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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS INDIFERENTES / Alberto Moravia
OS INDIFERENTES / Alberto Moravia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Carla entrou; trazia um vestidinho de fazenda castanha, de saia tão curta que bastou o movimento de fechar a porta para a fazer subir um bom palmo acima das frouxas dobras que as meias lhe faziam em redor das pernas; mas ela não deu por isso e adiantou-se com precaução, olhando misteriosamente em frente, preguiçosa e incerta; estava aceso um único candeeiro e iluminava os joelhos de Leo, sentado no sofá; uma obscuridade cinzenta envolvia o resto da sala.

-A mamã está a vestir-se-disse ela, aproximando-se-e desce daqui a pouco.

-Vamos esperá-la juntos-disse o homem, curvando-se para a frente.-Anda cá, Carla, senta-te aqui.

Carla, porém, não aceitou o oferecimento; de pé, junto à mesinha do candeeiro, de olhos voltados para o círculo de luz do abat-jour em que os bibelots e os outros objectos, diversamente dos seus companheiros mortos e inconsistentes, esparsos na sombra da sala, revelavam todas as suas cores e a sua solidez, experimentava com um dedo a cabeça móvel de uma porcelana chinesa: um burro muito carregado sobre o qual, entre dois cestos, estava sentado uma espécie de Buda campónio, um aldeão gordo, de barriga envolvida num quimono florido; a cabeça andava para cima e para baixo, e Carla, de olhos baixos, faces afogueadas, lábios apertados, parecia totalmente absorta nessa ocupação.

 

 

 

 

-Ficas para jantar connosco?-perguntou ela, finalmente, sem erguer a cabeça.

-Claro que sim-respondeu Leo, acendendo um cigarro. -Ou não queres que fique?

Curvado, sentado no sofá, observava a rapariga com uma atenção ávida: pernas de barrigas tortas, ventre achatado, um pequeno vale de sombra entre os grandes seios, braços e ombros frágeis e aquela cabeça redonda, tão pesada sobre o pescoço delgado.

«Oh, que bela garota», e repetiu para consigo: «que bela garota». A lascívia adormecida durante aquela tarde despertava, o sangue subiu-lhe às faces, sentia vontade de gritar de desejo.

Ela deu mais um toque na cabeça do burro.-Reparaste como a mamã estava nervosa hoje ao chá? Todos olhavam para nós.

-Coisas dela-disse Leo; inclinou-se para a frente e, como se nada fosse, levantou-lhe a orla da saia.

-Sabes que tens umas belas pernas, Carla?-disse, voltando para ela uma cara estúpida e excitada, em que não conseguia abrir-se um falso sorriso de jovialidade; Carla, porém, não corou nem respondeu e, com um golpe seco, baixou o vestido.

-A mamã tem ciúmes por tua causa-disse, olhando-o. -Por isso nos faz a vida impossível a todos.

Leo fez um gesto que significava: «E que posso eu fazer quanto a isso?» Depois voltou a recostar-se no sofá e cruzou as pernas.

-Faz como eu-disse, friamente.-Logo que vejo que o temporal está para rebentar, não falo mais... Depois passa e acabou-se.

-Acabou-se, para ti-disse Carla, em voz baixa, e foi como se aquelas palavras do homem tivessem despertado nela uma raiva antiga e cega.-Para ti... mas pára nós... para mim- prorrompeu, com os lábios a tremer e os olhos dilatados pela ira, apontando o próprio peito com um dedo-para mim, que vivo aqui com ela, não acabou coisa nenhuma...

Um instante de silêncio.-Se tu soubesses-continuou ela, naquela voz baixa em que o ressentimento marcava as palavras e lhes dava uma inflexão singular, como que estrangeira-como tudo isto é opressivo e miserável, e mesquinho, e que vida é esta, a de assistir todos os dias, todos os dias...

Da sombra que enchia a outra metade da sala, moveu-se a onda morta do rancor, deslizou sobre o peito de Carla e desapareceu, negra e sem espuma; ela ficou de olhos dilatados, sem respiração, emudecida por aquela passagem do ódio.

Olharam-se. «Diabo!», pensava Leos umpouco assombrado com tanta violência, «A coisa é séria!». Inclinou-se, estendeu--lhe a cigarreira.-Um cigarro-propôs, com simpatia; Carla aceitou, acendeu-o e, entre uma nuvem de fumo, aproximou-se dele mais um passo.

-E então-perguntou ele, olhando-a de baixo para cima-não podes mesmo mais?

Viu-a anuir um pouco embaraçada com o tom confidencial que o diálogo assumia.-Então-acrescentou-sabes o que é que se faz quando não se pode mais? Muda-se.

-É o que acabarei por fazer-disse ela, com uma decisão algo teatral; mas parecia-lhe declamar um papel falso e ridículo; era então aquele o homem para quem o declive da exasperação a estava a levar insensivelmente? Olhou-o: nem melhor nem pior do que os outros, antes melhor, sem dúvida nenhuma, mas tendo por si, a mais, o seu destino infalível, que esperara dez anos que ela se desenvolvesse e amadurecesse para agora a tentar, naquela noite, naquela sala escura.

-Muda-repetiu ele.-Vem viver comigo.

Ela abanou a cabeça:-Estás doido.

-Mas sim!-Leo inclinou-se para a frente, agarrou-a pela saia.-Livramo-nos da tua mãe, mandamo-la para o diabo e terás tudo o que quiseres, Carla...

Puxava a saia, o olhar excitado ia daquela cara assustada e hesitante para a nesga de perna nua que se divisava acima da meia. «Leva-la para a minha casa», pensava, «possuí-la...». Faltava-lhe a respiração.-Tudo o que quiseres... vestidos, muitos vestidos, viagens... Viajaremos juntos... É uma autêntica lástima que uma bela rapariga como tu seja tão sacrificada... Vem viver comigo, Carla...

-Mas tudo isso é impossível-disse ela, tentando inutilmente libertar o vestido daquelas mãos.-Há a mamã... É impossível.

-Livramo-nos dela...-repetiu Leo, agarrando-a, desta vez pela cintura.-Mandamo-la àquela parte; já vai sendo tempo... e tu vens viver comigo, não é verdade? Verás, a viver comigo, que sou o teu único amigo verdadeiro, o único que te compreende e que sabe o que queres.-Cingiu-a mais apertadamente apesar dos seus gestos assustados. «Estar na minha casa», pensava, e estas ideias rápidas eram como relâmpagos resplandecentes na tempestade da sua lascívia. «Então lhe farei ver o que ela quer». Ergueu os olhos para aquele rosto perturbado e experimentou o desejo de lhe dizer, para a tranquilizar, uma meiguice qualquer:-Carla, meu amor...

Ela tornou a fazer o gesto vão de o repelir, mas ainda mais dèbilmente do que antes, pois que a vencia agora uma espécie de vontade resignada: porque recusar Leo? Tal virtude voltaria a lançá-la no aborrecimento e na repugnância mesquinha dos hábitos, e parecia-lhe, além disso, por via de um gosto fatalista por simetrias morais, que aquela aventura quase familiar era o único epílogo que a sua antiga vida merecia; depois, tudo seria novo, a vida e ela própria. Olhava a cara do homem, ali, estendida para a sua. «Acabar com aquilo», pensava, «arruinar tudo...», e virava a cara como quem se prepara para se atirar de cabeça para baixo no vácuo.

Em vez disso, porém, suplicou:-Deixa-me-e voltou a tentar libertar-se; pensava vagamente em repelir primeiro Leo e ceder-lhe depois, não sabia porquê, talvez para ter tempo de considerar todo o risco que enfrentava, talvez por um resto de garridice; debateu-se em vão; a sua voz submissa, ansiosa e desanimada repetia apressadamente a súplica inútil:-Ficamos bons amigos, Leo, queres? Bons amigos como dantes.-Mas' o vestido puxado descobria-lhe as pernas, e havia em toda a sua atitude renitente e nos gestos que fazia para se cobrir e se defender, e nos sons que lhe arrancavam os apertões libertinos do homem, uma vergonha, um pudor, uma desordem que nenhuma libertação poderia jamais abolir.

-Amicíssimos-repetia Leo, quase com alegria, e torcia nas mãos o vestido de lã-amicíssimos, Carla...-. Cerrava os dentes; todos os seus sentidos se exaltavam com a vizinhança daquele corpo desejado. «Finalmente, tenho-te», pensava, torcendo-se todo sobre o sofá para fazer lugar para a rapariga, e já ia fazer baixar aquela cabeça, ali, junto ao candeeiro, quando, do fundo escuro da sala, o tinir da porta envidraçada o avisou de que alguém entrava.

Era a mãe; a transformação que a sua presença trouxe à atitude de Leo foi surpreendente: recostou-se de súbito nas costas do sofá, cruzou as pernas e olhou a rapariga com indiferença; levou até o fingimento ao ponto de dizer, no tom importante de quem conclui uma conversa começada: -Acredita-me, Carla, não há outra coisa a fazer.

A mãe aproximou-se; não mudara de vestido mas penteara-se, e tinha-se empoado e pintado abundantemente; adiantou-se, da porta, no seu passo pouco firme, e, na sombra, a cara imóvel, de traços indecisos e de cores vivas, parecia uma máscara estúpida e patética.

-Fi-los esperar muito?-perguntou.-De que estavam a falar?

Leo indicou, com um gesto largo, Carla, direita, de pé no meio da sala:-Estava exactamente a dizer a sua filha que esta noite não há outra coisa a fazer senão ficar em casa.

-Não há mesmo mais nada a fazer-aprovou a mãe, com basófia e autoridade, sentando-se numa poltrona em frente do amante.-Ao cinema já hoje fomos, e nos teatros só levam coisas que já vimos... Não me desagradava ir ver «Seis personagens», pela companhia de Pirandello... mas, francamente, como há-de ser?... É um espectáculo popular...

-De resto, asseguro-lhe que não perde nada-observou Leo.

-Não é tanto assim-protestou molemente a mãe-Pirandello tem belas coisas... Como se chamava aquela comédia que vimos há pouco tempo?... Espera... Ah, sim, «A Máscara e o rosto»... Diverti-me tanto.

-Talvez seja assim...-disse Leo, recostando-se no sofá -mas eu aborreci-me mortalmente-. Enfiou os polegares nas algibeiras do colete e fitou primeiro a mãe e a seguir Carla.

Direita, atrás da poltrona da mãe, a rapariga recebeu aquele olhar inexpressivo e pesado como uma pancada, que fez ruir em pedaços o assombro dos seus olhos vidrados; reparou então, pela primeira vez, quão antiga, habitual e angustiosa era a cena que tinha diante dos olhos: a mãe e o amante sentados em atitude de conversa um diante do outro, aquela sombra, aquele candeeiro, aquelas caras imóveis e estúpidas, e ela própria, cortesmente apoiada às costas da poltrona, a ouvir e a falar. «A vida não muda», pensou, «não quer mudar». Tinha vontade de gritar; baixou as mãos e torceu-as de encontro ao ventre, tão fortemente que os pulsos lhe ficaram doridos.

-Podemos ficar em casa-continuava a mãe-tanto mais que temos todos os dias da semana tomados... Amanhã é aquele chá-dançante a favor da infância abandonada... depois de amanhã, o baile de máscaras no Grande Hotel... nos outros dias estamos convidados para aqui e para ali... E, Carla... vi hoje a senhora Ricci... Está tão avelhada... Observei-a com atenção... tem duas rugas profundas que lhe partem dos olhos e lhe chegam à boca... e o cabelo já não se sabe de que cor é... Um horror!...-Torceu a boca e agitou as mãos no ar.

-Também não é assim um horror tão grande-disse Carla, adiantando-se e sentando-se junto do homem; pungia-a uma

leve e dolorosa impaciência; previa que, por vias indirectas e tortuosas, a mãe chegaria a fazer por fim, como sempre, a sua pequena cena de ciúmes do amante; não sabia como e de que maneira, mas tinha tanta certeza dela como do sol que brilharia no dia seguinte e da noite que havia de seguir-se; e esta clarividência dava-lhe um sentimento de medo; não havia remédio, tudo era inamovível e dominado por uma fatalidade mesquinha.

-Disse-me um ror de tagarelices-continuou a mãe. -Disse-me que venderam o automóvel velho e que compraram um novo... um Fiat... «Sabe?», disse-me ela, «O meu marido tornou-se o braço direito de Paglioni, do Banco Nacional... Paglioni não pode passar sem ele, Paglioni indica-o como seu sócio mais provável». Paglioni para aqui, Paglioni para acolá...  Ignóbil!

-Ignóbil porquê?-observou Leo, contemplando a mulher por entre as pálpebras semicerradas.-Que há de ignóbil em tudo isso?

-Sabe-perguntou a mãe, fixando-o intensamente, como paia convidá-lo a pesar bem as palavras-que Paglioni é o amante da Ricci?

-Toda a gente o sabe-disse Leo, e, pesadamente, os seus olhos preguiçosos pousaram-se em Carla, entontecida e resignada.

-E também sabe-insistiu Mariagrazia, destacando as sílabas-que antes de conhecerem Paglioni os Ricci não tinham vintém... e agora têm automóvel?

Leo virou a cabeça.-Ah, é por isso!-exclamou.-E que mal há nisso?... Pobre gente, faz pela vida.

Foi como se tivessem deitado fogo a um rastilho cuidadosamente preparado.

-Ah, ele. é isso?-disse a mãe, esbugalhando ironicamente os olhos.-Justifica uma desavergonhada, e nem sequer bela, um monte de ossos, que explora sem escrúpulos o amigo, fazendo-o pagar os automóveis e os vestidos, e ainda arranja maneira de empurrar para a frente aquele marido que não se sabe se é mais imbecil ou se é mais velhaco... São estes os seus princípios? Pois muito bem, mesmo muito bem!... Então não há mais nada a dizer... tudo se explica... ao senhor agradam-lhe evidentemente mulheres daquelas...

«Aí está», pensou Carla; percorreu-lhe o corpo um ligeiro tremor de impaciência, semicerrou os olhos e voltou a cabeça para fugir àquela luz e àquelas conversas, na sombra.

Leo riu,-Não, francamente não são essas as mulheres que

me agradam.-Deitou uma olhadela rápida, cúpida, à rapariga ali a seu lado: peito farto, faces em flor, anatomia jovem. «Eis as mulheres que me agradam», era o que tinha vontade de gritar à amante.

-Diz isso agora-insistiu a mãe-diz isso agora... mas quem desdenha quer comprar... E quando está áo pé dela, no outro dia, por exemplo, na casa dos Sidoli, desfaz-se em amabilidades. Então diz-lhe uma quantidade de tolices... Ora deixe-se disso, eu conheço-o... Sabe o senhor o que é?... Um mentiroso...

«Aí está», repetiu Carla para consigo; aquela conversa podia continuar, mas reconhecera que a vida incorrigível e habitual não mudava, e isso bastava-lhe; ergueu-se.-Vou vestir uma camisola e volto-. E, sem se virar, sentindo os olhos de Leo colarem-se-lhe às costas como duas sanguessugas, saiu.

Encontrou Michele no corredor.-O Leo está ali?-perguntou-lhe ele; Carla olhou o irmão.-Está.

-Venho agora mesmo do administrador do Leo-continuou o rapaz, tranquilamente.-Soube um monte de coisas lindas... e, antes de tudo o mais, que estamos arruinados.

-Que quer isso dizer?-perguntou a rapariga, interdita.

-Quer dizer-explicou Michele-que temos que ceder a vila ao Leo, em pagamento daquela hipoteca, e irmo-nos embora sem um centavo, irmos para outro lado.

Entreolharam-se; um sorriso forçado, triste, passou pelo rosto do rapaz.-Porque sorris?-perguntou ela.-Parece-te um caso para sorrir?

-Porque sorrio?-repetiu ele.-Porque tudo isto me é indiferente... e até quase que me dá prazer.

-Não é verdade.

-Claro que é verdade-replicou ele, e, sem acrescentar palavra, deixando-a ali pasmada e vagamente assustada, entrou na sala.

A mãe e Leo ainda discutiam; Michele teve tempo de perceber um tu que se transformava em senhor à sua entrada, e sorriu com uma piedade desgostosa.-Creio que são horas de jantar-disse ele à mãe, sem cumprimentar, sem sequer olhar o homem; mas a sua atitude fria não desconcertou Leo.-Olha quem ele é!-exclamou, com a habitual jovialidade.-O nosso Michele!... Anda cá, Michele... há tanto tempo que não nos vemos.-Há só dois dias-disse o rapaz, olhando-o fixamente; esforçava-se por parecer frio e vibrante, embora não se sentisse senão indiferente; desejaria acrescentar: «e quanto menos nos virmos, melhor é», ou algo semelhante, mas não teve prontidão nem sinceridade para isso.

-E parecem-te nada dois dias?!-exclamou Leo.-Pode fazer-se tanta coisa em dois dias-. Inclinou a ampla cara triunfal à luz do candeeiro:-Éia, éia, que lindo fato que tens... quem to fez?

Era um fato de fazenda azulada, de bom corte mas muito usado, que Leo devia ter-lhe visto pelo menos cem vezes; mas, tocado por este ataque directo à sua vaidade, Michele esqueceu num único instante todos os seus propósitos de ódio e de frieza.

-Achas?-perguntou, sem esconder um meio sorriso de complacência.-É um fato velho... há tanto tempo que o uso. Foi o Nino que mo fez, sabes?-. Rodou instintivamente para mostrar as costas ao homem e, com as mãos, puxou as abas do casaco de forma que aderisse ao tronco; viu a sua imagem no espelho de Veneza pendurado na parede em frente; o corte era perfeito, não havia dúvida quanto a isso, mas pareceu-lhe que a sua atitude estava cheia de uma estupidez ridícula e fixa, semelhante à dos manequins bem vestidos, expostos com a etiqueta do preço ao peito, nas montras das lojas; uma leve inquietação serpenteou nos seus pensamentos.

-É bom... realmente bom-. Curvando-se, Leo palpava agora a fazenda; depois endireitou-se.-O nosso Michele é um bom rapaz-disse, dando-lhe palmadinhas num braço. -Sempre irrepreensível, não faz mais nada senão divertir-se e não tem pensamentos de espécie nenhuma-. Então, pelo tom daquelas palavras e pelo sorriso que as acompanhava, Michele compreendeu demasiado tarde ter sido astutamente lisongeado e definitivamente troçado; onde estavam a indignação, o ressentimento que imaginara experimentar na presença do seu inimigo? Algures, no limbo das suas intenções; odiosamente embaraçado pela sua atitude vã, olhou para a mãe.

-Foi pena que não tivesses ido hoje connosco-disse ela. -Vimos um filme magnífico.

-Ah, sim?-disse o rapaz. Depois, voltando-se para o homem, com a voz mais seca e mais vibrante que pôde:

-Estive com o teu administrador, Leo...

Mas o outro interrompeu-o com um gesto seco:-Agora não... Já percebi... Falamos disso depois... depois do jantar... Cada coisa a seu tempo.

-Como quiseres-disse o rapaz, com instintiva brandura, e, de súbito, apercebeu-se de ter sido dominado pela segunda vez. «Devia ter dito: imediatamente», pensou, «fosse quem fosse, teria feito assim, imediatamente, e discutir, talvez injuriar». Tinha vontade de gritar de raiva; vaidade e indiferença: no decurso de poucos minutos, Leo soubera fazê-lo cair em ambos aqueles abismos. Os dois, a mãe e o amante, haviam-se levantado.

- Estou com apetite-dizia Leo, abotoando o casaco. - E que apetite...- A mulher ria; Michele seguiu-os maquinalmente. «Mas depois do jantar», pensava, tentando debalde pôr azedume nestas suas ideias quase distraídas, «não se vai sair tão bem».

Pararam à porta.-Faz favor-disse Leo, e a mãe saiu; ficaram um em frente do outro, o homem e o rapaz, e olharam-se.- Passa, passa!-insistiu Leo, cerimoniosíssimo, pousando-lhe a mão no ombro. - Cedamos o lugar ao dono da casa... -. E com um gesto paternal, com um sorriso tão amigável que parecia de troça, empurrou suavemente o rapaz.

«O dono da casa» pensava ele, sem sombra de cólera. «Boa piada... o dono da casa és tu.» Mas não disse nada e saiu para o corredor atrás da mãe.

 

Sob o lustre de três braços, o bloco branco da mesa cintilava com três minúsculos estilhaços de luz, os pratos, as garrafas, os copos, precisamente como um bloco de mármore arranhado pelos cinzéis; havia manchas: o vinho era vermelho, o pão castanho, uma sopa verde fumegava no fundo dos pratos, mas aquela alvura abolia-as e resplandecia, imaculada, entre as quatro paredes em que, por contraste, tudo, móveis e quadros, se confundia numa só sombra negra; e já sentada no seu lugar, com os olhos atónitos fixos no vapor da comida, Carla esperava sem impaciência.

À frente dos três entrou a mãe, de cabeça voltada para Leo, que a seguia, declarando em voz irónica e exaltada: -Não se vive para comer, mas come-se para viver... O senhor, no entanto, faz exactamente o oposto... Felizardo!

-Mas não... mas não...-disse Leo, entrando por sua vez e tocando com um gesto desconfiado, por pura curiosidade, o aparelho do aquecimento apenas tépido.-Não me compreendeu... Eu disse que quando se faz uma coisa não é preciso pensar em outra... Por exemplo, quando trabalho não penso senão em trabalhar... quando como não penso senão em comer... e assim sucessivamente... Então tudo corre bem.

«E quando roubas?», teria querido perguntar-lhe Michele, que vinha atrás dele; mas não sabia odiar um homem que de má vontade invejava. «No fundo tem razão», disse para si mesmo, indo para o seu lugar, «eu penso demasiado».

-Felizardo! -repetiu a mãe, sarcástica.-Pelo contrário, a mim tudo me corre mal. - Sentou-se, assumiu um ar de dignidade triste e, de olhos baixos, remexeu a sopa com a colher para a fazer esfriar.

-E porque é que lhe corre tudo mal?-perguntou Leo, sentando-se por sua vez.-Eu, no seu lugar, seria feliz: uma filha graciosa... um filho inteligente e cheio de belas esperanças... uma bela casa... que pode desejar-se mais?

-Ora, compreende-me muito bem-disse a mãe, com um meio suspiro.

-Eu não. Com o risco de passar por ignorante, confesso-lhe que não compreendo nada... -. A sopa acabara; Leo pousou a colher.-E de resto, todos vocês estão descontentes... não creia, minha senhora, ser a única... quer ver?... Pois bem, tu, Carla, diz a verdade, tu estás contente?...

A rapariga levantou os olhos. Aquele espírito jovial e falsamente bonachão exacerbava a sua impaciência. Sentava-se à mesa familiar como tantas outras noites, havia as conversas habituais, as coisas costumadas, mais fortes do que o tempo, e, sobretudo, a costumada luz sem ilusões e sem esperanças, particularmente habitual, consumida pelo uso como a fazenda de um fato e tão inseparável das suas caras que, algumas vezes, acendendo-a bruscamente sobre a mesa vazia, tivera a nítida impressão de ver os seus quatro rostos, da mãe, do irmão, de Leo e de si mesma, ali, suspensos naquele halo mesquinho; ali estavam, por conseguinte, todos os objectos do seu aborrecimento e, não obstante, Leo vinha pungi-la precisamente onde toda a alma lhe doía; mas conteve-se: -De facto, poderia ser melhor-admitiu, e voltou a baixar a cabeça.

-Ora aí está!-exclamou Leo, triunfante.-Eu bem lhe dizia... Carla também... mas não basta... Michele também, certamente... Não é verdade Michele, que as coisas também te correm mal a ti?

Também o rapaz o olhou antes de responder. «Aí está», pensava, «agora seria preciso responder-lhe à letra, injuriá-lo, fazer nascer uma bela questão e romper com ele por fim». Mas não teve sinceridade para isso; calma mortal, ironia, indiferença.

- E se tu acabasses com isso?-disse, tranquilamente. - Sabes melhor do que eu como as coisas vão.

-Eh, grande velhaco!... - exclamou Leo. - O grande velhaco do Michele!... Queres evitar a resposta, queres passar-lhe por cima... mas é claro que tu também és um descontente,  de  outro  modo  não farias essa cara de quaresma. Serviu-se do prato que a criada lhe estendia, e depois: -Pois eu, pelo contrário, meus caros, faço questão de afirmar que tudo me corre bem, ou melhor, optimamente, e que estou contentíssimo e satisfeitíssimo, e que, se tivesse de renascer, não quereria renascer senão como sou e com o meu nome: Leo Merumeci.

-Homem feliz!-exclamou Michele, irónico.-Mas ao menos diz como o consegues.

-Como consigo?-repetiu o outro, com a boca cheia. -Conseguindo... mas querem antes saber-acrescentou, servindo-se de beber-porque não são vocês três como eu?

-Porquê?

-Porque-disse ele-vos enraiveceis por causa de coisas que o não merecem...-. Calou-se e bebeu; seguiu-se um minuto de silêncio; todos três, Michele, Carla e a mãe se sentiam ofendidos no seu amor próprio; o rapaz via-se como era, miserável, indiferente e desanimado, e dizia para consigo: «Ah! Queria ver-te nas minhas condições»; Carla pensava na vida que não mudava, nas perseguições do homem, e desejaria gritar: «Eu tenho verdadeiras razões»; mas foi a mãe, impulsiva e loquaz, que falou por todos três.

Ter sido misturada com os filhos naquela tendência geral para o descontentamento, considerado o grande conceito em que se tinha, ferira-a como uma traição; o amante não só a abandonava como zombava dela.

-Pois sim-disse, finalmente, após aquele silêncio, com a voz irónica e malévola de quem quer começar briga - mas eu, meu caro, tenho boas razões para não estar contente.

-Não duvido-disse Leo, tranquilamente.

-Não duvidamos-repetiu Michele.

-Já não sou uma criança como Carla-continuou a mãe, em tom ressentido e emocionado-sou uma mulher que teve experiências, que teve dores, oh sim, muitas dores-repetiu ela, excitada pelas próprias palavras-que atravessou muitos aborrecimentos e muitas dificuldades, mas que, não obstante, soube sempre conservar intacta a própria dignidade e manter-se sempre superior a todos. Sim, caro Merumeci-prorrompeu ela, amarga e sarcástica-a todos, sejam quem forem, incluindo o senhor...

-Nunca pensei que...-começou Leo. Agora todos compreendiam que o ciúme da mãe encontrara um caminho e o percorreria por inteiro; todos previam com tédio e desgosto a tempestade mesquinha que se adensava naquela luz tranquila do jantar.

- E o senhor, meu caro Merumeci -continuou Mariagra-zia,  fixando no amante os olhos endemoninhados-falou há pouco muito ligeiramente... Eu não sou uma dessas suas amigas elegantes, tão falhas de escrúpulos que não pensam senão em se divertir e andar para a frente, hoje com um, amanhã com outro, do mal o menos... Não, o senhor engana-se... sinto-me muito mas muito diferente dessas senhoras...

-Não quis dizer isso...

-Sou uma mulher-continuou a mãe, com exaltação crescente-que poderia ensinar a viver o senhor e tantos outros seus pares, mas que tem a rara delicadeza, ou a estupidez, de não se pôr na primeira fila, de falar pouco de si mesma, e que por isso é quase sempre desconhecida e incompreendida... mas nem por isso-disse ela, elevando a voz ao diapasão mais forte-nem por ser demasiado boa, demasiado discreta, demasiado generosa, nem por isso, repito, tenho menos do que as outras o direito de pedir que não seja insultada a todos os momentos por quem quer que seja...-Deitou um último olhar fulgurante ao amante, depois baixou os olhos e ocupou-se maquinalmente em mudar de lugar as coisas que estavam à sua frente.

Pintou-se em todos os rostos a maior consternação.-Mas eu nunca pensei em a insultar-disse Leo, com calma.-Apenas disse que sou eu, de entre todos nós, o único que não está descontente.

-Ah, compreende-se!-respondeu a mãe, muito alusiva. -Compreende-se muitíssimo bem que não esteja descontente.

-Vejamos, mamã-interveio Carla.-Ele não disse nada de insultuoso-. Agora, depois desta última cena, um desespero aterrorizado possuía a rapariga. «Acabar», pensava, olhando a mãe, pueril e madura, que, de cabeça baixa, parecia ruminar o próprio ciúme; «acabar com tudo aquilo, mudar a todo o custo». Passavam-lhe pela cabeça resoluções absurdas: ir-se embora, desaparecer, sumir-se no mundo, no ar. Recordou-se das interessantes palavras de Leo: «precisas de um homem como eu». Era o fim, «ele ou outro...», pensou, o fim da sua aciência. Da cara da mãe, os seus olhos sofredores passaram de Leo: eis os rostos da sua vida, duros, plásticos, incompreensíveis; então voltou a baixar os olhos sobre o prato onde a comida esfriava no lustro coalhado do molho.

-Tu-ordenou a mãe-não digas nada; não podes compreender.

-Ora, minha querida senhora!-protestou o amante. -Eu também não compreendi nada.

-O senhor-disse a mãe, repisando as palavras e arqueando os sobrolhos -compreendeu-me até de mais.

-Pode ser-começou Leo, encolhendo os ombros.

- Mas cale-se... então cale-se-interrompeu-o a mulher, com despeito.-É melhor que o senhor não fale... No seu lugar, tentaria fazer-me esquecer, desaparecer-. Silêncio; a criada entrou e levou os pratos. «Pronto», pensou Michele, vendo a expressão encolerizada do rosto da mãe distender-se pouco a pouco, «passou o temporal, volta agora o bom tempo».

Ergueu  a  cabeça  e:-Pergunto-inquiriu,  sem sombra  de alegria-o incidente está encerrado?

- - Encerradíssimo-respondeu Leo com segurança.-Eu e

a tua mãe reconciliámo-nos.-Voltou-se para Mariagrazia:

-Não é verdade, minha senhora, que nos reconciliámos?-.

Um sorriso patético hesitava na cara pintada da mulher;

ela conhecia aquela voz e aquele tom insinuante dos tempos

melhores, de quando era ainda jovem e o amante ainda era fiel. - Crê, Merumeci - perguntou, olhando amimadamente as próprias mãos-que seja assim tão fácil perdoar?

A cena tornava-se sentimental; Carla estremeceu e baixou os olhos; Michele sorriu de desprezo.

«Pronto», pensou, «cá estamos, abracem-se e não se fala mais nisso».

-Perdoar-disse Leo, gravemente chocarreiro-é dever de todo o bom cristão («Que o diabo a leve», pensava entretanto. «Por sorte que há a filha para me compensar da mãe»). Observou a rapariga, imperceptivelmente, sem voltar a cabeça: sensual, mais do que a mãe; lábios vermelhos, carnudos; certamente disposta a ceder; era preciso tentar depois do jantar, bater o ferro enquanto estava quente e não no dia seguinte.

-Então-disse a mãe, completamente tranquilizada-sejamos cristãos e perdoemos.-O sorriso, até então contido, alargou-se, patético e brilhante, sobre duas filas de dentes de uma brancura duvidosa; todo o corpo desfeito palpitou.

- E a propósito-acrescentou ela, com um imprevisto amor

maternal-é preciso não esquecer: amanhã é o aniversário da nossa Carla.

-Isso já não se usa, mamã-disse a rapariga, erguendo a cabeça.

- Mas  nós  vamos  festejá-lo-respondeu  a  mãe,  solene-e você, Merumeci, considere-se já convidado para amanhã de manhã.

Leo fez uma espécie de reverência sobre a mesa.-Reconhe-

cidíssimo-. Depois, dirigindo-se a Carla: - Quantos anos? - perguntou.

Entreolharam-se; a mãe, que estava sentada em frente da filha, levantou dois dedos e compôs a boca como para dizer «vinte»; Carla viu, compreendeu, hesitou; depois, uma dureza imprevista devastou a sua alma: «Quer», pensou, «que eu diminua os anos para não a envelhecer»; e desobedeceu: - Vinte e quatro-respondeu sem corar.

Passou pelo rosto da mãe uma expressão desiludida.

-Assim tão velha?!-exclamou Leo, com admiração brincalhona; Carla assentiu:-Assim tão velha-repetiu.

-Mas não o devias ter dito-censurou a mãe. A laranja amarga que estava a comer aumentava a acidez da sua expressão.-Tem-se sempre a idade que se mostra... Ora tu não aparentas mais de dezanove anos-. Engoliu o último gomo; a laranja acabara; Leo tirou a cigarreira e ofereceu cigarros a todos; o fumo azul subiu, subtil, da mesa em desordem; ficaram imóveis durante um instante, olhando-se nos olhos, atónitos; depois a mãe levantou-se.-Vamos para a sala- disse, e, um após outro, saíram os quatro da sala de jantar.

 

Pequeno mas angustioso trajecto através do corredor; Carla olhava para o chão, pensando vagamente que aquela passagem quotidiana devia ter gasto o tecido da velha alcatifa que escondia o pavimento, e que até os espelhos ovais pendurados nas paredes deviam conservar os traços das suas caras e das suas pessoas, que, várias vezes por dia, há muitos anos se reflectiam neles, embora apenas por um instante, o tempo de examinarem, a mãe e ela a pintura, e Michele o nó da gravata; o hábito e o tédio estavam emboscados naquele corredor e varavam a alma de quem por lá passava, como se as próprias paredes exalassem os seus espíritos venenosos; tudo era imutável: a alcatifa, a luz, os espelhos, a porta envidraçada do vestíbulo à esquerda, o átrio escuro da escada à direita; tudo era repetição: Michele que se detivera um instante a acender um cigarro e soprava o isqueiro, a mãe que complacentemente perguntava ao amante: -Não é verdade que tenho esta noite uma cara cansada?-; Leo que, com indiferença, sem tirar o cigarro da boca, respondia:-Mas não, pelo contrário, nunca a vi assim a brilhar -; e ela própria que sofria com isso; a vida não mudava. Entraram no frio e escuro salão rectangular que uma espécie de arco dividia em duas partes desiguais e sentaram-se no canto oposto à porta; reposteiros de veludo escuro escondiam as janelas fechadas; não havia lustre mas apenas luzes em forma de candelabros, fixos nas paredes a igual distância uns  dos outros, três dos quais, ao acenderem-se, espalharam uma luz medíocre na metade mais pequena do salão; a outra metade, para além do arco, permaneceu mergulhada numa sombra negra em que mal se distinguiam os reflexos dos espelhos e a forma alongada do piano.

Durante um instante não falaram; Leo fumava, com compunção, a mãe considerava com uma dignidade melancólica as suas mãos de unhas pintadas, Caria, quase de gatinhas, tentava acender o candeeiro do canto, e Michele contemplava Leo; depois o candeeiro acendeu-se, Carla sentou-se e Michele falou:-Estive com o administrador do Leo que me disse uma quantidade de palavriado... O essência] do caso é, no entanto, este: que, ao que parece, a hipoteca vence-se daqui a uma semana e, por isso, temos de nos ir embora e vender a vila para pagar ao Merumeci...

A mãe esbugalhou os olhos:-Esse homem não sabe o que diz... agiu pela sua cabeça... Eu sempre disse que tinha alguma coisa contra nós...

Silêncio. - Esse homem disse a verdade - disse por fim Leo, sem erguer os olhos.

Todos o fitaram. - Mas vejamos, Merumeci - suplicou a mãe, juntando as mãos.-Com certeza que não quer mandar-nos embora assim do pé para a mão!... Conceda-nos uma prorrogação...

-Já lhes concedi duas-disse Leo.-Chega... tanto mais que não serviria para evitar a venda...

-Não evitaria porquê?-perguntou a mãe.

Leo ergueu finalmente os olhos e fitou-a:-Eu explico-me: a não ser que consigam juntar oitocentas mil liras, não vejo como possam pagar senão vendendo a vila...

A mãe compreendeu; um vasto medo abriu-se-lhe diante dos olhos como uma voragem; empalideceu, olhou o amante, mas Leo, inteiramente absorto na contemplação do seu charuto, não a tranquilizou.-Isto significa-disse Carla-que devemos deixar a vila e ir morar para um apartamento de poucas divisões?

-Pois-disse Michele.-É isso mesmo.

Silêncio; o medo da mãe agigantava-se; nunca quisera saber dos pobres e nem sequer conhecê-los de nome, nunca quisera admitir a existência de gente de trabalho penoso e de vida triste. «Vivem melhor do que nós», dissera sempre, «nós temos maior sensibilidade e mais inteligência e, por isso, sofremos mais do que eles...» E agora, eis que era forçada de improviso a misturar-se, a engrossar a turba dos miseráveis; oprimia-a a mesma sensação de repugnância, de humilhação,

de medo, que experimentara um dia ao passar num automóvel bastante baixo através de uma multidão ameaçadora e sórdida de grevistas; não a aterravam os incómodos e as privações que ia encontrar, mas antes o ardor, o pensamento de como a tratariam, do que diriam as pessoas do seu conhecimento, tudo gente rica, estimada e elegante; via-se, era esse o caso, pobre, só, com aqueles dois filhos, sem amizades, pois todos a abandonariam, sem divertimentos, bailes, luzes, festas, conversas: escuridão, completa e nua escuridão.

A sua palidez aumentava. «Seria preciso falar-lhe a sós», pensava, agarrando-se à ideia da sedução,«sem o Michele e sem a Carla... Então compreenderia».

Olhou o amante.-O senhor, Merumeci-propôs, vagamente - conceda-nos mais uma prorrogação e nós arranjaremos o dinheiro de qualquer maneira.

