Biblio "SEBO"
Às vezes, quando estou mais deprimida, faço a pergunta: "Quem sou eu?" Pego o espelho, olho meu rosto. O que vejo? Garota de dezoito anos, estudante do colegial, uma história de vida. Será? Sua boba, todo mundo tem uma história de vida, até um bebê recém-nascido; ele ainda não consegue enxergar direito, apenas vultos, não pode falar, mas é personagem de uma história importante: a dele mesmo.
Comigo acontece algo estranho, principalmente quando olho no espelho, como agora. Tenho a impressão de que não sou eu ali refletida; é outra pessoa. Nem minha conhecida, nem amiga, nem vizinha, nada: uma estranha. E isso de certa forma me conforta; dá pra entender? Como se o que tem acontecido comigo não fosse de verdade, porque está acontecendo com a outra, a do espelho. Até dei um nome pra ela: Arantxa. É um nome que li certa vez num jornal e achei diferente, exótico, bonito... Então agora sou Arantxa. Porque aquela que fui, a Bianca, essa não quer mais aparecer, quer ficar num casulo, fechada, protegida, como se tivesse voltado para o útero da mãe, e dali não precisasse sair mais. Tranqüila e feliz, ouvindo os sons dos órgãos maternos funcionando... feto: pequena e bonita história de vida e todo o tempo do mundo, até o dia de nascer!
No tempo em que eu ainda era a Bianca, ah, nossa, como era romântica! Minhas amigas, no colégio, até caçoavam. Diziam que eu vivia esperando o príncipe encantado. E qualquer dia ele viria, num cavalo branco, com arreios de ouro ou prata, pararia lá na entrada e, para espanto do seu Jeremias, o porteiro, perguntaria: "É aqui que estuda a Bianca?"
" É aqui sim", diria seu Jeremias, de olho arregalado. Não era carnaval nem nada, ou será que já tinham implantado a Monarquia no Brasil e ele nem ficara sabendo? E agora reis e príncipes andavam a cavalo pelas ruas? Puxa, ele precisava ler mais jornal.
"Mande chamar, por favor", diria o príncipe, sorrindo superbranco; até parece que não fazia outra coisa na vida a não ser cuidar daqueles maravilhosos dentes, "dentes de neve".
"Sim, senhor", responderia seu Jeremias, ainda zonzo. Que outra coisa poderia fazer, a não ser atender o príncipe? Afinal, príncipe é príncipe; quando diz "Mande chamar", a gente chama.
Logo mais eu viria, agitada, toda curiosa ("Tem um príncipe a cavalo lá no portão te esperando, Bianca!", teria dito o seu Jeremias, como bom arauto real). Que diabo estar de uniforme; não é todo dia que um príncipe vem à procura da gente. Enfim, que remédio, vamos lá: "Chamou?"
E os "dentes de neve" então diriam, com aquela voz macia, já esperada, suave e viril ao mesmo tempo: "Vim te buscar, minha princesa!"
Quem gostava de inventar essa história era Verônica, sardenta metida a besta só por ter um cabelo maravilhoso (vivia dizendo ser modelo de propaganda de xampu, mas ninguém nunca tinha visto a Verônica na tevê).
Eu no começo ria; até que achava legal, pô! Um príncipe na porta do colégio. Iam pensar que era gravação de novela, filmagem, sei lá que promoção! Depois comecei a achar aquilo tudo uma aporrinhação: "Que diabo, Verônica, não está mais com o Lourenço? Arruma outro pra ficar e sai do meu pé!"
Só que um dia eu topei com o príncipe de verdade. Verdade verdadeira, tô mentindo não; foi numa festa na casa da Pri (ela se chama Priscila, mas a gente só a chama assim). Os pais da Pri tinham viajado, e ela resolveu dar uma festa. Big festa; cada um convidou quem bem quis. Era um casarão e cabia gente a mil. Rolou muita coisa. Música de estourar qualquer tímpano, misturando tudo: lambada, rock, country, timbalada, o que desse pra remexer com gosto, a todo vapor; e põe vapor nisso. Sem falar em bebida, paquera, o diabo. A certa altura, cismaram de dar uma de grunge: uns casais se juntaram na pista e fizeram "almôndega", que é mais ou menos como enrolar uma almôndega de verdade, sacou? Todo mundo se espremendo, e a claque atrás, só fazendo auê.
Foi no meio desse clima geral que, por acaso, meu olhar cruzou com alguém, bem do meu lado, e meu coração deu o maior pinote. Era ele, era ele, meu Deus! Claro que sem as roupas, o cavalo, mas não havia dúvida: aquele era o príncipe!
Mal acreditava no que meus olhos viam: um metro e oitenta de músculos, cabelo castanho-claro, ondulado, olhos cor de mel, que pareciam sorrir, e uma boca, uau! Nem estava muito produzido: camiseta, calças jeans e botas, mas nem precisava, porque na real ele já era o máximo!
Me fiz de dengosa, claro; não ia entregar o jogo logo na primeira olhada. Disfarcei, olhei de novo, disfarcei novamente, daí não consegui tirar mais os olhos do gato. Nem nos meus melhores sonhos tinha visto coisa igual. Ele pegou um copo de bebida, me ofereceu, e logo o papo rolou. A gente nem percebeu, ou percebeu, sei lá, que tava se amarrando pra valer, amor à primeira vista, soco na boca do estômago, pá: nocaute!
Desde esse dia a gente não se largou mais. Não era só ficar, não, era namoro mesmo. Uma paixão correspondida, alimentada como corrente elétrica contínua, dá pra entender? Como se nunca desligassem o fio da tomada.
Nem sabia direito quem ele era. Perguntei pra Pri e ela disse que não o conhecia, que era convidado de algum convidado, ou era penetra, quem podia saber?
Pra mim ele só disse que se chamava Lauro, tinha vinte e um anos e ainda estava no terceiro colegial de um colégio conhecido. Ia prestar vestibular no ano seguinte, mas ainda nem sabia pra quê. Morava com os pais e mais dois irmãos, e sempre aparecia de Escort preto conversível. Além disso, não sabia mais nada dele; nada mesmo. Mas pra que precisava, se estava na cara que ele era um príncipe? A gente não ama RG, CIC, carteira de motorista, endereço, atestado de antecedentes, de saúde - ama? Claro que não! A gente conhece um cara, se amarra nele e the end. O resto é curtir a vida!
Se estava nas nuvens, por que não deixar rolar? Quando o Lauro buzinava na frente de casa, e eu descia correndo as escadas, mamãe disparava:
- Vai sair, Bianca? Quem é o rapaz? Me apresente, quero ver o jeito dele!
- Tô atrasada, mãe - respondia, abrindo a porta pro doce exercício da minha liberdade. O gato acelerava o carro, o vento arrepiava nossos cabelos. Era como sair do mundo real, voar a cem ou mais por hora, até nosso ninho de amor, um local muito discreto, que ele descolara com um amigo. Enquanto o outro trabalhava, a gente usava o apê.
Quando eu voltava, mamãe de novo ficava na minha cola:
- Onde é que você estava, Bianca?
- Por aí, mãe, me divertindo...
Minha mãe só olhava daquele jeito dela e dizia:
- Juízo, hein, filha?
Ficava só nisso. Parecia um disco enguiçado: "Juízo hein, juízo hein?" Além disso, nada de objetivo, entende? Ela tava mais por fora da minha vida que a vizinha ao lado. Mãe é quase sempre assim, pelo menos em grande parte. A maioria diz: "Juízo, hein?", como se estivesse cumprindo uma obrigação e pronto. Depois lava as mãos, como o velho Pilatos. As mães das minhas colegas eram quase iguais. Só uma minoria sentava pra valer, conversava sobre sexo, preservativos.. . As outras fingiam que não estavam sabendo, e ponto final. Os pais, ah, os pais! Bloqueados por completo: "Minha filha?, nem pensar", problema é com a filha dos outros. "Minha mulher dá conta disso, depois a garota é tão certinha; quer dizer, eu espero, né?"
Eu já não era virgem desde os catorze anos, quando pintou uma transa numa viagem com um grupo de amigos. Foi até legal, amizade colorida, sem compromisso; ainda meio criança e pra não parecer diferente, topei. Rolou a maior sorte porque não pintou gravidez. Muitas garotas não tem essa sorte toda; engravidam logo na primeira transa, e aí a casa cai. Até fico imaginando a cara da minha mãe se eu chegasse em casa, naquela época, e dissesse: "Mãe, tô grávida!" Acho que ela ia responder assim: "Mas menina, eu não disse pra você ter juízo?" e "pluft" no chão.
Depois desse lance, eu tive um problema com o meu ciclo menstrual: muito irregular e cólicas. Minha mãe cismou de ir comigo à ginecologista. Na hora do exame, a médica perguntou:
- Prefere entrar sozinha ou com sua mãe?
- Mas precisa exame? - estranhou minha mãe.
- Sozinha - apressei-me a responder, já levantando da cadeira. - Fico mais à vontade.
- Venha, por favor. - Antes que minha mãe falasse mais alguma coisa, entrei na sala de exame, onde uma enfermeira me preparou.
Daí, quando a médica ia começar a me examinar, pedi:
- Doutora, não sou mais virgem, mas a minha mãe não sabe disso. A senhora poderia guardar segredo, por favor?
- Claro! - disse ela. - Mas você usa algum anticoncepcional, ou vai só na sorte?
- Até agora na sorte, doutora.
- Pois precisamos conversar. Talvez você devesse marcar outra consulta, e então poderíamos falar sobre esse assunto mais à vontade. Não se pode depender apenas da sorte, entende? E não estou falando apenas de gravidez: há outros riscos sérios. Como AIDS, por exemplo. Pelo menos, nunca deixe de usar a camisinha no seu relacionamento sexual.
Fiz que sim com a cabeça, me sentindo tão sozinha! O que pensaria minha mãe, lá na sala, enquanto me esperava? Provavelmente estaria na dela, na maior tranqüilidade. Será que existiria alguma mãe diferente, que assumisse com a filha o ônus da administração da própria liberdade?
A doutora me receitou pílula anticoncepcional, pra regular a menstruação e melhorar as cólicas, o que deixou mamãe encucada; mas ela explicou direitinho pra que servia. E marcou um retorno, porque era medicamento sujeito a controle médico. Antes, lá dentro da sala de exame, ela ainda insistiu, guardando o sigilo que eu pedira:
- Nunca faça sexo sem preservativo, você sabe, a camisinha. É a única forma de prevenir doenças venéreas e, principalmente, a AIDS. Não esqueça. Antes de qualquer relação sexual: camisinha. Não protege cem por cento porque pode romper, mas é a única forma segura, além de, claro, você selecionar muito bem os parceiros.
Me deu uma baita raiva. Que insistência, pô! Quem essa doutora metida a besta pensava que eu era? Uma ninfomaníaca? Ela dissera parceiros, e eu só tivera um lance. Será que pra ela eu arrumava um namorado em cada esquina?
Não dei nem bola. Tomei a tal caixa de pílulas, que comprei com receita, quer dizer, minha mãe comprou, e melhorei das cólicas, além de regular meu ciclo menstrual. Até que a Verônica falou:
- Já que acostumou com a pílula, meu bem, vai nessa. Compra sem receita mesmo e fica livre de preocupação pró resto da vida...
- Você toma...?
- Um tempão - disse Verônica. - Você acha que eu ia arriscar?
- A doutora também me falou de camisinha; o que você acha?
A Verônica fez um muxoxo:
- Meu namorado detesta, e eu também. É como chupar bala com papel. Isso é pra cara promíscuo, que tem um monte de parceiras...
- Mas quantas parceiras você acha que seu namorado já teve antes de você? - perguntei.
A Verônica engasgou:
- Você acha que eu ia perguntar isso pra ele? Que me interessa? A gente tá junto e pronto.
- Mas ele não quis saber quantos você teve? - cutuquei fundo.
- Dá um tempo, não encarna! - disse a Verônica. - Isso é coisa que se pergunte, Bianca? Até me ofende.
- Ué - insisti. - Na realidade só não seria arriscado se vocês nunca tivessem outros parceiros antes, ou passassem um tempão juntos, como antigamente...
- Xi, como você tá chata! - replicou a Verônica. - Olha, vai passar a tal propaganda de xampu hoje na tevê. Não esqueça de me ver, linda e maravilhosa.
O papo acabou por aí. Até esqueci do assunto. Fui à farmácia e comprei mais uma caixa de pílulas. Bem que mamãe vivia insistindo pra eu marcar o retorno ao consultório, mas eu nem aí. Que doutora mais chata aquela, pô! Até parecia o arauto do apocalipse.
Eu, Bianca, era assim. Irresponsável, sem paciência pra papo-cabeça. Essa é a palavra certa. Fica fácil demais colocar a culpa na mãe, no pai, na médica, no diabo. O negócio é que eu não era nenhuma débil mental, era?
Tinha dezesseis anos quando conheci o Lauro, lá na festa. Na verdade, mamãe podia ser mais companheira, sentar comigo, abrir o jogo, não se fazer de tonta. Mas, diga uma coisa, será que ela podia me orientar mesmo? Minha mãe sempre foi só dona de casa. Nunca trabalhou fora e quase não lia jornal ou livros. Fez só o primeiro grau. O que ela entendia de orientação sexual? Casou virgem com papai (seu primeiro namorado), teve só uma filha, sem muita experiência de vida, sempre fechada no mundinho dela. Seria mais fácil se nós duas fôssemos conversar com um orientador sexual que nos ensinasse a agir nesses novos tempos difíceis de AIDS, do escambau.
Só que eu nasci nesses novos tempos, e, como eu mesma disse, não era nenhuma débil mental. Podia ler, perguntar, voltar na médica, pedir informações. Mas era mais fácil ficar na minha, comprar todo mês a caixinha de pílulas anticoncepcionais e bancar a sabida. Melhor dizendo, bancar a otária, ouvindo outra ainda mais otária do que eu, a Verônica, que só se interessava pelos seus lindos cabelos e a carreira de modelo de tevê.
Até que era legal ser alienada. Como se a liberdade fosse um negócio assim: faço o que quero da minha vida e ninguém tem nada com isso. Como se a liberdade não andasse com uma amiga muito fiel: a responsabilidade. Será que eu tinha mesmo o direito de não me cuidar, de me expor, de deixar de me informar a pretexto de ser livre? Livre pra quê? Pra correr riscos desnecessários e confiar apenas na sorte? Como disse a doutora naquela consulta? Se ao menos eu tivesse voltado lá, confiado nela, conversado, trocado idéias, um papo-cabeça com quem sabe realmente das coisas?
Mas isso agora não me leva a nada, absolutamente nada. Não estou sendo julgada, nem me sinto culpada. Fui apenas impulsiva, me atirei de cabeça, fiz o que a maioria faz. Me apaixonei, gamei, entrei com tudo. E naquela época foi bom, foi muito bom. A paixão é uma coisa engraçada, mexe com a cabeça da gente.
Parecia (como dizia minha avó) que eu tinha visto passarinho verde. Feliz, ai, tão feliz! Rindo à toa, acordando com aquela felicidade gostosa. Saber que o Lauro tinha entrado na minha vida, talvez até pra ficar, pra sempre. Até comecei a ir mal na escola, porque não me concentrava nos estudos, vivia voando, a cabeça a mil, só pensando naquele gato maravilhoso que pintara no meu pedaço.
Foram meses de grande euforia. A gente se dava bem pra caramba, trocava idéias, transava legal. Como se não existisse mais ninguém no mundo. Como é que eu tinha vivido dezesseis anos sem conhecer esse príncipe? A minha vida anterior não fazia sentido, só a partir daquela festa, quando bati os olhos naqueles olhos cor de mel que a todo instante pareciam sorrir.
- Te amo - Lauro dizia baixinho no meu ouvido. E os sinos tocavam, badalavam como em dia de festa, cantando aleluia!
- Também te amo - respondia, e nada mais fazia sentido. A minha vida era ele, o resto era o resto.
Tinha um ciúme terrível dele. Pudera, as garotas viviam olhando, secando, dando em cima. Mulher é fogo! O objeto da paixão de uma vira objeto da paixão das outras. Até a Pri, minha melhor amiga, me falou um dia:
- Sabe que eu morro de inveja de você?
