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Os Horrores do Mundo Oco / Kurt Mahr
Os Horrores do Mundo Oco / Kurt Mahr

 

 

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Os Horrores do Mundo Oco

 

Em agosto do ano de 2.400, Perry Rhodan partiu com sua nova nave-capitânia, a Crest II, a fim de encarregar-se pessoalmente das buscas do misterioso mundo Kahalo, cuja posição exata na concentração central da Via Láctea nunca pôde ser determinada.

As buscas não são coroadas de êxito. A Crest penetra no campo de ação dum gigantesco transmissor solar — e é arremessada para o abismo intergaláctico, para dentro dum sistema solar artificial situado a 900.000 anos-luz da Terra.

Este sistema, conhecido como Gêmeos, encerra uma série de armadilhas mortais para qualquer pessoa que nele penetre. Os terranos enfrentam a destruição, mas o grosso da tripulação da Crest sempre encontra um meio de escapar.

Antes que o guarda de Andrômeda entre em cena, inutilizando os planos dos terranos, até se tem a impressão de que existe uma possibilidade concreta de a Crest chegar sã e salva à galáxia de origem...

Icho Tolot, um halutense de espírito aventureiro, que acompanha Perry Rhodan em seu caminho semeado de aventuras, tem certeza de ter manipulado corretamente os comandos do transmissor para garantir o regresso da Crest. Acontece que o guarda moribundo já condenou os terranos a viver Os Horrores do Mundo Oco...

 

                                       

 

 “... e são principalmente as regras do acaso, muito mais raramente e em extensão bem menor as leis naturais, que impõem limites à evolução que se processa na natureza. Por exemplo, a probabilidade de se formar um sistema planetário no qual as órbitas de todos os planetas fiquem exatamente no mesmo plano é tão reduzida que dificilmente existe um único sistema desse tipo em todo o Universo. E isso apesar de que uma configuração como esta em nada contrariar as leis da natureza.

Como vemos em nós mesmos, este fato não fica fora da percepção do ser inteligente. Este toma conhecimento dele e dá livre curso à sua imaginação. Nada mais natural do que criar artificialmente certas estruturas que, segundo ensinam as leis da probabilidade, praticamente nunca ocorrem no âmbito da natureza, assim que tenha uma possibilidade para isso. Imaginamos um artista que viva numa civilização tecnologicamente avançada, e que medite sobre o plano de colocar dois planetas bem perto um do outro, na mesma órbita. Ou de agrupar as luas dum mundo multilunar de maneira a formarem um modelo facilmente identificável. Ou coisa parecida.

Temos certeza de que os indivíduos pertencentes as civilizações de cuja psicologia coletiva nos ocupamos aqui são capazes de conceber qualquer idéia, e de realizar a maior parte delas. Onde quer que nos deparemos com uma configuração “impossível” nos cosmos — e aqui a palavra impossível significa que a probabilidade da formação de tal estrutura se situa abaixo de certo valor-limite ainda definível — podemos admitir sem receio que nos encontramos diante duma manifestação do instinto lúdico.

Porque esta tendência não pode ser outra coisa senão uma das formas que assume o instinto lúdico. Encerra os traços característicos do desejo infantil de brincar. Os fatores de estímulos são os seguintes: o caráter extraordinário do objeto a ser criado; o tamanho relativo do mesmo; e, finalmente, a ausência completa de qualquer finalidade prática.

Realmente, não existe a menor dúvida de que em sua maioria estas estruturas desempenham uma finalidade que poderia ser alcançada tão bem, ou talvez até melhor, com meios mais simples.”

 

Este trecho foi extraído da preleção do Prof. Hennemann, intitulada A Psicologia das Civilizações Tecnológicas e Decadentes, oferecida no semestre de verão do ano 2.400, na Universidade de Terrânia.

Além da substantivação do termo inteligente (na acepção de ser inteligente), que logo entrou em voga, esta parte da preleção assumiu uma importância toda especial, diante das descobertas feitas pouco tempo depois, e que excederam até mesmo a fantasia do Professor Hennemann.

Estamos aludindo à descoberta do mundo chamado Horror, que é um verdadeiro aleijão entre os planetas do Universo.

 

Era uma dor martirizante.

Os desconhecidos praticamente tinham destruído seu veículo. Sabia que nunca mais voltaria para casa. O incêndio nuclear lavrara na sala dos propulsores. Assim que atingisse os geradores do campo energético, fatalmente ocorreria a descarga espontânea dos tremendos volumes de energia. Da esguia nave cilíndrica não sobraria nada além duma porção de poeira nuclear, além dum raio que cortaria a escuridão do espaço intergaláctico durante umas poucas unidades de tempo.

Resolveu entrar em ação. Viera para observar. Mas de repente vira-se colocado no papel de guarda. Fossem quais fossem as finalidades dos desconhecidos, as mesmas não poderiam corresponder aos objetivos do ser que o incumbira da tarefa, e ele era obrigado a impedir os desconhecidos de atingir essas finalidades.

Ativou seus instrumentos a fim de verificar qual era nesse momento a direção e a potência do campo transportador situado no ponto de interseção do sistema de sóis geminados. Os resultados não o surpreenderam nem um pouco. Confirmaram sua suposição. Se a regulagem não fosse modificada, os desconhecidos conseguiriam regressar à sua galáxia de origem.

Era necessário evitar que isso acontecesse.

Para ele isso era fácil. Fez algumas regulagens, enquanto a temperatura a bordo de seu veículo crescia constantemente e o incêndio nuclear avançava em direção à sala dos geradores.

Os impulsos de hiperrádio que dali a instantes saíram das antenas da espaçonave em forma de lápis atuaram sobre certos aparelhos colocados embaixo duma campânula que ficava na superfície de um dos sete planetas que circulavam em torno dos sóis gêmeos. Esses aparelhos modificaram suas funções, e em virtude disso a direção e a potência do campo situado no ponto de interseção do sistema também sofreu uma modificação.

O trabalho estava concluído.

Os desconhecidos não seriam capazes de encontrar o caminho de volta para sua galáxia.

Ele tomara as providências necessárias para evitar que isso acontecesse.

Enquanto fazia sua prestação de contas, no curso da qual constatou que apesar de certas dificuldades que enfrentara na fase inicial ainda conseguira cumprir sua missão, o incêndio nuclear atingiu os geradores.

A nave-lápis desmanchou-se numa esfera de fogo branco-azulado.

Não houve muito tempo para pensar. A ação do processo narcotizante foi muito rápida e o espírito amoleceu.

A Crest II estava voltando para a Via Láctea, e o inimigo desconhecido sofrera tanto com a ação da poderosa nave que certamente saberia tirar sua lição.

Foram os últimos pensamentos que atravessaram a cabeça de Perry Rhodan antes que ele mergulhasse num sono profundo. O resto foram névoas e inconsciência.

Enquanto isso a Crest II, nave-capitânea da frota solar, se precipitava em direção ao sol geminado, em cujo centro de gravidade o campo transportador se adensava para atingir níveis inacreditáveis, abrindo um buraco no conjunto espácio-temporal da quarta dimensão. A Crest deveria desaparecer nesse buraco... para depois dum vôo instantâneo pela imensidão do hiperespaço reaparecer na galáxia de origem.

A tripulação submetera-se à narcose, a fim de resistir ao choque da transição que a faria percorrer centenas de milhares de anos-luz. Dois mil oficiais, suboficiais e simples tripulantes repousavam sobre leitos de pressão, colocados às pressas nos depósitos da nave. Do ponto-de-vista psicológico estavam praticamente mortos, com a temperatura do corpo bastante rebaixada e num estado de rigidez em que não ocorriam sonhos nem pensamentos.

Um único indivíduo ainda não tinha ficado inconsciente.

Era Icho Tolot, o halutense.

O gigante estava de pé na sala de comando, e acompanhava com o rosto imóvel as duas bolas de fogo que formavam os sóis gêmeos, que pareciam inchar e caminhar para as margens da tela de proa. A velocidade da nave aumentava a cada segundo que passava. Os propulsores trabalhavam com a potência máxima, e a gravitação de Gêmeos encarregou-se do resto.

Icho Tolot em pessoa fizera no planeta Quinta a regulagem que garantiria à Crest II o regresso à galáxia de origem. Não tinha a menor dúvida de que dentro de instantes veria a enorme faixa de estrelas da Via Láctea projetada nas telas. Mas sabia que uma transição por uma distância de novecentos mil anos-luz abalava a própria estrutura da matéria.

Tomou suas providências.

Recorreu a uma faculdade paramecânica que ninguém possuía, além da raça dos halutenses, para modificar a estrutura atômica das células de seu corpo. O ser feito de matéria orgânica transformou-se num bloco de pedra. Nas transições desse tipo a estrutura celular cristalina representava uma vantagem nada desprezível. De acordo com as leis da física moderna, qualquer passagem pelo hiperespaço acarretava uma redução da entropia. A entropia é uma medida da desordem. Entre os seis estados estruturais da matéria, o estado cristalino é aquele que apresenta o menor grau de entropia, porque representa o mínimo de desordem. No fenômeno do hiper-transporte a entropia do corpo a ser transportado também representa uma medida de afinidade. Em outras palavras, o choque da transição é tanto menor quanto mais reduzido for o grau de entropia do objeto transportado.

A ciência terrana só tinha adquirido o conhecimento desse fato num passado relativamente recente, mas a raça antiqüíssima dos halutenses o possuía há tempos imemoriais. Graças ao processo de modificação celular, Icho Tolot era o único ser vivo a bordo da Crest II que tinha motivo para esperar realizar o salto por uma distância infinita em estado de plena consciência.

Para a nave e seus tripulantes isso era muito importante. A uma distância de novecentos mil anos-luz a fixação exata do alvo era impossível. A Crest II poderia sair numa zona de perigo, como por exemplo nas imediações dum sol. O pensamento do piloto não poderia ser dispensado, pois tornava-se necessário para afastar todos os riscos.

O colosso halutense estava parado na sala de comando, rígido que nem uma estátua. As poltronas estavam vazias, os quadros de comando abandonados. O entusiasmo pela aventura que estava prestes a viver tornava-se cada vez mais intenso no espírito de Icho. Um torvelinho de emoções atravessou um dos dois cérebros que possuía, enquanto o outro interpretava objetiva e tranqüilamente os quadros que o complicado mecanismo televisor projetava nas telas.

Faixas de luz incandescentes — eram as extremidades dos dois sóis que desapareciam nas margens da tela de proa. O braço reluzente duma protuberância foi entrando no campo de visão, vindo de cima e da direita. A protuberância foi crescendo em tamanho e diminuindo em luminosidade, enquanto a Crest se precipitava para o centro de gravidade material dos dois sóis.

Icho Tolot deu ordem para que os pensamentos que se atropelavam em seu cérebro parassem. Mergulhou numa apatia completa, enquanto transcorriam os últimos segundos. Viveu o momento da transição num estado de calma absoluta.

Foi um choque terrível, até mesmo para um bloco de pedra com uma estrutura cristalina bem ordenada. O halutense quase desmaiou com a dor alucinante. Balançou. Se a transição fosse mais demorada, não teria evitado a queda.

No último instante conseguiu recuperar o equilíbrio. Por alguns segundos um cinza apagado e pouco nítido encheu as telas. Elas logo voltaram a iluminar-se.

Iluminaram-se ao reflexo duma enorme esfera de luz, sobre a qual a Crest II se precipitava em velocidade alucinante. Icho Tolot perdeu alguns segundos preciosos com a reconversão de sua estrutura celular. Finalmente deu um salto enorme em direção ao quadro de controle do comandante e fez a nave entrar na curva mais fechada que a mesma jamais tinha percorrido. Sereias de alarme soaram em todos os conveses quando o dispositivo antigravitacional sobrecarregado não conseguiu neutralizar a tremenda aceleração radial e por alguns segundos tudo que se encontrava no interior da nave ficou submetido a uma pressão terrível.

Icho Tolot parecia não perceber nada. Seu corpo estava em condições de resistir a pressões que esmagariam qualquer ser humano. Manipulou febrilmente os controles do console de comando. A Crest já não se deslocava sobre a bola de fogo branca. O perigo mais grave tinha sido afastado.

Icho deixou que a nave fosse perdendo velocidade. Finalmente a Crest imobilizou-se na escuridão do espaço desconhecido. Icho começou a determinar a distância que separava o gigante espacial do sol.

De repente o rastreador automático deu o alarme. A reação do halutense foi instantânea. Ligou o banco de dados. O banco expeliu uma fita impressa. Ao ler a mesma, Icho começou a duvidar de suas faculdades mentais.

Apesar disso ajustou um dos telescópios segundo Os dados recebidos e projetou a respectiva imagem em uma das telas.

Foi então que viu.

Bem ao longe estendia-se a superfície dum planeta, que a luz do sol desconhecido envolvia num brilho estranho. Planícies desérticas e as cadeias entrecortadas de montanhas cor de poeira atravessavam o quadro de lado a lado, até onde alcançava a vista. Icho Tolot fez o telescópio girar um pouco para o lado. O quadro continuou o mesmo. Girando o instrumento mais ainda, chegou a um lugar em que os contornos se apagavam e a superfície se perdia no nada. Este ponto entrava no campo de visão quando fazia girar o telescópio em mais de trinta graus em relação à posição normal.

Icho Tolot compreendera desde o primeiro instante que a transição saíra errada. Mas quando seu cérebro programador se pôs a processar os dados resultantes das observações, reconheceu que não se tratava dum simples insucesso. Além de tudo, a Crest II retornara ao espaço normal num lugar cujos dados conflitavam com tudo que a ciência ensinava.

Num lugar que de acordo com as leis da probabilidade nem deveria existir.

Só havia uma interpretação para os resultados das observações: o planeta desconhecido não se encontrava apenas à frente da nave, mas em tomo da mesma.

Em outras palavras, a transição os fizera parar no interior dum mundo oco.

 

A consciência foi voltando. Lembranças esparsas foram surgindo. Gêmeos, o sol geminado... oito planetas, depois somente sete... o transmissor...

De um instante para outro Perry Rhodan acordou de vez. A transição chegara ao fim. A nave acabara de percorrer o hiperespaço. Será que o salto tinha sido bem sucedido?

Perry lutou obstinadamente contra o cansaço deixado pelo medicamento que produzira o estado de hibernação. Sentia-se vazio e esgotado. Eram os efeitos colaterais do choque da transição. Levantou, mas nos primeiros instantes teve de segurar-se nos objetos que o cercavam para não cair.

Ele e mais umas poucas pessoas tinham tido o privilégio de passar os momentos da transição em seus camarotes. Enquanto tateava desajeitadamente à procura das roupas que tirara por recomendação do médico, perguntou-se como os outros teriam resistido ao choque. Teve vontade de chamar pelo menos Mory para saber se a mesma já tinha acordado.

Mas a nave vinha em primeiro lugar. Antes de mais nada precisava saber o que estava acontecendo com a Crest.

Ligou o intercomunicador e chamou a sala de comando. O chamado foi recebido, mas demorou até que alguém respondesse. Só depois de um minuto a enorme cabeça semi-esférica de Icho Tolot apareceu na tela.

É muito difícil interpretar a expressão do rosto dum halutense. Perry Rhodan nunca conseguira deduzir qualquer reação emocional dos traços do rosto de Icho. Mas naquele momento seria capaz de jurar que havia uma expressão preocupada no rosto coberto de pele negra em que havia três olhos azuis.

— Como estão as coisas? — limitou-se a perguntar.

Icho Tolot deu um passo para o lado. Melbar Kasom, o ertrusiano, apareceu na tela. Graças à sua estrutura robusta, resistira melhor às conseqüências do choque que qualquer outra pessoa. Seu rosto grosseiro apresentava-se impassível e era tão difícil de interpretar quanto o do halutense.

— A transição foi concluída, senhor — disse em tom respeitoso. — Mas pelo que sabemos até agora, não alcançamos o destino fixado.

— Onde estamos? — perguntou Perry.

Pela primeira vez Rhodan viu Melbar, o gigante, ficar embaraçado.

— Senhor... — disse em tom inseguro. — ...Seria preferível que comparecesse à sala de comando para dar uma olhada. Eu... eu não acredito...

Perry Rhodan interrompeu-o com um gesto apressado.

— Irei imediatamente — exclamou e desligou.

Dali a alguns segundos estava a caminho da sala de comando. As insinuações pouco claras de Melbar Kasom tinham-no deixado bastante preocupado. Que diabo poderia ser isso que deixava o ertrusiano naquele estado?

No interior da sala de comando Melbar e o halutense estavam bastante ocupados em fazer medições. Perry Rhodan parou na escotilha e olhou com uma expressão de perplexidade para a tela de proa, na qual se via a esfera escaldante que representava o sol desconhecido. Parecia inacreditável que a Crest II tivesse retornado ao universo einsteiniano tão perto dum astro, pouco importando que se tratasse dum sol, dum cometa ou duma nebulosa interestelar.

Rhodan atravessou apressadamente a sala. Melbar Kasom virou-se para ele e fez continência. O halutense não interrompeu seu trabalho. Sem esperar que alguém lhe desse ordem para isso, o ertrusiano pegou uma pilha de faixas impressas que se encontrava sobre o console de comando e entregou-a a Perry. Este passou os olhos pelas fitas e seus pensamentos entraram num ritmo confuso quando viu as conclusões que o centro de computação positrônico de bordo tinha extraído dos resultados das observações.

A Crest II encontrava-se no interior dum mundo oco. A bola incandescente projetada na tela frontal não era um sol no sentido convencional. Tratava-se duma esfera formada por energia, que fora parar duma forma ainda não explicada no interior do espaço oco aberto no interior do astro estranho.

Perry não perdeu tempo desenvolvendo a idéia de que uma configuração deste tipo era uma impossibilidade. Procurou reconhecer o significado da transição que falhara. Havia algumas indicações, escassas, mas inconfundíveis. A Crest II não saíra no espaço livre, nas proximidades da galáxia de origem, mas no interior dum gigantesco corpo oco. Ainda não se sabia se este ficava na área de destino.

Perry Rhodan tinha suas dúvidas. O fato de que com a transição a Crest II tinha sido retirada do incrível sistema de Gêmeos para ser arremessado num mundo oco ainda mais incrível era um sinal de que atrás desses fenômenos havia um sistema. Um erro casual não produziria um resultado tão surpreendente. Era de supor que os mesmos desconhecidos que eram responsáveis pelos acontecimentos que se desenrolavam no sistema de Gêmeos também tinham causado esse estranho salto de transição.

Em outras palavras, alguém tinha modificado a regulagem do transmissor solar de Gêmeos, no momento em que a Crest II se precipitava em direção ao ponto de interseção das dimensões espaciais.

Neste caso as perspectivas poderiam ser tudo, menos agradáveis. O desconhecido iniciara sua atuação em Power, onde causara dificuldades para a nave e seus tripulantes, e nunca deixara de tentar a mesma coisa. Era mais que provável que por aqui faria a mesma coisa.

Havia perigo pela frente. A calma não duraria muito. A tripulação da nave estava hibernando.

Perry Rhodan virou a cabeça. Queria dar uma ordem ao ertrusiano.

Foi quando começou.

Pela terceira vez as sereias de alarme se fizeram ouvir. As luzes vermelhas de advertência do velocímetro piscaram num ritmo louco. A nave acabara de movimentar-se.

Os três homens entreolharam-se por uma fração de segundo. Ninguém colocara em funcionamento os propulsores. A força que estava movimentando a Crest II vinha duma fonte externa.

O halutense tomou a palavra.

— Talvez seja uma manobra semelhante à que nos obrigou a pousar em Power — disse com sua voz calma e profunda.

Perry Rhodan confirmou com um gesto.

— Pode ser — reconheceu. — Mas não temos certeza. É possível que aqui a coisa seja mais perigosa. Icho... faça o favor de verificar a rota. Melbar... vá para o console de comando. Eu me encarregarei dos campos defensivos.

Os homens pareciam perdidos no amplo recinto redondo. Parecia inútil tentar resistir às forças que ninguém conhecia e que eram mais poderosas que todos os meios de defesa de que dispunha a Crest II.

Por um segundo Perry Rhodan estava disposto a ceder ao desespero, não interferindo mais nos acontecimentos. Mas lembrou-se de Power — das energias tremendas que haviam devorado o planeta em poucos dias, do transmissor solar e da posição do sistema de Gêmeos, em meio ao nada situado entre a Via Láctea e a galáxia de Andrômeda: Um desconhecido deixara sua marca no abismo sem estrelas, e certamente valeria a pena ter um contacto com este desconhecido.

Com o conhecimento dos princípios técnicos que se escondiam atrás dos mecanismos instalados em Gêmeos, estaria em condições de conseguir para a Terra uma posição de superioridade incontestável em sua galáxia. Além disso, o colocaria em condições de resistir ao ataque dum desconhecido, se é que este existia e tinha a intenção de lançar-se ao ataque.

Se a Crest II não conseguisse libertar-se do inferno em que se encontrava, não haveria como colher as necessárias informações.

Precisamos sair daqui, pensou Perry num súbito acesso de raiva.

O cansaço desapareceu. Os efeitos colaterais dos medicamentos não se faziam sentir mais. O homem que estava sentado à frente do quadro de comando das instalações que geravam o campo defensivo tentou fazer jus à fama de ter uma vontade férrea, que estava espalhada em toda parte.

Quando Icho Tolot voltou a falar, já tinha feito a determinação exata da rota da nave.

— A nave está sendo submetida a duas formas distintas de aceleração, — disse em voz calma — a aceleração de percurso e a aceleração radial. Parece que no momento está percorrendo uma órbita em torno do núcleo energético situado no centro do espaço oco. Mas acredito que a órbita degenere numa espiral, se a velocidade aumentar mais. E a espiral provavelmente se afastará do núcleo energético.

Perry levantou os olhos dos instrumentos. Parecia perplexo. Melbar Kasom, que se encontrava junto ao console do comandante, fitou-o intensamente.

— Isso parece... — exclamou em tom exaltado.

— Isso parece um sincrotron — completou Perry. — Uma partícula elementar está sendo acelerada em órbita.

Bastante espantado, esforçou-se para compreender o sentido da analogia. Será que com base na semelhança dos fenômenos se podia tirar uma conclusão sobre a disposição dos campos de força que produziam o efeito de sincrotron? Qual teria de ser a estrutura desses campos, para que os mesmos pudessem produzir efeitos desta natureza sobre um corpo de metal plastificado como a nave?

Numa questão de segundos sua inteligência bem treinada desenvolveu um modelo. Absorto em seus pensamentos, sem dar atenção aos instrumentos, Perry pesou os prós e os contras de sua hipótese.

De repente levantou-se de um salto — tão depressa que até mesmo o fleumático halutense parecia assustar-se.

