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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS HEREGES - P.2 / Frank Herbert
OS HEREGES - P.2 / Frank Herbert

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Saga do Planeta “Duna”

OS HEREGES

 

Parte II

Liberdade e Livre Escolha são conceitos complexos. Eles remontam as idéias religiosas de livre arbítrio e têm uma relação com a Mística do Governante implícita nas monarquias absolutistas. Sem monarcas absolutistas, moldados de acordo com a imagem dos Antigos Deuses e governando por graça da crença na indulgência religiosa, a Liberdade e a Livre Escolha nunca teriam adquirido seu significado atual. Esses dois ideais devem sua própria existência a exemplos passados de opressão. E as forças que mantêm vivas tais idéias irão desgastar-se, a menos que sejam renovadas por ensinamentos dramáticos ou por nova opressão. Essa é a chave mais elementar para compreender minha vida.

 

— Leto II, Imperador-Deus de Duna

Registros de Dar-es-Balat

 

Teg deixara-os esperando, sob a cobertura de um escudo-vital, uns 30 quilômetros floresta adentro, a nordeste do Castelo Gammu, até que o sol mergulhasse atrás das montanhas a oeste.

— Esta noite vamos seguir em nova direção — ele disse.

Fazia três noites que ele os conduzia pela escuridão fechada da floresta, numa demonstração maravilhosa da Memória Mentat, cada passo totalmente preciso ao longo da trilha que Patrin lhe deixara.

— Estou rígida por ficar muito tempo sentada — queixou-se Lucilla. — E parece que vamos ter outra noite fria.

Teg dobrou o cobertor do escudo-vital e o colocou em cima de sua mochila.

— Vocês dois podem começar a se mexer um pouco — aconselhou ele. — Mas não vamos partir até que esteja totalmente escuro.

Teg sentou-se com as costas de encontro ao tronco cheio de ramos de uma conífera e olhou para as sombras enquanto Lucilla e Duncan andavam para dentro da clareira na espessa floresta. Os dois ficaram lá por um momento, tremendo enquanto os últimos traços do calor do dia fugiam ante o frio da noite. Sim, ia ser outra noite fria, pensou Teg, mas eles não iam ter muita oportunidade de pensar no frio.

“O inesperado!”

Schwangyu nunca ia esperar que eles ainda estivessem andando a pé, e tão perto do Castelo.

“Taraza devia ter sido mais enfática em suas advertências a respeito de Schwangyu”, pensou Teg. A desobediência violenta e aberta de Schwangyu em relação à Madre Superiora desafiava as tradições. A lógica Mentat não aceitaria tal situação sem ter mais informações.

Sua memória trouxe-lhe um ditado de seus tempos de escola, um daqueles aforismos de advertência pelos quais um Mentat devia dominar sua lógica.

“Dada uma trilha lógica e a navalha de Occam delineada com detalhes impecáveis, o Mentat pode seguir tal lógica em direção à sua tragédia pessoal!”

Sabia-se que a lógica podia falhar.

Ele pensou novamente no comportamento de Taraza na nave da Corporação e logo depois. “Ela queria que eu soubesse que ia estar totalmente por minha conta. Devo perceber os problemas ao meu modo e não ao modo dela!”

Desse modo, a ameaça da parte de Schwangyu tinha que ser uma ameaça real para que ele a descobrisse e a enfrentasse ao seu próprio modo.

Taraza não sabia o que iria acontecer com Patrin por causa de tudo isso.

“Taraza não se importa realmente com o que possa acontecer com Patrin. Ou comigo. Ou com Lucilla. Mas e quanto ao ghola? Taraza deve importar-se com isso!”

Mas não era lógico que o fizesse... Teg abandonou essa linha de raciocínio. Taraza não queria que ele agisse pela lógica. Queria que ele fizesse exatamente o que estava fazendo, o que sempre tinha feito em situações difíceis.

“O inesperado!”

Desse modo, havia um tipo de lógica em tudo isso, mas era uma lógica que chutava os participantes para fora de seu ninho, para dentro do caos.

“Do qual devemos criar nossa própria ordem.”

A mágoa entrou forte em sua consciência. “Droga, Patrin! Você sabia disso e eu não! Que é que vou fazer sem você?”

Teg quase pode ouvir a resposta de seu velho ajudante, naquele tom de voz rigidamente formal que Patrin usava quando brincava com seu comandante.

— Vai fazer o melhor que puder, Bashar.

O raciocínio progressivo mais frio revelava a Teg que ele nunca mais ia ouvir a verdadeira voz do velho ou rever Patrin em carne e osso. Ainda assim... a voz permanecia. A pessoa persistia na memória.

— Não devemos seguir em frente?

Era Lucilla que se colocara de pé diante de Teg junto da árvore. Duncan esperava ao lado dela. Os dois já tinham colocado as mochilas sobre os ombros.

Enquanto estivera pensando, a noite tinha caído. Uma luz estelar muito forte criava vagas sombras na clareira. Teg colocou-se de pé, pegou a mochila e, curvando-se para evitar os ramos baixos, saiu para a clareira.

Duncan ajudou-o a colocar a mochila nas costas.

— Schwangyu vai considerar esta possibilidade cedo ou tarde — disse Lucilla. — Seus grupos de busca virão aqui atrás de nós. E você sabe disso.

— Não até que eles tenham acabado de seguir a pista falsa até o fim. Venham.

Teg guiou o grupo para oeste, através de uma passagem entre as árvores.

Durante três noites ele os levara ao longo do que chamava de “trilha memorizada de Patrin”. Enquanto caminhava por essa quarta noite, Teg culpava-se por não ter projetado no futuro as conseqüências lógicas do comportamento de Patrin.

“Eu entendia a dimensão da lealdade dele, mas não projetei essa lealdade em direção ao seu resultado óbvio. Estávamos juntos há tanto tempo que pensei conhecer sua mente como conheço a minha. Patrin, maldito seja, não havia necessidade alguma de você morrer!”

Teg acabou admitindo para si mesmo que tinha existido uma necessidade. Patrin a percebera. O Mentat não se permitira ver tal coisa. A lógica era capaz de se mover tão cegamente quanto qualquer outra faculdade.

Como as Bene Gesserit freqüentemente diziam e demonstravam. “Por isso nós vamos a pé. Schwangyu não espera isso!” Teg também era forçado a admitir que caminhar por esses lugares selvagens de Gammu criava toda uma nova perspectiva para ele. Toda essa região pudera transbordar de vida vegetal durante as épocas da fome e da Dispersão. Mais tarde fora replantada, mas principalmente como floresta selvagem. Marcos e trilhas secretas guiavam o acesso agora. Teg imaginou Patrin como um jovem aprendendo a se orientar nessa região — aquele pico rochoso, visível à luz do céu estrelado através de uma abertura entre as árvores, aquela elevação cheia de árvores e galhos pontudos, os caminhos semelhantes a alamedas em meio às árvores gigantescas.

“Eles estarão esperando que tentemos alcançar uma não-nave.” Teg tinha concordado com Patrin a esse respeito. “A isca deve levar os perseguidores naquela direção.”

Mas Patrin não dissera que ia ser a isca.

Teg engoliu em seco, sentindo um aperto na garganta.

“Duncan não poderia ser protegido no Castelo”, justificou para si mesmo.

E isso era verdade.

Lucilla tinha ficado nervosa no primeiro dia debaixo do escudo-vital, que os protegia da detecção por instrumentos colocados em aeronaves de busca.

— Devemos comunicar-nos com Taraza.

— Quando pudermos.

— E se acontecer alguma coisa com você? Devo conhecer todo o seu plano de fuga.

— Se acontecer alguma coisa comigo, você não será capaz de seguir a trilha de Patrin. Está gravada na minha memória.

Duncan quase não tomou parte na conversa naquele dia. Ele os observava em silêncio ou cochilava, acordando sempre alerta e com um olhar de fúria nos olhos.

No segundo dia sob o cobertor-escudo, Duncan quis saber de Teg:

— Por que eles querem me matar?

— Para frustrar os planos que a Irmandade traçou a seu respeito — respondeu Teg.

Duncan olhou furioso para Lucilla.

— Qual é o plano?

Como Lucilla não respondesse, ele disse:

— Ela sabe. Sabe porque eu devo depender dela. A idéia é fazer com que eu me apaixone por ela!

Teg achou que Lucilla tinha escondido muito bem seu espanto. Obviamente, seus planos para o ghola tinham sido desorganizados, toda a seqüência de eventos planejados desarrumada por essa fuga.

O comportamento de Duncan revelava outra possibilidade: seria o ghola um Revelador da Verdade latente? Que poderes adicionais não teriam sido cultivados nesse ghola pelos traiçoeiros Tleilaxu?

No segundo anoitecer que passaram na floresta, Lucilla estava cheia de acusações:

— Taraza ordenou-lhe que restaurasse as memórias originais dele! Como pode fazer isso aqui?

— Assim que alcançarmos o santuário.

Um Duncan silencioso e agudamente alerta acompanhou-os naquela noite. Havia uma nova vitalidade nele. Ele tinha ouvido!

“Nada deve ferir Teg”, pensou Duncan. O que quer que fosse, onde quer que ficasse o santuário, Teg devia alcançá-lo em segurança. “E então eu vou saber!”

Duncan não tinha certeza do que iria saber, mas agora aceitava inteiramente o valor de tal coisa. Essa floresta devia conduzi-los a esse objetivo. lembrava-se de ter olhado lá do Castelo para essas vastidões selvagens e de ter imaginado como seria livre ali. Aquele sentido de liberdade intocada havia desaparecido. A floresta era apenas um caminho, uma passagem para alguma coisa melhor.

Lucilla, seguindo na retaguarda, forçava-se a permanecer calma e alerta, e aceitar aquilo que não podia mudar. Parte de sua consciência mantinha-se firme na obediência às ordens de Taraza.

— Fique junto do ghola e, quando chegar a oportunidade, complete a tarefa para a qual foi destinada.

Um passo de cada vez. Era assim que o corpo de Teg media os quilômetros. Era a quarta noite. Patrin estimara que levariam quatro noites para alcançar o objetivo.

“E que objetivo!”

O plano de fuga de emergência centrava-se numa descoberta que Patrin tinha feito quando ainda era adolescente e descobrira por acaso um dos muitos mistérios que Gammu guardava. As palavras de Patrin vieram à memória de Teg:

— Na desculpa de que ia fazer um reconhecimento pessoal, eu voltei ao lugar dois dias atrás. Estava intocado. Ainda sou a única pessoa que já esteve lá.

— Como pode ter certeza?

— Tomei minhas precauções quando deixei Gammu, anos atrás. Pequenas coisas que seriam perturbadas por qualquer pessoa que entrasse lá. Nada está fora do lugar.

— É mesmo um não-globo dos Harkonnen?

— Muito antigo, mas as câmaras ainda estão intactas e funcionando.

— E quanto à comida e à água?

— Tudo que vocês possam querer ou necessitar está lá, deixado nos vasos de nulentropia situados no núcleo.

Teg e Patrin tinham feito seus planos na esperança de nunca precisarem usar essa saída secreta, mantendo firmemente o segredo enquanto Patrin contava para Teg qual era o caminho que permanecera oculto até sua descoberta de infância.

Atrás de Teg, Lucilla soltou uma pequena exclamação ao tropeçar em uma raiz.

“Eu devia tê-la avisado”, pensou Teg. Duncan obviamente estava seguindo Teg guiado pelo som. Lucilla, entretanto, tinha muito de sua atenção desviada para seus pensamentos.

Sua semelhança facial com Darwi Odrade era extraordinária, lembrou Teg. Quando as vira lado a lado, no Castelo, Teg marcara as diferenças existentes entre as duas mulheres devido à diferença de idade. A juventude de Lucilla revelava-se na existência de maior quantidade de gordura subcutânea arredondando os traços do rosto. Mas as vozes! O timbre, o sotaque e todos aqueles truques de inflexão atonal que eram a marca registrada da Bene Gesserit. No escuro, seria impossível diferenciar as duas vozes.

Conhecendo como conhecia a Bene Gesserit, Teg sabia que isso não era coincidência. Dada a tendência que tinha a Irmandade de duplicar as linhagens genéticas que valorizava de modo a proteger o investimento feito em sua obtenção, Lucilla e Odrade deviam ter ancestrais comuns.

“Atreides, como todos nós”, pensou ele.

Taraza não tinha revelado seus objetivos com relação ao ghola, mas só por fazer parte do plano Teg pôde conhecer seus contornos. Não havia um padrão completo, mas ele já podia sentir as linhas gerais.

Geração após geração, a Irmandade negociara com os Tleilaxu, comprando gholas Idaho e treinando-os ali em Gammu apenas para vê-los assassinados. O tempo todo tinham esperado pelo momento certo. Tudo era como um jogo terrível que agora chegara ao auge porque uma garota capaz de comandar os vermes tinha aparecido em Rakis.

O próprio Gammu devia ser parte do plano. Havia marcas Caladanianas em todo o lugar. Sutilezas Danianas empilhadas sobre costumes mais antigos e brutais. Algo mais que uma população tinha surgido do Santuário Daniano onde a avó do Tirano, Lady Jessica, vivera o resto de seus dias.

Teg tinha percebido as marcas implícitas e explícitas quando fizera seu primeiro reconhecimento em Gammu.

Riqueza!

Os sinais estavam lá para serem lidos. A riqueza fluía em torno do universo deles como uma ameba capaz de se insinuar em qualquer lugar, por mais estreito que fosse. Havia riqueza acumulada durante a Dispersão em Gammu, Teg sabia disso muito bem. Uma riqueza tão grande que poucos suspeitavam de seu tamanho e poder ou mesmo chegavam a imaginá-los.

De repente ele parou de caminhar. Padrões físicos na paisagem ao redor exigiam sua atenção total e imediata. Adiante havia uma saliência de rocha nua, as marcas identificadoras implantadas em sua memória por Patrin. Essa passagem seria uma das mais perigosas.

— Não há cavernas ou vegetação espessa para ocultar vocês. Tenham um cobertor pronto.

Teg removeu da mochila o escudo vital e o colocou sobre o ombro. Uma vez mais, indicou que deveriam continuar. A trama escura do tecido do escudo assoviou de encontro ao seu corpo enquanto caminhavam.

Lucilla estava deixando de ser enigmática, pensou ele. Ela aspirava a ter o título de “Lady” antes do nome. “Lady Lucilla”. Não havia dúvida de que devia soar-lhe agradável. Algumas Reverendas Madres com títulos assim estavam aparecendo, agora que as Casas Maiores começavam a emergir da obscuridade imposta pelo Caminho Dourado do Tirano.

Lucilla, a Sedutora-Impressora.

Todas essas mulheres eram peritas em sexo. A própria mãe de Teg o instruíra no funcionamento de tal sistema, enviando-o a mulheres escolhidas na região onde morava quando ele ainda era bem jovem, de modo que ficasse sensibilizado quanto aos sinais que devia observar em si mesmo, assim como nas mulheres com quem tivesse relações sexuais. Era um treinamento proibido fora da Bene Gesserit, mas a mãe de Teg fora uma das “hereges” dentro da Irmandade.

“Você vai precisar disso, Miles”

Sem dúvida havia um pouco de presciência da parte dela. Ela o armara contra as Impressoras, mulheres como Lucilla, que eram treinadas em ampliação orgásmica de modo a fixar tendências inconscientes entre homens e mulheres.

“Lucilla e Duncan. Uma impressão feita por ela vai funcionar também com relação a Odrade!”

Teg quase pôde ouvir as peças do quebra-cabeças fazerem dique ao se encaixarem em sua mente. E quanto àquela mocinha em Rakis? Lucilla ensinaria técnicas de sedução ao seu pupilo imprimido de modo que ele pudesse dominar aquela que comandava os vermes?

“Ainda não há dados suficientes para uma Computação Primária.” Teg parou no final da perigosa passagem sobre as rochas, tirou o cobertor e fechou a mochila enquanto Duncan e Lucila esperavam logo atrás. Teg suspirou. O cobertor sempre o deixava preocupado. Ele não tinha a capacidade de deflexão de um escudo de batalha, mas, quando atingido pelo feixe de uma arma laser o rápido incêndio subseqüente era freqüentemente fatal.

“Brinquedos perigosos!”

Era desse modo que Teg classificava essas armas e engenhos mecânicos. Melhor confiar em sua própria capacidade, em seus próprios músculos e nas Cinco Atitudes do Modo Bene Gesserit que sua mãe lhe havia ensinado.

“Use os instrumentos apenas quando forem absolutamente necessários para ampliar as capacidades do seu corpo.” Esse era o ensinamento da Bene Gesserit.

— Por que estamos parando? — sussurrou Lucila.

Duncan, o rosto transformado numa mancha fantasmagórica sob a luz das estrelas filtrada pelas árvores, olhou para Teg. As feições de Teg o tranqüilizaram. Elas tinham ligação com alguma memória que não lhe era acessível, pensou Duncan. “Posso confiar nesse homem”

Lucilla suspeitou de que estivessem parando nesse lugar porque o velho corpo de Teg exigia descanso, mas não foi capaz de dizer tal coisa. Teg explicara que seu plano de fuga incluía um modo de levar Duncan para Rakis. Muito bem, era tudo que importava nesse momento.

Ela já calculara que o santuário, situado em algum lugar à frente, devia envolver uma não-nave ou uma não-câmara. Nenhuma outra coisa seria suficiente. E de algum modo Patrin devia ser a chave. Os poucos indícios dados por Teg revelavam que Patrin fornecera essa rota de fuga.

Lucilla fora a primeira a perceber que Patrin se sacrificara para que eles pudessem fugir. Patrin era o elo mais fraco. Permanecera lá atrás, onde Schwangyu poderia capturá-lo. A captura do chamariz era algo inevitável e somente um tolo pensaria que uma Reverenda Madre com os poderes de Schwangyu não seria capaz de arrancar segredos de um homem. Ela talvez nem precisasse empregar muita persuasão. As sutilezas da Voz e as dolorosas formas de interrogatório que permaneciam como monopólio da Irmandade — a caixa de agonia e as pressões em nódulos nervosos — seriam tudo de que ela necessitaria.

A forma que a lealdade de Patrin iria assumir fora clara para Lucilla. Como Teg podia ser tão cego?

“Amor!”

O longo laço de confiança entre os dois homens. Schwangyu agiria de modo rápido e brutal, Patrin devia saber disso. E Teg não tinha examinado seus próprios conhecimentos.

A voz de Duncan arrancou-a de tais pensamentos.

— Tóptero! Atrás de nós!

— Rápido!

Teg puxou da mochila o cobertor e o lançou sobre eles. Aconchegaram-se todos, um contra o outro, na escuridão que cheirava a terra, ouvindo o ornitóptero passar acima. A aeronave não parou nem voltou.

Quando estavam certos de não terem sido detectados, Teg novamente os conduziu pela trilha memorizada de Patrin.

— Aquela era uma aeronave de busca — comentou Lucilla. — Eles estão começando a suspeitar... ou então Patrin...

— Poupe sua energia para caminhar — retrucou Teg.

Ela não insistiu. Ambos sabiam que Patrin estava morto. Discutir isso seria perda de tempo.

“Esse Mentat é profundo”, pensou Lucila.

Teg era filho de uma Reverenda Madre e a mãe o treinara além dos limites permitidos pela Irmandade, antes que a própria Bene Gesserit o tomasse em suas mãos manipuladoras. O ghola não era o único dotado de recursos desconhecidos.

A trilha deu voltas em torno de si mesma, tendo se transformado numa picada de caçadores que subia por um morro através da floresta espessa. A luz das estrelas não penetrava nas árvores ali e somente a maravilhosa memória do Mentat os mantinha na trilha.

Lucilla sentiu o humo sob seus pés. Ouvia os movimentos de Teg, usando-os para guiar seus passos.

“Como Duncan está silencioso”, pensou ela. “Como está fechado dentro de si mesmo.” Ele obedecia as ordens, seguindo para onde Teg os guiava. Ela sentia o tipo de obediência em Duncan. Ele mantinha sua própria opinião e obedecia apenas porque lhe era conveniente fazê-lo — pelo menos até agora. A rebelião de Schwangyu plantara algo de uma independência selvagem nesse ghola. Sem falar nas coisas que os Tleilaxu poderiam ter implantado nele.

Teg parou num ponto embaixo de altas árvores para recuperar o fôlego. Lucila podia ouvi-lo respirar ofegante. Isso a fez lembrar-se uma vez mais de que esse Mentat era um homem velho, muito velho para esse tipo de exercício. Ela disse baixinho:

— Está tudo bem, Miles?

— Eu lhe digo quando não estiver.

— Quanto falta? — perguntou o Duncan.

— Somente um trecho curto agora.

Daí a pouco ele recomeçou a caminhada dentro da noite.

— Devemos apressar-nos — ele disse. — Este morro côncavo é o último trecho.

Agora que já tinha aceito a realidade da morte de Patrin, os pensamentos de Teg giravam como uma agulha de bússola em direção a Schwangyu e ao que ela devia estar experimentando. Devia estar sentindo o mundo desabar em sua volta. Os fugitivos estavam desaparecidos há quatro noites! Gente capaz de confundir desse jeito uma Reverenda Madre poderia fazer qualquer coisa! E claro que os fugitivos já deveriam estar fora do planeta a essa altura. Numa não-nave. Mas e se...

Os pensamentos de Schwangyu deviam estar cheios de “e se”...

Patrin fora o elo frágil na corrente, mas tinha sido bem treinado na remoção de elos frágeis, treinado por um mestre — Miles Teg.

Teg removeu a umidade que surgira em seus olhos com uma rápida sacudidela da cabeça. A necessidade imediata exigia aquele núcleo de honestidade interior que ele não poderia evitar. Teg nunca fora um bom mentiroso, nem para si mesmo. Muito cedo em seu treinamento, percebera que sua mãe, assim como as outras pessoas envolvidas no seu processo de criação, o condicionara a ter um profundo senso de honestidade pessoal.

“Fidelidade a um código de honra.”

O próprio código de honra, quando Teg o reconhecia em si mesmo, o atraía, fascinando sua atenção. Ele começava a reconhecer que os seres humanos não nasciam iguais, que possuíam diferentes habilidades herdadas e tinham diferentes experiências de vida. Isso produzia pessoas com realizações e valores diferentes.

Para obedecer esse código, Teg sabia que primeiro devia posicionar-se precisamente no fluxo das hierarquias observáveis, aceitando que poderia chegar um instante em que não mais seria capaz de evoluir.

Os condicionamentos de tal código eram profundos. Ele nunca pôde encontrar suas raízes mais profundas. Estavam ligadas, obviamente, a alguma coisa que era intrínseca à humanidade. Algo que ditava com um poder imenso os limites de comportamento permitidos a todos aqueles acima e abaixo da pirâmide hierárquica.

“E a moeda-base que se troca é a lealdade”

A lealdade agia para cima e para baixo, encaixando-se onde quer que encontrasse uma ligação merecida. Tais lealdades, Teg sabia, estavam firmemente unidas ao seu comportamento. Não tinha dúvidas de que Taraza o apoiaria em tudo, exceto numa situação que exigisse o sacrifício dele para a sobrevivência da Irmandade. E isso era uma coisa certa. Era onde as lealdades que uniam todos eles acabavam se encaixando.

“Sou o Bashar de Taraza. Isso é o que o código diz”

E fora esse código de honra que matara Patrin.

“Espero que você não tenha sofrido dores, velho amigo.”

Uma vez mais Teg parou à sombra das árvores. Tirando sua faca de combate da bainha localizada na bota, raspou uma pequena marca no tronco da árvore ao seu lado.

— Que está fazendo? — perguntou Lucilla.

— Esta é uma marca secreta — explicou Teg. — Somente as pessoas que eu treinei conhecem seu significado. E Taraza, é claro.

— Mas por que está...

— Explicarei depois.

Ele avançou uma vez mais, parando em outra árvore onde gravou a pequena marca, algo que um animal poderia ter feito com sua garra, uma coisa que se confundia com as formas naturais dessa floresta.

Enquanto seguia o seu caminho adiante, Teg percebia ter chegado a um ponto de decisão com relação a Lucilla. Os planos dela para Duncan deviam ser defletidos. Cada projeção Mentat que Teg podia fazer quanto à segurança e à saúde mental de Duncan exigia isso. O despertar das memórias pré-ghola desse Duncan devia acontecer antes de qualquer impressão sexual da parte de Lucilla. Mas não seria fácil detê-la, Teg sabia disso muito bem. Seria preciso um mentiroso muito melhor do que ele jamais fora para iludir uma Reverenda Madre.

E tudo devia parecer acidental, o resultado normal das circunstâncias. Lucilla nunca poderia suspeitar da oposição a seus planos. Teg tinha poucas ilusões quanto à sua chance de vencer uma Reverenda Madre irritada num lugar apertado como aquele em que logo estariam. Melhor seria matá-la. Isso ele achava que poderia fazer, mas as conseqüências! Taraza jamais seria levada a aceitar que um ato sangrento fora realizado em obediência às suas ordens.

Não, ele teria que ganhar tempo, esperar, observar e ouvir.

O grupo saiu da floresta para uma pequena clareira onde uma íngreme barreira de rochas vulcânicas se erguia diante deles. Arbustos espinhentos e moitas de capim mirrado cresciam de encontro às rochas, visíveis como manchas escuras à luz das estrelas.

Teg viu os contornos mais escuros de uma passagem por onde teriam que rastejar debaixo dos arbustos.

— Vamos ter que rastejar daqui para a frente — ele disse.

— Sinto cheiro de cinzas — disse Lucilla. — Alguma coisa foi queimada por aqui.

— É o lugar onde ficava o chamariz — explicou Teg. — Ele deixou uma área queimada à nossa esquerda, simulando as marcas deixadas pela decolagem de uma não-nave.

A respiração de Lucilla foi audível quando ela inspirou, espantada. “Que audácia!” Se Schwangyu se atrevesse a mandar um investigador presciente seguir os rastros de Duncan (pois só Duncan, entre eles, não possuía o sangue de Siona herdado de sua ancestralidade), todas as marcas concordariam com a hipótese de eles terem chegado a esse ponto e abandonado o planeta em uma não-nave... desde que...

— Para onde está nos levando? — perguntou ela.

— Para um não-globo dos Harkonnen. Está aqui há milênios e agora é nosso.

 

É muito natural que aqueles que detém o poder desejem suprimir a livre pesquisa. A busca irrestrita do conhecimento tem uma longa tradição de produzir competição indesejada. Os poderosos querem uma “linha segura de pesquisas”, algo capaz de produzir apenas produtos e idéias que possam ser controlados e, o que é mais importante, que permita que a maior parte dos benefícios produzidos fique em poder dos investidores internos. Infelizmente o universo está cheio de variáveis relativas que não permitem a existência de uma “linha segura de pesquisas”.

 

— Avaliação de Ix, Arquivos da Bene Gesserit

 

Hedley Tuek, Alto Sacerdote e governante titular de Rakis, sentia-se incapaz de enfrentar as exigências que lhe eram feitas.

A noite nebulosa envolvia a cidade de Keen, mas ali em sua câmara particular de audiências o brilho de muitos globos luminosos afastava as sombras. Mesmo ali, no coração do Templo, podia-se ouvir o vento, um gemido distante representando o tormento periódico deste planeta.

A câmara de audiência era uma sala de formato irregular, com sete metros de comprimento e quatro metros no ponto mais largo. A extremidade oposta era quase imperceptivelmente mais estreita. O teto também descia suavemente naquela direção. Cortinados de fibra de especiaria, com uma hábil disposição nas cortinas amarelas e cinzentas, escondiam essas irregularidades. Uma das cortinas ocultava também uma corneta de focalização que conduzia os sons mais débeis para aqueles que ouviam fora da sala.

Somente Darwi Odrade, a nova comandante da guarnição da Bene Gesserit em Rakis, estava sentada com Tuek na câmara de audiências. Os dois encaravam um ao outro no estreito espaço definido pelas almofadas verdes onde descansavam.

Tuek tentava disfarçar uma expressão de desagrado. Esse esforço contorcia suas feições, normalmente imponentes, transformando-as numa máscara reveladora. Ele tivera grande cuidado ao se preparar para os confrontos dessa noite. Criados tinham colocado o manto bem passado sobre sua figura alta e um tanto corpulenta. Sandálias douradas cobriam-lhe os pés. O traje destilador sob seu manto era apenas para exibição: não tinha bombas nem bolsas de recolhimento, eliminando a necessidade de ajustes demorados e desconfortáveis. O cabelo grisalho e sedoso estava muito bem penteado e caía sobre os ombros, moldura adequada para um rosto quadrado com a boca larga, lábios grossos e queixo pesado. Seus olhos assumiram rapidamente uma aparência benévola, expressão que ele tinha copiado do avô. Fora desse modo que ele se apresentara ao entrar na câmara de audiência para encontrar Odrade. Sentira-se imponente, mas agora tinha a impressão de estar nu e descabelado.

“Ele é realmente um homem de cabeça vazia”, pensou Odrade.

Tuek estava pensando: “Não posso discutir com ela esse terrível Manifesto! Não com um Mestre Tleilaxu e aqueles horríveis Dançarinos Faciais ouvindo na outra sala. Que foi que me possuiu para fazer com que eu concordasse com uma coisa dessas?”

— É uma heresia pura e simples — ele disse.

— Mas vocês representam apenas uma religião entre muitas — retrucou Odrade. — E com as pessoas que estão voltando da Dispersão, a proliferação de cismas e crenças variantes.

— A nossa é a única fé verdadeira! — afirmou Tuek.

Odrade ocultou um sorriso. “Ele falou exatamente de acordo com a deixa. E Waff decerto ouviu isso!' Tuek era extremamente fácil de se conduzir. E se a Irmandade estivesse certa com relação a Waff, as palavras de Tuek iriam enfurecer o Mestre dos Tleilaxu.

Num tom profundo e portentoso, Odrade disse:

— O Manifesto levanta questões que todos, crentes e não-crentes, devemos examinar.

— Que tem tudo isso a ver com a Sagrada Criança? — indagou Tuek. — Você me disse que devíamos encontrar-nos aqui para tratar de assuntos que tinham relação com..

— De fato! Não tente negar seu conhecimento de que muita gente já está começando a adorar Sheeana. O Manifesto implica que...

— Manifesto! Manifesto! Não passa de um documento herético que deve ser apagado. Quanto a Sheeana, deve voltar à nossa guarda exclusiva!

— Não — retrucou Odrade com a voz suave.

Como Tuek estava agitado, pensou ela. Seu pescoço rígido movia-se o mínimo possível quando ele virava a cabeça de um lado para o outro. Os movimentos apontavam para a cortina que cobria a parede à direita de Odrade, definindo o lugar como se a cabeça de Tuek carregasse um facho de iluminação para indicar aquela cortina em especial. Que homem transparente era esse Alto Sacerdote. Poderia muito bem ter anunciado que Waff os estava escutando de algum lugar atrás daquela cortina.

— A seguir vocês vão levá-la para longe de Rakis — disse Tuek.

— Ela fica aqui — disse Odrade. — Exatamente como lhe prometemos.

— Mas por que ela não pode..

— Ora, vamos! Sheeana deixou clara a sua vontade e eu tenho certeza de que as palavras dela lhe foram relatadas. Ela quer ser uma Reverenda Madre.

— Mas ela já é a...

— Meu Senhor Tuek! Não queira disfarçar comigo. Ela declarou seus desejos e nós estamos felizes em satisfazê-los. Por que deveria opor-se? Reverendas Madres serviram o Deus Dividido na época dos Fremen. Por que não agora?

— Vocês Bene Gesserit possuem meios de obrigar as pessoas a dizerem coisas que elas não desejam dizer — acusou Tuek. — Não devíamos estar discutindo esta questão em particular. Meus conselheiros.

— Seus conselheiros só atrapalhariam nossa conversa. As implicações do Manifesto Atreides.

— Vou discutir somente a questão de Sheeana!

Tuek colocou-se no que lhe parecia a postura de um Alto Sacerdote inflexível.

— Mas estamos discutindo essa questão — disse Odrade.

— Então deve ficar claro que nós exigimos mais gente nossa acompanhando Sheeana. Ela deve ser guardada de todo...

— Guardada do modo como o foi naquele terraço? — perguntou Odrade.

— Reverenda Madre Odrade, este é o Sagrado Rakis! Não tem direitos além daqueles que lhes concedemos!

— Direitos? Sheeana tornou-se o alvo... sim, o alvo... de muitas ambições e vocês ainda querem discutir direitos?

— Meus deveres de Alto Sacerdote são claros. A Sagrada Igreja do Deus Dividido irá...

— Meu Senhor Tuek! Estou tentando com muita dificuldade manter a cortesia necessária. O que faço é para seu benefício, assim como para o nosso. Nossas ações...

— Ações? Que ações? — As palavras escaparam de Tuek num grunhido rouco.

Essas terríveis bruxas Bene Gesserit! Os Tleilaxu atrás dele e uma Reverenda Madre na frente! Tuek sentia-se como uma bola num jogo terrível, chutado para a frente e para trás entre energias formidáveis. Ah, o pacífico Rakis, o lugar seguro de suas rotinas diárias, tinha desaparecido e ele fora projetado numa arena onde se praticava um jogo cujas regras ainda não compreendera inteiramente.

— Mandei chamar o Bashar Miles Teg — revelou Odrade. — Isso é tudo. Seu grupo avançado deve chegar logo. Vamos reforçar suas defesas planetárias.

— Vocês se atrevem a assumir o controle.

— Não estamos assumindo coisa alguma. A pedido de seu pai, o pessoal de Teg redesenhou suas defesas. O acordo sob o qual isso foi feito contém, por insistência de seu pai, uma cláusula exigindo a revisão periódica.

Tuek sentou-se em silêncio, chocado. Waff, aquele Tleilaxuzinho sinistro, tinha ouvido tudo isso. Ia haver conflito! Os Tleilaxu queriam um acordo secreto fixando os preços da melange. Não iriam permitir a interferência da Bene Gesserit.

Odrade mencionara o pai de Tuek e ele agora desejava que seu pai, há muito falecido, estivesse sentado ali. Fora um homem duro. Teria sabido como lidar com essas forças opostas. Ele sempre tinha manejado os Tleilaxu muito bem. Tuek lembrava-se de ter ficado ouvindo (exatamente como Waff estava fazendo agora!) um enviado Tleilaxu cujo nome era Wose... e outro chamado Pook. Ledden Pook. Que nomes esquisitos eles tinham.

De repente os pensamentos confusos de Tuek ofereceram-lhe outro nome. Odrade acabara de mencioná-lo: “Teg!” Então aquele velho monstro ainda se encontrava na ativa?

Odrade estava falando novamente. Tuek tentou engolir com a garganta seca enquanto se inclinava para diante, forçando-se a prestar atenção.

— Teg também vai examinar suas defesas no planeta. Depois daquele fiasco no terraço.

— Oficialmente, proíbo qualquer interferência em nossos assuntos internos — disse Tuek. — Não há necessidade. Nossa Guarda Sacerdotal é adequada para...

— Adequada? — Odrade sacudiu a cabeça tristemente. — Que palavra inadequada diante das novas circunstâncias em Rakis.

— Que novas circunstâncias?

Havia terror na voz de Tuek.

Odrade ficou apenas olhando para ele.

Tuek tentou forçar alguma ordem em seus pensamentos. Será que ela saberia a respeito dos Tleilaxu ouvindo lá atrás? Impossível. Inspirou, trêmulo. Que história era essa a respeito das defesas de Rakis? As defesas eram excelentes, tranqüilizou-se. Eles tinham as melhores não-naves e monitores Ixianos. Mais do que isso, era vantajoso para todas as potências independentes que Rakis permanecesse igualmente independente como fonte da especiaria.

“Vantajoso para todos, exceto os Tleilaxu, com sua maldita super-produção de melange em seus tanques axlotl!”

Era um pensamento demolidor. Um Mestre Tleilaxu tinha ouvido cada palavra pronunciada nessa câmara de audiências!

Tuek rogou ao Shai-hulud, o Deus Dividido, que o protegesse. Aquele homenzinho terrível lá fora dissera estar falando também em nome dos Ixianos e das Oradoras Peixes. Mostrara documentos. Quais seriam as “novas circunstâncias” de que Odrade falava? Nada permanecia muito tempo escondido das bruxas!

O Alto Sacerdote não podia conter um estremecimento ao pensar em Waff: aquela cabeça pequena e redonda, aqueles olhinhos brilhantes, o nariz arrebitado com os dentes afiados surgindo num sorriso. Waff parecia uma criança crescida até que se olhasse nos seus olhos e se ouvisse aquela voz rouca. Tuek lembrava-se de seu próprio pai queixando-se daquelas vozes: “Os Tleilaxu dizem coisas tão terríveis com suas vozes infantis!”

Odrade mexeu-se nas almofadas. Pensou em Waff ouvindo lá fora. Será que ele já tinha ouvido o suficiente? Suas próprias ouvintes secretas estariam se fazendo a mesma pergunta a essa altura. As Reverendas Madres sempre repassavam repetidas vezes as gravações de duelos verbais como esse, buscando melhorias e novas vantagens para a Irmandade.

“Waff já ouviu o bastante”, disse Odrade a si mesma. “Hora de mudar o jogo.”

Em seu tom de voz mais tranqüilo, Odrade disse:

— Meu Senhor Tuek, uma pessoa importante está ouvindo o que dizemos aqui. É polido que tal pessoa escute às escondidas?

Tuek fechou os olhos. “Ela sabe!”

Ele abriu os olhos e encarou a expressão impassível de Odrade. Parecia capaz de aguardar sua resposta por toda a eternidade.

— Polido? Eu... Eu...

— Convide esse ouvinte secreto para vir sentar-se aqui conosco disse Odrade.

Tuek passou a mão pela testa úmida. Seu pai e seu avô, Altos Sacerdotes antes dele, haviam estabelecido respostas rituais para a maioria das ocasiões, mas não havia nada para um momento como esse. Convidar o Tleilaxu para ir sentar-se ali? Nessa câmara com... Tuek lembrou-se subitamente de que não gostava do cheiro dos Tleilaxu. Seu pai também tinha se queixado a respeito disso: “Eles têm cheiro de comida desagradável”

Odrade levantou-se.

— Gostaria de ver esse que ouve as minhas palavras  — ela disse. — Devo ir convidá-lo para que...

— Não, por favor! — Tuek continuou sentado, mas ergueu a mão num gesto para detê-la. — Eu não tive escolha. Ele veio com documentos das Oradoras Peixes e dos Ixianos. Disse que iria ajudar-nos a ter Sheeana de volta de sua..

— Ajudá-lo?

Odrade olhou para o sacerdote suando com uma expressão próxima da piedade. Esse era o homem que governava Rakis?

— Ele é um dos Bene Tleilax — disse Tuek. — Chama-se Waff e...

— Sei como se chama e por que está aqui, meu Senhor Tuek. O que me deixa admirada é que tenha permitido que ele espionasse.

— Ele não está espionando! Estamos negociando. Quero dizer, há novas forças diante das quais devemos ajustar nossos...

— Novas forças? Oh, sim, as prostitutas da Dispersão. Esse Waff trouxe alguma delas consigo?

Antes que Tuek pudesse responder, a porta lateral da câmara de audiência se abriu. Waff entrou como se respondesse a uma deixa, com dois Dançarinos Faciais atrás dele.

“Foi lhe dito que não trouxesse Dançarinos Faciais!”, pensou Odrade.

— Só você! — disse Odrade, apontando. — Os outros não foram convidados, foram, Meu Senhor Tuek?

Tuek levantou-se pesadamente, notando a proximidade de Odrade e se lembrando de todas as histórias terríveis a respeito da capacidade física das Reverendas Madres. A presença dos Dançarinos Faciais aumentava sua confusão. Eles sempre lhe davam pressentimentos terríveis.

Voltando-se em direção à porta e tentando compor suas feições numa aparência cortês e convidativa, Tuek disse:

— Somente... somente o embaixador Waff, por favor.

A voz feria a garganta de Tuek. Isso era mais que terrível. Sentia-se nú diante dessa gente.

Odrade indicou uma almofada perto dela.

— Waff, não é? Por favor, venha e sente-se.

Waff cumprimentou-a como se nunca a tivesse visto. “Que polidez!” Fazendo um gesto para indicar a seus Dançarinos Faciais que deveriam ficar lá fora, andou até a almofada indicada, mas ficou de pé junto dela.

Odrade percebeu o fluxo de tensões movendo-se pelo corpo do pequeno Tleilaxu. Algo como um esgar feroz passou por seus lábios brevemente. Será que ele ainda escondia aquelas armas nas mangas? Estaria a ponto de quebrar o acordo que fizera?

Estava na hora, pensou Odrade, de as suspeitas de Waff recuperarem toda a força original, e mais ainda. Ele devia estar se sentindo aprisionado pelas manobras de Taraza. Waff queria ter suas madres procriadoras! O cheiro dos feromônios anunciava seus temores mais profundos. Ele tinha em sua mente essa parte do acordo — ou pelo menos uma interpretação de tal coisa. Taraza não esperava realmente que Waff fosse partilhar com ela todo o conhecimento que tinha obtido das Honradas Madres.

— Meu Senhor Tuek diz-me que estiveram... ah, negociando — disse Odrade.

“Deixe que ele se lembre dessa palavra.” Waff sabia onde a verdadeira negociação devia ser concluída. Enquanto ia falando, Odrade ajoelhou-se, e depois voltou a se sentar na almofada, mas seus pés permaneceram posicionados para lançá-la fora de qualquer linha de ataque da parte de Waff.

Waff olhou para ela e para a almofada que ela indicara. Acomodou-se lentamente, mas seus braços permaneceram apoiados nos joelhos, as mangas dirigidas para Tuek.

“Que está fazendo?”, perguntou-se Odrade. Os movimentos de Waff revelavam que ele tinha embarcado num plano próprio.

Odrade disse:

— Estou tentando fazer com que o Alto Sacerdote sinta a importância do Manifesto Atreides para nossa mútua...

— Atreides! — interrompeu Tuek. Quase desabou em sua almofada. — Aquilo não pode ser Atreides.

— Um manifesto muito persuasivo — comentou Waff, reforçando os temores óbvios de Tuek.

Pelo menos isso estava de acordo com o plano, pensou Odrade. Ela disse:

— A promessa do s'tori não pode ser ignorada. Muitas pessoas associam o s'tori com a presença de seu deus.

Waff enviou um olhar de surpresa e fúria em direção a ela.

Tuek disse:

— O embaixador Waff diz-me que os Ixianos e as Oradoras Peixes estão alarmados com esse documento, mas eu o tranqüilizei quanto a...

— Creio que podemos ignorar as Oradoras Peixes — comentou Odrade. — Elas vêem deus em toda parte.

Waff reconheceu o cântico nas palavras dela. Estaria troçando dele? Ela estava certa no que dizia respeito às Oradoras Peixes, é claro. Elas estavam muito enfraquecidas em suas antigas devoções para terem qualquer influencia. E no que quer que influenciassem, seriam guiadas pelos novos Dançarinos Faciais que agora as comandavam.

Tuek tentou sorrir para Waff.

— Você falou em nos ajudar em...

— Há tempo para isso depois — interrompeu Odrade. Tinha que manter a atenção de Tuek voltada para o documento que o incomodava tanto. Citou uma frase do manifesto:

— “Sua vontade e sua fé — seu sistema de crenças — domina o seu universo.

Tuek reconheceu as palavras. Ele tinha lido aquele terrível documento. Esse Manifesto dizia que Deus e Sua Obra não passavam de criações humanas. Imaginava como iria responder. Nenhum Alto Sacerdote poderia deixar sem resposta uma coisa dessas.

Mas antes que Tuek pudesse achar as palavras, Waff encarou Odrade e respondeu de um modo que ele sabia que ela interpretaria corretamente. Odrade não faria outra coisa sendo ela quem era.

— O erro da presciência — disse Waff. — Não é isso que diz o documento? Não é onde ele diz que a mente do crente vai estagnar?

— Exatamente! — disse Tuek.

Sentia-se grato pela intervenção do Tleilaxu. Aquele era precisamente o núcleo da heresia!

Waff não olhou para ele, continuando a fitar Odrade. Será que a Bene Gesserit julgava seus propósitos inescrutáveis? Deixe que elas encontrem um poder ainda maior. Ela se julgava tão forte! Mas a Bene Gesserit não podia realmente saber como o Todo-Poderoso guardava o futuro para o Shariat!

Tuek não se deixaria interromper.

— Isso vai de encontro a tudo aquilo que julgamos sagrado! E está começando a se propagar por toda parte!

— Espalhado pelos Tleilaxu — disse Odrade.

Waff ergueu as mangas, apontando as armas para Tuek. Hesitou apenas por perceber que Odrade reconhecera parte de suas intenções.

Tuek olhou de um para o outro. Seria verdadeira a acusação de Odrade? Ou seria apenas Outro truque da Bene Gesserit?

Odrade percebeu a hesitação de Waff e tentou imaginar suas razões. Vasculhou sua mente, buscando uma resposta para as motivações dele. O que os Tleilaxu poderiam ganhar matando Tuek? Obviamente, Waff planejava substitui-lo por um de seus Dançarinos Faciais. Mas que vantagem isso lhe traria?

Buscando ganhar tempo, Odrade disse:

— Deve ser muito cauteloso, Embaixador Waff.

— Quando foi que a cautela governou as grandes necessidades? — perguntou Waff.

Tuek colocou-se de pé e caminhou pesadamente para um lado, esfregando as mãos.

— Por favor! Este é um recinto sagrado. É errado discutir heresias aqui, a menos que planejemos destruí-las. — Olhou para Waff. — Não é verdade, é? Vocês não foram os autores desse documento terrível!

— Não é nosso — concordou Waff.

“Maldito sacerdote imbecil!”

Tuek caminhava para o lado e uma vez mais se tornara um alvo em movimento.

— Eu sabia! — disse Tuek, caminhando em volta de Waff e Odrade.

Odrade continuava de olho em Waff. Ele planejava um assassinato! Estava certa disso.

Tuek falou atrás dela.

— Não sabe como nos julga mal, Reverenda Madre. O Sr. Waff propôs-nos a formação de um cartel da melange. Eu lhe expliquei que nosso preço para vocês deve permanecer o mesmo porque uma Bene Gesserit foi a avó de nosso Deus.

Waff curvou a cabeça, esperando. O sacerdote entraria de novo no alcance dos dardos. Deus não permitiria um fracasso.

Tuek estava atrás de Odrade, olhando para Waff. Um tremor percorreu o corpo do sacerdote. Os Tleilaxu eram tão repulsivos, tão amorais. Não se podia confiar neles. Como poderia ser encarada a negativa de Waff?

Sem descuidar sua observação de Waff, Odrade disse:

— Mas Meu Senhor Tuek, a perspectiva de um aumento de lucros não lhe atraiu?

Ela viu o braço direito de Tuek mover-se levemente, quase apontando para ela. Suas intenções tornaram-se claras.

— Meu Senhor Tuek — disse Odrade —, esse Tleilaxu pretende assassinar-nos.

Ao ouvir essas palavras, Waff ergueu ambos os braços num movimento brusco, tentando acertar nos dois diferentes alvos. Antes que seus músculos pudessem responder ao comando do cérebro, Odrade estava em cima dele. Ela ouviu o fraco assovio dos lança-dardos, mas não sentiu picada alguma. Seu braço esquerdo desceu num golpe violento para quebrar o braço direito de Waff. O pé direito quebrou-lhe o braço esquerdo.

Waff gritou.

Nunca suspeitara de que uma Bene Gesserit fosse capaz de movimentos tão rápidos. Ela quase igualara o que ele tinha visto a Honrada Madre fazer na nave de conferência Ixiana. Apesar da dor, percebeu que tinha que relatar isso. As Reverendas Madres comandavam desvios sinápticos quando sob tensão!

A porta atrás de Odrade se abriu bruscamente e os Dançarinos Faciais de Waff entraram correndo na câmara. Mas Odrade já estava atrás dele, com ambas as mãos em sua garganta.

— Parem ou ele morre! — gritou.

Os dois ficaram imóveis.

Waff debatia-se nas mãos dela.

— Fique quieto! — ordenou ela.

Odrade viu Tuek estendido no chão à sua direita. Um dardo tinha atingido o seu alvo.

— Waff matou o Alto Sacerdote — disse Odrade, falando para suas ouvintes secretas.

Os dois Dançarinos Faciais continuavam a olhar para ela. Era fácil notar a indecisão deles. Nenhum dos dois percebia como a situação caíra nas mãos da Bene Gesserit. Uma armadilha para os Tleilaxu, de fato!

Odrade disse aos Dançarinos Faciais:

— Carreguem aquele corpo para o corredor e fechem a porta. Seu senhor fez uma coisa tola. Vai precisar de vocês depois. — E para Waff disse: — Neste momento você precisa mais de mim que dos seus Dançarinos Faciais. Mande-os embora!

— Vão — guinchou Waff.

Como os Dançarmos Faciais continuassem a encará-la, Odrade disse:

— Se não saírem imediatamente, vou matá-lo e depois despacharei vocês dois.

— Façam o que ela manda! — gritou Waff.

Os Dançarinos Faciais receberam isso como uma ordem de seu Mestre. Odrade percebeu algo mais na voz de Waff. Obviamente, teria que ser convencido a abandonar a histeria suicida em que mergulhara.

Uma vez mais ela estava sozinha com ele. Retirou as armas vazias de suas mangas e as colocou no bolso. Depois poderiam ser examinadas com detalhes. Havia muito pouca coisa que ela podia fazer pelos ossos partidos de Waff, exceto deixá-lo inconsciente por um breve período e encaná-los. Improvisou talas a partir do material das almofadas e de tiras de tecido verde rasgado da decoração da sala do Alto Sacerdote.

Waff despertou rapidamente. Gemeu quando olhou para Odrade.

— Somos aliados agora — ela disse. — As coisas que transpiraram desta câmara foram ouvidas apenas por minha gente e pelos representantes de uma facção que desejava substituir Tuek por um de seus membros.

Era muito rápido para Waff. Levou um momento para compreender o que ela dizia. Sua mente se agarrou ao que lhe pareceu mais importante.

— Aliados?

— Imagino que Tuek fosse uma pessoa difícil de se lidar — ela disse. — Eram-lhe oferecidos benefícios óbvios e ele invariavelmente hesitava. Fez um favor a alguns dos sacerdotes quando o matou.

— Eles estão nos ouvindo agora? — guinchou Waff.

— É claro. Vamos discutir seu proposto monopólio da especiaria. O tristemente falecido Alto Sacerdote disse que mencionou isso. Vejamos se eu posso deduzir a extensão da sua oferta.

— Meus braços — gemeu Waff.

— Você ainda está vivo — ela disse. — Seja grato por minha sabedoria. Podia tê-lo matado.

Ele virou a cabeça para longe dela.

— Isso teria sido melhor.

— Não para a Bene Tleilax e certamente não para a minha Irmandade — ela disse. — Deixe-me ver... Sim, você prometeu que forneceria a Rakis novas máquinas coletoras de especiaria em grande quantidade. As novas máquinas aéreas, que só tocam o deserto com suas cabeças de varredura.

— Você ouviu — acusou Waff.

— Realmente não. Uma proposta muito atraente, uma vez que estou certa de que os Ixianos as estão fornecendo por seus próprios motivos. Devo continuar?

— Você disse que éramos aliados.

— Um monopólio forçaria a Corporação a comprar mais máquinas de navegação Ixianas — ela disse. — Vocês teriam a Corporação bem nas mandíbulas de seu esmagador.

Furioso, Waff ergueu a cabeça a fim de olhar para ela. O movimento gerou agonia em seus braços quebrados e ele gemeu. A despeito da dor, ele estudou Odrade com seus olhos quase fechados. Será que as bruxas acreditavam realmente que esse era todo o plano dos Tleilaxu? Quase não se atrevia a acreditar que a Bene Gesserit estivesse tão confusa.

— É claro que esse não é o plano básico — disse Odrade.

Os olhos de Waff arregalaram-se. Ela estava lendo a sua mente!

— Estou desonrado — ele disse. — Quando salvou minha vida, salvou uma coisa inútil.

Ele se deixou cair.

Odrade respirou fundo. “E hora de usar as análises feitas na sede da Irmandade.” Inclinou-se para ficar bem perto de Waff e sussurrou no ouvido dele:

— O Shariat ainda precisa de você.

Waff ficou boquiaberto.

Odrade sentou-se diante dele. A expressão de espanto revelava tudo. Análise confirmada.

— Você pensou que tinha aliadas melhores entre a gente da Dispersão — disse ela. — Essas Honradas Madres e outras da mesma laia. Eu lhe pergunto: será que o lorco faz acordos com o lixo que come?

Waff ouvira tal pergunta apenas dentro do kehl. Com o rosto pálido. respirou lentamente. As implicações das palavras dela! Obrigou-se a ignorar a dor em seus braços. “Aliados”, ela dissera. Sabia a respeito do Shariat! De que modo poderia saber?

— Como cada um de nós pode ignorar as vantagens de uma aliança entre a Bene Tleilax e a Bene Gesserit? — perguntou Odrade.

“Aliança com as bruxas powindah!” A mente de Waff era um redemoinho. A agonia de seus braços estava sendo contida de modo tão tentador... Sentia-se muito frágil naquele momento! Sentiu o gosto da biles ácida no fundo de sua língua.

— Ah — exclamou Odrade. — Está ouvindo isso? O sacerdote Krutansik e sua facção chegaram do outro lado daquela porta. Irão propor que um de seus Dançarinos Faciais assuma o disfarce do falecido Hedley Tuek. Qualquer outro curso de ação causaria muitos distúrbios. Krutansik é um homem razoavelmente sábio, que se manteve na retaguarda até agora. Seu tio Stiros o preparou muito bem.

— O que sua Irmandade ganharia com uma aliança conosco? — perguntou Waff.

Odrade sorriu. Agora poderia falar a verdade. A verdade era sempre muito mais fácil e freqüentemente constituía o argumento mais poderoso.

— Nossa sobrevivência em face da tormenta que se avoluma no meio dos Dispersos — ela disse. — E a sobrevivência dos Tleilaxu também está em jogo. A coisa mais distante dos nossos desejos é a extinção daqueles que preservam a Grande Crença.

Waff estremeceu. Ela falava uma coisa dessas abertamente! Então ele entendeu. Que importava que os outros ouvissem? Eles não poderiam penetrar nos segredos que essas palavras ocultavam.

— Nossas madres procriadoras estão prontas para você — disse Odrade.

Fitou duramente os olhos dele e fez o sinal com a mão dos sacerdotes Zensunni.

Waff sentiu um aperto aliviar-se em seu peito. O inesperado, o impensável, o inacreditável era verdade! As Bene Gesserit não eram powindah! Todo o universo ainda seguiria os Bene Tleilax na Verdadeira Fé. Deus não permitiria outra coisa. Especialmente ali no planeta do Profeta!

 

A burocracia destrói a iniciativa. Não existe coisa alguma que os burocratas odeiem mais do que a inovação, especialmente a inovação que produz resultados melhores do que as velhas rotinas. Os aperfeiçoamentos sempre fazem com que aqueles que se situam no topo da pirâmide pareçam inaptos. Quem é que gosta de parecer inapto?

 

— Um guia para a Tentativa e o Erro nos Governos, Arquivos da Bene Gesserit

 

Os relatórios, os sumários e as pequenas evidências dispersas encontravam-se arrumados em filas na longa mesa diante da qual se sentava Taraza. Exceto pela vigília noturna e os serviços essenciais, o núcleo da Irmandade dormia em torno dela. Somente os sons familiares das atividades da manutenção penetravam em suas câmaras particulares. Dois globos luminosos flutuavam acima da mesa, banhando a superfície de madeira negra e os maços de papel riduliano com uma luz amarelada, A janela além da mesa era um espelho negro refletindo a sala.

“Arquivos!”

O holoprojetor tremulava em sua produção contínua de informações, funcionando acima do topo da mesa — mais fragmentos e pedacinhos de informação que Taraza havia pedido.

Taraza não confiava muito nas Arquivistas, o que reconhecia como sendo uma atitude ambivalente, pois percebia a necessidade das informações. Mas os Registros da Irmandade eram uma mistura de abreviaturas, notações especiais, acréscimos codificados e notas de rodapé. Um material desse tipo freqüentemente requeria a tradução de um Mentat ou, o que era pior, em ocasiões de extrema fadiga, exigia que ela mergulhasse em suas Outras Memórias. Todas as Arquivistas eram Mentats, é claro, mas isso não tranqüilizava Taraza. Nunca se podia consultar os Arquivos de maneira direta. E muito da interpretação que emergia de tal fonte tinha que ser aceita das palavras da pessoa que a trazia ou (o que era odioso) se tinha que confiar na busca mecânica do holossistema. Isso, por sua vez, exigia uma dependência em relação àquelas que mantinham o sistema em operação. Dava a funcionárias mais poder do que ela gostaria de delegar.

“Dependências!”

Taraza odiava a dependência. Essa era uma admissão triste de ser feita, lembrando-lhe que poucas situações reais ocorriam exatamente da maneira como se imagina que deveriam ocorrer. Mesmo as melhores projeções Mentat acumulavam erros com o tempo.

E apesar disso cada movimento da Irmandade exigia a consulta aos Arquivos e análises aparentemente intermináveis. Mesmo o comércio rotineiro exigia isso. Era uma fonte contínua de irritação para Taraza. Devemos formar este grupo? Assinar este acordo?

Sempre havia aquele momento, durante uma conferência, em que ela era forçada a introduzir a nota decisória:

— Análise da Arquivista Hesterion aceita.

Ou, o que era mais freqüente:

— Relatório da Arquivista rejeitado. Não é pertinente.

Taraza inclinou-se para diante a fim de estudar a holoprojeção:

— Possível plano de procriação para o Sujeito Waff.

Examinou os números, os planos genéticos obtidos de uma amostra celular fornecida por Odrade. Raspas de unhas raramente produziam material suficiente para uma análise segura, mas Odrade se saíra muito bem, aproveitando a desculpa de entalar os ossos quebrados do homem. Taraza sacudiu a cabeça diante dos dados. A prole seria exatamente como todas as outras que a Irmandade tinha conseguido dos Tleilaxu: as fêmeas seriam imunes à sondagem de memória, enquanto os machos, é claro, seriam um caos impenetrável e repelente.

Taraza recostou-se na poltrona e deixou escapar um suspiro. No que se referia aos registros de procriação, o monumental sistema de referência cruzada assumia proporções arrasadoras. Oficialmente era chamado de “Colégio de Pertinência Ancestral”, ou CPA, na linguagem das Arquivistas. Entre as irmãs em geral, era conhecido como “Registro de Garanhões”, o que, embora fosse uma denominação adequada, deixava de transmitir o senso de detalhes enumerado na denominação oficial dos Arquivos. Ela tinha pedido que as projeções de Waff fossem estendidas até 300 gerações, o que era uma tarefa rápida e fácil, sendo suficiente para todos os propósitos práticos. Trezentas linhagens genéticas principais (e, como no caso de Teg, com os irmãos e consangüíneos) tinham se mostrado dependentes dos milênios. O instinto dizia-lhe que seria perda de tempo desperdiçar mais horas com as projeções de Waff.

A fadiga dominava Taraza. Ela colocou a cabeça entre as mãos e repousou por um momento sobre a mesa, sentindo o frio da madeira.

“E se eu estiver errada com relação a Rakis?”

Os argumentos da oposição não podiam ser esquecidos na poeira dos Arquivos. “Maldita dependência dos computadores!” A Irmandade mantivera suas linhagens principais registradas em computadores, mesmo nos Dias Proibidos, depois da louca destruição das “máquinas pensantes” pelo Jihad Butleriano. Nesses dias “mais esclarecidos”, não se costumava questionar os motivos inconscientes por trás daquela ancestral orgia de destruição.

“Algumas vezes tomamos decisões muito responsáveis por motivos inconscientes. Um exame consciente dos Arquivos e das Outras Memórias não traz qualquer garantia.”

Taraza liberou uma das mãos e com ela bateu no topo da mesa. Não gostava de lidar com Arquivistas que vinham cheias de respostas para suas perguntas. Era um grupo de gente desdenhosa, cheia de piadas secretas. Ela as tinha ouvido comparar seu trabalho de CPA com as análises de estoque de gado, os Formulários de Fazendas e da Direção de Corridas de Animais. Malditas piadas! A decisão certa era agora muito mais importante do que elas poderiam imaginar. Essas irmãs que só obedeciam ordens não tinham as responsabilidades de Taraza.

Ergueu a cabeça e olhou através da sala para o nicho que continha o busto da Irmã Chenoeh, aquela que conhecera o Tirano e tinha conversado com ele.

“Você sabia”, pensou Taraza. “Nunca chegou a ser uma Reverenda Madre e no entanto sabia. Seus relatórios mostram isso. Como tinha o conhecimento para tomar a decisão certa?”

O pedido de Odrade de ter assistência militar exigia uma resposta imediata. Os limites de tempo eram muito escassos. Mas com Teg, Lucilla e o ghola desaparecidos, o plano de contingência tinha que ser colocado em operação.

“Maldito Teg!”

Mais uma amostra de seu comportamento imprevisível. Ele não podia deixar o ghola em perigo, é claro. As ações de Schwangyu tinham sido previsíveis.

Que teria feito Teg? Escondera-se em Ysai ou alguma outra das grandes cidades de Gammu? Não. Se fosse esse o caso, Teg já teria enviado um relatório a essa altura, através de um dos contatos secretos que tinham preparado. Ele possuía uma lista completa desses contatos e os investigara pessoalmente.

Obviamente, Teg não confiava de todo nos contatos. Vira alguma coisa, durante sua viagem de inspeção, que não tinha transmitido a Bellonda.

Burzmali teria que ser chamado e instruído, é claro. Burzmali era o melhor, treinado pelo próprio Teg, primeiro candidato a Supremo Bashar. Burzmali devia ser enviado a Gammu.

“Estou agindo em cima de um palpite”, pensou Taraza.

Mas se Teg se escondera, a trilha começava em Gammu e poderia terminar lá também. Sim, mandar Burzmali a Gammu. Rakis teria que esperar. Havia certos atrativos óbvios nesse movimento. Ele não alertaria a Corporação. Os Tleilaxu e aqueles outros da Dispersão, contudo, certamente se ergueriam diante dessa isca. Se Odrade fracassasse em pegar os Tleilaxu numa armadilha... não, Odrade não falharia. Aquele Tleilaxu tornara-se coisa certa.

O inesperado.

“Está vendo, Miles? Aprendi com você.”

Nada disso desviava a oposição dentro da Irmandade.

Taraza colocou ambas as mãos sobre a mesa e pressionou com força, como se tentasse sentir as pessoas dentro da Irmandade, aquelas que compartilhavam das opiniões de Schwangyu. A oposição vocal, aberta, tinha diminuído, mas isso sempre significava que a violência estava sendo preparada.

“Que devo fazer?”

Supunha-se que a Madre Superiora fosse imune à indecisão durante uma crise. Mas a conexão Tleilaxu desequilibrara seus dados. Algumas das recomendações que deviam ser feitas a Odrade pareciam óbvias e já tinham sido transmitidas. Essa parte do plano era plausível e simples.

Leve Waff para o deserto, para bem longe dos observadores indesejáveis. Produza uma situação extrema e a conseqüente experiência religiosa dentro daquele antigo e confiável padrão ditado pela Missionaria Protectiva. Teste se os Tleilaxu estão usando o processo ghola para obter seu próprio tipo de imortalidade. Odrade era perfeitamente capaz de realizar essa parte do plano revisto. Mas a coisa toda dependia muito dessa jovem, Sheeana.

“O verme é o desconhecido.”

Taraza lembrou-se de que os vermes atuais não eram os vermes originais de Rakis. A despeito do comando que Sheeana demonstrara ter sobre eles, eram imprevisíveis. Como diziam os Arquivos, eles não tinham registros. Taraza não duvidava de que Odrade tivesse feito uma dedução precisa a respeito dos Rakianos e suas danças. Isso era importante.

“Uma linguagem.”

“Mas nós ainda não a falamos.” Isso era negativo.

“Devo tomar uma decisão esta noite!”

Taraza fez sua consciência superficial mergulhar para trás, ao longo da linhagem continua das Madres Superioras, todas memórias femininas capturadas dentro da frágil consciência de si mesma e das duas outras — Bellonda e Hesterion. Era uma trilha tortuosa através das Outras Memórias, a qual ela se sentia muito cansada para seguir agora. E bem no final da trilha estariam as observações do Muad'Dib, o bastardo Atreides que abalara o universo duas vezes — a primeira ao dominar o Império com suas hordas Fremen, a segunda ao gerar o Tirano.

“Se formos derrotadas desta vez, esse pode ser o nosso fim”, pensou ela. “Poderíamos ser engolidas inteiras por essas mulheres infernais da Dispersão”

As alternativas se apresentavam: a menina em Rakis podia ser trazida para o núcleo da Irmandade, de modo a viver toda a sua vida em algum lugar no ponto final de vôo de uma não-nave. Uma retirada vergonhosa.

Tanta coisa dependia de Teg. Será que ele afinal tinha fracassado ante a Irmandade, ou teria encontrado um meio inesperado de esconder o ghola?

“Devo descobrir um meio de atrasar as coisas”, pensou Taraza. “Devemos dar um pouco de tempo ao Teg, tempo para ele comunicar-se conosco. Odrade terá que atrasar o plano em Rakis.”

Era perigoso, mas precisava ser feito.

Rigidamente, Taraza levantou-se da cadeira-cão e foi até a janela escurecida diante dela. O Planeta da Irmandade encontrava-se mergulhado na escuridão estrelada. Um refúgio: o Planeta da Irmandade. Tais planetas nem recebiam mais nomes, somente números em algum lugar dos Arquivos. Esse planeta tinha assistido a 1.400 anos de ocupação Bene Gesserit, mas até isso devia ser considerado temporário. Ela pensou nas não-naves guardiãs orbitando acima: o próprio sistema profundo de defesa de Teg. E apesar de tudo isso a Irmandade permanecia vulnerável.

O problema tinha um nome: “descoberta acidental”

Era uma falha eterna. Lá fora, durante a Dispersão, a humanidade expandira-se exponencialmente, enxameando através de um espaço ilimitado. O Caminho Dourado do Tirano, seguro afinal. Será que estava? Certamente o verme Atreides planejara algo mais que a simples sobrevivência da espécie.

“Ele fez alguma coisa conosco que ainda nem entendemos, mesmo depois de todos esses milênios. Creio saber o que ele fez. Mas a oposição acha que não.”

Nunca era fácil para uma Reverenda Madre contemplar a escravidão que tinham sofrido durante o governo de Leto II, enquanto ele lançava o seu Império através de 3.500 anos ao longo do Caminho Dourado.

“Nós hesitamos, trôpegas, quando relembramos esses tempos.”

Vendo seu próprio reflexo no plaz escuro da janela, Taraza fez uma cara furiosa. Era um rosto sombrio, com a fadiga muito evidente.

“Tenho todo o direito de estar cansada e aborrecida!”

Sabia que seu treinamento canalizara seus pensamentos deliberadamente em direção a padrões negativos. Essas eram suas defesas e sua força. Ela permanecia distante de qualquer relacionamento humano, mesmo durante as seduções que fizera para as Madres Procriadoras. Taraza era a eterna advogada do diabo, e isso se tinha tornado uma força dominante por toda a Irmandade, conseqüência natural de sua ascensão ao posto de Madre Superiora. A oposição ganhava forças naturalmente em tal ambiente.

Como tinham dito os Sufis: “A podridão no núcleo sempre se propaga para fora.”

O que eles não diziam é que certas formas de podridão eram nobres e valiosas.

Ela se tranqüilizava agora com suas informações mais confiáveis: a Dispersão tinha carregado as lições do Tirano nas migrações humanas para o exterior, mudando de modos desconhecidos, mas, em última análise, submissos ao reconhecimento. E no devido tempo seria encontrado um modo de anular a invisibilidade de uma não-nave. Taraza não acreditava que os povos da Dispersão tivessem descoberto isso  pelo menos não aqueles que agora voltavam aos lugares de origem.

Não havia curso seguro através das forças conflitantes, mas Taraza achava que a Irmandade se armara do modo como podia. O problema era semelhante ao de um Navegador da Corporação conduzindo sua nave através das dobras do espaço de um modo que evitasse colisões e aprisionamentos.

Aprisionamentos, essa era a chave, e lá estava Odrade, armando as arapucas da Irmandade para pegar os Tleilaxu.

Quando Taraza pensava em Odrade, o que acontecia com freqüência nessa época de crise, a longa ligação das duas se firmava. Era como se ela fitasse um tapete gasto onde apenas as imagens mais brilhantes permanecessem. E a mais brilhante de todas, assegurando a posição de Odrade perto dos assentos do comando da Irmandade, era sua capacidade de dispensar os detalhes e ir direto ao âmago de um conflito. Era uma forma daquela perigosa presciência dos Atreides agindo secretamente dentro dela. O uso desse talento oculto era uma das coisas que tinham levantado a maior oposição, e era o argumento que Taraza admitia ter a maior validade. Isso funcionava muito abaixo da superfície, seus movimentos ocultos revelados apenas por alguma turbulência ocasional. E esse era o problema!

— Usá-la, mas estar pronta para eliminá-la — argumentara Taraza.

— Ainda temos conosco a maior parte de sua prole.

Taraza sabia poder confiar em Lucilla.  desde que Lucilla tivesse conseguido abrigo em algum lugar com Teg e o ghola. Havia outros assassinos no Castelo de Rakis, é claro. Aquela arma talvez tivesse que ser armada logo.

Taraza experimentou uma súbita agitação dentro de si. As outras Memórias aconselharam-na a ter a máxima cautela. Não torne a perder o controle das linhas de procriação! Sim, se Odrade escapasse a uma tentativa de eliminação, estaria alienada para sempre. Odrade era uma Reverenda Madre plena e outras como ela ainda deviam estar lá no meio da Dispersão — não entre as Honradas Madres que a Irmandade havia observado... ainda assim...

“Nunca mais!” Isso se tornara um slogan operacional. Nunca mais outro Kwisatz Haderach ou outro Tirano.

Controle os reprodutores! Controle sua prole!

As Reverendas Madres não morrem quando morre sua carne. Elas afundam cada vez mais no núcleo vivo da Bene Gesserit, até que suas instruções casuais e mesmo suas observações inconscientes se tornam parte do todo da Irmandade.

“Não cometa enganos com Odrade!”

A resposta a Odrade exigia um planejamento minucioso e um cuidado extremo. Odrade, que se permitia ter certas afeições limitadas, “um calor moderado”, como as definia, argumentava que as emoções produziam discernimentos valiosos, “desde que você se deixe governar por elas”. Taraza via esse calor moderado” como um meio de penetrar no coração de Odrade, uma abertura vulnerável.

“Eu sei o que você pensa de mim, Dar, com seu calor moderado voltado para uma antiga colega dos dias de escola. Você me julga um perigo potencial para a Irmandade, mas acha que posso ser salva de mim mesma por 'amigas' vigilantes.”

Taraza sabia que algumas de suas assessoras compartilhavam da opinião de Odrade, ouvindo em silêncio e guardando seu próprio julgamento. A maioria ainda seguia a liderança da Madre Superiora, mas muitas conheciam o talento selvagem de Odrade e tinham reconhecido suas dúvidas. Somente uma coisa ainda mantinha a maioria das Irmãs alinhadas com Taraza, e ela não se iludia a esse respeito.

Cada Madre Superiora demonstrava uma profunda lealdade para com a Irmandade. Nada deveria colocar em risco a continuidade da Bene Gesserit, nem mesmo ela própria. Em seu modo duro e preciso de autojulgamento, Taraza examinou seu relacionamento com a existência contínua da Irmandade.

Obviamente não havia uma necessidade imediata de mandar eliminar Odrade. E no entanto Odrade estava agora tão próxima do centro dos motivos do projeto do ghola que pouca coisa que acontecesse em torno disso lhe escaparia à observação. Muito do que não lhe fora revelado se tornaria óbvio. O Manifesto Atreides fora quase um jogo. Odrade, a pessoa óbvia para produzir o Manifesto, só podia ter alcançado uma percepção profunda enquanto escrevia o documento, mas as próprias palavras eram a barreira final a impedir a revelação.

Waff gostaria disso, sabia Taraza.

Voltando-se para se afastar da janela escurecida, Taraza retornou à sua cadeira-cão. O momento da decisão crucial — ir em frente ou não — podia ser adiado, mas os passos intermediários tinham que ser tomados. Ela preparou uma mensagem em sua mente e a examinou enquanto mandava convocar Burzmali. O aluno favorito do Bashar teria que ser posto em ação, mas não do modo como Odrade desejava.

A mensagem para Odrade era essencialmente simples:

“Ajuda está a caminho. Você esta no local da ação, Dar. No que concerne à segurança da garota, Sheeana, use o seu próprio julgamento. Em todas as outras questões, onde não houver conflito com minhas ordens, siga o plano”

Aí estava. Era isso. Odrade já tinha as suas instruções, o essencial que ela aceitaria como “o plano”, mesmo que não reconhecesse o padrão completo. Odrade obedeceria. O “Dar” era um toque excelente, pensou Taraza. Dar e Tar. Aquela abertura na direção do “calor limitado” de Odrade não estaria bem guardada com relação ao Dar e Tar.

 

A longa mesa, à direita, está posta para um banquete de lebre do deserto assada em molho cepeda. Os outros pratos, seguindo no sentido dos ponteiros do relógio para a direita, desde a extremidade mais distante da mesa são: Aplomage siriana, chukka sob o vidro, café com melange (Note a crista do falcão Atreides na urna), pot-a-oie e dentro da garrafa de cristal Balut há o cintilante vinho Caladaniana. Note o antigo detector de venenos escondido no candelabro.

 

— Dar-es-Balat, Descrição de uma Exibição do Museu.

 

Teg encontrou Duncan na pequena alcova que servia como sala de refeições dentro da reluzente cozinha do não-globo. Parando na passagem para a alcova, Teg observou cuidadosamente o Duncan: oito dias passados ali dentro e o rapaz parecia recuperado da ira peculiar que o dominara quando tinham entrado no tubo de acesso ao não-globo.

Eles tinham penetrado em uma caverna rasa, cheia dos odores de um urso nativo. As rochas no fundo da toca não eram rochas, embora pudessem ter enganado o exame mais sofisticado. Uma ligeira projeção nas rochas se moveria se a pessoa soubesse ou, casualmente, acertasse o código secreto. O movimento circular, ou de torção, abria toda a parede do fundo da caverna.

O tubo de acesso que se iluminava automaticamente assim que se fechava o portal atrás, fora decorado com grifos, o símbolo dos Harkonnen nas paredes e no teto. Teg pensou no jovem Patrin descobrindo esse lugar pela primeira vez (“O choque! A admiração! A emoção!”) e, fazendo isso, deixou de observar a reação de Duncan até que um grunhido baixo se ergueu no espaço fechado.

Duncan estava parado grunhindo (quase gemendo), os punhos cerrados, os olhos fixos num grifo Harkonnen pintado ao longo da parede direita. O ódio e a confusão lutaram pelo domínio da expressão em seu rosto. Ele ergueu ambos os punhos e com eles golpeou a figura, fazendo sangrar as mãos.

— Malditos sejam nos poços mais profundos do inferno! — gritou ele.

Era uma praga curiosamente madura, saindo de boca tão jovem.

No instante em que acabou de pronunciar essas palavras, o jovem mergulhou de novo em soluços e tremores descontrolados. Lucila colocou um braço em torno dele e lhe acariciou o pescoço de um modo tranqüilizador, quase sensual, até que os tremores cessaram.

— Por que eu fiz aquilo? — ele sussurrou.

— Vai saber quando suas memórias originais forem restauradas — explicou ela.

— Os Harkonnen — sussurrou Duncan, e seu rosto ficou corado. Ergueu a face para Lucilla. — Por que os odeio tanto?

— Palavras não podem explicar isso — ela disse. — Você vai ter que esperar pelas memórias.

— Eu não quero memórias! — Olhou espantado para Teg e então disse: — Sim! Sim, eu as quero.

Depois, quando olhava para Teg na cozinha do não-globo, sua memória obviamente retornou àquele momento.

— Quando, Bashar?

— Logo.

Teg observou o aposento. Duncan estava sentado, sozinho, diante de uma mesa com sistema de limpeza automático, uma xícara de um líquido marrom diante dele. Teg reconheceu o cheiro: era um dos muitos produtos compostos de melange tirados dos vasos de nulentropia. Tais vasos continham um tesouro de comidas exóticas, roupas, armas e outros artefatos — um verdadeiro museu cujo valor não podia ser calculado. Havia uma fina camada de pó cobrindo todo o interior do globo, mas nenhuma deterioração atingira as coisas guardadas nos recipientes. Cada amostra de comida estava condimentada com melange. Não num nível que viciasse, desde que a pessoa não fosse gulosa, mas sempre perceptível. Até mesmo as frutas preservadas tinham sido pulverizadas com melange.

O líquido marrom na xícara de Duncan era uma das coisas que Lucilla tinha provado e considerado capaz de sustentar a vida. Teg não sabia precisamente como as Reverendas Madres faziam isso, mas sua própria mãe fora capaz de tal coisa. Um gole e elas sabiam o conteúdo da bebida toda.

Uma olhada no relógio decorado, colocado na parede da extremidade fechada da alcova, revelou a Teg que já era mais tarde do que ele pensava. A terceira hora de um arbitrário cair da tarde. Duncan devia estar lá em cima, na sofisticada sala de prática de solo, mas ambos tinham visto Lucila subir para a parte superior do globo, e para Teg essa era uma oportunidade de conversarem a sós.

Ele puxou uma cadeira e se sentou no lado oposto da mesa.

Duncan disse:

— Eu odeio esse relógio!

— Você odeia tudo aqui — retrucou Teg, dando uma segunda olhada no relógio. Era outra antigüidade, um mostrador redondo com dois ponteiros análogos e um contador de segundos digital. Os dois ponteiros tinham sido esculpidos com formas humanas, de modo a representarem uma piada debochada: o dos minutos era um homem com um falo enorme, enquanto o das horas era uma mulher com as pernas abertas. Cada vez que os dois ponteiros passavam um sobre o outro, o homem parecia penetrar a mulher.

— Grosseiro — concordou Teg. Apontou para a bebida de Duncan e perguntou: — Que tal?

— Tudo bem, senhor. Lucilla diz que devo beber isto depois dos exercícios.

— Minha mãe costumava preparar-me uma bebida semelhante depois de exercícios físicos pesados — disse Teg.

Inclinou-se para a frente e inalou, lembrando o gosto que ficava na língua após um gole, o perfume penetrante de melange nas narinas.

— Senhor, quanto tempo devemos permanecer aqui? — perguntou Duncan.

— Até sermos encontrados pelas pessoas certas, ou até termos a certeza de não sermos encontrados.

— Mas... isolados aqui, como vamos saber?

— Quando eu julgar que é hora, vou pegar o cobertor do escudo vital e passar a montar guarda do lado de fora.

— Eu odeio este lugar!

— Isso é óbvio. Mas você não aprendeu nada sobre a paciência?

Duncan fez uma careta.

— Senhor, por que evita que eu fique sozinho com Lucilla?

Teg, que exalava o ar interrompeu-se e então começou a respirar de novo. Sabia, entretanto, que o rapaz tinha reparado. E se Duncan sabia, Lucilla então mais ainda!

— Não creio que Lucilla perceba o que está fazendo, senhor — explicou o rapaz. — Mas está ficando bem óbvio. — Olhou em volta para se certificar de que não eram ouvidos. — Se este lugar não lhe absorvesse tanto a atenção... Para onde ela correu daquele jeito?

— Acho que ela está lá em cima, na biblioteca.

— Biblioteca!

— Concordo que é primitiva, mas também é fascinante.

Teg ergueu os olhos para os arabescos no teto da cozinha. O momento da decisão tinha chegado. Não podia confiar em que Lucilla ficasse distraída por muito mais tempo. Teg compartilhava do fascínio que ela sentia. Era fácil alguém perder a atenção em meio a tantas maravilhas. Todo o complexo do não-globo, com uns 200 metros de diâmetro, era um fóssil preservado intacto desde os tempos do Tirano.

Quando falava a esse respeito, a voz de Lucilla assumia um tom rouco, sussurrante.

— Certamente o Tirano devia saber da existência deste lugar.

A consciência Mentat de Teg mergulhara imediatamente nessa afirmação: “Por que o Tirano permitiu que a Família Harkonnen desperdiçasse tanto de sua riqueza remanescente na construção de tal empreendimento?”

“Talvez por isso mesmo — para empobrecê-la.”

O custo em subornos e no transporte da Corporação desde as fábricas Ixianas devia ter sido astronômico.

— Será que o Tirano sabia que um dia íamos precisar deste lugar? — perguntou Lucilla.

Teg concordou. Afinal, sempre se demonstrara não haver meios de escapar aos poderes prescientes de Leto II.

Olhando para Duncan sentado diante dele, Teg sentiu os pêlos da nuca se eriçarem. Havia alguma coisa sinistra nesse refúgio Harkonnen, como se o próprio Tirano pudesse ter estado ali. Que será que tinha acontecido com os Harkonnen que haviam construído esse lugar? Teg e Lucilla não tinha encontrado nenhum vestígio que indicasse o modo como o não-globo terminara abandonado.

E nenhum dos dois podia caminhar pelo lugar sem experimentar uma sensação aguda de estar participando da história. Teg era freqüentemente confrontado com perguntas sem resposta.

Lucilla também comentou isso.

