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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS HERDEIROS DE HAMMERFELL / Marion Zimmer Bradley
OS HERDEIROS DE HAMMERFELL / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS HERDEIROS DE HAMMERFELL

 

     A tempestade desabava sobre as Hellers; os raios rachavam o céu, acompanhados por trovoadas que ressoavam intermináveis pelos vales. As nuvens tangidas pelo vento deixavam à mostra retalhos irregulares do céu pálido, ainda iluminado pelos últimos raios do enorme sol vermelho; e pairando perto do pico mais alto, podia-se avistar a orla crescente da lua turquesa. Próxima do zênite, pairava uma segunda lua, violeta, clara como o dia, escondendo-se por trás das nuvens em disparada. A neve persistia nos picos e trechos ocasionais de gelo punham em perigo o precário equilíbrio do pequeno animal de montaria de chifres que avançava pela trilha estreita. Nenhuma das outras luas era visível no momento, mas o homem solitário, montando no animal, viajando à claridade lunar, não se importava.

     No lombo do chervine, o velho segurava-se na sela, alheio ao sangue que ainda escorria, lentamente, misturando-se com a chuva para manchar a frente de sua camisa e manto. Gemidos escapavam de seus lábios enquanto avançava, mas ele não estava mais consciente do lamento que saía, tão ignorado quanto o sangue que escorria do ferimento praticamente esquecido; e, de qualquer forma, não havia ninguém para escutar.

     — Tão jovem; e o último dos filhos de meu lorde, e também tão querido quanto um filho para mim; e tão jovem, tão jovem... jovem demais para morrer... não falta muito agora; se ao menos eu conseguir voltar, antes que o pessoal de Storn descubra que escapei...

     O chervine tropeçou numa pedra solta pelo gelo se projetando para cima e quase caiu. Recuperou o equilíbrio, mas o velho foi projetado da sela, bateu no chão com toda força e ficou imóvel, sem forças sequer para se levantar, ainda sussurrando o lamento a meia voz.

     — Tão jovem, tão jovem... e como darei a notícia a seu pai? Oh, meu lorde, meu jovem lorde... meu Alaric!

     Seus olhos se levantaram, desesperados, para o castelo tosco, exibindo cicatrizes de batalha, no alto dos penhascos por cima. Podia muito bem estar situado na lua verde agora, por toda a sua capacidade de alcançá-lo. Os olhos se fecharam, relutantes. O animal, consciente da perda de seu fardo, mas ainda contido pelo peso da sela que o prendia à vontade do cavaleiro, cutucou gentilmente, com o focinho, o velho caído na trilha gelada. Quando farejou os outros de sua espécie que desciam pela trilha íngreme, a mesma em que o velho subia com tanta dificuldade, o chervine ergueu a cabeça e relinchou baixo, a fim de atrair a atenção, sabendo que isso significaria comida, descanso e liberdade do peso da sela.

     Rascard, Duque de Hammerfell, ouviu o som e levantou a mão, fazendo parar no mesmo instante a pequena comitiva que o seguia.

     — O que é isso, llark? — perguntou ele ao arauto, que vinha logo atrás.

     Na claridade difusa da tempestade, Rascard avistou logo à frente o animal sem cavaleiro, e o corpo caído no caminho.

     — Pelos Deuses das Trevas! É Markos!

     Pulando da sela, de forma imprudente, ele desceu pela trilha íngreme e escorregadia, foi se postar de joelhos ao lado do ferido.

     — Regis! Lexxas! Tragam vinho, mantas! — O duque inclinou-se para o ferido, puxando gentilmente a manta que o cobria. — Ele ainda está vivo!

     Havia um tom de incredulidade na voz, como se ele não acreditasse que isso fosse possível.

     — Markos, velho amigo, fale comigo! Ah, Deuses, como sofreu esse ferimento? Foram aqueles miseráveis de Storn?

     O homem caído na trilha abriu os olhos escuros, turvos agora mais pela confusão do que pela dor, enquanto um vulto escuro inclinava-se em sua direção com um frasco, levando-o à sua boca. Ele engoliu, tossiu, sentindo muita dor, tornou a engolir; mas o duque vira a espuma sangrenta em seus lábios.

     — Não, Markos, não tente falar.

     Ele aninhou o homem aparentemente agonizante em seus braços; mas Markos ouviu, com o vínculo que perdurava entre os dois há quarenta anos, a pergunta que o Duque de Hammerfell absteve-se de fazer.

     O que aconteceu com meu filho? Onde está meu Alaric? Ah, Deuses, confiei-o a você, como se fosse eu... e nunca, em toda a sua vida, você traiu essa confiança...

     E o vínculo levou ao duque as palavras do homem semiconsciente.

     Nem trai agora. Acho que ele não está morto; mas os homens de Storn se aproximaram sem que os víssemos... uma única flecha para cada um... malditos sejam todos eles...

     O Duque Rascard soltou um grito desesperado.

     — Que os demônios de Zandru peguem todos eles! Oh, meu filho, meu filho!

     Ele continuou a segurar o homem caído na trilha, sentindo a dor do velho com a mesma intensidade do ferimento da flecha, que ardia como se fosse em seu próprio corpo.

     Não, meu velho amigo, meu mais do que irmão, não tenho nenhuma censura a você... sei muito bem que o defendeu com sua própria vida...

     Os servidores choravam em consternação pelo sofrimento de seu amo, mas ele silenciou-os com uma ordem brusca.

     — Carreguem-no... com todo cuidado! O ferimento não precisa ser mortal; e vocês serão responsáveis se ele morrer! Estendam a manta sobre ele... assim. E um pouco mais de firi... cuidado, não o sufoquem! Markos, onde está meu filho? Sei que você não o abandonaria...

     — Lorde Storn... aquele seu filho mais velho, Fionn... levou-o...

     O sussurro rouco cessou de repente, mas o Duque Rascard ouviu as palavras que o velho estava fraco demais para pronunciar em voz. alta: Pensei que estava sobre o meu cadáver... mas depois recuperei os sentidos e vim lhe trazer a notícia, mesmo que seja com o meu último alento...

     — Mas você não vai morrer, meu amigo — declarou o duque, gentilmente.

     Com uma tremenda força, o mestre de equitação Lexxas levantou o ferido, e o duque acrescentou:

     — Ponha-o no melhor animal... e com muito cuidado, se quer continuar a respirar o ar deste mundo. Vamos voltar a Hammerfell agora... tão depressa quanto for possível, pois a claridade vai definhando e precisamos alcançar os portões antes do anoitecer.

     O duque, amparando nos braços o corpo desfalecido de seu mais antigo servidor, enquanto subiam a trilha, lentamente, viu em sua mente a imagem na mente de Markos: seu filho Alaric, estendido na sela de Fionn, uma flecha de Storn no peito, a última vítima da sangrenta rivalidade entre Storn e Hammerfell, que se prolongava há cinco gerações, uma rivalidade tão antiga que nenhum homem vivo se lembrava agora de sua causa original.

     Mas Markos, embora gravemente ferido, ainda vivia; não era também possível que Alaric pudesse sobreviver, mesmo mantido para um resgate?

     Se ele morrer juro que não deixarei pedra sobre pedra em Storn, não restará nenhum homem vivo com o sangue Storn em qualquer lugar dos Cem Reinos, jurou o duque, enquanto atravessavam a velha ponte levadiça e passavam pelo portão por onde haviam saído pouco antes. Ele ordenou que os servos levassem Markos para o Grande Salão e o ajeitassem com todo cuidado num sofá. Olhou ao redor, desesperado, e ordenou em seguida:

     — Chamem damisela Erminie!

     Mas a leronis da família, chorando em consternação, já entrara apressada no Grande Salão, foi se ajoelhar sobre a pedra fria, inclinando-se sobre o ferido. O Duque Rascard explicou rapidamente o que era necessário, mas a jovem feiticeira conhecera por toda a sua vida a sangrenta rivalidade; aquela moça franzina era prima da esposa do duque, há muito falecida, servia-o em Hammerfell desde sua infância.

     Ela debruçou-se sobre Markos, tirando das dobras do vestido a pedra-da-estrela azul; focalizando a pedra, passou as mãos por cima do corpo do ferido, mas sem tocá-lo, manteve-as a dois ou três centímetros do ferimento, seus próprios olhos remotos e desfocados. Rascard observava num silêncio imóvel.

     Ao final, ela se empertigou, os olhos marejados de lágrimas.

     — A hemorragia foi estancada; ele ainda respira. Não posso fazer mais do que isso agora.

     — Ele vai sobreviver, Erminie? — indagou o duque.

     — Não sei; mas contra todas as probabilidades, ele sobreviveu até agora. Só posso dizer que está nas mãos dos Deuses; se continuarem a ser misericordiosos, ele viverá.

     — Rezo para que assim seja; fomos crianças e tenho perdido tanta gente... — Rascard perdeu o controle, soltou um grito de fúria reprimida e acrescentou: — Juro por todos os Deuses, se ele morrer, hei de me vingar...

     — Cale-se! — interrompeu-o a moça, com firmeza. — Se precisa berrar, tio, então faça isso em algum lugar onde não incomode este homem ferido.

     O Duque Rascard corou e murchou, encaminhou-se para a lareira e arriou numa cadeira ao lado, admirando a serena competência daquela moça, que não passava de uma pirralha.

     Erminie não tinha mais que dezessete anos, franzina e delicada, com os cabelos castanhos-avermelhados de uma telepata, olhos cinzas, bem fundos. Exceto por isso, ela não tinha uma única feição regular; com isso, era quase bonita. Ela seguiu o duque até a lareira e fitou-o nos olhos.

     — Para que ele sobreviva, é preciso mantê-lo quieto... e também deve deixá-lo em paz, senhor.

     — Sei disso, minha cara. Teve toda razão ao me censurar.

     O Duque Rascard, o duque de Hammerfell, já passara dos quarenta anos, estava no pleno vigor da meia-idade. Os cabelos, outrora escuros, eram cinzentos como o ferro agora, os olhos do azul do cobre nas chamas. Era forte e musculoso, as feições curtidas, exibindo os contornos dos pequenos ferreiros dos quais recebera sua herança. Parecia um homem que no passado fora muito ativo, mas amolecera um pouco com a idade e a inatividade. O rosto firme estava mais suave do que o habitual ao contemplar a moça; ela não era muito diferente da esposa que perdera cinco anos antes, quando Alaric, seu único filho, entrava na adolescência. Os dois haviam sido criados juntos, quase como irmão e irmã; e o duque quase se desesperou ao pensar nas duas cabeças vermelhas — cachos aparados, tranças compridas — debruçadas sobre um livro de estudos.

     — Já soube, criança?

     A jovem baixou os olhos. Ninguém num raio de mil léguas que possuísse um pingo de percepção telepática, muito menos uma leronis, intensamente treinada no uso dos poderes psíquicos de sua casta, poderia ter ignorado o diálogo angustiado em que o duque tomara conhecimento do destino de seu filho e do velho servo; mas ela não disse isso.

     — Acho que eu saberia se Alaric estivesse morto — declarou Erminie.

     O rosto rude do duque se abrandou.

     — Rezo para que esteja certa, chiya. Quer se encontrar comigo na estufa, assim que puder deixar Markos? — Uma pausa e ele acrescentou, desnecessariamente: — E leve a sua pedra-de-estrela.

     — Está bem — respondeu ela, compreendendo o que o duque desejava.

     Erminie voltou a se postar ao lado do ferido, sem olhar para o Duque Rascard deixando o Grande Salão.

     A estufa era uma constante em todas as casas nas montanhas. Ficava no alto do castelo, com janelas de dupla espessura, aquecida por várias lareiras; e mesmo durante aquela estação inóspita, sempre estava repleta de folhas verdes e flores.

     O Duque Rascard sentou-se numa cadeira de braços, muito antiga e toda escalavrada, de onde podia contemplar o vale inteiro lá embaixo. Fixou-se na estrada que subia até o castelo, serpenteando pelas montanhas, enquanto recordava mais de uma batalha encarniçada que travara ali, no tempo de seu pai. E se encontrava tão absorvido em suas lembranças que não ouviu os passos suaves por trás, até que Erminie deu a volta para a frente da cadeira e sentou no banquinho a seus pés.

     — Markos? — indagou o duque.

     — Não vou enganá-lo, tio; o ferimento é muito grave. A flecha penetrou até o pulmão, que ficou bastante avariado quando ele a arrancou. Mas Markos ainda respira, e a hemorragia não recomeçou. Ele está dormindo agora; com descanso e um pouco de sorte, poderá sobreviver. Deixei-o com Amalie. Ela me chamará se Markos acordar; por enquanto, senhor, estou a seu serviço.

     A voz era gentil e rouca, mas bastante firme. A vida em meio a tantas dificuldades amadurecera-a além de seus anos.

     — Diga-me, tio, por que Markos estava viajando e por que Alaric o acompanhou?

     — Você não podia saber, mas os homens de Storn apareceram na última lua e queimaram uma dúzia de celeiros na aldeia; haverá fome antes da época do plantio, e por isso nossos homens foram atacar Storn, em busca de alimentos e sementes para substituir o que foi incendiado. Alaric não precisava acompanhá-los; mas uma das casas destruídas pertencia à mãe-de-adoção de meu filho, e assim ele insistiu em assumir o comando da missão, que normalmente caberia a Markos. Eu não podia recusar; ele disse que era uma questão de honra.

     Rascard fez uma pausa, a respiração entrecortada por um momento.

     — Alaric não era mais uma criança; eu não podia negar o que ele achava que devia fazer. Pedi-lhe que levasse um ou mais laranzu'in, mas ele não aceitou; disse que podia enfrentar Storn só com homens armados. Como ainda não tivessem voltado ao crepúsculo, comecei a ficar preocupado... e encontrei Markos sozinho, depois de escapar para trazer a notícia. Eles sofreram uma emboscada.

     Erminie cobriu o rosto com as mãos. O velho duque acrescentou:

     — Sabe o que preciso de você. Como está seu primo, criança? Pode vê-lo?

     — Tentarei.

     Ela tirou a pedra azul-clara do esconderijo em sua garganta. O duque teve um rápido vislumbre das luzes turbilhonando na pedra, antes de desviar os olhos; embora fosse um telepata adequado para alguém de sua casta, nunca fora treinado a usar uma pedra-de-estrela para os níveis superiores de poder, e como todos os telepatas apenas meio-treinados, as luzes se agitando no interior de uma pedra-da-estrela deixavam-no um tanto abalado.

     Ele contemplou os cabelos repartidos de Erminie, enquanto a jovem baixava a cabeça sobre a pedra, os olhos sérios e remotos. As feições de Erminie eram tão jovens, tão viçosas, ainda não afetadas por qualquer dor profunda e duradoura... O Duque Rascard sentiu-se velho e cansado, consumido pelo peso de tantos anos de luta, pelo mero pensamento do clã de Storn, que lhe tomara seu avô e pai, dois irmãos mais velhos e agora seu único filho sobrevivente.

     Mas, queiram os Deuses, Alaric não está morto, não o perdi para sempre. Ainda não, nem agora nem nunca... A voz rouca, ele balbuciou:

     — Peço que olhe e me dê a notícia, criança...

     A voz tremia tanto que ele não pôde dizer mais nada. Depois de um tempo excepcionalmente longo, Erminie disse, em voz suave, hesitante:

     — Alaric... primo...

     Quase que no mesmo instante, o Duque Rascard, entrando em contato, viu o que ela via, o rosto de seu filho; uma versão mais jovem dele, salvo pelo fato de os cabelos do filho serem castanhos-avermelhados, brilhantes, encrespados por toda a cabeça. As feições jovens contraíram-se em dor, e a frente da camisa se achava coberta de sangue. O rosto de Erminie tornara-se muito pálido também.

     — Ele vive, mas seu ferimento é mais grave que o de Markos — anunciou ela. — Markos viverá se for mantido em repouso; mas Alaric... a hemorragia continua dentro do pulmão. A respiração é muito fraca... ele ainda não recuperou os sentidos.

     — Pode fazer contato com ele? É possível curar seu ferimento a essa distância? — indagou o duque, recordando o que ela fizera por Markos.

     Mas Erminie suspirou, as lágrimas aflorando a seus olhos.

     — Infelizmente, não, tio; eu bem que gostaria de tentar, mas nem mesmo a Guardiã de Tramontana seria capaz de curar a tanta distância.

     — Então pode alcançá-lo e avisar que sabemos onde se encontra, que vamos resgatá-lo ou morrer na tentativa?

     — Prefiro não incomodá-lo, tio. Se ele despertar e fizer um movimento insensato, pode dilacerar o pulmão além de qualquer possibilidade de cura.

     — Mas se ele despertar sozinho e descobrir que está em poder de nossos inimigos, isso não poderia também impeli-lo ao desespero e morte?

     — Tem razão, tio. Tentarei alcançar sua mente sem perturbá-lo.

     O duque baixou o rosto para as mãos, tentando ver através da mente da jovem tudo o que ela via; o rosto do filho, pálido e consumido pela dor. Embora não fosse treinado nas artes da cura, parecia-lhe que podia ver a marca da mortalidade nas feições jovens. A beira de suas percepções, podia sentir o rosto de Erminie, tenso e inquisitivo, e ouviu, não com os ouvidos, a mensagem que ela tentava infiltrar num nível profundo da mente de Alaric.

     Não tenha medo; estamos com você. Descanse e cure a si mesmo... A mensagem foi repetida muitas vezes, com um fervor tranqüilizante, tentando transmitir segurança e amor.

     A intimidade do sentimento de Erminie deixou Rascard comovido. Eu não sabia o quanto ela o amava; pensava que fossem apenas como irmão e irmã, crianças criadas juntas; sei agora que é mais do que isso.

     Só lentamente é que o duque percebeu o rubor da moça; sabia que ela captara seus pensamentos.

     — Eu o amava mesmo quando ainda éramos crianças, tio. Não sei se sou para ele mais do que espécie de irmã-de-adoção; mas eu o amo muito mais do que isso. Não está... não está zangado, não é?

     Se soubesse disso de outra forma, o Duque Rascard poderia de fato ter ficado furioso; durante muitos anos acalentara o sonho de um grande casamento, talvez até mesmo com alguma princesa Hastur das Terras Baixas ao sul; agora, porém, o medo pelo filho era tudo o que conhecia.

     — Quando ele estiver são e salvo entre nós outra vez, minha criança, então, se for o que ambos desejam, assim será feito.

     O duque de rosto severo falou com tanta gentileza que Erminie mal reconheceu a voz ríspida a que se acostumara. Ficaram em silêncio por um momento, e depois, para sua imensa alegria, Rascard sentiu outra presença no contato telepático, uma presença que logo reconheceu; fraca e vacilante, mas inconfundível, o contato mental de seu filho Alaric.

     Pai... Erminie... são mesmo vocês? Onde estou? O que aconteceu? O que houve? O que houve com o pobre Markos? Onde estou?

     Tão gentilmente quanto podia, Erminie tentou informá-lo do que acontecera; que ele estava ferido, e dentro da fortaleza de Storn.

   E Markos não vai morrer; descanse e trate de se curar, meu filho, vamos pagar seu resgate ou tirá-lo daí à força, mesmo que morramos na tentativa. Não se perturbe por nada. fique em paz... paz... paz...

     Abruptamente, no padrão tranqüilizante do contato, houve uma grande explosão de fúria e o clarão azul de uma pedra-da-estrela. Foi como um golpe desferido contra o coração do duque, uma dor física.

     Você está aqui, Rascard, seu ladrão bisbilhoteiro... o que faz em minha fortaleza? Como se estivesse diante de seus olhos, Rascard de Hammerfell contemplou o rosto coberto de cicatrizes, feroz como uma pantera, de seu velho inimigo, Ardrin de Storn, magro, os olhos brilhando em fúria.

     Pode pedir! Devolva meu filho, seu miserável! Indique o resgate e será pago até o último sekal, mas faça mal a um só fio de cabelo em sua cabeça e pagará cem vezes mais!

     Você tem me ameaçado em cada lua, nos últimos quarenta anos, Rascard, mas agora nada, tem que eu possa querer, a não ser sua pessoa indigna; fique com sua riqueza, e ainda hei de enforcá-lo, ao lado de seu filho, na torre mais alta de Storn.

     O primeiro impulso de Rascard foi o de desferir um ataque com toda a força do laran; mas Alaric se achava em poder do inimigo. Mas ele fez um esforço para se controlar, manter a calma.

     Não vai permitir que eu pague um resgate por meu filho? Indique seu preço, e juro que vai recebê-lo, sem qualquer tentativa de negociação.

     Ele podia sentir o júbilo de Ardrin de Storn; era evidente que o inimigo aguardava há muito tempo uma oportunidade assim.

     Trocarei ele por você, foi a resposta de Ardrin, através do vínculo telepático. Venha até aqui e se entregue em minhas mãos, antes do pôr-do-sol de amanhã, e Alaric — se ele ainda estiver vivo, ou seu corpo, se não estiver — será devolvido ao seu pessoal.

     Rascard sabia que deveria ter esperado por isso. Mas Alaric era jovem, enquanto ele já gozara de uma vida longa. Alaric poderia casar, reconstruir o clã e o reino. O duque respondeu depois de um momento.

     Concordo. Mas apenas se ele viver; se meu filho morrer em suas mãos, incendiarei Storn com o fogo aderente.

     Não, pai! Não a esse preço! era a voz de Alaric, angustiada. Não posso viver por muito tempo... e também não posso permitir que você morra, por mim. Rascard sentiu a voz penetrar pelas fracas defesas do filho, sentiu a explosão de sangue como se fosse em suas próprias veias, depois Alaric desapareceu, deixou o contato — morto ou inconsciente, ele não tinha como saber.

     A estufa se achava em silêncio, rompido apenas pelos soluços de Erminie, quando ocorreu outra explosão de ira do Lorde Storn.

     Ah, você me privou de minha vingança, Rascard, velho inimigo! Não fui eu quem lhe desfechou o golpe de morte. Mas se quiser trocar sua vida pelo corpo de Alaric, tem a minha palavra de honra de que a proposta...

     Honra? Como se atreve a pronunciar essa palavra, Storn?

     Porque não sou um Hammerfell! E agora saia daqui! Nunca mais ouse entrar em Storn... nem mesmo em espírito! Suma! Saia! Saia logo daqui!

     Erminie jogou-se no tapete e chorou como a criança que ainda era. Rascard de Hammerfell baixou a cabeça. Sentia-se atordoado, vazio, arrasado. A rivalidade teria terminado, àquele preço?

    

     Quarenta dias de luto foram se arrastando lentamente até o fim. Um dia depois, uma caravana de estranhos subiu devagar pela trilha rochosa sinuosa que levava ao Castelo Hammerfell. Quando foram dispensadas as boas-vindas, descobriu-se que havia um parente da falecida esposa do duque na comitiva. O duque Rascard, mais contrafeito do que gostaria de admitir na presença daquele habitante da cidade, tão sofisticado e bem-vestido, recebeu-o no Grande Salão, servindo vinho e refrescos.

     — Minhas desculpas pela insuficiência da recepção — murmurou ele, levando o visitante para uma cadeira perto da lareira, em cujo consolo estava esculpido o timbre de Hammerfell. — É que até ontem esta era uma casa de luto e ainda não retornamos ao estado normal.

     — Não vim aqui em busca de bolos e vinho, parente — declarou Renato Leynier, um primo das Terras Baixas de Hastur, ao sul. — Seu luto é também o luto de toda a nossa família; Alaric era meu parente também. Mas há um propósito em nossa visita... vim buscar a filha de meu parente, a leronis Erminie.

     Renato observou atentamente o duque. Se ele esperava — como era o caso — encontrar um velho alquebrado, pronto para desmoronar por causa da morte do filho e entregar o reino a estranhos, estava enganado. Se alguma diferença havia, aquele homem parecia ter se tornado mais forte, através da raiva e orgulho; um homem transbordando de vitalidade, ainda no comando dos exércitos de Hammerfell, pelos quais ele passava por vários dias. O poder era patente em cada pequeno gesto e palavra do homem; Rascard de Hammerfell não era mais jovem, mas estava longe de ser um velho alquebrado.

     — Mas por que vem buscar Erminie agora? — indagou Rascard, sentindo uma pontada de angústia. — Ela se sente bem em minha casa. Este é o seu lar. Além disso, é o meu último vínculo vivo com meu filho. Gostaria de mantê-la aqui, como filha da família.

     — Isso não é possível — afirmou Renato. — Ela não é mais uma criança. Tornou-se uma mulher em idade de casar, beirando os vinte anos, e você não é tão velho assim. (Até aquele momento, porém, ele pensara em Rascard de Hammerfell como velho bastante para que uma moça não precisasse de acompanhante quando estivesse ao seu lado.) É escandaloso que os dois continuem a viver juntos, agora que estão sozinhos.

     — Sem dúvida não há nada tão maligno quanto a mente de um homem virtuoso, a não ser que seja a mente de uma mulher virtuosa — comentou Rascard, indignado, o rosto ficando vermelho de raiva. Com toda a sinceridade, a situação nunca lhe passara pela cabeça. — Desde a infância que ela foi a companheira de brincadeiras de meu filho. Durante todos os anos em que viveu aqui, nunca se cogitou de acompanhantes, companheiras, governantas ou duennas. Todos poderão lhe dizer que, ao longo de todos esses anos, praticamente não ficamos a sós no mesmo cômodo, a não ser quando ela me transmitiu a notícia da morte trágica de meu filho; e nessa ocasião, pode estar certo, ambos tínhamos outras coisas em nossas mentes.

     — Não tenho a menor dúvida quanto a isso — disse Renato, apaziguador. — De qualquer forma, Erminie chegou à idade de casar; e enquanto habitar sob o seu teto, mesmo que na mais absoluta inocência, não terá condições de casar como deve, com algum homem de sua posição. Ou pretende degradá-la, entregando-a em casamento a algum pagem ou servo?

     — De jeito nenhum! — exclamou o velho duque. — Eu planejava casá-la com meu próprio filho, se ele tivesse vivido pelo tempo suficiente.

     Seguiu-se um silêncio constrangido e, para Rascard, muito triste. Mas Renato não estava disposto a recuar.

     — Seria ótimo que assim fosse! Mas, com o devido respeito por seu filho, ela não pode casar com o morto, o que é uma pena. Portanto, deve voltar para sua família.

     Rascard sentiu nos olhos a pressão das lágrimas, que fora orgulhoso demais para derramar. Levantou os olhos para o brasão escuro por cima da lareira, e não foi mais capaz de esconder seu amargo pesar.

     — Agora estou realmente sozinho, pois não tenho outro parente; o pessoal de Storn obteve seu triunfo, pois não há mais nenhum homem ou mulher vivo com o sangue de Hammerfell, além de mim, em qualquer parte dos Cem Reinos.

     — Ainda não é tão velho assim — disse Renato, reagindo à terrível solidão na voz de Rascard. — Pode casar de novo e criar uma dúzia de herdeiros.

     Rascard sabia que era verdade o que Renato dizia; o que não o impediu de sentir um aperto no coração. Trazer uma estranha para sua casa, esperar pelo nascimento dos filhos, esperar que crescessem para se tornarem homens, apenas para correr o risco de vê-los exterminados pela antiga rivalidade sangrenta... Ele podia não ser tão velho assim, mas com certeza era velho demais para isso.

     Mas qual era a alternativa? Deixar que os Storns triunfassem, saber que depois do assassinato do filho poderiam também assassiná-lo, e então não haveria mais ninguém para vingá-lo... saber que Hammerfell cairia nas mãos de Storn, e não restaria mais qualquer vestígio dos Morays de Hammerfell, em nenhum lugar dos Cem Reinos.

     — Está bem, vou me casar de novo — disse ele, num momento de total desespero. — Qual é o preço-de-noiva que pedem por Erminie?

     Renato ficou profundamente chocado.

     — Não tive a menor intenção de sugerir isso, meu lorde. Ela não é de sua posição, tem sido uma leronis comum em sua casa. Não é um casamento condizente.

     — Se eu tencionava casá-la com meu próprio filho, como poderia alegar que ela não é condizente para mim? Se eu a desprezasse, nunca pensaria em dá-la a meu filho...

     — Meu lorde...

     — Ela está em idade de gerar filhos, e não tenho motivos para acreditar que seja outra coisa que não virtuosa. Houve uma ocasião em que casei com uma noiva nobre, esperando as grandes alianças que isso me proporcionaria; onde estão essas alianças, agora que meu filho morreu? A esta altura, eu gostaria de ter apenas uma jovem saudável, e estou acostumado a Erminie como a companheira de meu filho. Ela se sairá bem melhor do que a maioria; e não precisarei me ajustar às maneiras de uma estranha. Diga o preço-de-noiva; darei aos pais dela o que for costumeiro e razoável.

     Lorde Renato fitava-o na maior consternação. Sabia que não podia recusar aquele casamento sem fazer um inimigo formidável. Hammerfell era um reino pequeno, mas Renato começava a perceber como era poderoso; os duques de Hammerfell reinavam há muito tempo naquela parte do mundo.

     Ele só podia contemporizar e torcer para que o velho mudasse de idéia e desistisse daquele último capricho, enquanto enfrentava as dificuldades práticas e atrasos habituais.

     — Se é mesmo esse o seu desejo, meu lorde — disse ele —, enviarei uma mensagem aos guardiães de Erminie, pedindo permissão para negociar seu casamento. Pode haver dificuldades, é claro; talvez ela tenha sido prometida a outro quando criança, ou algo assim.

     — Seus guardiães? Por que não seus pais?

     — Ela não os tem mais, senhor. Foi por isso que na ocasião em que sua falecida esposa, minha prima Ellendara, desejou uma companhia de seu próprio sangue para Alaric, quando ele era pequeno, Erminie foi enviada para cá, pois precisava de um lar. Como certamente se lembra, meu lorde, Ellendara era uma leronis treinada de Arilinn, e como não tinha filha, queria transmitir todos os seus conhecimentos a Erminie.

     — Não sei onde está a dificuldade, já que ela não tem mais pais à sua espera — insistiu o duque. — Existe algum mistério ou escândalo envolvendo seus pais?

     — Absolutamente nenhum; minha irmã Lorna era a mãe, e o pai era meu arauto e um guarda de Hastur, Darran Tyall. A menina nasceu fora das catenas, é verdade; eles estavam comprometidos, desde os doze anos. Quando Darrall morreu, na fronteira, minha irmã ficou desesperada. Logo soubemos que ela esperava uma criança de Tyall. Erminie nasceu nos braços de minha própria esposa, e nós a amávamos muito. Foi por isso que Ellendara a recebeu com tanta satisfação nesta casa.

     — Ou seja, ela é sua sobrinha. A mãe ainda está viva?

     — Não. Lorna morreu um ano depois de seu prometido marido.

     — Pois então me parece que você é o seu parente mais próximo e o guardião também. Essa conversa de permissão de “outros" não passa de um artifício para protelar a decisão. — Rascard levantou-se, irritado. — Que objeção você tem a meu casamento com Erminie, se fui bastante bom para sua prima, minha esposa?

     — Serei sincero, meu lorde — murmurou Renato, desconcertado. — A sua rivalidade com Storn passou de um sinal de fumaça para um incêndio na floresta; já me desagradava antes, mas desagrada muito mais agora. Não me sinto mais disposto a casar qualquer parenta minha num clã tão abalado por uma rivalidade de sangue.

     Ele viu que Rascard rilhava os dentes, fez uma pausa, e depois acrescentou:

     — Conheço os costumes nas montanhas; entristeceu-me que Ellendara viesse a se tornar parte de uma rivalidade assim, e não gostaria de envolver mais ninguém de minha família. Enquanto Erminie era apenas uma hóspede em sua casa, eu me dizia que não era da minha conta; mas casamento é outra coisa. E mais do que isso: a moça é muito jovem para você. Não gostaria de ver qualquer moça casada com um homem com idade suficiente para ser seu pai, ou mais... Mas vamos deixar que ela própria decida; se não tiver objeções, também não terei nenhuma. Ainda assim, preferia vê-la casada numa casa que não estivesse tão oprimida pela rivalidade de sangue.

     — Pois então vamos chamá-la a perguntar a ela — declarou o duque Rascard.

     — Mas não em sua presença — insistiu Renato. — Ela pode hesitar em dizer na presença de seu amigo e benfeitor que deseja deixá-lo.

     — Como achar melhor.

     O duque chamou um servo e ordenou-lhe:

     — Peça a damisela que vá se encontrar com seu parente Renato na estufa.

     Os olhos de Rascard estavam gelados. Enquanto seguia pelo corredor escuro, atrás do servo. Renato teve dificuldade para acreditar que qualquer moça pudesse querer se casar com um homem tão idoso e irascível. Sentia-se seguro na convicção de que a jovem parenta ficaria feliz com a notícia de que ele viera buscá-la.

    Rascard observou Erminie passar pelo corredor, a caminho da estufa, onde conversaria com o parente. Contemplou-a com imensa ternura, e pela primeira vez pôde vê-la como uma mulher desejável, em vez da criança que fora companheira de seu filho. Pensara no casamento como uma necessidade desesperada; agora, pela primeira vez, compreendia que podia oferecer algumas compensações.

     Depois de algum tempo, os dois retornaram ao Grande Salão. Renato tinha o rosto franzido, com uma expressão furiosa. O rubor de Erminie e o sorriso que ela ofereceu a Rascard, pelas costas do parente, fizeram o duque compreender, com um calor no coração, que ela deveria ter acolhido favoravelmente seu pedido. E ele perguntou, com profunda ternura:

     — Quer dizer que está disposta a ser minha esposa, Erminie?

     — A jovem é uma tola — resmungou Renato. — Eu lhe disse que encontraria um marido mais apropriado para ela.

     Erminie sorriu e disse:

     — Por que pensa que seria capaz de encontrar alguém melhor para mim, parente?

     Ela sorriu ternamente para Rascard; e o duque, pela primeira vez desde que vira o rosto do filho morto através da pedra-da-estrela, sentiu a luz romper a mortalha de trevas de seu sofrimento. Pegou a mão de Erminie e murmurou:

     — Se quer ser minha esposa, chiya, tentarei fazê-la feliz.

     — Sei disso — respondeu a moça, retribuindo gentilmente a pressão dos dedos do duque.

     — Erminie — disse Renato, fazendo um esforço para recuperar a calma —, você pode conseguir algo melhor. Deseja sinceramente casar com esse velho? Ele é mais velho do que seu pai seria; é mais velho do que eu. É isso mesmo o que você deseja? Pense bem, criança!

     Ele fez uma pausa, antes de acrescentar:

     — Estou-lhe oferecendo uma liberdade como poucas jovens jamais tiveram a opção de desfrutar! Ninguém jamais exigiu que casasse em Hammerfell.

     Erminie pegou a mão do duque.

     — Tio Renato, esta é também minha família, aqui é o meu lar. Vivo aqui desde que era pequena, não tenho a menor vontade de voltar e viver da caridade de parentes, que se tornaram estranhos para mim agora.

     — Você é uma tola, Erminie — disse Renato. — Deseja ver seus filhos eliminados também nesta absurda rivalidade de sangue?

     Ela ficou muito séria ao ouvir isso.

     — Confesso que preferia viver em paz, mas quem não gostaria, se tivesse a opção?

     E o duque, dominado por um momento por algo mais forte do que o orgulho, interveio na conversa:

     — Se me pedir, Erminie, até mesmo suplicarei a paz com Lorde Storn.

     Ela fitou os dorsos das mãos levantadas, com uma expressão solene, antes de dizer:

     — É verdade que anseio pela paz. Mas foi Lorde Storn quem se recusou até a devolver o corpo de seu filho; não gostaria que se humilhasse diante dele, meu prometido marido, nem que o procurasse humildemente como um suplicante, a fim de pedir a paz, nas condições dele.

     — Pois então fiquemos num meio-termo — propôs Rascard. — Enviarei uma delegação a ele, pedindo polidamente a devolução do corpo de meu filho, para um sepultamento honroso. Se ele concordar, teremos uma paz honrada; se ele recusar, será a guerra entre nós para sempre.

     — Para sempre? — indagou Erminie, muito séria, para suspirar em seguida. — Que assim seja; aguardaremos a resposta de Storn.

     Renato amarrou a cara.

     — Sei que vocês dois são idiotas rematados. Se realmente quisessem a paz, superariam de alguma forma esse orgulho que ameaça acabar com Storn e Hammerfell, construiriam seus castelos nas alturas em que os corvos gritam e os bandidos espreitam!

     Rascard estremeceu, pois havia um tom de profecia nas palavras de Renato. Por um instante, ele levantou os olhos para o teto alto do Grande Salão, e teve a impressão de que podia mesmo avistar a ruína deserta que fora outrora o orgulhoso castelo de Hammerfell. Mas ele se empertigou quando Renato indagou:

     — Não consegue dominar esse seu maldito orgulho?

     Erminie também se empertigou, com um toque de arrogância.

     — Por que meu marido deveria reprimir seu orgulho? — perguntou ela, com um arroubo de ira. — Por que não seria Storn, já que o triunfo maior é seu, faltando pouco para acabar com o clã de meu marido? Não é o vitorioso que deve ser magnânimo?

     — Talvez você esteja certa — comentou Renato —, mas não é o certo que vai acabar com essa rivalidade de sangue. Um dos dois deve sacrificar seu orgulho.

     — É possível — disse Rascard —, mas por que deveria ser eu?

     Renato deu de ombros, foi até a janela. E disse de lá, com um gesto resignado:

     — Erminie, você fez sua cama; pelo que isso vale, tem minha permissão para deitar nela. Fique com ela, parente; merecem um ao outro, e que bom proveito tenham os dois.

     Rascard perguntou, com um sorriso seco:

     — Posso considerar isso como uma bênção?

     — Aceite como uma bênção, uma maldição, qualquer coisa que quiser! — explodiu Renato.

     Furioso, ele recolheu suas coisas e saiu do salão, sem se despedir. Rascard passou o braço pelos ombros de Erminie e soltou uma risada.

     — Ele estava tão zangado que até esqueceu de pedir o preço-de-noiva — comentou o duque. — Receio que alienou para sempre os seus parentes ao decidir casar comigo, Erminie.

     Ela sorriu e respondeu:

     — Parentes assim é melhor ter alienados do que como amigos; pelo menos seremos poupados de muitas visitas desagradáveis da família.

     — Desde que ele permaneça por tempo suficiente para assumir o papel de parente no casamento, pode ir depois para onde quiser... para o inferno, se Zandru o aceitar, e que o Demônio encontre mais prazer em sua companhia do que nós, Erminie.

    

     O casamento do Duque Rascard com Erminie Leynier foi realizado no Solstício de Verão. Foi uma cerimônia pequena, para a nobreza das montanhas, pois os parentes da noiva recusaram-se a comparecer, à exceção de menos de uma dúzia de seguidores de Lorde Renato, para indicar que Erminie casava em Hammerfell por consentimento de sua família. Qualquer coisa a menos seria escandalosa, mas era evidente que Renato lamentava esse dever. Houve poucos presentes de sua família para a nova Duquesa de Hammerfell. Como se quisesse compensar essa demonstração de avareza, o idoso duque deu à jovem esposa todas as jóias fabulosas do reino. Os poucos aliados distantes de Hammerfell que compareceram à cerimônia estavam sombrios e desapontados, pois esperavam, na ausência de um herdeiro ou qualquer parente próximo, que um deles pudesse herdar o título e as terras do duque; aquele novo casamento, com uma jovem, que se poderia esperar que gerasse filhos, representava o fim de todas as suas esperanças.

     — Anime-se — disse um dos aliados do duque a outro. — Pode não significar coisa alguma. Rascard não é jovem; é bem possível que este seja um casamento sem filhos.

     — Não teremos tanta sorte assim — respondeu o outro, cético. — Rascard parece mais velho do que é desde a morte do filho; mas se encontra na plenitude de sua força, ainda não passou dos quarenta e cinco anos; e mesmo que assim não fosse, é preciso lembrar o antigo ditado: "Um marido de quarenta pode não se tornar um pai; um marido de cinqüenta anos certamente será."

     Ele riu e acrescentou:

     — Mas é uma pena para a moça. Ela é jovem e vigorosa, merece um marido melhor. Até me sinto tentado a procurar um posto aqui, a fim de confortá-la nas longas noites de inverno.

     — Duvido que tenha tanta sorte — comentou o primeiro. — Ela parece uma moça recatada, e sinceramente afeiçoada ao velho.

     — Como um pai... não duvido; mas também como um marido?

     Isso foi um exemplo tópico das conversas; e Erminie, que era uma forte telepata, e cujas barreiras não estavam acostumadas à companhia de tantas pessoas, teve de ouvir tudo sem deixar transparecer. Teve de fazer um grande esforço para não demonstrar sua indignação... e no dia de seu casamento! Quando chegou o momento de as mulheres levarem-na para a câmara nupcial — eram quase todas servidoras suas, pois nenhuma das tias ou primas se dera ao trabalho de fazer a longa viagem — ela estava quase em lágrimas, sem ânimo para a encenação típica de protestar e se debater, enquanto a arrastavam do salão, embora soubesse que poderia ser acusada de não ser uma recém-casada recatada como deveria.

     Embora fosse o Solstício de Verão, fazia frio e ventava no quarto quando Erminie foi despida, ficando apenas com uma reveladora camisola, tradicional para a noite de núpcias (pelo costume antigo, o propósito era mostrar que a noiva era saudável, sem qualquer deformidade ou defeito oculto). Ela esperou, tremendo e tentando reprimir as lágrimas — não queria que Rascard pensasse que relutava em consumar a cerimônia. Por mais severo que ele parecesse, Erminie sabia que o duque tinha um lado mais gentil; sentia que seria um bom casamento para ela, não importava o que seus parentes pensassem; ser duquesa de Hammerfell não era algo que se pudesse desprezar. Teria de casar, mais cedo ou mais tarde, e melhor um homem idoso, que ela sabia que pelo menos a trataria com gentileza, do que ser entregue a algum estranho completo, por mais jovem e bonito que pudesse ser. Mais de uma noiva já fora deixada sozinha nos braços de um homem que jamais vira antes — e ela sentia-se bastante contente por não ser esse o seu destino.

     As jóias de Hammerfell eram frias e pesadas em seu pescoço; gostaria de poder tirá-las, mas fora impedida pelas servas que a despiram.

     — O duque pensaria que você desdenha os seus presentes — advertiram elas. — Deve usá-las esta noite, pelo menos.

     Por isso ela suportava o peso e o frio das pedras que a cortavam, especulando por quanto tempo mais deveria continuar assim. Serviram-lhe uma taça de vinho, pelo que ela se sentia grata. Estava fraca depois de passar a cerimônia toda de pé, angustiada por tudo o que ouvira. Não conseguira comer muita coisa durante o jantar de casamento. O vinho esquentou-a e ela sentia que alguma cor retornava às suas faces; assim, quando o Duque Rascard foi conduzido à câmara nupcial, vestindo um camisolão forrado de pêlo (Erminie se perguntou por que o costume não exigia que um noivo também mostrasse que não tinha qualquer deformidade ou defeito físico, em benefício da família da noiva), encontrou-a sentada na cama alta, cercada por cortinas, as faces coradas, exibindo um rosa adorável, o corpo jovem revelado pela camisola tênue, os cabelos soltos caindo sobre os seios. Ele nunca vira antes aqueles cabelos castanhos-avermelhados livres, apenas nas tranças austeras que ela usava todos os dias; faziam-na parecer tão jovem e inocente que Rascard sentiu um aperto no coração.

     Enquanto os servidores se retiravam, com muitos gracejos rudes, o duque reteve um deles com um gesto brusco.

     — Vá ao meu quarto de vestir, Ruyven, e traga o cesto que está lá.

     Quando o homem voltou, carregando um enorme cesto, Rascard ordenou:

     — Ponha ali, ao pé da cama. E agora pode sair.

     — Boa noite, meu lorde e minha dama. Desejo muitas felicidades a ambos.

     O homem recuou apressado, com um sorriso largo, logo desapareceu. Erminie olhou curiosa para o cesto grande, coberto por uma manta.

     — Este é o meu verdadeiro presente de casamento — disse o duque, gentilmente. — Sei que jóias nada significam para você, por isso providenciei um presente pessoal, que espero que a agrade um pouco mais.

     Erminie sentiu o sangue fluir de novo para seu rosto.

     — Meu lorde, por favor, não pense que sou ingrata... acontece apenas que não estou acostumada a usar jóias e elas são muito pesadas... mas não queria desagradá-lo...

     — Mas o que é isso? Desagradar-me? — Rascard segurou-a pelos ombros, com imensa ternura. — Acha que eu quero ser amado pelas jóias que lhe dou, criança? Sinto-me lisonjeado por saber que você preza mais seu marido do que o presente nupcial. Mas vamos tirá-las.

     Rindo, ele abriu os fechos de ouro maciço das esmeraldas e ajudou-a a tirá-las, ouvindo o suspiro de alívio de Erminie. Depois que todos os colares e pulseiras foram removidos e empilhados na mesinha de cabeceira, o duque pediu:

     — E agora quer abrir meu outro presente para você?

     Erminie sentou na cama e puxou o cesto, na maior ansiedade. Levantou a manta e, com um gritinho estrangulado de prazer, pegou o cachorrinho peludo que havia lá dentro.

     — Mas como ele é lindo! — exclamou ela, abraçando o cachorrinho. — Muito obrigada!

     — Fico contente que se sinta satisfeita, minha cara — disse Rascard sorrindo.

     Impulsivamente, Erminie abraçou-o e beijou-o.

     — Ele já tem um nome, meu lorde?

     — Não. Achei que você gostaria de escolher o nome pessoalmente. Mas eu tenho um nome, e você deve me chamar por ele, minha cara.

     — Então... Rascard... muito obrigada — murmurou ela, timidamente. — Posso chamá-lo de Jóia, porque amo ele mais do que todas as jóias que poderia me dar?

     — Ela. É uma fêmea. São mais gentis e mais tranqüilas do que os machos. Achei que você gostaria de um cachorro que ficasse em casa e lhe fizesse companhia. Os machos estão sempre saindo, explorando os campos ao redor.

     — Ela e linda e Jóia é um nome melhor para uma fêmea do que para um macho — murmurou Erminie, abraçando ansiosa a cachorrinha sonolenta, cuja pelagem brilhante era quase da mesma cor que os seus cabelos castanhos-avermelhados. — É a mais bela de minhas jóias, e será minha filha, até que eu tenha minhas próprias crianças.

     Ela embalou a cachorrinha, arrulhando na maior felicidade, enquanto Rascard, observando-a com profunda ternura, pensou: Isso mesmo, ela será uma boa mãe para meus filhos; é gentil e amorosa com as coisas pequenas.

     Ele pôs a cachorrinha no lado da cama, e Erminie foi de bom grado para os seus braços.

    

     O Solstício de Verão logo passou, a neve voltou a cair nos desfiladeiros de Hammerfell. Jóia cresceu, tinha as patas grandes, orelhas pendentes, a companheira constante da jovem duquesa, em suas rondas diárias pelo castelo. Com a crescente confiança de que podia se desincubir dos deveres de sua nova posição, e deleitando-se no conhecimento de que seu casamento era feliz, Erminie parecia cada vez mais bonita; e se de vez em quando lamentava pelo jovem companheiro de brincadeiras que deveria ter sido seu marido, ela o fazia em segredo e com a certeza absoluta de que o marido não lamentava menos a perda.

     Uma manhã, quando ela lhe disse para sentar, no desjejum que sempre faziam juntos, numa sala alta dando para o vale, Rascard olhou das alturas e disse:

     — Minha cara, seus olhos são melhores do que os meus; o que eu vejo lá em baixo?

     Erminie se adiantou para olhar pelos penhascos nevados, avistando um pequeno grupo a subir com dificuldade pela trilha gelada.

     — São cavaleiros, sete ou oito, portando uma bandeira preta e branca... mas não posso imaginar o emblema.

     Ela só não disse que experimentava um senso indefinível de perigo iminente; mas assim que ela acabou de falar, o marido murmurou, com um tom de apreensão:

     — Pouco temos ouvido falar de Storn desde que nos casamos, meu amor.

     — Esperava que ele viesse comer uma fatia ou nos mandasse presentes de casamento?

     — Assim como não espero que ele mande para o nosso uma tigela de prata como presente da escolha do nome — comentou Rascard. — Mas os últimos tempos têm sido pacíficos demais. O que será que ele anda planejando?

     Enquanto olhava para a camisola larga que a esposa usava, o duque franziu o rosto em preocupação, mas Erminie, à menção de sua criança, sorriu feliz.

     — Nosso filho pode chegar com a nova lua — disse ela, olhando para a órbita da violeta pairando no céu de dia, pálida e indefinida, já minguante. — Quanto a Storn, a captura de Alaric foi seu último movimento; talvez ele pense que o próximo movimento no jogo deve ser seu. Ou talvez tenha se cansado da briga.

     — Se ele quisesse paz, precisaria apenas devolver o corpo de Alaric — disse Rascard. — Não há glória na vingança contra os mortos, e ele sabe disso tão bem quanto eu. Quanto a se cansar da guerra, tenho certeza de que isso só vai lhe acontecer no dia em que as flores nascerem no gelo da Muralha ao Redor do Mundo.

     Embora partilhasse suas opiniões, Erminie afastou-se do marido; por mais gentil que ele sempre a tivesse tratado, ela ainda sentia alguma apreensão quando o duque ficava olhando carrancudo daquele jeito.

     — Não está na hora de chamar a parteira para ficar no castelo? — indagou Rascard.

     — Não precisa se preocupar com isso, meu marido; posso cuidar de tudo, com minhas próprias servas. A maioria já gerou crianças e ajudou a trazer outras para o mundo.

     — Mas é a sua primeira e estou preocupado por você, minha cara — comentou Rascard, que conhecia tão bem a perda de pessoas amadas. — Não aceitarei uma recusa. Markos partirá imediatamente, antes da lua definhar, para o Lago do Silêncio, onde pedirá a uma sacerdotisa de Avarra para vir ajudá-la.

     — Está bem, Rascard, se isso o deixa tranqüilo, mas acha mesmo que Markos deve ir? Não pode mandar um homem mais jovem?

     Rascard riu e zombou:

     — Por que, minha cara, essa ternura por Markos? Será que sou bastante infeliz para ter um rival dentro de minha própria casa?

     Erminie sabia que ele estava gracejando, mas respondeu muito séria:

     — Markos é velho demais para se defender se por acaso se perder nas colinas, for atacado por bandidos, ou...

     Ela parou nesse ponto, mas Rascard ouviu o que ela não disse tão bem quanto se as palavras fossem pronunciadas. Ou por nossos inimigos de Storn.

     — Muito bem, não podemos expor a qualquer risco o seu cavaleiro — comentou Rascard, jovialmente. — Mandarei alguns jovens para protegê-lo contra os perigos no caminho.

     Ele tornou a olhar pela janela e indagou:

     — Pode ver agora o emblema que aqueles homens trazem?

     Erminie olhou, e sua expressão tornou-se perturbada.

     — Posso ver agora que não é uma bandeira preta e branca, mas azul e prateada, as cores de Hastur. O que, em nome de todos os Deuses, poderia trazer um lorde de Hastur para se hospedar em Hammerfell?

     — Não sei, meu amor — respondeu o duque —, mas devemos dar lhe uma recepção condizente.

     — E assim será.

     Erminie seguiu apressada para a copa, chamando as servas e determinando que aprontassem tudo para receber os hóspedes. Sentia-se preocupada, pois durante todos os anos em que vivera naquelas colinas nunca vira nenhum dos lordes de Hastur.

     Soubera que os lordes de Hastur haviam tentado unir todos os Cem Reinos sob a sua proteção, num gigantesco reino, e também ouvira muitas histórias sobre sua descendência dos Deuses, e por isso ficou quase surpresa ao descobrir que aquele lorde de Hastur não passava de um homem alto e magro, com flamejantes cabelos castanhos-avermelhados e olhos de um cinza quase metálico, não muito diferentes dos seus. Sua atitude era gentil e despretenciosa; Erminie achou que até mesmo Rascard parecia mais descendente dos Deuses do que ele.

     — Rascard de Hammerfell sente-se honrado em lhe dar as boas-vindas a seu castelo — declarou o duque, formalmente, depois que estavam sentados com todo conforto diante do fogo, no solário. — Esta é minha dama Erminie. Posso saber o nome do hóspede que me honra com sua presença?

     — Sou Valentine Hastur, de Elhalyn — disse o homem. — Minha dama e irmã... — Ele indicou a mulher ao seu lado, que usava uma túnica escarlate, o rosto oculto por um longo véu. — ... é Merelda, Guardiã de Arilinn.

     As faces de Erminie ficaram afogueadas e ela disse à mulher:

     — Mas eu já a conheço!

     — É verdade — confirmou Merelda, empurrando o véu para o lado e mostrando um semblante austero e frio. Sua voz era estridente, muito baixa, e Erminie compreendeu que se tratava de uma emmasca. — Eu a tenho visto em minha pedra-da-estrela. É por isso que estamos aqui... para encontrá-la e talvez levá-la à torre, a fim de que possa ser treinada como uma leronis.

     — Oh, eu gostaria muito, acima de todas as coisas! — exclamou Erminie, sem pensar. — Só recebi o treinamento que minha mãe-de-adoção, que foi a duquesa antes de mim, podia me proporcionar...

     Ela parou de falar abruptamente, seu rosto murchou, e depois acrescentou:

     — Como vê, não posso deixar meu marido e... minha criança, que nascerá em breve.

     Mas ela parecia realmente desapontada e Lorde Valentine sorriu-lhe.

     — Claro que o primeiro dever é com suas crianças — concordou Merelda. — Mas temos grande necessidade de leronis treinadas na Torre, nunca há agentes de laran em quantidade suficiente para atender a tudo o que temos de fazer. Talvez, depois que suas crianças nascerem, possa passar um ou dois anos conosco...

     O duque interveio, irritado:

     — Minha esposa não é uma órfã abandonada para que lhe ofereçam um aprendizado! Posso cuidar dela da forma apropriada sem precisar da ajuda de nenhum dos Hasturs. Ela não precisa servir a nenhum outro homem além de mim.

     — Tenho certeza disso — respondeu Valentine, diplomático. — Mas não estamos pedindo simplesmente que ela se dê sem recompensa; o treinamento que ela receberia ali beneficiaria sua família e todo o seu clã.

     Rascard percebeu que Erminie parecia bastante desapontada. Seria possível que ela estivesse disposta a deixá-lo para aquele "treinamento", qualquer que fosse? Nervoso, ele disse bruscamente:

     — Minha esposa e a mãe de minha criança não sairá de meu teto; e chega de conversar a respeito. Há mais alguma coisa em que possa servi-los, meu lorde e minha dama?

    Valentine e Merelda, que sabiam que era melhor não provocar seu anfitrião, abandonaram o assunto.

     — Talvez possa satisfazer minha curiosidade — disse Lorde Valentine. — Por que essa rivalidade de sangue com o pessoal de Storn? Contaram-me que já existia até no tempo de meu bisavô...

     — E do meu também — comentou Rascard.

     — Mas nunca me contaram qual a sua origem, o que a começou. Enquanto viajava por estas colinas, vi os homens de Storn em marcha, partindo para o ataque, eu suponho. Pode me esclarecer?

     — Já ouvi várias histórias — respondeu o duque —, mas não posso garantir que qualquer uma é a verdadeira, e não as outras.

     Valentine Hastur soltou uma risada.

     — É justo. Conte-me em que acredita.

     — A história que ouvi de meu pai foi a seguinte — disse Rascard, afagando distraído a cabeça de Jóia, deitada em seu colo. — No tempo de seu avô, quando Regis IV ocupava o trono dos Hasturs, em Hali, Comi, meu bisavô, contratara casamento com uma dama da família Alton. Foi avisado que ela logo partiria de sua casa, com as bagagens e cavalos, e três carroças contendo seus pertences e o dote. As semanas foram passando, mas não houve mais notícias, e a dama não chegou a Hammerfell. Depois de quarenta dias, a dama finalmente apareceu, mas com uma mensagem enviada de Storn, de que ele tomara a moça e o dote; mas ela não lhe agradara e por isso a devolvia a Hammerfell. Meu antepassado tinha permissão para casar com ela, se assim desejasse; mas Storn ficaria com o dote, por seu trabalho de experimentar a noiva. E como a dama estava grávida do filho de Storn, ele ficaria agradecido se lhe mandassem a criança antes da cerimônia do nome, com uma comitiva apropriada.

     — Não me surpreende que isso tenha resultado numa rivalidade de sangue — comentou Lorde Valentine.

     Rascard acenou com a cabeça e acrescentou:

     — Ainda poderia passar pelo mais inconveniente de todos os gracejos, mas quando a criança nascer... e dizem que era a imagem do filho mais velho de Storn... meu bisavô despachou-a, com a conta pela ama-de-leite que a carregava e pela mula em que ela viajava. Naquela primavera Storn mandou homens armados contra Hammerfell, e estamos em guerra desde então. Quando eu era um rapaz de quinze anos, mal fora proclamado um homem, os atacantes de Storn mataram meu pai, meus dois irmãos mais velhos e meu irmão caçula, um menino de nove anos. A família Storn me deixou sozinho no mundo, meu lorde, contando com minha querida esposa e a criança que ela espera. E as defenderei com minha própria vida.

     — Nenhum homem vivo poderia culpá-lo por isso, muito menos eu — murmurou Lorde Valentine Hastur, com uma expressão sombria. — Mas eu gostaria muito que essa rivalidade de sangue acabasse antes de minha morte.

     — E eu também — declarou Rascard. — Apesar de tudo, eu estava disposto a esquecer meu ressentimento contra os Storn, até que eles mataram meu filho. Poderia ter perdoado a morte de meus outros parentes. Mas não agora. Eu amava demais meu filho.

     — Talvez suas outras crianças possam encerrar essa rivalidade de sangue — sugeriu Valentine.

     — É bem possível. Mas não será tão cedo assim; meu filho ainda nem nasceu.

     — As crianças que Erminie espera...

     Erminie interrompeu abruptamente:

     — Crianças?

     — Isso mesmo — confirmou a leronis. — Certamente deve saber que carrega gêmeos.

     — Não, não sabia — balbuciou Erminie. — Como pode saber?

     — Jamais monitorou até agora uma mulher grávida?

     — Nunca. Não me ensinaram... às vezes eu tinha a impressão de que minha mente entrava em contato com a criança, mas não podia ter certeza...

     Rascard estava com o rosto franzido.

     — Gêmeos? — murmurou ele, perturbado. — Nesse caso, para o bem de todos nós, espero que um deles seja uma menina.

     Valentine indagou, alteando as sobrancelhas:

     — O que acha, Merelda?

     Ela sacudiu a cabeça.

     — Sinto muito, mas são dois homens. Pensei... tinha certeza que ficaria satisfeito; é profundamente triste quando só a vida de uma única criança se interpõe entre uma linhagem antiga e sua extinção.

     Mas os olhos de Erminie faiscavam.

     — Darei a meu lorde não apenas um filho, mas dois! — exclamou ela. — Ouviu isso, meu lorde?

     Só então Erminie percebeu que o marido tinha uma expressão sombria, e acrescentou:

     — Isso o desagrada, Rascard?

     Ele forçou-se a exibir um sorriso jovial.

