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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS HOMENS E AS SOMBRAS / Alves Redol
OS HOMENS E AS SOMBRAS / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Ciclo “Port-Wine” 

OS HOMENS E AS SOMBRAS 

 

 

Continuava com os olhos semicerrados, como se receasse defrontar a presença do que vivia à sua volta, embora o corpo estivesse atento para os zunidos que lhe chegavam da rua e dos baixos da casa. Sabia que na janela do quarto já brincava a luz frouxa da manhã, numa claridade suave, anunciada pelo gorjeio de um pássaro madrugador que parecia chamá-la.

"O que iria passar-se quando o marido chegasse?!" Essa interrogação ainda persistia nela, ora num sussurro que lhe segredava aos ouvidos, ora numa alucinação que lhe gritava de todas as fibras do seu corpo cansado, indo ecoar-lhe no cérebro, onde as vozes, por muito que as quisesse calar, cresciam libertas do seu domínio.

Mergulhada numa aparente sonolência, esperava que a serenidade viesse para encontrar uma solução definitiva que a livrasse do embaraço daquela certeza. "E teria coragem?", perguntava-se com ansiedade, buscando uma resposta que a ajudasse a suportar a novidade que o sogro lhe anunciara.

O Francisco já viera algumas vezes para lhe falar, rondando-lhe a cama com mil cautelas, e ela mantivera-se naquela mesma fingida apatia, sabendo-se ainda incapaz de o ouvir e de lhe responder. "Se fosse possível ficar assim até que o tempo resolvesse tudo!" Adivinhava que o amante não se conformaria com a vinda do outro e ainda não entendera bem se deveria odiá-lo por essa incompreensão, se desejá-lo mais por essa fidelidade que a comovia. "O que iria passar-se quando o marido chegasse? E se ele viesse agora mesmo... se ele subisse as escadas?..."

Essa hipótese transtornou-a. Ao longe, doloroso e lento como a sua angústia, um carro gemia.

Ocorriam-lhe diálogos, via os dois frente a frente, ouvia-os disputarem-na, e não encontrava, por mais que buscasse, uma resolução pronta para lhe sossegar a alma. "Olha, Francisco; o nosso pecado... E seria pecado pertencer a um homem que a queria e lhe dava carinhos que o outro nunca soubera dar-lhe?!... Nas cartas do marido não se lia uma palavra de ternura... Mando-te dinheiro... quando tiver mais dinheiro... E só isso lhe interessava, esquecendo-se "que ela para ali ficara abandonada, sem um filho, ao menos... Se tivesse um filho!", pensava com amargura e saudade, parecendo-lhe que só a sua falta justificava aquele pecado de pertencer ao Teimas. E desejava-o mais, sentindo-o ali, a seu lado, como um guardião fiel da sua lealdade.

Tacteou a roupa, de mansinho, e quis abrir os olhos para o sonhar melhor. "Um filho!... Olha, António Francisco... E o nome de ambos confundia-se dentro de si, sem saber a qual deles falava. Francisco... António Francisco... Tens de me deixar; é preciso... Mas qual dos dois deveria deixá-la?!..."

Desejava poder levantar-se e passear no quarto, porque tinha a certeza de que assim pensaria melhor no que devia fazer. Ali, parada, era como se estivesse presa pelo enleio daquelas mesmas vozes que durante toda a noite a tinham interrogado. "O que vai passar-se agora? O que vais fazer, Gracinda?" Se conseguisse erguer-se, sem que o amante desse por ela, tinha agora a certeza que seria capaz de se decidir. Mas ele espiava-a e via-o inquieto à sua beira, impondo-lhe a sua presença. "E se contasse tudo ao padre Augusto?" Logo, porém, um estranho pavor se apossou daquela ideia e a destruiu.

A aldeia despertava. Chegavam-lhe gritos dispersos, sussurro de vozes, gargalhadas e choros. E o carro lá ao longe a gemer; e o pássaro, ali perto, a cantar na árvore.

Voltou depois ao fio dos seus pensamentos. "Ele é que tivera a culpa... E qual dos dois?!... o marido, que abalara à cata de dinheiro, ou o Francisco, que não deixara de a perseguir com aquele olhar triste, sempre a suplicar, como se os seus olhos fossem iromper em pranto, de um instante para o outro?... Talvez o marido... Talvez ele, que a não deixava erguer da cama e decidir da sua vida por uma vez. Gostaria de ter forças para o chamar e de lhe dizer que nunca mais pensasse nela..."

Insistiu nessa hipótese, mas qualquer coisa de si própria se negava a aceitá-la. "E depois?!... Ele arranjaria outra..." Os ciúmes atormentaram-na, procurando entre as mulheres da aldeia a que lhe poderia tomar o afecto. "A Idalina do Mal-Matado, a Mariana... Eram mais novas do que ela e o Francisco iria esquecê-la depressa."

Os passos do cunhado voltaram a ouvir-se na escada.

Logo os seus sentimentos se foram alterando com a aproximação. "Porque vinha ele outra vez?... Porque não queria que ela pensasse?!..."

Na incerteza do seu espírito julgou que talvez o pudesse odiar com o decorrer do tempo, quando ele arranjasse uma mulher; seria um sacrifício por alguns meses, até que a presença do marido desvanecesse as recordações do Francisco. E, como numa experiência para si, tomou uma atitude de abandono, procurando espreitá-lo por entre a roupa, sem que ele o percebesse.

Os passos hesitavam; cada movimento devia ser pensado muitas vezes. "Vou, não vou." O bater áspero das botifarras tornava-se mais pesado, como se arrastasse consigo as preocupações do amante, ao mesmo tempo que estugava no seu peito o bater do coração. "E se fosse o marido?!..."

A emoção sacudiu-lhe o corpo num arrepio de medo e dor, deixando-lhe no ventre um peso estranho que crescia sempre e a torturava. "Como lhe falaria?... E se já lhe tivessem contado?..." Pensou abrir os olhos e sorrir-lhe de ternura; pensou depois saltar da cama e ajoelhar-se-lhe aos pés a rogar perdão. Contar-lhe tudo "e chorar as lágrimas que tinha agora para chorar, pedindo-lhe que a levasse para longe daquela terra maldita. "Partiriam para o Brasil..."

Quem subia já estava dentro do quarto.

Aquela presença não a deixou prosseguir e tolhia-a debaixo da roupa, debruçava-se sobre ela, como um pesadelo, e consumia todos os ruídos da aldeia, que penetravam pela janela. Espantado, talvez, o pássaro desaparecera.

Francisco chegou entre portas, mais abatido do que nunca, e olhava para a cama à espera que ela acordasse. Tinha pressa de lhe falar; parecia-lhe que em cada instante que passava mais se fazia o irremediável entre os dois. Ela reprimiu-se, querendo conter a respiração desigual que a oprimia.

- Estás acordada?

Aquela voz ofereceu-lhe ao corpo, abalado de emoções, uma lassidão de carícia.

- Gracinda!...

Francisco deu mais uns passos até junto dela e ali ficou vencido pelo silêncio do quarto.

- Temos de combinar, Gracinda. Abalamos hoje... quando for noite... Há um comboio que passa ao Pinhão a boa hora... E se não quiseres, vamos a pé, até Soutelo, e lá passaremos o rio...

E numa insistência:-Estás acordada?... Porque não dizes qualquer coisa?

A lassidão apossava-se dela e julgava que seria capaz de adormecer agora, por muito tempo, esquecendo tudo o que a torturava momentos antes. Invadia-a uma sonolência que a punha longe daquelas preocupações.

- Se tu quiseres, vamos para o Porto. É uma terra maior, mas hei-de arranjar trabalho. Não me faltam braços e coragem e ele não será capaz de nos enxergar no meio de tanto povo.

Gracinda escutava o tom dramático da sua voz, e, sem perceber ainda o motivo, gozava com aquele desespero, sentia um prazer estranho em prolongar-lhe a ansiedade; depois fez um gesto para tapar o rosto com a ponta do lençol, como se isolasse o cunhado da sua vida. Desalentado, Francisco deixara-se cair sobre a cama. Ela, porém, mal lhe sentiu o contacto nos pés, experimentou um receio que nunca tivera.

Logo recordou o primeiro dia em que ele a beijara. Fora ali naquela mesma cama e a sobrinha doente arrefecera para sempre, sem que eles o pressentissem. Uma súbita associação de ideias fê-la estremecer. "E se ele viesse para a matar?" Aquele silêncio oprimia-a e ameaçava-a. Ficou trémula, varada de medo, atenta a gestos que não podia ver, mas tentava adivinhar pelos ruídos da casa. Um bicharoco verrumava as traves do tecto; isso parecia ocorrer na sua cabeça com a repetição das dúvidas que a não largavam desde o dia anterior. "E se ele viesse para me matar? A espingarda estava sempre lá em baixo, suspensa da parede da cozinha, e talvez lhe lembrasse..."

Um novo impulso, que não soube dominar, fê-la sentar-se na cama, procurando-lhe as mãos com o olhar alucinado; mas as mãos dele estavam vazias e abandonadas.

Fitaram-se longamente - ele esboçando um sorriso de esperança, ela tomada ainda com o pensamento que lhe ocorrera.

- Ouviste o que eu disse? - perguntou ele por fim.

Gracinda negou com a cabeça, sem poder articular uma palavra, e recostou-se nas grades da cama para acalmar o bater descompassado do coração inquieto. Francisco pareceu desorientado com a resposta, julgando-se incapaz de repetir o que o empolgava até há instantes.

Esperou ainda que Gracinda fizesse um gesto de ternura para se lhe chegar; mas ela olhava para o oratório, onde a luz branda de um lume de azeite punha uma mancha inquieta, e invocava a Senhora do Socorro para que lhe valesse. "Se me ajudares, Senhora, irei na tua procissão..."

 

O Freitas Velho acabara por ceder ao filho a direcção dos negócios de Gaia, embora no fundo estivesse convencido de que os seus métodos de comerciar eram ainda os mais profícuos. Contudo, não pudera deixar de sentir orgulho com as referências elogiosas que os amigos faziam constantemente ao seu "rapaz", e entendera afastar-se, passando os dias a cavaquear num botequim de Santa Catarina, como se vivesse para esperar a época dos banhos no Moledo.

Nos primeiros dias sentira saudades da papelada e da volta pelos armazéns, a recomendar aos matulas que lhe tratavam dos vinhos, e aos tanoeiros que vigiavam o vasilhame, as suas preocupações constantes de lotes e de tipos consagrados pela clientela mais devotada. Algumas vezes estivera ainda decidido a romper com a sua resolução de reforma, aparecendo por Gaia sob qualquer pretexto que seria fácil invocar. Reagira, porém, para se não sentir diminuído aos olhos da criadagem, vendo-o talvez, agora, como um intruso indesejável, cujos ralhos haviam perdido o poder de outros tempos.

Mas a decisão do filho em meter um guarda-livros dera o golpe de misericórdia nos seus vagos propósitos de retorno. Achava um tremendo disparate dar conta dos negócios a um estranho que havia de confidenciar lucros a outros, aguçando-lhes o apetite de resultados rendosos; não poddia levar à paciência essa ideia de entregar a um empregado contas rigorosas das transacções, acabando por depender dele em muitos pormenores. Aquela mania de imitar os Ingleses havia ainda de acabar mal. Eles mandavam vir o pessoal da sua terra e mantinham-no sob a sua vigilância, entre Gaia, as pensões de Leça de Palmeira, o campo de golfe e a Feitoria. Quando algum exorbitava, faziam-no voltar no primeiro barco que arribasse ao porto de Leixões e o segredo do negócio continuava fechado aos intrusos.

Sabia tudo isto demasiado, porque, por muito que tivesse querido apossar-se de indicações do mercado londrino, sempre havia esbarrado com um mutismo eloquente, contra o qual os seus sorrisos, as ofertas de charutos e as palmadas íntimas se desfaziam. Boas caçadas lhes proporcionara, regadas sempre com melhores vinhos. Mas logo que algum mais novato parecia capaz de desprender a língua, nunca faltara um veterano para o chamar à parte, desferir-lhe algumas palavras em inglês cerrado e voltar o silêncio habitual quanto ao negócio.

Havia entre eles uma vigilância apertada, uma espécie de polícia secreta, contra a qual nada era possível conseguir. Depois era preciso remediar a frieza que se seguia com umas anedotas picantes, bem recheadas de palavrões que os "bifes" repetiam, em monotonia inexpressiva.

Dissera tudo isso ao filho; mas só conseguira excitá-lo mais.

- Foi com pertinácia que eles fizeram o Império; e que Deus lho guarde. A mim também não me faltará persistência para chegar a Londres.

- Morreis na travessia do Canal - respondera-lhe com violência.

- Pois ficará o exemplo, ao menos.

- Não te basta saber que o vinho é nosso?...

- Não, não me basta. Esta mediania a que nos submetemos é uma traição...

A conversa não prosseguira. Os amigos falavam-lhe do filho com enlevo e ele acabara por se render. "Aquilo passa-lhe com o tempo... Ora se passa!"

E, senhor dessa verdade, fizera ponto de reunião obrigatória no botequim, onde os amigos o encontravam, logo após o almoço, a fumar gulosamente os seus charutos predilectos.

 

Gracinda procurava aquietá-lo e recorria a quantos meios lhe pareciam capazes de o demover daquele propósito de abalarem para a Vilariça. Falara-lhe primeiro à razão, certa de que o arrancaria ao desespero em que o via consumir-se, malquistado com tudo e todos, indiferente algumas vezes, como se a vida o não tocasse, empolgado noutras, até à alucinação, como se a existência dos outros lhe frustrasse o seu próprio direito de viver.

"Ouve, Francisco. Tu tens de concordar que o mal foi nosso. A gente nunca devia ter olhado um para o outro quanto mais fazermos o que fizemos. Lembra-te da minha irmã... Lembra-te que foste tu que apadrinhaste o meu casamento com o António... E que faltámos ao que prometemos na casa do Senhor. E que estamos em pecado mortal os dois... mais eu ainda do que tu..."

Tomara-lhe as mãos para o acordar daquele torpor doentio com que ele a escutara, de olhos ausentes e arregalados, e aquele tique nervoso a agitar-lhe o rosto, cheio de uma amargura tão funda que ela lhe passara os dedos, numa carícia, como a tentar desfazer aqueles sinais que a atormentavam.

"Precisamos de coragem, Francisco", suplicara-lhe com lágrimas na voz. Mas no fundo de si percebia que outros sentimentos e desejos lhe atraiçoavam o propósito; que tudo quanto dizia era mais da boca que do coração. Ciúmes, talvez, saudades dos momentos vividos junto dele e que nunca tivera - e tê-los-ia mais alguma vez? Iria perder aquela ternura que, embora nalguns momentos a mortificasse de arrependimento, era o único bem que ainda a vida lhe concedera?

"Para ti é mais fácil, porque és homem; mas temos de fazer esse sacrifício!"

-É o que queres?", perguntara-lhe o cunhado, relanceando-lhe um olhar que ela não pudera perceber - havia nele um misto de ferocidade e de candura exaltada que lhe fez medo e a comoveu.

-Se é isso o que desejas, diz agora mesmo. Eu já sei o que tenho a fazer."

Entendeu-lhe a ameaça com alvoroço; gostou até de lhe perceber o significado. Aproximou-se mais, como se o quisesse convencer da sua verdade, mas apetecia-lhe que ele a agarrasse e lhe repetisse em carinhos tudo o que tinha para lhe dizer. "Mas tens de compreender", disse mais uma vez para se conseguir dominar.

A resposta dele fora imperativa: "Ou ele ou eu... Tens de escolher agora mesmo. Um dos dois é preciso que desapareça. Por mim, já sei..."

- Cala-te!", gritara-lhe sem convicção. Ela sentiu-se perversa pela indiferença que o desespero de Francisco lhe provocava. Mas aquilo não era indiferença; seria mais, talvez, uma cobardia calma que recusava inteirar-se da situação criada a amante, para se não deixar envolver também pelo labirinto das hipóteses. Ele, porém, insistia com uma audácia nova; e ela refugiara-se nas lágrimas para ver se o comovia.

Acabara por chorar com convicção, sem entender se o fazia pela situação criada, se com saudades de o ver afastar-se da sua vida. Imagens dispersas dos seus encontros vinham-lhe aos olhos toldados e não lhe repugnavam. Ele passara da apatia para a excitação, e nem por um instante pareceu disposto a parar junto dela para a consolar. Gracinda odiara-o nesse momento, enquanto Francisco passeava agitado, esgrimia com as mãos trémulas, sacudia a cabeça com frenesi e olhava-a com aquela mesma expressão indecifrável que a confrangia e a orgulhava. Cada passo dele parecia rasgar o quarto, deixando imagens esfiampadas no vazio.

"Se tu quiseres, ele não te toca mais. Abalaremos hoje... agora mesmo. E se te procurar..." A expressão do seu rosto endurecera e prosseguira no silêncio as palavras que ele receara dizer. Depois não a olhara mais, durante algum tempo, como se se achasse diminuído por ter ido tão longe nas suas confissões; mas a exaltação era maior, como se os desabafos que retivera lhe percorressem o corpo num frenesi. Pensara ainda lembrar-lhe: ele é meu marido; mas o receio de o cunhado a desfeitear - ou seria medo de o perder? - obrigou-a a calar-se.

Em baixo, na cozinha, o velho Teimas bramava com um dos netos, para lhes fazer sentir que voltara e os ouvia. Francisco detivera-se, como se estranhasse a presença de outras pessoas em casa, e aproximara-se depois para insistir no seu pedido. "Tens de resolver hoje mesmo! Ou ele... ou eu..." E fazia-o com uma hostilidade que ia mais para o velho do que para ela.

"O teu pai está lá em baixo com os rapazes. Não fales tão alto... ou cala-te, que ainda seria o melhor", lembrara-lhe entre lágrimas. Sem que o pudesse evitar, Francisco agarrara-lhe um dos braços e apertara-lho com violência, sacudindo-a, com o rosto transtornado junto do dela. "Que vais fazer quando ele chegar?!... Julgas que nunca mais serás minha?..."

Então Gracinda dissera-lhe aquelas palavras de que se arrependia agora: não te importes que ele venha, porque serei sempre tua.

Francisco repudiara ainda aquela hipótese, mas acabara por aceitá-la com o tempo. Torturava-se com ciúmes, hostilizando a cunhada, ao insistir em pormenores que lhe parecia necessário explicar. "Virás aqui sempre que eu quiser, ouviste? E num dia qualquer que ele saia, irei ter contigo lá a casa... Se alguma vez ele viesse a saber, tudo ficaria resolvido. Como ela lhe parecesse transtornada, feriu-a com insinuações. "Ainda gostas dele... Mas lá pelo Brasil ele teve quantas quis, enquanto eu te fui sempre fiel, mesmo antes de a tua irmã ter morrido. É por isso que talvez lhe diga tudo, cara a cara, de homem para homem."

Atrás de uma primeira mentira, Gracinda tivera de o enredar com muitas outras; pensava-as a todas as horas, quando ele se ausentava para as vinhas. E ficava a adivinhar-lhe os efeitos até que um dia ele a deixasse descansada.

Aquela sua perversidade repugnava-lhe, mas desculpava-se com o pretexto de que o fazia para bem de todos.

O velho Teimas espiava-os no seu silêncio e mal lhes falava. Um dia dissera: porque não voltas para tua casa, Gracinda? O teu marido aparece por aí algum dia, sem ninguém esperar... É mania velha de todos os "brasileiros".

Ela, porém, evitava estar só dentro daquela casa, que lhe lembrava mais ainda a presença dos dois homens na sua vida.

 

"Para se chegar ao inglês é preciso sermos tão teimosos como eles", repetia Albano Freitas a si mesmo, para se convencer de que não eram vãos os seus projectos, apesar dos sorrisos incrédulos e das constantes recomendações do pai.

Confiava em si; entendia que para alguma coisa tinha devorado as sebentas de Direito - quanto mais não fosse, dizia a sorrir, para ser advogado das suas próprias causas. E, para ganhar aquela, já estabelecera um largo plano de que fazia parte o casamento com D. Constança Pimentel, que lhe abriria o mundo da política, e onde acharia, estava convencido, novos e mais poderosos aliados para o assalto ao mercado de Londres. Algumas vezes ainda pensava comedir-se nas ambições; mas o galope das cifras, como se fizesse parte de um conto de "As Mil e Uma Noites", deslumbrava-o.

"Comprar por um e vender por dez já é de homem inteligente. Chegar, porém, aos bifes da ilha e pôr-lhes o vinho no cálice é arrecadar cem... Cem vezes é genial!" Perturbava-se com esse sonho grandioso. E nem os exemplos que o pai lhe citava eram suficientes para o desviar do caminho.

Obcecado com essa ideia, mal entrava no escritório de advocacia da Rua de Santo António; dava uma volta aos mesmos papéis, revia-se nas letras pintadas no vidro fosco da porta do seu gabinete e abalava para Gaia. Ali passava largas horas, quase indiferente aos negócios com o Brasil e o mercado interno - tudo aquilo lhe parecia uma miséria ao lado das perspectivas de Londres.

Naquela manhã, porém, Albano Freitas vinha mais exuberante do que nos outros dias. Encontrara o comissário do Roop a caminho da Alfândega e, sem que o outro fosse capaz de se opor à má cara, arrastara-o consigo até aos armazéns. Arnaldinho Veiga, preso pelo braço, como se o levassem ao degredo, titubeava evasivas, não desse o inglês com ele naquelas intimidades. Receava perder o lugar que a pouco se confinava e muito lhe rendia - carregar a mala do Roop quando ele visitava o Alto Douro, na época de compras, aturar-lhe algumas bebedeiras e pôr-lhe a casa às ordens quando chegava à Régua. Obrigara-se a fazer casa de banho por causa dele e a pouco mais o forçava a honra de ser comissário de uma das maiores casas inglesas da praça do Porto.

E agora ia ali preocupado a ouvir o Dr. Freitas, que lhe afiançava não o distrair por muito tempo.

- Quero só ouvir a opinião de um homem competente. Você sabe, meu caro; há muito quem mexa em vinhos, mas quem os conhece como você...

A arfar - aquele maldito coração dava conta dele! - Arnaldo Veiga chegou à entrada do pátio, já um tanto sossegado. A azáfama da descarga dos carros, que mulheres conduziam e os criados desocupavam de pipas, entre gritaria e risota, acabara por deixá-lo à vontade.

- São instalações modestas, é claro! - disse o Dr. Albano com a sua ênfase habitual.

Ao fundo da latada, agora quase nua de folhagem, erguiam-se as paredes altas dos armazéns, caiados a salmão vivo, e à esquerda, mais cuidadas, as instalações do escritório e a casa de provas, a cuja porta surgira o guarda-livros, de manga de alpaca muito lustrosa e caneta presa na orelha, dando ordens e conferindo as pipas que os matulas faziam rolar no pavimento de pequenos blocos de granito.

- Tudo aqui é feito nas melhores tradições de tratamento do nosso porto - esclarecia Albano Freitas. -"Não olho a despesas; olho aos resultados e à minha preocupação patriótica de não trair esta maravilha da nossa terra e do nosso sol.

O outro pestanejava e retorcia o bigodão, sem se sentir capaz de arriscar uma palavra, como se o espírito do Roop ali estivesse presente para o vigiar.

Da tanoaria crescia o ruído das ferramentas, depois que um homem de carapuça azul e calça esfarrapada de bombazina chegara à porta e vira o patrão. Os martelos e malhos golpeavam o ferro dos arcos de mistura com o ruído das aduelas de madeira do Báltico que os tanoeiros preparavam para novas pipas. No pátio, a chia-deira dos carros que saíam e entravam aumentava também com os brados das carreiras e os "óis" dos criados. Tudo aquilo dava a Albano Freitas uma sensação de prazer que não podia refrear. E entrou no escritório, saudando o velho empregado que tratava da correspondência e das facturações, um verdadeiro arquivo, de que o pai Freitas se fazia eco por onde andava, pois nunca entendera aquele milagre de perícia.

- Vamos à casa de provas ou aos armazéns?

- Como entender, doutor.

Albano Freitas abriu a porta de acesso às galerias, e uma golfada de sons confusos entrou no escritório, na companhia de um odor penetrante e delicioso. De cima de uma das grandes cubas de cento e cinquenta pipas, um homem saudou-o com a sua carapuça vermelha. E os matulas do armazém, que carregam vinho de um extremo para o outro de um dos "cumes", apressaram o passo e afrouxaram cantigas. Alguns deles, de braços cruzados no peito, conduziam os canecos de madeira, equilibrando-os na cabeça, sem qualquer ajuda.

Uma luz frouxa entrava pelas estreitas janelas gradeadas, mostrando fantásticas teias de aranha que iam de uns barrotes aos outros do travejamento, numa estranha decoração, em que sobressaíam as arcadas caiadas de branco.

- O que lhe parece?...

Talvez porque as sombras da galeria o aquietassem, o comissário sentiu-se mais à vontade.

- Impecável, Sr. Doutor. Tudo tão bem como nos melhores armazéns ingleses. Já vejo que também pensa que o melhor vinho do Porto se faz à cabeça dos matulas.

- Agrada-me ouvi-lo, meu caro Veiga. Sabe que... Mas ficou-se naquelas reticências. E, chegando-se a uma pipa que um dos matulas pintava, com uma mistura de borras de vinho e terra preta, apontou-a com desvelo.

-onéctar que vai aí dentro só os Ingleses o saberiam apreciar. Já cO meu toda a aguardente que se lhe pôs em dez anos de casa. Mandei-o refrescar com um vinho mais fogoso e jovem... Tem um bouquet e uma cor que nem as vestes papais usam um carmesim tão puro. Suave e áveludado... Ah, meu amigo!... Tratar vinhos é uma paixão! Não sei se admira os grandes mestres da pintura, mas não sou exagerado se disser que fazer um vinho destes é tão sublime como dar ao mundo uma tela maravilhosa...

- É muito bonito, lá isso é verdade.

As palavras vazias do comissário causaram-lhe repugnância, mas prosseguiu no mesmo entusiasmo.

-E a execução é semelhante, repare. O pintor serve-se das cores da sua paleta e mistura-as apaixonadamente, tal qual como nós com os vinhos. Há vinhos que são vermelhos... Outros suaves como o cor-de-rosa... Outros azuis...

Arnaldinho Veiga parecia atordoado com a fantasia do Freitas; este percebeu-lhe a estranheza e quis elucidá-lo.

- É por simbolismo, sem dúvida, mas pense bem e veja se não há vinhos que, pelo conjunto da cor, do perfume e do paladar, têm tudo isto que lhe disse...

Tomou novamente o braço do comissário e encaminhou-o para o gabinete. Foi direito a um copo de provas, despejou-lhe um dos seus vinhos mais apurados e ofereceu-lho com orgulho, revendo-se na cor resplandecente que a luz da tarde avivava mais.

- Repare nesse maravilhoso dourado! E esse bouquet!... Melhor do que os melhores vinhos da quinta do Roriz, do Kopke ou do Fladgate.

O comissário aspirou-lhe o perfume, reviu-o com devoção e levou depois o copo aos lábios. O Freitas ficou de olhar atento, como suspenso das expressões do seu rosto; e, mal lhe viu uma estranheza significativa, exprimiu o seu entusiasmo.

- Já bebeu igual?!... Hã?!...

- É muito bom, confirmou o outro, voltando a mirar a cor do vinho.

- Diga maravilhoso, porque não está aqui o Roop para o ouvir. Diga maravilhoso, porque não exagera.

O comissário acenou a cabeça, mas já o Freitas despejava outro vinho, que ficou a apreciar longamente, levando-o para defronte da luz que mordia os vidros da janela. Sacudiu o líquido no copo por duas vezes e esqueceu-se a observar a sua aderência ao cristal.

- É um vintage autêntico de 1896 - afirmou com solenidade. - Aqui não entra baga de sabugueiro para lhe dar cor. Repare!...

Curioso, Arnaldinho Veiga foi postar-se junto dele, em bicos de pés, franzindo o rosto bolachudo, para melhor cerrar os olhos e apreciar o vinho.

- Próprio para a festa da coroação de um rei inglês -disse ainda o Freitas sem olhar o outro. - Puro como uma virgem... Não há aqui misturas e envelheceu por si. Com mais cinco ou dez anos...

E passou-lhe o copo, que o comissário levou à boca, mastigando o líquido com as mandíbulas fortes.

- Suave e áveludado...

Arnaldinho confirmava com os olhos, embora parecesse ausente dali. Acariciou o copo com os dedos e foi colocá-lo sobre a mesa comprida do centro, sem uma palavra, para percorrer depois as amostras rotuladas que cobriam as prateleiras. O Dr. Freitas seguia-o a distância, para apreciar melhor a impressão que tudo fazia no seu espírito. E, quando lhe pareceu, foi direito à conversa que os trouxera até ali.

- Cumpro o meu dever de português, como pode verificar. Há interesses nacionais a prezar...

Proferiu a última frase com uma ponta de emoção, que o comissário ouviu com respeito, afagando o queixo curto, numa atitude muito sua de confrangimento. Passou-lhe a mão no ombro e, bem de frente, procurando apanhar no seu o olhar do outro, deixou sair as palavras com brandura, para que o Veiga o escutasse sem reacções.

- É o meu orgulho de português que me obriga a tanto. Não receio hoje confronto com os vinhos de qualquer casa inglesa...

E disse exactamente o que desejava.

- Melhores do que os do Roop.

O outro estremeceu com essa invocação.

- Não diga nada. Neste momento somos apenas dois portugueses, ambos vaidosos das maravilhas que Deus dispensou à nossa terra. Por mim, devo dizer-lhe que me sinto chocado com o facto de ver na grande maioria dos armazéns de vinhos nossos essa mesma chapa que vem desde o tempo das guerras civis. Propriedade inglesa e a respectiva bandeirinha... Não o digo por despeito... Tenho amigos entre os Ingleses... oRoop, por exemplo, é uma jóia...

- Uma jóia, sim senhor - confirmou o Veiga, mais aquietado com o elogio feito ao "seu" inglês.

- Mas isso não me impede de sentir esse desgosto... O vinho é nosso...

- Foram eles que lhe deram fama - interrompeu o outro, servindo-se de um argumento muito usado pelo Roop no período de compras.

- A base é o nosso vinho. E, se não fossem os Ingleses, nós próprios o saberíamos qualificar. Lembre-se de que foram os nossos navegadores...

- Lá isso também é verdade...

Albano Freitas puxou-o para junto da janela, convencido de que a partida levava bom rumo; o comissário é que não achou mais palavras para continuar.

- Pois que o bebessem os Ingleses e que o viessem aqui buscar nos seus barcos, com a condição de nos pertencer o comércio exportador. Contudo, eu, que tenho dos melhores vinhos, não meto um dedal do meu lá em Londres. O Brasil afrouxa as compras e não é um país suficientemente civilizado para apreciar o nosso porto. E só com sacrifícios sem par eu consigo manter-me aqui, em Gaia, que é terra portuguesa.

- Graças a Deus...

- Pois é preciso também que, graças a Deus e graças aos portugueses que têm a honra de o ser, façamos do vinho do Porto um vinho verdadeiramente nacional. O "bife" anda às nossas cavaleiras e isso não pode continuar. ..

O Veiga estava inquieto, sentindo-se comprometido por ouvir aquelas referências ao patrão. Voltava a recear que ele pudesse saber alguma coisa de uma conversa de tal jaez e movia as mãos com nervosismo, embora fosse incapaz de reagir como desejava. O Freitas percebeu-lhe o melindre e desviou-se com habilidade.

- É claro que o Roop é um homem sério. Se todos se lhe assemelhassem... talvez nos entendêssemos. E era fácil! O comércio português ficaria com o exclusivo das compras no País e os Ingleses que o vendessem depois em Londres.

O comissário indignou-se com a sugestão, que anulava os seus interesses, e esbravejou.

- Essa agora, Sr. Doutor! E que fazíamos eu e os outros comissários?! Vivíamos de esmolas?!...

- Trabalhariam connosco, muito simplesmente - retorquiu o Freitas, segurando-o pelo braço.

E, debruçando-se ao ouvido de Arnaldinho Veiga, confidenciou-lhe:

- Agora mesmo nos poderíamos entender...

- O senhor julga-me capaz?! - disse o comissário com dignidade.

- Julgo-o português, meu caro. Não se revolta quando pensa...

- Eu recuso-me a pensar e a ouvi-lo.

- Bastavam-me o nome de alguns grossistas de Londres - insistiu o Freitas, sem se alarmar com os protestos do outro. - Isso não o comprometeria de modo algum.

As gargalhadas do Veiga é que o desnortearam.

- Ora o Sr. Doutor!... Desculpe-me que lhe diga, mas está muito cru. Então julga que só isso lhe bastava?!... A coisa é mais complicada!...

- Com esses nomes faria ofertas mais baixas - disse ainda o comerciante.

- Se eles deixassem... Então desconhece que estão todos ligados e que só lá entra o que eles querem?!...

- Pois faço-lhes uma campanha mestra, mesmo com riscos de perder tudo o que me pertence. Irei pelo Douro denunciá-los... escreverei nos jornais...

O sorriso do Veiga irritava-o.

- Duvida?!... E quando chegar à Câmara dos Deputados...

- O Sr. Doutor, assim, nunca mais lá entra, sou eu quem lho diz.

- Veremos!

- Pense bem, Sr. Doutor. Há asneiras que se fazem na vida e que nunca mais se podem emendar.

Ficou um silêncio entre eles. Lá fora partiam os últimos carros de bois, enquanto os matulas rolavam as pipas para dentro dos armazéns.

A tarde descia, deixando sobre o casario da cidade, do outro lado do rio, uma luz branda que acariciava os contornos e as cores. Albano Freitas chegou-se à janela e respirou fundo, alteando o peito com estudada indiferença. Matreiro o Veiga aproximou-se.

-oSr. Doutor costuma ir às touradas a Espinho?

O outro voltou-se, sem entender o sentido da pergunta.

- Pois eu vou, sempre que estou no Porto, e gosto muito. E saiba que tenho aproveitado alguma coisa...

- Mas a que propósito...

O Veiga pendurou-se no ombro de Albaninho Freitas, para lhe segredar muito à mansa:

- Se quer chegar um dia a Londres, não queira pegar os Ingleses de caras. Faça como os forcados com os bois mais valentes: experimente pegá-los de cernelha.

E, voltando às suas gargalhadas sadias, fitou o outro com malícia.

- De outra maneira, leva alguma porrada que vai parar aos camarotes. Eu conheço-os como aos meus dedos; eles, quando arrancam, é pela certa...

Pegou na mão abandonada do Freitas e apertou-lha com vigor.

- Até à vista! E pense bem no que lhe disse agora.

A saracotear-se, com a pressa, o comissário desapareceu; Albano Freitas entrou no gabinete e deixou-se cair no maple, onde amadurecia os seus projectos. "Outro que lhe dizia o mesmo... Todos falavam pela mesma boca; mas ia deixar-se vencer sem uma tentativa?!"

Ao ouvido soava-lhe ainda a voz mansa do Arnal-dinho Veiga - "pegue-os de cernelha, Sr. Doutor!..." E o Freitas pensava consigo: "Mas quem há-de rabejar os Ingleses?"

 

Na cozinha, só ela ficara com o sobrinho mais novo, que preparava os cadernos para a escola. Os outros já se tinham recolhido, talvez cansados daquele silêncio que se fazia agora muitas vezes entre eles e de que Gracinda se sabia a causadora. Depois que viera a carta do Brasil, todos sabiam que O seu destino se jogava com a vinda do António Francisco.

Pareciam desconfiados uns com os outros e evitavam falar-se; mas, quando o faziam, o pretexto mais comezinho lhes bastava para se disputarem com palavras violentas. O velho Teimas vinha logo com alusões às dívidas contraídas para com ela e arrenegava o filho por havê-lo enganado tanto tempo. "As terras dos pobres não se criam com dinheiro emprestado, mas com suor. E quem não tiver sangue para isso, bote-se lá abaixo ao Douro, que faz melhor figura."

Quando estavam à mesa e alguém mexia no portão do quinteiro, todos ficavam suspensos, olhando-se de revés, estremecendo a cada ruído que vinha de fora, como se houvessem cometido um crime cujos remorsos os minassem de pavor. Depois tagarelavam mais alto, por algum tempo, até que voltavam à mesma modorra, aos gestos lentos e às discussões azedas, se qualquer palavra lhes dava azo.

Ela tinha a certeza que estava ali a mais e, contudo, ficava sempre, mesmo contra aquela hostilidade que a magoava. Não porque lhe agradasse a insistência do cunhado em abalarem - essa era ainda para ele a melhor solução - ou as ameaças veladas contra o marido com que a queria demover. Continuava ali porque a presença dos outros a ajudava a defender-se do convívio mais íntimo com o amante. Só se lhe entregara uma vez depois que a carta chegara e não queria pertencer-lhe mais, por muito que ele a rondasse com violências ou com carícias, num desvairamento doentio. Mentia-lhe para o acalmar, mas não cedia aos seus rogos. "Vai hoje a tua casa; eu vou lá ter depois."

O seu cortelho, porém, fazia-lhe medo.

A única vez que lá entrara fora sempre perseguida pelo marido, embora tivesse guardado o seu retrato, que estava sobre a cómoda, ao pé da jarra azul com uma rosa de papel já desbotada. Mas ele continuava a persegui-la em cada canto e em todas as coisas - no banco que lhe trouxera da Senhora do Monte, na arca que ele próprio construíra, no candeeiro partido naquela noite em que voltara duma lagarada com uns copitos a mais, na coberta que lhe invocava o dia do casamento...

Quisera entrar no quarto, sem se lembrar que ali conhecera os dois; logo, porém, recuara aturdida. "O que iria passar-se quando ele chegasse? Como poderia voltar a viver ali?!..." E jurara nunca mais pertencer ao cunhado, se a doença do marido não fosse de morte. Essa ideia sorria-lhe algumas vezes, mas receava insistir nela.

E agora voltava-lhe mais impetuosa, ao olhar o sobrinho, que escrevia nos seus cadernos da escola. Subiu a escada com o coração a golpear-lhe o peito, procurando evitar que o Francisco a pressentisse; pegou na folha de papel que havia comprado na taberna do Mal-Matado e voltou com as mesmas cautelas, descendo os últimos degraus quase a correr, como se receasse que o cunhado ainda a fosse agarrar no meio da escada.

Sorrateira, aproximou-se depois do Luís e perguntou-lhe se seria capaz de lhe escrever uma carta - tinha receio de que as suas letras mal alinhavadas lhe frustrassem o pensamento. O rapazola sorriu-lhe, vaidoso da tarefa. E, embora soubesse que no outro dia as mãos lhe pagariam em palmatoadas a sua falta de aplicação, jurou-lhe que já acabara tudo. Muito perto um do outro, ela foi-lhe ditando a carta para o marido.

"A miséria cá na terra é cada vez maior inda ontem a Rosária me veio oferecer o lençol do casamento e os homens passam o dia na praça a guerrearem-se sem trabalho.

O tio António disse ontem à ceia que se não aparecerem os ingleses a comprar vinho não há lavrador que possa cavar as terras depois da colheita e a novidade deste ano não pode levar aguardente nem as vinhas sulfato nem há dinheiro para levar as uvas ao lagar. Gostava muito de te ver cá, só Deus Nosso Senhor sabe, mas no meu fraco entender acho que não devias vir agora guarda o dinheiro que tanto te custou a ganhar ou então manda-me ir ter contigo que sou mulher para te ajudar no que for preciso. Tu é que sabes mas há uma coisa que me diz que vamos perder o dinheiro todo que tu arranjas-te..."

Luís hesitou um instante na palavra, sem saber se havia de dividi-la com um traço ou escrevê-la toda pegada. "O que foi?", perguntou-lhe Gracinda. Então o rapaz decidiu-se, sem dar parte de fraco, e meteu-lhe o traço.

-Pode dizer, tia Gracinda.

Ela fez-lhe uma carícia e chegou-se mais para ler o que ditara. "E se ele já tivesse embarcado?", pensou, amargurada.

- Acaba agora como é costume. Muitas saudades de todos...

Mas as palavras baralhavam-se com o pensamento. "Tinha a certeza que ele não embarcaria se recebesse ainda aquela carta. Conhecia-lhe a avareza e não duvidava do êxito daquelas letras. Entretanto, afastaria o cunhado a pouco e pouco até que o desimaginasse de todo; ou então..."

Aquela ideia seduziu-a, embora evitasse insistir em pensá-la. "Ele estava doente e, se continuasse por lá, talvez..."

Quando subiu para o quarto, aquela hipótese dominava-a. E toda a noite a acompanhou na insónia que lhe não deixara fechar os olhos.

 

António Teimas ia com aquela ideia ferrada e parecia não reparar no neto, que caminhava à sua beira pelo quelho arriba do Santo Cristo. Amparado ao seu bordão, o velho mal correspondia às saudações que lhe dirigiam dos portais, tão absorvido andava nas preocupações das últimas semanas. E a Conversa daquela manhã com o filho quase o alucinara.

"Trezentos milréis?... Onde gastaste tu trezentos milréis?..."

Francisco olhara-o com firmeza, querendo conter o tique nervoso do rosto, e respondera-lhe num repelão de palavras: "Gastámos cá em casa. Não sabe que na aldeia todo o povo se queixa do mesmo?!... Só se queria que comêssemos pedras!...

"Era bem melhor...", retorquira-lhe, já cego pela ira.

"Se mesmo com a carta que a Gracinda lhe escreveu o António Francisco chegar aí, estamos perdidos", dissera-lhe o filho, esbracejando no meio da casa, como se quisesse agarrar alguém que o defrontasse. "E o que pensas fazer?", perguntara-lhe. "Ainda não sei, mas não faço coisa boa, pela certa."

Vira-lhe no olhar que ele não falava por bravata; e magoava-o saber que o filho só falava daquele modo por causa da Gracinda. Apesar de todas as dissimulações, não o enganavam as zangas e amuos, seguidos de cochichares pelos cantos e de pretextos para ficarem sós. "Cada cuba cheira ao vinho que tem dentro", era um dito antigo que nunca esquecera. Preferia que o seu Francisco lhe respondesse assim na defesa da terra que ele fizera à custa de sofrimento e obstinação, e nunca porque o outro voltava para o lugar que lhe cabia junto da mulher. Ele próprio sentia que a ausência da Gracinda lhe iria fazer falta - já se habituara também ao seu convívio. "Coma, Ti António... Não gosta da cozinheira?..." E tinha sempre uma palavra de ternura, um afago no olhar, um sorriso de incitamento.

Era bem certo que as mulheres assim tornavam o pão menos duro e davam coragem para a vida. E o filho precisava de uma companheira, porque homem novo sem fêmea é como vinha sem bardo - não se aguenta na montanha com a primeira enxurrada. Não podia esquecer, porém, que, se ela não tivesse vindo para ali, nunca as dívidas chegariam àquela soma que o apavorava.

O neto adiantara-se para lhe sentir o olhar, e o velho baixara-o mais ainda, como se quisesse isolar-se de tudo o que o desviasse daquele pensamento.

- Porque anda triste, avô?... Por causa da zanga com meu pai?...

Só então o velho se deteve para erguer a cabeça, como se a chapada do sol o acordasse; sem olhar o meto, começou a afagar-lhe o rosto, acabando por puxá-lo para a sua ilharga.

- Há coisas que só mais tarde poderás compreender. ..

- Eu gostava de saber tudo o que o avô sabe - retorquiu Luís com orgulho, agarrando o braço que o velho levava sobre o seu ombro.

Por momentos, António Teimas esqueceu as preocupações e reviu-se naquele neto, que seria o herdeiro do seu amor pela terra.

- Pensa sempre assim, neto; pensa sempre assim...

O rapaz não achou maneira de responder ao avô e ambos prosseguiram calados até ao portão da Casa Grande, como se as palavras estivessem a mais entre eles.

- Está o Sr. Silva Costa?!... -perguntou o velho, buscando alguém pelas janelas fechadas.

A cabeça da Ana Sarrifa apareceu e saudou-o; já o filho do caseiro abrira o portão e puxava Luís para dentro.

- Viva, Ana. Diz-lhe se me pode dar uma fala. É por pouco tempo...

E incitou o neto com um aceno de mão.

-O avô não se demora... Vai ver o jardim, que é bonito.

Os dois rapazolas partiram à frente, de braços sobre os ombros, saltando pela rua empedrada; ao fundo via-se a rotunda ajardinada, onde o Cupido de mármore espreitava por entre campainhas azuis e rosas de toucar.

António Teimas arrastava-se com esforço e exagerava ainda, querendo rememorar nas palavras que antes lhe pareciam mais ajustadas para levar o Silva Costa ao que desejava. Agora, porém, sentia um doloroso desconforto ao achá-las incapazes de convencer o administrador de D. Fernando Pimentel. "Pedir adiantamentos era entrar em descontos por juros que nunca conseguia entender bem. E quando os juros se sentam à mesa de um homem é deixá-los comer até ao fim; não há quem lhe ponha mão na gula."

O pior é que o António Francisco ia chegar e quereria o seu dinheiro.

Da esquina do prédio surgiu o Silva Costa no seu passo miúdo e saltitado; afagava as guias do bigode, ora numa ponta, ora noutra, e sorria vitorioso, como um homem que se habituara a tirar da vida alguma coisa do muito que ambicionava.

- Então essas pernas? - disse para António Teimas, a distância, parando à sua espera.

-Ora, Sr. Silvinha!... Já não há boa vontade que lhes acuda. São para aqui uns trambolhos de arreliar qualquer santo. Nem S. Sebastião tinha tanta paciência!

Silva Costa conduziu-o até à entrada da porta larga; o velho deteve-se, por instantes, a reparar no neto, que estava junto do Cupido de mármore com o companheiro.

- Trouxe o rapazola para me ajudar; desculpe, Sr. Silvinha - esclareceu António Teimas, não fosse o administrador embirrar com a presença de Luís.

-Pois fez muito bem - retorquiu-lhe Silva Costa

com a mão agarrada a um dos braços do velho. - É preciso que deixe a alguém o seu saber no trato das vinhas...

- Se isso me desse alguma coisa - aproveitou logo o Teimas para entrar no assunto que ali o levava. - Nisto de vinhas sabe quem sabe. E o Sr. Silvinha...

Silva Costa não podia retrair a sua exuberância daquele dia. Apurara as contas das várias quintas do fidalgo (c) ficara com a certeza de que o seu plano não falharia no que respeitava à do rio Torto. E enquanto o velho Teimas buscava ainda a melhor maneira de lhe falar no adiantamento, o administrador foi escancarar a janela, assobiando baixo. Só depois encarou o velho, indicando-lhe, num gesto de mão, que podia começar.

Lá fora, Luís mirava o boneco de mármore com deslumbramento, vendo-o tão perfeito, enquanto o filho do caseiro sorria com o seu pasmo.

- Já viste que não lhe falta nada?...

E, com a ponta do dedo, foi tocar a saliência que nunca deixava de o maravilhar.

- Inteirinho, an?!...

Luís Teimas, porém, recordara-se do amigo que lhe falara no boneco pela primeira vez. Afastou-se de cabeça baixa e olhou depois, à sua volta, como se procurasse alguma coisa que lhe fazia falta. Ouvia o Fatinário contar-lhe as suas andanças de carreiro pelo Douro; sentia-lhe a mão carinhosa no ombro e revivia com saudade a ida a Ventozelo, por causa dos rebanhos dos serranos. "Fora ali que o Fatinário morrera na noite da lagarada.

E nunca mais pudera olhar o pai dele a direito, porque sabia que a culpa fora só do Chasco, meio tonto agora e cada vez mais entregue à bebedeira."

A presença do amigo estava ali bem viva. "E precisara de esperar tanto tempo para vir à quinta onde ele morrera!"

- És capaz de dizer onde é a porta do lagar? - indagou do outro, que se aproximara, intrigado com a sua atitude.

- Está fechada agora!... Querias vê-lo por dentro? - E apontava-lhe o lado dos edifícios baixos, onde se alinhavam os armazéns e os cardenhos para o pessoal das rogas.

O sol mordia a encosta afestoada de verde, onde os muros dos socalcos punham manchas de ferrugem do xisto. Um grande silêncio guardava o eco das vozes.

Luís aproximou-se do portão da adega, correu a mão pelos pilares de granito e deixou-se cair na laje da entrada.

- Não queres brincar mais? - perguntou-lhe o outro.

- Não, não quero - respondeu num repelão.

E, antes que o companheiro se afastasse, encostou a cabeça ao granito e escondeu os olhos com um dos braços, como se quisesse isolar-se do que o rodeava.

A conversa acabara entre os dois homens.

-" Mas não fale nisso por aí, senão ninguém me larga com pedinchices... Já sabe que a excepção é só para o meu amigo - recomendou o Silva Costa, à porta.

- Fique descansado... E só virei se for preciso.

-Mas não se acanhe...

- O jurinho é que é um pedacito carregado, Sr. Sil-vinha - insistiu ainda António Teimas, numa última tentativa para demover o outro.

- Nisso é que lhe não posso valer - acudiu o administrador. - Embora a escritura fique em meu nome, tenho de pedir o dinheiro para lho emprestar e não lhe levo nem mais um real, acredite.

O velho voltou atrás, procurando entender melhor a expressão do Silva Costa.

- O senhor quer escritura?

O outro pareceu embaraçado com a pergunta, mas depressa retomou o mesmo sorriso adocicado.

- Há morrer e viver, homem de Deus. Suponha que me dava para aí alguma e qualquer diabo da família se lembrava de embirrar consigo!... E eu, depois de morto, já não podia cá voltar para pôr as coisinhas no são.

António Teimas mal lhe ouviu as últimas palavras, não fosse responder ao outro como lhe apetecia. Dentro dele crescera uma ira de o desfeitear, mas sabia que precisava do Silva Costa e não podia dar ouvidos aos seus impulsos.

- Luís!... - gritou a chamar o neto. "Tinha pressa de sair ao portão e desabafar." - Luís! Vamos embora!

O filho do caseiro veio, pressuroso, indicar-lhe a porta do lagar, acompanhando o velho, para ver se percebia agora por que motivo o companheiro o afastara.

- Vamos, anda!... Queres ficar aí o resto do dia?... Só então Luís descobriu o rosto; e, antes que o avô

lhe visse as lágrimas, correu para ele, escondendo os soluços no seu braço.

- O que foi, meu rapaz?!... - repetia o velho com ternura, sem lhe compreender o choro.

Depois tentou levantar-lhe a cabeça para o acariciar, mas percebeu que o neto não queria mostrar a sua fraqueza perante o outro. E sorriu, fazendo um aceno ao filho do caseiro.

- Ele já se foi embora, neto! O que foi?!

E, baixando-se mais, pôs o seu ouvido junto da cabeça do rapazola.

- Estava a lembrar-me do Fatinário, avô... António Teimas acariciou-o, orgulhoso, olhando a Casa Grande com altivez. As lágrimas do neto consolavam-no, naquele momento, de quantas amarguras lhe deixara a conversa com o Silva Costa.

No picoto de um monte, o sol parecia quedo, como se ali descansasse da sua viagem para encharcar de luz dourada as valeiras e os bardos da vinha.

 

Mais uma vez a excitação crescia contra o Sul, os especuladores e também contra os impostos.

A venda das aguardentes para benefício estava na mão de uns tantos que exigiam preços incomportáveis para a lavoura, comprometida em adiantamentos e usuras. O comércio de Gaia e os lavradores do Sul usurpavam-na, negando-a ao Douro, para adquirirem os vinhos em consumo e arrecadarem ainda maiores lucros.

Os comícios dos republicanos ateavam a fogueira.

Os bancos estavam em poder dos mesmos que faziam monopólio da aguardente e negavam créditos, na certeza de que se aproximava o limite da resistência da maioria; o sulfato era importado por eles e os lavradores só lhe chegavam empenhando mais socalcos, para que as vinhas não morressem de moléstia.

Muitos lembravam-se de 1906, em que os vinhos se venderam por seis mil réis a pipa, postos nas fábricas de destilação, por conta da lavoura, que pagava mil réis pelo carreto de cada uma. O Douro pedira a ajuda oficial para fazer frente à sua crise, e o Governo, por resposta, concedera uma quantia fabulosa para os banqueiros dos tabacos, ainda não satisfeitos duma proibição de se produzir a planta do fumo nas terras mais soalheiras.

Numa representação ao rei solicitara-se "que não fossem obrigados a pagar contribuições prediais e que estas fossem abolidas até que houvesse receita colectável e não défice, como actualmente sucedia". E o rei prometera bem, mas faltara melhor, correndo o País em visitas que procuravam estancar a onda de revolta.

Terras ficavam por cavar com a falta de dinheiro; sem preço, os cavadores aventuravam-se pelas quintas, em busca de trabalho, abalavam para Espanha, na mira de lá acharem o seu pão, ou juntavam-se em quadrilhas e assaltavam gente nas estradas ou casas solarengas. À porta dos hospitais, bandos de mulheres famintas, apertando nos braços as sombras dos filhos, pediam que as internassem. Receosos de que as suas terras fossem à praça, os pequenos lavradores vendiam os bragais para pagarem ao fisco.

Os comícios sucediam-se.

Neles se exigia que se fixassem as marcas de vinhos, mas o comércio estava interessado nas colheitas mais baratas das lezírias e movia a sua influência, de acordo com os potentados do Sul - o **Barãona, que produzia 20 000 pipas por ano, o José Maria dos Santos e outros. - o comércio de vinhos do Porto, para nos castigar, só por nos termos queixado aos poderes públicos, ainda que sem resultado por ora, não o procura nem o compra, porque até de vinhos de outras regiões faz vinhos para exportar -dissera um orador do alto da tribuna improvisada.

Na praça da aldeia, os homens discutiam tudo isto, conhecedores dos meandros da conspiração feita contra eles. E já não bastavam os de Gaia e os mixordeiros sem vinhas, quanto mais ainda os lavradores poderosos que faziam seguir para ali pipas de vinho ribatejano, desembarcando-o nos cais do caminho-de-ferro.

Em silêncio, os Durienses remordiam ódios, acabrunhados pela fatalidade que os subjugava. E prometiam vingança.

Os sinos das igrejas repicavam, chamando o povo às praças para ouvir os paladinos da região, ou às estações ferroviárias, para se opor aos desembarques do Sul.

-Que o vinho das lezírias seja derramado ou queimado! - gritara-se num comício. - As terras do Sul são terras de pão e o nosso Douro ou dá vinho ou dá pedras e lobos! Ainda não contentes por nos negarem o pão, querem arrancar-nos o dinheiro com que compramos o que vem do estrangeiro.

Bandeiras negras tremulavam nos comícios - o Douro tem fome.

À porta dos hospitais, mulheres pediam que as recolhessem com os filhos. E os assaltos aumentavam nas estradas. E os pequenos lavradores vendiam os bragais.

Armados de chuços e caçadeiras velhas, de mangoais e enxadas, vinham todos ouvir os paladinos.

- José Alpoim fala no "querido Douro", é daqui, mas atraiçoa-nos nas Cortes.

- As Cortes é Sul! -gritavam.

- Não podemos pagar mais impostos! O rei prometeu ouvir-nos, mas o País está a saque.

A emoção tolhia muitos, embora não entendessem as palavras que lhes diziam. Mais aguerridas, as mulheres mostravam os filhos famintos para que os homens ganhassem coragem. As mãos descamadas das velhas suplicavam: "Senhor!... Senhor!... Que mal fizemos nós?!..."

Ninguém falava nos Ingleses; nem uma voz se erguia para os condenar.

Mas na sua Feitoria, com direitos de **extratemo-rialidade, eram eles que marcavam os preços dos vinhos e orientavam com os do Sul o açambarcamento das aguardentes. E eram os seus navios que traziam os sulfatos; e eram os seus navios que levavam os vinhos de Tarragona para Inglaterra.

E se raros barcos portugueses tentavam romper aquele bloqueio, demandando os seus portos, os estivadores recusavam-se a descarregá-los ou eram apedrejados os poucos que o faziam.

Era a isto que se não aludia nos comícios do Douro.

 

Depois que o Dr. Pimenta convencera um farmacêutico amigo de Vila Real a abrir uma sucursal na aldeia, era ali que se juntavam as pessoas mais gradas da terra. Moíam o tempo de lazeres em comentários às notícias dos jornais ou aos boatos que propalavam à boca pequena sobre a vida do Paço, mas, por fim, tudo acabava em conversa acesa sobre os vinhos e os seus mercados, num reflexo da crise mundial que dera conflitos memoráveis, no Sul da França, em 1907.

Com a sua franqueza rude, o médico denunciava sempre os que viciavam a marca nacional de vinhos licorosos, colocando interesses inconfessáveis acima do seu prestígio. Nisso não olhava a amizades pessoais nem a simpatias políticas - cortava a direito, como ele próprio dizia.

Naquela manhã soubera-se do incidente nas Finanças de Carrazeda e os ânimos andavam exaltados. A praça estava cheia de gente que comentava o facto.

O Silva Costa descera da quinta para saber pormenores e viera até à farmácia, onde encontrara o Pimenta indignado, a esbracejar insinuações. Daí a travarem-se de argumentos fora um instante.

- De quem são as culpas, pergunta-me você?!... Eu não sei, garanto-lhe; nem essa gente que para aí está sem saber que voltas há-de dar à vida.

- A crise é mundial, doutor. E nós aqui não podemos fazer milagres.

- Podemos ser honestos, pelo menos. Porque, se há de facto uma crise na vinicultura, parece-me indicado que se melhorem sempre os nossos vinhos, e agora ainda mais, pois de tudo isto se hão-de salvar os melhores. E o que fazem os comerciantes em presença desta situação?... Diga lá, Silva Costa! Como procedem muitos deles?...

- Há muitas coisas que para aí circulam e carecem de fundamento.

- Isso também é verdade - arriscou o farmacêutico na sua voz mansa.

O Dr. Pimenta sorriu-lhes, acenando a cabeça calva, e aproximou-se do balcão.

- Não há fumo sem fogo, meus amigos. E, enquanto os vinhos autênticos ficam nas pipas dos lavradores, fabricam-se outros para aí que agravam a situação, não só porque aumentam as existências, mas, principalmente, pelo desprestígio que acarretam para uma marca que não é sua nem minha... nem dos comerciantes de Gaia.

E depois de uma pausa intencional:

-Nem dos políticos...

Compondo as lunetas, o médico aproximou-se da porta, olhou para a praça e estendeu uma das mãos para ali.

-o vinho é daqueles... E aqueles representam a parte mais sã da Nação. O vinho do Porto é uma marca nacional e por isso mesmo tem de ser preservada da cobiça dos que a atraiçoam. Não é só traidor aquele que numa guerra justa se furta ao combate; mas mais ainda os que numa emergência destas metem o inimigo nas nossas próprias fileiras, fazendo para aí o que só a terra do Douro e o trabalho dos homens é capaz de produzir. E produzir aqui... não é o mesmo que fabricar.

- Nisso tem razão, doutor. Essa gente do Sul...

- E muitos daqui também, Silva Costa - retorquiu o Pimenta com violência.

Silva Costa voltou-lhe as costas, num encolher de ombros de indiferença, e foi cochichar com o farmacêutico. O médico voltou à porta, como a acalmar-se da sua agitação; depois chegou-se ao outro e agarrou-lhe no braço;

-Eu sou médico e nada mais. Aqui, ou noutra parte, posso empregar a minha actividade; talvez infelizmente, porque isso é sinal que as doenças não acabam.

- O senhor exagera tudo - ripostou, enervado, o administrador. - A crise há-de passar...

- Também o creio. A verdade, porém, é que essa cambada pode arruinar, pouco a pouco, aquilo que os outros fizeram à custa de sacrifícios sem par. E é isso que não devemos consentir; como não devemos consentir que alguns comerciantes açambarquem a aguardente para só eles beneficiarem, como devemos denunciá-los nas artimanhas que estão a usar com o sulfato. Tudo isto junto pode acarretar a ruína do Douro; e nesta terra não há alternativas. Os xistos ou dão o melhor vinho do mundo ou serão albergue de bicharada... Nem centeio aqui se pode conseguir. É isto que nunca me cansarei de gritar para que todos os Jerónimos me ouçam...

- Ora!...

-Não me fale assim, Silva Costa. Não me responda com gestos desabridos nem com repentes de mau humor. Se é amigo de Jerónimo, gabe-se da amizade. ..

Silva Costa não podia é furtar-se àquela insistência arreliadora.

- Sou amigo de todos, Sr. Doutor, mas só respondo por mim...

E, impotente para dizer o que lhe apetecia, saiu pela porta fora, torcendo caminho para a estrada da Pesqueira e evitando passar pela praça, onde os homens da aldeia se aglomeravam. O médico seguiu-o até à porta, ficando a sorrir-se quando o viu abalar às corridas e a olhar para trás, desconfiado.

¦- O Sr. Doutor é o diabo - disse o farmacêutico, um tanto contrafeito com a saída inesperada do outro.

- Bem fraco diabo!... Não posso é deixar gente desta sem lição.

E, voltando para o seu lugar predilecto, ao canto da farmácia, pegou no jornal e abriu-o, depois de se acomodar na cadeira de palhinha.

- Este deixa o fidalgo na penúria e ainda faz carinha de anjo... Gente composteira não gruda comigo!

Cada vez mais bisonho, "o Jerónimo pouco saía de casa. Emagrecera, e as pelangas, desprovidas de gorduras, avantajavam-lhe mais as marcas do rosto sombrio. Vivia agora com receio de tudo e de todos; fechara-se mais ainda naquele isolamento que o apavorava durante muitas noites e o fazia procurar convívios distantes.

A Chandarca foi anunciar-lhe que o Silva Costa lhe queria falar.

- Que entre! Haverá alguma novidade? Irritado ainda com o médico, o administrador da Casa Grande nem se sentou; conduziu o outro para junto da janela e contou-lhe ao que ia.

- Tive agora uma pega com o Pimenta por sua causa. Cantei-lhe das boas... Mas aquele malandro passa o dia a morder na sua reputação.

- Bandido! - remordeu o Jerónimo.

- E acautele-se, percebe?

Arrependido, porém, do que dissera, Silva Costa tentou logo apaziguá-lo.

- Mas não faça caso... Vozes de burro não chegam ao céu.

- O pior é que chegam aos outros burros...

- É um doido! Contei-lhe o caso só porque sou seu amigo, mas não se preocupe...

O Jerónimo torcia as mãos num passeio desordenado, enquanto o Silva Costa o perseguia, querendo acalmá-lo.

- Não faça caso... Continue a falar-lhe, como se de nada soubesse, porque um dia ele se calará...

- E sou eu que o calo, garanto-lhe - gritou o especulador com os olhos arregalados de ódio.

Num gesto de mão, parecia estrangular alguém.

- Acabe-lhe com o pio!

Silva Costa titubeou ainda uma saudação e partiu às corridas, como viera, na esperança de que ninguém o tivesse visto ali chegar. Absorto em cogitações, o Jerónimo ficara tolhido no meio do quarto, procurando no torvelinho dos sentimentos uma reacção que o satisfizesse.

"Estrago-lhe a vida! Um dia, quando menos pressentir, caio-lhe em cima. Mas se espero... E se antes me faltarem ao respeito?! É melhor cortar o mal pela raiz, dando-lhe uma lição que fique para todos. Se mostrar que tenho medo, estou perdido."

Hesitava ainda. Percebia, contudo, que os acontecimentos podiam desenrolar-se de um instante para o outro. "Só agindo imediatamente se poderia salvar; precisava de dominar aquele receio, e depressa. Ele andava de casa em casa fazendo conversa a seu respeito, até que alguma vez um dos homens o desfeitearia. E depois?!"

Lembrou-se dos seus tempos de contrabandista quando nada o detinha -e fê-lo com emoção e saudade. "Era essa decisão que lhe faltava agora. Mas ia deixar-se esmagar pelo outro? Passara as fronteiras vezes sem conta, acossado pêlos carabineiros e pela guarda-fiscal, e agora, só porque um médico de má-língua o hostilizava, punha-se para ali a medir inconvenientes..."

Desceu as escadas a correr, entrou na cocheira e começou a arrear o garrano.

"Dou-lhe uma lição, pois! Tem de ser agora mesmo! Corto-lhe a cara!", dizia a meia voz, para ignorar as hesitações que o queriam deter.

Trouxe o amimal para o pátio e chamou a criada.

- Vai buscar-me o chicote, Chandarca.

A velha pareceu espantada com o pedido e gritou-lhe destemperado.

- Que está aí à espera?... ochicote, sim. Desejava aproveitar aquela decisão e parecia-lhe

que a oportunidade lhe poderia fugir com a demora. Galgou para cima da albarda, experimentou os estribos e as esporas e gritou novamente pela criada, que apareceu aturdida.

- Parece que tens medo - disse, a sorrir, num assomo de bravata. - Nunca fizeram pouco de mim, ouviste?!... Vão saber quem eu sou!