— Para onde será que eles foram? Não existe ninguém em minhas Outras Memórias que me dê essa resposta.

— Será que o Tirano os atraiu para fora e os matou?

— Vou voltar para a biblioteca. Talvez hoje eu encontre alguma coisa.

Nos dois primeiros dias de sua ocupação, o não-globo fora objeto de um minucioso exame da parte de Teg e Lucilla. Um Duncan silencioso e carrancudo seguia-os por toda parte, como se tivesse medo de ficar sozinho. E cada nova descoberta os deixava cheios de admiração, ou então chocados.

Vinte e um esqueletos tinham sido preservados, emparedados no plaz transparente de uma parede perto do núcleo! Observadores macabros de qualquer um que passasse por lá a caminho das câmaras de máquinas e dos vasos de nulentropia.

Patrin advertira Teg quanto aos esqueletos. Em uma de suas primeiras incursões ao globo, quando era jovem, Patrin encontrara registros que revelavam que os mortos eram os artesãos construtores do lugar, assassinados pelos Harkonnen de modo a que o segredo fosse mantido.

Em si mesmo, o globo era uma extraordinária realização, um lugar fora do alcance do Tempo, isolado de toda a influência exterior. Depois de todos esses milênios, suas máquinas sem atrito criavam uma projeção mimética que mesmo os instrumentos mais modernos não poderiam localizar contra o fundo de terra e rocha.

— A Irmandade deve adquirir este lugar intacto! — dizia Lucilla seguidamente. — É uma casa de tesouro! Eles até mantinham os registros de procriação de sua família.

Não fora só isso que os Harkonnen tinham preservado ali. Teg continuava sentindo repulsa pelos sutis toques de grosseria em quase tudo que existia no globo. Como aquele relógio! Roupas, instrumentos para a manutenção do ambiente, para a educação ou prazer — tudo fora marcado com aquela compulsão dos Harkonnen para exibir seu debochado sentimento de superioridade em relação a todas as pessoas e padrões de bom gosto.

Uma vez mais, Teg pensou em Patrin quando ainda jovem, dentro desse lugar, talvez ainda rapaz como esse ghola. Que teria levado Patrin a guardar segredo, até mesmo de sua esposa, durante tantos anos? Patrin nunca revelara as suas razões, mas Teg tinha feito suas próprias deduções. Uma infância infeliz. A necessidade de ter um lugar secreto, um refúgio. Amigos que não eram realmente amigos, apenas pessoas esperando para zombar dele. Nenhum desses companheiros teria permissão para compartilhar de semelhante maravilha. Era sua! Esse era mais que um lugar de solitária segurança. Fora o símbolo particular de vitória para Patrin.

“Passei muitas horas felizes ali, Bashar. Tudo ainda funciona. Os registros são antigos, mas excelentes, desde que você entenda os dialetos. Existe muito conhecimento guardado naquele lugar. Mas vai entender quando chegar lá. Vai entender muitas coisas que nunca lhe contei.”

O antigo salão de prática de solo mostrava sinais de uso freqüente por Patrin. Ele tinha modificado o código de armamento de alguns dos autômatos num modo que Teg reconhecia. Os contadores de tempo revelavam muitas horas de tortura muscular em exercícios complicados. Esse globo explicava aquelas habilidades que Teg sempre considerara extraordinárias em Patrin. Os talentos naturais tinham sido aperfeiçoados nesse lugar.

Os autômatos do não-globo eram outra questão interessante. A maioria deles representara um desafio às prescrições contra tais engenhos. Mais do que isso, alguns tinham sido projetados para funções de prazer que confirmavam as histórias mais revoltantes que Teg tinha ouvido com relação aos Harkonnen. Dor como fonte de prazer! A seu próprio modo, essas coisas explicavam a moralidade inflexível que Patrin levara de Gammu.

A aversão criava Seus próprios padrões de comportamento.

Duncan engoliu um grande gole de sua bebida e olhou para Teg por cima da borda da xícara.

— Por que veio para cá sozinho quando lhe pedi que completasse uma última sessão de exercícios? — perguntou Teg.

— Os exercícios não faziam sentido. — Duncan afastou a xícara.

“Bem, Taraza, você estava errada”, pensou Teg. “Ele partiu para uma atitude de total independência antes do previsto.”

E o Duncan também parara de se dirigir a ele como “senhor”.

— Você me desobedeceu?

— Não exatamente.

— Então, exatamente o que está fazendo?

— Eu preciso saber.

— Não vai gostar muito de mim quando souber.

Duncan olhou espantado.

— Senhor?

“Ah, o 'senhor' está de volta.”

— Tenho preparado você para certos tipos de dores muito intensas. — explicou Teg. — Elas serão necessárias antes que possamos restaurar-lhe todas as memórias iniciais.

— Dor, senhor?

— Não conhecemos outro modo de trazer de volta o Duncan Idaho original, aquele que morreu.

— Senhor, se puder fazer isso, só lhe serei grato.

— É o que você diz. Mas pode passar a me ver apenas como mais um açoite nas mãos daqueles que o trouxeram de novo à vida.

— Não é melhor saber, senhor?

Teg passou o dorso de uma das mãos sobre a boca.

— Se vier a me odiar... não poderei culpá-lo.

— Senhor, se estivesse no meu lugar, será que ia sentir-se assim?

A postura de Duncan, seu tom de voz, até a expressão facial, demonstravam uma trêmula indecisão.

“Até agora tudo bem” , pensou Teg. As várias etapas do procedimento encontravam-se determinadas com uma precisão que exigia que cada resposta do ghola fosse interpretada com cuidado. Duncan estava agora cheio de incerteza. Queria uma coisa que ao mesmo tempo temia.

— Sou apenas o seu mestre, não o seu pai — disse Teg.

Duncan recuou ante o tom duro.

— Não é meu amigo?

— Esta é uma estrada de mão dupla. O Duncan Idaho original terá que responder essa pergunta por si mesmo.

Uma aparência embaçada surgiu nos olhos de Duncan:

— Vou me lembrar deste lugar? Do Castelo, de Schwangyu e...

— De tudo. Você passará por uma espécie de memória de visão dupla durante um certo tempo, mas se lembrará de tudo.

Uma expressão cínica surgiu no rosto do jovem e, quando ele falou, foi com amargura.

— Assim nós nos tornaremos camaradas?

Com toda a presença autoritária de um Bashar em sua voz, Teg continuou seguindo com precisão as instruções do procedimento para o despertar.

— Não me sinto particularmente interessado em me tornar seu camarada. — Fixou um olhar observador na expressão de Duncan. — Você pode tornar-se um Bashar algum dia. Acho até que você tem as qualidades necessárias. Mas quando isso acontecer eu estarei morto há muito tempo.

— Seus únicos camaradas são Bashars?

— Patrin era meu amigo e ele nunca passou do posto de líder de esquadrão.

Duncan olhou para sua xícara vazia e então para Teg.

— Por que não pede alguma coisa para beber? Também se exercitou duramente lá em cima.

“Uma pergunta perceptiva.” Não se devia subestimar esse jovem. Ele sabia que partilhar do alimento era um dos mais antigos rituais de companheirismo.

— O cheiro de sua bebida foi o bastante para mim — respondeu Teg.

Velhas memórias. Não preciso delas agora.

— Então por que desceu até aqui?

Revelados na voz do jovem, havia esperança e medo. Ele queria que Teg dissesse alguma coisa em especial.

— Queria avaliar cuidadosamente até onde aqueles exercícios o levaram — disse Teg. — Precisava vir até aqui e observá-lo.

— Por que tinha de ser tão cuidadoso?

“Esperança e medo.” Era hora de uma mudança de foco precisa.

— Nunca treinei um ghola antes.

“Ghola.” A palavra ficou suspensa entre eles, flutuando nos cheiros da cozinha que os filtros do globo ainda não tinham varrido do ar.

“Ghola!” Uma palavra entremeada do cheiro de especiaria que restara na xícara vazia de Duncan.

Duncan inclinou-se para diante sem falar, uma expressão ávida no rosto. Uma observação de Lucilla chegou à mente de Teg: “Ele sabe como usar o silêncio”

Quando se tornou óbvio que Teg não ampliaria aquela declaração, Duncan recostou-se na cadeira com uma expressão desapontada. O canto esquerdo de sua boca curvou-se para baixo e ele assumiu uma expressão carrancuda, pensativa. Toda a sua mente estava focalizada no interior, como deveria ser.

— Você não desceu até aqui para ficar sozinho — disse Teg. — Veio aqui para se esconder. Ainda está se escondendo aí e acha que ninguém vai encontrá-lo.

Duncan colocou uma das mãos diante da boca. Era um gesto significativo pelo qual Teg estivera esperando. As instruções para esse momento eram muito claras: “O ghola deseja que suas memórias originais sejam despertadas, mas teme o que isso pode implicar. Essa é a maior barreira que você deve superar”

— Tire a mão da boca! — ordenou Teg.

Duncan deixou cair a mão como se ela tivesse sido queimada. Olhou para Teg como um animal aprisionado.

“Fale a verdade”, advertiam as instruções de Teg. “Nesse momento, com cada um de seus sentidos em fogo, o ghola enxergará dentro do seu coração”

— Desejo que saiba — continuou Teg — aquilo que a Irmandade me ordenou que fizesse com você. Isto me é desagradável.

Duncan pareceu agachar-se dentro de si mesmo.

— Que foi que eles lhe ordenaram que fizesse?

— As habilidades que me ordenaram que lhe desse contêm falhas.

— Falhas?

— Parte delas resume-se ao treinamento abrangente, a parte intelectual. Nesse aspecto você foi erguido até o nível de um comandante de regimento.

— Melhor que Patrin?

— Por que deve ser melhor que Patrin?

— Ele não era seu amigo?

— Sim.

— Disse que ele nunca subiu acima do posto de líder de pelotão!

— Patrin era inteiramente capaz de assumir o comando de toda uma força multiplanetária. Era um mago das táticas cuja sabedoria eu empreguei em muitas ocasiões.

— Mas disse que ele nunca. .

— Foi uma escolha dele. O posto baixo dava-lhe aquela aparência comum que ambos usamos muitas vezes.

— Comandante de regimento?

A voz de Duncan era pouco mais que um sussurro. Ele olhou para o topo da mesa.

— Você tem uma compreensão intelectual das funções envolvidas, é um pouco impetuoso, mas a experiência geralmente dá conta disso. Suas habilidades com as armas são superiores às de uma pessoa de sua idade.

Ainda sem olhar para Teg, Duncan perguntou:

— Qual é minha idade... senhor?

Exatamente como as instruções advertiam: “O ghola irá flutuar em torno de uma questão central: 'Qual é minha idade?' Qual a idade de um ghola?”

Com a voz friamente acusadora, Teg disse:

— Se quer saber sua idade como ghola, por que não pergunta isso?

— Qual... qual é essa idade, senhor?

Havia o peso de tanto sofrimento na voz daquele jovem que Teg sentiu lágrimas começarem a se formar nos cantos de seus olhos. Fora advertido a esse respeito também. “Não demonstre muita compaixão!” Teg disfarçou pigarreando. Depois disse:

— Essa é uma pergunta que só você pode responder.

As instruções eram claras: “Devolva as perguntas dele! Mantenha a mente dele voltada para o interior. A dor emocional é tão importante nesse processo quanto a dor física”

Um suspiro profundo fez Duncan estremecer. Ele fechou os olhos, comprimindo as pálpebras. Quando Teg se sentara diante dele naquela mesa, tinha pensado imediatamente: “Será este o momento? Será que ele vai fazer agora?” Mas o tom acusador de Teg, seus ataques verbais tinham sido totalmente inesperados. E agora Teg parecia condescendente.

“Ele está fazendo pouco de mim!”

Uma raiva cínica tomou conta de Duncan. Será que Teg o julgava tão bobo a ponto de ser enrolado pelo truque mais comum a um comandante? “Apenas o tom de voz e a atitude podem dominar a vontade do outro.” Duncan sentia outra coisa na atitude condescendente — algo como um âmago de plasteel que não poderia ser penetrado. Integridade... propósito. E Duncan tinha percebido as lágrimas quase brotando, o gesto para disfarçar.

Abrindo os olhos e olhando diretamente para Teg, ele disse:

— Não quero parecer rude, desrespeitoso ou ingrato, senhor, mas não posso ir em frente sem essas respostas.

As instruções de Teg eram explícitas: “Você perceberá quando o ghola atingir o ponto de desespero. Nenhum ghola tenta esconder isso, é intrínseco à psique deles. Vai reconhecer pela voz e pela postura.”

Duncan já tinha chegado quase ao ponto critico. Agora o silêncio de Teg era importante. Force o Duncan a fazer suas perguntas, a seguir seu próprio caminho.

Ele disse:

— Sabe que uma vez eu pensei em matar Schwangyu?

Teg abriu a boca e a fechou sem emitir qualquer som. “Silêncio!” Mas o rapaz falava sério!

— Eu tinha medo dela — continuou ele. — Não gosto de sentir medo. — Ele abaixou a cabeça. — Uma vez o senhor me disse que só odiamos aquilo que é realmente perigoso.

“Ele vai aproximar-se e recuar, aproximar-se e recuar. Espere até que ele mergulhe.”

— Eu não o odeio — disse Duncan, olhando para Teg uma vez mais. — Fiquei sentido quando disse ghola na minha cara. Mas Lucilla está certa, nunca devemos ressentir-nos da verdade, mesmo quando ela fere.

Teg esfregou os lábios. O desejo de falar era muito forte, mas ainda não estava na hora do mergulho.

— O fato de eu ter pensado em matar Schwangyu não o surpreende?

Teg manteve-se rígido. Mesmo que sacudisse a cabeça, isso seria tomado como resposta.

— Pensei em deixar cair alguma coisa na bebida dela, mas essa seria uma forma covarde e eu não sou covarde. Seja eu o que for, isso não sou.

Teg continuou silencioso e imóvel.

— Acho que se importa realmente com o que me acontecer, Bashar. Mas tem razão quando diz que nunca seremos camaradas. Se eu sobreviver, vou superá-lo. Então... será tarde demais para sermos camaradas. Falou a verdade.

Teg foi incapaz de evitar a reação Mentat de respirar fundo: não havia como evitar os sinais de força desse ghola. Em algum momento recente, talvez ali mesmo naquela alcova, o jovem deixara de ser jovem e se tornara um homem. A percepção desse detalhe entristeceu Teg. Fora tudo tão rápido! Não houvera um crescimento normal, intermediário.

— Lucilla não se importa com o que aconteça comigo, do modo como faz — continuou Duncan. — Ela apenas segue as ordens que recebeu da Madre Superiora Taraza.

“Ainda não!” Teg acautelou-se. Umedeceu os lábios com a língua.

— O senhor tem obstruído as ordens que Lucilla recebeu — continuou Duncan. — Que é que ela devia fazer comigo?

O momento chegara.

— Que acha que lhe ordenaram fazer? — perguntou Teg.

— Não sei!

— O Duncan Idaho original saberia.

— Você sabe! Por que não me diz?

— Só devo ajudá-lo a restaurar suas memórias originais.

— Então faça isso!

— Só você pode fazer isso.

— Não sei como!

Teg inclinou-se para a frente, colocando-se na beira de sua cadeira, mas não disse coisa alguma. “Ponto de mergulho?” Ele sentia a falta de alguma coisa no desespero de Duncan.

— Sabe que posso ler nos lábios, senhor — disse o ghola. — Uma vez subi na torre-observatório e observei Lucilla e Schwangyu lá embaixo, conversando. Schwangyu dizia: “Não se importe por ele ser tão jovem. Você recebeu suas ordens.”

Mais uma vez, mantendo um silêncio cauteloso, Teg olhou para Duncan. Era típico dele mover-se secretamente pelo Castelo, espionando, buscando reunir conhecimentos. E ele se colocara naquela posição pensativa de novo, sem perceber que continuava espionando e buscando respostas... de um modo diferente.

— Não creio que quisessem que ela me matasse — acrescentou ele. — Mas o senhor sabe o que ela deveria fazer porque tem estado a impedi-la. — Duncan bateu com um punho em cima da mesa. — Responda-me, maldito!

“Ahh, o desespero completo, afinal.”

— Só posso dizer-lhe que aquilo que ela planeja entra em conflito com minhas ordens. Recebi ordens de Taraza para lhe dar forças e protegê-lo de qualquer dano.

— Mas disse que meu treinamento foi... falho!

— Algo necessário. Ele foi concebido no sentido de prepará-lo para suas memórias originais.

— E que esperam que eu faça?

— Você já sabe.

— Não, não sei. Por favor; ensine-me!

— Você fez muitas coisas sem precisar que o ensinassem a fazê-las. Será que lhe ensinamos a desobediência?

— Por favor, ajude-me!

O pedido era um gemido desesperado.

Teg forçou-se a manter um gélido distanciamento.

— Que diabos você pensa que estou fazendo?

Duncan comprimiu os punhos e com eles golpeou a mesa, fazendo a xícara pular. Olhou furioso para Teg. De repente, uma expressão curiosa surgiu no rosto do rapaz — uma coisa indagadora em seus olhos.

— Quem é você? — sussurrou.

“A pergunta-chave!”

A voz de Teg foi como um chicote atingindo subitamente uma vítima indefesa:

— Quem você pensa que sou?

Uma expressão de total desespero contorceu as feições de Duncan, que só conseguiu balbuciar:

— O senhor é... o senhor é...

— Duncan! Pare com essa tolice!

Teg ficou de pé e olhou para ele com uma raiva fingida.

— O senhor é...

A mão direita de Teg disparou num arco rapidíssimo, a palma aberta estalando na face do rapaz.

— Como se atreve a me desobedecer? — Outro tapa com a mão esquerda. — Como se atreve?

Duncan reagiu tão rapidamente que Teg experimentou um instante eletrizante de choque absoluto. “Que velocidade!” Embora fossem movimentos isolados ocorreram num único borrão indistinto: um salto para cima, apoiando os pés na cadeira, balançando a cadeira e usando esse movimento para golpear com o braço direito na direção dos nervos vulneráveis do ombro de Teg.

Respondendo com seus instintos treinados, Teg esquivou-se de lado e lançou a perna esquerda sobre a mesa, visando a virilha de Duncan. Mesmo assim Teg não escapou totalmente do golpe, O lado da mão do rapaz continuou o golpe para baixo, atingindo de lado o joelho da perna que Teg usara para golpear. Isso deixou-lhe a perna inteira dormente.

Duncan caiu esparramado em cima da mesa, tentando esquivar-se para o lado, apesar do pontapé paralisante que tinha recebido. Teg apoiou-se com a mão esquerda na mesa e, com a outra mão, deu uma cutelada na base da espinha de Duncan, no nexus deliberadamente enfraquecido pelos exercícios dos últimos dias.

Duncan gemeu enquanto uma agonia paralisante lhe dominava o corpo. Outra pessoa teria ficado imobilizada, gritando, mas Duncan apenas gemeu enquanto rastejava em direção a Teg para continuar seu ataque,

Implacável diante das necessidades daquele momento, Teg continuou em sua tarefa de criar a maior dor possível para sua vitima, certificando-se de que o rapaz visse e face de seu atacante em cada instante de agonia extrema.

— Vigie os olhos dele! — advertira Bellonda. E, reforçando as instruções, ela dissera: — Seus olhos vão parecer enxergar através de você, mas ele vai chamá-lo de Leto.

Mais tarde Teg achou difícil lembrar cada detalhe de sua obediência ao processo de despertar. Sabia que tinha continuado a agir como fora ordenado, mas suas memórias se foram para outro lugar, deixando a carne livre para fazer o que era preciso. Curiosamente, esse truque mental fixou-se em outro ato de desobediência: a Revolta de Cerbol, quando Teg estava na meia-idade mas já era um Bashar de considerável reputação. Ele tinha vestido seu melhor uniforme, sem as medalhas (toque sutil), e se apresentara ante o calor escaldante dos campos arados pela batalha em Cerbol. Completamente desarmado no caminho do avanço rebelde.

Muitos dos atacantes deviam-lhe suas vidas. A maioria lhe emprestara a lealdade mais profunda em outras ocasiões. Agora se encontravam tomados da mais violenta desobediência. E a presença de Teg em seu caminho dizia o seguinte àqueles soldados que avançavam:

“Eu não estou usando as medalhas que revelam o que fiz por vocês quando fomos camaradas. Não uso nada que diga que sou um de vocês. Só o uniforme que revela ainda ser o Bashar. Matem-me, se chegaram a esse ponto em sua desobediência.”

Quando a maior parte da força atacante jogou as armas no chão e veio ao encontro dele, alguns comandantes ajoelharam-se para demonstrar respeito ante o velho Bashar, e ele os censurou:

— Não precisam curvar-se ou se ajoelhar diante de mim! Seus novos lideres lhes ensinaram maus hábitos.

Mais tarde ele contou aos rebeldes que compartilhava com eles algumas de suas queixas. Cerbol tinha sido muito prejudicado. Mas também os advertiu:

— Uma das coisas mais perigosas no universo é um povo ignorante que sofre injustiças reais. Mais isso não é nem de longe tão perigoso quanto uma sociedade de gente inteligente e bem-informada que tenha sido injustiçada. O dano que uma inteligência vingativa pode realizar é algo que vocês nem podem imaginar. O Tirano pareceria uma figura paternal, benevolente, diante daquilo que estiveram a ponto de criar!

Era tudo verdadeiro, é claro, mas no contexto da Bene Gesserit esses pensamentos ajudavam muito pouco diante daquilo que lhe haviam ordenado que fizessem com o ghola Duncan Idaho — criar a agonia física e mental numa vítima quase indefesa.

Era mais fácil lembrar o olhar de Duncan. Os olhos dele não perderam o foco, olhando cheios de ódio para o rosto de Teg, mesmo no instante do grito final:

— Maldito seja, Leto! Que você está fazendo?

“Ele me chamou de Leto.”

Trêmulo, Teg recuou, dois passos. Sua perna esquerda doía e formigava no ponto onde Duncan o tinha golpeado. Teg percebeu então que estava ofegante, no fim de suas reservas de resistência física. Era muito velho para um esforço dessa natureza, e a coisa toda o deixara sentindo-se imundo. O processo de despertar estava completamente fixo em sua consciência, todavia. Sabia que em outra época os gholas tinham sido acordados através de um condicionamento que os levava a, inconscientemente, tentar matar alguém a quem amavam. A psique do ghola, despedaçada e forçada a se recompor, ficava sempre danificada com um trauma. Essa nova técnica deixava as cicatrizes na pessoa que dirigia o processo.

Lentamente, movendo-se contra a vontade de músculos e nervos entorpecidos pela agonia, Duncan escorregou para trás, saindo de cima da mesa e se apoiando de encontro à cadeira onde estivera sentado. Trêmulo, olhava para Teg.

As instruções de Teg diziam: “Você deve ficar muito quieto. Não se mova. Deixe que ele o observe à vontade.”

E Teg ficou imóvel como lhe mandaram. A memória da Revolta do Cerbol deixou sua mente: sabia o que tinha feito agora e naquela ocasião. De certo modo, as duas situações eram semelhantes. Não tinha revelado aos rebeldes nenhuma verdade derradeira (se é que tal coisa existia), somente o suficiente para os atrair de volta ao sistema. A dor e suas conseqüências previsíveis: “Isto é para o seu próprio bem.”

Seria realmente para o bem o que tinham feito com esse ghola Duncan Idaho?

Teg perguntava-se o que estaria acontecendo na consciência de Duncan naquele momento. Tinham lhe contado tudo que se sabia sobre esses momentos, mas podia ver que as palavras eram inadequadas para descrever o que acontecia. A face e os olhos do rapaz forneciam amostras mais que evidentes de uma violenta confusão mental — horríveis contorções da boca e da face, olhos desviando-se para lá e para cá.

De um modo estranho por sua lentidão, o rosto de Duncan relaxou. O corpo continuou a tremer. Ele sentia a dor pulsante em seu corpo como uma coisa distante, como dores lancinantes que tinham sido infligidas e outra pessoa, não a ele. Estava ali, entretanto, nesse momento imediato — onde quer e quando quer que fosse. Mas suas memórias não se encaixavam. Sentia-se subitamente deslocado, habitando um corpo muito jovem que não se enquadrava em sua existência pré-ghola. A consciência que saltava de um lugar para outro permanecia subjetiva agora. Não havia mais indícios externos do que ocorria em sua mente.

Os instrutores de Teg tinham-lhe explicado:

— Ele terá filtros do tipo que é imposto aos gholas sobre suas memórias anteriores. Algumas delas fluirão de volta imediatamente. Outras vão retornar com mais lentidão. Não haverá enquadramento, contudo, até que ele se lembre do momento de sua morte original.

Bellonda fornecera a Teg os detalhes conhecidos a respeito desse instante fatal.

— Sardaukar — sussurrou o Duncan. Ele olhou à sua volta para os símbolos Harkonnen que permeavam o não-globo. — As tropas de choque do Imperador usando uniformes dos Harkonnen! — Um sorriso malévolo contorceu-lhe a boca. — Como eles devem ter odiado aquilo!

Teg continuou quieto, vigilante.

— Eles me mataram — disse o rapaz. Era uma declaração totalmente destituída de emoção, ainda mais arrepiante por sua aceitação positiva. Um tremor violento passou por seu corpo, depois todos os tremores cessaram. — Havia pelo menos uma dúzia deles naquela salinha. — Olhou diretamente para Teg e continuou: — Um deles me pegou, atingindo-me na cabeça com algo como um machado de cortar carne. — Hesitou, a garganta movendo-se convulsivamente. O olhar permanecia em Teg. — Consegui dar a Paul tempo suficiente para escapar?

“Responda todas as perguntas dele com sinceridade.”

— Ele escapou.

Agora vinha o momento de teste. Onde é que os Tleilaxu teriam adquirido as células de Idaho? Os testes da Irmandade diziam que elas eram originais, mas as suspeitas permaneciam. Os Tleilaxu tinham feito alguma coisa com esse ghola. Suas memórias poderiam dar uma pista valiosa do que fora feito.

— Mas os Harkonnen... — Duncan interrompeu-se. As memórias do tempo passado no Castelo voltavam agora. — Oh, sim. Oh, sim! — Uma gargalhada feroz estremeceu-lhe o corpo. Duncan lançou um violento grito de vitória contra o Barão Vladimir Harkonnen, morto há milênios: — Eu lhe dei o troco, Barão! Ah, como eu vinguei todos aqueles que destruiu!

— Você se lembra do Castelo e das coisas que lhe ensinamos? — perguntou Teg.

Uma expressão intrigada franziu a testa de Duncan. A dor emocional entrou em choque com as dores físicas. Ele assentiu com a cabeça em resposta à pergunta de Teg. Havia duas vidas, uma que fora isolada além dos tanques axlotl e outra... outra... Duncan sentia-se incompleto. Alguma coisa permanecia reprimida dentro dele. O despertar ainda não terminara. Olhou furioso para Teg. Haveria mais? Teg tinha sido tão brutal. Brutalidade necessária? Era desse modo que se restaurava um ghola?

— Eu...

Duncan sacudiu a cabeça de um lado para o outro, como um grande animal ferido diante de seu caçador.

— Você conserva todas as suas memórias? — insistiu Teg.

— Todas? Oh, sim. Eu me lembro de Gammu quando ainda era Giedi Prime, o buraco infernal, encharcado de sangue e óleo, que pertencia ao Império! Sim, de fato, Bashar. Fui seu aluno, um aluno muito consciente de seus deveres. Comandante de Regimento!

Novamente ele riu, lançando a cabeça para trás num gesto curiosamente adulto para um corpo tão jovem.

Teg experimentou a súbita liberação de uma satisfação profunda, mais profunda que o alívio. Tinha funcionado como lhe haviam dito que iria funcionar.

— Você me odeia? — perguntou ele.

— Odiá-lo? Não lhe disse que lhe seria grato?

De repente Duncan ergueu as mãos e olhou para elas. Voltou sua atenção para o corpo jovem.

— Que tentação! — murmurou. Deixou cair as mãos e observou o rosto de Teg, buscando os traços de identidade. — Atreides — comentou. — Vocês são todos tão parecidos!

— Nem todos — disse Teg.

— Não estou falando de aparência física, Bashar. — Os olhos dele se desfocaram. — Perguntei minha idade. — Houve um longo silêncio e então: — Deuses das profundezas! Tanto tempo se passou!

Teg disse aquilo que lhe tinham instruído a dizer:

— A Irmandade precisa de você.

— Neste corpo imaturo? E que querem que eu faça?

— Na verdade não sei, Duncan. O corpo vai amadurecer e presumo que uma Reverenda Madre lhe explicará tudo.

— Lucilla?

De súbito, Duncan olhou para o teto decorado, então para a alcova e o relógio barroco. Lembrava-se de ter chegado ali em companhia de Teg e Lucilla. O lugar era o mesmo, mas de algum modo se tornara diferente.

— Os Harkonnen — sussurrou. Lançou um olhar zangado na direção de Teg. — Tem idéia de quantas pessoas da minha família os Harkonnen torturaram e mataram?

— Uma das arquivistas de Taraza forneceu-me um relatório.

— Relatório? E pensa que palavras podem transmitir o sentimento de uma coisa dessas?

— Não, mas era a única resposta que eu tinha para a sua pergunta.

— Maldição, Bashar! Por que vocês Atreides precisam ser sempre tão honestos e honrados?

— Creio que é alguma coisa que foi gerada em nós.

— Isso é verdade.

A voz de Lucilla os surpreendeu, vinda de um ponto atrás de Teg.

Teg não se voltou. Quanto será que ela tinha ouvido da conversa? Há quanto tempo estaria escutando?

Lucilla veio posicionar-se ao lado de Teg, mas sua atenção concentrava-se no Duncan.

— Percebo que você conseguiu, Miles.

— As ordens de Taraza foram cumpridas à risca — disse Teg.

— Você foi muito hábil, Miles — ela disse. — Muito mais esperto do que suspeitei que fosse. Aquela sua mãe devia ter sido severamente punida pelo que lhe ensinou.

— Ah, Lucilla, a sedutora — exclamou Duncan. Olhou para Teg e então voltou sua atenção para Lucila. — Sim, agora posso responder a outra pergunta... o que ela deve fazer.

— Elas são chamadas Impressoras — disse Teg.

— Miles — advertiu Lucilla —, se você dificultou minha tarefa a ponto de impedir que eu cumpra minhas ordens, farei com que seja assado num espeto.

O tom destituído de emoção da voz dela fez Teg estremecer. Sabia que a ameaça era uma metáfora, mas as implicações eram reais.

— Um banquete punitivo! — comentou Duncan. — Que ótimo!

Teg voltou sua atenção para Duncan.

— Não há nada romântico naquilo que fizemos a você, Duncan. Eu assessorei a Bene Gesserit em mais de uma missão que me fez sentir sujo, mas nunca tão sujo quanto agora.

— Silêncio! — ordenou Lucilla.

Usava a plena força da Voz em seu comando.

Teg deixou aquilo fluir e passar através dele como sua mãe lhe ensinara e então disse:

— Aqueles entre nós que dedicam sua verdadeira lealdade à Bene Gesserit têm apenas uma preocupação: assegurar a sobrevivência da Irmandade. Não a de qualquer indivíduo em especial, mas da Irmandade em si. Mentiras, desonestidades são palavras vazias quando está em jogo a sobrevivência da Bene Gesserit.

— Maldita seja aquela sua mãe, Miles!

Lucilla fez-lhe o cumprimento de não ocultar a raiva que sentia.

Duncan olhou para ela. Quem seria? Lucilla? Sentiu suas memórias se agitarem. Lucilla não era a mesma pessoa... não exatamente a mesma... entretanto... fragmentos, partes, eram idênticas. A voz dela, suas feições. Subitamente ele viu de novo o rosto de mulher que tinha vislumbrado na parede de seu quarto no Castelo.

— Duncan, meu doce Duncan.

As lágrimas fluíram em seu olhos. Sua própria mãe — outra vitima dos Harkonnen. Torturada... quem sabia mais o quê? Para nunca mais ser vista novamente pelo seu “doce Duncan”.

— Deuses, gostaria de ter um deles em minhas mãos para matá-lo agora mesmo — gemeu.

Uma vez mais focalizou sua atenção em Lucilla. As lágrimas em seus olhos borravam as feições, tornando a comparação mais fácil. A face de Lucilla encaixava-se na de Lady Jessica, a amada de Leto Atreides. Duncan olhou de novo para Teg e para Lucilla, sacudindo as lágrimas de seus olhos enquanto movia a cabeça. Os rostos em sua memória dissolveram-se, revelando a verdadeira Lucilla diante dele... Similaridades... mas nunca mais exatamente a mesma coisa. Nunca mais a mesma.

“Impressora”

Podia adivinhar o significado. Uma revolta típica de um Duncan Idaho ergueu-se dentro dele.

— É o meu filho que você quer em seu ventre, Impressora? Sei que não são chamadas de Madres por acaso.

Com a voz gélida, Lucilla respondeu:

— Vamos discutir isso em outra ocasião.

— Vamos discutir num lugar adequado. Talvez eu lhe cante uma canção. Não vai ser uma canção tão boa quanto o velho Gurney Halleck lhe cantaria, mas o suficiente para prepará-la para um pouco de esporte na cama.

— Você acha tudo isso muito divertido, não? — perguntou ela.

— Divertido? Não, mas me lembra o Gurney. Diga-me, Bashar, você o trouxe de volta à vida também?

— Não que eu saiba — respondeu Teg.

— Ah, aquele era um homem que sabia cantar. Podia matar você enquanto cantava, sem errar uma nota.

Com a voz ainda gelada, Lucilla disse:

— Nós da Bene Gesserit aprendemos a evitar a música. Ela evoca muitas emoções confusas. Memórias de emoções, é claro.

Queria deixá-lo admirado com a lembrança de todas as Outras Memórias e dos poderes Bene Gesserit que a menção a esse aspecto podia evocar, mas Duncan apenas riu alto.

— Que vergonha — ele disse. — Vocês perdem tanta coisa da vida. — E dizendo isso começou a cantarolar um velho refrão de Halleck:

“Tropas em revista, tropas que há muito passaram em revista...”

Entretanto sua mente voava para outro lugar, na rica agitação de momentos renascidos. Uma vez mais se sentiu ávido por tocar algo muito poderoso que permanecia sepultado dentro dele. O que quer que fosse era algo violento e tinha relação com Lucilla, a Impressora. Em sua imaginação ele a viu morta, banhada no próprio sangue.

 

As pessoas sempre desejam algo mais que o simples prazer imediato ou aquele sentimento profundo que se chama felicidade. Esse é um dos segredos através dos quais moldamos a realização de nossos objetivos. Esse algo mais assume um poder crescente entre as pessoas que não podem identifica-lo, ou que (como é mais freqüente) nem mesmo suspeitam de sua existência. A maioria das pessoas apenas reage inconscientemente a tais forças ocultas. Assim, só precisamos apresentar-lhes um algo mais bem adequado, defini-lo, dar-lhe forma, para fazer com que as pessoas nos sigam.

 

— Segredos da Liderança da Bene Gesserit

 

Com um silencioso Waff avançando 20 passos adiante delas, Odrade e Sheeana caminhavam por uma estrada orlada por ervas ao lado de um pátio de armazenagem de especiaria. Todos usavam mantos novos para o deserto e brilhantes trajes destiladores. A cerca cinzenta de nulplaz, que definia os limites do pátio, apresentava fragmentos de grama e sementes algodoadas presas em sua trama. Olhando para as sementes, Odrade pensou nelas como formas de vida tentando escapar à intervenção humana.

Atrás do grupo, os prédios maciços que tinham sido erguidos em torno de Dar-es-Balat cozinhavam ao sol da tarde. O ar quente e seco queimava as gargantas quando inalado muito depressa. Odrade sentia vertigem e uma espécie de luta contra si mesma. A sede a incomodava e ela caminhava como se estivesse se equilibrando à beira de um precipício. A situação que tinha criado a partir de uma ordem de Taraza poderia explodir a qualquer momento.

“Como é frágil este equilíbrio.”

Três forças equilibradas sem que nenhuma apoiasse qualquer das outras, unidas apenas por interesses que poderiam mudar a qualquer instante e desfazer essa aliança. Os militares enviados por Taraza não tranqüilizavam Odrade nem um pouco. Onde estaria Teg? E Burzmali? E, quanto a isso, onde estaria o ghola? Deveria estar ali agora mesmo. Por que ela teria recebido ordens para atrasar tudo?

A aventura de hoje certamente iria atrasar tudo! Embora tivesse a aprovação de Taraza, Odrade achava que essa excursão ao deserto dos vermes poderia produzir um atraso permanente. E havia Waff. Se ele sobrevivesse, restariam peças que pudessem ser reunidas para formar um todo?

A despeito das aplicações curativas dos melhores amplificadores de fusão da Irmandade, Waff dizia que seus braços ainda doíam onde Odrade os quebrara. Não estava se queixando, apenas fornecia informação. Aparentemente aceitara a frágil aliança, e até as modificações que agora incluíam o clero Rakiano. Sentia-se tranqüilo pelo fato de um de seus Dançarinos Faciais ocupar o trono de Alto Sacerdote, sob o disfarce de Tuek. Waff falara com autoridade ao exigir às “madres procriadoras”, que a Bene Gesserit lhe prometera e agora negava, como parte de um acordo ainda não cumprido.

— É apenas um pequeno atraso — explicara Odrade — enquanto a Irmandade revê os termos do novo acordo. Enquanto isso...

Hoje era o “enquanto isso”.

Odrade pôs de lado as objeções e as dúvidas e começou a se colocar no estado de espírito adequado para essa aventura. Waff a fascinava com seu comportamento, especialmente a reação que tivera ao conhecer Sheeana: uma reação temerosa e mais que apenas um pouco admirada.

“A enviada do seu Profeta.”

Odrade olhou para o lado, observando a jovem que caminhava compenetrada ao lado dela — ali estava o ponto de apoio para equilibrar todos esses acontecimentos de acordo com o propósito da Bene Gesserit.

A descoberta, pela Irmandade, do verdadeiro motivo a governar o comportamento dos Tleilaxu deixava Odrade excitada. A fanática “verdadeira fé” de Waff ganhava forma a cada nova resposta dele. Odrade sentia-se feliz em poder estar ali, estudando um Mestre Tleilaxu num cenário religioso. O próprio cascalho sob os pés de Waff induzia a comportamentos que ela era capaz de identificar, pois fora treinada para isso.

“Devíamos ter calculado isso”, pensou Odrade. “As manipulações de nossa própria Missionaria Protectiva deviam ter nos indicado como os Tleilaxu conseguiram aquilo: revelando-se apenas para si mesmos, mantendo segredo, bloqueando qualquer tipo de intromissão durante todos esses milênios.”

Eles não pareciam ter copiado a estrutura da Bene Gesserit. E que outra força poderia realizar coisa semelhante? Uma religião. A Grande Fé!

“A menos que os Tleilaxu estejam usando seu sistema de gholas para obter algum tipo de imortalidade.”

Taraza poderia estar certa. Mestres Tleilaxu reincarnados não seriam como Reverendas Madres — não haveria Outras Memórias, apenas memórias pessoais. Mas prolongadas!

“Fascinante!”

Odrade olhou para as costas de Waff. “Trabalhador.” A denominação parecia encaixar-se naturalmente nele. Lembrava-se de tê-lo ouvido chamar Sheeana de “Alyama”. Outra confirmação lingüística quanto à Grande Crença de Waff. Significava “A Abençoada”. Os Tleilaxu tinham mantido uma linguagem ancestral não somente viva, mas imutável.

Será que Waff sabia que somente as forças poderosas como as religiões eram capazes de realizar isso?

“Nós temos a nosso alcance as raízes de sua obsessão, Waff! Não é muito diferente de algumas que nós mesmas criamos. Sabemos como manipular tais coisas para os nossos propósitos.”

O comunicado de Taraza queimou na consciência de Odrade: “O plano dos Tleilaxu é transparente: ascendência. O universo humano deve ser transformado num universo Tleilaxu. Eles não podem esperar alcançar semelhante objetivo sem a ajuda dos Dispersos. Daí...”

O raciocínio de uma Madre Superiora não podia ser desconsiderado. Mesmo a oposição, dentro do grande cisma que ameaçava despedaçar a Irmandade, tinha concordado. Mas o pensamento de todas aquelas massas humanas da Dispersão, seus números explodindo exponencialmente, produzia um solitário sentimento de desespero em Odrade.

“Somos tão poucas comparadas com eles.”

Sheeana deteve-se e pegou um cascalho. Observou-o por um momento e então o atirou na cerca ao lado deles. A pedra voou entre as tramas do gradil sem tocá-lo.

Odrade controlou seus pensamentos. Os sons de seus passos na areia que o vento lançara sobre a rodovia pouco usada pareceu-lhe subitamente muito alto. A ponte estreita que conduzia por sobre o anel de qanats de Dar-es-Balat encontrava-se a não mais de 200 passos adiante, no fim da estrada estreita.

Sheeana disse:

— Estou fazendo isso porque ordenou, Madre. Mas ainda não sei para que serve.

“Porque este é o ponto onde testaremos Waff e, através dele, moldaremos os Tleilaxu à nossa vontade.”

— É uma demonstração — explicou Odrade.

Isso era verdade. Não era toda a verdade, mas servia.

Sheeana caminhava de cabeça baixa, olhando para o chão, o olhar atento onde colocava cada pé. Seria desse modo que ela sempre se aproximava do seu Shaitan?, perguntou-se Odrade. Pensativa e distante?

Odrade ouviu o fraco bater das asas de um ornitóptero bem alto e atrás dela. As aeronaves de vigia estavam chegando. Iriam manter-se distantes enquanto muitos olhos observavam essa demonstração.

— Eu vou dançar — disse Sheeana. — Isso geralmente chama um dos grandes.

Odrade sentiu as batidas de seu coração se acelerarem. Será que “o grande” iria continuar a obedecer Sheeana a despeito da presença de dois companheiros?

“Isto parece uma loucura suicida!”

Mas tinha que ser feito: ordens de Taraza.

Odrade olhou para o pátio do depósito de especiaria, cercado pela cerca atrás deles. O lugar parecia estranhamente familiar. Mais que deja vu. Era uma certeza interior formada pelas Outras Memórias a lhe revelarem que esse lugar permanecia imutável desde uma época muito distante. O projeto dos silos de especiaria naquele pátio era tão velho quanto Rakis: tanques ovais suspensos em altas pernas como se fossem insetos de metal e plaz aguardando sobre membros compridos para saltarem sobre suas presas. Ela suspeitava de uma mensagem inconsciente da parte dos projetistas originais: “A melange é tanto a bênção quanto a perdição.”

Debaixo dos silos havia um deserto arenoso onde não se permitia que nada crescesse junto aos prédios de paredes de barro. Ali, um braço de Dar-es-Balat se estendia como o pseudópode de uma ameba tentando alcançar a borda do qanat. O não-globo do Tirano, escondido há tanto tempo, tinha produzido uma fervilhante comunidade religiosa que escondia a maior parte de suas atividades atrás de paredes sem janelas e sob o solo.

“Como nossos desejos inconscientes, agindo secretamente!”

Sheeana falou novamente:

— Tuek está diferente, — Odrade viu a cabeça de Waff erguer-se abruptamente, Ele tinha ouvido e devia estar pensando: “Poderemos ocultar alguma coisa da mensageira do Profeta?”

Gente demais sabia da existência de um Dançarino Facial tomando o lugar de Tuek, pensou Odrade. O clero, é claro, acreditava estar dando ao Tleilaxu corda suficiente para ele enforcar não apenas a Bene Tleilax, mas também a Bene Gesserit.

Odrade sentiu o odor pungente dos produtos químicos usados para matar a vegetação do pátio de armazenagem. Os odores forçavam sua atenção de volta à questão das necessidades imediatas. Ela não se atrevia a mergulhar em devanejos ali! Seria muito fácil para a Irmandade acabar apanhada em sua própria armadilha.

Sheeana tropeçou e deu um gritinho, mais de raiva que de dor. Waff voltou a cabeça bruscamente e olhou para Sheeana antes de voltar sua atenção para a estrada. A criança apenas tropeçara numa fenda do calçamento, percebeu. A areia soprada pelo vento escondia os lugares onde o piso tinha rachado. A estrutura etérea da ponte adiante deles parecia bastante sólida, entretanto. Não era substancial o suficiente para suportar um dos descendentes do Profeta, porém mais que suficiente para um suplicante humano atravessá-la em direção ao deserto.

Waff via a si mesmo como um suplicante.

“Venho como um mendigo à terra do teu mensageiro, ó Deus!”

Ele tinha suas suspeitas com relação a Odrade. A Reverenda Madre o levara até ali para esgotá-lo de seus conhecimentos antes de matá-lo. “Com a ajuda de Deus, ainda poderei surpreendê-la.” Sabia que seu corpo era à prova de uma Sonda Ixiana, embora ela, obviamente, não carregasse consigo um engenho tão grande e desajeitado. Mas a força  de sua vontade e a confiança que tinha na graça de Deus é que tranqüilizavam Waff.

“E se a mão que elas nos estendem estiver oferecendo a sinceridade?”

Isso também seria obra de Deus.

Aliança com a Bene Gesserit, controle firme sobre Rakis: que sonho maravilhoso isso não era! A ascendência de Shariat, afinal, com as Bene Gesserit agindo como suas missionárias.

Quando Sheeana tropeçou novamente, e emitiu outro queixume, Odrade disse:

— Não seja auto-indulgente, criança!

Ela viu os ombros de Waff enrijecerem-se. Ele não gostava de ouvir esse tom autoritário sendo usado em relação à sua “Abençoada”. Havia uma força dentro desse homenzinho que Odrade reconhecia como sendo a força do fanatismo. Mesmo que o verme investisse para matá-lo, Waff não correria. A fé em seu Deus o levaria diretamente para a morte — a menos que se abalasse a sua crença.

Odrade reprimiu um sorriso. Podia seguir-lhe os processos mentais:

“Deus logo revelará o Seu Propósito.”

Mas Waff estava pensando em suas células crescendo na lenta renovação de Bandalong. Não importava o que acontecesse ali, suas células continuariam para realizar os propósitos da Bene Tleilax... e de Deus. Waffs produzidos em série para ser vir a Grande Crença.

— Posso sentir o cheiro de Shaitan, sabe? — disse Sheeana.

— Está sentindo agora?

Odrade olhou para a ponte diante deles. Waff já se encontrava sobre a superfície arqueada.

— Não, só sinto quando ele vem — respondeu Sheeana.

— É claro, criança, qualquer um pode sentir o cheiro.

— Mas eu posso farejá-lo a grande distância.

Odrade inalou profundamente, separando os odores do ambiente do cheiro onipresente de pó de pedra queimado: Havia fracos perfumes de melange... ozônio, alguma coisa distintamente ácida. Fez sinal para que Sheeana fosse na frente dela, em fila única sobre a ponte. Waff mantinha-se uns 20 passos à frente. A ponte mergulhava no deserto, uns 60 metros adiante.

“Vou provar a areia na primeira oportunidade”, pensou Odrade. “Isso me dirá muitas coisas.”

Enquanto chegava ao centro da ponte, sobre o fosso inundado de água, Odrade olhou para uma barreira comprida ao longo do horizonte, na direção sudoeste. E de repente foi confrontada por uma Outra Memória poderosa. Nada havia da nitidez existente em sua visão presente, mas ele reconheceu assim mesmo — uma mistura de imagens provenientes de outras fontes sepultadas profundamente dentro dela.

“Maldição!”, pensou. “Agora não.”

Mas não havia como escapar. Tal intrusão em seus pensamentos vinha com um propósito, exigindo de modo inevitável a atenção de sua consciência.

“Cuidado!”

Ela fitou o horizonte distante, permitindo que a Outra Memória se sobrepusesse: havia uma barreira muito alta, lá longe, há muito tempo.. Havia gente caminhando no topo. E uma ponte delgada, bela e insubstancial na distância desta memória. Ligava uma das partes da barreira desaparecida à outra, e ela sabia, mesmo sem ver, que um rio fluíra embaixo da ponte há tanto tempo desaparecida. O rio Idaho! Agora a imagem sobreposta em sua consciência ganhava movimento: havia objetos caindo da ponte. Estavam muito distantes para que pudesse identificá-los, mas já tinha os rótulos adequados para essa projeção de imagens. Com um sentimento de horror e excitação, identificou a cena.

A ponte etérea estava desabando! Caindo no rio.

Não era uma visão de destruição acidental. Tratava-se de uma imagem clássica de violência que inúmeras memórias ainda carregavam, a qual lhe viera em seus momentos de agonia da especiaria. Odrade podia classificar todos os componentes da imagem tão bem sintonizada: milhares de ancestrais seus tinham observado essa cena em reconstituições imaginadas. Não uma memória visual real, mas uma montagem de relatórios precisos.

“Foi lá que aconteceu!”

Odrade parou e deixou que as projeções de imagens se firmassem em sua consciência. “Cuidado!” Algo de perigoso fora identificado, mas ela não tentou penetrar na substância do aviso. Se o fizesse, ele se dissociaria em diversos elementos, qualquer um dos quais podendo ser relevante, e a certeza original desapareceria.

Aquela coisa que acontecera lá no horizonte ficara marcada na história. Leto II, o Tirano, tinha caído para se dissolver do alto daquela ponte etérea. O grande verme de Rakis, o Imperador-Deus, o Tirano em pessoa, fora derrubado do alto da ponte durante sua peregrinação nupcial.

E ali! Ali mesmo no rio Idaho, debaixo da ponte destruída, o Tirano submergira em sua própria agonia. Ali mesmo ocorrera a transformação de que nascera o Deus Dividido... tudo começara ali.

“Por que este aviso?”

A ponte e o rio há muito tinham desaparecido dessa terra. A alta muralha que cercava o deserto do Tirano, o Sareer, sofrera a erosão, fragmentando-se até se tornar aquela linha de montículos num horizonte trêmulo de calor.

E se um verme viesse, portanto sua pérola de memória encapsulada do Tirano, presa de um sonho eterno, será que essa memória seria perigosa? Era o que argumentava a facção que se opunha a Taraza no seio da Irmandade.

“Ele despertará!”

Taraza e suas assessoras negavam até mesmo a possibilidade de que tal coisa ocorresse.

Ainda assim, esse alarme disparando nas Outras Memórias de Odrade não poderia ser ignorado.

— Reverenda Madre, por que paramos?

Odrade sentiu sua consciência saltar de volta para o presente imediato, exigindo sua atenção. Lá, naquela visão de advertência, o sonho interminável do Tirano tinha começado, mas outros sonhos agora competiam pelo espaço. Sheeana estava diante dela com uma expressão intrigada.

— Eu estava olhando para lá — explicou Odrade, apontando. — Foi lá que surgiu o Shai-hulud, Sheeana.

Waff tinha parado na extremidade da ponte, a um passo da areia cada vez mais funda, e agora uns 40 passos à frente de Sheeana e Odrade. A voz dela colocou-o imediatamente alerta, mas ele não se virou. Odrade poderia perceber o desprazer que sua postura revelava. Waff não gostava do menor sinal de cinismo dirigido contra o seu Profeta. Sempre suspeitara do cinismo das Reverendas Madres. Especialmente com relação a questões religiosas. Ainda não estava pronto para aceitar que um inimigo tão temido e há tanto tempo detestado quanto a Bene Gesserit pudesse partilhar de sua Grande Crença. Essa questão teria que ser examinada com muito cuidado — como sempre se fizera com relação à Missionaria Protectiva.

— Dizem que havia um grande rio lá — comentou Sheeana.

Odrade percebeu o tom de desprezo na voz de Sheeana. A menina aprendia rápido!

Waff voltou-se e olhou para elas carrancudo. Tinha ouvido também. Que estaria pensando agora com relação a Sheeana?

Odrade segurou um dos ombros de Sheeana e apontou com a outra mão.

— Havia uma ponte bem ali. A grande muralha do Sareer foi deixada aberta naquele ponto para permitir a passagem do rio Idaho. A ponte saltava por sobre essa falha.

Sheeana suspirou.

— Um rio de verdade — comentou baixinho.

— Não era um qanat, mas era muito grande para ser um canal — comentou Odrade.

— Eu nunca vi um rio — disse Sheeana.

— Foi ali que jogaram o Shai-hulud no rio — explicou Odrade, gesticulando para a esquerda. — Daquele lado, a muitos quilômetros naquela direção, ele construiu seu palácio.

— Não há nada lá, a não ser areia — comentou Sheeana.

— O palácio foi demolido na Época da Fome — explicou Odrade. — As pessoas pensavam que ele escondia um tesouro em especiaria. Estavam erradas, é claro. O Tirano era muito esperto para fazer uma coisa dessas.

Sheeana inclinou-se para mais perto de Odrade e sussurrou:

— Mas havia realmente um grande tesouro em especiaria. As canções falam dele. Ouvi a história nos cânticos muitas vezes. Meu... eles dizem que ficava numa caverna.

Odrade sorriu. Sheeana referia-se à História Oral, é claro. Ela quase tinha dito: “Meu pai...”, referindo-se ao seu verdadeiro pai, que morrera no deserto. Odrade já tinha conseguido obter essa história da garota.

Ainda sussurrando perto do ouvido de Odrade, ela disse:

— Por que esse homenzinho vai conosco? Não gosto dele.

— Ele é necessário para a demonstração — explicou Odrade.

Waff aproveitou esse momento para sair da ponte, subindo no primeiro montículo de areia. Caminhava com cuidado, mas sem demonstrar qualquer hesitação visível. Uma vez na areia, virou-se, os olhos brilhando ao sol quente, e olhou primeiro para Sheeana e depois para Odrade.

“Ele ainda demonstra admiração quando olha para Sheeana”, pensou Odrade. “Que coisas formidáveis ele crê que vai descobrir aqui. Pensa que vai ser restaurado. E com que prestígio!”

Sheeana protegeu os olhos com uma das mãos e observou o deserto.

— Shaitan gosta do calor — explicou ela. — As pessoas se escondem dentro de suas casas quando está quente, mas é ai que Shaitan vem.

“Não Shai-hulud, mas Shaitan”, pensou Odrade. “Você previu muito bem, Tirano. Que mais saberia sobre nossa época?”

Será que o Tirano realmente se encontrava adormecido em todos os vermes seus descendentes?

Nenhuma das análises que Odrade estudara dava uma explicação segura do motivo que levara um ser humano a se transformar num simbionte do verme original de Arrakis. Que se teria passado em sua mente durante os milênios daquela terrível transformação? Será que até o menor fragmento disso estava preservado nos vermes Rakianos de hoje?

— Ele está perto, Madre — disse Sheeana. — Pode sentir o cheiro dele?

Waff olhou apreensivo para Sheeana.

Odrade inalou fundo: havia um rico acréscimo de canela nos odores de pedra pulverizada. Fogo, enxofre — o inferno envolto em cristal do grande verme. Ela parou e levou um pouquinho de areia, presa entre dois dedos, até a boca. Quando a areia lhe tocou a língua, todo o cenário surgiu em sua mente: o planeta Duna de suas Outras Memórias e o Rakis de hoje.

Sheeana apontou para a esquerda, diretamente para o ponto de onde parecia soprar a brisa suave do deserto.

— Está lá. Temos que correr.

Sem esperar pela permissão de Odrade, Sheeana desceu correndo a ponte, passou por Waff e subiu na primeira duna. Lá parou até que Waff e Odrade a alcançassem. Então elas os liderou, descendo a face oposta e subindo outra duna, enquanto a areia lhe dificultava os passos. Percorreram a grande face curva de uma barracan onde fios de poeira saltavam da crista acima. Lego tinham colocado quase um quilômetro de distância entre eles e a segurança cercada de água de Dar-es-Balat.

Novamente Sheeana parou.

Waff deteve-se atrás dela ofegante, a transpiração brilhando no ponto em que o capuz do traje destilador cruzava sua testa.

Odrade parou um passo atrás de Waff e inspirou fundo várias vezes enquanto olhava além do homenzinho, para o ponto onde a atenção de Sheeana se fixara.

Uma furiosa onda de areia derramara-se sobre o deserto além da duna onde se encontravam, impulsionada pela ventania de uma tempestade. O leito de rocha ficara exposto numa longa e estreita avenida de pedras gigantescas que pareciam viradas e esparramadas como os tijolos de construção de um Prometeu enlouquecido. E através desse labirinto a areia se derramara como um rio, deixando sua marca em grotas e fendas profundas e então caindo de uma escarpa baixa para formar mais dunas.

— Lá embaixo — apontou Sheeana, em direção à longa avenida formada pelo leito de rochas expostas.

O grupo desceu a duna, escorregando e pulando sobre a areia derramada. No fundo, Sheeana parou ao lado de uma das grandes pedras, uma pedra com duas vezes sua altura.

Waff e Odrade detiveram-se logo atrás.

A face escorregadia de outra gigantesca barracan, sinuosa como o dorso de uma baleia, erguia-se para o céu azul-prata ao lado deles.

Odrade aproveitou a pausa para recompor o equilíbrio da oxigenação em seu corpo. Aquela corrida louca exigira muito de sua carne. Waff, notava ela, tinha o rosto vermelho e respirava profundamente. O cheiro de canela e pó de pedra era sufocante nessa passagem estreita. Waff cheirava e esfregava o nariz com as costas da mão. Sheeana ergueu-se num dos pés, saltou e correu 10 passos pelo comprimento do leito de rochas. Colocou um dos pés no aclive de areia que subia para outra duna e ergueu ambos os braços para o céu. Lentamente a princípio, depois aumentando o ritmo, começou a dançar, subindo para a areia.

Os sons dos tópteros tornaram-se mais audíveis acima.

— Ouçam — gritou Sheeana sem interromper sua dança.

Não era para o ruído dos tópteros que ela chamava a atenção. Odrade virou a cabeça de modo a voltar ambas as orelhas para o novo som que se ouvia, penetrando no labirinto de rochas tombadas.

Um assovio sibilante, vindo de baixo do solo, abafado pela areia, tornava-se cada vez mais alto com uma rapidez chocante. Havia calor junto com esse ruído, um aquecimento sensível na brisa que soprava ao longo da avenida rochosa. Então o assovio cresceu, transformando-se num rugido tremendo. De repente a escuridão de uma boca gigantesca, envolta numa coroa de facas cristalinas, ergueu-se sobre a duna diretamente acima de Sheeana.

— Shaitan! — gritou ela sem quebrar o ritmo de sua dança. — Aqui estou, Shaitan!

Enquanto passava pelo topo da duna, o verme inclinou a boca para baixo na direção de Sheeana. A areia caiu em cascata em torno dos pés dela, forçando-a a interromper a dança. O cheiro de canela dominou a garganta rochosa. O verme parou acima deles.

— Mensageiro de Deus! — ofegou Waff.

O calor secou a transpiração no rosto descoberto de Odrade e fez o isolamento automático de seu traje destilador estufar perceptivelmente. Ela inalou profundamente, analisando os componentes dos odores subjacentes ao cheiro dominante de canela. O ar em torno deles estava cheio de ozônio e se tornava cada vez mais rico em oxigênio. Com os sentidos plenamente alertas, Odrade memorizou suas impressões.

“Se eu sobreviver”, pensou ela.

Sim, esses eram dados valiosos. Podia chegar o dia em que outras precisariam usá-los.

Sheeana recuou, saindo da areia derramada para o leito de rocha e começou a dançar uma vez mais, movendo-se mais loucamente e lançando a cabeça para o lado a cada volta. O cabelo chicoteava sua face e a cada vez que rodopiava para confrontar o verme ela gritava:

— Shaitan!

Timidamente, como uma criança aventurando-se num terreno que não lhe era familiar, o verme avançou uma vez mais. Escorregou sobre o topo da duna, curvando-se para baixo sobre o leito de rocha exposta até apresentar sua boca flamejante, ligeiramente acima e a cerca de dois passos de Sheeana.

Enquanto ele parava, Odrade tomava consciência da fornalha roncando em suas profundezas. Não podia tirar os olhos dos reflexos de chamas alaranjadas bruxuleando dentro da criatura. Era uma caverna de fogos misteriosos.

Sheeana parou de dançar. Comprimiu os punhos, os braços colados aos lados do corpo, e olhou para o monstro que invocara.

Odrade regulava cronometricamente a própria respiração, o que lhe permitia reunir todos os seus poderes de Reverenda Madre. Se esse era o fim... muito bem, ela tinha obedecido as ordens de Taraza. Que a Madre Superiora aprendesse o que pudesse dos observadores vigiando lá em cima.

— Olá, Shaitan — disse Sheeana. — Trouxe comigo uma Reverenda Madre e um homem dos Tleilaxu.

Waff caiu de joelhos e se curvou numa mesura respeitosa.

Odrade passou por ele para se colocar ao lado de Sheeana.

Sheeana respirava fundo, o rosto corado.

Odrade ouvia o clique-clique de seu traje destilador funcionando em sobrecarga. O ar quente e carregado de canela em torno delas estava cheio dos sons desse encontro, sons dominados pelo murmúrio das chamas dentro do verme imóvel.

Waff colocou-se ao lado de Odrade, o olhar fixo no verme como uma pessoa em transe.

— Estou aqui — sussurrou.

Odrade amaldiçoou-o silenciosamente. Qualquer ruído estranho poderia lançar a fera sobre eles. Mas ela sabia no que Waff estaria pensando: nenhum outro Tleilaxu estivera tão próximo de um descendente do seu Profeta. Nem mesmo os sacerdotes Rakianos tinham feito uma coisa dessas!

Com a mão direita, Sheeana fez um súbito gesto para baixo.

— Desça até nós, Shaitan!

O verme baixou sua boca escancarada até sua fogueira interior ocupar a garganta de rochas diante deles.

Com a voz reduzida a não mais que um sussurro, Sheeana disse:

— Está vendo como Shaitan me obedece, Madre?

Odrade podia sentir o controle de Sheeana sobre o monstro, uma pulsação de linguagem oculta entre a jovem e o verme. Era fantástico.

A voz de Sheeana ergueu-se numa arrogância imprudente:

— Vou pedir a Shaitan que nos deixe cavalgá-lo!

Ela subiu pela face escorregadia da duna ao lado do verme.

Imediatamente a grande boca aberta se ergueu para lhe acompanhar os movimentos.

— Fique aqui! — gritou Sheeana.

O verme parou.

“Não são as palavras dela que o controlam”, pensou Odrade. “E alguma coisa... outra coisa”

— Madre, venha comigo — chamou Sheeana.

Empurrando Waff à sua frente, Odrade obedeceu. Subiram pelo aclive arenoso, seguindo Sheeana. A areia deslocada derramava-se em torno do verme que esperava, enchendo a garganta rochosa. A frente, a cauda cada vez mais fina curvava-se sobre a crista da duna. Sheeana conduziu-os num passo desajeitado pela areia até a ponta da coisa. Lá agarrou a borda anterior de um anel na superfície corrugada e subiu na fera do deserto.

Com mais lentidão, Odrade e Waff seguiram-na. A superfície quente do verme transmitia a Odrade a sensação de algo não-orgânico, como se a criatura fosse um artefato Ixiano.

Sheeana correu adiante ao longo do dorso e se agachou logo atrás da boca, onde os anéis se projetavam, grossos e largos.

— Façam assim! — mostrou.

Inclinou-se para diante e agarrou embaixo do bordo dianteiro de anel, erguendo-o levemente para expor a superfície rosada e macia embaixo.

Waff obedeceu-a imediatamente, mas Odrade se moveu com mais cautela, armazenando impressões. A superfície do anel era dura como piascreto e coberta de minúsculas incrustações. Os dedos de Odrade sondaram a maciez embaixo da borda anterior. Ela pulsava fracamente. A superfície em torno deles se erguia e se abaixava num ritmo quase imperceptível. Odrade ouvia um som raspante a cada movimento.

Sheeana chutou a superfície do verme atrás dela.

— Shaitan, vamos!

O verme não respondeu.

— Por favor Shaitan — suplicou ela.

Odrade percebia o desespero na voz de Sheeana. Ela estava muito confiante no seu Shaitan, mas Odrade sabia que a jovem só conseguira cavalgar a criatura naquela primeira vez. Odrade conhecia a história toda, desde o impulso suicida até a confusão dos sacerdotes, mas ninguém pudera dizer-lhe o que aconteceria em seguida.

De repente o verme colocou-se em movimento. Ergueu-se bruscamente, curvou-se para a esquerda e fez uma volta apertada para fora da garganta de rochas, movendo-se na direção oposta a Dar-es-Balat, em direção ao deserto profundo.

— Nós vamos com Deus — gritou Waff.

O som de sua voz deixou Odrade chocada. Que loucura! Ela sentiu o poder da fé que ele tinha. O tuoc-tuoc dos ornitópteros que os seguiam soou acima. O vento provocado pela velocidade com que avançavam passava por Odrade cheio de ozônio e dos odores de forno quente provocados pelo atrito da besta avançando.

Odrade olhou por sobre os ombros para os tópteros, imaginando como seria fácil para os inimigos livrarem esse planeta de uma menina que criava tantos problemas, e de uma Reverenda Madre igualmente problemática, assim como do desprezível Tleilaxu que a acompanhava — todos num momento altamente vulnerável no deserto aberto. Os sacerdotes podiam tentar tal coisa, bem o sabia, desde que as vigias de Odrade, lá no alto, fossem muito lentas na hora de protegê-la.

A curiosidade e o medo seriam suficientes para detê-los?

Odrade admitia estar muito curiosa.

“Aonde será que esta coisa nos está levando?”

Certamente que o verme não se dirigia a Keen. Ela ergueu a cabeça e olhou além de Sheeana. No horizonte, diretamente adiante, encontravam-se aquelas formações de pedra denteada, as rochas desmoronadas do lugar onde o Tirano fora jogado de uma ponte graciosamente etérea.

O lugar da advertência de suas Outras Memórias.

Uma súbita revelação dominou a mente de Odrade. Agora entendia o aviso. O Tirano havia morrido num lugar de sua própria escolha. Muitas mortes tinham deixado sua impressão naquele lugar, mas a do Tirano fora a maior de todas. O Tirano escolhera sua rota de peregrinação com um propósito definido. Sheeana não mandara o verme seguir para lá. Ele se movia por vontade própria. O imã representado pelo sonho interminável do Tirano atraía-o de volta ao ponto onde esse sonho começara.

 

Houve um homem das terras secas a quem perguntaram o que era mais importante, um garrafão de água ou uma vasta piscina cheia. O homem pensou por um momento e respondeu: “O garrafão é mais importante. Nenhuma pessoa poderia guardar só para si uma piscina. Mas um litro se pode esconder embaixo do manto e fugir com ele. Ninguém vai saber.”

 

— Piadas da Antiga Duna, Arquivos da Bene Gesserit

 

Era uma longa sessão de exercícios, na sala de treinamento do não-globo, com Duncan em uma gaiola móvel dirigindo o exercício, convicto de que essa série em particular continuaria até que seu novo corpo estivesse adaptado às sete atitudes centrais de respostas em combate contra ataques vindos de oito direções diferentes. Seu macacão verde estava escuro com a transpiração. Há 20 dias que ele se dedicava a essa lição!

Teg conhecia as antigas tradições que Duncan revivia ali, mas sob diferentes nomes e seqüências. Depois de passar cinco dias nesse programa de treinamento, Teg já duvidava da superioridade dos métodos modernos. Agora estava convicto de que Duncan estava fazendo algo completamente novo — misturando os antigos conhecimentos de combate com aquilo que tinha visto no Castelo.

Teg estava sentado diante de seu próprio consolo, agindo tanto como observador quanto como participante. Os consoles que dirigiam as perigosas forças das sombras desses exercícios tinham exigido um ajustamento mental. Teg contudo, já se sentia familiarizado com eles, e comandava os ataques com facilidade e freqüente inspiração.

Uma Lucilla furiosa olhava ocasionalmente para dentro do salão. Observava e depois saía sem fazer comentários. Teg não sabia o que Duncan estava fazendo com relação à Impressora, mas achava que o ghola desperto fazia um jogo de retardo com sua sedutora. Ela não iria permitir que ele continuasse com isso por muito tempo, Teg sabia muito bem, mas estava tudo fora de suas mãos. Duncan não mais era “muito jovem” para a Impressora. Aquele corpo jovem carregava agora uma mente masculina madura, cheia de experiências a partir das quais tomaria suas próprias decisões.

Duncan e Teg tinham passado a manhã toda na sala de treinamento, tendo feito apenas uma pausa. A fome já incomodava Teg, mas ele se sentia relutante em interromper a sessão. As habilidades de Duncan haviam atingido um novo nível hoje e ele continuava melhorando.

Teg, sentado dentro de uma gaiola de controle fixa, fez as forças de ataque curvarem-se numa manobra complexa, golpeando da esquerda, da direita e do alto.

O arsenal Harkonnen produzira uma abundância dessas armas e instrumentos de treinamento exóticos, e havia coisas que Teg só conhecera a partir de relatos históricos. Duncan conhecia todos, aparentemente, e com uma intimidade que enchia Teg de admiração. Isso incluía os caçadores-assassinos, estilhas robotizadas, reguladas para penetrarem num escudo de força e que eram parte das forças ocultas no sistema que agora empregavam.

— Elas retardam-se automaticamente para penetrar num escudo — explicou Duncan em sua voz jovem e ao mesmo tempo madura. — Um golpe muito rápido seria repelido pelo escudo, é claro.

— Escudos desse tipo quase não são mais usados — comentou Teg.

— Algumas sociedades os usam como um tipo de esporte, mas de outro modo.

Duncan executou um contra-ataque a uma velocidade que o transformou num borrão, e três “caçadores” caíram no chão, suficientemente danificados para exigir os serviços de manutenção do não-globo. Ele removeu a gaiola protetora e colocou o sistema dormente, porém o deixou funcionando enquanto se aproximava de Teg, respirando fundo mas com facilidade. Olhou para além de Teg, sorriu e assentiu com a cabeça. Teg virou-se rapidamente, mas só conseguiu enxergar um fragmento do vestido de Lucilla enquanto ela saía depressa.

— É como um duelo — disse Duncan. — Ela tenta golpear através da minha guarda e eu contra-ataco.

— Tenha cuidado — advertiu Teg. — Ela é uma Reverenda Madre plena.

— Conheci algumas delas no meu tempo, Bashar.

Uma vez mais Teg se sentiu embaraçado. Tinha sido avisado de que precisaria reajustar sua atitude com relação a esse Duncan Idaho diferente, mas não antevira inteiramente as constantes exigências que tal reajustamento faria sobre sua mente. A expressão nos olhos de Duncan agora era desconcertante.

— Nossos papéis mudaram um pouco, Bashar — disse Duncan.

Pegou uma toalha no chão e enxugou o rosto.

— Não tenho mais certeza quanto ao que lhe posso ensinar — admitiu Teg.

Desejava, entretanto, que Duncan seguisse seu aviso com relação a Lucilla. Será que ele pensava que as Reverendas Madres de sua época distante eram idênticas às mulheres de hoje? Teg achava tal coisa altamente improvável. Como todas as coisas vivas, a Irmandade evoluirá e mudara.

Era óbvio para Teg que Duncan tomara uma decisão quanto ao papel que desempenharia nas maquinações de Taraza. Não estava apenas ganhando tempo com esses exercícios. Estava treinando o corpo para atingir o ápice da plenitude física que ele mesmo escolhera enquanto fazia seu julgamento sobre a Irmandade.

“Ele fez esse julgamento com dados insuficientes”, pensou Teg. Duncan deixou cair a toalha e olhou para ele por um momento.

— Deixe que eu julgo o que me pode ensinar, Bashar.

Ele virou-se e olhou atento para Teg, ainda dentro da gaiola de controle.

Teg respirou fundo. Sentia o cheiro fraco de ozônio de todo esse equipamento Harkonnen tão duradouro tiquetaqueando à espera de que Duncan retornasse à ação. O suor do ghola tinha um cheiro penetrante.

Duncan espirrou.

— Teg cheirou, reconhecendo a poeira onipresente em suas atividades. As vezes era mais fácil sentir-lhe o gosto que o cheiro. Uma coisa alcalina. E acima de tudo havia a fragrância dos limpadores de ar e regeneradores de oxigênio. Um distinto aroma floral aparecia embutido no sistema, mas Teg era incapaz de identificar a flor. No primeiro mês de sua ocupação, o globo também adquirira odores humanos que lentamente se insinuaram na composição original — transpiração, cheiros de cozinha e a acridez nunca inteiramente suprimida do sistema de eliminação de dejetos orgânicos. Para Teg, esses sinais de sua presença eram curiosamente ofensivos. As vezes se surpreendia cheirando e ouvindo os sons de sua intrusão — algo mais que o eco de seus próprios passos ou os ruídos metálicos abafados na área da cozinha.

A voz de Duncan penetrou em seus pensamentos:

— Você é um homem estranho, Bashar.

— Que quer dizer?

— Há a sua semelhança com o Duque Leto. A identidade facial é estranha. Ele não era tão alto quanto você, um pouco mais baixo, mas a semelhança...

Sacudiu a cabeça, pensando nas maquinações da Bene Gesserit por trás daqueles sinais genéticos no rosto de Teg — o olhar aquilino, as rugas e aquela coisa interior a certeza de uma superioridade moral.

“Quão moral e quão superior?”

De acordo com os registros que tinha visto no Castelo (e Duncan tinha certeza de que eles tinham sido colocados lá para que ele os descobrisse), a reputação de Teg era algo quase universalmente aceito pela sociedade humana dessa época. Durante a Batalha de Markon, bastara o inimigo tomar conhecimento de que Teg iria enfrentá-lo para pedir trégua e negociações. Seria verdade?

Duncan olhou para Teg na gaiola de controle e lhe fez essa pergunta.

— A reputação pode ser uma linda arma — comentou Teg. — Freqüentemente derrama menos sangue.

— Por que se colocou à frente de suas tropas em Arbelough? — perguntou Duncan.

Teg mostrou-se surpreso.

— Onde aprendeu isso?

— No Castelo. Você podia ter sido morto. De que teria adiantado?

Teg lembrou a si mesmo que essa carne jovem diante dele guardava uma sabedoria oculta que devia tê-la guiado em sua busca de informação. Mas restava uma área incógnita, e nela, suspeitava Teg, Duncan seria mais valioso para a Irmandade.

— Nos dois dias anteriores, tínhamos sofrido severas baixas em Arbelough — lembrou Teg. — Eu falhei na hora de fazer um julgamento correto do medo e do fanatismo do inimigo.

— Mas o risco de...

— Minha presença no front dizia à minha própria gente: “Eu partilho seus riscos.”

— Os registros de Arbelough dizem que essa batalha foi pervertida pelos Dançarinos Faciais. Patrin disse-me que você recusou o conselho de seus assessores quando eles pediram para que varresse o planeta e o esterilizasse completamente...

— Você não estava lá Duncan.

— Estou tentando colocar-me na situação. Poupou seu inimigo, contrariando todos os conselhos que recebeu.

— Exceto os Dançarinos Faciais.

— Mas então caminhou desarmado pelas fileiras dos inimigos e antes que eles tivessem deposto as armas.

— Queria certificar-me de que não seriam maltratados.

— Isso foi muito perigoso.

— Foi mesmo? Muitos deles passaram-se para o nosso lado durante o assalto final contra Kroinin, onde desbaratamos as forças contrárias à Irmandade.

Duncan olhou duramente para Teg. Não apenas esse velho Bashar se assemelhava a Leto em aparência mas também possuía o mesmo carisma dos Atreides: uma figura lendária até mesmo entre os inimigos. Teg dissera ser descendente de Ghanima Atreides, mas tinha que existir algo mais nele além disso. O domínio genético da Bene Gesserit em questões de controle da procriação deixava-o assombrado.

— Vamos retornar aos exercícios agora — disse Duncan.

— Não vá se machucar.

— Está se esquecendo, Bashar. Eu me lembro de ter um corpo tão jovem quanto este quando estava aqui em Giedi Prime.

— Gammu!

— Foi adequadamente rebatizado, mas meu corpo ainda se lembra do nome original. Sabe muito bem que foi por isso que elas me mandaram para cá.

“É claro que ele tinha que saber isso”, pensou Teg.

Restaurado pelo breve descanso, Teg introduziu um novo elemento no ataque e enviou uma linha flamejante contra o lado esquerdo de Duncan.

Com que facilidade ele se defendeu do ataque!

Estava usando uma variação curiosamente misturada das cinco atitudes, cada resposta parecendo ter sido inventada no momento em que era exigida.

— Cada ataque é como uma pena flutuando sobre uma estrada infinita — explicou Duncan, a voz não transmitindo qualquer sinal de cansaço. — Enquanto a pena se aproxima, ela é desviada e removida.

Enquanto falava ele aparou um ataque móvel e contra-atacou.

A lógica Mentat de Teg seguia os movimentos nos pontos que ele considerava perigosos. “Dependências e troncos-chave!”

Duncan mudou de posição diante do ataque, colocando-se sempre um movimento adiante e igualando os movimentos do atacante, mais do que os respondendo. Teg foi forçado a empregar o máximo de suas habilidades enquanto as forças das sombras queimavam e tremulavam ao longo do piso na sala de treinamento. A figura de Duncan, em sua gaiola de combate móvel, era uma sombra dançante no espaço entre eles. Nenhuma das linhas flamejantes ou caçadores-assassinos de Teg tocou a figura em movimento. Duncan estava acima deles, sob eles, parecendo não ter medo algum da dor real que esse equipamento poderia infligir-lhe.

Uma vez mais Duncan aumentou a velocidade de seu ataque,

Uma pontada de dor disparou pelo braço de Teg, partindo de sua mão colocada nos controles até atingir o ombro.

Com uma exclamação brusca, Duncan desligou o equipamento.

— Desculpe, Bashar. Foi uma defesa soberba de sua parte, mas temo que a idade o tenha derrotado.

Uma vez mais Duncan atravessou a sala e se colocou diante de Teg.

— Um dorzinha para me lembrar da dor que lhe causei — comentou Teg enquanto esfregava o braço dormente.

— Culpe o calor do momento — disse Duncan. — Já treinamos o suficiente por ora.

— Não o suficiente — lembrou Teg. — Não basta reforçar apenas os seus músculos.

Ante as palavras de Teg, Duncan teve uma sensação de alerta em todo o corpo. Sentia o toque desorganizado daquela coisa incompleta que o processo de despertar não conseguira ativar. Algo agachado à espera dentro dele. Era como uma mola pressionada, pronta para disparar.

— Que mais você faria em meu lugar? — perguntou Duncan, a voz soando ríspida.

— Sua sobrevivência repousa no equilíbrio aqui — explicou Teg. — Tudo isto que estamos fazendo visa salvá-lo e transportá-lo para Rakis.

— Para propósitos da Bene Gesserit que você mesmo diz não saber quais são.

— Realmente não sei, Duncan.

— Mas você é um Mentat.

— Mentats precisam de dados para fazer suas projeções.

— Acha que Lucilla sabe?

— Não tenho certeza, mas me deixe adverti-lo com respeito a ela. Recebeu ordens de levá-lo a Rakis preparado para o que deverá fazer lá.

— Deverei? — Duncan sacudiu a cabeça de um lado para o outro. — Será que não sou uma pessoa com direito e tomar suas próprias decisões? Que é que vocês pensam que despertaram aqui? Algum maldito Dançarino Facial capaz unicamente de obedecer ordens?

— Está me dizendo que não irá para Rakis?

— Estou lhe dizendo que vou fazer uma escolha quando souber o que é que esperam que eu faça. Não sou um assassino de aluguel.

— E você pensa que eu sou, Duncan?

— Acho que é um homem honrado, uma pessoa que devemos admirar. Dê-me o seu crédito porque tenho meus próprios valores de dever e de honra.

— Recebeu outra chance de viver e...

— Mas você não é meu pai e isso também não faz de Lucilla a minha mãe. Impressora? Contra o que ela espera preparar-me?

— Pode ser que nem ela saiba, Duncan. Como eu, ela pode ser apenas uma peça de um grande plano. Sabendo como age a Irmandade, é altamente provável que ela não saiba.

— De modo que vocês dois me treinam e me despacham para Arrakis. Aqui está o pacote que ordenaram!

— Este é um universo bem diferente daquele onde você nasceu originalmente — explicou Teg. — Como nos seus dias, ainda temos uma Grande Convenção contra o uso de atômicos e de pseudo-atômicos produzidos pela interação de armas e escudos laser. Ainda dizemos que os ataques traiçoeiros são proibidos. Existem folhas de papel espalhadas por aí onde colocamos nossos nomes e garantimos que...

— Mas as não-naves mudaram todas as bases desses tratados — disse Duncan. — Acho que aprendi muito bem minhas lições de história lá no Castelo. Diga-me, Bashar, por que o filho de Paul fez com que os Tleilaxu lhe fornecessem gholas com minha identidade, centenas de cópias de mim durante todos aqueles milhares de anos?

— O filho de Paul?

— Os registros do Castelo chamavam-no de Imperador-Deus. Você o chama de Tirano.

— Oh, não creio que alguém saiba por quê. Talvez ele fosse solitário, precisando de alguém da...

— Vocês me trouxeram à vida para confrontar o verme!

“Será isso o que estivemos fazendo?”, perguntou-se Teg. Ele tinha considerado essa possibilidade mais de uma vez, mas era apenas uma possibilidade, não uma projeção. Ainda assim devia haver algo mais nos desígnios de Taraza. Teg sentia isso em cada fibra de seu treinamento Mentat. Será que Lucilla saberia? Teg não se iludia quanto à sua capacidade de extrair revelações de uma Reverenda Madre plena. Não... teria que dar tempo ao tempo, esperar, observando e ouvindo. Ao seu próprio modo, fora isso que Duncan decidira fazer. Era um curso de ação perigoso, caso ele se colocasse no caminho de Lucilla!