     — Claro que estou satisfeito, minha querida. Acontece apenas que gêmeos sempre criam confusão na hora de determinar quem é o mais velho ou mais apropriado para reinar; e também é sempre provável que eles venham a se tornar inimigos, rivais encarniçados. Meus filhos devem permanecer unidos, como aliados inseparáveis, contra os perigos de nossos inimigos de Storn.

     Contando que Erminie continuava aflita, ele se apressou em acrescentar:

     — Mas não deve permitir que isso afete sua felicidade por nossas crianças. Tenho certeza de que encontraremos uma solução.

     — Gostaria que deixasse sua dama nos acompanhar, pelo menos por algum tempo — insistiu Lorde Valentine. — Há uma notável escola de parteiras em Arilinn, o parto será realizado com toda segurança, os gêmeos receberão todos os cuidados e atenção.

     — Sinto muito, mas não posso sequer considerar essa possibilidade — respondeu Rascard. — Meus filhos devem nascer sob o seu próprio teto.

     — Então não há mais nada a dizer.

     Lorde Valentine levantou para se despedir. O duque Rascard protestou que eles deveriam permanecer por mais algum tempo no castelo, haveria um banquete para homenageá-los. Mas eles recusaram, com toda polidez, despediram-se com muitas expressões de estima de parte a parte.

     Enquanto eles se afastavam de Hammerfell, Rascard notou que Erminie parecia triste..

     — Não é possível que queira me deixar sozinho, minha esposa, nem permitir que nossos filhos nasçam entre estranhos!

     — Não, claro que não... mas...

    — Ah, eu sabia que tinha de haver um mas! O que pode afastá-la de mim, minha querida? Tem alguma queixa do meu tratamento?

     — Não, absolutamente nada, tem sido o marido mais gentil que uma mulher poderia esperar — respondeu Erminie. — Mesmo assim, é tentadora a possibilidade de concluir meu treinamento como uma leronis. Sei que há potencial em meu laran que nem mesmo sei como imaginar, muito menos usar.

     — Sabe muito mais do que eu, ou do que qualquer outra pessoa em Hammerfell. Não pode se contentar com isso?

     — Não estou descontente, mas há muito mais a saber... descobri isso com a pedra-da-estrela... e me sinto ignorante em comparação com o que poderia ser. A leronis Merelda, por exemplo, é tão douta e sábia...

     — Não preciso de uma esposa douta, você me serve exatamente como é — declarou Rascard.

     Ele abraçou-a, ternamente, Erminie não disse mais nada. Com o marido e as crianças que nasceriam em breve, sentia-se contente, pelo menos por enquanto.

    

     A lua violeta definhou, voltou a ficar cheia; e três dias depois da nova lua, Erminie de Hammerfell foi levada ao leito e, como a Leronis profetizara, deu à luz gêmeos, idênticos como duas ervilhas da mesma vagem. Eram bebês pequenos e fortes, vermelhos e berrando, as cabecinhas cobertas por abundantes cabelos escuros.

     — Cabelos escuros... — murmurou Erminie, franzindo o rosto. — Eu esperava que pelo menos um de nossos filhos, meu lorde, herdasse o dom de laran de nossa família.

     — Pelo que ouço falar sobre as pessoas que possuem o dom de laran — comentou Rascard —, nós... e eles... estamos melhor sem isso, minha cara. Nunca houve muito laran em minha linhagem.

     — Um ou dois ainda podem ter cabelos vermelhos, minha dama — interveio a parteira, inclinando-se para as crianças. — Quando os bebês nascem com tamanha abundância de cabelos escuros, não é absolutamente incomum que acabem caindo e nasçam cabelos louros ou vermelhos.

     — É mesmo? — Erminie fez uma pausa, absolvendo o pensamento. — Tem razão, a melhor amiga de minha mãe disse que eu tinha cabelos escuros quando nasci, mas caiu tudo e nasceram cabelos de um vermelho brilhante.

     — Ou seja, ainda pode acontecer. — Rascard inclinou-se para beijar a esposa. — Meus agradecimentos por essa grande dádiva, minha esposa querida. Como vamos chamá-los?

     — A decisão é sua, meu marido. Não gostaria de dar a um deles o nome de seu filho que morreu nas mãos de Storn?

     — Alaric? Não, não é uma boa idéia. Não me agrada o presságio de dar a meu filho o nome do falecido. Procurarei nos arquivos de Hammerfell por nomes daqueles que foram saudáveis e viveram até uma idade avançada.

     Naquela noite ele foi ao quarto de Erminie, deitada na cama com um bebê em cada lado, enquanto Jóia, agora uma cadela enorme, estendia-se a seus pés.

     — Por que você prendeu uma fita vermelha no pulso de um filho, mas não no outro? — indagou o Duque Rascard.

     — Fui eu quem fez isso — informou a parteira. — Aquele homenzinho é mais velho do que o irmão por quase vinte minutos. Ele nasceu quando o relógio batia meio-dia, enquanto seu preguiçoso irmão demorou mais alguns minutos.

     — Uma boa idéia — disse Rascard —, mas uma fita pode cair, se perder. Vá chamar Markos.

     Quando o velho servidor entrou no quarto, fazendo uma reverência ao duque e sua dama, Rascard ordenou:

     — Pegue meu filho mais velho ali... o pequeno duque, meu herdeiro... o que está com a fita no pulso... e providencie para que seja marcado, a fim de que nunca o confundam com o irmão.

     Markos inclinou se e pegou o bebê. Erminie estremeceu, assustada.

     — O que vai fazer com ele?

     — Não vai machucá-lo, minha dama; não por mais que um momento. Apenas o tatuarei com a marca de Hammerfell e logo o trarei de volta. Não levará mais que um minuto.

     O velho deixou o quarto, levando o bebê envolto por mantas, apesar dos protestos da mãe.

     Não demorou a trazê-lo de volta, abriu as mantas, e mostrou a tatuagem em vermelho no ombro, a marca do martelo do ducado de Hammerfell.

     — Ele se chamará Alastair — disse Rascard —, em homenagem a meu pai; e o outro será Comi, o nome de meu bisavô, em cujo tempo começou a rivalidade de sangue com Storn, se não tem qualquer objeção, minha cara.

     O bebê dormia irrequieto, despertou chorando nesse instante, o rosto vermelho e furioso.

     — Você o machucou! — exclamou Erminie. Markos riu.

     — Não muito, nem muito tempo; e ainda assim é um pequeno preço a pagar pela herança de Hammerfell.

   — Hammerfell e a herança que se danem! — gritou Erminie, irada, aconchegando Alastair aos berros contra o seio. — Calma, calma, amorzinho, mamãe está com você agora, ninguém tocará em você de novo.

     Nesse momento, Conn, no berço no outro lado do quarto, acordou também, começou a chorar, um eco irado aos gritos do irmão. Rascard foi pegar o filho mais novo, que se remexia irrequieto nas mantas. Surpreso, Rascard constatou que Conn arranhava frenético seu ombro esquerdo sem marca; e assim que Conn desatou a chorar, Alastair caiu no sono, nos braços de Erminie.

     Durante os dias seguintes, Erminie notou o fato mais de uma vez: quando Alastair chorava, Conn despertava e punha-se a gritar; mas mesmo quando Conn foi espetado dolorosamente com o alfinete da fralda, Alastair continuou a dormir, sereno. Ela recordou o que se dizia em sua família, que dos gêmeos nascidos em famílias com laran um sempre tinha um pouco mais do que sua cota de poder psíquico, e o outro um pouco menos. Era evidente, portanto, que Conn era o mais telepata dos gêmeos, e ela passava mais tempo com ele no colo, embalando-o. Se ele era mais sensível à sua própria dor e também a dor do irmão, então devia precisar de mais amor e ternura. Assim, nos primeiros meses de sua vida, Conn tornou-se o predileto da mãe, enquanto Alastair era o predileto do duque, porque era seu herdeiro, fazia menos barulho, e sorria mais para o pai.

     Ambos eram bonitos e saudáveis, cresciam depressa; e quando tinham apenas meio ano de idade, já davam os primeiros passos trôpegos pela casa e pátio, às vezes segurando a cadela Jóia, que era a constante companheira e guardiã. Alastair andou primeiro, por alguns dias, mas ainda se limitava a gritar e arrulhar quando Conn balbuciou pela primeira vez um som que poderia ser o nome da mãe. Como a parteira previra, os cabelos de ambos eram agora da cor de chamas.

     Ninguém era capaz de distingui-los, além da mãe; até mesmo o pai, às vezes confundia Conn com Alastair, mas a mãe nunca se enganava.

     Haviam completado um ano inteiro e mais algumas luas quando, numa tarde escura, perto do anoitecer, o Duque Rascard irrompeu abruptamente na sala de estar da esposa, onde ela sentava com suas damas de companhia, os gêmeos brincando com cavalos-de-pau no chão. Erminie fitou o marido, surpresa.

     — O que aconteceu?

     — Tente não se mostrar alarmada demais, minha cara, mas há atacantes armados aproximando-se do castelo. Já toquei o sino para que as pessoas nas fazendas mais distantes venham para cá. Ordenei também que a ponte levadiça fosse erguida. Estamos seguros aqui, mesmo que eles nos mantenham sob sítio durante uma estação inteira. Mas devemos estar preparados para qualquer coisa.

     — Os homens de Storn?

     O rosto de Erminie não traía medo nem preocupação, mas Conn, evidentemente percebendo alguma coisa em sua voz, largou seu cavalo de pau e começou a chorar.

     — Receio que sim.

     Erminie empalideceu.

     — As crianças!

     Rascard deu um beijo rápido na esposa.

     — Leve-as, minha cara, conforme planejamos. E que Deus a guarde, até que voltemos a nos encontrar.

     Ela pegou um gêmeo sob cada braço, e foi para o seu quarto, onde num instante arrumou uns poucos artigos necessários para as crianças. Mandou uma de suas mulheres à cozinha para buscar um cesto com comida, depois desceu para uma entrada nos fundos. O plano fora formulado para o caso de alguém invadir a fortaleza: ela deveria deixar o castelo imediatamente, e tentar atravessar o bosque até a aldeia mais próxima, onde estariam a salvo. Ocorreu agora a Erminie que talvez fosse o maior absurdo deixar o abrigo do castelo, embrenhando-se pelo bosque, aventurando-se por uma região selvagem. Não importava o que acontecesse, permaneceria em segurança ali; mesmo sob sítio, estaria pelo menos ao lado do marido.

     Mas prometera a Rascard que seguiria o plano. Se não o fizesse, ele poderia não encontrá-la depois, talvez nunca mais se reunissem. O coração de Erminie dava a impressão de ter parado dentro do peito; aquele beijo apressado teria sido despedida do pai de seus filhos? Conn não parava de chorar, inconsolável. Erminie sabia que ele devia estar captando seu medo, por isso tentou reunir toda a coragem de que era capaz, não apenas por si mesma, mas também pelas crianças assustadas. Envolveu-os com as mantas mais quentes, e pôs os dois no chão, um de cada lado. O cesto pendurado no braço, ela segurou as mãos dos gêmeos.

     — Vamos andar depressa, meus queridos — sussurrou ela. Desceram a escada longa e sinuosa para o portão nos fundos do castelo, os gêmeos tropeçando de vez em quando, pois ainda não tinham muita firmeza nos pés.

     Erminie abriu o portão que há muito não era usado, mas mantido sempre em boas condições, com óleo nas dobradiças, para uma emergência como aquela; olhou para trás, na direção do pátio principal, viu o céu escurecer com as chuvas de flechas, chamas se elevando em algum lugar. Sentiu vontade de voltar correndo, gritar o nome do marido, mas fizera uma promessa.

     Não volte em hipótese alguma, o que quer que aconteça. Esperem-me na aldeia. Se eu não for ao seu encontro até o amanhecer, saberá que morri. Deve então deixar Hammerfell e procurar refúgio em Thendara, com seus primos Hastur; apele a eles por justiça e vingança. Erminie foi andando apressada, mas seu ritmo era demais para as crianças. Primeiro Alastair tropeçou e caiu no chão, chorando, depois foi a vez de Conn; ela pôs os dois no colo e continuou. Alguma coisa grande e macia esbarrou nela, na escuridão; Erminie estendeu a mão e quase desatou a chorar.

     — Jóia! Boa cadela, boa cadela... — sussurrou ela, através dos soluços que lhe comprimiam a garganta. — Muito bem, minha boa cadela, venha comigo.

     Um momento depois ela tornou a tropeçar, em alguma coisa assustadoramente mole, quase caiu; recuperando o equilíbrio, na semi-escuridão do pátio, sentiu o corpo de um homem sob seus pés. Caiu de joelhos, não pôde deixar de ver o rosto do homem. Para seu choque e horror, descobriu que era o cavalariço que naquela mesma tarde saíra com os pôneis de seus filhos. A garganta dele fora cortada, e Erminie soltou um grito de consternação; mas conteve-se no mesmo instante, pois Conn começou a chorar, reagindo ao medo da mãe.

     — Calma, calma, meu filhinho — sussurrou ela, afagando-o. — Devemos ser corajosos agora, não chorar.

    No escuro, uma voz chamou-a, tão baixo que mal pôde ouvir, através do choro da criança.

     — Minha dama...

     Erminie mal conseguia reprimir um grito; e depois, no instante mesmo em que reconhecia a voz, divisou o rosto familiar do velho Markos, na escuridão cada vez mais densa, que a luz das chamas mal podia penetrar.

     — Não precisa ter medo; sou eu apenas.

     Ao contato familiar de Markos, ela deixou escapar um suspiro de alívio.

     — Ah, graças a Deus que é você! Tive medo...

     Sua voz foi abafada por um grande estrondo em algum lugar, de pedras desmoronando ou uma trovoada. Markos chegou mais perto, no escuro.

     — Deixe-me carregar um dos bebês — murmurou o velho. — Não podemos voltar; os pátios superiores estão em chamas.

     — O que aconteceu com o duque? — indagou Erminie, tremendo da cabeça aos pés.

     — Estava tudo bem quando o vi pela última vez, defendendo a ponte, com uma dúzia de seus homens. Mas aqueles demônios incendiaram-na com o fogo aderente, que queima até a pedra!

   — Ah, os demônios! — balbuciou Erminie, a voz um gemido.

     — São mesmo uns demônios... — murmurou o velho, lançando um olhar sombrio para as alturas. Depois, ele tornou a fitar a mulher e acrescentou: — Eu deveria estar participando do combate, mas Sua Graça ordenou que eu a guiasse até a aldeia, minha dama. Entregue-me um dos bebês e iremos mais depressa.

     Ela podia ouvir o rangido de alguma enorme máquina de sítio por cima do rugido das chamas, olhou para trás e avistou o engenho, delineando contra o céu escuro, imenso como o esqueleto de alguma besta monstruosa e desconhecida, com mísseis escuros sendo disparados das imensas mandíbulas e explodindo em chamas, em pleno ar. Os gêmeos em seus braços debatiam-se para descer, e Erminie entregou um deles a Markos. No escuro, não soube direito qual dos dois lhe entregara. O frio se tornava cada vez mais intenso, a noite era escura, a chuva começava a deixar o caminho escorregadio. Segurando firme o gêmeo restante, Erminie seguiu apressada o vulto escuro de Markos, descendo a colina. Houve um momento em que tropeçou na cadela e largou o cesto; precisava recuperá-la, e quase perdeu de vista seu protetor. Teve vontade de gritar-lhe para que esperasse, mas não queria detê-lo. Por isso, tentou acompanhá-lo a distância, sem prestar muita atenção ao rumo que seguia. Não demorou muito a perdê-lo de vista, ficou completamente perdida, estorvada pela cadela, que esbarrava em seus pés volta e meia, sentindo que a criança em seus braços pesava cada vez mais. Pelo menos só tinha um bebê para carregar, o outro se achava são e salvo, com o único homem, além do marido, em quem confiava totalmente.

     Escorregando e tropeçando nas relva e pedras, Erminie conseguiu de alguma forma alcançar a base da colina, onde chamou baixinho:

     — Markos?

     Mas não houve resposta.

     Ela tornou a chamar, com receio de elevar demais a voz, pois poderia atrair a atenção dos inimigos, que deviam estar por perto, espalhados pelo bosque. Lá em cima, no topo da colina, Hammerfell ardia: ela podia ver as chamas subindo como se saíssem de um vulcão. Nada poderia sobreviver naquele inferno; mas onde estava o duque? Ficara acuado dentro do castelo em chamas? Agora ela constatou que era Alastair que apertava seu pescoço, choramingando. Onde se encontrava Markos com Conn? Ela tentou se orientar pelo clarão do seu lar em chamas. Tornou a chamar, baixinho; mas ao seu redor, no bosque, por toda parte, podia ouvir passos estranhos, vozes desconhecidas, até mesmo risos. Nem mesmo tinha mais certeza se ouvia as vozes com os ouvidos ou com seu laran.

     — Ah! E assim acaba Hammerfell!

     — E o fim de todos eles!

     Erminie ficou observando, paralisada pelo pavor, enquanto as chamas se elevavam mais e mais altas, até que finalmente, com um terrível estrondo, como se fosse o fim do mundo, o castelo desabou e o fogo começou a diminuir. Tremendo de terror, ela correu através do bosque, até que não podia mais ver o sol nascendo sobre as ruínas do que fora outrora a orgulhosa fortaleza de Hammerfell. Ao amanhecer, ela se encontrava sozinha, num bosque estranho, com a cadela se aconchegando contra suas pernas, a criança exausta pendurada em seu pescoço. Jóia ganiu em simpatia, como se tentasse confortá-la, comprimindo-se tanto que quase derrubou Erminie. Ela sentou num tronco caído, Jóia aconchegou-se em busca de calor. Erminie tentou evitar a visão do fogo agonizante que indicava o local em que existira o único lar que ela já conhecera.

     À medida que a claridade do novo dia aumentava, ela se levantou, extenuada, ajeitou o peso enorme do gêmeo adormecido, encaminhou-se para o que restava da aldeia na base da colina. Dominada pelo horror, compreendeu que os homens de Storn haviam chegado ali primeiro; uma casa após outra não passavam de ruínas fumegantes, e a maioria das pessoas fugira — à exceção daquelas que haviam sido massacradas, agora espalhadas pelo chão. Embora exausta e desesperada, Erminie forçou-se a procurar pelo remanescente da aldeia, as poucas casas que ainda se achavam de pé, querendo saber se alguém avistara Markos e Conn, o outro gêmeo, que ele levava no colo. Mas em parte alguma teve notícias do velho e do menino. Evitara com o maior cuidado ser avistada por qualquer estranho — se algum seguidor de Storn a reconhecesse, seria morta no mesmo instante, sem misericórdia, e seu filho também. Erminie esperou quase até o meio-dia, ainda com a esperança de que o duque houvesse de alguma forma escapado ao incêndio final, e fosse ao seu encontro. Depois, no bosque, agora povoado pelos aldeões desabrigados, todas as pessoas a quem ela interrogava contemplavam aquela mulher de rosto triste e enlameada, acompanhada por uma cadela e com um menino no colo, sentindo uma profunda compaixão, enquanto negavam terem visto ou ouvido falar de um homem velho carregando nos braços um menino de um ano.

     Durante o dia inteiro, Erminie persistiu em sua busca, mas ao pôr-do-sol concluiu que acontecera o que mais temia. Markos desaparecera, talvez morto, ou então a abandonara por algum motivo. Quanto ao duque, já que ele não fora procurá-la ao amanhecer, a conclusão era inevitável: devia ter perecido no castelo em chamas.

     E assim, dominada pelo desespero e assediada pelo início do terror, enquanto se desvanecia a última claridade do dia, Erminie obrigou-se a sentar, a endireitar e trançar os cabelos compridos e desgrenhados, a comer alguma coisa que trouxera no cesto, depois dar um pouco de pão à cadela e ao menino faminto. Pelo menos não se encontrava completamente sozinha, tinha a companhia de seu primogênito, agora o Duque de Hammerfell — mas onde, onde estava seu irmão? Seu único apoio e proteção era uma cadela estúpida. Ela deitou, envolvendo-se com a manta, aproximando-se de Jóia pelo calor. Ajeitou nos braços o adormecido Alastair. Agradeceu fervorosamente aos Deuses pelo fato do inverno já ter passado. Ao amanhecer, ela refletiu que precisava se orientar com todo cuidado, determinou o rumo, e foi andando pela longa estrada que levaria à distante cidade de Thendara e a seus parentes na Torre que ali havia. Alastair era embalado nos braços da mãe, cujo corpo sacudia-se com os soluços.

    

     Thendara situava-se num vale, nas montanhas Venza, a enorme Torre elevando-se muito acima da cidade. Ao contrário de outras Torres, mais isoladas, que abrigavam todos os telepatas que nelas trabalhavam — monitores, guardiães, técnicos e mecânicos — a Torre em Thendara não servia para isolar seus ocupantes das pessoas da cidade. Contudo, como acontecia em todas as cidades nas terras baixas, a Torre tendia a fixar o tom da vida em geral.

     A maioria dos trabalhadores na Torre tinha residências na cidade, às vezes muito elegantes, até esplêndidas. Só que esse não era o caso da viúva Duquesa de Hammerfell. Erminie, que trocara essa identidade pela mais simples de Técnica de Segunda na Torre de Thendara (o que lhe proporcionava um prestígio ainda maior na sociedade de Thendara), vivia modestamente, numa casa pequena na Rua dos Armeiros, cujo único luxo era um jardim com ervas flagrantes, flores e árvores frutíferas.

     Ela tinha agora trinta e sete anos, mas ainda esguia, ágil, os olhos brilhantes, os cabelos abundantes, numa tonalidade castanho-avermelhada, tão lustrosos como sempre. Vivera sozinha com o filho durante todos aqueles anos; nenhuma insinuação de escândalo jamais envolvera seu nome ou reputação. Raramente era vista na companhia de qualquer pessoa, à exceção do filho, a governanta e a enorme cadela cor de ferrugem, que a acompanhava por toda parte.

     Isso acontecia não porque fosse escorraçada pela sociedade; ao contrário, era ela quem parecia escorraçá-la ou desprezá-la. Por duas vezes fora pedida em casamento, a primeira pelo Guardião da Torre, um certo Eldric Elhalyn, e mais recentemente por seu primo, Valentine Hastur, o mesmo homem que a visitara em seu castelo nas colinas há tanto tempo. Esse cavalheiro, parente próximo dos Lordes Hasturs de Thendara e Corcosa, pedira-a em casamento pela primeira vez em seu segundo ano na Torre. Erminie recusara, alegando na ocasião que não podia aceitar por causa de sua viuvez recente. Agora, numa noite ao final do verão, cerca de dezoito anos depois da chegada de Erminie a Thendara, ele renovara o pedido.

     Encontrou-a no jardim de sua casa na cidade, sentada num barco rústico, os dedos ocupados num trabalho de tricô. A cadela Jóia, a seus pés, levantou a cabeça e grunhiu baixinho, quando Valentine aproximou-se de sua dona.

     — Calma, menina, calma — murmurou Erminie para a cadela. — Acho que, a esta altura, você já deveria conhecer meu primo muito bem; afinal, ele já veio aqui muitas vezes. Vamos, Jóia, trate de deitar.

     A cadela arriou a seus pés, uma massa felpuda, cor-de-ferrugem. Valentine Hastur disse:

     — Fico contente em saber que você tem uma amiga tão fiel, já que não conta com nenhum outro protetor. E se dependesse de minha vontade, ela me conheceria ainda melhor.

     Ele arrematou com um sorriso sugestivo. Erminie fitou os olhos cinzentos e profundos do homem que sentou ao seu lado. Os cabelos tinham muitos fios prateados, mas afora isso ele não mudara — o mesmo homem que lhe oferecia apoio e afeição há quase duas décadas. Ela suspirou.

     — Primo... Vai, sou-lhe grata, como sempre; mas creio que compreende por que ainda devo dizer não.

     — Não, não compreendo! — protestou Lorde Valentine, com veemência. — Sei apenas que não pode continuar de luto pelo velho duque, embora talvez seja isso o que queira que as pessoas acreditem.

     Jóia roçou-se contra os joelhos de Erminie e ganiu, exigindo a atenção que achava que lhe estava sendo negada. Erminie afagou-a, distraída.

     — Valentine, sabe que eu gosto de você; e também é verdade que não estou mais de luto por Rascard, embora ele tenha sido um bom marido e um pai maravilhoso para meus filhos. Mas, no momento, não me sinto livre para casar, por causa de meu filho.

     — Em nome de Avarra, parenta, como poderia ser desfavorável para seu filho se a mãe casasse na família Hastur? Ele se tornaria Hastur em vez de Hammerfell, ou eu poderia jurar que me devotaria a restaurar sua posição e herança. O que acha disso?

     — Quando cheguei em Thendara, devi minha própria vida e a vida de meu filho a você, Valentine. E seria uma recompensa lamentável pelo que fez se o envolvesse nessa antiga e pendente rivalidade de sangue.

     — Não seria mais do que meu dever com a família. E sou eu quem tem uma dívida eterna com você, minha cara. Mas como pode dizer que essa rivalidade antiga ainda está pendente, Erminie, quando não há outros homens vivos da linhagem de Hammerfell, à exceção de seu filho, que tinha apenas um ano de idade quando o pai e todas as outras pessoas morreram no incêndio do castelo?

     — Mesmo assim, não posso aceitar qualquer outra aliança enquanto meu filho não recuperar sua herança. Jurei quando me casei com seu pai que me devotaria ao bem-estar da linhagem de Hammerfell. E não renunciarei a esse compromisso, nem atrairei outras pessoas a cumpri-lo junto comigo.

     — Uma promessa aos mortos não tem valor — protestou Valentine, quase descontrolado. — Eu estou vivo e acho que você me deve mais do que ao morto.

     Erminie sorriu afetuosamente para Valentine.

     — Tem toda razão, meu caro parente, eu lhe devo muito.

     Quando ela chegara em Thendara, faminta, sem dinheiro, esfarrapada, ele a abrigara em sua casa, e conseguira fazer isso sem macular a reputação de Erminie. Era casado na ocasião com uma dama nobre, da família MacAran. Valentine e a esposa alimentaram e vestiram Erminie e o filho, arrumaram-lhe aquela casa em que ainda vivia, providenciaram seu ingresso na Torre, através da qual ela conquistara o seu atual lugar proeminente na sociedade de Thendara. Os dois pensaram em tudo isso, enquanto ele fitava os olhos tristes de Erminie; e foi o Hastur quem baixou os olhos primeiro.

     — Perdoe-me, Erminie. Você não me deve nada. Já falei isso antes, e fui sincero. Se há alguma coisa, a dívida e toda minha, que durante todos esses anos desfrutei o privilégio de sua amizade e boa vontade. E lembro também que minha esposa a amava muito; acho que não estaria profanando sua memória se me casasse com você.

     — Eu também a amava; e se pensasse em casamento, creio que não poderia encontrar nenhum homem melhor do que você, meu querido amigo. Não é fácil esquecer tudo o que fez por mim, e também por meu filho. Mas jurei que enquanto ele não for restaurado...

     Valentine Hastur franziu o rosto e olhou para cima, através dos galhos da árvore sob a qual sentavam, tentando definir seus sentimentos. Alastair de Hammerfell era, em sua opinião, um jovem mimado e imprestável, indigno de sua alta posição e da solicitude da mãe; mas de nada adiantaria dizer à mãe. Como Alastair era tudo o que ela tinha, Erminie não podia perceber o menor defeito no filho, apegava-se a ele com uma paixão intensa, que nada podia arrefecer. E Valentine compreendeu que cometera um erro ao lembrar o filho; pois Erminie sabia que Valentine, por mais gentil que se mostrasse, não amava o rapaz.

     No ano anterior, Alastair sofrera uma pesada multa, pela terceira violação de guiar sua carruagem de forma imprudente dentro dos muros da cidade. Era uma violação bastante comum entre os jovens de sua idade; e, infelizmente, os jovens tendiam a pensar que era uma questão de honra desafiar as leis relativas à segurança de guiar carruagens ou cavalgar na cidade. Na opinião de Valentine, aqueles jovens presunçosos, que se julgavam ornamentos da sociedade, não passavam de uma desgraça para suas famílias; mas ele sabia que essa era uma convicção comum aos homens de sua idade. E especulou se não estaria simplesmente ficando velho.

     Aos pés de Erminie, a cadela se remexeu e levantou a cabeça. Erminie disse, aliviada pela interrupção da conversa:

     — Não deve ser Alastair, pois ainda é cedo; e não ouvi seu cavalo na rua. Quem será? Só pode ser alguém que Jóia conhece...

     — É seu parente Edric — murmurou Valentine Hastur, olhando para o portão do jardim. — Devo me retirar...

     — Não há necessidade, primo; se for Edric, só pode ser para falar de negócios, pode estar certo; e se ele não quiser falar em sua presença, não hesitará em pedir-lhe que saia.

     Erminie riu ao concluir o comentário. Edric era o Guardião do primeiro círculo de trabalhadores da matriz, na Torre de Thendara e parente próximo tanto de Erminie quanto de Valentine.

     Edric avançou pelo jardim, fez uma reverência fria mas cortês a Valentine Hastur.

     — Prima... — disse ele, formalmente.

     Erminie ofereceu-lhe uma reverência também formal.

     — Seja bem-vindo, primo; esta é uma hora estranha para uma visita de família.

     — Vim lhe pedir um favor — anunciou Edric, sem perda de tempo, à sua maneira brusca característica. — E é, na verdade, um assunto de família. Creio que sabe, não é mesmo, que minha filha Floria vem sendo treinada como monitora na Torre Neskaya, longe da cidade?

     — Sei, sim; como ela está?

     — Muito bem, prima, mas parece que não há um lugar permanente para ela em Neskaya. Contudo, Kendra Leynir está grávida, e voltará para o marido, até a criança nascer, o que abriria uma vaga para Floria no terceiro círculo de Thendara. Mas até termos certeza, Floria deve viver aqui, em Thendara; e queria lhe pedir, como minha parenta mais adequada, que fosse sua acompanhante na sociedade.

     A mãe de Floria morrera quando a menina era bem pequena; e também era uma parenta próxima de Erminie.

     — Que idade Floria tem? — perguntou Erminie.

     — Dezessete, em idade para casar, mas deseja primeiro trabalhar por alguns anos na Torre.

     Cresceu muito depressa, pensou Erminie. Parece que foi ontem que Floria e Alastair eram crianças, brincando neste jardim.

     — Terei o maior prazer — respondeu ela.

     — Vai assistir ao concerto de Dom Gavin Delleray esta noite? — perguntou Edric.

     — Vou, sim. Dom Gavin é muito amigo de meu filho. Estudaram música juntos, quando Alastair era mais jovem. Acho que Gavin sempre foi uma boa influência sobre meu filho.

     — Nesse caso, não gostaria de me acompanhar... e a Floria... em nosso camarote no teatro?

     — Eu bem que gostaria, mas já reservei um camarote para mim nesta temporada, em parte por causa do concerto de Gavin esta noite. — Erminie assumiu um tom nostálgico ao acrescentar:

     — Oh, Edric, é muito difícil acreditar que Floria já tem dezessete anos; quando a vi pela última vez, ela tinha apenas onze anos, usava vestidos curtos e cachos nos cabelos. Lembro que Alastair costumava implicar com ela... perseguia-a pelo jardim com aranhas e cobras, até que eu tentava acabar com aquilo, chamando-os para comer. Mas nem assim ele deixava de implicar com Floria, roubava todos os seus bolos e balas; levou muitas surras da babá por esse comportamento.

     — Floria cresceu muito, e duvido que o primo a reconheça — comentou Edric. — É difícil agora lembrar a garota turbulenta que ela era, mas tenho certeza que o seu exemplo de comportamento de dama será ótimo para Floria.

     — Espero que sim. Eu era muito jovem quando Alastair nasceu, não muito mais velha do que Floria agora. É assim nas montanhas, mas me pergunto se não é um erro... como pode alguém tão jovem ser uma mãe sensata, evitando que as crianças sofram pela falta de uma educação amadurecida?

     — Não penso assim — declarou Edric. — Acho que tem sido uma excelente mãe, e tenho a maior consideração por Alastair. Penso até, quando Floria for mais velha...

     Ele parou de falar abruptamente, fez uma pausa, depois acrescentou:

     — Só lamentei vê-la sobrecarregada com crianças quando ainda era uma criança também. Preferia ver uma jovem despreocupada...

     — Sei disso — comentou Erminie. — Meus parentes não queriam que eu casasse com Rascard; mas devo declarar que nunca me arrependi. Só tenho coisas boas a dizer a seu respeito, e me sinto contente porque tive meu filho quando ainda era jovem bastante para apreciar um bebê em casa.

     Ela pensou por um instante, com a angústia habitual, no outro Filho, que morrera no incêndio de Hammerfell. Mas fora há muito tempo. Talvez devesse, no final das contas, casar com Valentine, enquanto ainda era jovem para ter outras crianças. Valentine captou o pensamento — que ela não pensara em resguardar — e sorriu-lhe afetuosamente. Erminie baixou os olhos.

     — Que aconteça o que tiver de acontecer — murmurou Edric, levando Erminie a especular se ele também não teria captado seu pensamento, e desejava indicar que não desaprovaria um casamento no poderoso e proeminente clã Hastur. — Terei o maior prazer em recebê-la em nosso camarote esta noite, durante o intervalo. Floria ficará feliz em tornar a vê-la... sempre foi a sua parenta predileta, porque ainda era jovem e jovial.

     — Espero ser ainda bastante jovem para ser mais uma irmã mais velha e amiga para ela do que uma acompanhante — disse Erminie. — Invejava sua mãe... sempre desejei ter uma filha.

     E ela compreendeu que Valentine captara de novo seu pensamento, que desta vez deixara de resguardar deliberadamente. Quando Edric se virava para ir embora, ela tocou em seu braço.

     — Edric, há mais uma coisa... um sonho que tive novamente, ontem à noite. Venho tendo com tanta freqüência...

   — O mesmo sonho sobre Alastair?

     — Não tenho certeza se era de fato Alastair — murmurou Erminie, confusa. — Eu me encontrava na Torre, no círculo, e Alastair entrou... isto é, acho que era Alastair... Só que ele... sabe como Alastair sempre se veste meticulosamente... em seu sonho estava pobremente vestido, ao estilo das montanhas... em roupas como o pai poderia usar. E ele me falou através da pedra-da-estrela...

     Ela hesitou, levando a mão à pedra pendurada do pescoço. Edric comentou:

     — Já teve esse sonho antes...

     — Durante todo este ano — confirmou Erminie. — Parece uma visão do futuro, e, no entanto... você mesmo testou Alastair...

     — É verdade; e posso repetir agora o que lhe disse na ocasião: Alastair tem pouco laran, não é suficiente para que valha à pena treiná-lo. Posso afirmar com toda certeza que não é suficiente para o trabalho na Torre; mas seu sonho indica que ainda não aceitou minha decisão. Significa tanto assim para você, Erminie?

     — Não tenho certeza se o sonho é tão simples assim. Quando despertei, a pedra-da-estrela brilhava como se tivesse sido tocada...

     — Não imagino o que mais poderia significar — disse Edric, pensativo. — Antes que se pudesse falar mais alguma coisa, a cadela agitou-se outra vez, levantou-se de um pulo, e disparou para o portão. Erminie ficou de pé.

     — É meu filho voltando; devo ir recebê-lo.

     Valentine fitou-a.

     — É protetora demais com ele, minha cara.

     — Não resta a menor dúvida que tem razão — concordou Erminie —, mas não posso esquecer a noite em que perdi meu outro filho porque o perdi de vista por alguns minutos. Sei que já se passou muito tempo, mas ainda me sinto apreensiva sempre que Alastair fica longe de meus olhos.

     — Não posso culpá-la por ser uma mãe cuidadosa — disse Valentine —, mas peço que não esqueça que ele não é mais uma criança; o próprio curso da natureza determina que ele deve deixar de precisar da constante atenção da mãe. E se quiser recuperar sua herança, ele deve começar a se esforçar por isso. Mas você sabe, Erminie, que eu acho muito melhor deixar essa rivalidade de sangue se extinguir sozinha, por falta de combustível... esperar por outra geração.

     — Não adianta essa linha de argumentação, primo — interveio Edric. — Já falei tudo isso a ela. Erminie não quer ouvir o bom senso.

     — E deixar que meu filho viva sempre no exílio, um homem sem terra? — protestou ela, indignada. Para Valentine, ela parecia linda naquele instante, os olhos faiscando em determinação; ele só gostaria que o alvo fosse mais digno. — Devo deixar que meu marido permaneça irrequieto em sua sepultura, seu fantasma sem vingança a assombrar as ruínas de Hammerfell?

     Chocado, Valentine perguntou:

     — Acredita sinceramente nisso, parenta... que os mortos mantêm seus antigos ressentimentos e rancores contra os vivos?

     Mas ele podia perceber nos olhos de Erminie que ela realmente acreditava, e não pôde imaginar como fazê-la mudar de idéia.

     A cadela correu e pulou pelo jardim, voltando pouco depois, a circular um jovem alto.

     — Mãe — disse ele —, eu não sabia que tinha visitas.

     Ele fez uma reverência graciosa para Erminie, inclinou a cabeça para o Lorde Hastur, respeitoso, depois para o Lorde Edric, enquanto dizia:

     — Boa noite, senhor. Boa noite, primo.

     — Não querem ficar para jantar conosco? — indagou Erminie. — Os dois?

     — Seria um prazer, mas, infelizmente, já tenho outro compromisso — respondeu Valentine, numa desculpa cortês, e despediu-se, inclinando-se sobre a mão de Erminie.

     Edric hesitou por um instante, mas acabou dizendo:

     — Hoje não dá; mas espero encontrá-la no concerto, mais tarde.

     Erminie observou-o se afastar, com um braço em torno da cintura do filho alto.

     — O que ele queria com você, mãe? Aquele homem está interessado em casar com você?

     — Isso o desagradaria muito, meu filho... se eu tornasse a casar?

     — Não se pode esperar que eu fique satisfeito se minha mãe casar com alguém das terras baixas, para quem Hammerfell nada significa. Quando formos restaurados, assim que você ocupar a sua legítima posição em Hammerfell... só então, se ele ainda quiser cortejá-la, considerarei a resposta que devo dar.

     Erminie sorriu gentilmente.

     — Sou uma técnica da Torre, meu filho; não preciso da permissão de nenhum guardião para casar. E você nem pode apresentar a desculpa de que ainda não alcancei a maturidade.

     — Ora, mãe, você é jovem e bonita...

     — Fico contente que pense assim, meu filho; mas quero que saiba que se eu desejar casar posso até consultá-lo, mas não pedirei sua permissão.

     A voz de Erminie era gentil, não havia qualquer insinuação de censura, mas mesmo assim o rapaz baixou os olhos e corou.

     — Entre o nosso povo nas montanhas, mãe, os homens demonstram mais cortesia; procuram os parentes de uma mulher e solicitam licença para cortejá-la.

     Erminie não podia culpá-lo; criara o filho pelos hábitos e costumes de seus parentes nas montanhas, exortara-o a jamais esquecer que era o Duque de Hammerfell. Se agora ele se considerava assim, era o produto dos ensinamentos da mãe.

     — A noite está caindo, meu filho, devemos entrar.

     — O orvalho está caindo, mãe; quer que eu vá buscar seu xale?

     — Ainda não estou tão velha assim! — exclamou Erminie, exasperada, enquanto ele a pegava pelo braço. — Não importa o que pense dele, meu filho, o fato é que Valentine disse uma coisa que faz sentido.

     — E o que foi, mãe?

     — Ele disse que você era um homem, e que se quisesse recuperar Hammerfell, deveria trabalhar pessoalmente por isso.

     Alastair acenou com a cabeça, em concordância.

     — Tenho pensado muito nisso, mãe, durante os últimos três anos. Só que não sei por onde começar. Afinal, não posso ir até as montanhas e pedir a Lorde Storn, ou quem quer que ocupe o seu lugar agora, para me entregar as chaves. Contudo, se esses lordes de Hastur prezam mesmo a justiça, como alegam, acho que poderiam me emprestar homens armados para recuperar Hammerfell; ou pelo menos poderiam fazer uma declaração pública de que Hammerfell me pertence, e Storn o mantém ilegalmente. Será que o nosso parente Valentine poderia me conseguir uma audiência com o rei?

     — Tenho certeza que sim.

     Erminie sentia-se contente por saber que o filho vinha pensando no assunto. Até agora, não havia plano algum; mas se ele estava disposto a pedir o conselho aos mais velhos e mais sábios, já era um bom começo.

     — Não esqueceu que devemos comparecer a um concerto esta noite, não é mesmo, mãe?

     — Claro que não esqueci.

     Mas, por alguma razão, ela preferiu não mencionar que os planos para a noite tinham um significado especial.

     Ao seguir para os seus aposentos, chamando a dama de companhia que a ajudaria a se vestir para o concerto, Erminie experimentou um estranho presságio, como se aquela noite devesse se tornar decisiva, embora não pudesse imaginar por quê.

     Depois de pôr o vestido de cetim cor-de-ferrugem, que realçava à perfeição os cabelos lustrosos, e pendurar no pescoço esguio a gargantilha de pedras verdes, ela desceu para se juntar ao filho.

     — Como você está linda, mãe! — exclamou ele. — Fiquei com medo que insistisse em usar as suas túnicas da Torre; mas vestiu-se como convém à sua posição, e me sinto orgulhoso.

     — É mesmo? Pois nesse caso fico contente por todo o trabalho que tive para me vestir esta noite.

     Alastair usava uma túnica rendada, um calção de cetim dourado que descia até os joelhos, um casaco com mangas num tom escuro de amarelo, com laços pretos nos punhos; pendurado no pescoço, tinha um pingente de âmbar esculpido. Os cabelos vermelhos estavam encrespados, prolongando até quase os ombros. Parecia tanto com o seu companheiro de infância, Alaric, que Erminie sentiu um aperto na garganta, mesmo depois de muito tempo. Mas também, no final das contas, ele é meio-irmão de Alaric; esse vínculo com o parente morto fora um dos motivos, embora não o fundamental, que a levaram a casar com Rascard de Hammerfell.

     — Você também está bonito esta noite, meu filho querido.

     E Erminie pensou: Não será por muito tempo mais que ele terá prazer em acompanhar a mãe a tais eventos; devo aproveitar sua companhia enquanto a tenho. Alastair saiu para buscar uma liteira para a mãe, o meio de transporte público mais comum nas ruas de Thendara. Foi cavalgando ao lado da liteira na direção do imponente prédio construído no ano anterior para concertos e outras apresentações, na grande praça do mercado de Thendara.

     Havia ali uma grande quantidade de liteiras, a maioria na cor preta insípida do transporte público, mas umas poucas ricamente ornamentadas, com bordados ou brasões.

     Alastair, depois de entregar seu cavalo a um dos cavalariços do estábulo público, ajudou a mãe a desembarcar, comentando:

     — Precisamos ter nossa própria liteira, mãe. Você não deveria ser obrigada a chamar uma liteira pública cada vez que quer sair. Mandaríamos pintar as armas de Hammerfell. Seria condizente com a dignidade de sua posição... as pessoas olhariam e saberiam logo que é a Duquesa de Hammerfell.

     — Eu.

     Erminie não pôde conter o riso ao pensamento, mas depois reparou na reação do filho e compreendeu que magoara seus sentimentos. E apressou-se em acrescentar:

     — Não preciso dessas distinções, meu rapaz. Já é suficiente para mim ser uma trabalhadora da Torre, uma técnica. Pode entender o que isso significa?

     E, mais uma vez, ela se lembrou do sonho; se Alastair era praticamente desprovido de laran, ela o via em sonhos daquele jeito, com tanta insistência? Valentine estaria certo? Será que ela protegia demais o filho... o que era perigoso? Mas não, encorajava-o a levar sua própria vida, quase não o via durante a semana, recordou o dia em que lhe dissera, quase um ano antes, que fora recusado para treinamento na Torre; só então Erminie revelara que ele tivera um irmão gêmeo, que morrera no incêndio de Hammerfell, e que Alastair era obviamente o gêmeo com uma capacidade inferior. Ele dissera na ocasião, com toda raiva, que não podia lamentar a perda de um irmão "que me roubou uma capacidade que significa tanto para você, mãe".

     — Não devia guardar ressentimento contra seu irmão — respondera a mãe —, já que o título de duque e a herança de Hammerfell lhe coubera, como primogênito, e ele precisava ter algo especial.

     E depois ela atraíra a atenção de Alastair, pela primeira vez, para a pequena tatuagem de Hammerfell, marcada em seu ombro.

     — Isso foi posto aqui para distingui-lo de seu irmão, proclamando-o por toda parte como o legítimo herdeiro da Grande Casa de Hammerfell, o verdadeiro duque dessa linhagem.

     O grupo de nobres luxuosamente vestidos abriu caminho pela multidão na praça. Erminie, como uma técnica da Torre, era conhecida da maioria, e o jovem Duque de Hammerfell também. Houve saudações e reverências, e os plebeus que lotavam a praça, na esperança de assistirem ao concerto — por uma longa tradição, nenhum dos lugares era vendido até que todos os nobres estivessem acomodados — observavam a aristocracia, gritavam comentários.

     Enquanto uma das jovens passava, Alastair puxou discretamente a manga da mãe.

     — Mãe, está vendo aquela moça de cabelos claros, na túnica branca? — sussurrou ele.

     Erminie procurou com os olhos a moça que o filho apontava.

     — Mas eu a conheço! — murmurou ela, surpresa.

     — Conhece?

     Alastair sentia-se igualmente surpreso; não tinha a menor idéia de quem era a moça, mas sabia que tinha de conhecê-la de qualquer maneira — era a jovem mais adorável que já vira.

     — Isso mesmo e você também conhece, meu filho. É sua prima Floria. Quando eram crianças, costumavam brincar juntos quase todos os dias.

     — Floria? — exclamou ele, atônito. — Lembro de persegui-la pelo jardim com uma cobra, de zombar dela... eu nunca a reconheceria! Ela é linda!

     — Foi o motivo da visita que Edric me fez hoje — explicou Erminie. — Ele me pediu para ser a acompanhante de Floria durante a temporada do Conselho.

     — Eu assumiria essa missão com o maior prazer! — comentou Alastair, rindo. — Já ouvi dizer que as meninas mais feias crescem para se tornar as moças mais belas, mas a transformação de minha prima Floria foi demais!

     Ele parecia atordoado, completamente incrédulo.

     — Ela é a filha de nosso Guardião e por isso não tem permissão para trabalhar no círculo dele. Fez o treinamento em Neskaya, mas agora voltou à casa do pai, aguardando uma vaga em um dos outros círculos aqui.

     — Mesmo que ela fosse uma leiteira ou uma tecelã de seda, mãe, eu ainda a consideraria a mulher mais linda que já conheci. — Uma pausa e ele repetiu o nome, quase com reverência: — Floria... Duvido que Cassilda das lendas, a que foi amada por Hastur, pudesse ser mais bela do que Floria.

     — Ela ainda é jovem, mas dentro de um ou dois anos é provável que Edric comece e receber ofertas por sua mão.

     — Hum... — murmurou Alastair. — Devo ser o homem afortunado do mundo! Ela é disponível, parenta nossa, e tem laran. Acha que ela se lembrará de mim, mãe? Acha que tenho uma chance?

     O tom suave de um carrilhão, o aviso de que deveriam ocupar seus lugares, interrompeu os devaneios de Alastair. Mãe e filho passaram pela entrada em arcada e atravessaram as portas enormes. No camarote que Erminie reservara para aquela apresentação, sentaram era cadeiras estofadas. Alastair, zeloso, ajeitou o manto forrado de pele na mãe e puxou um banquinho acolchoado para seus pés, antes de correr os olhos pelos outros camarotes, à procura da moça por quem sua imaginação se incendiara.

     — Ah, lá está ela! — sussurrou ele. — No camarote decorado com o brasão de Elhalyn.

     Uma pausa e ele acrescentou, surpreso:

     — O camarote real também está ocupado!

     O Rei Aidan não gostava muito de música, e o camarote real raramente era ocupado naqueles espetáculos.

     — Sem dúvida é a Rainha Antonella — comentou Erminie. — Foi seu donativo e seu amor pela música que reconstruíram esta casa, depois do incêndio no ano passado. Ela é velha, bastante gorda e agora meio surda também, mas ainda pode apreciar os tons altos de seus cantores prediletos.

     — Ouvi uma história a respeito, quando cantava com o Coro da Montanha, no ano passado. Disseram que ela encarregou Dom Gavin Delleray de compor uma cantata para sopranos e violinos apenas, já que sua perda de audição era bastante seletiva; pode ouvir as notas altas melhor do que as baixas.

     — Também me contaram essa história, filho.

     Erminie olhou para o camarote real, onde a idosa rainha, baixa e atarracada, num vestido desgracioso num tom de azul horrível, sentava a mastigar uma fruta cristalizada, a perna coxa apoiada num banquinho. Apesar da idade, ela estava no camarote com uma mulher também idosa, no traje de uma acompanhante. Alastair reprimiu o riso.

     — Em sua idade, a dama não precisa de uma acompanhante — sussurrou ela.

     — Ora, cale-se! — implorou Erminie. — Tenho certeza que a velha rainha está apenas oferecendo uma oportunidade para uma de suas damas de companhia que adora música.

     Alastair notara que Floria Elhalyn se encontrava no camarote apenas com o pai, dispensando qualquer forma de companhia feminina. E perguntou à mãe:

     — No primeiro intervalo, pode me apresentar?

     — Claro, meu querido; será um prazer.

     Os dois se recostaram quando começaram os aplausos para a orquestra e o coro. Todos os nobres acomodados, os plebeus entraram lá embaixo, e o espetáculo começou.

     A cantata era excepcional, apresentando como maestro e principal cantor o próprio jovem compositor, Dom Gavin Delleray, um jovem bonito, que cantou peças solo com sua voz de baixo, entre os números do coro. Erminie escutava com maior atenção, refletindo que Alastair, se quisesse se empenhar, poderia cantar tão bem quanto Dom Gavin.

     Quando Alastair não estava observando, ela olhou para o camarote de Edric Elhalyn; ele sorriu-lhe e acenou com a cabeça, uma confirmação óbvia do convite anterior para que Erminie e o filho fossem até lá no intervalo. A moça também cruzou o olhar com a mulher mais velha e sorriu, afável. Erminie pensou que talvez Floria tivesse percebido que seu filho a admirava.

     Era de se esperar, é claro, na idade de Alastair, que seu interesse fosse atraído por uma jovem, depois por outra: só era surpreendente que ainda não tivesse acontecido antes.

     De tempos a tempos, quando o jovem baixo cantava, ela observava a velha rainha no camarote, olhando fixamente para a frente com uma expressão de atenção extasiada (ou seria apenas miopia?). Pensando no comentário do filho, Erminie especulava o quanto da música a idosa rainha podia de fato ouvir.

     A música terminou, e houve uma tempestade de aplausos para o jovem e popular compositor — ele era da mesma idade de Alastair, haviam sido inseparáveis durante grande parte da infância e adolescência. Para sua surpresa, a Rainha Antonella comandou os aplausos, tirou do vestido um raminho de flores, preso com uma linda jóia, e jogou no palco. Foi o início de uma autêntica chuva de flores, buquês e jóias. Gavin recolheu tudo, radiante, sorriu e fez uma reverência para sua real protetora.

     Alastair riu baixinho.

     — Eu nunca soube que a Rainha Antonella gostava tanto de música... nem que se sentia atraída por rapazes bonitos.

     — Alastair, você me surpreende — protestou Erminie. — Sabe muito bem que a mãe dele era a prima predileta da rainha, e que Gavin é como um filho para ela, já que o casal real sofre o infortúnio de não ter crianças.

     Ela viu que a expressão zombeteira de Alastair desaparecia, mas mesmo sem usar a telepatia sabia que o filho estava guardando aquele comentário para provocar o amigo.

     Enquanto os aplausos definhavam, houve um êxodo dos camarotes e platéia, jovens casais e famílias inteiras para os corredores, a fim de esticar as pernas, indo até lá fora para respirar um pouco de ar fresco, ou descendo para os bares elegantes na parte inferior do teatro, em busca de bebidas quentes ou geladas.

     — Eu deveria ir dar os parabéns a Gavin... — murmurou Alastair, em tom de culpa.

     Era evidente que ele ainda pensava em Floria.

     — Tenho certeza que ele ficará feliz em vê-lo — disse Erminie —, mas lembre-se de que, antes, devo cumprir a promessa de apresentá-lo a Lorde Elhalyn e sua filha.

     Os olhos de Alastair brilhavam enquanto seguia a mãe pelo corredor que ligava os camarotes. Muitos lacaios circulavam de um lado para outro, com drinques e outras coisas, pois servia-se de tudo no salão de concertos, de uma caneca de cerveja a um prato de doces, até mesmo um jantar requintado, na sala particular por trás de cada camarote. O corredor apinhado oferecia o aroma agradável de bebidas e comidas, o som agitado de pessoas se divertindo; do auditório vinha o som distante da orquestra se aprontando e afinando os instrumentos para a segunda parte do concerto.

     Erminie bateu de leve na porta do camarote de Elhalyn. Lorde Edric levantou-se para cumprimentá-la, com um sorriso de satisfação, fez uma reverência graciosa sobre sua mão, como se não tivessem se separado há menos de três horas.

     — Meus cumprimentos, parenta — disse ele. — Venha se juntar a nós. Aceita um copo de vinho?

     — Obrigada — disse Erminie, pegando o copo estendido. — Floria, minha cara, como você está linda! Deve se lembrar de seu primo Alastair.

     O rapaz fez uma reverência sobre a mão de Floria.

     — É um enorme prazer, damisela — disse ele, sorrindo. — Posso lhe buscar alguma coisa? Ou para você, mãe?

     — Não há a menor necessidade, meu rapaz — interveio Edric, indicando uma mesa com uma suntuosa oferta de carnes frias, bolos e frutas. — Sirvam-se, por favor.

     Ao convite dele, Alastair pegou um prato e serviu-se de uma porção modesta de bolos e frutas. Um criado despejou vinho em seu copo, e ele tomou um gole, sem desviar os olhos de Floria. Ela também parecia atraída por Alastair.

     — Como você mudou, primo! Era muito cruel comigo quando éramos crianças; só o lembrava como um garoto detestável. Mas agora parece de fato o Duque de Hammerfell. Jamais pude entender as moças em Neskaya que achavam romântica a história de sua fuga do castelo em chamas quando era pequeno. É verdade que todos os seus parentes próximos pereceram no incêndio? O que me parece trágico, nada tem de romântico.

     — É verdade, Dama Floria — respondeu Alastair, emocionado com o interesse dela. — Pelo menos é o que minha mãe me contou. Meu pai morreu, assim como meu irmão gêmeo. Não tenho outro parente da linhagem Hammerfell; todos os meus parentes vivos são agora pelo lado de minha mãe.

     — E tinha um irmão gêmeo?

     — Não me lembro dele. Minha mãe e eu, pelo que ela me contou, só conseguimos escapar à morte porque fugimos pelo bosque, contando apenas com a cadela Jóia para nos guardar. Mas é claro que não posso recordar esses acontecimentos; eu mal tinha idade suficiente para andar.

     Os olhos de Floria estavam arregalados.

     — Em contraste, eu sempre levei uma vida serena e pacífica — murmurou ela. — E agora que cresceu, Hammerfell lhe pertence?

     — Pertence, se eu conseguir encontrar um meio de recuperá-lo. — Uma pausa e Alastair acrescentou: — Estou determinado a levantar um exército, se puder, e arrancar Hammerfell dos inimigos de nossa família.

     A moça ficou com os olhos ainda mais arregalados, mas limitou-se a fitá-lo, recatada, por cima do copo, enquanto tomava um gole de vinho.

     — Pai — murmurou ela —, você não vai...?

     Ela olhou para Lorde Elhalyn, suplicante; e, como esperava, ele captou seu pensamento e sorriu.

     — Estamos oferecendo um baile para muitos de nossos amigos, na próxima lua cheia — anunciou Edric. — Teríamos o maior prazer se aceitasse se juntar a nós. É o aniversário de Floria, e será uma festa simples, informal. Não precisa se preocupar com um traje a rigor ou etiqueta. Basta um traje comum, as maneiras comuns, nada mais.

     — Só quero que prometa que não me perseguirá pelo salão de baile com um sapo ou uma cobra — comentou Floria, rindo.

     — Eu nem pensaria nisso!

     Alastair deu-se os parabéns por Floria ter pedido ao pai para convidá-lo. Não apenas ele estava profundamente impressionado pela extraordinária beleza de Floria, mas também refletiu que a posição proeminente e os parentes nobres da moça a convertiam num valioso contato para suas ambições em relação a Hammerfell. Eram primos, mas Floria ocupava uma posição superior ao seu ramo de família.

     — Farei o melhor possível para apagar de sua memória essa lamentável associação entre a minha pessoa e cobras — acrescentou ele.

     Enquanto Alastair e Floria conversavam, Lord Edric comentou para Erminie:

     — Fico satisfeito ao constatar que nossos jovens parecem apreciar a companhia um do outro. E agora me lembro de uma coisa: Alastair não cantou com um quarteto masculino em Neskaya no ano passado?

     — Cantou, sim. Ele tem talento para a música.

     — Deve se orgulhar muito dele — disse Edric. — Receio que Valentine parece julgá-lo um imprestável, um desses jovens tolos que não pensam em outra coisa que não seja sua aparência. Talvez Valentine seja rigoroso demais com ele.

     — Acho que sim — murmurou Erminie, engolindo em seco. — O pai e o irmão morreram na queda de Hammerfell. Tive de criá-lo sozinha... não tem sido fácil para ele.

     — Não consigo entender os jovens de hoje — comentou Edric. — Meus quatro filhos parecem se interessar apenas por corridas e jogos.

     — Eu me preocupo bastante com Alastair. E preciso lhe pedir um favor, parente.

     — Pode pedir. Sabe que será atendida, se for alguma coisa que estiver ao meu alcance.

     Edric sorriu, com tanta intensidade que por um momento Erminie desejou não ter falado. Mas já o fizera, e o favor que pretendia era algo legítimo.

     — Pode providenciar uma audiência para meu filho com o seu parente, o Rei Aidan?

     — Nada poderia ser mais simples, pois já ouvi Aidan manifestar seu interesse pelo problema de Hammerfell. Talvez na festa de aniversário de Floria... talvez seja melhor que eles se encontrem informalmente.

     — Não sabe como lhe fico grata — murmurou Erminie, recusando um segundo copo de vinho e mordiscando uma fruta.

     Enquanto isso, alheios a tudo o mais que não fosse a presença um do outro, Floria perguntou a Alastair:

     — Conhece meus irmãos, Lorde Hammerfell?

     — Creio que já fui apresentado a seu irmão Gwynn.

     — Gwynn é doze anos mais velho do que eu, e acho que me considera tão jovem que ainda deveria usar roupas curtas — disse ela, contrariada. — Meu irmão predileto é Deric; a diferença de idade entre nós é de apenas um ano. E ele o conhece. Não monta uma égua castanha, com uma mancha branca na testa?

     — Isso mesmo. Foi um presente que ganhei de minha mãe quando fiz quinze anos.