- Isso é coisa que se diga, Pri?
Ela ficou sem jeito:
- Desculpe, eu sei que sou sua melhor amiga. Mas que tenho inveja, ah, isso tenho! Que gato, meu Deus, que gato!
- Pra ter amiga assim, não preciso de inimiga - brinquei.
- Não liga, não, foi só brincadeirinha.
- Mas é brincando que se diz a verdade.
- Esquece. - A Pri mudou de assunto. Mas eu senti que ela estava com inveja de mim; todas estavam. Eu não era tão bonita assim, meio na média. O que será que ele tinha visto em mim? Pô, que insegurança! Se ele me amava, é porque vira alguma coisa, ué. A gente não é só físico, tem o interior; mas beleza sempre é beleza, é vitrine, ninguém resiste.
Então toca me cuidar: cabelos, unhas, pele. Fiquei vaidosa pra caramba, mamãe notou:
- Tudo isso pra segurar o namorado? Quando é que você apresenta o rapaz pra gente?
- Calma aí, dona Rita, tudo a seu tempo.
- Ué, convide o rapaz pra tomar um café.
- Dá um tempo, mãe, ninguém mais namora dentro de casa. Isso era antigamente...
- E o que há de errado nisso? - minha mãe se irritou. - Sabe, a gente não tinha muito prazer, mas também não tinha problema.
- O que a senhora chama de problema?
- Gravidez... doenças... essas coisas. - Mamãe sempre ficava meio arredia quando falava de sexo.
- Vai dizer que ninguém ficava mãe solteira? Sem essa, mãe!
- Ficava, claro, mas era exceção. A maioria casava virgem, como eu casei. Sabe - mamãe riu e parecia uma menina rindo -, eu morria de medo de ser mãe solteira.
- Grande coisa, vocês faziam drama demais. Isso agora é tão comum...
- Mas naquela época? - minha mãe até se arrepiou. - Nem quero pensar. Era pior do que uma bomba atômica caindo numa casa, um caos. Você não está, está?
- Está o quê, mãe, fale claro, parece criança, tem medo de certos assuntos...
- Grávida - mamãe falou, soletrando as sílabas. - Seu pai morre.
- Fique sossegada, dona Rita, não estou não.
- Quer dizer que você transa com o seu namorado? Pelo amor de Deus, filha, eu podia jurar que você ainda era virgem!
- Quase ninguém mais é virgem! Acorde, mãe! Afinal, que diferença faz?
Minha mãe estava na cozinha, mexendo num ovo. Ficou tão apalermada que esqueceu que o ovo não estava cozido e cortou-o em dois, com a faca. .
- Eu acho que falhei com você, não foi, filha? - disse ela, comovida.
- Não esquente, mãe - respondi. - Ninguém falhou com ninguém. Não complique, tá? É melhor não contar isso pro papai, porque ele é meio nervoso e não adianta mesmo nada.
Saí pra encontrar o Lauro. Mamãe ficou lá na cozinha, olhando o ovo partido em cima da pia, clara e gema, numa lambuzeira danada. Acho que foi nesse dia que ela, de verdade, deixou de ser menina e começou a crescer.
O Lauro, por falta de oportunidade, ainda não conhecia meus pais. Por uma questão de liberdade, preferia namorar fora de casa.
Certa noite, quando chegamos de carro, minha mãe estava na porta nos esperando. Estranhei; ela não era desse tipo, ainda mais no horário dos seus programas favoritos na tevê.
Nem bem desci do carro, ela veio correndo:
- Bianca, seu pai sumiu!
- Como sumiu, que bobagem é essa, mãe?
- Saiu da loja pra ir ao dentista e não deu mais sinal de vida.
A essa altura, o Lauro já estava junto de nós e, mesmo sem ser apresentado, foi logo entrando na conversa:
- A senhora já telefonou pro dentista?
- Já. Ninguém responde. A loja já fechou há horas. Aconteceu alguma coisa com o Gastão, eu sei.
Mamãe tinha razão em se preocupar tanto. Meu pai, apesar de não ser exatamente metódico, tinha uma mania: gostava de jantar em casa, pontualmente. Isso pra ele era sagrado. Se por qualquer motivo se atrasava, sempre avisava a gente. Alguma coisa séria devia ter acontecido.
Aí me dei conta do Lauro ali do nosso lado e apresentei:
- Mãe, este é o Lauro, o meu namorado.
- Muito prazer - disse ele, estendendo a mão e sorrindo. - Pena que seja nessas circunstâncias.
- Ah, prazer - disse minha mãe automaticamente, apertando a mão dele. Ela estava em pânico. A ponto de esperar ali na rua mesmo. Vinte anos de casada e nunca acontecera coisa semelhante.
Foi aí que o Lauro tomou o controle da situação:
- A senhora tem o endereço desse dentista?
- Tenho sim. - Mamãe se animou um pouco. - Fica próximo ao colégio da Bianca. Vou buscar.
Voltou num instante com o endereço, e o Lauro então se ofereceu:
- Fique tranqüila, que eu e a Bianca vamos até lá. Tenho certeza de que nada aconteceu. Não saia de perto do telefone, que daremos notícias.
- Ah, meu filho, Deus lhe pague. Mas talvez fosse melhor eu ir junto também.
- Fique ao lado do telefone - insistiu o Lauro. - Seu Gastão pode ligar pra dar notícias, e é bom que haja alguém em casa.
- Bem pensado. - Minha mãe entrou e nós saímos a mil atrás do velho. Coisa esquisita aquilo. Papai era tão certinho, na hora do jantar, que até dava nos nervos. Se atrasasse alguns minutos, ficava histérico, em volta da mamãe, pedindo:
- Isso ainda não está pronto, Rita? Você sabe que eu gosto de jantar na hora certa.
Coitado do meu pai: trabalhava sem descanso. Acho até que ele era, como dizem os americanos, um workaholic, viciado em trabalho. Aquela loja era como uma paixão. Além da família, claro, porque eu e mamãe éramos seus amores maiores. Ai de quem mexesse com a gente! Comprava briga na hora.
O colégio não ficava muito distante; em poucos minutos chegamos lá. Dois quarteirões acima ficava o consultório do dentista. Havia luz. Tocamos a campainha, mas demoraram pra atender. Dali a pouco apareceu uma garota, cara assustada:
- O que é?
O Lauro se adiantou:
- Seu Gastão ainda está aí? A família está toda preocupada, porque há horas que ele não dá notícia e...
A garota gaguejou:
- Está sim. Está quase acabando... foi um caso meio difícil.
- Por que ninguém atende o telefone? - interrompi, irritada. -- Minha mãe está desesperada lá em casa.
- O telefone? - A garota parecia que viera de uma nave espacial. - Nem ouvi, juro. Estava ajudando o doutor e...
O Lauro se pôs na minha frente:
- Abra essa porta, que vamos entrar.
- Não sei se devo, o doutor...
- Ele vai ter que explicar por que está retendo no consultório um paciente há quatro horas. Abra, já disse! - o Lauro quase gritou.
A garota, mais assustada ainda, nos deixou entrar. Subimos as escadas, pois o consultório ficava no primeiro andar. Praticamente invadimos. A porta do gabinete estava entreaberta. O Lauro empurrou-a.
- Que significa isso? - disse o dentista, ainda muito jovem, rosto suado e vermelho. Na cadeira, com cara de desespero, estava meu pai. Pálido como nunca o tinha visto antes.
- Que bom que vocês vieram - disse ele. Seu desespero era tão grande que ficou contente com a presença do Lauro, sem nem mesmo o conhecer. - Já disse pro doutor parar, ele não quis, não consegue tirar a...
- Que está acontecendo aqui? - interpelou Lauro, frente a frente com o dentista. - Somos da família do seu Gastão e exigimos uma explicação convincente.
Agora era o dentista que estava pálido. Começou a gaguejar:
- Não foi nada, apenas uma raiz difícil de ser extraída; mais um pouco e consigo.
- Ele não me deixa ir embora - choramingou papai, lá na cadeira. Incrível como um homem daquela idade se sentisse tão constrangido em relação a um rapaz que poderia ser seu filho.
- O senhor desinfete imediatamente a boca dele que vamos embora - disse o Lauro, num tom de voz que prometia. - E se cometeu alguma barbeiragem vai se arrepender, entendeu? Meu irmão é advogado.
O dentista, pensando que o Lauro era meu irmão ou marido, sei lá, desinfetou rapidamente a boca do meu pai. Nós então o tiramos da bendita cadeira e ele saiu praticamente carregado, em estado de choque. Pela escada ia repetindo:
- Eu falei pró dentista parar, mas ele não quis. Disse que precisava extrair a raiz de qualquer maneira. Acho que tomei umas dez anestesias.
Pusemos papai no carro e voamos pra casa. Até esquecemos de ligar pra minha mãe. Quando ela viu meu pai entrando pálido daquele jeito, quase teve um troço. Pedi:
- Calma, mãe, ele já está de volta. Não foi nada muito sério. Só que ele caiu nas mãos de um charlatão que se diz dentista.
Foi aí que lembrei de perguntar:
- Lauro, seu irmão é mesmo advogado?
- Que nada, é dentista. E vou ligar pra ele agora mesmo, se der sorte, ainda o encontro no consultório.
Papai reclamou lá do sofá:
- Não precisa, não quero incomodar ninguém.
- Claro que precisa - disse o Lauro. - A gente nem sabe o que aquele cara aprontou aí na sua boca. Meu irmão é excelente profissional, vai nos tranqüilizar, fique calmo.
Enquanto Lauro ligava pro irmão, ouvi meu pai perguntar, muito espantado, pra mamãe:
- Mas afinal quem é ele? O namorado da Bianca?
- É sim - disse minha mãe. - E nem sei o que teríamos feito sem ele. Estava apavorada, sem notícias suas. Por que não ligou? Estava quase chamando a polícia, achando que era seqüestro.
- Porque aquele doido me coagiu na cadeira - disse papai. - Tentava sair, mas ele não deixava. Parece que fiquei idiota de repente. É inacreditável! O cara acabou de voltar de um congresso no exterior, só mesmo neste país é que acontece uma coisa dessas...
Mas o Lauro já vinha, todo feliz:
- Tudo certo, meu irmão está a nossa espera.
Pra encurtar a história, o irmão do Lauro, o doutor Leandro, constatou uma série de irregularidades, mas, em vista do estado do meu pai, não pôde intervir. Receitou um antibiótico e pediu que ele voltasse na semana seguinte. Nessa ocasião, a cavidade, de tão maltratada, desenvolvera uma alveolite, e foi preciso uma curetagem. Aproveitando a oportunidade, como a raiz estava em boa posição, extraiu a maldita em dois minutos. Só por segurança, papai repetiu o antibiótico e, dias depois, foi tirar os pontos. Depois disso, o acontecimento tornou-se um dos seus assuntos preferidos, falando, aos quatro ventos, que o doutor Leandro era o melhor dentista que ele já consultara. Quanto ao outro, o pseudodentista, escapou de um processo, porque meu pai achou que nem valia a pena esquentar a cabeça.
Tudo isso serviu pra uma coisa completamente diferente. Meu pai ficou tão agradecido ao Lauro que não deixou mais a gente namorar na rua. Queria o Lauro por perto pra conversar,
trocar idéias; "adotou" o meu namorado. Eu o ouvia dizendo pra mamãe, de noite, no quarto, antes de dormir:
- Esse rapaz é bom, Rita. Quem faria isso por uma pessoa que nem conhecia? Todo o trabalho, a solidariedade? Gostei dele. Olha, gostei mesmo. É só a Bianca ter juízo que tudo dá certo...
- Ah, juízo ela tem - disse minha mãe, sinceramente convencida do que afirmava.
- Você conversa sempre com ela, não conversa, Rita? - insistiu meu pai. - Essas coisas quem tem de conversar é a mãe. Se fosse um garoto era diferente...
- Não se preocupe - disse mamãe. - A Bianca é responsável, tem a cabeça no lugar.
- Espero - bocejou papai. E, mudando de assunto: - Sabe que eu cruzei com aquele dentista de merda lá no banco, hoje? E ele ainda fingiu que não me viu, o condenado?
- A gente devia é ter tascado um processo nele - revoltou-se minha mãe.
- Deixe, Rita, deixe - consolou meu pai. - Qualquer dia, alguém mais estourado faz ele pagar pela incompetência dele, espere só.
Foi uma época feliz. Sabe quando tudo parece estar dando certo? O Lauro começou um cursinho intensivo, porque se decidira a prestar vestibular de medicina, por influência do irmão médico. Ele sempre comentava que, dos três irmãos, ele era o mais tranqüilo em matéria de estudo; os outros eram feras. Havia uma diferença grande de idade entre os irmãos mais velhos e o Lauro; talvez por esse motivo ele fosse tão mimado pelos pais.
- Vou prestar o vestibular só pra sentir como é - dizia o Lauro. - Porque a concorrência é muito grande em relação ao número de vagas.
- Ah, você passa - eu animava. - É só estudar pra valer que passa.
- E eu lá tenho paciência de ficar trancado meses em casa, só estudando? - suspirava o Lauro.
- Admiro meus irmãos, eles sempre estudaram muito, mas não faz o meu estilo.
- E qual é o seu estilo? - cutuquei. (Eu também sempre fui boa aluna, mas sem exageros. Não era a primeira nem a última, estava sempre na média. Mas meu pai fazia questão que eu entrasse na faculdade, era o sonho dele. Mas ia deixar pra fazer o cursinho depois de concluído o colegial, pra aproveitar bastante. Há muito tempo, já me definira pelo curso de direito.)
O Lauro sorriu, aquele sorriso aberto dele:
- Curtir a vida, meu amor, curtir a vida; pelo menos enquanto for jovem. O resto vem por acréscimo.
- Meu pai costuma dizer que a gente planta na juventude pra colher na idade madura.
- Mas há muitas maneiras de plantar, não é? - O Lauro era um gozador, tirava sarro de tudo. - Um pouquinho aqui, outro pouquinho ali. Sem pressa.
Olhei bem dentro dos olhos dele e fiz a pergunta que, há muito tempo, andava engatilhada, me fazendo cócegas:
- Você já namorou muito, não foi?
Ele caiu na risada:
- O que você acha?
- Que não deixou passar nenhuma...
- Nem tanto assim, mas namorei bastante, confesso. O que posso fazer se as gatinhas todas se apaixonam por mim?
- Convencido.
- Mas garanto que nunca amei ninguém como você, juro.
- Fez uma cruz sobre os lábios.
- Você é a última.
- Quem foi que convidou você para aquela festa onde a gente se conheceu, lá na casa da Pri?
- Quer mesmo saber? - Lauro me olhou de um jeito que era mesmo uma perdição.
- Claro que eu quero, foi algum amigo?...
- Uma gata que eu estava namorando na ocasião.
- Não me diga! Quem era?
- A Verônica! Quase perdi a fala:
- Tá brincando! Aquela metida a besta, "com meus lindos cabelos" - imitei.
- Ela própria.
- Pois ela nunca me contou.
- Evidente que não, dei o maior fora nela, na festa mesmo. Tava pegando demais no meu pé; desisti. Detesto mulher ciumenta.
Essa conversa me deixou super grilada. Na primeira oportunidade, peitei a Verônica, assim, de supetão:
- Por que você nunca me contou que namorava o Lauro antes que eu o conhecesse lá na festa?
Ela até engasgou com o lanche:
- Como é que você descobriu?
- Ele contou.
- Ah, foi? - A Verônica fingiu desinteresse. - Contou só isso?
Foi a minha vez de ficar nervosa.
- Como, só isso? Tem mais?
- Ih, meu bem, tem muito mais. A gente podia ficar falando o dia inteiro sobre isso.
- Deixe de besteira, garota, abra o jogo.
- Sabe como é - a Verônica fez cara de sabida. - O Lauro é gatíssimo, é óbvio. Só que ele é o maior galinha que já apareceu no pedaço. Se fosse contar todas as gatas que ele teve, dava um livro, e põe livro nisso. Você é apenas mais uma no currículo.