E, metendo o chicote debaixo do braço, picou o ventre do garranote, que abalou pelo portão, num trote ligeiro, espantando uma ninhada de pitas que depenicavam pêlo pátio. Aquele ímpeto de bravura dava-lhe uma nova confiança; puxou as rédeas para levar o animal a passo, querendo gozar melhor a sua firmeza.

"Tinha necessidade daquilo. Acabaria agora de uma vez para sempre com os seus receios. E nunca mais sairia pela calada da noite, indo acolher-se à protecção dos outros, que no fundo se riam dele, tinha a certeza."

Empertigou-se mais no albardão e afagou a cabeça do garrano, passando os dedos nervosos nos enfeites do arreio à espanhola. Quando ouviu o ruído da multidão na praça, um arrepio doloroso percorreu-lhe o corpo; instintivamente, esporeou o animal, que logo atirou as patas dianteiras para trotar, embora as rédeas o contivessem. A voz dos homens, que já distinguia, arrepanhava-lhe a pele. Especado nos estribos e de chicote em punho, torceu o freio ao garrano, enquanto lhe descarregava o cabo nas ventas cheias de espuma; encaracolando-se, a escarvar o chão com as patas, o bicho teimou ainda durante algum tempo, às recuas e às upas.

"É assim que os hei-de vencer!", ciciava com orgulho.

Ele apertava-lhe a barriga com as coxas fortes, mesmo depois de o ter dominado, para se convencer melhor da sua superioridade. Aquela prova fez-lhe bem; sentia-se agora capaz de ir até ao fim. Entrou na praça, com o animal a passo, erguendo a cabeça bem firme. Lembrou-se daquele dia em que discutira com o Teimas para depois o vexar com a compra do vinho; mas nunca mais faria o mesmo, porque quem o quisesse por inimigo haveria de temê-lo até ao fim da vida.

Recebeu-o um silêncio mais pesado do que da outra vez. Fez um esforço para encarar aquela gente, cuja presença o oprimia e lhe repugnava. Espantou-se do domínio que conseguia manter sobre os seus nervos e correu, vagarosamente, o olhar pêlos grupos; parou junto de António Teimas e saudou-o, num desafio. O velho correspondeu, sem lhe perceber a intenção.

Foi nesse momento que o Espanhol saiu de um magote de homens e se aproximou. O garrano estremeceu debaixo do albardão; ele arrepanhou-lhe o freio com violência.

- O que queres tu?...

Chupando uma ponta de cigarro, o outro encarou-o bem, torcendo a boca para expelir o fumo.

- Dê-me trabalho ou mande-me prender... Já não posso mais.

O Jerónimo espiava-lhe os movimentos, batendo com o chicote na perna.

- Aparece-me amanhã... Agora vou tratar de um assunto mais importante.

Toda a sua energia estava posta noutro objectivo e aquela intromissão aborrecia-o. Fustigou o animal com as esporas, enquanto os homens o seguiam com o olhar turvado pelo ódio, e, mal chegou à porta da botica, debruçou-se para dentro.

- Oiça lá!... Não ouve?!...

O farmacêutico abandonou o almofariz, compôs os óculos, para distinguir melhor quem lhe falava, e atravessou a loja com a bata branca a dar que dar.

- Algum remediozinho? - perguntou, solícito, a esfregar as mãos, num jeito muito seu de cordialidade.

- Nada disso! Viu por aí esse médico dos quarenta diabos?!...

O Dr. Pimenta escutou-o do seu canto e respondeu-lhe, sem se mover da cadeira:

- Se é mal de consciência, procure o abade.

- Quero partir-lhe a cara - bradou o outro "lá de fora, dobrando-se sobre o albardão para o descortinar.

- Desça e entre.

Atrapalhado com a conversa, já a pressentir disputa, o farmacêutico aproximou-se mais do Jerónimo, a recomendar-lhe calma: "Que pareciam mal disputas daquelas entre gente de bem e que o exemplo não era bonito para o povo."

- Deixe-o lá - interveio o Dr. Pimenta. -oJerónimo sabe bem o que faz...

Ouviu-se, então, um grito de arreda em toda a praça, e o garrano entrou pela loja dentro, enquanto o boticário, varado de espanto, fugia para a rua, a rogar pelos seus frascos e armários.

Entretanto, o Jerónimo postara-se à frente do outro, de chicote alçado, hesitante agora no que devia fazer, pois pressentia que a multidão se aproximava. Só um acto de bravura poderia atemorizar aquela gente, pensou ainda.

- Há-de convir que é impróprio entrar na casa alheia dessa maneira - disse-lhe o médico, a sorrir. - Vem comprar arnica para o cavalo ou boa educação para si?

Uma chicotada atingiu o rosto do Dr. Pimenta) deixando-lhe um vergão da orelha à ponta do queixo. O médico soltou um grito de dor; mas, antes que o outro puxasse novamente o chicote, arrancou-lho das mãos e ergueu-o por sua vez, num gesto lento, sem desviar os olhos do Jerónimo.

- E se eu lhe fizesse o mesmo?

- Matava-o!

-ochicote zumbiu e a sua ponta foi morder a face do Jerónimo, deixando-lhe na boca um travo de sangue, embora o braço tivesse esboçado um movimento de defesa.

- Dê lá mais um passo, se é capaz! - gritou o comerciante, desvairado.

E sorria agora, fincando os pés nos estribos. A multidão aproximava-se; ele sentiu o garrano estremecer debaixo do seu corpo, como se o mesmo pressentimento o ferisse.

Uma pedra atirada da rua estilhaçou um vidro.

Turvado agora pêlo medo, o Jerónimo mediu o adversário bem de frente e premiu o gatilho. Nesse mesmo instante, porém, uma arrochada caíra em cheio nos quartos traseiros do garrano e obrigara-o a dar um salto e a espinotear com braveza, deitando o cavaleiro por terra. À porta da loja, de cacete levantado para o mais que fosse preciso, António Teimas atirou outro golpe ao lombo do garrano, que reparou na saída e disparou num galope, em direcção à praça, acossado pelos assobios e gritos do povoléu.

- Saia daí! Saia!... O valentão que saia!

O alarido crescia lá fora e os homens aglomeravam-se, em ameaças, já dentro da farmácia. Tolhido de pavor, a rastejar, o Jerónimo procurava proteger-se daquela gente, olhando o médico numa súplica. Foi então que o Dr. Pimenta caminhou até à porta, de braços abertos.

- Que é isso? - bramou para o Sandão, que o pretendia ultrapassar. - Este caso é só comigo!

Uma agitação silenciosa percorreu aquela gente. - Ele quis matá-lo!

- E que tens tu com isso? - respondeu-lhe, sacudindo-o.

Olhou depois os homens que estavam na primeira fila e fez-lhes sinal para que saíssem. Alguns ficaram ainda indecisos, parecendo não o terem compreendido.

- Vão todos para casa!...

E dirigindo-se ao velho Teimas: dê o exemplo aos outros, Tio António. Aquele homem não merece a nossa vingança.

Silenciosos, os homens abalaram sem mais palavras. No meio da rua, o Dr. Pimenta viu-os seguir, comovido, sem se lembrar do outro. Pouco a pouco, o eco dos socos extinguia-se no labirinto dos quelhos, como o rumorejar de um vento bravio que se fosse perdendo para além das serranias.

Então o médico voltou para dentro da farmácia, depois de deitar o chicote fora, e aproximou-se do Jerónimo, apontando-lhe a porta.

- Ninguém o apoquentará, mas lembre-se sempre desta lição...

Lívido e trémulo, o Jerónimo esboçou ainda um gesto de gratidão, que o olhar implacável do médico fez conter. Humilhado, abalou pela rua adiante em direcção à praça vazia, sem saber se desejava grilar e fugir, ou passar pelas ruas sem que o pressentissem.

Aquela paz apavorava-o.

A cabeça de uma criança apareceu pela frincha de uma porta e fê-lo oestremecer.

 

Um rancho andava a sulfatar pela encosta norte da vinha, arrastando-se num calvário, com o calor sufocante que esquentava os calhaus do xisto, donde as cepas rompiam torturadas. Só algum brado rouco do caseiro cortava o silêncio, de vez em quando, para chamar a atenção das mulheres e dos rapazes que traziam a calda para os pulverizadores, carregados pelos homens, sobre os ombros em ferida. Massacrados pela soalheira e o cáustico doloroso do recipiente de cobre requentado, a morder-lhes as espáduas, eles devassavam valeiras e bardos, numa marcha penosa.

Não havia uma asa pelo céu - naquele céu parado, onde as cotovias que se afoitavam a rompê-lo caíam feridas de morte.

Vivia-se em pleno inferno.

Como se nas profundezas da terra houvesse um vulcão prestes a irromper, as pedras vomitavam lambras invisíveis de um fogo que sufocava. Dos vales fundos, por onde rios e riachos abriam caminho fogoso nas invernias, a seca evaporava as águas, parecendo tê-las transformado naquele bafo de lume que queimava as peles e as bocas sedentas.

Feridos pela tremulara daquela luz áspera, os olhos tornavam-se inúteis; e as mãos, mordidas pela calda do sulfato, eram chagas dolorosas.

Escarranchado numa pipa, sobre um carro, o filho mais novo do caseiro remexia a calda com um arrocho, entretendo-se a olhar o jacto muito azul que saía em baixo, numa golfada, quando as mulheres tiravam o batoque para encher as vasilhas. A sombra duma oliveira cobria-o do sol; o rapaz estava para ali, feito autómato, naquele movimento sempre igual que lhe provocava o sono. Bandos de moscas e mosquitos andavam-lhe à volta, numa sanfonice irritante.

O pai vinha algumas vezes bater com os dedos no tampo da pipa, para calcular a quantidade do líquido e os bardos que ainda faltavam tratar, trazendo-lhe sempre uma reprimenda; depois abalava, descendo o ram-peado dos socalcos, até se chegar às parelhas de homens que corriam as filas de videiras, sulfatando-as, um por dentro e o outro por fora, para que o míldio não fizesse estragos.

Era já o terceiro tratamento; e os cachos, ainda pequenos e verdoengos, ficavam a brilhar com o leque de sulfato que os pulverizadores borrifavam.

- Bem pintadinhos, homem! - recomendava o caseiro, de cima de um calço donde via todo o rancho.

Dando sempre à bomba e a caminhar, as mãos dos homens pareciam tanger as cordas de um instrumento estranho que levassem, derreados, sobre o dorso. Quase todos vestidos com sacas velhas, para que a calda lhes não queimasse mais as camisas e a carne, iam até ao extremo das valeiras e voltavam pelo mesmo caminho, se havia nova fila para tratar, ou galgando a outro terraço, se aquele estivesse acabado.

O Espanhol, embora contra a vontade do caseiro, fora admitido ào serviço e largava o seu dito à cachopa que viera encher-lhe o sulf atador e o ajudava, depois, a pô-lo sobre as costas requentadas.

- Mal empregada não seres minha mulher...

E sorriu-lhe, mostrando as gengivas esbranquiçadas e os dentes ralos, negros pelo fumo do tabaco.

- Ah, bô! Era mulher dum burro...

A rapariga abalou a correr pela valeira, enquanto o Espanhol apertava ao peito a correia do pulverizador, ficando-se a segui-la com o seu ar amalandrado. Logo o caseiro lhe atirou o remoque.

- Ide-vos embora, que são horas! Quanto mais cra-vadinha ficar, melhor!... Vê lá isso, Espanhol!...

O outro remordeu uma praga entre dentes e iniciou nova caminhada.

- Não deixes perder pio chão! A calda é oiro!... O lume do sol parecia verter-se dos montes, numa torrente onde o rancho se afogava. O eco dos gritos ficava mais perto, agarrado naquele ar pastoso e escaldante que submergia tudo. A calda encharcava os cachos, por um momento, e logo se tornava num pó amarelo que cortava o cabedal dos socos dos homens.

- Olha o arroz doce! - gritou um homem com o pulverizador vazio.

Logo a sua servente correu para ele, enquanto o caseiro a seguia com o olhar atravessado.

- Vá, parceirinha! -ciciou-lhe o trabalhador, agarrando-a pela mão.

- Esteja quieto, que ainda sou nova pra casar, Seu António!

Sempre atentos para o João Ermida, falavam com manha, sem deixarem de carregar o sulfatador.

- Já podeis com o caneco... -retorquiu-lhe com malícia. - Quando lhe pegas, amarinha-te pela barriga acima.

  1. Fernando chegou à janela do escritório, já cansado de estar só com os seus problemas. Chegara na véspera, metera-se nos aposentos privados e dali não saíra ainda. Só a Ana Sarrifa lá entrava para lhe levar as refeições, mas nem com ela achara motivos para conversa que o distraísse.

Respirava com esforço, olhando com piedade o rancho da sulf atagem. "Aqueles bem pouco lhe pediam e por ali andavam a ganhar para os outros" -os outros eram os seus, que fantasiavam a maneira mais rápida de darem conta do resto da fortuna da casa.

"E estes que trabalhem... E eu que me aguente com as preocupações..."

Vencido pelo calor, um dos homens do rancho caiu, redondo, na sua valeira. Toda a manhã ele andara com sacrifício, suportando a albarda de fogo do pulverizador e do sol, esgotado pélas maleitas que o não largavam.

Sabia, porém, que não podia queixar-se ou parar, porque ao sábado, na folha dos salários, o Silva Costa lhe faria o desconto dos quartéis perdidos.

Uma tampa em brasa queria fechar-lhe a boca; vertigens cerravam-lhe os olhos e fadigas sem conta tomavam-lhe todo o corpo, querendo jogá-lo por terra, sobre o xisto ardente.

- Tu não vais bem, Manel! - disse-lhe o companheiro da ilharga, percebendo a lividez do seu rosto inexpressivo, perlado de um suor que caía em bagas.

- Estou capaz de te carregar às costas - respondera ainda com esforço.

Mal dera, porém, mais uns passos logo caíra, redondo, como as cotovias que se afoitavam a voar naquele céu de metal fundido. Correram os companheiros a ajudá-lo, enquanto o caseiro procurava desamarrar-lhe o pulverizador, para que a calda se não entornasse e o cobre não sofresse amolgadela que pedisse oficina.

- Dêem-lhe água e levemjno - disse por fim, para três mulheres que o olhavam de braços inertes. O resto volta pró trabalho... Quanto menos gente à volta, melhor. ..

O Espanhol tirou uma fumaça do cigarro e mediu-o dos pés à cabeça, com desprezo.

- Anda carregado de sezões...

- E pra que foi ele à feira? - perguntou o outro já arrenegado, mais pelo olhar do Espanhol do que pelo acontecimento.

- Se calhar, porque queria dinheiro para mercar algum comboio...

E voltou costas, dirigindo-se ao seu bardo.

  1. Fernando seguia o movimento do rancho com curiosidade, embora não atinasse nos motivos do incidente. Debruçou-se na janela para ver se em baixo estava alguém que o elucidasse; depois resolveu ir ao encontro do grupo que descia o escadório dos geios, enquanto o vozeirão rouco do caseiro se ouvia com mais frequência.

- Tudo bem pintadinho! Essa calda não é prà raiz nem pràs folhas!... Olhem bem os cachos!...

Quando o fidalgo apareceu, as mulheres acarretavam o doente para um dos cardenhos, procurando arranjar-lhe uma sombra; mal viram D. Fernando, quiseram mover-se mais depressa, mas uma delas tropeçou e deixaram cair o homem, que entreabriu os olhos febris.

- Que lhe aconteceu?...

- Mal de calor - ciciou uma das raparigas, envergonhada.

- A Ana Sarrifa que mande uma manta grossa! - disse o fidalgo, pouco à vontade, perante aquela gente submissa e a expressão de sofrimento do doente.

Era ainda um homem novo, mas vincos fundos cortavam-lhe o canto da boca, por onde saía uma baba espessa que farfalhava com a respiração. Ele deixou escapar um gemido frouxo, tentou, de novo, abrir os olhos, como se a luz lhos queimasse, e, quando reparou em D. Fernando, fez um gesto para se levantar; depois sacudiu a cabeça numa renúncia e deixou-a pender sobre o ombro.

- Deixa-te estar...

O trabalhador sorriu, num esgare; um moscardo começou a zumbir-lhe à volta.

- O que tomam vocês para as sezões?! - perguntou o fidalgo para a rapariga mais expedita.

- Chá de pontas de silva...

- Melhor ainda são as rezas da Chandarca - disse uma outra que se pusera de largo mal o fidalgo se aproximara.

Nesse momento, o Silva Costa apareceu apressado, trazendo atrás de si a mulher que fora buscar o cobertor. Vinha nervoso, aos saltinhos, esgrimindo os braços curtos, como se alguém lhos quisesse prender.

- Levem-no para o telheiro, depressa! - ordenou mal-humorado.

  1. Fernando olhou-o com desdém e foi ajudar à condução do doente, enquanto o administrador ficava atónito no meio do quinteiro. Fez aquilo só para o hostilizar e falou-lhe com aspereza quando voltou para junto dele.

- O homem que vá ao médico... E o que for preciso, queira pagar do dinheiro da quinta.

- Vossa Senhoria, depois, queixa-se das contas... ofidalgo fitou-o com arrogância, tendo desejos de

lhe dizer tudo o que pensava a seu respeito.

- Deixe-me ao menos cumprir uma vez com os meus deveres - respondeu-lhe, trémulo. - Esta quinta tem servido para alimentar muita coisa inútil... Há-de chegar para um dos muitos que se matam por ela.

As últimas palavras foram ditas com um vigor que Silva Costa desconhecia.

- Vossa Senhoria manda...

- Pelo menos, julgo que sim. E numa brusca decisão:

- Transmita as minhas ordens e apareça no escritório debaixo. Até já!

Voltou-lhe costas e desapareceu no portão da entrada, indo sentar-se à secretária. "Também aquele se permitia fazer-lhe reparos indirectos, só porque lhe emprestara dinheiro para os granjeios. Mas fossem todas as suas dívidas como aquela!" Limpou as lentes das lunetas, que voltou a encavalitar no nariz, e, como o administrador se demorasse, foi chamá-lo à janela. Silva Costa chegou, solícito, a enxugar a pequena calva que se abria sobre a testa estreita.

- Um inferno este Alto Douro!

O fidalgo andava de um lado para o outro, procurando um pouco da calma que lhe queria faltar; quedou-se, por fim, à frente do administrador, apoiando-se na ponta da secretária.

- Desejo liquidar as nossas contas antes de voltar para o Porto.

Silva Costa esboçou um gesto de contrariedade, mas não pôde reprimir um sorriso nos olhos.

- Já é tempo - insistiu o fidalgo com firmeza. - Mostrou vontade, segundo me lembro, de ficar com aquelas valeiras do rio Torto...

E prosseguiu com ironia:

- Só prejuízos dali temos colhido e talvez queira fazer-me o favor de as aceitar. Não é assim, Sr. Silva Costa?...

- Vossa Senhoria ordena...

O administrador parecia não saber onde meter as mãos, que se lhe tornavam duas massas incómodas.

- Pois... entrego-lhe tudo pela dívida.

Silva Costa fazia pequenas vénias despropositadas, incapaz de pronunciar uma palavra; o fidalgo insistia.

- Vale o dobro ou mais, como sabe, mas desejo gratificá-lo pela sua honradez, pelos seus cuidados... É tradição desta casa olhar pelos criados...

Deixou a suspensão alongar-se para o vexar melhor: -E pelo pessoal superior...

- Ó Sr. D. Fernando!... - disse Silva Costa deslumbrado, sem entender o sentido das palavras do fidalgo.

- Faremos a escritura logo que vá ao Porto...

E, depois de medir bem a figura franzina do administrador, atravessou o escritório de cabeça erguida; mais atrevido agora com o deslumbramento daquela certeza, Silva Costa fê-lo deter-se.

- Eu desejava pedir a Vossa Senhoria...

- Diga, diga - respondeu-lhe com protectora arrogância.

- Vou casar e gostava que Vossa Senhoria fizesse a mercê de me apadrinhar nesse dia, já que o tem feito noutras ocasiões como esta.

  1. Fernando olhou-o demoradamente, como se quisesse compreender a verdadeira intenção do administrador; mas viu-o tão risonho e solícito que se desanuviou também da hostilidade com que o tratara pouco antes.

-Com a condição de ser uma noiva bonita...

E teve aquele sorriso significativo de brejeirice que todos lhe conheciam quando se falava de mulheres.

- Você não é tolo, não. Rica, com certeza!...

- Rica de sentimentos, Sr. D. Fernando - respondeu o Silva Costa com dignidade.

- Também é riqueza - juntou o fidalgo, saindo do escritório.

Do fundo da escada, o administrador viu-o subir a escada em passos ligeiros e a cantarolar, sem perceber aquela estranha alegria; e mal o fidalgo desapareceu, escapuliu-se para os seus aposentos, aos saltinhos, como se fosse um rapazelho a quem tivessem satisfeito um capricho.

- Isto é gente com falta de parafusos - disse, em voz alta, atirando-se sobre o sofá e abrindo os braços, numa exuberância que mais ninguém saberia compreender.

 

Já lhe conheciam a maneira de bater, mas teve de insistir com outra argolada, porque entre ambas se travou uma curta discussão, antes que a mãe se levantasse para lhe abrir a porta. Estavam a costurar na varanda das traseiras, com o candeeiro de petróleo sobre um banco, e do fundo do vale, por onde o Douro corre em convulsões, chegava ainda o resto daquela lufada ardente que abrasava os xistos e as gentes.

Helena ergueu os olhos quando a mãe saiu e teve um suspiro fundo, ao reparar nas luzes dispersas dos casinhotos da aldeia, como se ali a pudessem ouvir e compreender. Estava cansada de se interrogar e de viver sozinha as suas amarguras. Deixara de escrever o diário, onde só encontrava esperanças mortas e desesperos frustrados, e não entendia agora por que motivo se dera àquela tarefa de revolver a alma, ressuscitando lembranças que a deixavam sempre, e cada vez mais, incapaz de reagir.

E era disso que se acusava.

Os dois entraram e olhou-os de relance, como se receasse trair o desprezo que lhe mereciam.

- Boa noite, Helena.

E estendia-lhe a mão espapaçada que apertaria a sua com vigor fugaz. Silva Costa vinha exuberante nessa noite e não reparava no seu silêncio, mais agressivo do que nunca, enquanto D. Assunção chamava a conversa para si, querendo ocultar a frieza da filha.

- Um calor impossível...

- Sim, sim, um calor impossível - repetira ele sem convicção, à procura de um pretexto para lhes comunicar o entusiasmo que o exultava. Ficou calado por momentos, mas sorria sempre, a retorcer as guias do bigode.

A voz de uma mulher cantou ao longe.

- O fidalgo esteve cá ontem...

-o fidalgo? - perguntou Helena com ansiedade.

- Sim, o Sr. D. Fernando - respondeu, despeitado. - Quando falo de fidalgo é a ele que me refiro. Os outros não o são... Nunca o poderão ser...

Silva Costa disse aquilo com um modo sibilino, que o aterrorizou depois; e tentou adoçar as palavras, inclinando-se para Helena com doçura.

- É para o seu enxoval?... Lindo como tudo que sai das suas mãos.

Ela não foi capaz de esboçar um simples gesto; a mãe interveio, falando alto, com risadinhas que tornavam a situação mais embaraçosa ainda.

- Porque não há-de dizer o nosso, Sr. Silva Costa? A Helena só vive para essa alegria... Se ela quisesse mostrar os allmofadões que acabámos há dois dias...

- Que tu fizeste sozinha, mãe - esclareceu Helena, para mostrar que não sentia prazer com esses desvelos.

  1. Assunção pareceu não notar o reparo e continuou:

- Ficaram um encanto! Dois grandes pássaros azuis em cada um, e os nomes, todos em aberto, mesmo ao meio.

Silva Costa excitou-se com aquela invocação das iniciais entrelaçadas e olhou os braços roliços da noiva, quase nus até ao ombro. E viu-se a afagá-los já, tendo-os presos ao seu pescoço, sem ouvir mais "a torrente de palavras de D. Assunção, que abandonara a costura no regaço. Helena reparou no olhar do administrador e correu as mãos pelos braços, como se quisesse tapá-los; pretextando depois uma ponta de frio, foi buscar um casaco, que pôs sobre os ombros.

- Frio com uma noite destas, Helena?... Não me diga que vai acender a braseira...

Achando graça ao seu dito, Silva Costa começou a rir, aos cacarejos, secundado por D. Assunção, que se ergueu e foi segredar uma reprimenda ao ouvido da filha. Helena teve um encolher desabrido de ombros, já incapaz

de se dominar.

- Teve muita graça... Muita graça!... Mas nada chegou a dizer acerca do fidalgo. Onde tem essa cabeça, Sr. Costa?... Está feito rapazinho?...

Confrangida com o sacrifício da mãe, Helena voltou-se também para ele e sorriu-lhe; mas percebia que o rosto se arrepanhava, incapaz de exprimir um sinal de alegria.

- D. Fernando veio de visita à quinta... e abalou - disse também para gracejar.

- E esteve sempre calado - juntou a professora, indo acender o charuto que Silva Costa se pusera a mastigar, olhando ora uma, ora outra, como se não as entendesse agora.

- Vou gastar a caixa? - perguntou D. Assunção, riscando novo fósforo.

Preocupado com a atitude de Helena, Silva Costa só depois reparou que a futura sogra estava à sua frente a oferecer-lhe lume. E então riram os três com gargalhadas que pareciam não ter fim, olhando-se, desconfiados, como se quisessem certificar-se da própria sinceridade nas expressões alheias.

Ele deteve-se por um instante, para depois recomeçar com mais estrépito, dando pequenos saltos na cadeira que D. Assunção lhe oferecera junto de Helena - um contentamento desconhecido apossou-se de si, agora que via, pela primeira vez, a noiva partilhar da sua alegria. Ignorava, porém, que Helena se ria das suas gargalhadas.

-Então o fidalgo? - insistiu D. Assunção, logo que os risos amainaram.

- Não insista, por favor - suplicava o administrador a limpar as lágrimas. - Eu conto...

Helena voltou ao bordado, evitando fitá-lo; achava idiota aquela falsa alegria e admoestava-se por ter partilhado dela.

- Fechámos a compra da quinta...

- Da Quinta Alta?...

Silva Costa sentiu-se embaraçado ao recordar que já há alguns meses dera a quinta como sua; esgrimiu as mãos num gesto atabalhoado e tentou emendar.

- Confirmámos o negócio do rio Torto. Estas coisas levam tempo... E eu sou humano... Compreendem que D. Fernando terá pena de se desfazer daquilo que o pai lhe deixou. E eu quis dar-lhe ainda uma probabilidade de salvar a quinta... Não acha que fiz bem, Helena?...

- Sim...

- Pois foi a pensar em si que tentei ajudá-lo. Mas aquele D. Afonso continua a derreter quanto dinheiro apanha. Ainda no outro dia...

Helena ergueu a cabeça, suspensa daquelas reticências; D. Assunção fez-lhe uma expressão de reprimenda, para que contivesse o seu interesse.

- Nem vale a pena contar-lhes...

Mas, antes que alguém insistisse, prosseguiu.

- Creio que exigiu dinheiro ao mordomo de pistola em punho. Queria fazer uma tournée a tocar piano, calculem.

A professora teve uma exclamação de espanto e ficou por largo tempo de olhos parados, recordando os serões na Casa Grande, quando o fidalgo e a filha tocavam ao piano, e ela ficava junto de Silva Costa a gozar com os seus ciúmes.

- Um doido!... É claro que assim não foi possível pagar-me e o fidalgo veio ontem dizer-mo. Senti pena dele... Quase chorou quando me agradeceu tudo quanto tenho sacrificado pela casa...

A sua voz queria ser lamentosa, mas tinha acentuações do orgulho que não sabia reprimir. Helena estava inquieta; e na sua imaginação também passavam lembranças dessas noites já distantes, em que a presença de D. Afonso lhe comunicava um doce prazer pela vida. Silva Costa falava ainda, mas nenhuma delas o ouvia. D. Assunção invocava agora as suas ilusões de casamento com aquele homem que estava ali e iria ser o marido da filha - escutava-lhe as palavras dessa conversa dolorosa em que tudo derruíra; a carta que recebera antes, tão cheia de esperanças que só ela idealizara, emocionada como na sua juventude...

E percebia que na sua abnegação pela felicidade da filha havia também uma vingança oculta para com ele. Helena nunca seria uma esposa para Silva Costa e essa certeza agradava-lhe, embora a procurasse esconder aos outros.

-" O fidalgo virá apadrinhar-nos... É uma honra que nos concede. Recebi ordens para começar as obras na parte que vamos habitar... É claro que penso um dia fazer casa na Quinta do Torto. Acha bem, Helena?

Ela respondeu-lhe num olhar de relance e Silva Costa prosseguiu ainda, julgando ver na expressão abstracta da noiva a melhor adesão aos seus projectos. Olhava-lhe as mãos esquecidas no regaço e tinha vontade de lhas beijar, ensinando-as depois a afagá-lo.

- Não me resolvi ainda pelo nome que devo dar à nossa quinta. Parece-me que ficaria bem Quinta da Esperança... ou da Alegria. Se me quisesse ajudar...

  1. Assunção erguera-se e desaparecera dentro de casa. Silva Costa aproximou mais a cadeira e tomou uma das mãos de Helena, ciciando-lhe ao ouvido a confissão dos seus desejos.

- Deixe-me beijá-la... Porque não sorri quando lhe falo? Aborreço-a?!...

Sabia que bastava puxá-la um pouco para a ter nos braços e, contudo, não era capaz de concretizar esse gesto simples. Queria que fosse ela a aproximar-se, a olhá-lo de frente e a oferecer-lhe a boca.

- Porque não me beija?... Vai ser minha esposa, Helena...

Os passos da professora ouviram-se lá dentro e Silva Costa ergueu-se, indo até à balaustrada da varanda que deitava sobre a aldeia, onde as luzes começavam a rarear. Um cão ganiu à Lua, muito redonda e pálida nas trevas do céu. O relógio da torre bateu dez horas. O mesmo bafo quente subia dos vales.

- Como o tempo passa...

- Sim, muito depressa - assentiu Silva Costa, depois de verificar o seu relógio.

- E não me ajudam a achar o nome para a nossa quinta? O que me diz, Helena?...

A sua voz tinha agora requebros duma ternura que lhe percorria todo o corpo e o fez aproximar mais da noiva, como se fosse tocar-lhe os cabelos. Helena ergueu o olhar e sorriu-lhe.

- Quinta do Calvário, talvez...

E, sentindo que podia ter traído o pensamento, procurou justificar-se.

- Lembrei-me do caminho pedregoso desde o rio até lá... E dos seus sacrifícios, Silva Costa. Depois vi a imagem de Cristo, arrastando-se por ali com a sua cruz...

Ao administrador, aquela justificação parecia exagerada, descabida talvez; mas achando-se impotente para contrariar a noiva, preferiu adiar a resolução para momento mais propício.

- Voltaremos a falar no assunto. A sua ideia é muito bonita...

  1. Assunção preparava-se para deixar Helena acompanhá-lo; a filha, porém, passou junto de si e tomou-lhe o braço. O Silva Costa despediu-se mais uma vez ao alto da escada e desceu-a vagarosamente, reconfortado com a presença das duas mulheres.

- Boa noite...

Mal a porta bateu em baixo e os passos do administrador se sumiram no silêncio da noite, D. Assunção increpou a filha.

- Portaste-te muito mal, Helena. Gostaria de te perceber... Nunca te vejo uma prova de carinho para ele; pareces sempre apostada em contrariá-lo.

Helena queria fugir àquelas razões que a perturbavam, tentando chegar depressa ao seu quarto; a mãe, contudo, não a deixava escapar-se.

- Não vês que é o teu futuro que comprometes?

- O meu futuro como?!...

Abriu a porta e quis despedir-se, mas a mãe forçou-a a entrar consigo.

- Não queres responder-me?

- Não me obrigues, mãe - disse Helena com uma hostilidade de que ela própria não se sabia capaz.

A professora olhou a filha com estranheza, pensou que deveria repreendê-la, mas não encontrou palavras, para se exprimir - aquela atitude correspondia aos seus desejos mais íntimos. E ouviu-a depois confessar a sua revolta, como se o Silva Costa estivesse ali a escutá-las e soubesse, finalmente, qual era a mulher que o amava.

 

A esposa esperava-o à janela, um tanto inquieta com a demora, apesar de ele vir sempre mais tarde pelas alturas do tempo quente. Naquele dia, porém, o Dr. Pimenta fizera ainda uma volta maior, solicitado por doentes que começavam a preferi-lo às receitas dos curandeiros ou às rezas das bruxas, mais talvez porque ele perdoava a maioria das consultas do que por confiarem na sabedoria da medicina. Perdera toda a manhã para os lados de Sou-telo, e, depois de petiscar com um lavrador amigo, metera a égua à estrada de Valença para dar volta aos doentes daquelas bandas.

Voltava agora extenuado, com a -alimária num pingo, e de algibeira pouco mais pesada do que quando saíra. "Que lhe podiam pagar com a falta de trabalho e os vinhos nas pipas?", interrogava-se para achar desculpa à sua falta de jeito em exigir pagamentos.

- Julguei que ficavas por lá -disse-lhe a mulher quando o viu entrar no pátio.

- Talvez fosse a minha obrigação, que julgas? - respondeu embaraçado, galgando de cima da égua e acarinhando-lhe a tábua do pescoço pigarço.

  1. Ermelinda recolheu-se para dar ordens na cozinha, enquanto ele metia o animal na loja e lhe tratava da ração, hábito velho que a mulher já desistira de criticar, porque nunca almejara modificá-lo.

- Tens hoje a tua conta, anh? - dizia ele para a égua com ternura, limpando-lhe as ancas ensuadas com uma saca. - Amanhã descansas um pouco mais, minha velha. A volta é pela aldeia e as pernas aguentam-na bem.

A mulher voltou a chamá-lo, já irritada, embora se preparasse para lhe transmitir o pedido que lhe tinham feito na missa das oito, e bem soubesse que com o marido só se podia pactuar à boa-fé. Por isso logo tratou de emendar aquele repente de mau humor.

- Arrefece tudo outra vez... Ficam as coisas sem graça nenhuma...

Já de casaco apertado debaixo do braço, como era seu hábito mal chegava a casa, o Dr. Pimenta começara a subir a escada do pátio que levava ao primeiro andar; D. Ermelinda, solícita, foi beijá-lo.

- Esperei até às nove e meia...

- E depois jantaste - acabou ele, pondo-lhe a mão sobre o ombro, num jeito muito seu de ternura. - Só fizeste o que devias...

Do fundo do corredor, a criadita sorriu-lhe a saudação.

- Muitos doentes? - perguntou-lhe a mulher.

- Sim, muitos, infelizmente. Se fosse possível educá-los na alimentação e se eles pudessem fazê-la, nem metade cairia à cama. Mas assim... Bem me farto de receitar, quase sempre com a consciência de que pouco lhes valho.

Sentou-se depois, com mostras de grande apetite, mas no fundo só para esconder o embaraço que dele se apossara quando viu a companheira apalpar o bolso do casaco.

- Julguei que trazias alguma fortuna!

Ele encolheu os ombros, contrafeito, e D. Ermelinda sarrazinou:

- Nós temos que viver, meu filho... Se fôssemos ricos...

Pimenta sorriu, já refeito.

- E somos. Cá vamos ganhando pràs sopas... não nos falta saúde...

- Esqueces a despesa dos rapazes no Porto. E não é pequena!

- Para isso sempre dá a venda dos teus vinhos... A mulher agastava-se sempre com aquela divisão

feita por ele nos rendimentos do casal.

- Porque teimas em chamar-lhe meus?...

- Foram os teus pais que tos deixaram... São teus, é claro. De meu nesta casa só os cartapácios da medicina, o velho estojo e a égua dos tempos de Abel e Caim.

E acabou a rir, com o ar arrenegado de D. Ermelinda, a quem tomou a mão para acariciar.

A criada veio servir uns bolos de bacalhau. Ele achou-os deliciosos, apesar de frios, enquanto a mulher voltava a falar na hora tardia do jantar.

- O que queres tu que eu faça? Achavas bem que lhes voltasse as costas, só porque não têm dinheiro para me pagarem e os pastéis arrefecem? - respondeu-lhes sempre a sorrir.

Ela aproveitou a oportunidade para aludir ao que precisava dizer-lhe.

- Só acho é que por eles te comprometes demasiado em coisas que não devias...

O Dr. Pimenta levantou o olhar e compôs as lunetas, como se precisasse de lhes mexer para interpretar aquelas palavras.

- Agora não te entendo - disse, por fim.

  1. Ermelinda sentia-se incapaz de precisar melhor o que pretendia.

- Mas a que te referes? - insistiu o médico.

- Ora!...

Ela via os argumentos fugirem-lhe; numa súbita reacção sempre lhe disse o que pensava.

- Coisas de política e outras...

O Pimenta percebeu-lhe o objectivo, voltando a sorrir.

- Mas isso não é só por eles; é muito principalmente por todos, entre os quais estás tu, os nossos filhos...

  1. Ermelinda teve uma expressão de dúvida.

- E depois ainda porque gosto de estar ao lado da justiça - acabou ele por concluir, pondo nas palavras maior vivacidade.

- Uma justiça que poucos entendem. As pessoas de posição lamentam que tu...

- Já sei quais são essas pessoas. Referes-te concretamente ao Silva Costa, ao Jerónimo... e a outros que tais.

Um tanto irritado, ele levantou-se, depois de beber o café, e foi até junto do aparador.

-Não te levo a mal, minha filha - prosseguiu. - Sei que falas por outras bocas... D. Ermelinda agastou-se.

- Achas que não tenho inteligência para reparar nos teus desacatos?!...

Ele bateu-lhe no ombro com afectuosidade.

- Claro que tens, e é pena que não te sirvas dela para dares resposta conveniente a certas pessoas que não têm coragem de vir até mim e se aproveitem da nossa amizade para te meterem no seu jogo.

A mulher tentou reagir, mas ele acalmou-a.

- Entendo, porém, e isto te deve bastar, que me deve ser concedido o direito de ter as opiniões que entendo, sem as subordinar a conveniências. O Jerónimo é um traficante e eu muito simplesmente digo que o é. E se for preciso prová-do...

- Bem escusavas aquela cena da farmácia - interveio D. Ermelinda com voz lamentosa.

- Enganas-te - retorquiu o Pimenta, já empolgado com a conversa. - Agora posso dizer que, além de traficante, é um biltre. E provo-o também. E digo e provo que os que vêm para aqui arruinar esta gente, vivendo à custa dos seus sacrifícios, são uma quadrilha organizada que devia sentar-se nos bancos dos réus.

- Mas és tu que te comprometes - respondeu a mulher, já esquecida da tarefa de que a tinham incumbido.

Depois lembrou-se ainda dum pormenor que lhe pareceu importante e sublinhou-o.

- Aos nossos vinhos não faltam compradores e o preço por que o pagam...

- E tu não percebes porquê?!... - interrompeu Pimenta, limpando os vidros das lunetas.

- Porque são bons e os tratamos como deve ser. Ele fê-la erguer e abraçou-a.

- Bendita ingenuidade a tua... Queres saber porquê?!... Porque és filha do velho Sacramento e eles lhe tinham respeito. E ainda porque esperam calar-me um dia dessa maneira.

- Estás sempre desconfiado...

- E ainda te não digo tudo de que desconfio - ripostou, fitando-a nos olhos. - Deixa-me nas minhas caturrices, como tu lhes chamas. Não te importes que desmereça no conceito dessa tal gente de posição... Podes ter a certeza que não faço tudo quanto devia... e que isso me traz dissabores...

Ela ia responder-lhe, mas um dedo colocado sobre os seus lábios fê-la calar-se; e foi o marido que prosseguiu:

- Não vale a pena insistires, minha filha. Já agora, esperamos que um de nós se convença das razões dos outros. Valeu?!...

E arrastou-a para a varanda. Do fundo do vale subia o guinchar de um carro.

 

- Valha-te S. Jorge, que é o advogado dos malucos !... - respondeu António Teimas, com uma palmada no ombro do Inverno.

O outro abanou a cabeça, desalentado, e deixou pender as mãos entre as pernas, apoiando os cotovelos nas coxas magras.

À sombra da ramada, onde os cachos ainda miúdos enfeitavam a folhagem, os dois velhos guardavam-se da torreira daquele Julho sufocante, prenúncio da aproximação do mês dos anjinhos, do Agosto, que leva para o último sono as crianças mais fracas.

- Se não fossem os dois rapazes, acredita, António, fazia o que te disse.

- Lá voltas à tua... Bem estava isto tudo se só houvesse homens da tua têmpera. Correm mal as coisas, corda ao pescoço... Perde-se uma pipa de vinho, vá de mergulhar no Douro...

António Teimas chegou a sua tripeça para junto do amigo, como se pudesse melhor afastá-lo daquela obsessão que era agora motivo dominante de todas as suas conversas.

- Tu estás doudo!... Onde pára essa rijeza de outros tempos?! Lembra-te que tu és dos homens da filoxera...

E, baixando a voz, enquanto esgueirava o olhar à volta, para que mais ninguém o escutasse: "A gente é de outra madeira... Tábuas sem caruncho, homem, mesmo velhos como estamos. Se não fosse a gente, o que era desta terra?... Coito de lobos e raposas... E vais agora desanimar?!..."

O Inverno franziu as sobrancelhas fartas, deu um trejeito de repelão aos queixos barbudos e voltou-se de frente para o compadre.

- Quando o vendaval é forte, não há assapada que se aguente. Queres pior ainda?... Já me bastavam estas últimas colheitas, em que a gente parece mais pobre de pedir do que donos de terras. Mata-nos o trabalho e matam-nos mais ainda as canseiras da cabeça. Agora chove fora de tempo... depois o granizo... logo a seguir uma soalheira de queimar tudo. E é a mangra, o míldio, os escaldões... o inferno!

A sua voz tinha dobres de uma amargura dolorosa. Torcia agora as mãos tisnadas e aduncas, como se os anos lhas tivessem descarnado e só as veias túrgidas lá quisessem ficar. António Teimas piscava os olhos azuis, ouvindo o desfiar de verdades do companheiro, mas respondia-lhe com um sorriso calmo quando o outro o enfrentava.

- E por cima de tudo os juros... Os juros que comem primeiro na nossa malga e a deixam vazia... Se deitam primeiro na nossa travesseira e ficam toda a noite a pôr-mos espertina nos olhos... E se agarram às nossas orelhas para nunca mais nos deixarem com lembranças ruins. "Tens de pagar!... Tens de pagar!..." E a gente não paga e são mais umas tantas valeiras queimadas por essa doença pior que a filoxera...

As palavras arremessadas com ira, sacudiam-lhe todo o corpo.

- E como se isto só não chegasse, já cansado das preocupações do vinho, vêm as sezões e matam-me o filho, depois de a mulher se ter finado naquele parto ruim... Ficam-me os netos, dois crianços... Um com dois, outro com três anos. E ainda dizes que não tenho coragem! E serve a coragem para alguma coisa?!...

Num impulso destemperado, o Inverno ergueu-se e deitou as mãos a um varão da ramada, sacudindo-o com gana. Os podengos pareceram entendê-lo e ergueram-se nas patas dianteiras, fitando o velho, de orelhas arrebitadas e olhos espertos.

- E ainda tu falas... Para que vale tanta canseira?!... - perguntou para o Teimas.

A Gracinda chegou à porta da cozinha e olhou-os indiferente. Estava mais magra e pálida, e os seus gestos eram mecanizados por uma lentidão doentia, como se vivesse somente para a angústia dos dias que se aproximavam. Percebia-se no seu todo que nada havia à sua volta digno de esperanças.

O velho Teimas voltou-se para ela também e agarrou o amigo pelo braço, obrigando-o a aquietar-se.

- A vida vale sempre quando a gente tem a certeza que a merece. Quem o seu cão quer matar, na raiva lhe põe o nome, é um dito antigo. E tu estás a fazer o mesmo. O sacrifício não é coisa que se meça. Às vezes também falo assim, mas é só às vezes... Porque logo me lembro do que agradeço aos meus avós quando olho para alguma coisa que eles fizeram e me deixam. Quase sempre sem palavras, mas as palavras não são precisas... No coração é que a gente guarda as melhores coisas deste mundo.

Fez um pequeno silêncio e sacudiu o Inverno com ternura.

- A recompensa já não a ouves e não é preciso. Daqui por muitos anos falarão em ti aqueles que ganharem nestas terras o pão de cada dia. Talvez não te saibam o nome... nem isso é preciso. O que conta é a semente que aqui vais deixar.

A serenidade do seu rosto transformava aos poucos a ira do outro. E o velho Teimas compreendeu-o.

- Onde aprendeste essas palavras, António?!... - perguntou o Inverno com uma ponta de admiração.

- A não ter medo da vida. E a pensá-la... A gente tem cá dentro muita coisa que não sabe. Eu só o aprendi quando fiquei desamparado dentro desta casa e a maioria abalava. Passei muitos meses sozinho comigo, a pensar. Foi um milagre... um milagre igual ao de fazer as pedras dar cepas. E um homem sempre é mais do que as pedras.

A porta do quinteiro rangeu e a mulher do correio, a Anica Malvada, bisbilhoteou para dentro, mostrando as farripas do cabelo desgrenhado e a cara morena, mais da pouca água que das soalheiras.

- Estejam com Deus!... Há aqui cartinha!...

O António Teimas olhou para Gracinda, de esguelha, e bem entendeu a perturbação que a fez amparar à ombreira da porta. E foi ao encontro da Anica, arrastando os pés, depois de jogar um calhau aos podengos.

- Será da minha namorada, mulher?!...

- E quem no queria?... Só alguma "augada", Ti António.

Meteu a mão no regaço e tirou a carta, que entregou ao Teimas. Impotente para abandonar a ombreira, Gracinda sentou-se no granito do portal. A Malvada percebeu-a e sorriu, matreira.

- Ah, Gracindinha!... Já fui a tua casa para ta entregar. Pensei que tinhas pressa de a ler e deitei até aqui. Quem me dera ter um marido que voltasse dos Brasis... E que nunca se esquece da mulher...

António Teimas beliscou-a num braço, como se estivesse para mangações, e levou-a, aos poucos, até ao portão, rindo sempre e galhofando.

- Quando te resolveres, Anica, também aqui tens homem.

- Outra sorte Deus me desse. Vossemecê nem aranhas já tira...

- Ah, bô!... Enchia-te de porrada e de boa vida. Vai-te lá, diabo! Olha que já é tarde...

E fechou-lhe o portão na cara sem mais aquelas; ainda lhe ouviram, por algum tempo, o resto do responso pelo quelho arriba.

O Inverno olhou o sol e despediu-se. Ia tão triste quanto chegara, como se as palavras amigas do outro nada lhe tivessem deixado no espírito.

- Vais logo à praça? - perguntou-lhe o Teimas.

- Sempre é melhor que ficar em casa...

Hirta e pálida, com a carta entre as mãos, Gracinda parecia não compreender a razão por que lha tinham dado. Um tropel de dúvidas a consumia. "Quem sabe se ele já vem a caminho?... E que irá fazer o Francisco?... Será capaz de lhe contar tudo?" O contacto daquele papel repugnava-lhe; apetecia-lhe rasgá-lo e desaparecer, antes que a chegada do marido a colocasse perante os dois.

"De qual deles gostava!... Talvez do Francisco... Mas que podia fazer? Fugir é que nunca!"

- Abre, anda - disse-lhe o velho aproximando-se, depois de acompanhar o amigo ao portão. - Não ficaste contente?...

Ela percebeu o sorriso de António Teimas, quis iludi-lo ainda, mas não foi capaz de se dominar. E deixou que o velho lhe tirasse a carta e a abrisse com a ponta do canivete de podar. Os olhos de Gracinda interrogavam: que vou fazer agora?...

O Teimas passou-lhe a mão pela cintura.

- Anda, lê... Não tenhas medo.

Ela reagiu de pronto, percebendo naquelas palavras uma alusão directa às suas preocupações; empertigou-se numa reacção decidida, foi desdobrando a carta e falava agora.

- De que quer o Ti António que eu tenha medo?... Só porque ele me pode desaparecer. (Lembrou-se do dinheiro que o marido lhe mandava.) Não é pelo dinheiro, não; mas homem tão meu amigo nunca mais enxergava outro... Que eu também não o procurava, Deus me defenda!

- Assim é que é bonito falar, rapariga - interrompeu o velho com sarcasmo. - Lê, anda...

E corria os olhos pelas letras, como se pudesse decifrá-las.

- Sabes que preciso de deitar contas à vida quando o teu homem chegar; nunca gostei de estar desprevenido.

Embora tentasse aparentar indiferença, Gracinda não podia dominar os nervos, abalados pela situação que procurava esconder aos seus próprios sentimentos. "Como teria o António Francisco recebido a ideia de ficar mais tempo no Brasil? Não desconfiara ele das suas palavras:..."

- Em que pensas? - insistiu o velho.

Ela não pôde conter um gesto de raiva. "Porque não se calava aquele intrometido, que parecia gozar com o seu embaraço?" Logo, porém, reagiu, como se o Teimas lhe adivinhasse o pensamento; abriu a carta e quis lê-la de uma só vez. Mas a emoção ocultava-lhe as letras, fugia-lhe com o entendimento e toldava-lhe a vista com uma névoa cerrada. De dedos fincados nas pontas do papel, fez um esforço maior e os seus olhos desvendaram no labirinto das letras as palavras que a libertavam: fico mais tempo.

Irreprimível de alegria, apertou o velho nos braços, sacudindo a carta com frenesi; e teve desejos de gritar a nova, como se o Francisco a ouvisse lá longe, em Ervedosa, na malhada do centeio. António Teimas não a entendia e continuava na sua: "Ele está melhor?... Quando chega?"

Gracinda, porém, não o escutava agora, porque aquela certeza bastava para lhe encher a alma. "Terminavam todas as preocupações. Tinha tempo para pensar melhor." E acabou por se esquecer das precauções para com o velho.

- Podemos fazer ceia melhorada, Ti António. (Mas logo emendou.) Já não precisa de pagar agora a sua dívida...

Apetecia-lhe abalar pelo portão do quinteiro, sem se importar que o amante trabalhava longe; um desejo louco de o ter junto de si empolgava-a. "Mas o velho iria perceber... Que lhe importava agora, se o marido não vinha tão cedo?!" Precisava de se expandir, de dizer ao Francisco tudo o que retraíra durante tantos meses. Essa necessidade foi superior às suas preocupações.

- Eu vou, Ti António...

E, antes que o velho viesse com mais perguntas, saiu a correr.

Voltava-lhe a confiança; e vinha com um fulgor que a transformava, dando-lhe um prazer novo à vida. À sua volta, as coisas pareciam contaminadas pelo mesmo deslumbramento.

A soalheira era agora um afago carinhoso que lhe corria no sangue. Sentia-se dona do seu destino, e as galas dos montes, onde as videiras se contorciam para o parto das vindimas, pareciam postas ali para festejar a sua alegria e a exuberância que levava consigo. Quanto mais subia pelas montanhas, agora em passos trôpegos pelo cansaço, mais a natureza se lhe tornava submissa, rojando-se, numa súplica, a seus olhos entontecidos pela luz.

Uma milheira passou a voar, à sua frente, saída de uma nesga de mato, onde as estevas, os carrascais e os codeços crepitavam abrasados pelo calor; gritou-lhe, pegou numa pedra e arremessou-lha, não para a atingir, mas para achar um pretexto de fazer alguma coisa que exprimisse melhor a sua esperança de viver.

Se não fosse a zunida dos mangoais, ao longe, poderia julgar-se só no mundo. Por todo o horizonte, as montanhas pareciam adormecidas, como seios morenos erectos para o sol, à espera que ele os mordesse.

- Hoje, tudo mata a sapeira - disse um dos malhadores, correndo a manga da camisa pela testa ensuada.

- A roda toca a todos -" respondeu Francisco, da fila fronteira, descarregando o mangual nas medas de centeio.

Tinham acabado a decrua, que é a primeira malha, onde ninguém fala, e como o feitor já havia distribuído nova ração de vinho para animar o pessoal, enquanto as mulheres se encarregavam de compor os molhos em montes mais altos, a segunda malha começara, com todo o despique de chalaças e desafios entre as duas filas de homens, de camisas e calções, para que a faina se tornasse menos penosa.

O grito cavo dos mangoais e os "óis" dos malhadores confundiam-se e galgavam os vales, de mistura com o zunir dos arcanhos, volteando no ar, ora duma fila, ora doutra, bem puxados a poder de braço e rins, em porradas secas que separavam a palha do centeio. O "sstravessar" lá seguia num despique sem tréguas, vigiado pelo feitor.

- Carrega-lhe, Espanhol, que ele é de Alcocillo - gritava o Sandão, lembrando ao outro as segadas de Castela.

- Vai, conho! -insistiu outro homem.

- Cozei-vos! - respondeu-lhes o Espanhol a rir.

- Tudo isto por um cibo de pão e um naquito de presigo que nem uma pita fica "tcheia".

- Vamos! - animou o feitor, encostado à sua racha de lodão.

As espigas esbagoavam-se, deixando saltar os grãos. E os lombos e os rins, flectidos no manejo dos mangoais, doíam-se e pareciam crescer num inchaço doloroso.

Las mujeres de Alcocillo Comprarem una romana...

E a voz do Espanhol amainou o trabalho, no seu canto flamengo de tremidos e voltas de garganteado. Ficaram as mulheres a escutá-lo, deixando-se de segredos e risadas, enquanto esperavam a sua vez de varrer e de tirar as palhas.

- Olé! - gritou o Sandão, todo num pingo de suor, como os outros malhadores, arfantes como ele e sempre vivos, porém, na cadência da faina.

... Para pesaren las tetas três veces en la semana

- Quantas arrobas?...

- Trinta!

- Assa!...

E uma gargalhada correu as duas filas e o grupo de mulheres, de novo entretido a espreitar os calções rasgados de Sandão, que os deixara assim com ela fisgada. - arreganhe!...

Só Francisco Teimas parecia ausente dali, descarregando o seu mangoal num automatismo que os braços tinham já decorado. E, por mais que os companheiros o atazanassem, não conseguia libertar-se da sua obsessão de abalar com a Gracinda antes que o outro voltasse.

- OTeimas perdeu a fala...

- Tropeçou num rebo do caminho e caiu-lhe. Andámos à procura dela, mas ninguém foi capaz de a ver.

- E foi uma pena...

- Cozei-vos! - respondeu-lhe Francisco entre dentes, sem erguer o olhar.

Foi então que Gracinda chegou ao carreiro que levava à eira e logo o distinguiu de costas, no vaivém do tronco, sem que as pernas se dobrassem para uma ajuda. Parou a distância, embaraçada por ter vindo até ali, esquecendo-se de que o povo poderia falar. Lá estavam o Espanhol e o Sandão para darem à trela na aldeia, e aquilo seria mais breve do que fogo em mato seco.

Hesitou e pensou regressar ainda; mas já tinham dado com a sua presença e viu o Francisco largar o mangoal e avançar para ela, às corridas, enquanto no rancho todos os olhares estavam postos nos dois.

- Alguma novidade? - gritou-lhe o Teimas ainda longe.

Ela negava-lhe com a cabeça, de novo esquecida de quanto pudessem dizer agora a seu respeito; e correu também para o Francisco.

- Recebi carta... Ele não vem...

Os braços esboçaram ainda agarrarem-se, mas tiveram de se reprimir. E sorriam ambos, devoravam-se com os olhos, procuravam-se com as mãos e não podiam viver inteiramente toda a felicidade que os unia.

- Diz-me lá como foi? - indagava ele para gozar melhor aquela certeza.

Ela tirou a carta do seio e o gesto embaraçou-os.

- Se eu pudesse... - titubeou ele ainda. Gracinda compreendeu-lhe a intenção e recordou-se do seu pensamento de há pouco.

-Diz ao feitor que tens de abalar.

- E o Espanhol e o Sandão?...

E aquela contrariedade fê-los infelizes. Francisco olhou o sol com uma expressão de rancor.

- Falta ainda tanto...

Procuravam ambos, calados, um pretexto que servisse para ele abandonar a malhada. Já o feitor o chamava, desempareibadas as fileiras com a sua falta.

- Diz que te vim chamar por causa do vinho... - insistia Gracinda, incapaz de se dobrar perante aquele obstáculo.

- O pior são eles... Vão encher a aldeia...

Ela olhou-o com desprezo e voltou-lhe as costas, abalando numa carreira.

- Gracinda!... Logo em tua casa...

Mas ela já não o ouvia, tonta daquele prazer frustrado que lhe empolgava o sangue.

Francisco ficou especado de desalento, no meio do carril. O zunir dos mangoais chamava-o ao trabalho, a voz do Espanhol voltava a ouvir-se numa canção de Castela, enquanto as mulheres gargalhavam por um dito equívoco do Sandão.

- Teimas! - gritou, de novo, o feitor.

A terra abrasada queimava-lhe agora os pés. Caminhou para a eira, como se arrastasse as montanhas nos ombros e o peito sufocava-se-lhe.

- Alguma novidade?...

- Tenho de abalar - respondeu numa decisão. E antes que o outro lhe volvesse palavra, Francisco

agarrou nas calças e vestiu-as, deitando a correr pelo carril. Do outro lado do picoto do cabeço, Gracinda deixara-se cair junto de um calço arruinado de mortório e chorava à vontade, mordendo-se nos lábios e arrepanhando as mãos nervosas, doridas de angústia.

Francisco viu-a e gritou-lhe. Ela só foi capaz de erguer uma das mãos, num aceno prolongado, e abandonou-se nas estevas, cerrando os olhos, à espera que ele chegasse.

 

Foi terrível aquela noite. E tão terrível que me obriguei a voltar a este diário, porque só então percebi melhor o bem que me faz confidenciar-lhe os meus pensamentos.

Rezei até de manhã, supliquei que Deus olhasse para mim, e só quando o cansaço me venceu consegui descansar; se descanso se pode chamar a um sono agitado em que o Dr. Freitas me veio repetir a sua indiferença por mim, e desta vez em palavras, sem sorrisos nem monóculo, duramente, tal qual eu sei que ele pensou quando

nunca mais me escreveu. Ele começou brandamente num discurso reflectido, pondo-me a mão no ombro, num jeito de amizade; mas depois vi-o mudar de semblante e de fato, ficando como um destes homens daqui, duro e sincero, com um olhar de escárnio, tão frio, que fugi espavorida de casa e me lancei por essas vertentes abaixo, tropeçando na carreira, caindo, ferindo-me, mas erguendo-me sempre para correr como uma louca até ao rio. E eles perseguiram-me. Eles - todos os homens da aldeia, e as mulheres e as crianças -, como na noite do assalto, enquanto o sino tocava sem cessar, chamando-os a todos para me fazerem montaria.

Era o Silva Costa que tocava o sino e a minha mãe ajudava-o. Ouvi ganir o cão que os homens queimaram e o cão veio morrer a meus pés; e depois já não era o podengo, mas D. Afonso, descansando a cabeça no meu colo e beijando-me os dedos que o afagavam, enquanto por todos os montes só se viam archotes na noite e ouviam gritos de ódio, incitados pelo sino.

Escondidos num socalco, eles passaram perto de nós e não nos viram, porque a Lua se apagou no céu e logo começou uma tempestade que agarrava nos homens e os levava, transformando-os em folhas mortas e, logo depois, em aves de rapina que vinham sobre nós em voos alucinantes para desfazerem a cabeça de D. Afonso.

Durante toda a semana não quis sair do quarto. Minha mãe vinha ver-me, de vez em quando, e a sua presença acabou por me cansar. Nunca me falou dele, embora algumas vezes os ouvisse conversar no quarto ao lado. O Dr. Pimenta veio algumas vezes e tentou conversar comigo. Permaneci sempre muda, porque, se falasse, sabia que o ia aterrorizar com as minhas confidências, talvez exagere... Sinto que exagero tudo o que me sucede e não o faço por dissimulação. É uma necessidade estranha que me arrebata e me obriga a ver tudo pior ainda do que a realidade.

Depois veio o cura e recebi-o com a mesma frieza.

"Não se quererá confessar, minha filha?!... Que pecados tem?!..."

"Não sou pecadora", respondi-lhe. "Nem nevrótica, como disse o Dr. Pimenta", volvi-lhe ainda.

Eu ouvira o médico dizer a minha mãe que aquilo era uma doença própria da idade. "Case-a depressa", dissera ele.

O que sabe o doutor da minha alma para sentenciar aquela solução?!

Case-a depressa! Case-a depressa!

Então comecei a repetir aquelas palavras, inconscientemente, primeiro, como se fossem as de um verme estranho que se arrastasse no meu sangue e falasse; depois decorei-as eu própria e foi a minha boca que as disse. Numa alucinação, as palavras tomaram-me a garganta e quiseram-me sufocar.

Apareci, então, dentro da sala da aula e, quando vi as crianças, lembrei-me outra vez da noite do assalto. Mas a que me ficava mais perto sorriu-se para mim, e foi o milagre. Aquietei-me pouco a pouco e pedi a minha mãe para a ajudar. Ali fiquei todo o dia e nunca me senti tão terna como durante essas horas que antes me pareciam monótonas e estúpidas.

Como a ideia de ficar só me apavorasse, dormi no quarto dela; de novo, porém, me voltou o desejo de a vexar com o Silva Costa. E, para que isso não sucedesse e se fizesse o irremediável entre nós, voltei a estas folhas brancas.

Compreendo agora que estive à beira duma situação desagradável. Comecei a reagir contra estas tolices que me desvairam e pedi para chamarem o Silva Costa. Ele virá na próxima noite e estou certa que vou ser capaz de conversar com ele acerca do nosso casamento. Amanhã, durante todo o dia, hei-de preparar-me para essa entrevista e ele não me vai reconhecer, com certeza.

Se me ficaram duas soluções e sou impotente para tomar a primeira, é preciso arranjar coragem para a outra. E, com certeza, vou consegui-la.

Sim, é necessário que a consiga.

 

Despenhava-se da abóbada azul daquele céu terrível de violência uma lava invisível que abrasava.

E, contudo, nas conversas enfastiadas por lojas e tabernas, nos grupos que tairocavam pelas ruas escaldantes, nos romeiros que vinham à festa do Socorro, de todos os pontos cardeais da rosa-dos-ventos aberta na maravilhosa bacia da Régua, havia uma indefinível esperança que só a gente do Douro sabia gozar e eritender. É que, com pouco mais de um mês, nova vindima chegaria -e no horizonte lá estavam as montanhas grávidas de promessas, nas tetas doiradas ou purpúreas dos vinhedos das suas encostas.

Por isso era bem-vindo e saudado com descantes na romaria da Senhora do Socorro, aquele sol bárbaro que esbeiçava os corpos, mas amadurava os cachos.

Foi um deslumbramento para os dois rapazes aquela primeira viagem de comboio. Já o tinham visto passar muitas vezes ao longe, a arquejar, cortando o silêncio com o seu grito agudo e borrando as encostas com o fumo negro da chaminé, desde a curva do Pinhão ao ponto da Roeda. Mas apreciá-lo ali mesmo e embarcar lá dentro era um prazer novo que os calava de emoção.

Depois de embirrarem pela posse da janela da carruagem que o povoléu tomara de assalto, acabaram por se acomodar com o prazer daquela vertigem que arrastava vinhedos e socalcos, árvores e montes, enquanto se desdobrava sempre a galopada do Douro, convulsiva de penhascos e galeiras.

- Olha, Chico, olha! - apontava Luís Teimas.

Algumas vezes pensavam que a paisagem se deslocava, numa corrida desenfreada, para chegar primeiro do que eles.

- Olha aquela oliveira a fugir!... Olha, Luís!... Riam-se os outros passageiros dos seus ditos, mas eles ignoravam-nos, procurando achar respostas para quantas interrogações aquela caminhada lhes trazia. Debruçavam-se da janela e viam nas curvas, lá adiante, a locomotiva rodando nos carris, a silvar e a expelir baforadas de fumo.

- Quem é que puxa o comboio?... -perguntava-lhe o Chico, em voz baixa.

- Se calhar, são cavalos que estão escondidos lá dentro.

- Mas os cavalos não têm rodas...

- Tu sabes lá!... Então como é que isto anda?!...

- E os cavalos não deitam fumo.

- Isso é que deitam, pois, quando estão cansados... Não te lembras do Doiradinho?!...

Entregavam-se à imaginação para explicar aqueles mistérios.

- E quem fez os comboios?!...

- Deus Nosso Senhor! -replicou o Chico, persuasivo. - O abade Augusto diz que Ele é que fez tudo!...

- Esse faz é os santos e as nuvenzinhas... Agora o comboio, não!...

Empurraram-se por causa daquela teima; ficaram amuados odepois.

Primeiro do que o pai e a tia, os dois rapazes já tinham esquecido a bramação do avô quando lhe anunciaram a partida para a Régua e o convidaram para os acompanhar.