     — Meu irmão disse que você deve ter um bom olho para animais, pois nunca viu uma égua melhor.

     — Minha mãe é que deve ser elogiada — disse Alastair. — Ela escolheu a égua; mas, em nome dela, agradeço a seu irmão.

     — Poderá agradecer pessoalmente, pois meus irmãos prometeram que viriam se encontrar conosco aqui no intervalo. Nenhum deles gosta muito de música. Tenho certeza que foram visitar uma taberna, ou talvez uma casa de jogo. Não gosta de jogar cartas?

     — Não muito — respondeu Alastair, embora a verdade fosse a de que não tinha condições para fazer apostas mais altas, e assim nem valia à pena jogar. Sua renda era mínima, embora a mãe jamais negasse o dinheiro necessário para manter as aparências.

     Nesse instante, quatro jovens — os filhos de Edric de Elhalyn — entraram ao mesmo tempo no camarote, e cercaram a mesa com as bebidas e comidas. O mais alto logo se aproximou de Floria e indagou, com o rosto franzido:

     — Quem é esse estranho com quem está conversando, irmã? E por que fala e flerta com estranhos?

     O rubor espalhando-se pelas faces, Floria disse:

     — Meu irmão Gwynn, Lorde Alastair de Hammerfell. Ele é nosso primo, e o conheço desde que éramos crianças. Estávamos conversando corretamente, na presença de meu pai e da mãe dele. Pode perguntar a eles se foi trocada entre nós dois uma só palavra que não fosse apropriada.

     — Não tem problema, Gwynn — interveio Lorde Edric. — Esta dama é a Duquesa de Hammerfell, uma velha amiga e nossa parenta.

     Gwynn fez uma reverência para Erminie.

     — Peço o seu perdão, madame. Não tinha a intenção de ofender.

     Erminie sorriu e respondeu, graciosa:

     — E não houve ofensa, parente; se eu tivesse uma filha, gostaria que ela contasse com irmãos tão preocupados com seu comportamento e reputação.

     Mas Alastair estava furioso.

     — Cabe à Dama Floria, não a qualquer outra pessoa, decidir se minha companhia lhe é desagradável. Eu agradeceria se cuidasse de sua própria vida, não se metesse no que não é da sua conta.

     Gwynn aceitou o desafio com a maior ansiedade.

     — Pode dizer que não é da minha conta quando encontro minha irmã conversando com algum arrivista sem terras no exílio, cuja história antiga de injustiças é uma piada de Dalereuth a Nevarsin? Quando vim para cá esta noite havia agitação na cidade... hordas de componentes desabrigados nas ruas, bandos de jovens marginais dispostos a atacar a aristocracia... mas tenho certeza que você não sabe nem se importa... vive ocupado a relatar sua velha e surrada história de Hammerfell... parece até um conto de fadas! Pode se intitular o que quiser, mas não tenha presunções por um título duvidoso no exílio... há uma centena de títulos assim em Thendara. Lorde da Escada das Nuvens, Lorde do Décimo Inferno de Zandru, e por aí afora. Essas coisas podem parecer maravilhosas para mocinhas ignorantes, mas...

     — Já chega, Gwynn — interrompeu Lorde Edric. — Sua falta de educação é lamentável. Ainda não sou tão velho assim que não possa mais decidir quem é apropriado para ser meu convidado ou amigo. Peça desculpas imediatamente à Dama Erminie e Alastair!

     Mas Gwynn não queria recuar.

     — Pai, será que não sabe que essa história de Hammerfell é uma piada em todos os Cem Reinos? Se Hammerfell lhe pertence, por que ele não está com seu povo nas Hellers, em vez de permanecer na ociosidade aqui em Thendara, entediando a todos que quiserem ouvi-lo...

     Mas já era demais para Alastair; ele agarrou a frente da camisa de Gwynn e sacudiu a outra mão na cara do rapaz.

     — Cale-se! Não admito que fale de minha família...

     Erminie soltou um grito de censura, mas Alastair estava furioso demais para ouvir. O rosto de Gwynn Elhalyn ficou vermelho de raiva. Deu um empurrão com tanta força no seu oponente que Alastair cambaleou para trás, tropeçou numa cadeira e caiu no chão atapetado do camarote. Levantou-se de um pulo, tornou a agarrar Gwynn pela camisa, e empurrou-o pela porta do camarote. Esbarraram num lacaio que carregava uma bandeja cheia de copos; o homem caiu, os copos quebrando, o vinho se espalhando por toda parte. Alastair enxugou os olhos e soltou um berro de ódio, avançando para Gwynn, que sacara sua skean.

     Lorde Edric colocou-se entre os dois, aos gritos, segurando a adaga do filho.

     — Eu disse que já chega, e quero ser obedecido! Como ousa sacar a adaga, rapaz, contra convidados de seu pai?

     Erminie interveio, com muito tato:

     — Parente, a segunda cantata está prestes a começar; os solistas já ocupam seus lugares no palco. Meu filho e eu devemos nos retirar.

     — Está bem — disse Lorde Edric, quase agradecido. Ele acenou com a cabeça para Alastair. — Voltaremos a nos encontrar no baile de Floria...

     Nesse momento houve um distúrbio no corredor; um grupo de jovens pobremente vestidos, rindo e escarnecendo, entrou no camarote. Gwynn prontamente recuperou a adaga da mão do pai, enquanto Edric se postava, protetor, na frente de Erminie. Alastair também sacou sua adaga e avançou para os jovens.

     — Este é um camarote particular, e agradeceria se se retirassem — disse ele.

     Mas o líder dos jovens reagiu com um sorriso desdenhoso.

     — O que está querendo, galinho de briga? Qual foi o deus que lhe deu este lugar de presente para que possa me expulsar? Sou tão bom quanto você... acha mesmo que pode me obrigar a sair daqui?

     — Pode estar certo de que farei o melhor possível. — Alastair adiantou-se, agarrando-o pelo ombro. — Saia!

     Ele empurrou o jovem para a porta. Talvez surpreso com o fato de a invasão encontrar uma reação, o jovem virou-se e atracou-se com Alastair.

     — Dê-me uma ajuda aqui, primo! — gritou Alastair.

     Mas Gwynn estava ocupado a proteger Floria. Olhando para trás, por cima do ombro, Alastair verificou que outros camarotes eram também invadidos; mais jovens, companheiros do que ele empurrava, haviam avançado para a mesa e recolhiam os alimentos ricos, enfiando nos bolsos e em sacos. Alastair pensou, mal sabendo que o fazia: Será possível que eles estejam mesmo com fome? Como se esse pensamento alcançasse os mais velhos, Edric disse, calmamente:

     — Se estão com fome, meus jovens, podem pegar o que quiserem, e depois saiam. Viemos aqui para ouvir música; não fazemos mal a ninguém.

     As palavras suaves fizeram com que a maioria dos intrusos recuasse; com os bolsos e sacos cheios de comida, afastaram-se apressados pelo corredor; mas o que estava atracado com Alastair não desistiu.

     — Seus sanguessugas ricos, pensam que podem nos enganar com alguns bolos? Vocês arrancaram nosso sangue durante todos esses anos... pois agora vamos ver a cor do sangue de vocês!

     E, subitamente, havia uma faca em sua mão; ele atacou Alastair, que não esperava pelo golpe, foi apanhado desprevenido. A faca cortou seu antebraço; ele soltou um grito de dor, depois atacou com sua adaga, puxando uma dobra do manto para envolver o braço. Desesperada, Erminie gritou:

     — Guardas! Guardas!

     Abruptamente, jovens guardas nos uniformes verde e preto entraram no camarote; agarraram o jovem, que ainda olhava atordoado para o sangue pingando do golpe de Alastair.

     — Está bem, vai dom? — perguntou um dos guardas. — Há muita escória na cidade esta noite, até viraram a liteira da rainha.

     — Estou bem — murmurou Alastair. — Não entendo o que ele queria...

     Alastair arriou numa cadeira, enfraquecido pelo sangue que pingava do braço.

     — Só Deus sabe. Duvido muito que ele próprio saiba... não é mesmo, seu porco? — O guarda deu um violento empurrão no jovem. — Ficou muito ferido, senhor?

     Lorde Edric pegou seu lenço de linho e estendeu-o para Alastair estancar a hemorragia do pequeno ferimento. Meio aturdido, Alastair piscou à visão do lenço encharcado de sangue.

     — Não estou muito ferido; pode deixar o rapaz ir embora.

     Mas se eu tornar a encontrá-lo...

     Floria adiantou-se e inclinou-se para Alastair. Depois, olhou para os guardas e declarou, autoritária:

     — Não me importa o que vão fazer com ele, mas tirem-no daqui imediatamente!

     Virando-se de novo para Alastair, pegou o lenço e disse, gentilmente:

     — Sou uma monitora; deixe-me verificar a profundidade do ferimento. — Ela aproximou a mão do braço de Alastair, sem chegar a tocá-lo. — Não é grave, mas uma pequena veia foi rompida.

     Ela pegou a pedra-da-estrela e focalizou o ferimento; depois de um momento, o sangue parou de escorrer.

     — Pronto. Acho que não houve nenhum dano maior.

     — Meu jovem, lamento muito que isso tenha acontecido em nosso camarote — disse Lorde Edric. — O que posso fazer para reparar?

     — Parece que a situação foi bastante comum esta noite — comentou Erminie, correndo os olhos pelo auditório.

     Os guardas pareciam controlar a situação agora; por todo o prédio, invasores esfarrapados estavam sendo conduzidos para as portas. Um homem idoso, tão pobremente vestido quanto os invasores, protestou com veemência quando os guardas tentaram empurrá-lo para as portas.

     — Eu não era um deles! Comprei meu ingresso como qualquer outro! Preciso usar roupas de seda para escutar um concerto? É essa a justiça dos Hasturs?

     Dom Gavin Delleray, parado à beira do palco, desceu para os assentos inferiores, gritando:

     — Deixem-no em paz! Eu conheço esse homem; ele é o pai de meu pajem!

     — Como quiser, meu lorde — disse o guarda. — Desculpe, meu velho; mas como alguém pode saber quando a pessoa se veste como aquela ralé?

     Erminie pôs a mão no braço do filho, indagando:

     — Quer que eu chame uma liteira? Ou prefere continuar aqui até o final do concerto?

     Alastair ainda segurava a mão de Floria. Não queria se mexer. Ela ainda o fitava com uma indignação protetora.

     — Acho que seria melhor se ele não andasse por algum tempo — declarou Floria. — Gwynn, sirva um pouco de vinho para Alastair, se é que aqueles desordeiros não tomaram tudo. Sente-se, prima Erminie; pode ouvir o resto do concerto em nosso camarote.

     O tumulto estava se desvanecendo; a orquestra começou a tocar uma abertura, e Erminie sentou ao lado de Alastair. Apesar da música, ela sentia-se abalada; o que estava acontecendo naquela cidade que ela conhecia tão bem? Os intrusos haviam olhado para ela e para seu filho como se fossem alguma espécie de monstros; contudo, ela era uma mulher simples, trabalhava com afinco, nem mesmo era rica. O que aquelas pessoas podiam ter contra ela?

     Percebeu que Floria segurava a mão de Alastair e, sem saber por que, foi dominada de repente por um tremendo presságio. Mas Floria e Alastair eram primos, haviam sido criados juntos, formavam um casal apropriado. Por que então isso deveria perturbá-la daquele jeito?

     Erminie levantou os olhos para o camarote real. A Rainha Antonella, a perna coxa ainda apoiada sobre uma almofada, mastigava placidamente uma fatia de bolo de noz, como se não tivesse ocorrido qualquer interrupção. Erminie começou a rir; e riu tanto que não conseguia mais parar; houve olhares irados dos outros camarotes e Edric veio se postar ao seu lado, oferecendo sais de cheiro, um gole de vinho; mas ela não podia parar de jeito nenhum, por mais que tentasse, até que finalmente Edric quase a carregou para a pequena sala por trás do camarote, onde Erminie continuou a rir, incontrolável, até que abruptamente passou a chorar, desabou nos braços de Edric, e continuou a chorar até não poder mais.

    

     Conn de Hammerfell despertou subitamente, gritando e apertando o próprio braço; esperava descobri-lo coberto de sangue. Ficou confuso com a escuridão e o silêncio, sem qualquer outro som além da neve intensa soprando contra as janelas e os roncos dos homens adormecidos. A claridade avermelhada do fogo, ele avistou um caldeirão pendurado na lareira, exalando um aroma apetitoso. Ao seu lado, Markos sentou, piscando no escuro.

     — O que foi, meu rapaz?

     — O sangue... — murmurou Conn, confuso, para depois despertar plenamente e acrescentar, surpreso: — Mas não há ninguém aqui...

     — Outro sonho?

     — Mas parecia muito real — balbuciou Conn, a voz aturdida, ainda meio sonolenta. — Uma adaga... estávamos lutando... o homem forçou a entrada... havia pessoas ao meu redor, em roupas tão bonitas que só vi em sonhos, um velho que era um parente, e me pediu desculpas...e uma moça linda, numa túnica branca, que...

     Ele parou, franzindo o rosto, passou os dedos pelo braço, como se estivesse espantado por não sentir ali a umidade do sangue.

     — Não sei o que ela fez, mas impediu que eu continuasse a sangrar... — Conn tornou a se estender no tosco colchão de palha. — Ah, como ela era linda...

     — Sua donzela do sonho outra vez? — Markos riu gentilmente. — Já falou dela antes, mas não nos últimos tempos. A mesma? Aconteceu mais alguma coisa?

     — Claro... havia música, um homem que zombou de minha herança e puxou uma briga... e minha... mãe... não sei o que mais... sabe como os sonhos são sempre confusos...

     Ele suspirou. Markos, inclinando-se de sua enxerga de palha, ao lado de Conn, pegou a mão do rapaz entre seus dedos encarquilhados.

     — Fique quieto... não acorde os homens — advertiu ele, gesticulando no escuro para os quatro ou cinco homens que dormiam ao redor. — Durma, rapaz. Temos uma noite comprida e um dia ainda mais longo pela frente. Não há tempo a desperdiçar na preocupação com sonhos... se é que foi mesmo um sonho. Descanse enquanto pode; eles não chegarão antes de meia-noite, no mínimo.

     — Se vierem — murmurou Conn. — Escute a tempestade lá fora. Será muita devoção, se vierem com esse tempo.

     — Eles virão — garantiu Markos, confiante. — Tente dormir mais uma ou duas horas, se conseguir.

     — Mas se não foi um sonho, o que poderia ter sido?

     Markos respondeu com relutância, a voz reduzida a um sussurro quase inaudível:

     — Sabe que há laran em sua família; sua mãe era uma leronis... devemos conversar a respeito em outra ocasião, precisamos conversar; mas não esta noite, pois temos outras coisas em que pensar, com os homens vindo para cá.

     — Não compreendo...

     Mas Conn deixou que o pensamento definhasse, prestando atenção ao vento e neve que se arremessavam contra as janelas fechadas do prédio. Captando a emoção do pai-de-adoção, pôde sentir que o velho se encontrava mais perturbado do que deveria pelo que não passara de um mero sonho, mesmo sendo um sonho recorrente.

     A não ser pelo choque preliminar e a dor de despertar para sentir que fora golpeado e sangrava, o próprio Conn não levara o sonho muito a sério; já tivera esses relances de outra vida muitas vezes antes, embora quase nunca comentasse com o pai-de-adoção; uma vida em que não vivia naquela pequena aldeia nas montanhas, sempre se escondendo, seu verdadeiro nome e identidade conhecidos só por uns poucos, mas sim numa grande cidade, cercado por luxos que achava difícil sequer imaginar. Perturbava-o profundamente descobrir que Markos parecia pensar que havia algum nível de realidade naquelas visões tão familiares.

     Markos era sua lembrança mais antiga; por mais que tentasse, não conseguia se recordar de mais nada, a não ser imagens de fogo no fundo de sua mente, e às vezes uma voz suave que lhe murmurava nos sonhos. Ao descobrir que Conn quase podia se lembrar do incêndio, Markos lhe revelara seu verdadeiro nome e a história da destruição de Hammerfell, como o pai, a mãe e o único irmão haviam perecido nas chamas. Quando ele era mais velho, Markos levara-o às ruínas queimadas e fantasmagóricas do que fora outrora a orgulhosa fortaleza de Hammerfell, incutindo-lhe que era o único sobrevivente da linhagem de Hammerfell, e que o maior dever de sua vida era cuidar das pessoas abandonadas de seu clã, reconquistar, reconstruir e restaurar seu ducado.

     Conn preparou-se para voltar a dormir; mas o rosto adorável da moça de branco, que curara seu ferimento no sonho, acompanhou-o nos abismos escuros do sono. Seria uma mulher real? Markos dissera que ele nascera telepata, dotado com os poderes psíquicos herdados de sua casta. Seria possível, assim, que a moça existisse em algum lugar da realidade, que a tivesse visto através do poder de laran que herdara? Ou seu laran seria pré-cognitivo, e a moça era alguém predestinada a entrar em sua vida?

     Mais adormecido do que desperto, consciente, do rumor da neve se lançando contra as janelas, Conn vagueou pela fantasia com a linda moça a seu lado. Até que ouviu lá fora, perto da cabana de pedra meio em ruínas onde se abrigavam — não muito diferente da cabana nas fronteiras de Hammerfell onde habitara com Markos desde que podia se lembrar, só os dois, além de uma velha silenciosa que cozinhava e cuidava dele quando era muito pequeno para ficar sozinho, durante as ausências de Markos — o ruído dos cascos de cavaleiros se aproximando pela estrada. Antes mesmo de ser chamado, despertou e estendeu a mão para acordar Markos.

     — É a hora — sussurrou Conn. — Eles estão chegando.

     — E aí está o sinal — confirmou Markos, quando um pássaro-da-chuva piou três vezes lá fora.

     Ele acendeu uma luz e os outros começaram a se levantar, arrumando as roupas, calçando as botas.

     Markos foi até a porta e abriu-a, as dobradiças rangendo tão alto que fizeram Conn estremecer.

     — Eu poderia ouvir essas dobradiças rangendo mesmo que estivesse no outro lado da Muralha ao Redor do Mundo — protestou ele. — Passe óleo nelas ou todas as pessoas nas montanhas vão ouvi-las como um sino de alarme.

     — Pois não, meu lorde.

     Sempre que estavam a sós ou entre pessoas que não conheciam a verdadeira identidade de Conn, Markos o tratava com mais freqüência de "meu rapaz" ou "Mestre Conn"; mas desde que Conn fizera quinze anos, Markos passara a tratá-lo invariavelmente de forma respeitosa pelo título, na presença de outros que estavam a par do segredo.

     Na semi-escuridão, Markos foi para o meio dos homens que dormiam no chão um momento antes, depois virou-se para o líder dos cavaleiros.

     — Tem certeza que ninguém os seguiu?

     — Se houver sequer um coelho-do-gelo se mexendo daqui até a Muralha ao Redor do Mundo, eu o comeria cru, com pêlo e tudo — respondeu o líder, um homem alto e corpulento, metido num blusão de couro, conn uma barba avermelhada. — Só há neve e silêncio nos bosques; eu me certifiquei.

     — Todos os homens estão bem armados? — indagou Conn. — Quero ver as armas.

     Ele inspecionou rapidamente as espadas e lanças que lhe foram mostradas, todas muito velhas, algumas pouco mais que forçados, mas bem-cuidadas, sem ferrugem, brilhando.

     — Ótimo. Estamos prontos. Mas vocês devem estar morrendo de frio. Tratem de se aquecer um pouco, tomem o vinho quente que preparamos.

     Ele foi até a lareira, pegou uma concha e pôs-se a despejar o ponche fumegante numa variedade de canecas de barro, estendendo-as para os homens.

     — Tomem isto, e depois partiremos.

     — Um momento, meu jovem lorde — disse Markos. — Antes de partirmos, tenho uma coisa para lhe dar.

     Com um ar de solenidade e mistério, ele foi ao canto da sala e vasculhou num velho baú que havia ali. Virou-se finalmente e declarou:

     — Desde o incêndio em que Hammerfell foi destruída, tenho guardado isto para você... a espada de seu pai.

     Conn quase largou a caneca em sua mão, mas conseguiu entregá-la, sem quebrar, ao homem de barba vermelha. Estendeu a mão para a espada, pegou-a pelo punho, visivelmente comovido. Nada tinha de sua família; Markos lhe dissera que tudo fora destruído no incêndio. Os homens agora jogavam suas canecas pelo ar. O homem de barba vermelha gritou:

     — Um brinde ao nosso jovem duque!

     — E que todos os Deuses o abençoem!

     Com saudações ruidosas, todos beberam à saúde de Conn.

     — Eu lhe agradeço, Farren... e a todos vocês. E que o trabalho desta noite seja o início auspicioso da longa missão que temos pela frente. — Uma pausa e Conn acrescentou: — Há uma história antiga de que os Deuses abençoam aqueles que trabalham com afinco antes de pedirem ajuda.

     Ele embainhou a espada antiga — mais tarde estudaria as runas ali inscritas, tentaria descobrir alguma coisa sobre os seus antepassados; mas não agora.

     — Nossas vidas estão à sua disposição, meu lorde — declarou Farren. — Mas para onde vamos esta noite? Markos informou apenas que precisava de nós, e por isso viemos, em memória de seu pai. Mas certamente não nos fez sair de casa sob uma tempestade para beber à sua saúde... embora este ponche esteja excelente... e vê-lo receber a espada de Hammerfell.

     — Tem razão — disse Conn. — Estão aqui porque eu soube de uma história estranha, que esta noite nosso velho inimigo, Ardrin de Storn, iria queimar uma aldeia de nosso clã. Uma aldeia que no passado contava com a proteção de Hammerfell.

     — Numa tempestade como esta? Por que ele faria isso?

    — Não é a primeira vez que ele incendeia aldeias do nosso clã, expulsando os habitantes para o inverno, desabrigados, num momento em que não podem lutar, precisam procurar abrigo contra os elementos — explicou Conn. — Soube que ele deseja pôr nesta terra mais animais de lã, que lhe proporcionam mais lucros do que pobres lavradores cultivando seus próprios alimentos.

     — É verdade — concordou Farren. — Ele expulsou meu avô de um sítio em que ele vivera por cinqüenta anos, obrigando o pobre velho a partir para as cidades das terras baixas, a fim de encontrar trabalho em alguma casa ali, se tivesse sorte. Agora só há animais de lã pastando nas terras em que meu avô cultivava suas colheitas.

     — Storn não é o único que adota essa prática iníqua — comentou Conn. — Seus próprios roceiros... se aturam isso... não são da minha conta. Mas jurei que os homens de Hammerfell não seriam tratados dessa maneira. Eu não sabia de seu avô, Farren; caso eu seja vitorioso sobre Storn e recupere minhas terras, ele também terá sua casa de volta; homens tão velhos e fracos não devem ser obrigados a suar e labutar por seu mingau,

     — Em nome dele, eu agradeço — disse Farren, inclinando-se para beijar a mão de seu lorde.

     Conn, porém, ficou vermelho e não permitiu, estendendo a mão para um aperto de amigos.

     — E agora vamos partir. Os homens de Storn atacarão de noite, e incendiarão a aldeia para obrigar as pessoas a deixarem suas casas. Mas depois desta noite ele saberá que Hammerfell vive, e não poderá continuar a cometer seus crimes impune.

     Um a um, eles saíram para a tempestade de neve, alcançaram os cavalos e montaram. Foi Markos quem seguiu na frente, com Conn logo atrás; a nevasca era densa, tornando quase impossível descobrir para onde ele ia. Mas confiava totalmente em Markos, sabia que o velho conhecia cada rocha e árvore naquelas montanhas; só precisava se manter na esteira do cavalo de seu velho servidor. E assim ele foi avançando, os olhos parcialmente fechados contra a neve, deixando que o cavalo encontrasse o caminho, uma das mãos pousando de leve, com um orgulho secreto, no punho da espada de seu pai.

     Não esperava por aquilo; de certa forma, parecia-lhe um ritual de passagem mais importante do que o ataque daquela noite. Já atacara os Storns, junto com Markos, muitas vezes — e, na verdade, o dinheiro e animais tomados deles sustentaram os dois ao longo de todos aqueles anos. Nunca ocorreria a Conn pensar em si mesmo e Markos como ladrões; antes de seu nascimento, os Storns haviam roubado uma boa parte das propriedades de seu pai, e quando ele tinha um ano queimaram o pouco que restava.

     Ele e Markos estavam convencidos de que, como Storn roubara as propriedades de Hammerfell, não havia nada errado em desviar uma parte para o sustento de seu legítimo dono.

     Mas naquela noite Storn saberia quem era seu inimigo e por que vinha sendo atacado.

     A neve era tão densa agora que ele mal podia ouvir o ruído dos cascos do cavalo; ele afrouxou as rédeas, sabendo que o animal poderia perder o equilíbrio se tentasse controlá-lo demais com aquele tempo. Depois de algum tempo, Markos parou, tão abruptamente que Conn quase esbarrou em seu cavalo.

     Markos desmontou e pegou as rédeas de Conn.

     — Continuaremos a pé daqui por diante — sussurrou ele. — Pode haver alguns guardas de Storn por aqui, e é melhor que não nos vejam.

     — Está certo.

     Conn ouviu o que Markos não dissera; quanto menos precisasse matar, melhor para todos. Os homens de Storn obedeciam a ordens e não eram inteiramente responsáveis pelo que deviam fazer — se demonstrassem compaixão demais pelos camponeses sem lorde de Hammerfell, acabariam sofrendo o mesmo destino deles. Nem Conn nem Markos apreciavam matanças desnecessárias.

     Cada homem transmitiu a mensagem sussurrada para o que se encontrava imediatamente atrás. O pequeno grupo contornou a aldeia, puxando os cavalos. Depois, foi transmitido o aviso para que permanecessem em seus postos, em silêncio. Conn ficou sozinho no escuro, sentindo a própria respiração, achando que o coração batendo forte devia ser audível às pessoas nas cabanas agrupadas lá embaixo.

     Mas quase todas as cabanas estavam às escuras; apenas uma, em dez ou doze, projetava uma luz pela janela. Conn especulou por que — algum ancião cochilando ao fogo, uma mãe velando por uma criança doente, um pai idoso aguardando o retorno de um viajante surpreendido pela noite, uma parteira em seu trabalho?

     Ele esperou, silencioso e imóvel, a espada solta na bainha. Esta noite sou realmente um Hammerfell, pensou ele. Pai, onde quer que esteja, espero que saiba que venho cuidando de seu povo.

     Subitamente, de uma das cabanas lá embaixo, soou um grito desvairado, as chamas se elevaram para o céu de tempestade, por cima dos telhados; uma das construções ardia como uma tocha. Houve mais gritos, confusão.

     — Agora!

     À ordem tensa de Markos, o grupo de Conn montou e desceu a colina em disparada, bradando sua indignação. Conn apontou seu arco para os vultos escuros e armados que contornava as casas, segurando tochas. Uma flecha voou; um dos homens com tochas caiu sem qualquer grito. Conn ajeitou outra flecha. Agora, mulheres, crianças e uns poucos velhos e homens fracos saíram das cabanas, cambaleando, ainda sonolentos, gritando em confusão e desespero. Outra cabana pegou fogo, e no instante seguinte os homens de Conn entraram na aldeia, beirando como animais selvagens, disparando flechas contra os homens de Storn que incendiavam a aldeia. Conn gritou, a plenos pulmões:

     — Lorde Storn! Está aqui, ou mandou seus lacaios para fazer seu trabalho sujo, enquanto fica são e salvo em casa à beira da lareira? O que tem a dizer, Lorde Storn?

     Houve uma longa espera, em que só se ouvia o crepitar das chamas e o choro de crianças apavoradas; e, depois, uma voz firme gritou:

    — Sou Rupert de Storn; quem ousa me desafiar pelo que devo fazer? Estes miseráveis foram avisados muitas e muitas vezes que deveriam desocupar suas casas; não faço isso sem provocação. Quem contesta o meu direito de fazer o que bem quiser em minhas próprias terras?

     — Estas não são as terras de Storn! — berrou Conn. — São as terras legítimas de Hammerfell! Sou Conn, Duque de Hammerfell, e você pode fazer o que bem quiser com as pessoas de Storn, se elas permitirem, mas não toque em meus camponeses! É um grande trabalho para um homem... guerrear contra mulheres e crianças! Ali, sim, e uns poucos velhos entrevados! Como são bravos os homens de Storn, quando não há homens para lhes dizer não ou proteger as mulheres e crianças!

     Um silêncio prolongado, antes da resposta:

     — Ouvi dizer que todos os filhos de lobo de Hammerfell morreram no incêndio que destruiu essa linhagem amaldiçoada. Quem é o oportunista que apresenta essa reivindicação mentirosa?

     Markos sussurrou no ouvido de Conn:

     — Rupert é o sobrinho e herdeiro de Storn.

     — Adiante-se, se tem coragem — gritou Conn, — e lhe provarei que sou um Hammerfell... provarei em sua carcaça imprestável!

     — Não luto com impostores e bandidos desconhecidos — respondeu a voz de Rupert, da escuridão. — Saia daqui como veio e deixe de se intrometer com minha gente. Estas terras são minhas e nenhum bandido anônimo vai inte...

     As palavras foram sufocadas por um grito de dor, terminando num som hediondo de gorgolejo; e soou depois um guincho horrorizado de desespero e raiva. A flecha de Farren, disparada silenciosamente pela escuridão, dilacerara a garganta de Rupert. Markos gritou:

     — E agora vocês querem aparecer e lutar como homens?

     Houve uma ordem em voz baixa e os homens de Conn correram para o bando de Storn, nas sombras; a luta foi sangrenta e breve. Conn retalhou alguém que o atacou com uma lança. Lutou por um instante com um segundo homem, que pareceu se derreter na sua frente. Depois, Markos segurou seu braço com o punho-de-ferro, arrastando-o para longe.

     — Vamos voltar aos cavalos; eles já receberam sua lição, e não terão mais ânimo para o seu trabalho sujo esta noite... olhe, já começam a partir, pondo Rupert... ou o que resta dele... no cavalo... basta, eles batem em retirada.

     E enquanto Conn, resfolegando e sentindo-se um pouco tonto, deixava que Markos o levasse de volta à sela, as mulheres e crianças, nos trajes de dormir em que haviam saído de suas camas, cercaram-no na neve.

     — É mesmo o jovem duque?

     — Hammerfell voltou para nós!

   — Nosso príncipe!

     Agruparam-se ao redor de Conn, beijando suas mãos, chorando, suplicando.

     — Agora aqueles bandidos de Storn não poderão mais nos expulsar... — declarou uma velha, segurando uma tocha que arrancara de um dos homens de Storn. — E a imagem de seu pai, meu caro rapaz... meu lorde.

     Conn balbuciou:

     — Meu povo... agradeço pela recepção que me dão. Prometo a vocês... deste dia em diante não haverá mais incêndios, se eu puder evitar. E não haverá mais guerra contra mulheres e crianças.

     — O fato está à solta agora — murmurou Markos, depois que finalmente partiram pela noite. — A partir de hoje, rapaz... Não, não é mais rapaz agora... meu lorde... a partir desta noite eles saberão que há um Hammerfell nestes bosques. E devo acrescentar que esta noite você ensangüentou a espada de seu pai com honra.

     E Conn compreendeu que lançara um desafio por uma causa justa. Era para fazer aquilo que ele vivera se escondendo, em companhia de Markos, por todos aqueles anos; fora para isso que ele nascera.

    

     Na noite da lua cheia, Edric Elhalyn celebrou o décimo oitavo aniversário de sua filha mais jovem, Floria, no palácio dos Elhalyn em Thendara. Entre os convidados o Rei Aidan e a Rainha Antonella. Como prometera, Edric aproveitou um intervalo na dança e foi até o lugar em que Floria e o jovem Alastair de Hammerfell sentavam juntos, conversando e tomando um drinque gelado.

     — Espero que esteja se divertindo, minha querida — disse ele à filha.

     — E como estou, pai! É a festa mais linda que já...

     — Lamento, mas terei de separar vocês dois por algum tempo. Alastair, como lhe prometi, falei com o Rei Aidan... e Sua Graça está ansioso em conhecê-lo. Por favor, venha comigo.

     Alastair pediu licença a Floria, levantou-se e seguiu Lorde Elhalyn através dos casais dançando para uma sala adjacente, decorada elegantemente com madeiras escuras e painéis de seda.

     Um homem surpreendentemente pequeno, de cabelos brancos, sentava numa das cadeiras estofadas; seus trajes eram suntuosos e parecia encurvado pela idade, mas os olhos que fixou nos dois homens que se aproximavam eram firmes e penetrantes. E ele indagou, numa voz surpreendentemente profunda e forte:

     — O jovem Hammerfell?

     — Majestade — disse Alastair, fazendo uma reverência.

     — Não se importe com essas coisas — disse o Rei Aidan Hastur, acenando com a mão para que Alastair sentasse. — Conheço sua mãe, uma dama encantadora. Tenho ouvido muitas coisas a respeito dela por intermédio de meu primo Valentine. Creio que ele está ansioso em se tornar seu padrasto, meu jovem, mas não pôde me contar o que realmente desejo saber... sobre a rivalidade de sangue que quase exterminou esses dois reinos das montanhas. O que pode me dizer? Quando e como começou?

     — Não sei, senhor. — Fazia calor na sala e Alastair começou A sentir o suor escorrer por dentro da túnica de seda. — Minha mãe fala muito pouco a respeito; disse que até meu pai não tinha muita certeza sobre a verdadeira causa e origem. Sei apenas que meu pai e irmão morreram quando o exército de Storn incendiou Hammerfell por cima de nossas cabeças.

     — E até os cantores de rua em Thendara sabem disso — comentou o Rei Aidan. — Alguns desses lordes das montanhas se tornaram arrogantes demais para o seu próprio bem, o que desafia a paz que conquistamos a um preço tão alto além do Kadarin. Eles acham que os Aldarans são seus suseranos, e ainda estamos em guerra com os Aldarans.

     Ele franziu o rosto, refletiu por um momento.

     — Diga me uma coisa, meu jovem: se eu o ajudasse a recuperar Hammerfell, estaria disposto a ser um fiel vassalo e lorde sob os Hastur, lutando por mim, se necessário, contra os Aldarans? — Alastair já ia falar, mas o Rei Aidan impediu-o, acrescentando: — Não, não responda agora. Vá para casa e pense a respeito. E depois venha me comunicar o que decidir. Preciso de homens leais nas Hellers; caso contrário, os Domínios serão dilacerados pela guerra, como aconteceu no tempo de Varzil. E isso não seria bom para ninguém. Volte para a festa agora, daqui a dois ou três dias, depois que tiver pensado bem a respeito vá me procurar.

     Ele acenou com a cabeça e sorriu amavelmente para Alastair, depois desviou os olhos, uma indicação óbvia de que a audiência estava encerrada.

     Lorde Edric tocou no ombro de Alastair, que recuou, depois virou-se e saiu da sala. Vá para casa e pense a respeito, dissera o rei, mas poderia haver alguma dúvida sobre o que ele deveria fazer? Seu primeiro e único dever era a recuperação e reconstrução de sua casa e clã. Se o preço fosse a lealdade aos reis Hasturs, claro que podia assumir esse compromisso.

     Ou não? Estaria renunciando a um poder que pertencia legitimamente a Hammerfell e aos lordes das montanhas das Hellers? Poderia confiar em Aidan, ou em qualquer outro rei Hastur? Ou seria alto demais o preço a ser pago pelo favor real e a ajuda do Rei Aidan na recuperação de suas terras?

     Ao voltar para o lugar em que estivera conversando com Floria, descobriu que ela já se fora; correu os olhos pelo salão e avistou no outro lado o brilho das pedras preciosas em seus cabelos claros. Ela participava da dança-do-círculo com uma dúzia de rapazes e moças; Alastair sentiu-se absurdamente furioso e ciumento. Floria poderia ter esperado por ele.

     Não se passou muito tempo para que ela voltasse, afogueada do exercício. Alastair teve de fazer um grande esforço para não tomá-la em seus braços. Sendo uma telepata, ela captou o impulso a que ele não cedera, e corou, exibindo um sorriso tão radiante que Alastair teve vontade de beijá-la também. Ela sussurrou:

     — O que aconteceu, Alastair?

     Ele respondeu, também sussurrando:

     — Falei com o rei. Ele me prometeu sua ajuda para recuperar Hammerfell.

     Alastair não mencionou a sua parte no acordo. Ela exclamou, partilhando a alegria dele:

     — Mas isso é maravilhoso!

     E por toda parte, ao redor, cabeças se viraram para fitá-la. Floria corou de novo, soltou uma risadinha.

     — O que quer que possa acontecer, já chamamos atenção demais; graças a Evanda, estamos sob o teto de meu pai, ou haveria um escândalo daqui até... Hammerfell.

     — Floria, tenho certeza que você já deve saber que assim que eu for restaurado, minha primeira providência será falar com seu pai...

     — Sei, sim — respondeu ela, quase num sussurro. — E estou ansiosa por esse dia, tanto quanto você.

     E só por uns poucos segundos ela foi para os braços dele, beijando-o nos lábios tão de leve que, no instante seguinte, Alastair mal sabia se acontecera de fato ou se apenas sonhara.

     Floria largou-o e, relutante, ele voltou ao mundo normal.

     — É melhor dançarmos — disse ela. — Já há pessoas demais nos olhando.

     As dúvidas e escrúpulos de Alastair haviam se dissipado; com Floria como recompensa, ele sentia-se disposto a prometer qualquer coisa que o Rei Aidan quisesse.

     — Tem razão — murmurou ele. — Não quero que seu irmão puxe outra briga comigo; uma rivalidade de cada vez já é suficiente.

     — Ele não faria isso... não quando você é um convidado sob o teto de nosso pai.

     Apesar da garantia de Floria, Alastair permaneceu cético; Gwynn forçara uma briga quando ele era convidado no camarote do pai, por que então não poderia fazer a mesma coisa em sua casa?

     Eles foram para a pista de dança, os dedos de Alastair mal tocando a seda na cintura de Floria.

     Muito ao norte, Conn de Hammerfell quase gritou, desorientado. O rosto da mulher, o contato de suas mãos, o calor de seu corpo sob a seda, a quase-lembrança dos lábios roçando nos seus... ele transbordava de emoção. A mulher-do-sonho outra vez, e as luzes intensas, as pessoas ricamente vestidas, como ele nunca vira... o que estava lhe acontecendo? Quem era aquela mulher adorável que agora se tornara sua companheira tão íntima, noite e dia?

     Alastair piscou, e Floria indagou, gentilmente:

     — O que foi?

     — Não sei direito... eu me senti tonto por um momento... sem dúvida por sua causa... mas por um instante tive a impressão de que me encontrava longe daqui, num lugar que jamais vi.

     — Mas você é um telepata, com toda certeza; talvez tenha captado algo de alguém que será parte de sua vida, se não agora, então em algum momento no futuro.

     — Mas não sou tão telepata assim. Nem mesmo tenho laran suficiente para valer à pena o treinamento, pelo que minha mãe me disse. O que a faz pensar desse jeito?

     — Seus cabelos vermelhos; em geral, isso é um indício de laran.

     — Não em meu caso, pois nasci gêmeo; e meu irmão, pelo que falou minha mãe, é que tinha laran. — Ele percebeu a expressão perturbada de Floria e acrescentou: — Isso significa tanto para você?

     — Apenas que... é mais uma coisa que poderíamos partilhar... mas eu o amo como é. — Floria corou. — Não deve me julgar ousada, por falar tão francamente, antes que tudo seja acertado entre nossos pais...

     — Eu nunca poderia pensar qualquer coisa que não fosse boa sobre você — disse Alastair, com veemência — e sei que minha mãe a acolherá como uma filha.

     A música chegou ao fim, e ele acrescentou:

     — Preciso agora ir contar a mamãe a minha sorte... a nossa sorte. — A menção da mãe, Alastair lembrou de repente de outras coisas e indagou: — Conhece um bom criador de cachorros na cidade?

     — Um... criador de cachorros? — repetiu Floria, sem entender a mudança no rumo da conversa.

     — Isso mesmo; a cadela que pertence à minha mãe está muito velha. Quero arrumar um filhote para que ela não fique sozinha quando Jóia partir para o lugar a que todos os bons cachorros devem ir... ainda mais agora que terei de passar muito tempo ausente da cidade.

     — Que boa idéia! — exclamou Floria, involuntariamente entusiasmada pela preocupação dele com a felicidade da mãe. — Sei onde meu irmão Nicolo compra seus cães de caça; diga-lhe que fui eu quem o enviei e ele encontrará um bom cão doméstico para sua mãe.

     E ela pensou: Ele é bom e gentil, tão preocupado com a mãe. E será assim também para sua esposa.

     — Quer passear a cavalo comigo amanhã? — indagou Alastair com alguma hesitação.

     Ela sorriu.

     — Eu gostaria muito, mas não posso. Estou na cidade aguardando uma vaga na torre, e finalmente fui convidada a ser monitora no círculo de Renata Aillard. Devo me apresentar amanhã para o teste.

     Apesar do desapontamento, Alastair sentiu alguma curiosidade; a mãe era uma trabalhadora na Torre desde a sua infância, mas ele sabia muito pouco a respeito.

     — Eu não sabia que as mulheres podiam ser guardiãs — comentou ele.

     — E não podem. Acontece que Renata é uma emmasca, nasceu assim. Sua mãe tem sangue Hastur, e muitas pessoas dessa linhagem nascem emmasca, homens e mulheres. É triste, mas lhe possibilita assumir a função de Guardiã, e talvez algum dia mulheres de verdade possam ter esse trabalho. É muito perigoso para as mulheres; acho que eu não gostaria de tentar.

     — Eu não permitiria que você corresse qualquer perigo! — exclamou Alastair.

     — Já terei concluído o teste e saberei se fui aceita no círculo por volta do meio-dia; e então, se você quiser, poderemos sair juntos e escolher um cachorrinho para sua mãe.

     — Aceita? Pensei que já tinha um lugar garantido no círculo...

     — É muito importante que todas as pessoas num círculo sejam aceitáveis umas para as outras; se houver alguém no círculo que sinta que não conseguirá trabalhar comigo, terei de esperar por outra vaga. Mas conheço Renata e gosto muito dela; acho que serei aceitável para ela. Mas amanhã serei testada para verificar se os outros também podem trabalhar comigo.

     — Se houver alguém que se atreva a recusá-la, eu lhe declararei guerra! — exclamou Alastair, meio gracejando, embora ela sentisse alguma seriedade por trás do tom jovial.

     Floria pegou as mãos dele e disse:

     — Você não compreende essas coisas, já que não é um telepata treinado. Por favor, prometa-me que não fará qualquer coisa precipitada ou tola.

     A música terminara, e eles se encaminhavam para a beira da pista de dança. Floria acrescentou:

     — E agora preciso dançar com os outros convidados... embora preferisse ficar com você.

     — Por que devemos fazer o que os outros desejam só porque é o costume? estou cansado da "maneira apropriada" de fazer isso ou aquilo.

     — Não fale assim, Alastair! Fui ensinada que não viemos a este mundo fazer o que quiséssemos, mas sim para cumprir nosso dever com o povo e família. Você é o Duque de Hammerfell; pode muito bem chegar o dia em que... como é certo... seu dever para Hammerfell deva prevalecer sobre os nossos compromissos um com o outro.

     — Nunca!

     — Não diga isso! Um cidadão particular pode oferecer essas garantias, mas um príncipe ou um duque, um lorde com responsabilidades, não pode.

     Interiormente, Floria sentia-se perturbada, mas pensou: Ele é jovem, recebeu muito pouco treinamento para sua posição; foi educado no exílio, não instruído para assumir a responsabilidade de seu nascimento.

     — Acontece apenas que não suporto a idéia de deixá-la, Floria. Fique comigo, por favor.

     — Não posso, meu querido. Compreenda, por favor.

     — Como quiser — murmurou Alastair, contrariado.

     Ele deu o braço a Floria, conduzindo-a em silêncio para o meio de seus parentes — entre os quais, Alastair notou, com um respeito imediato, encontrava-se a Rainha Antonella, com um sorriso afável e vazio. E a rainha, na voz curiosamente estridente das pessoas que têm dificuldade de audição:

     — Finalmente! Estávamos à sua espera, minha cara. Mas creio que não conheço o seu jovem acompanhante.

     — Ele é o filho da Duquesa de Hammerfell, Erminie, Segunda Técnica no círculo de Edric de Elhalyn — informou Floria, a voz tão gentil, tão suave, que Alastair teve a impressão de que a velha surda não seria capaz de ouvir.

     Só depois é que ele se lembrou que a rainha era com certeza uma telepata e poderia entender o que Floria dissera, mesmo que não ouvisse as palavras.

     — Hammerfell... — murmurou a rainha, acenando com a cabeça para Alastair, jovialmente. — É um prazer, meu jovem; sua mãe é uma leronis extraordinária, eu a conheço muito bem.

     Alastair sentia-se gratificado; o reconhecimento, na mesma noite, primeiro do rei, agora da rainha, era mais do que ele poderia esperar. Um rapaz que Alastair não conhecia se aproximou e convidou Flora para uma dança. Depois de fazer uma reverência para a Rainha Antonella, que retribuiu graciosamente, Alastair foi à procura da mãe. Encontrou-a na estufa, examinando as flores. Erminie virou-se quando ele entrou e indagou:

     — Meu querido menino, por que não está dançando?

     — Já dancei o suficiente por uma noite. Quando a lua surge, quem se importa em contemplar as estrelas?

     — Calma, calma... sua anfitriã tem outros deveres.

     — Floria já me fez uma preleção sobre isso, mãe, não comece você também — respondeu ele, irritado.

     — Ela fez muito bem. — Sentindo que o filho tinha alguma coisa a contar, ela acrescentou: — O que aconteceu, Alastair?

     — Tive uma audiência com o rei, mãe... mas não posso contar aqui, em público.

     — Quer se retirar agora? Como achar melhor. — Erminie chamou um criado. — Providencie uma liteira para nós, por favor.

     No caminho, Alastair despejou todas as suas emoções para a mãe, arrematando:

     — E perguntei a Floria se ela me considerava de maneira favorável depois que eu fosse restaurado...

     — E o que ela respondeu.

     Alastair quase sussurrou a resposta:

     — Ela me beijou e disse que estava ansiosa para que esse dia chegasse logo.

     — Fico contente por você, pois ela é uma moça adorável — comentou Erminie, especulando por que, se isso era verdade, o filho parecia tão pensativo.

     Mas como Alastair não era um telepata desenvolvido, ela interpretou-o errado, pensando que talvez o filho tivesse pressionado a moça por um compromisso imediato, até mesmo um casamento imediato, e Flora recusara, como não poderia deixar de fazer.

   — E agora me conte tudo o que Sua Graça lhe disse — pediu Erminie, recostando-se para ouvir.

    

     A aldeia de Lowerhammer não era mais que um agrupamento de casas de pedras, no centro de uma dúzia de fazendas; um lugar pobre mas era a época de colheita, e o maior estábulo da aldeia fora arrumado para servir como um salão de baile. Estava apinhado de foliões ruidosos, iluminado por uma coleção festiva de lanternas; flautistas e harpistas tocavam uma animada música de dança. Ao longo de toda uma parede havia uma fileira de cavaletes, com tábuas por cima, em que havia jarros de sidra e cerveja, além de bancos para os mais velhos. No centro do salão, um círculo de rapazes girava para a esquerda, em torno de um círculo de moças, girando para a direita.

    Conn estava no círculo; quando a música parou, como era esperado, ele estendeu as mãos para a moça que ficara à sua frente, levando-a para a mesa. Encheu uma caneca de cerveja para ela, e outra para si mesmo.

     Fazia calor no estábulo; além de uma tosca divisória de madeira, ainda havia cavalos e animais leiteiros, com quatro ou cinco jovens robustos guardando a passagem para impedir que tochas ou velas fossem levadas para onde havia feno ou palha. O medo de incêndio sempre pairava sobre os festivais rurais, ainda mais naquele momento, antes que as chuvas de outono encharcassem as árvores-de-resina.

     Conn tomou um gole da cerveja, sorrindo impassível para a moça que fora sua parceira na dança. Porque, naquele momento, ele via, como se fosse através dela, outra mulher — a mesma que via em quase todas as ocasiões, que o acompanhava no trabalho durante o dia, participava de seus sonhos à noite — a estranha vestida em cetins brilhantes, uma mulher de cabelos claros, trançados de forma requintada, com pedras preciosas a adorná-los.

     — Conn — disse Lilla —, o que foi? Você está a mil léguas de distância; foi dançar na lua verde?

     Ele riu.

     — Não, mas sonhava com um lugar muito longe daqui. Não sei por quê; não há lugar melhor do que aqui... especialmente num baile da colheita.

     Mas ele sabia que era mentira; em comparação com a mulher em seus sonhos, Lilla parecia a camponesa rude que de fato era; e aquele lugar não era mais do que um arremedo do palácio feérico em que a via. Aquelas cenas magníficas que via como em sonhos seriam a realidade, enquanto aquelas festividades rústicas eram o sonho? Conn sentiu-se confuso, e em vez de aprofundar o pensamento, preferiu se concentrar na cerveja.

     — Quer dançar de novo?

     — Não, estou com muito calor — respondeu a moça. — Vamos sentar aqui por alguns minutos.

     Eles encontraram um banco vago na extremidade do estábulo, perto das divisórias de madeira; por trás, Conn podia ouvir os ruídos dos cascos dos animais, tudo próximo lhe era caro e familiar. A conversa ao redor era sobre a colheita e o tempo, as realidades familiares da vida cotidiana; mas, por algum motivo, aquelas coisas lhe pareciam agora estranhas, como se de repente todos falassem numa língua que ele ignorava. Só Lilla ao seu lado parecia sólida e real. Conn pegou a mão da moça, passou o outro braço por sua cintura. Ela recostou-se nele; trançara flores do campo frescas nos cabelos, junto com algumas fitas vermelhas. Os cabelos de Lilla eram escuros, encrespando-se em torno das faces avermelhadas; ela era rechonchuda e macia, a mão de Conn deslizou pela suavidade por baixo do xale. Lilla não protestou, apenas soltou um pequeno suspiro, quando ele se inclinou para beijá-la.

     Conn sussurrou em seu ouvido, e ela acompanhou-o, dócil, para a escuridão na extremidade do estábulo. Parte do jogo era se esquivar aos jovens que protegiam a área em que se guardava feno e palha, mas ele não queria luzes. Cercado pelo feno fresco, com flores de trevo aumentando a fragrância, Conn abraçou-a apertando e beijou-a, muitas e muitas vezes; depois de algum tempo, tornou a murmurar no ouvido de Lilla, que concordou em segui-lo para um lugar em que a escuridão era ainda mais profunda. Estavam de pé, comprimidos um contra o outro, a cabeça de Conn nos seios de Lilla, suas mãos tateando às cegas nas rendas do vestido, quando ele ouviu alguém gritar seu nome.

     — Conn?

     Era a voz de Markos. Conn virou-se, irritado, para deparar com Markos parado a alguns passos, segurando uma lanterna com o fogo protegido. Ele estendeu a lanterna para iluminar o rosto da moça.

     — Ah, Lilla... sua mãe a procura, menina.

     Contrariada, Lilla olhou ao redor; avistou a mãe, pequena e morena, num vestido listrado, conversando com meia dúzia de mulheres. Mas a cara amarrada de Markos era assustadora demais, e ela preferiu não discutir. Relutante, largou a mão de Conn, ajeitou num instante as rendas de seu corpete.

     — Não se vá, Lilla — murmurou Conn. — Vamos dançar de novo.

     — Não é possível, jovem mestre, pois é necessário em outra parte — declarou Markos, deferente, mas com uma firmeza a que Conn nunca ousara resistir.

     Ele saiu do estábulo atrás de Markos, furioso. Lá fora, virou-se para perguntar:

     — Qual é o problema?

     — O céu está escuro; haverá chuva antes do amanhecer.

     — E foi para isso que nos interrompeu? Está exagerando, pai-de-adoção.

     — Acho que não; o que é mais importante para um proprietário de terras do que o tempo? Além do mais, é sempre da minha conta cuidar para que se lembre quem é, Mestre Conn. Pode negar que em outro quarto de hora estaria com a moça no feno?

     — E daí? Por que isso deve ser da sua conta? Não sou castrado; por acaso espera...

     — Espero que você faça o que é certo, com quem quer que seja. Não há mal em dançar, mas quanto ao resto... você é um Hammerfell; não poderia casar com a moça, ou mesmo fazer o que é certo para a criança que talvez resultasse.

     — E devo passar a vida inteira sem mulher por causa do infortúnio de nossa família? — indagou Conn.

     — Claro que não, rapaz; depois que recuperar Hammerfell, poderá pedir em casamento qualquer princesa dos Cem Reinos. Mas não deixe que alguma camponesa o prenda agora. Pode ter algo melhor do que a filha do leiteiro... e a moça merece algo melhor do que uma aventura inconseqüente num festival. Sempre ouvi falar que ela é uma boa moça, e merece um marido que a respeite, não ser envolvida por um jovem lorde que não tem nada a lhe oferecer. Sua família sempre foi digna com as mulheres. Seu pai, que os Deuses sejam bons com sua memória, era a própria alma da decência. Você não gostaria que dissessem a seu respeito que não passa de um jovem devasso, que só serve para atrair mulheres a cantos escuros.

     Conn baixou a cabeça, sabendo que era verdade tudo o que Markos dissera, mas ainda assim furioso pela interrupção e angustiado de frustração.

     — Fala como um cristoforo — murmurou ele, soturno. Markos deu de ombros.

     — Há coisas piores. Com o credo deles, pelo menos nunca faria qualquer coisa de que pudesse se arrepender.

     — Nem me regozijar — acrescentou Conn. — Você me desagradou, Markos, tirando-me do baile como um menino travesso que é mandado para a cama de castigo.

     — Nada disso. Sei que não vai acreditar agora, rapaz, mas eu o salvei da desgraça. Olhe ali...

     Ele indicou os camponeses dançando, uma nova música começando, e acrescentou:

     — Use a cabeça, rapaz. Cada mãe na aldeia sabe quem você é; não acha que qualquer uma teria o maior prazer em atraí-lo para sua família? E não hesitaria em usar a própria filha como isca?

     — Mas que opinião você tem das mulheres! — protestou Conn, irritado. — Acha mesmo que elas são tão insidiosas? Nunca me disse isso antes...

     — Não, não disse — respondeu Markos, acentuando seu sotaque camponês. — Até a outra noite, ninguém o conhecia como outra coisa que não meu filho; agora sabem quem você realmente é, e é o Duque de Hammerfell...

     — E com isso e um sekal de prata, posso comprar um copo de sidra. Ainda não vejo grande benefício no meu título...

     — Dê algum tempo a si mesmo, rapaz. Já houve soldados em Hammerfell, e nem todos trocaram suas espadas por arados — declarou Markos. — Vão se agrupar quando chegar o momento, e não demorará muito. Basta ter um pouco de paciência.

     Eles avançaram pela rua da aldeia enquanto falavam, até chegarem ao pequeno chalé em que Conn se alojava com Markos. Um velho — um veterano encurvado, de um braço só — que os servira durante a maior parte da vida do jovem herdeiro de Hammerfell, pegou os mantos de Conn e Markos e pendurou-os.

     — Querem jantar, mestres?

     — Não, Rufus, já comemos e bebemos no festival — respondeu Markos. — Vá se deitar, velho amigo. Não vai acontecer mais nada esta noite.

     — Ainda bem — resmungou o velho Rufus. — Temos um vigia no passo, para o caso do olho ganancioso de Storn se virar para as colheitas de Hammerfell; mas nenhuma moita se agita nas colinas.

     — Ótimo. — Markos foi até o balde com água, recolheu-a com uma concha e despejou na caneca. — Creio que vai chover antes do amanhecer; ainda bem que esperou para cair até acabarem de guardar o grão-azul.

     Ele abaixou-se para desamarrar as botas, sem olhar para o filho-de-adoção.

     — Desculpe tê-lo arrancado de forma tão abrupta, mas pareceu-me que era o momento de agir. Talvez eu devesse ter lhe falado antes, mas achei que não era necessário, enquanto era um rapaz. De qualquer forma, a honra exigia...

     — Eu compreendo — disse Conn, bruscamente. — E não tem importância. Ainda bem que chegamos em casa antes disso...

     No instante mesmo em que ele acabou de falar, houve uma violenta e ruidosa rajada de vento lá fora, o céu parecendo se unir e despejando uma chuva intensa, que abafava todo e qualquer outro ruído.

     — As pobres moças ficarão com seus vestidos do festival estragados — comentou Markos.

     Mas Conn não estava escutando; as paredes de pedra da cabana haviam desaparecido, uma luz intensa ofuscava seus olhos. O banco tosco por baixo dele era uma cadeira de brocado, à sua frente se encontrava um homem pequeno, de cabelos brancos, vestido com elegância, olhos cinzas penetrantes, fitando-o e indagando: Se eu lhe der homens e armas para recuperar Hammerfell, juraria ser um vassalo fiel dos reis Hasturs? Precisamos de homens fiéis além do Kadarin...

     — Conn!

     Era Markos, sacudindo seu braço.

     — Onde você estava? Longe daqui, dá para perceber... era outra vez a donzela-do-sonho?

     Conn piscou os olhos à súbita escuridão que a lanterna e a luz do fogo não conseguiam dissipar, depois da claridade intensa que o ofuscara.

     — Não desta vez, embora eu sentisse que ela estava próxima. Não era ela, Markos; falei com o rei... — Ele hesitou, tentando se lembrar do nome. — ...O Rei Aidan, em Thendara, e ele me prometeu homens e armas para recuperar Hammerfell...

     — Misericordiosa Avarra! — murmurou o velho. — Que espécie de sonho...

     — Não foi sonho, pai-de-adoção; não pode ter sido um sonho. Eu o vi como vejo você agora, só que ainda mais nitidamente, à luz forte, e ouvi sua voz. Ah, Markos, se ao menos eu soubesse se meu laran é o de prever o futuro! pois se for assim, devo ir a Thendara e procurar o Rei Aidan...

     — Não sei qual era o laran na linhagem de sua mãe... mas é bem possível que seja esse.

     Markos observava Conn com a maior atenção, perplexo pela recorrência daquele "sonho". E pela primeira vez, em muitos anos, um pensamento aflorou em sua cabeça: Seria possível que, de alguma forma, a Duquesa de Hammerfell tivesse sobrevivido, e mantivera viva a causa de Hammerfell em Thendara?

     Ou até mesmo que o irmão de Conn também sobrevivera àquela noite de fogo e desastre? Não, certamente que não; essa não podia ser a explicação para as visões de Conn. Ainda assim, ele se lembrou, Conn sempre tivera um vínculo muito forte com seu irmão gêmeo...

     — Eu não deveria ir a Thendara e procurar o Rei Aidan Hastur? — indagou Conn.

     — Não é tão fácil quanto pensa bater na porta de um rei e ser recebido, mas sua mãe tinha parentes Hastur e por ela, sem dúvida, eles intercederiam por você junto ao rei.