Me controlei pra não partir pra cima dela; que atrevida! Dizer isso bem na minha cara. Não que ela fosse exatamente amiga, mas espera aí, será que tudo isso era...
- Que inveja, hein, isso é que eu chamo de dor-de-cotovelo.
- Eu? - Verônica jogou pra trás os "lindos cabelos". - Não estou nem aí. Parti pra outra, tá legal? Mas, se fosse você, ficava de olhos bem abertos, pra não ser passada pra trás. O Lauro não resiste a uma gata bonita. É o estilo dele, meu bem.
Aquilo me deixou doida. Uma síndrome de ciúme violenta. Quando a gente está apaixonada, não escuta nada, só ouve o coração. E nem sempre o coração é o melhor conselheiro. Principalmente quando se deixa de ser objetivo e racional.
Depois, o ano estava rolando tão depressa: o Lauro parecia dedicar-se mesmo aos estudos, pra não fazer feio perante os pais; ainda mais com os dois cobras, os irmãos mais velhos.
A família do Lauro se parecia com a minha. O pai tinha um posto de gasolina e a mãe era professora aposentada. Todos os nomes das pessoas da família começavam por L: Luís, o pai; Lídia, a mãe; Leandro, o dentista; Laércio, o médico; e o Lauro, meu gato. Nenhum de nós era rico, mas tínhamos uma vida confortável. De certa forma, nos sentíamos privilegiados, porque, olhando à nossa volta, a coisa estava cada vez mais terrível, a miséria aumentando a olhos vistos.
Os dois irmãos do Lauro já eram casados, mas ainda sem filhos. A mulher do Laércio também era médica. Me sentia muito bem na casa do Lauro. Seus pais, extremamente gentis, me deixaram à vontade logo da primeira vez que me conheceram. Eram, inclusive, pessoas muito religiosas, de uma fé bonita e espontânea. Nisso diferenciavam-se bastante dos meus pais, pouco ou quase nada ligados à religião.
Quanto a mim, oscilava entre a indiferença e a curiosidade: às vezes, confesso, sentia falta de algo mais, de uma coisa maior. Não exatamente de uma religião, mas de uma fé verdadeira. Seria tão bom ter aquela confiança que via nos pais do Lauro e que servia de equilíbrio tanto na tristeza quanto na alegria. Sei lá, alguma coisa em que pudesse sempre me apoiar, que não me falhasse nunca; algo transcendental.
De um certo tempo pra cá, sentia as pessoas tão pouco solidárias, tão egoístas. Minha avó materna, Carolina, muito ligada a mim, costumava contar que no tempo dela os vizinhos eram muito amigos. Se conheciam, faziam visitas, prestavam pequenos serviços, uns ajudando aos outros.
Vó Carolina vive sozinha numa casa de vila. De uma certa maneira também é privilegiada, porque mora há anos numa ruazinha encravada no meio de uma movimentada avenida e conservou as velhas amizades. Mas, com o tempo, alguns moradores se mudaram pra apartamentos, por questão de segurança ou idade avançada; outros já morreram. Só minha velha avó resistiu, e os novos vizinhos a tratam com grande respeito.
Quanto a nós, até hoje quase não temos contato com nossos vizinhos. Alguns mal conhecemos, outros nem nos cumprimentam. Se isso acontece com quem mora em casa, o que dirá de quem vive em apartamento, num prédio com dezenas ou até centenas de moradores? Verdadeiros desconhecidos se cruzando no elevador, sem um bom-dia ou um boa-noite, estranhos que habitam a mesma torre de marfim.
Nossa casa está localizada num bairro considerado nobre, mas que, aos poucos, foi sendo tomado por altos edifícios. Meus pais, não simpatizando com a idéia de morar em apartamento, resistiram à mudança. Perdi a conta de quantos corretores tocaram a campainha de casa, querendo fazer negócio. Meu pai desiludia a todos. De certa forma, gostava disso. Algum dia, quando não for mais possível resistir, quando venderem o quarteirão inteiro, a gente terá que se mudar.
Quem se divertia com essas minhas divagações era o Lauro. Dizia que eu parecia uma caixinha de surpresas, dando guinadas de trezentos e sessenta graus. Uma hora, era a garota avoada, que não ligava pra papo-cabeça. De repente, "tchan": virava uma velhinha, cheia de reflexões. Essa minha face oculta, de muita sensibilidade, talvez ele conhecesse melhor do que eu mesma.
Vó Carolina também me conhece muito bem. Logo que eu e o Lauro começamos a namorar, levei-o para conhecê-la. Nem sei bem por que, pedi à vovó que não contasse pra ninguém do nosso namoro, e ela jurou que não contaria. Tão antiga nossa cumplicidade! Eu, a neta favorita, a mais velha, a primeirona. Apesar de ter muitos netos, nunca ninguém tiraria meu lugar no coração da vovó. E a casa dela foi e será sempre o meu "oásis", o meu "paraíso".
Demorei pra falar da vó Carolina, por um motivo muito especial: ela é como se fosse uma jóia muito preciosa, que a gente guarda num cofre e, de vez em quando, abre só pra olhar, e ter a certeza de que está lá. É esse amor, verdadeiro e cheio de energia, que realmente mantém a nova mulher que agora sou, a que segura o espelho!
O Lauro não passou no vestibular e caiu em grande depressão. Não entendia por que ficara tão deprimido, se ele mesmo dissera que ia apenas tentar. Acho que ele subestimou o quanto desejava igualar-se aos irmãos, que, no passado, haviam entrado na faculdade logo na primeira tentativa.
Não adiantava querer consolá-lo, dizer que ele não era o único nessa situação. O vestibular de medicina é realmente um grande desafio, pelo número de concorrentes, principalmente na USP, onde seus irmãos estudaram.
Aquilo mexeu com seu orgulho, e ele não soube trabalhar ou lidar com a derrota. Sempre mimado pela família, paquerado pelas garotas, o vestibular tornara-se, mesmo inconscientemente, questão de honra. Agora sentia-se um derrotado.
Passou meses assim, sem estímulo pra nada: não fazia cursinho nem estudava em casa. Ficou meio apático, ranzinza, reclamando de tudo e de todos. Certas vezes, chegava a me cansar ver um cara tão legal desistir de tudo, logo na primeira tentativa.
Por pouco a relação não dançou. Era preciso muita paciência pra agüentar tanta fossa. Às vezes, me perguntava se ele não era imaturo demais, um menino egoísta. Com tanto problema à nossa volta - num país subdesenvolvido como o nosso - não passar num vestibular não era nenhum drama, apenas um episódio malsucedido, poxa! Não faltava nada a ele. Tinha uma boa família, condições excelentes de vida. E o nosso amor, não valia nada?
Nessa ocasião, um parente muito chegado do Lauro teve de se submeter a uma operação de emergência. Pediu que algumas pessoas da família doassem sangue, pra repor o que ele utilizaria na cirurgia. Questão de rotina hospitalar.
Lauro, sempre muito prestativo, foi um dos primeiros a se oferecer como voluntário. Ele tinha um tipo de sangue bastante raro e, por isso mesmo, muito solicitado.
Logo depois disso, a gente viajou pró litoral, onde os pais dele tinham um apartamento. Foram feriados prolongados e cheios de sol, que aproveitamos maravilhosamente, embora a praia estivesse muito cheia e o mar, como sempre, poluído. Ficamos vários dias fora, esticando o feriadão.
Voltamos num domingo à noite, e, não sei por que, por puro instinto, achei os pais do Lauro com uma fisionomia diferente, como se estivessem preocupados com alguma coisa. Achei que fosse algum problema familiar passageiro e esqueci o assunto.
Aí aconteceu uma coisa realmente esquisita: como num passe de mágica, o Lauro desapareceu. Não ligava nem mandava notícias, como se tivesse sido seqüestrado. Telefonei várias vezes pra casa dele. Mas ou não atendiam ou inventavam uma desculpa. Fiquei atônita, numa desconfiança terrível. Será que ele já partira pra uma nova conquista e o nosso namoro dançara? Não tinha nem ânimo de ir ao colégio. Vivia só deitada, numa fossa tão grande que até mamãe veio falar comigo:
- Que é isso, filha? O que está acontecendo? Você está doente, se abra comigo, é algum problema mais sério? Sou sua amiga, mãe é pra essas coisas.
- Fique tranqüila, mãe, não é nada comigo não, estou ótima, é só uma fase.
Mas mamãe não se convenceu; ela era mais esperta do que eu pensava:
- Como, está ótima? Faltando ao colégio, só enfiada na cama, não comendo direito. Não saio deste quarto enquanto você não me disser o que está acontecendo. Quer me deixar louca?
- É o Lauro, mãe - desabafei, as lágrimas escorrendo pelo rosto. - Ele sumiu. Faz mais de quinze dias que não o vejo nem tenho notícias.
- Sabe que notei isso? - disse minha mãe. - Mas não queria tocar no assunto pra você não dizer que sou intrometida. Liga para casa dele, vai.
- Essa é a parte mais estranha - continuei - Já fiz isso uma porção de vezes. Quando atendem, dão desculpas as mais esfarrapadas: que ele não está, logo volta, que liga depois, e nada.
- Será que ele está fugindo de você, Bianca? Vocês brigaram, alguma coisa parecida?
- Claro que não! Estávamos ótimos. Passamos dias maravilhosos na praia. Não há o menor motivo pra ele fugir de mim.
- Que coisa mais estranha mesmo - concordou minha mãe. - Sabe o que eu acho? Deve ter acontecido alguma coisa muito grave pro Lauro agir desse jeito. Ele não me parece uma pessoa que saia de um relacionamento dessa forma. Se quisesse terminar o namoro, tenho certeza de que falaria francamente com você.
Segurei as mãos da mamãe:
- Que é que eu faço? Me dê um conselho, me ajude, por favor.
- Espere mais alguns dias - disse ela. - Se você já procurou pelo Lauro e não conseguiu resposta, que mais pode fazer? Aguarde ele dar notícias.
- E se eu fosse à casa dele e ficasse plantada lá até ele aparecer e me dar uma satisfação? Eu não sou uma coisa que ele usa e depois joga fora.
- Você acha mesmo que deve? Em seu lugar, eu esperaria. Dê mais alguns dias, depois você faz o que achar melhor.
Pensando bem no assunto, resolvi seguir o conselho da minha mãe. E se de repente eu aparecesse por lá e ele nem quisesse falar comigo? Ia ser uma situação constrangedora demais.
Dias depois, quando estava no maior sufoco, o telefone tocou. Não era o Lauro, e sim o doutor Laércio, irmão dele. Tentei disfarçar minha surpresa.
- Tudo bem com você, Bianca?
- Mais ou menos. Estou sem notícias do Lauro faz tempo e...
- É justamente por isso que estou ligando - continuou ele. - O Lauro teve uns problemas.
- Que problemas? - interrompi. - Coisa séria? Ele está doente?
Houve um intervalo do outro lado da linha, como se o doutor Laércio estivesse escolhendo as palavras:
- Olhe, Bianca, não dá pra falar por telefone. Você se incomodaria de vir ao meu consultório ainda hoje? O Lauro estará aqui, esperando por você.
- Claro, eu vou sim.
- Se você quiser trazer alguém da sua família, ou da sua confiança, seria bom - continuou ele. - A Márcia, minha mulher, também estará presente.
- Levar alguém, por quê? Escute, a que horas?
- Às cinco, está bem pra você?
- Estarei aí, sem falta.
Desliguei, perturbada. O que seria, meu Deus? O que acontecera com o Lauro, pra, depois do sumiço todo, o irmão dele, sempre tão ocupado, me ligar, falando coisas enigmáticas? E aquela história de levar alguém comigo?
Achei melhor contar a história pra mamãe, afinal, sendo mais velha, talvez entendesse.
Quando ouviu tudo, foi categórica:
- Vou junto com você.
- Que bobagem, mãe, vocês pensam que sou alguma menininha que ainda usa chupeta?
Tem cabimento eu aparecer de mãe a tiracolo? O que vão pensar?
- Mas foi o próprio médico quem sugeriu - disse minha mãe. - Não adianta reclamar, porque, se eu não for, vou ficar sofrendo ainda mais, aqui sozinha. Vá se vestir que eu também me apronto num minuto.
Não adiantou insistir, minha mãe não mudou de idéia. Fechou o assunto. Ligou pro papai, dizendo que íamos sair, mas não devíamos demorar. Quem podia com ela quando cismava com alguma coisa? De certa forma, éramos muito parecidas: duas caixinhas de surpresas!
Eu ainda não tinha carteira de motorista, então minha mãe foi dirigindo. Chegamos pontualmente às cinco horas. A enfermeira nos atendeu cordialmente, e logo nos levou até o consultório.
Jamais esquecerei a cena que vi.
Não adiantou nada a doutora Márcia vir ao nosso encontro, solícita, e atrás dela o doutor Laércio, ambos com ar preocupado. O que marcou mesmo, o que jamais sairá da minha memória, foi o Lauro: jogado literalmente na cadeira, com um ar desolado, como se o mundo tivesse desabado sobre ele. Nem olhou na nossa direção. Permaneceu calado, olhos baixos.
- Sentem-se, por favor - disse a médica.
- Minha mãe - ainda consegui apresentar, apesar do choque de ver o Lauro naquele estado.
- Muito prazer - disse o doutor Laércio, sentando-se ele próprio atrás da mesa. E continuou: - Foi decisão do Lauro chamá-la aqui no consultório, Bianca. Ele precisa dizer-lhe uma coisa muito séria.
A doutora Márcia pôs as mãos sobre os ombros do Lauro, como que dando forças pró que ele precisava me dizer. Minha mãe se mexeu ao meu lado, inquieta, enquanto eu ficava absolutamente muda, sem palavras.
Lauro levantou os olhos e vi que estavam vermelhos, porque devia ter chorado. Ele me encarou, firme:
- Me perdoe, Bianca. Juro, pelo que há de mais sagrado, que não sabia... não fiz de propósito; jamais faria uma coisa dessas. Eu amo você!
- Pelo amor de Deus! - gritei. - O que está acontecendo aqui? Fale de uma vez ou vou ficar histérica!
Foi então que o Lauro despejou de uma só vez, como um soco na cara:
- Lembra-se daquela doação de sangue que fiz no hospital? Todo sangue doado passa por um teste anti-AIDS obrigatório. O do meu sangue deu positivo!
Olho o céu, tão esplendorosamente azul, e parece que o estou olhando pela primeira vez; porque antes eu era a Bianca, a outra, sonhadora e romântica, que acreditava em príncipes encantados.
Essa pessoa morreu naquele dia, no consultório do doutor Laércio. Depois que saímos, eu e mamãe, me transformei aos poucos naquela que sou agora: Arantxa.
Esta nova mulher tem muito pouco em comum com a de outrora: é realista, objetiva, olha a vida de frente. Enfrenta seus medos, desafia seu pânico. É uma guerreira, armada de espada e lança, numa guerra particular, sem fronteiras.
Engraçado como a gente vive a vida inteira com uma pessoa e não a conhece, a prejulga. Estou me referindo a mamãe. Qualquer outra, ou a maioria delas, em tal situação, se poria aos prantos, completamente histérica. Ela não. Descobri que mamãe tem um esquema psicológico capaz de resistir às grandes provações, às notícias terríveis: ela bloqueia a realidade, deixando-a passar bem devagarinho, em contagotas, pra ter a condição de aceitar ou, melhor dizendo, sobreviver.
A conversa com o doutor Laércio e a doutora Márcia, depois que o Lauro fez a terrível confissão, tornou-se tensa. Fiquei em estado de choque, sem palavras. Foi mamãe quem tomou a iniciativa de saber tudo sobre o assunto, como se, de repente, ela precisasse desesperadamente ser informada, coisa a que nunca dera muita importância.
Os dois médicos, que não eram infectologistas, mas naturalmente conheciam o assunto, nos puseram a par de uma série de coisas, que eu ouvia num estado de sonambulismo. Nem olhava pro lado do Lauro, como se nunca o tivesse conhecido e aquele assunto todo não me dissesse respeito. De certa forma eu também estava fazendo como mamãe: bloqueando, embora entendesse tudo.