-De que maneira?-perguntou o homem, com um meio sorriso irónico.

-Os bancos...-arriscou a mãe.

Leo riu.-Ah, os bancos-. Inclinou-se e fixou a amante na cara.-Os bancos-silabou-não emprestam dinheiro senão contra garantias seguras, e agora, então, com a penúria de dinheiro que há em circulação, não o emprestam sequer. Mas admitindo que emprestassem... que espécie de garantias poderia a senhora dar?

-A argumentação não tem uma falha-observou Michele; teria querido apaixonar-se por aquela questão vital, protestar. «Vejamos» pensava, «trata-se da nossa existência... poderemos, de um momento para o outro, não ter com que viver materialmente». Mas, por mais esforços que fizesse, esta ruína ficava estranha para si, era como ver alguém a afogar-se, olhar e não mover um dedo.

A atitude da mãe, pelo contrário, era inteiramente diferente: -Dê-nos o senhor a prorrogação-disse ela com altivez, endireitando o busto e destacando as palavras-e pode estar certo de que, na data do vencimento, não duvide, terá o seu dinheiro até ao último centavo.

Leo riu docemente, inclinando a cabeça.-Estou certo disso... mas então para que serve a prorrogação?... Os meios que vai empregar daqui a um ano para obter dinheiro, porque não utilizá-los agora e, portanto, pagar-me imediatamente?

Aquele rosto inclinado era tão calmo e sagaz que a mãe teve medo dele; os seus olhos irresolutos passaram de Leo para Michele e depois para Carla: ali estavam os seus dois filhos, fracos, que iriam experimentar as angústias da pobreza; assaltou-a um exaltado amor maternal.-Oiça, Merumeci- começou ela, numa voz persuasiva.-O senhor é um amigo de família, a si posso dizer-lhe tudo... Não se trata de mim, não é por mim que peço esta prorrogação, eu estaria disposta a ir viver nem que fosse num sótão...-. Levantou os olhos ao céu e:-Deus sabe se penso em mim... Mas tenho Carla para casar... Ora o senhor conhece o mundo... No próprio dia em que deixasse a vila e fosse viver para um apartamento qualquer, todos nos voltariam as costas... As pessoas são assim... E então, o senhor não me salva o casamento da minha filha?

-A sua filha-disse Leo, com uma falsa seriedade-tem uma beleza que encontrará sempre pretendentes-. Fitou Carla e piscou-lhe o olho; uma raiva contida e profunda possuía, contudo, a rapariga. «Quem queres tu que case comigo», era o que sentia vontade de gritar à mãe, «com este homem metido cá em casa e contigo nessas condições?» Ofendia-a, humilhava-a, a desenvoltura com que a mãe, que habitualmente nada se importava consigo, a metia na dança como argumento favorável aos seus fins; era preciso acabar; entregar-se-ia a Leo e, assim, ninguém mais a desejaria para mulher; fitou a mãe nos olhos:-Não penses em mim, mamã-disse, com firmeza. -Não tenho, nem quero ter nada com isso tudo.

Foi nesse momento que uma gargalhada amarga, falsa de embotar os dentes, partiu do canto onde Michele estava sentado; a mãe voltou-se.-Mas sabes-disse ele, tentando com esforço dar uma entoação sarcástica à sua voz indiferente -quem será o primeiro a abandonar-nos se deixarmos a vila? Adivinha ?

-Mas... não sei.

-Leo-prorrompeu ele, apontando o homem-o nosso Leo.

Leo teve um gesto de protesto.-Ah, Merumeci?-repetiu a mãe, incerta e impressionada, olhando o amante como se quisesse ler-lhe na cara se seria capaz de tal traição; depois, de repente, com um olhar e um sorriso inflamados de patético sarcasmo:-Mas sim... claro... e eu, estúpida, que não pensava nisso... Claro, Carla-acrescentou, dirigindo-se à filha-Michele tem razão... o primeiro que há-de fingir nunca nos ter conhecido, depois de ter, naturalmente, embolsado o dinheiro, há-de ser Merumeci... Não protestes-continuou ela, com um sorriso injurioso. - Não é culpa dele, todos os homens são assim... poderia jurá-lo. Há-de passar com uma daquelas suas amigas tão simpáticas e tão elegantes e mal me veja...

voltará a cara para o outro lado... claro... meu caro... punha as mãos no fogo...- calou-se por um instante.-Pois é-concluiu, com amargura e resignação-pois é... até Cristo foi traído pelos seus melhores amigos.

Submerso por aquela torrente de acusações, Leo pousou o charuto.-Tu-disse, voltando-se para Michele-és um rapaz e, por isso, não te levo em consideração... Mas que a senhora - acrescentou, voltando-se para a mãe-possa crer que eu, por uma venda qualquer, abandone os meus melhores amigos, isso não o esperava... não, isso não esperava eu-. Abanou a cabeça e retomou o charuto.

«Que falso que é», pensou Michele, divertido; depois, bruscamente, recordou-se de ser o homem espoliado, escarnecido, ultrajado, no seu património, na sua dignidade, na pessoa de sua mãe. «Injuriá-lo», pensou, «provocar uma cena». Compreendeu ter deixado passar naquela noite mil ocasiões mais favoráveis para uma altercação, por exemplo, quando Leo recusara conceder uma prorrogação, mas agora era demasiado tarde.-Não o esperavas, hem?-disse, recostando-se na poltrona e cruzando as pernas; hesitou e, depois, sem se mover: -Patife!

Todos se voltaram, a mãe com surpresa, o homem lentamente, tirando o charuto da boca.-Que disseste?

- Quero dizer - explicou Michele, agarrando-se com as mãos aos braços da poltrona e não encontrando na sua indiferença as razões que o haviam impelido àquela injúria veemente-que Leo... nos arruinou... e agora finge ser nosso amigo... mas não o é.

Silêncio; desaprovação. - Ouve, Michele - disse Leo, fixando no rapaz dois olhos inteiramente inexpressivos.-Já verifiquei há alguns minutos que tu, esta noite, queres provocar uma briga, sabe-se lá porquê... Tenho muita pena, mas digo-te imediatamente que não resulta. Se fosses um homem, saberia como responder-te... mas és um rapaz sem responsabilidades... Por isso, o melhor que podes fazer é ires para a cama e aconselhares-te com o travesseiro-. Calou-se e retomou o charuto. -E dizes-me isso-acrescentou bruscamente-precisamente quando estava para vos propor as condições mais favoráveis.

Silêncio.-Merumeci tem razão-falou a mãe, por sua vez. -Na verdade, Michele, ele não nos arruinou e tem sido sempre amigo... Porquê injuria-do dessa maneira?

«Ah, agora defende-lo», pensou o rapaz; invadiu-o uma forte irritação contra si mesmo e os outros: «Se soubessem como tudo isto me é indiferente», era o que desejaria gritar-lhes.

A mãe, excitada e interessada, Leo, falso, a própria Carla que o olhava atónita, pareceram-lhe nesse momento ridículos e, contudo, dignos de inveja, exactamente porque aderiam àquela realidade e consideravam realmente a palavra «patife» como uma injúria, ao passo que, para ele, os gestos, as palavras, os sentimentos, tudo era um jogo vão de fingimentos.

Quis, porém, ir até ao fim do caminho começado:-O que eu disse é a pura verdade-proferiu, sem convicção.

Leo ergueu os ombros, com desgosto e descontente.-Mas faz-me o favor - interrompeu, sacudindo com violência a cinza do charuto-faz-me o santíssimo favor...-E já a mãe ia a apoiar o amante, com um «não tens sombra de razão, Michele», quando ao fundo, à pouca luz que lá chegava do canto onde eles estavam, a porta se entreabriu e uma cabeça loira de mulher assomou.

-Pode-se entrar?-perguntou a cabeça; todos se voltaram. -Oh, Lisa!-exclamou a mãe.-Entra, entra se fazes favor-. A porta abriu-se de todo e Lisa entrou; um casaco de abafar azulado envolvia o seu corpo gordo e chegava quase até aos pés minúsculos; a cabeça, com um chapelinho cilíndrico, azul e prata, parecia ainda mais pequena sobre os ombros cheios, que a roupa de inverno arredondava; o casaco era amplo, mas o peito e os quadris fartos imprimiam-se nele com abundância de linhas curvas e cheias; as extremidades daquele corpo, pelo contrário, maravilhavam pela sua exiguidade e, sob a larga roda do casaco, distinguia-se com pasmo a fragilidade dos artelhos.

-Não incomodo? - perguntou Lisa, aproximando-se. - É tarde... bem sei... mas jantei aqui perto e já que passava pela vossa rua não pude resistir à tentação de lhes fazer uma visita, e vim...

-Imagina-disse a mãe; levantou-se e foi ao encontro da amiga.-Não despes o casaco?-perguntou-lhe.

-Não-respondeu a outra-fico um momento e depois saio... Vou abri-lo, pronto... para não ter demasiado calor.

Abriu o cinto, revelando um vistoso e brilhante vestido de seda negra, ornado de grandes flores azuladas. Cumprimentou Carla-Boa noite Carla-; Leo:-Ah, também cá está o senhor Merumeci... é impossível não o encontrar aqui-; Michele:-Como estás, Michele-e sentou-se no sofá junto à mãe.

-Que lindo vestido que tens-disse esta, abrindo-lhe o casaco.-Ora bem, que novidades me contas?

-Nenhuma-respondeu Lisa, olhando em redor.-Mas...-

acrescentou-que caras torcidas que têm... Dir-se-ia que estavam a discutir e que eu, com a minha chegada, interrompi a vossa discussão.

-Mas não-protestou Leo, pousando em Lisa, por entre o fumo do charuto, um olhar mistificador;-mas não... Reinou até agora a máxima alegria.

-Falávamos de coisas sem importância... é tudo-disse a mãe; pegou numa caixa e estendeu-a à amiga.-Fumas?

Nesta altura, Michele, com a costumada inoportunidade, interrompeu.

-É a pura verdade-disse, curvando-se e olhando Lisa atentamente.-Estávamos a pegar-nos e tu interrompeste a nossa discussão.

-Oh!-fez Lisa, e, sem se levantar, com um riso forçado e malicioso:-Então vou-me embora... Não gostaria, nem por todo o ouro do mundo, de perturbar um conselho de família.

-Nem por sonhos-protestou a mãe, e, com um trejeito de censura para Michele:-Pateta!

-Pateta, eu?-repetiu o rapaz. «É bem feito», pensou, «pateta... sim... pateta em querer por força apaixonar-me pelas tuas questões». Oprimiu-o uma sensação horrível de futilidade e de tédio; fez errar os olhos à sua volta, pela sombra hostil da sala e por aquelas caras; Leo fitava-o, ao que lhe pareceu, ironicamente; um sorriso apenas perceptível abria-se nos seus lábios carnudos; aquele sorriso era injurioso; um homem forte, um homem normal, ter-se-ia ofendido e teria protestado; mas ele não... ele, com um certo sentimento aviltante de superioridade e de desprezo compassivo, ficava indiferente... Quis, porém, pela segunda vez, ir contra a própria sinceridade: «protestar», pensou, «injuriá-lo novamente».

Fitou Leo.-E... digo eu-proferiu, em voz incolor-que necessidade há de sorrir?

-Eu... palavra de honra...-começou Leo, fingindo a maior estupefacção.

-Digo-acrescentou Michele, levantando a voz com um esforço penoso; era assim que era preciso questionar; recordava-se de ter assistido no eléctrico a uma altercação entre dois senhores igualmente gordos e importantes; cada um dos dois, após ter tomado por testemunhas os presentes e citado, com palavras ressentidas, a própria honorabilidade, a própria profissão, as próprias feridas de guerra, e em geral todos os elementos que pudessem comover o auditório, acabara, além de superar o adversário, por berrar francamente e chegar a um certo grau de cólera sincera; assim devia, ele fazer também: -Não creias que por Lisa ter chegado eu já não seja capaz de repetir o que disse antes... repara pelo contrário que o repito... Patife!

Todos o olharam.-Mas afinal...-explodiu a mãe, indignada.

Lisa observava curiosamente Michele.- Porquê?... O que foi que aconteceu?-perguntava. Leo, pelo contrário, não se moveu nem mostrou ter-se ofendido; teve apenas um riso falso, alto e desdenhoso.-Ah!... Esta é muito boa-e repetiu -muitíssimo boa... Já não se pode nem sorrir...-. Depois, bruscamente: - Enquanto se brinca, brinca-se - acrescentou, levantando-se do fundo da poltrona e batendo com o punho na mesa-mas agora basta... ou Michele me pede desculpa ou eu me vou embora.

Compreenderam todos que o caso se tornara sério e que aquele riso não fora senão o relâmpago lívido que precede o rebentar do raio.

Merumeci  tem toda a razão-disse  a mãe,  de rosto duro e em voz imperiosa. Experimentava contra o filho uma irritação  cruel porque temia que  o  amante  aproveitasse  a ocasião  para  romper   as   suas  relações.-A  tua  conduta  é repugnante... Ordeno-te que lhe peças desculpa...

Mas... não compreendo... porque é que Merumeci é um patife?-perguntava Lisa, com o desejo evidente de complicar as coisas; somente Carla não se movia nem falava; oprimia-a uma aversão mesquinha e fastidiosa; tinha a impressão de que

a maré angustiosa dos pequenos acontecimentos daquele dia

estava para  trasbordar   e  para submergir a sua paciência; semicerrava os olhos  e  espreitava  com tolerância as  caras estúpidas e irritadas dos outros quatro.

-Oh, oh!-fez Michele, irónico, sem se mover.-Ordenas-mo?... E se eu não obedecesse?

- Então-respondeu   Mariagrazia,   não   sem   uma   certa

dignidade patética e teatral-darias um desgosto a tua mãe.

Durante um instante, sem falar, ele olhou-a. «Darias um desgosto a tua mãe», repetia ele para consigo, e a frase parecia-lhe ao mesmo tempo ridícula e profunda. «Pois é», pensou, com uma repugnância superficial, «trata-se de Leo... do seu amante... e contudo ela não hesita em meter na dança a sua qualidade de mãe». Mas a frase era aquela: «darias um desgosto a tua mãe», repugnante e irrefutável; desviou os olhos daquela cara sentimental, esqueceu de repente todos os seus propósitos de sinceridade e de cólera. «E no fim de contas», pensou, «tudo me é indiferente... porque não pedir desculpa e poupar-lhe este famoso desgosto?...» Ergueu a cabeça; mas queria dizer a verdade, mostrar toda a própria indiferença injuriosa.

-E supõe-começou-que eu não seja capaz de pedir desculpa ao Leo?... Mas se soubesse como tudo isto me é indiferente.

-Coisas boas de dizer-interrompeu a mãe.

- Como tudo isto me importa pouco-continuou Michele, exaltando-se.-Não pode imaginá-lo... Portanto não tenha medo, mamã... Se quiser, não só peço desculpa ao Leo como também lhe beijo os pés.

-Não, não te desculpes-observou nesta ocasião Lisa que seguira a cena com a maior atenção; todos a olharam. -Agradeço-te muito, Lisa-interveio a mãe, ofendida e teatral-mesmo muito, por incitares o meu filho contra mim.

-Quem incita o teu filho?-respondeu Lisa, tranquilamente.-Apenas me parece que não vale a pena...

Leo olhou-a de través.-Não me agrada ser chamado desta maneira por um rapaz-disse, em voz dura.-Exigi desculpas e tê-las-ei.

-Não seria melhor esquecer tudo e reconciliarem-se?- falou Carla, esticando o rosto entre atónito e cândido.

-Não-respondeu a mãe-Merumeci tem razão, é necessário que Michele lhe peça desculpa-. Michele pôs-se de pé.- Peço, não duvides. Portanto, Leo-disse, dirigindo-se ao homem -apresento-te todas as minhas desculpas por te haver injuriado-. Deteve-se por um instante; como lhe haviam saído facilmente da bocas as palavras humilhantes!-E prometo-te que não voltarei a fazê-lo-concluiu, com a voz tranquila e a indiferença de uma criança de seis anos.

-Está bem, está bem-disse Leo, sem o olhar. «Imbecil», desejaria Michele gritar-lhe ao vê-lo tão seguro e integrado no seu papel; mas, mais do que todos, a mãe, iludida, estava contente.-Michele é um bom filho-disse, olhando o rapaz com inesperada ternura.-Michele obedeceu a sua mãe.

A chama da vergonha e da humilhação que não queimara as faces de Michele quando apresentara as suas desculpas a Leo, assaltou-o inesperadamente perante aquela incompreensão.-Fiz o que a mãe quis-disse, bruscamente-e agora permita-me que vá dormir porque estou cansado-. Girou sobre si mesmo como um fantoche e, sem cumprimentar ninguém, saiu para o corredor.

Mas no momento em que passava pelo átrio percebeu que alguém correra atrás de si; voltou-se, era Lisa.-Tinha vindo de propósito-disse ela, ofegante, fitando-o com um olhar curioso e apaixonado-para te dizer que te posso apresentar quando quiseres àquele meu parente... e ele poderá arranjar-te alguma coisa para fazeres... na sua firma ou em qualquer outro lugar.

-Muito obrigado-disse Michele, fixando-a por sua vez.

-Mas, para isso, é preciso que vás a minha casa... e assim podem encontrar-se.

-Está bem-. À medida que Lisa se embaraçava, o rapaz parecia tornar-se mais calmo e atento.-Quando?

-Amanhã-disse Lisa. -Vai amanhã de manhã, vai cedo... ele chegará por volta do meio-dia... mas não importa... falamos um pouco, não é verdade?-. Ambos se calaram, olhando-se.-E porque foi que pediste desculpa ao Leo? -perguntou de repente a mulher, ousadamente.-Não devias ter pedido.

-Porquê?-perguntou ele. «Ah, era aí», pensou, «que querias chegar».

-O porquê levaria muito tempo a dizer-to agora... e aqueles poderiam pensar-explicou Lisa, tornando-se, de súbito, muito misteriosa-mas se fores amanhã to direi.

-Está bem, então... até amanhã-e, tendo-lhe apertado a mão, dirigiu-se para a escada.

Lisa voltou à sala; lá estavam os três sentados, ao canto, em volta do candeeiro; a mãe, que estava com todas as suas cores em plena luz, falava de Michele:-É evidente-explicava ao amante que, recostado na sua poltrona, a ouvia com uma expressão totalmente embrutecida, sem pestanejar-que lhe custou muito pedir desculpa... Não é daqueles que se dobram facilmente... é orgulhoso...-acrescentou, em ar de desafio -tem uma alma orgulhosa e recta como a minha.

-Não duvido-disse Leo, erguendo as pálpebras num longo olhar para Carla-mas desta vez fez bem em dobrar-se-. Calaram-se todos; o incidente estava encerrado; a passos silenciosos, com o ar menos azafamado deste mundo, Lisa aproximou-se.

-Tem cá o automóvel, Merumeci?-perguntou ela.

Voltaram-se os três.-O automóvel?-repetiu o homem, mexendo-se.-Decerto... tenho o automóvel.

-Então vai acompanhar-me-disse Lisa-desde que não o incomode.

-Que ideia! O prazer é todo meu-. Leo pôs-se de pé, abotoou o casaco.-Vamos andando-começou, e roía-se por dentro; não só não conseguira fazer nada com Carla, como ainda por cima lhe cabia agora acompanhar Lisa.

Mas o ciúme incompreensivo da mãe salvou-o; entre os dois, Leo e Lisa, houvera, muitos anos antes, uma relação, um amor, estavam até para casar; depois chegara ela, já viúvaj e roubara o noivo à sua melhor amiga; era uma história muito antiga, mas... e se àqueles dois lhes viesse à cabeça recomeçarem? Voltou-se para Lisa:-Não, tu não vais já... -disse-tenho que falar contigo...

-Sim, está bem-. Lisa olhou-a com um falso embaraço. -Mas depois já não tenho Merumeci para me acompanhar a casa.

-Oh, não se preocupe por isso...-e desta vez o prazer era realmente todo de Leo.-Posso esperá-la no corredor ou aqui... Fale à vontade... Eu espero... Carla-acrescentou, olhando a rapariga-far-me-á companhia.

Carla levantou-se indolentemente e, abanando a grande cabeça, aproximou-se. «Pronto», pensava, «se fico agora com ele está tudo acabado...». Pareceu-lhe que Leo a fitava maliciosamente e aquela cumplicidade antecipada afigurou-se-lhe odiosa; mas de que serviria resistir? Possuía-a uma impaciência dolorosa. «Acabar», repetia para consigo, observando aquela sala escura onde tantos dias de fogo se haviam consumido em cinzas, e o grupo solene e ridículo que formavam à volta do candeeiro, «acabar com tudo aquilo», e sentia-se cair neste seu hesitante abandono como uma pena pela caixa de uma escada.

Por isso não protestou, não falou.

-Mas o senhor não sabe-opunha-se a mãe-quanto tempo vou eu demorar a Lisa... Vá, vá-se embora... Mandamos chamar um táxi para a Lisa-. Voz insinuante, voz de ciúme; Leo foi gentil mas inflexível: - Eu espero... que importa? Mais um minuto ou menos um minuto... espero de boa vontade.

A mãe compreendeu que tinha perdido e que lhe seria impossível separar aqueles dois, Leo e Lisa. «E evidente... quer esperá-la», pensou, sondando aqueles dois rostos, «para depois irem juntos para casa». Esta ideia pareceu-lhe atroz; tornou-se ainda mais pálida e o ciúme brilhou francamente nos seus olhos.-Pois está bem-disse, por fim-vá, vá esperar aí fora... Entrego-lhe já a sua Lisa, não tenha medo, imediatamente...-. Fazia um gesto de ameaça, um riso amargo e mau tremia-lhe nos lábios pintados; Leo olhou-a fixamente, depois encolheu os ombros e, sem falar, seguido por Carla, saiu.

No corredor, como que sem querer, passou um braço em torno da cintura da rapariga; ela reparou mas resistiu à tentação de se soltar. «É o fim», pensou, «o fim da minha antiga vida». Os espelhos que brilhavam na sombra reflectiram à passagem os seus dois vultos enlaçados.

-Viste?-disse ela, em voz alta.-A mamã tem ciúmes por causa de Lisa...-. Nenhuma resposta; apenas uma pressão do braço que fez encostar as suas ancas ao flanco duro do homem; entraram assim unidos no vestíbulo: paredes altas, brancas, um pequeno aposento cúbico de pavimento em losangos.

-E quem sabe?-acrescentou ela, com um sentimento humilhante de futilidade.-Quem sabe se não é verdade?-. Desta vez o homem parou e, sem a soltar, mostrou-se-lhe de frente.

-E no entanto-disse, com um sorriso canhestro, estúpido e excitado-sabes de quem devia ter ciúmes? De ti... sim, exactamente de ti.

«Cá estamos», pensou ela.-Porquê de mim?-perguntou, em voz clara. Olharam-se.-Irás a minha casa?-pediu Leo, quase paternalmente; viu-a baixar a cabeça sem responder nem que sim nem que não. «É o momento próprio», pensou, e já a atraía para si e ia a inclinar-se para a beijar, quando um rumor de vozes, lá no corredor, o avisou de que chegava a mãe; quase sufocou de raiva; era a segunda vez naquele dia que a amante vinha estragar tudo no instante mais delicado. «Para o diabo que a carregue», pensou. Ouvia-se a mulher a falar, a discutir no corredor com Lisa e, embora não desse sinais de aparecer, Carla, agora inquieta, fez o gesto de se soltar.-Deixa-me, vem aí a mamã-. Furioso, Leo fitava a porta, olhava em redor sem todavia se decidir a soltar aquela cintura flexível e, então, os olhos caíram-lhe sobre um reposteiro que, à direita do vestíbulo, dissimulava uma porta; estendeu um braço, apagou a luz.-Vem-murmurou, na escuridão, tentando arrastar Carla para aquele esconderijo -anda ali para trás... vamos fazer uma partida à tua mãe-. Ela não compreendia, resistiu, os seus olhos brilhavam na sombra.-Porquê... mas porquê?-repetia; mas cedeu por fim; meteram-se atrás do reposteiro e encolheram-se no vão da porta; Leo rodeou a cintura da rapariga com um braço. -Agora vais ver-murmurou; mas Carla nada via; direita, rígida, fechava os olhos naquela escuridão do reposteiro, cheia de ondulações odorantes de pó, e deixava que a mão de Leo errasse sobre as suas faces, sobre o seu colo.-Agora vais ver

-cochichou ele; o reposteiro estremeceu de alto a baixo e ela sentiu os lábios do homem pousarem-sc-lhe no peito, arrastarem-se desajeitadamente até ao queixo, deterem-se enfim sobre a sua boca; beijo profundo mas de pouca duração. As vozes aproximavam-se e Leo voltou a endireitar-se.-Ela aí está-murmurou ele, no escuro, e o seu braço cingiu Carla com uma força confidencial e íntima e com uma segurança que lhe haviam faltado anteriormente.

A porta envidraçada abriu-se; Carla afastou um pouco o reposteiro e espreitou: no quadro luminoso da porta aberta, a figura da mãe, cheia de sombras e de relevos, exprimia o pasmo e a incompreensão.

-Mas, não estão cá!-exclamou a voz familiar, e Lisa, invisível, perguntou do corredor:-E para onde terão ido?

Pergunta sem resposta; a cabeça da mãe esticou-se, assomou ao limiar como para explorar o vestíbulo; a sombra cavava-lhe os traços e fazia daquela cara mole e pintada uma máscara petrificada numa expressão de desânimo patético; cada uma das rugas, a boca semi-aberta e negra de pintura, os olhos arregalados e todo o rosto pareciam gritar:... «Leo já cá não está... Leo abandonou-me... Leo partiu». Carla observava-a entre curiosa e compadecida, percebia o medo que tremia atrás daquela máscara e parecia-lhe ver a própria face dos dias futuros, quando a mãe soubesse da traição do amante e de sua filha; aquele espectáculo durou um instante; depois a cabeça retirou-se.-É estranho-ouviu-se dizer a voz.-O sobretudo de Merumeci ainda ali está e eles não estão.

-Talvez estejam no átrio-respondeu Lisa, e assim, entre suposições e admirações, ambas se afastaram.

-Viste?-murmurou Leo ainda; voltou a inclinar-se e apertou ao peito a rapariga. «É o fim», tornou ela a pensar, estendendo a boca; agradava-lhe aquela escuridão que a impedia de ver o homem e lhe deixava todas as suas ilusões; agradava-lhe aquela intriga; separaram-se.-E agora saímos -murmurou ela, afastando o reposteiro com as mãos.-Vamos, Leo, que podem perceber.

Ele cedeu de má vontade e saíram ambos, um atrás do outro, como dois ladrões, do seu esconderijo; a luz brilhou; olharam-se.-Estou despenteada?-perguntou Carla; ele abanou a cabeça negativamente.-E agora o que é que dizemos à mamã?-acrescentou ela.

Uma malícia grosseira brilhou no rosto vermelho e excitado do homem; deu uma palmada na coxa e riu.-Ah, mas esta foi boa!-exclamou.-Muito boa!... Que lhe diremos?... Que estivemos aqui... naturalmente... que estivemos aqui durante O tempo todo...

-Não, Leo-disse Carla, olhando-o, hesitante, e juntando as mãos sobre o ventre. -Realmente?

- Realmente-repetiu ele-Ali, ela aí está!

A porta abriu-se e a mãe reapareceu. -Mas, estão aqui! - exclamou, dirigindo-se a Lisa.-E nós que os procurámos por toda a casa... Onde estavam?

Leo fez um gesto de espanto:-Estivemos sempre aqui.

A mãe olhou-o como se olha um pobre louco.-Não diga tolices... Estive aqui há pouco, não estava ninguém e estava tudo às escuras.

-Então-respondeu o homem, plàcidamente, despendurando o sobretudo do cabide-quer dizer que a senhora sofre de alucinações. Nós estivemos sempre aqui... Não é verdade, Carla?-acrescentou ele, voltando-se para a rapariga.

-É mais do que verdade-respondeu aquela, após uma hesitação.

Seguiu-se um silêncio ameaçador; a mãe tinha a impressão de que todos troçavam dela mas não conseguia descobrir as causas; suspeitava de fins ocultos e de maquiavelismos tenebrosos; irresoluta, irritada, tecia uma rede de olhares perscrutadores entre Leo, Carla e Lisa.

-O senhor está doido-disse, finalmente.-Há cinco minutos não estava aqui ninguém... Lisa, que estava comigo, é testemunha-acrescentou, apontando a amiga.

-É verdade, não estava aqui ninguém-disse aquela, com calma.

Novamente silêncio.-E Carla é testemunha de que nós estávamos aqui-disse Leo, lançando uma olhadela alusiva à rapariga.-É a pura verdade... Não é verdade, Carla?

-É verdade-confessou ela, confusa, chocada pela primeira vez por este facto: que era incontestável que estavam ali, dentro do vestíbulo, quando a mãe viera.

-Pois está bem-disse a mãe, com amargura-está muito bem... têm razão, eu estou doida e Lisa também-. Calou-se por um istante.

-Que Leo se permita estas brincadeiras-prorrompeu depois, dirigindo-se a Carla-é com ele... Mas que tu faças troça de mim... devias envergonhar-te disso... Que belo respeito para com a tua mãe...

-Mas é a pura verdade, mamã-protestou Carla. A brincadeira tornava-se-lhe agora dolorosa, enterrava-se-lhe como um espinho naquela impaciência que a possuía. «Estávamos

no vestíbulo», desejaria acrescentar, «estávamos atrás do reposteiro, eu e Leo, abraçados», e imaginava a cena que estalaria àquelas palavras; mas seria a última; depois tudo acabaria. Entretanto Lisa, com uma cara de quem está aborrecida, dizia:-Vamos andando, Merumeci?...-. E o homem, pronto para sair, estendia a mão à mãe.-Pense no caso-não pôde ele deixar de dizer, sorrindo-pense toda a noite-. Ao que a mãe respondeu, encolhendo os ombros:-Eu, de noite, durmo-. Depois abraçou Lisa, murmurando-lhe:-Então lembra-te do que te disse-. A rapariga abriu a porta, entrou no vestíbulo um sopro de ar frio, e os dois saíram e desapareceram.

 

Mãe e filha subiram juntas ao andar superior; na antecâmara, a mãe, que, ofendida com aquela brincadeira do vestíbulo, não dissera uma palavra, perguntou à rapariga o que faria no dia seguinte. -Vou jogar o ténis-respondeu Carla, após o que, sem se abraçarem, foi cada uma para o seu quarto.

No de Carla estava a luz acesa; esquecera-se de a apagar e, naquela luminosidade branca, parecia que os móveis e todas as outras coisas estavam à espera da sua chegada; entrou, e logo, maquinalmente, foi ver-se no grande espelho do guarda--vestidos: nada de anormal no seu rosto, a não ser os olhos cansados, marcados, e, no entanto, misteriosamente cintilantes; circundava-os um halo entre azul e negro e os seus olhares profundos, cheios de esperanças e de ilusões, perturbavam-na como se houvessem partido de outra pessoa. Ficou assim por um instante, de mãos apoiadas ao espelho; depois afastou-se e^ sentou-se na cama; olhou em volta: o quarto parecia, sob* muitos aspectos, o de uma menina de três ou quatro anos; os móveis eram brancos, baixos, higiénicos, as paredes eram alvas com frisos azuis, uma fila de bonecas de cabeças tortas, de olhos revirados, desleixadas e andrajosas, estava sentada no pequeno canapé à beira da janela; o mobiliário era o da sua infância e a mãe, por falta de dinheiro, não pudera substituí-lo por outro mais condizente com a sua idade; e de resto, dissera--lhe, que necessidade havia de uma nova mobília? Casar-se-ia e deixaria a casa. Assim, Carla crescera na moldura estreita dos seus anos mais afastados; mas o quarto não permanecera como então, nu e infantil; cada uma das suas idades lhe deixara um traço, frioleiras ou trapos; o quarto estava agora cheio, cómodo e íntimo, mas de uma intimidade ambígua, por vezes mulheril (por exemplo, o toucador, de fitas estragadas, com os perfumes, os pós, os cremes, as pinturas, e aquelas duas largas ligas cor-de-rosa penduradas junto do espelho oval por vezes pueril; e uma desordem indolente, toda feminina, composta de roupas abandonadas sobre as cadeiras, de frascos abertos, de sapatos  atirados para o  chão,  complicava o  equívoco.

Carla contemplava aquelas coisas com uma admiração tranquila; nenhum pensamento passava através da sua contemplação: estava sentada na sua cama, no seu quarto, a luz estava acesa, cada coisa estava no seu lugar como nas outras noites, e era tudo... Começou a despir-se, tirou os sapatos, o vestido, as meias... Durante aqueles actos habituais observava furtivamente à sua volta, via ora uma cabeça hirsuta de boneca, ora o cabide carregado de vestidos, ora o toucador, ora o candeeiro... e aquela luz, aquela luz especial, tranquila, que, à força de as iluminar, parecia estar nas próprias coisas do quarto, e que, juntamente com a janela bem fechada e velada por umas meias cortinas muito alvas, dava um sentimento agradável e levemente angustioso de segurança... Sim, não havia dúvida, estava no seu quarto, na sua casa; era provável que fora daquelas paredes fosse noite, mas estava separada dela por aquela luz, por aquelas coisas, de modo que podia ignorá-la... e pensar que estava só, sim, completamente só e fora do mundo.

Acabou de se despir e, toda nua, sacudindo a grande cabeça despenteada, levantou-se e dirigiu-se ao guarda-vestidos para tirar um pijama lavado; fez aqueles poucos passos com ligeireza, em bicos de pés; abriu a gaveta e observou, inclinando-se? que também os grandes seios se moviam por sua conta, sob os seus olhos; ao levantar-se, viu-se no espelho; chocou-a a atitude desajeitada, se não vergonhosa, de todo o corpo nu, e, depois, a desproporção entre a cabeça demasiado grande e os ombros estreitos; talvez por causa do cabelo; pegou num espelho e passou-o por detrás da nuca; estava crescido. «Preciso de ir ao cabeleireiro», pensou.

Voltou a olhar-se... Pois era... as pernas eram um pouco tortas. Oh! Só dos joelhos para baixo! E o peito... o peito era demasiado caído; ergueu-o um pouco com as duas mãos. «Devia ser assim», pensou. Voltou a cabeça e tentou entrever as costas; então, enquanto os seus olhos tentavam, por cima

dos ombros, abraçar por inteiro aquela sua outra imagem, assaltou-a o sentimento do contraste entre a futilidade destas suas atitudes e os acontecimentos graves ocorridos naquele dia; lembrou-se de que Leo a beijara poucos minutos antes; deixou o espelho e voltou para a cama.

Sentou-se e, por um instante, ficou imóvel, de olhos fixos no chão. «Começa realmente uma vida nova», pensou finalmente; ergueu a cabeça e, inesperadamente, pareceu-lhe que aquele quarto tranquilo, puro e sem suspeita, e aqueles hábitos entre mesquinhos e tolos, eram toda uma coisa viva, uma só pessoa de figura definida, a quem ela andava, como se nada fosse consigo, a preparar às escondidas uma traição inaudita. «Dentro em pouco... adeus para sempre...», repetiu para si mesma com uma alegria triste e nervosa, e fez um gesto de despedida, do seu leito, aos objectos circundantes, como de um navio à partida; passavam-lhe pela cabeça fantasias loucas, vastas, tristes; parecia-lhe que uma concatenação fatal ligava os acontecimentos. «Não é estranho?», dizia para si mesma, «Amanhã dar-me-ei ao Leo e devia começar assim uma vida nova... e é exactamente amanhã o dia em que nasci». Lembrou-se da mãe: «e é com o teu homem», pensou, «com o teu homem, mamã, que irei». Até aquela ignóbil coincidência, aquela sua rivalidade com a mãe lhe agradava; devia ser tudo impuro, sujo, baixo, não devia haver nem amor nem simpatia mas somente um sentimento escuro de ruína. «Criar uma situação escandalosa, impossível, cheia de cenas e de vergonhas», pensava, «arruinar-me completamente...» Tinha a cabeça baixa e, a certa altura, erguendo os olhos, viu-se no espelho do guarda-fato; sem saber porquê, todo o corpo lhe começou a tremer; desejaria chorar e rezar, parecia-lhe que estes pensamentos tristes a haviam já perdido. «Para onde vai a minha vida», repetia no seu íntimo, olhando para o chão, «para onde vai?»

Finalmente aquelas palavras dolorosas deixaram de ter qualquer significado, apercebeu-se de não pensar mais nada, de estar nua, de estar sentada à beira da cama; o candeeiro brilhava, os objectos em volta estavam no seu lugar de todas as noites; da exaltação de há pouco não lhe restava senão uma amargura vazia; parecia-lhe ter-se aproximado com esforço do centro exacto do seu problema e tê-lo perdido depois de vista, inexplicavelmente.

«Há-de ser o que for», pensou; pegou no pijama, vestiu-o preguiçosamente, enfiou-se debaixo da roupa, apagou a luz, fechou os olhos.