"Festas, eu?!... Até parece que devo o ar que respiro..."

"A Gracinda vai ao Socorro cumprir uma promessa e pediu-me para levar os rapazes", respondera Francisco com modos de quem pede tréguas. O velho, porém, não estancara a sua ira com a explicação e abalara de casa, depois de desabafar com o filho as razões que lhe sobejavam.

"Este homem só se sente bem a estragar-me a vida", dissera Francisco para a cunhada quando o viram pelas costas. "Ainda está para vir um dia em que ele não pegue comigo!"

O tique nervoso ainda lhe contraía a face; apesar de a Gracinda o querer distrair com o olhar cheio de carinhos, ele continuava taciturno, alheado dos outros.

- Pai! Quem fez os comboios?-perguntou-lhe Luís, aferrado ainda à mesma disputa.

Francisco não lhe prestou atenção.

Um passageiro esclareceu-o.

- Não se fazem cá; vêm de fora!...

- De fora?!...

- Sim, da Inglaterra.

Luís acenou a cabeça, mas não entendeu bem. - Da terra para onde vai o nosso vinho - interveio o Chico, entusiasmado.

- Ah!

Entrou nova enxurrada de passageiros, que atafu-lhou os compartimentos e os corredores. Vozes cantavam; um harmónio sarrazinava o acompanhamento.

- Falta uma estação! - gritou alguém.

Passavam-se cabaças de vinho e trocavam-se merendas. Uma velha desmaiou com o calor; borifaram-na e foram pô-la à janela, obrigando-os a darem-lhe o lugar. Pares aproveitavam o aperto, falavam baixo, ao ouvido, e riam de mãos agarradas.

Luís olhou para o pai e viu-o também a sorrir. A Gracinda estava agora muito junto dele, crestando-lhe o braço com o encosto dos seios rijos e fazendo-o esquecer a disputa com o velho Teimas. Sem perceber porquê, Luís retirou o olhar quando a tia se voltou para ele.

A Senhora do Socorro É bonita, bem na vi...

Outros acompanhavam a cantadeira ao ritmo de palmas, no intervalo das goladas que bebiam, sôfregos, de pinchos e barris; uma criança choramingava numa birra, querendo que a sentassem na prateleira das bagagens. À sua volta riam.

E mal o comboio parou, atiraram-se todos de escantilhão para o cais, na ânsia de ganharem a porta mais depressa do que os outros.

Dois homens zaragatearam; uma mulher deitou aos gritos, porque perdera a filha no meio da balbúrdia e tinha medo que o comboio a levasse. Quando a cachopa apareceu, encheu-a de palmadas e depois beijou-a.

Chico e Luís Teimas estavam tontos de emoções. O estralejar do foguetório desvairou-os quando puseram pé em terra. E o matraqueio dos bombos dos zés-pereiras, com a guinchada pachorrenta das gaitas de foles, a crescerem para eles quando desceram a rua do largo da estação, entre arcos orlados de flores pintadas nas colunas e nas bambolinas que se cruzam no ar, fê-los darem-se as mãos numa trégua definitiva, enquanto o pai lhes aproveitava a distracção para ciciar à Gracinda a marotice de um pensamento que lhe ocorrera.

- Cala-te com isso - repreendera-o a cunhada com excitação. - Nunca mais tens juízo.

Ele sorriu-lhe, com a certeza de que também ela comparticipava do seu desvario.

Foram abancar para uma taberna, na Meia-Laranja, entre gente pingueira que fugia à vaga de calor, enquanto pelas estradas e carreiros o povoléu descia de uma margem e outra do rio, atraída pelo rebentar de foguetes e morteiros, cujos berros caminhavam até à mole austera dos píncaros do Marão, lá muito arriba, como uma sombra negra ameaçando o monte verde dos montes mais maneiros.

Francisco esquecera de todo a disputa com o pai, certo de que o amor da cunhada lhe iria conduzir a vida. E entusiasmou-se mais do que ninguém do seu rancho, bebendo do canjirão para matar aquela sede que o abrasava e parecia não ter cabo; espreitando uma aberta para apertar a coxa que Gracinda encostara à sua; incitando depois os filhos para irem até ao paredão, de onde se avistava o rio e a barca de passagem empanturrada de gente, só para ficar com ela mais à vontade.

Um grupo de gigantones e cabeçudos surgiu a bailar, lá ao fundo da alameda, acompanhado por uma banda de música que espirrava sons desafinados em passo marcial, e os dois rapazes vieram para a porta da taberna com pena de os não poderem acompanhar.

- Ficamos logo para o fogo - convidou Francisco, a conceber afagos mais prolongados nas trevas dos intervalos das cascatas de luz.

- E o teu pai?...

- O meu pai que se amole...

Mas até aquele desabafo foi dito mais num tom gracioso do que por ofensa.

Turvava-o o vinho e o prazer da companhia.

Um grupo entrou a dançar na venda; ele ficou a dar aos ombros, trauteando depois a mesma cantiga, com ganas de saltar também para o meio dos outros, estalando os dedos no acompanhamento e na marcação do ritmo. Agarrou ainda na cunhada pelas ancas, num impulso irreprimível.

- E se alguém nos vê?!... -lembrou ela numa doce reprimenda.

Francisco nem deu pelo reparo; piscou-lhe o olho e puxou-a para si, emborcando novo canjirão, que acabou por lhe dar volta à cabeça e o prostrou num suave balanceio. Depois reagiu para cantarolar uma das suas, aproveitando uma deixa de um dos improvisadores do grupo. Aplaudiram-no duma mesa e excitou-se mais. Encostado à parede, saiu para o meio da taberna, tirando da roda um dos dançarinos com o habitual gesto de mão, enquanto uma rapariga o enlaçava para o rodopio daquela moda.

Uma borracha de vinho andou de boca em boca e demorou-se mais na sua.

Alto de cima do Douro

Ninguém te quer mais do que eu...

Saltitando à sua frente, a moça sacudiu-se em meneios que lhe balouçavam os seios na blusa.

... Bonda tu seres a terra Donde o meu amor nasceu...

E quando na contravolta a rapariga caiu nos seus braços, Francisco apertou-a no peito, esquecendo-se da cantiga e do bailarico, como se tudo houvesse desaparecido à sua volta. A moça tentou livrar-se das suas mãos, mas ele agarrou-a bem e não a deixava escapar-se.

- Largue-me, seu bruto! Arrede lá os gadunhos!... Parecia que todos esperavam aquela voz para se

engalfinharem. Num instante, a taberna transformou-se num terreiro de luta, entre os de Cambres e os de Loureiro, que de há muito se não viam com bons olhos e aproveitavam qualquer oportunidade por tirarem desforra doutras rixas. Francisco apanhara uma punhada na ponta do queixo que o atirara, esparranhado, para cima da mesa, onde a Gracinda abancava com os rapazes. Já alguns homens brandiam cacetes, ensarilhando tudo, apesar dos esforços do taberneiro, que saltara o balcão para acalmar a freguesia.

À parte, como se não entendesse o significado daquela barulheira, o Teimas afagava o maxilar dorido.

- Seu malandro! - gritava-lhe o outro, bem agarrado por um magote de pingueiros. - A rapariga é minha filha!...

Como puderam, a cunhada e os filhos arrastaram-no para a rua.

- Uma vergonha!... Uma vergonha! - repreendia-o Gracinda, com despeito.

- Vergonha porquê?!... Ora essa!... Fiz mal a alguém?!...

- Viste uma burra de saias e pronto! Levaram-no para a borda do rio e sentaram-se à

reveça de um rabelo atracado, sem companha. Ele sorria sempre, embora a moinha do queixo se fosse tornando numa dor ainda vaga que lhe fazia cerrar os olhos.

O ar queimava. As nuvens brancas no céu estavam tolhidas pela calmaria, como os pássaros nos ninhos. Só os romeiros chegavam sempre da outra banda, fazendo magote no areal, à espera de vez para embarcarem.

Caído em modorra, Francisco Teimas resfolegava numa respiração incerta, com a cabeça no ombro da cunhada, enquanto os filhos corriam pela margem, em disputa, com outro rapazio, pelas canas dos foguetes. Gracinda pensava na promessa que fizera à virgem do Socorro e lembrava-se do marido ausente. "Quando ele viesse um dia... Sim, ele havia de chegar."

Olhou o cunhado, de revés, e sentiu desejos de o empurrar do seu ombro. Hesitou um instante, mas a imagem do marido cresceu na sua imaginação e viu-o caminhar para eles, resoluto, na figura de um homem que saltara da barca de passagem e se lhe assemelhava. Então, instintivamente, agarrou na cabeça do cunhado e encostou-a a uma pipa que lhe ficava do outro lado. Francisco acordou estremunhado, fazendo caretas, a remoer na boca o travo acre do vinho. Pareceu depois entender onde se encontrava e fitou Gracinda com uma expressão de estranheza.

- Deixa-me dormir no teu colo - pediu-lhe numa lamúria de cachopo.

- Estás doudo!... Só me queres comprometer...

- Comprometer o quê?!... Tu julgas... E agarrou-lhe nas mãos com violência.

- Porque não vais pedir à outra? - retorquiu Gracinda para desviar a conversa do rumo que adivinhava.

- Pensei que estava a dançar contigo...

Depois lembrou-se do murro, levou a mão ao queixo e tentou erguer-se.

- Aquele malandro chegouéme, anh?!... Tu conhece-lo?... Não deitou em saco roto, não; porque se o apanho à minha beira coso-o de navalhadas. Nunca nenhum homem me tocou na cara; e quem mexer aqui arrepende-se...

E batia no rosto com palmadas rijas. Lembrou-se depois do António Francisco e excitou-se mais.

- Se ele alguma vez vier... juro-te aqui, na Senhora do Socorro...

Ela tapou-lhe a boca, como se receasse ouvi-lo, e puxou-lhe novamente a cabeça para o ombro.

- Não queres que eu fale? - disse-lhe ainda - Mas juro-te...

- Não é preciso; eu sei que tu és um valente. Francisco sorriu, puxou a aba do chapéu para os

olhos e adormeceu.

 

Nem a Chandarca já o podia aturar depois do conflito com o Dr. Pimenta. Perdera a confiança, aquele homem que viera de contrabandista a negociante de vinhos e se orgulhava sempre da sua ascensão, como um exemplo de coragem para os outros. "Passei fome e frio... Nunca desanimei. Resolvi um dia ser rico e achei que isso era bem mais fácil do que aguentar miséria. E atirei-me para a sorte, jogando a vida a todas as horas. Pus de parte o coração e cheguei."

Agora sentia-se impotente para encontrar essa força de outros tempos e recordava o passado com saudade. Lamentava-se de nunca ter querido constituir família, só para que não fosse um embaraço nos seus projectos. Comprara raparigas que a Chandarca lhe levava às escondidas da aldeia, pagara amizades, subornara influências para as suas transacções.

"Isso fica-me mais barato do que ter mulher com o meu nome, amigos por afeição e sócios para negociar", era o que dizia, a sorrir, quando falava no segredo dos seus êxitos. E tudo o que enjeitara lhe fazia falta naquela crise de confiança. Precisava de desabafar, de ouvir um conselho... Recorrera ao padre Augusto e o desespero era maior do que a sua fé.

Pensara em abandonar os negócios, mas reagira de pronto, fazendo novas compras de vinhos do Sul para os seus lotes. As pipas tinham seguido para o Tua, com a intenção de despistar, e, na madrugada do desembarque, o povoléu assaltara a estação, destruindo-lhe tudo; desde a noite do incêndio no armazém, nunca mais o destino se lhe submetera. E temia-se de fazer projectos, ele, que não receara as espingardas dos carabineiros, na fronteira de Chaves. Compreendia que precisava de uma iniciativa para se reencontrar e que depois tudo seria fácil, novamente; mas nada surgia que lhe parecesse capaz de dar volta àquela maré de descrença.

Bebia mais do que antes, para se sentir acompanhado, fechando-se no quarto, depois de recomendar à criada que não estava para ninguém. A velha multiplicava-se em rezas, defumava a casa para afastar os espíritos maus e esperava sempre, sem remédio, que o Jeró-nimo voltasse a ser o mesmo, repartindo com ela algumas achegas. Via-o, porém, piorar, já incapaz de ouvir os seus passos no corredor quando ela andava na lida, receoso de sombras e ruídos, que a embriaguez ainda avantajava.

Uma noite expulsara-a e logo depois a procurara, chamando por ela, como um cachopo abandonado.

- Ah, Chandarca, Chandarca! - lamentara-se quando a criada aparecera. - Às vezes julgo que estou doido... Tem paciência! Atura-me até ao fim, que só tu és a minha família e hei-de deixar-te tudo.

A velha esmerara-se em paciência com aquela promessa; mas depois ele pensou que talvez fossem as suas rezas que tivessem provocado aquela doença, na mira de lhe ficar com o dinheiro. E odiou-a; ganhou-lhe medo e acabou por recear que ela o envenenasse. Mandou-a vir comer à sua mesa, trocava os pratos e só mexia na comida quando ela o fazia primeiro.

- Se eu tivesse um filho, Chandarca... Alguém que fosse do meu sangue e não me aturasse por obrigação como tu... Agora já nada posso remediar... Às vezes penso que fiz grandes pecados e isto é a paga... Tu achas que fiz mal a alguém?!...

Repetia mais uma vez aquele desabafo quando a notícia chegou. Ouviu-se alarido no terreiro da casa, vozes que gritavam palavras incompreensíveis e fogue-tório que estalava na outra margem do Douro. Ambos se olharam inquietos.

- Vai tu, anda. Vê lá o que foi - acabara por dizer o Jerónimo, levantando-se para ir até ao fundo da casa.

Quando a Chandarca apareceu à janela e fez a pergunta, houve um silêncio por instantes; parece que o rei fugiu e os republicanos...

Ele próprio ouviu a nova. Ficou-lhe um alarido no cérebro que não deixou distinguir as outras palavras. Abalou para o quarto e fechou-se por dentro.

"Estava pérfido. Eles diziam nos comícios que a República era para o povo e o povo odiava-o. Talvez já se juntassem na praça para o assaltar ali mesmo e levarem-no com eles... Sabia lá para onde? E com o Dr. Pimenta à frente..."

Agarrou na espingarda, reviu os zagalotes na cartu-xeira e dispôs-se a fazer frente aos que o procurassem. Começou a arrastar os móveis para junto da janela, no propósito de fazer deles o parapeito da trincheira, onde se resguardaria. "Antes que o apanhassem, baldearia os mais atrevidos. E depois..." A ideia da morte percorreu-o num frio terrível e doloroso. "E se fugisse?!..."

Inquieto, começou a passear no quarto; olhou o espelho e viu-se lívido, emagrecido, de barba crescida, como no tempo em que era contrabandista. Lá estavam as marcas no rosto a recordar-lhe tudo. "Se tivesse coragem outra vez..." Levou as mãos às faces e arrepanhou-as com raiva.

- Mataram o outro rei... E este fugiu...

Num acesso de ódio, agarrou no espelho e desfê-lo em pedaços na esquina da cómoda; ficou com a moldura agarrada, como se percebesse o que havia feito.

A Chandarca bateu à porta.

- Não entres!... - gritou.

Depois aproximou-se, já com a espingarda nas mãos, e ciciou-lhe perto da frincha do lado dos gonzos.

- Vai à quinta chamar o Silva Costa; diz-lhe que venha depressa! Que estou doente... e que preciso dele...

E, como ouvisse a respiração da velha por algum tempo, descompô-la aos berros.

- Estás à espera que eu morra, para me ficares com o dinheiro?!... Vai depressa, anda.

Ouviu-lhe os passos apressados no corredor e foi espreitá-la à janela. Ruídos de morteiros e foguetes festejavam a notícia no Pinhão e em Alijó. "Quantos daqueles se teriam servido dos seus favores?!... E agora troçavam dele e da monarquia... Era o momento de os malandros se aproveitarem..."

Lembrou-se do seu dinheiro; correu ao esconderijo, levantou a tábua do soalho e teve um sorriso amargo quando lhe tocou. "Tanto sacrifício, para quê?... Agora era preciso fugir que nem um ladrão... Teriam de fugir todos os homens de bem... E ficariam os malandros para tomarem conta do que lhe pertencia."

A vindima ia no meio; ouvia agora passar pelo quelho da sua casa uma trempe de tocadores, à frente de uma fila de homens ajoujados pelos cestos. "E ninguém os obrigava a calar aquela música." Apeteceu-lhe chegar à janela e gritar-lhes que acabassem com alegrias, porque o rei fugira. Mas reteve-se, na impotência de quem se sabia desrespeitado de antemão. Ainda há pedaço era regedor. E agora?!..."

Apressado, à frente da Chandarca, que lhe seguia os passos, o Silva Costa atravessou o quinteiro, olhando para a janela. O outro ainda lhe fez um aceno com a mão, mas ele não lhe respondeu, indo abrir a porta trancada. Olhou os móveis e envergonhou-se de ter a casa naquele desalinho; tentou repor tudo como estava, mas o outro entrou e ficou parado no limiar da porta, sem perceber as suas preocupações.

- Ainda bem que veio - disse para o Silva Costa. - Feche... Já sabe o que se passa?!...

Jerónimo agarrou-o pelo braço, obrigando-o a sentar-se na cama, a seu lado.

- Eles vão procurar-me, com certeza. Sabe que os republicanos não me perdoam e são capazes de me liquidar...

- Ora, ora! - ripostou o Silva Costa, despreocupado.- Porque é que você já não aderiu?!...

- Foi o que fez, não?!...

O administrador da Casa Grande pareceu embaraçado com a pergunta e iludiu a conversa.

- Não fazem mal...

- Pois sim; mas eu sei que eles não me perdoam. Vou fugir para Espanha...

- E os seus vinhos?! - indagou Silva Costa, interessado.

- Vendo-lhos... Quer?!... Faço-lhe um preço de amigo...

No fundo, pensava que iria perder tudo e o pouco que viesse seria ainda bem ganho. O Silva Costa percebeu-lhe o pavor.

- Sabe que casei e nesta altura...

- Vendo-lhe barato - insistiu o Jerónimo. Tinha pressa de abalar, mas tentava ainda convencer o outro.

- É o que me resta de uma vida de trabalho! Vim pobre para aqui e volto pobre... Mais pobre talvez, porque nesse tempo era um rapaz e agora sou quase "um velho.

Agarrou nas mãos do administrador, sempre inquieto, a olhar a janela, como se por ali pudessem entrar os seus inimigos.

- Cinco contos, Silva Costa!... É dado! Quase não paga o vasilhame... Você sabe que tenho bons vinhos! Guardava-os para um dia... E estes malandros vêm agora dar-me cabo de tudo.

- Cinco contos é muito...

- É dado, Silva Costa.

-"Não digo que não, Jerónimo; mas não tenho dinheiro que chegue.

Ele sabia que o outro estava nas suas mãos, de tal maneira o via transtornado.

- Porque não vai oferecê-lo ao Pinhão?

- Matavam-me!

Silva Costa teve uma expressão preocupada. - Para que se meteu você na política?!... Essas coisas nunca trazem bom resultado... Agora veja lá o que arranjou! - O Jerónimo afagou uma esperança, por momentos.

- Se adivinhasse que não me faziam mal... Escondia-me uns dias e voltava depois.

-Faça o que quiser, mas... E, chegando-se mais ao outro, disse-lhe, em segredo, as suas apreensões.

- Quando atravessei a praça...

-Falavam de mim? - interrogou o Jerónimo, alarmado.

-Não lhe quis dizer logo para o não incomodar. Não percebi o quê, imas não era coisa boa, pela certa.

- Eu sei o ódio que me têm, Silva Costa. E nunca fiz mal a ninguém, acredite. Esse ladrão do Dr. Pimenta é que me arrasou por aí... Se não fosse por coisas, carregava a espingarda e fazia-lhe uma espera. E, já que estou perdido, não era ele que ficava a rir-se de mim.

Torceu as mãos, desesperado, aproximando-se da janela; fixou por breves instantes as montanhas percorridas pelos ranchos das vindimas. Odiava tudo aquilo, amaldiçoou, em pensamento, os que ficavam.

- Se me der quatro contos, deixo-lhe o vinho das minhas adegas - disse depois para o outro, que parecia distraído com uma gravura colorida do Santuário dos Remédios.

- Não tenho dinheiro, Jerónimo. E não vou pedi-lo emprestado, porque também não sei o que o destino me reserva - respondeu Silva Costa.

- Então quanto dá?!... -insistiu o Jerónimo, ansioso.

- O dinheiro de que disponho neste momento: dois contos.

- É pouco... Não me paga o vasilhame.

Silva Costa estendeu-lhe a mão para se despedir.

- Não posso ir além. E quem sabe se amanhã, ou hoje mesmo, eu terei de abalar também como você. O melhor é ficarmos assim... Adeus!

Jerónimo reteve-o pelo braço, não querendo deixar fugir a única oportunidade que tinha para vender os vinhos. O facto de o outro recear também o futuro confirmava os seus pensamentos e sentiu-se mais confortado. A partida tornava-se-lhe menos dolorosa.

- Traga lá esses dois contos!

E apressou-se depois a despedir o Silva Costa - o estralejar de foguetes lembrava-lhe a necessidade de abalar sem demora.

- Fez um bom negócio! - disse ainda da porta. Voltou depois para dentro, de corpo derreado, como se os próprios passos lhe fossem dolorosos. Tinha vontade de chorar, ao despedir-se de tudo aquilo que já não lhe pertencia. Olhava os móveis com mágoa e só naquele momento percebia o significado que desfrutavam na sua vida. Desejou afastar recordações e não ter ideias, mas o pensamento tornou-se-lhe mais vivo para quanto o rodeava.

Nos socalcos de uma vinha, um rancho de mulheres cantava.

"Talvez nunca mais as ouvisse!... Mas se um dia ali pudesse vir..."

Cerrou os punhos, agitado por aquela esperança. "Hei-de-me vingar..." E como um autómato agarrou na espingarda, enquanto as lágrimas lhe mordiam os olhos.

 

Tudo me parece ainda um pesadelo.

Julguei que me convencera finalmente a ser mulher do Silva Costa e dei-lhe o meu assentimento definitivo, insistindo até para que nos casássemos depressa com receio de me arrepender. Estou certa de que os suicidas se comportam assim no momento em que se resolvem a acabar.

Só na véspera me chegou a consciência do que fazia. E então essa realidade tornou-se tão opressiva que tenho a certeza de que passei por um verdadeiro estado de loucura. Quis fugir; tive o desejo de que um homem qualquer me levasse consigo. Cheguei a sair de casa, sozinha, passeando pela aldeia. Quem podia adivinhar, porém, o que eu desejava? A ideia da morte passou-me ainda pela cabeça. Escrevi no meu diário o que pensava; lembro-me de tudo o que escrevi. "Agora, que me parece impossível evitar o irreparável, sinto profundamente que isto não pode chegar ao fim. Penso algumas vezes que talvez me habituasse ao convívio daquele homem. Com quantas terá sucedido o mesmo? Mas compreendo-me incapaz de um sacrifício semelhante. Se tivesse alguém que me amasse, como seria bom abalar daqui! Mas nem isso. Eu própria, talvez, não tenha amado. O namoro com o Freitas foi uma criancice; D. Afonso, um sonho. E agora depois dele este homem. Não, não pode ser; é um contraste demasiado vivo. Ainda não sei o que vou fazer, mas sei que vou sair de casa para nunca mais voltar. Só espero que minha mãe adormeça e aqui estou a gastar o tempo, escrevendo muito calma as últimas páginas do meu diário, que farei desaparecer antes de abalar. Tudo isto é ódio. Um ódio frio que me apavorou e agora me dá prazer. Foi o que conseguiram de mim; transformarem uma romântica numa mulher reservada e perversa. Antes assim. Parto sem saudades de ninguém..."

E não fui capaz de escrever mais. A morte fez-me medo. Eu, que nada esperava da vida, senti que alguma coisa de indefinido, mas superior ao meu pensamento, se rebelava contra essa ideia. O que sofri toda a noite, só eu o sei.

No outro dia, à tarde, era mulher do Silva Costa.

E convenci-me de que o seria de facto, talvez indiferente a tudo o que sucedesse depois. Mas aquela noite não me esquecerá mais. Todos os meus sonhos voltaram em rebeldia contra mim; apeteceu-me expulsá-lo do quarto, vexá-lo, dizer-lhe tudo o que pensava a seu respeito. Ele julgava que era a emoção do momento.

E agora?! E agora, que só desejo hostilizá-lo, que vou fazer?! Como foi possível dominar os meus sentimentos mais profundos, de maneira que eu própria me convencesse de que estava conformada?!

 

Albano Freitas metera-se no seu gabinete de Gaia e dera ordens para ninguém o incomodar. Sabia que estava a fazer um jogo difícil com os Ingleses, no qual poderia ser esmagado, se eles soubessem de onde emanava a campanha. O pai chamara-o à razão, tratando-o com dureza e garantindo-lhe que retomaria a direcção da casa se ele persistisse na sua.

Pagara por bom preço os artigos publicados no jornal, em que se insistia "na necessidade de se defender a Nação dos interesses alheios", e a campanha fizera alarido no Porto, alastrando, certamente, por toda a região, cada vez mais excitada com a falta de aguardentes para beneficiar os vinhos e os preços desastrosos que estes obtinham nos especuladores e comissários.

Sentado agora à sua secretária, revia a papelada que guardava, a bom recato, no cofre, não fosse o guarda-livros descobrir algum testemunho da sua interferência nos artigos e vender-lhe o segredo aos outros.

As palavras do comissário do Roop bailavam-lhe sempre na mente: "Pegue-os de cernelha, Sr. Doutor, tenha cuidado!..."

Sentiu-se um tanto trémulo quando pensou que a hora se aproximava - era preciso estar pronto para todos os golpes do outro, não dizer uma palavra a mais nem a menos, colocar cada frechada no sítio próprio, usar, em suma, da mesma avareza de expressões que o outro empregaria. Tirou um cálice do armário, encheu-o com um vinho especial que mandara preparar havia alguns dias e foi até à janela, sobranceira ao rio, envolvido pelo cinzento da tarde agreste daquele Inverno. Estendendo o braço com o cálice, para medir o seu nervosismo, emborcou o resto e pôs-se a passear no escritório.

"Olhe, Sr. Roop: é preciso que nos entendamos e desde já. O mercado em Londres é vosso, sem dúvida; mas arranjemos uma plataforma." Era assim que a conversa se devia passar, segundo os seus desejos; sabia, contudo, que não dispunha de força para lutar daquela maneira. Vexava-o admitir termos diferentes; apesar disso, não tinha outro remédio para levar o inglês a escutá-lo senão diminuir-se, pactuar, embora só por palavras, e submeter-se à resolução do outro, temperada, era evidente, pela manobra.

Alguém altercava no escritório com o guarda-livros; aproximou-se da porta e reconheceu a voz roufenha do Porfírio jornalista.

- Mas o Sr. Doutor não está...

- E onde o posso encontrar?... É um caso importante... Arrisco o meu lugar no jornal; e se ele não aparecer até à noite...

Albano Freitas entendeu que não podia deixar o outro prosseguir, embora desprestigiasse o guarda-livros. Deu volta à fechadura e surgiu, sorridente, entre portas.

- Faça favor, Porfírio.

Os outros dois mediram-se com rancor. Lívido, o guarda-livros voltou-se para ele, encaminhando-se depois para a secretária numa resolução desabrida.

- Entrei pela porta dos armazéns e o Sr. Cunha julgava-me ausente. Desculpe, Porfírio; venha cá, venha.

E, tomando-lhe o braço, encafuou-o no escritório, depois de encolher os ombros para o empregado.

- Diga lá o que deseja... Há alguma novidade?... O jornalista repuxava o laçarote negro que lhe escondia a camisa e recusou a cadeira.

- O director do jornal chamou-me e impôs que lhe dissesse quem me encomendara os artigos...

- E você?!...

- Respondi-lhe que os escrevera por estar certo que correspondiam aos mais íntimos desejos de muitos portugueses...

- Podia dizer da Nação, Porfírio. A Nação agradece-lhe reconhecida, acredite.

- Mas o director insiste. Uma firma inglesa mandou-lhe uma carta e foi logo o trinta-diabos. Ameaçou-me de demissão...

- Você deve manter-se na sua, insistia o Dr. Freitas já descontrolado.

- Pois sim, meu amigo. Se não fosse a mulher e os filhos, tudo se comporia. Atirava uma das minhas ao diretítor e abalava pela escada abaixo, sem mais complicações. E então é que se saberia tudo o que ali se passa dentro. Uma vergonha!... Mas as crianças... Eu não posso conceber que as crianças tenham de sofrer com isto...

Já vencido pela insistência do outro e pelo tom doloroso em que se exprimia, Albano Freitas abriu os braços com desalento.

- O que pretende que eu faça?!...

Porfírio não esperava a pergunta; arregalou os olhos para o doutor e abanou a cabeça, sacudindo a gaforina rebelde. À sua frente, Albano Freitas insistia.

- Sabe que não posso falar ao director... De resto, só lhe dei algumas sugestões que estão mo espírito de todos os bons portugueses. O Porfírio ofereceu-se...

- Ofereci-me como?!... O senhor até me deu todos os elementos escritos, para que nada esquecesse! Seguiu-se um silêncio.

- O Porfírio está a exagerar - disse depois o Freitas. - O momento é grave, mas necessita de recobrar a calma.

- O pior são as crianças...

- Quanto a isso, esteja descansado! Saberei protegê-las...

Agitado, o jornalista percorria o escritório em passadas largas.

- Ele quer saber tudo esta noite. Ameaçou-me! -E o Porfírio vai dizer que paguei os artigos?!

Vai mostrar a toda a gente que é um homem que se vende?!... Com que reputação ficaria na cidade?!... Tenha calma! O senhor vai dizer que os artigos são de sua inteira responsabilidade, que, como jornalista probo, foi simplesmente o eco de tudo o que ouvia a muita gente. De resto, você só insinuou... Não disse, claramente, que os Ingleses exploravam o nosso vinho.

-Mas todos perceberam!...

- E você nega essa intenção ao director, se for preciso. Propõe-se até redigir uma pequena nota de esclarecimento. ..

Albano Freitas sentou-se à secretária, puxou de um papel e tentou escrever.

O tempo decorria. Dentro de meia hora o Roop estaria à sua espera, para a entrevista solicitada, e ele tinha de segurar aquele pobre diabo. "Metera-se em boa... Os Ingleses, quando soubessem, iriam fazer-lhe montaria e rebentavam-lhe com o negócio."

Quis desviar o pensamento daquela preocupação, entregando-se a redigir a nota para o outro. O Porfírio fora para a janela e parecia mais conformado. Dos armazéns chegava-lhe o rodar de pipas, de mistura com o ruído de uma bomba de trasfega. Começou a escrever, mas logo riscou as primeiras palavras que conseguira lançar ao papel. Depois, num repente, surgiu-lhe a redacção completa.

-Olhe, Porfírio; talvez assim!...

O outro veio debruçar-se a seu lado; ouvia-lhe a respiração opressa e repugnava-lhe aquele hálito a febre e a mau tabaco.

- "A propósito dos nossos artigos sobre a genuína marca nacional que o mundo venera..."

- E aprecia - ditou o jornalista.

Albano Freitas escreveu, prosseguindo depois na leitura, em voz alta.

- "... Chegaram alguns rumores despropositados à nossa redacção. Este jornal declara que, de modo algum, a sua índole se destinava a ofender o honrado comércio inglês, mas tão-somente a chamar a atenção do País para que os que exploram o vinho do Porto sem consciência..."

- Talvez "verdadeira consciência", emendou Porfírio, já entusiasmado.

- Sim, diz muito bem: "sem uma verdadeira consciência nacional. Sempre orientado pelos mais nobres deveres de patriotismo, este jornal não pode permitir que em seu nome se alimente uma campanha contra a nossa secular aliada."

O Dr. Freitas atirou a caneta sobre o tampo de vidro da secretária e passou a nota ao outro.

- Que acha?!

- Está bem... opior é que todos sabem que aquilo era mesmo com os Ingleses.

Albaninho sorriu vitorioso.

- Pois é isso mesmo que se pretende. Mas esta nota deve bastar ao seu director. Passe-a com a sua letra e apresente-lha...

- E se ele me perguntar com quem eram os artigos?...

- Não pergunta, descanse. O Medeiros é um bom diplomata...

E, olhando as horas, o comerciante estendeu a mão ao Porfírio, numa despedida afectuosa. Já entre portas, o jornalista deu-lhe a notícia que esquecera no meio das suas preocupações.

-Sabe quem morreu esta manhã?!... A D. Branca Medeiros Castro Sepúlveda e Pimentel...

 

Entrou no escritório do inglês à hora exacta e foi recebido prontamente. O Roop já devia ter feito bastas provas dos seus vinhos, porque o rosto, sempre afogueado, parecia espirrar sangue, enquanto os olhitos azuis se escondiam mais entre as pálpebras papudas. Deixou-se cair num maple importado de Londres, mostrando as canelas magras, sem cuidar Ide apuros com as calças arrepanhadas nos joelhos; esboçou um gesto para que Albano Freitas se sentasse, enquanto este pensava na inglória do comércio de vinhos tão afamados depender de homens daquela estirpe. E compôs o seu monóculo com afectação, para que o outro sentisse que não estava perante o pai ou qualquer outro comerciante português do mesmo tipo.

Recostando-se mais, o Roop estendeu os braços longos sobre as coxas secas e fez um sinal ao outro com a cabeça, puxando do relógio para ver as horas; o Dr. Freitas afogueou-se com a indelicadeza e lamentou não poder defrontá-lo como gostaria. Teve, porém, de fazer um esforço para se dominar. "A que vexames obrigava a vida comercial!"

- Não lhe vou tomar muito tempo - disse com uma acentuação grave.

"Envergonhava-se de si, mas negócios eram negócios." E, num arranque doloroso, quase gritou as primeiras palavras.

- Leu, certamente, os artigos que aí se publicaram num jornal...

-Não, não ler... Meu jornal, Times. - E Roop sorria, mostrando os grandes dentes amarelos e espaçados.

Albano Freitas percebeu a manobra daquele olhar apagado.

- Venho em nome da casa de meu pai apresentar ao Sr. Roop o nosso protesto contra esses artigos... que nos revoltaram, acredite.

-" Thanks!... - disse o inglês num murmúrio, cerrando os olhos.

- De facto, há uma grande indignação contra o comércio inglês, não só entre os produtores...

- A gente pagar sempre...

Naquela fala infantil, sem esforço de uma correcção, estava toda a indiferença de um povo senhor do mundo pelos outros homens de qualquer língua. E o Roop parecia ainda exagerar.

- Fui abordado e vêm insistindo comigo para que tome a cabeça desse movimento nacional. Desejam que eu lembre ao País tudo o que a Inglaterra nos tem usurpado; que o convénio de 1684 foi uma imposição da esquadra inglesa comandada por Blake e Montagu, no prosseguimento da dura política de Cromwell; que o de 1661 nos levou a ilha de Bombaim e atrás dela a índia...

O Roop acenava a cabeça, divertido, tamborilando os dedos nas coxas; Freitas mal reparava nele, preocupado agora com os acontecimentos e datas que alinhara na pasta especial preparada para aquele encontro.

- Depois foi Methwen... esse tratado só com três artigos em que Portugal se abriga e a Inglaterra promete...

- Bom negócio para Portugal - interveio o inglês com sorridente bonomia.

- Em que se arruinaram as nossas manufacturas de tecidos em proveito dos mercadores britânicos. Um irmão de Methuen era mercador de lanifícios...

- Oh!... -reagiu o Roop numa exclamação de revolta. - Como saber você isso?!...

- A história é um testemunho...

- Ora história!... História "is story" - retorquiu o inglês, baralhando já as duas línguas. - E eu saber também que Methuen comprar portugueses para fazer isso...

Albano Freitas sentiu-se vexado mais uma vez, mas retorquiu de pronto:

- Tudo quanto disse e muito que haveria para dizer...

- Mais?!...

-Sim, pois!... Um relatório ode Pombal diz que os lavradores, para venderem os seus vinhos, tinham de entregar as filhas aos comerciantes ingleses que as quisessem, enquanto estavam nas quintas... E os senhores desfrutavam de imunidade de alcaide...

- Os Portugueses davam tudo isso... a gente não ter culpa. Também vinhos portugueses terem mais protecção em Inglaterra que vinhos de França.

Albaninho Freitas estava agora radiante com o debate.

- Porque os vinhos franceses eram pagos, enquanto os de Portugal se liquidavam por trocas com bacalhau, navios para as frotas do Brasil e fazendas. E como nós comprávamos mais, levavam-nos o ouro do Brasil, já que não precisavam de tabaco e açúcar, porque os iam buscar às novas colónias...

O Roop começara a sorrir e acabara às gargalhadas.

- Você ter muita graça, Freitas. E saber muito...

- Pois é tudo isto que pretendem que eu diga ao País. Mas eu acho que talvez possamos evitar esse escândalo, que comprometeria seriamente o prestígio dos Ingleses em Portugal. O ultimato e o 31 de Janeiro estão ainda muito vivos... E eu tenho pela colónia inglesa, e pelo Sr. Roop em especial, uma admiração muito justa.

-Thanks, Mister Freitas. Muito gentil...

O Dr. Freitas chegara ao momento difícil, uma vez que o inglês não se mostrava disposto a facilitar o acordo, vindo ele com uma proposta. Ficou em silêncio; olharam-se por instantes.

- Podíamos chegar a um entendimento - insistiu ainda o comerciante português.

-Só se fazer acordo quando alguém estar em guerra; mas Freitas ser amigo...

E o Roop levantou-se do seu maple, indicando ao outro que a entrevista terminara; o Dr. Albano teve de lhe seguir o exemplo, embora procurasse, já de pé, prosseguir na conversa.

- O que devo fazer, Sr. Roop?

- Você ter consciência, Freitas. Faça o que ela diz...

Medindo o inglês com arrogância, apertou a mão que ele lhe oferecia.

- E se os deveres nacionais me levarem a tomar uma atitude patriótica, não leva a mal?!...

O Roop arregalou os olhitos azuis, sorrindo novamente.

- Patriotismo é coisa bonita, Freitas... Inglês também saber o que isso é... Good aftenoon!...

- Good af ternoon, Mister Roop - retorquiu Alba-ninho no seu melhor inglês, desaparecendo depois, indignado, pela porta do escritório.

Roop encheu um cálice de vinho e mirou-o à claridade da janela, ficando-se a contemplá-lo por longo tempo; aspirou-lhe o aroma, sorveu um gole, que mastigou, e sentou-se novamente no maple.

 

Não ia baixar os braços de desânimo só porque o Roop se mostrara inacessível. Percebia agora que o fracasso resultara mais Ida sua inépcia em não se apresentar escorado noutras forças que devia ter conjugado em seu favor do que na argúcia do inglês, impotente pelo álcool para atingir os meandros do seu plano. Seria preciso recomeçar e com maior ardor - era assim que eles tinham feito o império. E contra tal adversário só havia que usar as mesmas armas, pactuando quando necessário fosse, atacando outras vezes em momento propício, para que o não julgassem presa fácil, sempre a variar de jogo, sem abandonar, contudo, a mesma pertinácia que eles empregavam, até que as premissas mudassem e chegasse o momento de os esmagar sem piedade.

Nesse dia pagariam, então, todas as humilhações que ofereciam aos outros povos. A Alemanha começava a insurgir-se contra o seu domínio e a França já se media com eles em muitos campos, donde não seria fácil desalojá-la.

Embora a tarde continuasse turva e fria, deambulava sozinho pelas ruas da cidade, indiferente à chuva morrinhenta e irritante que caía sem cessar.

Faltava-lhe no Porto alguém a quem pudesse confiar o segredo do seu projecto; alguém que o escutasse, que lhe desse uma presença humana. Os outros comerciantes seriam capazes de o trair; o pai atemorizava-se com a ideia de defrontar os Ingleses; amigos da sua idade só pensavam em aventuras, fáceis conchegos económicos e a ilusão de possuírem um automóvel, que excitava agora toldas as imaginações da cidade. A amante não saberia compreendê-lo... Era uma fêmea bonita e nada mais. Mas não ia baixar os braços de desânimo.

A chuva acicatava-lhe a vontade. Passou perto da redacção do jornal e lembrou-se de subir, para saber como iam as coisas do Porfírio com o director. Esboçou ainda alguns passos para entrar; depois sentiu repugnância naquele convívio.

"O seu plano era, sem dúvida, um plano de redenção nacional para dar aos Portugueses o que lhes pertencia, por direito, fazendo recuar o comércio britânico para os limites da sua ilha. Ou então que partilhassem com dignidade os vários escalões do negócio, dando aos Portugueses oportunidade de colocarem o seu vinho no cálice do consumidor inglês. Para isso seria preciso mão de ferro, largos capitais, perseverança... E naquele momento sentia-se capaz de tudo isso. Faltava-lhe apoio político - achá-lo-ia entre os chefes republicanos, já que a monarquia se afundara; e talvez mais profícuo ainda, porque a Inglaterra jogara no rei e os novos chefes do País não esqueceriam, por certo, todos os agravos que vinham desde sempre da aliança secular. Mas era preciso cautela..."

- Vem daí, doutor?!...

Ia tão absorvido que nem dera pelo Gonçalves da Régua.

- Viva! - disse para o outro, sem entusiasmo, vendo-se afastado dos seus pensamentos. - Algum negócio por cá?!...

O Gonçalves baixou a voz em coscuvilhice.

- Cheguei esta manhã de Alenquer... A companhia mandou comprar vinho ao Sul, mas o diabo foi o jornal dar a notícia... Comprometeu-se tudo... E sou capaz de ouvir das boas; mas quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

E tomara o braço do Freitas, numa liberdade que o outro reprovou com o olhar.

- Lá se finou aquela santa senhora -" disse o Gonçalves. - Vou agora apresentar os meus pêsames ao Sr. D. Fernando...

- Uma santa senhora! -repetiu o Freitas, desinteressado.

- Avalio o seu desgosto... E esse casamento faz-se agora?!...

Albano Freitas teve uma expressão de desagrado, mas não respondeu; Gonçalves percebeu que não estava em dia feliz para arranjar conversa e calou-se também. À esquina da Praça Sá da Bandeira despediram-se, e o Dr. Freitas continuou o seu passeio à chuva.

Quando apareceu à noite, D. Fernando veio abraçá-lo afectuosamente; pediu desculpa aos amigos e levou-o para o escritório.

-À hora da morte falou de si, sabe?...

Albano Freitas estremeceu.

- Fiquei-lhe a dever uma obrigação que não cumpri - respondeu contrafeito.

- Uma obrigação, doutor?!...

- Sim, D. Fernando; afirmar-lhe que nunca casaria com D. Constança... Que acima do amor havia forças superiores a respeitar...

O fidalgo compôs, nervoso, as lunetas e aproximou-se mais; o Freitas, porém, não se deixou interromper.

- As diferenças sociais não são um mito; é preciso reconhecê-las e preservá-las...

- Mas o doutor é um homem cuja entrada na nossa família só a prestigiaria...

O Dr. Albaninho manteve-se discreto, tornando-se ainda mais afável.

- Outro favor que lhe devo, meu amigo. Mas... não posso nem devo. D. Constança tem-se mantido sempre fria na minha presença; é preciso reconhecê-lo como coragem.

- Temperamentos...

- Perante o amor, os temperamentos mais diversos aquecem-se à mesma fogueira. Não devo insistir... não quero insistir.

- Porque não há-de orientar-se por mim, que sou o chefe da família e quem de facto...

Sorridente, Albano Freitas interpôs-se:

- No coração não se manda, D. Fernando. E nos dias de hoje mais do que nunca. Acredite que me vexaria tornarem-me seu genro nessas condições. Sou um homem sensível...

O fidalgo sacudia os braços à sua frente, num desejo sincero de o aquietar.

- Não poderia nunca estar de bem com a minha consciência perante sua filha... Há alguma coisa entre nós...

- A minha dívida?!... - interrompeu D. Fernando com mal disfarçada indignação.

-Oh, D. Fernando!... Por quem me toma?!... Nunca poderia supor que me entregava sua filha para liquidar as nossas contas. Nunca!... Mas eu necessito de um amor ardente... de alguém que se desvaire com a minha presença, talvez porque sou um latino... Orgulhosamente um latino.

  1. Fernando olhava-o com amargura; o Dr. Alba-ninho falava sem cessar, como se tivesse receio de que um silêncio entre eles traísse o fundo do seu pensamento.

- Demos tempo ao tempo. Esperemos ainda... Entretanto, manterei uma presença discreta junto de D. Constamça; e no dia em que perceber um leve indício que seja do seu amor, acredite-me, D. Fernando...

E tomou-lhe as mãos, dando à voz um velado acento de (c)moção.

- Terei orgulho de entrar na sua família... Mas quando sentir que vou pelo meu pé.

- Compreendo-o - balbuciou o fidalgo.

E falaram depois nos últimos momentos da defunta, até que D. Afonso apareceu para chamar o pai.

 

O Espanhol saiu num repelão do meio do seu grupo, agarrou numa pedra e jogou-a, com raiva, por cima de uma casa; depois atravessou a praça, em passos largos, indo meter-se na taberna vazia do Mal-Matado. Os companheiros seguiram-no com o olhar, por um breve instante, e logo voltaram à mesma aparente modorra.

- Fias-me vinho? - perguntou para Idalina, sem a saudar. - Preciso de beber! -Tinha as mãos presas aos bordos do tampo, como se quisesse arrancá-lo. A rapariga ainda olhou para dentro, não viesse o pai espreitá-la, e foi encher uma medida, que lhe entregou.

- Depressa, anda...

Ele emborcou-a duma vez, afagouJhe depois a mão, numa carícia rápida, e foi sentar-se no banco comprido da loja, com a cabeça descaída sobre o peito.

-Estás triste? - disse-lhe a moça num murmúrio.

- Estou cansado! - respondeu-lhe com aspereza. - Isto não pode continuar...

Sentia-se o seu esforço em dominar a ira que o abrasava, denunciada pela mutação de expressões no rosto inquieto.

- Tens saudades de Espanha?

— Sei lá do que tenho saudades!...

- Qualquer dia abalas!...

- Tivesse para onde!... Mas em toda a parte é o mesmo...

Ergueu-se, violento, e voltou para junto dela.

- De que vive a gente se não trabalha?!... Não há uma palha para mexer... e as terras precisam de enxada.

Ela passou um esfregão no tampo encardido e quis reter-lhe o olhar febril.

- Se falasses ao meu pai...

- Dizer-lhe o quê? - respondeu sem erguer a cabeça.-Dizer-lhe que posso matar-te à fome?!... Já basta o que basta!

Esboçou com as mãos um gesto de desespero e olhou-a com raiva.

-Pra que nasceu a gente com coração, se nem barriga devíamos ter??!...

A voz do Mal-Matado chamou a filha do quinteiro.

- Não abales! - suplicou-lhe a moça. - Não?!... Hão-de vir melhores dias...

Ele respondeu-lhe com uma expressão amarga e foi até à porta.

Na concha do céu pesado, farrapos de nuvens moviam-se lentas, ao sopro de um suão quente que lembrava a canícula dos três meses de inferno.

Bisonhos e contrafeitos, os homens queriam ignorar-se; evitavam falar e, se algum o fazia, meneavam os ombros com indiferença. Pareciam esperar alguém ou um acontecimento que lhes modificasse a vida, imperturbáveis, num mutismo agressivo, como apontamentos dispersos dum monumento ao desespero - sentados nos portais, com os dedos nervosos a afagar a barba rebelde e descuidada; encostados às paredes, com os corpos frouxos, procurando nos bolsos a ponta de algum cigarro esquecido; encavalitados no muro baixo do terreiro, a morder pensamentos ruins.

O Espanhol sentiu desejos de lhes gritar, para que acordassem. "Mas gritar o quê?!..." Recordou com amargura a morte do podengo; escutou-lhe os ganidos de súplica e teve a impressão que eram os companheiros que ganiam agora. A noite do incêndio assombrou-lhe o pensamento. "E eles na mesma, como naquele dia que começara também assim..."

Vagueou o olhar pelos companheiros, taciturnos e calados, parecendo vencidos de preguiça, mas capazes de voltarem uma daquelas montanhas que emparedavam o horizonte. "Eles tómham de fazer alguma coisa!..." A seus pés, um escaravelho movia-se, pesado; deixou-o andar algum tempo e acabou por esmagá-lo, sem piedade, calcando o pé, como se pudesse abrir uma ferida na terra. Abalou depois para junto dos outros, indo sentar-se no portal que ninguém ocupara-As cavas tinham acabado na Roeda e nas Carvalhas; já não havia procura de cavadores nem feira de homens, mas muitos socalcos esperavam ainda as enxadas que os revolvessem. Na próxima vindima haveria menos uvas para colher e o trabalho seria menos escasso depois, enquanto a novidade da última colheita ainda estava por vender, na sua maioria, e os pequenos lavradores não podiam pagar os granjeios.

Os Ingleses não apareciam para comprar; os especuladores, atentos e sôfregos, esperavam nova baixa para surgirem depois quando já ninguém tivesse forças para se aguentar. A aguardente desaparecera do mercado e os benefícios de vinhos não se faziam.

- Se não se cavar, não se faz a redra... E depois?!... Nem sulfatagem, nem vindima - disse o Fontelas para os do seu grupo. - A terra precisa de trato como a gente...

- E a fome da terra é de morte!... A gente ainda tem cabeça e arranja forças sem saber como - juntou o Sandão.

- Um dia hão-de querer pessoal para cavar no Douro e não encontram braços capazes de levantar uma enxada - disse o António Marinho com amargura.

- Acaba-se tudo! - concordou o Fontelas.

O Inverno acenou a cabeça branca e repetiu aquela sentença, que foi de boca em boca.

- Acaba-se tudo!

- Pois que se acabe! - retorquiu o Espanhol, fora de si, como se os outros lhe deitassem culpas. - Quando se acabar, abalamos. Fica tudo como o Pai Calvo, onde só há pedras e bichos... Pra saúde ruim mais vale nenhuma !

- E que ganha a gente com isso?!... -interveio o Fontelas, desalentado. - O mesmo que ganhámos com a República!

- Perdeste alguma coisa?!... Se calhar, eras marquês e perdeste a honra...

- Mas ficou tudo na mesma - acorreu o Balsa, despeitado com o Espanhol por causa da Idalina. – Bem os ouvi dizer nos comícios que a República era para o povo e afinal a gente estoira para aqui, sem arrimo de ninguém.

- E é para o povo, pois! Mas é preciso a gente ir buscá-la... Julgas que alguma coisa vem parar às mãos da gente sem sacrifícios?! É porque não ouviste o Paço Valiente, um das Astúrias... Se todos fossem como ele!...

-Já foi à cadeia duas vezes! -disse o Sandão.

-E nunca matou nem roubou... Foi lá por tua causa... e por mim... e por estes todos que estão aqui à espera! Se ele agora aqui estivesse, não pedia eu para que a terra secasse. "Mira, português", disse-me um dia. "La tierra es de todos, como Cristo lo dice."

- Tonteiras!

- Um raio que te parta! - gritou o Espanhol, erguendo os braços, como se estivesse prestes a lançar-se sobre o companheiro. -" Não moazedes a vida!... Se achas que hás-de ser sempre como um perro, esgueira-te daqui pra fora.

-Tu é que és o dono disto, não? - respondeu o Balsa.

Mas os olhares dos outros volveram-se para alguém que devia aproximar-se.

Era António Teimas, com os netos à ilharga, caminhando para eles de enxada ao ombro.

Todos os homens se levantaram. O velho sorriu-lhes e nos seus olhos azuis perpassou um clarão de orgulho quando se reviu nos netos.

¦- Ao trabalho nessa idade, Ti António? - perguntou-lhe o Fontelas.

- Pois que julgas? Vamos ficar à espera que tudo

morra?! .

E, fincando as mãos trémulas no cabo da alfaia, enrijou o corpo.

- Os meus braços cansados e mais os destes dois chegam ainda para os braços de um homem. E valem mais do que muitos...

Despediu-se e os três começaram a subir a ruela do Santo Cristo.

-Coragem, hã?! -disse para os netos.

- Somos capazes de virar as pedras todas do Torto - respondeu o mais novo.

O Chico amuara com o velho e não deixou passar a oportunidade.

- Vossemecê esqueceu-se de que já sou um homem, avô. E que não me fico ao pé de qualquer cavador daqui. António Teimas sorriu de vaidade.

- Pois lá em cima é que vamos ver. Já sabes cantar a Maria Cavaca?...

E os três caminhavam agora mais ligeiros, confiantes naquela camaradagem.

Num magote, os homens juntaram-se na extrema da praça a vê-los seguir.

- Homem rijo, hã?! - disse um deles.

- Destes é que a gente precisava à nossa ilharga! - juntou o Espanhol.

E, sacudido por força estranha, correu para o portal, onde deixara o casaco, e meteu-o debaixo do braço.

- Até me fazia negro! - gritou para os que estavam mais perto.

Os outros não entendiam ainda aquela atitude nem as suas palavras.

- Até me fazia negro, se o velho Teimas ia cavar e eu ficava aqui, à espera...

E abalou numa carreira, em direcção ao seu cortelho.

Ergueram-se mais cavadoresdas soleiras dos portais para se juntarem aos outros; e vieram os isolados e os que estavam ainda no muro, a magicar penas. Empolgados pela presença uns dos outros, transformaram-se-lhes as expressões nos rostos sombrios e enrijaram-se-lhes os braços, numa desafronta, olhando-se nos olhos, como se cada um buscasse nos companheiros a resolução que já lhes nascera na alma.

Foi então que o Marinho gritou:

- Vamos gente!

- Vamos todos! - acrescentou o Fontelas, esquecido, naquele instante, da ausência da filha.

Abalaram alguns mais decididos, depois outros ainda, todos à porfia, para chegarem depressa. Mas muitos homens ficaram na praça a remoer nas mágoas, embora desejassem também ir com os companheiros. Naquele momento, contudo, até esse gesto lhes parecia superior às suas forças, enquanto os outros corriam pelos quelhos. O ruído dos seus passos chamou gente aos portais - gente que só se lembrou da noite do assalto.

- Mãe Santíssima!

- Mãe Santíssima! Vão fazer alguma! -murmurou uma velha, deixando-se cair numa prece.

Outras mulheres secundaram-na.

- Amerceai-vos deles, Senhor!... Tende piedade da gente!...

Como se alguém os perseguisse, nada interrompia a carreira dos homens. Espantavam-se, nos quelhos, as pitas e os recos; cosiam-se às paredes, com medo de serem derrubados, a criançada e os velhos; interrogavam-se as mulheres, sem entenderem que força os impulsionava.

- Onde ides?!... Tende juízo, homens!

- Fazei outra e depois queixai-vos!...

- Mãe Santíssima!... Mãe de Misericórdia!...

- Eles não sabem o que fazem, Senhor... Perdoai-lhes!...

Eles não davam resposta, para não perderem tempo, mas sorriam, confiantes de que os outros os percebessem.

Pegavam nas enxadas, atiravam-nas com orgulho para o ombro e abalavam logo, como tinham chegado, à compita, numa carreira.

- Arranjastes trabalho ?!...

- Onde ides?!...

-Vão fazer mais alguma desgraça, Senhor! - suplicava a velha, de mãos postas.

- Mãe de Misericórdia!...

E todos tomavam o caminho do quelho do Santo Cristo.

O Espanhol já lá ia adiante, mas deteve-se, à espera, quando ouviu o ruído dos socos nas pedras. As lâminas das enxadas resplandeciam ao sol, como se cada homem levasse sobre si um feixe de luz; e os clarões corriam por entre os quelhos imundos, contornavam as lombas, submergiam-se nos baixios e voltavam a resplandecer, lá no alto, como se pudessem ofuscar a claridade do dia, dissolvida nas nuvens baixas que se desfaziam em farripas, naquele céu triste.

Os homens arfavam, mas a canseira não os vencia.

Silva Costa viu-os passar à quinta e teve-lhes medo; o caseiro lembrou-se também da noite do assalto e refugiou-se no seu cortelho. Só a Ana Sarrifa os aquietou.

-Com aquelas caras, cortassem-me as veias, se eles vão por mal...

Passavam ainda os mais atrasados, orgulhosos, como os outros, daquela tarefa que não tinham patrão nem feitor. Já os da dianteira haviam chegado ao picoto do monte que domina o vale do rio Torto, onde os xistos refulgem e as videiras bebem sol e comem pedras. Lá abaixo, dobrados sobre a terra, como carne viva das suas entranhas, os Teimas golpeavam-na com as enxadas frouxas. Os gritos das alfaias eram espaçados e débeis.

Em toda a amplidão daquele horizonte rasgado, feito pelo braço gigante do homem, só os três vultos se moviam, insignificantes na sua pequenez, mas heróicos de insubmissão, numa afirmativa que dominava as montanhas.

- Eh, Ti António! - cantou a voz do Espanhol no alto do cerro.

- Espere lá, homem!...

- Espere!

Os apelos encheram o horizonte de ecos vitoriosos.

E, quando o velho ergueu a cabeça, os homens dispararam pelo carril abaixo, aos gritos, em incitamentos e atropelos, no desejo de cada um chegar primeiro à faina.

 

                                 REGRESSO

 

EMBARAÇADO com as duas malas de porão, António Francisco deixara a diligência encher-se e via-a abalar agora em direcção à ponte, ficando no largo do Pinhão à procura de um arreeiro que o quisesse acompanhar à aldeia. Entrou numa taberna, sempre a vigiar a bagagem, pediu um copo de vinho e entabulou conversa, desejoso de encontrar alguém que o reconhecesse e lhe falasse dos seus. Sentia uma irreprimível necessidade de confraternizar, embora se preocupasse com o dinheiro que trazia na carteira, pois o Sol não tardaria a sumir-se e não lhe agradava fazer viagem de noite.

Preferira não avisar a família, para gozar melhor, na inesperada alegria dos outros, a sua própria felicidade.

Naquele momento tudo se fundia na recompensa de estar ali presente, olhando os montes e os socalcos dos vinhedos, a veia alucinante do rio e a estrada tantas vezes calcorreada a trabalhar para os outros. "Que faria a mulher àquela hora, tão longe de supor que estava ali perto, respirando o mesmo ar do Douro?! Talvez ralada com a sua doença, a suspirar queixas..."

Mas agora podiam começar vida nova.

Com o dinheiro que mandara, e mais o que trazia, tinha posses para comprar terras e amanhá-las, sem lhe faltar com granjeios, plantar bacelos, para repor cepas cansadas, e ainda surribar alguns mortórios do tempo da filoxera. E, se desse pela aldeia com algum casinholo a jeito, montaria uma venda, para a mulher tomar conta, quando ele tivesse de perder mais tempo com as Vinhas.

Combinou preço com um arreeiro e encetou a jornada, já arrependido de deixar partir a diligência, embora não se importasse de fazer o caminho a pé, porque redobrado se lhe tornava o prazer de voltar a identificar-se com aquele mundo do seu passado. Por toda a parte havia lembranças para reviver. "As vezes que viera de jornada à Roeda e às Carvalhas quando na aldeia o trabalho escasseava!... Debaixo de uma oliveira, ali perto - lá estava ainda! -, os amores com a serrana que viera à vindima do Sr. Chaves de Valença... Chamava-se Maria; sim, era Maria. Tinha uns olhos bonitos... Conseguira afastar-se com ela até ali, derrubara-a num golpe..." E lembrou-se mais uma vez da mulher, sentindo o corpo galvanizado por um estremecimento de desejo.

Alargou o passo - queria chegar depressa, agora que o Sol se sumira por detrás de uma montanha e projectava no céu uma mancha vermelha que mais parecia labareda de incêndio.

À sua ilharga, de corda sobre o ombro, o arreeiro não deixara ainda de falar.

- Vê-se mesmo que vem idos Brasis, vossemecê. A roupa cheira... Grande terra, hã?!... O meu padrinho de Garlão, o Sr. Jesuininho, não sei se vossemecê conhece... Ah bô!... Arrecadou por lá boa arca... Aqui um homem mata-se toda a vida e não arranja pràs sopas. E cada vez pior!

Taciturno, de semblante carregado, como sempre fora de seu modo, António Francisco não lhe dava troco; antes estugava a marcha, não os apanhasse a noite pelo caminho e o outro se resolvesse a assaltá-lo, na mira de fazer boa colheita. Aquele receio obrigou-o, por fim, a entabular conversa.

- Isso de Brasis é para quem é... A minha sorte foi ruim mesmo... Sorte macha! Maleitas de botar um homem abaixo e quanto a dinheiro... uma miséria! Cá levo este terno mais a jeito para os amigos não se rirem...

E até no modo de falar procurava fugir ao sotaque carioca, não fosse o dianho do arreeiro perder a cabeça com as histórias do padrinho.

- Ainda gostava de deitar a essas terras... tentar a minha. Se a venda do garranote desse para a passagem, era já hoje. Ao menos via outras terras...

- Talvez a sorte seja fêmea para vossemecê. Pra mim foi uma danada...

O outro parara o cavalo, na intenção de vigiar a carga, e começara a repuxar as cordas, de joelho fincado na barriga flácida do animal. Mais desassossegado, embora os lumes da aldeia começassem a acender-se nos cardenhos do lugar da Igreja, António Francisco pôs-se à distância, a apalpar a algibeira onde trazia o dinheiro. "Pra que diabo perdera ele a diligência?! Mais valia ter deixado as malas na estação, à guarda do chefe."

- Isso está bem, mestre -disse para o outro, que parecia disposto a demorar-se. -o caminho já é curto e as malas não vão cair agora...

O arreeiro, porém, é que se alargara nos copos, e não era pessoa que se deixasse convencer com palavras.

- Tenha paciência, mas lá nisto mando eu. Carga que eu ate nem um abalo de terra a bota abaixo... Assim eu fosse capaz de agarrar a sorte!

O garrano relinchou, impaciente.

Quiá, Espelhol-bradou o dono, afagando-lhe a crina suja.

António Francisco estava inquieto. "Pra que dianho não avisara ele a família?!... Tinha que ver se lhe faziam alguma desfeita!"

-É um companheirão, este cavalo! Se tivesse de o vender, chorava-o por muito tempo.

Quando achou a tarefa pronta, voltou a deitar a corda do cabresto sobre o ombro e aproximou-se para a conversa.

- Se calhar, a família não o espera... Quis fazer uma surpresa, hã?!... É uma grande partida, lá isso!...

E as suas gargalhadas soltaram-se ruidosas, ao lembrar-se da sua volta da militança quando fizera o mesmo, e a mãe ficara tolhida de pasmo ao encontrá-lo pela frente.

- Está enganado. A família sabe, mas é que pedi para não virem à estação. Aborrecem-me choradeiras... Se ainda trouxesse dinheiro, vamos lá, com seiscentos diabos! Mas assim...

O outro bateu com força numa das malas.

- Chore-se! Quem adivinhasse o que aqui vem dentro... Algum fortunaço!...

As trevas cerravam-se numa vertigem.

Mas surgiram as primeiras casas na berma da curva da estrada, e já não lhe respondeu, deixando o outro alanzoar à vontade. Fingiu que parava por uma necessidade e o arreeiro estacou um pouco adiante.

- Pois eu, se pudesse...

"Raios partam o homem!", grunhiu entre dentes, mal humorado. "Queria gozar a alegria de ver a cara da Gracinda quando ele lhe batesse à porta e aquela alma danada não havia maneira de se calar. Raios o partissem!"

O cavalo relinchou, escarvando as ferraduras na estrada, e ouviu um assobio carinhoso do dono.

- Quiá, Espelho!

Mal se despachou, António Francisco pôs-se a andar mais desembaraçado, na frente, forçando o arreeiro a ir-lhe no encalço. Tinha vontade de correr agora e abraçar a mulher - percorria-lhe o corpo uma ânsia que não podia reprimir por mais tempo.

O alarido da taberna lembrou-lhe os amigos, mas não distinguiu a voz de ninguém. Pensava na Gracinda com uma ternura que nem experimentara no dia do casamento. "Tantos anos à sua espera, coitada! Teria agora a paga. Uma vida nova, sem cuidados..."

Chegara ao fundo do quelho.

A emoção tolhia-o e reviu-se enlevado em tudo aquilo; levantou os braços, como se aquele gesto pudesse chegar ao peito as mil lembranças que o atordoavam. O outro calara-se; foi éle que lhe falou.

- Abalar é bom só por isto... Só porque a gente volta...

E deitou numa carreira até à porta da casa, parando à sua frente, a arfar e a sorrir, com ganas de se lançar sobre ela e arrombá-la, porque já não podia esperar mais tempo. Só agora entendia todas as saudades que sofrera.

Bateu com os dois punhos, num frenesi, não conseguindo depois segurar o grito que se lhe enrodilhara na garganta. Havia luz lá dentro.

-Gracinda! Abre, Gracinda!