O Lauro não fazia parte de nenhum grupo de risco: nem homossexual, nem bissexual, nem drogado, nem hemofílico, nunca fizera transfusão de sangue. Era ou fora no passado um garoto extremamente promíscuo. Namorando, a torto e a direito, com quem ele cruzasse pela frente: um garanhão, ou, como dissera a Verônica, um galinha. Só que, no meio desse caminho, ele provavelmente cruzara com alguém que pertencia ou se relacionara com uma pessoa de algum grupo de risco. Quer dizer, eram apenas suposições; ninguém tinha certeza de nada.
Era ainda um portador assintomático. Se não fosse fazer a doação, nem ficaria sabendo que estava com a síndrome; o que, se por um lado o mantinha saudável, por outro o transformava numa bomba ambulante, porque ninguém desconfiaria e poderia ser contaminado, relacionando-se com ele.
Aí é que entrava a Bianca, a que eu deixei de ser naquele consultório, na noite que jamais esquecerei. Nosso relacionamento era de paixão, a gente confiava um no outro, na nossa fidelidade, pelo menos atual. Ninguém se preocupara muito com o passado, mas ele estava ali, presente, cobrando seu preço. Resultado: no nosso relacionamento sexual, nunca usamos camisinha, e poderia ser que sim ou que não... talvez eu também estivesse contaminada pelo vírus HIV, que causa a AIDS.
Quase como num sonho, ouvi mamãe perguntando aos dois médicos:
- E como podem ter certeza de que o Lauro está com... - ela evitava falar o nome da síndrome. - O teste, lá no hospital, não pode ter sido engano? A gente ouve tanto falar nisso!
- Falso positivo? - rebateu o médico. - Sim, seria uma hipótese, como existe também o falso-negativo. Só que a senhora se lembra que o Lauro se ausentou por quase um mês?
- Daí?
- Daí - o médico fez uma pausa. - Repetimos o teste, o Elisa; demora mais ou menos quinze dias para se ter o resultado. E, não contente com isso, fiz o Lauro fazer o teste Western-Blot, que confirmou o diagnóstico.
- Então... não há mais dúvidas?
- Infelizmente, creio que não - disse a médica. - E gostaríamos que a Bianca fizesse os mesmos testes. É muito importante: existe probabilidade, claro, de que ela não tenha se contaminado. Portanto, por favor, não se desesperem...
Foi então que ouvi a minha própria voz, como se saísse de um sarcófago, perguntar:
- Quanto?
- Você quer dizer tempo? No caso de uma pessoa infectada? - Quem não encontrava palavras agora era o médico: - Cinco, seis, dez, quinze, até vinte anos... E quem pode garantir se e quando o vírus vai acordar dentro dessa pessoa? Vai depender de todo o seu mecanismo imunológico, da sua resistência específica, genética, ou mesmo do seu estado emocional. Pessoas depressivas também deprimem suas defesas pessoais; isso é uma realidade que não podemos mais negar.
De repente, o Lauro se manifestou, lá no canto da sala:
- É como ter uma espada sobre a cabeça. Preferia mil vezes não ter sabido do que carregar essa sentença pelo resto da vida que ainda tenho...
- Não fale assim - interrompeu a doutora Márcia. - Você descobriu por acaso, mas é importante quando isso ocorre. A pessoa pode se cuidar mais, tomar antivirais poderosos, enfim, providenciar uma qualidade melhor de vida. Sem falar que, sabendo do seu estado, deixa de contaminar outras pessoas, como pode ter acontecido aqui...
A médica parou de falar e ficou vermelha. O marido olhou-a com reprovação. "Que ótimo", pensei, "eles tentam me dar coragem, mas já acham que estou perdida. Que diabo de consolo é esse?"
Quando saímos do maldito consultório, sentia um cansaço mortal. Todas as minhas forças tinham sido usadas para me manter ali, em frente aos dois médicos que, mesmo desolados com a situação, ainda nos tentaram transmitir alguma esperança.
Minha mãe, impassível, convidou:
- Vamos até a casa da vó Carolina?
Será que eu ouvira direito? Depois de tudo, ela queria fazer uma visita? Olhei nos olhos dela e não vi o menor sinal de lágrimas. Apenas um olhar de pedra, de resistência próxima à agonia, como se ela se recusasse a aceitar, mas ao mesmo tempo não se permitisse abater.
- Vamos - eu disse. Talvez, no paraíso da vila encravada na avenida, a gente encontrasse uma luz!
Foi uma visita tão estranha aquela! Vovó trazendo a bandeja de chá, com bolinhos que ela mesma fizera, toda feliz com a nossa chegada.
Mamãe tomou o chá, comeu os bolinhos e fumou um cigarro. Depois olhou bem pro rosto da vó Carolina:
- Viemos aqui pedir ajuda, mãe.
- Vocês estão com algum problema? É dinheiro? Eu tenho algumas economias...
- Antes fosse - suspirou mamãe -, antes fosse. É coisa muito séria, mãe, precisamos da sua força.
Vó Carolina sentou durinha na beira do sofá e arregalou os olhos:
- Pode falar, filha, estou ouvindo.
E ouviu... sem dar uma palavra, sem mexer sequer um músculo do rosto. Ficou ainda em silêncio, por alguns segundos, depois que a narrativa terminou. Só então murmurou:
- A gente vai precisar ter muita coragem, muita fé. O Gastão já sabe?
- Nem voltei pra casa ainda - disse mamãe. - Achei melhor desabafar primeiro com você.
- Fez bem. Venha cá, minha neta, venha cá.
Vovó abriu os braços, e eu corri pro sofá. Só então consegui chorar. Benditas lágrimas, que caíram feito cachoeira, desatando aquele nó que eu trazia na garganta.
Vovó me deixou chorar, longa e silenciosamente... apenas afagando meus cabelos. Quando fiquei mais calma, falou baixinho, como se eu fosse uma criança bem pequena:
- Não tenha medo, Bianca, não tenha medo. Eu e sua mãe estamos aqui pra ajudar você. Ainda há esperança. O teste pode dar negativo. Que é isso! Você é uma garota corajosa, pra que sofrer antecipado?
- É que, não sei por quê, alguma coisa me diz que esse teste vai dar positivo.
- Que loucura é essa, Bianca, como pode adivinhar? Pois se os próprios médicos disseram que há uma chance de...
- Mas eles também disseram que as mulheres têm muito mais chance de pegar AIDS dos parceiros que vice-versa - retruquei. - Por isso é que está aumentando o número de mulheres contaminadas.
- Ainda insisto que você deve manter a esperança. Afinal, serão dois testes, pelo que entendi.
- E a senhora tem idéia do que eu vou sofrer, esperando o resultado deles?
- Eu imagino - disse vovó. - Daria tudo pra não ver você nessa situação, tudo. Mas estaremos juntas, as três. Os quatro, depois que seu pai souber, tenho certeza.
- Melhor não falar nada pra ele ainda - pedi. - Pra que deixar mais um sofrendo desse jeito? Talvez nem devêssemos ter contado à senhora.
- Que é isso? - reprovou vovó. - Fizeram muito bem. E peso demais pra carregarem sozinhas. Já vivi tanto, minha neta, tenho condições de encarar qualquer notícia, por pior que ela seja.
- A senhora vai rezar por mim? - pedi. - A senhora sempre teve tanta fé; me ensina a ter essa fé, por favor!
Minha avó me abraçou forte, recitando um salmo bíblico: "Não diga o fraco, eu sou fraco; diga, eu sou forte. Isso o tornará forte".
Foi um dia de temporal, com raios e trovões, o céu se desmanchando sobre a terra, como no início dos tempos. Mamãe conversando com papai, no pequeno escritório de casa; eu fechada no meu quarto. Vovó nos convencera de que devíamos pô-lo a par da verdade: à mamãe coubera a dura tarefa.
Os minutos transcorriam, enquanto eu olhava pela janela do quarto a chuva caindo, pesada. O cheiro bom das plantas molhadas subia até mim. Meus pensamentos cavalgavam rápido - como cavalos de corrida -, numa disputa de vida ou morte.
Quase uma hora depois, papai me chamou ao escritório. Era costume antigo: qualquer coisa muito importante era resolvida sempre ali, entre os livros que ele tanto amava e suas pequenas coisas. Papai desejara ter se formado numa faculdade, mas as circunstâncias da vida o impediram. Era um leitor compulsivo, à cata de novidades em várias áreas; enfim, um autodidata.
- Sente-se, minha filha - disse ele, expressão intraduzível no rosto magro. Notei que as têmporas estavam embranquecendo. Papai é jovem, pouco mais de quarenta anos; ele e mamãe haviam se casado bem cedo.
Fiquei em silêncio. O que diria a meu pai? Que nunca lhe dera problemas, principalmente o que ele mais temia, uma gravidez precoce? Que havia sido apenas mal-informada, inocente, desastrada no meu relacionamento aparentemente perfeito? Preferi não dizer nada. Qualquer palavra que dissesse, quaisquer argumentos que usasse, de que afinal valeriam?
Papai tomou a iniciativa. Com voz rouca, porém firme, falou:
- Sua mãe acaba de me contar o que aconteceu. Lamento profundamente pelo Lauro; ele é um bom rapaz, não merecia isso. Mas felizmente ele tem família, um irmão médico que saberá cuidar bem dele. A minha responsabilidade primordial é com você, minha filha.
Continuei em silêncio, achando estranho que ele se preocupasse tanto com o Lauro. Talvez agisse assim porque, apesar de tudo, ainda abrigasse uma secreta esperança.
- Acho que a primeira medida a ser tomada - continuou papai, pigarreando, possivelmente pra não chorar, ele que era tão sensível - é procurar um especialista; no caso, um infectologista. Tenho lido tanto sobre esse assunto ultimamente! Só me pergunto: por que não passei essas informações preciosas pra você?
Ele se calou, de repente, travado, as palavras faltando. Fui em seu auxílio:
- Sem culpa agora, por favor. Isso não resolveria nada mesmo. Pra que se martirizar ainda mais?
- Tem razão - suspirou papai, me olhando bem nos olhos. - Mas não vou me omitir mais, prometo. Amanhã mesmo vou marcar consulta num médico competente, que possa nos orientar, pedir os exames necessários. Só quero que você saiba de uma coisa, minha filha: eu e sua mãe a amamos muito, nunca duvide disso. Vamos cuidar de você, e ainda existe a esperança de que...
Não pôde continuar. Seu esforço pra parecer forte era terrível. Mamãe interrompeu:
- Vamos tomar café, querida, o papai precisa ficar sozinho por uns momentos. Está tudo bem, não está?
Ele fez que sim com a cabeça. Saímos do escritório, fechando a porta atrás de nós. No corredor ainda ouvimos os seus soluços. Até podia imaginar a cena: debruçado na velha mesa, as mãos sobre a cabeça, papai choraria até extravasar toda a sua dor...
No dia seguinte, como prometera, ele marcou consulta com o doutor Saulo, um renomado especialista. Eu já ouvira falar dele, pois, além de fazer, periodicamente, palestras sobre o assunto, também dava entrevistas em revistas e jornais. Muito solicitado, não foi fácil conseguir a consulta.
Enquanto esperava a data marcada, tentei colocar meus pensamentos em ordem. Desde aquela tarde fatídica, eu não me encontrara mais com o Lauro, nem ao telefone nos falávamos. Não sentia ódio por ele nem revolta. Era apenas uma sensação esquisita, de vazio absoluto. Como se estivesse oca por dentro. Do antigo amor, apenas restos de uma fogueira, uma camada de cinzas.
Ele me pedira perdão. Jurara, por tudo o que era mais sagrado, que não sabia do seu estado de portador do vírus HIV. Claro que acreditei. Ele era um bom caráter, jamais agiria de outra forma - ou não?
Procurei afastar essas dúvidas cruéis, preferia pensar que ele falara a verdade. Numa situação limite como aquela, alguém mentiria? E como estaria indo? Será que o irmão e a cunhada teriam condições de acompanhar devidamente o seu tratamento? Talvez eu pudesse sugerir o mesmo especialista que iria consultar, de conhecompetência. Mas, e se ele morasse numa cidade do interior, por exemplo? Não teria de se tratar com um clínico geral?
Foi então - imersa nesses pensamentos contraditórios - que tive um lampejo de razão, como um raio que, de repente, brilhasse no céu: e as outras, Deus? Todas as garotas com quem ele se relacionara nesses últimos anos, será que ele teria condições de avisá-las? Quantas estariam também infectadas, sem saber, passando o vírus pra outros inocentes como eu? E, entre elas, seguramente, a minha antecessora... a Verônica! A não ser, por um verdadeiro milagre, que ela não tivesse tido relações sexuais com ele!
Eu, que já dormia mal desde a notícia, nessa noite tive pesadelos: com a Verônica e, suprema ironia, seus lindos cabelos. Seria imprescindível que ela fosse avisada do que acontecera nos últimos dias.
Aquilo não me saiu da cabeça e, num impulso, sem consultar ninguém, liguei pra casa do Lauro. Depois de minutos de espera - quando até pensei que tinham me esquecido no telefone -, ele finalmente atendeu. Estranho, falando muito baixo, respondendo por monossílabos: o próprio desalento.
- Como você está? - insisti. - Procurou um especialista? Olhe, estou com consulta marcada num bom médico, se você quiser posso dar o número do consultório dele e...
A resposta veio seca:
- Estou me tratando com meu irmão e minha cunhada, não se preocupe, não.
- Mas eles não são infectologistas. Seria melhor que...
- Estou muito cansado; preciso desligar - disse ele, indiferente.
- Espere, espere um pouco. O motivo principal de eu ter ligado é saber se você vai avisar suas outras parceiras, principalmente a Verônica.
Houve um silêncio demorado do outro lado da linha. Depois a resposta:
- Não tenho coragem. Preciso pensar, descobrir telefones. Quanto à Verônica... você poderia fazer isso por mim, por favor?
Não acreditei no que ouvia. Onde estava aquele Lauro maravilhoso, que parecia onipotente, cheio de garbo, de vivacidade?
Claro que a notícia o abatera, a mim também, é evidente, abateria qualquer um. Não é todo dia que o mundo desaba sobre as nossas cabeças. Mas isso seria motivo pra ele deixar a meu encargo uma responsabilidade que era só dele? Não poderia deixar a Verônica sem aviso: seria um crime!
- Você faz isso por mim? - repetiu ele, num tom desanimado. Percebi, ali, naquele instante, que ele não iria procurar ninguém. Profundamente ferido no seu orgulho, desalentado até o limite, se fecharia como concha, deixando que tudo se consumasse, sem resistir ou lutar.
Desliguei o telefone, terrivelmente desapontada. Não sem antes prometer que falaria com a Verônica, em nome dele. Como ele podia ser assim tão insensível com a vida das pessoas com as quais cruzara seu destino? Encastelado na própria dor, sentindo-se miserável - mas, afinal, não fizera nada premeditado, não era culpado de nenhum crime, ou réu de julgamento. Simplesmente abusara da sorte, da sua bela aparência. Fora excessivamente promíscuo, e não se protegera. Um tremendo azar, marcação de bobeira. Em algum lugar de sua vida - quando menos esperava - teria cruzado, como dissera o irmão dele, com alguma garota contaminada que, possivelmente, não sabia também de nada: aí deu zebra!
Meus pais haviam insistido pra que eu não deixasse de ir às aulas, como se tivesse cabeça pra isso. Mas perambular pela casa, me entregando ao desespero, antes dos resultados, também não me levaria a nada. Num esforço de vontade, retornei ao colégio. Além do mais, precisava ter uma conversa muito séria com a Verônica.
Marquei encontro com ela num shopping perto de casa: não era possível conversar por telefone, nem no colégio, nem na casa dela. Poderia tê-la convidado pra vir à minha casa, mas achei que ficaria constrangida demais, depois da revelação. Um lugar neutro me pareceu melhor, pra garantir nossa privacidade.
Fomos a um restaurante tranqüilo, com pouca freqüência naquela hora da tarde. Sentamos numa mesa de canto. Verônica estava ressabiada, achando aquilo tudo meio esquisito. O convite, o lugar, não éramos tão amigas a ponto de sairmos juntas daquela forma.