     Devo dizer a ele que desconfio que sua mãe — e até mesmo seu irmão mais velho — podem estar vivos?, especulou Markos. Não; não seria justo com o rapaz fazê-lo pensar a respeito durante todo o percurso até Thendara... já há problemas demais em sua mente...

     — Deve mesmo ir — murmurou o velho, resignado. — Viaje a Thendara e descubra o que sabem por lá a respeito de Hammerfell, o que se pode fazer para ajudar nosso povo. E também chegou o momento de procurarmos a família de sua mãe para saber que ajuda podem nos oferecer.

     Markos fez uma pausa, pensativo, antes de acrescentar:

     — Devo dizer ainda, meu rapaz, que é tempo de você conversar com alguém que saiba mais sobre as coisas do laran... esses "episódios" estão se tornando muito freqüentes, e me preocupo com o seu bem-estar.

     Conn não podia deixar de concordar.

     Conn seguiu para o sul sob uma chuva fina, que toldava os contornos das colinas. Ao passar pela extremidade meridional do antigo reino de Hammerfell e entrar no reino de Asturias, teve a impressão de que todos os Cem Reinos estendiam-se a seus pés. Um ditado antigo dizia que muitos pequenos reis nos Cem Reinos podiam subir ao topo de uma colina e contemplar o seu reino de fronteira a fronteira; e agora, passando de um pequeno reino para outro, fronteira após fronteira, Conn pôde constatar que era verdade. Ao sul, ele fora informado, ficavam os domínios de Hastur, que depois de longas guerras no passado tinha-se unido sob um regime único, no tempo do extraordinário Rei Regis IV.

     Ele atravessou o rio Kadarin na base das colinas, e entrou em Neskaya, que diziam ser a cidade mais antiga do mundo. Passou a noite ali, hospedado por uma família das terras baixas, para a qual Markos escrevera uma carta de apresentação. Prestaram-lhe as homenagens devidas, ele conheceu todos os filhos e filhas. Conn não era tão jovem e ingênuo para não compreender que aquela homenagem não era pessoal, mas sim ao seu título e herança; mesmo assim, era inebriante para um rapaz de sua idade. Foi-lhe transmitido que seria bem-vindo ali por um período quase que indefinido, mas ele recusou, gentilmente — sua missão o pressionava a seguir em frente.

     Ao pôr-do-sol do terceiro dia ele passou pelo lago nublado de Hali, com seus estranhos peixes e as ruínas reluzentes da grande Torre que outrora se erguia ali, e que permaneceria para sempre sem ser reconstruída, como um memorial à loucura de se travar uma guerra com laran. Conn não tinha certeza se compreendia o raciocínio por trás disso; se existia uma arma tão poderosa, sem dúvida a coisa mais misericordiosa a fazer, em tempo de guerra, era usá-la de uma vez e acabar com o conflito o mais possível, antes que pudessem ocorrer mortes adicionais; mas, por outro lado, ele podia perceber o perigo se tal arma caísse nas mãos do lado errado, o que acarretaria um terrível desastre. E quando pensou um pouco mais a respeito, Conn chegou à conclusão que nem o mais sábio seria capaz de dizer qual era a causa mais justa.

     Ele dormiu naquela noite à sombra das ruínas; se havia fantasmas ali, não perturbaram o seu sono.

     Ele se lavou pela manhã num abrigo de viajantes, penteou os cabelos vermelhos e vestiu a roupa limpa que trouxera no alforje. Comeu o que restava da comida que levava, mas isso não o preocupou; sempre caçara para seu sustento, e agora se achava bem provido de dinheiro, por seus modestos padrões, sabia que em breve alcançaria áreas mais povoadas, onde poderia comprar comida e bebida. Como uma criança ansiosa por um petisco, ele mal podia esperar o momento de conhecer a cidade grande.

     Logo depois do meio da manhã, ele percebeu que entrava nos arredores da cidade. Os caminhos eram mais largos e mais lisos, as construções eram mais antigas e maiores; a maioria dava a impressão de que era habitada há muito tempo. Conn sentira-se orgulhoso de seu traje novo; mas embora fosse feito do pano mais resistente, ele não demorou a perceber, observando os outros jovens de sua idade nas ruas, que mais parecia um camponês, pois ninguém se vestia daquele jeito, à exceção de uns poucos velhos camponeses, com lama nas botinas.

     E por que devo me importar? Afinal, não vou ao baile de Solstício de Verão do rei! Mas, para si mesmo, ele confessou que se importava. Não tinha um grande desejo de conhecer a cidade, mas se o curso de seu destino o levava até lá, preferia parecer um cavalheiro.

     Já era perto de meio-dia, com o sol vermelho alto no céu, quando ele avistou a distância as muralhas da cidade velha de Thendara. Menos de uma hora depois, entrou na cidade propriamente dita, dominada pelo antigo castelo dos lordes de Hastur.

     A princípio, ele se contentou em circular pelas ruas, observando tudo; mais tarde, fez uma refeição numa taverna barata. Ali, alguém passou e acenou para ele, informalmente. Conn nunca vira o homem antes, e especulou se não seria apenas um gesto de cordialidade com um estranho, ou se o desconhecido o confundira com alguém.

     Ao terminar a refeição, ele pagou a conta, e indagou onde ficava a casa de Valentine Hastur, como Markos o instruíra. Enquanto seguia pelas ruas, de acordo com as instruções, ele tornou a especular se não estaria sendo confundido com alguém, já que alguns homens lhe acenaram de maneira cordial, como se fosse um conhecido.

     Encontrou a casa de Valentine Hastur sem maiores dificuldades; mas hesitou antes de se aproximar da porta. Aquela hora do dia, o lorde podia ter saído para tratar de seus negócios. Não, Conn disse a si mesmo, o homem era um nobre, não um camponês; não tinha campos a arar, nem rebanhos para cuidar, quem tivesse negócios a tratar com ele provavelmente o procuraria em sua casa; portanto, ele deveria estar ali.

     Ele subiu os degraus. Um servo abriu a porta, e Conn indagou cortesmente se aquela era a casa de Lorde Valentine Hastur.

     — É, sim, se isso é da sua conta — respondeu o homem, contemplando a aparência camponesa de Conn com um desdém mal disfarçado.

     — Diga a Lorde Valentine Hastur que o Duque de Hammerfell, um parente seu das Hellers, solicita uma audiência.

     O homem parecia surpreso — como não podia deixar de ficar, pensou Conn — mas introduziu-o numa ante-sala e foi transmitir o recado. Depois de algum tempo, Conn ouviu passos firmes aproximando-se da ante-sala — obviamente, pensou ele, os passos do dono da casa.

     Um homem alto e esguio, os cabelos vermelhos começando a ficar brancos da idade, Valentine Hastur entrou na ante-sala, a mão estendida em saudação.

     — Alastair, meu caro, eu não esperava vê-lo a esta hora. Mas o que é isso? Nunca pensei que se deixasse ver em casa, muito menos na rua, com trajes assim! Você e a moça já marcaram a data? Meu primo me disse ontem que só estava esperando que você o procurasse para conversar.

     A esta altura, Conn franziu o rosto; era evidente que o lorde não falava com ele, mas sim com outro homem por quem o tomara. Valentine Hastur continuou a falar, sem perceber a expressão:

     — E como está o cachorrinho? Sua mãe gostou? Se não gostou, ela é difícil de agradar. Mas o que posso fazer por você?

     Foi só então que ele se virou para fitar Conn outra vez. E parou, aturdido.

     — Espere um pouco... você não é Alastair! Mas sem dúvida parece com ele! Quem é você afinal, meu rapaz?

     — Não estou entendendo — disse Conn, a voz firme. — Sou grato por sua acolhida, senhor, mas quem pensa que sou?

     Valentine Hastur respondeu num tom bem pausado:

     — Pensei, é claro, que você era Alastair de Hammerfell... o jovem duque. Eu... pensei que era um jovem que conheço desde que você... ele... era bebê, de cuja mãe sou grande amigo. Mas...

     — Isso não é possível. — Aquela cordialidade não podia deixar de causar alguma impressão em Conn. — Senhor, peço que me desculpe. Sou Conn de Hammerfell, e agradeço sua acolhida, mas...

     Lorde Valentine parecia irritado... não, pensou Conn, perplexo. E, depois, sua expressão se tornou radiante.

     — Conn... mas é claro! O irmão gêmeo... mas sempre ouvi dizer que você morreu no incêndio de Hammerfell!

     — Foi meu irmão gêmeo quem morreu, senhor... junto com minha mãe. Eu lhe dou minha palavra solene de que sou o Duque de Hammerfell, o único homem vivo que pode reivindicar esse título.

     — Está enganado — disse Valentine, gentilmente. — Compreendo agora que houve um terrível equívoco; sua mãe e seu irmão vivem, meu rapaz, mas pensam que você morreu no incêndio. Posso lhe assegurar que a Duquesa e o Duque de Hammerfell estão muito vivos.

     — Está brincando, é claro — murmurou Conn, sentindo-se atordoado.

     — Não, não estou; que Zandru me leve se eu gracejar num assunto como este. Começo a entender tudo agora. Sua mãe, meu rapaz, viveu por muitos anos com a triste convicção de que seu filho morrera na queda de Hammerfell. Posso presumir que você é o outro gêmeo?

     — Sempre acreditei que os dois haviam morrido no incêndio — balbuciou Conn, chocado. — Conhece meu irmão, senhor?

     — Tão bem quanto meus próprios filhos — respondeu Lorde Valentine, observando o rosto de Conn. — Agora que o examino com mais atenção, posso perceber pequenas diferenças; seu andar é um pouco diferente, os olhos estão dispostos no rosto de outro modo. Mas é muito parecido com ele.

     O rosto de Valentine estava iluminado por um intenso excitamento; depois de uma breve pausa, ele acrescentou:

     — Gostaria que me dissesse por que veio a Thendara, Conn... se permite chamá-lo assim, como um parente.

     Ele se adiantou e envolveu o homem mais jovem num abraço de parente.

     — Seja bem-vindo à minha casa, meu caro rapaz.

     Conn piscou, aturdido; encontrar um parente afetuoso, onde esperava deparar com um estranho, era um choque, embora não desagradável.

     — Falou de minha mãe... quer dizer que ela vive por aqui?

     — Exatamente; jantei em sua casa ontem à noite. Mas antes mesmo de me explicar por que veio a Thendara, sugiro que a procure. Com sua permissão, eu gostaria de acompanhá-lo, ser o primeiro a lhe dar a notícia.

     — Está bem — murmurou Conn, visivelmente abalado. — Devo primeiro ver minha mãe.

     Valentine foi até sua escrivaninha, sentou e escreveu rapidamente umas poucas linhas; depois, chamou um servo e disse:

     — Leve esta mensagem imediatamente à Duquesa de Hammerfell, e avise-a que lá estarei dentro de uma hora. É melhor assim, meu rapaz — acrescentou ele para. Conn — devemos lhe dar tempo de se preparar para receber visitas. E quero lhe oferecer um pouco de carne fria e pão, pelo menos. Viajou muito para chegar até aqui e podemos comer antes de partir.

     Conn, no entanto, quase não conseguiu comer. Enquanto seguiam juntos pelas ruas, a cavalo, Lorde Valentine disse:

     — Este é um dia de grande alegria para mim; estou ansioso em ver o rosto de sua mãe quando o contemplar. Ela lamentou-o por muito tempo como morto. Por que nunca a procurou antes? Onde tem vivido?

     — Escondido, nas terras de meu pai, convencido de que era o último da linhagem de Hammerfell, sem qualquer parente vivo, contando apenas com a ajuda de um antigo servidor de meu pai, Markos.

     — Lembro do velho Markos — disse Valentine. — Sua mãe pensava que ele também perecera; deve estar muito velho agora.

     — Está, sim, mas é forte e determinado para um homem de sua idade. Ele tem sido como um pai para mim, mais do que muitos parentes.

     — E por que veio agora até aqui?

     — Para apelar por justiça ao Rei Hastur, não apenas para meu povo, mas para toda as Hellers. Os lordes de Storn não se contentaram em destruir minha família e minha linhagem; também tentam deixar à míngua ou matar meus camponeses, todos os homens do meu clã, queimando suas casas e expulsando-os das terras que cultivam há gerações... a fim de poderem usar toda a região como pastagem, já que as ovelhas são mais lucrativas e dão menos problemas do que camponeses.

     Valentine Hastur parecia perturbado.

     — Não sei se o Rei Aidan pode ou fará qualquer coisa a respeito, meu rapaz. É o privilégio do nobre fazer o que bem quiser em suas próprias terras.

     — E para onde as pessoas iriam? Devem ficar à míngua ou morrer pela conveniência de um nobre? Pessoas não são mais importantes do que ovelhas?

     — Concordo plenamente com você. Sempre me opus a essas coisas nas terras de Hastur. De qualquer forma, Aidan provavelmente não vai interferir... na verdade, não pode interferir, por lei, nos assuntos internos de seus nobres, caso contrário não manteria o trono por muito tempo.

     Isso deu o que pensar a Conn, que ficou em silêncio, bastante preocupado.

    

     Ao chegarem à casa em que Erminie vivera por tanto tempo, passaram pelo portão, e no mesmo instante Conn murmurou, atordoado:

     — Eu conheço esta casa, mas sempre pensei que não passava de um sonho!

     Entraram no pátio e uma velha cadela se adiantou, com um latido inquisitivo.

     — Eu a conheço há anos, — comentou Valentine, pesaroso —, mas sempre fui um estranho para ela. Venha, Jóia. Boa menina... está tudo bem, sua tola...

     A cadela farejou os joelhos de Conn e, no instante seguinte, entrou num frenesi total, balançando o rabo e pulando ao seu redor. Erminie, passando pela porta no outro lado, disse:

     — Jóia, comporte-se! O que...

     Levantando os olhos, ela fitou Conn... e desabou num banco do jardim, quase desfalecida. Valentine correu para ampará-la. Depois de um momento, ela abriu os olhos e balbuciou:

     — Eu vi... eu vi...

     — Não estava sonhando — disse Valentine, a voz firme. — Foi um choque para mim também, não posso imaginar como aconteceu, mas é seu filho, ele está vivo. Conn, meu rapaz, venha até aqui e mostre à sua mãe que é você, que é real.

     Conn adiantou-se, foi se ajoelhar ao lado da mãe. Erminie pegou as mãos do filho, apertando com tanta força que até doeu.

     — Como aconteceu? — indagou ela, as lágrimas escorrendo pelas faces. — Procurei por você e Markos no bosque, durante toda a noite.

     — E ele por você — disse Conn. — Cresci ouvindo a história dessa busca. Mesmo agora, ainda não consigo entender como pode ter acontecido.

     — O importante é que você está vivo — murmurou Erminie, erguendo-se para beijá-lo. — Aqui, Jóia, você também o reconhece, hem? Se eu não tivesse acreditado, Jóia me convenceria; eu costumava deixar vocês dois sem mais ninguém para guardá-los... ela era uma excelente babá.

     — Acho que me lembro — disse Conn, permitindo que a velha cadela pulasse em seu colo e abraçando-a.

     Uma sucessão de pequenos latidos partiu de um canto; um cachorrinho peludo correu para eles, mordendo a mão de Conn com seus pequenos dentes afiados. Conn riu e empurrou o cachorrinho gentilmente.

     — Não, cachorrinho, você não vai almoçar meus dedos! Vamos, seja amistoso.

     Erminie interveio, bruscamente:

     — Quieto, Cobre!

     Jóia soltou um rosnado profundo, tentou afastar o filhote, enquanto Conn murmurava:

     — Quer dizer que não gosta de mim como a velha Jóia, hem, cachorrinho... Cobre, não é? Um bom nome para um bom cachorrinho.

     Eles sentaram no chão, com os cachorros pulando e brincando. Foi nesse instante que uma voz, que Conn descobriu ser familiar como um sonho, disse da porta:

     — Ouvi os cachorros e vim imediatamente. Está tudo bem, parenta?

     Floria adiantou-se para pegar no colo o cachorrinho Cobre, repreendendo-o gentilmente; Conn, incapaz de se mexer, olhava fixamente para a mulher que nunca acreditara que pudesse ser real.

     — Sonhei com você — murmurou ele, atordoado.

     Ele era destreinado como telepata, não possuía qualquer habilidade para se abster do contato impulsivo; por um instante, Conn sentiu que toda a sua alma, sua história, seu próprio ser, projetavam-se para envolvê-la, e apenas por esse instante ele sentiu também a reação impulsiva da moça. Os olhos de Floria encontraram-se com os dele, as mãos estenderam-se em sua direção; recordando que podia sentir que conhecia Conn tão bem quanto a si mesma, mas nunca o vira antes, Floria recuou, surpresa e apreensiva, como devia fazer na presença de um estranho. E murmurou, a voz trêmula:

     — Você é muito parecido com seu irmão.

     — Estou começando a acreditar nisso, de tantas pessoas que já me disseram — respondeu Conn. — E a mãe quase desfaleceu quando me viu pela primeira vez.

     — Julgava-o morto há muitos anos — explicou Erminie. — Recuperar um filho vivo depois de metade de uma vida... Alastair tem dezoito anos, e essa era a minha idade quando vocês nasceram.

     — Quando me encontrarei com meu irmão? — indagou Conn, ansioso.

     — Ele foi guardar os cavalos, estará aqui em um ou dois minutos — informou Floria. — Passeamos juntos esta manhã, fora das muralhas da cidade. O pai permitiu, já que deveremos casar em breve.

     Conn teve um choque ao ouvir isso, mas sabia que deveria ter previsto; era evidente agora que suas visões da vida na cidade — assim como a primeira visão de Floria — vinham do irmão gêmeo, que não sabia que sobrevivera.

     Erminie, que observara o diálogo silencioso entre Conn e Floria, pensou: Oh, não, o que poderá resultar disso? Mas era apenas um primeiro encontro, o filho que acabara de reencontrar parecia um homem decente e honrado; e se Markos o criara, não poderia ser de outra forma. Dificilmente seria o tipo de abordar a esposa prometida do irmão, depois de compreender a situação. Contudo, consciente da profundeza dos sentimentos de Conn, ela compreendeu o sofrimento que o rapaz enfrentaria e se perguntou o que poderia fazer para aliviá-lo.

     — Veio para cá sem sequer saber que estávamos vivos, Conn?

     — Eu deveria saber pelo menos que meu irmão gêmeo vivia, pois ouvi dizer, pelos que conhecem mais de laran do que eu, que o vínculo entre gêmeos é o mais forte de todos os vínculos; e durante o último ano, mais ou menos, vinha sendo assediado por imagens de lugares em que nunca estivera, e rostos que nunca vira. Sabe muita coisa sobre laran e a arte da pedra-da-estrela, mãe?

     — Sou técnica na Torre de Thendara há dezoito anos. Mas tenho pensado que, no momento em que Floria estiver bem treinada e puder me substituir, posso tomar a decisão de sair da Torre e me casar de novo.

     Floria ficou ruborizada e disse:

     — Não é possível, parenta. Alastair nunca permitiria.

     — A decisão será sua, criança — declarou Erminie. — Mas seria uma pena se deixasse seu trabalho só por causa do egoísmo de um homem.

     — É verdade que quase não temos conversado a respeito. — Floria tornou a fitar Conn e perguntou-lhe: — E você, parente, é um telepata; foi treinado em alguma Torre?

     — Não. Sempre vivi nas montanhas e não tive essa oportunidade. Havia outras coisas para me preocupar, como defender meu povo contra os propósitos malignos de Storn.

     Erminie compreendeu que a conversa se desviara consideravelmente do que tencionara perguntar. E disse agora:

     — Quer dizer que Storn sabe que você vive?

     — Sabe, sim, e a rivalidade de sangue ressuscitou, lamento dizer, mãe. Durante muitos anos ele pensou que todo o nosso clã morrera.

     — Pensei... esperava... que Storn acreditasse que estávamos todos mortos, e com isso a rivalidade de sangue acabasse, embora tenha jurado que ajudaria seu irmão a recuperar nossas terras legítimas.

     — Poderia ter acabado, mãe, se eu me contentasse em permanecer escondido e deixar que nosso povo fosse maltratado, mas não tem ainda quarenta dias que eu comuniquei que se continuasse a saquear e queimar, teria de ajustar contas com um Hammerfell.

     Conn explicou então o ataque ao bando incendiário de Storn.

     — Não posso culpá-lo por isso, meu filho — disse Erminie, afetuosamente, inclinando-se para abraçá-lo.

     Foi nesse instante que Alastair entrou no jardim. Viu as pessoas sentadas no chão com os cachorros, e Conn nos braços da mãe, compreendeu instintivamente o que acontecera.

     Para lhe fazer justiça, sua primeira emoção foi de afeto. Assoviou para os cachorros e eles vieram em sua direção, deixando as pessoas no chão desembaraçadas. Erminie levantou-se de um pulo, dizendo:

     — Oh, Alastair, aconteceu a coisa mais maravilhosa!

     — Encontrei com Lorde Valentine no pátio — disse ele, sorrindo para Conn, o seu sorriso franco e encantador. — Então você é meu gêmeo. Seja bem-vindo, irmãozinho... sabe que sou o mais velho?

     — Sei, sim — respondeu Conn, achando estranho que Alastair sentisse a necessidade de levantar o assunto antes mesmo que se conhecessem melhor. — Por vinte minutos, mais ou menos.

     — Vinte minutos ou vinte anos... dá no mesmo.

     Alastair abraçou-o.

     — O que faz na cidade?

     — O que espero que faria em meu lugar — respondeu Conn. — Vim pedir a ajuda do Rei Hastur para recuperar nossas terras e proteger nosso povo.

     — Neste ponto estou a sua frente — disse Alastair. — Já falei com o Rei Aidan a respeito e ele prometeu ajuda.

     Ele sorriu para Conn. Os gêmeos, como duas imagens no espelho, uma rude, outra refinada, ficaram se olhando.

     — Então foi você! — exclamou Conn. — Pensei que era eu quem pedia a ajuda do rei!

     Alastair deu de ombros, sem compreender o que o laran de Conn lhe transmitia.

     — Fico contente que tenha se apresentado à nossa mãe — disse ele. — E a Dama Floria, minha esposa prometida, que em breve será sua cunhada.

     E mais uma vez, pensou Conn, por que ele está me esfregando na cara que é mais velho e sempre chegará na minha frente em todas as coisas? De qualquer forma, ele é o verdadeiro Duque de Hammerfell; enquanto eu presumia sua morte, tinha todo o direito de me conduzir como o duque, mas agora que sei que ele vive, devo fazer o melhor que puder para apoiá-lo. Ele fez uma reverência e disse, à sua maneira mais cortês:

     — Meu irmão e meu lorde.

     Alastair abraçou-o apertado, e murmurou:

     — Não há necessidade dessas formalidades entre nós, irmão; haverá tempo suficiente para isso quando eu estiver reinando em Hammerfell, com você ao meu lado. — Depois ele sorriu, sacudiu a cabeça. — Mas de onde tirou essa roupa de palhaço? Devemos providenciar imediatamente roupas apropriadas à sua posição; mandarei o aviso para meu alfaiate esta tarde.

     Conn ficou espantado; será que o irmão não tinha boas maneiras?

     — Este traje é novo, do melhor pano — disse ele, muito tenso. — Seria um desperdício não usá-lo.

     — Não precisa desperdiçá-lo; pode dar ao mordomo, pois é condizente com a posição dele — interveio Erminie, em apoio a Alastair.

     — Servia muito bem para mim nas Hellers — insistiu Conn, defensivo, mas orgulhoso. — Não sou um dândi da cidade.

     — Mas se vai comparecer a uma audiência com o Rei Aidan... e ele deve saber que somos dois — disse Alastair, mais diplomático —, não pode ir como um camponês que acabou de sair de uma plantação de nabos. Acho melhor usar por enquanto algumas das minhas roupas; não é orgulhoso demais para aceitar roupas emprestadas de seu gêmeo, não é mesmo, irmão?

     O sorriso de Alastair desarmou-o, Conn sentiu de novo que era bem-vindo; afinal, levaria algum tempo para conhecer direito o irmão. Ele sorriu para Alastair e disse:

     — Que todos os Deuses me livrem disso! Obrigado... irmão!

     Erminie levantou-se.

     — Vamos entrar na casa agora. Conn, quero que me conte tudo a seu respeito... e talvez possamos descobrir como foi possível que não tornássemos a nos encontrar até agora! O que aconteceu durante todo esse tempo em Hammerfell? Como está Markos? Ele foi bom para você, meu filho? Floria, minha cara, fique e jante conosco. Vamos, meus filhos...

     Ela fez uma pausa, soltando um suspiro de prazer intenso, mas incrédulo, antes de acrescentar:

   — Como meu coração sente-se feliz por dizer isso de novo, depois de tantos anos!

     Estendendo uma mão para cada um, ela levou-os para a sala, seguidos por Floria e os cachorros.

    

     Foi o assunto mais falado em Thendara naquele verão, a história estranha e romântica da perda e reencontro do segundo filho da Duquesa de Hammerfell. Até mesmo Erminie cansou-se de repeti-la, embora se orgulhasse da atenção concedida ao filho recém-descoberto. Ela passou a gostar tanto de Conn que havia ocasiões em que se sentia desleal com Alastair, que fora um companheiro tão gentil e atencioso durante todos aqueles anos.

     Embora há muitos anos se soubesse em Thendara que a duquesa viúva não gostava de receber, ao final do verão ela ofereceu um pequeno baile, a fim de anunciar o contrato formal de casamento de seu filho Alastair com Dama Floria.

     Ao longo daquele dia, nuvens ameaçadoras foram sopradas das Montanhas Venza. Pouco antes do pôr-do-sol, a chuva forte começou a cair, abatendo-se sobre a cidade com o maior impacto; os convidados chegaram encharcados e foi preciso acender enormes fogos para que secassem um pouco, antes de poderem aproveitar o suntuoso jantar e o baile, que era sempre um destaque na sociedade darkovana.

     Mas as roupas úmidas não arrefeceram nem um pouco o espírito da reunião. Alastair e Floria ficaram no vestíbulo, recebendo os convidados, enquanto Conn escoltava e ajudava a mãe. A dança estava no auge quando Gavin Delleray chegou; ele deu em Alastair um abraço de parente, beijou o rosto de Floria. Gavin era um jovem atarracado, vestindo-se no rigor da moda. O calção de seda descia até os joelhos, as meias contornando as pernas grossas, o casaco de cetim vermelho, com pedras-de-fogo adornando a gola alta da camisa. Os cabelos estavam no penteado em voga, com cachos redondos caindo para os lados, mal parecendo naturais, mais como uma peruca rígida e artificial, pintada com listras em todas as cores do arco-íris. Alastair olhou quase com inveja; ele tentava seguir a moda e se empenhava por uma aparência de dândi, mas não chegava nem perto de Gavin naquela brilhante plumagem.

     Enquanto Gavin entregava o manto úmido a um servo, Alastair murmurou para Conn:

     — Jamais serei capaz de ficar tão na moda quanto ele.

     — E deve agradecer aos Deuses por isso — respondeu Conn. — Acho que ele parece um tolo... como um boneco vestido.

     — Aqui entre nós, Conn, concordo com você — sussurrou Floria. — Eu nunca pensaria em pintar os cabelos de púrpura e armá-los com cola desse jeito!

     Quando Gavin virou-se para eles, com um sorriso franco, Conn sentiu-se envergonhado. Apesar do requinte absurdo da arrumação, Conn gostava mais de Gavin do que de qualquer outro dos amigos de Alastair. O irmão zombava implacavelmente de Conn por seu gosto camponês; mesmo depois de se descartar de seu traje rústico, passando a usar roupas como as de Alastair, ele ainda não se deixara persuadir a usar anéis ou outras jóias, como a moda exigia, muito menos as elaboradas echarpes. Ironicamente, Gavin fora o único, no círculo de amizade de Alastair, que se abstivera de atormentá-lo por sua recusa em seguir a moda. Agora, ele pegou a mão de Conn afetuosamente e disse:

     — Boa noite, primo. Fico contente que esteja aqui conosco esta noite. Floria, minha mãe avisou Dama Erminie que a rainha virá ao baile?

     — Recebemos o aviso — respondeu Floria. — Mas receio que ela não gostará da diversão, pois é surda demais para apreciar a música, e não pode dançar com aquela perna ruim.

     — Ora, isso não é problema — comentou Gavin, jovialmente. — Ela poderá jogar cartas com as outras velhas damas, e beijar todas as moças; e se houver muitos doces... e a cozinheira de Dama Erminie é famosa pelos doces... tenho certeza que ela vai adorar.

     Ele levantou as mãos para os cabelos, hesitantes, antes de acrescentar:

     — Receio que a umidade tenha passado pelo capuz, deixando meus cabelos molhados; como estou, amigos?

     — Como uma bola de plumas servindo de alvo numa competição de arco e flecha — zombou Conn. — Se começarem a disparar, é melhor você se esconder num armário, ou vão acertá-lo.

     Gavin sorriu, não se sentindo absolutamente ofendido.

     — Perfeito! É exatamente assim que este penteado deve parecer, primo.

     Ele passou para a sala principal, foi fazer uma reverencia sobre a mão de Erminie.

     — Minha dama.

     — Estou contente que tenha vindo, Gavin — disse Erminie, sorrindo com sincera afeição para o amigo de infância de seu filho. — Pode cantar para nós esta noite?

     — Claro que sim! — respondeu Gavin, sorrindo. — Mas espero que Alastair também nos ofereça uma canção.

     Mais tarde, cercado pelos amigos, Gavin postou-se junto da harpa alta e tocou; em seguida, chamou Alastair para o seu lado. Depois de uma breve conferência, aos sussurros, Alastair cantou uma melodiosa canção de amor, olhando para Floria.

     — É uma de suas canções, Gavin? — perguntou Floria.

     — Não, não; esta é uma canção folclórica de Asturias. Mas a pergunta foi procedente; muitas das canções que compus baseiam-se no estilo antigo desse país. E, diga-se de passagem, Alastair as canta melhor do que eu. Você também canta, Conn?

     — Só umas poucas canções das montanhas.

     — Pois então cante para nós! — exortou Gavin. — Adoro as velhas canções das montanhas!

     Mas Conn sorriu e recusou. Mais tarde, quando a dança começou, ele também se recusou a participar, alegando:

     — Só conheço as danças das montanhas. Ficaria envergonhado de mim, irmão. Eu o desgraçaria na presença de seus amigos.

     — Floria nunca o perdoará se não dançar com ela — insistiu Alastair.

     De acordo com o costume, ele próprio conduziu Floria nas primeiras danças. Gavin ficou ao lado de Conn, observando-os enquanto se afastavam.

     — Não foi por mera polidez que lhe pedi para cantar — comentou ele. — Nunca me canso de ouvir as canções folclóricas das montanhas; a maior parte da minha música foi escrita nesse idioma. Se não quer cantar nesta companhia... e não o culpo por isso, já que não há um único homem por aqui, à exceção de Alastair, que realmente compreenda a música... talvez queira um dia visitar meu estúdio e cantar para mim ali. É possível que você conheça algumas canções que eu nunca tenha ouvido.

     — Pensarei a respeito — prometeu Conn, cauteloso.

     Ele gostava de Gavin, mas nunca fora um artista, embora possuísse uma voz tão boa quanto o irmão. Nesse momento houve uma comoção na rua e uma batida na porta. O camarista de Erminie foi abrir, e recuou aturdido; no instante seguinte, recuperando o controle, ele anunciou:

     — Sua Graça Aidan Hastur de Elhalyn e sua Graça a Rainha Antonella!

     A dança parou e todos os olhos se viraram para a porta, enquanto o casal real tirava os mantos. Conn reconheceu no mesmo instante o homem com quem falara — ou teria sido seu irmão? — no sonho ou visão. A Rainha Antonella era baixa e gorda, com uma perna mais curta do que a outra, que o sapato alto nesse pé não chegava a compensar; o Rei Aidan também era baixo, de cabelos brancos, nada tinha de imponente. Mesmo assim, houve um silêncio respeitoso, enquanto Erminie se adiantava e fazia uma reverência.

     — Minha dama, seja bem-vinda. Meu lorde, é uma honra inesperada.

     — Não se preocupe com formalidade — disse o rei, jovialmente. — Estou aqui esta noite apenas como um amigo. A história de seu filho tem sido muito repetida; já ouvi tantas versões que queria descobrir o que aconteceu de fato.

     Ele riu alto, deixando todos à vontade. Alastair, com Floria no braço, adiantou-se para cumprimentar o rei.

     — E então, meu rapaz, pensou bem naquele assunto que conversamos? — indagou Aidan.

     — Pensei, sim, Sua Graça.

     — Pois então vamos conversar a respeito; e eu gostaria também de falar com seu irmão.

     Alastair gesticulou para Conn.

     — Claro. Mas eu sou o duque, e a decisão final é minha, vai dom.

     — Tem toda razão, mas seu irmão sempre viveu naquela região, e pode nos contar com mais precisão o que tem acontecido por lá.

     Enquanto isso, Erminie fez sinal aos músicos para que recomeçassem a tocar, e aproximou-se da rainha.

     — Enquanto os homens conversam, Sua Graça, não quer me acompanhar para beber alguma coisa? — convidou ela, polidamente, oferecendo o braço à Rainha Antonella.

     A idosa rainha olhou para Alastair e Conn.

     — Como duas vagens numa árvore-de-plumas, não é mesmo? Erminie, você é afortunada por ter não apenas um filho bonito, mas dois — comentou ela, com um sorriso melancólico.

     Ela sorriu para Gavin, ergueu-se na ponta dos pés para beijá-lo no rosto, afetuosamente.

     — Como você ficou alto!

     Erminie não pôde deixar de sorrir. Gavin era baixo, mas a Rainha Antonella era tão pequena que ao seu lado o cantor parecia ter uma altura formidável. A rainha virou-se para o Rei Aidan e acrescentou:

     — Ele não ficou bonito? Não acha que tem os olhos da querida Mareia?

     — Eu gostaria que minha mãe estivesse viva para ouvi-la dizer isso, parenta — murmurou Gavin, inclinando-se com a maior deferência sobre a mão da rainha. — E agora, enquanto meus parentes conversam com Sua Graça, a Dama Floria não quer me honrar com uma dança?

     Erminie acenou com a cabeça para que Floria dançasse com Gavin, e levou a Rainha Antonella para a outra sala, enquanto seus filhos seguiam com o rei para uma pequena sala de visitas, ao lado do salão em que se realizava o baile.

     Assim que sentaram, junto ao fogo, Alastair serviu vinho, que o rei aceitou, levantando seu copo em silêncio. Depois de um momento, ele disse:

     — Vamos beber à restauração de Hammerfell? Acha que pode prometer ser meu homem fiel nas montanhas, Alastair?

     — Acho que sim. Isso significa que decidiu me emprestar seu exército, senhor?

     — Não é tão simples assim, Alastair. Se eu enviasse um exército sem qualquer provocação, seria uma invasão do país; mas se houver um levante por lá, então posso mandar soldados para restabelecer a ordem. Seu pai... o velho Duque de Hammerfell... tinha soldados; o que lhes aconteceu quando ele morreu?

     Foi Conn quem respondeu:

     — A maioria dos homens que serviam a meu pai voltou para suas terras depois que ele morreu; não podiam travar uma guerra sem líder contra os homens de Storn. Mas há alguns que permaneceram perto de nós, a nosso serviço; como os que nos acompanharam quando atacamos os homens de Storn e tentamos impedir que incendiassem as casas dos meus camponeses...

     — Seus camponeses? — murmurou Alastair.

     Conn parecia não ter ouvido, mas o Rei Aidan levantou os olhos e fitou atentamente os gêmeos. Conn, que era um telepata, sentiu que o rei especulava se aquela rivalidade poderia criar problemas para os dois. Mas o rei não manifestou sua preocupação, limitando-se a indagar:

     — Quantos homens há, Conn?

     — Talvez três dúzias, e alguns podem ter sido homens da guarda pessoal de meu pai.

     — E pode calcular quantos homens a mais se escondem, mas estariam dispostos a se apresentar num levante contra Storn?

     Conn pensou a respeito por um momento.

     — Não sei dizer com certeza. Não deve haver menos de duzentos, podem se elevar até trezentos, mas não sei se haveria mais do que isso. Com os homens da guarda pessoal de meu pai... — No fundo de sua mente, Conn ouviu o eco de Alastair, Meu pai, o que o deixou bastante perturbado; quase que a cada hora, tornava-se mais e mais consciente de seu laran. — ... pode haver até trezentos e cinqüenta, ao todo.

     Uma pausa e ele acrescentou:

     — Talvez seja melhor eu voltar e reuni-los, para ter certeza com quantos podemos contar.

     — Uma boa idéia — concordou o Rei Aidan. — Com menos de trezentos, você dificilmente poderia promover um levante contra Storn, que tem seu exército.

     Alastair interveio, em tom brusco:

     — Se alguém vai, irmão, deve ser eu; afinal, é minha terra... e eles são meus camponeses.

     Conn sentiu a raiva súbita do irmão. Quem ele pensa que é? Acha que pode se apresentar depois de tantos anos de espera e usurpar meu lugar?

     Era como se as palavras fossem pronunciadas em voz alta; e Conn experimentou, por sua vez, também um violento ímpeto de raiva, que ele sabia que Alastair não podia partilhar. É mesmo verdade o que ele diz; ele é o duque por nascimento. Para ele, no entanto, é apenas um título, uma história antiga. Eu vivi com aqueles homens, partilhei a pobreza deles, os sofrimentos... é a mim que eles procuram quando precisam de ajuda ou liderança. É somente o nascimento que pode fazer um Duque de Hammerfell? Os anos em que servi a meu povo nada significam?

     Embora as palavras aflorassem espontâneas e ele soubesse que Alastair não podia ouvi-las, Conn descobriu-se, impulsivamente, a clamar que o velho rei lhe desse uma resposta, mesmo sabendo que o Hastur não poderia fazê-lo — pelo menos por enquanto. Aidan fitava-o com uma expressão de simpatia. Conn recordou: Prometi servir lealmente a meu irmão; não pensara nisso.

     — Talvez seu irmão esteja certo, Alastair — comentou o rei, pensativo. — Os homens o conhecem, Conn sempre viveu entre eles...

     — Mais motivo ainda para que passem a conhecer seu verdadeiro duque! — exclamou Alastair.

     Aidan suspirou, procurou contemporizar:

     — Teremos de pensar a respeito. No momento, é preciso definir uma coisa: Alastair de Hammerfell, você será meu homem leal nas terras além do Kadarin?

     Espontaneamente, Alastair ajoelhou-se diante do rei, encostou os lábios em sua mão estendida.

     — Juro que sim, meu lorde.

     Alastair foi invadido por um sentimento de afeição por aquele rei, que era seu parente e lhe prometera ajuda na recuperação de suas terras. Conn observava sem qualquer movimento; mas Aidan fitou-o, e seus olhos se encontraram. Os pensamentos de Aidan eram tão nítidos para Conn que ele mal podia acreditar que o rei não os expressava em voz alta.

     Para a vida e a morte, sou seu homem, meu lorde.

     Sei disso. Não precisamos de compromissos falados, você e eu.

     Conn não sabia por que o amor e a lealdade haviam se tornado de repente tão claros entre os dois; antes daquela noite, nunca vira pessoalmente o rei; contudo, parecia que conhecera aquele homem por toda a sua vida, e mais ainda, que um vínculo tão forte ou mais forte do que aquele que tinha com o irmão o ligava e Aidan Hastur. Enquanto Alastair se levantava, Conn ajoelhou-se por um momento diante do rei; Aidan não falou, mas outra vez, por um instante, seus olhos se encontraram, e nada mais foi necessário. Conn podia sentir em Aidan uma perplexidade angustiada. Compreendeu que o rei lamentava nada poder fazer para inverter o que parecia ser agora uma injustiça, que o gêmeo errado nascera primeiro...

     — Que assim seja — declarou ele, em voz alta. — Nasci para cumprir o meu dever, como o senhor.

     — Acho melhor agora vocês voltarem para o baile, rapazes — disse Aidan. — Mesmo aqui, pode haver pessoas que não devem saber o que foi dito e prometido esta noite. Mas não devem perder tempo em ir para as montanhas, a fim de levantarem seu clã.

     Ele fez uma pausa, tomando a precaução de não olhar para nenhum dos dois quando acrescentou:

     — O clã de vocês.

     Para o melhor ou pior, pensou ele, com um sentimento próximo do desespero, eles teriam de resolver a questão, e o rei não poderia tomar parte, por uma questão de honra.

     Aidan levantou-se, gesticulou para que ambos também se levantassem. Foram para o salão, o rei se mantendo um pouco atrás. É melhor que os convidados em geral não saibam que tivemos uma conferência.

     Conn, sabendo que o irmão não possuía laran suficiente para acompanhar os pensamentos de Aidan, repetiu isso em voz baixa para Alastair, que acenou com a cabeça, sorrindo, e murmurou:

     — Tem toda razão, é claro.

     Floria aproximou-se assim que os viu.

     — Agora você tem de dançar comigo, Conn. É uma dança das montanhas e tenho certeza que a conhece.

     Ela arrastou-o para o círculo. Conn, embaraçado, mas sentindo que não podia recusar, juntou-se à dança. Lembrou abruptamente que dançara com Lilla no festival da colheita, e como aquilo era diferente; depois recordou como Markos o tirara da festa, e corou.

     Pararam ao final da música, com Floria na frente de Conn. Ela estava afogueada pela dança, as emoções turbilhonavam em seu íntimo. Em circunstâncias normais, ela sairia para o terraço, a fim de se refrescar um pouco, mas a chuva caía forte no pátio.

     A velha Jóia sentava muito quieta na porta. Floria afastou-se para afagá-la, distraída, demorou um pouco, para controlar o coração. E depois percebeu que Conn saíra para a chuva; ele parecia perturbado e seus olhos procuraram os de Floria, enchendo-a com um pesar profundo, que era quase uma dor física.

     Não tenho o direito de confortá-lo, não tenho o direito de emocioná-lo desse jeito.

     Mesmo assim, ela fitou-o nos olhos — o que já era, por si só, uma violação do decoro, para uma moça de Thendara.

     O decoro que se dane! Ele é praticamente meu irmão!

     Conn se aproximou, parecendo tenso e exausto.

     — O que foi, meu irmão? — perguntou Floria.

     — Tenho de partir — murmurou ele. — Pela palavra do rei, devo voltar a Hammerfell... a fim de reunir o exército que ainda tenho por lá.

     — Não! — Conn não percebera que Alastair se encontrava ao seu lado; e o irmão acrescentou: — Se alguém vai, se o rei quer que alguém vá, então serei eu, irmão. Eu sou Hammerfell; é o meu exército, não seu; será que ainda não entendeu isso?

     — Eu entendo, Alastair — respondeu Conn, tentando controlar sua raiva. — Mas o que você não entende...

     Ele fez uma pausa, suspirando.

     — Juro que não tenho a menor intenção de tentar usurpar seu lugar, meu irmão. Mas... — Conn fez outra pausa, procurando as palavras certas que o irmão compreenderia. — ...posso chamá-los de meus homens porque vivi entre eles durante toda a minha vida; eles me aceitam, me conhecem... e nem sabem que você existe.

     — Então é melhor eles começarem a aprender — declarou Alastair. — Afinal...

     — Você nem mesmo conhece o caminho para Hammerfell, irmão. No mínimo, devo ir também para guiá-lo...

     Floria interveio:

     — Com este tempo? — indagou ela, indicando a tempestade que ainda caía lá fora, a chuva intensa, o vento forte arremetendo contra a casa.

     — Não vou derreter numa poça, não sou feito de açúcar — respondeu Conn. — Vivi nas Hellers durante toda a minha vida, Floria, não tenho medo de tempestade.

     — Umas poucas horas não farão a menor diferença — protestou Floria. — Pode ser tão urgente assim que você tenha de partir durante uma tempestade e no meio da noite? E deixar que nosso noivado fique incompleto, Alastair?

     — Pelo menos isso devemos concluir — concordou Alastair, aliviado. — Vou procurar minha mãe e seu pai. Cabe a eles a decisão final a respeito.

     Ele afastou-se, deixando Floria e Conn juntos, fitando um ao outro, com olhos assustados, perturbados.

     Alastair atravessou a multidão de convidados, foi falar com Gavin Delleray, na harpa. Gavin dedilhou um acorde, e todos ficaram em silêncio, enquanto Erminie e Conn iam se postar ao lado de Alastair. Todos os olhos se viraram para Floria. O pai pegou-a pelo braço e levou-a para junto dos Hammerfells. Alastair falou, em sua voz ressonante de cantor:

     — Meus caros amigos, não desejo interromper as festividades, mas soube que minha presença é necessária com urgência em Hammerfell; assim, peço que me perdoem se tratar logo do assunto que nos reuniu aqui esta noite... Mãe?

     Erminie pegou a mão de Floria e franziu o rosto de leve para Alastair.

     — Não fui avisada de qualquer mensageiro, meu filho — disse ela, baixinho.

     — Não houve nenhum — sussurou Alastair, em resposta. — Explicarei mais tarde... ou Conn lhe contará. Mas eu não poderia partir com a cerimônia incompleta, sem a promessa expressa de Floria.

     Conn parecia um pouco aliviado. Foi para o lado do irmão, enquanto a Rainha Antonella se adiantava, claudicando. Ela tirou do dedo mínimo roliço, branco e liso, um anel com pedras verdes.

     — Um presente para a noiva — disse ela, enfiando o anel no dedo de Floria, onde ficou bastante folgado. A rainha ergueu-se na ponta dos pés para beijar as faces rosadas da moça. — Seja muito feliz, minha querida criança.

     — Obrigada, Sua Graça — murmurou Floria. — É um anel lindo, e vou apreciá-lo sempre como um presente seu.

     Antonella sorriu, mas no instante seguinte seu rosto se contraiu, ela soltou um grito, levou a mão às rendas na garganta, cambaleou e caiu de joelhos. Conn agachou-se no mesmo instante para ampará-la, mas a rainha era um peso morto em seus braços, e ele baixou-a para o chão.

     Erminie foi se ajoelhar ao seu lado, o Rei Aidan inclinou-se para a esposa. Antonella abriu os olhos e gemeu, mas parecia que estava com o rosto todo torto, a boca virando para baixo. Ela murmurou alguma coisa; Erminie falou em tom tranqüilizador, com o corpo pequeno e roliço em seus braços.

     — Um derrame — murmurou Erminie para Aidan. — Ela não é jovem, poderia ter acontecido em qualquer momento dos últimos anos.

     — Era o que eu temia — sussurrou o rei, ajoelhado ao lado da esposa. — Está tudo bem, minha querida. Estou aqui, ao seu lado. Vamos levá-la para casa.

     Os olhos da rainha fecharam, ela parecia dormir. Gavin Delleray levantou-se, dizendo:

     — Vou mandar buscar uma cadeira.

     — Traga uma liteira grande — disse Aidan. — Ela não pode sentar.

     — Como Sua Graça achar melhor.

     Ele saiu para a chuva, voltou pouco depois, chamando os lacaios para abrirem as portas, a fim de que os carregadores pudessem passar com a liteira. Como se estivesse a um milhão de quilômetros de distância, Conn notou que a chuva arruinara por completo o traje e penteado elaborados de Gavin, mas ele parecia não se importar. Os carregadores se abaixaram, empurrando o Rei Aidan para o lado, gentilmente.

     — Com sua licença, vai dom, podemos levantá-la; é nosso trabalho, e somos melhores nisso. Devagar... ajeite a manta em torno das pernas. E agora, para onde devemos carregá-la, meu lorde?

     Os homens não haviam reconhecido o rei, e provavelmente era melhor assim, pensou Conn. Aidan deu as instruções e acompanhou os carregadores, andando ao lado da liteira, como qualquer outro homem idoso, preocupado com a esposa subitamente doente. Conn aproximou-se do rei e perguntou:

     — Posso mandar vir sua cadeira, senhor? Vai ficar encharcado, e pegar um resfriado.

     Ele parou de falar abruptamente, desconcertado; não lhe cabia falar assim ao rei. Aidan fitou-o com uma expressão vazia.

     — Não se preocupe, meu caro rapaz. Ficarei ao lado de Antonella. Ela pode sentir medo se chamar e não ouvir uma voz familiar. Mas, de qualquer forma, obrigado; e agora trate de entrar, saia da chuva.

     A chuva diminuía um pouco, mas Conn constatou que já se encharcara; voltou apressado para dentro da casa. A varanda estava apinhada, com os convidados de Erminie se despedindo; o colapso da rainha acabara com a festa.

     Alastair e Floria continuavam no salão, de pé, lado a lado, diante da lareira, Floria olhando para o anel em seu dedo, o presente de Antonella, atordoada. Ainda se encontravam ali Erminie, que voltara aflita do êxodo na varanda; Gavin, ainda mais encharcado do que Conn, esfregando os cabelos com uma toalha que um lacaio lhe trouxera; Edrie Elhalyn e o irmão de Floria, Gwynn, parecendo perturbados; e Valentine Hastur, que ficara para ver o que poderia fazer por Erminie naquele súbito desastre.

     — Um mau presságio para o seu pacto de casamento — disse Gavin, aproximando-se de Alastair. — Vai continuar?

     — Não temos testemunhas agora, a não ser os nossos lacaios — disse Erminie. — E seria um presságio ainda pior, em minha opinião, concluir a cerimônia depois do que aconteceu com a rainha.

     — Tem razão, infelizmente — comentou Edric. — É terrível que ela sofresse um colapso no momento em que lhe deu um presente de casamento, Floria.

     — Não sou supersticiosa — protestou Floria. — Acho que devemos continuar com a cerimônia... e tenho certeza que a dama real não ficará ressentida. Mesmo que tenha sido o seu último gesto de bondade...

     — Que todos os Deuses nos livrem! — exclamaram Erminie e Edric, falando quase ao mesmo tempo.

     Conn pensou na rainha gentil que mal conhecera, e no rei que passara a amar de repente, que o chamara de "meu caro rapaz", mesmo quando se encontrava tão transtornado, mandara-o sair da chuva.

     — Acho que oficializar o noivado neste momento seria uma falta de respeito — disse Edric. Ele olhou pesaroso para a filha, e acrescentou: — Mas teremos uma diversão ainda maior no casamento... — Ele virou-se para Erminie. — Quando será? No solstício do verão? Ou no solstício do inverno?

     — No próximo solstício de inverno — disse Erminie —, se vocês aprovarem... Alastair... Floria? — Os dois acenaram com a cabeça e ela arrematou: — Então será no solstício do inverno.

     Alastair beijou Floria, respeitoso, o tipo de beijo que um homem podia trocar com a esposa prometida na presença de outras pessoas.

     — Que chegue logo o dia em que poderemos ficar juntos para sempre — murmurou ele.

     Gavin adiantou-se para dar os parabéns.

     — Parece que já passou muito tempo desde que Alastair e eu a perseguíamos pelo jardim com aranhas e cobras, mas na verdade foram apenas uns poucos anos — comentou ele. — Acho que melhorou muito desde aqueles dias, Floria; as jóias lhe caem melhor do que um avental listrado de criança. Minha dama... — Ele fez uma reverência para Erminie. — Estou encharcado; dá licença para eu me retirar?

     Erminie saiu de sua absorção preocupada com um sobressalto.

     — Não seja tolo, Gavin; você é como um filho nesta casa. Suba agora, e Conn ou Alastair providenciarão roupas secas. Depois, iremos todos para a cozinha, tomaremos uma sopa quente ou chá.

     — Boa idéia — disse Alastair. — Devo partir para Hammerfell antes do amanhecer.

     — Mãe — implorou Conn —, diga a ele que isso é um absurdo! Ele não conhece as montanhas, nem mesmo o caminho para Hammerfell.

     — Quanto mais cedo eu aprender, melhor — declarou Alastair.

     Conn não podia deixar de admitir que era verdade o que o irmão dizia, mas sentia-se obrigado a insistir em seu protesto.

     — Os homens não o conhecem, não vão obedecer; estão acostumados a mim.

     — Então também devem aprender — disse Alastair. — Tem de concordar, irmão; é o meu dever e já é tempo de começar a cumpri-lo. Talvez tenha sido um erro eu nunca fazer nada antes, mas é melhor agora do que nunca. E quero que você fique aqui, cuidando de nossa mãe. Afinal, ela acabou de reencontrá-lo, não vai querer perdê-lo de novo tão depressa.

     Conn concluiu que não havia mais nada que pudesse dizer sem dar a impressão de que se recusava a abrir mão da posição que pertencia de fato a seu irmão — ou que relutava em cuidar da mãe, ou cumprir o dever que seu irmão e lorde lhe determinava.

     — Não gostaria que nenhum dos dois fosse — disse Erminie —, mas sei que você deve ir; e também acho, Conn, que Alastair tem razão. Está na hora de ele assumir o dever que tem com seu povo. Com Markos a seu lado, não tenho a menor dúvida de que os homens lhe obedecerão, depois de saberem quem ele é.

     — Tem toda razão, mãe — respondeu Conn. — Mas é melhor você levar minha égua, Alastair. Esse seu excelente animal das terras baixas tropeçaria nas trilhas íngremes que deve percorrer, e morreria de frio na primeira noite. Minha égua pode não ser bonita, mas o levará a qualquer lugar que precisar.

     — O quê? Aquela besta de pêlo áspero? Ora, ela não é melhor do que um asno! — O tom de Alastair era jovial. — Jamais permitiria que me vissem num animal assim.

     — Vais descobrir nas montanhas, irmão, que nem o homem nem o cavalo são julgados por sua aparência. — Conn já não agüentava mais as discussões intermináveis com o irmão. — A égua é peluda para resistir ao frio; e as suas lindas roupas ficarão rasgadas num instante pelos espinhos ao longo das trilhas. Creio que, no final das contas, é melhor eu ir com você, para guiá-lo.

     — De jeito nenhum! — protestou Alastair.

     Seus pensamentos eram claros para Conn: Markos ainda pensa em Conn como seu duque e lorde; se Conn me acompanhar, nunca terei uma lealdade total.

     — Você se engana quanto a nosso vassalo e meu pai-de-adoção, Alastair — murmurou Conn. — Quando ele souber a verdade... e encontrar a tatuagem que ele próprio fez em seu ombro, como a marca do legítimo duque, sua fidelidade pertencerá inteiramente a você.

     Alastair abraçou-o, num súbito impulso.

     — Se todo mundo fosse tão honrado quanto você, irmão, eu me sentiria menos assustado. Mas não posso me esconder por trás de sua força e honra; devo enfrentar meu povo sozinho. Conceda-me isso, irmão.

     — Se é o que você sente que deve fazer, Alastair, que todos os deuses me proíbam de impedi-lo. Mas quer levar minha égua criada nas montanhas?

     — Fico mais do que grato pela oferta — respondeu Alastair, com sincera afeição —, mas acho que ela não é capaz de viajar tão depressa quanto eu preciso.

   Gavin Delleray voltou à sala no momento em que ele dizia isso, usando um dos velhos casacos de Conn, que pendia ao seu redor como uma tenda. Enxugara os cabelos, deixando-os completamente desgrenhados; dificilmente seria possível um contraste maior com sua aparência afetada anterior.

     — Eu me ofereceria para acompanhá-lo e guiá-lo, meu amigo — disse ele —, se conhecesse o caminho melhor do que você. Mas se meus serviços... aqui ou nas Hellers... forem de qualquer proveito para você, Alastair...

   Conn sorriu ao pensamento do franzino e elegante Gavin nos caminhos das montanhas.

     — Se ele não me aceita como um guia, nem os serviços de um irmão gêmeo, provavelmente também não aceitará os seus.

     Depois do comentário, em tom pesaroso, Conn pensou: Gavin, pelo menos, não é uma ameaça ao poder de Alastair em Hammerfell.

     Alastair sorriu, pôs uma das mãos no ombro de Conn, outra no ombro de Gavin, e disse:

     — Acho melhor ir sozinho; não devo precisar de proteção. Mas agradeço as ofertas dos dois. — Ele se virou para Erminie, que se aproximara. — Mãe, preciso do cavalo mais veloz em nossos estábulos. Na verdade, o que preciso mesmo é de um garanhão dos contos de fadas que você me contava quando era pequeno. Você cria mágica, mãe; pode agora pô-la a meu serviço, para que eu chegue o mais depressa possível a Hammerfell?

     — Pode contar com toda a magia ao meu alcance, filho. — Erminie estendeu a mão para Edric Elhalyn. — Claro que pode levar qualquer cavalo de meu estábulo, mas concordo que a égua criada nas montanhas de seu irmão é melhor para você. Será mais fácil proporcionar novas forças a uma montaria que já está acostumada à natureza de seu trabalho... e talvez, no final das contas, eu possa lhe oferecer um garanhão mágico...

     Conn balançou a cabeça em concordância. Alastair subiu para o quarto que ocupara quando era criança. Vários de seus brinquedos abandonados ainda se achavam ali, uns poucos soldadinhos esculpidos e pintados em cores brilhantes, uma velha criatura estufada, mais disforme do que um cachorro ou um boneco, com que ele dormira até os sete anos de idade; e, num canto, por baixo da janela, seu cavalo de balanço.

     Ele se lembrou das muitas léguas que cavalgara nele quando era pequeno, agarrado no pescoço de madeira pintado; mesmo agora, podia ver o lugar em que a tinta fora desgastada por suas mãos suadas. Olhou para os soldadinhos de brinquedo e riu, desejando que a mãe pudesse lhes dar vida e mandar que o acompanhassem como seu exército. Não tinha a menor dúvida de que ela faria isso, se pudesse.

     Alastair recordou as muitas vezes em que, no passado distante, montara no cavalo de balanço e seguira para o norte — sempre para o norte — procurando, era o que dizia, o caminho de Hammerfell. Uma ocasião quase ateara fogo à casa com um caldeirão de carvões em brasa que tirara da lareira do quarto; depois do incidente, fora estritamente proibido de fazer qualquer outra coisa além de torrada, mas afora isso não houvera punição, pois alegara, em lágrimas:

     — Eu estava tentando fazer fogo aderente para queimar a casa de Lorde Storn, como ele queimou a nossa.

     Rapidamente, Alastair tirou o seu belo traje de festa, vestiu roupas mais simples, pôs um velho manto nos ombros, e desceu. Virava as costas, para sempre, à sua infância.

     Lá embaixo, deparou com uma mudança surpreendente; o que restara da comida e bebida da festa fora tirado, a mãe pusera sua velha túnica de técnica, verde-clara, de mangas compridas.

     — Haveria mais magia se eu pudesse acompanhá-lo e guardá-lo em todos os caminhos, meu filho; mas pelo menos posso lhe oferecer não apenas uma montaria mágica, mas também uma guardiã especial... Jóia irá com você.

     Eles foram para o estábulo. A chuva cessara agora, só de vez em quando havia uma rajada. Alastair podia sentir a frescura do vento que soprava, com as nuvens irregulares proporcionando vislumbres ocasionais de uma ou outra das luas.

