Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS HERDEIROS HORRORIZADOS
O assassínio não se gera no vácuo. É um produto da cobiça, da avareza, do ódio, da vingança ou talvez do medo. Tal como pedra, tombando, envia ondulações para os extremos do lago mais afastados, o assassínio afecta as vidas de muitas pessoas.
De manhã cedo, a luz do sol filtrava-se através da janela de um quarto privado no “Phillipe Memorial Hospital”.
Os ruídos do tráfego, na rua, que se tinha reduzido a um murmúrio baixo durante a noite, começavam a aumentar de volume. Os passos das enfermeiras, nos corredores, aumentavam também de ritmo, indicando o acréscimo de actividade.
Os doentes estavam a ser lavados, as temperaturas a ser tiradas, as amostras de sangue a ser recolhidas; depois chegaram os tabuleiros do pequeno-almoço em carrinhos de rodas, o falso aroma de café e papas de aveia penetrou nos corredores, como se pedisse apologeticamente licença para afastar a aura de antisséptica severidade, prometendo que a intromissão seria apenas temporária.
As enfermeiras, transportando seringas hipodérmicas esterilizadas, apressavam-se para os quartos dos pacientes de cirurgia, administrando a droga tranquilizante preliminar, que retiraria as apreensões e o pavor do caminho do anestésico.
Lauretta Trent ergueu-se na cama, sorrindo tristemente para a enfermeira:
- Sinto-me melhor - disse, com voz fraca.
- O Doutor prometeu visitá-la esta manhã, logo depois da cirurgia - respondeu-lhe a enfermeira, sorrindo de forma tranquilizadora.
- Ele disse se eu podia ir para casa? - perguntou a doente ansiosamente.
- Terá de lhe perguntar a ele, - respondeu a enfermeira.- Mas vai ter de tomar cuidado com a sua dieta, durante algum tempo. Esta última indisposição foi, na verdade, muito, muito má.
Lauretta suspirou:
- Bem gostava de saber o que está a provocá-las. Eu tentei ser mais cuidadosa. Devo estar a desenvolver algum tipo de alergia.
Na residência da família Trent, erguida em espaçosos jardins remanescentes de tempos idos, a governanta estava a dar os últimos retoques no quarto de dormir da dona da casa.
- Dizem que Mrs. Trent regressará hoje - disse para a criada. - O Doutor pediu à enfermeira dela, Anna Fritch, para estar presente, e ela acaba de chegar. Ficará, desta vez, uma semana ou duas.
A criada não parecia entusiasmada:
- Olha só a minha sorte. Eu queria tirar uma folga esta tarde - é uma coisa especial.
Foi nesse momento que um par de mãos pairou brevemente sobre o lavatório de uma casa de banho de azulejos.
Um fio de pó branco caiu de um frasco para a bacia.
Uma das mãos abriu a torneira da água e o pó branco escorreu para o cano.
Já não havia necessidade dele. Tinha servido a sua finalidade.
Estendia-se sobre a espaçosa casa um manto de tensa expectativa, enquanto várias pessoas aguardavam: Boring Briggs, cunhado de Lauretta; Dianne, sua mulher; Gordon Kelvin, outro cunhado; Maxine, a mulher dele; a governanta, a criada, o cozinheiro; a enfermeira; George Eagan, o motorista. Cada um afectado de diferente forma pelo iminente regresso de Lauretta Trent, conseguiam, colectivamente, impregnar a atmosfera de excitação reprimida.
Agora que tinha terminado a cirurgia da manhã e os médicos tinham mudado as batas para fatos de passeio, havia uma acalmia nas actividades do Phillipe Memorial Hospital.
Os doentes que tinham sido submetidos a operações estavam na sala de recuperação; os primeiros a recuperarem das operações de pequena cirurgia, haviam começado a ser transportados lentamente pelos corredores, de olhos fechados, faces pálidas, cobertos com lençóis, em direcção aos respectivos quartos.
O Dr. Ferris Alton, de estatura mediana, seco de carnes apesar dos seus cinquenta e oito anos, desceu ao quarto privativo de Lauretta Trent.
A face dela brilhou, quando o médico abriu a porta de vaivém.
A enfermeira olhou por cima do ombro e, vendo o Dr. Alton, deslocou-se rapidamente para os pés da cama, onde ficou, atentamente, à espera.
Este sorriu para a sua doente:
- Está melhor, esta manhã.
- Muito, muito melhor - respondeu ela. - Vou para casa hoje?
- Vai, sim - informou o Dr. Alton-, mas terá consigo a sua antiga enfermeira, Anna Fritch, novamente. Combinei que ficasse no quarto ao lado do seu. Tecnicamente, estará de serviço vinte e quatro horas por dia. Quero-a de olho em si. Não a devíamos ter deixado ir-se embora, depois da última indisposição que teve. Quero que ela vigie o seu coração.
Mrs. Trent anuiu, com um aceno:
- Já agora - continuou o Dr. Alton-, vou ser franco consigo, Lauretta. Esta é a terceira gastroenterite em oito meses. São suficientemente más, só por si, mas é com o seu coração que estou preocupado. Não vai aguentar, indefinidamente, esses abusos dietécticos. Você vai ter que vigiar a sua dieta.
- Eu sei - respondeu-lhe ela-, mas há alturas em que a comida bem condimentada me sabe tão terrivelmente bem.
Ele franziu as sobrancelhas, olhando-a pensativamente:
- Acho - disse com lentidão-que, quando se sentir melhor, vamos ter que fazer uma série de testes à alergia. Entretanto, terá de ser cuidadosa. Parece-me justo avisá-la de que o seu coração pode não conseguir suportar outra destas perturbações agudas.
As mãos e o pó tinham feito o seu trabalho. O caminho fora aberto; os preliminares tinham sido tratados.
A vida de Lauretta Trent dependia de uma mulher que ela só vira uma vez, uma mulher de cuja existência se tinha esquecido; e essa mulher, Virgínia Baxter, só tinha uma vaga ideia de Lauretta Trent. Encontrara-a dez anos atrás, por rotina.
Se tentasse, Virgínia poderia, provavelmente, recordar-se do encontro, mas ele estava agora inteiramente submerso no seu subconsciente, enterrado sob as experiências do dia-a-dia de uma década de problemas rotineiros.
Neste momento, Virgínia seguia a corrente de passageiros, em fila atrás da hospedeira de bordo.
- Adeus.
- Então até à vista.
- Adeus, cavalheiro.
- Adeus. Boa viagem.
- Muito obrigado. Boa viagem.
Os passageiros deixaram o avião a jacto, percorreram o caminho para os corredores mais amplos do aeroporto, depois apressaram o passo, caminhando pela comprida via abaixo, em direcção ao letreiro iluminado, destacando a palavra Bagagem, com uma seta apontada para uma escada, que levava a um piso inferior.
Virgínia Baxter apressou-se, pondo a mão direita no corrimão da escada.
Levava um casaco no braço e sentia-se cansada.
No fim da casa dos trinta, mantinha uma figura elegante e bom gosto no vestir, mas trabalhara muito durante a sua vida e começavam a aparecer-lhe pés de galinha no canto dos olhos; notava-se uma ligeira sugestão de ruga, em cada canto do seu nariz. Quando sorria, a face iluminava-se-lhe; quando em repouso, havia ocasiões em que os cantos da boca começavam a abater-se-lhe ligeiramente.
Desceu da escada no nível mais baixo e encaminhou-se vivamente para a passadeira rolante, sobre a qual a bagagem iria aparecer.
Era demasiado cedo, por enquanto, para as malas surgirem, mas era indicativo do carácter de Virgínia que andasse a passos rápidos e nervosos, apressando-se para alcançar o lugar onde esperaria vários minutos.
Finalmente, a bagagem principiou a aparecer na passadeira rolante; esta transportava-a para uma plataforma, que rodava com lentidão.
Os passageiros começaram a recolher as malas; bagageiros, com talões na mão, aguardavam e, ocasionalmente, retiravam pesadas malas, colocando-as em carrinhos de mão.
A multidão começou a dispersar-se. Por fim, só umas poucas peças de bagagem foram deixadas sobre a plataforma rotativa. As malas tinham sido retiradas. A bagagem de Virgínia não estava à vista.
Dirigiu-se a um bagageiro:
- As minhas malas não vieram - disse ela.
- O que era, minha senhora? - perguntou o homem.
- Uma simples mala castanha e uma maleta de toilette oblonga, para cosméticos.
- Deixe-me ver os seus talões, por favor. Ela entregou-lhe os talões de bagagem.
O homem disse:
- Antes de começar a procurar, é melhor esperarmos e vermos se ainda vem alguma mala. Às vezes, há uma segunda leva, quando a carga foi muito grande.
Virgínia esperou impacientemente.
Após dois ou três minutos, surgiu mais bagagem na passadeira rolante. Havia quatro malas, as de Virgínia e mais duas outras.
- Ali estão elas, agora! Aquelas duas são minhas - exclamou. - A castanha, em frente daquela grande, e a maleta oblonga, atrás.
- Muito bem, minha senhora. Eu tiro-as para si. A mala, seguida pela maleta, deslocaram-se ao longo da passadeira, depois escorregaram para a plataforma rotativa. Alguns segundos depois, o bagageiro levantou-as, comparou por um momento as etiquetas, pô-las no seu carrinho de mão e principiou a dirigir-se para a porta.
Um homem que estivera atrás deles adiantou-se:
- Um momento, por favor-, pediu.
O bagageiro olhou-o. O homem tirou uma carteira de couro do bolso lateral e abriu-a, mostrando um distintivo dourado.
- Polícia - informou. - Houve algum problema com esta bagagem?
- Nenhum - garantiu-lhe prontamente Virginia.- Absolutamente nenhum, senhor. Só que não veio na primeira leva.
- Tem havido alguns problemas com bagagens - disse o homem.
- Esta mala é sua?
- É.
- Tem a certeza?
- Claro. É a minha mala e a maleta de noite e eu dei os talões delas ao bagageiro.
- Pode descrever o conteúdo da mala?
- Porquê? Com certeza.
- É capaz de o fazer por favor?
- Bem, por cima está um casaco beige a três quartos, com uma gola de pele castanha; há uma saia usada e...
- É o suficiente para nos certificarmos - interrompeu o homem. - Não se importa de a abrir para eu dar uma olhadela?
Virginia hesitou por um momento, depois disse:
- Bem, acho que está bem.
- Estão fechadas à chave?
- Não, só as cerrei.
O homem levantou as linguetas.
O bagageiro baixou o carrinho, para que a mala ficasse nivelada.
Virginia abriu a tampa e recuou com o que viu lá dentro.
O seu casaco a três lá estava cuidadosamente dobrado, tal como ela o deixara mas, em cima dele, viam-se vários recipientes de plástico transparente contendo, devidamente embrulhados, um sortido de pequenos pacotes.
- Não me falou disto - observou o homem.- O que é?
- Eu... eu não sei. Nunca antes na vida os vi. Como se respondesse a um sinal, um homem, com uma câmara de imprensa e um flash, materializou-se de trás de um dos pilares.
Enquanto Virgínia estava ainda a tentar recompor-se, a câmara foi-lhe apontada à cara e os olhos cegaram-se-lhe com um brilhante relâmpago de luz.
O homem, actuando com pronta eficiência, ejectou a lâmpada do flash, introduziu outra, puxou um slide para trás e para a frente na retaguarda da máquina e tirou outra fotografia da mala aberta.
O bagageiro tinha recuado prontamente, de forma a não ficar incluído nas fotografias.
O polícia disse:
- Receio, minha senhora, que vá ter que me acompanhar.
- O que quer dizer com isso?
- Eu explico - disse o agente. - O seu nome é Virgínia Baxter?
- Sim. Porquê?
- Tivemos uma informação a seu respeito - respondeu.- Disseram-nos que você faz contrabando de narcóticos.
O fotógrafo bateu mais uma chapa, depois voltou-se e afastou-se apressadamente. Virgínia disse para o polícia:
- Porquê? Evidentemente que vou consigo, uma vez que está a tentar esclarecer isto. Não tenho a mínima ideia de como essas coisas foram parar à minha mala.
- Estou a ver - contrapôs gravemente o agente.- Terá de vir à esquadra, receio bem. Vamos mandar analisar esse material e veremos exactamente o que é.
- E se se prova que são... narcóticos?
- Então, teremos de a prender.
- Mas isso é... uma loucura!
- Traga as malas por este lado - ordenou o polícia ao bagageiro, fechando a mala.
Abriu a maleta de noite, revelando frascos de creme, um estojo de manicura, um négligé, alguns frascos de loção.
- Okay! - comentou. - Está tudo em ordem, parece-me, mas teremos de dar uma vista de olhos a estes frascos. Vamos levar ambas as malas connosco.
Escoltou Virgínia em direcção a um sedan preto, fez o bagageiro carregar a mala e a maleta no assento traseiro, meteu Virgínia no lugar ao lado dele e ligou o motor.
- Vai para a esquadra?
- Vou.
Virgínia só então notou que havia um rádio da Polícia no carro. O agente pegou no microfone e disse:
- Agente oficial Jack Andrews, saindo do Aeroporto com um suspeito do sexo feminino e uma mala contendo material para ser verificado. Hora: 10.17 da manhã.
Repôs o microfone no gancho, destravou e conduziu o carro com perícia e rapidamente, em direcção à esquadra.
Virginia foi entregue aos cuidados de uma mulher-polícia e ficou à espera durante cerca de quinze minutos, depois um agente entregou um impresso à sua guarda. Ela olhou-o e disse:
- Por aqui, se faz favor.
Virginia seguiu-a até uma secretária:
- A sua mão direita, por favor.
A mulher-polícia pegou na mão direita de Virginia, antes que esta desse conta do que se estava a passar, depois, segurando-lhe o polegar com firmeza, rolou-o sobre uma grande almofada e aplicou-o a um pedaço de papel, marcando a impressão digital.
- Agora o dedo a seguir - pediu.
- Você não me pode tirar as impressões digitais - bradou Virginia, puxando a mão para trás. - Porque é que...
O aperto no dedo aumentou:
- Vá, não torne isto difícil para si - disse a mulher-polícia. - O dedo indicador, por favor.
- Eu recuso-me! Oh meu Deus, o que é que eu fiz?
- perguntou Virginia. - Eu... Mas porquê? Isto é um pesadelo.
- Você tem o direito de fazer um telefonema - informou a agente.- Pode chamar um advogado, se quiser.
As palavras ressoaram no espírito de Virgínia.
- Onde é que há uma lista telefónica? - pediu.- Quero ligar para o escritório de Perry Mason.
“Posso falar com Perry Mason, por favor?”
- Terá de me dizer sobre que assunto é - respondeu Della Street. - Talvez eu a possa ajudar.
- Sou Virgínia Baxter - informou ela. - Trabalhei para o advogado Delano Bannock, em sua vida e até à morte dele, há um par de anos. Encontrei Mr. Mason duas ou três vezes. Foi ao escritório de Mr. Bannock. Talvez se lembre de mim; eu era a secretária e recepcionista.
- Estou a ver - afirmou Della. - Qual é o seu actual problema, Miss Baxter?
- Fui presa por ter narcóticos em meu poder - respondeu ela - e não faço a mínima ideia de como é que eles chegaram às minhas mãos. Preciso de Mr. Mason, imediatamente.
- Um minuto - pediu Della.
Um momento depois, a voz profunda mas bem modulada de Perry Mason estava na linha:
- Onde está, Miss Baxter?
- Na esquadra.
- Peça-lhes para a manterem aí, se fizer o favor - disse Mason-, eu vou a caminho.
- Oh, muito obrigado. Muitíssimo obrigado. Eu... eu não tenho qualquer ideia de como isto aconteceu e...
- Não tente explicar-me ao telefone - interrompeu Mason. - Não diga nada a ninguém, excepto para a manterem aí mesmo, porque eu vou a caminho. Que fiança lhe fixaram? Você pode pagar uma fiança?
- Se... se não for muito elevada. Tenho uma pequena propriedade, não é lá grande coisa.
- Já vou para aí - disse Mason. - Quero requerer que você seja imediatamente levada à presença do magistrado mais próximo e mais acessível. Aguente-se.
Perry Mason penetrou no pesadelo de Virgínia e afastou a teia de irrealidade e terror.
- O magistrado fixou a fiança em cinco mil dólares - informou Mason. - Consegue arranjar essa importância?
- Teria de levantar toda a minha conta à ordem e conseguir um empréstimo da companhia de seguros.
- isso seria melhor do que aguardar na prisão - salientou Mason. - Agora quero saber exactamente o que é que se passou.
Virgínia contou-lhe os acontecimentos da manhã.
- De onde é que vinha de avião?
- De São Francisco.
- O que é que esteve a fazer em São Francisco?
- Fui visitar a minha tia. Ultimamente tenho lá ido vê-la várias vezes. É uma pessoa idosa, não se encontra muito bem e está sozinha. Gosta que eu a visite.
-O que é que faz? Trabalha para se sustentar?
- Não a tempo inteiro. Não tenho estado regularmente empregada, desde que Mr. Bannock morreu. Desempenhei várias funções sortidas.
- Aceito a causa, tem alguns rendimentos? - perguntou Mason.
- Tenho - respondeu ela. - Mr. Bannock não tinha parentes, a não ser um único irmão. Lembrou-se de mim no testamento. Deixou-me uma propriedade imobiliária em Hollywood, que dá uma renda e...
- Quanto tempo trabalhou para o Bannock?
- Quinze anos - respondeu. - Comecei a trabalhar para ele, quando tinha vinte.
- Já foi casada?
- Sim, uma vez. Não deu resultado.
- Divorciada?
- Não. Estamos separados, já há algum tempo.
- Mantém relações de amizade com o seu marido?
- Não.
- Como se chama ele?
- Colton Baxter.
- Adoptou o qualificativo “Miss”?
- Sim. Acho que ajuda no trabalho de secretária.
- Então. Você foi ver a sua tia. Tomou o avião. E a bagagem? Houve algo fora do normal, na verificação da bagagem.
- Não... espere, tive de pagar excesso de peso.
Os olhos de Mason mostraram um breve interesse:
- Pagou excesso de peso?
- Sim.
- Tem o recibo?
- Está agrafado ao bilhete. Na minha bolsa. Tiraram-ma quando fui presa.
- Nós vamos recuperá-la - afirmou Mason. - Ora bem, você estava a viajar sozinha?
- Sim.
- Lembra-se de alguma coisa sobre a pessoa sentada ao seu lado?
- Era um homem com cerca de trinta e dois ou trinta e três anos, bastante bem vestido... Bem, agora que me detenho a pensar nisso, ele era... bem, havia qualquer coisa de estranho nele. Tinha um ar frio, muito crispado na sua atitude, não como os passageiros comuns que se encontram nessas viagens. É difícil explicar o meu ponto de vista.
- Reconhecê-lo-ia, se o visse outra vez?
- Sim, com certeza.
- Podia identificá-lo por uma fotografia?
- Acho que sim, se fosse uma fotografia nítida.
- Você só trazia a mala? - perguntou Mason.
- Não, tinha a mala e um saco de noite, um saco oblongo, contendo cosméticos.
- O que é que lhes aconteceu?
- Tiraram-mos. Primeiro a mala. O bagageiro pegou nela e depois no saco de viagem. Nesse momento, um homem adiantou-se e mostrou-me a sua identificação, perguntando-me se eu punha alguma objecção a que ele desse uma vista de olhos à minha mala, porque tinha havido alguns problemas. Como a minha bagagem chegara atrasada do avião, pensei que era a isso que se referia.
- O que é que lhe disse?
- Disse-lhe o que é que estava na mala e que concordava em que ele a visse.
- Consegue recordar-se de mais alguma coisa da conversa?
- Sim. Ele primeiro perguntou-me se aquela era a minha mala, eu respondi que era, e ele pediu-me para estabelecer a respectiva propriedade, identificando o seu conteúdo. Então eu descrevi o que continha, perguntando-me ele se achava bem que verificasse.
Mason franziu as sobrancelhas pensativamente, depois disse, quase casualmente:
- A sua bagagem, isto é, as duas peças em conjunto, pesavam mais do que quarenta libras?
- Pesavam. As duas juntas pesaram quarenta e seis libras e eu paguei excesso por seis libras.
- Compreendo - comentou Mason com ar pensativo.- Você vai ter que manter muito bem o autocontrolo, estando como está no meio de uma desagradável experiência, mas talvez possamos arranjar as coisas, de uma forma ou de outra, para sair dela.
- O que eu não percebo, - disse ela - é de onde veio o material e como foi possível metê-lo na minha mala. É um facto que ela veio atrasada do avião, mas não se poderá pensar que alguém conseguisse mexer nela, lá fora, no caminho do avião para o balcão das bagagens.
- Houve vários lugares onde lhe poderiam ter mexido - afirmou Mason. - Depois de você ter declarado a mala e antes de a terem metido no avião, alguém a podia ter aberto.
“Não sabemos em que lugar foi armazenada a bordo do avião, dentro do compartimento de carga. Não sabemos se alguém, lá dentro, poderia ter chegado até ela.
“Depois, é claro, houve esse atraso ao descarregar o avião. Isso quer dizer que, provavelmente, a mala foi pousada no chão, à espera de outro transportador para a levar. Ora bem, tal como esses aviões são construídos, a saída das bagagens é do outro lado, em relação à dos passageiros. Enquanto a mala ali estava, no chão, não teria sido demasiado difícil alguém tê-la aberto e metido dentro dela esses pacotes de narcóticos.”
- Mas porquê?-indagou ela.
- Essa, - sublinhou Mason - é a dificuldade. Presumivelmente alguém estava a traficar narcóticos. Sabia que houvera uma informação e que a sua bagagem ia ser revistada, por isso pôs o contrabando na sua mala e um cúmplice avisou a Polícia telefonicamente de que o material estaria na mala de uma certa Virgínia Baxter.
Deve ter sido capaz de a descrever, porque o agente que lá estava à sua espera, para lhe pedir a bagagem, tinha obviamente uma boa descrição sua e detectara-a, desde que desceu a escada rolante.
Mason reflectiu por um momento, depois perguntou:
- E o nome? Como é que a sua mala estava marcada? Tinha iniciais ou nome pintado, ou quê?
- Tinha uma etiqueta de bagagem de couro.- informou ela, - daquelas de prender à volta da argola da pega, com o meu nome dactilografado, o meu nome e endereço: 422 Eureka Arms Apartments.
- Muito bem, - disse Mason, - vamos tirá-la cá para fora sob fiança. Vou tentar fazer com que compareça a uma audiência preliminar o mais depressa possível. Pelo menos, obrigaremos a Polícia a mostrar o nariz.
“Estou contente que seja só tudo uma espécie de mal-entendido e que possamos esclarecê-lo sem grandes problemas, mas você vai ter que ter cuidado com uma quantidade de coisas.”
- Diga-me, - pediu ela apreensiva - havia lá um fotógrafo. Sairá alguma coisa nos jornais?
- Um fotógrafo? - perguntou Mason. Ela acenou afirmativamente.
Mason comentou aborrecido:
- Então as coisas são mais sinistras do que eu, a princípio, supus. Não se trata só de um simples lapso. Sim, vai sair nos jornais.
- O meu nome, endereço, tudo?
- Nome, morada e fotografia - respondeu Mason.
- Prepare-se para um retrato a mostrar a sua expressão de espanto e um título como, por exemplo: “Ex-se-cretária forense acusada de posse de narcóticos”.
- Mas como podia o jornal ter lá um fotógrafo?
- É esse precisamente o problema - disse Mason.
- Alguns agentes gostam de publicidade. Em troca, dão a algum jornalista amigo um palpite sobre o sítio onde vão fazer uma prisão de uma jovem mulher fotogénica.
“Os jornais conseguem a história, o agente vê o seu nome no jornal com um bocado de publicidade favorável. Nessas circunstâncias, esteja preparada para ler que o valor dos narcóticos na sua mala, a preços correntes de retalho, atingia vários milhares de dólares.”
O rosto dela tinha um ar de desânimo.
- E depois de eu ser ilibada, - perguntou - o que é que acontece então?
- Provavelmente nada - respondeu Mason. - Talvez algumas linhas numa página interior de um jornal.
- Eu vou ser ilibada, não vou? - perguntou esperançosamente.
Mason afirmou:
- Eu sou advogado, não adivinho. Vamos fazer o melhor que pudermos e você terá que se conformar com isso.
Mason conduziu Virgínia Baxter para um lugar dentro da grade da sala do tribunal.
- Agora, não se ponha nervosa - aconselhou tranquilizadoramente.
Ela respondeu:
- Isso é pedir a uma pessoa friorenta que não trema. Não consigo evitar estar nervosa. Estou a tremer por dentro, como uma folha, se é que por fora também não estou. Sinto-me cheia de borboletas.
Mason explicou:
- Isto é uma audição preliminar. É normalmente uma questão de rotina para o juiz fazer transitar a defesa para outra instância mais elevada. Quando o faz, muito frequentemente aumenta o montante da caução. Às vezes, torna-a quase proibitiva. Você vai ter que encarar essa possibilidade.
- Eu não posso mesmo arranjar mais dinheiro para a caução, Mr. Mason, é tudo, a não ser que venda o meu imóvel com prejuízo.
- Bem sei - respondeu Mason. - Estou só a avisá-la do que pode suceder. Contudo, olhe que propriedades em seu nome podem influir um juiz ao fixar a caução.
- O senhor não tem lá muitas esperanças de... me libertar, nesta audiência preliminar?
- De ordinário, - prosseguiu Mason - o juiz compele judicialmente a defesa, se a acusação pretender transitar com o caso para mais alta instância. Às vezes, naturalmente, dá-nos uma aberta.
“É quase inaudito chamar a pessoa acusada a testemunhar, na altura de uma audição preliminar mas, se eu pensar que existe uma pequena hipótese de levar o juiz a anular o processo, vou chamá-la, para que ele possa vê-la e apreciar o género de pessoa que você realmente é.”
- Aquela horrível história no jornal - disse ela - ... e aquela fotografia!
- Do ponto de vista do editor de notícias da cidade, era uma maravilhosa fotografia - contrariou Mason.- Mostrava a surpresa e a consternação no seu rosto e, no que diz respeito ao seu caso, até lhe pode ser útil.
- Mas arruinou-me a reputação-afirmou ela.-Os meus amigos estão sistematicamente a evitar-me.
Mason começou a dizer alguma coisa, mas calou-se quando a porta do gabinete do juiz se abriu.
- Levante-se - disse.
Toda a gente se levantou, quando o Juiz Cortland Albert tomou o seu lugar na mesa e depois fitou o defensor com ar calculista.
- Foi esta a ocasião fixada para a audiência preliminar do processo do Povo contra Virgínia Baxter. Estão prontos para continuarmos?
- A defesa está preparada - respondeu Mason. Jerry Caswell, um dos mais jovens causídicos de acusação, que era frequentemente encarregado de advogar em audiências preliminares e que tentava avidamente conseguir um registo profissional que atraísse a atenção dos seus superiores, levantou-se.
- A acusação - anunciou dramaticamente - está sempre preparada!
Aguardou um momento, depois sentou-se.
- Chame a sua primeira testemunha - mandou o Juiz Albert.
Caswell chamou o bagageiro do aeroporto. -Conhece a acusada?
- Sim, senhor. Já a vi.
- A dezassete deste mês?
- Sim, senhor.
- É um dos bagageiros do aeroporto?
- Sim, senhor.
- E vive de transportar bagagens?
- Sim senhor.
- Então, a acusada, a dezassete deste mês, indicou-lhe uma mala?
- Indicou. Sim, senhor.
- Reconheceria essa mala, se a voltasse a ver?
- Reconhecia. Sim, senhor.
Caswell fez um aceno de cabeça para um polícia, que se adiantou com a mala.
- É esta?
- Sim, senhor, é essa.
- Quero-a marcada com “Prova A do Povo, para identificação” - pediu Caswell.
, -Assim se fará - determinou o juiz.
- E a acusada declarou que essa era a sua mala?
- Sim, senhor.
- Estava presente quando a mala foi aberta?
- Sim, senhor.
- O que estava na mala, quando foi aberta, para além das roupas, se é que lá estava alguma coisa?
- Havia alguns pacotes embrulhados em plásticos.
- Quantos? Sabe?
- Não os contei. Era um bom número.
- É tudo - concluiu Caswell. - Contra-interrogatório.
-A acusada identificou esta mala como sendo a dela? - perguntou Mason.
- Sim, senhor.
- Ela deu-lhe um talão de bagagem?
- Deu. Sim, senhor.
- E o senhor comparou o número do talão que lhe foi entregue pela acusada, com o da mala?
-Sim, senhor.
- Quantos talões lhe deu a acusada?
- Na verdade, deu-me dois.
- Que foi feito do segundo talão?
- Esse era de um saco de viagem. Também lho levantei.
- E foi aberto?
- Sim, senhor.
- Agora, chamando a sua atenção para a mala, exactamente para o momento anterior a ter sido aberta, houve alguma conversa com uma pessoa que se identificou como agente da Polícia?
- Sim, senhor. O agente Jack Andrews mostrou a esta senhora as suas credenciais e perguntou-lhe se aquela era a mala dela.
- Que respondeu ela?
- Respondeu que era.
- E que mais perguntou Andrews?
- Perguntou se podia abri-la.
- Foi só isso a conversa?
- Bem, foi esse o sentido.
- Não lhe estou a perguntar pelo sentido - admoestou Mason. - Estou a falar-lhe da própria conversação. Não lhe terá ele perguntado se se tratava positivamente da sua mala e se podia identificá-la, descrevendo os artigos que estavam lá dentro?
- Sim, senhor, foi isso.
- E então ele pediu-lhe para abrir a mala, para que pudesse inspeccionar esses artigos?
- Sim, senhor.
- E a respeito do saco de viagem? Ele pediu-lhe para o identificar?
- Só lhe perguntou se era dela.
- E que respondeu ela?
- Sim.
- E depois, que aconteceu?
- Ele abriu-a. -É tudo?
- Bem, na realidade, depois levaram-na com eles.
- Agora, chamo a sua atenção para um fotógrafo da edição da tarde do jornal publicado a dezassete, e para este retrato da acusada e da mala.
- Objecto por inquirição incompetente, irrelevante e imaterial e o contra-interrogatório não é conveniente - exclamou Caswell.
- Trata-se de um interrogatório preliminar, com o propósito de tornar clara parte da res gestae - esclareceu Mason.
- Objecção recusada. Quero ouvir a resposta - anunciou o Juiz Albert.
- O senhor estava presente quando este retrato foi feito?
- Sim, senhor.
- Viu o fotógrafo?
- Sim, senhor.
- De onde é que ele veio?
- Estava escondido por trás de uma das colunas.
- E logo que a mala foi aberta, ele apareceu com a sua câmara?
- Sim, senhor. Saltou de trás dessa coluna, com a câmara já preparada, e bum... bum, tirou três fotografias.
- E depois?
- Depois fugiu.
- Com a indulgência do tribunal, - interrompeu Caswell - propomos que seja eliminada dos autos toda a parte respeitante ao fotógrafo. Não somente se trata de um contra-interrogatório impróprio, como também é incompetente, irrelevante e imaterial. Não serve nenhum propósito útil.
- Serve um objectivo muito útil, com a benevolência do tribunal - insistiu Mason. - Demonstra que não se tratou de uma busca casual. Demonstra que o agente tinha planeado a busca e antecipado o que ia encontrar. Tinha dado um palpite a um jornalista amigo e. se o tribunal examinar o artigo deste jornal, concluirá que o jornalista se esforçou por retribuir o favor, já que o agente teve a devida publicidade em troca.
O Juiz Albert sorriu ligeiramente.
- Objecto, meritíssimo. Objecto a tal declaração - disse Caswell.
- Trata-se somente de argumentação - informou Mason.
- Argumentação com que finalidade? - quis saber Caswell.
- Para demonstrar a relevância do testemunho - explicou Mason. - Para demonstrar que o agente agiu por informação específica, informação que lhe foi passada; a defesa propõe que se averigue que informação foi essa e quem lha deu.
Uma vaga de fugaz desânimo surgiu nas feições de Caswell.
O Juiz Albert sorriu e declarou:
- Creio que entendi o objectivo subjacente do contra-interrogatório, logo que o causídico iniciou as perguntas. A proposta de eliminação é recusada.
“Vai prosseguir com o contra-interrogatório, Mr. Mason?”
- Não, Meritíssimo.
- Retoma o interrogatório?
- Não, Meritíssimo - respondeu Jerry Caswell.
- Chame a sua próxima testemunha. Caswell levantou a voz:
- Chamo o Detective Jack Andrews.
- Qual é o seu nome? - perguntou Caswell, depois de Andrews ter prestado juramento.
- Jackman, J-A-C-K-M-A-N, Andrews. Sou geralmente conhecido por Jack Andrews, mas Jackman é o meu nome.
- Chamando a sua atenção para a mala que foi marcada como “Prova A do Povo”, quando foi que a viu pela primeira vez?
- Quando a acusada a apontou ao bagageiro, que acabou de testemunhar.
- E que é que fez?
- Aproximei-me dela e perguntei-lhe se se tratava da sua mala.
- E depois?
- Perguntei-lhe se punha alguma objecção a que eu olhasse para dentro da mala e ela disse que não.
- E que se passou então?
- Abri a mala.
- E que encontrou?
- Encontrei cinquenta pacotes de...
- Só um momento - interrompeu Mason. - Lembro, com a indulgência do tribunal, que esta questão em particular foi já posta e completamente respondida. A testemunha disse que encontrou cinquenta pacotes. Quanto ao conteúdo desses pacotes, trata-se de outro assunto e requer outra pergunta.
- Muito bem - disse Caswell. - Já que o advogado prefere fazer as coisas da forma mais difícil, façamos-lhe a vontade. Então, tomou posse desses pacotes?
- Tomei.
- E tomou medidas para se assegurar do que continham, de que substância se tratava?
- Assim fiz.
- E que substância era?
- Agora, um momento - interpôs Mason. - Neste ponto, apresentamos uma objecção com o fundamento de que é uma pergunta incompetente, irrelevante e imaterial; que não foram evidenciados propósitos adequados; que a propriedade foi apreendida como resultado de uma busca ilegal e de apresamento, e é incompetente como prova neste processo.
“A este respeito, com a benevolência do tribunal, pretendo fazer algumas perguntas.”
- Muito bem, em relação a esta objecção que foi apresentada, pode inquirir a testemunha a título excepcional.
- Estava de posse de um mandato de busca? - perguntou Mason à testemunha.
- Não, senhor, não houve tempo para o obter.
- Limitou-se a ir lá?
- Limitei-me a ir lá, mas chamo a vossa atenção para o facto de que perguntei à acusada “se punha alguma objecção” à minha busca à mala e ela respondeu que estava tudo bem, que continuasse.
- Um momento - disse Mason. - O senhor está relatando a substância da conversa. Está a tirar conclusões sobre aquilo em que ela consistia. Consegue recordar-se das suas palavras exactas?
- Bem, essas foram virtualmente as minhas palavras exactas.
- Disse-lhe que queria investigar a sua mala?
- Sim.
- Um momento - interrompeu Mason. - Está sob juramento. Disse-lhe que queria revistar-lhe a mala, ou perguntou-lhe se podia identificar o respectivo conteúdo?
- Creio que lhe perguntei se se tratava da mala dela e respondeu que sim, e perguntei-lhe se podia identificar o conteúdo, tendo-o ela descrito.
- E então o senhor perguntou-lhe se punha alguma objecção a abrir a mala, “para lhe mostrar o conteúdo que acabara de descrever”. Correcto?
- Sim, senhor.
- Mas não lhe disse que queria “revistá-la”?
- Não.
- Portanto ela não lhe deu permissão para revistar a mala?
- Ela disse que concordava em abri-la.
- Ela deu-lhe autorização para revistar a mala?
- Eu disse-lhe que queria abri-la e ela disse que estava bem.
- Ela deu-lhe autorização para revistar a mala?
- Bem, acho que a palavra “revistar” não foi mencionada.
- Exactamente - disse Mason. - Ora o senhor foi esperá-la ao terminal aéreo, como resultado de uma informação, não foi?
- Bem... fui.
- Quem lhe deu essa informação?
- Não estou em posição de desvendar as nossas fontes de informação.
- Parece-me que, de acordo com os actuais regulamentos forenses, - afirmou Mason - esta testemunha deve demonstrar que tinha bases razoáveis para querer revistar essa mala, e que uma informação anónima, ou dada por alguém que não conhecia, não constituiriam bases para a busca; por conseguinte, a acusada tem o direito de saber as razões pelas quais ele queria revistar-lhe a mala.
O Juiz Albert franziu as sobrancelhas, voltando-se para a testemunha.
- Recusa revelar o nome da pessoa que lhe deu a informação?
- Não foi recebida por mim - informou Andrews. - Chegou aos ouvidos de um dos meus superiores. Foi-me dito que tinha havido uma informação “quente” e que fosse ao aeroporto, para esperar essa personagem e ver se conseguia autorização para dar uma vista de olhos à mala. Se não o conseguisse, deveria mantê-la sob vigilância, até que fosse obtido um mandato.
O Juiz Albert exclamou:
- Trata-se de uma situação interessante. Aparentemente, a acusada não deu autorização a ninguém para lhe “revistar” a mala, mas consentiu em abri-la, com o único propósito de demonstrar a presença de certos artigos. É uma situação peculiar.
- Aí chegarei ainda de outra forma, se o tribunal me autorizar - afirmou Mason. - Quero tornar clara a posição da defesa. Gostaríamos de ver este caso esclarecido nesta audiência preliminar, e não como resultante de qualquer pormenor técnico.
Mason voltou-se para a testemunha:
- Tirou cinquenta pacotes da mala?
- Sim, senhor.
- Pesou-os?
- Pesá-los? Não, senhor. Contámos os pacotes e fizemos o nosso inventário dessa forma, mais do que pelo peso.
- Ora bem, existe um segundo saco, um saco de noite?
- Sim, senhor.
- Pediu à acusada para o identificar?
- Ela afirmou que era seu. Tinha o talão respectivo.
- E pediu-lhe explicações sobre o conteúdo?
- Não.
- Perguntou-lhe se concordava em abri-lo?