— Talvez exista uma possibilidade de nos protegermos contra estas influências — disse em tom apressado. Terei de fazer alguns cálculos. Segure a nave enquanto for possível. Preciso de todas as informações que puder conseguir. Icho, faça o favor de manter aberto o canal de ligação com a sala de computação. Melbar, coloque uma gravação com uma mensagem automática, dizendo que todos os tripulantes deverão dirigir-se à sala de comando assim que acordem da narcose.

Saiu caminhando apressadamente em direção à escotilha que dava para a sala de computação positrônica. Antes de chegar à escotilha parou e virou a cabeça.

— Icho...

O halutense virou a cabeça em forma de cúpula sem movimentar o corpo, fitando-o com um dos olhos que ficavam nas têmporas.

— Já avaliei a situação, amigo — respondeu em tom bonachão. — Farei o que estiver ao meu alcance. Quanto ao seu projeto, tenho a impressão de que daqui a pouco lhe poderei fornecer algumas informações valiosas.

Perry confirmou com um gesto e abriu a escotilha. O fato de o halutense ter adivinhado suas idéias não o deixou nem um pouco espantado. Seria mesmo de admirar se o cérebro programador do mesmo não tivesse compreendido a situação pelo menos com a mesma rapidez do mecanismo intelectual bem menos sofisticado dos terranos.

Na sala de operações do grande centro de computação positrônica de bordo reinava o silêncio carregado de zumbidos finos e graves que é uma das características dos computadores modernos. A instalação estava em condições de entrar em funcionamento. O zumbido era produzido pelos conversores que forneciam a energia que alimentava o centro de computação. Numa questão de segundos o chilrear dos relês encheria o recinto com uma confusa música positrônica.

Perry sentou à frente do console principal. Não perdeu tempo: introduziu os dados disponíveis na memória do programador. Dedos e mãos passavam pelos teclados do banco de dados em movimentos rápidos e seguros, fazendo com que os computadores positrônicos despertassem para a vida.

Os pensamentos de Perry agitavam-se. Não havia ninguém que controlasse as instalações que alimentavam os campos defensivos. Melbar Kasom era um homem versátil que, se necessário, poderia ocupar dois postos ao mesmo tempo. Mas era possível que de repente se vissem numa situação em que tanto as instalações alimentadoras dos campos defensivos como o console de comando exigissem toda a atenção dum homem. E nem mesmo Melbar Kasom seria capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Perry lançou um olhar de dúvida sobre a parede luminosa do centro de computação positrônica, sobre a qual os lampejos das luzes de controle deslizavam num colorido alucinante. Não seria uma irresponsabilidade estar sentado ali para fazer cálculos em torno dum problema, quando nem sequer tinha certeza de que a solução do mesmo poderia ter aplicação à situação em que se encontravam? Seria correto elaborar uma hipótese tão somente com base na analogia entre dois fenômenos?

A placa de controle verde da linha de programação principal iluminou-se à sua frente. A máquina estava preparada para receber a programação.

Perry comprimiu resolutamente a tecla. A luz verde apagou-se.

— Problema — disse em voz rouca. — Elaboração das fórmulas estruturais de dois campos energéticos da sexta dimensão. Fator de analogia: a disposição dos campos energéticos num acelerador de partículas sincrotron...

Numa questão de segundos a máquina iniciou seu trabalho.

 

Dali a um minuto a velocidade da Crest II tinha alcançado cinco mil quilômetros por segundo, e a distância que a separava do núcleo energético tinha aumentado para dois mil quilômetros.

No início a aceleração de percurso, em virtude da qual a velocidade com que a nave percorria a órbita aumentasse cada vez mais, era bem maior que a aceleração radial. Mas de alguns segundos para cá esta tinha passado à frente, e o dispositivo antigravitacional empregava a maior parte de sua potência na tarefa de neutralizar a força centrífuga, que se tornava cada vez mais angustiante. Além disso, a Crest II começara a girar em torno do próprio eixo, o que tornava a situação ainda pior. Era bem verdade que este último movimento só sofreu uma aceleração durante um tempo limitado. Assim que o movimento de rotação da nave atingiu certa velocidade, esta permaneceu constante.

Por enquanto a mensagem circular de Melbar Kasom não tinha produzido qualquer resultado. Ninguém tinha despertado do sono profundo, ao menos o suficiente para poder atender ao pedido.

A situação começava a tornar-se crítica. Dentro de alguns minutos o dispositivo antigravitacional não estaria mais em condições de neutralizar a pressão. Melbar contemplou as luzes de controle de seu quadro de comando, que estavam mortos. Os propulsores ainda não estavam funcionando. Seriam capazes de resistir à força inimiga?

Aconteceu exatamente o que Icho Tolot tinha previsto. A espiral foi-se abrindo. A Crest II aproximava-se da casca do mundo oco. Já se constatara que o diâmetro total do espaço oco era de 7.800 quilômetros. Dois mil quilômetros separavam a nave da bola incandescente do núcleo energético, e mil e novecentos quilômetros abaixo deles estendiam-se as montanhas entrecortadas e os amplos desertos do planeta oco.

Melbar ainda não tivera tempo para fazer uma análise do espaço nas proximidades da superfície. Se lá embaixo havia uma atmosfera, a Crest II estaria perdida bem antes do que ele supusera.

Não havia dúvida sobre as intenções do inimigo desconhecido.

Queria destruir o intruso.

Com a abundância de recursos e energias de que podia lançar mão, pouco lhe importava de que forma alcançasse seu objetivo. Poderia bombardear a nave com projéteis contra os quais não haveria defesa, ou acelerá-la à maneira duma partícula elementar, até que se arrebentasse ou se espatifasse de encontro à superfície daquele mundo que antes parecia um pesadelo. Para ele qualquer coisa servia, desde que eliminasse o intruso.

Icho Tolot ditava ininterruptamente dados para dentro do microfone do intercomunicador. Perry Rhodan, Administrador Geral do Império Solar, estava sentado atrás da escotilha fechada, interpretando estes dados. Melbar Kasom rezava para que seus esforços fossem coroados de êxito.

Ainda estava pensando nisso, quando o alarme soou.

A pressão acabara de ultrapassar o limite crítico.

Os geradores trabalhavam em regime de sobrecarga.

 

A resposta era sempre a mesma.

Uma equação com seis variáveis e suas derivadas, com coeficientes desconhecidos.

Perry armazenou os dados fornecidos por Icho Tolot e alimentou a máquina com os mesmos, assim que a mesma concluiu uma série de programação. Mas nenhum dos movimentos da nave era suficientemente característico para permitir a apuração dos seis coeficientes.

O tempo foi passando. Há alguns segundos ou minutos as sereias tinham soado lá fora. Perry não teve necessidade de perguntar por quê. Logo após isso a pressão o atingia, comprimindo-o para dentro da poltrona.

O dispositivo antigravitacional já não conseguia desempenhar sua tarefa.

De repente Tolot chamou.

— Abandonarei meu posto, amigo — disse com a voz tranqüila. — Com os dados sobre a rota não poderemos fazer nada. Passarei a observar coisas mais importantes.

Perry já se acostumara há tempo de quebrar a cabeça com as decisões repentinas do halutense. Não se podia notar que em qualquer situação Icho sabia perfeitamente o que estava fazendo.

O cérebro de Perry desenvolvia uma atividade febril. O trabalho de procurar os detalhes de que talvez se tivesse esquecido só poderia ser feito por ele mesmo. A máquina não poderia ajudá-lo. Repassara mais uma vez a programação e chegara ao mesmo resultado. Os coeficientes são indeterminados.

Perry apoiou a cabeça nas mãos e fechou os olhos.

Havia somente um movimento característico, apenas uma série de números críticos.

Depois de alguns segundos a pressão obrigou-o a mudar de posição. Os braços já não suportavam o peso do crânio. A respiração tornava-se difícil. A pressão começava a ficar perigosa.

Perry voltou a ouvir a voz de Icho Tolot.

— Iniciamos uma nova espécie de movimento, amigo. — Como consegue falar tão calmamente? pensou Perry Rhodan. — Já não nos deslocamos sempre no mesmo plano. Além de descrever uma espiral que nos afasta do núcleo energético, estamos percorrendo outra, mais estreita, que nos faz contornar em forma de saca-rolha a órbita plana que vimos percorrendo.

Perry compreendeu imediatamente. A analogia tornara-se ainda mais patente. As partículas elementares que se movimentam no interior do sincrotron também descrevem uma órbita em espiral. Prendeu a respiração diante da idéia que lhe veio à cabeça quando fez esta comparação.

— Icho... — fungou — ... seria possível verificar se a nave está emitindo alguma radiação?

A resposta do halutense foi imediata, e pelo tom de sua voz aquilo parecia diverti-lo.

— Já dei a entender que dentro em breve iria fornecer uma informação valiosa, amigo. Meus aparelhos registram a emissão duma radiação. Só alcançam a componente que a mesma projeta na quinta dimensão, mas não há dúvida de que existe uma correlação com a velocidade angular na hiperfreqüência. Atenção para os dados...

O halutense foi fornecendo as informações apuradas pelos instrumentos e por seu cérebro programador na medida em que Perry conseguia processá-las. Perry transmitiu-as à máquina, e o computador positrônico voltou a repassar a programação.

Perry pôs-se a esperar. Estava impaciente. Notavam-se perfeitamente os efeitos do movimento que se processava numa espiral estreita. A direção em que era exercida a pressão mudava a intervalos regulares. Perry perguntou-se quanto tempo ainda seria capaz de agüentar isto. O sentido do tempo já deixara de funcionar. A operação do computador parecia demorar várias horas, embora o mesmo não pudesse levar mais de vinte a trinta segundos para repassar a programação.

Seus pensamentos não se deixaram influenciar pelo perigo que os ameaçava. Ainda trabalhava intensamente na solução do problema. Mesmo que as informações fornecidas por Icho fossem as de que precisava, as mesmas só determinariam três dos seis coeficientes. Para resolver a equação, seria necessário conhecer cinco coeficientes, pois o sexto seria determinado automaticamente. Rhodan perguntou-se pela centésima vez se não havia esquecido algum detalhe.

Finalmente o computador positrônico apresentou o novo resultado.

A equação estava modificada.

Três coeficientes tinham sido determinados.

Perry puxou o microfone para perto. Informou o halutense com algumas palavras apressadas. Já era possível orientar os projetores dos campos defensivos. Três componentes da força inimiga contra a qual tinham de lutar os campos defensivos eram conhecidos.

Será que isso adiantaria alguma coisa?

Seria possível neutralizar os campos de força, se apenas três de seus seis componentes tinham sido paralisados?

Icho Tolot não perdeu tempo. Deu a resposta alguns segundos depois de ter recebido os dados.

— Não adianta, amigo. Para neutralizar os campos de força em três componentes, teria de retirar toda a energia do dispositivo antigravitacional. Se fizer isso, vocês serão esmagados de encontro às paredes.

A pressão tremenda empurrou Perry para a frente, comprimindo seu rosto contra a placa do quadro de comando.

Era o fim...!

Não havia mais nenhuma esperança.

Perry nem sequer teve forças para levantar a cabeça. Pelo menos enquanto não se lembrou do detalhe que tinha esquecido.

De repente a idéia atravessou seu cérebro com a força dum raio e deu-lhe novas forças. De repente conseguiu levantar o busto, e embora anéis coloridos dançassem diante de seus olhos conseguiu encontrar o microfone. A voz não queria obedecer-lhe, mas depois de fazer um grande esforço conseguiu gritar com a voz rouca:

— Icho... o movimento de rotação da nave... qual é a freqüência?

De repente tudo parecia muito simples. A nave possuía um impulso que a fazia girar em torno do próprio eixo. Era o único movimento da Crest II que não tinha nenhuma aceleração. Era estranho que até então não se tivesse lembrado de concluir o raciocínio baseado na analogia com as partículas elementares. Existiam duas espécies de partículas. Algumas possuíam e outras não possuíam o movimento de rotação denominado spin. O spin era uma grandeza característica. Sempre que era diferente de zero, correspondia ao inteiro ou meio dum quantum elementar. Na física tridimensional este quantum elementar era equivalente ao quantum de efeito de Planck multiplicado por uma constante numérica.

O calculista solitário sentiu-se dominado pelo entusiasmo. As respostas de Icho Tolot vinham muito devagar. Eram números após números...

Rhodan alimentou o computador positrônico com os mesmos.

Sua mão pesava como chumbo, mas conseguiu comprimir a tecla da programadora principal. A máquina começou a operar com um zumbido e uma série de estalos. Perry fechou os olhos para não ver os anéis e as faíscas que a pressão tremenda fazia aparecer à sua frente.

Voltou a abri-los assim que os relês ficaram em silêncio.

A máquina acabara de calcular o quantum elementar da estranha física da sexta dimensão e juntamente com ele determinara os três coeficientes que faltavam.

A equação tinha sido resolvida. A fórmula estrutural dos campos de força estava projetada na tela luminosa que se encontrava à frente de Perry.

Teve de fazer um grande esforço para sair da poltrona. Sentiu uma necessidade de deixar-se cair no chão e ficar deitado. A tendência estranha de conservar um ar de dignidade, mesmo nos momentos de perigo, manteve-o de pé.

A escotilha abriu-se à sua frente. Perry entrou tropeçando na sala de comando. De repente havia uma coisa negra e pesada à sua frente e segurou-o quando estava para cair. Era Icho Tolot, o halutense.

Perry ficou inconsciente por alguns segundos. Quando recuperou os sentidos, estava sentado na poltrona que ficava à frente dos controles do campo defensivo. Icho estava parado a seu lado. Parecia uma rocha em meio à tempestade. As paredes gemiam e gritavam em torno dele. Perry não se lembrava de jamais ter sentido uma pressão tão mortífera. Teve de fazer um grande esforço para reconhecer as chaves e os botões que se encontravam à sua frente. Um estranho quadro deixava-o fascinado. Era uma bola de fogo branca, que corria que nem um raio de uma tela para outra e num segundo deu a volta pela sala de comando.

Era o núcleo energético! O quadro era produzido pelo movimento alucinante da nave.

Reunindo todas as forças que lhe restavam, Perry conseguiu controlar seu corpo. Gemendo e fungando, conseguiu pronunciar algumas palavras desconexas. Teve uma idéia vaga de que Icho Tolot se movimentava a seu lado, manipulando alguns botões. Ele mesmo só conseguiu mover uma chave. Depois disso teve de fazer uma pausa.

O interior da nave era um inferno de metais que gritavam, luzes que tremiam e dores que martirizavam as pessoas. Perry sentiu-se levantado e no mesmo instante comprimido fortemente para dentro da poltrona. No mesmo instante uma força terrível puxou-o para o lado. A braçadeira da poltrona quebrou com o peso do corpo amortecido. Rhodan sentiu que estava ficando inconsciente. Não teve forças para retê-la. Chegara tarde.

A voz de Icho Tolot soou em meio à confusão de luzes, barulho e dor.

— Temos que desviar parte da energia dos geradores. — Os ouvidos de Perry zumbiam. Só entendia alguns fragmentos do que era falado. — ... pressão aumentada... se der certo... por pouco tempo...

Rhodan foi atingido por uma terrível pancada.

Mergulhou numa escuridão tépida e macia...

Acordou com um grito.

A sua frente Melbar Kasom, o ertrusiano, caminhava pelo chão liso. Mais adiante via-se o corpo enorme de Icho Tolot.

O silêncio reinava em torno dele. Os quadros mudos projetados nas telas mostravam uma paisagem vista duma altura considerável, que impressionava pelo vazio e pela desolação. Perry notou que estava deitado no chão, que tinha a impressão de que um martelete mecânico tivesse massageado seu corpo — e que de resto tudo parecia estar em ordem.

Levantou do chão. O esforço que teve de fazer para apoiar-se nos cotovelos fez com que o suor porejasse em sua testa. Fungou. O ertrusiano ouviu e veio correndo em sua direção. Dali a um segundo Perry Rhodan estava pendurado nos braços robustos de Melbar Kasom. Tinha certeza de que, se Melbar resolvesse soltá-lo, cairia ao chão.

— Que houve? — perguntou com a voz rouca.

— Por enquanto a nave está fora de perigo — respondeu a voz retumbante de Icho Tolot. — No momento mais crítico o senhor gritou os dados para a regulagem dos projetores do campo defensivo. Pude orientar as antenas de acordo com os mesmos. O resultado foi notável. Por uma fração de segundo o dispositivo antigravitacional funcionou com potência reduzida. Até mesmo nosso amigo Melbar Kasom desmaiou por um instante. Mas as influências externas logo foram eliminadas. A única coisa que tive que fazer foi imobilizar a nave.

Perry Rhodan tinha uma idéia perfeita do que significava nestas condições a expressão a única coisa.

— Como estão as coisas dentro da nave? — perguntou.

Icho Tolot já tinha falado. Voltou a dedicar-se ao trabalho e deixou que Melbar Kasom respondesse.

— Ainda não tivemos tempo para verificar, senhor — respondeu o ertrusiano. — Por enquanto não há notícia da tripulação. Muita gente deve ter sofrido ferimentos, principalmente em virtude do último choque de pressão. Em compensação os maquinismos funcionam perfeitamente. O senhor mesmo precisa dum médico.

Perry fez um gesto de pouco caso. Lembrou-se de Mory. Como teria ela resistido àquele inferno? E os outros?

Libertou-se da mão de Melbar, que o segurava. A preocupação com a nave e seus tripulantes dava-lhe forças para manter-se de pé, ao menos por enquanto.

— A influência inimiga ainda está sendo repelida, ou deixou de existir? — perguntou.

— Já parou, senhor — limitou-se Melbar a responder. — O inimigo deve ter reconhecido que não consegue romper nosso campo defensivo.

Perry acenou com a cabeça. Parecia pensativo. A idéia de que havia algo capaz de frustrar os esforços do inimigo era reconfortante. Isto naturalmente se a idéia era correta. Era possível que o inimigo tivesse desligado o campo energético composto por iniciativa própria, simplesmente por ter resolvido outra coisa ou porque pretendia usar outro meio de agir sobre a nave.

De qualquer maneira, a coincidência no tempo conferia alguma credibilidade à hipótese mais otimista. Se fosse verdadeira, o inimigo realmente só estaria em condições de trabalhar com um volume limitado de energia, e neste caso ainda haveria uma esperança para a Crest II.

Perry olhou para as telas. Icho Tolot percebeu.

— Fiz algumas medições; talvez esteja interessado, amigo — disse em tom indiferente. — A parte interna do mundo oco no qual nos encontramos tem sete mil e oitocentos quilômetros de diâmetro, conforme já sabíamos. Recebe luz e calor dum núcleo energético branco e incandescente, sobre cuja natureza ainda não estou bem informado. Lá embaixo existe uma atmosfera respirável... — Perry sobressaltou-se, mas o halutense não se impressionou. — ... e uma gravitação aproximada de um gravo, segundo seus padrões. Não sabemos qual é a origem da gravitação e da atmosfera. Não encontramos qualquer vestígio de vida orgânica. O mundo oco parece ser um único deserto.

O quadro das superfícies de areia cinza-amarelentas e das montanhas entrecortadas causou certo mal-estar em Perry. Não precisava duma análise científica para saber que um mundo como este nunca se poderia formar de maneira natural. Quer dizer que alguém o tinha construído. E este alguém lhe havia dado um sol, uma gravitação e uma atmosfera respirável.

Não importava saber com que intenção tinha feito isso. O mais deprimente em tudo isso era que o homem do planeta Terra ainda teria de percorrer alguns milênios antes que seu volume de conhecimentos fosse suficiente para criar um planeta artificial.

Uma pergunta se impunha.

O que havia do lado de fora do mundo oco?

Assim que Wuriu Sengu, o espia, recuperasse os sentidos, Perry lhe daria ordem para lançar um olhar para o lado de fora do envoltório da esfera. Wuriu certamente estaria em condições de reconhecer os astros vizinhos — Se é que estes existiam. De qualquer maneira, seria capaz de determinar a espessura do envoltório.

Mas antes de mais nada tornava-se necessário verificar como estavam as coisas no interior dos depósitos em que os tripulantes estavam — ou tinham estado — em estado de sono profundo. Perry ocupou o lugar que lhe cabia atrás do quadro de comando, o que o ajudou bastante, pois de qualquer maneira não conseguiria agüentar-se em pé por muito tempo. Ligou o intercomunicador circular.

As telas do sistema de intercomunicação acenderam-se. Mostraram os depósitos, as fileiras extensas de camas provisórias que os robôs de trabalho haviam colocado antes que a nave partisse do sistema de Gêmeos. Na maioria as pessoas continuavam inconscientes, mas algumas já começavam a mexer-se. Não se via o menor sinal de que alguém tivesse sofrido ferimentos externos. Perry sentiu-se animado por uma nova esperança. Dentro de dez ou vinte minutos poderia colocar em ação alguns robôs médicos, a fim de aplicar injeções que despertassem os homens mais depressa.

Fez uma ligação com o convés de comando. Procurou entrar em contacto com Atlan, mas este não respondeu. Mas quando chamou Mory o sinal só tocou uma única vez antes que a tela se atendesse.

Um rosto cansado cercado por uma confusão de cabelos ruivos apareceu na mesma. Um par de olhos sonolentos fitou a objetiva.

— O que...? — perguntou Mory em tom contrariado.

Perry sorriu.

— Você dormiu um dia e meio — disse em tom irônico. — Já está na hora de acordar.

Depois desligou.

Não confessaria isso a ninguém, mas o fato é que só agora se sentia bem confiante.

 

— Sargento Russo apresentando-se à coordenação, depois de submetido a tratamento médico no convés C, seção quatro.

O sargento Fed Russo, um homem de trinta e três anos, baixo e robusto, com a cabeça dum camponês romano, estava vestindo a camisa quando ouviu o intercomunicador. Encontrava-se no vestiário da enfermaria do convés D, com mais algumas dezenas de pessoas, que estavam tão cansadas, abatidas e suadas quanto ele. Fed Russo acabara de receber uma injeção que, segundo lhe foi explicado, faria retornar suas funções orgânicas o mais depressa possível ao nível normal. Metade dos homens que cercavam Russo também tinha recebido a injeção, enquanto a outra metade estava prestes a isso.

— Por que tem que ser sempre eu? — perguntou Fed, aborrecido, enquanto abotoava a camisa.

Ninguém lhe deu atenção. Todos tinham seus problemas. Alguns deles ainda estavam tão cansados e abatidos que nem sequer tinham capacidade de reconhecer seus problemas. Eram 03:11 h, tempo de bordo, do dia 11 de outubro de 2.400 do calendário terrano, e corria o boato de que há pouco a Crest saíra da transição num lugar completamente desconhecido.