Usei as palavras mais suaves que pude pra pô-la a par do acontecido. Se é que, pra revelar uma coisa dessas, possam existir palavras menos duras. Fui objetiva e clara. Estávamos no mesmo barco, ambas dependendo de um teste sangüíneo que nos definiria o destino; por isso mesmo deveríamos ficar unidas, cerrar fileiras pro que desse e viesse.
Mas a Verônica nem me deixou terminar de falar. Seu rosto se contraiu num desespero mudo. Ela praticamente saltou da cadeira e saiu correndo do restaurante.
No dia seguinte, não apareceu no colégio. Soube depois que havia pedido transferência. Não se despediu de ninguém, nem dos colegas, nem dos professores. Liguei pra sua casa, mas ela não quis atender. Fui até lá, não me deixaram entrar. Até que desisti.
Conhecer o doutor Saulo foi uma experiência marcante em minha vida. Imaginava que a clínica fosse um lugar triste, com pessoas de ar solene e clientes angustiados.
Logo na entrada, me dei conta do quanto estava errada. A enfermeira que nos recebeu era jovem, bem-vestida e alegre. O ambiente, de forma geral, era claro e reconfortante.
Doutor Saulo é um médico de meia-idade, atencioso e gentil. Seus olhos são muito vivos, transpirando cordialidade. Senti que estava na presença de uma pessoa amiga, que me auxiliaria no que fosse possível; poria, enfim, meus pensamentos em ordem.
Ele apoiou, em princípio, nossa decisão de procurar um especialista no assunto, um infectologista. E pediu que eu narrasse, nos mínimos detalhes, os acontecimentos, os quais lhe dariam condições de um diagnóstico.
Meu problema específico era o meu relacionamento com o Lauro. Doutor Saulo, naturalmente, quis saber se ele se encaixava em algum grupo de risco: bissexual, drogado, hemofílico, ou se sofrerá alguma transfusão de sangue.
Lembrei da terrível conversa no consultório do doutor Laércio, só que com uma diferença: o doutor Saulo não me perguntara, por motivos óbvios, se o Lauro era homossexual. Por que então o irmão do Lauro fizera questão de afirmar que ele não era? Só poderia ser pra defender o Lauro de qualquer hipótese mais absurda...
Tentando me concentrar no problema, respondi ao doutor Saulo que, até o ponto que eu sabia, o Lauro sempre me parecera heterossexual. Às outras questões, a resposta também era não. Mamãe nos interrompeu:
- Doutor, confesso que estou meio perdida sobre isso. O senhor poderia me explicar melhor?
- Claro! - assentiu o médico. - Estamos aqui com uma situação de fato: o rapaz, namorado de sua filha, fez exames que deram positivo para o vírus HIV. Tanto o primeiro, que deve ter sido o Elisa, como o Western-Blot, o confirmatório. Só por isso gostaria de situar o rapaz em algum grupo de risco. Mas qual é a sua dúvida específica?
Mamãe parecia perturbada:
- Não sou muito informada sobre sexualidade. Sei o que é um homossexual, creio. Mas heterossexual, bissexual, confesso que ainda faço muita confusão.
- Heterossexual é aquela pessoa que se relaciona com outras do sexo oposto, enfim, a relação homem/mulher - explicou o médico. - O grande problema, atualmente, reside no bissexual, ou seja, no homem que, na maioria dos casos, é casado, com filhos, tem uma relação heterossexual, mas, ao mesmo tempo, vive relações homossexuais, com eventuais parceiros, que podem incluir travestis ou garotos de programa. Esse homem se infecta fora de casa e transmite a doença para a mulher, que, se estiver grávida, irá contaminar também o feto. É o que chamamos de transmissão vertical.
- Isso é terrível! - disse mamãe. - Suponho que a mulher ou parceira desse homem nem imagine o risco que possa estar correndo...
- A senhora acertou em cheio - continuou o doutor Saulo. - Por isso afirmei que o bissexual é a grande preocupação no momento. Principalmente porque ele esconde o fato da sociedade e até do próprio médico que o atende. Só quando a doença começa a se manifestar é que ele, finalmente, revela sua condição de bissexual.
- Não é o caso do Lauro - afirmei, categórica. - Ele era promíscuo demais, saía com qualquer garota; vim a descobrir isso recentemente. Mas nunca reparei que ele tivesse qualquer interesse homossexual.
- Você mesma me deu a melhor pista - concluiu o médico. - Nessa promiscuidade, ele pode ter se relacionado com uma mulher pré-infectada pelo relacionamento com um bissexual, ou talvez um drogado. Veja bem, estamos apenas especulando, jamais saberemos a verdade, isso se torna quase impossível. É como uma corrente de elos desconhecidos.
Doutor Laércio já me falara disso também. De certa forma estava curiosa de saber o que, como especialista, o doutor Saulo teria de diferente.
- E qual o risco de eu estar também infectada? - perguntei, direta e objetivamente. Eu queria, precisava escapar o quanto antes daquele inferno particular, como dissera o próprio Lauro, "uma espada suspensa sobre a nossa cabeça". Era preferível a verdade a tanta angústia.
Doutor Saulo me encarou com seus olhos vivos:
- Quero deixar bem claro uma coisa: mesmo que seu teste dê positivo, isso indica apenas que você esteve em contato com o vírus HIV. Se vai desenvolver a síndrome ou não, é imprevisível...
- Como assim, doutor?
- Há casos documentados de pessoas cujos testes foram positivos e, apesar disso, convivem por anos com o vírus, sem manifestar a doença. Isso tudo está sendo bem estudado, pois é um dado a favor da nossa luta contra a AIDS.
- O meu risco, doutor, o meu risco? - insisti. - Não quero hipóteses, quero certezas.
- Eu chego lá - disse o médico. - Também de acordo com pesquisas recentes, parece que as mulheres correm mais risco de ser infectadas por seus parceiros do que o contrário. Talvez porque, numa relação sexual, o sêmen fique nelas depositado. Mas isso também não é absolutamente definitivo. Se assim fosse, o Lauro não teria se contaminado por uma mulher, entende? A não ser, claro, que ele e a família estejam mentindo, o que é uma hipótese. Sabemos muitas coisas sobre a AIDS, mas muitas outras questões permanecem desconhecidas. Em 1984, existiam no Brasil cento e vinte e três homens infectados para cada mulher. No momento, a taxa é de quatro homens para cada mulher contaminada, ou até menos. Corremos o risco de, como acontece na África, o número de homens infectados se tornar igual ao das mulheres. É isso que precisamos evitar, a qualquer custo.
- Como eu poderia imaginar uma coisa dessas? - desabafei. - O senhor precisava conhecer o Lauro até então: um garoto lindo, saudável, cheio de energia. Como eu iria saber que ele era um... portador?
- Aí reside o maior risco - respondeu o médico. - Todo mundo tem em mente o estereótipo do paciente com AIDS: magro, abatido, olheiras profundas, aparência envelhecida. Ninguém imagina que um portador, ainda assintomático, possa parecer tão normal. O vírus pode ficar incubado ou latente durante anos...
- Quantos? (Eu continuava testando o doutor Saulo, por isso fiz a mesma pergunta que fizera ao doutor Laércio.)
Doutor Saulo me olhou com carinho, até sorriu:
- Suponha, por um instante, que alguém, no gozo da mais perfeita saúde, atravesse a rua e seja atropelado. Ou que saia de casa e leve um tiro perdido. Ou seja seqüestrado e assassinado. Ou, ainda, contraia uma doença grave e fatal. Todo mundo morre um dia, seja por acaso, destino, pense como quiser. Não vamos aqui falar de tempo, vamos falar de tratamento. Como se a AIDS fosse uma doença crônica.
- Mas ela não é, doutor - murmurei, enfrentando seu olhar. - Quem dera que fosse.
- Pois com o passar do tempo, com o aumento dos casos, com o aparecimento de novas e potentes drogas, que ataquem o vírus e melhorem a qualidade de vida do paciente, ela será, com certeza. Digo até mais: ela já é!
Quem teve a certeza fui eu: aquele médico era diferente. Ele não alimentava meu desespero, ele me falava de esperança; ele não me iludia, mas, de alguma forma, me fazia enxergar uma fresta de luz! Eu viera ao lugar certo e ele me ajudaria a administrar meu pânico.
Mamãe interrompeu meus pensamentos:
- No caso do Lauro, o senhor acha que o irmão e a cunhada serão suficientes para cuidar dele?
- Fico feliz que a senhora se preocupe com o rapaz - disse o doutor Saulo. - Isso é muito raro. Na maioria das vezes haveria ódio e revolta em relação a ele.
- Eu não odeio o rapaz - suspirou mamãe. - Ele também é uma vítima da desinformação, desses tempos terríveis. E de que me adiantaria odiá-lo? Se isso ao menos ajudasse minha filha. Eu gostaria que tudo isso não passasse de um pesadelo. Acho que tenho muita culpa. Nunca procurei me informar de nada, conversar com a Bianca. Talvez pudesse ter sido diferente.
- Provavelmente - concordou o médico. - Como a senhora mesma disse, hoje são tempos terríveis. Mas, seguindo a linha do seu próprio pensamento, se culpar também não adiantará nada, não é?
- É - disse mamãe, e o médico afagou-lhe as mãos. - Fique calma, estou aqui para ajudá-las. Farei tudo o que puder e que estiver ao meu alcance e da medicina.
- Eu sei que sim, doutor - agradeceu mamãe, tentando não chorar.
- Voltando à sua primeira pergunta - continuou o doutor Saulo -, acho que um médico especialista, no caso, infectologista, deveria ser consultado pelo Lauro. Claro que um médico competente, mesmo não sendo especialista, poderia cuidar bem dele. Talvez deva também ser apoiado por um psicólogo, haja vista a sua depressão. E quanto a você, Bianca, sente algum ódio ou revolta por essa situação?
- Nem sei dizer ao certo, doutor - respondi. - Ainda estou meio zonza, amortecida por dentro. Sem capacidade de sentir ódio. Tenho pena dele, de nós dois.
- Calma, nós ainda estamos longe de um diagnóstico definitivo - disse o médico. - Não vamos nos precipitar. Vou pedir os exames específicos e repeti-los até chegar a uma conclusão. Até lá, pense que, por algum motivo, você possa não ter se infectado.
- Eu rezo o dia inteiro pra que aconteça esse milagre - disse mamãe.
- A senhora entende, temos de ser realistas. - O doutor olhou carinhosamente pra mamãe. - Existe realmente uma hipótese de não contaminação. Ninguém mais do que eu torce por isso. Como existe a possibilidade de que o teste dê positivo. Mas quero repetir, estamos antecipando o futuro, já tratando a AIDS como uma doença crônica.
- Como assim? - insistiu mamãe.
- Eu explico: o vírus HIV destrói as defesas naturais do organismo, predispondo-o a infecções que, em situação normal, o corpo se defenderia pronta e seguramente. Isso quer dizer que aparecem as doenças chamadas oportunistas. Nosso objetivo então é tratar ou até mesmo prevenir o paciente de tais doenças, melhorando a sua qualidade de vida.
- E não há nada que efetivamente proteja as pessoas do contágio do vírus? - ela parecia procurar as palavras.
O médico percebeu o embaraço de mamãe:
- Chegamos a um tempo em que não podemos mais ter medo da informação direta, das palavras exatas. A palavra que a senhora relutou em dizer é camisinha, não é? Sim, por enquanto, é a única defesa possível no relacionamento sexual, principalmente no ocasional ou com pessoas de grupo de risco. Não que seja um método infalível, porque ela pode se romper, mas, no momento, é o único recurso. Além de se evitar promiscuidade, conhecer bem o parceiro, ser o mais seleto possível. E, claro, evitar os outros meios de contágio: seringas coletivas, transfusões desnecessárias. Nisso tudo o hemofílico leva desvantagem, porque não pode fugir das transfusões: mas o controle de bancos de sangue parece estar melhorando, assim espero.
- Então as transfusões de sangue são seguras? - perguntou mamãe.
- Uma transfusão de sangue é sempre um risco que deve ser evitado ao máximo - disse o doutor. - Por mais cuidados que se tomem, é possível que o sangue de um portador (mesmo apresentando resultado negativo), escape ao controle. O que mais nos preocupa nesse instante, além dos bissexuais, são os usuários de drogas injetáveis.
- O Lauro, nesse caso, poderia ser alguém que se drogasse, injetando cocaína na veia? - arrisquei.
- Seria uma hipótese - concordou o médico. - Infelizmente, as estatísticas mostram que a incidência da doença é maior entre os que se drogam dessa forma. No afã do pico, os adictos (isto é, os dependentes de drogas) usam a mesma seringa para todos da roda; o sangue de um se mistura ao dos outros, e o último da roda toma, por assim dizer, um coquetel de sangue dos demais. Se um deles estiver infectado, é contágio na certa. Sem falar também que entre drogados a promiscuidade sexual costuma ser uma realidade.
Ficamos um bom tempo conversando com o doutor Saulo. Tínhamos uma curiosidade infinita de informações, pena que tardias. Seria tão diferente se soubéssemos de tudo isso... antes.
Saímos, levando a requisição do primeiro exame, o Elisa. Iam ser dias terríveis, de uma longa espera. Mas não havia outro meio. Era preciso conviver com a dura realidade. Como seria bom poder anular minha própria identidade, sair do meu corpo, dizendo: "Sou outra pessoa, não tenho nada com isso, me deixe em paz..." Porque ali, quisesse ou não, se decidia o meu destino.
Papai foi categórico:
- Não podemos ficar aqui em casa. Há quanto tempo a gente não vai à praia. Convide sua mãe, Rita, e vamos todos refrescar a cabeça.
Pensei: "Como ele pode agir assim, simulando tanta confiança?" Meu desejo era me encolher num canto, nesses quinze dias, abrir um buraco na parede... sumir!
De qualquer forma, viajando eu realizaria em parte o meu desejo. Aquela casa à beira-mar sempre me despertara as melhores lembranças. De um tempo de alegria, sem maiores responsabilidades. Ficar lagarteando ao sol, depois entrar no velho mar, tão amigo, sempre ali, através dos tempos; as ondas estourando na praia, num fluir e refluir constante de espuma. Acabei achando a idéia legal, talvez a proximidade do mar, que eu tanto amava, me fizesse bem.
Papai deixou um gerente de confiança tomando conta da loja, e viajamos para o litoral norte, onde ficava nossa casa.
Foi preciso uma boa faxina pra que ela ficasse em condições de uso, pois há muito tempo não aparecíamos por lá. A maresia faz coisas incríveis com os objetos, deixando sua marca. E mexer com os músculos, fazendo a limpeza, descarregou minha energia, ajudou a exorcizar maus pensamentos.
No final da tarde, fui até a praia, sozinha, pra andar à beira-mar. Olhando meu velho conhecido de tantas épocas felizes e despreocupadas, me perguntava: "Onde teria errado? Em que lugar ou instante chegara até aquela encruzilhada na vida?"
Antes de conhecer o Lauro, tivera poucas experiências. Namoricos de adolescente, apenas momentos de prazer, de um certo envolvimento, mais nada.
Com o Lauro fora diferente; no dia em que nossos olhos se cruzaram, naquela festa, foi como um raio: em algum lugar do universo que nos cercava, ouvi sinos tocando, como se o mundo todo fosse uma canção de aleluia, de festa, de hosanas à vida.
Nosso relacionamento, a partir daí, foi de uma harmonia tão grande! Parecia que ele entendia todos os meus pensamentos, que vivia apenas pra me fazer feliz. Uma empatia poderosa, que nos transformava em um, ainda que conservando nossa individualidade. Acho que jamais sentirei isso novamente.
E o que sobrara de tudo? Há semanas que não via o Lauro... desde aquela tarde no consultório do irmão dele. Apenas tínhamos conversado ao telefone, uma única vez, a respeito da Verônica, da qual também não tivera mais notícias.