- Não.
- Mas abriu-o e revistou-o?
- Sim. Contudo, não encontrámos nada de relevante no saco.
- Pediu-lhe autorização para o abrir?
- Não me parece que o tenha feito.
- Você limitou-se a ir em frente e abri-lo de qualquer forma?
- Isso foi depois que descobri este grande volume de...
Mason levantou a mão:
- Não se preocupe com o que era, por enquanto - advertiu. - Referir-nos-emos a isso, para simplificar, como “cinquenta pacotes”. O que é que fez ao saco de viagem?
- Temo-lo aqui.
- Nesse caso, - prosseguiu Mason - já que não sabe quanto pesavam os cinquenta pacotes, sabe quanto pesava a mala sem os cinquenta pacotes?
- Não sei.
- Sabia que a acusada pagou excesso de peso pelas malas?
- Sim.
- Sugiro, se o tribunal autorizar, que os pesemos agora, - pediu Mason.
- Qual é o objectivo dessa proposta? - inquiriu o Juiz Albert.
- Se - disse Mason - as balanças mostrarem que os dois volumes, no presente momento e sem os pacotes, pesam quarenta e seis libras, então será prova conclusiva de que alguém plantou o que quer que fosse que estava na mala, depois de esta ter deixado a posse da acusada.
- Acho que este ponto foi bem levantado - concordou o Juiz Albert. - Vamos fazer um intervalo de dez minutos. O oficial de diligências trará algumas balanças para o tribunal e pesaremos essas duas malas.
- -Isto não significa necessariamente nada - protestou Caswell. - Só temos a palavra da acusada de que pesavam quarenta e seis libras. Ela esteve em liberdade sob fiança. Não sabemos o que foi retirado dessas malas.
- Não estiveram sob custódia da Polícia? - perguntou o Juiz Albert.
- Sim, mas não foram postas objecções a que a acusada lá fosse buscar roupas.
- Ela foi realmente buscar alguma coisa à mala?
- Não sei, Meritíssimo.
- Se não sabe se ela tirou alguma coisa, também não sabe se outra pessoa lá pôs alguma coisa - resmungou o Juiz Albert. - O tribunal fará um intervalo de dez minutos e traremos para cá balanças.
Mason encaminhou-se vagarosamente para uma cabina telefónica, lá fora, ligou para a sala de imprensa do Quartel da Polícia e informou:
- Vai ter lugar dentro de dez minutos, uma interessante demonstração no tribunal. O Juiz Cortland Albert vai pesar a prova.
- Mas ele não faz sempre? - perguntou um dos jornalistas de brincadeira.
- Não desta maneira - respondeu Mason. - Vai pesá-la com um par de balanças.
- O quê?
- É verdade. Com um par de balanças, dentro de dez minutos. É melhor vocês virem cá acima. Podem apanhar uma história boa.
- Qual é o departamento? - perguntou o jornalista. Mason disse-lhe.
- Vamos aí para cima - disse o homem. - Aguente isso um bocado, se puder. - Não posso - informou Mason. - Logo que o juiz esteja de posse das balanças, vai reconvocar o tribunal. Ele acha que o pode fazer dentro de dez minutos e eu também acho. O oficial de diligências foi arranjar as balanças.
Mason desligou.
Mason, de pé diante de Virgínia Baxter, disse: -Estou a apostar tudo no facto de você estar a falar verdade. Se mentir, vai ter problemas.
- Não estou a mentir, Mr. Mason. Ele afirmou:
- De ordinário, na altura da prisão, haveria uma dramática fotografia na primeira página, mostrando uma ex-secretária forense, contrabandista de droga. A ilibação de acusações durante uma audiência preliminar, daria direito a cinco ou seis linhas metidas algures nas páginas interiores do jornal.
“O que estou a tentar fazer é tornar tudo isto tão dramático, que dará, por si só, uma grande história. Se está a falar verdade, vingaremos a sua honra de tal maneira que qualquer um que leia o artigo original e dele se lembre, lerá este recordando-se de que você foi considerada inocente da acusação.
“Mas, se estiver a mentir, este teste crucificá-la-á.”
- Mr. Mason, estou a contar-lhe toda a verdade. Por que razão alguma vez na verdade eu iria querer negociar em droga, ou, de alguma forma, estar ligada a isso?
Mason resmungou e disse:
- Eu habitualmente não faço a mim próprio todas essas perguntas; limito-me a dizer, “Esta rapariga é minha cliente e, nessa qualidade, tem de se comportar correctamente. Pelo menos, eu vou actuar presumindo que sim.
O oficial de diligências e dois delegados surgiram, empurrando uma balança montada sobre uma plataforma, trazida do edifício da prisão e usada para pesar prisioneiros, na altura em que eram registados.
O funcionário desapareceu no gabinete do Juiz Albert, para dar conta da incumbência.
As portas de mola da sala do tribunal foram empurradas por uma meia dúzia de jornalistas, acompanhados por fotógrafos, ao entrarem.
Um deles aproximou-se de Mason:
- O senhor e a sua cliente importam-se de serem fotografados junto das balanças? - perguntou.
- Eu não me importo - respondeu Mason. - Mas a minha cliente, sim; aliás, parece-me que terão de aguardar até que a sessão seja adiada e, nessa altura, há uma possibilidade de o Juiz Albert posar para vocês.
- Porque é que vocês não o fazem? - perguntou o jornalista.
- Não acho que seja ético - comentou Mason. A face do homem corou de irritação:
- É a habitual “panelinha” - disse ele. - Nomeação de comissões, tentativas de melhores relações públicas, e depois esconder-se por trás de uma falsa frontaria de ética legal.
“Quando é que os advogados aprendem que relações públicas só querem simplesmente dizer tomar o público como sócio e deixar os leitores dos jornais espreitar por cima do ombro, vendo o que vocês estão a fazer?
“Sempre que os advogados são demasiado teimosos ou medrosos para deixar que o público saiba o que estão a fazer, terão umas pobres relações públicas.”
Mason resmungou e exclamou:
- Calma, pá. Eu não o estou a impedir de espreitar por cima do meu ombro. Estou só a evitar que me aponte uma câmara e um flash à cara. Isso é considerado publicidade não ética - não é que eu me rale um chavo com isso, mas posso cair de costas. Contudo, no que diz respeito à história, porque diabo é que você pensa que me dei ao trabalho de levantar a lebre?
O colérico jornalista fitou-o e a sua cara abrandou de expressão.
- Acho que tem razão nesse aspecto, - concordou.- O juiz vai realmente pesar a prova?
- Vai pesar a prova física - assentiu Mason.
- Bolas, que grande história! - comentou o jornalista, no momento em que a porta do gabinete se abria e o oficial de diligências dizia:
- Levantem-se todos.
A audiência ergueu-se e o Juiz Albert entrou na sala, notando, com um ar de divertimento e alguma surpresa, a forma como a sala de audiências, que estivera quase vazia, se tinha agora enchido quase até ao limite da sua capacidade, com espectadores dos vários departamentos locais, jornalistas e fotógrafos.
- O Povo contra Virgínia Baxter - bradou. - Estamos prontos para continuar?
- Preparado, Meritíssimo - declarou Caswell.
- A defesa está preparada - anunciou Mason.
O Detective Jack Andrews estava no lugar das testemunhas e a prova prestes a ser pesada:
- Tem as balanças, Sr. Oficial de Diligências?
- Sim, Meritíssimo.
- Verifique-as, se faz favor, e veja se estão bem equilibradas. Ponha-as a zero e observe o ponteiro.
O oficial de diligências verificou as balanças.
- Muito bem, - comandou o Juiz Albert - agora, tragam a mala e o saco e ponham-nos no prato da balança.
O empregado trouxe os dois volumes que tinham sido marcados para identificação, colocou-os na balança e ajustou cuidadosamente o ponteiro até estar equilibrado, depois recuou.
- Exactamente quarenta e seis libras e um quarto, Meritíssimo - declarou o oficial de diligências.
Houve um momento de tenso e dramático silêncio e alguém aplaudiu.
O Juiz Albert franziu as sobrancelhas e avisou:
- Não toleraremos manifestações, por favor. Agora, será que a defesa tem o bilhete de avião e o recibo do excesso de peso?
- Temos, sim, Meritíssimo - respondeu Mason, entregando-os ao Juiz.
Este fez sinal ao Acusador:
- Quanto é que o material pesou fora do saco?
- Não sei, Meritíssimo. Como a testemunha Andrews declarou, foi contado por pacotes e não pesado.
- Muito bem, vamos pesá-lo - disse o Juiz Albert. - Tem-no aqui no tribunal?
- Sim, Meritíssimo.
O oficial de diligências começou a remover a bagagem da balança. Mason interveio:
- Com a autorização do tribunal, eu preferiria que esses artigos fossem simplesmente colocados em cima dos volumes, enquanto estes estão sobre a balança e que víssemos então quanto é que eles aumentam ao peso.
- De acordo - determinou o Juiz Albert. - É tão fácil de uma forma como da outra, talvez um pouco mais dramática e, por conseguinte, um tanto mais convincente, fazer as coisas como sugere o Advogado de Defesa.
O detective Andrews apresentou um saco contendo [. os pacotes de celofane e, tirando-os dele, pô-los em cima das malas.
O fiel da balança vacilou e depois subiu. O oficial de diligências ajustou o contrapeso.
- Uma libra e três quartos, Meritíssimo - anunciou. O Juiz Alberto olhou de relance o Acusador, depois Jack Andrews:
- Terá a acusação alguma explicação para isto? - : perguntou.
- Não, Meritíssimo - respondeu Jerry Caswell.- Achámos que, tendo o material sido encontrado na mala da acusada, ela seria responsável por ele. Afinal, nada havia que a tivesse impedido de acrescentar esse material, depois de a bagagem ter sido pesada. Podia tê-lo feito tão facilmente como qualquer pessoa.
- Não tão facilmente - aduziu o Juiz Albert.-
Quando as malas são pesadas ao balcão da companhia de aviação, são postas na balança na mesma altura em que o passageiro apresenta o bilhete e o funcionário leva-as então e entrega-as para embarque.
“No que diz respeito a este tribunal, a prova é convincente e o caso está encerrado.”
O Juiz Albert levantou-se, olhou para a sala, onde ainda estavam a entrar pessoas pelas portas e declarou, com um ligeiro sorriso: - Sessão adiada. Um dos jornalistas correu para a frente:
- Meritíssimo, concordaria em deixar-se fotografar junto da balança? Nós queremos obter uma história e um retrato, com algum interesse humano.
O Juiz Albert hesitou.
- Não há objecções da parte da defesa - anunciou Mason em voz alta.
O Juiz Albert voltou-se para Jerry Caswell. Este evitou-lhe o olhar. O Juiz sorriu:
- Bom, já que quer obter interesse humano, será melhor pedir à acusada para se pôr ao meu lado e apontar a sua bagagem, que foi pesada.
Os jornalistas e fotógrafos acumularam-se à volta da balança.
- E façam saber que estas fotografias foram tiradas depois de a sessão ter sido adiada - avisou o Juiz Albert. - Eu sempre fui tolerante a respeito de publicidade fotográfica no meu tribunal, embora saiba que há juizes que lhe põem objecções. Contudo, não ignoro por completo que, quando a acusada foi presa, deram à história uma quantidade de publicidade e parece-me justo que a sua ilibação seja também acompanhada por uma razoável divulgação.
O Juiz Albert tomou posição em frente à balança e acenou para Virgínia se aproximar e colocar ao seu lado.
Mason conduziu a nervosa acusada para uma posição ao lado dele.
- Venha cá e fique na fotografia, Mason-, convidou o Juiz.
- Acho melhor não ficar - objectou Mason. - Isso fá-la-ia parecer artificial e preparada e pode não ser do melhor gosto, em termos de normas éticas legais; mas a sua fotografia a “pesar a prova” atrairá muita atenção.
O Juiz Albert concordou com um aceno de cabeça e sugeriu a Virginia:
- Agora, Miss Baxter, se olhar aqui para o ponteiro de balança, eu inclino-me e fico a ajustá-lo. Não, não, não olhe para a câmara, olhe para a balança. Volte-se um pouco, se quiser, para apresentar o seu melhor ângulo à máquina.
Pôs-lhe uma mão no ombro, baixou-se e moveu o contrapeso da balança para trás e para a frente, e os satisfeitos fotógrafos fizeram explodir lâmpadas de flash, em rápida cadência.
Endireitou-se, fitou Mason, depois pegou no Delegado do Procurador por um braço e levou os dois advogados para fora do alcance dos ouvidos dos jornalistas.
- Há algo de muito equívoco neste caso - disse-lhes. - Eu sugeriria, Mr. Caswell, que verificasse cuidadosamente a pessoa que lhe deu essa informação, ou melhor, desinformação, a qual resultou na revista dessa mala.
O Acusador disse calorosamente:
- A pessoa sempre colaborou connosco; as suas informações têm-se mostrado dignas de confiança.
- Bem, neste caso não foram - contrapôs o Juiz.
- Não tenho a certeza disso - retorquiu Caswell. - Apesar de tudo, não é inteiramente impossível que os volumes possam ter sido mexidos.
- Acho que foram - insistiu o Juiz num tom cortante-, mas parece-me que a mexida se deu depois de a mala ter sido apresentada por Miss Baxter e antes de ter sido retirada da plataforma móvel.
“Aliás, este tribunal não foi criado ontem e, depois de uma pessoa ver acusados entrar e sair, dia si, dia não, tem a possibilidade de aprender alguma coisa sobre a natureza humana. Esta jovem não é uma negociante de droga.”
- Depois de se ver Perry Mason encenar grandes actos, uns atrás dos outros - acrescentou Caswell-, ter-se-á aprendido algo sobre teatro. A cena em que o tribunal acaba de participar, vai dar auxílio e conforto a muitas pessoas que não desejam que a Lei seja positivamente reforçada.
- Então o esforço da Lei terá de se tomar mais eficiente - grunhiu o Juiz Albert. - Não se viu nada em contrário a convidar fotógrafos para retratarem esta rapariga, quando a sua mala foi aberta, e só Deus sabe o mal que, nessa altura lhe foi causado. Eu só espero que haja suficiente publicidade relacionada com os acontecimentos da última hora, para apagar a propaganda desfavorável que lhe foi dada, na altura da prisão.
- Bom, não se preocupe - exclamou amargamente Caswell -, esta fotografia vai ser transmitida pelas agências e fará parte de cerca de um terço dos jornais dos Estados Unidos.
- Esperemos que sim - reafirmou o Juiz Albert, voltando-se sobre os calcanhares e dirigindo-se para o gabinete.
Caswell afastou-se, sem uma palavra para Mason. Este voltou para junto de Virgínia Baxter:
- Quer ir até à sala das testemunhas, onde nos poderemos sentar e conversar por um minuto? - pediu ele.
- Tudo o que quiser - concordou ela. - Tudo o que quiser, Mr. Mason.
- Só lhe quero dar uma palavra - disse Mason. Conduziu-a para a sala das testemunhas, deu-lhe uma cadeira, sentou-se em frente dela e perguntou:
- Agora diga-me, quem é que lhe teria arranjado isto?
-Quer dizer, tentar implicar-me numa acusação de posse de narcóticos?
- Sim.
- Meu Deus, não sei.
- O seu marido?
- Ficou muito aborrecido.
- Porquê?
- Eu não lhe concederia o divórcio.
- Porque não?
- Ele foi um traiçoeiro, um aldrabão e um vigarista. Andava com outra mulher, enquanto eu estoirava a cabeça tentando manter-nos.
“Chegou mesmo a levantar dinheiro da nossa conta comum, para ajudar a financiar a compra de um carro para ela; depois tiveram o rematado descaramento de me dizer que as pessoas não conseguem controlar os seus sentimentos, que um homem se apaixona e deixa de amar e que não há nada a fazer a esse respeito.”
- Há quanto tempo é que isso se passou?
- Há cerca de um ano.
- E não lhe deu a liberdade?
- Não.
- Ainda estão casados?
- Sim.
- Há quanto tempo é que o viu pela última vez?
- Não o voltei a ver desde o rompimento, mas ele telefonou-me uma ou duas vezes, perguntando-me se tinha mudado de ideias.
- E porque não mudou? - quis saber Mason.
- Porque não os vou deixar levar-me à certa dessa maneira.
Mason disse:
- Muito bem, você vai continuar casada com ele. Qual é a vantagem que daí tira?
- Nenhuma, mas impede-os de abusarem de mim.
- Por outras palavras, qualquer coisa que os prejudique, é para si vantajoso. É isso que sente?
- Bem, mais ou menos isso. Mason olhou-a firmemente:
- É essa a forma como quer sentir?
- Eu... eu só queria era arrancar-lhe os olhos. Queria magoá-la de todas as formas que pudesse.
Mason abanou a cabeça:
- Isso não lhe traz lucros, Virgínia. Telefone-lhe e diga-lhe que decidiu dar-lhe o divórcio, por comum acordo - não há nada na sua religião contra o divórcio, ou há?
- Não.
- Há filhos?
- Não.
Mason abriu os braços:
- Aí tem - disse. - Você também tem um futuro para viver, sabe.
- Eu... eu...
- Quer dizer que encontrou alguém em quem está interessada? - perguntou o advogado.
- Eu... eu tenho encontrado muita gente e, na maioria dos casos, tenho sido bastante desagradável para os homens.
- Mas, recentemente, encontrou um que lhe parece diferente?
Ela riu nervosamente:
- Agora tem de me contra-interrogar? - indagou. Mason respondeu:
- Quando se cometeu um erro na vida, a melhor coisa a fazer é apagá-lo da lista e atirar o falhanço para trás das costas.
“No entanto, o que eu queria conversar consigo é o facto de alguém estar a tentar colocá-la numa posição em que possa ser desacreditada.
“Não sei quem é, mas trata-se de pessoa um tanto ingénua e, aparentemente, com algumas ligações no mundo dos marginais.
“Essa pessoa atacou uma vez. Você fugiu da armadilha, mas podem preparar-lhe outras e essa pessoa pode atacar de novo. Não gosto disso e, se existe alguma possibilidade de se tratar do seu marido, gostaria de o eliminar do quadro.
“Podemos, é claro, levar em consideração a mulher por quem ele se apaixonou e que, suponho eu, ainda é viva.
“Conhece-a? Sabe alguma coisa do seu passado?”
- Nada. Sei o nome dela e é quase tudo o que sei. O meu marido teve muito cuidado em que eu nada soubesse sobre ela.
- Muito bem - prosseguiu Mason-, esta é a minha sugestão. Requeira um divórcio com base em abandono ou crueldade. Deixe o nome dela de fora, avance com o processo e recupere a liberdade; e se alguma coisa fora do comum acontecer durante os próximos meses, algo suspeito, alguns telefonemas anónimos, qualquer coisa que pareça estranha, telefone-me imediatamente.
Deu-lhe uma pancadinha no ombro e disse:
- Agora está livre.
- Mas o que é que faço quanto aos seus honorários, Mr. Mason?
Ela respondeu:
- Mande-me um cheque de cem dólares, quando os tiver e achar conveniente, mas não se preocupe com isso.
Na noite anterior tinha havido escassez de notícias e, em resultado disso, a história da “pesagem” da prova atingiu considerável proeminência.
Virgínia leu os jornais com um crescente sentimento de alívio. Os jornalistas tinham intuído que ela fora atraiçoada e feito o seu melhor para garantir que a sua vingança assumisse proporções de grandes títulos.
Os fotógrafos dos jornais, profissionais competentes, fizeram um excelente trabalho com as suas câmaras, enquanto o Juiz Albert, encostado à balança, colocava uma firme e paternal mão sobre o seu ombro.
Com verdade fora afirmado que uma fotografia diz mais do que dez mil palavras e, neste caso, a atitude do jurista não deixara dúvidas sobre a sua fé na inocência de Virgínia Baxter.
Os títulos de um dos jornais diziam:
“Antiga Secretária Forence Vingada no Caso das Drogas.”
Um artigo dava muita importância ao facto de ela ter sido anteriormente empregada num escritório de advogados. Embora esse escritório tivesse, na realidade, efectuado pouco trabalho de barra, especializando-se em assuntos de propriedades, o jornalista, assumindo liberdade poética, escrevera que, enquanto Virgínia Baxter tinha trabalhado em assuntos criminais com Delano Bannock na defesa, provavelmente nunca lhe ocorrera, nem mesmo nos seus sonhos mais disparatados, que chegaria a altura de ela própria comparecer diante da barra da justiça, acusada de um crime sério.
Foi de um artigo de outro jornal que Virgínia recebeu um choque.
O jornalista tinha feito algum trabalho de pesquisa e o artigo dizia que Colton Baxter, marido separado de Virgínia Baxter, era, por coincidência, empregado da própria companhia de aviação que remetera a mala para o destino. Não estava, de momento, disponível para comentar o assunto.
Virgínia leu isso duas vezes, depois pegou impulsivamente no telefone e ligou para o escritório de Mason. Subitamente, dando-se conta das horas, esteve a ponto de desligar quando, para sua surpresa, ouviu a voz de Della Street em linha.
- Oh, desculpe. Nem pensei como era tarde. Daqui Virgínia Baxter. Li uma coisa no jornal que me chocou... Nem me lembrei que passava tanto das cinco.
- Quer falar com Mr. Mason? - perguntou Della Street. - Só um momento que já vou ligar. Acho que ele também quer falar consigo.
Um momento mais tarde, a voz de Mason dizia:
- Olá, Virgínia. Suponho que leu os jornais e soube que o seu marido foi localizado por um dos jornalistas.
- Sim, sim, Mr. Mason. Isto torna tudo tão claro como o dia. Não está a ver o que sucedeu? O Colton plantou aquele material na minha mala e depois avisou os jornais. Se eu tivesse sido condenada, ele arranjaria bases perfeitas para o divórcio. Teria afirmado que eu estivera dominada pela droga, durante todo o tempo em que estivemos casados; que negociava em droga e que me tinha deixado por causa disso.
- E então - perguntou Mason-, o que quer fazer?
- Quero mandá-lo prender.
- Não o pode mandar prender sem provas - esclareceu Mason. - Tudo o que tem, para já, são suposições.
- Quanto é que custaria obter provas?
- Você teria que confiar o assunto a um detective privado, que lhe levaria, provavelmente, um mínimo de cinquenta dólares por dia mais as despesas, e as hipóteses seriam de que ele não conseguisse nada, a não ser bases para mais suposições.
- Eu tenho algum dinheiro. Eu vou... vou gastá-lo para o apanhar...
- Através de mim, não o faz - interrompeu Mason. - Na sua qualidade de minha cliente, não a deixaria gastar essa quantidade de dinheiro para tal fim. Mesmo que arranjasse algumas provas, só a levariam exactamente ao ponto em que está agora, com boas bases para o divórcio.
“Porque é que não se limita a lavar as mãos a respeito desse homem; livre-se dele, dissolva o casamento e comece de novo.
“Se tivesse alguns motivos de carácter religioso para não se divorciar, eu provavelmente tratava das coisas de outra forma, mas você vai ter que se divorciar mais cedo ou mais tarde e...”
- Não quero dar-lhe essa satisfação.
- Porquê?
- É tudo o que ele sempre desejou, um divórcio. Mason redarguiu:
- Não está a fazer a si própria nem um átomo de bem. Tudo o que consegue é fazer algum mal, real ou imaginário, ao seu marido. Tanto quanto possa saber, poderá estar a fazer o jogo dele, agora mesmo.
- O que quer dizer com isso?
- Ele anda por aí com essa outra mulher - continuou Mason. - Continua a dizer-lhe que, se alguma vez conseguisse o divórcio, casaria com ela, mas que você não lhe dá o divórcio. A mulher sabe que isso é verdade.
“Mas suponha que lho dá, então ele fica numa posição em que, não somente está livre para casar com a mulher, mas também o terá de fazer para cumprir as suas promessas. Pode ser que ele não queira realmente casar-se com ela.
“Pode muito bem ser que o seu marido esteja precisamente na situação em que quer estar.”
- Nunca tinha pensado no assunto dessa maneira - disse ela, lentamente, acrescentando de súbito.- Nesse caso, porque é que ele plantou a droga na minha mala?
- Se o fez, foi provavelmente porque a quis desacreditar bastante-, explicou Mason. - O seu matrimónio é um dos que terminou em ódio. Faria melhor em deixar de olhar por cima do ombro, dê uma volta e encare o futuro.
- Bom, eu... eu vou reflectir nisso durante a noite e dir-lhe-ei de manhã.
- Faça isso - aconselhou Mason.
- Desculpe tê-lo incomodado a esta hora.
- De maneira nenhuma. Estávamos a trabalhar nuns documentos, aqui no escritório e, depois de eu ter lido aquela declaração no jornal, pensei que você fosse ligar para cá, por isso disse à Della para deixar uma linha exterior ligada.
“Agora está ilibada, deixe de se preocupar.”
- Muito obrigada - agradeceu ela, desligando. Mal o aparelho dera um estalido, quando se ouviu o besouro da porta do apartamento dela.
Virgínia atravessou a sala e abriu a porta algumas polegadas.
O homem de pé no corredor andava pelos quarenta e cinco anos de idade, tinha cabelo ondulado escuro, um bigode fino e intensos olhos cor de obsidiana.
- A senhora é Mrs. Baxter? - perguntou.
- Sim.
- Lamento incomodá-la a esta hora, Mrs. Baxter. Calculo como se deve sentir, mas venho procurá-la sobre um assunto de alguma importância.
- De que se trata? - perguntou ela, mantendo ainda o cadeado na porta.
- O meu nome - informou - é George Menard. Li a seu respeito no jornal. Não me agrada trazer à baila um assunto desagradável, mas de certeza que sabe que as notícias do seu julgamento vieram em todos os jornais.
-E então? - indagou ela.
- Soube pelos jornais que foi secretária de Delano Bannock advogado, enquanto viveu.
-É verdade.
- Mr. Bannock morreu há vários anos, creio eu.
- Também é verdade.
- Eu estou a tentar descobrir o que aconteceu aos seus arquivos - disse o homem.
- Porquê?
- Francamente, eu quero localizar um papel.
- Que tipo de papel?
- Uma cópia a papel químico de um contrato que Mr. Bannock elaborou para mim. Perdi o original e não quero que a outra parte envolvida saiba dele. Há certas coisas que tenho de fazer ao abrigo desse contrato e, enquanto eu acho que me lembro delas, seria de grande ajuda se conseguisse encontrar uma cópia a papel químico.
Ela abanou a cabeça:
- Receio não o poder ajudar.
- Era empregada dele quando morreu?
- Era.
- Que é que aconteceu à mobília do escritório e tudo isso?
- Porquê? O escritório foi encerrado. Não havia motivos para as instalações continuarem a pagar renda.
- Mas que aconteceu com a mobília do escritório?
- Acho que foi vendida. O homem resmungou:
- A quem é que foi vendida? Sabe quem é que comprou as escrivaninhas, arquivos e cadeiras?
- Não, foram vendidas a uma firma de móveis de escritório em segunda mão. Eu fiquei com a máquina de escrever que costumava usar. Tudo o mais foi vendido.
- Armários de arquivo e tudo o resto?
- Tudo.
- Que aconteceu aos papéis antigos?
- Foram destruídos. Não, um momento, um momento. Lembro-me de ter falado com o irmão dele e de lhe dizer que esses papéis deviam ser conservados. Recorda-me agora que quis que ele conservasse as pastas de arquivo intactas.
- O irmão?
- É isso. Julian Bannock. Era o único herdeiro. Não havia mais parentes. As instalações eram pequenas.
“Repare, Delano Bannock era um desses advogados devotados à profissão, mais interessados em exercê-la do que em receber os honorários. Trabalhava literalmente dia e noite. Não tinha esposa nem família e passava quatro ou cinco noites por semana no escritório, a trabalhar até às dez ou onze horas da noite. Mas a ideia moderna de controlar o tempo hora a hora nunca lhe ocorreu. Dedicaria horas e horas a um pequeno contrato que tivesse um pormenor que lhe interessasse e depois só cobraria encargos moderados. O resultado foi que não deixou grande coisa.”
- E os honorários que eram devidos ao tempo da sua morte?
- Não sei nada disso, mas é bem conhecido que as heranças de profissionais liberais põem muitos desses problemas relativos a débitos.
- E onde é que posso encontrar Julian Bannok?
- Não sei, - respondeu ela.
- Sabe onde é que ele vivia?
- Algures em San Joaquin Valley, suponho.
- Poderia descobrir onde?
- Talvez pudesse.
Virgínia Baxter tinha estado a aguentar o homem e, finalmente, desprendeu o cadeado da porta:
- Não quer entrar? - convidou. - Acho que posso consultar um velho diário. Há anos que escrevo diários... - riu nervosamente - não do tipo romântico, compreenda, mas diários profissionais que contêm comentários sobre quando fui trabalhar num determinado local e durante quanto tempo lá trabalhei, acontecimentos do dia, quando fui aumentada e coisas desse género.
“Lembra-me que fiz alguns registos na ocasião da morte de Mr. Bannock. - Oh, espere aí, já me recordo, Julian Bannock vivia próximo de Bakersfield.”
- Sabe se ainda lá vive?
- Não, não sei. Lembro-me de que veio cá ao volante de uma carrinha. Os arquivos foram carregados para dentro dela. Recordo-me de que, após terem sido carregados, senti que a minha responsabilidade tinha terminado. Entreguei as chaves ao irmão.
- Bakersfield? - indagou Menard.
- É isso. Agora, se me puder dizer alguma coisa sobre o tal contrato, talvez me lembre dele. Mr. Bannock tinha um escritório de uma só pessoa e eu tratava de toda a correspondência.
- Era um contrato com um homem chamado Smith - respondeu Menard.
- Qual a sua natureza?
- Oh, compreendia uma quantidade de coisas complicadas, acerca da venda de uma loja de máquinas. Está a ver, eu sou uma parte interessada, ou era, em maquinaria e, por algum tempo, pensei em dedicar-me ao comércio de máquinas mas... bem é uma longa história.
- Que é que faz agora? - perguntou ela. Os olhos de Menard alteraram-se:
- Sou uma espécie de profissional livre - respondeu -, compra e venda.
- Propriedades - quis ela saber.
- Oh, qualquer coisa - retorquiu.
- Vive cá na cidade?
Ele riu-se, obviamente relaxado:
- Estou sempre a andar de um lado para o outro, está a ver como é, quando uma pessoa anda à procura de pechinchas.
Virgínia disse:
- Compreendo. Bem, lamento não o poder ajudar mais de que já fiz.
Levantou-se e encaminhou-se para a porta. Menard aceitou a despedida.
- Muito obrigado - disse ele, saindo.
Virgínia viu-o ir para o elevador e então, quando a porta deste se fechou, dirigiu-se para as escadas e correu por elas abaixo.
Chegou a tempo de o ver saltar para um carro de cor escura, que estivera estacionado na única vaga à esquina, um espaço directamente em frente de um hidrante.
Tentou ver a matrícula mas não conseguiu, por causa da velocidade com que o condutor arrancou e se meteu no trânsito.
Os seus olhos focaram-se distintamente num zero, como primeiro número e teve, de algum modo, uma vaga impressão de que o último algarismo da matrícula era um dois.
O carro em que pensou era um Oldemobile, talvez com dois a quatro anos de idade, mas também não tinha a certeza disso. O homem acelerou o carro e afastou-se rapidamente.
Virgínia voltou para o seu apartamento, foi para o quarto de dormir, pegou numa mala de mão e começou a vasculhar entre os seus diários. Encontrou o endereço de Julian Bannock em Bakersfield, um apartado R. F. D. e uma anotação entre parênteses: ”sem telefone”.
Nessa altura o seu aparelho tocou. Uma mulher disse:
- Encontrei o seu nome na lista. Quis telefonar-lhe para lhe dizer como fiquei contente por ter-se visto livre daquela horrível armadilha.
- Muito obrigada - agradeceu Virgínia.
- Não me conhece - prosseguiu a mulher-, mas quis que soubesse como eu sentia.
No decorrer da hora seguinte, houve mais cinco telefonemas, incluindo um de um homem que estava obviamente bêbedo e seguramente ofensivo, e outra de uma mulher que buscava uma pessoa que consentisse em ouvir o seu caso.
: Finalmente, Virgínia ignorou o telefone, que continuava a tocar, até que saiu para jantar.
Na manhã seguinte, pediu à Companhia dos Telefones para lhe alterar o número, dando-lhe um que não figurasse na lista.
Virgínia chegou à conclusão de que não conseguia tirar inteiramente do espírito o assunto daqueles papéis.
Afinal, Julian Bannock fora um agricultor. Ele e o irmão não haviam sido particularmente unidos, e Julian somente estivera interessado em liquidar tudo da herança e livrar-se do assunto tão rapidamente quanto possível.
Virgínia tinha consciência de que houvera muitos importantes elementos de prova e contratos mas, desde que entregara a chave a Julian Bannock, não prestara mais atenção à herança.
Mas a lembrança daqueles arquivos deixava-a vagamente desconfortável, e houvera uma nota falsa, no que dizia respeito a George Menard. Tinha-lhe parecido bem, até que o interrogara sobre si próprio, então tornara-se de súbito evasivo. Ela tinha a certeza de que ele estivera a mentir sobre o seu próprio passado.
Afinal, ela sentia-se algo responsável por aqueles arquivos.
Ligou para as Informações, tentando localizar Julian Bannock, em Bakersfield e foi informada que ele ainda não tinha telefone.
Tentou esquecer-se disso e não conseguiu. Supunha que Menard estava a preparar alguma.
Queria descobrir o número de matrícula do seu carro, mas não sabia como o conseguir sem consultar Perry Mason e achava que já o tinha incomodado demasiado.
Decidiu ir de carro até Bakersfield e falar do assunto com Julian Bannock.
Partiu ao amanhecer, fez perguntas em Bakersfield e descobriu que Julian Bannock vivia a cerca de dez milhas fora da cidade.
Localizou a sua caixa do correio, conduziu durante trezentas jardas, chegou a um pátio com um estábulo, vários alpendres, uma casa, árvores de sombra e uma variedade de alfaias agrícolas e tractores, arados, ancinhos para feno, serras - armazenados mais ou menos ao acaso no pátio.
Um cão correu a rosnar para o carro e Julian Bannock surgiu.
Apesar de só o ter visto com trajos de luto, reconheceu-o instantaneamente de fato-macaco e camisa de trabalho.
- Olá! - saudou ele.
- Olá, Mr. Bannock. Lembra-se de mim? Sou Virgínia Baxter. Fui secretária do seu irmão.
- Oh, sim - disse ele, com voz cordial. - Com certeza. Eu sabia que já antes a tinha visto. Bem, entre. Vamos arranjar um pequeno-almoço, ovos das nossas próprias capoeiras, e talvez queira algum pão caseiro e conservas - de frutos vindos directamente das nossas árvores.
- Seria maravilhoso - concordou ela-, mas eu queria era falar consigo sobre alguns assuntos.
- Quais?
- Aqueles papéis que trouxe - explicou. - Aquelas caixas de arquivo. Onde é que as tem?
Ele sorriu-lhe:
- Oh, vendi-as já há algum tempo.
- Não os arquivos?
- Bem, eu disse ao tipo para levar tudo. O material estava a ocupar uma data de espaço por aqui e... você sabe? Os ratos estavam a chegar-lhe. Tinham alcançado os papéis e começado a roer para fazerem ninhos.
- Mas o que é que realmente aconteceu aos papéis? Será que o homem que comprou as caixas...
- Oh, os papéis! Não, estão aqui. O tipo que comprou as pastas não os quis levar. Recusou os papéis. Disse que faziam os arquivos demasiado pesados de transportar.
- E você queimou-os?
- Não, atei-os em maços, com cordas. Acho que os ratos têm dificuldade em lá entrar - você sabe como são as coisas numa fazenda, tem-se um estábulo e os ratos vivem lá.
“Nós agora temos um casal de gatos que estão a manter bastante bem as coisas em ordem, mas...”
- Importa-se que eu dê uma olhadela? - pediu ela.
- Gostava de procurar alguns papéis velhos.
- É engraçado - disse ele - que se preocupe com eles. Esteve cá ontem um tipo.
- Esteve?
- É verdade.
- Um homem com cerca de quarenta e cinco anos?
- indagou. - Com olhos negros muito intensos e um pequeno bigode hirsuto? Ele queria...
Julian Bannock interrompeu-a abanando a cabeça:
- Não - disse -, este era um indivíduo de cerca de cinquenta e cinco anos, mas tinha uma espécie de olhos azulados e de tez brilhante.
“O nome do tipo era Smith. Queria procurar um contrato ou qualquer outra coisa.” -E o que é que você fez?
- Disse-lhe onde é que estão os papéis, disse-lhe que procurasse e que lhe daria uma ajuda, se quisesse. Eu tinha que fazer e ele parecia um fulano simpático.
- Encontrou o que procurava?
Julian Bannock negou com um aceno de cabeça:
- Disse que as coisas estavam numa confusão grande de mais para ele desembaraçar. Afirmou que não percebia nada de arquivos. Se soubesse o código do sistema de arquivos, pensava que talvez pudesse descobrir o papel que queria.
“Perguntou-me se sabia qualquer coisa sobre a forma como os arquivos estavam classificados e se lhe dizia. Não lhe disse.”
- Foi tudo ordenado por números - informou Vir-ginia. - Classificação geral. Por exemplo, números um a mil era a correspondência pessoal. Números mil a três mil eram os contratos. Três mil a cinco mil, legalizações de testamentos. Cinco mil a seis mil, testamentos. Seis mil a oito mil, acordos. Oito mil a dez mil, transacções de propriedades.
- Bem, eu não tirei nada da ordem. Pus todo o material em pacotes, e atei-os com cordas.
- Podemos ir lá ver? - pediu Virgínia.
- Como não? Com certeza.
Julian Bannock abriu caminho para a relativa frescura do celeiro, cheirando claramente a feno.
- Costumo ter este celeiro bastante cheio de feno - explicou ele - e tínhamos um grande problema de armazenagem. Ultimamente, tenho-o vendido, não preciso de muito para forragem. Costumava negociar um pouco em produtos lácteos, mas eles dão tantas dores de cabeça que o pequeno produtor se vê num grande problema; demasiado trabalho; demasiados regulamentos.