Teg sacudiu a cabeça.

— Na verdade, Duncan, eu não sei.

— Mas cumpriu ordens.

— Pelo meu juramento à Irmandade.

— Mentiras, desonestidades, essas são palavras vazias quando está em jogo a sobrevivência da Irmandade — citou Duncan.

— Sim, eu disse isso — concordou Teg.

— Agora confio em você porque disse isso. Mas não confio em Lucilla.

Teg abaixou a cabeça. “Perigoso... perigoso...”

De modo muito mais lento do que tinha feito anterioremente, Teg tirou a atenção de tais pensamentos e se submeteu ao processo de esvaziamento mental para se concentrar nos deveres que Taraza lhe confiara.

— Você é o meu Bashar.

Duncan observou o Bashar por um momento. As linhas da fadiga eram óbvias no rosto do velho. lembrou-se subitamente da idade de Teg e se perguntou se homens como ele não se sentiriam tentados a procurar os Tleilaxu e se tornarem gholas. Provavelmente não. Sabiam que poderiam virar fantoches nas mãos dos Tleilaxu.

Esse pensamento inundou a consciência de Duncan, deixando-o tão imóvel que Teg, percebendo, ergueu os olhos imediatamente.

— Algo errado?

— Os Tleilaxu fizeram alguma coisa comigo, algo que ainda não foi exposto — sussurrou Duncan.

— Exatamente o que temíamos! — Era a voz de Lucilla falando do portal atrás de Teg. Ela entrou, avançando até ficar a dois passos de Duncan. — Estava ouvindo. Vocês dois foram muito informativos.

Teg falou rapidamente, procurando bloquear a raiva que sentia nela.

— Ele dominou as sete atitudes hoje.

— Ele golpeia como o fogo — comentou Lucilla. — Mas lembre-se que nós da Irmandade fluímos como a água e preenchemos todos os espaços. — Olhou para Teg. — Não percebe que nosso ghola já foi além dessas atitudes?

— Nenhuma posição fixa, nenhuma atitude — disse Duncan.

Teg olhou de modo penetrante para Duncan, que permanecia com a cabeça erguida, a testa lisa de vincos, os olhos claros, enquanto devolvia o olhar de Teg. Duncan tinha evoluído surpreendentemente desde que despertara para suas memórias originais.

— Maldito seja, Miles — murmurou Lucilla.

Teg manteve sua atenção em Duncan. Todo o corpo do jovem parecia ligado a um novo tipo de vigor. Ele tinha uma pose, uma atitude que não estavam ali antes.

Duncan voltou sua atenção para Lucilla.

— Acha que vai fracassar em seus deveres? — perguntou.

— Certamente que não — respondeu ela. — Você ainda é um homem.

E ela pensou: “Sim, esse corpo jovem deve estar tenso com os fluidos da procriação. De fato, os disparadores hormonais devem estar todos intactos e suscetíveis de serem excitados.” A atitude atual dele, entretanto, e o modo como olhava para ela forçaram-na a elevar sua consciência para novos níveis que demandavam mais energia.

— Que foi que os Tleilaxu fizeram com você? — indagou ela.

Duncan falou com um atrevimento que não sentia:

— Oh grande Impressora, se soubesse lhe diria.

— Você acha que tudo isto é uma grande brincadeira, não?

— Nem sei de que estamos brincando!

— Por enquanto, muitas pessoas sabem que ainda não chegamos a Rakis, para onde esperavam que fugíssemos — comentou ela.

— E Gammu enxameia de gente retornada da Dispersão — comentou Teg. — Eles contam com gente suficiente para explorar muitas possibilidades por aqui.

— Quem suspeitaria da existência de um não-globo do tempo dos Harkonnen? — perguntou Duncan.

— Qualquer um que fizesse a ligação entre Rakis e Dar-es-Balat. — respondeu Teg.

— Se pensa nisso como num jogo — disse Lucilla —, considere então a urgência com que precisamos jogar. — Apoiando-se em um dos pés, virou-se para se concentrar em Teg. — E você desobedeceu Taraza!

— Está errada! Fiz apenas aquilo que ela me ordenou que fizesse. Sou o Bashar dela e você esqueceu como ela me conhece bem.

De um modo tão abrupto que a silenciou, chocada, Lucilla percebeu as sutilezas das manobras de Taraza..

“Não passamos de peões...”

Que toque delicado Taraza sempre demonstrava no modo como movia os peões de seu grande jogo. Lucilla não se sentia diminuída pela conscientização de que não passava de um peão. Esse era um conhecimento que nascia e era criado com cada Reverenda Madre da Irmandade. Até mesmo Teg tinha consciência disso. “Não, diminuída não.” Essa coisa em que estavam envolvidos ganhara a consciência de Lucilla. Ela se sentia assombrada pelas palavras de Teg. Como fora pobre sua visão anterior das forças envolvidas. Era como se ela tivesse visualizado apenas a superfície de um rio turbulento, vislumbrando apenas as correntezas abaixo. Agora, entretanto, sentia o fluxo inteiro à sua volta numa compreensão atordoante.

“Peões podem ser sacrificados”

 

Pela crença em singularidades, em absolutos granulados, vocês negam o movimento da evolução! E enquanto fazem com que um universo granular persista em sua consciência, ficam cegos ante o movimento. Então as coisas mudam e seu universo de absolutos desaparece, não é mais acessível às suas percepções autolimitadas. O universo colocou-se além do alcance de vocês.

 

— Primeiro Esboço do Manifesto Atreides, Arquivos da Bene Gesserit

 

Taraza colocou as mãos sobre as têmporas, as palmas pressionando as orelhas, e apertou. Mesmo os seus dedos podiam sentir o cansaço ali, bem entre suas mãos — a fadiga. Num breve tremular de pálpebras, mergulhou num transe relaxante. As mãos de encontro à cabeça eram os únicos focos de sua percepção carnal.

“Cem batimentos cardíacos.”

Tinha praticado isso com regularidade desde que o aprendera, ainda criança. Uma das primeiras habilidades que a Bene Gesserit ensinava. Exatamente 100 batimentos cardíacos. Depois de todos esses anos de prática, seu corpo podia medi-los automaticamente, como um metrônomo inconsciente.

E quando ela abriu os olhos na contagem de 100 batimentos, sentia-se muito melhor. Esperava poder trabalhar mais duas horas extras antes que o cansaço a dominasse uma vez mais. Aqueles 100 batimentos lhe haviam fornecido anos extras de vigília em seu tempo de vida.

Essa noite, entretanto, o velho truque fez suas memórias rodopiarem para trás no tempo. Viu-se apanhada nas lembranças de sua infância. O dormitório com a Irmã Monitora andando pelos corredores à noite, certificando-se de que todas estavam devidamente em suas camas.

“Irmã Baram, a Monitora da Noite”

Há anos que Taraza não lembrava desse nome. A Irmã Baram era baixinha e gorducha, uma Reverenda Madre fracassada. Não por algum motivo facilmente perceptível, mas as Irmãs Médicas e os doutores Suk tinham descoberto alguma coisa e Baram nunca pudera tentar a agonia da especiaria. Ela fora muito franca no que sabia sobre seu defeito. Algo que descobriram quando ainda era adolescente. Tremores nervosos periódicos manifestavam-se quando começava a mergulhar no sono. Sintomas de alguma coisa mais grave que fizera com que fosse esterilizada. Os tremores faziam com que Baram andasse durante a noite e, por esse motivo, a guarda dos corredores fora uma tarefa que obviamente lhe deveria ter sido atribuída.

Baram tinha outras fraquezas não-detectadas por suas superiores. Uma criança desperta, andando até o banheiro, podia atrair Baram para conversas em voz baixa. Questões tolas produziam respostas tolas, mas Baram às vezes transmitia conhecimentos úteis nessas conversas. Fora ela que ensinara a Taraza o truque do relaxamento,

Certa manhã, uma das meninas mais velhas encontrou a Irmã Baram morta no banheiro. Os tremores da Monitora Noturna tinham sido o sintoma de um defeito orgânico fatal, fato importante apenas para as Madres Procriadoras e seus intermináveis registros.

Devido ao fato de a Bene Gesserit não programar uma completa “educação solo para a morte” senão no estágio de acólita, a Irmã Baram foi a primeira pessoa que Taraza viu morta. O corpo dela fora encontrado parcialmente embaixo da pia, o lado direito da face pressionado contra o piso de azulejos, a mão esquerda segurando o cano da pia. Ela havia tentado erguer-se depois da queda e a morte a surpreendera em meio à tentativa, paralisando-a em seu último movimento como um inseto aprisionado no âmbar.

Quando rolaram o corpo para levá-lo, Taraza viu uma marca vermelha no ponto onde a face fora pressionada de encontro aos azulejos. A Monitora do Dia explicou essa marca com uma frieza científica. Qualquer experiência nova devia ser transformada em fonte de informação para que essas Reverendas Madres em potencial as incorporassem em suas “Conversas com a Morte” na fase de acólita.

Lividez post mortem.

Sentada diante de sua mesa na sede da Irmandade e separada desse acontecimento por tantos anos, Taraza foi forçada a usar todos os seus poderes de concentração, cuidadosamente focalizados, para afastar essa memória. Só então se sentiu livre para concentrar a atenção no trabalho que tinha diante de si. Tantas lições! Sua memória estava terrivelmente cheia, com tantas memórias de vidas inteiras guardadas dentro dela. Reafirmava sua sensação de estar viva ver todo aquele trabalho à sua frente. Coisas para fazer, coisas para as quais ela era necessária. Avidamente, Taraza curvou-se para cumprir seus deveres.

Maldita necessidade de treinar o ghola em Gammu!

Mas esse ghola exigia isso. A familiaridade com a sujeira sob seus pés precedia a restauração da persona original.

Fora um movimento muito sábio enviar Burzmali para a arena de Gammu. Se Miles realmente encontrara um esconderijo... e fosse sair dele agora, ia precisar de toda a ajuda que pudesse conseguir. Uma vez mais ela considerou a possibilidade de fazer o jogo da presciência. Era tão perigoso! E os Tleilaxu tinham sido avisados de que um ghola substituto poderia ser necessário.

— Preparem-no para entrega.

Sua mente voltou-se para a questão Rakiana. Aquele tolo do Tuek teria que ter sido monitorado de modo mais cuidadoso. Como um Dançarino Facial poderia personificá-lo em segurança? Entretanto, a decisão de momento tomada por Odrade fora correta. Colocara os Tleilaxu numa posição insustentável. O falso Tuek podia ser desmascarado, mergulhando a Bene Tleilax num poço de ódio.

O jogo dentro do projeto Bene Gesserit tornara-se muito delicado. Há gerações que elas acenavam para o clero Rakiano com a isca de uma aliança. Mas agora! Os Tleilaxu deveriam pensar que eles tinham sido os escolhidos em vez dos sacerdotes. O tripé da aliança de Odrade faria cada sacerdote acreditar que todas as Reverendas Madres iam realizar o Juramento de Subserviência ao Deus Dividido. O Conselho de Sacerdotes iria tagarelar de excitação ante essa perspectiva. Os Tleilaxu, é claro, viam uma chance de monopolizar a melange, controlando a única fonte ainda independente de seu domínio.

Uma batida na porta de Taraza revelou que uma acólita chegara com o chá. Era um procedimento-padrão quando uma Madre Superiora se encontrava trabalhando tão tarde. Taraza olhou para o cronógrafo de mesa, um engenho Ixiano tão preciso que só ganhava ou perdia um segundo por século. O aparelho registrava: 1:23:11.

Mandou entrar a acólita. A garota, uma loura pálida com olhos friamente observadores, entrou e se curvou para dispor os conteúdos da bandeja diante de Taraza.

A Madre Superiora ignorou a jovem e olhou para o trabalho que permanecia na mesa. Tanta coisa a fazer. O trabalho era mais importante que o sono. Não obstante, sua cabeça doía e ela sentia a sensação de estupor indicativa de um cérebro cansado. Sinal de que era hora de descansar um pouco. Colocara-se numa condição de esgotamento mental e teria que se recuperar antes mesmo de pensar em se levantar. As costas e os ombros doíam-lhe.

A acólita ia saindo quando Taraza fez sinal para que esperasse.

— Massageie minhas costas por favor, Irmã.

As mãos treinadas de acólita aliviaram as constrições musculares. “Boa moça.” Taraza sorriu ante esse pensamento. É claro que era boa. Somente as melhores trabalhavam junto da Madre Superiora.

Depois que a jovem saiu, Taraza sentou-se em silêncio, a cabeça mergulhada em pensamentos profundos. “Tão pouco tempo.” Odiava cada minuto de sono e no entanto não havia como escapar. O corpo acabava fazendo suas exigências inevitáveis. Ela tinha pressionado seu organismo a um ponto em que a recuperação não ia ser fácil, e isso já se prolongava por dias. Ignorando o chá colocado ao seu lado, Taraza levantou-se e foi até a passagem que levava ao pequeno cubículo onde dormia. Lá deixou um aviso para ser acordada às 11h da manhã e se deitou, completamente vestida, no catre duro.

Silenciosamente, regulou a respiração, isolando os sentidos de qualquer distração, e se preparou para dormir.

O sono não veio.

Usou todo o repertório de métodos da Bene Gesserit e ainda assim o sono não veio.

Taraza continuou deitada por longo tempo, reconhecendo afinal a futilidade de tentar adormecer com uma das técnicas que conhecia. Primeiro o estado intermediário de pré-sono teria que fazer o seu trabalho de recuperação. Enquanto isso, sua mente continuava a se agitar.

Nunca considerara o clero Rakiano como um problema. Já dominados pela religião, os sacerdotes poderiam ser manipulados facilmente através dela. Eles encaravam a Bene Gesserit principalmente como um poder capaz de reforçar o seu dogma. Que continuassem pensando assim. Era uma isca que os deixaria cegos.

Maldito Miles Teg! Três meses de silêncio e nenhum relatório favorável da parte de Burzmali. Solo queimado, sinais de decolagem de uma não-nave. Para onde Teg poderia ter ido? O ghola podia estar morto. Teg nunca tinha feito uma coisa assim antes. A velha Confiabilidade. Era por isso que o escolhera. Isso e sua habilidade como militar, sua semelhança com o velho Duque Leto — todas as coisas que tinham preparado nele.

Teg e Lucilla. Uma equipe perfeita.

Se não estivesse morto, será que o ghola não estaria fora de alcance? Os Tleilaxu não o teriam capturado? Ou Atacantes da Dispersão? Multas coisas podiam ter acontecido. A velha Confiabilidade. Silêncio. Seria o silêncio uma mensagem? Se fosse, que será que ele estaria tentando dizer?

Com Patrin e Schwangyu mortos, havia um cheiro de conspiração em torno dos acontecimentos em Gammu. Será que Teg não poderia ser um agente plantado há muito tempo pelos inimigos da Irmandade?

Impossível! Sua própria família era uma prova contra todas as dúvidas. A filha de Teg, no lar da família, estava tão intrigada quanto todo o mundo.

Fazia três meses agora e nem uma palavra.

Cautela. Ela avisara Teg para ter a maior cautela ao proteger o ghola. Teg vira um grande perigo em Gammu é os últimos relatórios de Schwangyu tornavam isso claro.

Para onde Teg e Lucilla poderiam ter levado o ghola?

Onde teriam adquirido uma não-nave? Conspiração?

A mente de Taraza continuava circulando em torno dessas suspeitas profundas. Seria trabalho de Odrade? Então quem conspirava com Odrade? Lucilla? Odrade e Lucilla nunca se tinham encontrado antes daquela breve ocasião em Gammu. Ou teriam? Quem se curvara junto de Odrade e respirara com ela um ar mútuo, cheio de sussurros? Odrade não demonstrara sinal disso, mas que prova isso dava? A lealdade de Lucilla nunca fora questionada. Ambas agiam perfeitamente como lhes era ordenado. Mas assim também agiriam conspiradoras.

Fatos! Taraza tinha fome de fatos. A cama fez barulho debaixo dela e seu sentimento de isolamento desabou, destruído igualmente pelas preocupações e pelo som de seus próprios movimentos. Resignadamente, Taraza recompôs-se uma vez mais para o relaxamento.

Relaxamento e então sono.

Naves da Dispersão esvoaçaram em sua imaginação enevoada pela fadiga. Perdidos retornando em suas incontáveis não-naves. Teria sido assim que Teg encontrara uma nave? Essa possibilidade estava sendo estudada, tão discretamente quanto possível, em Gammu e outros lugares. Tentou contar as naves imaginárias, mas elas se recusavam a seguir do modo ordeiro necessário para induzir ao sono. Taraza ficou subitamente alerta sem se mover em seu catre.

O lado mais profundo de sua mente estava tentando revelar-lhe alguma coisa. A fadiga bloqueara o caminho para essa comunicação, mas agora! Sentou-se totalmente desperta.

Os Tleilaxu tinham andado negociando com gente que voltava da Dispersão. Com as prostitutas Honradas Madres e com Bene Tleilax que voltavam. Taraza sentiu uma ligação em todos esses acontecimentos. Os Perdidos não voltavam por simples curiosidade quanto a suas raízes. O desejo gregário de reunificar toda a humanidade não era suficiente para trazê-los todos de volta. As Honradas Madres vinham claramente com sonhos de conquista.

Mas e se os Tleilaxu enviados para a Dispersão não tivessem levado consigo o segredo dos tanques axlotl? Que restaria então? Melange? As prostitutas de olhos alaranjados obviamente usavam um substitutivo inadequado. O povo da Dispersão podia não ter resolvido o mistério dos tanques axlotl. Eles deviam saber a respeito dos tanques axlotl e tentariam recriá-los. Mas se falhassem — melange!

Ela começou a explorar sua projeção.

Os Perdidos tinham esgotado os estoques de autêntica melange que seus ancestrais haviam levado para a Dispersão. Que recursos teriam? Os vermes de Rakis e a Bene Tleilax original. As prostitutas não se atreveriam a revelar seus verdadeiros interesses. Seus ancestrais acreditavam que os vermes não podiam ser transplantados. Seria possível que os Perdidos tivessem encontrado um planeta adequado para os vermes? É claro que isso era possível. Elas poderiam estar negociando com os Tleilaxu para despistar. Rakis podia ser seu verdadeiro alvo. Ou o inverso podia ser verdade.

“Riqueza transportável.”

Vira os relatórios de Teg sobre a riqueza que se estava acumulando em Gammu. Alguns dos retornados tinham moedas e outras fichas negociáveis. Isso ficava claro pela atividade bancária.

Que outra grande moeda estaria em jogo, contudo, além da especiaria?

Havia muita riqueza, isso era claro, e fosse qual fosse a moeda os negócios já tinham começado.

Taraza tomou consciência de vozes atrás da porta. A acólita Guarda do Sono estava discutindo com alguém. As vozes eram baixas, mas Taraza ouvira o bastante para se colocar inteiramente alerta.

— Ela pediu para ser acordada bem tarde durante a manhã — protestava a Guarda do Sono.

Alguém mais sussurrou:

— Ela disse que devia ser informada no momento em que eu voltasse.

— Eu lhe digo. que ela está muito cansada. Precisa...

— Precisa ser obedecida! Diga-lhe que eu voltei!

Taraza levantou-se e colocou as pernas sobre a borda do catre. Seus pés sentiram o piso. Deuses! Como seus joelhos doíam. Doía-lhe também o fato de não ter conseguido identificar a pessoa que discutia com a guarda.

“A volta de quem eu... Burzmali!”

— Estou acordada — gritou Taraza.

A porta se abriu e a Guarda do Sono entrou.

— Madre Superiora, Burzmali voltou de Gammu.

— Mande-o entrar imediatamente!

Taraza ativou o único globo luminoso na cabeceira de sua cama. Sua luz amarelada inundou o aposento, varrendo a escuridão.

Burzmali entrou e fechou a porta atrás de si. Sem que ela mandasse, acionou o botão de isolamento sonoro na porta e os ruídos exteriores desapareceram.

“Privacidade?” Então ele trazia más notícias.

Olhou para Burzmali. Era baixo, magro, com um rosto muito triangular estreitando-se para um queixo fino. O cabelo louro caía sobre a testa larga, os olhos verdes bem espaçados estavam alertas e vigilantes. Parecia muito jovem para as responsabilidades do posto de Bashar, mas, afinal, Teg parecera ainda mais jovem em Arbelough. “Estamos ficando velhas, maldição!” Forçou-se a relaxar e confiar no fato de Teg ter treinado esse homem e expressado plena confiança nele.

— Dê-me as más notícias.

Burzmali pigarreou.

— Ainda não há sinal do Bashar e de seu grupo em Gammu, Madre Superiora.

Ele tinha uma voz forte, masculina.

“E isso não é o pior de tudo”, pensou Taraza. Percebia claros indícios no nervosismo de Burzmali.

— Conte tudo — ordenou ela. — Obviamente você completou seu exame das ruínas do Castelo.

— Não houve sobreviventes — ele disse. — Os atacantes não deixaram escapar ninguém.

— Tleilaxu?

— Possivelmente.

— Você tem dúvidas?

— Os atacantes usaram o novo explosivo Ixiano 12-Uri. Eu... Eu acho que ele pode ter sido usado para nos confundir. Havia orifícios de sondas cerebrais mecânicas no crânio de Schwangyu, também.

— E quanto a Patrin?

— Exatamente como Schwangyu — disse Burzmali. — Explodiu naquela nave chamariz. Conseguiram identificá-lo a partir dos fragmentos de dois dedos e de um olho intacto. Não sobrou nada suficientemente grande para eles sondarem.

— Mas você tem dúvidas! Vá direto a elas!

— Schwangyu deixou uma mensagem que só nós poderíamos ler.

— Nas marcas gastas da mobília?

— Sim, Madre Superiora. e...

— Então percebeu que ia ser atacada e teve tempo de deixar uma mensagem. Vi seu relatório anterior sobre a devastação do ataque.

— Foi rápido e totalmente esmagador. Os atacantes não tentaram fazer prisioneiros.

— E que foi que ela disse?

— Prostitutas.

Taraza tentou a conter o choque, embora já estivesse esperando por essa palavra. O esforço para se manter calma quase lhe esgotou as energias. Isso era muito ruim. Taraza permitiu-se um suspiro profundo. A oposição de Schwangyu tinha persistido até o fim. Então, percebendo o desastre, ela tomara a decisão adequada. Sabendo que ia morrer sem ter a oportunidade de transferir suas Vidas Memorizadas para outra Reverenda Madre, agira motivada pela lealdade mais básica. Se não pode fazer mais nada, arme suas Irmãs e frustre o inimigo.

“Então as Honradas Madres agiram!”

— Fale-me de sua busca do ghola — ordenou Taraza.

— Não fomos os primeiros a procurar naquela região, Madre Superiora. Havia mais árvores queimadas, rochas e arbustos.

— Mas foi uma não-nave?

— As marcas de uma não-nave.

Taraza assentiu para si mesma. Uma mensagem silenciosa da Velha Confiabilidade?

— De que distância examinaram a área?

— Voamos sobre ela numa viagem de rotina de um lugar para outro.

Taraza fez sinal para que Burzmali se sentasse em uma cadeira ao pé de seu catre.

— Sente-se e relaxe. Quero que você me faça algumas suposições.

Burzmali sentou-se cuidadosamente.

— Suposições?

— Você foi o aluno favorito de Teg. Quero que imagine que é ele. Sabe que tem que tirar o ghola do Castelo. Não confiava inteiramente em ninguém ao seu redor, nem mesmo em Lucilla. Que é que você faz?

— Algo inesperado, claro.

— É claro.

Burzmali esfregou o queixo estreito. Daí a pouco ele disse:

— Confio em Patrin, confio nele inteiramente.

— Está certo, você e Patrin. Que é que vocês fazem?

— Patrin é um nativo de Gammu.

— Estive pensando nisso.

Burzmali olhou para o piso diante dele.

— Patrin e eu teremos elaborado um plano de emergência muito antes de ele ser necessário. Sempre deixo preparadas alternativas secundárias de enfrentar problemas.

— Muito bem. Agora o plano. Que é que vocês fazem?

— Por que Patrin se matou? — perguntou Burzmali.

— Tem certeza de que foi isso que ele fez?

— A senhora viu os relatórios. Schwangyu e vários outros tinham certeza disso. Patrin era suficientemente leal para fazer isso por seu Bashar.

— Por você! Você é Miles Teg agora. Que plano você e Patrin elaboraram?

— Eu nunca mandaria Patrin para a morte deliberadamente.

— A menos?

— Patrin fez aquilo por sua conta. Poderia fazê-lo se o plano de fuga tivesse se originado dele e não... de mim. Ele o faria para me proteger, para se certificar de que ninguém descobriria o plano.

— Como Patrin poderia chamar uma não-nave sem que nós soubéssemos disso?

— Patrin era um nativo de Gammu. Sua família vem dos dias em que o planeta ainda era Giedi Prime.

Taraza fechou os olhos e voltou o rosto para a direção oposta a Burzmali. Então ele seguia as mesmas trilhas sugestivas que ela estivera sondando mentalmente. “Nós conhecemos as origens de Patrin” Qual seria o significado dessa ligação com Gammu? Sua mente recusava-se a especular. Isso era o que acontecia por se ter permitido ficar tão esgotada! Olhou novamente para Burzmali.

— Será que Patrin encontrou um meio secreto de fazer contato com a família e os velhos amigos?

— Investigamos cada contato que pudemos encontrar.

— Mas não confia nessa informação. Vocês não localizaram todos eles.

Burzmali deu de ombros.

— É claro que não. E não agi baseado nessa pressuposição.

Taraza respirou fundo.

— Volte para Gammu. Leve com você tanta ajuda quanto nossa Segurança puder dispensar. Diga a Bellonda que essas são minhas ordens. Você deve insinuar agentes em todos os lugares. Descubra as pessoas que Patrin conhecia. E quanto à sua família? Quantos ainda restam? Amigos? Descubra-os.

— Isso vai causar uma agitação, não importa o quanto sejamos cuidadosos. Outros vão saber.

— Isso não pode ser evitado. E, Burzmali...

Ele se colocou de pé imediatamente.

— Sim, Madre Superiora?

— Quanto aos outros que estão procurando. Você deve ficar na dianteira.

— Posso usar um navegador da Corporação?

— Não!

— Então como...

— Burzmali, e se Miles e Lucilla ainda estiverem em Gammu com o nosso ghola?

— Já disse que não aceito a idéia de que eles tenham partido em uma não-nave!

Por um longo período de silêncio, Taraza estudou o homem que aguardava de pé junto de seu catre. Treinado por Miles Teg. O aluno favorito do velho Bashar. Que estaria sugerindo o instinto treinado de Burzmali?

Em voz baixa, ela o estimulou a dizer o que pensava.

— Sim?

— Gammu foi Giedi Prime, um dos lares dos Harkonnen.

— E o que é que isso lhe sugere?

— Eles eram ricos, Madre Superiora. Muito ricos.

— E daí?

— Ricos o suficiente para conseguirem instalar uma não-sala, talvez mesmo um não-globo de bom tamanho.

— Não há registros disso! Ix jamais sugeriu, mesmo vagamente, tal coisa. Eles não foram sondados em Gammu para...

— Subornos, compras por uma terceira parte, baldeações de uma nave para outra — explicou Burzmali. — Os tempos da Fome foram muito destrutivos, e antes houve todos aqueles milênios sob o jugo do Tirano.

— Quando os Harkonnen mantiveram suas cabeças abaixadas e as perderam. Bem, admito a possibilidade.

— Registros podem ter sido perdidos — disse Burzmali.

— Não por nós, nem por qualquer outro governo que tenha sobrevivido. Que o leva a essa linha de especulação?

— Patrin.

— Ah.

Ele falou rapidamente:

— Se tal coisa foi descoberta, um nativo de Gammu poderia saber a respeito.

— E quantos deles saberiam? Acha que poderiam ter mantido um segredo desses por... Sim! Percebo o que quer dizer. Se fosse um segredo da família de Patrin...

— Não me atrevi a questioná-los a esse respeito.

— É claro que não! Mas aonde você iria procurar... sem alertar...

— Naquele lugar na montanha onde foram deixadas as marcas de uma não-nave

— Vai exigir que você viaje até lá em pessoa!

— Muito difícil de esconder de espiões — concordou ele — A menos que eu vá com uma pequena força e aparentando outro propósito.

— Que outro propósito?

— Colocar um marco funerário em memória do meu antigo Bashar. Sugerindo que nós já sabemos que ele está morto?

— Sim!

— Já pediu aos Tleilaxu um substituto para o ghola?

— Isso é apenas mera precaução e não significa que... Burzmali, isso é extremamente perigoso. Duvido de que possamos enganar o tipo de gente que vai observá-los em Gammu.

— Minha tristeza e a das pessoas que levarei comigo será dramática e convincente.

— Isso não vai convencer necessariamente um observador prevenido?

— Não confia na minha lealdade e na das pessoas que vou levar comigo?

Taraza comprimiu os lábios, pensando. Lembrou a si mesma que a lealdade fixa era algo que tinham aprendido a aperfeiçoar no padrão Atreides. Como produzir pessoas que gerem a mais profunda devoção? Burzmali e Teg eram ótimos exemplos.

— Pode dar certo — concordou Taraza.

Olhou especulativamente para Burzmali. O aluno favorito de Teg podia estar certo!

— Então vou partir — ele disse, virando-se para sair.

— Um momento — disse Taraza.

Burzmali virou-se.

— Vocês devem saturar-se de shere, todos vocês. E, se forem capturados por um desses novos Dançarinos Faciais, devem queimar suas próprias cabeças, estourá-las totalmente. Tome as precauções necessárias.

A expressão subitamente séria no rosto de Burzmali tranqüilizou Taraza. Por um momento ele ficara orgulhoso de si mesmo. Melhor sufocar esse orgulho. Não devia deixá-lo descuidado.

 

Há muito sabemos que os objetos de nossa experiência palpável podem ser influenciados por uma escolha consciente e inconsciente. Isso é um fato demonstrável e não exige a nossa crença em alguma força interior que se estende de dentro de nós para tocar o universo. Falo de um relacionamento pragmático entre as nossas crenças e aquilo que identificamos como “real”. Todos os nossos julgamentos contém uma pesada carga de crenças ancestrais a que nós, da Bene Gesserit, somos mais suscetíveis que a maioria. E não é suficiente termos consciência e nos prevenirmos contra isso. As interpretações alternativas devem sempre receber nossa atenção.

 

— Madre Superiora Taraza:

Discussão no Conselho

 

— Deus vai nos julgar aqui — exultara Waff.

Ele andava dizendo isso nos momentos mais imprevisíveis da longa jornada pelo deserto. Sheeana parecia não notar, mas a voz e os comentários de Waff estavam começando a cansar Odrade.

O sol Rakiano deslocara-se bem para oeste, mas o verme continuava a carregá-los, aparentemente incansável, em seu impulso através do Sareer, rumo aos montes remanescentes da antiga muralha do Tirano.

“Por que esta direção?”, perguntava-se Odrade.

Não havia resposta satisfatória. O fanatismo e o perigo renovado da parte de Waff exigiam uma resposta imediata. Ela lembrou o canto do Shariat que sabia impulsioná-lo.

— Deixe que Deus faça o julgamento e não os homens.

Waff olhou carrancudo ante o tom de desafio na voz dela. Fitou o horizonte adiante e depois os tópteros que continuavam a segui-los.

— Os homens devem realizar o trabalho de Deus — murmurou ele. Odrade não respondeu. Waff fora jogado de encontro às suas dúvidas e agora devia estar se perguntando: “Será que essas bruxas Bene Gesserit realmente compartilham da Grande Crença?”

Seus pensamentos impulsionaram-na de volta às questões sem resposta, tropeçando em tudo que sabia a respeito dos vermes de Rakis. Suas memórias pessoais e as Outras Memórias teceram uma colagem louca. Podia visualizar Fremen envoltos em mantos, no topo de um verme ainda maior do que esse, cada cavaleiro inclinando-se para trás enquanto segurava uma longa vara cujo gancho se prendia nos anéis do verme. Anéis como esse que suas mãos agarravam. Sentia o vento em sua face, o manto chicoteando nos joelhos. Essa e outras cavalgadas fundiam-se numa longa familiaridade.

“Já se passou longo tempo desde que um Atreides cavalgou um verme.”

Haveria algum indício de seu destino em Dar-es-Balat? Como poderia haver? Estivera tão quente e sua mente se voltava então para o que poderia acontecer nessa aventura no deserto. Não estivera tão alerta quando devia.

Em comum com todas as outras comunidades em Rakis, Dar-es-Balat encolhia durante o calor do início da tarde. Odrade lembrava-se da aspereza de seu traje destilador novo, enquanto aguardava à sombra de um prédio perto dos limites ocidentais de Dar-es-Balat. Esperava que as escoltas trouxessem Sheeana e Waff das residências seguras onde ela os instalara.

Que alvo tentador tinha sido ela! Mas eles tinham que ter certeza da concordância Rakiana. E as escoltas da Bene Gesserit se haviam atrasado deliberadamente.

— Shaitan gosta do calor — comentara Sheeana.

Os Rakianos escondiam-se do calor, mas os vermes saíam dele. Haveria algum fator significativo, alguma razão reveladora para que esse verme os conduzisse nessa direção em particular?

“Minha mente está pulando como uma bola de criança!”

Que significado teria o fato de os Rakianos se esconderem do sol enquanto um pequeno Tleilaxu, uma Reverenda Madre e uma mocinha selvagem estavam viajando através do deserto nas costas de um verme? Era um padrão muito antigo de Rakis e nada havia de surpreendente nisso. Os Fremen, contudo, tinham sido criaturas noturnas. Seus descendentes modernos dependiam mais das sombras para protegê-los do sol quente.

Como os sacerdotes se sentiam seguros atrás de seus fossos protetores!

Cada morador de um centro urbano Rakiano sabia que o qanat estava lá fora, água correndo nas sombras, pequenos cursos desviados para alimentar os canais estreitos cuja evaporação era recapturada nas armadilhas de vento.

“Nossas preces nos protegem”, diziam eles, mas sabiam o que realmente os protegia.

“Sua sagrada presença pode ser vista no deserto.”

“O Verme Sagrado.”

“O Deus Dividido.”

Odrade olhou para os anéis do verme diante dela. “E aqui está ele!”

Pensou nos sacerdotes entre os observadores nos tópteros acima. Como adoravam espionar os outros! Sentira que a observavam em Dar-es-Balat, enquanto esperava pela chegada de Sheeana e Waff. Olhos por trás das venezianas em altas sacadas ocultas. Olhos espiando através de fendas estreitas em paredes espessas. Olhos ocultos atrás de plaz espelhado ou olhando de dentro das sombras.

Odrade forçara-se a ignorar os perigos enquanto marcava a passagem do tempo pelo movimento de uma linha de sombra na parede acima dela — um relógio preciso nessa terra onde todos se guiavam pela hora solar.

As tensões se haviam acumulado devido à necessidade de parecer despreocupada. Por que iriam atacar? Será que se atreveriam sabendo que ela tinha tomado suas próprias precauções? Como estariam irritados os sacerdotes por terem sido forçados a se unir aos Tleilaxu nesse triunvirato? Suas assessoras, Reverendas Madres do Castelo, não tinham gostado de ela estar bancando a isca para os sacerdotes.

— Deixe que uma de nós seja a isca!

Odrade fora inflexível:

— Eles não acreditariam e a suspeita os manteria afastados. Além disso, com certeza eles enviarão Albertus.

E assim Odrade aguardara naquele pátio em Dar-es-Balat, um pátio sombreado pelo verde nas profundezas onde ela se encontrava a olhar para o alto em direção ao ponto em que a sombra dava lugar à luz do sol, seis andares acima — balaustradas rendilhadas nas sacadas de cada andar: plantas verdes, flores vermelhas, alaranjadas e azuis e, acima de tudo, um retângulo de céu prateado.

“E os olhos ocultos.”

Um movimento numa ampla porta de rua à sua direita! Uma única figura usando o traje dourado, púrpura e branco de sacerdote saiu para o pátio. Ela a observou, procurando indícios de que os Tleilaxu tivessem estendido seu domínio com outra mímica de Dançarino Facial. Mas esse era o homem, um sacerdote que ela reconhecia: Albertus, o senhor de Dar-es-Balat.

''Exatamente como esperávamos.”

Albertus atravessou o amplo átrio em direção a ela, caminhando com cuidadosa dignidade. Haveria indícios de perigo nele? Faria algum sinal para seus assassinos? Ela olhou para cima, em direção às sacadas: pequenos movimentos tremulantes nos níveis mais elevados. O sacerdote que se aproximava não estava sozinho.

“Mas eu também não estou!”

Albertus parou a dois passos de Odrade e ergueu a cabeça, olhando para ela. Até agora mantivera a atenção voltada para os intrincados arabescos de ouro e púrpura nos azulejos do pátio.

“Ele tem ossos fracos”, pensou Odrade.

Ela não deu sinal de reconhecê-lo. Albertus era um dos que sabiam que seu Alto Sacerdote fora substituído por um Dançarino Facial.

Ele pigarreou e respirou, trêmulo.

“Ossos fracos! Carne fraca!”

Embora o pensamento divertisse Odrade, ela não reduziu a vigilância. Reverendas Madres sempre notavam esse tipo de coisa. Procuravam as marcas hereditárias. E a seletividade que existira no passado de Albertus tinha falhas, elementos que a Irmandade tentaria corrigir em seus descendentes se um dia fosse importante cultivá-los. Isso seria considerado, é claro. Albertus galgara uma posição de poder, de modo discreto mas definitivo, e seria determinado se tal coisa implicava um valor genético. Fora muito mal-educado, contudo. Uma acólita de primeiro ano o teria dominado. O condicionamento do clero Rakiano degenerara muito desde os dias das Oradoras Peixes.

— Por que está aqui? — perguntou Odrade, fazendo da pergunta uma acusação.

Albertus tremeu.

— Trago uma mensagem de sua gente, Reverenda Madre.

— Então diga!

— Houve um ligeiro atraso, algo a respeito de a rota para cá ser conhecida por muitos.

Pelo menos essa era a história que todos tinham concordado em contar aos sacerdotes. Mas outras coisas podiam ser lidas facilmente no rosto de Albertus. Os segredos compartilhados com ele ficavam perigosamente próximos de serem expostos.

— Quase chego a desejar ter dado a ordem para que o matassem — disse Odrade.

Albertus recuou dois passos. Seus olhos ficaram desfocados, como se tivesse morrido ali, na frente dela. Ela reconheceu a reação. Albertus entrara naquela fase reveladora em que o medo lhe contraía o escroto. Sabia que essa terrível Reverenda Madre Odrade podia passar-lhe uma sentença de morte com toda a naturalidade ou mesmo matá-lo com as próprias mãos.

— Você tem estado a estudar se deve matar-me ou destruir nosso Castelo em Keen — acusou Odrade.

Albertus tremeu violentamente.

— Por que diz uma coisa dessas, Reverenda Madre?

Havia um chiado revelador na voz dele.

— Não tente negar — ela disse. — Eu me pergunto quantas pessoas já acharam tão fácil ler seus pensamentos quanto eu acho. Supõe-se que você seja capaz de manter segredos! Não se espera que ande por aí com todos os seus segredos escritos no rosto!

Albertus caiu de joelhos. Ela pensou que ele ia prostrar-se.

— Mas sua própria gente me enviou!

— E você ficou muito satisfeito em vir e verificar se seria possível me matar.

— Por que eu faria isso?

— Silêncio! Vocês não gostam do fato de controlarmos Sheeana. Têm medo dos Tleilaxu. Há coisas que foram retiradas do controle de vocês e coisas que foram colocadas em andamento que os aterrorizam.

— Reverenda Madre! Que devemos fazer? Que devemos fazer?

— Vocês vão obedecer-nos! Mais do que isso, vão obedecer Sheeana! Estão com medo do que vamos fazer hoje? Há coisas piores para vocês temerem!

Ela sacudiu a cabeça fingindo decepção. Sabia o efeito que tudo isso teria sobre o pobre Albertus. Ele encolheu-se debaixo do peso do ódio de Odrade.

— Fique de pé — ordenou ela. — Lembre-se de que é um sacerdote de quem se exige a verdade!

Albertus cambaleou, colocando-se de pé a cabeça ainda curvada. Podia ver no corpo dele que decidira abandonar os subterfúgios. Que prova devia ter sido para ele! Respeitoso para com a Reverenda Madre que tão facilmente lera seus pensamentos, agora devia obedecer sua religião. Devia confrontar o paradoxo final de todas as religiões.

“Deus sabe!”

— Vocês não escondem nada de mim, nada de Sheeana e nada de Deus.

— Perdoe-me, Reverenda Madre.

— Perdoá-lo? Não depende de mim perdoá-lo, nem devia pedir isso de mim. Você é um sacerdote!

Ele ergueu os olhos para o rosto furioso de Odrade.

O paradoxo estava totalmente em cima dele agora. Deus certamente estava ali! Mas Deus em geral estava muito longe e as confrontações podiam ser adiadas. Amanhã seria outro dia, decerto que seria. E era aceitável que uma pessoa se permitisse cometer pequenos pecados, talvez uma mentira ou duas. Por ora, apenas isso. E talvez um grande pecado se a tentação fosse grande. Supunha-se que os deuses fossem mais compreensivos com relação aos grandes pecadores. Haveria tempo para pedir perdão.

Odrade fitou Albertus com o olhar analítico da Missionaria Protectiva.

“Ah, Albertus” pensou. “Mas agora você se vê na presença de outro ser humano que conhece todas as coisas que você pensava serem um segredo partilhado apenas por você e por seu deus.”

Para Albertus, a atual situação devia ser pouco diferente da morte, aquela submissão derradeira, o julgamento final de seu deus. Isso certamente explicava a razão inconsciente pela qual ele deixara seu poder desmoronar nesse momento. Todos os seus temores religiosos tinham sido invocados e focalizados numa “Reverenda” Madre.

Em seu tom de voz mais seco, sem ao menos usar a Voz para forçá-lo, Odrade disse:

— Quero que esta farsa termine imediatamente.

Albertus tentou engolir em seco. Sabia que não podia mentir. Podia conhecer uma remota possibilidade de mentir, mas seria inútil. Submisso, olhou para a testa de Odrade, onde a linha do capuz do traje destilador lhe comprimia a pele. Então disse, a voz pouco mais que um sussurro:

— Reverenda Madre, é só que nos sentimos destituídos daquilo que é nosso. Vocês e os Tleilaxu vão para o deserto com a nossa Sheeana. Vão aprender com ela e... — Os ombros dele caíram. — Por que leva o Tleilaxu?

— Sheeana assim o deseja — mentiu Odrade.

Albertus abriu a boca e a fechou sem falar. Ela podia perceber a aceitação fluindo através dele.

— Você vai voltar para junto de seus companheiros com um aviso — disse Odrade. — A sobrevivência de Rakis e do seu clero depende inteiramente de como me obedecerem agora. Não devem atrapalhar-nos nem um pouquinho! E quanto a essas tramas infantis que concebem contra nós... Sheeana revela-nos o menor de seus pensamentos malévolos!

Albertus surpreendeu-a então. Ele sacudiu a cabeça e emitiu uma risada seca. Odrade já tinha notado que muitos desses sacerdotes se deleitavam com o constrangimento alheio, mas não imaginava que pudessem achar divertidos os próprios fracassos.

— Acho seu riso vazio — ela disse.

Albertus deu de ombros e recuperou um pouco de sua máscara facial. Odrade já tinha visto muitas máscaras como essa. Fachadas! Eles as usavam em camadas. E bem embaixo de todas aquelas defesas havia alguém que se importava, alguém que ela expusera ali tão brevemente. Esses sacerdotes tinham o perigoso costume de recorrer a explicações muito floridas quando pressionados com perguntas.

“Devo trazer de volta aquele que se importa”, pensou Odrade. Ela o interrompeu quando ele começou a falar.

— Chega! Você vai esperar por mim quando eu voltar do deserto. Por enquanto você é o meu mensageiro. Leve minha mensagem com precisão e ganhará uma recompensa maior do que pode imaginar. Fracasse e sofrerá as agonias de Shaitan!

Odrade observou Albertus sair apressadamente do pátio, os ombros caídos e a cabeça inclinada para a frente, como se quisesse chegar antes do corpo ao alcance da voz de seus companheiros.

No cômputo geral, pensou, saíra-se muito bem. Fora um risco calculado e muito perigoso no que se referia a ela pessoalmente. Tinha certeza de que havia assassinos naquelas sacadas, esperando por um sinal de Albertus. E agora o medo que ele levava dentro de si era algo que a Bene Gesserit compreendia intimamente através de milênios de manipulações. Algo tão contagiosamente virulento quanto uma praga. As Irmãs Instrutoras chamavam isso de “histeria dirigida”. E fora dirigida (apontada seria o termo mais preciso) para o coração do clero Rakiano. Era algo em que se podia confiar, especialmente agora em que um reforço entraria em ação. Os sacerdotes se submeteriam e somente alguns hereges imunes deviam ser temidos..

 

Este é um universo mágico que inspira a admiração: não existem átomos, apenas ondas e movimentos à nossa volta. E aqui a pessoa se livra de toda a crença em barreiras a compreensão. Coloca-se de lado a própria idéia de compreensão. Este universo não pode ser visto, não pode ser ouvido, não pode ser detectado de modo algum pelos sentidos fixos. É o derradeiro vazio, onde não existem telas em que se possam projetar as formas pré-ordenadas. Tem-se apenas uma consciência aqui — a tela dos magos que é a imaginação. Aqui a pessoa compreende o que significa ser humano. É um criador de ordem, de sistemas e formas de beleza, é um organizador do caos.

 

— O Manifesto Atreides, Arquivos da Bene Gesserit

 

— O que você está fazendo é muito perigoso — advertiu Teg.  — Minhas ordens são para protegê-lo e torná-lo mais forte. Não posso permitir que isso continue.

Teg e Duncan encontravam-se no corredor revestido de painéis de madeira do lado de fora da sala de exercícios do não-globo. Era o final da tarde pelo relógio de suas rotinas arbitrárias e Lucilla acabara de sair, cheia de ódio depois de um confronto injurioso.

Todos os encontros entre Duncan e Lucilla vinham adquirindo ultimamente as características de uma batalha. Agora há pouco ela tinha parado na porta do salão de exercícios, uma figura rígida que não chegava a ser impassível devido às suas curvas, os movimentos sedutores óbvios aos dois homens.

— Pare com isso, Lucilla! — ordenara Duncan.

Somente a voz traía o ódio dela.

— Por quanto tempo acha que vou esperar para cumprir minhas ordens?

— Até que você ou outra pessoa me diga que eu...

— Taraza exige coisas de você que nenhum de nós aqui sabe — dissera Lucilla.

Teg tentara acalmar os ódios crescentes.

— Por favor. Não é suficiente que Duncan continue a melhorar seu desempenho? Dentro de alguns dias vou começar a manter uma vigília regular do lado de fora. Nós poderemos...

— Você pode parar de interferir no meu trabalho, maldito! — retrucou Lucilla enquanto se virava e saía rapidamente.

Enquanto percebia a dura resolução no rosto de Duncan, uma coisa furiosa começou a trabalhar dentro de Teg. Sentia-se impulsionado pelas necessidades daquela situação de isolamento. Seu intelecto, aquele instrumento maravilhosamente afiado pela Bene Gesserit, estava abrigado do ruído mental ao qual tinha que se ajustar no exterior. Achava que, se pudesse apenas silenciar sua mente, colocar tudo num estado de calma, então todas as coisas se tornariam claras para ele.

— Por que está contendo o seu fôlego, Bashar? — perguntou Duncan.

A voz dele deixou Teg sufocado. Foi necessário um supremo ato de vontade para que Teg pudesse voltar a respirar normalmente. Sentia as emoções de seus dois companheiros dentro do não-globo como um fluxo e refluxo de maré algo temporariamente removido de outras forças.

“Outras forças.”

A percepção Mentat podia ser uma idiota na presença de outras forças que varriam o universo. Podia haver no universo pessoas cujas vidas eram permeadas de poderes que ele nem podia imaginar. Diante de tais forças ele era uma palha flutuando em correntezas turbulentas. Poderia mergulhar numa cachoeira e emergir intacto?

— O que é que Lucilla poderá fazer se eu continuar resistindo a ela? — perguntou Duncan.

— Ela já usou a Voz com você? — perguntou Teg.

Sua própria voz lhe parecia distante.

— Um vez.

— E você resistiu?

Uma surpresa remota agitou-se em algum lugar dentro de Teg.

— O próprio Paul Muad'Dib ensinou-me a fazê-lo.

— Ela é capaz de paralisar você e então...

— Acredito que as ordens dela proíbem a violência.

— E que é violência, Duncan?

— Vou tomar uma ducha, Bashar. Vem comigo?

— Em alguns minutos.

Teg respirou fundo, sentindo o quanto estava próximo da exaustão. Essa tarde no salão de treinamento e o que acontecera depois o tinha deixado esgotado. Observou enquanto Duncan saía. Onde estaria Lucilla? Que estaria planejando? Por quanto tempo mais poderia ela esperar? Essa era a questão central e se ligava à ênfase peculiar do não-globo na questão de seu isolamento do Tempo.

Novamente ele sentiu aquele fluxo e o refluxo que suas três vidas influenciavam. “Devo conversar com Lucila! Para onde será que ela foi? Fora a biblioteca? Não! Há outra coisa que devo fazer primeiro.”

 

Lucilla estava sentada num aposento que ela tinha escolhido para seus alojamentos pessoais. Era uma espaço pequeno com um leito decorado encaixando-se em uma depressão na parede. Elementos sutis e grotescos à sua volta revelavam que esse fora o quarto favorito dos Harkonnen. Os tecidos existentes ali eram todos de um azul-pastel com desenhos mais escuros. E, a despeito das esculturas barrocas da cama e do teto da alcova, o quarto podia ser varrido de sua consciência uma vez que ela relaxasse dentro dele. Deitou-se na cama e fechou os olhos às figuras de sexualidade exagerada desenhadas no teto.

“Vou ter que dar um jeito em Teg.”

“Teria que ser feito de um modo que não ofendesse Taraza nem enfraquecesse o ghola. Teg apresentava-lhe um problema especial de muitas maneiras, especialmente no modo como seus processos mentais eram capazes de afundar e emergir de fontes profundas, semelhantes às que eram disponíveis à Bene Gesserit.

“Graças à Reverenda Madre que foi sua mãe, é claro.”

Alguma coisa havia passado de mãe a filho. Algo que começara no ventre e que provavelmente não terminara nem quando ambos tinham sido separados. Ele nunca tinha passado pela devoradora transmutação que produzia as Abominações... não, isso não. Mas possuía poderes autênticos e muito sutis. Aqueles que nasciam de Reverendas Madres aprendiam coisas que eram impossíveis para os outros.

Teg conhecia precisamente o modo como Lucilla encarava o amor em todas as suas manifestações. Ela percebera isso estampado no rosto dele uma vez, nos alojamentos do Castelo.

“Bruxa calculista!”

Teria sido a mesma coisa se ele tivesse falado em voz alta.

Lembrou-se do modo como lhe tinha dirigido o sorriso benevolente e a expressão dominadora. Isso fora um erro, algo indigno de ambos. Tinha percebido em tais pensamentos uma simpatia latente da parte de Teg. Em algum lugar dentro dele, a despeito de todo o cuidadoso treinamento Bene Gesserit, existiam fendas em sua armadura. Suas professoras a tinham advertido muitas vezes.

Para ser capaz de induzir um amor verdadeiro, você deve ser capaz de senti-lo, ainda que temporariamente. E uma única vez é o bastante!

As reações de Teg para com o ghola Duncan Idaho diziam muita coisa. Teg era ao mesmo tempo atraído e repelido pelo jovem pupilo.

“Exatamente como eu sou.”

Talvez tivesse sido um erro não ter seduzido Teg.

Em sua educação sexual, Lucilla aprendera a ganhar forças numa relação em vez de se entregar nela. Suas professoras tinham enfatizado a análise e as comparações históricas, das quais havia muitos exemplos nas Outras Memórias de uma Reverenda Madre.

Lucilla focalizou seus pensamentos na presença masculina de Teg. Fazendo isso, podia sentir uma resposta feminina, sua carne desejando Teg junto dela e excitado até o ápice sexual — pronto para o momento do mistério.

Um leve senso de humor penetrou na consciência de Lucilla. Não era chamado de orgasmo nem de qualquer outro rótulo científico! Era típico da cantilena Bene Gesserit: “O momento do mistério”, a especialidade última de uma Impressora. A imersão na longa linhagem da Bene Gesserit exigia esses conceitos. Tinham lhe ensinado a crer profundamente na dualidade: no conhecimento científico através do qual as Madres Procriadoras guiavam suas ações, mas, ao mesmo tempo, no mistério daquele momento que confundia todo o conhecimento. A ciência e a história da Bene Gesserit diziam que o impulso para a procriação devia permanecer irrecuperavelmente enterrado na psique. Ele não podia ser removido sem que isso resultasse na destruição da espécie.

“A rede de segurança.”

Lucilla reuniu suas forças sexuais como somente uma Impressora seria capaz de fazer. Começou a focalizar o pensamento em Duncan. A essa altura ele devia estar no chuveiro, pensando em sua sessão de treinamento noturna com sua professora-Reverenda Madre.

“Irei ao encontro de meu aluno dentro em pouco”, pensou ela. “A lição mais importante deve ser ensinada ou ele não estará plenamente preparado para enfrentar Rakis.”

Essas tinham sido as instruções de Taraza.

Lucilla voltou o foco de seus pensamentos inteiramente para Duncan. Era quase como se o visse, de pé nu, debaixo do chuveiro.

Quão pouco ele compreendia do que havia para aprender!

Duncan estava sentado sozinho no vestiário ao lado dos chuveiros, ao lado da sala de exercícios. Encontrava-se mergulhado numa tristeza profunda. Isso lhe trazia à lembrança sofrimentos causados por velhas feridas que essa carne jovem nunca experimentara.

Algumas coisas nunca mudavam! A Irmandade estava metida em seus velhos jogos de novo.

Olhou para cima e à volta desse refúgio dos Harkonnen revestido de painéis escuros. Arabescos tinham sido esculpidos nas paredes e no teto, estranhos desenhos nos cubos do mosaico do piso. Monstros e lindos corpos humanos entrelaçando-se através das mesmas linhas definidas. Somente um olhar atento distinguia uns de outros.

Duncan olhou para o corpo que os Tleilaxu, com seu tanques axlotl, tinham produzido para ele. Parecia-lhe estranho às vezes. Ele fora um homem com muitas experiências de adulto no último instante que recordava de sua vida pré-ghola — combatendo um enxame de guerreiros Sardaukar, dando ao seu jovem Duque uma chance de escapar.

Seu Duque! Paul então não era mais velho que esse corpo. Condicionado, contudo, à maneira de ser de todos os Atreides: lealdade e honra acima de tudo.

“Do modo como eles me condicionaram depois que me salvaram dos Harkonnen.”

Alguma coisa dentro dele não podia escapar dessa antiga dívida. Conhecia sua fonte e podia delinear o processo através do qual essa dívida de gratidão se havia entranhado nele.

E lá permanecia.

Duncan olhou para o piso azulejado. Palavras tinham sido escritas ao longo do rodapé. Era uma inscrição que parte dele identificava como coisa antiga, dos velhos tempos dos Harkonnen, enquanto outra parte achava que era um Galach muito familiar.

 

LIMPEZA PURA

PURA LIMPEZA

BRILHANTE PURA LIMPEZA

 

A inscrição repetia-se ao longo do perímetro da sala como se as próprias palavras pudessem criar alguma coisa que Duncan sabia ser totalmente estranha aos Harkonnen de suas lembranças.

Nas portas dos chuveiros, mais inscrições:

 

CONFESSE TEU CORAÇÃO E ENCONTRE A PUREZA

 

Uma advertência religiosa numa fortaleza Harkonnen? Teriam os Harkonnen se modificado nos séculos subseqüentes à sua morte? Duncan achava muito difícil acreditar nisso. Essas palavras eram apenas alguma coisa que os construtores tinham julgado apropriado.

Sentiu mais que ouviu quando Lucilla entrou atrás dele. Levantou-se e prendeu os fechos da túnica que escolhera nos vasos de nulentropia (mas somente depois de arrancar todas as insígnias dos Harkonnen!)

Sem se virar, ele disse:

— Que é agora, Lucilla?

Ela acariciou o tecido da túnica ao longo do braço esquerdo dele.

— Os Harkonnen sabiam o que era bom.

Duncan falou calmamente:

— Lucilla, se você me tocar de novo sem minha permissão, vou tentar matá-la. E vou tentar com tanto empenho que é muito provável que você tenha que me matar.

Ela recuou imediatamente.

Ele olhou nos olhos dela.

— Não sou nenhum maldito garanhão para os seus projetos de procriação.

— É isso que você acha que queremos de você?

— Ninguém me disse ainda o que vocês querem de mim, mas as suas atitudes são óbvias!

Ele estava nas pontas dos pés, pronto para agir. Aquela coisa ainda não despertada em seu interior remexia-se e fazia seu pulso acelerar-se.

Lucilla observou-o cuidadosamente. “Maldito Miles Teg!” Nunca esperara que a resistência fosse assumir essa forma. Não havia como duvidar da sinceridade de Duncan. Palavras apenas não iam adiantar mais. Ele era imune à Voz.

“Verdade”

Era a única arma que lhe restava.

— Duncan, não sei precisamente o que Taraza espera que você faça em Rakis. Só posso fazer suposições, mas minhas suposições podem estar erradas.

— Faça as suposições então.

— Existe em Rakis uma garota muito jovem, uma adolescente. O nome dela á Sheeana. Os vermes de Rakis obedecem a ela. De algum modo, a Irmandade deve unir esse talento ao seu patrimônio de habilidades.

— E que poderia eu possivelmente...

— Se eu soubesse lhe diria agora.

Ele notou a sinceridade dela, revelada pelo desespero.

— E que é que seu talento tem a ver com isso? — indagou ele.

— Somente Taraza e suas conselheiras sabem.

— Elas querem ter algum poder sobre mim, alguma coisa da qual eu não possa escapar!

Lucilla já deduzira isso, mas não tinha esperado que ele chegasse a tal conclusão tão rapidamente. O rosto jovem de Duncan ocultava uma mente que funcionava em níveis que ela ainda não tinha avaliado. Os pensamentos de Lucilla aceleraram-se.

— Controle os vermes e poderá reviver a antiga religião — era a voz de Teg vindo da porta atrás de Lucilla.

“Não o ouvi chegar!”

Ela girou num movimento rápido. Teg estava posicionado com uma das antigas armas laser dos Harkonnen apoiada naturalmente sobre o braço esquerdo, o cano apontado para Lucila.

— Isto é para garantir que você vai me ouvir — ele disse.

— Há quanto tempo estava nos ouvindo?

O olhar furioso de Lucilla não mudou a expressão de Teg.

— A partir do momento em que admitiu que não sabe o que Taraza espera de Duncan. Nem eu sei — disse Teg. — Mas posso fazer algumas projeções Mentat. Nada muito preciso ainda, mas todas muito sugestivas. Diga-me se estou errado.

— A respeito do quê?

Ele olhou para Duncan.

— Uma das coisas que lhe ordenaram que fizesse foi torná-lo irresistível para a maioria das mulheres.

Lucilla tentou ocultar o desapontamento. Taraza a advertira para que escondesse isso de Teg por quanto tempo fosse possível. Percebia agora que não poderia mais esconder. Teg notara sua reação com uma daquelas malditas habilidades que a maldita mãe lhe havia ensinado!

— Um bocado de energia está sendo reunida e dirigida para Rakis — continuou Teg. Olhou firme para Duncan. — Não importa o que os Tleilaxu tenham enterrado dentro dele, ele tem a marca da antiga humanidade em seus genes. Não é disso que precisam as Madres Procriadoras?

— Um maldito garanhão para as Bene Gesserit — acusou Duncan.

— Que é que você pretende fazer com essa arma? — perguntou Lucilla, indicando a antiga arma laser nas mãos de Teg.

— Isto? Eu ainda nem coloquei o carregador de energia.

Ele abaixou a arma laser e a apoiou no canto da porta ao seu lado

— Miles Teg, você será punido! — ameaçou Lucilla.

— Isso vai ter que esperar — retrucou ele. — É quase noite lá fora e eu saí sob a proteção de um escudo vital. Burzmali esteve aqui. Deixou seu sinal para indicar que leu a mensagem que deixei rabiscada com aquelas marcas de animais nas árvores.

Um brilho de vigilância surgiu nos olhos de Duncan.

— Que vai fazer? — perguntou Lucilla.

— Deixei novas marcas preparando um encontro. Agora vamos todos para a biblioteca, onde estudaremos os mapas. Vamos gravá-los na memória. No mínimo ficaremos sabendo onde estamos quando fugirmos.

Ela concedeu-lhe um curto meneio de aceitação com a cabeça. Duncan notou o movimento de Lucilla com apenas uma pequena fração de sua consciência. Sua mente já tinha saltado adiante, para o antigo equipamento da biblioteca dos Harkonnen. Fora ele quem demonstrara a Teg e Lucila como usá-lo corretamente, pedindo um mapa de Giedi Prime de uma época em que nenhum não-globo ainda fora construído.

Com a memória pré-ghola do Duncan como guia, e seu conhecimento mais moderno do planeta, Teg tentava atualizar o mapa.

“Estação da Guarda Florestal” tornou-se “Castelo da Bene Gesserit”

— Parte dele era um chalé de caça dos Harkonnen — explicara Duncan. — Eles caçavam seres humanos especialmente criados e condicionados para esse propósito.

Cidades desapareciam na atualização de Teg. Algumas delas permaneciam, mas recebiam novos nomes. “Ysai”, a metrópole mais próxima, tornou-se “Baronja” no mapa original.

Os olhos de Duncan ficaram cruéis ante essa lembrança.

— Foi onde eles me torturaram.

Quando Teg esgotou sua memória do planeta, muita coisa estava marcada ainda como desconhecida, mas havia símbolos encaracolados da Bene Gesserit identificando os lugares onde, segundo o pessoal de Taraza explicara a Teg, ele poderia encontrar refúgio temporário.

Eram esses lugares que Teg queria gravar na memória.

Enquanto se virava para guiá-los até a biblioteca, Teg disse:

— Vou apagar o mapa quando o tivermos memorizado. Ninguém pode prever quem é capaz de encontrar este lugar e examiná-lo.

Lucilla passou por ele.

— Está em sua cabeça, Miles! — ela disse.

Teg olhou para as costas dela enquanto se afastava:

— Um Mentat lhe diz que fiz aquilo que me era exigido.

Ela falou sem se virar:

— Que lógico, Miles!

 

Esta sala reconstrói um trecho do deserto de Duna. O Trator da Areia diretamente em frente é da época dos Atreides. Agrupadas em torno dele, no sentido dos ponteiros do relógio a partir da sua esquerda, encontram-se uma pequena colhedeira, uma asa transporta-tudo, uma primitiva fábrica de especiaria e outros equipamentos de apoio. As explicações estão nos stand. Observe-se a citação iluminada em cima de cada stand. “POIS ELES SUGARÃO A ABUNDÂNCIA DOS MARES E OS TESOUROS DAS AREIAS.” Essa antiga citação religiosa era freqüentemente repetida pelo célebre Gurney Halleck.

 

— Texto-guia,

Museu de Dar-es-Balat

 

O verme não reduziu sua marcha implacável senão pouco antes do anoitecer. A essa altura Odrade já estudara meticulosamente todas as suas indagações e ainda não obtivera respostas. Como Sheeana podia controlar os vermes? Ela dizia que não estava dirigindo o seu Shaitan naquela direção. Qual seria a linguagem oculta a que respondia o monstro do deserto? Odrade sabia que suas irmãs-guardiãs nos tópteros lá em cima deviam estar se fazendo as mesmas perguntas, e mais uma:

“Por que Odrade deixa essa cavalgada continuar?”

Elas poderiam até mesmo aventar algumas hipóteses: “Ela não nos chama porque isso poderia perturbar a fera.” “Ela não confia em nossa capacidade de resgatar o seu grupo”

Mas a verdade era muito mais simples: curiosidade.

A sibilante passagem do verme lembrava o avanço de um navio fendendo os oceanos. Mas os odores de pó de pedra e da areia superaquecida que passavam em torno deles, soprados pelos ventos, revelavam o contrário. Somente o deserto aberto os envolvia agora, quilômetros após quilômetros de dunas dorso-de-baleia, tão regulares em seu espaçamento quanto as ondas de um mar.

Waff estava em silêncio já havia um bom tempo. Agachara-se numa reprodução, em miniatura, da posição de Odrade, sua atenção dirigida para a frente, uma expressão vazia no rosto. Sua declaração mais recente fora:

— Deus guarda os fiéis na hora do nosso julgamento!

Odrade pensava nele como a prova viva de que um fanatismo suficientemente forte era capaz de sobreviver durante eras. Os Zensunni e os antigos Sufi sobreviviam nos Tleilaxu. Era como um vírus mortífero que tivesse permanecido incubado por todos esse milênios, esperando o hospedeiro certo para alimentar sua virulência.

“Que acontecerá com aquilo que plantei no clero Rakiano?”' ela se perguntava. Santa Sheeana era uma certeza.

Sheeana estava sentada num anel de seu Shaitan, o manto puxado para cima a fim de revelar suas canelas magras. Segurava o anel com ambas as mãos colocadas entre as pernas.

Sheeana contara que seu primeiro verme levara-a diretamente para Keen. Por que para lá? Será que o verme estava simplesmente levando-a para junto de sua própria gente?

Este aqui tinha certamente um objetivo diferente. Sheeana não mais o questionava e Odrade ordenara que ela ficasse em silêncio e praticasse o baixo transe. Isso pelo menos garantiria que os mínimos detalhes dessa experiência poderiam ser recuperados facilmente da memória dela. Se houvesse uma linguagem oculta entre Sheeana e o verme, elas descobririam depois.

Odrade olhou para o horizonte. O que restava da base da antiga muralha em torno do Sareer encontrava-se apenas alguns quilômetros à frente. Longas sombras partindo dessas elevações projetavam-se sobre as dunas, revelando a Odrade que esses restos eram mais altos do que ela havia suspeitado. Agora parecia um contorno partido e despedaçado ao longo do horizonte, com grandes pedras lançadas ao longo da base. A fenda onde o Tirano despencara de sua ponte para o rio Idaho estava bem à direita, pelo menos uns três quilômetros fora de seu caminho. Nenhum rio passava por lá agora.

Waff mexeu-se ao lado dela.

— Eu ouço teu chamado, ó Deus — exclamou ele. — É Waff dos Entio que ora em Teu Lugar Sagrado.

Odrade voltou a atenção para ele sem mover a cabeça. “Entio?” Suas outras Memórias conheciam um Entio, líder tribal dos grandes Peregrinos Zensunni, de uma época muito anterior a Duna. Que seria isso? Que antigas memórias esses Tleilaxu ainda manteriam vivas?

Sheeana quebrou seu silêncio.

— Shaitan está diminuindo a marcha.

Os restos da antiga muralha bloqueavam o caminho. Erguiam-se a uma altura de pelo menos uns 50 metros acima das dunas mais altas. O verme virou-se ligeiramente para a direita e passou entre duas rochas colossais que se erguiam em torno deles. Então parou, o longo dorso anelado paralelo a uma seção quase intacta da base da muralha.

Sheeana levantou-se e olhou para a barreira.

— Que lugar é este? — perguntou Waff.

A voz dele ergueu-se acima do som dos ornitópteros que circulavam lá no alto.

Odrade soltou as mãos cansadas do anel do verme e flexionou os dedos. Continuou agachada enquanto estudava o ambiente ao redor. Sombras das pedras derrubadas traçavam faixas de escuridão definidas sobre os montes de areia desmoronada e as pequenas rochas. Vista de perto, a muralha, a menos de 20 metros de distância, revelava fendas e aberturas, entradas negras para as suas antigas fundações.

Waff levantou-se, massageando as mãos.

— Por que fomos trazidos aqui? — perguntou ele, sua voz ligeiramente suplicante.

O verme contorceu-se.

— Shaitan deseja que saltemos — explicou Sheeana.

“Como é que ela sabe?”, perguntou-se Odrade. Os movimentos do verme não tinham sido suficientes para que nenhum deles caísse. Podia ter sido um reflexo depois de uma jornada muito longa.

Mas Sheeana se voltou para as antigas fundações da muralha, sentou-se na curva do verme e escorregou. Caiu agachada na areia macia.

Odrade e Waff avançaram até a frente do verme e observaram fascinados enquanto Sheeana caminhava com dificuldade através da areia até ficar diante da boca do animal. Lá ela colocou ambas as mãos na cintura e olhou para dentro da criatura, enquanto o brilho das chamas alaranjadas tremulava em seu rosto jovem.

— Shaitan, por que estamos aqui? — indagou ela.

Novamente o verme se agitou.

— Ele quer que vocês desçam — avisou ela.

Waff olhou para Odrade.

— Se Deus desejar que morras, fará com que teus passos o conduzam ao local de tua morte.

Odrade devolveu-lhe uma frase do canto de Shariat.

— Obedeça a mensageira de Deus em todas as coisas.

Waff suspirou. Havia dúvida, bem visível em seu rosto. Mas ele se virou e foi o primeiro a pular de cima do verme, bem na frente de Odrade. Eles seguiram o exemplo de Sheeana, andando até ficarem em frente à criatura. Odrade, com cada um de seus sentidos em alerta, fixou o olhar em Sheeana.

Era muito quente na frente da boca aberta. O cheiro familiar de melange enchia o ar em torno deles.

— Aqui estamos, ó Deus! — disse Waff.

Odrade, já muito cansada dessa admiração religiosa, deu uma olhada no lugar em que se encontravam — as rochas partidas, a barreira destruída pela erosão subindo ao encontro do céu do entardecer, a areia escorrendo em declives a partir das pedras marcadas pelo tempo, o lento ressecamento do calor vindo dos fogos internos do verme.

“Mas onde estamos?”, perguntou-se Odrade. “Que há de especial neste lugar para fazer dele o destino do verme?”

Quatro tópteros da escolta passaram em fileira acima. O som de suas asas e o sussurro dos jatos abafaram momentaneamente o rumor proveniente do interior do verme.

“Devo pedir que desçam?”, pensou Odrade. Seria preciso apenas um sinal com a mão. Em vez disso ela ergueu ambas as mãos, fazendo o sinal para que os observadores permanecessem no ar.

O frio da noite já tomava conta das areias. Odrade tremeu e ajustou seu metabolismo às novas exigências. Sentia-se confiante em que o verme não os engoliria na presença de Sheeana.

Sheeana virou as costas para a criatura.

— Ele quer que fiquemos aqui — explicou ela.

Como se suas palavras fossem uma ordem, o verme virou a cabeça para longe deles e deslizou através do grupo de pedras altas. Puderam ouvi-lo ganhar velocidade enquanto voltava para o deserto.

Odrade olhou para a base da antiga muralha. A escuridão logo os envolveria, mas ainda havia luz suficiente, no longo crepúsculo do deserto, para que pudessem procurar alguma explicação do motivo de aquela criatura tê-los levado até ali. Havia uma fenda comprida na rocha à direita que parecia um lugar melhor que qualquer outro para merecer uma investigação. Mantendo parte de sua atenção voltada para os sons de Waff e Sheeana, Odrade subiu a aclive de areia em direção à abertura escura. Sheeana acompanhou-a.

— Por que estamos aqui, Madre?

Odrade sacudiu a cabeça enquanto ouvia Waff seguindo-as.

A fenda diretamente à frente era uma sombria abertura para a escuridão. Odrade parou e segurou Sheeana para que ficasse ao lado dela. Calculava que a abertura tivesse um metro de largura e quatro vezes isso em altura. Os lados rochosos eram curiosamente lisos, como que polidos por mãos humanas. A areia tinha escorregado para dentro da abertura e a luz do Sol poente nela se refletia para dar a um dos lados dessa entrada um banho de ouro.

Waff disse atrás delas:

— Que lugar é este?

— Existem muitas cavernas antigas — explicou Sheeana. — Os Fremen escondiam a especiaria em cavernas. — Inalou profundamente. — Está sentido o cheiro, Madre?

Havia definitivamente um odor de melange naquele lugar, concordou Odrade. Waff passou por elas e entrou na fissura. Virou-se, olhando para as paredes no ponto em que elas se encontravam num ângulo agudo acima dele. Voltando-se para Odrade e Sheeana, recuou para dentro da abertura, a atenção concentrada nas paredes. Odrade e Sheeana avançaram para ficar mais perto dele e, com um súbito assovio de areia desmoronando, Waff desapareceu de suas vistas. Ao mesmo tempo, toda a areia em torno de Odrade e Sheeana escorregou para dentro da fissura, arrastando as duas enquanto Odrade segurava a mão de Sheeana.

— Madre! — gritou a jovem.

O som ecoou nas paredes de rocha, invisíveis na escuridão, enquanto elas desciam um longo declive de areia. A areia levou-as até parar num suave movimento. Odrade, enterrada até os joelhos, safou-se e puxou Sheeana para uma superfície mais firme.

Sheeana começou a falar, mas Odrade fez com que ela se calasse:

— Xii. Ouça!

Havia um movimento à esquerda.

— Waff?

— Estou enterrado até a cintura.

Havia terror na voz dele.

Odrade disse secamente:

— Deus deve querer assim. Saia daí com cuidado. Parece que temos rocha sob nossos pés. Cuidado agora! Não queremos outra avalanche.

Enquanto seus olhos se ajustavam à escuridão, Odrade olhou para o declive de areia por onde tinham caído. A abertura por onde haviam entrado era agora uma fenda distante, uma estilha de luz dourada lá em cima.

— Madre — sussurrou Sheeana —, estou apavorada.

— Recite a Litania contra o Medo — ordenou Odrade. — E fique quieta. Nossas amigas sabem onde estamos. Vão ajudar-nos a sair.

— Deus nos trouxe a este lugar — comentou Waff.

Odrade não respondeu. No silêncio, comprimiu os lábios e deu um assovio agudo, escutando para ouvir os ecos. Seus ouvidos indicaram-lhe que se encontravam num amplo espaço aberto com algum tipo de obstrução baixa atrás. Voltou as costas para a fenda estreita e deu outro assovio.

A barreira baixa encontrava-se a 100 metros de distância.

Odrade soltou a mão de Sheeana.

— Fique aqui mesmo, por favor, Waff.

— Eu ouço os tópteros — ele disse.

— Estamos ouvindo — disse Odrade. — Estão pousando. Vamos ter ajuda dentro em pouco. Enquanto isso, por favor, fiquem onde estão e permaneçam em silêncio. Preciso desse silêncio.

Assoviando e ouvindo os ecos, colocando cada um dos pés com cuidado, Odrade avançou na escuridão profunda. Uma de suas mãos estendidas encontrou uma superfície de rocha áspera. Ela tateou ao longo desse obstáculo. A altura chegava até sua cintura apenas. Não era capaz de sentir nada além. Os ecos de seus assovios indicavam tratar-se de um espaço menor adiante, parcialmente fechado.

Uma voz chamou de algum ponto alto atrás dela.

— Reverenda Madre? Está aí?

Odrade voltou-se, colocou as mãos em concha em torno da boca e gritou:

— Afastem-se! Escorregamos para dentro de uma grande caverna. Tragam uma luz e uma corda comprida.

Uma minúscula silhueta escura afastou-se na abertura distante. A luz lá em cima estava ficando cada vez mais fraca. Ela abaixou as mãos e falou para a escuridão:

— Sheeana? Waff? Avancem 10 passos e esperem.

— Onde estamos Madre? — perguntou Sheeana.

— Paciência, criança.

Um som baixo e murmurante vinha de Waff, e Odrade reconheceu as antigas palavras do Islamiyat. Ele estava rezando. Waff abandonara qualquer tentativa de lhe esconder suas origens. Ótimo. O crente era um receptáculo para ela encher com as dádivas da Missionária Protectiva.

Enquanto isso, as possibilidades desse local para onde o verme os trouxera deixavam Odrade excitada. Guiando-se com uma das mãos de encontro à pedra, explorou a barreira para a esquerda. O topo era bem liso em certos lugares. Escorregava para baixo na direção oposta. As Outras Memórias ofereceram-lhe uma súbita projeção.

“Bacia de recolhimento!”

Esse era um tanque Fremen para armazenagem de água. Odrade inalou profundamente, buscando umidade. O ar estava seco e cheio de pó.

Uma luz brilhante apareceu no alto da fissura e afastou a escuridão. Uma voz chamou lá de cima e Odrade a reconheceu como sendo de uma de suas Irmãs.

— Podemos vê-la.

Odrade recuou, afastando-se do muro baixo e se virando para olhar em torno. Waff e Sheeana encontravam-se a seis metros de distância, olhando em volta. A câmara era quase circular, com uns 200 metros de diâmetro. Uma cúpula de rocha erguia-se bem alto. Odrade examinou o muro baixo ao seu lado: sim, era uma bacia de recolhimento dos Fremen. Ela era capaz de discernir, no centro, a pequena ilha rochosa onde um verme cativo podia ser mantido, pronto a ser jogado na água. As Outras Memórias reproduziram as contorções daquela morte em agonia que produzia o veneno de especiaria para incendiar uma orgia Fremen.

Uma arcada baixa emoldurava mais escuridão do outro lado do tanque Odrade podia ver o vertedouro por onde a água era trazida para esse lugar, a partir de uma armadilha de vento. Haveria outras bacias de recolhimento por lá, todo um conjunto delas projetado para reter a riqueza de umidade de uma tribo ancestral. Odrade sabia o nome desse lugar agora.

— Sietch Tabr — sussurrou ela.

As palavras provocaram um fluxo de memórias úteis. Essa tinha sido a base de Stilgar nos tempos do Muad'Dib. “Por que aquele verme nos trouxe para o Sietch Tabr?”

Um verme conduzira Sheeana para a cidade de Keen. Outros teriam conhecimento dela? Que haveria para ser descoberto nesse lugar? Haveria pessoas escondidas lá dentro, na escuridão? Odrade não sentia qualquer sinal de vida naquela direção.

Sua Irmã na abertura interrompeu tais pensamentos.

— Tivemos que pedir uma corda em Dar-es-Balat! O pessoal do museu diz que este lugar é provavelmente o Sietch Tabr! Pensavam que tivesse sido destruído!

— Mande uma luz para que possamos explorá-lo — pediu Odrade.

— Os sacerdotes pedem que não perturbemos o local!

— Mande-me uma luz! — insistiu Odrade.

Dai a pouco um objeto escuro escorregou pelo declive de areia com um pequeno desmoronamento. Odrade mandou Sheeana buscá-lo. Um toque num botão e um brilhante raio de luz iluminou a escuridão da arcada além da bacia de recolhimento. Sim, havia outras bacias. E depois dessa em que estavam havia uma escadaria estreita, cortada na rocha. Os degraus conduziam para o alto, fazendo uma curva que os ocultava à visão.

Odrade abaixou-se e sussurrou no ouvido de Sheeana:

— Vigie Waff com cuidado. Se ele se mover atrás de nós, avise.

— Sim, Madre. Aonde vamos?

— Devo explorar este lugar. Fui eu a pessoa trazida aqui com um propósito.

Ela ergueu a voz e se dirigiu a Waff:

— Waff, por favor, espere aqui pela corda.

— Que foi que vocês andaram cochichando? — indagou ele. — Por que devo esperar? Que está fazendo?

— Estive rezando — respondeu Odrade. — Agora devo continuar esta peregrinação sozinha.

— Por que sozinha?

Na velha linguagem do Islamiyat, ela disse:

— Assim está escrito.

“Isso o deteve!”

Odrade saiu na frente, caminhando rapidamente para as escadarias.

Sheeana, correndo para manter o passo com ela, disse:

— Nós devemos contar ao povo a respeito deste lugar. As velhas cavernas Fremen são seguras contra Shaitan.

— Fique quieta, criança — censurou Odrade.

Ela apontou a luz para a escadaria. A escada curvava-se na rocha, fazendo um ângulo pronunciado para a direita e para cima. Odrade hesitou. O sentimento de advertência e perigo latente que ela sentira no início dessa aventura, intensificou-se. Era algo quase palpável dentro dela.

“Que haverá lá em cima?”

— Espere aqui, Sheeana — disse Odrade. — Não deixe Waff seguir-me.

— Como poderei detê-lo?

Sheeana olhou com medo para a câmara onde Waff se encontrava.

— Diga-lhe que Deus quer que ele permaneça aqui. Fale deste modo... — Odrade curvou-se junto ao ouvido de Sheeana e repetiu as palavras na antiga linguagem de Waff, depois acrescentou: — Não diga mais nada. Fique na frente dele e repita se ele tentar passar.

Sheeana repetiu as palavras baixinho. Tinha decorado, percebeu Odrade. Essa garota era rápida.

— Ele tem medo de você — explicou Odrade. — Não tentaria feri-la.

— Sim, Madre.

Sheeana virou-se, dobrou os braços sobre o peito e olhou através da câmara para Waff do outro lado.

Apontando a luz à sua frente, Odrade subiu a escadaria de rocha. “Sietch Tabr! Que surpresas guardou para nós aqui, velho verme?”