Mas a porta não se abria; e bateu outra vez com mais vigor.

 

Entrou em casa, como se viesse acossado por algum lobo, parou defronte do pai, que estava à lareira com os filhos, quis dar-lhe a novidade, mas acabou por se enca-fuar no quarto, sem lhe dizer palavra. Dirigiu-se à janela e abriu-a com violência, agarrando depois o parapeito, a mãos ambas, como se sentisse capaz de o destruir. Falava alto, gesticulava em trambelho.

- O que vai ser de mim? O que vai ser de tudo isto?!... Se ela tem querido abalar quando lhe falei, nada mais havia. E agora?!

Arrependia-se de ter fugido pelas traseiras, em lugar de lhe fazer frente; mas tivera pena dela e acedera às suas súplicas. "Era sempre a mesma falta de coragem..."

E continuou, calado, de um lado para o outro, embora um tropel de pensamentos lhe quisesse estalar a cabeça cansada. Apetecia-lhe esbofetear-se sem piedade. "Porque se comovera com as suas palavras?!... Devia ter resistido e esperá-lo de frente. Tem paciência, António Francisco. Fica, se quiseres, mas a Gracinda pertence-me e vai comigo. É certo que a tomaste no altar... É certo que tem o teu nome... Mas não podes obrigá-la a continuar nesta casa, porque ela agora é minha mulher. É a minha mulher à face da vida... Nada há a fazer!..." E se ele teimasse, com aquele ar vaidoso que lhe conhecia, lutariam até à morte.

- Seria melhor... Seria melhor... Lançou-se contra as trevas, como se o outro estivesse ali a ouvi-lo e a defrontá-lo.

"Que faria ela?! Viria acompanhá-lo à sua casa para o visitarem ou teria coragem para lhe contar tudo o que se passara?" Talvez naquele mesmo instante a Gracinda estivesse a fazer-lhe a confissão.

"Era triste, bem sabia. Mas pudera passar sem a sua companhia no Brasil, enquanto ele..."

- E eu não posso porquê?! - gritou desvairado.

- Sou algum crianço que fique aqui a chorar, só porque ela não quis fugir comigo?!...

Sentou-se na borda da cama para se acalmar; recordou-se, porém, daquele primeiro dia do seu contacto com ela quando a filha estava morta. E ergueu-se para ir até à janela, ficando dali a olhar com ódio o caminho que levava à sua casa. Pensou que trocariam caricias; que aquele corpo delgado e nervoso estaria agora noutras mãos diferentes das suas.

- Pra que me hei-de importar com essa cadela?!... Mulheres não faltam... Tantas como os meus dedos, se eu quiser.

Aquela ideia satisfê-lo, por instantes, e acalmou-o um pouco.

"Cortaria relações para que não viessem ali. O pior é que lhes devia. E se não lhes pagasse?..."

- Hei-de pagar tudo - disse logo em voz alta.

- Tenho dois braços, graças a Deus.

Ouviu passos na escada e atirou-se sobre a cama, como se estivesse a dormir. De olhos semicerrados, viu passar o pai e os filhos para o outro quarto; ouviu-os ainda durante algum tempo, até que o silêncio voltou.

Quis dormir também, mas uma espertina dolorosa trazia-lhe tudo o que desejava esquecer. O tique da face arrepanhava-lhe o rosto e pelo corpo andava-lhe um formigueiro que, algumas vezes, parecia explodir em repelões. Começou a tirar as botas com uma calma aparente, em gestos muito lentos, procurando aquietar-se.

Os cães ladraram no quinteiro. Foi espreitar à janela e tudo era silêncio. A luz do luar galgara um monte, lá muito arriba, espargindo sobre a aldeia uma claridade suave. Correu o olhar pelo horizonte e lembrou-se deles.

Apertou-se-lhe o coração com aquela ideia, sentindo ganas de acordar toda a gente com os seus gritos.

- Estás levantado, Francisco? - perguntou o pai do seu quarto.

Pé ante pé, aproximou-se da cama, como se alguém lhe pudesse ralhar de o ver acordado; mas o contacto da roupa repugnou-lhe.

"Amanhã, quando ele me vier procurar, digo-lhe que não quero conversas. Se me falar no dinheiro... Gostaria de lho entregar por uma só vez, mal ele abrisse a boca. Aqui tens, toma! Devo-te mais alguma coisa?! Então peço-te que não voltes a esta casa; é melhor para os dois."

Ergueu-se novamente e saiu, sem responder ao pai, que o chamava. Pensou ficar na cozinha, mas nem ali se sentia bem; só depois reparou que estava descalço.

"Como hei-de arranjar o dinheiro para lhe pagar?..."

O corpo começava a quebrar-se de fadiga e voltou a subir a escada. Quando entrou no quarto, o pai esperava-o.

- Estás doente? - perguntou-lhe.

O velho teve um pressentimento amargo, sabendo que a Francisco só uma coisa importava na vida.

- Ele voltou...

- Sim, voltou e depois? - gritou com desespero. António Teimas sentou-se ao lado do filho e afagou-lhe o ombro. Queria consolá-lo, mas as suas preocupações dominavam-no.

- Não lhe falo, ouviu? - disse Francisco depois de um longo silêncio.

- Nada remediámos agora. Tens de lhe falar... Foste tu que lhe pediste o dinheiro...

- Ela ofereceu-mo...

E, mal o disse, Francisco voltou para o meio da casa, como se tivesse compreendido tudo.

- Ela ofereceu-me, para que o marido nos apanhasse as terras quando chegasse. Sabia que não tínhamos dinheiro... Conhecia as nossas faltas... Foi ela que me ofereceu e eu não percebi... Foi uma cadela maldita que se atravessou na nossa vida.

- Não digas isso, Francisco.

No fundo de si, porém, sabia que estava a ser injusto; e continuava a desejá-la, mais ainda do que antes de o marido chegar.

- Só agora percebo e já é tarde - insistiu em voz magoada. - Elas fazem da gente o que querem. Não me admira que também a irmã me tivesse enganado.

António Teimas sacudiu o filho com violência.

- Cala-te aí! Já basta o que basta... Não lhe respeitaste a memória...

- E vossemecê?! Que fez vossemecê da minha mãe?!...

A sua ira voltava-se agora contra o velho, como se fosse o António Francisco que estivesse ali.

- Se a minha mãe fosse viva, nada disto teria sucedido. É ela que me faz falta... Com ela nesta casa tudo seria diferente...

Deitou-se de bruços sobre a cama, torcendo a coberta com os dedos, sem saber se lhe apetecia chorar, se repelir o pai aos encontrões.

- Sim, ela era uma santa, eu sei - assentiu o velho, comovido.

O pai estava já entre portas, voltado ainda para ele, e Francisco não pôde ver as lágrimas que lhe ofuscavam os olhos cansados. António Teimas quis ainda falar, mas entendeu que a voz o trairia, e sumiu-se no seu quarto, para ir sentar-se na cama dos netos, a afagá-los, enquanto o bulício das recordações lhe fazia dobrar a cabeça sobre o peito.

Desvairado, o filho erguera-se outra vez e amaldiçoava-o com os punhos cerrados pelo ódio.

Naquele momento, o António Francisco desaparecera para só lhe ficar o pai e a lembrança dos anos distantes da filoxera. Morta, lá em baixo, a mãe balouçava-se na corda presa à trave da cozinha. E via-lhe aquela expressão serena que nem parecia de enforcado; e ouvia-lhe a voz mansa, de súplica: "Vamos embora com os meninos, António!" E aquele homem persistira; coração duro de pele de diabo, como o granito das montanhas. Ficara indiferente à fome dos filhos e às lágrimas da companheira. "Não lhe podia perdoar! Nunca mais, até à hora da morte! A mãe é que lhe fazia falta. Se ela ali estivesse, não precisaria da Gracinda, nem de ninguém!"

Sentia-lhe as carícias, via-lhe aquele olhar meigo, sempre posto em si, numa bênção que não sabia esquecer.

"Vinha agora com conselhos que não podia ouvir. Pois havia de o desgraçar também! Fizera tudo aquilo pelas terras, pois teria de as perder. Era a sua vingança. Quando o marido da Gracinda viesse pela dívida, exigiria que o pai lhas entregasse; combinaria com ela, se fosse preciso, uma dívida maior."

Não foi capaz, porém, de prosseguir naquele pensamento, porque viu o corpo de Gracinda enlaçado pelas mãos do outro e o seu ódio repartiu-se pelos dois.

Atirou-se de novo sobre a cama, num choro convulsivo; dentro de si, o pai e o António Francisco confundiam-se, como se fosse o mesmo homem que lhe matara a mãe e lhe roubasse a amante.

 

Encolhida no extremo da cama, como se a distância que a separava do marido lhe permitisse ignorá-lo e a deixasse pensar, Gracinda procurava compreender que forças a tinham ajudado a resistir ao inesperado aparecimento do António Francisco, sem trair o seu segredo.

O cunhado metera-se-lhe em casa, vindo pelos socalcos das traseiras e a coberto das sombras da noite, e aquele mal-estar que sempre experimentava quando se encontravam ali -como se o seu pecado só se concretizasse entre as paredes onde vivera com o marido - tornara-se daquela vez mais inquietante ainda. Não fora capaz de corresponder à exacerbação de Francisco; falara-lhe até com ironia, não para o magoar, mas para que se aquietasse. "Não vês que podem dar contigo aqui dentro?... Pareces um cachopo sem tino..." Ele não reagira como era seu hábito; antes se mostrara submisso, querendo demovê-la pela compaixão: baixara os olhos tristes e caminhara para ela com o embaraço a tolher-lhe as mãos.

"Vai-te embora, anda. Já te tenho pedido que não venhas aqui", dissera-lhe ainda. Nesse mesmo instante, duas punhadas soaram na porta; e logo depois a voz do António Francisco, num misto de ansiedade e de ameaça.

Não fora preciso ele falar para o conhecer. Num instante, todos os seus pensamentos, desde o dia em que se entregara ao cunhado, lhe passaram novamente no cérebro.

As mãos do cunhado agarravam as suas, apertando-as mais e mais, como se nelas procurasse refúgio ou uma resolução imediata para aquele acontecimento que lhes parecera afastado para sempre das suas vidas, depois que o António Francisco confirmara o seu desejo de continuar pelo Brasil. Por um momento ambos pareceram dispostos a abalar; mas logo uma calma estranha a aquietara, para dominar o cunhado: "Vai-te embora, anda, depressa! Sai por essa porta!" Ele queria mostrar-se capaz de resistir, mas deixava que ela o conduzisse, sem tentar um gesto mais decidido; só à saída fora capaz de lhe segredar um "Temos de fugir" que ela ouvira sem abalo.

Logo depois, porém, se apossara dela uma hesitação que a tolhia. A própria respiração, o ter os olhos abertos, tornavam-se-lhe penosos. "E se fugisse também?!..." Estava só, e tudo a acusava mais do que a presença do cunhado ali dentro consigo.

"Abre, Gracinda, sou eu!" E naquela voz havia uma tal acentuação de ternura que se sentira comovida, sem entender bem se por arrependimento, se por ansiedade. Correra os olhos, à pressa, pela casa e aproximara-se da porta. O marido insistira; ela dera volta à chave, quase sem raciocinar, e só depois, quando o vira à sua frente, pudera compreender, de novo, o que a sua volta significava. Parecera-lhe que os seus braços seriam incapazes de corresponder àqueles que se lhe estendiam, ou que alguém, ali escondido para a vigiar, iria denunciá-la naquele momento. Mas o marido só lhe deixara um breve instante de raciocínio, porque logo a trouxera para o seu peito e lhe afagava os cabelos, os braços e os ombros, com os dedos trémulos que queriam ser carinhosos, e ela sentia como marcas de fogo na carne martirizada pelo remorso. "Tanto tempo, Gracinda, tanto tempo! Este dia nunca mais vinha!" Muito aconchegada, ela esperava que lhe voltasse a coragem para o olhar de frente e falar-lhe também.

"Tinhas saudades minhas?"o marido pegara-lhe no queixo, para lhe ver melhor o rosto, e ela só o mirara de fugida, como se tivesse pejo de lhe ouvir a pergunta. Exaltado por aquela atitude que lhe pareceu de pudor, António Francisco quisera levá-la para o fundo da casa, já esquecido das suas desconfianças do arreeiro. "Então as malas?!", dissera o homem, à porta, a coçar o queixo barbudo e a sorrir de malícia.

E logo que o marido fora ajudar à descarga, ela pegara na candeia e metera-se no quarto para compor a cama, limpar com a mão um pedaço de terra trazido nas botas do cunhado e bichanar uma prece a S. Salvador do Mundo. Por instantes sentira-se tranquila - era talvez mais um esgotamento nervoso pelo suportar daquela situação. Mas, assim que ouviu bater a porta e a voz do António Francisco a chamá-la, uma emoção mais violenta a despertou, para lhe invocar as mesmas dúvidas e interrogações. Ele pressentira-a no quarto; o aguilhão do desejo desvairava-o. E ela só pôde apagar a candeia e esperar que ele chegasse, para lhe trazer a alucinação da presença dos dois homens que a agarravam, não para lhe darem amor, mas para se vingarem dela.

Chorou de mansinho, a soluçar. António Francisco, comovido, apertava-a com ternura. "Choras de alegria, não é, cachorrinha?" Ela gostaria de desaparecer para se não sentir perversa; e interrogava-se: "Como vai tudo isto acabar?!..."

O marido parecia disposto a contar-lhe naquela noite quanto se passara durante a sua estadia no Brasil. "As primeiras dificuldades, os desânimos, os dias de miséria em Santa Catarina... otrabalho para o coronel Tristão... E tanta outra coisa que só ele compreendia, naqueles silêncios em que, por vezes, ficava a invocar momentos sombrios da sua vida..."

Ela não o ouvia, possuída daquele medo que lhe causava a ideia de viver com os dois homens na mesma aldeia - sabia que era necessário escolher uma atitude e não a encontrava. Fingiu-se depois ensonada, para que o marido se calasse; e como ele não desse conta, continuando a desfiar recordações, voltou-lhe as costas. O marido, porém, passou-lhe o braço sobre o peito; aquela mão ali posta não a deixava pensar como queria. "Já estás a dormir?", perguntou-lhe António Francisco. Respirou mais fundo para o enganar, deu uma volta para se desprender e mirrou-se na extremidade da cama. Batalhou horas e horas com o pensamento, mas a solução não vinha. "Deveria contar tudo ao marido?... Ou convencer o cunhado a deixá-la?..." Esta hipótese parecia mais fácil de conseguir. E seria a que mais lhe agradava?!... E que diria o Francisco?... Talvez fosse melhor afastá-los, sempre recolhida em casa, até que o cunhado entendesse que nada mais poderia esperar de si. E a dívida?!... o marido iria falar-lhe no dinheiro, com certeza. E como poderia evitar que eles se encontrassem?... Não iria o marido desconfiar, se o cunhado não aparecesse mais?... O que lhe diria então?!..."

Todas as resoluções se confundiam e baralhavam, destruindo-se umas às outras. Cansada, por fim, adormeceu; mas os pesadelos sucederam-se com perseguições, lutas e cenas de sangue. Quando acordou sobressaltada, um dos sonhos não lhe saiu da imaginação: ela estava deitada com a cabeça do amante entre as mãos e a imagem do Senhor que tinha na parede, por detrás da cabeceira da cama, começara a animar-se e tornara-se maior, substituída pelo marido, que os vigiava; ela pressentira-o e fugira, levando consigo a cabeça do cunhado, que alguém degolara, mas lhe falava ainda - "Vamos para a Vilariça, ali ninguém nos conhece..."

Depois de reconstituir este pesadelo, ficou com a certeza de que falara alto; chamou o marido e ele dormia. "E se estivesse a fingir para a apanhar melhor?" Então teve receio de estar deitada com ele e esgueirou-se da cama, sorrateira; mas, mal pusera os pés no chão, um galo anunciou, ao longe, a madrugada, e aquele aviso aterrorizou-a - a aproximação do dia era ainda mais dolorosa do que a presença do marido.

 

Só agora é que ele desfrutava melhor o prazer de ter voltado e estar em sua casa; mas parecia-lhe ainda que precisava mostrar-se à família e aos amigos para que esse gozo fosse completo e todos o vissem e dissessem que o António Francisco chegara e nunca mais, em sua vida, precisaria de trabalhar de jorna em terras alheias. Era essa certeza, mais do que nenhuma outra, que o deslumbrava. Gracinda, porém, procurava retê-lo junto de si, e ele interpretava-lhe o pedido como um sinal de afecto que lhe agradava entender, enquanto da parte dela outro fim não havia do que evitar o embaraço de sair a seu lado e de encontrar o amante, ou de perceber, em quem os visse juntos, sinais de troça e de má-língua. Queria convencer-se de que ninguém poderia desconfiar das suas relações com o cunhado, e amargurava-se a invocar os encontros ali em casa, as vezes que ele a acompanhara e, mais do que tudo, aquele dia em que fora levar-lhe a notícia de que o marido não vinha. "Porque não soubera conter-se? Deus tem sempre uma capa com que tapa e outra com que destapa..." E o mesmo lhe sucedia agora, quando não queria que o marido saísse e se via obrigada a permanecer no quarto, onde a lembrança do passado se lhe tornava mais viva.

A pretexto, porém, de um barulho que ouvira no quintal, Gracinda chamara um dos garotos que brincavam à sua porta e pedira-lhe para ir a casa do sogro levar a notícia da chegada do António Francisco.

Daí a pouco batiam e começara o corropio de gente: uns por amizade, outros por mexerico, encheram-lhe a casa. Aturdida, no meio de todos, Gracinda recordou-se de um julgamento a que assistira na Pesqueira - um caso de terras que dera morte de um homem e levara a aldeia, em peso, ao tribunal. Ela era ainda uma rapariguita e, durante muito tempo, vivera sob a impressão daquele velho baixote e magro que parecia suplicar, no seu olhar distante, que o matassem também, mas não trouxessem mais gente para o acusar. Essa mesma imagem lhe voltara agora ao pensamento. E o acusado era ela, estremecendo a cada pessoa que entrava, como se a denúncia da sua falta viesse daquela boca. Quisera mostrar-se faladora, chamando as conversas para si, e percebia, contudo, que ninguém acreditava na sua exuberância. Certos olhares sorriam e não a enganavam quanto às intenções; alguém, por fim, falou nos Teimas, e ela ficou à espera, e a desejar, talvez, para que o martírio acabasse, que dissessem ao marido o seu pecado. O António Francisco estranhou ainda que nenhum deles viesse visitá-lo e depois a conversa tomou outro rumo; mas no espírito de Gracinda essa interrogação ficou presente. "O marido desconfiaria de alguma coisa?! Quem lhe teria dito?!... Que esperava ele, então, para a desfeitear?!..."

Com aquele pensamento foi até à cozinha, no desejo de se sentir só e resolver que atitude deveria tomar. O primeiro impulso que a dominou foi de fugir. "Não seria capaz de voltar para junto daquela gente, que parecia ter vindo para gozar com o seu sofrimento. Mas abalar seria trair-se... E se fosse ela a dizer-lhe?!..." Intimamente, admitiu a hipótese de que o marido lhe poderia perdoar e a sua vida ficaria resolvida de uma vez para sempre. E naquele momento entendeu que a confissão lhe seria menos penosa do que o receio constante de se ver denunciada por outrem. "Mas como iria contar-lhe o que se passara?..." Pensou depois que o António Francisco seria capaz de estrangulá-la, como fizera o Manuel Simão à mulher quando desconfiara dela com o Sr. Cardosinho. Essa ideia perturbou-a, mas não a penetrou muito profundamente, como se lhe fosse fácil receber o castigo ou ele caísse sobre alguém que lhe era estranho.

- Gracinda! -" chamou o marido.

"Seria agora?!... Quem lhe teria dito?!..."

- Esta gente quer ir ao almoço!

E, enquanto se despedia dos outros, ia pensando: "É melhor contar-lhe tudo..." O coração, porém, cerrava-se-lhe de dor. "Digo-lhe por uma vez e acaba-se esta matação. Ele que faça depois o que quiser..."

O marido fechou a porta, mal a última visita saiu, e agarrou-a pela cintura.

- Vieram todos... Só lá a tua gente...

Ele dissera aquilo com amargura, mas não havia no seu modo uma sombra de desconfiança. "Iria fazê-lo sofrer mais?!" Gracinda, porém, precisava agora de ser sincera e, antes que se arrependesse, deixou cair entre os dois as primeiras palavras.

- Tenho de te falar deles...

Preferira ter dito "dele", mas uma força desconhecida emendara-a; e essa força chamava-a à realidade, fazia dominar em si o instinto de defesa, dava-lhe a esperança que ela parecia ter perdido. "Que fui eu dizer?", pensou. Ninguém pode desconfiar porque o segredo é só meu e do Francisco. Seja o que Deus quiser!"

- Conta lá, anda - insistiu ele.

- Que queres tu que eu conte?... Falava-lhe com uma calma que só ela sabia quanto

lhe custava a aparentar. Na expressão de António Francisco não havia um único sinal de dúvida.

E os seus dedos afagavam-lhe os braços. Ela olhou-o nos olhos para se experimentar e sentiu que se não perturbava. "Como podia estar assim com ele?", interrogou-se ainda.

- Os Teimas não vieram - disse por fim - porque eu...

"Era preciso não se precipitar", pensou depois; mas tudo agora se lhe tornava mais fácil.

- Eu emprestei-lhes dinheiro... E eles não vieram, com certeza, por isso mesmo...

O rosto do marido carregou-se de uma sombra.

- Nunca me escreveste...

- Tu não querias?... - perguntou Gracinda com humildade. - Vi-os tão aflitos...

António Francisco largara-lhe os braços e ficara de cabeça baixa, mostrando a contrariedade que a notícia lhe deixara.

- Eu queria o dinheiro para comprar terras... Foi para isso que embarquei.

Na ânsia de se defender, Gracinda pegou-se àquela sugestão.

- E sabes porque lhes emprestei?... -prosseguiu depois num segredo.-Porque o velho tem as terras...

Logo a alma se lhe comprimiu de arrependimento. E teve medo do sorriso do marido e das carícias que lhe fez ao puxá-la, de novo, para ele.

-És esperta!... As terras do velho são do melhor que há por aí...

"Mas que fui eu dizer?!...", pensou, alarmada.

**Barãona entregara ao Dr. Cunha Ferreira o encargo de assistir à reunião convocada em Londres pelo banco inglês com quem mantinha apertadas relações económicas, não só nos negócios de seguros, de tabacos e da Carris de Lisboa, como também no Caminho-de-Ferro de Benguela e nas companhias majestáticas de Moçambique e do Niassa, simples ramos de uma vasta organização mundial que abarcava o continente africano, enleava a Ásia, desde o Médio Oriente ao Japão, e dispunha de poderes nas Américas, através de uma rede complexa de firmas que o Governo de Sua Majestade apoiava, directa ou indirectamente, de molde a manter a supremacia britânica no mercado mundial de matériaséprimas e de produtos industriais e coloniais, sem esquecer ainda o trigo e as carnes de que as Ilhas dependiam para seu abastecimento, mas que de igual modo se sujeitavam às determinantes estabelecidas na City.

Embora a índole do convite denunciasse a importância dos assuntos a tratar, tanto mais que era hábito chegarem as ordens confidenciais de Londres por intermédio de um alto funcionário da Embaixada, **Barãona não se dispusera a fazer a viagem, já porque os seus conhecimentos de inglês não eram largos, e não gostava de se ver diminuído quando sentia escaparem-se-lhe certos termos que deixavam as suas intervenções num tom primário, já ainda porque a sua confiança no Dr. Ferreira era ilimitada - e de tal modo que o colocara no conselho de administração do Banco Nacional, como representante autorizado dos diversos sectores em que tinha os seus interesses. O Dr. Cunha Ferreira era lente da Faculdade de Direito, gozava de um prestígio sólido nos meios financeiros - falava-se dele para a pasta dos dinheiros públicos - e dispunha de uma boa influência política junto do Governo republicano, embora até 5 de Outubro não tivesse escondido a sua simpatia pelo regime anterior.

A **Barãona, espírito prático, só o agastavam as longas perlengas do lente que se deliciava em preâmbulos técnicos para qualquer assunto económico. Preferia que lhe pusessem os problemas em termos objectivos, deixando para si os porquês de qualquer dúvida levantada. E assim, depois de Cunha Ferreira divagar durante largo tempo, pedia-lhe uma síntese do que era preciso tratar e òbrigava-o a repetir-se, sem aquelas voltas e reviravoltas de arenga tecnicista. O outro punha-se pálido com a insolência de **Barãona e recomeçava.

Daquela vez, porém, o Dr. Ferreira era escutado em todos os pormenores da sua exposição. **Barãona entendera chamar à reunião o Morais, da electricidade e das lezírias, o Azevedo, dos tecidos de Santo Tirso, dos seguros e da Companhia do Zaire e Congo, e o Pereira dos tabacos, da banca e dos transportes, intimamente ligado aos conserveiros e aos exportadores de azeite.

À volta da mesa, no gabinete de **Barãona, na Rua Augusta, com as janelas cerradas, para que o ruído os não perturbasse, ouviam os quatro a comunicação do lente, naquela mesma voz pausada que os alunos da Faculdade conheciam à légua e imitavam nos corredores.

- A Inglaterra apela para nós...

**Barãona sorriu, correndo o olhar pelos outros três financeiros, que lhe corresponderam num aceno de cabeça, enquanto Cunha Ferreira esperava o efeito das suas palavras.

- A reunião teve como objectivo chamar a nossa atenção para o perigo que ameaça o Império, de que somos aliados. Outras nações começam a disputar-lhe, de uma maneira sempre crescente, a supremacia mundial da sua indústria e do seu comércio. E o mesmo é dizer que nós próprios corremos um certo perigo...

O Azevedo franziu o nariz, numa expressão de quem duvida.

- Eu respondo já à sua descrença - disse o lente. - Não falando da França, temos a considerar dois perigosos concorrentes: os Estados Unidos da América e a Alemanha. A primeira, que adoptou o sistema proteccionista, deu uma reviravolta no livre-cambismo da escola de Manchester, que até 1880 caracterizava os tratados de comércio. Os Estados Unidos necessitaram de defender as suas indústrias da esmagadora concorrência da indústria inglesa e foram à tributação pauta e aumentaram-na, encerrando-se numa autarquia que só lhes é possível pela prodigalidade da natureza. A Europa necessita do seu algodão, dos seus cereais e da sua carne, enquanto eles podem prescindir dos produtos europeus...

Morais esboçou um gesto para intervir.

- Eu preferia que Vossa Excelência - disse Cunha Ferreira - tomasse as suas notas e comentasse depois a minha exposição. - E olhou para **Barãona.

- Também julgo que sim - assentiu este. Morais acedeu.

- E de tal modo podem prescindir da Europa que puderam fazer em 1909 a lei de Payne Aldrich, que entrou em vigor há pouco tempo e que consagra a guerra pauta aos produtos europeus e exclui quaisquer tratados ou convenções com os nossos países.

**Barãona não se conteve.

- Desculpe, doutor. Mas espero que saibamos colher da experiência no que respeita às nossas colónias.

- Já tivemos o exemplo do Brasil - juntou o Morais, que não podia estar calado por mais tempo e aproveitou o momento para hostilizar o lente.

Este não retorquiu e continuou.

- Assim o espero. A verdade é que esta autonomia aduaneira, violenta e antiliberal, permite ao Governo nor-te-americano a cobrança de 25 por cento às mercadorias dos países que apliquem aos produtos americanos um tratamento "indevidamente diferencial", é assim que se exprimem. Por este processo, manhoso e pérfido, os Estados Unidos obtêm concessões de nação mais favorecida sem nada oferecerem em troca. Por outro lado, para afastarem os europeus do seu hemisfério, usam, em relação aos restantes estados americanos, de um regime preferencial. Ora isto é a consagração do Congresso Pan-Americano, que teve lugar em Washington em 20 de Outubro de 1889, e de que os Ingleses se riram muito antes de nós. Aí se discutiu uma união aduaneira que, se se não concretizou no tipo do Zollverein alemão, aprovou em princípio o livre-cambismo entre os Estados americanos de todos os seus produtos de origem agrícola ou industrial e ainda de matéria-prima, com uma reciprocidade sem restrições. É a expulsão pura e simples dos Europeus do continente americano; é a doutrina de Mon-roe aplicada às Américas, com um desprezo total pelo que nos devem, depois de nos expulsarem pelas armas. A abertura do canal de Panamá entra neste projecto. Aproxima-os da América do Sul, ao mesmo tempo que lhes facilita o caminho para o Oriente, no intuito de fazer de Nova Iorque o maior centro do comércio mundial.

-"Tudo isso quer dizer que (aprenderam a lição dos Ingleses - interveio o Azevedo, que, por causa dos tecidos, sentia a concorrência britânica todos os dias.

- Deixemo-nos de ressentimentos - disse, paternal, o **Barãona.

O Cunha Ferreira prosseguiu:

- O que nos interessa neste momento é assinalar o perigo e estudar como o deveremos combater. O trust do algodão, a Cotton Seed, há-de bater-lhe à porta, Sr. Raimundo Azevedo.

- Talvez seja o mesmo que a Fine Cotton - respondeu este.

- Mas sem compensações - avisou o Dr. Ferreira. - Os Americanos não vão negociar com o nosso açúcar, porque têm o seu e já estão a lançá-lo para a Europa; nem com os nossos vinhos, porque têm o seu trust do uísque, nem com as nossas conservas, porque a Wilson e mais três grandes empresas os bastam e irão ainda exportar.

O Azevedo calou-se, pensando que outro mal maior o ameaçava. O Dr. Cunha percebeu que tinha o auditório na mão e esmerou-se em pormenores.

- Veja-se a luta que estabeleceram nos petróleos, na indústria química, nos aços... Chamberlain, um dos muitos Chamberlains, viu o perigo e concebeu um projecto que constava de três pontos essenciais: consolidação da unidade do Império, criação de um Zollverein britânico e reforma das pautas num sentido proteccionista. Mas a Inglaterra tinha enraizada a tradição do livre-cambismo, e a resistência dos comerciantes e industriais, aliada à do consumidor que não quis abandonar a vida barata, fizeram gorar essa reacção britânica. Por outro lado, falou-se na Europa em continentalismo para combater o perigo americano; foram, porém, os Alemães e Austríacos que arvoraram essa bandeira, até que só os primeiros ficaram com ela. O "made in Germany" aparece agora por toda a parte, vencendo a Inglaterra na metalurgia, ameaçando-a com o seu programa naval, com a sua indústria química, com a sua penetração pacífica, em que funciona a solidariedade da raça alemã por toda a parte onde há núcleos germânicos...

- Aqui mesmo os encontramos - disse **Barãona. - Para mim, o perigo alemão é maior.

- Diga antes mais imediato, porque o outro, o americano, virá a ser mais pernicioso, segundo ouvi em Londres. Embora seja necessária a ajuda destes para vencer os Alemães...

- Mas qual é, finalmente, a ajuda que Londres nos pede?... -perguntou o Morais.

- Recordou-lhes os sentimentos antibritânicos da nação portuguesa por causa do ultimato? - lembrou Azevedo, que falava pelo Norte.

- Sim, não podia esquecer esse elemento. Contudo, é possível ainda...

- Quer dizer uma revolução monárquica, Dr. Ferreira? -* perguntou o Azevedo com certa indignação.

- Eu não a desejo, pelo menos. Mas é possível modificar o espírito da Nação... De resto, o que eles pedem depende muito mais de nós: uma solidariedade comercial, barrando a entrada aos produtos industriais de outra origem.

Ficaram largo tempo a discutir pormenores desse plano. **Barãona, à parte, pensava nas suas vinte mil pipas de vinho ribatejano e na crise mundial que destroçara a economia vinícola da França. E, quando os outros se dispunham a sair, reteve o Dr. Ferreira por instantes.

- Eles querem a resposta para já? - perguntou.

- Se não acedermos prontamente, é possível que por aí apareça alguém de Londres. Eu, por mim, preferia que mostrássemos solicitude...

**Barãona sorriu e apertou o ombro magro do Cunha Ferreira.

- E eu prefiro esperar que esse tal inglês venha a Lisboa. Temos de nos aproveitar do seu pânico... compreende?!...

- Não ignora, por certo, de que meios dispõem para nos coagir...

- Claro que sim. Nem eu pretendo, pobre formiga, fazer guerra ao leão britânico. Mas talvez possamos pedir compensações...

E puxando o outro para junto da janela:

- Já repararam em Londres que o Sul não envereda pela indústria, compra muito mais produtos ingleses e que tem de vender o seu vinho pelas tabernas, ao copo?... Pois poderemos sugerir... que num próximo convénio acabe essa história do Port Wine. Porquê Port vinho saído do Porto e não Port vinho saído de Portugal?...

O Dr. Ferreira ficou pensativo, por momentos, e depois acenou a cabeça.

 

Gostava de ter boas recordações para que me amparasse nelas e pudesse suportar melhor as agruras destes dias. Venho da minha infância até hoje, busco tudo com ansiedade e quase nada me fica. E o que resta acaba ainda por me parecer mais doloroso do que os momentos dolorosos.

Lembro a boneca de louça que o pai me levou quando foi ao Porto e soube da sua nomeação para segundo-oficial. Fiquei doida; não dormi toda a noite com receio de que alguém ma fosse tirar. E tanto lhe quis que a quebrei no outro dia. Nunca mais gostei doutra...

Lembro-me do vestido e das luvas brancas da primeira comunhão e da grinalda de flores sobre a cabeça. Parece um anjo, disse a minha avó. Mas tudo isso me veio à recordação no dia em que casei. Interroguei-me junto do altar. Porque não me protegeu Deus desde essa hora, deixando-me pura para sempre?!... Eu bem o merecia. Era bom que Ele tivesse decidido a minha vida não me martirizando com esta inquietação que guardo em mim... E se ma desse que me oferecesse também mais coragem para fazer o que desejo. Assiméterrível! Esgoto-me a pensar e nunca dou um passo para atingir o que pretendo. Se Ele me quisesse amparar, já teria fugido daqui sem recear as consequências desse acto.

Mas não estarei a ser injusta?!

É sempre assim quando busco as boas recordações. Embaraço-me em maus pensamentos e acabo cansada por me desejar infeliz. A culpa é só minha e de mais ninguém. Ponho-me a escrever estas folhas para as rasgar depois, gozando em martirizar-me; e no fim quase fico satisfeita, como se dissesse tudo isto ao Silva Costa e o visse sofrer com a minha confissão.

 

- Isto é que é um padrinho, não há dúvida. Sabe que o afilhado voltou e nem o procura.

António Francisco disse aquilo entre portas e avançou de braços abertos, num sinal de exuberância que lhe era pouco comum. Teimas estava sentado à mesa da cozinha, debatendo-se na mesma crise que o parecia sufocar.

Estremeceu quando o outro lhe tocou no ombro, olhou-o de um modo estranho, mas não se dominou; e ergueu-se para o abraçar também, embora sem convicção. António Francisco estranhou-o e retraiu-se por sua vez.

- Então?!... -foi o que o Teimas conseguiu dizer depois de um grande silêncio.

- Cá estou... Vim em má altura, parece.

António Francisco sentou-se perto da mesa; o Teimas deixou-se cair no seu banco e, embora o fitasse, continuava taciturno e calado, como se o outro não estivesse ali.

- Vejo toda a gente muda... Foi andaço que deu cá pela aldeia?

Francisco Teimas encolheu os ombros com desdém.

- As coisas correm mal... Não há alegria pra nada.

Julgou que o outro lhe vinha falar na dívida e tornou-se exuberante. As suas palavras, porém, soavam-lhe sem nexo, saltitavam de assunto, fugiam ao seu domínio.

- Os Ingleses não compram vinhos... O preço dos granjeios está pela hora da morte... O meu pai é que está velho, mas cada vez pior. Não há quem lhe tenha mão. Logo que possa, abalo daqui. Estou farto disto.

Receava agora o silêncio - tinha a certeza que o outro lhe dispararia a pergunta sobre a dívida e acobardava-se na resposta a dar-lhe. Levantou-se e foi até à porta, esbracejando gestos inúteis.

- Fizeste mal em vir, acho eu.

- E a Gracinda?!...

Ouviu o nome da amante, como se fosse um elemento novo nas suas preocupações. Uma vaga dolorosa subiu-lhe no peito e encheu-lhe a laringe de um calor insuportável.

- Ela morria de saudade e eu também - prosseguiu o António Francisco. - Desabafou ontem tudo, coitada. A gente abala e esquece-se delas. É o diabo! Sei que vocês foram meus amigos... É um grande favor que não esqueço. O teu pai e os rapazes?!...

Os seus grandes olhos salientes, como se estivessem prestes a saltar das órbitas, pareciam comovidos; alçou o tronco largo e começou a afagar o bigode curto.

- Com o dinheiro que juntei, não vamos morrer de fome, com certeza. O Brasil é terra pra dinheiro, mas não é a nossa terra. Um homem aguenta uns anos e depois não pode mais. Agora vou começar vida nova e não me hei-de dar mal. Ontem é que vi o que podia ter perdido. A Gracinda é minha amiga duma vez... Estava farto de comprar mulheres...

- Mas compraste-a!... - interrompeu Francisco Teimas, com vivacidade.

-o que é que um homem havia de fazer?... E tu?!... -perguntou-lhe com um sorriso amalandrado. - Enviuvaste vai pra quatro anos e com certeza...

Francisco olhou-o com raiva.

- Não pensas casar outra vez? - insistiu o brasileiro.

- Sim, penso... O pior é a família...

E, arranjando um pretexto para se afastar, falou em ir ao encontro do pai e dos filhos, que haviam abalado para as terras do Torto.

António Francisco esperava que o Teimas aludisse ao empréstimo de que a mulher lhe falara; resolveu-se por isso a acompanhá-lo mais algum tempo.

- Achas que posso comprar terras em conta?... - Não faltam esganados por aí, homem. Mas talvez

faças mal. Eu, se tivesse dinheiro, abalava para uma terra grande... Metia-me no negócio...

- Se a Gracinda quisesse...

Pronto, sem se poder controlar, o Teimas retorquiu com amargura:

- Não quer sair daqui...

- Como sabes ?!...

Mediram-se por instantes; a Francisco apetecia-lhe contar tudo ao outro, ali mesmo, para que o assunto se decidisse entre eles.

- Disse-me uma vez...

Sentia-se ávido pela presença da cunhada, convencido agora que a não poderia esquecer e lhe seria impossível suportar a partilha dos seus carinhos com o marido. Precisava de lhe falar e esclarecer tudo. Depois conversaria com o António Francisco, de homem para homem, a bem ou a mal, como ele quisesse. "Assim é que não podia ser", era a ideia que predominava dentro de si.

O outro continuava na mesma falação e ele não lhe respondia, talvez por hostilidade. "Ela ontem pertencera-lhe, mas isso não podia continuar por mais tempo. Era preciso decidir-se depressa."

Da taberna do Mal-Matado convidaram-nos para um copo. Ávido de se atordoar, Francisco rompeu à frente do afilhado e mandou vir um litro, sentando-se no banco corrido que tomava uma das paredes. Pressurosa e garrida, Idalina aviava-os e sorria-lhes, com saudades do Espanhol, que partira para as segadas da Terra Fria e de Espanha.

Francisco bebeu a sua parte e insistiu.

- Mais um litro, pois.

Meteu o seu copo à boca, voltando-o de um gole. - Então, afilhado?!... Tens medo que a Gracinda te bata?...

- A mim? - respondeu António com despeito.

- Há muitos homens dessa marca. Se não apanham das mulheres, têm medo que elas lhes ralhem.

E ria com satisfação por ver o outro vexado perante a malta que enchia agora a venda para o cumprimentar.

-Oferece uma rodada, anda. Ou pensas morder o dinheiro todo que trouxeste?... Se o vais perder com o vinho, ao menos que o percas a matar a sede à gente.

Secundaram-no, em gargalhadas, todos os presentes.

Excitado, Francisco Teimas aproximou-se da Idalina e beliscou-lhe um braço; tentou depois abraçá-la e a rapariga fugiu-lhe, lembrando-se do dia em que ele a beijara na cozinha.

- Vê lá se te tiro algum-"bocado! Andei com ela ao colo... Deve-me mais a mim do que ao pai...

- Vossemecê já está pingueiro! - respondeu a rapariga do fundo da casa.

Então, foi dentro do balcão, encheu a medida maior e despejou-a nos copos.

- Ó padrinho! - interveio António Francisco, sem compreender o sentido daquela repentina exuberância,

O Teimas sacudiu a mão que o agarrava e mediu o afilhado num desafio.

- Aqui não tocas, hã?! Aqui só com licença minha, ouviste?... Se fosse alguma cachopa, vamos lá. Agora tu...

Os homens voltaram a rir-se. Aparvalhado no meio deles, António Francisco encolhia os ombros, numa desculpa, e tentava convencê-lo.

- Larga-me, Unhas de Loba! Vai lá para o raio que te parta com os conselhos! - gritou já fora de si. - Conselhos nem do meu pai, ouviste?

O outro tartamudeara com a alusão à antiga alcunha, que lhe vinha da avareza do avô paterno, e insistia em acalmá-lo, alheio à intenção do Teimas.

- Lá pelos Brasis nunca te morderam nas orelhas?!...

- Deixe-se disso, padrinho - continuava o outro, no mesmo propósito de conciliação.

- Pois por cá quem se não acautelar fica sem elas.

Alguns homens tentavam segurá-lo, fazendo um círculo à sua volta, no recanto do balcão, de modo a isolá-lo do António Francisco, a quem outros faziam gestos para se retirar.

- Isto é do vinho, ó António-esclarecia o Mal-Matado, que acordara com o barulho. - É uma coisa sem jeito, porque nunca vi esta alma desafiar uma mosca. Amanhã esquece-se e vai pedir-te desculpa.

António Francisco abalou a remorder, desejoso de desabafar aquele disparate com a companheira.

- Não gosto que me agarrem - gritava o Teimas, apoplético. - Se traz muito dinheiro dos Brasis, que o coma... Eu tenho dois braços e não me volto a qualquer filho da mãe. Vá prò raio que o parta!

- Ouve lá, homem. Então tu foste sempre amigo da Gracinda...

- Cala-te aí com isso! Não sou amigo de cabras!... Não sou amigo de cabras, já disse.

Deram-lhe mais de beber, para que a fúria lhe passasse, até que ficou sentado no banco, sem dar conta de si, embora antes tivesse esfarrapado a camisa do Inverno. Por fim adormeceu.

Mas no seu sono havia um rodopio de flores vermelhas que ora lhe fugiam, ora vinham esmagá-lo - flores vermelhas, como sangue, que jorravam da lâmina da sua navalha cravada no peito de um homem agonizante. E esse homem tinha duas cabeças.

 

- Se o Francisco me fala assim outra vez, escangalho-o - dissera-lhe o marido mal entrara a porta.

-Mas que foi, homem? - perguntara-lhe ainda para se recompor.

Ele contara-lhe depois a maneira como o Teimas o recebera e aquele despropósito de o querer vexar na taberna, à frente de quem estava. Gracinda tentara desculpá-lo com as faltas de dinheiro, as vendas difíceis e a necessidade dos granjeios, para que as vinhas não morressem.

- Ainda o defendes?

Ela sentira-se corar, percorrida por um calor súbito.

- Não andei a matar-me lá fora para deixar que os outros se gozem com o meu dinheiro - prosseguiu o marido, querendo fixar-lhe o olhar esquivo. - E ainda por cima me tratam mal?!... Era o que faltava! E tu ainda te pões da sua banda...

Aquelas palavras e a maneira como ele as dizia pareciam acusá-la. Gracinda tentava reagir, defrontando-o, mas receava trair-se. Na sua fúria, António Francisco voltara-lhe costas e ela pôde falar.

- Tive pena dos meus sobrinhos... Esqueces-te que são filhos da minha irmã?... E depois, enquanto lá estive em casa, não gastei do dinheiro que me mandavas.

Ela compreendia que o marido desejava que voltasse a aludir às terras do velho e lhe prometesse procurar os Teimas para tratarem da escritura; mas achava que devia primeiro tentar comovê-lo, e só depois, se nada conseguisse por aí, falaria, então, ao cunhado para que regularizassem a dívida.

Havia uma cisão nos seus sentimentos, embora entendesse que era preciso afastar o Francisco da sua vida e conduzir-se sem hesitações por esse caminho. "Porque não havia o cunhado de compreender a situação?", pensava. No fundo de si, porém, já sentia saudades dos seus arrebatamentos.

O marido calara-se e entretinha-se a abrir e a fechar as gavetas da cómoda.

"Não, não lhe posso pedir que lhes perdoe a dívida. E o Francisco há-de perceber que tudo mudou. Mulheres não faltam... Se o marido tivesse ficado no Brasil..." E voltou a lembrar-se da esperança que acalentara na doença do António Francisco.

- Se tu quiseres - disse numa resolução, como se se libertasse da culpa de ter desejado a morte ao marido.

Ele voltara-se lentamente, à espera que ela continuasse.

"Não posso fazer outra coisa", pensou Gracinda.

- Se tu quiseres... eu falo-lhe na escritura.

A expressão do marido adoçou-se num sorriso que só lhe brincou nos olhos.

- Mas eu é que sou o homem - respondeu sem convicção.

- Mas fui eu que lhe emprestei...

António Francisco aproximou-se e fê-la levantar-se.

- Não te custa? - disse ele ainda.

As cordas vocais tornaram-se-lhe tensas e embargaram-lhe a voz; e Gracinda só foi capaz de lhe responder com um movimento de cabeça.

 

Mal chegou a manhã, abalou pelo quelho abaixo, convencida de que resolveria tudo naquela conversa. "Não tinha forças para viver mais tempo na incerteza; passara toda a noite a pensar no que lhe deveria dizer e sabia que perante o cunhado só precisava de ter convicção."

Envolvida nos seus pensamentos, nem sequer reparou num grupo de mulheres sentado a um portal.

- Pareces outra, Gracinda - disse uma delas. - Desde que veio o teu homem, é um milagrezinho ver essa cara.

- É dos seus olhos, Ti Mariana - respondeu a querer sorrir, para não mostrar as preocupações em que ia.

A outra teve uma expressão amarotada.

- Dos meus olhos, não; é dele... Os meus olhos nunca deram para isso...

Riu-se com elas e continuou o caminho, voltando aos seus pensamentos, para que nada a distraísse da decisão tomada. Sabia que tinha de se mostrar firme perante o amante e que o seu sossego dependia daquele encontro.

A distância parecia-lhe mais longa que de costume. Na praça, os lavradores deviam falar dos comissários que já começavam a aparecer e bem poucos eram para satisfazer quantos precisavam de vender as "novidades". Viu, num relance, que o Francisco não estava entre eles; e, como descobrisse o velho Teimas sentado à porta da taberna com o Inverno e o Mal-Matado, desembaraçou-se ainda mais.

Um calor estranho começou a minar-lhe o corpo; por um instante pensou retroceder, dizendo ao marido que não encontrara o cunhado. "Que iria fazer depois?", pensou. "Meter-se em casa à espera que as coisas corressem por si, ao acaso da sorte, seria deixar aos outros a escolha da sua vida."

E uma nova decisão a empurrou.

Mas a algazarra da canalha do adro da igreja lembrou-lhe que já estava perto - e o espinho de uma amargura atravessou-se-lhe no peito. "Sim, tinha saudades do passado. Saudades de todos... e mais do Francisco. Das suas mãos, dos seus beijos... E era preciso esquecer tudo isso para se não perder; agora não lhe era dado mostrar uma hesitação ou fazer escolher do que mais desejava."

Ergueu, então, o olhar humilde para a torre da igreja, murmurando uma prece com um fervor que nunca antes lhe devotara. "Dá-me coragem, Senhor! Irei a S. Salvador do Mundo levar-te um coração de cera... dos maiores. Se tiveres de castigar alguém, lembra-te que fui eu..."

Do quelho vinha o ruído de alguém que se aproximava e o peito sentiu-o num estremecimento doloroso.

Se pudesse dar um passo, teria abalado dali para o não ver. "Era o cunhado, sim, já lhe conhecia o andar." Percebeu que ele parara a distância e a olhava; queria dominar-se, mas aquela presença era mais forte do que o seu desejo. "Se não fosse capaz, estava perdida", pensou novamente. "Ajuda-me S. Salvador do Mundo!"

E no fervor da súplica encontrou forças para se dominar. Então voltou-se, foi andando até ele e pôs-se a caminhar a seu lado.

Taciturno, de cabeça baixa, Francisco não voltou a falar; abriu o portão, atravessou o quinteiro e a cozinha e começou a subir as escadas que levavam aos quartos. Ela deixou-se ficar, resoluta, junto da entrada.

- Tens medo? - perguntou-lhe Francisco quando a viu parada.

- Não, mas não quero.

Gracinda sentia-se capaz de ir até ao fim.

- Ele soube que vieste?

- Soube...

- E então o que queres? - gritou-lhe o cunhado com violência.

- Falar contigo...

Ficou um silêncio. O Teimas desceu as escadas e foi postar-se junto da lareira, depois de fazer menção para se aproximar; mas o olhar dela conteve-o.

- Ontem provocaste o António Francisco - começou Gracinda. - Podias tê-lo feito desconfiar do que houve...

Ele estava incapaz de lhe responder; só o tique da face e as mãos trémulas denunciavam a sua exaltação.

- E agora, que ele voltou...

Gracinda sentiu-se ruborizar e fugir-lhe a energia; percebeu, porém, que estaria perdida, se mostrasse sinais de fraqueza, e continuou. Custava-lhe falar naquilo e sabia que não tinha outro meio para se defender dos dois homens.

- Agora, que ele voltou... tu não podes pensar mais em mim.

Uma expressão no rosto do cunhado comoveu-a e atormentou-a.

- Temos de arranjar coragem...

Logo se arrependeu de ter confessado os seus receios, mas prosseguiu:

- Ele falou-me do dinheiro...

Francisco ergueu a cabeça e aproximou-se; ela percebeu-lhe a reacção.

- E melhor tratarem da escritura para que ele não desconfie - disse ainda.

- Julgas que m'importa alguma coisa? - respondeu o cunhado com perversidade. - Se ele souber, ainda bem... Se te quiser deixar... alguém te achará.

E agarrou nas mãos de Gracinda para lhe transmitir o arrebatamento que o empolgava.

- Fugiremos os dois, hoje mesmo, se quiseres. Ele não é o teu marido...

Ela debatia-se nos seus braços, dando-lhe punhadas no peito para o afastar. "Para que viera até ali? Como não pensara em tudo aquilo?..." Vendo que a situação se complicava, teve-lhe ódio; e sentiu necessidade de o hostilizar.

-Nunca mais serei tua, fica sabendo. Nem que ele morra... - Estava agora fora ! de si e já não sabia no que falava. - E se não fizeres a escritura, eu digo-lhe...

Mas agora era Francisco que se mostrava calmo.

- Que o provocaste - prosseguiu Gracinda, querendo destacar as palavras para as tornar mais agressivas. - Que o provocaste porque me perseguias e eu te não quis...

- E depois?... Diz mais, anda! - insistia ele.

Gracinda desejava ter forças para o dominar e procurava qualquer palavra que o pudesse atingir; como a não encontrasse, repetia o que já dissera.

- Que nunca te quis... que te tinha nojo... Francisco levantou a mão numa ameaça; e como

ela se encolhesse, apavorada, deu-lhe com as pontas dos dedos no rosto, atirando-a depois contra a parede; e caminhou para ela a querer prolongar-lhe o suplício.

- Diz-lhe isso tudo, sim... Diz-lhe isso tudo e não te esqueças...

Apetecia-lhe mais beijá-la do que fazê-la sofrer; mas precisava de se vingar daquela mulher que lhe fugia talvez para sempre.

- Eu posso-te ajudar, se quiseres... Para dizer a esse Unhas de Fome os sinais que tens no corpo...

E sorria-lhe, vitorioso.

- Lembras-te?... Aí em cima, na perna e entre os seios...

Agarrou-a novamente, com maior vigor, e puxando-a para si, esmagou-lhe a boca na sua; e, de olhos com alhos, acariciou-lhe o corpo, num prazer que ainda não conhecera. "Que devia fazer agora"?, perguntava-se Gracinda. "Não podia considerar-se vencida porque isso seria o fim de tudo."

O cunhado beijava-a com ardor e voltava a falar-lhe em abalarem para a Vilariça. Ela deixava-se acariciar, mas sentia agora repulsa pelos seus carinhos. "Teria de mentir... Mas se isso era a única salvação!..."

- Ele qualquer dia vai à Régua... e eu aviso-te depois.

"E o que diria ao marido quando lhe perguntasse pela dívida?..."

- Tu convences o teu pai a fazer a escritura e ele nunca desconfiará...

Beijou-o mais uma vez e afastou-se até à porta; antes, porém, que ele voltasse a agarrá-la, saiu para o quintal e fez-lhe um gesto de súplica, tão brejeiro, que Francisco ficou tolhido de encantamento no limiar da porta, a ouvir ainda os seus passos pelo quelho e a gozar os restos da sua presença, disseminados por ali, naquela casa onde se tinham conhecido pela primeira vez.

"Mas ela voltava agora para junto do outro", pensou depois com raiva. "Se fosse capaz de arranjar outra mulher, recomeçaria a vida com mais alma..." Só Gra-cinda, porém, lhe vinha à cabeça com aqueles olhos brincalhões, a boca húmida, o corpo que nem um vime a quebrar-se. ..

Impotente, deitou as mãos à fronte, apertando-a com violência.

- Para que me havia de aparecer esta mulher?!...

Silva Costa andava numa azáfama. Nem a indiferença de Helena, que a pretexto da sua habitual enxaqueca se recusava a sair do quarto, lhe refreara o entusiasmo.

Pediu à sogra que o viesse secundar, tomando a direcção da casa, agora, que a Ana Sarrifa se finara; multiplicava-se em cuidados com aquele jantar "honorífico", como lhe chamara, ao receber a carta do Dr. Freitas, em que lhe comunicava a sua visita e a de dois políticos de nomeada em viagem de propaganda pelo Douro.

Fora ouvi-los ao comício de domingo em Alijó, e comungara também na mesma fé da multidão que os escutara no largo. Embora já soubesse que se desmanchara o casamento do Albaninho Freitas com a D. Constança e o fidalgo não morresse de simpatia por políticos da República, não ignorava as dívidas da casa para com os Freitas, e sempre fácil lhe seria a desculpa perante D. Fernando quando invocasse essas razões.

Dois homens tratavam do jardim, batendo a maço o pavimento das ruas e compondo os canteiros como melhor podiam, enquanto na cozinha a ordem do administrador, para um jantar com oito pratos, esgotava a imaginação da cozinheira e a paciência de D. Assunção, feliz, contudo, por poder colaborar com ele numa festa de tão alto significado.

Fizera-se convite ao Dr. Pimenta - um veneno, assim o Silva Costa o considerava na intimidade, mas elemento imprescindível naquela viagem de mobilização de simpatias, como o Freitas lhe solicitara em Alijó, mal descera do palanque dos oradores, depois de o ter repreendido por se não apresentar quando chegara.

Depois de verificar que tudo corria pelo melhor e se aproximava a hora da chegada das visitas, foi fazer nova tentativa junto da esposa, na esperança de a demover até à última. Sabia que a presença de uma mulher era imprescindível na criação do ambiente acolhedor que desejava oferecer aos seus hóspedes, fatigados, por certo, com aquela viagem por terras tão soalheiras.

Atravessou o longo corredor que levava à parte destinada aos seus aposentos e bateu com cautela, apurando o ouvido.

- Posso entrar, Helena?... Não incomodo?!...

Antes que lhe respondesse, deu volta ao puxador e entrou em bicos de pés, dirigindo-se à janela com as portas cerradas; dali ficou a olhar o leito, onde Helena se moveu com preguiça.

- Não abra, Silva Costa, por favor.

Ele dominou um gesto desabrido e aproximou-se.

- Está melhor?!...

Baixou-se ainda para se sentar, mas retraiu-se com a indiferença da mulher.

- Venha jantar... Porque não me faz esse favor?... E deu volta ao leito, indo sentar-se defronte dela.

Sorrateiro, tomou-lhe a mão, que afagou com carinho.

- São visitas de cerimónia.

- Por isso mesmo, Silva Costa. Sabe que estou doente...

- Mas a Helena é a dona da casa. Daríamos um pequeno serão depois do jantar...

Fez uma curta pausa, depois da qual a sua voz se tornou mais viva.

- Já não gosta de tocar piano?... Junto de mim tudo lhe desagrada. Porque não mo diz, sinceramente? Julga que me esqueço do seu entusiasmo de outros tempos?...

Calma, mas hostil, Helena retorquiu, sentando-se na cama, depois de puxar os almofadões.

- Que vai insinuar, Silva Costa?...

Ele acobardou-se quando a viu disposta a prosseguir no diálogo.

- Não insinuo; lamento-o, apenas...

- Fez mal em confiar na minha companhia para os seus projectos. Já sabe que não tenho ambições.

- Nem a de ser feliz?...

- Sim, nem a de ser feliz...

Quando reconheceu D. Assunção, o Dr. Freitas ficou levemente contrariado - lembrou-se da moça romântica que lhe tocava valsinhas tristes e lhe ouvira os primeiros planos das suas ambições políticas, talvez com algumas saudades. Tudo nessa altura lhe parecia fácil e acessível ao seu talento de futuro homem de leis. Ela confiara no triunfo da sua inteligência e desejara-o sempre puro de intenções, como nos primeiros anos da universidade.

- E já casou?...

  1. Assunção quisera ser exuberante, mas preferia que não lhe lembrassem a filha naquele momento em que se sentia a dona da casa.

-Não sabe, meu caro doutor?!... A Helena é esposa do Sr. Silva Costa - disse, por fim, com amargura.

- Mas que agradável coincidência, minha senhora! Não calcula a minha alegria por vê-la junto de um homem tão digno.

E baixando a voz, para que mais ninguém o escutasse:

- Eu não a merecia... A vida pública é um calvário e a Helena não podia ser crucificada nesse mesmo lenho. Ainda não casei... Ignoro mesmo se alguma vez poderei gozar as delícias de um lar... de uma família toda em santa harmonia, como ela saberá, por certo, facilitar ao Silva Costa.

E, de longe, acenou a mão para o administrador, num gesto afectuoso.

- Estou a invejá-lo, sabe?... Falo da sua devotada esposa...

Perturbado, o administrador pediu licença e mandou o caseiro procurar o Dr. Pimenta, por quem esperavam para dar início ao jantar. Da porta olhou o fundo do corredor, onde ficava o quarto de Helena, e o semblante carregou-se-lhe; mas já pela escada principal se ouvia a voz do médico e foi ao seu encontro.

O Dr. Pimenta vinha por mera curiosidade - não lhe agradava, no fundo, a intimidade com aquela gente, que fazia da questão duriense uma ponte de passagem para outros fins. Gostava, contudo, de conviver e de lhes pregar a sua "casaca de água", como chamava às perguntas e dúvidas que sempre guardava para momentos semelhantes.

Uma criadita, muito contrafeita na farda da casa, veio anunciar que o jantar estava na mesa. Silva Costa conduziu os convivas para o salão, aproveitando um esca-panço para reprovar à sogra a atitude da esposa, D. Assunção pediu-lhe paciência, mas sentiu-se vingada.

O apetite dos visitantes e o dedo genial da cozinheira é que chegaram para salvar as emergências - ao terceiro prato, um louríssimo leitão recheado, acabavam as meias palavras e a conversa animou-se.

- Divinal, hã?!... asseverou o Dr. Moita, com a gula nos olhos, mal deu a primeira dentada num belo naco que D. Assunção lhe servira. A sua cabeça, de frontal saliente, mais avantajado ainda pelo cabelo curto que arrepiava à frente, numa popa, abanava levemente no cimo do pescoço forte, como se as guias longas e reviradas do bigode negro lhas fizessem mover num movimento de balança.

- E bem merecida, doutor. Um orador de pulmão, como você é, precisa de um trato destes - aludiu o outro hóspede, um magrizela que parecia mover-se por linhas e nutria o mais vivo despeito pelo vozeirão do companheiro.

- De pulmão e de razão, Dr. Severino, retorquiu o outro com orgulho.

- A oratória de comício exige-o - juntou o Freitas. - Eu entendo que um tribuno deve saber usar a voz com um método racional, do mesmo modo que nas expressões empregadas.

- De acordo - assentiu o Dr. Severino. - Em completo acordo!

Albaninho Freitas esqueceu o leitão. - O comício é a tempestade e o drama... O mar ensina-nos muito.

- O pior é se o põe muito picado e a assistência enjoa - interrompeu o Dr. Pimenta, galhofeiro e irónico, desmanchando o auditório com gargalhadas.

Uma criada enchia os copos, mal lhes via o fundo. E, como os vinhos eram de bom paladar, e ainda por cima refrescados na cisterna da quinta, ninguém se escusava a render-lhes homenagem.

- O povo, Dr. Pimenta, nunca se enjoa com a verdade.

- Tem razão, Dr. Freitas-concordou o médico.

- O pior é que a verdade... ninguém a diz.

Todos se voltaram contra ele - davam-se como exemplo, para o obrigarem a desmentir-se, citavam factos conhecidos, pediam-lhe que concretizasse o seu pensamento. O Dr. Moita esgrimia os punhos de magarefe, misturando as palavras com pedaços de peru que viera para a quarta volta; o Dr. Severino desafinava as cordas vocais, querendo fazer ouvir as suas razões, que se perdiam no meio do alarido.

O Dr. Pimenta voltava-se para o peru e tasquinhava-lhe uma boa perna, sempre com a malícia a brunir-lhe os olhos.

- Recusa-se, doutor? - insistia o Freitas.

- Só quando voltar a calma - respondeu o médico, amarotado.

Já divertido, o Dr. Moita exigiu silêncio, enquanto o Silva Costa tocava na coxa do Pimenta, por debaixo da mesa, como a pedir-lhe recato, não fosse ele tornar-se inconveniente para algum daqueles senhores tão citados em jornais.

- Que ninguém diz a verdade, foi o que afirmei. Primeiro teríamos de indagar o que é a verdade...

- Justo! - pipilou o Dr. Severino, aproveitando o silêncio que se fizera na sala.

- Neste caso do vinho há verdades diversas, é claro. A dos Ingleses é comprar-nos o vinho barato e vendê-lo, só eles, bem entendido, nos seus mercados e pelos preços mais altos que lhes for possível...

- Isso está fora da discussão - esclareceu o Freitas. -Trata-se de uma actividade antinacional...

O Dr. Moita interveio logo para opor a sua repulsa pela expressão, que considerou imprópria. Então foi a vez de o Dr. Pimenta pedir silêncio, no que todos se mostraram de acordo; e, a sorrir, ele prosseguiu, depois de sublinhar que logo com a primeira verdade sobre o vinho havia graves divergências ali mesmo.

- Essa é a verdade para o Inglês, com a qual não estão de acordo todos os demais elementos, desde a produção ao comércio. Com a honrosa excepção - esclareceu malicioso - do comissário inglês e dos pretendentes às mãos dos "bifes" ou das "bifas".

Silva Costa cacarejou uma gargalhada, que reprimiu depois no guardanapo.

- Para o comerciante português, a verdade é comprar vinho barato, mesmo que seja do Sul...

- Protesto! - gritou Albaninho, indignado.

Agora divertiam-se o Dr. Moita e o Dr. Severino com os protestos do Freitas; mas o médico não demorou a resposta.

- Protesta em nome de quê?!... Dos comerciantes ou dos paladinos? Veja bem, doutor; agora propõe-se para paladino...

- Em nome da justiça suprema! -retorquiu com grave compostura de gestos.

- Isso é como a verdade que estamos a tentar destinguir, meu caro Freitas. Mas deixe-me prosseguir... Também vinho do Sul ou mesmo de preferência do Sul.

- Torno a protestar!

- Acho que está no seu pleníssimo direito. E continuando depois no mesmo tom de voz:

- Indignação contra os Ingleses porque os não deixam meter o pé lá na Ilha e no Império. Esta é a segunda verdade. Depois temos a verdade dos especuladores... A verdade dos mixordeiros, que acham ser o seu vinho de consumo com açúcar, baga de sabugueiro e aguardente melhor ainda, e com mais direitos, do que um autêntico Alto Douro.

Fez uma breve pausa, saboreando um gole de vinho, para concretizar depois:

- Já temos, portanto, e só no comércio, quatro verdades absolutas. E se nos voltarmos para a produção?!...

Neste momento passou o Dr. Severino a expiar-lhe todos os gestos e a apurar melhor o ouvido, pois era proprietário em várias freguesias da Régua e receava arremetidas idênticas para os produtores. O Dr. Moita percebeu-lhe logo o interesse e fez-lhe um gesto de clemência, com as mãos postas.

