade, general, mas nós não. Pondo de parte os ataques aéreos, o senhor é um estrategista de operações secretas: um alvo potencial para ser assassinado. Se o senhor fosse morto, aquela ordem daria ao Stone acesso imediato ao paradeiro de Fontini-Cristi.

- O Stone convenceu-o disso?

Registou-se uma pausa antes de o embaixador responder:

- Sim. Há vários anos.

- O Stone também lhe disse que detestava o Fontine?

- Não simpatizava com ele; não era o único.

- Eu disse detestava! Roçando o patológico.

- Se tinha conhecimento disso, porque não o substituiu?

- Porque, raios, ele dominava isso! Desde que tivesse motivos para o fazer. Agora não tem nenhuns.

- Não vejo...

- Você é um pateta dos demónios, Brevourt! O Stone deixou-nos uma fotocópia, e guardou o original. Você está manietado e ele quer que o saiba.

- De que está a falar?

- Ele anda para aí com um documento oficial que lhe dá autorização para matar o Fontine. Revogá-la agora não tem significado. Não teria significado há dois anos! Ele tem o papel e é um profissional. Tenciona levar a cabo a missão e pôr esse documento onde você não possa alcançá-lo. Poderá o Governo britânico, poderá você, ou o ministro dos Estrangeiros, ou o próprio Churchill, justificar essa execução? Estará qualquer de vocês na disposição de falar sobre ela?

Brevourt respondeu pronta e urgentemente.

- Era uma reserva. Eis tudo o que era.

- Era o melhor - concordou rispidamente Teague. - Suficientemente sensacional para evitar muito formalismo administrativo. Suficientemente espectacular para demolir paredes burocráticas. Até parece que estou a ouvir o Stone a construir a sua argumentação.

- Tem de descobrir-se o Stone. Tem de ser detido. - Ouvia-se através da linha a respiração de Brevourt.

- Chegámos a uma área de acordo - disse fatigadamente o general de brigada.

- Que vai fazer?

- Para começar, contar tudo ao Fontine.

- Acha que é assisado? - É justo.

 - Esperamos ser mantidos ao corrente. Se necessário for, de hora a hora.

Teague olhou distraidamente para o outro extremo da sala, na direcção do relógio de parede. Eram nove e quarenta e cinco; o luar coava-se pelas janelas, agora sem cortinas que o bloqueassem.

- Não sei bem se será possível.

 - O quê?

- Você está preocupado com uma arca retirada da Grécia há cinco anos.

Eu estou preocupado com a vida de Victor Fontine e da família.

 - Não lhe terá ocorrido - perguntou Brevourt, arrastando as palavras que uma coisa e a outra são indissociáveis?

- Tomo boa nota da sua conjectura. - Teague desligou e recostou-se na

cadeira. Agora teria de telefonar a Fontine. A avisá-lo.

Houve uma batida na porta.

 - Entre.

 Harold Latham foi o primeiro a entrar, seguido por um dos melhores funcionários de investigação do MI 6. Um homem de meia-idade, ex-perito forense

da Scotland Yard. Trazia na mão um sobrescrito de papel pardo.

Umas semanas atrás, «Pêra» não teria entrado no gabinete de Teague a fumar um cigarro. Agora fazia-o: era importante para ele. No entanto, pensou Teague, a hostilidade de Latham tinha abrandado. «Pêra» era antes de mais nada e acima de tudo um profissional. A situação de civil em nada alteraria isso.

- Encontrou alguma coisa? - perguntou Teague.

- Arranhadelas - respondeu Latham. - Pode ser que signifiquem alguma coisa e pode ser que não. Aqui o seu homem é vivo. E capaz de desencantar um livro numa cabeça de alfinete.

- Ele sabia para onde havia de me orientar - aduziu o analista. - Estava familiarizado com os hábitos do indivíduo.

- Que apurámos nós?

- No edifício, nada: o gabinete dele estava limpo. Nada a não ser processos, dossiers marcados para os incineradores, tudo perfeitamente legítimo. Foi extremamente meticuloso. Mas a disposição dos cabides nos roupeiros, as roupas na cómoda, o suprimento de artigos de higiene, tudo isso indica que Stone andava a fazer tenção de partir havia algum tempo.

- Compreendo. E essas arranhadelas?

Foi «Pêra» quem respondeu. O profissional que havia nele precisava de reconhecimento.

- O Stone tinha um costume irritante. Deitava-se na cama a tomar apontamentos. Palavras, parênteses, figuras, setas, nomes... Gatafunhos, é como eu lhes chamo. Mas antes de se recolher para dormir, rasgava as páginas e queimava-as. Encontrámos um bloco-notas na prateleira da mesa-de-cabeceira. Não tinha nada escrito, claro, mas aqui o homem da Yard sabia o que fazer.

- Havia vincos, sir. Não foi difícil: tirámo-los por espectrografia. - O funcionário estendeu a pasta a Teague por cima da secretária. - Aqui estão os resultados.

Teague abriu a pasta e olhou fixamente para o espectrograma. Conforme «Pêra» referira, havia números, parênteses, setas, palavras. Era um quebra-cabeças desarticulado, um desordenado diagrama de incoerentes meandros.

Foi então que o nome ressaltou do amontoado de incoerências.

Donatti!

O homem da malha branca no cabelo. O carrasco de Campo di Fiori. Um dos mais poderosos cardeais da Cúria.

«Salónica» tinha principiado.

- ...Guíllamo Donatti.

Fontine ouviu o nome e este desencadeou a recordação encerrada na sua mente. O nome era a chave, o fecho abrira-se e a recordação fora desvendada.

Era uma criança, não teria mais de nove ou dez anos. Era de noite e os irmãos estavam no andar de cima preparando-se para se deitarem. Ele descera de pijama para procurar um livro, quando ouvira gritos no escritório do pai.

A porta estava aberta, não mais que uns trinta centímetros, e a criança, curiosa, aproximara-se dela. O que vira lá dentro chocara-o de tal modo que se quedara hipnotizado. Estava um padre defronte da secretária do pai, a gritar com Savarone, pregando murros no tampo da mesa e de rosto congestionado de irritação e olhos congestionados de furor.

O facto de alguém poder comportar-se daquela maneira na presença do pai, mesmo - talvez especialmente - um padre, causou tal espanto à criança que, involuntariamente, arfara de modo audível.

Quando o fizera, o sacerdote dera meia volta, de olhos em brasa assestados na criança, e fora então que Victor vira a malha branca no cabelo preto. Correra para fora da sala de estar e pelas escadas acima.

Na manhã seguinte Savarone tinha chamado o filho de parte e explicara-lhe: o pai nunca deixava as explicações em suspenso. O tempo apagara o motivo da violenta discussão que o pai esclarecera, mas Fontine recordava-se de que ele identificara o sacerdote como sendo Guillamo Donatti, um homem que era a vergonha do Vaticano... Uma pessoa que promulgava decretos para os desinformados e os fazia cumprir pelo medo. Tratava-se de palavras que ficavam na memória de uma criança.

Guillamo Donatti, o incendiário da Cúria.

- Agora o Stone está a actuar .por sua conta e risco - disse Teague pelo telefone, de Londres, chamando Victor ao presente. - Ele quere-o a si, e a qualquer preço. Andávamos a procurar nas áreas erradas; agora descobrimos-lhe a pista. Utilizou os papéis do Birch e partiu de Lakenheath num voo militar. Para Roma.

- Para o cardeal - emendou Fontine. - Ele não está disposto a correr riscos com negociações a longa distância.

- Nem mais. Há-de voltar à sua procura. Nós estaremos à espera.

- Não - disse Victor pelo telefone. - Não é esse o processo. Não ficamos nada à espera; vamos atrás dele.

- Ah, sim? - Havia dúvida na voz de Teague.

- Sabemos que o Stone está em Roma. Vai manter-se oculto, provavelmente junto de células de informadores: eles estão habituados a esconder gente.

- Ou junto do Donatti.

- Isso é duvidoso. Há-de bater-se por um terreno neutro. Donatti é perigoso, imprevisível. O Stone tem consciência disso.

- Não me interessa o que você está a pensar, mas não posso...

- Não pode pôr a correr um boato proveniente de fontes dignas de crédito? - atalhou Fontine.

- Que espécie de boato?

- Que eu estou prestes a fazer aquilo que toda a gente espera que faça: regressar a Campo di Fiori. Por razões desconhecidas muito particulares.

- De maneira nenhuma! Isso está fora de questão!

- Por amor de Deus! - exclamou Victor. - Não posso passar o resto da vida a esconder-me! Não posso viver no terror de que, cada vez que a minha mulher e o meu filho saiam de casa, haja um Stone ou um Donatti ou uma equipa de execução à espera deles! Você prometeu-me uma confrontação. Quero-a já!

Houve um silêncio na linha de Londres. Finalmente, Teague falou.

- Há ainda a Ordem de Xenope.

- Um passo conduz a outro. Não foi essa sempre a sua premissa? Xenope há-de ser obrigada a reconhecer aquilo que é , e não aquilo que acha que devia ser. O Donatti e o Stone serão a prova. Não pode haver outra conclusão.

- Temos homens em Roma, não muitos...

- Não queremos muitos. Muito poucos. O facto de eu estar em Itália não deve ser associado ao MI 6. O disfarce será o Tribunal de Reparações. O Governo quer controlar as nossas fábricas, as propriedades. Cada semana que passa, o tribunal licita mais alto: não querem os americanos.

- Tribunal de Reparações - disse Teague, manifestamente a tomar apontamento.

- Há um homem chamado Barzini - continuou Fontine. - Guido Barzini. Dantes estava em Campo di Fiori, era o encarregado das cavalariças. Poderia fornecer-nos indicações. Ponham alguém à procura dele no distrito de Milão. Se for vivo, poderá ser localizado através dos partigíani.

- Barzini, Guido - repetiu Teague. - Vou precisar de factores de segurança.

- Também eu preciso, mas que não dêem nas vistas. Queremos forçá-los a exporem-se, e não mais clandestinidades.

- Partindo do princípio de que a isca pega, que fará você?

- Obrigá-los a ouvir. É tão simples como isso.

- Não me parece que seja - objectou Teague.

- Nesse caso, mato-os - tornou Victor.

Soube-se a novidade. O padrone estava vivo; tinha regressado. Num pequeno hotel a vários quarteirões de Duomo, tinham-no visto. Fontini-Cristi estava em Milão. A notícia chegou mesmo a Roma.

Ouviu-se uma batida na porta do hotel. Barzini. Era o momento que Victor simultaneamente ansiava e temia. As lembranças de luz branca e morte adquiriram inadvertidamente nitidez no seu espírito. Arredou-as enquanto percorria o quarto até à porta.

O velho criado de lavoura encontrava-se no umbral, o corpo outrora musculoso agora magro e franzino, perdendo-se dentro do tecido grosseiro do casaco preto barato. Tinha o rosto enrugado e os olhos remelosos. As mãos que lhe haviam comprimido contra o solo o corpo sacudido por estremecimentos e contorções, os dedos que se lhe tinham cravado no rosto e salvo a vida estavam mirrados, nodosos. E tremiam.

Para desgosto e embaraço de Fontine, Barzini caiu de joelhos, com os braços descarnados estendidos, agarrando-se às pernas de Victor.

- É verdade! Está vivo!

Fontine obrigou-o a pôr-se de pé e abraçou-o. Em silêncio, conduziu o ancião ao quarto, encaminhando-o para o sofá. Além dos estragos da idade, era visível que Barzini estava doente. Victor ofereceu-lhe de comer e Barzini pediu chá e aguardente. As bebidas foram rapidamente trazidas pelos criados do hotel e, uma vez terminadas ambas, Fontine foi posto ao corrente dos factos mais salientes de Campo di Fiori desde a noite da chacina.

Durante meses após os assassínios perpetrados pelos alemães, as tropas fascistas montaram guarda à propriedade. Deixaram os criados recolher os seus pertences e partir; a criada que assistira ao tiroteio foi assassinada nessa noite. Ninguém fora autorizado a viver em Campo di Fiori excepto Barzini, que sofria visivelmente de deficiência mental.

- Não era difícil. Os fascisti sempre acharam que toda a gente era doida menos eles. Era a única maneira de poderem pensar e encararem-se a si mesmos na manhã seguinte.

Na sua posição de criado de lavoura e zelador da terra, Guido pôde observar a actividade em Campo di Fiori. O mais surpreendente foram os padres. A propriedade era franqueada a grupos de sacerdotes; nunca mais de três ou quatro de cada vez, mas havia muitos grupos desses. Guido pensara que tivessem sido enviados pelo santo padre para rezarem pelas almas da casa dos Fontini-Cristi. Mas os sacerdotes em missões sagradas não se comportavam como aqueles padres. Esquadrinharam a casa principal, depois os anexos e finalmente as cavalariças, procurando com minúcia. Rebuscavam tudo: arredavam a mobília, sondavam as paredes na busca de locais ocos e arrancavam os lambris; levantavam soalhos, não de raiva, mas como o fariam carpinteiros experientes: levantavam-nos e tornavam a assentá-los. E o terreno foi passado a pente fino como se de campos de ouro se tratasse.

Perguntei a vários padres jovens o que procuravam. Eles respondiam sempre: «Caixotes volumosos, ancião. Embalagens de aço e ferro». Foi então que reparei que havia um padre mais velho, que aparecia todos os dias. Andava continuamente a controlar o trabalho dos outros.

- Um homem dos seus sessenta anos - disse Victor, baixinho -, com uma malha branca no cabelo.

- Sim! Era ele! Como é que soube?

- Era esperado. Durante quanto tempo continuaram as buscas?

- Durante perto de dois anos. Foi uma coisa inacreditável. E depois parou. Toda a actividade cessara, segundo Barzini, excepto a actividade alemã. Os

oficiais da Wehrmacht apossaram-se de Campo di Fiori, convertendo-o num sofisticado retiro para os comandantes de patente mais elevada.

- Fez o que o inglês de Roma lhe disse, meu velho amigo? - Fontine serviu mais aguardente a Barzini; o tremor tinha acalmado em parte.

- Fiz, padrone. Durante os últimos dois dias vou aos mercados de Laveno, de Varese e de Legnano. Digo a mesma coisa a uns quantos tipos escolhidos: «Esta noite vou falar com o padrone. Ele volta! Vou a Milão esperá-lo, mas é preciso que ninguém saiba!» Eles hão-de saber, filho de Fontini-Cristi. - Barzini sorriu.

- Alguém lhe perguntou porque é que eu insisti para você vir a Milão?

- A maioria perguntou. Só disse que o senhor quer falar comigo em particular. Digo-lhes que me sinto honrado. E sinto.

- Deve ser o suficiente. - Victor ergueu o telefone do descanso e deu um número à central telefónica do hotel. Enquanto esperava que a ligação fosse estabelecida, virou-se para Barzini; - Quando isto terminar, quero que regresse comigo. Para Inglaterra, e a seguir para a América. Casei, meu velho amigo. Há-de gostar da signora. Tenho filhos, dois rapazes. Gémeos.

Os olhos de Barzini brilharam.

- Tem filhos? Dou graças a Deus...

Não havia resposta na linha. Fontine ficou em cuidado. Era imperioso que o homem do MI 6 estivesse junto daquele telefone! Encontrava-se colocado a meio caminho entre Varese e Campo di Fiori. Era o contacto para os outros, espalhados pelas estradas que saíam de Stresa, Lugano e Morcote; era o ponto focal das comunicações. Onde diabo estaria ele?

Victor desligou o telefone e tirou a carteira do bolso. Procurou outro número de telefone. De Roma.

Deu-o à telefonista.

- Que quer dizer você com isso de ninguém responder? - inquiriu a precisa voz inglesa que atendeu.

- Há alguma maneira mais clara de o dizer? - retorquiu Fontine. - Ninguém responde. Qual foi a última vez que teve notícias dele?

- Há umas quatro horas. Estava tudo de acordo com o horário. Ele encontrava-se em contacto rádio com todos os veículos. Você recebeu o recado, evidentemente.

- Que recado?

- Ele disse que poderia ter sido detectado, mas que não devíamos preocupar-nos. Iria ter consigo ao hotel quando você chegasse. Foi ele próprio quem descobriu o carro. Estava na estrada que atravessa o portão principal de Campo di Fiori. Não contactou consigo?

Victor dominou o desejo de gritar.

- Não contactou comigo. Não havia nenhum recado para mim. Que carro?

- Um Fiat verde. A matrícula era de Savona, que fica no golfo de Génova. Uma das descrições correspondia à de um corso que tem cadastro na polícia. Um contrabandista que Londres julga ter trabalhado para nós. Os outros são também corsos, pensamos nós. E ele.

- Presumo que queira dizer...

- Sim. O quarto homem é o Stone.

«Stone tinha mordido a isca. Maçã voltara a Celle Ligure, tornara aos corsos para descobrir os seus recrutas. E Maçã, o profissional, havia retirado o contacto em Varese».

«Eliminar os correios. Paralisar as comunicações», Loch Torridon.

- Obrigado - disse Victor ao homem em Roma.

- Escute cá, Fontine! - ouviu-se a voz atormentada ao telefone. - Você não vai fazer nada! Mantenha-se onde está!

Sem responder, Victor voltou a colocar o telefone no descanso e regressou para junto de Barzini.

- Preciso de alguns homens. Homens nos quais possamos confiar, que estejam dispostos a correr riscos.

Barzini desviou a vista; o ancião estava embaraçado.

- As coisas já não são como eram, padrone.

- Partigiani? - disse Fontine.

- Na maioria comunistas. Hoje em dia preocupam-se com eles próprios. Com os seus panfletos, as suas reuniões, Eles... - Barzini parou. - Espere. Há dois homens que não se esquecem. Esconderam-se nos montes; eu levei-lhes comida, notícias das famílias. Podemos confiar neles.

- Terão de servir- disse Victor, começando a dirigir-se para o quarto. - Vou mudar de roupa. Pode contactar com eles?

- Há um número de telefone - respondeu Barzini, levantando-se do sofá.

- Telefone-lhes. Diga-lhes que vão ter comigo a Campo di Fiori. Pressuponho que haja guardas...

- Presentemente só há um vigilante de noite. De Laveno. E eu. Fontine parou e voltou-se para Barzini.

- Esses homens conhecerão por acaso a estrada secundária a norte das cavalariças?

- Podem descobri-la.

- óptimo. Diga-lhes que comecem já e esperem por mim no caminho para cavaleiros nas traseiras das cavalariças. Ainda lá está, não está?

- Ainda lá está, sim. Que vai fazer, padrone?

Victor apercebeu-se, enquanto falava, de que estava a repetir as palavras que empregara ao telefone para com Teague havia cinco dias.

- O que toda a gente espera que eu faça. Virou costas e dirigiu-se ao quarto.

Os ensinamentos de Loch Torridon estavam sempre presentes, pensou Victor, enquanto permanecia de pé diante da recepção do hotel, com os braços no balcão de mármore, vendo o empregado da noite a satisfazer o seu pedido. Tinha pedido um carro de aluguer em voz suficientemente alta para atrair as atenções. Tratava-se de uma solicitação difícil, atendendo à hora: já era suficientemente complicado aparecerem carros durante o dia, quanto mais a meio da noite. Mas podiam arranjar-se, se o dinheiro fosse bastante.

Além disso, altercar junto da recepção era suficientemente desagradável para alertar qualquer observador. Havia ainda a roupa que trazia vestida: calças cinzento-escuras, botas e um blusão escuro de caçador. Não era a época da caça.

Havia apenas uns quantos retardatários no átrio de entrada: diversos homens de negócios que se dirigiam, numa trajectória insegura, para os respectivos quartos, depois de longas reuniões bem regadas; um jovem nervoso e rico a inscrever-se no registo de entrada com uma prostituta que aguardava discretamente numa cadeira. E um homem muito trigueiro com um rosto duro, curtido do mar, sentado numa poltrona a ler uma revista, aparentemente alheado da cena nocturna do hotel. Um corso, pensou Victor. Precisamente o homem que podia levar o recado a outros corsos. Ao inglês chamado Stone.

Era simplesmente questão de coordenar a sequência que se avizinhava. Assegurar-se de que havia um Fiat verde na rua, provavelmente na penumbra, pronto a ocupar uma posição discreta quando o carro alugado arrancasse. Se não existisse tal automóvel, Victor podia encontrar razões para fazer tempo até à sua chegada.

Não foi necessário fazer tempo. Via-se o Fiat a meio do quarteirão seguinte. O automóvel achava-se postado em frente do carro de Fontine, virado para oeste, na direcção da estrada para Varese. Para Campo di Fiori.

Barzini ia sentado ao lado de Victor. A aguardente surtira o seu efeito. A cabeça do velho estava continuamente a descair sobre o peito.

- Durma - disse Victor. - A viagem é longa e quero-o repousado quando chegarmos lá.

Passaram pelos portões abertos e penetraram na longa e sinuosa entrada de Campo di Fiori. Conquanto estivesse preparado para isso, a visão da casa encheu-lhe o peito de dor: experimentou um latejar que lhe queimava as têmporas. Aproximou-se do cenário da execução. As visões e os sons desse tormento regressaram, mas ele sabia que não podia permitir que o dominassem.

Os ensinamentos de Loch Torridon: «A concentração dividida era perigosa».

Contraiu os músculos do estômago, retesando-os, e parou o carro.

Barzíni estava acordado, a olhá-lo fixamente. O guarda da noite emergiu das grossas portas de carvalho a seguir aos degraus de mármore, examinando o carro e os seus ocupantes sob o feixe da lanterna.

- Trago o filho de Fontini-Cristi. É o padrone desta casa.

O guarda assestou o feixe sobre Victor, que se havia apeado do carro e estava de pé junto do capot. A voz dele era respeitosa. E um tanto ou quanto amedrontada.

- É uma honra, padrone.

- Pode voltar para Laveno - disse-lhe Fontine. - Se não se importa, siga pela estrada do norte. Provavelmente é o que faria, fosse como fosse. É o caminho nais curto.

- Muito mais curto, signore. Obrigado, signore.

- É possível que estejam dois amigos meus à espera nas cavalariças. Não se alarme; eu pedi-lhes para entrarem pelo portão norte. Se os vir, faça o favor de lhes dizer que daqui a pouco lá estarei.

- Com certeza, padrone. - O guarda da noite fez um aceno de cabeça e desceu velozmente os degraus de mármore até ao caminho de acesso. Havia uma bicicleta na penumbra, junto aos arbustos. Montou-a e afastou-se, pedalando pela escuridão adentro, em direcção às cavalariças.

- Depressa - disse Victor, voltando-se para Barzini. - Diga-me uma coisa. Os telefones estão como antigamente? Ainda há uma linha que liga a casa às cavalariças?

- Há. No escritório do seu pai e no átrio de entrada.

- Óptimo. Entre e acenda as luzes do átrio de entrada e da sala de jantar. Depois regresse ao escritório, mantendo as luzes de lá apagadas. Ponha-se ao pé de uma janela. Quando eu contactar com os seus amigos, chamo-o dos estábulos e digo-lhe o que há-de fazer. Não tarda que os corsos apareçam. A pé, tenho a certeza. Esteja atento, a ver se avista lanternas. Diga-me o que vê.

- Muito bem. Padrone?

- Sim?

- Não tenho pistola. As armas estão proibidas.

- Fique com a minha. - Victor levou a mão ao cinto e retirou a sua Stníth & Wesson - Não me parece que vá precisar dela. Não dispare a não ser que a sua vida dependa disso.

Trinta segundos depois as luzes do grande vestíbulo brilhavam através das janelas de vidro fumado por cima das enormes portas de entrada. Victor caminhou apressadamente, cosido com o flanco da casa, e aguardou junto da aresta do edifício. Os candelabros da sala de jantar estavam acesos. Toda a parte norte da casa era um deslumbramento de luz, ao passo que a parte sul estava às escuras.

Continuava a não haver sinais de vida na estrada: nem focos de lanternas nem archotes nem fósforos. Assim é que devia ser. Stone era um profissional. Quando desse um passo, havia de ser com extremas cautelas.

Pois que assim fosse. Os seus passos seriam igualmente cautelosos.

Victor correu para a estrada norte, em direcção às cavalariças. Mantinha-se agachado rente ao solo e atento, à escuta de algo invulgar. Stone poderia ter optado pelos portões norte como entrada, mas era pouco provável. Stone estava ansioso: havia de avançar com celeridade, seguindo de perto a sua presa, e fechar as saídas.

- Partigianí. É Fontini-Cristi. - Victor desceu a vereda para cavaleiros nas traseiras das cavalariças. Os poucos cavalos que restavam lá dentro estavam velhos e cansados, e os seus relinchos eram intermitentes.

- Signore. - O sussurro provinha do matagal à direita da vereda; Fontine aproximou-se. De repente, o clarão de uma lanterna brotou do lado oposto. Da esquerda. E outra voz falou.

- Fique onde está! Não se volte!

Sentiu a mão do homem atrás de si, nos rins, mantendo-o imobilizado. A luz da lanterna deslocou-se para diante por sobre o seu ombro, incidindo-lhe no rosto e cegando-o.

- É ele - disse uma voz na escuridão.

A lanterna foi desviada. Fontine pestanejou e esfregou os olhos, tentando apagar a imagem da luz a piscar. O partigiano saiu das trevas. Era um homem de estatura elevada, quase tão alto como Victor, e envergava um coçado blusão de campanha americano. O segundo homem apareceu por detrás: era muito mais baixo que o seu camarada e barrigudo.

- Porque está aqui? - perguntou o homem alto. - O Barzini está velho e não raciocina com clareza. Acordámos em vigiá-lo, em avisá-lo... Nada mais. Fazêmo-lo porque devemos muita coisa ao Barzini. E em memória dos velhos tempos: os Fontini-Cristi combateram contra os fascistas.

- Obrigado.

- Que querem os corsos? E aquele inglês? - O segundo homem deslocou-se para o lado do amigo.

- Uma coisa que julgam que eu tenho, mas não tenho. - Victor calou-se. Ouviu-se das cavalariças um leve resfolegar cansado, seguido de um escarvar de cascos. Os resistentes ouviram-no também: a lanterna foi apagada.

O estalar de uma perna. Um seixo deslocado debaixo de um pé. Aproximava-se alguém, seguindo o mesmo trajecto que Fontine tomara. Os resistentes separaram-se; o homem entroncado deslocou-se para a frente e desapareceu no meio da folhagem. O camarada fez o mesmo na direcção oposta. Victor avançou para a direita e acocorou-se à beira do caminho.

Silêncio. Os passos tornaram-se mais audíveis. De súbito, a figura estava ali, a centímetros apenas diante de Fontine, recortando-se na noite do bosque.

Foi então que aconteceu. Da escuridão brotou um potente feixe de luz, rasgando o matagal do lado contrário; no mesmo instante ouviu-se a detonação de uma pistola, cujo ruído era abafado por um silenciador.

Victor pôs-se de pé de um salto, cingindo o pescoço do homem com o braço esquerdo e lançando o direito para diante à procura da arma, forçando-a a baixar. Quando as costas do homem se arquearam, Victor enterrou-lhe o joelho na base da espinha. O homem expulsou o ar dos pulmões; Fontine puxou com toda a força o pescoço retesado sob o seu férreo aperto. Ouviu-se um estalido, nauseante e final. A lanterna rolou pelo carreiro.

O partigiano alto saiu correndo do matagal, calcando a lanterna sob os pés e de pistola em riste. Ele e Victor internaram-se na folhagem, reconhecendo ambos mudamente o temor de que o seu aliado estivesse morto.

Não estava. A bala tinha-lhe causado apenas um rasgão no braço. Jazia de olhos arregalados devido ao choque, de boca aberta e respirando ruidosamente. Fontine ajoelhou ao seu lado, rasgando a camisa do resistente para

acudir-lhe ao ferimento. O amigo mantinha-se de pé, com a pistola, no carreiro das cavalariças.

- Mãe de Cristo! Maldito palerma! Porque não disparou sobre ele? - O partigiano ferido encolheu-se de dor: - Mais um segundo e ele matava--me!

- Eu não tinha arma - respondeu tranquilamente Victor, limpando o sangue do homem.

- Nem sequer uma faca?

- Não. - Fontine ligou o ferimento e deu um nó no tecido. O partigiano olhava-o fixamente.

- Você tem tomates -disse.- Podia ter esperado onde não o vissem. O meu camarada tem uma pistola.

- Vamos, levante-se. Há mais dois corsos algures. Quero-os. Mas sem tiroteio. - Victor baixou-se e recolheu a pistola do morto. Havia quatro balas na câmara; o silenciador era dos melhores. Fez sinal ao resistente para sair da vereda e falou a ambos. - Vou pedir-vos um favor. Podem recusar, que eu compreenderei.

- Qual é? - perguntou o homem mais forte.

- Os outros dois corsos estão lá para trás. Um está provavelmente a vigiar a estrada principal; o outro poderá estar atrás da casa, nos jardins, sabe-se lá. O inglês vai manter-se escondido, próximo da casa. Tenho a certeza de que os corsos não me matarão. Vão vigiar todos os meus movimentos, mas não abrirão fogo.

- Esse - disse o resistente ferido, apontando para o morto - não hesitou em carregar no gatilho.

- Há três corsos que me conhecem de vista. Ele bem viu que você não era eu.

A estratégia era perfeita. Victor era a isca; caminharia a descoberto pelo largo de entrada e viraria na direcção dos jardins, nas traseiras da casa. Os resistentes deviam segui-lo, mantendo-se ocultos no meio do arvoredo. Se Fontine não se enganava, apareceria um corso. E seria capturado. Ou abatido sem ruído. Não fazia diferença: estes corsos assassinavam italianos.

A manobra seria então repetida na estrada da entrada principal, atravessando os resistentes muito para trás do talude e encontrando-se com ele numa bifurcação a quatrocentos metros de distância. Algures entre o largo de entrada e os portões, estaria postado o terceiro e último corso.

As posições eram lógicas, e Stone era o mais lógico que um homem pode ser. E minucioso. Havia decerto de bloquear as saídas.

- Não se sintam forçados a fazer isto por mim - disse Victor. - Pagarei generosamente, mas compreendo...

- Guarde o seu dinheiro - interrompeu o ferido, olhando primeiro para o camarada. - O senhor não tinha de fazer o que fez por mim.

- Há um telefone nas cavalariças. Tenho de falar com o Barzini. Depois começo a descer a estrada.

A conjectura foi confirmada. Stone tinha coberto tanto as estradas como os jardins. E os restantes corsos foram capturados, após o que os punhais dos resistentes os eliminaram.

Encontraram-se nas cavalariças. Fontine estava convicto de que Stone tinha estado a vigiá-lo do talude. A presa caminhava no campo da morte; o regresso

foi doloroso. Loch Torridon tinha-os ensinado a ambos a preverem reacções. Era uma arma.

- Onde está o vosso carro? - perguntou Victor aos partigiani.

- Junto ao portão norte - respondeu o alto.

- Aceitem os meus agradecimentos. Levem o vosso amigo a um médico. O Barzini há-de saber para onde posso mandar uma forma mais concreta de gratidão.

- Quer o inglês para si?

- Não haverá problemas. É um homem com uma só mão, e sem os seus corsos. O Barzini e eu sabemos o que fazer. Vão procurar um médico.

- Adeus, signore - disse o alto. - As nossas dívidas estão saldadas. Para com o Barzini. Para consigo, talvez. Em tempos os Fontini-Cristi foram bons para esta terra.

- Muito obrigado.

Os resistentes fizeram um último aceno de cabeça e empreenderam velozmente a subida da estrada, internando-se na escuridão rumo ao portão norte. Fontine desceu a vereda e entrou nas cavalariças por uma porta lateral. Passou as baias, deixou para trás os cavalos e o pequeno quarto de Barzini e entrou na divisão dos equipamentos de montar. Localizou uma caixa de madeira e começou a enchê-la de arreios e freios e de bolorentas menções honrosas emolduradas das paredes. Dirigiu-se ao telefone junto da porta e premiu o botão.

- Está tudo bem, velho amigo.

- Graças a Deus.

- E o inglês?

- Está à espera do outro lado do caminho de acesso, na relva alta. No talude. O mesmo...

-Já percebi. Vou começar a andar neste momento. Já sabe o que tem a fazer. Não se esqueça: junto à porta, fale devagar, com clareza. Nos últimos anos o inglês não tem falado italiano.

- Os velhos falam mais alto do que deviam - disse Barzini, com humor na voz. - Como ouvimos mal, tem de passar-se o mesmo com toda a gente.

Fontine voltou a colocar o telefone no descanso e verificou a pistola que os resistentes lhe tinham deixado. Desenroscou o silenciador e meteu a pistola no bolso. Pegou na caixa e saiu a porta da divisão do equipamento de montar.

Desceu lentamente a estrada para o largo de entrada, que ficava do lado oposto ao talude. Diante dos degraus, sob o jorro de luz das janelas, fez uma pausa, deu aos braços um momento de descanso, dando a entender que a caixa era mais pesada do que o seu tamanho poderia indicar.

Continuou a subir os degraus até às amplas portas de carvalho. Depois fez a coisa mais natural que lhe ocorreu: deu um pontapé na porta da direita.

Daí a segundos a porta era aberta por Barzini. A troca de palavras entre eles foi simples, isenta de esforço. O ancião falou com clareza.

- Tem a certeza de que não quer que lhe leve nada, padrone? Uma chávena de chá, café?

- Não, obrigado, meu velho amigo. Vá dormir um bocado. Temos muito que fazer amanhã de manhã.

- Muito bem. Hoje os cavalos vão comer cedo. - Barzini passou por Victor, descendo os degraus e alcançando o largo de entrada. Virou à esquerda em direcção às cavalariças.

Victor ficou de pé no amplo vestíbulo: tudo estava como dantes. Os alemães sabiam quando não deviam desfigurar uma coisa bela. Virou para a parte sul, na escuridão, dirigindo-se à enorme sala de visitas e encaminhando-se para as portas do escritório do pai. À medida que atravessava aquele espaço bem conhecido, sentia dores de angústia no peito e a respiração presa na garganta.

Entrou no escritório do pai, o sanctum sanctori1 de Savarone. Instintivamente, virou à direita na escuridão: a imensa secretária estava onde sempre estivera. Pousou a caixa e acendeu o candeeiro de quebra-luz verde, do qual se lembrava: era o mesmo candeeiro. Nada mudara.

Sentou-se na cadeira do pai e tirou a pistola do bolso. Colocou-a na secretária, por trás da caixa de madeira, ocultando-a.

A espera começara. E pela segunda vez a sua vida estava nas mãos de Barzini. Não podia imaginar ajuda mais firme. Porque Barzini não chegaria às cavalariças. Subiria o caminho das cavalariças e entraria no arvoredo, voltando atrás aos jardins, direito às traseiras da casa. Entraria depois por uma das portas do pátio e aguardaria que o inglês aparecesse.

Stone estava encurralado.

Os minutos arrastavam-se penosamente. De modo distraído, Victor abriu as gavetas da secretária do pai. Encontrou folhas timbradas da Wehrmacht e dispô-las metodicamente, folha por folha, em rimas separadas, numa paciência com enormes cartas em branco.

Esperou.

De início, não ouviu qualquer som. Em contrapartida, sentiu a presença. Era inconfundível, enchendo o ar entre ele e o intruso. A seguir, o ranger de uma tábua do soalho rasgou o silêncio, seguido por duas passadas distantes, ousadas, perceptíveis; a mão de Fontine moveu-se em direcção à pistola.

Subitamente, cruzando o espaço negro, um objecto colorido pela luz surgiu pelos ares através da penumbra, direito a ele, contra ele! Victor retraiu-se quando a vista se lhe fixou no objecto, que deixara atrás de si pequenos fios de sangue no ar. Ouviu-se um choque distinto - de carne contra madeira - e a coisa horrível embateu no tampo da secretária e rolou obscenamente sob o jorro de luz da lanterna.

Fontine expeliu o ar num instante de revulsão total.

O objecto era uma mão. Uma mão decepada, grosseiramente cortada acima do pulso. Os dedos eram velhos e mirrados e dir-se-iam garras, numa contracção espasmódica, com os tendões paralisados no instante da primitiva ablação.

Era a mão de Guido Barzini. Arremessada por um louco que tinha perdido a sua num cais em Celle Ligure.

Victor ergueu-se de chofre da cadeira, sufocando a repulsa que transbordava ao seu lado e lançando a mão à pistola.

- Nem um gesto! Se o fizer, morre! - As palavras de Stone foram arremessadas em inglês. Acocorou-se nas sombras no extremo oposto da sala, por detrás de uma cadeira de braços de espaldar alto.

Victor retirou a mão. Tinha de fazer um esforço para pensar. Para sobreviver.

Em latim no original: «o santo dos santos», equivalente latino do nome que os Judeus davam ao local mais retirado e mais santo do templo. (N. do T.)

- Você matou-o.

- Hão-de encontrá-lo no arvoredo. É esquisito eu tê-lo descoberto lá, não acha?

Fontine deixou-se ficar imóvel, aceitando a notícia terrível, suspendendo a emoção.

- Ainda é mais esquisito - ripostou tranquilamente - que o seu corso o não tenha descoberto.

Os olhos de Stone reagiram: apenas um lampejar de reconhecimento, mas a reacção lá estava.

- A caminhada que você fez. Eu bem me interroguei. - O inglês acenou com a cabeça: - Sim, você podia ter feito aquilo. Podia tê-los suprimido.

- Não fui eu. Foram outros.

- Desculpe, Fontine, mas essa não pega.

- Como é que pode ter tanta certeza?

- Porque, se houvesse outros, você não se serviria de um velho para o último trabalho: era uma estupidez. Você é um filho da mãe arrogante, mas estúpido não é. Estamos sozinhos. Apenas eu e você e aquela caixa. Meu Deus! Devia estar num buraco dos diabos. Andou bastante gente à procura dela.

- Nesse caso estabeleceu o seu acordo com o Donatti?

- Ele pensa que sim. Estranho, não é? Você tirou-me tudo. Escapei-me de Liverpul a pulso e fui trepando, e você tirou-me isso tudo num sacana dum cais macarrone há cinco anos. Agora recuperei tudo e mais alguma coisa. Sou capaz de fazer o maior leilão de que alguma vez se ouviu falar.

- De quê? De velhos prémios de caça? De sumidas menções honrosas?

Stone armou a pistola, colocando-a em posição de fogo. A luva negra desferiu uma palmada na cadeira e os olhos cravaram-se nele através da escuridão.

- Não se ponha com graças!

- Não é graça nenhuma. Eu não sou estúpido, lembra-se? E você não está em posição de premir esse gatilho. Tem apenas uma possibilidade de entregar o conteúdo daquela arca. Se não o fizer, pode facilmente ser emitida outra ordem de execução. Os homens poderosos que o contrataram há cinco anos não gostam de especulações embaraçosas.

- Cale a boca! Pare com isso! - Furiosamente, Stone alçou da luva, semelhante a uma garra, acima da cadeira e deixou-a tombar com violência. - Essas tácticas comigo não resultam, seu filho da mãe! Antes de você ouvir sequer falar de Loch Torridon, já eu as usava.

- Loch Torridon baseava-se no erro. Cálculos errados! Má gestão! Era essa a premissa. Lembra-se?- Fontine deu um passo à retaguarda, empurrando a cadeira com as pernas e estendendo as mãos num gesto de impotência. - Venha cá. Veja com os seus próprios olhos. Você não me mataria sem saber primeiro quanto lhe custava a bala.

- Recue! Para mais longe! - Stone contornou a cadeira, com a mão imóvel estendida mesmo à sua frente como uma lança em riste. A mão esquerda empunhava a pistola pronta a disparar; a mais ligeira pressão no gatilho e a bala sairia.

Victor fez o que ele lhe ordenava, de olhos cravados na pistola. O seu momento chegaria; tinha de chegar.

O inglês acercou-se da secretária, sendo cada passo seu o movimento de um homem repleto de aversão e cansaço, preparado para destruir numa fracção de

segundo de desequilíbrio. Desviou a vista de Fontine e olhou fixamente o tampo da mesa. Para a mão decepada, mutilada, de Guido Barzini. Para a caixa. Para a pilha de restos dentro da caixa.

- Não - sussurrou. - Não!

O momento chegara: o choque da revelação era patente nos olhos de Stone. Não apareceria outra vez.

Victor deu um salto para a frente, por cima da secretária, lançando as mãos à arma; ele vacilara apenas uma fracção de segundo, mas isso era tudo quanto ele podia esperar.

A detonação ensurdeceu-os, mas o aperto de Fontine tinha desviado o disparo. Centímetros apenas, mas era o bastante. A bala estilhaçou o tampo da mesa, arremessando lascas de madeira em todas as direcções. Victor agarrou no pulso de Stone e torceu-o com toda a força de que era capaz, sentindo as pancadas que lhe eram desferidas na cara e no pescoço pela rígida mão enluvada. Stone alçou o joelho direito e golpeou o baixo-ventre e o estômago de Fontine; não havia maneira de lhe tirar a pistola. O inglês gritou e entrou num paroxismo de frenesi. Não iria, não podia, deixar-se levar unicamente pela força.

Victor fez a única coisa que lhe restava. Por um instante, suspendeu todo o movimento e a seguir puxou o pulso de Stone para diante como se estivesse a enfiar a arma no seu próprio estômago. Quando a pistola estava quase a tocar no blusão, torceu repentinamente o corpo e o pulso de Stone, invertendo a arma, e impeliu-a para cima com todo o seu peso.

Deu-se a explosão. Por um segundo, Fontine ficou cego, com a pele gelada pela queimadura, e durante esse instante julgou que fora atingido.

Até que sentiu o corpo de Geoffrey Stone abater-se, arrastando-o consigo para o solo.

Abriu os olhos. A bala tinha penetrado por baixo do maxilar de Stone, e numa trajectória ascendente, atravessara o crânio e estoirara com o alto da cabeça de Stone.

E junto da massa de sangue e de tecidos estava a mão decepada de Guido Barzini.

Levou o corpo de Barzini do arvoredo para as cavalariças. Depositou o cadáver mutilado na cama e cobriu-o com um lençol. Manteve-se de pé junto ao corpo, por tempo indeterminado, tentando compreender o sofrimento, o terror e a afeição.

Campo dí Fiori estava sereno. Para ele, o seu segredo estava sepultado, para não mais vir a conhecer-se. O mistério de Salónica era uma confidência que Savarone não partilhara. E o filho de Savarone não insistiria mais nele. Outros que o fizessem, se lhes apetecesse. Teague que cuidasse do resto. Ele tinha terminado.

Percorreu a pé a estrada norte desde as cavalariças até ao acesso defronte da casa e entrou no carro alugado. Raiava o alvorecer. O sol alaranjado do Verão despontou sobre o campo italiano. Lançou um derradeiro olhar à casa da sua infância e ligou a ignição.

As árvores iam desfilando à sua passagem, convertendo-se a folhagem numa mancha indistinta de cor de laranja, amarelo e branco. Olhou para o velocímetro. Mais de oitenta. Oitenta quilómetros por hora na sinuosa estrada de acesso que sulcava a floresta. Devia diminuir a velocidade, bem sabia. Era imprudente, se não perigoso. Não obstante, o pé não obedecia à mente.

Oh, meu Deus! Tinha de sair dali!

Havia uma comprida curva quase a cento e oitenta graus antes de se chegar aos portões. Nos velhos tempos - há anos -, costumava tocar a buzina à aproximação da curva. Agora não havia motivo para o fazer, e sentiu alívio ao verificar que o pé afrouxava a pressão no acelerador. O instinto mantinha-se intacto. Mesmo assim, entrou na curva a cinquenta, fazendo guinchar os pneus ao sair dela e meter direito aos portões. Automaticamente, na recta, acelerou. Passaria a toda a velocidade pelos pilares do portão e abandonaria a estrada, na direcção de Varese. A seguir Milão.

A seguir Londres!

Não tinha a certeza de quando o vira. Os vira. O seu espírito divagara, enquanto ele mantinha os olhos pregados no solo imediatamente adiante do capot. Soube apenas que carregara no travão com tal força que foi arremessado de encontro ao volante, ficando a cabeça a centímetros do pára-brisas. O carro guinou, os pneus chiaram, ergueram-se ondas de poeira das rodas e o automóvel derrapou em diagonal ao cruzar os portões, parando a metros apenas dos dois grandes automóveis pretos que tinham convergido vindos do nada, obstruindo a estrada a seguir aos pilares de pedra.

O seu corpo foi violentamente lançado de novo contra o assento; o carro inteiro estremeceu na súbita e violenta travagem. Atordoado, Fontine levou vários segundos a sacudir os efeitos da colisão iminente. Pestanejou, recuperando prontamente a nitidez de visão. A sua fúria foi sustida pelo espanto perante o que via.

Postados à frente dos dois carros pretos estavam cinco homens de fato preto e colarinho eclesiástico branco. Ficaram a olhar impassivelmente para ele. Depois a porta traseira do carro da direita abriu-se e saiu de lá um sexto homem. Tinha cerca de sessenta anos e envergava as negras vestes clericais.

E tinha uma malha branca no cabelo.

O cardeal possuía olhos de fanático e falava com uma voz forçada e sincopada de possesso. Tinha movimentos vagarosos, fluidos, nunca permitindo que a atenção da sua assistência vacilasse. Era ao mesmo tempo teatral e sinistro. Tratava-se de uma aparência cultivada, aperfeiçoada ao longo dos anos nos corredores do Vaticano. Donatti era uma águia que se alimentava de pardais. Estava para lá da rectidão: era a rectidão.

Ante a visão do homem, Victor perdeu a tramontana. O facto de aquele assassino da Igreja poder aproximar-se de Campo di Fiori era uma obscenidade que ele não podia suportar. Precipitou-se sobre a torpe figura de sotaina, com todo o sentido de razão, de sobrevivência e da própria sanidade esquecido no instante da lembrança.

Os sacerdotes estavam preparados para ele. Convergiram, da mesma maneira que os carros, e interceptaram-lhe a trajectória da arremetida. Prenderam-no, torcendo-lhe os braços bem alto atrás das costas; uma mão de dedos poderosos apertou-lhe a garganta, obrigando a cabeça a um arquear torturante, sufocando a fala, mas não a visão ou o ouvido.

- O carro - disse baixinho Donatti.

Os dois sacerdotes que não estavam a dominar Fontine correram para o carro alugado e iniciaram a busca. Victor ouviu as portas, o porta-bagagens e o capot serem abertos. A seguir o rasgar dos estofos e o estrépito de metal à medida que o carro era desmantelado. O esquadrinhar prosseguiu durante perto de um quarto de hora. No decurso de todo esse tempo, os olhos de Fontine mantiveram-se cravados nos do cardeal. Só no final da busca o sacerdote da Cúria olhou para o automóvel, quando os dois homens se abeiraram e falaram em uníssono.

- Não há nada, eminência.

Donatti fez um gesto na direcção do padre cuja mão poderosa apertava a garganta de Victor. A pressão foi aliviada; Fontine engoliu repetidamente. Continuavam a manter-lhe os braços tensamente repuxados atrás das costas. O cardeal falou:

- Os heréticos de Constantino escolheram bem: os apóstatas de Campo di Fiori. Os inimigos de Cristo.

- Animal! Sanguinário! - Victor mal podia sussurrar: os músculos do pescoço e da traqueia tinham sido gravemente afectados. - Você assassinou-os! Eu vi-o!

- Sim. Eu calculava que devia ter visto. - O cardeal falava com serena virulência, - Eu próprio teria disparado as armas, se preciso fosse. E ao pensar assim, tem toda a razão. Teologicamente falando, fui eu o carrasco. Os

olhos de Donatti abriram-se muito. - Onde está o engradado de Salónica?

- Não sei.

- Há-de dizer-mo, herege. Pode acreditar na palavra de um verdadeiro sacerdote. Não tem alternativa.

- Está a prender-me contra a minha vontade! Em nome de Deus, imagino! - disse Fontine com frieza.

- Em nome da preservação da Santa Madre Igreja! Não há quaisquer leis que tenham precedência sobre isso. Onde está o carregamento de Salónica?

Os olhos e a voz estrídula desencadearam a lembrança de anos atrás: uma criança de tenra idade à entrada da porta de um escritório.

- Se o sabê-lo era tão importante para si, porque executou o meu pai? Ele era a única pessoa que sabia...

- Mentira! Isso é mentira! - Donatti conteve-se, com os lábios a tremer.

Fontine compreendeu. Tinha sido exposto um nervo sensível. Fora cometido um erro de extraordinárias dimensões, e o cardeal não suportava confrontar-se com ele.

- Bem sabe que é verdade - disse tranquilamente Victor. - Agora sabe que é verdade e não a suporta. Porquê? Porque foi ele morto?

O clérigo baixou a voz:

- Os inimigos de Cristo enganaram-nos. Os hereges de Xenope encheram-nos de mentiras. - E Donatti vociferou abruptamente, uma vez mais: - Savarone Fontini-Cristi foi o transmissor dessas mentiras!

- Que mentiras podia ele ter-lhe dito, a si? O senhor nunca acreditou nele quando lhe disse a verdade.

O cardeal voltou a tremer. Mal se conseguiu ouvi-lo:

- Houve dois comboios de mercadorias provenientes de Salónica. Com três dias de intervalo. Do primeiro não soubemos nada; o segundo, apanhámo-lo em Monfalcone, certificando-nos de que Fontini-Cristi nunca iria ao seu encontro. Não sabíamos na altura que ele já tinha entrado em contacto com o primeiro comboio. E agora você vai dizer-nos o que queremos saber. O que temos de saber.

- Não posso dar-vos aquilo que não tenho. Donatti olhou para os sacerdotes e disse uma palavra.

- Agora.

Victor nunca se recordaria do período de tempo, pois não houve tempo, mas tão-somente dor. Excruciante, pungente, acerada, convulsiva. Foi arrastado para o interior dos portões de Campo di Fiori e conduzido para o bosque. Ali, os piedosos padres apostólicos iniciaram a tortura. Principiaram pelos seus pés descalços: quebraram-lhe todos os dedos e torceram-lhe os tornozelos até estalarem. Seguiram-se as pernas e os joelhos: esmagados, revirados, estirados. E depois o baixo-ventre e o estômago («Oh, Deus! Apetecia-lhe morrer!»). E sobre ele, continuamente, esfumado na visão de lágrimas de dor, estava o sacerdote da Cúria que tinha uma malha branca no cabelo.

- Diz-nos! Diz-nos! Inimigo de Cristo!

Fizeram-lhe saltar os braços das articulações. Torceram-lhe os pulsos para dentro até lhe rebentar os capilares, espalhando um fluido cor de púrpura por toda a pele. Havia momentos de abençoado vazio, aos quais subitamente punham termo mãos que o faziam recuperar a consciência à bofetada.

- Diz-nos! Diz-nos! - As palavras convertiam-se numa centena de milhares de martelos, ecos dentro de ecos. - Diz-nos! Inimigo de Cristo!

E tudo voltou a ser o vazio. E, através dos escuros túneis da sensação, pressentia o ritmo de vagas e ar e suspensão. Um flutuar que, no fundo do cérebro, lhe dizia que estava próximo da morte.

Houve um derradeiro embate convulsivo, e contudo ele não podia senti-lo. Já estava para além da sensação.

Ouviu, todavia, as palavras muito, muito ao longe, proferidas num canto-chão:

- In nomine Patris, et Filii et Spiritus sancti. Amen. Dominus vobiscum... A extrema-unção.

Tinham-no abandonado à morte.

Sobreveio novamente o flutuar. As vagas e o ar. E vozes, indistintas, demasiado longínquas para serem verdadeiramente ouvidas. E tocaram-no. Sentiu que o tocavam, provocando-lhe cada contacto dores dardejantes por todo o corpo. Todavia, não era o tocar de torturas; as vozes longínquas não eram vozes de torturadores.

As imagens esfumadas tornaram-se finalmente nítidas. Estava num quarto branco. Ao longe havia frascos reluzentes com tubos que caíam em cascata pelo ar.

E sobre ele estava um rosto. O rosto que ele sabia não mais voltar a ver. O que lhe restava da mente estava a pregar-lhe terríveis partidas.

O rosto chorava: as lágrimas escorriam pelas faces.

A sua mulher, Jane, segredava:

- Meu amor. Meu amor querido. Oh, meu Deus, que te fizeram eles? O seu rosto bonito estava junto ao dele. A tocar o dele.

E não havia dor.

Fora encontrado por homens do MI 6, preocupados. Os padres tinham-no metido num carro, levando-o para o largo da entrada e deixado à morte em Campo di Fiori. O facto de não ter morrido era algo que os médicos não conseguiam explicar. Devia ter morrido. A recuperação levaria meses, talvez anos. E, na verdade, nunca recuperaria por completo. Com cuidado, porém, readquiriria o uso dos braços e das pernas; poderia andar, e isso já por si era um milagre.

Ao fim de oito semanas já conseguia sentar-se na cama. Terminou o que tinha a tratar com o Tribunal de Reparações. As terras, as fábricas e as propriedades foram vendidas por setenta e cinco milhões de libras esterlinas. Tal como prometera a si próprio, a transacção não incluía Campo di Fiori.

Para Campo di Fiori tomara disposições independentes por intermédio de um advogado de confiança de Milão. Também essa propriedade seria vendida, mas não queria conhecer o nome do comprador. Havia duas restrições inquestionáveis: o adquirente não poderia ter tido qualquer ligação com os fascistas e tão-pouco deveria possuir qualquer tipo de associação com organismo religioso algum.

Na oitava semana, um inglês foi enviado de Londres por via aérea com instruções do seu governo.

Sir Anthony Brevourt sentou-se aos pés da cama de Fontine, de maxilar firme e olhos compassivos, embora não isentos de dureza.

- O Donatti morreu, sabe? Atirou-se da balaustrada de São Pedro.

Ninguém o chora, e a Cúria menos que quem quer que seja.

- Sim, bem sei. No final, um acto de insanidade.

- Os cinco padres que o acompanhavam foram castigados. Três foram excomungados, acusados e condenados à prisão por várias décadas. Os outros dois estão a cumprir penitência perpétua no Transval. O que foi feito em nome da Igreja horroriza os seus dirigentes.

- Quer-me parecer que há demasiadas igrejas que permitem os fanáticos e depois olham para trás com espanto, assombradas com o que se fez em «nome delas». Não se limita a Roma. O aspecto exterior disfarça muitas vezes objectivos, não é verdade? Isto aplica-se igualmente aos governos. Quero respostas a determinadas perguntas!

Brevourt pestanejou várias vezes perante a veemência de Fontine e respondeu com prontidão, mecanicamente:

- Estou preparado para as dar no que puder. Recebi instruções para não ocultar nada.

- Primeiro, o Stone. A ordem de execução foi explicada; não tenho comentários a fazer. Quero saber o resto. Tudo.

- Precisamente aquilo que lhe foi dito. Eu não confiava em si. Estava convencido, quando você chegou a Londres, que estava decidido a não revelar nada sobre o comboio de Salónica. Esperava que você tomasse as suas próprias disposições, nas suas próprias condições. Não podíamos deixar que isso acontecesse.

- O Stone comunicou os meus movimentos nessa altura?

- Todos. Você fez onze deslocações ao outro lado da Mancha e uma a Lisboa. Com a ajuda do Stone, mantivemo-lo sob controlo. Na eventualidade de você ser capturado, estávamos preparados para negociar uma troca com o inimigo.

- E supondo que eu fosse abatido?

- Inicialmente foi um risco que calculámos, eclipsado pelo facto de você poder ter-se escapulido e estabelecido contacto com respeito a Salónica. E em Junho de quarenta e dois, a seguir a Oxfordshire, Teague concordou em não o mandar mais ao outro lado.

- Que aconteceu em Oxfordshire? O padre (se é que era mesmo um padre) que orientou aqueles aviões era grego. Da Ordem de Xenope. A vossa primeira clientela, creio eu.

Brevourt comprimiu os lábios e respirou fundo. Estavam a reconhecer-se coisas que o magoavam e embaraçavam ao mesmo tempo.

- Stone, novamente. Havia dois anos que os alemães tentavam localizar o complexo em Oxfordshire. Ele bufou as coordenadas exactas a Berlim e ao mesmo tempo tomou as suas próprias disposições com os gregos. Convenceu-os de que havia uma maneira de o vergarem. Valia a pena tentar: um homem vergado fala. Ele não queria saber de Salónica para nada, mas o ataque contribuía para o seu objectivo primordial. Colocou um sacerdote fanático no complexo e coordenou o ataque.

- Por amor de Deus, porquê?

- Para matar a sua mulher. Se ela perecesse, ou se ficasse gravemente ferida, ele pressupunha que você havia de virar costas a tudo quanto fosse britânico e sairia do MI 6. E tinha razão. Você por pouco não o fez, sabe? Ele odiava-o: responsabilizava-o por ter dado cabo de uma carreira brilhante. No meu entendimento, tentou mantê-lo em Londres nessa noite.

Victor recordou-se da horrível noite. Stone, o psicopata metódico, contara os minutos, deduzira a velocidade do carro. Fontine estendeu a mão para os cigarros na mesa-de-cabeceira.

- A última pergunta. E não me minta. O que havia no comboio de Salóica?

Brevourt afastou-se da cama. Foi até à janela e manteve-se calado por um momento.

- Pergaminhos, manuscritos do passado que, a serem tornados públicos, poderiam trazer o caos ao mundo religioso. Especificamente, dilacerariam o mundo cristão. Haveria acusações e desmentidos lançados de um lado para outro e os governos poderiam ter de escolher partido. Acima de tudo, os documentos nas mãos do inimigo seriam uma arma ideológica para além de tudo o que é imaginável.

- Os documentos podem fazer tal coisa? - perguntou Fontine.

- Estes documentos podem - retorquiu Brevourt, virando costas à janela. - Já ouviu alguma vez falar na Cláusula Filioque?

Victor encheu o peito de ar. A sua mente recuou aos anos de ensinamentos imparciais da meninice.

- Faz parte do Credo de Niceia.

- Mais propriamente, do Credo de Niceia do ano trezentos e oitenta e um; houve muitos concílios, alterações subtis ao credo. O Filioque foi um acrescentamento ulterior que de uma vez por todas estabeleceu a figura de Cristo como consubstancial a Deus. Ele é rejeitado pela Igreja do Oriente como induzindo em erro. Para a Igreja do Oriente, especialmente para as seitas que seguiam o sacerdote e estudioso Ário, Cristo como filho de Deus era o mestre; a sua divindade não era igual à de Deus. Naquele tempo não podia haver para eles semelhante igualdade. Quando pela primeira vez foi proposto o Filioque, o Patriarcado de Constantino reconheceu-o como aquilo que era: uma divisão doutrinária que favorecia Roma. Um símbolo teológico que era a desculpa para dividir e conquistar novos territórios. E tinham toda a razão. O Santo Império Romano tornou-se uma força global... tal como se conhecia o Globo. A sua influência alastrou ao mundo inteiro baseada nessa única premissa, nessa divindade especializada de Cristo: conquistar em nome de Cristo. - Brevourt calou-se, como se procurasse as palavras. Regressou vagarosamente junto à cama.

- Nesse caso, os documentos daquela arca - disse Victor - refutam o Filioque? Se é assim, desafiam o fundamento da Igreja Romana e de todas as divisões cristãs que se lhe seguiram.

- Assim é, com efeito - retorquiu calmamente Brevourt. - Colectivamente, chama-se-lhes refutações: as refutações do Filioque. Compreendem acordos entre coroas e césares tão longínquos como a Espanha, no século sexto, onde teve origem o Filioque, por aquilo que muitos pensam serem razões puramente políticas. Outros encontram indícios daquilo que rotulam de «corrupção teológica»... Mas, se isso fosse tudo o que tivessem feito, o mundo poderia viver com elas. Filho de Deus, mestre, consubstancial. Trata-se de distinções teológicas, matérias para discussão de estudiosos da Bíblia. Fazem mais, infelizmente. No fervor de negar o Filioque, o Patriarcado enviou sacerdotes para revolverem a Terra Santa, encontrar-se com os estudiosos aramaicos e desenterraram tudo quanto alguma vez tivesse existido respeitante a Jesus. Eles desencantaram mais do que aquilo que procuravam. Havia rumores de pergaminhos escritos durante os anos imediatamente anteriores e posteriores ao marco do século primeiro. Localizaram-nos, descobriram vários e trouxeram-nos novamente a Constantino. Diz-se que um dos pergaminhos aramaicos levanta dúvidas profundas e muito específicas relativamente ao homem conhecido por Jesus, que pode nunca ter existido.