 

Não havia serviçais a dormirem em casa de Lisa. Ela não queria, e para os trabalhos indispensáveis, como a cozinha e a limpeza, mandava vir uma mulherzinha activa, a porteira do prédio; este sistema não funcionava, evidentemente, sem incomodidades, mas Lisa, que tinha uma vida muito livre, desregrada até, preferia que fosse assim. Naquela manhã acordou tarde; havia algum tempo que regressava a casa depois da meia noite, dormia sem gosto e levantava-se quase mais cansada e nervosa do que no dia anterior; despertou com dificuldade e, sem se mover nem levantar a cabeça, olhou: uma obscuridade frouxa e poeirenta, furada como uma peneira por mil fios de luz, enchia o quarto; adivinhavam-se naquela sombra, mudos e mortos, os velhos móveis, os espelhos silenciosos, as roupas penduradas naquela mancha escura, a porta; o ar era pesado e tinha o cheiro do sono e da mobília; a janela estava fechada. Lisa saiu da cama e, compondo o cabelo que lhe caía para a cara húmida, foi à janela e puxou a portada; uma claridade branca invadiu o quarto; afastou a cortina; os vidros estavam completamente embaciados; devia estar frio; através daquele orvalho adivinhavam-se cores vagas, ténues e puras, um branco, um verde, como que dissolvidas num lago de água; rasgou com a mão aquele véu líquido e viu logo um pedaço de telhado avermelhado de aspecto tão pouco luminoso, tão indiferente e opaco, que não precisou de olhar mais para cima para ver se o céu estava cinzento; afastou-se, deu maquinalmente alguns passos pelo quarto atulhado. A grande cama de casal, de nogueira escura e vulgar, toda cheia com os lençóis brancos, revoltos, ocupava muito espaço e estava tão próxima da janela rectangular que, às vezes, nas noites de inverno, lhe dava grande prazer, enquanto jazia sob os cobertores quentes, ver ali, a um metro de distância, a onda da chuva a pingar da vasta noite torrencial sobre os vidros quadrados; além da cama havia dois grandes guarda-fatos, da mesma madeira ordinária e mal cheirosa, com enormes espelhos amarelecidos; o quarto era de tamanho médio mas, com aqueles móveis, o espaço que sobrava para alguém se mover era francamente exíguo.

Dirigiu-se ao cabide; não tinha vestida senão uma camiseta transparente que fazia ainda mais curtas as saliências do corpo; as pernas estavam completamente descobertas até à prega profunda que separava a rotundidade das nádegas das coxas brancas e sem pêlos; os seios musculosos, pouco mais caídos do que aos vinte anos, ficavam meio de fora com duas protuberâncias lisas e sulcadas de veias; viu-se num espelho, assim seminua e. muito curvada para a frente, como para esconder sob aquele véu demasiado curto a mancha escura do regaço, e foi de opinião que havia emagrecido; enfiou um roupão e passou para a casa de banho.

Esta era uma pequena divisão cinzenta, nua, fria; os canos eram pintados e escuros, a banheira era de ferro esmaltado, havia apenas um espelho todo manchado, uma sombra húmida enchia os cantos; Lisa acendeu a luz; acudiu-lhe ao espírito que haviam passado três dias desde que lavara o corpo todo pela última vez e que seria preciso tomar banho; hesitou; era realmente indispensável? Observou os pés; as unhas estavam brancas, pareciam limpas; não, não era preciso, tanto mais que se, como era provável, passasse a noite com Michele, teria de voltar a lavar-se no dia seguinte; decidiu-se, foi a um lavatório fixado à parede, abriu as torneiras e esperou que se enchesse; despiu então o roupão, baixou a camisa até à cintura e lavou-se; primeiro a cara, espirrando e soprando, depois, com gestos que pretendiam impedir que a água pingasse do peito e dos ombros para as partes inferiores ainda cheias da tepidez nocturna, o pescoço e as axilas; de cada vez que se inclinava, sentia a camisa subir-lhe pelas costas; vinha-lhe um frio de pedra dos ladrilhos do pavimento; por fim, não achou a toalha e correu, cega, toda molhada e nua, a buscar uma ao quarto.

Enxugou-se; sentou-se junto ao toucador; arranjou-se rapidamente; não usava cremes nem pinturas, não tinha senão que pôr um pouco de pó de arroz, perfumar-se é pentear-se. Voltou finalmente as costas ao espelho e curvou-se para calçar as meias. Agora alternavam-se dois pensamentos na sua mente: o do pequeno almoço e o de Michele; agradava-lhe comer de manhã, com o café, coisas boas: compotas, bolinhos, manteiga, torradas; era glutona e não se afastava da mesa senão quando estava saciada; nesse dia, porém, receava ficar em jejum. «Se Michele vier daqui a pouco», pensou, «é melhor que não me encontre a comer... paciência... outra vez será». Ergueu-se, vestiu uma combinação cor-de-rosa e depois um corpete de busto estreitíssimo, que lhe cingia o peito como um espartilho; para se consolar, a sua fantasia pintava um Michele enamoradíssimo e tímido, um adolescente sem experiência a quem ela se daria trémula de júbilo, um amor puro, enfim. «Depois da vida que tenho feito», pensou, convencida, «faz bem um pouco de inocência». Noites sem dormir, prazeres fatigantes, dissipava-se aquela neblina suja. Michele trazia-lhe o sol, o céu azul, a franqueza, o entusiasmo, respeitá-la-ia como uma deusa, apoiaria a cabeça nos seus joelhos; tinha um desejo insaciável dele e não via chegar a hora de beber nessa fonte de juventude, de voltar ao amor novo, balbuciante, pudico, que quase esquecera desde os vinte anos; Michele era a pureza; dar-se-ia ao rapaz sem luxúria, quase sem ardor; iria ao encontro dele toda nua, em passo de dança, e dir-lhe-ia: «Aqui me tens»; seria um amor extraordinário, dos que já não se usam.

Acabara de se vestir; saiu do quarto, atravessou o corredor escuro, entrou na saleta cheia de luz; esta divisão era toda branca e cor-de-rosa; brancos os móveis e o tecto, róseas as alcatifas, as tapeçarias, o sofá; três grandes janelas graciosamente veladas espalhavam uma luz tranquila; à primeira vista, tudo parecia puro e inocente, observavam-se mil gentilezas, uma cestinha de bordados aqui, uma pequena biblioteca de livros multicores acolá, e flores esbeltas sobre mísulas laçadas, aguarelas encaixilhadas nas paredes, uma quantidade de coisas, em suma, que, a princípio, faziam pensar: «Éia, que belo lugarzinho, claro e sereno. Aqui não pode morar senão uma jovem». Mas se se olhava melhor mudava-se de ideia; verificava-se que a saleta não era mais jovem do que o resto do apartamento, observava-se que a laca dos móveis estava gretada e amarelecida, que a tapeçaria estava desbotada e mostrava a trama aqui e acolá, que um tecido rasgado e almofadas sórdidas cobriam o sofá de canto; mais um olhar e ficava-se convencido: revelavam-se os rasgões das cortinas, os vidros partidos das aguarelas, os livros poeirentos ou descosidos, as grandes rachas do tecto, e se, depois, finalmente, estava presente a dona da casa, nem havia necessidade de procurar, toda esta corrupção saltava aos olhos como que acusada pela figura da mulher.

Lisa sentou-se diante da escrivaninha e esperou; voltava-lhe agora a ideia da refeição. Tinha uma grande vontade; não sabia que fazer. «Se ao menos soubesse a que horas vem», pensou, com despeito, olhando o relógio que tinha no pulso; conseguiu dominar-se por fim, renunciou de novo e voltou às suas fantasias ternas, cruéis e excitadas. «Fá-lo-ei sentar no sofá», pensou, de súbito, «e estender-me-ei por detrás dele... falaremos um pouco... depois começarei a picá-lo com qualquer assunto escabroso... e olhá-lo-ei... Se não é um tolo compreenderá». Observava o sofá como um instrumento de que se quer avaliar a utilidade e a eficácia; se tudo corresse bem, faria esperar o adolescente para ter o gosto delicado de o ver suspirar e, finalmente, passados alguns dias, convidá-lo-ia para cear e retê-lo-ia toda a noite; que ceia havia de ser aquela: guloseimas e, sobretudo, vinho; poria aquele vestido que lhe ficava tão bem, o azul, e adornar-se-ia com as poucas jóias que pudera salvar das mãos rapaces do seu ex-marido; a mesa seria preparada ali, na salinha-a casa de jantar era menos íntima-uma mesa para dois, cheia de coisas boas, peixe, pastéis de carne e de legumes, doces; uma mesa pequena, rica e cintilante, para dois, só para dois, um terceiro não participaria nem que quisesse... Sentar-se-ia diante do querido rapaz, com os olhos brilhantes de alegria e de ternura, pois, embora a comer, não deixaria de o olhar, servir-lhe-ia vinho falar-lhe-ia em tom brincalhão, curioso, alusivo, maternal; informar-se-ia dos seus pequenos amores; fá-lo-ia corar; piscar-lhe-ia o olho de vez em quando, gentilmente, os seus pés tocar-se-iam debaixo da mesa; finda a ceia, levantariam juntos a mesa, rindo, tocando-se e chocando-se com o grande desejo de se possuírem; depois ela despir-se-ia, enfiaria um roupão e faria vestir a Michele um dos pijamas do marido; ficar-lhe-ia à maravilha; tinham ambos a mesma estatura, embora o adolescente fosse mais magro; sentados no sofá, conheceriam, ela e Michele, a alegria irritante e avara da sua vigília da primeira noite... finalmente, iriam juntos, para o quarto.

Algo excitada com estas fantasias, estava sentada junto à escrivaninha. Tinha a cabeça baixa; de vez em quando, como para afastar os pensamentos, compunha o cabelo, ou então, sem todavia deixar de pensar, torcia os pés e olhava os sapatos; o ruído da campainha acelerou o bater do seu coração; sorriu, olhou-se num espelho e saiu para o corredor.

Acendeu a luz antes de abrir a porta; Michele entrou.

-Vim talvez demasiado cedo...-disse ele, pendurando o sobretudo e o chapéu no cabide.

- Imagina-. Passaram para a salinha e sentaram-se no

sofá.-Como estás?-perguntou Lisa; pegou numa caixa de

cigarros e ofereceu um ao rapaz; ele recusou e ficou pensativo,

com as mãos sobre os joelhos.

-Estou bem-respondeu, finalmente; silêncio.

- Se   me  dás   licença-disse   a   mulher-estendo-me  no

sofá...  mas tu...  deixa-te estar...  deixa-te estar...  comoda

mente-. Levantou as pernas e estendeu-se sobre as almofadas;

Michele viu as duas coxas, toscas e brancas, e sorriu no seu

íntimo; aquela ideia voltou-lhe: «Evidentemente quer exci

tar-me. Mas Lisa não lhe agradava de modo nenhum e tudo

aquilo lhe era indiferente.

Ela olhava o rapaz pensando no que poderia dizer-lhe; os pretextos para uma intimidade maior, que poucos minutos antes lhe haviam parecido tão espontâneos, fugiam-lhe agora na sua perturbação; tinha a cabeça vazia, o coração em tumulto e voltou-lhe ao espírito, sabe-se lá porquê, a cena da noite anterior, aquele litígio entre Leo e Michele que de momento lhe interessara; hesitou em voltar a falar-lhe no caso, mas a ideia de poder também vingar-se um pouco do seu antigo amante revelando ao rapaz, se já não sabia, a ligação da mãe, encorajou-a; depois, por vias indirectas, poderia chegar a qualquer conversa mais excitante.

-Aposto-disse, olhando-o-que morres de vontade de saber porque te pedi ontem à noite que não apresentasses desculpas ao Leo.

Ele voltou-se. «Sei que morres de vontade de falar no caso», era o que desejaria responder; mas conteve-se:-Morrer, morrer, não... mas diz lá.

-Creio que tenho, mais do que outra pessoa qualquer, o direito de te abrir os olhos-começou.

-Não ponho dúvida.

-Calamo-nos durante muito tempo, fingimos não ver... mas por fim o que é demais não presta... O que vi ontem à noite revoltou-me.

-Dás-me licença?-disse Michele.-O que foi, precisamente, que te revoltou?

-Aquelas desculpas ao  Leo-fixou-o com seriedade-e

sobretudo que a tua mãe, exactamente a tua mãe, exigisse de ti uma tal humilhação.

«Ah, agora compreendo», e o rosto de Michele iluminou-se de ironia, «que queres dar-me a grande notícia de que a minha mãe tem um amante», pensou; sentiu um desgosto profundo por si mesmo e pela mulher.-Mas talvez não fosse uma humilhação-acrescentou.

-Sê-lo-ia em todos os casos... e duplamente quando ouvires o que te vou dizer...

Olhou-a: «Se agora te agarrasse pelas ancas ou te beliscasse nas costas», pensou, «como deixarias logo esse ar secreto e digno, como te menearias!»

-Aviso-te-disse, e pareceu-lhe ser realmente sincero- que não me importa saber nada.

-Muito bem-respondeu Lisa, de modo nenhum desconcertada-tens razão... mas sinto que devo falar... Depois me agradecerás... Portanto, deves saber que a tua mãe cometeu um erro.

-Só um?

Entre os dois partidos, o de se irritar e o de rir, Lisa escolheu o segundo.-Pode ter cometido mil-disse, sorrindo, e aproximando-se um tanto do rapaz-mas este é sem dúvida o maior.

-Um momento-interrompeu Michele.-Não sei o que vais dizer-me... mas se, como parece, é uma coisa grave, gostaria de saber porque ma revelas.

Olharam-se. - Porquê ? - repetiu Lisa, lentamente, baixando os olhos.-Mas porque me interessas muito e porque gosto de ti, e além disso, como já te disse, porque certas injustiças me revoltam.

Ele sabia das relações que houvera entre Leo e a mulher: «Ou antes», pensou, «porque te revolta que te tenham posto de parte, hem?», mas anuiu gravemente com a cabeça. -Tens razão, não há nada pior do que a injustiça!... Então, adiante, em que consiste esse erro?

-Ouve... Há dez anos a tua mãe conheceu Leo-Merumeci...

-Não queres com certeza dizer-me-interrompeu Michele, com o mais falso dos espantos-que o Leo é amante da minha mãe!

Entreolharam-se.-Tenho muita pena-disse Lisa, com uma simplicidade dolorosa-mas é exactamente assim.

Silêncio; Michele olhava para o chão e sentia vontade de rir; aquele desgosto transformava-se num sentimento amargo de ridículo.

-E podes agora compreender-continuou Lisa-se e como me revoltou a tua mãe ao pedir-te que te humilhasses diante daquele homem.

Ele não se movia nem falava; voltava a ver a sua mãe, Leo, ele próprio no acto de se fazer perdoar, figuras estúpidas e pequenas, perdidas sem esperança na vida mais vasta... mas -estas visões não o ofendiam nem despertavam em si qualquer sentimento; bem gostaria de ser inteiramente diferente, indignado, cheio de rancor, cheio de ódio inextinguível, e sofria, pelo contrário, por ser indiferente a tal ponto.

Viu Lisa levantar-se e sentar-se a seu lado.-Deixa-disse ela, pousando a mão tosca e consoladora na sua cabeça-deixa lá... Tem coragem!... Compreendo que deve desagradar-te... Vivemos com a certeza de que uma pessoa merece o nosso afecto, a nossa estima, e depois... a certa altura, tudo desaba à nossa volta... Mas não importa... Isto servir-te-á de lição...

Ele abanou a cabeça, mordendo os lábios para não se rir; Lisa, pelo contrário, supôs que a dor o dominasse.-Há males que vêm por bem-disse, em voz patética e melosa, sem deixar de passar a mão pelo cabelo do rapaz.-Isto aproxi-mar-nos-á... Queres que me torne para ti o que era antes a tua mãe?... Diz... queres que me torne a tua amiga, a tua confidente?-. Era sincera, mas a voz era tão aflautada e falsa que Michele gostaria de lhe tapar a boca com a mão; mas manteve-se quieto, com a cabeça obstinadamente baixa; tal como se via, sentado junto daquela mulher, à beira do sofá, com uma cara entre contrita e idiota... a cena parecia-lhe tão ridícula que, para não rir, não havia senão um meio, não se mover.

Lisa tornou-se ainda mais zelosa:-Virás visitar-me... falaremos... esforçar-nos-emos por reconstruir, por reorganizar uma nova existência.

Olhou-a de soslaio... corada, sob a franja dos cabelos loiros, vermelha e excitada. «Ah, é assim que começas a organizar», pensou; recordou-se do tal parente que devia vir de manhã... «E porque não levar a sério aquilo tudo e gozar?... Porque não continuar com os fingimentos ?».

Levantou a cabeça.-Foi duro-proferiu, como quem conseguiu dominar uma grande dor.-Mas tens razão... Preciso de construir uma nova existência...

- Certamente-aprovou Lisa, com fervor, após o que se seguiu um profundo silêncio; ambos, com fins diversos, fingiam uma distracção sonhadora e inspirada; mantinham-se imóveis, um junto do outro, e olhavam para o chão.

Um murmúrio; o braço do Michele deslisou por trás das costas da mulher e cingiu-lhe a cintura.-Não-disse ela, em voz clara, sem se mover nem se voltar, como se tivesse respondido a uma pergunta interior; Michele sorriu de má vontade; sentia invadi-lo uma certa perturbação e atraiu-a mais apertadamente.-Não, não-repetiu ela, em tom mais fraco, mas cedeu e apoiou a cabeça perdida no ombro do rapaz; então, passado um instante de sentimental imobilidade, agarrou-a pelo queixo e, não obstante o protesto falso e mudo dos olhos, beijou-a na boca.

Separaram-se.-És mau-disse Lisa, pateticamente, com um meio sorriso de gratidão-mau e prepotente-. Michele levantou os olhos e fitou-a com frieza; depois perpassou um sorriso na sua cara magra e séria; estendeu a mão e, com quanta força tinha, beliscou a mulher na ilharga, debaixo do braço.-Ai, ai!-gritou ela, de súbito, rindo com a boca escancarada e meneando-se.-Ai, ai!-. Agitava os braços e as pernas; por fim caiu do sofá e, num movimento convulso de todo o corpo, o vestido subiu-lhe sobre o ventre e as coxas grossas, de uma brancura sombreada pelos músculos, apareceram; Michele, então, afrouxou o aperto; Lisa voltou a sentar-se e fez baixar a saia sobre os joelhos.

-Oh, que pérfido!-. E repetiu, em falsete, comprimindo o peito ofegante com a mão:-Oh, que pérfido!

Michele, calado, observava-a com uma curiosidade séria e grave.-Em vez disso-acrescentou ela, pondo-lhe as mãos nos ombros-devias ter-me feito assim, olha...-. Aproximou os seus lábios apertados, em forma de coração, dos do rapaz, aflorou-os ao de leve e afastou-se com os olhos brilhantes de satisfação.-Era assim que me devias ter feito-repetiu estupidamente, para esconder a sua própria excitação.

Michele torceu os lábios, levantou-se, deu uma volta pela salinha, de mãos nos bolsos, olhando as aguarelas banais que pendiam das paredes; estava irritado e excitado.-Gostas delas ? -ouviu ele, de súbito, atrás de si; voltou-se e viu Lisa.-Porcarias-disse.

-Mas, na verdade-respondeu a mulher, mortificada- sempre me pareceram boas.

Voltaram ao sofá; as têmporas do rapaz latejavam, as faces ardiam-lhe. «Tudo isto é ignóbil», pensava, com desgosto, mas assim que se sentaram derrubou Lisa sobre as almofadas como se quisesse possuí-la; viu aquele rosto fechar as pálpebras brilhantes e abandonar-se a uma espécie de êxtase entre repugnante e ridículo; a impressão foi tão forte que todo o

desejo desapareceu; beijou friamente a boca da mulher e depois, com uma espécie de gemido, abateu a cabeça no seu regaço; escuridão. «Quero ficar assim até ao fim da visita», pensou, «e não a ver mais nem a beijar mais».

Sentiu os dedos acariciadores pousarem-lhe no cabelo e alizá-lo.

-Que tens?-perguntou a voz familiar e falsa.

-Estou a pensar-respondeu ele, em tom profundo, fechando os olhos-que bastaria um fraco esforço para sermos sinceros, mas que, pelo contrário, fazemos tudo para seguirmos na direcção oposta-. Suspirou; pareceu-lhe ter-se definido. «Porque estou eu aqui?», pensou, «Porque minto? Seria tão fácil dizer a verdade e ir-me embora».

-É assim mesmo-respondeu-lhe a mulher, sem deixar de acariciar-lhe o cabelo-é mesmo verdade... mas agora deves deixar de ter pensamentos desses... Não voltarás a precisar dos outros... Agora estou eu aqui, estaremos juntos... ignoraremos o mundo inteiro-. Dizia estas palavras numa voz fervorosa que fez estremecer o rapaz.-Viveremos longe das coisas que te desagradam, queres?... De todas estas misérias... Contar-me-ás a tua vida, os teus desgostos, as tuas tristezas, e eu dar-te-ei todo o amor que possuo, que guardei para ti... Serei a tua companheira, queres? A tua companheira fiel e humilde, tão humilde, sabes, que te ouvirá em silêncio e te consolará com as suas carícias, assim, assim...-. A mão que passava pela cabeça do rapaz contraíu-se; Lisa inclinou-se e beijou-lhe o cabelo, a nuca, em fúria, enquanto os seus dedos febris se aferravam, apertavam nervosamente os ombros curvados de Michele; o coração palpitava-lhe: «Finalmente, amo e sou amada», pensava, «finalmente».

Michele não se movia; nunca lhe acontecera ver o ridículo confundir-se a tal ponto com a sinceridade, a falsidade com a verdade; apoderava-se dele um embaraço odioso. «Ao menos que se calasse», pensava, «Mas não, tem que falar». Possuía-o de vez em quando o desejo histérico de dizer a verdade, a sua, a única possível, e ir-se embora; mas detinha-o um sentimento de compaixão; e além disso não fora ele o primeiro a iludir Lisa com o seu abraço?

-Querido... querido-repetia a mulher, sobre a sua cabeça-não podes imaginar como me és querido-. «Exagerada», desejaria responder-lhe o rapaz, mas tinha os olhos cheios de escuridão, parecia-lhe não ter nunca visto a luz; aquelas palavras, aquelas carícias, aqUela voz, davam-lhe a impressão de uma noite sem esperança.

Levantou a cabeça e endireitou-se, sentando-se e esfregando os olhos deslumbrados.-Vão sendo horas de me ir embora -disse. -E esse teu parente quando chega?

-Vou telefonar-lhe-disse Lisa, que evidentemente não esperava aquela pergunta, e saiu.

Ficou só; levantou-se, foi até à parede, olhou distraida-mente uma das aguarelas; depois, quase maquinalmente, aproximou-se da porta e entreabriu-a; o telefone estava ali, fixado à parede, ao fundo do corredor escuro, mas Lisa não estava lá; a saída fora um fingimento; o tal parente não existia; além de atrair o rapaz para a sua casa, a mulher mentira.

«Fingir», pensou ele, voltando a fechar a porta com precaução, «é justo fingir». Voltou à parede e tornou a contemplar a aguarela que representava uma casa de quinteiro e palheiros; oprimia-o uma náusea leve e fastidiosa, como quando se sente desenvolver-se o vómito e se quer detê-lo; mas este pensamento: «no fim de contas, ela é como eu», serviu para o induzir, finalmente, a um pouco de compaixão para com aquela figura de mentirosa sem necessidade. «Somos todos iguais», pensou, «de entre as mil maneiras de fazer uma acção, escolhemos sempre, instintivamente, a pior».

Passado um instante, a porta abriu-se e Lisa entrou.- Tenho muita pena-disse ela-o meu parente está ocupado... não pode vir... mas diz que amanhã... se puderes amanhã à tarde-. Olharam-se; o desgosto e a compaixão de Michele aumentavam. «Isto é demais», pensou, «isto é trazer-me pelo beiço. E amanhã será a mesma história: volta amanhã». Pareceu-lhe que, se fingisse não ter percebido, haveria como que uma cumplicidade entre eles que lhes permitiria, à espera do parente inexistente, entenderem-se sem demasiados escrúpulos sobre todos os outros pontos.

-Não-disse-amanhã não volto.

-Mas ele vem-insistiu a mulher, com um certo descaramento-e se tu não estiveres...

Michele pôs-lhe a mão no ombro e olhou-a,-Tudo isto é ridículo... Ele não vem... Porque não dizes a verdade ?-. Viu-a perturbar-se e, o que foi pior, arriscar, para fugir ao seu olhar, um sorriso impudico, desavergonhado, como de quem não está muito pezaroso de ser apanhado em falta.

-Qual verdade?-repetiu ela, sem'o olhar, sem deixar aquele sorriso.-Não te percebo... Salvo qualquer imprevisto, decerto que vem...

-Olhei para o corredor-explicou Michele, com calma -Tu não telefonaste... e esse parente não existe.

Um instante de silêncio; depois, Lisa escolheu a atitude mais fácil; voltou a sorrir e ergueu um pouco os ombros. -Então, se olhaste para o corredor, porque me fazes tantas perguntas ?

Michele observava-a. «Será possível», pensava, «que ela não sinta que se pode ser melhor do que assim ?». Quis fazer mais um esforço:-Não-insistiu ele-não ponhas a questão dessa maneira... é uma coisa muito séria... Porque foi que, em vez de fazeres essa comédia, não disseste antes «volta amanhã... tomamos o chá juntos ?».

-Devia tê-lo dito, bem sei...-. Falava sem humildade, com uma espécie de impaciência.-Quer dizer que virás à mesma, não é verdade?... E não tenhas receio, que ao meu parente, se não lhe falei, com certeza que lhe falo o mais cedo possível.

«Aí está», pensou o rapaz, «ela pensa que a minha censura se deve ao meu desapontamento por não ter encontrado esse seu maldito parente». O rosto endureceu-lhe.-Não, não venho-disse-e não fales a ninguém-. Deixou a mulher e saiu para o corredor.

Enchia aquela escuridão acanhada um cheiro de cozinha. -Então é mesmo verdade que não vens?-perguntou ela, entre suplicante e incrédula, estendendo-lhe o chapéu; olhou-a; hesitou; tudo fora definitivamente inútil: desgosto, piedade; a mulher ficava onde estava, no seu erro; este sentimento de inutilidade dos seus esforços fazia-lhe mal, tinha vontade de gritar com o nojo desesperado e angustioso que o oprimia. -De que serviria vir?-perguntou.

-Gomo? De que serviria?

-Não serviria para nada-. Abanou a cabeça.-Para nada... Tu és assim... Não há nada a fazer... São todas assim...

-Assim, como?-insistiu ela, corando sem querer.

«Mesquinhas, acanhadas... O amor para ir para a cama... O teu parente ao de cima dos meus pensamentos», desejaria Michele responder-lhe; mas em vez disso respondeu:-Está bem, venho à mesma-. Um instante de silêncio.-Mas antes de me ir embora-acrescentou-explica-me uma coisa... Como tens a certeza de que... te amo, e, portanto, de que volto, porque continuaste a usar esse subterfúgio do teu parente em vez de me dizeres a verdade ?

-Não me agradava-explicou ela, não sem hesitação -revelar-te que da primeira vez inventara esta história para te obrigar a vir.

Mas nem. sequer a primeira vez era necessária-disse

Michele, olhando-a atentamente.

Sim-admitiu ela, com humildade-tens razão...  Mas quem é que não tem pecados?... E além disso o tal meu parente existe realmente, é muito rico... só que não o vejo há muito tempo.

-Basta assim-disse Michele; pegou-lhe na mão.-Então até amanhã-começou, mas reparou de súbito que Lisa o olhava de maneira estranha e sorria, entre tímida e aduladora; compreendeu. «Pois seja», pensou; inclinou-se, cingiu a mulher ao peito e beijou-a na boca; depois deixou-a e saiu; voltou-se no limiar para lhe dizer adeus; viu então que, como uma menina ao primeiro amor, Lisa, envergonhada, se escondia atrás de um casaco pendurado no bengaleiro, ali, na sombra do vestíbulo, e, com dois dedos pousados nos lábios, lhe mandava um último beijo.

«Comédia indigna», pensou; e começou a descer a escada sem se voltar.

 

Nesse dia, a mãe acabou de se vestir bastante tarde; era meio-dia e ainda estava sentada diante do toucador, passando, com muitos trejeitos e muitíssimo cuidado, a escovinha do rimtenel sobre as pálpebras inchadas; mal acordara, as imagens do ciúme haviam-na posto de mau humor, mas depois, inesperadamente, lembrara-se que, exactamente nesse dia, Carla fazia anos, em número de vinte e quatro, e uma vaga brusca e histérica de amor maternal inundara a sua alma. «A minha Carlotta, a minha pobre Carlottina», pensara, quase lacrimejando de ternura, «não há mais ninguém no mundo que me queira bem». Levantara-se, vestira-se com aquele pensamento de Carla, que fazia anos; parecia-lhe aquilo uma coisa piedosa, um facto patético, de chorar sobre ele, e não parara, durante todo esse tempo, de imaginar as prendas e as satisfações que daria generosamente à rapariga. «Tem poucos vestidos... hei-de fazer-lhos... hei-de-lhe fazer quatro ou cinco... também lhe mandarei fazer o casaco de peles... há tanto tempo que o deseja...». Onde iria buscar o dinheiro para aquela beneficência, a mãe não o pensava sequer. «E que encontre um marido», pensou ainda, «depois disso não desejarei mais nada». Assaltou-a por reflexo, pensando na filha de vinte e quatro anos e ainda solteira, uma raiva injuriosa contra os homens: «Todos estes moços cretinos... não querem senão divertir-se e perder tempo, quando deviam pensar em constituir família». Mas Carla casar-se-ia, decerto. «É bonita», disse ela para consigo, contando pelos dedos os dotes da filha, «melhor diria muito linda... é boa, de uma bondade angélica... e além disso é inteligente, culta... teve uma excelente educação... O que é que se pode querer mais ?». Dinheiro, era o caso, o dinheiro faltava; Carla iria para casa do marido como viera ao mundo, inteiramente nua, rica apenas das suas virtudes, disso não havia dúvida; mas era então verdade que nos dias que iam correndo não se casavam senão as raparigas ricas? Ora! Não houvera ultimamente casos de raparigas muito bem casadas e sem um vintém de dote?... Um pouco tranquilizada, a mãe passou do quarto para a antecâmara.

Estavam sobre a mesa central um ramo de magníficas rosas e uma caixa; havia um bilhete entre as flores; a mãe pegou nele, rasgou o sobrescrito e leu: «À Carla, à minha quase filha, com os mais afectuosos parabéns do Leo». Voltou a pôr o bilhete entre as rosas. «Como é delicado», pensou, contente, «qualquer outro no seu lugar não saberia como se comportar com os filhos da sua amiga... mas ele afasta todas as razões de suspeita... é como um pai». Sentia vontade de bater palmas de alegria; se Leo estivesse presente, tê-lo-ia abraçado; depois abriu a caixa; continha ela uma bolsa de seda bordada com um fecho de pedra azul; a alegria da mãe subiu ao cúmulo.

Pegou na caixa e no ramo e correu para o quarto de Carla. -Cem dias como este-gritou-lhe.-Olha o que chegou para ti-. Carla estava sentada à mesa com um livro na mão; levantou-se e, sem dizer palavra, leu o bilhete; aquela impudência, aquela complacência de Leo que lhe chamava «sua quase filha», voltaram a trazer-lhe ao espírito, por contraste e tão bruscamente que estremeceu, o sentimento angustioso e de certo modo incestuoso daquela intriga sua; levantou os olhos; os da mãe brilhavam de alegria e ela sorria, comovida, apertando ao peito, não sem ridículo, o ramo de flores. -É muito gentil da parte dele-disse, friamente.-E nessa caixa, o que há?

-Uma bolsa-respondeu a mãe, com entusiasmo-uma elegantíssima bolsa de noite que lhe deve ter custado pelo menos quinhentas liras... Olha...-. Abriu a caixa e mostrou a prenda à filha.-Não é verdade que é linda?-acrescentou.

-Muito linda-respondeu Carla; pousou o objecto em cima da mesa; fitaram-se.

-E assim-disse inesperadamente a mãe, em voz comovida -a minha filhinha faz hoje vinte e quatro anos... e no entanto parece-me que ainda ontem era uma menina.

-Sim,  mamã,  também  a  mim  me  parece-respondeu

Carla, sem sombra de ironia; mas gostaria de acrescentar: «A partir de hoje deixo de o ser».

-Brincavas com as bonecas-continuou a mãe-embalava--las fazendo-me sinal para não falar, dizendo-me que dormiam-. Parou a meio das suas patéticas evocações e fixou Carla:-Tenhamos esperança de que o possas fazer um dia com bonecas de carne e osso.

-Sim, mamã, tenhamos esperança-respondeu a rapariga, entre embaraçada e apiedada.

-Realmente, Carla-insistiu a mãe, como se quisesse convencê-la de uma grande e profunda verdade-realmente não tenho senão um desejo... que te cases... depois serei feliz...

Carla sorriu. «Tu... Mas eu serei feliz?», pensou.-Sim, está bem-respondeu, baixando a cabeça-mas para me casar precisamos de ser dois... eu e ele.

-Ele aparecerá!-exclamou a mãe, cheia de confiança. -E até... ouve... parecer-te-á ridículo... mas tenho como um pressentimento de que neste teu novo ano te casarás... ou pelo menos ficarás noiva... Tenho esta ideia... sabe-se lá porquê, são dessas coisas que não se explicam... e verás que se realizará.

«Será outra coisa que se realizará», desejaria Carla responder, e pensava na sua decisão de se entregar a Leo nesse mesmo dia; a incompreensão da mãe dava-lhe o sentimento doloroso de uma cegueira e de uma escuridão em que todos se encontravam envolvidos sem esperança de libertação; sorriu e respondeu com firmeza:-Claro que alguma coisa há-de suceder.

-Tenho o pressentimento disso-repetiu a mãe, convencida.-E estas flores onde as pomos?

Puseram as flores numa jarra e passaram para a antecâmara; havia pouca luz; a estreita vidraça da escada era velada por uma cortina vermelha, e a sombra enchia os cantos vazios; sentaram-se num sofá.-Ora diz-me cá-perguntou a mãe, de súbito-como te pareceu a Lisa ontem à noite?

-Como me pareceu? Como de costume.

-Achas?-disse a mãe, hesitante.-Eu achei-a mais gorda... e além disso, não sei... avelhentada.

-Mas... não me parece-respondeu Carla; compreendera onde queria a mãe chegar. «É de mim, mamã, que devias ter ciúmes», pensou, «não da Lisa».

-E aquele vestido?-continuou a outra.-Nunca se viu coisa de mais mau gosto... e ela a supor que trazia em cima sabe-se lá o quê...

-Na verdade-disse Carla-não me pareceu feio.

-Feíssimo-afirmou a mãe; ficou um instante de olhos esbugalhados para o vazio, como se houvesse visto formarem-se ali, à sua frente, as imagens do seu ciúme; depois, bruscamente, voltando-se para a filha:-Mas diz-me a verdade... Viste como a Lisa andou agarrada ao Merumeci?

«Aí está», pensou Carla, e, enfadada, sentia vontade de lhe gritar: «Não era a Lisa, mas eu... estávamos abraçados atrás do reposteiro... abraçados». Respondeu, porém:-Agarrada como?

-Agarrada-repetiu a outra.-E como insistiu com ele para a acompanhar a casa... Sabes o que penso?-acrescentou, inclinando-se.-Que estava com uma grande vontade de reatar as antigas relações... era por isso que lhe fazia olhos lânguidos... Mas Merumeci tem mais que fazer do que pensar nela, pobre mulher... e além disso, se quisesse, acharia mil melhores do que ela... com aquele corpo... com aquela figura... Tem um fundo de inveja e de hipocrisia, diz branco pela frente e preto pelas costas... É assim mesmo. Eu, realmente, sou boa para todos, em todos encontro qualidades, não faria mal a uma mosca, mas aquela, não a posso suportar...

-Mas és amiga dela...

-Que se há-de fazer!?-disse a mãe.-Não se pode de maneira nenhuma dizer sempre a verdade na cara das pessoas... as conveniências sociais obrigam muita vez a fazer o contrário do que se desejaria... se não fosse assim, quem sabe onde iríamos acabar...-. Fazia gestos, como a dizer: «Compreende-me, é exactamente assim». Arqueava os sobrolhos, torcia a boca; mas o rosto de Carla endurecia-se; esforçava-se por não olhar aquela máscara materna. «Um pouco mais de verdade», desejaria gritar-lhe, «seria melhor».

-Mas a falsidade pela falsidade - continuou a mãe -a hipocrisia sistemática, como faz Lisa... isso é coisa que não admito... tudo menos isso... Tenho a certeza, por exemplo, de que ela, ontem à noite, não veio de modo nenhum por nossa causa!... Devia, pelo contrário, ter sabido de qualquer maneira que o Merumeci estava cá em casa, e foi por isso que entrou... tanto é verdade que não disse nada de interessante, esteve pouco tempo e não pensava senão em ir-se embora.

Carla observou-a quase com compaixão; a maneira penosa, dolorosa, como a mãe alicerçava sobre o erro estas suas construções, inspirava-lhe sempre uma piedade desgostada.-Realmente?-perguntou, só para dizer alguma coisa.