Num longo corredor no fim da escadaria, Odrade encontrou os primeiros cadáveres mumificados pelo deserto. Eram cinco, dois homens e três mulheres, sem roupas ou marcas de identificação. Alguém os despira e os deixara completamente nus para serem preservados pelo ar seco do deserto. O processo de desidratação havia esticado a pele por sobre ossos. Os corpos estavam sentados em fila, as pernas esticadas para o meio do corredor, e Odrade foi obrigada a pular por cima desses macabros obstáculos.

Lançou o facho da lanterna sobre cada corpo ao passar. Todos tinham sido apunhalados de modo quase idêntico. Uma lâmina havia penetrado bem abaixo do arco do esterno.

“Assassinatos rituais?”

A carne seca e perfurada tinha entrado nos ferimentos, deixando uma nódoa negra para marcá-los. Esses cadáveres não eram da época dos Fremen. Odrade sabia que os alambiques da morte dos Fremen transformavam os corpos em cinzas a fim de recuperar sua água.

Odrade examinou com a luz o corredor adiante e parou para considerar sua situação. A descoberta desses corpos intensificava seu sentimento de perigo. “Eu devia ter trazido uma arma.” Mas isso teria levantado as suspeitas de Waff.

A persistência desse aviso interior não podia ser esquecida. Essa relíquia do Sietch Tabr era perigosa.

O facho de luz revelou outra escadaria no final do corredor. Odrade avançou com cautela. No primeiro degrau, apontou a luz para cima. Degraus estreitos. Somente um lance pequeno, mais rochas e um espaço mais amplo lá em cima. Odrade virou-se e examinou com a luz esse corredor. Lascados e marcas de queimadura ao longo das paredes de rocha. Uma vez mais ela olhou para a escadaria.

“Que haverá lá em cima?”

Subiu devagar um degrau de cada vez, parando freqüentemente. Emergiu numa passagem maior, escavada na rocha nativa. Mais corpos a esperavam. Esses tinham sido abandonados em desarranjo nos seus momentos finais. Novamente Odrade viu apenas carne mumificada, sem roupas. Estavam espalhados ao longo da passagem ampla — 20 corpos. Odrade passou com cuidado no meio deles. Alguns tinham sido apunhalados do mesmo modo que os cinco no nível inferior. Outros tinham sido desmembrados, queimados e despedaçados por feixes de armas laser. Um fora decapitado e o crânio, com sua máscara de pele ressequida, encontrava-se junto da parede como uma bola abandonada depois de um jogo terrível.

Esse novo corredor conduzia diretamente à frente, passando pelas aberturas de pequenas câmaras em ambos os lados. Odrade não viu nada de valor nelas: alguns fios dispersos de fibra de especiaria, pequenas poças de rocha derretida, bolhas de rocha coagulada aparecendo às vezes nos pisos, nas paredes e no teto.

“Que violência foi essa?”

Manchas sugestivas podiam ser vistas no piso de algumas das câmaras. Sangue derramado? Uma câmara tinha um pequeno montinho de roupas escuras num canto. havia fragmentos de tecido rasgado aos pés de Odrade.

E havia o pó. Pó em toda parte. Seus pés erguiam-no ao passar.

A passagem terminava numa arcada que se abria para uma saliência na rocha. Odrade iluminou a câmara além dessa plataforma e viu um espaço enorme, bem maior do que aquele que deixara lá embaixo. O teto curvo subia a tamanha altura que devia entrar na base rochosa da Grande Muralha. Amplos degraus conduziam do alto dessa plataforma ao piso da câmara. Hesitantemente, Odrade desceu por eles e iluminou ao redor com seu facho de luz. Outras passagens saíam dessa grande câmara. Algumas, percebia ela, tinham sido bloqueadas por rochas, e algumas pedras ficavam espalhadas sobre o chão da câmara e da saliência rochosa acima.

Odrade cheirou o ar. Havia um perfume de melange na poeira agitada por seus pés. O cheiro penetrou em seu senso de perigo. Queria sair dali, voltar para junto dos outros. Mas o perigo era um farol a atraí-la. Tinha que descobrir para onde conduzia esse farol.

Sabia onde se encontrava. Essa era a grande câmara de reunião do Sietch Tabr, local de incontáveis orgias de especiaria dos Fremen e de conselhos tribais. Ali havia exercido a presidência o Naib Stilgar. Gurney Halleck estivera ali. Lady Jessica, Paul Muad'Dib, Chani, a mãe de Ghanima. Ali o Muad'Dib treinara seus guerreiros. O Duncan Idaho original tinha estado ali... e também o primeiro ghola Idaho!

“Por que fomos trazidos para cá? Qual é o perigo?”

Estava ali, bem ali! Podia senti-lo.

Nesse lugar o Tirano escondera um tesouro de especiaria. Os registros da Bene Gesserit revelavam que o tesouro tinha enchido toda essa câmara, até o teto, e muitas das passagens adjacentes.

Odrade virou-se, o olhar seguindo o caminho aberto pelo facho de luz. Lá estava a plataforma dos Naibs. E ali a Plataforma Real, mais ampla, que o Muad'Dib mandara construir.

“E lá está a arcada por onde entrei”

Examinou o piso com a lanterna, notando os locais onde grupos de caçadores de tesouros tinham lascado e queimado as rochas, buscando o resto do tesouro do Tirano. As Oradoras Peixes haviam levado a maior parte, o lugar em que fora oculto tendo sido revelado pelo ghola Idaho, que fora consorte da célebre Siona. Os registros diziam que exploradores subseqüentes tinham encontrado outros depósitos de melange atrás de pisos e paredes falsas. Havia muitos relatos autenticados a esse respeito, checados pelas Outras Memórias. Os Tempos da Fome tinham trazido muita violência a esse lugar, quando gente desesperada o conquistara. Isso poderia explicar os corpos. Muita gente havia lutado e morrido ali, buscando uma chance de procurar os tesouros do Sietch Tabr.

Como lhe tinham ensinado, Odrade tentou usar como guia seu senso de perigo. Será que o miasma da violência do passado ainda fazia parte dessas paredes depois de tantos milênios? Seu aviso não era a esse respeito, era uma advertência quanto a alguma coisa mais imediata. O pé esquerdo de Odrade sentiu um desnível no piso. A lanterna revelou uma linha escura na poeira. Espalhou a poeira com o pé revelando uma letra e depois uma palavra inteira gravada na pedra numa caligrafia fluida.

Odrade leu a palavra em silêncio e depois a repetiu em voz alta.

— Arafel.

Conhecia a palavra. As Reverendas Madres que tinham vivido nos tempos do Tirano, haviam-na deixado impressa na consciência da Bene Gesserit, suas origens recuando até ás fontes mais antigas.

— Arafel: a nuvem de escuridão no fim do universo.

Odrade sentiu uma acumulação sufocante de seu senso de perigo. Focalizava-se naquela única palavra.

“O julgamento sagrado do Tirano”, era como os sacerdotes chamavam essa palavra, “A nuvem escura do julgamento sagrado!”

Odrade caminhou em torno da palavra, fitando-a, notando a curva da caligrafia no final, que acabava formando uma pequena flecha. Olhou para onde a flecha apontava. No passado, outra pessoa tinha visto a flecha e escavado a saliência para onde ela apontava. Odrade aproximou-se do ponto em que a tocha do caçador de tesouros deixara um monte escuro de pedra derretida no piso da câmara. Fios de pedra derretida escorriam como dedos da saliência, cada qual partindo de um profundo orifício queimado na rocha.

Curvando-se, Odrade olhou dentro de cada buraco com a ajuda da lanterna:  nada! Sentia a excitação do caçador de tesouros misturando-se com o temor de seu pressentimento. A extensão da riqueza contida nessa câmara já tinha atordoado as imaginações. Na pior época dos tempos da escassez, uma valise carregada de melange era suficiente para se comprar um planeta. E as Oradoras Peixes tinham desperdiçado essa riqueza em disputas mesquinhas, enganos terríveis e rixas insignificantes demais para que a história as registrasse. Tinham ficado satisfeitas ao aceitarem a aliança com os Ixianos quando os Tleilaxu quebraram o monopólio da melange.

“Será que os caçadores encontraram tudo? O Tirano era de uma astúcia soberba. Arafel.”

“No fim do universo.”

Teria ele enviado uma mensagem através das eras para a Bene Gesserit dos dias atuais?

Odrade vasculhou a câmara com sua lanterna uma vez mais, depois apontou o facho para o alto.

O teto era uma cúpula perfeita. Fora concebido, Odrade sabia, como um modelo do céu noturno visto da entrada do Sietch Tabr. Mas mesmo no tempo de Liet Kynes, o primeiro planetólogo que chegara a esse lugar, as estrelas originais, pintadas no teto, já tinham desaparecido, perdidas durante pequenos tremores de terra e na abrasão diária da vida.

A respiração de Odrade acelerou-se. O sentimento de perigo nunca fora tão forte. O farol do perigo brilha dentro dela! Rapidamente, Odrade atravessou para o outro lado dos degraus por onde havia descido até esse piso. Voltando-se naquele ponto, deixou a mente recuar no tempo, fazendo as Outras Memórias iluminarem o lugar. Elas vieram lentamente, passando com dificuldade pelas sensações daquele coração batendo muito forte na antevisão do fim. Apontando o facho de luz para cima e olhando na direção dele, Odrade fez suas Outras Memórias sobreporem-se ao cenário diante dela.

“Fragmentos de brilho refletido!”

As Outras Memórias posicionaram-nos: representações de estrelas num céu há muito desaparecido, mostrando que fora bem ali! O semi-círculo prata-amarelado do sol de Arrakeen. Ela sabia que era o símbolo do poente.

“O dia do Fremen começa à noite.”

“Arafel!”

Mantendo o foco da lanterna sobre o marco do sol poente, Odrade subiu os degraus de costas e deu a volta na câmara até a posição exata que vira em suas Outras Memórias.

Nada restara daquele arco de sol ancestral.

Os caçadores de tesouros tinham escavado a parede no ponto onde estivera o marco. Bolhas de pedra fundida e solidificada brilhavam onde uma tocha passara ao longo da parede. Mas não conseguira penetrar na rocha original.

Por um aperto no peito, Odrade soube que se encontrava à beira de uma perigosa descoberta. O farol a conduzira até ali!

“Arafel... nas bordas do universo. Além do sol poente!”

Odrade moveu a luz para a direita e para a esquerda. A entrada de outra passagem abria-se à esquerda. As pedras que a tinham bloqueado encontravam-se espalhadas até as bordas. Com o coração batendo forte, Odrade escorregou pela abertura e encontrou um pequeno trecho da passagem, fechada com rochas derretidas no final. A sua direita, diretamente embaixo do local onde estivera a marca do sol poente, encontrou um pequeno compartimento cheio do odor de melange. Odrade entrou e viu mais indícios de paredes lascadas e meio derretidas. O perigo era opressivo. Odrade cantou em silêncio a Litania contra o Medo, enquanto vasculhava o cubículo com seu facho de luz. O lugar era quase quadrado, com dois metros de cada lado. O teto encontrava-se a menos de meio metro acima de sua cabeça. O cheiro de canela pulsava em suas narinas. Odrade espirrou e, piscando os olhos, viu uma pequena descoloração no piso ao lado do portal.

Mais marcas de uma busca muito antiga?

Curvando-se e colocando a luz em ângulo reto, percebeu ter vislumbrado apenas a sombra de uma coisa gravada profundamente na rocha. A poeira escondera a maior parte. Odrade ajoelhou-se e raspou a poeira. Uma inscrição profunda e fina. O que quer que fosse, fora destinada a durar. A última mensagem de uma Reverenda Madre perdida? Esse era um artifício conhecido da Bene Gesserit. Pressionou as pontas sensíveis de seus dedos contra a marca da inscrição e a reconstruiu em sua mente.

O reconhecimento saltou em sua consciência: um palavra escrita na antiga linguagem Chakobsa   “Aqui”.

Não era um “aqui” comum assinalando um lugar qualquer, mas um “aqui” enfático que dizia: “Você me encontrou!” O coração de Odrade, batendo forte, enfatizava isso.

Colocou a lanterna no piso a seu lado e explorou com a mão o antigo portal. A pedra parecia contínua aos seus olhos, mas os dedos detectavam uma minúscula descontinuidade. Pressionou a descontinuidade, girou-a, torceu-a. Mudou várias vezes o ângulo da pressão e repetiu o esforço.

Nada.

Sentando-se de cócoras, Odrade estudou a situação.

“Aqui”.

O sentimento de advertência tornara-se mais agudo. Podia senti-lo agora como uma pressão sobre sua respiração.

Recuando um pouco, Odrade afastou a luz e se deitou no piso para olhar ao longo da base do portal. “Aqui!” Será que poderia colocar uma ferramenta ao lado daquela palavra e empurrar a beirada do portal? Não... não havia qualquer indicação de uma ferramenta. Essa coisa tinha o cheiro do Tirano, não de uma Reverenda Madre. Tentou empurrar o portal de lado. Nada se moveu.

Percebendo as tensões e o sentimento de perigo acentuados pela frustração, Odrade levantou-se e chutou o portal ao lado da palavra gravada. E aquilo se moveu! Alguma coisa raspou a areia logo acima de sua cabeça.

Odrade recuou enquanto a areia se derramava no piso diante dela e um som trovejante enchia a pequena câmara. As pedras sacudiam-se sob seus pés. Então o piso inclinou-se para a frente, sob a porta, abrindo um espaço entre a parede e a entrada.

Uma vez mais Odrade se viu a rolar para baixo em direção ao desconhecido. Sua lanterna caíra com ela, o facho rolando interminavelmente. Viu montes de uma substância castanho-avermelhada à sua frente, o cheiro de canela enchendo-lhe as narinas.

E caiu ao lado da lanterna sobre um monte macio de melange. A abertura através da qual despencara encontrava-se agora fora do alcance, uns cinco metros acima. Odrade apanhou a lanterna e o facho de luz revelou amplos degraus de pedra cortados na rocha ao lado da abertura. Havia alguma coisa escrita nos degraus, mas para Odrade o importante era a existência de uma saída. O pânico inicial diminuiu, mas o senso de perigo a deixara sem fôlego, forçando os movimentos de seus músculos do tórax.

Projetou o facho de luz para a direita e para a esquerda. Era um compartimento comprido, diretamente abaixo do corredor que partia da grande câmara. E em todo o seu comprimento havia melange empilhada!

Odrade apontou com a luz para o alto e percebeu por que nenhum caçador de tesouros, sondando o piso com pancadas, havia descoberto esse lugar. Havia escoras de pedra cruzando sobre o teto, de modo a transferirem todo o peso para as paredes rochosas. Qualquer pessoa que sondasse com batidas lá em cima ouviria apenas os sons de rocha sólida.

Uma vez mais Odrade olhou para a melange à sua volta. Mesmo aos preços atuais, desinflacionados, sabia estar em cima de um tesouro. Um tesouro de muitas toneladas.

“Seria este o perigo?”

O senso de advertência dentro dela continuava tão agudo quanto antes. A melange do Tirano não era o que devia temer. O triunvirato faria uma divisão justa desse tesouro e isso seria o fim dele. Um bônus do projeto ghola.

Outro perigo permanecia. Odrade não podia escapar ao sentimento de advertência.

Uma vez mais lançou o facho de luz sobre os montes de melange. E sua atenção foi captada por um trecho de parede acima da especiaria. Mais palavras! Escritas em Chakobsa, numa caligrafia fina feita por um cortador, a mensagem dizia:

 

UMA REVERENDA MADRE VAI LER MINHAS PALAVRAS!

 

Alguma coisa fria acomodou-se nas entranhas de Odrade. Caminhou para a direita com a lanterna, avançando através de melange suficiente para resgatar um império. havia um acréscimo à mensagem:

 

EU DEIXO PARA VOCÊS MEU MEDO E MINHA SOLIDÃO. E A VOCÊS ENTREGO A CERTEZA DE QUE O CORPO E A ALMA DA BENE GESSERIT ENCONTRARÃO O MESMO DESTINO DE TODOS OS OUTROS CORPOS E TODAS AS OUTRAS ALMAS.

 

Havia outro parágrafo da mensagem atraindo sua atenção à direita deste aqui. Odrade avançou ao longo das inscrições, parando para ler.

 

DE QUE SERVE A SOBREVIVÊNCIA SE VOCÊ NÃO SOBREVIVE INTEGRO? PERGUNTE ISSO À BENE TLEILAX! DE QUE VALE SE NÃO É CAPAZ DE OUVIR A MÚSICA DA VIDA? MEMÓRIAS NÃO BASTAM, A MENOS QUE POSSA USÁ-LAS PARA UM NOBRE PROPÓSITO.

 

Havia mais inscrições na parede mais estreita da longa câmara. Odrade tropeçou na melange e se ajoelhou para ler:

 

POR QUE SUA IRMANDADE NÃO CONSTRUIU O CAMINHO DOURADO? VOCÊS CONHECIAM A NECESSIDADE. SEU FRACASSO CONDENOU A MIM, O IMPERADOR-DEUS, A MILÊNIOS DE AGONIA PESSOAL.

 

As palavras “Imperador-Deus” não estavam na linguagem Chakobsa e sim no idioma do Islamiyat, onde transmitiam um segundo significado explícito a qualquer pessoa que dominasse o idioma.

“Teu Deus e teu Imperador porque assim me fizeste.”

Odrade sorriu amargamente. Isso lançaria Waff num frenesi religioso! E quanto mais ele afundasse nisso, mais fácil seria abalar sua segurança.

Odrade não duvidava da precisão da acusação que ali era feita pelo Tirano, nem do potencial de sua previsão quanto ao modo como a Irmandade poderia terminar. O senso de perigo a atrairá para esse lugar com toda a precisão. Alguma coisa mais estivera agindo igualmente. Os vermes de Rakis ainda se moviam segundo os ritmos ancestrais do Tirano. Ele poderia dormitar em seu sonho interminável, mas uma vida monstruosa, uma pérola em cada verme para lembrá-lo, seguia exatamente como o próprio Tirano havia previsto.

Que será que ele contara à Irmandade em sua época? Odrade relembrou as palavras:

 

Quando eu tiver desaparecido, eles me chamarão de Shaitan,

Imperador de Gehenna.

A roda deve girar, e girar no Caminho Dourado.

 

Sim, fora isso que Taraza quisera dizer.

Não percebem? O povo simples de Rakis chama-o de Shaitan há mais de mil anos!

Então Taraza sabia disso. Sem nunca ter visto essas palavras, ela as tinha visto.

“Percebo seu propósito, Taraza. E agora conheço a carga de medo que tem transportado por todos esses anos. Posso sentir como sente.”

Odrade soube então que aquele sentimento de perigo não terminaria enquanto ela não morresse ou a Irmandade desaparecesse. A menos que o perigo fosse conjurado.

Ergueu a luz, colocou-se de pé e andou através da melange para os amplos degraus que conduziam para fora desse lugar. Nos degraus, recuou. Havia mais palavras do Tirano inscritas em cada um deles. Trêmula, Odrade as leu enquanto subia em direção à abertura.

 

MINHAS PALAVRAS SÃO TEU PASSADO,

MINHAS PERGUNTAS SÃO SIMPLES:

COM QUEM VOCÊS SE ALIARAM?

COM OS AUTO-IDÓLATRAS DE TLEILAX?

COM A BUROCRACIA DE MINHAS ORADORAS PEIXES?

COM A CORPORAÇÃO QUE VAGUEIA PELO COSMO?

COM OS HARKONNEN E SEUS SACRIFÍCIOS DE SANGUE?

OU COM O POÇO DOGMÁTICO DE SUAS PRÓPRIAS CRIAÇÕES?

COMO VOCÊS VÃO TERMINAR?

COMO NADA MAIS QUE OUTRA SOCIEDADE SECRETA?

 

Odrade subiu, ultrapassando as perguntas e lendo-as pela Segunda vez. “Um nobre propósito?” Isto era sempre uma coisa muito frágil. E facilmente distorcida. Mas o poder permanecia, imerso em constante perigo. Estava escrito nas paredes e degraus dessa câmara. Taraza sabia o significado sem que lhe precisassem explicar. A mensagem do Tirano era clara: “Unam-se a mim.”

Enquanto saía para a pequena câmara, encontrando uma saliência estreita ao longo da qual pôde apoiar-se para alcançar o portal, Odrade olhou para baixo, na direção do tesouro que encontrara. Sacudiu a cabeça, admirada ante a sabedoria de Taraza. Era assim que a Irmandade poderia acabar. O projeto de Taraza era claro, todas as peças encaixando-se agora. Nada certo ainda. Riqueza e poder, no fim tudo se resumia a isso. O nobre propósito tivera seu início e devia ser completado mesmo que significasse a morte da Irmandade.

“Que toscas ferramentas escolhemos!”

Aquela menina esperando lá fora, na câmara profunda debaixo do deserto. Aquela menina e o ghola que estava sendo preparado em Rakis.

“Eu falo agora seu idioma, velho verme. Ele não tem palavras, mas eu o conheço.”

“Nossos pais comeram o maná do deserto

 

No lugar escaldante de onde brotam os redemoinhos.

Deus, salve-nos daquela terra terrível!

Salve-nos, oh, salve-nos

Daquela terra seca e sedenta.

 

— Canções de Gurney Halleck; Museu de Dar-es-Balat”

 

Teg e Duncan, ambos fortemente armados, saíram do não-globo, seguidos por Lucilla, na hora mais fria da noite. As estrelas eram pontos finos de luz acima e o ar estava absolutamente quieto até que os três o perturbaram com sua passagem.

O cheiro dominante nas narinas de Teg era o ranço bolorento da neve, presente em cada inspiração. Quando eles exalavam, nuvens de vapor expandiam-se em torno dos seus rostos.

Lágrimas de frio surgiram nos olhos de Duncan. Estivera pensando muito no velho Gurney enquanto se preparavam para deixar o não-globo. Gurney com sua face marcada pela cicatriz de um chicote inkvine dos Harkonnen. Amigos de confiança seriam necessários agora, pensou Duncan. Não confiava muito em Lucilla, e Teg estava muito velho. Podia ver os olhos de Teg cintilando à luz das estrelas.

Pendurando no ombro uma pesada e antiga arma laser, Duncan enfiou as mãos nos bolsos, buscando aquecê-las. Tinha se esquecido de como podia fazer frio nesse planeta. Lucilla parecia imune ao frio, obviamente obtendo calor de algum de seus truques de Bene Gesserit.

Olhando para ela Duncan reconheceu que nunca confiara muito nas bruxas, nem mesmo em Lady Jessica. Era muito fácil considerá-las traidoras, destituídas de qualquer lealdade, exceto para com sua Irmandade. Elas tinham truques secretos em demasia!  Mas Lucilla desistira de seu comportamento sedutor. Sabia que ele fora sincero em suas ameaças. Podia sentir a raiva dela fervendo. “Deixe que ferva!”

Teg estava muito quieto, toda a sua atenção voltada para o exterior, ouvindo. Seria sensato confiar no único plano que tinha concatenado com Burzmali? Não tinham qualquer alternativa. Fazia mesmo oito dias que tinham decidido seguir em frente com essa idéia? Parecia mais tempo, apesar da pressa dos preparativos. Olhou para Duncan e Lucilla. Duncan levava consigo uma arma laser pesada, um comprido modelo de campo dos Harkonnen. Até mesmo os cartuchos extras de energia eram pesados. Lucilla não aceitara carregar nada além de uma pequena pistola laser em seu corpete. A arma só era capaz de uma rápida descarga. Um brinquedo de assassino.

— Nós da Irmandade somos conhecidas por entrarmos em combate tendo apenas nossas habilidades como armas — ela explicou. — Humilha-nos qualquer modificação nesse padrão.

Mas ela tinha facas em bainhas ocultas nas pernas. Teg tinha visto. Suspeitava de que fossem envenenadas.

Ergueu nas mãos a comprida arma laser um moderno laser de campo que trouxera do Castelo. Sobre o ombro tinha outro laser, idêntico ao que Duncan carregava.

“Devo confiar em Burzmali”, pensou Teg. “Eu o treinei, conheço sua capacidade. Se diz que devemos confiar em nossos novos aliados, devemos confiar neles.”

Burzmali obviamente estava entusiasmado por encontrar seu antigo comandante vivo e em segurança.

Entretanto, nevara desde seu último encontro e a neve estava por toda parte em torno deles. Seus rastros ficariam nítidos sobre a neve, algo com que não tinham contado. Haveria traidores no Serviço de Controle do Clima?

Teg tremia. O ar estava frio demais. Parecia o frio do espaço, vazio e dando livre acesso à luz das estrelas sobre o bosque em torno deles.

A luz fraca refletia-se do solo branco de neve e das rochas cobertas por minúsculos flocos gelados. Silhuetas negras de coníferas e dos ramos sem folhas de árvores secas exibiam apenas seus contornos difusos. Tudo mais era uma sombra profunda.

Lucilla soprou nos dedos e se inclinou para junto de Teg, sussurrando:

— Ele já não devia estar aqui a esta altura?

Teg sabia que essa não era a verdadeira dúvida: “Podemos confiar em Burzmali?” Era essa a pergunta. Ela a estivera fazendo, de um modo ou de outro, desde que Teg lhe explicara o plano, oito dias atrás.

Tudo que ele pôde dizer foi:

— Apostei minha vida nisso.

— Nossas vidas também!

Teg também não gostava das incertezas acumuladas, mas todos os planos dependiam, em última análise, do talento das pessoas que os executavam.

— Você é uma das pessoas que insistiram em que saíssemos daqui e fôssemos para Rakis — lembrou-lhe.

Esperava que ela pudesse perceber-lhe o sorriso, um gesto para tirar a acusação de suas palavras.

Lucilla não se deixava apaziguar. Teg nunca tinha visto uma Reverenda Madre tão visivelmente nervosa. E ela estaria mais nervosa ainda se soubesse quem eram seus novos aliados! É claro que havia o fato de Lucilla ter fracassado em realizar a missão que lhe fora confiada por Taraza. Como isso devia incomodá-la!

— Nós fizemos o juramento de proteger o ghola — lembrou-lhe Lucilla.

— Burzmali também fez o mesmo juramento.

Teg olhou para Duncan, silencioso entre eles. Duncan que não demonstrava o menor sinal de ter ouvido a discussão ou de compartilhar do nervosismo. Uma ancestral serenidade mantinha suas feições imóveis. Ele estava escutando os sons noturnos, percebia Teg, fazendo o que todos os três deviam estar fazendo agora. Suas feições jovens tinham uma aparência curiosa, a denotar uma maturidade que não dependia da idade.

“Se algum dia precisei de companheiros em que pudesse confiar, esse dia é hoje”, pensava Duncan. Sua mente recuara no tempo para sondar suas raízes pré-ghola, da época de Giedi Prime. Essa era o que eles chamavam de “uma noite dos Harkonnen”. Seguros dentro do abrigo morno de suas armaduras, flutuando em suspensores, os Harkonnen divertiam-se caçando seus súditos em noites como essa. Um fugitivo ferido podia morrer enregelado. “Os Harkonnen sabiam! Malditas sejam suas almas!”

Previsivelmente, Lucilla captou a atenção de Duncan com um olhar que dizia: “Temos negócios a terminar, você e eu.”

Duncan voltou o rosto para o céu estrelado, certificando-se de que ela pudesse ver-lhe o sorriso, uma expressão desafiadora e madura que fazia Lucilla ficar rija por dentro. Tirou a pesada arma laser do ombro e checou-a. Notou os arabescos ao longo da coronha e do cano. Era uma antigüidade, mas ainda possuía um mortal senso de propósito. Duncan apoiou-a sobre o braço esquerdo, a mão direita na empunhadura, o dedo no gatilho, exatamente como Teg carregava a sua moderna arma.

Lucilla voltou as costas aos companheiros e sondou com seus sentidos a encosta da colina acima e abaixo deles. Subitamente, enquanto caminhavam, o som veio de todas as partes em volta. Ruídos tomaram conta da noite — o rolar de alguma coisa grande à direita, depois silêncio. Outro ruído colina abaixo, depois novamente o silêncio. Lá de cima, de todos os lados, vinham ruídos súbitos.

Ao primeiro som, os três se haviam agachado no abrigo das rochas, fora da entrada da caverna do não-globo.

Os sons que enchiam a noite eram indefinidos: um clamor penetrante, em parte mecânico, em parte guinchos, uivos e assovios. Intermitentemente, uma batida subterrânea fazia o chão vibrar.

Teg conhecia esses sons. Havia uma batalha ocorrendo em algum lugar distante. Podia ouvir o assoviar dos queimadores ao fundo e, no céu distante, os raios de armas laser blindadas lancetando o espaço.

Alguma coisa relampejou acima deles, deixando um rastro de centelhas azuis e vermelhas. Depois outra e mais outra! A terra tremeu. Teg inalou, sentindo um cheiro de ácido queimando e um toque de alho.

“Não-naves! Muitas delas!”

Estavam pousando no vale abaixo do antigo não-globo.

— De volta para dentro! — ordenou Teg.

Ao falar, percebeu que já era muito tarde. Havia gente correndo para eles de todas as direções. Teg ergueu a comprida arma laser e a apontou colina abaixo, em direção à fonte de ruído mais alta e ao mais próximo movimento detectável. Muitas pessoas podiam ser ouvidas gritando naquele ponto. Globos luminosos livres moviam-se entre as árvores, soltos por quem quer que estivesse avançando. As luzes dançantes subiam a colina numa brisa fria. Silhuetas negras moviam-se nessa iluminação mutável.

— Dançarinos Faciais! — grunhiu Teg ao reconhecer os atacantes. Aquelas luzes ao vento sairiam do meio das árvores em questão de segundos para se colocarem em posição em menos de um minuto!

— Fomos traídos! — disse Lucilla.

Um grito ergueu-se da colina acima deles:

— Bashar!

Eram muitas vozes!

“Burzmali?”, perguntou-se Teg. Olhou de volta na direção do grito, depois para os Dançarmos Faciais que avançavam implacavelmente. Não havia tempo para escolher. Inclinou-se em direção a Lucilla.

— Burzmali está acima de nós. Pegue Duncan e corra!

— Mas e se...

— É sua única chance!

— Seu tolo! — acusou ela enquanto se virava para obedecer.

O “sim!” de Teg não diminuiu nem um pouco seus temores. Era nisso que dava ficar dependendo dos planos dos outros!

Duncan tinha outros pensamentos. Entendia o que Teg estava a ponto de fazer. Ia sacrificar-se para que eles dois pudessem escapar. Duncan hesitou, olhando para os atacantes que avançavam abaixo deles.

Percebendo sua hesitação, Teg gritou-lhe:

— Isto é uma ordem de batalha! Eu sou seu comandante!

Era a coisa mais próxima da Voz que Lucilla já ouvira partindo de um homem. Ficou boquiaberta diante de Teg.

Duncan viu apenas o rosto do seu Velho Duque dizendo-lhe que obedecesse. Era demais. Agarrou o braço de Lucilla, mas, antes de subir correndo com ela pela colina, disse:

— Mandaremos fogo de cobertura assim que tivermos escapado!

Teg não respondeu. Agachou-se ao lado de uma rocha coberta de neve enquanto Lucilla fugia com o rapaz. Sabia que precisava vender muito caro a sua pele agora. E havia algo mais: “O inesperado.” A assinatura final do velho Bashar.

Os atacantes avançavam com rapidez, trocando gritos excitados.

Ajustando a comprida arma laser para a intensidade máxima de feixe, Teg apertou o gatilho. Um arco flamejante varreu a colina abaixo dele. Arvores explodiram em chamas, gente gritou. A arma não funcionaria muito tempo nesse nível de descarga, mas a carnificina que produzia obtinha o efeito desejado.

No silêncio abrupto depois da primeira descarga, Teg mudou de posição para outra rocha à sua esquerda e novamente lançou sua flecha cauterizante sobre a face negra da colina. Somente alguns dos globos luminosos soltos tinham sobrevivido ao golpe da violência inicial, com todas as árvores tombando e corpos desmembrados.

Outros gritos responderam ao segundo contra-ataque. Teg virou-se e correu por cima das rochas para o lado oposto à caverna de acesso ao não-globo. De lá, lançou fogo sobre a colina oposta. Mais gritos, mais chamas e árvores caindo.

O inimigo não respondia ao fogo.

“Querem nos pegar vivos!”

Os Tleilaxu estavam dispostos a sacrificar o número que fosse necessário de Dançarinos Faciais para esgotar as cargas de sua arma laser!

Teg ajustou a alça da velha arma Harkonnen para uma posição melhor, a tiracolo sobre o ombro, deixando-a pronta a entrar em ação. Jogou fora a carga quase vazia de sua laser moderna, recarregou-a e apoiou a comprida arma sobre as rochas. Duvidava de que tivesse chance de recarregar a outra arma. Que eles lá embaixo pensassem que ficara sem cartuchos de recarga. Ainda havia duas pistolas Harkonnen em seu cinturão, como último recurso. Seriam bem potentes a curta distância. E alguns dos Mestres Tleilaxu, aqueles que tinham ordenado tal carnificina, podiam chegar perto. Que chegassem.

Cautelosamente, Teg ergueu a arma longa de cima das rochas e caminhou para trás, subiu para as rochas mais elevadas, escorregou para a esquerda e então para a direita. Parou duas vezes para varrer a colina abaixo com curtas descargas da arma, fingindo estar poupando energia. Não havia sentido em tentar ocultar seus movimentos agora. Eles deviam ter um rastreador de vida grudado nele a essa altura, e além disso haveria os rastros na neve.

“O inesperado!” Como fazer com que se aproximassem mais?

Bem acima da caverna de acesso ao não-globo, ele encontrou um bolsão profundo nas rochas, o fundo cheio de neve. Mergulhou nessa posição, admirando o ótimo campo de tiro que lhe proporcionava, as costas protegidas por altos penhascos e o declive da colina aberto em três direções. Teg ergueu a cabeça com cautela e tentou enxergar além da barreira de rochas acima.

Estava tudo quieto por lá

Será que aquele grito tinha vindo mesmo do pessoal de Burzmali? Mesmo que tivesse, não havia garantia alguma de que Duncan e Lucilla pudessem escapar nessas circunstâncias. Agora tudo dependia de Burzmali.

“Será que ele é tão cheio de expedientes quanto pensei que fosse?”

Agora não havia tempo de estudar as possibilidades ou mudar um elemento sequer dessa situação. Tinha que enfrentar a batalha, não havia meio de recuar. Teg inspirou fundo e olhou colina abaixo.

Sim, eles tinham se recuperado e estavam avançando de novo. Agora sem globos luminosos para indicar seu progresso e andando em silêncio. Não havia mais gritos de encorajamento. Teg apoiou sua comprida arma laser sobre a rocha diante dele e deu uma descarga longa, varrendo para a direita e a esquerda. Depois deixou a arma apagar-se no final, numa óbvia perda de carga.

Tirou a velha arma Harkonnen de sobre o ombro, preparou-a e esperou em silêncio. Agora eles iriam esperar que ele fugisse, subindo a colina às carreiras. Agachou-se atrás da barreira de rochas, esperando que houvesse movimento suficiente acima para confundir os detectores de vida. Ainda ouvia os movimentos na colina arrasada pelo fogo. Em silêncio contou os minutos, calculando a distância e o tempo que ele sabia, com sua longa experiência, que os atacantes levariam para se colocar outra vez ao alcance do fogo. Ouvia com cuidado, esperando outro som que conhecia de combates anteriores com os Tleilaxu: as ordens bruscas em vozes num tom agudo.

Lá estavam!

Os Mestres estavam bem mais abaixo na colina do que tinha esperado. Terríveis criaturas! Teg ajustou a velha arma para a potência máxima de feixe e se ergueu de repente de sua proteção nas rochas.

Viu o arco de Dançarinos Faciais avançando sob o luz do capim e das árvores em chamas. O som agudo das vozes dos comandantes vinha de bem detrás do avanço, fora da área de bruxuleantes luzes alaranjadas provocadas pelo incêndio.

Apontando acima das cabeças dos atacantes mais próximos, Teg visou além da confusão de chamas e apertou o gatilho — duas longas descargas, para a frente e para trás. Ficou surpreso momentaneamente com a energia destrutiva contida na antiga arma. A coisa era obviamente o produto de um artesão soberbo, mas não houvera meio de testá-la dentro do não-globo.

Dessa vez os gritos tinham um tom diferente: altos e frenéticos!

Teg abaixou a pontaria e limpou a região mais próxima da colina de qualquer Dançarino Facial, deixando cair sobre eles toda a potência do feixe e revelando carregar mais de uma arma. Para um lado e para o outro, lançou o arco mortal, dando aos atacantes tempo suficiente para verem a carga terminar.

Agora! Eles seriam bem mais cautelosos depois disso. Podia haver uma chance de se unir a Duncan e Lucilla. Com esse pensamento em sua mente, Teg virou-se e correu, subindo as rochas colina acima. No quinto passo, julgou ter batido numa barreira quente. Sua mente teve tempo de reconhecer o que tinha acontecido: a descarga chocante de um atordoador, atingindo-o direto no rosto e no peito! Vinha diretamente do alto da colina, para onde mandara Duncan e Lucilla. A mágoa dominou Teg enquanto ele mergulhava na escuridão.

Outros também podiam fazer o inesperado!

 

Todas as religiões organizadas enfrentam um problema comum, um ponto frágil que podemos atingir para alterá-las de acordo com nossos propósitos: como elas distinguem revelação de presunção?

 

— Missionaria Protectiva, Ensinamentos Secretos

 

Odrade mantinha sua atenção cuidadosamente afastada do verde frio do quadrilátero abaixo, onde Sheeana se sentara com uma das Irmãs Instrutoras. A Irmã era uma das melhores, precisamente adequada a essa fase da educação de Sheeana. Taraza as escolhia com muito cuidado.

“Nós prosseguimos com nosso plano”, pensou Odrade. “Mas terá antecipado, Madre Superiora, como poderíamos ficar marcadas por uma descoberta casual aqui em Rakis?”

Teria sido mesmo casual?

Odrade dirigiu o olhar para os telhados dos prédios, em direção à fortaleza central da Irmandade em Rakis. Azulejos coloridos cozinhavam ao calor do sol do meio-dia.

“Tudo isso é nosso.”

Era a maior embaixada que os sacerdotes permitiam em sua sagrada cidade de Keen. E a presença dela nessa fortaleza da Bene Gesserit desafiava o acordo que fizera com Tuek. Mas isso fora antes das descobertas no Sietch Tabr. Além disso, Tuek não existia mais, não realmente. O Tuek que andava pelos recintos reservados ao clero era um Dançarino Facial desempenhando um papel numa farsa precária.

Odrade voltou os pensamentos para Waff, que aguardava, com duas Irmãs Guardiãs atrás dele, perto da porta dessa cobertura-abrigo. Uma cobertura com ótima visão proporcionada por janelas de plaz blindado e um impressionante mobiliário preto, na qual uma Reverenda Madre com seus mantos poderia confundir-se ficando apenas a tonalidade mais clara de sua face visível a um visitante.

Teria avaliado Waff corretamente? Tudo fora feito precisamente de acordo com os ensinamentos da Missionaria Protectiva. Teria aberto uma fenda suficientemente grande em sua armadura psíquica? Logo iria fazê-lo falar e então saberia.

Waff esperava com bastante calma. Podia ver o reflexo dele no plaz da janela. Não demonstrava qualquer sinal de estar percebendo que as duas Irmãs altas, de cabelos escuros, a flanqueá-lo, estavam lá para conter sua possível violência. Mas ele certamente saberia.

“São minhas guardiãs, não dele.”

Ele mantinha a cabeça abaixada para ocultar suas feições do olhar dela, mas Odrade sabia de sua incerteza. Disso estava segura. Dúvidas podiam ser como animais famintos, e ela alimentara muito bem aquelas dúvidas esfomeadas. Waff acreditava firmemente em que a jornada pelo deserto poderia trazer-lhe a morte. Suas crenças Zensunni e Sufi diziam-lhe agora que Deus o pouparia nesse lugar.

Com certeza estaria reavaliando seu acordo com a Bene Gesserit, percebendo afinal o modo como comprometera sua gente, como colocara sua preciosa civilização Tleilaxu num perigo terrível. Sim, sua falsa compostura o estava deixando esgotado, mas apenas olhos Bene Gesserit podiam detectar isso. logo seria a ocasião adequada para começar a reconstruir sua consciência de acordo com um padrão mais simpático às necessidades da Irmandade. Que ele cozinhasse um pouquinho mais.

Odrade voltou a atenção para a vista da janela, carregando com mais suspense o seu atraso. A Bene Gesserit. escolhera esse local para sua embaixada devido ao extenso trabalho de reconstrução que modificara a parte nordeste da velha cidade. Ali elas podiam construir e remodelar as coisas a seu modo e de acordo com seus propósitos. Antigas estruturas projetadas para permitir fácil acesso a pessoas a pé, amplas passagens para carros de solo oficiais e praças onde ornitópteros podiam pousar — tudo isso fora mudado.

“De acordo com os novos tempos.”

Esses novos prédios ficavam muito mais perto das avenidas flanqueadas de plantas verdes cujas árvores, altas e exóticas, alardeavam um enorme dispêndio de água. Os tópteros ficavam relegados às plataformas de pouso nos terraços de prédios selecionados. As faixas para pedestres restringiam-se a estreitas vias elevadas junto dos prédios. Fendas elevadoras, operadas através de moedas, chaves e identificadores das linhas das palmas das mãos tinham sido inseridas nos novos prédios, seus campos de energia brilhante cobertos por placas de cor marrom-escura, levemente transparentes. Essas fendas elevadoras eram como espinhas de cor escura no cinza plano do plascreto e no plaz dos prédios. Os seres humanos, apenas vislumbrados a subirem e descerem nesses tubos, pareciam impurezas manchando salsichas puramente mecânicas.

“Tudo em nome da modernização.”

Waff mexeu-se atrás dela e pigarreou.

Odrade não se voltou. As duas guardiãs sabiam o que ela estava fazendo e continuaram impassíveis. O crescente nervosismo de Waff era demonstração de que tudo corria como planejado.

Mas Odrade sentia que nem tudo estava correndo verdadeiramente como esperado.

Interpretava a visão das janelas como outro sintoma inquietante nesse planeta inquietante. Tuek, lembrava ela, não gostara dessa modernização de sua cidade. Queixara-se que era preciso encontrar um meio de parar com ela para preservar os antigos marcos. Seu substituto Dançarino Facial continuava com essa discussão.

Como esse novo Dançarino Facial se parecia com o próprio Tuek.

Será que tais Dançarinos Faciais tinham pensamentos próprios ou apenas desempenhavam um papel de acordo com as ordens de seus Mestres? Seriam também estéreis esses novos? O quanto seriam diferentes dos verdadeiros seres humanos?

Coisas relacionadas com a dissimulação preocupavam Odrade.

Os conselheiros do falso Tuek, aqueles inteiramente envolvidos com o que definiam como “a trama Tleilaxu”, falavam do apoio público à modernização e se gabavam abertamente de que seus pontos de vista tinham encontrado um caminho aberto, afinal. Albertus relatava tudo regularmente a Odrade. E cada novo relatório a preocupava ainda mais.

Até mesmo a subserviência óbvia de Albertus a incomodava.

— É claro que os conselheiros não estão falando de um apoio público — dissera Albertus.

Ela só podia concordar. O comportamento dos conselheiros indicava que possuíam um apoio poderoso entre os escalões médios da hierarquia do clero, entre os arrivistas que se atreviam a contar piadas a respeito de seu Deus Dividido em festas de fim de semana... entre os que estavam sendo subornados com o tesouro que Odrade encontrara no Sietch Tabr.

Noventa mil toneladas! Metade da colheita de um ano nos desertos de Rakis. Até mesmo um terço disso já representava um importante fator de negociação nas novas alianças.

“Preferia nunca ter conhecido você, Albertus.”

Quisera restaurar nele aquele que se importava. E o que de fato criara seria facilmente reconhecido por alguém treinado nos ensinamentos da Missionária Protectiva.

“Um bajulador rastejante!”

Agora não fazia diferença que a subserviência dele fosse impulsionada pela crença total em sua sagrada ligação com Sheeana. Odrade nunca percebera o quão facilmente os ensinamentos da Missionária Protectiva destruíam a independência humana. Esse era sempre o objetivo, é claro: “Fazer deles nossos seguidores, obedientes às nossas necessidades”

As palavras do Tirano naquela câmara secreta tinham feito muito mais do que simplesmente incendiar seus temores quanto ao futuro da Irmandade.

“Eu deixo para vocês meu medo e minha solidão.”

Daquela distância milenar, ele plantara dúvidas na consciência dela, tão fortemente quanto ela fizera com Waff.

Via as perguntas do Tirano como se fossem delineadas com luz brilhante em sua visão interior.

“COM QUEM VOCÊS SE ALIARAM?”

“Seremos nada mais que outra sociedade secreta? Qual será nosso fim? Uma armadilha dogmática de nossa própria criação?”

As palavras do Tirano queimavam em sua consciência. Onde estaria o “nobre propósito” naquilo que a Irmandade fazia? Odrade quase podia ouvir a resposta cheia de desprezo que Taraza daria a uma pergunta dessas.

Sobrevivência. Dar! Esse é todo o nobre propósito de que precisamos Sobrevivência! Até mesmo o Tirano sabia disso!

Talvez até mesmo Tuek soubesse. E de que lhe valera no fim?

Odrade sentia uma assombrosa simpatia para com o falecido Alto Sacerdote. Tuek fora um exemplo soberbo do que uma família muito unida era capaz de criar. Até mesmo o seu nome era prova disso: não tinha mudado desde o tempo em que os Atreides dominavam esse planeta. O ancestral fundador da família fora um contrabandista, confidente do primeiro Leto. Tuek viera de uma família que se apegava com firmeza às suas raízes, dizendo: “Há muito de valor para preservarmos do nosso passado” E o exemplo que isso deixara para seus descendentes não passara despercebido a uma Reverenda Madre.

“Mas você fracassou, Tuek.”

Aqueles quarteirões modernizados, visíveis através da janela, era um sinal desse fracasso — partes dos novos elementos de poder que cresciam na sociedade Rakiana, elementos que a Irmandade tanto trabalhara para fortalecer. Tuek vira tudo isso como sinal dos dias em que se encontraria muito enfraquecido politicamente para evitar as coisas implícitas em tal modernização:

Um ritual mais curto e mais moderno.

Novas canções, mais de acordo com os novos tempos.

Mudanças nas danças. (As danças tradicionais são tão longas!)

E, acima de tudo, poucas aventuras perigosas no deserto para os jovens postulantes das famílias mais poderosas.

Odrade suspirou e olhou para trás. O pequeno Tleilaxu mordia o lábio inferior. “Ótimo!”

“Maldito seja, Albertus! Como eu adoraria uma rebelião de sua parte!”

Atrás das portas fechadas do Templo, a transição do Alto Sacerdócio já estava sendo debatida. Os novos Rakianos falavam da necessidade de “atualização para fazer face aos novos tempos”. Na verdade, queriam dizer: “Dê-nos maior poder!”

“Sempre foi desse modo”, pensou Odrade. “Até mesmo na Bene Gesserit.”

E ainda assim não conseguia escapar de um pensamento: “pobre Tuek”

Albertus relatara que Tuek, pouco antes de morrer e ser substituído por um Dançarino Facial, tinha avisado a família de que esta poderia perder o controle do clero quando ele morresse. Tuek fora mais sutil e cheio de recursos do que seus inimigos esperavam. Sua família já estava cobrando as dívidas, reunindo recursos para manter uma base de poder.

E o Dançarino Facial que ocupara o lugar de Tuek revelava muita coisa com sua mímica: a família de Tuek ainda não soubera da substituição e se poderia facilmente acreditar que o Alto Sacerdote continuava vivo, tão boa era a simulação. Observar aquele Dançarino Facial em ação era muito instrutivo para as vigilantes Reverendas Madres. E essa, é claro, era uma das coisas que faziam Waff sofrer, angustiado.

Odrade virou-se abruptamente e caminhou ao encontro do Mestre Tleilaxu. “Hora de falar com ele!”

Parou a dois passos de Waff e olhou para ele, furiosa. Waff encarou seu olhar com uma expressão de desafio.

— Já teve tempo suficiente para considerar sua posição — acusou ela. — Por que permanece em silêncio?

— Minha posição? Então acha que nos deu alguma escolha?

— “O homem não passa de um seixo atirado num lago” — disse Odrade, tirando essa citação das próprias crenças de Waff.

Ele respirou, trêmulo. Ela pronunciara as palavras adequadas, mas que haveria por trás dessas palavras? Elas não soavam adequadamente partindo da boca de uma mulher powindah.

Como Waff não respondesse, Odrade terminou a citação:

— “E se um homem não é mais que um seixo, assim é sua obra.”

Um tremor involuntário fez Odrade estremecer, provocando um olhar de contida surpresa das vigilantes Irmãs Guardiãs. Esse tremor não fazia parte do desempenho.

“Por que pensei nas palavras do Tirano neste instante?”, perguntou-se Odrade.

 

O CORPO E A ALMA DA BENE GESSERIT ENCONTRARÃO O MESMO DESTINO DE TODOS OS OUTROS CORPOS E TODAS AS OUTRAS ALMAS.

 

Esse golpe a atingira profundamente.

“Por que eu estava tão vulnerável?” A resposta saltou em sua consciência: “O Manifesto Atreides!”

“Preparar aquele texto sob a orientação vigilante de Taraza deixou falhas em mim.”

Teria sido esse o propósito de Taraza? Deixá-la vulnerável? Como Taraza poderia saber o que ela encontraria em Rakis? A Madre Superiora não somente não exibia capacidade de presciência como tinha uma tendência a evitar esse tipo de talento em outras pessoas. Nas raras ocasiões em que Taraza pedira semelhante desempenho da parte da própria Odrade, a relutância ficara óbvia ao olhar treinado de uma Irmã.

“E no entanto ela me deixou vulnerável.”

Teria sido um acidente?

Odrade mergulhou num rápido recital da Litania contra o Medo, que durou apenas o espaço de alguns segundos, mas nesse tempo Waff chegou a uma decisão.

— Vocês nos forçariam a isso — ele disse. — Mas não sabem os poderes que deixamos reservados para tal momento. — Ergueu as mangas para mostrar onde tinham ficado escondidos os lança-dardos. — Aqueles eram apenas brinquedos comparados com nossas verdadeiras armas.

— A Irmandade nunca duvidou disso — replicou Odrade.

— Tem que haver um conflito violento entre nós?

— É uma escolha sua — ela respondeu.

— Por que vocês provocam a violência?

— Existem aqueles que adorariam ver a Bene Gesserit e a Bene Tleilax atirarem-se nas gargantas uma da outra — explicou Odrade. — Nossos inimigos gostariam de reunir os pedaços depois que nos tivéssemos enfraquecido o suficiente.

— Você expõe os motivos para o acordo, mas não deixa espaço para a minha gente negociar! Talvez sua Madre Superiora não lhe tenha conferido a autoridade necessária para isso!

Como seria tentador entregar tudo nas mãos de Taraza, exatamente como Taraza queria. Odrade olhou para as Irmãs Guardiãs. O rosto das duas eram máscaras que não deixavam perceber coisa alguma. Que será que elas realmente saberiam? Seriam capazes de perceber caso ela agisse contra as ordens de Taraza?

— Você tem tal autoridade? — insistiu Waff.

“Nobre propósito”, pensou Odrade. “Certamente que o Caminho Dourado do Tirano pelo menos demonstrou possuir uma qualidade nesse sentido.”

Odrade decidiu apelar para uma mentira criativa.

— Possuo tal autoridade — ela disse.

Suas próprias palavras faziam da mentira uma verdade. Tendo assumido tal autoridade, fazia com que fosse impossível para Taraza negá-la. Odrade sabia, entretanto, que suas próprias palavras a tinham colocado num curso de ação muito divergente dos passos programados pelo plano de Taraza.

“Ação independente.” Exatamente o que ela desejara de Albertus.

“Estou no campo de ação e sei o que é necessário.”

Odrade olhou para as Irmãs Guardiãs.

— Permaneçam aqui, por favor, e cuidem para que não sejamos perturbados.

A Waff ela disse:

— Podemos ficar à vontade.

Indicou duas cadeiras-cães colocadas em ângulos retos no outro lado da sala.

Esperou até que estivessem sentados antes de recomeçar o diálogo.

— Precisamos de um grau de sinceridade entre nós que a diplomacia raramente permite. Há muita coisa em jogo para permanecermos com evasivas tolas.

Waff olhou para ela de modo estranho:

— Sabemos que há uma dissensão em seus mais altos conselhos. Abordagens sutis nos foram feitas. De nossa parte.

— Sou leal à Irmandade — ela disse. — E aquelas que os procuraram não tinham outro tipo de lealdade.

— Isso é outro truque das...

— Nada de truques!.

— Com a Bene Gesserit, sempre há truques — acusou ele.

— Que temem de nós? Vamos, diga.

— Talvez eu tenha aprendido demais a respeito de vocês para que me deixem vivo.

— Eu não poderia dizer o mesmo a seu respeito? — indagou ela. — Quem mais sabe de nossa afinidade secreta? Quem está falando com você não é uma powindah!

Odrade arriscara-se a usar esse termo com alguma hesitação, mas o efeito não poderia ter sido mais revelador. Waff ficou visivelmente abalado. Levou todo um minuto para se recuperar. Dúvidas permaneciam, contudo, dúvidas que ela plantara nele.

— E que provam essas palavras? — perguntou ele. — Você ainda poderia partir com as coisas que aprendeu de mim e deixar minha gente sem nada. Ainda mantém o braço do poder sobre nós.

— Eu não carrego armas nas minhas mangas — comentou Odrade

— Mas sua mente possuem conhecimentos que poderiam arruinar-nos!

Ele olhou para as Irmãs Guardiãs.

— Esse conhecimento é parte do meu arsenal — concordou Odrade. — Devo mandá-las sair?

— Carregando em suas mentes tudo que ouviram aqui? — disse ele, e voltou para Odrade seu olhar de suspeita. — Seria melhor se mandasse suas memórias saírem!

Odrade regulou o tom de sua voz para parecer o mais moderado possível.

— Que é que nós ganharíamos revelando sua paixão missionária antes de estarem prontos para agir? De que nos serviria destruir a reputação de vocês revelando onde plantaram seus novos Dançarinos Faciais? Oh sim, sabemos tudo a respeito de Ix e das Oradoras Peixes. Depois de termos estudado aqueles novos, saímos procurando por eles.

— Está vendo!

A voz dele estava perigosamente aguda.

— Não vejo modo de provar nossa afinidade senão revelando alguma coisa que seria igualmente danosa para nós caso fosse divulgada — disse Odrade

Waff ficou sem fala.

— Pretendemos plantar os vermes do Profeta em incontáveis mundos da Dispersão — revelou ela. — Que será que diria o clero Rakiano se lhe revelassem isso?

As Irmãs Guardiãs olharam para ela com um divertimento cuidadosamente disfarçado. Pensavam que estava mentindo.

— Não tenho guardas comigo — queixou-se Waff. — Quando apenas uma pessoa conhece alguma coisa perigosa de ser revelada, é muito fácil conseguir o silêncio eterno dessa pessoa.

Ela ergueu as mangas vazias.

Ele olhou para as Irmãs Guardiãs.

— Muito bem — disse Odrade. Olhou para as Irmãs e fez um sinal sutil com a mão para tranqüilizá-las. — Esperem do lado de fora, por favor Irmãs.

Quando a porta se fechou atrás delas, Waff retornou às suas dúvidas.

— Minha gente não examinou estes aposentos. Não sei nada das coisas que podem estar ocultas aqui para registrar minhas palavras.

Odrade passou a usar a linguagem do Islamiyat.

— Então devemos usar Outro idioma que só nós conhecemos.

Os olhos de Waff brilharam. Na mesma linguagem, ele disse:

— Muito bem, vou apostar nisso. E lhe peço que me diga qual a verdadeira causa do desentendimento entre as Bene Gesserit.

Odrade permitiu-se um leve sorriso. Com a mudança de idioma, toda a personalidade de Waff, suas maneiras, mudava. Ele estava agindo exatamente como ela tinha esperado que fizesse. Nenhuma de suas dúvidas era reforçada no idioma dele.

Ela respondeu com igual confiança:

— Algumas tolas temem que possamos criar outro Kwisatz Haderach! É isso que algumas de minhas Irmãs discutem.

— Não há mais uma necessidade de tal criatura — disse Waff. — Aquele que podia estar em muitos lugares simultaneamente existiu e se foi. Ele só podia trazer o Profeta.

— E Deus não mandaria tal mensageiro duas vezes — comentou ela.

Era o tipo de coisa que Waff ouvia com freqüência em sua língua. Não mais considerava estranho que uma mulher pudesse pronunciar tais palavras. A linguagem e as palavras familiares eram o bastante.

— A morte de Schwangyu restaurou a unidade entre suas Irmãs? — perguntou ele.

— Nós temos inimigas comuns — respondeu Odrade.

— As Honradas Madres.

— Foi sábio de sua parte matá-las e aprender tudo que podia com elas.

Waff inclinou-se para a frente, completamente arrebatado pelo idioma familiar e o fluxo da conversa.

— Elas governam pelo sexo! — revelou, exultante. — Extraordinárias técnicas de ampliação do orgasmo! Nós...

Um pouco atrasado, ele se tornou consciente de quem estava sentada diante dele, ouvindo tudo isso.

— Já conhecemos tais técnicas — disse Odrade para tranqüilizá-lo..— Seria interessante compará-las, mas existem razões óbvias pelas quais nunca tentamos obter o poder de modo tão perigoso. E aquelas prostitutas são estúpidas o suficiente para cometer esse erro!

— Erro?

Ele estava claramente intrigado.

— Elas estão segurando as rédeas desse poder com suas próprias mãos! — explicou Odrade. — À medida que esse poder for crescendo, o controle que elas exercem terá que crescer do mesmo modo. A coisa vai destruir-se com seu próprio ímpeto!

— Poder, sempre poder — murmurou Waff. Outro pensamento lhe ocorreu. — Está dizendo que foi deste modo que o Profeta caiu?

— Ele sabia o que estava fazendo — explicou Odrade. — Milênios de paz forçada seguidos pelos Tempos da Fome e da Dispersão. Uma mensagem com resultados diretos. Lembre-se! Ele não destruiu a Bene Tleilax ou a Bene Gesserit.

— E que vocês esperam de uma aliança entre nossa gente? — perguntou Waff.

— Esperança é uma coisa, sobrevivência é outra — ela disse.

— Sempre o pragmatismo. E algumas de vocês temem que possam restaurar o Profeta em Rakis com todos os seus poderes intactos?

— Eu não disse isso?

A linguagem do Islamiyat era particularmente poderosa nessa forma questionadora. Ela colocava sobre Waff a tarefa de provar a verdade.

— Então elas duvidam da mão de Deus na criação do seu Kwisatz Haderach — ele disse. — E também duvidam do Profeta?

— Muito bem, vamos deixar tudo isso claro — disse Odrade, lançando-se no caminho escolhido para iludi-lo. — Schwangyu e aquelas que a apoiavam tinham se afastado da Grande Crença. Nós não guardamos nenhum ódio contra a Bene Tleilax por tê-las destruído. Isso poupou-nos muito trabalho.

Waff aceitou isso inteiramente. Dadas as circunstâncias era precisamente o que esperava ouvir. Sabia ter revelado muita coisa que seria melhor ficar em segredo, mas ainda restavam coisas que a Bene Gesserit não sabia. E as coisas que ele tinha aprendido!

Odrade deixou-o totalmente chocado ao dizer:

— Waff, se acredita que seus descendentes retornados da Dispersão vieram totalmente imutados, então você é um tolo.

Ele manteve-se em silêncio.

— Tem todas as peças do quebra-cabeça em suas mãos — ela continuou. — Seus descendentes estão dominados pelas prostitutas da Dispersão. E se acredita que qualquer uma delas seria capaz de manter um acordo, então sua estupidez chegou a um ponto além de qualquer descrição!

A reação de Waff revelou que ela atingira o ponto exato. As peças estavam se ajustando. Odrade dissera a verdade apenas onde isso fora necessário. As dúvidas dele estavam focalizadas onde deviam: no povo da Dispersão. E tudo fora feito usando o próprio idioma dele.

Ele tentou falar, sentiu uma constrição na garganta, e foi forçado a massageá-la antes que pudesse expressar-se.

— Que podemos fazer?

— Isso é óbvio. Os Perdidos encaram-nos como apenas outra conquista. Acham que com isso vão limpar sua retaguarda. Uma cautela comum.

— Mas eles são tantos!

— A menos que consigamos unir-nos num plano comum para derrotá-los, vão devorar-nos do modo como um lorco mastiga seu almoço.

— Não podemos submeter-nos aos impuros powindah! Deus não permitiria tal coisa!

— Submeter? Quem disse que nos vamos submeter?

— Mas a Bene Gesserit sempre faz uso daquela antiga desculpa: “Se não puder derrotá-los, junte-se a eles.”

Odrade deu um sorriso forçado.

— Deus não permitiria que vocês se submetessem! Está dizendo que ele permitiria que isso nos acontecesse?

— Então qual é o seu plano? Que faria contra um inimigo tão numeroso?

— Exatamente o que você planeja fazer: convertê-los. Quando der o sinal, a Irmandade abraçará abertamente a verdadeira fé.

Waff caiu num silêncio atordoado. Então ela conhecia o cerne do plano dos Tleilaxu. Será que também saberia como os Tleilaxu pretendiam executar esse plano?

Odrade olhava para ele de modo especulativo. “Agarre a fera pelo saco se preciso”, pensava. Mas, e se as projeções das analistas da Irmandade estivessem incorretas? Nesse caso, toda essa negociação seria uma piada. E havia algo no fundo dos olhos de Waff que sugeria uma antiga sabedoria... muito mais antiga do que seu corpo. Ela falou com mais confiança do que sentia:

— Aquilo que vocês conseguiram obter com os gholas de seus tanques e mantiveram em segredo, outros pagarão grande preço para obter.

As palavras eram suficientemente enigmáticas (haveria outros ouvindo?), mas Waff não duvidou nem por um instante de que a Bene Gesserit conhecesse até mesmo esse segredo.

— Estão exigindo partilhar isso também? — perguntou ele, a voz rouca na garganta seca.

— Tudo! Vamos partilhar tudo!

— E que vão dar nessa grande partilha?

— Peça.

— Todos os seus registros de procriação.

— Eles são seus.

— Madres Procriadoras à nossa escolha.

— Diga o nome delas.

Waff ficou atônito. Isso era muito mais do que a Madre Superiora tinha oferecido. Era como uma flor se abrindo em sua consciência. Ela estava certa a respeito das Honradas Madres, naturalmente — e a respeito dos Tleilaxu descendentes da Dispersão. Nunca confiara neles, nunca!

— Vão querer uma fonte irrestrita de melange — ele disse.

— É claro.

Olhou para ela, quase não acreditando em tanta boa sorte. Os tanques axlotl ofereciam a imortalidade apenas àqueles que abraçavam a Grande Crença. Ninguém se atreveria a atacar para obter algo que sabiam que os Tleilaxu prefeririam destruir a perder. E agora! Ele tinha conquistado os serviços da força missionária mais poderosa e duradoura que já existira. Certamente que a mão de Deus aparecia nisso. Waff sentiu-se primeiro admirado, depois inspirado. Suavemente, disse a Odrade:

— E você, Reverenda Madre, como chamaria nosso acordo?

— Um nobre propósito — ela disse. — Já conhece as palavras do Profeta no Sietch Tabr. Duvida delas?

— Nunca! Mas... existe uma coisa: que propõem fazer com esse ghola Duncan Idaho e a jovem Sheeana?

— Faremos com que procriem, é claro. E seus descendentes falarão por nós a todos os descendentes do Profeta.

— Em todos os planetas para onde os levarão?

— Em todos os planetas — concordou ela.

Waff recostou-se no assento. “Eu a tenho em minhas mãos, Reverenda Madre!”, pensou ele. “Nós dominaremos este acordo, não vocês. O ghola não lhes pertence, ele é nosso!”

Odrade percebeu uma sombra de reserva nos olhos de Waff, mas sabia ter arriscado o máximo que podia. Conceder mais despertaria novas dúvidas. O que quer que acontecesse, ela havia comprometido a Irmandade desse curso de ação. Agora Taraza não poderia evitar essa aliança.

Waff ergueu os ombros num gesto curiosamente juvenil, traído pela inteligência ancestral em seus olhos.

— Ah, mais uma coisa — ele disse, todo tomado pelo papel de Mestre dos Mestres, falando seu próprio idioma e governando a todos que o ouviam. — Também vão ajudar na divulgação desse... Manifesto Atreides?

— Por que não? Eu o escrevi.

Waff deu um salto.

— Você?

— Pensa que alguém menos hábil poderia tê-lo feito?

Ele assentiu, convencido sem necessidade de qualquer outro argumento. Era o combustível necessário para impulsionar um novo pensamento que entrara em sua mente, um ponto final na aliança: as mentes poderosas das Reverendas Madres aconselhariam os Tleilaxu a cada passo! Que importava que fossem superadas em número pelas prostitutas da Dispersão? Quem poderia enfrentar tamanha sabedoria combinada com armas invencíveis?

— O titulo do Manifesto também é válido — explicou Odrade. — Sou uma autêntica descendente dos Atreides.

— Procriaria comigo, então? — arriscou ele.

— Quase já passei da idade de ter filhos, mas serei sua quando ordenar.

 

Eu relembro amigos de guerras quase esquecidas,

Todos eles repartidos em cada ferimento recebido,

Ferimentos que lembram lugares dolorosos onde lutamos,

Batalhas que é melhor esquecer, coisas que nunca buscamos.

Que foi que perdemos e que conseguimos?

 

— Canções da Dispersão

 

Burzmali baseara seu planejamento no melhor que tinha aprendido com seu Bashar, mantendo sua própria opinião quanto às múltiplas opções e posições de retirada. Essa era a prerrogativa de um comandante! Por ser necessário, aprendera tudo que podia sobre o terreno.

Na época do Antigo Império e mesmo sob o reinado do Muad'Dib, a região em torno do Castelo Gammu fora uma reserva florestal, uma região elevada, situada bem acima dos resíduos oleosos que tendiam a cobrir as terras dos Harkonnen. Nesse solo, os Harkonnen haviam cultivado a melhor pilingitam, madeira de uso comercial muito valorizada pelos sumamente ricos. Desde os tempos mais antigos que a classe mais elevada preferia cercar-se de madeiras finas em vez das matérias artificiais produzidas em massa, conhecidas como polastine, polaz e pormabat (mais tarde abreviados para tine, laz e bat). Até mesmo no Antigo Império existira um rótulo pejorativo para os moderadamente ricos e as Famílias Menores, surgido do conhecimento do valor de uma madeira rara.

— Ali está um três P-O — diziam eles, querendo indicar uma pessoa que se cercava das cópias baratas, feitas com substâncias pouco nobres.

E até mesmo quando os sumamente ricos eram forçados a empregar um dos três P-O, eles os disfarçavam, onde era possível, atrás de um U-P (o único P), a pilingitam.

Burzmali sabia disso e muito mais quando fez sua gente procurar por pilingitam estrategicamente colocada perto de um não-globo. A madeira da árvore tinha muitas qualidades que a tornavam preferida pelos artesãos: recém-cortada, ela era macia; seca e envelhecida, tornava-se dura. Era capaz de absorver muitos pigmentos e o acabamento podia ser feito de modo a parecer natural. Mais importante que tudo, a pilingitam era à prova de fungos e nenhum inseto conhecido chegara a considerá-la um jantar adequado. Por último, era resistente ao fogo e os espécimes mais velhos da árvore viva cresciam a partir de um amplo tubo vazio situado no núcleo.

— Nós faremos o inesperado — dissera Burzmali ao seu grupo de busca.

Notara o distinto verde-limão das folhas de pilingitam durante seu primeiro vôo sobre a região. As florestas desse planeta tinham sido devastadas durante os Tempos da Fome, mas antigas O-Ps ainda eram cultivadas entre as sempre-vivas e as madeiras resistentes replantadas por ordem da Irmandade.

A equipe de busca de Burzmali encontrara uma colina dominada por O-Ps acima do local do não-globo. Ela estendia suas folhas sobre quase três hectares. Na tarde do dia crítico, Burzmali colocou engodos a certa distância de sua posição e abriu um túnel, desde um trecho de terreno baixo até o centro do bosque de pilingitam. Lá posicionou seu posto de comando e o material necessário para a fuga.

— A árvore é uma forma de vida — explicou à sua gente. — Vai ocultar-nos dos rastreadores.

“O inesperado.”

Em parte alguma de seus planos Burzmali supôs que suas ações fossem permanecer indetectadas. Tudo que podia fazer era dispersar sua vulnerabilidade.

Quando o ataque viesse, sabia que ia seguir um plano previsível. Burzmali previa que os atacantes contariam com não-naves e superioridade numérica, como acontecera em seu assalto ao Castelo de Gammu. As analistas da Irmandade garantiam que a maior ameaça viria das forças da Dispersão — descendentes dos Tleilaxu comandados por mulheres selvagens e brutais que chamavam a si mesmas de Honradas Madres. Ele via isso como excesso de confiança e não audácia. A verdadeira audácia fazia parte do arsenal de cada aluno do Bashar Miles Teg. Também ajudava o fato de poder confiar nos improvisos que Teg, de sua parte, acrescentaria ao plano.

Através de seus receptores, Burzmali seguiu a corrida de Duncan e Lucilla para a liberdade. Tropas com capacetes de comunicação e visores noturnos criavam uma falsa exibição de atividade nas posições falsas, enquanto Burzmali e seu grupo selecionado vigiavam os atacantes sem jamais revelarem sua posição. Os movimentos de Teg podiam ser acompanhados com facilidade a partir da resposta violenta do inimigo.

Burzmali notou com aprovação que Lucilla não parou ao ouvir os sons da batalha se intensificarem. Duncan, contudo, tentou parar e quase arruinou todo o plano. Lucila salvou o dia ao atingir um nervo sensível do rapaz, gritando:

— Você não pode ajudá-lo!

Ouvindo a voz dela com clareza através dos amplificadores do capacete, Burzmali amaldiçoou em silêncio. Outros poderiam ouvi-la também! Não havia dúvida de que já devia estar sendo rastreada.

Burzmali deu uma ordem subvocal através do microfone implantado em seu pescoço e se preparou para abandonar o posto. Mantinha a maior parte de sua atenção focalizada na aproximação de Lucilla e Duncan. Se tudo corresse como planejado, sua gente traria os dois enquanto dois soldados, sem capacetes e vestidos adequadamente, continuariam a correr em direção às falsas posições.

Enquanto isso, Teg estava criando uma admirável trilha de destruição através da qual um carro de solo poderia escapar.

Um auxiliar entrou em contato com Burzmali:

— Dois atacantes estão se aproximando por trás do Bashar!

Burzmali fez sinal para que o homem saísse. Sabia que as chances de Teg eram poucas. Tudo teria que se concentrar agora no salvamento do ghola. Os pensamentos de Burzmali eram intensos enquanto ele vigiava:

— Vamos! Corra! Corra!

Lucilla tinha pensamentos semelhantes enquanto mantinha Duncan correndo, conservando-se atrás dele para protegê-lo de qualquer ataque pelas costas. Tudo em seu treinamento e no modo como fora criada entrava em ação nesses momentos, reunido para uma resistência final. “Jamais desista!” Desistir seria passar sua consciência para as Vidas Memorizadas de Outra Irmã ou então morrer. Mesmo Schwangyu se redimira no final, revertendo à resistência total e morrendo admiravelmente dentro da tradição Bene Gesserit — resistindo até o fim. Burzmali relatara isso através de Teg. E Lucilla, reunindo suas incontáveis vidas, pensava: “Não posso deixar por menos.”

Ela seguiu Duncan numa depressão rasa junto ao tronco de um gigantesco pilingitam e, quando vultos se ergueram da escuridão em torno deles, quase reagiu de modo enlouquecido. Uma voz, falando em Chakobsa junto de seu ouvido direito, disse: “Amigos!” Isso retardou sua resposta pelo espaço de uma batida de coração enquanto ela via os dois falsos fugitivos saírem correndo da depressão para cobrir sua retirada. Isso, mais que qualquer outra coisa, revelou o plano e a identidade das pessoas, contendo-os em meio aos ricos odores de folhas e de terra. Quando aquela gente fez Duncan escorregar adiante dela num túnel escavado na árvore gigantesca e aconselhou (ainda em Chakobsa) a que ela se apressasse, Lucilla soube estar envolvida num plano audacioso, típico de Teg.

Duncan também tinha percebido isso. Numa abertura do túnel, ele a identificou pelo cheiro e bateu uma mensagem na pele de seu braço, na antiga e silenciosa linguagem de batalha dos Atreides.

— Deixe que eles liderem.

A forma da mensagem espantou-a momentaneamente, até ela perceber que o ghola devia conhecer esse método de comunicação.

Sem falar coisa alguma, as pessoas que os rodeavam retiraram o antiquado e volumoso laser das mãos de Duncan e fizeram os fugitivos entrar pela escotilha de um veículo que Lucilla não foi capaz de identificar. Uma breve luz vermelha brilhou na escuridão.

Burzmali disse subvocalmente à sua gente:

— Lá vão eles!

Vinte e oito carros de solo e  tópteros esvoaçantes partiram das posições falsas. Uma distração adequada, pensou Burzmali.

A pressão no ouvido de Lucilla revelou que a escotilha fora fechada. Novamente a luz vermelha brilhou e se apagou.

Explosivos destruíram a grande árvore em torno deles e seu veículo, agora identificado como um carro de solo blindado, partiu sobre seus jatos e suspensores de sustentação. Lucilla podia seguir o curso somente pelos relâmpagos de fogo e pelos padrões de céu estrelado passando pelas janelas ovais de plaz. O campo suspensor em torno deles fazia os movimentos parecerem bizarros, sensíveis apenas ao olho. Estavam sentados em assentos de plasteel enquanto o carro disparava colina abaixo, diretamente por cima da posição onde Teg se ocultara em sua resistência final. O carro fazia violentas mudanças de direção, mas nada de seu movimento louco se transmitia à carne dos ocupantes. Eles só viam o borrão das árvores passando e as estrelas no céu, o capim queimado aparecendo às vezes.

Estavam passando por cima dos restos da floresta que Teg destruíra com suas armas laser! Só então Lucilla começou a ter esperanças de que pudessem vir a escapar. De repente o veículo estremeceu, passando para um vôo lento. As estrelas visíveis nos ovais de plaz inclinaram-se e foram tapadas por uma obstrução escura. A gravidade retornou e surgiu uma iluminação fraca. Lucilla viu Burzmali abrir uma comporta à sua esquerda.

— Saiam! — gritou ele. — Não podemos perder um segundo!

Com Duncan à frente, Lucilla pulou para fora da escotilha, caindo na terra úmida. Burzmali bateu nas costas dela, agarrou Duncan pelo braço e os puxou para longe do carro.

— Rápido, nesta direção!

Despencaram através do capim alto, entrando numa estreita via pavimentada. Burzmali, agora segurando os dois, os fez atravessar a pista e deitar na valeta ao lado. Puxou sobre eles um cobertor de escudo vital para tapá-los e depois ergueu a cabeça a fim de olhar na direção por onde tinham vindo.

Lucilla olhou por trás dele e viu apenas um céu estrelado acima de uma colina nevada. Sentiu Duncan mexer-se ao lado dela.

Lá no alto da colina, o carro subiu, deixando um rastro de fogo vermelho a partir dos casulos de jatos que o tinham modificado para se tornar carro aéreo. Visível contra o céu estrelado, continuou subindo, subindo, subindo... De súbito, partiu velozmente para a direita.

— Nosso? — sussurrou Duncan.

— Sim.

— Como ele chegou lá em cima sem deixar um...

— Um túnel abandonado de um aqueduto — explicou Burzmali. — O carro estava programado para seguir automaticamente.

Ele continuou a olhar para o distante rastro vermelho. De repente, uma gigantesca descarga de luz azul expandiu-se na extremidade daquele distante traço vermelho. A luz foi seguida imediatamente por uma pancada surda.

— Ah — sussurrou Burzmali.

Duncan, com a voz baixa, disse:

— Eles vão pensar que nós sobrecarregamos a propulsão.

Burzmali lançou um olhar espantado para o rosto do jovem, de um cinza fantasmagórico sob a luz das estrelas.

— Duncan Idaho foi um dos melhores pilotos a serviço dos Atreides — explicou Lucila.

Era um dado de conhecimento esotérico que servia a seu propósito. Burzmali percebeu imediatamente que não era apenas o guardião de dois fugitivos. Eles possuíam habilidades que poderiam ser usadas quando fosse necessário.

Centelhas azuis e vermelhas correram através do céu em direção ao local onde o carro de solo modificado havia explodido. As não-naves estavam farejando aquele distante globo de gases quentes em dispersão. Que iriam decidir os caçadores? As centelhas azuis e vermelhas mergulharam de novo atrás das colinas.

Burzmali voltou-se ante o som de passos na estrada. Duncan sacou de uma pistola tão rapidamente que Lucilla soltou uma exclamação de espanto. Ela colocou uma das mãos sobre seu braço para contê-lo, mas ele a repeliu. Não percebia que Burzmali tinha aceito o intruso?

Uma voz chamou baixinho da estrada acima deles.

— Sigam-me, depressa!

A pessoa que falara era uma mancha movendo-se na escuridão. Ela saltou ao lado deles e saiu correndo por uma abertura no meio do mato que cercava a estrada. Manchas negras, na colina nevada além do abrigo da vegetação transformaram-se em pelo menos uma dúzia de pessoas armadas. Cinco delas agruparam-se em torno de Duncan e Lucilla, fazendo sinal para que os seguissem ao longo de uma trilha coberta de neve ao lado dos arbustos. O resto do grupo armado correu abertamente, descendo o declive nevado e rumando para uma fileira escura de árvores.

Depois de uns 500 passos, as cinco figuras silenciosas fizeram o grupo formar fila indiana, com dois deles na frente e três atrás, e os fugitivos abrigados no meio — Burzmali na frente de Duncan e Lucilla atrás. Daí a pouco chegaram a uma fenda em rochas escuras onde esperaram debaixo de uma saliência. Ouviram outros carros de solo modificados trovejarem no ar acima.

— Engodos em cima de engodos — sussurrou Burzmali. — Nós os sobrecarregamos de pistas falsas. Eles sabem que devemos fugir em pânico, tão depressa quanto pudermos. Agora vamos aguardar escondidos. Depois prosseguiremos, lentamente e a pé.

— O inesperado — sussurrou Lucilla.

— Teg?

A voz de Duncan era menos que um sussurro.

Burzmali inclinou-se junto do ouvido esquerdo do rapaz.

— Acho que eles o pegaram.

O sussurro de Burzmali carregava um profundo sentimento de tristeza.

Um de seus companheiros escuros disse:

— Rápido agora. Aqui embaixo.

Foram guiados através da fenda estreita. Alguma coisa estalou por perto. Mãos empurraram-nos para uma passagem oculta. O estalido soou atrás deles.

— Arrumem aquela porta — alguém disse.

Uma luz acendeu-se em torno deles.

Duncan e Lucila olharam para uma grande sala ricamente mobiliada e aparentemente escavada na rocha. Tapetes macios cobriam o chão cores escuras, encarnados e dourados, com um padrão semelhante a ameias bordado em verde pálido. Um monte de roupas encontrava-se numa mesa perto de Burzmali, que conversava baixinho com uma pessoa do grupo de escolta: um homem de cabelos louros com testa ampla e olhos verdes penetrantes.

Lucilla ouviu cuidadosamente. As palavras eram compreensíveis, relacionadas com o modo como os guardas deviam ser posicionados, mas o sotaque do homem de olhos verdes era de um tipo que ela nunca tinha ouvido antes, mistura de consoantes e vogais produzidas de um modo abrupto surpreendente.

— Isto é uma não-câmara? — perguntou ela.

— Não. — A resposta foi dada por um homem ao lado dela, falando com o mesmo sotaque. — As algas nos protegem.

Ela não se voltou em direção ao homem que falara. Em vez disso, olhou para o teto e as paredes. Somente alguns trechos de rocha escura eram visíveis junto do piso.

Burzmali interrompeu a conversa.

— Estamos em segurança aqui. A alga é cultivada especialmente para esta função. Os detectores de vida registram apenas a presença de vida vegetal e nada do que a alga encobre.

Lucilla girou sobre um dos calcanhares, examinando os detalhes do aposento: o grifo Harkonnen trabalhado sobre uma mesa de cristal, os tecidos exóticos das poltronas e sofás. Uma prateleira de armas colocada de encontro a uma das paredes segurava duas fileiras de longas armas laser de campo de um tipo que Lucila nunca tinha visto. Cada uma tinha um cano com a extremidade abrindo-se em forma de cometa e uma proteção trabalhada em ouro sobre o gatilho.

Burzmali voltara à conversa com o homem de olhos verdes. Era uma discussão sobre o modo como deviam disfarçar-se. Lucilla prestou atenção com uma parte de sua mente, enquanto observava os dois outros membros da escolta que permaneciam na sala. O terceiro tinha penetrado por uma passagem ao lado do armário de armas, uma abertura coberta por uma espessa cortina de fios prateados formados por algas pendentes. Duncan, percebia ela, a estava observando com cuidado, a mão em uma pequena pistola laser em seu cinturão.

“Gente da Dispersão”, pensou Lucilla. “Para quem se voltarão suas lealdades?”

Como quem não quer nada, ela andou até ficar ao lado do Duncan e, usando a linguagem de toques, batendo com a ponta dos dedos em seu braço, transmitiu-lhe suas desconfianças. Ambos olharam para Burzmali.