“Os produtores realmente grandes tratam de tudo com ordenhadoras mecânicas, máquinas de alimentação e toda a espécie de coisas - eu também não dava grande coisa por esses arquivos. Podia tê-los mantido em caixas, suponho, mas não me passava pela cabeça o que é que alguém poderia querer fazer com aquilo. Ainda cheguei a pensar em trazê-los cá para fora e queimá-los, mas você falara tanto a respeito dos arquivos, que achei que os devia manter.”
- Bem, é claro que isso foi há algum tempo - disse Virgínia. - À medida que o tempo passa, eles deixam de ter tanta importância.
- Ora bem, cá estamos, por aqui. Isto era um alpendre para tractor, mas eu arranjei espaço para os pôr... Olá, o que é isto?
Bannock parou surpreso, diante dos detritos de papéis espalhados pelo chão todo.- Olhe como esse tipo deixou isto numa confusão - exclamou irado.
Virgínia olhou com desânimo as pilhas de papel.
O homem que lá estivera tinha, obviamente, cortado as cordas que prendiam os papéis com diferentes classificações e vasculhara entre tudo, à procura do papel que queria, atirando os outros a trouxe-mouxe para um monte que se espalhara por uma área de uns seis pés de diâmetro de base e quatro de altura.
Olhando para as cópias a papel químico agora roídas nos cantos pelos ratos, como quem escarnecia, pensando no cuidado que tivera com aqueles papéis quando os dactilografara, teve vontade de gritar.
Julian Bannock, paralisado de cólera, mas de temperamento exaltado, bradou:
- Bolas, raios, eu bem gostava de dizer umas coisas a esse fulano Smith!
Inclinou-se e pegou num pedaço de corda:
- Cortada com limpeza com uma navalha afiada - disse. - Alguém devia apanhar aquele homem e ensinar-lhe maneiras.
Virgínia, contemplando a pilha de papéis, comentou:
- Devia estar com uma pressa terrível. Estava à procura de alguma coisa e não teve tempo para desatar a corda, procurar em cada pacote e voltar a atá-los, de novo. Limitou-se a pegar na faca, cortou a corda, procurou apressadamente o que queria; depois, como o não encontrasse, atirou com o resto dos papéis para um monte.
Julian disse pensativamente:
- Você pode, se quiser, procurar aí. Eu fico a dar pontapés a mim mesmo por não o ter vigiado.
- Há quanto tempo é que ele cá esteve? - perguntou Virginia.
- Bom, isso não lhe posso dizer. Deixei-o no celeiro, mostrei-lhe onde estavam as coisas e fui-me embora.
Virginia chegou a uma súbita decisão:
- Onde está o telefone mais próximo?-perguntou.
- Bem, um dos vizinhos tem e é pessoa realmente simpática - afirmou Julian. - Vive a cerca de duas milhas, pela estrada abaixo.
- Eu queria fazer uma chamada interurbana - esclareceu ela - e... acho que é melhor ninguém ouvir o que vou dizer. Vou regressar a Bakersfield e fazer a chamada de uma cabina de lá. Voltarei, daqui a bocado, com algumas caixas de cartão grandes. Vou meter esses papéis dentro das caixas e depois vamos metê-los nalgum sítio onde estejam em segurança.
- Okay - concordou ele. - Eu ajudo-a nisso. Acha que deva atá-los agora e...
- Não - ordenou ela-, ainda se conservam um pouco em ordem. Bastantes das classificações estão ainda separadas. Algures, deve haver um livro de registo que tem os números e o índice. Isto é, havia.
“Se não se importa, gostava de parar num dos supermercados e comprar umas caixas de cartão grandes; depois regresso e tentarei pôr este material em ordem, de forma que faça algum sentido.”
- Bem - concordou-, se o quer fazer, estou de acordo, mas é muito trabalho que vai ter e aqui está tudo empoeirado. Você está tão bem vestida que...
- Não se preocupe - interpôs. - Vou arranjar umas calças de ganga e uma blusa, na cidade. Se me deixar, mudarei de roupa quando voltar e meto-me ao trabalho.
- Tudo bem - aquiesceu-, arranjamos-lhe um sítio para se mudar lá em casa, e pode tomar banho quando acabar. Isto vai ficar muito cheio de pó.
- Bem sei - concordou ela, rindo-se - mas nós, agricultores, temos de nos acostumar a alguma poeira, aqui e ali.
Ele sorriu-lhe, ergueu a mão e apertou a dela.
- Você é porreira - declarou.
Virgínia voltou ao seu carro, conduziu até Bakersfield e telefonou a Perry Mason, mesmo no momento em que o advogado chegava ao escritório.
- Queria que lhe contasse qualquer coisa de fora do vulgar que acontecesse - disse - e isto é bastante invulgar, mas eu não lhe consigo compreender o significado.
- Continue - instou Mason-, diga-me de que se trata.
- O senhor vai provavelmente rir-se e achar que a minha imaginação está a exceder-se. Talvez não haja nenhuma forma no mundo de o ligar com o que quer que seja, mas... Bem, aqui vai o que sucedeu.
Contou-lhe sobre Bannock, os papéis, sobre o homem que a tinha visitado, o seu aspecto e uma descrição geral, mas vaga do automóvel em que o vira afastar-se:
- Um modelo de cerca de dois a quatro anos de idade, suponho eu. Parece-me que era um Oldsmobile - informou. - O primeiro algarismo do número de matrícula era um zero. Eu bem tentei apanhá-lo, mas ele arrancou muito depressa.
- Onde é que ele estava estacionado? - perguntou Mason. - Você conseguiu o lugar de onde ele arrancou? isso pode indicar-nos quanto tempo ele esteve à espera. Suponho que lugares mesmo em frente da sua casa, são difíceis de conseguir.
- Suponho que sim!-exclamou ela. - Mas esse homem não teve qualquer problema. Estacionou mesmo em frente ao hidrante.
- Então não esteve lá muito tempo - deduziu Mason. - O que quer dizer que a seguiu até casa, em vez de ficar à sua espera lá. Diria que a Polícia iria verificar o espaço do hidrante com bastante frequência.
- E verificam! Tenho uma amiga que só parou o tempo suficiente para entregar uma encomenda e mesmo assim apanhou uma multa. Foi cerca de um minuto.
- Você pensa que o primeiro número da chapa de matrícula era zero? - insistiu Mason.
- Penso, quase tenho a certeza, e parece-me que o último número era dois, mas disso não estou absolutamente segura.
- Está agora em Bakersfield? - perguntou Mason.
- Estou. Fui a casa do irmão de Mr. Bannock, para ver o que havia com ele e verifiquei que já alguém lá estivera antes; a passear pelos arquivos.
- O que quer dizer com isso de passear pelos arquivos? - indagou Mason.
Ela descreveu como os encontrara.
A voz dele tornou-se tensa e autoritária.
- Oiça, Virgínia, isto é importante. Disse que os arquivos estavam todos abertos?
- Sim.
- Todos os maços?
- Sim.
- E o conteúdo espalhado?
- Sim.
- Nenhum dos pacotes estava intacto?
- Não.
- Tem a certeza?
- Claro que tenho. Porque é que isso é importante, Mr. Mason?
- Porque - esclareceu Mason -, isso indica uma forte probabilidade que a pessoa que estava à procura não encontrou o que buscava.
“Por outras palavras, se você estiver a procurar um determinado papel e tiver pressa, corta um pacote após outro, até deparar com o que quer; mete-o depois no bolso e safa-se o mais depressa possível. Isso deixaria alguns pacotes por abrir.
“Mas, por outro lado, todos foram abertos, o que é uma indicação bastante boa de que a pessoa não encontrou o que procurava.”
- Não tinha pensado nisso - respondeu ela.
- Vai voltar a casa de Julian Bannock?
- Sim, vou levar algumas caixas de cartão para lá e tentar pôr alguma espécie de ordem naqueles arquivos.
- Muito bem - aquiesceu Mason-, quando lá voltar, descobriremos alguma coisa sobre o homem que estava interessado neles... Diga-me lá, Virgínia, que há a respeito de testamentos?
- Que quer dizer com isso?
- Quando o Bannock redigia um testamento, era sempre executado lá no escritório?
- Sim.
- Quem costumavam ser as testemunhas?
- Oh, estou a ver onde quer chegar. Ele usualmente assinava como testemunha e eu como a outra.
- E você tinha um registo dos vários testamentos? Por outras palavras, tinha um número de arquivo designando que executara no escritório?
- Pois tinha, estou a perceber. Os arquivos numerados de cinco mil a seis mil referiam-se a testamentos.
- Muito bem - prosseguiu Mason - quando regressar dê uma vista de olhos aos arquivos de testamentos com os números de cinco a seis mil. Verifique se estão intactos. Amarre-os e traga-os cá, tão depressa como possa fazê-lo.
- Porquê essa pasta em especial? - quis ela saber. Mason explicou:
- Bannock já está morto há alguns anos. Muitos dos contratos e documentos que ele preparou já não são importantes mas, se algum parente quisesse saber o que está num certo testamento...
- Estou a percebê-lo - interrompeu ela excitada.- Porque é que eu não pensei nisso? É claro que é o que aconteceu.
- Não se precipite nas suas conclusões - advertiu Mason. - Trata-se só de uma ideia, mas parece-me que é melhor tomarmos precauções.
- Vou já tratar disso - prometeu ela- e conservarei essa pasta dos testamentos comigo. Deixarei o resto dos papéis para outra ocasião.
Mason aconselhou:
- Se algo mais acontecer que seja, de alguma forma, fora do vulgar, telefone-me. Entretanto, vou procurar saber algo sobre esse seu visitante.
Virgínia prometeu informá-lo de qualquer coisa que sucedesse; desligou; foi a um supermercado, adquiriu duas caixas de cartão e voltou à propriedade de Julian Bannock.
Encontrou-o apreensivo.
- Que é que se passa? - perguntou. - Aconteceu mais alguma coisa àqueles arquivos?
- Você ainda não tinha saído há cinco minutos - respondeu - quando apareceu um tipo, que correspondia à descrição que me tinha dado do homem que pensava ter estado cá. Estava no fim da casa dos quarenta ou princípios dos cinquenta, tinha bigode e olhos tão escuros que não se lhe podia distinguir a expressão. Era como olhar para um par de pedras negras e polidas.
- Era esse mesmo o homem - confirmou ela.- Que é que ele queria?
- Disse que o seu nome era Smith e perguntou-me pelos arquivos do meu irmão.
- Que é que o senhor fez?
- Disse-lhe que não deixaríamos ninguém ver esses arquivos. Ele insistiu que era importante e eu respondi-lhe que se sentasse e esperasse; que a secretária do meu irmão chegaria dentro de uma hora ou isso, e que poderia aguardá-la. -Que aconteceu?
- O facto de saber que você viria cá abalou-o. Disse que não poderia esperar.
- Conseguiu tirar-lhe o número de matrícula? - indagou ela ansiosamente.
- Não, não consegui - respondeu Julian-, porque ele tinha-a tapado com lama. Há um lugar ali para cima, onde às vezes a água de rega corre sobre a estrada, formando um charco que ele teve de atravessar, mas não seria lama que chegasse para cobrir um número de matrícula. Parece-me que ele saiu do carro e, deliberadamente, o tapou com ela.
- Bem - esclareceu Virgínia - eu vou atirar-me a estes arquivos, voltar a atá-los e creio que será melhor levar alguns deles comigo, se não põe objecções.
- Leve-os todos, se quiser - acedeu. - Eu não posso estar sempre aqui e, se existe alguma coisa importante nesses papéis, podia haver quem se introduzisse cá enquanto eu estivesse fora nos campos, e tomasse posse deles.
Ela indagou:
- Já ouviu falar de Perry Mason, o advogado?
- Creio que sim. Li bastantes coisas sobre ele.
- Bem - informou Virgínia- ele é o meu advogado. Está a aconselhar-me e eu vou manter-me em contacto com ele e fazer exactamente o que me disser.
“Ia livrar-me de todos estes arquivos, pondo-os em caixas, mas agora já não tenho tempo. Levarei só esta pasta, com estes números - vamos dar uma vista de olhos por aí e ver se existem mais com números entre cinco e seis mil.”
Virgínia descobriu um certo número de pastas de arquivo, todas juntas, com numerações entre cinco e seis mil. Depois, ela e Julian fizeram uma pesquisa apressada por mais quaisquer outros papéis numerados entre aqueles limites.
- Parece que estiveram todos aqui reunidos neste maço - afirmou Julian.
- Muito bem - exclamou Virgínia. - Agora, vou imediatamente levá-los ao escritório de Mr. Mason. Quero lá chegar antes de almoço, se possível. Poderá fazer o melhor que puder para evitar que esses outros não sejam mexidos na minha ausência?
- Quer que os ponha em caixas? - perguntou Julian. - Eu estou um bocado atrapalhado nesta altura do ano, com as regas e...
- Não - cortou ela - deixe-os como estão, se puder. Mas ponha um cadeado na porta, você sabe, um cadeado. Tente evitar que alguém venha a este celeiro.
“Se alguma pessoa o tentar, certifique-se de que anota a matrícula do seu carro e faça-a comprovar a sua identidade. Peça para ver a licença de condução.”
- Farei isso - concordou Julian, sorrindo. - Você não quererá ir lá a casa mudar-se para uns jeans e uma blusa?
- Não, não tenho tempo. Vou pôr-me a caminho. Espero não ficar muito suja. Adeus. - Adeus, menina - cumprimentou ele, acrescentando depois-, eu sei da boa opinião que o meu irmão tinha de si, e acho que ele era um bom juiz de caracteres.
Ela lançou-lhe um sorriso, saltou para o carro, colocou a caixa de cartão com a classificação de cinco a seis mil no lugar de trás e arrancou.
Pouco passava do meio-dia quando Virgínia chegou ao escritório de Perry Mason.
Gertie, a recepcionista, disse:
- Olá, Miss Baxter, estão à sua espera, mas é melhor eu tocar a campainha e avisá-los de que chegou.
Gertie ligou o intercomunicador e, um momento mais tarde, Della Street apareceu e convidou:
- Por aqui, Virginia. Temos notícias para si. Virgínia seguiu-a para o gabinete privativo de
Mason, encontrando o advogado a franzir as sobrancelhas, com um ar pensativo:
- Localizámos o seu misterioso visitante, Virginia - informou ele. - Aquele que lhe deu o nome de George Menard. Demos com ele através do seu estacionamento junto da boca de incêndio. Investigámos todos os talões de multa emitidos pelo agente que patrulha o distrito. Havia três relativos a estacionamento em frente a bocas de incêndio. Um para uma licença com o número “ODT 062”. Esse carro está registado em nome de um homem que tem uma descrição muito semelhante à daquele que a visitou.
- Quem é ele?
- O seu nome verdadeiro é George Eagan e trabalha como motorista de Lauretta Trent. Por isso fizemos uma pequena investigação e...
- Lauretta Trent? - exclamou Virgínia.
- Você conhece-a? - perguntou Mason.
- Bom, nós fizemos um pequeno trabalho legal para ela e..., bem, sim, tenho quase a certeza de lhe termos elaborado um testamento. Tenho uma ideia bastante vaga de que se tratava de um testamento invulgar. Os parentes receberiam pequenas quantias, tendo em conta todos os considerandos, e havia um estranho que receberia o grosso da herança. Talvez fosse uma enfermeira... ou um médico. Oh, céus! Podia ter sido o motorista!
Mason comentou:
- Nós descobrimos coisas bastante interessantes.
- Sobre o motorista?
- Sobre Lauretta Trent. Ela teve, recentemente, três crises de um dito envenenamento alimentar. Os registos do hospital descrevem-nas como perturbações gastroentéricas.
Virgínia disse:
- Tenho todas as velhas cópias de testamentos fechadas no meu carro, lá em baixo, no parque de estacionamento, Mr. Mason, se forem de alguma utilidade...
- Serão uma grande ajuda - confirmou Mason.- Vou apresentá-la a Paul Drake, o nosso detective. É ele que trata de todo o nosso trabalho de investigação; dirige a “Agência de Detectives Drake”, que fica neste andar. Dê-lhe uma telefonadela, por favor, Della.
Ela pediu uma linha externa a Gertie. Os seus dedos voaram sobre o marcador. Passado um momento, disse:
- Paul, daqui Della. O Perry gostava que viesses cá ao escritório imediatamente, se puderes.
Della sorriu e desligou:
- Estará aqui dentro de segundos.
E foi, realmente, só uma questão de segundos até que o bater em código de Paul Drake soasse na porta. Della abriu e deixou-o entrar.
- Paul, - apresentou Mason - esta é Virgínia Baxter. Talvez não saibas, mas ela é a cliente que tenho estado a representar e a razão pela qual tens estado a fazer aquele trabalho de investigação.
-Compreendo - respondeu Drake, sorrindo para Virgínia. - Muito prazer em conhecê-la, Miss Baxter. Mason esclareceu:
- Ela tem alguns papéis fechados à chave no carro, lá em baixo, no parque de estacionamento. Poderias ajudá-la a trazê-los para cima?
- Pesam muito? - perguntou Drake. - Precisarei de alguém para me ajudar?
- Oh, não, - respondeu ela - trata-se de um embrulho de papéis com uma espessura de cerca de vinte polegadas. Mas um só homem pode levantá-lo.
- Vamos a isso - decidiu Drake.
- Há ainda uma coisa que lhe queria dizer, Mr. Mason - interveio Virgínia. - Enquanto eu estive fora do rancho de Julian Bannock, ou da quinta, ou seja lá como se chama, e a telefonar-lhe, preparando-me para me apropriar desses papéis no regresso lá, o tal homem apareceu na propriedade.
- Que homem?
- O que me telefonou. Eagan, como diz que se chama, o motorista de Mrs. Trent.
- E o que é que ele queria?
- Queria consultar alguns dos velhos arquivos de Delano Bannock. Julian, o irmão, disse-lhe para esperar, que eu voltaria dentro de minutos.
- E que sucedeu?
- O homem saltou para o seu carro e arrancou, a grande velocidade.
- Percebo - afirmou Mason, acenando para Drake. - Vai-me buscar esses papéis, Paul.
Drake acompanhou Virgínia ao parque de estacionamento. Ela abriu a fechadura do carro. Drake pegou nas pastas que estavam na caixa de cartão, pô-la ao ombro e regressaram ao escritório de Mason.
Mason ordenou:
- Vamos ver a pasta com a letra “T” e verificar o que contém. Vejamos, aqui está “T-1”, “T-2”, “T-3”, “T-4”, “T-5”; o que é que significam?
- É a forma de classificação na letra “T”. “T-1” são as primeiras cinco letras do alfabeto. Por outras palavras, “T-A”, “T-B”, “T-C”, “T-D”, “T-E”; depois, “T-2” são as cinco letras seguintes.
- Compreendo - afirmou Mason. - Bem, vamos à “T-4”, a ver se conseguimos encontrar os papéis relativos a Lauretta Trent.
Mason espalhou as pastas sobre a secretária e ele, Della Street, Paul Drake e Virgínia Baxter começaram rapidamente a verificá-las.
- Bom, - disse Mason, após alguns minutos de pesquisa - aparentemente temos aqui uma quantidade de cópias de testamentos, mas nenhuma do testamento feito por Lauretta Trent.
- Mas nós fizemo-lo, elaborámos pelo menos um exemplar para ela - afirmou Virgínia.
- E - interpôs Mason - George Eagan estava a fazer perguntas sobre a localização das cópias a papel químico dos arquivos de Delano Bannock, e ele é o motorista de Lauretta Trent.
Voltou-se para Paul Drake:
- Em que hospital esteve Lauretta Trent internada, quando teve os seus ditos problemas digestivos?
- No Phillipe Memorial Hospital - respondeu Drake.
Mason acenou com a cabeça em direcção ao telefone:
- Liga para lá, Della, - por favor.
Esta pediu uma linha externa, procurou um número e accionou o marcador. Um momento depois, acenou para Mason.
Ele pegou no aparelho:
- “Phillipe Memorial Hospital”? - perguntou.
- Sim.
- Daqui fala Perry Mason, advogado - informou.- Gostaria de obter algumas informações sobre uma das vossas doentes.
- Lamento, mas não podemos fornecer informações sobre os nossos doentes.
- Bem, trata-se somente de uma questão de registos rotineiros - disse Mason casualmente. - A doente é Lauretta Trent. Esteve internada aí no hospital por três vezes, nos últimos meses, e tudo o que pretendo é saber o nome do médico dela.
- Um momento, essa informação nós podemos dar.
- Eu aguardo em linha, se é possível - afirmou Mason.
Um momento depois, a voz disse:
- O médico foi o Dr. Ferris Alton. Está no “Randwell Building”.
- Muito obrigado - agradeceu Mason.
O advogado desligou, voltando-se para Della Street:
- Vejamos se conseguimos contactar a empregada do Dr. Alton.
- A empregada dele?
- Sim - esclareceu Mason. - Eu gostaria de falar com o Dr. Alton, mas parece-me que terei de falar com a empregada pessoalmente, antes que o consigamos contactar. Ao fim e ao cabo, estamos provavelmente no início de uma tarde de trabalho para o doutor. Naturalmente recebe muitos pacientes durante a tarde, opera de manhã e, depois disso, visita os doentes no hospital.
Della Street, procurou o número; pediu a Gertie, no gabinete de fora, uma linha externa, ligou e acenou de novo para Perry Mason.
Este pegou no aparelho e disse:
- Como está? Daqui fala Perry Mason, advogado. Eu sei que o Dr. Alton está muito ocupado e que estamos precisamente a iniciar o período mais intenso da tarde, mas é extremamente importante que eu fale com ele urgentemente sobre um assunto que pode afectar uma sua doente.
- Perry Mason advogado?-inquiriu a voz feminina.
- Isso mesmo.
- Oh, tenho a certeza de que ele vai querer falar com o senhor pessoalmente. De momento está ocupado, mas vou interrompê-lo e... poderá aguardar um pouco em linha, por alguns momentos?
- Com todo o prazer - respondeu Mason. Houve um período de silêncio. Depois uma voz cansada e ligeiramente impaciente disse:
- Sim, daqui fala o Dr. Ferris Alton.
- Perry Mason, advogado - correspondeu o advogado. - Gostaria de lhe fazer umas perguntas sobre uma sua doente.
- Que tipo de perguntas, e quem é a doente?
- Lauretta Trent - esclareceu Mason. - O senhor hospitalizou-a várias vezes nos últimos meses.
- E então? - indagou o Dr. Alton, desta vez com mais evidente nota de impaciência na voz.
- Pode dizer-me qual a natureza da doença?
- Claro que não! - bradou o Dr. Alton.
- Então, muito bem - insistiu Mason. - Talvez eu possa dizer-lhe algo de interesse. Tenho razões para acreditar que Lauretta Trent fez um testamento; que esse testamento foi lavrado no escritório de um advogado chamado Delano Bannock; que ele já faleceu; que há pessoas interessadas em obter sub-repticiamente uma cópia desse testamento; que algumas das pessoas ligadas a Lauretta Trent podem estar a participar numa pesquisa dessa natureza.
“Pois bem, pergunto-lhe agora o seguinte. Está completamente satisfeito com o seu diagnóstico no caso de Lauretta Trent?”
- Certamente. De outro modo não lhe tinha dado alta.
- Entendi, genericamente falando, - continuou Mason - que ela teve uma perturbação gastroentérica.
- Bom, e depois?
- E depois, - retorquiu Mason - tenho na minha frente várias autoridades em medicina legal e toxicologia. Cheguei à conclusão de que é comummente aceite que casos de envenenamento por arsénico são, raras vezes, diagnosticados como tal pelo médico que os atende, uma vez que os sintomas são os mesmos de uma perturbação gastroentérica.
- Você é maluco - exclamou o Dr. Alton.
- Por conseguinte, - prosseguiu Mason - parece-me que compreenderá a minha posição quando lhe perguntar se houve cãibras adbominais, contracções nas barrigas das pernas, sensação de ardência no estômago e...
- Meu Deus! - interrompeu o Dr. Alton.
Mason parou de falar, esperando que o médico dissesse alguma coisa.
Houve um longo período de silêncio no telefone.
- Ninguém quereria envenenar Lauretta Trent - afirmou o Dr. Alton.
- Como é que sabe? - perguntou Mason. Fez-se de novo silêncio.
- Qual é o seu interesse neste assunto? - indagou com lentidão o Dr. Alton.
- O meu interesse é puramente acidental - informou Mason. - Posso assegurar-lhe que, embora eu esteja a representar um cliente, não existe nenhum interesse adverso ao de Lauretta Trent e não há razão para que não faça uma declaração que poderá evitar quebrar o segredo profissional.
O Dr. Alton disse:
- Você deu-me algo em que pensar, Mason. Os sintomas dela tinham muito em comum com os do envenenamento por arsénico. Você tem toda a razão, os médicos que são chamados para casos deste tipo, quase nunca suspeitam de possibilidades de tentativa de homicídio por envenenamento. Quase invariavelmente os casos recebem um diagnóstico de perturbação entérica.
- Por isso é que lhe estou a telefonar - disse-lhe o advogado.
- Tem alguma sugestão a fazer? - indagou o Dr. Alton.
- Sim - respondeu Mason. - Sugeriria que obtivesse uma amostra do cabelo dela, arrancado pela raiz, se possível. E, se o conseguir, aparas das unhas dos dedos. Vamos mandar analisá-las à procura de arsénico e veremos se obtemos uma reacção positiva.
“Entretanto, sugiro que tente não alarmar a sua doente, mas tome medidas para ela ser posta em dieta rigorosa, vigiada por enfermeiras especiais a tempo inteiro - por outras palavras, uma rígida supervisão dietética.
“Parto do princípio de que a doente está em posição financeira em que se possa justificar a despesa.” - Naturalmente - respondeu o Dr. Alton - ...Meu Deus, ela está em condições cardíacas que não suportarão mais destes problemas. Avisei-a, da última vez. Pensava que se tratava de abusos alimentares. Ela tem fraco por comida mexicana altamente condimentada, com considerável quantidade de alho, o que seria um disfarce quase perfeito para uma dose de arsénico. Mason, que tempo vai demorar no seu escritório?
- Vou cá estar toda a tarde - informou Mason, - e, se precisar de me contactar após as horas de serviço, poderá fazê-lo através da “Agência de Detectives Drake”. Pergunte por Paul Drake. Os escritórios deles são no mesmo edifício do meu, e no mesmo andar.
- Entrarei em contacto consigo - afirmou o Dr. Alton. - Entretanto, vou já tomar medidas para que nada de suspeito possa suceder.
- Lembre-se que deveremos evitar fazer quaisquer acusações ou declarações que alarmem a sua doente, até que estejamos seguros do assunto, - aconselhou Mason.
- Compreendo, compreendo - replicou Alton vivamente.- Bolas, Mason, há trinta e cinco anos que exerço medicina. - Meu Deus, homem, você abalou-me... Sintomas clássicos de envenenamento por arsénico e eu nunca suspeitei de nada... entrarei em contacto consigo. Adeus.
A comunicação foi prontamente desligada. Mason disse para Virgínia:
- Não me agrada restringir-lhe os movimentos, Virgínia, mas quero que esteja em sítio onde eu a possa encontrar. Vá para o seu apartamento e fique lá. Informe-me de qualquer pequena coisa fora do comum. Vou dar-lhe o meu telefone, para que possa contactar comigo a qualquer hora.
Drake resmungou e disse:
- Mas eles não podiam provar a existência de um testamento, usando uma cópia, pois não, Perry?
- Em certas circunstâncias restritas, sim - respondeu Mason. - Se um testamento desapareceu, a presunção geral é que foi destruído pelo testador, o que equivale a revogação. Mas se, por exemplo, numa casa pegar fogo e o testador perecer nas chamas, presumir-se-á, em geral, que o testamento ardeu ao mesmo tempo e, se se conseguir provar que ainda estava válido na altura do incêndio e da morte do testador, nesse caso o respectivo conteúdo deverá ser determinado por prova secundária.
“Contudo, não é nisso que estou a pensar.”
- Em quê? - perguntou Drake.
Mason olhou de lado para Virgínia e abanou a cabeça:
- Não estou preparado para o dizer, neste momento.
“Virgínia, quero que vá para casa. Pode receber uma chamada desse homem que agora conhece por George Eagan, o motorista de Lauretta Trent.
“Lembre-se de que ele lhe disse que se chamava George Menard.
“Ora bem, no caso de ele lhe telefonar, tenha muito cuidado em não o deixar perceber que sabe quem ele é realmente. Seja ingénua, crédula e talvez um pouco ambiciosa. Se ele se comportar como se quisesse fazer-lhe algum tipo de proposta, deixe-o entender que está disposta a ouvi-lo. Depois procure ganhar tempo.
“Ligue para mim ou, se eu não estiver disponível, para Paul Drake, tão depressa consiga chegar ao telefone. Diga-nos o que é que o homem quer.”
- Devo deixá-lo pensar que quero alinhar com ele?
- Isso mesmo. E, se lhe pedir que escreva alguma coisa à máquina, use químicos novos com cada folha de papel.
- Não será perigoso?
- Penso que não, de momento. Não, se o não deixar perceber que sabe quem ele na verdade é, e se conseguir detê-lo o tempo suficiente para alcançar um telefone. Depois, teremos de tomar precauções.
- Muito bem - prometeu ela. - Vou tentar.
- Bonita menina - exclamou Mason. - Vá lá para casa e telefone-me se algo acontecer.
O riso dela soou nervoso:
- Não se preocupe - afirmou - à primeiríssima coisa fora do vulgar que suceda, precipito-me para o telefone.
- Isso mesmo - insistiu Mason. - Ligue para o Paul Drake, se não conseguir encontrar-me. O escritório dele está aberto vinte e quatro horas por dia.
Della Street segurou a porta para ela sair.
- Tenha cautela - recomendou Mason - em não deixar esse motorista saber que você tem alguma ideia de quem ele é. Porte-se como uma ingénua, mas deixe-o sentir que, se tiver alguma proposta a fazer-lhe, você poderia ser tentada.
Virgínia Baxter lançou-lhe um rápido sorriso e deixou o escritório.
Della Street fechou suavemente a porta.
- Achas que esse motorista vai voltar? - perguntou Drake.
- Se não conseguiu o que queria, - afirmou Mason - voltará. Temos duas pessoas à procura de um papel e, uma vez que aquele que nós pensamos estarem elas a buscar não parece estar nos arquivos, as probabilidades são de que uma delas já o tenha encontrado. Por conseguinte, a outra há-de regressar.
- Exactamente o que significa tudo isto? - quis saber Drake.
- Eu digo-te - respondeu Mason - quando obtivermos as amostras de cabelo e unhas de Lauretta Trent. Ninguém pode confiar numa cópia de um testamento, a não ser que se passem duas coisas.
- Que duas coisas? - perguntou Drake.
- Primeira, que o original esteja desaparecido. Segunda, que a pessoa que o fez esteja morta.
- Pensas que é tão sério como isso? - insistiu Drake em saber.
- Penso que sim, - declarou Mason - mas estou de mãos atadas, até que tenhamos uma análise do factor de arsénico.
“Volta para o teu escritório, Paul, avisa o teu telefonista e mantém as coisas preparadas, de forma a poderes mandar um homem para casa de Virgínia Baxter, no momento em que receberes qualquer notícia.”
O homem de cabelo preto, bigodinho e olhos negros muito intensos, estava à espera num carro estacionado em frente ao prédio de apartamentos de Virgínia Baxter.
Virgínia primeiro notou o carro, reconhecendo o condutor nele sentado, concentrando-se na porta da frente do prédio de apartamentos e apressou-se a passar por ele, sem atrair a sua atenção.
De uma estação de serviço, quatro quarteirões abaixo na rua, telefonou para o escritório de Mason.
- Está lá fora, à espera - informou, quando o advogado apareceu na linha.
- O mesmo homem que antes lhe telefonou? - perguntou Mason.
- Sim.
- Muito bem, - aconselhou Mason - vá para casa; veja o que ele quer; arranje uma desculpa para interromper a conversa, se puder, e telefone-me.
- Farei isso - anuiu. - Provavelmente ligarei para si, dentro dos próximos vinte ou trinta minutos.
Desligou o aparelho, conduziu de novo até casa, estacionou e entrou pela porta da frente, aparentemente em completa ignorância do homem que se sentava no carro estacionado do outro lado da rua.
Numa questão de minutos após ter entrado em casa, soou o besouro.
Ela verificou que o cadeado estava na porta, abriu-a, defrontando-se com os intensos olhos negros.
- Olá, Mr. Menard - exclamou. - Encontrou o que queria?
O homem tentou fazer um sorriso afável:
- Gostava de falar consigo sobre o assunto. Posso entrar?
Ela hesitou por um instante, depois aquiesceu cordialmente:
- Porque não? Certamente - e desprendeu o cadeado da porta.
Entrou no apartamento, sentou-se e disse:
- Vou pôr as cartas na mesa. Ela franziu as sobrancelhas.
- Eu não andava à procura de um contrato feito com um Smith e relativo à venda de uma loja de máquinas- declarou. - Procurava outra coisa.
- Pode dizer-me o que era? - perguntou ela.
- Há alguns anos-, continuou - Mr. Bannock fez, pelo menos, um testamento para Lauretta Trent. Tenho a impressão de que foram dois.
“Agora, por razões que eu não quero gastar tempo a referir neste momento, é altamente importante que eu encontre esses testamentos. Pelo menos o último.”
Virgínia deixou a surpresa transparecer-lhe na cara:
- Mas... mas eu não compreendo... Porquê, nós só possuíamos as cópias a papel químico. Mrs. Trent deveria ter os originais no seu cofre, caixa de depósitos ou noutro lado.
- Não necessariamente - afirmou ele.
- Mas para que é que lhe serviria uma cópia?
- Há outras pessoas interessadas.
Ela voltou a franzir as sobrancelhas com espanto.
- Há, em particular, uma pessoa que desejaria fazer fosse o que fosse para pôr as mãos numa cópia do testamento. Agora, eu gostaria de preparar uma armadilha a essa pessoa.
- Como?
- Suponho que comprou a máquina de escrever que usava no escritório?
- Sim. Isto é, o irmão de Mr. Bannock deu-ma.
Ele apontou a máquina, que estava sobre a escrivaninha:
- É um modelo antigo?
- Sim. Tínhamo-la no escritório há anos. É de fabricação muito durável e este modelo já tem bastante idade. Quando o avaliador fez o inventário da mobília do escritório, atribuiu um valor muito baixo a esta máquina de escrever, por ser tão antiga, e o irmão de Mr. Bannock disse-me para ficar com ela e esquecer-me do assunto.
- Nesse caso, você pode preparar uma cópia a papel químico de um testamento e datá-la de há três ou quatro anos e nós podíamos intercalar essa cópia nos papéis velhos que foram parar às mãos do irmão de Bannock e, se acontecesse alguém ir lá bisbilhotar nos papéis, à procura da cópia do testamento de Lauretta trent, podíamos enganá-lo fazendo-o acreditar nessa cópia e talvez fazê-lo denunciar-se.
- Isso serviria para quê? - perguntou ela.
- Podia servir para muito... eu presumo que quer ajudar uma pessoa que foi cliente de Mr. Bannock?
O rosto dela iluminou-se:
- Então quer dizer que a própria Lauretta Trent me pediria para fazer isso?
- Não, há certos motivos para Lauretta Trent não lhe poder fazer esse pedido, mas posso dizer-lhe que lhe seria grandemente vantajoso.
- Nesse caso está ligado a ela, de alguma forma?
- Falo por ela.
- Acharia impertinente que lhe perguntasse a natureza dessa associação ou da sua representação?
Ele sorriu e abanou a cabeça:
- Nestas circunstâncias, - declarou - o dinheiro fala.
Puxou uma carteira do bolso e tirou uma nota de cem dólares. Fez uma pausa momentânea; depois extraiu outra nota de cem. Então, significativamente, outra nota de cem, continuando até haver cinco notas de cem sobre a mesa.
Ela observou o dinheiro pensativamente:
- Teríamos de ser muito cuidadosos - disse.- Você sabe, Mr. Bannock usava papel com o nome dele impresso no canto inferior esquerdo.
- Não tinha pensado nisso - disse o homem.
- Felizmente, eu tenho algum desse papel. Obviamente, teríamos de destruir o original e ficar só com a cópia a papel químico.
- Acho que você é capaz de fazer um bom trabalho - respondeu.
Ela declarou:
- Eu teria de ter a sua palavra de que está tudo bem e que não vai nada fraudulento ligado a isso.
- Oh, certamente - anuiu. - É simplesmente para estender uma casca de banana a alguém que está a tentar criar problemas aos parentes de Mrs. Trent.
Ela hesitou por um momento:
- Dá-me algum tempo para pensar no assunto?
- Receio bem que não, Mrs. Baxter. Estamos a trabalhar contra o tempo e, se concordar em avançar com isto, terá de ser imediatamente.
- Que é que quer dizer com imediatamente?
- Já - disse ele, indicando a máquina.
- Que é que quer que figure neste testamento? Respondeu:
- Incluirá as habituais fórmulas acerca de a testadora estar de posse de todas as faculdades de espírito e memória e declara que ela é viúva; que não tem filhos; que tem duas irmãs casadas; uma delas, Dianne, esposa de Boring Briggs; a outra, Maxine, casada com Gordon Kelvin.
“Continua então declarando que ficou recentemente convencida de que os seus parentes agem por egoísmo e, por conseguinte, deixa a sua irmã Dianne, cem mil dólares; ao seu cunhado, Boring Briggs, dez mil dólares; deixa ao seu cunhado, Gordon Kelvin, dez mil dólares; ao seu fiel e devotado motorista, George Eagan, que lhe tem sido leal através dos anos, todo o resto, líquido e sobrante da sua herança.” Virgínia Baxter disse:
- Mas não estou a ver para que é que isso serve.
- Nesse caso - prosseguiu firmemente o seu visitante - elaborará um novo testamento, reportado a somente algumas semanas antes da data do falecimento de Mr. Bannock. Nesse testamento declara que deixa a Maxine e Gordon Kelvin mil dólares cada um; a Boring Briggs e sua mulher, Dianne, mil dólares a cada um, referindo que essas pessoas se movem puramente por egoísmo e não têm real afecto por si, e deixa todo o resto, líquido e sobrante da herança ao seu fiel e devotado motorista, George Eagan.