Fed Russo aprontou-se. Certificou-se de que seu capacete estava corretamente colocado e de que a coronha da arma energética saía alguns centímetros por cima da extremidade anterior do coldre. Depois saiu em direção à coordenação. Usou esteiras transportadoras cheias de homens pálidos e apáticos. Havia tripulantes e suboficiais. Ele mesmo ainda não sentia os efeitos do medicamento que acabara de ser aplicado. Estava cansado e sentia uma vontade irresistível de deitar e dormir.

— Nada disso — resmungou em tom contrariado. — Estão precisando de Russo.

Alguém bateu em seu ombro.

— Fed Russo! — gritou uma voz aguda, tão alto que até mesmo os passageiros mais apáticos viraram a cabeça. — Não venha me dizer que também está se dirigindo à coordenação, amigo.

— Será que você também está, Josh? — gemeu Fed sem virar a cabeça.

— E claro que sim — exclamou Josh em tom entusiasmado. — Quem sabe se não nos mandam executar uma missão juntos?

Fed virou lentamente a cabeça, enquanto a esteira continuava a transportá-lo juntamente com o amigo de voz estridente. Josh Bonin era um negro. Tinha pouco menos de dois metros de altura e era assustadoramente magro. Josh tinha o hábito de, mesmo nos momentos de maior entusiasmo, não olhar para o objeto de sua exaltação. Olhava por cima do mesmo. E enquanto gritava e exultava, seu pomo de adão bastante desenvolvido saltava para cima e para baixo, como se estivesse sendo puxado por um par de fios de borracha.

— Que missão poderia ser esta, que pudéssemos desempenhar juntos? — perguntou Russo, fingindo-se de aborrecido.

Josh não deu atenção à observação do amigo. Olhou por cima das cabeças da multidão, como se mais adiante houvesse uma coisa interessante para ver, e disse em tom exaltado:

— Já lhe contaram...? Saímos no inferno, não saímos?

— Saímos, sim — confirmou Russo em tom zangado. — Bem em cima da grande fogueira.

Josh deu uma risadinha.

— Bem, veremos quem vai se queimar primeiro.

Entraram no elevador antigravitacional e subiram ao convés C, onde o tráfego era muito menos intenso. Muitas pessoas ainda não estavam em condições de voltar aos seus postos. Fed Russo perguntou-se desesperadamente por que justamente ele e Josh Bonin haviam sido submetidos a um tratamento mais rápido, fazendo com que ficassem de pé antes da grande maioria dos outros tripulantes.

Uma suspeita nasceu em sua cabeça. Josh Bonin e ele, além do cabo Sturry Finch, da equipe de medições, já tinham desempenhado juntos uma missão muito perigosa. Fazia muito tempo, mas se por aqui houvesse alguma coisa que se assemelhasse àquela missão, os oficiais certamente fariam o possível para pôr em ação o velho trio.

A escotilha da ante-sala da coordenação abriu-se automaticamente assim que Josh Bonin saltou da esteira e colocou-se à frente da mesma. Atravessou-a com a cabeça bem levantada. Fed Russo seguiu-o numa atitude pensativo e um pouco mais devagar.

Um apito agudo deixou-o sobressaltado. A ante-sala cheia de bancos e mesas estava vazia com exceção de um único homem, que era quase um menino, e que se levantara imediatamente à entrada de Josh.

Fed viu-o colocar as mãos à frente do rosto. Uma voz triste saiu atrás dos dedos abertos.

— Não. Vocês não podem fazer-me uma coisa dessas!

Fed não teve necessidade de olhar para o rosto. Conhecia aquela cabeleira loura e desgrenhada e sabia que a mesma pertencia a Sturry Finch.

Interrompeu-o com um gesto.

— Sim, meu filho, eles podem fazer-lhe isso. Sturry tirou as mãos da frente do rosto. Possuía um par de olhos azuis muito alegres. Precisava-se olhar bem para notar que não era tão jovem como parecia à primeira vista. Era um pouco mais alto que Fed, mas tinha um corpo esbelto.

— Como posso saber? Eles me chamaram, e quando cheguei aqui disseram que precisava esperar mais um pouco, até que chegassem mais dois homens.

— Entrem! — disse uma voz vinda do teto.

A escotilha que ficava do outro lado da sala abriu-se. Atrás dela havia um escritório espaçoso, no qual normalmente costumavam trabalhar cinco homens. No momento só uma das escrivaninhas estava ocupada. Fed reconheceu o capitão Redhorse e fez continência. O capitão retribuiu com um gesto indiferente.

— Há bastante tempo — principiou, indo diretamente ao assunto — vocês estiveram juntos numa missão. Estamos enfrentando um problema cujas características se assemelham bastante às da missão que vocês desempenharam naquela oportunidade. Por isso o comando da nave decidiu fazer mais uma experiência com o trio. — Exibiu um sorriso amável. — As informações necessárias serão fornecidas imediatamente. Serão somente alguns minutos de hipno-treinamento.

Redhorse levantou-se.

— Antes tivesse levado uma pancada mais forte na cabeça... — disse Sturry.

 

— Quer dizer que nos encontramos no interior dum mundo oco — disse Josh com a voz estridente.

— O que fica lá embaixo é a parede interna da esfera. Vou...

— Cale a boca! — resmungou Fed. — Já sabemos disso.

Josh calou-se imediatamente. Na verdade, Fed não estava zangado por causa de sua conversa. Ele mesmo mal conseguia conformar-se com a situação em que se encontravam, e ficar recitando as informações recebidas de certo era um método bastante eficiente de acostumar-se ao ambiente louco em que se encontravam.

Os três homens estavam num veículo de desembarque que deslizava cerca de vinte quilômetros acima da superfície plana dum deserto. A Crest já tinha desaparecido atrás deles. Mas a esfera ofuscante do núcleo energético continuava a brilhar.

A missão que tinha sido confiada a Fed e seus dois companheiros era bastante simples. Tratava-se de fazer um reconhecimento numa área de algumas centenas de quilômetros quadrados e descobrir um ponto da superfície do planeta em que a nave pudesse pousar em segurança.

Parecia simples. Mas Fed Russo sabia por experiência própria que uma operação desse tipo sempre é bastante problemática, pois do contrário a Crest teria pousado sem antes enviar um comando.

O veículo de desembarque era dum tipo bastante rudimentar. Não tinha sido feito para operar no espaço com seus próprios recursos. Sua finalidade consistia unicamente em levar um grupo de três a cinco pessoas para a superfície, quando a nave não se encontrava a grande altitude. Era bem verdade que o barco possuía um conjunto estabilizador de grande potência, que lhe permitia penetrar na atmosfera em qualquer velocidade, sem depender de superfícies de sustentação.

No interior do veículo havia uma sala de passageiras e uma de instrumentos, a câmara dos propulsores e a eclusa. Sturry Finch instalara na sala de instrumentos os de que, segundo diziam, poderiam tornar-se necessários. Sturry dava tanta importância a esses instrumentos que durante toda a viagem não saiu de cima do assento dobrável que ficava junto à eclusa atrás da qual tinham sido colocados os petrechos que ele tinha trazido para bordo. Josh Bonin cuidava das operações de rastreamento e de outros detalhes. Fed Russo exercia as funções de piloto. Josh ocupava o mesmo posto que Fed, mas o comando da operação tinha sido entregue a este.

Fed já escolhera um lugar para pousar. Ficava na periferia do deserto, a apenas alguns quilômetros duma extensa cordilheira que, se necessário, serviria para esconder e proteger a Crest II. Se dependesse dele, Fed já teria pousado há muito tempo. Só estava esperando que Josh concluísse suas pesquisas.

— Esta área está cheia de interferências — exclamou Josh em tom triste e lançou um olhar desesperado para as indicações confusas do estilete dos instrumentos. — Como poderei saber se há algo de importante?

Fed inclinou-se para o lado e lançou um olhar na tela do estilete. Era bem verdade que Josh tinha o hábito de fingir-se de perplexo e desorientado, mas quando resolvia dizer alguma coisa, ainda mais num tom tão triste, geralmente já tinha pensado no assunto e suas palavras tinham pé e cabeça.

O rastreador estava regulado para o espectro de ondas eletromagnéticas. O estilete traçava um quadro confuso formado por linhas e manchas. Se havia algum sinal articulado no meio de tudo isso, não havia como identificá-lo.

— Vamos pousar — disse Russo laconicamente e voltou a dedicar sua atenção aos comandos.

O barco foi descendo rapidamente. Os raios de partículas muito compactos do estabilizador rasgaram as camadas superiores da atmosfera, produzindo um véu luminoso formado por gases ionizados. O ângulo de visão das telas diminuía rapidamente.

Começavam a aparecer certos detalhes da superfície, mas o caráter absolutamente irreal do quadro continuou.

Fed transmitiu uma breve mensagem para a Crest, mensagem esta que foi recebida em boas condições e confirmada, apesar das fortes interferências. Dali a pouco o barco tocou a superfície. Os propulsores levantaram nuvens de areia e poeira. Por isso demorou alguns minutos até que a visão ficasse desimpedida.

Dois quilômetros para o lado da proa erguia-se um paredão quase vertical, entrecortado e cheio de saliências, que tinha pelo menos quinhentos metros de altura. Para a direita e a esquerda havia encostas rochosas menos íngremes. Do lado de cá as montanhas, em torno do barco, e para o lado da popa, até a linha do horizonte, estendia-se o deserto, uma área ondulada de areia marrom-acinzentada, que nunca parecia ter sido tocada pelo vento. Por cima de tudo isso estendia-se um céu leitoso, em meio ao qual brilhava a bola ofuscante do núcleo energético.

Fed Russo teve um calafrio quando desatou os cintos e verificou seu traje protetor. O capacete estava dobrado sobre o ombro, à maneira de capuz. Não precisaria dele. O ar lá fora era respirável. A temperatura era de aproximadamente quarenta e cinco graus na sombra. No sol o calor seria infernal, mas suportável.

— Fiquem aqui — disse em tom enérgico. — Só vou dar alguns passos lá fora.

Saiu pela eclusa. Saltou pela escotilha aberta e afundou na areia até os tornozelos. O calor terrível teve o efeito dum choque doloroso. O corpo começou a transpirar imediatamente, o que proporcionou certo alívio. Fed ficou parado um minuto, para acostumar-se ao ambiente.

O ar era duma limpidez incrível. Fed percebeu que, para avaliar as distâncias, teria de confiar exclusivamente nos instrumentos. A vista alcançava tão longe que um objeto que se encontrava a dez quilômetros de distância parecia encontrar-se bem à sua frente.

Respirou profundamente, com a boca bem fechada. O ar quente deixou as mucosas ressequidas e provocou dor, mas era inodoro.

Inodoro e livre de germes, pensou Fed.

Realmente, não havia vento. Não se sentia a menor movimentação do ar. Fed encontrou a explicação. O envoltório do planeta era perfeitamente esférico. O calor gerado pelo núcleo energético era igual em toda parte. Não podia haver diferenças localizadas na densidade do ar, e assim o ar não tinha por que movimentar-se.

De repente Fed sentiu uma repugnância profunda por este mundo. Era quieto demais; não tinha vida. Não tinha nenhuma ligação com o tempo e o espaço. Quanto mais lançava os olhos em torno, mais intensa era a impressão de que Fed Russo estava sonhando. A realidade desmanchava-se, e do irreal vinha a sensação de perigo.

Fed procurou sacudir essa sensação enquanto caminhava pela areia, mas não conseguiu. Tentou convencer-se de que era apenas o ambiente estranho que lhe causava medo e desconforto. Talvez fosse assim, reconheceu, mas apesar disso parava de vez em quando e virava abruptamente a cabeça.

Finalmente voltou ao barco. O corpo circular e achatado do veículo estava apoiado sobre quatro pernas muito finas. O conjunto dava a impressão dum inseto feio e desajeitado. Mas sempre que olhava para ele, Fed sentia-se aliviado. Neste mundo de silêncio e loucura era a única coisa da qual sabia o que era, para que servia e como se devia lidar com ela.

Segurou a extremidade inferior da escotilha, que continuava aberta, e puxou-se para cima. Na sala dos passageiros estavam à sua espera; pareciam impacientes.

— Descobriu alguma coisa? — gritou Josh, olhando por cima de Fed.

Fed fez um gesto de desprezo.

— Nada — resmungou em tom contrariado. — Vamos dar uma olhada nestas montanhas.

Achou que era uma boa idéia. Era o deserto plano e monótono que mais o deprimia. Certamente as montanhas seriam mais suportáveis, mesmo que nelas também não houvesse vida.

Fed acomodou-se no assento do piloto. Quando estava atando os cintos, Sturry Finch, que estava atrás dele, soltou um grito baixo.

Fed virou-se abruptamente.

— Que houve?

Sturry estava olhando para uma das telas. Apontou para a mesma. Continuou a observar a tela por mais algum tempo e virou a cabeça para Fed.

— Acho que não foi nada — disse, um tanto embaraçado. — Tive a impressão de ter visto um raio atrás das montanhas.

Fed acenou com a cabeça. Parecia contrariado.

— É isso aí, meu filho — disse em tom mal-humorado. — Se continuarmos assim mais algumas horas, todos teremos um tique.

 

Lenta mas ininterruptamente o espírito de Wuriu Sengu foi avançando pela escuridão. O espia tinha esquecido o mundo que o cercava. Conduzido pelos dons incríveis do cérebro que passara por uma mutação, dirigia seu olhar para lugares em que nenhum olho humano seria capaz de enxergar.

A parede interna do planeta oco opôs certa resistência aos esforços de Wuriu. Seu olhar mergulhou numa escuridão disforme e desorientou-se. Por algum tempo ficou errando na escuridão, defrontava-se de vez em quando com alguns contornos apagados, que representavam depósitos de minérios, veias de água e pequenos espaços ocos, e acabou de sair na claridade.

O choque que o espia sofreu ao reconhecer o novo ambiente foi tão intenso que por pouco não o deixou inconsciente.

No último instante conseguiu controlar sua mente confusa e obrigou-se a contemplar o quadro confuso abrangido por sua visão parapsíquica.

Viu uma planície coberta de capim, na qual de vez em quando havia algumas árvores e arbustos. Um rio pouco profundo atravessava a mesma em linha sinuosa. Mais nos fundos erguiam-se montanhas — que montanhas! Wuriu não conseguiu avaliar sua altura, mas não havia dúvida de que a mesma chegava a centenas de quilômetros. O céu parecia boiar numa luz verde difusa. Ao que parecia, não havia nenhum sol. A claridade provinha exclusivamente dos raios verdes, cuja fonte Wuriu não conseguiu identificar.

Notou que os cumes das montanhas penetravam na luz verde. Seu olho tateou mais um pouco e percebeu que os topos rochosos encostavam num teto de material sólido.

Só então deu-se conta do que acabara de descobrir.

O que mais o deixara confuso ao lançar o primeiro olhar sobre aquele mundo estranho fora o fato de que a superfície lisa parecia estar mais longe, enquanto as montanhas pareciam estender-se em sua direção. Se tivesse avançado até a superfície externa do planeta, teria de ser justamente o contrário.

Compreendeu.

O que estava vendo não era propriamente a superfície do planeta. Era um mundo situado entre duas cascas ocas. Pelos cálculos do espia, a espessura da parede da esfera oca em cujo interior se encontrava a Crest II devia ser de duzentos quilômetros, aproximadamente. A face externa era formada pelo céu do mundo verde para o qual estava olhando. O chão no qual se erguiam as montanhas era a face interna duma segunda esfera oca, maior que a primeira.

Wuriu não perdeu muito tempo. Continuou a avançar.

Não se surpreendeu nem um pouco ao encontrar depois da segunda esfera oca uma terceira, que também representava um mundo distinto. Estava envolto numa luz vermelho-escura, e também aqui as montanhas subiam centenas de quilômetros, dando a impressão de que sua finalidade consistia em apoiar o mundo vermelho diante do verde.

O olhar do espia continuou a avançar. Mais um mundo apareceu, alojado entre o terceiro e o quarto envoltório. Era um mundo da rebelião, mergulhado numa luz amarela e atravessado por furiosos temporais de fogo que se estendiam em superfícies azul-pálidas. Atravessou o quarto envoltório... e assustou-se ao ver o espaço livre que de repente se estendeu diante dele.

Havia muitas coisas maravilhosas no interior do planeta, mas o maior milagre era este mundo estranho em seu conjunto. Wuriu, o espia, levou algum tempo para compreender o que estava vendo.

A superfície do planeta estava exposta à luz de três sóis. A parte mais importante da constelação era o planeta, não os sóis. Estes formavam um triângulo regular. O planeta ficava no ponto de interseção das linhas traçadas a partir dos centros dos três lados.

Wuriu estava exausto. Sentiu que o quadro começava a escurecer. Rompera quase mil quilômetros de rocha sólida e milhares de quilômetros de espaços ocos, e agora as forças o abandonavam.

Fechou os olhos. O intelecto, que até então estivera submetido exclusivamente à visão paranormal, voltou a desempenhar suas funções normais.

Wuriu Sengu, o espia, voltara a ser um homem normal, banhado em suor, que estava deitado no leito de seu camarote particular, a bordo da Crest II.

Dali a trinta minutos os oficiais mais importantes já conheciam os resultados das observações. Surgiu uma situação que, se não podia ser considerada única, era ao menos muito rara. Um grupo de pessoas muito bem treinadas, de mente objetiva, começou a duvidar das faculdades mentais dum mutante.

Acharam que as observações de Sengu eram produto duma imaginação doentia. Aqueles homens estavam dispostos a aceitar a existência dum mundo oco, mas um mundo oco de quatro andares parecia um objeto tão pouco sério quanto a trepadeira enrolada na ponta da Lua em que alguém tivesse descido à Terra.

Havia um detalhe interessante. Foram principalmente os oficiais mais jovens que duvidaram das faculdades mentais de Wuriu Sengu. Só mesmo a autoridade do Administrador Geral conseguiu, se não remover as dúvidas, ao menos colocá-las em segundo plano.

Dali em diante passou-se a admitir oficialmente que o mundo desconhecido em que se encontravam era formado por quatro esferas ocas concêntricas, nas quais havia um total de cinco superfícies planetárias. A primeira era aquela sobre a qual flutuava a Crest II. A segunda representava o solo do mundo verde, que o espia encontrara cheio de vida orgânica. Em cima desta estendia-se a superfície do mundo vermelho, e depois vinha o intervalo entre as cascas das esferas, que segundo as observações de Sengu estava cheio de luz amarela e fogo azul... Depois disso, finalmente, surgia a superfície propriamente dita do planeta, inundada pela luz de três sóis.

A pergunta de como se formou um monstro de astro como este não chegou a ser formulada, e muito menos respondida.

A exaltação provocada pelas descobertas de Wuriu Sengu ainda não tinha desaparecido, quando houve outra sensação.

As comunicações com o veículo de desembarque comandado pelo sargento Fed Russo tinham sido interrompidas há alguns minutos.

 

As montanhas alinhavam-se em cordilheiras. Entre duas dessas cordilheiras sempre se estendia um profundo vale, mais ou menos retilíneo. A solidão rochosa era tão vazia e desolada quanto a planície do deserto. Mas pelo menos oferecia pontos de referência e um pouco de variedade ao olho humano. Neste ponto Fed Russo tinha razão.

Fez o barco acompanhar as curvas suaves dum vale. Duas cadeias de montanhas interpunham-se entre eles e o deserto. A Crest II era informada constantemente sobre o vôo do veículo. O rastreador da nave informou que há poucos minutos perdera de vista o barco. Mas as comunicações pelo rádio continuavam a ser excelentes.

— O que estamos fazendo mesmo aqui? — perguntou Josh Bonin em tom queixoso. — Já vimos tudo. Atrás da segunda cadeia de montanhas vemos a mesma coisa que já vimos atrás da primeira, e assim por diante. Não compreendo o que...

— Se não compreende, cale a boca! — gritou Fed.

Por alguns minutos todos mantiveram um silêncio constrangedor. Sturry Finch, que tinha montado alguns dos seus instrumentos junto à porta que dava para o compartimento de carga, fazia medições ininterruptas. Trabalhava com entusiasmo, mas por enquanto só descobrira algumas interferências eletromagnéticas e de outra espécie, em volume elevado.

O barco aproximou-se dum lugar em que o vale se abria em forma de bacia. Parecia que há tempos imemoriais havia um lago por ali, lago este que era alimentado por um curso de água vindo de cima e despejava suas águas numa corrente situada mais embaixo.

Na opinião de Fed, o local prestava-se para pousar o barco. Fez descer o mesmo e colocou-a em meio à poeira, junto a um paredão. Até mesmo nas imediações deste não havia nenhuma sombra. O sol ofuscante do núcleo energético ficava exatamente na vertical sobre tudo que havia neste mundo.

Sturry levantou os olhos, estupefato, pois só nesse momento percebeu que o barco tinha pousado. Estava sentado no chão, que nem uma criança em meio aos seus brinquedos. Fitou Fed com uma expressão indagadora.

— Podemos sair? — perguntou.

Fed acenou com a cabeça.

— Vamos esticar as pernas um pouco — decidiu.

Sturry pegou apressadamente alguns instrumentos e saiu correndo em direção à eclusa.

— Acha que vai conseguir alguma coisa com isso? — perguntou Fed.

— Acho, sim! — Havia uma expressão de entusiasmo nos olhos azuis de Sturry. — Há uma série de influências pouco intensas, que não conseguem atravessar o casco da nave.

Fed estava desconfiado.

— Se são tão fracas, como pôde recebê-las nesta confusão de interferências?

Sturry deu uma risada travessa.

— E simples. Existem métodos para isso.

— Vamos andando! — disse Josh com a voz estridente.

Desceram. Para quem saltava de dentro da eclusa, o chão rochoso do vale era um local de pouso bem menos suave que a areia macia do deserto. Sturry, que foi o primeiro a saltar, caiu e rolou nas costas com a agilidade do felino, para proteger os aparelhos que comprimia com ambas as mãos contra a barriga. Quando Fed saltou, já se tinha levantado e começava a colocar em posição seus instrumentos.

Josh fez um pouso elegante, executou um molejo com as pernas compridas e gemeu, apavorado:

— Meu Deus, que calor!

Ninguém lhe deu atenção. Fed Russo saiu caminhando junto ao paredão e, um tanto pensativo, contemplou as raras e finas superfícies com sombras muito escuras, que se formavam nos lugares em que um pedaço de paredão avançava um pouco, protegendo a superfície que ficava embaixo contra o sol escaldante.

Ajoelhou e remexeu o chão cheio de pedrinhas, até que a pele dos dedos quase ficou assada. Mas não encontrou nada. Embaixo da primeira camada de poeira e pedrinhas havia outra, e depois desta ainda outra, e assim por diante, até...

Até onde?