O transatlântico fez-se ao largo do canal. Fontine achava-se de pé no convés, a olhar para a silhueta de Southampton. Jane, junto a si, enlaçava-lhe com uma mão suavemente a cintura, enquanto a outra pousava na sua, apoiada no corrimão da balaustrada. As muletas com as grandes braçadeiras de metal que lhe seguravam os antebraços achavam-se à sua esquerda, com os reluzentes semicírculos de aço inoxidável a brilhar ao sol. Fora ele próprio que as projectara. Já que ia ser necessário, ao que os médicos diziam, usar muletas durante um ano ou mais, podía muitíssimo bem aperfeiçoar o produto existente.

Os dois filhos de ambos, Andrew e Adrian, estavam com a preceptora de Dunblane - uma das pessoas que tinham optado por ir para a América com os Fontine.

A Itália, Campo di Fiori, o comboio de Salónica pertenciam ao passado. Os cataclísmicos pergaminhos que tinham sido retirados dos arquivos de Xenope achavam-se algures na vasta cordilheira dos Alpes italianos. Enterrados por um milénio; talvez para não mais serem encontrados.

Era melhor assim. O mundo tinha atravessado uma era de devastação e dúvida. A razão exigia que se recobrasse alguma serenidade, pelo menos por uns tempos, quanto mais não fosse à superfície. Não era ocasião para a arca de Salónica.

O futuro principiava com os raios do sol da tarde nas águas do canal da Mancha. Victor inclinou-se para a mulher e encostou o rosto ao dela. Nenhum dos dois falou; ela apertou-lhe a mão em silêncio.

Houve uma agitação no convés. Trinta metros mais à ré, os gémeos tinham-se envolvido numa disputa. Andrew zangara-se com seu irmão Adrian e houvera uma troca de pancadas infantis. Fontine sorriu.

Crianças...

 

Junho de 1973

Homens.

Eram homens, pensou Victor Fontine ao ver os filhos caminhando separadamente pelo meio dos convidados sob o sol radioso. E gémeos, em segundo lugar. Tratava-se de uma distinção importante, achava ele, embora não houvesse necessidade de se deter no facto. Dir-se-ia que haviam decorrido anos desde que alguém se lhes referira como gémeos. Excepto Jane e ele próprio, claro. Irmãos sim, mas não gémeos. Era estranho como a palavra caíra em desuso.

Talvez a festa o ressuscitasse por algum tempo. Jane havia de gostar. Para Jane eles eram sempre os gémeos. Os seus gémeos.

A festa na casa de North Shore, em Long Island, era dedicada a Andrew e Adrian: tratava-se do seu aniversário. Os relvados e os jardins das traseiras da casa, sobranceiros à arrecadação dos barcos e à água, tinham sido transformados numa enorme fite champêtre' ao ar livre, como Jane lhe chamava. «Um maldito de um piquenique para gente crescida! Já ninguém os faz. Nós faremos um».

Na orla sul do terraço, uma pequena orquestra tocava, servindo a sua música de fundo para um cento de conversas. Havia compridas mesas a abarrotar de comida montadas na longa amplidão de relva bem aparada; dois bares funcionavam em cada um dos extremos do bufete rectangular. Fête champêtre. Victor nunca ouvira o termo. Em trinta e quatro anos de casamento, nunca o ouvira.

Como os anos tinham passado a correr! Dir-se-ia que três décadas haviam sido comprimidas numa cápsula temporal e disparadas pelos céus a uma velocidade incrível, apenas para aterrarem, serem abertas e esquadrinhadas por protagonistas que tinham meramente envelhecido.

Andrew e Adrian estavam agora próximos um do outro. Andy tagarelava com os Kempson junto da mesa dos canapés. Adrian encontrava-se no bar, falando com vários jovens cuja indumentária era o único vago indício do respectivo sexo. De certo modo, estava certo que Andrew estivesse junto dos Kempson. Paul Kempson era presidente da Gentaur Electronics; tratava-se de uma pessoa bem vista pelo Pentágono. Como, evidentemente, Andrew o era. Adrian fora sem dúvida encurralado por diversos estudantes universitários que pretendiam interrogar o advogado singularmente franco que era o filho de Victor.

 

' Em francês no original: «festa campestre». (N. do T.)

 

Victor notou com certa satisfação que ambos os gémeos eram mais altos do que as pessoas que os rodeavam. Era de esperar: nem ele nem Jane eram baixos. E eram de certo modo parecidos, mas não idênticos. O cabelo de Andrew era muito claro, quase loiro, e o de Adrian mais escuro, castanho-aloirado. As feições de um e outro eram angulosas, uma combinação das suas e das de Jane, mas cada um possuía a sua identidade própria. O único elemento físico que partilhavam eram os olhos: eram os de Jane. Azuis-claros e penetrantes.

Por vezes, com sol muito intenso ou na sombra difusa, podia confundir-se um com o outro. Mas só em tais ocasiões e nessas condições. Um e outro eram muito independentes.

Andrew, o do cabelo claro, estava no Exército e era um profissional dedicado. A influência de Victor tinha conseguido uma nomeação do Congresso para West Point, onde Andrew se tornara notado. Fizera duas comissões no Vietname, embora desprezasse a maneira como a guerra era travada. «Ganhar ou retirar» era o seu credo, mas ninguém lhe dava ouvidos, e ele não sabia bem se isso fazia alguma diferença. Não havia maneira de ganhar para perder. A corrupção em Saigão atingira proporções jamais vistas.

Contudo, Andrew não era, de modo algum, um neutro dentro das fileiras. Victor compreendia isso. O filho era uin crente. Profundo, interessado, resoluto: os militares eram a força da América. Uma vez esgotadas as palavras, restava apenas o poder disponível. Para ser usado com sensatez, mas para ser usado.

Para Adrian, o do cabelo escuro, não havia que impor limite algum ao emprego das palavras, e não existia justificação alguma para o confronto armado. Adrian, o advogado, era à sua maneira tão dedicado como o irmão, conquanto o seu comportamento pudesse parecer desmenti-lo. Adrian tinha um andar desleixado, que sugeria uma aparência de indiferença onde não existia indiferença alguma. Os adversários juristas tinham aprendido a não se deixarem embalar pelo seu humor ou pela aparente falta de interesse. Adrian era interessado. Nas salas de audiências era um ás. Pelo menos fora-o efectivamente no gabinete do promotor de Justiça em Boston. Presentemente encontrava-se em Washington.

Adrian tinha ido da escola preparatória para Princeton e daí para a Harvard Law, com um ano perdido a vadiar, a deixar crescer a barba, a tocar guitarra e a dormir com raparigas disponíveis de São Francisco até Bleecker Street. Fora um ano do qual Victor e Jane não tinham boas recordações.

No entanto, a vida da estrada larga, as limitações provincianas de meia dúzia de comunidades tinham saturado Adrian. Não conseguia aceitar a ausência de finalidade da experiência não provocada, da mesma maneira que acontecera a Victor quase trinta anos antes, ao terminar a guerra na Europa.

As reflexões de Fontine foram interrompidas. Os Kempson vinham direitos à sua cadeira, pedindo licença à medida que abriam caminho por entre a multidão. Não haviam de esperar que ele se levantasse - nunca ninguém contava com isso -, mas Victor aborrecia-se com o facto de não o conseguir. Sem auxílio.

- Um rapaz às direitas - observou Paul Kempson. - Tem a cabeça bem no seu lugar, isso é que o Andrew tem. Disse-lhe que se alguma vez quiser arrumar a farda a Centaur tem lugar para ele.

- Eu disse-lhe que devia era andar fardado - aduziu vivamente a mulher

de Kempson. - É um homem tão elegante!

- Estou certo de que ele acha que seria desconcertante- disse Fontine, de modo algum seguro. - Ninguém gosta que lhe lembrem a guerra numa festa de anos.

- Durante quanto tempo vai ele estar em casa, Victor? - perguntou Kempson.

- Em casa? Aqui? Apenas uns dias. Agora está colocado na Virgínia. No Pentágono.

- O seu outro rapaz está também em Washington, não está? Acho que li qualquer coisa a respeito dele nos jornais.

- Sim, tenho a certeza de que leu. - Fontine sorriu.

- Ah, nesse caso ficam juntos. Isso é bom - comentou Alice Kempson. A orquestra terminou um número e encetou outro. Os pares mais jovens

debandaram para o terraço: a festa começava a animar. Os Kempson foram-se afastando com acenos de cabeça e sorrisos. Por breves instantes, Victor pensou no comentário de Alice Kempson: «... ficam juntos. Isso é bom». Mas Andrew e Adrian não estavam juntos. Trabalhavam a vinte minutos um do outro mas tinham vidas separadas. Por vezes, pensava Fontine, demasiadamente separadas. Não se riam em coro como faziam antigamente, em crianças. Já homens, tinha acontecido qualquer coisa entre eles. Fontine interrogava-se sobre o que teria sido.

Jane reconheceu, talvez pela centésima vez, que a festa era um êxito. Uma afirmação. Graças a Deus que o tempo se aguentara. Os fornecedores tinham jurado que podiam armar os toldos em menos de uma hora, se fosse necessário, mas ao meio-dia estava um sol radioso, confirmando-se a promessa de um belo dia.

Não, contudo, uma bela noite. Lá muito ao longe, sobre as águas, nas proximidades do Connecticut, o céu estava pardacento. As previsões meteorológicas previam aguaceiros nocturnos dispersos com precipitação gradualmente crescente, fosse o que fosse que aquilo queria dizer. Porque não diziam pura e simplesmente que iria chover mais tarde?

Das duas às seis da tarde. Boas horas para uma fête champêtre dominical. Tinha-se rido da ignorância do termo por parte de Victor. Era tão pretensiosamente vitoriano! A piada estava em utilizá-lo. Tinha um ar ridículo nos convites. Jane sorriu, e a seguir abafou uma risada. Devia realmente dominar as suas patetices, ao que supunha. Era demasiado velha para essas coisas.

No outro extremo do relvado, entre a multidão, Adrian sorria-lhe. Ter-lhe-ia lido os pensamentos? Adrian, o seu gémeo do cabelo escuro, herdara o seu sentido do humor inglês um tanto ou quanto louco.

Tinha trinta e um anos. Eles tinham trinta e um anos. Que fora feito desses anos? Parecia que tinham decorrido apenas meses desde o momento em que haviam aportado a Nova Iorque. Seguidos de meses de actividade que haviam posto Victor a voar por todos os Estados Unidos e de novo para a Europa, construindo furiosamente.

E Victor conseguira. Fontine, Ltd. convertera-se numa das mais procuradas firmas de consultores da América. Os conhecimentos de Victor apontavam primordialmente para a reconstrução europeia. O nome Fontine na apresentação de uma empresa era uma vantagem industrial. O conhecimento de um determinado mercado estava assegurado.

Victor tinha-se envolvido por completo, não exclusivamente por uma questão de orgulho, ou de produtividade instintiva, mas por algo mais. Jane sabia-o, e sabia ao mesmo tempo que não podia fazer nada para ajudá-lo. Aquilo desviava-lhe a mente do sofrimento. O marido raramente deixava de sentir dores: as operações prolongavam-lhe a vida, mas pouco faziam para minorar a dor.

Olhou para Victor, do lado de lá do relvado, sentado na rija cadeira de pau de espaldar direito, com a reluzente bengala de metal ao lado. Tinha ficado tão ufano quando as duas muletas haviam sido substituídas pela bengala simples que lhe permitia andar sem parecer tão chocantemente aleijado!

- Viva, Mistress Fontine - disse um jovem de cabelo muito comprido. - A festa está estupenda! Obrigado por me deixar trazer os amigos. Eles queriam mesmo conhecer o Adrian.

Quem falara era Michael Reilly. Os Reilly eram os seus vizinhos mais próximos, a cerca de um quilómetro e meio mais abaixo na praia. Michael estava a frequentar Direito em Columbia.

- Isso é muito lisonjeiro!

- Escute, ele é fantástico! Arrumou aquele antitrust da Tesco, em Boston, mesmo quando os tribunais federais o achavam demasiado vago. Toda a gente sabia que era uma empresa da Centaur, mas foi preciso o Adrian para lhe cortar as vasas.

- Não discutas isso com Mister Kempson.

- Não se preocupe. Vi-o no clube e ele disse-me para cortar o cabelo. Ora bolas, isso também o meu pai me disse.

- Ao que vejo, ganhaste. Michael exibiu um sorriso rasgado.

- Está pior que uma barata, mas não pode dizer nada. Estou no quadro de honra. Fizemos um acordo.

- Bravo! Obriga-o a conformar-se com isso.

O moço Reilly soltou uma gargalhada e curvou-se, dando-lhe um beijo na face.

- A senhora é especial! - Voltou a arreganhar os dentes num sorriso e foi-se embora, chamado com um sinal por uma rapariga na orla do pátio.

A gente jovem gostava dela, pensou Jane. Tratava-se de uma verificação consoladora nestes tempos em que os jovens encontravam tão pouca coisa de que gostar ou com a qual concordar. Gostavam dela apesar do facto de ela se recusar a fazer concessões à juventude. Ou à idade. Tinha o cabelo listrado - meu Deus, mais que listrado - de brancas; o rosto com rugas - como era natural que as tivesse - e não havia discussões acerca de uma repuxadela da pele aqui, de uma prega acolá, como tantas das suas amigas tinham feito. Agradecia à sua boa estrela ter conservado a figura. Tomando tudo em linha de conta, não estava mal para sessenta anos... e tal, raios!

- Dá-me licença, Mistress Fontine? - Era a criada; tinha vindo do reboliço que era a cozinha.

- Sim, Grace? Algum problema?

- Não, minha senhora. Está um senhor à porta. Perguntou pela senhora ou por Mister Fontine.

- Diga-lhe que venha aqui fora.

- Ele disse que preferia não vir. É um senhor estrangeiro. Um padre. Pensei que com tanta gente, Mister Fontine...

- Sim, fez bem - interrompeu Jane, compreendendo as preocupações da criada. Victor não apreciava caminhar entre os convidados da maneira como era obrigado a caminhar. - Eu vou atendê-lo.

O sacerdote estava postado na soleira da porta, com um fato preto que lhe caía mal, e era velho, o rosto chupado e gasto. Parecia constrangido, assustado.

Jane falou com frieza. Não pôde evitá-lo.

- Sou Mistress Fontine.

- Sim, é a signora - respondeu o sacerdote, com um grande sobrescrito manchado na mão. - Eu vi as fotografias. Não queria incomodar. Tantos automóveis!

- O que é?

- Venho de Roma, signora. Trago uma carta para o padrone. Quer fazer o favor de certificar-se de que lhe chega às mãos? - E o padre estendeu-lhe o sobrescrito.

Andrew observou o irmão no bar com os estudantes de cabelo comprido, envergando as suas indumentárias de ganga e camurça e com medalhões ao pescoço. Adrian nunca havia de aprender: a sua roda era composta por inúteis. Eram embusteiros. Não era simplesmente a profusão de cabelo mal cuidado que incomodava o militar; isso eram apenas sintomas. Tratava-se, isso sim, do fingimento que andava de par com aquelas superficiais expressões de inconformismo. De um modo geral eram insuportáveis: gente hostil de cabeça mal arrumada.

Falavam com enorme calor, enorme sapiência, de «movimentos» e contra-movimentos» como se fossem protagonistas, factores de inflexões no pensamento político. Este mundo... o terceiro mundo. E o mais engraçado de tudo era isso, porque nem um único num milhar deles saberia como agir como revolucionário. Não possuíam nem o empenhamento nem a fibra nem os miolos.

Eram inadaptados que atiravam sacos de plástico de merda quando ninguém prestava atenção aos seus frenesis. Eram... freaks e, Deus meu, se havia coisa que ele não suportasse eram os freaks. Mas Adrian não entendia: o irmão procurava valores onde não existia valor algum. Adrian era um tolo; mas a verdade é que se tinha dado conta disso sete anos atrás. Sete anos atrás descobrira até que ponto o irmão era tolo. Adrian era um inadaptado na pior acepção: tinha todas as razões para não o ser.

Adrian ergueu o olhar de relance para ele, do bar, e virou costas. O irmão era um maçador, e a visão dele a fazer proselitismo naquela assistência específica tornava-se-lhe repugnante.

Nem sempre o militar fora dessa opinião. Dez anos atrás, ao sair de West Point, não odiava com a veemência que agora sentia. Não tinha em grande conta Adrian e a sua corte de inadaptados, mas não existia aversão. Da maneira como a pandilha de Johnson começara a tratar o Sudoeste asiático, havia alguma coisa a dizer a favor da atitude dos dissidentes: Vão-se embora. Traduzindo: «Varram Hanói do mapa. Ou então vão-se embora».

Tinha explicado vezes sem conta a sua posição. Aos freaks. A Adrian. Mas ninguém queria ouvi-lo da boca de um militar. «Soldadinho», era o que eles lhe chamavam. E cabeça de granada» e dedos de míssil» e maluquinho das bombas».

Mas não eram os nomes. Qualquer pessoa que tivesse passado por West Point e Saigão podia bem com isso. Em última análise, era a estupidez. Eles não se limitavam a fazer as pessoas que importava perderem o interesse: hostilizavam-nas, enfureciam-nas e por último embaraçavam-nas. E essa era a estupidez decisiva. Levavam mesmo aqueles que estavam de acordo com eles a posições contrárias.

Sete anos atrás, em São Francisco, Andrew tentara fazer o irmão ver isso, tentara fazê-lo compreender que aquilo que ele andava a fazer era errado e estúpido - e muito perigoso para o irmão, que era militar.

Regressara de dois anos e meio no delta do Mekong e com uma das melhores folhas de serviço do Exército. A sua companhia fora a que sofrera menos baixas no batalhão; tinha sido condecorado por duas vezes, não passando um mês em tenente sem que lhe impusessem os galões de capitão. Era aquele artigo raro nas forças armadas: um jovem e brilhante estrategista militar proveniente de uma família imensamente rica e influente. Ia bem lançado para altos voos - que eram o lugar que lhe competia. Tinha sido repatriado para mudar de situação, o que constituía uma outra maneira de o Pentágono dizer: «Esse é dos nossos. Fiquem de olho nele. Esplêndida e sólida matéria-prima futura para o Conselho de Chefes dos Estados-Maiores. Mais umas comissões em zona de campanha - e é o War College».

O Pentágono nunca perdia nada em privilegiar um homem como ele, especialmente quando se justificava. O Exército precisava de homens e famílias poderosas: tinha pouquíssimos.

Porém, independentemente daquilo que o Pentágono privilegiava, ou o Exército precisava, tinham aparecido agentes da G21 quando ele se apeara daquele avião na Califórnia havia sete anos. Tinham-no conduzido a um gabinete, passando-lhe um jornal de há dois meses. Na segunda página vinha um artigo acerca de uma insurreição no Presídio Militar de São Francisco. A acompanhar o artigo apareciam fotografias dos distúrbios, uma delas mostrando um grupo de civis desfilando em apoio às praças amotinadas. Um rosto fora circundado a lápis vermelho.

Era Adrian. Parecia impossível, mas lá estava ele! Não era de esperar que ali estivesse: encontrava-se no último ano do curso de Direito. Em Boston. Mas não estava em Boston: estava em São Francisco, albergando três desertores condenados que haviam fugido: fora isso que os homens da G2 haviam dito. O seu irmão gémeo estava a trabalhar para o inimigo! Com os diabos, era isso que eles eram e era isso que ele andava a fazer! O Pentágono não havia de achar grande piada àquilo. Jesus! O irmão! O seu irmão gémeo!

De forma que a G2 o levara de avião para o norte e, à paisana, ele deambulara pelas ruas de Haight-Ashbury até encontrar Adrian.

- Aquilo não são homens, são miúdos baralhados - dissera o irmão num bar sossegado. - Nem sequer lhes disseram nunca quais eram as suas alternativas legais: foram metidos na cadeia sob falsos pretextos.

- Prestaram juramento como todos os outros. Não se podem abrir excepções - contrapusera Andrew.

- Ora, com franqueza! Dois deles não sabiam o que significava esse juramento, e o outro mudou genuinamente de ideias. Mas ninguém quer ouvir. Os

 

' Sigla pela qual é conhecida a Secção de Informações dos Estados-Maiores. (N. do T.)

 

juizes auditores querem exemplos, e os advogados de defesa não estão para fazer ondas.

- Às vezes têm de dar-se exemplos - insistira o militar.

- E a lei diz que eles têm direito a uma defesa competente. Não a compinchas de copos das casernas que querem causar boa impressão...

- Deixa-te disso, Adrian! - interrompeu ele. - Lá fora há uma guerra! O fogo é real! Filhos da mãe como esses custam vidas!

- Se estiverem cá, não.

- Ai, isso é que custam! Porque há-de haver outros que começarão a perguntar a si próprios por que razão estão lá.

- E talvez devam fazê-lo.

- Por amor de Deus, estás a falar de direitos, não estás? - perguntou o militar.

- Podes ter a certeza de que estou.

- Bem, e então o pobre filho da mãe em patrulha num arrozal não os tem? Talvez ele não soubesse no que se estava a meter; limitou-se a ir com os outros porque a lei dizia que tinha de ir. Talvez ele tenha mudado de ideias. Mas não tem tempo para pensar nisso: está a tentar manter-se vivo. Começa a ficar confundido, torna-se desleixado e deixa-se matar!

- Não podemos chegar a toda a gente; é um dos lapsos da lei, um abuso incorporado no sistema. Mas fazemos o que podemos.

Adrian recusara-se a dar-lhe qualquer informação sete anos atrás. Negara-se a dizer-lhe onde se escondiam os desertores. Assim, o militar despedira-se no bar sossegado e esperara numa viela de São Francisco até o irmão sair. Seguira Adrian durante três horas através das ruas da droga. O militar era um especialista em seguir a pista de patrulhas perdidas na selva; São Francisco era apenas uma selva mais.

O irmão contactou com um dos desertores a cinco quarteirões da baía. O rapaz, um negro, era alto e com a barba crescida e condizia com a fotografia que Andrew tinha no bolso. O seu gémeo deu dinheiro ao desertor; foi simples questão de seguir o negro até junto da baía, rumo a um sórdido prédio de apartamentos, que era um esconderijo tão bom como qualquer outro da zona.

Foi feito o telefonema à Polícia Militar. Dez minutos decorridos, três desertores condenados eram arrancados ao sórdido prédio de apartamentos para passarem oito anos na choldra.

O bando de inadaptados entregou-se ao seu trabalho: juntaram-se as turbas, guinchando os seus epítetos, bamboleando-se ao ritmo dos seus inúteis cânticos de adolescentes. E atirando os seus sacos de plástico de excrementos.

O irmão aproximou-se dele nessa noite, no meio da multidão, e durante um prolongado espaço de tempo limitou-se a fitá-lo. Finalmente disse:

- Impeliste-me a regressar. Obrigado.

A seguir, Adrian tinha-se afastado velozmente para as barricadas dos pretensos revolucionários.

As reflexões de Andrew foram interrompidas por Al Winston, de seu nome originário Weinstein, um engenheiro que tinha uma empresa aerospacial. Winston chamara-o pelo nome e caminhava na sua direcção. Al Winston tinha grande peso nos contratos da Força Aérea e vivia nos Hamptons. Andrew não gostava de Winston-Weinstein. Sempre que o encontrava lembrava-se de outro judeu - e comparava-os. O judeu em que pensava estava colocado no Pentágono, depois de quatro anos nas piores zonas do delta. O capitão Martin Greene era um filho da mãe teso, um grande soldado - e não um flácido Winston-Weinstein dos Hamptons. E Greene não extorquia lucros através de sobrefacturações; em lugar disso vigiava-as, catalogava-as. Marty Greene era um deles. Pertencia ao Corpo de Vigilantes.

- Muitos parabéns, major - disse Winston, erguendo o copo.

- Obrigado, Al. Como vai?

- Iria bem melhor se pudesse vender alguma coisa à vossa rapaziada. Não recebo apoio das forças terrestres. - Winston arreganhou os dentes num sorriso.

- Governa-se bastante bem com o que não é terrestre. Li que está metido no contrato da Grumman.

- Migalhas. Tenho um dispositivo de orientação por laser que pode ser adaptado à artilharia pesada. Mas não consigo lá chegar.

Andrew divertiu-se com a ideia de mandar Winston-Weinstein falar com Martin Greene. Quando Greene o despachasse, Al Winston havia de desejar nunca ter ouvido falar no Pentágono.

- Verei o que posso fazer. Não estou nas aquisições...

- Eles a si dão-lhe ouvidos, Andy.

- Nunca pára de trabalhar, Al.

- A casa é grande, as contas também e a miudagem é ruim - Winston voltou a arreganhar os dentes num sorriso, e a seguir parou de sorrir o tempo suficiente para fazer chegar o recado ao seu destino. - Dê lá uma palavrinha a meu respeito. Eu farei com que lhe valha a pena.

- Com quê? - perguntou Andrew, deixando vaguear a vista pela arrecadação dos barcos, o Chris-Craft e os barcos à vela na água. - Dinheiro?

O sorriso largo de Winston voltou, agora nervoso, atrapalhado.

- Não se ofenda - disse brandamente o engenheiro.

Andrew fitou o judeu, voltando a pensar no capitão Martin Greene e na diferença entre os dois homens.

- Não me ofendo - disse, afastando-se.

Senhor! A seguir a.osfreaks, detestava os corruptores! Não, isso não era verdade. A seguir aos corruptores, detestava os que se deixavam corromper. Estavam em toda a parte. Sentados em salas de conselho, a jogarem golfe nos campos da Geórgia e de Palm Springs, a tratarem-se à grande e à francesa nos clubes campestres de Evanston e Grosse Pointe. Eram capazes de vender a sua posição!

Coronéis, generais, capitães de mar-e-guerra, almirantes. Toda a amaldiçoada instituição militar estava enxameada de um novo bando de ladrões. Homens que piscavam o olho e sorriam e apunham a sua assinatura em pareceres de comissões, em despachos favoráveis sobre aquisições, em contratos, em sobrefacturações. Porque havia entendimentos estabelecidos. O general de brigada de hoje era o «consultor» ou o «representante de Washington» de amanhã.

Senhor! Era fácil odiar! Os inadaptados, os corruptores, os corruptos...

Fora por essa razão que se constituíra o Corpo de Vigilantes. Um grupo muito reduzido e seleccionado de oficiais que estavam fartos até aos cabelos da apatia, da corrupção e da venalidade que reinavam em todos os ramos das forças armadas. O Corpo de Vigilantes era a resposta, o cáustico que havia de curar a doença. Porque o Corpo de Vigilantes andava a compilar registos de Saigão a Washington. Os homens do Corpo de Vigilantes estavam a juntar tudo: nomes, datas, ligações, lucros ilegais.

As chamadas vias hierárquicas que fossem para o diabo: até ao topo da cadeia de comando. Ao inspector-geral. Ao secretário do Exército. Quem é que se responsabilizava pelo comando? E pela IG? Quem é que, no seu juízo perfeito, se responsabilizaria pelos civis?

Não confiavam em ninguém. Sendo assim, seriam eles próprios a fazê-lo. Todos os oficiais generais - todos os generais de brigada e almirantes - todo aquele que tolerasse qualquer forma de desvio seria expurgado e confrontado com os seus crimes.

O Corpo de Vigilantes. Eis do que se tratava. Um punhado dos melhores oficiais jovens em campo. E um belo dia entrariam pelo Pentágono adentro e tomariam conta dele. Ninguém se atreveria a interpor-se no seu caminho. As acusações do Corpo de Vigilantes haviam de quedar-se suspensas como granadas sobre a cabeça das altas patentes. As granadas deflagrariam se eles não se pusessem a andar, deixando os lugares a homens do Corpo de Vigilantes. O Pentágono pertencia-lhes. Dar-lhe-iam novamente significado. Força. A sua força.

Adrian Fontine encostou-se ao bar e dispôs-se a escutar os jovens estudantes a discutir, consciente de que o irmão tinha os olhos cravados neles. Ergueu o olhar para Andrew: os frios olhos do militar mantinham o seu habitual desdém velado e a seguir desviaram-se, à aproximação de Al Winston, que ergueu o copo na direcção do major.

Andrew estava a começar a mostrar o desdém demasiado abertamente, pensou Adrian. O irmão perdera alguma da sua bem conhecida frieza; hoje em dia as coisas ofendiam o militar com demasiada rapidez.

Meu Deus, como tinham mudado de opiniões relativamente um ao outro! Antigamente haviam sido muitíssimo chegados. Os gémeos... irmãos, gémeos, amigos. Os gémeos eram os melhores! E a certa altura - ainda na adolescência, na escola preparatória -, tudo principiara a mudar. Andrew começara a pensar que era melhor do que os melhores e Adrian principiara a ficar menos que convencido de que era capaz. Andrew nunca punha as suas capacidades em questão; Adrian não estava bem certo de possuir muitas.

Hoje tinha essa certeza. Os terríveis anos de indecisão eram coisa do passado; experimentara a incerteza e encontrara o seu próprio caminho. Graças em larga medida ao seu positivíssimo irmão, o militar.

E hoje, no aniversário de ambos, teria de confrontar-se com o irmão e fazer-lhe perguntas bem perturbantes. Perguntas que iriam direitas ao âmago da força de Andrew, por mais vigilante que ele estivesse.

Vigilante? Vinha mesmo a propósito, mas noutra acepção.

«Corpo de Vigilantes» era o nome que eles haviam de desvendar. O irmão estava na lista. Oito elitistas iludidos que ocultavam as provas para os seus próprios fins. Um reduzido grupo de oficiais que se tinham convencido de que deviam dirigir o Pentágono através daquilo que redundava em chantagem. A

 

' O trocadilho original é estabelecido com base na pronúncia equivalente das palavras inglesas Corps (Corpo) e core (âmago). Dada a manifesta impossibilidade de reproduzir ojogo de palavras em português, tentou-se não o deturpar demasiado, ou pelo menos não o eliminar completamente, através desta adaptação. (N. do T.)

 

situação poderia ser cómica, apenas com a diferença de que as provas existiam e o Corpo de Vigilantes tinha-as. O Pentágono não estava imune à manipulação pelo medo. O Corpo de Vigilantes era perigoso: havia que extirpá-lo.

Contentar-se-iam com isso. Entregariam uma intimação colectiva aos advogados do Exército e deixá-los-iam tratar calmamente dela. Desde que os advogados do Exército lhe dessem mesmo seguimento, e não se pusessem a encobrir. Talvez não fosse altura para julgamentos desmoralizantes e longas penas de prisão. A culpa era muitíssimo generalizada e as motivações extremamente complexas. Havia, porém, uma condição irredutível. «Dispam a farda aos elitistas; façam a limpeza à vossa casa militar».

A ironia daquilo, Jesus! Em São Francisco, fora Andrew quem ditara cruamente as regras em nome da lei militar. Agora, sete anos volvidos, era ele, Adrian, quem ditava as regras. Menos cruamente, esperava ele, mas a lei não era menos específica. A acusação era obstrução à justiça.

Havia tanta coisa que mudara! Nove meses atrás, ele era ajudante do promotor de Justiça em Boston, satisfeito com o que fazia, granjeando uma reputação que podia conduzir praticamente onde quer que fosse. Granjeando-a ele próprio. Sem que lha entregassem de bandeja por ele ser Adrian Fontine, filho de Victor Fontine, Limitada, irmão do célebre major Andrew Fontine, de West Point, guerreiro sem mácula.

Fora então que um homem lhe telefonara no princípio de Outubro, convidando-o para uns copos no Bar Copely ao fim da tarde. Chamava-se James Nevins e era negro; era também advogado e trabalhava no Departamento de Justiça em Washington.

Nevins era o porta-voz de um pequeno contingente de advogados governamentais molestados e desafectos que se inflamavam sob a táctica do Departamento de Justiça, mais politizado de que havia memória. A frase «fala da Casa Branca» significava pura e simplesmente que estava a processar-se outra manipulação. Os advogados andavam preocupados, genuinamente preocupados. Tais manipulações estavam a conduzir o país a qualquer coisa de demasiado próximo do espectro de um estado policial.

Os advogados precisavam de auxílio. Do exterior. De alguém a quem pudessem transmitir as suas informações. De alguém que fosse capaz de organizar e avaliar, de constituir e sustentar um centro de comando onde se pudessem encontrar em privado e discutir os seus progressos. De alguém, em suma, que fosse imune a pressões. Por razões mais ou menos óbvias, havia um tal Adrian Fontine que preenchia os requisitos. Aceitaria ele?

Adrian não quisera deixar Boston. Tinha o seu trabalho; tinha a sua rapariga. Uma rapariga ligeiramente louca, esperta, que ele adorava. Barbara Pierson, professora agregada dos Laboratórios de Antropologia da Universidade de Harvard. A do riso fácil e profundo, do cabelo castanho-claro e dos olhos castanhos-escuros. Viviam juntos havia ano e meio; não era fácil partir. Mas Barbara tinha-lhe feito as malas e pusera-o a caminho porque sabia que ele tinha de ir.

Tal como tivera de ir sete ou oito anos antes. Nessa altura fora igualmente compelido a deixar Boston. Vira-se assolado por uma depressão. Era o filho único de um pai poderoso; irmão gémeo de um homem que o Exército exibia em despachos como uma das jovens luminárias mais brilhantes das forças armadas.

Que restava? Para ele? Quem era ele?

Assim, fugira do aparato de uma vida inteira, para ver o que poderia encontrar por si mesmo. Isso era seu! Era coisa própria sua; não podia explicá-la a ninguém. E fora parar a São Francisco, onde havia uma luta, um combate que era capaz de compreender. Onde podia ajudar. Até que o guerreiro sem mácula aparecera e dera cabo do cenário.

Adrian sorriu, recordando-se da manhã seguinte à terrível noite em São Francisco. Apanhara uma bebedeira de caixão à cova e acordara em casa de um conselheiro jurídico em Cape Mendocino, mal-disposto e a vomitar.

- Se você é quem diz ser, pode fazer muito mais do que qualquer de nós - disse o advogado de Cape Mendocino nessa manhã. - Com os diabos, o meu velho era porteiro na May Company.

Nos sete anos entretanto decorridos, Adrian tentara. Mas sabia que apenas principiara.

- É uma ambiguidade constitucional! Não é verdade, Adrian?

- O quê? Desculpe, não ouvi o que disse.

Os estudantes do bar estavam a discutir entre si; agora todos os olhares estavam fixos nele.

- A liberdade de imprensa em contraposição com os juízos preconcebidos anteriores ao julgamento - disse uma jovem muito viva, embrulhando-se nas palavras.

- Creio bem que se trata de uma zona cinzenta - retorquiu Adrian. - Cada caso é julgado de per si.

Os jovens queriam mais do que aquilo que ele lhes dera, de forma que recomeçaram a gritar uns com os outros.

Uma zona cinzenta. O Corpo de Vigilantes de Saigão ainda há uma semana era uma zona cinzenta. Tinham chegado a Washington boatos de que um pequeno quadro de jovens oficiais superiores andava regularmente a molestar praças nas docas e armazéns, insistindo em cópias de manifestos de carga e relações de destinos. Pouco depois, num dos inúmeros casos de antitrust indiferentemente conduzidos na Justiça, registou-se a alegação por parte de um queixoso de que tinham sido roubados documentos dos escritórios da empresa em Saigão, desse modo constituindo provas ilegalmente obtidas. O caso seria arquivado.

Os advogados da Justiça perguntavam a si próprios se haveria alguma relação entre o estranho grupo de oficiais que esquadrinhavam os manifestos de carga e empresas com contratos do Pentágono. Teriam os militares ido tão longe? A conjectura fora suficiente para enviar Jim Nevins a Saigão.

O advogado negro encontrou aquilo que procurava num armazém da área de carga de Tan Son Nhut. Um funcionário apanhado em flagrante a transcrever ilegalmente informações relacionadas com segurança sobre fornecimentos de armamento. Ameaçado, o funcionário fora-se abaixo, e o Corpo de Vigilantes tinha sido totalmente exposto como aquilo que era. Havia oito funcionários; o homem apanhou os nomes de sete. O oitavo estava em Washington, era tudo quanto sabiam.

Andrew Fontine encabeçava a lista dos identificados.

O Corpo de Vigilantes. Boa gente, pensou Adrian. Precisamente aquilo de que o país precisava: tropas de assalto lançadas à salvação da pátria.

Sete anos antes em São Francisco o irmão não lhe tinha feito qualquer aviso antes de a acção ser desencadeada e as sereias começarem a soar em Haight-Ashbury. Adrian seria mais compreensivo. Ia dar cinco dias a Andrew. Não haveria sereias nem túmullos... nem sentenças de oito anos de choldra. Mas o célebre major Andrew Fontine abandonaria o Exército.

E, embora o trabalho em Washington não estivesse nem perto de achar-se concluído, Adrian regressaria a Boston por uns tempos. Voltaria para Barbara.

Estava cansado. E repugnado com o que o esperava daí a uma hora, ou coisa assim. A dor era autêntica. Fosse Andrew aquilo que fosse, era seu irmão.

Os últimos convidados tinham saído. Os músicos estavam a arrumar os instrumentos e os fornecedores limpavam o relvado. O céu começava a escurecer, tanto devido às nuvens ameaçadoras sobre as águas como por causa da aproximação do anoitecer.

Adrian atravessou o relvado até aos degraus de laje e desceu à arrecadação dos barcos. Andrew estava à sua espera; dissera ao militar para o esperar ali.

- Feliz aniversário, advogado - disse Andrew quando Adrian cruzou a porta dos barcos. O militar encostou-se à parede, de braços cruzados, a fumar um cigarro.

- Igualmente - respondeu Adrian, detendo-se na borda da rampa. - Passas cá a noite?

- E tu? - perguntou Andrew.

- Estava a pensar que era capaz disso. O velho está com bastante mau aspecto.

- Nesse caso não fico eu - disse delicadamente o militar.

Adrian fez uma pausa; sabia que o irmão esperava que ele falasse. Não sabia ao certo como principiar, de forma que, em alternativa, olhou em redor da arrecadação dos barcos.

- Divertimo-nos aqui à grande.

- Estavas em maré de recordações? Foi por isso que me pediste para vir até aqui?

- Não... Quem me dera que fosse assim tão simples! O militar lançou o cigarro à água com um piparote.

- Ouvi dizer que deixaste Boston. Que estás em Washington.

- Estou. Por uns tempos. Estou sempre a pensar que somos capazes de dar de caras um com o outro.

- Duvido - contrapôs o major, sorrindo. - Não frequentamos os mesmos círculos. Estás a trabalhar numa firma do distrito de Colúmbia?

- Não. Acho que se pode dizer que sou um consultor.

- Esse é o melhor emprego de Washington.. - A voz de Andrew continha laivos de sereno desdém. - Quem estás tu a aconselhar?

- Umas pessoas que andam muito preocupadas...

- Ah, uma associação de consumidores; olha que bonito! - Era uma afirmação insultuosa. - Que bom!

Adrian olhou fixamente o irmão; o militar devolveu-lhe a mirada.

- Não me descartes, Andy. Não estás em posição de o fazer. Estás em dificuldades. Não estou aqui para te ajudar, não posso fazer isso. Estou aqui para te advertir.

- De que diabo estás tu a falar? - perguntou brandamente o major.

- Um dos nossos homens recolheu o depoimento de um oficial em Saigão. Temos uma declaração completa acerca das actividades de um grupo de oito homens que se intitula Corpo de Vigilantes.

Andrew endireitou-se de chofre contra a parede, de rosto aflito, os dedos retesados, imóvel. Dir-se-ia paralisado; falou numa voz que pouco mais era que um sussurro, destacando bem as palavras.

- Quem vem a ser esse «nós»?

- Não tardarás a saber a origem. Está na intimação.

- Intimação?

- Sim. O departamento de Justiça, uma divisão de especialistas. Não te vou nomear os advogados em particular, mas dir-te-ei que o teu nome encabeçava a lista do Corpo de Vigilantes. Sabemos que são oito; sete foram identificados e o oitavo está no Pentágono. Nas aquisições. Havemos de encontrá-lo.

Andrew conservou-se na mesma posição, encostado à parede; tudo nele se mantinha imóvel, excepto os músculos dos maxilares, que se moviam lenta e continuamente. Uma vez mais, a sua voz soou baixo, em tom comedido:

- Que fizeram vocês? Que fizeram vocês, seus filhos da mãe?

- Detivemo-vos - respondeu Adrian com simplicidade.

- Que sabem vocês? Que foi que vos disseram?

- A verdade. Não temos razões para duvidar dela.

- Para uma intimação são precisas provas.

- São precisas causas prováveis. E essas, temo-las.

- Um depoimento! Nada!

- Hão-de seguir-se outros. Que diferença faz? Vocês estão arrumados. A voz de Andrew acalmou-se. Falou em tom formal:

- Há oficiais que se queixam. Em toda a parte, todos os dias há oficiais que se queixam...

- Desta maneira, não. Não há fronteira equívoca entre queixas e chantagem. É muito definida, muito distinta. Vocês cruzaram-na.

- Com quem é que nós fizemos chantagem? - perguntou Andrew. - Com ninguém!

- Foram mantidos registos, sonegaram-se provas; a intenção foi clara. Está no depoimento.

- Não há quaisquer registos!

- Ora vamos, eles hão-de estar algures - disse fatigadamente Adrian. - Mas, repito, quem é que quer saber disso? Vocês estão arrumados.

O militar mexeu-se, respirou fundo e postou-se erecto contra a parede.

- Escuta-me - disse baixinho, numa voz tensa. - Não sabes o que estás a fazer. Dizes que és consultor de homens que andam preocupados. Ambos sabemos o que isso quer dizer; somos os Fontine. Quem é que precisa de recursos quando nos tem a nós?

- Não é assim que eu o vejo - atalhou Adrian.

- É a verdade! - gritou o militar. E logo baixou a voz: - Não tens de dizer com todas as letras aquilo que andas a fazer; isso já os jornais de Boston fizeram. Vocês desmascaram os tipos importantes, os direitos adquiridos, é como vocês lhes chamam. São bons. Bem, que diabo pensas tu que eu ando a fazer? Também andamos a desmascará-los. Detenham o Corpo de Vigilantes e liquidam os melhores jovens oficiais em campo, homens que querem extirpar o.

lixo! Não faças isso, Adree! Junta-te a nós! A sério.

- Juntar-me... - Adrian repetiu incredulamente a palavra. A seguir acrescentou baixinho: - Não estás bom da cabeça. O que é que te leva a pensar que isso seja realmente possível?

Andrew afastou-se um passo da parede; tinha os olhos cravados no irmão.

- É que queremos a mesma coisa.

- Isso é que não queremos.

- Pensa, pelo amor de Deus! «Direitos adquiridos». Tu usas imenso isso, «direitos adquiridos». Li o teu resumo final no caso da Tesco; passaste o tempo a repeti-lo.

- Aplicava-se. Uma companhia que é dona de muitas a estabelecer uma política única quando deveria haver concorrência. Aonde queres tu chegar?

- Tu empregas o termo pejorativamente porque é assim que o encaras. Muito bem, vou acreditar nisso. Mas sustento que há outra maneira de o ver. Pode haver bons direitos adquiridos. Como nós. Os nossos direitos não somos nós próprios: nós não precisamos de nada. Os nossos direitos são o país e os nossos recursos são consideráveis. Estamos em posição de fazer alguma coisa. E estou a fazê-lo. Pelo amor de Deus, não me detenhas!

Adrian afastou-se do irmão e caminhou sem objectivo pelas tábuas molhadas da arrecadação dos barcos, em direcção à enorme abertura que conduzia à água. As ondas embatiam contra a estacaria.

- És muito fluente, Andy. Foste sempre muito fluente, muito seguro e verdadeiramente confiante. Mas não vai resultar. - Virou-se de novo e enfrentou o militar diagonalmente, do outro lado da rampa. - Dizes tu que não precisamos de nada. Eu acho que precisamos; precisamos... queremos... ambos qualquer coisa. E aquilo que tu queres atemoriza-me porque faço uma ideia de qual seja o teu conceito de melhor. Francamente, causa-me um medo tremendo. A ideia de os vossos «melhores oficiais superiores» a controlarem o equipamento deste país é o suficiente para me pôr a correr direito à biblioteca a fim de reler a Constituição.

- Isso é uma palermice arrogante! Tu não os conheces!

- Conheço a maneira como eles operam, a maneira como tu operas. Se isso te faz sentir melhor, em São Francisco fazias algum sentido. Eu não gostei, mas reconhecia-o. - Adrian voltou para trás, pela rampa adiante. - Agora não estás a fazer sentido, e é por isso que estou a advertir-te. Salva o que puderes do pescoço; devo-te pelo menos isso. Sai o mais honrosamente que te seja possível.

- Não me podes obrigar - disse Andrew incisivamente. A minha folha de serviços é das melhores. Quem diabo és tu? Um miserável depoimento de um oficial descontente em zona de campanha. Balelas!

- Vou dizer-to com todas as letras! - Adrian deteve-se junto à porta da arrecadação dos barcos, erguendo a voz: - Daqui a cinco dias (na sexta-feira próxima, para ser preciso) será apresentada uma intimação colectiva ao ajudante-geral dos Tribunais de Justiça Militar. Ele vai ter o fím-de-semana para negociar as suas disposições. As disposições podem ser negociadas, mas há uma condição irrevogável. Vocês vão-se embora! Todos.

O militar adiantou-se e a seguir parou, com o pé na borda da rampa, como se estivesse prestes a saltar por cima dela, precipitando-se sobre o inimigo. Dominou-se; sentia-se como assolado e percorrido por vagas de fúria.

- Eu podia... matar-te - sussurrou. - És tudo quanto desprezo.

- Suponho que sim - disse Adrian, fechando os olhos por breves instantes e esfregando-os, de cansaço. - O melhor é seguires para o aeroporto - continuou, agora olhando para o irmão. - Tens uma porção de coisas a fazer. Sugiro que comeces por essa chamada prova que tens estado a guardar para ti. Consta-nos que andas a reuni-la há quase três anos, com os diabos! Fá-la chegar às autoridades competentes.

Em enfurecido silêncio, o militar avançou com rápidas passadas, contornando a rampa, passando por Adrian e encaminhando-se para os degraus da arrecadação dos barcos. Principiou a subir, galgando as escadas de laje a duas e duas.

Adrian deslocou-se rapidamente até à porta, fazendo parar o irmão à beira do relvado.

- Andy!

O militar quedou-se imóvel. Mas não se voltou nem falou. Assim, o advogado prosseguiu:

- Admiro a tua força, sempre a admirei. Da mesma maneira que admiro a do pai. Tu és parte dele, mas não és todo ele. Falta-te qualquer coisa, de forma que vamos a ver se nos entendemos. És tudo quanto eu considero perigoso. Acho que isso quer dizer que és tudo quanto eu desprezo.

- Nós entendemo-nos um ao outro - disse Andrew, repetindo monocordiamente as palavras. Principiou a subir o relvado em direcção à casa.

Os músicos e o restante pessoal foram-se embora. Andrew foi conduzido ao aeroporto de La Guardia. Havia um avião às nove horas para Washington.

Adrian permaneceu na praia durante perto de meia hora após a partida do irmão. Finalmente subiu vagarosamente até casa a fim de falar com os pais. Dissera-lhes que tencionava passar lá a noite, mas agora achava que devia ir-se embora. Tinha de regressar a Washington.

- Devias ter ido com o teu irmão - disse Jane, na porta da frente.

- Pois devia - disse Adrian com brandura. - Não pensei nisso. Despediu-se.

Quando ele saiu, Jane foi para o terraço, levando consigo a carta trazida pelo padre. Estendeu-a ao marido, incapaz de esconder o temor.

- Um homem trouxe isto. Era um padre. Disse que vinha de Roma. Victor ergueu o olhar para a mulher. Não havia qualquer comentário nos

seus olhos, mas, pela sua ausência, era como se houvesse.

- Porque esperaste?

- Porque era o aniversário dos teus filhos.

- Eles são dois estranhos um para o outro - observou Fontine, pegando no sobrescrito. - São ambos meus filhos, mas estão muito afastados um do outro.

- Não há-de durar. É a guerra.

- Espero que tenhas razão - disse Victor, abrindo o sobrescrito e retirando a carta. Enchia várias folhas, numa caligrafia miúda mas precisa. - Conhecemos um homem chamado Aldobrini?

- Quem?

- Guido Aldobrini. É a assinatura. - Fontine ergueu a última página.

- Acho que não - respondeu Jane, sentando-se na cadeira mais próxima, com os olhos no céu ameaçador. - Consegues ver com esta luz? Está a escurecer.

- É suficiente. - Victor pôs as páginas por ordem e principiou a ler.

Signor Fontini-Cristi:

O senhor não me conhece, embora nos tenhamos encontrado há muitos anos. Esse encontro custou-me a melhor parte da vida. Passei mais de um quarto de século no Transval em piedosa penitência por um acto indigno. Eu propriamente não lhe toquei, mas não levantei a voz Para clamar por misericórdia, o que foi um acto indecoroso e ímpio.

Sim, signore, eu era um dos sacerdotes que estavam com o cardeal Donatti naquela

madrugada em Campo di Fiori. Por aquilo que julgávamos ser a preservação da Madre Igreja de Cristo, o cardeal convenceu-nos de que não havia leis de Deus ou de misericórdia que se interpusessem entre as nossas acções e a preservação da Igreja de Deus. Toda a nossa formação escolástica e juramento de obediência - não só aos nossos superiores, mas à autoridade suprema da consciência -foram desvirtuados por força da influência de Donatti. Passei vinte e cinco anos a tentar compreender, mas isso é outra história que não vem ao caso. Seria preciso conhecer o cardeal para entender.

Abandonei o hábito. As doenças das florestas africanas cobraram o seu tributo, e, graças sejam dadas a Deus, não temo a morte. Porque me dei tão inteiramente quanto soube. Estou purificado e aguardo o julgamento de Deus.

Antes de enfrentar o nosso misericordioso Senhor, porém, há uma informação que devo transmitir-lhe, pois ocultá-la agora não seria pecado menor do que aqueles pelos quais cumpri a santa penitência.

A obra de Donatti prossegue. Um homem, um dos três sacerdotes despadrados que foram condenados à prisão pelo tribunal civil devido ao ataque contra si perpetrado, foi posto em liberdade. Como porventura saberá, um pôs termo à vida e o outro morreu de morte natural durante o encarceramento. Este terceiro homem sobreviveu e, por motivos que ultrapassam o meu entendimento, dedicou-se novamente à procura dos documentos de Salónica. Digo que ultrapassam o meu entendimento porque o cardeal Donatti foi desacreditado nos mais elevados círculos do Vaticano. Os documentos gregos não podem afectar a Santa Madre Igreja. A revelação divina não pode ser transgredida pela mão dos mortais.

Esse sacerdote despadrado dá pelo nome de Enrici Gaetamo e tomou o uso do colarinho que lhe foi denegado por decreto apostólico. Ao que sei, os anos que passou na instituição penal em nada contribuíram para iluminar-lhe a alma ou mostrar-lhe os caminhos de um Cristo misericordioso. Pelo contrário, consta-me que é uma encarnação de Donatti. Um homem a temer.

Presentemente investiga minuciosamente todos os pormenores que consegue descobrir relativamente ao comboio de Salónica de há trinta e três anos. As suas viagens levaram-no dos estaleiros de Edessa, passando pelos Balcãs e pelas ligações ferroviárias para lá de Monfalcone, até às regiões alpinas do norte. Procura todos quantos possa encontrar que tenham conhecido o filho de Fontini-Cristi. É um homem possesso, que subscreve o código de Donatti. Não existe lei divina ou humana capaz de interferir com a sua «jornada para Cristo», como ele a define. E tão-pouco revela a quem quer que seja o objectivo da sua jornada. Mas eu sei-o, e agora o senhor sabe-o também. E pouco falta para que eu me despeça desta vida.

Gaetamo reside numa pequena choupana de caçadores nos montes de Varese. Estou certo de que não lhe escapará a proximidade de Campo di Fiori.

É tudo quanto posso dizer-lhe; é tudo quanto sei. Que ele há-de tentar contactar consigo, tenho a certeza. Que o senhor esteja precavido e permaneça seguro nas mãos de Deus, é a minha prece.

Com arrependimento e pesar pessoal pelo meu passado, sou, Guido Aldobrini

Ouviu-se um trovão. Fontine fez votos para que disso não adviesse qualquer simbolismo. Agora havia nuvens por cima deles; o sol desaparecera e principiara a chover. Olhou para Jane. Estava a fitá-lo; de algum modo, tinha-lhe comunicado a sua profunda inquietação.

- Vai para dentro- disse ele com suavidade. - Eu já lá vou ter, daqui a um minuto ou dois.

- A carta...?

- Claro. - Respondeu à muda pergunta dela ao mesmo tempo que tornava a meter as folhas no sobrescrito e lho estendia. - Lê-a.

- Vais ficar encharcado. A chuva vai-se tornar mais intensa.

- É refrescante; bem sabes que gosto da chuva. Ergueu o rosto sorridente para ela: - Depois talvez me ajudes a mudar o colete enquanto conversamos.

Ela manteve-se de pé, numa posição sobranceira a ele, durante um momento, e ele sentiu-lhe os olhos cravados em si. Porém, como sempre, deixava-o sozinho quando ele queria.

Sentia-se gelado pelos pensamentos, que não pela chuva. A carta de Aldo-brini não constituía a primeira vez que Salónica ressurgia. Não contara nada a Jane, pois não havia nada de concreto, apenas uma série de acontecimentos obscuramente perturbantes e aparentemente desprovidos de significado.

Três meses atrás fora a Harkness para mais uma operação correctiva.Vários dias depois da intervenção, recebera um visitante cuja aparição o sobressaltara: um monsenhor da Arquidiocese de Nova Iorque. O nome era Land, dissera ele. Regressara aos Estados Unidos depois de muitos anos em Roma e quisera conhecer Victor por causa de informações que se lhe depararam nos arquivos do Vaticano.

O eclesiástico fora solícito; o que surpreendera Fontine fora o facto de o clérigo saber muita coisa sobre a sua condição física, muito mais do que um visitante acidental poderia saber.

Tinha sido uma meia hora singular. O sacerdote era um estudioso de História, ao que dizia. Encontrara documentos de arquivo que levantavam questões profundamente perturbadoras entre a casa dos Fontini-Cristi e o Vaticano. Questões históricas que haviam conduzido ao rompimento entre os padroni do norte e a Santa Sé. Quando Victor ficasse novamente bom, talvez pudesse discutir o passado. O passado histórico. Terminara as despedidas com uma alusão directa ao ataque a Campo di Fiori. O sofrimento e a angústia infligidos por um prelado tresloucado não podiam ser imputados à alma da Igreja, dissera.

Cerca de cinco semanas mais tarde, houvera um segundo incidente. Victor estivera no seu escritório de Washington a fim de depor perante uma comissão do Congresso que investigava as concessões fiscais de que gozavam os armadores americanos que navegavam sob bandeira paraguaia, quando o seu inter-comunicador dera sinal.

- Mister Fontine. Está aqui Mister Theodore Dakakos. Diz que quer apresentar os seus respeitos.

Dakakos era um dos jovens gigantes entre os armadores gregos, um importante rival de Onassis e Niarchos, e bem mais estimado. Fontine disse à secretária que o mandasse entrar.

Dakakos era um homem forte, com uma expressão franca e aberta no rosto que mais poderia quadrar a um jogador de futebol americano do que a um armador milionário. Andava pelos quarenta anos; o seu inglês era preciso e a linguagem a de um estudante.

Tinha vindo a Washington de avião a fim de assistir às audiências, talvez para aprender qualquer coisa, dissera, sorrindo. Victor rira-se; a reputação de integridade de que o grego gozava só era igualada pela legenda do seu penetrante sentido do negócio. Fontine assim lhe disse.

- Tive imensa sorte. Em muito tenra idade gozei dos benefícios de ser educado por uma irmandade religiosa compreensiva mas distante.

- Teve, realmente, sorte.

- A minha família não era rica, mas servia a sua igreja, ao que me dizem. A maneira como o fazia não entendo.

O jovem magnata grego estava a insinuar qualquer coisa para lá das palavras, mas Victor não conseguia determinar o que fosse.

- Os caminhos da gratidão, tal como os de Deus, são, por conseguinte, insondáveis - disse Victor, sorrindo. - A sua reputação é excelente. Você faz jus aos que o auxiliaram.

- O meu primeiro nome é Theodore, Mister Fontine. O meu nome completo é Theodore Annaxas Dakakos. Durante o tempo de escola era conhecido por Annaxas, «o Moço». Significa isto alguma coisa para si?

- Em que aspecto?

- O nome Annaxas.

- Lidei literalmente com centenas de compatriotas seus ao longo dos anos. Acho que nunca se me deparou o nome Annaxas.

O grego mantivera-se calado durante alguns instantes. A seguir falara serenamente.

- Acredito-o.

Dakakos saíra pouco depois.

O terceiro acontecimento fora o mais estranho de todos: trouxera tão vividamente uma recordação de violência ao espírito de Fontine que o ar lhe faltara. Acontecera apenas dez dias antes, em Los Angeles. Estava no Hotel Beverly Hills para uma reunião entre duas empresas grandemente divergentes que tentavam conciliar os respectivos interesses. Ele fora convocado para salvar o que pudesse; a tarefa era impossível. Razão pela qual estava apanhar sol ao princípio da tarde, em vez de achar-se sentado numa sala do hotel a ouvir advogados tentando justificar as suas avenças. Estava a beber um Campari numa mesa junto à piscina, admirado com o número de gente bonita que aparentemente não tinha de trabalhar para ganhar a vida.

- Guten Tag, mein Herr1.

Quem falara fora uma mulher de quarenta e bastantes ou cinquenta e poucos anos, de idade bem escondida pelo aspecto próspero. Era de estatura mediana, bastante bem proporcionada, de cabelo loiro matizado. Vestia umas calças brancas justas e blusa azul. Trazia uns grandes óculos escuros de aros dourados. O seu alemão era natural, não estudado. Respondeu no seu, académico, menos natural, ao mesmo tempo que se punha desajeitadamente de pé.

- Boa tarde. Conhecemo-nos? Desculpe, mas parece que não me lembro.

- Sente-se, faça favor. É doloroso para si, bem sei.

- Sabe? Nesse caso conhecemo-nos mesmo.

 A mulher sentou-se defronte dele. Prosseguiu em inglês:

 - Pois conhecemos. Mas nessa altura não padecia de tais dificuldades. Na época era militar.

 - Durante a guerra?

 - Houve um voo de Munique para Míilheim. E uma prostituta dos campos escoltada nesse voo por três porcos da Wehrmacht. Mais porcos do que ela, tento eu convencer-me.

 

Em alemão no original: «Bom dia, senhor». (N. do T.)

 

- Meu Deus! - Fontine susteve a respiração. - Você era uma criança. Que foi feito de si?

Ela contou-lhe rapidamente. Fora levada pelos combatentes da Resistência francesa para um campo de trânsito a sudoeste de Montbéliard, onde se submetera a uma cura de desintoxicação durante vários meses e onde padecera o que o Diabo não quereria. Tentara numerosas vezes suicidar-se, mas a gente da Resistência tinha outras ideias. Haviam apostado no facto de, uma vez eliminada a toxicodependência, a sua experiência emergeria e a tornaria uma eficaz agente clandestina. Já era dura: até aí viam eles.

- Claro que tinham razão - dissera a mulher, havia dez dias, à mesa do Hotel Beverly Hills. - Mantiveram-me sob vigilância dia e noite, homens e mulheres. Os homens divertiam-se mais; os franceses nunca desperdiçam nada, pois não?

- Sobreviveu à guerra - retorquiu Fontine, sem vontade de sondar.

- Com uma batelada de medalhas. Croix de guerre, Légion d'honneur, Légion de résistance 1.

- E assim tornou-se uma grande estrela de cinema e eu fui demasiado estúpido para a reconhecer. - Victor sorriu com brandura.

- Nem por isso. Embora tenha tido ocasião de estar ligada, por assim dizer, a muita gente de primeiro plano da indústria cinematográfica.

- Desculpe, mas não compreendo.

- Tornei-me (correndo o risco de parecer imodesta; ainda o sou) a madame com mais êxito do Sul de França. O Festival de Cinema de Cannes proporciona por si só um rendimento suficiente para uma subsistência absolutamente satisfatória. - Foi a vez de a mulher sorrir. Era um sorriso bom, pensou Fontine. Genuíno, vivo.

- Nesse caso fico muito feliz por si. Sou suficientemente italiano para encontrar uma certa dignidade na sua profissão.