     Erminie chamou a velha cadela Jóia; ela sentou, segurando a pedra-da-estrela, e fitou por um longo tempo os olhos da cadela. Alastair teve a estranha sensação de que conversavam a seu respeito. Erminie finalmente murmurou:

     — Foi o que também pensei a princípio... eu poderia lhe dar forma humana, se você assim desejasse; é uma magia bastante simples, pelo menos como uma pedra-da-estrela. Mas ela seria velha demais para ser um guerreiro, e me parece que em sua forma natural pode lhe ser mais útil como guia. Mesmo que eu lhe desse forma humana, seria uma mudança apenas superficial. Ela ainda poderia ser uma cadela... não poderia falar com você, e perderia a aguçada audição, o senso de olfato. Pelo menos como cachorra, ela poderá morder qualquer pessoa que o ameaçar, enquanto que em forma humana seria... — Erminie hesitou, acabou soltando uma risada. — Provavelmente despertaria comentários.

     — Concordo — murmurou Alastair, abaixando-se para abraçar a velha cadela. — Mas ela conhece o caminho para Hammerfell?

     — Esquece, meu filho, que Jóia foi criada lá; pode guiá-lo para Hammerfell com mais segurança do que qualquer guia humano. E também o alertará, se prometer que vai escutá-la.

     — Tenho certeza que ela será mais fiel e leal do que qualquer outro guia que eu poderia encontrar.

     No fundo, porém, Alastair se perguntava como a cadela poderia alertá-lo, e como ele entenderia se isso acontecesse. Erminie afagou a cabeça de Jóia, murmurando:

     — Você o ama tanto quanto eu; cuide dele por mim, minha querida .

     Jóia fitou Erminie nos olhos com tanta intensidade que subitamente Alastair não era mais cético; não podia haver a menor dúvida de que a mãe e a cadela se comunicavam mais claramente do que conseguiriam fazer com palavras. Ele se convenceu de que Jóia, quando chegasse o momento, seria também capaz de lhe comunicar o que desejasse.

     E ele não lamentava que a cadela que fora parte de sua vida, desde que podia se lembrar, fosse também partilhar aquela aventura, em sua companhia.

     — Ela deve seguir atrás de mim ou viajar na sela?

     Todos os telepatas presentes — e até mesmo Alastair, que não chegava a sê-lo de fato — ouviram surpresos uma resposta que era quase uma voz:

     Onde ele puder ir, eu posso acompanhar, correndo em sua esteira.

     — Muito bem, minha velha, se você pode fazer isso, então vamos embora — disse Alastair, atônito.

     Ele montou na égua de Conn, pequena, criada nas montanhas, vigorosa, agora sutilmente diferente; fitou Jóia nos olhos e por um momento quase parecia que se dirigia à sombra de uma guerreira, como uma das mulheres da Irmandade da Espada, que encontrara algumas vezes na cidade; quase uma sombra pairando sobre Jóia. A magia da mãe não teria limites? Não importava... ele deveria encarar como algo real. Empertigou-se na sela, fez uma reverência para a mãe.

     — Que todos os Deuses a guardem, mãe.

     — Quando voltará, meu filho?

     — Quando meus homens... e meu destino... assim permitirem.

     Lentamente, ele conduziu a égua para a porta do estábulo. Assim que saiu, bateu com os calcanhares nos flancos da égua; ela podia ser rude, mas era vigorosa e disposta. Sentiu-a estremecer sob o seu comando, compreendendo, quase parecia, a missão que tinham pela frente.

     Os outros observaram-no atravessar o pequeno pátio. Só Conn, que ficara esperando no vestíbulo, teve a lembrança de abrir o enorme portão; se não o fizesse, era evidente que a égua, agora com poderes muito além das criaturas naturais, teria saltado por cima.

     A égua passou, já galopando, a cadela correndo em sua esteira, sem fazer qualquer barulho, a força da juventude restaurada pela magia. O ruído dos cascos pelas ruas logo se desvaneceu. Erminie continuou parada. Olhando pelo portão aberto, as lágrimas escorrendo pelas faces. Conn murmurou:

     — Eu gostaria que ele me permitisse acompanhá-lo. O que Markos dirá?

     Valentine Hastur comentou, soturno:

     — Você criou um filho obstinado, Erminie.

     — Por que não diz o que realmente pensa? — indagou ela, veemente. — Por que não o chama de teimoso, completamente mimado? Mas com Jóia para guiá-lo, e Markos para apoiá-lo, tenho certeza que ele se sairá muito bem.

     — Quer isso aconteça ou não — interveio Edric —, o fato é que ele já partiu, e os deuses devem protegê-lo ou não, de acordo com seu destino.

     Eles entraram na casa. Depois que todos se retiraram, Conn ficou no pátio, os olhos voltados para o caminho por que seu irmão seguira, para o norte, sempre para o norte, na direção dos picos distantes de Hammerfell.

    

     Alastair agarrava ao pescoço da égua de Conn, ainda mal acreditando na missão que o levava para longe de tudo o que sempre conhecera. Mesmo a galope, o movimento o embalava, e ele recordou os dias de infância, quando se segurava daquele jeito ao pescoço de seu velho cavalo de balanço, entrando em transe, muitas vezes adormecendo e caindo. Sentiu que o mesmo podia acontecer agora, mas esse caso despertaria para descobrir que tudo não passara de um sonho bizarro, que pegara no sono durante uma das tediosas recepções que a mãe oferecia.

     Ele galopou tão depressa que antes de percebê-lo já alcançara os portões de Thendara. Uma voz gritou do interior da pequena casa da guarda:

     — Quem cavalga no escuro, nesta hora esquecida dos deuses, em que os portões da cidade estão fechados e os homens honestos dentro de casa e na cama?

     — Um homem tão honesto quanto você — respondeu Alastair. — Sou o Duque de Hammerfell, seguindo para o norte, numa missão que não pode esperar o amanhecer.

     — E daí?

     — Abra os portões, companheiro; não é para isso que você está aqui?

     — A esta hora? Duque ou não, estes portões não se abrem até o amanhecer... nem que fosse o próprio rei.

     — Deixe-me falar com seu sargento, soldado.

     — Se eu acordar o sargento, ele lhe dirá a mesma coisa, Lorde Hammerfell, e depois ficará furioso com nós dois.

     — Não tenho medo da ira de seu sargento, mas imagino que você tem. É uma pena, mas... Jóia, suba na sela, por trás de mim.

     Ele sentiu a velha cadela pular na sela, aconchegando-se contra sua cintura.

     — Segure-se... isto é, trate de se equilibrar, menina — murmurou Alastair.

     Ele esquecera como os portões da cidade eram altos... cinco ou seis metros? No estado enfeitiçado em que se encontrava, nunca lhe ocorreu duvidar dos poderes da égua. Sentiu-se acumular as forças para o salto, e gritou para jóia:

     — Agüente firme!

     No instante seguinte, o mundo sumiu por baixo, enquanto subiam e subiam... pareceu-lhe que se elevaram até a metade do caminho para a lua brilhante, e que podia ver o crescente verde ficar para trás... a impressão era de que cairiam por horas, mas um momento depois a égua alcançou o solo, tão gentilmente como se tivesse saltado um tronco, não mais. Jóia saltou da sela e voltou a correr em sua esteira, os passos silenciosos no calçamento irregular da estrada.

     Alastair sabia que se encontrava muito além da cidade, sem ter uma noção precisa de como chegara tão longe, tão depressa. Continuou a galopar pela escuridão, sabendo que a égua — ou a magia de sua mãe — estendia as patas com uma segurança infalível, sem a menor possibilidade de um tropeção.

     Em algum momento antes do amanhecer, ele passou por Hali, ouviu os cascos da égua ressoando nas pedras de Neskaya. No momento em que o céu ao leste se tornava rosado, e o enorme sol vermelho surgia como um olho injetado, ele avistou o brilho do rio Kadarin, correndo como metal derretido à sua frente. Para surpresa de Alastair, a égua das montanhas entrou na correnteza e nadou sem muita dificuldade, os músculos treinados desafiando as águas como uma criatura marinha, até escalar a outra margem e retomar o galope vertiginoso, sem qualquer pausa ou hesitação.

     Olhando para trás, Alastair viu Jóia sair da água, correndo em seu encalço, aos saltos compridos, sem qualquer esforço. Ele cruzara o Kadarin — dois dias ao norte da cidade — em apenas uma noite!

     Agora já haviam ultrapassado a região que ele conhecia; nunca se embrenhara tanto pelas colinas. Por um momento, desejou que o irmão estivesse ali, para guiá-lo; mas Jóia era sua guia designada. Jóia! Quando a alimentara pela última vez?

     — Desculpe, menina — murmurou Alastair. — Por um momento, esqueci de você.

     Ele parou a égua numa clareira do bosque e desmontou, os joelhos tremendo. Dentro de um alforje, que não se lembrava de ter enchido, encontrou um sortimento de carnes frias, pão e um frasco de vinho. Partilhou as carnes com Jóia, bebeu um pouco do vinho; ofereceu-o também a Jóia, mas ela fungou, correu para beber numa fonte, voltou e se enroscou ao lado, a cabeça em seu colo. Alastair pensou em tornar a montar; mas compreendeu que a égua e a cadela pareciam estar muito bem, nem mesmo resfolegantes, mas ele tremia de fadiga, cada músculo dolorido, como se estivesse passado na sela não apenas as poucas horas entre a meia-noite e o amanhecer, mas pelos dois dias e noites que normalmente levaria para cavalgar até ali. Jóia e a égua podiam não se cansar pela força da magia, mas isso não acontecia com ele.

     Não tinha mantas e sentia frio. Envolveu-se no manto, e chamou Jóia para se enroscar ao seu lado e lhe proporcionar calor; ela sacudiu-se, coçou por um momento, depois se acomodou em seus braços. Sob o seu corpo, as folhas mortas estalavam, bastante úmidas, mas Alastair estava cansado demais para se importar. No instante em que lhe passou pela cabeça que se enroscara demais, numa posição desconfortável para dormir, o sono envolveu-o, em total exaustão. Dormiu até ser despertado pela luz inclinada através das árvores. Comeu mais um pouco de carne e pão, bebeu o que restava do vinho, depois virou-se para Jóia:

     — É sua vez de me guiar agora, menina. Daqui por diante, eu a seguirei.

     Foi como um sonho. Embora Alastair não soubesse realmente para onde ia, seus movimentos pareciam predeterminados; sabia que qualquer que fosse o caminho que escolhesse, acabaria chegando ao lugar certo. Parecia perigoso se abandonar desse jeito, mas aquilo era magia, nada poderia fazer para alterar o resultado daquela fantástica jornada; por isso, procurou se conter, deixou que a cadela indicasse o percurso.

     Não demorou muito para que começasse a chover forte. Alastair foi obrigado a desmontar. Avançando às cegas sob o aguaceiro, quase tropeçou numa enorme rede que pendia das árvores. Jóia latiu e farejou a isca, um coelho-de-chifre, sem os chifres e as presas. Seria uma isca para quê? No instante seguinte, Jóia recomeçou a latir, correndo em pequenos círculos, ganindo às vezes. Alastair levantou a cabeça para deparar com uma criatura espantosa. Era um homenzinho... ou assim parecia, pouco mais de um metro, o rosto e o corpo cobertos por cabelos escuros, emaranhados, atarracado e torto. Ele falou numa forma antiga da língua das montanhas.

     — Quem é você? E o que é aquilo? — indagou ele, olhando para Jóia. — Estragou minha armadilha; o que vai oferecer como reparação?

     Alastair olhava aturdido para a criatura, especulando se não seria o duende das lendas. O homenzinho parecia indiferente à chuva forte, mas se mostrava cauteloso com Jóia; recuou, enquanto ela farejava seus pés descalços.

     Alastair sentia-se atordoado, mas fora criado, no final das contas, com histórias de estranhas criaturas, nem todas humanas, que habitavam as terras além do Kadarin. Pois não haviam perdido tempo em se apresentarem a ele!

     — Você é um do Povo Grande — disse a criatura. — Talvez seja inofensivo; mas o que é aquilo?

     Ele indicou Jóia, com uma estranha expressão de apreensão.

     — Sou Alastair, Duque de Hammerfell; e aquela é minha cachorra Jóia.

     — Não conheço cachorra — disse o homenzinho. — Ela é... que tipo de ser é cachorra? Por que ela não fala?

     — Porque não pode — explicou Alastair. — Não está em sua natureza.

     Ele calculou que de nada adiantaria tentar explicar a noção de animal de estimação; mas alguma do conceito deve ter aflorado no homenzinho, pois ele disse:

     — Ah, já entendi; ela é como meu grilo domado, e pensa que algum perigo ameaça seu dono; diga a ela, se puder, que nenhum perigo ameaça qualquer dos dois.

     — Está tudo bem, menina — disse Alastair, sem ter muita certeza.

     Jóia ainda ganiu um pouco, mas acabou se calando. Alastair reuniu sua coragem para indagar:

     — Quem é você?

     — Sou Adastor-Leskin, do Ninho de Shiroh; o que é isso? Com uma curiosidade intensa, ele apontava para a égua de Alastair. Sem saber se a estranha criatura tencionava roubá-lo, Alastair explicou da melhor forma possível o que era um cavalo. O homenzinho ficou maravilhado.

     — Quantas coisas estranhas estou vendo hoje! Serei a inveja de todo o meu clã! Ainda resta a questão de uma armadilha entre nós; estragou a minha; o que vai oferecer como reparação?

     Alastair já decidira se abandonar a qualquer que fosse o estranho destino que o lançara naquela aventura.

     — Não posso consertar sua armadilha. Não disponho dos instrumentos necessários, nem sei como é feita.

     — Eu não pediria isso — declarou o homenzinho. — Faça o que eu pediria a um viajante de minha própria espécie que inadvertidamente invadisse meu território; dê-me o seu melhor enigma.

     — E vamos ficar parados na chuva a dizer enigmas?

     — Claro, claro, eu já tinha ouvido dizer que o frio e a chuva, mesmo um aguaceiro de verão como este, podem causar inconveniências para sua espécie. Muito bem, vamos nos abrigar no Ninho de minha tribo.

     Assim dizendo, ele pôs os pés na mais baixa de uma série de ripas pregadas — ou presas por outra forma — aos galhos inferiores de uma enorme árvore.

     — Pode seguir por este caminho? — perguntou ele. Alastair hesitou; sua busca o chamava, mas seria impolido e impolítico não oferecer reparação àquele homenzinho e sua espécie. Ele subiu, não gostando muito da escada na árvore, nem da visão do chão da floresta cada vez mais distante. Resolveu, no entanto, que não revelaria seu medo ao pequeno ser, que escalava a montanha como se tivesse nascido para isso — o que provavelmente era verdade, refletiu Alastair.

     Subiram pelo equivalente a vários andares, depois saíram da escada para um caminho relativamente largo, feito com tábuas grossas, atravessando a árvore. Passaram por uma abertura larga para um cômodo escuro, bastante amplo, com duas almofadas baixas de pano. O homenzinho arriou numa almofada, gesticulou para que Alastair se acomodasse na outra. Era macia e farfalhou quando Alastair sentou; devia ser estufada com relva seca, pois exalava uma fragrância agradável. Adastor inclinou-se, pegou uma vara comprida, atiçou fogo, o que proporcionou claridade suficiente para que Alastair pudesse correr os olhos pelo cômodo.

     — E agora, vamos aos enigmas! — disse o homenzinho. — Quando sentarmos a noite em torno da fogueira, jogando enigmas, terei alguns novos para meu povo!

     Alastair, a mente completamente vazia, só pôde indagar:

     — Que tipo de enigma você gostaria? Não sei quais são os enigmas apropriados ao jogo.

     Os olhos largos do homenzinho — Alastair concluiu que eram muito estranhos, se podiam ver ali — brilhavam na semi-escuridão.

     — Por que as aves voam para o sul? — indagou ele.

     — Se pede por outras informações que não as razões óbvias de preferência do tempo, eu diria que fazem isso por motivo que ninguém fora de sua espécie pode compreender — respondeu Alastair. — Que resposta você daria?

     Adastor soltou uma risadinha.

     — Porque é muito longe para andarem.

     — Ah, sim, esse tipo de enigma. Muito bem... — Alastair vasculhou a mente e só conseguiu lembrar um enigma de sua infância, — Por que o coelho-de-chifres cruza... ahn... o caminho?

     — Para chegar ao outro lado? — sugeriu o homenzinho. Alastair sacudiu a cabeça e o rosto de Adastor murchou no mesmo instante.

     — Errada? — Ele suspirou. — Eu deveria saber que não podia ser tão simples. Mas estou negligenciando meus deveres... é meu hóspede, devo-lhe oferecer alguma coisa para comer e beber.

     — Obrigado.

     Alastair não pôde evitar o medo de ser convidado a jantar um coelho-de-chifres cru; não tinha certeza se poderia fazê-lo, nem mesmo por polidez. E, afinal, era o que o homenzinho usava como isca na armadilha.

     Mas o que o homenzinho lhe trouxe, depois de vasculhar no outro lado do cômodo, foi uma travessa de juncos entrelaçados, em várias cores, com um arranjo surpreendentemente bonito de frutinhas coloridas. Alastair provou, depois agradeceu com um prazer sincero. O homenzinho disse:

   — Agora me dê a resposta a seu enigma; como vocês são maiores do que a gente, tenho certeza que seus cérebros também são maiores do que os nossos, e suas mentes mais sutis. Por que o coelho-de-chifres cruza o caminho?

     — Porque seria muito longe para dar a volta — respondeu Alastair, contrafeito.

     Ele não estava preparado para o virtual colapso de Adastor; já ouvira a risadinha do homem, por isso sabia que ele tinha senso de humor — o que poderia indicar a aceitação para seu enigma — mas Adastor rolou pelo chão, deliciado com o velho enigma infantil.

     — Muito longe para dar a volta! — gritou ele, às gargalhadas. — Muito longe... ah, essa é boa, muito boa! Conte outra!

     — Não tenho tempo — respondeu Alastair, o que era verdade. — Preciso seguir viagem. Lamento por sua armadilha, mas já cumpri a promessa e agora devo cuidar do que me interessa.

     — A armadilha não tem importância — respondeu o homenzinho. — Adastor e todo o Ninho de Shiron estão gratos a você, por ter me enriquecido com um enigma, com novas idéias e novos pensamentos; eu o guiarei de volta ao cavalo e à cachorra; e depois, enquanto você parte, ficarei pensando em minhas novas idéias. Vamos embora.

   A volta, com Alastair descendo pela árvore com o maior cuidado, enquanto Adastor pulava como um macaco, foi bastante difícil. Alastair passava de um degrau para outro devagar, com a maior cautela, algum medo; Adastor, logo atrás, obviamente à vontade, soltava risadinhas a intervalos e exclamava:

     — Muito longe para dar a volta!

     Foi com um alívio intenso que Alastair pôs os pés em terra, com Jóia pulando em cima dele, farejando-o, como se desse as boas-vindas. A égua, como um bom animal das montanhas, não se afastara. Alastair virou-se para se despedir do homenzinho.

     — Desculpe ter quebrado inadvertidamente sua armadilha — disse ele. — Pode estar certo de que foi um acidente.

     — Não tem problema; enquanto a conserto, pensarei em meu novo enigma. Gostaria que sua amiga cachorra pudesse falar; sem dúvida os enigmas dela seriam muito interessantes. Você sempre será bem-vindo com seus enigmas no Ninho de meu povo.

     Assim dizendo, ele se afastou, parecendo se fundir com as árvores. Alastair ficou sozinho, lambido por Jóia, especulando se a pequena aventura não teria sido apenas um sonho bizarro.

     — Muito bem, menina, acho que devemos seguir viagem — disse ele. — Gostaria que se tivéssemos de encontrar alguém... ou alguma coisa... fosse algo que nos pudesse guiar até Hammerfell. Como isso não aconteceu, tudo depende agora de você.

     Jóia farejou o chão, depois levantou a cabeça, virando-a, quase que numa atitude de desafio, para fitá-lo. Alastair disse em voz alta, sentindo-se tolo:

   — Está bem, menina, está bem; leve-nos para Hammerfell pelo caminho mais rápido que conhece.

     Ele tornou a montar, enquanto Jóia aproximava o focinho do chão, tornando a fitá-lo, com um latido inquisitivo.

     — Não adianta me perguntar, menina; não tenho a menor idéia do rumo que devemos seguir. Você deve nos levar a Hammerfell, se puder. A mãe disse que poderia me guiar, e confio em você.

     Jóia baixou o focinho de novo, começou a correr pelo caminho; ele deu a partida na égua, que partiu a trote, sem qualquer dificuldade, com passadas longas que devoravam as distâncias.

     Não demorou para que estivesse subindo por uma trilha íngreme, ao lado de um córrego, que descia ruidosamente das alturas. Não era uma estrada agora, apenas uma trilha, não muito melhor do que uma picada de cabras. Apesar disso, a égua das montanhas e a velha cadela subiam depressa. Alastair passou a contemplar lá embaixo vales incrivelmente profundos, cobertos por neblinas, só as copas das árvores aparecendo; de vez em quando avistava rolos de fumaça se elevando de pequenas aldeias nos vales.

     Ele viajou durante o resto do dia sem encontrar ninguém. O sol alcançou o auge, começou a declinar. Não sabia onde se encontrava agora, deixava que a magia o conduzisse; no início do crepúsculo, parou para comer o que restava do pão, partilhando a carne no alforje com Jóia, que comeu sua parte vorazmente.

     Sentia-se tão cansado da viagem rápida e ininterrupta que as pernas tremiam, tinha a sensação de que cairia se sentasse por mais tempo na sela; encontrou um ninho de relva macia e deitou ali, com Jóia nos braços. Despertou durante a noite para descobrir que ela desaparecera, mas ouviu em algum ponto do bosque um latido de caçada e o barulho de pequenos animais em disparada; a cadela voltou depois de algum tempo a lamber os beiços, tornou a se enroscar junto de Alastair, No escuro, ele ouviu-a mastigar alguma coisa, especulou sobre o que teria encontrado para comer, depois concluiu que preferia não saber. Afagou a cabeça peluda e voltou a dormir.

     Acordando à primeira claridade da manhã, Alastair lavou o rosto numa fonte de água gelada, tornou a montar. Seria apenas sua fantasia ou a cadela avançava mais devagar agora? Qualquer animal normal estaria exausto — ou morto... — depois de uma jornada tão implacável.

     Os caminhos eram ainda piores agora, se é que isso era possível, e havia ocasião em que Jóia precisava encontrar a trilha através de arbustos e espinheiros. A água passava incólume pelos espinheiros, mas Alastair era arranhado pelos espinhos, mesmo se enrolando com o manto; desejou ter aceitado a oferta de Conn de roupas apropriadas para as montanhas. O medo e a dúvida começaram a corroê-lo. Não tinha como saber para onde seguiam, se estavam no curso certo ou errado. E quando chegassem a Hanmerfell, se é que chegariam, como haveria de saber? E o que faria então? Como encontraria Markos? E como o reconheceria quando o encontrasse? Poderia contar ainda mais com a magia que o levara até ali? E começava a escurecer de novo; logo não conseguiriam mais acompanhar a trilha.

     Alastair já pensava em encontrar um bom lugar, a fim de passar uma terceira noite no bosque, quando alcançaram de repente uma estrada larga, quase paralela ao curso que seguiam. Não era a primeira estrada assim que cruzavam, mas em todas as ocasiões anteriores Jóia seguira por um caminho diferente; agora ela se pôs a correr pela estrada, despreocupada, e a égua precisou galopar para acompanhá-la.

     Não demorou muito para que a estrada se tornasse íngreme, subindo sem parar. Alastair olhou para as alturas. Lá na crista, delineadas contra o céu, como os dentes quebrados de um velho crânio, ele avistou ruínas enegrecidas. Jóia ganiu baixinho, continuou a correr na direção das ruínas, depois voltou para Alastair, ganindo outra vez; E abruptamente, ele compreendeu. Ordenara que ela o levasse a Hammerfell — mas Hammerfell não existia mais, pelo menos não o castelo de Hammerfell que a velha cadela conhecera.

     Alastair desmontou e passou pelas colunas, que eram tudo o que restava dos portões destruídos, sentindo as pernas trêmulas. Um lampejo de memória excepcionalmente nítida, inesperado, pois não sabia que se lembrava, mostrou-lhe o castelo de Hammerfell como fora outrora erguendo-se contra o céu, cinzento e intacto; e sua mãe e pai, parados num gramado verde, com canteiros de flores, a velha Jóia apenas um filhote desajeitado, roçando-se contra as pernas de Erminie.

     Não havia mais nada ali; contemplando os remanescentes de pedras desmoronadas, tudo o que sobrara do bastão de seus ancestrais, Alastair sentiu-se subitamente vazio e nauseado. Percorrera toda aquela distância, com uma força mágica... para aquilo? Racionalmente, sabia que deveria retomar a busca, encontrar Markos em algum lugar — o bom senso lhe dizia que o homem não podia estar tão longe que pudesse ser encontrado. Emocionalmente, porém, sentia-se tão desolado quanto as ruínas ao seu redor. Sentia-se fraco, um saco de serragem furado, toda a serragem escorrendo, como seus velhos brinquedos. Parado entre as ruínas de seu lar ancestral, só pôde pensar numa coisa: Eu deveria ter deixado que Conn viesse em meu lugar, ele saberia o que fazer.

     E o que ele faria? Alastair fez um esforço para desanuviar a cabeça, recuperar o controle — não deveria ter ficado surpreso, sabia há muito tempo que o lugar se encontrava em ruínas; na verdade, minha lembrança mais antiga é a do incêndio.

     Não podia continuar parado ali, nas ruínas, sentindo pena de si mesmo; precisava encontrar Markos, a fim de pelo menos começar a realizar a missão de que o Rei Aidan o incumbira... descobrir que exército poderia levantar em Hammerfell para recuperar suas terras e o castelo. Embora não reste nenhum castelo que valha à pena recuperar, pensou ele, amargurado.

     Havia um ditado antigo em Thendara: A mais longa jornada começa com um único passo. E havia algo de bom em ser desiludido assim, pesou Alastair, pesaroso; qualquer coisa que ele fizesse, seria um passo na direção certa, já que pela situação de Hammerfell as coisas só podiam melhorar.

     Ele estendeu a mão para as rédeas da égua, tornou a montar; lá embaixo, podia avistar algumas linhas de fumaça, indicando uma aldeia. Provavelmente encontraria alguém — e à sombra do castelo, só podiam ser camponeses de Hammerfell, aqueles que davam sua lealdade — ou o faziam no passado — a Hammerfell.

     A descida parecia mais íngreme do que a subida. Alastair teve de conter a égua para um ritmo lento. Parou na beira da aldeia, um aglomerado de pequenas cabanas construídas com a pedra rosada local. Olhou ao redor, à procura de qualquer sinal de uma taverna ou estalagem. Um prédio um pouco mais alto que os outros exibia uma placa com três folhas e uma coroa. Alastair seguiu para lá, desmontou, amarrou o animal no poste que havia na frente; a égua de Conn, sob a magia que a trouxera até ali tão depressa, provavelmente não se afastaria, mas não havia sentido em dar a impressão de que era outra coisa que não uma criatura comum.

     A taverna era pequena por dentro, com cheiros normais de uma taverna, vazia àquela hora, exceto por um casal de velhos, cochilando no canto da chaminé, e uma mulher atarracada, por trás do balcão, de gorro e avental.

     — Meu lorde — disse ela.

     Ela fitou-o de tal maneira que Alastair especulou de onde a mulher podia conhecê-lo; mas é claro que só podia ser Conn que ela conhecia.

     — Posso comer alguma coisa a esta hora? E alguma coisa para minha cachorra...

     — Temos um assado de carneiro... a carne não está muito macia, pois era um animal velho e domesticado, mas serve... e também comida para a cachorra. — A mulher estava perplexa. — Vinho?

     — Para mim; não para a cachorra.

     — É claro que não — disse ela —, embora eu já tenha conhecido um homem que treinou seu cachorro para tomar vinho, e saía por aí apostando nisso. Mas darei a ela uma tigela de cerveja, se quiser; é bom para as cachorras, pelo que dizem, ainda mais se está amamentando filhotes.

   — Não há filhotes, mas pode lhe servir pão-de-cachorro e a cerveja. O assado está ótimo para mim, ou qualquer outra coisa que tenha no momento.

     Alastair não esperava mesmo encontrar uma refeição requintada num lugar como aquele. Ele pegou seu prato e foi sentar num canto. O vinho não era muito bom; quando a tigela de cerveja de Jóia chegou, ele pediu à mulher que lhe trouxesse também uma caneca. Era uma excelente cerveja das montanhas, encorpada e revigorante. Alastair bebeu-a, comeu a carne dura vorazmente, partilhou a pele e os ossos com Jóia. Enquanto comia, ouviu ruído lá fora. Pouco depois, algumas mulheres entraram na taverna, usando túnicas vermelhas, com argolas douradas penduradas nas orelhas.

     — Olá, Dorcas — gritou uma delas. — Queremos pão e cerveja para seis.

     Estavam todas bem-armadas. Alastair viu uma liteira lá fora, coberta por um véu, como as que se podia encontrar em Thendara; era evidente que ocultava uma dama bem-criada e bem-acompanhada.

     Uma das carregadoras da liteira viu Alastair e levantou a mão em saudação, mas a mulher do bar disse baixinho... embora não tanto que Alastair não pudesse ouvir:

     — Não é ele. Também pensei a mesma coisa quando ele entrou, mas fala como um habitante das terras baixas. — Ela pegou seis pratos de pão e seis canecas de cerveja. — E Dama Lenisa não vai querer alguma coisa? O vinho é ótimo, embora não seja bastante bom para...

     Ela sacudiu o cotovelo na direção de Alastair. Ele abriu a boca para protestar; não estava acostumado a que alguém questionasse seu gosto, ainda mais sem fazer qualquer esforço para esconder sua opinião. Mas no instante seguinte tornou a fechar a boca; se fosse apenas um forasteiro insignificante, seus gostos não teriam a menor importância. Aquilo indicava que já fora notado.

     Além da porta, as cortinas da liteira foram puxadas e uma moça bonita, em torno dos quatorze anos, ricamente vestida, em sedas das terras baixas, numa tonalidade lilás, desceu e entrou na taverna. Olhou ao redor, à procura da mulher que era obviamente a chefe de sua escolta.

     — Minha pequena dama — disse a mulher, em tom de censura —, não deveria entrar aqui. Pedi vinho e já ia levar...

     — Prefiro uma tigela de mingau — protestou a moça, rebelde. — Estou com cãibras de tanto ficar sentada naquela liteira, preciso respirar um pouco de ar fresco.

     — Pois então terá um mingau, tão depressa quanto Dorcas puder prepará-lo — declarou a espadim. — Não é mesmo, Dorcas? Mas seu avô terá um ataque se você for vista aqui, nas terras de Hammerfell.

     — E terá mesmo — acrescentou a mulher ao lado. — Lorde Storn não aprovaria a sua passagem por aqui, mas a estrada é muito melhor por este lado...

     — Oh, Hammerfell! — exclamou a moça, irritada. — Durante toda a minha vida ouvi dizer que não restava um único Hammerfell vivo...

     — Era o que seu avô pensava, até uma lua atrás — disse a espadachim —, quando o jovem duque matou seu pai... portanto, volte para a liteira, como uma boa menina, antes que alguém a veja e leve uma mensagem, para não terminar na sepultura ao lado dele.

     A moça adiantou-se e abraçou a espadachim, persuasiva, murmurando:

     — Ora, minha cara Dama Jarmilla, deixe-me cavalgar ao seu lado, em vez de ficar sufocando dentro da liteira. Não tenho medo dos Hammerfell, jovens ou velhos; e como não vi meu pai desde os três anos de idade, não pode esperar que eu lamente sinceramente por ele.

     — Mas que jeito de falar! — protestou a mulher, que fora chamada de Dama Jarmilla. — Seu avô ficaria...

     — Estou cansada de ouvir o que meu avô faria; se ele tem seus acessos, não quero nem saber. E se pensa que tenho medo dos Hammerfells...

     A jovem Lenisa parou de falar abruptamente, reparando em Jóia, deitada sob a mesa.

     — Oh, mas que linda! — murmurou ela, ajoelhando-se e estendendo a mão para a cachorra farejar. — Uma boa menina...

     Jóia, condescendente, deixou que a moça lhe afagasse os pêlos claros em torno do pescoço, não tão avermelhados quanto o resto. Lenise levantou os olhos para Alastair.

     — Como ela se chama?

     — Jóia.

     Alastair falou antes de refletir que a moça, ao que tudo indicava, era neta de Lorde Storn, e assim poderia muito bem saber que a Duquesa de Hanmerfell tinha uma cadela com esse nome — mas, por outro lado, não era provável que se lembrassem de uma cadela de pessoas que julgavam mortas há dezoito anos. De qualquer forma, Alastair não tencionava manter sua identidade em segredo por muito tempo.

     A moça era uma Storn; isso significava que era uma inimiga mortal. Mas era apenas uma moça bonita, de cabelos claros, presos atrás numa trança comprida, os olhos azuis se encontrando com os de Alastair de maneira franca e aberta, como nenhuma moça de Thendara jamais o fitaria.

     Ele já ouvira histórias sobre a ousadia das moças das montanhas. Aqueles olhos azuis, no entanto, pareciam inocentes, até mesmo ingênuos; ela afagava a cachorra, afetuosamente.

     — Dama Lenisa... — ele começou a falar.

     Mas nesse instante ouviu o barulho de um cavalo lá fora; e depois sendo amarrado na grade lá fora. Jóia levantou as orelhas, soltou um latido curto e estridente de reconhecimento, saltou para o velho alto que entrou na taverna; ele olhou ao redor, avistou Alastair, franziu um pouco o rosto ao observar as espadachins. Ao final, fez um sinal para que Alastair permanecesse sentado.

     A líder das espadachins, a mulher que Lenise chamara de Dama Jarmilla, aproximou-se da moça e puxou-a pela gola.

     — Vamos embora agora mesmo! — disse ela, a voz tensa. — Esse comportamento, sentada no chão, entre estranhos...

     — Ora, Jóia não sabe o que é uma pessoa estranha... não é mesmo, menina?

     Lenisa ainda estava com as mãos estendidas, tentando atrair a cadela dos pés do velho recém-chegado. Dama Jarmilla levantou-a pela força, empurrou-a para a porta, embora a moça se queixasse que ainda não comera seu mingau, que não queria viajar na liteira. Os protestos foram interrompidos bruscamente, quando a espadachim meteu-a dentro da liteira, fechando as cortinas.

     Alastair ainda olhava na direção da moça. Como ela era bonita! Como era viçosa e inocente! O homem que entrara na taverna se inclinava para Jóia, numa incredulidade deliciada. A cadela farejava seus pés com evidente alegria, soltando pequenos latidos, clamando por atenção. O velho sorriu para Alastair e comentou:

     — É muito azar, logo neste dia, que a garota de Storn resolvesse parar aqui com suas damas.

     — A garota de Storn?

     — Dama Lenisa, a filha de Rupert, sobrinha-neta do velho, embora o chame de avô. A cadela se lembrou de mim, mas creio que não me reconhece, não é mesmo, rapaz? Mas eu o reconheci assim que o vi. Só há um homem no mundo cujo rosto poderia ser tão familiar, e ao mesmo tão novo... meu rapaz. Pensávamos que estivesse morto!

     — Você deve ser Markos — disse Alastair. — Meu irmão me enviou; precisamos conversar... — Ele notou que Dorcas os observava de trás do balcão e acrescentou: — ... em particular. Para onde podemos ir?

     — Para a minha casa. Vamos.

     Alastair só parou para deixar algum dinheiro no balcão, depois desatou a égua e conduziu-a pela rua da aldeia, até uma pequena cabana na extremidade.

     — Amarre-a nos fundos — disse Markos. — Estou vendo que é a égua de Conn; metade da região pode reconhecê-la. Em meio dia a notícia da presença de um estranho por aqui se espalharia, e não precisamos disso. Muito azar que a garota de Storn o visse, mas já soube que ela é uma pirralha mimada, não se preocupa com coisa alguma que não seja a sua própria pessoa.

     — Eu não diria isso. Ela me pareceu...

     Alastair não continuou; vira a moça apenas por alguns minutos, nada sabia a seu respeito. De qualquer forma, ela era a neta de seu inimigo jurado, parte da rivalidade de sangue que destruíra sua família; não podia pensar nela assim.

     Markos entrou na frente. O interior era limpo, mas vazio, tendo apenas uma lareira, algumas panelas penduradas na beira, duas cadeiras toscas, e uma mesa formada por tábuas sobre dois cavaletes. A extremidade da mesa era coberta por uma toalha branca, sobre a qual havia duas taças de prata, com o brasão de Hammerfell. Markos, acompanhando o olhar de Alastair, disse bruscamente:

     — É isso mesmo; encontrei-as entre as cinzas, poucos dias depois do incêndio; mantive-as aqui, em memória de meu lorde e minha dama... Minha dama... então ela deve estar viva! Mal posso acreditar em meus olhos... é mesmo você, Alastair?

   Alastair abriu a camisa e puxou-a para o lado, mostrando a tatuagem que o velho fizera, há tantos anos. Markos inclinou a cabeça e disse deferente:

     — Meu lorde duque. É melhor me contar tudo o que aconteceu. Como Conn o descobriu? Falou com o Rei Aidan?

     Alastair acenou com a cabeça e começou a relatar a Markos a audiência que ele e o irmão tiveram com o rei.

    

     Depois da partida de Alastair, Conn passou a vaguear pela casa de uma maneira que deixou Erminie preocupada. Ela sentia-se disposta a cumular o filho com todo o amor que não pudera lhe dar durante aqueles anos perdidos, mas Conn era muito crescido para tal demonstração de afeto. Agora que Alastair se fora, ela compreendeu, angustiada, que o outro filho era-lhe essencialmente um estranho. Praticamente só podia interrogá-lo sobre seus pratos prediletos e mandar que a governanta providenciasse. Agradava-lhe que Conn passasse muito tempo treinando o filhote Cobre, demonstrando que era competente nisso. Fê-la se lembrar do pai dos gêmeos. Rascard dizia que tinha pouco laran; agora, no entanto, Erminie especulou se a habilidade dele com cavalos e cachorros não seria uma espécie de laran que ela desconhecia.

     — Você deveria ir à Torre para fazer um teste, meu filho querido — disse ela uma manhã. — Seu irmão tem pouco laran, o que significa que você, como o gêmeo, provavelmente ficou com uma parte maior. Para ser franca, eu tinha certeza disso quando vocês eram crianças.

     Conn pouco sabia sobre laran, nunca usara uma pedra-da-estrela; mas quando Erminie lhe mostrou uma, descobriu como usá-la tão depressa e com tanta naturalidade que ela ficou admirada. Era como se ele tivesse usado uma pedra-da-estrela em todos os dias de sua vida.

     — Talvez encontre o seu verdadeiro trabalho e missão na Torre, Conn, depois que seu irmão for restaurado como Duque de Hammerfell. Não vai querer ser um parasita, pouco mais que um camarista ou coridom. Não seria um uso condizente de seus talentos.

     Ao ouvir isso, Conn franziu o rosto, e Erminie quase desejou não ter falado. Afinal, ele, como Alastair, crescera acreditando que era o único sobrevivente, o legítimo Duque de Hammerfell.

     Não se poderia culpá-lo se acalentasse alguma inveja ou ressentimento contra o irmão. Para o grande alívio da mãe, no entanto, Conn limitou-se a dizer:

     — O que quer que aconteça, quero continuar com meu povo. Markos ensinou-me que eu era responsável por eles. Mesmo que não seja seu duque, eles me conhecem, confiam em mim. Podem me chamar do que quiserem. Coridom, à sua maneira, é um título tão honroso quanto o de duque.

     — Mesmo assim — insistiu Erminie — você tem tanto laran que deve ser treinado; um telepata destreinado é uma ameaça a si mesmo e a todos ao seu redor.

     Conn compreendia muito bem a verdade nas palavras da mãe.

     — Markos disse isso quando eu estava crescendo. Mas Alastair não tem nenhum!

     — Não o suficiente que valha à pena todo o trabalho de treinamento — explicou Erminie. — Mas penso às vezes que sua habilidade com cavalos e cachorros pode ser uma variação do velho Dom MacAran. Havia MacArans na família de sua avó paterna.

     Ela foi até o aparador e pegou um pergaminho para mostrar. Conn ficou espantado ao ver que era um registro escrito de seus ancestrais por oito ou dez gerações; estudou-o com interesse, e comentou com uma risada:

     — Eu não sabia que mantinham registros como este, mãe, a não ser para cavalos! E está escrito quantas pessoas da família de meu pai morreram na rivalidade de sangue com Storn?

     — Está, sim — respondeu ela, tristemente.

     Erminie mostrou as marcas que indicavam que o ancestral em questão sofrera uma morte violenta, em decorrência da antiga rivalidade de sangue. Depois de algum tempo, Conn comentou:

     — Tenho vivido e respirado esta rivalidade de sangue desde que tinha idade suficiente para me vestir sozinho, mas nunca soube, até agora, o quanto aqueles miseráveis de Storn me deviam. Pensava que era apenas um pai e dois irmãos mais velhos. Descubro agora quantos de minha família foram mortos por Storn...

     Ele parou de falar, ficou com o olhar perdido no espaço.

     — Há coisas melhores na vida do que a vingança, meu filho.

     — Há mesmo?

     Conn parecia olhar através dela; por um momento, o rosto cada vez mais familiar do filho voltou a ser o de um estranho total, e Erminie se perguntou se algum dia seria capaz de conhecer ou compreender aquele homem complexo e quieto que era o seu filho mais novo. Mas, escondendo o temor que sentia, ela acrescentou, incisiva:

     — Quanto a seu laran... tenho bastante habilidade no teste para saber que você possui um talento excepcionalmente forte para manipular uma matriz; e o acesso a esse tipo de tecnologia só pode ser treinado de forma apropriada numa Torre. Felizmente, tenho amigos na maioria das Torres; seu primo Edric Elhalyn é Guardião aqui, na Torre de Thendara, e meu parente Valentine já foi um técnico; qualquer dos dois pode lhe ensinar muito, mas durante algum tempo você deve viver numa Torre, onde ficará protegido dos perigos de seus poderes aflorando. Falarei imediatamente com Valentine. Por sorte, não será preciso esperar até a época em que os monitores testam todas as crianças nos Domínios. Posso falar com eles e você será admitido logo. Sem treinamento, todo o seu talento ainda está por nascer, e você é um pouco velho para essa transição.

     Conn sentia-se um pouco confuso pela rapidez com que tudo estava acontecendo, mas não era de todo avesso à idéia. Além disso, sentia-se curioso (como todas as pessoas fora dos Domínios) sobre o que corria dentro de uma Torre. E estava satisfeito e gratificado por ser um dos eleitos que podiam se qualificar para descobrir.

     Depois de aceito para treinamento, explicou Erminie, ele deveria viver entre os membros da Torre.

     — Mas conhece tudo a respeito, mãe; por que você e Floria não podem me ensinar?

     — Não é costumeiro; uma mãe não ensina ao filho crescido, um pai não ensina à filha crescida; isso não se faz.

     — Por que não?

     — Não sei; pode remontar a costumes dos tempos antigos. Mas qualquer que seja o motivo, simplesmente não se faz... é um tabu que eu não me sentiria à vontade para violar. Deixarei seu treinamento aos cuidados de nossos parentes, e mais tarde de uma Torre. Mas Floria poderá lhe ensinar algumas coisas, se quiser. Pedirei a ela, se você concordar. — Erminie sentia, sem a necessidade de palavras, que Conn podia ser muito tímido para pedir esse tipo de favor a uma mulher. — Talvez ela venha aqui esta noite; e se não vier, eu me encontro com ela ou com seu pai quase todos os dias. Providenciarei uma oportunidade para fazer o pedido.

     Mais tarde, naquele mesmo dia, quando Conn e Erminie levavam o cachorrinho na coleira de treinamento pelas ruas, ele disse:

     — Será que meu irmão já chegou a Hammerfell?

     — Acho que sim, embora eu não saiba como estão as estradas agora. Mas você pode descobrir com seu laran, se quiser.

     Conn pensou a respeito; partilhava as experiências do irmão muitas vezes, mas nunca deliberadamente. Não sabia se queria se intrometer de propósito nos pensamentos do irmão; ainda não se acostumara à idéia. Ainda assim, se a mãe sugeria, e Alastair fora criado para aceitar esse tipo de coisa — ele consideraria a possibilidade. Concentrou sua atenção em Cobre, conduzindo-o pelos exercícios normais de treinamento, "De pé", "Senta", "Parado". Sempre sentira uma certa afinidade pelo trabalho com animais, e aquele não era o primeiro filhote que treinava. Agora descobria que a profunda afinidade que sentia pelo cachorrinho podia ser uma variação do que Erminie chamava de laran; ele nunca pensara assim, acreditava que era apenas uma habilidade adquirida, como sua competência na equitação ou esgrima. Será que nada lhe pertencia realmente? Tudo o que sabia ou podia fazer derivava dessa herança, uma dádiva do misterioso Comyn, que incutira essas habilidades em sua linhagem, como faria na reprodução de cavalos para corrida ou cachorros para serem dóceis? Conn sentiu-se muito pequeno e insignificante, propenso ao ressentimento por isso.

     Ele e o cachorro seguiam um pouco à frente de Erminie, numa rua remota, em que havia poucas pessoas e bastante espaço para submeter Cobre aos exercícios básicos. Era um animal dócil e fácil de ensinar; realizava obediente cada exercício, estimulado por muitos afagos, muitas palavras gentis e alguns pedaços de carne seca que Conn trouxera da cozinha. Conn concluíra o treinamento deixando Cobre correr na coleira, o esforço de acompanhá-lo ajudando a dissipar as emoções confusas que ele próprio sentia, quando entraram numa rua sossegada, em que uma das maiores casas da cidade se encontrava nos estágios finais de construção. Ele obrigou Cobre a andar devagar, esperando que Erminie os alcançasse.

     E ali avistaram um grupo vestindo túnicas, a escarlate de Guardião, à beira do círculo, duas técnicas de verde, e uma mecânica de azul, com uma mulher alta, de branco, que Conn já podia reconhecer como uma monitora, no centro. Uns poucos espectadores na rua observavam, a maioria crianças, mas também uns poucos trabalhadores de folga. Havia também um guarda, usando uma túnica verde, mas Conn não podia saber se ele se postava ali em sua função oficial, para manter a ordem, ou se simplesmente exercia o direito de qualquer cidadão livre de observar as coisas interessantes que encontrasse nas ruas.

     Cobre interrompeu a cerimônia ao avançar, latindo alegremente ao encontro de uma velha amiga; Conn reconheceu a monitora de branco como Floria e sentiu o ímpeto de amor, familiar, embora vergonhoso, que sempre experimentara na presença da prometida de seu irmão. Floria afagou o cachorrinho por um instante, depois advertiu-o:

     — Trate de ficar quieto. Não posso brincar com você agora.

     — Trate de manter esse cachorro longe daqui, senhor — disse o guarda, bruscamente. — Há um trabalho sendo realizado.

     Um momento depois, avistando e reconhecendo Erminie, ele se apressou em acrescentar, respeitoso:

     — É seu cachorro, domna? Desculpe, mas terá de mantê-lo quieto ou levá-lo embora.

     — Não tem problema — interveio Floria. — Conheço o cachorro, e não vai me incomodar, se ficar a alguma distância.

     Erminie falou em tom incisivo a Cobre, que se deitou entre seus pés e ficou imóvel, como um cachorro de gesso pintado. O Guardião, uma pessoa de véu — Conn não podia ter certeza se era um homem ou mulher; como sabia que as mulheres raramente assumiam essa função, devia ser um homem de aparência efeminada ou então emmasca — esperou pacientemente, enquanto a interrupção era resolvida, e depois, com um movimento da cabeça, tornou a reunir o grupo. Conn pôde ver — e sentir — as teias que os uniam, os vínculos invisíveis que envolviam o círculo de telepatas, artificialmente ligados pelos cristais de matriz.

     E embora nunca tivesse visto ou sentido qualquer coisa assim antes, não teve a menor dúvida ou hesitação sobre o que estava acontecendo. Sem saber como, nem mesmo consciente de que o fazia, entrou em contato com a mente de Floria. E apesar de ela estar totalmente absorvida, Conn teve a sensação de que, com um minúsculo fragmento de sua percepção, Floria o reconhecia e acolhia, como se o convidasse sem palavras para uma sala em que tocasse algum instrumento musical, indicando que sentasse e escutasse em silêncio.

     Ele também sentiu, com um fragmento de sua própria percepção, que a mãe se encontrava ali, igualmente relegada a observar de uma posição secundária. Até mesmo Cobre parecia de certa forma integrar aquela profunda intimidade. Conn sentia-se à vontade, bem-vindo, aceito — nunca antes se sentira tão integrado num grupo, embora ninguém levantasse os olhos em sua direção, nem lhe prestasse a menor atenção; pelo comportamento exterior, nenhum deles reconhecia a sua presença ali.

     O Guardião, depois de unir a todos de uma maneira que Conn ainda não podia entender, orientou o foco das atenções para uma pilha de materiais de construção na beira da rua, concentrando suas forças; a esta altura, Conn perdeu por completo a noção do que acontecia, a percepção turvada pelo clarão azul, como se sua pedra-de-estrela fosse um cristal diante — ou dentro — de seus olhos. A enorme pilha de materiais de construção começou a se elevar pelo ar. Embora fosse uma pilha solta de telhas de madeira, não escorregaram, nenhuma se desprendeu, dando a impressão de que se achavam coladas umas nas outras. A pilha foi subindo cada vez mais. Conn sentiu o Guardião determinar a direção, e em poucos segundos as telhas se equilibravam sobre a parte plana do telhado, onde os trabalhadores, sem qualquer dificuldade, começaram a pegá-las, uma a uma, pregando nos lugares apropriados. Só então o círculo tenso e concentrado pareceu se dissolver, como as telhas se separando. Floria perguntou ao Guardião, em voz baixa:

     — Mais alguma coisa?

     — Não — respondeu o Guardião. — Agora, temos de esperar até que fique tudo pronto para a pavimentação do pátio. Esta parte foi a última, por enquanto. Já poderíamos ter feito ontem à noite, se não fosse pela chuva. Teremos de instalar os vidros na estufa, dentro de poucos dias, mas não há pressa. Conversei com Martin Delleray ontem; a pavimentação não pode ser feita até que providenciem um jardineiro para cuidar dos arbustos. Ele nos avisará quando chegar o momento oportuno.

     — Esta parte da cidade está crescendo depressa — comentou alguém. — Teremos mais ruas para abrir na próxima primavera, depois que as neves derreterem.

     Um dos técnicos resmungou:

    — Não gosto do trabalho de construção; e já se fala na cidade que estamos tirando o trabalho honesto de carpinteiros e construtores.

     — Não pode ser de outra forma, quando podemos realizar em meio dia o que exigiria muitos equipamentos pesados e vários dias para fazer — declarou o Guardião. — E como transportar os equipamentos para esta parte da cidade? Por mais que as pessoas protestem, tenho certeza que protestariam muito mais se não estivéssemos aqui para realizar esse trabalho.

     — É mais provável que alguém lamente os nossos honorários — comentou o outro técnico. — Praticamente não há nenhum calçamento sendo instalado aqui a mão, muito menos um vidro instalado. Levantar materiais com cordas e roldanas não apenas consome energia, mas também representa um risco para os transeuntes.

     Esse era um aspecto do laran que nunca ocorrera a Conn, por um instante sequer. Será que poderemos reconstruir Hammerfell desse jeito? Sempre achara que precisaria de uma vasta equipe de pedreiros, durante anos incontáveis, para reerguer as ruínas incendiadas do castelo; mas com trabalhadores de laran, Hammerfell poderia ser reconstruído em muito menos tempo do que ele jamais julgara que fosse possível. Enquanto ele pensava a respeito, Floria levantou os olhos, sorriu para Conn e sua mãe. Chamou Cobre, que saiu de seu silêncio obediente numa explosão, correndo para Floria e lambendo suas mãos.

     — Você é um bom cachorro — murmurou Floria, afagando-o. — Erminie, você treinou-o tão bem quanto Jóia; muito em breve já poderá ficar deitado a seus pés até no próprio círculo. Bom cão, bom cão...

     Ela afagava o filhote enquanto falava, Cobre lambia suas mãos afetuosamente.

     — É Conn quem o está treinando — explicou Erminie. — Eu o trouxe até aqui porque queria que observasse o trabalho público de um círculo de matriz. Conn sabe muito pouco de laran, por causa de sua criação. Mas já está pronto para o treinamento... e depois disso para um lugar no círculo, pelo menos por algum tempo.

     O Guardião, levantando um rosto pálido, dominado por enormes olhos luminosos, fitou Conn com uma expressão inquisitiva.

     — Entrei em contato com você quando estávamos dentro do círculo; tem certeza de que nunca recebeu nenhum treinamento antes? Achei que poderia ter trabalhado nas montanhas com o pessoal de Tramontana.

     Conn repetiu sua negativa:

     — Não tive nenhum treinamento; e antes de vir a Thendara, nunca tinha tocado numa pedra-da-estrela.

     — Às vezes o tipo com talentos naturais dá o melhor trabalhador da matriz. — A pessoa estendeu a mão ossuda para apertar a de Conn. — Terei o maior prazer em recebê-lo entre nós. Sou Renata de Thendara.

     Conn sabia que aquele tipo de tratamento se limitava aos guardiães; e foi um choque descobrir que se tratava de uma mulher — embora achasse que não era realmente uma mulher, mas sim uma emmasca. Erminie comentou, com uma risada depreciativa:

     — Fracassei com Alastair, meu filho mais velho; ele não tinha o potencial. Portanto, acho que mereço algum sucesso com este.

     — Sem a menor dúvida — concordou Renata, gentilmente. — Posso garantir que, depois do treinamento, ele será um crédito para nós. Como ele não poderá trabalhar em seu círculo, Erminie, eu o receberei no meu.

     Conn ficou surpreso ao perceber que a mãe ficava vermelha de satisfação.

     — Obrigada, Renata; é muita gentileza sua.

     Floria, ainda parada ao lado de Conn, murmurou:

     — Quer dizer que vai para a Torre conosco? Será um prazer ajudar em seu treinamento, cunhado.

     — O prazer será todo meu, eu lhe asseguro — respondeu Conn, virando-se para ocultar o rubor que sentia aquecendo suas faces.

     Enquanto andavam juntos, seguindo os membros do círculo por uma rua que os levaria de volta à Torre, Floria virou o rosto para fitar Conn e disse:

     — Foi uma época movimentada...

     — Foi mesmo — murmurou Conn.

     Sua vida mudara radicalmente, em poucos dias, mais do que ele jamais pensara que fosse possível.

     Embora o nome dele não fosse mencionado, Alastair se encontrava em seus pensamentos, e ambos ficaram em silêncio; era como se ele estivesse ali, entre os dois. Os pensamentos de Conn tornaram-se sombrios, Floria se retraiu, enquanto acompanhavam o pequeno grupo de trabalhadores de matriz, alguns passos à frente.

     — O que será que Alastair está fazendo neste momento? — especulou Floria subitamente, em voz alta.

     — Desde que ele partiu em minha égua? — Conn forçou uma risada. — Você é telepata; não pode alcançá-lo?

     Ela baixou os olhos.

     — Não muito bem, um vislumbre, não mais do que isso. Talvez, se fôssemos amantes... mas nem mesmo assim seria fácil, pela distância. Você é irmão gêmeo... um vínculo mais forte.

     — Neste caso, se você assim deseja, vou procurá-lo — disse Conn. — Apesar de nunca antes tê-lo procurado conscientemente.

     Ele pôs a mão na pedra-da-estrela que a mãe lhe dera, dentro de uma pequena bolsa de seda, presa a uma fita em torno de seu pescoço. Já tivera tantos vislumbres de Alastair antes, sem qualquer ajuda, que não duvidou por um momento sequer que poderia tornar a vê-lo agora.

     Quando aconteceu, foi totalmente diferente das imagens como um sonho do irmão gêmeo que ele captara tantas vezes antes. A pedra-da-estrela atuava como um amplificador! Conn não sabia, mas ao seu redor podia contemplar as árvores altas familiares, sentia o cheiro da vegetação permanente, o vento sussurrante e o céu de toda a sua vida, antes de vir para Thendara. E outro cheiro que enchia o coração de qualquer homem criado nas montanhas de medo e pânico: fogo! Em algum lugar, perto de seu irmão gêmeo, ao alcance das percepções de Alastair, um fogo ardia nas Hellers.

     Parado na rua quieta de Thendara, Conn descobriu que seu coração batia tão forte que podia sentir o sangue correndo pelas veias. O que estava pegando fogo? É onde? Não era aqui, embora o cheiro do fogo e folhas queimadas o deixasse tonto e nauseado.

     Erminie, virando-se, compreendeu no mesmo instante o que eles tentavam. Em circunstâncias normais, não teria prestado maior atenção, deixando que os jovens fizessem o que queriam. Mas o rosto de Conn era de pavor. Ela voltou apressada na direção dos dois jovens. Haviam percorrido várias ruas e chegado a um ponto em que a Torre assomava a pouca distância.

     Ela pôs a mão no braço do filho, de leve, a fim de atrair sua atenção com o mínimo possível de interrupção ou choque. E murmurou:

     — Dentro da Torre será mais simples concluir o que você começou... e com menos perigo, Conn, para os dois.

     Jamais ocorrera a Conn que aquilo que fizera tantas vezes, mesmo sem possuir uma pedra-da-estrela, pudesse ser por qualquer forma perigoso, para ele ou para Alastair. Mas a estranheza, aquele novo senso de urgência e perigo, deixavam-no desconcertado; e ele balbuciou, abalado, que teria o maior prazer em tomar uma taça de vinho, acompanhando o grupo para o interior da Torre.

     O vinho foi servido, mas Conn, assim que tomou o primeiro gole, experimentou o mais assustador senso de urgência; desejou que todas aquelas pessoas se retirassem, deixando-o retornar à busca do irmão,

     Ele não participou da conversa social enquanto bebiam; tomava o vinho que despejavam em seu copo quase sem sentir o gosto. Não teve consciência de que Renata tornava a unir todos eles, através da matriz; era novo demais naquela atividade para ter desenvolvido a isenção que protegia o trabalhador da matriz do perigoso envolvimento emocional no que fazia. E já se encontrava emocionalmente envolvido; era seu irmão, sua terra, seu povo...

     A Guardiã Renata, que compreendia aquela interação de pressões mais do que qualquer outra pessoa viva, observava com uma tristeza imparcial, mas não fazia qualquer esforço para alterar a projeção natural de Conn; quando ele estivesse mais bem treinado, encontraria um método de trabalho mais equilibrado e menos arrebatado, mas teria de sacrificar, em troca dessa habilidade, um pouco da intensidade juvenil. Floria gesticulou para Conn.

     — Entre em contato comigo; juntos, tenho certeza que poderemos encontrá-lo.

     Outra vez, gentilmente, o vínculo rompido ressurgiu. Surpreendentemente, o que Conn viu primeiro foi o rosto de seu pai-de-adoção, Markos, e através dos olhos dele avistou Alastair. O cheiro de fumaça e fogo era fisicamente distante, mas parecia de alguma forma dominar cada pensamento dos dois, como dominava as montanhas com a imanência de qualquer violência da natureza. Não podia ser ignorado, como um tornado ou um maremoto, permanecia constantemente à beira de seus pensamentos, corroendo a confiança e a coragem.