Não que eu não tivesse tentado. Muitas coisas ainda estavam obscuras pra mim. Teria sido necessária uma conversa reservada, entre nós dois, para conseguir ordenar melhor meus pensamentos. Tentara isso, por Deus, tentara. Não havia ódio no meu coração, apenas uma tristeza profunda, por ele e por mim, por nós dois, atingidos, em plena juventude, por uma síndrome cruel. Como eu podia falar assim, se nem o resultado do exame ainda tinha tido? Claro que existia uma esperança, algo como uma luz, no fundo da mente, mas, ainda que eu tivesse saído incólume, restava o Lauro, que até tão pouco tempo fora meu grande amor, e, por trás dele, quantas mais? A Verônica, quem sabe... e outras que estariam namorando por aí, sem saber do terrível segredo: que poderiam ser portadoras daquele vírus, minúscula forma de vida, só vista através de um microscópio, e que, apesar disso, podia causar tanto mal.
Onde fora parar esse amor, os meus sonhos de juventude, a minha alegria? Se pelo menos o Lauro não se fechasse em concha, tivesse uma conversa franca comigo, me ajudasse a suportar toda essa angústia... Ou tentasse ao menos dar uma explicação sincera sobre o seu comportamento de risco!
Mas ele se negava, consciente e objetivamente, a falar comigo. Trancado em si mesmo, no próprio sofrimento, sumiu de circulação. Aos poucos, dentro de mim, a figura dele foi se distorcendo, corroída por um tipo de mofo, diluindo-se no ar, como fumaça. Era como se ele, de fato, nunca tivesse existido; fosse uma fantasia ou um pesadelo do qual eu pudesse acordar numa manhã ensolarada e dizer: "Foi tudo um sonho, não namorei o Lauro, estou livre, não tenho nada, livre, livre!"
Seria tão bom, mas a realidade era outra. Dali a quinze dias receberia aquele envelope contendo a minha sentença. Dentro dele estariam todos os meus projetos, o rumo que seria dado à minha vida. Como, me perguntava, o destino de uma pessoa podia caber todo ele dentro de um simples envelope? Que coisa mais mesquinha!
As ondas molhavam meus pés, de mansinho, como se dançassem comigo. Olhei o mar: parecia sem-fim, tão velho! Será que eu envelheceria também? Abaixei-me, toquei na água, molhei meu rosto suado. Aspirei o cheiro forte da maresia: ah, mar, ah, mar! Como eu gostaria de ser água, tronco, mineral, asa, garra, vento, rocha, chuva; como gostaria de ser qualquer coisa, menos essa garota que esperava... o tempo pingando como gotas de chuva, essa tortura!
Uma onda mais forte estalou contra minhas pernas, feito um chicote de espuma, e uma garoa fina começou a cair. De repente estremeci de frio, como se estivesse no início dos tempos: sozinha e apavorada.
Não se segura o tempo, ele escorre por entre nossos dedos, como a areia numa ampulheta. Chegou o dia de voltar. Despedi-me do mar, das suas ondas dançarinas, e regressamos a São Paulo. Papai já estava preocupado. Seu rosto denotava sofrimento.
Dias depois receberíamos o resultado do exame, o Elisa. Doutor Saulo nos recomendara, taxativamente, que não abríssemos o envelope. Ele deveria ser entregue lacrado em suas mãos, no consultório.
Hoje - passados meses desde aquela tarde - ainda me recordo de tudo, como se um filme se desenrolasse na minha memória, do qual a protagonista fosse outra pessoa, não eu, Bianca. Era dessa outra pessoa que o doutor Saulo estava falando, a Arantxa, que permanecia ereta e impassível, sentada na cadeira, à sua frente. Porque ela sabia, e de certa forma soubera, há tempo, que dentro daquele envelope estava escrita a palavra tão temida: positivo.
- Isso significa que você esteve em contato com o vírus HIV - falou o doutor Saulo, o que, aliás, já dissera na primeira consulta. - Vamos repetir o exame e também fazer o Western-Blot. Se derem novamente positivo, isso significa que o seu organismo formou anticorpos contra o vírus. Agora, se você vai ou não desenvolver a síndrome é outra história. Ninguém pode afirmar categoricamente que sim ou não.
Tempos e exames depois, não havia mais dúvida: eu entrara mesmo em contato com o vírus. Doutor Saulo foi objetivo:
- Vamos começar a lutar, Bianca?
- Lutar, como? - perguntou mamãe.
- A única arma de que nós, médicos, dispomos - explicou o doutor Saulo -, já que não podemos curar a AIDS, é empurrá-la para a frente... cada vez mais.
- Não entendi - disse mamãe, enquanto eu ficava, como sempre, estática, parecendo uma estátua de pedra.
- Deixe eu explicar melhor - continuou o médico. - Sua filha é portadora assintomática do vírus HIV. Não podemos eliminá-lo do organismo dela, mesmo porque não temos ainda um remédio efetivo para isso.
- Daí... - mamãe prestava a maior atenção, tentando entender.
- Daí que podemos tentar inibir esse vírus, adormecê-lo no organismo, através de certas drogas antivirais. Como o AZT, por exemplo, uma das que mais têm dado retorno nesses casos. Além disso, procuraremos manter as defesas imunológicas mais ou menos em equilíbrio, com controle regular sobre os glóbulos brancos; e profilaxia contra doenças pulmonares, como pneumonia e tuberculose, ou mesmo cardíacas.
Foi aí que me vi perguntando, pela primeira vez:
- Que tipo de vida posso ter afinal, daqui por diante? Doutor Saulo olhou-me diretamente:
- Vida normal, com duas limitações: não doar sangue e só ter relacionamento sexual com preservativo. Óbvio que você deverá colocar seu parceiro a par de sua condição de soro-positiva.
- Eu jamais me relacionaria com alguém ocultando tal fato: seria um crime. Uma falta de ética muito grande. Mas suponha que eu viesse a me relacionar com outro positivo.
- Ainda assim recomendaria o uso da camisinha. O tipo de vírus dessa pessoa pode ser diferente do seu, e você se exporia a um novo contágio ou vice-versa.
Fiz uma tentativa de sorriso:
- E o senhor acha que, depois de saber que sou uma portadora, alguém vai querer se relacionar comigo? Mesmo assintomática, posso transmitir a doença, não posso?
- Pode. - O doutor foi taxativo: - Daí resulta muita responsabilidade; mas sei que posso confiar em você. Quanto ao mais, alimente-se bem, procure dormir bastante, fuja do estresse e continue os estudos. Vida normal, já disse. E vamos começar o tratamento imediatamente. Quero você sob controle, mocinha.
Doutor Saulo sorriu, levantou-se e estendeu a mão. Tive vontade de chorar, mas me controlei. Pelo menos, dentro daquela escuridão, eu sabia que tinha encontrado um amigo verdadeiro!
Não tinha mais escolha: agora era Arantxa. Muito diferente da Bianca... uma lutadora! Resolvi seguir os conselhos do doutor Saulo: levar uma vida normal.
Como se fosse fácil! Acordar pela manhã, sair do conforto do sono e tomar consciência do meu estado. Não podia fugir de mim mesma, abdicar simplesmente do meu corpo, ou então fingir que tudo fora um pesadelo. Bem acordada, sabia que tudo era real, que o Lauro existia, que me transmitira um mal terrível, talvez à Verônica e a muitas outras. Como fugir dessa verdade implacável, escrita como um estigma na minha mente?
Mas eu não precisava levar um letreiro na testa. Estava nas mãos de um médico responsável e competente, que me ajudaria, na medida do possível, a empurrar para a frente a manifestação efetiva da AIDS, com todos os sintomas que eu conhecia por ter lido ou ouvido falar. Não seria, porém, essa a pior fase? Como numa corda bamba, sem rede embaixo, sem saber o que, realmente, aconteceria comigo?
Poderia ser um daqueles felizardos que têm os anticorpos, e que não manifestavam a síndrome. O vírus ficaria adormecido dentro do meu organismo, por anos a fio. Mas ainda seria uma portadora, capaz de infectar outras pessoas que se relacionassem sexualmente comigo, ou através do meu sangue.
Ou poderia estar entre outras porcentagens: dos que manifestam os sintomas em cinco, dez, quinze ou vinte anos. Nem o próprio médico poderia me dar uma resposta definitiva sobre isso.
Após o desespero inicial, o pânico. Como encarar a situação? Não tinha escolha. Ou me encolher num canto, esperando a morte... ou ir à luta!
Resolvi voltar a estudar. Quem sabe o colégio, os amigos, me dessem a ilusão de que a vida continuava como antes, normal e serena, com prognósticos felizes.
figura do Lauro ia se apagando aos poucos na minha mente. Talvez eu até bloqueasse tal lembrança, num esforço de pensar que ele jamais existira. Mas as notícias sobre ele me alcançavam de forma indireta, como se estivesse destinada a saber, nossos destinos implacavelmente unidos.
Por acaso, saindo com mamãe pra fazer compras, encontramos a doutora Márcia, cunhada do Lauro. Ela nos cumprimentou e eu fiz a pergunta previsível:
- E o Lauro, como está? A doutora suspirou:
- Não vai nada bem. Entrou numa depressão muito grande, então o encaminhamos para um terapeuta. Quem sabe possa ajudá-lo.
- E... quanto à parte física? - insisti, embora mamãe tocasse meu braço, como pedindo que evitasse a pergunta.
- Também não está bem - continuou a médica. - Emagreceu muito, sente cansaço. Creio que o próprio estado psicológico está minando mais rápido suas defesas imunológicas. Não se alimenta bem, vive estressado. Procuramos fazer o máximo.
Mesmo parecendo inoportuna, arrisquei uma sugestão:
- Não seria o caso de consultarem um infectologista? Talvez ele pudesse orientar melhor.
A doutora Márcia nem me deixou completar o pensamento:
- Somos médicos, esqueceu? Além de parentes dele. Ninguém melhor do que nós para tratá-lo.
Despedimo-nos num clima de constrangimento. Ela não perguntou nada a meu respeito, e eu não disse nada. Fiquei triste ao saber do estado de Lauro. Ainda que apagada, a lembrança que eu tinha dele era daquele rapaz bonito, forte, sempre alegre, prestativo. Seria lamentável que ele se entregasse assim, sem ao menos lutar.
E quanto a mim? Já possuía minha luta particular. Voltando à escola, tentando levar vida normal. Era difícil e exigia uma força de vontade constante. Papai quis me levar a um psicólogo - fiquei de pensar. Talvez eu também precisasse de ajuda, apoio efetivo pra suportar a angústia que me oprimia.
Mas o pior estava por vir. De repente, não sei como, a notícia se alastrou pelo colégio... como rastilho de pólvora: a Bianca tem AIDS.
Como num passe de mágica, todos se afastaram de mim. Assim que chegava numa rodinha, todos se dispersavam. Parecia que eu era uma leprosa. Ninguém mais sentou ao meu lado na classe. Evitavam até falar comigo, chegar perto, me tocar. Os próprios professores ficaram constrangidos, porque nada fora revelado abertamente. Eram apenas murmúrios, especulações a respeito, como se eu já fosse considerada culpada, antes mesmo de saber de quê ou por quê.
Tudo rolou muito rápido. No espaço de uma semana, eu e meus pais fomos chamados à diretoria do colégio. A diretora foi seca e objetiva:
- Tomamos conhecimento, por alguns alunos, de que Bianca seria portadora do vírus HIV. Quero saber se isso realmente é verdade. Se for calúnia, prometo que os que espalharam esse boato serão punidos exemplarmente.
Mamãe ficou rígida na cadeira. Papai levantou-se calmamente e ficou bem em frente à diretora:
- E se for verdade? Qual será o comportamento da direção do colégio?
A diretora arregalou os olhos, ficou alguns segundos muda. Depois respirou fundo:
- Se for verdade, e pelo jeito parece que é, sinto muito, mas tenho de pedir que peçam a transferência imediata da Bianca deste colégio.
- Por quê? - insistiu papai, ainda calmo.
- Por quê? - a diretora se esforçava pra manter o controle; parecia em pânico. - A constituição proíbe que portadores de doenças contagiosas permaneçam em lugares onde possam pôr em risco a saúde das demais pessoas.
- Eu conheço a constituição - disse papai. - Acho até razoável. Só que a senhora, como diretora de um colégio, deveria saber que a AIDS só se transmite por via sexual ou sangüínea. E é claro que aqui nem alunos nem professores terão esse tipo de relacionamento com a Bianca, principalmente sabendo do problema dela.
- Evidente que não - disse a diretora, muito vermelha. - Mas há riscos numa relação diária: um acidente, um corte, jovens são tão desastrados. E há uma série de problemas que não citaria na frente da Bianca, por urna questão de ética.
Foi aí que me adiantei. Afinal estavam falando de mim. E ninguém ainda perguntara minha opinião sobre o assunto:
- Que outros problemas, a senhora poderia me dizer? Não tenha receio, acho que é mais fácil a gente falar claramente. Não tenha medo de me ofender...
A diretora procurava as palavras:
- Você sabe, lamento profundamente tudo isso, uma garota tão bonita e gentil como você; mas há outros pais, eles vão me cobrar a respeito, não posso perder todos os alunos para mantê-la.
- A senhora ainda não respondeu à minha pergunta, está fugindo do assunto - explodi.
- Você quer mesmo saber? Pois muito bem. Há o problema da cantina, da prática de esportes, suor, uma infinidade de coisas. Você é uma garota, menstrua; quem iria usar os banheiros? Todos teriam medo.
- Sua posição então é definitiva? - papai encarou mais uma vez a diretora.
- Definitiva. Quero que o senhor transfira a Bianca deste colégio. O mais rápido possível.
Mamãe, que até aquele momento estivera em silêncio, se levantou, como impulsionada por uma mola:
- Não é assim, não senhora. Como pode garantir que Bianca é a única portadora do vírus neste colégio? Por acaso, não poderá haver outros portadores entre alunos, professores e até mesmo na direção? Todo mundo já fez o teste? A constituição também garante o direito de ir e vir do cidadão. Isso não vai ficar assim, vamos entrar na Justiça, com um mandado de segurança. Vamos conseguir uma liminar contra o colégio!
Papai e eu olhamos pra mamãe, sem acreditar. Justo ela, sempre tão tranqüila, dona de casa que mal lia jornais? De onde tirara tais conhecimentos, uma argumentação tão objetiva?
Ela me olhou, como nunca a tinha visto antes, olhos brilhantes de indignação:
- Saí na frente; já esperava por isso. Consultei a filha de uma amiga minha, que é advogada. Já tinha esse trunfo na manga, pra hora que a coisa esquentasse.
Papai até esqueceu a diretora:
- Você me surpreende, minha mulher!
- Já era tempo de crescer, não era? - disse mamãe. - Na defesa dos direitos da Bianca, eu vou até o fim. A senhora me aguarde - disse, voltando-se para a diretora.- Sinceramente, depois desses anos todos que a conheço, jamais esperaria tanta insensibilidade da sua parte. Se fosse sua filha, a senhora também agiria dessa forma?
Mas a diretora já perdera o equilíbrio:
- Queiram sair da minha sala e levem essa menina do colégio agora. Não admito que a senhora me ofenda dessa forma.
- Ofender? - Foi a minha vez de retrucar. - O que a senhora pensa afinal que sou? Ré de algum crime, que deve ser julgada por ele? Eu não sou culpada de nada, entende, de nada!
Papai me abraçou, em desafio:
- Venha, minha filha, não temos mais nada a fazer aqui. Quem vai decidir se você fica ou não neste colégio é a Justiça!
Já em casa, a sós com meus pais, não me contive:
- Ainda não acredito como vocês puderam mudar tanto, num espaço tão curto de tempo!
Mamãe sentou-se ao meu lado no sofá, pegou minha mão:
- Deixe eu contar uma pequena história, Bianca. Sabe a Adélia, a minha melhor amiga? Quando ela era criança, foi mordida por um cão e pegou verdadeiro horror deles. Não podia passar nem perto de um pequeno poodle. Certa tarde, quando brincava com o filho pequeno no jardim, aconteceu o inesperado. O jardineiro esquecera o portão aberto. Um cão enorme e feroz veio correndo e pulou sobre a criança. Ela não teve escolha: era o próprio pavor ou a vida do filho. Desesperada, olhou ao redor e viu uma pá, que o jardineiro deixara encostada à parede. Quando, após alguns minutos, o homem voltou, encontrou o cachorro morto, numa poça de sangue, e a criança salva no colo da mãe. Entendeu, agora, minha filha, por que fomos capazes de mudar tão completamente, em tão pouco tempo? Você é a nossa criança!