- Eu sabia que era. E que a encontraria. Estou aqui à descoberta de talentos. Teria muito prazer em satisfazer qualquer pedido seu. Está uma porção de raparigas minhas além na piscina.

- Não, obrigado. É muito amável, mas, conforme disse, já não sou o homem que era.

- Eu acho que é magnífico - disse ela com simplicidade. - Sempre achei. - Sorriu-lhe: - Tenho de me ir embora. Reconheci-o e quis falar-lhe, mais nada. - Ergueu-se da mesa e estendeu-lhe a mão. - Não se levante.

O seu aperto de mão era firme.

- Foi um prazer e um alívio) voltar a vê-la - disse ele. Ela manteve o olhar preso no dele e falou serenamente:

- Aqui há meses estive em Zurique. Encontraram-me o rasto através de um homem chamado Lúbok. E foram dar a si. Era um checo. Maricas, ao que consta. Era o homem que ia connosco no avião, não era?

- Sim. Um homem extraordinariamente corajoso, devo acrescentar. Na minha opinião, de maricas não tinha nada 2. - Victor ficara tão surpreendido

 

1 Em francês no original. (N. do T.)

2 O trocadilho original explora duas diferentes acepções da palavra inglesa queen, que além do significado literal (rainha) é um termo empregado para designar um invertido. Assim, quando a interlocutora de Fontine se refere a Lubok como sendo um queen, aquele retruca que, na sua opinião, ele é um rei (king). (N. do T.)

 

que respondera instintivamente, sem entender. Havia anos que não pensava em Lubok.

- Sim, eu lembro-me. Salvou-nos a todos. Fizeram-no ir-se abaixo. A mulher largara-lhe a mão.

- Ir-se abaixo? Acerca de quê? Meu Deus, o homem, se é vivo, tem a minha idade ou mais. Setenta ou para cima disso. Quem é que estaria interessado em homens tão velhos? De que está você a falar?

- De um homem chamado Vittorio Fontini-Cristi, filho de Savarone.

- Está a dizer disparates. Disparates que eu entendo, mas não vejo como possa isso interessar-lhe. Nem o Lúbok.

- Não sei nada mais. Nem quero saber. Em Zurique, um homem apareceu no meu hotel e fez-me perguntas a seu respeito. Naturalmente, não pude responder-lhe. O senhor era pura e simplesmente um oficial das Informações aliadas que salvou a vida a uma prostituta. Mas ele sabia de Anton Lubok.

- Quem era esse homem?

- Um sacerdote. É tudo quanto sei. Adeus, Kapitão. - Virara-se e afastara-se, acenando e sorrindo a diversas raparigas que chapinhavam na piscina e riam demasiado ostensivamente.

Um sacerdote. Em Zurique.

«... Procura todos quantos possa encontrar que tenham conhecido o filho de Fontini-Cristi...»

Agora compreendia o enigmático encontro à beira da piscina em Los Angeles. Um sacerdote tinha sido posto em liberdade após perto de trinta anos de prisão e ressuscitara a perseguição aos documentos de Constantino.

«A obra de Donatti prossegue», dizia a carta. «Presentemente investiga minuciosamente todos os pormenores que consegue descobrir... As suas viagens levaram-no dos estaleiros de Edessa, passando pelos Balcãs... para lá de Monfalcone, até às regiões alpinas do norte.

Procura todos quantos possa encontrar que tenham conhecido o filho de Fontini-Cristi».

E a milhares de quilómetros, na cidade de Nova Iorque, outro sacerdote - esse em pleno exercício - aparece num quarto de hospital e fala de um acto bárbaro que não podia ser dissociado daqueles documentos. Perdidos há três décadas e ainda procurados.

E em Washington, um jovem gigante da indústria entra num gabinete e, sem qualquer razão aparente, diz que a família servia a Igreja de formas que ele não entendia.

«... Tive... os benefícios... por uma irmandade religiosa compreensiva mas distante...»

A Ordem de Xenope. De súbito, tudo se tornava extremamente claro.

Nada era coincidência.

Regressara. O comboio de Salónica atravessara trinta anos de sono e despertara novamente. Tinha de ser dominado antes que os ódios colidissem, antes que os fanáticos transformassem a busca numa guerra santa, como haviam feito três décadas atrás. Victor sabia que devia isso ao pai, à mãe, aos entes queridos chacinados sob as brancas luzes de Campo di Fiori; aos que haviam morrido em Oxfordshire. A um jovem frade transviado, de seu nome Petride, que pusera termo à vida numa vertente rochosa em Loch Torridon; a um homem chamado Teague; a um resistente chamado Lúbok; a um velho chamado Guido Barzini que o tinha salvo de si próprio.

Não podia permitir-se que a violência regressasse.

A chuva caía agora com mais força, em torrentes diagonais batidas pelo vento. Fontine estendeu a mão para a cadeira de ferro forjado junto de si e pôs-se penosamente de pé, com o braço fincado na cinta de aço da bengala.

Ficou de pé no terraço, a olhar para a água. O vento e a chuva aclararam-lhe o espírito. Sabia o que tinha a fazer, onde tinha de ir.

Aos montes de Varese.

A Campo di Fiori.

O grande carro aproximou-se dos portões de Campo di Fiori. Victor olhou fixamente pela janela, ciente do espasmo nas costas: o olhar registava, o espírito evocava.

A sua vida fora alterada, com sofrimento, no trecho de terreno a seguir aos portões. Tentou dominar a recordação; não conseguia eliminá-la. As imagens que observava eram arredadas pelos olhos do espírito e substituídas por fatos negros e colarinhos brancos.

O carro atravessou os portões; Victor reteve a respiração. Tinha vindo de Paris para Milão por via aérea o mais discretamente possível. Em Milão alojara-se num quarto de pessoa só no Albergo Milano, inscrevendo-se simplesmente como V. Fontine, cidade de Nova Iorque.

Os anos tinham surtido o seu efeito. Não houve sobrancelhas erguidas nem relances de curiosidade; o nome não desencadeava surpresas. Trinta anos atrás, um Fontine ou um Fontini em Milão seria razão suficiente para comentários. Hoje em dia não.

Antes de partir de Nova Iorque procurara uma única informação - qualquer outra poderia ter causado alarme. Tinha-se documentado sobre a identidade dos proprietários de Campo di Fiori. A compra fora feita havia vinte e sete anos; desde então não houvera transferência de propriedade. No entanto, o nome não tinha impacte em Milão. Ninguém ouvira falar dele.

«Baricours, Père et Fils». Uma empresa franco-suíça nosarredores de Grenoble, eis o que diziam os papéis de transmissão. Contudo, não havia nenhum Baricours, Père et Fils em Grenoble. Não se conseguiam obter pormenores sobre o advogado que negociara a venda, o qual morrera em 1951.

O automóvel deixou para trás o talude, penetrando no largo de entrada fronteiro à casa principal. Ao espasmo nas costas de Victor aliava-se uma aguda sensação de picada por detrás dos olhos; latejava-lhe a cabeça ao entrar de novo no recinto da execução.

Apertou o pulso e enterrou os dedos na própria carne. A dor ajudou: conseguiu olhar pela janela e ver o que ali estava agora, e não trinta e três anos atrás.

O que viu foi um mausoléu. Morto, mas cuidado. Tudo estava como era, mas não para os vivos. Até os raios alaranjados do sol-poente tinham qualquer coisa de morto: majestosamente ornamentais, mas sem vida.

- Não há encarregados da propriedade nem homens nos portões? - perguntou.

O motorista virou-se no assento.

Esta tarde, não, padrone - respondeu. - Não há guardas. Nem sacerdotes da Cúria.

Fontine precipitou-se para diante no assento; a bengala de metal escorregou-lhe. Ficou a olhar para o motorista.

- Fui intrujado.

- Observado. Aguardado. Intrujado, propriamente, não. Lá dentro, está um homem à sua espera.

- Um homem?

- Sim.

- O nome dele será Enrici Gaetamo?

-Já lhe disse que não há aqui sacerdotes da Cúria. Por favor, entre. Precisa de ajuda?

- Não, eu cá me arranjo. - Victor apeou-se vagarosamente do carro, cada movimento uma luta, a dor nos olhos abrandando, o espasmo nas costas a atenuar-se. Compreendeu. O seu espírito estava a sintonizar-se de novo. Tinha vindo a Campo di Fiori em busca de respostas. Para uma confrontação. Mas não esperara que fosse daquele modo.

Subiu os amplos degraus de mármore até à porta de carvalho da sua infância. Parou e esperou por aquilo que pensava ser inevitável: uma sensação de desgosto avassalador. Mas ela não surgiu, pois não existia vida ali.

Ouviu o acelerar do motor atrás de si e virou-se. O condutor tinha feito o carro entrar na curva e deixara atrás de si o talude, entrando no caminho que seguia para o portão principal. Quem quer que fosse, queria pôr-se ao fresco o mais rapidamente possível.

Enquanto observava, Victor ouviu o som metálico de um fecho. Virou-se novamente para a enorme porta de carvalho: tinha-se aberto.

O choque era impossível de esconder. E tão-pouco se deu ao trabalho de o esconder. A fúria dentro de si recrudescia: todo o seu corpo tremia de raiva.

O homem que estava à porta era um sacerdote! Envergando as negras vestes da Igreja. Era um homem idoso e franzino. Se não fosse esse o caso, Fontine poderia ter-se atirado sobre ele.

Ao invés, ficou a olhar para o ancião e falou serenamente.

- O facto de estar um sacerdote nesta casa é extremamente doloroso para mim.

- Lamento que pense assim - replicou o sacerdote num italiano de estrangeiro, com voz sumida mas firme. - Nós respeitávamos muito o padrone dos Fontini-Cristi. Depusemos nas suas mãos os nossos mais preciosos tesouros.

Os olhares de ambos mantínham-se cravados um no outro; nenhum deles vacilou, mas o furor dentro de Victor foi lentamente substituído pela incredulidade.

- O senhor é grego - disse, quase inaudivelmente.

- Pois sou, mas isso não vem ao caso. Sou monge de Constantino. Entre, faça favor. - O idoso sacerdote recuou para dar passagem a Victor. Acrescentou com brandura: - Veja à vontade. Deixe os olhos divagar. Pouca coisa mudou: foram tiradas fotografias e feitos inventários de cada compartimento. Conservámos tudo tal como era.

Um mausoléu.

- Também os alemães. - Fontine passou ao enorme vestíbulo. - É estranho que aqueles que tanto fizeram para se apossarem de Campo di Fiori não queiram modificá-lo.

- Não se lapida uma grande jóia nem se desfigura uma pintura valiosa. Não há nada de estranho nisso.

Victor não respondeu. Em lugar disso, aferrou-se à bengala e caminhou penosamente até à escadaria. Deteve-se frente ao arco que dava para a enorme sala de visitas, à esquerda. Tudo estava efectivamente como dantes. Os quadros, as meias mesas encostadas às imponentes paredes, os polidos espelhos antigos por cima das mesas, os tapetes orientais que cobriam o chão encerado, a larga escadaria, cuja balaustrada reluzia.

Olhou através do arco norte para a sala de jantar. As sombras do crepúsculo derramavam-se sobre a mesa imensa, agora nua, envernizada, vazia, onde outrora se sentava a família. Visualizou-os nesse momento: ouvia mesmo as conversas e as risadas. Discussões e anedotas, conversações intermináveis: os jantares eram acontecimentos importantes em Campo di Fiori.

As figuras imobilizaram-se e as vozes desapareceram. Era tempo de desviar a vista.

Victor voltou-se. O monge fez um gesto na direcção do arco sul.

- Vamos para o escritório do seu pai?

Avançou à frente do ancião pela sala de visitas. Involuntariamente - pois não tinha vontade de dar vida às recordações -, o seu olhar tombou no mobiliário, repentinamente tão familiar. Todas as cadeiras, todos os candeeiros, todas as tapeçarias, candelabros e mesas se encontravam rigorosamente como recordava.

Fontine respirou fundo e fechou os olhos por um momento. Era macabro. Estava a percorrer um museu que em tempos fora uma parte viva da sua existência. Em determinados aspectos, tratava-se da mais cruel forma de angústia.

Prosseguiu, cruzando a porta que dava para o escritório de Savarone; nunca fora seu, embora a sua vida por pouco não tivesse terminado naquele compartimento. Atravessou a moldura da porta pela qual uma sangrenta mão decepada havia sido arremessada na penumbra.

Se houve algo que o sobressaltasse, foi o candeeiro da secretária e a luz que incidia no pavimento, coada pelo quebra-luz verde. Estava precisamente como havia três décadas. A recordação que dele guardava era nítida, pois fora a luz daquele candeeiro que se derramara sobre o crânio esfacelado de Geoffrey Stone.

- Não quer sentar-se? - perguntou o sacerdote.

- É só um minuto.

- Posso?

- Como diz?

- Posso sentar-me à secretária do seu pai? - inquiriu o monge. - Eu observei-lhe os olhos.

- A casa é sua, e a secretária também. Eu sou uma visita.

- Mas não um estranho.

- Evidentemente. Estou a falar com um representante da Baricours, Père et Fils?

O sacerdote fez um mudo aceno afirmativo. Contornou vagarosamente a secretária, puxou a cadeira e descansou nela o corpo franzino.

- Não censure o advogado de Milão; ele não podia saber. Baricours correspondia às nossas condições, assegurámo-nos disso. Baricours é a Ordem de Xenope.

- E minha inimiga - disse Victor em voz baixa. - Em mil novecentos e quarenta e dois havia um complexo do MI 6 em Oxfordshire. Vocês tentaram matar a minha mulher. Muitos inocentes perderam a vida.

- Houve decisões tomadas para além do controlo dos superiores. Os extremistas levaram a sua avante; não conseguimos detê-los. Mas não espero que o senhor aceite isso.

- E não aceito. Como soube que eu estava em Itália?

-Já não somos aquilo que éramos, mas ainda temos recursos. Há uma pessoa em particular que mantém vigilância sobre o senhor. Não me pergunte quem é, que não lho direi. Porque voltou? Decorridos trinta anos, porque voltou a Campo di Fiori?

- Para encontrar um homem chamado Gaetamo - respondeu Fontine. - Enrici Gaetamo.

- Gaetamo vive nos montes de Varese - disse o monge.

- Ele ainda anda à procura do comboio de Salónica. Partiu de Edessa, cruzou os Balcãs e atravessou a Itália até às montanhas do norte. Porque se manteve o senhor aqui todos estes anos?

- Porque a chave está aqui - retorquiu o monge. - Foi firmado um pacto. Em Outubro de trinta e nove, vim a Campo di Fiori. Fui eu quem negociou a participação de Savarone Fontini-Cristi, fui eu quem enviou um devotado sacerdote naquele comboio com o irmão, um maquinista. E reclamei a morte de ambos em nome de Deus.

Victor olhou fixamente o monge. O jorro de luz do candeeiro iluminava a carne pálida e retesada e os olhos tristes e mortiços. Fontine recordou-se do visitante do seu escritório em Washington.

- Veio ter comigo um grego dizendo que a família dele servira a Igreja em tempos de formas que ele não entendia. O irmão desse sacerdote era o maquinista, de nome Annaxas?

A cabeça do velho clérigo levantou-se de chofre e os olhos adquiriram vida por breves instantes.

- Onde foi que ouviu esse nome?

Fontine desviou a vista, e o seu olhar tombou num quadro sob uma Madona na parede. Uma cena de caça, com aves a serem levantadas de uma moita por homens armados de espingardas. Outros pássaros voavam por cima.

- Vamos trocar informações - disse serenamente. - Porque foi que o meu pai concordou em trabalhar com Xenope?

- Já sabe a resposta. Ele só tinha uma preocupação; não dividir o mundo cristão. A derrota dos fascistas era tudo quanto lhe importava.

- Para começar, por que razão foi a arca evacuada da Grécia?

- Os alemães eram saqueadores e Constantino estava na lista. Foram essas as informações que recebi da Polónia e da Checoslováquia. Os comandantes nazis pilhavam museus, desmantelavam retiros e mosteiros. Não podíamos correr o risco de deixá-la lá. Foi o seu pai quem engendrou a remoção. De modo brilhante. Donatti foi enganado.

- Pelo emprego de um segundo comboio - aduziu Victor. - De composição e itinerário idênticos. Expedido três dias mais tarde.

- Sim. Fez-se chegar isso aos ouvidos de Donatti, por intermédio dos alemães, que não tinham noção do significado da arca de Constantino. Eles procuravam tesouros (pinturas, esculturas, objectos de arte) e não obscuros escritos que lhes diziam possuírem valor apenas para os estudiosos. Mas Donatti, o fanático, não conseguiu resistir: havia décadas que se ouviam rumores sobre as refutações do Filioque. Tinha de possuí-las. - À dolorosa evocação, o sacerdote de Xenope fez uma pausa. - Os interesses do cardeal e dos alemães coincidiam. Berlim queria liquidar a influência de Savarone Fontini-Cristi; Donatti queria mantê-lo afastado daquele comboio. A todo o custo.

- Por que razão se envolveu Donatti, no fim de contas?

- Mais uma vez, o seu pai. Ele sabia que os nazis tinham um poderoso amigo no Vaticano. Queria Donatti exposto como aquilo que era. O cardeal não podia ter tido conhecimento daquele segundo comboio a não ser que os alemães lho tivessem dito. O seu pai tencionava fazer uso deste facto. Foi o único preço que Fontini-Cristi nos pediu. Da maneira como as coisas vieram a passar-se, esse preço deu azo às execuções de Campo di Fiori.

Victor ouvia a voz do pai rompendo através das décadas... «Promulga decretos para os desinformadores e fá-los cumprir pelo medo... Uma vergonha para o Vaticano.»... Savarone conhecia o seu inimigo, mas não os extremos da sua perversidade.

A cinta que apertava as costas de Fontini-Cristi vincava-lhe a carne. Tinha estado de pé durante demasiado tempo. Agarrou na bengala e caminhou até à cadeira diante da secretária. Sentou-se.

- Sabe o que estava nesse comboio? - perguntou com brandura o sacerdote.

- Sei. Brevourt disse-mo.

- Brevourt nunca soube. Contaram-lhe parte da verdade. Não a totalidade. Que foi que ele lhe disse?

Victor ficou subitamente alarmado. Voltou a cravar os olhos no sacerdote.

- Falou-me das refutações do Filioque, de estudos que rejeitavam a divindade de Cristo. O mais precioso dos quais era um documento aramaico que levantava questões relativamente à própria existência de Jesus. A conclusão afigurava-se ser que não.

- Nunca foram as refutações. Nunca foi o documento. Era... é... uma confissão escrita na íntegra que precede todos os outros documentos. - O sacerdote desviou a vista. Levantou as mãos: os dedos ossudos roçaram a tez pálida da face. - As refutações do Filioque são artefactos para os estudiosos ponderarem. Como um deles, o documento aramaico, era ambíguo, como os manuscritos do mar Morto eram ambíguos quando estudados mil e quinhentos anos depois. Contudo, há trinta anos, no auge de uma guerra moral (se isso não é uma contradição nos termos), a divulgação desse manuscrito podia ter sido catastrófica. Era o bastante para Brevourt.

Fontine estava hipnotizado.

- O que era essa confissão? Nunca ouvi falar em tal.

O sacerdote voltou a pousar os olhos em Victor. Durante um breve silêncio que antecedeu a sua fala, o velho traiu a dor da sua decisão imediata.

- É tudo. Foi escrita num pergaminho retirado de uma prisão romana no ano sessenta e sete. Sabemos a data porque o documento fala da morte de Jesus em termos do calendário hebraico, que situa a data em trinta e quatro anos. Coincide com os estudos antropológicos. O pergaminho foi escrito por um homem que deambulava às cegas: fala de Getsamani e Cafarnaum, Gene-saré e Corinto, do Ponto, da Galácia e da Capadócia. O seu autor não pode ser outro que Simão de Betsaida, baptizado Pedro pelo homem a quem chamava Cristo. O que consta nesse pergaminho ultrapassa tudo quanto possa existir na sua imaginação. Tem de ser encontrado.

O sacerdote calou-se e fixou os olhos em Victor.

- E destruído? - perguntou baixinho Fontine.

- Destruído - retorquiu o monge. - Mas não por qualquer razão que possa pensar. Porque nada se modifica, e no entanto tudo é modificado. Os meus votos proibem-me de contar-lhe mais. Somos velhos; não temos muito tempo. Se puder ajudar, deve fazê-lo. Esse pergaminho pode alterar a História. Devia ter sido destruído há séculos, mas prevaleceu a arrogância. Podia mergulhar uma grande parte do mundo numa terrível agonia. Ninguém pode justificar o sofrimento.

- Mas o senhor diz que nada se modifica - retorquiu Victor, repetindo as palavras do monge -, e no entanto tudo é modificado. Uma coisa anula a outra; não faz sentido.

- A confissão naquele pergaminho faz sentido. Em toda a sua angústia. Não lhe posso dizer mais.

Fontine sustentou o olhar do padre.

- O meu pai sabia do pergaminho? Ou só lhe contaram o que contaram a Brevourt?

- Sabia - disse o monge de Xenope. - As refutações do Filioque eram como os vossos artigos de impugnação americanos, acusações para debate canónico. Até o mais prejudicial (como lhe chamou), o manuscrito aramaico, foi sujeito a interpretações linguísticas na Antiguidade. Fontini-Cristi ter-se-ia dado conta dessas questões; Brevourt não se apercebeu delas. Mas a confissão desse pergaminho não é passível de debate. Era a única coisa, a coisa pavorosa, que exigia o empenhamento de Fontini-Cristi. Ele compreendeu e aceitou-o.

- Uma confissão num pergaminho retirado de uma prisão romana. - Fontine falou com serenidade; a questão era clara. - E isso é que vem a ser a arca de Constantino.

- É.

Victor deixou o momento passar. Inclinou-se para a frente na cadeira, com a mão na bengala de metal.

- O senhor disse que a chave estava aqui. Mas porquê? Donatti procurou: em todas as paredes, em todos os soalhos, em cada centímetro do terreno. O senhor permanece aqui há vinte e sete anos, e continua a não haver nada. Que lhe resta?

- As palavras do seu pai, ditas neste compartimento.

- Quais foram elas?

- Que as marcas haviam de estar aqui em Campo di Fiori. Gravadas por um milénio. Foi esta a frase que empregou: «Gravadas por um milénio». E que o filho compreenderia. Fazia parte da infância dele. Mas ao filho nada foi dito. Isso viemos nós a saber.

Fontine recusou uma cama na imensa casa. Repousaria nas cavalariças, na cama onde tinha depositado Barzini, morto havia uma vida inteira.

Queria estar sozinho, e acima de tudo fora da casa, longe das relíquias mortas. Tinha de pensar, de remontar uma e outra vez ao horror até encontrar o elo de ligação que faltava. Porque agora estava ali: o padrão existia. O que continuava a faltar era a linha que completava o desenho.

Parte da infância dele. Não, aí não; ainda não. Não começar por aí; havia de vir mais tarde. Começar por aquilo que a pessoa sabia, pelo que a pessoa via, pelo que ouvia por si.

Chegou às cavalariças e percorreu os compartimentos vazios, deixando atrás de si as baias desertas. Actualmente, não havia electricidade; o velho monge tinha-lhe dado uma lanterna. O quarto de Barzini encontrava-se como o recordava. Nu, sem ornamentos: a cama estreita, a estafada cadeira de braços e o baú simples para os escassos pertences.

A divisão do equipamento de montar estava também conforme a vira pela última vez. Freios e rédeas de couro pendurados nas paredes. Sentou-se num pequeno banco de montar em madeira, soltando uma exclamação de dor ao fazê-lo. Apagou a lanterna. O luar brilhava através das janelas. Inspirou profundamente e obrigou o espírito a recuar à horrível noite.

O matraquear de metralhadora atroou-lhe os ouvidos, evocando a lembrança que abominava. Lá estavam as nuvens de fumo em espiral, os corpos arqueados dos entes queridos em sucessivos instantes de morte, vistos à luz ofuscante dos projectores.

«Champoluc é o rio! Zurique é o rio!»

As palavras foram gritadas e a seguir repetidas, duas, três vezes! Bradadas na sua direcção, lá para cima, mas destinadas a um ponto mais alto do que aquele onde se encontrava, sobranceiro a ele, ao mesmo tempo que as balas crivavam o peito e o estômago do pai.

«Champoluc é o rio!»

A cabeça levantada? O que era? A cabeça, os olhos. É sempre nos olhos! Uma fracção de segundo antes de as palavras jorrarem, os olhos do pai não estavam virados para o talude, não era para ele.

Fitavam qualquer coisa ao mesmo nível do lado direito, em diagonal. Savarone estava a fixar os automóveis, o terceiro automóvel.

Savarone tinha visto Guillamo Donatti! Reconhecera-o nas trevas do banco traseiro do carro. No instante da morte, conhecera a identidade do seu carrasco.

E os bramidos de furor tinham-lhe jorrado na direcção do filho, lá em cima, mas para além deste. Mais para cima, mais adiante e... o que fora mesmo? Que fora que o pai fizera no último instante de vida? Era esse o elo de ligação que faltava, a linha que completava o padrão!

Oh, Jesus! Uma porção qualquer do corpo. A cabeça, os ombros, as mãos. O que era mesmo?

O corpo todo! Meu Deus, era o gesto na morte do corpo todo! Cabeça, braços, mãos. O corpo de Savarone tinha-se inteiriçado num derradeiro gesto! Para a esquerda! Mas não fora para a casa, não fora para as divisões iluminadas, tão criminosamente invadidas, e sim para lá da casa. Para lá da casa!

«Champoluc é o rio...»

Para lá da casa!

O arvoredo de Campo di Fiori!

O rio! O largo curso de água de montanha na floresta! O rio privativo deles!

Fazia parte da sua infância. O rio da sua infância ficava a quatrocentos metros atrás dos jardins de Campo di Fiori!

O suor escorria pela cara de Victor; a respiração era irregular e tremiam-lhe as mãos. Aferrou-se à borda do banco de montar, na escuridão. Estava esgotado, mas seguro; tudo era súbita e totalmente claro.

O rio não ficava no Champoluc, nem tão-pouco em Zurique. Ficava a minutos dali. Uma rápida caminhada ao longo de um carreiro na floresta feito por gerações de crianças.

Gravado por um milénio.

Parte da sua infância.

Teria Savarone escolhido aquele rochedo para gravar a sua mensagem?

Era tudo subitamente tão claro, tão coerente!

Claro que tinha.

O céu nocturno tornou-se gradualmente cinzento, mas nem um raio do sol de Itália rompeu a cerração. Pelo contrário, não tardaria a chover e a soprar um frio vento de Verão oriundo das montanhas do norte.

Victor percorreu o caminho das cavalariças até aos jardins. Estava demasiado escuro para distinguir as cores. Além disso, a verdade é que não existiam já os renques de flores a ladear os caminhos como outrora: até aí conseguia ele ver.

Encontrou o carreiro com dificuldade, apenas depois de examinar a relva por aparar, fazendo incidir o feixe da lanterna no solo e procurando sinais do passado. Ao internar-se no arvoredo que havia a seguir ao jardim, voltaram-lhe à mente coisas familiares: uma oliveira nodosa com três grossos ramos; um cacho de vidoeiros brancos, presentemente escondidos por trepadeiras e hera rasteira moribundas.

O curso de água não estava a mais de cem metros de distância, em diagonal à sua direita, se a memória não lhe falhava. Havia vidoeiros e pinheiros altos; gigantescas ervas daninhas formavam uma parede de tentáculos, macios mas desagradáveis ao tacto.

Parou. Ouviu-se um roçagar de asas de pássaros e o estalar de um galho. Virou-se e espreitou para o interior das sombras negras da vegetação exuberante.

Silêncio.

A seguir, o restolhar de um pequeno animal irrompeu da quietude. Provavelmente tinha perturbado uma lebre. Estranho, o facto de pressupor tão naturalmente que se tratava de uma lebre. O meio ambiente estimulava recordações há muito esquecidas: em rapaz tinha caçado lebres com armadilhas naqueles bosques.

Agora sentia o cheiro da água. Fora sempre capaz de distinguir o cheiro a humidade ao aproximar-se do rio, de lhe distinguir o cheiro antes de o ouvir correr. A folhagem mais perto da água era densa, quase impenetrável, pois a sua infiltração alimentava uma infinidade de raízes, permitindo um crescimento luxuriante, descontrolado. Teve de afastar pernadas e desviar-se de moitas para poder aproximar-se do rio.

Tinha o pé esquerdo enredado num emaranhado de hera rasteira. Recuou para o lado direito e, com a bengala, libertou-o com dificuldade, perdendo o equilíbrio ao fazê-lo. A bengala escapou-se-lhe da mão, rebolando na escuridão. Agarrou-se a um ramo para deter a queda; a pequena pernada quebrou-se, desprendendo-se; a bengala tinha desaparecido; não conseguia vê-la.

Apoiou-se ao galho e foi avançando através do maciço de folhagem até à borda da água.

O curso de água afigurava-se mais estreito do que recordava. Depois apercebeu-se de que era a escuridão pardacenta e o bosque luxuriante que o fazia parecer assim. Três décadas de incúria tinham permitido ao arvoredo invadir a água.

O volumoso penedo estava à sua direita, para montante, a menos de cinquenta metros, mas a parede de vegetação descontroladamente crescida era tal que se diria tratar-se de setecentos metros. Principiou a caminhar penosamente em direcção a ele, agachando-se, endireitando-se, arredando, cada movimento uma luta. Por duas vezes embateu em obstáculos rijos no solo, demasiado altos, demasiado finos e estreitos para serem rochas. Virou o foco da lanterna para baixo: os obstáculos eram escoras de ferro, enferrujadas e corroídas como se fossem relíquias de um galeão afundado.

Atingiu a base do enorme rochedo; o seu volume prolongava-se sobre a água. Olhou para baixo, iluminando com a lanterna a separação entre a terra e o curso de água, e deu-se conta de que os anos o haviam tornado cauteloso. A distância até à água eram apenas uns metros, mas agora afigurava-se-lhe um precipício. Foi descendo de lado até ao rio, sondando a profundidade com o grosso pau na mão esquerda.

A água estava fria - segundo se lembrava, estava sempre fria -, chegou-lhe até às coxas e cobriu-lhe os quadris abaixo do colete, espalhando-lhe calafrios pelo corpo todo. Estremeceu e praguejou contra os anos.

Mas estava ali. Isso era tudo o que importava.

Fez incidir a lanterna na rocha. Achava-se a vários metros da orla da margem; teria de organizar a busca. Podia desperdiçar-se tempo de mais a sondar determinadas áreas duas ou três vezes por não se lembrar de tê-las examinado. Foi honesto para consigo próprio: não tinha a certeza do tempo que seria capaz de suportar o frio.

Esticou-se para cima, carregando com a ponta do pau na superfície da rocha. O musgo que a cobria descascava com facilidade. Os pormenores da superfície do penedo, tornados nítidos pelo cru feixe da lanterna, assemelhavam-se a milhares de pequenas crateras e ravinas.

Acelerou-se-lhe o pulso diante dos primeiros indícios de intrusão humana. Eram muito ténues, dificilmente visíveis, mas lá estavam. E eram as suas marcas, desde há mais de meio século. Linhas descendentes sulcavam profundamente a rocha como se fizessem parte de um jogo infantil há muito esquecido.

O K era a letra mais nítida; tinha-se assegurado de que a sua marca ficasse clara, devidamente registada. A seguir via-se um b, ao qual se sucedia aquilo que podiam ser números. E logo um t, mais uma vez seguido pelo que provavelmente eram números. Não fazia ideia do que significavam.

Descascou o musgo acima e abaixo dos riscos. Havia outras marcas ténues; algumas pareciam ter significado. Sobretudo iniciais; aqui e além, grosseiros desenhos de árvores e setas e quartos de círculo desenhados por crianças.

Forçou a vista sob o fulgor da lanterna; os seus dedos descascaram, esfregaram e acariciaram uma área cada vez mais extensa. Fez duas linhas verticais com o pau para demarcar onde tinha procurado e afastou-se mais pela fria água dentro; não tardou, porém, que o frio se tornasse demasiado intenso e trepou para a margem, procurando o calor. Tremiam-lhe as mãos, os braços e as pernas, de frio e raiva. Ajoelhou na húmida vegetação e observou o vapor da respiração a espalhar-se no ar.

Regressou à água, ao ponto onde a tinha deixado. O musgo era mais espesso; por debaixo dele encontrou diversas marcas mais, semelhantes ao primeiro agrupamento, mais próximo da margem. VV, bb, tt e números muito ténues.

Foi então que lhe veio novamente à lembrança através dos anos: de uma maneira ténue, tão ténue como as letras e os números. E soube que tinha razão em encontrar-se naquele curso de água, junto daquele penedo.

Burrone! Traccia! Tinha-se esquecido, mas agora recordava-se. «Ravina», «carreiro». Sempre gravara - registara - as excursões que fazia pelas montanhas!

Parte da sua infância.

Meu Deus, que parte! No Verão, Savarone reunia sempre os filhos e levava-os para norte, em escaladas que duravam vários dias. Não se tratava de escaladas perigosas, antes passeios e acampamentos. Para todos eles, tratava-se de um ponto alto do Verão. E ele dava-lhes mapas a fim de que soubessem onde tinham estado; quanto a Vittorio, o mais velho, registava sóbria e indelevelmente essas jornadas no penedo que ficava lá em baixo no curso de água, o rio» deles.

Tinham baptizado o rochedo de «o Argonauta». E as inscrições do «Argonauta» serviam de registo permanente das suas odisseias na montanha. Nas montanhas da sua meninice.

Nas montanhas.

O comboio proveniente de Salónica penetrara nas montanhas! A arca de Constantino encontrava-se algures nas montanhas!

Equilibrou-se com o pau e prosseguiu. Achava-se perto da parte da frente do rochedo; a água subiu-lhe até ao peito, gelando o colete de aço por baixo da roupa. Quanto mais se adiantava, mais persuadido ficava: acertara ao vir ali! Os riscos ténues - as cicatrizes sumidas de meias linhas e ziguezagues - eram cada vez mais numerosos. A carcaça do «Argonauta» estava coberta de inscrições relacionadas com as excursões há muito esquecidas.

A água fria provocou-lhe um espasmo ao longo da base da espinha; o pau caiu-lhe das mãos. Começou às palmadas na água, para agarrar o pau, deslocando os pés nesse esforço. Caiu - literalmente, deslizou - contra o rochedo e endireitou-se enterrando o pau no lodo do fundo para readquirir o equilíbrio.

Ficou a olhar para a visão que estava a centímetros dos seus olhos na água. Havia uma curta linha horizontal direita, profundamente definida na rocha. Estava cinzelada.

Retemperou-se o melhor que pôde, mudou o pau para a mão direita, segurando-o entre o polegar e a lanterna, e carregou com os dedos na superfície do penedo.

Seguiu a linha. Encurvava bruscamente para baixo, na direcção da água; descia pela água dentro e a seguir parava abruptamente.

7. Era um 7.

Não se parecia com nenhum dos outros sumidos hieróglifos no rochedo; não se tratava de riscos feitos por mãos desajeitadas, juvenis; era, sim, um trabalho de precisão. O algarismo não tinha mais de cinco centímetros de altura - a impressão propriamente dita tinha uns bons dois centímetros de profundidade.

Tinha-a encontrado! Gravada por um milénio! Uma mensagem esculpida na rocha, cinzelada em pedra!

Aproximou mais a lanterna e moveu cautelosamente os dedos em volta da

área. Meu Deus, seria mesmo isto? Seria este o momento? A despeito do frio, subiu-lhe o sangue à cabeça e o coração bateu com mais força. Sentia vontade de gritar; mas tinha de ter a certeza!

A meio da linha vertical do sete, cerca de dois centímetros à direita, estava um traço. A seguir outra única linha vertical... um 1, ao qual se sucedia ainda outro traço vertical mais curto, desviando-se para a direita... e cruzado por uma linha direita de cima a baixo... Um 4. Era um 4.

Sete - traço - um - quatro. Mais abaixo da superfície da água do que acima dela.

Para lá do 4 havia outra curta linha horizontal. Um traço. Seguia-se-lhe um... Z, mas não era um Z. Os ângulos não eram abruptos, mas sim arredondados.

2.

Sete - traço - um - quatro - traço - dois...

Havia uma impressão final, mas não era um algarismo. Era uma série de quatro curtas linhas rectilíneas todas juntas. Uma caixa... um quadrado. Um quadrado geométrico, perfeito.

Claro, era mesmo um algarismo! Um zero!

0.

Sete - traço - um - quatro - traço -- dois - zero.

Que significava aquilo? Teria a idade de Savarone levado o pai a deixar uma mensagem que não significava coisa alguma para ninguém a não ser para ele? Teria tudo sido tão brilhantemente lógico menos a mensagem em si? Não significava nada.

7 - 14 - 20... Uma data? Seria uma data?

«Meu Deus!», pensou Victor. «7 - 14. 14 de Julho! O dia dos seus anos!»

O dia da tomada da Bastilha. Ao longo de toda a sua vida tinha sido uma pequena fonte de divertimento. Um Fontini-Cristi nascido no célebre dia da Revolução Francesa.

14 de Julho... dois-zero... 20. 1920.

Era essa a chave de Savarone. Tinha sucedido qualquer coisa no dia 14 de Julho de 1920. Que seria? Que incidente ocorrera que o pai considerava tão significativo para o filho primogénito? Qualquer coisa que tinha uma significação para além de outros tempos, de outros aniversários.

Uma ferroada de dor - a segunda do que sabia que seriam muitas - atravessou-lhe o corpo, com origem, uma vez mais, na base da espinha. A cinta parecia gelo: o frio da água tinha-lhe gelado a pele e penetrara nos tendões e no tecido muscular.

Com a sensibilidade de um cirurgião, carregou com os dedos em torno da área dos números cinzelados. Havia apenas a data; tudo o resto estava liso e intacto. Pegou no pau com a mão esquerda e enfiou-o sob a água pelo lodo abaixo. Dolorosamente, caminhou de lado novamente para a margem, até o nível da água baixar, dando-lhe pelas coxas. Nessa altura parou para respirar. As lancetadas de dor aceleraram; tinha causado mais dano a si próprio do que se apercebera. Estava a processar-se uma total convulsão; retesou os músculos do maxilar e da garganta. Tinha de sair da água e deitar-se. Precipitando-se para as trepadeiras que se erguiam sobre a margem, tombou de joelhos na água. A lanterna escapou-se-lhe da mão e rolou por cima de uns fetos emaranhados, rasgando com o seu feixe o arvoredo denso. Agarrou-se a um aglomerado de raízes expostas e alçou-se para terra, carregando com o pau debaixo dele pelo lodo adentro a fim de dar impulso ao corpo.

Todo o movimento ficou suspenso num paralisante momento de choque.

Por cima dele, na escuridão da margem, achava-se postada uma figura de homem. Um homem enorme vestido de preto, imóvel, a olhar lá de cima para ele. Em volta do pescoço - em flagrante contraponto com as vestes negras de breu - via-se uma cercadura de cor branca. Um colarinho de sacerdote. O rosto - o que dele conseguia distinguir, sob a luz difusa da lanterna - estava impassível. Mas os olhos que se cravavam nele tinham dentro de si fogo e ódio.

O homem falou. A sua fala era circunspecta, lenta, filha da aversão.

- O inimigo de Cristo regressa.

- O senhor é Gaetamo - disse Fontine.

- Apareceu um homem de automóvel a vigiar a minha cabana nos montes. Conheci esse automóvel e esse homem. Está ao serviço dos hereges de Xenope. É o monge que vive em Campo di Fiori. Foi lá para me manter afastado.

- Mas não conseguiu.

- Não. - O sacerdote despadrado não adiantou mais. - Com que então era aqui que estava. Todos aqueles anos, e a resposta estava aqui. - A sua voz cava parecia flutuar, principiando onde quer que fosse e terminando abruptamente a meio de uma afirmação. - Que foi que ele deixou? Um nome? De quê? Um banco? Um edifício nas fábricas de Milão? Pensámos nesses: demolimo-los.

- Fosse o que fosse, não tem significado para si. Nem para mim.

- Mentiroso - redarguiu Gaetamo em voz serena, no seu glacial tom monocórdico. Olhou para a direita e depois para a esquerda. - Metemos estacas em cada centímetro desta mata. Pusemos fitas amarelas entre cada par de estacas e assinalámos cada área à medida que a examinávamos. Pensámos em derrubar as árvores ou deitar-lhes fogo... mas temíamos o que pudéssemos destruir. Represámos o ribeiro e sondámos o lodo. Os alemães deram-nos instrumentos... mas sempre nada. Os rochedos grandes estavam cheios de inscrições sem significado, incluindo a data do nascimento de um arrogante rapaz de dezassete anos que quis deixar a sua presunção gravada em pedra. E sempre nada.

Victor ficou tenso. «Gaetamo tinha-o dito». Numa breve frase, o sacerdote despadrado descerrara a porta! «Um arrogante rapaz de dezassete anos» a deixar a sua inscrição na pedra. Mas não fora ele quem a deixara! Donatti encontrara a chave mas não a reconhecera! O raciocínio era tão simples, tão isento de complicações! Um rapaz de dezassete anos a inscrever um dia memorável num rochedo familiar. Era tão lógico, tão essencialmente desprovido de singularidade! E tão claro!

Como a recordação era agora clara. A maior parte dela.

7-14-20. O dia em que completara dezassete anos. Veio-lhe de novo à mente porque nunca houvera nenhum como ele em toda a sua vida. Meu Deus, pensou Victor, Savarone era incrível! «Parte da sua infância». Fora no dia em que completara dezassete anos que o pai lhe dera o presente que ele desejava a ponto de sonhar com ele e implorá-lo: a possibilidade de trepar as montanhas sem os irmãos mais novos. Empreender realmente uma escalada... acima dos habituais e - para ele - enfadonhos lugares de acampamento nos contrafortes da montanha.

No dia em que fizera dezassete anos, Savarone tinha-o presenteado com uma verdadeira mochila de alpinismo, do tipo utilizado pelos montanhistas

experimentados. Não que o pai estivesse prestes a levá-lo a escalar o Jungfrau; na realidade, nunca escalaram nada de extraordinário. Mas aquela primeira excursão - sozinho com o pai - fora um marco no início da sua idade viril. Aquela mochila e aquela excursão eram símbolos de algo muito importante para ele: a prova de que estava a crescer aos olhos do pai.

Tinha-se esquecido; nem sequer agora estava seguro disso, pois houvera outras excursões, outros anos. Teria ela - essa primeira excursão - sido ao Champoluc? Devia ter sido, mas aonde? Isso estava mesmo para lá da sua lembrança.

- ... Terminar os seus dias nesta água.

Gaetamo falara, mas Fontine não o ouvira: apenas a ameaça lhe chegara. De todos os homens - todos os sacerdotes - aquele louco seria o último a quem se podia revelar o que quer que fosse.

- Só encontrei rabiscos sem significado. Inscrições infantis, como o senhor disse.

- Encontrou o que por direito pertence a Cristo! - As palavras de Gaetamo rasgaram o bosque. Baixou-se sobre um joelho, ficando com o peito imenso e a cabeça a centímetros apenas de Victor, de olhos muito abertos e ardentes. - Encontrou a espada do arcanjo do Inferno! Acabaram-se as mentiras. Diga-me o que encontrou.

- Nada.

- Mentiroso! Porque está aqui? Um velho na água e na lama! Que havia neste ribeiro? Neste rochedo?

Victor fitou os olhos grotescos.

- Porque estou aqui? - repetiu, esticando o pescoço, arqueando as costas torturadas, o rosto congestionado. - Estou velho. Com recordações. Convenci-me de que a resposta podia estar aqui. Quando éramos crianças, deixávamos aqui mensagens uns para os outros. O senhor viu por si mesmo. Inscrições infantis, rabiscos, pedra esfregada contra pedra. Pensei que talvez... Mas não encontrei nada. Se havia alguma coisa, já cá não está.

- Examinou o rochedo, e a seguir parou! Estava prestes a ir-se embora. - Olhe para mim! Quanto tempo pensa que posso manter-me nesta água?

- Eu observei-o. Era um homem que encontrou aquilo que procurava.

- Viu aquilo que queria ver. Não o que lá estava.

Escorregou um pé a Victor; o pau que o sustentava na água deslizou no lodo, enterrando-se mais. O sacerdote estendeu uma mão e agarrou Fontine pelos cabelos. Puxou maldosamente, arrastando Victor para a margem, repuxando-lhe a cabeça e o pescoço para um lado. A súbita contorção era insuportável; uma dor dilacerante alastrou por todo o corpo de Fontine. Os arregalados olhos de louco sobre ele à luz difusa não eram os de um homem idoso com as vestes de sacerdote, mas, ao invés, os olhos de um jovem fanático trinta anos atrás.

Gaetamo viu. E compreendeu.

- Pensámos que morrera nessa altura. Não havia maneira de poder sobreviver. O facto de tê-lo conseguido convenceu mesmo o nosso santo homem de que você vinha do Inferno!... Você lembra-se. Porque agora vou continuar aquilo que começou há trinta anos! E a cada estalo dos seus ossos terá a oportunidade (tal como então teve) de dizer-me o que encontrou. Mas não minta. A dor só parará quando me contar a verdade.

Gaetamo curvou-se para a frente. Começou a torcer a cabeça de Victor,

comprimindo o rosto de encontro à margem pedregosa, dilacerando a carne, obrigando o ar a ser expelido da garganta de Fontine.

Victor tentou recuar; o sacerdote esmagou-lhe a testa contra uma raiz rugosa. O sangue jorrou-lhe do golpe, escorrendo para os olhos de Victor, cegando-o e enfurecendo-o. Levantou a mão direita, tentando agarrar o pulso de Gaetamo; o sacerdote despadrado apertou a mão e torceu-a para dentro, fazendo estalar os dedos. Puxou Fontine mais para cima no solo, torcendo, torcendo sempre a cabeça e o pescoço de Victor, fazendo com que o colete se lhe enterrasse pelas costas dentro.

- Não acabará enquanto não me disser a verdade!

- Porco! Porco de Donatti! - Victor lançou-se para o lado. Gaetamo ripostou abatendo o punho sobre a caixa torácica de Fontine. O impacte foi paralisador, a dor excruciante.

O pau! O pau! Fontine rolou para a esquerda, com a mão esquerda por baixo, ainda fincada no braço partido, agarrada como uma pessoa segura um objecto num momento de aflição. Gaetamo tinha sentido o colete; puxou por ele, sacudindo-o para trás e para diante até o aço dilacerar a carne que o cercava.

Victor foi avançando lentamente o pau, empurrando-o de encontro à margem. Tocou o peito do opositor; sentiu-o. A extremidade era aguçada. Se ao menos conseguisse encontrar a mais pequena abertura que fosse entre ele e o monstro que o oprimia, espaço suficiente para desferir com ele um golpe para cima, na direcção da cara, do pescoço...

Ela surgiu. Gaetamo levantou um joelho. Era o suficiente.

Fontine enterrou o pau para cima, impelindo-o com todo o resto de energia que conseguiu reunir, enterrando-o no corpo aturdido que estava sobre ele. Ouviu um grito hediondo, um berro que ressoou por todo o bosque.

A seguir, uma explosão invadiu a escuridão pardacenta. Fora disparada uma arma potente. Os guinchos de pássaros e animais recrudesceram no arvoredo - e o corpo de Gaetamo abateu-se para diante por cima dele e rebolou para o lado.

O pau estava alojado na garganta. Abaixo do pescoço via-se uma enorme massa escancarada de carne dilacerada embebida de sangue na parte superior do peito; tinha sido esfacelado pela pistola que fora disparada da escuridão.

- Que Deus me perdoe - disse o sacerdote de Xenope do meio das trevas. Victor foi submergido por um vazio negro; sentiu-se deslizar para a água ao

mesmo tempo que umas mãos trémulas o agarravam. Os seus últimos pensamentos - estranhamente serenos - foram para os filhos. Os gémeos. As mãos poderiam bem ser as mãos dos filhos tentando salvá-lo. Mas as mãos dos filhos não tremiam.

 

O major Andrew Fontine estava rigidamente sentado à secretária, escutando os sons matinais. Faltavam cinco minutos para as oito; os gabinetes começavam a encher-se. As vozes cresciam e morriam nos corredores, à medida que o Pentágono principiava o dia.

Dispunha de cinco dias para pensar. Não, para pensar, não. Para agir. Não havia assim tanto para pensar; era preciso apenas afastar-se e cortar cerce.

O Corpo de Vigilantes era a unidade clandestina mais legítima do Exército. Fazia exactamente aquilo que os dissidentes pensavam que eles faziam, mas sem dilacerar o sistema, sem revelar fraqueza. Manter a força e a ilusão de força. Era de extrema importância. Tinham tentado da outra maneira. O Corpo de Vigilantes não nascera em Georgetown, entre aguardente e charutos e fotografias do Pentágono nas paredes. Uma ova! Nascera numa cabana no delta do Mekong. Depois de ele ter regressado de Saigão e contar aos seus três oficiais subordinados o que acontecera no quartel-general do comando.

Tinha ido a Saigão com genuínas queixas da zona de campanha, provas de corrupção nas redes de abastecimento. Centenas de milhares de dólares de equipamento estavam a ir por água abaixo todas as semanas ao longo do Mekong inteiro, abandonado por tropas do Exército da República do Vietname ao primeiro indício de hostilidades, para serem devolvidas ao mercado negro. Havia folhas de pagamento que eram depositadas por comandantes do ERV, drogas que eram compradas e distribuídas por redes vietnamitas a partir de Hué e DaNang. Eram sonegados milhões das operações no Sueste asiático e ninguém parecia saber o que fazer a esse respeito.

Assim, levara as suas provas até Saigão, indo directamente ao topo da hierarquia. E que fizera a hierarquia? Tinha-lhe agradecido e dito que iria investigar. O que havia a investigar? Ele tinha trazido provas suficientes para se formular uma dúzia de acusações.

Um general de brigada convidara-o a tomar uma bebida:

- Escute, Fontine. É melhor alguma corrupção do que fazer ir todo o paiol de munições pelos ares. Esta gente é ladra por natureza, e não somos nós que vamos modificá-la.

- Podíamos dar uns quantos exemplos, sir. Abertamente.

- Pelo amor de Deus! Já temos problemas que cheguem nos Estados Unidos! Esse tipo de publicidade caía que nem sopa no mel nas mãos dos pacifistas. Ora bem, você tem uma bela folha de serviços; não a estrague.

Fora quando tudo começara, quando nascera o Corpo de Vigilantes. O próprio nome o dizia: uma unidade de homens que observavam e registavam. E, com o andar dos meses, os quatro tinham passado a cinco e depois a sete. Recentemente, haviam engrossado as fileiras com o oitavo homem: o capitão Martin Greene, do Pentágono. Tinham nascido da repugnância. O Exército era dirigido por prostitutas com falta de pulso, mulheres receosas de ofender. Que espécie de estatuto era esse para os chefes militares da mais poderosa nação do mundo?

A certa altura, acontecera também uma outra coisa. À medida que as provas se iam acumulando e os inimigos internos eram desmascarados, os homens do Corpo de Vigilantes viram-se confrontados com a evidência: eram eles os herdeiros! Eram eles os incorruptíveis; eram eles a elite.

Uma vez que as vias normais não funcionavam, fá-lo-iam à sua maneira. Acumulariam as provas, arranjariam dossiers acerca de cada inadaptado, de cada desencaminhado, de cada corruptor, fosse ele grande ou pequeno. A força residia naqueles que pudessem enfrentar os inadaptados e obrigá-los a rastejar. Obrigá-los a fazer exactamente o que homens fortes e incorruptíveis queriam que eles fizessem.

O Corpo de Vigilantes estava quase a chegar aí. Quase três anos de lixo arquivado. Jesus! O Sueste asiático era o lugar para encontrá-lo. Não tardariam a tomar conta: iriam direitos ao Pentágono e tomariam conta! Eram homens como eles que tinham a capacidade, o treino e o empenhamento para superintenderem no vastíssimo complexo que era o poderio armado do país. Não se tratava de uma ilusão; eram mesmo a elite.

Além disso, era tão lógico para ele! O pai havia de compreender isso, se alguma vez pudesse conversar com ele a esse respeito. Desde as suas mais remotas recordações, sentia a pressão da influência, do orgulho, da importância. E do poder... sim, do poder. Não era uma palavra feia! Pertencia aos que sabiam como lidar com ele; era seu direito inato.

E Adrian queria desmantelá-lo! Pois bem, o saqueador não ia desmantelá-lo. Não ia desmembrar o Corpo de Vigilantes.

«... podem negociar-se disposições». Fora o que Adrian dissera na arrecadação dos barcos.

Como ele tinha razão! Podiam negociar-se disposições; mas não quaisquer disposições idealizadas por Adrian e pelos seus cidadãos preocupados. Antes disso, muita coisa aconteceria.

Cinco dias. Adrian não estava adestrado para ponderar as opções. Alternativas práticas, físicas, não palavras, abstracções e «posições». O Exército teria um trabalhão para contactar com ele daí a cinco dias se estivesse a quinze mil quilómetros dali em zona de campanha, envolvido em operações cobertas por uma protecção de segurança. Dispunha de peso suficiente para fazer isso: ir até lá e estabelecer essa protecção.

Havia um em Saigão que os traíra. Que traíra o resto do Corpo de Vigilantes. Descobrir quem ele era - e havia de ser um de seis - era a primeira razão para ir até lá. Descobri-lo... e depois tomar uma decisão.

Depois de tê-lo descoberto - e de tomar a decisão -, o resto era fácil. Daria instruções preliminares aos restantes homens do Corpo de Vigilantes. As versões seriam integradas, sincronizadas.

Até o Exército carecia de provas. E não havia processo de ele poder obter essas provas.

Ali em Washington, o oitavo membro do Corpo de Vigilantes podia tomar conta de si próprio. O capitão Martin Greene era de aço e couro. E esperto.

Era capaz de levar a melhor contra qualquer artilharia que lhe fosse apontada. Os seus pais eram provenientes do Irgun, os mais duros guerreiros da história judaica. Se a hierarquia lhe causasse quaisquer engulhos, punha-se a andar para Israel num segundo, e quem lucraria seria o Exército judaico.

Andrew consultou o relógio. Passava um pouco das oito: eram horas de contactar com Greene. Não pudera correr o risco na noite anterior. Adrian e os seus civis estavam a tentar descobrir o oficial desconhecido que trabalhava no Pentágono. Não se poderia confiar nos telefones exteriores. Ele e Marty teriam de falar; não podiam esperar pela próxima reunião. Antes do final do dia estaria num avião a caminho de Saigão.

Tinham acordado em nunca serem vistos juntos. Caso se encontrassem acidentalmente numa conferência ou numa recepção, fingiam que se encontravam pela primeira vez. Era vital que não se tornasse evidente qualquer ligação entre eles. Quando realmente se encontravam, era em locais isolados e sempre de acordo com marcação prévia. Durante as reuniões coligiam toda e qualquer informação prejudicial que tivessem seleccionado dos arquivos do Pentágono durante a semana, metiam folhas num sobrescrito e mandavam-no para uma caixa postal de Boston. Os inimigos do Corpo de Vigilantes estavam a ser catalogados em toda a parte.

Em ocasiões de emergência, ou quando um necessitava do conselho imediato dos outros, passavam palavra entre si fazendo uma ligação «por engano» através da central telefónica do Pentágono. Era o sinal para inventar qualquer desculpa, sair do gabinete e seguir para um bar na baixa de Washington. Andrew tinha feito a chamada «por engano» havia duas horas.

O bar era sombrio, reles e de mau gosto, com compartimentos nos fundos que proporcionavam boa visão da entrada. Andrew instalou-se num compartimento junto da parede negra, brincando com o cálice de Bourbon, no qual não estava interessado. Não parava de olhar para a entrada, a quinze metros de distância. Sempre que a porta se abria, o sol matinal irrompia por breves instantes, qual brusco intruso na escuridão lá de dentro. Greene já estava atrasado, o que não deixava de ser incomum nele.

A porta voltou a abrir-se e a silhueta de um homem robusto e musculoso, de ombros largos e membrudos, foi colhida pelo clarão. Era Marty; vinha à paisana, envergando uma camisa branca e aquilo que pareciam ser calças escocesas. Dirigiu um aceno de cabeça ao empregado do bar e encaminhou-se para o fundo do estabelecimento. Tudo em Greene era possante, pensou Andrew. Das pernas fortes às gaforinas de cabelo muito ruivo, moldado por um militar corte bem rente.

- Desculpa ter demorado tanto - disse Greene, deslizando para o compartimento defronte de Andrew. - Passei pelo apartamento para mudar de roupa. Depois saí pelas traseiras.

- Alguma razão especial?

- Talvez sim e talvez não. Ontem à noite tirei o carro da garagem e pareceu-me detectar vigilância: um Electra verde-escuro. Inverti a marcha: ainda lá estava. Fui para casa.

- Que horas eram?

- Talvez oito e meia ou um quarto para as nove.

- Confere. Foi por isso que te telefonei. Estão a contar que eu entre em contacto com alguém da tua secção; que convoque uma reunião de imediato.

Provavelmente mandaram seguir meia dúzia de outros.

- Quem?

- Um deles é o meu irmão.

- O teu irmão!

- É advogado. Está a trabalhar para...

- Eu sei exactamente quem ele é - atalhou Greene - e para quem está a trabalhar. São quase tão subtis como chacais.

- Nunca me falaste nele. Como é que isso se explica?

- Não havia razão para isso. Trata-se de um punhado de exaltados lá da Justiça. Foram organizados por um negro chamado Nevins. Mantemo-los sob apertada vigilância; metem mais o nariz em contratos de equipamento do que nos agradaria. Mas não têm nada a ver connosco.

- Agora têm. Foi por isso que te telefonei. Um dos seis no Vietname foi-se abaixo. Têm um depoimento. Uma lista. Oito oficiais, sete deles identificados.

Os frios olhos de Greene semicerraram-se. Falou lentamente, em voz baixa.

- Que diabo estás para aí a dizer?

Andrew contou-lhe. Quando terminou, Greene falou sem mexer um centímetro do corpo robusto.

- Esse filho da mãe do negro, o Nevins, foi a Saigão há duas semanas. O assunto não tinha relação.

- Agora tem - contrapôs o major.

- Quem é que tem o depoimento? Existem cópias?

- Não sei.

- Por que razão está a intimação a ser retardada?

- Mais uma vez, não sei - tornou Andrew.

- Tem de haver uma razão! Por amor de Deus, porque não perguntaste?

- Espera um pouco, Marty. Foi tudo um choque...

- Nós somos treinados para os choques - interrompeu glacialmente Greene. - Consegues descobrir?

Andrew ingeriu parte do Bourbon. Nunca tinha visto o capitão assim.

- Não posso telefonar ao meu irmão. Mesmo que o fizesse, ele não me dizia.

- Linda família. Deus dê vida e saúde aos manos. Talvez eu possa fazer melhor. Temos gente nossa na Justiça; as aquisições protegem-se a si próprias. Farei o que puder. Onde estão os teus dossiers em Saigão? São eles a meta.

- Não estão em Saigão. Estão em Phanthiet, na costa. Numa zona cercada de um armazém; sou a única pessoa que conhece o local. Um par de armários no meio de um milhar de caixotes.

- Muito esperto. - Greene acenou com a cabeça, de modo aprovador.

- Vou verificá-los mal chegue lá. Parto esta tarde. Uma súbita viagem de inspecção.

- Muito bem. - Greene voltou a acenar com a cabeça. - Encontrarás o homem?

- Encontro.

- Investiga o Barstow. É um vivaço. Condecorações a mais.

- Não o conheces.

- Conheço a maneira como ele opera - disse Greene.

Andrew sentiu-se acicatado pela similitude de palavras. O irmão tinha-as aplicado ao Corpo de Vigilantes.

- É um bom elemento no terreno...

- A bravura - cortou o capitão - não tem nadinha a ver com o caso.

Investiga primeiro o Barstow.

- Assim farei. - Andrew sentia-se picado com as afirmações de Greene. Tinha de desforrar-se de algum modo. - E quanto a Baltimore? Estou preocupado com isso.

Os sobrescritos eram levantados em Baltimore pelo sobrinho de Greene que contava vinte anos.

- Esse é perfeito. Antes se matava. Estive lá no fim-de-semana passado. Teria sabido.

- Tens a certeza?

- Nem merece a pena discutir. Quero saber mais sobre o raio do depoimento. Quando descobrires a careca ao Barstow, certifica-te de que te apossas de todas as palavras que ele escreveu. Provavelmente deram-lhe uma cópia; vê se ele tem advogado militar.