“Traição?”

Lucilla voltou a estudar a sala. Estariam sendo vigiados por olhos ocultos?

Nove globos luminosos iluminavam o espaço, criando seus peculiares techos de iluminação intensa. Estendiam-se numa concentração perto do ponto onde Burzmali ainda conversava com o homem de olhos verdes. Parte da luz vinha diretamente dos globos flutuantes, todos eles regulados para uma intensa iluminação dourada, e parte se refletia mais suavemente nas algas.

O resultado era a ausência total de sombras escuras, mesmo debaixo das mobílias.

Os reluzentes fios prateados do portal do corredor interno separaram-se. Uma velha entrou na sala. Lucilla olhou para ela. A mulher tinha o rosto vincado, tão escuro quanto jacarandá antigo. Suas feições eram bem-definidas numa estreita moldura de cabelos grisalhos emaranhados que caía quase até os ombros. Usava um longo manto escuro, com um bordado de fios dourados reproduzindo dragões mitológicos. A mulher parou atrás de um sofá e colocou as mãos com veias proeminentes sobre o recosto.

Burzmali e o companheiro interromperam a conversa.

Lucilla olhou para a velha e para seu próprio manto. Exceto pelos dragões dourados, a vestimenta era semelhante em estilo, os capuzes caídos sobre os ombros. Somente na lateral e no modo como se abria na frente é que o desenho do manto do dragão era diferente.

Quando a mulher ficou quieta, Lucilla olhou para Burzmali, buscando uma explicação. Burzmali olhou para ela com uma concentração intensa. A velha continuava a observar Lucilla em silêncio.

A intensidade da atenção dela deixou Lucilla inquieta. Duncan também tinha percebido isso. Mantinha a mão posicionada sobre a pequena arma laser. O longo silêncio enquanto aquele olhos a estudavam com tanto cuidado aumentava o sentimento de desconforto. Havia algo quase Bene Gesserit no modo como a velha ficava ali, só observando.

Duncan quebrou o silêncio, perguntando a Burzmali:

— Quem é ela?

— Eu sou aquela que vai salvar a pele de vocês — respondeu a velha.

Ela tinha a voz fina e fraca, mas o mesmo sotaque estranho daqueles homens.

As Outras Memórias de Lucilla trouxeram-lhe uma comparação sugestiva para o traje da velha: semelhante ao que era usado pelas antigas playfêmeas.

Lucilla quase sacudiu a cabeça. Certamente essa mulher estava muito velha para tal profissão. E a forma do dragão mitológico desenhado no tecido diferia daquela fornecida pela memória. Lucilla voltou a atenção para o rosto da velha: os olhos úmidos com as doenças da idade. Uma crosta seca acumulava-se sobre os vincos onde as pálpebras tocavam os canais ao lado do nariz. Muito velha para ser uma playfêmea.

A velha disse a Burzmali:

— Acho que ela pode usar este traje muito bem. — Começou a despir a roupa com o dragão. A Lucilla ela disse: — Isto é para você. Use-o com respeito. Tivemos que matar para consegui-lo.

— Quem vocês mataram? — indagou Lucilla.

— Uma candidata a Honrada Madre!

Havia orgulho na voz rouca da mulher.

— E por que eu deveria usar esse manto?

— Você vai trocar de roupa comigo — disse a velha.

— Não. — Sem uma explicação, Lucilla recusou-se a pegar o manto que lhe era estendido.

Burzmali deu um passo à frente.

— Você pode confiar nela.

— Sou amiga de seus amigos — disse a velha. Sacudiu o manto na frente de Lucilla. — Aqui, pegue-o.

Lucila voltou-se para Burzmali.

— Devo conhecer o seu plano.

— Ambos devemos conhecê-lo — disse Duncan. — Sob que autoridade nos pede para confiar nessa gente?

— Sob a autoridade de Teg — disse Burzmali. — E sob a minha. — Olhou para a velha. — Pode contar a eles, Sirafa. Temos tempo.

— Você vai usar este manto enquanto acompanha Burzmali até Ysai — explicou Sirafa.

“Sirafa”, pensou Lucilla. O nome tinha quase o som de uma Variante Bene Gesserit.

Sirafa examinou Duncan.

— Sim, ele ainda é suficientemente pequeno. Vamos disfarçá-lo e transportá-lo separadamente.

— Não! — protestou Lucilla. — Recebi ordens de guardá-lo pessoalmente!

— Está sendo tola — retrucou Sirafa. — Eles estarão procurando por uma mulher de sua aparência, acompanhada por alguém semelhante a este jovem. Não vão dar atenção a uma playfêmea das Honradas Madres com seu companheiro noturno... nem a um Mestre Tleilaxu e seu séquito.

Lucilla umedeceu os lábios com a língua. Sirafa falava com a segurança de uma Inspetora da Irmandade.

A velha depositou o manto do dragão sobre o recosto do sofá. Usava agora apenas uma malha negra colante que nada escondia de um corpo ainda flexível e firme, com muitas curvas. Um corpo que parecia extraordinariamente mais jovem do que o rosto. Enquanto Lucilla a observava, Sirafa começou a passar as palmas das mãos sobre a testa e as faces, esfregando-as para trás. Os vincos da idade foram desaparecendo para revelar um rosto jovem.

“Um Dançarino Facial?”

Lucilla olhou com firmeza para a mulher. Não aparecia nela qualquer dos outros estigmas de um Dançarino Facial. Ainda assim.

— Tire o seu manto! — ordenou Sirafa.

Ela agora tinha uma voz de jovem, muito mais dominadora.

— Deve fazer isso — pediu Burzmali. — Sirafa vai tomar seu lugar como outro chamariz. É o único modo pelo qual poderemos passar.

— Passar para onde? — indagou Duncan.

— Para uma não-nave — explicou Burzmali.

— E para onde ela irá nos levar? — indagou Lucilla.

— Para a segurança — explicou Burzmali. — Vamos ser saturados de shere, mas não posso dizer mais nada. Até mesmo o shere se esgota com o tempo.

— Como é que vão disfarçar-me de Tleilaxu? — perguntou Duncan.

— Confie em nós que isso será feito — disse Burzmali, sua atenção ainda voltada para Lucilla. — Reverenda Madre?

— Vocês não me deixam escolha — respondeu ela.

Soltou os fechos e deixou cair o manto. Tirou a pequena pistola da cintura e a atirou sobre o sofá. Sua própria malha era de um cinza claro e ela percebeu que Sirafa estava reparando nisso, bem como nas facas colocadas nas bainhas em suas pernas.

— As vezes usamos malhas negras — explicou Lucilla, enquanto colocava o manto do dragão.

O tecido parecia pesado, mas na verdade era só aparência. Ela girou para sentir o caimento do novo traje, enquanto ele se erguia no giro e lhe envolvia o corpo como se tivesse sido feito de encomenda para ela. Mas havia um ponto áspero no pescoço. Ela estendeu a mão e correu um dedo sobre ele.

— Foi aí que o dardo atingiu a mulher que matamos — explicou Sirafa. — Nós agimos depressa, mas o ácido marcou levemente o tecido. Não é visível.

— A aparência está correta? — perguntou Burzmali.

— Muito boa. Mas vou ter que instruí-la. Ela não deve cometer erros ou eles pegarão vocês dois.

Sirafa bateu com ambas as mãos para dar ênfase ao que dizia.

“Onde foi que vi tal gesto?”, perguntou-se Lucilla.

Duncan tocou a parte de trás do braço direito de Lucilla, seus dedos transmitindo uma mensagem secreta: “Aquela batida de mão! Um maneirismo de Giedi Prime.”

As Outras Memórias confirmaram isso para Lucilla. Seria essa mulher integrante de uma comunidade isolada, que preservava os costumes arcaicos?

— O rapaz deve ir agora — disse Sirafa. Fez um gesto para os dois membros remanescentes de seu grupo. — Levem-no até o lugar.

— Eu não gosto disso — comentou Lucilla.

— Não temos escolha — disse Burzmali, furioso.

Lucilla só podia concordar. Estava dependendo totalmente do juramento de lealdade de Burzmali para com a Irmandade. E Duncan não era nenhuma criança, procurou lembrar-se. Suas reações prana-bindu tinham sido condicionadas pelo velho Bashar e por ela mesma. Havia habilidades ao alcance do ghola que poucas pessoas fora da Bene Gesserit poderiam igualar. Ela observou em silêncio enquanto Duncan e os dois homens saíam através da cortina brilhante.

Depois que eles tinham saído, Sirafa deu a volta no sofá e ficou diante de Lucila com as mãos nas cadeiras. O olhar das duas encontrou-se de igual para igual.

Burzmali pigarreou e remexeu na pilha de roupas na mesa ao seu lado.

O rosto de Sirafa, principalmente seus olhos, tinha uma qualidade fascinante. Olhos de um verde claro, com a parte branca muito límpida. Não havia lentes de contato nem qualquer outro artificio a mascará-los.

— Você tem a aparência certa — disse Sirafa. — Lembre-se de que é um tipo especial de playfêmea e que Burzmali é seu cliente. Nenhuma pessoa comum interferiria nisso.

Lucilla percebeu uma sugestão oculta na frase:

— Mas há aqueles que poderiam interferir?

— Existem embaixadas de grandes religiões em Gammu agora — explicou Sirafa. — Algumas que você nunca conheceu. São daquilo que chamam de Dispersão.

— E de que vocês os chamam?

— Os Caçadores. — Sirafa ergueu a mão num gesto tranquilizador. — Não tema! Temos um inimigo comum.

— As Honradas Madres?

Sirafa virou a cabeça para a esquerda e cuspiu no chão.

— Olhe para mim, Bene Gesserit! Fui treinada unicamente para matá-las. É minha única função e propósito.

Lucilla falou com cuidado:

— Pelo que sabemos, deve ser muito boa nisso.

— Em certas coisas, talvez, sou melhor que você. Agora ouça! Você é uma perita em sexo. Está entendendo?

— Por que os sacerdotes iriam interferir?

— Você os chama de sacerdotes? Bem... sim. Eles não iriam interferir por qualquer razão que possa imaginar. Sexo por prazer, o inimigo da religião, ah?

— Não aceite qualquer substitutivo para o êxtase religioso — comentou Lucilla.

— Que Tantrus a proteja, mulher! Existem sacerdotes diferentes entre os Caçadores, que não se importam de acenar com o êxtase imediato em lugar de um paraíso em outro mundo.

Lucilla quase sorriu. Será que essa matadora independente de Honradas Madres achava realmente que podia dar aulas de religião a uma Reverenda Madre?

— Há pessoas por aqui que andam disfarçadas de sacerdotes  explicou Sirafa. — Isso é muito perigoso. E os mais perigosos são os seguidores de Tantrus, que afirmam que o sexo é seu modo exclusivo de cultuar seu deus.

— Como poderei reconhecê-los?

Lucilla percebia a sinceridade e a idéia de perigo na voz da mulher.

— Não deve preocupar-se com isso. Nunca demonstre reconhecer tais distinções. Sua maior preocupação é certificar-se de que será paga. Você, eu acho, devia cobrar 50 solares.

— Não me disse ainda por que eles iriam interferir.

Lucila olhou de novo para Burzmali. Ele tinha espalhado sobre a mesa as roupas de tecido grosseiro e estava tirando seus trajes de combate. Ela voltou sua atenção para Sirafa.

— Alguns seguem uma antiga convenção que lhes garante o direito de interromper seu acordo com Burzmali. Na verdade, alguns deles a estarão testando.

— Ouça com cuidado — advertiu Burzmali. — Isso é importante.

Sirafa disse:

— Burzmali estará vestido como um trabalhador do campo. Nada mais disfarçaria os calos provenientes do treinamento com as armas. Você o chamará de Skar, nome comum aqui.

— Mas como devo reagir à interrupção de um sacerdote?

Sirafa tirou um pequeno saco da cintura e o passou para Lucilla, que sentiu seu peso em uma das mãos.

— Isso aí contém 238 solares. Se alguém se identificar como um divino... lembre-se, divino.

— Como poderia esquecer?

A voz de Lucilla era quase zombeteira. Sirafa não deu atenção.

— Se alguém assim interferir, você devolverá a Burzmali 50 solares e lhe pedirá desculpas. Também nesse saco está seu cartão de identificação como playfêmea, com o nome de Pira. Deixe-me ouvir você dizer o seu nome.

— Pira.

— Não! Acentue mais o “a”

— Pira!

— Está passável. Agora ouça com cuidado. Você e Burzmali estarão andando pelas ruas tarde da noite. Eles imaginarão que você tenha atendido outros clientes anteriormente. Deve haver evidências. Portanto, você irá... ah, entreter Burzmali antes de sair daqui. Está entendendo?

— Que gentileza! — comentou Lucilla.

Sirafa recebeu o comentário como sinal de aprovação e sorriu, mas sua expressão permaneceu controlada. As reações dela eram tão estranhas!

— Uma coisa — disse Lucilla. — Se eu tiver que entreter um divino, como vou reencontrar Burzmali depois?

— Skar!

— Sim, como vou encontrar Skar?

— Ele vai esperar por perto, aonde você for. Irá ao seu encontro quando sair.

— Muito bem. Se um divino interromper-nos, devolverei 100 solares para Skar e...

— Cinqüenta!

— Não creio que seja esse o preço adequado, Sirafa — Lucilla sacudiu a cabeça. — Depois de ter sido entretido por mim, o divino vai saber que 50 solares é muito pouco.

Sirafa comprimiu os lábios e olhou além de Lucilla para Burzmali.

— Você me avisou a respeito dela, mas eu não supunha que...

Usando apenas um leve toque da Voz, Lucilla disse:

— Você não deve supor coisa alguma a meu respeito, a menos que ouça de minha boca!

Sirafa olhou com desprezo. Estava obviamente espantada com a Voz, mas se mostrou tão arrogante quanto antes quando voltou a falar.

— Acha que pode dispensar qualquer explicação a respeito de variações eróticas?

— Pode contar com isso — respondeu Lucilla.

— E não preciso dizer-lhe que seu manto a identifica como perita do quinto estágio na Ordem de Hormu?

Foi a vez de Lucilla olhar com desdém.

— E se eu mostrar habilidades além do quinto estágio?

— Ah — respondeu Sirafa. — Ainda aceita meus conselhos, então?

Lucilla fez que sim com a cabeça.

— Muito bem. Posso presumir que é capaz de administrar pulsações vaginais?

— Posso.

— De qualquer posição?

— Posso controlar qualquer músculo do meu corpo!

Sirafa olhou para Burzmali.

— É verdade?

Burzmali respondeu de um ponto logo atrás de Lucilla:

— Se não fosse ela não diria.

Sirafa olhou pensativa, os olhos focalizados no queixo de Lucilla.

— Isso complica as coisas, acho.

— Não me entenda mal — disse Lucilla. — As habilidades que me foram ensinadas não são para exibição. Têm outro propósito.

— Oh, tenho certeza que sim — disse Sirafa. — Mas a agilidade sexual é uma...

— Agilidade! — Lucila deixou que seu tom de voz transmitisse toda a força da indignação de uma Reverenda Madre. Não importava se era isso que Sirafa desejava, ela tinha que ser colocada em seu devido lugar:

— Agilidade! Eu posso controlar até a temperatura genital. Conheço e posso estimular os 51 pontos de excitação. Eu...

— Cinqüenta e um? Mas existem apenas.

— Cinqüenta e um! — retrucou Lucilla. — E a seqüência com mais as combinações possíveis chega a 2.008. Além disso, em conjugação com as 205 posições de coito.

— Duzentas e cinco? — Sirafa estava evidentemente espantada. — Certamente não quer dizer que...

— Há mais, realmente, se contar com as variações menores. Sou uma Impressora, o que significa que domino os 300 passos da ampliação orgásmica!

Sirafa pigarreou e umedeceu os lábios com a língua.

— Devo avisá-la para que se contenha. Mantenha suas habilidades ocultas ou... — Uma vez mais ela olhou para Burzmali. — Por que não me avisou?

— Eu avisei.

Lucilla percebia claramente o divertimento na voz dele, mas não olhou para trás para confirmar isso.

Sirafa inalou e expirou duas vezes.

— Se lhe fizerem alguma pergunta, diga que está a ponto de ser testada para promoção. Isso pode abafar as suspeitas.

— E se me perguntarem quanto ao teste?

— Oh, isso é fácil. Você sorri misteriosamente e fica calada.

— E se me fizerem perguntas a respeito dessa Ordem de Hormu?

— Ameace denunciar quem perguntar aos seus superiores. As perguntas devem parar.

— E se continuarem?

Sirafa deu de ombros.

— Invente a história que quiser. Mesmo uma Reveladora da Verdade se divertiria com suas evasivas.

Lucilla manteve no rosto uma expressão calma enquanto pensava em sua situação. Ouvira Burzmali — Skar! — mexendo-se diretamente atrás dela. Não via qualquer dificuldade séria em realizar aquilo que lhe pediam. Podia até mesmo proporcionar um divertido interlúdio que ela poderia depois contar na sede da Irmandade. Sirafa, percebia ela, estava sorrindo para Burzmali... Skar! Lucilla virou-se e olhou para o seu cliente...

Burzmali encontrava-se nu, o capacete e o uniforme de combate bem dobrados ao lado do pequeno monturo de roupas de tecido grosso.

— Percebo que Skar aprova seus preparativos para esta aventura — comentou Sirafa. Indicou com a mão o pênis rígido e ereto de Burzmali. — Devo deixá-los agora.

Lucilla ouviu Sirafa sair através da cortina brilhante. Enchendo seus pensamentos havia uma constatação aborrecida:

“Esse aí devia ser o ghola!”

 

O esquecimento é seu destino. Todas as antigas lições da vida, você perde e ganha, perde e ganha de novo.

 

— Leto II a Voz de Dar-es-Balat

 

“Em nome de nossa Ordem e de sua inquebrantável Irmandade, este relato é considerado confiável e válido para fazer parte das Crônicas da Irmandade.”

Taraza olhou para as palavras projetadas pelo equipamento de exibição com uma expressão de desgosto. A luz matinal pintava um indistinto reflexo amarelo na projeção, fazendo com que as palavras parecessem enevoadas e misteriosas.

Com um movimento irritado, levantou-se da mesa de projeção e foi para a janela que dava para o sul. O dia estava apenas começando e as sombras pareciam longas lá no pátio.

“Devo comparecer em pessoa?”

Ela hesitou ao pensar nisso. Esses alojamentos davam-lhe um sentimento de tamanha... segurança. Mas isso era tolice, e ela o sabia com cada fibra de seu ser. A Bene Gesserit estava nesse planeta há 1.400 anos e ainda assim o planeta da Irmandade devia ser considerado um abrigo temporário.

Repousou a mão esquerda sobre a moldura lisa da janela. Cada janela fora posicionada para oferecer uma esplêndida visão. A sala, suas proporções, a mobília, as cores — tudo refletia o pensamento de arquitetos e construtores que tinham agido com o único propósito de criar um sentimento de conforto para os ocupantes.

Taraza tentou mergulhar nesse sentimento de conforto e fracassou.

As discussões por que passara a tinham deixado com um sentimento de amargura, muito embora as palavras tivessem sido ditas nos tons mais brandos. Suas conselheiras haviam sido inflexíveis e (ela concordava sem reservas) por motivos justos.

“Fazer de nós missionárias? E dos Tleilaxu?”

Ela tocou num painel de controle ao lado da janela e a fez abrir-se. Uma brisa morna, perfumada pelas flores da primavera, soprou vinda dos pomares de maçãs. A Irmandade orgulhava-se das frutas que cultivava ali, no centro de poder de sua fortaleza. Não havia pomares melhores em qualquer outra fortaleza, nas sedes dependentes que formavam a teia da Bene Gesserit através da maioria dos planetas que os humanos haviam ocupado durante o Velho Império.

“Pelos frutos que produzem, nós os conheceremos”, pensou ela. “Algumas das antigas religiões ainda eram capazes de revelar sabedoria.”

De seu ponto elevado onde se encontrava, Taraza podia ver toda a extensão da ala sul, formada pelos prédios da sede da Irmandade. A sombra de uma torre de vigília próxima traçava uma linha irregular sobre telhados e pátios.

Quando pensava nisso ela reconhecia que esta era uma base surpreendentemente pequena para o poder que continha. Além do anel de pomares e jardins, estendia-se um tabuleiro de xadrez bem demarcado, formado pelas residências particulares, cada qual cercada por suas próprias plantações. Irmãs aposentadas e famílias leais selecionadas ocupavam essas privilegiadas propriedades. O serrilhado de montanhas distantes, freqüentemente brilhando com a neve, marcava os limites ocidentais. O espaçoporto ficava a 20 quilômetros para o leste. E à volta desse coração da Irmandade havia planícies abertas onde pastava um tipo peculiar de gado, um gado tão suscetível a cheiros estranhos que estourava mugindo ante a menor intromissão de pessoas não marcadas pelo odor local. As residências mais internas, com suas plantações cercadas, tinham sido estabelecidas por um antigo Bashar, de modo que ninguém poderia passar através dos canais serpenteantes, no nível do solo, de dia ou de noite, sem ser observado.

Tudo parecia tão casual e no entanto havia uma ordem rigidamente mantida. Algo que, Taraza sabia, personificava a Irmandade.

Um pigarrear atrás dela lembrou-lhe que uma daquelas assessoras que tinham discutido de modo mais veemente durante o Conselho permanecia esperando pacientemente na porta aberta.

“Esperando pela minha decisão.”

A Reverenda Madre Bellonda queria que Odrade fosse “morta de imediato”, mas não se chegava a qualquer decisão.

“Você realmente conseguiu desta vez, Dar. Eu esperava sua louca independência. Até a desejava. Mas isto!”

Bellonda, velha, gorda e corada, tinha olhos frios e era valorizada por seu temperamento violento. Queria que Odrade fosse condenada como traidora.

— O Tirano a teria esmagado imediatamente! — argumentara Bellonda.

“Será que foi só isso que aprendemos com ele?”, perguntou-se Taraza. Bellonda argumentou que Odrade não era apenas uma Atreides, mas igualmente uma Corrino. Eles tinham sido muitos imperadores, vice-regentes e poderosos administradores na ancestralidade dela.

“Com toda a fome de poder que isso implica!”

— Os ancestrais dela sobreviveram a Salusa Secundus! — ficava repetindo Bellonda. — Será que não aprendemos nada com nossas experiências de procriação?

“Aprendemos a fabricar Odrades”, pensou Taraza.

Depois de sobreviver à agonia da especiaria, Odrade fora enviada a Aí Dhanab, um equivalente de Salusa Secundus, para ser condicionada deliberadamente num planeta de testes constantes: altos penhascos e desfiladeiros secos, ventos quentes ou frígidos, umidade escassa ou demasiada. Era considerado um campo de provas adequado para alguém que o destino poderia conduzir a Rakis. Duras sobreviventes emergiam de tal condicionamento. E a alta, ágil e musculosa Odrade era uma das mais duras dentre os sobreviventes.

“Como poderei salvar esta situação?”

A mensagem mais recente de Odrade revelava que qualquer tipo de paz, mesmo os milênios de opressão do Tirano, irradiava uma falsa aura que poderia ser fatal para aqueles que nela confiassem em demasia. Essa era a força e ao mesmo tempo a fraqueza dos argumentos de Bellonda.

Taraza voltou seu olhar para Bellonda, que esperava junto à porta. “Ela é muito gorda! E nos provoca com isso!”

— Não podemos eliminar Odrade assim como não podemos eliminar o ghola — disse Taraza.

A voz de Bellonda veio baixa e calma.

— Ambos são agora demasiado perigosos para nós. Olhe como Odrade a enfraquece com seu relato daquelas palavras escritas no Sietch Tabr!

— Será mesmo que a mensagem do Tirano me enfraqueceu, Bell?

— Sabe o que quero dizer. Os Bene Tleilax não têm moral.

— Pare de mudar de assunto, Bell. Seus pensamentos estão correndo de um lado para outro como um inseto entre as flores. Que está realmente farejando aqui?

— Tleilaxu! Eles fizeram aquele ghola para seus próprios fins. E agora Odrade quer que...

— Está se repetindo, Bell.

— Os Tleilaxu recorrem a atalhos. Sua visão da genética não é a nossa. Não é uma visão humana. Eles criam monstros.

— Será que é isso que eles fazem?

Bellonda entrou na sala, deu a volta à mesa e ficou junto de Taraza, bloqueando da visão da Madre Superiora o nicho com a estatueta de Chenoeh.

— Aliança com os sacerdotes de Rakis sim, mas não com os Tleilaxu. — Os mantos de Bellonda assoviaram quando ela gesticulou com um punho fechado.

— Bell! O Alto Sacerdote é agora uma simulação feita por um Dançarino Facial. Você fala em se aliar com ele?

Bellonda sacudiu a cabeça, furiosa.

— Os crentes do Shai-hulud formam legiões! Você os encontra em toda parte. E qual será a reação deles com relação a nós se nossa participação nessa farsa ficar exposta?

— Você não percebe, Bell? Já cuidamos para que apenas os Tleilaxu fiquem vulneráveis nesse aspecto. Nesse ponto Odrade está certa.

— Errada! Se nos aliarmos a eles, compartilharemos de sua vulnerabilidade. Seremos forçadas a servir às ambições dos Tleilaxu. Vai ser pior que nossa longa subserviência ao Tirano.

Taraza percebia o brilho de fúria nos olhos de Bellonda. As reações dela eram compreensíveis. Nenhuma Reverenda Madre gostava de lembrar o domínio que a ordem sofrera nos tempos do Imperador-Deus, sem trazer com isso outras memórias ainda mais desagradáveis. Forçadas num curso contra a sua vontade, nunca podendo ter certeza de que sua Bene Gesserit sobreviveria de um dia para o outro.

— Acha que vamos assegurar nosso suprimento de especiaria com essa aliança estúpida? — perguntou Bellonda.

Era o mesmo velho argumento, pensou Taraza. Sem a melange e a agonia de sua transformação, não haveria Reverendas Madres. As prostitutas da Dispersão certamente viam na melange um de seus alvos — a especiaria e o domínio que dela possuía a Bene Gesserit.

Taraza voltou para sua mesa e mergulhou o corpo na cadeira-cão, inclinando-se para trás enquanto a peça viva se moldava aos seus contornos. Era um problema. Um problema peculiar da Bene Gesserit. Embora tivesse procurado e experimentado constantemente, a Irmandade ainda não encontrara um substitutivo para a melange. A Corporação Espacial podia desejar a especiaria para produzir o transe em seus navegadores, mas ela podia substituir os navegadores por máquinas Ixianas. Ix e suas subsidiárias competiam nos mercados da Corporação. Eles tinham alternativas.

“Nós não temos nenhuma.”

Bellonda foi até o outro lado da mesa de Taraza, colocou ambos os punhos sobre a superfície lisa e se inclinou para diante, de modo a encarar a Madre Superiora.

— E ainda não sabemos o que os Tleilaxu fizeram com nosso ghola. Odrade vai descobrir.

— Isso não é razão suficiente para lhe perdoar a traição!

Taraza disse em voz baixa:

— Nós esperamos por este momento, geração após geração, e você abortaria o projeto desse modo.

Ela bateu com a palma da mão sobre o tampo da mesa.

— O precioso projeto Rakiano não é mais nosso — disse Bellonda. — E pode nunca ter sido.

Com todos os seus poderes mentais finamente sintonizados, Taraza reexaminou as implicações desse argumento familiar. Era algo de que se falara com freqüência na sessão tumultuada que tinham realizado ainda há pouco.

Seria o projeto do ghola alguma coisa posta em movimento pelo próprio Tirano? Se fosse, que poderiam fazer a respeito agora? Que deveriam fazer a respeito?

Durante a longa discussão, o relatório da minoria estivera em todas as cabeças. Schwangyu podia estar morta, mas sua facção sobrevivia, e agora parecia que Bellonda se unira a ela. Estaria cega a Irmandade ante essa possibilidade fatal? O relatório de Odrade a respeito daquela mensagem oculta em Rakis podia ser interpretado como um sinistro sinal de advertência. Odrade enfatizava isso ao contar como fora alertada pelo seu senso de perigo. Nenhuma Reverenda Madre podia tratar uma coisa dessas de modo leviano.

Bellonda levantou-se e dobrou os braços sobre o peito.

— Nós nunca escapamos de todo à influência dos professores de nossa infância nem dos padrões que formaram nossa personalidade, não é mesmo?

Esse era um argumento peculiar nas disputas da Bene Gesserit. Lembrava-lhes de suas próprias suscetibilidades particulares.

“Nós somos aristocratas secretas e é nossa prole que herda o poder. Sim, nós somos suscetíveis nesse aspecto, e Miles Teg é um exemplo soberbo.”

Bellonda encontrou uma cadeira de recosto rígido e se sentou, colocando os olhos no mesmo nível dos de Taraza.

— Durante o auge da Dispersão — lembrou ela —, perdemos de vista cerca de 20 por cento de nossos fracassos.

— Não são os fracassos que estão voltando para nos ameaçar.

— Mas o Tirano certamente sabia que isso ia acontecer!

— A Dispersão era seu objetivo, Bell. Era esse o seu Caminho Dourado, a chave da sobrevivência da humanidade!

— Mas nós sabemos o que ele pensava a respeito dos Tleilaxu e no entanto ele não os exterminou. Poderia tê-lo feito, mas não fez!

— Ele queria a diversidade.

Bellonda deu um soco no tampo da mesa.

— Foi certamente o que conseguiu!

— Nós já discutimos isso vezes sem conta, Bell, e ainda assim não vejo meio de fugir ao que Odrade fez.

— Subserviência!

— De modo algum. Será que fomos totalmente subservientes a qualquer um dos imperadores que precederam o Tirano? Não fomos subservientes nem para com o Muad'Dib!

— Ainda estamos na armadilha do Tirano — acusou Bellonda. — Diga-me por que os Tleilaxu continuaram a produzir o seu ghola favorito? Milênios se passaram e aquele ghola continua saindo de seu tanque como um polichinelo.

— Acha que os Tleilaxu ainda cumprem uma ordem secreta do Tirano? Se for assim, você está defendendo Odrade. Ela criou condições admiráveis para que examinemos essa questão.

— Ela não ordenou nada desse tipo! Apenas tornou aquele ghola em particular deliciosamente atraente para os Bene Tleilax.

— E para nós não?

— Madre Superiora, precisamos escapar agora da armadilha do Tirano! E através do método mais direto!

— A decisão é minha, Bell. E ainda me sinto atraída por uma aliança cautelosa.

— Então, pelo menos, deixe-nos matar o ghola. Sheeana pode ter filhos. Nós poderíamos...

— Isso não é nem nunca foi um projeto puramente de procriação!

— Mas poderia ser. E se estiver errada quanto ao poder que se oculta por trás da presciência dos Atreides?

— Todas as suas propostas levariam à nossa alienação de Rakis e dos Tleilaxu, Bell.

— A Irmandade poderia agüentar 50 gerações com nossas atuais reservas de melange. Mais ainda com racionamento.

— E você acha que 50 gerações é um tempo muito longo, Bell? Não percebe que é por essa atitude que você não está sentada aqui na minha cadeira?

Bellonda empurrou sua cadeira para trás, afastando-se da mesa. Os pés da cadeira fizeram um som irritante no piso. Taraza podia notar que ela não fora convencida. Não poderia mais confiar em Bellonda. Ela é que poderia terminar sendo a marcada para morrer. E onde é que estava o nobre propósito em tudo isso?

— Isso não vai nos levar a lugar algum — disse Taraza. — Deixe-me só.

Depois que Bellonda saiu, Taraza refletiu uma vez mais sobre a mensagem de Odrade. Sinistra. Era fácil notar por que Bellonda e as outras tinham reagido com tanta violência. Mas isso demonstrava uma perigosa ausência de controle.

“Ainda não é hora de escrever o testamento da Irmandade” De modo curioso, Odrade e Bellonda compartilhavam do mesmo medo, mas esse medo as conduzia a decisões diferentes. A interpretação de Odrade para aquela mensagem nas pedras transmitia um antigo aviso:

''Isto também deverá passar.”

“Será que agora chegaremos ao fim esmagadas pelas hordas vorazes da Dispersão?”

Mas o segredo dos tanques axlotl encontrava-se quase nas mãos da Irmandade.

“Se conseguirmos isso, nada nos poderá deter!”

Taraza voltou sua atenção para os detalhes da sala. O poder da Bene Gesserit ainda permanecia ali. A sede da Irmandade continuava escondida atrás de uma cerca de não-naves, sua localização fora dos registros e marcada apenas nas mentes de sua própria gente. Invisibilidade.

Invisibilidade temporária! Acidentes aconteciam.

Odrade ergueu os ombros. “Tome precauções, mas não viva nas sombras, sempre furtiva.” A Litania contra o Medo servia ao útil propósito de evitar as sombras.

Partindo de outra pessoa que não Odrade, a mensagem de aviso, com a perturbadora sugestão de que o Tirano ainda conduzia o seu Caminho Dourado, teria parecido muito menos terrível.

Aquele maldito talento dos Atreides!

“Nada mais que uma sociedade secreta?”

Taraza trincou os dentes de frustração.

“Memórias não são o bastante, a menos que elas conduzam a um nobre propósito!”

E se fosse verdade que a Irmandade não mais escutava a música da vida?

“Maldito!” O Tirano ainda podia alcançá-las.

“Que será que está tentando dizer-nos?” Seu Caminho Dourado não podia estar em perigo. A Dispersão havia assegurado isso. Os seres humanos tinham espalhado sua espécie em rumos incontáveis, como os espinhos de um porco-espinho.

Será que ele tivera a visão dos Dispersos retornando? Seria possível que ele tivesse antecipado essa erva daninha ao pé do seu Caminho Dourado?

“Ele sabia que suspeitaríamos de seus poderes. Ele sabia disso!” Taraza pensou no número cada vez maior de relatórios a respeito dos Perdidos que voltavam para suas raízes. Uma extraordinária diversidade de pessoas e artefatos acompanhada de um grau extraordinário de segredo e evidências de conspiração. Não-naves de desenho peculiar, armas e artefatos dotados de um espantoso grau de sofisticação. Diversos povos e diversos costumes.

“Alguns espantosamente primitivos. Pelo menos superficialmente”

E essa gente queria muito mais que melange. Taraza reconhecia o tipo peculiar de misticismo que trazia de volta os Perdidos: “Eles querem os segredos de seus antepassados!”

A mensagem das Honradas Madres fora muito clara: “Vamos tomar aquilo que desejamos”

“Odrade tem tudo em suas mãos”, pensou Taraza. Ela tinha Sheeana. E, se Burzmali tivesse sucesso, logo ela teria o ghola. Já tinha em seu poder o Mestre dos Mestres Tleilaxu. Poderia dominar o próprio Rakis!

“Se ao menos não fosse uma Atreides.”

Taraza olhou para as palavras projetadas, ainda oscilando acima do topo da mesa: uma comparação desse novo ghola Duncan Idaho com todos os outros que tinham sido mortos. Cada novo ghola fora ligeiramente diferente dos antecessores. Isso era muito claro. Os Tleilaxu estavam aperfeiçoando alguma coisa. Mas o quê? Será que a pista estaria oculta nesses novos Dançarinos Faciais? Os Tleilaxu obviamente tinham buscado desenvolver um Dançarino Facial indetectável, mímicos capazes de produzir uma mímica perfeita, copiadores de formas capazes de reproduzir não apenas as memórias superficiais de suas vítimas, mas seus pensamentos mais profundos, sua identidade. Era uma forma de imortalidade até mais atraente do que aquela que os Mestres Tleilaxu usavam atualmente. Era por isso, obviamente, que eles seguiam esse curso.

As próprias análises de Taraza concordavam com as da maioria de suas assessoras: tal cópia se tornaria a pessoa copiada. Os relatórios de Odrade a respeito do Tuek-Dançarino Facial eram altamente sugestivos. Mesmo um Mestre Tleilaxu não seria capaz de afastar um Dançarino Facial desse tipo de sua forma copiada e de seu comportamento.

Sem falar de suas crenças.

“Maldita Odrade!” Deixara suas Irmãs sem opção. Elas não tinham outra escolha senão seguir a liderança de Odrade. E Odrade sabia disso!

Como será que ela sabe? Será aquele talento louco de novo?

“Não posso agir às cegas. Preciso saber.”

Taraza induziu seu conhecido método de restaurar o sentimento de calma. Não se atrevia a tomar decisões importantes quando se sentia frustrada. Uma olhada demorada para a estatueta de Chenoeh ajudava nisso. Erguendo-se da cadeira-cão, Taraza voltou para sua janela favorita.

Freqüentemente a acalmava o simples ato de olhar para aquela paisagem, observando como as distâncias pareciam alterar-se como movimento diário da luz do sol e as mudanças do clima bem controlado desse planeta.

Sentiu fome.

“Hoje vou comer com as acólitas e as Irmãs leigas.”

Em ocasiões como essa, ajudava reunir as jovens em torno dela e lembrar a persistência dos rituais de alimentação, os ritmos diários  a manhã, o meio-dia, a tarde. Isso formava uma base confiável. Gostava de observar sua gente. Elas eram como uma maré indicando coisas profundas, revelando forças invisíveis e grandes poderes que persistiam porque a Bene Gesserit encontrara modos de fluir como fluíam as coisas persistentes.

Tais pensamentos renovavam o equilíbrio de Taraza. As questões e dúvidas que permanecessem podiam ser mantidas a distância. Ela podia olhar para elas sem paixões.

Odrade e o Tirano estavam certos: “Sem um nobre propósito, não somos nada.”

Não se podia escapar, entretanto, ao fato de que decisões críticas estavam sendo tomadas em Rakis por uma pessoa afetada pelas fraquezas peculiares aos Atreides. Fraquezas que Odrade sempre exibira. Ela fora positivamente benevolente com acólitas que cometiam erros. De tal comportamento surgiam afeições!

Afeições perigosas por prejudicarem o raciocínio.

Isso enfraquecia as outras, que eram então obrigadas a compensar tal descuido. Irmãs mais competentes tinham que ser convocadas para corrigir as fraquezas dessas acólitas. É claro que o próprio comportamento de Odrade é que tinha revelado as fraquezas das acólitas. Era algo que precisava ser considerado. Talvez Odrade raciocinasse desse modo.

Enquanto assim pensava, algo sutil e poderoso se movia na percepção de Taraza. Era forçada a dominar um profundo sentimento de solidão. Algo que amargurava. A melancolia podia prejudicar a clareza dos pensamentos do mesmo modo que a afeição... e mesmo o amor.

Taraza e suas vigilantes Irmãs das Memórias consideravam tais respostas emocionais como resultantes da consciência da mortalidade. Era forçada a confrontar a realidade de que um dia não seria nada mais que um conjunto de memórias guardadas no cérebro de outra pessoa.

As memórias e as descobertas casuais, percebia ela, tinham-na tornado vulnerável. E logo quando precisava de todas as suas faculdades!

“Mas ainda não estou morta.”

Taraza sabia como restaurar sua confiança. E sabia quais seriam as conseqüências. Depois desses ataques de melancolia, sempre conquistava um domínio mais poderoso de sua vida e de seus propósitos. As fraquezas de Odrade eram uma fonte de força para sua Madre Superiora.

E Odrade sabia disso. Taraza sorriu amargamente ante essa percepção. A autoridade da Madre Superiora sobre suas Irmãs sempre ficava mais forte quando ela se recuperava de um acesso de melancolia. Outras tinham observado tal coisa, mas só Odrade sabia a respeito da raiva.

“Lá dentro!”

Taraza estava enfrentando as sementes de suas próprias frustrações.

Em muitas ocasiões Odrade notara o que havia no núcleo, na origem do comportamento da Madre Superiora. Uma fúria gigantesca contra os usos que outras tinham feito de sua vida. E o poder dessa ira reprimida era surpreendente, mesmo que não pudesse ser usado do modo desejado. Ela nunca poderia permitir que tal ira desaparecesse. Mas como doía! E a percepção por parte de Odrade só tornava a dor ainda mais intensa.

Tais coisas faziam o que deviam fazer, é claro. As imposições da Bene Gesserit desenvolviam determinados músculos mentais. Construíam camadas de dureza que nunca poderiam ser penetradas por gente de fora. O amor era uma das forças mais perigosas do universo. Elas tinham que se proteger dele. Uma Reverenda Madre nunca poderia comprometer-se intimamente, nem mesmo a serviço da Bene Gesserit.

“Dissimulação: desempenhamos os papéis necessários para a nossa salvação. A Bene Gesserit vai permanecer!”

E por quanto tempo iriam permanecer subservientes dessa vez? Mais 3.500 anos? Bem, que se danassem todos! Ainda assim seria uma coisa apenas temporária.

Taraza voltou sua atenção para a janela e sua visão tranqüilizadora. Realmente se sentia recuperada. Uma nova força fluía em seu corpo. Força suficiente para vencer aquela relutância que a impedira de tomar as decisões necessárias.

“Vou para Rakis”

Não podia mais escapar à fonte de sua hesitação.

“Talvez tenha que fazer aquilo que Bellonda deseja.”

 

A sobrevivência do eu, da espécie e do meio ambiente, isso é que impulsiona os seres humanos. Pode-se observar como a ordem de importância se altera durante o tempo de vida. Quais são as preocupações imediatas em determinada idade? O estado do clima? Da digestão? Será que ele (ou ela) realmente se importa? Todos aqueles vários tipos de fome que a carne pode sentir e esperar satisfazer. Que mais poderia importar?

 

— Leto II a  Hwi Noree,

Sua Voz: Dar-es-Balat

 

Miles Teg despertou em meio à escuridão para se encontrar numa liteira carregada sobre suspensores. Através de seu fraco brilho energético, podia ver as pequeninas bolhas suspensoras pendendo para cima numa fileira à sua volta.

Havia uma mordaça em sua boca. Suas mãos estavam firmemente amarradas às costas. Mas os olhos permaneciam descobertos.

“Eles não se importam com o que eu veja.”

Quem seriam eles, não podia dizer. Os movimentos ondulantes das formas escuras à sua volta sugeriam que estavam descendo por um terreno irregular. Uma trilha? A liteira deslizava suavemente em seus suspensores. Podia sentir o fraco zumbido dos suspensores quando o grupo parava para transpor um trecho particularmente difícil.

De vez em quando, através de alguma obstrução, podia ver uma luz tremulando adiante. Daí a pouco penetraram na área iluminada e pararam. Teg viu um único globo luminoso flutuando a uns três metros do solo, preso a um poste e se movendo livremente ao sabor dos ventos frios. Através de seu brilho amarelo, pôde discernir um barracão ao centro de uma clareira enlameada, com muitos rastros aparecendo na neve pisada. Viu arbustos e algumas árvores esparsas em torno da clareira. Alguém passou o facho de uma lanterna brilhante sobre o seu rosto. Nada foi dito, mas Teg percebeu um gesto de mão em direção ao barracão. Poucas vezes tinha visto uma estrutura tão arruinada quanto essa. Parecia a ponto de desabar ao mais leve toque. Apostou como o teto tinha goteiras.

Uma vez mais o grupo que o carregava se colocou em movimento, levando-o para o barracão. Ele observou sua escolta àquela luz fraca — rostos cobertos até os olhos com máscaras que escondiam o queixo e a boca. Capuzes ocultavam os cabelos. A roupa era volumosa e escondia os detalhes do corpo, exceto pela articulação dos braços e das pernas.

O globo luminoso preso ao poste apagou-se.

Uma porta se abriu no barracão, lançando uma luz brilhante sobre a clareira. O grupo conduziu-o para dentro e o deixou lá. Teg ouviu a porta ser fechada.

A iluminação lá dentro era quase cegante depois da escuridão que tinha atravessado. Teg piscou até que seus olhos se tivessem adaptado à mudança. Com o estranho sentimento de que aquilo não estava acontecendo realmente com ele, Teg olhou à sua volta. Tinha esperado que o interior do barracão fosse igual ao exterior, mas ali havia uma sala muito bem arrumada, quase sem móveis — somente três cadeiras, uma mesa e... respirou fundo: uma Sonda Ixiana! Será que eles não podiam sentir o aroma de shere em sua respiração?

Se não tinham consciência disso, então que usassem a sonda. Seria uma agonia para ele, mas não iriam arrancar nada de sua mente.

Alguma coisa estalou atrás dele e Teg ouviu um movimento. Três pessoas entraram em seu campo de visão e ficaram enfileiradas junto à liteira. Olhavam para ele em silêncio. Teg observou os três com atenção. O que estava à sua esquerda usava um macacão negro com lapelas abertas. Era homem. Tinha o rosto quadrado que Teg observara em certos nativos de Gammu  pequeno, com olhos que pareciam contas olhando diretamente para ele. Era o rosto de um inquisidor, alguém que não sentiria pena diante de sua agonia. No seu tempo, os Harkonnen haviam importado um monte de gente assim  tipos bitolados, capazes de provocar a dor sem a menor mudança de expressão.

O sujeito diretamente aos pés de Teg usava roupas volumosas, pretas e cinzentas, semelhantes às usadas pela escolta, mas com o capuz lançado para trás de modo a revelar um rosto sem expressão sob cabelos grisalhos cortados curtos. O rosto não revelava coisa alguma, muito menos as roupas. Não havia meio de dizer se era homem ou mulher. Teg gravou o rosto: testa larga, queixo quadrado, grandes olhos verdes sobre nariz aquilino, boca pequena comprimida em expressão de desagrado.

O terceiro membro do grupo foi o que mais atraiu a atenção de Teg: alto, com um macacão negro feito sob medida e uma jaqueta sobre os ombros. Tudo com um caimento perfeito. Roupa cara. Sem insígnias ou enfeites. Definitivamente, um homem. Aparentava tédio e isso deu a Teg uma indicação. Rosto estreito e arrogante, olhos castanhos, boca de lábios finos. Entediado, muito entediado! Tudo aquilo era uma interrupção indesejável muito importante em sua vida. Tinha negócios vitais em algum outro lugar, e esses dois, esses inferiores, tinham que perceber isso.

“Este”, pensou Teg, “é o observador oficial.”

O sujeito entediado fora enviado pelos mandachuvas desse lugar para observar e relatar o que visse. Onde estava sua pasta registradora de dados? Ah, sim: lá estava, apoiada de encontro à parede atrás dele. Essas pastas eram como distintivos para tais sujeitos. Em sua viagem de inspeção, Teg vira muitos funcionários como esse caminhando pelas ruas de Ysai e outras cidades de Gammu. Pastas pequenas e finas. Quanto mais importante o funcionário, menor a pasta. A desse mal conteria alguns rolos de dados e um minúsculo olho comunicador. Ele nunca andaria sem um olho para mantê-lo em contato com seus superiores. Pasta fina: esse era um funcionário importante.

Teg viu-se imaginando o que esse observador diria se ele perguntasse:

“Que vai dizer a eles a respeito da minha serenidade?”

A resposta já estava lá naquele rosto entediado. Ele nem mesmo responderia. Não estava ali para responder coisa alguma. “Quando sair”, pensou Teg, “vai caminhar com passadas largas. Sua atenção estará nas distâncias onde só ele conhece os poderes que o aguardam. Vai bater na perna com essa pasta para se lembrar de sua importância e chamar a atenção desses outros para o distintivo de sua autoridade.”

A figura volumosa aos pés de Teg falou, uma voz dominadora e definitivamente feminina em seus tons vibrantes.

— Está vendo como ele se domina e nos observa? O silêncio não vai fazê-lo quebrar. Eu lhe disse isso antes de entrarmos. Está desperdiçando nosso tempo, e não temos tempo para desperdiçar com tal tolice.

Teg olhou para ela. Havia alguma coisa vagamente familiar em sua voz. Tinha algo daquela qualidade dominadora encontrada em uma Reverenda Madre. Seria possível?

O tipo de Gammu, de rosto quadrado, assentiu com a cabeça.

— Está certa, Senhora. Mas eu não dou as ordens aqui.

“Senhora?”, perguntou-se Teg. “Um nome ou título?”

Os dois olharam para o funcionário. Este voltou-se e se curvou junto à sua pasta de dados. Retirou o pequeno olho com indicador e se levantou com a tela escondida da vista de seus companheiros e de Teg. O olho iluminou-se com um brilho esverdeado que lançou uma iluminação doentia sobre as feições do observador. Seu sorriso de importância desapareceu. Ele moveu os lábios silenciosamente, as palavras sendo formadas apenas para alguém que observava através daquele olho.

Teg ocultou sua habilidade de ler nos lábios. Qualquer um treinado pela Bene Gesserit seria capaz de ler nos lábios a partir de quase qualquer ângulo em que fossem visíveis. E esse homem falava numa versão do Galach Antigo.

— É sem dúvida o Bashar Teg — ele disse. — Já fiz a identificação.

A luz verde dançou no rosto do funcionário enquanto ele observava o olho. Quem estivesse se comunicando com ele movia-se agitadamente. Se é que aquela luz significava isso.

Novamente os lábios do funcionário moveram-se sem emitir som:

— Nenhum de nós duvida de que ele tenha sido condicionado contra a dor, e eu posso sentir nele o cheiro de shere. Ele vai...

O sujeito ficou em silêncio enquanto a luz verde uma vez mais tremeluzia em seu rosto.

— Não estou inventando desculpas. — Os lábios moldavam as palavras no Galach Antigo como maior cuidado. — Sabe que faremos o melhor que pudermos, mas recomendo colocarmos toda a ênfase na interceptação do ghola.

A luz verde apagou-se.

O funcionário prendeu o olho comunicador à cintura e se virou para os companheiros, acenando com a cabeça uma vez.

— A sonda-T — disse a mulher.

Eles giraram a sonda, posicionando-a sobre a cabeça de Teg.

“Ela chamou isso de sonda-T”, pensou Teg. Olhou para o capacete da coisa enquanto o posicionavam sobre ele. Não havia nela qualquer marca Ixiana.

Teg experimentou um curioso sentimento de déjà vu. Tinha a impressão de que seu cativeiro nesse lugar já acontecera antes, muitas vezes. Não era a sensação de déjà vu de um acontecimento único, era um sentimento familiar de reconhecimento: o prisioneiro e seus interrogadores — esses três... a sonda. Sentiu-se esvaziado. Como poderia conhecer esse momento? Nunca tinha usado uma sonda dessas pessoalmente, mas estudara seu uso com atenção. A Bene Gesserit freqüentemente empregava a dor, mas confiava principalmente nas Reveladoras da Verdade. Ainda mais que isso, a Irmandade acreditava que certos equipamentos a deixariam sob demasiada influência dos Ixianos. Seria uma admissão de fraqueza, sinal de que dependiam de engenhos desprezíveis. Teg até mesmo suspeitava de que parte dessa atitude era uma ressaca do Jihad Butleriano, a rebelião contra as máquinas capazes de copiar a essência dos pensamentos humanos e de suas memórias.

Déjà vu!

A lógica Mentat exigia-lhe uma explicação: “Como é que conheço este momento?” Sabia que nunca antes fora um prisioneiro. Era uma mudança de papéis muito ridícula. O grande Bashar Teg prisioneiro? Podia quase sorrir. Mas aquele profundo sentimento de familiaridade persistia.

Seus captores posicionaram o capacete do aparelho diretamente sobre sua cabeça e começaram a desenrolar os contatos, que lembravam uma cabeleira de medusa, um por um, fixando-os em seu crânio. O funcionário observava seus colegas trabalharem, dando pequenos sinais de impaciência num rosto de outro modo livre de qualquer demonstração de sentimentos.

Teg prestou atenção aos três rostos. Qual deles iria fazer o papel de “amigo”? Ah, sim, seria a mulher. Fascinante. Será que pertencia às Honradas Madres? Só que nenhum dos outros demonstrava o respeito ou a reverência com relação a ela que tal fato implicaria, como Teg tinha ouvido muitas vezes dos Perdidos retornados.

E no entanto essa gente era da Dispersão — exceto, possivelmente, o homem de rosto quadrado no macacão marrom. Teg observou a mulher com muita atenção: o capuz de cabelo grisalho, a calma naqueles olhos verdes bem espaçados, o queixo levemente proeminente com sua impressão de solidez e confiabilidade. Fora muito bem escolhida para fazer o papel de “amiga”. Seu rosto era um mapa de respeitabilidade, alguém em quem se confiaria de imediato. Mas Teg percebia uma qualidade que ela ocultava. Sua função seria igualmente a de observar com cuidado até perceber o momento ideal para se envolver. Certamente devia ter sido, no mínimo, treinada pela Bene Gesserit.

“Ou pelas Honradas Madres.”

Eles acabaram de prender os contatos em sua cabeça. O sujeito com a aparência de nativo de Gammu colocou o consolo da sonda em uma posição na qual os três pudessem observar os medidores. Mas a tela visora da sonda estava oculta à visão de Teg.

A mulher tirou-lhe a mordaça, confirmando seu julgamento. Ela seria a fonte de conforto. Ele moveu a língua em torno da boca, restaurando a sensação. O rosto e o peito ainda lhe pareciam um tanto dormentes do atordoador que o tinha derrubado. Há quanto tempo isso teria acontecido? Mas, se podia acreditar nas palavras silenciosas do funcionário, Duncan escapara.

O sujeito de Gammu olhou para o observador.

— Pode começar, Yar — disse o funcionário.

“Yar?”, perguntou-se Teg. “Nome curioso.” Soava quase como Tleilaxu. Mas Yar não era um Dançarino Facial... nem um Mestre Tleilaxu. Muito grande para ser um e sem os sinais de ser o outro. Como pessoa treinada pela Irmandade, Teg sentia-se confiante quanto a isso.

Yar tocou num controle no consolo da sonda.

Teg ouviu seu próprio grunhido de dor. Nada o preparara para tanta dor. Eles deviam ter regulado a maldita máquina ao máximo para o primeiro golpe. Não havia dúvida a esse respeito! Sabiam que ele era um Mentat. Um Mentat podia desligar-se dos clamores da carne. Mas aquilo ali era excruciante! Não seria capaz de escapar. A agonia estremeceu todo o seu corpo, ameaçando apagar-lhe a consciência. Será que o shere poderia protegê-lo de uma coisa dessas?

A dor diminuiu gradualmente e se foi, deixando apenas memórias que o faziam estremecer.

De novo!

Teg pensou subitamente que a agonia da especiaria devia ser assim para uma Reverenda Madre. Certamente não podia haver dor maior do que essa. Ele lutava para ficar em silêncio, mas podia ouvir a si próprio gemendo e grunhindo. Cada habilidade que aprendera como Mentat, e da Bene Gesserit, foi colocada em ação, evitando que sua boca formasse palavras, evitando que suplicasse pelo fim dessa agonia, que lhe prometesse dizer qualquer coisa que quisessem ouvir, apenas para que parassem.

Uma vez mais a agonia diminuiu e depois aumentou.

— É o bastante.

Fora a voz da mulher. Teg tentou lembrar o nome dela.

Yar falou com uma voz mal-humorada:

— Ele está carregado com shere suficiente para durar um ano. — Indicou o consolo. — Em branco.

Teg respirava ofegante. A agonia! Ela continuava a aumentar, a despeito do pedido da mulher.

— Eu falei que é o bastante! — retrucou ela.

Tamanha sinceridade, pensou Teg. Sentiu a dor recuar, afastando-se como se cada nervo tivesse sido removido de seu corpo, tirado como fios de uma agonia lembrada.

— É errado o que estamos fazendo — disse a mulher. — Este homem é...

— Ele é como qualquer outro homem — disse Yar. — Devo ligar o contato especial ao seu pênis?

— Não enquanto eu estiver aqui — disse a mulher.

Teg sentiu-se quase sensibilizado por tamanha sinceridade. O último dos fios de agonia deixou sua carne e ele ficou lá, sentindo-se como se flutuasse acima da superfície que o suportava. A sensação de déjà vú permanecia. Ele estava ali e não estava. Estivera ali e não estivera.

— Não vão gostar se fracassarmos — disse Yar. — Está preparada para enfrentá-los com outro fracasso?

A mulher sacudiu a cabeça. Curvou-se sobre Teg, colocando o rosto em sua linha de visão através do emaranhado dos eletrodos.

— Bashar, sinto muito pelo que estamos fazendo. Acredite-me, isto não é responsabilidade minha. Acho tudo isso extremamente desagradável. Diga-nos o que precisamos saber e permita que o deixemos à vontade.

Teg formou para ela um sorriso em sua boca. Era muito boa! Voltou a atenção para o funcionário vigilante.

— Diga isto a seus mestres por mim: ela é muito boa em seu trabalho.

O sangue avermelhou o rosto do funcionário. Ele ficou furioso.

— Dê-lhe o máximo, Yar.

Sua voz era um tenor controlado, sem aparentar o treinamento visível na voz da mulher.

— Por favor! — ela implorou.

Levantou-se, mas manteve sua atenção nos olhos de Teg.

As professoras Bene Gesserit de Teg tinham-lhe ensinado isso.

— Vigie os olhos! Observe como eles mudam de foco. Enquanto o foco se move no sentido do exterior, a consciência se move para dentro.

Ele focalizou a atenção deliberadamente no nariz dela. Não era um rosto feio. Na verdade, era singular. Imaginou que figura não devia existir escondida naquelas roupas volumosas.

— Yar!

Essa era a voz do funcionário.

Yar ajustou alguma coisa no consolo e apertou um botão.

A agonia que atravessou o corpo de Teg revelou-lhe que o nível anterior tinha sido, de fato, mais brando. E com a nova dor veio uma nova claridade. Teg descobriu-se quase capaz de remover sua consciência dessa intromissão. Toda essa dor estava acontecendo com outra pessoa, não com ele. Encontrara um refúgio onde muito pouca coisa o atingia. Sim, havia dor, até mesmo agonia. Aceitava as informações que chegavam a respeito dessas sensações. Isso era parcialmente a ação do shere, ele sabia. E por isso se sentia grato.

A voz da mulher penetrou em sua consciência:

— Creio que o estamos perdendo. É melhor reduzir.

Outra voz respondeu, mas o som se apagou no silêncio antes que Teg pudesse identificar as palavras. Percebeu subitamente que não tinha mais ponto de apoio para sua consciência. Quietude! Pensou ter ouvido o próprio coração batendo muito depressa, de medo, mas não tinha certeza quanto a isso. Tudo era calmo, profundamente quieto, sem nada por trás.

“Será que ainda estou vivo?”

Ouviu a batida de coração, mas não tinha certeza de que fosse o dele. Tum-tum!Tum-tum! Era uma sensação de movimento, não de som. Não podia localizar a fonte.

“Que é que está acontecendo comigo?”

Palavras escritas num branco brilhante, delineadas contra um fundo preto, surgiram diante de seus centros visuais:

— Estou de volta em um terço.

— Deixe aí. Veja se podemos registrá-lo através de suas reações físicas.

— Será que ele ainda pode nos ouvir?

— Não conscientemente.

Nenhuma das instruções que Teg recebera dissera que uma sonda seria capaz de realizar seu trabalho diabólico na presença de sheere. Mas eles tinham chamado a coisa de sonda-T. Será que reações corporais poderiam revelar indícios de pensamentos suprimidos? Haveria revelações que poderiam ser exploradas por meios físicos?

Novamente as palavras surgiram nos centros visuais de Teg.

— Ele ainda está isolado?

— Completamente.

— Certifique-se. Leve-o um pouquinho mais fundo.

Teg tentou erguer a consciência acima de seus temores.

“Devo manter o controle!”

Que é que seu corpo poderia revelar se não tinha contato com ele? Podia imaginar o que estavam fazendo e sua mente registrava o pânico mas sua carne não podia senti-lo.

“Isolar o paciente. Não lhe deixar um lugar para por sua identidade.”

Quem é que tinha dito isso? Alguém. O sentimento de déjà vu retornou a plena força.

“Sou um Mentat”, lembrou a si mesmo. “Minha mente e seu funcionamento estão no meu centro.” Ele tinha experiências e memórias  sobre as quais esse centro podia apoiar-se.

A dor voltou. Sons. Altos! Muito altos!

— Ele está ouvindo de novo.

Esse era Yar.

— Como pode ser?

Esse era o tenor do funcionário.

— Talvez você tenha ajustado profundo demais.

Essa era a voz da mulher.

Teg tentou abrir os olhos. As pálpebras não obedeciam. Lembrou-se então. Eles tinham chamado a coisa de sonda-T. Esse não era um engenho Ixiano, era alguma coisa da Dispersão. Podia identificar onde a coisa dominava seus músculos e seus sentidos. Era como outra pessoa compartilhando da sua carne, esvaziando seus próprios padrões de reação. Permitiu-se seguir o funcionamento das intrusões da máquina. Era um engenho infernal! Aquilo poderia ordenar que ele piscasse, arrotasse, respirasse, cagasse ou mijasse — qualquer coisa. Podia comandar-lhe o corpo como se a consciência não desempenhasse função alguma em seu funcionamento. Estava relegado à simples função de observador.

Odores atingiram-no, tomando de assalto a sua consciência. Não podia ordenar aos músculos que franzissem a testa, mas pensou em fazê-lo. Isso era o suficiente. Esses odores desagradáveis estavam sendo produzidos pela sonda. Ela estava jogando com seus sentidos, aprendendo com eles.

— Já tem o suficiente para registrá-lo? — perguntou o funcionário.

— Ele ainda está nos ouvindo! — disse a voz de Yar.

— Malditos sejam todos os Mentats! — disse a mulher.

— Dit, Dat e Dot — disse Teg, relembrando os nomes das marionetes do Espetáculo de Inverno a que assistira em sua infância, muito tempo atrás em Lernaeus.

— Ele está falando! — disse o funcionário.

Teg sentiu sua consciência sendo bloqueada pela máquina. Yar estava fazendo alguma coisa com o console. Ainda assim Teg sabia que sua própria lógica Mentat lhe revelara uma coisa vital: esses três eram marionetes. E somente os manipuladores dos bonecos eram importantes. Como os bonecos se moviam — isso revelava o que os manipuladores faziam.

A sonda continuava a penetrar. Mas, a despeito da força que era aplicada, Teg sentia sua consciência igualando a força da coisa. Estava aprendendo com ele, mas ele também aprendia com ela.

Podia compreendê-la agora. Todo o espectro de seus sentidos podia ser copiado por essa sonda-T e identificado, mostrado a Yar para ser acionado quando fosse necessário. Havia uma cadeia orgânica de respostas dentro de Teg. A máquina podia rastreá-la como se fizesse uma duplicata dele. O sheere e sua resistência de Mentat desviavam os rastreadores de sua memórias, mas tudo mais podia ser copiado.

“Não vai pensar como eu penso”, tranqüilizou a si mesmo.

A máquina não seria a mesma coisa que seus nervos e sua carne. Ela não teria as memórias de Teg ou suas experiências. Não nascera de uma mulher, como ele. Nunca tinha viajado por um canal de parto e emergido para esse universo assombroso.

Parte da consciência de Teg aplicou um marco de memória, dizendo-lhe que suas observações tinham revelado alguma coisa a respeito do ghola.

“Duncan foi decantado num tanque axlotl.”

A observação entrou na mente de Teg com uma súbita queimação de ácido na sua língua.

“A sonda-T novamente”

Teg deixou-se fluir numa consciência múltipla. Seguiu o funcionamento da sonda-T e continuou a explorar suas observações a respeito do ghola, enquanto ouvia o tempo todo Dit, Dat e Dot. Os três marionetes encontravam-se curiosamente silenciosos. Sim, esperando que a sonda-T completasse a tarefa.

“O ghola”

Duncan era uma extensão de células que tinham nascido de uma mulher inseminada por um homem.

“Máquina e ghola!”

Observação: “A máquina não pode experimentar a sensação do parto, exceto de modo remoto e indireto. Um modo que certamente vai perder importantes nuances pessoais”

Exatamente como estavam perdendo coisas importantes a respeito dele agora mesmo.

A sonda-T está repetindo odores. E a cada odor induzido memórias se revelavam na mente de Teg. Ele sentia a grande velocidade com que agia a sonda-T, mas sua consciência estava vivendo fora daquela varredura, capaz de prendê-lo pelo tempo que ele desejasse nas memórias que estavam sendo revividas.

“Lá está.”

Lá estava a cera quente que tinha derramado na mão esquerda quando tinha 14 anos e se encontrava na escola da Bene Gesserit. Lembrava-se da escola e do laboratório como se estivesse lá neste momento. “A escola é ligada à Sede da Irmandade” Ao ser admitido, Teg ficou sabendo que possuía o sangue de Siona em suas veias. Nenhum presciente poderia localizá-lo lá.

Ele via o laboratório e sentia o cheiro da cera — um composto de ésteres artificiais mais o produto natural de abelhas criadas por Irmãs que tinham fracassado no treinamento. Voltou sua memória para o momento em que observara as abelhas e as pessoas trabalhando com elas nos pomares.

O funcionamento da estrutura social da Bene Gesserit parecia complicado até se examinarem suas necessidades: alimento, roupas, calor, comunicações, aprendizado, proteção contra os inimigos (uma variedade do instinto de sobrevivência). A sobrevivência de Bene Gesserit exigia alguns ajustamentos antes que pudesse ser entendida. Elas não procriavam para o benefício da humanidade em geral. Nenhum envolvimento racial que não fosse monitorado! Procriavam para aumentar seus próprios poderes, para manterem a existência da Bene Gesserit, considerando isso como um beneficio suficiente para a humanidade. Talvez fosse. A motivação no sentido de perpetuar a espécie era profunda e a Irmandade se mostrava muito meticulosa nesse sentido.

Um novo cheiro o invadiu.

Teg reconheceu a lã úmida de suas roupas ao chegar na cápsula de comando após a Batalha de Ponciard. O cheiro enchia-lhe as narinas, trazendo consigo o odor de ozônio dos instrumentos da cápsula, o suor de seus ocupantes. “lã!” A Irmandade sempre achara isso uma excentricidade dele, o modo como dava preferência aos tecidos naturais e evitava os sintéticos produzidos pelas fábricas de cativos.

Como também não apreciava as cadeiras-cães.

“Não gosto dos cheiros da opressão de forma alguma.”

Será que essas marionetes  Dit, Dat e Dot — teriam conhecimento de o quanto eram oprimidas?

A lógica Mentat zombava dele. Será que os tecidos de lã também não seriam produto das fábricas dos prisioneiros?

Isso era diferente.

Uma parte dele não concordava. Sintéticos podiam ser guardados por tempo indefinido. Bastava ver quanto tempo eles tinham resistido nos vasos de nulentropia do não-globo dos Harkonnen.

— Ainda assim prefiro o algodão e a lã!

— Assim seja!

— Como foi que cheguei a essa opinião?

— É um preconceito dos Atreides e você o herdou.

Teg desligou-se dos odores e se concentrou no movimento da sonda em sua totalidade. Daí a pouco descobriu que era capaz de antecipar a coisa. Era como um novo músculo que tivesse adquirido. Permitiu-se flexioná-lo, enquanto continuava a examinar as memórias que lhe eram induzidas em busca de informações valiosas.

“Estou sentado diante da porta do gabinete de minha mãe em Lernaeus”.

Teg removeu uma parte de sua consciência e observou a cena: tinha 11 anos de idade. Estava falando com uma pequena acólita Bene Gesserit que viera na escolta de uma pessoa importante. A acólita é uma criaturinha com rosto de boneca e cabelo louro avermelhado, nariz arrebitado, olhos cinza-dourados. A pessoa importante é uma Reverenda Madre de manto negro com aparência verdadeiramente ancestral. Ela entrou atrás daquela porta junto com a mãe de Teg. A acólita, de nome Carlana, está testando suas habilidades nascentes com o jovem anfitrião.

Antes que Carlana pronuncie 20 palavras, Miles Teg reconhece o padrão. Ela está tentando obter informações dele! Essa foi uma das primeiras lições a respeito de simulação delicada ensinada por sua mãe. Afinal, podia aparecer gente questionando um rapazinho a respeito de sua casa, da mãe Reverenda Madre, em busca de informações que pudessem ser vendidas. Havia sempre um mercado para informações a respeito de Reverendas Madres.

A mãe explicara:

— Você julga o questionador e molda suas respostas de acordo com as suscetibilidades dele.

Nada disso teria servido contra uma Reverenda Madre plena, mas servia contra uma acólita, e especialmente no caso dessa!

Para Carlana ele fingiu uma tímida hesitação. Ela tinha uma visão exagerada de seus próprios atrativos. Ele permitiu que ela vencesse a sua timidez depois de um emprego adequado de suas forças. E o que ela conseguiu foi um punhado de mentiras que, se repetisse diante daquela pessoa importante, lá atrás da porta, iria valer-lhe uma censura severa, se não algo mais doloroso.

“Palavras de Dit, Dat e Dot.”

— Acho que agora o dominamos.

Teg reconheceu a voz de Yar, arrancando-o de antigas memórias.

— Molde suas respostas de acordo com as suscetibilidades.

Teg ouviu as palavras na voz de sua mãe.

“Marionetes.”

“Manipuladores de marionetes.”

O funcionário diz:

— Peça uma simulação do lugar para onde eles levaram o ghola.

Silêncio e então um zumbido fraco.

— Não estou conseguindo nada — disse Yar.

Teg ouve as vozes deles com uma sensibilidade dolorosa. Faz os olhos se abrirem, contrariando o comando da sonda.

— Olhem! — diz Yar.

Três pares de olhos fitam Teg. Como eles se movem lentamente. Dit, Dat e Dot: seus olhos piscam... piscam... pelo menos um minuto entre cada piscadela. Yar está estendendo a mão para alcançar alguma coisa em seu console. Seus dedos vão levar uma semana para atingirem o objetivo.

Teg explora as ligações que lhe prendem os braços e as mãos. Corda comum! Aproveitando o tempo, coloca os dedos em contato com os nós. Eles se afrouxam lentamente a princípio, depois se soltam. Ele se move em direção às correias que o prendem à liteira. Essas são mais fáceis: simples fechos corrediços. A mão de Yar não está ainda nem a um quarto da distância para o console.

Piscando... piscando... piscando...

Os três conjuntos de olhos mostram uma ligeira surpresa.

Teg desprende-se da cabeleira de medusa dos eletrodos da sonda. Poppop-pop! Eles voam longe. Surpreende-se ao notar o início de um pequeno sangramento nas costas de sua mão direita, que ele usou para empurrar para longe os eletrodos.

Projeção Mentat: “Estou me movendo a uma velocidade perigosa.”

Agora ele está fora da liteira. Em câmara lenta, o funcionário leva uma das mãos em direção a um volume num bolso lateral. A mão de Teg esmaga-lhe a garganta. O funcionário nunca mais vai tocar naquela pistola laser que sempre carrega. A mão estendida de Yar ainda não alcançou um terço do caminho para o painel. Há uma expressão de autêntica surpresa em seus olhos. Teg duvida de que o homem chegue a enxergar a mão que lhe quebra o pescoço. A mulher move-se um pouco mais rápido. Seu pé esquerdo lança-se em direção ao ponto onde Teg se encontrava uma fração de segundo antes. Ainda assim, é muito lento! A cabeça dela é lançada para trás, expondo a garganta à cutelada de Teg.

Como eles tombam lentamente!

Teg torna-se consciente do fluxo de sua transpiração, mas não pode perder tempo preocupando-se com isso.

“Eu sabia de todos os movimentos que eles iam fazer antes que os fizessem! Que foi que aconteceu comigo?”

Projeção Mentat: “A agonia da sonda elevou-me a um novo nível de capacidades.”

Uma fome intensa torna-o consciente da perda de energia que sofrera. Colocar de lado essa sensação, sentindo-se retornar a um ritmo normal de tempo. Três sons secos: corpos tombando no chão.

Teg examina o console da sonda. Definitivamente, não era Ixiana. Controles similares, contudo. Ele provoca um curto-circuito no sistema de armazenagem de dados, apagando tudo.

“Luzes da sala?”

Os controles estão ao lado da porta que dá para fora. Teg apaga as luzes e respira fundo três vezes. Uma indistinta mancha de movimento, rápida demais para ser seguida, sai pela noite.

Aqueles que o tinham levado para lá, vestidos com suas roupas volumosas contra o frio do inverno, mal têm tempo de se voltar na direção do som estranho antes que aquela mancha rodopiante os derrube.

Teg retorna uma vez mais à escala de tempo normal. A luz das estrelas revela uma trilha descendo a colina através do mato espesso. Ele escorre pelo lamaçal nevado e por fim recupera o equilíbrio, antecipando os acidentes do terreno. Cada passo posiciona-o onde ele sabia que devia apoiar-se. Dai a pouco se encontra em espaço aberto e pode olhar para o vale.

Vê as luzes de uma cidade, com o grande retângulo negro de um prédio no centro. Conhecia esse lugar: Ysai. Os manipuladores das marionetes encontravam-se lá.

“Estou livre!”

 

Havia um homem que se sentava todo dia olhando para a estreita abertura vertical deixada por uma tábua retirada de uma cerca de madeira. Todo dia um asno selvagem do deserto passava do outro lado da cerca, cruzando na frente da abertura — primeiro o focinho, depois a cabeça, as patas dianteiras, o longo dorso castanho, as pernas traseiras e finalmente a cauda. Uma dia o homem pulou com a euforia da descoberta em seus olhos e gritou para todos que pudessem ouvi-lo: — “É óbvio! O focinho é a causa da cauda!”

 

— Histórias da Sabedoria Oculta,

da História Oral de Rakis

 

Em várias ocasiões desde que viera para Rakis, Odrade se vira dominada pela lembrança daquela pintura ancestral que ocupava lugar de destaque na parede dos alojamentos de Taraza, na sede da Irmandade. Quando a memória vinha, sentia as mãos formigarem ao toque do pincel. Suas narinas dilatavam-se com o odor induzido dos pigmentos e dos óleos. Suas emoções dominavam a tela. E a cada vez Odrade terminava com maiores dúvidas de que Sheeana fosse a sua tela.

“Qual de nós está pintando a outra?”

Tinha acontecido de novo essa manhã. Ainda estava escuro do lado de fora da cobertura no Castelo Rakiano onde ela se alojara com Sheeana. Uma acólita entrou com suavidade para despertar Odrade e lhe dizer que Taraza iria chegar daí a pouco. Odrade olhou para o rosto fracamente iluminando da acólita de cabelos negros e imediatamente a memória da pintura relampejou em sua consciência.

“Qual de nós verdadeiramente cria a outra?”

Deixe Sheeana dormir um pouco mais — instruiu Odrade antes de mandar embora a acólita.

— Vai tomar seu desjejum antes da chegada da Madre Superiora? — perguntou a acólita.

— Vamos aguardar a vontade de Taraza.

Levantando-se, Odrade fez uma rápida higiene matinal e vestiu seu melhor manto negro. Depois caminhou até a janela no lado leste da sala de estar da cobertura e olhou na direção do espaço-porto. Muitas luzes em movimento faziam brilhar o céu empoeirado naquela direção. Ela ativou todos os globos luminosos da sala para atenuar a visão externa. Os globos tornaram-se asteriscos dourados refletindo-se no espesso plaz blindado das janelas. A superfície escura também refletia um fraco contorno de suas próprias feições. As linhas de fadiga revelavam-se claramente.

“Eu sabia que ela viria”, pensou Odrade.

Enquanto pensava nisso, o sol Rakiano surgiu no horizonte indefinido, como a bola alaranjada de uma criança. Imediatamente ocorreu a reflexão de calor que tantos observadores de Rakis já tinham mencionado. Odrade virou as costas para a janela e viu abrir-se a porta do corredor.

Taraza entrou com um sussurrar de mantos. Uma mão fechou a porta por trás dela, deixando as duas sozinhas. A Madre Superiora avançou em direção a Odrade, o capuz negro erguido em torno do rosto a lhe emoldurar a face. Uma visão nada tranqüilizadora.

Reconhecendo a perturbação de Odrade, Taraza jogou com isso:

— Muito bem, Dar, creio que finalmente nos encontramos na condição de estranhas.

O efeito das palavras de Taraza deixou Odrade espantada. Ela interpretou corretamente a ameaça, mas o medo a abandonou, esvaindo-se como se fosse água derramada de um jarro. Pela primeira vez em sua vida, Odrade reconheceu o momento preciso para cruzar uma linha divisória. Essa era uma linha cuja existência ela suspeitava que poucas de suas Irmãs conhecessem. E, ao transpô-la, Odrade percebeu que sempre soubera que ela estava ali: um lugar onde poderia penetrar no vácuo e flutuar livre. Não era mais vulnerável. Poderia ser morta, mas não seria derrotada.

— Então não é mais Dar e Tar — disse Odrade.

Taraza ouviu o tom claro e desinibido da voz de Odrade e interpretou sua confiança.

— Talvez nunca tenha sido — ela disse com voz fria. — Percebo que se julga extremamente hábil.

“O duelo começou”, pensou Odrade. “Mas não estou na frente do ataque dela.”

Odrade disse:

— As alternativas à aliança com os Tleilaxu eram inaceitáveis. Em especial quando percebi o que você realmente desejava de nós.

Taraza sentiu-se subitamente muito cansada. Fora uma longa viagem, a despeito dos saltos de dobras espaciais de sua não-nave. A carne sempre sabia quando fora torcida para fora de seus ritmos familiares. Escolheu um divã macio e se sentou, suspirando no luxuoso conforto.

Odrade reconheceu a fadiga da Madre Superiora e sentiu uma afinidade imediata. De repente eram apenas duas Reverendas Madres com problemas comuns.

Taraza obviamente sentia isso. Bateu na almofada ao lado dela e esperou que Odrade se sentasse.

— Nós devemos preservar a Irmandade — disse Taraza. — Essa é a única coisa que importa.

— É claro.

Taraza fixou seu olhar escrutinador nas feições familiares de Odrade. “Sim, Odrade também está muito cansada.”

— Você esteve em contato intimo com as pessoas e com o problema — disse Taraza. — Eu quero... não, Dar, eu preciso de seus pontos de vista.

— Os Tleilaxu aparentam total cooperação — explicou Odrade —, mas existe fingimento nisso. Tenho feito a mim mesma algumas perguntas extremamente perturbadoras.

— Tais como?

— E se os tanques axlotl não forem... tanques?

— O que quer dizer com isso?

— Waff demonstra o tipo de comportamento que se nota numa família quando ela tenta ocultar um filho deformado ou tio louco. Eu lhes asseguro que ele ficou embaraçado quando toquei no assunto dos tanques.

— Mas o que eles poderiam ser. Ventres alugados.

— Mas eles teriam que...

Taraza calou-se, chocada com as possibilidades abertas por essa hipótese.

— Alguém jamais viu uma mulher Tleilaxu? — perguntou Odrade.

A mente de Taraza estava cheia de objeções.

— Mas o controle químico preciso, a necessidade de limitar as variáveis... — Ela lançou o capuz para trás e libertou os cabelos, sacudindo-os. — Você tem razão: devemos questionar tudo. Mas isso... seria monstruoso. E ele ainda não revelou toda a verdade a respeito do nosso ghola. Que é que ele diz?

— Nada mais do que aquilo que já relatei: uma variação do Duncan Idaho original e de acordo com todas as exigências prana-bindu que especificamos.

— E não explica por que mataram ou tentaram matar todos os que adquirimos anteriormente?

— Ele afirma, pelo sagrado juramento da Grande Crença, que agiram envergonhados porque os 11 gholas anteriores não corresponderam às expectativas.

— Como poderiam saber? Ele afirma que possuem espiões em nosso meio?

— Ele jura que não. Eu lhe perguntei isso e ele disse que um ghola bem-sucedido certamente teria criado uma perturbação visível entre nós.

— Que perturbação visível? Que será que ele está...

— Isso ele não diz. Volta sempre à sua afirmativa de que cumpriram as obrigações contratuais. Onde está o ghola, Tar?

— O quê?.. Oh, em Gammu.

— Ouvi rumores de que...

— Burzmali tem a situação sob controle.

Taraza comprimiu os lábios, torcendo para que isso fosse verdade. O relatório mais recente não a deixara confiante.

— Vocês, obviamente, estão debatendo se o ghola deve ser morto — disse Odrade.

— Não é só o ghola!

Odrade sorriu.

— Então é verdade que Bellonda quer que eu seja permanentemente eliminada.

— Como foi que...

— As amizades podem ser algo bastante valioso em certas ocasiões, Tar.

— Está caminhando num terreno muito perigoso, Reverenda Madre Odrade.

— E não estou tropeçando, Madre Superiora. Tenho pensado muito nas coisas que Waff me revelou a respeito daquelas Honradas Madres.

— Conte-me alguns dos seus pensamentos.

Havia uma determinação implacável na voz de Taraza.

— Não devemos cometer enganos a esse respeito — disse Odrade. — Elas ultrapassaram as habilidades sexuais de nossas Impressoras.

— Prostitutas!

— Sim, elas empregam seus talentos de um modo que acabará sendo fatal para elas mesmas e para os outros. Estão cegas pelo próprio poder que desenvolveram.

— Foi só até ai que chegaram seus pensamentos?

— Diga-me, Tar, por que foi que elas atacaram e apagaram do mapa o nosso castelo em Gammu?

— Obviamente, estavam atrás do ghola Idaho, para capturá-lo ou matá-lo.

— E por que ele seria tão importante para elas?

— Que está sugerindo? — indagou Taraza.

— Será que as prostitutas não estariam agindo com base em informações passadas pelos Tleilaxu... Tar? E se essa coisa secreta que o pessoal de Waff introduziu em nosso ghola for algo que possa fazer dele um equivalente masculino de uma Honrada Madre?