-Sem dúvida-respondeu a mãe, com segurança; ficou um instante pensativa e depois, na sombra brilhante da antecâmara, entre os reposteiros de veludo, a sua cara pintada contraiu-se num trejeito de ódio.-Olha... aquela mulher repugna-me até fisicamente... não sei... dá a impressão de ser viscosa e ao mesmo tempo cheia de ardor, cheia de calor... como uma cadela... sim... olha os homens com aqueles olhos brilhantes como a convidá-los... como a dizer: venham comigo... E pensar eu que se fosse homem não queria tocá-la nem com as pontas dos dedos... far-me-ia nojo.

-Garanto-te, mamã-disse Carla-que a mim não me faz esse efeito.

-Tu não podes compreender-disse a mãe-escapam-te certas coisas... mas eu, que sou uma mulher que teve experiências e que sabe viver, quando vejo um tipo de mulher como ela, com aqueles olhos, com aquela figura... é vê-las e julgá-las, taque!... Como se tira uma fotografia.

-Talvez seja assim-admitiu Carla; ficaram ambas caladas por um instante; silêncio; imobilidade; depois, lá de baixo, do rés-do-chão, do fundo do corredor, chegou o estrondo da porta da rua fechada com força.-Deve ser o Merumeci-disse a mãe, levantando-se-recebe-o tu... eu vou já.

O coração de Carla bateu mais apressado; desceu a escada degrau a degrau, como quem se sente vacilar e vai devagar para não cair; entrou na sala, e, como a mãe imaginara, lá estava Leo de pé, junto à janela, de costas voltadas.

-Ah, cá estás!-Pegou-lhe num braço e fê-la sentar-se no sofá.-Obrigada pela prenda-disse ela, imediatamente -mas porquê aquele bilhete?

-Qual bilhete?

-Quase minha filha-disse ela, olhando-o fixamente.

-Ah!-exclamou Leo, como se o tivesse esquecido.-Pois é... foi isso que escrevi... quase minha filha... é bem verdade.

-E porque escreveste?

Um sorriso entre complacente e impudico iluminou o rosto do homem.-Primeiro que tudo, por consideração pela tua mãe... e além disso, porque me agrada imaginar que és minha filha.

Ela olhava-o. «Que vergonha», pensava, «que vergonha sem limites». Mas o desejo de destruição era mais forte do que o desgosto.-Eu, tua filha? -disse, com um meio sorriso. -Nisso, na verdade, nunca pensei... Como te veio isso ao espírito?

-Na noite passada - respondeu Leo, tranquilamente -quando estávamos atrás do reposteiro... lembrei-me nesse momento, sabe-se lá porquê, que te vira em menina, assim desta altura, de pernas à vela e de tranças sobre os ombros, e pensei: «Ora aí está, podia ser pai dela e contudo...»

-Contudo amamo-nos, não é verdade?-concluiu Carla, e, olhando-o nos olhos:-Mas não te parece que estas duas coisas são, como direi, inconciliáveis?

-Porquê?-respondeu Leo, sem deixar de sorrir, passando a mão pela testa.-Talvez nas suas linhas gerais... mas nos casos isolados cada um age segundo os próprios sentimentos.

-Mas é contra a natureza!

Leo riu, perante o rosto sério e inquieto da rapariga. -Pois é, mas como tu não és minha filha, o pensamento não conta-. Olharam-se.

-A propósito-acrescentou ele-antes que me esqueça-., depois do almoço desce ao jardim com um pretexto qualquer... do lado do arvoredo... vou logo ter contigo... estamos entendidos?-. Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça; satisfeito, Leo cruzou os braços e olhou o tecto; não queria tocar-lhe porque esperava de um momento para o outro a chegada indiscreta da mãe. «Melhor do que ficar com a excitação e com o desejo», pensava, «é deixar tudo para mais tarde, quando não houver ninguém e tiver tempo». Mas se olhava para Carla, a cara inflamava-se-lhe como uma lanterna: desejaria agarrá-la, abraçá-la, possuí-la sobre aquele sofá, nesse mesmo momento.

Estes apetites aumentavam, por reflexo, o seu ressentimento contra a amante; recordou-se da cena de ciúmes que Maria-grazia lhe fizera na noite anterior e veio-lhe uma zanga sem piedade.-A tua mãe-disse, bruscamente, a Carla-é uma tola de primeira grandeza.

A rapariga voltou-se e ia a responder-lhe, mas foi impedida por um ruído de portas; quase arrastando Michele pela mão, a mãe entrou.-Bom dia, Merumeci-gritou para o amante; depois, sem transição, apontando o filho:-Aqui o Michele- gritou-diz que, se em vez de lhe cedermos a vila a vendermos em hasta pública, podemos pagar-lhe a si e ficar além disso com umas dezenas de milhares de liras... isto é verdade?

A cara de Leo ensombrou-se.-É uma tolice-disse ele, sem se mover-ninguém poderá oferecer nunca pela vossa vila mais do que eu lhes dou.

-Mas no fim de contas-disse Michele, adiantando-se-tu não nos dás nada... fazes-nos ir embora... e é tudo.

-Já lhes dei-respondeu o outro, irritado e aborrecido, fitando a janela, cheia da brancura do céu.-E de resto- acrescentou,  em   voz  ressentida-façam  o  que  quiserem... vendam a vila, ofereçam-na, o que quiserem... mas aviso-vos de que não os ajudarei com coisa nenhuma... e que no dia do vencimento aquela soma tem que estar aqui, nas minhas mãos.

Leo sabia o risco que enfrentava com aquelas palavras; e se eles vendessem a vila em hasta pública? Em tal caso, o verdadeiro valor revelar-se-ia e o negócio falharia; mas a mãe, que não sabia de hastas nem de vendas, que tinha a impressão de que negócio era sinónimo de trapaça e que, sobretudo, temia um abandono por parte do amante e tudo faria para lhe agradar, tranquilizou-o.

-Não-interveio ela-em hasta talvez não... mas o senhor, Merumeci, poderia oferecer-nos melhores condições... poderíamos chegar entre nós a um compromisso.

-Qual?-perguntou o homem, sem a olhar.

-Por exemplo-disse a mãe, com imensa estupidez- deixar-nos o usufruto da vila enquanto o Michele não ganhar, não trabalhar, e a Carla não tiver casado.

Uma gargalhada alta, forçada, desdenhosa, acolheu esta proposta.-Então havia de esperar um bocado-disse Leo, por fim, logo que a sua falsa hilariedade abrandou-um bom bocado...-. Olhou Carla e, nos seus olhos, entre tristes e resignados, leu o seu pensamento: «Quem quererá casar comigo depois?». Mas o sentimento que daí derivou foi diferente, nenhuma piedade ou melancolia, apenas vaidade, orgulho de ser a fatalidade vivente daquela vida.

-Como?-perguntou a mãe, ofendida.-Que quer dizer?

-Não gostaria de ser mal-entendido-explicou Leo.-Não duvido de que a Carla se case muito em breve e desejo-lho de todo o coração... mas quanto ao Michele, não creio que possa ganhar dinheiro antes de muitos anos nem que esteja no bom caminho para o ganhar... sobre este ponto, minha cara senhora, tenho as minhas sérias dúvidas.

Até então, Michele, que se deixara arrastar de má vontade pela mãe para aquela discussão, calara-se; mas agora, ao ouvir-se tão abertamente acusado de mandriice e de incapacidade, compreendeu que tinha de agir contra toda a indiferença. «Chegou o momento de me indignar», pensou; avançou um passo.-Eu-disse, num tom absolutamente falso-não sou o que tu supões... demonstrarei com os factos que sei trabalhar e ganhar como outro qualquer... verás-acrescentou, admirando no seu íntimo a cara da mãe, cheia de aprovação e de orgulho-que mesmo sem a tua ajuda conseguirei sustentar-me e à minha família.

-Muito bem!-exclamou Mariagrazia; passou com orgulho a mão pela cabeça do filho que lhe sorriu por piedade. -O Michele trabalhará e ficará rico-disse, exaltada.-Não temos necessidade de ninguém, nós.

Mas Leo não era tão estúpido; ergueu os ombros com furor.-Tolices!-gritou.-Com o Michele nunca se sabe se se está a brincar ou se se está a falar a sério... És um bobo, tal qual, não és senão um bobo-. A sua indignação estava no auge; se havia coisas sobre que não admitia graças, eram exactamente os negócios; sentia ganas de os deixar a todos ali e ir-se embora.

Michele avançou mais um passo. «Bobo ?». Era ou não era uma injúria grave, ofensiva da sua honra e da sua reputação, aquele «bobo» ? A julgar pela sua própria calma indiferente, não; mas se, pelo contrário, se pensasse no significado da palavra e no sentimento pouco amigável que a inspirara, decerto que sim. «Agir», pensou ele, com uma espécie de embriaguez, «esbofeteá-lo, por exemplo». Não havia um minuto a perder; Leo estava ali, a um passo de distância, encostado ao vão da janela, contra o reposteiro de veludo; aquela face em que devia bater estava em plena luz, larga, sanguínea, bem nutrida, bem barbeada, toda a mão se afundaria nela, não era de temer não acertar no alvo... portanto...

-Ah, sou um bobo-disse, em voz incolor, aproximando-se ainda mais.-E não supões que possa ofender-me?

-Por mim, ofende-te à vontade-respondeu Leo, com um sorriso descuidado mas olhando-o atentamente.

-Então toma lá-. Michele levantou a mão... mas, pelo pulso, com uma rapidez surpreendente, o gesto foi detido, refreado; sem perceber sequer como acontecera, achou-se esmagado no canto da janela; Leo segurava-o pelos pulsos; atrás dele, consternadas, haviam acorrido as duas mulheres.

-Com que então querias esbofetear-me!?-disse por fim o homem, com uma espécie de sarcasmo tranquilo.-Mas estás enganado... ainda não nasceu aquele que o há-de conseguir... -. Falava com calma mas cerrando os dentes. Atrás dele, a mãe exclamava:-O que foi?! Porquê?! - . Quanto a Michele, não obstante a sua própria posição incómoda, foi sobretudo chocado pela elegância forte e segura do homem: um casaco assertoado, de fazenda castanha, cingia-lhe o tronco; a camisa era branca e fresca; o colarinho engomado, de um linho brilhante e imaculado, rodeava à maravilha o pescoço barbeado; uma gravata cor de havano, nletada de amarelo, com um nó sóbrio, inseria-se na abertura do colete; observou tudo isto em poucos segundos; depois levantou os olhos e disse simplesmente: - Larga-me.

-Não, meu caro-respondeu-lhe o outro-não... não te largo, ainda tenho que te dizer para meia hora... - . Entretanto a mãe e Carla haviam-se metido de permeio.-Largue-o, Merumeci-disse a rapariga, pousando a mão no ombro do irmão e fitando o amante-também pode falar-lhe sem o segurar dessa maneira, não lhe parece?

Separaram-se os dois.-Não tenho mais nada a dizer-lhe -pronunciou o homem, secamente-a não ser que vai sendo tempo de acabar com isto... e que, aparte o facto de tudo isto ser inadmissível, não me parece que seja esta a melhor maneira de se chegar a um compromisso.

-Tem mil vezes razão-disse a mãe, com uma pressa aduladora-mas não pense no Michele... não sabe o que faz...

«E tu sabes!», pensou o rapaz, olhando-a.-Mas então porque foi que me meteste na dança?-perguntou, adiantando-se.

-E por isso-continuou a mãe, sem se ocupar da interrupção do filho-se quiser falar deste negócio, dirija-se a mim.

-Então é assim?-disse Leo, olhando à sua volta aqueles rostos hesitantes.-Pois bem, direi de uma vez por todas as minhas últimas condições: deixo-lhes a vila até encontrarem outra casa... e depois... além disso... dou-lhes uma certa soma... vejamos... por exemplo, trinta mil liras.

-Trinta mil liras ?-repetiu a mãe, abrindo muito os olhos.-O quê?

-Eu explico-me-disse Leo.-A senhora afirma que o valor da vila ultrapassa o montante da hipoteca... eu digo que não, mas para lhe demonstrar que sou realmente amigo, dou-lhe trinta mil liras suplementares... que representam... sei lá... as obras que possam ter sido feitas nos últimos tempos... e, seja como for, as benfeitorias efectuadas depois da hipoteca...

-Mas a vila vale mais, Merumeci-insistiu a mãe, quase dolorosamente-vale  mais...

-Então sabe o que lhe digo ?-respondeu Leo, com calma. -Venda-a a qualquer outro e verá que, sem falar das trinta mil liras, nem sequer me conseguirá pagar... Primeiro que tudo, com a crise que há, é uma péssima ocasião, ninguém compra e todos querem vender; basta ver a quarta página de um jornal para o verificar... e além disso, como a vila fica fora da cidade, é difícil encontrar alguém que queira vir morar para cá... Mas faça como quiser... não quero ter, por nada deste mundo, o remorso de a haver aconselhado mal.

 

-Eu aceitaria as condições de Merumeci, mamã-disse Carla.-Por mim, estou ansiosa por deixar esta nossa vila e ir para outro lado talvez pobre.

A mãe teve um gesto exasperado.-Está calada, tu! - . Após o que se seguiu um silêncio consternado; Mariagrazia via a miséria, Carla a destruição da antiga vida, Michele não via nada e era o mais desesperado dos três.

-Seja como for-acrescentou o homem -podemos voltar a falar no assunto... Vá... vá depois de amanhã ao meu escritório, minha senhora... e assim poderemos discutir mais demoradamente.

A mãe anuiu com uma espécie de ávido e doloroso entusiasmo:-Depois de amanhã?... Depois de amanhã à tarde?

-À tarde.

Não falaram durante alguns instantes; depois, após uma frase de convite de Mariagrazia, passaram os quatro da sala para a casa de jantar.

A mesa fora preparada com solenidade e refinamento: pratos e cristais, toda a baixela melhor da família,cintilavam sobre a toalha branca à luz branca da casa de jantar; a mãe sentou-se à cabeceira da mesa e, embora os lugares fossem os mesmos da noite anterior, redistribuiu-os:-Merumeci aqui, ali a Carla... ali o Michele-não se sabe se para fazer realçar a importância da festa, se por um antigo hábito de convidar em tais ocasiões mais numerosos comensais.

-Desejaria-disse ela, começando a comer-fazer para este dia de Carla um jantar como eu o entendo, com todos os matadores, em suma, um jantar em regra... mas que fazer? Hoje- em dia não é possível isso tudo... tenho uma cozinheira que, sem ser má, não chega a ser boa... é bom de dizer... faça assim e assim... falta a paixão... ora, quando não há paixão, falta tudo.

-Tens razão-aprovou Michele, com irónica gravidade -é exactamente assim... sem paixão não se faz nada... eu, por exemplo, por muito que me tenha forçado a dar uma bofetada ao Leo, não o consegui... falta-me a paixão.

-A que propósito vem isso?-interrompeu a mãe, fazendo-se vermelha de cólera.-A que propósito vem o Leo?... Estamos a falar da cozinheira... Ah, Michele, és sempre igual a ti mesmo... até num dia como este, no dia em que nasceu a tua irmã, quando devíamos esquecer tudo e regozijarmo-nos sinceramente, tu, pelo contrário, falas de bofetadas, de brigas... Nunca te corrigirás então?

-Deixe-o falar, minha cara senhora-proferiu Leo, sem levantar os olhos do prato-para mim é o mesmo... não o oiço.

-Eu calo-me, mãe, eu calo-me-exclamou Michele, que compreendera a tempo ter tocado uma tecla falsa-não tenhas dúvida... que fico mudo como um peixe e não torno a perturbar esta festa.

Voltou o silêncio; a criada entrou e tirou os pratos; depois, a mãe, que não deixara de fitar o amante com aqueles seus olhos indagadores, voltou-se: -Divertiu-se ontem à noite, Merumeci ?

Leo deitou um olhar à rapariga, como a dizer-lhe: «Pronto cá estamos». Mas Carla não lhe correspondeu; ouviu o homem perguntar:-Onde? Quando?-e sentiu no mesmo instante um pé a comprimir o seu debaixo da mesa; mordeu os lábios: aquela duplicidade mesquinha dava-lhe uma sensação de grande obscuridade, desejaria levantar-se, gritar a verdade.

-Onde?-respondia a mãe, entretanto.-Com a Lisa... que diabo!

-Ora!... Se a senhora acha que há qualquer coisa de divertido em acompanhar uma pessoa a casa.

-Eu não-protestou a mãe, com um riso malicioso.-Eu, com certas companhias aborreço-me francamente... mas o senhor sim, procura essas companhias, o que quer dizer que lhe agradam.

Leo já ia responder quando, com a sua costumada inopor-tunidade, Michele interveio:-Oh, mãe-exclamou, parodiando as palavras que Mariagrazia proferira anteriormente -és sempre igual a ti mesma!... Até num dia como este, no dia em que nasceu a tua irmã, não, desculpa, a tua filha, quando devíamos esquecer tudo e regozijarmo-nos sinceramente, tu, pelo contrário, falas de Lisa, de acompanhamentos... Nunca te corrigirás então?

Esta palhaçada fez sorrir Carla contra a sua vontade e rir francamente Leo.-Muito bem, Michele!-gritou este último; mas a mãe ofendeu-se:-Que tens tu com isso?-disse, dirigindo-se ao filho.-Eu posso falar tanto quanto quiser das minhas coisas a Merumeci, sem que por isso tu tenhas que te meter.

-Mas num dia como este?

-E isso que tem?-. A mãe levantou os ombros com furor. -Apenas fiz uma alusão... e de resto-acrescentou-falemos antes de outra coisa... mas o senhor, Merumeci, fica avisado de agora em diante de que deve escolherqualquer outro lugar para se encontrar com as suas amantes... eu não tenho uma casa de entrevistas... compreendeu?

Era a primeira vez que Mariagrazia se abandonava a tais violências; aconteceu então um facto imprevisto; Carla, que durante aquelas cenas se calava sempre, protestou: - Gostaria de saber uma coisa-começou; as palavras e o tom esforçavam-se por parecer calmos mas as contracções do rosto pueril, um certo rubor e a dureza insólita dos olhos revelavam uma ira profunda.-Gostaria de saber, mamã, se tu reparas no que dizes... era só isto que gostaria de saber.

A mãe olhou-a como se olha um fenómeno vivo.-Ah, esta é nova!... Agora já nem sequer tenho liberdade de falar.

-Gostaria de saber-insistiu Carla, e a voz já era mais alta, vibrava, havia um tremor nos seus lábios-se tudo isto devia ser permitido...-. Inclinou um pouco a grande cabeça e fitou a mãe nos olhos, estranhamente de baixo para cima.

Houve um instante de silêncio; os outros três fitavam-se uns aos outros, assombrados e sem compreensão; talvez apenas Leo tivesse nesse momento uma percepção vaga do estado de alma de Carla; para melhor olhar a mãe, pusera-se um pouco de lado à mesa, estava como agachada na cadeira de espaldar demasiado alto, os ombros magros pareciam mais estreitos, a cabeça maior... parecia que se preparava para saltar. «Uma pequena fúria», pensou ele, observando-a, «agora atira-se à Mariagrazia e rasga-lhe a cara com as unhas». Mas aquelas previsões catastróficas não deviam realizar-se; Carla não fez senão levantar a cabeça.-Era isto que gostaria de saber -repetiu-e se é possível continuar assim, todos os dias, com este aborrecimento, e não mudarmos nunca e nunca deixarmos estas misérias, e deleitarmo-nos com todas as parvoíces que nos passam pela cabeça, e discutirmos e contendermos sempre pelas mesmas razões, e não nos afastarmos nunca da terra nem tanto como isto-e levantou a palma da mão acima da mesa. Os olhos irados enchiam-se-lhe de lágrimas; tremia.-Agora -acrescentou, endireitando-se completamente-gostaria de saber de ti se tudo isto é bonito... tu não dás por isso... mas devias ver-te num espelho enquanto falas, enquanto discutes. Então te envergonharias de ti mesma e compreenderias até que ponto se pode chegar com o aborrecimento e o cansaço, e quanto se pode desejar uma vida nova completamente diferente desta...-. Calou-se e, um poucp corada e lacrimosa, sem saber sequer o que estava a fazer, serviu-se do prato que a criada lhe estendia.

Por fim, a mãe voltou a si do seu pasmo.-Isto é o cúmulo! -exclamou.-Será então à minha filha que deverei dirigir-me a partir de hoje para ter autorização de falar?... Estava a ouvir-te mas parecia-me estar a sonhar... É o cúmulo.

-A mim parece-me-disse Michele, tranquilamente-que Carla aflorou apenas a verdade... Tudo isto é mais do que aborrecido, é nojento... mas protestar não serve de nada; é melhor habituarmo-nos.

-Não exageremos-disse Leo, conciliador.-Carla não quis dizer isso.

-Deixe-se disso-respondeu-lhe a mãe-eu conheço os meus pintos... sabe o que eles são, tanto a Carla como o Michele? Egoístas... eis a verdade... egoístas, que, se o pudessem fazer, se iriam embora e me deixariam sozinha.

A sua voz tremia, os seus lábios tremiam; todos se iriam embora, Leo e os outros, e ela ficaria realmente só. Carla olhou-a; arrependia-se agora de ter falado; e para quê? Não se seca o mar com um copo, e a mãe ficaria como era, sem compreensão, ridícula, perdida na escuridão, não mudaria nem por milagre; nada havia a ganhar em chocar contra ela; era melhor agir. «Ir-se embora de verdade», pensou ela, fitando o rosto corado e tranquilo de Leo, «hoje mesmo, agora, e nunca mais voltar». Sufocando, porém, o seu desgosto, preparou-se para a reconciliação:-Vejamos, mamã, não quis ofender-te-disse, com brandura-mas somente pedir-te, por ser hoje o meu aniversário, tu mesma o disseste, que se ponha de lado qualquer discussão e... e...

-E que nos regozijemos sinceramente-concluiu Michele, com um trejeito.

-Exactamente - aprovou Carla, com seriedade. 

-Regozi-jarmo-nos.-Mas ao ver a cara estúpida, descontente e incerta da mãe, desejaria gritar: «Regozijarmo-nos porquê? Por sermos assim como somos?» Ficou calada por um instante. -Então, mamã - acrescentou - não ficaste ofendida, pois não?

-Eu nunca me ofendo-respondeu a mãe, com dignidade -mas não me parecia que fosse essa a maneira como uma filha respeitosa deve falar a sua mãe.

-Tens mil vezes razão, mamã-insistiu Carla, cada vez mais branda-mil vezes razão... mas agora é preciso esquecermo-nos de tudo e pensar em coisas mais alegres.

-És muito esperta, tu -disse a mãe, com um meio sorriso.-Pois seja, esqueçamo-nos então, precisamente por ser hoje a tua festa... senão, seria de outra maneira.

-Muito bem-aprovou Carla, sem abandonar o seu tom de serenidade cheia de boa vontade-agradeço-te, mamã... e agora, vocês dois, Leo e Michele, contem-nos qualquer coisa alegre para podermos rir

-Assim, de pé para a mão-disse Leo, pousando o garfo -não sei realmente o que possa contar.

-Eu-começouMichele-sei uma história realmente muito boa... querem que conte?

-Vamos ouvir-encorajou a mãe.

-Ora bem.-Michele levantou a cabeça e começou a contar:-Era a noite de Sexta-feira Santa e os bandidos calabreses estavam reunidos à volta da fogueira. A certa altura disse um deles: «Tu, Beppe, que sabes tantas, conta-nos uma história bonita»; e Beppe, em voz cavernosa, começou: «Era a noite de Sexta-feira Santa e os bandidos calabreses estavam reunidos em redor da fogueira. A certa altura disse um deles: «Tu, Beppe, que sabes tantas, conta-nos uma história bonita»; e Beppe, em voz cavernosa, começou: «Era a noite de Sexta--feira Santa...»

-Basta, basta-interrompeu a mãe, rindo-por favor... nunca mais acaba... já percebemos.

-A serpente que morde a cauda-sentenciou Leo.

Entrou a criada com uma torta maravilhosa sobre a qual, em letras de creme, estava escrito «parabéns!». Serviu-se primeiro a mãe, depois Leo, depois Carla e por fim Michele.

-Então não gostaram?-perguntou este último.

-Mesmo nada-respondeu a mãe, que comia com compunção-mais estúpida do que isso...

-São essas as coisas que aprendem na Universidade? -perguntou tranquilamente Leo, sem levantar os olhos do prato.

Michele olhou-o de soslaio mas não respondeu.-Tinha ainda outra história-insistiu-mas receio que essa também não seja de molde a agradar-lhes... Tratava-se de uma senhora de idade madura que tinha um amante...

-Mas essa não é uma história alegre-interrompeu à pressa Carla, olhando atentamente o irmão-e eu quero-as todas para rir.

-Depende-observou Leo-pode ser alegre e pode não ser.

-E além disso, Michele-disse a mãe, com dignidade -não gosto que fales tão livremente dessas coisas diante de Carla...

As palavras da mãe quase fizeram sorrir Leo... «Ora deixa-te disso», pensou, divertido, «Carla sabe mais do que tu». Procurou debaixo da mesa o pé da rapariga e pisou-lho, como para a convidar a rir consigo; mas, como anteriormente,

ela não correspondeu àquele seu contacto confidencial e cúmplice; já não tinha vontade de rir; olhava a mãe, aquela máscara estúpida e indecisa, suspensa na luz branca da sala. «Acabar depressa com tudo isto», pensava, «fazer de maneira que amanhã já ela não possa falar assim», e, com a impaciência que a invadia, tinha vontade de fazer um gesto expressivo ou de soltar uma gargalhada irónica, de modo que a mãe não ficasse com nenhuma ilusão sobre a sua inocência.

-Que pena!-dizia Michele, entretanto.-Era uma história muito instrutiva... talvez não para rir... mas instrutiva.

Após o que voltou o silêncio; a criada mudou os pratos e trouxe a fruta.-E assim, Carla-disse Leo, descascando uma maçã com muita atenção-deve começar para ti, a partir de hoje, uma vida nova, não é verdade?

-Espero que sim-respondeu Carla, com um meio suspiro; atormentava-a uma ideia: quando se entregaria a Leo? Nessa noite ou noutro dia?

-Nova em que sentido?-perguntou a mãe.

-Em todos os sentidos, mamã.

-Não te compreendo, minha querida-disse Mariagrazia. -Explica-te, dá-me um exemplo.

-Nova... isto é, menos estúpida, menos superficial, menos inútil, mais profunda... do que a que faço agora...-a rapariga fitou-a-nova no sentido de mudar completamente.

-Carla tem razão-afirmou Leo.-De vez em quando faz bem mudar.

-O senhor esteja calado-acrescentou a mãe, inquieta. -Não compreendo... mudar de vida como? Uma bela manhã levantas-te e dizes: «Hoje quero mudar de vida». Como é possível tudo isso ?

-Podemos praticar algumas acções-disse Carla, sem erguer os olhos e cerrando os dentes de raiva-que transformem em tudo e por tudo a maneira de viver.

-Mas, minha querida-respondeu a mãe, com dureza -não vejo como uma rapariga de bem pode mudar de vida a não ser casando-se... Então a vida muda, na verdade... têm-se as responsabilidades de uma casa, é preciso cuidar do marido... depois educar os filhos, se os houver... todo um complexo de coisas que transforma radicalmente os nossos hábitos... Ora eu desejo-to de todo o coração mas parece-me pouco provável que te possas casar de hoje para amanhã... e portanto não vejo como pode a vida, inesperadamente, só porque assim se quer, mudar...

-Mas, mamã-arriscou Carla, apertando nervosamente o cabo da faca que tinha na mão-há outras coisas além do matrimónio que podem introduzir mudanças na existência de uma pessoa.

-Como por exemplo?-interrogou Mariagrazia, muito friamente, cortando um gomo da sua maçã.

Carla olhou-a quase com ódio. «Como por exemplo tornar-me amante do Leo», desejaria responder, e imaginava, com um prazer triste e ávido, o pasmo, a indignação, o medo que despertariam aquelas palavras; soube, porém, em vez disso, ser resignadamente irónica:-Por exemplo-explicou, em tom desconfiado-se encontrasse hoje o director de uma casa cinematográfica americana e ele, tocado pela minha beleza, me propusesse tornar-me uma actriz... pronto, a minha vida mudaria imediatamente...

A mãe torceu a boca.-Raciocinas como uma criança... Contigo não se pode falar...

-Tudo é possível-disse Leo, a quem interessava agradar à rapariga.

-O quê?-disse a mãe.-Que a minha filha se torne uma actriz hoje mesmo? O senhor, Merumeci, não sabe o que diz.

-Mas, pondo de parte as brincadeiras-insistiu Carla -ao que parece abandonaremos a vila dentro em breve e iremos morar para outro sítio qualquer... e até tentaremos fazer menos despesas... e então a vida não terá que mudar por força?

-Quem disse que nos iremos embora?-afirmou Mariagrazia, com uma espécie de imprudência desesperada, fitando o amante nos olhos.-Enquanto não tiveres encontrado um marido, ficaremos aqui.

Leo olhou-a, fez-se vermelho de cólera e reprimiu com dificuldade um violento erguer de ombros. «Ficam mas é um corno», desejaria gritar-lhe, «hão-de ir-se embora, hão-de ir-se embora a passo de corrida».

-Ficaremos-repetiu a mãe, com um sorriso pouco firme, -Não é verdade, Merumeci, que ficaremos?

Todos fitaram o homem. «Que diabo a carregue», pensou ele, mas respondeu:-Sim, sim, ficarão-desejoso acima de tudo de não provocar cenas e de não estragar as coisas com Carla.

-Estás a ver?!-exclamou a mãe, triunfante.-Tenho a palavra de Merumeci... por ora nada mudará.

-Por uma hora... sim-murmurou o homem, mas em voz tão baixa que ninguém o ouviu. Foi nesse momento que Carla teve a sua segunda explosão irreprimível; os três viram-na fazer-se muito corada e, inesperadamente, bater com um punho na mesa.-Eu... eu não acredito em nada disto-disse, numa

voz tão alta que parecia estridente.-Tu, mamã, queres ver-me sufocar... eu prefiro a ruína, sim, entendes ? A ruína... a todas estas coisas; prefiro ir até ao fundo, lá em baixo. Ainda outro dia o dizia ao Leo, não penso noutra coisa de dia e de noite e até esta manhã, mal me levantei e olhei ao espelho, disse para comigo: «Começa para mim um novo ano que deve ser absolutamente diferente do que passou, porque é impossível continuar assim... é impossível»-. Bruscamente, de corada tornou-se pálida, baixou a cabeça e começou a chorar; todos se olharam cara a cara, embaraçados, e a mãe até se levantou; aquele pranto devia parecer-lhe bastante sincero para tirar toda a importância às acusações que o haviam precedido; aproximou-se da rapariga:-Que razão há para te pores a chorar, assim, sem fundamento... Coragem!... Hoje é a tua festa... não é preciso chorares...

Carla não levantou a cabeça; os soluços sacudiam-na; mas havia nas palavras brandamente consoladoras da mãe um eco tão límpido dos tempos da sua infância, com os seus desgostos pueris e os confortos maternais, que se insinuou uma comoção relutante na sua dor árida; pareceu-lhe voltar a ver-se como era então, menina, pungiu-a um pesar inesperado por ter perdido aquela inocência e aquela irresponsabilidade, passaram-lhe diante dos olhos, através do véu das lágrimas, figuras e acontecimentos daqueles anos; foi um instante; ouviu depois Leo encorajá-la por sua vez:-Éla... alegra-te... chorar para quê?-e voltou a erguer a cabeça.

-Têm razão-disse, em voz firme, enxugando os olhos -hoje é a minha festa...-. Teria desejado acrescentar mais alguma coisa mas conteve-se.-Que diabo!-exclamava entretanto Leo.-Chorar à mesa-. A mãe sorria estupidamente; era tudo ao mesmo tempo doce e amargo.

Somente Michele se não moveu nem falou. «Histerismos», pensara, ao ver a irmã rebentar em lágrimas; «se um rapaz da sua idade a amasse e ela o amasse, estaria calma e feliz». Não fazia qualquer diferença entre a irmã e os outros dois, todos três lhe pareciam intoleràvelmente falsos e longínquos; olhava-a: «Será possível», perguntava a si mesmo, angustiado, «que seja apenas este o meu mundo, a minha gente?» Quanto mais os ouvia mais lhe pareciam ridículos e incompreensíveis nas suas sinceridades solitárias. «Rir, pensava, «é preciso rir-me; mas sem compreender porquê, não sabendo se era por desgosto ou por piedade, ao vê-los ali, Leo, a mãe. Carla, pela milésima vez, imutáveis apesar de tão cheios de defeitos, sentados à volta daquela mesa, o rosto voltava a ensombrar-se-lhe, os olhos fechavam-se-lhe de cansaço. «Há um erro, repetia para consigo, «deve haver um erro», e baixava a cabeça para esconder as pálpebras molhadas.

Ninguém viu, ninguém percebeu; a fruta havia sido comida, cada um deles tinha à sua frente uma taça e Leo, muito atento, lia os rótulos de duas garrafas de vinho francês que a criada trouxera nesse momento.--Este é bom-disse, finalmente, como conhecedor-e este é óptimo.

-Uma primeiro e a outra depois-disse a mãe, sabiamente.-Abra-as o senhor, Merumeci.

Leo pegou na garrafa e tirou-lhe o arame.-Um, dois, três-contou, teatralmente; ao «três a rolha explodiu e, à pressa, para não derramar a espuma, Leo deitou o vinho nas taças; puseram-se todos de pé sob o lustre poeirento.

-À tua saúde, Carla-disse a mãe, em voz baixa e íntima, como se se tratasse de algum segredo; os copos tocaram-se; os vocativos amáveis e, de certo modo, patéticos, cruzaram-se em todos os sentidos: «Mamã», «Michele», «Carla», «Minha senhora», «Merumeci», sobre a mesa em desordem, entre aquelas quatro cabeças curvadas; o cristal das taças tilintava, tilintava dolorosamente a cada toque; depois todos beberam, fitando-se por cima do vinho, com olhos hesitantes.

-É bom-disse, por fim, a mãe.-Sente-se que é velho.

-É muitíssimo bom-reforçou Leo.-E agora-acrescentou-farei um discurso... um discurso a cada um, mas, antes de tudo o mais, peço ao Michele que não faça aquela cara de condenado à morte: não é cicuta, é champagne.

«Tens razão», pensou Michele, «é preciso rir», e fez um esgar estúpido, tão estúpido que ele próprio deu por isso e sorriu.

-Assim está bem-disse Leo, muito contente com aquela sua- alusão a Sócrates; ergueu a taça:-À tua nova vida, Carla-. Sorriu e foi tocar a sua taça na da rapariga.-Sei muitíssimo bem-continuou, olhando-a maliciosamente-quais são os teus grandes desejos e no que pensas dia e noite... Creio por isso que acerto no alvo desejando-te um matrimónio feliz em todos os sentidos e, portanto, com um homem rico, bonito e inteligente... Adivinhei ou não? - . De trás da sua taça, a mãe, jubilosa, fez sinal a dizer que sim; a festejada, pelo contrário, não respondeu nem sorriu; aquela falsidade alusiva e irónica do homem fazia-a pressentir a ruína a que se expunha, mas precisava deixar-se cair até ao fundo da vida; fez-lhe com os olhos um frio sinal de assentimento e não sem desgosto,

pois aquele vinho francês nunca lhe agradara, esvaziou a taça até à última gota.

-À saúde da senhora-continuou Leo-e pelo que me parece ter compreendido, já que são esses os seus desejos, desejemos-lhe, em resumo, ao contrário de Carla, que nada venha a mudar nunca, que fique tudo como está, com os velhos hábitos e também-acrescentou, com uma habilidade inspirada-com os velhos amigos-. Viu-a sorrir como se lhe tivessem feito cócegas debaixo dos braços.-Vivam os velhos amigos!-gritou ela, perdidamente; foi depois tocar a sua taça na do amante e bebeu com entusiasmo.

-À nossa amizade, Michele-disse finalmente Leo; bebeu de um só trago e, aproximando-se do rapaz, estendeu-lhe a mão; Michele fitou Leo que sorria, seguro e bonachão, fitou aquela mão aberta, ali, sob o seu nariz, ele sentado, Leo de pé; via-lhe o busto amplo e, de baixo para cima, aquele sorriso corado e paternal que serpeava entre as faces pesadas. «Recusar, pensou, «recusar e rir-lhe na cara, e deu mostras de se levantar, pousando o guardanapo na mesa. Então, olhando à sua volta, reparou que um silêncio profundo se seguira aos risos, às palavras e aos brindes; o lustre e a baixela em desordem na mesa não estavam mais imóveis do que Carla e a mãe; esta última, então, fitava-o, com a cabeça apoiada nas mãos, ansiosa e imperiosa; duas rugas atravessavam-lhe a testa e não se percebia se suplicava ou se ordenava.

Voltou-lhe o mal-estar da compaixão. «Não tenhas medo», quisera dizer, «ninguém toca no teu homem, mamã, ninguém...» Os seus olhos, entre Leo e a mãe, fixavam-se e desviavam-se num deslumbramento de luz branca... era um sonho, uma ameaça de indiferença.

-Vamos... vamos...-ouviu Leo dizer-dá-me a tua mão e que tudo esteja acabado.-Estendeu a mão direita e Leo apertou-a; logo a seguir, com uma espontaneidade que lhe pareceu inverosímil, encontrou-se entre os braços do homem; abraçaram-se e beijaram-se.