O major voltou a beber, evitando os olhos semicerrados de Greene. Andrew não gostava do tom de voz do capitão. Na verdade, estava a dar-lhe ordens: a descarrilar. Mas no fundo Greene era um homem bom para ter por perto numa crise.

- Que consegues descobrir lá na Justiça?

- Mais do que aquele filho da mãe do negro alguma vez imaginaria. Temos fundos estabelecidos para os vagabundos que interferem com contratos de armamento. Não nos interessa quem ganha uns dolarezitos extra, queremos é o graúdo. Ficavas admirado com a maneira como os mal pagos advogados do Governo passam férias nas Caraíbas. - Greene sorriu e recostou-se no compartimento: - Acho que podemos tratar disto. A intimação não significará a ponta de um chavelho sem os nossos dossiers. Os oficiais de carreira passam a vida a chorar-se; não é grande novidade.

- Foi o que eu disse ao meu irmão - disse Andrew.

- Esse, não consigo percebê-lo - disse Greene. A seguir o capitão debruçou-se para diante. - Faças o que fizeres no Vietname, pensa bem. Se usas de preconceitos, recolhe os factos e fá-lo distanciando-te.

- Acho que tenho tido mais experiência nessas áreas do que tu. - Andrew acendeu um cigarro; tinha a mão firme a despeito da irritação crescente, o que lhe agradou.

- Provavelmente tens - ripostou despreocupadamente Greene. - Ora bem, tenho uma coisa para ti. Pensava que podia esperar pela nossa próxima reunião, mas não há razão para a efectuarmos.

- Que é?

- Na sexta-feira chegou um pedido de localização do Congresso. De um político chamado Sandor; está na Comissão das Forças Armadas. Dizia-te respeito, de forma que lhe deitei a mão.

- Que pretendiam eles?

- Pouca coisa. Quando acabavas a comissão. Até que ponto era definitiva a tua estada em Washington. Introduzi uma resposta de rotina. Que eras material de elevado escalão, candidato ao War College. Mais que definitivo.

- Pergunto a mim mesmo o que...

- Ainda não acabei - cortou Greene. - Telefonei ao ajudante desse tal Sandor e perguntei a que se devia o interesse do congressista por ti. Ele verificou-lhe a papelada e disse que o pedido vinha de um amigo do Sandor, um homem chamado Dakakos. Theodore Dakakos.

- Quem é ele?

Um armador grego. Da classe da tua família. Tem milhões.

- Dakakos? Nunca ouvi falar dele.

- Esses gregos são pílulas. Talvez queira dar-te um presente. Tal como um pequeno iate ou o teu próprio batalhão.

Fontíne encolheu os ombros:

- Dakakos? Um iate posso eu comprar. Aceito é o batalhão.

- Isso também tu podes comprar - disse Greene, deslizando pelo assento fora a fim de sair do compartimento. - Que tenhas uma viagem tranquila. Telefona-me quando voltares.

- Que vais fazer?

- Descobrir tudo quanto há para saber acerca do filho da mãe de um negro chamado Nevins.

Greene passou rapidamente pelos compartimentos na direcção da saída. Andrew esperaria cinco minutos antes de sair. Tinha de ir até ao apartamento e voltar. O avião partia à uma e meia.

Dakakos? Theodore Dakakos?

Quem seria ele?

Adrian saiu lentamente da cama, pé ante pé, o mais silenciosamente possível, de forma a não acordá-la. Barbara estava a dormir, mas o seu sono era irregular.

Ainda não eram bem nove e meia da noite. Tinha ido buscá-la ao aeroporto pouco depois das cinco. Ela cancelara os seminários de quinta e sexta-feira, demasiado excitada para dar palestras a indiferentes alunos de cursos de Verão.

Tinham-lhe concedido um subsídio para assistir o antropólogo Sorkis Khertepian na Universidade de Chicago. Khertepian estava a analisar artefactos extraídos do local da Barragem de Assuão. Barbara ficara toda entusiasmada; tivera de regressar de avião e contar tudo a Adrian. Ficava intensamente animada quando as coisas iam direitas ao seu mundo; era uma estudiosa que nunca perderia a capacidade de se maravilhar.

Era estranho. Tanto ele como Barbara haviam enveredado pelas suas profissões por um sentimento de afronta. A dele remontava às ruas dos drogados de São Francisco, a dela a uma mãe brilhante que vira negado o lugar que de direito lhe cabía num colégio universitário do Middle West porque era mãe. Uma mulher não tinha lugar nos cargos cimeiros de uma universidade. Não obstante, um e outro haviam encontrado valores que pesavam bem mais que a raiva.

Isso constituía parte do vínculo que os unia.

Atravessou silenciosamente o quarto e sentou-se numa cadeira de braços. O seu olhar tombou na maleta em cima da mesa do quarto. Nunca a deixava durante a noite na sala de estar; Jim Nevins tinha-o precavido para que não fosse descuidado. Por vezes Nevins era um pouco paranóico acerca dessas questões.

Também Nevins seguira a profissão por afronta. Era a afronta que muitas vezes o amparava. Não apenas as frustrações de um homem de cor a passar por cima das barreiras erigidas por uma céptica instituição branca, mas a cólera de um advogado que via tanta ilegalidade na cidade onde eram feitas as leis.

Mas nada afrontara mais Nevins do que a descoberta do Corpo de Vigilantes.

A ideia de elitistas militares a sonegarem provas de corrupção em larga escala para atingirem os seus próprios fins era mais perigosa do que tudo quanto o advogado negro pudesse imaginar.

Quando o nome do major Andrew Fontine aparecera na lista, Nevins pedira a Adrian que se retirasse. Adrian tornara-se um dos seus amigos mais íntimos mas nada podia meter-se de permeio contra o Corpo de Vigilantes.

Irmãos eram irmãos. Mesmo irmãos brancos.

- Estás tão serio! E tão nu! - Barbara arredou do rosto o cabelo castanho-claro e rolou sobre o flanco, abraçando-se à almofada.

- Perdão. Acordei-te?

- Meu Deus, não. Estava só a passar pelas brasas. Desculpa. ressonavas que se ouvia na colina do Capitólio.

- Mentes com quantos dentes de advogado tens na boca... Que horas são?

- Vinte para as dez - respondeu ele, olhando para o relógio.

 Ela sentou-se na cama e espreguiçou-se. O lençol descaiu-lhe até à cintura, fazendo com que os amplos seios apartados, a sua vagarosa expansão e o movimento dos mamilos lhe prendessem a vista, Ela viu-o a observá-la e sorriu, puxando o lençol para cima ao mesmo tempo que se reclinava contra o espaldar da cama.

Vamos conversar - disse com firmeza. - Temos três dias para nos estoirarmos. Enquanto andas por fora durante o dia a chacinar ursos, vou-me ataviar como uma concubina. Satisfação garantida.

Devias fazer todas essas coisas que as senhoras não académicas fazem. Passares horas na Elizabeth Arden, espojares-te em banhos de leite e comeres bombons com gim. És uma rapariga fatigada.

Vamos deixar de lado a minha pessoa - disse Barbara, sorrindo. - Estive toda a noite a falar de mim... ou quase toda. Como está tudo por cá? Ou não devias contar-me? O Jim Nevins pensa que a suite está sob escuta.

Adrian riu-se, cruzando as pernas. Estendeu a mão para um maço de cigarros ao pé do isqueiro na mesa da cadeira de braços.

- O complexo de conspiração do Jim mantém-se intrépido. Recusa-se a deixar mais processos no gabinete. Guarda todos os documentos importantes na maleta, que é o raio da coisa mais avantajada que alguma vez se viu. - Adrian soltou uma risada entre dentes.

- Porque faz ele tal coisa?

Não quer mandar tirar cópias. Sabe que o pessoal de cima o tirava de metade dos casos se soubesse até que ponto ele estava a fazer progressos.

- Isso é assombroso.

- É arrepiante - disse ele.

O telefone tocou. Adrian ergueu-se rapidamente da cadeira e dirigiu-se à mesa-de-cabeceira.

Era a mãe. Não conseguia esconder a ansiedade na voz.

- Tive notícias do teu pai.

- Que queres dizer com isso de teres tido notícias dele?

Partiu para Paris na segunda-feira passada. Depois seguiu para Milão...

- Milão? Para qUê?

Ele próprio to dirá. Quer-te a ti e ao Andrew aqui no domingo.

- Espera um minuto. - Adrian raciocinou a toda a velocidade. - Não me parece que possa.

- Tens de vir.

- Não estás a perceber, e eu não posso explicar-to neste momento. Mas o Andy não há-de querer ver-me. E eu não tenho a certeza de que o queira ver. Nem sequer tenho a certeza de que seja aconselhável, dadas as circunstâncias.

- De que estás tu a falar? - A voz da mãe tornou-se repentinamente fria. - Que fizeram vocês?

Adrian fez uma pausa antes de responder.

- Estamos em lados contrários de uma... disputa.

- Seja o que for, não importa! O teu pai precisa de vocês. -Estava a perder o domínio de si. - Aconteceu-lhe qualquer coisa. Aconteceu-lhe qualquer coisa! - Mal conseguia falar!

Ouviram-se vários estalidos na linha, seguidos da voz de uma telefonista do hotel.

- Lamento interromper, Mister Fontine, mas há uma chamada de emergência para o senhor.

- Oh, meu Deus! - A mãe sussurrou através da linha, de Nova Iorque. - O Victor...

- Eu volto a telefonar-te se tiver alguma coisa a ver com ele. Prometo-te que sim - disse velozmente Adrian. - Está bem, menina, pode ligar...

Não conseguiu passar daí. A voz que se ouvia agora na linha era histérica. Tratava-se de uma mulher, chorando e gritando, quase incoerente.

- Adrian! Meu Deus, Adrian! Ele morreu! Foi assassinado! Mataram-no! Adriannnnnnn!

Os gritos invadiram a sala. E o terror daqueles gritos suscitou em Adrian um abalo como nunca sentira... A morte. A morte tinha-o tocado a ele. A mulher que estava ao telefone era Carol Nevins. A mulher de Jim.

- Vou já para aí!

- Telefona à minha mãe - disse a Barbara, enquanto se vestia o mais rapidamente que podia. - Para o número de North Shore. Diz-lhe que não é o pai.

- Quem é?

- O Nevins.

- Oh, meu Deus!

Precipitou-se para o corredor e galgou as escadas até aos ascensores. Manteve o dedo no botão: os ascensores eram lentos - demasiado lentos! Correu até às portas de saída, abriu-as de rompante e desceu de roldão a escada angulosa que conduzia ao átrio de entrada. Lançou-se direito às portas de vidro da entrada.

- Dêem-me licença! Desculpem! Deixem-me passar, por favor! Chegado ao passeio, correu para o lado direito, para o letreiro aceso de um táxi livre. Deu o endereço do apartamento de Nevins.

Que acontecera? Em nome de Deus, que acontecera?! O que era que Carol queria dizer? Assassinaram-no. Quem é que o tinha matado? Jesus! Estaria ele morto?

Jim Nevins, morto? Corrupção, sim. Ganância, com certeza. Falsidade, normal. Mas assassínio, não!

Havia um sinal de trânsito em New Hampshire, e ele pensou que enlouqueceria. Mais dois quarteirões!

O táxi arrancou de chofre mal a luz piscou. O condutor acelerou e depois, a meio do quarteirão, parou repentinamente. A rua estava com um engarrafamento. Havia luzes a girar lá em cima; nada se mexia.

Adrian saltou para a rua e começou a abrir caminho entre os carros o mais rapidamente que podia. A entrada da Florida Avenue estava bloqueada por carros da Polícia. Havia guardas a apitar e a fazer sinais com luvas cor de laranja iridescentes, a dirigirem o trânsito para oeste.

Correu direito à barreira; dois polícias a vários metros de distância de um e outro lado gritaram-lhe:

- Daqui para a frente ninguém passa, cavalheiro!

- Volte para trás, parceiro. De certeza que não há-de querer entrar ali! Mas ele queria mesmo entrar; tinha de entrar! Mergulhou pelo meio de dois

carros da Polícia e correu na direcção das luzes giratórias perto de uma amálgama de metais torcidos e vidros estilhaçados que Adrian reconheceu imediatamente. Era o carro de Jim Nevins. O que restava dele.

As portas traseiras de uma ambulância estavam abertas; uma maca na qual estava amarrado um corpo, inteiramente tapado com um cobertor de hospital, estava a ser levado dos destroços por dois maqueiros. Um terceiro homem, levando na mão uma mala de médico preta, caminhava ao lado.

Adrian acercou-se, empurrando um polícia que levantava um braço a impedir a passagem.

- Saia do caminho - disse firmemente, mas com voz trémula.

- Desculpe, cavalheiro. Não posso deixar...

- Sou advogado! E aquele homem, penso eu, é meu amigo.

O médico sentia o desespero das suas palavras e fez sinal para o guarda se afastar. Adrian baixou a mão para o cobertor; o médico estendeu repentinamente a dele e travou-lhe o pulso.

- O seu amigo é negro?

- É.

- Com documentos de identificação que dizem chamar-se Nevins?

- Sim.

- Morreu, pode acreditar na minha palavra. Não há-de querer ver.

- Não compreende. Tenho de ver.

Adrian puxou o cobertor para trás e foi percorrido por uma náusea: ficou ao mesmo tempo hipnotizado e aterrado com o que viu. O rosto de Nevins estava meio esfacelado, vendo-se mais sangue e ossos do que carne. A zona da garganta era a pior: metade do pescoço desaparecera.

- Oh, Jesus! Meu Deus!

O médico voltou a colocar o cobertor e ordenou aos maqueiros que continuassem. Era um homem novo, de cabelo loiro comprido e cara de rapaz.

- É melhor sentar-se - disse a Adrian. - Eu tentei dizer-lhe. Venha, deixe-me levá-lo a um carro.

- Não. Não, obrigado. - Adrian dominou a náusea e tentou respirar. Não havia ar suficiente! - Que sucedeu?

- Ainda não sabemos todos os pormenores. O senhor é realmente advogado?

- Sou. E ele era meu amigo. Que sucedeu?

- Parece que virou à esquerda a fim de entrar no arruamento de acesso ao apartamento e a meio caminho houve uma carroça descomunal que arremeteu contra ele a toda a velocidade.

- Carroça?

- Um atrelado de camião, daqueles que têm um gradeamento de protecção de aço. Vinha a descer à doida como se estivesse numa auto-estrada.

- Onde está ele?

- Não sabemos. Parou por uns momentos, com a buzina a tocar desvairaamente, e a seguir arrancou. Uma testemunha disse que era alugado; tinha um daqueles letreiros de camiões de aluguer na parte lateral. Pode apostar que os chuis mandaram uma comunicação geral para todos os lados.

De repente, Adrian lembrou-se, espantado por ser capaz de tal coisa. Agarrou na manga do médico.

- Pode levar-me pelo meio da polícia até ao carro dele? É importante.

- Sou médico, não polícia.

- Por favor. É capaz de tentar?

O jovem médico aspirou ar por entre os dentes e depois fez um aceno de cabeça.

- Está bem. Vou levá-lo até lá. Mas veja lá, não faça nenhuma merda.

- Quero só ver uma coisa. Você disse que uma testemunha viu o camião parar.

- Eu sei que ele parou - retorquiu enigmaticamente o médico loiro. - Vamos!

Caminharam até aos destroços. O carro de Nevins estava amassado do lado esquerdo, com metal rasgado por toda a parte e vidros estilhaçados. Fora lançada neve carbónica em torno do depósito de gasolina e flocos brancos tinham sido arrastados através das janelas destruídas.

- Eh, doutor! Que está o senhor a fazer? - A voz do polícia era fatigada e iracunda.

- Ande lá, moço, vá lá para trás. Você também - gritou o segundo polícia. O médico ergueu a mala preta:

- Assunto forense, amigos. Não discutam comigo, comuniquem com a estação!

- O quê?

- Que forense?

- Patologia, por amor de Deus! - Impeliu Adrian para diante. - Vamos embora, você do laboratório, recolha as amostras e vamos daqui para fora. Estou estafado. - Adrian olhou para o interior do carro. - Vê alguma coisa? - perguntou severamente o médico.

Adrian via. Faltava a maleta de Nevins.

Regressaram pelo meio do cordão de polícia até à ambulância.

- Encontrou mesmo alguma coisa? - perguntou o jovem médico.

- Sim - respondeu Adrian, aturdido, sem a certeza de estar a pensar com clareza. - Qualquer coisa que devia lá estar, mas não estava.

- Está bem. Óptimo. Agora vou dizer-lhe por que razão o levei até lá.

- O quê?

- Você viu o seu amigo; eu não deixava a mulher vê-lo. A cara e o pescoço foram esfacelados por vidros partidos e fragmentos de metal.

- Sim... eu sei. Eu vi. - Adrian tornou a sentir a onda de náusea a espalhar-se por todo ele.

- Mas a noite está bastante quente. Acho que a janela do lado do condutor ia aberta. Era capaz de jurar... O carro está desfeito... mas o seu amigo podia ter levado um tiro de caçadeira.

Adrian levantou os olhos. Houve qualquer coisa que lhe veio subitamente ao espírito: as palavras que o irmão dissera há sete anos em São Francisco, que se lhe haviam gravado no cérebro como um ferro em brasa.

«- ... Lá fora há uma guerra... O fogo é real!»

Entre os papéis da maleta de Nevins contava-se o depoimento recolhido de um oficial em Saigão. A acusação do Corpo de Vigilantes. E ele dera um aviso de cinco dias ao irmão. Oh, meu Deus! Que tinha ele feito?

Tomou um táxi para a esquadra de polícia do bairro. As suas credenciais de advogado permitiram-lhe uma breve conversa com um sargento.

- Se há crime no caso, havemos de descobri-lo - disse o homem, olhando para Adrian com o desagrado que os polícias reservavam aos advogados que faziam o rastreio dos acidentes.

- Era meu amigo e tenho razões para acreditar que houve. Encontraram o camião?

- Nem sombras! Sabemos que não foi visto em nenhuma das auto-estradas. A polícia do estado anda à cata dele.

- Era de aluguer.

-Também sabemos isso. As agências de aluguer estão a ser verificadas. Porque não vai para casa, cavalheiro?

Adrian curvou-se para a secretária do sargento, com as mãos na borda.

- Parece-me que não me está a levar lá muito a sério-

- Recebemos nesta esquadra participações de acidentes mortais à razão de uma dúzia por hora. Ora bem, que raio quer que eu faça? Que suspenda tudo o resto e ponha o diabo de um pelotão inteiro num caso de choque e fuga?

- Eu lhe digo, sargento. Quero um relatório de patologia sobre todos os ferimentos cranianos sofridos pelo falecido. Estamos esclarecidos?

- De que está o senhor a falar? - tornou desdenhosamente o polícia. - Ferimentos cranianos...

- Quero saber o que foi que estoirou com aquele homem.

O comboio de Salónica tinha cobrado o seu último sacrifício, pensou Victor, deitado na cama, com o sol matinal a jorrar pelas janelas viradas ao mar da casa de North Shore. Não havia razão alguma neste mundo para que qualquer outra vida se perdesse em nome dele. Enrici Gaetamo fora a derradeira vítima, e não havia pesar nessa morte.

Ele próprio dispunha de pouco tempo de sobra. Bem o via nos olhos de Jane, nos olhos dos médicos. Era de esperar: tinham-lhe sido concedidos demasiados adiamentos.

Ditado tudo o que conseguia recordar acerca daquele dia em Julho, havia uma vida inteira. Sondara recantos esquecidos da mente, recusando os sedativos que adormeceriam a dor porque adormeceriam igualmente as recordações.

A arca de Constantino tinha de ser encontrada e o seu conteúdo examinado por homens idóneos. O que havia que evitar - por mais remota que essa possibilidade fosse - era a descoberta fortuita, a divulgação irresponsável. Encarregaria disso os filhos. Salónica era agora pertença deles. Dos gémeos. Eles fariam aquilo que ele não conseguira: encontrar a arca de Constantino.

Havia, porém, uma peça dopuzzle que faltava, e tinha de a encontrar antes de falar com os filhos. Que sabia Roma? Que informações possuía o Vaticano acerca de Salónica? Deste modo, pedira a um homem para ir visitá-lo nessa manhã. Um sacerdote chamado Land, o monsenhor da Arquidiocese de Nova Iorque, que aparecera no seu quarto de hospital havia meses.

Fontine ouviu os passos à entrada do quarto e as vozes abafadas de Jane e do visitante. O padre tinha chegado.

A pesada porta abriu-se silenciosamente. Jane introduziu o monsenhor e a seguir regressou ao vestíbulo, fechando a porta atrás de si. O sacerdote postou-se no extremo oposto do quarto, com um livro na mão.

- Obrigado por ter vindo - disse Victor.

O sacerdote sorriu. Tocou na capa de pele do livro:

- Conquista com Misericórdia. Em Nome de Deus. A história dos Fontini-Cristi. Achei que talvez gostasse disto, Mister Fontine. Encontrei-o numa livraria em Roma há anos.

O monsenhor pousou o livro na mesa-de-cabeceira. Apertaram a mão; estavam ambos, apercebeu-se Victor, a avaliarem-se.

Land não tinha mais de cinquenta anos. Era de estatura mediana e tinha o tronco e ombros largos. Os seus traços eram angulosos, anglicanos; os olhos cor de avelã sob as sobrancelhas fartas, que eram mais escuras que o cabelo curto e grisalho. Era um rosto agradável, de olhar inteligente.

- Receio bem que se trate de uma publicação apologética. Um costume de dúbio valor no virar do século. Está esgotado há muito tempo. A língua é italiana...

- Um obsoleto idioma do norte - completou Land. - Creio que o equivalente inglês seria a linguagem vitoriana da corte. Algures entre o «você» e o «vós».

- Tem uma vantagem sobre mim. O meu conhecimento de línguas não é nem de longe tão erudito.

- Foi suficiente para Loch Torridon - replicou o sacerdote.

- Pois foi. Sente-se, por favor, Monsenhor Land. - Victor apontou a cadeira junto da cama. O padre sentou-se. Os dois homens olharam um para o outro. Foi Fontine quem falou: - Há muitos meses o senhor veio ver-me ao quarto do hospital. Porquê?

- Queria conhecer o homem cuja vida tinha estudado tão minuciosamente. Quer que fale com franqueza?

- Não teria vindo esta manhã se a sua intenção não fosse essa.

- Disseram-me que o senhor podia morrer. Fui suficientemente presunçoso para esperar que me autorizasse a ministrar-lhe a extrema-unção.

- Isso é mesmo franqueza. E foi mesmo presunçoso.

- Eu dei-me conta disso. Foi por isso que nunca voltei. O senhor é um homem cortês, Mister Fontine, mas não foi capaz de ocultar os seus sentimentos.

Victor examinou o rosto do sacerdote. Havia nele o mesmo pesar que recordava do hospital.

- Porque estudou a minha vida? O Vaticano ainda anda a investigar? A causa de Donatti não foi renegada?

- O Vaticano está sempre empenhado em estudos. Em exames. Nunca pára. E Donatti foi mais que renegado. Foi excomungado e viu recusada aos seus restos mortais a santidade de um enterro católico.

- Respondeu às minhas duas últimas perguntas, mas não à primeira. Porquê o senhor?

O monsenhor cruzou as pernas, entrelaçando as mãos diante de si e descansando-as nos joelhos.

- Sou um historiador político e social. O que é outra maneira de dizer que procuro relações incompatíveis entre a Igreja e os seus subúrbios em determinados períodos de tempo. - Land sorriu, com uma expressão reflexiva no olhar: - A razão primitiva desse trabalho era provar a virtude da Igreja e o pecado de quem quer que se lhe opunha. Mas nem sempre a virtude foi encontrada. E não se encontrou por certo nos inúmeros lapsos de julgamento, ou de moralidade, à medida que foram sendo expostos.

O sorriso de Land desaparecera; o seu reconhecimento era claro.

- A execução dos Fontini-Cristi foi um lapso? De julgamento? De moralidade?

- Por favor. - O sacerdote falou com celeridade, em voz suave mas carregada de ênfase. - Tanto eu como o senhor sabemos o que foi. Um assassínio. Impossível de sancionar e imperdoável.

Victor viu uma vez mais o pesar nos olhos do homem.

- Aceito o que diz. Não o compreendo, mas aceito-o. Com que então tornei-me objecto dos seus exames sociais e políticos?

- Entre muitas outras questões desse tempo. Tenho a certeza de que estará

ciente delas. Embora se praticasse boas acções durante esses anos, outras houve que foram imperdoáveis. O senhor e a sua família contavam-se evidentemente nesta categoria.

- Ficou interessado em mim?

- O senhor tornou-se a minha obsessão. - Land sorriu de novo, desajeitadamente. - Lembre-se de que sou americano. Estava a estudar em Roma, e o nome Victor Fontine era-me bem conhecido. Lera coisas sobre o seu trabalho na Europa do pós-guerra; os jornais andavam cheios delas. Estava ciente da sua influência quer no sector público quer no privado. Imaginará o meu espanto quando, ao estudar o período, descobri que Vittorio Fontini-Cristi e Victor Fontine eram a mesma pessoa.

- Havia muitas informações nos seus dossiers do Vaticano?

- Acerca dos Fontini-Cristi, sim. - Land fez um gesto com a cabeça na direcção do volume encadernado a pele que havia pousado na mesa-de-cabeceira. - Tal como aquele livro, um tanto ou quanto tendenciosas, receio bem. Nem pouco mais ou menos tão lisonjeiras, naturalmente. Mas sobre o senhor, não havia substancialmente coisa alguma. Dava-se conta da sua existência: o primeiro filho varão de Savarone, hoje um cidadão americano conhecido pelo nome de Victor Fontine. Nada mais. O dossier terminava abruptamente com a informação de que os Fontini-Cristi remanescentes haviam sido executados pelos alemães. Tratava-se de um final incompleto. Até a data faltava.

- Quanto menos houver escrito, melhor.

- Pois é. De forma que estudei as actas do Tribunal de Reparações. Eram de longe mais completas. Aquilo que principiou como curiosidade transformou-se em choque. O senhor fez acusações aos juizes que constituíam o tribunal. Acusações que achei inacreditáveis, intoleráveis, pois o senhor incluía a Igreja. E mencionava um homem da Cúria, Guillamo Donatti. Era esse o elo que faltava. Era tudo quanto eu necessitava..

- Está a dizer-me que o nome de Donatti não figurava em lado algum nos dossiers dos Fontini-Cristi?

- Agora figura. Na altura, não. Era como se os arquivistas não pudessem reconhecer a ligação, por mais que fizessem. Os papéis de Donatti tinham sido selados, como é habitual com os excomungados. Depois da sua morte, haviam sido encontrados na posse de um ajudante...

- O padre Enrici Gaetamo. Despadrado- interrompeu baixinho Fontine.

- Sim. Gaetamo - confirmou Land, após uma pausa. - Recebi autorização para quebrar os selos. Li as divagações paranóicas de um louco, um fanático que se autocanonizou. - Uma vez mais, o monsenhor parou por breves instantes, circunvagando o olhar. - O que lá encontrei levou-me a Inglaterra. A um homem chamado Teague. Encontrei-me com ele apenas uma vez, na sua casa de campo. Estava a chover e ele levantou-se repentinamente para atiçar o lume. Nunca vi um homem consultar o relógio daquela maneira. No entanto, estava reformado e não tinha nenhum sítio para onde ir.

- Era um hábito aborrecido, aquele relógio - disse Victor, sorrindo. - Disse-lho uma porção de vezes.

- Sim, vocês foram bons amigos. Depressa soube disso. Ele sentia relativamente a si um temor reverencial, sabe?

- Temor reverencial relativamente a mim? Não acredito em tal coisa. Era demasiado directo.

- Disse que nunca o admitiu perante o senhor, mas sentia. Disse que se sentia imperfeito quando estava ao pé de si.

- Nunca mo deu a entender.

- Além disso, houve muito mais coisas que me disse. Tudo. A execução em Campo di Fiori, a fuga através de Celle Ligure, Loch Torridon, Oxfordshire a sua mulher, os seus filhos. E Donatti: a maneira como lhe ocultou o nome.

- Não tinha outro remédio. O sabê-lo teria interferido com Loch Torridon. Land desentrelaçou as mãos e descruzou as pernas. Dir-se-ia que tinha dificuldade em encontrar as palavras.

- Foi a primeira vez que ouvi falar no comboio de Salónica.

Victor ergueu abruptamente o olhar; até aí tinha-o mantido nas mãos do sacerdote.

- Isso não é lógico. O senhor leu os papéis do Donatti.

- E de repente eles tornaram-se claros. As divagações dementes, as frases desconexas, as referências aparentemente sem sentido a lugares e tempos remotos... de repente faziam sentido. Até nos seus papéis mais particulares, Donatti não o escrevia claramente: o seu medo era demasiado grande... Tudo se reduzia a esse comboio. E ao que quer que havia dentro dele.

- Não sabe?

- Acabei por saber. Ter-me-ia inteirado mais depressa, mas Brevourt recusou-se a receber-me. Morreu vários meses depois de eu tentar contactar com ele.

«Fui à prisão onde estava detido Gaetamo. Ele cuspiu sobre mim através da rede de arame, enclavinhando as mãos nela até sangrarem. Não obstante, obtive a origem. Constantino. O Patriarcado. Consegui uma audiência com um dos superiores. Era um homem muito idoso e contou-me. O comboio proveniente de Salónica transportava as refutações do Filioque.

- E era tudo? Monsenhor Land sorriu:

- Teologicamente falando, era o bastante. Para esse ancião e para os seus homólogos de Roma, os documentos Filioque representavam triunfo e cataclismo.

- E não representam a mesma coisa para si? - Victor observou detidamente o sacerdote, concentrando-se nos firmes olhos cor de avelã.

- Não. A Igreja não é a Igreja dos séculos passados, nem sequer das gerações passadas. Postas as coisas de um modo simples, não poderíamos sobreviver se o fosse. Há os velhos que se agarram àquilo que crêem ser incontrovertível... Na maior parte dos casos, é tudo quanto lhes resta; não há necessidade de despojá-los das suas convicções. Os ditames do tempo alteram misericordiosamente isso; nada é como era. A cada ano que passa, à medida que a velha guarda nos vai deixando, a Igreja entra mais velozmente no domínio da responsabilidade social. Tem o poder de realizar um bem extraordinário e os recursos - quer espiritual quer pragmaticamente - para mitigar enorme sofrimento. Falo com um certo conhecimento, pois faço parte desse movimento. Estamos em todas as dioceses, por todo o globo. É o nosso futuro. Hoje em dia estamos com o mundo.

Fontine desviou o olhar. O sacerdote terminara; descrevera uma força para o bem num mundo tristemente carenciado de tal coisa. Victor virou-se de novo para Land.

- Não sabe então com rigor o que consta nesses documentos de Salónica.

- Que importância tem? Na pior das hipóteses, uma discussão teológica. Um equívoco doutrinário. Houve um homem que existiu realmente e o seu nome era Jesus de Nazaré... ou o «Anjo da Luz» dos Essénios... e falou do coração. As suas palavras chegaram até nós, historicamente autenticadas pelos arameus e estudiosos da Bíblia, tanto cristãos como não cristãos. Que diferença faz na verdade que lhe chamem carpinteiro, profeta ou filho de Deus? O que importa é que ele disse a verdade tal como a via, tal como lhe foi revelada. A sua sinceridade, se quiser, é a única questão, e sobre essa não há discussão.

Fontine reteve a respiração. A sua mente recuou num ápice a Campo di Fiori, a um velho monge de Xenope que falara de um pergaminho retirado de uma prisão romana.

«...O que consta nesse pergaminho ultrapassa tudo quanto possa existir na sua imaginação. Tem de ser encontrado... Destruído... Porque nada se modifica, e no entanto tudo é modificado...»

Destruído.

«...O que importa é que ele disse a verdade tal como a via, tal como lhe foi revelada... A sua sinceridade é a única questão, e sobre essa não há discussão...»

Ou haveria?

Estaria aquele sacerdote estudioso, aquele bom homem junto de si, preparado para enfrentar o que tinha de ser enfrentado? Seria remotamente justo pedir-lhe que o fizesse?

«Porque nada se modifica, e no entanto tudo é modificado».

Fosse o que fosse que aquelas palavras contraditórias quisessem dizer, seriam precisos homens invulgares para saber o que fazer. Elaboraria uma lista para os filhos.

O sacerdote chamado Land era um candidato.

As quatro volumosas pás afrouxaram até parar, fazendo todo o aparelho ser percorrido por surdos ruídos metálicos. Um tripulante abriu a escotilha e accionou a alavanca que fazia desdobrar o pequeno lanço de degraus na parte inferior da fuselagem.

O major Andrew Fontine saiu para o sol matinal e desceu a escada metálica até à pista de helicópteros da Base Cobra da Força Aérea em Phanthiet.

O documento de que era portador facultava-lhe transporte prioritário e acesso aos armazéns que ficavam à beira-mar. Requisitaria um jipe da frota dos oficiais e seguiria direito ao cais. E a um arquivo no Armazém Quatro. Os registos do Corpo de Vigilantes estavam ali; e ali ficariam, no lugar mais seguro do Sueste asiático, a partir do momento em que ele verificasse que nada fora mexido. Tinha mais duas escalas a fazer depois do armazém: a norte, em Danang, e depois novamente a sul, a seguir a Saigão, no delta. Em Cantho.

Era em Cantho que estava o capitão Barstow; fora Barstow quem traíra o Corpo de Vigilantes. Os outros eram unânimes: o seu comportamento era o de um homem que tinha dado com a língua nos dentes. Fora visto em Saigão com um oficial jurídico chamado Tarkington. Não era difícil perceber o que se passara: Barstow estava a preparar uma defesa, e, se assim era, uma defesa queria dizer que ia depor. Barstow não sabia onde estavam os registos do Corpo de Vigilantes, mas tinha-os visto. Tinha-os visto, uma gaita! Fora ele próprio a elaborar vinte ou trinta. O testemunho de Barstow poderia liquidar o Corpo de Vigilantes. Não podiam permitir semelhante coisa.

O oficial jurídico chamado Tarkington achava-se em Danang. Não o sabia mas avistar-se-ia com outro homem do Corpo de Vigilantes. Seria a última pessoa com quem se encontraria. Num beco, com uma faca no estômago e a camisa encharcada em uísque. Após isso, Andrew seguiria de avião para o delta. Ao encontro do traidor chamado Barstow. Este seria alvejado por uma prostituta: essas eram fáceis de comprar.

Atravessou o cimento escaldante em direcção ao edifício de passageiros em trânsito. Havia um tenente-coronel à sua espera. Inicialmente, Andrew ficou alarmado: teria alguma coisa corrido mal? Os cinco dias ainda não se haviam esgotado! Depois viu que o tenente-coronel sorria, de forma um tanto ou quanto paternal, mas apesar disso cordialmente.

- Major Fontine? - O cumprimento foi acompanhado de uma mão estendida: não estava à espera de nenhuma continência.

- Diga, sir. - O aperto de mão foi breve.

- Uma mensagem de Washington, directamente do secretário do Exército. Tem de voltar a casa, major. Assim que possa. Lamento ser eu a dizer-lho, mas trata-se do seu pai.

- O meu pai? Morreu?

- É apenas uma questão de tempo. Tem autorização prioritária para embarcar em qualquer avião que parta de Tan Son Nhut. - O tenente-coronel estendeu-lhe um sobrescrito orlado de vermelho com o timbre do Quartel-General das Forças Armadas de Saigão no cabeçalho. Era o género de sobrescrito reservado ao pessoal de ligação e mensageiros da Junta de Chefes de Estado-Maior.

- O meu pai está doente há muitos anos - disse lentamente Fontine. - Isto não é inesperado. Tenho outro dia de trabalho por cá. Estarei em Tan Son Nhut amanhã à noite.

- Como queira. O principal é termo-lo encontrado. Está entregue o recado.

- Está entregue o recado - ecoou Andrew.

Na cabina telefónica, Adrian escutou a voz fatigada do sargento da Polícia. O sargento mentia; mais verosimilmente, alguém lhe tinha mentido. O relatório do médico legista sobre Nevins, James, negro do sexo masculino, vítima de choque e fuga, não mostrava indícios manifestos de ferimentos cranianos, no pescoço ou na porção superior do tórax.

- Mande-me o relatório e as radiografias - disse asperamente Adrian. - Tem a minha morada.

- Não havia nenhumas radiografias a acompanhar o relatório do médico legista - redarguiu mecanicamente o polícia.

- Arranje-as - disse Adrian, desligando o telefone. Mentiras. Mentiras e evasivas por todo o lado.

A sua era a maior mentira de todas: tinha mentido a si próprio e aceitara essa mentira, fazendo uso dela para convencer outros. Postara-se diante de um grupo de assustadíssimos advogados jovens do Departamento de Justiça e dissera-lhes que, em face das circunstâncias, a intimação do Corpo de Vigilantes tinha de ser adiada. Precisavam de reagrupar as provas e obter um segundo depoimento: apresentarem-se perante o ajudante-geral apenas com uma lista de nomes era insignificante.

Não era insignificante! Era o momento azado de enfrentar os militares e exigir uma investigação imediata. Fora assassinado um homem, e as provas que ele tinha consigo haviam sido subtraídas do palco da sua morte. Essas provas eram o requisitório do Corpo de Vigilantes! Aqui estão os nomes! É este o essencial do depoimento!

Ora, era andar com aquilo para a frente!

Mas ele não podia fazer tal coisa. O nome do irmão encabeçava essa lista. Apresentar a intimação era acusar o irmão de assassínio. Não havia outra conclusão. Andrew era seu irmão, seu gémeo, e ele não estava preparado para lhe chamar assassino.

Adrian saiu da cabina telefónica e percorreu o quarteirão, de regresso ao hotel. Andrew estava de volta de Saigão. Tinha saído do país na segunda-feira passada; não era precisa grande imaginação para saber porquê. O irmão não era estúpido: Andrew estava a construir a sua defesa na origem dos seus crimes; crimes que incluíam conspiração, destruição de provas e obstrução da justiça. Motivações: complexas e não destituídas de substância fundamental, mas mesmo assim crimes.

Mas nenhum crime nocturno numa rua de Washington.

Oh, Jesus! Mesmo agora mentia a si próprio! Ou, para ser caridoso, recusava-se a enfrentar o possível. Vamos! Di-lo, pensa-o!

O provável.

Havia um oitavo membro do Corpo de Vigilantes em Washington. Fosse esse homem quem fosse, era o assassino de Nevins- E o assassino de Nevins não podia ter agido sem a informação transmitida de irmão para irmão numa arrecadação de barcos na North Shore de Long Island.

Quando o avião de Andrew aterrasse, ele saberia que a intimação não fora apresentada. O Corpo de Vigilantes mantinha-se intacto por mais uns tempos, livre para manobrar e manipular.

Havia, porém, uma coisa que o deteria. Que o deteria de um momento para o outro e reanimaria um grupo de advogados atemorizados que perguntavam a si próprios se aquilo que acontecera a Nevins não poderia acontecer-lhes a eles: eram advogados, não «comandos».

Adrian fitaria o irmão nos olhos e, se visse neles a morte de Jim Nevins, vingá-la-ia. Se o militar tivesse dado a ordem de execução, então o militar seria destruído.

Ou estaria novamente a mentir a si próprio? Poderia chamar assassino ao irmão? Poderia realmente?

Que diabo quereria o pai? Que diferença fazia isso?

As duas cadeiras estavam colocadas dos lados opostos da cama. Assim é que devia ser. Assim podia repartir a atenção pelos dois filhos: pessoas diferentes, as suas reacções seriam diferentes. Jane preferira ficar de pé. Ele tinha-lhe feito , um pedido horrível: contar a história de Salónica aos filhos. Tudo, sem omitir nada. Urgia fazê-los compreender que havia homens poderosos, instituições e até governos que podiam interessar-se pela arca de Constantino. Tal como há três décadas atrás.

Não podia ser ele próprio a contar a história. Estava à morte: o seu espírito achava-se suficientemente lúcido para se aperceber disso. Mas tinha de possuir energia para responder às perguntas deles; de transmitir o seu encargo aos filhos. Porque era deles agora a responsabilidade dos Fontini-Cristi.

Entraram no quarto com a mãe. Tão altos, tão parecidos, e contudo tão diferentes! Um fardado, o outro com um incaracterístico casaco de tweed e calças de flanela. O loiro Andrew mostrava mau humor. Via-se-lhe na cara, na contracção constante dos músculos dos maxilares, na postura firme da boca, na expressão neutra e velada dos olhos.

Adrian, em contrapartida, parecia inseguro de si. Os seus olhos azuis eram interrogadores, tinha a boca frouxa e os lábios entreabertos. Corria a mão pelo cabelo escuro ao mesmo tempo que pousava os olhos em baixo, numa expressão simultânea de compaixão e espanto.

Victor indicou as cadeiras. Os irmãos olharam fugazmente um para o outro; era impossível definir a comunicação. O que quer que acontecera entre eles tinha de ser ultrapassado. A sua responsabilidade exigia-o. Sentaram-se, com as páginas fotocopiadas das recordações do pai do dia 14 de Julho de 1920 nas mãos. Dera instruções a Jane para fornecer uma cópia a cada um; deviam lê-las na íntegra antes de o verem. Não se devia perder tempo em explicações que pudessem ser previamente dadas. Não tinha forças para o fazer.

- Não vamos desperdiçar palavras com sentimentalismos. Ouviram a vossa mãe e leram o que eu escrevi. Devem ter perguntas a fazer.

Foi Andrew quem falou:

- Partindo do princípio de que a arca pode ser encontrada, e lá chegaremos, o que se segue?

- Vou elaborar uma lista de nomes. Cinco ou seis homens, mais não; não é fácil chegar a eles. Vocês levar-lhes-ão a arca.

- Que farão eles? - insistiu Andrew.

- Isso há-de depender daquilo que a arca contenha, especificamente. Ou a abrem ou a destroem ou voltam a enterrá-la.

Adrian interrompeu rapidamente. O advogado ficara subitamente perturbado.

- Há por onde escolher? Não me parece. Não nos pertence; deveria ser do conhecimento público.

- Com o caos público? As consequências têm de ser ponderadas.

- Alguém mais tem a chave? - perguntou o militar. - O local dessa viagem em catorze de Julho de mil novecentos e vinte?

- Não. Não teria sentido. Restam apenas uns poucos que tiveram conhecimento do comboio, que sabiam o que ele levava realmente. Homens idosos do Patriarcado; um permanece em Campo di Fiori e não há-de restar-lhe muito tempo.

- E não devemos dizer nada a ninguém - continuou o major. - Ninguém deve saber a não ser nós.

- Ninguém. Há quem negociaria metade dos arsenais deste mundo por essa informação.

- Eu não iria tão longe.

- Nesse caso, não estarias a pensar. Tenho a certeza de que a tua mãe explicou. Além das refutações do Filioque, incluindo o documento aramaico, há nessa arca um pergaminho no qual está escrita uma confissão que poderia alterar a história religiosa. Se achas que governos, nações inteiras, são espectadores desinteressados, enganas-te redondamente.

Andrew calou-se. Adrian olhou para ele e depois para Victor.

- Quanto tempo imaginas que irá levar? A encontrar essa... essa arca? - perguntou.

- Eu calcularia um mês. Vão precisar de equipamento. Guias alpinos, uma semana de aprendizagem... Mais não, penso eu.

Adrian levantou as folhas fotocopiadas.

- És capaz de calcular a dimensão da área a pesquisar?

- É difícil de dizer; dependerá muito daquilo que encontrarem, do que se alterou. Mas, se a memória não me atraiçoa, não hão-de ser mais de quinze a trinta quilómetros quadrados.

- Quinze a trinta! Isso está fora de questão - observou Andrew, enfaticamente, mas sem levantar a voz. - Desculpa, mas é uma loucura. Podia demorar anos. Estás a falar dos Alpes. Um buraco no solo, uma caixa que não é maior que um caixão, em qualquer lugar numa dúzia de montanhas.

- Os recantos mais lógicos são limitados; reduzem-se a um ou talvez três ou quatro desfiladeiros, muito lá no alto, suspeito eu, onde nunca nos deixaram subir.

- Já fiz o levantamento de terrenos em meia centena de situações de campanha - disse o militar com lentidão, tão cortesmente que as suas palavras roçavam a condescendência. - Estás a minimizar um problema incrivelmente difícil.

- Não me parece. Queria dizer precisamente o que acabo de dizer ao Adrian. Muito dependerá do que encontrarem. Se havia alguma coisa que o vosso avô fosse, era meticuloso. Pensava em todos os pormenores de uma situação, bem como na maior parte das eventualidades. - Victor parou e mudou de posição nas almofadas. - Savarone era um velho; decorria uma guerra e ninguém melhor do que ele o sabia. Não iria deixar nada que fosse reconhecível a quem quer que fosse em Campo di Fiori, mas não posso acreditar que não deixasse alguma coisa dentro da área propriamente dita. Um sinal uma mensagem... qualquer coisa. Ele era assim.

- Onde havíamos de procurar? - perguntou Adrian, com os olhos a errarem por um instante até ao irmão, instalado na cadeira de couro do lado contrário. O major tinha o olhar fixo nas folhas que segurava.

- Estudei as possibilidades - disse Victor. - Havia uma família de guias na aldeia de Champoluc. Os Goldoni. Foram utilizados pelo meu pai, e antes dele pelo seu pai. E havia uma pousada a norte da aldeia. Explorada durante gerações por uma família chamada Capomonti. Nunca viajávamos até Champoluc que não ficássemos lá. Eram essas as pessoas mais próximas de Savarone. Se ele falou com alguém, terá sido com eles.

-Já lá vão mais de cinquenta anos - protestou brandamente Adrian.

- As famílias das montanhas são muito unidas. Duas gerações não é um fosso particularmente largo. Se o Savarone deixasse alguma coisa dita, ela seria passada entre o pai e a criança que tivesse nascido primeiro. Lembrem-se disso: criança. Filho ou Filha. - Sorriu-lhes debilmente. - Que mais vos ocorre? As perguntas podem suscitar mais recordações.

As perguntas começaram, mas não suscitaram coisa alguma. Victor esquadrinhara e voltara a esquadrinhar tudo quanto podia. O que quer que restasse estava para além da memória.

Até que Jane apanhou qualquer coisa. E, enquanto escutava as suas palavras, Victor sorriu. A sua Jane, a inglesa de olhos azuis, era notável para pormenores.

- Escreveste que os carris do caminho-de-ferro serpenteavam pelos montes a sul de Zermatt e desciam até Champoluc, passando por uns apeadeiros. Locais de passagem entre estações, para comodidade dos alpinistas e esquiadores.

- Sim. Antes da guerra. Hoje em dia os veículos são mais flexíveis na neve.

- Parece lógico que um comboio transportando uma arca, que descreveste como sendo pesada e difícil de manejar, necessitasse de parar num desses apeadeiros a fim de transferi-la para outro veículo.

- De acordo. Aonde queres tu chegar?

- Bem, há, ou havia, apenas uns quantos apeadeiros entre Zermatt e Champoluc. Quantos dirias tu?

- Uns poucos. Pelo menos nove ou dez.

- Não é grande ajuda. Desculpa.

- A norte de Champoluc, o primeiro apeadeiro chamava-se Pico da Águia, creio. Depois era a Vigia do Corvo e a seguir qualquer coisa do Condor... - Victor calou-se. Aves. Nomes de aves. Lembrara-se de algo, mas não era uma evocação que remontasse a três décadas atrás. Tinha sido pouquíssimos dias antes. Em Campo di Fiori. - O quadro - disse baixinho.

- Que quadro? - inquiriu Adrian.

- Por baixo da Madona. No escritório do meu pai. Uma cena de caça, com aves!

- E cada um dos apeadeiros - disse rapidamente Andrew, sentando-se à borda da cadeira - é, ou era, designado em parte pelo nome de uma ave. Quais eram as aves do quadro?

- Não me lembro. A luz era mortiça e eu estava a procurar encontrar uns momentos para pensar. Não me concentrei nesse quadro.

- Era do teu pai? - perguntou Adrian.

- Não tenho a certeza.

- Podes telefonar? - inquiriu o major, cuja pergunta tinha menos de pedido que de ordem.

- Não. Campo di Fiori é um túmulo sem linhas de comunicação. Apenas uma caixa postal em Milão, e mesmo essa sob o nome de Baricours, Père et Fils.

- A mãe disse-nos que vive lá um velho padre. Como é que ele subsiste? - O militar não se dava por satisfeito.

- Nunca pensei em perguntar - replicou o pai. - Havia um homem, um motorista, que me foi buscar a Milão. Parti do princípio de que ele era o contacto do monge com o exterior. O velho sacerdote e eu estivemos à conversa durante a maior parte da noite, mas as minhas preocupações eram limitadas. Ele continuava a ser meu inimigo. Percebeu isso. Andrew lançou um olhar ao irmão.

- Nós passámos por Campo di Fiori - disse rispidamente o militar. Adrian fez um aceno afirmativo e voltou-se novamente para Victor.

- Não há maneira de te convencer a entregares isto a outros? A estudiosos responsáveis?

- Não - retorquiu simplesmente Victor. - Os estudiosos hão-de aparecer mais tarde. Antes dessa ocasião, nada. Tenham em mente aquilo com que estão a lidar. O conteúdo dessa arca é do mais desconcertante que há na história para o mundo civilizado. A confissão naquele pergaminho é uma arma devastadora, não se iludam a esse respeito. Não se pode pedir a nenhuma comissão que assuma a responsabilidade nesta fase. Os perigos são demasiado grandes.

- Estou a ver - disse Adrian, voltando a recostar-se na cadeira e olhando para as folhas. - Fazes referência ao nome Annaxas, mas não és claro acerca dele. Dizes que «o pai de Annaxas era o maquinista do comboio», morto pelo sacerdote de Xenope? Quem é Annaxas?

- Para o caso de esses papéis cairem noutras mãos que não as vossas, não queria que ninguém estabelecesse ligações. Annaxas é Theodore Dakakos.

Ouviu-se um estalido. O militar tinha um lápis na mão, que partira em dois. Pai e irmão olharam para ele. Andrew disse uma única palavra. - Desculpem.

- Já ouvi esse nome - continuou Adrian. - Não sei bem onde.

- É grego. Um armador muito bem sucedido. O sacerdote que ia naquele comboio era irmão do pai, tio dele. Um irmão matou o outro. Foi ordenado por Xenope que a indicação da localização da arca fosse enterrada juntamente com eles.

- Dakakos sabe disso? - perguntou calmamente o militar.

- Sabe. Onde precisamente ele entra, é que eu não sei. Só sei que anda à procura de respostas. E da arca.

- Podes confiar nele? - perguntou o advogado.

- Não. Naquilo que diz respeito a Salónica, não confio em ninguém. - Victor inspirou profundamente. Agora era difícil falar; a respiração era mais ofegante e as forças abandonavam-no.

- Estás bem? -Jane passou rapidamente pela frente de Adrian, dírigindo-se ao marido. Debruçou-se sobre ele e pousou-lhe a mão na face.

- Estou - respondeu ele, sorrindo para ela. Depois olhou para Andrew e Adrian, que tinham os olhos cravados um no outro: - Não vos peço isto de ânimo leve. Vocês têm a vossa própria vida, os vossos interesses. Têm dinheiro. - Victor ergueu rapidamente a mão: - Apresso-me a acrescentar que isto era igualmente vosso direito. A mim não me deram menos, e convosco assim deve ser também. Neste aspecto somos uma família privilegiada. Mas este privilégio exige responsabilidades aos que dele desfrutam. Hão-de inevitavelmente surgir períodos em que vos pedirão para suspenderem os vossos próprios objectivos devido a uma inesperada urgência. Ponho à vossa consideração que existe neste momento uma dessas urgências.

«Vocês afastaram-se um do outro. São opositores, suspeito eu, filosófica e politicamente. Não há mal nenhum nisso, mas essas divergências são insignificantes comparadas com o que agora vos desafia. São irmãos, netos de Savarone Fontini-Cristi, e têm de fazer aquilo que o filho dele não pôde fazer. Não há apelo para esse privilégio. Não o procurem».

Terminara. Era tudo quanto podia dizer; toda a respiração era dolorosa.

- Durante todos estes anos, nunca disseste... - Os olhos de Adrian eram novamente inquiridores; havia neles um temor respeitoso e tristeza. - Meu Deus, como deves ter-te sentido!

- Tinha duas opções - retorquiu Victor, mal se fazendo ouvir. - Ser produtivo ou morrer neutral. Não era uma opção difícil.

- Devias tê-los matado - disse baixinho o militar.

Estavam ambos de pé no exterior, defronte da casa de North Shore. Andrew apoiava-se no capot do seu Lincoln Continental alugado, de braços cruzados, com o sol da tarde a fazer brilhar os botões de bronze da farda e a insígnia.

- Está a acabar-se - disse.

- Eu sei - respondeu Adrian. - E ele também sabe.

- E aqui estamos nós.

- Aqui estamos nós - concordou o advogado.

- O que ele quer é mais fácil para mim do que para ti. - Andrew olhou para cima, na direcção das janelas do quarto da frente do segundo andar.

- Que quer isso dizer?

- Eu sou prático. Tu não. Será melhor trabalharmos juntos do que separados.

- Estou admirado por concederes que eu posso ajudar. Deve ferir a tua vaidade.

- Nas decisões em campanha não se põe a questão do ego. O que conta é o objectivo. - Andrew falava despreocupadamente. - Podemos reduzir o tempo a metade se repartirmos as possibilidades. As recordações dele estão desarticuladas, deambula por toda a parte. A sua lembrança do terreno é confusa; tenho tido alguma experiência disso. - Andrew endireitou-se, afastando-se do automóvel. - Penso que temos de recuar, Adrian. A sete anos atrás. Antes de São Francisco. És capaz de o fazer?

Adrian fitou o irmão:

- És a única pessoa que pode responder a isso. E por favor não mintas; nunca foste grande coisa a mentir. Comigo, não.

- Nem tu comigo.

Cravaram os olhos um no outro; nenhum deles vacilou.

- Na quarta-feira à noite foi morto um homem. Em Washington.

- Eu estava em Saigão. Bem sabes. Quem era ele?

- Um advogado negro da Justiça. Um homem chamado...

- Nevins - completou Andrew, interrompendo o irmão.

- Meu Deus! Tu sabias!

- Dele, sim. Quanto a matarem-no, não. Porque havia de saber?

- O Corpo de Vigilantes! Ele recolheu um depoimento sobre o Corpo de Vigilantes! Tinha-o com ele! Foi tirado do carro dele!

- Será que não estás bom da cabeça, diabos? - O militar falava lentamente, sem urgência. - Podes não gostar de nós, mas não somos estúpidos. Um alvo como esse homem, mesmo remotamente associado connosco, havia de atrair investigadores da Inspecção-Geral aos centos. Há processos melhores. Matar é um instrumento; uma pessoa não o usa contra si própria.

Adrian continuava a fitar o irmão, perscrutando-lhe os olhos. Finalmente, falou. Baixinho, pouco mais que num sussurro.

- Acho que isso é a coisa mais insensível que ouvi em dias de vida.

- O quê?

- «Matar é um instrumento». Estás a falar a sério, não é?

- Claro que estou. Respondi à tua pergunta?

- Respondeste - disse serenamente Adrian. - Vamos voltar atrás... até antes de São Francisco. Por uns tempos; tens de estar ciente disso. Só até isto terminar.

- Óptimo... Tens coisas a arrumar antes de partirmos, e eu também. Digamos de amanhã a uma semana.

- Muito bem. De amanhã a uma semana.

- Vou apanhar o avião das seis horas para Washington. Queres vir daí?

- Não, vou encontrar-me com uma pessoa na cidade. Vou servir-me de um dos carros daqui.

- Tem piada - disse Andrew, abanando lentamente a cabeça, como se aquilo que estava para dizer não tivesse piada nenhuma. - Nunca te perguntei o número de telefone nem o teu endereço.

- É nas District Towers. Em Nebraska.

- Nas District Towers. Muito bem. De amanhã a uma semana. Eu reservo as passagens Directo a Milão. Tens o passaporte em dia?

- Acho que sim. Está no hotel. Depois vejo.

- Óptimo. Eu telefono-te. De amanhã a uma semana. - Andrew lançou a mão ao puxador da porta. - A propósito, que é feito da intimação?

- Sabes o que foi feito dela. Não foi apresentada.

O militar sorriu ao mesmo tempo que entrava no carro.

- De qualquer maneira, não resultava.

Sentaram-se numa mesa de canto na esplanada St. Moritz, em Central Park South. Tinham um fraquinho por lugares daqueles: escolhiam transeuntes e inventavam biografias repentinas.

Naquela ocasião não inventaram nenhuma. Adrian decidira que as instruções do pai no sentido de não falar do comboio de Salónica a ninguém não incluiriam Barbara. A sua decisão baseava-se na crença de que, caso os papéis de um e outro estivessem invertidos, ela lho contaria. Não ia deixar o país por cinco a dez semanas sem dizer porquê. Ela merecia melhor do que isso.

- Portanto, aí tens. Documentos religiosos que remontam a mil e quinhentos anos atrás, um manuscrito aramaico que fez o Governo britânico perder metade da cabeça colectiva em plena guerra e uma confissão escrita num pergaminho há dois mil anos que contém só Deus sabe o quê. Aquela arca já

originou mais violência do que me agrada pensar. Se o que o meu pai diz é verdade, esses documentos, esse manuscrito (o pergaminho, acima de tudo), podem alterar uma grande parte da história.

Barbara recostou-se na cadeira, com os olhos castanhos ao nível dos dele. Observou-o durante alguns momentos sem responder.

- Isso parece altamente improvável. Todos os dias são desenterrados documentos, e a História não muda - disse simplesmente.

- Já ouviste falar na Cláusula Filioque?

- Claro. Foi inserida no Credo de Niceia. Foi a primeira questão que dividiu as igrejas do Oriente e do Ocidente. O debate prosseguiu durante centenas de anos e conduziu ao Cisma de Fócio, em... no século nono?- Parece-me. O que, por sua vez, originou o cisma de mil e cinquenta e quatro. A questão acabou por tornar-se a infalibilidade papal.

- Como diabo sabes tu isso?

- É o meu campo -disse Barbara, rindo-se.- EsqueCes-te disso? Pelo menos os aspectos comportamentais.

- Falaste no século nono. O meu pai disse há mil e quinhentos anos...

- A história cristã primitiva é confusa, uma baralhada em questões de datas. Entre o século primeiro e o século sétimo houve tantos concílios, tanto oscilar para um lado e para outro, tanta discussão sobre esta doutrina e aquela lei que é quase impossível distingui-los. Esses documentos dízem respeito ao Filioque? Crê-se que se trata das refutações?

O copo de Adrian ficou suspenso a meio caminho dos lábios. - Sim. Foi o que o meu pai disse; empregou esse termo As refutações do Filioque.

- Não existem.

- O quê?

- Foram destruídas (com um cerimonial, penso eu) em Istambul, na Mesquita de Santa Sofia, no início da Segunda Grande Guerra. Há documentação... testemunhas, se a memória me não falha. Até mesmo doCumentos autenticados por análise espectroquímicas.

Adrian ficou a olhar para ela. Havia qualquer coisa que estava terrivelmente errada. Era tudo demasiado simples. Demasiado negativamente simples.

- Onde colheste tu essa informação?

- Onde? Queres saber especificamente onde?

- Sim.

Barbara inclinou-se para a frente, movendo distraidamente o COPo, a Pensar. Tinha a testa franzida.

- Não é a minha área, mas posso descobrir, claro. Remonta a vários anos atrás. Lembro-me, isso sim, de que foi um grande choque para uma porção de gente.

- Faz-me um favor - disse ele rapidamente. - Quando regressares descobre tudo o que puderes acerca desse incêndio. Não faz sentido! O meu pai havia de ter conhecimento disso!

- Não sei porquê. É uma questão tremendamente académica.

- Mesmo assim, não faz sentido...

- Por falar em Boston - atalhou ela. - O meu serviço automático de atendimento de chamadas recebeu dois telefonemas de alguém que tentava localizar-te. Um homem chamado Dakakos.

- Dakakos?

- Sim! Um tal Theodore Dakakos. Disse que era urgente.

- Que disseste tu?

- Que te daria o recado. Tomei nota do número. Não queria dar-to. Se há coisa de que não precises, é de telefonemas histéricos de Washington. Tiveste uns dias de martírio.

- Ele não é de Washington.

- Os telefonemas eram.