De repente um par de botas apareceu no campo de visão de Fed. Este levantou os olhos. Bonin estava parado a seu lado e, contrariando seu costume, baixava o olhar sobre ele.

— Já pensou — perguntou — quanto terá de cavar para fazer cócegas nos pés das pessoas que andam na superfície deste mundo?

É estranho, lembrou-se Fed, era exatamente o que eu estava pensando. Encontravam-se na superfície interna dum planeta oco; por um instante esquecera este detalhe. O mundo oco naturalmente possuía uma superfície externa. Se continuasse a cavar, acabaria saindo no envoltório externo do planeta.

Sacudiu a cabeça e levantou-se.

— Que mundo estranho! — observou. — Será que alguém é capaz de orientar-se por aqui?

Josh era da mesma opinião.

— Deveríamos chamar este mundo de Horror — sugeriu.

Fed deu uma risada amarga.

— Entre em contacto com o Chefe e diga-lhe que você já tem um nome para o monstro. Talvez ele goste.

Josh fez um gesto de desprezo. Quis dizer mais alguma coisa, mas antes que tivesse tempo para isso aconteceu uma coisa espantosa.

Um raio vermelho atravessou o céu branco. Por uma fração de segundo o vale rochoso encheu-se com uma claridade vermelha e dolorosa. Foi um fenômeno silencioso. O ar aquecido continuou imóvel. Não houve nenhum trovão. A claridade desapareceu tão depressa como tinha aparecido, e os anéis luminosos que dançavam na frente dos olhos de Fed eram a única prova de que ele não tinha sonhado.

De repente Sturry Finch soltou um grito.

Fed Russo nunca se movimentara tão depressa. Com um salto enorme contornou a rocha saliente que impedia que ele visse Sturry. Este estava ajoelhado no meio das pedrinhas, com os braços erguidos, como se estivesse rezando. Bem à sua frente saía. fumaça do chão e seu rosto estava desfigurado pela dor.

Fed puxou-o violentamente.

— Que houve? — perguntou em tom nervoso. Sturry inclinou-se para a frente e escondeu a mão direita embaixo do cotovelo esquerdo. Resmungava e gemia, e balançava o corpo de um lado para outro.

— Ai! Droga! — ouviu Fed depois de algum tempo. — Está doendo!

Fed olhou em torno, perplexo. De um dos aparelhos que Sturry tinha montado em semi-círculo em torno dele só restavam alguns escombros fumegantes e disformes. A fumaça era cinza-azulada e cheirava mal. Finalmente Fed compreendeu o que tinha acontecido.

Sturry levantou-se. Tirou a mão de baixo do cotovelo e examinou-a com uma expressão de desconfiança. Os dedos estavam cobertos de manchas vermelhas. Bolhas começaram a formar-se. Sturry olhou para Fed com uma expressão desolada. Mais ao longe Josh aproximava-se em passos compridos e tranqüilos, como se aquilo não lhe dissesse respeito.

— Foi o raio — disse Sturry, fungando. — Foi tão forte que fundiu o receptor. E meus dedos estavam enfiados no mesmo.

— Qual foi o receptor? — perguntou Josh em tom indiferente.

— O receptor de estruturas energéticas de nível superior — respondeu Sturry. — O raio foi o sinal exterior duma descarga energética que se desenvolveu num plano superior.

— É o que você diz — resmungou Fed. — O que significa isso?

Sturry fitou-o com uma expressão zangada.

— Por que pergunta isso a mim? Entre em contacto com a Crest e pergunte se por lá observaram alguma coisa.

Fed sabia o que era um bom conselho. Voltou ao barco, saltou para dentro da eclusa e enfiou-se na poltrona do piloto. Numa questão de segundos completou a ligação com a nave.

— Comandante Russo falando de Horror, chamando nave — principiou. — Há cerca de três minutos...

Fez um relato dos acontecimentos. Sem querer, usara o nome que Josh Bonin acabara de dar ao mundo oco. Era a primeira vez na história da frota espacial do Império Solar que um sargento tinha o privilégio de batizar um planeta.

 

As pessoas que se encontravam a bordo da Crest II tinham observado o seguinte:

Às 15h 26' 12” dois raios vermelhos brilhantes, bastante concentrados, saíram da bola de fogo do núcleo energético e precipitaram-se em alta velocidade sobre a superfície do planeta oco. O ângulo formado pelos dois raios era de 180 graus. Em outras palavras, os mesmos deslocavam-se em sentido oposto. Não foi possível apurar o ponto de impacto do raio que se afastava da Crest II, mas havia dados precisos sobre o local de destino do outro raio. O mesmo tinha atingido a superfície a uns quarenta quilômetros da posição atual do veículo de desembarque e desaparecera sem deixar vestígios visíveis. O ponto de impacto ficava entre as montanhas entrecortadas, e não havia possibilidade de fornecer detalhes sobre a configuração do solo no lugar, em virtude das condições desfavoráveis de luminosidade.

O sargento Russo recebeu ordens para dirigir-se com seu barco para as proximidades do ponto de impacto e fazer observações. Sem dúvida os resultados que o cabo Finch tinha conseguido com seus aparelhos — ou melhor, com o aparelho que derreteu embaixo de seus dedos — eram importantes, mas por enquanto não havia como explicar os mesmos.

Uma vez recebidas estas informações, Fed Russo e seus dois companheiros puseram-se novamente a caminho. 0 contacto com a nave passou a ser ininterrupto, de forma que era possível receber informações que pudessem orientar o veículo. De início o barco seguiu por um vale, mas Fed logo se viu obrigado a cruzar outra cadeia de montanhas e dali em diante manteve-se na altura dos cumes das montanhas, para aumentar a visibilidade.

Josh Bonin passou a atuar como observador; em outras palavras, ficou com os olhos abertos. Enquanto isso Sturry Finch continuava ocupado com seus instrumentos. Acreditava mais firmemente que nunca que estariam em condições de desvendar os mistérios de Horror. Fizera um tratamento precário e aplicara uma atadura na mão direita. O ferimento não parecia afetar seu entusiasmo. Já a perda do detector deixara-o bastante sentido. Os outros aparelhos estavam sujeitos às interferências do núcleo energético. Por isso Sturry não esperava que pudessem descobrir fontes de energia ocultas, a não ser que as mesmas se situassem nas imediações de sua rota.

Quando o barco tinha percorrido cerca de vinte quilômetros, Fed Russo percebeu que o propulsor não estava funcionando perfeitamente. A sua frente estendia-se um paredão de rocha, por cima do qual teria de passar para chegar ao destino. Esse paredão tinha cerca de mil e quinhentos metros de altura. Quando Fed notou o defeito, o barco encontrava-se mais de mil metros abaixo do topo do paredão. Fed girou o leme e fez o veículo passar rente ao paredão. Teve a impressão de que seria muito arriscado arriscar a subida.

Fez uma verificação dos instrumentos. O propulsor estava consumindo um volume de energia igual ao que gastaria se trabalhasse a toda força. Nenhum dos aparelhos de alerta parecia ter detectado a causa do defeito. As luzes vermelhas continuaram apagadas. Só o indicador de potência subia inexoravelmente em direção à marca vermelha, que indicava o limite superior de carga dos geradores.

Fed fez baixar o barco e pôs-se a escutar. Do poço dos propulsores saía o zumbido tranqüilo dos aparelhos. Não havia nada que indicasse que alguma das funções tivesse sido perturbada ou que algum equipamento estivesse falhando.

Fed virou a cabeça.

— Josh, entre no poço e dê uma olhada — resmungou. — O propulsor está gastando energia demais.

Josh confirmou com um aceno de cabeça e levantou-se sem tirar os olhos da tela de proa. Fed ouviu-o abrir o alçapão que dava para o poço. Virou a cabeça e viu somente a cabeça negra e crespa, enquanto Josh desaparecia com uma expressão de estoicismo no interior do poço.

O barco estava voando cinqüenta metros acima do fundo do vale. Fed examinou o terreno, à procura dum local apropriado em que pudesse pousar caso Josh descobrisse uma avaria mais grave.

Josh estava demorando bastante. O indicador de potência já estava perto da marca de alerta. Fed impacientou-se.

— Sturry, vá olhar o que ele está fazendo lá embaixo! — ordenou.

— Já estou indo, chefe! — respondeu Sturry. O alçapão ainda estava aberto. Fed viu pelos cantos dos olhos que Sturry se inclinava sobre o buraco e olhava para dentro do poço. Encolheu as pernas e empurrou os pés para dentro do poço.

— Ande depressa — pediu Fed. — Não temos muito tempo.

Sturry acenou com a cabeça. Deixou os pés pendurados, à procura dos degraus da escada que descia no poço. Quando seus pés encontraram apoio, foi descendo apressadamente.

Dali a segundos um grito estridente e apavorado soou das profundezas do poço. Numa espécie de movimento reflexo, Fed fez descer o barco. Atrás dele Sturry Finch saiu do poço, com os cabelos desgrenhados caídos no rosto e tão pálido como Fed nunca o tinha visto. Fechou violentamente o alçapão que cobria o poço.

— Desça! — gritou, apavorado. — Desça logo!

Houve um forte solavanco quando o barco tocou o fundo do vale e fez ranger o chão. Fed desatou os cintos e levantou-se de um salto.

— Josh... — fungou Sturry — ...está lá embaixo. Atrás do gerador. Está inconsciente ou morto... não sei. Além disso, por ali...

Fed viu seus olhos se arregalarem num misto de medo e incredulidade. A impressão dum perigo mortal imediato atravessou a sala que nem uma lufada de ar gelado. O choque inibia os movimentos de Fed. Lentamente, como num filme em câmara lenta, foi virando a cabeça e olhou para a tela de proa.

Foi então que viu.

Era uma chama ou coisa parecida. Uma figura luminosa trêmula suspensa no ar, que executava estranhos movimentos. Parecia dançar — para a frente, para trás, da esquerda para a direita, de baixo para cima. Era de cor pálida e quando seus movimentos se tornavam muito rápidos, Fed o perdia de vista por um segundo. Não parecia ter um objetivo definido e Fed não compreendeu por que Sturry estava tão nervoso.

De qualquer maneira voltou para junto do quadro de comando e, uma vez que o propulsor não estava funcionando mais, ligou o projetor que alimentava o campo defensivo. As luzes de controle acenderam-se. Fed sentiu um tremendo alívio. Fossem quais fossem as intenções da chama, ela não se aproximaria mais do barco.

Estremeceu ao ver uma luminosidade vermelha ofuscante atravessar a tela. Entesou instintivamente os músculos, como se pudesse absorver o impacto. Mas foi como da primeira vez, quando tinham visto pela primeira vez o raio vermelho: tudo ficou em silêncio do lado de fora. Apenas, Fed teve a impressão de que desta vez a luminosidade fora mais forte.

Atrás dele Sturry Finch gemia como se estivesse sentindo uma dor muito forte.

— O que... — principiou Fed, mas interrompeu-se no meio da frase.

Sturry continuava a olhar fixamente para a chama trêmula. Até parecia que estava vendo um fantasma. Ergueu molemente o braço. Sua mão tremia, enquanto apontava para a figura e exclamava com um gemido:

— Isso aí... é bem igual... lá embaixo, no poço do propulsor!

Só então Fed Russo compreendeu toda a gravidade da situação.

 

Eram 15:38 h, tempo de bordo. O major Notami observou na tela de controle do rastreamento uma série de reflexos confusos, que se deslocaram em alta velocidade para o centro da tela. Uma concentração dos rastreadores no setor espacial de que vinham esses reflexos não contribuiu para reforçar a indicação.

Apesar de sua vivacidade, que harmonizava muito bem com seu aspecto latino, Enrico Notami era um homem que sabia o que devia fazer ou deixar de fazer nas situações críticas. Alguma coisa aproximava-se da nave; quanto a isso não havia a menor dúvida. O centro de rastreamento, que era chefiado pelo major Notami, não estava em condições de definir a natureza do objeto desconhecido.

Como na situação em que se encontrava qualquer fenômeno para o qual não encontrassem explicação representasse um perigo, Enrico deu o alarme geral.

O alarme veio alguns segundos depois do momento certo.

A coisa que andava do lado de fora começara a sugar a energia dos campos defensivos da nave.

Isto foi notado em primeiro lugar na sala de comando. De um instante para outro os mostradores dos instrumentos deram um salto para cima. E de um instante para outro quadruplicou o suprimento de energia dos geradores. A energia fornecida ao projetor que alimentava o campo defensivo externo já não era suficiente. O envoltório externo, que era uma zona finíssima de energia gravitacional voltada para fora, que na linguagem técnica costumava ser designada como gradiente, entrou em colapso. A energia remanescente do campo foi liberada num raio fulgurante.

No mesmo instante os alarmes acionados por Enrico Notami soaram em todos os corredores. Melbar Kasom, que no momento estava desempenhando as funções de oficial do dia da sala de comando, recebeu a informação transmitida pelo centro de rastreamento. Objetos estranhos tinham-se deslocado em direção à Crest II, vindos do núcleo energético que tinha o aspecto dum sol. Era mais que provável que a sobrecarga dos geradores estava ligada ao aparecimento desses objetos.

As pessoas que se encontravam na sala de comando passaram à observação direta. Objetivas de televisão vasculharam a periferia dos campos defensivos. Aquilo que a aparelhagem complicada de Enrico Notami não tinha conseguido, para o olho humano era uma brincadeira.

Áreas luminosas trêmulas e bruxuleantes apareciam em vários lugares nos arredores da nave. No início eram incolores e não apresentavam contornos nítidos, mas logo começaram a brilhar num vermelho forte e escuro e assumiram formas instáveis, mas perfeitamente reconhecíveis. A cor mudava constantemente. O vermelho transformou-se no amarelo, este passou para o verde, e enquanto se processava a mudança do verde para o azul e o violeta, os estranhos fenômenos pareciam tornar-se mais indolentes e iam perdendo a mobilidade. Cambaleantes, como se estivessem bêbedos, retiraram um pedaço da nave e acabaram por explodir, produzindo um raio branco ofuscante. Toda vez que uma das estranhas figuras se desmanchava, o núcleo energético enviava um raio vermelho de energia concentrada à superfície do planeta. Era o mesmo fenômeno que já tinha sido observado duas vezes. As duas extremidades do raio vermelho não produziam qualquer efeito visível ao atingir a superfície. Os raios passaram a suceder-se com um intervalo de apenas alguns segundos. A explosão de cada ser luminoso provocava um raio energético de cerca de meio segundo de duração.

O número dos fenômenos luminosos que apareciam nas imediações da Crest II aumentava constantemente, embora as explosões se verificassem com intervalos cada vez menores. O núcleo energético e a superfície do planeta, coberta de poeira cinzenta, desapareceram atrás duma cortina trêmula de luzes multicoloridas.

Para Perry Rhodan, que acompanhava os acontecimentos com um misto de curiosidade e tensão, não havia a menor dúvida de que se tratava dum ataque à nave, lançada com meios desconhecidos, mas eficientes, e que tinha por fim privar a mesma de suas reservas de energia e dessa forma causar sua destruição. Os fenômenos luminosos, fosse qual fosse sua natureza, não desempenhavam outra função senão a de sugar a energia dos campos defensivos da Crest II. Era o represamento da energia em seus corpos fantasmagóricos que provocava a rápida mudança de cor. A explosão liberava a energia sugada e a irradiava para o núcleo energético. Este por sua vez voltava a emiti-la sob a forma dum raio vermelho — ainda não se sabia para onde e para que fim.

Enquanto nos respectivos poços os geradores rugiam com a sobrecarga, Perry Rhodan tentou sistematicamente os recursos existentes a bordo, para afastar o perigo. Não se poderia cogitar dos canhões de grande calibre da nave, face aos dispositivos de segurança que impediam seu uso num ponto tão próximo como a periferia dos campos defensivos. Os canhões menores antes pareciam ajudar que prejudicar o inimigo. A energia mortífera dos desintegradores e das armas energéticas era avidamente absorvida pelos seres luminosos. Os fluxos de corpúsculos altamente energetizados eram prontamente digeridos, da mesma forma que os feixes de luz dos lasers ultravioletas. Qualquer tentativa de rechaçar o ataque parecia produzir resultado exatamente contrário, aumentando o número dos atacantes e expondo a nave a um perigo cada vez mais grave.

Quando a primeira série de geradores entrou em colapso em virtude da tremenda sobrecarga, Perry Rhodan ordenou a retirada. A Crest II começou a movimentar-se e desceu na superfície do planeta. Os seres luminosos não se importaram. Acompanharam a nave, e relâmpagos ofuscantes atravessaram o espaço fechado do mundo oco numa seqüência cada vez mais rápida.

A lógica do inimigo era perfeitamente compreensível. Não poderia arriscar-se a usar armas pesadas contra a Crest, já que o volume das energias liberadas com a explosão da nave seria tamanha que a estrutura frágil do planeta Horror não seria capaz de suportá-lo. Dessa forma o ataque dos seres luminosos tinha por fim reduzir o mais possível a energia contida no interior da Crest, de forma que, quando a nave fosse destruída, o volume de energia liberada não fosse superior ao que o planeta poderia suportar. Por isso mesmo a ordem de retirada dada por Perry Rhodan era um lance muito hábil, embora nem por isso diminuísse a violência dos ataques. O estrago que a Crest poderia produzir certamente seria maior se a nave se encontrasse nas proximidades do envoltório do planeta que no centro do espaço oco. A tática de Perry Rhodan não seria capaz de modificar a situação, mas retardaria o momento da destruição.

A nave já estava descendo em alta velocidade em direção à superfície marrom do deserto, quando alguém teve a idéia de usar simplesmente a energia acústica contra os seres luminosos. Como não havia o meio de transmissão, as vibrações acústicas se transmitiriam aos campos defensivos, e ali atingiram os seres luminosos assim que tocassem nos mesmos.

O resultado foi surpreendente. Aquilo que as energias das armas híbridas não haviam conseguido, foi feito num instante pelas emanações acústicas cujo conteúdo energético era bastante reduzido. Os seres luminosos puseram-se em fuga. Pela primeira vez nos últimos trinta minutos o negrume do espaço apareceu diante dos ocupantes da nave, e o núcleo energético parou de expelir raios energéticos vermelhos numa seqüência ininterrupta. Pela primeira vez os detalhes da superfície do planeta voltaram a aparecer nas telas óticas.

A Crest ganhara uma batalha. Talvez fosse porque o inimigo se tinha preparado para enfrentar armas complicadas, mas não um simples emissor de raios acústicos, que era uma arma usada pelas gerações passadas. Também era possível que já estivesse cansado do jogo e pensasse num novo truque. Ninguém sabia.

De qualquer maneira, a nave conseguiu pousar em segurança numa ampla planície desértica. Os reparos nos poços em que ficavam as máquinas foram iniciados imediatamente. Os geradores queimados foram consertados às pressas, com as peças sobressalentes que enchiam quase todos os cantos da nave.

 

Fed Russo possuía um certo dom de intuição alógica. Não entendia nada dessas coisas, mas logo chegou à conclusão que só podia ser o estranho ser formado por chamas que estava retirando a energia do propulsor. E, se era assim, não podia haver a menor dúvida de que as figuras luminosas que se encontravam do outro lado do campo defensivo de reduzida potência — naquela altura já eram três — tinham o mesmo objetivo: paralisar o suprimento de energia da nave.

Fed empurrou Sturry Finch com um gesto aborrecido.

— Fique de olhos abertos! — advertiu. — Vou dar uma olhada. Deixe o campo defensivo ligado.

Entrou no poço e desceu alguns degraus. A luz pouco intensa que vinha do teto mostrava os contornos da sala de geradores e, atrás de um dos blocos, a figura imóvel de Josh Bonin. A chama estava suspensa no centro da sala. Tinha cerca de um palmo de largura e bruxuleava sobre uma pequena superfície quadrática da qual partiam corredores que passavam entre as diversas máquinas. Fed teve a impressão de que o ser luminoso tinha notado sua presença. Parecia que esperava que ele desse mais um passo. Sentiu um calafrio ao lembrar-se de que talvez poderia tratar-se duma forma de vida inteligente.

Tomou uma decisão rápida. Das armas que trazia consigo só poderia usar o projetor acústico, em virtude das dimensões reduzidas da sala de máquinas. O mesmo produzia um efeito paralisante nos seres orgânicos e, quando sua potência era regulada para o máximo, deixava o ser atingido inconsciente. Fed tinha suas dúvidas de que a arma sequer chegasse a causar alguma impressão no ser luminoso.

Ficou virado meio de lado, para poder fugir o mais depressa possível caso sua tentativa não fosse bem sucedida. Finalmente fez pontaria e atirou.

O resultado foi espantoso. A descarga do projetor acústico produziu um zumbido retumbante, misturado com um fino chiado. As chamas imediatamente começaram a contorcer-se sob o efeito do raio acústico. Notava-se perfeitamente que estava sofrendo muito. Fed aumentou a potência da arma para o dobro, assumindo o risco de estourar os tímpanos. O ser luminoso entrou em pânico. Abandonou sua posição e foi recuando entre os geradores. O raio acústico acompanhou-o inexoravelmente. A chama subiu, ricocheteou elegantemente no teto e aproximou-se de Fed. Este firmou os pés contra a escada e segurou a arma acústica com ambas as mãos. Sem perceber, estava gritando de raiva e entusiasmo. A chama entrou no foco da ação máxima dos raios e desmanchou-se. Dentro de um décimo de segundo voltou a formar-se com o tamanho original, mas resolveu bater em retirada. Passando rente à cabeça redonda de Fed, subiu pelo poço e desapareceu.

No mesmo instante soou o grito de pavor de Sturry Finch.

— Pegue o vibrador! — berrou Fed. — Já vou aí...

Subiu a escada com uma agilidade que nunca antes tinha revelado. Sturry estava encostado ao quadro de comando do piloto e começava a disparar sua arma. Fed adiantou-se. A arma acústica descarregou-se com um rugido furioso, atingindo a figura luminosa indefesa.

— Abra a eclusa! — gritou Fed, superando o barulho.

Sturry compreendeu. Dali a segundos a escotilha da eclusa de passageiros estava aberta. O ser luminoso não perdeu tempo: seguiu pelo caminho que acabara de ser aberto diante dele. Saiu da eclusa que nem uma bala. Quando Sturry voltou a fechar a escotilha, o ser luminoso encontrava-se no espaço estreito que ficava entre o casco da nave e o campo defensivo.

Fed desligou o campo. O ser luminoso parecia refletir por um segundo se devia continuar a fugir. Voltou a pôr-se em movimento, e dali a pouco encontrou-se com os três indivíduos da mesma espécie que se mantinham à espera numa distância segura.

Fed deixou cair os ombros e respirou aliviado. Sturry fitou-o com uma expressão de curiosidade. Fed ficou furioso.