Imediatamente voltou a maior alegria.-Assim está bem- aplaudiu a mãe-muito bem, Michele.-Não é admissível- gritou Leo, contentíssimo-que entre duas pessoas de bem como o Michele e eu haja desacordos-mas pensava para si: «E agora que nos abraçámos deixar-me-ás em paz?». Somente o rapaz, lá à ponta da mesa, inclinava a cabeça sobre o prato e parecia que estava envergonhado, que estava arrependido daquele abraço como de uma má acção; levantou finalmente os olhos: aqueles três,  agora, ultrapassado o obstáculo do seu ódio, já não se ocupavam mais com ele, estavam reagrupados em redor da outra ponta da mesa, pareciam longínquos e estrangeiros, como vistos através de um vidro; riam, bebiam... e ignoravam-no.

Leo voltara a pegar na garrafa e servia vinho às duas mulheres, sobretudo à filha. «Deixo de ser quem sou», pensava, «se não faço a Carla beber pelo menos uma destas duas garrafas». Sabia que a embriaguez lhe facilitaria a conquista, já imaginava as delícias daquele encontro no jardim e, quer fosse por causa da refeição abundante quer por outra coisa, uma lascívia túrgida rastejava no seu corpo.

-Portanto, lembrem-se bem-disse, severamente, levantando a sua taça-não se deixa a mesa antes de estarem vazias estas duas garrafas.

-Beba-as o senhor-disse a mãe, que ria muito e que, entre um e outro riso, lançava ao amante olhares patéticos e inflamados-beba-as o senhor ou a Carla... eu não, positivamente.

-Muito bem-aprovou o homem.-Bebemo-las eu e a Carla... não é verdade, Carla?-e ergueu a taça.

A rapariga fitou-o; aquele vinho não lhe agradava e até lhe repugnava, mas havia no gesto do amante e no olhar que o acompanhava uma imperiosidade irresistível e ameaçadora que a fez, contra a sua vontade, obedecer ao convite.-Todo- recomendou o homem-até à última gota-. A mãe ria; ela fitou Leo e a seguir Mariagrazia. «Embriagar-se, pensou, de súbito, febrilmente, aterrada; aquelas caras, à luz branca da tarde, assustavam-na; eram os rostos mesquinhos e incompreensíveis da sua vida. «Não ver mais isto tudo». Ergueu a taça com repugnância e bebeu até ao fim, até a ver vazia; o líquido espumante, adocicado, de sabor irritante, encheu-lhe a boca; não o engoliu imediatamente e, por um instante, teve o desejo de o cuspir na cara do amante; mas conteve-se, semicerrou as pálpebras e escutou os gorgolejos satisfeitos na sua garganta enjoada; depois reabriu os olhos: a garrafa estava novamente suspensa sobre a sua taça, a mão de Leo inclinava-a e uma onda amarela de vinho enchia o copo.

Leo falava com a mãe:-Beba também-exortava-a.

-A senhora conhece o rifão: «Enche o copo que está vazio e

despeja o que está cheio, não o deixes nunca vazio nem o deixes

nunca cheio».

-Oh, oh!- ria a mãe, alegre com aquelas chalaças batidas.

-In vino ventas -continuou Leo.-Beba comigo... tenho a certeza de que a senhora, ao segundo copo, já cá não está...

A mãe ofendeu-se. - Está enganado-disse, com dignidade -há poucas pessoas que sejam capazes de suportar o vinho como eu-e, para dar uma prova da sua valentia, esvaziou a taça.

-Ora vejamos-gracejou Leo, agora completamente de bom-humor, mostrando dois dedos:-Quantos são estes?

São  vinte-respondeu  a  amante,  com  uma  explosão de riso.

Muito bem.-O homem ficou calado, por um instante, fitando as duas mulheres, a mãe e a filha.-É agora-acrescentou, dirigindo-se inesperadamente a Carla-bebamos... bebamos à saúde do teu futuro marido.

-Assim-gritou a mãe, contentíssima-também eu bebo.

Carla hesitou; já lhe deformava a visão um princípio de embriaguez; era como trazer óculos demasiado fortes ou olhar para um aquário; os objectos tremiam, uniam-se, confundiam-se. «Mais esta taça», pensou, «e não compreenderei mais nada». Sorriu confusamente, ergueu a taça repugnante e bebeu; pareceu-lhe ter dado subitamente um salto imenso para o céu da embriaguez, invadiram-na uma grande alegria e uma necessidade de falar e de mostrar aos outros que estava completamente consciente.

-Não me desagrada beber à saúde do meu futuro marido- disse, destacando bem as sílabas-mas quem será esse marido?

-Só Deus sabe-disse a mãe.

-Se não te considerasse quase como filha-começou Leo -propunha-me eu mesmo para marido... querias-me?

-Tu-gritou ela, apontando um dedo para o homem- -tu meu marido... mas...-. Fitou-o por um instante: não era aquele o amante da sua mãe?-Mas és muito gordo Leo.

-Oh, lá isso-protestou a mãe, ofendida-não é nada gordo... desejar-te-ia um marido como ele.

-Então concordarias, Carla?-insistiu Leo, sorrindo. -Faríamos a viagem de núpcias a Paris...

-Não... prefiro a índia-interrompeu a rapariga, em tom lamentoso.

-Paris é muito mais interessante-disse a mãe, que nunca lá estivera.

-Pois fosse a índia-concedeu Leo.-Oferecia-te um automóvel, uma casa, vestidos... e então casavas comigo?

Carla fitou-o; a embriaguez confundia-lhe as ideias; porque falava Leo daquela maneira? Talvez para troçar da mãe; mas nesse caso era preciso rir.-Eu, por mim-respondeu afinal, hesitante-não tenho nada em contrário... mas seria preciso pedir o consentimento da mamã.

-E a senhora?-perguntou Leo, sempre com o seu sorriso tranquilo e complacente.-Aceitava-me como genro?

-Vejamos-disse, com a palavra fácil, a mãe, a quem, em parte por causa do vinho e em parte pela excitação, tudo aquilo parecia muito cómico.-Vejamos... o senhor tem uma boa posição?

-Sou empregado no Ministério das Mercês e da Justiça- respondeu Leo, com humildade-ganho oitocentas liras mensais... mas os meus superiores gostam de mim... foi-me prometida uma promoção.

-E a sua família?-disse a mãe, impedindo-se a custo de rir.

-Já não tenho família, estou só no mundo.

-É religioso?

-Religiosíssimo.

-Em suma, o senhor supõe-concluiu a mãe-que poderá fazer feliz esta minha filha?

-Estou convencido disso-disse Leo, fitando Carla atentamente.

-Então casem-se e que Deus os abençoe-gritou Maria-grazia, numa explosão de riso.

-Casemo-nos Leo-aplaudiu Carla, sem alegria.

Leo também ria.-Parece-me que o ensaio geral correu bem-disse. -Agora não há mais nada a fazer senão esperar o verdadeiro marido.

Pegou na segunda garrafa e voltou a encher a taça de Carla. «É preciso fazê-la beber», repetia para consigo, «beber como uma esponja». Fitou-a:-Um pequeno brinde à saúde da senhora-propôs; Carla pegou na taça com a mão a tremer e bebeu; então, tão inesperadamente que teve medo, compreendeu que estava ébria; a cabeça girava-lhe, tinha a garganta seca e por mais que dilatasse os olhos não conseguia ver claro; a partir desse momento é lícito afirmar que ela perdeu o conhecimento exacto do que fazia; já não sabia ver nem ouvir; os objectos de vidro e de prata, na mesa, apareciam-lhe tão brilhantes e precisos que os olhos lhe doíam, as caras dos comensais tão imóveis e duras que pareciam máscaras; de vez em quando, porém, uma ondulação trémula penetrava naquela realidade, os contornos tornavam-se nebulosos, os olhos e as bocas alargavam-se como manchas na argila das caras, lampejos feriam o ar; e do mesmo modo quanto ao ouvido: apanhava as palavras inteiras mas, por mais que as voltasse por todos os lados não conseguia penetrar-lhes o significado. «E agora que estou bêbeda», repetia para si, «como conseguirei falar com Leo no jardim?» Este receio obcecava-a, arrepen-dia-se amargamente de ter bebido e tinha vontade de chorar.

A Leo, pelo contrario, interessava-lhe que bebesse; falava com a mãe, fingia não se ocupar da rapariga, não a olhar sequer, mas no meio de uma anedota voltava-se, com o rosto hílare, de garrafa na mão, e servia-a.-Éia, vamos... Carla- e erguia a própria taça; Carla fitava-o e desejaria perguntar: «Porquê ?» A cara imóvel de Leo atravessada por aquela mão que segurava a garrafa, aqueles gestos, aquelas palavras, tudo lhe parecia cheio de uma fatalidade cruel, incompreensível e automática, como se o homem fosse um boneco mecânico ali posto para despejar de cinco em cinco minutos o vinho daquela garrafa; mas não protestava, vencia a própria repugnância e bebia; voltava depois a pousar a taça vazia e fitava-a de olhos cerrados e medrosos; dentro em pouco, pensava, o gargalo largo da garrafa apareceria e entornaria impiedosa-mente uma nova onda de vinho.

Finalmente também acabou a segunda garrafa de vinho. -Bebemo-la-disse Leo, alegremente.-Valente Carla!-. A rapariga não respondeu; tinha a cabeça inclinada e o cabelo pendia-lhe diante dos olhos.-Eh-insistiu o homem-o que é que tens?... Sentes-te talvez um pouco atordoada?... Toma- acrescentou, estendendo-lhe a cigarreira-toma um cigarro-. E de súbito, ao vê-la acendê-lo e fumar com dificuldade: «Não lhe falta senão uma rosa ao peito», pensou, «não lhe falta mesmo mais nada para a supor uma frequentadora de locais nocturnos». E era verdade; como as mulheres, de madrugada, nas salas de baile, Carla apoiava o cotovelo sobre a mesa, a cabeça um pouco despenteada sobre a mão e, com o cigarro pendurado ao canto da boca, olhava diante de si; o vestido demasiado largo e mulheril, que havia pertencido à mãe, escorregara-lhe de um ombro e descobria o princípio branco e empolado do seio; o mal-estar vencia-a; abandonava-se sobre a mesa e pensava morrer.

Mariagrazia olhou para ela sem reprovação.-Vai até ao jardim-aconselhou-vai tomar um bocado de ar... far-te-á bem-. Estas palavras inspiraram a Carla, apesar da embriaguez, um agudo sarcasmo. «O que é que me fará bem?», desejaria responder, «Encontrar-me com Leo?... Com certeza que me fará bem, com certeza»; mas disse em vez disso:-Tens a certeza?-e levantou-se.

Verificou logo como lhe seria difícil não cair; toda a sala ondulava e tremia, o chão subia e descia sob os seus peés como a ponte de um navio, as paredes oscilavam, aquele quadro que estivera direito lá estava agora de través, aquele móvel caía-lhe em cima, parecia-lhe que a mesa com aquelas três pessoas sentadas ia tocar no tecto de um momento para o outro; alguém a fitava, lá de longe', da ponta da mesa, de olhos dilatados e adormecidos; tinha a cabeça apoiada nas mãos; seria Michele? Não teve tempo de o perceber; saiu da sala com passo incerto e desapareceu na sombra do corredor.

-Não está habituada ao vinho-disse a mãe, que a seguira com os olhos.

-Pois é-respondeu o homem.-Somente quem, como eu, esteve na guerra e bebeu a aguardente que lá fazem, é que pode saber o que é a embriaguez.-Pegou na garrafa e deitou as poucas gotas que restavam na taça de Carla.-À nossa amizade, Michele-gritou, voltando-se para o rapaz.

Mas Michele não falou, não bebeu, não respondeu ao brinde; tinha a cabeça baixa e oprimia-o um desgosto odioso, mesclado de pezar e de humilhação; contemplava-se, na sua memória, abraçado a Leo, com o nariz sobre o ombro do homem, de braços pendentes, comovido, quase comovido no seu sentimentalíssimo coração; tornava a saborear aquele beijo recebido e também o dado, sim... Oh, que belo momento! E parecia-lhe que os ouvidos lhe ressoavam com o estrépito de formidáveis gargalhadas; contente e troçado; precisamente; Leo triunfava, apoderava-se do dinheiro e da mãe; ele, pelo contrário, ficava, de mãos vazias, pago com um brinde, com um abraço, tudo coisas inconsistentes.

Tinham sido despejadas duas garrafas; os cigarros acesos consumiam-se em fumo.

Uma luz calma e branca irradiava-se através das cortinas da janela e, obcecada pelo seu ciúme, a mãe voltava, em voz teimosa, ao antigo litígio:-Porque não bebe à saúde da amiga que está longe ? -perguntava; e acrescentava, com um sotaque ruim:-Loin de toi, loin de ton coeur.

Recostado na sua cadeira, Leo não respondia e fitava-a de olhos inexpressivos, pesado com a digestão; um silêncio saciado e grave bocejava naquela pausa; ouvia-se então vir dos tubos do aquecimento um ruído sonoro: brum... brum... Alguém, na cave, atiçava a caldeira central.

 

No corredor, Carla passou para o vestíbulo; era aquele o reposteiro atrás do qual se escondera com Leo na noite anterior; tudo tremia à sua volta e ela agarrou--se-lhe para não cair; depois saiu, desceu os degraus de mármore da escada; pairava sobre o jardim uma calma mortal; atrás dos troncos e dos ramos nus das árvores, via-se, além, o triste muro de vedação, amarelado, cheio de grandes manchas de humidade; nem sombra nem luz, não havia vento, o ar estava frio e imóvel, o céu cinzento, um bando de corvos perpassava nele a grande altura, ora dispersando-se ora reunindo-se e sempre afastando-se mais numa queda vagarosa naquela imensidade; escondido algures, um pássaro assobiava uma nota delicada e era como se toda a natureza estremecesse. Passo a passo, apoiando-se à parede, rodeou a vila; olhou para cima, para a janela fechada da casa de jantar: que faziam aqueles três? Estavam ainda sentados à volta da mesa a beber? Ou estavam a discutir? Apanhou uma pedrinha e atirou-a, colheu uma flor, fez muitas pequenas acções para demonstrar a si mesma que não estava embriagada; mas a uma certa distância tudo se confundia, as árvores torciam-se como serpentes, tudo se enevoava; e também, era inútil escondê-lo, as pernas mal a sustentavam, tinha a impressão de que, a cada passo, o chão ondulava e lhe fugia sob os pés.

Atrás da vila o jardim era menos vasto do que do outro lado, mas mais denso; surgiam ali grandes árvores, numerosos arbustos chegavam ao peito de um homem; um único caminho, estreito, dava a volta àquela massa de vegetação inculta ao longo do muro de vedação, mas também estava tão abandonado e invadido pela erva e pelos ramos que em certos pontos era difícil achar o antigo traçado; devia haver também, lá ao fundo do jardim, uma pequena construção rectangular, uma espécie de garagem, mas Carla não a via do lugar onde estava; as árvores escondiam-na.

Um banquinho pintado de verde estava encostado à parede da vila; Carla sentou-se e agarrou a cabeça entre as mãos; sentia-se possuída por um mal-estar como nunca experimentara, a embriaguez aumentava em vez de diminuir, à primeira sensação de leveza e de facilidade sucediam-se agora o atordoamento e a náusea; aquele vago flutuar das coisas tornava-se-lhe insuportável. «Não haverá nenhum meio», pensava ela, angustiada, olhando para o chão, para o formigueiro branco do saibro, «para fazer cessar esta tortura?». Nenhuma resposta; vencida por aquele contraste do seu delírio com a calma muda da natureza, com um vago desejo de se abandonar, de se aniquilar naquela imobilidade das coisas, Carla fechou os olhos. Não dormiu, não pensou, ficou assim, de pálpebras cerradas por uns dez minutos; sentiu depois uma mão tocar-lhe no ombro; reabriu os olhos e viu Leo.

Trazia o sobretudo no braço e o chapéu na mão e tinha um cigarro na boca.-Que tens? Porque estás assim?-perguntou; a rapariga ergueu a cabeça:-Estou mal-respondeu, simplesmente.

-Mal, mal-repetiu Leo, com uma impaciência sorridente -mas ainda assim levanta-te e anda... e além disso não estás mal... apenas bebeste um pouco demais.

Ela levantou-se vagarosamente mas, de súbito, agarrou-se a ele.-Segura-me-suplicou-tudo gira à minha volta.-Fitou o amante no rosto, depois voltou a baixar a cabeça e soltou um longo suspiro.

Deram alguns passos e penetraram sob a abóbada dos ramos, no caminho escondido e húmido que acompanhava o muro de vedação; de vez em quando, Leo perguntava à rapariga: -Estás melhor?-e ela respondia:-Não.

- Estás melhor?-Não -. As árvores e as plantas que se entrelaçavam sobre as suas cabeças não se moviam mais do que o céu cinzento que se distinguia entre os ramos; uma camada espessa de folhas negras e apodrecidas amortecia os seus passos; o silêncio era profundo; nem um só ruído.-Estás melhor, querida?-voltou Leo a perguntar; excitado e cheio de desejo, estudava o momento oportuno para abraçar a companheira; aquele corpo apoiava-se languidamente no seu braço, aquelas ancas redondas comprimiam-se de encontro às suas e uma lascívia excitada nascia desses contactos. «Calma, pensava, «agora levo-a para a arrecadação e faço dela o que quiser... um pouco de paciência...».

Os olhos de Carla divagavam no espaço estreito do caminho, cheio de sombras e arborescências.-Porque me fizeste beber?- perguntou, finalmente, em tom lamentoso.-E tu porque bebeste?-replicou Leo. Perguntas, sempre perguntas. Pararam. -Bebi-falou ela, volúvel-para não ver mais, a mamã e tu... nem sequer Michele... para não ver mais ninguém-. Baixou os olhos e abanou a cabeça.-Mas se tivesse sabido que ficava assim tão mal não o teria feito.

-Não digas disparates-gritou o homem, em voz tão alta que ele mesmo se admirou.-Bebeste porque te agradava fazê-lo-. Viu-a sorrir misteriosamente.-E supões porventura que te amo?-perguntou ela, em tom confidencial.

Fitaram-se; Carla, seriamente, com aquela ligeira loucura da embriaguez nos olhos brilhantes; Leo, entre excitado e irónico, com um olhar perturbado; depois, repentinamente, o homem baixou os braços e agarrou a rapariga pelas ancas, grosseiramente; ela rompeu num riso estridente e debateu-se com as pernas e com os ombros, em movimentos ébrios e de certo modo descompostos.-Leo... oh, Leo!-gritou, por entre os soluços daquele riso.-Leo... não olhes assim para mim... não... larga-me-. A abóbada baixa dos ramos sufocava a sua voz aguda; via, a intervalos, entre as suas contorsões, estender-se para a sua a cara corada do homem, cheia de uma luxúria maligna e como que senil, e nem sabia porque se debatia. Por fim, o amante levou a melhor contra as suas contorsões e estreitou-a nos braços; fitou-a por um instante: olhos amedrontados, rosto pálido, boca meio aberta; depois inclinou-se e beijou-a.

Separaram-se e avançaram um pouco vacilantes naquela sombra, sob o emaranhado morto das plantas e das árvores; mais eis que, de súbito, Carla estacou, hesitante, e apertou nervosamente o braço do companheiro.-Leo-murmurou, levantando um dedo admoestador e pueril.-Leo não é necessário... não é necessário- Calou-se subitamente, imóvel, distraída do choro e da conversa, observando qualquer coisa na sombra do caminho com aqueles seus olhos que, sob o véu das lágrimas, mudavam estranhamente de expressão.

- Então?-perguntou o homem; mas Carla parecia fascinada por uma pedra meio enterrada entre a folhagem negra do chão, redonda e branca como um ovo, e nem seria capaz de fular; aquela frase, «não é necessário, saíra-lhe da boca quase inconscientemente; os sentimentos que a haviam inspirado tinham-se sumido depois; a escuridão voltara.

-Vamos... vamos...-encorajou Leo-o que é que não é necessário? Não é necessário beber?... Pois é, bem sei... mas agora-acrescentou, impelindo-a para a frente-anda, anda um pouco mais.

Haviam chegado ao fundo do jardim; o caminho formava ali uma espécie de enseada em redor da casa que se encostava ao muro de vedação; as paredes estavam totalmente escondidas por plantas trepadeiras, não se via senão a porta desconjuntada dos gonzos enferrujados.

-Ah... e isto o que é?-perguntou Leo, como se aquela vista o houvesse admirado.

A casa do jardineiro.

-A casa do jardineiro?... Oh muito bonita... e o jardineiro está cá?

-Não.

-A casa do jardineiro...-repetiu Leo, como se aquelas palavras lhe houvessem agradado extraordinariamente por qualquer significado oculto.-Vamos, vamos vê-la.

Carla riu; tudo isto lhe parecia absurdo, mas obedeceu; a porta não estava fechada e, empurrada, revelou uma única divisão, de tecto baixo e sobrado poeirento; as paredes eram nuas; uma cama pequena, de ferro, com um colchão pardo que estava roto em vários pontos e mostrava a lã, ocupava inteiramente um canto; no canto oposto, tipo de um rito abandonado, via-se uma bacia enferrujada sobre o seu suporte; e era tudo; Carla contemplava, estonteada, aquelas pobres coisas; a náusea tornava-se agora intolerável; desejaria voltar à vila e estender-se no divã, no seu quarto; mas, vencida pela embriaguez, dobrou os joelhos e sentou-se no leito.

-Porquê?-perguntou, aflita.-Porque me fizeste beber?-. Fitava as tábuas do soalho, pendiam-lhe diante dos olhos madeixas de cabelo, um mal-estar geral enchia-lhe a boca de saliva. Leo sentou-se junto dela. «É esta a ocasião boa», pensava, excitado; envolveu com um braço a cintura da rapariga. -Vejamos-disse, em voz aflautada-sê razoável, foste tu que bebeste de tua espontânea vontade -. Carla abanou a cabeça mas não respondeu. -E afinal-acrescentou o homem-que importa?-Puxou o vestido sobre o braço e beijou com respeito o ombro nu.-Há-de passar tudo.

Os seus olhos não se afastavam daquela nesga de peito nu que o vestido largo deixava ver; agarrou-a bruscamente, derrubou-a e deitou-lhes as mãos; luta, rangidos do leito, contorções inúteis. -Larga-me-murmurou ela, por fim, deixando de mexer-se, extenuada pelo esforço desenvolvido e por um langor que não conhecia; do tecto, que fixava de olhos dilatados e sofredores, viu tombar como um meteoro o rosto corado de Leo; o beijo pousou-lhe no colo, roçou-lhe pela face e fixou-se-lhe nos lábios; Carla fechou os olhos e reclinou a cabeça sobre o ombro; o contacto mole e húmido da boca do homem era-lhe indiferente, desejaria dormir. Mas um ruído de botões arrancados, que rebolavam pelo chão, certas sacudidelas nas costas, fizeram-na sobressaltar-se; reabriu os olhos, viu um rosto inflamado e excitado curvado sobre ela, reparou que tinha os ombros nus, debateu-se, agarrou-se em vão à orla do vestido como à de um precipício; dois puxões violentos quase lhe partiram as unhas; com uma azáfama minuciosa que contrastava estranhamente com a perturbação da sua cara, Leo soergueu por um instante a rapariga do leito e, não sem dificuldade, baixou-lhe o vestido até à cintura; depois voltou a lançar-se-lhe sobre o peito e ocupou-se, com dedos tenazes, em fazer-lhe passar os braços nus pelas alças da combinação. Assustada, Carla fitava-o, e, de cada vez que tentava debater-se, via-o fazer gestos de cirurgião durante uma operação, arqueando os sobrolhos, abanando a cabeça e torcendo a boca, como para dizer: «Não, minha querida... não te impressiones... não é nada... deixa-me fazer...». Esta mímica imperiosa e o langor que se transformava agora em náusea puderam mais do que os esforços de Leo; Carla cedeu, levantou os braços quando foi preciso levantá-los, arqueou o dorso quando foi necessário arqueá-lo, não reteve a camisa que Leo lhe baixou cuidadosamente sobre o ventre, e, nua, abandonou-se, de olhos fechados, sobre o colchão; a náusea fazia-se sentir cada vez mais forte, e ela já não pensava em coisa alguma; parecia-lhe que ia morrer.

«Ah, que bela garota», pensava, entretanto, Leo; aquela nudez cegava-o, não sabia por onde começar, se pelos ombros frágeis, magros e brancos, se pelo peito jovem, de uma macieza e de uma alvura de leite de que os seus olhos ávidos e surpresos não conseguiam saciar-se.

«Ah, que bela garota», e já se inclinava para a enlaçar, quando a viu erguer a cabeça, amedrontada, muito pálida, com ruídos guturais e gestos do queixo que falavam pela boca fechada; afastou-se, pôs-se de parte; arrebatada, Carla ergueu-se sobre o leito, lançando os olhos na direcção do lavatório, ao canto; Leo compreendeu, pegou na bacia e estendeu-lha justamente a tempo: a rapariga lançou, pela boca aberta, no recipiente enferrujado, um jacto denso, multicor e fume-gante; parou e, com um soluço das vísceras revolvidas, recomeçou; o homem contemplava-a, enraivecido, segurando-lhe a testa. «Devia dizer mea culpa», pensava. «Não devia tê-la feito beber desta maneira». Agora, era inútil dissimulá-lo, estava tudo acabado por aquela tarde; não havia nada a fazer; fitava-a e parecia-lhe que ia rebentar de raiva: ei-la, a rapariga dos seus sonhos, nua, pronta a entregar-se e que, em vez da sua cabeça de amante, tinha sobre os joelhos aquela bacia e a mirava de olhos fascinados. «E pensar», repetia para consigo, «que se não a tivesse feito beber seria já minha a esta hora.

Os vómitos haviam entretanto cessado e Carla afastava de si a bacia cheia que, não sem repugnância, o homem foi repor no seu suporte; ao voltar-se, Leo observou a rapariga; não se cobrira e estava sentada à beira da cama, de cabeça baixa e braços pendentes; chocou-o o contraste entre a magreza do corpo-apareciam-lhe as costelas, os ombros eram estreitos e aguçados-e a grandeza anormal dos seios e da cabeça. «Mal feita», pensou ele, para se consolar.-Como te sentes? -perguntou, em voz alta.

-Mal-respondeu ela; olhava para baixo, revolvendo na boca a saliva ácida; os olhos dirigiam-se-lhe de vez em quando para a sua roupa caída sobre o ventre semi-nu; começava a sentir frio; oprimia-a um desgosto sem esperanças. «Está tudo acabado», pensava, e, na verdade, pressentia-o, algo que não saberia dizer precisamente o que fosse devia ter de facto acabado, sem prazer nem dignidade, naquela bacia; levantou pouco a pouco a cabeça e fitou o amante com os olhos cheios de lágrimas.-E agora?-saiu-lhe da boca quase sem querer. -Agora veste-te e vamo-nos embora-respondeu o homem, com uma espécie de raiva contida; pôs-se de pé e começou a passear de um lado para o outro sobre aquelas tábuas ran-gentes; de vez em quando olhava Carla, que se vestia; o desejo voltava-lhe e várias vezes perguntou a si mesmo se não seria melhor esperar um pouco que o mal-estar se desvanecesse e voltar depois a dar o assalto àquelas belas formas; mas já era demasiado tarde; Carla já estava pronta. «É inútil», pensou ele, despeitado, «agora, o encanto acabou... não há nada a fazer por hoje.

Aproximou-se da cama.-E agora como te sentes?-perguntou.

-Melhor-respondeu a rapariga-melhor-. Acabara de se vestir e levantou-se; então, sem se tocarem, um atrás do outro, saíram da casa.

Cá fora a folhagem crepitava. -Ora esta, está a chover! -exclamou Leo, admirado; incomodado com o silêncio de Carla, esforçava-se por parecer desenvolto; deram alguns passos; o ar, sob o abrigo das árvores, estava imóvel e sufocante, e uma sombra negra envolvia o emaranhado dos ramos; em redor de cada tronco, no chão escorregadio, brilhava a água que escorria das folhas.-É estranho-acrescentou o homem. -Todos os dias é o mesmo tempo: ao alvorecer está sereno, de manhã anuvia-se e depois chove desde as primeiras horas da tarde até à noite-. Nenhuma resposta.-Então vemo-nos logo à noite-insistiu ele; Carla parou e fitou-o. «Nunca mais», desejaria responder, mas deteve-a este pensamento: «É preciso ir até ao fundo... até ao fundo da destruição». Recomeçou a andar.-Talvez... não sei-respondeu, de cabeça baixa, sem o olhar.

Haviam chegado ao fim do caminho e voltaram a parar.

-Anda lá-disse Leo, com um sorriso estúpido, segurando-a por um braço-anda lá que mesmo quando te sentes mal és uma bela rapariga-. Fitaram-se. «Poder amá-lo», pensava Carla, observando o rosto corado e inexpressivo do homem; ainda lhe restava um resíduo de embriaguez, doía-lhe a cabeça, sentia um grande desejo de abandono e de afecto; mas Leo dava-lhe agora uma palmadinha na cara.-Tolinha -e repetia-tolinha, que queres beber e depois te sentes mal... tolinha... tolíssima-e atraía-a.-Dá-me um beijo e não se fala mais nisso-. Beijaram-se e separaram-se; depois Carla saiu do abrigo do caminho e, correndo sob a chuva, desapareceu atrás da esquina da vila.

«Que maldito dia», pensou Leo, apressando-se por sua vez, «que dia estúpido». Agora chovia com tranquilidade do alto do céu; o jardim já estava todo alagado e o murmúrio húmido e ininterrupto da água abolia qualquer outro rumor. Leo ia descontente: não somente a festa de Carla lhe custara entre flores e prenda um meio milhar de liras, mas também, graças àquele vinho traidor, a aventura acabara de uma maneira que não se sabia se era mais ridícula se mais repugnante. «Carla não deseja outra coisa, pensava, raivosamente, «nem sequer havia necessidade de a embriagar... mas agora tem que se recomeçar tudo. Foi só quando se encontrou na rua e pensou para onde deveria dirigir-se que se recordou que Lisa, na noite anterior, o convidara a ir nesse dia a sua casa.

A primeira vista, a ideia de voltar para a antiga amante pareceu-lhe absurda; não lhe agradava tornar a percorrer os caminhos já andados, aquela visita parecia-lhe um «caldo requentado», mas, por outro lado, a lascívia que Carla lhe metera no corpo ficaria satisfeita.

«Se hoje não desabafo», pensava, andando sob a chuva pelas ruas largas e vazias do subúrbio rico, «rebento». Tinha a imagem de Carla, nua e chorosa, diante dos olhos, e tão insistente que fez um gesto com a mão como para a enxotar. «Pois sim, vamos», pensou, por fim; «apesar de tudo, Lisa também é uma mulher».

Esta decisão pôs-lhe asas nos pés; chamou um táxi. -Rua Boezio-ordenou, sentando-se; o automóvel partiu; Leo acendeu um cigarro. «Vai ser o dia mais belo da vida dela», pensou, e imaginava que Lisa lhe saltaria ao pescoço mal o visse. «Ontem à noite fez um pouco de teatro, quis pôr-me a pulga atrás da orelha. Compreende-se, também tem o seu orgulho de mulher... mas hoje... hoje não se fará tão rogada». O automóvel sacudia-o, na corrida, de um lado para o outro; parecia-lhe ser generoso com a sua visita a Lisa, conseguir ao mesmo tempo a vantagem própria e fazer uma boa acção. «Será o dia mais belo da sua vida», repetia para consigo, «conceder-lhe-ei o que ela nunca ousou esperar e, entretanto, passarei o menos mal possível este estúpido dia». Atirou o cigarro fora pela janela; o automóvel entrava agora, com um deslizar macio das rodas sobre o asfalto molhado, numa rua deserta, bordejada de plátanos; tirou o dinheiro; o táxi parou; Leo desceu, pagou, curvado sob a chuva, e desapareceu à pressa no portão.

Subiu lentamente a escada, recordando com uma complacência sem melancolia quantas vezes a percorrera dez anos antes.

«Não há nada a dizer», repetiu para consigo, sem sequer tentar explicar a si mesmo o significado deste seu pensamento; «dez anos são dez anos». Tocou, a porta abriu-se e encontrou tudo como dantes, de tal modo que, por um instante, teve a impressão de já não ser quem era agora mas quem fora noutro tempo; estava cada coisa no seu lugar, os armários no corredor escuro, a tilintante porta envidraçada da saleta, ao fundo, e o mesmo reposteiro corrido, os mesmos tapetes... Sentou-se então numa daquelas poltronas rangentes e acendeu um cigarro.

Lisa entrou passado um instante.-Oh, és tu!-disse, distraidamente; sentou-se e fitou o homem, como para lhe perguntar a razão da sua visita.

-Não me esperavas?-disse Leo, admirado, pois estava convencido de ter sido, pelo contrário, esperado com ansiedade. -Mas ontem à noite fizeste-me crer exactamente o contrário.

-Diz-se tanta coisa-começou ela, baixando a saia sobre os joelhos.-Sobretudo de noite, quando não nos vemos.

«É esperta», pensou Leo, «quer fazer-se rogada». Aproximou a sua poltrona da de Lisa.-E eu, pelo contrário, estou convencido de que falavas seriamente.

-E se tivesse mudado de ideias?-perguntou ela, com vivacidade; a sua fraqueza da noite anterior aparecia-lhe agora como era na realidade, não o regresso do amor por Leo mas uma perturbação momentânea e ignorância do próprio sentimento para com Michele.-Tanta coisa-acrescentou com seriedade-pode ter sucedido de ontem para hoje.

Leo olhava-a fixamente; os olhos iam-lhe, ora para o rosto ora para o corpo, para aquele princípio branco e cheio do peito, para aquela nesga de ombro nu que na sombra sórdida da sala parecia ainda mais fresca, limpa e cheia do que era realmente. «Quer tentar-me», pensou. «Eh!... Eh!... esperta como uma raposa». Debruçou-se para ela: -Sabes que estás extraordinariamente mais bonita?-disse.

-Ah!... Então dantes era feia?-exclamou ela, com uma garridice instintiva; mas arrependeu-se logo desta fraqueza. «É preciso mandá-lo embora», pensou, «é preciso fazê-lo compreender que está enganado». Depois, fitando Leo, viu-o corado, excitado e seguro da sua conquista; bastava ver como ele se debruçava da sua poltrona: o peito estoirava-lhe, os olhos, brilhantes de concupiscência, pretendiam ser, ao mesmo tempo, expressivos e apaixonados; apossou-se dela um tal ressentimento mesclado de orgulho vitorioso (desejaria gritar--lhe: «agora amo e sou amada») que, de improviso, lhe pareceu compreender que seria muito mais divertido e inteligente fazê-lo crer que era desejado e amado para depois, de repente, o desenganar: troçar dele, numa palavra.

-Foste sempre bonita-dizia, entretanto, o homem-mas agora estás ainda mais bonita do que habitualmente.

-Mas tu tens a Mariagrazia-protestou Lisa, pondo em actos o seu desígnio.-Que importância posso eu ter para ti?

-Está tudo acabado entre essa mulher e eu... tudo... e tu, pelo contrário, voltas a interessar-me como nos primeiros tempos.

-Agradeço-te tanto.

-Um mal-entendido - continuou ele - separou-nos até hoje... apenas um mal-entendido... Que queres? Enganamo-nos muita vez... contigo errei, reconheço-o... mas hoje aqui estou e digo-te: esqueçamos o passado e reconciliemo-nos.

Calou-se e estendeu a mão a Lisa.

Ela fitou aquele rosto e a seguir aquela mão.-Mas recon-ciliarmo-nos porquê?... Nunca estivemos em conflito.

-Não, assim não...-protestou Leo-desde já to digo... assim não... por favor, não finjas que não percebes, não te faças, desculpa a palavra, estúpida... compreendeste muito bem do que se trata... falei claro... trata-se de esquecer tudo e de nos reconciliarmos e até, porque não?... por mim estou de acordo... de voltarmos ao princípio... Como vês, eu não confundo as coisas... digo o que penso e não uso meias palavras... agora és tu que respondes.

-Mas... não sei-começou ela, fingindo estar muito indecisa.

-Não sabes, como?... Ânimo, vamos, coragem...

-Pois bem-concluiu Lisa-reconciliemo-nos então, se queres... Quanto a voltarmos ao princípio, veremos...

«O mais difícil está feitc», pensou Leo, contentíssimo. «Não é nada estúpida... percebeu tudo...». Inclinou-se e beijou com fervor a mão da mulher; depois ergueu a cabeça.-O que sobretudo me agrada em ti é a simplicidade... Contigo não são precisos rodeios... não há mal-entendidos...

-Isso acontece...-respondeu ela, sublinhando as palavras com um tom cheio de significados ocultos-porque sei sempre adivinhar a tempo as intenções dos outros.

-Ah! Muito bem!-exclamou Leo, aproximando mais uma vez a sua poltrona da de Lisa.-E, por exemplo... que intenções teria eu, agora?

-Tu, agora-. Olhou-o; aqueles ardis, aquela espécie de rito feito de perguntas e de respostas que visava sempre o mesmo fim, inspiravam-lhe agora, depois de ter abusado deles, uma repugnância orgulhosa. «Acabou... acabou tudo isto», pensava, «agora amo e sou amada». Mas quis conduzir até ao fim o seu fingimento:-Tu, agora?... Não seria decerto difícil dizê-lo...

-Então se sabes-insistiu o homem, congestionado-diz...