Tudo foi rolando como uma bola de neve vinda do alto da montanha. A advogada entrando com o mandado de segurança; a rápida liminar do juiz, garantindo o meu direito de freqüentar o colégio; a reação da diretora, estupefata:
- Se é uma ordem judicial, tenho de cumprir. Vai ser o caos.
Quase ao mesmo tempo, o convite, feito por uma grande e tradicional escola de São Paulo, para que eu passasse a freqüentá-la. A voz de papai, conciliadora:
- Pense bem, minha filha, talvez seja melhor mudar de colégio.
Minha reação:
- Por quê? Agora que ganhamos a batalha? Papai insistindo, me fazendo refletir:
- Alguma coisa me diz que, no outro colégio, vai ser mais adequado; eles têm uma visão melhor do problema.
- Então vamos lá, quero conhecer essa escola e a tal diretora que parece tão sem preconceito.
Arredia, machucada, ferida no meu orgulho, lá fui eu. Entrei no gabinete da diretora que me convidara. A gentil cordialidade nos seus olhos, através dos óculos, me seduziu. Segurou as minhas mãos e disse:
- Seja bem-vinda, minha filha, gostaríamos muito que você passasse a estudar aqui.
Ela me tocou! No mesmo instante, decidi: mudaria sim de colégio. Se podia desfrutar de harmonia e paz, se essa diretora compreensiva me oferecia tal oportunidade, pra que ficar sofrendo num ambiente hostil?
Na semana seguinte iniciei as aulas no novo colégio. Não era tão simples, como num passe de mágica. Os colegas, discretos e educados, me tratavam com simpatia; mas, ainda assim, havia um receio latente.
Pra tranqüilizar mais a turma, a diretora promoveu uma reunião de pais e mestres e chamou pra serem entrevistados três dos infectologistas da cidade, que prontamente atenderam ao convite. Um deles era o doutor Saulo.
Fiz questão de estar presente: era de mim que falavam, era a minha pessoa que se transformara num risco. Nada mais justo que participar também da reunião.
Choveram perguntas. Os médicos se viram em apuros pra responder a todas elas. A maioria dos pais - preocupada com o fato de uma aluna portadora do vírus HIV estar frequentando a mesma escola que seus filhos - queria basicamente saber se essa companhia, a minha, apresentava algum risco pra saúde dos demais.
Sentia meu rosto ferver de emoção. Também de humilhante expectativa. Papai, às vezes, olhava pra mim, tranqüilo, dando força. Mamãe apertava firme minha mão. Mas não arredei dali, desse direito não abriria mão. Eu também queria saber até que ponto poderia viver em comunidade sem causar problemas.
Os médicos - em particular o doutor Saulo, como eu já esperava - foram maravilhosos. Explicaram, com todas as letras, que conviver com um portador do vírus HIV, principalmente assintomático, como no meu caso, não era motivo de preocupação: não se pega AIDS pelo contato social, ou seja, dando a mão, sentando na mesma carteira, indo ao mesmo banheiro, ou dando beijo no rosto; se assim fosse, todos os familiares de um portador estariam infectados, o que não acontece.
Uma senhora, muito nervosa, levantou-se:
- Desculpem-me, doutores, mas no caso ela é uma garota... como posso dizer...
- Diga com as palavras exatas - animou-a um dos médicos. A mulher tomou coragem:
- Pois bem, o que me preocupa é o seguinte: ela menstrua e, naturalmente, usa absorventes que trocará no banheiro da escola; esse sangue do absorvente não seria uma forma de contaminação?
- Vou ser sincero com a senhora - disse o médico. - O vírus da AIDS vive muito pouco tempo fora do organismo, em contato com o ar; porém, teoricamente, ele permanece por mais tempo no sangue seco; mas, evidentemente (e o médico acentuou a palavra), não me parece que seja hábito manusear absorventes usados de outras pessoas, a não ser o pessoal da limpeza, que recolhe o lixo. Essas pessoas deveriam usar habitualmente luvas para isso.
A mulher parecia mais nervosa que antes:
- Então, o senhor quer dizer que...?
- Se os cuidados normais de higiene forem respeitados, não haverá problemas. Mesmo porque sabemos que a aluna em questão é portadora do vírus. Quantos mais, no colégio, alunos ou professores, não poderão também estar infectados, ainda que desconheçam o fato?
Papai sorriu pra mim, lembrando nossa conversa no meu antigo colégio. A mulher da platéia calou-se, intimidada. Depois de alguns segundos, arriscou:
- Outros? O que o senhor quer dizer?
- Que qualquer pessoa presente nesta sala, sem exceção, pode estar infectada com o vírus HIV e não saber: quer por relações sexuais, hetero ou bi, quer por transfusão de sangue, quer por experimentar drogas através de seringas contaminadas. Sem falar na contaminação vertical, de mãe gestante para o feto.
- O senhor nos ofende; somos pessoas de bem! - gritou a mulher.
- E o que isso tem a ver com a síndrome? - espantou-se o médico. - Essa menina, por acaso, não é também uma pessoa de bem? Excelente formação, boa família, estudiosa? Ela apenas teve o azar, repito, o azar, de ter tido um relacionamento com alguém contaminado, também um bom rapaz que, por imprudência e falta de informação, se deixou contaminar antes. Isso poderia acontecer com qualquer um de nós. Ninguém, teoricamente, está livre.
Fez-se um silêncio que perdurou por vários minutos. Na platéia, alguém chorava baixinho. O médico continuou:
- Mais que a síndrome, o que realmente mata é o preconceito. Há anos, e até séculos, houve doenças que geraram tal preconceito, como a hanseníase, por exemplo, mais conhecida por lepra. Os leprosos, como eram conhecidos os doentes, eram afastados da comunidade, como párias sociais, levados para lugares ermos, entregues à própria sorte. Se não fosse por almas caridosas, que lhes levassem alimentos, morreriam de fato à míngua. Se se aproximassem das cidades, deveriam carregar sinos, que anunciassem sua presença. O que precisamos evitar, hoje, é que os portadores do vírus HIV se transformem nos leprosos de antigamente. O preconceito, repito, mata mais que a própria doença.
Mamãe apertou forte minha mão. Eu sentia uma gratidão infinita por aquele homem que, tão categoricamente, me defendia da comunidade ali reunida. Por Deus - num vislumbre tive certeza disso! Era um julgamento, e eu a ré de um crime que nunca cometera. Talvez, se fosse no passado, como ele dissera, já estivesse jogada em algum vale perdido, no meio de montanhas, ou seria queimada em praça pública, como feiticeira.
Meus olhos, pela primeira vez, se encheram de lágrimas. Que culpa, afinal, era a minha? Revi, na memória, o rosto encantador do Lauro, seus olhos que pareciam sempre sorrir, suas palavras amorosas. Pobre amor! Como andaria agora, tão deprimido, praticamente se recusando ao tratamento? Talvez até mal-orientado? Se pelo menos ele me ouvisse! Era disso que ele tinha medo: no seu orgulho juvenil - de jovem bonito e sedutor - onde arranjaria forças pra se expor, como eu fazia agora, à curiosidade pública, à quase execração? Lutando pelo meu direito de cidadã? Talvez ele fosse mais fraco do que eu e, com seu orgulho reduzido a nada, não tivesse mais coragem.
A reunião foi longa e proveitosa. Outro senhor quis saber, dessa vez do doutor Saulo, se caso eu me ferisse praticando algum esporte, por exemplo, qual o risco que isso acarretaria.
Meu médico respondeu:
- Qualquer exposição contínua ao sangue de qualquer um (qualquer um mesmo) deve ser evitada. Cuidados normais de assepsia e curativo deverão ser tomados. Quanto ao suor, por exemplo, em contato com a pele sadia, não há o menor problema. Claro - continuou ele - que, por medida de prudência, cada pessoa deve usar sua própria lâmina de depilação, ou barbear, alicates para cutículas e sua escova de dentes. Enfim, qualquer instrumento cortante que possa entrar em contato com o sangue.
- Isso quer dizer - perguntou outra mãe - que a Bianca pode levar uma vida praticamente normal?
- Claro! - enfatizou o doutor Saulo. - Com duas restrições: não doar sangue e não manter relacionamento sexual sem preservativo. Naturalmente, por um questão de ética, ela deverá colocar seu parceiro a par de sua condição de portadora do vírus HIV.
A mulher não se deu por satisfeita:
- Desculpe insistir, doutor. Isso quer dizer que, se ela não doar sangue a ninguém, nem dividir uma seringa, nem tiver um relacionamento sexual sem camisinha, não passará a doença pra mais ninguém?
- Exatamente. Quanto a isso, deixe-me esclarecer um ponto importante: a síndrome em questão, como sabemos, ataca o sistema imunológico da pessoa infectada, que fica sujeita a uma série de doenças que, em estado normal, ela não teria. São o que chamamos doenças oportunistas, das quais uma das mais comuns é um tipo de pneumonia. Isso significa que, na realidade, as outras pessoas são mais perigosas para o portador do vírus que o contrário. Qualquer doença infecciosa de infância, como o sarampo, pode ser fatal para o portador. Creia, minha senhora, os colegas de Bianca não correm riscos pelo convívio social.
Isso fechou a questão. Os pais pareceram satisfeitos. Alguns até vieram falar comigo depois, me desejando sorte. Outros, mais arredios, apenas me cumprimentaram à distância.
Não se vence a guerra na primeira batalha, não é?
Mais tarde, já em casa, papai perguntou:
- Foi muito traumatizante, filha?
- Não, pai - respondi. - Foi legal. Acho muito importante terem esclarecido aqueles pontos todos. Pelo menos os colegas e professores não vão ter tanto medo de chegar perto de mim.
Papai me abraçou, comovido:
- Por favor, filha, não fale assim. Corta meu coração. Justo você, unia criatura tão doce, passar por esse constrangimento. Será que algum dia eu vou poder me conformar com isso?
Mamãe se acercou, conciliadora:
- Ânimo, querido, não vamos baixar o astral, vamos? O importante é que agora a Bianca vai estudar numa boa escola, onde vão tratá-la com o respeito e carinho que ela merece.
Meus pais: que seria de mim sem eles? Sem essa dedicação, essa força, que me nutre, me sustenta? Quantos casos eu já ouvira de pais que abandonaram filhos, maridos que abandonaram esposas e vice-versa, quando souberam da triste realidade? Além de serem abandonados pela sorte, por contrair a síndrome, eram ainda abandonados pelos entes queridos? Como uma maçã podre que a gente pega na fruteira e joga no lixo?
Só que todas essas pessoas eram e são seres humanos. Não podem ser simplesmente descartados. O quanto eu agradecia a Deus por ter pai e mãe fortes e sinceros, capazes de me sustentar na pior hora da minha vida. Pais coragem!
Nos meus ouvidos ainda ressoava a doce voz de vó Carolina, dizendo:
- Pegue na mão de Deus, minha neta, pegue muito firme. Quem segura a mão de Deus jamais estará desamparado.
Na minha imaginação, Deus parecia um homem de meia idade, rosto gentil e moreno, com olhos sorridentes como os do doutor Saulo.
Minha vida mudou muito. Estudar em outro colégio, fazer novas amizades. Como se tivesse que nascer de mim mesma, num esforço diário pra não me entregar ao desânimo.
Tinha apenas duas opções, e sempre repetia isso como pra me convencer: me encolher num canto, como um pequeno animal apavorado, esperando a morte... ou lutar, pelo tempo de vida que ainda pudesse ter.
Fiquei um tempo nessa indecisão, embora me forçasse a levantar todos os dias e ir ao colégio. Meu corpo, como autômato, obedecia. Tomava banho, escovava os dentes, tomava café, pegava carona com papai. Por dentro, anestesiada, minha alma parecia encolhida.
- Quero ver de novo esse sorriso - pedia papai, ele mesmo tão acabrunhado. Disfarçava pra parecer que a vida continuava normal.
- Você está pedindo muito, pai - respondia, olhando pela janela do carro.
E o que eu via? A vida desfilando ante meus olhos: estudantes indo pra escola, como eu; pessoas apinhadas dentro dos ônibus; velhos atravessando a rua, correndo, com medo de ser atropelados; homens e mulheres, apressados, de pasta debaixo do braço.
Então, eu pensava: "Será que toda essa gente é feliz? Será que essas pessoas também trazem a alma amarrotada como eu? Quantas serão portadoras, sem o saber, de alguma doença terrível, ou mesmo fatal? Quando descobrirem, ficarão travadas (como eu agora me sentia), incapazes de sorrir? E quais as sadias, as felizardas, favorecidas pela sorte?"
Mas a força da vida, oculta e onipresente, obrigava toda aquela gente a sair às ruas, a tomar ônibus, a se dirigir ao local de trabalho ou até lazer.
Foi numa dessas ocasiões - quando de repente o farol fechou - que nosso carro se emparelhou com outro carro, e então... vi o Lauro! Num impulso, apertei a buzina, fazendo papai reagir, assustado:
- Que foi, filha?
Não respondi. O Lauro, alertado pelo som, olhou em volta, e nossos olhares se cruzaram. Fiquei impressionada com o que vi: não que parecesse doente, apesar de mais magro. O que me causou espanto foi a tristeza do rosto dele, do seu olhar parado. Lauro era a própria expressão do desânimo, como se fosse um robô ou um andróide. Onde iria, àquela hora?
Talvez fazer algum exame, levado pelo irmão ao volante.
Foi apenas um rápido instante. Então o farol abriu e o outro carro acelerou. Ele nem sequer olhou pra trás; agiu como se não tivesse me visto. Ou melhor, como se não me conhecesse.
O dia todo fiquei de baixo-astral. Não podia esquecer aquele olhar. Foi aí que me decidi. Como se estivesse no primeiro dia da criação e fosse preciso criar a mim mesma; sem sequer a presença de um pequeno deus que me pegasse pela mão e me desse alguma segurança. Eu só tinha a minha força interior, a minha capacidade de superar a angústia. Então resolvi: não iria ficar num canto, como animal ferido de morte - eu iria lutar!
Não por meus pais, ou minha família, ou pelos meus amigos, se é que eu ainda podia dizer que possuía amigos. Iria lutar por mim mesma, tentando aproveitar, o melhor possível, o tempo que me restasse. Não queria jamais olhar no espelho e encontrar aquela expressão desumana que vira no rosto do Lauro.
Isso exige muito de mim. Descobrir e manter, dia após dia, essa coragem alucinada, que ainda me força a levantar, tomar banho, escovar os dentes e, depois do café, pegar carona e ir pra escola. Abrir os livros pra estudar. Pensar em planos, quem sabe até entrar na faculdade, como tanto sonhei. Jogo com hipóteses, não com certezas, mas quem pode ter certeza?
Ligo a tevê e lá está a notícia. Um cantor que eu adorava, de voz maravilhosa, ao dirigir numa estrada, a caminho de um show, havia sofrido um acidente: um dos pneus do seu carro estourou e o veículo capotou. Ele entrou em estado de coma, depois morreu num hospital de uma cidade distante. Em plena saúde, antes do acidente, talvez estivesse até ouvindo música, sem saber que o destino transformaria aquele momento em tragédia.
Que certeza devo ter, se nem os médicos podem dá-la? Talvez eu passe a vida livre do perigo, morra bem velha e o tempo esqueça de mim. Talvez, no ano que vem, ou nos próximos, aconteça o pior, como aconteceu com o Lauro.
Logo depois que nos vimos no farol fechado, soube, por amigos comuns, que ele fora internado, em estado grave, com pneumonia. Ficou dias na UTI do hospital, mas conseguiu sobreviver. Já estava em casa, novamente. Talvez, quem sabe, todo aquele desânimo dele, a falta de luta (aliados à ausência de cuidados especiais), de certa forma colaborassem para que seu organismo se debilitasse mais rápido do que o previsto.
Como num filme de suspense, a vida virou uma roleta-russa: ninguém sabe quando a bala está no tambor. É girar e girar - um tem sorte, outro também tem, o terceiro pode não ter.
Ninguém está a salvo, ou está? Talvez os que nunca se drogaram através de seringas, nem fizeram transfusões de sangue, são absolutamente castos ou fiéis; isso se o parceiro, ou a parceira, forem também fiéis. Quem pode garantir?