Taraza levou uma das mãos à boca e a deixou cair rapidamente ao perceber o quanto esse gesto havia revelado. Era tarde demais. Não importava, elas ainda eram duas Reverendas Madres reunidas.

Odrade disse:

— E nós ordenamos a Lucilla que o tornasse irresistível para a maioria das mulheres.

— Há quanto tempo os Tleilaxu estão negociando com as prostitutas? — perguntou Taraza.

Odrade encolheu os ombros.

— Talvez fosse melhor perguntar: há quanto tempo eles estão negociando com seus próprios Perdidos retornados da Dispersão? Tleilaxu fala com Tleilaxu e muitos segredos são compartilhados.

— Uma projeção brilhante de sua parte — reconheceu Taraza. — Que valor de probabilidade você lhe dá?

— Sabe tão bem quanto eu. Isso explicaria muitas coisas.

Taraza disse com amargura:

— Que acha de sua aliança com os Tleilaxu neste momento?

— Mais necessária do que nunca. Devemos ficar do lado de dentro. Precisamos colocar-nos numa posição em que possamos influenciar aqueles que negociam.

— Abominação! — exclamou Taraza.

— O quê?

— Esse ghola é como uma máquina gravadora em forma humana. Eles o plantaram em nosso meio. Se os Tleilaxu vierem a colocar suas mãos nele, ficarão sabendo de muitas coisas a nosso respeito.

— Isso seria um movimento muito desajeitado.

— E típico da parte deles!

— Concordo em que nossa presente situação traz outras implicações — comentou Odrade. — Mas tais argumentos indicam que não podemos matar o ghola até que o tenhamos examinado nós mesmas.

— Pode ser tarde demais então! Maldita a sua aliança, Dar! Você lhes deu um poder sobre nós... e nós ficamos com um poder sobre eles... Algo que nenhum dos lados se atreve a deixar escapar.

— Isso não faz uma aliança perfeita?

Taraza suspirou.

— Quão cedo deveremos dar-lhes acesso aos nossos arquivos de procriação?

— Logo. Waff está insistindo nisso.

— Então poderemos ver seus... tanques axlotl?

— É nesse sentido que estou pressionando. Ele concordou com relutância.

— Cada vez mais fundo nos bolsos um do outro — resmungou Taraza.

Com um tom de voz totalmente inocente, Odrade disse:

— Uma aliança perfeita. Como eu disse.

— Maldição, maldição, maldição — murmurou Taraza. — E Teg despertou as memórias originais do ghola!

— E Lucilla conseguiu...

— Eu não sei!

Taraza voltou uma expressão soturna para Odrade e lhe contou sobre os relatórios mais recentes a respeito da situação em Gammu: Teg e seu grupo localizados, em breve relatório sobre eles e nada de Lucilla, os planos para resgatá-los.

Suas próprias palavras produziram uma visão perturbadora na mente de Taraza. Quem seria esse ghola? Elas sempre tinham tido o conhecimento de que os Duncan Idaho não eram gholas comuns. Mas agora, com poderes neuro-musculares aumentados, mais essa coisa desconhecida que os Tleilaxu tinham introduzido nele — era como segurar um porrete em chamas. Você sabe que vai ter que usar o cajado para sobreviver, mas as chamas se aproximam de sua mão velozmente.

Odrade disse em tom meditativo:

— Já tentou imaginar como deve ser para um ghola despertar subitamente num corpo rejuvenescido?

— O quê? Que está...

— Percebendo que seu corpo cresceu a partir das células de um cadáver — continuou Odrade. — Ele é capaz de se lembrar de sua própria morte.

— Os Idahos nunca foram pessoas comuns.

— O mesmo se pode dizer desses Mestres Tleilaxu.

— O que está tentando me dizer?

Odrade passou a mão pela testa, aproveitando o momento para rever seus próprios pensamentos. Isso seria tão difícil de explicar para alguém que rejeitava a afeição, alguém que se deixava impulsionar por uma raiva interior. Taraza não tinha... afinidade. Não podia colocar-se na pele de outra pessoa, exceto num exercício de lógica fria.

— O despertar de um ghola deve ser uma experiência esmagadora — comentou Odrade, abaixando a mão. — Somente aqueles com uma enorme capacidade de reajuste mental sobreviveriam.

— E supomos que os Mestres Tleilaxu sejam mais do que aparentam ser.

— E os Duncan Idahos?

— É claro. Por que outro motivo o Tirano ficaria a comprá-los dos Tleilaxu?

Odrade percebeu que a discussão não teria sentido. Ela disse:

— Os Idahos eram notoriamente leais aos Atreides, e devemos recordar-nos de que eu sou uma Atreides.

— Acha que a lealdade dele vai ligá-lo a você?

— Principalmente depois que Lucilla...

— Isso pode ser extremamente perigoso!

Odrade sentou-se num canto do divã. Taraza queria certezas. E as vidas da série de gholas eram como a melange, apresentando um gosto diferente em cada diferente ambiente. Como poderiam ter alguma certeza quanto a esse ghola?

— Os Tleilaxu brincam com as forças que produziram o nosso Kwisatz Haderach — murmurou Taraza.

— Acha que é por isso que eles querem nossos arquivos de procriação?

— Não sei! Maldição, Dar! Não percebe o que você fez?

— Acho que não tinha outra escolha.

Taraza deu um sorriso gélido. O desempenho de Odrade permanecia soberbo, mas ela precisava ser colocada no devido lugar.

— Acha que teria feito o mesmo?

“Ela ainda não percebeu o que aconteceu comigo” — pensou Odrade. Taraza tinha esperado que sua flexível Dar agisse com independência, mas a extensão de tal independência abalara o Alto Conselho. E Taraza recusava-se a reconhecer que sua própria mão provocara isso.

— Prática costumeira — respondeu Odrade.

As palavras atingiram Taraza como um tapa no rosto. Somente o duro treinamento de toda uma vida na Bene Gesserit a impediu de golpear Odrade violentamente.

“Prática costumeira!”

Quantas vezes Taraza não revelara que essa era uma fonte de sua irritação, uma provocação à sua ira tão cuidadosamente contida? Odrade ouvira isso com freqüência.

Odrade repetiu as palavras da Madre Superiora.

— Costumes imutáveis são perigosos. Os inimigos podem encontrar o padrão e usá-lo contra você.

As palavras escaparam forçadas de Taraza:

— Isso é uma fraqueza, sim.

— Nossos inimigos julgavam conhecer nossos hábitos — comentou Odrade. — Até mesmo você, Madre Superiora, julgava conhecer os limites dentro dos quais eu agiria. Eu era como Bellonda. Antes mesmo de ela abrir a boca, você já sabe o que Bellonda vai dizer.

— Será que cometemos o erro de não colocar você numa posição superior à minha? — perguntou Taraza, falando com sua mais profunda lealdade para com a ordem.

— Não, Madre Superiora. Nós percorremos caminhos perigosos, mas ambas sabemos aonde queremos chegar.

— Onde está Waff agora?

— Dormindo e muito bem guardado.

— Chame Sheeana. Precisamos resolver se devemos abortar essa parte do projeto.

— E pagar o preço por isso?

— Como diz, Dar.

Sheeana ainda estava sonolenta e esfregava os olhos quando apareceu na sala de visitas, mas obviamente tinha tido tempo de lavar o rosto e vestir um manto branco limpo. O cabelo ainda estava úmido.

Taraza e Odrade encontravam-se diante da janela do lado leste, as costas voltadas para a luminosidade da manhã lá fora.

— Esta é Sheeana, Madre Superiora — disse Odrade.

Sheeana ficou subitamente alerta, enrijecendo as costas. Tinha ouvido falar dessa mulher poderosa, essa Taraza, que governava a Irmandade numa cidadela distante. A luz do sol penetrava brilhante pela janela atrás das duas mulheres, caindo em cheio no rosto de Sheeana e a ofuscando. Deixava os rostos das duas Reverendas Madres parcialmente ocultos, contornos negros num brilho enevoado.

Instrutoras entre as acólitas a haviam preparado para esse encontro:

— Fique de pé diante da Madre Superiora e fale respeitosamente. Responda apenas quando ela lhe dirigir a palavra.

Sheeana ficou rígida, em posição de sentido, do modo como lhe tinham ensinado.

— Informaram-me que você pode tornar-se uma de nós — disse Taraza.

As duas mulheres viram o efeito que isso teve sobre a jovem. A essa altura, Sheeana estava plenamente consciente das realizações das Reverendas Madres. Uma poderosa luz de conhecimento tinha sido focalizada sobre ela. Começara a vislumbrar o enorme reservatório de Sabedoria que a Irmandade acumulara através de milênios. Tinham lhe contado a respeito da transmissão seletiva de memórias, da ação das Outras Memórias e da agonia da especiaria. E ali, diante dela, se encontrava a mais poderosa de todas as Reverendas Madres, aquela de quem nada era escondido.

Como Sheeana não respondesse, Taraza perguntou:

— Não tem nada para dizer, criança?

— Que há para dizer, Madre Superiora? A senhora já disse tudo.

Taraza lançou um olhar indagador para Odrade.

— Tem outras surpresas para mim, Dar?

— Eu lhe disse que ela era superior — comentou Odrade.

Taraza voltou sua atenção para Sheeana.

— Sente-se orgulhosa dessa opinião, criança?

— Ela me assusta, Madre Superiora.

Ainda mantendo o rosto tão imobilizado quanto podia, Sheeana passou a respirar de modo mais tranqüilo. “Diga apenas a verdade mais profunda que puder sentir”, lembrou-se. Aquela advertência da instrutora fazia sentido agora. Manteve os olhos levemente desfocados e dirigidos para um ponto do piso diretamente em frente às duas mulheres, evitando o pior do brilho do sol. Ainda sentia o coração bater muito rapidamente, e sabia que as Reverendas Madres podiam detectar isso. Odrade o demonstrara muitas vezes.

— Bem, deveria mesmo assustá-la — disse Taraza.

Odrade perguntou:

— Compreende o que estamos dizendo a seu respeito, Sheeana?

— A Madre Superiora quer saber se quero dedicar-me inteiramente à Irmandade — respondeu Sheeana.

Odrade olhou para Taraza e encolheu os ombros. Não havia mais necessidade de qualquer diálogo entre elas. Era assim que acontecia quando se fazia parte de uma família como a Bene Gesserit.

Taraza continuou com sua observação silenciosa de Sheeana. Era um olhar penetrante, que esgotava as energias de Sheeana, a qual sabia que devia continuar quieta e permitir aquela avaliação total.

Odrade dominou seus sentimentos de afinidade. Sheeana era como ela fora quando menina, igual de muitas maneiras. Possuía aquele intelecto globular, que se expandia em todas as direções como um balão ao ser inflado. Odrade lembrava-se agora de como suas professoras tinham admirado isso, mas de um modo cauteloso, exatamente como Taraza se mostrava cautelosa nesse momento. Odrade reconhecera essa cautela quando era ainda mais jovem do que Sheeana, e não tinha dúvidas de que Sheeana estaria percebendo tal coisa. O intelecto tinha suas utilidades.

— Hummm — murmurou Taraza.

Odrade ouviu o som produzido pelas reflexões interiores da Reverenda Madre, uma parte do semulfluxo. A própria memória de Odrade lançou-se no passado. As Irmãs que traziam as refeições de Odrade, quando ela trabalhava até tarde, sempre gostavam de observá-la desse modo, exatamente como Sheeana era observada e monitorada todo o tempo. Odrade conhecera essa maneira especial de observação desde muito jovem. Essa era, afinal, uma das grandes atrações da Bene Gesserit. A pessoa queria ser capaz de tais habilidades esotéricas. Sheeana certamente possuía esse desejo. Era o sonho de toda candidata a Bene Gesserit.

“Que eu possa fazer essas coisas!”

Taraza disse finalmente:

— Que você pensa que deseja de nós, criança?

— O mesmo que a senhora julgava desejar quando tinha minha idade, Madre Superiora.

Odrade reprimiu um sorriso. O sentimento selvagem de independência para Sheeana levara-a bem perto de uma insolência, e Taraza certamente teria reconhecido tal coisa.

— Acha que esse é um uso adequado do dom da vida? — perguntou Taraza.

— É o único que conheço, Madre Superiora.

— Sua sinceridade é apreciada, mas eu lhe aviso para ser cuidadosa no modo como a usa. Já nos deve muito e vai nos dever muito mais — comentou Taraza. — Lembre-se disto: nossas dádivas custam caro.

— Sim, Madre Superiora.

“Sheeana não tem a menor idéia do preço que vai pagar por nossas habilidades”, pensou Odrade.

A Irmandade nunca permitia que suas noviças esquecessem o quanto lhe deviam e o modo como deveriam pagar. Não se pagava o que se recebia com amor. Não, o amor era algo muito perigoso, e Sheeana já devia estar aprendendo isso. “O dom da vida?” Um tremor começou a percorrer o corpo de Odrade e ela pigarreou para compensar.

“Será que estou mesmo viva? Será que não morri quando elas me tiraram de minha Mama Sibia? Eu me sentia viva naquela casa, mas será que continuei vivendo depois que as Irmãs me arrancaram de lá?”

Taraza disse:

— Pode sair agora, Sheeana.

Sheeana virou-se e deixou a sala, mas não antes que Odrade percebesse o sorriso contido em seus lábios. Ela sabia que fora aprovada no exame da Madre Superiora.

Quando a porta se fechou atrás dela, Taraza disse:

— Você mencionou a habilidade natural que ela possui com a Voz. Eu ouvi, é claro. Extraordinário.

— Ela a mantém bem contida — disse Odrade. — Já aprendeu a não tentar usá-la conosco.

— Que temos aqui, Dar?

— Talvez um dia uma Madre Superiora de capacidades extraordinárias.

— Não demasiado extraordinárias?

— Isso teremos que ver.

— Acha que ela é capaz de matar por nós?

Odrade surpreendeu-se e demonstrou isso:

— Agora?

— Sim, é claro.

— O ghola?

— Teg não seria capaz de fazer isso — explicou Taraza. — E também duvido de que Lucilla o possa. Seus relatórios tornam claro que ele é capaz de forjar laços poderosos de... de afinidade.

— Até mesmo como eu?

— A própria Schwangyu não era completamente imune.

— E onde estaria o nobre propósito de tal ato? — perguntou Odrade. — Não foi a respeito disso que o Tirano nos..

— Ele? Ele matou muitas vezes!

— E pagou por isso.

— Nós pagamos por tudo aquilo que tiramos, Dar.

— Mesmo pela vida?

— Nunca se esqueça, nem por um instante, Dar, de que a Madre Superiora é capaz de tomar qualquer decisão que seja necessária para garantir a sobrevivência da Irmandade!

— Assim seja — respondeu Odrade. — Tire o que quiser e pague por isso.

Era uma resposta adequada, mas reafirmava a nova força que Odrade sentia, sua liberdade para responder do modo que julgasse necessário dentro de um universo novo. Onde é que essa resistência se originara? Seria alguma coisa proveniente de seu cruel condicionamento Bene Gesserit? Seria derivada de seus ancestrais Atreides? Não tentou enganar-se imaginando que essa liberdade não provinha de outra coisa senão de uma decisão sua de nunca mais seguir a orientação moral de outra pessoa. Essa estabilidade interior sobre a qual se apoiava agora não era apenas pura moral. Nem ousadia. Isso nunca era suficiente.

— Você se parece muito com seu pai — disse Taraza. — Geralmente é a mãe que nos fornece a maior parte da coragem, mas desta vez acho que ela veio do pai.

— Miles Teg é admiravelmente corajoso, mas creio que você está simplificando demais a questão.

— Talvez esteja. Mas estive certa a seu respeito em todas as ocasiões, Dar, mesmo na época em que éramos estudantes.

“Ela sabe!”, pensou Odrade.

— Nós não precisamos explicar isso — disse Odrade. E pensou: “Vem do modo como nasci, do modo como fui treinada e moldada... do modo como nós éramos: Dar e Tar.”

— É algo na linhagem Atreides que ainda não analisamos totalmente — comentou Taraza.

— Nenhum acidente genético?

— Às vezes me pergunto se sofremos algum acidente desse tipo desde os tempos do Tirano — comentou Taraza.

— Será que ele expandiu sua consciência lá em sua cidadela e olhou através dos milênios até este exato momento?

— Até onde você recuaria para alcançar as raízes?

Odrade respondeu:

— Que acontece realmente quando uma Madre Superiora comanda as Madres Procriadoras: “Faça com que esta procrie com aquele”?

Taraza deu um sorriso gélido.

Odrade sentiu-se subitamente na crista da onda, sua percepção lançando-a num novo mundo! “Taraza deseja minha rebelião! Ela me quer como oponente!”

— Vai querer encontrar Waff agora? — perguntou.

— Primeiro quero ouvir o seu julgamento a respeito dele.

— Ele se vê como o instrumento final da “Ascendência dos Tleilaxu”. Nós somos a dádiva de Deus para seu povo.

— Eles estão esperando há muito tempo por isso — comentou Taraza. — A cuidadosa dissimulação que fizeram, todos eles, por todos esses séculos!

— Eles possuem a nossa visão do tempo — concordou Odrade. — Esse foi o elemento final que os convenceu de que partilhamos da Grande Crença.

— Mas por que são tão desajeitados? — perguntou Taraza. — Eles não são estúpidos.

— Isso serviu para desviar nossa atenção do modo como usavam realmente o processo ghola. Quem acreditaria que gente estúpida fosse capaz de uma coisa assim?

— E que foi que eles criaram? — perguntou Taraza. — Somente a imagem de uma estupidez maligna?

— Finja estupidez por muito tempo e você se torna realmente estúpida — comentou Odrade. — A mímica perfeita de seus Dançarinos Faciais e...

— O que quer que aconteça, devemos puni-los — disse Taraza. — Percebo isso claramente. Faça com que o tragam aqui.

Depois que Odrade dera a ordem e enquanto esperavam, Taraza disse:

— A seqüência da educação do ghola virou bagunça antes mesmo que eles escapassem do Castelo de Gammu. Ele saltou adiante de seus mestres para compreender coisas apenas implícitas e fez isso a um ritmo assustadoramente acelerado. Quem sabe o que ele se tornou a esta altura?

 

Os historiadores adquirem grande poder e alguns deles têm consciência disso. Recriam o passado, modificando-o para se adequar às suas próprias interpretações. Fazendo isso, modificam igualmente o futuro.

 

— Leto II; Sua Voz,

de Dar-es-Balat

 

Duncan caminhava atrás de seu guia sob a iluminação da alvorada, marchando num ritmo doloroso. O homem podia parecer velho, mas era ágil como uma gazela e parecia incapaz de se cansar.

Há apenas alguns minutos eles tinham tirado os óculos de visão noturna e Duncan estava feliz por se livrar deles. Tudo fora do alcance dos óculos parecera mergulhado numa escuridão profunda, iluminada apenas pelo fraco brilho das estrelas que se filtrava pelos ramos das árvores. Parecia que o mundo acabava além do alcance dos óculos. E a visão de ambos os lados pulava e fluía — aqui um conjunto de arbustos amarelos, ali duas árvores de troncos prateados, adiante um muro de pedra com portão de plasteel embutido em sua estrutura e guardado pelo azul tremulante de um escudo queimador, depois uma ponte nativa feita de pedra, toda verde e preta sob seus pés. Depois disso, uma entrada em forma de arco feita de pedra branca polida. Todas as estruturas pareciam muito antigas e caras, mantidas com dispendioso trabalho manual.

Duncan não tinha idéia do lugar em que se encontrava. Nada nesse terreno tinha relação com suas memórias dos dias há muito perdidos de Giedi Prime.

A aurora surgiu no momento em que eles seguiam por uma trilha abrigada entre as árvores, subindo a encosta de uma colina. A subida mostrou-se íngreme e a visão ocasional que obtinham através das árvores revelava um vale à sua esquerda. A névoa mantinha-se espessa á cima, guardando a visão do céu, ocultando as distâncias e os envolvendo à medida que subiam. O mundo tornava-se um lugar cada vez mais fechado, enquanto perdiam sua ligação com um universo maior.

Durante uma breve pausa, não para descansar mas para ouvir os ruídos da floresta em volta, Duncan observou o ambiente coberto de névoa. Sentia-se deslocado, removido de um outro universo que tinha céus abertos e paisagens que o ligavam a outros planetas.

Seu disfarce era simples: vestimentas Tleilaxu para climas frios e almofadas nas faces para fazer seu rosto parecer mais arredondado. Seu cabelo negro encaracolado fora alisado com um composto químico aplicado com calor. O cabelo fora então descolorido até ficar de um louro pálido e escondido debaixo de um capuz. Todo o seu pêlo púbico fora raspado e ele quase não reconhecera a si mesmo no espelho.

“Um Tleilaxu sujo!”

A artesã que produzira tal transformação era uma velha com cintilantes olhos cinza-esverdeados.

— Você agora é um Mestre Tleilaxu — dissera ela. — Seu nome é Wose. Um guia o levará ao seu próximo destino. Você o tratará como Dançarino Facial se encontrarem estranhos no caminho. Em outras circunstâncias, faça o que ele ordenar.

Eles o conduziram para fora do complexo de cavernas, através de uma passagem serpenteante, as paredes e o teto cobertos por uma espessa camada de algas verdes almiscaradas. Depois, na escuridão iluminada pela luz das estrelas, eles o retiraram da passagem e o entregaram a um homem que ele não podia ver — uma figura volumosa dentro de roupas acolchoadas.

Uma voz atrás dele sussurrou:

— Ei-lo, Ambitorm. Faça com que escape.

O guia falou com um sotaque gutural:

— Siga-me.

Prendeu uma corda ao cinturão de Duncan e ajustou os óculos de visão noturna sobre seus olhos. Duncan sentiu um puxão na corda e eles partiram.

Logo reconheceu a utilidade da corda. Não era um artifício para mantê-lo seguindo o guia. Podia ver Ambitorm muito claramente com os óculos noturnos. Não, a corda era para jogá-lo no chão rapidamente, se topassem com algum perigo, sem necessidade de ordem.

Durante algum tempo, na caminhada noturna, eles cruzaram pequenos cursos d'água margeados de gelo. Estavam numa região plana e a luz das primeiras luas de Gammu penetrava ocasionalmente na vegetação. Por fim emergiram numa colina baixa, vislumbrando uma extensão de arbustos prateados sob a cobertura de neve iluminada pelo luar. Desceram, entrando naquela vegetação. Os arbustos tinham o dobro da altura do guia, arqueados sobre passagens enlameadas abertas por animais, as quais eram apenas um pouco mais largas que os túneis onde haviam começado essa jornada. Era mais quente ali, o calor de uma pilha de adubo em fermentação. Quase nenhuma luminosidade penetrava até atingir o solo esponjoso com vegetação apodrecida. Os óculos noturnos revelavam um panorama interminável de vegetação espessa em ambos os lados. Duncan sentia o cheiro de vegetais em decomposição, e também fungos. A corda que o ligava a Ambitorm era seu frágil elo com um mundo totalmente estranho.

Ambitorm desencorajava a conversa. Respondeu “sim” quando Duncan buscou confirmar seu nome e então disse:

— Não converse.

Toda a noite fora uma travessia inquietante. Ele não gostava de ser lançado em suas memórias do antigo Giedi Prime, mas elas persistiam. Esse lugar não era como o de sua  juventude pré-ghola. Imaginava como Ambitorm podia ter aprendido e memorizado esse caminho. Um túnel aberto por animais parecia-se exatamente com qualquer outro.

E nesse passo de caminhada acelerada, havia tempo para que os pensamentos vagueassem em várias direções.

“Devo permitir que a Irmandade me use? Que é que devo a elas?” Pensou em Teg, naquele último gesto galante para permitir que escapassem.

“Eu fiz a mesma coisa por Paul e Jessica.”

Era um laço de união com Teg que deixava Duncan cheio de mágoa. Teg era leal à Irmandade “Será que comprou minha lealdade com aquele último ato de bravura?”

“Malditos Atreides!”

Os esforços noturnos tinham aumentado a familiaridade de Duncan com o novo corpo. Como era jovem essa carne! Com um pequeno impulso de lembrança, podia alcançar sua última memória do período pré-ghola.

Sentia a lâmina do Sardaukar atingindo sua cabeça — uma cegante explosão de dor e luz, o reconhecimento da morte certa e então... nada até aquele momento com Teg no não-globo.

A dádiva de uma outra vida. Seria mais que uma dádiva ou alguma outra coisa? Os Atreides lhe estavam exigindo pagamento.

Por algum tempo antes da aurora, Ambitorm o conduziu numa carreira, chapinhando sobre a água de um arroio. O frio gelado penetrou através das botas à prova d'água que faziam parte de sua vestimenta Tleilaxu. O curso d'água refletia o tom prateado, sombreado pelos arbustos, da lua matutina do planeta antes da aurora.

A luz do dia encontrou-os em outra trilha ampla, também aberta por animais, em meio a árvores, subindo uma colina íngreme. Esse caminho levou-os a uma estreita saliência de rochas abaixo da crista de um penhasco cheio de rochas escarpadas. Ambitorm conduziu-o para trás da proteção de uma extensão de capim marrom morto, sujo de neve soprada pelos ventos. Ele soltou a corda do cinturão de Duncan. Diretamente à frente deles encontrava-se uma depressão rasa nas rochas, que não chegava a formar exatamente uma caverna, mas que ofereceria certa proteção, a menos que um vento muito forte soprasse sobre o capim acima deles. Não havia neve no fundo da depressão.

Ambitorm removeu cuidadosamente uma camada de gelo sujo e várias pedras achatadas que escondiam um pequeno buraco. Tirou do buraco um objeto negro e arredondado e ficou mexendo nele.

Duncan agachou-se sobre a saliência rochosa e ficou observando seu guia. Ambitorm tinha um rosto chato, com uma pele que lembrava couro marrom-escuro. Sim, essas poderiam ser as feições de um Dançarino Facial. Havia vincos profundos propagando-se das extremidades dos olhos do homem, dos cantos da boca fina e na testa. Expandiam-se em torno do nariz chato, aprofundando a depressão de um queixo estreito. Rugas espalhavam-se por todo o rosto.

Odores apetitosos começaram a sair do objeto negro em frente de Ambitorm.

— Vamos comer aqui e esperar um pouco antes de prosseguirmos — ele disse.

Falava no Galach Antigo, mas com um sotaque gutural que Duncan nunca ouvira antes, dando uma ênfase curiosa às vogais adjacentes. Será que Ambitorm viera da Dispersão ou era nativo de Gammu? Obviamente, deviam ter aparecido muitos dialetos e variações lingüísticas desde os dias do Muad'Dib. Quanto a isso, Duncan reconhecia que todas as pessoas do Castelo de Gammu, incluindo Teg e Lucilla, falavam um Galach ligeiramente diferente daquele que tinha aprendido em sua infância pré-ghola.

— Ambitorm — disse Duncan. — Esse é um nome de Gammu?

— Você vai me chamar de Tormsa.

— É um apelido?

— É o nome pelo qual deve me chamar.

— Por que aquelas pessoas lá atrás o chamavam de Ambitorm?

— Foi esse nome que lhes dei.

— Mas por que...

— Você viveu sob o jugo dos Harkonnen e não aprendeu a mudar de identidade?

Duncan ficou em silêncio. Que significaria isso? Outro disfarce? Ambi... Tormsa não tinha mudado de aparência. Tormsa. Seria esse um nome Tleilaxu?

O guia estendeu a Duncan uma xícara fumegante.

— Uma bebida para restaurar suas forças, Wose. Beba depressa. Vai mantê-lo aquecido.

Duncan fechou as mãos em torno da xícara. “Wose. Wose e Tormsa. Um Mestre Tleilaxu e seu acompanhante Dançarino Facial.”

Duncan ergueu a xícara em direção a Tormsa no antigo gesto Atreides entre companheiros de luta, então levou os lábios à borda. Quente! Mas esquentava seu corpo enquanto a engolia. Tinha um sabor doce associado a um gosto vegetal. Soprou e bebeu, depois de observar como Tormsa estava fazendo.

“É curioso que eu não suspeite de veneno ou droga”, pensou Duncan. Mas esse Tormsa e os outros, na noite passada, tinham algo do Bashar na maneira como agiam. O gesto a um companheiro de batalha viera naturalmente.

— Por que está arriscando a vida deste modo? — perguntou.

— Conhece o Bashar e precisa fazer essa pergunta?

Duncan ficou em silêncio, envergonhado.

Tormsa inclinou-se para diante e apanhou a xícara vazia. Logo, toda a evidência do lanche desaparecera sob as rochas e a terra.

Esse lanche revelava um planejamento cuidadoso, pensou Duncan. Ele se virou e se agachou no solo frio. A névoa continuava além da barreira de vegetação. Ramos nus de árvores que tinham perdido as folhas no inverno dividiam o panorama em curiosos fragmentos e peças. Enquanto Duncan observava, a neblina começou a se dissipar, revelando os contornos indistintos de uma cidade, na extremidade do vale.

Tormsa agachou-se ao lado dele.

— Cidade muito antiga  — ele disse. — Um lugar dos Harkonnen, olhe! — Passou a Duncan um pequeno monoscópio. — É para lá que vamos à noite.

Duncan colocou o monoscópio sobre o olho direito e tentou focalizar a lente de óleo. Os controles pareciam diferentes daqueles com que estava familiarizado. Era diferente dos que aprendera a usar em sua juventude pré-ghola ou no Castelo. Removeu o instrumento do olho e o examinou.

— Ixiano?

— Não, nós o fizemos — respondeu Tormsa, enquanto apontava para dois minúsculos botões acima do tubo negro. — Lento, rápido. Empurre o esquerdo para aproximar, o direito para recuar.

Novamente Duncan ergueu a lente para o olho.

A quem se referia ele ao dizer nós fizemos?

Um toque no botão de aproximação e a visão saltou ao seu olhar. Minúsculos pontos moviam-se na cidade. Gente! Aumentou a ampliação e as pessoas se transformaram em bonecos. Com elas para lhe dar o sentido de escala, Duncan percebeu que a cidade na extremidade do vale era imensa... e estava mais distante do que havia imaginado. Uma única estrutura retangular erguia-se no centro da cidade, seu topo sumindo nas nuvens. Gigantesca.

Duncan sabia agora que lugar era esse. A paisagem em volta havia mudado, mas a estrutura central permanecia fixa em sua memória.

“Quantos de nós sumiram naquele buraco negro do inferno para nunca mais voltar?”

— Novecentos e cinqüenta andares — disse Tormsa, vendo para onde o olhar de Duncan se dirigia. — Quarenta e cinco quilômetros de comprimento por trinta de largura. Toda em plasteel e plaz blindado.

— Eu sei. — Duncan abaixou o monoscópio e o devolveu a Tormsa.

— Era chamada de Barony.

— Ysai — disse Tormsa.

— É assim que a chamam agora. Eu tenho alguns nomes diferentes para ela.

Duncan respirou fundo e dominou os antigos ódios. Aqueles a quem odiara estavam todos mortos agora. Somente o prédio permanecia. E as memórias. Observou a cidade em torno da enorme estrutura. O lugar era uma extensão imensa de prédios baixos. Espaços verdes apareciam dispersos no meio, cada qual cercado por altos muros. Residências com parques particulares, dissera Teg. O monoscópio revelara guardas caminhando sobre os muros.

Tormsa cuspiu no chão diante dele.

— Lugar dos Harkonnen.

— Eles construíam para fazer as pessoas sentirem-se pequenas.

Tormsa concordou.

— Pequenas, sem poder.

O guia agora se tornara quase loquaz, pensou Duncan.

Ocasionalmente, durante a noite, ele desafiara a ordem de silêncio e tentara estabelecer uma conversa.

— Que animais fizeram estas passagens?

Parecera uma pergunta lógica de se fazer quando se caminhava por uma trilha de animais, sentindo-se o cheiro das feras.

— Não fale! — retrucara Tormsa.

Mais tarde Duncan perguntara por que não podiam obter um veículo de algum tipo e escapar nele. Até mesmo um carro de solo teria sido preferível a essa marcha dolorosa através de uma região onde um caminho parecia ser tão bom quanto qualquer outro.

Tormsa o detivera num trecho iluminado pelo luar e olhara para Duncan como se suspeitasse de que seu protegido se tivesse tornado subitamente desprovido de senso.

— Veículos podem ser seguidos!

— E ninguém pode seguir-nos quando andamos a pé?

— Quem segue também deve ir a pé. E aqui eles serão mortos. Eles sabem.

Que lugar estranho! Que lugar primitivo.

Dentro do abrigo do Castelo da Bene Gesserit, Duncan não pudera perceber a natureza do planeta à sua volta. Depois, dentro do não-globo, também estivera isolado de qualquer contato com o mundo exterior. Tinha memórias pré-ghola e memórias como ghola, mas como eram inadequadas! Quando pensava nisso agora, percebia que tinham existido indícios que poderia ter examinado. Era óbvio, por exemplo, que Gammu dispunha de um controle climático muito rudimentar. E Teg dissera que os monitores orbitais, que guardavam o planeta contra ataques de fora, eram os melhores.

Tudo para a proteção e muito pouco para o conforto. Nisso era como Arrakis.

“Rakis”, corrigiu-se.

Teg. Será que o velho tinha sobrevivido? Prisioneiro? Que significaria ser capturado pelo inimigo nessa época? No tempo dos Harkonnen, significara a escravidão brutal. Burzmali e Lucilla... Olhou para Tormsa.

— Vamos encontrar-nos com Burzmali e Lucila nessa cidade?

— Se eles conseguiram escapar.

Duncan olhou para suas roupas. Seriam um disfarce suficiente? Um Mestre Tleilaxu e seu companheiro? As pessoas pensariam que o companheiro era um Dançarino Facial, é claro. E Dançarinos Faciais eram perigosos.

As calças largas que usava eram feitas de um material que nunca tinha visto. Ao toque, lembrava a lã, mas ele sentia que era artificial. Quando cuspiu nele, a saliva não aderiu e o cheiro não foi o da lã. Seus dedos detectaram uma uniformidade de textura que nenhum material natural poderia ter. As botas longas e macias, assim como o chapéu, eram do mesmo tecido. As roupas eram largas e infladas, exceto nos tornozelos. Não eram acolchoadas, contudo. Eram isoladas do frio por algum truque na manufatura que prendia o ar quente entre camadas. A cor era um verde mosqueado e cinza, que constituía camuflagem excelente naquele lugar.

Tormsa vestia trajes semelhantes.

— Quanto tempo vamos esperar aqui? — perguntou Duncan.

Tormsa sacudiu a cabeça, pedindo silêncio. O guia agora estava sentado, as pernas dobradas, os joelhos unidos, os braços envolvendo as pernas e a cabeça apoiada nos joelhos. Os olhos vigiavam o vale.

Durante a viagem noturna, Duncan achara as roupas extraordinariamente confortáveis. Exceto por aquele momento na água, seus pés tinham permanecido aquecidos, se bem que não em demasia. Havia espaço suficiente dentro das calças, do blusão e da jaqueta para o corpo movimentar-se livremente. Nada lhe irritava a pele.

— Quem faz roupas assim? — perguntou.

— Nós as fazemos — grunhiu Tormsa. — Fique calado.

Isso não era diferente daqueles dias, antes do despertar, no Castelo da Irmandade, pensou Duncan. Tormsa estava dizendo: “Não há necessidade de você saber.”

Dai a pouco Tormsa esticou as pernas e endireitou o corpo. Parecia preparado para relaxar a vigilância. Olhou para Duncan.

— Amigos na cidade sinalizaram que há equipes de busca acima de nós.

— Tópteros?

— Sim.

— Então, o que vamos fazer?

— Deve repetir o que eu faço e nada mais.

— Você só está aí deitado.

— Por enquanto, mas logo vamos descer para o vale.

— Mas como?

— Quando você atravessa uma região como esta, deve fingir ser um dos animais que vivem aqui. Olhe os rastros e veja como eles caminham e como se deitam para descansar.

— Mas as equipes de busca não podem perceber à diferença entre...

— Se os animais pastam, você imita os movimentos de pastagem. Se a busca vier, você continua fazendo isso, fazendo o que um animal faria. Aqueles que nos procuram vão estar voando muito alto no céu. Sorte nossa. Não podem distinguir seres humanos de animais, a menos que desçam.

— E eles não vão.

— Eles confiam em suas máquinas e nos movimentos que podem ver. São preguiçosos. Voam muito alto. Desse modo a busca termina mais cedo. Confiam em sua própria inteligência para ler os instrumentos e distinguir o que é animal do que é humano.

— De modo que passarão por nós se acharem que somos animais selvagens.

— Se tiverem dúvidas, farão uma segunda varredura. Não devemos mudar o padrão de nossos movimentos depois de sermos observados.

Era um longo discurso para o taciturno Tormsa. Examinou Duncan com cuidado.

— Está entendendo?

— Como se sabe quando eles estão nos observando com os instrumentos de varredura?

— Você sente uma comichão nas tripas. Sente em seu estômago o fervilhar de uma bebida que homem nenhum engoliria.

Duncan assentiu com a cabeça.

— Detectores Ixianos.

— Não se deixe assustar por isso. Os animais aqui estão acostumados. Às vezes eles podem parar, mas apenas por um instante, e então continuam aquilo que estavam fazendo, como se nada tivesse acontecido. Algo que para eles é verdade. É só para nós que alguma coisa má poderia acontecer.

Dai a pouco Tormsa levantou-se.

— Vamos descer para o vale agora. Siga-me de perto. Faça exatamente aquilo que eu fizer e nada mais.

Duncan seguiu o passo de seu guia. Logo se encontravam sob a cobertura das árvores. Em algum ponto de sua caminhada noturna, Duncan passara a aceitar este lugar como aceitava os outros. Havia um novo sentimento de paciência em sua mente. E havia a excitação estimulada pela curiosidade.

Que tipo de universo se desenvolvera desde o tempo dos Atreides? “Gammu.” Que lugar estranho se tornara Giedi Prime.

De modo lento mas distinto, as coisas estavam se revelando, e cada nova descoberta abria a mente para outras coisas que podiam ser aprendidas. Podia sentir os padrões tomando forma. Um dia, acreditava, existirá apenas um padrão, e nesse dia ele saberia por que o tinham trazido de volta à vida.

Sim, era uma questão de abrir novas portas. Você abre uma e ela o conduz a um lugar onde existem novas portas. Você escolhe uma delas e examina o que lhe revelou. Pode haver ocasiões em que seja forçado a tentar abrir todas as portas, mas, quanto mais portas você abrir, mais certezas passará a ter quanto a que porta deverá abrir em seguida. E finalmente se abrirá uma porta para um lugar que você reconhecerá. “Ah”, você vai exclamar, “isto explica tudo.”

— A equipe de busca vem vindo! — avisou Tormsa. — Agora somos animais pastando.

Estendeu a mão para o capim que os cobria e tirou um raminho.

Duncan fez o mesmo.

 

Devo governar com o olho e com a garra — como um falcão entre pássaros inferiores.

 

— Declaração Atreides, (Ref: Arquivos BG)

 

Ao raiar do dia, Teg saiu de trás dos quebra-ventos que o tinham ocultado, à beira da estrada principal. A estrada era larga, uma via plana com piso endurecido por feixe e desprovida de qualquer vegetação. Dez pistas, estimou Teg, adequada para veículos e tráfego de pedestres. A maior parte do tráfego a essa hora era de pedestres.

Ele havia limpado as roupas de quase toda a poeira e se certificado de que não tinham divisas de posto. Seu cabelo grisalho não estava tão bem penteado quanto gostaria, mas tinha apenas os dedos para usar como pente.

O tráfego na estrada dirigia-se para a cidade de Ysai, que ficava a muitos quilômetros de distância, no interior do vale. O céu da manhã apresentava-se sem nuvens. Uma brisa suave que lhe atingia o rosto vinda do mar, que ficava em algum lugar bem atrás.

Durante a noite ele atingira um equilíbrio delicado com sua nova consciência. As coisas surgiam em segundos na sua percepção. Percebia as coisas à sua volta antes que elas acontecessem, tinha consciência de onde devia colocar o pé antes de cada passo. E por atrás disso se encontrava aquele gatilho reativo que poderia fazê-lo movimentar-se a uma velocidade que a carne não devia ser capaz de suportar. A razão não podia explicar uma coisa dessas. Sentia-se caminhando precariamente no fio de uma navalha.

Embora tentasse, não era capaz de explicar o que lhe acontecera sob a ação da sonda-T. Seria semelhante ao que uma Reverenda Madre experimentava durante a agonia da especiaria? Mas ele não sentia qualquer acumulação de Outras Memórias de seu passado. Achava que as Irmãs não seriam capazes de fazer o que ele fizera. A dupla visão que lhe permitia antecipar cada movimento ao alcance de seus sentidos parecia um tipo novo de verdade.

Os professores Mentat de Teg lhe haviam garantido a existência de uma forma de verdade cuja prova não poderia ser obtida pela reunião costumeira de fatos. Ela aparecia algumas vezes em fábulas e na poesia, e freqüentemente agia contrariamente aos desejos.

— É a experiência mais difícil de ser aceita por um Mentat — disseram-lhe.

Teg sempre reservara sua própria opinião a respeito disso, mas agora era forçado a aceitar. A sonda-T impulsionara-o até o limiar de uma nova realidade.

Não sabia por que tinha escolhido esse momento em particular para sair do esconderijo, exceto por ser uma hora em que podia confundir-se com o fluxo humano normal.

A maior parte do tráfego na estrada era formada por agricultores puxando cestos de frutas e verduras. Os cestos eram sustentados atrás deles por suspensores baratos. A percepção de toda aquela comida lembrou-o da fome aguda que sentia, mas Teg se dominou. Com a experiência obtida em mundos mais primitivos que visitara durante seu longo serviço para a Bene Gesserit, percebia que essa atividade humana não era muito diferente da executada por fazendeiros puxando animais carregados. Esse fluxo de pedestres parecia-lhe uma curiosa mistura do antigo com o moderno — agricultores andando a pé, seus produtos flutuando atrás deles, sustentados por engenhos tecnológicos perfeitamente comuns. Exceto pelos suspensores antigravidade, era uma cena muito semelhante a outras que se haviam desenrolado no passado mais distante da humanidade. Um animal de carga era um animal de carga, mesmo que fosse produzido na linha de montagem de uma fábrica Ixiana.

Usando sua segunda visão, Teg escolheu um dos agricultores, sujeito atarracado, de pele escura, com feições brutas e mãos cheias de calos. O homem caminhava com uma impressão de independência desafiadora. Puxava oito grandes cestos cheios de melões de casca grossa. O cheiro deles era uma agonia para Teg, enchendo-lhe a boca de saliva enquanto ele igualava o passo com o do agricultor. Caminhou em silêncio por alguns minutos e então arriscou:

— Esta á a melhor estrada para Ysai?

— É um longo caminho — respondeu o homem.

Tinha voz gutural, com um tom de cautela.

Teg olhou para os cestos carregados.

O agricultor olhou de lado para ele.

— Nós vamos para um mercado. Outros levarão nossos produtos de lá para Ysai.

Enquanto conversavam, Teg percebeu que o agricultor havia guiado (quase pastoreado) seu passo para a beira da estrada. O homem olhou para trás e acenou levemente com a cabeça, fazendo um sinal para a frente. Mais três agricultores vieram colocar-se ao lado deles, cercando Teg e seu companheiro até os cestos ocultarem-nos do resto do tráfego.

Teg ficou tenso. Que estariam eles planejando? Entretanto, não sentia qualquer ameaça. Sua dupla visão não detectava nada de violento em sua vizinhança imediata.

Um veículo pesado ultrapassou-os em alta velocidade. Teg percebeu sua passagem apenas pelo cheiro de combustível queimado e pelo vento que sacudiu os cestos. Ouviu a batida de um motor poderoso e percebeu a súbita tensão em seus companheiros. Mas os altos cestos ocultaram totalmente a passagem do veículo.

— Estávamos à sua procura para protegê-lo, Bashar — disse o agricultor ao lado dele. — Existem muitos que o estão caçando, mas não há nenhum deles conosco agora.

Teg olhou espantado para o homem.

— Nós servimos com o senhor em Renditai — explicou o agricultor.

Teg engoliu em seco. “Renditai?” levou um momento para se lembrar — apenas uma escaramuça menor em sua longa carreira de conflitos e negociações.

— Sinto muito, mas não me lembro do seu nome — ele disse.

— Sinta-se feliz por não se lembrar de nossos nomes. É melhor assim.

— Mas fico grato assim mesmo.

— Esta é uma pequena retribuição pelo que fez por nós. Algo que ficamos gratos em poder retribuir.

— Eu devo chegar a Ysai.

— É perigoso lá.

— Há perigo em toda a parte.

— Nós calculamos que fosse para Ysai. Alguém vai chegar logo e levá-lo escondido. Ah, aí vem ele. Nós não o vimos por aqui, Bashar, o senhor não esteve aqui.

Um dos agricultores encarregou-se de puxar a carga do companheiro, arrastando dois cordões de cestos, enquanto o agricultor que Teg tinha escolhido fez com que ele passasse por baixo de uma corda de reboque e entrasse num veículo preto. Teg teve um vislumbre de plasteel e plaz brilhantes enquanto o veículo reduzia a velocidade apenas o suficiente para apanhá-lo. A porta fechou-se rapidamente atrás dele e Teg se encontrou sobre um macio assento acolchoado, sozinho na traseira de um carro de solo. O veículo acelerou e logo ele perdeu de vista o grupo de agricultores. As janelas em torno de Teg tinham sido escurecidas, de modo que ele tinha uma visão crepuscular do cenário passando lá fora. O motorista era uma silhueta escura.

Era sua primeira chance de relaxar em meio a um cálido conforto desde a sua captura, e isso quase o fez adormecer. Não sentia qualquer ameaça. Seu corpo ainda doía, relembrando as agonias da sonda-T.

Disse a si mesmo, contudo, que precisava ficar acordado e alerta.

O motorista inclinou-se para trás e falou sobre o ombro sem se virar:

— Há dois dias que eles o estão caçando, Bashar. Alguns pensam que já fugiu do planeta.

“Dois dias?”

A arma atordoadora ou qualquer outra coisa que tinham feito com ele o deixara desacordado por longo tempo. Isso só aumentava a sua fome. Tentou visualizar o mostrador do cronógrafo que tinha implantado em seu corpo, fazendo-o projetar os números diretamente em seus centros visuais, mas só conseguiu um tremular, como acontecia sempre que tentava visualizar essa projeção, desde que fora submetido à sonda-T. Todas as suas referências e sua noção de tempo tinham sido modificadas.

Então alguns deles acham que já abandonei Gammu?

Teg não perguntou quem o estava caçando. Tleilaxu e gente da Dispersão tinham estado presentes no ataque e na tortura subseqüente.

Teg examinou seu meio de transporte. Era um daqueles lindos carros de solo dos dias anteriores à Dispersão, com a marca dos melhores fabricantes Ixianos. Nunca andara num desses, mas sabia a respeito deles. Restauradores compravam-nos para reformá-los e reconstruí-los — tudo que pudessem fazer para recuperar aquele antigo sentimento de qualidade. Tinham contado a Teg que tais veículos eram freqüentemente encontrados abandonados em lugares estranhos — velhos prédios em ruínas, galerias, depósitos de máquinas, campos de fazendas.

Novamente o motorista se inclinou para o lado e falou por sobre o ombro:

— Há um endereço aonde deseje ser levado quando chegarmos a Ysai, Bashar?

Teg lembrou os pontos de contato que identificara em sua primeira viagem de inspeção em Gammu e deu um desses endereços ao homem.

— Conhece o lugar?

— É principalmente um estabelecimento para encontros, onde servem bebidas, Bashar. Já ouvi dizer que servem boa comida também, mas qualquer um pode entrar se pagar o preço.

Sem saber por que tinha feito essa escolha em particular, Teg disse:

— Vamos arriscar.

Não achou necessário dizer ao motorista que naquele endereço também havia salas de jantar particulares.

A menção da comida trouxe de volta a fome. Os braços de Teg começaram a tremer e ele levou vários minutos para controlá-los. As atividades da noite anterior quase o tinham esgotado, percebia agora. Examinou com o olhar o interior do carro, imaginando se poderia haver comida ou bebida guardada ali em algum lugar. O trabalho de restauração do carro tinha sido feito com um cuidado apaixonado, mas ele não encontrou qualquer compartimento oculto.

Tais carros não eram exatamente raros em certos ambientes, mas sua posse sempre fora sinal de riqueza. Quem seria o dono deste? Não era o motorista, disso tinha certeza. Ele apresentava todos os sinais de ser um profissional contratado. Mas fora enviada uma mensagem para trazer esse carro, então outros conheciam a sua localização.

— Será que vão nos deter para revistar o carro? — perguntou ele.

— Não este carro. Ele pertence ao Banco Planetário de Gammu.

Teg absorveu em silêncio essa informação. Esse banco tinha sido um de seus pontos de contato. Havia estudado cuidadosamente a localização das filiais mais importantes durante sua inspeção. Tal lembrança conduziu-o de volta às suas responsabilidades como guardião do ghola.

— Meus companheiros — arriscou. — Eles...

— Outros estão encarregados deles. Eu não sei dizer, Bashar.

— Podem enviar uma mensagem para...

— Quando for seguro, Bashar.

— É claro.

Teg afundou de novo no estofamento e observou o ambiente à sua volta. Esses carros de solo tinham sido construídos com muito plaz e um plasteel quase indestrutível. Eram outras coisas que se estragavam com o tempo — o estofamento, os componentes eletrônicos, a instalação dos suspensores, os revestimentos ablativos e os dutos dos turboventiladores. E os adesivos se estragavam, não importava o que se fizesse para tentar conservá-los. Os restauradores, contudo, tinham feito esse parecer como se tivesse acabado de sair da fábrica — todo o polimentos dos metais, o estofamento que se ajustava ao seu corpo com um ruído de coisa nova se dobrando. E o cheiro: aquele aroma indefinível de coisa nova, mistura de polimento e tecidos finos com apenas um toque de ozônio a indicar a eletrônica funcionando impecavelmente. Mas em parte alguma havia cheiro de comida.

— Quanto tempo até chegarmos a Ysai? — perguntou ele.

— Outra meia hora, Bashar. Há algum problema que exija maior velocidade? Não quero atrair...

— Estou com muita fome.

O motorista olhou para a esquerda e para a direita. Não havia mais agricultores em torno deles. A estrada estava quase vazia, exceto por dois casulos de transporte pesado com seus reboques propulsores mantendo-se na pista da extrema direita e um grande caminhão carregando um alto apanhador de frutas automático.

— É perigoso nos atrasarmos — disse o motorista. — Mas conheço um lugar onde acho que pelo menos poderemos conseguir uma tigela de sopa.

— Qualquer coisa seria ótimo. É que eu não como há dois dias e fiz um bocado de exercício.

Chegaram a uma encruzilhada e o motorista virou para a esquerda, pegando uma estrada estreita através de um bosque de coníferas altas e igualmente espaçadas. Daí a pouco viraram numa estrada de pista única que penetrava entre árvores. O prédio baixo na extremidade desse caminho fora construído com pedras escuras e tinha um teto de plaz negro. As janelas eram estreitas e brilhavam com os canos de queimadores de proteção.

O motorista disse:

— Só um minuto, senhor.

Saiu e Teg obteve sua primeira visão da face do homem: extremamente magra, com nariz grande e boca pequena. As cicatrizes visíveis de uma reconstrução cirúrgica percorriam as maçãs do rosto. Os olhos tinham um brilho prateado obviamente artificial. O sujeito virou-se e foi para a casa. Quando voltou, abriu a porta de Teg.

— Por favor se apresse, senhor. O sujeito lá dentro está esquentando uma sopa para o senhor. Eu disse a ele que é um banqueiro. Não vai precisar pagar.

O solo estava congelado sob seus pés e Teg teve que andar curvado para a frente até alcançar a porta. Entrou por um corredor escuro, revestido de madeira e com um salão bem iluminado no final. O cheiro de comida o atraiu como um ímã. Seus braços estavam tremendo uma vez mais. Uma pequena mesa fora arrumada junto a uma janela que revelava um jardim interior fechado e coberto. Arbustos cheios de flores vermelhas quase escondiam o muro de pedras que definia os limites do jardim. Plaz quente amarelo brilhava acima desse espaço, banhando-o com a luz de um verão artificial. Teg deu graças por se sentar na única cadeira junto da mesa. Toalha de linho branco com bordas trabalhadas em relevo. Uma única colher de sopa.

Uma porta estalou à direita e uma figura atarracada entrou, carregando uma tigela que exalava vapor. O homem hesitou quando viu Teg, depois trouxe a tigela, colocando-a na mesa diante dele. Alertado por aquela hesitação, Teg forçou-se a ignorar o aroma tentador que flutuava para suas narinas e em vez disso se concentrou no outro.

— É uma boa sopa, senhor. Eu a preparei pessoalmente.

Voz artificial. Teg viu as cicatrizes em torno da mandíbula. Havia uma aparência de algo antigo e mecânico nesse homem — uma cabeça quase desprovida de pescoço prendendo-se a ombros fortes e braços que pareciam ter juntas estranhas nos cotovelos e nos ombros. E as pernas pareciam articular-se apenas a partir dos quadris. Estava imóvel agora, mas tinha entrado com um andar oscilante e espasmódico que revelava que esse sujeito era feito quase inteiramente de próteses. A expressão de sofrimento nos olhos não podia ser ignorada.

— Sei que não sou nada bonito, senhor — disse o homem com voz rouca. — Fiquei arruinado na explosão de Alajory.

Teg não tinha a menor idéia do que poderia ter sido a explosão de Alajory, mas o sujeito obviamente presumia que ele sabia a respeito. “Arruinado”, entretanto, constituía uma acusação curiosa contra o Destino.

— Eu estava me perguntando se o conheço de algum lugar — disse Teg.

— Ninguém aqui conhece mais ninguém — retrucou o homem. — Tome sua sopa. — Apontou para o teto, em direção à ponta enrolada de um farejador ativado, o brilho de suas luzes revelando que o instrumento estava sondando o ambiente e não detectava qualquer veneno.

— A comida é segura aqui.

Teg olhou para o líquido marrom-escuro em sua tigela. Pedaços de carne sólida eram visíveis. Estendeu a mão para colher, mas sua mão trêmula o obrigou a fazer duas tentativas antes mesmo que pudesse segurá-la. Ainda assim, derramou a maior parte do líquido na colher antes que pudesse erguê-la um milímetro.

Uma mão firme segurou-lhe o pulso e a voz artificial falou, tranqüilizadora, junto de seu ouvido:

— Não sei o que eles fizeram com o senhor, Bashar, mas ninguém irá feri-lo sem antes passar por cima do meu cadáver.

— Você me conhece?

— Muitos morreriam pelo senhor, bashar. Meu filho vive graças ao senhor.

Teg deixou que o homem o ajudasse. Não tinha outra alternativa para conseguir engolir a primeira colheirada da sopa. O líquido era saboroso, quente e nutritivo. Sua mão firmou-se daí a pouco e ele fez sinal para que o homem lhe soltasse o pulso.

— Quer mais, senhor?

Teg percebeu que tinha esvaziado a tigela. Era uma tentação dizer “sim”, mas o motorista tinha dito para andar depressa.

— Muito obrigado, mas tenho que seguir em frente.

— O senhor não esteve aqui — disse o homem.

Depois que tinham retornado à estrada principal, Teg recostou-se nas almofadas do carro e refletiu sobre o curioso caráter repetitivo daquilo que o homem arruinado lhe dissera. Eram as mesmas palavras que o agricultor tinha usado: “O senhor não esteve aqui.” Tinha a impressão de que essa era uma resposta comum agora, e ela revelava algo das mudanças por que passara Gammu desde sua viagem de inspeção.

Daí a pouco penetravam nos subúrbios de Ysai e Teg se perguntou se deveria tentar usar um disfarce. O homem arruinado o reconhecera prontamente.

— Onde as Honradas Madres estão me procurando agora? — perguntou.

— Elas o estão caçando por toda parte, Bashar. Não posso garantir a sua segurança, mas medidas estão sendo tomadas. Informarei onde o deixei.

— Elas dizem por que estão me caçando?

— Elas nunca explicam nada, Bashar.

— Há quanto tempo está em Gammu?

— Há muito tempo, senhor. Eu era criança e fui interno em Renditai.

“Cem anos se passaram”, pensou Teg. “Tempo para reunir muito poder em suas mãos... se é que se deve dar crédito aos temores de Taraza”

E Teg lhes dava crédito.

“Não confie em ninguém que possa ter sido influenciado por essas prostitutas.”

Não sentia qualquer ameaça imediata em sua presente situação. Podia apenas perceber o segredo que obviamente o envolvia agora. Não pressionou por maiores detalhes.

Estavam bem dentro de Ysai e ele podia vislumbrar agora a massa negra que alojara o antigo Baronato dos Harkonnen através de aberturas ocasionais nos muros das grandes residências particulares. O carro entrou numa rua de pequenos estabelecimentos comerciais: prédios baratos construídos em sua maior parte com material de sucata que revelava suas origens nos encaixes malfeitos e nas cores desiguais. Anúncios vistosos advertiam que as mercadorias lá dentro eram as mais finas e os serviços de consertos, melhores que em qualquer outro lugar.

Não era que Ysai se tivesse deteriorado ou mesmo se tornado um conjunto de cortiços. O crescimento da cidade fora direcionado para alguma coisa pior do que feia. Alguém escolhera tornar esse lugar repelente. Essa era a explicação para a maior parte do que tinha visto até então.

O Tempo não tinha parado nesta cidade, tinha recuado. Não era uma cidade moderna, com reluzentes casulos transportadores e prédios utilitários isolados. Era uma massa desconjuntada de antigos prédios unidos a prédios mais antigos ainda, alguns erguidos de acordo com preferências individuais, outros para alguma função que há muito tempo caíra em desuso. Tudo em Ysai era apinhado para manter uma proximidade cuja confusão por pouco evitava o caos. O que salvava era o antigo padrão de vias principais ao longo das quais essa mixórdia fora montada. O caos fora contido, mas o padrão que restava nas ruas não obedecia mais a qualquer planejamento. Ruas encontravam-se e se cruzavam em ângulos irregulares, com raras praças. Visto do ar, o lugar seria uma louca colcha de retalhos, com apenas o retângulo negro da antiga sede do Baronato para revelar algum plano de urbanização organizada. O resto era uma rebelião arquitetônica.

Teg percebeu de repente que esse lugar era uma mentira armada em cima de outras mentiras, baseadas em mentiras anteriores, tudo formando uma louca mixórdia que nunca seria possível desenredar para encontrar uma verdade útil. Tudo em Gammu estava desse modo. E onde teria começado tamanha insanidade? Teria sido obra dos Harkonnen?

— Chegamos, senhor.

O motorista parou diante da calçada de um prédio sem janelas, todo feito em plasteel negro liso e com uma única porta ao nível do solo. Não havia material de sucata nessa construção. Teg reconheceu o lugar. Era o esconderijo que tinha escolhido. Coisas não-identificadas tremeluziram em sua segunda visão, mas Teg não sentiu qualquer ameaça imediata. O motorista abriu a porta para ele e ficou de lado.

— Não há muita atividade por aqui a esta hora, senhor. Eu entraria depressa.

Sem olhar para trás, Teg atravessou a calçada estreita e entrou no prédio. Encontrou um vestíbulo pequeno e brilhantemente iluminado, feito de plaz branco, e somente painéis de olhos comunicadores para recebê-lo. Entrou num tubo elevador e teclou as coordenadas de que se recordava. Esse tubo, se bem se lembrava, subia em ângulo através do prédio até o 57° andar, na parte de trás, onde havia algumas janelas. Lembrava-se de um restaurante reservado, decorado em vermelhos-escuros e com mobília marrom, de uma mulher de olhar duro demonstrando os indícios óbvios do treinamento Bene Gesserit, mas que não era ainda uma Reverenda Madre.

O tubo deixou-o no lugar de que se lembrava, mas não havia ninguém para recebê-lo. Teg olhou em volta, observando a mobília sólida. Quatro janelas na parede oposta estavam ocultas por espessas cortinas marrons.

Sabia que tinha sido visto. Aguardou pacientemente, usando a dupla visão, recém-aprendida para prever qualquer dificuldade. Não havia qualquer indício de ataque. Tomou posição ao lado da saída do tubo elevador e olhou à sua volta uma vez mais.

Teg tinha uma teoria a respeito da relação entre salas e janelas — o número de janelas, sua disposição, tamanho e altura a partir do piso, a relação entre o tamanho do aposento e o das janelas, a altura em se situava o andar e o fato de as janelas possuírem cortinas ou não, tudo isso um Mentat interpretava à luz do conhecimento dos usos do aposento. Este podia ser arrumado com um sentido de ordem meticuloso, definido por uma extrema sofisticação. É claro que usos de emergência podiam acabar com tudo isso, mas de outro modo era possível obter indícios muito confiáveis.

A falta de janelas num aposento muito acima do nível do solo, por exemplo, transmitia uma mensagem especial. Se pessoas ocupavam esse aposento, isso não significava necessariamente que o segredo e a privacidade fossem seu objetivo principal. Ele tinha visto sinais inconfundíveis, em locais de estudo, de que salas de aula sem janelas significavam um desejo de isolamento com relação ao mundo exterior ou uma forte declaração de aversão a crianças.

Mas esse aposento lhe apresentava algo diferente: um segredo provisório mais a necessidade ocasional de vigiar o que acontecia no mundo exterior. “Privacidade protetora quando necessário.” Essa opinião foi reforçada quando ele andou até uma das janelas e afastou a cortina. As janelas eram de plaz blindado triplo. Sim! Isso significava que vigiar o mundo exterior poderia ser um convite ao ataque. Essa era a opinião de quem tinha ordenado que esse lugar fosse protegido desse modo.

Uma vez mais Teg afastou a cortina. Olhou para os cantos. Refletores prismáticos ampliavam a visão ao longo da parede adjacente em ambos os lados e do telhado até o solo.

“Muito hábil.”

Sua visita anterior não lhe dera tempo para um exame tão minucioso. Agora podia fazer um julgamento mais preciso. Uma sala muito interessante. Teg deixou cair a cortina e se virou bem a tempo de ver um homem entrar pelo tuboelevador.

A dupla visão de Teg forneceu-lhe uma previsão precisa sobre o estranho. Esse homem representava um perigo oculto. O recém-chegado era evidentemente um militar  o modo como andava, o olhar rápido em busca de detalhes que somente um oficial treinado e cheio de experiência observaria. E havia mais alguma coisa nos seus modos que fez Teg enrijecer-se. Este era um traidor! Um mercenário que se colocava a serviço de quem pagasse mais.

— Foi terrível o modo como eles o trataram — disse ele para Teg.

A voz era de um barítono profundo com a inconsciente presunção de poder pessoal. O sotaque era de uma variedade que Teg nunca ouvira antes. Esse homem era um dos Perdidos da Dispersão! Um Bashar ou coisa equivalente, estimou Teg.

Ainda assim não havia nele qualquer indício de ataque imediato. Como Teg não disse esse nada, o homem apresentou-se:

— Oh, desculpe-me. Sou Muzzafar. Jafa Muzzafar, comandante regional das forças de Dur.

Teg nunca tinha ouvido falar nas forças de Dur.

Havia um monte de perguntas em sua cabeça, mas ele as manteve para si mesmo. Qualquer coisa que dissesse poderia ser um sinal de fraqueza.

Onde estariam as pessoas que havia encontrado ali anteriormente? “Por que escolhi este lugar?” A decisão de ir para lá fora tomada com muita segurança interior.

— Por favor, fique à vontade — disse Muzzafar, indicando um pequeno divã com uma mesa baixa em frente. — Eu lhe asseguro que nada do que lhe aconteceu foi responsabilidade minha. Tentei detê-los quando soube, mas então você já tinha... saído de lá.

Teg percebeu outra coisa na voz de Muzzafar: uma cautela que chegava às raias do medo. Então esse homem ouvira falar ou tinha visto o barracão e a clareira.

— Foi muito hábil da parte de vocês — continuou Muzzafar. — Fazer com que suas forças de ataques esperassem até que seus captores estivessem concentrados na tarefa de tentar arrancar-lhe informações. Eles conseguiram tirar alguma coisa?

Teg sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Sentia-se à beira de responder com um ataque na sua alta velocidade, mas não sentia qualquer violência imediata nesse lugar. Que estariam fazendo os Perdidos? Muzzafar e sua gente tinham feito uma suposição errada quanto ao que acontecera no barracão da sonda-T. isso era óbvio.

— Por favor, sente-se — pediu Muzzafar.

Teg sentou-se no divã oferecido.

Muzzafar escolheu uma cadeira de frente para ele, colocando-se num pequeno ângulo em relação à mesinha de refeições. Havia em Muzzafar uma impressão de animal agachado, pronto a dar o bote. Ele estava preparado para a violência.

Teg observou o homem com interesse. Muzzafar não revelara nenhum posto verdadeiro — somente o de comandante. Alto, rosto vermelho e largo, nariz grande. Os olhos eram cinza-esverdeados e tinham o costume de se focalizar num ponto logo atrás do ombro direito de Teg quando um dos dois falava. Teg conhecera certa vez um espião que era dado a esse tipo de coisa.

— Bem, bem — disse Muzzafar. — Já li e ouvi um bocado a seu respeito desde que vim para cá.

Teg continuou a examiná-lo em silêncio. O cabelo de Muzzafar tinha sido cortado rente e havia uma cicatriz vermelha, de uns três centímetros de comprimento, acima do olho esquerdo, bem na linha do couro cabeludo. Usava uma jaqueta folgada de cor verde-clara e calças que combinavam com ela — não era exatamente um uniforme, mas estava tão bem passado que revelava um asseio costumeiro. Os sapatos engraxados confirmavam isso. Teg achou que poderia ver neles o próprio reflexo caso se curvasse o suficiente.

— Nunca esperei conhecê-lo pessoalmente, é claro — continuou Muzzafar. — Considero isto uma grande honra.

— Sei muito pouco a seu respeito, exceto que comanda uma das forças da Dispersão — disse Teg.

— Hummmm! Não é muito realmente.

Uma vez mais a fome assaltou Teg. Seu olhar voltou-se para o botão ao lado do tubo elevador que, lembrava-se, chamaria um serviçal. Esse era um lugar onde seres humanos faziam o trabalho que normalmente seria entregue aos autômatos — uma desculpa para manter uma grande força reunida e pronta.

Interpretando mal o interesse de Teg no tubo elevador, Muzzafar disse:

— Por favor, não pense em partir. Pedi ao meu médico que viesse dar uma olhada em você. Ele deve chegar num momento. Apreciaria se esperasse calmamente até ele chegar.

— Eu estava apenas pensando em ordenar um pouco de comida — disse Teg.

— Eu o aconselho a esperar até que o doutor faça o seu exame. Atordoadores deixam terríveis efeitos secundários.

— Então sabe o que aconteceu?

— Sei tudo a respeito daquele terrível fiasco. Você e seu camarada Burzmali são uma força para se respeitar.

Antes que Teg pudesse responder, um homem alto saiu do tubo elevador, vestido com jaqueta e um macacão vermelhos. Era tão magro que a roupa ficava folgada nele. A tatuagem em forma de diamante, indicando um médico Suk, fora marcada a fogo em sua testa, mas a marca era de cor laranja, e não do negro habitual. Os olhos do médico estavam cobertos por lentes alaranjadas brilhantes que ocultavam sua verdadeira cor.

“Um viciado de algum tipo?”, perguntou-se Teg. Não havia cheiro dos narcóticos familiares no homem, nem mesmo de melange. Mas havia um perfume azedo, como se fosse proveniente de alguma fruta.

— Ah, ai está você, Solitz! — disse Muzzafar. Indicou Teg. — Dê-lhe uma boa varredura. Um atordoador o atingiu anteontem.

Solitz exibiu um aparelho que Teg reconheceu como um detector Suk, instrumento pequeno e compacto que cabia na palma da mão. Seu campo de sondagem produzia um zumbido baixo.

— Então você é um médico Suk — disse Teg, olhando para a marca alaranjada na testa do homem.

— Sim, Bashar. Meu treinamento e meu condicionamento são os melhores de acordo com a antiga tradição.

— Nunca tinha visto a marca identificadora dessa cor — comentou Teg.

O médico passou o instrumento em torno da cabeça de Teg.

— A cor da tatuagem não faz diferença, Bashar. O que está por trás é o que importa.

Ele abaixou o scanner para examinar os ombros de Teg e depois o corpo.

Teg esperou até que o zumbido parasse.

O médico recuou e se dirigiu a Muzzafar.

— Ele está em boa forma, Marechal-de-Campo. Extraordinariamente em forma, considerando-se a idade, mas precisa desesperadamente de alimentação.

— Sim... bem, isso é ótimo, Solitz. Cuide para que ele receba alimento. O Bashar é nosso hóspede.

— Vou ordenar que lhe tragam uma refeição adequada para suas necessidades — disse Solitz. — Coma lentamente, Bashar.

Solitz fez uma careta esperta que fez as calças e a jaqueta estremecerem. Depois o tubo elevador o engoliu.

— Marechal-de-Campo? — perguntou Teg.

— Houve um retorno aos títulos ancestrais em Dur — explicou Muzzafar.

— Em Dur? — perguntou Teg.

— Oh, que estupidez a minha!

Muzzafar tirou uma pequena pasta de um bolso lateral da jaqueta e de dentro extraiu um folheto. Teg reconheceu um holostato semelhante ao que tinha carregado consigo durante seu longo tempo de serviço — imagens do lar e da família. Muzzafar colocou o holostato em cima da mesa entre eles e acionou o botão de controle.

A imagem colorida, tridimensional, de uma floresta verde tomou conta do topo da mesa.

— Meu lar — explicou Muzzafar. — Olhe a árvore modeladora no centro. — Indicou com o dedo um lugar na projeção.— Foi a primeira que me obedeceu. As pessoas riam de mim por escolher a primeira daquele modo e ficar com ela.

Teg olhou para a projeção, consciente da profunda tristeza que havia na voz de Muzzafar. A árvore indicada era um agrupamento de ramos esqueléticos com bulbos azuis brilhantes pendendo das pontas.

“Árvore modeladora?”

— E uma coisa esquálida, eu sei — disse Muzzafar, tirando o dedo da projeção. — E não é nem um pouco segura. Tive que me defender sozinho algumas vezes nos meus primeiros meses com ela. Mas acabei me orgulhando dela. Eles correspondem a isso, você sabe. É agora o melhor lar dos vales profundos, pela Rocha Eterna de Dur!

Muzzafar olhou para a expressão intrigada de Teg.

— Ora bolas! Vocês não têm árvores modeladoras, é claro. Perdoe minha terrível ignorância. Nós temos um bocado para ensinar um ao outro.

— Você chamou aquilo de lar? — perguntou Teg.

— Oh sim. Com o controle adequado, uma vez que elas aprendem a obedecer, é claro, as árvores modeladoras crescem para se transformarem em magníficas residências. Só leva uns quatro ou cinco Anos Padrão.

“Padrão”, pensou Teg. Então os Perdidos ainda usavam o Ano Padrão.

O tubo elevador assoviou e uma jovem usando um vestido azul de criada entrou de costas na sala, puxando um casulo aquecido que flutuava em suspensores antigravidade. Ela o colocou perto da mesa diante de Teg. Suas roupas eram do tipo que ele vira em sua viagem de inspeção, mas o rosto redondo e agradável que ela voltou em sua direção não era familiar. O crânio da moça tinha sido depilado, mostrando uma extensão de veias dilatadas. Seus olhos eram de um azul aquoso e havia algo de amedrontado em sua postura. Ela abriu o casulo aquecido e o odor temperado da comida flutuou até as narinas de Teg.

Teg estava alerta, mas não sentiu qualquer ameaça imediata. Podia visualizar-se comendo aquela comida sem qualquer perigo posterior.

A moça colocou uma fileira de pratos na mesa diante dele e arrumou os talheres com cuidado de um lado.

— Eu não tenho farejador, mas posso provar a comida se desejar — disse Muzzafar.

— Não é necessário — disse Teg.

Sabia que isso ia levantar suspeitas, mas achava que eles iriam pensar que ele era um Revelador da Verdade. Seu olhar voltou-se para a comida. Sem qualquer decisão consciente, curvou-se para a frente e começou a comer. Estando familiarizado com a fome-Mentat, suas próprias reações o surpreendiam. Usar o cérebro à maneira Mentat consumia calorias a uma taxa alarmante, mas havia agora uma nova necessidade a impulsioná-lo. Sentia sua própria sobrevivência a controlar suas ações. Essa fome ia além de qualquer coisa que tivesse experimentado anteriormente. A sopa que tomara com cautela na casa do homem arrumado não tinha provocado uma reação como essa.

“O médico Suk escolheu corretamente”, pensou Teg. Essa comida fora selecionada a partir do diagnóstico do aparelho de exame.

E a moça foi trazendo novos pratos, de outros casulos aquecidos, que eram pedidos através do tubo elevador.

Teg teve que se levantar no meio da refeição para usar o sanitário do banheiro adjacente à sala, consciente de que havia olhos observadores mantendo-o sob vigilância. Sabia, por sua reação física, que seu sistema digestivo se havia acelerado de acordo com um novo nível de necessidades corporais. Quando voltou à mesa, sentia-se tão faminto como se ainda não tivesse comido nada.

A criada começou a demonstrar sinais de surpresa e então de preocupação. Ainda assim continuava trazendo mais comida, segundo seus pedidos.

Muzzafar olhava com admiração crescente, mas não dizia coisa alguma.

Teg sentiu o apoio da nutrição que o alimento lhe trazia, o preciso ajustamento de calorias que o médico ordenara. Obviamente, contudo, eles não tinham pensado em quantidade. Era chocada que a moça obedecia aos seus pedidos.

Muzzafar disse finalmente:

— Devo dizer que nunca tinha visto alguém comer tanto de uma sentada. Não consigo compreender como faz isso e porquê.

Teg recostou-se no sofá, satisfeito afinal, sabendo que havia despertado uma curiosidade que não poderia ser satisfeita de modo sincero.

— É uma coisa Mentat — mentiu. — Tive um dia muito cansativo.

— Extraordinário — disse Muzzafar, levantando-se.

Quando Teg fez menção de fazer o mesmo, ele gesticulou para que continuasse sentado.

— Não é preciso levantar-se. Preparamos um alojamento para você atrás daquela porta. Ainda não é seguro movimentar-se muito.

A moça saiu com os casulos de comida vazios.

Teg observou Muzzafar. Alguma coisa nas reações dele tinha mudado durante a refeição. Ele o observava agora de um modo frio e avaliador.

— Você tem um comunicador implantado — disse Teg. — E recebeu novas ordens.

— Não seria recomendável para seus amigos atacar este lugar — disse Muzzafar.

— Acha que é esse o meu plano?

— Qual é o seu plano, Bashar?

Teg sorriu.

— Muito bom.

O olhar de Muzzafar ficou desfocalizado enquanto ele ouvia nova mensagem do comunicador implantado em seu corpo. Quando se concentrou novamente em Teg, seu olhar era o de um predador. Teg sentiu-se agredido por aquele olhar, reconhecendo o indício de que alguém estava a caminho daquela sala. O Marechal-de-Campo pensava nesse novo desenvolvimento da situação como algo extremamente perigoso para seu convidado. Teg, contudo, não percebia coisa alguma que pudesse ameaçá-lo com suas novas capacidades.

— Pensa que sou seu prisioneiro? — perguntou ele.

— Pela Rocha Eterna, Bashar! Você não é o que eu esperava!

— E a Honrada Madre que está vindo, que será que ela espera? — perguntou Teg.

— Bashar, quero dar-lhe um conselho: não use esse tom de voz com ela. Não tem a menor idéia do que está a ponto de lhe acontecer.

— Uma Honrada Madre, isso é o que está a ponto de me acontecer.

— E eu desejo que se saia bem com ela!

Muzzafar virou-se e saiu pelo tubo elevador.

Teg ficou olhando na direção em que ele tinha saído. Podia perceber o tremular de sua segunda visão como uma luz piscando em torno do tubo elevador. A Honrada Madre estava perto, mas ainda não se encontrava preparada para entrar naquele salão. Primeiro iria consultar Muzzafar. Mas o Marechal-de-Campo não seria capaz de revelar nada de importante a essa mulher perigosa.

 

A memória nunca apreende a realidade. A memória a reconstrói. Toda reconstrução modifica o original, tornando-se uma estrutura externa de referência que inevitavelmente apresenta falhas.

 

— Manual Mentat

 

Lucilla e Burzmali entraram em Ysai vindos do sul através de um bairro pobre onde os postes de iluminação eram muito espaçados. Já havia passado uma hora desde a meia-noite e no entanto as ruas ainda estavam cheias de gente nesse bairro. Alguns andavam em silêncio, outros falavam com uma euforia induzida por drogas, outros apenas observavam. Agrupavam-se nos cantos e captavam a atenção fascinada de Lucilla.

Burzmali pediu que andasse mais depressa, um freguês ávido, ansioso para ficar sozinho com ela. Lucilla continuava observando disfarçadamente as pessoas.

Que fariam nesse lugar? Aqueles homens esperando junto às portas: esperavam o que? Trabalhadores usando pesados aventais emergiram de uma larga passagem enquanto Lucilla e Burzmali a atravessavam. Tinham forte cheiro de esgoto e transpiração. Estavam divididos igualmente entre homens e mulheres, todos altos, corpulentos e com braços muito grossos. Lucilla não conseguia imaginar qual seria a ocupação deles, mas formavam um tipo singular de gente, conscientizando-a do quão pouco ela sabia a respeito de Gammu.

Os trabalhadores escarravam e cuspiam na sarjeta assim que saíam para a rua. “Estarão se livrando de algum contaminante?”

Burzmali aproximou a boca do ouvido de Lucilla e sussurrou:

— Esses trabalhadores são os Bordanos.

Ela arriscou olhar para trás enquanto entravam por uma rua lateral. “Bordanos?” Ah, sim: gente criada e treinada para trabalhar com as máquinas compressoras que canalizavam os gases do esgoto. Através de procriação controlada, nasciam sem o sentido do olfato e com a musculatura dos ombros e dos braços aumentada. Burzmali a fez virar uma esquina, ficando fora da vista dos Bordanos.

Cinco crianças saíram de um portal escuro ao lado deles e andaram em fila, seguindo Lucila e Burzmali. Lucilla notou que eles traziam nas mãos pequenos objetos e os seguiam com estranha atenção. De repente Burzmali parou e se voltou. As crianças também pararam e ficaram olhando para ele. Era evidente para Lucilla que as crianças estavam preparadas para cometer alguma violência.

Burzmali uniu as mãos diante do peito, curvou-se para as crianças e disse:

— Guldur!

Quando voltou a conduzi-la pelas ruas, as crianças não mais os seguiam.

— Elas iam apedrejar-nos — explicou ele.

— Por quê?

— Essas crianças são de uma seita que segue Guldur, o nome local do Tirano.

Lucilla olhou à procura das crianças que tinham desaparecido. Haviam partido à procura de outras vítimas.

Burzmali levou-a a dobrar outra esquina. Agora estavam numa rua cheia de pequenos comerciantes vendendo suas mercadorias acondicionadas dentro de carrocinhas — comida, roupas, pequenas ferramentas e facas. Um coro de gritos bem-orquestrado erguia-se no ar enquanto os vendedores tentavam atrair fregueses. Mas suas vozes já tinham o som do final de um dia de trabalho — aquele falso entusiasmo composto pela esperança de que velhos sonhos se realizem e, ao mesmo tempo, a consciência de que a vida para eles não ia mudar. Ocorreu a Lucilla que as pessoas dessas ruas seguiam um sonho esquivo no qual a realização que buscavam não passava de um mito que tinham sido condicionadas a perseguir, do mesmo modo como animais em pistas de corridas eram treinados para correr interminavelmente atrás de uma isca.

Diretamente à frente deles, na rua, uma figura corpulenta, usando um casaco muito acolchoado, discutia em voz alta com um vendedor que lhe oferecia uma saca cheia de bulbos vermelhos de uma fruta ácida. O cheiro da fruta era forte. O vendedor queixava-se:

— Está tirando a comida da boca dos meus filhos.

O sujeito corpulento respondeu com voz aguda, o sotaque terrivelmente familiar a Lucilla:

— Eu também tenho filhos.

Lucilla controlou-se com esforço.

Depois que tinha saído da rua do mercado, ela sussurrou para Burzmali:

— Aquele homem de casaco espesso lá atrás.. era um Mestre Tleilaxu.

— Não podia ser — protestou Burzmali. — Muito alto.

— Eram dois deles. Um em pé sobre os ombros do outro.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Vi outros como ele desde que chegamos, mas não tinha suspeitado.

— Há muitos caçadores procurando por nós nestas ruas.

Lucilla achou que não se importava com a vida que levavam os habitantes das sarjetas desse planeta-sarjeta. Não confiava mais na explicação que a Irmandade dera para trazer o ghola. De todos os planetas onde esse precioso ghola podia ter sido criado, por que tinham escolhido exatamente esse? Será que o ghola era realmente valioso? Ou teria sido meramente uma isca?

Quase bloqueando a passagem na entrada de um beco ao lado deles, havia um homem manipulando um engenho comprido com luzes rodopiantes.

— Vivo! — apregoava. — Vivo!

Lucilla retardou o passo para observar um passante entrar no beco, depois de entregar uma moeda ao sujeito, e se inclinar sobre uma bacia côncava que as luzes tornavam brilhante. O proprietário do aparelho luminoso encarou Lucilla. Ela viu um homem de face estreita e escura, a face de um Caladaniano primitivo num corpo somente um pouco mais alto que o de um Mestre Tleilaxu. Havia uma expressão de desprezo em seu rosto meditativo enquanto ele recebia o dinheiro do freguês.