Adrian ergueu os olhos da mesa, sobre as miniaturas de sebes em caixotes que orlavam a esplanada. Viu o que procurava: uma cabina telefónica.

- Volto já.

Dirigiu-se ao telefone e ligou para as District Towers, em Washington.

- Ligue-me à recepção, por favor.

- Sim, Mister Fontine. Recebemos várias chamadas de um tal Mister Dakakos. Está um auxiliar de Mister Dakakos neste momento à sua espera no átrio.

Adrian pensou rapidamente. Vieram-lhe de novo ao espírito as palavras do pai: tinha-lhe perguntado se podia confiar em Dakakos. «Naquilo que diz respeito a Salónica, não confio em ninguém...»

- Escute. Diga ao homem que está no átrio que acabará por ter notícias minhas. Só regresso dentro de alguns dias. Não quero ver esse Dakakos.

- Com certeza, Mister Fontine.

Adrian desligou. O seu passaporte estava em Washington. No quarto. Iria pela garagem. Mas nessa mesma noite, não: era cedo de mais. Esperaria até ao dia seguinte- Esta noite ficaria em Nova Iorque... O pai. O pai tinha de ser informado acerca de Dakakos. Telefonou para a casa de North Shore.

A voz de Jane era tensa:

- O médico está agora com ele. Graças a Deus, autorizou-os a darem-lhe qualquer coisa. Acho que ele não conseguiria aguentar por muito mais tempo. Tem tido espasmos...

- Telefono-te esta noite.

Adrian saiu da cabina e abriu caminho por entre os transeuntes até ao café.

- Que é? - Barbara estava alarmada.

- Entra em contacto com o teu serviço de atendimento de Boston. Diz-lhes para telefonarem ao Dakakos e dizerem que nos desencontrámos. Que eu tive de seguir de avião para... raios, Chicago. Em serviço. Era esse o recado que tinhas aqui no hotel.

- Não queres mesmo encontrar-te com ele, pois não?

- Tenho de o evitar. Quero despistá-lo. Provavelmente tentou contactar com o meu irmão.

A vereda do Rock Creek Park. A ideia fora de Martin Greene, a escolha fora sua. Greene falava com uma voz estranha ao telefone, um tanto ou quanto desafiadora. Como se já nada lhe importasse.

O que quer que remordia Greene sumir-se-ia no tempo que lhe levava contar a história. Meu Deus, se não sumiria! Numa tarde, o Corpo de Vigilantes dera um passo gigantesco. Para além de tudo quanto pudessem ter imaginado. Se aquilo que o pai dizia acerca da arca - os extremos a que chegavam homens poderosos, nações inteiras, para se apoderarem dela -, se apenas metade disso fosse verdade, o Corpo de Vigilantes bem podia cantar de poleiro! Ninguém lhe chegaria!

O pai dissera que elaboraria uma lista. Bem, não havia necessidade de fazer tal coisa: havia uma lista. Os sete homens do Corpo de Vigilantes controlariam aquela arca. E ele controlaria os sete homens do Corpo de Vigilantes.

Jesus, era inacreditável! Mas os factos não mentiam; o pai não mentia. Quem quer que estivesse de posse daqueles documentos, do tal pergaminho proveniente de uma esquecida prisão de Roma, tinha força para fazer exigências extraordinárias. Em toda a parte! Uma omissão da História registada, mantida no desconhecimento do mundo por um temor inacreditável. A sua revelação não podia ser tolerada. Bem, o temor também era um instrumento. Tão grande como a morte. Muitas vezes, maior.

«Tenham em mente que o conteúdo dessa arca é do mais desconcertante que há na História para o mundo civilizado...»

As decisões de homens invulgares - tanto na paz como na guerra - sustentavam o juízo do pai. E agora outros homens invulgares descobririam aquela arca e contribuiriam para modelar o último quartel do século XX. Uma pessoa tinha de começar a pensar assim, a pensar em grandes conceitos para além dos homens vulgares. A sua instrução, a sua herança - tudo se tornava claro, e ele estava preparado para o peso de uma responsabilidade imensa. Estava equipado para ela; era dele, juntamente com uma arca sepultada nos Alpes italianos.

Adrian teria de ser neutralizado. Não seriamente: o irmão era fraco, indeciso, não era nenhum rival. Seria suficiente travá-lo. Iria aos aposentos do irmão e faria precisamente isso.

Andrew principiou a percorrer a vereda de Rock Creek. Havia poucos transeuntes: o parque não era lugar para se passear à noite. Onde estaria mesmo Greene? Devia estar ali: o apartamento dele ficava muito mais próximo que o aeroporto. E Greene tinha-lhe dito que se apressasse.

Andrew caminhou pela relva fora e acendeu um cigarro. Não valia a pena ficar ali especado debaixo do clarão dos candeeiros do parque. Havia de ver Greene quando ele descesse a vereda.

- Fontine!

O militar fez meia volta, sobressaltado. A vinte metros de distância, junto a um tronco de árvore, estava Martin Greene. Vinha à paisana; trazia uma grande pasta na mão esquerda.

- Marty? Que diabo...

- Chega aqui - ordenou o capitão. Andrew caminhou rapidamente até à árvore.

- Que se passa?

- Foi-se, Fontine. Todo o raio da coisa. Desde ontem de manhã que ando a ligar para ti.

- Estava em Nova Iorque. De que estás tu a falar?

- Estão cinco homens numa prisão de máxima segurança em Saigão. Queres arriscar-te a adivinhar quem são?

- O quê? A intimação não foi apresentada! Tu confirmaste-o; eu confirmei-o!

- Não era precisa nenhuma intimação para nada. A Inspecção-Geral apareceu, pé ante pé, sem dizer água vai. Atingiram-nos em todos os pontos. O meu palpite é que disponho de cerca de doze horas até eles descobrirem que sou eu a pessoa que está nas aquisições. Quanto a ti, estás marcado.

- Espera aí um bocado. Espera aí só um bocado! Isso é um disparate! A intimação foi cancelada.

- Eu sou a única pessoa que beneficia com isso. Tu nunca mencionaste o meu nome em Saigão, pois não?

- Claro que não. Apenas que tínhamos cá um homem.

- É tudo de quanto eles hão-de precisar; hão-de associar as coisas.

- Como?

- De uma dúzia de maneiras diferentes. Consultando e comparando as minhas horas de saída com as tuas, é a primeira que me vem à cabeça. Aconteceu qualquer coisa por lá; houve alguma coisa que deitou tudo a perder. - Os olhos de Greene erraram em volta.

Andrew respirava regularmente, olhando de cima para o capitão.

- Não houve, não - disse brandamente. - Aconteceu foi aqui. Na noite de quarta-feira passada.

A cabeça de Greene ergueu-se de chofre.

- Que tem a quarta-feira passada?

- Aquele advogado negro, o Nevins. Mandaste-o matar, estúpido filho da mãe. O meu irmão acusou-me a mim! Acusou-nos a nós! Acreditou em mim porque eu próprio acreditava! Foi demasiado estúpido! - A voz do militar era um murmúrio tenso. Era tudo quanto conseguia fazer para coibir-se de se atirar ao homem que erguia os olhos para ele.

Greene respondeu serenamente, com segurança.

- Estás a chegar ao resultado certo, mas com os números errados. Mandei fazer isso, é verdade, e tenho a pasta do filho da mãe, incluindo o depoimento contra nós. Mas o contrato foi tão distante que as pessoas que se encarregaram dele não sabem que eu existo. Para te pôr em dia, foram apanhados esta manhã. No Oeste da Virgínia. Têm dinheiro sujo cuja origem pode ser localizada numa empresa que estava metida numa trapaça. E não somos nós... Não, Fontine, eu não fui. O que quer que fosse, foi lá que aconteceu. Acho que deitaste tudo a perder.

Andrew abanou a cabeça.

- Impossível. Entreguei...

- Por favor. Nada de responsabilidades. Não quero saber, porque isso já não me interessa para nada. Tenho uma mala no Dulles e um bilhete só de ida para Telavive. Mas vou fazer-te um último favor. Quando tudo deu no vinte, telefonei a uns quantos amigos da Inspecção-Geral que estavam em dívida para comigo. Aquele depoimento do Barstow com que tanto nos ralámos nem sequer fazia parte do bolo da captura.

- Que queres tu dizer?

- Lembras-te da pergunta de rotina do Congresso? Do grego do qual nunca ouviste falar...?

- Dakakos?

- Nem mais. Theodore Dakakos. Lá no gabinete do inspector-geral chamam-lhe a sonda Dakakos». Foi ele. Ninguém sabe como, mas foi esse grego que descobriu tudo quanto havia a descobrir sobre o Corpo de Vigilantes. E encaminhou-o peça a peça para os dossiers da Inspecção-Geral.

Theodore Dakakos, pensou Andrew. Theodore Annaxas Dakakos, filho de um ferroviário grego assassinado havia trinta anos nos armazéns de mercadorias de Milão, por um sacerdote que era seu irmão. Homens invulgares iam a extremos invulgares para assumirem o controlo da arca de Constantino. O

militar sentiu-se estranhamente sereno.

- Obrigado por me dizeres - disse. Greene levantou a pasta: - A propósito, fiz uma viagem a Baltimore.

- Os registos de Baltimore contam-se entre os melhores - comentou Fontine.

- Para onde vou, podemos precisar de grande poder de fogo no Neguev. Estes seriam capazes de proporcioná-lo.

- Muito possivelmente.

Greene hesitou, e a seguir perguntou baixinho:

- Queres vir daí? Podemos esconder-te. Há coisas piores.

- Posso arranjar melhor.

- Deixa de te iludires, Fontine! Usa alguma coisa do teu famigerado dinheiro e põe-te a mexer daqui o mais depressa que possas. Compra um refúgio. Estás acabado.

- Enganas-te. Ainda agora comecei.

O trânsito do meio-dia em Washington era ainda mais retardado pela trovoada de Junho. Era um daqueles dilúvios sem momentos de alívio que permitissem aos peões correr de um portal para um toldo e deste para outro portal. Os limpa-vidros pouco mais faziam que imiscuir-se nas torrentes de água que cobriam o vidro, distorcendo inteiramente a visão.

Adrian ia instalado no assento de trás do táxi, com os pensamentos repartidos por três pessoas: Barbara, Dakakos e o irmão.

Barbara estava em Boston, provavelmente nesse momento nos arquivos da biblioteca, procurando a informação - a extraordinária informação - sobre a destruição das refutações do Filioque. Se esses documentos antigos estivessem na arca de Constantino e se estabelecesse sem margem para dúvidas prova da sua destruição... Teria a arca sido encontrada? A é igual a B e B é igual a C. Logo, A é igual a C. Ou não?

Theodore Dakakos, o infatigável Annaxas, devia andar a passar os hotéis e as firmas de advogados de Chicago a pente fino à procura dele. Não havia razão para que o grego não o fizesse: uma viagem de serviço a Chicago era perfeitamente normal. A distracção era tudo aquilo de que Adrian precisava. Subiria aos seus aposentos, recolheria o passaporte e telefonaria a Andrew. Podiam ambos sair de Washington, evitando Dakakos. O pressuposto tinha de ser que Dakakos estava a tentar travá-los. O que queria dizer que Dakakos-Annaxas tinha conhecimento do que o pai deles havia planeado. Era bastante fácil. Um velho regressa de Itália, com uma esperança de vida curta. E convoca ambos os filhos.

Um desses filhos era a terceira preocupação de Adrian. Onde estava o irmão. Telefonara repetidamente para o apartamento de Andrew na Virgínia durante a noite inteira. O que ralava Adrian, e o reconhecimento do facto não era fácil para ele, era que o irmão estava mais bem equipado do que ele para lidar com uma pessoa como Dakakos. A sua vida era feita de iniciativas e contra-iniciativas, e não de teses e antíteses.

- Entrada da garagem - disse o motorista do táxi. - Aqui está ela. Adrian atravessou a chuva a correr até à garagem das District Towers. Teve de orientar-se antes de seguir em direcção ao elevador. Ao fazê-lo, levou a mão ao bolso, à procura da chave com a etiqueta de plástico; nunca a deixava na recepção.

- Viva, Mister Fontine! Como vai?

Era o encarregado da garagem; Adrian recordava-se vagamente da cara. Um videirinho descorado, de vinte anos, com olhos de furão.

- Olá - respondeu Adrian, carregando no botão do elevador.

- Escute lá, mais uma vez, obrigadinho. Fico muito agradecido, está a perceber? Quero eu dizer, foi muito simpático da sua parte.

- Ora essa - disse Adrian inexpressivamente, fazendo votos por que o elevador chegasse.

- Escute lá. - O empregado endereçou-lhe uma piscadela de olho. - Está com muito melhor aspecto que ontem à noite. Aquilo é que era cá um borracho, hem?

- O quê?

O empregado sorriu. Não, não era simplesmente um sorriso, era um olhar lúbrico.

- Eu cá também engatei uma. Mesmo boa. Tal como o senhor disse.

- Que disse você? Viu-me ontem à noite?

- Ora, com franqueza! Nem sequer se lembra? Tenho de reconhecer que o amigo estava entornado.

Andrew! Andrew era capaz de fazer aquilo quando lhe apetecia! Caminhava todo encolhido, punha um chapéu e entaramelava as palavras. Tinha composto dúzias de vezes essa caricatura.

- Diga-me cá, que eu estou um tanto ou quanto baralhado. A que horas cheguei eu?

-Jesus! O senhor estava num estado... Por volta das oito, não se lembra? Deu-me... - O empregado calou-se; o vídeirinho que havia nele impedia a revelação integral.

As portas do elevador abriram-se e Adrian entrou. Com que então Andrew tinha vindo vê-lo enquanto ele estava a tentar telefonar-lhe para a Virgínia. Teria Andy sabido de Dakakos? Já teria deixado a cidade? Talvez Andy estivesse naquele momento lá em cima. Mais uma vez o reconhecimento era inquietante, mas Adrian sentiu um certo alívio perante tal perspectiva. O irmão saberia o que fazer.

Adrian atravessou o corredor até à porta da suite e entrou. Ao fazê-lo, ouviu passos à sua retaguarda. Voltou-se de rompante e viu um oficial do Exército de pé à porta do quarto. Não era Andrew: era um coronel.

- Quem diabo é o senhor?

O oficial não respondeu de imediato. Ao invés, manteve-se imóvel, as sobrancelhas franzidas. Quando afinal falou, havia um ligeiro tom arrastado na sua voz fria.

- Não há dúvida, parece-se mesmo com ele. Se vestisse uma farda e endireitasse os ombros, podia ser realmente ele. Agora, tudo o que tem a fazer é dizer-me onde ele está.

- Como foi que entrou aqui? Quem diabo o deixou entrar?

- Deixe-se de responder a uma pergunta com outra pergunta. A minha está primeiro.

- O que está primeiro é que o senhor está a invadir propriedade alheia. - Adrian encaminhou-se rapidamente para o telefone, passando pela frente do oficial. - A menos que tenha um mandato de um tribunal civil, vai daqui direitinho a uma esquadra de polícia civil.

O coronel desapertou um botão do dólman, meteu a mão lá dentro e tirou uma pistola. Accionou a patilha de segurança e apontou a arma.

Adrian tinha o telefone na mão esquerda, enquanto a direita estava poisada

no marcador. Aturdido, suspendeu todo o movimento; a expressão do rosto do oficial não se alterara.

- Escute aqui - disse novamente o coronel. - Eu podia fazer-lhe saltar ambas as rótulas apenas por se parecer com ele. Será capaz de perceber isso? Sou um homem civilizado, um advogado como você; mas quando está em causa o major Fontine, do Corpo de Vigilantes, todas as regras vão pela borda fora. Farei seja o que for para apanhar esse filho da mãe. Está a entender?

Adrian pousou vagarosamente o telefone.

- O senhor é louco.

- Uma coisa de nada, comparado com ele. Agora, diga-me onde ele está.

- Não sei.

- Não acredito em si.

- Espere aí um minuto! - Sob o choque, Adrian não tivera a certeza daquilo que ouvira. Agora tinha-a. - Que sabe o senhor do Corpo de Vigilantes?

- Muito mais do que vocês, seus filhos da mãe paranóicos, querem que eu saiba. Julgariam realmente que se safavam?

- Você está redondamente enganado! Havia de sabê-lo, se soubesse alguma coisa a meu respeito! Quanto ao Corpo de Vigilantes, estamos do mesmo lado. Agora, por amor de Deus, que tem você contra ele?

O oficial retorquiu com lentidão.

- Matou dois homens. Um capitão chamado Barstow e um oficial jurídico chamado Tarkington. Ambos os assassínios foram perpetrados de forma a parecerem casuais, relacionados com bebida e prostitutas. Não foram. No caso de Tarkington, era inconsistente: ele não bebia.

- Oh, Jesus!

- E foi retirado um dossier do gabinete de Tarkington em Saigão. O qual era consistente. O que eles não sabiam era que nós possuíamos uma cópia completa.

- «Nós» quem?

- O gabinete do inspector-geral. - O coronel não baixou a pistola; as suas respostas eram dadas num monocórdico tom arrastado do Sudoeste. - Ora bem, vou conceder-lhe simplesmente o benefício da dúvida. Você sabe o que pretendo dele, de maneira que me dirá onde está ele. O meu nome é também Tarkington. Bebo, não tenho maneiras delicadas e quero o filho da mãe que matou o meu irmão.

Adrian sentiu que o fôlego se lhe escoava dos pulmões.

- Lamento...

- Agora já sabe porque saquei eu da arma e porque a utilizarei. Para onde foi ele? Como é que foi?

Adrian precisou de um momento para se concentrar.

- Onde? Como? Não sabia sequer que ele tinha partido. Porque é que está certo disso?

- Porque sabe que andamos atrás dele. Sabemos que tomou conhecimento disso; estabelecemos a ligação esta manhã. Um capitão chamado Greene, do Pentágono. Das aquisições. Escusado será dizer que desapareceu igualmente. Provavelmente a estas horas já está a meio caminho do outro lado do mundo.

«... a meio caminho do outro lado do mundo...» As palavras chegaram-lhe ao entendimento e a compreensão principiou a vir à tona. «A meio caminho do outro lado do mundo. De Itália. Campo di Fiori. Um quadro na parede e as

recordações de há meio século. A arca de Constantino!»

- Verificaram os aeroportos?

- Ele tem um passaporte militar normal. Todos os militares...

- Oh, Jesus! - Adrian precipitou-se para o quarto. - Quieto! - O coronel agarrou-o pelo braço.

- Largue-me! - Fontine sacudiu a mão do oficial e correu ao quarto de dormir. Direito à cómoda.

Abriu a gaveta superior direita. Atrás dele, a mão do coronel adiantou-se de chofre e fechou-a violentamente, entalando-lhe o pulso.

- Se você se sai com qualquer coisa que não me agrade, disparo. - O coronel largou a gaveta.

Fontine sentiu a dor e viu o inchaço do pulso. Não conseguia pensar numa coisa nem noutra. Abriu uma grande carteira de pele. O seu passaporte desaparecera. E igualmente a sua carta de condução internacional e o livro de cheques do Banco de Genebra com os números de código e a fotografia na badana.

Adrian voltou-se e atravessou o quarto em silêncio. Deixou cair a bolsa de pele na cama e continuou até à janela. A chuva lá fora caía em torrentes de encontro ao vidro.

O irmão tinha-o retido. Andrew fora no encalço da arca, dispensando todo o auxílio. Nunca o quisera. A arca de Constantino era a derradeira arma de Andrew. Nas suas mãos, tornava-se algo de mortífero.

A ironia, reflectiu Adrian, estava no facto de que o oficial do Exército que se encontrava atrás dele podia ajudar. Tinha a possibilidade de abater barreiras burocráticas, de providenciar transporte imediato; mas o oficial do Exército não podia ser posto ao corrente de nada sobre o comboio de Salónica.

«Há quem fosse capaz de trocar metade dos arsenais deste mundo pela informação». Palavras do pai.

Falou serenamente.

- Aí tem a sua prova, coronel.

- Acho que sim.

Adrian voltou-se de frente para o oficial.

- Diga-me, como de um irmão para outro irmão: como foi que conseguiram apanhar o Corpo de Vigilantes?

O coronel afastou a arma.

- Um homem chamado Dakakos.

- Dakakos?

- Sim; é grego. Conhece-o?

- Não, não conheço.

- Inicialmente, os dados apareciam lentamente. Mesmo no meu departamento, marcados para mim com o nome. Quando o Barstow se foi abaixo e prestou o seu depoimento em Saigão, lá estava outra vez o Dakakos. Mandou recado ao meu irmão para que fosse ter com o Barstow. O Corpo de Vigilantes estava coberto tanto cá como lá...

- Por dois irmãos que podiam pegar num telefone e juntar as peças todas - disse Adrian, interrompendo. - Sem interferência burocrática.

-Imaginámos isso. Não sabemos porquê, mas esse tal Dakakos andava na peugada do Corpo de Vigilantes.

- Não restam dúvidas de que andava - concordou Adrian, espantado com a clarividência do método de Dakakos.

- Ontem, veio tudo a lume. Dakakos mandou seguir Fontine até Panhiet. Até um armazém. Agora estamos de posse dos registos do Corpo de Vigilantes, temos as provas...

O telefone tocou, interrompendo o homem do Exército. Adrian mal o ouviu, tal era a sua concentração nas palavras do coronel. Voltou a tocar.

- Posso? - perguntou Adrian.

- É melhor. - O olhar de Tarkington tornou-se novamente frio. - Eu fico ao pé de si.

Era Barbara, a telefonar de Boston.

- Estou nos arquivos. Tenho a informação sobre o tal incêndio na igreja em quarenta e um que destruiu as refutações do Filioque...

-É só um minuto. - Adrian virou a cabeça na direcção do oficial, com o telefone entre eles. Perguntou a si mesmo se a sua voz poderia parecer natural. - Pode atender numa linha na outra sala, se quiser. É apenas um trabalho de pesquisa que eu pedi.

O estratagema resultou. Tarkington encolheu os ombros e dirigiu-se à janela.

- Continua - disse ele para o aparelho.

Barbara falava como um perito a esquadrinhar um relatório com cuja forma está familiarizado; a sua voz subia e baixava de tom à medida que ia arrolando os pontos mais importantes.

- Houve uma reunião de superiores em nove de Janeiro de mil novecentos e quarenta e um, às onze da noite, na Mesquita de Santa Sofia, em Istambul, uma cerimónia de desobrigação. De acordo com as testemunhas, uma entrega de propriedade sagrada aos céus... Neste ponto, está longe de tratar-se de obra apurada: é tudo narrativa. Deveria haver citações directas e traduções literais. Seja como for, continua atestando o acto e enumerando os laboratórios de Istambul e Atenas onde foram confirmados a idade e os materiais dos fragmentos de cinzas. Aí tens, meu incrédulo São Tomé.

- E quanto a essas testemunhas? E a narrativa?

- Estou a ser excessivamente crítica. Podia sê-lo mais: o relatório deveria incluir credenciais de autorização e números das chapas gráficas, mas é tudo rendilhados académicos. O principal é que tem o selo dos arquivos, e isso não é coisa que se compre. Quer dizer que houve alguém acima de qualquer censura que estava presente ao acto e confirmou a incineração. A subvenção de Annaxas obteve aquilo por que pagou. O selo assim diz.

- Qual subvenção? - inquiriu ele baixinho.

- Annaxas. Foi a empresa dele que entrou com o dinheiro para a investigação.

- Obrigadinho. Depois falamos. - Desligou. Tarkington estava postado ao pé da janela, a olhar a chuva lá fora. Era o homem do qual era forçoso fugir; havia que alcançar a arca!

Barbara tinha razão a respeito de uma coisa. Dakakos-Annaxas obtivera exactamente aquilo por que pagara: um relatório falso nos arquivos. Sabia aonde tinha de ir. Campo di Fiori.

Dakakos.

Dakakos, Dakakos, Dakakos!

O nome ardia no cérebro de Andrew enquanto ele observava a costa de Itália desfilando dez mil metros lá em baixo. Theodore Annaxas Dakakos destruíra o Corpo de Vigilantes com o único fito de destruí-lo a ele, de eliminá-lo a ele da busca de uma arca enterrada nas montanhas. O que fora que desencadeara a sua decisão? Como é que ele o fizera? Era vital descobrir tudo quanto pudesse sobre o homem em si. Quanto mais uma pessoa conhecia o inimigo, melhor podia lutar. No pé em que as coisas estavam, Dakakos era o único obstáculo, o único rival.

Havia um homem em Roma que podia ajudar. Era um banqueiro que aparecia com frequência crescente em Saigão, um comprador em larga escala que adquiria cais inteiros, expedia o conteúdo para Nápoles e vendia as mercadorias roubadas por toda a Itália. O Corpo de Vigilantes tinha-o descoberto e usara-o; ele fornecera nomes que iam direitos a Washington.

Um homem desses devia saber de Dakakos.

O aviso fez-se ouvir pelo altifalante da Air Canadá. Iniciariam a descida para o Aeroporto Leonardo da Vinci, em Roma, dentro de um quarto de hora.

Fontine puxou do passaporte. Comprara-o em Quebeque. O passaporte de Adrian tinha-lhe franqueado a passagem na alfândega canadiana, mas sabia que seria inútil depois disso. Washington comunicaria imediatamente o nome Fontine a todos os aeroportos do hemisfério.

Ironicamente, estabeleceu contacto com vários desertores do Exército às duas da manhã em Montreal. Os moralistas exilados precisavam de dinheiro: a moralidade não podia fazer prosélitos sem metal sonante. Um intelectual de cabelo oleoso envergando um blusão de campanha das Forças Armadas conduziu-o a um apartamento que tresandava a haxixe e, a troco de dez mil dólares, conseguiu o passaporte no espaço de uma hora.

Adrian estava tão atrasado que nunca recuperaria.

... Podia pôr Adrian de lado. Se Dakakos queria deter um deles, era evidente que pretendia deter ambos. O grego não chegava para o militar; para o advogado, chegava e sobrava. E, se Dakakos não detivesse Adrian, a falta do passaporte retardá-lo-ia mais que o bastante. O irmão estava fora de jogo, não era rival nenhum.

O avião tocou o solo. Andrew desapertou o cinto; contar-se-ia entre os primeiros a abandonar o avião. Estava com pressa de chegar a um telefone.

A multidão nocturna na Via Veneto era densa e as mesas das esplanadas sob os toldos do Café de Paris estavam quase cheias. O banqueiro tinha-se assenhoreado de uma próxima da porta de serventia, onde se concentrava o trânsito. Era um homem magro, de meia-idade, impecavelmente vestido, e era cauteloso. Nenhum ouvinte poderia captar coisa alguma dita àquela mesa.

O cumprimento que trocaram foi superficial, tornando-se evidente o desejo do banqueiro de dar o encontro por findo o mais rapidamente possível.

- Não vou perguntar-lhe porque está em Roma. Sem morada, sem a sua célebre farda. - O italiano falava velozmente, num tom monocórdico que não emprestava ênfase a nenhuma palavra e, assim, o colocava em todas. - Correspondi à sua exigência de não proceder a investigações. Não era necessário. Você é um homem perseguido.

- Como é que sabe disso?

O esguio italiano fez uma pausa, alongando os finos lábios num leve sorriso.

- Você acaba de mo dizer.

- Aviso-o...

- Ora, deixe-se disso. Um homem chega de avião sem se fazer anunciar e diz que só se encontrará no meio da multidão. É o suficiente para me mandar para Malta a fim de não dar de caras consigo. Além disso, nota-se bem na sua cara. Você não está à vontade.

No essencial, o banqueiro tinha razão. Não se sentia mesmo à vontade. Teria de adaptar-se melhor, descontrair-se mais.

- Você é esperto, mas a verdade é que isso já nós sabíamos em Saigão.

- Nunca o tinha visto na vida - redarguiu o italiano, fazendo sinal a um criado. - Due Campari, perfavore! 1.

- Eu não bebo Campari...

- Então não beba. Dois italianos que mandam vir Campari na Via Veneto não dão nas vistas. Que é precisamente aquilo que eu pretendo. Que quer você discutir?

- Um homem chamado Dakakos. Um grego. O banqueiro arqueou as sobrancelhas.

- Se por Dakakos você pretende designar o Theo Dakakos, é realmente grego.

- Conhece-o?

- Há alguém no mundo da finança que não o conheça? Tem negócios com o Dakakos?

- Talvez. Ele é armador, não é?

- Entre muitos outros interesses. É também bastante jovem e muito poderoso. Até os coronéis de Atenas pensam duas vezes antes de promulgarem decretos que lhe sejam desfavoráveis. O que lhe falta em experiência, compensa-o em energia. É um autêntico touro.

- Qual é a política dele?

O italiano arqueou mais uma vez as sobrancelhas.

- Ele próprio.

- Quais são os interesses dele no Sueste asiático? Para quem é que ele trabalha fora de Saigão?

- Ele não trabalha para ninguém. - O empregado regressou com as bebidas. - Expede produtos semiacabados para a Agency for International Development, em Vienciana. Para o Norte do Laus e Cambodja. Como sabe, é tudo operado pelas Informações. Ao que me consta, pôs-se a andar.

Era isso, pensou Fontine, arredando o copo de Campari. O Corpo de Vigilantes tinha-se posto na peugada da corrupção na AID, e Dakakos pusera-se na peugada deles.

- Deu-se a uma data de maçadas para interferir.

- Conseguiu interferir?... Estou a ver que sim. Annaxas, «o Moço», consegue mesmo, habitualmente; é perverso e previsível nesse campo. - O italiano ergueu delicadamente o copo.

- Que nome foi que disse?

- Annaxas. Annaxas, «o Moço», filho de Annaxas, «o Forte». Parece teano, não parece? As linhagens de sangue gregas, por mais ínfimas que sejam, estão-lhes sempre na ponta da língua. Pretensioso, parece-me a mim.

- Ele usa-o muito?

 

1. Em italiano no original: «Dois Campari, por favor». (N. do T.)

 

- Para ele mesmo, não é frequente. O iate dele chama-se Annaxas e há diversos aviões que são Annaxas; Um, Dois, Três. Insere o nome numa porção de títulos de empresas. É nele uma obsessão. O filho primogénito de uma família pobre criado por uma ordem religiosa qualquer do norte. As circunstâncias são nebulosas; ele não alimenta a curiosidade. - O italiano esvaziou o copo.

- Isso é interessante.

- Disse-lhe alguma coisa que você não soubesse?

- Talvez - respondeu descuidadamente Fontine. - Não é importante.

- Quer você dizer com isso que o é. - O italiano exibiu o seu sorriso pálido e exangue. - O Dakakos está em Itália, sabe?

Fontine ocultou a surpresa.

- Está mesmo?

- Com que então tem mesmo negócios com ele. Há mais alguma coisa?

- Não.

O banqueiro pôs-se de pé e dirigiu-se rapidamente para o meio da multidão da Via Veneto.

Andrew conservou-se à mesa. Por conseguinte, Dakakos estava em Itália. Perguntou a si próprio onde se encontrariam. Desejava ardentemente esse encontro; quase tanto como desejava encontrar a arca de Salónica.

Queria matar Theodore Annaxas Dakakos. O homem que destruirá o Corpo de Vigilantes não merecia viver.

Andrew ergueu-se da mesa. Sentiu o volume dos papéis no bolso do casaco. As recordações do pai de meio século atrás.

Adrian mudou a mala de couro macio para a mão esquerda e sentiu por trás o fluxo de passageiros no largo átrio do aeroporto londrino de Heathrow. Não queria estar entre os primeiros da fila para mostrar os passaportes. Desejava misturar-se no grupo do meio, ou mesmo no fim: teria mais tempo para olhar em redor, tornar-se-ia menos notado ao fazê-lo. Perguntou a si mesmo quem, na mole de gente no terminal, o teria sob a mira.

O coronel Tarkington não era parvo nenhum; havia de saber, no espaço de minutos depois de ele o requerer, que estava um tal Fontine nos Serviços de Emigração do Rockefeller Center à espera de que lhe passassem uma segunda via do passaporte. Era inteiramente possível que um agente da IG o tivesse apanhado antes de ter saído do edifício. Se ninguém o fizera ainda, era apenas uma questão de tempo. E, devido a essa certeza, Adrian seguira de avião para Londres, e não para Roma.

Amanhã daria início à caça, um amador contra profissionais. O seu primeiro passo era desaparecer, mas não tinha a certeza de como. Por um lado afigurava-se-lhe simples: um único ser humano entre milhões - até que ponto podia ter dificuldade? Depois pensara melhor: uma pessoa teria de atravessar fronteiras nacionais, e isso significava que havia que possuir identificação; uma pessoa tinha de dormir e comer, e isso representava um tecto e compras, lugares que podiam ser vigiados e postos de sobreaviso.

Não era de modo nenhum simples; e muito menos se o ser humano em questão não tivesse experiência. Não possuía contactos no submundo; não saberia como agir se o encontrasse. Duvidava que pudesse abordar alguém e pronunciar as palavras: «Pago um passaporte falso»; ou: «Arranje-me uma saída ilegal para a Itália»; ou mesmo: «Não lhe vou dizer o meu nome, mas pagarei dinheiro por determinados serviços». Esse género de ousadia pertencia à ficção. Os homens e as mulheres vulgares não faziam tais coisas; as pessoas rir-se-iam do seu acanhamento. Os profissionais, porém - do tipo daqueles com os quais se confrontava -, não eram vulgares. Faziam coisas dessas com toda a facilidade.

Viu as filas para a verificação de passaportes. Eram ao todo seis; escolheu a mais comprida. No entanto, ao encaminhar-se para ela, apercebeu-se de que a decisão fora um tanto ou quanto própria de amador. Era certo que dispusera de mais tempo para olhar em redor, mas, em contrapartida, também outros tinham disposto dele.

- Profissão, senhor? - perguntou o funcionário dos Serviços de Imigração.

- Sou advogado.

- Veio em viagem de serviço?

- Por assim dizer. Também de passeio.

- Quanto tempo de estada prevê?

- Não sei bem. Mais de uma semana, não.

- Tem alojamento em hotel?

- Não reservei quarto. Provavelmente fico no Savoy.

O funcionário ergueu fugazmente o olhar; era difícil distinguir se estava impressionado ou ressentido com o tom de voz de Adrian. Ou se o nome Fontine, estava numa lista escondida algures na gaveta da estante e ele queria olhar-lhe para a cara.

Não obstante, sorriu maquinalmente e carimbou as páginas do passaporte recém-emitido, entregando-o a Adrian.

- Desejo-lhe uma estada agradável na Grã-Bretanha, Mister Fontine.

- Obrigado.

O Savoy arranjou-lhe um quarto por cima do pátio, propondo-se transferi-lo para uma suite sobre o Tamisa logo que houvesse uma disponível. Ele aceitou a oferta, dizendo que tencionava manter-se em Inglaterra durante o mês quase todo. Andaria por fora - passando a maior parte do tempo longe de Londres -, mas gostaria de uma suite disponível durante o período da estada.

O que o espantou foi a facilidade com que mentia. Tudo lhe saía com naturalidade, com uma certa segurança profissional. Não se tratava de uma manobra importante, mas o facto de fazê-la tão bem incutiu-lhe uma sensação de confiança. Tirara partido de uma vantagem quando esta se lhe apresentara; o importante era isso. Surgira uma oportunidade e actuara em conformidade.

Sentou-se na cama, com horários de aviões espalhados pela colcha. Encontrou o que pretendia. Um voo da SAS de Paris para Estocolmo às 10.30. E um da Air Afrique de Paris para Roma. Hora: 10.15. O voo da SAS partia do Aeroporto De Gaulle, o da Air Afrique de Orly.

Um quarto de hora entre voos, a partida depois da chegada, de aeroportos adjacentes. Perguntou a si mesmo - quase academicamente - se seria capaz de conceber uma mistificação, organizando os factos e executando a manobra do princípio ao fim.

Teriam de ser consideradas coisas avulsas. Artigos que faziam parte do... «guarda-roupa», era essa a palavra. Parte do estratagema que chamaria a atenção adequada num aeroporto apinhado de gente, cheio de azáfama. Pegou num bloco-notas do Savoy e escreveu:

Três malas - invulgares

Casaco comprido - que dê nas vistas.

Óculos.

Chapéu. -De abas largas.

Pequena barba postiça.

O último elemento - a barba - fê-lo sorrir constrangidamente, embaraçado com a sua própria imaginação. Estaria doido? Quem pensava ele que era? Que pensava que estava a fazer? Moveu instintivamente o lápis para a esquerda da linha, prestes a riscá-la. Depois deteve-se. Não estava doido. Fazia parte da ousadia que tinha de absorver, do incomum com o qual tinha de sentir-se à vontade. Afastou o lápis e, sem pensar, escreveu o nome: «Andrew».

Onde estaria ele agora? Teria o irmão chegado a Itália? Teria viajado por meio mundo sem ser encontrado? Estaria à espera dele em Campo di Fiori?

E, se estivesse efectivamente à espera, que diriam um ao outro? Não tinha pensado nisso; não quisera pensar nisso. Como um resumo final difícil perante um júri hostil, não conseguia ensaiar as palavras. Apenas podia ordenar os factos na cabeça e confiar nos seus próprios processos quando chegasse o momento. Mas que se dizia a um gémeo que fora o assassino do Corpo de Vigilantes? O que havia a dizer?

«... Tenham em mente que o conteúdo dessa arca é do mais desconcertante que há na História para o mundo civilizado...»

O irmão tinha de ser neutralizado. Era tão simples como isso.

Olhou para o relógio. Uma da manhã. Sentiu-se grato por ter dormido pouco nos últimos dias. Isso tornaria possível o sono agora. Urgia repousar; tinha muita coisa a fazer. Paris.

Avançou até ao empregado da recepção do Hotel Pont Royale e entregou-lhe a chave do quarto. Havia cinco anos que não ia ao Louvre; seria um pecado cultural evitá-lo, já que ficava tão próximo. O empregado concordou educadamente, mas Adrian viu a curiosidade velada nos olhos do homem. Aquilo representava uma corroboração mais do que Adrian suspeitara: estava a ser seguido; havia perguntas a serem feitas.

Caminhou em direcção ao sol radioso da Rue de Bac. Acenou, com um sorriso, ao porteiro em resposta ao oferecimento de um táxi.

- Vou ao Louvre. Sigo a pé, obrigado.

Chegado ao passeio, acendeu um cigarro, virando-se ligeiramente como que a evitar uma brisa, e deixou os olhos errarem até às amplas janelas do hotel. Lá dentro, através dos vidros, obscurecido pelo reflexo do sol, viu o empregado a falar com um homem de sobretudo castanho-claro. Adrian não tinha a certeza, mas estava convencido de que vira aquele casaco de tecido de gabardina no aeroporto havia duas horas.

Começou a dirigir-se para leste, descendo a Rue de Bac, rumo ao Sena e ao Pont Royale.

O Louvre encontrava-se apinhado de gente. Os turistas misturavam-se com autocarros cheios de estudantes. Adrian subiu os degraus, passando pela Vitória de Samotrácia, e prosseguiu pela escadaria da direita até ao segundo patamar, entrando no salão dos mestres do século XIX. Juntou-se a um grupo de turistas alemães.

Os alemães deslocaram-se em bloco até ao quadro seguinte, de Delacroix. Adrian achava-se agora no meio do grupo. Mantendo a cabeça num plano inferior ao do alemão mais alto, virou-se e espreitou por entre os corpos curvados, para lá das caras impassíveis. Viu aquilo que temia e ao mesmo tempo desejava ver: o sobretudo castanho-claro.

O homem estava a quinze metros de distância, a fingir que lia um folheto do museu, relacionando-o com um Inglês à sua frente. Mas não estava a ler nem tão-pouco a relacionar: os olhos não cessavam de desviar-se do papel para a multidão de alemães.

O grupo dobrou a esquina, passando ao corredor que atravessava a sala. Adrian estava encostado à parede. Arredou os corpos à sua frente, pedindo desculpa, até ultrapassar o guia e libertar-se do grupo. Caminhou velozmente pelo flanco direito do enorme salão e virou à esquerda, penetrando numa sala

mal iluminada. Pequenos projectores colocados no tecto escuro incidiam numa dúzia de estátuas de mármore.

Ocorreu-lhe repentinamente que, se o homem do sobretudo castanho-claro viesse àquela sala, não havia saída.

Por outro lado, caso o homem entrasse, tão-pouco para ele havia saída Adrian perguntou a si próprio qual dos dois teria mais a perder. Não possuía resposta e, por conseguinte, manteve-se imóvel na penumbra do extremo mais afastado da sala, para lá dos feixes de luz, e aguardou.

Viu o grupo de alemães cruzar a soleira da porta. Daí a segundos surgiu a mancha indistinta do sobretudo castanho-claro; o homem ia a correr, mesmo a correr.

A multidão na escadaria era mais compacta que anteriormente. Havia um contingente de raparigas com farda de um colégio que principiava a subir os degraus. Atrás das raparigas vinha o homem do sobretudo castanho-claro, vendo frustrada a tentativa de passar e alcançar os degraus.

Tudo se tornou repentinamente claro para Adrian. O homem perdera-o e esperaria à saída.

Restava o evidente: alcançar primeiro as portas principais.

Adrian apressou-se a descer os degraus, fazendo os possíveis por parecer que não ia açodado: apenas um homem atrasado para um almoço.

Ao fundo dos degraus, diante da fachada, um táxi despejava quatro japoneses. Um casal idoso, manifestamente britânico, cruzava o passeio na direcção do táxi. Correu, passando adiante do casal, e chegou primeiro ao táxi.

- Dépêchez-vous, s'il vous plait. Três importante!

O motorista descobriu os dentes num sorriso e pôs o carro em marcha. Adrian virou-se no assento e espreitou pelo vidro traseiro. Nos degraus, o homem do sobretudo castanho-claro estava parado a olhar para cima e para baixo, confundido e furioso.

- Aeroporto de Orly - ordenou Adrian. - Air Afrique.

Havia mais multidões e mais filas, mas a fila onde ele se achava era curta. E o sobretudo castanho-claro não se via em parte alguma. Ninguém parecia interessado na sua pessoa.

A rapariga negra com o uniforme da Air Afrique endereçou-lhe um sorriso.

- Queria um bilhete para Roma no vosso voo de amanhã de manhã às dez e um quarto. O meu nome é Llewellyn. É com dois Ll ao princípio. Em primeira classe, se faz favor, e, caso seja possível, gostaria que me marcasse já o lugar. Amanhã vou chegar muito à justa, mas mantenha a reserva. Pago em dinheiro.

Saiu as portas automáticas do terminal de Orly e fez sinal a outro táxi.

- Aeroporto De Gaulle, por favor. SAS.

A fila era mais comprida e o serviço mais lento e havia um homem a olhá-lo fixamente atrás de uma fiada de cadeiras de plástico. No terminal de Orly não havia ninguém a fitá-lo daquela maneira. Interrogou-se e formulou um voto.

- Estocolmo, ida e volta - disse arrogantemente ao empregado da SAS atrás do balcão. - Têm um voo amanhã às dez e meia. É esse que eu quero.

O empregado levantou os olhos dos papéis.

- Vou ver o que temos, senhor - respondeu com dissimulada irritação,

' Em francês no original: «Despache-se, se faz favor. Muito importante». (N. do T.)

num carregado sotaque escandinavo. - Qual seria a data de regresso?

- Não tenho a certeza, de forma que é deixá-la em aberto. Não estou interessado em pechinchas. O meu nome é Fontine.

Cinco minutos depois os bilhetes estavam passados e o pagamento feito.

- É favor estar aqui uma hora antes da partida, senhor - disse o funcionário, adquirindo vivacidade sob a impaciência de Adrian.

- Com certeza. Agora, há um pequeno problema. Levo uns objectos valiosos, muito frágeis, na bagagem. Gostaria...

- Não podemos responsabilizar-nos por coisas dessas - atalhou o empregado.

- Deixe-se de tretas! Bem sei que não podem. Só quero certificar-me de que põem letreiros de «Frágil» em sueco, ou norueguês, ou lá que raio é. As minhas malas são fáceis de reconhecer...

Deixou o terminal de De Gaulle convencido de ter indisposto um fulano muito simpático que havia de queixar-se dele aos colegas, e meteu-se num táxi.

- Hotel Pont Royale, por favor. Rue de Bac.

Adrian viu-o a uma mesa numa pequena esplanada no passeio da Rue Duont. Era um americano, a beber vinho branco, e dir-se-ia um estudante capaz de fazer render uma bebida por causa do preço. A idade não constituía problema: parecia suficientemente alto. Adrian dirigiu-se a ele.

- Olá!

- Viva - respondeu o jovem.

- Posso-me sentar? Oferecer-lhe uma bebida?

- Que diabo, porque não? Adrian sentou-se.

- Anda na Sorbona?

- Não. Na Escola das Belas-Artes. Sou um pintor legítimo de cenas do real. Faço-lhe um esboço por trinta francos. Que tal?

- Não, obrigado. Mas vou dar-lhe muito mais que isso se você fizer outra coisa.

O estudante fitou-o desconfiadamente, com ar de desagrado.

- Não passo nada a ninguém. O melhor é pôr-se a andar. Sou um fulano muito respeitador da lei.

- E eu sou mais do que isso. Sou advogado. Para dizer a verdade, sou advogado de acusação. Com um cartão para o provar.

- Não parece.

- Oiça-me mas é até ao fim. Que pode isso custar? Cinco minutos e um pouco de vinho decente?

Às nove e um quarto da manhã Adrian apeou-se da limosina, diante das portas de vidro da SAS no terminal De Gaulle. Vestia um casaco comprido eduardiano com folhos de fazenda branca; fazia uma perfeita figura de parvo, mas não podia deixar de ser visto. Na cabeça trazia um feltro branco de abas largas a condizer, com o tecido puxado para baixo sobre a cara à maneira de Barrymore, ficando o rosto na sombra. Sob o chapéu trazia uns enormes óculos escuros que lhe cobriam bem mais do que os olhos, e debaixo do queixo envergava um lenço de pescoço de seda azul que sobressaía, bojudo, do casaco branco.

O motorista fardado contornou o carro em corrida até ao porta-bagagens da limosina, abriu-o e chamou bagageiros para atenderem o seu importantíssimo passageiro. Três grandes malas de pele branca foram empilhadas num carrinho de transporte, perante os protestos de Adrian de que estavam a esfolá-las.

Cruzou as portas de abertura electrónica e dirigiu-se ao balcão da SAS.

- Sinto-me pessimamente - disse incisivamente, dando a entender os efeitos de uma ressaca - agradecia o menor número de dificuldades possível. Quero que a minha bagagem seja a última a embarcar; é favor conservarem-na atrás do balcão até à última chamada de bagagens. Fazem-me sempre isso. O cavalheiro que aqui estava garantiu-me que não haveria problemas.

O empregado atrás do balcão pareceu desconcertado. Adrian bateu com a carteira do bilhete no tampo.

- Porta quarenta e dois, senhor - disse o empregado, devolvendo-lhe a carteira. - O embarque é às dez horas.

- Eu espero além - respondeu Adrian, indicando a fiada de cadeiras de plástico no interior da área da SAS. - Olhe que aquilo da bagagem é a sério. Onde é que são os lavabos?

Às dez menos dezoito, Adrian levantou-se da cadeira de plástico e atravessou o terminal apinhado de gente. Empurrou a porta marcada Hommes e entrou.

Dentro de um compartimento dos lavabos, procederam atabalhoadamente à troca de vestuário.

- Isto é esquisitíssimo, parceiro. Jura que não há nada neste casaco disparatado?

- Nem sequer é suficientemente antigo para ter cotão... Aqui tem os bilhetes; dirija-se à porta quarenta e dois. Pode deitar fora os talões da bagagem, que eu não me importo. A menos que queira as malas, que são caras como o diabo. E estão vazias.

- Em Estocolmo ninguém me deita a luva? Garante?

- Desde que utilize o seu próprio passaporte e não diga que é a minha pessoa. Dei-lhe os meus bilhetes, mais nada. Tem a minha nota para o provar. Pode acreditar na minha palavra, ninguém há-de incomodá-lo. Você não sabe onde eu estou e não há nenhum mandato de captura. Não há nada.

- Você é pílulas! Mas pagou-me as propinas por um par de anos, além de uma boa quantia para despesas de subsistência. É um pílulas bom.

- Esperemos que seja suficientemente bom. Segure-me aí no espelho. - Adrian premiu a barba contra o queixo, e ela aderiu rapidamente. Analisou os resultados e, satisfeito, pôs o gorro de rabo de raposa, inclinando-o para uma banda. - Pronto, vamos a isto. Está com um esplêndido aspecto.

Às dez menos onze, um homem de casaco comprido e chapéu branco a condizer, lenço de pescoço azul e óculos escuros passou pelo balcão da SAS a caminho da porta quarenta e dois.

Trinta segundos mais tarde, um jovem barbado - manifestamente americano -, de sujo blusão de campanha, calças de caqui, botas de cowboy e gorro de cauda de raposa, esgueirou-se dos lavabos, virou bruscamente à esquerda, misturando-se com a multidão, e dirigiu-se para a porta de saída. Chegado ao passeio, correu para um táxi que esperava, entrou e desfez-se da barba.

- O meu nome é Llewellyn! - gritou para a funcionária da Air Afrique que se encontrava junto da estante na porta de embarque. - Desculpe o atraso. Ainda cheguei a tempo?

A negra de ar simpático sorriu e respondeu com sotaque francês:

- Mesmo à tangente, monsieur. Acabamos de fazer a última chamada. Tem alguma bagagem de mão?

- Nadinha.

Às dez e vinte e três, o avião das dez e quinze da Air Afrique para Roma começou a rolar pelo asfalto em direcção à pista sete. Às dez e vinte e oito descolava. Levava apenas treze minutos de atraso.

O homem que se intitulara Llewellyn ia sentado ao pé da janela, com o gorro de rabo de raposa à esquerda, no assento vazio adjacente da primeira classe. Sentia a cola facial a endurecer no queixo, e esfregou-o numa espécie de estupor.

Tinha conseguido. Desaparecera.

O homem do sobretudo castanho-claro embarcou no voo da SAS para Estocolmo às dez e vinte e nove. A partida estava atrasada. Ao caminhar pela classe turística, deixou ficar para trás o passageiro vestido à moda, com o casaco branco comprido e o chapéu branco a condizer. Pensou de si para si que o homem que seguia era um idiota de primeira. Quem pensava ele que era, para andar naquele preparo?

Às dez e cinquenta o voo para Estocolmo descolava. Ia com dez minutos de atraso, o que não era invulgar. O homem da classe turística tinha despido o sobretudo e ia sentado na zona da frente da cabina, em diagonal atrás do alvo da sua vigilância. Quando as cortinas estavam abertas - como agora acontecia - via distintamente o seu objectivo.

Aos doze minutos de voo o piloto desligou o sinal de apertar os cintos. O sujeito vestido à moda na secção da primeira classe levantou-se do assento da coxia e desfez-se do casaco branco comprido e do chapéu a condizer.

O homem que seguia na diagonal atrás, em classe turística, deu um salto em frente no lugar, aturdido.

- Ora, merda! - resmungou.

Andrew perscrutou pelo pára-brisas o letreiro iluminado pelo feixe mortiço dos faróis. Era de madrugada, mas havia por todo o lado bolsas de nevoeiro.

Milano 5 km

Tinha passado a noite a conduzir, depois de alugar o carro mais veloz que conseguira encontrar em Roma. A viagem nocturna minimizava o risco de ser seguido. Os faróis eram delatores em longas extensões de estradas escuras.

Não esperava que o seguissem. No Rock Creek Park, Greene dissera-lhe que estava marcado. O que o judeu não sabia era que, se a IG o quisesse tão rapidamente, podia tê-lo apanhado no aeroporto. O Pentágono sabia exactamente onde ele estava; um telegrama do secretário do Exército tinha-o feito regressar de Saigão.

Por conseguinte, a ordem para o capturarem não fora ainda emitida. O facto de vir a sê-lo dentro de dias, talvez horas, não era a questão; claro que o seria. Mas ele era filho de Victor Fontine. O Pentágono não se precipitaria a emitir qualquer ordem formal de prisão. O Exército não apresentava de ânimo leve acusações contra um Rockefeller, um Kennedy ou um Fontine. O Pentágono insistiria em mandar regressar os oficiais do Corpo de Vigilantes para obter testemunhos corroborativos. O Pentágono não deixaria coisa alguma ao acaso.

O que significava que tinha tempo para escapar. Porque, quando o Exército estivesse preparado para agir, ele encontrar-se-ia nas montanhas, tentando localizar uma arca que alteraria as regras básicas como nunca até então.

Andrew calcou o acelerador. Precisava de dormir. Um profissional sabia quando o corpo almejava por repouso apesar do momento alto, e os olhos tornavam-se conscientes das órbitas. Acharia uma pequena pousada ou estalagem campestre e dormiria durante a maior parte do dia. Ao fim da tarde seguiria para norte até Campo di Fiori e descobriria um quadro na parede. A primeira pista na busca de uma arca sepultada nas montanhas.

Cruzou sem abrandar os portões de entrada a desfazerem-se e prosseguiu durante vários quilómetros. Deixou-se ultrapassar por dois carros, observando os condutores: não estavam interessados nele. Fez meia volta e tornou a passar os portões. Não havia maneira de saber o que existiria no interior: se haveria algumas medidas de segurança - fios de alarme nos quais tropeçar - ou cães. Tudo quanto conseguia ver era uma sinuosa estrada pavimentada que desaparecia no matagal.

O ruído de um automóvel nessa estrada seria o seu próprio alarme. Não podia correr esse risco; não fazia tenção de anunciar a sua chegada a Campo di Fiori. Afrouxou a marcha do carro e virou para o matagal das orlas, afastando-se o mais possível da estrada.

Cinco minutos mais tarde aproximou-se dos portões. Por uma questão de hábito, verificou se haveria fios ou células fotoeléctricas; não os havia, e atravessou os portões, caminhando pela estrada que sulcava o matagal. Manteve-se na orla, oculto pelas árvores e pela vegetação rasteira até avistar a casa principal. Estava como o pai a descrevera: mais morta do que viva.

As janelas encontravam-se às escuras, sem nenhuma luz acesa no interior. Devia havê-las. A casa estava nas trevas. Um ancião que vivia sozinho precisava de luz: os velhos não se fiavam na vista. Teria o sacerdote morrido?

De súbito, vindo do nada, ouviu-se o som de uma voz, estrídula e lamentosa. Depois passos. Vinham da estrada que ficava para lá da curva para norte do caminho de acesso: a estrada que se recordava de o pai descrever como conduzindo às cavalariças. Fontine deixou-se cair no solo, abaixo do nível da erva, e conservou-se imóvel. Ergueu a cabeça, centímetro a centímetro; esperou, vigilante.

O velho sacerdote surgiu à vista. Envergava uma comprida sotaina preta e trazia um cesto de verga. Falava em voz alta, mas Andrew não via o interlocutor. E tão-pouco lograva distinguir as palavras. Depois o monge parou, voltou-se e tornou a falar.

Houve uma resposta. Foi rápida, autoritária, numa língua que Fontine não identificou imediatamente. Depois viu o companheiro do monge e avaliou-o desde logo como faria relativamente a um adversário. O homem era forte, de ombros largos e maciços, envolvidos por um casaco de pêlo de camelo sobre umas calças de bom corte. Os derradeiros raios de sol iluminavam ambos os homens; não muito bem - tinham a luz por trás -, mas o bastante para se lhes distinguir o rosto.

Andrew concentrou-se no mais jovem, de constituição robusta, que caminhava atrás do sacerdote. Possuía uma cara larga de olhos bastante afastados, sob umas sobrancelhas claras e uma testa bronzeada que fazia ressaltar uma cabeleira curta e descolorida pelo sol. Andaria pelos quarenta e tal, não mais. E o andar era o de um homem voluntarioso, capaz de movimentar-se velozmente, mas sem grande vontade de que algum observador o soubesse. Fontine já comandara homens daqueles.

O velho monge prosseguiu na direcção das escadas de mármore, passando o pequeno cesto para o braço esquerdo e arregaçando com a mão direita as dobras do hábito. Chegado ao degrau superior, parou e voltou-se novamente para o homem mais jovem. A sua voz era mais calma, resignada à presença do leigo, às suas instruções ou a uma e outra coisa. Falava devagar e Fontine não teve então dificuldade em reconhecer a língua. Era grego.

Ao escutar o sacerdote, chegou a outra conclusão, igualmente óbvia. O homem de constituição robusta era Theodore Annaxas Dakakos. «É um autêntico touro...»

O sacerdote prosseguiu, cruzando o amplo alpendre de mármore até às portas; Dakakos subiu os degraus e foi na sua peugada. Entraram ambos.

Fontine deixou-se ficar por vários minutos deitado na relva à beira do acesso. Tinha de pensar. Que traria Dakakos a Campo di Fiori? Que havia ali para ele?

E, à medida que as perguntas tomavam forma, tornava-se evidente a única resposta. Dakakos, o solitário, era ali o poder invisível. A conversa que acabava de registar-se não era uma conversa entre estranhos.

O que tinha de ser determinado era se Dakakos viera sozinho a Campo di Fiori. Ou teria trazido a sua própria protecção, o seu próprio potencial de fogo? Não havia ninguém na casa, nem luz nas janelas, nem ruídos no interior. Abandonaram as cavalariças.

Andrew correu a refugiar-se lá atrás na relva molhada até todas as linhas de mira das janelas ficarem obstruídas pela vegetação descontroladamente crescida. Ergueu-se atrás de uma moita de arbustos e sacou do bolso uma pequena pistola Beretta. Subiu o talude sobranceiro ao acesso e avaliou o ângulo da estrada das cavalariças para lá do pequeno monte. Se os homens de Dakakos estivessem nas cavalariças, seria mera questão de eliminá-los. Sem tiros; isso era essencial. A arma era simplesmente um instrumento; os homens soçobravam debaixo da sua ameaça.

Fontine agachou-se e avançou sinuosamente pelo pequeno monte adiante, em direcção à estrada dos estábulos. As brisas do final da tarde vergavam a erva mais alta e os ramos das árvores; o soldado profissional submeteu-se instintivamente ao ritmo do seu movimento. Os telhados das cavalariças tornaram-se visíveis e principiou a descer silenciosamente a ladeira, rumo à estrada.

Defronte da porta do estábulo encontrava-se um Maseratti cinzento-aço, com os pneus cheios de lama ressequida. Não se ouviam vozes nem havia sinais de vida; havia tão-somente o zumbido sereno dos matagais em redor. Andrew abaixou-se, apoiando-se nos joelhos, pegou num punhado de terra e atirou-o ao ar vinte metros para o lado de lá da estrada, atingindo as janelas das cavalariças.

Ninguém saiu. Fontine repetiu a acção, agora com mais pedras do que terra. O ruído foi mais sonoro; não era possível que passasse despercebido.

Nada. Ninguém.

Cautelosamente, Andrew caminhou pela estrada direito ao carro. Parou antes de lá chegar. O piso da estrada estava duro, mas ainda molhado da chuva anterior.

O Maseratti achava-se virado a norte; não havia pegadas do lado do passageiro, diante dele. Deu a volta ao automóvel; havia impressões distintas do lado do condutor: as marcas dos sapatos de um homem. Dakakos viera sozinho.

Agora não havia tempo a perder. Existia um quadro na parede a retirar e uma viagem a Champoluc que urgia iniciar. Havia igualmente uma bela ironia no facto de encontrar Dakakos em Campo di Fiori. A vida do informador terminaria onde principiara a sua obsessão. Isso, pelo menos, era devido ao Corpo de Vigilantes.

Agora distinguia luzes no interior da casa, mas apenas nas janelas à esquerda da entrada principal. Havia dois candeeiros acesos: um junto ao sofá mais afastado, o segundo mais próximo, à direita de uma poltrona. Dakakos achava-se ao pé da cornija da lareira, fazendo gestos com lentos e deliberados movimentos das mãos. O sacerdote sentava-se na cadeira, de costas para Fontine, e mal se via. A conversa decorria em surdina, inaudível. Era impossível apurar se o grego tinha alguma arma; a suposição tinha de ser que a possuía.

Andrew agarrou num tijolo solto da berma do acesso e voltou à janela.

Ergueu-se, com a Beretta na mão direita e o tijolo na esquerda. Dakakos aproximava-se do sacerdote; o grego argumentava ou explicava, numa concentração absoluta.

Era chegado o momento.