Pensar que, se eu usasse camisinha, talvez não estivesse nessa situação. Claro, às vezes ela se rompe, por isso nascem tantos filhos dela; mas ainda é o único recurso, não é? Ou então abolir o amor de nossas vidas, fazer de conta que somos andróides sem desejos e virarmos eremitas sexuais. Para onde vai a humanidade? Tanto tempo para conquistar a liberdade, pra isso? Como se fosse uma condicional que pode ser revogada a qualquer tempo?
Como foi que esse pesadelo começou? Provavelmente (como tenho lido), lá na África - comendo a carne de um macaco verde, ou ao ser mordido por ele -, alguém se infectou pela primeira vez. E passou pra outro alguém. Na corrente sinistra, novos elos: haitianos, trabalhando no Zaire, voltaram contaminados para seu país de origem. Então novos elos se uniram à corrente: turistas americanos, em viagem de férias, teriam se relacionado com tais pessoas, no Haiti; ou então haitianos, emigrando pra Europa ou América, se encarregaram disso. Pronto, estava consumada a imensa corrente de transmissão.
Que tenho eu com isso? Por que eu? Amei o Lauro, que amou a Verônica e outras tantas mais que, por sua vez, foram amadas por outros. Num momento de azar alguém amou outro alguém sem proteção, sem camisinha, e esse alguém estava infectado com o vírus HIV. Podia até saber, isso não importa mais, o certo é que uma nova e terrível corrente se formou.
Tenho medo, mas ao mesmo tempo tenho uma curiosidade sem tamanho: onde vai parar tudo isso? Por enquanto, são casos vagos: "Você sabia, fulano está com..." falando baixinho, evitando a palavra fatídica, sussurrando, como antigamente se dizia: "Fulano tem câncer".
Uma enfermeira me contou que, trabalhando no hospital do câncer com pacientes internados, ninguém pronuncia essa palavra; eles a evitam como se fosse uma coisa vergonhosa, suja, indigna de ser pronunciada.
Como vai ser quando ou se as correntes se multiplicarem e, infelizmente, não forem tomadas prevenções necessárias: como a de todos andarem com uma camisinha no bolso ou na bolsa? Como vai ser quando não der mais pra esconder? Como jogar todos esses elos no vale profundo da indiferença? Seres desprezíveis, dos quais queremos nos esquecer. Mas como esquecer, se estão cada vez mais próximos e fazem parte do nosso dia-a-dia, até da nossa família?
Nunca mais vi a Verônica. Quantas mais o Lauro contaminou depois que ele mesmo se infectou? Ainda acho que ele devia uma lista, procurar suas ex-parceiras. No estado em que está? Abatido, prostrado, entregue ao próprio desespero? Teria condições de fazer isso adequadamente?
E quanto a mim? Terei condições de amar novamente? Consegui um colégio digno, que me aceitou sem reservas. Tenho o respeito e carinho dos colegas, dos professores - isso me basta? Não terei, nunca mais, um instante de intimidade, um abraço terno, um beijo de amor?
Nas visitas periódicas que faço ao doutor Saulo, discutimos isso e muitos outros assuntos. Ele é paciente, responde todas as minhas perguntas; é de opinião que devo levar uma vida normal. Alimentar-me bem e não fazer excessos.
A questão que mais me atormenta é: se eu não avisar um possível parceiro de que estou contaminada pelo vírus HIV, estarei cometendo um crime, inclusive previsto por lei. Se avisar, serão dois trabalhos: contar e adeus. Quem terá coragem de se relacionar comigo?
Pensando nisso tudo, cheguei à seguinte conclusão: será o fim dos tempos? De que estamos falando, afinal? De uma praga do Egito? De uma maldição dos deuses? De uma arma bacteriológica que escapou de algum laboratório infernal, no meio de um deserto? Do verdadeiro apocalipse?
Doutor Saulo me contrapõe:
- Estamos falando de um vírus, um ser infinitamente pequeno, só visível ao microscópio. Ser mutante, que desafia a ciência porque se transforma a cada instante. Já se conhecem cinco grandes linhagens e centenas de subtipos (personagens dos filmes de terror, que se multiplicam numa orgia selvagem, saídos da sombra).
É como se estivéssemos todos perdidos num imenso oceano e tentássemos nos manter à tona. Uns nadam bem; outros se agarram a tábuas ou restos de destroços; outros afundam, desistem, se entregam.
Vem o socorro: pequenos e frágeis barcos, que tentam recolher os sobreviventes. Lançam cordas, bóias, se esgotam, lutam contra o poder do mar imenso.
as ondas são altas, ferozes. Transbordantes de espuma e escárnio. Parecem rir de todo o esforço. Mas os homens e mulheres dos barcos não desistem fácil, continuam lutando. Gritam pelos que afundam, chegam mais perto. Entre os náufragos, estamos eu e o Lauro. O Lauro já quase submerge, e seus olhos estão vidrados, sem vida. Ele cansou de lutar.
Eu me apego à superfície - me debato, luto, e, no meio das trevas, surge uma mão. Será a mão de Deus? A mão de que a vó Carolina tanto fala? E a essa mão, que surge do nada, me agarro, grudo, e dela não largo. Porque, enquanto eu a tiver presa à minha mão, ainda não submerjo! Estou à tona, continuo viva!
Às vezes, tenho pesadelos: já não é a mão salvadora que me agarra, mas sim a do Lauro, e esta me puxa pro fundo, pro escuro. Teima em me arrastar junto com ele, não me dá opção. Acordo molhada em suor, e, no silêncio do quarto, nada se mexe, a boneca sobre a penteadeira sorri seu sorriso estático - quem dera eu fosse vegetal, mineral, brisa, flor, chuva, terra, vento, fugindo definitivamente de mim e deste corpo que me assusta, por não saber o que pode acontecer com ele.
É quase dia: os pássaros começam a cantar lá fora. Um, dois três... agora é um pequeno coro de pássaros cantando. Estou só, na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Ainda sou eu: meu corpo jovem, minha mente lúcida, minhas lágrimas quentes. E saudade, ai tanta saudade, daquele tempo feliz, em que amava o Lauro e ele me amava, achando que íamos ser felizes pra sempre, como nos contos de fadas...
Olho no espelho: do lado de lá, Arantxa me sorri, como dizendo: "Alô, como vai?" Do lado de cá, respondo: "Estou bem." O que é estar bem?
E conseguir do mais recôndito de mim mesma essa coragem feita de fogo, que começa pequena e trêmula, como chama de uma vela, que qualquer vento balança. Mas mesmo essa chama é fogo e, porque resiste, se fortalece. Assim é a minha coragem. A pequena chama de vela talvez se transforme num vulcão de erupção permanente, que me mantenha viva.
Porque Arantxa me olha e agora está séria; já não sorri como antes. Ela me questiona: seu silêncio, do outro lado do espelho, está cheio de perguntas. Muitas, eu sei, sem respostas. O que ela quer saber eu também quero, porque somos a mesma pessoa - não somos? Mas, de alguma forma, também somos duas, porque sempre me reconheço no seu olhar irônico, e, quem sabe, ela também não me reconheça no medo dos meus olhos.
O medo vive em nós - como em todas as pessoas - como uma fera acuada no meio da floresta, ferida de morte. Não se enfrenta uma fera acuada, porque ela já não tem nada a perder. Manda a prudência que, nessa situação, a gente recue, depois volte, silenciosa e furtivamente, para que ela não perceba nossa presença. E vamos chegando perto, mais perto, quase... mas não de frente. De lado, de soslaio, porque os olhos da fera estão olhando para a frente. É de lá que ela espera o ataque; então vamos pelos lados. E, quando ela virar a cabeça, será tarde, já estaremos em cima dela.
Assim é o medo. Precisamos esperar que ele adormeça, cansado de nos atormentar, para chegar até ele. Tão furtiva e silenciosamente como chegamos até a fera. E, enquanto ele dorme, podemos contemplá-lo: seus olhos de escárnio, agora fechados, mas não menos daninhos; sua boca irônica, que adora semear maldades; seu nariz adunco, como o das feiticeiras; suas orelhas imensas, prontas para a maledicência; e suas mãos, de unhas recurvadas e sujas, como se vivesse a escavar a terra. Ei-lo, o medo. Indefeso como qualquer ser adormecido. Essa é a hora de nos vingarmos dele, de conseguirmos uma vitória. Cada sono do medo é uma batalha ganha, cada batalha pode significar a vitória final.
Enquanto olho no espelho, e Arantxa também me olha, do outro lado, penso que, nesta hora, em qualquer fuso horário, há centenas ou milhares de homens e mulheres, espalhados pelo mundo, dedicados a um só objetivo: a pesquisa científica sobre o vírus HIV.
Eles dormem pouco, passam horas infindáveis nos laboratórios, misturando drogas, fazendo experiências. Quem sabe desta vez, ou da próxima, amanhã, depois...
Difícil ser a família de um cientista, seja ele homem ou mulher. Passam a maior parte de suas vidas nesses laboratórios, escrevendo dados que obtiveram através de suas experiências. E, no entanto, o que seria do mundo sem eles? Esses abnegados, que, depois de vinte ou trinta anos de trabalhos constantes, podem anunciar novas drogas pra combater as doenças ou, melhor ainda, vacinas para preveni-las?
Foi assim com Pasteur, Sabin e com tantos outros. Meu sonho é que um dia - um dia abençoado! - algum grupo de cientistas, uma equipe bem engajada, depois de muito trabalho, consiga realmente encontrar uma vacina terapêutica que cure a AIDS, ou, melhor ainda, uma vacina preventiva que a evite definitivamente. Nesse dia, os sinos tocarão nas igrejas/sinagogas/templos do mundo inteiro, porque teremos conquistado mais uma vitória da ciência contra o sofrimento e a morte!
Enquanto esse dia bendito não chega, continuaremos lutando. Nessa guerra particular, sem trincheiras, sem acordos, uma gerra permanente.
Somos guerreiros, um tanto indefesos, porque o inimigo está sempre à espreita, e não nos deixa sequer a opção de recuar. Impelidos ao campo de batalha, temos de encarar o inimigo, frente a frente.
Mesmo assim, alguns ainda conseguem fugir... desertores, embrenhando-se nas matas que rodeiam o campo de luta. Mas serão alcançados, de qualquer forma, e ainda mais rápido trazidos de volta à batalha.
Outros - desanimados, antes da luta começar -já se deixam cair pelo chão, prostrados ante o inimigo. Com impiedosa disposição, serão logo dizimados.
Cabe a nós - os verdadeiros guerreiros - empunharmos a bandeira. Não deixá-la cair. Com as armas que temos, embora frágeis e rudimentares, atacaremos o inimigo. Quem sabe, durante a luta, novos exércitos virão juntar-se a nós, aumentando nossa vantagem. É nisso que devemos crer pra aumentar nossa coragem e a força do nosso desafio.
E quem, afinal, é esse inimigo, que se oculta nas sombras e não nos dá trégua? Que nos arrasta a essa luta febril e sem piedade? Onde está, por que não aparece à luz do dia e se revela a nossos olhos curiosos e apavorados?
Como um deus - mas sem misericórdia -, ele está em tudo e em toda a parte. Escorre do nosso hálito como o ar que respiramos; vibra em nossos ouvidos; lateja em nossa fronte.
Quem dera pudéssemos aprisioná-lo numa garrafa: gênio mau, que nunca mais deixaríamos sair, mesmo ante promessas jamais cumpridas...
Lá está ele, sempre. Passado/presente/futuro. Mais que imortal, eterno. Nosso dono e senhor: O TEMPO!
Giselda Lapola Nicolelis
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Meu nome é Taís e tenho treze anos. Antes eu não gostava desse nome. Mas a minha vida mudou tanto!
Por isso resolvi escrever este diário, só pra desabafar. Ninguém pode ler além de mim. Tenho uma história pra contar que até parece coisa de filme, de novela ou romance.
No ano passado, quando eu tinha doze anos, estudava numa escola municipal. Eu gostava da escola, principalmente por causa da merenda.
Nunca teve muita fartura aqui em casa, não. O pai vive de bicos. Ele tá na caixa do Inamps desde que sofreu um acidente: era pedreiro e caiu do andaime. Só que a caixa paga uma miséria, então o pai sai por aí fazendo bicos. Pinta parede, cuida de jardim, essas coisas.
A mãe olha os bebês das vizinhas que trabalham fora. Ela cobra por mês e olha várias crianças. Ela faz isso agora pra ficar em casa. Antes trabalhava de faxineira, saía cedinho e só voltava de noite. Tomava umas quatro conduções por dia, um suplício. A vida dela mudou muito também.
Mas deixa eu começar bem do começo. Eu ia na escola, como falei, estava na quinta série. Era até boa aluna, sabe? Tinha umas matérias de que eu não gostava muito, como Matemática. Minha escola tinha sala de leitura. A gente podia ler à vontade e até levar os livros da biblioteca circulante pra casa.
De certa forma, eu era até feliz. Minha vida era ir pra escola, voltar pra casa, preparar a janta pra mãe que chegava, moída de cansaço, esperar o pai voltar do trabalho. Os meus dois irmãos, o Emerson e o Vânderson, iam direto do trabalho pra escola noturna. Eles sempre foram muito esforçados. A mãe vivia dizendo: "Cuidado com má companhia, que por aí tá cheio. Olha, que a polícia atira primeiro e pergunta depois".
A mãe estava coberta de razão. Carecia mesmo tomar muito cuidado. Além da polícia ir atirando logo, confundindo marginal com gente boa, tinha também a turma do Mané Quim, um justiceiro famoso aqui no bairro.
Vou explicar pra você, meu diário, o que é justiceiro. Alguns comerciantes, geralmente da periferia, contratam uns caras, que chamam de "justiceiros", pra matar os assaltantes de bares, padarias, lojas...
Só que, no fundo, os justiceiros são também bandidos e começam a matar a torto e a direito, só por prazer, então, de ouvir dizer: "Aquele é traficante de drogas, o outro rouba carro, aquele assalta casa", e por aí... Então morre gente inocente, como o Zeca da dona Margarida: ele vinha voltando da escola quando levou um tiro bem no meio da testa, foi confundido com marginal. Não deu nem pra dizer "ai". Ficou jogado no meio da rua, feito cachorro atropelado. E teve outros como ele.
Mas tô desviando o assunto, quero mesmo é falar da minha vida. Eu tinha muitas colegas lá na escola, mas amigas mesmo eram a Deolinda, a Miracê e a Cejana. Todas da minha idade.
A gente vivia colecionando fotos de artistas de cinema, de tevê e de cantores de rock... Fizemos até um fã-clube do nosso cantor preferido. Às vezes, dava pra pegar um cineminha no domingo de tarde, em algum shopping, quando sobrava dinheiro, claro. O que mais a gente fazia mesmo era ver tevê e jogar conversa fora. Ah, também gostava muito de colecionar papel de carta, mas ficou caro demais — então nós paramos, porque só dava pra trocar, e coisa repetida perde a graça.
Quase não tenho visto mais a Miracê, a Deolinda e a Cejana. Elas vieram aqui na minha casa poucas vezes. Estou assim meio sem amigas...
Às vezes, me dá uma saudade do tempo em que eu vivia numa boa, da casa pra escola e da escola pra casa... Eu tinha tantos sonhos!
As minhas amigas também. A Miracê queria ser artista de tevê. A Deolinda sonhava ser modelo. Eu morria de rir, porque ela é gordinha e baixinha. Mas ela jurava de pé junto que ia fazer regime e crescer... E virar top model de capa de revista, famosa no mundo inteiro, eu que esperasse pra ver.
A Cejana queria ser médica, mas ia ser difícil realizar o sonho, porque a família dela é tão pobre quanto a minha. Cadê dinheiro pra fazer cursinho e conseguir entrar na faculdade? Ela era a mais estudiosa de nós quatro. Dizia que só ia casar depois de formada, e nem queria saber de penca de filhos igual à mãe dela, que tem seis.
Todo mundo me achava bonita, um corpo quase de moça: cabelo comprido, preto e liso, e olhos claros que puxei de um avô, que, dizem...
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