- Na produção é ainda pior. Os do Sul possuem também uma verdade: o seu vinho é tão bom como o do Douro e não se deve designar só por Porto o que sai por Leixões. Dizem que se quer dividir Portugal em dois países e há muito comerciante de Gaia que lhes dá o seu apoio. Depois, cá em cima, há os que querem a região demarcada e os que nem nisso desejam que se fale. Os que estão no Baixo Corgo e mais perto da área dos negócios, dispondo de maiores influências políticas...

- Protesto! O doutor exagera e generaliza - interveio o Dr. Severino. No Baixo Corgo o vinho é tão bom ou melhor do que muito outro...

— Isso é um disparate, Dr. Severino! - gritou o Moita com o seu vozeirão de trombone. - Quer comparar alguma vez esta terra xistosa com a manteiga da bacia da Régua?... Aquilo é vinho de consumo...

- Ó Dr. Moita!

- Ora vejam lá se não é da minha banda que está a razão! - exclamou o Pimenta, piscando o olho para o Freitas. - Só até aqui encontramos sete verdades, ficando talvez outras tantas: a dos grandes proprietários que cultivam de sua conta e ainda a dos que arrendam as terras; a dos proprietários até dez pipas; a dos que produzem até cinco e menos de cinco. A verdade dos que não têm lagar, sequer, para pisar as suas uvas e as vendem à arroba. Sem se esquecer a verdade dos que emprestam dinheiro por hipoteca de terras ou de produções, etc, etc., etc... Debaixo de tudo isto, como um grão de areia, pisado e repisado, o cavador, o lagareiro... Quantas verdades?!... Aí está porque ninguém a diz nos comícios...

- Talvez, doutor! - replicou-lhe, desdenhoso, o Dr. Moita muito trémulo. - Por que motivo se não torna paladino?!...

- Eu cuido de doenças...

- Mas, se tem a verdade absoluta, porque não a ensina aos outros?

-O Dr. Pimenta é muito avaro nessas coisas - brincou Albaninho Freitas, compreendendo que precisava daquele homem para o seu lado.

Queriam servir os vinhos e Silva Costa convidou-os a voltarem à sala de visitas. Quando viu o piano, lembrou-se da mulher.

O Freitas tomou o braço do médico e insistiu para que ele concretizasse a sua opinião quanto ao problema; o Dr. Pimenta escusava-se, pretextando a sua pouca aptidão para a "coisa pública".

- Mas o doutor está aqui junto deles... Ouve-os, sabe o que mais lhes convém - prosseguiu o Freitas com manha.

O médico acabou por ceder.

- Lá quanto ao comércio, nada sei. Agora para os pequenos produtores, meus caros amigos, talvez uma cooperativa.

-Uma cooperativa?!... o senhor está doido! - gritou o Moita com tamanho arrenego que todos ficaram calados por muito tempo, como se alguém lhes viesse dizer que o rio Douro saíra das margens e ia a caminho de Vila Real.

 

Os três deviam abalar naquela manhã para a Pesqueira, onde se preparara outro comício pelas reivindicações do Douro, e Silva Costa estava inquieto com a demora do Dr. Freitas em sair do quarto, pois não queria perder a oportunidade de assentar com ele num plano de compras para a próxima colheita.

O tempo corria às maravilhas para as videiras e tudo indicava uma produção em cheio. Com a fuga do Jerónimo tudo se lhe tornava mais fácil; só os Ingleses e alguns comissários poderiam surgir ainda a transtornar-lhe os projectos, mas a sua presença ali colocava-o em melhor posição, para saber dos que alienariam as colheitas com adiantamentos de dinheiro para fazerem as vindimas.

Precisava, contudo, de conhecer as intenções do Freitas quanto a aquisições, a fim de regular o número de pipas e os tipos preferidos para os seus lotes. Sabia que o outro necessitava da sua colaboração para as próximas eleições e estava disposto a conceder-lha com condições bem definidas, pois já fora abordado para o mesmo efeito pelo Dr. Moita.

Vinha de vez em quando espreitar ao corredor, aborrecido com a preguiça do Freitas, certamente abalado com a exuberância de vinhos bebidos no jantar da véspera. O Dr. Moita é que devia ter chumbo na cabeça para a não levantar tão cedo do travesseiro, de tal maneira se mostrara um "copo" respeitável. Em certa altura entrara em despique com o "veneno" do Pimenta, por causa da ideia das cooperativas - mais uma maluqueira daquele tonto! -, e pouco faltara, segundo parecia pelo seu tom de voz, para o agredir com dois murros bem puxados. No fim, porém, com mais uns cálices de porto e tarragona, começara a ceder e a concordar, e acabara por lhe propor uma valsa que o Dr. Severino teimava em arrancar do piano.

"E falavam aqueles homens em pastas ministeriais!", rosnava, irritado, por terem consentido nas graçolas do médico.

Incapaz de se dominar - os cavalos já guizalhavam junto da cocheira -, bateu à porta do quarto do Freitas.

- O Sr. Doutor chamou?!... Ha?!... Quer que entre?!...

Dera volta ao puxador e enfiara por ali dentro, ante o pasmo do outro, que nada dissera para o ter junto de si.

-oSr. Doutor chamou?!...

Aturdido, o Freitas pestanejava, a bocejar, sentado na cama.

- Não disse nada, Silva Costa...

- Essa agora!... Pois então foi o Diabo por Vossa Excelência. E como combinámos conversar antes de partir, e o Sol já vai alto, julguei... Tenho a certeza que ouvi gritarem pelo meu nome...

- Talvez o Dr. Moita...

E o Freitas voltou a deixar-se escorregar pelos lençóis, preparando-se para mais uma soneca. Solícito, o Silva Costa lembrou-lhe o comício da Pesqueira.

- O comício, é verdade! - repetiu com mágoa. - A política é uma grande maçada!... Se os eleitores soubessem o trabalho que nos dão, votariam em nós com ¦notas de cinquenta mil-réis...

- O Sr. Doutor sempre pensa em meter-se nisso? - aproveitou o administrador para levar a conversa ao rumo que lhe aprazia.

- Há deveres que não se podem enjeitar... E espreguiçou-se com volúpia.

Silva Costa foi abrir as portas interiores da janela, procurando evitar que a claridade da manhã batesse em cheio no rosto de Albaninho Freitas.

- Que me diz ao veneno do Pimenta?

-É um tipo curioso! Fal*a-lhe aquela luminosidade espiritual que distingue o homem superior do homem comum, sem deixar de ter um certo interesse... Deve contar com muitas simpatias entre o povo - disse depois com maior vivacidade, esboçando uns movimentos de ginástica para acordar os membros ainda entorpecidos.

O Freitas pensava em saltar da cama, mas parecia-lhe pouco conveniente conceder ao administrador a confiança de o ver em trajes íntimos. Procurava fazer-lhe entender que se deveria retirar, mas o outro continuava impassível.

- Quer esperar-me no escritório? Não me demoro, Silva Costa - teve por fim de dizer, já um tanto irritado com a insistência.

- Como o Sr. Doutor quiser... O pior é se o Dr. Moita me encontra primeiro e se me vem com alguma conversa..

Dirigia-se para a porta com olentidão e reforçava os seus receios.

- Se me fala de votos para ele.

- Parece-lhe capaz?...

- Eu sei lá, Sr. Doutor Albaninho! Percebi-lhe ontem umas alusões...

Então o Freitas hesitou e ocorreu-lhe uma solução - pedir ao administrador que se colocasse atrás do biombo verde para continuarem a conversa.

- Ora essa do Moita não me pode esquecer! Um biltre!... Vê-se logo a que partido pertence. O voto para eles é uma mercadoria qualquer. Não entendem que há princípios de lealdade a conservar. E ainda queriam que eu me filiasse!

- Que partido é o do Sr. Doutor Albaniinho? - perguntou Silva Costa, curioso, sentado agora humildemente numa cadeira, a um canto do quarto.

- O do Douro. Penso com alguns amigos lançar as bases do Partido Agrário Português...

O ruído da água no lavatório suspendeu-lhe o voo da retórica. Prisioneiro, por detrás do biombo, Silva Costa tamborilava os dedos nas pernas magras, já que não podia ir até à janela. Lembrou-se de Helena e uma vaga de desolação entristeceu-o. "Para que casara ele, afinal?!..."

- Pois é verdade, Silva Costa; a política é um mundo de alçapões e armadilhas.

O administrador voltara-se para os seus problemas íntimos e prestava pouca atenção ao outro.

- Que lhe parecem as minhas possibilidades se me propuser?...

Como o Silva Costa não lhe respondesse, gritou mais alto.

- Sim, o sucesso da minha candidatura? Tem esta gente na mão?...

- Mais ou menos - arriscou o administrador, indeciso.

- Em política isso é pouco, meu caro - retorquiu Albaninho Freitas. - Cinquenta por cento de possibilidades não bastam para garantir a vitória.

- Vossa Excelência dispõe-se a comprar muito este ano?!...

O Dr. Freitas apareceu-lhe à frente, tentando apertar o colarinho rijo, mas o botão fugia-lhe dos dedos e atormentava-o. Punha-se em bicos de pés, gemia, tornava-se vermelho pelo esforço despendido.

- Um horror! -" disse, indignado.

Pressuroso, Silva Costa ofereceu-se para o ajudar.

- Pois é preciso que o Sr. Doutor dê ordens para fazer compras em cheio. Essa gente é muito mesquinha... Só vai por interesse.

- Obrigado, meu caro -agradeceu Albaninho, deitando a mão à gravata. - Eu não posso comprar vinho a toda a gente! - exclamou com afectação. - Dar-lhes o meu esforço como deputado, oferecendo-lhes a modéstia da minha inteligência, e ainda por cima pagar-lhes... Tem de convir, Silva Costa, que é demasiado.

O administrador fez uma expressão de dúvida. - Comprar algum, é evidente; deixo isso ao seu critério, nas condições que combinámos...

- É pequena a comissão, Sr. Doutor. Se soubesse o trabalho que isso me dá...

- Pois, sim, Silva Costa, eu sei. E agradeço-lhe a sua colaboração. Mas o comércio está podre para os comerciantes portugueses...

E dando mais vivacidade à voz:

- Procure saber quais são as pessoas mais prestigiadas daqui. E a essas é que devemos fazer as compras, em meu nome, percebe?!... O Dr. Pimenta...

- Ó Sr. Doutor! - bramou Silva Costa indignado, erguendo-se do seu canto com os braços abertos. - Esse homem é um veneno!...

- Pois é preciso o contra veneno, meu caro!... Deixe-o dizer mal e vá comprando... Pague-lhe um pouco mais, sem que ele perceba porquê.

Albano Freitas sorria com a expressão de desespero do administrador, mais lívido e agitado por cada palavra que lhe ouvia.

- Adquira-lho todo... Sempre que os outros se queixem, ele falará de mim, mesmo que ainda desabafe com algum destempero. Mas com o tempo...

- E a tal cooperativa de produtores de que ele fala?!...

- Se for preciso, aludirei a isso nos comícios e na Câmara dos Deputados, quando lá chegar.

- Oh, Sr. Doutor!...

Silva Costa estava desiludido e não entendia aquele sorriso brejeiro do Freitas.

-" As cooperativas não se fazem com palavras, entende?!... Que me prejudica a mim falar nelas, se eu as não facilito e as posso até contrariar, se estiver dentro da confiança dos que nelas pensam?!...

E, alteando a voz, continuou de um lado para o outro.

- Hoje mesmo na Pesqueira lhes posso aludir, vagamente, é claro... E o Dr. Pimenta vai apoiar-me, com certeza.

- E se alguma vez lhe aparecer para dar vulto à ideia?!... oSr. Doutor não se pode recusar!

- Mas se não sou produtor... E depois o dinheiro que é preciso para isso não cai do céu. Os bancos não lho emprestam... O Estado não lho oferece... Uma cooperativa não se faz com palavras, Silva Costa.

E bateu-lhe no ombro quando parou à sua frente, para o medir com o seu ar altivo.

- Compre o vinho ao Pimenta... E não esqueça a minha recomendação: indague quais são os vinicultores mais escutados por aqui... E pague-lhes um pouco mais.

No corredor, o vozeirão do Dr. Moita chamava o Silva Costa. Albaninho Freitas fez um sinal para o administrador o ir atender, mas antes segredou-lhe ainda: "Se lhe pagar bem, talvez o Pimenta se esqueça da cooperativa, E ouça lá o Moita. Eu fico por aqui a pôr uns papéis em ordem e depois me contará o que ele quer."

E empurrou-o com deferência para fora da porta. Assim que o outro abalou, abriu a sua maleta e tirou um rolo de papéis, que se pôs a escolher; quando chegou à folha no cimo da qual escrevera "S. João da Pesqueira", retirou-a com as outras que lhe estavam presas e foi estudá-las para junto da janela: era o seu discurso para o comício daquela tarde. Em voz alta começou a recitá-lo.

"- Ó meus irmãos durienses! Na tragédia quotidiana daqueles que, como vós, comem o pão amassado com o suor do próprio rosto, carne desta terra sagrada..."

 

Aquela duplicidade confrangia-a; e achava-se repugnante por ter aceitado uma situação tão cheia de contradições e de perigos, e que era preciso manter agora, não sabia por quanto tempo. "Até quando?!...", perguntava-se ansiosa.

Num dia em que o marido fora à Pesqueira, o cunhado não deixara de lhe rondar a porta até que se resolvera a bater. Ainda naquele momento tinha receio dos pensamentos que lhe haviam ocorrido. "Abrir-lhe a porta e abalar com ele?... Falar-lhe e afastá-lo para sempre, sem receio do que ele pudesse fazer? Pegar na espingarda e vará-lo ali mesmo, para que todos soubessem que ela era uma mulher que sabia prezar a sua honra?..." A última ideia é que mais lhe agradava, porque não podia compreender aquela teimosia do Francisco em prolongar as suas relações.

Estava tudo, afinal, como no primeiro dia, ou pior ainda, agora, que prometera o seu amor a um e o dinheiro ao outro. E quando atentava nesta realidade caía numa crise de desespero que nem as lágrimas conseguiam amainar.

 

Durante a digressão do filho pelo Douro, o Freitas velho voltara aos escritórios de Gaia, pedira indicações precisas de algumas verbas ao guarda-livros e, depois de tomar certas notas mais significativas que o alarmaram, aguardara a chegada do Dr. Albaninho "para lhe rezar o responso", como dizia na sua. Era certo que lia com entusiasmo, e uma justa ponta de orgulho, as referências dos jornais aos discursos do filho e às entidades que com ele privavam, mas a prática dos seus anos de negócios na praça aconselhava-o a moderar-se na vaidade paternal, levando-o a intervir no caminho perigoso que o via tomar.

- E assim, logo que o "seu rapaz" se deliciou a contar-lhe a viagem, em pormenor, fechou-se num mutismo significativo, esforçando-se por lhe não dar sinais da mais leve adesão, e ripostou-lhe com os seus argumentos e números de contabilidade.

"Sim senhor, tudo aquilo era muito bonito, mas que não deixasse de dar tempo ao tempo porque, em seu entender, a política era tal qual o vinho do Porto - um mundo de cobiças, onde só se aguentavam os que dispunham de dinheiro, paciência para esperar e golpes certeiros mal a oportunidade surgisse."

Foi preciso, contudo, entrar mais a fundo no assunto; Albano Freitas não cedia nos seus propósitos por tão pouco. O velho gostava daquela obstinação, mas achava prudente orientá-la no melhor sentido.

- Olha, Albaninho; não foi por acaso que cheguei ao Porto de tairocas e consegui subir até aqui...

- Já era tempo de não repetir essa história antiga- interveio o filho com hostilidade.

Pegavam-se quase sempre por aquela razão-o

velho entendia que isso era o mais eloquente símbolo das suas qualidades de trabalho, como lhe chamava orgulhosamente, e insistia no argumento; o filho sentia-se diminuído com a invocação, achando que o pai se comprazia em manchar-lhe a carreira.

- Pois diz que não me pertences; não te levo nada por isso. Porque com as minhas tairocas cheguei mais longe do que muitos outros com botas de pelica. Cada qual orgulha-se do que tem: tu falas da tua universidade e eu da minha.

Custava-lhe falar assim, mas entendia que se não podia entregar aos devaneios inexperientes do rapaz; desejava somente que ele conseguisse aliar à sua cultura a prática dos negócios. "E podia ir longe", dissera-lhe Sebastião Borges Alves, o banqueiro mais destacado da praça do Porto, a quem o Freitas recorria para a concessão de créditos hipotecários sobre os vinhos armazenados.

- Alargaste-te demasiado - prosseguiu o velho comerciante.

E rapando, sorrateiramente, do papel com as notas que o guarda-livros lhe fornecera:

Vendeu-se este ano muito menos. Sei que recusaste dois embarques para o Brasil...

- Aquele vinho foi criado para ser bebido em Inglaterra. Podemos esperar - retorquira o filho com altivez.

- Menos do que tu pensas...

Apontou-lhe na lista a rubrica "Empréstimos bancários" e esperou que ele erguesse o olhar para prosseguir.

- Estamos a negociar com dinheiro dos bancos. Grande parte dos nossos vinhos servem de garantia a esses empréstimos. E os bancos não gostam de aventuras. ..

- É uma cartada patriótica, chame-lhe antes assim. O velho Freitas sorriu para o filho com benevolência

e afagou-lhe o ombro.

- Isso é ainda um calão de escola, meu rapaz. Os bancos aplaudem tais atitudes depois de vitoriosas; mas quando se tentam com dinheiro que lhes pertence, preferem a cartada certa. E ainda há coisas que nem tu nem eu entendemos...

- Mas é justo?...

- Tens razão; não será justo. Mas o banco não é como um homem; tem várias cabeças, muitos braços e nem sombra de coração. Se o tivesse, acabava em pouco tempo... Porque são tantos a pedir-lhe, tantos a invocar "cartadas patrióticas", que de um dia para o outro se lhes esvaziavam os cofres.

- O nosso caso é especial... O vinho é nosso e os lucros são para os Ingleses. Que fiquem com os tecidos...

- Não é deles o algodão nem a lã - interveio o Freitas.

- Como o açúcar... como o petróleo - insistiu o filho. - E eu não desistirei sem que os nossos vinhos cheguem ao seu mercado - explodiu o Dr. Albano num assomo de dignidade.

O velho sorria, mastigando a ponta da cigarrilha.

- Já não é a primeira vez que te aviso de que o mercado internacional do nosso porto pertence aos Ingleses. E peço-te que não teimes em meter-te com eles... Tem paciência, mas volto a falar-te nas tairocas: não me agrada voltar a calçá-las, compreendes?...

- Eu teria orgulho nisso, se tal me sucedesse para libertar a economia nacional desse escalracho...

O Freitas velho cuspiu pedaços de tabaco, depois de atirar fora a cigarrilha pela janela aberta sobre a cidade.

- Falas assim porque nunca as calçaste... As tairocas magoam mais a alma do que os pés.

A noite era um festão de luzes a despenhar-se no rio Douro. O velho encostou as mãos ao parapeito da janela e deixou-se ali ficar, por momentos, como se visse aquele quadro maravilhoso pela primeira vez; Albano Freitas correu os olhos por um jornal, reflectindo com amargura nas palavras do pai.

- Dei ordem para se escrever ao comissário do Rio de Janeiro a reatar o negócio que enjeitaste - disse o velho. - Do tal vinho que é um príncipe! Prefiro que seja simplesmente vinho e que dê lucros em lugar de falência.

E insistiu, num crescendo de voz:

— Recebeste desse tal Silva Costa vinhos mais caros do que podíamos ter comprado. Só agora soube porquê: política. As despesas gerais da casa aumentam. E porquê?!...

Política! Pagas a jornalistas, pagas jantares; pagas discursos...

- Fomento o futuro - respondeu Albano Freitas.

- A política deve ser feita pelos outros, embora a gente dê algumas vezes o dinheiro. E sempre na sombra... Estás novo ainda para entenderes o que isto quer dizer. És inteligente... és vivo, mas falta-te o calo.

- São mais difíceis estes tempos, pai! Temos de mudar o jogo!...

O velho esvaziara a ira e mostrava-se mais calmo. Puxou uma das suas cigarrilhas e ofereceu-a ao filho - era a primeira vez que o fazia. E insistiu:

- Isto é a melhor prova de que te acho um homem; mas tem cautela. Não esqueças o que te venho repetindo quanto aos Ingleses. E no que respeita à política não te comprometas em partidos...

- Assim tenho feito, pai.

- Aprecio-te por isso mesmo. Os monárquicos andam mexidos. Falei ontem a D. Fernando Pimentel e percebi-lhe, por meias palavras, que eles preparam o assalto. Sabes bem que não gosto dessa gente... Ainda sou do tempo em que nada se fazia sem eles e sofri muitas humilhações de alguns; mas é preciso calma. Nada de precipitações...

Pretextando cansaço da viagem e dos comícios, Al-bano Freitas recolheu ao seu quarto para meditar.

O pai irritava-o com os seus conselhos, mas tornava-se imprescindível na procura da linha de conduta que mais lhe convinha. Era justo o seu reparo quanto a política. O terreno estava movediço e toda a cautela era pouca, embora não se dispusesse a abandonar a sua entrada na Câmara dos Deputados. Talvez fosse preferível fomentar as suas probabilidades, escusando-se a apresentar a candidatura até que se formasse uma certa expectativa à volta do seu nome. Só desejo servir o Douro. Se um dia entenderem..." E nestas reticências deixaria sempre campo aberto para a sua entrada efectiva na arena política. Escolher um partido naquele momento era arriscar a solidez duma posição; não podia tornar-se conhecido como "um salta-pocinhas", aplaudindo hoje o que ontem negara, atacando amanhã o que ontem afirmava, num risco evidente de trair o seu principal objectivo. O Partido Agrário era por enquanto um sonho; e, mesmo que se formasse, necessitava de entrar no jogo das forças políticas para abrir caminho. Aí, afinal, é que estava a grande dificuldade. Deveria apoiar-se nos democráticos? E se os monárquicos realizassem a contra-revolução tão comentada e admitida?!... Não; o pai fizera-lhe um reparo bem justo. Era preciso, sem dúvida, fazer uma pausa, embora não devesse cruzar os braços numa expectativa de passividade. Todas as estradas levam a Roma; o segredo é saber o que se deseja e não perder o objectivo.

 

Silva Costa entrou de mansinho, foi cerrar as portas de madeira da janela e aproximou-se da cama.

- Vai melhor?...

Helena teve um instintivo recuo de medo.

- Na mesma...

Ele sentou-se depois, procurando-lhe as mãos, que estavam debaixo da roupa, e apeteceu-lhe deitar-se a seu lado para desabafar. Sentia necessidade de falar muito; queria dizer-lhe tudo o que pensava a respeito do futuro de ambos, embora aquele silêncio hostil o oprimisse. "Tinha a certeza que nada fizera para lhe desagradar.

Ambicionava o mundo só para ela... Queria-a ver rica, tratada com deferência por outra gente e noutro meio..."

- Se me pudesse ouvir... .Gostava que conversássemos, que fôssemos, realmente, marido e mulher...

A voz tornara-se velada, duma doçura que ela desconhecia.

- Não a incomodo?

- Não...

Ofereceu-lhe uma das mãos e Silva Costa quis bei-jar-lha; ela retirou-a, mas sem agressividade.

- Sabe que estou doente, Silva Costa.

Ele foi compreensivo; marejaram-se-lhe os olhos e teve desejos de lhe pedir para que o deixasse encostar a cabeça junto da sua, na mesma almofada, ouvindo-lhe mais perto a respiração oprimida. Havia nele uma ternura estranha que a comovia e tornava feliz. Do exterior não chegava um sinal de vida; só distante, sobre a cómoda, uma vela oferecia a sua luz triste.

- Preciso de lhe falar Helena. Não me interrompa. .. não explique nada... Deixe-me perguntar e responder; dizer-lhe o que penso e o que gostaria que pensasse.

Mirrada dentro da roupa, ela afastava-se sorrateiramente. "Que me quererá agora?", pensava.

- Nunca possuí o que desejei; nunca!... Tive uma infância má e uma adolescência pior. Nasci e cresci sem carinhos... Sequei o coração a pensar mal de toda a gente. E só quando a vi...

Ela moveu-se.

-Não fale, peço-lhe - insistiu Silva Costa naquela voz magoada que nunca lhe ouvira. - Antes disso achei uma compensação no desejo de enriquecer. Pareceu-me que isso transformaria tudo. E consegui-o, embora com muita canseira e muito ardor... Só Deus sabe as amarguras que passei. E fui feliz. Metia-me no escritório a traçar planos, a conceber transacções... Deus ajudou-me; não sei se para me castigar depois. O dinheiro crescia nas minhas mãos e transformou-me. Coisas que me repugnavam noutros tempos, fi-las com alegria.

- As contas da quinta...

Ele não se sentiu ferido com a alusão; parecia-lhe que aquela conversa era uma penitência que o libertaria de todas as preocupações.

-Sim... E muitas outras... Outras que já não sei distinguir, porque o dinheiro modifica os homens. Só quando a vi fui capaz de perceber porque andara tão entusiasmado a juntá-lo.

Silva Costa aproximou-se e tocou-lhe; ela não reagiu.

- Tudo nos corre bem... As compras do Freitas deixaram-me bons lucros; os negócios de conta própria estão prósperos.

Hesitou por um instante e a sua voz cresceu de volume.

- Só ontem pensei nisso... A Helena não me ama, bem o percebo. Daria todo o meu dinheiro a quem conseguisse modificá-la; mas sei que é impossível. Tem recusado a minha presença aqui; e eu que exijo sempre o que me pertence, tenho esperado... Com tristeza, é verdade... Com raiva muitas vezes...

Depois baixou novamente a voz, talvez comovido.

- A Helena fez-me compreender que o dinheiro não é tudo na vida. E ontem pensei...

Ela não sabia como interpretar aquelas palavras. "Iria dar-lhe a liberdade que ela ambicionava?" Num gesto instintivo que não soube reprimir, agarrou-lhe na mão e apertou-lha, como se quisesse dar-lhe forças para dizer tudo até ao fim. Silva Costa sorriu e beijou-lhe os dedos.

- E em que pensou? - insistiu Helena, para romper o silêncio.

- Que este dinheiro que me pertence...

E como se tivesse pressa de dizer o que sentia:

- Pensei num filho...

Ela não se conteve sem soltar um pequeno grito de espanto.

- Sim, um filho nosso, Helena. E nunca mais lhe tocarei...

Silva Costa compreendeu melhor naquele momento a repugnância que lhe causava, mas já que começara queria acabar, ainda na esperança de a demover.

- Nunca mais lhe lembrarei que somos casados. Dois amigos... o que quiser... Já nada importa depois! Mas o dinheiro que ganhei não pode acabar em qualquer mão estranha...

- Porque o não dá?!... - perguntou-lhe ainda com ironia, embora se sentisse tocada pela emoção com que o marido lhe falava.

- Não seja assim. O dinheiro pertence-nos; ganhei-o com o meu trabalho...

- Porque não arranja outra mulher?

- Porque não posso, Helena; porque por mais que queira não consigo ter-lhe o ódio que deseja.

- Experimente...

- Já fiz tudo para o conseguir.

Ela sentia-se aturdida com a humanidade das suas palavras. Dentro de si qualquer coisa se apossava da sua vontade e a fazia ceder aos carinhos do marido.

- Um filho que seja o herdeiro de tudo o que amealhei... Inteligente como a Helena...

Nas trevas ela já não o via; só aquelas mãos lhe falavam à sua ansiedade de ser mulher.

 

António Francisco não deixava de insistir na escritura, depois de saber que o Teimas não negara a dívida, embora houvesse de esperar por um dia de boa disposição do velho para o convencerem a ir ao notário. Disposto a adquirir terras já trabalhadas, informava-se das mais comprometidas e escolhia-as entre as melhores, percebendo que as teria à mão logo que novo agravamento se desse. As do Teimas, bem cuidadas e com vinhas de castas escolhidas, despertavam-lhe mais desejos do que nenhumas outras; e estava certo de que as possuiria com o tempo, depois de regularizarem o empréstimo.

Nalguns momentos, porém, essa ânsia tornava-se mais forte que a sua ponderação e não largava a mulher.

- Conta lá bem o que ele te disse. Falaste-lhe dos juros?... Dos juros, pois. Há quanto tempo lhe emprestaste?...

E fazia contas pelos dedos, enganava-se e tornava a conferi-las, achando sempre escassa a soma que encontrava. Ela furtava-se, por seu lado, a mais explicações, embaraçada com a duplicidade que tinha de manter.

O Francisco rondava-lhe mais a porta e ameaçava-a com violência, sempre que falavam a sós, embora acabasse por se submeter às suas falsas promessas; mas compreendia que aquela situação se lhe tornava cada vez mais difícil de suportar. E procurava convencer o marido a negociar com vinhos.

-oJerónimo fez um fortunaço em pouco tempo. O que eu vi lá por casa dos Teimas não é muito para invejar, António. Matam-se com canseiras e ralações, e, no fim de tudo, só acham dívidas. Eu, se fosse homem, não me metia no trato de terras.

-Não sabes que para negociar é preciso quem compre?... E se me enganam?...

E, com uma certa emoção que ela nunca lhe percebera, prosseguiu ainda:

- Eu gostava era de trabalhar na terra. Foi para isso que embarquei... -E exaltado:-Não há nada mais bonito do que ver uma terra nossa...

- Ora! - retorquiu-lhe Gracinda com desdém. - Bonito é o dinheiro!

- Pois sim, sim. O pior é que os comerciantes são capazes de enganar a Cristo. Não te lembras desse que aí veio e comprou tudo o que lhe apareceu? No fim não pagou um almude e nunca mais lhe puseram a vista em cima.

- Foi esperto...

Ele já não a ouvia, pensando, de novo, nas vinhas dos Teimas, a que dera volta naquela manhã para se orientar na escritura. Outra ideia lhe ocorreu ainda; puxou-a para perto de si e disse quase em segredo:

- E se eu... Sim, se eu lhes ficasse com o vinho e descontasse o que devem?

Depois de dizer o que pensava, achou que a hipótese das terras estava mais de acordo com os seus interesses.

- Mas eles não podem pagar tudo por uma vez - lembrou Gracinda.

- E eu posso esperar?...

(Num repente, as palavras saíram-lhe violentas.

- Julgas que andei pelo Brasil a matar-me, para que a tua família se goze do que lá ganhei?... Estás enganada!...

Ela desconhecia-lhe aquele modo e receou qualquer suspeita da sua parte; mas pensou que o não podia deixar sem resposta, não fosse comprometer-se mais.

- Esqueceste-te do dinheiro que lá poupei? E não foi tão pouco como isso! Porque não fazes as contas?... Fazes sempre contas de tudo...

- Também trabalhaste para eles - respondeu António Francisco, já mais brando perante a reacção da mulher.

Levantou-se depois da mesa e foi buscar ao casaco a onça de tabaco; ao enrolar a mortalha os dedos tremiam-lhe. Ela percebeu-lhe o nervosismo. "Não seria melhor calar-se? E se ele desconfiasse de alguma coisa?" Essa dúvida fê-la prosseguir, embora noutro tom:

- Eu acho que fiz o meu dever emprestando-lhes; e eles agora devem fazer o seu pagando-te. Já não tenho nada com isso. Se te pedia para teres paciência, era só por causa dos meus sobrinhos e do velho... Mas não quero mais zangas contigo por mor deles. Fala com o Ti-António ou com o Francisco...

- Com esse?!... Não viste que te prometeu e nunca mais deu cor de si?...

¦- É pouco honrado, lá isso é verdade-disse com

esforço, voltando costas ao marido para esconder o embaraço.-E ruim! Se visses como trata o pai...

O marido sorria, satisfeito com a sua indignação; e pôs água na fervura.

-"Tu quando embirras com alguém... Deus me livre de ter-te por inimiga.

Gracinda voltou-se para perceber se ele gracejava ou se falava assim por convicção. O seu rosto acalmou-a. "Ele não desconfiava, tinha a certeza. Agora só era preciso tratar da dívida e manter-se afastada do cunhado."

- Eu já devia era ter falado ao velho de cara a cara -disse António Francisco, a saborear o cigarro. - No outro dia ele fingiu que não percebia, mas tenho de o levar às boas.

- Vai ser o diabo é por causa da escritura - disse Gracinda. E aproximando-se do marido, para o convencer melhor:-Tu também podias deixar essa coisa dos papéis. O Ti António é sério e se te disser quando paga, paga-te mesmo.

António Francisco ficou abalado com a sugestão, mas não cedeu nas suas razões.

- Lá o velho, sim. E se o velho morre?... Se não houver papéis, quem é que obriga o malandro do filho a pagar-me?

Só agora é que ele atinava naquela possibilidade. "E se o velho morresse?" E tomou uma decisão.

- Pois não é tarde nem é cedo. Vou até à praça a ver se o encontro. Estas coisas começam a arrefecer e é o diabo.

Gracinda pensava que devia demovê-lo daquele propósito, mas a verdade é que não achava maneira de o fazer, sem que lhe voltasse a desconfiança.

- O pior é se encontras o Francisco, titubeou ainda.

- Melhor seria..

E, antes que ela pudesse levantar nova objecção, atravessou os dois compartimentos e saiu. Da porta, ela recomendou-lhe cautela, ficando-se a ouvir os seus passos pêlo quelho. Mal, porém, o marido desapareceu na esquina, um vulto saltou do muro fronteiro, galgou a rua a correr e empurrou-a para dentro.

- Vai-te embora! - suplicou, mal conheceu o cunhado. - Vai-te embora, Francisco... Ele pode voltar atrás...

- Pois que volte... Acabava-se tudo por uma vez... Gracinda reparou que os dois lhe diziam o mesmo.

E apavorou-se.

O reco grunhiu nas traseiras do cortelho e calou-se depois, o taquetaque do relógio de pêndulo excitava-os.

Francisco devorava-a com o olhar febril, percorrendo-lhe o corpo, de cuja imagem parecia querer encher-se; num instinto de pudor, ela levou os braços ao peito.

- Resolveste alguma coisa?... - disse ele, por fim, fazendo um esforço no maxilar para reter o tique da face.

-Ele pode voltar, Francisco; tem dó de mim.

- Vim saber o que resolveste... Abalas comigo, ou não?!...

- Deixa passar mais um tempo - suplicou-lhe Gracinda.

Ele deu dois passos para se aproximar.

- Se te chegas, eu grito...

Tentava atemorizá-lo, olhando a porta, como se o marido fosse aparecer de um instante para o outro. Da rua cresceu um ruído de vozes. Inconsciente, ela apontou com o dedo lá para fora e ficou a querer ouvir o que diziam.

- Tens de escolher entre mim e ele - insistiu Francisco. - Agora mesmo. Se o quiseres a ele, mato-me naquela árvore defronte... E sempre que abrires a porta hás-de lembrar-te de mim até ao fim da vida...

A sua voz era estranha - rouca e trémula, parecia extinguir-se.

- Esta casa há-de ficar maldita para ti... Há-de ser mesmo defronte da porta... para que tu me vejas bem...

- Cala-te, homem. Quem se mata são os tolos... E tu não o és - respondeu-lhe, querendo aparentar uma calma que não sentia.

Francisco via-lhe os tendões do pescoço porem-se tensos e as manchas vermelhas alongarem-se. Em dois saltos ficou junto dela e agarrou-a; depois lembrou-se da porta aberta e foi dar a volta à chave. Quando se voltou, ela tinha desaparecido dali. Num acesso de ira, apeteceu-lhe quebrar tudo; agarrou numa jarra de vidro e apontou-a para o relógio de pêndulo, enfadonho naquele taque-taque alucinante.

- Gracinda!...

Pousou depois a jarra na cómoda nova que o outro comprara e procurou-a.

- Gracinda! Eu não te faço mal... Olha!... Quero só saber se abalas comigo. Vou-me embora daqui...

Quando chegou à porta do quarto, deteve-se- recordaram-lhe todos os momentos que ali passara, mas lembrou-se também do outro. E era esse que estava ali, a apertá-la nos braços, rindo-se dele, em gargalhadas que vinham agora de todos os cantos da casa. Uma grande flor vermelha abriu-se à frente dos seus olhos. "Era a mesma com que sonhara uma noite!" E dela nasceram muitas outras que rodopiavam e mergulhavam tudo numa onda de sangue.

Então não se conteve e gritou; atirou-se contra a cama e sacudiu-a, como se a quisesse desfazer naquelas mãos que antes só haviam oferecido carícias.

E as carícias voltaram àquelas mãos alucinadas, porque Gracinda voltou.

Tinham vindo cá fora, para junto dos socalcos de um mortório, e a Lua, no alto das trevas do céu, parecia abençoá-los. Um grande silêncio abraçava a aldeia e as montanhas.

- E vais comigo?!

- Sim, daqui por mais um tempo. - E num sussurro:- Quando eles forem fazer a escritura... Convence o teu pai!

"Mas que estava ela a prometer?", pensou. "Oh, meu Deus!"

Grávidas de cachos, as videiras contorciam-se, ali perto, desfazendo-se em perfumes.

- E quando ele vier agora e não te encontrar?... A Francisco sabia bem falar-lhe naquilo, como se

se vingasse dos momentos em que o outro tomava o seu lugar.

- Digo-lhe que fui à sua procura... Que tive medo de estar sozinha - respondeu Gracinda com os lábios trémulos.- Deixa-me abalar agora...

O Teimas parecia não notar que ela se desprendia dos seus braços. Sorriu, fechou os olhos e deixou tombar a cabeça na terra ressequida pelas soalheiras. "Porque não havia o mundo de a deixar ali consigo?"

 

Andar a cavalo era um exercício que **Barãona não dispensava sempre que ia de visita às suas quintas do Ribatejo, onde na de Santarém mantinha uma coudelaria que dava animais para jóqueis e cavaleiros tauromá-quicos, embora daí não colhesse benefícios, senão os do prazer de o seu nome vir citado nos jornais. Mas, acima ainda desse pecado insignificante, um outro prazer maior: o de ver uma multidão emocionada, seguindo uma corrida de obstáculos ou arpear de um touro de arrobas, com cavalos de que ele conhecia a ascendência, as cruzas de sangue, e cujo desenvolvimento acompanhara quase dia a dia pelas notas nos seus picadores. Era o único luxo que se lhe conhecia numa vida toda feita de materialidades.

Naquele dia, o Dr. Cunha Ferreira acompanhava-o, ambos montando cavalos negros, de raça árabe, que levavam a passo pela estrada de Almeirim, bordejada de árvores altarronas, em contraste com um mar de videiras que ia das margens do Tejo pela planície dentro. Iam calados, mas **Barãona pensava no destino daqueles cachos ainda verdoengos que o seu olhar de conhecedor ia avaliando em pipas de vinho. Convidara o outro para aquele passeio matinal, com o propósito de o arrancar das sombras da quinta e falar-lhe mais à vontade, longe das curiosidades dos filhos e da mulher.

-Quando virá o tal inglês?... -perguntou para Cunha Ferreira.

O lente pareceu surpreendido com a interrogação, tão afastado ia naquele momento dessas preocupações.

- Que disse ao da Legação? - insistiu **Barãona.

- O que combinámos - respondeu o Dr. Cunha, puxando as rédeas ao seu cavalo, que começara a estugar o passo.

- Ele não ficou satisfeito, claro. Julgam-se ainda os senhores únicos e absolutos do mundo.

-Parece não gostar deles, **Barãona.

- Tanto como eles de mim... Eles, se me pudessem alijar, já o tinham feito; eu pago-lhes com a mesma moeda. - E depois de uma pausa: - A verdade é que é preciso que ele chegasse depressa.

- Por causa do vinho?...

**Barãona não respondeu imediatamente.

- Terá de se haver com a gente do Norte - disse ainda o banqueiro.

- Para esses chego eu...

- Menos no Port Wine - aludiu o Ferreira por marotice.

- Sabe que não tenho pressa... A aguardente, estão a pagar-ma pelo preço que mais me convém. O mercado não me sai da mão, por muito que eles barafustem.

E quanto ao sulfato, é comigo. Se vier uma doença que lhes dizime as videiras, terão depois de vir ao Sul comprar vinho. E cá estarei para os receber como merecem... Sulfato é que eles não podem fazer dos xistos do Douro. Chega lá por conta-gotas e só aos que me interessa.

Parou junto de um freixo para se acolher à sombra e pôs-se a afagar o focinho do cavalo do Cunha Ferreira.

- Já agora... O que me sabe dizer de créditos concedidos a comerciantes de vinho do Porto?...

- Há por lá qualquer coisa no banco do Borges Alves - respondeu o banqueiro.

Um ranchho de mulheres passou por eles e saudou-os. Pela estrada ficou uma nuvem de poeira a indicar-lhes o rasto.

- Pois é altura de lhos suspender - disse **Barãona. - Precisamos de casas nossas em Gaia... De firmas que comprem algum vinho ao Douro, mas que consumam principalmente do nosso. O vinho daqui - e apontou a planície - é tão generoso como o deles. Os Ingleses, noutros tempos, já o fizeram de vinho da Bairrada.

O Dr. Cunha parecia não entender ainda.

- Mas...

- É simples, meu caro doutor. O Borges Alves obriga-os simplesmente a entrar com o dinheiro - esclareceu **Barãona mal-humorado e alteando a voz áspera.

- Sabe que há interesses regionais ligados ao banco...

- Sei tudo isso, doutor! Mas sei que tenho vinte mil pipas que vendo por três ou quatro vezes menos que qualquer labrosta de Gaia. E isto é que deve acabar... , E, antes que o outro retorquisse com mais reticências,

**Barãona esporeou o cavalo e partiu, a galope, em direcção

à ponte.

 

Ele atormentava-a sempre com ameaças de violência.

- Juro-te, Gracinda, pela alma da minha mãe! Ando fora de mim e faço asneira... Sou capaz de deitar fogo àquela casa...

Esgotava-se em palavras de ódio, num crescendo que parecia atingir a loucura - esbugalhava os olhos e contraía o rosto em tiques mais frenéticos; contorcia as mãos e agitava-se, como se nas veias lhe corresse fogo.

Ela esquivava-se com carícias para o acalmar.

- Porque não lhe dás o pó que eu comprei ?!... Gostas dele, não é?...

Ela sabia que as suas lágrimas o modificavam e debulhava-se em pranto; Francisco prosseguia ainda em ameaças, mas o tom da sua voz alterava-se; depois, por fim, chegava aquele silêncio que ela conhecia.

E Gracinda fizera-lhe, de novo, a promessa que a atormentava naquele momento.

- No dia em que os dois forem pela escritura a gente abala...

Ele passara a viver para essa ideia, quase feliz, sentindo que se aproximava o momento de a ter sempre a seu lado; e procurava-a, mal a sabia só, para lhe perguntar o que o marido dizia ou para lhe contar as suas conversas com o pai.

Cautelosa, ela procurava desviá-lo agora dessa preocupação.

- Não tenhas pressa, porque podem desconfiar. O António Francisco já disse uma vez que a minha sorte estava em lhe ter sido fiel... Se soubesse que o tinha enganado...

Ele sorria, envaidecido, só com a esperança de que o outro pudesse sofrer com essa dúvida; e queria pormenores.

- Que lhe respondeste?! Fala, anda; conta-me tudo. E Gracinda inventava diálogos.

Nalguns momentos sentia repugnância pelo papel que desempenhava em tudo aquilo, martirizada pelos remorsos de não ter coragem para repelir o cunhado da sua vida. Logo, porém, temia as consequências desse acto. "Ele ameaçava-a e seria capaz de procurar o marido. E ficariam todos contra ela... Teria de abalar sozinha por esse mundo, aos baldões da sorte." Então incitava-o contra o António Francisco, dizendo que, se não fora ela, já teriam ido às autoridades da Pesqueira por causa das terras.

- É um ganancioso! Só fala em dinheiro...

Mas logo que se encontrava junto do marido, como se ele pudesse adivinhar o que dissera ao amante, provocava-o contra os Teimas.

- Nunca vi gente tão agarrada como aquela. Se fossem outros, já aqui teriam vindo para te falar da escritura... Ainda me parece impossível como pude viver tanto tempo ao pé daquela gente.

Depois ficava com medo das suas insinuações - mas o marido insistia pela efectivação da escritura e o cunhado procurava-a para que o ajudasse a demover o pai.

Aproximava-se nova colheita, promissora como nenhuma outra dos últimos anos. As videiras vergavam-se, ajoujadas de cachos fartos, e na praça só se falava na próxima vindima. Todos repetiam deslumbrados o dizer dos mais entendidos - vai haver tanto vinho para aí como de água leva o Douro!

Ninguém se lembrava dos preços baixos nem da escusa em lhes receber a produção; nem uma voz se erguia para lembrar que o vinho do Sul continuava a entrar nos armazéns de Gaia e a vir mesmo, até ali, para certas quintas e comerciantes que cuidavam de aumentar proventos, sem olhar a meios.

Só Francisco Teimas não era feliz com aquela promessa - pensava que o pai poderia pagar a dívida ao outro e a escritura, portanto, já não se faria. Era necessário levar o velho a ir assiná-la antes da colheita, só para que o outro se afastasse de casa e a Gracinda pudesse abalar.

Nessa ansiedade procurara o afilhado, agora, que sabia levar a partida ganha.

- Tu desculpa a minha falta... Mas tenho andado às voltas com o velho e ele furta-se que nem lobisomem. Talvez na tua casa ele não seja capaz de se negar. Convida-o... Eu vou também para dar uma ajuda. E ali, apertado por todos, com certeza que a escritura se há-de fazer.

António Francisco agradecera-lhe o cuidado, desculpara-se intimamente dos maus pensamentos que fizera do padrinho e chegara a casa para incumbir a mulher daquela missão.

- Aproveita-se o dia de festa dos nossos anos de casados. Já combinei com o Francisco... A ideia foi dele...

Era em tudo isto que Gracinda pensava ao dirigir-se para casa do velho Teimas. "Se o Tio António quisesse assinar, estava perdida; o Francisco não se iria conformar com mais desculpas e obrigá-la-ia a partir. Se recusasse, faria disparate, com certeza - achava-o capaz de contar tudo ao marido ou fazer pior ainda. E apavorava-se com essa outra hipótese, que pretendia esmagar no fundo do pensamento.

"Aquelas eram as culpas que pagava pelo seu pecado; nem a Senhora do Socorro lhe valera. Se pudesse ir a S. Salvador do Mundo, talvez o fizesse condoer da sua sorte. Iria de rojo, desde o portão até lá arriba, sem almofadas nem saias nos joelhos, para deixar o seu sangue a marcar as pedras do caminho. Enganara todos e só o fizera para os salvar. Traíra o marido, mas ele abandonara-a pelo Brasil, esquecendo-se que era moça... Enganara o cunhado, mas ele não compreendia que o marido voltara e era preciso esquecê-la... Que arranjasse outra mulher!... Que fizesse outra vida!..."

A igreja estava aberta e foi repetir aos pés do altar aquelas mesmas razões. Fê-lo com fervor, de mãos erguidas, querendo mirrar-se de humildade na laje fria da nave.

Lá fora, o rapazio gritava em qualquer brincadeira. Esse ruído quebrava o fervor da sua promessa, lembrando-lhe tudo o que estava para além daquelas paredes, onde gostaria de poder ficar para sempre. A luz das velas iluminava a Virgem de uma claridade branda e trémula, como o seu corpo, percorrido por emoções que não se aquietavam. Aproximou-se mais ainda, de rastos, sem desviar os olhos da imagem, à espera de um sorriso de benevolência e de perdão.

Ouviu passos atrás de si; encolheu-se ainda mais, como se a sua presença naquela casa lhe pudesse denunciar os propósitos.

- Mãe Santíssima!...

Deixou correr as lágrimas e mostrou-as bem, para que a Virgem visse o seu arrependimento.

"Que queres que eu faça?... Eles não compreendem a minha falta... Toca-lhes o coração... Virei aqui todos os dias... Ou mata-me agora mesmo!..."

E deixou-se ficar até que o silêncio da rua se veio fundir com o da igreja e a mesma calma a penetrou.

Quando saiu, não hesitou mais. Subiu o quelho que levava a casa dos Teimas, abriu o portão e entrou. O velho estava sozinho, sentado à porta, no seu lugar predilecto, e parecia dormitar. Um sorriso indefinido pairava-lhe no rosto calmo - pensava na promissão da nova colheita e não o ensombravam preocupações. Era sempre diferente naquela época do ano; dava-se com ele o mesmo milagre de todos os homens do Douro: perante as cepas carregadas esqueciam angústias.

Gracinda parou, por um momento, à sua frente, talvez a pensar se deveria ter vindo, e o velho encarou-a com uma expressão de contrariedade. Ela sentiu-se embaraçada com o acolhimento, mas sentou-se à sua beira, tomando-lhe o braço, para lhe mostrar que não vinha por mal. António Teimas, porém, não alterou a frieza do seu rosto fechado.

- A Diana e o Espertezas? - indagou Gracinda quando reparou que os dois podengos não estavam no quinteiro.

- Andam por aí à solta...

E, adivinhando ao que ela ia, perguntou-lhe pelo marido.

- Cada vez mais forreta, Tio António. Ele quer que faça a escritura e, por mais que eu lhe diga, não se convence. Tanto andou que pôs o Francisco da sua banda; agora são os dois que querem.

O velho encarou-a com firmeza, como se pudesse penetrar no segredo que aquelas palavras lhe faziam pressentir.

- E então?!... Continua...

Ela parecia embaraçada, mas prosseguiu. - O Tio António jura-me que não diz nada aos dois?... Jura?!...

O velho limitou-se a acenar a cabeça.

- Acho que não deve ir fazer a escritura. Não queira!... A terra é sua e pode perdê-la...

- Mas eu devo ao António Francisco, mulher! - volveu o Teimas com malícia nos olhos. - Vou recusar-me?...

- Pois então, Tio António! - respondeu Gracinda com vivacidade. - Pague-lhe quando puder, mas não ponha lá o seu nome. Eu é que o tenho ouvido...

E, como lhe parecesse que o velho não se mostrava muito grato pelo seu aviso, exagerou em pormenores.

- Ele disse que ia a um bom doutor de leis e havia de fazer a escritura de tal maneira que vossemecê perdia as terras.

O velho acenava a cabeça, desconfiado, e mais trémulo ainda pela indignação daquele projecto do outro.

- Diz que não há por aqui melhores terras do que as "suas... É por isso mesmo que eu vim. Sei o amor que lhes tem e, embora ele seja meu marido, não se me acrescenta a arca com o mal alheio. Não queira, Ti António; ele desgraça-o.

O velho Teimas teve um sorriso amargo de ironia.

- Não fazia mal... Quando aquilo fosse dele e lá metesse dentro o primeiro pé, ficava logo com o outro agarrado ali à beira.

- Credo! oTi António não fazia uma coisa dessas!

- Enganas-te comigo, rapariga. O Francisco é meu filho, mas não tem lá dentro da alma um nico do meu sangue. Saiu-me destemperado... Eu gosto da terra... ele gosta de ti...

Gracinda tentou ainda esboçar um protesto, mas o olhar vivo do Teimas fulminou-a; e ouviu-o até ao fim, de cabeça baixa, amarfanhada pelos remorsos.

- Tu foste o dianho que entrou nesta casa. E eu só muito tarde o percebi. Mas se fosse eu quem gostasse de ti, tinhas dito ao teu homem que não me havias emprestado um real. Obrigava-te a isso!

E sacudiu-lhe o braço com vigor.

- Eu, quando agarro uma coisa, agarro-a, percebes?! E, se fosse preciso, estoirava-o. Mas como é da terra que eu gosto, é por ela que eu sou capaz de fazer tudo... Ouviste bem! ?...

Depois mudou de tom.

- Eu não sei o que aqui te trouxe... De qualquer maneira, agradeço-te. E vê se arrepias caminho; vê se tens juízo nessa cabeça. Acaba com ele...

- Ele disse que se matava - respondeu-lhe num gemido.

António Teimas calou-se embaraçado. Recordava-se da mulher e sabia que o filho era fraco como ela. A indecisão tomava-o agora; entendia que precisava de dar um conselho e sentia que necessitava também de os ouvir.

Abrira-se um grande silêncio entre os dois; Gracinda cortou-o para lhe sussurrar:

- O António Francisco mandou-me convidá-lo para a festa do casamento. Mas é para isso...

- Diz-lhe que vou - respondeu o velho sem a olhar. Lembrou-se, novamente, do que ela lhe dissera vendo o filho pendurado na trave grande da cozinha. E bradou-lhe num grito destemperado:

- Vai-te embora, depressa! Anda!...

 

Naqueles dias, a mornice do Grémio era sacudida não só por alguns forasteiros que vinham da Régua, a pretexto da Senhora do Socorro, como também por proprietários que desciam das quintas próximas, para conversarem nas perspectivas da vindima e dos preços, na mira de se orientarem no jogo do mercado de vinhos, quando não fechavam ali mesmo o seu negócio.

Depois dos habituais copiosos jantares, enquanto as senhoras se davam ao passeio e ao mexerico pelas ruas engalanadas e as raparigas gozavam o prazer dos olhares gulosos dos rapazolas, se ainda os não traziam atrelados à conversa e ao namorico, todos à espera da hora do fogo no rio Douro, os homens, já a morderem o seu charuto, espalhavam-se pelas salas desconfortáveis do clube, em cavaqueira ou à volta do pano verde, em jogadas fortes que depois corriam de boca em boca, sempre com aumentos de quem ouve um conto e lhe acrescenta um ponto.

O Grémio mantinha-se com o sacrifício de alguns comerciantes, advogados e médicos que do negócio de vinhos desfrutavam os seus melhores rendimentos e que entendiam como um dever patriótico aguentar-lhe as despesas da renda e do contínuo, só para lá meterem os ingleses quando eles subiam ao Douro e lhes perguntavam pelo clube.

O Inglês era o modelo para tudo, desde a bota ao colarinho, da casa de banho ao uísque. E mal ficava aos da Régua, com fumaças de capital do Port Wine, não terem salão para receberem as visitas, como sucedia aos do Alto Corgo. Os "bifes" gostavam de boas carraspanas e sempre era mais próprio tomarem-nas ali do que na casa de cada um, onde o exemplo para filhas e esposas não era muito de prezar.

Por isso, o Grémio estava aberto todas as noites, mais para os quatro eternos parceiros da manilha (o Gonçalves, especulador, o Dr. Sepúlveda, médico de cartão-de-visita, mas profissional da política e dos vinhos tratados; o Brandão da loja de mercador, um vicioso nas cartas e nas pechinchas, e para o Dr. Simão, um rapazola ainda que vivia dos rendimentos da família e chegara de Coimbra com o vício de se deitar pela madrugada) do que para os restantes sócios. Além daqueles, e sempre ali caído todas as noites, o Vitória farmacêutico, que passava o tempo sentado num canapé, a fumar cigarrilhas e a mirar os florões de gesso do tecto, ou a vasculhar todos os cantos das salas para embirrar com o contínuo e a mulher da limpeza, por mais isto e mais aquilo, pois era eterno nas direcções, onde tudo fazia, desde o passar das quotas à conferência de receitas e despesas, da acta bem caligrafada às propostas dos mil e um projectos que lhe passavam pela imaginação quando, no ripanso da botica, confeccionava hóstias e garrafadas.

Mas, quando chegavam os dias do Socorro, o Grémio animava-se, e poucos se lembravam de lhe chamar "casa assombrada" ou a "estalagem dos cinco reizinhos", como os republicanos designavam o velho casarão, quase abandonado, onde a talassada impunha as direcções.

Naquela noite lá estavam as cinco relíquias, alguns forasteiros, os proprietários que vinham das quintas para a palestra e até alguns dos que mordiscavam na existência do clube. O Meireles de Joanes não faltara com os do seu grupo, rival do outro do Dr. Sepúlveda, ambos sempre prontos a esgalharem-se pelos paladinos seus chefes, e só de acordo quando se tratava de dar tosquia aos de Alijó e da Pesqueira, que, por serem de Riba-corgo, não se submetiam ao domínio político dos da Régua. Por seu lado, o Dr. Moita e o Dr. Severino, cabeças do Partido Republicano, lá estavam firmes no seu canto, sempre de cutelo afiado para qualquer deslize dos demais, embora em grupo mais reduzido, porque a sua gente se contava entre pequenos lavradores e comerciantes, sempre rejeitados nas propostas que se submetiam à direcção, desvelada vigilante dos nomes que deveriam compor a melhor sociedade da terra. Entrar no Grémio era ascender a um escalão que todos ambicionavam e poucos atingiam, a menos que se fizessem bons cordeiros dos pastores da Régua. Que o dissesse o Arnaldinho Veiga, só ali admitido à terceira proposta, e mesmo assim porque o Roop o levara uma noite à má-cara e fora áspero para o Dr. Sepúlveda, chegando a alusões muito directas quanto a compras de vinhos, se ele não fizesse aquele gosto ao seu comissário. Dera para ali ao Roop; mas a verdade é que, se não fora ele, o Veiga continuaria à porta dos bombeiros a passar o seu bocado de noite para ajudar às digestões difíceis.

Prosseguindo no seu objectivo de semear amizades por toda a região, Albano Freitas dispusera-se a ir à festa do Socorro, depois de instado pelo Gonçalves, que continuava a servir-se do seu lugar na Companhia Velha para especulações privadas. Nisso ajudava-o o Pinto da Fonseca, director da companhia e rata sabida em negócios, dando-lhe orientação às transacções que ambos faziam sem escritura no notário.

Logo na estação o Dr. Albaninho achara o Gonçalves mais exuberante que de costume, além do esmero no fato e um espalhafatoso anel de pedras vermelhas e brancas. Só mais tarde, antes do jantar, o outro entrou em confidências que o esclareceram da transformação. Toda a burguesada da Régua perdera a cabeça com Miss Dora, uma loura museulada que, no circo armado nas traseiras da Câmara Municipal, voava entre dois trapézios com uns gritinhos e uma perícia de entontecerem um santo. Era uma nórdica, talvez; sueca ou norueguesa, afirmavam os peritos em matéria de tipos. A verdade é que, se era filha de regiões frias, pusera toda a vila num vulcão, havendo comerciante e lavrador que tirara assinatura para a admirar, recolhendo na sua cadeira os olhares promissores que ela esbanjava pela assistência.

O Gonçalves perdera a sobriedade e o rigor nos gastos. Celibatário, entendia-se em melhor situação do que os casados para se dar a certas liberdades que os outros tinham de conter; endinheirado, sentia-se em vantagem quanto aos "galões" que também não faltavam à corte de Miss Dora.

Albano Freitas deu-lhe os seus conselhos, contando a propósito algumas aventuras no Porto que pertenciam a outros e de que se apossou naquela noite. Gonçalves embasbacava-se e ficava mais excitado ainda, disposto - nem ele sabia até onde - a ganhar com a trapezista os seus galões de grande amoroso. O Dr. Albaninho, depois de lhe satisfazer a mania, achava que era a altura de aproveitar o que o Gonçalves lhe podia oferecer. E insistia na ida ao Grémio, enquanto o outro fingia não o entender e só falava no circo - que o doutor ia gostar, com certeza; que no Porto talvez não aparecesse um número daqueles; que iriam depois ao clube cear e que então lhe apresentaria alguns dos seus amigos.

O Freitas, tanto aparafusou na maneira de levar a sua por diante que confidenciou ao Gonçalves "não haver conveniência em que ela os visse juntos, pois ele tivera um escandalozito com uma companheira de Miss Dora e esse facto lhe podia prejudicar os propósitos."oGonçalves agradeceu sensibilizado e quis aproveitar-se da experiência do outro. "Se ela era fácil e que lhe aconselhava a oferecer." Ao Dr. Albaninho ocorreu Margarida Gautier e falou em camélias, sem saber que ia arranjar outra preocupação ao especulador.

- Mas onde vou eu arranjar camélias, doutor? Se fosse no Porto... ou em Lisboa... Nestas terreolas nem gentil se pode ser.

Albano Freitas acabou por lembrar uma jóia. Gonçalves sentiu um calafrio, pensou no desfalque da sua conta de depósitos, mas não enjeitou a sugestão.

O jantar estava no fim. Maria Dolorosa servia-os, a pensar no fogo-de-artifício e na festa do jardim, sem reparar que o amo pouco se incomodava agora com a sua presença.

-oSr. Doutor manda e eu estou aqui para o ajudar no que for preciso; mas parece-me que faz mal em se meter em comícios. Deixe isso aos lavradores, que já ninguém ouve - disse o especulador, seguindo o exemplo do Freitas, que se levantara. - São uma espécie de carpideiras a chorarem pelo Douro...

- É preciso ajudá-los...

- No fim, o que querem é amanhar-se. Falam do povo... e que lhes importa o povo? Tanto como a nós dois...

O Freitas entendeu que era o momento de intervir.

- Ponha as coisas no seu devido lugar, meu amigo. O povo importa-me e a lavoura também.

- Ambos arrenegam o comércio, dizendo que são os de Gaia que estrangulam a região, lá porque recebemos vinhos do Sul.

Pela janela aberta entrava uma lufada de ar quente.

- Que eu não gosto da gente do Sul, Dr. Doutor - prosseguiu o Gonçalves. - Lá fazem e desmancham as leis, e nós, que somos pela ordem, aqui nos aguentamos com o povo, que assalta estações e armazéns, nos perde o respeito...

Mas Miss Dora não lhe saía do pensamento, e olhou o relógio, mais uma vez, para tentar que o Freitas acabasse com uma conversa que não lhe interessava. O outro, por seu lado, fingia não o entender.

Começaram, por fim, a descer a escada. O fogacho de luz de um foguetão subiu na noite e desfez-se em estrelas de muitas cores.

O Gonçalves já não o ouvia, agora, que o clarim do circo vibrava mais alto que o barulho dos romeiros. Tomou o braço do Freitas e apressou o passo até ao Grémio.

Na sala das torturas, como chamavam ao gabinete de jogo, não havia um lugar vago e o Dr. Sepúlveda estava ausente. Perguntado, o contínuo indicou o salão maior, cujas janelas davam para a rua. Quando o Gonçalves entrou com Albano Freitas, empertigado e de monóculo, cochichou-se por todos os grupos. "Quem era, quem não era e ao que viria." Do grupo do Meireles, um lavrador esclareceu que era o filho do Freitas Velho; logo veio o remoque: que "só lhe faltava vir de coche para recordar os tempos em que o pai tinha taberna".

Depois de fazer as apresentações o Gonçalves esca-puliu-e, com uma chuva de gracejos a propósito da trapezista, o que de resto agradou ao seu orgulho. "Onde vou eu arranjar as camélias?...", pensava pelo caminho. "Lá a jóia, parece-me pesado logo de entrada".

 

Sebastião Borges Alves entrara no seu gabinete da direcção do banco com o mesmo ar jovial dos outros dias, mas quem o conhecesse mais de perto repararia na ruga acentuada da sua testa alta, sinal de qualquer preocupação. Voltara de Lisboa na noite anterior, chamara, apressado, o seu adjunto na administração bancária, para tomarem resoluções de acordo com as entrevistas que tivera na capital, e não almejara um sono reparador.

Estava inquieto; um leve tremor sacudia-lhe as mãos, sempre firmes, e recomendou ao contínuo que não desejava ser incomodado por ninguém.

- Diga que não cheguei ainda. Tocarei a campainha para o avisar.

- Nem mesmo o Sr. Pinto?...

- Eu disse ninguém!

E enfiara pela porta do gabinete, atirando com a pasta sobre um dos maples; sentara-se depois no outro, de pernas estendidas, em abandono, premindo a testa com a mão esquerda.

O director do Banco Nacional, de que o seu era um dos ramos subsidiários, chamara-o para uma troca de impressões. E vinha desiludido com o que ouvira, embora tivesse acentuado com firmeza o seu desacordo. Falara-se de negócios dos tabacos, de tecidos e de seguros; a linha de conduta era normal e nada tivera a objectar. Mas falara-se de vinhos, de empréstimos hipotecários e da próxima campanha de vendas. E aí a conversa azedara-se.

Bem entendera que por detrás do outro estavam o **Barãona e o Zé Maria dos Santos, potentados dos vinhos do Sul, que tentavam desbancar o exclusivo dos vinhos licorosos do Douro no mercado londrino.

Sebastião Borges Alves tentara chamar o outro ao bom caminho.

"Vamos, impiedosamente, esmagar a lavoura do Norte nesta guerra de interesses alheios?!... Guerra que acabará num entendimento?!... Antes disso, porém, o Douro estará arruinado!... E já mediu bem o que o facto poderá acarretar?!...

"Tudo foi previsto", respondera o outro com a mesma frieza.

"Mas acha que eu deva trair os que confiaram no banco que dirijo?!... Acha que eu posso esmagar aqueles que nos entregaram os seus depósitos?!... Os lavradores e os comerciantes..."

Não obtivera resposta. A calma do outro exacerbara-o.

"Recuso-me a atraiçoar o Douro!" dissera com violência.