     Alastair, Conn sabia, estava furioso.

     — Mas como pode dizer tal coisa? Que devo me empenhar, depois de tantos anos de rivalidade de sangue, para salvar a propriedade do homem que matou meu pai e muitos de meus ancestrais? Por quê? Não é melhor para todos nós se o fogo o consumir e destruir?

     Markos fitou-o nos olhos e disse bruscamente:

     — Eu me envergonho de você. Que criação teve para dizer uma coisa dessas?

     Conn também sentiu-se envergonhado do irmão, por tamanha ignorância, inacreditável para qualquer homem das montanhas. O fogo na floresta era o fato mais importante ali. Todas as outras considerações, quer fossem deveres de família ou rivalidade de sangue, ficavam suspensas durante a época de incêndios nas Hellers.

     Foi então que Conn se lembrou: Como podia esperar que Alastair compreendesse?

     Markos respondera como o próprio Conn o teria feito; e Conn, de certa forma, sentiu-se responsável por tudo o que deixara de explicar ao irmão, em sua negligência.

     — Amanhã, suas próprias encostas podem estar ardendo e você precisará saber que Storn... ou qualquer outro que esteja presente... o ajudará a se defender. Já deveria saber disso.

     Uma pausa e Markos acrescentou, num tom mais conciliador:

     — Mas está exausto, fez uma longa viagem. Terá tempo suficiente depois de dormir um pouco e comer alguma coisa.

   Markos levou-o por uma porta para um cômodo toscamente mobiliado. Conn conhecia muito bem o lugar; vivera ali com Markos desde os quatorze anos de idade.

     A esta altura, Conn rompeu o contato. Os rostos de Markos e Alastair dissolveram-se num clarão azul. Ele se levantou, dizendo em voz alta:

     — Não é certo espioná-lo sem o seu conhecimento; ele está seguro com Markos.

     Ele fitou os olhos aflitos de Erminie e acrescentou:

     — Seu filho se acha são e salvo, mãe. Eu compreendo... foi ele o filho criado em seu colo, não eu; é natural que receie por ele.

     — Isso me parece muito triste — murmurou Erminie. — Meu maior desejo, durante todos esses anos, foi o de ter vocês dois sob os meus cuidados.

     Conn adiantou-se e abraçou-a.

     — Sei agora tudo o que perdi, e me pergunto se meu irmão de fato apreciou o que tinha. Mas se houver problemas no norte, eu devo partir... Markos precisará de mim! Alastair...

     Ele não continuou; não podia dizer à mãe que o filho predileto não tinha condições de ocupar seu lugar em Hammerfell. Mas sua mão, quase sem pensamento, tocou no punho da espada do pai, e ele compreendeu que Floria, pelo menos, ainda lia seus pensamentos. Projetou-se para romper esse vínculo, e seus olhos se encontraram. No mesmo instante ela baixou o olhar, mas o choque de intensa emoção era palpável na sala cheia de telepatas.

     Santos Deuses, pensou Conn, o que vou fazer? Esta é a mulher dos meus sonhos; amei-a antes mesmo de encontrá-la, e agora que a encontrei, descubro que é quase a esposa de meu irmão; entre todas as mulheres do mundo, ela é proibida para mim.

     Ele não podia fitá-la; ao levantar os olhos, percebeu que a Guardiã o observava. A emmasca, isolada em segurança, alienada por seu alto cargo e também pela assexualidade do mais angustiante de todos os problemas humanos, contemplava-o com uma expressão triste e compreensiva.

    

     O trabalho nas linhas de fogo estava fazendo com que Alastair reconsiderasse sua imagem mental do inferno. Naquele momento, a perspectiva de estar num dos infernos congelados superiores de Zandru era até um tanto atraente. O suor encharcava seus cabelos e roupas, a pele do rosto dava a impressão de assar lentamente, a boca e a garganta estavam ressequidas e ardiam. E embora não fosse tanto um dândi como algumas pessoas poderiam pensar, durante toda a sua vida fora encorajado a considerar a aparência como uma indicação de sua posição e título. Agora, sentia-se infeliz, consciente de que suas roupas nunca mais voltariam a ser como antes. Mesmo que os danos causados pelas fagulhas voando fossem remendados com o maior cuidado, ficaria parecendo tão lamentável quanto o velho que trabalhava à sua direita.

     Mas não resta a menor dúvida de que os camponeses por aqui são resistentes e firmes. Ele deve ter idade suficiente para ser meu avô, mas ainda trabalha com todo vigor, enquanto eu gostaria de me encolher num canto e morrer. Mas, por outro lado, é claro que os camponeses não são tão sensíveis quanto eu.

     Jóia se enrascava na extremidade da linha de fogo; Alastair sentiu que o impulso extra de lealdade obrigava a cadela a se manter ali. Ela relutava em tirar os olhos dele, ou se afastar para um ponto em que não poderia ouvi-lo, apesar do medo que devia estar sentindo. Ele deveria ter se empenhado em mandar a velha cadela para longe da linha de fogo, para um lugar em que não ficaria tão apavorada.

     Uma jovem magra, usando um velho e esfarrapado vestido de tartã, com um chapéu lilás de aba larga, aproximou-se do velho e entregou-lhe um odre com água. Ele estendeu-lhe sua pá, enquanto enxaguava a boca e tomava um gole rápido. A jovem devolveu a pá, tornou a pegar o odre, e se encaminhou para Alastair. Seus olhos se arregalaram ao reconhecê-lo; alguém da escolta obviamente lhe dissera quem ele era. A jovem comentou, em voz baixa:

     — Estou surpresa por encontrá-lo aqui, Lorde Hammerfell.

     Ela podia muito bem dizer isso, pensou Alastair; ele próprio sentia-se espantado por estar ali.

     — Damisela... — Alastair ofereceu-lhe a mais cortês reverência. — O que está fazendo aqui? Entre todos os lugares dos Domínios, este é o último para uma dama.

     — Por acaso pensa que uma dama não vai se queimar se por acaso o incêndio escapar ao controle? — reagiu a jovem, furiosa. — Qualquer um pode perceber que é um tolo das terras baixas! Todos aqui participam do combate aos incêndios... homens e mulheres, plebeus e nobres!

     — Não vi o velho Lorde Storn arriscando a sua preciosa pele — resmungou Alastair.

     — Porque ainda não se deu ao trabalho de olhar na direção certa... ele está ali, a menos de quatro metros de você!

     Lenisa estendeu o braço, indicando o velho. Alastair soltou um grito, chocado. Aquele velho era Lorde Storn? Aquele velho encurvado podia ser realmente o espectro da infância de Alastair? Ora, ele dava a impressão de que uma súbita rajada de vento mais forte poderia soprá-lo para longe! Não parecia absolutamente assustador!

     O gesto de Lenisa atraíra a atenção de Storn; ele largou a pá e se aproximou dos dois, com uma expressão sombria.

     — Esse jovem dândi, vestido de uma maneira tão idiota, a está aborrecendo, menina?

     Lenisa apressou-se em sacudir a cabeça.

     — Não, vovô.

     — Pois então dê logo a água a ele, e depois continue em seu trabalho. Não demore na fila. Sabe como é importante que a água seja regularmente servida a todos... quer ver os homens mais adiante desfalecendo por falta de água?

     — Não, senhor, claro que não — balbuciou a jovem, docilmente.

     Ela fitou Alastair por um instante, depois continuou pela fila, levando o odre. Alastair ficou imóvel por um instante, observando-a, até que o homem ao seu lado cutucou-o, e ele recomeçou o trabalho com a pá, abrindo um aceiro no chão da floresta, coberto de folhas.

     A neta de Storn. Nada parecida com o velho que ele podia ver. Contudo, aquela moça e ele estavam separados para sempre; mas ela tinha toda a tentação do proibido, mesmo que fosse apenas por causa disso. Alastair lembrou a si mesmo, com firmeza, que era um homem de casamento marcado... com Floria, que o esperava em Thendara. Portanto, não podia olhar para outras mulheres — ainda mais uma mulher cuja família mantinha com a sua uma rivalidade de sangue há quatro gerações. Ele tentou tirar Lenisa da cabeça, pensar apenas em Floria, esperando em Thendara; especulou como ela e sua mãe estariam se saindo durante sua ausência, especulou até como poderia fazer se fosse um telepata — capaz de pôr sua mente em contato instantâneo com uma pessoa amada a distância.

     O pensamento deixou-o perturbado; não tinha certeza se queria isso. Se estivesse agora em contato com Floria, ela o observaria flertando com a garota Storn e o julgaria infiel? Leria sua mente e ficaria transtornada com as imagens de Lenisa? Alastair descobriu-se a tentar explicar mentalmente a ela o que acontecia, mas logo parou, lembrando, perturbado, que Conn, seu irmão gêmeo, tinha um vínculo mental com ele e conheceria os seus pensamentos mais íntimos. Nunca poderia mentir para Conn, nem persuadi-lo de suas boas intenções ou seu valor...

     O que o assustava. Expusera-se a Conn; o irmão o conhecia talvez melhor do que ele próprio, o que era ainda mais assustador. Mas aterrador mesmo era saber que o irmão conhecia o pior de que ele era capaz...

     Alastair tentou evocar a imagem de Floria em sua mente, mas não conseguiu; via apenas o sorriso insinuante de Lenisa.

     Ele interrompeu os pensamentos com um grande esforço, concentrou toda sua atenção no trabalho que fazia, abrindo o aceiro. Pelo canto dos olhos, notou que o velho, Lorde Storn, acompanhava o ritmo dos homens mais jovens, realizando ainda mais do que a sua cota do árduo trabalho manual. Quando a jovem Lenisa tornou a aparecer — desta vez com um balde fumegante, levando Alastair a concluir, agradecido, que devia ser um chá de ervas — parou ao lado do avô. Alastair pôde ouvir o que ela disse:

   — Isso é um absurdo, vovô. Não é forte o suficiente para esse tipo de trabalho, na sua idade.

     — Não diga bobagem, menina. Tenho feito esse trabalho durante toda a minha vida e não vou parar agora. Cuide do que lhe diz respeito, e não tenha a presunção de me dar ordens.

     Ao seu olhar furioso, a maioria das jovens ficaria aniquilada, mas Lenisa não desistiu:

     — De que adiantaria se desmaiasse do calor e tivesse de ser carregado? Acha que será um bom exemplo para os nossos homens?

     — O que você quer que eu faça? Venho ocupando meu lugar na linha de fogo, todos os verões, há setenta anos.

     — E não acha que já deu a sua cota de trabalho durante todo esse tempo, vovô? Ninguém vivo o julgaria mal se voltasse ao acampamento e cuidasse de um trabalho mais leve ali.

     — Não pedirei a nenhum homem para fazer o que eu próprio não posso fazer, neta. E agora vá cuidar do seu trabalho, deixe-me cuidar do meu.

     Contra a sua vontade, Alastair sentiu uma relutante admiração pelo velho obstinado. Quando Lenisa se aproximou e estendeu o balde, ele levou-o aos lábios e bebeu, sofregamente; achou que devia ser um chá de várias ervas, com um forte sabor de frutas, matando a sede e tirando o gosto de queimado do fundo de sua garganta.

     Ele devolveu o balde e agradeceu.

     — Seu avô sempre trabalha nas linhas de fogo com seus homens?

     — Ele tem feito isso desde que posso me lembrar, e já fazia isso antes, pelo que diz nosso povo. Mas agora está velho demais. Eu gostaria de poder convencê-lo a voltar ao acampamento. Seu coração não é muito forte.

     — É bem possível que assim seja; de qualquer forma, não posso deixar de admirar o coração que o exorta a trabalhar ao lado de seus homens — comentou Alastair, com toda sinceridade.

     A moça sorriu.

     — Isso significa que não acha que meu pobre e velho avô seja de fato um ogre, Lorde Hammerfell?

     O tom era malicioso; Alastair gesticulou para que ela baixasse a voz. A trégua-do-fogo podia ser a lei nas montanhas, respeitada até por nobres como Lorde Storn, mas ele não confiava absolutamente naqueles estranhos; se descobrissem quem ele era, podia muito bem ser morto ali.

     — Não seria nada bom para o coração de seu avô descobrir que seu mais velho inimigo se encontra aqui.

     Lenisa indagou, orgulhosa:

     — Acha mesmo que meu avô desonraria a trégua-do-fogo, nossa lei mais antiga?

     — Só acreditava nisso antes de vê-lo. Deve saber que as intrigas podem converter em monstro até mesmo São Valentine das Neves. — Mesmo assim, em particular, Alastair não estava disposto a se arriscar com Lorde Storn. — E as intrigas e boatos em relação a Lorde Storn são muitos.

     — E a maior parte é favorável, devo acreditar. Já bebeu o suficiente? Devo prosseguir em meu trabalho, ou ele vai me repreender de novo.

     Relutante, Alastair devolveu o balde e voltou a se empenhar na escavação. Não estava acostumado aos trabalhos manuais; suas costas doíam, parecia haver uma dor separada em cada músculo dos braços e pernas. As mãos, mesmo protegidas pelas grossas luvas de couro, começavam a dar a impressão de que se achavam em carne viva, ele especulou se seria devorado cru ou cozido. Calculou que dependeria da proximidade do fogo. Lançou um olhar para o céu e o sol ardente e implacável. Se ao menos surgissem algumas nuvens... A camisa grudava nas costas doloridas. Era apenas pouco depois de meio-dia, e ele sentiu que passaria uma eternidade até a hora do jantar.

     Se a moça oferecesse a Alastair um trabalho mais fácil no acampamento, ele aceitaria sem a menor hesitação. Lançou um olhar ansioso para o chapéu lilás de Lenisa, agora afastando-se pela longa fila de homens.

     Havia muitos trabalhadores manuais ali; será que cada um era tão valioso? Para aqueles homens das montanhas, é claro, talvez houvesse orgulho em trabalhar assim. Ou até mesmo uma prova de virilidade. Era o que os mantinha ali, inclusive o velho Lorde Storn, que em qualquer sociedade racional seria considerado como alguém que há muito não tinha condições de fazer aquele trabalho. Em Thendara, haveria alguma espécie de distinção entre nobres e plebeus, mas ele soubera por intermédio de Conn que havia poucas distinções desse tipo nas Hellers. Pois que lhe oferecessem uma alternativa; não sentia a menor necessidade de provar sua virilidade! Ele apoiou-se na pá, esticando as costas doloridas. O que viera fazer ali? Acima dele, ouviu um zumbido estranho, quase mecânico, um som inesperado. Soaram aclamações das linhas de fogo quando uma pequena nave aérea surgiu entre as árvores, manobrando com o maior cuidado para evitar os turbilhões de fumaça. Alastair já ouvira falar de planadores impulsionados por matriz nas montanhas, carregando substâncias químicas de combate a incêndio, mas nunca vira antes nenhum veículo mais pesado do que o ar. O aparelho sumiu e o homem ao seu lado murmurou:

     — Leroni da Torre, vindo nos ajudar.

     — Estão trazendo substâncias químicas para combater o incêndio?

     — Isso mesmo. Muita gentileza..., se pudéssemos ter certeza de que não começaram o incêndio com seu fogo aderente ou alguma outra bruxaria!

     — É mais provável que tenha sido um raio — sugeriu Alastair.

     Mas o homem fitou-o com uma expressão de ceticismo.

     — Claro, é sempre possível. Mas poderia me explicar por que há mais incêndios agora do que no tempo do meu avô?

     Alastair não tinha a menor idéia, e limitou-se a dizer:

     — Como eu não era vivo no tempo de seu avô, não sei se há mais incêndios agora; e tem mais, acho que você também não sabe.

     Ele voltou a se concentrar no trabalho. Aquele não era um lugar para o Duque de Hammerfell. Se soubesse que assumir seu posto de Duque de Hammerfell significaria trabalhar na terra daquele jeito, teria oferecido a oportunidade a Conn, e que o irmão tirasse bom proveito!

     Ah, que droga! Desesperado, ele olhou para o céu, imaginando-o coberto por nuvens. Nuvens frias, cinzentas e úmidas, ocultando o sol escaldante e trazendo chuva — a bem-aventurada chuva! E lá estava, uma nuvem pequena, ao sul; imaginou-a crescendo, espalhando-se depressa pelo céu, turbilhonando, escurecendo, aproximando-se...

     E estava crescendo e se espalhando, uma brisa fresca em sua esteira, cada vez mais escura e mais densa. Alastair sentiu-se atônito e maravilhado; fiz alguma coisa para que isso acontecesse? Ele experimentou por um momento, até se certificar de que era isso mesmo, de alguma forma seus pensamentos controlavam a nuvem, tornando-a cada vez maior, até que seus fantásticos castelos e torres cobriam mais da metade do céu!

     Seria um novo laran, para o qual não haviam pensado em testá-lo? Ele não tinha como saber. A nuvem o esfriara bastante; zeloso, ele tornou a se inclinar sobre a pá, antes que lhe ocorresse uma possibilidade: Eu poderia fazer chover? Poderia apagar o incêndio e poupar muito trabalho a todos nós? O problema era que podia visualizar a nuvem se expandindo e se tornando mais escura, mas não tinha conhecimento suficiente do que a fazia chover. Deveria ter prestado mais atenção à mãe quando ela tentara lhe explicar algo além dos usos mais simples do laran. É uma pena que eu não possa entrar na mente de Conn como ele consegue entrar na minha, e aprender mais sobre esta arte com ele.

     Ele consumira tanto tempo em seu esforço de imaginar a nuvem que as garotas e meninos que levavam água aos homens já haviam recomeçado suas rondas. Entre eles avistou Lenisa, desta vez a uma distância considerável, e especulou se ela não teria passado para uma linha de fogo diferente. Foi nesse momento que compreendeu que estava com ciúme do homem que recebera água de suas mãos... com mais ciúme do que sentia de Conn em Thendara com Floria. É verdade que meu irmão Conn sabe tão pouco da vida na cidade que não notaria — muito menos seduziria — qualquer mulher que julgasse que pertencia a outro homem.

     Por um momento, o desdém de Alastair pelo irmão se desvaneceu. É realmente válido desdenhá-lo, só porque Conn é um homem honrado? Mas eu também deveria me sentir obrigado por seu senso de moralidade rústica?

     O céu estava agora tão escuro com as nuvens que um vento úmido começara a soprar. Alastair se despira até a cintura para o trabalho nas linhas de fogo; agora estremeceu de frio e pegou a camisa, que amarrara na cintura. Estava úmida de suor... não, eram gotas de chuva, enormes, ainda bastante esparsas... mas ele imaginou-as caindo cada vez mais depressa...

     Outra aclamação elevou-se das linhas de fogo, à medida que passou a chover mais forte e mais depressa, fazendo com que nuvens de vapor subissem ao longo da floresta em chamas. Alastair largou a pá e ficou olhando para o céu, com alívio e satisfação.

     — Olhem! — gritou alguém.

     Levantando os olhos, aturdido, Alastair avistou uma árvore queimada começando a se inclinar, caindo de maneira inexorável; e, horrorizado, ele descobriu que Lenisa com seu odre se encontrava a poucos metros de distância. Mesmo antes de perceber o que estava fazendo, Alastair já corria pelo aceiro; jogou-se contra a moça, derrubando-a e empurrando-a para fora do caminho da árvore caindo...

     Mas não foi o suficiente. A árvore desabou com um tremendo estrondo, como se fosse o fim do mundo, arrastando em sua queda muitas árvores menores e arbustos. Lenisa e Alastair se achavam por baixo; ele protegeu a moça entre seus braços da melhor forma possível, sentiu o corpo dela sob o seu, enquanto o mundo desabava em cima de sua cabeça. O último som que ouviu foi o uivo frenético de Jóia.

    

     Conn vira o fogo a distância, sem qualquer desejo específico de se intrometer na mente de Alastair. De alguma forma, mais cedo ou mais tarde, Alastair devia chegar a um acordo com Markos e seu povo. Se os habitantes de Hammerfell o vissem aceitando seu dever entre eles, inclusive o de vigia de incêndio, como o próprio Conn fizera regularmente desde os nove anos de idade, com certeza o aceitariam mais cedo.

     Mas o perigo de morte rompeu todas as barreiras; o pânico de Alastair, ao ver a árvore caindo e correr para tirar Lenisa de seu caminho, aflorou na mente de Conn como se ele próprio estivesse ameaçado pela copa em chamas; o holocausto sufocante da floresta incendiada, o estrondo da queda da gigantesca árvore — até mesmo os uivos frenéticos de Jóia — tudo explodiu em seu cérebro como se estivesse lá, e não na sala tranqüila da casa de sua mãe. Ele se levantou de um pulo, por um instante sem saber que o coração disparado, o fluxo de adrenalina por todo o corpo, não tinham outra realidade que não o seu próprio corpo e cérebro.

     Ele estava ciente apenas do perigo e do terror desesperado; e só depois que passara um longo e angustiante momento é que voltou a perceber que se encontrava sozinho, ao crepúsculo, ouvindo apenas os sons das ruas tranqüilas de Thendara; um cachorro latindo em algum lugar, a distância, o rumor de uma carroça. Subitamente, Alastair desaparecera — morto ou inconsciente, a situação terrível também desaparecendo da percepção de Conn.

     Conn enxugou o suor inesperado do rosto. O que acontecera com seu irmão?

     Por mais rigoroso que o tivesse julgado em algumas ocasiões, tinha de reconhecer agora que fora heroísmo a maneira como ele arriscara a vida; teria até perdido a vida? Cauteloso, Conn procurou na mente pelo contato rompido com Alastair, só encontrou dor e escuridão... mas pelo menos a dor significava que Alastair sobrevivera, talvez gravemente ferido, mas ainda assim vivo.

     No chão, Cobre gania, irrequieto; talvez ele também tivesse captado alguma coisa de seu dono ausente, pensou Conn, eu apenas captara o desespero e aflição do próprio Conn?

     — Está tudo bem, Cobre — murmurou ele, afagando a cabeça polida. — Está tudo bem. Acalme-se.

     Os olhos enormes e escuros de Cobre fitaram-no, suplicantes, e Conn pensou: É isso mesmo, devo ir ao seu encontro; de um jeito ou de outro, Markos vai precisar de mim.

     Ele estava acostumado a tomar suas decisões; guardou as roupas num alforje, foi até a cozinha pegar comida para a viagem, antes de lhe ocorrer que era um hóspede na casa da mãe e deveria pelo menos — se não pedir sua autorização — informá-la de seus planos.

     Conn deixou o alforje meio vazio e saiu à procura de Erminie. Mas quando atravessava o vestíbulo a porta da frente foi aberta e Gavin Delleray entrou, parecendo um pássaro emplumado, o couro das botas pintado de vermelho, combinando com a cor das pontas dos cachos e as fitas nos punhos da camisa. Olhou para Conn e percebeu no mesmo instante que havia algo errado.

     — Bom dia, meu caro amigo. O que aconteceu? Teve notícias de Alastair?

     Conn, que não estava com ânimo para perder tempo em cortesias, disse bruscamente:

     — Há um incêndio nas montanhas e ele foi ferido... talvez esteja morto.

     A aparência de jovem dândi saiu do rosto de Gavin como se fosse uma máscara.

     — Deve falar com sua mãe a respeito imediatamente; ela será capaz de descobrir se Alastair ainda vive.

     Conn não pensara nisso; ainda tinha pouco conhecimento da vida das pessoas dotadas com laran. E descobriu que sua voz tremia quando disse:

     — Vem comigo? Eu não poderia suportar encará-la se for o portador da notícia da morte de Alastair...

     — Claro.

     Juntos, eles procuraram Erminie, e foram encontrá-la na sala de costura. Ela levantou os olhos, sorrindo para o filho, mas virou o rosto quando ele não retribuiu, num presságio apavorado.

     — Conn, o que aconteceu? E você... o que está fazendo aqui, Gavin? Sabe que é sempre bem-vindo, mas deve compreender que a esta hora...

     — Vim apenas para pedir notícias, a princípio — respondeu Gavin —, mas encontrei Conn nesse estado...

     — Devo partir imediatamente para Hammerfell, mãe; Alastair foi ferido... quase morto, eu desconfio... nas linhas de fogo.

     Erminie empalideceu.

     — Ferido? Como soube?

     — Tenho entrado em contato com ele algumas vezes; uma forte emoção... medo ou dor... promove a ligação — explicou Conn, dizendo o que a mãe já sabia no instante mesmo em que fizera a pergunta. — Eu o vi ser atingido na queda de uma árvore em chamas.

     — Misericordiosa Avarra! — balbuciou Erminie.

     Ela pegou a pedra-da-estrela, inclinou-se para fitá-la, um momento depois levantou os olhos, aliviada.

     — Acho que ele não está morto. Gravemente ferido, talvez, até mesmo inconsciente, mas não morto. Ele se encontra além do meu alcance. Preciso falar com Edric... ou Renata... eles poderão entrar em contato com as pessoas na Torre em Tramontana, que saberão o que está acontecendo nas montanhas. Todos os guardiães podem entrar em contato uns com os outros.

     — Chame Floria também, parenta — sugeriu Gavin. — Ela vai querer saber o que está acontecendo com seu prometido marido.

     — Claro. — Erminie tornou a se inclinar para a pedra-da-estrela. Depois de um momento, levantou os olhos e acrescentou: — Eles virão.

     — Não me agrada essa demora — protestou Conn. — Sinto que devo partir imediatamente.

     Erminie sacudiu a cabeça.

     — Não deve haver tanta precipitação; se você tem de ir, é melhor partir sabendo com precisão o que está acontecendo. De outro modo, pode cair numa armadilha preparada por Storn... como aconteceu com seu irmão, muito antes de seu nascimento.

     — Se é esse o problema — interveio Gavin —, ele não seguirá sozinho para o perigo; juro que estarei ao seu lado, para a vida ou a morte.

    Erminie abraçou Gavin, tão comovida que não tinha palavras para se expressar. Continuava abraçada aos dois quando Cobre levantou a cabeça e latiu. Soaram passos no vestíbulo, um momento depois Floria entrou na sala, acompanhada por Renata, em sua túnica vermelha, e Edric, um pouco atrás.

     — Vim assim que soube que precisava de mim, parenta — disse ele, encaminhando-se para Erminie.

     Renata disse, em sua voz rouca e assexuada de emmasca:

     — Conte-nos o que aconteceu, minha cara.

     Conn explicou rapidamente. Edric franziu o rosto, murmurando:

     — É preciso avisar o Rei Aidan o mais depressa possível.

     Foi a vez de Renata franzir o rosto e protestar:

     — De jeito nenhum. Sua Graça já tem problemas demais neste momento, não pode dispensar nenhum pensamento a Hammerfell.

     — Isso significa que Antonella morreu? — indagou Gavin. — Fui informado de que ela estava se recuperando.

     — Até a noite de ontem, isso era verdade — disse Floria. — Foi quando mandaram chamar minha monitora; outro vaso sangüíneo em seu cérebro se rompeu. Ela não morrerá, mas não pode falar, tem todo o lado direito do corpo paralisado.

     — Pobre dama... — murmurou Renata. — Ela é boa para todos, Aidan sentirá demais sua falta. Ele deve ficar junto de Antonella, enquanto sua presença ainda proporcionar algum conforto a ela.

     — Devo permanecer também com ela — comunicou Floria. — Talvez a vigilância e um controle constante possam prevenir outro derrame... que provavelmente acarretaria a morte.

     — Eu é que devo ficar com ela — declarou Renata. — Neste momento, Floria, acho que seu lugar é aqui, com a mãe de seu prometido marido... — Ela olhava para Conn enquanto falava. — E tenho certeza que seu pai concorda. Erminie precisa de você. Eu ficarei com Sua Graça. Fui monitora antes de me tornar Guardiã...

     — E suas habilidades são muito maiores do que as minhas — acrescentou Floria, aliviada e agradecida.

     Conn também se sentia dividido entre o perigo que o irmão corria e os problemas do rei, a quem aprendera a amar. Sua voz era irritada quando falou:

     — E agora, em nome de todos os Deuses que existem, vamos descobrir o que está acontecendo com meu irmão.

     Ele olhou para Floria, que também o fitou, sem que nenhum dos dois se atrevesse a reconhecer o pensamento que pairava entre eles.

     Não desejo mal nenhum a meu irmão, eu juro; mas se ele não se interpuser mais entre nós...

     E o pensamento de Floria em resposta: Talvez eu só tenha amado Alastair porque foi por intermédio dele que conheci você...

     De um jeito ou de outro, Conn sabia, ele e Floria não poderiam mais ignorar seus sentimentos. Mas, primeiro, deviam cuidar de Alastair.

     Antes mesmo de Renata poder levantar ou descobrir a pedra-da-estrela, a porta da casa foi aberta e Valentine Hastur entrou.

     — Ah, Renata, eu esperava mesmo encontrá-la aqui! Você é necessária; deve ir imediatamente para junto de Sua Graça. Cuidarei de Dama Erminie e seus filhos... afinal, eles são meus filhos-de-adoção.

     — Fico contente que esteja aqui, parente; sempre aparece quando mais preciso.

     Conn pensou: E eu me sinto contente por ela; casou com meu pai quase antes de largar suas bonecas, e viveu sozinha durante todos esses anos, pensando apenas no bem-estar de meu irmão. Já é tempo que ela tenha alguém que pense primeiro em sua felicidade.

     A pedra-da-estrela faiscava na mão de Edric; num instante, ele reuniu-se no círculo. Conn logo sentiu a presença de outro círculo, e compreendeu sem ser informado que eram os trabalhadores reunidos na distante Torre em Tramontana.

     Sejam bem-vindos, parentes; o incêndio foi controlado e temos tempo para acolhê-los agora. Na mente de Conn, surgiram imagens de árvores queimadas, uma aldeia que se tornara inabitável — nas terras de Storn não nas suas — e os abrigos erguidos para os desabrigados, a distribuição de víveres e roupas.

     E meu filho? Foi Erminie quem formulou a pergunta, a mente se projetando à procura de Alastair, Conn participando da busca.

     Ele está se recuperando, mas nas mãos de Storn — embora como um hóspede, sob as leis da hospitalidade, que ele considera sagradas, o Guardião da distante Torre assegurou a Erminie. Nenhum mal lhe acontecerá, e seus ferimentos não são mortais, podemos garantir.

     — Se Alastair está ferido, Markos... e meu povo... vão precisar de mim — declarou Conn. — Mãe, dê-me licença para partir. Já arrumei tudo, mas deve me providenciar um cavalo bom e forte. Minha velha égua foi levada por Alastair. Devo viajar o mais depressa possível.

     — Leve o que quiser; qualquer animal no estábulo está a seu dispor. Eu o seguirei tão depressa quanto puder, mas será mais rápido se viajar sozinho.

     — Nós o seguiremos — interveio Floria, em voz firme. — Eu também vou.

     — E eu irei com Conn — anunciou Gavin. Conn virou-se para Gavin e a mãe.

     — Por que vocês precisam ir? Mãe, deve permanecer aqui, sã e salva. Garvin, você tem de ficar para cuidar dela. Reconheço sua boa vontade, meu amigo, mas não conhece as estradas nas montanhas, e um pode viajar mais depressa do que dois.

     — Se Alastair está ferido, vai precisar de mim — insistiu Erminie. — E você ficará ocupado com a missão do rei, levantando um exército, como ele sugeriu. Conheço o caminho para Hammerfell tão bem quanto você. Mas deve partir o mais depressa possível.

     — Gavin, você deve ficar e escoltar minha mãe e Floria, se elas acharem que devem partir — suplicou Conn, pegando a mão do cantor. — É o melhor serviço que poderia me prestar, meu amigo.

     — Acho que eu devo ir com você, Conn — disse Floria, em voz baixa. — Há um problema entre você e eu... e Alastair.

     — Tem razão — concordou ele —, mas não pode ir. Fique com minha mãe. Ela precisará de você.

     Erminie acompanhou Conn até seu quarto, onde terminaram de arrumar algumas roupas no alforje. Depois, pegaram pão e carne fria na cozinha. Um bom cavalo foi selado. Ela ficou parada no portão, observando-o se afastar.

     Cobre tentou saltar pelo portão, atrás dele, quase derrubando Erminie, que o segurava pela coleira. Ela ainda tentou conter o cachorro, mas desistiu e soltou-o da coleira, murmurando:

     — Cuide dele, menino.

     Ela continuou parada ali por mais um momento, contemplando o segundo filho que partia para as montanhas, que já haviam tragado o primeiro. Depois tornou a entrar na casa, enviou uma mensagem à Torre de que precisava de uma licença do trabalho, chamou os servos e providenciou tudo, preparando-se para partir ao amanhecer. Chegara o momento de retornar à herança que abandonara vinte anos antes.

     Ela dormiu mal, acordou pela manhã e já encontrou Floria na cozinha, arrumando os alforjes para a viagem.

     — Eu não queria acordá-la — disse a mulher mais jovem —, mas devemos partir o mais cedo possível.

     — Não é justo que nos ausentemos da Torre ao mesmo tempo, minha cara — protestou Erminie.

     — Não diga bobagem. Agora, especialmente nesta época, há muito pouco trabalho. Há outra monitora que pode tomar o meu lugar no círculo, se houver alguma reunião, e duas jovens aprendizes para trabalhar na retransmissão, se for necessário. Ficar aqui, quando precisam de mim em outro lugar, seria covardia... não posso usar meu trabalho na Torre como uma desculpa. — Floria hesitou por um instante, depois acrescentou: — Mas se não quiser minha companhia...

     — Não, Floria, não é isso. Não me agrada fazer longas viagens sozinha. Terei o maior prazer em sua companhia, mas...

     — Alastair se foi, e ele é meu prometido marido — disse Floria. — Conn também partiu...

     Ela parou de falar, incapaz de pronunciar as palavras. Erminie compreendeu o que ela diria e gesticulou para que ficasse em silêncio.

     — Até mesmo os cachorros foram embora — comentou Erminie, tentando desanuviar a situação. — Por que deveríamos ficar aqui sozinhas? Mas não sei... você já viajou tão longe?

     — Não — confessou Floria. — Mas ando a cavalo muito bem, farei tudo para não atrasá-la. E Gavin prometeu que iria conosco.

     — Com licença...

     Gavin Delleray entrou na cozinha neste momento e Erminie, ao vê-lo, não pôde conter uma risada.

     — Agradeço o seu empenho em me escoltar, meu caro rapaz, mas não nesse traje! Vá buscar roupas de montaria apropriadas no quarto de Conn...

     — Como achar melhor — disse Gavin, jovialmente —, embora eu contasse com a oportunidade de levar a última moda para as montanhas, onde ninguém sabe coisa alguma sobre o corte elegante de um casaco.

   Ele se retirou, e não demorou a voltar, num culote de montaria de Conn, uma túnica de couro, botas amarradas quase até os joelhos.

     — Só espero que nenhum dos meus amigos na corte me veja vestido desse jeito — resmungou Gavin. — Eu não poderia sobreviver às gargalhadas.

     — É uma longa viagem, e não será fácil para quem não nasceu nas montanhas — advertiu Erminie.

     Mas Floria e Gavin estavam decididos, e ela levou-os para o estabulo. Floria trouxera o seu melhor cavalo. As mulheres vestiam saias de montaria e mantos grossos; embora fizesse calor nas ruas da cidade, Erminie sabia que encontrariam um frio intenso nas terras altas ao norte. Deixaram a cidade pelo portão norte.

     O primeiro dia de viagem foi tranqüilo e ensolarado. Dormiram numa estalagem sossegada, depois de jantarem a comida local, a fim de pouparem o pão e outras provisões de viagem. As mulheres ficaram contentes pela companhia de Gavin; como qualquer menestrel, ele insistiu em cantar para elas, antes de dormirem. Despertaram na manhã seguinte para um dia cinzento e frio. Começou a chover menos de uma hora depois de deixarem a estalagem.

     Continuaram a seguir para o norte, sob a chuva, em silêncio, cada mulher absorvida em seus pensamentos. Floria pensava angustiada em seu prometido marido, ferido ou morto no castelo de Storn, ansiava por Conn, experimentando um profundo sentimento de culpa. Erminie reconstituía, tristemente, lembranças há muito sepultadas de seu casamento; sem ter essa intenção, descobriu-se a invejar o amor ardente da jovem ao seu lado — algo que ela, casada tão moça, com um homem mais velho, por mais gentil que ele fosse, nunca conhecera. Não sentira falta até agora, quando testemunhava o que podia ser a paixão juvenil. Gostava de Valentine, mas sabia que um segundo casamento, em sua idade, provavelmente lhe proporcionaria companhia, até mesmo felicidade — mas não aquele tipo de amor.

     Gavin, acompanhando-as, não podia entender por que insistira em partilhar aquela aventura. Alastair era um parente e velho amigo, num instante se afeiçoara a Conn, mas isso não era motivo suficiente para se lançar espontaneamente ao perigo. Ele disse a si mesmo que poderia encontrar material para uma balada na história dos gêmeos que eram herdeiros de Hammerfell, e acabou concluindo que devia ser uma obra do destino. Nunca acreditara no destino, mas sentira-se compelido, de forma inexplicável, a aderir àquela missão desesperada, e não podia encontrar outra explicação.

     A chuva foi se tornando mais forte e mais fria, à medida que atravessavam desfiladeiros e subiam mais e mais. Ao final da tarde do terceiro dia, a chuva misturava-se com neve, agulhas de granizo atingiam seus rostos, os cavalos tinham a maior dificuldade em avançar pela trilha coberta de gelo.

     O terreno era escorregadio, as estradas estreitas tão confusas que Erminie mal conseguia se orientar pelo caminho que só percorrera uma vez, ainda por cima na direção oposta. Quase ao escurecer, ela começou a temer que estivessem perdidos. Descobriu-se a procurar telepaticamente por Conn, a conferir por onde ele fora, determinar qual das trilhas estreitas era o curso certo. Mas Conn não estava alerta ao seu contato, e ela teve de se projetar pelo mundo exterior, em busca de algum viajante que seguisse na mesma direção e conhecesse o caminho. A rigor, isso não era ético para uma telepata treinada, mas Erminie não foi capaz de pensar em qualquer outra maneira de evitar que se perdessem no bosque desconhecido.

     Acabaram encontrando uma pequena aldeia; não havia estalagem ali, mas um dos aldeões concordou em lhes fornecer cama e comida, por um preço exorbitante, além de um guia para levá-los à aldeia seguinte pela manhã. Erminie aceitou, por falta de qualquer alternativa disponível, embora se sentisse perturbada; permaneceu acordada durante a metade da noite, enquanto Floria dormia a seu lado, temendo que os "hospitaleiros" aldeões pudessem ser ladrões que os atacariam e roubariam, talvez ainda pior, durante a noite. Mas acabou sucumbindo ao sono e despertou à primeira claridade, incólume, com todas as suas coisas intactas, e mais do que um pouco envergonhada de suas suspeitas. Lembrou que o marido e o filho sempre haviam vivido entre o povo das montanhas; sem dúvida havia vilões entre eles — como Lorde Storn, por exemplo — mas a maioria era formada por pessoas decentes e honradas.

     Outro dia extenuante de viagem, com o guia da aldeia dando instruções precisas sobre a maneira de alcançar Hammerfell ou o Castelo Storn, e puderam continuar sozinhos. Ao crepúsculo do quinto dia, chegaram a uma encruzilhada na estrada, onde havia um punhado de árvores, que Erminie reconheceu como um ponto de referência; o caminho da esquerda subia para Hammerfell, o da direita para o Castelo Storn, que podiam avistar a distância, como um pequeno chifre de pedra, na crista da montanha seguinte.

     Erminie hesitou; não sabia se devia seguir para Hammerfell (que vira pela última vez em ruínas) e procurar aliados, ou ir direto para Storn e exigir seu direito de cuidar do filho ferido. Revelou sua confusão a Floria, que disse:

     — Conn falou que viveu com Markos, Dama Erminie; acho que seria melhor procurar abrigo ali.

     — Mas com Alastair nas mãos de Storn... Ele pode não estar seguro...

     — Não nos disseram sempre que a trégua-do-fogo é sagrada para o povo das montanhas? — protestou Floria. — Alastair foi ferido nas terras de Storn, durante o fogo. Storn não pode deixar de cuidar dele da forma mais honrosa.

     — Não tenho motivos para confiar na honra de Lorde Storn — insistiu Erminie.

     — Mais motivo ainda para não se entregar a ele sem ser anunciada.

     Erminie acatou o bom senso do argumento e seguiram para Hammerfell. Não demorou muito para ouvirem cavaleiros se aproximando. Sem a menor noção de quem poderia ser, Erminie e Floria levaram seus cavalos para fora da estrada, escondendo-se por trás de arbustos densos. E logo Erminie ouviu um latido familiar, depois uma voz humana que conhecia, embora não a escutasse há quase vinte anos.

     — Minha dama duquesa?

     — É mesmo você, Markos, meu velho amigo?

     — É, sim, mãe, e eu também! — gritou Conn.

     Com um profundo suspiro de alívio, Erminie voltou à estrada e quase caiu desfalecida nos braços de Markos. Depois de confirmar que a mãe se achava sã e salva, Conn deu um abraço amigável em Gavin, em seguida abraçou Floria também, contra-feito.

     — Vocês não deveriam ter vindo — disse ele. — Estariam mais seguros em Thendara, com Alastair nas mãos de Storn e gravemente ferido...

     Respirando o ar puro das montanhas, Erminie não pôde deixar de se lembrar de seu antigo companheiro de brincadeiras, Alaric, cativo no Castelo Storn, morrendo ali.

     — Até que ponto é grave o estado de Alastair? Storn fez alguma ameaça?

     — Ainda não — respondeu Markos. — Eu diria que isso acontecerá mais tarde. Minha dama, eu me regozijo por encontrá-la viva e bem. Durante todos esses anos pensei que estivesse morta...

     — E eu também pensei que você tivesse morrido, meu velho amigo.

     Erminie apertou calorosamente a mão do velho servidor de seu marido. Depois, num súbito impulso, inclinou-se e beijou o rosto do velho, acrescentando:

     — Tenho uma dívida de gratidão com você por ter cuidado de meu filho durante tantos anos, Markos.

     — A gratidão é minha, duquesa; ele foi o filho que eu nunca tive. Mas agora devemos procurar abrigo. Já é tarde, a chuva em breve se transformará em neve... Eu gostaria de poder lhe mostrar Hammerfell reconstruído, como deve ser, mas receio que ainda teremos de esperar por esse dia. Se reconstruíssemos o castelo sob as costas de Storn, ele saberia que ainda restam Hammerfell nestas montanhas. Mas há uma nevasca prestes a cair e tenho uma casa que está à disposição de minha dama, assim como pessoas para atendê-la e à jovem leronis.

     — O que podem me dizer sobre o incêndio e Alastair?

     — Creio que o incêndio foi extinto — respondeu Conn, falando bem devagar. — Houve muita chuva, e avistei uma nave aérea que deve ter levado ajuda.

     — Há leronis em Tramontana, mãe, e acho que um dos projetos de Storn era se insinuar nas boas graças da Torre, como se fosse do Comyn.

     Erminie fechou os olhos, focalizou a pedra-da-estrela e projetou seus sentidos tão longe quanto podia. Em silêncio, convocando Floria para guardá-la, esquadrinhou a região ao redor, ao máximo possível.

     — O incêndio foi extinto... — anunciou ela, finalmente. — O solo está úmido e fumegante, uma pequena patrulha vigia para se certificar de que o fogo não vai recomeçar, os homens no acampamento de incêndio já foram deitar, creio que voltarão para suas casas pela manhã. Mas não vejo sinal de Alastair.

     — Ele não está no acampamento — garantiu Conn. — Recuperou a consciência há pouco tempo... senti sua dor. Está bastante ferido, mas creio que não corre qualquer perigo imediato de morte.

     — Onde ele está?

     — Dentro do Castelo de Storn e, até onde posso determinar, como um hóspede respeitado.

     Floria e Erminie pareciam insatisfeitas com isso, e Conn acrescentou:

     — Que alternativa temos, mãe, que não a de confiar nele? Não podemos ir até o castelo e exigir que Storn o solte imediatamente. Isso seria um terrível insulto contra a honra de Storn; e como podemos saber que Alastair se encontra em condições de ser solto?

     Erminie não podia refutar esses argumentos.

     — Está bem — concordou ela. — Disse que há espaço na casa de Markos para abrigar a todos nós durante a noite? Pois então leve-nos para lá; qualquer coisa será muito melhor do que as estradas das Hellers.

    

     Ao despertar, Alastair teve certeza que o pesadelo do inverno finalmente o reclamara. Seu corpo se achava envolto por linhas de dor intensa; mas depois de alguns minutos de luta impotente, compreendeu que se encontrava envolto por bandagens, encharcadas de ungüentos de cheiros estranhos. Abriu os olhos, e deparou com o rosto transtornado de Lenisa.

     Lentamente, a memória voltou; a árvore em chamas, sua tentativa de salvá-la... o rosto da moça estava avermelhado, um braço envolto por bandagens, os cabelos queimados nas têmporas.

     Ela reparou que os olhos de Alastair se fixavam na parte queimada e desgraciosa, apressou-se em comentar, irritada:

     — É feio, sim, mas a leronis garante que é bom para os cabelos serem chamuscados, vão crescer num instante... que às vezes uma cabeleireira queima as pontas dos cabelos para fazê-lo crescer mais depressa.

     — Isso não me importa — interrompeu-a Alastair. — Só quero que me diga que não está gravemente ferida.

     — Não é nada sério. Tenho uma queimadura no braço que vai me impedir de amassar pão ou fazer tortas por alguns dias. Portanto, se quiser uma torta de amora, terá de esperar até que meu braço fique curado.

     Ela riu nesse momento, e Alastair sentiu uma profunda ternura.

     — Quer dizer que algum dia vai me fazer uma torta?

     — Claro que sim. Acho que você merece, ainda mais por que não participou da festa que nosso povo realiza sempre que um incêndio é extinto. Mas guardei para você um pouco de carne fria e bolos, se estiver com fome.

   Alastair pensou um pouco; sentia-se desesperadamente sedento, mas sem a menor fome.

     — Creio que eu não conseguiria comer, mas seria capaz de beber um barril inteiro de água gelada!

     — Isso acontece por causa das queimaduras; mas bebidas quentes são melhores para você agora do que água gelada.

     Lenisa levou uma taça aos lábios de Alastair. Continha o mesmo chá de ervas de gosto forte que ela servira nas linhas de fogo. Aliviou a sede e Alastair sentiu-se sonolento assim que acabou de beber, especulou se ela não acrescentara alguma droga para fazê-lo dormir.

     — Você precisa descansar — disse Lenisa. — Levou muito tempo para tirarem a árvore em chamas de cima de você. Por sorte, ficou por baixo de um galho apenas. Foram os leronis que finalmente vieram e levantaram a árvore com suas pedras-da-estrela. A princípio, pensamos que tivesse morrido. Vovô ficou transtornado, porque eu não parava de chorar, não deixava que enfaixassem minhas queimaduras...

     A moça corou subitamente, desviou os olhos, depois murmurou:

     — Mas estou cansando você com tanta conversa. Deve dormir agora. Voltarei para lhe trazer o jantar mais tarde.

     Alastair mergulhou no sono, com uma estranha imagem na mente, da moça chorando... pelas queimaduras dele! Perguntou-se se ela tivera tempo de comunicar ao avô a identidade de seu hóspede; se Lorde Storn sabia que abrigava sob seu teto o inimigo mais antigo — pois Alastair não tinha a menor dúvida de que se encontrava dentro do Castelo Storn, estava impotente agora, não podia fazer coisa alguma, exceto confiar na trégua-do-fogo; e com esse pensamento, ele pegou no sono.

     Ao despertar de novo — teve a impressão de que não passara muito tempo — Lenisa já voltara, acompanhada por uma serva com uma bandeja. A mulher ajudou a levantar Alastair na cama, apoiando-o em almofadas e travesseiros. Lenisa sentou na beira da cama e alimentou-o com colheradas de ensopado e pastelão, depois que ele comeu um pouco (Alastair ficou surpreso ao descobrir que não era capaz de engolir muita coisa, pois sentia-se faminto), Lenisa ajeitou-o na cama, com o maior cuidado. E foi nesse momento que, olhando por cima do ombro da moça, Alastair avistou o rosto enrugado de Lorde Storn.

     — Devo-lhe minha gratidão, jovem Hammerfell, pela vida de minha sobrinha-neta — disse Storn, em tom formal. — Ela me é mais cara do que dúzias de filhas, minha única descendente viva...

     Ele fez uma pausa, e seu tom se tornou mais pessoal quando acrescentou:

     — E pode ter certeza de que estou longe de ser ingrato. Houve muitas causas de controvérsias entre nós, mas agora que é meu hóspede... embora não por opção, podemos conversar sobre a maneira de superar nossas divergências.

     Ele fez outra pausa. Alastair, que passara a maior parte de sua vida em Thendara, recebendo um treinamento formal de protocolo, reconheceu a pausa como sua deixa para dizer alguma coisa cortês.

     — Creia que me sinto grato por sua generosa hospitalidade, meu lorde; e sempre ouvi dizer que não há divergência que não possa ser reparada, mesmo que seja entre os deuses, quanto mais entre os homens. Como somos apenas homens, é certo que todas as amarguras entre nós podem ser sanadas, se houver boa-vontade e boa-fé.

     Lorde Storn ficou radiante de alívio pelo discurso pequeno e gracioso de Alastair. Trocara as roupas de trabalho grosseiras que usara nas linhas de fogo; os cabelos estavam penteados para trás, grisalhos, mas tão lisos e lustrosos, por cima da testa larga, que Alastair desconfiou que era uma peruca; ele tinha anéis nos dedos; e usava uma túnica de brocado, azul-celeste. Parecia imponente, até mesmo real.

     — Beberei a isso, Duque Hammerfell. E quero lhe oferecer a garantia solene de que, se estiver disposto a esquecer os ressentimentos passados, nada terá a temer de mim. Apesar de ter matado meu sobrinho, em seu último embate com meus homens, ameaçando-me de morte...

     A voz de Lorde Storn começava a assumir um tom perigoso. Alastair levantou a mão para detê-lo, ansioso em resguardar sua frágil segurança.

     — Com todo respeito, senhor, foi só hoje que cheguei em suas terras pela primeira vez. O homem que ameaçou-o não fui eu, mas meu irmão mais moço... meu gêmeo. Ele foi criado por um velho servidor de meu pai, que tinha a impressão errada de que minha mãe e eu morrêramos no incêndio que destruiu Hammerfell, e que meu irmão Conn era o último sobrevivente da linhagem de Hammerfell. Meu irmão mais moço é impetuoso, e receio que seja deficiente em comportamento nobre e boa educação. Se ele o tratou sem o devido respeito, só posso pedir que o perdoe e tente remediar a situação. Não vejo motivo, senhor, para que essa amarga e irracional rivalidade de sangue deva continuar por mais uma geração.

     Alastair torcia fervorosamente para que seu discurso apaziguasse o antigo inimigo.

     Lorde Storn sorriu.

     — É mesmo? Quer dizer que foi seu irmão quem atacou minhas terras e matou meu sobrinho? E ele se considerava o legítimo Duque de Hammerfell? Onde ele está agora?

     — Até onde eu sei, senhor, está em Thendara, com minha mãe, onde eu vivi durante os últimos dezoito anos, desde o incêndio de Hammerfell. Só nos reencontramos há menos de quarenta dias. E vim para o norte a fim de cuidar dos interesses do meu povo aqui, em minhas terras.

     — Sozinho?

     — Isso mesmo, sozinho, exceto... — Abruptamente, Alastair se lembrou. — Minha cachorra! Lembro que a ouvi latir quando a árvore caiu. Espero que não esteja machucada.

     — A pobre cachorra não queria deixar que tocássemos em você, nem mesmo para tratar de suas queimaduras — disse Lorde Storn. — Está sã e salva. Íamos levá-la para o canil, mas minha neta a reconheceu e trouxe para cá.

     — Encontrei-a na taverna e nos tornamos amigas, deve estar lembrado — comentou Lenisa, sorrindo.

     — Minha mãe nunca me perdoaria se acontecesse alguma coisa com a velha Jóia — disse Alastair.

     Lorde Storn foi até a porta do quarto e abriu-a. Lenisa disse:

     — Dama Jarmilla, por favor, traga a cachorra de Lorde Hammerfell. — Ela acrescentou para Alastair. — Como pode ver, Jóia ficou em boas mãos... as mãos de minha própria governanta.

     A espadachim que ele vira na taverna entrou no quarto, segurando Jóia pela coleira; mas enquanto Alastair fazia um esforço para sentar na cama, a cadela desvencilhou-se da mão da mulher e pulou em cima dele, derrubando-o de novo, pondo-se a lamber seu rosto.

     — Calma, calma, seja uma boa menina — murmurou Alastair, sentindo uma dor considerável pela manifestação de afeto de Jóia. — Está tudo bem, menina, nada me aconteceu. Estou bem agora. Vamos, desça da cama. — Ele olhou para Lorde Storn. — Espero que ela não tenha mordido ninguém em sua casa, senhor.

     Jóia foi para o chão, deitou ao lado da cabeceira da cama, os olhos fixados no rosto de Alastair, não se mexeu mais.

     — Acho que não — respondeu Lorde Storn —, embora eu tenha a impressão de que se Lenisa não fizesse amizade com ela, poderia morder qualquer pessoa que se aproximasse de você. Tivemos de trazê-la para dentro do castelo, pois ela latia tanto que podia acordar toda a região. E não comeu nada desde que você ficou ferido.

     — Ela não tocou na comida e cerveja servidas a todas as pessoas que participaram da luta contra o fogo no salão, depois que voltamos do incêndio — acrescentou Lenisa. — Talvez estivesse preocupada demais com você para comer.

     — Não é isso — explicou Alastair. — Minha mãe e eu a treinamos para só aceitar comida de nossas mãos.

     — Não sei se é ou não uma boa idéia — disse a espadachim Jarmilla. — Se ambos morressem, a pobre-coitada passaria fome até a morte.

     — Ela nunca esteve longe de minha vista antes — afirmou Alastair. — E ninguém planeja exatamente ser morto ou ferido.

     — Acho que tem razão — comentou Lorde Storn —, mas não se pode esquecer o velho ditado: "Nada é tão certo quanto a morte, e depois a neve do inverno." Nem sempre podemos mudar os arranjos para nossos descendentes... ou nossos cachorros... antes de sermos mortos, especialmente hoje em dia.

     — É verdade — murmurou Alastair.

     Ele se lembrou abruptamente de que estava nas mãos do mesmo Lorde Storn que queimara a casa de sua família por cima de sua própria cabeça, quando ainda não tinha dois anos, matando seu pai. Pelo que sempre ouvira dizer, um hóspede era sagrado nas montanhas; mas seu irmão mais velho não morrera naquele castelo? A falta de cuidados por parte de Storn teria alguma coisa a ver com isso? Ele não podia lembrar e, nas atuais circunstâncias, a única coisa que podia fazer era confiar em Lorde Storn... e em Lenisa.

     — Eu agradeceria, mestra, se pudesse lhe dar alguma coisa para comer no canil. — Afagando a cabeça de Jóia, ele acrescentou para a cachorra, enfático: — Está tudo bem, menina, pode ir com ela, é amiga.

     Pegando a mão de Dama Jarmilla, ele aproximou-a do focinho da cachorra, murmurando:

     — Pode ir com ela, menina, e coma seu jantar, entende?

     Jóia fitou-o como se entendesse e depois saiu ao lado de Dama Jarmilla. Lenisa sorriu.

     — Então ela não é como o cão Hammerfell da lenda... treinado para caçar qualquer pessoa com sangue Storn?

     Alastair nunca ouvira falar de tal cão e especulou se a história seria verdadeira.

     — Claro que não. Mas eu diria que ela me protegeria e à minha mãe... — creio que até mesmo a meu irmão... até a morte.

     — Eu não teria o menor respeito por um cachorro que não agisse assim — comentou Lenisa.

     — Já chega, chiya — interveio Lorde Storn. — Vamos parar com essa conversa ociosa. Preciso dizer uma coisa a Hammerfell. Meu jovem, eu gostaria que pensasse a sério nos melhores interesses de seus camponeses e dos meus.

     — Estou sempre disposto a escutar — respondeu Alastair, cortesmente.

     Havia algo em Lorde Storn que o levava a querer esquecer os erros por cuja vingança sempre vivera. Parecia de alguma forma incongruente que ele estivesse ali para levantar um exército contra aquele velho tão corajoso; talvez, com diplomacia e compreensão, a guerra pudesse ser evitada. Lenisa certamente não era sua inimiga. Podia pelo menos escutar, sem preconceitos.

   — A terra por aqui está esgotada, não há mais como tirar o sustento da agricultura — disse Lorde Storn. — Venho tentando ajudar meus camponeses a mudarem, mas eles são teimosos como os demônios de Zandru; talvez, juntos, possamos reeducá-los. A coisa nova é a ovelha... tirar as pessoas daqui, pôr ovelhas em seu lugar. Eles precisam compreender que é melhor para todos. Não se pode mais ganhar dinheiro com a agricultura. É do seu interesse, tanto quanto do meu. Mas pense bem, antes de responder.

     O velho se levantou.

     — Ouve a chuva? Eu gostaria de poder ficar dentro de casa como você, aconchegado numa cama quente, com uma jovem mão amigável para me acomodar, dar-me um vinho quente antes de dormir. Mas preciso partir... ir até as fronteiras, certificar-me de que nenhum dos meus bons vizinhos aproveitou o incêndio para mudar os marcos... é verdade, isso já foi feito antes, com ou sem trégua-do-fogo... providenciar para que as substâncias químicas sejam guardadas com segurança, verificar se os vigias se encontram em seus postos.

     — Ficarei acordada e servirei um vinho quente assim que voltar, vovô — sugeriu Lenisa.

     — Não, menina, vá deitar e trate de dormir bem. — Ele beijou-a na testa. — Cuide de nosso hóspede, e se retire para o seu quarto quando chegar a hora. Amanhã, jovem Hammerfell, voltaremos a conversar, você e eu. Durma bem.

     E com um aceno de cabeça amigável para os dois, Lorde Storn saiu do quarto.

    

     Ardrin, Lorde Storn, saiu do castelo, hesitou por um momento; deveria chamar um dos guardas para acompanhá-lo até as fronteiras? Não, não havia razão para isso; vigiara aquelas fronteiras em todos os dias de sua vida, desde os doze anos de idade, e relutava em obrigar qualquer dos seus homens a sair pela chuva em sua companhia.

     E, no entanto, a chuva era leve, quase agradavelmente fresca, depois do calor e fadiga do dia. Suas roupas eram grossas, impermeáveis à chuva; ele foi verificando cada marco de pedra, de uma forma quase automática. Possuía um antigo senso de união com suas terras; conhecia cada acre pelo que podia produzir, o que fora plantado ou feito ali no passado.

     E pensou, pesaroso: Meu avô cultivava maçãs naquele campo; agora, não presta para outra coisa, que não ovelhas. Nenhuma parte destas terras é útil agora para outra coisa além de ovelhas. A indústria da lã cresce a cada dia em Thendara; a agricultura nunca nos fez ricos, mas a criação de ovelhas pode nos trazer fortunas.