— Cale a boca! — gritou antes que Sturry pudesse dizer qualquer coisa. — Sei tanto quanto você. Vá ver como está Josh. Vamos...

— Obrigado — disse a voz rouca de Josh, vinda de baixo. — Já voltei. Com esse barulho...

Sua cabeleira crespa apareceu na entrada do poço.

— O que houve? — perguntou, espantado.

Fed não estava em condições de dar explicações prolongadas.

— Você desceu aí — constatou. — E depois, o que aconteceu?

Josh pôs a mão na cabeça.

— Depois... — repetiu, perplexo. Notava-se que teve de fazer um esforço para lembrar-se. — Vi uma espécie de luz e depois levei um choque elétrico. Devo ter perdido os sentidos imediatamente.

Fed acenou com a cabeça. Parecia zangado.

— Essa coisa absorve energia. Provavelmente pode expeli-la ao simples contacto, sob a forma de choques elétricos.

Josh saiu de vez do poço.

— Que coisa? — perguntou.

Sturry apontou para a tela.

— Aquilo... — principiou, mas interrompeu-se no meio da frase.

Os quatro seres luminosos tinham chegado mais perto. Flutuavam bem à frente das objetivas. Tinham mudado de cor. Antes costumavam ser transparentes e apresentavam contornos confusos, mas agora apresentavam-se num vermelho carregado e suas formas eram bem definidas.

No mesmo instante os geradores instalados no poço dos propulsores uivaram furiosamente. Fed Russo não perdeu a calma.

— Estão nos sangrando — disse. — Retiram a potência do campo defensivo. Os geradores fazem o possível para mantê-lo, mas estas feras sugam mais depressa do que a energia é fornecida.

Olhou em torno. Havia uma ligeira tristeza em seu olhar. Até parecia que estava deprimido por ter que despedir-se.

— Não há mais nada a fazer por aqui — disse em voz baixa. — A nós eles não podem fazer nada, enquanto os projetores acústicos estiverem funcionando. Daqui não podemos atingi-los. Vamos descer. A Crest deve estar por perto.

Sturry Finch reuniu seus aparelhos às pressas. Um dos geradores emitiu um forte estalo e entrou em colapso. Uma língua de fogo subiu pelo poço e chamuscou a perna de Josh Bonin.

— Vamos — insistiu Fed. — Dentro de alguns minutos isto aqui estará queimando.

Saíram tropeçando pela eclusa. O campo defensivo estava reduzido a um tremeluzir inquieto e disforme, que praticamente não ofereceu nenhuma resistência à sua passagem. O ar quente do vale castigado pelo sol atingiu-os em cheio, mas eles não se incomodaram. Abriram fogo acústico concentrado contra os quatro seres luminosos. As chamas tinham uma coloração verde-azulada. Já não se importavam tanto com os raios acústicos, mas estes sempre conseguiram afastá-los um pouco.

Fed e seus companheiros tiveram muita pressa em afastar-se do barco semidestroçado. Os seres luminosos voltaram assim que o bombardeio acústico diminuiu de intensidade. Voltaram a devorar com grande apetite as energias do campo defensivo, continuando a mudar de cor.

Finalmente o último gerador queimou. Uma nuvem de fumaça preta saiu da eclusa. O que restava do campo defensivo desapareceu, e uma das colunas de apoio do barco vergou. O veículo tombou de lado, transformando-se numa triste testemunha da presença humana num planeta medonho.

Os seres luminosos, cujo aspecto quase chegava a ser encantador com seu violeta fulgurante, ficaram flutuando por algum tempo, como se estivessem indecisos, sobre o lugar em que há pouco tinham sugado as energias do campo defensivo. Fed apontou a arma acústica e disparou em rápida sucessão alguns tiros com a potência máxima. Mesmo a uma distância considerável como esta o resultado foi surpreendente. As chamas desmancharam-se. Depois dum momento de confusão resolveram definitivamente bater em retirada. Subiram em alta velocidade para o firmamento pálido e desapareceram numa questão de segundos.

— É isso aí — resmungou Fed, satisfeito. Esfregou as mãos que nem um leão de chácara que acaba de pôr na rua um freqüentador que se tornou inconveniente. Depois olhou para Josh e para Sturry. — Alguém tem uma idéia do que devemos fazer? — perguntou.

Desde o momento do pouso forçado, não tivera um segundo que fosse para refletir sobre a situação em que se encontravam. Agora, que tinha calma para isso, chegou à conclusão de que a situação não era nada fácil. Antes de mais nada, não tinham mais nenhuma possibilidade de entrar em contacto com a Crest. Qualquer comando de desembarque recebia ordens para permanecer sempre à vista do veículo de desembarque, e por isso não era equipado com receptores e transmissores portáteis. O plano não previa a hipótese de o barco ser destruído, enquanto a tripulação continuava viva.

Não havia dúvida de que a Crest começaria a procurar os desaparecidos assim que as comunicações pelo rádio fossem interrompidas. Acontece que ninguém sabia por quanto tempo a Crest ainda estaria em condições de movimentar-se livremente.

Além disso, a operação de busca de três homens numa área de milhares de quilômetros quadrados, cheia de montanhas muito acidentadas, não era nada fácil.

Sturry Finch ajoelhou-se e começou a espalhar seus micro instrumentos pelo chão. Examinou-os um após o outro e disse:

— Se eu desmontar alguns deles, talvez consiga montar um transmissor de sinais morse de pequena potência.

Fed fez um gesto animador.

— Já é alguma coisa — elogiou. — Mas acho que devemos esperar mais um pouco, para ver se não há outra saída.

Lançou um olhar provocador para Josh.

— Qual é a sugestão que você nos dá? — perguntou em tom de escárnio.

Josh olhou por cima dele, em direção a um paredão íngreme.

— Não tenho nenhuma — respondeu com a voz triste..

— É o que a gente espera dum suboficial consciencioso — resmungou Fed.

— A não ser... — prosseguiu Josh.

— A não ser o quê?

Josh fitou-o de cima para baixo e sorriu.

— Ora essa, não é possível que você ainda não tenha pensado nisso.

Fed estreitou os olhos. Josh recuou um passo e estendeu os braços num gesto de defesa.

— Não... espere aí! Eu já...

— Vamos! Diga logo — gritou Fed, fingindo-se de zangado.

Sturry, que estava sentado no chão, com os brinquedos espalhados em torno dele, acompanhou a cena com um espanto indisfarçável.

— O local em que os raios vermelhos atingem o chão deve ficar por perto, não é? — disse Josh. — Provavelmente do outro lado do paredão. Fomos mandados para lá, para fazer uma verificação. Se a Crest resolver procurar-nos, começará nesse lugar. Portanto, vamos ver se damos um jeito de ir para lá. Além disso... — passou a mão pela testa — ...acredito que lá em cima seja um pouco mais fresco que aqui.

Fed olhou para o alto.

— É uma excelente idéia — disse em tom irônico. — Você poderia fazer o favor de explicar como faremos para subir lá?

O paredão era uma superfície vertical de rocha marrom-clara, quase completamente lisa. Josh hesitou.

— Vamos contorná-lo — disse Sturry. — Se caminharmos um pedaço pelo vale, talvez encontremos um lugar em que este paredão se torne mais praticável.

Fed concordou. Pegaram sua escassa bagagem e saíram andando. Mas antes que se tivessem afastado cem metros do último local de pouso do veículo de desembarque, o céu esbranquiçado começou a despejar raios vermelhos em cima de suas cabeças.

 

Fed deixou-se cair para a frente. Num acesso de pânico ficou com os olhos bem fechados, mas a trêmula claridade vermelha atravessava as pálpebras fechadas.

O silêncio que acompanhava a trovoada vermelha era terrível. Não havia nenhum vento. Não se ouvia qualquer ruído. Finalmente Fed chegou a acreditar que sua vida não corria um perigo imediato e arriscou-se a dar um ligeiro olhar obliquamente para cima.

O céu branco tinha desaparecido. Trilhas vermelhas ofuscantes atravessavam o mesmo. Pareciam descer verticalmente e desapareciam do outro lado do paredão. Fed não tinha a menor idéia de qual era a causa da trovoada e de quanto tempo a mesma duraria. Percebeu que ele e seus companheiros não correriam nenhum perigo enquanto os feixes de luz descessem do outro lado do outro paredão.

Levantou-se e cutucou Josh e Sturry, que continuavam deitados, com a ponta da bota.

— Levantem! — gritou. — Nada lhes acontecerá.

O mundo estava modificado. Ondas de luz vermelha atravessavam um vale, em cujo interior há poucos segundos ainda se estendia uma claridade monótona. O firmamento tranqüilo parecia ter desaparecido de vez. Tinha-se a impressão de que as montanhas balançavam e o chão tremia em convulsões selvagens. Por algum tempo Fed se sentia como um viajante que enjoa num navio, mas logo se acostumou às estranhas condições de luminosidade.

Os raios vermelhos provavelmente vinham do núcleo energético — da mesma forma que os outros dois, que tinham observado antes. Não havia nenhuma base para a suspeita de Fed, mas em algum lugar de seu subconsciente tomou corpo a idéia de que a causa da agitação era a Crest II. Com uma nitidez assustadora deu-se conta de que se encontrava num mundo desconhecido, a cujas táticas de ataque mortíferas possivelmente nem mesmo a gigantesca espaçonave estaria em condições de resistir.

E se a Crest fosse destruída?

Fed Russo lançou um olhar zangado para o alto e prosseguiu em sua caminhada. Josh e Sturry seguiram-no sem que ele pedisse. Enquanto caminhava, Sturry tentou pôr em funcionamento dois dos seus instrumentos. Conseguiu depois de algum tempo, mas não obteve nenhuma indicação além da proveniente da energia pouco intensa irradiada pela luz vermelha.

Quando já tinham caminhado trinta minutos, chegaram a uma grota em forma de chaminé que subia obliquamente no paredão. Além disso, Fed teve a impressão de que a borda deste não era tão alta como no outro lugar. Atravessou o vale, para ter uma visão melhor sobre a chaminé. Quando voltou, a satisfação estava estampada em seu rosto.

— Vai até o alto — disse. — Nem sempre é confortável, mas é perfeitamente praticável. Vamos tentar — mas antes disso faremos uma pequena pausa.

Entraram na chaminé. A inclinação da fenda era aproximadamente de sessenta graus, mas as paredes eram ásperas, oferecendo apoio suficiente para as mãos e os pés. Cerca de vinte metros acima do fundo do vale a chaminé descrevia uma curva em cotovelo, formando uma placa rochosa de quatro por seis metros. As paredes da chaminé protegiam esta placa dos raios ofuscantes do núcleo energético — isto se a trovoada vermelha parasse e a luz voltasse a alcançar a superfície do planeta. De qualquer maneira, Fed chegou à conclusão de que a placa era um excelente local para acampar, e decidiu que descansariam pelo menos quatro horas.

Ninguém formulou qualquer objeção. A marcha pelo vale escaldante deixara os homens completamente exaustos. Colocaram a bagagem no chão e adormeceram imediatamente.

O sono foi tão profundo que nem perceberam que a trovoada vermelha parou de repente e o céu branco voltou a aparecer.

 

Os reparos dos geradores demoraram cinco horas. Nestas cinco horas mais de noventa por cento dos tripulantes ficaram ocupados nos trabalhos de restauração. Os outros ficaram em regime de rigorosa vigilância. Somente dois homens — o major Bert Hefrich e o tenente Nosinsky — dedicaram-se ao problema de Horror propriamente dito, mais precisamente, à busca duma resposta à pergunta do que mantinha vivo este mundo impossível e de quais eram suas peculiaridades.

Em outras palavras, queriam saber como funcionava Horror.

Bert Hefrich fez um exame mais detido do núcleo energético e apurou que não se tratava duma figura material no sentido da mecânica da quarta dimensão. Um feixe de microondas atravessou esse núcleo sem encontrar a menor resistência. O mesmo não possuía nenhuma substância reflexiva. Hefrich fez uma série de cálculos, com base nas observações feitas pelo mutante Wuriu Sengu, e chegou à conclusão de que o núcleo energético provavelmente era uma projeção parcial dos três sóis que circulavam em torno do planeta, do outro lado de seu envoltório externo. O triângulo solar poderia suprir a projeção dum volume suficiente de energia para fornecer quantidades adequadas de luz e calor ao envoltório interno do planeta Horror.

Não era somente esta energia que vinha dos sóis. A gravitação reinante no envoltório interno da esfera, cujo vetor estava apontado para fora, em direção ao envoltório externo, era de origem artificial.

Neste meio-tempo Conrad Nosinsky elaborou uma teoria segundo a qual o núcleo energético supria de energia não somente o envoltório interno, mas também os intermediários. O núcleo velava sobre um balanço energético que tinha de ser rigorosamente mantido. Se, por exemplo, em virtude do ataque que os seres luminosos tinham desfechado contra a Crest ele recebia um volume de energia superior ao estabelecido no balanço, o excedente tinha de ser irradiado para algum lugar. E esta irradiação também desempenhava a função de abastecer de energia os envoltórios situados mais para fora.

Nosinsky não se contentou com isso. Fez uma avaliação da necessidade de energia dos três envoltórios intermediários, no que também se baseou nas observações feitas pelo espia, e obteve uma fórmula estrutural que descrevia completamente a estruturação das descargas energéticas que ao olho humano eram raios vermelhos. Com base nessa fórmula estrutural fez o ajuste de alguns instrumentos que, caso sua hipótese fosse correta, apurariam, por ocasião da próxima descarga através dum raio, o exato conteúdo de energia da mesma.

Bert Hefrich ficou mais impressionado com o entusiasmo de Nosinsky que com sua imaginação. Mesmo que os três envoltórios intermediários recebam sua energia do núcleo central, concluiu, essa energia não encontra nenhum caminho de abandonar a esfera oca situada no centro.

Em outras palavras, teria de haver um buraco no envoltório interno. E ninguém havia visto o menor sinal dum buraco dessa espécie.

Em outro lugar, mais precisamente, no convés de chefia, onde Perry Rhodan e seus colaboradores mais chegados se haviam recolhido, era impressionante e deprimente ao mesmo tempo ver que até mesmo o espírito superior do halutense Icho Tolot já começava a abandonar a luta contra os enigmas incompreensíveis do mundo chamado Horror.

Se nem mesmo Icho Tolot com sua experiência e os recursos variados da lógica não estava em condições de desvendar os mistérios de Horror, como não deveria ser forte o espírito que tinha criado o mesmo.

 

Era claro que as questões metafísicas desse tipo não pesavam nem um pouco no espírito de Fed Russo, quando o mesmo voltou a acordar depois dum sono muito profundo. Em vez disso sentiu-se deprimido porque, enquanto estava dormindo, rolara até a extremidade da placa de rocha, e provável mente teria quebrado o pescoço no fundo do vale dentro de dez minutos, se não tivesse acordado antes disso.

Sacudiu o corpo e levantou. O ar era fresco e agradável no interior da chaminé. Fed olhou em torno e teve a impressão de que, depois que deitara para dormir, o ambiente sofrerá uma transformação completa. Finalmente descobriu o que era. A trovoada vermelha tinha parado. Os raios já não cortavam o céu. Virou a cabeça para acordar Josh e Sturry.

A pausa tinha revigorado suas forças, mas também despertara a fome. Ingeriram parte das rações que traziam na bagagem e, uma vez concluída a refeição, Fed subiu numa pedra que sobressaía da chaminé para dar uma olhada no vale. O deserto rochoso estendia-se embaixo dele, silencioso e sem vida. Não havia sinal da espaçonave no firmamento branco. Pelos cálculos de Fed, agüentariam mais dois dias terranos com suas rações. Admitindo que fossem bastante robustos para passar mais dois dias sem qualquer alimento, concluía-se que dispunham de mais quatro dias para passar sem apoio da Crest II. Sturry levaria aproximadamente um dia para construir um transmissor em morse com as peças dos seus aparelhos. Quer dizer que teria de começar com esse trabalho dentro de três dias.

Disse isso a Sturry quando voltou de seu posto de observação.

Continuaram a escalada. Quando se encontrava no fundo do vale, Fed avaliara a altura do paredão em pouco menos de um quilômetro. Como não era um alpinista experimentado, não tinha a menor idéia de quanto tempo levariam para atingir a extremidade superior da chaminé. Por isso aproveitava todas as oportunidades de verificar o progresso que tinham feito, olhando dos lugares mais expostos para o vale e para o alto do paredão. Foi um método bastante confuso. Enquanto o olhar para baixo parecia provar que já se encontravam muito acima do fundo do vale, o olhar para cima parecia mostrar que não se haviam aproximado nem um pouco do destino.

Depois de algum tempo Fed desistiu de fazer a avaliação de seu progresso e dedicou-se furiosamente à escalada. Deu-se por satisfeito porque em muitos lugares, e às vezes em trechos bastante extensos, as paredes da chaminé os protegiam contra os raios do núcleo energético. Dessa forma o calor mantinha-se nos limites do suportável. Lá embaixo, no vale banhado de sol, uma marcha que exigisse o mesmo desgaste de forças seria totalmente impossível.

Mais tarde Fed não saberia dizer quanto tempo já tinha passado. Pusera pé ante pé, segurava-se com as mãos e subia pela chaminé. Suava por todo o corpo, mas o líquido se evaporava assim que saía dos poros. Sturry e Josh tinham ficado alguns metros para trás, mas nem por isso Fed reduziu a velocidade.

Finalmente atingiu uma placa de rocha igual àquela na qual tinham descansado há não se sabe quantas horas. Nesse lugar a chaminé descrevia uma curva à maneira de saca-rolhas. Fed virou a cabeça para ver se já conseguia enxergar a extremidade superior da fenda.

Nesse momento ouviu alguém dizer:

— Olhe bem! Está vendo alguma coisa?

Fed sobressaltou-se. Diante de seus pés a cabeça negra de Josh Bonin ia chegando à altura da placa. Josh estava com a boca aberta e respirava com dificuldade.

— Você disse alguma coisa? — perguntou Fed.

Josh cravou os dedos robustos na rocha e puxou o corpo para cima. Rolou sobre o ombro direito e ficou deitado, arquejante. Fed inclinou-se sobre ele.

— Você disse alguma coisa? — voltou a perguntar.

Josh virou a cabeça de lado e fitou-o.

— Meu Deus... — disse, bastante abalado. — ...será que pareço um tagarela?

— Não foi ele — ouviu Fed. — Fui eu.

Naquele momento Sturry estava aparecendo.

Parecia cansado, mas não dava a impressão de ter problemas respiratórios. Fed esperou que puxasse o corpo para cima da placa.

— Acho que nem vale a pena perguntar a você — disse em tom zangado.

Sturry fitou-o com uma expressão de surpresa.

— Perguntar o quê?

— Há pouco você disse alguma coisa?

— É claro que sim...

— O quê?

Sturry cocou a cabeça.

— Um momento. — Pôs-se a refletir. — Já sei. Eu disse: Perguntar o quê?

Se o espaço não fosse tão reduzido, Fed teria investido contra ele. Ao perceber a raiva inexplicável de Fed, Sturry fitou-o com uma expressão desolada e sentou no chão ao lado de Josh.

— Não está batendo bem da bola — resmungou Josh, que continuava deitado na placa de rocha para restaurar as forças.

— Não se impressione — ouviu Fed. — Eu já disse. Olhe para trás com muita atenção.

Fed obedeceu. Sentia-se tão perplexo que mal sabia o que estava fazendo. O resultado correspondia a esse estado. Viu rochas, rochas e mais rochas. Nada que valesse a pena ver.

— Não vejo nada — confessou.

— Meu Deus — lamentou Josh. — Além de tudo ainda está cego.

— Cale a boca! — gritou Fed.

— Calma — disse a voz. — Não há nada a recear. Controle seus nervos e olhe mais uma vez.

Fed engoliu em seco.

— Está bem — disse.

Sturry olhou-o de baixo para cima.

— Diga uma coisa. Com quem está falando?

Fed não respondeu. Esforçou-se para controlar os nervos, conforme tinha sido pedido. Na verdade, agiu assim impelido pelo instinto de autoconservação. Teve medo de ficar louco. Se quisesse conservar a sanidade mental, teria que descobrir o que estava acontecendo.

A voz ficou calada. Não se ouviu nenhum ruído, além da respiração pesada de Josh. Sturry estava tranqüilamente sentado e olhava pela fresta, para o paredão que se erguia do outro lado do vale.

Fed também sentou. Fechou os olhos e tentou convencer-se que aquilo tinha uma causa natural. Horror era mesmo um planeta estranho. Não se podia esperar que nele tudo seguisse as mesmas trilhas que na Terra. Talvez houvesse inteligências nativas, cujos corpos eram invisíveis ao olho humano. Quem sabe se as mesmas não podiam ler em seu cérebro e talvez fossem capazes de numa fração de segundos apropriar-se dos seus métodos de raciocínio, com o que lhes seria possível comunicar-se com ele. Sem dúvida havia explicações às dezenas.

Voltou a abrir os olhos e dispôs-se a olhar cuidadosamente em torno. Começou na extremidade interior da placa, iluminada pela luz do sol, que avançava meio metro além da extremidade da chaminé. Três metros à esquerda havia uma borda que parecia ter sido traçada por uma régua. Atrás dela via-se uma fresta, que era aquela pela qual tinham vindo. A mesma tinha dois metros de largura e separava a extremidade da placa do lado oposto da chaminé. Fed examinou a parede, mas não viu nada de extraordinário. Passou a olhar mais para a direita, onde a placa sobressaía da parede oposta da fresta; a pouco menos de sessenta ou setenta centímetros de seu ombro. Logo atrás dele a placa também estava ligada à parede da chaminé. Atrás dele a parede só subia um metro na vertical, para depois inclinar- se para dentro da rocha. Nesse lugar a chaminé descrevia uma curva, que era a mesma que pouco antes Fed comparara com um saca-rolhas.

Fed fez avançar os olhos, centímetro após centímetro. Finalmente descobriu aquilo que estava procurando.

Foi no lugar em que a parede da chaminé começava a descrever uma curva. Não o vira antes porque ficava na sombra e, além disso, estava semi-oculta atrás da curva da parede.

Tratava-se duma fresta, ou melhor, dum buraco alongado, que tinha cerca de metro e meio de altura e largura suficiente para que um homem robusto como Fed Russo pudesse aproximar-se através do mesmo.

Atrás do buraco estendia-se uma escuridão compacta, mas para seus olhos ofuscados tudo que não fosse inundado pela luz forte do núcleo energético devia ser escuro.

Fed levantou-se.

— Já vamos continuar? — perguntou Sturry com a voz cansada.

Fed abanou a cabeça.

— Descansem mais um pouco — respondeu. — Vou dar uma olhada por aí.

Sturry não teve nenhuma objeção. Encostou o lado esquerdo do corpo ao paredão. Josh não fez o menor movimento. Parecia que tinha adormecido.