"Meu caro, Borges Alves", retorquira o banqueiro de Lisboa com benevolência, "aqui não podemos importar-nos com a geografia. A resolução é esta e há que cumpri-la, não é assim?!... O Norte e o Sul fazem parte do mesmo país..."

"Ao serviço de outros interesses...", respondera ainda com viva indignação.

"Que são também os nossos, não esqueça". E para o demover, mais por atender à amizade que os ligava, o outro prometera o seu "amparo ao Douro, logo que a luta cessasse".

Tivera de aceder - era preciso cumprir.

"Reagir como?!... Desafiá-los?!... Seria esmigalhado na batalha! Se o banco fosse independente, pediria ajuda aos ingleses da Feitoria. Mas, e depois?!... Depois, quando eles se consertassem, o seu banco seria sacrificado." Lembrou-se de um velho rifão: "Entre marido e mulher não metas a colher." Era um caso idêntico, bem o percebia.

Fez soar a campainha, ordenando que o adjunto entrasse.

-Bom dia, Pinto! Sente-se...

E fora direito ao fim.

- Chame os Freitas e os da Vinícola. Comunique-lhes que teremos de suspender os créditos e que é necessário que façam entregas de trinta por cento, de três em três meses. Não dê mais explicações.

 

- É hoje que vamos a casa do António Francisco - disse-lhe o filho mal entrou.

- Pois é - respondeu o velho.

Depois tomou-lhe o braço e levou-o até ao quarto; deu volta à chave e sentou-se na borda da cama.

- Anda cá, Francisco. Temos de conversar muito antes de lá deitarmos.

E acomodou com as mãos trémulas o lugar ao seu lado. Passou-lhe depois o braço sobre o ombro, aconchegando-o ao peito, e olhou-o com enlevo; Francisco fitava-o, admirado.

- Tu nunca me percebeste. E essa cara não me engana... Julgaste-me sempre duro que nem uma fraga... Que fui o culpado da morte da tua mãe e de muitas outras coisas que têm sucedido na nossa vida.

Ante a expressão de espanto do filho, António Teimas sorriu-lhe com amargura.

- Não estranhes agora tudo o que te disser. Há gente assim como eu... Passa quase a vida inteira sem dizer uma palavra até que um dia desabafa. E todos se admiram de aquela pessoa falar. Mas eu só falo quando é preciso... E isso agora é mais necessário do que nunca. Só tenho pena de não me chegar a língua para te dizer tudo o que sinto...

Fez uma curta pausa, durante a qual passou os dedos pela testa, como se quisesse arrumar os pensamentos que lhe enchiam o cérebro.

- Ninguém nesta casa chorou mais do que eu a morte da tua mãe. Era tão boa companheira que nunca mais a substituí por outra; nem às escondidas... E eu era ainda um rapaz quando ela fez aquilo. Foi em ti que eu pus, então, todo o amor que lhe tinha. É verdade que acima dela eu coloquei a terra; mas a terra é o que fica sempre e a gente deve sacrificar-se pelas coisas que ficam sempre... Aquilo que vem dos outros e vai para os outros... Eu não sei se tu entendes isto, Francisco! Às vezes as coisas mais simples não se percebem: parecem fechadas como a noite.

António Teimas reparou no acabrunhamento do filho.

- Não te estou a ralhar. Hoje percebo que fui também o culpado do muito que sucedeu entre os dois. Nunca o fiz por mal, acredita; mas esqueci-me algumas vezes que já não eras um crianço para te falar áspero. Sempre que o fiz era para te chamar ao bom caminho, esquecendo que cada homem gosta de escolher o seu, tomá-lo por si e chegar ao cabo. Mas agora tu estás numa encruzilhada e tens de escolher. Não te digo qual será o melhor, porque só é bom aquele que o nosso coração escolhe. Pensa bem antes de caminhares; mas quando caminhares vai com força.

A quietude do corpo parecia não lhe deixar dizer tudo o que sentia; e levantou-se para prosseguir.

- Vamos ao que mais interessa; tinha muito ainda para te dizer, mas isto é o que me preocupa e não sou capaz de me desviar. Não desmintas o que te vou dizer, porque não vale a pena.

Francisco deixou tombar a cabeça sobre o peito; o pai voltou a erguer-lha e fixou-lhe os olhos.

- Foste amante da Gracinda. Já gostavas dela mesmo quando a tua mulher era viva; percebi-o muito antes de ti. Mal ela aparecia, eras logo outro - falavas mais, galhofavas... E os teus olhos brilhavam como duas estrelas... Eras um homem diferente para todos, até para a tua mulher...

- Não, pai - protestou Francisco sem convicção. - Não te enganes. Nesta altura é preciso que tenhas

coragem para medires bem a tua vida.

Aproximou-se do filho e continuou num segredo:

- Foram amantes e ela emprestou-te dinheiro. Tu esqueceste tudo o mais: as obrigações, o trabalho, as terras... Era ela e só ela. E mais assim ainda, porque havia o marido e tu tinhas medo que ele ta levasse um dia. Ele chegou...

No rosto angustiado de Francisco transpareciam todas as recordações que o velho invocava com as suas palavras.

- Que pensas fazer agora?!...

Francisco ergueu-se também, já incapaz de se dominar, passou junto do pai sem o olhar e foi até à janela. A noite começava a tapar os cerros com o seu mantéu.

O velho não insistiu na pergunta, mas prosseguiu ainda, porque sentira não haver tocado no fundo da ferida. Era-lhe doloroso continuar; entendia, porém, que só assim poderia salvar o filho.

- Ele quer a escritura da dívida e tu falaste-lhe também para me convencerem.

Francisco voltou-se aturdido, de braços abertos, num impulso instintivo que depois refreou.

- Quem lhe disse? - gritou, por fim.

- Era então verdade! -respondeu António Teimas numa voz que parecia reprimir soluços. - Até tu queres dar conta daquilo que eu fiz e tu ajudaste também... Daquilo que não nos pertence, porque é dos teus filhos... Não me devia já importar. Mas não deixo! - clamou com violência. - Não deixo que roubes os teus filhos e andes enganado!

- Quem lhe disse, pai? - insistiu Francisco num frenesi.

O velho percebeu a dúvida que o atormentava e obrigou-o a sentar-se, para lhe barrar o caminho da porta.

- Não tens remorsos de me atraiçoar?...

- Sim, pai, mas quem lhe disse? Fale, Diga-me!...

- Talvez quem te convenceu...

E em voz baixa, como se falasse para si, o velho prosseguiu:

-"E porquê?!... Vá lá a gente entender os outros.

- Diga tudo, pai! - gritou Francisco numa súplica desesperada.

- Tu já adivinhaste, filho. É triste para ti, eu bem compreendo; mas ao menos desenganas-te. Dói, mas faz bem...

Foi depois até à janela e, cerrando os maxilares com dureza, defrontou a sombra das montanhas já vencidas pela noite. "Aquela terra exigia tudo para se entregar. Suor, sacrifícios, fome... E ainda por cima o coração. Fora assim com ele; era agora o mesmo com o filho... Seria o mesmo com os netos?!... Tinha esperança que um dia... Mas esperança em quê?! Era preciso que os homens mudassem. E para isso... que seria preciso mudar primeiro?!..."

Aquele discorrer de pensamentos dava-lhe coragem. E sorriu orgulhoso para a noite, como se ela pudesse entender o desafio da sua troca.

- Pai!... Eu vou lá - disse Francisco, sentando-se na cama. - Vou lá e hei-de...

- Não vais, não - respondeu o velho, abraçando-o. - A dívida pertence-me...

¦-Mas fui eu que a fiz. E aquela maldita... vai pagar-mas. Hei-de dizer tudo ao António Francisco... Ou mato-a ali mesmo!

Aquela ira tornava-se-lhe dolorosa.

- Pensa bem - aconselhou António Teimas com benevolência. - Ela deu-te tudo o que te podia dar e mais do que devia. Mas agora... agora tem medo do que fez e defende-se. Está como um lobo cercado por todas as bandas e que só quer fugir; mas, como lhe não deixam uma saída livre, acaba por atacar na esperança de não morrer...

Francisco compreendia aquelas razões; não queria, porém, aceitá-las. E percorria o quarto em passadas largas, agitando os braços sem nexo.

- Deixa-a lá!... Faz por esquecê-la - insistiu o pai, perseguindo-o. - É triste, eu sei. Quando a tua mãe me faltou, julguei que devia acabar também.

E a sua voz aqueceu-se.

- Mas a vida tem mais força do que os desgostos. É bom sarar as feridas, acredita, e ir por diante.

- Ela enganou-me, pai. Jurou que abalava comigo quando vocês fossem fazer a escritura.

- E não te envergonhas de o confessar? - ciciou o velho num lamento.

Francisco queria-o afastar do seu caminho, mas o pai não cedia. Então redobrou de violência, com gritos abafados que mais pareciam uivos.

- Hei-de dizer tudo à frente dele. E depois suceda o que suceder...

Num curto relance, mediu a janela aberta, deitou-lhe as mãos ao parapeito e deixou-se escorregar pela parede baixa que dava para um vinhedo. O velho gritou-lhe ainda, mas só conseguiu ouvir-lhe o ruído dos socos nas trevas da noite.

Fugia à luz dos cortelhos, como um animal amaldiçoado que só pudesse viver na escuridão. Os olhos iam cerrados por uma venda de sangue que não lhe deixasse ver o caminho que pisava. Tropeçando nos rebos dos atalhos, caía e levantava-se logo, cada vez mais excitado; rasgava-se nos silvedos das sebes e sentia prazer em ferir-se. Despedaçava no peito os gritos que lhe apetecia gritar e aquela certeza insistia aos seus ouvidos.

"É ela que te não quer! E atraiçoou-te... Para que acreditaste nas suas promessas? Quando lhe falavas, ela ria-se de ti... Quando lhe tocavas, fazias-lhe nojo... E atraiçoou-te... Atraiçoou-te!"

Galgou a uma vinha e emaranhou-se nos braços das videiras, incapaz de as evitar. Atirava com o corpo para diante, raivoso e trémulo, desejando ter forças para arrastar consigo tudo o que se lhe opunha. Ia cego, mas sabia por onde se encaminhava, embora seguisse por fora da aldeia - por aquele mesmo quelho que tomava quando a ia visitar à noite.

"E se o pai lá chegasse primeiro?!"

Esse pensamento fê-lo correr mais. Rugia pragas e insultos, como se os ramos das videiras fossem braços que lhe quisessem barrar o caminho; e desembaraçava-se deles com violência, quebrando-os com prazer nas mãos dormentes. "Era por causa daquilo que a sua vida não tinha esperança." Gostaria de poder deter-se para arrasar todas as videiras por onde passava. "Perdes a mulher e perdes a terra. Os teus filhos vão ficar por aí como os cães vadios."

Só lhe faltava um muro e lá mais adiante ficava a oliveira, junto da qual se tinham encontrado uma noite. Adormecera ali no seu regaço e ela prometera-lhe tudo - jurara-lhe que nunca seria de outro...

"E enganara-o; rira-se dele..."

Por momentos, isso parecia-lhe impossível, porque aqueles olhos não o podiam trair assim e os carinhos das suas mãos não seriam capazes de mentir com tamanha perversidade. Lembrava-se dos seus encontros e sentia que lhe faziam falta.

"E se o pai lhe tivesse mentido?... Mas quem lhe podia dizer o que se passara só entre os dois?..."

A porta lá estava do outro lado do córrego. Por cima da sua cabeça os ramos da oliveira pareciam oferecer-lhe os braços para fazer o que um dia lhe dissera: "Venho aqui defronte e penduro-me, para que sempre te lembres de mim. Nunca mais serás feliz!" Por um momento essa ideia voltou a exultá-lo. Viu-se a balouçar na corda, com um olhar espantado que amaldiçoaria aquela casa que ficava defronte e onde os dois o esperavam para fazer a sua ruína e a dos filhos. "Tinha a certeza que se lembrariam sempre dele quando ali chegassem."

Mas confrangia-o supor que ela tivesse conhecimento de tudo e pudesse participar naquela intriga. Recordava-se dos seus afagos, daquela boca esfaimada de beijos, daquele corpo trémulo que parecia quebrar-se nas suas mãos, e não podia acreditar que só houvesse mentira nos sinais daquele amor. "Precisava de a ver mais uma vez, ao menos, para lhe ler toda a verdade nos olhos."

Galgou, então, o muro de um salto, atravessou o carreiro e atirou-se sobre a porta com toda a força dos ombros.

- Abram! - gritou.

"Para que lhe contara o pai a verdade?!", pensou com desespero.

Percebia que era preciso dar a volta ao trinco, mas sentia-se incapaz de o procurar.

- Abram!...

"Eles estavam do outro lado e chegara o fim de tudo. Nunca mais..."

A porta sacudiu-se com outro arranco do seu corpo.

- Quem é?!... -perguntou a voz áspera do afilhado.

- Eu!

Um rasgão de luz bateu-lhe nos olhos e deixou-o aturdido; deu dois passos para dentro de casa, a cambalear, e estacou depois, alçando a cabeça num rompante de violência.

À sua frente, o António Francisco parecia sorrir. Junto da mesa, já posta para o jantar da festa, a Gracinda olhava-o, lívida como no dia em que chegara a notícia do Brasil. Quis gritar-lhe todo o rancor que por ela sentia, denunciá-la à frente do marido, martirizá-la... "Para que lhe falara o pai naquilo?!..."

Mas a boca tornara-se incapaz de articular uma palavra.

- Sucedeu alguma coisa, Francisco? - indagou o afilhado, vendo-lhe a alteração do rosto.

"Porque não trouxera a espingarda?!" Voltou-se de frente para o marido da amante e só ele ficou na sua presença com aquele sorriso de troça, os olhos salientes e empapados, o tronco largo e pendido, como um obstáculo à sua felicidade. Deu dois passos para o outro, ainda hesitante, mas, quando se viu capaz de o atingir, atirou-se sobre ele, levando nas mãos toda a violência da sua vingança.

 

                                         MALDIÇÃO

 

QUANDO o comboio chegou e os viu apear, Silva Costa não conseguiu vencer o desagrado que lhe causava a vinda inesperada de D. Afonso. Titubeou um cumprimento confuso, perguntando por D. Carlos e D. Constança, e descarregou a ira no criado que o acompanhava para transportar as malas dos amos. Deixou-os dirigirem-se sozinhos para a carripana, que ficara à sombra de uma árvore, pretextamente cuidados com as bagagens, mas efectivamente a procurar reprimir aquele mau humor despropositado, segundo ele próprio ajuizara depois.

Foi ainda a uma loja para recomendar urgência numa encomenda de sardinhas e trica que fizera para o pessoal da roga; quando voltou para junto do carro já aparentava maior serenidade. A um sinal seu, o cocheiro fez estalar o chicote e a parelha partiu num trote curto; pelo largo iam as habituais carreiras e algazarra no assalto às diligências.

Até ao portão das Carvalhas nenhum deles falara ainda, embora o administrador procurasse um pretexto para se convencer de que os seus primeiros receios estavam esquecidos. Foi o fidalgo, porém, quem rompeu o silêncio, indagando do estado de maturação e da quantidade das uvas.

- O melhor possível, Sr. D. Fernando. Todos são do parecer que há já muitos anos não aparece uma colheita tão boa.

- Ainda bem - retorquiu o fidalgo, satisfeito.

  1. Afonso parecia distraído com a paisagem, mas recordava.

- O Roop esteve aí há uma semana e disse que o vinho deste ano deve ser de óptima qualidade. Descaiu-se com essa...

- É porque já tinha a garantia do preço combinado comigo.

- Ah, Vossa Senhoria vendeu-lhe?... Julguei que entregasse ao Dr. Freitas.

  1. Fernando esboçou um gesto de evasiva.

- Não; não podia continuar à sua mercê. Aproveita-se duma situação criada para abusar...

E, compondo as lunetas, encarou o administrador num franzir de sobrancelhas.

- É agora um dos seus comissários, não é verdade? Silva Costa sentiu-se corar com o disparo da pergunta e titubeou uma satisfação.

- Ignorava qualquer mal-entendido com Vossa Senhoria. Se entender que me devo escusar...

-De modo algum; somos amigos, como sabe.

Silva Costa ciciou um "Muito obrigado" contrafeito, recolhendo-se num mutismo de amuo, a pensar nos ordenados que o fidalgo lhe devia. "Como iria agora receber o dinheiro com a venda feita ao Roop? Se soubesse, teria combinado qualquer plataforma com o inglês."

Os cavalos seguiam, pachorrentos, pela ladeira, deixando atrás do carro uma nuvem de poeira. Um calor sufocante começava a sentir-se, como se caminhassem através dos vinhedos em chamas.

- A afilhada? - perguntou D. Fernando para contemporizar.

- Pouco bem...

  1. Afonso saiu da abstracção em que mergulhara e a Silva Costa não agradou aquele sinal de interesse.

- O médico diz que são nervos... Esteve um tempo bem e depois voltou à mesma.

- E nem o piano a distrai ?... - indagou D. Afonso. - A música acalma...

O administrador retraiu-se, evitando responder como lhe apetecia. O fidalgo percebeu-lhe a frieza para com o filho e interveio.

- Deve arranjar-lhe uns passeios. Porque não vão até ao Porto depois das vindimas?

- Vossa Senhoria sabe muito bem o trabalho que tudo isto me dá. Se me afasto, umas horas que seja, encontro logo asneira. Ela que tenha paciência como eu - sublinhou com azedume.

- Lembre-se que Helena é ainda uma rapariga. Silva Costa sentiu a referência como um remoque à diferença de idades.

- As mulheres casadas não têm mocidade, Sr. D. Fernando.

- Isso é o que parece aos maridos - respondeu o fidalgo a sorrir, enquanto se punha de pé para espreitar as primeiras valeiras de uma vinha que pertencia à Casa Grande.

-oSilva Costa esquece que vivemos numa era de liberdade - juntou D. Afonso, mais comunicativo. - Estamos no século da mulher e das artes.

-Ora. Sr. D. Afonso!... Cada vez há mais pouca- vergonha... A gente de hoje não sabe o que são deveres nem responsabilidades.

O fidalgo interrompeu-o com uma pergunta acerca da qualidade das uvas que ajoujavam as videiras daquela nesga de montanha.

- Tinta Roriz, Sr. D. Fernando. Estão uma lindeza. O pior é a nega da Inglaterra e da França em comprarem o nosso vinho. O Governo devia mandar destruir mais de metade das vinhas...

- E de que vivia esta gente? - interveio o filho do fidalgo.

- Ora, de que vivia!... Nunca ninguém morreu de fome, Sr. D. Afonso.

O carro entrava na aldeia e já se sentia a azáfama da vindima próxima. Na praça só havia alguns velhos inválidos e um grupo de rapazes que jogava com o arco de uma pipa. À porta das adegas lavavam vasilhame, a canecos de água, deixando nas ruelas o cheiro acre da madeira embebida em vinho. Baldeavam-se lagares e preparavam-se cubas, enquanto das aldeias serranas partiam as rogas a caminho da Terra Quente, em descantes e bailaricos que encurtavam a viagem.

Os grupos erguiam-se de chapéu na mão para saudar os fidalgos e ficavam-se a cochichar má-língua.

Daqui por mais tempo vai o D. Fernando engatado aos varais a puxar pelo Silva Costa." "Tanto não digo; mas isentado na boleia como criado..." "Eles também julgam que o vinho há-de dar para tudo... Fidalgos ao resto!" "E lá vem o filho que toca música. Se o Fontelas fosse da minha maroa..."

Nisto mesmo ia a pensar o Silva Costa. E, assim que chegaram à quinta, pediu ao fidalgo para o atender num instante.

- O Sr. D. Fernando desculpe, mas acho que não devia ter trazido o menino.

A expressão de espanto do outro não o acobardou.

- Esta gente sabe o que se passou com a rapariga e pode ser o diabo. Nas lagaradas anda tudo para aí avinhado e pode alguém perder-lhe o respeito... Tanto mais que o pai da cachopa já por aí está...

- Deixe isso comigo, Silva Costa - respondeu-lhe com frieza. - As suas culpas, de resto, não são menores. Mas não vale a pena carpir mágoas passadas. Foi você mesmo quem me disse das intenções da rapariga quando se foi meter no quarto de D. Afonso.

E como o administrador permanecesse firme à sua frente, num sinal de desrespeito que nunca lhe vira, admoestou-o com hostilidade.

- Começo a estranhá-lo, Silva Costa; começo a estranhá-lo. Desagrada-lhe ser meu empregado?!...

-Oh, Sr. D. Fernando!...

- Sei que lhe devo ordenados, mas o primeiro dinheiro do Roop será para si, entende? Silva Costa gaguejava, vexado.

- Vossa Senhoria tomou a mal... Eu seria incapaz...

Abalou depois pelas escadas, furioso, por não ter coragem para rebentar com o fidalgo, abandonando a quinta mesmo àquela hora; mas jurou resolver o assunto no fim da vindima ou vexá-lo também, logo que tivesse oportunidade. "Estes monárquicos de uma figa."

E entrou no quarto de Helena que nem um furacão.

-O D. Afonso veio com o pai. Não quero que toques piano, ouviste?... Nem desejo que vás à mesa.

Abriu a janela e passeou agitado, a esfregar as mãos. Helena sorria da sua indignação.

- O padrinho pode achar estranho - disse ainda para o atormentar.

- Que tem ele com a nossa vida?... Achas que somos seus escravos?... Esse tempo já passou...

Silva Costa aproximou-se do cadeirão, onde a mulher permanecia com as mãos abandonadas no regaço, e agarrou-lhas com violência.

- Se quiseres, suplico-te. Não apareças enquanto eles aqui estiverem.

- E se eu sentir necessidade de conviver?

O olhar de Helena tinha um brilho de estranha vivacidade.

- Pois sou eu que to exijo! -gritou desvairado.

 

Serei incapaz de levar a cabo qualquer resolução. Já não tenho ilusões comigo; não vale a pena.

Após aquela reacção em que o senti abalado, devia persistir até ao aniquilamento do seu orgulho. Ele atreveu-se a proibir-me que saísse do quarto, insinuando... Se eu fosse capaz, seria bom! Mas depois de me opor, -quase lhe pedi perdão. Perdão de quê?... Enjoa-me esta cobardia.

Ofendeu o meu brio e eu não posso reagir. Há uma lei, mas a lei não chega a esta terra maldita, porque sou prisioneira dele e de mim mesma. As leis não têm sentido quando nos negam o meio de as usarmos. Sei que, se falar ao padre Augusto, ele renegará a minha ideia. Virá com os seus conselhos de resignação, prometendo-me o reino dos Céus. Talvez o Dr. Pimenta...

Como se receasse que alguém pudesse descobrir aquela confissão, Helena arrancou a folha de papel, acendeu a lamparina e queimou-a. No seu rosto pálido e inquieto espalhou-se a claridade duma esperança. Não precisava agora do seu diário, porque o pensamento lhe era mais fiel e não lhe recusava os sonhos que a sua mão trémula não era capaz de confiar a si própria.

O piano ouviu-se e Helena agitou-se, como se o mundo tivesse parado de emoção ao recolher aquela música tocada para lhe recordar o passado. Abriu as vidraças, deixando-se afagar pela brisa da noite, que trazia consigo o perfume das montanhas e o matraqueio do som cavo do bombo de uma roga.

Mas o som do bombo avantajava-se na noite, e já se distinguiam as vozes roucas das raparigas. O caseiro correu a abrir o portão; a -filharada saiu do cortelho, em alarido, enquanto a criadagem aparecia para ver o rancho.

Helena ficou ainda a tentar distinguir o som do piano no meio daquele bulício. Não tardou muito, porém, que uma golfada de gente maltrapilha atravessasse a rua do jardim, encaminhando-se para defronte das janelas, enquanto os mais extenuados se atiravam sobre a palha do cortelho, com as pernas inchadas e trôpegas das léguas palmilhadas.

A trempe de tocadores não cessava aquela música bárbara e triste. Um homem adiantou-se, de dedos metidos nas cavas do colete, e esganiçou a garganta.

Vem de longe, já chegou, A roga pra vindimar...

As raparigas davam-se os braços, marcando com um balouçar de corpos o ritmo da melopeia.

Vem cansada do caminho E agora vai-se deitar...

Mas um rapazola soltou presto para a ilharga do cantador, com uma folha de videira metida no chapéu desabado, e acrescentou-lhe as suas razões.

Agora vai-se deitar,

Mas inda antes queria ver...

Sorriam os tocadores e as raparigas da intervenção do moço, improvisador de fama entre eles.

Se o Sr. Silva lhe mandava Um almude de beber...

A maçaneta do bombo rugiu mais forte na pele de cabra e todo o rancho repetiu:

Se o Sr. Silvinha mandava Um almude de beber...

Ouviram-se palmas e gritos. Todos ficaram depois como um rebanho de mendigos a olhar as janelas iluminadas, até que o Silva Costa apareceu.

- Calem-se agora! Está cá o fidalgo e não quer barulheiras. O caseiro já lá vai com a bebida...

Então o rancho encaminhou-se para o cortelho e ficou à espera, em silêncio. De racha na mão, o rogador mandava entrar os mais tardios e recomendava às moças que se chegassem para o lado que lhes pertencia.

Nas trevas, porém, os olhos cansados dos rapazes ainda as procuravam.

 

A luta com o António Francisco parecia tê-lo chamado à realidade, julgara o pai quando o vira indiferente, a vaguear pela casa, sem mais alusões à Gracinda e sem dar mostras de querer tirar vingança do outro. O velho tinha a impressão de que a cura se operara, evitando, por isso, em aludir a qualquer coisa que o pudesse excitar. Achava-o taciturno, reparava no seu olhar ausente, mas pressentia que dentro daquele isolamento o filho estava a convencer-se da necessidade de achar novo rumo para a sua vida.

Falava-lhe de vez em quando das vinhas, só para o experimentar, atento às mais pequenas reacções do seu rosto, no grato desejo de lhe ver os olhos iluminarem-se por outro interesse que não fosse o da cunhada. Ele sacudia a cabeça, esboçava um gesto vago e continuava absorto no mesmo amolecimento de energias, abalando da sua presença, como se a solidão fosse o seu mundo.

E naquele mundo privado de Francisco Teimas vivia-se num tumulto permanente de cóleras submetidas e de tristezas, de sobressaltos e de angústias, de temores e de heroísmos. Consumia-se a pensar, querendo resistir ainda àquele desforço violento que lhe apetecia fazer, perante a frustração dos seus desejos mais íntimos.

Ficava em casa todo o dia, a ausentar-se dos outros, como se a presença de alguém o desviasse do seu único propósito. Fechava-se no quarto, de janela cerrada, ou descia à cozinha para a percorrer sem sentido, em passos frouxos, como se fosse um despojo a vogar num lago calmo. Pela noite, quando o pai e os filhos adormeciam, saía para a rua e consumia-se em marchas longas e apressadas, sempre em direcção oposta à casa da Gracinda - e o seu espírito estava ali mais do que nunca, perdido em ilusões de memória, a desfibrar-se em cenas e diálogos imaginários, a esgotar-se numa batalha que trazia consigo, naqueles dois homens que se afrontavam sem tréguas- um que pedia vingança pronta, outro que procurava resistir e conformar-se.

Passara-lhe a ideia do suicídio - ria-se sempre disso quando a invocava e achava estranho que alguma vez a pudesse admitir. "Matar-me! Pendurar-me à frente da sua porta, para que ela nunca me esquecesse! Estava doido..." Como doido se sentia agora, nalguns momentos, quando pensava esperar o outro, de navalha ou de caçadeira, e só achar vingança na presença do seu sangue, que depois lhe lembravam as flores vermelhas dos seus primeiros sonhos agitados.

Noutras ocasiões, porém, só esse pensamento o satisfazia. Idealizava tudo. Pegava na caçadeira a tiracolo, saía de casa, ia afagar os dois podengos ao quinteiro e abalava depois. Encontrava alguém no caminho que lhe falava: "Vais à caça, Francisco?" Ele sorria, afagava a coronha da arma e dizia num gracejo: "Caça a um lobo que aparece pelas bandas de Santo Cristo." Atirava-se depois mais apressado a galgar a distância que o separava da casa da Gracinda; e, mal chegava, punha-se atento, a ouvir os ruídos para lá da porta. Escutava-lhes o murmúrio das conversas, o ranger da cama, os delírios do amor... E sentia em si o calor dos braços dela, o calor suave daqueles lençóis onde adormecera muitas vezes, cansado.

Pensava em todos os pormenores a sangue-frio, sem se exaltar.

Depois batia com o punho cerrado, calmo, só agastado com a presença da luz do luar. "Para que haveria luar e estrelas? Para que eram precisos?!..." A voz do afilhado, um pouco trémula, primeiro, mais decidida depois, indagava. Não lhe respondia, mas descarregava outro murro na porta, até que ele vinha à janela.

"Boa noite!"

"Boa noite!"

Poderia pôr a arma à cara e desfechá-la, de pronto, sem mais conversas; mas continuava calmo, a sorrir-lhe, quase num gracejo.

"Vai buscar a tua espingarda e traz a cartucheira cheia."

"Para quê?!"

"Vamos arrumar as nossas contas todas. No outro dia levaste a melhor... Quero ajustar essas e o dinheiro que me emprestaram. As terras é que tu não levas! Não são minhas, mas fê-las o meu pai e hão-de ser para os meus filhos. Neste mundo não cabemos os dois! Vai lá buscar a espingarda, anda!"

Esperava que o outro se vestisse, sentado no degrau da porta, sem receio de que lhe atirasse à traição. Ouvia a Gracinda pedir, suplicar, rojar-se a seus pés. Ele sorria-lhe e afastava-a com a mão. "Tu nada tens com isto! O teu marido que venha!"

E, quando o afilhado chegasse, marcaria o sinal da batalha.

"Mal a Lua passe por riba do picoto daquele cerro, vamos começar."

A curta distância, de olhar fixo no caminho da Lua, os dois aguardariam o momento preciso. E soava o primeiro tiro, depois outro e outro. Ele não desejava baldeá-lo ao primeiro zagalote - queria gozar o seu pavor. Atirava-lhe para o lado, perseguia-o nos socalcos da vinha, para onde o António Francisco se esgueirava, acorbertava-se nos bardos para reaparecer mais adiante, junto de uma oliveira.

"Pronto, Francisco, acabou-se!", suplicava-lhe o outro.

E ele lhe diria, então, toda a verdade, para que se excitasse mais e não pedisse tréguas. Teriam de ir até ao fim; um deles era preciso que desaparecesse.

Exausto de pensar naquilo, voltava para casa satisfeito consigo e adormecia. Levantava-se tarde e fazia o mesmo calvário de todos os dias.

"Matá-lo para quê?!... Hei-de fazer vida nova! Agora não vale a pena, mas quando acabar esta vindima vou tomar conta do arranjo. Atiro-me a uma surriba valente e hei-de pôr num brinquinho aquele pedaço de mortório da vinha de baixo. Rebento-os de inveja... Arranjarei uma companheira que vá comigo até ao fim da vida e trabalhe ao meu lado..."

E lembrava-se da Idalina - lembrava-se da Idalina, mas deformava-a no pensamento, tornando-a, pouco a pouco, numa mulher como a cunhada: os mesmos olhos, a mesma boca e o mesmo corpo.

 

A praça regurgitava de povo, como numa feira armada à luz das estrelas. E ali, de facto, se mercadejavam ilusões. Um dinamismo estranho apossara-se daquela gente, levando-a a juntar-se em grupos que, instantes depois, se decompunham, para irem reunir-se, mais além, numa roda maior. Vistos de longe, alguém os julgaria tocados pelo delírio duma loucura colectiva.

Riam aqui, discutiam acolá, procuravam-se mais adiante, em olhares e palavras, vivendo a febre daquela nova vindima tão pródiga que os homens já não guardavam memória das dúvidas e das angústias sofridas durante todo o ano.

Abandonados, só alguns trabalhadores sem ganas para o carrego dos cestos vindimos e para a faina extenuante das pisas, ou os pequenos lavradores já empenhados em dívida até à última esperança.

Todos os demais falavam nas pipas que as suas terras iam produzir, nos preços que os especuladores e comissários ofereciam já, nas perspectivas de vendas maiores que ninguém podia garantir, mas que cada um se esforçava por acreditar, sem a sombra de um receio. Era a embriaguez dos sonhos acarinhados durante os longos meses de interrogações, e que ali, na praça, se viam melhor no aconchego da presença alheia.

Ninguém descria no vinho das suas uvas, melhor do que nenhum outro em todo o Alto Douro. Gabavam as virtudes das castas enxertadas no bacelo "americano", na exposição dos seus vinhedos à braseira do sol, na altitude dos seus socalcos, onde não chegava o ranger da espadela dos rabelos.

Na sombra, porém, os especuladores vigiavam-nos.

Um aperto de mão dos Ingleses correspondia a um contrato sagrado; mas, como os vinhedos carregados de cachos anunciavam fartura, esperavam a baixa e só se comprometiam com alguns vendedores certos que desejavam manter.

Da maleta dos comissários, sua caricatura no vestuário e nos modos, a libra do primeiro sinal raramente aparecia ao sol do Douro. Trocavam impressões, vasculhavam socalcos, com a badine de fustigar o cavalo em que percorriam a região, e provavam bagos.

- Vem aí o inglês! -anunciava-se com solenidade

e alvoroço.

E todos acorriam para se lhes submeterem, suspendendo-se a vida à sua volta, como se das suas palavras viesse a salvação. Onde eles entravam, tudo se revolvia para lhes agradar.

Calava-se a "canalha" com algum sopapo, oferecia-se-lhes o melhor vinho e a melhor carne da salga-deira, tirava-se da arca a única toalha que havia para eles abancarem.

- Está aí o inglês!...

E um silêncio invadia as quintas, onde eles se dignavam ir. Mesuras e sorrisos esperavam-nos; as suas palavras eram escutadas com fervores de devoção.

- Se o Sr. Roop quiser...

- Al right! Haver muito tempo...

- Não há melhor vinho por aqui, Sr. Roop.

ies, yes... - Ninguém trata como eu. Deseja que espere?!

- Oh, no! Pode tratar seu negócio... Eu depois voltar.

Só deixavam aquela esperança.

Os lavradores olhavam a sua mão, sempre na mira de a verem estender-se para fechar a compra. Mas o Roop fazia sinal ao Arnaldinho Veiga e lá iam de abalada pelas montanhas, com os cavalos a passo, a distribuir promessas.

-Vem aí o inglês! Está aí o inglês!...

Quando eles provavam os bagos de uva e deixavam escapar um sorriso, os lavradores exultavam -é que na praça da aldeia o sorriso de um inglês valia a melhor certeza.

Muitos queriam aguentar-se nas vendas para melhor oportunidade, mas a vindima acarretava despesas com pessoal e aguardente, e eles tinham de pedir mais dinheiro a crédito. Os agiotas sabiam, porém, que as terras já estavam oneradas com outros encargos e recusavam-se. Recorriam, então, ao Silva Costa para lhes comprar a novidade, adiantando alguma importância por conta, uma vez que tomara o negócio do Jerónimo.

Cauteloso, e sempre solícito, o administrador retraía-se, com o pretexto de que não passava de um simples comissário de alguns comerciantes e não dispunha, portanto, de dinheiro seu para negócio. Esperava somente a melhor ocasião, convencido de que a abundância prometida pelos vinhedos facultaria boa escolha de vinhos por preços vantajosos. Só efectuara as compras determinadas pelo Freitas e essas serviam-lhe à maravilha para que muitos lavradores aguardassem ainda a sua oferta. Bem contra a sua vontade, adquirira a novidade do médico, pois não podia escusar-se a essa indicação eleitoral do Dr. Albaninho, e escolhera poucos mais, entre eles o Teimas, para os propósitos que o outro lhe marcara.

No escritório da Casa Grande, ele esquecia a aridez da sua vida conjugal, alinhando os compromissos tomados por conta do Freitas, enquanto D. Afonso, debruçado sobre o piano, tocava a Sonata ao Luar.

A vindima estava marcada para breve. Já conseguira a permissão do fidalgo para pisar as uvas que comprasse, à arroba, num dos lagares da quinta, e fazia contas das comissões e dos proventos que poderia arrecadar, se conseguisse um golpe certeiro. Era um jogo difícil naquela bolsa sem regras, embora sempre tivesse alguém na praça para o avisar das conversas dos lavradores. Nem sempre era aconselhável esperar até ao fim, embora fosse prudente seguir os ingleses; mas o jogo desses era difícil, se não impossível, de controlar. Algumas vezes abandonavam um dos pontos da região para caírem num outro, de improviso. Os liames da sua teia cobriam todo o Alto Douro e chegavam aos armazéns dos retalhistas e aos bares de Inglaterra e até do Brasil.

O mundo era deles - e o Port Wine também.

Acolhia o Roop o melhor que podia, dava-lhe dos melhores vinhos da garrafeira do fidalgo e esperava os efeitos. O Roop, porém, só balouçava e, quando muito, partia louça - gostava de puxar a toalha no fim do jantar e ouvir os pratos e os vidros quebrarem-se. Ria muito, como uma criança, e no dia seguinte, muito grave, como se liquidasse os estragos de outrem, pagava os gastos em libras e com mão larga. Quanto a pormenores acerca do mercado, ninguém lhe ouvia uma palavra.

-Ninguém saber... Vinho do Porto é como o tempo, não se conhecer o que vem.

E o seu "português", já difícil de entender, tornava-se ainda mais trapalhão. Ria-se também dessa sua incapacidade, querendo mostrar no fundo um absoluto desprezo por coisa tão insignificante.

Silva Costa queria orientar-se, mas hesitava. Uma operação errada podia ser-lhe fatal, embora confiasse nas suas manigâncias, em caso de necessidade, com a produção da quinta e as compras autorizadas pelo Freitas.

O som do piano irritava-o - nem as gargalhadas que lhe chegavam, de vez em quando, dos cardenhos da roga, conseguiam dominá-lo. Essa música lembrava-lhe Helena e ele preferia esquecê-la naquele momento em que precisava da melhor coordenação para todos os sintomas do mercado de mostos e vinhos.

Bateram à porta; pensou em não responder, mas insistiram.

- Abra! - gritou, furioso.

A criadita espreitou, contrafeita e repesa de o ter incomodado quando lhe viu a expressão de arrenego no rosto lívido.

- Bateste só para que te visse?!... O que queres?!...

- Está lá fora um homenzito!...

- Não estou!

E erguendo-se, agitado:

- Diz-lhe que saí... ou que morri... Maldita gente! Acham que sou obrigado a comprar todo o vinho, não?... Não sou nenhum inglês!...

Quando a criada desapareceu, tentou dominar-se ainda, correndo com o lápis as cifras que alinhara. Mas o piano ouvia-se melhor, agora que o caseiro ordenara silêncio nos cardenhos. E aquela presença absorvia-lhe toda a atenção.

 

No silêncio da noite as rogas passavam pela estrada da Pesqueira, a caminho do Pinhão e das aldeias da outra margem. Esfalfados já, não dançavam nem cantavam. Só o matraqueio monótono do bombo lhes marcava o ritmo da marcha arrastada. Precisavam de chegar depressa, para que na feira dos vindimadores achassem trabalho próximo, porque o preço só o saberiam depois quando os lavradores maiores combinassem entre eles.

A vindima no Douro era a promessa de um Inverno menos atormentado de fome, e por isso eles vinham à compita, em rebanho, homens, raparigas e "canalha", na mesma camaradagem de esperança. E, se o destino ficava distante, deitavam-se nas bermas da estrada e adormeciam esgotados, sem cuidarem de cama, porque a terra quente a dava; sem cuidarem de manta, porque o céu a oferecia.

Gracinda incitava-o, vivendo para uma ambição que nunca antes conhecera. De princípio levara o marido a meter-se em negócios de vinho, para que os lucros o fizessem esquecer mais a dívida dos Teimas, mas agora já a desvairavam as promessas da vindima. Algumas vezes ele hesitava.

- Não me sinto à vontade nisto... Tenho medo...

- Medo de quê, homem?!... Não vês como alguns entregam as uvas?... Eles precisam de dinheiro e nem sabem o que estão a fazer. E como se lhes paga por três vezes, já antes disso a gente vendeu tudo. Podemos ganhar em pouco tempo quatro dobros do dinheiro que trouxeste do Brasil.

-" Acho que é ganhar muito depressa.

Ela ria-se dos seus receios, recordando-lhe o exemplo do Jerónimo e dos especuladores.

- Já viste algum lavrador pequeno enriquecer?... Nenhum!... A terra come-lhes tudo. Eu bem vi em casa dos Teimas; até miséria se passava para dar à vinha.

E falava-lhe das contas que ele fizera a seu rogo, para o deslumbrar com a mesma certeza que a desvairava.

- O pior é se não vendemos - insistia António Francisco, quando via minguar o pecúlio que arrecadara.

Então ela amuava e dizia-lhe que resolvesse como melhor quisesse; António Francisco acabava por vir às boas.

- Se calhar, tens razão. Também os Ingleses não querem quinitas...

E continuava a receber os lavradores que lhe iam pedir dinheiro. Gracinda ficava sempre junto dele para o ajudar no negócio.

- Tenha paciência, Tio Inverno. A gente não pode emprestar mais. A nossa arquinha tem fundo, por mal dos pecados que fizemos. E Deus livrasse a gente de o enganar. Há por aí cada um!... Olhe o Silva Costa!

- Esse não compra agora - lamentava-se o velho. - É porque as coisas estão muito más! E então

vossemecê quer que a gente dê cabo do arranjinho?!...

- Custou-me muito a ganhar - interveio António Francisco.-Ia por lá ficando...

O outro caíra em abatimento, sem saber a que porta deveria ir; e, vendo que os não demovia daquela maneira, tentou a última hipótese:

- Se vossemecês comprassem as uvas... Gracinda mostrara-se comovida, pedindo ao marido para o ajudar.

- A gente não tem mesmo coração para estas coisas. E por quanto vende, Tio Inverno?...

O velho dissera o seu preço, muito chorado, esperando que eles não soubessem das compras que corriam e desfiando o seu calvário daquele ano.

- Fica ali a nossa vidinha, mulher. Tu sabes bem... - Mas isso é o preço de duas pipas, Tio Inverno. E remoeram naquilo, mostraram-se desinteressados,

insistiram na falta de dinheiro. Por fim, o outro cedera.

- Então vá buscar um papel assinado por duas pessoas conhecidas, dizendo que vendeu as suas uvas e recebeu o sinal.

Aquilo era novidade que o António Francisco aprendera no Brasil.

- Palavra de inglês, não basta? - dizia o velho, querendo fugir ao vexame.

- E se a gente morrer, Tio Inverno?... Não há como um papelinho para não faltar à verdade...

E o velho trouxera o documento exigido.

Nos escritórios dos Ingleses, em Gaia, recebiam-se de Londres as indicações do mercado, com preços e tipos dos vinhos procurados. E agora mais rápidos do que nunca, porque o cabo submarino e o telégrafo estavam ao seu serviço.

O cabo submarino era a arreata que ligava a ilha ao continente-o imperialismo- tinha pressa.

Os comerciantes portugueses exportavam às cegas, mas eles conheciam cada passo que davam.

- Morgan, de Brístol, pede um Port Wine carregado de cor, tipo full.

- Lack, de Liverpul, pergunta por um vinho adamado e encomenda trinta pipas.

- E a Escandinávia?!... -E o Brasil?!...

- E a América?!...

Conheciam o seu comércio desde a videira do Alto Douro ao cálice de cada freguês das cinco partes da Terra. Mandavam amostras com indicações cifradas e deixavam um duplicado nos seus arquivos vinários, controlando assim a evolução das preferências das regiões mais afastadas. A teia espalhava-se pelo mundo e o mundo confiava o dinheiro aos seus bancos e só se achava a resguardo nas suas companhias de seguros.

- Deus louvado! Vai ser uma cheia de vinho!

E eram bem raros os lavradores que não viviam para aquele sonho **assoberbante de verem os seus cachos carregados para os lagares - louros uns, como pedaços de sol, outros purpúreos que nenhuma cor se lhe avantajava, outros ainda, a maioria, de um azul negro que se desfaria em sangue quando os homens os pisassem nos lagares.

Nesse instante eram bem sofridos os tormentos para o gozo daquela volúpia de produzirem o melhor vinho do mundo. E as queixas recalcavam-se no fundo do coração ante o jogo dos especuladores, como se eles só cuidassem das suas videiras para terem direito a olharem os socalcos e gritarem vitoriosamente: este vinho é das minhas terras!

A praça era um mar vivo de gente.

- Amanhã começam a vindimar na Roeda! - foi a nova que chegou.

E, perante ela, os corações sentiram um frémito de alegria e de orgulho a que nada mais se podia equivaler.

Numa alucinação, fizeram-se negócios por qualquer preço. Era o momento de os especuladores agirem. E os que pretendiam ainda segurar-se tinham de se dobrar perante outra realidade mais poderosa - a aguardente faltava no mercado e ninguém sabia como consegui-la, porque o dinheiro que lhes pediam absorvia o valor do vinho já beneficiado nas ofertas dos Ingleses e dos comerciantes de Gaia.

Impotentes para compreenderem o fenómeno, perguntavam-se alarmados:

- Para onde foi a aguardente? Isto é lá dinheiro que se peça!...

Eles ignoravam que os outros se tinham entendido num monopólio, para que os lavradores do Alto Douro não pudessem beneficiar os vinhos que as suas cepas produziam.

- Que vendessem as uvas!...

E essas valiam sempre bem menos. Nisso estavam de acordo os comerciantes do Norte e os produtores de aguardentes do Sul.

Quando o Roop passou à quinta, D. Fernando levou-o para o seu escritório e quis ouvi-lo. Silva Costa tentou ainda acompanhá-los, mas o fidalgo fez-lhe perceber, cerimoniosamente, que a conversa era confidencial.

- Que me diz a isto, Roop?

E mostrava-lhe numa calma, só aparência, a nota que recebera pelo correio com o preço da aguardente despachada. O inglês abanou os ombros, como se aquilo fosse um assunto alheio à sua jurisdição.

- Preço do mercado, Sr. D. Fernando. - Eu não mandar nisso.

- Mas, Roop, veja se me entende, pelo amor de Deus. Entrego-lhe todas as minhas uvas e, depois de descontada a aguardente que me fornece, eu não ganho para metade dos granjeios. E o resto das despesas? E a terra?!... E o valor de tudo isto?!...

E apontava as montanhas vencidas pelos bardos e valeiras.

- Nada poder fazer, fidalgo. Negócio é negócio. E que preço vão pagar meu vinho? Notícias de Londres muito mal. Port Wine sem aguardente não ser Port Wine.

  1. Fernando estava fora de si. Esgrimia com as mãos secas, limpava as lunetas e tentava dominar a fúria que se apossara idos seus nervos cansados.

- É um escândalo! É um roubo!...

O Roop balanceava a cabeça a confirmar. Mas na contabilidade da sua casa havia uma rubrica de aguardente; e o movimento, naquele ano de 1911, era maior do que nunca.

Sebastião Borges Alves transmitira ao adjunto as ordens do Banco Nacional, mas comunicara ao Freitas que lhe queria falar. Derrotado pela ameaça daquela faca apontada ao peito, o velho sentira-se incapaz de reagir e descarregara a sua ira no filho, responsabilizando-o pelo acontecimento.

"Eu não te dizia?! Julgaste que tinhas unhas para te medires com eles e agora repara na armadilha. Amortizações de trinta por cento, de três em três meses, e depois disso nem mais um real. Vamos vender ao desbarato ou seremos levados à falência. No fim da vida tenho de voltar às tairocas, por tua culpa."

Albano Freitas não ignorava o peso daquela acusação, e lembrou-se mais uma vez do conselho do Arnaldinho Veiga: pegue-os de cernelha, Sr. Doutor. "Iludira-se com a sua força, desvairado pelo desejo de defrontar os Ingleses no mercado londrino; agora sofria as consequências da sua precipitação. Os negócios eram bem mais difíceis de interpretar do que os códigos. Que lhe queria o banqueiro depois daquela ordem ruinosa?!..."

O outro acolheu-o com o mesmo ar jovial de sempre.

- Então o seu pai?!...

- Doente... Aquela notícia arrasou-o.

-Ninguém a lamenta mais do que eu, acredite, Dr. Freitas. Mas há interesses superiores a vigiar... Os valores em carteira avantajavam-se de uma forma incrível, comprometendo a posição financeira do banco.

Por entre a teia daquelas palavras, Albano Freitas queria compreender as razões exactas do facto; Borges Alves, porém, continuava hermético ao seu olhar.

- Pode ser a sua falência, é claro!

- Sim, talvez - consentiu dolorosamente o comerciante.

- E por isso mesmo o chamei. Não esqueço, apesar de tudo, a fidelidade de seu pai ao nosso banco. Particularmente...

Sebastião Borges Alves sabia que as tréguas acabariam por se fazer entre os dois grupos financeiros.

- Particularmente posso ajudá-los. Se não tiverem dinheiro para satisfazer as amortizações, apareça-me. Tomarei a posição do banco...

Albano Freitas não conseguia entender o que o outro desejava - só compreendia que mudava de coleira e não podia recusar aquela oferta.

-Obrigado, Sr. Borges Alves - agradeceu aturdido. - É um favor que não esqueço...

Já de pé, o outro recomendou-lhe:

- Se não lhe fosse muito penoso, gostaria que me falasse sempre antes de fazer os seus comícios pelo Douro. Posso dar-lhe indicações muito úteis...

E conduziu-o até à porta do escritório.

- Simpatizo consigo, sabe?... Tinham-me falado mal de si, mas vejo que eram injustos. Apareça sempre que possa; dá-me o maior prazer, acredite.

Os cachos já maduros esperavam as mãos das vindi-madeiras, nos braços contorcidos das cepas angustiadas pelo esforço daquele parto cruel que um sol abrasador tornava mais doloroso.

Nalguns socalcos já andavam as serranas a encher os balaios que o rapazio transportava para os grandes cestos vindimos, carregados depois, às costas dos homens, a caminho do lagar, num calvário de canseiras. Tocadores de guitarra, bombo e ferrinhos acompanhavam-nos para lhes suavizar a marcha arrastada; vozes de mulher cantavam, nas valeiras e bardos, monotonias de uma raça escrava.

Fui ao Douro à vindima Só ganhei os trinta réis; Dei um vintém ao barqueiro, Só me ficaram dez réis.

Rogadores e caseiros vigiavam o trabalho, sempre atentos, não permitindo distracções ao rancho.

- Só eu é que ando de cabeça no ar, pessoal!

- Mexam-me essas mãos!

Ali mesmo os cachos eram limpos das mazelas dos bagos mal crescidos ou podres. Como era o primeiro dia da vindima, os serranos atascavam-se de uvas, numa gula que os feitores não podiam evitar, embora deitassem contas.

- Estes malvados comem numa semana mais de duas pipas de vinho!

Não andavam longe da verdade, porque não era só a guloseima do mel dos bagos, mas a fome retraída de muitos meses de penúria. Todos vinham ao Douro, mais pelo comer do que pelas jornas escassas.

-Mais mãos e menos dentes, pessoal! Ó tu!...

A soalheira cortava o dorso e os rins; mas as bocas rouquejavam cantigas.

Venho de cima do Douro, Daquela terra mofina: Venho cheia de água-pé E de rabos de sardinha.

Carregados num virote, os balaios atafulhavam os cestos vindimos, e as filas de homens lá partiam, perseguidos pelas abelhas e moscardos, montanhas arriba.

A maioria dos lavradores, porém, aguardava melhor oportunidade.

- Se viesse uma pinga de chuva para aumentar a produção!

Deitados pelas sombras escassas, a abafar canseiras nos peitos derreados, as gentes devoravam o caldo das malgas que a cozinheira servia de um caldeiro suspenso das traves da cozinha.

Ranchos e ranchos de maltrapilhos desciam ainda das serras e perdiam-se pelas estradas além.

O sol causticava numa cópula violenta que esgotava as cepas no seu leito de xisto em fogo. E as vindimadeiras e os homens dos carregos não podiam afrouxar na faina; as marchas tornavam-se cada vez mais penosas. Nem uma asa no céu - nem uma vela no rio. Tudo derrancado por aquela soalheira bárbara que cintilava nas pedras e nos olhos cegos de luz.

O meu amor é da serra, É da serra, é serrano...

As guitarras ainda na mesma sarrazina para animar os homens dos cestos; os bombos lúgubres a marcarem o ritmo das caminhadas.

... Vale mailo amor da serra Có da ribeira magano.

E até o Sol morrer, em convulsões, no coruto do Alto das Monteiras, os ranchos não cediam - lá estava a voz áspera dos rogadores para os espertar. Esses, porém, eram felizes, porque já comiam o caldo e a sardinha dos lavradores.

Nos lagares, os tanques estavam cheios e era a vez da corta.

Ceando à pressa, os homens dos carregos ainda não podiam atirar-se sobre a palha dos cortelhos para repousar fadigas. Os cachos precisavam dos seus pés, para que os bagos rebentassem a película e o mosto crescesse nos lagares.

Já lá estava o lampião triste à espera. E também a medida de aguardente que os havia de animar, numa falsa alegria.

- Vamos, já é tarde!

Lavavam os pés e saltavam para dentro, em duas filas, de braços sobre os ombros dos companheiros da ilharga, enquanto uma voz ecoava nas ordens de mando.

- Esquerdo! Direito! Esquerdo! Direito! Esquerdo!...

Iam e vinham dos topos para o centro, no mesmo ritmo, erguendo os joelhos e fincando os pés, para esmagarem bem a camada espessa dos cachos ásperos. Sentados numa janela, os tocadores desafiavam-nos.

- Esquerdo! Direito! Esquerdo! Direito! Esquerdo !

Os lagareiros prosseguiam na contradança, de um lado para o outro, arrastando-se numa camaradagem de canseiras. O feitor vigiava. E o lavrador, orgulhoso do seu vinho, galgava à cinta do lagar, mirava a manta sanguínea do mosto, com olhos brilhantes, e esquecia

tudo o mais naquele momento-os preços baixos, a

aguardente que faltava e os juros agiotas que comiam à sua mesa e roubavam o suor dos homens e das mulheres das rogas.

- Vai ser um vinhão... - exclamava transtornado.

O cheiro do mosto devassava tudo e saía numa baforada pelo portão do armazém, como se quisesse embriagar os pares que dançavam no terreiro.

O patrão fazia sinal ao feitor e o pessoal chegava-se à borda, com todas as cautelas, para que da medida de aguardente nem uma gota caísse na manta do mosto.

- Esquerdo! Direito! Esquerdo! Direito!...

- Volta!... Assim! Assim! Vamos!...

As rogas paradas aguardavam a sua vez nos cortelhos, ciumentas dos ecos que lhes chegavam de longe, coados pela mudez da noite.

Na praça da aldeia, os pequenos lavradores trocavam esperanças e vaidades, enquanto os maiores seroavam nas suas casas das quintas, em companhia de convidados que vinham gozar o espectáculo das vindimas no Douro.

 

O velho Teimas sentiu um arrepio no corpo e levantou os olhos para o céu, como a querer devassar-lhe os mistérios.

- Há estrelas, Francisco?! - perguntou para o filho.

- Poucas!...

Não lhe agradavam aqueles sinais. Ficou excitado, como um poldro aos pronúncios de tempestade; estendeu a mão para apalpar a aragem e outro arrepio mais forte estremeceu-o.

- Vai chover!...

- É o que a gente precisa - retorquiu Francisco, indiferente. - Com mais umas pingas de água, arranja-se uma pipa à maior!

O velho voltou para dentro de casa, a acenar a cabeça, num murmúrio que ninguém ouviu.

Sorriu para os netos, num escapanço das suas preocupações, durante o tempo que vagueou pela cozinha, como se andasse ao sabor duma corrente caprichosa. De vez em quando detinha-se e falava consigo. O filho entrou também; ele insistiu nas suas interrogações.

- Já caíram alguns pingos?...

- Infelizmente, não.

- Infelizmente, porquê? A gente sabe lá o que isto dá! Uns pingos agora podem ser sinal de tempestade.

E voltou-se para a porta, tentando adivinhar a inquietação dos astros que se lhe transmitia, num nervosismo que já não o enganava. Sentia um formigueiro nas mãos, um peso doloroso no peito e aquela moinha na cabeça que parecia abrir-se em ramificações de uma nascida ruim. Depois saiu para o meio do quintal, de mãos espalmadas, à espera de um sinal mais positivo.

"Ná!... Isto não me agrada!", ciciou para si. Estava desconfiado com a noite, como se às ocultas das trevas um inimigo estivesse a espreitá-lo para o assalto, aguardando uma distracção para o acometer. Farejou a brisa e percebeu-lhe humidade. "Ná!... Isto não me agrada!", repetiu mais inquieto ainda.

Voltou ao limiar da porta.

- Que te disse o Silva Costa da última vez?... - perguntou ao filho.

- Disse que avisava para fazermos a vindima; que não podia ainda por falta de lagar.

- Isto não está bem. Eu não espero nem mais um dia; amanhã de madrugada começamos.

O filho interveio para lhe recomendar cautela, não fosse o Silva Costa zangar-se e desistir da compra das uvas.

- As uvas é que eu não deixo nas cepas. Vens daí?!...

- Eu, pai? O Silva Costa corria-me, com certeza. E então da maneira que anda...

-Pois vou sozinho com um dos rapazes.

Luís levantou-se de pronto e olhou o avô com doçura, como a pedir-lhe que o levasse; o velho fez-lhe sinal com a cabeça.

- Veja lá o que arranja! - persistiu o filho, de mau humor.

António Teimas não lhe respondeu e abalou.

Só então Francisco deu asas à sua indignação, passeando agitado na cozinha, a falar para o Chico, que ficara sentado, a cortar um madeiro com o canivete.

- Sempre a mesma coisa! Agora vai falar com aquele diabo e lá escangalha tudo!... Depois comemos o mosto!...

Lá fora, um carro gemia numa carpideira sem fim; um dos podengos disparou numa carreira e foi ladrar-lhe ao portão do quinteiro. Depois ouviu-se a voz avinhada do Chasco, a gritar pela mulher, de mistura com um pra-guedo ! de arrasar tudo.

Os dois ficaram à espera, cá fora, enquanto um dos filhos do caseiro ia levar o recado. O velho continuava inquieto, incapaz de dominar aquele nervosismo que o desvairava; tinha pressa de falar com o Silva Costa e a demora transtornava-o.

-Raio de gente!... É mais fácil fazer ouvir um santo de pedra... Se lhes déssemos as uvas, ainda tínhamos de lhes lamber os pés.

O piano começou a tocar. Luís não sentiu o deslumbramento dos outros tempos, porque se lembrou de Maria Dolorosa e da noite da morte do Judas quando gritara o nome de D. Afonso. Apetecia-lhe agarrar em pedras e escaqueirar todos os vidros até que o piano se calasse - parecia-lhe um ultraje aquela música que recordava o seu desgosto.

- Vamos embora, avô! - pediu com voz amargurada.

- Espera, neto. Não gostas de ouvir, pois não?!... Nem eu... Mas é preciso paciência.

Então Luís apertou a cabeça com as duas mãos e foi sentar-se num dos marcos de pedra que havia por ali, imitando o avô. Esperaram ainda muito tempo. António Teimas sentia a frescura inesperada da noite e voltou a tocar a sineta do portão. Uma voz perguntou-lhe o que queria.

- Falar ao Sr. Silva Costa; diz-lhe que é o Teimas, por causa das uvas. E se me não puder receber...

- Vossemecê vem com pressa! - gritou a vozita aflautada do administrador. - Já disse ao Francisco o que me parecia.

António Teimas descobriu-se, encostado ao seu bordão, e as palavras pareciam ainda sufocá-lo.

- Já disse ao Francisco o que me parecia - repetiu o administrador, enfadado com a visita.

- Já sei, Sr. Silvinha, já sei. O pior é que o tempo vai mudar...

- Acha que sim?!... -replicou o outro, mais satisfeito. - Então é sinal de que eu tinha razão. Pois que chova e bem. As suas uvas darão mais vinho, mestre António.

- E se não derem nenhum?!...

- Essa agora! Porque não hão-de dar?!... Vossemecê já as comeu?...

- Eu cá me entendo, Sr. Silvinha. Amanhã vou começar a vindima...

O outro perdeu a tramontana e enfureceu-se.

- Não tenho lagar para as receber; faça lá o que quiser. Porque há-de ser vossemecê mais papista que o papa?... Toda a gentte espera!...

- Mas o tempo não espera, Sr. Silvinha! -replicou o velho, já transtornado também. - Se eu não lhe entregar uvas, vossemecê paga-mas?!...

Silva Costa emudeceu.

- Não paga, pois então!... E se o senhor não dá ordem para vindimar, venho dizer-lhe que está desfeito o negócio. Esperar é que não espero; não tenho nada com os outros. Cada um sabe de si...

O administrador lembrou-se da recomendação do Freitas e achava que não podia desprezar a influência do velho na aldeia. E tentou levá-lo às boas.

- Mas, Sr. António, se chover é melhor para si. Aumenta-lhe o peso das uvas e a litragem...

- Isso sei eu, Sr. Silvinha; mas, se eu não lhe der uvas, vossemecê não as paga. E não estou a gostar do tempo.

- Então...

A Silva Costa custava despedi-lo; não podia, porém deixar-se levar pelas teimosias do velho.

- Pois então faça o que quiser; depois não se arrependa. As uvas ainda lhe pertencem...

- É isso mesmo que eu quero ouvir - retorquiu o velho, satisfeito. - E desculpe esta madureza, mas o meu corpo adivinha...

Silva Costa deixou-o partir e ficou-se a acenar a cabeça.

- Este velho está doido!... Doido varrido!

E, numa súbita resolução, voltou costas, a monologar: "Que tenho eu com isso?... Estas bestas, quando metem a cabeça, são piores que os jericos!"

António Teimas chegou ao portão, pegou no braço do neto e abalou o mais depressa que as pernas lhe deixavam. Tinha pressa de começar a vindima e parecia-lhe que o tempo não sobejava para aquietar as suas preocupações.

De um lagar, os homens soltavam os seus uivos de lobo; bombos de rogas atroavam na noite, como ecos de uma batalha que se travasse para além das serranias.

 

O Dr. Pimenta cedera-lhe o lagar, embora sem perceber ainda aquela pressa e insistindo também com ele para que aguardasse a chuva. O velho, porém, ficara na sua e logo de manhã dera início à vindima, ante o pasmo, da aldeia, que via os pronúncios do sol.

- Já está taralhouco, coitadinho!...

- E retirou a venda ao Sr. Silvinha! E que preço!...

- Isto há cabeças!...

António Teimas percebia as expressões de piedade que deixava à sua passagem e sorria consigo. Aquele sol arrasante não o enganava. Conhecia bem o tempo e não se dispunha a cruzar os braços, só porque os outros entendiam esperar.

"E se ele se enganasse?!..." Essa interrogação tolhia-o por alguns instantes; mas reagia de pronto, sabendo que as hesitações nada resolvem. "Quem sabia, afinal, as coisas do tempo?!..."

Nuvens começavam a acastelar-se no horizonte, vindas do sul; e enquanto todos os lavradores desejavam que elas chegassem depressa e se despejassem, o velho desembaraçava-se com a sua colheita, metendo mais cinco mulheres para a apanha.

Estava exuberante; parecia até que remoçava.

Arrastava as pernas trôpegas com alegria, comunicava a sua confiança à gente que o viera ajudar. Ele próprio se metera aos socalcos, de cesta à ilharga, para apressar a vindima. E quando pegava nos cachos acariciava-os, como se lhes agradecesse por terem nascido. Eles eram os frutos dos melhores dias da sua vida. Estavam ali o suor, os sacrifícios, as esperanças, as amarguras - tudo o que valia a pena rememorar. Fora uma batalha árdua empreendida sem mais ajudas; porque até a terra e o céu pareciam negar-se, muitas vezes, ao poder da sua confiança e do seu esforço.

Sabia a história de todas aquelas videiras. A que colhia agora era do tempo da filoxera e resistira com ele à dizimação dos socalcos - uma cepa velha, robusta, ainda, a contorcer-se de dor mas capaz de ressuscitar em verduras todos os anos, para oferecer aqueles cachos opulentos, como um símbolo das justas esperanças da sua labuta. Surribara tudo o que lhe pertencia agora. Aquele pedaço além - lembrava-se como se fora hoje - desbravara-o pouco depois de a mulher se ter enforcado. Um ataque de malária quisera abatê-lo, num aviso ameaçador de que não devia prosseguir; mas reagira e continuara, apesar de nalguns momentos lhe apetecer queimar aquela terra que tudo lhe arrancava da vida. Abrira as entranhas do cerro, desfizera-as com o seu maço, construíra os calços e, quando plantara o primeiro bacelo - era ainda um rapaz -, parara vaidoso e olhara os horizontes num desafio. "Quem mandava ali era ele e os outros quebravam as hostilidades da montanha."