     Era triste remover homens que haviam sido camponeses de Storn por muitos anos, mas não podia permitir que continuassem ali, passando fome em terras esgotadas; afinal, era necessário. Com a mudança, todos haveriam de prosperar.

     É realmente para o bem de todos, ele lembrou a si mesmo, tranqüilo. Não podemos nos apegar ao passado; e eles podem encontrar campos para cultivar nas terras baixas ou algum outro lugar, até mesmo trabalharem na cidade. As fábricas na cidade precisam de bons trabalhadores e não conseguem encontrá-los. E haverá também trabalho para seus filhos e esposas, como criados nas casas da cidade. É melhor para todos, em vez de se apegarem como animais famintos a terras esgotadas.

     Ele não percebeu que a chuva passara a cair mais forte e mais depressa, até que descobriu que se misturava com uma neve densa. Escorregou, perdeu o equilíbrio; conseguiu levantar, mas a neve era fria e pesada agora. Enfiou as mãos nos bolsos fundos do casaco e seguiu em frente, avaliando os danos causados pelo incêndio.

     Já percorrera uma distância considerável, e começou a desejar que tivesse permitido que Lenisa lhe preparasse uma refeição quente, antes de sair, pois o granizo penetrava até por seu casaco grosso.

     Teve a impressão de avistar uma luz, onde "Uma luz nunca deveria haver", como dizia a balada antiga. Mas talvez, pensou ele, divertido, seus animais leiteiros tivessem aprendido a acender fogueiras nos pastos. A primeira reação foi de curiosidade, em vez de alarme; aproximou-se, especulando se o fogo poderia ter recomeçado nas pastagens, talvez apenas uma fagulha, mas visível a uma longa distância durante a noite.

     A luz desapareceu e ele não teve mais certeza se a vira de fato. O reflexo da luz das estrelas em algum fragmento de metal; lembrou de um episódio em sua juventude, quando levantara um alarme ao avistar uma luz à noite, que se descobrira ser o cinto e a faca de um pastor pendurados numa cerca, refletindo o luar.

     Desde esse dia sempre hesitara antes de tirar conclusões precipitadas; e isso conflitava com o costume arraigado de levantar o alarme imediatamente a qualquer sinal inesperado de fogo ou intruso, convocando ajuda primeiro e investigando depois. Fogo, estranhos à noite, bandidos, nada disso tinha importância em uma política de esperar para ver.

     Cauteloso, ele saiu da estrada e se encaminhou para o ponto em que avistara a luz. E logo podia tornar a vê-la, tremeluzindo, enquanto avançava, orgulhoso porque seus olhos continuavam tão aguçados quanto uma geração antes; acabou concluindo que o clarão eram reflexos em vidro.

     Mas reflexos do que, em nome de todos os infernos gelados de Zandru? Numa chuva como aquela, não havia luar nem luz das estrelas. Só uns poucos de seus camponeses tinham condições de possuir janelas de vidro. Ele se aproximou da casa, sempre cauteloso, constatou que, embora parecesse deserta, um fogo ardia em algum lugar no interior — em desafio às ordens rigorosas contra lareiras acesas sem alguém para vigiar — o que era responsável pelos reflexos que avistara a distância. Ele subiu para a varanda da casa, encolhendo-se ao rangido agoniado da madeira, empurrou a porta e entrou. O calor era confortador, mas a lei era a lei, o perigo era o perigo; cobriria o fogo e pouparia àquela pessoa uma multa e uma preleção do guardião do fogo. Suas roupas fumegaram quando se aproximou do fogo. Recuou abruptamente, os olhos arregalados em terror, quando as mãos estendidas à sua frente encontraram formas penduradas e balançando.

     Será que todos haviam se enforcado'? Mas por quê? Ele parou, preparando-se para o que temia ver à luz do fogo; e depois deixou escapar um suspiro de alívio, contrafeito. Casacos e mantos vazios, pendurados de uma viga alta para secar, nada mais do que isso.

     Ele cobriu o fogo com a areia num balde ao lado da lareira, desejando que o camponês viesse lhe fazer um sermão sobre a necessidade de cobrir os fogos à noite, quando não havia ninguém para vigiar. Mas onde estavam as pessoas, como podiam sair à noite e deixar aquele fogo descoberto? Não devia ser coisa boa, podia apostar... mas talvez pudesse lhes contar seu pavor, que seria engraçado, quando partilhado.

     Depois de algum tempo, porém, como ninguém voltasse, ele tornou a sair para o frio, a fim de concluir a verificação das fronteiras. A tempestade era ainda mais forte agora, uma mistura densa de chuva e neve. Ocorreu a Lorde Storn que a atitude mais sensata agora seria esquecer a missão, voltar para a casa, passar a noite junto ao fogo de seu camponês, terminar de conferir as fronteiras e os danos pela manhã. Por que pensara que poderia avaliar direito os danos do incêndio numa tempestade como aquela, depois do escurecer? Fora uma exibição, no final das contas, para o jovem Hammerfell? Não, a chuva era leve e agradável quando partira, ele sentira a necessidade de ar fresco e frio, de um pouco de solidão.

     O vento uivava agora de uma forma ameaçadora, que o advertia, com o conhecimento do tempo de uma vida inteira, a procurar abrigo. Orgulho era uma coisa, loucura outra.

     Era melhor seguir para a fazenda mais próxima. Havia ali um homem chamado Geredd, seu meeiro há vinte ou trinta anos, cuja fazenda fora escolhida para as mudanças. O camponês já recebera o aviso para ir embora, mas continuava a viver ali, pelo que Lorde Storn sabia. Ele seguiu em frente, houve um momento em que tropeçou e caiu numa vala, de onde saiu coberto por uma lama enregelante. As botas ficaram encharcadas porque entrara na água, a lama vazou pelas canelas, acumulou-se nas meias. Quando avistou o lampião brilhando na janela de Geredd, pensou que nunca uma luz fora tão bem-vinda, e gritou para chamar atenção antes de bater na porta.

     Um jovem, com um olho coberto por uma venda preta, usando um gorro esfarrapado que lhe dava uma aparência feroz — Storn não se lembrava de tê-lo visto antes — abriu a porta.

     — O que quer aqui? — indagou o jovem, desconfiado. — A uma hora como esta, esquecida dos deuses, quando todas as pessoas honestas já estão na cama?

     — Meu negócio é com Geredd — respondeu Storn. — Pelo que me lembro, esta é a casa dele. Quem é você?

     — Avô! — gritou o rapaz. — Tem alguém aqui querendo falar com você!

   Geredd, encurvado e gordo, com um traje de fabricação doméstica todo amarrotado, veio à porta. Sua expressão era apreensiva; mas quando viu Storn, sua apreensão desapareceu por completo.

     — Meu lorde! É uma grande honra para mim. Saia do frio.

    Em poucos minutos, Storn estava sentado num banco acolchoado, junto da lareira, os trajes externos encharcados e as botas secando ao fogo.

     — Desculpe não ter vinho para servir, senhor; não gostaria de uma caneca de sidra quente?

     — Será um prazer.

     Lorde Storn estava surpreso com toda aquela gentileza, depois que os camponeses haviam sido avisados pelos feitores de que deveriam deixar suas terras; mas refletiu que a lealdade de clã era profundamente arraigada naquelas pessoas; afinal, a maioria era constituída por parentes distantes, e o hábito da deferência com o líder e lorde do clã era muito antigo. Quando a sidra quente foi servida, ele tomou um gole, agradecido.

     — O jovem que abriu a porta... o jovem corpulento com uma venda num olho... é seu neto? — indagou Storn, lembrando que o rapaz chamara "avô".

     Mas Geredd respondeu:

     — É enteado de minha filha mais velha, pelo segundo casamento dela; não é parente meu. Seu pai morreu há quatro anos. Dei ao rapaz um quarto na casa, porque ele não tem outro lugar para onde ir. A família de seu pai foi toda para o sul, à procura de trabalho em Neskaya, no comércio de lã, mas ele diz que não tem a menor intenção de se tornar um homem sem terra, sem raízes, por isso prefere permanecer aqui... — Uma pausa e o camponês acrescentou, ansioso: — Ele fala muita bobagem... mas sabe como são os jovens... falam muito e não fazem nada.

     — Eu gostaria de conversar com alguns desses jovens descontentes, descobrir o que estão pensando.

     Lorde Storn correu os olhos pela velha sala, de vigas altas, da qual o soturno e esfarrapado jovem se retirara. O velho Geredd suspirou.

     — Ele está sempre saindo e circulando por aí com os amigos. Sabe como são os jovens, senhor, vivem pensando que podem mudar o mundo. E agora, senhor, devo dizer que não deve pensar em voltar esta noite, com esse tempo. Pode ocupar minha cama, minha esposa e eu dormiremos aqui, junto do fogo. Minha filha mais nova também está aqui. Receberam o aviso para sair das terras, mas Bran... é o marido de Mhari, eles têm quatro crianças pequenas, com menos de cinco anos, e Mahri deu à luz gêmeos há poucos dias, por isso estou abrigando todos aqui... o que mais posso fazer?

     Storn ainda tentou protestar, mas Geredd insistiu:

     — Não é problema nenhum, senhor, absolutamente nenhum, sempre dormimos aqui, perto da lareira, quando faz muito frio; e agora a esposa já está aprontando a cama para o senhor, com lençóis limpos, os melhores cobertores.

     Ele levou Lorde Storn para o pequeno quarto. Quase todo o espaço era tomado por uma cama enorme, com colchão de penas e colcha, diversos travesseiros velhos e remendados, mas limpos. A idosa esposa de Geredd apresentou-se e ajudou Lorde Storn a tirar as roupas molhadas, a vestir um camisolão também muito remendado e bastante desbotado, mas limpo. A peruca de Storn ficou pendurada no balaústre da cama, as roupas espalhadas pelo quarto, já secando, em diferentes estágios. A velha puxou as cobertas até os ombros de Lorde Storn, desejou boa noite com toda deferência, e retirou-se. Finalmente aquecido, não mais tremendo de frio, Storn acomodou-se na cama, ouvindo o granizo bater nas janelas. Não demorou a pegar no sono; fora um longo dia.

    

     A cabana de Markos não era grande, mas para Erminie parecia aconchegante e confortável, iluminada por uma tocha, que não espalhava muita claridade. Lá fora, a noite era sem estrelas, o céu coberto por nuvens cinzentas de chuva, correndo em sua luz misteriosa. Além do muro de pedra baixo, ela podia avistar as ruínas de Hammerfell, o que os amigos de Alastair na cidade provavelmente chamariam de abandono romântico; Gavin já usara a expressão três vezes, deixando Markos um pouco irritado, até que Floria o cutucara nas costelas e o forçara com uma expressão carrancuda a um silêncio contrito.

     A cabana era impermeável à chuva, embora não fosse espaçosa, um cômodo baixo, razoavelmente mobiliado, com duas camas estreitas — numa das quais Erminie sentava agora, os pés ainda úmidos estendidos na direção do fogo.

     Além disso, havia uma mesa pequena, com duas cadeiras de pau. E mais nada. Markos estendera uma velha peça de linho bordado sobre a mesa, ali pusera duas taças de prata manchadas, trouxera comida e vinho para as mulheres.

     — Eu gostaria que fosse um palácio para acolhê-la, minha dama — desculpou-se ele.

     Mas Erminie sacudiu a cabeça e citou:

     — "Quem dá o que tem de melhor é igual em cortesia a um rei, mesmo que o seu melhor seja apenas a metade de uma pilha de palha." E pode estar certo de que isto é melhor do que qualquer pilha de palha.

     Gavin enroscava-se no tapete, aos pés de Erminie, onde o fogo da lareira crepitava, irradiando um calor reconfortante. No outro lado da lareira, na segunda cama, sentava Floria, um grosso manto de veludo por cima de sua túnica branca e fina da Torre — que ela tivera de vestir, como Erminie, porque os trajes de montaria haviam ficado completamente encharcados. Cobre se encolhia em seu colo. Conn sentava numa das cadeiras, Markos mantinha-se de pé ao lado da outra, nervoso e obviamente inseguro de que sua casa pudesse alojar a Duquesa de Hammerfell. No reduzido espaço além da mesa e cadeiras, quatro ou cinco homens espremiam-se; meia dúzia mais se comprimira no pequeno cômodo interno, esticando as cabeças pela porta, a fim de terem pelo menos a participação mínima no que estava acontecendo. Erminie sabia que eram os homens que haviam acompanhado Conn em sua primeira excursão, aceitando-o como o herdeiro legítimo de Hammerfell. Quando Markos lhes apresentara Erminie, os homens saudaram-na com uma aclamação que fizera as vigas tremerem, provocando uma revoada de surpresos morcegos, abrigados no espaço estreito entre as vigas e o telhado de colmo. Erminie se entusiasmara com a recepção, mesmo sabendo que não se destinava realmente a ela. Ainda assim, tinha certeza de que Conn deveria ter feito por merecê-la; era um crédito para o filho se aquelas pessoas, sem terem um lorde legítimo por vinte anos, se mostrassem leais à família de Hammerfell.

     E em Thendara nunca pensei neles. Estou envergonhada. Devo tentar compensar. Com a ajuda do Rei Aidan... Ela parou por aí, sonolenta, especulando o que poderia fazer de fato, depois de tantos anos.

     E depois, com um suspiro, ela lembrou; Conn também não era o legítimo duque; essa honra era reservada a seu filho mais velho, embora Conn ainda tivesse a espada do pai. Aquela recepção, na verdade devida a seu irmão, só prolongava a convicção do povo de que deveria segui-lo; e se era lealdade pessoal a Conn, não lealdade à casa de Hammerfell, poderia haver problemas à frente. O coração de Erminie se confrangeu pelos filhos, o que ela amara durante toda a vida, e aquele por cuja perda tanto sofrera.

     Tais sentimentos angustiantes não eram apropriados ao momento; mas levantando os olhos, ela percebeu que Conn se mantinha com o rosto franzido, e especulou se ele não captara seus pensamentos e ficara perturbado. Erminie levantou o copo e disse, suavemente:

     — É um prazer tornar a vê-lo em seu próprio lugar, meu filho querido. Bebo ao dia em que a casa de seu pai será restaurada, e o Grande Salão reconstruído para você e seu irmão.

     Cobre, no colo de Floria, balançou o rabo, como se ecoasse o sentimento. Erminie pensou que gostaria de saber onde se encontrava a velha Jóia naquele momento. Conn também levantou seu copo, fitando a mãe nos olhos.

     — Durante toda a minha vida, mãe, desde que soube quem eu era, até mesmo quando pensava que estivesse morta, sempre sonhei em vê-la aqui. Esta é uma noite de grande alegria, apesar da tempestade lá fora. Que os deuses possam conceder que seja apenas a primeira de muitas ocasiões assim.

     Ele bebeu, largou a taça, e acrescentou:

     — É uma pena que Alastair não esteja aqui para partilhar essa alegria; por direito, pertence a ele, mas não está longe o dia em que ele se encontrará conosco. Enquanto isso... Markos, acha que devemos chamar o filho de Jerian... ele toca a rryl muito bem, e as quatro filhas do velho podem nos oferecer uma dança... o que me diz, Markos? Ei, onde Markos está?

     Conn correu os olhos pela cabana, à procura de seu pai-de-adoção.

     — Não precisa incomodar ninguém, meu querido — disse Erminie. — Não preciso de diversão esta noite; sinto-me contente só de estar em minha própria terra, não necessito de mais nada. Só lamento os transtornos que estamos causando ao pobre Markos; sua casa não é bastante grande para abrigar tantas pessoas. Floria e eu tivemos cinco dias de viagem árdua e não quero qualquer diversão melhor do que uma boa cama. E se quisermos música, Gavin está aqui e poderá cantar para nós.

     Ela ofereceu um sorriso gentil para o jovem músico, antes de acrescentar, indecisa, vendo um homem alto e corpulento que fazia sinais para Conn, do canto escuro do cômodo, onde também se encontrava Markos:

     — Olhe ali, meu filho, aquele homem parece querer falar com você...

     Conn levantou-se.

     — Com sua licença, vou ver o que ele está querendo.

     Com a caneca na mão, ele se afastou. Erminie acompanhou-o com os olhos, viu-o se aproximar do homem, escutar atentamente por um momento, depois pular para trás, abruptamente, derramando alguns pingos da caneca. De cara amarrada, fazendo um gesto furioso, Conn gritou depois de uma breve hesitação:

     — Homens de Hammerfell!

     O grito atraiu a atenção de todos. Os homens que já se encontravam dentro da cabana fitaram-no com uma intensa expectativa, os que se postavam lá fora trataram de entrar, espremendo-se contra a lareira, contra as camas estreitas em que as mulheres sentavam.

     — Eles estão em marcha, os homens de Storn! Era de se esperar que não saíssem de suas casas, com este tempo horrível, mas não se pode imaginar tal decência! Os algozes de Storn estão em ação, sob a chuva e a neve, expulsando velhos que mereciam mais compaixão! Vamos ao encontro deles e acabar com essa opressão, homens de Hammerfell!

     Ele virou-se para a porta e saiu à frente dos homens, que o seguiram apressados, vestindo os agasalhos no maior entusiasmo. Depois de alguns minutos, Markos procurou as mulheres e disse:

     — Meu lorde apresenta suas humildes desculpas, mas é necessário em outra parte. Suplica que se deitem agora, e voltará a vê-las pela manhã.

     — Ouvi o que ele disse, Markos — murmurou Erminie. Os olhos do velho servidor faiscavam de orgulho.

     — Veja como eles o seguem! Morreriam por seu jovem duque!

     Erminie refletiu que Markos avaliava a situação muito bem, só que Conn não era seu jovem duque... mas aquele não era o momento de tratar do que isso podia significar para os direitos de Alastair.

     — Vamos torcer para que eles não precisem morrer por ele, pelo menos ainda não — murmurou ela.

     Todos os homens haviam partido, à exceção de Markos, o velho servidor, e Gavin, que ficara comprimido contra a lareira, incapaz de se mexer. Agora, o jovem músico levantou-se, e teria saído também, mas Markos sacudiu a cabeça para impedi-lo.

     — Não, senhor. Meu lorde queria que ficasse aqui para proteger as mulheres; pense no que aconteceria se os homens de Storn soubessem que a duquesa está escondida aqui. No mínimo queimariam a casa sobre nossas cabeças.

     — Como já fizeram uma vez — comentou Erminie.

     Ela não estava surpresa que Conn tivesse partido tão depressa com os homens que conhecera por toda a sua vida, esquecendo a existência de Gavin; na verdade, sentia-se bastante segura, e agradecia ao velho por salvar as aparências para Gavin.

     A casa ficou bastante quieta depois que os homens foram embora, ouvindo-se apenas o crepitar do fogo, e o barulho da chuva lá fora, caindo sobre as pedras do calçamento. Erminie terminou seu vinho — não era um vinho muito bom, mas ela fora uma bebedora requintada e não fazia muita diferença — preocupada com a partida de Conn naquele tempo, com os homens que o seguiam cegamente, pensando que era seu legítimo líder.

     — Mas claro que ele é — disse Floria, em resposta aos pensamentos que Erminie não expressara em voz alta. — Ele conquistou a lealdade e o amor dos homens, sempre os terá, mesmo que Alastair venha a impor seus direitos.

     Erminie reconhecia a sabedoria nas palavras de Floria, mas nem por isso deixou de se preocupar.

     — Eu amo aos dois — continuou Floria —, e me sinto preocupada com os dois. Conn está ainda mais perturbado com Alastair do que você. Por que acha que ele partiu tão depressa?

     Erminie não fez qualquer tentativa de responder, por isso Floria acabou acrescentando:

     — Até que o problema com Alastair esteja resolvido, ele não quer permanecer no mesmo cômodo comigo. Ama o irmão e não quer traí-lo.

     A questão finalmente era levantada, e Erminie ficou contente por isso; parecia que ela e Floria haviam evitado o assunto com o maior cuidado, quase que desde o momento em que Conn chegara em Thendara. E desde a noite da malograda cerimônia de noivado, parecia se interpor entre cada palavra que ela e Floria trocavam.

     — Você quer traí-lo?

     — Não, claro que não. Fui criada com Alastair, sempre gostei dele. E por isso me senti muito feliz com a perspectiva de tê-lo como marido; sei que ele gosta de mim, seria um marido gentil. Mas depois Conn apareceu em Thendara, e agora tudo mudou.

     Erminie não sabia o que dizer. Como sempre, ela, que nunca experimentara esse tipo de amor e realização, não sabia o que falar, sentia-se impotente diante de uma moça que demonstrava essa paixão.

     — Eu gostaria de poder casar com os dois — murmurou Floria, à beira das lágrimas. — Não suportaria magoar Alastair, mas sem Conn minha vida será vazia e sem sentido.

     Gavin interveio, com seu sorriso irônico e jovial:

     — Há cem anos, pelo que sei, isso seria possível aqui nas montanhas.

     Floria ficou ruborizada.

     — Aqueles eram tempos bárbaros; hoje, mesmo aqui nas montanhas, essas coisas não são permitidas.

     Ah, como ela poderia escolher entre seu antigo companheiro de brincadeiras, a quem amara como um irmão por tanto tempo, e seu gêmeo que era tão parecido com ele... e ao mesmo tempo tão diferente? Não era apenas pelo fato de Conn partilhar o dom do laran e poder penetrar em seu coração de uma forma que Alastair jamais conseguiria — Floria sabia que era mais do que isso, nunca conhecera a paixão, nunca conhecera o desejo, até Conn surgir de modo tão inesperado em sua vida e coração. Sentia-se envergonhada por admiti-lo, mas parecia-lhe agora que Conn era vivido e vital para ela, Alastair apenas um reflexo vago e obscuro.

     — De qualquer forma — acrescentou ela, tentando ser jovial —, vai me ter como filha... sendo assim, que importância tem para você com qual dos dois casarei?

     — Só se você quiser ser a Duquesa de Hammerfell.

     Floria respondeu lentamente, traduzindo em palavras pela primeira vez:

     — Prefiro ter Conn a ser a Duquesa de Hammerfell.

     E agora Conn saíra pela tempestade; gostaria de tê-lo acompanhado, mas contava-se que as mulheres ficavam para trás, esperando por seus homens... Ela se perguntou se a espera e a preocupação não seriam tão terríveis quanto a própria ação.

     Sabia que de nada adiantaria se angustiar por Conn; era seu dever ir onde o povo precisava. Sorriu para Gavin e pediu:

     — Dê-nos uma canção, meu amigo, antes de nos deitarmos. Estamos bastante seguras aqui, e vejo que Dama Erminie se sente exausta.

     Afinal, Conn deixara a mãe aos cuidados dela; conhecendo-o, não tinha a menor dúvida de que ele considerava isso como um posto de honra.

     A chuva cessara, estrelas cintilavam no céu, o frio era intenso. Conn avançava com seus homens ao redor, sabendo que corria para impedir um erro que mal compreendia. O Rei Aidan considerava que o lorde local tinha o direito de determinar o destino de todas as pessoas que ali viviam.

     Talvez Lorde Storn não devesse possuir todas aquelas terras, talvez o erro estivesse no sistema; talvez toda a região devesse pertencer a pequenos proprietários, que cultivariam suas fazendas, decidiriam a melhor maneira de aproveitá-las. Mas enquanto aquele sistema fosse a lei da terra em vigor, quem era ele para contestar a consciência de Lorde Storn e dizer como ele deveria tratar os seus?

     Jamais questionara isso antes; sempre aceitara que era mesmo errado o que Markos classificava de errado; agora, porém, questionava tudo. Não sabia o que era certo, mas começava a sentir, com uma força cada vez maior, que a terra deveria ser entregue aos camponeses.

   E sabia também — embora não soubesse muito bem como sabia, apenas que devia ser através daquele vínculo misterioso com a mente do irmão — que Alastair não partilhava suas convicções, mas considerava como uma lei divina que deveria ter o poder sobre todos os que nasciam como seus súditos. Nesse ponto, Conn desconfiava, ele e Alastair nunca poderiam concordar; mas até aquela noite aceitara que deveria se submeter a Alastair, pelo simples fato de o irmão ter nascido vinte minutos antes.

     Na verdade, porém, que diferença isso fazia? Se ele era mais apto a reinar do que Alastair...

     Ele interrompeu essa linha de raciocínio, sinceramente consternado pelo curso traiçoeiro de seus pensamentos. Como virara os olhos ilegalmente para a prometida esposa de Alastair, passara a questionar tudo — a lei, a decência, os próprios fundamentos do universo ordenado em que vivia.

     Forçou-se a não pensar em nada que não nos ruídos dos cascos dos cavalos sobre as pedras congeladas da estrada. Um grito de Markos interrompeu seus devaneios.

     — Oh, não! Chegamos tarde! Eles queimaram tudo... os algozes de Storn! O lugar está em chamas!

     — Alguns deles ainda podem estar por aqui — disse Conn. — E se eles saíram numa noite como esta, precisarão de nossa ajuda mais do que nunca.

     Antes mesmo de avistá-los, eles puderam ouvir os sons à beira da estrada. Lá estavam, soldados com o uniforme de Storn, empurrando um bando de homens, mulheres e crianças, apenas meio vestidos, uma moça de camisolão, com duas crianças nos braços, outras crianças descalças, agarrando-se a mulheres, um velho andando de um lado para outro, furioso, falando sem parar:

     — Juro que eu merecia algo melhor de meu lorde, depois de quarenta anos!

     Uma mulher idosa, de cabelos grisalhos, obviamente sua esposa, tentava acalmá-lo.

     — Calma, calma, tudo ficará esclarecido quando amanhecer e puder conversar...

     — Mas o lorde me prometeu...

     Os olhos de Conn foram atraídos para outro homenzinho, num camisolão remendado, com botinas nos pés sem meias, sacudindo os punhos e gritando de forma incoerente. Conn prestou atenção; um dos homens tentava obter um relato coerente do velho.

     — Eles apareceram enquanto dormíamos, expulsaram-nos para a chuva e incendiaram a casa. Eu disse a eles... exigi que parassem... ordenei que parassem, disse a eles quem eu era... mas não me deram atenção...

     O rosto do velho era vermelho como uma maçã; Conn pensou que ele poderia ter um derrame a qualquer momento.

     — E quem é você, vovô? — perguntou um dos homens de Markos, respeitoso.

     — Ardrin de Storn! — berrou o velho, o rosto cada vez mais vermelho.

     Um dos soldados de Storn sorriu.

     — E eu sou o Guardião da Torre de Arilinn, mas podemos dispensar o protocolo esta noite; pode me chamar apenas de "sua graça".

     — Por Zandru! — berrou o velho. — Estou lhe dizendo que sou Ardrin, Lorde Storn. Abriguei-me aqui...

     — Ora, velho, fecha essa boca, ou vou acabar perdendo a paciência! Acha que eu não reconheceria meu próprio lorde?

     Conn observou atentamente o rosto do velho. Em outras circunstâncias, nunca lhe teria ocorrido acreditar no que ele dizia — mas um telepata sabe quando ouve a verdade, e Conn a ouvia agora. O velho era mesmo Lorde Storn ... e que tremenda ironia, o próprio Storn ser expulso para a chuva por seus soldados, a própria casa em que se abrigava ser incendiada por suas ordens. Conn não culpava o soldado — quem poderia acreditar que aquele velho, num camisolão de flanela desbotado e remendado, fosse o homem mais poderoso dali até Aldaran? Conn aproximou-se, fez uma ligeira reverência, e disse:

     — Lorde Storn, vejo que finalmente sente a opressão de suas decisões. — Ele olhou para o soldado e acrescentou: — Um velho é igual a outro, sem suas boas roupas e a peruca.

     O soldado olhou mais atento.

     — Pelos infernos de Zandru! — praguejou ele. — Senhor, eu não sabia... apenas cumpria as suas ordens... a família de Geredd expulsa...

     Storn parecia prestes a explodir.

     — Minhas ordens? Por acaso dei ordens para que a família de Geredd fosse expulsa no meio da noite... com esta tempestade?

     — Pensei que assim não precisaríamos recorrer à força para expulsar os outros — explicou o soldado, apreensivo. — Daria um exemplo...

     — Você pensou? — Storn olhou deliberado para as crianças trêmulas, chorando. — Pois então devo dizer que isso me faz duvidar de sua capacidade de pensar!

     — Isso não importa agora — interveio Conn. — Precisamos providenciar um abrigo para essas crianças.

     Storn fez menção de falar, mas Conn virou as costas e afastou-se, na direção da mulher com os bebês no colo. Lorde Storn disse rispidamente ao soldado:

     — Na próxima vez, homem, preste atenção quando alguém lhe falar alguma coisa! E agora volte para o quartel! Já causou problemas demais por uma noite!

     O soldado abriu a boca para falar, fitou o rosto irado de Lorde Storn, bateu continência em silêncio, deu uma ordem brusca a seus homens, e todos partiram. Enquanto isso, Conn conversava com a mulher.

     — Gêmeos... Minha mãe também teve essa experiência, de ser expulsa de sua casa, também por cortesia de Lorde Storn, quando meu irmão e eu não tínhamos muito mais que um ano. Tem algum lugar para onde possa ir?

     Ela respondeu, tímida:

     — Minha irmã casou com um homem que trabalhava na fiação de lã em Neskaya; ela e o marido podem nos abrigar, pelo menos por algum tempo.

     — Ótimo. Nesse caso, você irá para Neskaya. Markos... — O velho se aproximou e Conn ordenou: — Ponha esta mulher e os bebês no meu cavalo. Mande um de seus homens... ou dois... carregar as crianças menores. Levem todos para Hammerfell, procurem abrigo ali com um dos nossos camponeses. Quando o dia clarear, consiga uma carroça e transporte todo mundo para Neskaya ou outro lugar que desejem. Um dos nossos homens pode guiá-los até lá, e voltar com a carroça e o burro.

     — O seu cavalo, senhor?

     — Faça o que estou mandando. Voltarei a pé; afinal, tenho duas boas pernas. — Conn perguntou à mulher: — O que farão quando chegarem lá?

     — Meu marido é tosquiador de ovelhas, senhor, sempre tem trabalho; mas fomos despejados há poucas semanas, com os bebês quase nascendo...

     Um jovem de aparência rude, cabelos louros-avermelhados desmanchados pelo vento, olhos escuros, veio se postar ao lado da mulher e disse a Conn:

     — Sempre trabalhei, por toda a minha vida; mas com quatro... não, seis bocas pequenas para alimentar, não se pode vagar pelas estradas. Voltava para casa todos os dias... e ser expulso agora... nunca fiz nada para merecer isso, senhor, juro que não fiz. E iria até a presença do velho lorde para perguntar o que fiz para merecer a expulsão.

     Conn sacudiu a cabeça para o lado.

     — O lorde está ali. Vá perguntar.

     O jovem franziu o rosto, baixou os olhos, mas acabou se virando para o Lorde Storn e indagou:

     — Senhor, por quê? O que lhe fizemos para que nos jogasse na rua desse jeito? Duas vezes agora.

     Storn empertigou-se; observando-o, Conn pensou que ele se esforçava para parecer distinto. Era difícil, num camisolão remendado que mal cobria o velho traseiro magro, embora ele tivesse encontrado em algum lugar uma velha manta de cavalo, que envolvera sobre os ombros.

     — Ora, homem... qual é o seu nome? Geredd não me disse, falou apenas que era casado com sua filha mais velha.

     — Ewen, meu lorde.

     — Pois muito bem, Ewen, a verdade é que todas estas terras estão esgotadas. Não servem mais para a lavoura, não podem nem sustentar animais leiteiros; só são boas para ovelhas. Mas as ovelhas precisam de espaço... muitos e muitos acres. Você é tosquiador, terá bastante trabalho, mas precisamos acabar com as pequenas fazendas, juntar toda a terra, será que não percebe? É uma questão de bom senso... só um tolo tentaria manter trinta pequenas fazendas em terras esgotadas, nestas encostas. Lamento sinceramente por todos vocês, mas o que posso fazer? Se eu ficar à míngua porque nenhum de vocês arranca o sustento da terra, então será pior para todos nós.

     — Mas eu sempre ganhei meu sustento, sempre paguei os aluguéis em dia — insistiu Ewen. — Não vivo da lavoura; por que me expulsar também?

     Storn ficou vermelho de novo, parecia furioso.

     — Pode parecer injusto para você, mas meu administrador diz que não posso abrir exceções. Se deixasse que alguém ficasse, por mais meritório que fosse o seu caso... e o seu o é, não resta a menor dúvida... todos pensariam que também tinham um direito especial de permanecer nas terras; e alguns estão tão atrasados no aluguel que não recebo nada há dez anos, até mesmo quinze ou vinte anos... antes de as grandes secas começarem. Não sou um tirano... sempre perdoei o aluguel de todos aqui, pelo menos num ano ruim. Mas é preciso pôr um paradeiro na situação. Minhas terras não prestam mais para a lavoura, e não posso mais manter camponeses aqui. Não há lucro nisso... e não seria nada bom para vocês se eu fosse à bancarrota.

     Conn estava impressionado pela lógica inexorável da argumentação. As terras de Hammerfell se encontravam na mesma situação crítica; adiantaria alguma coisa se cada camponês fosse deixado em paz para sobreviver ou afundar por conta própria? Storn não estaria simplesmente cedendo a uma necessidade desagradável? Ele precisava conversar com Alastair... e talvez com o próprio Lorde Storn. Afinal, Storn já administrava uma propriedade naquelas montanhas décadas antes de seu nascimento.

     Mas deveria haver alguma maneira de admitir casos especiais; e se a terra não prestava mais para a lavoura, e se um único homem era o proprietário de tudo, ele não deveria sentar com seu administrador e os camponeses, a fim de decidir de uma forma justa qual seria o melhor aproveitamento, em vez de um só decidir por todos, como Storn parecia disposto a fazer?

     Já chega. Ele não era, apesar de ter sido treinado para isso, o Duque de Hammerfell; devia consultar Alastair, e o costume determinava que a decisão caberia ao irmão mais velho. É assim que deve ser, mesmo que ele decida errado, disse a voz que significava a honra e a lei em sua mente. Mas, depois, o lado dele que Markos treinara a dizer a si mesmo Sou responsável por todos esses homens, lembrou-lhe que se Alastair não se importasse com os camponeses, ele ainda tinha a obrigação de tentar convencê-lo a fazer o que era certo.

     Storn observava-o atentamente. Abruptamente, o velho disse, em tom beligerante:

     — Imagino que você é o irmão de Hammerfell, o outro gêmeo. Ou seja, o homem que vem atacando os meus soldados durante o verão, interferindo com a execução de minhas ordens.

     — Esta noite, senhor, não tivemos a menor possibilidade de interferir com suas ordens. Por acaso é um crime providenciar abrigo para uma mulher e seis crianças que ficaram expostas à chuva?

     O velho teve a honra de corar ao ouvir isso, mas insistiu:

     — Seus homens vêm prestando ajuda e abrigo à anarquia... incitando meus camponeses a se amotinarem e rebelarem contra mim.

     — Isso não aconteceu — respondeu Conn. — Passei todo o verão em Thendara... e também nunca incitei ninguém à rebelião, em todos os meus dias de vida.

     — E suponho que também não matou meu sobrinho? — indagou o velho, obstinado.

     Conn ficou surpreso; no calor da discussão honesta, esquecera por completo a rivalidade de sangue.

     — Nós realmente matamos Dom Rupert, em batalha; mas ele estava armado, atacando a mim e a meus homens, em terras que pertenceram por muitas eras a Hammerfell. Não me sinto culpado por isso. Não posso ser culpado por uma rivalidade de sangue que começou antes de você ou eu nascermos. Herdei essa rivalidade... graças à sua intervenção, senhor, foi minha única herança.

     Storn amarrou a cara ao ouvir isso.

     — Creio que há verdade nisso. Há anos, no entanto, eu pensava que a rivalidade de sangue fora acertada, da única maneira como se pode geralmente encerrar essas coisas... não restando ninguém vivo para continuá-la.

     — Não é o que acontece, senhor. Estou aqui para dizer que se ainda quiser guerra, Lorde Storn, meu irmão e eu...

     Conn parou de falar abruptamente, lembrando que Alastair se encontrava sob o teto de Storn. No silêncio subseqüente, Storn também lembrou, e se apressou em dizer:

     — Nada receie por seu irmão; ele é meu hóspede, sob a trégua-do-fogo; e salvou a vida da única parenta viva que me resta, minha sobrinha-neta. Parece uma pessoa razoável, e eu não poderia lhe retribuir com o mal pelo que fez.

     O velho fez uma pausa, pensou por um momento, depois acrescentou:

     — Talvez, no final das contas, jovem Hammerfell, essa rivalidade de sangue já tenha durado demais... restaram bem poucos de nós vivos...

     — Não estou lhe pedindo misericórdia! — declarou Conn, veemente.

     As sobrancelhas de Storn se encontraram.

     — Ninguém o acusará de covardia, meu jovem; contudo, há problemas suficientes além de nossas fronteiras, talvez não devêssemos permitir a presença de inimigos em nossos portões. Os Aldarans e Hastur estão sempre prontos a absorver nossos domínios enquanto brigamos...

     Isso fez Conn pensar no Rei Aidan, por quem passara a sentir um amor incompreensível; Storn, no entanto, falava de Aidan como se fosse o maior inimigo de ambos.

     — Não tenho autoridade sobre Hammerfell, Lorde Storn. Não cabe a mim decidir se essa rivalidade de sangue entre nossas casas deve ser honrosamente continuada, ou honrosamente encerrada. Só o Duque de Hammerfell pode dar essa resposta, meu lorde. Se deseja o fim dessa rivalidade de sangue...

     — Eu não disse isso! — protestou Storn.

     — Se nós queremos encerrá-la — corrigiu Conn —, cabe a meu irmão dar a palavra final, não a mim.

     Storn franziu o rosto.

     — Tenho a impressão de que você e seu irmão são como o homem cuja a mão esquerda não concordava com o que a mão direita fazia, e acabou se partindo ao meio ao tentar guiar sua parelha em direções diferentes. Acho que você e seu irmão devem acertar primeiro, entre os dois, o que realmente querem; e ficarei à espera para negociar, se quiserem a paz ou a guerra entre nós.

     — Não posso consultar meu irmão enquanto o mantiver em seu castelo, senhor.

     — Já disse antes que ele é meu hóspede, não meu prisioneiro; é livre para sair quando desejar, mas eu seria um anfitrião lamentável se ele deixasse meu teto antes de suas queimaduras estarem curadas. Se quiser visitá-lo e verificar pessoalmente que ele está bem, juro que nem eu nem qualquer homem do sangue ou lealdade de Storn lhe fará qualquer mal ou insulto... e vai constatar que minha palavra é tão boa quanto a de um Hastur.

     Storn estava certo; era o momento de conversar com Alastair. Era contra toda a sua natureza confiar num Storn; e, no entanto, Conn tinha a impressão de que toda aquela rivalidade de sangue poderia ter acabado há muito tempo se alguém estivesse disposto a confiar em outro. Ele ficara impressionado com a franqueza do velho Storn, com a explicação de suas ações; deveria confiar em seus sentimentos, ou persistir numa inimizade antiga, que fora desencadeada antes de qualquer deles nascesse, e com a qual ele nada tinha a ver?

     — Aceitarei seu salvo-conduto — decidiu Conn. — Irei ao castelo para conversar com meu irmão.

     Storn gesticulou para um de seus homens.

     — Leve o jovem Hammerfell a Storn e cuide para que nenhum mal lhe aconteça. Ele pode partir quando quiser, incólume; dei minha palavra de honra.

     Conn fez uma reverência para o velho; virou-se à procura de seu cavalo, só então se lembrou que ordenara a Markos que o usasse para levar a mulher e os bebês. Ora, era jovem e forte, a chuva já começava a diminuir. Conn pôs-se a andar, em passos firmes, na direção do Castelo Storn. Só quando se encontrava longe é que se lembrou de especular onde o velho Lorde Storn passaria o resto daquela noite.

    

     Alastair e Lenisa descobriram que tinham pouco para dizer um ao outro, depois da partida do avô; talvez porque não houvesse muito o que falar enquanto persistisse a situação que prevalecia entre os dois: Alastair, comprometido com outra mulher, Lenisa, a sobrinha-neta de seu maior inimigo.

   Ele queria contar sobre Floria, mas não havia realmente nada que pudesse dizer; seria uma certa arrogância presumida que ela se interessaria por sua prometida esposa, uma arrogância ainda pior presumir que ela se sentiria ofendida ou ressentida por causa desse relacionamento.

     A verdade é que ele tinha vontade de contar a Lenisa tudo a seu respeito, mas acabara de ser lembrado que ela era uma Storn, não uma mulher por quem pudesse, com todo o decoro, expressar algum interesse pessoal, mesmo que não estivesse de casamento contratado com outra mulher. Por isso, ficaram sentados em silêncio, olhando um para o outro, muito tristes. A fim de romper o silêncio angustiante, Lenisa acabou por lembrá-lo que deveria descansar, por causa de suas queimaduras.

   — Não estou sentindo qualquer dor agora — disse Alastair.

     — Fico contente em saber disso, mas ainda não está em condições de sair para a tempestade, ou cavalgar pelos campos. Acho que deve dormir.

     — Mas não sinto o menor sono! — protestou Alastair.

     — Lamento ouvir isso, mas ainda assim sabe que precisa descansar. Quer que eu peça a Dama Jarmilla para providenciar uma poção-do-sono?

     Era como se ela ficasse contente pela oportunidade de fazer alguma coisa.

     — Não, não precisa se incomodar — disse Alastair, no mesmo instante, em grande parte porque não queria que a moça se retirasse, encontrando algum pretexto para não voltar ao quarto.

     Durante todo esse tempo, a velha cachorra no chão permanecera imóvel, apenas levantando as orelhas de vez em quando, sempre que Alastair falava. Agora, no entanto, ela se pôs a ganir, vagueando pelo quarto, irrequieta. Lenisa fitou-a, curiosa, e Alastair franziu o rosto, repreendendo-a:

     — Quieta, Jóia. Quieta, menina; comporte-se! O que há com você? Vamos, Jóia, deite!

     Apesar da ordem ríspida, Jóia continuou a circular pelo quarto e a ganir.

     — Ela não precisa sair? Posso levá-la ou devo chamar Dama Jarmilla para acompanhá-la? — indagou Lenisa, virando-se para a porta.

     Jóia fez uma série de corridas curtas até a porta, depois parou ali, suplicante, ganindo sem parar. Como em resposta ao chamado da velha cachorra, dama Jarmilla entrou no quarto.

     — Jovem ama... — a espadachim hesitou. — O que aflige sua cachorra, senhor?

     O ganido de Jóia tornou-se mais alto e insistente. Dama Jarmilla, obrigada a falar alto por isso, anunciou:

     — Há um homem lá fora que insiste que precisa falar com o Duque de Hammerfell... deve ser um parente íntimo, senhor, a julgar por seu rosto...

   — Só pode ser meu irmão Conn. É esse o problema com Jóia; ela conhece Conn e não esperava encontrá-lo aqui. Nem eu; pensava que ele estava em Thendara. — Alastair hesitou. — Pode me dar licença para recebê-lo, damisela?

     — Vá buscá-lo — disse Lenisa.

     Dama Jarmilla fungou em desaprovação, mas obedeceu, deixando o quarto, acompanhada por Jóia. A cachorra voltou um momento depois, pulando em torno de Conn, que estava molhado e desgrenhado, pois a chuva diminuíra, mas não cessara de todo, acabara se transformando em granizo. Havia pingentes de gelo nos cabelos de Conn. Lenisa fitou-o com uma risadinha infantil e disse:

     — Tenho certeza que esta é a primeira vez, em toda a história do Castelo Storn, em que temos sob o nosso teto não apenas um, mas dois Duques de Hammerfell. Bom, acho que vocês dois podem distinguir um do outro, mesmo que ninguém mais seja capaz. Qual dos dois encontrei na taverna em Lowerhammer, e que me custou uma tigela de mingau com mel?

     — Fui eu — respondeu Alastair, um pouco contrariado por ela perguntar. — Poderia ter percebido isso pela cachorra.

     — É mesmo? Mas olhe como a pobre menina está recebendo seu irmão, dando a impressão que se sente feliz por encontrar seu verdadeiro dono. — A expressão carrancuda de Alastair, Lenisa acrescentou: — Não pode me culpar por não ser capaz de distinguir entre os dois, se sua própria cachorra, que conhece ambos muito melhor do que eu, não consegue.

     Era tão verdade que Alastair sentiu-se culpado por sua irritação; e, por reflexo, acabou irritado com Jóia, pelo que parecia uma traição. Em voz ríspida, ele ordenou:

     — Quieta, Jóia! Comporte-se!

     — Não precisa se zangar com a cachorra — protestou Conn. — Ela nada fez de que pudesse se envergonhar. Mas, entre todos os lugares do mundo em que eu esperaria encontrá-lo, irmão, este sem dúvida seria o último; e devidamente confortável, sob o teto de Storn, na ocasião em que esse mesmo Storn expulsa a nossa gente de suas casas para a chuva.

     Alastair contraiu o rosto furioso.

     — Pensei que estivesse em Thendara, cuidando de nossa mãe. Deixou-a sozinha e desprotegida?

     — Nossa mãe conta com muitas pessoas que desejam protegê-la — respondeu Conn. — Mas ela está aqui, sã e salva, em companhia de Floria e Gavin. Quando descobrimos que você estava ferido, e nas mãos de Storn, esperava que permanecêssemos em Thendara, sem fazer nada?

     — Esperava, sim. Afinal, não corro o menor perigo aqui. Lorde Storn tem-se mostrado cortês e hospitaleiro.

     — Estou vendo — murmurou Conn, secamente, lançando um rápido olhar para Lenisa. — A neta está incluída na hospitalidade?

     Alastair irritou-se; Conn podia ler em seus pensamentos que se sentia mais do que ofendido por Lenisa. Alastair respondeu secamente que essa não era a questão; que a damisela era sua anfitriã e cuidara de seus ferimentos; que não se cogitara de mais nada.

     — Não sei como vocês tratam as mulheres nas montanhas, Conn, mas em Thendara ninguém falaria assim da filha... ou, neste caso, da sobrinha-neta... do seu pior inimigo.

     — Mas encontro os dois a sós aqui, nesta hora perdida da noite; está tão gravemente ferido, irmão, que precisa ser vigiado por uma mulher durante toda a noite?

     — Em Thendara, ninguém precisa estar à beira da morte para ser confiado na presença de uma dama.

     Conn leu em sua mente o que ele não falou: Este meu irmão sempre será um camponês, sem mais conhecimento de tato ou cortesia do que seu cachorro.

     — Mesmo assim, irmão — disse Conn —, preciso conversar com você. Podemos dispensar a presença da damisela?

     — Nada tenho a dizer que não possa falar na presença dela ou dos próprios deuses, pois tudo o que tenho a declarar é a pura verdade. Por favor, Lenisa, não saia.

     Não quero que ela saia de minha vista. Até aquele momento, Alastair não admitira isso claramente para si mesmo; agora, ele sabia. E Conn, que ouvira seus pensamentos, disse bruscamente:

     — Já esqueceu de Floria? Ela o espera, ao lado de nossa mãe, enquanto você não consegue evitar que sua fantasia se incendeie pelo sangue de Storn.

     — E você me censura por isso, quando não é capaz de desviar os olhos de minha prometida esposa?

     Pensei que Alastair não tinha laran; como então ele lê meus pensamentos? Será que é tão óbvio assim? Conn foi dominado por um profundo sentimento de culpa e disse, gentilmente:

     — Irmão, não tenho o menor desejo de discutir com você, muito menos aqui, sob este teto. Conversei com Lorde Storn, e como você se encontra aqui, suponho que já conversou...

     A ira de Alastair, em vez de ser apaziguada pelo tom do irmão, inflamou-se ainda mais.

     Apesar de todas as suas declarações de me aceitar como seu duque e lorde, ele acha que pode agir nas minhas costas e acertar tudo com Lorde Storn, sem sequer me consultar; acha que Hammerfell e os homens de Hammerfell ainda estão sob suas ordens!

     E Conn pensou: Portanto, ele acha que depois de passar vinte anos na cidade, longe de Hammerfell, um janota imprestável, pode entrar em cena e resolver tudo pela diplomacia, sem pensar na longa história entre Hammerfell e Storn. Que honra há nisso? Com todo seu coração, ele desejou que Alastair pudesse ler sua mente; em vez disso, precisava traduzir tudo em palavras, e Conn sabia que não tinha muita habilidade com palavras, enquanto o irmão, criado na cidade, sabia exatamente como se expressar para contornar as questões mais importantes.

     E ele está apaixonado por essa moça — a sobrinha-neta de Storn. Será que ela sabe disso? Ela tem laran?

     — Acho, Alastair, que cabe a você tomar a decisão de recrutar os homens que ainda estejam dispostos a lutar por Hammerfell. Depois disso, o Rei Aidan...

     Lenisa interrompeu-o:

     — Devemos então ir à guerra? Eu esperava, quando você e meu tio-avô conversaram de forma tão razoável, que fosse possível encontrar algum meio de acabar com essa longa hostilidade...

     Fitando Lenisa, e evitando os olhos de Conn, Alastair indagou:

     — É isso o que deseja, Domna Lenisa, que façamos a paz?

     Inesperadamente, Conn, que vinha tentando permanecer calmo, ficou tão furioso que não pôde mais se conter.

     — É por isso que eu acho que a dama deveria se retirar; há muitas coisas importantes a discutir, e que não podem ser resolvidas por mulheres!

     — Sua educação camponesa mostra descortesia, irmão — protestou Alastair. — Nas partes civilizadas do mundo, as mulheres participam com os homens na discussão das decisões mais importantes, que no final também as envolvem, tanto quanto aos homens. Tentaria excluir nossa mãe, que é uma trabalhadora da Torre, de qualquer decisão com tanta importância? Ou apenas acha que Lenisa é muito jovem para partilhar a tomada de decisões?

     — Ela é uma Storn! — explodiu Conn. Lenisa inclinou-se para a frente e disse:

     — É é por isso mesmo que essa decisão me envolve. Represento a metade dessa antiga rivalidade de sangue; herdei-a tanto quanto você, perdi meu pai como você perdeu o seu... embora os deuses saibam que mal o conhecia... como pode dizer que não me diz respeito, que eu devo ficar sentada à margem e deixar que os outros decidam o que é preciso fazer?

     Conn argumentou, controlando-se:

     — Damisela, não tenho nada contra a sua pessoa; só pelo nome, literalmente, alguém poderia chamá-la de inimiga. Não lutou nem matou, é vítima dessa rivalidade de sangue, não uma de suas causas.

     — Fala como se eu fosse uma criança ou retardada — reagiu Lenisa, com raiva. — Só porque eu não empunho uma espada e não luto ao lado de meu avô, isso não significa que nada sei dessa hostilidade antiga.

     — Deixei-a zangada e não tinha essa intenção — murmurou Conn. — Tentava simplesmente...

     — Tentava me converter em nada, porque só os homens têm direito de falar sobre essas coisas! Pelo menos seu irmão admite que tenho um legítimo interesse em tudo o que envolve meu clã e minha família! Ele acha que sou um ser humano e tenho direito a meus próprios pensamentos, a falar francamente de tudo que se relaciona comigo, em vez de sussurrar para meu marido, a fim de que ele assuma meu papel!

     Contrafeito, Conn disse, tentando transformar a situação num gracejo:

     — Eu não sabia que tinha feito o juramento da Irmandade da Espada...

     — E não fiz, mas acho que tenho o direito de falar, pois essa rivalidade de sangue me inclui, tanto quanto a meu avô; talvez mais, já que ele é um velho e o que quer que se decida só lhe dirá respeito por mais alguns anos, no máximo, enquanto que eu, e minhas crianças, se as tiver, teremos de viver com isso por toda a nossa vida.

    Conn pensou por um momento.

     — Tem toda razão, e peço que me perdoe, Domna Lenisa; acha então que meu irmão e eu deveríamos tratar com você, em vez de seu avô?

     — Eu não disse isso; está tentando se divertir à minha custa. Falei apenas que me envolve tanto quanto a meu avô, e por isso tenho o direito de me manifestar.

     — Muito bem, diga o que pensa — exortou Conn. — O que acha dessa rivalidade de sangue? Quer continuá-la por mais cem anos, porque nossos ancestrais se odiavam e se matavam uns aos outros?

     Lenisa olhou fixamente para a parede, cerrando os maxilares, como se fizesse um esforço para não chorar, antes de dizer:

     — Prefiro não pensar em Alastair como meu inimigo; nem em você. Não sinto qualquer hostilidade contra vocês, nem meu avô sente mais. Ele conversou com seu irmão como um amigo. O que você quer, Hammerfell?

     Uma bobagem sentimental, pensou Conn. É apenas a atração romântica de uma garota por um homem bonito, uma garota que conheceu bem poucos assim. E, no entanto, ele ficara comovido pela franqueza com que Lenisa falara, admirava sua sinceridade. Alastair pegou a mão da moça e murmurou:

     — Prefiro não ser seu inimigo, Lenisa. Talvez possamos encontrar uma maneira de sermos amigos. — Ele virou-se para o irmão, com uma expressão beligerante. — E agora você pode me chamar de traidor de Hammerfell, se quiser...

     — De jeito nenhum — respondeu Conn. — Talvez essa antiga rivalidade de sangue já tenha esgotado seu propósito. Lorde Storn disse uma coisa que muito me impressionou: que são tantos os inimigos externos que os homens das montanhas não devem lutar entre si. Ele disse que os Hasturs e Aldarans estão nos pressionando por todos os lados, querendo absorver nossos reinos sob o seu domínio... e talvez devêssemos nos unir contra eles. Seria difícil para mim pensar no Rei Aidan como meu inimigo...

     — ... e, no entanto, ele nos prometeu ajuda para recuperar Hammerfell — acrescentou Alastair.

     Lenisa levantou, pôs-se a andar de um lado para outro; Jóia seguiu-a, os dentes à mostra, as patas ressoando no chão.

     — Ele prometeu, hem? E com que direito ele fez essa oferta? Que direito ele tem de interferir nessa questão? — Era evidente que ela estava tão furiosa que mal conseguia falar direito. — Não quero ver toda esta terra como apenas mais um feudo sob os Hasturs, que parecem determinados a estender seu reino de Temora à Muralha ao Redor do Mundo.

     — Não conhece o Rei Aidan — disse Conn. — Não creio que ele seja pessoalmente ambicioso, mas quer paz e ordem na terra. Detesta essas pequenas guerras, o derramamento de sangue, a convulsão e desolação subseqüentes. Ele gostaria de ver todos os reinos em paz.

     — E quando formos todos súditos do reino dos Hasturs, o que acontecerá a homens como meu avô? — indagou Lenisa.

     — A única maneira de saber disso é perguntar aos dois quando estiverem frente a frente — comentou Alastair.

     — Talvez isso possa ser arrumado — disse Conn. — Se o Rei Aidan vier até aqui, isso acabará acontecendo, mais cedo ou mais tarde. Mas assumimos o compromisso de levantar homens contra Storn, a fim de que o rei possa legalmente mobilizar um exército para reprimir a rebelião de Aldaran.

     Ao revelar tanto sobre o plano do Rei Aidan, Conn sentiu que estava sendo desleal.

     — Por que devemos ter o exército de Aidan aqui, se pudermos resolver essa rivalidade entre nós e encontrarmos força na união? — perguntou Alastair. — É verdade que uma ameaça de Aldaran nos envolve, não a qualquer dos lordes das terras baixas, nem mesmo aos Hasturs.

     — Admito que não compreendo todas essas coisas — declarou Lenisa —, mas ouvi dizer que há um tratado pelo qual toda essa terra é mantida sob licença dos Hasturs e não podemos fazer acordos entre nós sem seu consentimento. Quando Geremy, o primeiro desse nome a reinar em Asturias...

     — Ao que me parece — interrompeu-a Alastair —, o melhor seria tentar trazer Aidan até aqui sem o seu exército.

     — E é esse o problema — disse Lenisa. — Como podemos persuadir Aidan a vir aqui em paz?

     Ela foi sentar na beira da cama de Alastair e acrescentou:

     — Se o rei está decidido a promover uma guerra nas montanhas...

     — Não creio que ele queira uma guerra — comentou Conn. — Minha impressão foi a de que ele a considerava uma necessidade lamentável, receando não encontrar qualquer meio de evitá-la.

     — Portanto, de um jeito ou de outro, precisamos persuadir Aidan a vir até aqui sem seu exército — insistiu Alastair. — Mas se fizermos isso, é provável que ele pense que estamos tentando atraí-lo com algum propósito traiçoeiro...

     — Não necessariamente — garantiu Lenisa. — Basta dizer a ele que pode trazer toda a guarda pessoal, mas não um exército que crie problemas, cavalgando sobre as colheitas, alojado nas aldeias com os pobres camponeses, que mal conseguem ganhar o próprio sustento, muito menos alimentar um exército.

     — Esperem um pouco — disse Conn. — Conversei com o Rei Aidan e creio que ele está disposto a nos ajudar, ou pelo menos a nossa causa. Mas não tenho o poder para exortar o rei a vir até aqui. Ele nos ofereceu um exército, mas não sei se alguma vez lhe passou pela cabeça vir até aqui pessoalmente.

     — Neste caso, é preciso persuadi-lo a vir — declarou Lenisa. — Há alguém que vocês conheçam... sua mãe, talvez, que passou tantos anos em Thendara... que tenha acesso ao rei, ou talvez a outra pessoa da família real?

     — O primo do rei, Valentine Hastur — informou Alastair —, há anos vem tentando persuadir minha mãe a casar com ele... mas não gostaria de pedir à mãe que usasse sua influência dessa maneira. E não creio que ela o faria, mesmo que eu pedisse.

     Ele pensou por um momento, antes de acrescentar:

     — Um dos meus maiores amigos é filho-de-adoção da rainha, o filho de sua prima predileta, só que ele está em Thendara...

     — Se é a Gavin que se refere — interveio Conn —, ele insistiu em nos acompanhar. Neste momento, ele se encontra na casa de Markos, tomando conta da mãe e de Floria. Não tenho a menor dúvida de que ele tem acesso ao rei, pelo menos à rainha... mas a rainha não se encontra em condições de ajudar ninguém. Quando deixamos Thendara, ela estava muito doente, correndo um grave perigo de vida.

     A lembrança da doença da rainha causou um silêncio triste no quarto, mas nesse momento ouviram uma comoção lá fora. Um instante depois, Dama Jarmilla entrou.

     — Ama, o lorde deu ordens para que fosse cedo para a cama. Quantas pessoas virão aqui esta noite, querendo falar com seu hóspede?

     — Eu não esperava ninguém — respondeu Lenisa, os lindos olhos azuis arregalados e inocentes —, mas a menos que sejam mercenários armados, pode deixar entrar, quem quer que sejam.

     Resmungando, Dama Jarmilla foi até a porta e abriu-a. Gavin Delleray, encharcado, os cabelos armados e pintados gotejando na gola, entrou no quarto.

     — Alastair, meu caro companheiro! Sem qualquer motivo aparente, aconteceu a coisa mais estranha! Eu dormia na casa de Markos, e despertei de um sono profundo. Sonhara que me encontrava na sala do trono do Rei Aidan e ele exigiu que eu viesse até aqui imediatamente... imediatamente, um absurdo, com tanta chuva, sem nem ao menos haver em toda a aldeia um único guarda-chuva decente... e veja só como cheguei!