-Pois bem-começou ela, com um pudor e hesitações entre maliciosas e reticentes, eficacíssimas-se queres realmente saber... parece-me que tens intenções, como direi?, belicosas...

-O que quer dizer...-perguntou Leo, curvando-se tanto para a frente que quase aflorou com o queixo o ombro nu de Lisa.

Fitou-o. «O que quer dizer», desejaria responder-lhe, irri-

jeitada por aquele rosto corado estendido para o seu, «que é

inútil que te afadigues... Amo Michele... Michele é o meu

amante».   Mas  conteve-se-Tem  cuidado-avisou,  em  tom

agridoce-a curvares-te assim podes cair.

Leo estava demasiado excitado para a ouvir.-Como?... -perguntou, estupidamente.

-Podes cair-repetiu Lisa-ou podes magoar-te.

-Seja como for-respondeu o homem, sem erguer a cabeça, com lentidão, teimosamente-as minhas intenções são simplíssimas: agora vestes-te e tomámos o chá juntos... talvez em minha casa... depois jantamos, vamos a um espectáculo qualquer... e finalmente volto a trazer-te para casa...

Um instante de silêncio; Lisa parecia muito hesitante. -Veremos-disse, por fim.-Mas quem me assegura que me tens realmente amor e que isto não seja senão um capricho passageiro após o qual voltarias para a Mariagrazia?

-Mas não...-corrigiu o homem, sem mover a cabeça baixa, com aquela obstinação feita de desejo reprimido e de impaciência.-Enganas-te... já to disse e volto a dizer... não voltarei à Mariagrazia porque entre nós tudo acabou há muito tempo... estive com ela enquanto pude... era uma dessas relações que se arrastam e nunca mais acabam, um pouco por hábito, um pouco por outras razões...

-Razões práticas?-sugeriu Lisa.

-Qual práticas! Mas em suma, para encurtar razões-Leo ergueu finalmente os olhos e fitou-a-não metas Mariagrazia na dança porque nada tem que ver com isto... em vez disso, responde-me...

-O quê?

-Ora essa!-disse Leo, com uma espécie de leviandade, e, como se quisesse ajustar a gola do vestido, pousando a mão no ombro de Lisa.-Já to disse... Aceitas ou não ir hoje comigo?

Ela hesitou; teria que lhe dizer a verdade? Mas foi salva por aquela mão que, como por acaso, lhe palpava agora a nuca.

-Não-protestou-deixa-me... não há nada que mais me aborreça do que tocarem-me no pescoço...

-Mas dantes dava-te tanto prazer-respondeu Leo, com lentidão, olhando-a fixamente e aproximando a cara da de Lisa.

-Sim... mas agora já não sou a que era dantes-disse ela, à pressa, tentando resistir à atracção daquela mão.- Larga-me.

-E assim?- Bruscamente, Leo pôs-se de pé? inclinou-se sobre ela, puxou-lhe a cabeça para trás pelos cabelos e tentou* beijá-la; Lisa apenas teve tempo de pôr a mão diante da boca. -Vamos, não sejas má-ordenou Leo, e havia nos seus olhos, no modo por que tentava remover o obstáculo da mão uma tal segurança de triunfar por fim, um tal cepticismo sobre a seriedade das suas recusas, que Lisa se sentiu de repente invadir por uma cólera cega; tirou a mão de diante da boca. - Larga-me, estou-te a dizer-intimou, em voz teimosa e com os olhos irados; mas o homem aproveitou a ocasião para se apossar dos lábios que se lhe recusavam; ela sofreu o" beijo por um instante, torcendo-se e esforçando-se em vão por livrar-se, mas por fim, com um arranco, conseguiu pôr-se de pé; o choque foi tal que Leo perdeu o equilíbrio e caiu.de costas dentro da sua poltrona.

Levantou-se e, ajeitando nervosamente o casaco descomposto:-Lisa, deixemo-nos de brincadeiras... não decidimos voltar a ser amigos?... Que modos são esses?

Ela indicou teatralmente a porta com a mão.

-Vai-te embora-ordenou.

- Mas o que?-começou Leo, agastado.

-Não te amo, nunca te amei,-gritou Lisa, inclinando-se e sibilando-lhe as palavras na cara-deixei-to crer hoje, por um instante, para ter o gosto de ouvir todas as patranhas que me dirias... e agora vai-te.

O homem ficou por um instante imóvel, surpreendido; depois, inesperadamente, passou daquele pasmo de pedra a uma cólera vingativa e obstinada.

-Ah, sim?-gritou.-É assim?... Devo ir-me embora, hem?... Depois de fazer um papel de palhaço... Pois muito bem, não vou...-Hesitou, buscando debalde, no seu furor, uma expiação digna da culpa de Lisa: partir-lhe um móvel ou uma porcelana qualquer? Esbofeteá-la?

-Não me vou embora senão depois de te ter beijado-. Pôs a cadeira de lado e fez por agarrar Lisa entre os seus braços; na sua raiva, aquele beijo transformava-se verdadeiramente na posse  pensava confusamente em deitar a mulher por terra e em possuí-la ali, sobre o tapete; mas Lisa fugiu-lhe e refugiou-se atrás de uma poltrona; ficaram por um instante cara a cara, curvados, agarrados à poltrona, espiando-se mutuamente e esforçando-se cada um deles por adivinhar os pensamentos do outro.-Vai-te-disse ela, finalmente, arquejante, desgrenhada, assustada com a brutalidade que intumescia a cara do homem, ali, à sua frente... Então, com uma astúcia grosseira, a mão de Leo agarrou-a bruscamente pelos cabelos, ele afastou a poltrona com um empurrão e estreitou a mulher entre os seus braços.

Lutaram durante alguns segundos; Leo tentava dominar os movimentos de Lisa e a mulher esforçava-se por fugir àquele abraço; conseguiu-o por fim e refugiou-se de encontro à porta.

-Vai-te embora-ordenou mais uma vez, com a voz entrecortada-vai-te embora ou chamo-. Estava vermelha, despenteada, arquejante, o vestido desabotoara-se num ombro, tinha as mãos encostadas à porta, o peito, em sobressalto, de fora.-Vai-te embora-repetiu; mas alguém, no corredor, empurrava agora a porta e tentava entrar.

-Não é nada, Maria-gritou ela, sem se voltar-não preciso de si...

-Abre-ordenou então quem empurrava, com voz masculina.-Não sou a Maria... abre.-Lisa afastou-se maquinalmente, a porta abriu-se e Michele entrou.

Tinha o chapéu na mão e vestia um impermeável verde todo encharcado; fitou Lisa, ofegante e em desalinho, e Leo, corado; imediatamente se lhe reconstituiu no espírito a verdade da cena que tinha debaixo dos olhos. «Leo veio, para reatar os antigos laços... e Lisa repeliu-o.... Mas não agiu segundo estes pensamentos; pareceu-lhe confusamente que devia aproveitar aquela ocasião para romper definitivamente com Lisa; além disso, não era essa a atitude obrigatória em tais circunstâncias?

-Desculpem-me-disse, numa voz átona que se esforçava por parecer irónica-a culpa é toda minha... tinha decidido não vir cá mais e vim... incomodei-os... desculpem-me. -Fez uma vénia ridícula e rígida, girou sobre si mesmo e desapareceu; a porta fechou-se.

Aquele diabo sem tenazes surgido da escuridão do corredor e a ela subitamente regressado acalmara Leo; sorriu.-É aquele o teu amor, Lisa?-perguntou.

Absorta no seu pasmo, ela fez, tristemente, um sinal afirmativo com a cabeça; depois, inesperadamente, como se o pensamento de Michele ter partido sem lhe falar, talvez para sempre, sem que lhe houvesse tornado intelorável, correu à janela e escancarou-a.

O apartamento era no andar nobre e as janelas eram muito baixas; ela encostou-se ao peitoril e olhou: o ar estava feio, a rua deserta e molhada; chovia; um grande plátano sem folhas, mesmo em frente da janela, obstruía a vista do céu, mas, alguns metros mais à esquerda, alguém que vestia um impermeável verde justo na cintura afastava-se tranquilamente junto às paredes. - Michele - chamou ela, debruçando-se - Michele!-. Viu-o voltar-se um pouco, olhá-la curiosamente e continuar o seu caminho.-Michele!-gritou, com mais força; desta vez, o rapaz fez com a mão, sem se voltar, sem parar, um gesto de despedida; estava já a alguma distância, no passeio brilhante, caminhava a passo largo e dentro em pouco teria virado a esquina; Lisa compreendeu que era inútil insistir e voltou-se para a saleta.

-Há-de voltar, não tenhas receio-disse Leo, de pé no meio da sala, com falsa bondade.-Eu conheço-o... não é dos que fazem as coisas a sério... há-de voltar, podes ter a certeza.

Aquela voz provocava, ultrajava, insultava cruelmente; muito digna. Lisa foi carregar num botão, na parede oposta, passou um instante e apareceu a criada.

-Maria, acompanhe este senhor à porta-. Era o fim, o banalíssimo e ridículo fim; da saleta à porta eram dois passos. O senhor ia-se embora ignobilmente, resmungando:-Eu vou, Lisa... eu vou... dá cumprimentos meus a Michele-. A criada não compreendia e olhava estupidamente, ora para o homem ora para Lisa; mas Leo não esperou que lhe fosse indicado o caminho e, pegando no chapéu e no sobretudo, saiu sozinho.

A chuva refrescou-lhe a alma; abriu o chapéu de chuva e caminhou quase sem pensamentos. «Podia dar resultado e não dar», consolou-se ele, a certa altura, «e não deu». E depois, mais uma vez, serenamente: «Hoje percebi muito bem que aquela tecla é melhor que a não toque». Após o que não pensou em mais nada, acendeu um cigarro e, cuidando de não molhar os pés nas poças, caminhou com o seu passo habitual, nem devagar nem depressa.

Chegou ao fim da rua e desembocou numa vasta praça chuvosa, sem monumentos e sem jardim; à esquina, junto ao poste do sinal de paragem, um grupo de pessoas esperava o carro eléctrico; aproximou-se e reconheceu Michele encostado ao poste.-Olá, ainda estás aqui?-disse, sem sombra de rancor.

-Pois estou-respondeu o rapaz, erguendo para ele os olhos aborrecidos-estou à espera-.  Um instante de silêncio.

- Mas então-disse Leo-como vou para casa, ofereço-te a passagem de táxi... Táxi!

Michele aceitou. «Mas para que é tudo isto?», pensou, sentando-se no automóvel, ao lado do homem.

Não falaram durante um minuto.-Pode-se saber-perguntou finalmente o homem-porque te vieste embora?... Então não percebeste que ela não queria senão que tu ficasses ?

Michele não respondeu imediatamente; olhava, através da janela, as fachadas molhadas das casas.-Bem sei-respondeu, por fim.

-Mas então... porque é que não ficaste?

- Mas... porque não a amo.

Esta resposta fez sorrir Leo.-Ora vejamos-começou. -Pensas, talvez, que apenas devemos ir para a frente com uma mulher quando a amamos?

-Acho que sim-respondeu Michele, sem se voltar, num tom sério.

-Oh, então...-murmurou Leo, um pouco desconcertado. - Mas eu, por exemplo-acrescentou, tranquilamente-tenho tido muitas mulheres que nunca amei... a própria Lisa, tive-a sem a amar... e, não obstante, nunca tive razões para me arrepender...   diverti-me   tanto   como  com  qualquer  outra.

-Não duvido-disse Michele, de dentes cerrados. «Que Deus te amaldiçoe», era o que tinha vontade de lhe responder, «supões que todos no mundo são como tu?».

-E além disso, vamos lá-continuouLeo-quando vejo um rapaz como tu, sem grandes conhecimentos, sem grandes recursos, fazer de desdenhoso com uma mulher como Lisa que, seja ela o que for, não é para desprezar... parece-me que o mundo está às avessas.

-Deixa-o estar às avessas-murmurou Michele, mas o homem não o ouviu.

-Ora! Por mim, faz o que quiseres-concluiu Leo; acendeu um cigarro e aconchegou o sobretudo.

Michele fitava-o. - Portanto, segundo a tua opinião-perguntou-eu não devia renunciar a Lisa...

-Pois claro... evidentemente-aprovou Leo, tirando o cigarro da boca. -Primeiro do que tudo, porque Lisa não é realmente de se deitar fora. Ainda hoje a observei... é gorda mas firme.. tem um peito -acrescentou ele, com uma piscadela de olho para Michele, desgostado -e umas ancas... e depois, meu caro, é uma mulher que pode dar muito maiores satisfações do que uma das habituais meninas em água de rosas... é cheia de temperamento... uma mulher a valer... e em segundo lugar, onde é que encontras hoje uma amante que te receba em casa? Isso, para ti, que não podes pagar o quarto, ou o apartamento, é uma grande comodidade. Vais, vens, entras, sais, ninguém te diz nada, estás como em tua casa, estás-te ralando. Em vez disso,  sobretudo na tua idade,  acaba-se sempre por levar a apaixonada a certos lugares reles, restaurantes, hotéis, etc, que tiram o apetite só de pensar neles... Se acrescentares a tudo isto que Lisa não te custará um centavo, repito, um centavo... aí tens, não sei o que é que se pode querer mais...

-Pois é-repetiu o rapaz, um pouco tristemente.-O que é que se pode querer mais?-. Não falava, estava um pouco curvado a olhar, ora o homem ora a rua; já era crepúsculo; as luzes ainda não estavam acesas... uma sombra húmida invadia a rua cheia de gente, de maneira que não se lhe via o fim, e os homens, os chapéus de chuva, os veículos, tudo se confundia a alguma distância numa única lonjura chuvosa em que, isoladas e rápidas, se viam subir e descer as luzes amarelas dos eléctricos e as dos automóveis. «E agora que farei ?», perguntava o rapaz a si mesmo; sempre que observava a mobilidade e a contínua agitação da vida, a sua própria inércia assustava-o.

-Deixa lá, meu caro-ouviu Leo dizer-não fiques a pensar tanto... a coisa é muito mais simples do que supões... Lisa não espera senão por ti... volta lá esta noite e acolher-te-á de braços abertos...

Voltou-se.-Então deveria fingir que a amo-começou.

-Qual fingir!-interrompeu Leo.-Quem te obriga?... Não aprofundes tanto... o essencial é que ela está pronta a ir para a cama contigo... aceita e contenta-te.

Michele, pensativo, voltara a olhar a rua.-Manda parar na praça-avisou-que eu desço-. Um instante de silêncio. - E no caso-acrescentou-de alguém te ter ofendido de qualquer maneira?... O tipo em questão não te é antipático e, pelo contrário, não obstante a ofensa, não és capaz de o odiar... Finges então enfurecer-te e corre-lo à bofetada ou não?

-Depende da ofensa-respondeu Leo.

-A maior que pode haver.

-Mas então-replicou o homem-é impossível que me continue a ser simpático e que não me importe nada.

- Mas nesse caso.

-Pois bem, corrê-lo-ia à bofetada-respondeu Leo, sem hesitar. O automóvel parou na praça, mas antes de Michele descer Leo puxou-o pela manga.-E recomendo-te-disse, com uma piscadela e um gesto expressivo da mão-Lisa... atira-te a ela-após o que, recostando-se no assento, deu a sua direcção e o automóvel voltou a partir.

Cinco minutos depois estava em casa; foi para o escritório, uma sala quase nua, com um lambrim alto de madeira castanha, estantes e secretária americana, e sentou-se; a sombra do crepúsculo chuvoso dava àqueles móveis banais, àqueles objectos úteis, um aspecto intolerável de aborrecimento e precariedade; era a hora pior, já não era a tarde branca e não era ainda a noite negra, a luz do dia era demasiado fraca para permitir ver e a de uma lâmpada demasiado forte para aquela penumbra parda, mas Leo venceu facilmente este mal-estar, acendeu uma luz, leu uma carta de negócios e preparou-se para escrever a resposta; foi nesse momento que a campainha do telefone tocou.

Sem deixar a caneta, levantou o auscultador e encostou-o ao ouvido.-Quem fala?-perguntou uma voz feminina. «A voz de Mariagrazia», pensou Leo.-Três, um, quatro, nove, seis-respondeu.-É o senhor Merumeci?-insistiu a voz. - Sim.-Então daqui fala a Mariagrazia... Carla propõe irmos ao baile do Ritz... queres vir connosco?-Está bem... daqui a coisa de uma hora-disse o homem.-A propósito- continuou a mãe-quando é que nos vemos? -. Mas Leo reconheceu o princípio de uma das costumadas conversas intermináveis.-Vamos a ver-respondeu, e pousou bruscamente o auscultador.

Depois desta conversa acabou a carta e, lentamente, escreveu outra. Negócios, no verdadeiro sentido da palavra, não os tinha; não trabalhava, toda a sua actividade se limitava à administração dos seus bens, que consistiam em alguns prédios, e em algumas cautelosas especulações de Bolsa; mas a sua fortuna aumentava regularmente todos os anos, pois não despendia senão três quartos do rendimento e dedicava o resto à compra de novos apartamentos. Fechou a carta, acendeu um cigarro e passou para o quarto; tinha que fazer a barba, vestir-se e chegar a casa dos Ardengos dentro de uma hora. Foi para a casa de banho, lavou-se, barbeou-se cuidadosamente, dando uma passagem e escanhoando-se, voltou ao quarto e começou a vestir-se; as boas roupas e os bons fatos agradavam--lhe imensamente; a de os vestir era uma das suas ocupações predilectas; vestiu uma camisa de seda branca, com a qual pôs uma gravata negra e prateada, calçou meias de lã cinzenta e vermelha e vestiu por fim, não sem numerosas contorções, um fato azul, em espinha, de corte realmente extraordinário; admirou-se então no espelho do guarda-fato e, fosse porque a penumbra do quarto o transformasse e o rejuvenescesse, fosse porque as belas roupas o houvessem inebriado por completo, concluiu no seu íntimo que tinha um aspecto belo, nobre e até, de certo modo, dignamente melancólico; olhou depois o relógio; já haviam passado três quartos de hora; saiu à pressa, precipitou-se para a garagem e tirou o automóvel; dez minutos depois, batia a porta dos Ardengos.

Havia na sala uma única luz acesa, junto da qual Leo viu Carla sentada e imóvel; estava pronta para sair; tinha um vestido leve cor de pêssego, e estava empoada, frisada, pintada. -A mamã vem já-disse.

--Muito bem-começou Leo, sentando-se por sua vez e esfregando com força as mãos-e tu... como estás?

-Bem-. Silêncio; Leo pegou na mão da rapariga e beijou-a. -Então que fazemos?

-Vamos dançar-respondeu ela, sonhadora-e esta noite jantas connosco, não é verdade?

-Jantar, talvez não-respondeu Leo-mas venho decerto depois do jantar.

Ouviu-se um ruído de portas abertas e fechadas; a rapariga retirou vivamente a mão e Michele entrou.-Oh, que esplendor!-exclamou ele, com uma alegria forçada.-Boa noite, Leo... Ora bem, o que fazem vocês aqui, gente rica, feliz e bem vestida?

-Vamos ao baile-respondeu Carla, no- mesmo tom e com a mesma voz de anteriormente.

-Ao baile?-Michele sentou-se.-Nesse caso, também vou... posso ir contigo, Carla?

-É  o  Leo  que convida-disse ela, olhando o amante.

Leo ergueu a cabeça. «Realmente não convidei fosse quem fosse», desejaria responder.

-Qual Leo!-protestava Michele, entretanto.-O chá ainda eu o posso pagar.-Carla olhou novamente o homem.

-A que propósito vem isso?-apressou-se este último a responder.-Sou eu que convido e está entendido que sou eu que pago tudo.

Calaram-se os três por um instante. - Mas, Michele- acrescentou a irmã-só podes ir desde que vás mudar de fato.

-De facto... de facto... - . O rapaz inclinou-se: estava incrivelmente sujo, tinha os sapatos cheios de lama e as calças salpicadas até ao joelho e todas amarrotadas pela chuva. - De facto, parece-me que tens razão...-. Levantou-se.-Agradeço-te mil vezes, generosíssimo amigo... e vou vestir-me de lavado - . Fez uma vénia e saiu.

-Sinto-me triste-disse Carla, ainda antes de a porta se ter fechado.

-Porquê?

-Sei lá?-Olhou os vidros negros da janela sobre os quais lágrimas efémeras revelavam o cair da chuva.-Talvez por

causa do tempo-. A grande cabeça inclinava-se tristemente para o homem; ele agarrou-a pelo cabelo e beijou-a.-Dançarás comigo-disse ela, após o beijo, com uma impudicícia tranquila-sempre comigo... deixarás a mamã sentada... dançará com os outros... talvez com Michele... -. Teve um riso seco; parecia-lhe, na verdade, estar mais velha um ano. «É o fim», pensou.

Voltaram a beijar-se e depois, deliberadamente, Leo disse: -Então esta noite vais a minha casa, não é verdade, Carla?

Ela empalideceu.-Como a tua casa?

-A minha casa-explicou Leo, olhando-a nos olhos; viu-a hesitar e curvar a cabeça como se quisesse procurar qualquer coisa caída no tapete.

-Não... isso é impossível-disse ela, por fim.

-Como impossível?-insistiu Leo.-Tinhas prometido... tens que ir.

-Não... não-abanou a cabeça-isso é impossível-. Não falaram durante um instante; Leo fitava a rapariga; a vista daquele peito coberto pelo vestido excitava-o; um calor insólito subia-lhe às faces. «Que amante que há-de ser, pensava, «que mulher, que amante!». Rangia os dentes com o desejo que dela tinha; agarrou-a pela cintura. - Carla, tens que ir, é absolutamente necessário. Se não vais, então...-hesitou, procurou um pretexto a que se agarrar; recordou-se de repente do desgosto que ela experimentava com a sua existência, do seu desejo de uma vida nova. -...Então-acabou, com modéstia-como poderás construir uma nova vida?

Ela fitou-o. «Não quer senão divertir-se comigo», pensou, com um vivo sentido da realidade, «mas tem razão; e a nova vida?». Compreendia que, para mudar, precisava primeiro de destruir sem piedade, mas aquela rendição nocturna, numa casa longínqua, repugnava-lhe, tinha-lhe medo.-Irei de dia-propôs, com uma simplicidade falsa-um destes dias, queres?... Tomamos juntos o chá... falaremos... está bem assim?

-Eu não quero chá... quero-te a ti...-disse Leo, mas regressou imediatamente a uma seriedade mais eficaz.-Não, meu amor... ou esta noite ou nada.

-Mas vejamos, Leo...-suplicou ela.

-Espero-te na rua com o carro-continuou o amante -e antes do alvorecer volto a pôr-te em casa-. Ficou a fitá-la por um instante.-E vais ver que não te desagrada nada voltar lá todas as noites.

-Não-disse ela, com uma espécie de susto-não, depois tudo deve ser às claras... será preciso dizer tudo...-. Fitava agora o homem, e, inesperadamente, tinha vontade de gritar com a angústia que experimentava. «Todas as noites ?», repetia para consigo, «Que é isto? Como cheguei a isto?».

-Tenho a certeza de que vais-disse Leo, e, bruscamente, cingindo-a entre os braços:-Diz... não é verdade que vais?

Ela agarrou-se ao último pretexto.-Há só dois dias que... que nos amamos... porque não esperar? Não pensas que cada mulher tem o seu orgulho?

-Já percebi, minha querida-disse o homem, apressadamente.-O que quer dizer que te espero, sem mais complicações, esta noite. Estamos entendidos?

Ela hesitou ainda, desviando os olhos sob o chape-linho.

-Digo-te no baile-respondeu, por fim.-Sim-acrescentou, como para se convencer a si mesma-com certeza que to digo no baile.

«Deus seja louvado», pensou Leo; abraçou-a.-E agora não nos resta senão ir a esse baile-disse, alegremente; cingiu a rapariga pelas ancas e, estendendo para a sua cara assustada e pintada um rosto apaixonado:-Sabes o que és?... Um amor... sim, um amor de rapariga.

O ruído da porta.-Vamos então, Merumeci?-perguntou a mãe, entrando.

Leo pôs-se de pé.-Está bem... muito bem-respondeu, à pressa-vamos lá-. Também Carla se pôs de pé e dirigiu-se ao encontro da mãe.-Porque não trouxeste a bolsa que Merumeci te ofereceu ?-perguntou Mariagrazia, examinando a filha da cabeça aos pés.-Deve ficar mesmo à maravilha com esse vestido.

-Vou buscá-la e volto-disse Carla, e saiu. Subiu a escada à pressa e correu ao seu quarto; a bolsa lá estava, em cima da cómoda, elegantíssima, de um gosto realmente exquisito; então, ao pegar-lhe, ocorreu-lhe de súbito que podia ser aquela a primeira de uma longa série de prendas; esta ideia chocou-a a tal ponto que ficou diante do espelho a olhar-se; parecia-lhe ver-se sentada nos joelhos de Leo, no acto de lhe dar uma palmadinha na face ou de lhe apoiar afectuosamente a cabeça no peito, pedindo-lhe em voz baixa dinheiro para qualquer vestido; ou então iria na companhia do amante a uma modista célebre, encomendaria três ou quatro daqueles chapéus de Paris, novidade da estação, que tanto lhe agradavam; tudo isto era na verdade muito atraente, bem como possuir um automóvel, uma casa, jóias, viajar, ver gentes e terras, não conhecer, em suma, limites à própria actividade e aos próprios desejos; era atraentíssimo; e já, sem querer, estava a sorrir, quando, inesperadamente, ao aproximar-se do espelho, verificou ter uma mancha vermelha, redonda, no pescoço. Não percebeu a princípio o que era, esfregou-a com os dedos, examinou-a... lembrou-se afinal que Leo, pouco antes, na sala, a beijara no pescoço; apossou-se dela um temor absurdo de que a mãe reparasse, pegou na caixa do pó de arroz, empoou-se abundantemente e eis que, de súbito, enquanto se torcia diante do espelho para ver se aquela vermelhidão culpada desaparecera, o convite imperioso de Leo para ir nessa noite a sua casa, e as prendas, os vestidos sonhados, lhe apareceram ligados por uma associação inevitável. «Meu Deus, é esta a nova vida?», perguntou a si mesma com um medo superficial e convencional, sem estar suficientemente cônscia daquele sentimento para se assustar realmente. «Seria esta?» Mas não teve, de resto, tempo para aprofundar; já da escuridão, do jardim, o som estridente da buzina a avisava de que era tempo de ir.

Apagou a luz e desceu a escada precipitadamente; se bem que, entre aqueles actos práticos, nenhum pensamento se lhe apresentasse ao espírito, atormentavam-na uma tristeza aguda, uma nostalgia de pranto, e contraíam o seu rosto num esgar ridículo. O corredor estava escuro; atingiu o vestíbulo às apalpadelas e abriu a porta; acolheu-a o clamor festivo da mãe, de Leo e de Michele que a esperavam no automóvel. O largo do jardim fronteiro à casa estava mergulhado numa densa escuridão; chovia sem ruído, nada se via, a não ser um ou outro reflexo brilhante do automóvel e as suas janelas iluminadas, atrás das quais, do interior acolchoado, as caras rosadas, felizes, satisfeitas, dos outros três, a viam chegar com curiosidade. Foi um instante; depois Carla subiu a sentou-se ao lado do amante; o carro partiu.

Nenhum dos quatro falou durante todo o percurso; Leo guiava o grande carro com habilidade por entre a confusão das ruas congestionadas; Carla observava, distraída, por cima do capot reluzente, o movimento da rua, ao longe, onde, entre duas negras procissões de chapéus de chuva, os carros, com as suas luzes vermelhas, esparrinhavam a água para todos os lados, como loucos. Também a mãe olhava pela janela mas, mais do que para ver, para ser vista: aquele automóvel grande e luxuoso dava-lhe uma sensação de felicidade e de riqueza, e de cada vez que qualquer cabeça pobre ou comum emergia da barafunda tenebrosa da rua e, transportada pela corrente da multidão, passava' sob os seus olhos, desejaria atirar à cara do desconhecido um esgar de desprezo, como que a dizer-lhe: «tu, grande cretino, vai a pé, que te fica bem, não mereces outra coisa... mas eu, é justo que atravesse a multidão instalada nestas almofadas».

Apenas Michele não olhava a rua; o que o automóvel transportava no seu interior sumptuoso interessava-lhe mais; parecia-lhe não haver mais nada; a sombra escondia a cara dos seus três companheiros, mas, de cada vez que o carro passava por um candeeiro, uma luz viva iluminava por um instante aquelas pessoas sentadas e imóveis: apareciam então o rosto da mãe, de traços cansados e profundos, de olhos vaidosos, o de Carla, com o ar encantado e pueril da rapariguinha que vai à festa, e o de Leo, de perfil, corado, regular, um pouco duro, como as coisas inexplicáveis e pavorosas que os relâmpagos das tempestades revelam por um instante. Michele admirava-se, de cada vez que os via, de estar junto deles. «Porque são estes», pensava, «e não outros?» Aquelas caras eram-lhe, mais do que nunca, estranhas, quase não as reconhecia, parecia-lhe que uma loira de olhos azuis no lugar de Carla, uma senhora alta e magra no lugar da mãe, um homenzinho nervoso no lugar de Leo, não transformariam a sua vida; ali estavam, na sombra, imóveis, cada solavanco do automóvel os fazia chocarem entre si como fantoches inertes; nada lhe parecia mais angustioso do que vê-los tão longínquos, separados, sós sem remédio.

Chegaram. Quatro filas negras de automóveis enchiam a praceta escura defronte do hotel. Havia-os de todas as espécies e grandezas; os condutores, vestidos da cabeça aos pés com brilhantes capas de encerado, falavam e fumavam reunidos em pequenos grupos. Em luminoso contraste com a escuridão da noite de Inverno, a porta do Ritz resplandecia com uma luz abundante e hospitaleira. A porta giratória de madeira e cristal, de ruído familiar, introduziu-os um após outro no átrio cheio de criados e de mandaretes; passaram pelo ben-galeiro repleto de abafos numerados, atravessaram uma enfiada de salões vazios e dourados e chegaram à sala de baile; sentado junto à porta, à sua mesa, um homem vendia os bilhetes de entrada; Leo pagou e entraram.

Era já tarde; uma multidão numerosa enchia a sala baixa e comprida; as mesas haviam sido colocadas de encontro às paredes, as pessoas dançavam no meio da sala e, ao fundo, sobre uma espécie de palco sombreado por duas palmeiras, negros americanos ritmavam a dança.

-Que multidão!-disse a mãe, admirativa e pessimista,

circunvagando um olhar cheio de dignidade.-Vais ver, Carla, que não arranjamos lugar.

No entanto, contra estas previsões, acharam uma mesa a um canto; sentaram-se; a mãe tirou o casaco.-Sabes?-disse, olhando pela sala e dirigindo-se indistintamente aos seus três companheiros.-Está cá uma quantidade de pessoas que conhecemos... olha, Carla... os Valentini...

-E os Santandrea, mamã.

-E os Contri-acrescentou a mãe; inclinou-se um pouco e, em voz mais baixa:-A propósito dos Santandrea, sabes da viagem de núpcias que fizeram há dois meses a Paris? Foram na mesma carruagem-cama o marido, a mulher e o amigo da mulher... aquele... como se chama?

-Giorgetti-disse  Carla.

-Giorgetti... éisso... precisamente... imagina que coisa!... Parece impossível ao contá-la.

A música acabara e, após uns vãos aplausos, os bailarinos regressaram aos seus lugares; o murmúrio das conversas imediatamente se tornou mais forte; a mãe voltou-se para o amante.-Que lhe parece-propôs-irmos esta noite ao teatro, ver aquela companhia francesa?... Tenho o camarote para uma segunda representação, ou para hoje ou para depois de amanhã à noite.

-Hoje não posso-disse o homem, fitando atentamente a rapariga.-Tenho às onze horas um encontro a que não posso faltar.

-Um encontro às onze da noite-repetiu a mãe, entre sarcástica e confidencial.-E diga-nos, Merumeci, masculino ou feminino?

Leo hesitou; teria que despertar o ciúme da mãe ou não? -Feminino, entende-se-respondeu por fim-mas expliquei-me mal... não é um encontro mas uma visita... uma ceia fria... em casa de uma senhora que recebe os amigos...

-E pode-se saber quem é essa senhora?-perguntou a mãe, completamente irritada, numa voz dura. Leo ficou desconcertado; não previra aquela indiscreção; procurou... procurou o nome de alguém que a mãe não conhecesse: -A Smithson...-encontrou, por fim-sabe... a pintora.

-Ah, muito bem!-aprovou a mãe, com um triunfo amargo.-A Smithson... é pena, realmente pena que eu tenha estado exactamente anteontem na minha modista e que essa minha modista me haja mostrado um chapéu que a Smithson deu ordem de lhe enviarem para Milão... pois... porque a sua pintora faz agora cinco dias que está em Milão.

- Como em Milão? -repetiu Leo, pasmado.

-Claro que sim-interveio Michele.- Não sabes?... Anteciparam a vernissage da sua exposição pessoal.

-Portanto, vá lá à casa da Smithson-a mãe sorria agora venenosamente-vá, mas receio que ainda que se meta imediatamente no comboio, ou mesmo num avião, não chegue a tempo...-. Calou-se por um instante; o homem não respondia e, quase assustada, Carla fitava atentamente a mãe.-Meu caro, mais depressa se apanha um mentiroso...-continuou ela. -Mas quer que eu lhe diga quem é essa famosa senhora a quem tem que fazer uma visita? Não é com certeza uma senhora honesta, que o senhor não pode conhecer senhoras honestas... uma cortezã qualquer, isso sim, qualquer rameira de ínfima ordem.

Desta vez a palidez de Carla foi tão forte que Leo receou por um instante vê-la desmaiar ou cair numa crise de choro; nada disso, porém, aconteceu,-Não grites assim, mamã -disse a rapariga, numa voz tranquila-que pode alguém ouvir.

Soaram três golpes de baqueta; o baile recomeçava. -Então, Leo-acrescentou ela-vamos dançar?

Dirigiram-se para o meio da sala um atrás do outro, por entre as pessoas sentadas; a palidez que Leo observara não abandonava as faces de Carla enquanto ela avançava por entre as mesas palradoras, e havia no seu rosto uma espécie de rígida dignidade; mas no meio da multidão, antes de se apoiar ao companheiro, ergueu a cabeça.-Bem entendido, Leo-disse, com firmeza, e quase, ao que lhe pareceu, de dentes cerrados-que esta noite vou ter contigo... espera por mim e pronto.

-A sério?

-Muito a sério-. A voz já mudara, já não era firme mas trémula; dir-se-ia que lhe faltavam ao mesmo tempo a respiração e a confiança.-Mas agora-acrescentou ela-não me fales mais nisso... quero apenas dançar.

Dançaram; Leo sustinha a cintura da rapariga com toda a força do seu braço; uma leveza, um ardor insólito, punham--lhe asas nos pés e, embora o espaço fosse reduzido e numerosa a multidão, esforçava-se por executar os passos mais difíceis. «Desta vez és minha», pensava, «és minha». Na alma da rapariga havia, pelo contrário, uma triste confusão; dançava de má vontade, desejaria sair daquela multidão, sentar-se sozinha a um canto e fechar os olhos; o carroussel dos dançarinos, em movimento contínuo, girava diante dos seus olhos: caras de homens, de mulheres, imóveis, sérias, sorridentes; a música era triunfal, vitoriosa, mas não sem um pequeno acorde trémulo de tristeza, de resto muito vulgar, que voltava, de vez em quando, com insistência; caras e música; a cabeça girava-lhe à força de as ver e de a ouvir.

A dança acabara agora; os pares voltavam aos seus lugares; voltaram também a mãe e Michele, discutindo amargamente. -Nunca mais dançarei contigo-repetia Mariagrazia, indignada.

-De  que  se  trata ?-perguntou  Leo,   com  autoridade.

-Nunca mais-continuou a mãe.-Imaginem que estavam todos a olhar para nós!... Sabe-se lá o que terão pensado... era terrível... dançou como... como...-Procurou um epíteto e, na desordem do seu despeito, não o encontrou.-Como um ladrão.

-Ah, realmente?!-exclamou Leo, estupefacto.

-Como um libertino-rectificou a mãe, com dignidade.

-E por favor-perguntou o rapaz, sorrindo com esforço -por favor, como dançam os ladrões?... E neste grupo quem é o ladrão?... Eu, ou outro qualquer?...

-Mas cala-te!-suplicou a mãe, olhando em volta.

-Não, não-insistiu Michele.-Eu, quando muito, danço como um roubado... aliviado de todo o peso terreno, todo paixão e arrebatamento... mas para saberes como dançam os ladrões é necessário que vás com outro qualquer... com certeza-e reforçou, olhando fixamente para Leo-com outro qualquer.

Por um instante, Leo, imóvel entre as duas mulheres ansiosas, não falou; depois sorriu.-Creio-disse, pondo-se de pé-que te aconteceu realmente alguma coisa, Michele... por isso, será melhor que te vás embora... a não ser que queiras que vá eu.

- Sim, Michele, vai-suplicou a mãe; olhou-a.-Então -escapou-lhe da boca-tu preferes mandar embora o teu filho de preferência a um estranho como Leo?

-Mas se foi o Leo que nos convidou...