Sabia a história de todas aquelas videiras.

Algumas doentinhas, a mirrarem-se de começo, alimentadas com a água que ele ia buscar a distância e tratadas como meninos enfermos; outras mais rijas, logo emproadas, buscando lá no fundo dos xistos agrestes a seiva de que precisavam para sobreviver; outras ainda, como as daquela valeira lá de riba, irmãs de muitas que a terra enjeitara, matando-as quase à nascença, sem piedade.

Sentira-se abatido muitas vezes, repeso de não ter abalado com os outros para as cidades ou para os Brasis, onde diziam ser a vida mais fácil. Mas ficavam sempre, apesar de muitos voltarem com riquezas que nalguns instantes o despeitavam. "Para que era, afinal, aquela matação?! Para que teimava ele contra aquele inferno de canseiras?!" Apetecia-lhe fugir, então, e enjeitar tudo o que fizera.

Desiludido, subia a montanha e olhava os seus socalcos. E as videiras parecia que lhe falavam: "Vais abandonar-nos?!..." Reparava que também elas lutavam e sofriam, numa ânsia de vida que as contorções dos seus braços desesperados não ocultavam. E lembrava-se que depois de tudo elas floriam e davam cachos - também na vida dos homens isso havia de suceder alguma vez. "Quando?!... Não importava quando! Só era necessário prosseguir para que o dia chegasse mais depressa, embora não fosse para ele."

E as riquezas dos outros tornavam-se mesquinhas ao lado dessa certeza.

Lamentavam-no; riam-se dele agora. "Era uma doi-deira vindimar naquela altura! Seria, talvez... Mas quem conhecia o tempo?!..."

"Se chover, é ouro que cai", diziam todos.

Ele não respondia a ninguém; sabia que jogava mais uma cartada e não ignorava que as suas palavras não bastavam para convencer os outros. Refugiava-se no trabalho e transmitia à sua gente a esperança que o afogueava.

- Vamos, pessoal!

Francisco acarretava os cestos no Doiradinho, sempre rezingão com aquela mania do pai, enquanto os dois rapazes tinham ido para as terras de baixo.

"É uma doddeira!", lamentavam os que viam passar o garrano carregado.

O Francisco desabafava va logo a sua ira:

- Por mais que lhe dissesse, não o consegui convencer. Toda a gente lhe falava na mesma palavra; mas ele é Teimas no nome...

E lembrava-se da filoxera e da morte da mãe. Esses tempos dolorosos revolviam as suas feridas ainda não saradas, tornando mais viva a sua aversão pelo velho. "Iam todos rir-se dele. Até o lãzudo do António Francisco, que se metera a negociante, teria motivos para galhofar. E o pai não percebia isso. A Gracinda... aquela maldita havia de rir também, esquecendo-o nos braços do marido..." E os ciúmes voltavam a morder-lhe o coração.

Parava nas tabernas e bebia, a alanzoar contra o velho e retardando as viagens para o lagar.

Pelo meio-dia caíram os primeiros pingos de chuva, quentes como metal fundido. Toda a aldeia exultou em gritos de alegria, num agradecimento ao céu.

- Isto é ouro!...

- Deus louvado! Vai ser uma cheia de vinho!... Corriam a chamar-se, abraçavam-se e ficavam a

olhar as nuvens cinzentas e pesadas que vinham agora de todos os lados. Um dos homens lembrou-se de ir pedir ao padre Augusto para que o sino repicasse, em sinal de agradecimento do povo. E o seu eco foi de quebrada em quebrada, numa festa de sons.

- Isto é ouro!...

- Deus louvado!...

Francisco achou-se mais ridículo ainda naquela viagem; se pudesse desaparecer com o garrano, tê-lo-ia feito. Espancava-o com a verdasca, baixando os olhos de vergonha quando passava junto aos grupos que festejavam a chuva e o atanazavam com gracejos, por causa da mania do velho - apetecia-lhe deixar o Doiradinho à solta, indo acamaradar com os outros lavradores que enchiam a praça.

O sino não cessava o repique - o Manel Virado pagara dois litros ao sacristão, se ele aguentasse uma hora a puxar à corda. O outro metera-se em brios, sabendo que todos o escutavam, e dava o toque dobrado, naquela cadência alegre que só tocava para o casamento das pessoas amigas ou de quem lhe untasse as mãos.

- Que é isto?! - perguntou-lhe o pai, mal ele chegara às valeiras. - Casou-se alguém?!...

- É por graças da chuva que vai aí rebentar - respondera-lhe mal-humorado, enquanto desapertava as cordas das cangalhas.

Depois abriu-se mais.

- Vê, pai? Eu bem lhe dizia... Vai o povo rir-se da gente.

O velho percebia-lhe os brios e tentava abrandá-lo.

- Deixa lá, homem. As nossas já estão quase todas no lagar; e se eles tiverem mais uns litros, que lhes sirva e os ajude. A gente cá vai andando!

Mas Francisco não esquecia a galhofa dos outros e não podia, mais ainda, suportar a ideia de que a Gra-cinda e o marido se pudessem rir também.

- E se parássemos agora? - lembrou numa última esperança, para demover o pai.

O velho aborreceu-se com a insistência.

- Não! Quem manda aqui sou eu!

Então não se conteve mais e desvairou - disse tudo o que lhe veio à cabeça.

- Vossemecê já está tonto! Pois eu é que não faço nem mais uma viagem. Já não quero servir à risota dos outros. Faça vossemecê tudo! Deita-se fogo à vinha, que ao menos acaba-se esta matação por uma vez.

E largou o Doiradinho já carregado, desaparecendo no carreiro que amarinhava a encosta do cerro e indo meter-se na taberna do Mal-Matado, a comentar a maluqueira do velho.

António Teimas sentira ganas de o desancar, mas retraíra-se, deixando-o abalar sem mais uma palavra. Agarrou na corda da cabeçada do garrano e atirou-se ele mesmo ao caminho.

A chuva começou a cair mais seguida, embora o calor sufocasse ainda. A tempestade, já pressentida no sangue do velho, rebentara logo depois num relâmpago que mordeu o horizonte de luz e foi acompanhado de um trovão que mais se assemelhou ao desabar de uma montanha.

Nuvens cinzentas desciam e tocavam o capelo dos cerros longínquos; lumes de faíscas retalhavam o negrume da tarde opressiva que parecia caldear os pulmões.

E a chuva desabou num dilúvio.

Entre portas, recolhidos, os homens sorriam, num agradecimento, para aquela doação do céu.

- Isto é ouro!...

- Isto é vinho que está a chover, graças ao Senhor!...

O velho Teimas sentia que adivinhara, embora lhe chamassem doido. Descarregou o garrano no lagar, e saltou-lhe para riba, obrigando-o a uma carreira desenfreada pelos quelhos desertos, onde só a água passava agora, ruidosa, a arrastar o que encontrava no seu caminho. Chegou às suas valeiras molhado até aos ossos. O pessoal abrigara-se debaixo da copa de umas oliveiras e ele montou nova carga nas cangalhas de madeira, abalando outra vez para nova viagem.

- Recolha-se, Tio António! - gritara-lhe uma das mulheres. - Pode um raio dar conta de si...

Ele só lhe acenara a mão e partira.

Várias vezes estivera para se refugiar do temporal. Sentia-se exausto, custava-lhe a acompanhar o passo ligeiro do Doiradinho, fustigado pela chuva; mas lembrava-se dos cachos vindimados, ainda por recolher, e juntava energias para prosseguir. Já chegara ao alto do cerro e o caminho tornava-se mais ligeiro. A terra parecia deserta - nem os bombos das rogas respondiam à tempestade.

O tremor de um frio estranho abalava-lhe o corpo esgotado; os pés já empeçavam nos rebos dos quelhos solitários, dobrando-lhe as pernas de fadiga. Agarrou-se .à tábua magra do pescoço do garrano, para se aguentar melhor, e deixou-se arrastar pela vereda, insensível nalguns momentos, para logo se sentir mais atento do que nunca às imprecações do céu.

A luz dos relâmpagos parecia estalar-lhe as retinas, numa cegueira fugaz; a chuva, fustigada pelo vento, açoitava-lhe o rosto, a querer repeli-lo dali, onde mais ninguém se encontrava. A relinchar, mas submisso, o Doira-dinho levava-o ainda e ele não sabia já porque caminhos o conduzia.

- Tio António! Venha pra dentro, homem!... Talvez se não fossem essas vozes ele desistisse de continuar; mas lembrava-se das suas uvas já vindimadas, lá no alto, e custava-lhe mais abandoná-las do que suportar aquela tremura rija, arrasante que nem um ataque de sezões pelo Verão. Ele sabia bem que as perderia se as não salvasse agora; tinha a certeza de que não se enganava.

Uns homens recolhidos no lagar despejaram-lhe a carga e tentaram ainda demovê-lo.

- Deixe isso, Tio António... Vossemecê mata-se por aí com este tempo.

- A chuva vai afrouxar e acaba depois o resto... O velho pegou numa garrafa de aguardente, levou-a

à boca sôfrega e bebeu duas goladas. Aquele calor reanimou-o.

-E as que estão vindimadas? Vou perdê-las?!...

Aproximou-se da borda de um dos tanques e tacteou-o - estava cheio das suas uvas. Suspirou com satisfação e disse em voz alta, para se animar, que tinha ali mais de cinco pipas. Pediu uma saca, limpou o Doira-dinho para o friccionar bem, e meteu-se novamente à jornada, depois de beber outra golada de aguardente. Os outros pensavam que o tempo lhe fazia medo; esqueciam-se de que uma verdade na vida vale por todos os receios de um homem."

Uma descarga mais violenta fendeu as montanhas, parecendo que as destruía; gritos de angústia responderam-lhe dos cortelhos. As faíscas cruzavam-se no negrume do céu e deixavam espasmos de fogo no horizonte.

Inquieto, o Doiradinho começou a recuar, furtando-se aos puxões que o velho lhe dava à arreata. Ele tentou demovê-lo depois com carícias, mas o animal não cedia.

"As suas uvas iam perder-se", pensou num desespero. Agarrou então o focinho do garrano e socou-o, desvairado; arrepelou-lhe as ventas com as mãos trémulas de ira, arrenegando-o com praguedo; atirou-lhe pontapés às pernas, querendo empurrá-lo depois pelos quartos traseiros.

- Ah, bicho dum filho da mãe!...

E, num acesso de ódio mais forte, saltou-lhe para o pescoço e mordeu-lhe nas orelhas, como se quisesse arrancar-lhas.

Impotente, perante aquela recusa, voltou às carícias.

- Doiradinho!... É só mais uma viagem!... - suplicava, afagando-lhe as crinas encharcadas.

O animal sacudia-se, relinchava e queria voltar-se para o caminho da aldeia.

- Não, Doiradinho! Vem cá! As nossas uvas estão à espera...

Mas um raio despenhou-se ali perto, sobre uma oliveira mais alta, arrancando da terra um uivo de dor. Ficaram assombrados; e o garrano partiu num galope cego, pelo quelho abaixo, desvairado na carreira, já sem cangalhas, a caminho de um precipício que se abria ao fundo. António Teimas gritou-lhe, quis segui-lo ainda, ouviu-lhe durante algum tempo os cascos ferrados a ferir as pedras dos montes, até que um relincho de súplica lhe fechou a ansiedade e lhe dobrou as pernas de fadiga e de desânimo.

E chorou de raiva, esquecido do temporal e do frio que lhe triturava os ossos, impotente agora para se mover, como se não entendesse por que motivo andava ali, enquanto toda a aldeia recolhida abençoava a chuva.

 

Mas a chuva não parou mais - dia e noite as nascentes do céu não se estancaram, indiferentes às preces e às maldições que o povo lhe dirigia, ora submisso, ora rebelde.

Nas valeiras e nos bardos, os cachos desfaziam-se, arrancados numa vindima cruel pela mão áspera da tempestade. Os lavradores renegavam todas as esperanças que os haviam deslumbrado, vendo caminhar sobre eles a sombra ameaçadora das penhoras. Poucos haviam escapado àquela maldição.

O pessoal das rogas apodrecia nos quelhos, sem trabalho e sem caldo.

Dos escritórios de duas casas exportadoras estrangeiras Comunicava-se o acontecimento para Londres - elas tinham determinado a compra de todo o vinho já feito, por preços mais altos, e se a chuva parasse os prejuízos seriam sem conta. Assim, quase ficavam sozinhas com o mercado daquele ano.

Em Londres, a notícia foi recebida com alvoroço e só houve uma expressão para festejar aquele talentoso golpe comercial: "Good business!" Belo negócio!

E era um vinho famoso aquele da colheita de 1911. Tão famoso que foi servido nas festas da coroação do rei, a preços fabulosos.

**Barãona, em Lisboa, não teve um instante de hesitação; mandou seguir para uma quinta do Douro um comboio carregado de vinho do Sul, avisando o Azevedo dos tecidos que tratasse do assunto com toda a cautela, mas sem demoras.

 

E D. Fernando Pimentel estava agora perante aquela imposição a que não podia resistir. O Azevedo dos tecidos de Santo Tirso mandara-lhe o filho, o próprio que iria casar com D. Constança, para que ele recebesse numa das suas quintas o comboio de vinho das lezírias. Apetecia-lhe recusar, sabia que era esse o seu dever, mas desconhecia ainda menos que perdera a sua colheita e era com aquele casamento que contava, desde há algum tempo, para evitar a vergonha da ruína da casa que o pai lhe deixara. Acedera - tivera de aceder. E agora, que o outro abalara, depois de dar ordem ao Silva Costa para que o vinho fosse metido na quinta do Roncão, chamara o filho.

  1. Afonso escutava-o, parecendo indiferente às suas palavras. Se não fora a voz grave e hesitante de D. Fernando, ninguém o julgaria alterado; os seus gestos, porém, eram mais lentos que de costume, como se lhe custasse mover os braços.

- Abalaremos hoje mesmo; não posso ficar aqui na presença do teu avô...

E olhava o retrato do velho fidalgo com pudor, como se ele pudesse interrogá-lo.

- Nunca me julguei destinado a ser um traidor do Douro... um traidor da nossa família, que aqui viveu a melhor parte da sua vida.

- Porque não soubeste defender-te das tentações de uma vida fácil - respondeu-lhe D. Afonso, por fim, continuando a afagar a lombada de um livro. - O remédio...

- Qual era? - interrompeu D. Fernando com vivacidade.

- O trabalho! A solução que nunca tivemos coragem de adoptar.

O pai sentara-se numa cadeira com a cabeça apertada entre as mãos nervosas.

- O avô passava aqui os dias a viver com a terra e a vigiar o que lhe pertencia. Tu achaste que isso era inglório e abalaste para o Porto. Vieram administradores, todos iguais a este impossível Silva Costa, que fizeram o que qualquer homem fazia...

- Qualquer homem, não - interveio D. Fernando. - Eu seria incapaz...

- Tu és o dono das terras... Dirias o mesmo se o não fosses? Desculpa que to diga, mas pensarias que se o dono a não guardava e eras tu quem dela dispunha, pouco a pouco, acabarias por concluir que era o dono quem te roubava.

- Cala-te! Estás num dos teus delírios de anarquista. ..

  1. Afonso encolheu os ombros e voltou para junto da estante, entretendo-se a tirar volumes e a metê-los, de novo, no seu lugar.

- Tu pior do que o avô - prosseguiu depois. - Eu ainda pior do que tu. A salvação do nome da família só está na minha resolução de não deixar descendentes.

O pai olhou-o com rancor, incapaz, porém, de o fazer calar.

- Podia vender a pluma deslumbrante do título a alguma donzela abastada. E depois?!... Prestigiava-se, porventura, alguma coisa?!... Nem o nobre nem o burguês. A burguesia acabará por morrer como nós, se não vir a tempo o abismo onde nos afundámos. E essa gente repugna-me! Repugna-me porque deseja comprar tudo o que julga faltar-lhe. O banqueiro compra o Carlos para o dar à filha... E o fabricante de tecidos, o dono do Vale da Morte, como por lá lhe chamam, dá um lance maior do que o Freitas e fica com a Constança para o idiota do rapaz...

As palavras do filho desvairavam-no e sabia-as justas. Tentou ainda um gesto de violência, mas acabou por lhe pedir que se calasse.

- Foste tu quem me meteu neste assunto - disse num tom mais grave, para logo prosseguir. - E esse exige-te que comparticipes agora num assalto à mão armada a esta pobre gente...

- Mas a minha consciência - titubeou D. Fernando.

- Eu sei o que isso é; também falo de consciência algumas vezes para me desculpar a mim próprio. Mas no fundo...

Lá fora ouviu-se um arrastar de pés, vozes confusas e ralhos de um homem. D. Afonso aproximou-se da janela, para recuar, como se tivesse receio de que o vissem.

Era a roga que abalava sem um só dia de trabalho naquela vindima. Todos caminhavam cabisbaixos, de sacolas sobre as costas, furtando os olhos tristes para as valeiras onde os cachos apodreciam. Não havia um riso - não havia um brado mais alto. Só os olhos marejados gritavam maldições contra aquela terra mártir que os enganava. E seriam léguas e léguas de caminho, sem uma cantiga nem um gracejo. O tocador do bombo levava-o a tiracolo e parecia rastejar com o seu peso; ele recordava as esperanças mortas dos serranos que tinham vindo à Terra Quente e voltavam agora pela estrada do Inverno.

  1. Afonso chamou o pai e apontou aquela gente.

- Nós ainda teremos crédito... E eles?!...

- Perdemos o resto que nos sobejava - disse o fidalgo.

- E eles perderam o resto que já não tinham... Era lúgubre aquele grupo que já saía ao portão,

como se acompanhasse a morte. Alguns voltavam-se ainda para trás e remordiam pragas; a maioria, porém, caminhava sem destino.

- Se eu pudesse escolher - continuou D. Afonso-, iria com eles...

E num arremesso fechou a janela, para não ouvir mais aquele ruído que se esvaía no quelho.

- Digo isto e sei que não vou... É a tal consciência que não serve a ninguém... No fundo só sinto piedade e a piedade não resolve.

- O rei voltará, meu filho - disse D. Fernando, puxando-o para si. - E então faremos uma monarquia diferente...

  1. Afonso abanou a cabeça.

- Como te queres enganar! Mesmo que o rei voltasse, já não seria um rei da nobreza, mas um monarca sem monarquia, um soberano mandado pelos banqueiros e pelo fabricante de tecidos de Santo Tirso.

- Tentaremos a segunda incursão, já que a primeira falhou. E nesta vez devemos todos...

- Todos menos eu, pai. Já não me bato por coisa alguma.

- Preferes ser bêbedo - gritou-lhe D. Fernando, desvairado.

- Um bêbedo que não se vende. Já agora, faço questão em ser a nódoa de vinho na camisa branca do burguês, enquanto outros...

  1. Fernando levantou ainda a mão para o agredir, mas acabou por empurrá-lo para fora do escritório; depois voltou-se para o retrato do pai. "Se fosses vivo..."

E, não podendo estar só, tocou a campainha para o Silva Costa.

 

O Porto mundano vivia para aquele acontecimento. Moviam-se influências políticas e económicas por um convite de entrada no baile e a atenção de todos estava voltada para essa noite, que os jornais anunciavam em cativantes pormenores:

O CENTENÁRIO DA FEITORIA INGLESA

Por convite dos mais antigos e considerados negociantes ingleses da nossa praça, a respeitável colónia britânica de Porto celebra amanhã, com uma festa sumptuosa, o centenário da casa da Rua Infante D. Henrique conhecida pela "Feitoria Inglesa". Como a 11 de Novembro de 1811 ela entrasse na posse dos onze negociantes a que fora

doada, a festa de amanhã - 11-11-1911 - subordinar-se-á quanto possível àquele número. Assim, às 11 horas da manhã, realiza-se um opíparo almoço, sendo os convidados os onze mais antigos negociantes e alguns mesmos ¦representantes das casas comerciais inglesas aqui estabelecidas desde 1811; e às 11 horas da noite servir-se-á também uma ceia magnífica, seguida de baile no qual todos os convidados trajarão à época de 1811 e em que se exibirão as danças daquele tempo. Os vinhos serão igualmente de 1811, oferecidos pelos representantes das casas inglesas já existentes no Porto àquela data.

Para esta festa, que promete ser brilhantíssima, estão feitos numerosos convites.

Um baile na Feitoria Inglesa era sempre um facto que sacudia a mornice da cidade; mas ainda com uma invocação de 1811, em que cada qual podia afirmar melhor os seus proventos, era de transtornar qualquer. Consultaram-se gravuras "e livros de história, numa compita de rigorismo na indumentária; vieram sedas de França e os ourives tiveram encomendas de jóias de estilo apropriado; muitas senhoras arrastaram a família até Lisboa, para que os mais afamados alfaiates e costureiras da capital se esmerassem na reconstituição de uma época faustosa. Seges e cadeirinhas abandonadas de há muito voltaram às oficinas para sofrerem reparações e pinturas.

Vivia-se para aquele frenesi.

Alguns, bem poucos já, recordavam em conversas um outro baile que mobilizara a pena de Ramalho Ortigão na Gazeta Literária do Porto, em protesto contra certas discriminações feitas pelos Ingleses nos convites. "Para ser conhecida de certo cidadão britânico, quantas vezes precisa de passear em Cima do Muro ou na Rua dos Ingleses uma senhora que recebe na sua casa a primeira sociedade e frequenta os primeiros salões da sua terra?", escrevera Ramalho. Na revista dirigida por Camilo, aquela secção "Ecos do Porto" era das mais comentadas e ouvidas. E Ramalho daquela vez não tomara desforço só pela senhora a quem não fora mandado convite para a Feitoria, mas também por "um homem da mais perfeita elegância" a quem fora também negada a entrada, "pelo motivo de ser apenas aspirante em uma repartição pública, onde tiveram convite um ou dois calças de couro, cujos únicos merecimentos sociais consistiam somente em ter na respectiva repartição um lugar superior ao do aspirante referido".

"As disputas que isso dera no Café Guichard!", recordavam os mais velhos com saudade. Era para evitar algum caso semelhante que todas as famílias de sociedade tomavam precauções e moviam amizades, para que a direcção da Feitoria as não esquecesse. As famílias monárquicas, então, levavam a palma às demais, no desejo de mostrarem aos republicanos o deslumbramento desse tempo que lhes pertencia; tinham perdido a primeira incursão armada e pareciam apostados em tirar desforra naquela festa.

Retorquiam-lhes alguns jacobinos mais caturras, percebendo o manejo, citando frases inteiras de Teófilo: "Portugal deve à Inglaterra a sua ruína; a dinastia de Bragança deve-lhe a sua estabilidade." A cidade tomava partido e discutia o acontecimento, como se lhe dissesse respeito. E os mais exaltados barafustavam nos botequins e cafés.

- Que os Ingleses festejem a data, isso é com eles, embora seja um desrespeito ao brio nacional; mas que haja portugueses que queiram ter esse nome e se metam lá dentro é que é vergonhoso. Há cem anos Portugal não desfrutava da sua independência.

E, arrogantes de patriotismo, desfiavam minúcias.

- Para consolidar a dinastia dera-se o Oriente aos Holandeses e por essa altura enfeudava-se o País ainda mais à Inglaterra. É isto que se vai festejar?! Já leu Oliveira Martins?... Pois leia e depois avalie. Já se esqueceram estes talassas traidores que por 1804 as Misericórdias da raia negociavam com os expostos da roda, vendendo-os aos Espanhóis, a tanto por cabeça? Já se esqueceram que a pretexto de Napoleão ter um exército em Baiona os senhores Ingleses fizeram desembarcar tropas em Lisboa quando antes se tinham apoderado da Madeira, Goa, Macau e de outras possessões portuguesas para não perderem tempo?!...

- Talvez para nos proteger - titubeavam alguns, a quem a violência da crítica atemorizava.

- Para nos proteger de quem?... Não, certamente, de Junot, que deu entrada em Lisboa, sem batalha, à frente de um exército estropiado e faminto. E sem um tiro. Mais tarde, quando os senhores Ingleses desembarcaram na Figueira, é que tiveram os seus rompantes: foram-se às fábricas portuguesas e arrasaram-nas, dizendo que a sua existência era contrária ao Tratado de Methuen e aos interesses das lãs inglesas. Saquearam povoações, forçaram as filhas do povo com mais brutalidade do que os Franceses, e quando, com o nosso auxílio, foram capazes, pela primeira vez, de derrotar tropas de Napoleão, assinaram a Convenção de Sintra, deixando o invasor levar tudo quanto nos roubara e estipulando, em troca, que a bandeira inglesa fosse arvorada nos nossos fortes.

- É isto que se vai comemorar?!... Pobre gente sem memória!

E os pormenores já se decoravam.

— Em 1809, Lorde Wellington assistia às sessões do Governo e tinha voto - e que voto! - em todas as questões relativas à governação do País, enquanto o Bragança, o espapaçado D. João VI, continuava a permitir que Carlota Joaquina tivesse a sua corte à parte, como no tempo de Queluz. Ainda não contentes, os Ingleses impunham-nos o tratado de comércio de 1810, que era cópia fiel do de Methuen. É isto o que os Portugueses vão festejar à Feitoria? Ou serão ainda as resoluções dos congressos de Paris e Viena, em que Portugal figura como vencido, apesar de ter derrotado Napoleão?... E no de Paris, supremo escárnio, para contentar a França vencida, a Inglaterra entregou-lhe ainda por cima, a nossa Guiana. Será tudo isto que se lhes vai agora agradecer?!... Eram exageros de exaltados, pensavam alguns; despeitos, talvez, de quem não receberia convite para a festa, diziam outros. A verdade é que segeiros, alfaiates, costureiros e ourives não tinham descanso naqueles dias para aprontarem encomendas.

Estabelecida no século XVII, em 1656, por decisão do Parlamento inglês, e com prerrogativas de cobrar direitos de importação sobre todas as mercadorias importadas de Inglaterra, a Feitoria passara em 1790 para aquele importante edifício de granito, grave como a religião dos seus donos, e de paredes grossas como um castelo medieval que ainda por cima gozava de direitos de extraterritorialidade.

Naquela noite perdera o seu ar circunspecto com todas as luzes dos candelabros acesas e abertos os três portões do corpo central do edifício. Por eles começavam a entrar os primeiros convidados, alguns dos quais chegavam em carruagens puxadas a duas e três parelhas ou em cadeirinhas que criados de libré e cabeleira levavam a pulso. Outros, mais exuberantes, não dispensavam o acompanhamento de mais criadagem, que os alumiava, à moda da época, com lanterninhas colocadas na ponta de varas compridas.

Nas arcadas do vestíbulo, onde realçavam seis pesadas colunas de granito, abrindo passagem para três portões dourados, o eco das saudações misturava-se com o ruído das portinholas que se "abriam e dos estribos que se baixavam para deixarem sair as franças ou sécias e os peraltas que as acompanhavam, estes mais comprometidos nas farpelas de cores.

No outro passeio, contida pela polícia, a malta esfarrapada do Barredo e das proximidades deslumbrava-se com o desfilar de tamanha riqueza; alguns mais atrevidos imitavam as vénias e os beijaémãos, dizendo grosserias que faziam estalar gargalhadas e dbrigavam à intervenção da autoridade.

- Quem quiser estar, não faça barulho! - recomendavam os cívicos.

Pela passadeira de veludo vermelho que cobria a escada, também de granito, e entre filas de criados de libré, os convidados subiam sob o olhar de John White-head, um antigo cônsul no Porto, e que ali estava numa tela de pintor britânico. Pelas paredes, gravuras diversas e, entre elas, uma de Forrester, com a Rua Nova dos Ingleses e a Feitoria. As senhoras cumprimentavam-se com amável hostilidade, indagando num rápido olhar se as outras se lhes avantajavam na riqueza dos tecidos ou no rigor do figurino. Havia-os de tule, com forros de tafetá, de musselina, de cetins e veludos, em cujas cores predominavam o branco, o azul e o rosa, guarnecidos de flores ou com fitas de outras cores. Algumas traziam capas de arminho sobre os ombros e os braços nus; e as jóias a avultar nos decotes e nos dedos, os leques de rendas e penas, os perfumes raros, davam ao baile uma magnificência que ultrapassava o que se havia imaginado.

- Nem em Lisboa-dizia-se com orgulho bairrista.

- Tão elegante como em Paris ou Londres!

- Só falta à festa um mulato a cantar lunduns, como no tempo de D. João - dissera um erudito.

Houve logo quem manifestasse ser pena não lembrar esse pormenor aos Ingleses.

- Eles não gostam de gente de cor...

- Ah, sim!

Nas senhoras predominavam os penteados à grega, com pequenos caracóis sobre "a testa; mas havia-os com laços e rosas, plumas e colchetes, fios de pérolas e fitas, com as figuras mais estranhas, desde as piras aos cestos e às estrelas. Mas onde a fantasia feminina se deliciara fora nos sinais do rosto. Albano Freitas documentara-se a preceito e, em pouco tempo, a sua sabedoria correra os salões da cidade. Mandaram-lhe cartas e recados, procuraram-no no escritório e em Gaia, para que desse a sua opinião; ele não se escusara, repetindo por toda a parte a mesma arenga decorada.

- Os sinais eram uma ciência ou, antes, uma linguagem cifrada, se se preferir. Correspondiam aos sentimentos de quem os usava. O da testa era majestoso e o do canto dos olhos apaixonado; discreto o das fontes, como galante o da face; era atrevido o do nariz, provocante o da barba e garrido o dos lábios... E o da orelha tentador... E o da asa do nariz uma loucura!

Dava opiniões, dizia galanteios, tomava danças para a noite da festa entre as consulentes. E lá estava agora, ao cimo da escada, com as suíças e o cabelo crescidos, imponente na casaca verde, calção curto e sapato de fivela, a cumprimentar os grupos que subiam e a receber homenagens pela sua erudição em sinais.

A orquestra já tocava no salão grande, onde até 1830 se professara o culto da Igreja inglesa. E toda aquela multidão elegante se espalhava pelas salas e corredores, pela biblioteca e sala de bilhar, onde admiravam uma gravura do rei Eduardo VII, montando um cavalo negro, e o retrato de D. Manuel II, de Portugal, entre as duas janelas que deitavam para a rua e sobre um dos sofás da sala - via-se naquela dupla presença uma expressão bem clara da simpatia britânica pela realeza de Portugal.

Às onze da noite, em ponto, a ceia principiara, lauta em acepipes e doces, e ainda mais farta de vinhos, dos mais perfumados e famosos pela cor. Brindou-se a Sua Majestade Britânica na sala de jantar, um salão comprido de paredes apaineladas, onde um grande espelho, sobre fogão de ferro "made in England", com moldura em relevo com motivos de cachos de uvas e parras, lembrava o interesse britânico pelo comércio dos vinhos do Douro.

- Por Sua Majestade Britânica! - Pelo país da ordem!

O Freitas não deixava a irmã do Roop. E falava-lhe do seu desgosto por não ter nascido em Inglaterra, talvez na Escócia, no país dos lagos maravilhosos, que não queria morrer sem visitar. Ela fingia não lhe entender a corte, namoriscando com olhares o Morrison, um irlandês alentado, seu companheiro de partidas de ténis no Oporto Club.

- Mas Portugal é um lindo país - dizia-lhe, distraída, Dorothy Roop. - Este belo sol...

- Não me fale do nosso sol, Miss! Tenho a impressão que é a grande desgraça deste país. Onde há sol há

preguiça

Ela rira-se, sacudindo os ombros magros.

- Não acredita? Veja África, por exemplo...

- E os Esquimós? - lembrou Dorothy, acriançada.

- Ah, sim, os Esquimós... - E logo refeito. - É a

excepção à regra.

Mas já no salão de baile a orquestra rompera com uma valsa-galope e a Roop se lhe escapava para tomar o braço de Morrison, desaparecendo por entre os grupos que assaltavam as mesas e as bandejas dos criados.

  1. Fernando Pimentel arrastara Glamowse (um inglês que fora modelo de janotismo no Porto, onde até lhe imitavam a surdez) para a sala de leitura.

- Uns heróis, estes Ingleses! -exclamou D. Fernando, desfolhando o livro de assinaturas dos visitantes, onde em 1813 tinham inscrito o seu nome os oficiais do 1.º e 3.º batalhões das Guards aqueles oficiais de Beres-ford de que alguns tinham o comando das tropas portuguesas. Dois anos a pé, por essa Europa - prosseguiu o fidalgo -, para vencerem em Waterloo a cavalaria de Napoleão.

- Morreram quase todos nessa batalha - esclareceu o inglês, fazendo girar um dos grandes globos terrestres.

- Sim, morreram pela libertação da Europa, e por isso mesmo ainda hoje vivem nos nossos corações...

Para D. Fernando, que trazia uma missão secreta a cumprir junto de Glamowse, a libertação da Europa tinha um significado especial.

- Sabe das nossas intenções?-disse o fidalgo,

verificando que estavam a sós.

- Sim, já sei. Espero que tenham melhor êxito desta vez...

Pimentel debruçou-se sobre o ombro do outro. - Se pudéssemos contar com uma ajuda efectiva da Inglaterra, tudo seria fácil...

- Não desconhece que por tradição nunca intervi-mos nos assuntos internos das outras nações - asseverou o inglês com dignidade.

  1. Fernando teve de se reprimir para lhe não responder como devia; mas pôde prosseguir no mesmo tom íntimo:

- Bastaria uma visita da esquadra de Sua Majestade... Seria um estímulo incalculável! A ajuda da Espanha talvez não baste e é impopular para muita gente.

- Porque a aceitam?

- Porque temos de fazer alguma coisa contra essa peste que corrompe o País. Os senhores não vêem como se referem à Inglaterra alguns dos chefes dessa canalha?!... Até a propósito deste baile...

- Eles se calarão! - disse Clamowse com bonomia.

- E não será demasiado tarde? - lembrou o fidalgo.

O outro sorriu.

- A Inglaterra tem sempre a noção do tempo. - E num gesto amigável tomou o braço de D. Fernando. - É claro que preferimos ver Portugal governado por um rei. Façam os senhores alguma coisa, com coragem, é evidente, que nós não faltaremos no momento próprio.

Luisinha Borges Alves estava encantadora com o seu penteado à grega, o vestido de tule branco com grinaldas de rosas na saia e o adereço de jóias da época de D. João V que o pai lhe trouxera de Lisboa, como prenda dos seus dezanove anos. Radiante, parecia-lhe que toda aquela gente estava ali para a ver dançar uma "escocesa" nos braços de D. Carlos Pimentel, a figura mais bela de rapaz que a sociedade nortenha conhecia.

Ela não ignorava os despeitos de que era alvo quando ambos apareciam. Muitas raparigas de famílias brasonadas a invejavam, vingando-se em ditos que noutros tempos a indignavam até às lágrimas; mas Luisinha sabia agora que o noivo também a amava e já não se sentia infeliz, como nos primeiros tempos de namoro, em que uma carta anónima lhe lembrara as diferenças de nascimento e perfidamente lhe insinuara que D. Carlos lhe buscava o dinheiro do pai e não o afecto.

A música, a profusão de luzes, aquela moldura de casacas e vestidos, entonteciam-na de felicidade.

- Danças só comigo? - ciciou a rapariga com ternura.

- Não te parece um exagero?

E ambos sorriram. Ela reviu-se deslumbrada nos olhos azuis do noivo, enquanto a mão enluvada de Carlos lhe premia a anca.

Roop, desajeitado como sempre, desabotoara a casaca e parecia disposto a ficar em mangas de camisa. E quando viu o Freitas ao canto duma janela aproximou-se para entabular conversa.

- Sabe da malandrice que nos preparam?

O Dr. Freitas mostrou-se espantado, como se nunca pudesse suceder ao Roop uma coisa dessas; mas aquela identidade do inglês consigo era mais uma prova do prestígio que já tinha conquistado entre os exportadores.

- Disse que nos preparam, Mister Roop?

- Sim, pois. Vir a caminho do Porto um comboio carregado de vinhos do Sul. Já saber tudo eu; destina-se a uma quinta do Douro.

- Mas...

- É o que lhe digo. E o nosso esforço honrado pela marca sofrer coisas assim mal feitas. Governo português está muito mal...

O Roop ofereceu-lhe um cigarro.

- Já não bastar a situação em que toda gente ficar este ano... uma vindima perdida...

- E o que acha que deveríamos fazer?!... Eu estou a seu lado, Mister, para tudo o que for preciso e justo.

Roop esperava que o outro adivinhasse o que ele pretendia; Albano Freitas ficara-se a pensar no caso, embora também esperasse algum vinho dessa procedência para tapar as faltas daquele ano. "Mas quanto menos, melhor", dissera para si. Num repente veio-lhe uma ideia.

- E se...

- Diga - insistiu Roop.

- E se nós não deixássemos o comboio passar?...

- Freitas ser capaz disso?!

- E porque não? O pior é arranjar quem queira... Roop sorria, matreiro.

- Talvez não será muito difícil levar povo a fazer isso... Comprende? Gente ter fome...

Freitas receava meter o povo naquelas coisas.

- E se eles abusam depois?...

O inglês riu-se da ingenuidade do outro.

- E para que quer Freitas a Guarda Republicana?!... Se eles irem muito fora do que é preciso, manda-se Guarda. Comprende?...

Os sete candelabros do salão de festas resplandeciam de lumes. No varandim do fundo, a orquestra afixara o número que ia tocar de seguida: uma mazurca. Um dos músicos, devidamente informado pelo Dr. Silveira, ergueu-se para esclarecer que a mazurca tinha exactamente um século de existência. Os convidados acharam o pormenor encantador e aplaudiram.

Borges Alves, o banqueiro, dançava com D. Constança Pimentel, enquanto a esposa se comprazia nos braços de D. Afonso, tentando acompanhar o ritmo vivo da música. Ele sentia-a arfar debaixo do espartilho e fugia a certos desvios de conversa que a futura sogra do irmão provocava.

Albano Freitas, com o Roop ao lado, mostrava-se pelas salas.

 

Lá fora, no passeio fronteiro, só a polícia ficara. A gente do Barredo fartara-se do espectáculo e já debandara para os covis.

 

António Francisco não conseguia vencer o temor que se apossara dele quando pensava que poderia ter perdido naquela vindima todo o dinheiro que amealhara. Bastava para tanto haver comprado as uvas nas cepas, como propusera a muitos lavradores; e era o facto de compreender que só não estava arruinado porque os outros não tinham acedido às suas propostas que lhe dava aquela amarga sensação de impossibilidade em dominar os acontecimentos.

Sentia desejos de esvaziar aquela ira que o cansava em alguém que o viesse procurar para qualquer exigência dos compromissos tomados; precisava de satisfazer aquela cólera que o tornava inquieto e o entristecia. O seu rosto, esverdinhado pelas maleitas, tornara-se entumescido; nos olhos salientes e bogalhudos havia ainda aquelas raias de sangue que os tinham toldado quando vira a insistência da maldita chuva que destruíra tudo. A mulher bem lhe dizia: "para que voltara tão cedo?" Não devia, sequer, ter voltado, pensava com obstinação. "Que ganhara com isso? Que lhe iria suceder ainda?" E aterrorizava-o a ideia de perder o fruto dos seus sacrifícios por terras estranhas. Sujeitara-se a tudo - só ele sabia o quê - para que a vida se lhe tornasse mais fácil; e agora ali estava, salvo embora, mas com a certeza de que um golpe igual lhe poderia invalidar esses anos de privações e de canseiras. Por debaixo de tudo, como uma ferida assolapada, a inveja pela colheita dos Teimas e o bom preço conseguido na venda ao inglês.

Ainda não conseguira perceber a atitude do padrinho naquela noite, já distante, em que pretendera desfeiteá-lo. E só a consolação de que chegara para ele lhe trazia uma relativa paz ao espírito.

Evitava sair-sabia pelo pai que todo o povo andava acabrunhado, adivinhando o inverno que se aproximava. Sempre calado, com aquela ameaça da ruína a pairar sobre si, vagueava pela casa. Gracinda mostrava-se mais animosa, desde que o cunhado deixara de aparecer por causa da zaragata com o marido. "Tudo, afinal, se resolvera de um dia para o outro; quando o bom tempo voltasse, iria pagar a sua promessa a S. Salvador do Mundo." E era ela agora quem procurava arrancar o António Francisco àquela crise em que se debatia.

-Então, homem?!... Devias estar contente porque eles não quiseram.

- Mas julgas que me posso esquecer? Se fosse no Brasil, tinham-me pedido um papel e agora os advogados vinham exigir que pagasse o resto.

Entre as sobrancelhas, as duas rugas cavavam-se mais.

- E a gente abalava daqui! - retorquiu Gracinda. - Não temos terras...

Satisfazia-o a coragem da mulher, mas era nela que desabafava a sua ira.

- Foste tu que me meteste nisto...

- E se tens comprado terras, estavas melhor? Perdias tudo...

Ele hesitava.

- Assim, podes agora exigir que te paguem o que lhes emprestaste - insinuou Gracinda.

António Francisco ficou mais transtornado; ferrou o olhar no chão e vieram as palavras de sempre.

- Vê lá o Teimas se aparece... Arranjou a desculpa de se ter zangado comigo para me não pagar; mas se fosse sério...

Ela não tinha agora mais preocupações e incitou-o.

- Porque não falas a um doutor de leis?...

- E o papel?!... Pediste-lhe algum quando lhe entregaste o dinheiro?...

Gracinda calou-se. Ele passeava agitado à sua frente, olhando-a com rancor.

- Uns ladrões! Mata-se um homem a trabalhar e eles pensam que o dinheiro dos outros é como o vento que se dá...

Depois abrandou-se aos poucos, vendo a mulher triste.

- Nem um aparece...

Pegou-lhe no queixo e obrigou-a, com ternura, a levantar a cabeça.

- Não te ponhas assim, cachorrinha! Por causa deles até embirro contigo. Mas que há-de a gente fazer?...

Gracinda esperava aquela trégua com alvoroço.

- Eu se fosse a ti chamava o Tio Inverno... Ficavas a saber por ele o que os outros pensam.

António Francisco pesava a sugestão com esperança; depois entusiasmou-se com a ideia que lhe ocorreu.

- Se apanharmos todo o dinheiro, abalamos daqui. Os olhos de Gracinda iluminaram-se. "Então é que tudo acabaria para sempre."

- E vamos para o Brasil os dois...

Por um instante ele ficou silencioso, como se revisse o que por lá deixara. A mulher aproximou-se e ele apertou-a contra o peito.

- Gostava de amanhar terras minhas, mas terras também não faltam no Brasil - disse com voz branda de que só ele sabia o significado.-E ricas! -juntou com alegria, como se receasse algum pensamento que tivera. - O cacau rende melhor que o vinho...

 

Passara na aldeia o vento áspero do infortúnio.

E não havia lenitivos, porque lá estavam, firmes, os horizontes vencidos pelos socalcos, a recordarem todos os instantes da tragédia. A igreja enchia-se à missa da manhã, mas as preces não bastavam.

O Inverno chegava com as suas inclemências - e o Inverno não dava trabalho nem pão.

Os homens abalavam dos cortelhos, ainda a manhã vinha longe, e acamaradavam nas vendas vazias de géneros; as mulheres ficavam presas às lareiras, aquecendo-se do frio do tempo e da fome, a ouvirem a lamúria dos filhos e a amaldiçoarem-nos, para que eles tivessem medo e se calassem.

O centeio que se cozia ficava uma semana nas arcas para endurecer, e só depois ia à mesa; tinham morto os recos antes do Natal, mas a sua carne não chegaria para muito tempo, agora que não havia dinheiro para comprar outros condutos.

"Onde achariam os lavradores com que fazer as cavas?! Iam, talvez, deixar as vinhas morrer sem granjeios, porque os agiotas retraíam-se nos empréstimos com receio doutra vindima igual."

- E eles?!... Que fariam os cavadores naquela terra que os enjeitava?!... O melhor caminho seria abalar - mas abalar para onde?!...

E ficavam roídos por aquela ânsia de partir, como se as montanhas lhes barrassem a pastagem para além dos cumes agrestes.

 

Helena acabara por se habituar à ideia de não reagir mais, evitando invocar o passado ou ceder à tentação de pensar, agora, que estava grávida e dentro de alguns meses seria mãe. Só não conseguia dissimular aquela tristeza que a abatia e lhe arrasava os olhos de lágrimas quando olhava para as montanhas tocadas pelo Outono e as via desfazerem-se em cores que pareciam penetrar-lhe o coração para o comover.

Os dias estavam soalheiros, mas ela sentia-os como a despedida de alguma coisa que não voltaria mais a fazer parte da sua vida. Lá para o pino do Verão tudo iria modificar-se. "Seria melhor assim", pensava. Ela, que nascera para dar ternura, não podia suportar, por mais tempo, aquela aversão pelo marido.

Havia montes vermelhos, como se a terra estivesse a consumir-se numa fogueira, onde avultavam, ainda, aqui e além, tons mais vivos que sangravam; outros ainda desfaziam-se em verdes anémicos, já tocados por manchas amarelas que logo adiante eram douradas, como se o sol quisesse deixar nos braços das videiras a cor que não deixara nos lagares; pinceladas púrpuras avultavam noutra montanha, lá mais longe, e transformavam-se pela tarde, ao pôr do Sol, em tons violáceos. E quando o Sol descia, afogueado, entornava-se por todo o horizonte em mil cores que pareciam rodopiar no espaço, tingir os montes e penetrar todas as coisas e o seu coração duma tristeza tão funda que ela julgava ouvir a terra chorar, como ninguém, as desditas daquela colheita perdida.

Então deixava as lágrimas correr e ficava ali, encostada à janela, tempo sem conta.

Naquela tarde, a filha do caseiro já trouxera a braseira para junto do seu lugar preferido, e ela nem se voltara para lhe agradecer. Sabia-lhe bem chorar aquelas lágrimas e ver lá fora o manto da noite chegar e cobrir tudo - primeiro de azul, depois de roxo, até que vinha a capa negra das trevas recamada de luzes dos cortemos das aldeias e dos casebres dispersos.

O marido entrou e arrancou-a àquela contemplação.

Silva Costa acendeu o candeeiro, sentou-se perto das brasas e pôs-se a ler uma carta que trazia na mão, depois de lhe recomendar que fechasse as portas de dentro e tivesse cuidado com o frio. Ela percebeu, a distância, que qualquer coisa o preocupava nas notícias que recebera.

Sentou-se também, pegou nas agulhas e na lã que tinha dobado depois do almoço e deitou-se ao trabalho. O marido detinha-se algumas vezes na leitura e olhava para ela antes de recomeçar, como a pedir-lhe um conselho ou algum ânimo. As expressões de Silva Costa sucediam-se: ora denunciavam desalento, ora indignação. Depois, num gesto desabrido, atirou com o sobrescrito para a braseira; Helena reconheceu a letra de Albano Freitas. "Que diria a carta?" Sentiu-se corar sem saber porquê.

Silva Costa ergueu-se, foi até à porta a sacudir a carta com violência e voltou para a sua cadeira.

- Alguma má notícia? - perguntou Helena num fio de voz.

Ele parecia esperar aquela interrogação para eclodir em violência.

- Já viste alguma boa notícia de há um mês para... A vindima perdida, essa gente a rebentar para

aí que nem sei o que vai fazer... Se eu estivesse longe como os outros que estão no Porto, bem me importava! Mas aqui tenho a impressão que estou cercado e de um momento para o outro...

- Então, Alfredo ?!...

Ele sossegou quando lhe viu a mesma expressão de calma dolorosa e aproximou mais a sua cadeira.

- Dizem-me que vem aí vinho do Sul... Já o sabia, de resto.

- E que tens tu com isso?! Silva Costa voltou a irritar-se.

- Assim devia ser; mas tenho. o fidalgo, antes de abalar, deu-me ordem para receber esse vinho na outra quinta. E agora o Freitas escreve-me para que eu arranje um grupo de homens e não deixe o comboio chegar ao seu destino. Estás a ver isto?!...

Helena incomodou-se com a sua excitação e tentou ajudá-lo.

- Mas se tu achas que não podes...

- E sei eu, porventura, o que não devo fazer?... (Por instantes, baixou a voz.) o fidalgo é ainda o meu amo... e tem sido nosso amigo. Mas ao Freitas não devo menos favores. E ele fala-me do Roop... Ora o Roop é um trunfo de que eu preciso.

Silva Costa ergueu-se; foi, silencioso, até à porta e voltou para junto de Helena.

- O meu lugar aqui está perdido, eu bem o sinto. D. Fernando vai ficar sem a quinta. E mesmo que seja o Azevedo dos tecidos que fique com ela, já sei o destino que me reservam...

- Talvez não, Alfredo!

Ele teve um sorriso de amargura.

- Não vale a pena arranjar ilusões. Terei de ser só comerciante de vinhos... (No fundo, Silva Costa preferia desfeitear o fidalgo.) E se fecho a porta ao Freitas e ao Roop, dou uma machadada no meu futuro...

Helena adivinhava que o marido pretendia conhecer a sua opinião. "Não seria aquilo uma experiência por causa dos ciúmes pelo D. Afonso?"

- Tu é que sabes... Mas acho que não deves esquecer os teus interesses. E agora mais do que nunca!

Ele percebeu-lhe a alusão e comoveu-se.

- Sim, é isso mesmo, Helena. O nosso dever agora é o nosso filho. Não me disse o fidalgo que era só por causa da D. Constança que se prontificava a satisfazer o pedido do Azevedo?...

A invocação das palavras de D. Fernando afastou as últimas dúvidas de Silva Costa.

- Se vier a saber-se a minha interferência no assalto, o fidalgo há-de compreender-me. E se não quiser... paciência!

 

João Ermida ficara contrariado ao receber o encargo de Silva Costa, mas nem a expressão do rosto o traíra. Já se habituara a esconder os seus sentimentos perante o administrador da quinta, sabendo que aquele lugar, que o defendia das incertezas do trabalho assalariado, tinha imposições a que não podia furtar-se. "Quantas vezes lhe apetecera largá-lo, só para não andar atrás dos outros que nem um cão raivoso, agora porque era preciso trabalharem mais (vamos lá com isso! ), depois porque quanto menos se pagasse ao pessoal melhor se assegurava como caseiro, depois ainda na poupança da lenha, da trica e das sardinhas para o comer das rogas. Ele bem sabia que os outros o odiavam; até aqueles que vinham falar-lhe de chapéu na mão. Algumas vezes odiava-os também e era ele mesmo que exagerava as ordens que recebia no escritório. E ainda lhe invejavam a sorte! Mas se soubessem... O pior ainda era quando sentia falta de coragem para tomar uma resolução. Vou-me embora, acabou-se! Não posso mais com isto! E adiava sempre a conversa, uns dias por causa dos filhos, noutros porque não havia casas na aldeia, e por mais isto e mais aquilo... Algumas vezes procurava consolar-se: que diabo, caseiros houve-os sempre e, se não for eu, outro qualquer virá fazer o lugar; um destes que diz mal de mim por onde calha e me olha duma maneira tal que se os olhos fossem balas já há muito me teriam deitado abaixo."

Mas o lugar tinha sempre novas exigências. Agora era preciso arranjar homens para parar o comboio e destruir o vinho que trazia - e amanhã que mais lhe iriam pedir? Que matasse um homem?!

Desabafara com a mulher no cortelho, arrasando o administrador com praguedo, mas acabara por procurar o Sandão e o Espanhol para lhes falar no caso. O Silva Costa dissera-lhe que, se fosse preciso dinheiro, não se importasse com isso; agora só pensava é que era preciso evitar essa despesa para ele o receber só para si.

Fora o diabo primeiro que encontrasse maneira de agarrar a ponta da meada. O Espanhol mostrara-se logo desconfiado e renitente. "Que m'importa a mim que chegue vinho do Sul? E é só agora que vossemecês vêem isso?! E das outras vezes, quando são eles mesmo que o compram?"

- Lá estás tu nas tuas...

- Pois que venha esse vinho todo e alague o Douro que nem do Alto das Monteiras se veja o picoto!

João Ermida quisera levá-lo às boas, com pancadas de amigo nos ombros e esperanças de trabalho certo na quinta.

- Então tu não vês que é uma desgraça se esses malandros se metem aí?!... Já não digo só por vossemecês...

O Espanhol estava rebelde.

- Eu não tenho nada a ver com isso... Mas só me custa é que lá na quinta, quando era no tempo do rei, não vissem essas coisas...

O caseiro reagira com juras de que ninguém sabia daquilo, nem o Silva Costa nem o fidalgo. Ele é que ouvira dizer e achava que não se podia ficar de mãos atrás das costas.

- Pois é, João, pois é - retorquira o Espanhol, cada vez mais desconfiado. - Mas quando foi do assalto ao armazém do Jerónimo, eles é que mexeram os pauzinhos lá na Pesqueira. E agora és tu que dizes à gente que o vinho do Sul vai chegar e que pode ser uma desgraça.

O Sandão estivera calado até ali, a recordar as conversas do Paço Valiente, e antegozava a ideia de viver uma aventura semelhante às do outro. E agora, que não tinha para onde abalar à cata de trabalho e não podia ouvir mais a mãe e os irmãos, tudo lhe parecia melhor que ficar no cortelho ou nas lojas à espera - à espera sabia ele lá do quê.

- Pode contar comigo, Seu João - disse, por fim, com aquele sorriso amalandrado que todos lhe conheciam. - É pra hoje?!... Se vossemecê quiser, eu falo ao Fontelas e a outros.

O Espanhol olhara-o com raiva e desprezo.

- Sabes lá o que estás a dizer...

- Pois já ando farto de só andar ao teu mando. Vou e vou mesmo.

E abalou com o João Ermida atrás.

Escondidos arriba do Pinhão e divididos em dois grupos, um nos socalcos da Roeda e outro entre a escarpa que vai da linha férrea à margem do rio, os homens esperavam. O taro apertava e eles para ali estavam de atalaia, sem se poderem mostrar muito, não fosse alguém denunciá-los ao chefe da estação, que poderia requisitar a Guarda de Alijó.

O Sandão destacara um deles para um ponto mais alto donde vigiava a linha, desde a curva do Pinhão, e todos o olhavam à espera de qualquer sinal. Inquietos, de mãos engadanhadas pelo frio, a apertar a coronha das caçadeiras, raramente falavam. Passara um comboio para baixo e o estrépito das rodas e dos vagões fizera medo a alguns, já arrependidos de se terem metido numa daquelas.

- Ó Sandão! Não será melhor a gente abalar? Quem sabe se isto não será alguma partida do João?...

O Fontelas segurou-os.

Sempre taciturno, depois que soubera da filha, parecia outro naquele momento. Voltara-lhe a energia dominadora que os companheiros respeitavam.

-O comboio não passa! Nem que eu fique sozinho...

Nenhum deles era capaz de o abandonar. E continuaram à espera, enregelados, sempre atentos aos ruídos que vinham do lado da estação ou dos sinais do que estava , de atalaia.

- Se calhar, só vem de noite - disse o Balsa.

- E a gente fica aqui até que ele passe - foi a resposta do Fontelas.

A tarde declinava. Um nevoeiro denso começara a subir no rio e já velava a outra margem. Na Quinta das Carvalhas ouviam-se vozes de gente e o ladrar de cães. Um rabelo passou perto deles ao impulso dos remos de seis homens.

Até que um silvo veio de longe e os sacudiu daquele torpor. Todos se puseram de pé, com as caçadeiras nas duas mãos, prontas a serem metidas à cara se fosse preciso. O Fontelas avançou para o carril que seguia a linha e, num gesto de mão, mandou os outros esperar. Era ele agora quem mandava. Um novo silvo mais forte e agudo se ouviu, e os homens sentiram-no num arrepio de medo.

- Quando ele se aproximar e eu fizer sinal, vosse-mecês disparam para o ar. E logo que ele pare, já sabem...

O maquinista olhava a via do óculo de vigilância e, com o aviso que lhe tinham dado em Covelinhas, aumentara a velocidade ao comboio.

- Não parou na estação - disse um deles.

- Caluda!

O Fontelas saltara para o meio da linha de espingarda em punho, como se defrontasse a peito descoberto os que lhe tinham estragado a vida e perdido a filha. Alucinado, agarrou no chapéu e atirou-o fora - parecia-lhe um arco de ferro que lhe oprimia a cabeça.

- Atirem agora!

Uma rajada de detonações dispersas cortou o silêncio, a que respondeu novo silvo da locomotiva. O farol aumentava, a terra tremia à volta deles. Mais outra descarga e outra.

- Foge, Fontelas! - gritou alguém.

Na sua marcha desabrida, o comboio passava agora junto deles, parecendo arrastá-los consigo, naquele matraqueio de rodas e braços, de lume e de vertigem. Os vagões corriam sempre num galope que os entontecia.

Mas já ninguém se lembrava do vinho do Sul.

- E o Fontelas?... - disse um deles num cicio. - Fontelas! - gritou outro, como se quisesse rasgar a noite com a sua voz.

- Fontelas!... -gritaram mais vozes.

E como só lhes respondesse, ao longe, novo apito da locomotiva, tiveram medo de ficar ali mais tempo e abalaram todos, numa correria de loucos, em direcção à aldeia.

Em casa da sogra, Silva Costa ouviu o comboio passar.

- Não parou -disse para Helena. - Agora tenho de ouvir os do Porto...

 

Francisco Teimas sabia do dinheiro emprestado pelo marido da Gracinda e incitava os outros a não lhe pagarem. Confiava nisso para que ele abalasse da aldeia, ficando livre daquela obsessão que lhe destruía a vida. E que levasse também a mulher - que era algumas vezes o seu desejo.

Poderia ainda recomeçar, sabendo-os longe, se arranjasse uma companheira para cuidar da casa. Então ele se atiraria ao trabalho com o mesmo afã do pai, agora, que se sabia incapaz de buscar fortuna noutras terras. O Chico era um homem; o Luís estava um rapazola para o ajudar também nos granjeios e nas surribas. E os três, com os conselhos do velho, seriam capazes de aumentar os seus bardos.

Mas depois voltava-lhe aquela mesma fadiga que lhe destruía as energias e a vontade. Passava noites sem dormir, a recordar todos os seus encontros; a senti-la junto de si, a ouvir-lhe as promessas, a admirar-lhe os olhos e aquela boca que nunca mais podia esquecer.

Uma noite gritara e aparecera no quarto do pai a perguntar se fora ele quem dera aquele grito.

- Foi a tua voz, Francisco - respondera-lhe o velho, ainda alquebrado pela doença que o assaltara após a chuvada.

- A minha?!...

Tivera medo de si, inquietara-se com o seu estado de saúde. "Estaria doido, como o Chasco que só falava do Fatinário e acabara pelos caminhos a cuidar dos cães de quem se dizia irmão?..."

Voltara ao seu quarto e aquele atordoamento constante na cabeça, certas vozes que lhe nasciam nos ouvidos e os martelavam, o desejo de sair e ir bater-lhes à porta, de espingarda em punho, arrancando-os a tiro dos braços um do outro, apavoravam-no. Procurara, então, deter o pensamento, com receio da loucura, evitando mexer-se na cama, como se um simples gesto pudesse lançar sobre ele essa maldição.

Fechou os olhos para dormir e ficou assim durante muito tempo, inacessível aos rompantes que os nervos exigiam dele; mas o sono não chegava nunca. "Porque não o tinha a Gracinda envenenado? Ninguém desconfiaria a princípio, pois o António Francisco vinha doente. Ela é que não quisera; ela gostava do marido e enganara-o. Sim, era ele o enganado, porque o outro chegara e o lugar pertencia-lhe a ele, Francisco Teimas. Aquilo devia ser de família. Quem sabia se também a mulher, a Elvira, lhe teria feito o mesmo?!"

E procurava qualquer pretexto, um só indício que lhe pudesse dar essa certeza. "Elas sabiam fazer as coisas pela calada! Mas agora não ficaria assim. Uma noite havia de lhes assaltar a casa... Obrigava-os a despirem-se e chicoteá-los-ia sem piedade".

Levantou-se excitado e parecia-lhe ouvir já o zumbido do chicote, manejado pela sua mão, a golpear o espaço e a estalar-lhes depois nos corpos nus. "Seria a sua vez de rir. Anda para ali, cadela! Mete-te aí nesse canto, enquanto dou conta deste reco." Via-os assombrados de pavor, a suplicarem-lhe clemência. E ele, sempre cruel, levava-os a agarrarem-se e a pertencerem-se à sua frente.

Gritou novamente e teve a certeza que fora ele quem gritara. Deitou as mãos à cabeça, apertando-a com todas as suas forças, como se pudesse esmagar os pensamentos que o desvairavam.

"E se endoidecesse?!..."

Essa ideia transtornou-o. Correu à janela e abriu-a. Ficou ali, hirto, a receber o frio áspero da neve que vinha do Marão nas asas do vento e lhe cortava o rosto, mas lhe devolvia também uma calma que há muito não conseguia gozar.

As lágrimas romperam por fim. Suaves, primeiro, escorrendo-lhe dos olhos turvos pelo ódio; logo depois em soluços que o atiraram sobre a cama, para acabarem na mesma doçura que o deixou a dormir até de manhã, quando o pai o veio acordar.

Estava exausto, mas recordava ainda alguma coisa da sua alucinação.

- Sonhaste esta noite, Francisco?!... Ouvi-te falazar para aí até que me apareceste que nem um avejão...

A um gesto seu o velho calou-se.

- Não me fale nisso, pai.

Queria afastar aquela ideia de vingança, agora que lhe receava as consequências.

- Sabes? - disse por fim o velho. Vou mandar algum dinheiro ao António Francisco.

- Não faça uma coisa dessas, pai; sou eu quem lho pede.

- Escusa de andar por aí a morder na gente...

- Eu calo-o, se for preciso - respondeu com voz alterada. - Não é o pai que lhe deve, sou eu. Foi a mim que ela emprestou...

"Ela era a Gracinda... Aquela boca... ocorpo preso nas suas mãos... E agora tudo isso pertencia ao outro."

- E quando ele quiser - continuou - a gente faz as contas todas duma vez.

- És maluco, Francisco.

E, agarrando o filho pelos ombros, segredou-lhe: - Mulheres daquelas não valem a vida dum homem...

Francisco olhou as mãos vazias e lembrou-se do tempo em que elas afagavam aquele corpo que já não lhe pertencia.

- Trago-a no sangue, pai. Aqui, dentro das veias... E estendeu o braço forte, passando os dedos trémulos nos sulcos azuis que lhe marcavam a pele morena.

- Isso não se pode esquecer...

O velho Teimas quis interrompê-lo.

- Não fale; não diga nada. A dívida é minha; é isso que lhe vou mandar dizer. Daquela vez, estávamos em casa dele e o António levou a melhor. Mas agora há-de vir aqui buscar o dinheiro... se o quiser.

Vestiu o casaco e apertou bem as bandas no peito. O tique arrepanhava-lhe a face, mas ele sorria.

- A gente vai é fazer a nossa adega. O vinho rendeu bem...

Envergonhado, baixou os olhos.

- A si o devemos. E o dinheiro do inglês há-de chegar prà obra com o nosso trabalho.

E, num acesso de ternura pelo velho, deitou-lhe as mãos por cima dos ombros.

- Eu nasci com uma costela sua que tem andado escondida; mas desta vez sou eu que a quero bem à mostra.

E abalou pela escada abaixo.

 

O velho persistia em fazer um bocado de saibra-mento, dois ou três socalcos que fossem, e quando uma ideia se lhe metia na cabeça não a largava até a levar por diante. Se o contrariavam, dizia de uma vez todas as suas razões, trémulo e apoplético, para cair depois num mutismo de que não o arrancavam tão cedo. Daquela feita fora impulsivo logo à primeira objecção de Francisco, que não soubera interpretar-lhe o olhar, onde havia uma doçura que contrastava com a violência das suas palavras.

António Teimas sabia que daquela vez o filho tinha razão; mas o maior prazer da sua vida era ver as montanhas darem vinho, e sabia que tão cedo, talvez mesmo até à sua morte, eles não poderiam levar a cabo mais uma surriba. Francisco entendia aquela insistência como uma maneira de o velho o hostilizar, diminuindo-o aos olhos dos filhos, e reagia com vivacidade igual, onde descarregava toda a ira que lhe ia no coração amargurado.

- Mais vinho para quê, pai?... Se o que já temos nos mata a cabeça e o corpo...

- Deixa lá isso comigo.

- E depois aquilo é só fraga, onde a gente vai rebentar o peito; aquilo é quase serra que só presta para as cabras - insistia Francisco.

- No Douro tudo é bom menos o que fala - retorquiu o velho, repetindo um dito antigo. - Aquilo ali é uma encosta de xisto ensaboado e quando o sítio é estalado, como aquele, um rompimento é melhor do que mel para as videiras.

O filho sabia que estava no direito e não desbancava da sua.

- As raízes andam lá por baixo como cobras, coi-tadinhas, à cata de fresquidão e só encontram calor que as abrasa. E em pouco tempo cansam-se, como as mulheres que parem muitos filhos e murcham depressa.