Fed puxou-se para cima junto a um pedaço do paredão liso. A extremidade inferior do buraco oferecia apoio suficiente aos seus dedos. Dali a alguns segundos estava pendurado um metro acima da placa de rocha e enfiou a cabeça cautelosamente pela abertura estreita.

No início não viu nada. Seus olhos levaram trinta segundos para habituar-se às novas condições de luminosidade. O buraco era a entrada duma galeria não muito comprida. A saída que ficava do lado oposto recebia de uma fonte que Fed ainda não podia ver claridade suficiente para que Fed pudesse reconhecer pelo menos seus contornos.

Fed apoiou-se nos cotovelos, tirou a cabeça do buraco e gritou:

— Vou dar uma olhada lá dentro. Se demorar demais, venham atrás de mim.

Entrou na galeria sem aguardar resposta. Estava admirado porque a voz estranha não dava mais sinal de sua presença. Quando chegou à outra extremidade da galeria, o quadro que se descortinou diante de seus olhos prendeu tanto sua atenção que quase chegou a esquecer a voz.

Do outro lado da galeria uma fresta estreita atravessava a rocha. No chão da mesma, que ficava apenas alguns palmos abaixo da saída da galeria e não tinha mais de metro e meio de largura, e era ladeada pelas paredes paralelas, subindo a alturas estonteantes. A fonte de luz era o céu branco. Uns duzentos ou trezentos metros acima de sua cabeça a fresta rompia o teto do paredão, e a luz produzida pelo núcleo energético chegava às profundidades da fresta, depois de ter dado algumas voltas.

Fed hesitou alguns segundos. Era um quadro irreal. O ambiente fresco ao qual não estava acostumado provocou-lhe um calafrio. O olhar só conseguia penetrar alguns metros; mais além os objetos se desmanchavam na penumbra. Finalmente Fed lembrou-se das armas que trazia consigo. Preparou a pistola energética e resolveu não soltá-la um instante.

Ergueu o corpo e saiu caminhando pela fresta.

Esta prosseguia mais uns dez metros em linha reta, para depois descrever uma curva suave. De vez em quando Fed lançava um olhar para cima, mas não via nada além dum traço de claridade branca fino que nem um lápis. Depois de ter percorrido mais alguns metros, a fresta abriu-se repentina e inesperadamente numa espécie de bacia com cerca de duzentos metros de diâmetro, cujas paredes subiam na vertical que nem as da própria fresta. As condições de luminosidade eram um pouco melhores, mas apesar disso os olhos tiveram de esforçar-se para romper a penumbra. Fed levou cerca de um minuto para notar que nos fundos da bacia havia um edifício.

O sangue parecia congelar em suas veias. De repente lembrou-se com uma dolorosa nitidez da voz que lhe pedira que olhasse em torno. Aquele edifício dava a entender que havia seres inteligentes. Horror era habitado.

Sem que se desse conta disso, Fed saiu caminhando lentamente em direção ao edifício. A forma do mesmo era bastante estranha. Tinha forma abobadada e erguia-se a mais de sessenta metros de altura. O diâmetro da base circular era de aproximadamente cinqüenta metros. A construção impressionava pelo tamanho, mas esta impressão era prejudicada pelas dimensões amplas da bacia de pedra.

Fed arriscou-se a chegar a vinte metros da parede abobadada e parou. Esperava alguma coisa. Aquela voz desconhecida devia ter tido alguma coisa em mente ao pedir-lhe que olhasse em torno com atenção. Deixara que ele encontrasse a fresta e a construção abobadada. O que deveria fazer por ali?

A parede abobadada era cinzenta e opaca. Não parecia haver nenhuma porta. Fed esperou dois ou três minutos. Convenceu-se de que o ser que possuía aquela voz medonha não tinha a intenção de conversar com ele, ao menos no momento. Fed dependia exclusivamente de suas próprias habilidades.

Isso significava que podia dar livre curso à curiosidade. Continuou a caminhar em direção à abóbada. Quando ainda se encontrava a dez metros da mesma, teve a impressão de ver frestas e ranhuras na mesma. Isso estimulou seu entusiasmo, pois tinha certeza de que essas frestas representavam os limites duma porta. Parou mais uma vez para olhar em torno. Atrás dele a bacia de pedra estava vazia e continuava às escuras. Encontrava-se só e estava firmemente decidido a desvendar o mistério. Virou-se e continuou a andar.

Só conseguiu avançar mais um passo. Esbarrou numa barreira invisível que se erguia a sete ou oito metros da parede.

O impacto foi bastante doloroso. Fed foi atirado para trás e caiu ao chão. A arma caiu-lhe da mão. Perplexo, voltou a segurar a arma e pôs-se de pé.

Fez outra tentativa, mais cautelosa que a primeira. O resultado foi o mesmo, com a única exceção de que desta vez o impacto não foi tão violento. Havia uma parede invisível à sua frente, que o impedia de entrar na construção abobadada.

Fed recuou, sacudindo a cabeça. A existência dum campo defensivo não o deixava muito espantado. Estes campos existiam em toda parte. Suas funções eram tão variáveis quanto sua estrutura. Não havia motivo para que os seres inteligentes que habitavam o planeta Horror não cercassem suas construções com campos defensivos.

O que mais deu a pensar a Fed Russo foi a sanidade mental do estranho ser cuja voz ele ouvira. Por que ele o ajudara a encontrar a fresta e a construção abobadada? Somente para que descobrisse que esta era inacessível?

Fed resolveu voltar. Continuava decidido a desvendar o segredo da cúpula. Mas para isso seria necessário paralisar o campo defensivo. Como não era muito versado na teoria dos hipercampos, julgou recomendável consultar Sturry Finch.

Absorto em seus pensamentos, foi voltando pela fresta e finalmente rastejou pela galeria que ligava a mesma com a chaminé. A luz do dia brilhava com uma claridade dolorosa. Quando saiu da galeria, teve de fechar os olhos, porque a luz ofuscante o incomodava.

Quando olhou para trás, viu Josh Bonin, que fitava a parede dos fundos da chaminé por cima da cabeça de Fed. À sua direita, Sturry Finch estava encostado à parede lateral da fenda, com os olhos semi-cerrados, dando a impressão de que refletia intensamente.

Os dois estavam com as armas energéticas nas mãos. E as mesmas apontavam para Fed.

Este ficou imóvel.

— O que é isso? — resmungou, zangado.

— Deixe cair a arma e entregue-se — respondeu Josh com a voz muito grave.

 

A arma de Fed caiu ao chão.

— Será que alguém poderia explicar o que está acontecendo? — berrou.

Desta vez Sturry respondeu.

— Você quis nos atrair a uma armadilha, não é mesmo? Descobriu uma coisa lá dentro e preferiu não contar. Queria dar cabo de nós. — Fed quis formular uma objeção, mas Sturry não deixou que falasse. — É claro que você vai negar. Mas sabemos a quantas andamos; vamos dar uma olhada para ver o que você encontrou lá dentro. Ande bem quieto à nossa frente. Nenhum movimento em falso, senão eu atiro.

Fed era incapaz de conceber um pensamento sensato. Estava numa situação inacreditável. Sturry e Josh levantavam as armas contra ele! Acusavam-no de que pretendia eliminá-los.

Era demais. Pôs-se a gritar. Numa raiva, descontrolada chingou Sturry de idiota, cuja capacidade mental fora afetada pelas canseiras da marcha. Como Sturry fora escolhido para ser o primeiro alvo de sua raiva, Fed não percebeu que Josh se aproximava obliquamente, vindo de trás. Só sentiu uma pancada dolorosa na parte posterior do crânio. Ficou inconsciente por alguns segundos e caiu ao chão. Quando acordou, Josh e Sturry estavam de pé bem à sua frente.

— Levante! — resmungou Josh.

Fed reconheceu sua derrota. Levantou. A cabeça doía. Entrou na galeria. Josh e Sturry ficaram grudados nos seus calcanhares, não lhe dando a menor oportunidade de tentar a fuga. Aliás, pensando bem, a tentativa seria mesmo inútil. Só poderia fugir para a frente, onde ficava a bacia na rocha com a construção abobadada, que era inacessível. Encontrava-se numa armadilha. Mesmo que conseguisse passar por Josh e Sturry e voltar à chaminé pela qual tinham subido, isso não adiantaria nada. Sozinho estaria perdido num mundo quente e ressequido como este.

Já estava avaliando corretamente a situação e passou a dedicar-se ao problema propriamente dito. O que teria acontecido com seus companheiros? O que teria feito com que, enquanto ele se encontrava na bacia de rocha, os mesmos se convencessem de que estava planejando um ataque contra eles?

A voz...!

Era uma idéia fascinante mas, como logo verificou, absurda. As insinuações dum ser invisível não seriam suficientes para levar Sturry e Josh a voltar-se contra ele. Além disso, ele mesmo ouvira a voz, e nas palavras proferidas não havia nada que indicasse que o invisível queria dar cabo deles.

Só havia uma possibilidade. Josh e Sturry estavam submetidos a algum tipo de compulsão hipnótica. Só mesmo uma influência hipnótica muito poderosa seria capaz de levá-los a adotar um comportamento tão estranho. Mas de onde, com os mil demônios, vinha a influência hipnótica?

A abóbada...!

Embora à primeira vista a conclusão parecesse bem lógica, Fed logo começou a duvidar da mesma. Ele mesmo ficara parado junto à abóbada. Por que ninguém tentara hipnotizá-lo?

Esta pergunta produziu outra indagação. Por que alguém fora hipnotizado? Qual era a finalidade da manobra? Qual seria o plano do inimigo invisível?

Fed pôs-se a refletir e chegou à conclusão de que era incapaz de compreender a situação. Lembrou-se de que não era absolutamente necessário que os acontecimentos seguissem um plano lógico. Era possível que no interior da abóbada existisse um projetor mecano-hipnótico que fora ligado por algum acaso e produzira efeito em Josh e Sturry.

Fed estava entretido nestes pensamentos enquanto voltava pelo mesmo caminho que há pouco tinha percorrido. A bacia de rocha abriu-se à sua frente. Entrou na mesma e parou a dez metros da abóbada. .Virou a cabeça e disse:

— Temos de parar aqui, seus cabeças de vento. Há um campo defensivo logo ali.

Um sorriso odiento apareceu no rosto de Josh.

— Ah, é? Um campo defensivo? — perguntou em tom de escárnio.

Deu um passo para o lado e saiu andando. Fed seguiu-o com os olhos. Já se sentia contente com a decepção que estava reservada a Josh.

Mas as coisas sairiam bem diferente do que ele imaginava. Se é que ainda havia um campo defensivo, este não conseguiu deter Josh. O mesmo caminhou resolutamente até as proximidades da abóbada. Um pedaço da parede recuou, formando uma abertura da qual saía uma luz ofuscante amarela.

Josh virou a cabeça e deu uma risada. Parecia antes um cachorro mostrando os dentes.

— Você deve achar que somos muito idiotas, Fed — disse.

 

Uma vez concluídos os reparos dos geradores, a Crest II passou a cuidar do cumprimento da tarefa que se seguia em importância. Vários barcos voadores foram enviados para sair à procura dos tripulantes do veículo de desembarque desaparecido. Não havia muita esperança de encontrar os homens com vida. Devia ter acontecido alguma coisa que os impedia de usar o equipamento de rádio do barco. Era bem verdade que não se podia excluir a possibilidade de o barco ter sido destruído enquanto Fed Russo e seus companheiros se encontravam fora do mesmo. Mas mesmo neste caso a situação não seria muito melhor, pois as pessoas que se encontravam na Crest II tinham suas dúvidas de que num mundo como este um ser humano pudesse conservar-se vivo por bastante tempo para ser descoberto por um comando de busca. Conrad Nosinsky ainda não conseguira ver confirmada sua hipótese sobre o funcionamento do núcleo energético. Até parecia que o mesmo resolvera descansar de vez depois que os seres luminosos tinham suspendido seus ataques, pois recusava-se obstinadamente em irradiar um único raio energético que fosse. Mas Nosinsky não abandonou as esperanças. O fenômeno certamente haveria de ocorrer de uma hora para outra, e quando isso acontecesse, seus instrumentos estariam preparados.

Uma decisão grave tinha sido tomada no convés de chefia. Não haveria a menor dúvida de que só se poderia pensar em regressar à Terra ou ao menos à Via Láctea se fosse possível abrir caminho para a superfície exterior do mundo oco. O equipamento de transmissão que tinha transportado a nave ao centro do planeta Horror certamente não poderia ser controlado do lado de dentro. Se pudesse, certamente demoraria tanto para aprender a forma de manipular os controles que nem se podia pensar em repetir o salto dado a partir de Gêmeos.

Todavia, os canhões desintegradores pesados estariam em condições de abrir caminho para a nave através de qualquer porção de matéria, por maior que fosse. Por isso Perry Rhodan resolvera usar os desintegradores contra o envoltório interno do planeta, assim que as buscas do tenente Russo e de seus homens tivessem sido encerradas — com ou sem resultado.

Restava saber se o inimigo desconhecido se conformaria com esse tipo de intervenção na estrutura básica de seu estranho planeta.

 

Fed Russo quase chegou a convencer-se de que estava apenas sonhando. Os acontecimentos fantásticos e malucos dos últimos minutos só poderiam ser produto dum sonho.

Viu que a abóbada era uma espécie de sala de máquinas. A luz quente e amarela que saía de uma série de luminárias enormes, instaladas no topo da abóbada, derramava-se sobre fileiras imensas de máquinas e aparelhos, quadros de comando e telas de imagem, tudo produto duma tecnologia incrivelmente estranha, a tal ponto que Fed não conseguiu descobrir o funcionamento e a finalidade de qualquer um deles.

Mas Josh Bonin e Sturry Finch movimentavam-se naquele ambiente estranho como quem há muito está familiarizado com o mesmo. Não era que manipulassem os comandos de alguma das máquinas. Fed logo viu que isso seria impossível, pois cada uma delas estava cercada por um campo defensivo, que oferecia uma resistência tenaz à mão que tentasse apalpá-la. Mas andavam pelos corredores como se já tivessem estado lá e procurassem alguma coisa deixada por ocasião da última visita. Fed não lhes deu mais atenção. Passou a examinar as máquinas. Queria saber por que em Horror havia aquela abóbada misteriosa com uma série de aparelhos complicados. A entrada do edifício já voltara a fechar-se. Fed tinha certeza de que não conseguiria abri-la, da mesma forma que não conseguira atravessar o campo defensivo. Sturry e Josh também pareciam saber. Não lhe deram nenhuma atenção, dando a impressão de que tinham certeza absoluta de que o manteriam sob controle.

Fed parou em atitude diante de um dos conjuntos maiores e admirou-o de cima para baixo. O conjunto estava apoiado numa base oval de cerca de oito metros de comprimento. Sobre a mesma base erguiam-se dois cilindros de comprimento diferente de quase um metro de diâmetro; um deles tinha cerca de dez metros de altura, e o outro quinze. Os dois tubos ficavam a apenas alguns centímetros um do outro, e havia travessas metálicas que os ligavam a intervalos regulares. À frente do cilindro mais baixo havia um console baixo com a tampa suavemente inclinada. Havia um quadro de comando embutido na tampa do console. Fed contou duas séries de dez comandos de pressão cada e igual número de luzes de controle coloridas dispostas na mesma ordem. Não havia nenhuma legenda junto aos comandos ou às luzes. Da altura do console concluía-se que a raça que tinha construído esses aparelhos devia ser bem menor que os humanos, ou então seus braços eram muito mais compridos.

Fed teve uma idéia. Se não era capaz de identificar aquelas máquinas, poderia ao menos fotografá-las. Levava uma câmara-miniatura num dos bolsos de seu traje especial. Além disso, era bastante duvidoso que no estado em que se encontravam Josh e Sturry fossem formular qualquer objeção a que ele tirasse fotografias. Tirou a câmara e foi fotografando cuidadosamente um aparelho após o outro.

Enquanto isso Josh e Sturry prosseguiram nas buscas. Fed ouviu-os fazer barulho e falar baixinho, enquanto continuava a tirar suas fotografias. Estava curioso para saber o que estavam procurando.

Quando terminasse de tirar suas fotografias, cuidaria disso.

Era ao menos o que pretendia fazer. Mas não teve oportunidade. Quando estava apontando a câmara para o ponto culminante da abóbada, ouviu alguém dizer:

— Você parece tão abandonado...! Espere, que eu lhe mostrarei uma coisa.

Era o invisível que acabara de voltar. Fed assustou-se tanto que por pouco não deixa cair a câmara. Mas o susto não demorou muito. Lembrou-se das perguntas que queria fazer.

— Quem é você? — principiou.

— Olhe para cima — respondeu a voz.

Fed obedeceu — e levou outro susto. Em silêncio e sem que ele o percebesse, uma estranha modificação se verificara sob o teto da abóbada. As lâmpadas solares amarelas tinham desaparecido. Apesar disso, por algum motivo que Fed não compreendia, continuava a reinar a mesma claridade de antes. Uma superfície negra, atravessada por névoas debilmente iluminadas, estendia-se embaixo do ponto culminante da abóbada.

— O que... o que é isso? — gaguejou Fed.

— É o abismo entre as duas galáxias, uma das quais é a de vocês. A outra vocês costumam chamar de nebulosa de Andrômeda.

Fed compreendeu. Na Terra havia os chamados planetários, em cujas cúpulas eram produzidos efeitos luminosos que simulavam a imagem do Sol e de seus planetas, desde o gigantesco Júpiter até o menor fragmento de asteróide. Aquilo que ele estava vendo era uma coisa parecida. Mas havia uma diferença. O desconhecido não perdia tempo com planetas. Estava mostrando galáxias.

Fed foi levantando a câmara. Não sabia se o invisível não se incomodaria que ele tirasse fotografias. Como não houve nenhuma objeção, comprimiu o botão do acionador, uma vez, duas vezes, sempre de novo, até fotografar a representação das duas galáxias de todos os ângulos possíveis.

— Olhe para o lado! — disse a voz.

Três estrelas brilhavam em uma das telas instaladas em fileiras de cinco numa enorme chapa de plástico. Essas estrelas formavam um triângulo perfeito. No centro da figura via-se uma bola debilmente iluminada, que era um planeta.

Fed também tirou fotografias dessa figuras.

— O que é isso?

— O mundo em que você se encontra, e que permanece imóvel no centro energético de três sóis. Você está vendo a imagem da constelação. A superfície do planeta que se encontra no centro fica bem em baixo de seus pés.

Muito nervoso, Fed ia deslocando o peso de seu corpo de um pé para outro.

— Por que está mostrando tudo isso? — perguntou.

Já se habituara a formular a pergunta em voz alta, para melhor coordenar os pensamentos.

— Você tem o direito de saber onde está. É bem verdade que não poderá aproveitar esse conhecimento. Será morto por seus companheiros.

Esta afirmação foi feita com uma calma espantosa.

— Por que querem matar-me? — perguntou Fed, estupefato.

— Eles pensam que você quer matá-los.

— Mas isso é uma tolice! — protestou Fed.

Gritou estas palavras, que ressoaram pela abóbada. Josh e Sturry não deixaram que isso os perturbasse. Prosseguiram em suas buscas.

— Sei disso — respondeu a voz. — Um inimigo muito poderoso está em ação por aqui. Quer destruir vocês. Mantém seus amigos sob controle e vai levá-los a matar você.

— Será que você pode ajudar-me?

A voz parecia divertida.

— Como poderia ajudá-lo? Sou apenas um pedaço de espírito.

— E o outro? O inimigo? É um ser corpóreo?

— Não. Mas seu espírito é mais poderoso que o meu.

Fed pôs-se a refletir por alguns segundos.

— Mostre-me o caminho que leve para fora — pediu finalmente.

— Não posso...

— Não fale tanto! Onde fica a saída?

— Bem atrás de você. Você pode ver as frestas.

— Muito bem. E como se faz para abrir a porta?

— Basta aproximar-se da mesma. Ela se abre automaticamente. Mas há o campo defensivo do lado de fora...

— Esqueça! A fresta é o único caminho que leva para fora da bacia?

Desta vez a voz parecia hesitar.

— Não — reconheceu depois de algum tempo. — Ainda existe um corredor que sobe através da rocha, levando ao platô.

Fed sentiu-se triunfante. O platô era o lugar em que mais facilmente seria notado pela Crest.

— Você me acompanhará, não é mesmo? — perguntou, dirigindo-se à voz.

— Isso mesmo. Eu o conduzirei. Mas você verá que é inútil. Seus amigos estão possuídos pelo ódio. Levarão somente alguns segundos para alcançá-lo. E desta vez o matarão sem perda de tempo.

Fed reconheceu que isso era bastante provável. Perguntou-se por que Josh e Sturry ainda não o haviam matado. Aquilo que estavam procurando devia ser mais importante que sua vingança imaginária.

— De qualquer maneira tentarei! — disse em tom obstinado.

A voz não respondeu. Fed aproximou-se da porta. Avançava cautelosamente, olhando para trás de vez em quando para ver as reações de Josh e Sturry. Por enquanto não pareciam desconfiar de nada. Era estranho. Será que o espírito inimigo ao qual a voz acabara de aludir não percebia que ele tentava fugir.

Deu mais um passo e chegou bem perto da porta. Conforme previra a voz, esta abriu-se imediatamente. Ouviu-se um leve estalido. Sturry e Josh, que não se haviam perturbado nem mesmo quando Fed falava em voz alta, sobressaltaram-se. Fed viu Josh abrir a boca, apavorado. Só ouviu o grito que o mesmo soltou quando já se encontrava do lado de fora.

Depois da luz abundante que se espalhava no interior da abóbada, a escuridão era tamanha que Fed só enxergava alguns metros. Era o que esperava, e seu plano baseava-se justamente nesse fato. Nem tentou atravessar o campo defensivo. Sabia que o mesmo continuava no mesmo lugar e que só havia uma possibilidade de atravessá-lo.

Assim que saiu da porta, dobrou para a direita. Ouviu os passos ruidosos de Josh e Sturry, que atravessaram a porta depois dele. Sturry gritou alguma coisa que Fed não compreendeu. Agachou-se a seis metros da parede da abóbada. A sua esquerda a porta desenhava um retângulo amarelo comprido no chão.

As sombras dos dois homens apareceram na abertura.

— ...escuro... — ouviu Josh dizer.

Pegou uma pedra e arremessou-a para o lado esquerdo. Não podia perder tempo. Especialmente Sturry tinha olhos de gato. Só levaria alguns segundos para acostumar-se à escuridão. A pedra caiu e saiu rolando Com um grande ruído.

— É ali...! — gritou Sturry e saiu correndo na direção de onde vinha o ruído. Josh seguiu-o de perto.