Ela começou a dizer alguma coisa, mas ele pegou-lhe na mão e fê-la parar.
- Plantaremos essas cópias dos testamentos falsos nos papéis de Mr. Bannock.
“Posso assegurar-lhe que serão descobertos por pessoas que estão a tentar saber antecipadamente os termos do testamento de Lauretta Trent.
“Esses dois documentos provarão que, há alguns anos, ela começou a ter dúvidas sobre a sinceridade das suas irmãs e, particularmente, dos seus cunhados; que, mais recentemente, encontrou provas de que eles estavam simplesmente a tentar apanhar o que pudessem e que actuavam por motivos puramente egoístas.”
- Mas, será que não compreende - insistiu ela - que nenhum desses testamentos servirá para nada se... Bem, eu sempre assinei como testemunha testamentos elaborados lá no escritório. Mr. Bannock, esse fartava-se de assinar.
“Se me convocassem e perguntassem se tinha testemunhado este, eu teria de admitir que se trata de uma completa falsificação; que o tinha redigido recentemente e...”
Ele interrompeu-a, sorrindo:
- Porque é que não deixa tudo isso ao meu cuidado, Mrs. Baxter? - perguntou. - Limite-se a aceitar os quinhentos dólares e comece a dactilografar.
- Receio estar demasiado nervosa para fazer seja o que for, enquanto você estiver aqui. Teria de trabalhar os termos dos testamentos e o senhor voltaria mais tarde.
Ele abanou firmemente a cabeça:
- Quero levá-los comigo, - retorquiu - e não disponho de muito tempo.
Virgínia Baxter hesitou, depois, lembrando-se das instruções de Mason, encaminhou-se para a escrivaninha, tirou da gaveta algumas folhas do velho papel oficial de Delano Bannock, meteu-lhes papel químico novo, meteu-as na máquina de escrever e começou a dactilografar.
Trinta minutos mais tarde, quando terminou, o seu visitante enfiou no bolso as cópias a papel químico dos dois documentos, dizendo:
- Agora destrua os originais, Virgínia. De facto, vou destruí-los eu imediatamente.
Pegou em todos os originais e cópias, dobrou-os e guardou-os no bolso.
Dirigiu-se para a porta, fez uma pausa para acenar um cumprimento a Virgínia Baxter:
- Você é boa moça-disse.
Ela observou-o até o ver entrar no elevador; depois bateu com a porta, correu para o telefone, ligou para o escritório de Mason e descreveu apressadamente o que tinha sucedido.
- Ficou com algumas cópias? - perguntou Mason.
- Só o papel químico - respondeu ela. - Ele foi suficientemente esperto para levar os originais e as cópias, mas eu tinha seguido a sua sugestão, pondo folhas de papel químico novas em cada página e ele não reparou no que eu estava a fazer. Está a ver, eu preparei todas as páginas metendo o químico com antecedência, pondo de uma vez meia dúzia de páginas em cima da secretária e tirando uma folha nova da caixa dos químicos, para cada uma. Assim, fiquei com um conjunto deles e, segurando-os contra a luz, é fácil ler o que foi escrito.
- Muito bem - disse Mason-, traga esses papéis químicos ao meu escritório, tão depressa quanto possa.
Virgínia sentava-se do outro lado da secretária de Mason, que examinava cuidadosamente as páginas de químico.
Ele voltou-se para Della Street:
- Della, - mandou - pegue em cartão do tamanho destas folhas de papel químico, de forma que elas não fiquem dobradas ou enrugadas, meta tudo num sobrescrito e sele-o.
Depois de Della o ter feito, Mason pediu a Virgínia:
- Agora, escreva o seu nome várias vezes sobre o selo.
- Para quê?
- Para demonstrar que ele não foi aberto a vapor ou forçado.
Mason observou-a, enquanto escrevia o nome.
- Agora, - instruiu - não pense no seu carro, porque não conseguirá encontrar lugar para estacionar e o tempo está contra si.
“Tome um táxi. Leve este sobrescrito aos correios, enderece-o a si própria e envie-o por correio registado.”
- E depois? - indagou ela.
- Ora bem, ouça com cuidado - avisou Mason.- Quando este sobrescrito tiver sido enviado sob registo, não o abra. Deixe-o selado, tal como está.
- Oh, estou a compreender-exclamou.-O senhor quer poder comprovar a data em que...
- Exactamente - esclareceu Mason.
Ela pegou no sobrescrito e dirigiu-se para a porta.
- Como é que está de provisões no seu apartamento? - perguntou ele.
- Porquê? Eu... eu tenho manteiga, pão, conservas e alguma carne...
- Será suficiente para aguentar, se necessário, vinte e quatro horas?
- Claro que sim! Mason aconselhou:
- Meta a carta no correio, regresse ao seu apartamento, fique lá e mantenha o cadeado de segurança na porta. Não deixe ninguém entrar. Se alguém lhe telefonar, dizendo que vai a sua casa, responda que está com uma visita e não pode ser incomodada. Depois peça-lhe o nome e telefone-me.
- Porquê? - quis ela saber. - Acha que eu... estou em perigo.
- Não sei - respondeu Mason. - Tudo o que me parece é que existe essa possibilidade. Alguém tentou incriminá-la e desacreditá-la. Não quero que isso aconteça de novo.
- Nem eu - exclamou veementemente.
- Muito bem - disse-lhe Mason -, ponha-se a caminho do correio. Depois vá para o seu apartamento e deixe-se lá ficar.
Quando ela saiu, Della Street olhou para Mason com as sobrancelhas erguidas:
- Porque é que ela havia de estar em perigo? Mason explicou:
- Reflecte sobre isso. Foi feito um testamento, existem duas testemunhas dele. Uma delas morreu. Foi feita uma tentativa para colocar a outra em posição de que o seu testemunho fosse também desacreditado. Agora está outro a ser executado.
- Mas esses testamentos falsificados não significam nada.
- Como é que sabes? - insistiu Mason. - Supõe que morrem mais duas pessoas, então o que acontecerá?
- Quais duas pessoas? - perguntou ela. - Lauretta Trent e Virginia Baxter. Por exemplo, supõe que um incêndio destrói a casa de Lauretta Trent. Presumir-se-ia que o testamento tinha sido destruído pela conflagração.
“As pessoas procuram as cópias a papel químico do que foi preparado por Bannock, para determinar qual o conteúdo do que se queimou. Encontram dois testamentos. O efeito deles será implicar que Lauretta Trent suspeitava dos seus parentes e das pessoas que a rodeavam.
“Agora, Delano Bannock está morto. Imagina que Virginia Baxter também morre.”
Della Street piscou os olhos rapidamente:
- Meu Deus... vais informar a Polícia?
- Ainda não - admitiu Mason-, mas talvez o faça dentro de horas. No entanto, existe uma quantidade de factores envolvidos, e um advogado não pode andar por
aí a fazer acusações desta espécie, a não ser que esteja de posse de algo mais definido em que se baseie.
- Mas não vais precisar de muito mais? - perguntou Della Street.
- Pouco mais - respondeu Mason.
Foi no momento em que Mason estava a encerrar o escritório que o Dr. Alton telefonou.
- Posso ir aí por alguns minutos? - pediu ele.- Tive uma terrível carga de trabalho esta tarde, com o consultório cheio de doentes e fiquei livre agora mesmo.
- Espero por si - acedeu Mason.
- Estou aí dentro de dez minutos - prometeu o Dr. Alton.
Mason desligou o aparelho, voltando-se para Della Street:
- Tens planos especiais para esta noite, Della? Podes ficar comigo à espera do Dr. Alton?
- Terei muito prazer - respondeu.
- Depois disso - disse-lhe Mason-, podemos ir jantar fora.
- Bom, essas palavras são música para os meus ouvidos - admitiu ela-, mas deixa-me recordar-te que, até agora, não tens nenhum cliente que te cubra as despesas deste caso.
- Estamos a lançar pão às águas - exclamou Mason - e não deixes que o assunto das despesas te estrague o estilo. Limita-te a não olhar para o lado direito do menu.
- A minha linha... - suspirou ela.
- Perfeita - elogiou Mason. Ela sorriu:
-Vou para o gabinete exterior e espero pelo Dr. Alton.
- Trá-lo logo para dentro, assim que chegue - ordenou-lhe Mason.
Della Street foi para o gabinete e voltou passados minutos, abrindo a porta e anunciando:
- O Dr. Ferris Alton.
Este entrou agitado, irradiando intensa energia nervosa.
Apertou a mão de Mason, dizendo:
- Tenho realmente muito prazer em conhecê-lo, Mr. Mason. Tenho de discutir este caso consigo, pessoalmente, e por essa razão é que o estou a incomodar.
“A propósito, tenho aqui dois frascos esterilizados, contendo o material que queria, algumas aparas de unhas e alguns cabelos arrancados pelas raízes.
“Ora posso mandar analisar eu isto ou pode você fazê-lo.”
- É melhor ser eu - sugeriu Mason. - Dessa forma atrairá menos a atenção, e tenho alguns conhecimentos que me darão o relatório num prazo muito curto.
- Bom, tenho muito gosto em que o faça - disse o Dr. Alton-, mas agora que instilou a suspeita no meu espírito, tenho um pressentimento desconfortável de que vamos ter reacções positivas; que haverá pelo menos duas áreas do cabelo que revelarão arsénico.
“A primeira crise teve lugar aproximadamente há sete meses e meio - demasiado tempo, acho eu, para que restem alguns vestígios do veneno. Mas a segunda foi há cinco semanas, e a última há uma.”
- Ela tem um historial dietético? - pediu Mason.
- Fui completamente ingénuo - admitiu o Dr. Alton. - Queria averiguar se se tratava do resultado de uma alergia ou, como suspeitava, de comida em mau estado.
“Comeu comida mexicana em todas as ocasiões.”
- Quem cozinhou? - perguntou Mason.
- Tem um motorista, um tal George Eagan, que está com ela há algum tempo. Tem muita consideração por ele - no aspecto de trabalho, é claro. É bastante novo... Bem, creio que há uma certa discrepância de idades... oh, digamos que quinze anos, ou isso.
“Leva-a de carro a todos os lados e está encarregado de cozinhar fora de casa; sempre que dão um churrasco, ele trata dos bifes e das batatas, cozinha e serve, torra o pão de forma e tudo o resto. Considero-o muito competente.
“Também o é a cozinhar; os pratos mexicanos que mencionei foram preparados fora de casa.”
- Espere aí - interrompeu Mason-, é muito improvável que cozinhasse comida mexicana só para ela. Deviam estar outras pessoas presentes. O Dr. Alton explicou:
- Ao elaborar o historial do caso, eu nem sequer suspeitava de envenenamento. Por isso só perguntei o que é que a minha doente tinha comido. Não me referi aos outros. Suponho que outros parentes estariam presentes. Eagan, o motorista, é que cozinhou. Aparentemente, ninguém mais a não ser Lauretta Trent teve quaisquer sintomas.
- Percebo - anuiu Mason.
- Se foi envenenamento e estou agora inclinado para que fosse, fizeram-no com muita perícia... Ora eu, Mr. Mason, tenho responsabilidades para com a minha doente. Quero evitar que o caso se repita.
- Eu disse-lhe o que devia fazer - retorquiu Mason vivamente. - Arranje três enfermeiras, ponha-as ao serviço vinte e quatro horas por dia.
O Dr. Alton abanou a cabeça:
- Receio que não resulte.
- Porque não? - perguntou Mason. Ele respondeu:
- Não estamos a lidar com uma criança, Mr. Mason. Estamos perante uma mulher madura que gosta das coisas à sua própria maneira; que é bastante arbitrária e... raios me partam, eu teria de inventar algum tipo de pretexto para lhe apresentar pratos especiais.
A boca de Mason ficou tensa:
- Quantas enfermeiras lá estão presentemente?
- Só uma... que lhe dá assistência de tempos a tempos.
- E como é que obteve as unhas e o cabelo? O Dr. Alton disse, desconfortavelmente:
- Tive de usar um pequeno subterfúgio. Telefonei para a enfermeira e disse-lhe que ia dar a Mrs. Trent um remédio que poderia causar irritação temporária da pele; que era altamente importante que ela não se coçasse e que queria que lhe cortasse as unhas; disse-lhe para explicar à doente o que eu tencionava fazer e o que esperava conseguir. Também lhe disse que gostaria de testar o cabelo, para verificar se as suas crises digestivas teriam sido causadas por uma alergia provocada ou por um shampoo ou por um corante para cabelo.
Expliquei à enfermeira para não dar a entender que ela o pintava; mas que me parecia que fosse uma alergia em especial se ela tinha tido irritação de pele ou manchas no couro cabeludo e as tinha coçado, causando assim uma abrasão na pele, que possibilitaria aos constituintes da tinta a penetração na corrente sanguínea. Avisei a enfermeira para meter as aparas de unhas e o cabelo em frascos esterilizados. Mason comentou:
- As enfermeiras tiram cursos sobre venenos e respectivo tratamento. Pensa que a sua suspeitou de alguma coisa?
- Oh, não, de nada - afirmou o Dr. Alton. - Contei-lhe que estivera intrigado com o caso de Mrs. Trent; que não conseguia de todo acreditar que aquela perturbação resultasse inteiramente de envenenamento alimentar, mas que achava que talvez tivesse havido uma combinação de factores.
- Ela não deu qualquer indicação de achar os seus pedidos fora do vulgar? - indagou Mason.
- Nenhuma. Aceitou-os, como qualquer boa enfermeira faria, sem comentários. Dei-lhe instruções para chamar um táxi e mandar imediatamente para o meu consultório as aparas de unhas e o cabelo.
Mason informou:
- Sei de um laboratório especializado em medicina forense e toxicologia que nos fará um rápido relatório sobre isto, não uma análise quantitativa, mas demonstrará se está presente algum arsénico.
- Quanto tempo levará a obtê-la? Mason respondeu:
- Penso que a posso ter logo a seguir ao jantar, doutor.
- Gostava que me telefonasse - pediu o Dr. Alton.
- Muito bem - assentiu Mason-, que é que fez para arranjar protecção para a sua doente, durante vinte e quatro horas por dia?
Os olhos do Dr. Alton alteraram-se:
- De acordo, Mason-, concordou. - Vou ter isso em conta. Você quase me convenceu, quando falou comigo ao telefone, e depois fiquei mais convencido, quando reflecti sobre os sintomas. Mas, logo que tive tempo para ponderar nos factos, achei que não tinha justificação para tomar medidas realmente drásticas, dependendo do relatório laboratorial; contudo, dei alguns passos, à cautela, que serão, de momento, bastantes.
- Que passos?-quis saber Mason, numa voz friamente desaprovadora.
- Pensei que, nas próximas horas, não haverá nenhum real elemento de perigo, particularmente porque essa enfermeira, Anna Fritch, está de serviço. Contudo, dei-lhe instruções para pôr hoje Mrs. Trent numa dieta moderada; expliquei-lhe que tencionava fazer alguns testes e que não queria que ela comesse nada hoje, a não ser ovos escalfados e torradas; que queria que a própria enfermeira preparasse tanto os ovos como a torrada e que tomasse o cuidado de servir os ovos na casca, para que não houvesse possibilidade de lhes serem adicionados demasiados temperos.
- Muito bem - disse Mason-, se foi o que fez, está feito. Dê-me o seu número de teiefone nocturno. Vou deixar estas coisas no laboratório e pedir que as analisem imediatamente... Agora, o que é que se propõe fazer, no caso de os testes serem positivos e mostrarem a presença de arsénico?
Desta vez, o Dr. Alton enfrentou o olhar de Mason com firmeza:
- Tenciono falar com a doente e contar-lhe que ela tem estado a sofrer um envenenamento por arsénico, em vez de alergias ou crises digestivas. É minha intenção avisá-la de que teremos que tomar medidas extraordinárias de salvaguardar e que, da forma como os sintomas se desenvolveram, eu tenho fortes suspeitas de que se trata de tentativa de homicídio.
Mason interpôs:
- E suponho que levou em consideração que isso vai desencadear uma guerrilha entre os parentes, as autoridades e as pessoas que cuidam da casa. Vão chamar-lhe charlatão e alarmista e acusá-lo de tentar alienar o afecto de Lauretta Trent.
- Não o posso evitar. Tenho os meus deveres como médico.
- Está bem - concedeu Mason. - Deveremos ter o relatório não mais tarde que as nove e meia. O único ponto em que não concordo consigo é na forma de proteger entretanto a sua doente.
- Bem sei, bem sei-, disse o Dr. Alton. - Pesei os prós e os contras e cheguei à conclusão de que é esta a melhor forma de tratar do assunto. Aceito a responsabilidade pela decisão. Afinal, você bem sabe, é minha responsabilidade.
Mason fez um sinal a Della Street:
- Bom, Della, vamos ao laboratório pô-los a trabalhar nessas coisas e obter um relatório preliminar o mais cedo possível. Anota o número de telefone nocturno do Dr. Alton e ligaremos para ele logo que tenhamos notícias.
- E é claro - pediu o Dr. Alton -, que manterão o assunto confidencial? Estão a ver, a Polícia e, naturalmente, a imprensa. Estes casos costumam transpirar quando chegam às mãos da Polícia e eu sei que Lauretta Trent consideraria a publicidade... bom, ela atirava-se ao ar. Seria o fim da nossa relação profissional.
Mason esclareceu:
- Eu estou, de alguma forma, na posição do servidor público neste caso, doutor. Na realidade, não tenho um cliente. O lógico seria que fosse Lauretta Trent, mas não quero seguramente aproximar-me dela de qualquer maneira.
- Não terá de o fazer - aduziu o Dr. Alton. - No momento em que encontrar algo de positivo no cabelo e nas unhas, eu próprio vou ter com ela e explicar-lhe precisamente o que você fez no assunto e como foi valiosa a sua assistência.
“Entretanto, posso assegurar-lhe, sob a minha própria responsabilidade, que quaisquer quantias razoáveis que o senhor possa ter de desembolsar serão prontamente liquidadas por Mrs. Trent.
“Mas...-o Dr. Alton clareou a garganta - na eventualidade de as suas suspeitas se revelarem infundadas, Mr. Mason, será... bem, como dizer...”
Mason sorriu e interrompeu-o:
- Quer dizer que, no caso de estar a subir à árvore errada, as minhas despesas serão suportadas exclusivamente por mim; e que eu terei bastante da sua consideração.
O Dr. Alton confirmou:
- O senhor expressou-o com mais força do que eu o faria, mas correctamente.
Mason repetiu:
- Terá notícias minhas às nove, nove e meia, e depois poderá tirar as suas conclusões.
- Muito obrigado - agradeceu o Dr. Alton. Apertou a mão ao advogado e saiu.
Della Street olhou especulativamente Mason:
- Tem alguma reserva mental sobre o Dr. Alton? - perguntou ela.
Mason respondeu:
- Sabes, Della, não consigo deixar de pensar que problema seria se o Dr. Alton fosse um dos beneficiários do testamento de Lauretta Trent.
Os olhos de Della Street estreitaram-se com ar de consternação:
- Oh, céus! - exclamou - acha que...?
- Exactamente - confirmou Mason, à medida que a voz dela se reduzia a silêncio. - E agora, vamos ao jantar, depois de pararmos no laboratório, para pedir um relatório preliminar rápido.
- E vais dizer ao Dr. Alton o que descobrires? Se ele for um dos beneficiários do testamento... Bem, naturalmente, dadas as circunstâncias...
- Bem sei - disse Mason. - Vou-lhe contar e depois certificar-me em absoluto de que Lauretta Trent fica protegida contra quaisquer futuras ditas perturbações gastroentéricas.
- Isso - comentou Della Street - vai ser um problema.
- Pois vai - concordou Mason.
Mason e Della Street tiveram um jantar descansado e relaxante.
Ela tinha deixado instruções no laboratório para lhes telefonarem para o café e o chefe de mesa, sabendo que aguardavam uma chamada importante, afadigava-se por ali, mantendo um olho na mesa de Mason.
Della Street contentara-se com um pequeno bife e batatas cozidas, mas Mason mandara vir uma grande costeleta de vitela, uma garrafa de Guiness Stout, salada mexida e batata recheada.
Finalmente, o advogado empurrou o prato, terminou a cerveja, sorriu para Della através do copo e disse:
- É um verdadeiro prazer estar disponível para jantar, sentir que não se está a perder tempo e, mesmo assim, poder-se levar todo o tempo que se quiser.
“Temos o laboratório a fazer-nos a análise; temos o Paul Drake preparado para... Oh, oh - interrompeu o advogado-, ali vem o Pierre com um telefone.”
O chefe de mesa apressava-se com um ar importante em direcção à mesa, consciente do facto de que muitos olhos estavam postos nele, no momento em que ligava a tomada do telefone para o seu distinto cliente.
- A sua chamada, Mr. Mason- avisou. Este pegou no aparelho e disse:
- Daqui, Mason.
O telefonista respondeu: “Um momento, Mr. Mason”. E depois ele ouviu um rápido: “Em linha.”
- Daqui Mason - repetiu o advogado.
A voz do técnico de laboratório era quase mecânica, enquanto debitava o relatório.
- O senhor pediu uma análise de detecção de arsénico em unhas e cabelo. Ambas as reacções foram positivas.
- Quantidade? - perguntou Mason.
- Não foi feita uma análise quantitativa. Só testes simples. No entanto, posso afirmar o seguinte: Existem duas faixas de arsénico de quatro semanas entre os ataques. As unhas não fornecem uma sequência tão longa, mas revelam a presença de arsénico.
- Pode fazer uma análise que dê uma ideia da quantidade?- perguntou Mason.
- Não com o material de que disponho neste momento. Parti do princípio de que a pressa era imperativa e usei as amostras para fazer testes simples, com a finalidade de obter uma reacção ao arsénico.
- Tudo bem - disse Mason. - Muito obrigado, guarde isso para si.
- Alguma coisa a comunicar às autoridades?
- Nada - afirmou Mason positivamente. - Absolutamente nada.
O advogado desligou o aparelho, escrevinhou uma quantidade de gorjeta na conta que o chefe de mesa lhe trouxera; assinou e entregou-lhe dez dólares.
- Isto é para si, Pierre. Muito obrigado.
- Oh, eu é que agradeço - respondeu Pierre.- A ligação estava boa? Ouvia-se bem?
- Ouvia-se lindamente - afirmou Mason.
O advogado fez um sinal a Della Street. Saíram do restaurante e Mason parou na cabina telefónica, depositou uma moeda e ligou o número do Dr. Alton.
Ouviu o telefone começar a tocar e, quase instantaneamente, a voz do médico disse:
- Sim, sim. Está. Está, o que mostrava que tinha estado a aguardar ansiosamente junto ao aparelho.
- Daqui fala Perry Mason, doutor - informou o advogado. - Os testes foram ambos positivos. O do cabelo revela que houvera dois períodos de ingestão de veneno, separados por cerca de quatro semanas.
Houve um longo momento de espantado silêncio no outro extremo da linha, depois o Dr. Alton exclamou:
- Meu Deus! Mason disse:
- Ela é sua doente, doutor. O Dr. Alton declarou:
- Ouça, Mason, tenho razões para crer que sou um dos beneficiários do testamento de Lauretta Trent.
“Todo este caso vai colocar-me numa posição bastante embaraçosa. Logo que informe Lauretta Trent, serei apertado pela família, que insistirá em chamar outro médico para verificar o meu diagnóstico e, mal este confirme as nossas suspeitas, os parentes irão pelo menos insinuar que eu tenho estado a tentar apressar a minha herança.”
Mason comentou:
- Você também pode pensar um bocadinho no que sucederá se não informar o que encontrou e se houver uma quarta crise, durante a qual Mrs. Trent morra.
- Tenho estado a caminhar de um lado para o outro, pensando nisso, durante a última hora - informou o Dr. Alton. - Sei que desaprovou a extensão das medidas de precaução que tomei. Você achou que eu devia, pelo menos, confiar as minhas suspeitas à enfermeira de serviço e, visto isso... Bem, agora é só água a passar por baixo da ponte.
“Mason, eu vou para aí. Gostaria muito, mesmo muito de o ter comigo quando falasse com a minha doente. Penso que vou precisar de reforços a nível profissional e, antes que arrume o assunto, posso necessitar de um advogado. Quero que lá esteja para conferir substância aos factos. Farei com que seja amplamente pago por Mrs. Trent. Tomarei esse aspecto ao meu cuidado.”
- Qual é o endereço? - perguntou Mason.
- Uma mansão imponente em Alicia Drive, o número é o dois mil cento e doze. Vou já sair para ir lá. Se lá chegar primeiro, esperarei por si. Se for você a chegar primeiro, estacione o carro na curva da rua e aguarde por mim.
“Na verdade, existe um caminho de acesso em curva, subindo para a entrada principal, mas o único sítio para esperar sem atrair atenções é na curva.”
- Muito bem - concordou Mason. - Della Street, a minha secretária, e eu vamos para lá imediatamente.
- Provavelmente chegarei lá primeiro - disse o Dr. Alton. - Pararei o carro na curva.
- Faz alguma ideia de como irá abordar o assunto? - indagou Mason.
O Dr. Alton respondeu:
- Fui optimista em excesso durante demasiado tempo. Talvez deva admitir que fui cobarde.
- Vai-lhe contar tudo?
- Conto-lhe tudo. Que a vida dela está em perigo. Que cometi um erro de diagnóstico. Abreviando, vou desencadear a cadeia de reacções completa.
- Você é que a conhece - asseverou Mason.- Como é que ela vai encarar os factos?
- Não a conheço tão bem como isso - admitiu o Dr. Alton.
- Então não a trata já há algum tempo?
- Há anos que sou o seu médico - esclareceu o Dr. Alton-, mas não a conheço suficientemente bem para saber como irá aceitar a minha história. Ninguém conhece. Ela faz a sua própria lei.
- Parece-me interessante - comentou Mason.
- Talvez para si - disse o Dr. Alton-, mas para mim, é desastroso.
- Bom, não seja exigente consigo próprio - aconselhou Mason. - Os médicos, regra geral, não estão à espera de envenenamento homicida, e os registos provam que, virtualmente, cada caso de envenenamento por arsénico foi originalmente diagnosticado como crise gas-troentérica de consideráveis proporções.
- Bem sei. Bem sei-, concordou o Dr. Alton.- Você pode querer dourar-me a pílula, mas eu é que não a engulo. Vou encarar o touro de frente.
- De acordo - disse Mason. - Encontro-me lá consigo.
O advogado desligou; acenou para Della Street.
- Informa o Paul Drake, Della. Vamos para lá. Não podemos deixar o Dr. Alton enfrentar o animal sozinho.
Mason teve dificuldade em encontrar Alicia Drive; conduziu lentamente até que a iluminação pública mostrou uma imponente casa branca, num terreno elevado, com um caminho de acesso em curva, até à frontaria.
Um carro estava estacionado na curva, precisamente antes da curva para o caminho, com as luzes acesas. Via-se um perfil no lugar do condutor.
Mason disse:
- A não ser que eu esteja enganado, aquele deve ser o Dr. Alton.
O advogado levou o seu carro para a curva, para trás da outra máquina, e o Dr. Alton abriu quase instantaneamente a porta e dirigiu-se para o lado onde estava Mason.
- Bem - disse ele-, você fez um bom tempo.- Vamos lá.
- Metemos os dois carros no caminho de acesso? - perguntou Mason.
- Acho que sim. Eu vou à frente; você segue-me. Há lugar para estacionar em frente à casa. Isto é suficientemente grande para três carros e você deixe o seu atrás do meu.
- Vamos lá - concordou Mason.
O Dr. Alton hesitou um momento, encolheu os ombros, encaminhou-se lugubremente para o seu automóvel, ligou o motor, acendeu os máximos e abriu caminho para o acesso em curva.
Mason seguiu atrás dele, estacionou o carro e deu a volta para abrir a porta a Della; depois ajudou-a a subir os degraus para o espaçoso patamar de pedra.
O Dr. Alton carregou no botão da campainha.
Aparentemente esperava que um dos criados abrisse a porta. Recuou visivelmente quando um homem encorpado, de olhos azuis, no meio dos cinquenta, surgiu na porta.
- Oh, olá doutor-, saudou ele. E acrescentou quase instantaneamente: -Que é que se passa? Alguma coisa errada?
O Dr. Alton respondeu com dignidade:
- Passei por aqui de carro... e decidi parar para ver Mrs. Trent.
O homem voltou os especulativos olhos azuis para Perry Mason e Della Street.
- E estas pessoas? - quis saber.
O Dr. Alton, evidentemente aborrecido com o encontro, parecia não ter a intenção de fazer apresentações.
- Vieram comigo - informou sucintamente, começando a entrar.
Mason pegou no braço de Della Street, conduziu-a para o átrio de recepção, sorrindo afável mas impessoalmente e principiou a seguir o Dr. Alton por uma vasta escadaria acima.
- Hem, espere aí! - bradou o homem. - Hem, que é isto?
O Dr. Alton voltou-se, franziu as sobrancelhas, chegando a uma decisão:
- Eu pedi a estes senhores...
- Ora, este é Perry Mason, o advogado! - interrompeu o homem. - Já vi a fotografia dele dúzias de vezes.
O Dr. Alton, com rígida eficiência profissional, aquiesceu:
- Perfeitamente certo. É Mr. Perry e, caso esteja interessado, a jovem senhora é Miss Della Street, sua secretária. Eu quero que Mr. Mason fale com Mrs. Trent.
Depois, após uma imperceptível hesitação, apresentou:
- Este é Mr. Boring Briggs, cunhado da minha doente.
Este nem sequer correspondeu à apresentação.
- Diga lá o que é isto? - perguntou. - Vocês vão fazer um testamento ou quê? Que é que se passa? A Lauretta não teve outra das suas inspirações, ou teve?
O Dr. Alton respondeu:
- Prefiro que seja Mrs. Trent a dar-lhe a informação mas, se lhe alivia alguma coisa o espírito, Mr. Mason veio comigo. Mrs. Trent não o mandou chamar.
- Bom, não seja tão melindroso a esse respeito - disse Briggs. - Naturalmente fiquei um pouco alarmado. Estive fora. Cheguei há alguns minutos e, encontrando um médico e um advogado a entrarem pela casa dentro a esta hora da noite... bem, pensei que tinha direito a ser informado, é tudo.
- Nós vamos subir - informou o Dr. Alton com formal dignidade. - Por aqui, se fazem o favor.
O médico indicou a escadaria com gesto do braço e subiu-as.
Mason e Della Street seguiram-no um degrau abaixo.
Briggs ficou no fundo das escadas, vendo-os sair, com uma expressão de carrancuda contemplação.
O Dr. Alton chegou ao cimo, começou a percorrer o corredor a longos passos, depois abrandou perceptivelmente o andamento, antes de alcançar uma porta, onde bateu.
Uma mulher abriu-a.
Desta vez, o Dr. Alton fez apresentação:
- Miss Anna Fritch - disse. - Enfermeira diplomada.
- Miss Fritch, esta é Miss Della Street, secretária de Perry Mason, e Mr. Perry Mason, advogado.
Os seus olhos esbugalharam-se:
- Ora, muito prazer, muito prazer - exclamou.
O Dr. Alton abriu caminho para dentro do quarto, segurou a porta para Della Street e Perry Mason entrarem:
- Como está a doente? - perguntou.
A enfermeira fitou-o nos olhos. Baixou a voz e disse:
- Foi-se.
O rosto do Dr. Alton mostrou-se apreensivo:
- Quer dizer que ela...
- Não, não - apressou-se a enfermeira a explicar-, ela saiu para algum lado.
O Dr. Alton fez uma cara de desagrado:
- Eu dei-lhe instruções para ter cuidado com a dieta dela e...
- Mas com certeza - retorquiu a enfermeira. - Eu tomei nota. Ela comeu torrada seca, que eu própria preparei numa tostadeira eléctrica e dois ovos escalfados, que eu própria parti. Não tinham nenhum tempero. Receio até ter exagerado. Insisti para que ela comesse os ovos sem sal, explicando-lhe que o senhor não queria que ingerisse qualquer tempero, hoje.
- Mas não lhe disse para não sair? .
- O senhor não me avisou para lho dizer.
- Foi ao volante?
- Creio que foi o George Eagan, o motorista, que levou o carro.
- Há quanto tempo saiu?
- Não sei. Nem sequer sabia que o ia fazer. Não saiu por aqui. Há uma porta do quarto dela para o corredor. O senhor pode verificá-lo.
A enfermeira atravessou o compartimento em direcção a um quarto de dormir anexo e abriu a porta.
Tratava-se de um enorme quarto com tapeçarias cor-de-rosa, iluminação indirecta, uma cama muito grande com telefone ao lado, meia dúzia de cadeiras confortáveis, uma porta que dava para uma casa de banho e outra para o corredor.
- Ela não a informou de que ia sair?
- Eu não sabia de nada.
- A que horas lhe deu a torrada e os ovos?
- Certa das sete, e insisti com ela que o senhor não queria que comesse mais nada.
- Que disse quando lhe contou que eu suspeitava de uma alergia e queria amostras do seu cabelo e unhas?
- Mostrou-se muito cooperante. Disse que estava interessada em descobrir o que lhe estava a causar perturbações, que, de alguma forma, não se convencera de que os seus problemas fossem provocados por algo que tivesse comido. Supunha que se tratava de alguma forma de alergia.
O Dr. Alton disse:
- É importante, muito importante mesmo que eu fale com ela. Não sabe quando regressará?
A enfermeira abanou a cabeça.
- Nem a que horas saiu?
- Não, doutor, é mesmo como lhe disse. Vim cá vê-la, depois de ter ceado e não estava aqui.
- Não estará dentro de casa?
-Não, perguntei e alguém me disse que se tinha metido no carro e saído.
O Dr. Alton dirigiu-se ao quarto e fechou a porta. Depois, cerrou a do corredor e voltou-se para Anna Fritch.
- Você desconfiou da razão pela qual eu queria cabelo e aparas de unhas? - perguntou.
Os olhos dela evitaram os seus.
- Desconfiou? - insistiu o Dr. Alton.
- Fiquei com uma ideia.
- Suspeitou?
- O pedido, juntamente com as suas instruções sobre a dieta... Bem, eu própria preparei a comida e não deixei ninguém aproximar-se dela.
- Nesse caso, suspeitou?
- Francamente, sim.
A porta do corredor abriu-se e Boring Briggs, acompanhado por outro homem, entraram no compartimento.
- Exijo que me digam o que é que se passa! - bradou Briggs.
O Dr. Alton fitou os dois homens com frio desdém:
- Estou a dar instruções à enfermeira.
- E, para isso, precisa de um advogado? - perguntou Briggs.
O médico disse para Mason:
- Mr. Mason, este é o outro cunhado, Gordon Kelvin.
Este, um homem alto, com ar distinto, no fim da casa dos cinquenta, que dava a impressão de ser um actor frustrado, adiantou-se um passo, dobrou-se ligeiramente pela cintura e estendeu a mão com grande dignidade:
- Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Mason - cumprimentou, acrescentando após um momento - e permite-me que pergunte o que estão aqui a fazer?
Mason respondeu:
- Eu vim ver Mrs. Trent.
- É uma hora muito fora do vulgar para atender a uma chamada - comentou Kelvin.
O sorriso de Mason desarmou-o. Respondeu:
- Tenho conseguido ordenar a minha vida segundo padrões não convencionais e já não me reprimo de fazer o que tenho que fazer simplesmente por ser invulgar, fora do comum, diferente ou não convencional.
O advogado dirigia-se aos dois irados cunhados.
Os homens trocaram um olhar.
- Não é ocasião para brincadeiras - afirmou Kelvin.
- Eu não estou a brincar. Estou a ser objectivo - contestou Mason.
Briggs encarou o Dr. Alton:
- Será que quer, - perguntou - de uma vez por todas, dizer-nos a razão disto?
O Dr. Alton hesitou uma fracção de segundo, depois esclareceu:
- Sim, eu explico-lhe a razão para isto. Fiz um diagnóstico errado da doença de Lauretta Trent.
- Fez o quê!? - exclamou Briggs atónito.
- Isso mesmo.
- Um diagnóstico errado? - indagou Kelvin.
- Exactamente.
- E admite isso?
- Sim.
De novo os homens trocaram um olhar.
- Quererá fazer o favor de nos dizer qual a verdadeira natureza da doença? - perguntou Briggs.
- Queremos saber se é... séria - acrescentou Kelvin.
- Atrevo-me a afirmar que querem - retorquiu o Dr. Alton, secamente.
Briggs insistiu:
- As nossas mulheres saíram mas esperamos que voltem a todo o momento. Talvez elas estejam numa posição um pouco mais favorável no que diz respeito a... bem... extorquir-lhe a informação.
- A exigir uma explicação - adicionou Kelvin.
- Muito bem - respondeu o Dr. Alton, zangado. - Vou dá-la a vocês. Cometi um erro de diagnóstico. Pensei que a vossa cunhada sofria de perturbações gastroentéricas, provocadas pela ingestão de comida em mau estado.
- E diz agora que não é um diagnóstico correcto? - perguntou Briggs.
- Não - respondeu o Dr. Alton. - Não era.
- Qual é o diagnóstico correcto? - indagou Gordon Kelvin.
- Alguém lhe administrou deliberadamente arsénico, tentando envenená-la - afirmou o médico.
No chocado silêncio que se seguiu, duas mulheres entraram de repente na sala, duas mulheres que se pareciam muito, que gastavam muito tempo e dinheiro em salões de beleza e que, aparentemente, tinham nesse dia estado num.
Estavam tão fortemente espartilhadas que se mantinham numa pose rigidamente incómoda, com o queixo erguido e belas cabeleiras.
O Dr. Alton apresentou:
- Mrs. Briggs e Mrs. Kelvin, Mr. Mason e Miss Street, secretária de Mr. Mason.