Protegendo os olhos com a mão que empunhava a arma, Fontine estendeu o braço para trás e a seguir, com um movimento em arco, alongou-o para diante, arremessando o tijolo contra o centro da janela. Ouviu-se grande estrondo e vidros e estilhas de madeira voarem em todas as direcções. Enfiou o braço armado pelos caixilhos agora abertos e gritou a plenos pulmões:

- Um movimento e é um homem morto! Dakakos ficou petrificado.

- Você? - sussurrou. - Você foi capturado!

A cabeça do grego tombara para a frente, com os profundos e feios sulcos produzidos pelo cano da pistola na cara a sangrarem abundantemente.

Não havia nada que melhor quadrasse àquele homem do que uma morte dolorosa, pensou Fontine.

- Em nome de Deus, tenha piedade! - gritou o sacerdote, da cadeira do lado oposto, à qual estava amarrado e impotente.

- Cale a boca! - rugiu o militar, com os olhos em Dakakos. - Porque foi que o fez? Por que razão está aqui?

O grego olhava-o fixamente, com a respiração irregular e os olhos inchados.

- Disseram que você fora capturado. Que tinham tudo quanto precisavam. - Mal se conseguia ouvir, falando tanto para si próprio como para o homem que se encontrava à sua frente.

- Cometeram um erro - disse Andrew. - As indicações que tinham foram baralhadas. Não esperava que mandassem as suas desculpas por telegrama, pois não? Que lhe disseram eles? Que me iam capturar?

Dakakos manteve-se silencioso, pestanejando por entre os fios de sangue que lhe escorriam da testa para os olhos. Parecia a Fontine ouvir os chefes do Pentágono: «Nunca admitir. Nunca dar explicações. Tomar o objectivo, que o resto não custa nada».

- Não pense mais nisso - disse serena e glacialmente a Dakakos. - Diga-me simplesmente porque está aqui.

Os olhos do grego rolaram nas órbitas; os lábios moveram-se.

- Você é sórdido. E havemos de detê-lo!

- Nós, quem?

Dakakos arqueou o pescoço, espetando-o para diante, e cuspiu no rosto do militar. Fontine rodou o cano da pistola, enfiando-o no maxilar do grego. A cabeça tombou para a frente.

- Alto! - exclamou o monge. - Eu digo-lhe. Há um sacerdote chamado Land. Dakakos e Land trabalham juntos.

- Quem? - Fontine virou-se abruptamente para o monge.

- É tudo quanto sei: o nome! Há anos que estão em contacto.

- Quem é ele? O que é ele?

- Não sei. Dakakos não diz.

- Está à espera dele? O sacerdote vem cá?

A expressão do monge modificou-se repentinamente. As pálpebras agitaram-se e os lábios estremeceram.

Andrew compreendeu. Dakakos esperava alguém, mas não um sacerdote de nome Land. Fontine levantou o cano da pistola e enfiou-o pela boca do grego semiconsciente.

- Muito bem, padre, tem dois segundos para me dizer o que é. De quem está o filho da mãe à espera?

- Do outro...

- Do outro quê?

O velho monge olhou-o fixamente. Fontine sentiu um duro vazio no estômago. Removeu a pistola.

Adrian.

Adrian vinha a caminho de Campo di Fiori! O irmão tinha-se libertado e vendera-se a Dakakos!

O quadro! Tinha de certificar-se de que o quadro ainda lá estava! Voltou-se, procurando a porta da...

Quando o golpe surgiu, foi paralisante. Dakakos quebrara o fio do candeeiro que lhe amarrava os pulsos e precipitara-se em frente, golpeando com o punho os rins de Andrew, envolvendo com a outra mão o cano da Beretta e torcendo o braço de Fontine até este pensar que o cotovelo ia estalar.

Andrew deixou-se cair sobre o flanco e rebolou aturdido pelo ataque de Dakakos. O grego saltou sobre ele, esmagando-o. Triturou os dedos de Fontine contra o soalho até a pistola disparar, indo a bala alojar-se no arco de madeira da moldura da porta. Andrew alçou os joelhos, atingindo a base do baixo-ventre de Dakakos e esmagando-lhe os testículos até ele arquear as costas, fazendo um esgar de sofrimento.

Fontine voltou a rolar, libertando a mão esquerda, e cravou os dedos na cara ensanguentada que tinha por cima, repuxando a carne pendente. Mesmo assim, Dakakos não recuava, não o largava: desferiu um golpe com os antebraços contra a garganta de Andrew.

Era o momento! Andrew arqueou-se para diante e enterrou os dentes no braço de Dakakos, mordendo bem fundo, como um cão raivoso morderia, sentindo o sangue tépido a aquecer-lhe a garganta. O grego ergueu o braço - com a mão afastada -, e era o espaço de que Fontine precisava. Desferiu segunda joelhada no baixo-ventre de Dakakos e fez deslizar todo o corpo por baixo do gigante; ao fazê-lo, enfiou a mão esquerda no sovaco de Dakakos e comprimiu o nervo com todas as forças que conseguiu reunir.

O grego ergueu o flanco direito. Andrew rolou para o lado esquerdo, afastanto o corpo pesado a pontapé e libertando o braço com um puxão.

Com a velocidade decorrente de uma centena de combates com armas de fogo, Fontine ergueu-se com as coxas assentes nos calcanhares, apontou a Beretta e disparou uma e outra vez contra o peito do informador, que estivera à beira de matá-lo.

Dakakos morrera. Annaxas deixara de existir.

Andrew pôs-se a custo de pé; estava coberto de sangue e sentia todo o corpo moído. Olhou para o sacerdote de Xenope na cadeira. O ancião tinha os olhos fechados e movia os lábios em muda oração.

Restava uma bala na Beretta. Andrew ergueu a arma e fez fogo.

Aturdido, Adrian recebeu o telegrama que o empregado da recepção lhe estendia. Encaminhou-se para a entrada principal do hotel e abriu-o.

Mr. Adrian Fontine

Excelsior Hotel

Roma, Itália

Meu caro Fontine:

É urgente conferenciarmos, pois não deve agir sozinho. Tem de confiar em mim. Nada há a recear da minha pessoa. Compreendo os seus receios, e consequentemente não haverá intermediários; nenhum dos meus homens o interceptará. Esperarei por si sozinho e sozinhos podemos tomar as nossas decisões. Verifique a sua fonte.

Theo Dakakos

Dakakos localizara-o! O grego tencionava encontrar-se com ele. Mas onde? Como?

Adrian sabia que, depois de passar a alfândega em Roma, não havia maneira de impedir os que o procuravam de saber que viera a Itália; era o motivo do passo seguinte da sua estratégia. Mas que Dakakos o contactasse às claras parecia-lhe insólito. Era como se Dakakos partisse do pressuposto de que estavam a trabalhar em conjunto. No entanto, fora Dakakos quem tinha ido no encalço de Andrew, quem fora no encalço do irmão, implacável e engenhosamente, enredando o Corpo de Vigilantes numa astuciosa trama que ludibriara os esforços coordenados da Inspecção-Geral e do Departamento de Justiça.

Os filhos de Victor Fontine - os netos de Savarone Fontini-Cristi - andavam ambos na pista da arca. Por que motivo havia Dakakos de deter um e não o outro?

A resposta tinha de ser que era isso precisamente que estava a tentar. Cenouras acenadas diante do focinho do burro; ofertas de segurança e confiança que, traduzidas, significavam controlo e clausura.

«... Esperarei por si sozinho e sozinhos podemos tomar as nossas decisões. Verifique a sua fonte...»

Iria Dakakos a caminho de Campo di Fiori? Como era isso possível? E o que era a fonte? Um coronel da IG chamado Tarkington com o qual Dakakos estabelecera linhas de comunicação para encurralar o Corpo de Vigilantes? Que outra fonte tinham ele e Dakakos em comum?

- Signor Fontine? - Era o gerente do Excelsior; a porta do respectivo escritório estava aberta atrás do homem. Saíra à pressa.

- Sim?

- Tentei o seu quarto, claro. Não estava. - O homem sorriu nervosamente.

- Muito bem - disse Adrian. - Estou aqui. O que é?

- Os nossos hóspedes estão sempre na primeira linha das nossas preocupações. - O italiano voltou a sorrir. Era de endoidecer.

- Por favor. Estou com pressa.

- Há momentos recebemos uma chamada da Embaixada americana. Dizem que estão a telefonar para todos os hotéis de Roma. Andam à sua procura.

- Que disse o senhor?

- Os nossos hóspedes estão sempre...

- Que disse o senhor?

- Que o senhor tinha deixado o hotel. E deixou mesmo, signore. No entanto, se quiser utilizar o meu telefone...

- Não, obrigado - respondeu Adrian, principiando a dirigir-se para a entrada. Depois parou e voltou-se para o gerente: - Diga-lhes para onde fui. A recepção sabe.

Era a segunda parte da sua estratégia em Roma e, quando a concebera, apercebera-se de que era pura e simplesmente um prolongamento daquilo que fizera em Paris. Antes do final do dia os profissionais que andavam no seu encalço saberiam exactamente onde se encontrava. Os computadores, os assentamentos nos passaportes e a colaboração internacional proporcionavam uma transmissão veloz das informações. Tinha de fazê-los pensar que ia a um sítio onde não ia.

Roma era o melhor sítio para começar. Se tivesse ido para Milão, os homens da I-G rebuscariam os seus arquivos; Campo di Fiori haveria de aparecer. Não podia permitir tal coisa.

Tinha pedido na recepção do Excelsior que lhe estabelecessem um itinerário para um passeio pelo Sul. A Nápoles, Salerno e Policastro, por estradas que o levariam para leste através da Calábria até ao Adriático. Alugara um carro no aeroporto.

Agora Theodore Annaxas Dakakos associara-se à perseguição. Dakakos, cujos transmissores de informações eram mais rápidos que os das Informações do Exército dos Estados Unidos da América - e bem mais perigosos. Adrian sabia o que o Exército dos Estados Unidos queria: o assassino do Corpo de Vigilantes. Dakakos, porém, pretendia a arca de Constantino. Tratava-se de algo mais urgente.

Adrian atravessou o caótico trânsito de Roma, de regresso ao Aeroporto Leonardo da Vinci. Devolveu o carro alugado e comprou um bilhete das Linhas Aéreas Itavia para Milão. Meteu-se na fila para a porta de embarque, de cabeça baixa e corpo curvado, procurando a cortina protectora da multidão. Ao mesmo tempo que era empurrado para a frente - e por motivos que desconhecia -, voltaram-lhe ao espírito as palavras de um advogado extraordinário.

«Pode-se correr com a manada no meio da manada; mas, se a pessoa quiser fazer alguma coisa, é chegar-se aos flancos e sair do magote». 1.

 

1. Clarence Seward Darrow (1857-1938), famoso advogado criminalista e reformador social americano. (N. do T.)

 

Em Milão telefonaria ao pai. Mentiria a respeito de Andrew; inventaria qualquer coisa; agora não era capaz de pensar nisso. Mas tinha de saber mais sobre Theodore Dakakos.

Dakakos estava a aproximar-se.

Sentou-se na cama do Hotel di Piemonte, em Milão, tal como se sentara na cama do Savoy em Londres, a fitar papéis à sua frente. Mas desta feita não se tratava de horários de aviões, mas das folhas fotocopiadas das memórias do pai desde há cinquenta anos. Estava a relê-las - não para colher qualquer informação nova: já conhecia o conteúdo, mas porque a leitura protelava o momento em que pegaria no telefone. Perguntou a si mesmo com que minúcia teria o irmão estudado aquelas páginas, com as suas descrições peregrinas e reflexões hesitantes, frequentemente obscuras. Andrew examiná-las-ia provavelmente com o escrúpulo de um soldado em combate. Havia nomes. Goldoni, Capomonti, Lefrac. Homens que tinham de ser contactados.

Adrian sabia que não podia protelar por mais tempo. Dobrou as páginas, enfiou-as no bolso do casaco e estendeu a mão para o telefone.

Dez minutos mais tarde o PBX tornou a ligar para ele; o telefone a nove mil quilómetros de distância, na casa da North Shore, estava a tocar. A mãe atendeu e, quando proferiu as palavras, fê-lo com toda a simplicidade, sem o aparato do pesar, pois esse era extrínseco, e o desgosto intrínseco.

- O teu pai faleceu ontem à noite.

Por alguns momentos nenhum dos dois falou. O silêncio exprimia uma sensação de amor. Como se estivessem a tocar-se.

- Vou regressar imediatamente - disse ele.

- Não, não faças isso. Ele não havia de querer. Sabes o que tens a fazer. Fez-se novamente silêncio.

- Sim - disse ele finalmente.

- Adrian?

- Sim?

- Tenho duas coisas a dizer-te, mas não quero falar sobre elas. És capaz de compreender isso?

Adrian fez uma pausa.

- Acho que sim.

- Veio visitar-nos um oficial do Exército. Um tal coronel Tarkington. Foi suficientemente bondoso para falar só comigo. Sei do Andrew.

- Lamento.

- Trá-lo de volta. Ele precisa de ajuda. Toda a ajuda que possamos dar-lhe.

- Vou tentar.

- É facílimo olhar para trás e dizer: «Sim, agora vejo. Apercebo-me». Ele passou a vida a ver os resultados da força; nunca compreendeu as suas complicações, a sua compaixão essencial, quer-me parecer.

- Não vamos falar sobre isso - lembrou o filho.

- Sim. Não quero falar... Oh, meu Deus, estou tão assustada!

- Por favor, mãe.

Jane respirou fundo e o som ouviu-se ao longo da linha.

- Há outra coisa. Dakakos esteve cá. Falou com o teu pai. Com nós ambos em conjunto. Tens de confiar nele. O teu pai desejava-o; estava convencido disso. E eu também.

«... Verifique a sua fonte...»

- Ele mandou-me um telegrama. Disse que estaria à minha espera.

- Em Campo di Fiori - completou Jane.

- Que disse ele acerca do Andrew?

- Que pensava que o teu irmão podia ser retardado. Não se alongou mais; falou apenas sobre ti. Empregou repetidamente o teu nome.

- Tens a certeza de que não queres que eu regresse?

- Tenho. Não há nada que possas fazer aqui. Ele não havia de querer. - Calou-se por um momento. - Adrian, diz ao teu irmão que o pai nunca chegou a saber. Morreu a pensar que os seus gémeos eram os homens que ele estava convencido que eram.

- Dir-lho-ei. Volto a telefonar em breve. Despediram-se serenamente.

O pai morrera. A fonte deixara de existir, e o vazio era terrível. Ficou sentado ao pé do telefone, consciente de que transpirava, conquanto o quarto estivesse fresco. Levantou-se da cama: havia coisas a fazer e tinha de agir rapidamente. Dakakos ia a caminho de Campo di Fiori. E o assassino do Corpo de Vigilantes também, coisa que Dakakos não sabia.

Sentou-se à secretária e principiou a escrever. Dir-se-ia que estava de novo no seu apartamento de Boston, a rabiscar tópicos como preparativo para o contra-interrogatório do dia seguinte.

Contudo, este caso não era no dia seguinte. Era nessa noite. E não lhe vinham à mente muitos tópicos.

Parou o carro na bifurcação da estrada, pegou no mapa e segurou-o debaixo da luz do painel de instrumentos. A bifurcação vinha discriminada no mapa. Não havia mais estradas até à cidade de Laveno. O pai dissera que havia grandes pilares de pedra e um portão à esquerda: era a entrada de Campo di Fiori.

Pôs o automóvel em marcha, forçando a vista na escuridão, à espera de captar um vislumbre de pedra erguida junto ao bosque à sua esquerda. Seis quilómetros adiante na estrada encontrou-os. Parou o carro defronte dos enormes pilares de pedra a esboroar-se e apontou a lanterna pela janela. Lá estava a estrada sinuosa a seguir, tal como o pai descrevera, fazendo ângulos abruptos e desaparecendo na espessura.

Guinou para o lado esquerdo e atravessou os portões. Sentiu a boca repentinamente seca e o coração acelerado, ressoando-lhe o pulsar na garganta. Era o medo do desconhecido imediato que se apoderava dele. Queria enfrentá-lo rapidamente, antes que o medo o dominasse. Aumentou a velocidade.

Não havia luzes em parte alguma.

A enorme casa branca erguia-se numa serenidade lúgubre, um esplendor de morte nas trevas. Adrian estacionou o automóvel do lado esquerdo do largo, defronte dos degraus de mármore, desligou o motor e, com relutância, os faróis. Apeou-se, tirou a lanterna do bolso do impermeável e cruzou o pavimento rugoso em direcção às escadas.

O luar mortiço iluminou fugazmente o macabro cenário e logo desapareceu. O céu estava nublado, mas não choveria: havia nuvens a toda a volta por cima, mas eram ralas e desfilavam demasiado depressa. O ar estava seco; tudo se achava tranquilo.

Adrian chegou ao primeiro degrau e acendeu a lanterna a fim de consultar o relógio. Eram onze e meia. Dakakos não estava lá. Nem o irmão. Um ou ambos haviam de ter ouvido o carro; nenhum deles, nem os dois, estariam a dormir àquela hora. Restava apenas o velho sacerdote. Um velho no campo já deveria estar na cama, àquela hora. Chamou em voz alta:

- Eh, aí. O meu nome é Adrian Fontine e gostaria de falar consigo.

Nada.

Eh, daí... havia algo! Havia movimento. Um tamborilar, arranhaduras acompanhadas de ligeiríssímos chiados. Girou a lanterna para a sua origem. O feixe colheu as figuras confusas e furtivas de ratos - três, quatro, cinco - esgueirando-se sobre o peitoril de uma janela aberta.

Manteve a lanterna firme. A vidraça estava estilhaçada: apercebeu-se de bordos de vidro recortados. Abeirou-se dela devagar, repentinamente amedrontado.

Os pés afundaram-se-lhe na terra e os sapatos trituraram vidros quebrados. Postou-se defronte da janela e ergueu a lanterna.

O ar faltou-lhe, com um arfar involuntário, ao serem repentinamente apanhados pelo feixe ofuscante dois pares de olhos de animais. Deram um salto, surpreendidos e no entanto furiosos, e ouviu-se um horrível guinchar abafado, ao mesmo tempo que as criaturas se refugiavam na escuridão de outra parte da casa. Ouviu-se um estrondo. Um animal enlouquecido, apavorado, chocara com um objecto instável de porcelana ou vidro.

Adrian voltou a respirar e a seguir estremeceu. As narinas foram invadidas por um mau cheiro avassalador, um odor infecto, putrefacto, que lhe fez chorar os olhos e a garganta intumescer e sufocar. Reteve a respiração e trepou para o peitoril da janela. Comprimiu a boca e o nariz com a mão esquerda, filtrando o mau cheiro, e fez incidir o feixe da lanterna pela enorme sala fora.

O choque deixou-o atordoado. As figuras de dois mortos, um com as roupas esfarrapadas, amarrado a uma cadeira, e o outro seminu, no chão, eram apavorantes. As roupas haviam sido dilaceradas por dentes de animais, a carne retalhada por mandíbulas de animais e o sangue seco achava-se humedecido pela urina e saliva de animais.

Adrian sentiu-se tonto e saiu-lhe um vómito da boca. Pôs-se de pé, cambaleando; a luz incidiu numa porta e ele precipitou-se para ela, arquejando, procurando ar que se pudesse respirar.

Achava-se no escritório de Savarone Fontini-Cristi, um homem que nunca conhecera, mas que agora detestava com todo o ódio de que era capaz. O avô desencadeara uma teia de mortes e suspeitas que, por seu turno, trouxera mais mortes e maior ódio.

Acerca de quê? Porquê?

- Amaldiçoaaado seeejas!

Gritou incontroladamente; agarrou-se ao espaldar alto de uma velha cadeira e arremessou-a ao chão.

De súbito, em silêncio e plenamente cônscio do que tinha a fazer, Adrian imobilizou-se e apontou a lanterna à parede por trás da secretária. Para a direita, lembrava-se, por baixo de uma pintura da Madona.

A moldura estava lá, com o vidro estilhaçado.

E a pintura desaparecera.

Caiu de joelhos, a tremer. Os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas e começou a soluçar desabaladamente.

- Oh, meu Deus! - sussurrou, numa dor insuportável. - Oh, meu irmão!

 

Andrew encostou o Land Rover à berma da estrada e deitou café quente na tampa do termos. Tinha feito um bom tempo: segundo o mapa Michelin, estava a dezasseis quilómetros da vila de Champoluc. Era de manhã: os raios do sol matinal dardejavam por detrás das montanhas circundantes. Daí a pouco entraria em Champoluc e compraria o equipamento de que precisava.

Adrian estava muito atrasado relativamente a ele, Andrew sabia que podia abrandar a marcha por instantes, pensar bem. Além disso, o irmão estava a aproximar-se de uma situação que o paralisaria. Adrian encontraria os corpos em Campo di Fiori e entraria em pânico; os seus pensamentos seriam confusos, indecisos. Não saberia o que fazer a seguir. O irmão não estava treinado para confrontar-se com a morte violenta; ela estava demasiado distante da sua pessoa. Para os militares era diferente; para ele era diferente. A confrontação física - até o derramamento de sangue - inebriavam-lhe os sentidos, infundiam-lhe uma intensa sensação de júbilo. As suas energias atingiam o auge, ficava confiante, seguro dos seus movimentos.

Era como se a arca fosse já sua. Agora era tempo de concentrar-se. De estudar cada palavra, cada pista. Pegou nas páginas fotocopiadas do pai e ergueu-as, captando a luz matinal através do pára-brisas.

«...Na vila de Champoluc havia a família Goldoni. De acordo com registos actuais de Zermatt, ainda existem e encontram-se disseminados por toda a área. Hoje em dia o chefe da família é um tal Alfredo Goldoni, que reside na casa do pai - e que anteriormente fora do pai deste -, em vários hectares de terreno no sopé das montanhas nos subúrbios ocidentais. Durante gerações os Goldoni foram os guias mais experientes dos Alpes italianos. Savarone utilizava-os com frequência, e para além disso eram "amigos do Norte" 1 - uma expressão que o meu pai empregava para distinguir os homens da terra daqueles que se dedicavam ao comércio. Confiava muito mais nos primeiros do que nos segundos. É possível que tenha deixado informações ao pai de Alfredo Goldoni. Por morte deste, haviam de ser tomadas disposições para que essas informações fossem transmitidas ao filho mais velho sobrevivo - fosse ele homem ou mulher -, como é costume entre os ítalo-suíços. Por conseguinte, caso Alfredo não seja o mais velho, procurar uma irmã mais velha.

«A norte, nas montanhas - entre os apeadeiros Krahen Aúsblick e Greier Gipfel, creio -, fica uma pequena estalagem dirigida pela família Capomonti. Mais uma vez segundo Zermatt (não procedi a investigações no distrito de Champoluc a fim de não despertar suspeitas), também a estalagem existe ainda. Consta-me que foi um tanto ampliada. É presentemente gerida por Naton Lefrac, descendente dos Capomonti pelo casamento. Recordo-me desse homem. Na altura não era um homem adulto, claro está, pois tinha menos um ou dois anos que eu, sendo filho de um comerciante que negociava com os Capomonti. Tornámo-nos muito amigos. Recordo claramente que gozava de grande afeição por parte dos Capomonti e havia a esperança de que viesse a casar com uma filha da casa. É visível que assim fez.

«Quando crianças - e na adolescência - nunca íamos a Champoluc que não ficássemos na Locanda Capomonti. Tenho lembranças de recepções cordiais, risos, lareiras acesas e muito conforto. A família era simples - no sentido de desprovida de complicações - e extremamente sociável e sincera. Savarone nutria por eles um afecto especial. Se houvesse segredos para deixar em Champoluc, o velho Capomonti seria um rochedo de silêncio e confiança...»

Andrew pousou as folhas e pegou no mapa Michelin. Voltou a percorrer as minúsculas representações da via férrea de Zermatt e ficou preocupado: dos muitos apeadeiros de que o pai se lembrava, apenas se conservavam quatro. E nenhum tinha o nome de Falcão.

Porque o quadro do escritório de Campo di Fiori não era como o pai o recordava: não representava aves a serem levantadas das moitas. Em vez disso, havia caçadores em campos de vegetação exuberante, de olhos e armas apontados para a frente, enquanto lá em cima, no céu distante, voavam preguiçosamente falcões: um comentário do artista sobre a futilidade da caçada.

O pai dizia que os apeadeiros se chamavam Pico da Águia, Vigia do Condor e Cume do Corvo. Tinha de haver um apeadeiro que incluísse o nome «Falcão». Mas, se houvera, já não existia. E passara meio século; obscuros apeadeiros em desfiladeiros alpinos separados por quilómetros não eram pontos de referência. Quem recordaria a localização precisa de uma paragem de eléctrico trinta anos depois de os carris serem cobertos de asfalto? Poisou o mapa e pegou de novo nas folhas fotocopiadas. A chave inicial estava algures naquelas palavras:

«Parámos no centro da vila para um almoço tardio, ou lanche, não me recordo bem, e Savarone saiu do restaurante para ir ver se havia alguma mensagem nos Correios: disso lembro-me eu. Quando regressou vinha muito arreliado... Receei que a nossa excursão às montanhas fosse cancelada antes de começar. Porém, durante a refeição foi entregue outra mensagem e logo Savarone ficou sossegado e aliviado. Não se falou mais em voltar para Campo di Fiori. Para o rapaz de dezassete anos, o momento terrível passara.

«A seguir ao restaurante passámos pela loja de um comerciante cujo nome parece alemão, quer foneticamente quer na escrita, não sendo italiano nem francês. Meu pai costumava encomendar equipamento e géneros a esse homem porque sentia pena dele. Era judeu e, para Savarone, que lutara denodadamente contra os progroms czaristas e se dava com os Rostchilds de aperto de mão, essa maneira de pensar era indefensável. Há a esfumada recordação de um incidente desagradável na loja nessa tardinha. Do que esse incidente desagradável especificamente implicava, não me recordo... Foi extremamente grave e exasperou o meu pai, suscitando-lhe um furor mudo mas visível. Um furor triste, se, uma vez mais, a memória me não falha. Parece-me ter a vaga impressão de que me ocultaram pormenores, mas agora, passados tantos anos, não passa de uma impressão e pode muito bem não corresponder à realidade.

«Saímos da loja do comerciante e seguimos de carroça para a herdade de Goldoni. Lembro-me de ter exibido a minha mochila alpina, com as correias, o

martelo, ganchos e grampos duplos forjados para as cordas. Estava terrivelmente orgulhoso dela, convencido de que significava ser um homem. De novo há uma impressão indefinida de que em casa de Goldoni reinava um clima de angústia, mas não evidente. Não sei dizer porque se mantém essa sensação decorridos tantos anos, mas relaciono-a com o facto de experimentar dificuldade em prender a atenção dos Goldoni do sexo masculino ao exibir a minha mochila nova. O pai, um ou dois tios e indubitavelmente os filhos mais velhos pareciam alheados. Combinou-se com um dos filhos de Goldoni ir ter connosco no dia seguinte e conduzir-nos às montanhas. Ficámos várias horas em casa dos Goldoni antes de sairmos para retomar a nossa viagem de carroça até à Locanda Capomonti. Lembro-me, isso sim, de que estava escuro ao sairmos e, como era Verão, devia passar das sete e meia ou oito horas».

O que eram os factos, pensou Andrew. O homem e o rapaz tinham chegado à vila, comido qualquer coisa, comprado suprimentos a um judeu que era vítima da antipatia das pessoas, ido a casa dos guias que iriam contratar e uma criança mimada sentira-se ofendida porque não davam atenção ao seu equipamento de alpinismo. A informação relevante resumia-se ao nome Goldoni.

Andrew terminou o café e voltou a enroscar a tampa do termos. Agora, o sol ia mais alto: era tempo de se pôr a caminho. Sentiu-se inundado de júbilo. Todos os anos de adestramento e experiência no campo tinham-no preparado para os próximos dias. Havia uma arca nas montanhas e ele encontrá-la-ia!

O Corpo de Vigilantes seria integralmente indemnizado.

O militar ligou a ignição e acelerou o motor. Tinha roupa, equipamento e armas a comprar. E um homem chamado Goldoni com quem avistar-se. Talvez uma mulher chamada Goldoni: não tardaria a sabê-lo.

Adrian deixou-se ficar sentado na escuridão ao volante do carro parado e limpou a boca com o lenço. Não conseguia apagar da boca o gosto a vomitado na garganta, da mesma maneira que não era capaz de apagar dos olhos do espírito a visão dos corpos mutilados no interior da casa. Ou tão-pouco o fedor a morte das narinas.

Escorria-lhe suor pelo rosto, causado por uma tensão que nunca conhecera, um medo que jamais experimentara.

Sentiu que lhe voltava o desejo de vomitar; reprimiu-o, inspirando rapidamente. Tinha de encontrar qualquer coisa que se parecesse com sanidade, tinha de funcionar. Não podia manter-se na escuridão, num carro imobilizado, durante o resto da noite. Tinha de vencer o choque e recobrar a lucidez. Era tudo quanto lhe restava: a faculdade de pensar.

Instintivamente, tirou do bolso as páginas de memórias do pai e acendeu a lanterna. As palavras haviam-se tornado o seu refúgio; era um analista de palavras: dos seus cambiantes, das suas interpretações subtis, da sua simplicidade e complexidade. Era um especialista em palavras, da mesma maneira que o irmão era um especialista na morte.

Adrian separou as páginas, lendo devagar, meticulosamente. A criança e o homem tinham chegado à vila de Champoluc; houvera uma imediata impressão de discórdia, talvez mais que discórdia. «Quando regressou vinha muito arreliado... Receei pela nossa excursão». Houvera a loja de um judeu e exasperação. «Do que esse incidente desagradável especificamente implicava, não me recordo... Foi extremamente grave e exasperou o meu pai». E tristeza.

«Um furor triste, se, uma vez mais, a memória me não falha». Depois a fúria e a tristeza haviam-se dissipado, substituídas por vagos sentimentos de angústia e embaraço: a criança não granjeara as atenções que buscara. «O pai, um ou dois tios e indubitavelmente os filhos mais velhos pareciam alheados». A sua atenção estava noutra coisa: no furor, na discórdia? Na tristeza? E essas indistintas recordações tinham, por seu turno, sido arredadas por lembranças de cordialidade e de uma estalagem a norte da vila, «uma recepção cordial, que foi como uma dúzia de outras recepções semelhantes». A este sereno interlúdio seguiam-se, poucos instantes decorridos, novamente vagos sentimentos de angústia e preocupação.

«Na estalagem de Capomonti há pouco que consiga recordar especificamente, a não ser uma recepção cordial, que foi como uma dúzia de outras recepções semelhantes. Uma coisa que recordo é que, pela primeira vez nas montanhas, fiquei num quarto sozinho, sem partilhá-lo com irmãos mais novos. Tratou-se de um desvio significativo, e senti-me muito crescido. Houve outra refeição, e o meu pai e o velho Capomonti beberam uma boa quantidade de uísque a seguir. Lembro-me disso porque fui para a cama, a pensar na escalada do dia seguinte, e mais tarde ouvi vozes altas e belicosas no andar de baixo, perguntando a mim mesmo se o ruído não poderia acordar outros hóspedes. Nesse tempo a estalagem era pequena e haveria porventura três ou quatro pessoas lá instaladas. Tal preocupação era invulgar, pois nunca tinha visto o meu pai embriagado. Ainda hoje não sei se o estava, mas o barulho era considerável. Para um homem que celebrava os dezassete anos, prestes a receber o presente da sua vida - uma escalada a valer no Champoluc -, a ideia de um pai debilitado e enfurecido na manhã seguinte era perturbante.

«Não foi, contudo, o caso. O guia Goldoni chegou com os nossos mantimentos, partilhou o pequeno-almoço connosco e pusemo-nos em marcha.

«Um filho dos Capomonti - ou talvez fosse o jovem Lefrac conduziu-nos aos três de carroça até vários quilómetros a norte. Despedimo-nos dele e ficou assente que iria ao nosso encontro no mesmo local ao fim da tarde do dia seguinte. Dois dias nas montanhas e uma pernoita acampado com adultos! Não cabia em mim de contente, pois sabia que acamparíamos a uma altitude mais elevada do que era alguma vez possível com irmãos mais novos a reboque».

Adrian pousou as páginas no assento do carro. Os parágrafos restantes descreviam encostas e trilhos imprecisamente recordados que pareciam sobrepor-se. Principiara a jornada nas montanhas.

Podia muito bem haver informações específicas naquelas descrições conexas. Podiam revelar-se marcos isolados e surgir um padrão, mas quais marcos, quais padrões?

Oh, meu Deus? O quadro da parede. Andrew tinha o quadro!

Adrian reprimiu o súbito alarme. O quadro do escritório de Savarone podia restringir a localização de um apeadeiro, mas e depois? Tinham passado cinquenta anos. Meio século de gelo e água, degelos estivais e o crescimento e a erosão naturais.

O quadro da parede podia muito bem ser uma pista, porventura a mais importante. Adrian, todavia, tinha a sensação de que havia outras tão vitais como esse quadro. Estavam contidas nas palavras das memórias do pai. Recordações que haviam sobrevivido a cinquenta anos de uma vida extraordinária.

Acontecera qualquer coisa, havia cinquenta anos, que não tinha nada a ver com o facto de o pai e o filho irem até às montanhas.

Recobrara parte da lucidez. Estava a exercer a sua faculdade de pensar. O choque e o horror encontravam-se ainda presentes, mas atravessava os preliminares da sanidade.

«...Tenham em mente que o conteúdo dessa arca é do mais desconcertante que há na História para o mundo civilizado...»

Tinha de a descobrir, de encontrá-la, e, também, de deter o assassino do Corpo de Vigilantes.

Andrew parou o Land Rover junto a uma sebe que circundava um campo. A casa rústica de Goldoni ficava duzentos metros adiante na estrada, e o campo fazia parte da propriedade. Andava um homem a conduzir um tractor ao longo de sulcos de terra revolvida, com o corpo virado no assento, a observar os progressos à sua retaguarda. Não havia mais casas na zona, nem outras pessoas à vista. Andrew resolveu parar e falar com o homem.

Passava pouco das cinco da tarde. Ocupara o dia a vaguear por Champoluc, comprando roupas, géneros e equipamento de montanhismo, incluindo a melhor mochila de alpinista que encontrara, recheada dos artigos recomendados para a montanha e mais um que o não era: uma pistola Magnum de calibre 357. Fizera essas compras na muito ampliada loja a que o pai fazia referência nas suas recordações. O nome era Leinkraus. O empregado afirmou que Leinkraus vendia o melhor equipamento que havia nos Alpes italianos desde 1913. Tinham presentemente filiais em Gstaad e no lago Lucerna.

Andrew apeou-se do Land Rover e caminhou até à sebe, acenando com a mão para trás e para a frente, a fim de captar a atenção do homem do tractor. Tratava-se de um ítalo-suíço baixo e entroncado, com o cabelo castanho encrespado por cima das sobrancelhas escuras e os traços rudes e angulosos de um mediterrânico do norte; a sua expressão era cautelosa, como se não estivesse acostumado a caras estranhas.

- Fala inglês? - perguntou Andrew.

- Razoavelmente - respondeu o homem.

- Procuro Alfredo Goldoni. Indicaram-me este sítio.

- E indicaram bem - retorquiu o outro num inglês mais que razoável. - Goldoni é meu tio. Trato-lhe desta terra. Ele não pode trabalhar por si. - O homem calou-se, sem contribuir com mais esclarecimentos.

- Onde posso encontrá-lo?

- Onde sempre está. No quarto das traseiras de casa dele. A minha tia leva-o a ele. Ele gosta de visitas.

- Obrigado. - Andrew virou-se na direcção do Land Rover.

- É americano? - perguntou o homem.

- Não. Canadiano - retorquiu ele, ampliando o disfarce para qualquer uma de dúzias de possibilidades imediatas. Subiu para o veículo e olhou o homem pela janela aberta. - Na fala somos iguais.

- No aspecto e na maneira de vestir são iguais - tornou o moço de lavoura calmamente, inspeccionando o blusão alpino com guarnições de pêlo. - A roupa é nova - acrescentou.

- O seu inglês não - ripostou Fontine, ligando a ignição.

A mulher de Goldoni era magra e tinha um ar ascético. Usava o grisalho cabelo liso apanhado atrás, num retesado rolo que era uma coroa de abnegação. Conduziu o visitante ao longo dos vários compartimentos asseados e esparsamente mobilados até um vão de porta nas traseiras da casa. Não havia porta instalada; onde antes existira um patamar no caixilho, este fora retirado e o chão nivelado. Fontine cruzou-o e entrou no quarto. Alfredo Goldoni estava sentado numa cadeira de rodas junto de uma janela, olhando os campos no sopé das montanhas.

Não tinha pernas. Os cotos dos membros outrora robustos estavam cingidos pelas dobras das calças, com o tecido apanhado por alfinetes de segurança. O resto do corpo, tal como a cara, era largo e desajeitado. A idade e a mutilação tinham cobrado o seu preço.

O velho Goldoni saudou-o com falsa energia. Um deficiente fatigado receoso de ofender um recém-chegado, grato pela infrequentíssima interrupção.

Após as apresentações e narradas as indicações e o trajecto desde a vila, e trazido o vinho por uma esposa carrancuda, Fontine instalou-se numa cadeira diante do homem sem pernas. Os cotos ficavam-lhe ao alcance do braço; vinha-lhe repetidamente ao espírito a palavra «grotesco». Andrew não gostava da mutilação; não lhe agradava suportá-la.

- Não reconhece o nome: Fontine?

- Não, senhor. É francês, creio eu. Mas o senhor é americano.

- Reconhece o nome Fontini-Cristi?

O olhar de Goldoni alterou-se. Fora actuado um alarme há muito esquecido.

- Sim, claro que reconheço - retorquiu o amputado, com a voz a modificar-se igualmente e em palavras medidas. - Fontine; Fontini-Cristi. Portanto o italiano torna-se francês e o dono americano. Já lá vão muitos anos. O senhor é um Fontini-Cristi?

- Sou. Savarone era meu avô.

- Um grande padrone das províncias do norte. Lembro-me dele. Não bem, claro. Deixou de vir a Champoluc para o final dos anos vinte, parece-me a mim.

- Os Goldoni eram seus guias. Pai e filhos.

- Éramos guias de toda a gente.

- Alguma vez serviu de guia ao meu avô?

- É possível. Trabalhei nas montanhas, em muito novo.

- Não é capaz de se lembrar?

- Nos meus tempos levei milhares de pessoas aos Alpes...

- Ainda há pouco disse que se lembrava dele.

- Bem, não. É mais do nome que da pessoa. O que é que quer?

- Informações. Sobre uma excursão às montanhas feita pelo meu pai e pelo meu avô há cinquenta anos.

- Está a brincar?

- Nem por sombras. O meu pai, Victor... Vittorio Fontini-Cristi... mandou-me da América para obter estas informações. Com grande transtorno para mim. Não disponho de muito tempo, de forma que preciso da sua ajuda.

- Dou-lha de graça, mas não sei por onde começar. Uma simples escalada há cinquenta anos! Quem é que se recordaria?

- O homem que os conduziu. O guia. Segundo meu pai, era filho de Goloni. A data foi catorze de Julho de mil novecentos e vinte.

Fontine não tinha a certeza - talvez o grotesco deficiente se tivesse limitado a reprimir uma dor aguda nos grossos cotos, ou houvesse mudado a posição de cepo que era o corpo sem pernas, a reflectir -, mas Goldoni reagira mesmo. Fora a data. Reagira à data. E dissimulou imediatamente essa reacção falando.

-Julho de mil novecentos e vinte. Já lá vão duas gerações. E impossível. Tem de ter qualquer coisa, como é que vocês dizem, de mais específico do que isso, não?

- O guia. Era um Goldoni.

- Não era eu. Não havia de ter mais de quinze anos. Comecei a ir para as montanhas novo, mas não tanto. Não como prima guida'.

Andrew fixou os olhos nos do aleijado. Goldoni estava embaraçado; não lhe agradou a troca de olhares e desviou a vista. Fontine curvou-se para diante:

- Mas lembra-se de qualquer coisa, não se lembra? - perguntou calmamente, incapaz de suprimir a frieza da voz.

- Não, Signore Fontini-Cristi. Não há nada.

- Ainda há uns segundos, eu forneci-lhe a data: catorze de Julho de mil novecentos e vinte. Você reconheceu essa data.

- Só reconheci que foi há tempo demasiado para pensar nisso.

- Devo dizer-lhe que sou militar. Já interroguei centenas de homens; houve muito poucos que alguma vez me enganassem.

- Não seria essa a minha intenção, signore. A que propósito? Gostaria de ser-lhe útil.

Andrew continuou a fitá-lo.

- Há uns anos havia apeadeiros na linha férrea a sul de Zermatt.

- Ainda há alguns - acrescentou Goldoni. - Não muitos, claro. Hoje em dia não são precisos.

- Diga-me cá. Todos eles tinham nomes de pássaros...

- Alguns - interrompeu o homem dos Alpes. - Nem todos.

- Havia algum chamado «Falcão»? Qualquer coisa de «falcão»?

- Um falcão? Porque é que me pergunta isso? - O corpulento amputado ergueu a vista, de olhar agora firme, sem vacilações.

- Diga-me, e pronto. Havia algum apeadeiro em cujo nome entrasse a palavra «falcão»?

Goldoni manteve-se silencioso por vários instantes.

- Não - disse por fim.

 

' Em italiano no original: «primeiro guia». (N. do T.)

 

Andrew recostou-se na cadeira.

- O senhor é o filho mais velho da família Goldoni?

- Não. Foi evidentemente um dos meus irmãos o contratado para essa escalada há cinquenta anos.

Fontine começava a compreender. A casa tinha sido dada a Alfredo Goldoni por ele ter perdido as pernas.

- Onde estão os seus irmãos? Vou falar com eles.

- Tenho de perguntar-lhe mais uma vez se está a brincar, signore. Os meus irmãos morreram, toda a gente sabe disso. Os meus irmãos, um tio e dois primos. Morreram todos. Já não há nenhum guia Goldoni em Champoluc.

Cortou-se o fôlego a Andrew. Absorveu a informação e inspirou profundamente. O seu atalho fora eliminado com uma única frase.

- Acho isso difícil de acreditar - disse friamente. - Todos esses homens morreram? Que foi que os matou?

- Uma avalancha, signore. Em sessenta e oito, uma aldeia inteira ficou soterrada. Próximo de Valtournanche. Foram enviadas equipas de socorro de lugares tão distantes como Zermatt, a norte, e Châtillon, a sul. Foram os Goldoni quem os guiou. Três nações distinguiram-nos com as mais altas honrarias. De pouco serviram para os restantes. A mim, garantem-me uma pequena pensão. Perdi as pernas por exposição ao frio. - E bateu nos cotos das pernas outrora musculosas.

- E não tem informações sobre essa excursão em catorze de Julho de mil novecentos e vinte?

- Sem pormenores específicos, como é que posso?

- Tenho descrições. Escritas pelo meu pai. - Fontine tirou do blusão as páginas fotocopiadas.

- óptimo! Já me devia ter dito! Leia-mas.

Andrew assim fez. As descrições eram desconexas, as cenas evocadas contraditórias. As sequências temporais estavam continuamente a saltar para trás e para a frente e as referências pareciam confundidas umas com as outras.

Goldoni escutava; de vez em quando, fechava os olhos inchados e enrugados e virava o pescoço para o lado, como se estivesse a conjugar as suas próprias recordações visuais. Quando Fontine terminou, abanou lentamente a cabeça.

- Lamento, signore. Aquilo que o senhor leu podia ser qualquer um de vinte ou trinta carreiros diferentes. Muito do que aí está nem sequer existe no nosso distrito. Desculpe, mas acho que o seu pai confundiu carreiros que ficam mais para oeste, em Vaiais. É fácil acontecer.

- Não há nada que pareça familiar?

- Pelo contrário. Tudo. E nada. Fragmentos de muitos lugares espalhados por centenas de quilómetros quadrados. Lamento. É impossível.

Andrew estava confuso. Continuava a ter a sensação visceral de que o homem dos Alpes estava a mentir. Havia ainda outra opção a explorar antes de insistir na questão. Se também essa não conduzisse a parte alguma, voltaria e enfrentaria o aleijado com uma táctica diferente.

«...Caso Alfredo não seja o mais velho, procurar uma irmã...»

- O senhor é o mais velho membro sobrevivente da família?

- Não. Houve duas irmãs que nasceram antes de mim. Uma ainda vive.

- Onde?

- Em Champoluc. Na Via Sestina. O filho dela trabalha na minha terra.

- Como é que ela se chama? O nome de casada?

- Capomonti.

- Capomonti? Isso é o nome das pessoas que dirigem a estalagem.

- É, sim, signore. Ela casou com um membro dessa família.

Fontine levantou-se da cadeira, metendo no bolso as páginas fotocopiadas. Alcançou a porta e virou-se:

- É possível que volte.

- Será um prazer recebê-lo.

Fontine entrou no Land Rover e pôs o motor a trabalhar. Do outro lado da sebe do campo, o sobrinho-moço de lavoura estava sentado, imóvel, no tractor e observava-o, com o veículo em ponto-morto. A sensação visceral regressou; a expressão do rosto do moço de lavoura parecia dizer: «Ponha-se a andar. Tenho de correr lá dentro a casa e saber o que você disse».

Andrew destravou o jipe e carregou no acelerador. O Land Rover lançou-se em frente pela estrada adiante; descreveu uma rápida curva de cento e oitenta graus e empreendeu o caminho de regresso à aldeia.

De súbito, os seus olhos cravaram-se na visão mais óbvia e menos surpreendente deste mundo. Praguejou. Era tão óbvio que nem reparara.

A estrada estava ladeada de postes de fios telefónicos.

Não merecia a pena andar à procura de uma velhota na Via Sestina; ela não havia de estar lá. Veio outra estratégia à mente do militar. As probabilidades eram a favor dela.

- Mulher! - Gritou Goldoni. - Depressa! Ajuda-me! O telefone!

A mulher de Goldoni entrou rapidamente no quarto e agarrou-se aos manípulos da cadeira.

- Queres que eu faça os telefonemas? - perguntou, empurrando-lhe a cadeira até ao telefone.

- Não. Eu trato disso. - Marcou o número. - Lefrac? Estás a ouvir-me?... Ele veio. Passados todos estes anos. O Fontini-Cristi. Mas não traz as palavras. Anda à procura de um apeadeiro na via férrea que meta falcões no nome. Não me disse mais nada, e isso não é nada. Não confio nele. Tenho de apanhar a minha irmã. Reúne os outros. Encontramo-nos daqui a uma hora... Aqui não! Na estalagem.

Andrew estava deitado de barriga para baixo no campo que ficava do outro lado da casa rústica. Assestava o binóculo alternadamente na porta e nas janelas. O sol desaparecia por trás dos Alpes ocidentais; não tardaria a escurecer. As luzes tinham sido acesas na casa rústica; as sombras moviam-se de um lado para outro. Havia actividade.

Um automóvel estava a fazer marcha atrás por uma estrada de terra batida à direita da casa; parou e saiu lá de dentro o sobrinho. Correu para a porta da frente e esta abriu-se.

Goldoni estava na cadeira de rodas, com a mulher atrás de si. O sobrinho revezou-a e começou a conduzir o tio sem pernas pelo relvado fora na direcção do automóvel, cujo motor estava a trabalhar.

Goldoni sobraçava qualquer coisa. Andrew assestou o binóculo sobre o objecto.

Era um livro grande; mas era mais que um livro. Tratava-se de um volume largo e maciço. Um livro de registo.

No carro, a mulher de Goldoni segurou a porta enquanto o sobrinho pegava no grotesco amputado pelas axilas e rodava o corpo de forma a depositá-lo no assento. Goldoni contorcia-se e tremia; a mulher passou-lhe um cinto à volta e apertou-o.

Através do caixilho da janela da porta aberta, Andrew tinha uma visão clara do antigo guia alpino sem pernas. O centro do campo era novamente o grande livro de registo nos braços de Goldoni, agarrado quase desesperadamente, como se fosse uma coisa de extraordinário valor que ele não se atrevesse a largar. A seguir Andrew deu-se conta de que havia outra coisa nos braços de Goldoni, algo infinitamente mais familiar para o soldado. Havia uma haste de metal cintilante enfiada entre o grande volume e o tronco robusto do velho homem dos Alpes. Tratava-se do cano de uma pequena e potente caçadeira, um modelo particularmente identificado com as violentas famílias do Sul. Da Sicília. Chamava-se-lhe lupo (o lobo»). Não possuía grande precisão para lá dos vinte metros, mas a curta distância era capaz de fazer um homem erguer-se uns três metros no ar.

Goldoni estava a guardar o volume que levava nos braços com uma arma mais potente que a Magnum 357 que o militar trazia na mochila de alpinismo. Por breves instantes, Andrew apontou o binóculo para o sobrinho de Goldoni: o homem tinha acrescentado um complemento novo à indumentária. Enfiada no cinto via-se uma pistola, cuja volumosa coronha indicava calibre grosso.

Ambos os homens dos Alpes estavam a guardar o livro de registo. Ninguém podia aproximar-se dele. O que é...

Jesus! De súbito, Fontine percebeu. Assentos! Assentos de excursões nas montanhas! Não podia ser outra coisa! Nunca lhe ocorrera - nem a Victor - perguntar se era feita semelhante escrituração. Especialmente à luz dos anos: não era pura e simplesmente coisa com que se entrasse em consideração. Meu Deus, tinha passado meio século!

Segundo o pai, porém, e o pai dele, os Goldoni eram os melhores guias dos Alpes. Semelhantes profissionais, com tal reputação colectiva a assegurar, haviam de fazer uma escrituração; não existia coisa mais natural. Registos de viagens passadas às montanhas, remontando a décadas atrás!

Goldoni mentira. A informação que o visitante queria estava naquela casa. Mas Goldoni não queria que o visitante se apoderasse dela.

Andrew observou. O sobrinho desarmou a cadeira de rodas, abriu o porta-bagagens do carro, atirou-a lá para dentro e correu para o lado do condutor. Pôs-se ao volante ao mesmo tempo que a mulher de Goldoni fechava a porta do lado do marido.

O carro saiu disparado do acesso à casa e meteu para norte, na direcção de Champoluc. A mulher de Goldoni voltou para casa.

O militar manteve-se deitado de borco na erva e voltou a colocar vagarosamente o binóculo no estojo à medida que ponderava as suas opções. Podia correr para o Land Rover oculto e seguir Goldoni, mas com que objectivo, e à custa de que riscos? O homem dos Alpes não passava de metade de um homem, mas o lupo que tinha nas mãos compensava e mais que compensava a ausência de pernas. E o carrancudo sobrinho tão-pouco hesitaria em servir-se da pistola que tinha no cinto.

Se o livro de registo transportado por Goldoni fosse aquilo que suspeitava, estava a ser levado às pressas a fim de o esconderem. Não para o destruírem: ninguém iria destruir um registo de tão incalculável valor.

Se! Tinha de adquirir a certeza, assegurar-se da justeza do seu raciocínio.

Então poderia avançar.

Era engraçado. Não esperara que Goldoni saísse: esperara que viessem outros ter com ele. O facto de ter mesmo saído significava que o pânico se instalara- Um homem sem pernas, que nunca ia a parte alguma, não sairia desta maneira se não se tratasse de um motivo excepcional.

O militar decidiu-se. As circunstâncias eram óptimas: a mulher do Goldoni estava sozinha. Primeiro, descobriria se o livro de registo era aquilo que pensava: depois descobriria aonde fora Goldoni.

Uma vez de posse do conhecimento de ambas as coisas, seria tomada a resolução: se continuar, se esperar.

Andrew levantou-se do solo; era escusado perder tempo. Encaminhou-se para a casa.

- Não está cá ninguém, signore - disse a mulher magra, aturdida, de olhos atemorizados. - O meu marido saiu com o sobrinho. Foram jogar cartas à aldeia.

Andrew arredou a mulher do caminho sem responder. Atravessou a casa a direito até ao quarto de Goldoni. Não havia nada a não ser revistas velhas e jornais italianos antigos. Procurou num guarda-fatos: era ao mesmo tempo feio e patético. Havia calças penduradas, com dobras mantidas no lugar por alfinetes de segurança. Não havia livros, nenhum volume de registo como aquele que o habitante dos Alpes levava apertado nos braços.

Voltou à sala da parte da frente. A esposa, carrancuda e assustada, estava ao telefone, desferindo no descanso curtos golpes secos de pânico com os dedos ossudos.

- O fio está cortado - disse ele simplesmente, abeirando-se dela.

- Não - sussurrou a mulher. - Que quer? Eu não tenho nada! Nós não temos nada!

- Eu acho que têm - redarguiu Fontine, fazendo a mulher recuar até à parede e com o rosto centímetros acima do dela. - O seu marido mentiu-me. Disse que não podia dizer-me nada, mas saiu daqui precipitadamente levando com ele um livro muito grande. Era um registo diário, não era? Um velho registo diário que descrevia uma escalada às montanhas há cinquenta anos. Os registos diários! Mostre-me os registos diários!

- Não sei de que está a falar, signore! Não temos nada! Vivemos de uma pensionari.

- Cale a boca! Dê-me esses registos!

- Per favore..

- Maldita seja! - Fontine agarrou no liso cabelo grisalho da mulher e puxou-o para a frente, após o que, de súbito, o empurrou brutalmente para trás, arremessando-lhe a cabeça contra a parede. - Não tenho tempo. O seu marido mentiu-me. Mostre-me onde estão esses livros! Já!

Tornou a puxar-lhe os cabelos e tornou a esmagar-lhe o crânio de encontro à parede. Apareceu-lhe sangue no pescoço enrugado e os olhos desfocados marejaram-se-lhe de lágrimas.

O militar apercebeu-se de que fora demasiado longe. A opção de combate

 

Sic. O autor pretendia provavelmente dizer pensione (pensão), uma vez que pensionare, verbo aliás de utilização rara, significa «aposentar» (e pagar a respectiva pensão). (N. do T.)

2. Em italiano no original: «Por favor». (N. do T. )

 

estava agora definida; não seria a primeira vez. Camponeses pouco dispostos a colaborar era coisa que não faltava no Vietname. Afastou a mulher da parede. Está-me a perceber. perguntou em tom monocórdico. - Vou acender um fósforo diante dos seus olhos. Sabe o que vai suceder depois? Faço-lhe a pergunta pela ultima vez. Onde estão esses registos?

A mulher de Goldoni abateu-se no chão, soluçando. Fontine agarrou-a pelo tecido do vestido. Com um dedo trémulo e frenético, ela apontou para uma porta na parede da direita.

Andrew arrastou-a pelo chão adiante. Sacou da Beretta e arrombou a porta com a bota, abrindo-a com fragOr. Não estava ninguém lá dentro.

- O interruptor. Onde é?

Ela ergueu a cabeça, de boCa aberta, com a respiração cada vez mais ofegante, e moveu os olhos para a esquerda.

- Lâmpada, lâmpada? - sUssurrou.

Ele puxou-a para o interior da pequena divisão, largando-lhe o tecido do vestido, e descobriu o candeio. Ela quedou-se por terra, a tremer, enrodilhada. A luz reflectia-se na estante de livros envidraçada da parede contrária. Havia cinco prateleiras, e em cada uma delas uma fileira de livros. Ele correu à estante, agarrou um puxador no meio e tentou erguer a placa de vidro. Estava fechada; tentou as outras. Todas fechadas.

Com a Beretta, partiu o vidro de dois painéis. A luz do candeeiro era fraca mas suficiente. As sumidas letras e números escritos à mão na encadernação castanha eram suficientemente claros.

Cada ano estava dividido em dois períodos de seis meses, diferindo os volumes em espessura. Os livros eram de confecção manual. Olhou para o painel superior esquerdo: não tinham quebrado o vidro, e o reflexo da luz ofuscava a inscrição. Estilhaçou-o, remOvendo oS fragmentos de vidro com repetidos golpes do cano de aço.

No primeiro volume achaVa-se escrito 1907. Não tinha o mês indicado por baixo; tratava-se de um sistema que representava uma evolução.

Percorreu com o cano da pistola os volumes até ao ano de 1920.

Janeiro a Junho estava lá.

Julho a Dezembro faltava. No seu lugar, preenchendo o espaço, encontrava-se um volume metido à pressa, com a data de 1967.

Alfredo Goldoni, o homem sem pernaS! tinha-lhe passado à frente. Tirara a chave da porta fechada que continha o segredo de uma jornada às montanhas havia cinquenta anos e fugira precipitadamente. Fontine virou-se para a mulher de Goldoni. Estava de joelhos, com os braços magros a ampararem o corpo magro e trémulo.

Não seria difícil fazer o que tinha a fazer, saber o que havia para saber. - Levante-se - disse.

Transportou o corpo inanimado da mulher pelo campo fora até ao matagal. Continuava a não haver luar; ao invés, o ar cheirava a chuva iminente e o céu estava negro de breu, cheio de nUvens, sem nenhuma estrela à vista. O feixe da lanterna oscilava para baixo e para cima Com as suas passadas.

Tempo. Tempo era a unica coisa que agora contava!

 

' Em italiano no original: «candeeiro». (N. do T)

 

E choque. Havia de precisar de choque.

Alfredo Goldoni fora à estalagem de Capomonti, de acordo com a morta. Haviam ido os dois para lá, dissera ela. Os consigliatori1 de Fontini-Cristí tinham-se reunido. Aparecera um estranho entre eles que trouxera as palavras erradas.

 

1 Em italiano no original: «conselheiros». (N. do T.)

 

Adrian regressou de carro a Milão, mas não foi para o hotel: seguiu os letreiros da auto-estrada até ao aeroporto, não completamente seguro de como faria o que havia a fazer, mas convicto de que o conseguiria.

Tinha de alcançar Champoluc. Andava um assassino à solta e esse assassino era o irmão.

Algures no vasto complexo do Aeroporto de Milão estava um piloto e um avião. Ou alguém que sabia onde se podiam arranjar um e outro, pelo preço que fosse necessário.

Conduzia à máxima velocidade possível, com todas as janelas abertas, o vento a fustigar-lhe o rosto. Aquilo ajudava-o a dominar-se; ajudava-o a não pensar, pois o pensamento era demasiado doloroso.

- Há um pequeno campo privado nos arredores de Champoluc, utilizado pelos ricaços das montanhas - disse o piloto da barba por fazer que fora acordado e chamado ao aeroporto por um funcionário do turno da noite da Alitalia gratificado com uma boa gorjeta. - Mas a estas horas não está operacional.

- Você consegue voar até lá?

- Não fica longe, mas o terreno é mau.

- É capaz de o fazer?

- Se não for, terei gasolina suficiente para regressar. A decisão será minha, e não sua. Mas não lhe devolverei nem uma lira; estamos entendidos?

- Não me importa.

O piloto voltou-se para o funcionário da Alitalia, falando num tom autoritário, obviamente para impressionar o homem que ia pagar semelhante quantia por tal voo.

- Ligue-me à meteorologia. Zermatt, estações do sul, nos azimutes dois oito zero a dois nove cinco a partir de Milão. Quero frentes radar.

O funcionário da Alitalia encolheu os ombros e suspirou.

- Será pago - disse Adrian com brusquidão. O funcionário pegou num telefone vermelho.

- Operazioni' - disse, com exagerada solicitude.

A aterragem em Champoluc não foi tão arriscada como o piloto queria que Adrian julgasse. É certo que o campo não estava operacional - não havia comunicações rádio nem torre de controlo para orientar a aproximação do

 

' Em italiano no original: «operações». (N. do T.)

 

avião -, mas a pista única tinha os contornos delineados, com os extremos leste e oeste assinalados por luzes vermelhas.

Adrian atravessou o campo em direcção à estrutura solitária onde se viam luzes. Tratava-se de uma armação metálica em semicírculo, dos seus quinze metros de comprimento e sete metros e meio de altura no ponto médio. Era um hangar para pequenos aviões particulares. A porta abriu-se, derramou-se no chão uma luz mais intensa e no limiar recortou-se a silhueta de um homem de fato-macaco, que curvou os ombros, perscrutando a escuridão; depois espreguiçou-se, abafando um bocejo.

- Fala inglês? - perguntou Fontine.

O homem falava-o - relutantemente e mal, mas com clareza suficiente para se perceber. E a informação passada a Adrian correspondia bastante àquilo que esperava. Eram quatro da manhã e não havia nada aberto. Qual era o piloto suficientemente louco para aterrar em Champoluc a semelhantes horas? Talvez se devesse chamar a polizia.

Fontine tirou do bolso notas grandes e exibiu-as à luz do vão da porta. Os olhos do guarda cravaram-se no dinheiro. Adrian suspeitou que fosse mais que um mês de salário para o irritado homem.