O freguês ergueu o rosto da bacia com um estremecimento e então saiu do beco cambaleante, os olhos vidrados.

Lucilla reconheceu o engenho. Seus usuários o chamavam de hipnobong e era proibido em todos os mundos mais civilizados.

Burzmali apressou-se em afastá-la da vista do meditativo proprietário do hipnobong.

Chegaram a uma larga rua lateral com um portal bem no prédio da esquina. Gente passava a pé por todos os lados e não havia sinal de veículos. Um homem alto estava sentado nos degraus que conduziam à porta do prédio da esquina, os joelhos dobrados junto ao queixo. Seus braços compridos estavam dobrados em torno dos joelhos, os dedos finos das mãos unindo-se com força. Usava um chapéu preto de aba larga para abrigar o rosto da iluminação da rua, mas o brilho de seus olhos sob a sombra do chapéu revelou a Lucilla que esse não era nenhum tipo de ser humano que ela já tivesse conhecido algum dia. Era alguma coisa a respeito da qual a Bene Gesserit só conseguira especular.

Burzmali esperou até que estivessem bem longe da figura sentada para satisfazer a curiosidade dela.

— Frutar — sussurrou. — É assim que eles chamam a si mesmos. Estão aqui em Gammu há muito tempo.

“Uma experiência dos Tleilaxu”, pensou Lucilla. “Uma falha que voltou da Dispersão.”

— Que é que eles estão fazendo aqui? — perguntou ela.

— Colônia de comerciantes, é o que dizem os nativos.

— Não acredite nisso. Eles são o produto do cruzamento de seres humanos com animais predadores.

— Ah, aqui estamos — disse Burzmali.

Guiou Lucilla por uma porta estreita, entrando num restaurante pouco iluminado. Isso era parte do disfarce. Lucilla sabia muito bem: Faça o que os moradores deste bairro costumam fazer. Mas ela não gostaria de comer num lugar como este, não a partir do que podia interpretar pelos cheiros.

O lugar estivera cheio, mas começava a se esvaziar quando eles entraram.

— Este lugar foi muito recomendado — disse Burzmali enquanto se sentavam numa mecanofenda e esperavam que o cardápio fosse projetado.

Lucilla observou os fregueses saindo. Trabalhadores do turno da noite em fábricas e escritórios próximos, calculou. Pareciam ansiosos e apressados, talvez temerosos do que lhes pudesse acontecer se chegassem atrasados.

Como ficara isolada no Castelo, pensou ela. Não gostava nada do que estava descobrindo a respeito de Gammu. Que lugar sebento era essa lanchonete! Os banquinhos junto do balcão à sua direita estavam lascados e riscados. O tampo da mesa fora esfregado com utensílios de limpeza de má qualidade que o tinham deixado arranhado até não poder ser mais limpo com a mangueira do aspirador que ela podia notar perto de seu cotovelo esquerdo. Não havia indício do limpador sônico mais barato para manter a higiene desse lugar. Restos de comida e outras evidências de deterioração tinham se acumulado nas fendas da mesa. Lucilla estremeceu. Não podia evitar o pensamento de que fora um erro separar-se do ghola.

O cardápio fora projetado e ela podia notar que Burzmali o estava lendo.

— Farei o pedido por você — ele disse.

O modo como Burzmali falou indicava que ele não queria que ela cometesse um erro ao pedir alguma coisa que uma mulher de Hormu não pediria.

Irritava-a sentir-se dependente. Era uma Reverenda Madre! Estava treinada para assumir o comando em qualquer situação, dona do seu próprio destino. Como isso tudo era cansativo. Ela gesticulou em direção à janela suja à sua esquerda, onde se via gente passando na rua.

— Estou perdendo fregueses enquanto demoramos, Skar.

“Isso está de acordo com meu papel.”

Burzmali quase suspirou. “Afinal!”, pensou. Ela recomeçara a agir como Reverenda Madre. Não conseguia entender-lhe a atitude abstrata, o modo como olhava para a cidade e sua gente.

Duas bebidas leitosas emergiram da fenda para cima da mesa. Burzmali tomou a sua num único gole. Lucilla testou a bebida com a ponta da língua, avaliando seu conteúdo. Uma imitação de cafeinato com um suco com sabor de nozes.

Burzmali gesticulou para cima com o queixo, indicando que ela devia beber rapidamente. Ela obedeceu, disfarçando uma careta ante os sabores químicos. A atenção de Burzmali voltava-se para alguma coisa além do ombro direito dela, mas Lucilla não se atrevia a olhar para trás. Isso não estaria de acordo com o papel que representava.

— Venha.

Ele colocou uma moeda sobre a mesa a saiu com ela apressadamente para a rua. Sorriu como um freguês ávido, mas havia preocupação em seus olhos.

O ritmo da rua tinha mudado. Havia pouca gente agora, e as portas envoltas em sombras transmitiam uma sensação de profunda ameaça. Lucilla lembrou-se de que devia parecer uma integrante de uma poderosa sociedade cujas componentes estavam imunes à violência comum das sarjetas e dos becos. As poucas pessoas na rua de fato lhe abriam caminho, olhando os dragões de seu manto com todo o jeito de admiração.

Burzmali parou junto de uma porta.

Era como as outras ao longo da rua, ligeiramente recuada da calça e tão alta que parecia mais estreita do que realmente era. Um facho de segurança modelo antigo guardava a entrada. Aparentemente, nenhum dos sistemas mais modernos havia chegado a esses cortiços. As próprias ruas eram testemunho disso: projetadas para carros de solo. Lucilla duvidava de que houvesse uma plataforma de pouso no telhado de algum prédio desse bairro. Não se podia ouvir nenhum som de tópteros ou de voadores. Mas se ouvia o som de música — um fraco sussurrar reminescente da semuta. Algo novo no vício da semuta? Esse certamente seria um lugar onde os viciados poderiam alojar-se.

Lucilla examinou a fachada do prédio enquanto Burzmali tomava sua frente e anunciava sua presença, interrompendo o feixe da porta.

Não havia janelas na fachada do prédio. Somente o fraco brilho dos olhos de vigilância e o lustro opaco de plasteel antigo. Eram olhos de vigilância antigos, notou Lucilla, muito maiores que os modelos modernos.

Uma porta oculta nas sombras girou para dentro sobre dobradiças silenciosas.

— Por aqui — disse Burzmali, enquanto estendia um braço para trás e a puxava com uma das mãos no ombro.

Entraram num corredor fracamente iluminado que tinha cheiro de comidas exóticas e essências amargas. Lucilla levou um momento identificando as coisas que lhe atingiam as narinas. Melange, sim, havia o inconfundível cheiro de canela. E semuta, claro. Identificou o odor de arroz queimado e de sais químicos. Alguém estava disfarçando outro tipo de cozinha. Estavam fabricando explosivos nesse lugar. Pensou em avisar Burzmali, mas reconsiderou. Não era necessário que ele soubesse, e podia haver ouvidos ocultos nesse espaço confinado.

Burzmali conduziu-a por um escuro lance de escadas com uma fraca tira luminosa ao longo do rodapé. No alto encontrou um botão oculto por trás de um conserto no reboco em ruínas da parede. Não se produziu som algum quando ele acionou o botão, mas Lucilla sentiu uma mudança nos movimentos à sua volta. Silêncio. Era um novo tipo de silêncio em suas experiências. O silêncio da expectativa de luta ou violência.

Estava frio na escadaria e ela estremeceu, mas não do frio. Passos soaram além da porta, junto do remendo na parede.

Uma bruxa de cabelos grisalhos, usando um vestido amarelo, abriu a porta e olhou para eles.

— É você — ela disse, a voz trêmula.

Abriu caminho para que entrassem.

Lucilla olhou rapidamente à sua volta enquanto ouvia a porta fechar-se atrás dela. Estavam numa sala que uma pessoa pouco observadora poderia considerar pobre, mas essa aparência era superficial. Por baixo da aparente pobreza havia qualidade. A pobreza era outro disfarce. Esse lugar fora arrumado por uma pessoa muito exigente. Isto fica aqui e em nenhum outro lugar! Aquilo tem que ficar ali! A mobília e as quinquilharias pareciam um pouco gastas, mas quem morava ali não fazia objeções nesse sentido. O aposento estava melhor desse modo. Era esse tipo de ambiente.

Quem seria o dono do lugar? A velha? Ela estava caminhando penosamente para a porta à sua esquerda.

— Não queremos ser perturbados até o dia amanhecer — disse Burzmali.

A velha parou e se virou.

Lucilla observou-a com atenção. Seria outra que disfarçava, simulando uma idade avançada? Não. Nessa a idade era verdadeira. Cada movimento era inseguro, fraco — um tremor no pescoço, uma falha do corpo que a denunciava de um modo que ela não poderia evitar.

— Mesmo se for alguém importante? — perguntou a mulher com sua voz trêmula.

Os olhos piscavam quando ela falava e sua boca se abria apenas o mínimo necessário para emitir os sons, as palavras espaçadas como se as retirasse de algum lugar profundo em seu interior. Os ombros, curvados por anos passados dobrada sobre algum trabalho fixo, não se empertigavam o suficiente para que ela pudesse olhar Burzmali nos olhos. Olhava para cima, em direção às sobrancelhas, numa postura curiosamente furtiva.

— Que pessoa importante está esperando? — perguntou Burzmali.

A velha estremeceu e pareceu levar longo tempo para compreender.

— Gente importante vem aqui — ela disse.

Lucilla reconheceu os sinais corporais e falou porque Burzmali precisava saber:

— Ela é de Rakis!

O olhar curioso da velha voltou-se para Lucilla. Sua voz ancestral disse:

— Fui uma sacerdotisa, Senhora de Hormu.

— É claro que ela é de Rakis — disse Burzmali.

Seu tom de voz advertia para não questionar.

— Eu jamais poderia fazer-lhe mal — gemeu a velha.

— Ainda serve o Deus Dividido?

Novamente houve um longo atraso para que a mulher respondesse.

— Muitos servem o Grande Guldur — ela disse.

Lucilla comprimiu os lábios e examinou a sala uma vez mais. A velha fora muito reduzida em sua importância.

— Fico feliz por não precisar matá-la — disse Lucilla.

O queixo da velha caiu numa paródia de surpresa enquanto a saliva escorria de seus lábios.

Seria ela uma descendente dos Fremen? Lucilla deixou escapar sua repugnância num longo estremecimento. Essa escória humilhante fora moldada a partir de um povo que caminhava altivo e orgulhoso, um povo que lutava e morria com bravura. Essa aqui morreria choramingando.

— Por favor, confiem em mim — disse a velha.

Virou-se e saiu.

— Por que você fez isso? — perguntou Burzmali, irritado. — É essa gente que vai nos levar para Rakis!

Ela apenas olhou para ele, reconhecendo o temor em sua pergunta. Ele temia por ela.

“Mas eu não cheguei a imprimi-lo”, pensou.

Com um sentimento de choque, Lucilla percebeu que Burzmali tinha reconhecido o seu ódio. “Eu os odeio!”, pensou. “Odeio o povo deste planeta!”

Era uma emoção perigosa para uma Reverenda Madre. E ainda assim queimava dentro dela. Esse planeta a tinha mudado de um modo que não desejara. Não queria a compreensão de que tais coisas podiam acontecer. A compreensão intelectual é uma coisa. A experiência, outra bem diferente.

“Malditos sejam todos eles!”

Mas eles já estavam amaldiçoados.

Sentia uma dor no peito. Frustração! Não havia modo de escapar a essa nova consciência. Que teria acontecido com essa gente?

“Gente?”

As cascas permaneciam ali, mas eles não mais poderiam ser considerados como totalmente vivos. Eram perigosos, contudo. Terrivelmente perigosos.

— Devemos repousar enquanto podemos — disse Burzmali.

— Quer dizer que não tenho que fazer juz ao meu dinheiro?

Burzmali empalideceu.

— Aquilo que fizemos foi necessário! Tivemos sorte de ninguém nos deter, mas podia ter acontecido!

— E este lugar é seguro?

— Tão seguro quanto eu puder torná-lo. Todo o mundo aqui foi escolhido por mim ou por minha gente.

Lucilla encontrou um longo sofá que tinha o cheiro de antigos perfumes e se recostou nele para se livrar das emoções daquele ódio perigoso. Onde o ódio entrava, o amor poderia segui-lo! Ouviu Burzmali espreguiçando-se sobre as almofadas junto da parede. Logo ele estava respirando profundamente, mas Lucilla não conseguia pegar no sono. Continuava sentido multidões de memórias, coisas impulsionadas pelos outros que compartilhavam de seus depósitos internos de pensamentos. De repente uma visão interior lhe deu um vislumbre de ruas e rostos, gente andando sob o brilho da luz do sol. levou um momento para ela perceber que estava vendo aquilo de um ângulo peculiar — estava sendo carregada nos braços de alguém. Sabia que essas eram memórias pessoais suas. Podia lembrar quem a estava carregando, sentir a batida de seu coração e seu rosto morno.

Lucila sentiu o gosto salgado de suas próprias lágrimas.

E percebeu que Gammu a tinha tocado mais profundamente do que qualquer outra experiência que tivera desde seus primeiros dias nas escolas Bene Gesserit.

 

Guardado por fortes barreiras, o coração transforma-se em gelo.

 

— Darwi Odrade

Argumento diante do Conselho

 

Era um grupo dominado por violentas tensões: Taraza (usando uma armadura secreta sob os mantos e consciente das outras precauções que tinha tomado), Odrade (certa de que ia haver violência e por isso extremamente precavida), Sheeana (plenamente instruída quanto ao que podia acontecer ali e resguardada atrás de três Madres da Segurança que andavam em torno dela como uma armadura de carne), Waff (preocupado, achando que seu raciocínio podia ter sido prejudicado por algum artifício da Bene Gesserit), o falso Tuek (demonstrando todos os sinais de estar a ponto de explodir em fúria) e nove conselheiros Rakianos de Tuek (todos altamente preocupados em conseguir a ascensão de suas famílias).

Somando-se a esse grupo, havia cinco acólitas guardiãs, criadas e treinadas para a violência física, todas mantendo-se juntas de Taraza. Waff fazia-se acompanhar de igual número dos novos Dançarinos Faciais.

Estavam reunidos na cobertura no topo do museu de Dar-es-Balat. Era um grande salão, com uma parede de plaz voltada para oeste cruzando um jardim suspenso de plantas delicadas. O interior estava mobiliado com divãs macios e decorado com objetos de arte da não-câmara do Tirano.

Odrade fora contra a inclusão de Sheeana no grupo, mas Taraza permanecera inflexível. O efeito que a jovem exercia sobre Waff e alguns membros do clero representava grande vantagem para a Bene Gesserit.

Escudos dolban baixavam-se sobre a longa fileira de janelas para filtrar o brilho do sol poente. O fato de o salão voltar-se para oeste revelava algo a Odrade. As janelas davam para as terras do crepúsculo, onde repousava o Shai-hulud. Um aposento focalizado no passado, na morte.

Ela admirou os dolbans diante dela. Eram placas negras achatadas, com apenas 10 moléculas de espessura, girando num meio líquido transparente. Regulados automaticamente, os melhores dolbans Ixianos admitiam apenas a passagem de um nível predeterminado de iluminação, sem impedir a visão do exterior. Artistas e comerciantes de antigüidades preferiam-nos ao sistema de polarização, sabia Odrade, porque deixavam passar todo o espectro da luz disponível. Sua instalação revelava os usos desse salão — um lugar de exibição para o melhor que houvesse no tesouro do Imperador-Deus. Sim, ali estava um vestido que fora usado pela escolhida para ser sua noiva.

Os sacerdotes conselheiros discutiam furiosamente entre si, numa extremidade do salão, ignorando o falso Tuek. Taraza mantinha-se por perto ouvindo. Sua expressão revelava que ela os julgava todos.

Waff mantinha-se junto ao seu séquito de Dançarinos Faciais, perto da ampla porta de entrada. Sua atenção ia de Sheeana para Odrade, de Odrade para Taraza e, ocasionalmente, para a discussão entre os sacerdotes. Cada movimento de Waff traía suas incertezas. Será que a Bene Gesserit iria realmente apoiá-lo? Será que juntos poderiam dominar a oposição Rakiana por meios pacíficos?

Sheeana e sua escolta vieram colocar-se ao lado de Odrade. A jovem ainda mostrava uma musculatura fibrosa, mas estava encorpando e os músculos iam assumindo o padrão definido da Bene Gesserit. A superfície das maçãs do rosto ia se tornando mais arredondada sobre a pele cor de oliva, os olhos castanhos, mais luminosos. Entretanto, ainda havia reflexos vermelhos em seu cabelo castanho. A atenção que ela dedicava aos sacerdotes revelava estar avaliando aquilo que lhe fora revelado.

— Eles vão lutar realmente? — sussurrou ela.

— Escute o que dizem — respondeu Odrade.

— Que vai fazer a Madre Superiora?

— Observe-a com cuidado.

Ambas olharam para Taraza que se destacava em meio à sua escolta de acólitas musculosas. Taraza agora parecia divertida enquanto continuava a observar os sacerdotes.

O grupo Rakiano começara a discussão no jardim da cobertura e fora entrando à medida que as sombras do poente se tornavam mais longas. Respiravam agitados, murmuravam por vezes e então erguiam as vozes. Será que não percebiam como o falso Tuek os vigiava?

Odrade voltou sua atenção para o horizonte, visível além do jardim. Não havia sinal de vida lá no deserto. Em qualquer direção em que se olhasse a partir de Dar-es-Balat, só se viam areia e vazio. As pessoas ali nascidas e criadas tinham uma visão da vida e de seu planeta diferente daquela da maioria desses sacerdotes. Esse não era o Rakis dos cinturões verdes e dos oásis irrigados, que se agrupavam nas altas latitudes como pétalas de flores apontando para as trilhas do deserto. Lá, além de Dar-es-Balat, se encontrava o deserto equatorial a se estender como um cinturão em volta do planeta inteiro.

— Já ouvi o bastante dessa tolice! — explodiu o falso Tuek. Puxou para o lado, violentamente, um dos conselheiros e entrou no meio do grupo que discutia, virando-se para olhar cada um dos rostos. — Vocês ficaram malucos? Todos vocês?

Um dos sacerdotes (era o velho Albertus, por todos os deuses!) olhou na direção de Waff e disse:

— Sr. Waff! Quer por favor controlar seu Dançarino Facial?

Waff hesitou e depois caminhou em direção ao grupo que discutia, seu séquito a acompanhá-lo logo atrás.

O falso Tuek virou-se e apontou o dedo para Waff:

— Você! Fique onde está! Não aceitarei qualquer interferência Tleilaxu! Sua conspiração está muito clara para mim!

Odrade observava Waff enquanto o falso Tuek falava. Surpresa! O Mestre Bene Tleilaxu nunca fora tratado desse modo por um de seus asseclas. Que choque! A raiva desfigurou-lhe o rosto. Um zumbido, como o som de insetos irritados, saiu de sua boca, uma coisa modulada que era evidentemente algum tipo de linguagem. Os Dançarinos Faciais da escolta ficaram imobilizados, congelados, mas o falso Tuek apenas voltou sua atenção para os conselheiros.

Waff parou de zumbir. A consternação tomou conta de seu rosto! Seu Tuek Dançarino Facial não se deixava dominar! Andou furioso na direção dos sacerdotes, mas o falso Tuek o viu e uma vez mais apontou a mão para ele, o dedo trêmulo.

— Eu lhe disse para ficar fora disto! Você pode ser capaz de me eliminar, mas não vai me enterrar em sua sujeira Tleilaxu!

Foi o suficiente. Waff parou, compreendendo afinal. Olhou para Taraza, cuja expressão de divertimento revelava que ela reconhecia suas dificuldades. Agora ele tinha um novo alvo para o seu ódio.

— Você sabia!

— Eu suspeitava.

— Você... você...

— Você o moldou muito bem — comentou Taraza. — Ele é sua criação.

Os sacerdotes ignoravam essa troca de palavras e gritavam para o falso Tuek, mandando-o calar-se e sair dali. Chamavam-no de “maldito Dançarino Facial”.

Odrade observou cuidadosamente o objeto desse ataque. A que profundidade chegaria a impressão? Estaria ele realmente convencido de que era Tuek?

Numa súbita interrupção das vozes, o mímico reuniu sua dignidade e olhou, cheio de desprezo, para seus acusadores.

— Vocês todos me conhecem — ele disse. — Todos têm consciência dos meus anos de serviço ao Deus Dividido que é o Único Deus. Irei ao encontro dele agora, se sua conspiração chega a esse ponto, mas lembrem-se disto: Ele sabe o que se passa em seus corações!

Os sacerdotes voltaram-se para Waff como se fossem uma única pessoa. Nenhum deles tinha visto o Dançarino Facial substituir seu Alto Sacerdote. Não houvera nenhum cadáver para ser visto. Toda a evidência eram vozes humanas dizendo coisas que poderiam ser mentiras. Um pouco tardiamente, vários deles olharam para Odrade. A voz dele fora uma daquelas que os tinham convencido.

Waff também estava olhando para Odrade.

Ela sorriu e se dirigiu ao Mestre Tleilaxu:

— Convém aos nossos propósitos que o posto de Alto Sacerdote não caia em outras mãos nesta ocasião — ela disse.

Waff imediatamente percebeu a vantagem para si próprio. Estava numa corda bamba entre o clero e a Bene Gesserit. E isso afastava um dos trunfos mais perigosos que a Irmandade tinha sobre os Tleilaxu.

— Convém aos meus propósitos também — ele disse.

Quando os sacerdotes ergueram uma vez mais suas vozes em fúria, Taraza entrou na deixa:

— Qual de vocês quebraria nosso acordo? — perguntou.

Tuek empurrou para o lado dois de seus conselheiros e caminhou ao encontro da Madre Superiora. Parou a um passo dela.

— Que jogo é esse? — perguntou.

— Nós o apoiamos contra aqueles que iriam derrubá-lo — ela disse.

— E a Bene Tleilax se une a nós. E nosso modo de demonstrar que também temos direito a votar na escolha do Alto Sacerdote.

Vários sacerdotes ergueram suas vozes ao mesmo tempo:

— Ele é ou não é um Dançarino Facial?

Com expressão benevolente, Taraza olhou para o homem diante dela:

— Você é um Dançarino Facial?

— É claro que não!

Taraza olhou para Odrade, que disse:

— Parece que houve um engano.

Odrade olhou para Albertus no meio dos outros sacerdotes e chamou:

— Sheeana, que é que a Igreja do Deus Dividido deve fazer agora?

Como tinha sido instruída a fazer, Sheeana saiu do meio da sua escolta e falou com toda a altivez que lhe tinham ensinado:

— Ela deve continuar servindo a Deus!

— O assunto deste encontro parece ter sido concluído — comentou Taraza. — Se precisar de proteção, Alto Sacerdote Tuek, um grupo de nossas guardas estará à espera no corredor. Elas obedecerão ao seu comando.

Ela podia notar nele a aceitação e o entendimento. Ele se tornara uma criatura da Bene Gesserit. Não lembrava mais nada de suas origens como Dançarino Facial.

Depois que Tuek e os sacerdotes tinham saído, Waff dirigiu uma única palavra a Taraza, falando na linguagem do Islamiyat:

— Explique!

Taraza saiu do meio de sua guarda, fingindo tornar-se vulnerável. Era um movimento calculado que ela tinha debatido diante de Sheeana. Na mesma linguagem, respondeu:

— Nós renunciamos ao nosso domínio sobre a Bene Tleilax.

Aguardou enquanto ele avaliava essas palavras. Taraza lembrava-se de que o nome Tleilax podia ser traduzido como “os impronunciáveis”. Esse era um rótulo freqüentemente reservado apenas aos deuses.

Esse deus, obviamente, não havia estendido a descoberta que fizera aqui do que deveria estar acontecendo com seus outros substitutos ante os Ixianos e as Oradoras Peixes. Waff teria outras surpresas e outros choques no futuro. Parecia muito intrigado, contudo. Estava confrontando muitas perguntas sem respostas. Não estava satisfeito com os relatórios que recebera de Gammu. Agora estava fazendo um jogo duplo muito perigoso. Será que a Irmandade fazia um jogo semelhante? Mas os Tleilaxu que estavam entre os Perdidos não poderiam ser afastados sem provocar um ataque das Honradas Madres. A própria Taraza lhe advertira quanto a isso. Será que o velho Bashar em Gammu ainda representava uma força digna de ser considerada?

Ele verbalizou essa pergunta.

Taraza respondeu com sua própria pergunta:

— Como alterou nosso ghola? O que vocês esperavam ganhar?

Ela tinha quase certeza de que já sabia. Mas a ilusão de ignorância era necessária.

Waff queria dizer: “A morte de todas as Bene Gesserit!” Elas eram perigosas demais. E no entanto seu valor era incalculável. Mergulhou num silêncio sorumbático, olhando para as Reverendas Madres com uma expressão meditativa que tornava suas feições de duende ainda mais infantis.

“Uma criança petulante, pensou Taraza. lembrou a si mesma que era perigoso subestimar Waff. Quebra-se a casca dos Tleilaxu apenas para encontrar outra casca por dentro — ad infinitum! Tudo levava de volta às suspeitas de Odrade com relação a discórdias que ainda poderiam provocar uma violência sangrenta dentro desse salão. Será que os Tleilaxu tinham realmente revelado aquilo que haviam aprendido com as prostitutas e com os outros Perdidos? Será que o ghola era apenas uma arma potencial dos Tleilaxu?

Taraza resolveu sondá-lo uma vez mais, usando como abordagem a “Análise Nove” de seu Conselho. Ainda na linguagem do Islamiyat, ela disse:

— Você iria desonrar-se na terra do Profeta? Ainda não compartilhou abertamente tudo que disse que iria.

— Nós lhe contamos sobre o controle sexual.

— Não contaram tudo! — interrompeu ela. — E por causa do ghola e sabemos disso.

Ela podia perceber suas reações. Waff era uma animal encurralado. E um animal nessa situação era extremamente perigoso. Tinha visto uma vez um cão mestiço, um sobrevivente selvagem dos animais de estimação de Dan, ser encurralado por uma matilha de animais jovens. O animal voltou-se contra seus perseguidores, abrindo caminho para a liberdade com uma fúria totalmente inesperada. Dois dos perseguidores tinham ficado aleijados para o resto da vida e somente um escapara sem ferimentos! Waff era como esse animal agora. Podia ver suas mãos procurando uma arma, mas os Tleilaxu e as Bene Gesserit tinham examinado uns aos outros com extremo cuidado antes de virem para cá. Sentia-se segura de que ele não tinha arma alguma. Ainda assim...

Waff falou, depois de usar o suspense à sua maneira:

— Pensa que não conheço o modo como esperam governar-nos?

— E existe a podridão que a gente da Dispersão levou consigo — ela disse. — A podridão interior.

As maneiras de Waff modificaram-se. Ele não ignorava as profundas implicações do pensamento Bene Gesserit. Mas não estaria ela semeando a discórdia?

— O Profeta deixou um localizador funcionando nas mentes de cada ser humano. Disperso ou não — disse Taraza. — Ele os trouxe de volta para nós com toda a podridão intacta.

Waff comprimiu os dentes. Que estaria ela fazendo? Imaginou se a Bene Gesserit não teria confundido sua mente com alguma droga secreta vaporizada no ar. Elas conheciam coisas que eram negadas aos outros! Olhou de Taraza para Odrade e de novo para Taraza. Sabia que era velho através das ressurreições em série como ghola, mas não velho do modo como o eram as Bene Gesserit. Essa gente era realmente antiga. Elas raramente aparentavam a velhice, mas eram velhas, velhas além de qualquer coisa que se atrevia a imaginar.

Taraza estava tendo pensamentos semelhantes. Vira o brilho de uma consciência profunda nos olhos de Waff. A necessidade abria novas portas para a razão. Que profundidade teriam atingido os Tleilaxu? Os olhos dele aparentavam tamanha antigüidade! Ela tinha a impressão de que o que quer que tivesse sido um cérebro nesses Mestres Tleilaxu transformara-se numa outra coisa — uma hologravação da qual todas as emoções que pudessem enfraquecê-los tivessem sido apagadas. Taraza compartilhava da desconfiança em relação às emoções que suspeitava em Waff. Seria isso um laço de união entre eles?

“O tropismo dos pensamentos comuns?”

— Você diz que renunciou à vantagem que tinha sobre nós — resmungou Waff —, mas eu sinto seus dedos em torno de minha garganta.

— Então, eis um aperto em nossa garganta — replicou ela. — Alguns de seus Perdidos voltaram para vocês. Nenhuma Reverenda Madre regressou para nós vinda da Dispersão.

— Mas você disse que sabia tudo sobre...

— Nós possuímos outros modos de obter conhecimento. Que supõe ter acontecido com as Reverendas Madres que enviamos para a Dispersão?

— Um desastre comum?

Ele sacudiu a cabeça. Essa era uma informação absolutamente nova. Nenhum dos Tleilaxu que tinham retornado dissera coisa alguma a respeito. A discrepância alimentava suas suspeitas. Em quem deveria acreditar?

— Elas foram subvertidas — disse Taraza.

Odrade, ouvindo essa suspeita generalizada ser revelada abertamente pela Madre Superiora, sentiu o enorme poder implícito na simples declaração de Taraza. Sentiu-se intimidada. Conhecia os recursos, os planos de contingência, os modos improvisados a que uma Reverenda Madre era capaz de recorrer para superar barreiras. Alguma coisa lá fora era capaz de vencer tudo isso?

Como Waff não respondesse, Taraza disse:

— Veio ao nosso encontro com as mãos sujas.

— Atreve-se a dizer isso? — perguntou Waff. — Vocês, que continuam a minar nossos recursos pelos modos que lhes foram ensinados pela mãe do Bashar?

— Sabíamos que vocês poderiam tolerar suas perdas se contassem com recursos da Dispersão.

Waff inspirou, trêmulo. Então a Bene Gesserit sabia até disso? Percebia, em parte, como ela tinha descoberto. Bem, poderia encontrar um modo de colocar o falso Tuek novamente sob controle. Rakis era o prêmio que os Dispersos realmente buscavam, e isso poderia ser exigido dos Tleilaxu.

Taraza caminhou para ficar ainda mais perto de Waff, sozinha e vulnerável. Viu sua guarda ficar tensa. Sheeana deu um passo em direção à Madre Superiora, mas Odrade a puxou de volta.

Odrade mantinha sua atenção na Madre Superiora e não em seus atacantes em potencial. Será que os Tleilaxu estavam realmente convencidos de que a Bene Gesserit iria servi-los? Taraza tinha testado os limites dessa crença, não havia dúvida disso. E usando a linguagem do Islamiyat. Entretanto, parecia muito solitária, afastada de sua guarda e tão perto de Waff e sua gente. Aonde as óbvias suspeitas de Waff iriam conduzi-lo agora?

Taraza estremeceu.

Odrade percebeu isso. Quando criança, Taraza fora anormalmente magra e nunca tivera um quilo em excesso. Isso a tornava extremamente sensível a mudanças de temperatura, intolerante para com o frio. Odrade, contudo, não tinha sentido qualquer mudança de temperatura nesse salão. Então Taraza devia ter tomado uma decisão perigosa, algo tão perigoso que seu corpo a havia traído. Não perigoso para ela, é claro, mas para a Irmandade. Ali estava o crime mais terrível que uma Bene Gesserit poderia cometer: ser desleal para com sua ordem.

— Nós vamos servi-los de todos os modos, exceto um — disse Taraza. — Jamais nos tornaremos receptáculos de gholas!

Waff empalideceu.

Taraza continuou:

— Agora e nunca nenhuma de nós jamais servirá de... — Ela fez uma pausa — ... de tanque axlotl.

Waff ergueu a mão direita para iniciar um gesto que toda Reverenda Madre conhecia: o sinal para seus Dançarinos Faciais atacarem.

Taraza apontou para a mão erguida:

— Se completar esse gesto, os Tleilaxu perderão tudo. A mensageira de Deus — Taraza indicou Sheeana — vai virar as costas a vocês e as palavras do Profeta serão pó em suas bocas.

Na linguagem do Islamiyat, tais palavras foram demais para Waff. Ele abaixou a mão, mas continuou olhando furioso para Taraza.

— Minha embaixadora disse que compartilharíamos tudo que sabíamos — continuou Taraza. — Você também disse isso. A mensageira de Deus escuta com os ouvidos do Profeta! E que diz o Abdl dos Tleilaxu?

Waff abaixou os ombros.

Taraza virou-lhe as costas. Era um movimento ensaiado, e as outras Reverendas Madres sabiam que ela o fazia agora em perfeita segurança. Olhando para Odrade do outro lado do salão, Taraza permitiu-se um sorriso que ela sabia que Odrade interpretaria corretamente. Hora de um pouco de punição Bene Gesserit!

— Os Tleilaxu desejam uma Atreides para procriação — ela disse. — Eu lhes dou Darwi Odrade. Mais lhe será fornecido.

Waff tomou uma decisão.

— Vocês podem achar que sabem muito sobre as Honradas Madres — ele disse —, mas vocês...

— Prostitutas! — exclamou Taraza, voltando-se para ele.

— Como quiser. Mas há uma coisa a respeito delas que suas palavras desconhecem. Eu selo nosso acordo contando-lhe isso. Elas são capazes de amplificar as sensações de uma plataforma orgásmica, trasmitindo-as através de um corpo masculino. Elas produzem um envolvimento sensual no homem. Ondas de orgasmo amplificadas são criadas e podem continuar... sob controle da mulher durante um extenso período.

— Envolvimento total?

Taraza não tentou esconder sua admiração.

Odrade também ouvia com um sentimento de choque, que ela percebia ser compartilhado pelas outras Irmãs presentes e até pelas acólitas. Somente Sheeana parecia não compreender.

— Eu lhe digo, Madre Superiora Taraza — disse Waff com um maligno sorriso de satisfação —, que nós duplicamos isso com nossa própria gente. Comigo mesmo! Em meu ódio, fiz com que o Dançarino Facial que fazia o papel de... mulher se destruísse. Ninguém... eu digo ninguém... pode possuir tal poder sobre mim!

— Que poder?

— Se tivesse sido uma dessas... uma dessas prostitutas, como as chama, eu teria obedecido a ela em tudo que ordenasse, sem questionar. — Ele estremeceu. — Quase não tive forças para... para destruir. — Sacudiu a cabeça, espantado pela lembrança. — O ódio me salvou.

Taraza tentou engolir sentindo a garganta seca.

— Como...

— Como é feito? Muito bem! Mas antes de compartilhar desse conhecimento com vocês, eu as aviso: se alguma de vocês, algum dia, tentar usar esse poder contra nós, haverá uma matança! Nós preparamos nosso Domei e toda a nossa gente para responder assassinando cada Reverenda Madre que puderem encontrar ao menor indício de que pretendem exercer esse poder sobre nós!

— Nenhuma de nós faria isso, mas não é por causa de sua ameaça. Nós somos contidas pelo conhecimento de que tal coisa nos destruiria. Seu massacre sangrento não será necessário.

— Oh, então por que isso não destrói essas... essas prostitutas?

— Mas destrói! Isso destrói tudo que elas tocam!

— Mas não me destruiu!

— Deus o protege, meu Abdl — disse Taraza. — Como ele protege a todos os fiéis.

Convencido Waff olhou à sua volta e de novo para Taraza.

— Que todos saibam que eu selo nossa união na terra do Profeta.

— Este é o modo como elas fazem... — Acenou com a mão para dois de seus Dançarinos Faciais. — Faremos uma demonstração.

Muito depois, quando Odrade se encontrava sozinha no salão da cobertura, ela se perguntou se teria sido sábio deixar Sheeana ver todo o espetáculo. Bem, por que não? Sheeana já estava decidida a se dedicar à Irmandade, e teria despertado as suspeitas de Waff mandá-la sair.

Houvera uma óbvia excitação sexual da parte de Sheeana enquanto ela assistia ao desempenho dos Dançarinos Faciais. As Inspetoras do Treinamento teriam que convocar seus assistentes masculinos mais cedo do que o normal para atenderem a Sheeana. E o que Sheeana faria então? Será que tentaria esse novo conhecimento com os homens? Era preciso criar-lhe inibições para impedir tal coisa! Devia aprender os perigos que isso representava para si mesma.

As Irmãs e acólitas presentes tinham se controlado muito bem, armazenando na memória tudo que viam. A educação de Sheeana devia ser construída em torno dessa observação. Outras dominavam tais impulsos interiores.

Os observadores Dançarinos Faciais tinham permanecido inescrutáveis, mas houvera muito a ser observado em Waff. Ele dissera que iria destruir os dois que faziam a demonstração, mas qual deles destruiria primeiro? Não iria sucumbir à tentação? Que pensamentos passavam em sua cabeça enquanto ele observava o Dançarino Facial masculino debater-se num êxtase que anulava a mente?

De certo modo, a demonstração fazia Odrade lembrar-se da dança Rakiana que tinha visto na Grande Praça de Keen. A curto prazo, a dança fora deliberadamente destituída de ritmo, mas sua progressão criava um ritmo a longo prazo que se repetia a cada 200... passos. Os dançarinos haviam ampliado seu senso de ritmo a um grau extraordinário.

Como os demonstradores Dançarinos Faciais.

“Siaynoq transformou-se numa dominação sexual para incontáveis bilhões de pessoas durante a Dispersão!”

Odrade pensou na dança, no longo ritmo seguido pela violência caótica. A gloriosa união de energias religiosas de Siaynoq tinha evoluído para um tipo diferente de união. Ela pensou na reação excitada de Sheeana ao vislumbrar a dança na Grande Praça. lembrou-se de ter perguntado a Sheeana:

— Que é que eles compartilhavam lá embaixo?

— Os dançarinos, boba!

Esse tipo de resposta não era permitida.

— Eu já lhe avisei a respeito desse tom de voz. Quer aprender imediatamente o que uma Reverenda Madre pode fazer para puni-la?

As palavras repetiam-se como mensagens fantasmagóricas na mente de Odrade enquanto ela observava a escuridão crescente fora da cobertura em Dar-es-Balat. Uma grande solidão cresceu dentro dela. Todas as outras tinham saído da sala.

“Somente o objeto da punição permanece!”

Como os olhos de Sheeana brilhavam naquela sala acima da Grande Praça, a mente tão cheia de perguntas.

— Por que vocês vivem falando em sofrimento e punição?

— Você deve aprender sobre disciplina. Como poderá controlar os outros se não for capaz de controlar a si mesma?

— Eu não gosto dessa lição.

— Nenhuma de nós a aprecia muito... até bem depois, quando aprendemos a reconhecer o seu valor através da experiência.

Como fora pretendido, essa resposta agitou-se durante muito tempo na consciência de Sheeana. No final ela revelou tudo que sabia a respeito da dança.

— Alguns dançarinos escapam. Outros vão diretamente para Shaitan. Os sacerdotes dizem que eles vão para Shai-hulud.

— E que acontece com os que sobrevivem?

— Quando se recuperam, devem unir-se numa grande dança no deserto. Se Shaitan vier, então eles morrem. Se Shaitan não vier, são recompensados.

Odrade percebera o padrão. As palavras de explicação de Sheeana não tinham sido mais necessárias além desse ponto, muito embora fosse permitido que o recital continuasse. Como a voz de Sheeana estivera marcada pela amargura!

— Eles recebem dinheiro, um ponto num bazar, esse tipo de coisa. Os sacerdotes dizem que provaram ser humanos.

— E os que fracassam não são humanos?

Sheeana permanecera em silêncio por um bom tempo, mergulhada em seus pensamentos. Mas para Odrade a origem era clara: o teste de humanidade da Irmandade! Sua própria passagem para as fileiras de uma humanidade aceitável dentro da Irmandade já fora duplicada em Sheeana. Como essa passagem parecia suave comparada com outras dores!

Na iluminação crepuscular da cobertura do museu, Odrade ergueu a mão direita e olhou para ela, lembrando-se da caixa de agonia e do gom jabbar apontado para o seu pescoço, pronto para matá-la se ela retirasse a mão ou gritasse.

Sheeana também não gritara. Mas ela já conhecia a resposta à pergunta de Odrade, muito antes de passar pela caixa de agonia.

— Eles são humanos, mas são diferentes.

Odrade falou alto no salão vazio, em meio à exposição dos tesouros da não-câmara do Tirano.

— Que foi que você fez conosco, Leto? Será que você é apenas o Shaitan falando conosco? O que vai nos forçar a compartilhar agora?

“Será que a dança fossilizada iria transformar-se em sexo fossilizado?”

— Com quem está falando, Madre?

Era a voz de Sheeana na porta aberta do outro lado do salão. Seu manto cinzento de postulante era apenas uma forma vaga, tornando-se maior à medida que ela se aproximava.

— A Madre Superiora mandou-me vir procurá-la — disse Sheeana enquanto parava junto a Odrade.

— Eu estava falando comigo mesma — disse Odrade. Olhou para a garota, estranhamente quieta, lembrando-se da excitação do momento em que a pergunta crucial fora feita a Sheeana.

— Você quer ser uma Reverenda Madre?

— Por que está falando a si mesma, Madre?

Havia um bocado de preocupação na voz de Sheeana. As Instrutoras teriam as mãos cheias na hora de remover aquelas emoções.

— Estava me lembrando de quando perguntei se desejava ser uma Reverenda Madre — respondeu Odrade. — Isso me trouxe outros pensamentos.

— Disse que eu devo seguir sua orientação em todas as coisas, não escondendo nada, sem desobedecê-la em coisa alguma.

— E você disse: “É só isso?”

— Eu não sabia muita coisa, não é? Ainda sei muito pouco.

— Nenhuma de nós sabe, criança. Exceto que estamos todas juntas em uma dança. E Shaitan certamente virá se uma de nós fracassar.

 

Quando estranhos se encontram, devem-se levar em grande conta as diferenças de costumes e de treinamento.

 

Lady Jessica,

de “A Sabedoria de Arrakis”

 

A derradeira faixa de luz esverdeada sumiu no horizonte antes que Burzmali desse o sinal para irem em frente. Estava escuro quando chegaram ao outro lado de Ysai e à estrada perimetral que os levaria ao encontro do Duncan. Nuvens cobriam o céu, refletindo a iluminação da cidade sobre as formas dos barracos urbanos por entre os quais os guias os tinham conduzido.

Esses guias preocupavam Lucilla. Saíam de ruas laterais e surgiam de portas subitamente abertas para sussurrarem novas orientações.

Gente demais sabia a respeito, do casal de fugitivos e de seu encontro!

Lucilla conseguira dominar o ódio, mas o resíduo remanescente se traduzia numa desconfiança profunda com relação a cada pessoa que eles encontravam. Ocultar isso atrás das atitudes mecânicas de uma playfêmea com seu freguês tornava-se cada vez mais difícil.

Havia uma camada de neve misturada com lama sobre a calçada, a maior parte espalhada pela passagem de carros de solo. Os pés de Lucilla ficaram gelados antes que os dois tivessem percorrido meio quilômetro e ela foi forçada a consumir energia para compensar o fluxo extra de sangue enviado às extremidades do corpo.

Burzmali caminhava em silêncio, a cabeça baixa, aparentemente perdido nas próprias preocupações. Lucilla não se deixava enganar. Ele ouvia cada som em torno deles, via cada veículo que se aproximava. Puxava-a para fora da calçada sempre que um carro se aproximava. Os carros passavam zunindo em seus suspensores e a neve suja voava, erguida pelas saias de borracha, tipo hovercraft, que envolviam os veículos, e lançada sobre a vegetação que cercava a estrada. Burzmali mantinha-a abaixada atrás dos montes de neve e do capim até se certificar de que o carro sumira de vista. Não que alguém dentro daqueles carros fosse ouvir ou ver muita coisa naquela velocidade.

Haviam caminhado por duas horas quando Burzmali parou e observou o caminho adiante. Seu destino era uma comunidade periférica, que lhes haviam descrito como sendo “totalmente segura”. Lucilla, contudo, não se iludia. Nenhum lugar em Gammu seria totalmente seguro.

Luzes amareladas lançavam um brilho nas nuvens adiante, marcando o local da comunidade. O avanço conduziu-os através de um túnel sob a estrada perimetral e subindo uma colina baixa, plantada com algum tipo de bosque. Os ramos pareciam nus e secos à luz crepuscular.

Lucilla olhou para cima e viu que as nuvens começavam a se dissipar. Gammu tinha muitas luas pequenas — não-naves fortalezas. Algumas delas tinham sido instaladas por Teg, mas ela vislumbrava alguns grupos novos compartilhando do papel de guardiãs. Pareciam brilhar quatro vezes mais que as estrelas mais luminosas e freqüentemente viajavam juntas, o que tornava sua luz refletida útil, embora errática, já que elas se moviam muito depressa — atingiam o zênite e mergulhavam no horizonte em algumas horas apenas. Lucilla viu um cordão de seis dessas luas através de uma abertura nas nuvens, perguntando-se se seriam parte do sistema defensivo de Teg.

Momentaneamente, ela refletiu sobre a fraqueza inerente à mentalidade de sitiado representada por tais defesas. Teg estivera certo a respeito delas. Mobilidade, essa era a chave do êxito militar, mas ela duvidava de que ele com isso quisesse dizer mobilidade a pé.

Não havia esconderijos fáceis nessa colina coberta de neve, e Lucilla sentia o nervosismo de Burzmali. Que poderiam fazer ali se viesse alguém? Uma depressão coberta de neve descia do lugar onde se encontravam até a comunidade lá embaixo. Não era uma estrada, mas ela achou que podia ser uma trilha.

— Vamos descer por este caminho — disse Burzmali, conduzindo-a pela depressão.

Afundaram na neve até os tornozelos.

— Espero que essa gente seja confiável — comentou Lucilla.

— Eles odeiam as Honradas Madres. Isso é o bastante para mim.

— É melhor que o ghola esteja aqui! — Lucilla conteve uma resposta ainda mais furiosa, mas não deixou de acrescentar: — O ódio deles não é o bastante para mim.

Seria melhor esperar pelo pior, pensou ela.

No entanto passara a encarar Burzmali de um modo tranquilizador. Ele era como Teg. Nenhum deles seguia um curso de ação que pudesse conduzi-los a um beco sem saída — não se o pudessem evitar. Ela suspeitava de que houvesse forças de apoio escondidas no capim em torno deles agora mesmo.

A trilha coberta de neve terminou num caminho pavimentado que se curvava para dentro a partir das bordas e era mantido livre da neve por um sistema de aquecimento. Havia um fio de umidade escorrendo no centro. Lucila deu vários passos sobre aquela via antes de reconhecer o que devia ser... uma magcalha. Era um antigo sistema de transporte magnético que servira para o transporte de matérias-primas ou mercadorias para fábricas nos dias anteriores à Dispersão.

— Vai ficando mais íngreme — advertiu Burzmali. — Eles esculpiram degraus sobre a superfície, mas é melhor ter cuidado. Eles não são muito profundos.

Daí a pouco eles alcançaram o final da magcalha. Terminava numa parede em ruínas — tijolos sobre um alicerce de plasteel. A luz fraca das estrelas num céu que clareava revelou o modo tosco como os tijolos tinham sido feitos — típica construção dos Tempos da Fome. A parede era uma massa de trepadeiras e manchas de fungo. Mas a vegetação não conseguia ocultar as fendas nos tijolos e os esforços frustrados de preencher rachaduras com argamassa. Uma única fila de janelas estreitas abria-se sobre o local onde a magcalha desembocava numa massa de trepadeiras e arbustos. Três das janelas brilhavam com uma iluminação azul-elétrica, enquanto sons de atividade nó interior eram acompanhados por fracos estalidos.

— Isto era uma fábrica antigamente — disse Burzmali.

— Tenho olhos e memória — retrucou Lucilla.

Será que este macho resmungante a julgava totalmente desprovida de inteligência?

Alguma coisa estalou à sua esquerda. Um trecho de gramado e ervas ergueu-se do topo de um alçapão, acompanhado pelo brilho interior de uma forte luz amarela.

— Rápido!

Burzmali conduziu-a em rápida carreira pela vegetação espessa e eles desceram o lance de degraus revelado pela abertura do alçapão. A abertura fechou-se atrás deles com um ruído de máquinas.

Lucilla viu-se num amplo espaço com teto baixo. A luz provinha de fileiras compridas de modernos globos luminosos, suspensos de vigas maciças de plasteel. O piso estava limpo, mas mostrava arranhões e denteados produzidos por alguma atividade — sem dúvida os locais das máquinas que tinham sido retiradas. Ela percebeu um movimento do outro lado do espaço aberto. Uma jovem usando uma versão do manto de dragão de Lucilla caminhou ao encontro deles.

Lucilla cheirou. Havia um fedor de ácido nesse lugar, com resíduos do odor de alguma coisa estragada.

— Isto era uma fábrica Harkonnen  disse Burzmali. — Eu me pergunto o que será que eles fabricavam aqui.

A jovem parou diante de Lucilla. Era uma figura esguia, elegante nas formas e nos movimentos vislumbrados sob o manto justo. Um brilho subcutâneo provinha de sua face, revelando boa saúde e a prática de exercícios. Seus olhos verdes, contudo, eram duros e arrepiantes no modo como avaliavam tudo que viam.

— Então elas mandaram mais de uma de nós para vigiar este lugar — ela disse.

Lucilla colocou a mão sobre o braço de Burzmali, contendo-o antes que ele respondesse. Essa mulher não era o que parecia. “Não mais do que eu sou!” Lucilla escolheu as palavras com cuidado.

— Nós sempre nos reconhecemos, parece.

A jovem sorriu.

— Eu a observei quando se aproximava. Não podia acreditar no que via. — Olhou com desdém para Burzmali. — Esse aí devia ser um freguês seu?

— E guia — disse Lucilla.

Ela notou a expressão intrigada no rosto de Burzmali e rezou para que ele não fizesse a pergunta errada. Essa moça era um perigo.

— Não estávamos sendo esperados? — perguntou Burzmali.

— Ah, isso fala — disse a jovem, rindo.

Seu riso era tão frio quanto seus olhos.

— Prefiro que não se refiram a mim como “isso” — disse Burzmali.

— Eu chamo a escória de Gammu do que eu quiser — disse a garota. — Não me fale de suas preferências.

— De que me chamou?

Burzmali estava cansado e sua raiva ferveu ante esta ofensa inesperada.

— Eu o chamo do que quiser, escória!

Burzmali tinha sofrido o bastante. Antes que Lucilla pudesse detê-lo, soltou um grunhido e tentou esbofetear violentamente a jovem.

Mas não conseguiu.

Lucilla observou fascinada enquanto a garota se esquivava do ataque, pegava Burzmali pela manga como se pega um pedaço de pano flutuando ao vento e, numa pirueta cuja velocidade quase ocultou sua delicadeza de movimentos, o lançava escorregando pelo piso. Depois a garota se agachou sobre uma das pernas, a outra pronta para um chute.

— Devo matá-lo agora — ela disse.

Lucilla, não sabendo o que poderia acontecer em seguida, curvou o corpo para o lado, evitando por pouco o pontapé da garota, e contra atacou com um golpe Bene Gesserit padrão que fez a jovem cair de costas, toda curvada sobre o abdômen, onde o impacto do golpe se fizera sentir.

— A idéia de que possa matar meu guia não é bem-vinda, qualquer que seja o seu nome — disse Lucilla.

Sem fôlego, a jovem afinal conseguiu falar espaçadamente:

— Eu me chamo Murbella, Grande Honrada Madre. A senhora me envergonha derrubando-me com um golpe tão lento. Por que fez isso?

— Você  precisava de uma lição.

— Recebi meu manto há pouco tempo, Grande Honrada Madre. Por favor, perdoe-me. Eu lhe agradeço pela esplêndida lição e vou lhe agradecer todas as vezes em que empregar essa sua resposta, que guardarei em minha memória.

Ela curvou a cabeça e então se colocou de pé rapidamente, com um sorriso travesso no rosto.

Com sua voz mais fria, Lucilla perguntou:

— Sabe quem eu sou?

Com o canto dos olhos ela viu Burzmali colocar-se de pé com dolorosa lentidão. Ele ficou afastado, observando as duas mulheres, com um ódio visível no rosto.

— Por sua habilidade em me ensinar essa lição, posso ver quem é a senhora, Grande Honrada Madre. Estou perdoada?

O sorriso travesso tinha desaparecido do rosto de Murbella. Ela ficou com a cabeça curvada.

— Está perdoada. Há uma não-nave a caminho?

— Assim dizem. Estamos preparadas para ela.

Murbella olhou para Burzmali.

— Ele ainda me é útil e é necessário que me acompanhe — explicou Lucilla.

— Muito bem, Grande Honrada Madre. Seu perdão inclui a menção do seu nome?

— Não!

Murbella suspirou.

— Nós capturamos o ghola — ela disse. — Ele veio pelo sul disfarçado de Tleilaxu. Eu estava a ponto de me deitar com ele quando chegou.

Burzmali caminhou trôpego em direção a elas. Lucilla notou que ele reconhecera o perigo. Este lugar “totalmente seguro” estava infestado de inimigos! Mas os inimigos ainda sabiam muito pouco.

— O ghola não foi ferido? — perguntou Burzmali.

— Isso ainda fala — comentou Murbella. — Que estranho.

— Você não vai se deitar com o ghola — disse Lucilla. — Essa é minha tarefa especial!

— Eu o peguei, Grande Honrada Madre. E o marquei primeiro. Ele já está parcialmente dominado.

Ela riu uma vez mais, com um descaso frio que chocou Lucilla.

— Venham por aqui. Há um lugar de onde poderão observar.

 

Que vocês possam morrer em Caladan!

 

— Antigo Brinde

 

Duncan tentou lembrar-se de onde estava. Sabia que Tormsa estava morto. Tinha visto o sangue esguichar dos olhos dele. Sim, lembrava-se disso claramente. Eles tinham entrado num prédio escuro e de repente a luz se acendera em volta deles. Duncan sentira uma dor na nunca. Um golpe? Tentou mexer-se e os músculos se recusaram a obedecer.

Lembrava-se de estar sentado à beira de um grande gramado. Estavam jogando um tipo de boliche — bolas esquisitas que saltavam e corriam sem qualquer propósito aparente. Os jogadores eram jovens usando trajes comuns em Giedi Prime!

— Eles estão praticando para serem adultos — dissera ele.

Lembrava-se de ter dito isso.

Sua companhia, uma jovem, olhara para ele sem entender.

— Somente adultos praticam esses jogos ao ar livre — ele explicara.

— É?

Era uma pergunta que não se respondia. Ela demonstrou isso com o mais simples dos gestos verbais.

“E me entregou aos Harkonnen no instante seguinte!”

Então essa era uma memória pré-ghola.

“Ghola!”

Lembrava-se do Castelo da Bene Gesserit em Gammu. A biblioteca: holofotos e trifotos do Duque Atreides, Leto I. A semelhança com Teg não era acidental: um pouco mais alto, mas sob outros aspectos estava tudo ali — o rosto magro e comprido com o nariz fino, o renovado carisma dos Atreides...

Lembrou-se do último gesto galante do velho Bashar na noite de Gammu.

“Onde estou?”

Tormsa o trouxera para cá. Tinham andado por uma trilha coberta de vegetação nos arredores de Ysai. “Barony”. Começara a nevar antes que tivessem avançado 200 metros e a neve úmida grudava-se neles. Neve fria e miserável, que deixou seus dentes batendo em questão de um minuto. Pararam para colocar os capuzes e fechar as jaquetas isoladas. Assim era melhor. Mas ia escurecer logo. Ficaria muito mais frio.

— Existe uma espécie de abrigo adiante — explicara Tormsa. — Vamos passar a noite lá.

Como Duncan não falasse, Tormsa acrescentou:

— Não vai ser quente, mas pelo menos estará seco.

Trezentos passos depois, Duncan viu a silhueta escura do lugar. Erguia-se sobre a neve suja com dois andares de altura. Reconheceu imediatamente: posto de contagem dos Harkonnen. Observadores ali postados tinham a responsabilidade de contar (e às vezes assassinar) as pessoas que passavam. Era feito de terra nativa transformada num gigantesco tijolo através do expediente simples de pré-moldá-la em lama e depois superaquecê-la com um queimador do tipo que os Harkonnen usavam para controlar motins.

Na medida em que se aproximavam, Duncan viu o que restara de uma completa tela defensiva com aberturas de lança-chamas apontadas para quem se aproximasse. Alguém destruíra esse sistema muito tempo atrás. Buracos rasgados na rede do campo estavam ocupados por arbustos. Mas as aberturas dos lança-chamas permaneciam abertas. Ah, sim... para dar às pessoas lá dentro uma visão de quem se aproximas-se.

Tormsa parou e ouviu, observando as cercanias com cuidado.

Duncan olhava para a estação de contagem. Lembrava-se dela muito bem. O que o confrontava era uma coisa que tinha brotado como uma vegetação deformada a partir de uma semente tubular original. A superfície fora cozinhada para produzir um acabamento vítreo. Verrugas e protuberâncias revelavam os pontos onde fora superaquecida. A erosão das eras deixara finos arranhões, mas a forma original permanecia. Ele olhou para cima e identificou parte do velho sistema de suspensores elevadores. Alguém tinha adaptado um guincho e uma roldana ao exterior.

Então a abertura da tela do campo era recente.

Tormsa desapareceu na abertura.

Como se um botão tivesse sido acionado, a visão na memória de Duncan modificou-se. Encontrava-se na biblioteca do não-globo junto com Teg. O projetor estava produzindo uma série de vistas da moderna Ysai. A idéia de moderno soava-lhe de modo curioso. Baronja tinha sido uma cidade moderna, considerando-se moderno algo tecnologicamente eficiente de acordo com as normas de sua época. Dependia exclusivamente de feixes suspensores para o transporte de gente e materiais — tudo a grande altura. Não havia entradas no nível do solo. Ele estava explicando tudo isso para Teg.

O projeto traduzira-se numa cidade que usava cada possível metro quadrado de espaço horizontal e vertical para outras coisas que não o movimento de pessoas e bens de consumo. As aberturas para os feixes suspensores exigiam apenas o espaço suficiente para os ombros e as cabeças dentro dos casulos de transporte tipo universal.

Teg disse:

— A forma ideal é a cilíndrica, com teto chato para o pouso dos tópteros.

— Os Harkonnen preferiam quadrados e retângulos. Isso era verdade.

Duncan lembrava-se de que Baronja tivera uma paisagem aberta e desimpedida que o fizera estremecer. Os trilhos dos suspensores percorriam-na como buracos de vermes — retos, curvos, dobrando-se em ângulos oblíquos... para cima, para baixo, para os lados. Exceto pela forma retangular imposta pelos Harkonnen, Baronja fora construída dentro de um critério voltado para o máximo alojamento de população: abrigar o máximo com o mínimo gasto de materiais.

— As coberturas planas eram os únicos espaços voltados para o bem-estar humano naquele maldito lugar! — lembrava-se de ter dito a Teg e Lucilla.

Lá em cima ficavam os apartamentos de cobertura, com estações de guarda em todas as extremidades, nas plataformas de tópteros, em todas as entradas que davam para a parte de baixo, em torno de todos os parques. Assim as pessoas que viviam nos topos dos prédios podiam ignorar a massa humana vivendo espremida logo abaixo delas. Não se permitia que qualquer ruído ou cheiro dessa confusão de carne apertada chegasse lá em cima. Os servos eram obrigados a se lavar e vestir roupas limpas antes de entrar no mundo superior.

Teg tinha uma pergunta:

— Por que essa massa humana aglomerada e comprimida aceitava viver nessas condições?

A resposta era óbvia e ele explicou. Viver fora da cidade era perigoso. E os governantes da cidade faziam parecer ainda mais perigoso do que realmente era. Além disso, poucos lá dentro sabiam alguma coisa a respeito de uma vida melhor lá fora. A única vida melhor que conheciam estava no alto. E o único caminho para o alto era o da mais total servidão.

“Vai acontecer e não há nada que você possa fazer a esse respeito!” Era outra voz ecoando dentro do Crânio de Duncan. Ele a ouvia claramente.

“Paul!”

Como era estranho, pensou. Havia uma arrogância nos prescientes que lembravam a arrogância de um Mentat apoiando-se em sua lógica mais frágil.

“Eu nunca tinha pensado em Paul como arrogante”

Duncan olhou para o próprio rosto no espelho. Percebeu com parte de sua mente que esta era uma memória pré-ghola. De repente estava olhando para outro espelho, seu próprio rosto de certa forma diferente. Aquele rosto escuro e redondo começava a tomar as formas mais angulosas do amadurecimento. Olhou para os próprios olhos. Sim, aqueles eram seus olhos. Tinha ouvido alguém defini-los certa vez como profundos. Estavam fundamente alojados embaixo das sobrancelhas e protegidos por faces estufadas. Tinham lhe dito também que era difícil determinar se seus olhos eram azuis-escuros ou cinza-escuros, a menos que a iluminação fosse ótima.

Uma mulher dissera isso. Não conseguia lembrar que mulher fora.

Tentou estender as mãos e tocar o próprio cabelo, mas as mãos não lhe obedeciam. Lembrou-se então de que seus cabelos tinham sido descorados. Quem fizera isso? Uma velha. Seu cabelo não era mais uma touca de caracóis escuros.

Lá estava o Duque Leto olhando para ele da porta da sala de jantar em Caladan.

— Nós vamos comer agora — dissera o Duque.

Era uma ordem real que deixava de parecer arrogante devido ao sorriso franco que dizia implicitamente: “Alguém tinha que dizer isso”

“Que está acontecendo com a minha mente?”

Lembrava-se de ter seguido Tormsa até um lugar onde ele dissera que uma não-nave desceria para encontrá-los.

Era um prédio volumoso dentro da noite, com várias construções menores abaixo da maior. Elas pareciam estar ocupadas. Vozes e sons mecânicos podiam ser ouvidos, vindos de dentro delas. Mas nenhum rosto apareceu nas janelas estreitas. Nenhuma porta se abriu. Duncan sentiu cheiro de comida sendo preparada ao passar pela maior das pequenas construções. Isso recordou-lhe que só tinham comido tiras secas de um material coriáceo que Tormsa chamara de “comida de virgem”

Entraram no prédio escuro.

As luzes se acenderam.

Os olhos de Tormsa explodiram em sangue.

Escuridão.

Duncan olhava para um rosto de mulher. Tinha visto um rosto como esse antes: um único segmento tridimensional tirado de uma seqüência holográfica mais longa. Onde estaria? Onde teria visto essa imagem?

Era um rosto quase oval, com um pequeno alargamento na testa prejudicando sua perfeição curva.

Ela disse:

— Meu nome é Murbella. Você não vai se lembrar disto, mas eu digo agora enquanto o marco. Eu o selecionei.

“Eu me lembro de você, Murbella”

Olhos verdes, bem separados sob sobrancelhas arqueadas, davam às feições dela um ponto focal que deixava o queixo e a boca pequena para serem observados depois. Os lábios eram grossos e ele sabia que formariam um beicinho quando em repouso.

Os olhos verdes olhavam bem nos seus olhos. Que olhar frio. E o poder que havia nele.

Alguma coisa tocou sua face.

Ele abriu os olhos. Isso não era memória! Estava acontecendo com ele, e acontecendo agora!

“Murbella!” Ela havia estado ali e o tinha deixado. Agora estava de volta. Lembrava-se de ter acordado nu em cima de uma superfície macia... um leito. Suas mãos reconheceram isso. Murbella, despida, estava bem em cima dele, olhos verdes fitando-o com terrível intensidade. Ela o tocava simultaneamente em vários locais. Um suave murmúrio escapava de entre seus lábios.

Sentiu a rápida ereção, dolorosa em sua rigidez.

Nenhuma força de resistência permanecia nele. As mãos dela moviam-se sobre seu corpo. A língua, e o murmúrio! Tudo à volta dele, a boca tocando-o, os mamilos esfregando-se em sua face, em seu peito. E quando tornou a ver os olhos dela percebeu neles uma intenção consciente.

Murbella tinha retornado e estava fazendo aquilo novamente!

Acima do ombro direito dela, percebeu uma ampla janela de plaz, Lucilla e Burzmali observavam de trás da barreira. “Um sonho?” Burzmali pressionava as palmas das mãos contra o plaz. Lucilla permanecia de braços cruzados, uma expressão de ódio misturado com curiosidade em seu rosto.

Murbella murmurou em seu ouvido direito:

— Minhas mãos são fogo.

O corpo dela ocultou os rostos atrás do plaz. Ele sentia o fogo onde quer que ela o tocasse.

De repente a chama engolfou sua mente. Lugares ocultos dentro dela se tornaram vividos. Ele viu cápsulas vermelhas, como cordões de salsichas brilhantes, passarem diante de seus olhos. Sentiu-se febril. Era uma cápsula que havia sido engolida, a excitação queimando através de sua consciência. Aquelas cápsulas! Ele as conhecia! Elas eram ele mesmo... elas eram...

Todos os Duncan Idahos, o original e a série de gholas, fluíram em sua mente. Eles eram como cápsulas de sementes estourando, negando a existência de todos os outros, exceto de si mesmos. Ele se viu esmagado debaixo de um grande verme com rosto humano.

“Maldito seja, Leto!”

Esmagado, esmagado e esmagado... várias vezes.

“Maldito seja! Maldito seja! Maldito seja!”

Ele morrera sob a espada de uma Sardaukar. A dor explodiu num clarão engolido, logo em seguida, pela escuridão.

Ele morria na queda de um tóptero. Morria pela faca de uma assassina Oradora Peixe. Morria, morria e morria.

E vivia.

As memórias inundaram-no até ele admirar-se com o modo como podia conter todas elas. O encanto de uma filha recém-nascida aninhada em seus braços. Os odores almiscarados de uma companheira apaixonada. A cascata de sabores do vinho Daniano. O cansaço ofegante dos exercícios de solo.

“Os tanques axlotl!”

Lembrava-se nascendo vez após vez: luzes brilhantes e mãos mecânicas acolchoadas. Mãos faziam-no girar e, na visão desfocada de um recém-nascido, ele via um grande monte de carne feminina — monstruoso em seu enorme volume quase imóvel... um labirinto de tubos escuros ligando o corpo dela a imensos containers de metal.

“Tanque axlotl?”

Respirou ofegante sob o domínio da série de memórias que o inundava. “Todas aquelas vidas! Todas aquelas vidas!”

Agora se lembrava do que os Tleilaxu tinham plantado nele, a consciência submersa que separava apenas o momento de sedução por uma impressora Bene Gesserit.

Mas essa era Murbella e ela não era Bene Gesserit.

Mas ela estava pronta, ao seu alcance, e o padrão implantado pelos Tleilaxu dominou suas reações.

Duncan murmurou suavemente e a tocou, movendo-se com uma agilidade que chocou Murbella. “Ele não devia ser tão cooperativo! Não desse modo!” A mão direita de Duncan roçou os lábios da vagina, enquanto a mão esquerda acariciava a base da espinha de Murbella. Ao mesmo tempo a boca moveu-se suavemente sobre o nariz dela, descendo para os lábios, pela depressão da axila do braço esquerdo.

E todo o tempo ele murmurava suavemente num ritmo que pulsava pelo corpo dela, atraindo-a... enfraquecendo-a.

Ela tentou desprender-se dele enquanto ele aumentava o ritmo de suas respostas.

“Como ele sabia que devia tocar-me nesse ponto naquele instante exato? E aqui? E ali? Oh, pela Rocha Sagrada de Dur! Como ele sabe tudo isso?”

Duncan reparou em como os seios dela se inchavam, e no congestionamento de seu nariz. Notou os mamilos rígidos, as aréolas escurecendo-se em torno deles. Murbella gemeu e abriu as pernas.

“Grande Madre, me ajude!”

Mas a única Grande Madre de que ela podia recordar-se estava trancada em segurança na outra sala, impedida de ajudá-la por uma porta aferrolhada e uma barreira de plaz.

Uma energia desesperada fluiu através de Murbella e ela respondeu do único jeito que sabia: tocando, acariciando — usando todas as técnicas que aprendera com tanta diligência nos longos anos de seu aprendizado.

E a cada movimento seu o Duncan respondia com um contramovimento loucamente estimulante.

Murbella descobriu que não era mais capaz de controlar todas as suas respostas. Reagia automaticamente a partir de algum conhecimento entranhando em seu treinamento. Sentiu os músculos vaginais enrijecerem-se, a rápida liberação do fluido lubrificante. Quando Duncan a penetrou, ela ouviu a si mesma gemendo. Seus braços, suas mãos, suas pernas, todo o seu corpo se agitava sob o controle dos dois sistemas de reação: a automação bem-treinada e a consciência profunda de outras demandas.

“Como ele fez isso comigo?”

Ondas de contrações extáticas começaram a alisar a musculatura de seu pélvis. Ela sentiu a resposta imediata dele, a pancada de sua ejaculação. Isso acelerou suas próprias reações. As pulsações do êxtase partindo das contrações de sua vagina... para fora... para fora. O êxtase engolfou todo o seu sistema sensorial. Ela viu um brilho branco propagar-se sobre suas pálpebras, cada músculo de seu corpo tremendo num êxtase que ela não imaginava pudesse sentir.

E outra vez aquelas ondas se espalhando.

Outra e outra vez.

Perdeu a conta das repetições.

Quando Duncan gemia, ela gemia também, e as ondas se propagavam uma vez mais.

E de novo...

Não havia mais sensação do tempo ou do ambiente ao redor, somente o mergulho naquele orgasmo infinito.

Ela queria que durasse para sempre e queria que parasse. Isso não devia estar acontecendo com uma mulher! Uma Honrada Madre não pode experimentar uma coisa dessas. Essas eram as sensações pelas quais os homens eram governados.

Duncan emergiu do padrão de reações que fora implantado nele. Havia outra coisa que devia fazer. Não conseguia lembrar-se do que era.

“Lucilla?”

Ele a imaginou morta diante de si. Mas essa mulher não era Lucilla; essa era... essa era Murbella.

Restavam-lhe muito poucas forças. Levantou-se, separando-se de Murbella, e conseguiu ficar de joelhos. Suas mãos tremiam numa agitação que ele não era capaz de compreender.

Murbella tentou afastar Duncan de si e não o encontrou. Os olhos dela se abriram.

Duncan estava ajoelhado em cima dela. Ela não tinha mais idéia de quanto tempo se passara. Tentou reunir energias para se levantar e não conseguiu. Lentamente o raciocínio voltou.

Olhou nos olhos de Duncan, sabendo agora quem devia ser esse homem. Homem? Era apenas um rapazinho. Mas tinha feito coisas... coisas... Todas as Honradas Madres tinham sido advertidas. Havia um ghola armado com conhecimentos proibidos pelos Tleilaxu. Esse ghola devia ser morto!

Uma pequena descarga de energia fluiu em seus músculos. Ela conseguiu erguer-se sobre os cotovelos. Ofegante, procurando recuperar o fôlego, Murbella tentou rolar para longe dele e caiu de volta sobre aquela superfície macia.

Pela Rocha Sagrada de Dur! Esse homem não podia continuar vivendo! Ele era um ghola e podia fazer coisas permitidas apenas às Honradas Madres. Ela queria golpeá-lo e ao mesmo tempo queria puxá-lo de volta sobre seu corpo. “O êxtase!” Sabia que faria qualquer coisa que ele lhe pedisse nesse momento. Faria por ele.

“Não! Devo matá-lo!”

Uma vez mais Murbella se ergueu sobre os cotovelos e daí conseguiu sentar-se. Sua visão enfraquecida voltou-se para a janela onde ela tinha deixado confinados a Grande Honrada Madre e seu guia. Eles ainda estavam lá, olhando para ela. O rosto do homem estava avermelhado. O rosto da Grande Honrada Madre continuava tão imutável quanto a própria Rocha de Dur.

“Como ela pode ficar lá depois do que viu aqui? A Grande Honrada Madre precisa matar este ghola!”

Murbella chamou a mulher atrás da janela de plaz e rolou em direção à porta trancada ao lado do leito. Quase não teve forças para destrancar a porta e abri-la antes de cair de costas. Seus olhos voltaram-se para o jovem ajoelhado. Gotas de suor brilhavam no corpo dele. Em seu corpo lindo...

“Não!”

O desespero a fez tentar levantar-se de novo. Ficou de joelhos e então, impulsionada pela pura força de vontade, Murbella ficou de pé. As forças voltavam, mas as pernas tremiam enquanto ela cambaleava em torno do leito.

“Eu vou fazer, eu mesma, sem pensar. Tenho que fazê-lo!”

O corpo dela oscilava de um lado para o outro. Murbella tentou firmar-se pelo tempo suficiente e acertar um golpe no pescoço dele. Conhecia este golpe de suas longas horas de prática. Ele esmagaria a laringe e a vítima morreria asfixiada.

Duncan evitou o golpe com facilidade, mas ele era lento... lento. Murbella quase caiu ao lado dele, mas as mãos da Grande Honrada Madre a salvaram.

— Mate-o! — disse Murbella, ofegante. — É aquele sobre quem nos avisaram. É ele!

Murbella sentiu mãos sobre seu pescoço, os dedos pressionando violentamente os feixes nervosos sob suas orelhas.

E a última coisa que Murbella ouviu antes da inconsciência foi a Grande Honrada Madre dizendo:

— Não vamos matar ninguém. Este ghola vai para Rakis.

 

A pior competição em potencial para qualquer organismo vem dos membros de sua própria espécie. As espécies consomem necessidades. Seu crescimento é limitado pela necessidade que existir em menor quantidade. A condição menos favorável controla a taxa de crescimento. (Lei do Mínimo.)

 

— De “Lições de Arrakis”

O prédio erguia-se em uma larga avenida por trás de uma fileira de árvores e sebes floridas, muito bem cuidadas. As sebes tinham sido plantadas segundo um padrão de labirinto, com postes brancos da altura de um homem para definir as áreas plantadas. Nenhum veículo entrando ou saindo poderia acelerar além de um lento rastejar. A mente militar de Teg percebeu tudo isso enquanto o carro de solo blindado o levava até a porta. O Marechal-de-Campo Muzzafar, único ocupante além dele no banco de trás do carro, reconheceu a avaliação de Teg e disse:

— Estamos protegidos do alto por um sistema de feixes de flanco.

Um soldado em uniforme camuflado e com uma longa arma laser pendendo do ombro abriu a porta e ficou em posição de sentido quando Muzzafar saiu.

Teg o seguiu. Reconhecia esse lugar. Era um dos endereços “seguros” que a Segurança da Bene Gesserit lhe havia fornecido. Obviamente os dados da Irmandade estavam desatualizados. Recentemente desatualizados, pois Muzzafar não aparentou ter consciência de que Teg já pudesse conhecer esse local.

Enquanto andavam em direção à porta, Teg notou outro sistema de proteção que já existia em sua viagem de inspeção por Ysai. Era uma diferença de altura, quase indistinta, nos postes ao longo das sebes e das árvores. Esses postes eram escanalisadores operados de uma sala em algum lugar do interior do prédio. Seus dispositivos em forma de diamante sentiam a área entre eles e o prédio. E ao suave toque de um botão na sala de vigília escanalisadores reduziriam a pedacinhos qualquer coisa viva que cruzasse seus campos.

Na porta, Muzzafar parou e olhou para Teg.

— A Honrada Madre que está a ponto de conhecer é a mais poderosa de todas as que vieram para cá. Ela não tolera outra coisa senão a mais completa obediência.

— Parece-me uma advertência.

— Acho que compreende. Chame-a de Honrada Madre e de nada mais. Vamos entrar. Tomei a liberdade de mandar prepararem um novo uniforme para você.

A sala para onde Muzzafar o levou não tinha sido vista por Teg em sua visita anterior. Era pequena e cheia de caixas negras tiquetaqueantes, deixando pouco espaço para eles dois. Um único globo luminoso amarelo, no teto, iluminava esse lugar. Muzzafar ficou num canto enquanto Teg tirava o macacão sujo e amassado que usava desde o não-globo.

— Sinto não poder oferecer-lhe um banho — disse Muzzafar. — Mas não podemos atrasar-nos. Ela ficaria impaciente.

Uma personalidade diferente tomou conta de Teg com o uniforme novo. Era um traje negro familiar, até mesmo com os asteriscos na gola. Isso significava que ele devia aparecer diante dessa Honrada Madre como o Bashar da Irmandade. Interessante. Sentia-se plenamente Bashar de novo. Não que o poderoso senso de identidade lhe houvesse escapado. O uniforme apenas o completava e o anunciava bem alto. Nesse traje, não havia necessidade de enfatizar de qualquer outro modo quem era ele.

— Assim está melhor — disse Muzzafar, enquanto conduzia Teg para o corredor de entrada e através de uma porta de que ele se lembrava.

Sim, fora ali que se encontrara com seus contatos “seguros”. Tinha reconhecido a função da sala então e nada parecia ter mudado. Filas de microscópicos olhos eletrônicos guarneciam a interseção entre o teto e as paredes, disfarçados como tiras prateadas para guiar os globos luminosos flutuantes.

“Aquele que vigia não é visto”, pensou Teg. “E os vigias possuem um bilhão de olhos.”

Sua dupla visão revelou que havia perigo nesse lugar; mas nenhuma violência imediata.

Essas sala, com cinco metros de comprimento por quatro de largura, era um lugar para negociações de alto nível. Ali nunca havia troca de dinheiro vivo. As pessoas viam apenas os equivalentes portáteis da riqueza — melange talvez, ou leitosas pedras suaves do tamanho de um globo ocular, perfeitamente redondas e ao mesmo tempo macias e lustrosas, irradiando um arco-íris onde quer que a luz caisse sobre elas ou a carne as tocasse. Esse era um lugar onde um danikin de melange ou um saquinho de pedras suaves seria aceito como moeda. O preço de um planeta podia ser negociado com apenas um aceno da cabeça, um piscar de olho ou um murmúrio em voz baixa. Nenhuma carteira de notas jamais apareceria nesse lugar. A coisa mais próxima de moeda corrente poderia ser uma fina caixa de translux de cujo interior, protegido por veneno, sairiam finas folhas de cristal riduliano com grandes números inscritos nelas com impressão de que não se poderia falsificar.

— Isto é um banco — disse Teg.

— O quê? — Muzzafar estivera olhando para a porta fechada na parede oposta. — Oh sim, ela vai chegar dentro em breve.

— Ela está nos observando agora mesmo, é claro.

Muzzafar não respondeu, mas pareceu melancólico.

Teg olhou em volta. Será que alguma coisa tinha mudado desde a sua última visita? Não percebia qualquer alteração significativa. Perguntou-se se abrigos como esse tinham sofrido muitas modificações através das eras. Ali estava o carpete de orvalho no chão, tão macio quanto a plumagem inferior de um ganso e tão branco quanto o ventre de uma baleia. Refletia um falso senso de umidade que somente os olhos detectavam. Um pé descalço (não que esse lugar jamais tivesse visto um pé descalço) iria sentir uma secura acariciante.

Havia uma mesa estreita, com dois metros de comprimento, quase no centro da sala. O topo tinha quase 20 milímetros de espessura e Teg supôs que fosse de jacarandá Daniano. A superfície marrom-escura fora polida até adquirir um lustro que atraía o olhar, revelando por baixo veios semelhantes a correntes em um rio. Havia quatro cadeiras de recosto alto em torno da mesa, todas feitas do mesmo tipo de madeira trabalhada por um mestre artesão e estofadas no assento e no recosto com couro de lyr do mesmo tom da madeira envernizada.

Somente quatro cadeiras. Mais seria exagerado. Ele não tentara sentar-se em uma das cadeiras antes e não tentou agora, mas sabia que deviam ser bem confortáveis — quase tanto como uma desprezível cadeira-cão, mas não com o mesmo grau de suavidade e conformidade com o corpo, é claro. Muito conforto levaria ao relaxamento e essa sala, com sua mobília, dizia: “Fique confortável, mas permaneça alerta.”

Não é preciso apenas manter o bom senso num lugar como esse. Deve-se também dispor de um grande potencial de violência, pensou Teg. Chegara a essa conclusão anteriormente e sua opinião não mudara.

Não havia janelas, mas aquelas que ele tinha visto do exterior tremulavam com fios de luz — barreiras energéticas para repelir intrusos e evitar fugas. Tais barreiras, contudo, acarretavam seus próprios perigos, bem o sabia Teg, mas as implicações eram importantes. Só para manter o fluxo de energia era necessária uma força suficiente para iluminar uma grande cidade por todo o tempo de vida de seu morador mais idoso.

E não havia nada casual nessa exibição de riqueza.

A porta para a qual Muzzafar estava olhando abriu-se com um suave estalido.

“Perigo!”

Uma mulher usando um manto dourado brilhante entrou na sala. Fios de luz vermelho-alaranjada ondulavam no tecido.

“Ela é velha!”

Teg não esperava que a mulher fosse tão velha. Seu rosto era uma máscara enrugada. Os olhos eram profundos, verdes e gélidos, o nariz formava um bico alongado cuja sombra caía sobre os lábios finos e repetia o ângulo pronunciado do queixo. Uma touca negra cobria quase todo o seu cabelo grisalho.

Muzzafar curvou-se.

— Deixe-nos — ela disse.

Muzzafar saiu sem dizer uma palavra, usando a mesma porta pela qual tinha entrado. Quando a porta se fechou atrás dele, Teg disse:

— Honrada Madre.

— Então você reconhece este lugar como sendo um banco.

A voz dela tinha apenas um leve tremor.

— É claro.