Mrs. Kelvin, talvez alguns anos mais velha do que a irmã, mas senhora de inteligentes olhos inquisidores, tomou imediatamente a iniciativa:
- Que é que se passa? - perguntou ela. Boring Briggs respondeu:
- O Dr. Alton acabou de nos dizer que tinha cometido um erro no diagnóstico da doença de Lauretta, que não se trata de intoxicação alimentar; trata-se de envenenamento por arsénico.
- Arsénico! - exclamou Mrs. Kelvin.
- Asneira e disparate! Se ele cometeu um erro, bem podia ter cometido dois. Pessoalmente, acho que Lauretta precisa é de outro médico.
O Dr. Alton afirmou secamente:
- Podia consultar Lauretta a esse respeito. Boring Briggs quis saber:
- Olhe lá, isto tudo vai aparecer nos jornais?
- Não, a não ser que vocês o permitam - respondeu o médico.
- Você vai comunicar à Polícia?
- Por enquanto, não - afirmou Mason. Houve um momento de silêncio. Mason prosseguiu, calmamente:
- Em grande medida, isso é convosco, amigos. Eu presumo que se trata de uma situação a que não gostariam de dar publicidade. Compreendo também que receberam a informação com sentimentos de confusa emoção, mas estamos agora a encarar os factos, e não se deve discuti-los.
- Como é que sabe que são factos? - perguntou Briggs.
Mason olhou-o directamente e disse friamente:
- Factos laboratoriais. Prova positiva.
- Não consegue provar uma coisa que se tenha passado dessa forma - afirmou Briggs.
Mason contestou:
- Algo que não é do domínio comum é que o arsénico tem afinidade pelas unhas e o cabelo. Uma vez tendo penetrado no sistema, atinge as unhas e o cabelo e lá permanece por muito, muito tempo. Ao fim da tarde de hoje, o Dr. Alton mandou tirar amostras do cabelo e unhas de Lauretta Trent. Eu mandei, pessoalmente, fazer uma análise num laboratório que é altamente competente.
“A resposta foi envenenamento por arsénico. No cabelo, puderam mesmo identificar os intervalos do envenenamento.
“Ora bem, o Dr. Alton é o médico pessoal de Lauretta Trent. Compete-lhe fornecer esta informação.”
- Pela razão - disse este - de eu estar a tentar salvar a vida da minha doente. Creio que a tratei durante tempo suficiente para lhe conhecer o temperamento. No momento em que lhe contar que tem sido vítima de envenenamento por arsénico, vão acontecer coisas cá em casa.
- Parece-me bem que sim - anuiu Mrs. Briggs.- Lauretta irá aos arames.
- Uma dose de veneno de arsénico - prosseguiu o médico - pode ser mais ou menos acidental; duas doses indicam uma tentativa deliberada de homicídio. Aparentemente, houve três.
A sua declaração foi sublinhada pelo silêncio. Um momento depois, Mrs. Kelvin disse:
- Esses testes serão seguros, isto é, haverá hipótese de algum engano?
- São seguros - confirmou Mason. - Não há hipóteses de engano.
Mrs. Briggs informou:
- Daquela primeira vez que esteve doente, foi depois de ter comido toda aquela comida espanhola, George cozinhou-a no grelhador do pátio.
- Todos nós a comemos - disse Mrs. Kelvin.- Quer dizer, na primeira vez.
- E só a Lauretta adoeceu - acrescentou o seu marido.
O Dr. Alton esclareceu:
- Comida espanhola seria um meio ideal para concretizar uma tentativa de envenenamento por arsénico.
- Da segunda vez que adoeceu, - continuou Mrs. Briggs - o George tinha estado a preparar mais cozinhados fora de portas.
- Quem é o George? - perguntou Mason.
- George Eagan, o motorista - explicou Gordon Kelvin.
- E também é cozinheiro? - indagou Mason.
- Faz quase tudo e substitui quase toda a gente. Está junto de Lauretta a maior parte do tempo.
- Demasiado tempo, se querem a minha opinião - insinuou Mrs. Kelvin. - O homem está positivamente a tentar dominar a sua maneira de pensar.
Mason perguntou:
- Sabem, por acaso, se ele é mencionado no testamento dela?
Trocaram olhares chocados.
- Alguém conhece os termos do seu testamento?
- insistiu Mason.
Houve novos olhares e um significativo silêncio.
- Aparentemente, - esclareceu Mason - Delano Bannock era o advogado de Lauretta Trent em seu tempo de vida. Sabem se ela mandou elaborar algum testamento no seu escritório, ou se foi a outro advogado, após a morte de Bannock?
Kelvin explicou:
- Lauretta guarda zelosamente os seus assuntos privados. Talvez ela ache que tem demasiadas pessoas de família a viver aqui consigo. Tornou-se muito sigilosa quanto aos seus assuntos pessoais. - Assuntos financeiros - acrescentou Mrs. Briggs.
- Tanto pessoais como financeiros - juntou Mrs. Kelvin.
Mason disse:
- Tenho motivos para crer que a situação é, neste momento, de alguma forma crucial.
- Como é que conseguiu uma amostra do cabelo e das unhas dela? - quis saber Kelvin.
- Dei instruções nesse sentido à enfermeira - respondeu o Dr. Alton.
Kelvin voltou-se para Anna Fritch:
- O George Eagan sabia que você ia tirar amostras do cabelo e das unhas?
- Ela disse-lho - respondeu Anna Fritch. - Estava a babar-se de entusiasmo com a ideia de que a sua doença pudesse resultar de uma alergia. Parecia com óptima disposição.
- Uma alergia? - estranhou Kelvin. O Dr. Alton esclareceu:
- Eu expliquei à enfermeira Fritch que queria fazer alguns testes a alergia, que havia uma possibilidade de que os sintomas da doente pudessem ter sido uma violenta e aguda reacção alérgica. Pedi-lhe que obtivesse amostras do seu cabelo e unhas e que pretextasse junto da doente que eu queria as unhas porque lhe ia dar um remédio que lhe causaria irritação de pele e não queria que ela se coçasse. Também disse que a perturbação digestiva que ela tivera podia ter sido provocada por reacção alérgica a determinado tipo de pêlos de roupa - essas coisas acontecem, como sabem.
Kelvin comentou com dignidade:
- Parece-me que, em vez de ficarmos para aqui a zangar-nos com o Dr. Alton, devemos é agradecer-lhe e começar a fazer alguma coisa.
- Fazer o quê? - perguntou Mrs. Briggs.
- Para já, tentar localizar Lauretta. Mrs. Kelvin disse:
- Ela saiu com aquele motorista dela. Só Deus sabe onde é que foram ou quando regressarão. O que é que vamos fazer para tentar encontrá-la? Chamar a Polícia?
Gordon Kelvin respondeu:
- Claro que não. Contudo, nós sabemos de alguns lugares onde ela pode estar. Há vários restaurantes que frequenta. Tem alguns amigos a quem pode estar a visitar. Sugiro que nos agarremos ao telefone e comecemos a fazer ligações, com muito, muito cuidado para não dizermos nada que possa indicar que haja alguma urgência naquilo que estamos a tentar fazer.
“Vocês as duas, miúdas, são provavelmente mais indicadas para o fazer. Comecem a ligar para os amigos dela, digam casualmente que é um bocado tarde para chamadas, mas que querem falar com Lauretta.
“Se acontecer ela estar lá, falem-lhe descontraidamente. Digam-lhe que é preciso vir para casa imediatamente, que... a irmã não se está a sentir lá muito bem.
“Seja qual for a irmã que consiga localizá-la, a outra é que adoeceu, e peçam a Lauretta para vir para casa imediatamente.
“Dessa maneira, o motorista não pensará que suspeitamos dele e não tentará... bem, não tentará nada.”
- Tal como? - perguntou Briggs.
- Há muitas coisas que ela poderia tentar-insinuou Mrs. Kelvin.
- Bom, não queremos que tenha suspeitas: queremos que venha cair direitinho na nossa armadilha - insistiu Kelvin.
- Que armadilha? - indagou Mason. Olharam-no por um momento, depois Kelvin perguntou:
- Ele é o único que a podia ter envenenado, não está a ver?
- Não, não estou - retorquiu Mason. - Consigo ver bases para suspeita, mas vai um longo caminho da suspeita à autêntica prova. Sugiro que sejam muito cautelosos antes de começarem a falar em armadilhas.
- Compreendo-o - concordou Kelvin. - No entanto, vamos principiar a tentar encontrá-la e trazê-la para casa. Aqui, pelo menos, estará em segurança.
- Não tem estado - comentou Mason.
- Pois, mas agora vai estar! - exclamou Kelvin.
- Concordo consigo - disse o Dr. Alton. - Vou-lhe explicar exactamente o que sucedeu; vou pôr as cartas na mesa, e vou tomar medidas para que ela passe a ter enfermeiras vinte e quatro horas por dia e que toda a comida que ingira seja tomada sob a supervisão dessas enfermeiras.
- Acho bem - anuiu Kelvin. - Parece-me que ninguém vai objectar a isso.
Virou-se para os outros.
- Ou vão? - perguntou. Mrs. Briggs discordou:
- Oh, deixem-se de asneiras! Vocês não a podem meter numa virtual prisão como essa, ou mantê-la em isolamento ou qualquer dessas coisas; uma vez que o Dr. Alton lhe conte, ela poderá pôr-se em guarda. Afinal, ela tem idade suficiente para viver a sua própria vida. Não precisa de ser isolada de todos os seus prazeres, simplesmente porque o Dr. Alton afirmou que alguém tentou envenená-la.
O médico bradou irado:
- Poderá encurtar essa frase, deixando de fora as palavras “porque o Dr. Alton disse”, diga antes “simplesmente porque alguém tentou envenená-la”.
Mrs. Briggs retorquiu:
- Não estou acostumada a encurtar as minhas frases.
Mason reparou na expressão colérica do Dr. Alton:
- Acho que nos vamos embora, doutor - disse ele.
- Bem, eu vou ficar à espera, para ver se conseguem entrar em contacto com a minha doente - respondeu o médico.
O telefone tocou.
- É a Lauretta a ligar - disse Mrs. Kelvin. - Atenda, enfermeira, e depois deixe-me falar com ela.
A enfermeira atendeu o telefone.
- É para Mr. Perry Mason - disse ela. - Desculpem - disse Mason aos outros, pegando no aparelho. - Sim, estou - exclamou.
A voz de Virgínia Baxter chegou-lhe pelo fio:
- Mr. Mason, acha bem que eu vá ter com Lauretta Trent? - perguntou.
Os olhos de Mason vigiaram brevemente os rostos curiosos dos que estavam no compartimento.
- Onde? - indagou ele.
- Num motel, acima de Malibu.
- Quando?
- Já está atrasada. A princípio pensei que era o que devia fazer mas, depois de cá chegar, já não tive tenta certeza.
- Onde é “cá”?
- Ao motel.
- Onde?
- Aqui... Oh, estou a percebê-lo. É o “Saint's Rest” e eu estou na cabina catorze.
- Tem telefone?
- Sim. Em todas as cabinas.
- Obrigado - disse Mason. - Voltarei a ligar. Aguarde.
O advogado desligou.
Mason fez um sinal a Della Street, inclinou-se para o grupo e disse:
- Se nos dão licença, vamos indo. O Dr. Alton advertiu:
- Eu posso ter que o contactar mais tarde, Mr. Mason.
- Ligue para a Agência de Detectives Drake - respondeu Mason. - Eles estão abertos vinte e quatro horas por dia. Passam-me o recado.
Mason encaminhou-se para a porta. Mrs. Briggs disse:
- Antes de sair, Mr. Mason, quero que saiba que estamos absolutamente aterrorizados com aquilo que o Dr. Alton nos disse e... estamos inclinados a pensar que há aí mais do que aparece à superfície.
Mason fez uma vénia:
- Os senhores têm, naturalmente, o direito de ter a vossa opinião. A minha única resposta é desejar-vos uma boa noite.
O advogado desviou-se, para Della o preceder através da porta.
Della Street disse:
- Presumo que aquela chamada era importante, já que te levou a deixar a reunião de contacto.
- Essa chamada - esclareceu Mason - era de Vir-ginia Baxter. Aparentemente, Lauretta Trent esteve em contacto com ela e marcou um encontro num motel chamado "Saint's Rest”, algures lá para cima, na região de Malibu.
“O motel tem telefone e a nossa cliente está na Cabina Catorze.
“Assim, vamos ligar para ela na primeira oportunidade- prosseguiu Mason. - Agora preciso de encontrar uma cabina telefónica, mas quero afastar-me o suficiente da casa de Lauretta Trent, de forma que nenhum dos empreendedores cunhados repare em mim, no caso de desatarem a procurar Lauretta.”
- Que é que pensa que se vai seguir? - perguntou Della.
- Não sei, - admitiu Mason - mas é óbvio que existe uma ligação entre os testamentos lavrados no escritório de Bannock e a atitude dos vários herdeiros potenciais.
Della comentou:
- É bastante conveniente para o motorista. Herda ao abrigo do testamento. Trata de todos os cozinhados fora de portas. Lauretta Trent gosta muito de comida condimentada e, de vez em quando, tem uma violenta perturbação digestiva. Talvez nada que, por si só, seja fatal, mas... bem, uma violenta náusea pode implicar um ataque cardíaco.
- Exactamente, - concordou Mason.
- Há uma estação de serviço e uma cabina telefónica, ali em baixo, na rua lateral - exclamou Della Street. - Vi-a de relance, quando passámos por lá.
- É o que nos convém - disse Mason. Inverteram a marcha, dirigiram-se para a rua lateral e para a estação de serviço.
Della entrou na cabina, ligou para as Informações e obteve o número do “Saint's Rest Motel”, enquanto Mason dava instruções ao empregado para encher o depósito de gasolina.
Estava precisamente a chegar à cabina, quando Della conseguiu ligação à Unidade 14.
Ela saiu, enquanto Mason entrava e lhe tirava o telefone da mão.
- Está, Virgínia? - perguntou, ao ouvir a voz da sua cliente.
- Sim. É Mr. Mason?
- Sou. Conte-me o que se passou. Virgínia respondeu:
- Bem sei que me disse para me manter em casa, mas o telefone tocou e era Lauretta Trent. Perguntou se me importava de ir ter com ela hoje, para discutirmos um assunto muito importante e muito confidencial. Respondi-lhe que não era conveniente para mim e que deveria ficar em casa.
“Então ela disse-me que seria muito vantajoso para os meus interesses. Que pagaria todas as minhas despesas e me daria quinhentos dólares. Mas ficava implícito que eu me absteria de comunicar fosse com quem fosse. Deveria limitar-me a ir até lá e esperar por ela.”
- E fez isso? - perguntou Mason.
- Fiz. Esses quinhentos dólares e todas as despesas pareceram-me tão grandes como uma montanha de ouro.
“Pensei que devia ter-lhe telefonado, mas ela especificou que eu não devia entrar em contacto com ninguém. De forma que nem uma alma deste mundo soubesse onde eu estaria.”
- E depois? - perguntou Mason.
- Vim para cá e aqui estou há mais de uma hora, sem que ela apareça ou me mande algum recado. Comecei a pensar no facto de o ter deixado ficar mal e assim decidi telefonar-lhe e dizer-lhe onde estou.
“Liguei para o escritório de Paul Drake. Disseram-me que o senhor estava em casa de Lauretta Trent, por isso liguei para lá e a enfermeira chamou-o ao telefone.”
- Aguente-se - aconselhou Mason. - Nós estamos a caminho do “Saint's Rest Motel". Se Lauretta Trent aparecer antes de nós chegarmos, detenha-a aí.
- Mas como é que a posso deter?
-Arranje alguma desculpa - sugeriu Mason. - Diga-lhe que tem uma informação muito importante para lhe dar. Se tiver de o fazer, conte-lhe que eu estou a dirigir-me para aí.
“Diga-lhe que quer falar com ela em particular. Conte-lhe toda a história, começando pela sua prisão e tudo acerca das cópias a papel químico, dos arquivos do escritório de Delano Bannock.”
- Acha que a minha prisão teve alguma coisa que ver com isto?
- Estou muito convencido disso - respondeu Mason. - Parece-me que a intenção era colocá-la numa tal posição que o seu testemunho pudesse ser desacreditado, se isso se tornasse necessário.
- Muito bem, - acedeu ela - esperarei.
- Onde é que está?
- Aqui, no meu quarto do motel. i - Há quanto tempo está aí?
- Mais de uma hora.
- E o seu carro?
- Está lá fora, no parque de estacionamento.
- Óptimo - disse Mason-, vamos já para aí.
O advogado desligou, entregou o seu cartão de crédito ao empregado da estação de serviço e disse para Della Street:
- Vamos lá, Della, vamos começar a desmaranhar os fios.
Conduziu para Santa Mónica, depois ao longo da praia, onde a alta e colérica rebentação se quebrava, à sua esquerda. Mason abrandou para procurar a estrada transversal, depois voltou para um caminho sujo que se ramificava e subia numa série de curvas coleantes.
Mason acelerou, segurando o volante com hábil perícia, mantendo-se bem dentro dos limites de segurança, poupando no entanto cada precioso segundo possível.
Enquanto o carro de Mason farejava o seu caminho pela tortuosa estrada, Della Street perguntou:
- O que é que vais dizer a Lauretta Trent se ela lá chegar antes de nós, Perry?
- Não sei - respondeu Mason. - Terei de me recordar de que ela não é minha cliente.
- O motorista estará, provavelmente, com ela. Mason concordou com um aceno de cabeça.
-E, se ele descobrir que o Dr. Alton acaba de alterar o seu diagnóstico e que sabe que ela foi sujeita a envenenamento por arsénico, o homem pode tornar-se perigoso. Lauretta Trent pode nunca chegar a regressar a casa.
Mason comentou:
- Se puder falar com ela em particular, posso pura e simplesmente colocá-la ainda em maior perigo, por lhe contar sobre o veneno. Não tenho qualquer obrigação de lhe contar seja o que for; nem de calar nada. Posso, é claro, pedir-lhe para ligar para o Dr. Alton e deixar que seja ele a dar-lhe as novidades.
- E então?
- Nesse caso - prosseguiu Mason -, George Eagan, o motorista, não saberia, necessariamente, nada sobre o que sucedeu. Mas, se ela se interessa o suficiente por ele para o fazer beneficiário do seu testamento, provavelmente será preciso mais do que uma mera conversação telefónica para a voltar contra o homem; e, se eu lhe disser alguma coisa, voltar-se-á contra mim.
- Mas o Dr. Alton também é beneficiário do testamento.
- Isso nós não sabemos.
- Ele parece pensar que sim - disse ela. Mason sorriu e retorquiu:
- Também pensou que os primeiros ataques foram intoxicação alimentar. Primeiro vamos ver o que podemos fazer para cuidar dos interesses da nossa cliente. Ela é a nossa responsabilidade prioritária. Se Lauretta Trent quer encontrar-se com ela, terá as suas razões. Vamos descobrir quais são e tirá-la de lá.
A estrada estreitou-se num local plano e, a curta distância, Mason distinguiu as luzes do motel.
- Estranho lugar para um motel - comentou Della Street.
- Destina-se a pessoas que vão lá acima ao lago andar de barco e a pescadores - respondeu Mason.- Não há simplesmente espaço para um motel na estrada principal. É só oceano de um lado e promontório alcantilado do outro.
Mason parou o carro no parque de estacionamento e encaminharam-se para a longa linha de cabinas, em direcção ao número catorze.
Bateu à porta.
Virgínia Baxter escancarou-a:
- Meu Deus, como estou contente por o ver! - exclamou. - Não querem entrar?
- Onde está Lauretta Trent? - perguntou Mason.
- Não voltei a ouvir falar dela, nem uma palavra.
- Mas ela pediu-lhe que viesse aqui?
- Sim.
- Porquê?
- Disse que tinha uma coisa para me dizer. Algo da maior importância para mim.
- E quando é que teve essa conversa?
- Bem, deixe ver... Saí do seu escritório e fui a uma agência dos correios que não fica muito longe do meu apartamento. Enviei a carta para mim mesma, por correio registado. Tomei um leite com malte, regressei ao meu apartamento e não estava lá há... oh, uma hora ou hora e meia, quando tocou o telefone e Lauretta Trent me disse quem era e me pediu que me encontrasse com ela.
- Cá em cima, neste motel?
- Isso mesmo. :
- Deu-lhe indicações para cá chegar ou conhecia o lugar?
- Não, ela disse-me exactamente como conduzir até cá e quis que lhe garantisse que viria imediatamente, sem dizer a ninguém.
- A que horas é que ela disse que se encontraria consigo?
- Não me deu a hora certa, mas declarou que estaria cá dentro de uma hora depois de eu ter chegado.
Mason perguntou:
- Você encontrou-se com Lauretta Trent, quando ela foi ao escritório do advogado onde trabalhava?
- Sim.
- É testemunha de um dos seus testamentos?
- Parece-me que são dois, Mr. Mason, e não me lembro especificamente de ter servido de testemunha, mas recordo-me de os ter redigido - isto é, dactilografado - e de neles haver algumas disposições peculiares, algo relativo aos parentes - havia qualquer coisa fora do comum sobre eles. Ela não confiava na família, isso eu sei - quer dizer, sentia que eles estavam só à espera que morresse e que o seu interesse nela era puramente egoísta. Tenho estado a esforçar-me para recordar o que é que estava, pelo menos num dos testamentos, mas, de algum modo, simplesmente não consigo clarificar o espírito a esse respeito, tenho só uma vaga lembrança... O senhor deve saber que nós lavrávamos muitos testamentos lá no escritório.
Mason exclamou:
- Neste preciso momento, não estou muito preocupado com o facto de você se lembrar dos testamentos, mas tentando descobrir se se recorda da voz de Lauretta Trent.
- Da voz dela? Não, não me recordo. Tenho somente uma ligeira lembrança do seu aspecto, uma mulher sobre o alto, esguia, com um cabelo que se estava a pôr cinzento... figura nada má... sabe o que quero dizer, não era pesada mas... cheia.
- Muito bem - insistiu Mason -, não se lembra de nada sobre a voz dela?
- Não.
- Então como é que sabe que esteve a falar com Lauretta Trent ao telefone?
- Ora, porque ela mo disse... Oh... oh, compreendo.
- Por outras palavras, - disse Mason - uma voz feminina ao telefone declarou que você estava a ouvir Lauretta Trent; que devia vir aqui; que ela viria cá ter consigo dentro de uma hora após cá ter chegado.- Bom, há quanto tempo cá está? - Duas horas... duas horas e meia.
- Registou-se com o seu próprio nome?
- Sim, com certeza.
- E ficou com este quarto?
- Sim.
- E estacionou você mesma o carro?
- Sim, lá fora, num parque de estacionamento.
- Vamos lá vê-lo - sugeriu Mason.
- Mas porquê?
- Porque - declarou-lhe Mason - estamos a verificar tudo. Isto não me agrada. Você devia ter seguido as minhas instruções e ter-me contactado antes de sair do seu apartamento.
- Mas ela insistiu em que eu não contasse a ninguém e que me daria quinhentos dólares, bem como pagaria todas as minhas despesas, se eu seguisse as suas instruções e, tal como lhe disse, esses quinhentos são para mim uma grande quantia.
Mason censurou:
- Ela podia ter-lhe prometido um milhão de dólares, igualmente. Se não o receber, tanto lhe dá que seja muito ou pouco.
Virgínia abriu caminho para fora em direcção ao parque de estacionamento.
- É mesmo acolá. Ora, que estranho! Pensei que o tivesse deixado naquela fila marcada no chão. Quase que tenho a certeza.
Mason aproximou-se do carro:
- Tem lanterna eléctrica aqui no carro? - perguntou.
- Não, não tenho. Mason disse:
-Eu tenho uma no meu. Vou buscá-la. Acha que este não foi o lugar onde deixou o carro?
- Mr. Mason, tenho a certeza de que não foi. Recordo-me de ter encostado o pára-choques exactamente contra aquele poste de pedra. Isso quer dizer que me encontrava na parte direita do parque.
- Não toque em nada - advertiu Mason. - Fique aqui. Eu vou dar uma vista de olhos. Você foi vítima de armadilha uma vez e conseguiu safar-se. Talvez agora não tenhamos tanta sorte.
O advogado foi ao seu carro, tirou uma lanterna do compartimento das luvas, voltou ao carro de Virgínia Baxter e olhou cuidadosamente para dentro.
- Tem aí a chave? - pediu.
Virgínia Baxter entregou-lha. Mason abriu a mala, olhou para dentro dela e disse:
- Parece tudo em ordem.
Caminhou à volta do carro, depois deteve-se subitamente:
- Olá, o que é isto! - exclamou.
- Oh céus!-sobressaltou-se ela - o guarda-lamas está todo amolgado e... Repare na frente do pára-choques, e tem uma peça partida...
Mason ordenou:
- Meta-se no carro, Virgínia. Ligue o motor. Obedientemente, ela saltou para dentro do carro, deu volta à chave de ignição, fez arrancar o motor. Mason disse-lhe:
- Saia, dê a volta e venha pela entrada do parque de estacionamento.
Virgínia Baxter ligou os faróis e constatou:
- Só funciona uma das luzes.
- Não faz mal, - exclamou Mason - continue, saia, dê a volta e regresse pela entrada.
Mason pegou no braço de Della Street, apressando-a em direcção ao seu próprio automóvel.
- Será melhor ires lá para dentro, Della, queremos que isto pareça tão plausível quanto pudermos. Estende-te no assento e agarra-te bem.
Virgínia conduziu o carro para fora do parque, deu uma volta larga e voltou pela entrada.
O carro de Mason, correndo de luzes apagadas, dirigiu-se à entrada, deu uma volta rápida, no momento em que Virgínia Baxter regressava.
Os faróis do carro dela apanharam o dele. Travou a fundo. Os pneus gincharam num protesto. Depois ouviu-se um choque e o ruído de vidros a partirem-se, quando o carro de Mason atingiu o dela.
Abriram-se portas em várias cabinas do motel. A do escritório também e a gerente apareceu a correr para ficar a olhar a cena do acidente. Então ela dirigiu-se a eles a passos largos.
-Deus do Céu, que aconteceu?
Virgínia Baxter disse:
- O senhor... Porque é que não ligou os faróis... Não me avisou...
Mason declarou:
- Fiz uma asneira. Devia ter passado pela saída. A gerente virou-se para encarar Perry Mason:
- A culpa é sua - declarou. - Não consegue ver aquele sinal que ali está? Diz lá “Entrada”, tão claro como o dia. Este é o quarto acidente que aqui tivemos e foi por isso que mandei lá pôr aqueles grandes sinais e derrubar uma parte da parede, para que a “Saída” ficasse do outro lado do parque.
- Desculpe - disse Mason. - A culpa foi minha. A gerente voltou-se para Virgínia Baxter:
- Está ferida?
- Não - respondeu esta. - Felizmente, eu rolava devagar e travei logo.
A gerente voltou a encarar Mason:
- Esteve a beber? - perguntou. Mason fitou-a de lado e disse:
- Não.
- Bom, parece-me que o sinal é tão claro como o dia. Agora, vamos ver, querida, está cá registada no hotel, não está? Cabina Catorze?
- Estou.
- Bem - ofereceu-, se quiser que eu seja sua testemunha, é só chamar-me. Eu vou ligar para a patrulha da estrada.
- Não será necessário - retorquiu Mason. - A culpa foi minha. Aceito a responsabilidade.
- Eu diria que sim. Você esteve a beber. Não está cá registado, pois não?
- Gostaria de arranjar um quarto.
- O pior é que não temos nenhum vago. E não os alugamos a pares que bebam. Vocês esperem aqui e não tentem mover esses carros. Vou chamar a Polícia.
A gerente voltou-se e encaminhou-se para o escritório.
- Que raio - perguntou Virgínia Baxter, puxando Mason para o lado - está o senhor a tentar fazer?
- Seguro - explicou-lhe Mason. -Seguro?- exclamou ela.
- Exactamente - esclareceu Mason. - Agora, se alguém lhe perguntar como é que o seu carro foi amachucado, você pode contar isto. E, o que é mais, tem testemunhas para prová-lo. É melhor ir ter com a sua amiga gerente, veja se consegue pedir-lhe uma vassoura emprestada e varreremos estes vidros aqui; peça-lhe um pano do pó e mergulhe-o em qualquer balde do lixo. Você tem um farol e eu tenho outro. Parece que vamos ter de passar cá a noite, a não ser que eu tenha que fazer e mande virem cá trazer-me um carro alugado. Nesse caso, dou-lhe uma boleia para casa.
- E o seu carro? - quis ela saber. Mason sorriu e disse:
- Depois de vir a Polícia, vamos tentar pôr o seu de novo no parque de estacionamento. No que diz respeito ao meu, parece-me que terei de pedir na garagem para mo rebocarem.
Harry Auburn, o agente de trânsito que foi chamado pela gerente, era muito educado, muito eficiente e muito impessoal.
- Como é que isto aconteceu?
- Eu ia a sair - declarou Mason, e esta senhora ia a entrar.
A gerente disse num tom beligerante:
- Ele infringiu claramente as regras de trânsito deste parque. Há ali um sinal que diz “Saída”, com dois pés de altura.
Mason não replicou.
O agente de trânsito olhou-o.
O advogado esclareceu:
- Vou contar os factos. Eu estava a conduzir para fora do parque. Ia sair para a estrada por esta abertura. A senhora vinha a entrar.
- Não viu este sinal que diz “Só Entrada”? - perguntou o agente.
Mason respondeu:
- A minha companhia de seguros deu-me instruções para, em caso de acidente, não dizer nada que implique admitir, de qualquer modo, a minha responsabilidade. Por conseguinte, devo avisá-lo de que estou convenientemente coberto pelo seguro e que os factos falam por si.
- Ele esteve a beber - insistiu a gerente.
O agente observou Mason interrogadoramente.
- Bebi um cocktail antes de jantar, há duas horas explicou Mason. - Não tomei mais nada desde então.
O agente dirigiu-se ao seu carro, trouxe um balão de borracha:
- Importa-se de soprar aqui? - pediu a Mason.
- Claro que não - respondeu ele. Soprou para o balão.
O agente levou-o a uma máquina de testes e, alguns minutos depois, regressou e disse:
- Você não bebeu álcool que chegasse para registar.
- Está bêbedo - recomeçou a gerente. Mason sorriu-lhe.
- Ou pode estar drogado - insistiu ela.
Mason entregou ao agente um dos seus cartões:
- Sou fácil de localizar - informou.
- Estou a reconhecê-lo - declarou o agente - e, é claro, verifiquei o seu nome na licença de condução.
- Parece-me que é tudo o que é preciso fazer aqui - disse Mason. - Vou precisar de uma grua.
- Mando-lhe vir uma pelo telefone - ofereceu o agente deslocando-se para o seu carro, metendo-se no lugar, pegando no microfone do rádio e chamando um número.
Passado um bocado, ouviu-se uma voz no altifalante. O agente baixou o volume, fechou os vidros do carro, de forma que a sua voz se tornou inaudível, no exterior. Falou durante dois ou três minutos, desligou depois o microfone e voltou para junto de Virgínia Baxter.
- Onde é que tem estado esta noite, Miss Baxter? perguntou.
- Conduzi desde o apartamento até aqui ao motel.
- Parou pelo caminho?
- Não.
- Onde fica o seu apartamento?
- No mesmo endereço da minha carta de condução- 42 Eureka Arms Apartments.
- Teve algum problema no caminho? - indagou o agente.
- Porquê? Não. Porque é que pergunta? O agente explicou:
- Houve um acidente muito feio na estrada da costa. George Eagan, um motorista, estava a conduzir Mrs. Lauretta Trent, em direcção a sul, quando voltou sem controlo, empurrou o carro da Trent para fora da estrada, bateu com o guarda-lamas traseiro, atirando o carro às cambalhotas para o oceano. Lauretta Trent afogou-se. Ainda não lhe recuperaram o corpo.
“A descrição do carro que causou o acidente condiz com a do seu. - Tem a certeza que não esteve a beber?”
- Faça-lhe um teste - sugeriu Mason.
- Tem alguma objecção a isso? - perguntou o agente.
Ela olhou para Mason com olhos arregalados de susto.
- Nenhuma em particular - disse Mason.
O agente nem se voltou, mantendo o olhar fito em Virgínia Baxter.
- Não - respondeu ela. - Faço o teste.
- Sopre neste balão - mandou o homem. Virgínia Baxter assim fez. O polícia retirou-se para o seu carro, voltou a falar ao microfone durante um bocado, depois regressou.
- Tomou alguma droga hoje, Miss Baxter?
- Hoje não. Tomei duas aspirinas ontem à noite.
- E foi tudo?
- Foi.
- A que horas saiu do seu apartamento?
- Bem, vejamos, foi há cerca de... bem, provavelmente três horas.
- E veio directamente para cá?
- Sim.
- Há quanto tempo está aqui?
- O senhor pode verificar a hora de registo - sugeriu Mason.
A gerente disse:
- Nós não registámos a hora - só a data, mas acho que ela está cá há... bom, digamos uma hora a hora e meia.
- Mas eu estou cá há mais tempo do que isso - afirmou Virgínia.
- Bom, eu quase que juro que é uma hora a hora e meia - insistiu a gerente.
O agente ficou com um ar pensativo.
- Posso perguntar como é que obtiveram uma descrição do carro da Baxter? - pediu Mason.
O polícia contemplou-o pensativamente, depois disse:
- Um motorista, que vinha de trás, viu o acidente. O carro deu a volta na estrada que vinha para cá. Conseguiu descrever a retaguarda do carro e uma parte do número de matrícula.
- Que parte? - perguntou Mason.
- O suficiente para dar uma bela identificação - respondeu com brevidade o agente.
Virgínia Baxter repentinamente estoirou colérica:
- Muito bem - exclamou-, eu já suportei tudo o que tinha que suportar. Trata-se de outra armadilha!
“Eu não tive nenhum acidente na estrada. Não embati no carro de Lauretta Trent e, no que diz respeito ao motorista, é um descarado mentiroso.
“Andou atrás de mim para eu fabricar um testamento forjado de Lauretta Trent e...”
- Calma, calma -, interrompeu Mason.
- Não vou ter calma nenhuma - explodiu ela.- Esse motorista pagou-me para eu fazer um testamento falso. Andava a planear um assassínio e...
- Cale-se! - bradou Mason.
Virgínia voltou para ele com olhos indignados:
- Não sou obrigada a ficar calada e...
- Deixe-me ser eu a falar durante um minuto, Virgínia.
O agente indagou:
- O senhor representa esta mulher?
- Agora represento - afirmou Mason.
O agente de trânsito voltou ao seu automóvel e pegou no microfone. Desta vez, deixou a porta aberta, para que pudessem ouvir o que disse:
- Auburn, na viatura dois-quinze. Falo da cena do acidente neste motel.
“Não se pôde averiguar nada sobre o estado deste carro a ser conduzido, porque Perry Mason embateu nele com o seu automóvel. Aparentemente, Perry Mason representa-a como advogado, e ela diz que George Eagan, o motorista da Trent, lhe pagou para falsificar um testamento e que andava a planear um assassínio.
“é a história dela.”
A voz que veio do sistema de intercomunicação era suficientemente para todos ouvirem. Era uma voz crispada, autoritária. Disse:
- Daqui investigador-chefe do gabinete do Procurador. Detenha essa rapariga para interrogatório. Provavelmente será acusada de homicídio em primeiro grau. Mas tratemos de ouvir a história, antes que o Mason misture mais as provas.
- Muito bem, senhor-, respondeu o agente.
- Trate disso já - comandou a voz ríspida-, e é para ser mesmo já!
- Dou-lhe hipótese de retirar as coisas dela e... A voz interrompeu:
- Já.
Mason disse em voz baixa:
- É disto mesmo que eu estava com medo, Virgínia. Você foi implicada numa espécie de conspiração. Agora, pela sua saúde, mantenha-se calada. Não lhes diga nada, a não ser que eu esteja presente.
- O que vai piorar o aspecto das coisas - sussurrou ela-, é se eles descobrem aquela carta registada que enviei a mim própria e... O agente interrompeu:
- Entre para este carro, Miss Baxter, se faz favor.
- Com certeza que tenho o direito de ir buscar as minhas coisas - disse ela. - Eu...
- Dadas as circunstâncias - interpôs o polícia -, está sob prisão. Se for preciso, ponho-lhe algemas.
- O que é que vai acontecer com este caminho de acesso bloqueado? - perguntou a gerente. Ela tinha presenciado tudo de boca aberta, mas recuperara finalmente a respiração.
- Vamos mandar um carro de reboque - informou o polícia. - Entretanto, tenho mais que fazer.
Bateu com a porta do carro, ligou o motor, passou pela saída, atingiu a estrada, ligou a luz vermelha e a gerente, Della e Mason ouviram o grito da sua sirena a desvanecer-se à distância.
Mason observou lugubremente os despojos do acidente:
- Bom - disse a Della-, de momento, estamos imobilizados. A primeira coisa a fazer é arranjar transporte.
Eram dez horas da manhã. Mason percorria impacientemente a sala dos advogados, na prisão.
Uma mulher-polícia trouxe Virgínia Baxter, retirando-se depois discretamente para fora do alcance do ouvido.
Mason disse:
- Soube que contou tudo à Polícia, Virginia. Ela respondeu:
- Apertaram comigo até bastante tarde... devia ser próximo da meia-noite.
- Eu sei - exclamou Mason, com simpatia. - Disseram-lhe que a queriam ilibar, para poder voltar a casa e ir para a cama; que, se você ao menos lhes falasse verdade, eles investigariam e, se batesse certo, a libertariam imediatamente; se, naturalmente, você recusasse dizer qualquer coisa, estava no seu direito mas, no entender deles, mostrar-lhes-ia que estava culpada e deixariam de tentar ilibá-la. Nesse caso, iriam para suas casas deitarem-se e deixavam-na na prisão. Os olhos dela estreitaram-se com surpresa:
- Como é que soube o que eles disseram? - perguntou.
Mason limitou-se a sorrir:
- O que é que lhes contou, Virgínia?
- Tudo. Mason disse:
- Hamilton Burger, o procurador do Distrito, e o tenente Tragg disseram-me que viesse aqui esta manhã; que lhe iam fazer algumas perguntas que pensavam que eu devia ouvir. Isso parece-me alguma coisa muito devastadora. É evidente que têm algumas surpresas desagradáveis para si.