Fed contou os passos que deram. Quando Sturry quase tinha alcançado a pedra, levantou-se e deu um salto para o lado. Entesou os músculos e voou alguns metros pela escuridão. O impacto não foi tão forte como ele receara. Caiu ao chão, mas estava preparado. Empurrou-se com as mãos e os pés e saiu correndo.

Suas previsões estavam se confirmando. Quem quer que exercesse sua influência hipnótica sobre Sturry e Josh, certamente tinha forças para ligar e desligar o campo defensivo. Para Sturry e Josh o campo não existia, enquanto para Fed normalmente representava um obstáculo insuperável. Tudo que tinha de fazer era agir de tal maneira que os dois se encontrassem nas proximidades do campo quando ele quisesse atravessá-lo. Nesse caso o mesmo estaria desligado.

Josh e Sturry perceberam que ele tinha fugido. Ouviu-os gritar, enquanto corria em direção ao paredão escuro. Admirou-se de que ainda não haviam tentado atirar nele. Perguntou-se se talvez seria porque ainda não tinham encontrado aquilo que estavam procurando no interior da abóbada.

Atingiu o paredão e parou para respirar um pouco.

— Onde é a saída? — perguntou em voz baixa.

Por um instante a idéia de que a voz talvez não pudesse responder mais fez porejar o sangue em sua testa. Mas seus receios eram infundados. A voz respondeu imediatamente.

— Fica bem perto de você. Olhe para o lado.

Fed obedeceu.

A dois metros do lugar em que se encontrava tinha surgido uma fenda estreita, de pouco menos de dois metros de altura, que antes não existira. Fed não perdeu tempo. Entrou.

O resultado foi espantoso. Mal se viu encerrado no recinto estreito, sentiu-se levantado. Soltou um grito apavorado ao notar que estava subindo em velocidade cada vez mais elevada por um estreito poço cilíndrico. Logo se deu conta de que aquilo só podia ser uma espécie de elevador antigravitacional. Como a distância a ser percorrida era muito grande, tornava-se perfeitamente compreensível que o corpo ficasse submetido a uma grande aceleração.

— Não tenha medo — disse a voz. — O elevador não chega ao platô. Antigamente chegava, mas com o tempo parte do mecanismo deixou de funcionar.

Parecia haver certa tristeza na voz.

— Onde estão os outros? — perguntou Fed.

— Estão atrás de você. Também entraram no elevador.

Pelos cálculos de Fed, a distância que o separava de seus perseguidores não poderia mudar enquanto se encontrassem sob a influência do campo de gravitação artificial. Assim que saísse do poço do elevador, teria de correr o que agüentavam as pernas para conseguir uma boa dianteira.

De repente o poço abriu-se. Os contornos duma faixa rochosa de cerca de dois metros de largura apareceram ao lado de Fed. A mesma contornava a extremidade inferior da parte ampliada do poço. Os efeitos do campo de gravitação artificial cessaram. Fed saltou para o lado e colocou-se sobre a faixa.

Lá em cima, a cerca de trinta metros de distância, aparecia o céu branco. A partir do lugar em que se encontrava a parede do poço não era lisa. Os séculos de erosão tinham criado saliências e reentrâncias que permitiam a subida. Fed imediatamente se pôs a trabalhar. Nunca fizera uma escalada tão rápida. As mãos ficaram ensangüentadas e as unhas se quebraram. O calor do platô que já estava bem próximo começou a fazer-se sentir e o suor entrou-lhe pelos olhos. Muitas vezes nem enxergava o que havia pela frente.

Mas conseguiu avançar. Quando tinha percorrido quase dois terços do caminho, lançou um olhar para baixo e viu que Josh e Sturry também tinham saído do elevador antigravitacional. Logo o viram. Puseram-se a gritar e agitar os braços, mas ainda não se atreviam a atirar nele.

Josh imediatamente começou a subir. Fed sabia que era um bom alpinista, mas desta vez Josh parecia superar-se a si mesmo. Ia subindo em braçadas enormes, deixando Sturry bem para trás e reduzindo a cada segundo a distância que o separava de Fed.

Este se encontrava próximo à exaustão total, mas ao ver Josh sentiu-se estimulado a fazer um esforço final. Pó de pedra caía de baixo de seus pés e se despencava sobre os dois homens que o perseguiam. A abertura do poço aproximava-se com uma lentidão desanimadora.

Chegou o momento em que a luz do sol penetrou em cheio pela abertura do poço, atingindo Fed com a força dum ferro em brasa. Fed resmungou, sacudiu a cabeça e continuou a puxar-se para cima. Josh estava apenas oito metros abaixo dele.

— Se quiser escapar, você terá de correr — disse a voz.

— Já sei — respondeu Fed e respirou profundamente.

— Vá diretamente para a frente — recomendou a voz. — Para lá o terreno é mais regular, pelo menos nos primeiros cem metros. Você não encontrará nenhum obstáculo. Mais adiante encontrará bons esconderijos.

Fed agradeceu.

Josh estava a apenas cinco metros de distância, mas em compensação a borda do poço estava ao alcance da mão de Fed. Estendeu o braço pela última vez, agarrou-se com os dedos e puxou o corpo para cima. Teve a sensação de que no lugar dos músculos havia correntes enferrujadas em seus braços. Durante um segundo apavorante as forças pareciam abandoná-lo; ficou balançando, completamente indefeso, no último trecho do poço.

Deu um forte puxão nos braços. Josh já se aproximara a três metros. Fed atirou-se para o alto. Foi parar de joelhos junto à borda do poço. Entesou os músculos dos braços para empurrar-se e sair correndo, conforme recomendara a voz.

Foi quando viu o que havia à sua frente.

O susto foi tamanho que por pouco não desmaiou. Um frio tremendo atravessou seu corpo, deixando-o incapaz de fazer qualquer movimento. Mais tarde perceberia que o inimigo deixara de incluir em seus planos as conseqüências desse choque, que acabariam por salvar-lhe a vida.

De qualquer maneira ainda estava agachado, quando Josh saiu do poço atrás dele, dizendo em tom de ameaça:

— Aí está você. Desta vez não nos escapará.

Fed não respondeu.

Perplexo, olhava para aquilo que estava à sua frente.

 

A voz o enganara.

A sua frente não havia nada por onde pudesse correr à vontade. Se tivesse dado um passo que fosse, a essa hora já estaria morto.

A faixa rochosa sobre a qual estava ajoelhado tinha cerca de um metro de largura. Abria-se de um lado e de outro, mas a voz lhe recomendara que saísse para a frente, e na situação aflitiva em que se encontrava estaria disposto a fazer o que diziam.

Do outro lado da faixa rochosa não havia nada, absolutamente nada. Fed inclinou-se ligeiramente para a frente e viu uma parede lisa e compacta que descia na vertical. A mesma parecia estender-se ao infinito para os lados. Fed notou que era ligeiramente encurvada. Olhou para a frente e viu bem ao longe os contornos apagados de outras montanhas. Era possível que a parede encurvada que estava vendo fosse o interior duma gigantesca cratera circular, que se estendia até as montanhas distantes. Se fosse assim, o diâmetro da cratera seria de aproximadamente cinqüenta quilômetros.

Mas o que deixou Fed mais impressionado não foi o diâmetro da cratera, mas sua profundidade. O fundo do gigantesco buraco perdia-se num negrume impenetrável. Pelos cálculos de Fed, a luz ofuscante do núcleo energético que penetravam livremente na cratera devia proporcionar uma visibilidade de pelo menos vinte quilômetros. Se o buraco tivesse essa profundidade, devia enxergar o fundo do mesmo.

Acontece que não enxergava, do que se concluía que a profundidade da cratera era bem maior.

Com uma nitidez martirizante Fed percebeu a importância da descoberta que acabara de fazer.

Encontrava-se num mundo oco, mais precisamente, na superfície interna duma esfera oca. À sua frente havia um buraco de cinqüenta quilômetros de diâmetro e profundidade insondável.

Seria apenas natural que esse buraco fosse o canal de comunicação entre a superfície interna e externa da esfera.

Levantou.

— Saia andando à minha frente! — gritou Josh.

Fed estendeu o braço e apontou para o buraco.

— Não está vendo isso? — perguntou sem olhar para Josh.

— É um buraco — disse Josh em tom indiferente. — Vamos logo!

— Você está maluco — resmungou Fed. — Quando voltarmos para a Crest, farei com que seja internado numa clínica de doenças nervosas.

— Você não terá oportunidade para isso — asseverou Josh. — Assim que voltarmos à abóbada, você será morto.

Nesse instante um lampejo vermelho ofuscante atravessou o céu. Uma torrente de luz precipitou-se do alto. Fed viu um raio de claridade vermelha, compacto que nem um corpo sólido, penetrar no buraco. Foi um fenômeno silencioso e fantasmagórico. O diâmetro do raio era muito menor que o do buraco, mas sua luminosidade era tamanha que por uma fração de segundo as profundezas do inferno pareciam abrir-se lá embaixo. A luz vermelha bruxuleante refletia-se nas paredes e parecia subir de novo. Fed ficou completamente ofuscado e fechou os olhos.

Quando voltou a abri-los, o fenômeno tinha desaparecido.

Encontrava-se exatamente no lugar que lhe haviam mandado procurar. Tinha sido submetido ao treinamento habitual dos suboficiais da frota, e por isso mesmo sabia reconhecer um fenômeno de grande interesse científico.

E este era um. Não compreendia as causas è as origens do mesmo. Mas sabia que certas pessoas que se encontravam a bordo da Crest ficariam loucas de entusiasmo se pudessem examinar a cratera com os raios vermelhos.

Por isso mesmo teria de continuar vivo de qualquer maneira. Talvez a cratera representasse uma possibilidade de chegar à superfície externa desse mundo. Os tripulantes da nave precisavam ser informados.

Se Josh e Sturry tentassem impedi-lo de fugir, não deveria recuar nem mesmo diante da perspectiva de matá-los. A vida de dois mil homens e mulheres que se encontravam a bordo da Crest II estava em jogo. Nestas condições pouco importava a forma pela qual três homens, dois dos quais submetidos a uma influência hipnótica inimiga, decidissem seu destino.

Fed começou a descer. Viu que Sturry já tinha descido até a faixa de rocha, onde ficou à sua espera, com a arma em punho. Josh seguia-o da parte de cima.

As chances de escapar nunca tinham sido tão reduzidas como naquele instante.

 

Conrad Nosinsky estava triunfante.

O núcleo energético irradiara um raio vermelho, e os registros dos instrumentos confirmaram a teoria de Nosinsky em todos os detalhes.

E não era somente isto. O resultado da experiência provava que em algum lugar devia haver uma abertura no envoltório da esfera oca, através da qual a energia irradiada escapava do espaço interior.

Restava descobrir de que espécie era essa abertura. Se necessário, a energia situada numa estrutura dimensional superior é capaz de atravessar a matéria sólida. Mas segundo a hipótese de Nosinsky, as irradiações representavam fenômenos repetidas a intervalos regulares, que cumpriam alguma finalidade no intercâmbio energético do planeta Horror. Por isso certamente tinham sido tomadas providências para que a energia irradiada pelo núcleo energético chegasse ao destino com as menores perdas possíveis.

Por isso mesmo em algum lugar devia haver um verdadeiro buraco, ou seja, um trecho no envoltório da esfera em que não havia nenhuma porção de matéria sólida.

Uma vez convencido da exatidão da teoria de Nosinsky, Perry Rhodan deu ordem para que mais um grupo de barcos voadores saísse à procura do buraco. Não era de esperar que as buscas fossem muito demoradas. O lugar em que os raios vermelhos atingiam a superfície interna da esfera era conhecido. O ponto de passagem para o envoltório seguinte só podia ficar nas proximidades desse lugar.

A primeira flotilha de unidades de reconhecimento ainda não tinha conseguido nada. Já se sabia que na superfície desértica em que o barco de Fed Russo fizera o primeiro pouso não havia o menor sinal do barco ou de seus tripulantes. Ao que parecia, Fed Russo e seus companheiros já estavam a caminho do ponto de destino quando aconteceu o desastre.

Dessa forma teriam de procurá-los nas montanhas. Perry Rhodan viu algumas fotografias tiradas pelos barcos de reconhecimento. Compreendeu que até mesmo para um veículo que possuísse o equipamento mais moderno seria extremamente difícil encontrar um objeto pequeno, como uma nave destroçada ou até mesmo um ser humano, em meio àquela confusão de rochas, areia e poeira.

Apesar disso estava firmemente decidido a não suspender as buscas enquanto não soubesse o que tinha acontecido com os três homens.

 

Durante a descida, Fed Russo teve tempo para refletir sobre os acontecimentos dos últimos minutos.

Chegou à conclusão de que a voz o enganara. Na verdade, não havia duas forças diferentes — uma, que teria mantido Josh e Sturry submetidos à influência hipnótica, e outra que o teria ajudado na fuga. Provavelmente eram ambas a mesma coisa. Era de supor que a voz que tinha ouvido era uma manifestação do mesmo fenômeno que havia eliminado as faculdades mentais de Josh e Sturry. Fed estava mais convencido do que nunca de que devia tratar-se dum aparelho, e não dum ser vivo. A forma pela qual era exercida a influência apresentava todas as características da mecano-hipnose.

Não havia dúvida quanto ao objetivo do inimigo. Quando Fed ouvira a voz pela primeira vez, ele e seus companheiros estavam prestes a descobrir o planalto — e naturalmente também a cratera. Em virtude dessa descoberta, a Crest II poderia ter uma possibilidade de abandonar a parte central da esfera oca. O inimigo não queria que isso acontecesse. Desejava destruir a nave ali mesmo. Por isso atraíra Fed para uma armadilha. Enquanto isso Josh e Sturry tinham sido submetidos à influência hipnótica. Assim que voltou, aprisionaram-no. Cabia-lhes matá-lo assim que tivessem uma oportunidade. Depois disso o inimigo invisível cuidaria de apagar a lembrança dos acontecimentos em sua memória, ou então os induziria ao suicídio. De qualquer maneira, as pessoas que se encontravam na Crest não teriam conhecimento da existência da cratera.

Até ali estava tudo claro. Restava esclarecer alguns detalhes. Por que o inimigo se dava tanto trabalho, se teria sido bem mais simples hipnotizar tanto Fed Russo, como Sturry e Josh? Só podia haver uma resposta: Fed não podia ser hipnotizado. Tinha pouca experiência e contacto com os problemas da parapsicologia. Mas sabia que certas pessoas eram imunes à influência mecano-hipnótica. Ao que tudo indicava, ele era uma dessas pessoas.

Depois, por que Sturry e Josh não tinham aproveitado uma das tantas oportunidades de matá-lo? Durante a subida pelo poço do elevador, por exemplo, Josh poderia tê-lo matado, mas não o fez. Por quê?

Devia ter algo a ver com o fato de que andaram procurando alguma coisa no interior da abóbada. Por estranho que pudesse parecer, tinha-se a impressão de que precisavam encontrar primeiro aquilo que estavam procurando para ter força de matar. Fed sabia que a proibição de matar realmente formava um poderoso bloqueio no cérebro humano, bloqueio este que só podia ser vencido num estado de excitação extrema ou sob a ação de influências mentais muito poderosas.

A situação podia ser tudo, menos clara. Mas Fed teve a impressão de que, enquanto Josh e Sturry não tivessem encontrado o objeto de suas buscas ansiosas, ele estaria em segurança.

A essa altura a tática da voz era facilmente compreensível. Ajudara-o a fugir e esperara que depois de sair do poço fosse precipitar-se na cratera. O plano falhara, mas isso não representava um problema grave, pois Josh e Sturry ainda poderiam eliminá-lo.

Fed pensou nisso enquanto percorria o caminho pelo poço, no qual subira tão depressa, mas estava descendo bem mais devagar. Sturry Finch estava à sua espera na faixa de rocha. Examinou-o com um olhar frio de indiferente. Finalmente apontou para o elevador antigravitacional.

— Entre! — ordenou.

Fed teve uma idéia horripilante. Se confiasse no elevador antigravitacional, dependeria do campo antigravitacional numa altitude de centenas de metros. Para o inimigo invisível seria fácil desligar este campo assim que ele se encontrasse no interior do poço. Cairia uns duzentos ou trezentos metros e nunca mais incomodaria o inimigo com sua presença.

— Vamos! — disse Sturry em tom impaciente.

Josh desceu e postou-se do outro lado.

— Deixe-me pensar um pouco, seu idiota! — resmungou Fed.

Há pouco usara o elevador. Por que o desconhecido não o deixara cair naquela oportunidade? Porque nesse caso também teria arrastado Josh e Sturry, e o desconhecido talvez ainda precisasse dos dois? Isso era muito improvável. A idéia de que o aparelho mecano-hipnótico não tinha nenhuma influência sobre os geradores que produziam o campo gravitacional era bem mais plausível. A finalidade do hipnotizador consistia em proteger a abóbada. O elevador antigravitacional servia unicamente para transportar pessoas da abóbada para o platô e vice-versa. O acoplamento entre os projetores e o hipnotizador exigiria uma série de dispositivos de controle, que excluíssem a possibilidade dum erro.

— Empurre-o para dentro! — ordenou Josh.

Fed levantou as mãos.

— Um momento — disse com a voz calma. — Já vou.

Saltou para dentro do poço. Manteve o corpo inclinado para o lado, para agarrar-se à parede da rocha assim que sentisse que a ação do campo antigravitacional estivesse diminuindo. Mas não aconteceu nada disso. O campo envolveu-o suavemente e o fez descer bem devagar.

Soltou com um chiado o ar que prendera entre os pulmões. Sua teoria era correta. O hipnotizador não podia fazer-lhe nada enquanto estivesse no interior do poço. O alívio que sentiu foi tão profundo que afetou seu estômago. Quando chegou ao fundo do poço, sentiu-se enjoado.

Sturry e Josh levaram-no de volta à abóbada. Como das vezes anteriores, o campo defensivo não representou nenhum obstáculo para eles. A porta abriu-se imediatamente. O interior bem iluminado da abóbada abriu-se à sua frente. Continuava tal qual o tinham deixado.

— Fique aqui — ordenou Josh, apontando para um lugar situado entre dois conjuntos de máquinas não muito grandes. Era um lugar bem escolhido. Fed teria de dar uma volta para atingir a porta que não ficava muito longe. A volta era tão grande que Josh e Sturry teriam tempo de sobra para persegui-lo.

Fed obedeceu. No momento não tinha alternativa. Ficou pensativo, vendo os homens reiniciar as buscas no lugar em que há pouco as tinham interrompido.

De repente lembrou-se duma coisa. Para o que ele pretendia fazer dali em diante era muito importante saber se a voz desconhecida era ou não capaz de adivinhar seus pensamentos. Era bem verdade que as comunicações com a mesma tinham sido feitas por via telepática, mas a forma normal do intercâmbio telepático tinha certa semelhança com a palestra acústica, já que cada parceiro só recebia as mensagens que o outro emitisse em voz alta ou duma forma nitidamente orientada. Em outras palavras, para o telepata médio era impossível reconhecer os pensamentos que o parceiro quisesse esconder, da mesma forma que num contacto acústico era impossível entender as palavras que o parceiro dirigisse em voz baixa a uma terceira pessoa.

Havia certos indícios de que o hipnotizador não estava em condições de ler todos os pensamentos de Fed. Assim, por exemplo, não dedicara um único pensamento às fotografias tiradas pelo mesmo. Também se obstinara em afirmar que a fuga seria impossível, embora naquele momento Fed já tivesse a intenção de atrair Josh e Sturry para perto do campo defensivo, para fazer com que o mesmo se abrisse. Era um método fácil e seguro. O hipnotizador não teria motivo para ser pessimista, se conhecesse o plano de Fed.

Fed sabia perfeitamente que estas circunstâncias não permitiam uma conclusão segura. Apesar disso resolveu basear sua atuação futura na suposição de que o inimigo não conhecia seus pensamentos.

De qualquer maneira, não havia outra possibilidade. Se o hipnotizador soubesse o que estava pensando, de qualquer maneira estaria perdido.

Naquele momento as buscas de Josh e Sturry se concentravam em determinado ponto dos fundos da abóbada, onde havia uma série de aparelhos pequenos, mais ou menos do tamanho duma calculadora de mesa. Estavam bem arrumados em cima de bancos compridos. Naquele momento Josh estava acompanhando um cabo que saía da parte traseira de um dos instrumentos, passava sobre o banco e se perdia entre os outros aparelhos.

— É isto! — disse Josh em voz alta e exaltada. — Aqui está o amplificador!

Sturry virou a cabeça e olhou para Fed.

— Venha cá! — ordenou. — Devagar e com cuidado.

Fed obedeceu. Movimentava-se de tal maneira que Sturry via o que estava fazendo com as mãos. Sturry esperou até que se aproximasse a dois metros do banco e mandou que parasse.

— Fique parado aí! — disse.

Josh tinha passado por baixo do banco. Fed não podia ver muito bem o que estava fazendo por lá. Ao que parecia, mantinha-se ocupado com dois ou três aparelhos ao mesmo tempo. Às vezes parava em meio ao movimento e ficava na escuta, como se um ser invisível lhe estivesse fornecendo instruções. Fed acreditava que realmente era isso. Por si mesmo Josh não saberia lidar melhor com esses instrumentos do que ele mesmo, e isso significava que não entendia absolutamente nada dos mesmos. Estava agindo segundo as instruções do hipnotizador, e a demora decorria do fato de que este tinha dificuldade em explicar as funções dos diversos aparelhos aos dois hipnotizados.

Finalmente Josh concluiu seu trabalho. Saiu debaixo do banco. Tinha o rosto encharcado de suor. Mandou que Fed recuasse um passo. Depois ele e Sturry colocaram-se à frente do banco, de costas para os aparelhos. Pôs a mão para trás, em direção à série de botões de um dos instrumentos. Fed viu o dedo negro descer em um dos botões.

— Cuidado! — disse Josh com a voz rouca.

Neste momento Fed compreendeu o que estava acontecendo. Lembrou-se de que Josh usara a palavra amplificador. Ele mesmo já tivera a idéia de que Josh e Sturry ainda não haviam tentado matá-lo, porque o impulso hipnótico a que estavam submetidos era muito fraco para isso.

O comando do desconhecido obrigava-os a procurar um amplificador hipnótico. Acabavam de encontrá-lo e fizeram seu acoplamento com o aparelho original. Assim que o tivessem ligado, teriam forças para matar.

Fed viu o botão baixar lentamente e procurou conformar-se com o fato de que só teria mais dois ou três segundos de vida.