- Se eu pensasse o mesmo, quantos socalcos eram agora nossos?... A gente não deve medir as canseiras que a terra dá...

As razões faltavam-lhe e António Teimas esbravejou.

- E, demais, todos estavam à espera da chuva e tu querias também que eu esperasse. E se não fosse eu com as minhas maluqueiras, como vocês lhes chamavam, a gente não tinha colhido só um cacho. Assim pudemos vender o nosso vinho por um preço que nunca nos deram em tempo nenhum.

- Com a desgraça dos outros- interveio Francisco.

- Desgraça de que não temos culpa. Pois se fui eu que ganhei o dinheiro, deixa-me ao menos gastar algum como eu desejo...

- E porque o não queima?

O velho percebeu que tinha a partida ganha e dis-pôs-se a contemporizar. Aproximou-se do filho, que se sentara junto da mesa, e puxou um banco para mais perto.

- Quem tem razão és tu, homem. Francisco sorriu.

- O lagar é mais preciso do que nada; essa é que é a verdade. Escusamos de dar aos outros o que é nosso, vendendo as uvas a peso ou pagando maquias que nos levam uma boa parte. Mas estou velho...

Teimas hesitava no que devia dizer.

- Sei lá o tempo que ainda vivo. E gostava... A comoção tornou-lhe os olhitos piscos.

- E gostava de fazer ainda uns socalcos, para que amanhã os teus rapazes se lembrassem deste ano e aquelas videiras ficassem ali a dizer a toda a gente...

As mãos de ambos encontraram-se.

- ...que eu... que eu era cabeçudo como as pedras, mas que às vezes tinha razão.

Fez depois uma pausa curta, em que o seu olhar vagueou pela casa, como se procurasse recordações.

- Isto é a modos uma rixa em que eu ando com as fragas: umas vezes ganham elas e outras vezes eu. Na filoxera roubaram-me tudo e estive quase a dar-me por vencido. Só eu o sei!... Matar-me também... ou abalar... ou queimar tudo...

Ergueu-se depois num arremesso.

- Mas a pouco e pouco tenho-as obrigado a entregarem-me a terra que me quiseram levar para sempre. Levo contadas todas as videiras que tinha nessa altura. E agora já me faltam só cinquenta para chegar à mesma conta...

Francisco viu-o passar os dedos pelos olhos. - Percebes agora ?...

- Sim, pai.

- E já posso morrer descansado, porque vou com a certeza de que quem levou a melhor fui eu.

Voltou depois para junto do filho, pousando-lhe a mão no ombro.

- Quando for lá para baixo, a terra não se ri de mim... Ganhei-a bem, entendes? É cá uma mania!

E ambos sorriram.

Começaram a "surriba de caras acima", como chamam no Douro àquela forma de arrotear. Cinco "parelhas" de homens, falados na feira de trabalho, e ainda outra com Francisco e o filho mais velho, faziam o desmonte, enquanto António Teimas com o Luís -oele era lá capaz de gozar quieto aquela alegria! -, ambos munidos de macetas, iam partindo a pedra miúda que saía dos alicerces abertos e a desfaziam em terra.

Em cada parelha um homem trabalhava com um ferro de vinha (mais de metro e meio de tamanho e três arrobas de peso) e descarnava as pedras maiores do alvéolo rijo da montanha, para as deslocar a poder de braços, enquanto o companheiro removia os xistos mais leves com a pá, encarregando-se da operação de varrer. À tarde teriam de se revezar, porque o da alavanca mal poderia mover a ferramenta depois de meio dia em faina tão dura.

- Agora com bacelo americano tem de se ir lá mais ao fundo - recomendava o velho. - Façam tudo bem feito, porque as videiras agradecem.

Dobrados na encosta escarpada, os homens derreavam-se de fadiga, deixando no seu rasto lento uma cascalhada de xisto, quartzo e **feldspato, onde pedregulhos, em fatias grossas, se avantajavam.

Francisco encontrara um penedo de granito - uma fraga da pele do Diabo - e tivera de lhe meter guilhos, batendo-os com a sua marra, uma maceta de ferro que ele descarregava num gemido, depois de a levar ao alto, num esforço que o desfazia em suor. Sabia-lhe bem martirizar o corpo, como se nele pudesse matar os seus desejos pela cunhada. Queria esquecê-la - tinha de a esquecer - e o trabalho parecia redimi-lo desses desvarios.

Parava "um instante, para desfazer o engrossar dos músculos, e logo o Chico, com ganas de homem, lhe pegava na marra e seguia a tarefa, porque ele tinha os seus brios e as outras parelhas iam mais adiantadas.

-Raios a moam! Esta filha da mãe chega prà gente!

António Teimas veio inteirar-se do que se passava e abanou a cabeça.

- Fato não vai a braço... Tem de se lhe aconchegar pólvora.

Francisco tomou-se de capricho e insistiu em golpes mais violentos; mas a fraga não cedia.

Em toda a fila o bater de ferros e marras acompanhava os **óis de ajuda dos peitos derrancados. Só uma espécie de despique com a montanha os levava a não ceder.

- Eli, tu!... Sim, tu!... Chega aqui! -gritou o velho.

Sandão já fora mineiro e ninguém na aldeia era mais expedito em fazer saltar pedras rebeldes. Com um ferro mais curto, o pistolo, o Chico apontou-o ao meio do granito, enquanto o pai lhe batia com uma maceta para fazer o ninho à pólvora. O Sandão aproximou-se a arquejar, empreguiou os Olhos num sorriso e apontou um veio da fraga - "Metam ali!" Ele mesmo lhe apontou o pistolo e à segunda pancada o bico entrou na "pele do Diabo".

À esquerda, na fileira, algumas parelhas começavam a parede do primeiro calço, acamando as pedras soltas, de face com face. Luís Teimas só tinha vontade de se deixar cair, tanto lhe pesavam a cabeça e os braços; mas via o irmão a portar-se que nem um homem e não queria passar por fracalhão ao seu lado.

- O muro bem feito, ó Espanhol! - pediu o velho. - Se esse não fica bem no fixe, uma chuvada leva tudo e deixa-me as videiras descalças...

Com um pau de atacar, o Sandão metia a pólvora, empurrando-a para o fundo dos buracos, passava-lhes o rastilho para dentro e apertava-a com pedritas e terra.

- Logo me calhou este dianho - lamentava Francisco.

Por um instante, o pensamento voltou-se para a Gracinda. "Tinha a certeza que se mordiam de inveja com a boa colheita e agora com aquele rompimento. Que esperassem o dinheiro se quisessem... porque ele também esperava." Cerrou os olhos e apertou os temporais. "Que esperava ele, afinal?!..."

Um grito do pai sobressaltou-o: "Larga tudo, gente! Larga!..."

Num instante, o desmonte ficou sem pessoal, acoitando-se cada um o melhor que podia. O velho tomou conta do rastilho, acendeu-lhe a isca em cima e escondeu-se também.

Por um momento todos descansaram, à espera que o tiro rebentasse. Francisco pensava ainda: "Desta vez hei-de esquecê-la. Nem que me estoire para aí..."

- Não achas que está a demorar? - disse Luís para o irmão.

- Se calhar, apagou-se - respondeu o outro a dar mostras de sabido.

E espreitou por detrás do penedo onde se resguardara; mas nesse omomento um estoiro repercutiu-se por montanhas e ravinas, fazendo-o recuar a cabeça por instinto, enquanto um pedaço de granito lhe passava perto e galgava a encosta.

Francisco Teimas irou-se e escabrejou com o rapaz.

As parelhas retomaram a azáfama até às primeiras estrelas.

 

Só no outro dia o muro de suporte do geio ficou levantado. E a primeira vaiada, cheia com terra e xisto da parte de cima, e ainda com outra que foi preciso ir buscar longe, demorou outro tanto. Para o segundo calço a pólvora teve de estoirar mais três vezes - o peito dos homens estoirava a cada passo.

Ninguém tinha braços nem rins.

Só António Teimas parecia não reparar no esforço que aqueles bardos exigiam de cada um. E quando a noite descia sobre a encosta, enquanto todos abalavam em busca da ceia e da enxerga, ele deixava-se ficar ainda encostado às paredes novas dos seus socalcos.

- Vem, avô?!...

- Andem lá adiante...

E ficava a recordar-se da sua vida. E em nenhuma lembrança achava motivo para se arrepender daquele amor pela terra.

 

Trôpego e desalentado, Manuel Inverno descobriu-se .e entrou. Gracinda conduziu-o até à cozinha, a cuja lareira o marido se aquecia.

- Este frio mata-me! -disse para o velho, que se aproximava. - No Brasil, só calor; aqui é um destempero de tempo. Se lá me acho outra vez...

- Queres voltar, António?

António Francisco acenou a cabeça, desprendendo uma das mãos de dentro da manta.

- Talvez...

Gracinda atirou umas achas para a fogueira que crepitava, espirrando lume, enquanto o marido puxava um banco para o Inverno se sentar à sua ilharga. Fitaram-se depois, demoradamente, como se quisessem entender-se nos propósitos - o olhar de António Francisco era penetrante e inquieto; no do velho só havia submissão e tristeza. E foi este quem primeiro retirou o seu, fingindo distrair-se a cofiar a barba embranquecida.

- Arranja aí dois copinhos de aguardente - pediu António para a mulher. Tomara-se duma certa comoção ao reparar melhor no rosto cansado do Manuel Inverno, onde os sofrimentos e a idade deixaram sulcos profundos. Reparou no seu dorso arqueado, nas mãos secas e trémulas, e sentiu-se oprimido ao pensar que o chamara para resolverem o caso do empréstimo.

Gracinda encheu os dois copos e incitou-o com uma expressão dura.

- A cachaça do Brasil fica longe disto - disse António Francisco, mirando o copo depois de o ter voltado num trago. - Mas lá o pessoal não precisa...

- É mais quente...

- Sim, é mais quente... Muito mais quente... Diziam palavras soltas, sem sentido, cada qual preocupado com o seu pensamento.

Voltou depois o silêncio -" só o fogo estava na lareira.

A Gracinda desaparecera e os dois ficaram para ali, a consumirem-se de dúvidas. António Francisco venceu, por fim, o seu embaraço quando a mulher os veio espreitar à porta e o interrogou com um aceno de cabeça.

- Pois é verdade, Tio Manuel Inverno... A vida nunca é como a gente quer. É o diabo!...

Enrolou-se melhor na manta de cordão, deixando um braço sollto para achegar as brasas da lareira.

- Vossemecê sabe... conhece-me de pequeno. Por aqui andei, aos encontrões, até me casar. Nem o seu pouco fui capaz de conseguir. Vendi uma casita que herdei com a morte da minha mãe e abalei... Só Deus sabe com que tristeza!

O velho não o olhava. Pressentia, desde o recado que recebera, por que motivo estava ali. Tinha as mãos descaídas entre as pernas e pensava na maneira de sossegar o outro quanto ao empréstimo.

- Trabalhei muito... Sofri ainda mais... Saudades, doenças, o diabo!... Por lá amealhei uns pataquitos, que ia mandando para a Gracinda.

A sua voz excitou-se e cresceu.

- Ela deixou-se levar pelo coração e vá de entregar algum dinheiro aos Teimas. Vossemecê sabe!...

O velho só acenou a cabeça.

- Quando cheguei aqui, é que tive conhecimento disso. Esperava que mo dessem sem mais conversas... Já bastava o favor. E até hoje, nada! Ainda por cima, o Francisco, sem eu ver de quê, me quis desfeitear, julgando que por vir doente já não tinha braços para qualquer malandro... Venderam o vinho por bom preço e andaram para aí a surribar, quando se fossem honrados... E já falam em fazer um lagar.

- É a maneira de não serem roubados - arriscou o Inverno, numa voz velada pela emoção.

- E roubam-me o dinheiro que eu juntei em troca da saúde, não é?!... Vossemecê acha ! bem?!... Diga, homem, fale! . O Inverno não ignorava que dependia dele, mas não podia esquecer também a sua amizade pelos Teimas. E tentou furtar-se à conversa.

- São coisas entre vossemecês, António! Que queres tu que eu diga?!...

- Que seja pelo justo!

António Francisco parecia agora não recear o frio; desembaraçara-se da manta e erguera-se destemperado, a sacudir os braços. Gracinda reaparecera, olhando-os da porta. O velho sentiu a sua presença e voltou-se, como a pedir-lhe auxílio; mas reparou que ela segurava na mão o papel da dívida que contraíra. E teve um arranco de coragem.

- Não me fales dos outros, homem; não foi para isso que me chamaste...

António Francisco mediu-o com os olhos dilatados, sentindo que era injusta a piedade que tivera pelo velho.

-Quando paga o que me deve?!... -perguntou, já irado. - Há quatro meses, e nada! Julga também que fui matar-me lá fora para que vossemecês vivam todos à minha custa?...

Manuel Inverno sacudiu-se no banco e ergueu-se também.

- Não me fales assim, António. Tenho lá dois netos para criar e é por eles que ando nesta vida. Mas há uma coisa que eu ainda defendo acima deles: é a minha honra.

- Todos falam nisso e ninguém paga. A honra não chega...

- A mim é o que me serve - retorquiu o velho, mais calmo, embora as mãos lhe tremessem.

António Francisco aproximou-se da mulher e tirou-lhe o papel para o mostrar depois ao Inverno.

- Sabe o que é isto?!...

- Sei, sim. E não preciso de garatujas para me lembrar o que devo. Mas eu pergunto se já te esqueceste que não colhi um bago de uva, que perdi na vinha tudo o que lá pus: dinheiro e trabalho; que preciso de comer e não sei onde o posso achar...

Aquelas invocações excitaram-no e a sua voz cresceu áspera.

- Também não sabes isto?!...

António Francisco não se domou com o olhar de ódio do velho.

- O dinheiro que lhe emprestei está por cima de tudo. Vossemecê gastou-o ou não?

- Gastei-o na vinha...

- Pois, então, venda-a, faça dela o que quiser, mas dê-me o dinheiro. E os outros hão-de entregar-mo também. Estão ali os papéis; vou para o tribunal, e se lá forem têm de me dar o dobro. Dinheiro de sinal num negócio, quando se não cumpre, vale duas vezes.

-O dobro?!... - gritou Manuel Inverno, desabrido. - Ainda por cima, tu queres o dobro?!...

Gracinda não falava, mas era a sua presença que dominava os dois homens. E o velho voltou-se para ela:

- Tu ouviste? (Então ele compra-me as uvas, venho aqui para receber ordem de vindima...

- Todos esperavam, Tio Manuel - retorquiu Gracinda com frieza aparente, embora se comovesse com a sorte do velho.

- Todos esperavam, mas eu vim contar que o António Teimas estava a fazer a vindima e ele poucas vezes se enganava. E vossemecês riram-se dele e de mim.

E avançou decidido para António Francisco.

- Tu sabes o que dizes?!... Então tu queres que eu te pague duas vezes o que recebi para te entregar

uvas?!... E onde estão as uvas?!... Vai buscá-las à terra! Estão lá desfeitas de podres... Se eu quisesse... O outro retorquiu-lhe com um sorriso.

- Já aprendeu também a lição do Dr. Pimenta, não é?!... Comprei-lhe uvas, não as houve, não paga!... Isso era um roubo que me faziam! Mas esse doutor... Ele que não julgue que eu sou o Jerónimo!

- Já disse que me não nego ao que te devo - replicou o velho de braço erguido. - Tens é de esperar...

- E se eu não quiser ou não puder?...

- Vai lá prós tribunais, se entenderes! -gritou-lhe Manuel Inverno, deitando-lhe a mão à manga do casaco.

António Francisco dominou-se; voltava-lhe o desejo que o fizera partir.

- É melhor vender-mas...

- Vender-te o quê?!...

- As terras...

Foi depois o velho que sorriu.

- Com que então, as terras?!... E os meus netos?!...

- Na justiça perde tudo, Tio Manuel - lembrou-lhe Gracinda.

- Descansa, que as não perco...

- Vende-as a outro, não? - interveio António Francisco.

- E podia vendê-las - replicou o velho com uma calma que só ele sabia entender. - Devo a mais alguns e primeiro do que a ti. Mas as terras não se vendem...

Num impulso inesperado, e sem que o outro o pudesse impedir, Manuel Inverno arrancou-lhe o papel da dívida e atirou-o para a fogueira. António Francisco correu ainda para o salvar das chamas, mas já o lume se apossara dele e o destruía. Então voltou-se para o velho, desvairado pelo ódio, e caminhou para ele de mãos erguidas.

- Haja lá o que houver - e sacudia-o pelas bandas do casaco -, agora é que vai prà justiça, seu cachorro! E nem que eu gaste todo o dinheiro que ganhei, as suas terras hão-de ser minhas...

Gracinda temia agora as consequências daquele encontro. O marido fazia recuar o velho até à parede, querendo fulminá-lo com o olhar.

- Hão-de ser minhas quinze dias, pelo menos.

-E tu julgas que vais ao tribunal? - perguntou o Inverno.

-Tenho a certeza! Nem que eu cegue...

- Não cegas, descansa!

Gracinda aproximou-se e tentava separá-los; o Inverno olhou-a com ódio, acenando-lhe a cabeça numa ameaça.

- Também tu ?!...

Ela entendeu-lhe aquela expressão significativa e afastou-se.

- Mas isto agora é conversa só para homens... Encarou o outro novamente, avançou para a porta,

sorriu-lhe ainda e disse-lhe, a repisar as sílabas com intenção.

- Vem aí o Carnaval... e a gente vai jogá-lo, António. Tu vais à justiça e eu vou a casa...

- Vossemecê está a ameaçar-me?... - Não! Estou a avisar-te.

E, aproximando-se ligeiro do outro, disse-lhe quase ao ouvido.

- Mato-te que nem a um cão!

Desvairado, já incapaz de se dominar, António Francisco deu-lhe duas punhadas que o atiraram por terra. O velho ergueu o olhar para ele, sorrindo-lhe de uma maneira estranha.

 

Diziam os burgueses velhos que o mundo estava doido e sem vergonha, mas esqueciam-se do seu tempo. Não se lembravam, pelo menos, dos anos que haviam passado a desejar outra mulher que não fosse a sua.

E agora, que o pecado chegara à vila, escondido na esbelteza de Miss Dora, eles reprovavam o entusiasmo febril dos que ainda tinham mocidade ou vontade de a possuir. Os lojistas, então, arrenegavam o circo que lhes tirava a freguesia - aquela gentalha triste e esfarrapada que passava a vida a queixar-se de tudo, e agora mercava menos, pagava pior e arrebanhava quanto podia achar comprador que lhe desse dinheiro.

"Miséria!... Miséria o quê?! Vejam lá se eles faltam aos palhaços e a essa atrevida que veio para aí transtornar as cabeças", diziam indignados.

Eles não entendiam aquela necessidade de o povo olvidar o seu dia-a-dia.

O empresário, um velho faz-tudo italiano, é que pressentira o negócio e lhe deitara a mão - o Inverno estava à porta, tinham acabado as feiras onde armar os panos, e as despesas com o pessoal efectivo eram certas. Ali, ao menos, com os artistas a receberem ordenados reduzidos e as bilheteiras sempre procuradas nos dois espectáculos semanais, ele podia defender-se melhor dos encargos e amealhar ainda alguma coisa para a incerteza da época próxima.

Nos dias em que não havia circo, a companhia passava-os em jantares, ceias e passeios, a convite de lavradores e comerciantes que arrostavam com todas as convenções do meio, as zangas familiares e as reprovações dos velhos, só para conseguirem intimidade com a trapezista, na esperança de ganharem o trofeu da sua preferência. A verdade, porém, é que Miss Dora sorria para todos e aceitava quantas ofertas lhe fizessem, sem mostrar, contudo, qualquer predilecção. Ia sempre acompanhada; se não por toda a companhia, ao menos pelo domador de cães, um morenaço de bigode à Kaiser e peito de lutador que parecia disposto, em conversas, a facilitar alguns acessos à companheira.

As senhoras odiavam a loura; secretamente, porém, invejavam-lhe a corte. Fechavam as janelas quando dia passava, recolhiam as filhas, não se lhes pegasse a moléstia, mas os seus sonhos não se podiam contar.

A campanha Contra a trapezista ganhava audácia e já não se confinava às reuniões femininas ou às perlen-gas dos velhos lojistas - começava a chegar ao gabinete do administrador da República, o Dr. Moita, que de princípio se mostrara alheio a certas pressões. "Era preciso acabar com aquela vergonha de se verem pessoas de respeito metidas com uma galdéria. E ainda por cima estrangeira."

O caso tomava aspectos políticos e não era, portanto, muito fácil de resolver. Se o Gonçalves especulador interessava pouco ao Dr. Moita, outro tanto não sucedia com alguns que pesavam boas dezenas de votos e podiam mudar o rumo às eleições e às autarquias locais. O administrador desejava chegar à Câmara dos Deputados e via agora a sua candidatura em perigo se desse ouvidos à campanha das senhoras e dos lojistas. Por mais de uma vez estivera para se demitir, mas o seu partido obrigava-o a ficar.

- Com esta crise, o povo precisa de alguma coisa que lhe desvie a atenção. E se ele gosta de Miss Dora...

E o Dr. Moita continuava na Câmara; e por detrás da Câmara lá estava o circo do palhaço italiano.

Maria Dolorosa percebia-lhe o propósito, denunciado a cada instante nos ralhos desabridos ou nos silêncios hostis, e mais ainda na inquietação do olhar que fugia a encontrar o seu, como se nele se denunciassem os pensamentos que o Gonçalves procurava ocultar. Ela, porém, evitava tudo o que pudesse levar à sua saída daquela casa. Tornava-se mais humilde, fazia-se carinhosa, procurava adivinhar-lhe os caprichos para os satisfazer. E não o amava ainda, apesar de estar ali ia já para três anos. Sentia até pelo Gonçalves uma repugnância que só agora conseguia submeter, tão grande era o receio de lhe ouvir um dia a ordem de abalar.

Quando ele se lhe dirigia, transtornava-se e punha-se-lhe no peito aquela dor opressiva, sempre à espera das palavras que já decorara: "Arranja as tuas coisas, anda. Pago-te o comboio..."

Maria Dolorosa sabia, porém, que não poderia voltar para a sua aldeia. E lembrava-se daquela música distante, dos homens no salão da Casa Grande e da voz que a perdera: "Tens uns lindos olhos, sabes? E cantas quando falas... Foi para ti que toquei esta noite."

Ela conhecia agora o único caminho que lhe ficava aberto na vida e por isso suportava as iras e as insinuações do Gonçalves. Ele que andasse com a trapezista, gastasse o seu dinheiro, mas que a deixasse continuar ali, escondida das tentações da Sr.a Marianinha, uma velha que a procurava para lhe falar de uns senhores, tão doidos por ela que lhe dariam tudo. "Eu ferrava-lhe a partida; ora se lha ferrava! Porque não falas ao menos com o Sr. Doutor?... Ias lá a minha casa, ele não sabia, e não era por conversares que te desonravas. Ah, que se eu tivesse uma cara dessas quando era nova, não andava por aqui às esmolas, não! Quando uma noite ele voltasse da estrangeira, só me via o lugar..."

Maria Dolorosa tinha algumas vezes os seus assomos de dignidade; mas sabia qual o destino que a Sr.a Marianinha lhe prometia - era lá mais acima, mesmo no alto do Peso, naquelas casas atarracadas onde, à noite, os homens zaragateavam por causa de raparigas de salto alto e rostos brancos de pó-de-arroz.

Aquela filha era a grande paixão da sua vida. E quando, depois de jantar, a esposa o chamou para a sala e lhe contou porque andava ela triste e chorosa, o Dr. Moita sentiu-se também traído por Miss Dora.

"O Simãozinho nunca mais apareceu debaixo da janela. Anda doido com a loura e faz vergonhas por aí. Viram-no ontem de barco no Salgueiral a tocar a guitarra e a cantar... E a nossa menina, coitadinha..."

Foi uma noite terrível, porque a manhã nunca mais chegava e o Dr. Moita não sabia como conter a sua indignação. Entrou na Câmara primeiro do que ninguém, esqueceu os votos e ias suas ambições a deputado e mandou logo o contínuo chamar o palhaço italiano.

- Hoje mesmo o senhor desarma o circo e abala daqui. Se até ao ineio-dia eu não vir o largo vazio, mando lá a Guarda deitar tudo abaixo.

-Mas, Signore...

-Não diga mais nada! Como autoridade, não posso permitir que uma terra pacata se torne numa nova So-doma...

O palhaço não sabia onde isso ficava, mas percebeu que tinha de levantar as tendas e sair da vila.

 

A invasão dos mercados pelos produtos alemães obrigou o consórcio britânico a mandar um dos seus elementos mais destacados a Lisboa, para que resolvesse, sem demora, certas resistências que se concretizavam em demasia. Na primeira entrevista, Mister Smith quisera fulminar o **Barãona e o Cunha Ferreira com os seus argumentos. "Que se desejassem aproveitar a oportunidade de bons negócios o fizessem com espírito de colaboração e que lamentava forçarem-no a sair de Londres em momento tão importante. Fizera-o, é claro, pela muita considerações que lhe mereciam, mas os produtos ingleses não necessitavam de caixeiros-viajantes como os alemães, nem estavam em agonia para entrarem em guerra de preços. Entendia, contudo, de seu dever, lembrar alguns aspectos que o problema continha: a aliança de Portugal com a Inglaterra, a protecção britânica às nossas colónias, sempre em risco de serem absorvidas, e ainda a boa memória inglesa para saber distinguir os amigos e os inimigos."

- Nem Napoleão nos venceu - lembrara Smith com arrogância. - Os que não são por nós são contra nós...

O Dr. Ferreira alarmara-se com a ameaça e a dureza daquelas palavras; **Barãona, porém, continuara convencido de que por detrás daquela aspereza havia um desejo de harmonizar e conceder justas compensações. Prometera voltar no dia seguinte com elementos concretos, insinuara os seus intentos, e ficara à espera que Mister Smith entrasse no bom caminho. Sabia demasiado que o momento não era propício a acções de força na Europa, como o fora com o ultimato a Portugal ou o bombardeamento de Copenhaga, nem talvez, sequer, a outro golpe semelhante ao que levara à destruição de Alexandria e ao desembarque no Egipto. Aludira, é claro, à possibilidade de maiores interesses britânicos no Niassa, nos diamantes... E porque não?!... Havia, sem dúvida, um mercado para os produtos industriais ingleses, mas a verdade é que Mister Smith devia compreender a necessidade duma mais ampla comunhão com ele e outros que não pactuavam... E falou do tratado com a Alemanha, a vigorar desde 5 de Junho de 1910, onde ele não comparticipara; mas era evidente que Mister Smith, homem razoável, não podia deixar os elementos sempre fiéis ao comércio britânico numa situação de patente inferioridade.

O inglês mudava de tom, entrevista após entrevista, e começara a ceder. **Barãona insistia nos vinhos e acenava com os diamantes e o Niassa. Até que um dia percebeu um especial empenho de Mister Smith nos assuntos de navegação. Os barcos alemães, franceses e, por fim, os americanos aumentavam a sua ameaça com fretes mais baixos, pondo em risco o quase exclusivismo da bandeira britânica nos portos do mundo. A partir dessa convicção, **Barãona firmava o pé contra os receios exagerados do Cunha Ferreira; e o delegado de Londres, que nos primeiros dias se mostrara intratável, recusando todas as ofertas para sair com eles do hotel, acabara por aceitar um passeio de automóvel às propriedades do Ribatejo.

O Dr. Ferreira trouxera o seu F. N. do último modelo, um carrão de cinco lugares, quase uma sala, todo em amarelos reluzentes, e os três de guarda-pós, bonés e óculos apropriados, lá partiram pela estrada de Vila Franca, a espantar a gente e os gados com o buzinar

desabrido do motorista, um antigo boleeiro que não gostava da troca das rédeas pelo volante. Um pouco antes de Alverca, o motor do automóvel começara a expelir uma fumarada incómoda, acabando por parar. O motorista galgou fora, deu à manivela, mexeu nas velas e no dínamo, sem fazer ideia no que bolia, e acabou por se meter debaixo do chassis para não declarar, simplesmente, que não entendia daquilo e era melhor rebocar a carripana.

- Conhece o nosso Morris?-disse o inglês, desdenhoso, rompendo o silêncio em que viera desde Lisboa.

- A invenção é francesa, Mister, retorquiu o Ferreira, despeitado.

- Mas os nossos são de qualidade superior. De resto, a indústria é mais nossa do que deles. Os automóveis só andam com gasolina e essa pertence-nos... E em cima de borracha, e também ela está nas nossas mãos...

- Aos Americanos nada disso falta - arriscou o **Barãona no seu inglês mascavado.

Mister Smith sorriu com desdém.

- Os Americanos querem chegar a tudo muito depressa. Hão-de acabar por reconhecer que uma nação e uma indústria não se fazem assim a mata-cavalos...

Os três tinham vindo passear para a estrada, enquanto grupos de camponeses se chegavam de todos os lados para ver o automóvel mais de perto.

- E depois hostilizam a Inglaterra, esquecendo lamentávelmente que, se não fôssemos nós, aquilo seria ainda hoje um país de peles-vermelhas... O seu ódio ao Europeu é...

O Dr. Ferreira acabou a frase: talvez uma maneira de se defenderem.

Mister Smith tirou os óculos. "Nada disso. É a patada do selvagem no dono que o civiliza. E os senhores, os continentais, que parecem todos à espreita de uma oportunidade para nos beliscar, têm muita culpa nisso, e oxalá não sejam ainda as primeiras vítimas dessa atitude. Escancaram a boca porque os arranha-cêus têm tantos andares, o nariz da estátua da Liberdade mede não sei quantos metros, etc., etc, etc... ."

- Mas é de sangue inglês a...

-Já sei o que vai dizer - atalhou Smith. - Esquece, porém, que a colonização da América foi feita por gente da Manda, por ingleses descontentes, e depois por todo o lixo da Europa: por aqueles que não tinham condições para triunfar nos seus países. Nós somos a sobriedade e eles o espalhafato... Basta reparar nessa campanha ridícula contra o casamento das suas milionárias com os aristocratas europeus. E isto diz tudo a seu respeito e da sua doutrina de Monroe.

O motorista experimentava fazer empurrar o F. N.; e os camponeses ajudavam-no, galhofando da "máquina".

- É lamentável - continuou Smith, depois de se afastar com os outros para um combro da estrada que os Europeus não percebam que têm na Inglaterra a única força capaz de os defender dos bárbaros Germânicos e dos aventureiros Americanos...

- Não é tanto assim -objectou o Cunha Ferreira. - A nossa amizade tem sido atestada vezes sem conta...

- Mas compram-lhes muito!

- Do mesmo modo que os senhores preferem os vinhos do Norte de Portugal, sem uma razão plausível - disse o **Barãona.-E porquê?!... Os senhores interessam-se pela indústria, segundo parece, e vão comprar vinhos a uma região industrial, a única culpada das pautas proteccionistas de que o senhor se queixa. Sejamos francos, Mister Smith. Se os senhores põem a defesa do comércio exportador inglês de Gaia acima do comércio mundial, e até do Império, está perfeitamente certo; então não devem vir falar aos outros no dever de cerrarem as suas portas aos produtos que não sejam britânicos. Mas...

- Deixe-me acabar, Mister Smith. Se pretendem uma colaboração ainda mais leal e efectiva da nossa parte, dêem aos comerciantes do Sul o direito de terem tratamento igual aos comerciantes de Gaia...

- Mas Port é uma marca regional que os próprios Alemães reconheceram no tratado - retorquiu o inglês, tentando defender a sua posição.

-E nisso já serve a opinião germânica, Mister Smith? - interveio Cunha Ferreira com a sua sagacidade de lente.

- Não é por aí, meu caro doutor - respondeu-lhe **Barãona. - Port é uma marca industrial... E tanto assim é que os senhores - continuou, voltando-se para o inglês - admitem como Port os vinhos de Tarragona, de Cette e da Austrália... Isso é condenável, evidentemente; mas refiro-me ao facto só para lhe dizer que Port é a marca industrial do vinho de um país. Port não quer dizer Porto, mas sim Portugal. Os senhores não lhe chamam Oporto Wine...

Cunha Ferreira entrou em detalhes históricos acerca do burgo nortenho que dera depois o nome ao país. E rematou:

-O senhor **Barãona tem razão, de facto. Razão económica e também histórica. Port é abreviatura de Portugal e não a de uma cidade, que, de resto, não produz meio decilitro de vinho licoroso.

- E ainda por cima - juntou **Barãona - vem comprar ao Sul uma boa parte do vinho que depois misteriosamente defende como se fosse seu. A (barra do Douro, criada pela Monarquia, é uma espoliação feita ao resto do País...

Smith sentia-se embaraçado e tentava defender-se. - Mas isso são assuntos nacionais, que eu não entendo. De resto, os senhores também fornecem vinhos com a designação de Lisbon-Port...

- O que é colocar os vinhos portugueses na mesma condição dos Tarragonas ou dos da Algéria... oconvénio de Madrid deve ser compreendido em Inglaterra de outra maneira; a designação Port deve pertencer só aos vinhos de Portugal, exportados de qualquer dos seus portos marítimos. E então poderemos entender-nos, sem causar prejuízos ao comércio inglês.

- Antes pelo contrário - juntou o Dr. Cunha Ferreira. - O Sul esita em condições de fornecer a preços mais baixos...

- Sem que a qualidade sofra com isso?!... Isso é que não me parece - respondeu Mister Smith com um sorriso vitorioso.

**Barãona tomou o braço do inglês para dar mais intimidade às suas palavras.

-"Na minha quinta de Alpiarça vai-me dizer, depois de provar alguns portos que por lá tenho, se mantém essa opinião. Há um pormenor importante que talvez desconheça: o sangue do vinho é a aguardente; pois essa somos nós que a fornecemos toda ao Douro. E então?!

Na estrada, o carro roncava, numa nova tentativa do motorista para o fazer andar.

Smith, já vencido, adiava resoluções para uma reunião que projectava na Feitoria do Porto; mas os outros não o largavam agora, vendo-o perto de uma plataforma de entendimento.

- Garantimos-lhe um tratamento igual ao dos barcos portugueses nos portos nacionais...

O inglês teve um aceno de cabeça.

- Que mais poderá a navegação britânica desejar?... Faz-se um tratado de comércio e na parte dos vinhos...

- Mas isso terá de ser aceite pelo Parlamento inglês - respondeu oSmith; - - E eu não sou o Parlamento...

- Vossa Excelência, se quiser - disse, a sorrir, Cunha Ferreira -é toda a Inglaterra e o mundo. Os seus jornais valem a opinião pública...

- Mas os ministros...

- Pode esclarecê-los também - lembrou **Barãona, que não disse exactamente o que pensava, para não ferir susceptibilidades. - E depois, perante um tratamento preferencial dos barcos ingleses, não há ministro que possa invocar razões justas, Mister Smith.

- Pois sim, mas a Inglaterra é uma democracia - esclareceu o delegado britânico. - O Parlamento tem as suas birras...

O motorista viera chamá-los para recomeçarem a viagem.

Pegando no braço do inglês, para o ajudar a subir, Cunha Ferreira gracejou:

- Se o Parlamento tiver alguma birra, o senhor prega-lhe uns açoites...

Mister Smith deu mostras de não gostar da imagem. E, quando se sentou ao lado do **Barãona, começou a explicar-lhe como funcionava a democracia britânica.

 

Albano Freitas adivinhava que na oferta de Sebastião Borges estava implícito qualquer novo factor no comércio de vinhos; somente não conseguia atinar nas ramificações que iam do Porto a Lisboa, com passagem pelos grandes vinicultores do vale do Tejo, e dali à City, em Londres.

Admitia a hipótese de que os ingleses da Feitoria tivessem comparticipação na manobra, pensando até em abordar o Roop para negociar algumas pipas dos seus vinhos, uma vez que ele fora dos que jogaram no retomo do bom tempo e não conseguira uma única gota de produção daquele ano. "Certamente", dizia o Freitas para si, "o Roop está comprador e eu tenho uma oportunidade de me furtar à oferta do Borges. Desconfio da fartura: o banco obriga-me a liquidar e o director do mesmo banco oferece-se-me para lhe tomar a posição no crédito. O que haverá nisto tudo?!... Coisa boa não é, pela certa. Quererá apossar-se do que me pertence, levando a entregar-lhe tudo, ou pressentirá qualquer operação futura de mão-cheia?!... Às cegas não anda ele, com certeza! Mas o que será?!..."

E aquela interrogação não o deixava sossegar, fazendo-o andar numa roda-viva do seu escritório de advocacia para os armazéns de Gaia, já incapaz de permanecer no mesmo sítio por muito tempo. Ia visitar outros exportadores portugueses, numa tentativa de encontrar no meio das conversas qualquer sintoma que o pudesse orientar; mas esses lamentavam-se também das restrições do crédito e estavam ainda em situação pior do que ele - o Sebastião Borges Alves não lhes concedera a mesma oferta de tomar a posição do banco. "E por que motivo lha oferecera expressamente?!"

A sua calma habitual abandonara-o.

Receava tomar resoluções; ia adiando o despacho do expediente diário que respeitava aos vinhos, sempre à espera de conseguir penetrar naquele mistério. Sentia-se impotente pela primeira vez na vida - espantado que nem um animal a quem fizessem montaria. "E se falasse ao Roop?!" Lembrou-se do projecto que um dia concebera, logo após a conversa com o Arnaldinho Veiga quando o comissário lhe dissera que "o pegasse de cernelha". E ocorrera-lhe a ideia de ir instalar-se no Candal, perto da casa do Roop, na intenção de fazer a corte à irmã, uma inglesa já madura e solteirona, escanifrada e voluntariosa no amor, segundo constava na vizinhança. Ainda comprara raqueta e vestimenta de ténis para jogar umas partidas no Oporto Club, pretexto mais fácil para se lhe aproximar e fazer a corte. Depois sentira-se ridículo, ao pensar que serviria de alvo à troça dos ingleses, que não deixariam de aproveitar a sua imperícia no jogo para o vexarem. "Talvez tivesse perdido uma grande oportunidade! Que importavam as gargalhadas dos bifes? O essencial era poder depois ripostar-lhes com a sua presença oficial dentro do meio. A irmã do Roop deveria ter a sua quota na sociedade e, logo que a conquistasse, o mercado de Londres estaria submetido. Apavorara-se com o ridículo e agora era tarde para empreender essa jogada. A única jogada que o podia ter salvado! Soubera afastar-se da filha de D. Fernando Pimentel, mas deixara o plano em meio, sem lhe dar seguimento, esquecendo-se de que só com obstinação seria possível chegar ao fim".

Amargurava-se com esse sinal de fraqueza; e as interrogações não o largavam. "Que hei-de fazer no meio de tudo isto?! Cruzar os braços, não; isso nunca! Lá porque perdi uma oportunidade, não vou agora afundar." Estremecia com a invocação. Via-se falido, por instantes, expulso dos armazéns de Gaia e da política, como um daqueles homens que só infundem lamentações aos outros. "Não, isso nunca! Lutaria até ao fim-com o Borges ou contra o Borges, com o Roop ou contra o Roop."

Não foi almoçar a casa para evitar mais explicações com o pai. IA tarde estava fria; um nevoeiro espesso cobria a cidade e penetrava-lhe nos ossos. Isolou-se num botequim para reflectir melhor na sua situação. Puxou por um lápis e papel, fez hipóteses e gráficos, estabeleceu planos e enjeitou-os; quis acalmar-se e irritou-se.

Inconscientemente, foi descendo até à Alfândega e meteu à Rua Nova dos Ingleses - em pouco tempo achou-se à porta do escritório do Roop. Só ali hesitou. "E o que lhe vou dizer?! Conf essar-lhe a minha situação é abdicar de tudo o que empreendi contra essa gente; é dar razão ao meu pai, é entregar-me vivo nas suas mãos como um passarinho. E estarei à sua mercê para o que ele quiser."

Acabou por voltar pelo mesmo caminho, mais apressado ainda, como se houvesse cometido uma falta e o Roop desse com ele ao fundo da escada. Quando chegou junto do rio, parou e deu um passeio pelo cais, até à ponte.

Rabelos atracavam a Gaia, carregados de pipas para a Sandeman e o Martínez, os únicos que tinham comprado os primeiros vinhos da colheita e ficavam agora com o mercado do ano na mão. "Se tivesse adivinhado!... Estaria a rir-se de todos." E achou-se insignificante, porque um simples golpe de infortúnio o colocara naquela situação.

O ruído e a gente do Barredo incomodaram-no. Pareceu-lhe que a sua presença junto daquela ralé lhe queria insinuar o futuro; e reagiu de pronto, resolvido a falar ao Borges Alves. Ocorrera-lhe uma ideia - agora,

sim. Iria valer-se do nome do Roop para tentar descobrir o que o banqueiro pretendia. Desejou correr, chegar depressa e entrar-lhe no gabinete.

- Sim, Dr. Freitas, entre. Sente-se.

Tentou aparentar serenidade, brincando com o monóculo.

- Então?!... A que devo a honra...

- A honra é só minha...

- Será dos dois - concluiu Borges Alves com a expressão viva de um homem afeito a dominar os acontecimentos.

- Venho a propósito dos créditos caucionados. Sabe da excelente qualidade dos meus vinhos...

- Ninguém o ignora, Dr. Freitas. Entenderam-se num sorriso. O banqueiro abriu a

cigarreira e ofereceu-a ao Dr. Albano, que aceitou um cigarro e acendeu, solícito, o do outro.

- Pois é verdade! Uma firma inglesa também os conhece e fez-me uma proposta interessante: comprar-me um bom número de pipas do melhor e exportá-las para Londres. Vou ter oportunidade de liquidar tudo ao banco...

A expressão do Borges Alves modificara-se e Freitas percebeu-o. "Vou por bom caminho", pensou satisfeito.

- Simplesmente, perde-se uma oportunidade de prestigiar uma firma portuense. Foi sempre esse o meu objectivo, transtornado agora com a exigência que Vossa Excelência se forçou a fazer-me. Perde-se ainda uma larga soma na diferença. O Roop -conhece, certamente! - vai ganhar, com a transferência daqueles vinhos do meu armazém para o seu, uma coisa parecida com seis vezes mais...

- Espantoso! - ciciou o banqueiro. - Um negócio interessante!

- Sim, um negócio interessante, não há dúvida. Tenho de dar uma resposta até amanhã e não quis fazê-lo sem lho comunicar primeiro. Não posso esquecer a generosidade com que acorreu em meu auxílio...

Durante um curto espaço de tempo fez-se uma pausa. A sereia de um barco deu aviso à navegação no rio.

- Talvez que eu pudesse comprar-lho! -disse depois Borges Alves, novamente com o seu sorriso vitorioso.

-E como chega Vossa Excelência a Londres?... - inquiriu Albano Freitas, de olhar atento às reacções do outro. - A jogada está nisso... Aqueles vinhos não se bebem em Portugal com esses rótulos de vinho para preto.

Esboçando um gesto muito seu com dois dedos da mão esquerda, o comerciante aproximou-se.

- São glórias nacionais, aqueles vinhos!

- Venda-mos!

- Para os vender estou comprometido com o Roop...

- Mas eu ponho-os em Londres - afirmou Borges Alves com convicção. - Compreende... o nosso banco tem relações...

- Estou comprometido com o Roop. Há só uma possibilidade!

- Qual?!...

- A de fazermos uma sociedade.

O banqueiro teve um gesto de evasiva.

- A única possibilidade! Eu darei os vinhos e Vossa Excelência a introdução no mercado e o crédito bancário. Ganharemos três vezes cada um o valor do vinho armazenado.

Borges Alves recolhera-se a pensar, brincando com o mata-borrão; o Freitas percebeu que achara o bom processo e insistiu, confiante.

- Doutra maneira não posso faltar à minha palavra para com o Roop. O prestígio do comércio... Mas é pena deixar fugir um tal lucro para mãos estranhas. O vinho do Porto é uma riqueza nacional! É justo que deixe riqueza para os Portugueses.

Borges Alves procurava descobrir uma maneira airosa de convencer o Freitas a entregar-lhe o negócio; mas as perspectivas estavam falhadas e só aquela podia ser encarada com êxito. Apesar de tudo, tentou ainda demover o outro.

- Diga-lhe que resolveu esperar... Pago-lhe mais vinte por cento.

- O seu valor em Londres é maior seis vezes, meu excelentíssimo amigo - ripostou o Dr. Albano, já garantido com a adesão do banqueiro. - E depois, compreende... O que se diria por aí na praça?!... Não só quanto a mim, mas quanto à sua intervenção. Todos afirmariam que o banco suspendera créditos e fizera exigências nas liquidações para o senhor servir os seus interesses particulares. Assim tudo estará defendido, ainda com liberdade de adquirirmos a muitos exportadores portugueses os vinhos que terão de vender para cumprirem as suas obrigações para com o banco.

Borges Alves olhava-o de soslaio e seguia com o pensamento o plano do Freitas.

- O seu projecto é curioso! E vou pensar nisso. Amanhã, pelas onze horas, dê-se ao incómodo de passar por aqui.

Albano de Freitas apertou-lhe a mão com vigor; fitaram-se por instantes com os olhos sorridentes e não precisaram de mais palavras - ambos sabiam já que o Roop não teria o vinho e uma nova sociedade exportadora apareceria na praça, embora sem o nome de Borges Alves.

E o vinho dessa empresa chegaria a Londres - o **Barãona o faria chegar.

 

As navalhas de frio do Marão rasgavam a noite e os corpos; a angústia daquele inverno sem esperança apossara-se das almas - e havia mais frio nos corações do que no coruto das montanhas.

Estava-se em Quinta-Feira de Comadres e ninguém se lembrava daquele velho hábito de deitar pulhas, em que, no silêncio da noite e gritando por funis de adega, dois homens - os enzoneiros - traziam ali para a baila o que na aldeia merecia reparos ou era segredo de alguns.

"Mas quem tinha alegria para galhofar num ano daqueles?!"

Ainda não se tinham festejado nenhuma das outras quintas-feiras anteriores ao Entrudo - a dos Amigos, a das Amigas e a dos Compadres. A aldeia vivia ainda sob o signo da tragédia da última vindima.

Aproximavam-se as cavas e ninguém sabia o que iria passar-se. Só os cavadores se consumiam na certeza de que o trabalho seria escasso -e bem poucos lavradores tinham metido pessoal para as podas - e antes de partirem para as segadas da Terra Fria e de Espanha não se fariam saibramentos.

A gadanha da morte tombava velhos e crianças.

Francisco Teimas deixara a fogueira apagar-se aos poucos e agora sentia frio. Puxou o gabão para o peito, mirrou-se mais no canto da lareira e os olhos cerraram-se-lhe. "Se pudesse dormir mesmo ali! Bem precisava de dar repouso àquela cabeça, tão cheia de pensamentos e preocupações."

Os rapazes e o pai já estavam deitados há muito; só ele não almejava sossego, continuando a debater-se no mesmo inferno de dúvidas. Percebia que só o afastamento daquela mulher o poderia tornar útil para si e para os outros; mas não ignorava menos que já fizera tudo para a esquecer e que em cada dia a sua presença o dominava mais. "Quantas vezes se quisera iludir? Pois que fique com o marido, que eu bem posso ainda arranjar mulher que nunca fosse doutro. Cesteiro que faz um cesto faz um cento. E do que será ela capaz?!... Sou mais velho, os anos passam..." No íntimo, porém, ela ficava sempre a mesma; e uma maior ansiedade se apoderava de Francisco, como se o tempo em que pensara esquecê-la pudesse levar à sua perda.

Passava, então, os dias a procurá-la, para que num breve encontro de olhos a Gracinda lhe afirmasse que continuava a ser sua. Ela pouco saía de casa - era, com certeza, o marido que a não deixava - e Francisco passava-lhe à porta, espiava-lhe a casa, até que uma crise de desespero o levava para a taberna. Ali ficava sombrio a um canto, beberricando sozinho, com olhares de súplica para a Idalina. "Se aquela quisesse... Havia de convidar depois a bácora para o casamento." Quando se apanhava a sós com ela, tentava ser alegre, insinuando os seus propósitos; mas a rapariga fingia não o entender e, se ele insistia, chamava-lhe avô, por gracejo.

Um dia constara-lhe que o António Francisco pensava voltar para o Brasil - a aldeia não o via com bons olhos depois do que fizera ao Inverno e vivia quase isolado de todos. O Teimas exultara. O povo desconhecia-lhe aquele ar galhofeiro que tomara, atribuindo-o à vindima e à boa venda que tinham feito. Viam-no abalar para o Caedo, a carregar pedra no novo garrano que comprara, e só falava no lagar que iria fazer numa courela que

tinha junto da casa. Mas àquela notícia juntara-se outro pormenor que ele bem quisera olvidar - a Gracinda também ia, segundo ela própria dissera na Fonte Velha, à hora de encher os cântaros.

Recebeu a novidade como se lhe tivessem aberto um rasgão no peito. Tentara aquietar-se, à procura de um pretexto para a esquecer. "Ainda bem." Isso mesmo já ele desejara por mais de uma vez. E faria vida nova na companhia dos rapazes e do pai. A sua casa havia de medrar... Não lhe faltavam braços nem coragem para levar a sua por diante... Havia de lhes mostrar que também ele era capaz..."

Mas aos seus projectos faltavam as raízes que os agarrassem ao coração - nesse era ainda a Gracinda que vivia. Tentava depois reagir, dar força aos seus desejos, para se avantajar àquele torpor que o invadia.

- E agora!... Sou, por acaso, algum crianço sem entendimento? - dizia em voz alta para ganhar coragem. - Mulheres daquelas não faltam por aí!... E mais capazes!

Logo lhe vinha o abatimento, o vazio da vida, a frustração dos desejos. E deixava-se vencer, âbrindo-se todo à fatalidade, num prazer cruel de se ferir, talvez ainda com esperanças de triunfar daquela moleza dos sentidos e da vontade. "Aos cobardes, como eu, é assim que sucede. Um cobarde, pois! Naquela noite ele devia ter-me calcado a pés como a um molho de centeio... Acabar comigo duma vez para sempre, porque é vergonha maior estar vivo e sentir tudo isto..."

E desprezava-se.

Naquele dia, porém, desde manhã, outra resolução o empolgava - e parecia-lhe melhor. Iria falar à cunhada, pois era preciso saber o que ela pensava. Já não a via há algum tempo e tinha quase a certeza de que a Gracinda não queria abalar com o marido. "Quem sabe se ela só espera que eu apareça?!" Fugiriam os dois para a Vilariça e o António Francisco nunca mais lhe tocaria -tinha disso a certeza. Não lhe metia medo aquele corpanzil nem quaisquer ameaças. Com ela ao seu lado seria um homem para outro ou para fazer o que fosse necessário -cosê-lo de facadas ou baldeá-lo que nem a um lobo. E pensava nisto com alegria, como se a aldeia lhe ouvisse os pensamentos.

Postou-se na praça, mesmo na embocadura do Santo Cristo, para que a cunhada não passasse sem lhe falar. Vieram alguns amigos procurá-lo para a conversa e a nenhum deles deu saída. "Que lhe interessava a falta de trabalho e de dinheiro, se a sua vida ia resolver-se naquela hora?... Que o procurassem depois... Que vinham dizer-lhe que já não soubesse?!..."

O Eivandro andava perdido de cabeça, por causa das terras que lhe iam à praça na Pesqueira, e nem o seu silêncio o fez calar; alanzoou para ali, tudo o que o consumia - a hipoteca, os juros, a malandrice do outro...

"Ainda havia uma semana que lhe prometera pelas cinco chagas de Cristo que esperava e agora fazia-lhe uma daquelas. Já tinha tudo no tribunal quando lhe falara, o malandro, e agora desaparece do Pinhão. Ah, mas com ele bem se enganava! Nem que se metesse no cabo do mundo lhas havia de pagar... Ou ele ou os filhos ou a sua sombra!"

Francisco Teimas não lhe dava resposta, sempre à espera que o amigo se afastasse. Já era lusco-fusco e a Gracinda não aparecera ainda. "Tê-lo-ia visto, sem que ele se apercebesse? Talvez num momento qualquer em que olhara para o Eivandro..." E apeteceu-lhe empurrá-lo dali, dizer-lhe que era bem feito o que lhe sucedia, desfeiteá-lo de qualquer maneira...

Mas era ela que vinha lá em cima, de bilha à ilharga, naquele andar requebrado que o perturbava.

- Que te parece, Francisco? - perguntava-lhe o outro.

Deu um sacão brusco aos ombros e correu para a cunhada a tomar-lhe o passo; ela queria fingir que o não via e voltou-lhe a cara.

- Ouve, Gracinda!

- O meu homem está de mal contigo e não te posso falar...

Ele segurou-a pelo braço e apertou-lho.

- Mas quem é o teu homem?! -disse-lhe, transtornado, num esforço, para não gritar.

- Quem há-de ser?!...

- E tu vais com ele? - perguntou ainda, incapaz de compreender o sentido da sua resposta.

Gracinda mirara-o de alto a baixo com um olhar frio e estranho que não podia esquecer mais. "Agora, sim; agora tudo acabara entre os dois." Premiu-lhe ainda o braço com os dedos e no rosto dela não viu qualquer sinal de súplica nem de arrependimento pelo que dissera.

- Esqueceste tudo? - dissera-lhe num lamento. Ela só acenara a cabeça e partira depois em direcção

à fonte, como se nada tivesse acontecido.

Abalara para Ventozelo, incapaz de suportar a presença de alguém. Tivera pensamentos sem conta, enquanto deambulava pelos montes em busca de uma solução para a sua vida. "Procurá-lo e dizer-lhe tudo... Abalar sozinho e refazer a sua casa longe daquela presença constante..." Mas uma ideia predominava agora entre todas:

ele desfeiteara-o e um homem tem honra. Havia de lhe fazer uma espera, talvez mesmo no dia em que fossem abalar...

Era o que repetia agora, em voz alta, junto da lareira apagada.

- Faço-lhe uma espera que nem a um coelho...

Pela imaginação passavam-lhe todos os pormenores do encontro; mas a cunhada continuava ali com ele, nas recordações que estavam em cada canto da sua casa.

Debruçada no corrimão na noite de Natal em que a irmã morrera; ali, ao fogo, a tratar-lhe do comer e a desvairá-lo com a sua presença; sentada na sua cama, depois do primeiro contacto... E aquele dia em Ervedosa na malhada... E os encontros em casa dela... E aquela vindima, já à volta, quando a levara pelo pinhal... E as suas promessas debaixo da oliveira...

Ela vivia era todas as coisas que o rodeavam e ainda naquelas mãos que a tinham acariciado.

Uma sacudidela do vento abalou a porta.

Voltou-se pressentindo, num salto, e deu com a espingarda pendurada sobre a arca. Uma ideia mordeu-lhe o pensamento e fê-lo desviar-se dali. "Não, não me desgraço por causa duma mulher... Carregá-lo com umas cacetadas já chega, depois de lhe dizer que fui amante dela..."

Mas sempre que se movia aquela sombra na parede prendia-lhe o olhar. E tinha-lhe medo, sentia que uma força estranha o levava para junto da arca sem que ele pudesse opor-se-lhe. "Isso é que nunca! E depois?!..."

Lá fora, no silêncio da noite fria, uma voz rugiu. Francisco escutou-a, como se fosse ele que tivesse gritado; olhou os cantos da cozinha, desconfiado da sua cabeça, mas a voz voltou.

- Ó compadre!... Estás lá, compadre?! Eram as pulhas da Quinta-Feira de Comadres.

 

Já deitado àquela hora, Manuel Inverno ouviu também o vozeirão do enzoneiro a ecoar nos vales fundos.

- Ó compadre!... Estás lá, compadre?... Gritadas pelo funil largo, as palavras cresciam com

a ajuda do vento, que mugia mais forte, de vez em quando, em guinadas violentas.

- Vossemecê sabe que aí de noite, num quelho, anda uma alma penada?!...

Mais firme e aberta, a voz do outro enzoneiro retorquiu:

- Sei, pois!

- E não é lobisomem, nem bruxa!

- Nem sombra de mafarrico!... - gritou o outro com voz cava.

Nos cortelhos espertaram os ouvidos e sorriam com as pulhas.

- Então o que é?!

- Dizem que é um desalmadão grande, de calça de bombazina, e uma beiçana...

Falava-se do Sebastião Ai-Lé, que rondava a porta da viúva do João do Caedo e que já lhe galgava a janela, dizia-se antes à boca pequena nas conversas de soalheiro.

- E ele entra pela janela e sai pela porta! Sabe quem é?!

- Que o diga quem o pensa, ó compadre!... Por um momento, as vozes calaram-se. Ao longe, Irrequieto, um podengo ganiu; pela estrada do Pinhão, entre socalcos, o vento assobiava mais áspero, parecendo rasgar o capelo dos montes.

Os ouvidos apuravam-se agora para escutarem outros escândalos encobertos e que naquela noite viriam à baila. Alguns insurgiam-se contra a brincadeira: "Nuns tempos destes, lembrarem-se de pulhas... Como se já não chegasse a vida da gente para cada um se entreter..." Mas a maioria gostava daquele velho hábito que parecia estar esquecido.

- Ó compadre! - recomeçou um dos enzoneiros. Deviam ter mudado de sítio para despistarem alguém que os procurasse para tirar desforço das graçolas das pulhas. Já não era a primeira vez que aquilo acabava aos tiros.

- Diga, compadre - respondeu o outro dos lados de Valença.

- Agora falo eu!...

- E fale das boas, que vossemecê bem nas sabe!...

Os que tinham algum segredo estremeciam em pensar que os enzoneiros o viriam trazer para a conversa; os outros deitavam hipóteses para descobrirem as vozes que a boca larga do funil e o eco deformavam.

- Sabes quem é o valente da aldeia?!

- Quem?!

- O VALEEEN... TE!

Manuel Inverno estremeceu no leito. Olhou para os dois netos, à sua ilharga, e comoveu-se. "Aqueles não sabiam o que se passava."

- Sei, pois! Quem é que não sabe? - respondeu a outra voz.

O velho tinha agora a certeza que os enzoneiros iam falar do seu caso com o António Francisco. O outro já fora à Pesqueira fazer queixa e ele recebera aviso para se apresentar daí por três dias.

- É o que bateu num velho?! - perguntou o que ficava do outro lado de Ervedosa.

Manuel Inverno levantara-se num impulso, como se esperasse aquele sinal para se decidir; os ouvidos latejavam-lhe numa zoeira dolorosa.

- É esse, sim, o valentão! E vai roubar-lhe as terras!

"Talvez não chegue a roubar", pensava o velho, ainda a querer dominar a ira que o avassalava. "Eu jurei-lhe... O pior são estes dois... Mas que faço eu na miséria?!"

- Vai roubar-lhe as terras, compadre?

Manuel Inverno olhou os netos mais uma vez, passou-lhe as mãos trémulas nas cabecitas adormecidas e ficou depois parado no meio do quarto, a hesitar mais uma vez.

- Eo valentão fica a rir-se, porque o velho já não tem quem o defenda!

Um dos rapazitos mexeu-se na cama e a Manuel Inverno pareceu que já não teria forças para sair dali. "Não tenho quem me defenda...", pensou depois. E, num impulso, correu para a arca grande - as vozes falavam ainda, mas ele já as não ouvia.

- E o valentão fica a rir-se, porque o velho já não tem quem o defenda!

Francisco Teimas abriu a porta, que deixou escancarada, e foi para o quinteiro, onde os podengos ganiram, mal deram com ele. "Que tenho eu com isto?!", pensava para se iludir. Mas, sem saber porquê, tremia, como se as maleitas o atacassem de novo e com mais força. Era um tremor diferente que parecia vir do coração, derrancando-lhe os membros e esvaindo-lhe a cabeça cansada. Doíam-lhe as mãos e torcia-as, para destruir nelas a lembrança de alguma coisa que desejava esquecer agora mais do que nunca.

- Mas o valente não ficou por aqui, porque um mais novo...

Francisco voltou para dentro de casa, numa corrida, e cerrou a porta para não ouvir o resto. Sobre a mesa brilhava a lâmina de uma faca; e a mesma ideia de há pedaço voltava-lhe com maior poder. "Não, não ia perder-se por causa deles", pensou numa reacção. Mas via o outro ao canto da lareira com aquela expressão de troça que nunca mais podia esquecer. E as palavras que ela lhe dissera: "O meu homem..." Ele é que era o seu homem.

- O mais novo provou-lhe as mãos e o valente... As vozes ouviam-se distintamente; Francisco tinha medo dos seus pensamentos e recusava-se a obedecer-lhes. "Era preciso dominar-se... Talvez os enzoneiros falassem dos seus amores com a Gracinda... E estaria vingado..."

Instintivamente, pegou na faca, abriu a porta, e atirou-a por cima do muro, com receio daquela presença imperativa que lhe oferecia a vingança pelas suas mãos. Naquele momento, porém, a outra voz gritava à noite: "O mais novo tem medo misturado nas veias! Não sai ao velho, não!"

Pensou ainda recolher-se para ignorar a afronta; mas uma força maior prendeu-o à soleira da porta. "Talvez não seja comigo."

- Nem todos os que vestem calças são homens! - bradou o outro.

E uma gargalhada secundou aquele grito de enzoneiro. E outra... E outra...

"Todos se riam dele. A aldeia era peso... E os dois também."

Já não ouvia palavras, mas só gargalhadas. A obsessão voltava-lhe ao pensamento e queria resistir-lhe. "Mato-o, pois! E que ganho com isso? Mato-o que nem a um cão! E ela depois?!"

Pensou chamar o pai; a garganta secara-se-lhe. "Chamar o velho para quê?! Era algum crianço?!... Um cobarde, é que era!" Numa avalanche chegaram-lhe todas as alucinações que o desvairavam. "Eles estavam deitados e riam-se com os outros... Toda a aldeia se ria dele... E o que seria amanhã?! Nunca mais podia olhar os filhos... nem ninguém..."

Aquela sombra em cima da arca caiu-lhe no olhar. E lá fora outra voz gritava para o silêncio: o valente, qualquer dia...

Francisco sentiu as mãos do outro a socarem-lhe o rosto e já não escutou o resto da frase - uma onda de sangue tapara-lhe o entendimento. Ergueu o braço e tocou na espingarda; sacou-a da parede e galgou para o quinteiro, desvairado, já pronto para acabar com as gargalhadas que as sombras repetiam numa alucinação. "Mato-o, pois! Mato-o que nem a um perro danado!"

Lá de dentro, a voz do pai chamava-o.

- Francisco! Onde estás tu?!...

Agora tinha só um pensamento - não queria falar nem ouvir ninguém. E, antes que o velho aparecesse, deitou a correr pelos quelhos desertos da aldeia.

 

As pulhas continuavam.

Bateram à porta e ambos estremeceram na cama, sem coragem para se olharem; seguiu-se depois um silêncio longo.

- Faz favor! - gritou uma voz.

Gracinda reteve o marido por um braço, atenta a todos os ruídos que vinham do exterior. Na casa de entrada, o taquetaque do relógio de pêndulo cobria-lhe a atenção.

- Faz favor! - insistiam de fora.

António Francisco saltou da cama e indagou ao que iam.

- Isto não são horas de bater à porta de gente! - juntou depois mais calmo, ante o sossego que lhe vinha da rua.

- É um recado da Pesqueira pra vossemecê! - respondeu o vulto, aproximando a boca do buraco da fechadura. - Entretive-me em Ervedosa e só cheguei agora...

- E não pode ser para amanhã?!

- Se vossemecê quiser... É um recado do Sr. Administrador...

Voltou o silêncio.

- Então boa noite! - disse o outro, por fim.

O despedimento afastou-lhe qualquer dúvida e a curiosidade foi mais forte do que o receio.

- Espere lá, homem! - gritou depois.

Deitou o gabão sobre as costas, sem cuidar nos reparos da mulher, e acendeu a luz da candeia de dois bicos. Cautelosa, Gracinda entregou-lhe a espingarda.

- Para que é isso? - perguntou a meia voz. Mas acabou por segurá-la, apertando-a sob o braço,

enquanto a mulher voltava para o quarto. "Para que lhe dera aquilo? Agora parecia que tinha receio." E à cautela, pé ante pé, para que o outro o não pressentisse, aproximou-se da porta, deitou a mão à chave, segurou-a bem e deu-lhe uma volta num repente.

Ficou a descoberto à frente do vulto e ainda esboçou uma defesa.

- E agora, meu valente?!

Duas descargas seguidas ecoaram na noite, abatendo-o ali mesmo; esboçou um gesto para avançar, cambaleou, por um instante, sobre as pernas bambas e foi tombar de borco na soleira da porta.

Só ouviu um grito da mulher, mas esse grito afastava-se para longe, cada vez mais para longe... Queria ainda agarrar-se a esse fio que o prendia à vida, mas ele fugia-lhe sempre e parecia ir quebrar-se.

 

                                                                                Alves Redol  

 

                      

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