     Ele parecia desolado, ao fazer uma reverência para Lenisa e Dama Jarmilla.

     — Por minha honra, mestra, não tenciono causar mal a qualquer pessoa sob este teto... ou a qualquer outra pessoa, em qualquer lugar, diga-se de passagem. Sou um menestrel, não um soldado.

     Ah, então é isso?, pensou Conn, aturdido. Na ocasião, estranhei que Gavin insistisse em nos acompanhar. Mas deveria ter imaginado que o Rei Aidan queria ter olhos e ouvidos nesta viagem. O próprio Gavin não entendia o que vinha fazer aqui; mas eu deveria ter imaginado...

     Era evidente que Alastair e Lenisa haviam chegado à mesma conclusão. Ambos puseram-se a falar ao mesmo tempo, mas Gavin levantou a mão, suplicante.

     — Por favor, eu lhes peço, deixem pelo menos que eu me seque um pouco junto ao fogo, antes de me envolverem em suas intrigas.

     Lenisa parecia muito satisfeita.

     — Algum anjo o mandou para nós — murmurou ela. — Ou você mesmo é um anjo que veio nos socorrer num momento de necessidade?

     Dama Jarmilla fungou e comentou:

     — Os cristoforos dizem que os anjos podem ser encontrados em estranhos lugares, mas com certeza é a única vez em toda a história em que algum deus demonstra senso de humor suficiente para enviar um mensageiro angelical que pinta os cabelos de púrpura.

     Gavin ficou aturdido.

     — Um anjo? Eu? Senhor da Luz, deve ser muito rigoroso com os seus mensageiros! Mas, afinal, o que está acontecendo?

     Alastair sentou na cama, pegou um cobertor e jogou-o para o amigo.

     — Meu caro amigo, sente ao lado do fogo e enxugue suas roupas. E o que acha de persuadirmos Dama Jarmilla a nos trazer alguma bebida quente? Se pegar a febre dos pulmões, Gavin, não terá qualquer utilidade para nós.

     Dama Jarmilla foi pegar a chaleira que fervia no fogo, ocupou-se em preparar uma poção que fumegava e exalava um aroma delicioso.

     — Nunca, em toda a minha vida, lamentei tanto não ter laran — comentou Alastair. — Mas talvez seja suficiente ter um amigo que não apenas possui laran, mas também acesso ou ouvido do rei. Se nos ajudar, Gavin, talvez possamos evitar a guerra nas montanhas.

     Ele riu e arrematou:

     — E talvez, quando tudo acabar, você possa transformar a história numa balada.

    

     Eles ficaram acordados até tarde, conversando pela metade da noite sobre a maneira pela qual Gavin podia entrar em contato com o Rei Aidan, e tentar persuadi-lo a vir em paz, trazendo apenas uma guarda pessoal, com o propósito de acabar para sempre com a rivalidade de sangue entre Hammerfell e Storn, que assolava as montanhas há tantas gerações.

     — Mas é possível que isso seja a última coisa que o Rei Hastur queira — lembrou Lenisa. — Afinal, se houver paz nas Hellers ele não terá um pretexto para estender seu reino a esta parte do mundo.

     — Só posso dizer a isso que não conhece o Rei Aidan — respondeu Conn. — Se o conhecesse, tenho certeza que confiaria nele tanto quanto eu.

     — É possível — admitiu Lenisa —, mas se Aidan for um poderoso laranzu, capaz de ler as mentes dos homens a distância, talvez possa fazer com que eu deseje me tornar vassala, mesmo sem meu consentimento.

     Foi Alastair quem respondeu a isso, pois Conn nunca pensara em tal possibilidade:

     — Não estou absolutamente a par da mente do rei; mas minha mãe tem sido uma leronis desde que posso me lembrar, e se ela fosse capaz de impor obediência contra a vontade de uma pessoa, eu não seria tão inconseqüente. Ela me criou com o conhecimento de que a primeira lei do laran é a de que nunca se deve usá-lo para dominar a mente ou a vontade; se Floria estivesse aqui, poderia citar o Juramento da Monitora, que é a obrigação de qualquer leronis... "é proibido entrar em qualquer mente sem consentimento, a não ser para. ajudar ou curar".

     — Foi o que sempre me disseram no treinamento — declarou Lenisa —, mas quem sabe o que um Hastur... um dos reis-feiticeiros... pode definir como "ajudar" ou "curar", ou o que é para o bem da pessoa?

     Alastair fitou-a, e para Conn parecia que todo o coração do irmão se projetava pelos olhos.

     Frívolo; ele é um tolo e frívolo, se renunciar a Floria por essa moça, pensou Conn, e a uma antiga rivalidade de sangue, com a honra de nossos ancestrais em jogo, pelos confortos covardes da paz. A guerra para um Hammerfell é uma atividade honrosa; e o que essa propalada paz com Storn tem a nos oferecer? Ainda não ouvimos Storn declarar que tenciona devolver nossas terras, ou reconstruir nosso castelo. A honra exige que continuemos essa luta antiga pelo menos até vingarmos nosso pai. Mas embora ele sempre tivesse vivido com o pensamento da vingança, sentia-se confuso agora, ainda mais porque Lenisa fitava-o quase como se lesse seus pensamentos, com uma expressão triste de ceticismo.

     Ele tentou por um momento ver Lenisa através dos olhos do irmão, e ela parecia pouco mais do que qualquer das camponesas com quem brincara na infância, com quem dançara nos festivais da colheita e do Solstício de Verão. Era bonita, é verdade, ele supunha que era uma moça bonita, com o rosto oval, faces rosadas, cabelos claros lustrosos, presos em tranças, usando um vestido simples de tara, em tonalidades escuras de azul e verde.

     Em sua mente, comparou-a com Floria, alta e elegante, feições admiráveis, olhos profundos, voz suave. Ela era uma leronis treinada, uma pessoa que se podia facilmente presumir que nunca prepararia uma bebida ou serviria vinho temperado a um hóspede com suas próprias mãos... mas é claro que isso não era verdade, Floria ajudava nos cuidados domésticos, treinara Cobre pessoalmente, não hesitava em realizar qualquer trabalho manual. Floria não era uma dama inútil, da mesma forma que Lenisa, tinha o conjunto de habilidades que aprendera. Mas, por outro lado, Floria era linda, nobre e educada, uma leronis experiente, enquanto Lenisa não passava de uma moça das montanhas, bonitinha, sem qualquer sofisticação. Ele tinha de admitir, no entanto, que era fácil tirar conclusões erradas em relação a Floria; Lenisa também podia ter virtudes que não eram aparentes, e se a conhecesse melhor, poderia apreciá-la mais, julgar o seu verdadeiro valor.

     Naquela noite, Conn dormiu no chão do quarto do irmão; sem dúvida, aquela era a primeira vez, como Lenisa dissera — ou teria sido a espadachim Dama Jarmilla? — em que Storn alojava não apenas um, mas dois Hammerfells. Ele sonhou com o Rei Aidan, e sentiu-se desleal; atribuíra a Gavin a missão de deixar claro para Aidan que o prometido exército real não era necessário. Mas o que pensar da ameaça de Aldaran? E ele especulou — seria apenas por causa de sua criação como um camponês? — se Alastair e Gavin não estariam de conluio. Não confiava naquelas pessoas da cidade. E enquanto adormecia, sua percepção passou por portas fechadas até o lugar em que Lenisa dormia, com Dama Jarmilla num catre no corredor, a fim de vigiar a porta do quarto e impedir que qualquer pessoa não-autorizada entrasse ali.

     Alastair acordou cedo na manhã seguinte; a neve batia suavemente contra a janela.

     — Deve ir buscar sua égua, irmão — disse ele, perturbado. — Ela está no estábulo de Storn. Volte para a cabana de Markos, pois nossa mãe deve ser informada do que estamos planejando. E não sei quando será conveniente ou possível a minha saída daqui.

     — E também não quer ir embora, por causa de Lenisa — comentou Conn.

     — Você deveria ser o último a me censurar por isso — protestou Alastair, com alguma irritação. — Afinal, ficaria feliz se Floria caísse em seus braços... pensa que não sei que se apaixonou por ela desde o primeiro instante em que a viu?

     — Pode me culpar por isso? E por que eu não deveria, já que é óbvio que você não a ama tanto quanto deveria?

     — Não está sendo justo, Conn. Eu a amo. Conheço Floria desde que tínhamos sete anos de idade. Até vir para cá, pensava que a vida não poderia me reservar um destino mais feliz do que casar com Floria...

     — Então por que mudou de idéia? Acha agora que é melhor casar com a moça Storn... por razões políticas?

     — Estou quase pensando que você não quer acabar com essa rivalidade de sangue — acusou Alastair, irritado agora.

     — Eu não teria objeção a um fim honroso, com a devolução de nossas terras, e garantias de que nenhum mal acontecerá a nosso povo. Talvez você não se importe muito com as pessoas por aqui; e provavelmente não tem razões para isso. Afinal, você não as conhece. Mas sempre convivi com estas pessoas, durante toda a minha vida, sinto que a honra me obriga a zelar por elas. Acha que pode fazer isso apenas pelo casamento com uma das mulheres da família Storn?

     — Ela é a única mulher Storn. Lenisa e Lorde Storn são os únicos que restam da linhagem. Com Storn morto e Lenisa casada com um Hammerfell, a rivalidade termina naturalmente, não sobrando ninguém para continuá-la.

     — Quer dizer que planeja assassinar seu anfitrião? — indagou Conn, sarcástico. — Não sei qual é o costume na cidade, mas aqui esse tipo de comportamento é desaprovado.

     — É claro que eu não...

     Alastair não pôde continuar, porque neste momento Gavin sentou em seu colchão estendido no chão, ao lado da lareira, soltou um grunhido e perguntou:

     — Por que vocês dois estão brigando? — Ele passou os dedos pelos cabelos, desgrenhados em todas as direções. — e, afinal, que horas são? Mal amanheceu!

     — Conn está me acusando de uma conspiração para matar Lorde Storn — respondeu Alastair. — É muita insolência do meu irmão caçula.

     — É evidente que você parece disposto a esquecer seu compromisso com Floria — ressaltou Conn. — Sendo assim, como pode esperar que eu compreenda as delicadas complexidades de sua definição de honra?

     Alastair, no entanto, em vez de morder a isca, pensou por um momento, depois disse:

     — A verdade é que não estou comprometido com Floria. Lamento muito pela doença da Rainha Antonella, mas por causa de sua súbita aflição o noivado não chegou a ser celebrado...

     Conn acrescentou, também pensativo:

     — E dos convidados que lá estavam naquela noite, quantos sabiam com qual de nós dois Floria deveria ser prometida em casamento?

     Gavin parecia estar achando graça, como se soubesse de uma coisa que os dois ignoravam.

     — E é um fim maravilhosamente tradicional para uma rivalidade de sangue, as duas famílias se unindo no casamento... posso presumir, Alastair, que tenciona casar com Dama Storn... a damisela Lenisa? — Alastair acenou com a cabeça e Gavin continuou: — E se Conn deseja casar com Floria, duvido muito que sua mãe vá se importar, pois ainda terá Floria como filha. Portanto, tudo o que precisam fazer agora é persuadir Lorde Edric...

     — E Floria — interveio Conn. — A não ser que você pense que ela não passa de uma mercadoria a ser negociada de acordo com o capricho do pai.

     — Tem toda razão — concordou Gavin. — Vocês dois devem falar com Floria, mas tenho certeza que ela concordará em fazer a sua parte para acabar com essa terrível rivalidade de sangue. Afinal, se ela casasse com Alastair e a rivalidade continuasse, acabaria perdendo suas crianças na luta. Mas será que Storn dará seu consentimento?

     Alastair deu de ombros.

     — Teremos de perguntar a ele para descobrir.

     A porta do quarto foi aberta nesse instante e Lorde Storn indagou, parado na porta:

     — Perguntar-me o quê?

     Embora ninguém respondesse em voz alta, ele parecia saber do que se tratava mesmo assim.

     Será que ele tem laran?, especulou Conn.

     — Claro que eu tenho, rapaz — declarou o velho. — Os Storns sempre o tiveram. Os Hammerfells não têm?

     Ele não esperou que qualquer dos dois respondesse; virou-se para Alastair e acrescentou:

     — Com que então você quer casar com minha sobrinha-neta. Antes de mais nada, por que não me fala sobre sua prometida esposa, que está na aldeia, junto com sua mãe?

   — Domna Floria — murmurou Alastair. — Deve compreender, senhor, que nossas famílias são amigas, eu a conheço desde que éramos crianças. Por isso, considerei-me afortunado quando ela me foi proposta para esposa. É uma moça maravilhosa. Mas depois conheci Lenisa e... agora estou apaixonado por ela.

     — É mesmo? — Lorde Storn refletiu por um momento. — Isso é ótimo para os primeiros meses, meu rapaz, mas depois o que os manterá juntos? Não aceito toda essa bobagem sobre amor e romance; nunca aceitei, nunca aceitarei. Um casamento de conveniência, promovido pelos pais, tem muito mais possibilidade de sucesso; assim as pessoas não têm expectativas irrealistas.

     Ele franziu o rosto, hesitou.

     — De qualquer forma, Lenisa tem de casar... a menos que eu esteja disposto a deixar que meu sangue desapareça por completo, o que não acontece. Aldaran de Scathfell a quer para seu irmão, mas não tenho certeza... Pensarei a respeito, rapaz.

     Ele olhou para Gavin, que ainda se mantinha sentado ao lado da lareira.

     — Creio que ainda não o conheço.

    Gavin apressou-se em levantar, enquanto Alastair fazia as apresentações.

     — Quer dizer que você é primo do Rei Hastur, hem?

     — Só pelo casamento, senhor — respondeu Gavin, respeitoso.

     — E pretende atraí-lo até aqui para conversar com todos nós?

     — Se não tiver qualquer objeção, senhor — disse Gavin. — Não gostaria de expor o Rei Aidan a qualquer perigo.

     — Há sempre perigo aqui nas montanhas — afirmou Storn. — Se as rivalidades de sangue estão calmas, e os bandidos param de saquear, então são os Aldarans, atacando para expandir seus territórios. Mas dou a minha palavra de que o rei não correrá qualquer perigo por meu intermédio. Terei o maior prazer em discutir os nossos problemas, se ele assim desejar. — Ele olhou para o colchão. — Isso é o melhor que minha casa pode oferecer a um hóspede?

     O velho foi até a porta e berrou:

     — Lenisa!

     O eco de sua voz no corredor foi logo seguido por passos correndo, com Lenisa se apressando para atender.

     — Pois não, vovô?

     Ele apontou um dedo acusador para o colchão no chão.

     — Isso é o melhor que você pode fazer por um hóspede? Mande aprontar um quarto para Dom Gavin, e outro para Dama Hammerfell e sua companheira.

     — A mãe e Floria virão para cá? — indagou Conn, aturdido.

     — Com vocês dois sob meu teto, por que ela não deveria ficar aqui também? Não pode pensar que a cabana de um camponês é lugar apropriado para alojar sua mãe e sua prometida esposa... ou prometida esposa de Alastair... ou de quem quer que seja! E creio que o Castelo Hammerfell não está em condições de alojá-las. Chame-as pessoalmente para se hospedarem aqui.

     Alastair forçou Conn ao silêncio com um olhar furioso.

     — Agradecemos sua hospitalidade, senhor.

     Conn torceu para que Lorde Storn não ouvisse o acréscimo mental. Ainda mais porque é por sua causa que precisamos de hospitalidade. Mas se o velho ouviu, não demonstrou. Limitou-se a dizer:

     — Como parece que temos muito a conversar, é melhor fazê-lo com todo conforto. Já estou cansado de ficar exposto à neve. Vamos, Lenisa, temos de preparar tudo para os nossos hóspedes.

     — Andar pelas fronteiras é tão ruim assim? — perguntou Alastair.

     Conn compreendeu que o irmão nada sabia da última casa incendiada. Depois que Lorde Storn se retirou, ele contou a história a Alastair. E pensou: Talvez seja melhor que Alastair case com Lenisa. Pelo menos ela conhece os costumes das Hellers, e pode persuadi-lo a adotá-los.

     — Mas acha mesmo que nossa mãe e Floria estarão seguras aqui? — indagou Conn, depois de concluir o relato.

     — Não se preocupe com Floria — garantiu Alastair, calmamente. — Ela não faz parte da rivalidade de sangue.

     — E Domna Erminie também estará segura — acrescentou Gavin. — O Rei Aidan sabe que estamos aqui, e nunca admitiria que nos fizessem algum mal... Acho que não precisamos nos preocupar.

     Foi o suficiente para silenciar os gêmeos; eles não conheciam protetor mais poderoso do que o Rei Hastur.

     Conn voltou à aldeia, subiu para os portões em ruínas de Hammerfell, passou a manhã exercitando a égua, que Alastair cavalgara por tanto tempo, de uma forma tão árdua. A tarde, escoltou Erminie e Floria ao Castelo Storn. Ficou aliviado ao constatar que Erminie pareceu simpatizar à primeira vista com Lenisa; a situação se tornaria muito complicada se, por algum motivo, a mãe não gostasse da moça. Ele mal ousava falar ou mesmo olhar para Floria; a perspectiva de estar livre para casar com ela era quase mais do que ele podia absorver. A reunião depois do jantar foi um modelo de harmonia. Lenisa deve ter tido uma longa conversa com Lorde Storn, pensou Conn, divertido. Ele parece muito mais suscetível ao casamento dela com Alastair do que se mostrou esta manhã. E Floria, obviamente, notara alguma coisa, pois sentou ao lado de Conn durante o jantar, assumindo uma atitude de proprietário em relação a ele. Conn não se sentiu surpreso ao descobrir que gostava da situação, embora especulasse se deveria agradecer a Gavin pela mudança evidente no comportamento de Floria. O que Gavin contara a ela sobre a discussão daquela manhã?

     Essa questão, pelo menos, foi logo respondida. Quando sentaram no solário, com o vinho temperado, foi Floria quem iniciou a conversa, de uma maneira franca e direta:

     — Eu soube, Alastair, que você não deseja mais casar comigo.

     Alastair engoliu em seco, com uma expressão apreensiva. Mesmo em Thendara, não conseguem ensinar uma maneira graciosa e cortês de romper um compromisso de casamento, pensou Conn, divertido, apesar de toda a etiqueta das terras baixas.

     — Tenho e sempre terei o maior respeito por você, minha cara prima... — começou Alastair — ... mas...

     — Está tudo bem, Alastair — disse Floria, gentilmente. — Estou disposta a liberá-lo do noivado, que, no final das contas, nunca foi formalizado. Queria apenas deixar claro para todo mundo que é isso o que ambos queremos.

     — Ambos? — repetiu Alastair, jovialmente. — Quer dizer que passarei a tê-la como irmã?

     Todos olharam para Conn.

     — Isso mesmo — disse ele, feliz. — Se a dama assim desejar, nada me faria mais feliz.

     Floria pegou a mão de Conn, sorrindo na maior alegria.

     — Nada me faria mais feliz também.

     — E imagino que agora você espera que eu consinta que minha sobrinha-neta se torne Duquesa de Hammerfell — resmungou Storn, com uma dificuldade evidente para articular as palavras.

     — Pode estar certo de que eu preferia casar com ela com o seu consentimento, senhor — declarou Alastair, com toda polidez.

     — E sem isso? Está insinuando que casaria com ela de qualquer maneira, com ou sem meu consentimento? É isso o que está dizendo? — Storn virou-se para Erminie, com uma expressão furiosa. — Um ótimo filho o que criou, minha dama! O que acha de tudo isso?

     Erminie olhou por um instante para suas mãos, cruzadas no colo, depois levantou a cabeça e fitou Storn nos olhos.

     — Meu lorde, parece-me que essa rivalidade de sangue já se prolongou por gerações demais, e todos aqueles que a iniciaram já estão mortos. Perdi meu companheiro de infância e meu marido, durante muitos anos acreditei que perdera também um filho. Você perdeu todas as pessoas de sua família, à exceção de Lenisa. Já não houve mortes suficientes... nos dois lados? Quaisquer que possam ter sido as ofensas iniciais, a esta altura já derramamos sangue demais para purificar todos os Cem Reinos! Se meu filho deseja casar com sua sobrinha-neta, regozijo-me pela oportunidade de acabar para sempre com essa rivalidade de sangue, e juro que Lenisa será como uma filha para mim. Concedo minha bênção ao casamento, e lhe imploro que faça o mesmo, meu lorde.

     — E minha alternativa, eu suponho — murmurou Storn, com uma aparência de amargura, mas com os olhos faiscando —, é ser o ogre da história; se recusar, levantarão a turba contra mim, o Rei Hastur virá com seu exército, haverá fogo e destruição em nossas terras... e depois que eu morrer, o jovem tomará a moça de qualquer maneira, isto é, presumindo que ambos sobreviverão aos combates.

     — Nesses termos, senhor — interveio Gavin —, não parece uma alternativa das melhores. Mas por que tem de pôr nesses termos? Não pode considerar como a oportunidade de ser o herói que acaba com tanta guerra?

     Lorde Storn amarrou a cara.

     — Essa também não me parece uma grande alternativa. Meu próprio pai haveria de se revirar na sepultura. Mas ele não viveu para me satisfazer, não vejo motivo para satisfazê-lo agora. Pessoalmente, não aprovo as uniões por amor; mas veio aqui, Dama Erminie, para falar por seu filho; e, no final das contas, teria de entregar minha sobrinha-neta a alguém. Muito bem, Lenisa, se quiser casar com ele, não serei eu quem vai se opor. É melhor tornar Storn e Hammerfell um reino só, do que perder ambos para Aldaran. Você quer?

     Ele fez uma pausa, com uma expressão irada, antes de acrescentar:

     — Não está entrando nisso porque acha romântico, ou alguma bobagem assim? Pois então case com ele, se é o que quer.

     — Oh, vovô, obrigada! — exclamou Lenisa, abraçando-o. Alastair levantou-se e estendeu a mão.

     — Obrigado, senhor. — Ele engoliu em seco. — Não tenho palavras para lhe dizer como me sinto grato. Podemos dar o seu nome a nosso primogênito?

     Alastair estava intensamente vermelho, mas manteve-se firme.

     — Ardrin de Hammerfell? Meu bisavô daria cambalhotas na sepultura, mas... muito bem, se assim quiserem.

     Storn fazia o maior esforço para não parecer satisfeito. Apertou rapidamente a mão de Alastair, antes de dizer:

     — Mas trate-a sempre bem, meu rapaz; mesmo depois que essa paixão passar, lembre-se sempre de que ela é sua esposa... e, os deuses querendo, a mãe de suas crianças.

     — Prometo isso, meu lorde... tio-avô.

     Era evidente que Alastair não acreditava que seus sentimentos em relação a Lenisa pudessem mudar. Erminie parecia indignada, mas pelo menos as palavras de Alastair fizeram com que Lorde Storn se sentisse um pouco melhor com a situação.

     — Muito bem, isso está acertado — disse ele. — E acho bom comunicar ao seu rei. Pode dizer que lhe ofereço hospitalidade... mas só tenho lugar para cerca de trinta dos seus guardas no quartel, e não posso pedir a minha gente que hospede estranhos das terras baixas, com todas as dificuldades que enfrentam no momento. Diga-lhe isso também, meu caro Gavin.

     Gavin acenou com a cabeça, acomodou-se na cadeira, e fechou os olhos.

     — Ele não precisa de sua matriz? — murmurou Lorde Storn.

     — Não para falar com o Lorde Hastur — sussurrou Erminie em resposta.

     Alastair descobriu-se a especular sobre o desconhecido laran dos Hastur. Mas todos os outros pareciam encarar como algo inquestionável; permaneceram sentados em silêncio por vários minutos, esperando que Gavin abrisse os olhos. O que aconteceu cerca de dez minutos depois, ele estendeu a mão e pegou seu copo de vinho. Floria empurrou o prato de biscoitos em sua direção. Gavin pegou um e comeu, antes de começar a falar.

     — Ele estará aqui dentro de dez dias. A Rainha Antonella melhorou bastante, o rei acha que pode deixá-la. Como cancelou todos os seus compromissos para fazer companhia à esposa doente, ninguém o espera em qualquer outro lugar. Assim, sairá da cidade com vinte de seus guardas... não há necessidade de exigir demais de sua hospitalidade, Lorde Storn... e virá direto para cá.

     — Muito bem — murmurou Storn. — Lenisa, providencie tudo para a visita de Sua Graça.

     — Eu ajudarei, se me permitir — propôs Floria, olhando timidamente para Lenisa, com um sorriso hesitante.

     Lenisa hesitou por um instante, depois retribuiu o sorriso.

     — Seria muita gentileza de sua parte. Não sei o que um rei Hastur pode esperar em matéria de protocolo... irmã.

     Floria sabia que a moça se encontrava dividida entre sua timidez e o receio de que a laranzu de Thendara pudesse desprezar uma moça rústica das montanhas.

     — Não precisa se preocupar com isso, minha cara — disse ela, abraçando Lenisa. — O Rei Aidan é o homem mais gentil do mundo; em meia hora, passará a pensar nele como seu tio predileto, como se o tivesse conhecido por toda a sua vida. Não é mesmo, Gavin?

    

     Conn descobriu-se estranhamente apreensivo com o fim da rivalidade de sangue e a iminente visita do Rei Aidan. Talvez tivesse uma natureza desconfiada, mas parecia-lhe fácil demais, bom demais para ser verdade. Saber que podia casar com Floria era um lindo sonho, mas do qual esperava despertar a qualquer momento. Cavalgando pelas montanhas alguns dias depois, a fim de verificar como os seus — não, de Alastair — camponeses meeiros estavam passando, ocorreu-lhe que tudo o que acontecera desde que partira para Thendara parecia um sonho... algo em que ele não podia acreditar totalmente.

     Confidenciou suas ansiedades a Gavin, que riu e comentou:

     — Entendo como está se sentindo. Se isso fosse uma balada, teria de haver outra complicação, de preferência com uma grande batalha, para se alcançar um final satisfatório.

     — Não é isso o que eu quero, pode estar certo — murmurou Conn. — Pode me dizer como estão o Rei Aidan e a Rainha Antonella?

     Gavin, que vinha entrando em contato com o rei todas as noites, respondeu:

     — A dama está bem, nas mãos de Renata. Sua recuperação pode ser lenta... e não é provável que ela volte a ser como antes, mas também não ficará gravemente incapacitada. Quanto ao rei, ele atravessou o Kadarin ao final de ontem, deve alcançar os contrafortes esta tarde.

     — Você deve ser um poderoso laranzu para fazer contato tão longe, Gavin.

     — Nem tanto. Na verdade, tenho bem pouco laran; é principalmente o poder do rei que sustenta o vínculo. Parece que você é o laranzu realmente poderoso. Poderia até fiscalizar as condições da terra e dos camponeses daqui. — Gavin gesticulou em torno do solário, onde estavam sentados. — Pouparia assim muitas horas a cavalo, com o mau tempo.

     — Gosto de andar a cavalo — respondeu Conn, calmamente. — Quanto ao mau tempo, você ainda não viu nenhum.

     Mas ele pensou um pouco no que Gavin dissera e indagou:

     — Acha mesmo que posso ver muita coisa daqui?

     Gavin deu de ombros.

     — Tente.

     Conn pegou a pedra-da-estrela e focalizou-a, recostando-se nas almofadas. E de repente teve a impressão de que subia pelo ar, saía através da janela; ao olhar para trás, no entanto, constatou que ainda continuava na cadeira. Deu outro passo à frente, flutuou até o solo. Começava a descer pela estrada do castelo quando recordou algumas histórias antigas que ouvira, sobre leronis que voavam com os ventos das montanhas, usando enormes planadores. Não tinha um planador com ele, mas parecia livre de seu corpo no momento, e assim, talvez...

     Aparentemente, pensar a respeito já era suficiente; ele se descobriu a flutuar sobre as árvores. Deveria ir até Hammerfell? Não, já percorrera aquelas terras ontem, e no dia anterior — e sempre pensara no que havia além das fronteiras de Storn.

     Vários minutos pairando pelo ar levaram-no a um ponto por cima de uma enorme fortaleza de pedra. Scathfell, pensou ele, recordando os comentários de Storn sobre Aldaran. Nas asas do pensamento, ele sobrevoou os campos e pastagens, em que havia muitas ovelhas peludas. Muitos homens estavam reunidos nas proximidades do portão principal da fortaleza. Não é o festival da colheita nem a feira livre, pensou Conn, seria o momento de recolher o rebanho, efetuar a tosquia? Quando chegou mais perto, porém, ele notou que nenhum dos homens tinha uma tesoura de tosquia, a maioria estava armada com espadas e lanças. Meia dúzia de homens com o uniforme de Aldaran, exibindo o brasão da águia de duas cabeças, organizavam os homens em pelotões, que pareciam, de uma forma cada vez mais alarmante, com um exército...

     Mas por que Scathfell mobilizava seus homens daquele jeito? Não havia conflitos nas montanhas, exceto a rivalidade de sangue particular de sua família, em que Aldaran nunca interferira. Mas, a julgar pelas aparências, não podia haver a menor dúvida de que ele mobilizava seu exército. No momento, Conn não podia imaginar o motivo.

     É melhor eu voltar, e talvez enviar alguém com um planador, quanto menos não seja para recolher mais informações sobre o que está acontecendo por aqui. Ele começava a compreender que havia mais em dirigir Hammerfell do que a mera administração dos meeiros, ou mesmo de decisões entre lavouras e ovelhas.

     Talvez eu deva ter uma longa conversa com Lorde Storn e descobrir mais sobre o governo de uma grande propriedade. É verdade que o problema é mais de Alastair do que meu; a mãe espera que eu volte com ela — e com Floria — a fim de ocupar meu lugar na Torre para treinamento. Mas devo ser um laranzu pelo resto de meus dias? Não parecia o tipo de trabalho que haveria de satisfazê-lo para sempre; e, no entanto, ele sabia, no fundo de seu coração, que se permanecesse ali só poderia diluir a autoridade de Alastair com os homens, que pensavam em Conn como seu jovem duque. Mas também não parecia certo que ele abandonasse seu povo, ou ficasse de braços cruzados enquanto Alastair adotava a política de Storn de expulsar os homens de suas fazendas para procurar trabalho em Thendara ou outro lugar, dando preferência a incontáveis ovelhas.

     Ele fora treinado para ser responsável por aquelas pessoas! Alastair tinha alguma noção do que significava ser o Duque de Hammerfell? Aliás, até sua mãe sabia alguma coisa a respeito? Ela casara na linhagem quando era bem jovem. Não podia culpá-la, é claro, mas o fato é que a mãe provavelmente quase nada sabia. Conn flutuou por algum tempo, absorvido em seu dilema pessoal; mas Scathfell mobilizava um exército, e ele precisava agir — tinha de voltar ao Castelo Storn e a Gavin.

   Pensando em Gavin, Conn descobriu-se subitamente de volta a seu corpo no solário. O amigo avaliou no mesmo instante o ânimo de Conn e indagou:

     — Qual foi o problema? Alguma coisa errada?

     — Não tenho certeza se é errada, mas não entendo o que está acontecendo...

     Ele descreveu o que vira em Aldaran. Gavin assumiu uma expressão preocupada e disse:

     — Dama Erminie precisa saber disso.

     Conn não tinha a menor idéia do que a mãe poderia fazer, mas Gavin parecia tão certo que ele não protestou. Erminie veio ao solário, atendendo ao chamado de Gavin, pegou sua pedra-da-estrela e foi verificar pessoalmente. Quando tornou a abrir os olhos, havia neles uma expressão de medo.

     — É terrível! Scathfell está se mobilizando e vai marchar contra a guarda do Rei Aidan. Ele conta com trezentos homens pelo menos.

     — Contra Aidan? — murmurou Gavin. — Mas ele só tem uma guarda de honra, vinte homens no máximo!

     — Ele vai pensar que o atraímos para uma armadilha nas montanhas — ressaltou Conn. — Alguém tem de pegar um cavalo e seguir imediatamente ao seu encontro para alertá-lo...

     — Mas ninguém conseguirá alcançá-lo a tempo — murmurou Erminie, desesperada —, a não ser...

     — Posso tentar — concordou Gavin, sem muita esperança —, mas já é bastante difícil à noite, quando tudo está quieto...

     — Trezentos homens! — exclamou Conn, consternado. —, O Rei Aidan não poderia enfrentar tantos soldados, contando apenas com sua guarda de honra, mesmo que armássemos os ursos e coelhos.

     Ele repetia um velho provérbio; mas, para sua surpresa, Erminie sorriu e disse:

     — Podemos fazer isso.

    

     Por um momento, os dois jovens ficaram olhando perplexos para Erminie, como se ela tivesse perdido o juízo.

     — Está gracejando, não é? — indagou Gavin, embora não parecesse muito certo.

     — Nunca gracejo com essas coisas — respondeu Erminie. — Você gracejava quando me disse que Aidan está acompanhado apenas por uma guarda de honra?

     Ela parecia positivamente esperançosa; pela primeira vez, Conn compreendeu as vastas implicações do poder do laran. Podia sentir, como se fosse nele, a relutância da mãe em usar tudo o que sabia; e com o conhecimento veio uma certa compaixão. Percebeu de repente a diferença que podia fazer, que faria, não tanto na batalha (o que ainda não podia entender), mas na maneira como as pessoas, para sempre depois, haveriam de considerar a mãe ou qualquer outra pessoa que invocasse forças tão poderosas.

     Embora Erminie tivesse trabalhado por muitos anos como uma leronis na Torre em Thendara, ali ela integrava um grupo, as pessoas davam quase tanta importância a seus dons de laran quanto à sua competência no tricô. Em Thendara, ela era Erminie primeiro, e uma leronis em segundo lugar. Aqui, nas montanhas, onde leronis eram escassas, fazer algo tão dramático a tornaria obviamente diferente, para sempre alienada das pessoas que seriam suas vizinhas. Nunca lhe permitiriam esquecer.

     — Você deve me ajudar, Conn — anunciou ela —, todos devem me ajudar. Será bastante complicado, e há poucos aqui com laran; eu, vocês, Floria, Lorde Storn... Conn, conhece mais alguém por aqui que tenha laran?

     Conn sacudiu a cabeça, enquanto Gavin protestava:

     — Tenho muito pouco laran... e não recebi qualquer treinamento... não sirvo para muita coisa!

     — Precisamos até do pouco que você tem — declarou Erminie, sombria. — Mas, no momento, pode fazer outro serviço. Encontre Storn, Floria, Lenisa, e aquela espadachim que é governanta dela, traga todos para cá... depressa, por favor!

     Gavin saiu correndo do solário, e Erminie virou-se para Conn.

     — Precisamos de Markos, e você é mais ligado a ele. Chame-o!

     Conn começou a se levantar, mas ela gesticulou para que ele tornasse a sentar na cadeira, impaciente.

     — Não temos tempo para que você saia a cavalo e o encontre. Concentre-se nele... chame-o assim! Pense nele, faça-o sentir que há alguma coisa muito errada, que precisamos dele aqui, o mais depressa possível. Se ele começar a recrutar os homens no caminho para cá, tanto melhor; precisaremos de todos.

     Conn tratou de se concentrar, franzindo a testa no esforço. Markos, venha ao meu encontro; preciso de você.

     Ele ficou bastante surpreso quando Markos apareceu, e mais ainda quando o velho servidor reagiu como se fosse algo normal, um fato corriqueiro. Gavin voltou, com Lenisa e Dama Jarmilla; Alastair também viera.

     — Alastair! — exclamou Conn. — Fico muito contente que você tenha vindo!

     Dama Jarmilla protestou, irritada:

     — Ele não deveria vir; ainda está muito fraco.

     Erminie explicou rapidamente o que pretendia fazer, transformar todos os animais selvagens que pudesse encontrar num arremedo de exército.

     — Não haveria um provérbio se ninguém jamais tivesse feito isso — comentou ela.

     — Nunca ouvi falar desse laran — disse Gavin.

     — Era mais conhecido nos tempos antigos do que agora — informou Erminie. — A mudança de forma deu origem a muitas lendas. Nunca fiz isso. Havia pessoas em minha família, no entanto, pelo que dizem, que podiam se transformar à vontade em lobo, falcão... não sei mais o quê. É perigoso para os humanos fazerem isso; podem assumir as características do animal em que se transformam. Uma parte não passa de mera ilusão, é claro; os animais não são humanos como parecem. Não poderão empunhar armas, a não ser aquelas que a natureza lhes proporcionou. E no caso de um coelho, não é muita coisa. Mesmo assim, eles ainda podem ser úteis para nós.

     — Não sei nada a respeito — disse Conn —, mas seremos gratos por qualquer coisa que puder fazer para nos ajudar; uma rivalidade de sangue de cada vez já é suficiente. Como vai entrar em contato com os animais?

     — Posso chamá-los — explicou Erminie. — E acho que você também poderia; não quer tentar?

     Mas Conn já se encontrava muito longe de sua profundidade para tentar algo assim. E, agradecido, deixou essa incumbência aos cuidados de uma leronis mais experiente.

     — Traga-os para mim agora e farei o que for necessário — pediu Erminie a Lorde Storn.

     Ele pareceu compreender. Pegou sua pedra-da-estrela. Pouco depois, olhando pela janela, Conn descobriu que a clareira em torno do prédio estava sendo ocupada pelos animais selvagens do bosque.

     Haviam coelhos comuns e coelhos-de-chifres, porcos-espinho e esquilos, até mesmo duas ou três espécies de animais pequenos que ele não reconheceu. Mas também havia ursos.

     Erminie estudou a todos, pensativa. Depois de algum tempo, saiu e começou a circular entre os animais. Quando os outros foram ao seu encontro, ela disse:

     — Quando eu os transformar, isso não nos dará o exército de que precisamos, a não ser em ilusão. Os coelhos ainda serão coelhos e fugirão em vez de lutarem, se forem ameaçados.

     Isso fazia sentido, pensou Conn. Mas o que aconteceria com os ursos? Ele e Floria ainda se mantinham em contato; e ela disse agora, baixinho:

     — Espero que o aparecimento de um exército detenha o exército de Scathfell, sem necessidade de confrontação. Não me agradaria controlar um urso sob forma humana.

     Conn também não gostaria.

     — Nem em qualquer outra forma! — exclamou ele.

     A esta altura, Erminie tornara a se aproximar dos animais. Jogou um pouco de água no mais próximo e murmurou:

     — Deixe a forma que você usa e assuma a forma de um homem.

     Enquanto Conn observava, o animal, grunhindo em protesto, esticou-se, e um homem pequeno surgiu ali, vestido de marrom e cinza, os dentes salientes. Como Erminie dissera, ainda era essencialmente um coelho; mas na forma, pelo menos, parecia um homem. Conn compreendeu agora o que ela quisera dizer quando prometera que armaria ursos e coelhos contra Scathfell.

     Depois que Erminie concluiu seu trabalho, parecia que havia um exército ali — mas ainda era um exército de animais selvagens, Conn sabia. Alastair também compreendia isso e comentou:

     — Eles não podem lutar por mim, mesmo em forma humana.

     — Vamos torcer para que não precisem lutar — declarou Erminie. — Mas posso lhe dar uma guarda pessoal que o defenderá até a morte.

     Ela chamou Jóia, que se aproximou no mesmo instante. Como já acontecera em Thendara, Erminie fitou a velha cadela por um longo tempo; e depois, como fizera com os outros animais, jogou um pouco de água em sua cara, dizendo:

     — Deixe essa forma que usa, e assuma a forma que sua alma procura.

     — Mas é uma mulher! — exclamou Dama Jarmilla.

     — Isso mesmo — disse Erminie. — Ela é como você... uma guerreira. — Virando-se para Alastair, ela acrescentou: — Jóia lutará por você enquanto houver vida em seu corpo; está em sua natureza defendê-lo.

     Alastair contemplou a mulher de cabelos vermelhos que se encontrava no lugar em que a cachorra estivera antes. Vestia um traje rústico de couro, havia uma espada em sua cintura.

     — Esta... esta é Jóia?

     — É a forma que Jóia assumiu para defendê-lo — explicou Erminie. — É a verdadeira forma de sua alma, ou pelo menos próxima de como ela se julga.

     E Alastair lembrou que Jóia o guardava desde quando podia se lembrar. Na verdade, a velha cachorra era uma de suas lembranças mais antigas.

     — Mas se ela não pode lutar...

     — Eu não disse que ela não lutaria — respondeu a mãe. — Está em sua natureza defender você... eu disse que deveríamos torcer para que não fosse necessário que os outros animais lutassem. Apenas vão parecer um exército, e provavelmente será preciso apenas isso, mas nunca poderiam nos defender para valer.

     Jóia agachou-se aos pés de Alastair; ele esperou que a qualquer momento começasse a lamber suas mãos, e se perguntou como reagiria se isso acontecesse, pois Jóia parecia agora com uma guerreira. Só seus olhos continuavam iguais, enormes, castanhos e devotados.

    

     Alastair esperava nas moitas pela aproximação do exército de Scathfell. Sua própria força — uns poucos homens reais, mais o "exército" que a mãe mobilizara, os ursos e coelhos em forma humana, aguardavam em sua companhia. Eram tantos que se Scathfell — ou seus assessores militares — os avistasse, deveria fazer a volta e fugir... ou pelo menos Alastair esperava que tal acontecesse.

     Mas se Scathfell — com o uso de seu laran — percebesse o que havia ali, qual seria o resultado? Alastair não podia acalentar qualquer esperança de alcançar alguma vitória com um exército assim; só poderia correr. É um exército composto em sua maioria por coelhos, pensou ele, com um humor amargo, seria excepcional na hora de correr.

     Jóia dormia a seus pés; sem nada fazer, a não ser esperar, ela se enroscara no chão e adormecera. Isso, mais do que qualquer outra coisa, lembrava-lhe que ela ainda era essencialmente a sua velha cachorra, independente da forma que assumisse.

     E isso o levou a especular um pouco; a mãe dissera que Jóia o defenderia. Como aquela guerreira tão estranha seria capaz de defendê-lo melhor do que uma boa cachorra? Embora a amasse, Alastair não podia deixar de admitir que sob forma humana ela não parecia grande coisa.

     Antes de sua partida de Thendara, a mãe aventara a possibilidade de mudar a forma de Jóia, mas comentara na ocasião que ela poderia protegê-lo como uma cachorra.

     Mas agora Erminie achara que Jóia o protegeria melhor em forma humana — o que ela estava esperando?

     Ele não teve muito tempo para especular. Logo ouviu um rumor distante; nunca escutara aquele som antes, mas não precisava de ninguém para lhe explicar do que se tratava. O som era inconfundível — o exército de Scathfell em marcha. Alastair podia ouvir também os sons militares distantes de cornetas e tambores. Aidan não contava com nada igual, apenas a sua guarda de honra — sozinhos e sem coisa alguma para protegê-los, como dissera Gavin. A injustiça da situação fez o sangue de Alastair ferver. A seus pés, Jóia mexeu-se e esticou-se. Ele disse, muito tenso:

     — Acho que chegou a hora, menina.

     Ela deixou escapar um pequeno som de excitamento; não era um rosnado nem um ganido, mas um pouco dos dois. Alastair também se sentia excitado, ao mesmo tempo com medo. Sua primeira batalha. Seria morto? Entraria em pânico? Sobreviveria ao combate e tornaria a ver Lenisa? Sentia alguma inveja de Conn, que pelo menos tinha alguma experiência de combate.

     E nesse instante uma flecha voou zunindo em sua direção; e em vez de pensar em sua primeira batalha, ele estava no meio dela.

     Erminie lhe dissera o que deveriam fazer; era um velho truque nas montanhas. Além da moita em que se escondia, Alastair ouviu os poucos homens — e os muitos ursos, coelhos e porcos-espinho em forma humana — se movimentarem no mato, fazendo um grande barulho, como se um enorme exército se ocultasse ali. O único som incontestavelmente humano — e o que fazia com que os outros sons parecessem humanos, em comparação, refletiu Alastair, com os ruídos dos animais selvagens que de fato eram — era a ululação da gaita de foles tocada pelo velho Markos, reverberando pela distância, como se houvesse muitas. Alastair jamais compreendera como era difícil distinguir uma gaita de foles de uma dúzia, quando se ouvia o som através das montanhas ou do bosque.

     Através das árvores, ele ouviu Scathfell dar ordens para a retirada. Aldaran, ou quem quer que estivesse no comando de suas forças, não esperava enfrentar meia dúzia de regimentos; e a julgar pelo som, era exatamente isso o que os aguardava sob a cobertura das moitas. Alastair já ouvira histórias a respeito antes — por exemplo, como onze homens e uma gaita de foles haviam repelido dois regimentos — mas nunca fora tentado naquela escala. Sabia que o exército de Scathfell podia avistar uma grande massa de homens concentrados logo além da cobertura das árvores. Mais cedo ou mais tarde, Scathfell começaria a se perguntar por que eles não atacavam. Antes que isso acontecesse, no entanto, os poucos homens que havia entre eles, apenas uma meia dúzia e umas poucas mulheres, dispararam uma chuva de flechas. Pareciam muito mais do que a realidade. Não poderiam causar grandes baixas, mas tomando a iniciativa da ofensiva poderiam assustar Scathfell e seu exército, obrigando-os a recuar, antes que compreendessem exatamente o que enfrentavam.

     Alastair olhou ao redor. Jóia agachava-se a seus pés. Era justo que Conn, conhecido pelos poucos homens leais, os comandasse — eles precisavam do "jovem duque" que já os liderara antes para se lançarem ao combate. Gavin, Alastair sabia, galopava para interceptar a comitiva do Rei Aidan, a fim de evitar que ele se metesse desprevenido no meio da batalha.

     E eu fiquei com o comando dos ursos e coelhos, refletiu Alastair, com alguma amargura; não importava o resultado, ele não teria a glória em sua primeira batalha. Um comandante espreitando das moitas, à frente de uma horda de animais transformados, nada tinha de heróico. E o pior era que ele não podia fazer nada; qualquer coisa que tentasse, além de fazer barulho no mato, revelaria o truque a Scathfell, e as conseqüências seriam desastrosas.

     Por isso, Alastair incitava suas forças, ajudado por Jóia. Era óbvio que persistia uma parte de sua natureza de cachorra, fazendo com que ainda gostasse de perseguir coelhos, independente da forma que tivessem, embora nunca se afastasse muito de Alastair.

     A situação, apesar de precária, mantinha-se estável, por enquanto.

     E, depois, a sorte mudou.

     Como todos disseram mais tarde a Alastair, foi um acaso inevitável que Jóia perseguisse um coelho pelo caminho à frente de um dos homens de Scathfell. No mesmo instante o homem partiu em perseguição, a espada erguida, tentando alcançar o que lhe parecia um soldado; e quando morreu, o coelho voltou à sua forma normal.

     — Bruxaria! É um truque! — gritou o homem.

     Os gritos alertaram seus companheiros. Antes que Alastair pudesse pedir ajuda, muitos avançaram pelas moitas, empenhados em massacrar os coelhos.

     Os coelhos, como era de se esperar, entraram em pânico e fugiram para todos os lados. Os porcos-espinho e os esquilos também correram, mas os ursos eram diferentes. Não demorou muito para que os soldados de Scathfell começassem a esbarrar em ursos, à procura de coelhos. Coelhos e ursos pareciam ser homens desarmados, mas essa era a única semelhança. Os coelhos continuavam amedrontados e indefesos, mas os ursos eram o oposto. Avançar para um urso, mesmo em forma humana, era uma experiência assustadora, potencialmente fatal. Os ursos ainda tinham garras e não gostavam de ser incomodados. Muitos soldados morreram, dilacerados pelas garras e dentes de ursos enfurecidos, e seus gritos agonizantes avisaram aos outros que o combate ali não era tão fácil quanto parecera antes.

     Os homens de Scathfell recuaram para se juntar ao corpo principal do exército, que àquela altura, notou Alastair, já se tornara bastante reduzido. Isso é ótimo, pensou Alastair, sombriamente. Conn e os homens devem ter causado muitas baixas na confusão. Só espero que Gavin tenha conseguido alcançar o Rei Aidan a tempo. Foi então que os arqueiros de Scathfell começaram a disparar ao acaso para as moitas em que Alastair e seus "homens" se escondiam. Mas essa tática teve alguns resultados inesperados. Os coelhos atingidos em geral morriam, mas os ursos eram mais resistentes. Não apenas permaneciam de pé, mas tendiam a avançar pela estrada e dilacerarem mais alguns homens, antes de tombarem. Scathfell, no entanto, devia ter decidido que essa era a sua melhor chance; as flechas continuaram a voar.

     Alastair sentiu-se bastante tentado a se refugiar por trás da rocha grande mais próxima e esperar que tudo acabasse, mas lembrou-se com firmeza que era o Duque de Hammerfell, e o Duque de Hammerfell não se escondia durante a batalha. Afinal, ele não lutara por Hammerfell centenas de vezes? Mesmo que tivessem sido apenas batalhas simuladas quando era criança, sabia que um duque devia dar o exemplo heróico a seus homens. Apesar do medo, ele continuou a circular entre seus "homens", tentando fazer bastante barulho, a fim de que Scathfell pensasse que suas flechas não surtiam muito efeito.

     E, de repente, uma flecha voou na direção de Alastair, procedente da estrada. Antes que ele percebesse o que estava acontecendo, Jóia jogou-se na sua frente. Se ainda estivesse com a forma de cachorra, a flecha passaria por cima e atingiria Alastair na cabeça; mas, em sua forma atual, acertou Jóia na garganta.

     Ajoelhando-se, chorando, Alastair aninhou o corpo da velha cachorra, que recebera a flecha que lhe era destinada. Não queria mais saber da bruxaria pela qual isso acontecera; sabia apenas que sua baixa mais pessoal naquela batalha fora a cachorra que lutara em sua defesa mais do que qualquer guerreiro seria capaz, e morrera por ele. O matador de Jóia parara ao lado, atordoado; num instante, Alastair desembainhou sua espada e matou-o.

     E logo Gavin estava ao seu lado, abaixando-se para pegar o corpo da cachorra morta.

     — Não! — exclamou Alastair. — Eu mesmo a levarei.

     Em seu coração, ele sabia que era o tipo de morte que sua brava cachorra teria desejado.

     Aninhando Jóia nos braços, Alastair não pôde deixar de pensar se Erminie já não soubera que aquilo acabaria acontecendo... se a própria Jóia não soubera.

    

     Não restou muita batalha depois disso; poucos minutos mais tarde, o exército de Scathfell pediu uma trégua para parlamentar. Alastair tratou de se controlar, limpou a poeira das roupas e avançou para a clareira, com uma bandeira de trégua, concentrando-se em parecer tão impressivo quanto podia. Não demorou muito para que um homem alto e corpulento aparecesse, os cabelos como fogo, a águia de duas cabeças de Aldaran bordada na túnica.

     — Sou Colin Aldaran de Scathfell; você, eu creio, é Hammerfell.

     — Sou, sim, mas provavelmente não o que você esperava — respondeu Alastair, no mesmo tom brusco que o outro usara.

     Aldaran soltou uma risada.

     — Guarde a história para me contar quando sentarmos em torno de uma fogueira, em algum lugar. Acabei de ouvir o suficiente para saber que não entenderia. Por enquanto, quero saber apenas por que você se juntou aos homens das terras baixas e ao Rei Hastur para lutar contra mim.

     Alastair pensou por um momento.

     — Se me explicar por que você e seus homens estavam marchando contra o Rei Aidan e sua guarda de honra, um rei que veio a estas montanhas como um simples cidadão, a fim de acertar uma antiga rivalidade de sangue entre Hammerfell e Storn...

     — Uma história verossímil — interrompeu-o Scathfell, desdenhoso —, mas espera sinceramente que eu acredite nisso? Mesmo aqui, nas montanhas, sabemos que os lordes Hastur querem dominar todos nós.

     Alastair ficou calado, sentindo-se confuso. O Rei Aidan queria realmente reinar nas Hellers? Parecia a Alastair que o rei já tinha o suficiente para mantê-lo ocupado nas terras baixas, e queria apenas que acabasse um derramamento de sangue desnecessário.

     Colin de Scathfell olhou para Conn, que se aproximara, e disse:

     — Ambos vivos? Sempre pensei que os gêmeos de Hammerfell haviam sido mortos. Agora sei que há uma longa história... estou ansioso em ouvi-la algum dia.

     — Vai ouvi-la, e como uma balada — anunciou Gavin, também se aproximando. Ele olhou triste para o corpo da velha Jóia, que Alastair pusera na beira da clareira. — E ela será uma personagem... a cachorra que lutou como uma guerreira para defender seu dono. Mas acho que Aidan deve participar desta conferência, e Storn também.

     Ele gesticulou para os dois homens que chegavam à clareira, acompanhados por Erminie, Floria, Lenisa e Dama Jarmilla, acrescentando:

     — Assim, todas as partes desta rivalidade estarão conosco.

     Colin de Scathfell sorriu.

     — Isso não é certo; não tenho rivalidade com ninguém nestas montanhas. Ou em qualquer outro lugar, até onde eu sei; embora meu primo ao sul pareça estar tentando criar uma rivalidade comigo. Mas agora explique por que armou cada urso e coelho na floresta contra mim. E só depois pensarei na paz com você.

     — Com o maior prazer — disse Alastair. — Não tenho nenhuma desavença com Aldaran... pelo menos ao que eu saiba. Uma rivalidade de sangue de cada vez já é mais do que suficiente. Armamos os animais para ajudar o Rei Aidan, que veio até aqui com uma pequena guarda de honra para arbitrar a divergência entre mim e Lorde Storn. Ele não tem desavença com você... embora ninguém saiba o que vai pensar quando descobrir que você mobilizou um exército contra ele, quando viajava praticamente desarmado. É uma coisa que eu também gostaria de saber.

     — Voltamos a esse ponto — disse Colin de Scathfell, com alguma irritação. — Marchei contra o Rei Hastur porque ele está ansioso em dominar Aldaran.

     O Rei Aidan entrou na clareira, com sua guarda de honra de dez homens, uns poucos tocadores de gaita, e Valentine Hastur. Colin fitou-o com uma expressão furiosa.

     — Se repassarmos todas as causas de divergências entre Hastur e Aldaran, ficaremos aqui até o pôr-do-sol de amanhã, e não chegaremos a conclusão alguma — disse o Rei Aidan. — Vim até aqui para acertar a rivalidade de sangue entre Storn e Hammerfell... e por nenhum outro motivo.

     — Como eu podia saber disso? — indagou Scathfell.

     — Isso é possível, provavelmente é. Mas só estou aqui para acabar de uma vez por todas com a rivalidade de sangue entre Storn e Hammerfell. Já se prolongou por gerações demais, e restam poucos das duas famílias... e ninguém vivo conhece os certos e errados do que aconteceu, nem isso importa agora. Diga-me, Storn, está disposto a estender sua mão em amizade a Lorde de Hammerfell e assumir o compromisso de manter a paz nestas montanhas?

     — Estou — declarou Storn, com uma expressão solene. — E mais do que isso: eu lhe darei a mão de minha sobrinha-neta Lenisa, o que reunirá nossas terras como uma só, e promoverá a união por muitas gerações.

     — Terei a maior satisfação nesse casamento — disse Alastair, formalmente —, se ela me aceitar.

     — Claro que ela vai aceitá-lo — respondeu Storn, secamente. — Já ouvi as bobagens sentimentais que ela fala para a governanta quando você não está presente. Ela vai aceitá-lo... não é mesmo, menina?

     — Se me chamar de menina nesse tom — protestou Lenisa —, e me entregar em casamento para resolver alguma rivalidade antiga, prefiro assumir a lâmina e viver e morrer sem casar, como uma Irmã da Espada! Você me aceitaria, Dama Jannilla?

     A espadachim soltou uma risada.

     — O que faria se eu dissesse sim, sua tolinha? É melhor casar com Hammerfell e criar meia dúzia de filhas; e deixe que elas assumam a espada, se quiserem.

     — Neste caso — murmurou Lenisa —, se vai mesmo acabar com a rivalidade...

     — Você acha que pode fazer o esforço de casar comigo — interveio Alastair. — E eu já disse que casarei com você, se me aceitasse. Portanto, isso está resolvido.

     — E já que estamos falando em casamento — disse Valentine Hastur —, agora que os herdeiros de Hammerfell foram finalmente restaurados, a qual dos dois devo pedir a mão de sua mãe?

     — A nenhum dos dois — declarou Erminie. — Ninguém pode dizer que não tenho a maioridade; a mão me pertence para concedê-la a quem eu quiser.

     — Nesse caso, Erminie, quer casar comigo?

     — Provavelmente estou muito velha para lhe dar crianças...

     — Acha que me importo com isso? — indagou ele, com veemência, abraçando Erminie, que corou.

     Edric fitou-a com uma expressão irada e disse:

     — Sabe muito bem que eu só estava aguardando o fim da batalha para pedi-la...

     — Oh, Edric, você sabe que eu o amo como uma irmã; e se meu filho vai casar com sua filha, não seremos parentes bem próximos?

     — Acho que sim — murmurou ele, sombriamente. — E, portanto, parece que tudo está acertado...

     — Há uma coisa que não está acertada — declarou Conn, falando pela primeira vez. — Essa expulsão dos homens para criar ovelhas... mandar embora meus homens para morrerem longe de suas fazendas... deve cessar.

     — Devo lembrá-lo, irmão, que não são seus homens — protestou Alastair.

     — Nesse caso, eu lhe peço por eles... ou lutarei contra você por eles. Fui criado com esses homens e lhes devo minha lealdade...

     — Não posso lhe prometer o que deseja — respondeu Alastair. — É evidente que as terras aqui não são propícias para a lavoura. E se estivesse pensando com a mente e não com o sentimento tolo, saberia disso. A insistência só servirá para que todos fiquemos à míngua... e se pensa em me desafiar, serei obrigado a lembrá-lo que é um homem sem terra, irmão.

     — Não! — interveio o Rei Aidan. — Não será mais assim! Há pouco tempo adquiri a suserania sobre uma terra na fronteira ao sul, onde o tempo é mais clemente, tudo é favorável à lavoura. Eu a concederei a você, Conn, se quiser se tornar meu súdito leal.

     — Aceito e assim serei — declarou Conn, agradecido. — E qualquer homem que for obrigado a sair de Hammerfell... ou de Storn... e quiser ir para lá, terá uma fazenda para cultivar. E se você quiser... — Ele virou-se para Floria. — Como um homem sem terra, eu nada tinha a lhe oferecer. Agora tenho uma terra, graças ao Rei Aidan; quer partilhá-la comigo?

     Floria sorriu, feliz.

     — Quero, sim.

     — E assim tudo termina bem, como deve acontecer com uma balada, com a realização de vários casamentos — comentou Gavin. — E eu terei que fazer uma balada com essa história!

     — É isso mesmo, meu rapaz! exclamou Aidan, radiante. — Trate de se concentrar nisso.

     Gavin sorriu.

    — Já comecei.

     E todos nas montanhas conhecem a balada dos Gêmeos Duques de Hammerfell, a da velha cachorra que morreu para salvar o dono na última batalha... mas como todas as baladas verdadeiras, mudou muita coisa entre aquele dia e hoje.

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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