— Existem sempre modos pelos quais se pode transferir grandes somas ou vender o poder — ela disse. — Não falo do poder que dirige as fábricas, mas do poder que governa as pessoas.

— E que geralmente recebe os estranhos nomes de governo, sociedade ou civilização — disse Teg.

— Eu suspeitava de que você devia ser muito inteligente — ela disse. Puxou uma cadeira e se sentou, mas não fez sinal para Teg fazer o mesmo. — Costumo pensar em mim mesma como uma banqueira. Poupa um bocado de subterfúgios aborrecidos.

Teg não respondeu. Parecia não haver necessidade. Continuou a observá-la.

— Por que está olhando para mim desse modo? — indagou ela.

— Não esperava que fosse tão velha.

— Eh, eh, eh! Nós temos muitas surpresas para você, Bashar. Mais tarde uma jovem Honrada Madre pode murmurar seu nome para marcá-lo. Reze para Dur se isso acontecer.

Ele assentiu com a cabeça, não entendendo muito bem o que ela dizia.

— Este é um prédio muito antigo — comentou ela. — Eu o observei quando se aproximava. Isto o surpreende também?

— Não.

— Este prédio tem permanecido essencialmente igual por vários milhares de anos. Foi construído com materiais que ainda vão durar muito tempo.

Ele olhou para a mesa.

— Oh, não a madeira. Mas por baixo é polastine, polaz e pormabat. Os três P-Os nunca são desprezados quando necessários.

Teg permaneceu em silêncio.

— Necessidade — ela disse. — Faz objeção às coisas necessárias que foram feitas com você?

— Minhas objeções não vêm ao caso.

Aonde ela queria chegar? Estava observando-o, é claro. E ele a observava.

— Acha que outras pessoas já fizeram objeção ao que fez com elas?

— Indubitavelmente.

— Você é um comandante natural, Bashar. Creio que nos será muito valioso.

— Sempre me julguei muito valioso para mim mesmo.

— Bashar! Olhe nos meus olhos!

Ele obedeceu, vendo pequenas partículas alaranjadas deslizando pelo branco dos olhos dela. O senso de perigo era agudo.

— Se chegar a ver meus olhos totalmente alaranjados, cuidado! — ela disse. — Terá me ofendido além da minha capacidade de tolerância.

Ele assentiu com a cabeça.

— Gosto que seja capaz de comandar, mas não pode comandar a mim! Você comanda a escória e essa é a única função que temos para você.

— Escória?

Ela acenou com a mão num movimento negligente.

— Lá fora. Você os conhece. A curiosidade deles é estreita, limitada. Grandes problemas jamais penetram em suas consciências.

— Achei que era isso que queria dizer.

— Nós trabalhamos para mantê-los desse modo — explicou ela. — Tudo que destinamos a eles passa por um filtro estreito que exclui o que não tenha importância imediata para a sobrevivência.

— Nada de grandes questões.

— Está chocado, mas isso não importa. Para aqueles que estão lá fora, a grande questão é: “Será que vou ter o que comer hoje? Será que terei um abrigo onde dormir esta noite, um lugar que não seja invadido por assaltantes ou bichos?” Luxo? Luxo é possuir uma droga ou um membro do sexo oposto que possa, por algum tempo, manter as feras afastadas.

“E você é a fera”, pensou Teg.

— Estou dedicando este tempo a você, Bashar, porque percebo que pode vir a ser mais valioso para nós do que Muzzafar. E ele é, de fato, extremamente valioso. Agora mesmo o estamos recompensando por tê-lo trazido para nós numa condição tão receptiva.

Como Teg continuasse em silêncio, ela riu.

— Não se julga numa condição receptiva?

Teg permaneceu calado. Será que tinham colocado alguma droga em sua comida? Percebia o tremular da segunda visão, mas os movimentos de violência haviam desaparecido como os pontos alaranjados nos olhos da Honrada Madre. Os pés dela deviam ser evitados, contudo. Eram armas mortais.

— Acontece apenas que você pensa do modo errado com relação à escória. Felizmente eles são quase todos autolimitados. Sabem disso no mais profundo de suas consciências, e não podem dispor de tempo para dedicar a qualquer outra coisa que não seja a luta diária pela sobrevivência.

— E não se pode melhorá-los? — perguntou Teg.

— Oh, eles não devem ser melhorados! Nós cuidamos para que o auto-aperfeiçoamento permaneça como a grande moda entre eles. Mas nada para valer, é claro.

— Outro luxo que deve ser negado.

— Não, luxo não! Algo que não existe! Que deve ser escondido todo o tempo sob a barreira daquilo que chamamos de ignorância protetora.

— Aquilo que não sabe não pode magoá-lo.

— Não gosto do seu tom de voz, Bashar.

Novamente os pontos alaranjados dançavam nos olhos dela. A sensação de violência iminente diminuiu, contudo, enquanto ela ria.

— Aquilo de que deve acautelar-se é o oposto daquilo-que-você-não-sabe. Nós ensinamos que o novo conhecimento pode ser perigoso. E você percebe a extensão óbvia: todo conhecimento novo é contrário à sobrevivência!

A porta atrás da Honrada Madre se abriu e Muzzafar retornou. Era um novo Muzzafar, com o rosto vermelho e os olhos brilhantes. Parou junto da cadeira ocupada pela Honrada Madre.

— Um dia poderei permitir que fique atrás de mim deste modo — ela disse. — Está entre meus privilégios permitir isso.

Que teriam feito com Muzzafar? — perguntou-se Teg. O homem parecia drogado.

— Não percebe que possuo esse poder? — perguntou ela.

Teg pigarreou.

— Isso é óbvio.

— Eu sou uma banqueira, lembra-se? Acabamos de fazer um depósito em nome do nosso leal Muzzafar. Não nos agradece, Muzzafar?

— Sim, Honrada Madre.

A voz era rouca.

— Tenho certeza de que compreende esse tipo de poder de maneira generalizada, Bashar. A Bene Gesserit o treinou muito bem. Elas são bem talentosas, mas não, temo, tão talentosas quanto nós.

— E me disseram que vocês são bem mais numerosas — comentou ele.

— Nosso número não é a chave para o nosso poder, Bashar. Um poder como aquele de que dispomos tem uma forma de ser canalizado de modo a poder ser controlado por um pequeno número de pessoas.

Era como uma Reverenda Madre, pensou Teg, na maneira como parecia responder uma pergunta sem revelar muito.

— Na essência — continuou ela —, um poder como o nosso pode tornar-se a substância vital para a sobrevivência de muita gente. Então a ameaça de sua retirada é tudo de que precisamos para governá-los. — Ela olhou por sobre o ombro. — Gostaria que lhe negássemos nossos favores, Muzzafar?

— Não, Honrada Madre.

Ele estava realmente tremendo!

— Vocês encontraram uma nova droga — disse Teg.

A risada dela foi espontânea, alta, quase estridente.

— Não, Bashar, nós dispomos de uma muito antiga.

— E vai fazer de mim um viciado?

— Como todos os outros que controlamos, Bashar. Você tem uma escolha: a obediência ou a morte.

— É uma escolha bem antiga — concordou ele.

Qual seria a ameaça imediata? Ele não podia sentir qualquer prenúncio de violência. Muito pelo contrário. Sua dupla visão mostrava-lhe vislumbres de algo com aspecto extremamente sensual. Será que elas pensavam que poderiam imprimi-lo ao modo de uma Impressora Bene Gesserit?

Ela sorriu para ele, a expressão de quem sabia muita coisa, mas com algo de gélido.

— Ele vai nos servir bem, Muzzafar?

— Acredito que sim, Honrada Madre.

Teg franziu a testa, pensando. Havia alguma coisa profundamente maligna naqueles dois. Eles se opunham a todo tipo de moral que servia a Teg como guia de conduta. Era ótimo lembrar-se de que nenhum dos dois conhecia essa coisa estranha que havia acelerado suas reações.

Pareciam estar apreciando seu desconforto e sua perplexidade.

Teg obtinha algum consolo do fato de nenhum dos dois apreciar realmente a vida. Podia analisá-los claramente com olhos que tinham sido treinados pela Irmandade. A Honrada Madre e Muzzafar tinham esquecido, ou mais provavelmente abandonado, tudo que sustentava a existência de seres humanos felizes. Ele achou que provavelmente não eram mais capazes de sentir uma verdadeira alegria com seu próprio corpo. A vida deles era uma existência de voyeurs, de eternos observadores, sempre a se lembrarem de como tinham sido antes de ser tornarem o que quer que fosse aquilo em que se haviam convertido. Mesmo quando mergulhavam na representação de algo que um dia significara gratificação, eram obrigados a um esforço extremo para tentar recuperar alguma coisa de suas próprias memórias.

O sorriso da Honrada Madre ampliou-se, revelando uma fileira de dentes brancos brilhantes.

— Olhe para ele, Muzzafar. Não tem a menor idéia do que podemos fazer.

Teg ouviu isso, mas também viu com olhos treinados pela Bene Gesserit. Não havia um miligrama de ingenuidade em qualquer dos dois. Nada poderia surpreendê-los. Nada seria verdadeiramente novo para eles. Ainda assim, treinavam e maquinavam, esperando que esses extremos recuperassem as sensações de que se lembravam. Eles sabiam que isso não ia ocorrer, é claro, e esperavam obter da experiência somente mais ódio para moldar outra tentativa de buscar aquilo que estava fora de seu alcance. Era assim que funcionava a mente deles.

Teg sorriu para eles, usando todas as habilidades que a Bene Gesserit lhe havia ensinado. Era um sorriso cheio de compaixão, compreensão e autêntico prazer pela própria existência. Ele sabia que era o pior insulto que poderia dirigir a esses dois, e viu que tinha atingido o alvo. Muzzafar ficou rubro e a Honrada Madre passou do ódio, com os olhos alaranjados, a uma súbita surpresa, e então, bem lentamente, a um crescente prazer. Não tinha esperado por isso! Era alguma coisa nova!

— Muzzafar — ela disse, o laranja diluindo-se em seus olhos —, traga a Honrada Madre que foi escolhida para marcar o nosso Bashar.

Teg, com sua dupla visão revelando perigo imediato, compreendeu afinal. Podia sentir o futuro próximo propagando-se como ondas na medida em que aquele poder crescia dentro dele A louca mudança continuava! Sentia a energia expandir-se. E com ela vinha uma compreensão de suas escolhas. Via-se como um redemoinho açoitando esse prédio — corpos espalhados à sua passagem (os de Muzzafar e da Honrada Madre entre eles) e todo o complexo parecendo um matadouro enquanto ele partia.

“Devo fazer isso?”, perguntou-se.

Para cada um que matasse, mais teriam que ser mortos. Via a necessidade disso, contudo, tal como percebia o último desígnio do Tirano. A dor que podia ver por si mesmo quase o fez chorar, mas ele se conteve.

— Sim, traga-me essa Honrada Madre — disse ele, sabendo que essa seria menos uma que teria de caçar e destruir dentro desse prédio.

A sala de controles dos escanalisadores deveria ser tomada em primeiro lugar.

 

E você, que sabe o que sofremos aqui, não nos esqueça em suas preces.

 

— Letreiro na entrada do Campo de Pouso de Arrakeen

(Registros Históricos: Dar-es-Balat)

 

Taraza observou as flores levadas pelo vento flutuarem como flocos de neve no céu prateado da manhã Rakiana. Havia um brilho opalescente no céu que, a despeito de todas as instruções preparatórias recebidas antes de qualquer viagem, ela não tinha previsto. Rakis mostrava muitas surpresas. O cheiro de falsas laranjas era muito forte ali, na beira do jardim de cobertura de Dar-es-Balat, dominando todos os outros odores.

“Nunca acredite ter alcançado as profundezas de qualquer lugar. ou de qualquer ser humano”, lembrou-se.

As conversas tinham terminado, mas não os ecos dos pensamentos que haviam trocado alguns minutos atrás. Todos concordavam, contudo, em que era hora de agir. Logo Sheeana iria “dançar para um verme” e uma vez mais demonstrar-lhes seu domínio.

Waff e o novo representante dos sacerdotes iriam compartilhar desse evento sagrado”, mas Taraza não tinha certeza quanto a se eles conheciam a natureza real daquilo que estavam a ponto de testemunhar. Waff ainda tinha aquele ar de irritada descrença em tudo que via ou ouvia. Isso formava uma estranha mistura com a sua admiração subjacente por estar em Rakis. O catalisador era, obviamente, seu ódio pelo fato de saber que tolos governavam esse lugar.

Odrade voltou da sala de reunião e parou ao lado de Taraza.

— Estou extremamente preocupada com os relatórios de Gammu disse Taraza. — Traz alguma coisa nova?

— Não. As coisas ainda estão caóticas por lá.

— Diga-me, Dar, que acha que devemos fazer?

— Eu fico lembrando as palavras do Tirano a Chenoeh: “A Bene Gesserit está tão próxima do que deveria fazer e no entanto tão distante.”

Taraza apontou para o deserto além do qanat da cidade-museu.

— Ele ainda está lá, Dar, tenho certeza disso. — Voltou-se para encarar Odrade: — E Sheeana fala com ele.

— Ele disse tantas mentiras — comentou Odrade.

— Mas não mentiu sobre sua própria encarnação. Lembre-se do que ele disse: “Cada parte descendente de mim levará um fragmento de minha consciência preso dentro dela, perdida e desamparada — pérolas de minha mente a se moverem loucamente pela areia, presas a um sonho interminável.”

— Está apostando forte em sua crença no poder daquele sonho.

— Devemos recuperar o projeto do Tirano! Todo ele!

Odrade suspirou mas não respondeu.

— Nunca substime o poder de uma idéia — disse Taraza. — Os Atreides sempre governaram com filosofia. E a filosofia é sempre perigosa, pois ela promove a criação de novas idéias.

Ainda assim Odrade não respondeu.

— O verme carrega isso tudo dentro dele, Dar! Todas as forças que ele colocou em movimento ainda estão lá.

— Está tentando convencer a mim ou a si mesma, Tar?

— Estou punindo você, Dar. Exatamente como o Tirano ainda nos pune.

— Por não sermos o que devíamos? Ah, aí vem Sheeana e os outros.

— A linguagem do verme, Dar. Isso é que é importante.

— Se diz assim, Madre Superiora.

Taraza olhou aborrecida para Odrade, que foi receber os recém-chegados. Havia uma perturbadora melancolia em Odrade.

A presença de Sheeana, contudo, restaurou em Taraza o sentimento de propósito. Sheeana, aquela coisinha sempre vigilante. Material muito bom. Sheeana demonstrara sua dança na noite anterior, executando-a no grande salão do museu, sobre um fundo de tapeçarias. Fora uma dança exótica diante de cortinas exóticas de fibra de especiaria com a imagem do deserto e seus vermes. Sheeana parecia quase parte daquela imagem nas cortinas, uma figura projetada do meio daquelas dunas estilizadas e de seus vermes elaboradamente detalhados. Taraza lembrava-se de como o cabelo castanho de Sheeana se lançara nos movimentos rodopiantes da dança, girando num arco indistinto. A iluminação lateral acentuava os brilhos avermelhados do cabelo. Seus olhos estavam fechados, mas o rosto não tinha uma expressão de repouso. A excitação revelava-se na disposição apaixonada de sua boca ampla, na dilatação das narinas, no queixo erguido. Os movimentos revelavam uma sofisticação interior que não correspondia à sua juventude.

“A dança é a linguagem dela”, pensou Taraza. “Odrade está certa. Vendo, aprendemos”.

Waff tinha uma aparência retraída nessa manhã. Era difícil determinar se seu olhar se voltava para o exterior ou para o interior.

Com Waff estava Tulushan, um escuro e belo Rakiano, o escolhido dos sacerdotes para testemunhar o “evento sagrado” desse dia. Ao encontrá-lo na demonstração de dança, Taraza achara surpreendente que Tulushan nunca precisasse dizer “mas”, embora essa palavra estivesse presente em tudo aquilo que ele dizia. Um perfeito burocrata. Realmente ambicionava ir longe, mas suas expectativas logo iriam encontrar a derradeira surpresa. Ela não sentia pena dele ao saber disso. Tulushan era um jovem de rosto redondo, com muito pouca capacidade para assumir tal posição de confiança. Não havia mais nada nele, além do que era visível, é claro. E menos ainda.

Waff caminhou para uma extremidade do jardim, deixando Odrade e Sheeana com  Tulushan.

O jovem sacerdote era sacrificável, naturalmente. Isso explicava muito sobre os motivos pelos quais ele fora escolhido para esse empreendimento. Revelava a Taraza que ela atingira o nível adequado de violência potencial. Taraza não acreditava, contudo, que qualquer uma das facções do clero se atrevesse a fazer algum mal a Sheeana.

“Nós ficaremos junto de Sheeana”

Elas tinham passado uma semana agitada desde a demonstração das conquistas sexuais das prostitutas. Uma semana muito perturbadora quando se pensava nisso. Odrade mantivera-se ocupada com Sheeana. Taraza teria preferido ver Lucilla incumbida dessa função educativa, mas era preciso fazer o que fosse possível com aquilo que se tinha em mãos, e Odrade, obviamente, era a melhor pessoa em Rakis para tais ensinamentos.

Taraza olhou em direção ao deserto. Estavam esperando pelos tópteros de Keen com suas cargas de Observadores Muito Importantes. Os OMIs ainda não estavam muito atrasados, mas deviam ter deixado tudo para a última hora, como essa gente sempre fazia.

Sheeana parecia estar se saindo bem em sua educação sexual, embora a opinião de Taraza quanto aos homens da Irmandade em Rakis não fosse muito entusiástica. Em sua primeira noite, Taraza solicitara os serviços de um desses servos masculinos e depois achara que ele lhe dera trabalho em demasia pelo pouco prazer e esquecimento que lhe proporcionara. Além disso, que havia para ser esquecido? Esquecer era tolerar a fraqueza.

“Nunca esqueça!”

Isso era o que faziam as prostitutas. Elas vendiam o esquecimento.

E não tinham a menor consciência do contínuo poder do Tirano sobre o destino humano, nem tampouco da necessidade de quebrar esse domínio.

Taraza tinha ouvido em silêncio a sessão do dia anterior entre Sheeana e Odrade.

“Que é que eu queria ouvir?”

A jovem e sua professora tinham estado lá fora no jardim da cobertura, sentadas uma de frente à outra em dois bancos, com um abafador Ixiano portátil ocultando suas palavras de qualquer um que não possuísse um tradutor decodificador. O abafador de sons, flutuando em suspensores, pairava acima das duas como uma curiosa sombrinha, seu disco negro projetando distorções que ocultavam os movimentos precisos dos lábios e o som das vozes.

Para Taraza, dentro do grande salão de reuniões com o pequeno tradutor colocado sobre a orelha esquerda, a lição parecera uma recordação igualmente distorcida.

“Quando me ensinaram estas coisas, ainda não tínhamos visto o que as prostitutas da Dispersão eram capazes de fazer”

— Por que falamos em complexidade do sexo? — perguntava Sheeana. — O homem que me enviou na noite passada ficava dizendo isso.

— Muitos pensam que entendem, Sheeana. Mas talvez ninguém jamais tenha entendido, pois tais palavras exigem mais da mente do que cobram da carne.

— Por que não devo fazer nenhuma das coisas que vimos os Dançarinos Faciais fazerem?

— Sheeana, a complexidade oculta-se dentro da complexidade. Grandes proezas e coisas muito perversas já foram realizadas sob o estímulo das forças sexuais. Nós falamos em “vigor sexual”, “energia sexual” e coisas como “o impulso supremo do desejo”. Não nego que tais coisas sejam observáveis. Mas o que estamos vendo aqui é uma força tão poderosa que poderia destruir você e tudo aquilo que você valoriza.

— É isso que estou tentando entender. Que é que as prostitutas estão fazendo de errado?

— Elas ignoram o funcionamento da espécie, Sheeana. Eu pensava que você já tivesse percebido isto. O Tirano certamente tinha consciência disso. Que era o seu Caminho Dourado senão uma visão das forças sexuais em seu trabalho de recriar interminavelmente os seres humanos?

— E as prostitutas não fazem isso?

— Elas tentam principalmente dominar seus mundos com essa força.

— Parecem estar conseguindo isto.

— Ah, mas e as forças contrárias que elas invocam ao fazê-lo?

— Eu não compreendo.

— Você conhece a Voz e o efeito que ela tem sobre certas pessoas.

— Mas ela não controla todo o mundo.

— Exatamente. Uma civilização que tenha sido sujeita à Voz durante um longo período acaba desenvolvendo meios de se adaptar a essa força, evitando a sua manipulação por parte daqueles que a utilizam.

— Então existem pessoas que sabem como resistir às prostitutas?

— Estamos percebendo indícios inconfundíveis disso. E essa é uma das razões que nos trouxeram a Rakis.

— E as prostitutas vão vir para cá?

— Temo que sim. Elas querem dominar o núcleo do Antigo Império, pois nos julgam uma conquista fácil.

— E não está com medo de que elas vençam?

— Elas não vão vencer, Sheeana. Confie nisso. Mas elas são boas para nós.

— Como podem ser?

O tom de voz de Sheeana refletia o próprio choque de Taraza ao ouvir essas palavras partindo de Odrade. De quanto Odrade suspeitaria? No instante seguinte Taraza compreendeu e se perguntou se essa lição seria igualmente compreensível para a jovem.

— O núcleo é estático, Sheeana. Nós sofremos uma estagnação quase completa por milhares de anos. E a vida e o movimento pertencem àquelas pessoas lá fora que resistem às Prostitutas no meio da Dispersão. O que quer que façamos, devemos tornar essa resistência ainda mais forte.

O som dos tópteros aproximando-se tirou Taraza do devaneio da lembrança. Os OMIs estavam chegando a Keen. Ainda estavam a boa distância, mas o ar claro levava o som bem longe.

O método de ensinamento de Odrade era muito bom. Taraza teve que admitir isso enquanto esquadrinhava o céu em busca dos tópteros. Aparentemente eles se aproximavam a baixa altura, vindos do outro lado do prédio. Essa era a direção errada, mas talvez tivessem conduzido os OMIs numa breve excursão sobre os restos da muralha do Tirano. Muitas pessoas estavam curiosas quanto ao lugar onde Odrade encontrara o tesouro de especiaria.

Sheeana, Odrade, Waff e Tulushan voltaram para dentro do comprido salão de reuniões. Também tinham ouvido os tópteros. Sheeana estava ansiosa por demonstrar seu poder sobre os vermes. Taraza hesitou. Havia um som forte nos tópteros que se aproximavam. Estariam sobrecarregados? Quantos observadores teriam trazido?

O primeiro tóptero ergueu-se sobre o telhado da cobertura e Taraza viu a cabina blindada. Reconheceu a traição antes mesmo que o primeiro feixe de laser partisse da máquina, cortando-lhe as pernas abaixo dos joelhos. Ela caiu pesadamente de encontro a um arvoredo que crescia dentro de um vaso, as pernas totalmente separadas do corpo. Outro raio a atingiu, cortando em ângulo sobre seus quadris. O tóptero passou sobre ela num abrupto rugido de jatos impulsores e fez uma curva brusca para a esquerda.

Taraza ficou agarrada na árvore, controlando a agonia. Conseguiu interromper a maior parte do fluxo de sangue para os ferimentos, mas a dor era muito grande. Não tão forte quanto a da agonia da especiaria, contudo. Isso ajudava, mas ela sabia estar condenada. Ouviu gritos e os sons múltiplos da violência em torno do museu.

“Eu venci!”, pensou Taraza.

Odrade veio correndo de dentro da cobertura e se curvou sobre Taraza. Ela não disse coisa alguma, mas Odrade mostrou que compreendia ao colocar a testa sobre a têmpora de Taraza. Era um antigo sinal da Bene Gesserit, e Taraza começou a verter sua vida para Odrade — as Outras Memórias, suas esperanças, seus temores... tudo.

Uma delas ainda poderia escapar.

Sheeana observava da cobertura, permanecendo onde lhe haviam ordenado que esperasse. Sabia o que estava acontecendo lá no jardim. Era o mistério final da Bene Gesserit, e cada postulante tinha conhecimento dele.

Waff e Tulushan já estavam fora do salão quando o ataque começara, e não voltaram.

Sheeana estremeceu, apreensiva.

De súbito, Odrade levantou-se e correu de volta para a cobertura. Havia uma expressão enlouquecida em seus olhos, mas ela agia com um propósito bem-definido. Saltando, agarrou um punhado de globos luminosos, reunindo-os em feixes por seus cordões de amarração. Entregou vários feixes a Sheeana e esta sentiu o corpo tornar-se mais leve devido aos campos suspensores dos globos. Arrastando outros conjuntos de globos para fora do alcance dos campos de fixação, Odrade correu para a extremidade mais estreita do salão, onde uma grade na parede indicava o que ela buscava. Com a ajuda de Sheeana, arrancou a grade e descobriu um profundo poço de ventilação. A luz dos globos luminosos revelava que as paredes interiores eram ásperas.

— Mantenha os globos juntos para conseguir o máximo efeito do campo! — explicou Odrade. — Afaste-os para baixar. Vá.

Sheeana agarrou um punhado de globos com a mão suada e saltou para dentro do poço. Deixou-se cair e então, assustada, comprimiu os globos uns contra os outros. A luz acima dela revelou que Odrade a estava seguindo.

Lá embaixo, emergiram numa sala de bombeamento, com os sussurros de muitos ventiladores girando, espécie de fundo para os ruídos de violência vindos do exterior.

— Devemos chegar à não-câmara e de lá partir para o deserto — explicou Odrade — Todos esses sistemas de máquinas são interligados. Vai haver uma passagem.

— Ela está morta? — sussurrou Sheeana.

— Sim.

— Pobre Madre Superiora.

— Eu sou a Madre Superiora agora, Sheeana. Pelo menos temporariamente. — Apontou para o alto. — Aquelas eram as prostitutas nos atacando. Precisamos correr.

 

O mundo é dos vivos. E quem são eles?

Nós enfrentamos as trevas para alcançar a claridade e o calor.

Ela era o vento, quando o vento ficava em meu caminho.

Viva ao meio-dia, morri com a sua forma,

Que se ergue da carne, no espirito que sai.

Um mundo supera o outro e tudo é luz.

 

— Theodore Roethke (Citações Históricas: Dar-es-Balat)

 

Fora necessário muito esforço consciente da parte de Teg para ele transformar-se no redemoinho. Reconhecera, afinal, a ameaça das Honradas Madres. E o reconhecimento se encaixava nas necessidades obscuras da nova consciência Mentat que o acompanhava nessa velocidade ampliada com que era capaz de se mover.

Uma ameaça monstruosa exigia uma reação monstruosa. O sangue respingou enquanto ele atravessava o prédio do quartel-general, matando a todos que encontrava.

Como tinha aprendido com a Bene Gesserit, o maior problema do universo humano resumia-se no modo como se controlava a procriação. Podia ouvir a voz de sua primeira professora enquanto levava a destruição por todo o prédio.

“Você pode pensar nisso apenas como sexualidade, mas nós preferimos o termo básico: procriação. Ela tem muitas facetas e muitas conseqüências, além de uma energia aparentemente ilimitada. A emoção a que chamam de 'amor' é apenas um aspecto menor.”

Teg esmagou a garganta de um homem que estava de pé, rígido em seu caminho, e afinal encontrou a sala de controle para as defesas do prédio. Havia apenas um homem sentado, a mão direita quase tocando um botão vermelho no console à sua frente.

Com uma cutelada de esquerda, Teg quase decapitou o homem. O corpo inclinou-se para trás em câmara lenta, os sangue jorrando do pescoço aberto.

“A Irmandade está certa em chamá-las de prostitutas.”

Era possível conduzir a humanidade em praticamente qualquer direção através da manipulação das imensas energias da procriação. Podia-se levar as pessoas a agirem de modos que nunca acreditariam serem possíveis. Uma de suas instrutoras dissera isso abertamente:

— Essa energia deve ter uma válvula de escape. Prenda-a e ela se tornará monstruosamente perigosa. Redirecione-a e ela varrerá tudo em seu caminho. Esse é o derradeiro segredo de todas as religiões.

Teg estava consciente de ter deixado mais de 50 corpos espalhados em seu caminho quando saiu do prédio. O último a morrer fora o soldado em uniforme de camuflagem, de pé na porta aberta, aparentemente a ponto de entrar no prédio.

Enquanto ele passava correndo por pessoas e veículos aparentemente imóveis, sua mente acelerada teve tempo para refletir sobre o que deixara lá atrás. Haveria algum consolo no fato de a última expressão da vida da Honrada Madre ter sido de verdadeira surpresa? Será que poderia congratular-se com o fato de que Muzzafar nunca mais veria seu lar na árvore modelada?

A necessidade daquilo que fizera no espaço de umas poucas batidas de coração era clara, contudo, para uma pessoa treinada pela Bene Gesserit. Teg conhecia a história. Havia muitos planetas paradisíacos no Antigo Império, e provavelmente mais ainda em meio aos mundos da Dispersão. E os seres humanos sempre pareciam capazes de tentar aquela experiência tola. Nesses lugares as pessoas levavam uma vida de ócio. Uma análise imediatista dizia que isso se devia ao clima ameno desses planetas. Ele achava isso estúpido. A verdade é que as energias sexuais eram facilmente liberadas em tais lugares. Deixe as Missionárias do Deus Dividido ou qualquer outra instituição eclesiástica entrar em um desses paraísos e o resultado será a violência extrema.

— Nós da Irmandade sabemos disso — dissera uma das professoras de Teg. — Já acendemos esse estopim mais de uma vez com nossa Missionaria Protectiva.

Teg não parou de correr até se encontrar num beco a pelo menos cinco quilômetros do abatedouro que tinha sido o quartel-general da velha Honrada Madre. Sabia que muito pouco tempo se passara, mas havia algo mais importante em que focalizar sua atenção agora. Não tinha morto todos os ocupantes do prédio. Havia olhos lá que tinham visto o que ele podia fazer. Viram-no matar Honradas Madres. Viram Muzzafar cair morto em suas mãos. A evidência dos corpos deixados em seu caminho e a reprodução das gravações em baixa velocidade revelariam tudo.

Teg apoiou-se em uma parede. A pele fora arrancada da palma de sua mão esquerda. Deixou-se retornar ao tempo normal de reação e viu o sangue saindo do ferimento. Era quase negro.

“Mais oxigênio em meu sangue?”

Estava ofegante, mas não tanto quanto seria de esperar após uma atividade daquelas.

“Que está acontecendo comigo?”

Era alguma coisa vinda de sua ancestralidade Atreides, ele sabia. A crise empurrara-o para uma nova dimensão das capacidades humanas. E o que quer que fosse, a transformação era profunda. Podia enxergar agora muitas necessidades novas. E as pessoas por que passara em sua corrida até esse beco tinham parecido estátuas.

“Será que algum dia vou pensar nelas como escória?”

Só aconteceria se ele deixasse acontecer, sabia muito bem. Mas a tentação estava lá, e ele se permitiu um breve sentimento de piedade para com as Honradas Madres. A Grande Tentação derrubara-as sobre sua própria escória.

Que fazer agora?

A principal linha de ação estava aberta para ele. Havia um homem em Ysai, um homem que certamente conhecia todas as pessoas de quem Teg precisava. Olhou para o beco. Sim, esse homem estava perto.

Um perfume de flores e ervas flutuou até ele de algum ponto desse beco. Caminhou em direção ao perfume, consciente de que ele o conduziria aonde precisava ir e de que nenhum ataque violento o esperava ali. Esse era, temporariamente, um afluente calmo.

Chegou rapidamente à fonte do perfume. Era uma porta marcada por um toldo azul, com duas palavras em Galach moderno: “Serviços Pessoais”.

Teg entrou e percebeu imediatamente o que havia encontrado. Esses lugares podiam ser vistos em muitos pontos do Antigo Império: estabelecimentos que serviam refeições como nos tempos ancestrais, sem usar autômatos na cozinha ou nas mesas. Em sua maioria eram lugares “in”. As pessoas contavam aos amigos sobre sua última “descoberta”, advertindo-os para não espalhar a novidade.

“Não queremos estragar o lugar fazendo-o ficar cheio de gente.”

Essa idéia sempre divertira Teg. As pessoas espalhavam a notícia sobre um lugar desses, mas o faziam sob o disfarce de manter o segredo.

Odores que faziam sua boca ficar cheia d'água emergiam da cozinha nos fundos. Um garçom passou com uma bandeja da qual se erguia vapor, prometendo boa comida.

Uma jovem de vestido preto curto e avental branco veio ao encontro dele.

— Por aqui, senhor. Temos uma mesa vaga no canto.

Ela puxou uma cadeira para que Teg se sentasse com as costas para a parede.

— Alguém virá atendê-lo num minuto, senhor. — Passou-lhe uma folha dura de papelão barato. — Nosso cardápio está impresso, senhor. Espero que não se incomode.

Ele a observou sair. O garçom que tinha visto passou na direção oposta, a caminho da cozinha. A bandeja estava vazia.

Os pés de Teg o haviam conduzido até ali como se tivessem andado num trilho fixo. E ali estava o homem de quem precisava. Comendo na mesa ao lado.

O garçom tinha parado para falar com o homem que, Teg sabia, teria a resposta para o próximo movimento que deveria fazer. Os dois riam juntos. Teg observou o resto do restaurante. Apenas mais três mesas estavam ocupadas. Uma velha sentava-se a uma das mesas, mordiscando alguma coisa gelada. Vestia-se no que Teg julgou ser o máximo da moda no momento, um vestido justo vermelho com gola baixa. Os sapatos combinavam. Um jovem casal sentava-se a uma mesa à direita. Nenhum dos dois via ninguém, exceto um ao outro. Um velho de túnica marrom justa, estilo antigo, comia um prato de vegetais verdes perto da porta. Só tinha olhos para a comida.

O homem que falava com o garçom riu alto.

Teg olhou para a parte de trás da cabeça do garçom. Tufos de cabelo louro projetavam-se da nuca como feixes arrancados do feno. O colarinho do homem estava puído embaixo dos tufos de cabelo. Teg abaixou os olhos. Os sapatos do garçom também eram gastos e a bainha de seu paletó fora remendada. Seria alguma forma de economia neste lugar? Economia ou algum outro tipo de pressão econômica? Os odores vindos da cozinha não sugeriam qualquer forma de economia por lá. A mesa era limpa e brilhante. Não havia pratos rachados. Mas a toalha vermelha e branca sobre a mesa tinha sido remendada em vários lugares, com cuidado para igualar o tecido original.

Uma vez mais Teg observou os outros fregueses. Pareciam gente abastada. Nada de pobres famintos. Não apenas era um lugar chique como fora projetado justamente para obter esse efeito. Havia uma mente muito habilidosa por trás de um estabelecimento como esse. Era o tipo de restaurante que jovens executivos revelavam para ganhar pontos diante de clientes em potencial ou para agradar um superior. A comida devia ser soberba, servida em porções generosas. Teg percebia que seus instintos o haviam guiado corretamente até esse lugar. Voltou a atenção para o cardápio, permitindo que afinal a fome penetrasse em sua consciência, uma fome tão violenta quanto aquela que deixara admirado o falecido Marechal-de-Campo Muzzafar.

O garçom apareceu ao lado dele com uma bandeja sobre a qual havia uma caixinha aberta e um jarro do qual subia um odor forte de óleo medicinal.

— Vejo que feriu a mão, Bashar — disse o homem. Colocou a bandeja sobre a mesa. — Permita-me fazer um curativo antes de ouvir seu pedido.

Teg ergueu a mão ferida e observou a rápida competência com que era realizado o curativo.

— Você me conhece? — perguntou Teg.

— Sim, senhor. E depois do que andei ouvindo me parece estranho vê-lo completamente uniformizado. Aí está!

Ele terminou o curativo.

— Que andou ouvindo? — perguntou Teg em voz baixa.

— Que as Honradas Madres o estão caçando.

— Acabei de matar algumas delas e muitos de seus... De que deveria chamá-los?

O homem empalideceu, mas falou com firmeza.

— Escravos seria uma palavra adequada, senhor.

— Você estava em Renditai, não estava?

— Sim, senhor. Muitos de nós nos estabelecemos aqui depois da guerra.

— Eu preciso de comida, mas não tenho como pagá-la.

— Ninguém de Renditai precisa do seu dinheiro, Bashar. Elas sabem que veio para cá?

— Não acredito que saibam.

— As pessoas que estão aqui são fregueses costumeiros. Nenhum deles o denunciaria. Vou tentar avisá-lo se entrar alguém perigoso. Que deseja comer?

— Um bocado de comida. Deixo por sua conta. Duas vezes mais carboidratos do que proteína. Nada de estimulantes.

— Que quer dizer com um bocado de comida, senhor?

— Vá trazendo até que eu lhe diga para parar... ou até que sinta que estou abusando de sua generosidade.

— A despeito das aparências, senhor, este estabelecimento não é um lugar pobre. As gorjetas tornaram-me um homem rico.

Um aspecto para avaliar, pensou Teg. A pobreza ali era uma pose calculada.

O garçom saiu e falou com o homem na mesa do centro. Teg observou o homem abertamente depois de o garçom entrar na cozinha. Sim, aquele era o homem. A refeição concentrada em um prato cheio de uma pasta verde.

Esse homem demonstrava poucos sinais dos cuidados de uma mulher, pensou Teg. O colarinho fora abotoado de um modo descuidado, os feixes pendendo. Havia manchas de molho verde do lado esquerdo.

Ele era destro, mas comia com a mão esquerda. As calças tinham bainhas puídas, uma delas parcialmente solta da costura. As meias eram desiguais — uma azul e outra amarela clara. Nada disso parecia incomodá-lo. Nenhuma mãe ou qualquer outra mulher jamais o trouxera de volta da porta com ordem de se arrumar direito. Sua atitude básica era anunciada em toda a sua aparência:

“O que está vendo é tão apresentável quanto poderia ser.”

O homem olhou para cima num movimento súbito, como se tivesse sido espetado. Olhou pela sala, parando para observar cada rosto como se procurasse alguém em particular. Feito isso, tornou a voltar sua atenção para o prato.

O garçom retornou com um prato de sopa clara com pedacinhos de ovo e vegetais verdes.

— Para comer enquanto estamos preparando o resto de sua refeição, senhor.

— Você veio para cá logo depois de Renditai?

— Sim, senhor. Mas também servi com o senhor em Acline.

— O 67º Gammu — disse Teg.

— Sim senhor!

— Nós salvamos muitas vidas naquela ocasião — comentou Teg. — As deles e as nossas.

Como Teg não começasse a comer, o garçom disse com uma voz um tanto fria:

— Vai querer um farejador, senhor?

— Não enquanto estiver me servindo — respondeu Teg. Falava com sinceridade, mas se sentia um pouco mentiroso porque sua dupla visão revelava que a comida era segura.

O garçom fez menção de se afastar, satisfeito.

— Um momento — pediu Teg.

— Sim?

— O homem na mesa do centro. É um de seus fregueses costumeiros?

— O professor Delnay? Oh, sim, senhor.

— Delnay? Sim, achei que era.

— Professor de artes marciais, senhor. E a história é a mesma.

— Eu sei. Quando chegar a hora de servir minha sobremesa, por favor, pergunte ao professor Delnay se ele quer me fazer companhia.

— Devo dizer a ele quem é o senhor?

— Não acha que ele já sabe?

— Isso parece muito provável, senhor. Ainda assim...

— Cautela onde deve haver cautela — disse Teg. — Traga-me a comida.

O interesse de Delnay fora despertado muito antes de o garçom transmitir-lhe o convite de Teg. As primeiras palavras do professor, enquanto se sentava diante do bashar, foram:

— Este é o mais extraordinário desempenho gastronômico que já vi. Com certeza de que vai poder comer a sobremesa?

— Duas ou três no mínimo — respondeu Teg.

— Espantoso!

Teg provou uma colher de um alimento que tinha a doçura do mel. Engoliu e então disse:

— Este lugar é um tesouro.

— Eu o tenho mantido como um segredo cuidadoso — explicou Delnay. — Exceto por alguns amigos mais chegados, é claro. A que devemos a honra de sua visita?

— Você já foi... ah, marcado por uma Honrada Madre?

— Deuses da perdição, não! Não sou suficientemente importante para isso.

— Eu estava pensando em lhe pedir para arriscar sua vida, Delnay.

— De que maneira?

Não havia hesitação na voz dele. Isso era tranqüilizador.

— Existe um lugar em Ysai onde meus antigos soldados se reúnem. Quero ir lá e ver o maior número deles que for possível.

— Passando por essas ruas, em uniforme completo como está agora?

— De qualquer modo que puder arranjar.

Delnay colocou um dedo sobre o lábio inferior e se inclinou para trás da cadeira, de modo a poder observar Teg.

— Você não é uma figura fácil de se disfarçar, sabe muito bem. No entanto, pode haver um modo. — Assentiu com a cabeça, pensativo. Sim. — Depois sorriu. — Temo que não vá gostar.

— Que é que tem em mente?

— Alguns acolchoados, algumas almofadas, outras alterações. Você passaria por um capataz Bordano. Vai ter que cheirar a esgoto, é claro. E fingir que não repara.

— Por que acha que desse modo teremos sucesso?

— Oh, vai haver uma tempestade esta noite. Coisa costumeira nesta época do ano. Descarregando umidade para as colheitas a céu aberto do próximo ano. E enchendo os reservatórios para os campos aquecidos, você sabe.

— Eu não entendo o seu raciocínio, mas quando eu terminar outro desses doces vamos sair.

— Vai gostar do lugar onde vamos refugiar-nos da tempestade — disse Delnay. — Eu estou louco entrando numa coisa dessas, mas o proprietário aqui disse que eu devia ajudá-lo ou não voltar nunca mais.

Passava uma hora do anoitecer quando Delnay o conduziu ao ponto, fora forçado a usar boa parte de seus poderes mentais para ignorar o cheiro. Os amigos de Delnay haviam-no emplastrado de material dos esgotos, e depois secado. O processo de secagem com ar quente produzira a maior parte do cheiro.

Uma estação remota de monitoração do clima junto à porta do local de encontro revelou a Teg que a temperatura tinha caldo 15 graus na última hora. Delnay entrou na frente dele num salão abarrotado e barulhento, com o som de copos batendo. Teg parou para observar a estação ao lado. O vento estava soprando a 30 diques e a pressão barométrica cair olhou para um cartaz sobre a estação:

“Um serviço para os nossos fregueses.”

Presumivelmente um serviço para o bar também. Os fregueses que estivessem saindo poderiam ver o cartaz e resolver voltar para o calor e a camaradagem que haviam deixado.

Numa grande lareira no fundo do bar, havia um fogo verdadeiro queimando. Madeiras aromáticas.

Delnay voltou, torceu o nariz ante o cheiro de Teg e o conduziu, contornando a multidão, até uma sala nos fundos com seu banheiro privativo. O uniforme de Teg, limpo e passado, estava lá sobre uma cadeira.

— Eu estarei no canto, junto da lareira, quando sair — disse Delnay.

— De uniforme completo, hein? — perguntou Teg.

— Só é perigoso lá na rua — disse Delnay.

Voltou por onde viera.

Daí a pouco Teg saiu e abriu caminho até junto da lareira, passando por grupos de pessoas que subitamente ficavam em silêncio ao reconhecê-lo. Comentários murmurados eram trocados através do bar. “O velho Bashar em pessoa!” “Oh sim, é Teg, servi com ele!” “Reconheceria aquele rosto e aquela figura em qualquer lugar.”

Os fregueses tinham se aglomerado junto ao calor da lareira. Havia um cheiro forte de roupa úmida e bafo de bebida.

Então a tempestade tinha atraído essa multidão para o bar? Teg olhou para muitos rostos de militares endurecidos por batalhas ao seu redor, pensando que essa não era uma reunião costumeira, não importava o que Delnay havia dito. As pessoas ali se conheciam, contudo, e haviam marcado encontro para essa hora.

Delnay estava sentado em um dos bancos junto à lareira, um copo contendo uma bebida cor de âmbar na mão.

— Você passou o aviso para nos encontrarmos aqui? — perguntou

— Não é o que desejava, Bashar?

— Quem é você, Delnay?

— Eu tenho uma fazenda de inverno alguns cliques ao sul daqui, e tenho amigos banqueiros que às vezes me emprestam um carro de solo. Se quer que eu seja mais específico, sou como o resto das pessoas nesta sala: alguém que deseja ver as Honradas Madres longe dos nossos pescoços.

Um homem atrás de Teg perguntou:

— É verdade que matou uma centena deles hoje, Bashar?

Teg disse secamente, sem se virar:

— O número foi muito exagerado. Pode me arranjar uma bebida, por favor?

Com sua grande altura, Teg esquadrinhou o salão enquanto alguém ia buscar-lhe um copo. Quando o colocaram em sua mão, era o que ele tinha esperado — um drinque azul Daniano. Esses velhos soldados conheciam o seu gosto.

O consumo de bebidas dentro do salão continuou, mas a um ritmo mais controlado. Eles estavam esperando que ele declarasse suas intenções.

A natureza gregária do ser humano ganhava um impulso natural numa noite tempestuosa como essa, pensou Teg. Reunam-se junto ao fogo na entrada da caverna, companheiros de tribo! Nenhum perigo passará por nós, especialmente quando as feras virem nosso fogo. Quantas reuniões semelhantes a essa não estariam ocorrendo em Gammu esta noite?, perguntou-se ele provando da bebida. O mau tempo poderia disfarçar movimentos que seus companheiros de reunião não desejariam que fossem observados. O tempo também manteria fora das ruas certas pessoas que de outro modo estariam observando.

Teg reconheceu alguns rostos de seu passado — oficiais e soldados — um grupo misturado. A alguns ele associava boas lembranças: gente confiável. Alguns iriam morrer nessa noite.

O nível de ruído começou a aumentar à medida que todos iam ficando mais à vontade em sua presença. Ninguém o pressionava para obter uma explicação. Eles também conheciam esse detalhe a seu respeito. Teg guiava-se pelo seu próprio ritmo.

Os sons de riso e de conversa eram do tipo que deviam ter acompanhado reuniões como essa desde a aurora dos tempos, quando os seres humanos se aglomeravam em busca de proteção mútua. Copos tilintando, risadas súbitas, alguns risinhos mais controlados. Esses deviam ser os mais conscientes de seu poder pessoal. Risos controlados revelavam uma pessoa que podia divertir-se, mas não precisa se fazer de tola alardeando esse divertimento. Delnay era uma delas.

Teg olhou para cima e viu que o teto, sustentado por vigas, era baixo, construído de acordo com as convenções. Fazia aquele espaço fechado parecer ao mesmo tempo mais amplo e mais aconchegante Houvera uma atenção cuidadosa com relação à psicologia humana na construção desse lugar. Era uma coisa que tinha observado muitas vezes nesse planeta. Um cuidado em manter as pessoas fora de guarda. “Faça-os sentirem-se seguros e confortáveis. Eles não estão, é claro, mas não deixe que percebam isso.”

Por mais alguns momentos, Teg observou as bebidas sendo distribuídas por um grupo habilidoso de garçons: cervejas escuras produzidas lá mesmo e algumas bebidas importadas, caras. Espalhadas pelo bar, sobre as mesas iluminadas com luz indireta, havia tigelas contendo salgadinhos, frituras e picles. Esse movimento óbvio no sentido de promover a sede não ofendia ninguém. Era algo esperado nesse tipo de negócio. As cervejas também deviam conter sal, é claro. Sempre continham. Os donos das cervejarias sabiam como aumentar o consumo.

Alguns dos grupos estavam começando a ficar agitados, falando alto. Era a bebida fazendo sua mágica ancestral. Baco dominava o ambiente! Teg sabia que se deixasse essa reunião seguir o curso natural haveria um ápice de animação e ruído no final da noite e então, gradualmente, muito gradualmente, o nível do ruído iria diminuindo. Alguém olharia para a estação meteorológica junto da porta e, dependendo do que visse, o lugar poderia esvaziar-se rapidamente, ou continuar como estava, num passo mais contido, por algum tempo. Percebeu então que em algum lugar desse bar devia haver um dispositivo para distorcer as leituras da estação meteorológica. Os proprietários não desprezariam esse artifício para aumentar o lucro.

“Faça-os entrar e os mantenha aqui por qualquer meio que não os ofenda.”

As pessoas que dirigiam o lugar iriam aliar-se às Honradas Madres sem piscar o olho.

Teg colocou de lado a bebida e disse em voz alta:

— Posso ter a atenção de vocês por favor?

Silêncio.

Até mesmo os empregados do bar interromperam o que estavam fazendo.

— Alguns de vocês vigiem as portas — ordenou Teg. — Ninguém sai, ninguém entra aqui até que eu dê a ordem. Aquelas portas dos fundos também, por favor.

Quando isso fora feito, ele olhou cuidadosamente para as pessoas no salão, escolhendo aquelas que sua dupla visão e a antiga experiência militar lhe diziam serem confiáveis. O que tinha a fazer agora tornara-se claro. Burzmali, Lucilla e Duncan estavam lá, na extremidade de sua segunda visão, suas necessidades fáceis de discernir.

— Presumo que possam conseguir armas rapidamente — ele disse.

— Nós viemos preparados, Bashar! — gritou alguém no salão.

Teg percebeu o efeito da bebida naquela voz, mas também o velho efeito da adrenalina que essas pessoas tanto apreciavam.

— Nós vamos capturar uma não-nave — disse Teg.

Isso os fascinou. Nenhum Outro produto da civilização era mais bem guardado. Essas naves desciam em campos de pouso e outros lugares e partiam logo em seguida. Suas superfícies blindadas estavam sempre cheias de armas. As tripulações permaneciam em alerta constante nos lugares mais vulneráveis. Algum estratagema poderia ter sucesso; um ataque aberto seria impossível. Mas ali naquele salão Teg havia atingido uma nova percepção, impulsionado pela necessidade e pelos genes loucos de sua ancestralidade Atreides. As posições das não-naves pousadas em Gammu e em torno do planeta eram-lhe visíveis. Pontos brilhantes preenchiam sua visão interior, como contas levando de um lugar a outro, mostrando o caminho para fora desse labirinto.

“Oh, mas eu não quero ir”, pensava ele.

A coisa que o impulsionava não podia ser contrariada.

— Especificamente, vamos capturar uma não-nave da Dispersão — ele disse. — Eles possuem algumas das melhores. Você, você, você e você! — apontou, destacando os indivíduos. — Vocês vão ficar aqui e cuidar para que ninguém saia nem se comunique com qualquer pessoa fora deste estabelecimento. Eu acho que vão ser atacados. Agüentem o quanto puderem. O resto de vocês, peguem suas armas e vamos.

 

Justiça? Quem clama por justiça? Nós fazemos nossa própria justiça. Nós a exercemos aqui em Arrakis — vencer ou morrer. Não vamos gritar por justiça enquanto tivermos armas e liberdade para usá-las.

 

— Leto I: Arquivos de Bene Gesserit

 

A não-nave aproximou-se em vôo baixo sobre as areias Rakianas. Sua passagem ergueu redemoinhos de poeira que rodopiaram em torno dela enquanto pousava esmagando dunas. O sol amarelo-prateado mergulhava num horizonte agitado pelas miragens causadas pelo calor de um dia longo e sufocante. A não-nave imobilizou-se e estalou, uma brilhante bola de aço cuja presença poderia ser detectada por olhos e ouvidos, mas não por qualquer ato de presciência ou instrumento de longo alcance. A dupla visão de Teg tornava-o confiante em que olhos indesejáveis não tinham visto sua chegada.

— Eu quero os tópteros blindados e os carros lá fora em menos de 10 minutos — ele disse.

Pessoas saltaram em ação atrás dele.

— Tem certeza de que eles estão aqui, Bashar?

A voz era a de um companheiro de copo do bar de Gammu, um oficial de confiança vindo de Renditai, cujo estado de espírito não era mais o de alguém em busca das emoções da juventude. Esse tinha visto velhos amigos morrerem combatendo em Gammu. Como a maioria dos outros que haviam sobrevivido para chegar a Rakis, ele deixara para trás uma família cujo destino não sabia agora qual ia ser. Havia um toque de amargura em sua voz, como se ele estivesse tentando convencer-se de que fora enganado ao embarcar nessa aventura.

— Eles logo estarão aqui — disse Teg. — Vão chegar cavalgando no dorso de um verme.

— Como sabe disso?

— Foi tudo arranjado.

Teg fechou os olhos. Não precisava dos olhos para enxergar toda a atividade à sua volta. Esse era como muitos outros postos de comando que tinha ocupado ao longo de sua vida: uma sala oval cheia de instrumentos e das pessoas que os operavam, oficiais aguardando ordens.

— Que lugar é esse? — perguntou alguém.

— Está vendo aquelas rochas ao norte — disse Teg. — Pode vê-las? Já foram um penhasco elevado. Era chamado de Armadilha de Vento. Havia um sietch Fremen ali, pouco mais que uma caverna agora. Alguns pioneiros Rakianos vivem nela.

— Fremen — sussurrou alguém — Deuses! Quero ver aquele verme chegando. Nunca pensei que fosse testemunhar uma coisa dessas.

— Outros de seus arranjos inesperados, hein? — perguntou o oficial, cada vez mais amargurado.

“Que diria ele se eu revelasse minhas novas habilidades?”, pensou Teg. “Poderia pensar que ocultei motivos que não suportariam um exame minucioso. E estaria certo. Esse homem está à beira de uma revelação. Será que continuaria leal se seus olhos fossem abertos?” Teg sacudiu a cabeça. Esse oficial não teria escolha. Nenhum deles tinha muita opção, exceto lutar ou morrer.

Era verdade, pensou Teg, que o processo de organizar conflitos envolvia sempre o ato de enganar as grandes massas. Como era fácil mergulhar na atitude das Honradas Madres.

“Escória!”

E iludir as massas não era tão difícil quanto alguns supunham. A maioria das pessoas queria ser liderada. Aquele oficial resmungando agora desejara isso. Havia instintos tribais muito profundos (motivações inconscientes muito poderosas) que respondiam por isso. E a reação natural quando se começava a perceber com que facilidade se fora arrastado numa aventura que depois causava o arrependimento era buscar bodes expiatórios. E o oficial lá atrás queria um bode expiatório agora.

— Burzmali quer vê-lo — disse alguém à esquerda de Teg.

— Agora não — ele respondeu.

Burzmali podia esperar, logo teria o seu dia como comandante. Enquanto isso ele representava uma distração. Haveria tempo depois para ele aproximar-se perigosamente do papel de bode expiatório.

Como era fácil criar bodes expiatórios e com que facilidade eles eram aceitos! Tal atitude era particularmente atraente quando a alternativa era admitir a culpa, a estupidez ou ambas. Teg queria dizer isso a todos aqueles à sua volta.

— Procurem ver como foram logrados! Então conhecerão nossas verdadeiras intenções!

O oficial de comunicações à esquerda de Teg disse:

— Aquela Reverenda Madre está com Burzmali agora. Ela insiste em que recebam permissão para vê-lo.

— Diga a Burzmali que eu quero que ele volte e fique junto de Duncan — disse Teg. — E mande ele dar uma olhada em Murbella e se certificar de que ela está bem presa. Lucilla pode vir.

“Tinha que ser.” — pensou Teg.

Lucilla tinha crescentes suspeitas a respeito das mudanças ocorridas com ele. Era próprio de uma Reverenda Madre perceber diferenças.

Lucilla entrou num sussurro de mantos que acentuavam sua veemência. Estava furiosa, mas ocultava isso muito bem.

— Eu exijo uma explicação, Miles!

Era uma boa abordagem, pensou ele, e perguntou:

— Sobre o quê?

— Por que nós simplesmente não vamos lá e...

— Porque as Honradas Madres e seus companheiros Tleilaxu da Dispersão apoderaram-se da maioria dos centros Rakianos.

— Como... como você...

— Elas mataram Taraza, você sabe.

Ela se conteve, mas não por muito tempo.

— Miles, eu insisto em que me diga.

— Nós não temos tanto tempo assim. O próximo satélite que cruzar o céu vai nos mostrar pousados aqui.

— Mas as defesas de Rakis..

— São vulneráveis como qualquer outro tipo de defesa estática — ele disse. — As famílias dos defensores estão aqui embaixo. Tome as famílias como reféns e você terá um controle efetivo sobre os defensores.

— Mas por que estamos parados aqui no...

— Para apanhar Odrade e aquela moça que está com ela. Ah, e o verme delas também.

— O que vamos fazer com um...

— Odrade saberá o que fazer com o verme. Ela é sua Madre Superiora agora, você sabe.

— Então vai nos levar para...

— Vocês vão aonde quiserem! Eu e minha gente ficamos para criar uma manobra diversiva.

Essa declaração produziu um silêncio profundo na estação de comando.

“Manobra diversiva”, pensou Teg. “Mas que termo inadequado.” A resistência que ele planejava criar produziria histeria entre as Honradas Madres, especialmente quando elas fossem levadas a acreditar que o ghola estava ali. Não somente elas contra-atacariam como recorreriam a procedimentos de esterilização. A maior parte de Rakis se tornaria uma ruína carbonizada. Havia pouca probabilidade de que qualquer ser humano, verme ou truta da areia sobrevivesse.

— As Honradas Madres têm tentado localizar e capturar um verme sem sucesso — ele disse — Realmente não compreendo como elas podem ser tão cegas em sua concepção de como transplantá-los.

— Transplantar?

Lucilla estava boiando. Teg raramente vira uma Reverenda Madre tão pouco informada. Ela estava tentando concatenar as coisas que ele dissera. A Irmandade compartilhava de algumas das habilidades dos Mentats, ele observara. Um Mentat podia alcançar uma convicção válida sem ter dados suficientes. Ele pensou que estaria bem longe, fora do alcance dela (ou de qualquer outra Reverenda Madre!), muito antes que Lucilla tivesse reunido os dados de que precisava para obter uma conclusão. Então haveria uma correria atrás de sua prole! Elas pegariam Dimella para ser uma Madre Procriadora, é claro. E Odrade. Essa não ia escapar.

Elas tinham a chave para os tanques axlotl dos Tleilaxu, também. Seria apenas uma questão de tempo até que a Irmandade dominasse seus escrúpulos e conquistasse essa fonte de especiaria. Um corpo humano a produzia!

— Estamos correndo perigo aqui, então — comentou Lucilla.

— Algum perigo, é verdade. O problema com as Honradas Madres é que elas são muito ricas. E cometem os erros dos muito ricos.

— Prostitutas depravadas! — exclamou Lucilla.

— Sugiro que vá para a comporta de entrada — ele disse. — Odrade logo estará aqui.

Ela saiu sem dizer mais nada.

— Os blindados foram todos desembarcados e assumiram posições — disse o oficial de comunicações.

— Alerte Burzmali para estar pronto a assumir o comando aqui — disse Teg. — O restante de nós sairá logo.

— O senhor espera que nós todos nos unamos ao senhor? — perguntou o que buscava o bode expiatório.

— Eu vou sair — disse Teg. — Vou sair sozinho se for necessário. Só aqueles que quiserem devem ir comigo.

Depois disso todos o seguiriam, pensou Teg. A pressão do grupo era algo que poucos compreendiam fora da Bene Gesserit.

O silêncio caiu sobre a estação de comando, exceto pelo fraco zumbido e os estalidos dos instrumentos. Teg começou a pensar nas “prostitutas depravadas”.

Não era correto defini-las como depravadas, pensou. Por vezes os demasiadamente ricos tornavam-se depravados. Isso vinha da crença de que o dinheiro (poder) pode comprar tudo e todos. E por que eles não deveriam acreditar nisso? Viam isso acontecer todo dia. Era fácil acreditar em absolutos.

“A esperança brota eterna e todo esse tipo de bobagem!”

Era como uma religião. O dinheiro pode comprar o impossível.

E ai vinha a depravação.

Não acontecia o mesmo com as Honradas Madres. Elas estavam, de certo modo, além da depravação. Tinham passado por ela, ele percebia. Mas agora se encontravam mergulhadas em alguma coisa muito além de mera depravação, e Teg se perguntou se realmente queria entender uma coisa dessas.

O conhecimento, contudo, estava lá, inescapável em sua nova consciência. Nenhuma daquelas pessoas hesitaria um instante sequer antes de torturar um planeta inteiro se isso significasse algum lucro pessoal. Ou se o resultado fosse algum prazer imaginado. Ou se a tortura lhes proporcionasse mais alguns dias ou horas de vida.

Que é que lhes dava prazer? Que é que os gratificava? Elas eram como viciados em semuta. O que quer que simulasse o prazer para elas, elas precisavam de uma quantidade maior em cada ocasião.

“E elas sabem disso!”

Que ódio deviam sentir por dentro! Apanhadas numa armadilha dessas! Tinham visto tudo, feito tudo e nada era suficiente — nenhum bem, nenhum mal. Tinham perdido inteiramente a noção de moderação.

Mas eram perigosas. E talvez ele estivesse errado quanto a uma coisa: talvez elas não mais se lembrassem de como tinha sido antes daquela terrível transformação, antes do estranho estimulante de cheiro ácido que tingira seus olhos de laranja. Memórias de memórias podem tornar-se distorcidas. Todo Mentat era sensibilizado quanto a essa falha.

— Lá está o verme!

Era o oficial de comunicações.

Teg girou no assento e olhou para a projeção. Um holograma em miniatura da paisagem exterior na direção sudoeste. O verme, com os dois pontos minúsculos de seus passageiros humanos, era uma lasca distante e em movimento ondulantes.

— Tragam Odrade aqui sozinha quando ela chegar — ele disse. — Sheeana é a jovem. Ela vai ficar para trás, a fim de ajudar a colocar o verme no porão da nave Ele vai obedecer a ela. Cuidem para que Burzmali fique de prontidão por perto. Não vamos ter muito tempo para a transferência de comando.

Quando Odrade entrou na estação de controle, ainda respirava acelerado e tinha o cheiro do deserto, mistura de melange, pó de pedra e suor humano. Teg estava sentado em sua poltrona, aparentemente repousando. Seus olhos permaneciam fechados.

Odrade julgou ter surpreendido o Bashar numa atitude de repouso pouco característica dele, quase melancolicamente pensativo. Ele abriu os olhos então e Odrade viu a mudança a respeito da qual Lucilla só fora capaz de esboçar um aviso — juntamente com algumas rápidas palavras a respeito da transformação do ghola. Que teria acontecido com Teg? Ele estava quase se exibindo para ela, desafiando-a a perceber o que lhe acontecera. O queixo erguido continuava firme numa atitude normal de observação. O rosto estreito, com sua rede de rugas, não tinha perdido nada de sua aparência alerta. O nariz comprido e fino, tão característico de seus ancestrais Corrino e Atreides, tornava-se um pouco mais comprido com o avançar da idade. Mas o cabelo grisalho permanecia espesso, e aquela pequena elevação na testa atraía os olhos de um observador..

“Ah, os olhos dele!”

— Como sabia que nos ia encontrar aqui? — perguntou Odrade. — Nós não tínhamos idéia de aonde o verme nos levava.

— Existem poucos lugares habitáveis aqui no deserto meridional — disse Teg. — Palpite de jogador. Este lugar perecia provável.

“Palpite de jogador?” Ela conhecia essa expressão Mentat, mas nunca conseguira entendê-la.

Teg levantou-se da poltrona.

— Pegue esta nave e vá para o lugar que vocês conhecem — ele disse.

“O planeta da Irmandade?” Ela quase fez essa pergunta e então pensou nos outros à sua volta, naqueles estranhos militares que Teg reunira em torno dele. Quem seriam? A breve explicação de Lucilla não a satisfizera.

— Nós mudamos um pouco os planos de Taraza — explicou Teg. — O ghola não vai ficar. Ele deve ir com vocês.

Ela compreendia. Elas iam precisar dos novos talentos de Duncan Idaho para enfrentar as prostitutas. Ele não era mais apenas uma isca para a destruição de Rakis.

— Ele não será capaz de deixar a proteção da não-nave, é claro — acrescentou Teg.

Ela assentiu com a cabeça. Duncan não tinha proteção contra investigadores prescientes, tais como... os navegadores da Corporação.

— Bashar! — Era o oficial de comunicações. — Fomos detectados por um satélite!

— Muito bem, seus ratos do deserto! — gritou Teg. — Todo o mundo para fora! Mandem Burzmali para cá.

Uma comporta na parte de trás do posto de comando se abriu e Burzmali entrou.

— Bashar, que vamos...

— Não há tempo! Assuma o comando! — Teg ergueu-se do assento de comando e fez sinal para que Burzmali o ocupasse. — Odrade lhe dirá para onde deve ir.

Num impulso que sabia ser parcialmente defensivo, Teg agarrou Odrade pelo braço esquerdo e a beijou na face, sussurrando:

— Faça o que é preciso, filha. Aquele verme no porão logo será o único no universo.

Odrade percebeu então: Teg conhecia todo o plano de Taraza e planejava executar até o fim as ordens de sua Madre Superiora.

“Faça o que é preciso” Isso dizia tudo.

O que estamos vendo não é um novo estado da matéria e sim uma relação recentemente reconhecida entre matéria e consciência, a qual nos fornece uma compreensão mais profunda do funcionamento da presciência. O oráculo molda a projeção de um universo interior para produzir novas probabilidades externas a partir de forças que ainda não compreendemos. Não é preciso entender essas forças para usa-las de forma a moldar o universo físico. Os antigos ferreiros não precisavam compreender as complexidades moleculares e submoleculares do aço, do bronze, do cobre, do ouro ou do latão. Eles inventavam poderes místicos para descrever aquilo que desconheciam, enquanto continuavam a operar suas forjas e empunhar seus martelos.

 

— Madre Superiora Taraza, Argumento perante o Conselho

 

A antiga estrutura em que a Irmandade abrigava sua sede, seus arquivos e os escritórios de sua mais preciosa liderança não produzia ruídos noturnos comuns. Os ruídos eram mais como sinais que Odrade aprendera a interpretar com seus muitos anos de permanência ali. Um estalar tenso vinha de uma viga de madeira no piso que não era substituída há 800 anos. Ela se contraía à noite, produzindo esses sons.

Odrade fazia as memórias de Taraza expandirem-se ante esses sinais. As memórias não estavam completamente integradas, houvera muito pouco tempo. E agora, à noite, no velho gabinete de trabalho de Taraza, Odrade usava os poucos momentos que lhe eram disponíveis para continuar a integração:

“Dar e Tar, uma só afinal.”

Esse era um comentário bem identificável de Taraza.

As Outras Memórias deviam existir em vários planos simultaneamente, alguns deles muito profundos, mas Taraza permanecia junto à superfície. Odrade deixou-se mergulhar mais fundo nas múltiplas existências. Dai a pouco reconheceu uma identidade que continuava respirando, afastada, enquanto outras exigiam que ela mergulhasse em visões envolventes completas, com cheiros, toques, emoções — todas as sensações originais mantidas intactas dentro de sua própria consciência.

“É perturbador sonhar os sonhos de outra pessoa.”

Taraza de novo.

Taraza que fizera um jogo tão perigoso com o futuro de toda a Irmandade! Com que cuidado ela deixara vazar para as prostitutas a notícia de que os Tleilaxu tinham embutido habilidades perigosas no ghola. E o ataque ao Castelo de Gammu confirmara que a informação havia alcançado o seu alvo. A natureza brutal do ataque, contudo, advertira Taraza de que ela dispunha de muito pouco tempo. As prostitutas certamente reuniriam forças para a destruição total de Gammu — só para eliminar o ghola.

Tanta coisa dependera de Teg.

Ela via o Bashar em sua própria reunião de Outras Memórias: o pai que nunca chegara a conhecer realmente.

“E não o conheci nem no fim!”

Mergulhar nessas memórias podia enfraquecê-la, mas ela não podia escapar à atração desse reservatório de conhecimento.

Odrade pensou nas palavras do Tirano: “A terrível extensão do meu passado! Respostas saltam ao meu encontro como um bando de aves assustadas escurecem o céu de minhas inescapáveis memórias.”

Odrade permanecia como uma nadadora, boiando logo abaixo da superfície.

“É mais provável que eu seja substituída”, pensou ela. “ Talvez até desonrada.” Bellonda certamente não estava aceitando de bom grado o novo comando. Não importava. A sobrevivência da Irmandade era tudo que devia preocupar qualquer uma delas agora.

Odrade flutuou para fora das Outras Memórias e ergueu o olhar para o outro lado da sala, onde um nicho alojando um busto de mulher podia ser visto à luz reduzida dos globos luminosos. O busto permanecia uma forma vaga, nas sombras, mas Odrade reconhecia muito bem o rosto ali representado: Chenoeh, guardiã-símbolo da Irmandade.

“Aqui estou pela graça de Deus...”

Cada Irmã que superava a agonia da especiaria (como Chenoeh não conseguira) dizia ou pensava a mesma coisa, mas que significava isso realmente? A procriação altamente controlada e o treinamento cuidadoso produziam em número suficiente daquelas capazes de sobreviver à agonia. Onde estaria a mão de Deus nisso? Deus certamente não era o verme que tinham trazido de Rakis. Será que a presença de Deus era sentida apenas nos êxitos da Irmandade?

“Eu cai prisioneira das pretensões de minha própria Missionaria Protectiva!”

Ela sabia que pensamentos e perguntas semelhantes tinham sido ouvidos nesse gabinete em ocasiões sem conta. Inúteis! Ainda assim, não seria capaz de remover aquele busto protetor do nicho onde repousava há tanto tempo.

“Não sou supersticiosa”, disse ela para si mesma. “Não sou uma pessoa compulsiva. E apenas uma questão de tradição. Tais coisas têm um valor que conhecemos bem.”

“Certamente nenhum busto meu jamais será tão honrado.” Pensou em Waff e seus Dançarinos Faciais, mortos junto com Miles Teg na terrível destruição de Rakis. Era melhor não pensar muito no terrível massacre que o Antigo Império estava sofrendo. Melhor pensar na retaliação que estava sendo armada pela violência desastrosa das Honradas Madres.

“Teg sabia!”

A sessão do Conselho, recentemente concluída, acabara em fadiga sem chegar a qualquer conclusão. Odrade ficara satisfeita em desviar a atenção para algumas preocupações imediatas. Tão caras a todas elas.

As punições: isso as ocuparia por algum tempo. Os precedentes históricos consubstanciavam as Análises dos Arquivos de forma satisfatória. Aqueles grupos humanos que se haviam aliado às Honradas Madres iam sofrer alguns choques.

Ix certamente se tornaria supercooperativo. Eles não tinham a menor idéia de como a competição da Dispersão os esmagaria.

A Corporação poderia ser isolada e obrigada a pagar muito caro por sua melange e seu equipamento. Ix e a Corporação cairiam juntos.

As Oradoras Peixes podiam ser ignoradas. Satélites de Ix, já estavam desaparecendo num passado que os seres humanos logo abandonariam.

E a Bene Tleilax. Sim, os Tleilaxu. Waff sucumbira às Honradas Madres. Ele nunca admitira isso, mas a verdade era clara. “Só uma vez e com um de meus próprios Dançarinos Faciais”

Odrade sorriu com amargura, lembrando o último beijo do pai. “Vou mandar fazer outro nicho”, pensou. “E vou encomendar outro busto: Miles Teg, o Grande Herege!”

As suspeitas de Lucilla com relação a Teg eram inquietantes, contudo. Será que no final ele se tornara presciente e capaz de ver as não-naves? Bem, as Madres Procriadoras poderiam explorar tais suspeitas.

— Nós acampamos! — acusara Bellonda.

Elas todas conheciam o significado dessa palavra: elas se haviam refugiado numa fortaleza para a longa noite das prostitutas.

Odrade reconheceu que não gostava muito de Bellonda, não gostava do modo como ela ria ocasionalmente para expor aqueles dentes rombudos.

Elas tinham discutido por longo tempo as amostras celulares de Sheeana. A “prova de Siona” estava ali. Ela tinha uma ancestralidade que a protegia da presciência, e podia deixar a não-nave.

— Duncan era um caso desconhecido.

Odrade voltou seus pensamentos para o ghola, lá na não-nave pousada. Erguendo-se de sua cadeira, foi até a janela escura e olhou na direção do distante campo de pouso.

Será que elas poderiam arriscar-se a libertar Duncan do abrigo daquela nave? Os estudos celulares revelavam que ele era uma mistura de muitos ghola Idaho — alguns deles descendentes de Siona. Mas e quanto à mácula do original?

“Não. Ele deve permanecer confinado.”

E quanto a Murbella — a grávida Murbella? Uma Honrada Madre desonrada?

— Os Tleilaxu queriam que eu matasse a Impressora — dissera Duncan.

— Tentará matar a prostituta? — perguntara Lucilla.

— Ela não é Impressora — respondera ele.

O Conselho discutira longamente a possível natureza da união entre Duncan e Murbella. Lucilla insistira em que não havia união alguma, os dois permanecendo como oponentes ferrenhos.

“Melhor não correr o risco de deixá-los juntos.”

A capacidade sexual das prostitutas, contudo, teria que ser estudada longamente. Talvez pudessem arriscar um encontro entre Murbella e Duncan dentro da não-nave Com medidas cuidadosas de proteção, é claro.

Finalmente ela pensou no verme dentro do porão da não-nave — um verme que se aproximava do momento da metamorfose. Uma pequena bacia cercada de terra e cheia de melange esperava esse verme. Quando chegasse a hora, ele seria atraído por Sheeana para o banho de água e melange e as trutas da areia resultantes poderiam então começar sua longa transformação.

“Você estava certo, pai. E tão simples quando se olha com clareza!”

Não havia necessidade de buscar um planeta deserto para os vermes. A truta da areia criaria seu próprio habitat para eles. Não era agradável pensar no mundo da Irmandade com vastas áreas de deserto, mas isso teria que ser feito.

A “Última Vontade e Testamento de Miles Teg”, que ele plantara nos sistemas de armazenagem submoleculares da não-nave, não poderia ser desacreditada. Até mesmo Bellonda concordava com isso.

A Irmandade exigira a completa revisão de todos os registros históricos. Pedia-se nova visão deles à luz do que Teg tinha observado nos Perdidos — as prostitutas da Dispersão.

“Raramente se fica sabendo os nomes dos verdadeiramente ricos e poderosos. Só se conhecem os seus porta-vozes. A arena política faz algumas exceções a essa regra, mas não revela toda a estrutura de poder.”

O filósofo Mentat tinha mastigado devidamente tudo que elas aceitavam, e o que ele digerira não concordava com a dependência dos Arquivos nos “nossos invioláveis resumos”.

“Nós sabíamos disso, Miles, só que nunca o encaramos. Todas nós vamos consultar nossas Outras Memórias através das próximas gerações”

Sistemas fixos de armazenagem de dados não eram confiáveis.

“Se você destruir a maioria das cópias, o tempo se encarregará do resto.”

Como o pessoal dos Arquivos se enfurecera com essa declaração reveladora do Bashar!

“A história escrita é um processo diversivo. A maioria dos registros históricos afasta a atenção das influências secretas em torno dos eventos registrados”

Essa era uma das coisas que tinham conquistado Bellonda. Ela o admitira ao dizer: “As poucas histórias que escapam desse processo restritivo desaparecem na obscuridade através de processos óbvios.”

Teg havia enumerado muitos desses processos: destruir tantas cópias quanto fosse possível, ridicularizar os relatos muito precisos, ignorando-os nos centros educacionais, assegurando-se de que não fossem citados em outros lugares e, em alguns casos, eliminando-se fisicamente os autores.

“Sem mencionar o processo de bode expiatório que levou à morte mais de um mensageiro de más noticias”, pensou Odrade. Lembrava-se de um antigo governante que mantinha à mão uma lança para matar mensageiros que trouxessem más notícias.

Temos uma boa base de informações para construir um melhor entendimento de nosso passado — argumentara Odrade. — Sempre soubemos que aquilo que está em jogo nos conflitos é a determinação de quem vai controlar a riqueza ou seu equivalente.

Talvez esse não fosse um “nobre propósito” autêntico, mas por ora serviria.

“Estou evitando a questão central”, pensou ela.

Alguma coisa teria que ser feita com relação a Duncan Idaho, e todas sabiam disso.

Com um suspiro, Odrade chamou um tóptero e se preparou para o curto trajeto até a não-nave.

A prisão de Duncan era pelo menos confortável, pensou Odrade quando entrou nela. Tinha sido o alojamento do comandante da não-nave, ocupado por último por Miles Teg. Ainda restavam sinais de sua presença ali — um pequeno projetor holostático revelando uma cena de seu lar em Lernaeus: a velha casa de fazenda. o longo gramado, o rio. Teg deixara um estojo de costura ao lado da mesinha-de-cabeceira.

O ghola estava sentado numa cadeira, vendo a projeção. Olhou para Odrade com indiferença quando ela entrou.

— Você apenas o deixou lá para morrer, não? — perguntou ele.

— Nós fazemos o que é preciso — ela respondeu. — E eu obedecia às ordens dele.

— Eu sei por que está aqui. E não vai mudar minha opinião. Não sou um maldito garanhão para as bruxas. Está me entendendo?

Odrade alisou seu manto e se sentou na beirada da cama, olhando para Duncan.

— Você examinou a mensagem que meu pai nos deixou?

— Seu pai?

— Miles Teg era meu pai. E eu lhe entrego suas últimas palavras. Ele foi os nossos olhos no fim. Tinha que ver a morte de Rakis. A mente em seu princípios  entende as dependências e os troncos-chaves.

Como Duncan parecesse intrigado, ela explicou:

— Nós ficamos presos muito tempo no labirinto das previsões do Tirano.

Odrade percebeu como ele se sentava mais alerta, os movimentos felinos revelando músculos bem-condicionados para o ataque.

— Não existe modo de você escapar vivo desta nave — ela explicou. — E sabe por quê.

— Siona.

— Você é um perigo para nós, mas preferíamos que vivesse uma vida útil.

— Não vou gerar filhos para vocês, especialmente com aquela pequena de Rakis.

Odrade sorriu, perguntando-se como Sheeana responderia se ouvisse isso.

— Acha que é engraçado? — perguntou ele, furioso.

— Não realmente. Mas ainda assim teremos a criança de Murbella, é claro. Creio que isto nos satisfará.

— Eu estive falando com Murbella pelo comunicador — ele disse. — Ela pensa que vai tornar-se uma Reverenda Madre, que vão aceitá-la na Bene Gesserit.

— E por que não? Suas células passaram na prova de Siona. Creio que ela dará uma irmã soberba.

— Ela realmente as enganou?

— Acha que não observamos que ela pensa que vai fingir aliar-se a nós para aprender nossos segredos e então fugir? Nós sabemos disso, Duncan.

— E acham que ela não é capaz de fazer isso?

— Uma vez que as pegamos, Duncan, nunca as perdemos.

— Não acham que perderam Lady Jessica?

— Ela voltou para nós no fim.

— Por que veio me ver realmente?

— Achei que merecia uma explicação sobre as intenções da Madre Superiora. O objetivo dela era a destruição de Rakis. O que ela realmente queria era eliminar quase todos os vermes.

— Grandes Deuses, por quê?

— Eles eram uma força profética que nos mantinha sob escravidão. Aquelas pérolas de consciência do Tirano ampliavam esse domínio. Ele não previa os acontecimentos, ele os criava.

Duncan apontou para a traseira da nave.

— Mas e quanto ao...

— Aquele? É apenas um. Na ocasião em que se multiplicar até um número suficiente para exercer outra vez sua influência, a humanidade já estará fora do seu alcance. Seremos muito numerosos então, fazendo muitas coisas diferentes por nossa própria vontade. Nenhuma força única dominará completamente todos os nossos futuros. Nunca mais.

Ela se levantou.

Corno ele não respondesse, Odrade disse:

— Dentro dos limites impostos que eu sei que aprecia, por favor, pense no tipo de vida que quer levar. Prometo ajudá-lo de qualquer modo que possa.

— Por que faria isso?

— Porque minhas ancestrais o amaram. Porque meu pai o amava.

— Amor? Vocês bruxas não são capazes de sentir amor!

Ela olhou para ele por quase um minuto. O cabelo clareado estava ficando escuro nas raízes e se encrespando outra vez, principalmente na nuca.

— Eu sinto o que sinto — ela disse. — E sua água é nossa, Duncan Idaho.

Ela viu que a advertência Fremen surtiu o efeito esperado nele, e então se virou, saindo da sala e passando pelos guardas.

Antes de deixar a nave, ela voltou ao porão, onde olhou para o verme dormente em seu leito de areia Rakiana. A escotilha oferecia-lhe um panorama de uma altura de 200 metros sobre o animal cativo. Enquanto olhava, Odrade compartilhou de um riso silencioso com Taraza, cada vez mais integrada em sua memória.

“Nós estávamos certas e Schwangyu e sua gente, erradas. Sabíamos que ele queria escapar. Tinha que desejar isso depois do que fez.”

Ela falou num suave sussurro, tanto para si mesma quanto para as observadoras que aguardavam o momento em que começaria a metamorfose:

— Agora temos sua linguagem.

Não havia palavras na linguagem, só uma adaptação móvel e dançante a um universo móvel e dançante. Só era possível falar a linguagem, nunca traduzi-la. Para conhecer o significado era preciso passar pela experiência, e ainda assim o significado mudava constantemente. O “nobre propósito” era, afinal, uma experiência intraduzível. Mas quando olhava para o couro áspero e imune ao calor do verme do deserto Rakiano, Odrade sabia o que via: a evidência palpável de um nobre propósito.

Baixinho, ela o chamou:

— Ei! Velho Verme! Esse era o seu objetivo?

Não houve resposta, mas afinal ela nunca tinha esperado por uma.

 

                                                                                            Frank Herbert

 

                      

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