“Também significa que você lhes disse, finalmente, que queria entrar em contacto comigo e eles cumpriram então a lei, fazendo uma chamada para o meu escritório.”
- Foi exactamente o que sucedeu - anuiu ela.- Contei-lhes tudo ontem à noite, porque disseram que iriam investigar e que, se eu estivesse a falar verdade, poderia ir para casa deitar-me.
“Logo depois que lhes disse tudo, limitaram-se a sair, dizendo: "Bom, Virgínia, vamos investigar" - e foram-se embora.
“Eu lembrei-lhes que tinham prometido deixar-me ir para casa deitar-me e eles responderam, com certeza, que eu iria, mas não nessa noite. Seria na seguinte - que levaria um dia a averiguar.”
- E depois?
- Não dormi um momento, por estar pela segunda vez por trás das grades. Mr. Mason, que é que se passa?
- Não sei - respondeu-lhe Mason-, mas depende muita coisa de me ter falado verdade ou de me ter mentido.
- Porque é que eu lhe havia de ter mentido?
- Ignoro - disse Mason-, mas com certeza que tem andado metida em bizarras aventuras, a fazer fé na sua história.
- E supondo que não acreditasse nelas?
- Bem - continuou Mason-, receio que o procurador do Distrito e o tenente Tragg do Pelotão de Homicídios sejam duas das pessoas que não a acreditarão.
- Esperaria que acreditassem?
- Às vezes confiam nas pessoas - respondeu Mason. - Na verdade, estão a tentar desempenhar as suas funções. Tentam fazer justiça, mas é claro que não gostam de ficar com homicídios por resolver.
- Que há quanto ao homicídio? - perguntou ela. Mason informou:
- George Eagan, o motorista, conduzia Lauretta Trent pela estrada da costa abaixo. Vinham de Ventura para sul.
“Mrs. Trent dissera ao motorista que o avisaria do sítio onde deviam voltar, que iam a um motel na montanha.
“Aproximaram-se da transversal que levava ao motel onde você estava à espera. Até aqui, os factos parecem indicar que Lauretta Trent foi quem lhe telefonou e lhe pediu para a aguardar naquele sítio.”
- Pois foi, Mr. Mason. Pois foi. Eu disse-lhe...
- Você não tem a certeza - interrompeu Mason. - Tudo o que sabe é que uma voz feminina lhe afirmou ser Lauretta Trent que falava e que deveria ir lá acima e esperá-la no motel.
“De qualquer forma, precisamente no momento em que o motorista se preparava para voltar à esquerda, apareceu um carro ao lado dele muito depressa. Rodou o volante para o lado direito da estrada, para deixar passar o segundo carro. No entanto, ele rodou também e empurrou o carro da Trent para fora da estrada e para lá da berma.
“Havia forte rebentação e o motorista, George Eagan, sabia que, lá em baixo, eram águas profundas. Gritou a Mrs. Trent que saltasse, abriu a porta do carro e ele próprio saltou. Aparentemente, bateu com a cabeça numa pedra. De qualquer maneira, esteve inconsciente durante um lapso de tempo.
“Quando voltou a si, não havia sinais do carro da Trent. A patrulha da estrada estava lá. Trouxeram uma grua mandaram lá abaixo mergulhadores e localizaram o automóvel. Prenderam-lhe ganchos de abordagem, usaram um guincho e trouxeram-no à superfície. Não havia sinais de Mrs. Trent, mas a porta do lado esquerdo da retaguarda estava aberta. É evidente que a abriu antes que o carro saltasse para o declive e rolasse para a rebentação.
“Podem nunca recuperar o corpo dela. Há ali correntes traiçoeiras e uma terrível maré submarina. Os mergulhadores que lá foram abaixo à procura, passaram um mau bocado a lutar contra a corrente. Um corpo poderia ser levado para o largo, ou engolido para debaixo da costa. Existe um tremendo refluxo da maré naquele iugar.”
- Mas porque é que me acusaram?
- O motorista deu uma rápida olhadela à retaguarda do carro que lhe bateu. A descrição corresponde ao seu. Um homem que vinha dois carros atrás, conseguiu ver os dois últimos algarismos da chapa de matrícula e eram os mesmos que os seus.
- Mas eu não saí do motel - afirmou ela. Mason continuou:
- Apanharam alguns vidros no local onde o carro foi empurrado para fora da estrada. Havia lá fragmentos de farol. Depois a Polícia subiu ao motel onde eu entrei com o meu automóvel e examinou os vidros que lá havia. Encontraram um pedaço que tinha caído do seu farol. O bocado partido coincide exactamente com a lente do seu farol. Assim como o que apanharam lá em baixo, no sítio em que Lauretta Trent foi atirada para fora da estrada, que também corresponde ao pedaço proveniente do mesmo farol. Juntando tudo, montaram os fragmentos de vidro como um puzzle e ficaram de posse praticamente de tudo. Só lhes falta um pequeno pedaço triangular de vidro.
- Mas o motorista - disse Virgínia Baxter-, porque é que hão-de acreditar nele, quando fez todas essas coisas?
- Isso - declarou Mason-, é uma coisa que eu próprio não entendo. Contou-lhes o que passou com ele?
- Claro.
- Acerca de ele querer suborná-la para forjar uma cópia do testamento?
- Sim.
- E sobre a forma como fez as cópias a papel químico e as enviou pelo correio para si própria?
- Sim. Contei-lhes tudo, Mr. Mason. Dou-me agora conta de que o não devia ter feito, mas uma vez que comecei a falar... bem, eu estava... eu estava gelada de medo. Queria tão desesperadamente convencê-los a libertar-me.
Abruptamente, a porta abriu-se. O procurador do Distrito Hamilton Burger, acompanhado pelo tenente Tragg, entrou na sala.
- Bom dia, Virgínia - saudou Hamilton Burger. Voltou-se para Perry Mason:
- Olá, Perry. Como vão as coisas esta manhã?
- Como vai, Hamilton? - correspondeu Mason.- Vai libertar a minha cliente?
- Receio bem que não - respondeu Burger.
- Porque não?
- Ela contou-nos uma bela história sobre George Eagan, o motorista de Lauretta Trent - redarguiu Hamilton Burger.- Foi mesmo uma óptima história, mas não acreditámos.
Os parentes de Lauretta Trent também nos contaram uma bela história sobre o motorista. É plausível, mas não condiz nalguns pormenores. Começamos a pensar que a sua cliente pode estar ligada aos parentes de Lauretta Trent, na tentativa de desacreditar Eagan e sonegar informações; incidentalmente, cobrindo tentativas que fizeram para cometer assassínio - que, de facto, foi consumado pela sua cliente.”
- Ora, isso é absurdo - exclamou Virgínia. - Eu nunca me encontrei com os parentes de Lauretta Trent, na minha vida.
- Talvez - disse Mason-, se não estiverem tão hipnotizados por uma cena montada pelo motorista, consigam uma compreensão clara da situação.
- Bem, veremos isso-, respondeu Burger.
Encaminhou-se para a porta, abriu-a e falou para alguém:
- Entre.
O homem que entrou andava pelos quarenta. Tinha abundante cabelo negro-carvão, pele escura, maçãs do rosto altas e intensos olhos negros.
Desviou os olhos de Hamilton Burger para encarar directamente Virgínia Baxter, depois sacudiu a cabeça enfaticamente.
- Já viu antes esta jovem? - perguntou Burger ao homem.
- Não - respondeu sucintamente.
- Ora ia está - comentou Burger, voltando-se para Virgínia.
- Bom, isso não quer dizer nada- contestou ela.- Eu também nunca antes o vi. Tem o aspecto geral do motorista da Trent, mas não é o homem que me visitou.
- Este - anunciou secamente, é George Eagan, o motorista de Lauretta Trent...
- É tudo, George, pode ir-se embora. Virando-se para Mason, disse:
- George bateu com a cabeça quando foi projectado do automóvel. Esteve inconsciente durante um período indeterminado de tempo.
- Ora espere aí - interpôs Mason. - Só um momento. Não me venha com essa. Se está em condições de andar por aí e vir cá identificar, ou deixar de o fazer, a minha cliente, pode responder a uma pergunta.
- Não é obrigado a fazê-lo - advertiu Hamilton Burger.
Mason ignorou o comentário do procurador do Distrito e falou para o motorista:
- Você tem um automóvel particular. É um Olds, com o número de matrícula ODT-062.
Eagan encarou Mason com surpresa:
- É o meu número de matrícula - aquiesceu -, mas não se trata de um Olds, é um Cadillac.
- Anteontem andou a conduzir o seu carro? - perguntou Mason.
Eagan olhou para ele com uma expressão intrigada no rosto, depois abanou lentamente a cabeça:
- Estive a conduzir Mrs. Trent. Fomos até Fresno. Burger voltou a dizer:
- É tudo, George. Você não precisa de responder a mais perguntas.
O motorista saiu.
Hamilton Burger voltou-se para Mason com um expressivo encolher de ombros:
- Aí tem - declarou. - Se foi feita alguma tentativa para inculpar quem quer que fosse, dirigia-se a este motorista. Você devia verificar um pouco melhor a história da sua cliente.
“Vamos processá-la em juízo esta manhã, às onze horas, se não vê inconveniente e teremos a respectiva audiência preliminar na altura que sugerir. Queremos dar-lhe amplas hipóteses de a preparar.”
- É muito amável da vossa parte - afirmou Mason-, dadas as circunstâncias. Marcaremos a preliminar mal o juiz possa incluí-la no seu calendário - amanhã, de manhã, se possível.
O sorriso de Burger era gelado:
- Pode apanhar-nos desprevenidos em alguns pontos, Perry, mas não com a nossa máquina processual avariada. Este é um caso em que está na extremidade errada. A sua cliente é uma oportunista arguta e intrigante.
“Ainda não sei com quem é que está combinada. Ignoro quem administrou o veneno a Lauretta Trent, mas sei que foi o carro da sua cliente que a empurrou para fora da estrada e ela contou mentiras que chegassem para se tornar suficientemente vulnerável.
“Pelo menos, vamos mantê-la detida, enquanto procuramos o outro conspirador.
“E agora, vamos deixá-lo a sós com a sua cliente.”
Burger fez um sinal para o tenente Tragg e o par dirigiu-se para fora, fechando a porta atrás de si.
Mason encarou Virgínia Baxter.
Ela disse:
- Houve algures um terrível erro, Mr. Mason. Esse homem tem as características físicas gerais do motorista- quero dizer, o homem que me deu o nome de Menard... Na verdade, o senhor é que me disse que se tratava do motorista de Lauretta Trent.
- Isso - explicou Mason-, foi por causa da descrição física, aliada ao número de matrícula do automóvel que ele conduzia. Tem a certeza de que era um Olds-mobile?
- Sim. Não era novo, mas estou segura de ter acertado no que era... É claro que me podia ter enganado no número de matrícula; isto é, podia ter errado no número do fim ou isso, mas o primeiro era zero.
Mason abanou a cabeça:
- Não, Virgínia, isso seria demasiada coincidência. Mas você pode ter sido vítima de alguém que a tenha induzido a fazer o seu trabalho sujo. Para variar, pense em contar-me a verdade.
- Mas eu contei-lha.
- Vou-lhe dizer uma coisa - insistiu Mason. - Se teimar em contar essa história, vai ficar presa para ser julgada por assassínio; e, se alguém a está a usar como mão de gato e você não me dá uma oportunidade de a ilibar, contando-me exactamente o que sucedeu, mete-se em sarilhos muito, muito sérios.
Ela negou com um gesto de cabeça.
- Então? - perguntou Mason. Hesitou por um momento.
- Eu disse-lhe a verdade - afirmou com lentidão. Mason continuou:
- Se se trata da verdade, alguém de espírito diabolicamente esperto levou-a cuidadosamente para dentro de uma armadilha.
- É... é a verdade - declarou. Mason prosseguiu:
- Eu sou advogado. Se insiste que uma tal história é verdadeira, não importa a que ponto seja misteriosa ou bizarra, terei de a acreditar, sem mostrar a mínima dúvida quando formos a tribunal.
- Mas, na realidade, não me acredita? - indagou ela.
Mason contemplou-a pensativamente:
- Se fizesse parte de um júri e um acusado contasse uma história dessas, você acreditava?
Virgínia Baxter começou a chorar.
- Acreditava? - insistiu Mason.
- Não - soluçou ela-, parece demasiado... demasiado, é mesmo uma série de excessivas coisas improváveis.
- Exactamente - afirmou Mason. - Pois bem, você só tem uma única defesa. Ou me conta toda a verdade e me deixa actuar a partir daí, ou teima nesta história improvável. Se o fizer, eu vou ter de adoptar a posição de aceitar que um indivíduo diabolicamente esperto e arguto está deliberadamente a implicá-la num assassínio. E, da forma que os acontecimentos se têm passado, ele estará em óptima posição para a fazer condenar.
Ela fitou-o com os olhos vidrados de lágrimas.
- É claro que imagina qual será a minha argumentação- continuou Mason a explicar. - Uma vez que adopte a posição de que está a ser implicada, se mesmo uma pequeníssima parte da sua história se revelar falsa, você será conduzida à penitenciária, numa vaga de opinião pública adversa. A menor imprecisão arruinará com-pletamente as suas hipóteses. Ela acenou afirmativamente:
- Compreendo isso.
- Agora vejamos - disse Mason-, tendo em linha de conta esta situação e em vista do seu depoimento, quererá alterar a sua história?
- Não a posso alterar - afirmou.
- Isso quer dizer que se agarrou a ela? - perguntou Mason.
- Não posso simplesmente modificá-la, Mr. Mason, porque é verdadeira. É tudo.
- Muito bem - disse-lhe Mason. - Vou aceitá-la e fazer o melhor que puder com ela. Deixe-se ficar sentada.
O advogado saiu.
Jerry Caswell, o delegado do procurador do Distrito que tinha acusado Virgínia por posse de narcóticos e que, aparentemente, acreditava firmemente que nesse caso houvera um descaminho da justiça, tinha requerido que o Gabinete do Procurador fosse autorizado a apresentar o caso do Povo contra Virgínia Baxter, na audiência preliminar.
Iniciava agora os seus deveres com um entusiasmo pessoal e uma lúgubre determinação de que Perry Mason não tirasse vantagem por ingenuidade ou rapidez de raciocínio.
Como sua primeira testemunha, chamou George Eagan.
O motorista tomou lugar, declarou o seu nome, endereço e ocupação.
- Pode dizer-nos o que fazia na quarta-feira à noite? - perguntou Caswell.
- Conduzia, no seu automóvel, Lauretta Trent. Tínhamos ido a Ventura e estávamos de regresso, ao longo da estrada da costa.
- Tinham algum destino predeterminado?
- Mrs. Trent tinha-me dito que tencionava voltar, para ir a um motel, que se situava lá em cima nas colinas, perto de um lago. Disse que me avisaria da estrada a tomar.
- Ela não lhe disse em que estrada mudaria de sentido?
-Não, só que me avisaria quando fosse preciso voltar.
- Ora bem, conhece o motel chamado Saint's Rest e a estrada que vai até lá?
- Sim, senhor. A curva fica aproximadamente a trezentas jardas para norte do Sea Crest Café.
- Quando se aproximou dessa curva, na quarta-feira à noite, que se passou?
- Mrs. Trent pediu-me para abrandar ligeiramente.
- E depois?
- Bem, eu pensei, naturalmente, que ela ia...
- Não se preocupe com os seus pensamentos - interrompeu Caswell. - Limite-se a responder às perguntas com factos. Que aconteceu?
- Bem, vi faróis vindo de frente e, uma vez que eu... Bem, não sei como expressar-me sem dizer o que estava a pensar, mas preparava-me para uma curva à esquerda, por isso rodei...
- Não se preocupe com o que estava a preparar; declare o que fez.
- Bem, eu desviei-me o mais possível para o lado direito da estrada, tão longe quanto podia, e esperei que o outro carro passasse.
- E ele passou?
- Não da maneira normal.
-Que aconteceu?
- O carro mudou subitamente de direcção, a sua frente bateu na do meu carro, depois, o condutor girou o volante, de forma que a retaguarda ressaltou e bateu com força contra a frente do meu carro. Empurrou-me para o lado e o carro ficou fora do controlo.
- E depois, que sucedeu?
- Eu lutei com o volante, tentando evitar que o carro ultrapassasse a berma, mas senti-o ir. Gritei a Lauretta Trent que abrisse a porta e saltasse, e fiz eu isso mesmo.
- E a seguir, que se passou?
- Não sei o que se passou imediatamente a seguir a isso.
-Esteve inconsciente?
- Sim.
- Sabe quando é que voltou a si?
- Não. Não tinha forma de saber a hora exacta. Sei qual foi a hora do acidente, aproximadamente, porque só um pouco mais tarde olhei para o meu relógio para vê-la. Estava aborrecido e excitado e sentia-me mal. Tinha uma terrível dor de cabeça e estava... bem, estava atordoado.
- Quanto tempo é que pensa que esteve inconsciente?
- Objecto por incompetência, irrelevância e imaterialidade sem fundamentação adequada, já que se pede que a testemunha tire uma conclusão - interrompeu Mason.
- Apoio a objecção - determinou o Juiz Grayson.
- Oh, com a indulgência do tribunal - disse Cas-well-, existem certas formas pelas quais uma pessoa pode determinar quanto tempo esteve desmaiada - certos pedaços de prova circunstancial.
- Então deixe-o fornecer a prova circunstancial e não as conclusões que dela tirou.
- Muito bem-prosseguiu Caswell.-Então, quando retomou a consciência, qual era a sua posição?
- Estava estendido no terreno, com a cara para baixo.
- A que distância da estrada?
- Não sei a distância exacta, provavelmente cerca de dez pés, calculo.
- Quem estava presente?
- Um agente da patrulha da estrada inclinava-se sobre mim.
- Ele ajudou-o a levantar-se?
- Não imediatamente. Voltou-me. Deram-me uma espécie de estimulante, depois perguntaram-me se eu podia mover os dedos. Podia. Depois mandaram-me mexer lentamente as minhas pernas, em seguida os braços. Então ajudaram-me a sentar-me, depois a pôr-me de pé.
- Sabe de onde eles vieram?
- Só a partir do que me disseram.
- Quanto tempo se passou, desde que recuperou a consciência até que foi ajudado a pôr-se de pé?
- Um par de minutos.
- E procurou então, com o olhar, onde estava o carro da Trent?
- Sim. - Viu-o?
- Não. Tinha desaparecido.
- E contou aos polícias o que acontecera?
- Levou-me um bocadinho a coordenar ideias. A princípio, sentia-me um tanto incoerente.
- Depois que se passou?
- Houve então o som de sirenas e apareceu um carro de reboque e, pouco depois disso, outro carro, desceram mergulhadores para a água e localizaram o carro da Trent, em cerca de vinte e cinco pés de água. Jazia sobre o seu lado direito, com a parte da frente para baixo; as portas do lado esquerdo estavam abertas. Não havia ninguém lá dentro.
- Como é que sabe que não havia ninguém lá dentro?
- Estava presente quando o trouxeram à superfície. Corri para ele e espreitei. Não havia sinais de Lauretta Trent.
- Agora, com a autorização do tribunal, - pediu Caswell - gostaria de fazer retirar temporariamente esta testemunha, a fim de fazer perguntas a outra. Contudo, estou a par do facto de que, quando começar a pôr à prova considerações tecidas pela acusada, haverá provavelmente a objecção de que ainda se não estabeleceu o corpus delicti. Desejo declarar ao tribunal que estamos preparados para contrariar essa objecção aqui e agora; porque corpus delicti significa o corpo do crime e não o corpo da vítima.
“Existem várias instâncias em registo, nas quais assassinos foram acusados, condenados e executados, sem nunca ter sido encontrado o corpo da vítima. Foram consideradas provas circunstanciais adequadas a prova o corpus delicti, tal como qualquer outro factor no caso e...”
- Não tem necessidade de tentar educar o tribunal, no que diz respeito a elementos da lei criminal - interrompeu o Juiz Grayson. - Parece-me que, na circunstância, foi feita uma demonstração prima facie. Se Mr. Mason quiser adoptar a posição de que não foi provado nenhum corpus delicti, creio que terá o trabalho de o determinar.
Mason levantou-se e sorriu:
- Pelo contrário, Meritíssimo, a defesa considera como certo que a evidência agora apresentada é suficiente para provar a morte de Lauretta Trent. Não tencionamos intervir neste aspecto do corpus delicti, no que diz respeito ao corpo desaparecido. No entanto, deverá o tribunal ter presente que o corpus delicti consiste não só na prova da morte, como também na de que ela foi produzida por meios ilegais.
“Até agora, a impressão que se tem é a de que a morte de Lauretta Trent podia muito bem ter sido um acidente.”
- É por isso que pretendo retirar a testemunha, neste momento, e chamar outra - declarou Caswell.- Com a segunda testemunha, posso provar que se tratou de crime.
- Muito bem - acedeu o Juiz Grayson. - No entanto, a defesa tem o direito de contra-interrogar a testemunha relativamente às declarações que prestou desta vez, se assim o desejar.
- Vamos protelar o nosso contra-interrogatório - disse Mason.
- De acordo. Chame a sua próxima testemunha - disse o Juiz Grayson.
- Chamo o Tenente Tragg à barra - respondeu Caswell.
Tragg aproximou-se e foi ajuramentado.
- Estava na prisão quando a acusada foi lá levada e detida para investigação?
- Sim, senhor.
- Teve qualquer conversa com a acusada?
- Tive. Sim, senhor.
- E avisou-a dos seus direitos constitucionais?
- Sim.
- E que declarou ela como explicação? Tragg respondeu:
- Disse-me que Lauretta Trent lhe havia telefonado, combinando um encontro no “Saint's Rest”. Que se dirigiu lá e que lá esteve durante consideravelmente mais do que uma hora. Que se tinha enervado e telefonara a Perry Mason. Que este fora ter com ela ao motel. Depois de ter chegado, sugeriu que saíssem e dessem uma vista de olhos ao carro dela.
- E depois? - perguntou Caswell.
- Descobriram então que o carro estava danificado. Com um farol arrancado e um guarda-lamas dobrado.
- E Mr. Mason fez alguma sugestão? - indagou Caswell gratuitamente.
- Ela contou que Mr. Mason lhe disse para entrar no carro, conduzir para fora do parque, dar a volta e voltar precisamente pela entrada. Então, quando o fez, Mr. Mason meteu-se no carro dele e correu contra o dela, alterando assim os estragos, de forma que fosse impossível...
- Um momento - interrompeu Mason. - Objecto a que a testemunha tire conclusões. Deixe-o contar só os factos.
- Estou a perguntar-lhe o que a acusada disse - replicou Caswell. - A acusada disse que isso foi feito?
- Sim, disse que foi feito para que fosse impossível estabelecer quando é que o carro dela fora danificado.
- Que mais é que ela lhe contou?
- Contou que George Eagan, o motorista de Lauretta Trent, a tinha abordado para que fizesse uma cópia de testamento forjada.
- Que tipo de testamento?
- Um testamento presumivelmente mandado lavrar por Mrs. Trent.
- E ela explicou o que fez relativamente a isso?
- Declarou que aceitara quinhentos dólares; que tinha falsificado dois testamentos em papel timbrado de Delano Bannock, um advogado, agora falecido, que trabalhara para Mrs. Trent e de quem ela tinha sido empregada.
- Forneceu-lhe alguma prova da sua declaração?
- Informou que tinha enviado a si própria, por correio registado, um sobrescrito contendo as folhas de papel químico usadas para as falsificações. Disse que, a conselho de Perry Mason, tinha usado folhas novas, de forma a ser possível ler os termos do testamento falso, segurando-as contra a luz.
O Juiz Grayson perguntou:
- Espere aí. Isso não é inquirir sobre os conselhos legais dados a uma cliente pelo seu advogado?
- É sim, Meritíssimo - aquiesceu Caswell. - Seria manifestamente impróprio da minha parte tornar pública esta conversa, excepto pelo facto de se tratar do que a acusada afirmou. Por outras palavras, se fosse a acusada a estar sob interrogatório e eu lhe perguntasse o que o seu advogado lhe tinha aconselhado, estaria a infringir o direito de comunicação privada mas, com o Tenente Tragg na barra, posso perguntar-lhe o que lhe disse a detida relativamente às suas acções e ao jeito de respectiva explicação. Se, por altura dessa conversa, a detida escolheu prescindir do privilégio da comunicação privada e reproduziu o que o seu advogado lhe disse, então a testemunha pode repetir a conversa.
“Esse é um risco que um advogado tem de correr quando aconselha uma cliente a fazer coisas, com o propósito de confundir os agentes da lei e, nessa instância, com o propósito de acobertar uma felonia.
“Processaremos Mr. Mason na sede adequada e em devido tempo mas, entretanto, temos o direito de tornar público o que a acusada contou que o advogado lhe disse.”
O Juiz Grayson olhou para baixo, para Mason:
- Tem alguma objecção a fazer, Mr. Mason?
- Certamente que não - respondeu Mason. - Não ponho objecções ao conhecimento dos factos deste caso. Em devido tempo, demonstrarei que houve pessoas que deliberadamente inculparam a acusada num crime e...
- Um momento, um momento - Caswell interrompeu Perry Mason . - Não é altura para fazer a defesa, seja da acusada seja de si próprio. Terá oportunidade de defender a sua constituinte quando eu tiver acabado de expor o meu caso e de se defender a si próprio diante do tribunal apropriado.
- Parece-me correcto - determinou o Juiz Grayson. - No entanto, Mr. Mason dispõe da oportunidade de arguir este ponto, relativamente à objecção apresentada.
- Não houve qualquer objecção - disse Mason.- Eu quero que a testemunha declare o que a acusada lhe contou, tudo o que ela lhe contou.
- Muito bem, prossiga - ordenou o Juiz Grayson.
- Eu pensava que haveria uma objecção interposta com base no facto de se estar a coartar uma comunicação privilegiada. Contudo, foi-me dado apreciar que, uma vez tendo a acusada prescindido da prerrogativa' da comunicação, ao fazer uma declaração voluntária... Bem, creio que não há nenhuma objecção, prossiga.
- Ela declarou que a testemunha George Eagan foi quem a contactou?
- Sim.
- E identificou-o positivamente?
- Sim.
- Contra-interrogatório - exclamou Caswell. Mason perguntou:
- Esteve a falar com esta jovem até tarde da noite, Tenente Tragg?
- Sim, ela só foi presa bastante tarde da noite.
- Sabia que ela é minha cliente?
- Não.
- Não sabia?
- Só sabia aquilo que ela me contara.
- E não o aceitou como verdadeiro?
- Nós nunca aceitamos o que uma indiciada nos conta como sendo a verdade. Investigamos cada fase da história.
- Compreendo - declarou Mason. - Nesse caso, não está preparado para afirmar que o que ela lhe contou sobre os meus conselhos fosse verdade?
- Bem, - respondeu Tragg, hesitando - havia circunstâncias corroborantes.
- Tais como?
- Ela deu-nos autorização para levantarmos a carta registada que enviara a si própria e que a abríssemos.
- E fizeram isso?
- Sim.
- E encontraram as cópias de papel químico do testamento simulado, tal como ela lhes havia dito?
- Sim.
- E, por essa razão, está inclinado a acreditar em tudo o que ela contou?
- É uma circunstância corroborante.
- Então porque não a acreditou quando ela lhe disse que eu a representava?
- Bem, se isso é material, - respondeu Tragg - eu acreditei.
- Então porque é que não me notificou de que ela estava presa?
- Eu disse-lhe que podia chamá-lo.
- E que disse ela?
- Disse que não valia a pena. Que não conseguia entender o que se passara, mas que esse motorista, George Eagan, era o culpado e ela nos estava livremente e voluntariamente a contar todos estes factos, para que pudéssemos mexer-nos e prender Eagan.
- E fê-lo?
- Não nessa noite. Fizemo-lo na manhã seguinte.
- E que aconteceu então?
- Na presença de Hamilton Burger, procurador do Distrito do condado, e na sua presença, lá na sala de conferências da prisão, confrontámos a acusada com George Eagan. Ele declarou, na presença dela, que nunca antes a tinha visto, e ela disse que ele não era o homem que a procurara.
- Ela fez mais algumas declarações?
- Admitiu que o homem que a visitara nunca lhe tenha dito que se chamava George Eagan, motorista, mas disse que fora feita a sua identificação, a partir da descrição física e do número de matrícula de um automóvel. Ela declarou que o homem que a contactou lhe tinha dado o nome de George Menard.
- E conseguiu que a acusada lhe contasse tudo isso, simplesmente dizendo-lhe que estava a investigar o homicídio; dizendo-lhe que queria detectar a pessoa culpada; que não pensava que ela o estivesse; que ela era uma senhora demasiado simpática para ser a culpada de qualquer crime deste género; dizendo-lhe pensar que alguém estava a tentar inculpá-la e, se lhe fornecesse imediatamente os factos, sem esperar para entrar em contacto comigo de manhã, o senhor iniciaria logo uma investigação que talvez esclarecesse tudo, de forma que ela fosse para casa, passar a noite na sua própria cama. Foi assim?
,. O Tenente Tragg sorriu:
- Bem, eu não disse isso pessoalmente, mas um dos agentes presentes falou dessa maneira.
- Passou-se na sua presença e com a sua aprovação?
O tenente hesitou por um momento, depois afirmou com um sorriso seco:
- Isso é rotina quando se está a lidar com um certo tipo de suspeitos.
- Muito obrigado - agradeceu Mason-, é tudo. Caswell chamou:
- Agradeço o favor de se apresentar Carson Herman.
Este era um homem alto, elegante, com nariz em forma de bico de mosquito, olhos azuis aguados, boca firme, altos malares e uma forma enfática de falar.
Testemunhou que estivera a conduzir pela estrada da costa, para sul. Isto é, tomara o rumo de Oxnard para Santa Monica. Iam dois carros à sua frente. Um deles era um Chevrolet brilhante e colorido; o carro à frente do Chevrolet era um grande sedan negro. Não tivera oportunidade de se certificar da marca do carro.
- Notou alguma coisa fora do vulgar? - perguntou Caswell.
- Sim, senhor, à medida que nos aproximámos de um desvio de estrada, o carro negro desviou-se bastante para a direita, aparentemente querendo...
- Ponha de parte o que pensou que o condutor pretendia - interrompeu Caswell -, diga só o que aconteceu.
- Sim, senhor. O carro negro saltou nitidamente o rebordo da estrada.
- E que aconteceu então?
- O Chevrolet pôs-se quase a parte com o carro; depois, subitamente, carregou sobre ele. A frente do Chevy embateu na do outro carro, de passagem, e depois o condutor voltou prontamente o volante, de forma que a retaguarda do Chevy se fosse esmagar contra a frente do sedan preto.
- Viu o que lhe aconteceu?
- Não senhor. Eu seguia bastante perto do Chevrolet e tudo se passou tão depressa que ultrapassámos o carro preto, antes que eu tivesse oportunidade de o ver bem. Vi-o a guinar e a deslizar e depois ultrapassei-o.
- Continue. Que aconteceu então?
- O Chevrolet fez uma curva a derrapar, para a estrada lateral que dá para o cimo do monte.
- Que é que o senhor fez?
- Achei que se tratava de um bate-e-foge e, na minha qualidade de cidadão...
- Deixe lá o que achou - interrompeu de novo Caswell -, o que é que fez?
- Acelerei atrás do Chevrolet e tentei segui-lo, para ver o número de matrícula.
- Conseguiu?
- A estrada era cheia de curvas e eu tentei. Vi os dois últimos algarismos da matrícula, 65. Dei subitamente conta de que era uma estrada deserta e de que estava em situação perigosa. Decidi parar, inverti a marcha e, na primeira oportunidade, notifiquei a Polícia.
“Por a estrada ser tão isolada e ventosa, de certeza que o condutor do carro que seguia à frente deve ter dado pela minha...”
- Não refira as suas conclusões - interrompeu o Juiz Grayson. - O senhor foi avisado duas vezes, M. Her-man, nós só estamos interessados em factos. O que é que fez?
- Abrandei até parar e vi as luzes do carro desaparecerem ao longe. Posso afirmar que, enquanto o carro se balançava entre as bermas abruptas da estrada, pude verificar que tinha perdido um farol.
- O que quer dizer com isso de ter perdido um farol? - perguntou Caswell.
- Bem, um dos faróis não funcionava.
- E depois?
- Depois, continuei muito devagar e com muito cuidado, até um sítio onde pudesse inverter a marcha. Desci depois para a estrada. Havia uma marisqueira, cerca de trezentas jardas da curva e parei nesse restaurante para telefonar para a patrulha da estrada da Califórnia. Relatei o acidente. Disseram que já tinha havido um motorista que os tinha avisado dele e ia um carro da rádio-patrulha a caminho.
- Não voltou atrás para verificar se o outro carro se tinha avariado ou se alguém estava ferido?
- Não, senhor, lamento admitir que não o fiz. Pensei que a primeira coisa a fazer era notificar a patrulha da estrada. Achei que, se alguma pessoa estava ferida, outros motoristas que tivessem passado pela estrada teriam visto o carro avariado, parado e socorrido as pessoas.
- Contra-interrogatório - anunciou Caswell.
- O senhor conseguia ver o carro da frente suficientemente bem para nos dizer quem ia a conduzir, se era homem ou mulher, ou quantas pessoas iam lá dentro?
- Era só uma pessoa. Não saberia dizer se era um homem ou uma mulher.
- Muito obrigado - disse Mason. - É tudo. Caswell declarou:
- Chamo agora Gordon Kelvin à barra.
Kelvin adiantou-se com uma dignidade sem pressas, tomou lugar e declarou ser cunhado da defunta Lauretta Trent.
- O senhor tem estado na sala do tribunal e ouviu o testemunho da acusada de que teria sido solicitada a participação na falsificação da cópia a papel químico de um testamento?
- Sim, senhor.
- Que é que nos pode informar sobre a herança de Lauretta Trent?
- Objecto por incompetência, irrelevância e imaterialidade-, interpôs Mason.
Caswell redarguiu rapidamente:
- Com a indulgência do tribunal, trata-se de um ponto muito material. Proponho-me demonstrar que a história contada pela acusada foi completamente fabricada; tinha de o ser, porque a falsificação de uma cópia a papel químico de um testamento de nada serviria. Espero demonstrar, através desta testemunha, que a falecida Lauretta Trent há anos que tinha feito testamento; tinha-o confiado a esta testemunha, num sobrescrito selado, para ser aberto após a sua morte; que foi apresentado e aberto esse sobrescrito, o qual continha as últimas vontades de Lauretta Trent; que não poderia haver qualquer dúvida ou ambiguidade em relação a ele e que quaisquer assim chamadas cópias de químico de outros testamentos seriam completamente destituídas de valor.
- Indefiro a objecção - determinou o Juiz Grayson.
Kelvin disse:
- Sempre fui muito unido com a minha cunhada. Sou o mais velho dos dois cunhados.
“A minha cunhada, Lauretta Trent, mantinha o seu testamento dentro de um sobrescrito selado, na gaveta da escrivaninha. Disse-me onde estava, há uns quatro anos atrás e deu instruções para que fosse aberto, em caso de sua morte.
“Depois das trágicas ocorrências da última quarta-feira, e consciente de que poderia ser interrogado sobre o procedimento correcto na eventualidade, comuniquei com o procurador do Distrito e, na presença de um delegado, um banqueiro e o procurador, esse sobrescrito foi aberto.”
- Que é que continha?
- Continha um documento que se presumiu ser as últimas vontades de Lauretta Trent.
- Tem cá esse documento?
- Tenho, sim.
- Apresente-o, se faz o favor.
A testemunha meteu a mão no bolso e retirou um documento dobrado.
- Marcou esse documento de forma que o possamos identificar?
- O documento - informou Kelvin-, está marcado com as minhas iniciais em cada página, com as de Hamilton Burger, o procurador do Distrito, as do banqueiro que se encontrava presente e as do advogado que também lá estava.
- Isso identifica-o - declarou o Juiz Grayson, sorrindo.- Estas, suponho eu, são as suas iniciais por si escritas, por si próprio?
- Exactamente.
O Juiz Grayson inspeccionou pensativamente o documento, depois entregou-o a Perry Mason. Este estudou-o; passou-o para Caswell.
- Quero que isto seja registado como prova - disse Caswell.^-Sugiro que, sendo este o testamento original, poderá ser considerado como prova e, por conseguinte, o escrivão deverá ser instruído para produzir uma cópia certificada, que servirá de substituto do testamento original.
- Não faço objecções - afirmou Mason.
Caswell declarou:
- Vou agora ler o testamento em registo, e será depois arquivado, até que se possa obter uma cópia certificada.
Leu num tom de pomposa solenidade:
- Eu, Lauretta Trent, na posse das minhas faculdades mentais e da minha memória, declaro que sou viúva; que não tenho filhos; que os meus únicos parentes vivos são duas irmãs, Dianne Briggs e Maxine Kelvin; que a minha irmã Dianne é casada com Boring Briggs e Maxine com Gordon Kelvin.
“Mais declaro que essas quatro pessoas vivem na minha casa e nessa situação têm permanecido desde há vários anos; que sou muito dedicada aos meus dois cunhados, como se fossem meus irmãos e, naturalmente, tenho amor e afeição pelas minhas irmãs.
“Tenho, contudo, a noção de que as mulheres e, em particular, as minhas duas irmãs - não possuem a perspicaz e inata habilidade para os negócios que as possam capacitar para tratar dos numerosos problemas levantados pelos bens de minha propriedade.
“Por conseguinte, designo e nomeio como executor destas minhas últimas vontades Gordon Kelvin.
“Após os legados aqui especificamente mencionados, deixo tudo o resto, parte residual e sobrante da minha herança, para ser dividido igualmente entre Dianne e Boring Briggs e Maxine e Gordon Kelvin.”
Caswell fez uma pausa expressiva, enquanto olhava em volta a silenciosa sala do tribunal, depois voltou a página do testamento e prosseguiu:
- Deixo, como legado a minha irmã, Dianne Briggs, a soma de cinquenta mil dólares; à minha irmã, Maxine Kelvin, uma soma semelhante de cinquenta mil dólares.