Nada a responder. «Tem razão», pensou Michele, «foi Leo que pagou». Olhou diante de si: a grande sala baixa ensurdecia com o ruído das conversas, todos aqueles grupos, as mulheres pintadas e de pernas cruzadas e descobertas, os homens sentados em atitudes desenvoltas, de cigarro na boca, todos aqueles grupos comiam, bebiam, falavam, descuidados; os negros afinavam os seus instrumentos, lá ao fundo, sob as palmeiras;  nada a responder.-Tens razão-disse, por fim-vou-me embora... diverte-te... o ladrão vai-se embora-e afastou-se.

Continuava a chover lá fora. «Ladrão, ladrão», repetia Michele para consigo, quase sem despeito, com uma espécie de falsa exaltação. «Também tentou roubar-me a Lisa... então quem é o ladrão?». Mas poucos minutos depois viu-se obrigado a verificar, com pasmo, que não estava de facto encolerizado e antes muito tranquilo; nenhuma acção de Leo, por muito perversa que fosse, conseguia abalar a sua indiferença; acabava sempre por, após uma falsa explosão de ódio, encontrar-se como agora, de cabeça vazia, um pouco apatetado, muito leve.

Os passeios estavam cheios de gente, a rua regurgitava de veículos, era o momento de maior trânsito; sem chapéu sob a chuva, Michele caminhava com lentidão como se fosse um dia de sol, olhando ociosamente as montras das lojas, as mulheres, os reclamos luminosos suspensos na escuridão, mas, por muitos esforços que fizesse, não conseguia interessar-se por aquele velho espectáculo da rua; a angústia que o invadira sem razão enquanto atravessava os salões vazios do hotel não o deixava; a própria imagem, o que realmente era e não podia esquecer que era, perseguia-o; e parecia-lhe ver-se só, miserável, indiferente.

Veio-lhe o desejo de entrar num cinema; havia um naquela rua, bastante luxuoso, que ostentava sobre a porta de mármore uma girândola luminosa em contínuo movimento. Michele aproximou-se e olhou as fotografias: coisas chinesas feitas na América; demasiado estúpido; acendeu um cigarro e continuou o seu caminho sem confiança, debaixo da chuva, entre a multidão; depois deitou o cigarro fora: nada a fazer.

Mas entretanto a angústia aumentava, não havia dúvidas; já lhe conhecia a formação: primeiro uma vaga incerteza, uma sensação de desconfiança, de vacuidade, uma necessidade de se movimentar, de se apaixonar; depois, pouco a pouco, a garganta seca, a boca amarga, os olhos esbugalhados, o regresso insistente à sua cabeça vazia de certas frases absurdas, um desespero, em suma, furioso e sem ilusões. Michele tinha um receio doloroso desta angústia; desejaria não pensar nela e, como todas as outras pessoas, viver minuto a minuto, sem preocupações, em paz consigo mesmo e com os outros. «Ser um imbecil», suspirava algumas vezes, mas, quando menos o esperava, uma palavra, uma imagem, um pensamento, voltavam a chamá-lo à eterna questão; a sua distracção desmoronava-se então, todos os esforços eram vãos, era preciso pensar.

Nesse dia, enquanto caminhava passo a passo ao longo dos passeios cheios de gente, chocou-o, ao olhar para o chão, para as centenas de pés que patinhavam na lama, a frivolidade do seu movimento. «Toda esta gente», pensou, «sabe para onde vai e o que quer, tem um fim, e por isso se apressa e se atormenta, está triste, alegre, vive, e eu... eu, por minha vez, nada... nenhum fim... se não ando estou sentado: o efeito é o mesmo». Não despregava os olhos do chão: havia, na verdade, em todos aqueles pés que patinhavam a lama à sua frente uma segurança, uma confiança que ele não tinha; olhava, e o desgosto que experimentava por si mesmo aumentava; era assim fosse onde fosse, desocupado, indiferente; aquela rua encharcada de chuva era a sua própria vida, percorrida sem fé e sem entusiasmo, com os olhos fascinados pelos esplendores falazes das publicidades luminosas. «Até quando?» Ergueu os olhos para o céu; lá estavam as estúpidas girândolas naquela negra escuridão superior: uma reclamava uma pasta dentífrica, outra uma pomada para o calçado. Voltou a baixar a cabeça; os pés não cessavam o seu movimento, a lama esparrinhava debaixo dos tacões, a multidão caminhava. «E eu para onde vou?», interrogou-se mais uma vez; passou um dedo por dentro do colarinho. «O que sou eu? Porque não corro, não me apresso como toda esta gente ? Porque não sou um homem instintivo, sincero, porque não tenho fé?». A angústia oprimia-o; desejaria deter um dos que passavam, agarrá-lo pela gola, perguntar-lhe para onde ia, porque corria daquela maneira; desejaria ter um fim qualquer, ainda que enganador, e não patinhar assim, de rua em rua, por entre a gente que tinha um. «Para onde vou?» Em tempos, ao que parecia, os homens conheciam o seu caminho desde os primeiros até aos últimos passos; agora não; tinham a cabeça dentro de um saco, na escuridão e na cegueira; era, contudo, preciso ir para qualquer parte; para onde ? Michele pensou em ir para casa.

Veio-lhe uma pressa súbita; a rua, porém, regurgitava de veículos que, demasiado numerosos, avançavam lentamente ao longo dos passeios; impossível atravessar; sob a chuva oblíqua, entre as fachadas negras e iluminadas das casas, os automóveis, em duas filas, uma ascendente e outra descendente, esperavam desembaraçar-se e atirar-se para a frente; também ele esperou. Observou então, entre os outros, um automóvel maior e mais luxuoso; no seu interior estava sentado um homem que se encostava rigidamente de encontro ao fundo e tinha a cabeça na sombra; um braço atravessava-lhe o peito, um braço de mulher, e percebia-se que ela, sentada a seu lado, se lhe atirava sobre os joelhos, agarrando-se-lhe aos ombros, como quem quer suplicar e não ousa olhar de frente; o homem imóvel e a mulher agarrada a ele detiveram-se por um instante diante dos olhos de Michele, à luz branca dos candeeiros; depois o carro moveu-se e avançou, deslizando como um cetáceo por entre os outros automóveis; não viu senão uma luzinha vermelha fixada sobre a chapa da matrícula; parecia um reclamo; e também esse sinal desapareceu.

Ficou-lhe daquela visão uma tristeza nervosa e intolerável; não conhecia aquele homem e aquela mulher, devia ser gente de um ambiente completamente diferente do seu, talvez estrangeiros, e parecia-lhe, no entanto, que aquela cena lhe saíra da alma e era uma das suas ansiosas imaginações, materializada e oferecida aos seus olhos por alguma vontade superior; aquele era o seu mundo, onde se sofria sinceramente e se abraçavam ombros sem piedade, e se suplicava em vão, não aquele limbo cheio de fracassos absurdos, de sentimentos falsos, no qual, figuras contorcidas e sem verdade, se agitavam sua mãe, Lisa, Carla, Leo, toda a sua gente; poderia odiar realmente aquele homem, amar realmente aquela mulher, mas sabia que era inútil esperar; aquela terra prometida era-lhe proibida e nunca a atingiria.

Um polícia interrompera entretanto a passagem interminável.  Michele atravessou; sentiu no meio da rua uma espécie de vertigem, uma sensação intolerável de mal-estar; então tirou o chapéu e deixou que a chuva lhe caísse sobre a cabeça descoberta.

Não saberia dizer o que sentia; agitava-se na sua alma um grande número de desejos indefinidos e o tormento do pensamento fazia-o sofrer até fisicamente. Passou um táxi livre ao seu alcance; subiu, deu a direcção da sua casa; mantinha-se, porém, a recordação daqueles dois, do homem e da mulher abraçados no seu luxuoso automóvel. «Saber para onde foram», pensou, quase a sério, «dar ao motorista a direcção deles, ir ter com eles, pedir-lhes para ficar com eles...». Estes absurdos e as imaginações que os acompanhavam acalmaram-no um pouco; contudo, a cada solavanco do percurso, parecia-lhe acordar de algum sonho inatingível e compreendia com amargura que aquelas extravagâncias não transformariam nem sequer numa parte mínima a realidade em que vivia.

Chegou passados cinco minutos, atravessou o parque à pressa, sob a chuva mais forte, e entrou no vestíbulo escuro. Também o corredor estava mergulhado na escuridão; pôs o sobretudo e o chapéu em cima de uma cadeira e, sem acender as luzes, às apalpadelas, dirigiu-se para a escada. No momento, porém, em que passava diante da porta da sala, apercebeu-se de que passava um pouco de luz pelo buraco da fechadura e ouviu uma música, ou antes um ritmo de dança, o mesmo, pareceu-lhe, que ouvira poucos momentos antes na sala do hotel. «É uma perseguição», pensou; abriu a porta e entrou; a parte da sala que habitualmente era consagrada à conversa estava às escuras; a outra parte, para lá do arco e das duas colunas, estava iluminada e alguém tocava. Aproximou-se; a pessoa que se curvava sobre o teclado voltou-se então e fitou-o: era Lisa.

«Veio cá para me dar explicações», pensou Michele, aborrecido, «como se não tivesse já compreendido tudo». Sentou-se numa poltrona, na sombra.

-Estivemos no Ritz-disse, com calma- mas estava realmente muito aborrecido e vim-me embora... e além disso, imagina, questionei com o Leo.

Ela fitou-o com curiosidade.-Ah! Realmente?-perguntou, levantando-se e aproximando-se. Sentou-se à frente dele, o mais perto que pôde.-E por que razão?-acrescentou, hesitante e confidencial.-Talvez por minha causa?

Michele fitou aquela cara incerta e assaltou-o uma grande vontade de rir. «Minha pobre Lisa», desejaria responder, «que devo fazer para te convencer de que não te amo? Mas conteve-se por compaixão.

-Não-respondeu concisamente-não por tua causa... por causa de assuntos nossos, coisas da minha mãe.

-Ah, compreendo!-disse Lisa, algo desiludida; fitava com insistência, apaixonadamente, o rapaz; atormentava-a um desejo de justificar, de explicar como tinham corrido realmente as coisas. «Depois, tudo será claro», pensava, «e ele apoiará, como de manhã, a sua cabeça sobre os meus joelhos». O tempo passava, entre estes pensamentos, e não encontrava um pretexto para falar do que lhe ia no coração; fitaram-se.

-Disse isto-começou Lisa-porque penso que tens todas as razões para estares zangado comigo e com o Leo.

-Porquê?... Nem com um nem com outro-respondeu Michele, observando-a atentamente; desejaria acrescentar: «infelizmente!».

- Compreendo-te - continuou Lisa. - Oh, se te compreendo!... E por isso sinto que te devo uma explicação.

Michele não falou nem se mexeu. «É preciso dar-lhe a impressão de estar ausente, longe destes seus arrazoados... de os ignorar».

-E antes de tudo-Lisa inclinou-se a fitar o rapaz nos olhos -se pensas que há alguma coisa entre esse homem e eu, asseguro-te que te enganas... Houve, devo dizer-to, é inútil esconder-to agora, uma... uma relação... ele amava-me-.Lisa teve um gesto superficial, como para dizer que desenterrava o passado.-Era nova, tinha, nessa ocasião, necessidade de auxílio; um tanto por causa das suas insistências, um tanto por causa das minhas condições de então, acabei por ceder--Ihe...

-Disseram-me que ainda és casada-interrompeu Michele, quase sem querer.

-O meu marido fugiu-respondeu Lisa, com extrema simplicidade-um ano depois do casamento... e com todas as minhas jóias...-. Ficou pensativa por um instante, mas sem tristeza nem embaraço, como uma pessoa que se esforça por retomar o fio ao discurso após qualquer interrupção insignificante.

-Cedi-lhe-recomeçou, após uma pausa-e a coisa arrastou-se durante alguns anos, três anos, até que um belo dia verifiquei que não o amava, que não o amara nunca, e separámo-nos...

«Ou não foi antes por ele te abandonar pela minha mãe? desejaria Michele perguntar; mas conteve-se; para que serviria?

-E não nos vimos mais, a não ser algumas vezes na vossa casa... até... até hoje, quando me apareceu, sabe-se lá com que intenções... talvez supusesse poder voltar ao princípio-. Riu, para indicar todo o absurdo das esperanças de Leo-. Como se eu pudesse esquecer a sua conduta para comigo e, mesmo sem isso, como se eu não tivesse outros senão ele... e ele não tivesse mais nada a fazer senão aparecer para obter tudo o que quisesse... Estava precisamente a mandá-lo embora quando tu apareceste... Esta é a verdade, acredita-me, posso-to jurar por tudo o que tenho de mais sagrado...

Lisa calou-se e olhou o rapaz entre suplicante e incerta; ele baixara a cabeça e fitava as mãos.

-Sim, de facto-disse, afinal, mostrando um olhar incompreensível e um rosto vagamente preocupado.

De facto o quê? Que significava de facto? Queria talvez dizer «de facto não me atraiçoaste?» ou antes «de facto atraiçoaste-me?». Estas palavras aumentaram a confusão da mulher; curvada, ainda cheia da emoção do seu discurso, fitou Michele como se quisesse procurar-lhe na cara a explicação da sua resposta; o rapaz ostentava, porém, a mais imóvel indiferença, havia nos seus olhos uma espécie de dureza, parecia que nunca chegara a falar.

Lisa, desiludida, endireitou-se; cruzavam-se no seu espírito vários receios. «Não acredita em mim, pensava, e, no seu sofrimento, sentia vontade de torcer as mãos, «e contudo é a verdade». Passaram-se assim alguns instantes num silêncio embaraçante; depois, a mulher riu.

-Aquele pobre Leo!-exclamou.-Hoje não foi um dia bom para ele... questionou comigo e contigo... sem contar com a tua mãe, o que é normal... Oh, quantos insucessos !

E riu nervosamente, falsamente; observava Michele entre um frouxo de riso e outro e via-o redobrar de incompreensão. Ria; a sala estava cheia de sombra, as duas lâmpadas do piano, enroscadas em duas velas falsas todas espevitadas, iluminavam a tampa reluzente e oblonga e pareciam dois cílios sobre um ataúde; ria, e o seu riso morria-lhe na garganta diante do rosto imóvel e até, sim, até vagamente compassivo de Michele; a expressão que lia nele significava claramente: «É doida, com certeza. Preciso de a ouvir, aprovar sempre e esforçar-me, sobretudo, por não a irritar». E nada era mais atroz para o seu desejo de acordo e a sua fome de paixão do que esta frieza voluntária. Depois Michele falou.

-Decerto-disse-podia correr-lhe melhor.

Esta resposta tirou a Lisa as últimas ilusões; invadiu-a um desânimo apaixonado e amargo. «Vinga-se», pensou, «pensa que o atraiçoei e não quer nem mesmo ouvir-me, e responde-me assim, como um idiota».

Michele estava ali, diante dela, não havia dúvida; aquela pureza, aquela sinceridade que ela desejaria reencontrar não haviam deixado aqueles olhos e aquela fronte; a sua paixão era realmente verdadeira, existia na realidade; pareceu-lhe que se achasse as palavras apropriadas, certamente o convenceria.

-Vejamos, Michele-suplicou, voltando a inclinar-se para a frente.-Não é culpa minha se me encontraste com o Leo... ele apareceu, e além disso, como podes acreditar, depois do que se passou entre nós, de manhã, que eu pudesse, à tarde, aceitar pura e simplesmente aquele homem?... E ainda, ouve, é absolutamente impossível que eu ame Leo: é grosseiro, é material... Julgas-me mal; é preciso que mudes de opinião. Pensas que sou frívola, por assim dizer fácil, mas asseguro-te que não é verdade... sou muito diferente... tenho necessidade de algo mais... se soubesses quanto pensei nisso... de algo que não seja apenas aparência, corpo, mas também... - . Calou-se inesperadamente, fitando Michele.-E em ti-acrescentou, em voz mais baixa e mais lenta, aproximando o seu rosto do do rapaz-existe esse algo, e é por isso que te estimo e te amo...

«A isto chama-se falar claro», pensou Michele. Não respondeu, recuou um pouco a cabeça, com mais embaraço do que repugnância, e observou Lisa; esticava-se, com o busto todo fora da poltrona baixa; o corpo, assim dobrado, rebentava no vestido apertado; a saia curta, repuxada pelas costas, descobria uma gorda coxa mulheril cingida por uma liga cor-de-rosa. Este último pormenor chocou-o. «Realmente não é para se deitar fora», pensou, «Leo tem razão». Mas de súbito, em parte por aquela sensação de falsidade que lhe haviam inspirado as falas anteriores, em parte pela baixeza deste seu pensamento, invadiu-o um desgosto tão forte que os lábios lhe tremeram. «Não é isto», pensou, «não pode ser isto». Baixou os olhos e encolheu-se ainda mais.

-Não, não olhes assim para mim!-exclamou ela, ainda antes de ele ter falado, assustada, ao vê-lo, após aquela breve perturbação favorável devida à vista da sua nudez, ficar rígido como anteriormente.-Não sejas assim... tão fechado; responde-me, peço-te... diz-me seriamente o que pensas.

Seguiu-se o silêncio e, pela primeira vez desde que entrara, Michele voltou a ouvir o murmúrio da chuva contra as portadas fechadas; lembrou-se de Leo, das duas mulheres que haviam ficado no hotel.

-O que penso?-repetiu, por fim, sem sombra de ironia. -Penso que ainda não voltaram, penso que faz mau tempo, eis o que penso...

Silêncio; ela ficou como estava, dobrada sobre si mesma; não havia nada a dizer; tinham falhado, sem remédio, todas as tentativas... Fitava os sapatos de Michele e parecia-lhe que o espírito se lhe obscurecia. «Teria sido melhor», surpreendeu-se ela a pensar, «que não tivesse repelido o Leo... agora, pelo menos, tê-lo-ia a ele».

Entretanto, aumentava a obscuridade da sala, engolia as paredes e os móveis, adensava-se, baixava sobre ambos, escurecia em redor deles; formava-se uma caverna, rudemente talhada na escuridão, de abóbada baixa e fuligionosa, uma caverna de luz débil, e, curvadas sob aquele halo moribundo, as duas figuras negras velavam o caixão sobre o qual os círios palpitavam, se avermelhavam, escureciam... e se apagaram finalmente.

-Que é isto agora?-perguntou Lisa, na escuridão, num tom desanimado.

-Não é nada-chegou a resposta-falhou a luz por causa do mau tempo... esperemos.

Silêncio, escuridão, o murmúrio da chuva; depois Michele sentiu uma mão pousar-se sobre a sua e sorriu sem piedade. «Eis o momento próprio», pensou, «o momento próprio para perdoar, esquecer e abandonar-se ao sentimento na escuridão propícia».

Mas a sua fantasia oprimida recusava o sarcasmo e tirava daqueles dedos um pretexto para imaginações apaixonadas: procurar Lisa na escuridão, cingi-la finalmente ao seu peito num beijo sincero, definitivo... Lutou por um instante contra a sua fraqueza; passavam-lhe imagens diante dos olhos cheios de escuridão: a de Lisa, e mais precisamente a recordação daquela perna nua para a qual se dirigiam todos os seus desejos, e a outra, daquele homem e daquela mulher entrevistos dentro do automóvel. «Porque não é Lisa aquela mulher?», pensava. «Porque não sou eu aquele homem?». Ouvia-se a chuva bater nas paredes da vila; a escuridão era completa; a mão, estúpida e zelosa, não desistia da sua quente carícia; Michele não ousava repeli-la e perdê-la; contava os segundos e pensava esperar durante um minuto pela luz que os separaria. «Oh, mão», invocava, esforçando-se por sorrir, «espera ainda um pouco!... Ao menos quanto baste para salvar as aparências». Mas a luz não veio, o minuto passou; então, não sem se aperceber da ridícula fraqueza do seu acto, o rapaz inclinou-se e beijou a mão.

«Agora está tudo acabado», pensou logo a seguir, entre contente e desgostoso, «agora atraio-a para os meus joelhos e beijo-a na boca». E ia já a executar este desígnio, quando veio do corredor um rumor de vozes e de risos. A porta da sala abriu-se, o brilho trémulo de uma vela rompeu as trevas e fez oscilar toda a sala; saltaram de encontro ao tecto sombras gigantescas, alternando com manchas de luz viva e, seguida por Leo e por Carla, a mãe entrou.

Adiantaram-se a passos miúdos, esforçando-se evidentemente por reconhecer os outros dois, sentados; Leo tinha a vela na mão e via-se muito bem o seu rosto corado, todo banhado de luz; a mãe e a filha vinham uma de cada lado e apenas estavam meio iluminadas; aproximaram-se, hesitantes, seguidos, nas paredes e no tecto, pelas suas sombras enormes.

-Ah, és tu?!-exclamou afinal a mãe, reconhecendo Lisa.

-Ainda aqui ?-perguntou Carla, por sua vez.-Há muito tempo que se apagou a luz? Nós dançámos e divertimo-nos... e, imagina, Leo fez a mamã dançar o charleston!

-E dançar muito bem-disse Leo, adiantando-se.

-Ah, Merumeci, não me fale daquele charleston!-suspirou a mãe; sentara-se e parecia muito cansada.-Imagina! - acrescentou, dirigindo-se a Lisa.-A certa altura afasta-me, começa a espernear e diz-me: «Faça como eu». Eu, a princípio, não queria, depois imitei-o e daí a cinco minutos sabia dançar melhor do que todas as outras que estavam na sala... Não é nada difícil, o vosso charleston.

-Ora... não se pode dizer que o saibas realmente dançar...-observou Carla.

-Porque não?-protestou a mãe, ofendida.-Olha, posso voltar a dançá-lo agora mesmo... é facílimo.

-Mas, mamã-insistiu Carla-não se pode aprender em tão pouco tempo.

-Ah, sim?-respondeu a mãe, completamente irritada, levantando-se.-Pois muito bem... sempre te quero fazer ver... só para te mostrar que não tenho por hábito dizer mentiras.

Tirou o casaco e pousou-o numa cadeira.

-Lisa, por favor, queres tocar um charleston?-acrescentou, dirigindo-se à amiga.-Acharás alguns naquela rima de músicas de dança em cima do piano.

Lisa pôs-se de pé e Leo seguiu-a com a vela na mão.

-Qual queres?-perguntou a amiga, desfolhando as músicas à luz vacilante do coto.-«No Transatlântico»? «Uma Noite em Nova Iorque»?

-Essa... «Uma Noite em Nova Iorque»-aprovou a mãe.

Lisa sentou-se ao piano e pôs-se a tocar, enquanto Leo, de pé a seu lado, lhe dava luz; envolvidos na sombra da parede oposta, Michele e Carla, imóveis e silenciosos, olhavam.

A música fácil e dissonante ressoou no silêncio.

-Ânimo!-encorajou Leo. A mãe começou a dançar, olhando atentamente os pés; a luz da vela iluminava mal a sua cara pintada e congestionada, sulcada de rugas flácidas; o vestido que trazia era apertado e, a cada um daqueles movimentos bruscos, o peito e as ancas esticavam o tecido brilhante; atirava as pernas ora para um lado ora para o outro, esforçando-se por acompanhar o ritmo e por manter os joelhos bem juntos, mas devia, evidentemente, ter esquecido a lição de Leo, porque se deteve a certa altura e olhou o amante com uma cara desiludida.

-Não sei... não era esta a música do hotel-disse.-Com esta não sei dançar.

-Como vês, mamã-disse Carla, saindo da sombra-eu tinha razão.

-Nem por sonhos-. Pintava-se um vivo descontentamento na cara iluminada da mãe.-A música não era a mesma...

-Foste tu mesma que a escolheste...-observou Lisa, voltando-se do piano.

Leo adiantou-se com a sua vela para o círculo irritado e desconcertado que faziam os outros três.

-Não importa... não importa-repetiu, conciliador-para a outra vez será.

Calaram-se todos por um instante, olhando uns para os outros; a chuva devia ter aumentado; ouvia-se o seu murmúrio prolongado, à mistura com rajadas de vento, de encontro às portadas móveis; depois, Carla falou:

-Precisamos de nos ir despir-disse-porque daqui a pouco são horas de jantar.

-O senhor fica para jantar connosco, não é verdade, Meru-meci?-disse a mãe, que queria a todo o custo arrancar ao amante um encontro para o dia seguinte.

-Não... isto é, sim...-respondeu Leo.

Dirigiram-se, a passos incertos, em fila, para a porta; a mãe segurava agora a vela e comandava:-Quem gosta de mim que me siga...-. Carla ria. Mas, antes de sair, Leo aproximou-se de Michele que ficara sentado.-Então-perguntou ele-fizeste como te disse? Lembra-te de que Lisa não é para desprezar... gorda mas sabida-. Após o que, não sem ter piscado o olho ao rapaz silencioso e indiferente, foi juntar-se aos outros; a vela deitou um último brilho no umbral da porta e engolfou-se na escuridão do corredor; ouviram-se ainda as suas vozes, entre as outras a da mãe, que ordenava:-Abre a porta, Carla-. Michele, que não se movera da sua poltrona, ficou na escuridão.

Subiram a escada todos juntos, acotovelando-se uns aos outros e falando. No andar superior, na antecâmara, Carla achou outras duas velas numa gaveta; a mãe pegou-lhe e arrastou Lisa consigo para lhe mostrar um vestido novo. -De gola dourada-repetia ela, andando.-Vais ver... é a grande moda-. Na antecâmara ficaram Leo e Carla.

Olharam um para o outro: boiava nos olhos inexpressivos do homem uma grave e pesada excitação; pousara a vela na mesa e apertava nos dedos cabeludos a mão de Carla, mão de que muito gostava porque era branca, fria e magra; fitava Carla de cima para baixo, entre taciturno e penetrante, e a sua fantasia obscura demorava-se a imaginar as carícias indecentes que aquela mão frígida, com uma naturalidade não privada de assombro, saberia fazer. «Uma dessas mãos», pensava, «que parecem flores de tão delicadas que são e que, no entanto, além de nos darem prazer, são capazes de tudo». Quanto mais pensava, mais se excitava; por fim o seu rosto endureceu, largou a mão e agarrou Carla pela cintura. A rapariga devia, evidentemente, estar a pensar numa coisa muito diferente.- Não, Leo... não, cuidado!-murmurou-lhe em voz baixa, defendendo-se; os seus olhos, assustados, olhavam em volta; finalmente, cedeu-lhe. Foi nesse momento que Lisa entrou.

Viu-os enlaçados no meio da antecâmara e, em redor, cinco portas com reposteiros de veludo; deu um passo atrás e escondeu-se; quando voltou a olhar, entreabrindo apenas o reposteiro, da sombra em que a mergulhava a vela pousada na mesa, viu as duas cabeças ainda unidas inclinarem-se para um lado e para o outro durante o beijo e as suas sombras, no grande silêncio, subirem até ao tecto. Não pensava em nada, o coração palpitava-lhe; deixou de espreitar por um instante e ficou indecisa e espantada na escuridão, entre a porta e o reposteiro; depois, cautelosamente, voltou a olhar: os dois tinham-se separado e estavam agora a falar.

-Pareceu-me-disse Leo-que aquele reposteiro se mexeu...

-Espírito-acrescentou, a rir-se estás aqui bate uma pancada... se não estás, bate duas-. E parodiava os que interrogavam as mesas; Carla, via-se-lhe a crispação do rosto meio iluminado, ria-se contrariada, e Lisa, atrás do reposteiro, tinha vontade de bater realmente para os ver dar um salto, aterrorizados, de rosto corado e olhos assustados.

-Senta-te aqui-dizia o homem, entretanto-aqui nos meus joelhos.

-Mas Leo-suplicava a rapariga-Leo... se vier alguém!

-Não tenhas medo... - . Um rocegar; Lisa abriu mais os olhos: não... não sonhara, Carla lá estava, sentada nos joelhos do homem, com a cabeça encostada à dele, rigidamente sentada, e depois... eis que ele lhe beijava o pescoço.

-E agora, Carla-disse Leo, alegremente-se estás aqui dá-me um beijo... se não estás, dá-me dois-. Fez-se silêncio; a grande cabeça negra de Carla inclinava-se tristemente; inesperadamente, vibrou.-Não, Leo-e repetiu:-Não... isso não...-. E debateu-se, num oscilar de sombras gigantescas; depois ficou quieta; a vela lançava fulgores ora longos ora breves; os dois, absortos, de cabeça baixa, não se.moviam nem falavam; apenas se ouvia, a intervalos, o chiar do sofá. Então, sem fazer ruído, Lisa voltou a entrar no quarto da mãe.

Ao primeiro espanto seguia-se agora uma alegria vingativa. «Agora agarro a Mariagrazia por um braço», pensava, «e levo-a a ver o que está a tramar o seu querido Leo». Mas a vista da mãe, ao entrar no quarto, desarmou-a sem saber porquê.

Achou-a a passear de um lado para o outro, de vela na mão, espreitando vaidosamente no espelho o efeito do seu vestido novo.

-Que te parece?-perguntou; estava muito preocupada com um defeito que observara acima da cintura, uma prega fora do lugar.-Ponho-lhe umà fita-dizia-ou então... ou então, Lisa, dá-me tu uma ajuda...-e virava-se, tornava a virar-se, insatisfeita; Lisa sentara-se num canto escuro: a lembrança do que vira apertava-lhe agora o coração, sem saber porquê, e fechava os olhos.

-Mas, não sei-disse, vagamente.

-Qual não sabes! -repetiu a mãe, perplexa, mirando-se no espelho.-Estou eu aqui a atormentar-me e tu respondes-me que não sabes... então o que é que sabes?

«Sei tanta coisa», era o que Lisa desejaria responder; mas agora já não tinha nenhum desejo de revelar o segredo imprevisto; era detida por uma reserva especial, uma reserva de dignidade, por assim dizer: não queria, de facto, que se pensasse que, ao revelar a nova ligação de Leo, agia por uma vingança mesquinha de amante traída e não por causa do desgosto que sentia e do afecto que tinha por Carla; por isso calou-se.

-Tu porias uma rosa dourada?-perguntava, entretanto, a mãe, e a vela que tinha na mão lançava fulgores de ansiedade sobre a sua cara flácida.

-Sim, decerto-aprovou Lisa, vagamente; revia, porém, aquelas duas cabeças unidas e sofria por isso; era a primeira vez que lhe acontecia; sofria como por uma coisa triste e obsessiva.

-E um cinto?-insistia a mãe.-Que dirias de um cinto-zinho dourado?- Continuava a mirar-se e parecia mais satisfeita.-É um vestido muitíssimo lindo-acrescentou-mas esta prega... esta maldita prega... Passou uma dúvida pela sua cara iluminada.-Estarei eu mal vestida por baixo?-interrogou, e, pousando o coto no chão, levantou as saias com ambas as mãos e pesquisou entre as roupas leves que trazia sobre a pele. A vela palpitava, vacilava, e torciam-se no ar pequeninas espirais negras de fumo; Lisa, sentada na sua

cadeira, num canto escuro, não se movia nem falava: os olhos iam-lhe das gordas pernas nuas da mãe para a porta atrás da qual, na antecâmara, Leo e Carla se abraçavam. Oprimia-a uma sensação de desgosto, outro sentimento novo para ela, um desgosto clarividente que considerava a juventude da rapariga e previa friamente a ruína que traria aquela ligação; não sentia indignação e nem sequer assombro, oh, não, já vira muita coisa na sua vida, mas antes uma piedade imprecisa que abrangia a mãe, Leo, Carla, todos e ela própria. A novidade destes sentimentos quase a atemorizava; estava cansadíssima; apoderou-se dela, finalmente, um desejo histérico de se ir embora, de voltar a pensar na solidão todos os acontecimentos que haviam ocorrido naquele dia.

Pôs-se de pé.-Vou-me embora-disse.

A mãe, que despira o vestido, veio ao encontro dela em camisa.

-Já?!-exclamou, mas não a deteve e, depois de a ter abraçado, seguiu-a com a vela até à porta.

-E esta noite o que é que fazes?-perguntou-lhe, no limiar.

-Vou para a cama-respondeu Lisa, com grande simplicidade; viu a mãe fitá-la atentamente, como quem duvida. -Então, adeus-repetiu, e, não sem bater com a porta para avisar os dois amantes da antecâmara, saiu do quarto.

Carla levantou-se imediatamente do sofá e veio ao seu encontro.-Acompanho-te-disse.-E tu, Leo, ficas às escuras por cinco minutos-. A luz da vela iluminava em cheio a sua cara redonda; Lisa observou que os seus olhos estavam cansados e turvos e as suas faces mais pálidas do que habitualmente. Assaltou-a inesperadamente o desejo de falar, de dizer o que vira, mas já a rapariga lhe voltava as costas e descia a escada.

Este pensamento atormentou Lisa durante toda a descida, a cada degrau. «Devo falar ou não?» Olhava as faces pueris de Carla, aquela cabeça grande, e a compaixão aumentava. «É só por culpa de Mariagrazia», pensava, «que esta pobrezinha se encontra agora em tais condições». Chegaram ao átrio; devia falar ou não? Lisa nunca experimentara uma incerteza tão desconcertante, nem tão fortemente este sentimento novo para ela: a piedade. «Não é culpa dela», repetia para consigo, e desejaria fazer um gesto, lançar um certo olhar, e assim, sem palavras, ir direita àquele vergonhoso segredo da rapariga; mas não foi capaz.

Pôs o chapéu diante do espelho do corredor,, à luz da vela que Carla segurava; não deixava, entretanto, de espiar a rapariga.

-O que é que tu tens?-perguntou-lhe de repente.-Não me pareces como todos os outros dias.

-Eu?-Carla pareceu admirar-se.-Nada.

-Sabes que estás pálida?-continuou Lisa.-Em minha opinião cansas-te muito.

Nenhuma resposta; devia falar ou não? Vestiu o casaco e, pronta para sair, pegou na mão de Carla; fitaram-se; a rapariga não suportou os olhares indagadores da amiga e baixou os olhos.

-Carla-disse, inesperadamente, a mulher, numa voz comovida-estás mudada... que te aconteceu?

-Mas... nada.

Desconcertada, Lisa não se decidia a partir.

-Então abraça-me-disse, bruscamente. Abraçaram-se; mas, beijando todavia aquelas faces frias e até certo ponto insensíveis, Lisa sentia-se terrivelmente insatisfeita. «Não era assim», repetia, amargurada, para consigo, «não era assim que devia falar». Passaram para o vestíbulo.

-Lembra-te-acrescentou, embaraçada-quando houver alguma coisa que te corra mal, quando tiveres... desgostos, de vires ter comigo... Não me escondas nada.

-Decerto... decerto-disse Carla, quase com vergonha; Lisa saiu e a porta fechou-se.

Pensativa, a rapariga voltou a subir ao andar superior; as palavras de Lisa haviam-na assustado vagamente. «Terá percebido alguma coisa?», perguntava-se, mas quanto mais pensava nisso mais aquela hipótese lhe parecia impossível: a sua ligação com Leo não durava havia mais do que um dia, Lisa não estivera ali em casa senão de fugida; impossível... a não ser... a não ser que houvesse suspeitado alguma coisa da inexplicável ausência, sua e de Leo, na noite anterior, no vestíbulo. «Mas agora, quer haja adivinhado quer não, é tarde demais», concluiu, sem saber se com alegria se com amargura, «esta noite irei a casa do Leo».

Subia lentamente; a vela que tinha na mão seguia-a com a sua luz trémula e reflectia na parede uma sombra grotesca de cabeça enorme. «Vou assim ao encontro da nova vida», pensou; desejaria sentir-se completamente calma mas não conseguia; o coração palpitava-lhe, era inútil escondê-lo, oprimia-a um sentimento de angústia e incerteza. «Que estas horas passem depressa», pensou, dando um suspiro profundo e pueril, «que passe depressa esta noite, é só isso que desejo».

Na antecâmara às escuras o brilho da vela revelou-lhe Leo no fundo da sua poltrona; pousou o coto na mesa e sentou-se ao lado dele.

-Que aborrecimento, não é? Esta luz que não vem- começou, só para dizer alguma coisa; o homem não respondeu e pegou-lhe nas mãos.

-Então, vais esta noite?-perguntou; mas Carla não teve tempo de falar; abriu-se o reposteiro de uma das cinco portas e Mariagrazia entrou.

Trazia consigo a sua vela, envolvera o corpo num grande xaile negro e havia no seu rosto iluminado uma expressão maligna.

-A Lisa foi-se embora-disse ao amante, sem se sentar. -Talvez o senhor, Merumeci, preferisse que eu a convidasse para jantar, não é verdade?... Mas que quer?... Não se pode ter sempre tudo o que se deseja... e de resto, a sua querida amiga terá assim tempo para se preparar para a sua visita... nocturna.

Sublinhou a palavra «nocturna» com uma gargalhada reprimida e, sem esperar resposta, começou a descer a escada.

-Onde vais, mamã?-gritou-lhe Carla, erguendo-se.

-Creio que são horas de jantar-respondeu a mãe sem se voltar, descendo lentamente, degrau a degrau, alumiando-se com uma das mãos e apoiando-se com a outra à balaustrada de madeira-mas se o senhor Merumeci quer correr atrás da Lisa não se prenda... para mim é o mesmo.

A luz desapareceu, voltou a escuridão e as últimas palavras extinguiram-se do outro lado do patamar, atrás da curva da escada estreita.

Carla, que seguira com os olhos aquela descida, voltou-se.

-É inútil-disse Leo, da sua poltrona.-A tua mãe é o que é... mas quando se lhe mete uma ideia na cabeça ninguém lha tira.-Calou-se, fazendo um gesto definitivo; não falaram por um instante; Carla olhava o amante, preocupada e como que assustada.