- Vim de muito longe para descobrir uma pessoa. Não fiz nada de mal a não ser alugar um avião para me trazer de Milão aqui. A polícia não está interessada em mim, mas tenho de encontrar a pessoa de que ando à procura. Preciso de um carro e de indicações.

- Não é nenhum criminoso? A andar de avião a uma hora destas...

- Não sou criminoso nenhum - interrompeu Adrian, reprimindo a impaciência e falando com a maior calma possível. - Sou advogado... Avvocato - aduziu.

- Avvocato? - A voz do homem manifestava respeito.

- Tenho de encontrar a casa de Alfredo Goldoni. Foi o nome que me deram.

- O perneta?

- Não sabia disso.

O automóvel era um velho Fiat com os estofos rasgados e vidros laterais quebrados, A casa rústica de Goldoni ficava uns quinze quilómetros para lá da vila, segundo o guarda, na estrada para oeste. O homem desenhou um diagrama simples: era fácil de seguir.

Via-se uma cerca de postes e estacas sob o clarão dos faróis e os contornos de uma casa mais ao longe. E havia um mortiço jorro de luz a sair da casa, brilhando pelas janelas e iluminando indistintamente ramos pendentes de pinheiros que ficavam defronte do velho edifício junto à estrada. Adrian levantou o pé do acelerador do Fiat, perguntando a si mesmo se haveria de percorrer a pé o resto do caminho. Luzes numa casa de campo às cinco menos um quarto da manhã não era aquilo que esperava.

Viu os postes de linhas telefónicas. Teria o guarda da noite do aeroporto telefonado a Goldoni prevenindo-o de que se aproximava um visitante? Ou seria que os agricultores de Champoluc se levantavam normalmente a hora tão matutina?

Decidiu-se contra a aproximação a pé. Se o guarda tivesse telefonado, ou os Goldoni estivessem a principiar o dia, um automóvel não era o alarmante intruso que um homem sozinho, caminhando silenciosamente na noite, havia de constituir.

Adrian meteu por um largo caminho de terra entre os pinheiros altos; não havia outra entrada para um automóvel. Encostou o carro paralelamente à casa; o acesso de terra batida estendia-se muito mais para trás da propriedade, terminando num celeiro. Sob o jorro de luz dos faróis, viam-se alfaias agrícolas pelas portas abertas do celeiro. Saiu do carro, passou pelas janelas da frente iluminadas, tapadas com cortinas, e caminhou até à porta da frontaria. Era uma porta de casa rústica: larga e maciça, constituindo a porção superior um painel independente, separado do inferior para deixar entrar as brisas de Verão e manter os animais no exterior. Tinha no centro uma pesada aldraba de bronze corroído. Usou-a.

Aguardou. Não houve resposta nem sons de movimento do interior.

Voltou a bater, com mais força, espaçando mais as estridentes marteladas metálicas.

Ouviu-se um som por trás da porta. Indistinto, fugaz. Um roçagar de tecido ou papel; uma mão a arranhar em fazenda? O quê?

- Por favor - exclamou delicadamente. - O meu nome é Fontine. O senhor conheceu o meu pai, e o pai dele. De Milão. De Campo di Fiori. Por favor, deixe-me falar consigo! Não quero fazer nenhum mal.

Agora, apenas o silêncio. Nada.

Recuou para a relva e caminhou até às janelas iluminadas. Encostou a cara ao vidro e tentou ver através das cortinas brancas que o protegiam e caíam em dobras opacas. As imagens difusas do interior eram ainda mais distorcidas pela grossa vidraça da janela alpina.

Foi então que viu aquilo e, por um instante - à medida que os olhos se adaptavam à distorção esfumada -, pensou que tinha perdido o tino pela segunda vez nessa noite.

No extremo esquerdo do compartimento via-se a figura de um homem sem pernas a contorcer-se em curtos e espasmódicos estremecimentos pelo soalho adiante. O corpo deformado era robusto da cintura para cima, tapado por uma espécie de camisa que terminava nos enormes cotos, e o que restava das pernas oculto pelo tecido de umas cuecas brancas.

O perneta!

Alfredo Goldoni. Adrian observou-o então, à medida que Goldoni se arrastava para um canto escuro da parede mais afastada. Tinha qualquer coisa nos braços, aferrando-se a ela como se fosse uma bóia de salvação no mar tempestuoso. Era uma espingarda, uma espingarda de cano grosso. Porquê?

- Goldoni! Por favor! - gritou Fontine pela janela. - Quero só falar consigo. Se o guarda lhe telefonou, deve ter-lhe dito isso.

A detonação foi atroadora; houve vidros projectados em todas as direcções, penetrando alguns fragmentos no casaco impermeável e no blusão de Adrian. No último instante, vira o cano negro erguido e atirara-se para o lado, tapando a cara. Dir-se-ia que as grossas e afiadas lascas de vidro eram uma centena de pedaços de gelo a trespassar-lhe o braço. Se não fosse a grossa camisola que comprara em Milão, ficaria numa pasta de sangue. Assim, apenas os braços e o pescoço sangravam ligeiramente.

Por cima, através dos rolos de fumo e do vidro estilhaçado, ouviu o estalido metálico da espingarda: Goldoni voltara a carregar a arma. Sentou-se, com as costas apoiadas na fundação de pedra da casa. Apalpou o braço esquerdo todo e retirou a maior porção de vidros que conseguiu. Sentia os fios de sangue no pescoço.

Ficou ali sentado, respirando ofegantemente, socorrendo-se a si próprio, e depois voltou a chamar. Goldoni não tinha qualquer possibilidade de vencer o espaço entre o canto escuro e a janela. Eram dois prisioneiros, cada um deles apostado em matar o outro, mantida a distância por uma parede invisível e intransponível.

- Escute-me! Não sei o que lhe disseram, mas não é verdade! Não sou seu inimigo!

- Animale! - rugiu Goldoni lá de dentro. - Hei-de vê-lo morto!

- Por amor de Deus, porquê? Não quero fazer-lhe mal!

- Você é Fontini-Cristi! É um assassino de mulheres! Um raptor de crianças! Maligno! Animale!

Chegara demasiado tarde! Oh, Jesus! Chegara demasiado tarde! O assassino atingira Champoluc antes dele.

Mas o assassino andava ainda à solta. Havia uma possibilidade.

- Pela última vez, Goldoni - disse, agora sem gritar. - Sou um Fontini-Cristi, mas não o homem que você quer ver morto. Não sou um assassino de mulheres e não raptei criança nenhuma. Conheço o homem de quem você está a falar e não é de mim que se trata. É a maneira mais clara e mais simples que tenho de explicar as coisas. Agora vou pôr-me de pé diante desta janela. Não trago nenhuma arma; nunca tive uma. Se não acredita em mim, acho que vai ter de disparar. Não tenho tempo para discutir mais. E não me parece que vocês tão-pouco o tenham. Qualquer de vocês.

Adrian apoiou no chão a mão ensanguentada e levantou-se, vacilante. Caminhou vagarosamente diante da vidraça estilhaçada da janela.

Alfredo Goldoni exclamou serenamente:

- Caminhe com os braços à frente do corpo. Se hesitar ou alterar a passada, não tem qualquer hipótese de escapar!

Fontine saiu das sombras do obscurecido quarto das traseiras. O mutilado tinha-lhe feito sinal para uma janela pela qual podia entrar: não podia arriscar-se a proceder às manobras que lhe eram necessárias para abrir a porta da frente. Quando Adrian emergiu da escuridão, Goldoni armou o cão da espingarda, pronto a disparar. Exprimiu-se num sussurro:

- Você é o homem e no entanto não é o homem.

- É meu irmão - disse Adrian com suavidade. - E eu tenho de detê-lo. Goldoni ficou a olhá-lo em silêncio. Finalmente, com o olhar ainda preso no

rosto de Fontine, desarmou o cão da espingarda e baixou-a, pousando-a ao seu lado.

- Ajude-me a sentar na cadeira - disse.

Adrian sentou-se defronte do mutilado, nu da cintura para cima e com as costas ao alcance das mãos de Goldoni. O ítalo-suíço extraiu-lhe os estilhaços de vidro e aplicou uma solução alcoólica que ardia mas surtia efeito: a hemorragia fora estancada.

- Nas montanhas o sangue é precioso. Os nossos compatriotas do Norte chamam a este fluido leimen. É melhor que o pó. Duvido que os médicos concordem com ele, mas dá resultado. Vista a camisa.

- Obrigado. - Fontine pôs-se de pé e fez o que o outro lhe dizia. Haviam

' Em italiano no original: «Malvado! Animal!» (N. do T.)

falado apenas brevemente de coisas que tinham de ser ditas. Com o sentido prático de um homem dos Alpes, Goldoni ordenara a Adrian que despisse a roupa nos sítios onde o vidro tinha penetrado. Um homem ferido sem ser tratado pouca utilidade tinha para quem quer que fosse. O seu papel de médico rural, porém, não lhe atenuara a ira e o sofrimento.

- É um homem do inferno - disse o aleijado, enquanto Fontine abotoava a camisa.

- Está doente, embora eu perceba que isso não é ajuda nenhuma para si. Anda à procura de uma coisa. Uma arca, escondida algures nas montanhas. Foi transportada para lá há anos, antes da guerra, pelo meu avô.

- Nós sabemos. Sempre pensámos que algum dia viria alguém. Mas ignoramos em que local estará essa arca.

Adrian não acreditava no homem, mas no entanto não podia ter a certeza.

- Você falou em assassino de mulheres. De quem?

- Da minha mulher.

- Como é que sabe que morreu?

- Ele mentiu. Disse que ela correra pela estrada abaixo. Que foi atrás dela e a apanhou e a mantém escondida na vila.

- É possível.

- Não é, não. Eu não posso andar, signore. Quanto à minha mulher, não pode correr. Tem as veias das pernas inchadas. Calça uns sapatos grossos para andar por casa. Esses sapatos estão mesmo em frente dos seus olhos.

Adrian olhou para baixo, para o local que Goldoni apontava. Ao pé de uma cadeira, muito bem arrumado, via-se um par de grossos e feios sapatos.

- As pessoas fazem coisas que não se julgam capazes de fazer...

- Há sangue no chão - interrompeu Goldoni, com voz trémula, apontando para uma porta aberta. - Não havia ferimentos no homem que se intitula militar. Vá! Veja por si mesmo.

Fontine caminhou até à porta aberta e entrou na pequena divisão. Havia uma estante de livros envidraçada que fora quebrada, vendo-se por toda a parte fragmentos aguçados. Meteu a mão lá dentro e retirou um volume por detrás dos painéis quebrados. Abriu-o. Numa caligrafia clara, achavam-se ali páginas que relatavam sucessivas escaladas das montanhas. As datas remontavam a 1920. E havia sangue no soalho junto à porta.

Chegara demasiado tarde.

Regressou rapidamente ao quarto da parte da frente da casa.

- Conte-me tudo. O mais depressa que puder. Tudo.

O militar tinha sido minucioso. Imobilizara o inimigo e tornara-o impotente pelo temor e pelo pânico. O major do Corpo de Vigilantes montara a sua própria invasão da estalagem de Capomonti. Fizera-o eficazmente, sem um gesto supérfluo, encontrando Lefrac e os membros das famílias Capomonti e Goldoni num quarto do andar de cima, onde efectuavam uma reunião convocada à pressa.

A porta do compartimento fora arrombada e um aterrado empregado da recepção fora arremessado por ela tão abruptamente que caíra ao chão. O militar entrara prontamente, fechando a porta antes que algum dos presentes no compartimento soubesse o que estava a acontecer, e mantivera-os em respeito sob a ameaça da pistola.

Depois o militar anunciara as suas exigências. Primeiro, o velho livro de assentos que descrevia uma jornada nas montanhas mais de cinquenta anos

atrás. E mapas. Mapas minuciosos utilizados pelos alpinistas no distrito de Champoluc. Segundo, os serviços do filho de Lefrac ou do neto de dezoito anos para o guiar nos montes. Terceiro, a neta como segundo refém. O pai da criança perdera a cabeça e precipitara-se sobre o homem que empunhava a pistola; mas o militar era um especialista e o pai fora dominado sem um disparo.

O velho Lefrac recebera ordem para abrir a porta e chamar uma criada. Tinham trazido roupa decente para o compartimento e a criança vestida sob a ameaça da pistola. Fora então que o «homem do inferno» dissera a Goldoni que a mulher estava prisioneira. Devia regressar a casa e manter-se lá sozinho, mandando o condutor - o sobrinho - embora. Se parasse para ir à polícia, nunca mais veria a mulher.

- Porquê? - perguntou rapidamente Adrian. - Porque fez ele isso? Por que razão o queria lá sozinho?

- Ele separou-nos. A minha irmã volta com o sobrinho para a casa dela, na Via Sestina; o Lefrac e o filho mantêm-se na estalagem. Juntos entreajudamo-nos. Isolados, sentimo-nos atemorizados, impotentes. Uma pistola apontada à cabeça de uma criança não é coisa que se esqueça com facilidade. Ele sabe que sozinhos não faremos mais nada que não seja esperar.

- Meu Deus! - gemeu Adrian, cerrando os olhos.

- Aquele militar é um especialista, há que reconhecê-lo. - A voz de Goldoni era cava, fervilhando de ódio.

Fontine deitou-lhe um olhar.

«Corri com a manada - no meio da manada -, mas agora cheguei-me aos flancos e vou sair do magote».

- Porque disparou sobre mim? Se pensou que eu era ele, porque se dispôs a correr o risco? Sem saber o que ele tinha feito.

- Vi-lhe a cara no vidro. Queria cegá-lo, não era matá-lo. Um morto não me pode dizer para onde levou a minha mulher. Ou o corpo da minha mulher. Ou as crianças. Sou bom atirador; fiz fogo centímetros acima da sua cabeça.

Fontine atravessou a sala até à cadeira para onde tinha atirado o blusão e pegou nas páginas fotocopiadas das recordações do pai de cinquenta anos atrás.

- Deve ter lido esse assento. Consegue lembrar-se do que estava lá escrito?

- Não pode persegui-lo. Ele mata-o.

- Consegue lembrar-se?

- Foi uma escalada de dois dias, com muitos carreiros cruzados. Pode estar onde quer que seja. Anda a restringir cada vez mais a zona onde procura. Avança às cegas. Se o visse, matava as crianças.

- Não me verá... se eu lá chegar primeiro! Se eu esperar por ele! - Adrian desdobrou as páginas fotocopiadas.

- Foram-me lidas. Não há nada que possa ajudá-lo.

- Tem de haver! Está aqui!

- Engana-se - disse Goldoni, e Adrian soube que não estava a mentir. - Eu tentei dizer-lhe isso a ele, mas recusou-se a dar-me ouvidos. O seu avô tomou as disposições, mas o padrone não contou com a morte inesperada nem com falhas humanas.

Fontine levantou a vista das páginas. Nos olhos do velho lia-se a impotência. A uma morte seguir-se-ia por certo outra morte, pois a mulher seguramente morrera.

- Quais foram essas disposições? - perguntou suavemente Adrian.

- Eu digo-lhe. Você não é o seu irmão. Guardámos o segredo durante trinta e cinco anos, Lefrac, os Capomonti e nós. E um outro (não dos nossos) cuja morte foi repentina, antes de ele tomar as suas disposições.

- Quem era esse?

- Um comerciante chamado Leinkraus. Não o conhecíamos bem.

- Conte-me.

- Esperámos durante todos estes anos que aparecesse um Fontini-Cristi. E o mutilado contou:

O homem que eles - os Goldoni, Lefrac e os Capomonti - esperavam viria serenamente, em paz, em busca do engradado de ferro enterrado bem alto nas montanhas. Esse homem falaria da jornada empreendida há tantos anos por pai e filho, e saberia que essa jornada estava assente nos livros de registo de Goldoni, como haviam de saber todos quantos contratavam os guias Goldoni. E, como a escalada durara dois dias através de uma considerável extensão de terreno, o homem especificaria um apeadeiro abandonado conhecido por Scioc-chezza di Cacciatori («Loucura dos Caçadores»). A passagem fora abandonada à natureza havia mais de quarenta anos, muito antes de o engradado de ferro ser sepultado, mas existia quando o pai e o filho tinham escalado Champoluc, no Verão de 1920.

- Pensava que esses apeadeiros tinham...

- Nomes de pássaros?

- Sim.

- A maioria tinha, mas nem todos. O militar perguntou se havia um apeadeiro conhecido pelo nome de «Falcão». Não há falcões nas montanhas de Champoluc.

- O quadro na parede - disse Adrian, mais para si próprio do que para o homem dos Alpes.

- O quê?

- O meu pai recordava-se de um quadro da parede em Campo di Fiori, a pintura de uma caçada. Pensava que podia ser significativo.

- O militar não falou nisso. Nem falou da razão pela qual procurava a informação; apenas que tinha de possuí-la. Não me referiu a busca. Nem os livros de registo. Nem a razão de ser da importância do apeadeiro na via férrea. Foi muito reservado. E, claramente, não vinha em paz. Um militar que ameaça um homem sem pernas é um comandante sem valor. Não confiei nele.

Tudo quanto o irmão tinha feito era contrário à memória dos Fontini-Cristi tal como aquela gente os recordava. Podia ter sido tão simples, se ele houvesse sido franco para com eles, se tivesse vindo em paz... Mas o militar não podia fazer isso. Estava continuamente em guerra.

- Então a área em redor desse apeadeiro abandonado (a Loucura dos Caçadores) é onde está enterrada a arca?

- Presumivelmente. Há vários trilhos antigos para leste que partem da via férrea, subindo até às cristas mais elevadas. Mas qual trilho, qual crista? Não sabemos.

- Os registos deviam descrevê-lo.

- Caso a pessoa soubesse onde procurar. O militar não sabe.

Adrian pôs-se a pensar. O irmão tinha corrido meio mundo, iludindo a rede de informações da mais poderosa nação do mundo.

- É capaz de estar a subestimá-lo.

- Ele não é dos nossos. Não é um homem das montanhas.

- Pois não -meditou baixinho Fontine. - É outra coisa. O que procuraria ele? É nisso que temos de pensar.

- Um local inacessível. Longe dos trilhos. Terreno que não fosse facilmente transitável por qualquer uma de muitas razões. Há muitas áreas assim. As montanhas estão cheias delas.

- Mas ainda há minutos você disse que ele havia de restringir as suas... opções.

- Signore?

- Nada. Estava a pensar em... Não faça caso. É que ele não sabe aquilo que não deve procurar, compreende? Sabe que a arca era pesada; que teve de ser transportada mecanicamente. Principia por qualquer coisa além do livro de registo.

- Não tínhamos consciência disso.

- Ele tem.

- Não lhe há-de aproveitar grandemente, na escuridão.

- Olhe pela janela - disse Adrian. Lá fora, viam-se os primeiros alvores da manhã. - Fale-me desse outro homem. O comerciante.

- Leinkraus?

- Sim. De que maneira estava ele envolvido?

- Essa resposta desapareceu com a morte dele. Nem a Francesca sabe.

- Francesca?

- A minha irmã. Quando os meus irmãos morreram, passou a ser a mais velha. O sobrescrito foi-lhe dado a ela...

- Sobrescrito? Que sobrescrito?

- As instruções do seu avô.

«...Por conseguinte, caso Alfredo não seja o mais velho, procurar uma irmã, de acordo com o costume ítalo-suíço...»

Adrian desdobrou as páginas do testamento do pai. Se semelhantes fragmentos de verdade chegavam com tal rigor através dos anos, havia que dar mais atenção às recordações desconexas do pai.

- A minha irmã vive em Champoluc desde que casou com Capomonti. Conhece a família Leinkraus melhor que qualquer de nós. O velho Leinkraus morreu na loja. Houve um incêndio; muita gente pensou que não se tratara de um acidente.

- Não compreendo.

- A família Leinkraus é judia.

- Compreendo. Continue. - Adrian desfolhou as páginas.

«...O comerciante não gozava de popularidade. Era judeu, e, para uma pessoa que combateu denodadamente... essa maneira de pensar era indefensável».

Goldoni prosseguiu. O homem que viesse a Champoluc e falasse do engradado de ferro, da jornada há muito esquecida e do velho apeadeiro, seria aquele a quem se entregaria o sobrescrito confiado ao membro mais velho da família Goldoni.

- Há-de compreender, signore. - O homem sem pernas interrompeu-se. - Agora somos todos da família. Os Capomonti e os Goldoni. Passados tantos anos sem ninguém aparecer, discutimo-lo entre nós.

- Está a andar depressa de mais para mim.

- O sobrescrito dava indicações ao homem que viesse a Champoluc ter

com o velho Capomonti...

Adrian desfolhou as páginas para trás.

«Se houvesse segredos para deixar em Champoluc, o velho Capomonte era um rochedo de silêncio e confiança».

- Quando o Capomonti morreu, deu as suas instruções ao genro.

- Nesse caso, o Lefrac sabe.

- Apenas uma palavra. O nome Leinkraus.

Fontine deu um salto para diante na cadeira. Manteve-se na borda, desconcertado. Havia, porém, qualquer coisa que despertara na sua mente. Como num longo e complexo contra-interrogatório, tornavam-se repentinamente nítidas frases isoladas e palavras solitárias que adquiriam sentido quando anteriormente não possuíam sentido algum.

As palavras. Procurar as palavras, da mesma maneira que o irmão procurava a violência.

Esquadrinhou as páginas que tinha nas mãos, virando-as rapidamente, até encontrar aquilo que procurava.

«.... Há a esfumada recordação de um incidente desagradável. Do que esse incidente desagradável especificamente implicava, não me recordo... exasperou o meu pai... um furor triste... a impressão de que me ocultavam pormenores...»

Ocultar. Furor. Tristeza.

«...exasperou o meu pai...»

- Escute, Goldoni. Tem de recordar o que se passou na altura. Há muito tempo. Aconteceu qualquer coisa. Qualquer coisa desagradável, triste, aborrecida. E dizia respeito à família Leinkraus.

- Não.

Adrian parou. Goldoni, o homem sem as pernas, não o deixara continuar.

- Que quer dizer com esse «não»? - perguntou serenamente. -Já lhe disse. Não os conhecia bem. Mal nos falávamos.

- Por eles serem judeus? Foi dessa maneira que as coisas se passaram no norte nesse tempo?

- Não o compreendo.

- Eu acho que compreende. - Adrian fitou-o; o homem dos Alpes evitou-lhe o olhar. Fontine prosseguiu brandamente: - Você não tinha de conhecê-los, talvez nem pouco nem muito. Mas, pela primeira vez, está a mentir-me. Porquê?

- Não estou nada a mentir. Eles não eram amigos dos Goldoni.

- Nem dos Capomonti?

- Nem dos Capomonti.

- Vocês não gostavam deles?

- Não os conhecíamos! Eles davam-se uns com os outros. Apareceram outros judeus e eles viviam entre si. É tão simples como isto.

- Não é, não. - Adrian sabia que a resposta estava à mão. Oculta, porventura, ao próprio Goldoni. - Aconteceu qualquer coisa em Julho de mil novecentos e vinte. Que foi?

- Não me consigo lembrar - suspirou Goldoni.

- Catorze de Julho de mil novecentos e vinte! Que aconteceu?

A respiração de Goldoni acelerou-se e os largos maxilares retesaram-se. Os grossos cotos que outrora haviam sido as pernas retorciam-se na cadeira de rodas.

- Não significa coisa nenhuma - sussurrou.

- Deixe-me ser eu a aquilatar - disse Adrian.

- Os tempos mudaram. Muda tanta coisa numa vida! - disse o homem dos Alpes, com a voz vacilante. - Toda a gente sentiu a mesma coisa.

- Catorze de Julho de mil novecentos e vinte! - Adrian precipitou-se para o outro.

- Já lhe disse! Não tem significado.

- Amaldiçoado seja! - Adrian saltou da cadeira. Não estava fora de questão agredir o homem. Foi então que as palavras surgiram.

- Um judeu foi espancado. Um miúdo judeu que entrou na escola da igreja... foi espancado. Morreu três dias depois.

O homem dos Alpes dissera-o. Mas apenas uma parte. Fontine afastou-se da cadeira de rodas.

- O filho de Leinkraus? - perguntou.

- Sim.

- A escola da igreja?

- Não conseguiu entrar na escola oficial. Era um sítio para aprender. Os padres aceitaram-no.

Fontine sentou-se devagar, mantendo os olhos em Goldoni.

- Há mais, não há? Quem foram os autores do espancamento?

- Quatro rapazes da vila. Não sabiam o que faziam. Toda a gente o disse.

- Tenho a certeza de que toda a gente o disse. Assim é mais fácil. Crianças ignorantes que tinham de ser protegidas. E o que era a vida de um judeu?

Assomaram lágrimas aos olhos de Goldoni.

- Sim.

- Você era um desses rapazes, não era? Goldoni acenou mudamente com a cabeça.

- Acho que sou capaz de adivinhar o que aconteceu - prosseguiu Adrian.

- Leinkraus foi ameaçado. A mulher e os outros filhos também. Não se disse nada, nada foi comunicado. Um miúdo judeu morrera, e pronto.

- Já lá vão tantos anos! - sussurrou Goldoni, ao mesmo tempo que lhe corriam as lágrimas pelo rosto. -Já ninguém pensa dessa maneira. E temos o que fizemos a pesar-nos na consciência. No final da minha vida, torna-se ainda mais difícil. A sepultura fica presentemente aqui perto.

Adrian suspendeu a respiração, aturdido pelas palavras de Goldoni. A sepultura fica ao pé... A sepultura. Meu Deus! Seria isso? Apetecia-lhe saltar da cadeira e vociferar as suas interrogações até que o homem sem pernas se lembrasse! Exactamente. Mas não podia fazê-lo. Manteve a voz baixa, incisiva.

- Que aconteceu depois? Que fez o Leinkraus?

- Fazer? - Goldoni encolheu lentamente os ombros, com tristeza no gesto.

- Que podia ele fazer? Ficou calado.

- Houve funeral? Enterro?

- Se houve, não soubemos de nada.

- O filho do Leinkraus tinha de ser sepultado. Nenhum cemitério cristão aceitaria um judeu. Havia algum local de enterro para judeus?

- Na época não havia. Agora há.

- Na época! E na época? Onde é que ele foi sepultado? Onde foi sepultado o filho assassinado de Leinkraus?

Goldoni reagiu como se tivesse levado uma bofetada:

- Disseram que o pai e os irmãos (os homens da família) levaram o filho falecido para as montanhas. Onde ninguém pudesse mais maltratar o corpo do rapaz.

Adrian ergueu-se da cadeira. Ali estava a sua resposta.

A sepultura do judeu. A arca de Salónica.

Savarone Fontini-Cristi descobrira uma verdade eterna numa tragédia de aldeia. E utilizara-a. Ao fim e ao cabo, não deixando que os homens piedosos esquecessem.

Paul Leínkraus tinha quarenta e muitos anos, era neto do comerciante e comerciante igualmente, mas de uma época diversa. Pouco podia relatar de um avó que mal conhecera, ou de uma era de servilismo e medo que nunca conhecera. Era, porém, um homem perspicaz. Assim, reconhecera a urgência e a legitimidade da súbita visita de Adrian.

Leinkraus levara Fontine para a biblioteca, longe da mulher e do filho, e extraíra da estante a Tora da família. O diagrama enchia toda a contracapa da encadernação. Tratava-se de um mapa rigorosamente traçado que mostrava o caminho para a sepultura do primeiro filho de Reuven Leinkraus, enterrado nas montanhas em 17 de Julho de 1920.

Adrian copiara todas as linhas e depois cotejara o seu desenho com o original. Estava fiel: achava-se de posse do seu último passaporte. Para onde, tinha a certeza. Para o quê, não podia saber.

Formulara um derradeiro pedido a Leinkraus: uma chamada para Londres, a qual, evidentemente, pagaria.

- O seu avô procedeu a todos os pagamentos que esta casa pode aceitar-Faça a sua chamada.

- Fique, por favor. Quero que oiça.

Tinha pedido uma ligação para o Savoy, em Londres. O seu pedido nada tinha de complicado. Quando a Embaixada americana abrisse, o Savoy faria o favor de dar um recado ao coronel Tarkington, do gabinete do inspector-geral-Se não estivesse em Londres, a embaixada saberia onde contactar com ele.

Deviam indicar ao coronel Tarkington um homem chamado Paul Leinkraus, na vila de Champoluc, nos Alpes italianos. A mensagem devia ir assinada com o nome de Adrian Fontine.

Ia para as montanhas em perseguição, mas não alimentava ilusões. Não estava, em última análise, à altura do militar. O seu gesto poderia ser apenaS isso: um gesto que redundasse em inutilidade. E muito possivelmente na sua própria morte; dava-se conta disso também.

O mundo podia muito bem sobreviver sem a sua presença. Não era particularmente notável, embora lhe agradasse pensar que possuía determinados dotes. Mas não estava de modo algum seguro de como o mundo passaria se Andrew saísse de Champoluc com o conteúdo de um engradado de ferro que fora trazido num comboio de Salónica há mais de trinta anos. Se apenas um irmão regressasse das montanhas e esse homem fosse o assassino do Corpo de Vigilantes, tinha de ser detido.

Terminado o telefonema, Adrian erguera os olhos para Paul Leinkraus.

- Quando o coronel Tarkington entrar em contacto consigo, conte-lhe exactamente o que aconteceu aqui esta manhã.

Chegado à porta, Fontine dirigiu um aceno de cabeça a Leinkraus. Abriu a porta do Fiat e entrou no carro, reparando que andava tão agitado, desde a

chegada, que deixara as chaves no automóvel. Era o género de descuido em que nenhum militar incorreria.

Essa percepção fê-lo estender o braço e puxar a tampa do compartimento das luvas. Meteu a mão lá dentro e tirou uma pesada pistola preta de carregador; o mecanismo de carregar tinha-lhe sido explicado por Alfredo Goldoni.

Ligou a ignição e baixou o vidro da janela, repentinamente carecido de ar. A respiração acelerou-se-lhe e as batidas do coração vibravam-lhe na garganta. E lembrou-se.

Tinha disparado uma pistola apenas uma vez na vida. Havia anos, num acampamento de rapazes em New Hampshire, quando os encarregados do acampamento de Verão os tinham levado à carreira de tiro da polícia local. O irmão estava ao seu lado e haviam rido em uníssono, duas crianças excitadas.

Que era feito desse riso?

Onde estaria o irmão?

Adrian desceu a rua orlada de árvores e virou à esquerda, para a estrada que o conduziria rumo a norte, às montanhas. Lá em cima, o sol matinal estava escondido por detrás de um manto de nuvens que se adensavam.

O céu estava de mau humor.

A rapariga soltou um grito agudo e escorregou na rocha; o irmão virou-se num ápice e agarrou-lhe a mão, evitando a queda. O mergulho não seria superior a seis metros, e o militar perguntou a si mesmo se não seria melhor deixá-la tombar. Se a rapariga partisse um tornozelo ou uma perna, não iria a parte nenhuma; por certo não conseguiria chegar lá abaixo, pelos trilhos, ao terreno plano e à estrada abaixo deste. Estava na altura a vinte quilómetros para trás deles. Tinham coberto o terreno inicial durante a noite.

Podia cortar caminho relativamente aos trilhos primitivos daquela jornada havia cinquenta anos. Se outros iniciassem a busca, não saberiam disso; ele sabia-o. Era capaz de ler mapas da mesma maneira que a maior parte dos homens lê meros livros. A partir de símbolos, cores e números, conseguia visualizar o terreno com a precisão de uma máquina fotográfica. Não havia melhor no Exército. Era um mestre de tudo quanto era real, desde homens a máquinas e mapas.

O pormenorizado mapa utilizado pelos alpinistas no distrito de Champoluc mostrava a via férrea que partia de Zermatt inflectindo para oeste ao longo da curva das montanhas. Seguia em linha recta durante aproximadamente oito quilómetros antes da estação de Champoluc. As áreas a leste dos derradeiros trechos rectilíneos de via eram muito frequentadas ao longo de todo o ano. Tratava-se dos primeiros carreiros mencionados no registo de Goldoni. Ninguém que pretendesse esconder qualquer coisa pensaria neles.

Mais para norte ainda, no início da curva da via férrea a oeste, ficavam os antigos apeadeiros que conduziam aos numerosos carreiros especificamente designados nas páginas que tinha arrancado do livro de registo de Goldoni referentes a 14 e 15 de Julho de 1920. Qualquer deles podia ser o que procurava. A partir do momento em que os visse à luz do dia, e analisasse as possibilidades, poderia determinar qual dos carreiros seguiria.

Essas selecções basear-se-iam em factos. Primeiro facto: o tamanho e peso da arca exigiram o transporte por meio de um veículo ou animal. Segundo facto: o comboio de Salónica fizera a sua viagem no mês de Dezembro - uma época do ano em que fazia um frio intenso e os desfiladeiros da montanha estavam cobertos de neve. Terceiro facto: os degelos da Primavera e do Verão, com as suas águas caudalosas e a erosão da terra, provocariam um abaixamento do terreno forçosamente elevado onde fora escondida a arca. Quarto facto: esse ponto ficaria afastado das áreas de trânsito intenso, muito acima de qualquer rota estabelecida, mas com um carreiro desviado que pudesse ser percorrido por um animal ou um veículo. Quinto facto: esse carreiro teria de

ter início numa secção da via onde um comboio pudesse parar e o nível do terreno de um e outro lado fosse plano e a direito. Sexto facto: esse apeadeiro, presentemente em uso ou abandonado, levaria aos entrecruzados carreiros mencionados no livro de assentos de Goldoni. Retomando cada um deles até aos carris e imaginando a viabilidade de viajar por eles - com frio e neve, num animal ou num veículo -, o número de carreiros ficaria ainda mais restringido, até restar apenas um que conduzisse ao esconderijo.

Tinha tempo. Dias, se precisasse deles. E dispunha de víveres para uma semana bem amarrados às costas. O aleijado, Goldoni, a mulher, Capomonti, Lefrac e a família estavam demasiado atemorizados para tomar qualquer iniciativa. Tinha arranjado uma protecção brilhante. O oculto era sempre mais eficaz do que aquilo que se podia observar. Dissera aos aterrados ítalos-suíços que tinha comparsas em Champoluc, os quais estariam de atalaia: haviam de levá-lo ao seu conhecimento nas montanhas, se um Capomonti ou um Lefrac fosse à polícia. Para militares, as comunicações não constituíam problema. E o resultado de qualquer acção por parte deles seria a execução dos reféns.

Fantasiara na presença do Corpo de Vigilantes. O Corpo de Vigilantes tal como havia sido: eficiente, forte, rápido a manobrar. Um dia havia de criar um novo corpo, mais forte e eficiente, sem debilidades. Encontraria a arca de Salónica, levaria os documentos das montanhas, convocaria os homens piedosos e observar-lhes-ia os rostos ao descrever o iminente colapso global das suas instituições.

«... O conteúdo daquela arca é o que há de mais desconcertante na História para o mundo civilizado...»

Era consolador. Não podia encontrar-se em melhores mãos.

Agora achavam-se num trecho plano, no qual a primeira elevação a oeste ficava a uma distância que não passaria de um quilómetro e meio. A rapariga caiu de joelhos, a soluçar. O irmão olhou para ele, com um olhar que traduzia ódio, medo, súplica. Andrew matá-los-ia a ambos, mas isso ainda tardaria um bocado. Uma pessoa liberta-se dos reféns quando eles já não servem para nada.

Só os loucos matavam indiscriminadamente. A morte era um instrumento, um meio a ser utilizado para atingir um objectivo ou completar uma missão, e não passava disso.

Adrian fez o Fiat sair da estrada para os campos. Os rochedos rasgaram a parte de baixo da carroçaria. Não podia levar o carro mais adiante; tinha alcançado o primeiro de vários montes empinados que levavam ao primeiro planalto descrito no diagrama de Leinkraus. Estava a catorze quilómetros a norte de Champoluc. O túmulo ficava precisamente a oito quilómetros para lá dos planaltos que constituíam os marcos da jornada até ao local da sepultura.

Apeou-se do carro e atravessou o campo de erva alta. Ergueu os olhos. O monte em frente dele elevava-se repentinamente do solo, uma protuberância improvisada da natureza, mais rochedos que verdura, sem qualquer carreiro visível pelo qual escalá-lo. Ajoelhou e apertou os atacadores dos sapatos de sola de borracha com toda a força que pôde. A pistola pesava-lhe muito no bolso do impermeável.

Fechou os olhos por um instante: «Não podia pensar. Oh, meu Deus, não me deixes pensar!»

Agora era um indivíduo em movimento. Pôs-se de pé e principiou a subir.

Os primeiros dois apeadeiros revelaram resultados negativos. Não havia maneira de qualquer animal ou veículo poder atravessar os caminhos desde a linha de caminho de ferro de Zermatt até às vertentes de nascente. Restavam dois outros apeadeiros. Os nomes no velho mapa de Champoluc eram «Loucura dos Caçadores» e Torre do Pardal»; não havia referência alguma a um falcão. Mesmo assim, tinha de ser um deles!

Andrew olhou para os reféns. Os irmãos estavam sentados lado a lado falando em murmúrios abafados e lançando-lhe olhares fugazes. O ódio consumira-se já, restando apenas o medo e a súplica. Havia neles qualquer coisa de feio, pensou o militar. Depois deu-se conta do que era. Do lado de lá do mundo, nas selvas do Sueste asiático, as pessoas da idade deles travavam combates, andavam com armas a tiracolo por cima de uniformes que se assemelhavam a pijamas. Eram, o seu inimigo lá, mas ele tinha respeito pelo inimigo.

Por aquelas crianças não sentia respeito. Não havia vigor nos rostos delas. Apenas medo, e o medo era repulsivo para o major do Corpo de Vigilantes.

- De pé! - Não conseguiu dominar-se: gritou iradamente ao ver aqueles fedelhos amimados e fracos, sem dignidade no rosto.

Jesus, sentia desprezo pelos invertebrados!

Não deixariam saudades.

Adrian olhou para trás sobre a cumeada, na direcção do planalto ao longe, agradecido pelo facto de o velho Goldoni lhe ter dado umas luvas. Mesmo sem frio, as suas mãos e os dedos ficariam numa pasta de carne ensanguentada. Não que a escalada fosse difícil: um homem acostumado a um mínimo de exercício nas montanhas havia de achá-la simples. Mas ele nunca estivera nas montanhas a não ser para esquiar, e aí os cabos de içar e os teleféricos encarregavam-se de todo o trabalho de subir. Estava a servir-se de músculos raramente empregues e tinha reduzida confiança no seu sentido de equilíbrio.

As últimas centenas de metros tinham sido as mais penosas. O trilho no diagrama de Leinkraus estava balizado: um aglomerado de rochedos cinzentos na base de um talude de xisto cristalino que todos os alpinistas sabiam que urgia evitar, pois quebrava-se com facilidade. A rocha cristalina desenvolvia-se formando uma escarpa que se erguia cerca de trinta metros acima do xisto, com a borda nitidamente definida. Para a esquerda da camada cristalina ficavam abruptos e densos bosques alpinos que brotavam verticalmente da encosta - uma súbita e espessa floresta orlada de rochedos. O carreiro de Leinkraus estava marcado a dez passos do talude. Conduzia ao topo da encosta arborizada cujo cimo era o segundo planalto: o final da segunda etapa da jornada.

Não se via o carreiro em parte alguma. Desaparecera: anos de desuso e o crescimento desordenado da vegetação tinham-no obliterado. No entanto, o cimo via-se claramente sobre as árvores. O facto de ele o ver era uma indicação do pendor da subida.

Tinha penetrado na densa vegetação rasteira típica dos alpes e progredira, metro a metro, pela íngreme encosta acima, através de matagal eriçado de urtigas e das agulhas dos pinheiros, que se cravavam na pele.

Sentou-se no cume, respirando ofegantemente, com as costas; a doer da tensão constante. Calculava que a distância ao primeiro planalto devia ser pelo menos cinco quilómetros. Gastara perto de três horas. Um quilómetro e meio

por hora, galgando rochedos e descendo pequenos vales, atravessando frios cursos de água e trepando intermináveis colinas. Apenas cinco quilómetros. Se assim fosse, faltava-lhe percorrer três quilómetros, talvez menos. Olhou para cima. O céu mantivera-se nublado durante toda a manhã. Parecia o céu de North Shore antes de uma borrasca.

Costumavam velejar juntos durante as borrascas. Rindo à medida que levavam a melhor sobre o tempo, seguros da sua destreza na água, competindo contra a chuva e o vento do Sound.

Não, não pensaria nisso. Pôs-se de pé e olhou para o desenho que fizera no diagrama de Leinkraus, copiado da contracapa da Tora da família.

O diagrama era claro, mas o terreno que se elevava para lá dele não o era. Divisou o objectivo - mesmo a nordeste, o terceiro planalto, isolado por cima de um mar de abetos alpinos. A crista onde estava, porém, prolongava-se para a direita, mesmo para leste, conduzindo ao sopé de outra montanha de penedos ainda, longe de qualquer linha recta para o planalto ao longe. Contornou a saliência a seguir à orla do denso matagal em declive pelo qual havia trepado. A descida que se lhe seguia era simples e os rochedos em baixo erguiam-se como um borbulhante rio de pedra. O carreiro tal como o tinha traçado no diagrama ia do bosque à elevação, e desta a outro bosque; não havia qualquer referência a rochedos de permeio.

Tinham-se verificado modificações geológicas nos anos decorridos desde que qualquer membro da família Leinkraus fora ao local da sepultura. Uma súbita modificação da natureza - terramoto ou avalancha - eliminara o carreiro.

Não obstante, via o planalto. O trecho que o separava dele parecia impenetrável, mas depois de o transpor conseguiu distinguir um carreiro sinuoso no terreno mais elevado que conduzia ao planalto. Era duvidoso que isso se tivesse alterado. Deslizou pelo talude até ao rio de pedra e, desajeitadamente, procurando evitar que os pés lhe escorregassem numa centena de minúsculas fissuras, subiu em direcção ao bosque de abetos.

A terceira passagem era a certa! Sciocchezza di Cacciatori! «A Loucura dos Caçadores»! Abandonada havia muito tempo, mas perfeita para descarregar a arca. O carreiro das montanhas até à via férrea de Zermatt era transitável e a área em redor dos carris plana e acessível. Inicialmente, Andrew não tivera a certeza; a despeito do terreno horizontal de um e outro lado dos carris, o trecho era curto, bloqueado por uma curva. Depois recordara-se: o pai dissera que o comboio de Salónica era uma pequena composição de mercadorias: quatro vagões e uma locomotiva.

Cinco elementos de material circulante podiam facilmente passar a curva e estacionar em linha recta. Fosse qual fosse o vagão em que a arca viesse, podia ter sido descarregado sem dificuldade.

Porém o que presentemente o convencia de que estava próximo do seu objectivo fora uma inesperada descoberta. A oeste dos carris, viam-se os sinais inconfundíveis de uma estrada abandonada, O sulco pelo meio do arvoredo estava bem definido e a vegetação mais baixa. Já não era uma estrada - nem sequer um carreiro -, mas não se podia negar que outrora havia existido.

- Lefrac! - gritou para o rapaz de dezoito anos. - Que é que há lá em baixo? - apontava para noroeste, onde o sulco pelo bosque adentro iniciava um declive.

- Uma aldeia. A uns oito, dez quilómetros.

- Não fica na linha de caminho-de-ferro?

- Não, signore. Fica em terreno de cultivo, abaixo das montanhas.

- Qual é a estrada que vai até lá?

- A estrada principal de Zurique e...

- Pronto. - Interrompeu o rapaz por duas razões. Já sabia o que pretendia saber e, a cinquenta metros, a rapariga pusera-se de pé e ia a esgueirar-se pelo matagal do lado nascente da via férrea.

Fontine sacou da pistola e fez dois disparos. As detonações trovejaram pelo matagal e os projécteis roçaram a criança, que, aterrada, soltou um grito. O irmão lançou-se sobre ele num frenesi de pranto; ele deu um passo para o lado e golpeou o rapaz com o cano da arma na parte lateral da cabeça.

O filho de Lefrac tombou no solo, enchendo de soluços de frustração e raiva o silêncio do apeadeiro abandonado.

- És melhor do que eu pensava - observou friamente o militar, erguendo o olhar e voltando-se para a rapariga. - Ajuda-o. Não está ferido. Vamos voltar para trás.

Dar esperança aos cativos, reflectiu o militar. Quanto mais jovens e inexperientes fossem, mais esperança se lhes devia dar. Ela reduzia o medo, o qual era, por si só, nocivo à velocidade da progressão. O medo era também instrumento. Como a morte. Havia que usá-lo racionalmente.

Reconstituiu o carreiro a partir da linha férrea de Zermatt uma vez mais. Agora tinha a certeza. Não havia nada que impedisse um animal ou um veículo de percorrê-lo. O solo era desimpedido e na sua maior parte consistente. E, o que era mais importante, o terreno subia na precisa direcção das vertentes de nascente, para os carreiros especificamente mencionados nas sumidas páginas do livro de registos. A terra estava coberta de neve ligeira e de camadas de geada. A cada metro que progredia, havia qualquer coisa dentro do militar que lhe dizia estar a aproximar-se de zona inimiga. Pois era disso que se tratava.

Alcançaram o primeiro carreiro cruzado descrito pelo guia Goldoni na manhã de 14 de Julho de 1920. Para a direita, o carreiro inflectia no sentido descendente pelo interior de uma espécie de bosque, uma densa parede de verde-escuro, enfeitada por um tecto de branco. Afigurava-se impenetrável.

Era um esconderijo possível. Aquele bosque de montanha não seria tentador para um alpinista amador e não possuía interesse para um experiente. Por outro lado, era mesmo bosque - árvores e terra, e não rochedos - e, pelo facto de não existir rochedos, não podia ser ali. A arca teria de estar protegida por rochedos.

Para a esquerda, o carreiro continuava a subir, inflectindo na direcção da aba de uma pequena montanha acima deles. O carreiro propriamente dito era largo, de rocha dura, e orlado de folhagem. A direita erguiam-se agrestes penedos, formando um abrupto alcantilado de pedra maciça. Um animal ou veículo ainda tinha espaço para caminhar ou deslizar; a linha recta a partir dos carris mantinha-se ininterrupta.

- Mexam-se! - gritou, apontando para a esquerda. Os filhos de Lefrac entreolharam-se. À direita ficava o caminho para Champoluc - o caminho de regresso. A rapariga agarrou-se ao irmão; Fontine deu um passo em frente e empurrou a rapariga para diante.

- Signore!- O rapaz gritou e colocou-se entre um e outro, de braços erguidos e palmas das mãos estendidas, um escudo bem frágil. - Não faça isso - balbuciou baixinho, com a voz entrecortada de medo juvenil, a própria ira a desafiá-lo.

- Vamos - disse o militar. Não tinha tempo a perder com crianças.

- Ouça-me, signore!

- Bem te ouvi. Agora, mexe-te.

No flanco poente da pequena montanha, a largura do carreiro ascendente reduzia-se com brusquidão e entrava numa enorme arcada natural aberta nos penedos, conduzindo à face de uma colina de rocha alcantilada. A arcada de génese geológica não só era o prolongamento lógico do carreiro, como a montanha de rocha para lá dela devia ter sido irresistível para alpinistas principiantes. Podia ser escalada sem grande esforço, mas era suficientemente atemorizadora, pela largura e altura, por forma a constituir um bom começo para as regiões mais elevadas. Perfeito para um entusiasta de dezassete anos, sob o olhar vigilante de um guia e de um pai.

Mas a largura debaixo do arco era mesmo estreita e o chão de rocha demasiado liso, especialmente quando caíam nevões mais fortes. Um animal - uma mula ou um cavalo - podia atravessá-lo por baixo, mas havia um perigo considerável de os cascos escorregarem.

Nenhum veículo podia de modo algum passar.

Andrew voltou-se e estudou a aproximação que acabavam de fazer. Não havia outros carreiros, mas, cerca de trinta metros atrás, do lado esquerdo, o solo era plano e coberto de vegetação alpina, estendendo-se até uma curta parede de rocha que se erguia alcançando a cumeada da montanha. Essa parede, essa curta escarpa, não teria mais de seis metros de altura e ficava quase escondida por arbustos e pequenas árvores nodosas que afloravam do rochedo. O solo debaixo dessa escarpa, contudo, debaixo dessa crista, era plano. Havia obstáculos naturais em toda a parte excepto ali, naquele preciso local.

- Vão até ali - disse aos jovens Lefrac, tanto para os manter à vista como para lhe facultar uma perspectiva. - Entrem naquela zona plana no meio das rochas! Afastem os arbustos e entrem lá! Até onde conseguirem!

Recuou do carreiro e analisou o cume lá no cimo. Também esse era plano, ou pelo menos assim dava a ideia. E era outra coisa, uma coisa que podia não se notar, a não ser, porventura, do sítio onde se encontrava. Era... definido. A borda, embora recortada, formava um semicírculo quase perfeito. Se esse círculo continuasse, o próprio cume constituía como que uma pequena plataforma fora de mão numa pequena montanha sem importância, mas ainda assim bem acima dos montes alpinos mais baixos.

Calculou a altura de Lefrac em um metro e setenta e cinco ou setenta e seis.

- Levanta as mãos! - gritou.

De braços estendidos, as mãos do rapaz ficavam mesmo abaixo do ponto médio do curto penhasco.

Suponhamos que o meio de transporte não era um animal, mas um veículo. Uma peça de maquinaria de grossas rodas, com carroçaria de limpa-neve ou de tractor. Era coerente: não havia qualquer porção da rota desde a via férrea de Zermatt, ou pelo carreiro de Goldoni acima, que semelhante peça de equipamento não pudesse atravessar. E limpa-neves e tractores dispunham de mecanismos de elevação de cargas...

- Signore! Signore! - Era a rapariga; os seus gritos davam a entender uma

grande exaltação, um misto de esperança e desespero. - Se é disto que anda à procura, vamos!

Andrew correu de volta ao carreiro e em direcção aos Lefrac. Lançou-se pelo meio dos arbustos emaranhados até à face da rocha.

- Além em baixo! - gritou novamente a rapariga.

No solo, na neve rala, mal se distinguindo no meio da vegetação rasteira estava uma velha escada. A madeira apodrecera e os degraus haviam inchado em meia dúzia de lugares, desprendendo-se dos respectivos encaixes. Afora isso, porém, achava-se intacta. Já não se encontrava em estado de ser utilizada, mas tão-pouco tinha sido maltratada pelo homem. Havia anos, talvez décadas, que estava pousada no meio daqueles arbustos, sem ninguém lhe tocar a não ser a natureza e o tempo.

Fontine ajoelhou-se e tocou-lhe, recolheu-a do chão e viu-a desfazer-se ao erguê-la. Tinha encontrado um utensílio humano onde não devia haver nenhum; sabia que a menos de quatro metros e meio acima dele...

Acima dele! Rodou velozmente a cabeça e viu o objecto indistinto a despenhar-se. O impacte deu-se: a cabeça estalou-lhe num relampejar de dor, seguido por um instante de entorpecimento, com um cento de martelos a percutirem. Caiu para a frente, debatendo-se para sacudir os efeitos da pancada e reencontrar a luz.

Ouviu os gritos:

- Fugi-f Presto! In Ia traccia!1 - Era o rapaz.

- Non senza voif Tujuggi ancheí1 - A voz da rapariga.

O filho de Lefrac tinha achado um grande pedregulho no solo e, no seu ódio, perdera o medo; segurando a primitiva arma na mão, arremessara-a em cheio contra a cabeça do militar.

A luz estava a voltar. Fontine principiou a levantar-se e viu mais uma vez a mão desfocada a descer e a pedra, abater-se em diagonal.

- Seu estupor miúdo! Seu estupor!

O filho de Lefrac largou o pedregulho, lançando-o contra o corpo do militar - em qualquer parte do mundo, uma arremetida final - e deitou a correr dos arbustos cobertos de neve para o carreiro, atrás da irmã.

Andrew deu-se conta do auge do seu furor. Sentira-o porventura uma dúzia de vezes na vida, e fora sempre no calor liquefeito do combate, quando um inimigo dispunha de uma vantagem que ele não podia controlar.

Rastejou para fora dos arbustos até à orla do carreiro e olhou para baixo. Num plano inferior, no carreiro sinuoso, estavam os irmãos, correndo o mais que podiam pelo trilho escorregadio.

Levou a mão ao interior do blusão, ao coldre preso ao peito. A Beretta estava no bolso, mas uma Beretta não seria indicada: não era assim tão precisa. Sacou da Magnum de calibre 357 que tinha comprado na loja de Leinkraus em Champoluc. Os seus reféns estavam a cerca de quarenta metros de distância. O rapaz dava a mão à rapariga; encontravam-se muito juntos e as figuras confundiam-se.

Andrew premiu o gatilho oito vezes a fio. Ambos os corpos tombaram, retorcendo-se nos rochedos. Conseguiu ouvir os gritos, que daí a segundos diminuiram

 

' Em italiano no original: «Foge! Depressa! Para o carreiro!» (N do T.)

' Em italiano, algo incorrecto, no original: «Sem ti, não! Foge também!» (N. do T.)

 

de intensidade, convertendo-se em gemidos, ao passo que as contorções se transformavam em movimentos coleantes e solavancos na direcção do nada. Morreriam, mas ainda tardaria um bocado. Não iriam mais longe.

O militar voltou a rastejar pelos arbustos rumo ao cume do plano e tirou a mochila das costas, desembaraçando-se lentamente das correias e mexendo o menos possível a cabeça, que sangrava. Abriu a mochila e extraiu o estojo de lona de primeiros socorros. Tinha de pensar a pele golpeada e estancar o sangue o melhor que pudesse. E despachar-se. Por amor de Deus, despacha-te!

Agora não tinha reféns. Bem podia dizer com os seus botões que não fazia diferença, mas sabia perfeitamente que não era assim. Reféns eram uma saída. Se abandonasse as montanhas sozinho, eles haviam de estar de atalaia. Jesus, haviam de estar de atalaia a ele: era um homem morto. Ficariam com a arca e matá-lo-iam.

Havia outro processo. O rapaz de Lefrac dissera-o!

A via abandonada a poente do apeadeiro que tinha o nome de «Loucura dos Caçadores»! Passando a via férrea e descendo até uma aldeia cuja estrada principal conduzia a Zurique.

Contudo, ele não iria para essa aldeia, para essa estrada que levava a Zurique, enquanto o conteúdo da arca não lhe pertencesse. E tudo lhe dizia que a encontrara.

Quatro metros e meio acima.

Desenrolou as cordas amarradas ao exterior da mochila e armou o arpéu, soltando as patas do eixo, as quais ficaram trancadas na posição. Pôs-se de pé. Latejavam-lhe as frontes e os ferimentos ardiam-lhe nos sítios onde aplicara o anti-séptico, mas a hemorragia já tinha parado. Estava novamente a ver as coisas com clareza.

Deu um passo atrás e lançou o arpéu até à saliência. Prendeu. Deu um puxão na corda.

O rochedo fragmentou-se; houve pedaços que se desprenderam, seguindo-se-lhes blocos maiores de calcário. Saltou para o lado a fim de evitar o arpéu que caía e se enterrou no solo através das finas camadas de neve.

Praguejou e lançou uma vez mais o arpéu pelos ares, fazendo-o descrever um arco por cima da saliência, bem adentro da superfície plana lá no alto. Puxou, com movimentos rápidos e curtos: o arpéu estava firme. Puxou com mais força: aguentava.

A corda estava pronta; podia subir. Baixou a mão, agarrou nas correias da mochila e enfiou os braços por elas, sem se dar ao trabalho de fechar os grampos da frente. Deu um puxão à corda pela última vez; ficou satisfeito. Saltou o mais alto que pôde, lançando as pernas contra a pedra e deixando o corpo oscilar novamente de encontro ao rochedo ao mesmo tempo que manobrava com as mãos - uma por cima da outra - numa rápida ascensão. Passou a perna esquerda por cima da borda recortada, obrigando o corpo a um balanço lateral que o impeliu para a superfície. Começou a subir, lançando os olhos ao local onde se fixara o arpéu.

Permaneceu, porém, ajoelhado, sob o choque, ao fixar a estranha visão a três metros de distância, no centro do planalto. Incrustada na pedra via-se uma velha e ferrugenta estrela de metal: uma estrela de David.

 

Em francês no original: «beco sem saída». (N. do T.)

 

O arpéu envolvia-a, com as unhas cravadas em torno do ferro. Estava a olhar para uma sepultura.

Ouviu os ecos ressoando pelas montanhas como se fossem estrondos de trovoadas repetidas e estridentes, um logo a seguir ao outro. Como se o tecto do bosque tivesse sido rasgado por relâmpagos, fendendo o tronco de um cento de árvores à sua volta. Mas não significavam relâmpagos nem trovões: eram disparos de pistola.

Apesar do frio, o suor corria pela cara de Adrian e, a despeito da escuridão do bosque, os olhos enchiam-se-lhe de imagens terríveis. O irmão voltara a matar. O major do Corpo de Vigilantes estava a desempenhar-se eficientemente do seu ofício de matar. Os gritos que se seguiram aos disparos eram débeis, amortecidos pela barreira do bosque, mas inconfundíveis.

Porquê? Pelo amor de Deus, porquê?

Não conseguia pensar. Em coisas como essas, não. Naquele momento, não. Tinha de pensar apenas num nível: o nível do movimento. Empreendera meia dúzia de tentativas de subir para fora do escuro labirinto, concedendo de todas as vezes a si próprio dez minutos para ver a luz da orla da floresta. Por duas vezes condescendera em garantir a si próprio um espaço de tempo suplementar porque os olhos lhe pregavam partidas, e em todos os casos houvera apenas escuridão, sem final à vista.

Estava a perder rapidamente a orientação. Ficara preso num dédalo: grossas lascas de casca de árvore, intermináveis ramos aguilhoadores e galhos quebrados vergastavam-lhe a cara e as pernas. Quantas vezes progredira em círculo? Não sabia dizê-lo. Tudo começava a parecer-se com o resto. Já tinha visto aquela árvore! Aquele preciso amontoado de ramadas fora a sua parede havia cinco minutos! A lanterna não lhe valia de nada. As imagens que iluminava imitavam-se a si próprias; não era capaz de distinguir umas das outras. Estava perdido no meio de uma vertente impenetrável de matagal alpino. A natureza tinha modificado o carreiro ao longo das décadas transcorridas desde que o cortejo fúnebre de Leinkraus empreendera a sua derradeira peregrinação. A infiltração das neves derretidas de Verão alastrara, inundando o bosque outrora praticável e proporcionando um leito de terra húmida receptivo ao crescimento desenfreado.

Mas o facto de o saber era tão inútil como as distorções da lanterna. Os estampidos iniciais dos disparos haviam deflagrado ali em cima. Naquela direcção. Tinha muito pouco a perder, excepto o fôlego e o que lhe restava da sanidade mental. Desatou a correr, com a cabeça inundada de ecos dos disparos que ouvira segundos atrás.

Quanto mais depressa corria, mais direito lhe parecia o rumo. Abria um carreiro com os braços, vergando, quebrando e estalando tudo quanto se lhe interpunha no caminho.

E viu a luz. Tombou de joelhos, esbaforido, a noventa metros, quando muito, da orla do bosque. Coberta de farrapos de neve, uma penedia cinzenta erguia-se para além das densas árvores e elevava-se a perder de vista sobre as pernadas mais altas. Tinha alcançado o sopé do terceiro planalto.

E o irmão também. O assassino do Corpo de Vigilantes tinha feito o que Goldoni julgava que não seria capaz de fazer: pegara em descrições há muito esquecidas, escritas fazia meio século, e aperfeiçoara-as, tornara-as aplicáveis à presente busca. Houvera tempos em que um dos irmãos se orgulhava do

outro; esse tempo passara. Restava tão-somente a necessidade de detê-lo.

Adrian tentara não pensar nisso, perguntando a si mesmo se seria capaz de aceitá-lo quando chegasse o momento; o momento de angústia que não se assemelhava ao que quer que fosse da sua imaginação. Estava a aceitá-lo agora. Calma e estranhamente impassível, embora repleto de uma fria tristeza. Porque era a única resposta eminentemente lógica, inegável, ao horror e ao caos.

Mataria o irmão. Caso contrário, seria o irmão que o mataria a ele.