 

A suposição de Perry Rhodan foi confirmada pelos fatos. Demorou menos de uma hora até que a abertura fosse encontrada. Tinha cerca de cinqüenta quilômetros de diâmetro, ficava nas montanhas e tinha mais de mil quilômetros de profundidade. Diante das informações que Wuriu Sengu lhe tinha fornecido, não havia a menor dúvida de que aquilo que para os instrumentos era o fundo da abertura na realidade não passava da face interna do segundo envoltório.

Mas a alegria com o achado não durou muito. Outras medições revelaram que numa profundidade de cerca de cem quilômetros o poço era hermeticamente fechado por um campo defensivo oticamente invisível. A Crest não poderia chegar ao envoltório seguinte sem eliminar este campo. Por enquanto não se sabia se a aparelhagem de bordo tinha capacidade para isso.

De qualquer maneira a nave partiu. Ergueu-se do local em que estava pousada no deserto e passou lentamente sobre a selva de montanhas entrecortadas. O platô atrás do qual se ocultava a abertura de cinqüenta quilômetros de diâmetro foi avistado de dez quilômetros de altura.

Dali a pouco foi feita mais uma descoberta. Junto à borda da abertura um poço de cerca de duzentos metros de diâmetro rompia a superfície do platô que nos outros lugares era liso. Constatou-se que o poço tinha trezentos metros de profundidade, e no fundo do mesmo havia uma saliência que apresentava um estranho formato geométrico. Perry Rhodan chegou à conclusão de que valia a pena investigar a área e enviou um barco de reconhecimento.

Enquanto isso a Crest ficou suspensa bem em cima da borda da abertura que ligava o centro do mundo oco ao envoltório seguinte. Na sala de comando e nos laboratórios foram iniciadas experiências com o objetivo de determinar a estrutura do campo defensivo e descobrir um meio de conseguir a passagem da nave.

 

Fed caiu.

Um décimo de segundo disso as descargas de duas armas energéticas passaram por cima dele, atirando uma onda de ar aquecido em seu rosto. Rolou o mais depressa que pôde para a viela que se abria entre dois aparelhos de grande porte. No momento estava fora do alcance dos tiros de Josh e Sturry. Tudo dependia que fosse mais rápido que seus perseguidores.

Parecia que a fuga os deixara confusos. Por um segundo tudo ficou em silêncio junto ao banco. Isso bastou para que Fed se retirasse para mais longe. Havia passagens mais estreitas de ambos os lados. Fed encontraria muitos lugares para esconder-se. Mas sua intenção não era esconder-se de Sturry e Josh. Precisava chegar ao grande quadro de comando que ficava na parede, atrás dele. Só teria uma chance se conseguisse, e se esse quadro prestasse o serviço que esperava dele.

Ouviu os passos dos dois homens, que vinham pelo corredor principal. Não diziam uma palavra.

Fed recuou para dentro de um dos corredores laterais. De ambos os lados erguiam-se as colunas metálicas de máquinas desconhecidas. Por um instante viu a cabeça loura de Sturry através duma fresta estreita. Havia uma decisão mortífera em seus olhos. Estava totalmente submetido ao hipnotizador.

Um tiro energético chiou através do corredor em que Fed estivera há poucos instantes. Viu a energia ofuscante refletir-se nos campos defensivos individuais das máquinas.

Por um instante lembrou-se do amplificador. Quando Josh estava manipulando o mesmo, tinha-se a impressão de que não havia qualquer proteção. Será que isso acontecia em virtude do mesmo efeito que desligava o campo defensivo externo da abóbada assim que Sturry e Josh se aproximavam do mesmo? Será que o próprio Fed, ao aproximar-se do aparelho, se defrontaria com o mesmo campo impenetrável que envolvia as outras máquinas?

Não havia tempo para refletir sobre isso. Alguém estava caminhando pelo corredor. Fed recuou mais um pouco e conseguiu esconder-se atrás duma máquina, no exato momento em que avistou a bota pesada de Josh. Este passou sem descobrir o fugitivo. Fed olhou para trás e percebeu que só se encontrava a quatro metros do quadro de comando.

Precisava ter cuidado. O hipnotizador não conhecia seus planos, mas podia vê-lo. Sem dúvida transmitia constantemente suas instruções a Josh e Sturry. Mas as mesmas dificuldades que tinham causado a demora na busca do amplificador naturalmente impediam os dois homens de seguir as instruções com a necessária rapidez. O hipnotizador conhecia as máquinas. Mas o que adiantava se alguém dizia a Josh que o fugitivo estava escondido entre o conjunto A e a máquina B? Precisaria duma descrição detalhada para que Josh soubesse de que aparelho se tratava — e uma descrição era demorada.

Mas o quadro de comando era bem simples. Josh e Sturry compreenderiam imediatamente se o hipnotizador percebesse que o mesmo era o objetivo de Fed.

Este seguiu por um corredor estreito, que o afastou dois metros do alvo. Josh e Sturry estavam bem longe, mas vinham se aproximando. Fed tentou imaginar como as ordens do inimigo deviam atropelar-se em seus cérebros. De vez em quando disparavam uma salva, mas atiravam sem fazer pontaria, mostrando que não sabia onde estava a vítima.

Fed deu mais uma volta, para enganar o hipnotizador sobre seus verdadeiros objetivos, e acabou por aproximar-se do quadro de comando, vindo do outro lado. O banco com o amplificador encontrava-se obliquamente atrás dele, a uns dez metros de distância e separada por alguns conjuntos de tamanho médio. Fed gravou na memória a disposição dos mesmos.

Voltou a respirar profundamente e saltou. De tão nervoso que estava, calculara mal a força do salto e batera dolorosamente contra as chaves de metal plastificado do quadro de comando. Josh e Sturry imediatamente tiveram a atenção despertada. Viraram-se abruptamente e dois tiros feitos sem muita pontaria fizeram entrar em ebulição a parede da abóbada em cima da cabeça de Fed.

Este abaixou-se e foi pegando as chaves que estavam ao alcance de suas mãos. Sentiu nos dedos a dormência provocada pelo campo defensivo. A dor inundava seus braços, mas através do manto protetor do campo a força das mãos transmitiu-se para as chaves. Baixou duas. Fed atirou-se para trás e rastejou mais um metro. Outras duas chaves — e nenhum resultado ainda. Fed ouviu os ruídos dos passos de Josh e Sturry, que pareciam ser transmitidos através dum tubo fino e comprido. Mais alguns segundos, e seria o fim.

As mãos tinham perdido a sensibilidade em virtude dos efeitos produzidos pelo campo defensivo. Era como se não existissem. Mas continuava a estendê-las, segurou duas chaves e conseguiu baixá-las.

De repente...

Estava envolvido por uma escuridão completa.

As lâmpadas solares instaladas no ponto culminante da abóbada se tinham apagado. A parede da abóbada não deixava passar a luz vinda de fora. A escuridão era completa.

Reanimado pela confiança que o resultado de sua ação lhe trouxera, Fed foi voltando. Josh e Sturry sabiam onde estava. Encontrariam o quadro de comando até mesmo no escuro. E quando chegassem não deveria estar mais lá.

Descansou alguns segundos ao pé duma grande máquina.

— E agora? — perguntou a voz. — Acredita mesmo que conseguirá escapar?

— Naturalmente — respondeu Fed em pensamento. — Afinal, já consegui uma vez. Lá em cima, no platô. Está lembrado?

— Ali foi diferente — disse a voz. — Mesmo que não saltasse para dentro do poço, seus amigos estavam atrás de você. Não havia como escapar.

— Acontece que desta vez escaparei — afirmou Fed.

Conversar com o hipnotizador parecia uma boa idéia. Como o aparelho era incapaz de ler seus pensamentos, talvez pudesse dar-lhe algumas informações sobre seus planos. Informações falsas, evidentemente.

— Espere até que um desses idiotas chegue perto de mim — disse. — Diga-lhes onde estou. Quando compreenderem, já estarei em cima deles e... deixe para lá. Por que haveria de explicar a você?

— Seja lá o que você pretende fazer, — disse o hipnotizador em tom indiferente — não vai dar certo.

Fed ouviu um ruído vindo de bem perto. Não deu mais resposta às palavras do hipnotizador. Alguém se aproximava do quadro de comando. Não sabia se era Josh ou Sturry, mas quem era sabia que Fed estava à sua espera. O hipnotizador lhe contara.

Fed contornou a base da máquina sem fazer nenhum ruído, a fim de que esta se interpusesse entre ele e o inimigo que se movimentava na escuridão. Era difícil orientar-se no escuro. Se não conseguisse, seu jogo estaria perdido.

Foi recuando lentamente. O ruído seguiu-o. O projetor enxergava-o mesmo na escuridão, e era fácil orientar uma pessoa que se encontrasse bem perto dele. Bastava dar comandos como “para a direita” ou “para a esquerda”.

Um segundo tiro deteve Fed no meio da corrida. Atingiu-o no ombro e a dor lancinante fez com que caísse.

— Peguei-o! — gritou Sturry.

Fed levantou-se resmungando. Sentiu o fedor dos restos queimados de seu traje especial. O braço esquerdo estava dormente. A dor que fustigava o lado esquerdo de seu corpo era quase insuportável.

A segurança de Sturry deu-lhe mais uma chance. Em vez de certificar-se de que realmente o tinha atingido, o mesmo esperou até que Josh saísse do lugar em que estava escondido para juntar-se a ele. Seus passos eram tão forte que superaram os ruídos provocados por Fed.

Quando o hipnotizador explicou aos dois que o perigo ainda não tinha passado, já era tarde. Fed sentiu o cabo entre os dedos. Ficava fora dos aparelhos e não possuía campo defensivo. Segurou-o com ambas as mãos e pôs-se a puxar com toda força. Um mundo de raios e manchas coloridas começou a girar diante de seus olhos. O único elo de ligação com o mundo real era o cabo que sentia entre os dedos. Puxava violentamente, gritando.

Finalmente o cabo cedeu. Fed caiu de costas, e a dor selvagem que sentia no ombro queimado deixou-o inconsciente por um instante.

Quando recuperou os sentidos, as lâmpadas solares amarelas estavam acesas. Josh e Sturry estavam parados perto dele, com as armas apontadas para seu corpo. Fed apoiou-se no cotovelo direito. Continuava a segurar o cabo, que estava rasgado de ambos os lados.

Levantou-se. Isso lhe custou o mesmo esforço que normalmente teria de gastar numa marcha de um dia através do deserto, mas a sensação de triunfo ajudou-o a pôr-se de pé. O cabo estava rasgado. Não tinha mais nada a perder.

Josh e Sturry recuaram um passo.

— Sua hora chegou! — disse Josh, enquanto sua arma acompanhava os movimentos de Fed.

Fed deixou cair a mão que segurava a ponta do cabo.

— Você não pode matar-me, Josh — disse em tom calmo. — Sei disso. Não tente impressionar-me. O amplificador foi posto fora de ação.

Enquanto falava, fez um movimento rapidíssimo com a mão. O cabo atingiu a mão de Josh. Foi uma pancada violenta. Josh soltou um grito e deixou cair a arma. Fed atirou-se ao chão e cobriu a arma com o corpo antes que Sturry pudesse esboçar qualquer reação.

Agora tinha tempo. Sturry não se atreveria a matá-lo. Procurou calmamente a arma e tirou-a de baixo de seu corpo. Pôs-se lentamente de joelhos e levantou, apoiando-se na borda do quadro de comando. Sem dar atenção a Josh, colocou-se à frente de Sturry e encostou-lhe a arma ao peito.

Por um instante teve-se a impressão de que, mesmo sem o amplificador, a influência do hipnotizador bastaria para manter Sturry sob controle. Mas o rapaz não demorou a levantar as mãos e atirar a arma resolutamente para o lado.

Fed deu-lhe as costas. Sentiu que estava para ficar inconsciente. Ninguém sabia que plano o hipnotizador inventaria enquanto Fed estivesse inconsciente.

Disparou alguns tiros contra os aparelhos espalhados sobre o banco. Os mesmos foram deslocados pelos campos defensivos. A energia mecânica do impacto atirou os aparelhos para o lado, mas não os afetou. Pareciam ser muito resistentes.

Saiu cambaleando em direção ao quadro de comando. Devia haver uma chave que interrompesse o suprimento de energia dos campos defensivos. Certamente ficava num lugar muito discreto, pois do contrário todo o sistema de campos defensivos seria inútil. O problema era encontrar a chave certa antes que ele ficasse inconsciente.

Mais uma vez foi baixando chave após chave, tendo sempre o cuidado de não tocar naquela que desligava as luzes. Toda vez que um dos objetos finos de metal plastificado cedia à pressão de seu dedo, disparava um tiro contra a extremidade superior do quadro de comando. Se o tiro não acertava o alvo, isso era sinal de que os projetores continuavam ligados. Mas se atingisse, teria atingido seu objetivo.

Por muito tempo teve a impressão de que seria tudo em vão. Chave após chave foi sendo baixada, e os tiros ricocheteavam de encontro ao campo defensivo do quadro de comando. Fed era um espírito bem vivo num envoltório sem vida. Já não sentia os objetos em que seus dedos tocavam. O contacto com o campo defensivo começou a paralisar seu sistema nervoso. As coisas chegaram a um ponto em que não sentia mais a dor no ombro e tinha de ficar de olho nas pernas para não embaralhá-las quando desse um passo para o lado.

Sabia perfeitamente que não agüentaria muito tempo. O fim seria repentino. Para trabalhar, recorria às reservas de energia que o ser humano só costuma mobilizar quando se defronta com a morte. E quando essas reservas tivessem sido consumidas... Esta idéia atravessou preguiçosamente sua mente, concebida por um cérebro que estava à beira do desespero. Tão devagar como concebeu esta idéia teve consciência de que o último tiro disparado contra a parede em que ficava o quadro de comando tinha provocado bolhas. Ficou parado, cambaleante. Quase não tinha forças para segurar a pequena arma energética. Pôs-se a contemplar o buraco que a última salva queimara na parede.

Com uma lentidão incrível a idéia de que atingira o alvo foi tomando corpo em sua mente. Os campos defensivos das máquinas tinham deixado de existir. Já estava em condições de destruir o hipnotizador.

Virou-se abruptamente. Saiu caminhando com as pernas duras em direção ao banco. Sturry, que estava no seu caminho, foi afastado com um movimento violento. Depois começou a atirar.

Atingiu o alvo. O banco e os aparelhos que se encontravam sobre o mesmo desmancharam-se numa nuvem de fumaça e fogo.

Fed viu pelos cantos dos olhos o rosto cinzento de Josh. Este olhava para ele como se fosse um fantasma. Fed quis perguntar alguma coisa, mas as cordas vocais não obedeceram. Ficou espantado ao notar que de repente as coisas que o cercavam começavam a ficar menores e pareciam desvanecer-se ao longe.

No mesmo instante perdeu os sentidos.

 

Uma decisão foi tomada. O método que Perry Rhodan tinha usado para neutralizar o campo de sincrotron do núcleo energético seria empregado de novo, desta vez para eliminar o campo defensivo situado nos fundos do canal de ligação. Mais uma vez defrontavam-se com o mesmo problema. A estrutura do campo defensivo estava situado na sexta dimensão. Até mesmo as energias complexas irradiadas pelos aparelhos da Crest situavam-se uma dimensão abaixo disso.

Mas os cálculos revelaram que, se a energia cinética da nave fosse suficientemente grande, a mesma seria capaz de substituir a sexta componente. Icho Tolot, o halutense, usou uma comparação que só não foi desprezado porque ele mesmo se incluiu na classe dos ignorantes. A tentativa de romper o campo defensivo, que seria realizada pela Crest, assemelhava-se aos esforços duma criança que desejasse abrir uma gaveta que possuísse três fechaduras. A criança era capaz de destravar duas dessas fechaduras, mas a terceira era muito complicada para sua inteligência. A criança usou os músculos e abriu a gaveta à força, quebrando a lingüeta da terceira fechadura.

Acreditava-se que o rompimento do campo defensivo paralisado em cinco das suas dimensões causaria uma súbita perda de impulso. Tudo que não estava preso foi firmado. Os tripulantes receberam ordens terminantes para durante a operação de ruptura permanecer em posição horizontal numa base bem macia. A manobra propriamente dita era bem simples. Não havia necessidade de mais de um homem na sala de comando.

O escolhido foi Icho Tolot. O halutense ofereceu-se voluntariamente. Era o único que, graças à sua estrutura orgânica especial, podia ter esperança de resistir são e salvo ao impacto.

A Crest II foi preparada para a partida. Os barcos de reconhecimento já tinham descoberto os destroços do veículo de desembarque no interior dum vale. Não havia a menor dúvida de que Fed Russo e seus companheiros estavam mortos.

Só se esperava o regresso do barco que estava examinando o poço de trezentos metros de profundidade, situado junto ao canal de ligação.

 

A única coisa que os homens do comando de busca tiveram que fazer foi entrar na abóbada e recolher três homens inconscientes. O chefe de comando constatou que todas as máquinas que se encontravam no interior da abóbada eram protegidas por campos defensivos impenetráveis. Tentou manipular as chaves dum quadro de comando, mas na primeira tentativa sofreu um choque tão forte que preferiu abandonar as experiências.

Entrou em contacto com a Crest e recebeu ordem de voltar para bordo quanto antes. Dessa maneira Fed Russo, Josh Bonin e Sturry Finch, que já tinham abandonado todas as esperanças, ainda puderam desfrutar uma cama macia, uma claridade agradável e uma relativa segurança.

Fed Russo foi o primeiro que recuperou os sentidos. Os propulsores estavam entrando em funcionamento, e a Crest II dispunha-se para precipitar-se canal a dentro. Fed fez um relato breve, mas completo da operação de que tinha participado. Fez questão de ressaltar que, quando Josh Bonin e Sturry Finch quiseram atacá-lo, não estavam agindo por iniciativa própria, mas sob a influência dum aparelho mecano-hipnótico. Garantiram-lhe que Sturry e Josh não teriam a recear qualquer punição.

As fotografias tiradas por Fed foram reveladas e interpretadas. Com base nas mesmas foi possível determinar com um razoável grau de precisão a posição atual da nave. O resultado foi decepcionante. A Crest afastara-se alguns milhares de anos-luz de Power, mas o salto fora dado em sentido paralelo às extremidades das duas galáxias. A nave não se aproximara de nenhuma delas. O caminho a ser percorrido para chegar em casa continuava a ser tão longo quanto antes.

Houve certa discrepância entre o relato de Fed Russo e as observações do chefe do comando de reconhecimento. O primeiro afirmava que tinha posto fora de ação os campos defensivos individuais dos mecanismos, enquanto o chefe do comando constatara que não conseguia aproximar-se de qualquer dos instrumentos sem levar um tremendo choque. Concluía-se que, depois que Fed Russo alcançara uma vitória sobre o hipnotizador, os campos defensivos voltaram a ser ligados automaticamente. Ninguém seria capaz de avaliar o número de aparelhos e mecanismos de controle que havia no interior da abóbada. Era perfeitamente possível que existisse um dispositivo que corrigisse automaticamente qualquer manipulação dos comandos realizadas por uma pessoa não autorizada. Ao que tudo indicava, os campos defensivos eram reforçados na mesma oportunidade, a fim de que nenhuma mão estranha voltasse a mexer no quadro de comando.

Restava uma pergunta. Por que o comando de reconhecimento não encontrara qualquer campo defensivo do lado de fora da abóbada? Será que Fed Russo tinha destruído alguma componente importante, indispensável à manutenção do campo defensivo externo e que, uma vez destruída, não podia ser reparada? Ou será que o inimigo invisível resolvera fazer um novo jogo e se cansara do mesmo, motivo por que não tinha mais nenhuma objeção a que a vítima de sua atuação fosse levada a um lugar seguro?

Ninguém sabia. Talvez nunca descobrissem.

Havia problemas mais importantes pela frente.

A Crest precipitou-se em queda livre, em velocidade cada vez maior, em direção ao campo defensivo situado no interior do canal de ligação.

 

Realmente houve um forte solavanco. Mas o excesso de energia cinética da nave destruiu a sexta componente do campo defensivo, que não pudera ser neutralizada.

Depois disso a Crest II continuou a avançar nas profundezas sem encontrar nenhum obstáculo. O choque não tinha causado avarias de monta. Havia alguns feridos leves, e uma ou duas dezenas de aparelhos fáceis de substituir tinham sido avariados ou destruídos. A ruptura do campo defensivo fora mais fácil do que se acreditara.

Perry Rhodan foi o primeiro a voltar à sala de comando, depois da travessia bem sucedida. Enquanto Icho Tolot trabalhava entusiasticamente nos controles de pilotagem, Perry observou com certo espanto e uma ponta de veneração as mudanças ocorridas nas telas de imagem.

Avaliou o tamanho das montanhas gigantescas que se erguiam em meio às planícies do mundo, inundado pela luz verde. Subiam a centenas de quilômetros, verdadeiros colossos de rocha que pareciam encerrar uma força incrível. Pelo seu aspecto era perfeitamente possível que apoiassem os dois envoltórios internos do planeta oco contra os efeitos da gravitação artificial.

A nave foi descendo lentamente numa planície verde, cheia de árvores e de vegetação baixa. Perry passou a ajudar o halutense. O pouso não trouxe qualquer problema. A Crest foi parar numa clareira de cerca de dez quilômetros de diâmetro, que se abria em meio à floresta rala.

Perry dirigiu-se ao intercomunicador e proclamou o alarme provisório. Ninguém sabia o que os esperaria neste mundo.

De qualquer maneira, a Crest acabara de dar um passo no caminho da liberdade.

 

Havia poucas enfermeiras a bordo da Crest. Uma delas fora destacada para cuidar de Fed Russo.

Quando a mesma se aproximou da cama de Fed, este ainda se sentia fraco e mal acabara de recuperar-se das conseqüências do choque causado pela travessia do campo defensivo.

— Há dois homens lá fora que querem falar com o senhor — disse a enfermeira com um sorriso.

Fed apoiou-se nos cotovelos.

— Dois? — perguntou em tom de espanto.

— Isso mesmo — respondeu a enfermeira. — Acho conveniente não ser muito rigoroso com eles. Sabem tudo e basta um pequeno choque para roubar-lhes o equilíbrio psíquico.

Fed viu que a escotilha estava entreaberta. Sorriu para a enfermeira e gritou:

— Entrem, desde que não queiram liquidar-me mais!

A escotilha deslizou para o lado. O primeiro a entrar foi Sturry. Segurava o boné do uniforme com ambas as mãos e revirava-o ininterruptamente. Josh entrou atrás dele, olhando para cima, como se houvesse uma coisa muito interessante logo embaixo do teto.

Pareciam não ter a consciência muito tranqüila, mas de resto estavam na plena posse de suas faculdades mentais. A enfermeira deu um passo para o lado e desapareceu.

— Então — principiou Fed Russo. — Agora vocês vão ouvir uma coisa...

 

                                                                                            Kurt Mahr  

 

                      

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