“Tem havido, contudo-, aqui Caswell parou para olhar em volta da sala intencionalmente - algumas pessoas cuja lealdade e devoção se distinguiram.
“Primeiro e mais importante, houve o Dr. Ferris Alton.
“Porque se especializou em medicina interna e não pratica cirurgia, confinou-se a um ramo da sua profissão que, de forma alguma, é bem pago, em comparação com a relativamente remunerativa prática da medicina no campo da cirurgia.”
Virgínia Baxter beliscou a perna de Mason mesmo acima do joelho, com duas pontas dos dedos:
- Oh, é isso - sussurrou -, lembro-me agora. Recordo-me de ter dactilografado isso. Lembro-me do legado que ela fez a...
- Pxiu - advertiu Mason. Jerry Caswell continuou a ler:
- O Dr. Alton proporcionou-me os cuidados leais e ele próprio trabalhará até à morte, já que não constituiu adequadas reservas para se reformar.
“Por conseguinte, eu deixo, como legado ao Dr. Ferris Alton, a soma de cem mil dólares.
“Houve duas outras pessoas cuja lealdade e devoção muito me impressionaram. São George Eagan, meu motorista, e Anna Fritch, que me serviu de enfermeira sempre que estive doente.
“Eu não me preocupo em que a minha morte se transforme num acontecimento que transforme estas pessoas de pobres em ricas, nem que, por outro lado, pretendo deixar de recompensar a sua lealdade.
“Por conseguinte, deixo, como legado ao meu motorista, George Eagan, a soma de cinquenta mil dólares, na expectativa que ele abra um negócio próprio, tendo uma parte deste dinheiro como capital e guarde o restante como reserva. Também deixo, como legado, uma soma similar de cinquenta mil dólares a Anna Fritch.”
Aqui, Caswell voltou a página bastante à pressa, como se faz quando nos aproximamos do fim de um documento importante.
- No caso de alguma pessoa, corporação ou outros, contestar este testamento ou se surgir alguém a reclamar que tem consigo uma relação que transforme, a ele ou ela, em herdeiro que eu, por inadvertência ou outra razão, tenha negligenciado mencionar, deixo a essa pessoa a soma de cem mil dólares.
“Ora bem - comentou Caswell-, este testamento contém o usual parágrafo de encerramento e a data. Está assinado pela testadora e testemunhado por precisamente o falecido Delano Bannock, advogado e - aqui Caswell voltou-se expressivamente para a acusada - por Virgínia Baxter.”
Esta ficou embasbacada a olhar para ele de boca aberta.
Mason abanou-lhe o braço e trouxe-a de volta à realidade.
- Isso conclui o depoimento da testemunha? - quis saber o Juiz Grayson.
-Sim, Meritíssimo.
- Quer contra-interrogar? Mason levantou-se:
- Este testamento foi o único que encontrou no sobrescrito selado?
- Sim. O sobrescrito selado estava na gaveta onde Lauretta Trent disse que estaria. O testamento estava lá dentro.
“Guardei-o num cofre e chamei o procurador do Distrito.”
- Onde se localizava o cofre?
- No meu quarto de dormir.
- E o seu quarto é na casa pertença e ocupada por Lauretta Trent durante a sua vida?
- Sim.
- O cofre já estava no seu quarto de dormir, quando se mudou para lá?
- Não, instalei-o eu.
- Porque o fez?
- Porque era proprietário de certos valores e sabia que a casa era grande; e a reputação de Lauretta Trent de ser extremamente rica era bem conhecida; um lugar seguro para eu guardar as jóias de minha mulher e a importância que tinha em meu poder.
- Qual tem sido a sua ocupação? - perguntou Mason.
- Tenho feito várias coisas - respondeu Kelvin, com dignidade.
- Tais como?
- Não me parece que tenha de as enumerar.
- Objecto por incompetência, irrelevância e imaterialidade, e por não constituir um adequado contra-interrogatório - exclamou Caswel I.
- Oh, com certeza - disse o Juiz Grayson. - Eu sou de opinião de que se trata de material relativo a antecedentes e de um contra-interrogatório a que o causídico deve ter direito, embora não consiga ver como é que ele afecta o desenvolvimento do caso ou influi materialmente na avaliação que o tribunal está a realizar do depoimento desta testemunha.
- Não há nenhuma necessidade de nos debruçarmos sobre toda a sua vida - insistiu Caswell irritado.
O Juiz Grayson fitou Mason inquisidoramente:
- Tem alguma razão em particular para esta pergunta?
- Pô-la-ei desta forma - redarguiu Mason-, para abreviar a situação. Todas essas várias actividades negociais que, segundo o senhor mesmo, têm sido numerosas, foram desprovidas de lucro, não foram?
- Isso não é verdade, não senhor.
- Mas o resultado prático foi ir viver com Lauretta Trent?
- A seu convite, senhor!
- Exactamente - disse Mason - numa altura em que não era capaz de se sustentar a si próprio.
- Não, senhor. Eu podia ter-me sustentado, mas tive, temporariamente, perdas financeiras, certos reveses comerciais.
- Por outras palavras, estava virtualmente falido?
- Tive problemas financeiros.
- E a sua cunhada convidou-o a ir viver com ela?
- Sim.
- Por sua instigação?
- O outro cunhado, Mr. Boring Briggs, estava a viver lá em casa. Trata-se de uma casa muito grande e... Bem, minha mulher e eu fomos lá de visita e nunca mais partimos.
- E o mesmo se verificou, tanto quanto saiba, em relação a Boring Briggs, não é verdade?
- O que é que se verificou?
- Que ele teve reveses financeiros e foi viver com a irmã da mulher.
- No caso dele - respondeu Kelvin-, houve circunstâncias que provocaram esse curso da acção... bom... uma necessidade.
- Circunstâncias de carácter financeiro?
- De certa forma. Boring Briggs tinha tido vários problemas e não conseguia proporcionar à sua mulher as vantagens monetárias que ela, subsequentemente, obteve devido à generosidade da sua irmã, Lauretta Trent.
- Muito obrigado - agradeceu Mason. - É tudo.
Muito bem - sussurrou Mason, voltando-se para Virgínia Baxter. - Diga-me o que queria.
- É sobre o testamento - respondeu ela. - Lembro-me agora de ter dactilografado aquele maravilhoso tributo ao médico dela.
Mason disse:
- Vou levantar-me para ir buscar esse testamento e lançar-lhe uma boa vista de olhos. Não quero parecer que estou a dar demasiada atenção àquilo que estou a fazer, mas olhe por cima do meu ombro, particularmente para a cláusula de certificação e para o testemunho e verifique se tem realmente a sua assinatura.
Encaminhou-se para a secretária do escrivão:
- Posso ver o testamento, por favor? - pediu.- Gostaria de o examinar em pormenor.
O escrivão entregou-lho, enquanto Caswell anunciava:
- A minha próxima testemunha será um membro da patrulha da estrada da Califórnia, Harry Auburn.
Este, de uniforme, avançou para a barra das testemunhas. Tratava-se do agente que tinha investigado a cena da colisão no Saint's Rest.
Mason, voltando as páginas do testamento, deteve-se casualmente para examinar as assinaturas.
Virgínia Baxter disse com algum desânimo:
- É a minha assinatura e a de Mr. Bannock. Oh, Mr. Mason, agora já me lembro de tudo. Este é mesmo o testamento. Recordo-me de várias coisas a respeito dele. Há uma pequena mancha de tinta no fundo da página. Caiu quando estávamos a assinar. Eu quis dactilografar de novo a última página, mas Mr. Bannock disse que deixasse ficar assim.
- Aqui parece que há uma impressão digital - comentou Mason-, uma impressão sobre a tinta.
- Não a vejo.
- Aqui mesmo - insistiu Mason. - Só algumas linhas, mas o bastante, diria eu, para conseguir a identificação de uma impressão.
- Meu Deus - exclamou ela-deve ser minha-, a não ser que seja de Lauretta Trent.
- Deixe isso com o Caswell - aconselhou Mason - ele terá descoberto.
O advogado saltou por cima das restantes páginas do testamento, dobrou-o, voltou a metê-lo no sobrescrito, levantou-se e deixou-o cair casualmente sobre a secretária do escrivão, como se não estivesse lá muito interessado, e voltou a sua atenção para a testemunha que estava na barra.
No momento em que Mason regressou para o lado de Virgínia Baxter, ela segredou-lhe:
- Mas porque raio é que havia alguém de querer levantar todo este vendaval acerca de falsificar dois testamentos, quando já existia este? Talvez não soubesse da sua existência.
- Talvez alguém quisesse sabê-lo - insinuou Mason.- Mais tarde falamos nisso, Virgínia.
Harry Auburn prestou o seu depoimento numa voz sem expressão, relatando simplesmente o que se passara e, aparentemente, com atenção para ser imparcial mas, ao mesmo tempo, ser cem por cento exacto.
Testemunhou que tinha recebido instruções via-rádio para se deslocar ao Saint's Rest Motel, para investigar um acidente de automóvel; que se tratara de uma chamada de rotina; subira a estrada para o Saint's Rest e deparara com um automóvel pertencente à acusada e outro a Perry Mason, que tinham colidido; que, enquanto investigava os factos da ocorrência, tinha pedido uma verificação dos carros e fora chamado ao rádio do seu carro.
- Agora, pode contar-nos o que lhe foi dito pelo rádio - pediu Caswell. - Isso será falar por ter ouvido, mas terá a responsabilidade de nos fazer saber o que fez relativamente a essa chamada.
- Bem, depois de a receber, interroguei a acusada sobre se tinha estado a servir-se do automóvel, se estivera envolvida noutro choque e onde tinha estado durante a última hora.
- Que respondeu ela?
- Negou que se tivesse servido do carro, excepto para dar aquela volta nos terrenos do motel. Declarou ter permanecido no seu quarto durante umas duas horas. Negou enfaticamente ter estado envolvida noutro choque.
- - E depois que aconteceu?
- Verifiquei o número de matrícula do seu carro: descobri dois algarismos significativos; verifiquei a carroçaria da viatura e encontrei indícios suficientes para a deter.
“Mais tarde, voltei à cena do acidente. Apanhei pedaços do farol partido, provenientes do carro dela; isto é que coincidiam com a lente partida do seu farol direito!
“Desci então ao local do acidente da estrada da costa e apanhei um pedaço de vidro lá, que pertencia a um farol partido; removi depois o farol do carro dela e montei todos os pedaços de vidro em conjunto.”
- Tem esse farol consigo?
- Sim.
- Apresente-o, se faz favor.
Auburn deixou o seu lugar, pegou numa caixa de cartão, abriu-a e tirou um farol de automóvel. A lente tinha sido colada.
- Quer explicar estes diferentes bocados colados, se faz o favor?
- Sim, senhor. Este pedacinho à volta do aro é a parte que estava no farol da acusada, quando eu o descobri. Marquei estas duas peças com os números um e dois, com bocados de fita-cola apostos sobre elas.
“Os pedaços de vidro que encontrei na cena do acidente do Saint's Rest Motel, numerei-os com três e quatro; e estes três pedaços, números cinco, seis e sete, foram apanhados no local do “bate-e-foge” da estrada da costa.
- Pode contra-interrogar - convidou Caswell.
- Não tenho perguntas a fazer - respondeu jovialmente Mason.
O Juiz Grayson fitou-o.
- Não tem perguntas, Mr. Mason?
- Não tenho, Meritíssimo.
- Nesse caso - anunciou Caswell-, gostaria de chamar de novo George Eagan, para o interrogar sobre uma outra fase do processo.
- De acordo - anuiu o Juiz Grayson. Eagan aproximou-se da barra:
- O senhor já foi ajuramentado - lembrou Caswell, Ele acenou afirmativamente e sentou-se.
- O senhor abordou, em alguma ocasião, a acusada e pediu-lhe para lhe falar de um testamento?
- Nunca vi a acusada na minha vida, até me confrontarem com ela, na prisão.
- Alguma vez lhe deu quinhentos dólares ou qualquer outra importância, para fabricar cópias forjadas de quaisquer testamentos?
- Não, senhor.
- Abreviando, teve alguma vez quaisquer contactos com ela?
- Nunca.
- Nunca a tinha visto na vida?
- Não, senhor.
- Pode contra-interrogar - disse Caswell.
Mason olhou para a testemunha pensativamente:
- O senhor - perguntou ele-, sabe que é beneficiário do testamento de Lauretta Trent?
A testemunha hesitou.
- Responda à pergunta - intimou Mason. - Sabe ou não sabe?
- Eu sabia que ela se tinha lembrado de mim no testamento. Não sabia qual era a importância.
- Sabia então que, quando ela morresse, ficaria relativamente bem.
- Não, senhor. Digo-lhe que ignorava quanto era.
- Como é que soube que ela se lembrara de si no testamento?
- Foi ela que mo disse.
- Quando?
- Há cerca de três meses, quatro meses... bem, talvez há cerca de cinco meses.
- Cozinhou muitos alimentos que foram comidos por Lauretta Trent?
- Sim, senhor.
- Cozinhados fora de portas?
- Sim, senhor.
- Usava bastante alho?
- Ela gostava de alho. Sim.
- Sabia que o alho é um bom método para disfarçar o gosto de arsénico em pó?
- Não, senhor.
- Alguma vez pôs arsénico na comida que preparava?
- Oh, Meritíssimo, se o tribunal me permite - interpôs Caswell. - Isto é completamente incompetente, irrelevante e imaterial. É insultar a testemunha e referir assuntos que não foram mencionados em exame directo. Trata-se de um contra-interrogatório impróprio.
- Também acho - determinou o Juiz Grayson-, a não ser que o causídico possa estabelecer uma ligação com o processo. É correcto que ele demonstre estar a testemunha ao corrente do facto de ser beneficiário no testamento, mas agora trata-se de uma coisa completamente diferente.
Mason esclareceu:
- Espero demonstrar que foi feita uma tentativa deliberada para envenenar Lauretta Trent, pelo uso de arsénico, em três ocasiões distintas. E, pelo menos numa dessas ocasiões, os sintomas seguiram-se à ingestão de comida preparada por esta testemunha.
Os olhos do Juiz Grayson abriram-se. Recostou-se para trás na cadeira:
- O senhor pode prová-lo? - perguntou.
- Posso, - respondeu Mason - com provas pertinentes.
O Juiz Grayson voltou atrás:
- A objecção é recusada - bradou. - Responda à pergunta.
Eagan disse indignadamente:
- Eu nunca pus qualquer veneno na comida de Mrs. Trent. Não sei nada sobre venenos; nem sabia que ela tinha sido envenenada. Estava ao corrente de que ela tivera um par de crises de estômago e foi-me dito que elas se agravariam, caso ela comesse comidas muito temperadas. Tive, pois, de a convencer a desistir de tomar outra refeição ao ar livre, como desejava. E, para sua informação, Mr. Mason, eu não sei uma única, uma só coisa sobre arsénico.
- Sabia que iria lucrar com a morte de Lauretta Trent? - perguntou Mason.
- Oh, espere aí-interrompeu Caswell. - Isso não é uma interpretação correcta do que disse a testemunha.
- Estou a perguntar-lhe - esclareceu Mason - se não sabia, no seu íntimo, que ia lucrar com a morte de Lauretta Trent.
- Não.
- Não sabia que ficaria melhor do que com o seu salário mensal?
- Bem... bem, sim. Foi suficientemente boa para mo dizer.
- Então sabia que lucraria com a morte dela. - Não necessariamente. Perderia o emprego.
- Mas ela tinha-lhe assegurado que ia arranjar as coisas para que você nada perdesse?
- Sim.
- Nesse caso, sabia que ia lucrar com a morte dela?
- Bem, se quer pôr as coisas dessa forma, eu sabia que não tinha nada a perder. Sim.
- Ora então, - indagou Mason - como estava vestida Lauretta Trent durante o seu último passeio?
- Como estava vestida?
- Sim.
- Porquê? Tinha um chapéu, casaco e sapatos.
- Que mais usava?
- Bem, deixe ver. Tinha um casaco com uma espécie de pele, era mais uma gola que, de alguma forma, se prendia ao casaco.
- E ela usava isso?
- Sim, recordo-me de me ter pedido para baixar o aquecimento do carro, porque queria manter o casaco vestido.
- Onde é que tinha ido?
- A Ventura.
- Sabe o que é que ela foi fazer a Ventura?
- Não.
- Não sabe que esteve lá a ver uma propriedade?
- Bem, sim. Sei que fomos até um pedaço de terreno que ela pensava comprar e estivemos a vê-lo.
- E ela levava malinha de mão?
- Sim, claro, tinha malinha de mão.
- Sabe o que lá levava dentro?
- Não, senhor. As coisas do costume, suponho.
- Não lhe estou a perguntar o que supõe. Estou a querer saber aquilo de que tem conhecimento.
- Como é que eu ia saber o que estava na sua malinha de mão?
- Eu estou a perguntar-lhe se sabia.
- Não.
- Não sabe de uma só coisa que estivesse na mala de mão dela?
- Bem, sei que havia lá uma bolsa... Não, eu não sei o que lá havia.
- Na realidade, - insistiu Mason - não sabe, de seu conhecimento pessoal, que estavam lá cinquenta mil dólares em dinheiro?
A testemunha ficou rígida no assento, com a surpresa:
- O quê?
- Cinquenta mil dólares - repetiu Mason.
- Oh, céus, não! Ela não levava uma tal quantia, em dinheiro.
- Tem a certeza?
- Positiva.
- Nesse caso, sabe o que não estava na bolsa dela?
- Sei que ela nunca teria levado uma tal importância em dinheiro, sem me dizer.
- Como é que o sabe?
- Só porque a conhecia bem.
- Então a única forma de você saber que ela não tinha esse dinheiro consigo, é chegar a uma conclusão, baseado numa dedução. É assim?
- Bom, já que assim fala, eu não sei que ela não o levava com ela - admitiu a testemunha.
- Era o que eu pensava - observou Mason.
- Mas tenho quase a certeza que não - proferiu Eagan.
- Ela não lhe disse que ia acenar com dinheiro ao nariz do dono dessa propriedade? Ou a mesma coisa por outras palavras? - perguntou Mason.
Eagan hesitou.
- Não lhe disse? - insistiu Mason.
- Bom, - admitiu Eagan - ela contou-me que estava interessada em adquirir um pedaço de terreno lá em cima. E também me disse que pressentia que o dono estava à espera de dinheiro contado e que, se lhe abanasse com ele debaixo do nariz, podia ser que aceitasse.
- Exactamente - comentou Mason triunfantemente. - E, quando esse automóvel acabou por ser retirado da água, você estava presente?
- Sim.
- E não havia nenhuma malinha de mão no fundo do carro?
- Não. Acho que os agentes não o encontraram. As traseiras do carro estavam completamente vazias.
- Nenhuma gola de peles? Nenhum casaco? Nenhuma malinha de mão?
- Isso mesmo. Os agentes fizeram um esforço heróico para encontrar o corpo, mas os mergulhadores não iriam arriscar as suas vidas para encontrar pequenos objectos. Segundo pude perceber, o leito do oceano é ali rochoso.
- Não conhece o condutor do carro que lhe bateu?
- Disseram-me que foi a acusada.
Mason sorriu:
- Você não sabe quem era o condutor do carro?
- Não.
- Não reconheceu a acusada?
- Não.
- Podia ser qualquer outra pessoa?
- Sim.
Mason voltou-se abruptamente, encaminhou-se de volta à mesa dos advogados e sentou-se:
- Não tenho mais perguntas - declarou. O Juiz Grayson disse:
- Hoje começámos tarde, por causa de outro processo que se atrasou. Receio ter de adiar a sessão para a tarde.
- O meu caso está quase completo - declarou Caswell. - Suponho que o tribunal poderá receber todas as provas e emitir um parecer sobre o caso, antes do adiamento. Essas indicam com toda a certeza que foi cometido um crime e que existe causa provável para relacionar a acusada com esse crime. Isso é tudo o que nos é necessário demonstrar numa audiência preliminar. Gostaria de o completar hoje. Tenho outros assuntos em agenda para amanhã, de manhã.
Mason afirmou:
- O Procurador-Adjunto está a cometer um erro habitual ao presumir que o caso tem uma só face. A defesa tem o direito de apresentar provas a seu favor.
- Tenciona estabelecer uma defesa? - perguntou o Juiz Grayson.
Mason sorriu:
- Muito francamente, Meritíssimo, não sei. Quero ouvir todas as provas da acusação e depois requerer um adiamento, para ter uma oportunidade de conferenciar com a minha cliente, antes de decidir o que fazer.
- Nessas circunstâncias, - decidiu o Juiz Grayson - só existe uma via de conduta para o tribunal, que é adiar a sessão até amanhã, às dez horas da manhã.
“A sessão está adiada. A acusada é mantida sob custódia, mas os agentes são instruídos para proporcionar a Mr. Mason uma razoável oportunidade de conferenciar com a sua cliente, antes que seja levada do tribunal.”
O Juiz Grayson abandonou a bancada.
Mason, Della Street, Paul Drake e Virgínia Baxter juntaram-se durante um momento, num grupo unido no canto da sala.
- Meu Deus, - exclamou Virgínia - quem seria a pessoa que veio ter comigo e que queria que eu falsificasse um testamento?
- Isso - redarguiu Mason - é uma coisa que vamos ter de descobrir.
-E como é que sabia que ela tinha cinquenta mil dólares em dinheiro na bolsa?
-Não o sabia - respondeu Mason sorrindo. - Eu não o afirmei. Perguntei a Eagan se ele sabia que ela tinha cinquenta mil dólares na bolsa.
- Acha que sim?
- Não tenho a mínima ideia - admitiu Mason.- Mas queria que o Eagan dissesse que ela não os tinha.
- Ora bem, Virgínia, quero que me prometa solenemente que não falará com ninguém acerca deste caso, antes de comparecer no tribunal, amanhã, de manhã. Não me parece que eles vão tentar tirar mais alguma coisa de si, mas se o fizerem, quero que lhes responda que recebeu instruções para não responder a perguntas, não dizer uma só palavra.
“Acha que é capaz de o fazer, Virginia, por mais forte que seja a tentação de falar?”
- Se me manda estar calada, - prometeu ela - assim farei.
- Quero que fique muito, muito calada -disse-lhe Mason.
- Muito bem. Prometo. Mason bateu-lhe no ombro:
- Bonita menina.
Encaminhou-se para a porta e fez um sinal à mulher-polícia, que levou Virgínia Baxter.
Mason voltou-se para indicar cadeiras aos outros. Começou a andar de um lado para o outro.
- Bom, - exclamou Paul Drake - desembucha. Que é que se passa com os cinquenta mil?
Mason respondeu:
- Quero que procurem esse saco de mão. Quero que sejam os polícias a efectuarem a busca. Acho que o vão fazer.
“Agora, Paul, é onde tu principias a trabalhar. Já antes devia ter pensado nisto.”
Drake puxou da sua agenda. Mason esclareceu:
- Lauretta Trent fazia tenção de que Eagan voltasse o carro à esquerda e conduzisse até ao Saint's Rest Motel. Tinha alguma razão para lá ir.
“Quando Virgínia me comunicou que Lauretta Trent lhe tinha telefonado e pedido para ela ir ao motel esperar por si, eu pensei que talvez Virgínia tivesse sido vítima do velho truque de terceiros se identificarem como sendo este ou esta ao telefone e, como o aparelho não transmite a aparência pessoal do interlocutor, é muito fácil enganar alguém, num caso desses.
“No entanto, o facto de Lauretta Trent tencionar realmente voltar à esquerda e subir a estrada, é fortemente indicativo de que foi ela quem telefonou a Virginia Baxter.
“Nesse caso, porque é que lhe telefonou?”
Drake encolheu os ombros e Mason prosseguiu:
- Ou foi porque queria dar alguma informação a Virgínia ou, por outro lado, queria obter dela alguma indicação. As mais fortes são de que ela quisesse obter alguma informação de Virgínia.
“Pois bem, alguém deve ter escutado essa conversa telefónica. Não há grandes probabilidades de o aparelho estar sob escuta. Por conseguinte, alguém deve ter ouvido a conversa num dos extremos da linha.
Ou estava à escuta no apartamento de Virgínia Baxter, o que não é provável, ou no lugar de onde Lauretta Trent telefonou.”
Drake acenou em concordância.
- Essa pessoa, sabendo que Virgínia Baxter iria deslocar-se de carro ao Saint's Rest, foi até lá, esperou que ela o estacionasse e estivesse dentro do quarto do motel. Então, pegou no carro de Virgínia, trouxe para baixo até à estrada da costa e aguardou que Lauretta Trent chegasse para comparecer à entrevista.
“Essa pessoa era um condutor muito habilidoso. Bateu no carro da Trent com força somente suficiente para o atirar para um dos lados da estrada e depois acelerou, entrou com a traseira do carro da Baxter numa derrapagem que o fez embater no outro e pô-lo completamente fora de controlo.
“Depois conduziu o carro estropiado da Baxter para o Saint's Rest Motel e estacionou-o.
“Como outros hóspedes tinham entretanto entrado e saído, o parque estava cheio no sítio onde Virgínia tinha estacionado, por isso teve de escolher outro lugar para o fazer.”
- E então? - perguntou Drake.
- Então, - esclareceu Mason - tomou presumivelmente o seu próprio carro, trouxe-o para baixo, para a estrada e desapareceu.
Drake concordou com um aceno de cabeça:
- Isso, é claro, é óbvio.
- Mas será? - indagou Mason. - Não podia contar com o elemento tempo. Não poderia saber se alguém que fosse atrás dele não podia anotar o número completo da matrícula de Virgínia Baxter, em vez de somente os dois últimos algarismos. Tinha de possuir uma segunda corda para o seu arco.
- Não estou a perceber - disse Drake. Mason explicou:
- Ele teria de preparar as coisas para se poder dissimular, no caso de não ter tempo para chegar à estrada cá de baixo. Nesse caso, como o teria feito?
- É simples - disse Drake. - Alugaria um quarto no Saint's Rest Motel.
- Aqui - continuou Mason - é que tu entras. Quero que vás lá verificar os registos, obtém os números de matrícula de cada automóvel e a lista dos donos. Vê se consegues apanhar o rasto de alguém que tenha alugado quarto e depois se tenha ido embora, sem dormir na cama. Se isso suceder, arranja uma descrição.
Drake fechou a agenda:
- Muito bem, - respondeu - é uma trabalheira, mas havemos de conseguir. Vou pôr uma data de homens a trabalhar nisso e...
- Espera aí - interrompeu Mason. - Ainda não é tudo para ti.
- Não? - perguntou Drake. Mason esclareceu:
- Vejamos o que sucedeu depois que o carro foi empurrado para fora da estrada, Paul.
- Existem ali grandes rochedos - declarou Drake. - O motorista debateu-se para manter o controlo e não o conseguiu. O carro saltou para o oceano - não se podia ter arranjado melhor local para o fazer. Verifiquei isso cuidadosamente. A estrada faz ali uma curva para a esquerda. Logo que sais do pavimento, encontras rochas - algumas com dezoito polegadas de diâmetro - grandes calhaus de forma regular. São só cerca de dez pés da estrada até à queda pura e simples directamente para o oceano.
“No ponto em questão há um declive quase perpendicular. As equipas de construção da estrada tiveram que abrir caminho com explosivos nesse penhasco. Sobe até duzentos pés acima da estrada, do lado esquerdo, e cai directo ao oceano, à direita.”
- Presumivelmente, - deduziu Mason - foi por isso que foi escolhido esse lugar em especial. Seria um sítio perfeito para empurrar um carro para fora da estrada.
- Claro que sim, -concordou Drake, sorrindo - é elementar, meu caro Holmes.
- Exactamente, meu caro Watson - anuiu Mason. -: Mas que aconteceu a Lauretta Trent? O motorista disse-lhe para saltar. Pode-se presumir que ela tentou sair do carro. A porta do lado esquerdo estava aberta. Não havia ninguém lá dentro; por conseguinte, deve ter sido projectada.
- Bom - perguntou Drake - onde é que isso nos leva?
- À sua malinha de mão desaparecida - esclareceu Mason. - Quando uma mulher salta de um carro, mal se preocupa em conservar a malinha de mão, a não ser que ela contenha uma soma de dinheiro muito, muito grande, ou algo que seja muito, muito valioso.
“Foi por isso que eu tive de descobrir através do Eagan se ela levava ou não algo de muito valor. Se tivesse uma grande importância ou outra coisa de valor na mala, é perfeitamente natural que dissesse ao motorista para estar alerta.
“Contudo, a surpresa demonstrada por Eagan foi demasiado natural para ser fingida. Somos levados à conclusão de que, se havia alguma coisa valiosa na malinha dela ou na sua bolsa, ele nada sabia sobre isso.
“Mesmo assim, quando Lauretta Trent encarou esse momento de suprema emergência, de grande perigo, ou ela agarrou na malinha de mão do sítio, ou esta foi arrastada para fora do carro - de contrário, lá estaria.
“Ora a minha pergunta sobre cinquenta mil dólares que estariam na mala, induzirá a Polícia a regressar lá e desenvolver uma busca desesperada por ela, com mergulhadores e iluminação submarina. Se a malinha estiver lá caída nos rochedos do leito do oceano, eles encontram-na. Um corpo seria levado para longe pelas correntes do mar, uma malinha de mão ficaria presa entre as pedras.”
Drake deu um longo assobio.
- Agora, - prosseguiu Mason - chegamos ao peculiar comportamento dos herdeiros. Alguém andava a tentar fazer a Virgínia forjar um testamento que pudesse ser plantado nas cópias de testamentos de Bannock.
- Isso é que me intriga - declarou Drake. - Com um testamento perfeitamente válido entre mãos, porque é que havia alguém de querer plantar um falsificado?
- É o que nós vamos ter de descobrir, - disse Mason - e teremos de o fazer antes das dez horas de amanhã.
- E porquê o segundo testamento falsificado? - quis saber Drake.
- Isso - explicou Mason - é prática comum nas falsificações de testamentos, Paul. Se, de alguma forma, o testamento forjado número dois fosse posto fora de jogo, então a falsificação número um teria de servir. “Os herdeiros decidem mais facilmente chegar a um compromisso, quando se vêem obrigados a ultrapassar dois obstáculos.”
- Bom, - disse Drake - isso é de mais para mim. Não só me parece que não possuímos a resposta correcta ao problema, como também não acho que estejamos na pista certa.
Mason sorriu:
- Em que pista é que pensas que nós estamos, Paul?
- Aquela que mostra uma Virgínia sem mácula - respondeu Drake.
Mason sacudiu a cabeça pensativamente.
- Na qualidade de advogado dela, Paul, é a única pista que eu quero seguir.
De volta ao escritório, Mason perguntou:
- Que tal trabalhares até tarde, hoje, Della, e depois jantares comigo?
Della Street sorriu:
- Tu bem sabes que eu nunca vou para casa enquanto tu não o fizeres, quando estamos a trabalhar num caso.
Mason bateu-lhe no ombro:
- Linda menina - exclamou. - Posso sempre contar contigo. Mete papel na máquina, Della. Vou dar-te uma lista de perguntas.
- Perguntas? - perguntou ela. Mason acenou que sim:
- De alguma forma, tenho a impressão que estou a colocar mal a minha cliente neste caso, simplesmente porque não estou a usar a cabeça e a reduzi-lo a fundamentos básicos.
“Alguém está, nos bastidores, a levar a cabo um plano preconcebido ou, melhor, já o pôs em prática.
“Esse plano faz, para ele, sentido, mas as suas manifestações externas, que eu vejo à luz de acontecimentos reais, simplesmente não são racionais.
“Quando isso acontecer, quer dizer que estamos a contemplar somente uma parte da cena. Vamos tratar de considerar as coisas uma de cada vez e tentar obter respostas.
“Começaremos com a questão número um - disse Mason. - Porque é que alguém iria plantar uma encomenda de contrabando na mala de mão de Virgínia Baxter?”
Della Street dactilografou a pergunta.
Mason começou a caminhar de um lado para o outro:
- Primeira resposta, - prosseguiu - que é a mais óbvia, é que essa pessoa queria que Virgínia fosse condenada por felonia.
“Questão número dois: Porque é que essa pessoa queria ver Virgínia Baxter condenada por felonia?
“A primeira e mais evidente resposta é que sabia ser ela uma das testemunhas do testamento de Lauretta Trent. Tinha a intenção de fazer algo que mostrasse que o testamento era falso e, por conseguinte, queria estar em posição de enfraquecer a credibilidade dela, como testemunha.
“Questão número três: Porque é que alguém havia de ir ter com Virgínia Baxter, pedindo-lhe para dactilografar dois testamentos falsos?
“A resposta aparente a isso é, naturalmente, que tencionavam plantar essas cópias a papel químico algures, onde pudessem ser usadas com vantagem.
“Questão seguinte: Porque é que essas cópias falsas a papel químico podiam ser usadas com vantagem? O que é que se esperava ganhar com elas?
Mason fez uma pausa na sua caminhada através do soalho, abanando a cabeça e dizendo:
- E a resposta a esta pergunta não é óbvia. “Temos então a questão: Porque é que Lauretta
Trent queria falar com Virgínia Baxter?
“A resposta preferencial a isso é que ela sabia, de algum modo, que havia conspiradores a tentarem usá-la. Provavelmente, tinha conhecimento dos testamentos falsificados. Ou talvez só quisesse interrogar Virgínia Baxter sobre o paradeiro das cópias a papel químico dos testamentos lavrados por Bannock.
“Contudo, - prosseguiu Mason - cá estamos de novo a correr contra uma parede vazia, que razão teria Lauretta Trent para se incomodar com um testamento que se supunha que ela tivesse anulado há anos atrás? Se quisesse ter a certeza de que o seu testamento traduzia a sua vontade, ter-se-ia dirigido a um advogado e, dentro de uma hora, teria obtido outro convenientemente lavrado.”
Mason percorreu o soalho durante alguns minutos, depois disse:
- São estas as perguntas, Della.
- Bem, parece-me que já tens a maior parte das respostas - comentou ela.
- As respostas óbvias, - disse Mason-mas serão as respostas correctas?
- Certamente que parecem lógicas - exclamou Della Street encorajadoramente.
- Faremos mais uma pergunta - acrescentou Mason. - Porque é que, naquele momento de supremo perigo, Lauretta Trent agarrou a mala de mão? Ou, pondo a questão de outra forma, porque é que a malinha de mão de Lauretta Trent não foi encontrada no automóvel, quando foi pescado do oceano?
- Talvez tivesse a alça da mala à volta do seu braço - sugeriu Della Street.
- Não creio que fosse passear de carro com a mala pendurada no braço - interpôs Mason. - Mesmo que tivesse sido projectada na altura da colisão, quando mergulhada em águas frias, teria pelo menos tentado nadar. Quando se tenta nadar, usam-se os braços; e, quando se faz isso debaixo de água, não se conserva debaixo do braço uma alça de mala de mão.
- Bem-aduziu Della Street-conseguimos chegar a uma lista de questões bastante imponente.
Mason continuou a percorrer o soalho durante mais algum tempo, depois comentou:
- Sabes, Della, quando te estás a tentar recordar de um nome e não consegues, às vezes, pensando noutra coisa qualquer, de repente o nome vem-te à memória. Acho que vou tentar pensar noutra coisa durante um bocado e depois ver o que acontece a todas estas perguntas.
- Tudo bem - disse ela, sorrindo. - Vamos para algum lado, onde possamos tomar uma bebida e comer um agradável e calmo jantar.
- Que é que achas de irmos até um desses refúgios na montanha, onde nos poderemos sentar na sala de jantar, a olhar para as luzes da cidade, lá em baixo, e sentindo-nos à margem de todos e de tudo?
- Aceito - respondeu Della Street, empurrando para trás a sua cadeira da secretária e pondo uma cobertura de plástico sobre a máquina de escrever.- Levamos esta lista de perguntas e respostas connosco?
- Sim, levamos, - decidiu Mason - mas tentaremos não pensar nelas, até depois de jantar.
Della Street, sentada em frente de Perry Mason, do outro lado da mesa, olhava-o solicitamente.
O advogado tinha comido o seu bife grelhado mecanicamente, como se mal soubesse o que estava a meter na boca. Agora estava a beberricar um café simples após o jantar, com os olhos fixos nos pares dançantes sobre o soalho reluzente. O seu olhar não seguia nenhum par em especial, mas tinha os olhos focados no mar de luzes visíveis no vale, lá em baixo, através de uma grande janela.
A mão de Della Street deslizou sobre a mesa, apoiando-se tranquilizadoramente na do advogado. Os seus dedos apertaram-na.
- Estás preocupado, não estás?
Os olhos dele brilharam brevemente nos dela, piscaram à medida que os focava e o seu súbito sorriso foi quente:
- Estou só a pensar, é tudo, Della.
- Preocupado? - perguntou ela.
- Está bem, estou preocupado.
- Acerca da tua cliente, ou de ti mesmo?
- De ambos.
- Não podes deixar que isso te deite abaixo - animou ela, com a mão ainda descansando sobre a dele.
Mason disse:
- Um advogado não é como um médico. Este tem bastantes doentes, uns jovens e curáveis, outros velhos e sofrendo de doenças incuráveis. Faz parte da natureza da vida que as pessoas se movam numa corrente que vai do nascimento à morte. Um médico pode ver-se tão envolvido pelos seus doentes que sofra em seu lugar. “Um advogado é diferente. Tem relativamente poucos clientes. A maior parte dos seus sofrimentos são curáveis, se ao menos ele soubesse o que fazer. Mas, sejam-no ou não, ele poderá sempre melhorar o seu cliente, no decurso do caso, se conseguir chegar à combinação adequada.”
- E tu? - perguntou ela. Mason sorriu e disse:
- Eu coço o queixo. Sabia, é claro, que alguém tinha pegado no carro de Virgínia e se tinha envolvido num acidente. Senti que se tratava de uma armadilha e que alguém a estava a tentar inculpar.
“Se fosse esse o caso, eu teria plena razão para fazer o que fiz.