Pôs-se de pé, saiu lentamente do bosque e localizou o carreiro de pedra desenhado no mapa de Leinkraus. Serpenteava pela montanha acima, numa série de curvas amplas para reduzirem o ângulo de subida, inflectindo sempre no sentido dos ponteiros do relógio até alcançar o cume. Ou quase o cume, pois na base do planalto havia uma plataforma de rocha que Paul Leinkraus se recordava de ser bastante alta. Tinha feito a excursão apenas duas vezes - no primeiro e no segundo ano da guerra - e era muito jovem. A plataforma de rocha podia não ser tão alta quanto ele a recordava, pois a lembrança situava-se no contexto da perspectiva de um rapaz. Mas tinham-se utilizado de uma escada, disso lembrava-se claramente.

Uma cerimónia solene em honra dos mortos e o sentido da vida de um rapaz jovem eram incompatíveis, admitira Leinkraus. Havia outro caminho para o planalto, não propriamente cómodo para homens de idade, mas explorado por um jovem a quem faltava o adequado respeito pela observância religiosa. Ficava mesmo no final do carreiro, aparentemente sumido, muito a seguir ao arco natural que era a continuação do trilho de montanha. Consistia numa série de rochedos irregulares que se prolongavam na linha do cume, que ia estreitando, e exigia pés firmes e a vontade de correr riscos. O pai e o irmão mais velho tinham-no repreendido severamente por tê-lo usado. A queda era perigosa; não seria provavelmente fatal, mas era suficientemente profunda para se fracturar um braço ou uma perna.

Se agora partisse um braço ou uma perna, pensou Adrian, o perigo seria mesmo fatal. Um homem imobilizado constituía um alvo fácil.

Principiou a subir o carreiro serpenteante, entre os rochedos intermitentes, acocorando-se para se esconder. O planalto ficava uns cem a cento e vinte metros acima do carreiro, a extensão de um campo de futebol. Começou a cair uma neve ligeira, depositando-se delicadamente sobre a rala camada de branco que já cobria a maior parte da rocha. Os pés estavam constantemente a escorregar-lhe; mantinha o equilíbrio agarrando-se a arbustos e saliências de rocha irregular.

Atingiu o meio da subida e apoiou as costas numa concavidade de pedra a fim de recobrar o fôlego sem ser visto. Ouviu sons acima dele, de metal contra metal ou rocha contra rocha. Lançou-se para fora do abrigo e correu o mais depressa que pôde, subindo e contornando as quatro curvas seguintes do carreiro, deixando-se cair uma vez para proporcionar às pernas doridas uma possibilidade de descansarem.

Tirou do bolso o diagrama de Leinkraus e verificou as curvas do mapa; pensava que tinha coberto oito. Fosse como fosse, não deviam faltar mais de trinta metros para o arco simbolizado no diagrama por um U invertido. Ergueu a cabeça, com o rosto transido de frio da almofada temporária de neve e geada. Havia um trecho do carreiro plano, ladeado por arbustos cinzentos e nodosos. Segundo o mapa, havia mais duas curvas quase a cento e oitenta

graus acima desse trecho, e a seguir ficava o arco de rocha. Enfiou o diagrama no bolso, sentindo o aço da pistola ao fazê-lo. Após rastejar, recomeçou a correr.

Viu primeiramente a rapariga. Estava caída fora do carreiro, nos arbustos de olhos muito abertos, a olhar fixamente o céu nublado, com as pernas rigidamente estendidas à sua frente. Tinha dois orifícios de balas acima de ambos os joelhos e o sangue ensopava a roupa em redor. Via-se um terceiro buraco no seio direito, abaixo da clavícula; o sangue tinha formado um regato sólido pelo blusão alpino abaixo.

Ainda vivia, mas em tal estado de choque que nem pestanejava para proteger-se das partículas de neve que caíam. Os lábios moviam-se, trémulos, e a neve derretida formava fiozinhos de água nas comissuras. Adrian curvou-se para ela.

Ao ver-lhe o rosto, os olhos da rapariga piscaram, fixando-se nele. Ergueu a cabeça numa convulsão, tossindo o princípio de um grito. Com suavidade, ele comprimiu a mão enluvada sobre a boca da rapariga, amparando-lhe a nuca com a outra mão.

- Não sou ele - sussurrou.

A vegetação sobre eles agitou-se. Adrian ergueu-se de rompante, soltando a rapariga o mais delicadamente que pôde, e deu um salto para trás. Uma mão adiantava-se penosamente pela neve - o que restava de uma mão. Era carne manchada de sangue, com a luva retalhada e os dedos dilacerados. Fontine rastejou por cima da rapariga e trepou para os arbustos emaranhados e nodosos, arrancando os ramos entrelaçados. O rapaz estava deitado de borco num leito de erva silvestre da montanha. Uma linha recta de quatro ferimentos de bala desenhava-se em diagonal ao longo das costas, atravessando a coluna.

Adrian fez o jovem rolar cuidadosamente sobre o flanco, amparando-lhe a cabeça. Uma vez mais, carregou brandamente com a mão numa boca em estado de choque. Os olhos do rapaz cravaram-se nos seus e daí a segundos a intenção de Adrian tornava-se clara: não era ele o assassino. O facto de o rapaz conseguir sequer falar era extraordinário. O seu murmúrio era quase abafado pelo vento que recrudescia, mas Fontine ouviu-o.

- Mia sorella.

- Não percebo.

- Irmã?

- Está ferida. E tu também. Farei tudo o que puder.

- Pacco. A mochila. Ele traz uma mochila. Medicina.

- Não fales. Poupa as forças. Uma mochila?

- Si!

«...Uma mochila de alpinismo não é uma mera porção de correias e um invólucro de couro. É uma obra-prima de perfeição...» Fora o pai quem o dissera. .

O rapaz recusava calar-se. Sabía que estava às portas da morte.

- Um caminho de saída. A via férrea de Zermatt. Uma aldeia. Não fica longe, signore. Para norte, não fica longe. íamos largar a correr.

- Chiu. Não digas mais nada. Vou pôr-te ao pé da tua irmã. Conserva-te o mais quente que possas.

 

1. Em italiano no original: «medicamentos». (N. do T.)

 

Meio arrastado, meio ao colo, transportou o rapaz sobre a erva até junto da rapariga. Eram crianças: o irmão assassinava crianças. Despiu o casaco impermeável e o blusão a fim de apertar as tiras em volta dos ferimentos da rapariga. Não havia grande coisa que pudesse fazer pelo rapaz, de forma que evitou o olhar dele. Tapou-os a ambos, e eles abraçaram-se.

Enfiou a pesada pistola no cinto por baixo da grossa camisola preta e rastejou para fora do abrigo dos arbustos. Correu pelo carreiro acima até ao arco, com os olhos a arder mas a respiração regular, já sem dores nas pernas.

Agora era um contra um. Como tinha de ser.

Chegava-lhe intensamente aos ouvidos um som de pancadas, lembrando marteladas. Era mesmo por cima dele, por cima da plataforma alcantilada de rocha que se erguia voltada para o pequeno planalto definido do lado norte. O solo aos seus pés estava revolvido: a neve e a terra misturavam-se e pegadas e arbustos quebrados formavam um semicírculo sob a plataforma suspensa. Fragmentos de rocha indicavam o método da escalada: fora atirada uma corda lá para cima e firmado um arpéu, e o primeiro ou os primeiros lançamentos não tinham sido bem sucedidos.

Havia uma escada apodrecida tombada nos arbustos cinzentos e coroados de neve, com uma porção de degraus arrancados da estrutura. Era a escada de que Paul Leinkraus se lembrava. Tinha pelo menos seis metros, sendo ligeiramente mais alta que a placa de rocha em frente da qual Adrian estava agachado.

«O local da sepultura é na realidade uma superfície de argila xistosa. Esboroa-se facilmente com uma picareta até se atingir terra por baixo. A urna da criança foi colocada no terreno e espalhou-se por cima dela uma fina camada de cimento». Palavras de Paul Leinkraus.

Por cima dele, o irmão tinha perfurado a camada de cimento descrita por Leinkraus. O martelar cessou; houve um instrumento arremessado para a rija superfície. Soltaram-se lá de cima grandes partículas de cimento, pontapeadas por pés impacientes, juntando-se aos fragmentos de rocha no solo e aos arbustos. Adrian pôs-se rapidamente de pé e comprimiu o corpo de encontro à minúscula escarpa. Se fosse visto, era um homem morto.

A chuva de cimento parou. Adrian estremeceu; sabia que tinha de mexer-se. O frio infiltrava-se pela camisola preta e a sua respiração formava rolos de vapor em frente da cara. O breve e ligeiro nevão estava a abrandar; um raio de sol trespassou as nuvens, mas não trouxe calor.

Deslocou-se ligeiramente à volta do rochedo até que foi detido por um penedo que formava uma protuberância no cume da montanha. Deu um passo em frente, pisando terreno coberto de arbustos e por uma camada de neve.

De súbito a terra cedeu. Adrian deu um salto para trás e quedou-se imóvel, petrificado, à ilharga do penedo. O vento transportou ruídos de rocha a cair. Ouviu as passadas por cima - pesadas, abruptas - e reteve a respiração por forma a não expelir vapor pela boca ou pelas narinas. O som de passos interrompeu-se; não contando com o vento, apenas restava o silêncio. Depois as passadas recomeçaram - menos pesadas, mais lentas.

Adrian baixou os olhos à sua frente. Tinha chegado ao fim do carreiro de Paul Leinkraus; agora só havia montanha. Em baixo, para lá da orla de terra fracturada e erva silvestre, havia um despenhadeiro, uma vasta fenda que separava o solo do cume da fina plataforma de terra do outro lado que conduzia às regiões de altitude superior. A fenda era muito mais profunda do que Leinkraus recordava: eram bem mais de nove metros até ao fundo de rochedos irregulares. O rapaz fora repreendido pelos mais velhos, mas não tão seriamente que o assustassem ou lhe instilassem medo das montanhas.

Adrian fez girar o corpo e, cosendo-se com a superfície descontínua, centímetro a centímetro, experimentando-os um por um, foi progredindo, comprimindo o peito e as pernas de encontro ao penedo e agarrando-se a todas as pontas aguçadas a que podia deitar a mão. Do outro lado havia uma estreita massa de rocha de formação indiscriminada que fazia um abrupto ângulo para cima relativamente à superfície plana do pico.

Não tinha a certeza de poder alcançá-lo. Um rapaz pequeno podia caminhar sobre a plataforma afastado da base imediata do penedo saliente: ela não cederia sob o seu peso. Para um adulto não era bem a mesma coisa. Não suportaria o peso de Adrian.

A distância do penedo - onde ele se encontrava - ao primeiro maciço de rocha era de cerca de um metro e meio. Ele media mais de um metro e oitenta. Se conseguisse desviar a queda, com os braços estendidos, havia uma boa possibilidade de as mãos lá chegarem. E maiores possibilidades se conseguisse encurtar a distância.

Doíam-lhe imenso os músculos dos pés. Sentia cãibras a formarem-se no peito dos pés; a pressão sobre a barriga das pernas fazia-lhe inchar a pele e os tendões debaixo dela arqueavam-se quase insuportavelmente. Arredou do espírito toda e qualquer ideia de dor e risco e concentrou-se exclusivamente nos centímetros que era capaz de progredir ao redor do imenso penedo.

Não tinha andado mais de trinta centímetros quando sentiu o chão aluir por baixo dele - lentamente, por diminutas e hipnotizantes fases. Depois ouviu - ouviu de verdade - o estalar da pedra e da terra gelada. Estendeu os braços no último segundo. A plataforma desprendeu-se e por um momento ele quedou-se no vazio, suspenso. As mãos enclavinharam-se-lhe freneticamente; o vento fustigou-lhe a face em pleno vazio.

O braço direito embateu contra o rochedo irregular algures acima dele. O ombro e a cabeça chocaram com a superfície áspera. Fincou a mão em torno da pedra afiada, arqueando instintivamente as costas a fim de absorver o choque do embate.

Girou como um fantoche no cordel do seu próprio apêndice, com os pés a balouçar. Tinha de arrastar-se até lá acima. Já! Não havia tempo a perder! Não havia tempo para conformar-se com a sua própria incredulidade.

Força!

Aferrou-se ao penhasco irregular com a mão esquerda, livre; os pés agitaram-se loucamente, até que o sapato direito apanhou uma minúscula ponta que suportou o seu peso. Era o bastante. Como uma aranha em pânico, escalou a parede de rocha escarpada, lançando as pernas uma a seguir à outra sobre o declive em diagonal, arremetendo com o corpo de encontro à base da face interna.

Estava fora do alcance da vista lá de cima, mas não do ouvido. Os ruídos da plataforma a soltar-se tinham atraído Andrew à borda do planalto. O sol estava por trás dele, à direita, projectando-lhe a sombra ao longo da fenda sobre o rochedo e a neve. Uma vez mais, Adrian reteve a respiração. Tinha uma janela no seu próprio jogo de sombras chinesas a desenrolar-se sobre o sol alpino agora ofuscante. Os movimentos do militar não só eram distintos como ampliados. Andrew tinha um objecto na mão esquerda: uma pá flexível de alpinista.

O braço direito do militar estava flectido pelo cotovelo; a sombra do ante-braço unia-se à parte superior do corpo. Não era preciso grande imaginação para visualizar o que a mão direita empunhava: uma arma. Adrian levou a mão direita ao cinto. A pistola ainda lá estava; sentiu-se grato pelo seu contacto.

A sombra deslocava-se ao longo do rebordo lá em cima: três passos para a esquerda, quatro para a direita. Abaixou-se e voltou imediatamente a endireitar-se, agora com outro objecto na mão direita. O objecto foi arremessado; um grande pedaço de cimento despenhou-se a uma distância não superior sessenta centímetros da cara de Adrian, desfazendo-se no solo de rocha escalavrada mais abaixo. O militar manteve-se imóvel durante a queda do objecto como se estivesse a contar os segundos, cronometrando a descida.

Depois, o militar afastou-se. A sua sombra desapareceu, substituída pelos impiedosos reflexos do sol.

Adrian conservou-se deitado no seu refúgio, sem dar-se conta da incomodidade, com o rosto alagado de suor. A curva de rochedos irregulares sobre a sua cabeça projectava-se abruptamente para cima, como uma primitiva escada em espiral num velho farol. O prolongamento tinha cerca de sete metros de comprimento; era difícil calcular, pois para lá dele não havia nada a não ser céu e um sol ardente. Não conseguia mexer-se, excepto quando captasse ruídos provenientes lá de cima. Sons que significassem que o militar estava ocupado, novamente a cavar.

E eles vieram. Um sonoro esmagar de pedra, o raspar de metal contra metal.

Andrew tinha encontrado a arca!

Adrian saiu rastejando do esconderijo e, com uma mão por cima da outra silenciosamente, pé ante pé, foi avançando ao longo da escada de rocha escarpada. O rebordo do planalto estava precisamente por cima dele; em baixo já não estava a fenda, mas um simples despenhadeiro de várias dezenas de metros até ao serpenteante desfiladeiro da montanha. Havia, talvez, vinte centímetros entre ele e o vazio. O vento era regular, e soava como se fosse um assobio grave.

Deitou a mão à pistola no cinto, tirou-a de lá e - tal como Goldoni o industriara - verificou a patilha de segurança. Estava na posição superior, travada.

Deslocou-a, pondo-a no prolongamento do gatilho, e ergueu a cabeça por sobre a saliência.

A superfície plana do planalto era oval, prolongando-se por dez metros ou mais em comprimento e cerca de seis em largura. O militar estava agachado no centro, ao lado de um montículo de terra coberto de cimento fragmentado. Para lá da terra, parcialmente oculto pelas costas largas do militar, via-se um caixão de madeira com cercaduras metálicas; encontrava-se notavelmente bem conservado.

Não havia arca alguma. Não havia nada a não ser terra, os fragmentos de cimento e o caixão. Mas nenhuma arca!

«Oh, meu Deus», pensou Adrian. «Fomos enganados! Ambos enganados!»

Não era possível. Não era mesmo possível. Porque, se não houvesse arca, o assassino do Corpo de Vigilantes deveria estar enfurecido. Conhecia sobejamente Andrew para o saber. Porém, o irmão não estava irado. Estava agachado a pensar, com a cabeça baixa; olhava fixamente para a sepultura. E Adrian compreendeu: a arca estava por baixo, ainda na terra. Tinha sido enterrada por baixo do caixão, constituindo a urna a última protecção.

O militar pôs-se de pé e dirigiu-se à mochila de alpinista que estava encostada ao caixão. Inclinou-se, desafivelou uma correia e puxou de uma curta e pontiaguda barra de ferro. Voltou para a sepultura, ajoelhou abruptamente junto à borda e introduziu a barra por ela abaixo. Segundos mais tarde puxou a barra para cima, deixando-a tombar no solo, e tirou do blusão uma pistola. Rápida, mas cautelosamente, enfiou a arma pela sepultura adentro.

Seguiram-se três detonações. Adrian encolheu a cabeça sob a saliência do planalto. Sentiu o cheiro acre da pólvora e viu os rolos de fumo arrastados sobre ele pelo vento.

E foi então que as palavras se fizeram ouvir e todo o seu corpo foi presa de um temor que nunca julgara poder experimentar. Era o abalo da certeza da sua própria execução imediata.

- Levanta a cabeça, Lefrac - foi a ordem proferida em voz suave, pronunciada num monocórdico tom glacial. - Assim é mais rápido. Vais ver que não sentes nada. Nem sequer ouvirás barulho algum!

Adrian ergueu-se do seu estreito poleiro, com o espírito vazio, agora para lá do medo. Ia morrer; era tão simples como isso.

Mas ele não era o que o militar esperava. Não era quem o militar esperava. O assassino do Corpo de Vigilantes viu-se por seu turno repentina e inteiramente presa de choque. Este foi tão completo que os olhos se lhe arregalaram de incredulidade, a mão tremeu e a arma vacilou. Deu um passo involuntário à retaguarda, de boca aberta, a pele do rosto incolor.

- Tu!

Selvática, cegamente, sem pensar nem sentir, Adrian puxou da pesada pistola italiana na borda do rochedo e disparou contra a figura aturdida. Premiu o gatilho duas, três vezes. A pistola encravou. As cuspidelas de fogo e o fumo do cano chamuscaram-lhe a carne e fizeram-lhe arder os olhos. Mas atingira o militar! O assassino do Corpo de Vigilantes cambaleou para trás, agarrado ao estômago, com a perna esquerda a dobrar-se debaixo do corpo.

Contudo, Andrew ainda tinha a pistola na mão. A explosão surgiu: um estampido do ar detonou sobre a cabeça de Adrian. Precipitou-se sobre o homem caído e agrediu-lhe o rosto com a pistola encravada. A mão direita agarrou o aço quente da pistola de Andrew e arremessou-a ao solo. A sua arma encontrou o alvo: o osso entre os olhos do militar rompeu-se e o sangue inundou-lhe os cantos das órbitas, toldando-lhe a vista. A pistola de Andrew voou-lhe da mão. Adrian deu um salto para trás. Apontou a pistola e premiu o gatilho com todo o vigor. Mas a arma não funcionava, não disparava. O militar pôs-se de joelhos, esfregando os olhos e emitindo grunhidos de furor. Adrian atirou o pé para a frente, atingindo o assassino do Corpo de Vigilantes na têmpora; o pescoço do militar arqueou-se para trás, mas as pernas projectaram-se para a frente, torcendo-se, atirando pontapés que atingiram os joelhos de Adrian e o forçaram a lançar-se para o lado.

Adrian não conseguiu conservar-se de pé. Rolou para a direita quando o major se levantou de um salto, ainda a enxugar os olhos. Andrew deu um pulo do chão, com as mãos agora estendidas como ganchos rígidos, directamente apontadas ao pescoço do intruso. Adrian recuou ainda mais, abatendo-se sobre a urna ao lado da sepultura. A arremetida do militar foi descontrolada- o auge vociferante da sua fúria fê-lo perder o equilíbrio e cair, com um braço enterrado no montículo de terra e fragmentos de cimento. O terreno cedeu: uma erupção de terra, neve e rocha.

Adrian mergulhou sobre o espaço vazio da sepultura; do lado oposto estava a barra de ferro. O militar compreendeu: lançou-se para cima, gritando contra

Adrian, com as mãos enclavinhadas sobre a cabeça à guisa de um martelo -

um pássaro monstruoso soltando o seu guincho ao precipitar-se para matar. Os dedos de Adrian estavam na barra e arremessou-a contra a figura que se abatia.

A ponta enterrou-se na face do militar, atordoando-o. O sangue voltou a brotar da carne de Andrew.

Adrian escapuliu-se com um salto, para tão longe quanto as pernas exaustas e doridas eram capazes de impulsioná-lo, deixando tombar a barra. Viu a pistola do militar caída na superfície plana de pedra e lançou-se sobre ela. Os dedos apertaram-se-lhe na coronha e levantou-a.

A barra de ferro abateu-se, fustigando o ar, fazendo-lhe um vergão na pele do ombro esquerdo e rasgando-lhe a manga, por pouco não a arrancando à camisola. O choque fê-lo recuar, cambaleando, até à borda da placa de rocha. Tinha posto a mão que empunhava a pistola à frente do peito, em pânico; soube no instante em que o fez que era a fracção de segundo de que o militar precisava desesperadamente. Uma parede de terra e pedra veio ao seu encontro, e o espaço que o separava do assassino do Corpo de Vigilantes encheu-se de detritos, que se desfizeram contra ele; pedaços afiados de pedra abateram-se-lhe sobre o rosto e os olhos. Deixou de ver.

Disparou. A sua mão recuou violentamente devido ao disparo; os dedos arquearam-se-lhe em consequência da vibração.

Tentou pôr-se de pé: uma bota abateu-se sobre o seu pescoço. Agarrou na perna ao mesmo tempo que tombava para trás, com os ombros por cima da borda da plataforma de rocha. Rolou para a esquerda, segurando a perna até sentir o cano da arma encostado à carne.

Premiu o gatilho.

O seu universo foi invadido por carne, ossos e sangue. O militar foi arremessado pelo ar, com a perna direita numa pasta de tecido ensopado de sangue. Adrian começou a rastejar, mas não conseguia; não lhe restavam forças nem ar nos pulmões. Ergueu-se sobre uma mão e olhou para Andrew.

O major contorcia-se para trás e para a frente, saindo-lhe gemidos da garganta e com a boca cheia de sangue e saliva. Soergueu-se, quase se pondo de joelhos, de olhos desvairadamente fixos no que lhe restava da perna. Olhou para o seu carrasco. E a seguir gritou:

- Ajuda-me! Não podes deixar-me morrer! Não tens esse direito! Chega-me a mochila! - Tossiu, segurando a perna esfacelada com uma mão e a outra a tremer, apontando para a mochila de alpinista encostada ao caixão. O sangue corria por todo o lado, empapando-lhe a roupa. Os venenos espalhavam-se rapidamente: estava a morrer.

- Não tenho o direito é de te deixar viver - ripostou debilmente Adrian, respirando com dificuldade. - Sabes o que fizeste? As pessoas que mataste?

- Matar é um instrumento! - gritou o militar. - Não passa disso!

- Quem é que decide quando se usa o instrumento? Tu?

- Sim! E homens como eu! Sabemos quem somos, o que podemos fazer. As pessoas como tu não são... Por amor de Deus, ajuda-me!

- Vocês é que ditam as regras. Todos os outros acatam-nas.

- Sim! Porque nós nos dispomos a isso! Todas as pessoas, em todo o lado, não se dispõem a isso. Querem que lhes estabeleçam as regras! Não podes negá-lo!

- Nego-o, sim - disse serenamente Adrian.

- Nesse caso estás a mentir. Ou a ser estúpido! Oh, meu Deus... - A voz do militar falhou-lhe, interrompida por um espasmo de tosse. Agarrou-se ao estômago e fitou novamente a perna e a seguir o montículo de terra. Afastou penosamente a vista e olhou para Adrian. - Aqui. Aqui ao pé.

O major rastejou até à sepultura. Adrian pôs-se lentamente de pé e observou, hipnotizado, a visão horrível. O que lhe restava de compaixão dizia-lhe que disparasse a arma que tinha na mão, que pusesse termo à vida que estava quase terminada. Distinguiu a arca de Salónica no solo; tinham sido arrancadas ripas de madeira, deixando ver o ferro por baixo. Havia cintas de metal despedaçadas a tiro e via-se um rolo de corda pousado no topo. Havia pedaços de cartão grosso com ténues marcas que se assemelhavam a círculos de espinhos em torno de crucifixos.

Tinham-na encontrado.

- Não compreendes? - O militar mal se ouvia. - Está ali. A resposta. A resposta!

- Que resposta?

- Tudo... - Durante vários segundos os olhos do irmão perderam o controlo muscular: rolaram nas órbitas e, por um instante, as pupilas desapareceram. A fala de Andrew possuía as inflexões de uma criança irritada. - Agora tenho-a em meu poder. Não podes interferir! Nunca mais! Agora podes ajudar-me. Vou deixar-te ajudares-me. Dantes eu deixava-te ajudares-me, lembras-te? Lembras-te de como eu costumava sempre deixar-te ajudares-me? - O militar vociferou a pergunta.

- A decisão foi sempre tua, Andy. De deixares-me ajudar-te, é o que eu quero dizer - disse Adrian com brandura, tentando compreender a divagação pueril, hipnotizado pelas palavras.

- Claro que a decisão era minha. Tinha de ser decisão minha. Do Victor e minha.

Adrian recordou-se repentinamente das palavras da mãe deles: «Ele via os resultados da força; nunca compreendera as suas complicações, a sua compaixão...» O advogado que havia em Adrian tinha de saber.

- Que havemos de fazer à arca? Agora que a temos, que havemos de fazer à...

- Usá-la! - O militar gritou de novo, martelando na rocha solta à borda da sepultura. - Usá-la, usá-la! Pôr as coisas no chão! Vamos dizer-lhes que podemos dar cabo de tudo!

- Imagina que não podemos. Imagina que não faz diferença. Talvez não haja ali nada.

- Dizemos-lhes que há! Tu não sabes como se faz. Dizemos-lhes o que muito bem quisermos dizer-lhes! Hão-de rastejar, hão-de choramingar...

- Queres que eles façam isso? Que rastejem e choraminguem?

- Sim! São fracos!

- Mas tu não.

- Não! Eu provei-o! Uma porção de vezes! - O pescoço do militar arqueou-se e a seguir espetou-se convulsivamente para diante. - Pensas que vês coisas que eu não vejo. Estás enganado! Vejo-as, mas não fazem diferença nenhuma, não contam! O que tu consideras tão importante... não... importa! - Andrew espaçou bem as palavras; era o grito de desafio de uma criança.

- O quê, Andrew? O que é que eu considero tão importante?

- As pessoas! O que elas pensam! Não conta, não importa! O Victor sabe-o.

- Estás enganado. Estás redondamente enganado - atalhou baixinho Adrian. - Ele morreu, Andy. Morreu há um par de dias.

Os olhos do militar voltaram parcialmente a focar-se. Havia regozijo neles.

- Agora é tudo meu! Vou fazê-lo! - A tosse voltou e os olhos tornaram a descontrolar-se. - Fazê-los compreender. Eles não são importantes. Nunca foram...

- Só tu.

- Sim! Eu não hesito. Tu, sim! Não és capaz de te resolver.

- Tu és decidido, Andy.

- Decidido, sim. Isso é importante.

- E as pessoas não contam, de forma que naturalmente não se pode confiar nelas.

- Que diabo estás tu a tentar dizer? - O peito do militar dilatou-se de dor; o pescoço arqueou-se para trás e logo se projectou para diante, cuspindo muco e sangue por entre os lábios.

- Que tens medo! - gritou Adrian. - Sempre tiveste medo! Vives no terror mortal de que alguém o descubra! Há uma brecha na tua couraça... Aberração!

Soltou-se um grito terrível, abafado, da garganta do militar; era a um tempo gutural e distinto, um misto entre um rugido de ira final e um gemido.

- Isso é mentira! Tu e as tuas amaldiçoadas palavras...

De súbito, não houve mais palavras. O inacreditável estava a suceder sob o deslumbrante sol alpino, e Adrian apercebeu-se de que ou se movia, ou encontraria a morte. O militar tinha a mão na sepultura. Tirou-a para fora de repelão. Trazia uma corda agarrada; saltou do solo, agitando violentamente a corda. Agarrado à extremidade desta vinha um arpéu, com as três unhas a fustigar o ar.

Adrian lançou-se para o lado esquerdo, disparando a enorme arma sobre o tresloucado assassino do Corpo de Vigilantes.

O peito do militar explodiu. A corda, presa sob um aperto de aço, descreveu um círculo - com o arpéu rodando como um giroscópio desgovernado - em torno da cabeça do militar. O corpo precipitou-se para diante, por cima da plataforma de rocha, e despenhou-se, num grito que ressoou, enchendo as montanhas com o seu timbre de horror.

Com uma súbita e nauseante vibração, a corda retesou-se, estremecendo na fina camada de neve perturbada.

Ouviu-se um ruído de metal a estalar proveniente da sepultura. Adrian olhou para lá. A corda fora amarrada a uma das cintas metálicas que reforçavam a arca. A cinta partira-se e a arca podia ser aberta.

Mas Adrian não se dirigiu a ela. Coxeou até à borda do planalto e espreitou sobre a plataforma.

Suspenso em baixo, via-se o corpo do militar, com o arpéu cravado no pescoço. Uma das unhas enterrara-se na garganta de Andrew e a ponta saía-lhe pela boca escancarada.

Encheu a grande mochila de alpinista com os três invólucros estanques de aço tirados da arca. Não conseguia ler a escrita arcaica gravada no metal. Nem precisava: sabia o que cada invólucro continha. Nenhum deles era grande. Um era chato e mais grosso que os restantes: dentro dele achavam-se os documentos compilados pelos estudiosos de Constantino havia mil e quinhentos anos, estudos que investigavam o que julgavam ser uma incongruência teológica - erigindo um homem piedoso à categoria de consubstancial a Deus. Questões para novos estudiosos ponderarem. O segundo invólucro era curto e tubular; continha o manuscrito aramaico que trinta anos atrás amedrontara homens poderosos a tal ponto que a estratégia da guerra generalizada era secundária relativamente à sua posse. Mas era o terceiro invólucro, fino, de uns vinte centímetros de largura, quando muito, que continha o mais extraordinário documento de todos: uma confissão escrita num pergaminho, retirado de uma prisão romana cerca de dois mil anos atrás. Era esse invólucro - negro, corroído, uma relíquia da Antiguidade - que constituía a essência da arca de Salónica.

Todos eles eram as refutações; apenas a confissão do pergaminho podia causar um sofrimento que estava para lá da mente dos homens. Mas não era a ele que competia julgá-lo. Ou seria?

Meteu nos bolsos os frascos de plástico de medicamentos, atirou a mochila para o chão, curvou-se sobre a plataforma de rocha - junto ao corpo do militar - e deixou-se cair na terra em baixo. Passou a pesada mochila pelos ombros e principiou a descer o carreiro.

O rapaz morrera. A rapariga sobreviveria. Juntos, haviam de arranjar maneira de sair das montanhas, disso estava Adrian convencido.

Voltou-se, fitando o carreiro de montanha lá em cima. Ao longe, o corpo do militar ficava suspenso, com a plataforma branca de rocha por fundo. Não se conseguia ver distintamente - só se a pessoa soubesse para onde olhar -, mas estava lá.

Seria Andrew a derradeira morte exigida pelo comboio de Salónica? Os documentos que havia naquela arca valeriam tantas mortes? Tanta violência ao longo de tantos anos? Não possuía respostas.

Sabia apenas que fora concedido um estatuto desmesurado à insânia em nome de coisas sagradas. As guerras santas eram primitivas; sê-lo-iam sempre. E ele matara um irmão pela participação de ambos numa guerra ímpia.

Sentia o terrível peso às costas. Deu por si tentado a retirar os invólucros de aço e arremessá-los pelo mais fundo desfiladeiro das montanhas. Para que se despedaçassem e convertessem em pó ao primeiro contacto com o ar. Arrastados para o alheamento pelos ventos alpinos.

Mas não faria isso. O preço fora demasiado alto.

- Vamos - disse para a rapariga, passando-lhe suavemente o braço por cima do pescoço. Sorriu para o rosto amedrontado da criança. - Havemos de conseguir.

 

Adrian encontrava-se de pé junto à janela, olhando para a sombria vastidão do Central Park. Estava na pequena sala de estar do pessoal do Metropolitan Museum. Tinha o auscultador no ouvido e escutava o coronel Tarkington, a falar de Washington. Do outro lado da sala achava-se sentado um sacerdote da Arquidiocese de Nova Iorque, um monsenhor chamado Land. Passava pouco da meia-noite; fora dado o número particular do museu ao oficial do Exército, em Washington. Haviam-lhe transmitido que Mr. Fontine aguardava o seu telefonema, fosse a que horas fosse.

A documentação oficial dos acontecimentos à volta do Corpo de Vigilantes seria a seu tempo divulgada pelo Pentágono, disse o oficial a Adrian. A Administração pretendia evitar o escândalo que decorreria de acusações de corrupção e insurreição no seio das Forças Armadas. Especialmente devido ao facto de achar-se implicado um nome importante. Não servia os interesses da segurança nacional.

- Primeira fase - observou Adrian. - Encobrimento.

- Talvez.

- E vão ficar-se por aí? - inquiriu calmamente Fontine.

- É a sua família - contrapôs o coronel. - O seu irmão.

- E o seu. Eu sou capaz de viver com isso. Você, não? Washington, não? Houve um silêncio no outro extremo da linha. Finalmente o oficial falou:

- Eu consegui aquilo que queria. E talvez Washington não consiga. Neste momento.

- Nunca é neste momento.

- Não me venha com sermões. Ninguém o impede de dar uma conferência de imprensa.

Desta feita foi Adrian quem se quedou momentaneamente calado.

- Se o fizer, posso exigir documentação oficial? Ou apareceria repentinamente um dossier, a descrever...

- A descrever em pormenor psiquiátrico - interrompeu o coronel - um jovem muito perturbado que correu o país a viver em comunas de hippies, que auxiliou e deu guarida a três desertores do Exército de condenados, em São Francisco. Não se iluda, Fontine. Tenho-o na minha secretária.

- Bem me parecia que tinha. Estou a sabê-lo. Vocês são meticulosos, não são? Qual dos dois irmãos é o lunático?

- A coisa vai muito mais além. Uso da influência familiar para fugir ao serviço militar; passado de militância em organizações radicais; hoje em dia empregam dinamite. O seu singular comportamento em Washington, incluindo relações com um advogado negro que foi morto em circunstâncias estranhas, sendo o dito advogado negro suspeito de actividades criminosas. Muito mais. E isto é só você.

- O quê?

- Velhas verdades... verdades documentadas... são desenterradas. Um pai que fez fortuna operando no mundo inteiro com governos que muita gente considera serem hostis aos nossos interesses. Um homem que colaborou intimamente com os comunistas, cuja primeira mulher morreu há anos em circunstâncias muito peculiares em Monte Carlo. É uma matriz perturbante. Há questões que se levantam. Poderão os Fontines viver com isso?

- Você causa-me repugnância.

- Causo repugnância a mim próprio.

- Porquê, então?

- Porque havia que tomar uma decisão que o ultrapassa a si e a mim e às nossas reacções pessoais! - O coronel levantou a voz, de irritação, e a seguir dominou-se. - Não gosto de uma porção de pândegos das altas esferas. Só sei... ou penso que sei... que não é a altura de falar sobre o Corpo de Vigilantes.

- Por conseguinte, vai continuar por muitos e bons tempos. Você nem parece o homem com quem falei num quarto de hotel.

- Talvez não seja. Só espero, em nome da sua justa indignação, que nunca esteja colocado numa posição como esta.

Adrian olhou para o sacerdote do outro lado da sala. Land fitava a parede branca debilmente iluminada, o vazio. Contudo, via-se-lhe nos olhos; é sempre nos olhos. Um desespero que o consumia. O monsenhor era um homem muito forte, mas agora estava amedrontado.

- Espero nunca vir a estar - disse para o coronel.

- Fontine?

- Sim?

- Havemos de ir tomar uma bebida um dia destes.

- Com certeza. Havemos de ir - Adrian desligou.

«Seria agora consigo?», perguntou Adrian a si próprio. Tudo? Seria alguma vez a ocasião azada para dizer a verdade?

Haveria em breve uma resposta. Trouxera os documentos da arca para fora de Itália sem a ajuda do coronel; ele devia-lhe pelo menos isso, e o coronel não fazia perguntas. A paga do coronel era um corpo suspenso diante de uma plataforma de rocha nas montanhas de Champoluc. Irmão por irmão. Dívida saldada.

Barbara Pierson soubera que destino dar aos documentos. Entrara em contacto com um amigo que era conservador de relíquias no Metropolitan. Um estudioso que tinha dedicado a vida ao estudo do passado. Vira demasiadas antiguidades para formular juízos.

Barbara viera de avião de Boston; encontrava-se presentemente com o estudioso no laboratório. Estavam lá desde as cinco e meia. Sete horas. Com os documentos de Constantino.

Mas só havia um documento que interessava agora. Era o pergaminho recolhido numa prisão romana havia dois mil anos. O pergaminho era tudo. Tudo. O estudioso dava-se conta disso.

Adrian abandonou a janela e atravessou a sala até junto do sacerdote. Havia duas semanas, quando estava à beira da morte, seu pai, Victor, elaborara

uma lista de homens a quem a arca de Constantino devia ser entregue. O nome de Land figurava nessa lista. Quando Adrian o contactara, Land principiara por contar-lhe coisas que nunca ninguém dissera a Victor Fontine.

- Fale-me de Annaxas - disse Adrian, sentando-se diante do sacerdote. O monsenhor afastou o olhar da parede, sobressaltado. Não pelo nome

- pensou Fontine, - mas pela intrusão. Os seus grandes e penetrantes olhos cinzentos, sob as sobrancelhas escuras, ficaram momentaneamente desfocados. Pestanejou, como que a recordar-se de onde estava.

- Theodore Dakakos? Que posso eu dizer-lhe? Conhecemo-nos em Istambul. Estava eu a investigar aquilo que sabia serem falsas provas. A dita destruição pelo fogo dos documentos do Filioque. Ele descobriu que eu me encontrava lá e veio de Atenas, por via aérea, para se encontrar com o sacerdote metediço dos arquivos do Vaticano. Conversámos; estávamos ambos com curiosidade. Eu, sobre a razão pela qual um homem de negócios de tal modo famoso estava tão interessado em obscuros documentos teológicos. Ele, acerca do motivo pelo qual um estudioso romano se dedicava (era autorizado a dedicar-se, porventura) a uma tese que não se podia dizer que fosse propriamente do interesse do Vaticano. Estava muito bem informado. Passámos ambos a noite inteira a usar de estratagemas, acabando finalmente exaustos. Acho que foi a exaustão que deu lugar àquilo. Além do facto de pensarmos que nos conhecíamos mutuamente, talvez até simpatizássemos um com o outro.

- Deu lugar a quê?

- A que se falasse do comboio de Salónica. É estranho; não me recordo de qual de nós se lhe referiu primeiro.

- Ele sabia disso?

- Tanto ou mais que eu. O maquinista era o pai dele; o único passageiro, o sacerdote de Xenope, irmão do pai. Nem um nem outro voltaram. Na sua busca, encontrou parte da resposta. Os arquivos da polícia de Milão continham um antigo assento de Dezembro de trinta e nove. Dois homens mortos num comboio grego nos armazéns de mercadorias. Assassínio e suicídio. Sem identificação. Annaxas tinha de descobrir porquê.

- Que foi que o levou a Milão?

- Mais de vinte anos a fazer perguntas. Tinha razões de sobra. Viu a mãe perder a sanidade mental. Enlouqueceu porque a igreja se negava a dar-lhe respostas.

- A igreja dela?

- Um braço da igreja, se quiser. A Ordem de Xenope.

- Nesse caso, ela tinha conhecimento do comboio.

- Nunca se imaginou que assim fosse. Julgava-se que não. Mas os homens confidenciam coisas às mulheres que não contam a mais ninguém. Antes de o Annaxas mais velho partir nessa manhã de Dezembro de trinta e nove disse à mulher que não ia a Corinto, conforme toda a gente julgava. Em vez disso, Deus havia de volver os olhos benevolamente para eles, pois ia ter com o irmão Petride. Iam fazer uma viagem até muito longe. Estavam a realizar uma obra de Deus.

O sacerdote correu os dedos pela cruz de ouro que trazia suspensa de um cordão por baixo do colarinho. O gesto não foi suave: havia fúria nele.

- Da qual nunca regressou - disse Adrian baixinho. - E não havia irmão da igreja com o qual contactar, pois morrera.

- Sim. Acho que podemos imaginar a reacção da mulher, uma mulher simples e extremosa, deixada com seis filhos.

- Perderia o juízo.

Land deixou a cruz e o seu olhar vagueou de novo até à parede.

- Como acto de caridade, os sacerdotes de Xenope acolheram a louca. Foi tomada outra decisão. Ela morreu passado um mês.

Fontine avançou lentamente na cadeira.

- Mataram-na. - Não era uma pergunta.

O olhar fixo de Land voltou. Havia agora uma certa expressão de súplica nos seus olhos.

- Ponderaram as consequências da existência dela. Não relativamente ao Filioque, mas em confronto com um pergaminho do qual nenhum de nós em Roma jamais tivera conhecimento. Eu nunca tinha ouvido falar dele até esta tarde. Torna imensas coisas muitíssimo mais claras.

Adrian levantou-se da cadeira e voltou para junto da janela. Não estava preparado para discutir o pergaminho. Os religiosos já não tinham o direito de dirigir investigações. O advogado que havia em Adrian discordava dos sacerdotes. As leis eram para toda a gente.

Lá em baixo, no Central Park, um homem passeava dois enormes cães, e os animais retesavam as trelas. Ele estava a retesar a sua própria trela, mas não podia deixar que Land o soubesse. Virou costas à janela.

- Dakakos juntou tudo, não juntou?

- Sim - respondeu Land, aceitando a recusa de Adrian de ser conduzido. - Era a herança dele. Jurou saber tudo. Acordámos em permutar informações, mas eu fui mais franco do que ele. Veio à baila o nome dos Fontini-Cristi, mas o pergaminho nunca foi mencionado. O resto, parto do princípio que sabe.

Adrian ficou surpreendido com as palavras do sacerdote.

- Não parta de princípio nenhum. Conte-mo. Land hesitou. A reprimenda fora inesperada.

- Desculpe. Pensei que sabia. Dakakos assumiu o encargo de Campo di Fiori. Durante anos pagou os impostos, que eram consideráveis, afastou compradores, promotores de bens imobiliários, e velou pela segurança e conservação...

- E Xenope?

- A Ordem de Xenope está praticamente extinta. Um pequeno mosteiro a norte de Salónica. Um punhado de velhos sacerdotes numa terra arável reduzida, sem dinheiro. Para Dakakos, só restava um elo de ligação: um monge moribundo em Campo di Fiori. Não podia deixá-lo desaparecer. Extraiu tudo quanto o velho sabia. Em última análise, não se enganava. Gaetamo foi libertado da prisão; o padre expulso, Aldobrini, regressou de África meio morto de febres várias; e, finalmente, o seu pai voltou a Campo di Fiori. O palco da execução da família. A terrível busca reiniciou-se no ponto de partida.

Adrian pôs-se a pensar.

- Dakakos deteve o meu irmão. Não houve nada que não fizesse para o encurralar, para expor o Corpo de Vigilantes.

- Para o impedir a todo o custo de chegar à arca. O velho monge deve ter dito a Dakakos que Victor Fontine sabia do pergaminho. Compreendeu que o seu pai agiria à margem das autoridades, que utilizaria os filhos para encontrar a arca. Tinha de o fazer. Ponderando as consequências, não havia outro rumo a seguir. Dakakos analisou-vos a ambos. Aliás, mandou vigiá-lo durante vários dias. O que descobriu num dos filhos chocou-o. Não se podia permitir que o seu irmão fosse mais longe. Tinha de ser destruído. Você, em contrapartida, era uma pessoa com quem ele achava que podia trabalhar, caso as coisas viessem a encaminhar-se nesse sentido.

O sacerdote calara-se. Inspirou profundamente, com os dedos novamente em volta da cruz de ouro que trazia ao peito. O pensamento viera-lhe de novo

à mente e era manifestamente doloroso. Adrian compreendeu: tinha experimentado a mesma sensação nas montanhas de Champoluc.

- Que teria feito Dakakos no caso de encontrar a arca? O olhar penetrante de Land fixou-se em Adrian.

- Não sei. Era um homem compassivo. Conhecia a angústia de buscar respostas dolorosas para questões muito dolorosas; é possível que a sua compreensão lhe guiasse o raciocínio. Não obstante, era um homem de verdades. Acho que ponderaria as consequências. Mais do que isto não posso ajudá-lo.

- Usa imenso essa frase, não usa? «Ponderar as consequências».

- Peço desculpa se o ofende.

- Ofende, sim.

- Nesse caso desculpe, mas tenho de ofendê-lo ainda mais. Pedi-lhe autorização para aqui vir, mas mudei de ideias. Vou-me embora. - O sacerdote levantou-se da cadeira. - Não posso ficar. Vou tentar dizê-lo em poucas palavras...

- Em poucas palavras... - interrompeu desabridamente Adrian - ... não estou interessado.

- Você está em vantagem - replicou prontamente Land. - É que eu estou interessado em si, naquilo que você compreende. - Não havia maneira de calar o sacerdote; deu um passo em frente: - Acha que as dúvidas se dissipam pelo facto de se tomarem votos? Acha que sete mil anos de comunicação humana nos estão de algum modo vedados? A qualquer de nós, sejam quais forem as vestes que trajemos? Quantos deuses, profetas religiosos foram esconjurados ao longo dos séculos? O seu número enfraquece a devoção? Acho que não. Porque toda a gente aceita aquilo que é capaz de aceitar, pondo as suas próprias crenças acima de todas as outras. As minhas dúvidas dizem-me que daqui a milhares de anos os estudiosos podem analisar os vestígios do que nós fomos e concluir que as nossas crenças... as nossas devoções... eram singularmente estranhas, definindo como mitos o que nós consideramos extremamente sagrado. Da mesma maneira que nós etiquetamos como mitos os vestígios de outros. O meu intelecto é capaz de conceber isto, compreende? Mas agora, aqui, na minha época, para mim, o compromisso está tomado. É melhor tê-lo do que não o ter. Eu acredito na verdade. Sou convicto.

Adrian lembrou-se das palavras:

- A revelação divina não pode ser transgredida pelos mortais?

- Anda lá bastante perto. Vou aceitar isso - disse Land com simplicidade. - Em última análise, prevalecem os ensinamentos de São Tomás de Aquino. Não são propriedade exclusiva de ninguém, poderia eu acrescentar. Quando o raciocínio chega à exaustão, na sua última barreira, a fé converte-se no raciocínio. Eu tenho essa fé. Mas, sendo mortal, sou fraco. Não tenho resistência para me pôr mais à prova. Tenho de retirar-me para o conforto do meu compromisso, sabendo que estou melhor com ele do que sem ele. - O sacerdote estendeu-lhe a mão: - Adeus, Adrian.

Fontine olhou para a mão estendida e tomou-a na sua.

- O senhor compreende que é a arrogância do seu «compromisso», das suas crenças, que me perturba. Não sei de outra maneira de expressá-lo.

- Compreendo; tomo nota da sua objecção. Essa arrogância é o primeiro dos pecados que levam à morte espiritual. E aquele que mais frequentemente é descurado: o orgulho. Pode matar-nos a todos um dia. Então, meu jovem amigo, não haverá nada.

Land virou costas e encaminhou-se para a porta da pequena sala de estar. Abriu-a com a mão direita, enquanto a esquerda continuava a segurar a cruz de ouro, envolvendo-a. O gesto era inconfundível. Tratava-se de uma atitude de protecção. Olhou uma vez mais para Adrian e a seguir saiu da sala, fechando a porta atrás de si.

Fontine acendeu um cigarro e apagou-o logo, esmagando-o no cinzeiro. Tinha a boca amarga de fumar de mais e dormir de menos. Dirigiu-se a uma máquina de café e serviu-se de uma chávena.

Uma hora atrás, Land, apalpando a guarnição metálica do prato quente, tinha queimado os dedos. Ocorreu a Adrian que o monsenhor era o género de pessoa que experimentava a maior parte das coisas na vida. E apesar disso não era capaz de aceitar a experiência final. Tinha-se pura e simplesmente afastado; havia nisso o seu quê de honestidade.

Bem maior do que aquela que tinha demonstrado para com a mãe, reflectiu Adrian. Não mentira a Jane: teria sido inútil, sabido o que a mentira era. Mas tão-pouco lhe dissera a verdade. Fizera uma coisa muitíssimo mais cruel: evitara-a. Ainda não estava preparado para a confrontação.

Ouviu passos no corredor da entrada da sala de estar. Pousou a chávena e dirigiu-se ao meio da sala. A porta abriu-se e entrou Barbara, com o estudioso a segurar a porta aberta, ainda de bata de laboratório e com os óculos de aros de chifre a ampliarem-lhe um tanto o rosto. Os olhos castanhos de Barbara, habitualmente tão cheios de calor e riso, mostravam-se penetrantes, cheios de empenhamento profissional.

- O doutor Shire terminou - disse. - Podemos tomar café?

- Com certeza. - Adrian regressou à mesa e encheu duas chávenas. O estudioso sentou-se na cadeira da qual Land se levantara minutos antes.

- Sem nada, se faz favor - disse Shire, pousando uma única folha de papel no regaço. - O seu amigo foi-se embora?

- Foi, sim.

- Sabia? - perguntou o ancião, aceitando o café.

- Sabia porque eu lhe disse. Tomou a sua decisão. Foi-se embora.

- Posso compreender - disse Shire, piscando os olhos por detrás dos óculos com o vapor do café. - Sentem-se, ambos.

Barbara recolheu o café mas não se sentou. Ela e o perito trocaram um olhar: Barbara foi para o pé da janela, enquanto Adrian se sentava defronte de Shire.

- É autêntico? - perguntou Fontine. - Imagino que seja a primeira pergunta.

- Autêntico? Quanto à época, material, escrita e linguagem... sim, eu diria que há-de resistir a essas análises. Parto do pressuposto de que resiste. As análises químicas e prismáticas levam muito tempo, mas eu já vi centenas de documentos deste período; relativamente a esses aspectos, é autêntico. Agora, quanto à autenticidade do seu conteúdo... Foi escrito por um homem semilouco à beira da morte. Uma forma de morte extremamente cruel e dolorosa. Esse

juízo, se é que virá a ser feito, terá de ser feito por outros.

Shire lançou um olhar a Adrian ao pousar a chávena de café na mesa ao lado da cadeira e pegar no papel que tinha no colo. Fontine manteve-se calado. Shire prosseguiu:

- De acordo com as palavras do pergaminho, o prisioneiro condenado a perder a vida na arena na tarde seguinte repudiou o nome de Pedro, que lhe fora dado pelo revolucionário chamado Jesus. Disse que não era digno dele. Queria que a sua morte fosse registada como a de um tal Simão de Betsaida, o seu nome de nascimento. Estava consumido de culpa, pretendendo que tinha traído o seu salvador... Porque o homem que foi crucificado no calvário não era Jesus de Nazaré.

O velho calou-se, deixando as palavras no ar, suspensas, como que interrompidas a meio da frase.

- Oh, meu Deus! - Adrian levantou-se da cadeira. Olhou para Barbara a janela. Esta devolveu-lhe o olhar sem comentários. Voltou-se novamente Para Shire. - Isso é específico?

- É. O homem estava atormentado. Escreve ele que três dos discípulos de Cristo agiram, por conta própria, contra os desejos do carpinteiro. Com o auxílio dos guardas de Pilatos, que subornaram, retiraram Jesus, inconsciente, das masmorras e substituíram-no por um criminoso condenado da mesma estatura e aspecto geral, vestindo-lhe as roupas do carpinteiro- No meio da histérica multidão do dia seguinte, o sudário e o sangue dos espinhos eram suficientes para disfarçar as feições do homem debaixo da cruz e nela pregado. Não era essa a vontade do homem a quem chamavam o Messias...

- «Nada se modifica» - interrompeu Adrian baixinho, lembrando as palavras. - «E no entanto tudo é modificado».

- Foi involuntariamente deslocado. A sua intenção era morrer e não ficar vivo. O pergaminho é claro a esse respeito.

- Mas não morreu. Ficou mesmo vivo.

- Ficou.

- Não foi crucificado.

- Não. Se aceitarmos a palavra do homem que escreveu o documento... nas condições em que o escreveu. Praticamente na fronteira entre a sanidade e a loucura, quer-me parecer. Não o aceitaria meramente devido à sua antiguidade.

- Agora está a formular um juízo.

- Uma observação de probabilidade - corrigiu Shire. - O autor do pergaminho perdia-se de quando em quando em desvairadas preces e lamentações. Os seus pensamentos tão depressa eram lúcidos como se tornavam obscuros. Louco ou asceta a autoflagelar-se? Fingidor ou penitente ou os dois? Infelizmente, o facto físico de tratar-se de um documento de há dois mil anos empresta-lhe uma credibilidade que certamente lhe seria negada em circunstâncias menos impressionantes. Lembre-se de que foi a época das perseguições de Nero, um período de loucura social, política e teológica- A maior parte das vezes as pessoas sobreviviam à custa de puro engenho- de quem se tratava, ao certo?

- O documento di-lo com todas as letras. Simão de Betsaida.

- Dispomos apenas da palavra do autor a esse respeito. Não vem nos  registos Simão Pedro ter sido condenado à morte juntamente com os primeiros mártires cristãos. Havia de fazer certamente parte da lenda, e no entanto não há

referência a isso nos estudos bíblicos. Se assim fosse, e o facto tivesse sido descurado, trata-se de uma omissão terrível, não é verdade?

O cientista tirou os óculos e limpou as grossas lentes com um canto da bata.

-Que está o senhor a procurar dizer na sua? - perguntou Adrian.

O ancião voltou a colocar os óculos, que lhe ampliaram os olhos pensativos e tristes.

- Suponha que um cidadão de Roma, ao qual está destinada uma forma horrível de execução, inventa uma história que impugna a odiada marca de uma religião perigosa, surgida de repente, e o faz de um modo crível. Um homem nessas condições poderia conquistar a protecção dos pretores, dos cônsules, mesmo do próprio césar. Houve muito boa gente que o tentou, bem sabe. De uma maneira ou de outra. Há vestígios de uma porção de «confissões» dessas. E agora chega até nós uma na forma completa. Há alguma razão para a aceitarmos mais do que às outras? Simplesmente pelo facto de ser completa? O engenho e a sobrevivência são um lugar-comum na história.

Adrian observou detidamente o estudioso à medida que este falava. Havia uma estranha ansiedade nas palavras.

- O que é que o senhor pensa, doutor?

- O que eu penso não é importante - retorquiu Shire, evitando momentaneamente o olhar de Adrian.

Houve um silêncio; foi profundamente comovente.

- Acredita, não é verdade? Shire fez uma pausa.

- É um documento extraordinário.

- Diz o que aconteceu ao carpinteiro?

- Diz - respondeu Shire, olhando fixamente para Adrian. - Suicidou-se três dias mais tarde.

- Suicidou-se? Isso é contrário a tudo...

- Pois é - interrompeu brandamente Shire. - A coerência encontra-se no factor tempo: três dias. Congruência e incongruência, onde está o equilíbrio? A confissão prossegue dizendo que o carpinteiro injuriou os que interferiram, embora, no final, invocasse Deus para que lhes perdoasse.

- Isso é coerente.

- Acaso esperava outra coisa? Engenho e sobrevivência, Mister Fontine. «Nada se modifica e no entanto tudo é modificado».

- Qual é o estado do pergaminho?

- Está notavelmente bem conservado. Uma solução de óleo animal, penso eu, comprimida até ao vácuo, coberta por grosso vidro de rocha.

- E os outros documentos?

- Não os examinei, a não ser para os distinguir do pergaminho. Os papéis que presumo reconstituírem os acordos do Filioque conforme a perspectiva dos seus opositores estão longe de achar-se intactos. O manuscrito aramaico é, evidentemente, metálico, e vai ser preciso muito tempo e cuidados para o deslindar.

- Isso é a tradução literal da confissão? - perguntou Adrian, sentando-se e apontando para a página manuscrita na mão do especialista.

- De certo modo. Não está burilada. Não a apresentaria academicamente.

- Posso ficar com ela?

- Pode ficar com tudo. - Shire inclinou-se para a frente. Adrian estendeu a mão e pegou no papel. - O pergaminho e os documentos: são seus.

- Não me pertencem.

- Bem sei.

- Porquê, então? Sempre pensei que havia de suplicar-me que o deixasse guardá-los. Examiná-los. Espantar o mundo com eles.

O estudioso retirou os grossos óculos, com os olhos cansados enrugados de exaustão e voz serena:

- O senhor trouxe-me uma descoberta muito estranha. E bastante aterrorizadora. Sou velho de mais para enfrentá-la.

- Não compreendo.

- Nesse caso, peço-lhe que reconsidere. Foi negada uma morte, e não uma vida. Mas era nessa morte que residia o símbolo. Se uma pessoa põe esse símbolo em questão, arrisca-se a lançar dúvidas sobre tudo quanto esse símbolo acabou por vir a significar. Não tenho a certeza de que isso se justifique.

Adrian calou-se por um momento.

- O preço da verdade é alto de mais. É isso que o senhor está a dizer?

- Se for verdade. Mas, por outro lado, há o terrível absoluto da antiguidade. As coisas são aceites porque existem. Homero cria uma ficção, e séculos mais tarde os homens reconstituem rotas marítimas em busca de cavernas habitadas por gigantes com um olho só. Froissart faz a crónica de uma história que nunca existiu e é aplaudido como um verdadeiro historiador. Peço-lhe que pondere as consequências.

Adrian levantou-se da cadeira e deslocou-se sem destino até à parede para a qual Land não parara de olhar: tinta branca uniforme, debilmente iluminada. Nada.

- Pode guardar tudo aqui por uns tempos?

- Pode ficar guardado num cofre do laboratório. Posso mandar-lhe um recibo comprovativo.

Fontine voltou-se.

- Um cofre?

- Sim, um cofre.

- Podia ter ficado noutro.

- Talvez devesse. Por quanto tempo, Mister Fontine?

- Quanto tempo?

- Quanto tempo ficará aqui?

- Uma semana, um mês, um século. Não sei.

Perto da janela do hotel, olhava a linha do horizonte de Manhattan. Nova Iorque fingia dormir, mas a miríade de luzes lá em baixo nas ruas desmentia-o.

Tinham falado durante horas, quantas não sabia ao certo. Ele havia falado; Barbara escutara, obrigando-o com brandura a dizer tudo.

Havia tanta coisa a fazer, tanta coisa por que passar, antes de recobrar o juízo perfeito!

De súbito - o som foi de algum modo aterrorizante -, o telefone tocou. Ele fez meia volta, demasiado cônscio do pânico que sentia, sabendo que se lhe lia nos olhos.

Barbara levantou-se da cadeira e dirigiu-se calmamente para junto dele. Levantou as mãos e segurou-lhe o rosto. O pânico amainou.

- Não quero falar com ninguém. Neste momento, não.

- Nesse caso, não fales. Diz a quem quer que seja que telefone amanhã de manhã.

Era tão simples! A verdade.

O telefone voltou a soar. Dirigiu-se à mesa-de-cabeceira e levantou-o do descanso, seguro da sua intenção, confiante no seu vigor.

- Adrian? Por amor de Deus! Temos andado à tua procura por toda a cidade de Nova Iorque! Foi um coronel da Inspecção-Geral chamado Tarkington que nos deu o nome do hotel.

O interlocutor era um dos advogados da Justiça recrutado por Nevins.

- Quem é?

- Aconteceu! Tudo aquilo por que trabalhámos está a encaixar no lugar. Esta cidade está feita em cacos. A Casa Branca está em pânico. Estamos em contacto com a magistratura do Senado; andamos à procura de um acusador especial. Não há outra maneira de tratar do assunto.

- Têm provas concretas?

- Mais do que isso. Testemunhas, confissões. Os ladrões estão a correr à procura de protecção. Estamos novamente em acção, Fontine. Estás connosco? Agora podemos agir.

Adrian pensou apenas por breves momentos antes de responder.

- Estou convosco, sim.

Era importante continuar em movimento. Havia certas lutas que continuavam. A outras havia que pôr termo. A sabedoria estava em decidir quais.

 

                                                                                            Robert Ludlum

 

                      

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