“De facto, eu tive razão, de qualquer forma. Não sabia que tinha sido cometido um crime. Ignorava que tinha sido feita uma tentativa para atribuir a Virgínia um crime e, pouco antes, tinha estado a protegê-la.- Naturalmente, se soubesse que fora cometido um crime e que o carro tinha estado envolvido nele, nesse caso os meus actos seriam considerados criminosos. Afinal, é tudo uma questão de intenção.”
O advogado deu um olhar de relance à pista de dança, os seus olhos seguiram, por um momento, um dos pares, depois focaram-se novamente na distância.
Abruptamente, voltou-se para Della Street e pôs as mãos sobre as dela:
- Obrigado pela tua lealdade, Della - disse.-Eu não tenho muito jeito para falar nestas coisas. Talvez conte demasiado contigo, como se fosses o ar que respiro e a água que bebo, mas isso não quer dizer que não aprecie aquilo que fazes.
Apertou-lhe os dedos.
- As tuas mãos - afirmou - são maravilhosamente tranquilizadoras. Tens mãos competentes, femininas, mas, apesar disso, mãos fortes.
Ela riu-se conscientemente:
- Anos de dactilografia fortaleceram-mas.
- Anos de lealdade fortaleceram o seu significado.
A mão dela tremeu um pouco; depois, consciente de que estavam a atrair as atenções, retirou-a abruptamente.
Mason recomeçou a contemplar o distante mar de luz e depois, subitamente, os seus olhos estreitaram-se.
- Tiveste uma ideia? - perguntou ela.
- Meu Deus - exclamou. Ficou em silêncio por uns momentos, depois agradeceu:
- Obrigado pela inspiração que me deste, Della. Ela franziu inquiridoras sobrancelhas.
- Sugeri-te alguma coisa? - indagou.
- Sim, foi o que disseste sobre dactilografar.
- É como tocar piano, - afirmou ela. - Fortalece a mão e os dedos.
Mason raciocinou:
- A nossa segunda questão: Porque é que queriam atribuir um crime a Virgínia Baxter? A resposta que te dei está errada.
- Não te estou a seguir - disse ela. - É a mais lógica do mundo. Parece ser a única razão que possam ter tido para lhe imputarem um crime; então o seu subsequente testemunho poderia ser contrariado, se ela tivesse sido condenada por um crime de...
Mason interrompeu-a com um aceno de cabeça:
- Eles não a queriam ver condenada - afirmou.- Queriam ter a certeza de que ela estaria fora do caminho.
- O que é que queres dizer?
- Queriam entrar no apartamento dela, apanhar-lhe o papel timbrado e a máquina de escrever.
- Mas tinham conhecimento de que ela estava num avião e...
- Talvez não o tivessem sabido a tempo - contrariou Mason. - Ela só se deslocou a San Francisco e passou a noite fora. Teriam de estar absolutamente seguros de que teriam acesso à máquina de escrever e ao papel timbrado de Bannock e de que Virgínia não regressaria a casa até que tivessem feito o que tencionavam fazer.
- E que é que tencionavam fazer? - perguntou Della.
Mason, com o rosto corado de animação e o espírito estimulado pela situação, disse:
- Meu Deus, Della, já o devia ter percebido há muito tempo. Notou alguma coisa estranha naquele testamento?
- Referes-te à forma como ela dividiu os seus bens?
- Não. À forma como o testamento foi elaborado - esclareceu Mason. - Nota que a cláusula residual estava contida na primeira página... Quantos testamentos é que já dactilografaste. Della?
- Só Deus sabe - respondeu ela, a rir. - Com toda a minha experiência num escritório de advogado, tratei de muitos.
- Exactamente - prosseguiu Mason. - E, em todos eles, o testamento foi redigido de forma que os legados fossem mencionados e só depois, no encerramento, o testador diz todo o resto, residual e sobrante dos meus bens, de qualquer natureza e situados seja onde for, deixo-os, como legado, a...
- É verdade - concordou ela. Mason continuou o seu reciocínio:
- Eles tinham um testamento. A sua última página é autêntica. Provavelmente a segunda também é; a primeira é uma falsificação, dactilografada na máquina de Bannock e no seu papel timbrado, mas somente durante um dos últimos dias.
“Há uma página que foi substituída nesse testamento, e teria que ser dactilografada na mesma máquina que foi usada no escritório de Bannock e, quem quer que a tivesse falsificado, tinha de ter tido uma oportunidade de usar essa máquina.”
- Mas quem é que a forjou? - perguntou Della Street.
- Relativamente a um documento dessa espécie,- afirmou Mason - a pessoa ou pessoas que fizeram a falsificação, são mais provavelmente as que beneficiaram com ela.
- Todos os quatro parentes sobreviventes são beneficiários- lembrou ela.
- E o médico, a enfermeira e o motorista - acrescentou Mason.
O advogado manteve-se pensativamente em silêncio, por um momento, depois disse:
- Houve uma coisa no primeiro caso que defendemos para Virgínia Baxter, que me intrigou.
- O que é que foi?
- O polícia a afirmar que não podia divulgar o nome da pessoa que os tinha informado, estando essa pessoa numa posição de bastante importância quanto a anteriores informações.
- Eu ainda não percebo isso - admitiu Della Street.
- Quem quer que pretendesse forjar esse testamento deve ter conhecido um informador da Polícia, subornou-o para fornecer uma informação falsa e conseguiu plantar a droga na mala de mão de Virgínia.
Mason empurrou a cadeira para trás, pôs-se de pé num salto, olhou em volta à procura do criado.
- Vamos, Della, - disse - temos trabalho a fazer. Não estando o criado imediatamente disponível,
Mason pôs uma nota de vinte dólares sobre a mesa e concluiu:
- Isto deve chegar para a conta e para a gorjeta.
- Mas será demasiado - contrapôs Della Street - e eu tenho de manter um registo de despesas.
- Não incluas estas - disse Mason. - O tempo vale mais do que os registos precisos. Vamos, anda daí.
Paul Drake estava sentado no seu cubículo, na extremidade de uma estreita e longa toca de coelho. Tinha quatro telefones sobre a secretária. Um prato de papel, contendo parte de um hamburger e um sujo guardanapo de papel engordurado tinham sido empurrados para um lado.
Drake tinha um contentor de papel cheio de café na sua frente. Estava a segurar um telefone ao ouvido e, intermitentemente, sorvia café, no momento em que Mason e Della Street entraram.
- Muito bem, - disse Drake para o aparelho - fique por aí e aguente-se o melhor que puder. Mantenha-se em contacto comigo.
Drake desligou, olhou para o advogado e para a sua secretária, num ar de avaliação obstinada, dizendo:
- Okay, cá estão vocês bem empanturrados de filet mignon, batatas cozidas, cebolinhas fritas, pão de alho e vinho de colheita especial. Eu tive de engolir mais um hamburger gorduroso e já tenho o estômago a...
- Deixa lá isso - interrompeu Mason. - Que é que descobriste sobre o motel, Paul?
- Nada que seja útil - admitiu Drake. - Houve um homem realmente que se registou e deixou a cama intacta. Trata-se provavelmente do nosso homem, mas o nome e morada que deu eram falsos; o número de matrícula do carro que escreveu era incorrecto...
- Mas tratava-se de um Oldsmobile, não era? - perguntou Mason.
Drake ergueu uma sobrancelha:
- É verdade - admitiu. - O carro foi registado como sendo um Olds... Geralmente não se atrevem a pôr uma marca incorrecta no registo quando têm de a incluir; mas alteram os números de matrícula, por vezes mudando a ordem e...
- A descrição? - pediu Mason.
- Nada de valor - respondeu Drake. - Um homem bastante pesado, com...
- Olhos escuros e bigode - acrescentou Mason. Drake franziu as sobrancelhas:
- Como é que tu soubeste disso?
- Condiz - declarou Mason.
- Continua - pediu Drake. Mason indagou:
- Paul, quantos contactos é que tens? Quero dizer, contactos muito próximos nos círculos policiais?
- Uns quantos - admitiu Drake. - Dou-lhes palpites; eles retribuem. É claro que não me deixariam escapar fosse com o que fosse. Processavam-me e apreendiam-me a licença num minuto, se eu fizesse qualquer coisa contra a ética. Se é nisso que estás a pensar, eu...
- Não, não - interrompeu Mason. - O que eu quero é o nome de um informador em quem a Polícia confia para casos de droga, que corresponde à descrição do homem que se registou no Saint's Rest Motel.
- É capaz de ser difícil de conseguir - disse Drake.
- E pode ser que não - redarguiu Mason. - Sempre que eles emitem um mandato de busca com base no testemunho de um informador, ou mesmo na força de um palpite, têm de desvendar a fonte de informação, se é que pretendem usar a prova que obtiveram. Por essa razão, há uma grande rotação de informadores.
“Depois de um se tornar demasiado conhecido, deixa de poder trabalhar, porque o mundo dos marginais marca-o como “bufo”.
“Ora o meu melhor palpite e que o homem que nós queremos tem sido informador e viu a sua identidade revelada a algum advogado de defesa que, em troca deu um palpite aos negociantes de droga, e o “pombinho” viu-se temporariamente impedido de “ganhar para o tabaco”.
- Se for esse o caso, - afirmou Drake - posso provavelmente descobrir quem ele é, mediante a descrição que temos.
Mason gesticulou para os telefones:
- Mãos à obra, Paul. Nós vamos para o meu escritório.
- Até que ponto posso ir? - perguntou Drake.
- Vai até ao ponto de obteres resultados - disse- lhe Mason - É um caso de vida ou de morte. Quero o informador e quero-o tão depressa quanto possa. Põe uma dúzia de homens no caso, se tiveres de o fazer; passa palavra a todos os teus conhecimentos; diz-lhes que se trata de fazer justiça e, se for necessário, oferece uma recompensa.
- okay - concordou Drake, cansado, empurrando o copo de café para um lado- pegando no telefone com a mão esquerda, abrindo a gaveta da secretária com a direita e tirando uma embalagem de tabletes digestivas.
- Logo que tenha alguma coisa para ti ou, ainda melhor, vou lá abaixo ao teu escritório e informo-te.
Mason fez um aceno de cabeça afirmativo: - Vamos, Della, -disse -ficaremos à espera.
Mason e Della Street estavam no gabinete privativo do advogado. . . Della tinha a grande cafeteira eléctrica cheia de café, à espera de Paul Drake.
O advogado percorria incansavelmente a sala, para trás e para a frente, com os polegares enfiados no cinto, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado.
Por fim, parou com a sua atitude de enfado total, deixou-se cair numa cadeira e gesticulou em direcção ao café.
Della encheu-lhe a chávena.
- Porque é que levantaste todo este vendaval à volta da malinha de mão? - perguntou ela. - Tens alguma informação que eu desconheça?
Mason abanou a cabeça:
- Tu bem sabes que não.
- Mas não me constou nada sobre os cinquenta mil dólares em dinheiro.
Mason esclareceu:
- Há qualquer coisa muito peculiar neste caso. Della. Porque é que a malinha não foi encontrada no carro?
- Bem, - disse Della Street - com uma rebentação violenta, uma noite tempestuosa, um carro a tombar no oceano...
- A malinha - interrompeu Mason - deveria estar no chão do carro. Ou, se caiu para fora, não seria para muito longe. Não afirmo que continha cinquenta mil dólares em dinheiro; perguntei ao Eagan se ele não sabia se ela tinha dentro cinquenta mil dólares. Pretendi inspirar uma hoste de mergulhadores amadores a irem em busca da malinha. Eu...
O código de Drake soou na porta do gabinete de Mason.
Della Street levantou-se de um salto, mas Mason bateu-a na corrida para a porta e escancarou-a.
Drake, com a face a revelar linhas de fadiga, declarou:
- Parece-me que encontrámos o teu homem, Perry.
- Que é ele?
- Um tipo que dá pelo nome de Halinan Fisk. Tem sido “bufo” da Polícia desde há muito tempo, num dos subúrbios, mas houve um caso em que tiveram de revelar o nome dele e outro em que teve de testemunhar. Agora é conhecido como informador. Pensa que tem a vida em perigo. Está a tentar sacar suficiente dinheiro do fundo confidencial da Polícia, para o país.
- Tem alguma esperança de ser bem sucedido? perguntou Mason.
- Provavelmente alguma - respondeu Drake, mas a Polícia não dispõe de tanto dinheiro. Isto é u mundo-cão. Não é do domínio geral, mas a Polícia cidade fora do mundo, paga às vezes aos seus informadores, para cortar caminho.
“Fisk tinha andado a dar informações à Polícia sobre caça-grossa e sobre droga. Ia ganhando a vida como agente de um corretor de apostas. A Polícia fechava os olhos a isso, em troca de palpites sobre a droga. Agora que o seu trabalho como “bufo” veio a público, o corretor receia tê-lo por lá, mesmo tendo Fisk praticamente garantida a sua imunidade à prisão.
“O corretor de apostas tem medo de que os seus financiadores vão recolher os fundos e que ele próprio seja estoirado. Recebeu um par de telefonemas anónimos dizendo-lhe para se livrar do Fisk, se não... e, nesse negócio, é quanto basta para tornar o Fisk tão desejável como um tipo com bexigas.” ! -Tens a direcção dele? - perguntou Mason.
- Parece-me que sei onde podemos encontrá-lo - disse Drake.
- Vamos lá - comandou Mason.
Della levantou-se da cadeira, mas Drake obrigou-a a sentar-se com um gesto de mão:
- Ná - avisou. - Não é lugar para senhoras.
- Pfff! - exclamou ela. - Eu já sei o que se passa com as aves, as abelhas, as flores e os marginais.
- Isto vai ser duro - insistiu Drake.
Della Street lançou um olhar implorativo a Mason. Este reflectiu um momento, depois decidiu:
- Okay, anda daí, Della-, mas é por tua conta... Como é que estamos de protecção, Paul?
Drake abriu o casaco para mostrar uma arma, no coldre sovaqueiro.
- Se as coisas derem para o torto - disse-, podemos mostrar as minhas credenciais e, se se puserem mesmo más, podemos usar isto.
- Estamos mesmo a lidar com assassinos - constatou Mason.
Desligaram cuidadosamente as luzes do gabinete privado do advogado, fecharam a porta à chave e desceram para o carro de Drake.
Este meteu-se na fila do trânsito que, a esta hora fervilhava de actividade nocturna.
De vez em quando olhava para Della com ar de dúvida.
Encontrou finalmente lugar para estacionar, próximo da casa de hóspedes que era o seu destino.
Della, encaixada entre os ombros maciços de Perry Mason e Paul Drake, foi conduzida através da rua e ao longo de uns trinta pés de passeio, depois subiu um lanço de escadas para uma pequena alcova fracamente iluminada, onde um balcão tinha uma placa dizendo Escritório e uma campainha.
Por trás do balcão, viam-se ganchos com várias chaves penduradas.
- Número cinco - pediu Drake. - A chave não está no gancho, por isso vamos dar uma espreitadela.
- Ele não deveria estar em casa, pois não? - observou Della. - Esta é a hora de alta actividade na rua.
- Acho que está - disse Drake. - Creio que tem medo de sair do quarto.
Percorreram um corredor, escuro, mal-cheiroso e sinistro.
Drake localizou o nº 5, apontando para o fundo do corredor.
- Tem luz - observou.
Os nós dos dedos de Mason bateram uma mensagem peremptória no painel da porta.
Durante um momento, não houve resposta, depois ouviu-se a voz de um homem dizer junto da porta:
- Quem é?
- Detective Drake - disse Paul.
- Não conheço nenhum detective chamado Drake.
- Tenho uma coisa para si - anunciou Drake.
- É disso que eu tenho receio.
- Quer que eu aqui fique no átrio, a dizer o que quero, de maneira que todos oiçam?
- Não, não.
- Bem, então deixe-nos entrar.
- Quem é nós?
- Tenho uma rapariga comigo - informou Drake - e um amigo.
- Quem é a rapariga? Della Street respondeu:
- O meu nome é Della Street.
- Bem, então vai-te meter noutra viela, mana.
Mason disse:
- Muito bem, se é assim que queres, assim será Tu é que perdes. Querias desaparecer e o negócio que queremos propor-te dava-te uma oportunidade.
- Você também se pode pôr ao fresco - respondeu a voz do homem. - Eu não vou abrir a porta por uma “conversa de chacha” dessas. Se querem que abra, tragam-me alguém que eu conheça.
Mason aproximou-se de Paul Drake e disse:
- Tu e Della esperem no corredor, Paul. Se ele sair, agarrem-no.
- Que é que lhe faço?
- Detém-no, seja como for. Empurra-o para dentro do quarto. Faz uma prisão civil, se for preciso.
- Com base em quê? - perguntou Drake.
- Bate-e-foge - explicou Mason. - Mas não creio que ele venha cá fora.
Mason percorreu o longo e mal-cheiroso corredor até uma cabina telefónica, que fedia a fumo de cigarro apagado.
Ligou para o quartel da Polícia:
- Passe-me aos Homicídios - pediu quando o atenderam.
Um momento depois, quando uma voz disse:
- Está, daqui Homicídios. Mason respondeu:
- Preciso de contactar o Tenente Tragg, sobre um assunto da maior importância. Quanto levará a passar-lhe uma mensagem? Daqui fala Perry Mason.
A voz no outro extremo da linha pediu:
- Só um minuto.
Segundo e meio depois, a voz seca do tenente Tragg fez-se ouvir pelos fios:
- Que se passa, Perry, encontrou outro cadáver?
- Graças a Deus que você está aí - disse Mason. - Estou mesmo com sorte.
- De facto, está - retorquiu Tragg. - Eu acabei de chegar, para ver se havia novidades num caso de que estou a tratar. Qual é o problema? Mason respondeu:
- Quero que venha ter comigo. Encontrei uma coisa em grande.
- Um cadáver?
- Nada de cadáveres, por enquanto. Talvez mais tarde haja um.
- Onde é que está? - perguntou Tragg. Mason informou-o.
- Bolas - exclamou Tragg -, é a curta distância do quartel.
- Vem ter comigo? - insistiu Mason. Tragg anuiu:
- Okay.
- Traga alguém consigo - pediu Mason.
- Okay- concordou Tragg - vou pegar num carro da Polícia e estarei aí dentro de minutos.
- Fico à sua espera no escritório, ao cimo das escadas- disse-lhe Mason. - Isto é uma casa de hóspedes, só no segundo andar, por cima de umas casas de penhores e de uns bares.
- E pensava eu que conhecia esse lixo - comentou Tragg. - Já vou para aí.
Mason ficou à espera junto da cabina telefónica.
Dois homens subiram as escadas, fizeram uma pausa no escritório, olharam furtivamente em volta e, vendo Mason ali de pé, dirigiram-se para ele.
O advogado recuou um ou dois passos.
Os homens olharam para o seu tamanho, para os seus ombros e fitaram-se, depois voltaram-se sem dizer palavra, encaminharam-se para o cimo das escadas e desceram-nas até à rua.
Poucos momentos mais tarde, Tragg, acompanhado por um agente fardado, apareceu no alto dos degraus, deteve-se e olhou pelo corredor fora.
Mason aproximou-se rapidamente dele.
Tragg fez uma pausa junto do balcão, esperando-o e olhando-o com olhos amavelmente zombeteiros.
- Muito bem, Perry - disse ele - de que é que se trata, desta vez? Aqui está a sua pata de gato. Qual é a castanha que quer que lhe tire do fogo?
Mason respondeu:
- Quarto Cinco.
- Até que ponto é que a castanha está quente?
- Não sei - admitiu Mason - mas, quando entrarmos e o abanarmos um bocado, acho que vamos encontrar solução para o caso de Lauretta Trent.
- Não lhe parece que já a temos?
- Eu sei que vocês, na realidade, não a têm - contestou Mason.
Tragg suspirou:
- Eu bem podia ter poupado um passeio, se tivesse sido adequadamente céptico - disse. - O Gabinete do Procurador vê com maus olhos que nós andemos para aí a correr, por pressentimento da defesa, tentando minar casos que ele está a apresentar em tribunal.
“Isto posto nos jornais não dava uma bonita história, pois não?”
- Já alguma vez o misturei numa história dos jornais que não parecesse boa? - perguntou Mason.
- Por enquanto, não -, admitiu Tragg. - Nem quero que o comece a fazer.
- Tudo bem - disse-lhe Mason. - Já que veio de tão longe, venha até ali ao quarto cinco.
Tragg suspirou e disse para o agente:
- Òkay, vamos dar uma olhadela. É só o que vamos fazer, dar uma vista de olhos.
Mason indicou o caminho para onde estavam Paul Drake e Della Street, à espera.
- Belo, belo - exclamou Tragg -, parece que temos quorum.
Mason bateu outra vez à porta.
- Vai-te embora - disse a voz lá de dentro. Mason bradou:
- Tenente Tragg dos Homicídios e um agente.
- Tem um mandato?
- Não precisamos disso - insistiu Mason. - Nós...
- Espere aí - interrompeu Tragg. - Eu digo o que entender. O que é que se passa?
Mason esclareceu:
- Este homem registou-se no Saint's Rest Motel, sob o nome de Carlton Jasper. É também o pombinho que deu à Polícia a pista inútil sobre a existência de droga na mala de mão de Virgínia Baxter. Está à espera de receber fundos da Polícia para sair da cidade.
“Tem sido informador profissional do Esquadrão da Droga e... Queres que eu aqui fique a gritar a história toda no corredor, Físk?
Ouviu-se o som da lingueta da porta; depois o arrastar de uma cadeira. A porta abriu-se até ao limite do cadeado de segurança. Olhos negros de obsidiana espreitaram ansiosamente para fora, acabando por fixar-se no agente uniformizado e fitando depois Tragg.
- Deixe-me ver as suas credenciais - pediu. Tragg tirou do bolso uma carteira de couro, pondo-a onde o homem a pudesse ver. Ele pediu:
- Olhe para cima e para baixo do corredor. Está alguém à vista?
- Agora não - respondeu Mason - mas, há minutos, apareceu um par de torpedos. Começaram a encaminhar-se para o teu quarto e depois retiraram-se, quando deram conta de que eu iria testemunhar o acto.
Mãos trementes mexeram desajeitadamente no cadeado de segurança da porta. Esta abriu-se.
- Entrem, entrem-, disse Fisk.
O pequeno grupo entrou no quarto - um lugar sujo, com uma cama barata e descambada, um tapete da espessura de um papel onde se viam buracos, em frente do ordinário guarda-fatos cor-de-rosa, com o seu espelho ondeado a produzir reflexos distorcidos.
Havia uma cadeira almofadada, fundo de palhinha e costas direitas.
Fisk disse:
- Que é isto? Vocês vieram para me proteger?
Mason perguntou:
- Qual foi a tua ideia de comprometeres Virgínia Baxter num caso de droga, e porque foste ao Saint's Rest roubar-lhe o carro?
- Quem é você? - quis Fisk saber.
- Sou o advogado dela.
- Bem, eu não tenho necessidade do seu género de embocadura.
- Não se trata de embocadura - insistiu Mason.- Sou advogado. E aqui tens, meu amigo, uma intimação para compareceres em tribunal, amanhã, e testemunhares no caso do Povo contra Virgínia Baxter.
- Olhe lá, que truque é que me está a fazer? - perguntou Tragg. - Trazer-me aqui só para você poder entregar uma intimação.
- É tudo - disse-lhe Mason jovialmente. - A não ser que queira usar a cabeça. Se o fizer, poderá cobrir-se de glória.
- Você não pode entregar-me nenhuma intimação - exclamou Fisk. - Eu só abri a porta por se tratar da Polícia.
- Como é que as tuas impressões digitais foram encontradas por toda a parte, no carro de Virgínia Baxter? - perguntou Mason.
- Pfff, não encontra nem uma nessa coisa.
- E - continuou Mason-, quando a Polícia foi ao apartamento de Virgínia Baxter, para o revistar por força da tua acusação de que lá haveria droga escondida, conseguiste dar um jeito na porta para que lá pudesses voltar com a pessoa que dactilografou na máquina de Virgínia.
- Palavras, palavras, só palavras - disse Fisk.- Eu já estou cansado de ver pessoas atirarem-me coisas para cima. Ouça, advogado, eu já fui “trabalhado” por peritos. Vocês, os amadores, não têm hipóteses.
- Usaste luvas para tratares do carro de Virgínia - afirmou Mason-, mas tinhas luvas no Saint's Rest Motel. Há impressões digitais tuas por todo o quarto.
- E depois? Com certeza, eu admito que estive no Saint's Rest Motel.
- E registaste-te com nome falso.
- Há muitas pessoas que o fazem.
- E deste um falso número de matrícula do carro.
- Escrevi-o como me lembrava.
Mason, olhando para o homem, disse subitamente: -Oh, céus, não admira! Dão um ar de família.
Qual é o teu parentesco com George Eagan?
Durante um momento, os olhos negros fitaram
Mason num desafio gelado.
- Isso - afirmou Mason - é uma coisa que nós podemos averiguar.
Fisk pareceu encolher-se dentro do seu casaco:
- Está bem - cedeu. - Sou seu meio-irmão. Sou a ovelha negra da família.
- E - continuou Mason - trocaste as matrículas com o automóvel de Eagan, o qual, é claro, não notou. Era só para o caso de alguém tentar identificar-te através do número de matrícula.
- Tem alguma prova? - perguntou Fisk.
- Não preciso - respondeu Mason. - Na altura em que te levar à barra das testemunhas amanhã e os jornais publicarem a tua fotografia e a história das tuas actividades como “bufo” e traidor, o mundo dos marginais tratará de ti bastante melhor do que eu posso fazê-lo. Vamos lá, amigos, venham daí.
Mason começou a encaminhar-se para a porta. Durante um longo momento, Fisk ficou ali de pé, depois agarrou a manga do casaco de Mason:
- Não, não! Olhe, olhe, nós podemos resolver isto. Virou-se de Mason para o tenente Tragg:
- Eu dei-vos palpites a vocês - exclamou. - Vocês podem ajudar-me. Tirem-me este fala-barato de cima das costas. Levem-me para fora da cidade.
Tragg, estudando intencionalmente o homem, respondeu:
- Tu contas-nos toda a história e nós veremos o que podemos fazer. Mas não vamos comprar nada de olhos fechados.
Fisk disse:
- Olhe, eu tenho tido problemas, muitos problemas, estive muitas vezes atrapalhado. O George tirou-me uma vez de sarilhos, quando eu estava em maus lençóis.
- Quem é o George? - perguntou Tragg.
- George Eagan, o motorista de Lauretta Trent.
Mason e Tragg trocaram olhares, depois o último voltou-se para Fisk e indagou:
- Muito bem, continua, que aconteceu?
- Bom, a Polícia pôs-me de lado e eu perdi todos os meus contactos e sentia-me revoltado. Foi quando essa mulher me procurou, uma mulher que já antes me tinha ajudado a safar-me.
- Qual mulher?
- A enfermeira, Anna Fritch. Tive encontros com ela uma ou duas vezes e forneci-lhe droga durante anos.
- Continua - mandou Tragg.
- Andava metida com o Kelvin. Ele pensava que ia apanhar o grosso da herança da Trent - ele e o cunhado, e as mulheres deles, é claro. Por isso arranjou essa enfermeira para apressar a velhota a passar para o outro lado.
“Fizeram três tentativas com arsénico. Não se atreviam a matá-la com isso, mas ela tinha um mau coração e a ideia era que todas as abanadelas de uma pequena dose fizessem a bomba parar.
“Depois, enquanto a velha esteve doente, da última vez, Kelvin encontrou o testamento. Quase caiu para o lado com o choque.
“Assim, tinha de o alterar. Seguiram a pista da máquina de escrever do advogado. A enfermeira é boa dactilógrafa. Dizia que, se tivesse tempo suficiente faria uma falsificação que nunca haviam de detectar-mas precisava da máquina do advogado e de papel timbrado.
“Isso queria dizer que eles, não só queriam desacreditar Virgínia Baxter para não lhes estragar a fruta, se se lembrasse dos termos do testamento, mas também a queriam meter dentro.
“Queriam também apanhar a cópia a papel químico do testamento verdadeiro, ou então baralhar as coisas de forma que ninguém conseguisse descobrir o original através dos velhos arquivos, mas só se lembraram deste aspecto mais tarde, quando eu levantei a questão-”De qualquer maneira, a primeira coisa era ter essa rapariga Baxter na grelha e fazê-la condenar por posse de narcóticos.
“Bem, eu fiz o que me competia. Subornei para me deixar sair do avião e receber a bagagem em terra, disse-lhe que se tratava de um importante carregamento. Reparei na mala da rapariga logo que a tirara^ do aparelho; depois disse que tinha perdido as etiquetas. Disseram-me que tinha de identificar o conteúdo; assim, abri as malas e depois disse que me tinha enganado e, na confusão, consegui plantar o material na mala de mão.
“Pensava que era tudo o que tinha a fazer.
“Mas as coisas são assim, quando há uma tipa envolvida. Uma pessoa mete-se com elas e tem-nas sempre penduradas ao pescoço. Foi por isso que tive de roubar o automóvel dessa rapariga e esperar que o George chegasse embatendo-lhe então no carro. Detestei ter de o fazer, mas o George tinha estado a apertar comigo e... Bem, um tipo tem de viver.”
- Ora bem - disse Tragg-, o que é que fizeste?
- Fiz o que me mandaram - respondeu Fisk a tremer.- Devia dar-lhe um bom encontrão de lado. Não sabia que ia perder o controlo e... pensei que só estava a encenar um bate-e-foge... Bem, esta é a verdade e agora já me sinto aliviado dela.
- Era o carro de Virgínia Baxter que estava a usar? - perguntou Mason.
- Era. Disseram-me que ela ia estar lá em cima no Saint's Rest e deram-me o número de matrícula do seu carro. Mal ela tinha entrado no quarto e se tinha instalado, saltei eu do meu carro e peguei no dela. Então, logo que fiz o trabalho, voltei para cima, estacionei o carro e arranquei com o meu.
“O sítio do parque onde o carro dela estivera tinha sido tomado pelo de outra pessoa, por isso tive de o deixar noutro lugar. Tinham-me dito que fosse muitíssimo cauteloso com esse carro, para dar no de Lauretta Trent um toque com a frente do outro, mas para bater com força na parte de trás, para que o carro da Baxter continuasse a andar bem.”
- E quanto é que recebeste por isso? - perguntou Mason.
- Promessas. Eu estava quente. Tenho inimigos e estou onde eles me podem apanhar para dar um passeio só de ida. Essa tipa prometeu-me dois mil e quinhentos e só me deu duzentos em dinheiro. Não sei como é que me descobriu, mas... por Deus, se me levar à barra das testemunhas e os jornais publicarem este material, a minha vida nem valerá um estalo dos dedos... Diabos, eles estão a apontar sobre mim precisamente neste momento... Você disse que havia dois deles a subirem as escadas?
Mason acenou afirmativamente. Fisk estendeu os pulsos:
- Leve-me preso, Tenente - pediu. - Dê-me toda a protecção que puder. Eu posso arranjar uma hipótese de me pôr a mexer, mas você não conseguirá bater os torpedos do manda-chuva.
- Quem é o manda-chuva? - perguntou Tragg. Fisk, tremendo de apreensão, disse:
- Nunca lhe pus a vista em cima. Tratei sempre com os pequenos e os de fora; mas, se se chegar a ter de mostrar a cara o que tiver de ser, será, meta-me numa cela onde fique sozinho; dê-me protecção e uma hipótese de me pôr a mexer e eu falo.
Tragg, olhando para Mason, disse:
- Bem, parece haver manteiga em ambos os lados do seu pão.
Mason, Della Street e Paul Drake regressaram ao gabinete do advogado, pouco antes da meia-noite.
O encarregado da limpeza, que operava no elevador depois das horas de expediente, informou:
- Houve uma mulher que tentou encontrá-lo, Mr. Mason; diz que é assunto de grande importância. Eu disse-lhe que o senhor voltaria, mesmo que já fosse tarde e ela respondeu que esperaria.
- Onde é que está?
- Não sei. Por aí, às voltas. Já voltou quatro ou cinco vezes, perguntando se o senhor já tinha voltado. Disse-lhe que não e afirmou que ia voltar.
- Que aspecto tem ela? - perguntou Mason.
- Um ar bastante aristocrático. Uns sessenta-Cabelo grisalho. Bela roupa. Voz calma, não de aldrabona, mas alguma coisa a preocupa.
- Muito bem - disse Mason. - Estarei lá em cima, no escritório. Estarei lá tempo suficiente para Virgínia Baxter vir ter comigo; então é que será um dia em cheio.
- E que dia! - exclamou Paul Drake.
- Virgínia Baxter? - perguntou o operador do elevador.- O senhor refere-se à rapariga que tentaram inculpar de assassínio?
- Foi libertada - informou Mason. - O Tenente Tragg vem trazê-la num carro da Polícia.
- Bom, quem diria? - exclamou o operador, olhando Mason admirativamente. - Conseguiu tirá-la de lá, eh?
- Nós tiramo-la de lá - rectificou Mason, sorrindo. - Vamos lá.
O elevador chegou ao andar de Mason. Drake disse:
- Okay, vou meter-me no meu escritório a tratar de umas coisas, Perry. Que é que vai fazer quanto à enfermeira?
Mason sorriu.
- O nosso amigo Tenente Tragg é quem toma a iniciativa. Vocês vão ler nos jornais a respeito do seu brilhante raciocínio dedutivo; provavelmente que Tragg deu a Perry Mason uma oportunidade de o acompanhar, quando descobriu a testemunha-chave do caso Trent.
- Pois, acho que ele é que vai arrebanhar todo o crédito - anuiu Drake.
- O Tragg, não, mas o Departamento vai. É assim que se tem de jogar o jogo. Até amanhã. Paul.
Mason tomou o braço de Della Street e conduziu-a para o escritório.
Meteu a chave à porta do seu gabinete, ligou as luzes, bocejou prodigiosamente e dirigiu-se para a cafeteira eléctrica do café.
- Quanto tempo demorará? - perguntou Della.
- Não deve ser mais de dez ou quinze minutos - disse Mason. - O Tragg vai tirá-la de lá e entregar-ma, para a conservar fora de circulação. Ele não quer que nada interfira com a sua grande história que vai aparecer nos jornais. Ele...
Ouviu-se bater timidamente na porta do corredor.
Mason foi lá abrir.
Uma mulher alta e cabelo branco perguntou:
- É Mr. Mason?
- Sim - respondeu ele.
- Eu já não podia esperar mais - disse. - Tinha de vir ter consigo.
Voltou-se inquisitivamente para Della Street.
- A minha secretária, Della Street - esclareceu Mason, depois acrescentou com uma hesitação só perceptível por um momento - e, a não ser que eu esteja muito enganado, Della, esta é Lauretta Trent.
- Exactamente - anuiu ela. - Eu não podia deixar as coisas chegarem a um ponto em que aquela pobre rapariga fosse condenada. Tinha de vir ter consigo.
“Tenho esperança de que haja alguma forma de me proteger, até que se descubra quem é que tem estado a tentar assassinar-me.”
- Sente-se - convidou Mason. Ela disse:
- Eu sou muito ingénua, Mr. Mason; não tinha suspeitas até o Dr. Alton ter pedido à enfermeira para arranjar amostras do meu cabelo e unhas.
“Numa dada altura, fiz algum trabalho de pesquisa sobre sintomas de envenenamento. Decidi sair dali e muito depressa.
“Depois, quando aquele carro nos abalroou deliberadamente lá na estrada, e George Eagan gritou, “Salte” - bem, eu saltei. Esfolei-me um bocado mas, felizmente, tinha visto que esse carro ia bater-nos e tinha já a mão no fecho da porta.
“Não tinha cinquenta mil dólares na malinha de mão, como disse no tribunal, mas possuía bastante dinheiro para tomar conta de mim própria.
“Vi que o George estava ferido. Fui para a estrada e, quase imediatamente, parou um motorista. Levou-me pela estrada abaixo até ao café. Chamei a Patrulha da Estrada e relatei o acidente. Eles prometeram mandar imediatamente um carro.
“Decidi que era um bom momento para mentir e começar a desvendar as coisas. Queria descobrir quem estava por trás disto tudo.”
- E descobriu? - perguntou Mason.
- Quando esse testamento foi lido no tribunal, nunca me senti tão chocada na minha vida.
- Esse testamento, suponho eu, era falso.
- Absolutamente! - bradou ela. - Uma, ou talvez duas páginas, eram genuínas, o resto foi substituído. O que eu tinha posto no meu testamento era que, uma vez que chegara à conclusão de que os meus parentes eram parasitas que só aguardavam a minha morte, e sem capacidade bastante para irem à sua vida e fazerem alguma coisa por eles próprios, iria deixar às minhas duas irmãs um legado suficientemente pequeno para que os homens fossem obrigados a trabalhar.
“Mantinha esse testamento num sítio que eu considerava seguro. Devem tê-lo descoberto, tiraram os selos das páginas, substituíram-nas por páginas falsificadas e decidiram ver-se livres de mim.”
- Aparentemente - disse Mason-, a senhora está fadada para receber choques. Os seus parentes não foram os únicos que tentaram apressar a sua morte, mas a enfermeira, que era uma boa dactilógrafa, colaborou obviamente com Kelvin para plantar um falso testamento - provavelmente na base de uma percentagem, com possibilidades de chantagem ilimitada após isso.
“E, caso Virginia Trent se lembrasse dos termos de testamento verdadeiro, planearam colocá-la numa posição em que o seu testemunho fosse destituído de valor.
“Estou satisfeito que esteja bem. Quando eles não conseguiram encontrar a sua malinha de mão no carro, eu fiquei com a ideia de que estivesse viva.
“Fez a Virginia Baxter passar um mau bocado, mas não é nada que não possa ser curado.
“Nós estamos à espera que ela venha ter connosco.”
Lauretta Trent abriu a malinha de mão:
- Felizmente - declarou. - Eu tenho o meu livro de cheques comigo. Se eu lhe passar um cheque de vinte e cinco mil dólares, Mr. Mason, bastará para liquidar os seus honorários? E, naturalmente, um de cinquenta mil para compensar a sua cliente, por tudo aquilo que passou.
Mason sorriu para Della Street:
- Parece-me que, se começar a passar os cheques, Mrs. Trent, a Virginia Baxter estará cá na altura em que os estiver a assinar, e poderá responder-lhe pessoalmente.
Erle Stanley Gardner
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