-Sabes o que suponho?-começou, finalmente.-Que a Lisa haja adivinhado alguma coisa.

-De que maneira?

-Não sei... mas pelo tom em que me falou...

Leo teve um gesto desdenhoso.-Por mim... pode ela adivinhar o que quiser-e, num rápido movimento, tentou atrair a si a rapariga; contudo, sem razão, ela resistiu.-Não... agora basta-protestou, empurrando-lhe os ombros com as mãos.

-Vá lá-suplicou o homem, estendendo da sombra a cara excitada e esforçando-se por segurar a rapariga pelas ancas -que diferença te faz?... Só um poucochinho como há pouco.

-Não... - . Ela debateu-se com desusada violência; tinha os olhos cheios de ira; chocou, a certa altura, com a mesa, a vela pousada à sua beira caiu no chão e apagou-se; seguiu-se uma profunda escuridão e, após uma descida precipitada e desordenada pela escada, o silêncio.

«Que rapariga estranha, pensou Leo, que ficara só, às escuras. «Há pouco deixar-se-ia despir... cinco minutos depois nem sequer permite que a beijem na testa...». Não estava irritado mas apenas um pouco surpreendido; a sensualidade arrefecia agora. Lançando às trevas que o cercavam olhares indagadores, procurou nos bolsos a caixa dos fósforos e acendeu um; baixou-se então, apanhou a vela e chegou-lhe a chama. «E agora», pensou, «vamos lá comer». Levantou-se, deu alguns passos, mas lembrou-se de repente que se esquecera de dizer a Carla a que horas e de que maneira se encontrariam nessa noite para irem a sua casa.

Voltou à mesa, pousou-lhe a vela em cima e, com uma lentidão metódica, àquela luz incerta, num cartão de visita que tirou da carteira, escreveu o bilhete com a sua grossa estilo-gráfica de ouro: «Espero-te daqui a uma hora, com o carro, ao portão do jardim». «Para entregar à saída», pensou, após o que, satisfeito, voltou a pegar no coto e desceu a escada.

Brilhava uma única vela sobre a mesa posta; a sala estava quase completamente às escuras, e de Michele, de Carla e da mãe, já sentados nos seus lugares, não se viam senão as caras mal iluminadas; o recém-chegado sentou-se por sua vez e, em silêncio, começou a comer. O primeiro prato foi assim comido sem que ninguém falasse; olhavam todos aquela luz movediça das velas, não se ouvia nenhum ruído; cada um deles tinha um pensamento fixo que se lhe agitava inquietamente no espírito, mas, de todos, a mais absorta e preocupada era sem dúvida a mãe; apoiava o queixo nas mãos juntas, tinha duas rugas amargas aos cantos da boca e considerava de olhos vítreos os movimentos silenciosos das duas chamas.

Depois decidiu-se finalmente a olhar o amante, e então o rosto contraiu-se-lhe num sofrimento amargo, num sarcasmo violento.

-O que eu gostaria era de saber-começou, num tom obstinado, dirigindo-se indistintamente a todos-porque é que tem que haver neste mundo pessoas tão mentirosas... ora aí está... era o que eu queria saber... Vá lá que se façam as coisas, concedo que se possam fazer, mas escondê-las depois, mentir, falsear a verdade... isso põe-me fora de mim.

Silêncio; nenhum deles queria assumir a responsabilidade de encorajar a mãe naquele caminho com qualquer resposta menos cautelosa. Ela olhou-os um após outro, como para os desafiar a falarem, mas Leo e Carla baixaram os olhos e Michele virou-os para outro lado. Então, depois do ataque indirecto, decidiu-se pelo ataque directo:-O senhor, por exemplo - acrescentou, dirigindo-se ao amante-está no seu pleno direito de ter um compromisso para depois do jantar, ninguém lho proíbe, ainda que o ir-se embora logo depois de haver comido da casa para onde se tenha sido convidado seja de uma má educação colossal... Mas para quê, em vez de dizer a verdade, inventar um monte de patranhas; que tem uma recepção a que não pode faltar, que vai a casa da Smithson que afinal está em Milão, etc, etc.?... Ora diga-me cá quem é que o obriga a fazê-lo? Quem foi que lhe pediu que dissesse tantas mentiras estúpidas?... Isto não só é uma falsidade como também é um insulto para mim, como se eu fosse tão tola que não compreendesse certas coisas... Em vez disso teria sido muito mais simples dizer a verdade: sabe, minha senhora, às tantas tenho que me despedir porque vou ter com... com uma pessoa... Eu ter-lhe-ia respondido: ...pois vá para onde quiser... até para o diabo, se lhe agrada... e tudo acabaria aí...

calou-se, recusou com um gesto o prato que a criada lhe estendia da escuridão; tirava e voltava a pôr no seu lugar, em movimentos maquinais, os talheres e os copos.

-Mas diga alguma coisa-gritou, vendo que Leo não se decidia a falar-fale... deite cá para fora de uma vez por todas essa famosa verdade.

O homem olhou a amante de través; uma tal insistência começava a irritá-lo. «O que tu merecias era seres corrida à bofetada durante duas horas de seguida», pensava, observando com ódio aquele rosto maduro e estúpido, «duas horas pelo menos». Mas serviu-se e respondeu por entre os dentes:-Não tenho nada a dizer.

Nada podia exasperar mais a mãe do que estas palavras indiferentes.

-Mas o quê?!-exclamou ela.-Eu acuso-o justamente de mentir, e o senhor não só não diz as razões do seu comportamento mas ainda responde mal como... como se fosse eu que não tivesse razão... O senhor quer saber o que é?... É um insolente.

Habitualmente,   Leo  não  respondia   às  repreensões  da amante; desta vez, porém, quer porque a excitação que a rapariga lhe havia metido no corpo lhe tivesse inspirado uma insólita impaciência nervosa, quer porque a injúria o houvesse realmente ferido, ofendeu-se.

-Oiça-disse, rudemente, deixando, num ímpeto, a travessa que a criada lhe servia-acabe com isso duma vez por todas... ou senão ver-me-ei obrigado a responder-lhe mal a sério... até certa altura está bem, mas demais não.

Disse e fixou a amante, por um instante, com uma carranca tão dura e ultrajante que a infeliz ficou sem respiração; a luz e a obscuridade, que as duas velas agitavam em redor a cada oscilação, aumentavam a raiva contida dos maxilares do homem, nos quais, sob a pele corada e barbeada, se via contrairem-se os nervos impacientes; os cantos dos olhos, cujas pupilas irritadas fixavam a mãe, adquiriam duas rugas brutais de fadiga sensual; o escárneo entre desdenhoso e violento da boca, como de quem se contém para não agredir, era sublinhado por um cone de sombra que lhe cobria metade do queixo. Mariagrazia, de olhos vítreos, assustada, detida a meio do seu enfado loquaz, fitava aquele rosto sem piedade, aquela espécie de catapulta que a atingia em plena face; o corpo tremia-lhe e uma aguda sensação de infelicidade, de uma falta absoluta de bondade e de amor, apertava-lhe o coração, sufocava-a. «Lulú, não me olhes assim», desejaria ela gritar, cobrindo depois a cara com as mãos; todavia ficou imóvel, apavorada. «Amo-o... e ele responde-me assim», repetia uma voz perdida na sua cabeça vazia.

Depois viu Leo voltar-se e, tranquilamente, tirar da travessa duas fatias de carne e verdura; nada mais a dizer; irreparável; os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, pousou o guardanapo em cima da mesa e, vagarosamente, levantou-se.

-Não tenho vontade de comer-disse.-Mas deixem-se ficar...-E saiu quase a correr, não sem tropeçar no tapete.

O silêncio seguiu-se a esta partida inesperada; Leo, que já empunhara a faca e o garfo, ficou com eles na mão e com a cara estupefacta voltada para a sombra da porta pela qual a mãe desaparecera; Carla também ficou de olhos esbugalhados naquela direcção; depois, Michele, que parecia o menos espantado dos três, dirigiu-se ao homem:

-Não devias responder assim-disse, sem irritação, no tom de quem está apenas muito aborrecido.-Sabes como é impulsiva... Agora vamos ter histórias de nunca mais acabarem. ..

-E que foi que eu lhe disse?-respondeu o homem, com vigor.-Se tem os nervos abalados que os trate... assim nem sequer se pode falar.

-Vocês dois até falam demais-e Michele fitou o homem nos olhos-muito mais do que é preciso.

-Tolices!-resmungou o outro, encolhendo os ombros. -A tua mãe, sim, que fala demais, mas eu...-. Calou-se por um instante, olhando, ora para o prato, onde a comida apetitosa esfriava, ora para a porta por onde a mãe saíra.

-E agora...-acrescentou-que vamos fazer? Não vai com certeza deixar de comer-. Um instante de silêncio; Carla pousou, depois, o guardanapo em cima da mesa.

-Michele tem razão-disse a amante-o sr. Merumeci não devia tratar a mamã dessa maneira... Terá os seus defeitos, mas sempre é uma senhora... O senhor andou mal...-. Levantou-se e ficou pensativa por um instante; repugnava-lhe o que ia fazer, dava-lhe um sofrimento impaciente.

-Vou ver se vem-disse, por fim, e, afastando a cadeira, saiu por sua vez.

No corredor a escuridão era completa; avançou às apalpadelas, encostada â parede. «Devia ter trazido a vela», pensou; recordou-se de repente que, depois de uma cena semelhante àquela, a mãe fora refugiar-se na sala; deu ainda alguns passos e, depois, tropeçou tão bruscamente no tapete que quase caiu; assaltou-a uma aguda irritação contra Maria-grazia, de idade madura e pueril. «Tudo isto tem que acabar», pensou, de dentes cerrados, pousando a mão na maçaneta da porta da sala, «vou esta mesma noite a casa do Leo... tudo isto acabará». Parecia-lhe que a escuridão que lhe enchia os olhos lhe entrara, sabe-se lá como, na alma. «Vamos lá procurar essa estúpida da minha mãe», pensou ainda; sentia-se muito impiedosa e, não obstante, profundamente angustiada com a sua impiedade; mordeu os lábios e entrou.

Como previra, a mãe escondera-se na sala; ouvia-se, de facto, naquela escuridão, alguém que, não longe, chorava e suspirava-hum... hum-não sem fungar de vez em quando. A irritação de Carla cedeu lugar a um sentimento mais brando.

-Onde estás, mamã?-perguntou, em voz clara, avançando no escuro, de braços abertos.

Ninguém respondeu. Por fim, depois de ter chocado várias vezes com os móveis, tocou um ombro da mãe, que, pelo que podia julgar, devia ter-se sentado no sofá do canto.

-Que estás a aqui a fazer?-perguntou-lhe, abanando-a um pouco e olhando para cima, para o tecto invisível, como se não existisse aquela escuridão e não quisesse ver a mãe chorar.- Anda daí... vamos! - . Um estremecimento das costas.

-Comam sozinhos... eu não vou-respondeu a voz de Mariagrazia.

Carla soltou um suspiro entre triste e impaciente, deu a volta ao sofá e sentou-se ao lado da mãe.

-Vamos lá, anda, vamos!-repetiu, pousando as duas mãos nos ombros da mulher chorosa.-Garanto-te, mamã, que o Leo não tinha nenhuma intenção de... que é o primeiro a lamentar o que aconteceu...

-Ah, meu Deus, como sou infeliz!-lamentou-se, em resposta, com uma amargura pueril, a voz da mãe.-Como sou infeliz!

Carla estremeceu.-Coragem, mamã-repetiu, numa voz mais incerta.

O sofá chiou e dois braços envolveram o pescoço da rapariga; sentiu, de encontro à sua, a face molhada de lágrimas da mãe.

-Pensas realmente-perguntou a voz chorosa-diz-me, pensas que ele tenha realmente voltado a amar aquela mulher ?

-Mas quem?-perguntou Carla, perturbada; sentia de encontro ao braço aquele peito mole e ofegante, não sabia que fazer, repugnava-lhe, como um acto contra a natureza, ter de consolar a mãe; «ao menos que deixasse de chorar», repetia para consigo.

-A Lisa, claro...-insistia a voz soluçante-não viste que ontem à noite sairam juntos?... Tenho a certeza, tenho a certeza de que voltaram a amar-se... Ah, como sou infeliz!...

«É a mim que ele ama», desejaria Carla responder-lhe; mas era então verdade? Assaltou-a um desgosto súbito do que sucedia à sua volta.-Mas que lhe teria eu feito -ouvia, entretanto, lamentar-se a voz de Mariagrazia-para lhe merecer tudo isto?... Sacrifiquei toda a minha vida por ele... e agora, pronto, vês como me trata-. Queria estar a milhares de quilómetros dali.-Não sei nada-disse, por fim, e já ia a desenvencilhar-se dos braços da mãe, quando, lá ao fundo da sala tranquilamente, como se alguém tivesse dado a volta ao interruptor, se acenderam as luzes do piano.

As trevas dissiparam-se e logo, com um gesto instintivo, a mãe se separou da filha, inclinou-se e assoou-se; Carla pôs-se de pé.

-Estou despenteada? - perguntou Mariagrazia, levantando-se por sua vez.-Estou muito corada?

A rapariga olhou-a: as faces da mulher estavam estriadas de

sinais pálidos, estava desgrenhada, tinha o nariz vermelho e os olhos pequenos, como se sofresse de uma forte constipação.

-Mas não... estás muito bem.

Saíram da sala; o corredor também estava iluminado; Mariagrazia dirigiu-se a um dos espelhos redondos e arranjou-se o melhor que pôde; depois, Carla à frente e a mãe a seguir, voltaram ambas a entrar na casa de jantar.

Também lá voltara a luz e, sentados um em frente do outro, Leo e Michele falavam tranquilamente.

-Nos negócios-dizia o primeiro-é difícil ter êxito... quem não entende mete o próprio dinheiro nas mãos de quem entende.-Mas logo que viu as duas mulheres deixou de se ocupar com o rapaz.

-Então ficamos amigos, não é verdade, minha senhora? -disse, pondo-se de pé e indo ao encontro de Mariagrazia.

-Até certo ponto-respondeu a mãe, ostentando frieza; e foi sentar-se no seu lugar.

O fim da ceia foi silencioso: todos tinham um pensamento dominante e ninguém falava. «Que vá para o diabo», repetia Leo de si para consigo, desconcertado, olhando Mariagrazia; embora a reserva da mulher lhe fosse indiferente, aquele rancor insólito não lhe pressagiava nada de bom. A mãe procurava, pelo seu lado, um meio de se vingar de Leo; a dor desaparecida deixara-lhe um árido ressentimento. «Interessa-lhe que eu lhe ceda directamente a vila», pensou afinal, triunfante, «e eu, em vez disso, fá-la-ei vender em hasta pública». Não sabia da verdadeira vantagem desta sua especulação nem o valor da vila, mas imaginava vagamente que, além do despeito que faria ao amante, tiraria de tal forma de venda alguns milhares de liras a mais. Carla pensava na noite que se ia seguir e apoderava-se dela uma perturbação extraordinária. «Prometi-lhe realmente?», perguntava no seu íntimo. «É mesmo esta noite que devo ir?» Quanto a Michele, atormentava-o um mal-estar oculto: parecia-lhe que o seu comportamento durante a discussão entre sua mãe e Leo fora de uma indiferença sem par. «Mais uma boa ocasião perdida», dizia para consigo, «para contender com ele, para romper com ele».

 

Saíram enfim da casa de jantar a passos medidos, acendendo cigarros e mirando-se de fugida nos espelhos do corredor, e foram para a sala.

-Esta noite-disse Leo, de súbito, sentando-se no sofá, ao lado de Mariagrazia-estou com disposição para ouvir um pouco de música clássica... vamos, Carla-disse, voltando-se para a rapariga-toca-nos o que quiseres, Beethoven ou Chopin, desde que seja qualquer coisa dos bons tempos antigos, quando não se usavam as músicas de jazz que dão dores de cabeça...-. Riu-se com cordialidade e cruzou as pernas.

-Sim, Carla-insistiu a mãe, que tencionava aproveitar-se da música para poder falar com maior liberdade ao amante -sim, toca-nos qualquer coisa, por exemplo... aquela fuga... de quem era? An, sim, de Bach... que te saía tão bem.

A ideia da música também agradou infinitamente a Michele; sentia-se cansado e irritado, e a imagem da melodia entendida como um manso rio em que se pode mergulhar e esquecer nunca lhe parecera tão verdadeira como agora. «Música», pensou, semicerrando os olhos, «e para o diabo todas as mesquinharias... verdadeira música».

-Já há muito tempo que não toco-avisou Carla-e portanto espero que não sejam muito severos-. Dirigiu-se ao piano, abriu-o e examinou algumas partituras.-Uma fuga de Bach-anunciou, finalmente.

Soaram os primeiros acordes; Michele semicerrou os olhos e preparou-se para ouvir a melodia; a sua solidão, as conversas com Lisa haviam despertado nele uma grande necessidade de companhia e de amor, uma esperança extrema de encontrar entre toda a gente do mundo uma mulher que pudesse amar sinceramente, sem ironias e sem resignação. «Uma verdadeira mulher», pensou, «uma mulher pura, nem falsa, nem estúpida, nem corrompida... encontrá-la... isso, sim, que poria tudo no seu lugar». Não a encontrara por enquanto, não sabia sequer onde procurá-la, mas tinha no espírito a sua imagem, entre ideal e material, que se confundia com as outras figuras daquele fantástico mundo instintivo e sincero onde desejaria viver; a música ajudá-lo-ia a reconstruir essa imagem amada... e eis que, de facto, mais por causa da sua exaltação e do seu desejo do que propriamente graças à música, se formava desde as primeiras notas, no espaço entre ele e Carla, aquela imagem... era uma rapariga, adivinhava-o pela agilidade do corpo, pelos olhos, por todo o porte. Muito graciosa, na verdade, quase lhe voltava as costas e observava-o atentamente, sem lisonja, sem sombra de lascívia, oh, não, poderia jurá-lo, mas com aquela curiosidade franca e atónita com que as crianças olham os da sua idade. «A minha companheira», pensou ele; e já os gestos, uma espécie de abraço, um sorriso, um aceno, acontecimentos, passeios, conversas, se formavam e passavam no céu cheio de desejo da sua fantasia, quando uma tagarelice contínua e em voz baixa quebrou a ilusão e o conduziu à realidade.

Era a mãe que levava a cabo o seu propósito de se valer da música para falar ao amante.

-Se quiser, Merumeci-insistia, olhando venenosamente o amante distraído-pode ir mesmo já a essa sua recepção... não há nenhuma necessidade de o senhor aqui estar a aborrecer-se a ouvir a música... ninguém o prende... vá... vá lá para onde o esperam.

Leo fitou-a; não tinha vontade nenhuma de discutir e fez um sinal na direcção de Carla como para significar: «Agora não... agora estamos a ouvir Bach».

-Mas sim-insistiu a mãe-o senhor aborrece-se aqui... não diga que não... vi-o eu, com os meus próprios olhos, a bocejar... Nós aborrecemo-lo e, por outro lado, não podemos de modo nenhum pôr-nos a bailar para o divertir... Portanto vá para onde seja acolhido de braços abertos, e ninguém tocará, e ninguém o incomodará... vá... - . Falava e não deixava de sorrir estupidamente, de novo assaltada, só por pensar em Lisa, por uma vertigem de ciúme.

-Além disso-acrescentou-seria uma verdadeira grosseria faltar à recepção da Smithson... quem sabe quanta gente lá estará... pode ter organizado um comboio especial para levar os seus convidados a Milão...

Leo teria dado fosse o que fosse para se livrar daquela maçada; sacudiu a cinza do charuto e voltou-se com calma para a mãe:

-Se menti-disse-foi só por consideração para consigo, para a não levar a supor que nos aborrecemos em sua casa... A verdade é que não vou esta noite a nenhuma recepção; vou mas é dormir... Há muitas noites que me deito a altas horas e sinto-me cansado... esta noite quero deitar-me cedo.

-Ah, sim!-exclamou a mãe com uma cara de quem sabe muito.-Então quer ir dormir... tem sono, deitou-se tarde todas as noites, vê-se bem que não se tem de pé, que não pode mais com sono... coitadinho!... Se soubesse a compaixão que me causa.

-Não preciso de causar compaixão a ninguém-respondeu Leo, irritando-se sem querer.

-Mas o senhor não percebe que alinha as mentiras umas atrás das outras?-perguntou, bruscamente, Marií.grazia.- Primeiro era a Smithson, agora é o sono... envergonhe-se.

-Não me envergonho; envergonhar-me de quê?

- Mas cale-se, por favor...

Leo encolheu os ombros e não disse nada; Michele/erio-jado, observava-os da sua poltrona. «Que o diabo os leve», pensou, «já nem sequer se pode ouvir a música... têm sempre alguma das suas discussões mesquinhas. A rapariga amada desvanecera-se e a música era um amontoado sem significado; a mãe e Leo triunfavam.

-Dormir, hem?-continuava a mãe, falando ao ouvido do homem.-Dormir, não é verdade? Mas sabe o que lhe digo? Que sei tudo, entende? Tu-do! Da noite de ontem e desta noite, tudo.

-Pelo contrário, não sabe nada-desabafou Leo, sem se voltar; lançou para a frente uma nuvem de fumo; ali estava Carla, voltando para ele os ombros carnudos, cheios. «Que noite», pensava ele, «que noite!... Só faltam poucas horas e parece-me uma eternidade». Os seus olhos fixos, imóveis, ignoravam a mãe, Michele, toda a sala... o desejo dava-lhe visões... Carla completamente nua sentada no banquinho diante do piano; parecia-lhe ver naquele canto cheio de sombras as suas costas brancas, divididas por um sulco curvo, as ancas largas e redondas e, agora que ela se voltava, até os

dois seios. Mas a música acabara e a realidade voltava; aplaudida por Michele, insòlitamente afectuoso, a rapariga falou:

-Gostaram?-perguntou.

-Muito, sim, muito-disse Leo.-Mais uma vez, Carla.

- Mas não,  Carla-interveio  a mãe-não,  não  toques.

Merumeci não só se aborrece mas também está ansioso por se ir embora... não pode mais com sono, quer dormir... Então para que prendê-lo?-E, para o amante:-Vamos-insistiu, num  tom  obstinado,   puxando-lhe  pela  manga-ande,   vá dormir.

Leo libertou o braço e sorriu de má vontade; assaltava-o um forte desejo de dar duas bofetadas solenes à amante incorrigível; Carla fitou-os a ambos por um instante. «É mesmo esta noite que tenho que ir a casa dele?», repetia a si mesma; parecia-lhe estranho: agora estava sentada ao piano e daí a duas horas estaria no quarto do amante; mas como adivinhava a impaciência ávida do homem, em parte para demorar tanto quanto possível o momento extremo da rendição e em parte por um resto de garridice, quis continuar a tocar.

-Pois bem-disse, com firmeza-o Leo não se irá embora e vai aborrecer-se mais dez minutos... não é verdade, Leo? -Abriu uma grossa partitura e, de rosto atento e preocupado, recomeçou a tocar.

«Ah, que feiticeira», pensou Leo, «quer ver-me morrer, de impaciência... quer ver-me agonizar». Agora, a música, a conversa, o silêncio, tudo lhe provocava um enfado intolerável; a sensualidade devorava-o e não tinha senão um desejo: levar Carla a sua casa e possuí-la. «Quem sabe quanto vai durar», pensou, ouvindo com raiva os primeiros acordes da melodia, «dez minutos... um quarto de hora?... Diabos me levassem quando tive a ideia peregrina de a fazer tocar...»

A mãe, todavia, não se dera por vencida e tocou no ombro do homem:

- E amanhã de manhã-disse, com um sorriso afecttado,

como se continuasse uma conversa começada-irei ao meu

advogado e dar-lhe-ei ordens para pôr a vila em hasta pública.

Se um tijolo se tivesse soltado do tecto e houvesse caído em cima da cabeça de Leo, ele não ficaria tão desagradàvel-mente surpreendido como ao ouvir estas palavras; a sua cara tornou-se rubra e depois violácea; cerrou os dentes; frases breves relampejaram-lhe na mente: «era só o que faltava e logo esta noite... que Deus a amaldiçoe... *ó a mim é que me acontecem estas coisas». Depois voltou-se todo para a mãe:-Tu não fazes isso!-intimou-a ele, tratando-a por tu, na sua raiva, e apertando, num gesto instintivo, os punhos contra o peito.

«Agora agarram-se pelos cabelos», pensou Michele, que os observava com desgosto.

-Claro que faço-respondeu a outra, alardeando tranquilidade-e é já amanhã...

-Coisas de nuJucos-começou Leo; pegou numa das mãos da mulher e apertou-a de encontro ao sofá.-Tu queres... a senhora quer vender a vila em hasta pública para perder cinquenta por cento... e vem-mo dizer esta noite.-«Lego esta noite», repetiu no seu íntimo, com uma olhadela furiosa na direcção de Carla.-Agora que o contrato já está lavrado e não resta senão assiná-lo... a isto... a isto chama-se loucura com todas as letras...

-Chame-lhe como quiser-respondeu a mãe, que nem parecia ela ao arvorar uma calma impertérrita de santa-mas amanhã de manhã a primeira coisa que faço é ir ao meu advogado.

Leo fitou-a; juntava-se agora à irritação que lhe dava a sua luxúria insatisfeita esta nova complicação. O seu instinto mais natural seria o de se atirar à mulher, enchê-la de bofetadas, talvez até estrangulá-la, mas conseguiu conter-se.

-Mas a senhora não fala a sério-insistiu-pense um pouco no caso.

-Já pensei.

-Vejamos, Mariagrazia-começou Leo, voltando a tratá-la por tu, mas desta vez com plena consciência-não dês alguma cabeçada... em negócios é preciso não agir nunca com impulsividade... não queres antes... que nos vejamos amanhã à tarde?

-É inútil-respondeu a mãe, com menos firmeza-creio que é melhor ir ao meu advogado.

«Grande estúpida», tinha Leo vontade de lhe gritar, mas em vez disso juntou as mãos.

-A hasta pública é um risco, Mariagrazia-suplicou. -O teu advogado poderia ser um vigarista, o mundo está cheio deles. És mulher, é fácil enganarem-te nas coisas de que não entendes...

-Achas?-perguntou a mãe, com um sorriso incerto.

-Tenho a certeza... Então estamos entendidos... espero-te amanhã às quatro...

Ela olhou para um lado e para o outro com garridice; o seu coração de mulher madura palpitava. «Amas-me?», desejaria ela perguntar.-Amanhã...-repetiu, em vez disso -não, não posso.

-Então depois de  amanhã.

-Espera-cochichou a mãe, olhando para o ar, como se quisesse lembrar-se de alguma coisa.-Sim, tenho um compromisso mas adiá-lo-ei... irei, está bem... mas não creias- acrescentou, com um sorriso brilhante e adulador-que poderás convencer-me-. Calou-se, hesitou e, por fim, pegou numa das mãos do amante; e já ia a perguntar-lhe em voz baixa: -E gostas um bocadinho de mim?-quando a música se interrompeu bruscamente e Carla se voltou.

-É inútil estar a tocar-disse, com calma-todos falam... todos conversam... realmente é melhor ir dormir...

Os dois do sofá foram apanhados juntos; a mãe separou-se do amante e fitou a filha com um rosto desconcertado.

-Se querem falar-acrescentou a rapariga-não me façam tocar-. Silêncio.

-Fazíamos comentários à tua música-respondeu Leo, afinal.-Tocas bem, Carla; continua, continua.

Esta nova falsidade foi o sinal de uma espécie de rebelião, como se todos houvessem despertado de repente do seu longo torpor e, primeiro do que todos, Michele, que até então suportara em silêncio a conversa de sua mãe e de Leo; em parte por raiva, em parte por uma instintiva necessidade de acção, pegou no jornal que tinha desdobrado sobre os joelhos e atirou-o com força para o chão:

-Nada disso é verdade-gritou, fitando Leo.-É uma mentira descarada... vocês pensavam tanto na música como eu... como eu em fazer-me padre... falavam de negócios, do advogado-riu-se, com esforço-e de outras coisas mais.

Fez-se silêncio.-Aí está-gritou, inesperadamente, Carla, agitando as mãos-aí está a verdade... até que enfim que se respira...

Foi como se alguém tivesse escancarado a janela e o ar frio da noite houvesse penetrado na sala; por um instante todos se olharam cara a cara, estupefactos, mas o primeiro a recompor-se foi Leo.

-Estás enganado-disse, severamente, a Michele.-É sinal de teres ouvido mal.

Tal falsidade provocou ao rapaz um riso alto e desagradável.-Ah! Ah!-ria ele, torcendo-se na poltrona.-Essa é boa!-Depois interrompeu-se. -Mentiroso!-disse, bruscamente e de rosto sério.

Entreclharam-se; Carla conteve a respiração; a mãe empalideceu.

-Digo-te-gritou,  inesperadamente,   Leo,   batendo  com um punho na mesa-que isto é demais-. Mas não se pôs de pé; ficou sentado, fixando no rapaz dois olhos indagadores. -Não sabia que eras tão conflituoso-acrescentou, e, passado um instante:-e se continuas, serei obrigado a puxar-te as orelhas-. Proferiu esta última frase do modo mais estúpido e solene; pareceu a Michele que a ameaça de Leo, altivamente iniciada, foi enfraquecendo pouco a pouco até atingir a chata vulgaridade de um puxão de orelhas, e, por ricochete, também o próprio sentimento diminuiu; não havia nada a fazer; nem atirar a luva em desafio, nem ostentar a própria honra ofendida; bastava esconder a parte ameaçada, as orelhas, demasiado pouco.

-Puxar as orelhas, puxar-me as orelhas a mim? A mim? A mim?-. Cada «A mim» dava-lhe mais um impulso para a acção, mas sentia-se frio e indiferente; eram falsas as palavras que lhe saíam da boca, falsa a voz. Onde estava o fervor? Onde a ira? Algures; talvez nem existissem.

Na mesa, entre as flores, as chávenas e a cafeteira do café, havia um cinzeiro de mármore, de alabastro branco laivado de cinzento; estendeu uma mão de sonâmbulo, pegou-lhe e atirou-o molemente. Viu a mãe juntar as mãos e ouviu-a soltar um grito; Leo berrava:-Coisas de malucos!-Carla agitava-se; percebeu que o mármore falhara o alvo: em vez de Leo, fora atingida a mãe; na cabeça? Não, num ombro.

Levantou-se e, desajeitadamente, aproximou-se do sofá onde a sua vítima jazia; de rosto indeciso e sem saber porquê, a mãe tinha os olhos fechados e suspirava a intervalos, mas era evidente que não sentia nenhuma dor e que aquele desmaio era totalmente imaginário.

Michele inclinou-se juntamente com os outros dois; não obstante aquela vista que deveria ser dolorosa, não sentia nenhum remorso e até nem conseguia sufocar a sensação de que aquela cena era ridícula. Pensava em vão: «É a minha mãe... atingi-a... feri-a... poderia morrer». Procurava em vão um pouco de piedade afectuosa por aquela figura imóvel, perdida no erro: a sua alma continuava inerte. Inclinou-se e olhou-a: a mãe erguia agora, sem mudar de posição nem abrir os olhos, um braço lânguido, e afastava com os dedos a roupa sobre o ombro atingido; apareceu o ombro nu, gordo, mas sem vestígio de contusões, nem lívido nem avermelhado; nada. Os dedos, porém, como que insatisfeitos, continuavam a puxar, a baixar o vestido, desnudando um braço, descobrindo a axila. Era extraordinário. Sobre o peito, que cada vez mais se alargava, embranquecia e revelava o princípio dos seios, os dedos impudicos pareciam prosseguir um fim completamente diverso do de mostrar as feridas; por exemplo, o de se despir.

Na verdade, aquele mole abandono dirigia-se ao amante; devia nascer dele uma romântica piedade e apiedar-lhe o coração. «Ver-me-á ferida, desmaiada, de peito nu», era pouco mais ou menos o pensamento de Mariagrazia, recordar-se-á de que me adiantei por causa dele, que fui atingida pelo cinzeiro em seu lugar, e não pode deixar de sentir por mim uma ternura profunda e reconhecida. A sua fantasia iludida imaginava que Leo a tomaria nos braços, a sacudiria, a chamaria pelo nome e se inquietaria, finalmente, não a vendo reanimar-se... e, por fim, voltaria lentamente a si, reabriria os olhos e os primeiros olhares seriam para o amante, para ele o primeiro sorriso. Mas não foi assim; Leo não a tomou nos braços e não a chamou pelo nome.

-Talvez seja melhor eu sair-disse, em vez disso, a Carla, numa voz cheia de intenção irónica. Foi como se a mãe houvesse recebido um jacto de água fria, exactamente ali, sobre aquele ombro que desnudara para o amante; voltou a abrir os olhos, ergueu-se para se sentar e olhou: estava Michele, que a observava com os olhos petulantes, como se ao seu remorso se houvesse mesclado qualquer outro sentimento; Carla, que se esforçava por lhe recompor as roupas sobre o peito descoberto. Mas Leo? Onde estava Leo? Algures, não a seu lado: levantara o cinzeiro e sopesava-o; depois, bruscamente, voltou-se para Michele.

-Está bem-disse-lhe, com um encorajamento irónico -está bem... está muito bem.

Michele encolheu os ombros e fitou-o:-Decerto... até muitíssimo bem-articulou, com calma. Então a voz da mãe levantou-se, aguda e familiar, por detrás dos ombros dos homens.

-Pelo amor de Deus, Merumeci-suplicava-por amor de Deus não recomece... não lhe toque... não lhe fale... não o olhe sequer...-e parecia que se encontrava no extremo limite da paciência e da razão, para além do qual não há senão loucura.

O rapaz refugiou-se junto da janela; a chuva caía ainda; ouvia-se o seu murmurar sobre as portadas e sobre as árvores do jardim; chovia tranquilamente, sobre as vilas, nas ruas vazias. Muita gente devia escutar como ele, por detrás dos vidros, com o coração cheio da mesma angústia, voltando as costas à quente intimidade das salas. «É inútil», repetia para consigo, tocando com os dedos incertos o rebordo da janela, «é inútil... não é esta a minha vida...». Voltou-lhe ao espírito a cena do cinzeiro, o desmaio ridículo, aquela indiferença. «Aqui tudo se torna cómico, falso, não há sinceridade... não fui feito para esta vida». O homem que devia odiar, Leo, não se fazia odiar bastante, a mulher que devia amar, Lisa, era falsa, mascarava com sentimentalismos intoleráveis desejos demasiado simples e era impossível amá-la; teve a impressão de voltar as costas, não à sala mas a um abismo vazio e escuro. «Não é esta a minha vida», voltou a pensar, com convicção, «mas então?».

A porta fechou-se atrás de si e ele voltou-se: a sala estava vazia; mãe e filha haviam saído para acompanharem a visita à porta; o candeeiro brilhava no círculo imóvel das poltronas desertas.

-É um rapaz-disse a mãe a Leo, no vestíbulo-é preciso não o levar a sério... não sabe o que faz.

Tirou, com o rosto contrito, o chapéu alto do bengaleiro e estendeu-o ao amante.-A mim-disse Leo, alegremente, pondo em redor do pescoço um cachecol de lã-a mim não me fez nada... Apenas me desagrada por sua causa, por ter apanhado no ombro com o projéctil em questão-. Teve um riso frio, falso e amável; fitou Carla por um instante, como para lhe pedir uma aprovação; por fim, voltou-se e vestiu o sobretudo.

-E um rapaz-repetiu a mãe, mecanicamente, ajudando-o; o pensamento de Leo, aproveitando aquela imprudência do filho, poder romper os seus laços aterrava-a.

- Pode   estar   certo-acrescentou   num   tom   humilde   e

autoritário-de que tudo isto não voltará nunca mais a suceder... eu tratarei de falar com o Michele... e se for necessário-

acrescentou, em voz irresoluta-agirei.

Fez-se silêncio.-Mas deixa lá-disse Carla, que, encostada à porta, fitava atentamente a mãe-deixa... não te aflijas... tenho a certeza-acrescentou, baixando os olhos e sorrindo -de que o próprio Leo já nem se lembra.

- E  assim  mesmo-disse  Leo-há  tantas  coisas  importantes-. Beijou a mão à mãe, ainda não tranquilizada.-Até

à vista-disse a Carla, olhando-a fixamente nos olhos; ela empalideceu e, com um gesto lento e resignado deu a volta à maçaneta da porta.

Esta escancarou-se violentamente, batendo contra a parede como se alguém ansioso por entrar a houvesse empurrado de fora com todas as forças.-Ui, que frio, que humidade!...- gritou a mãe. Como para lhe responder, uma rajada impetuosa abateu-se sobre a casa, choveu raivosamente sobre os ladrilhos brilhantes, a luz oscilou, um sobretudo leve de Michele, pendurado no bengaleiro, bateu várias vezes com as suas compridas mangas na cara de Leo, e as roupas das duas mulheres soergueram-se, inchando, levantaram-se e, por fim, colaram-se--lhe às pernas.

-Fecha, fecha-gritava a mãe, agarrando-se à porta com ambas as mãos e inclinando-se ridiculamente para a frente, com os pés juntos, para não se molhar; Carla, como uma ave aquática, saltava com precaução sobre o pavimento alagado. - Fecha-repetia a mãe... mas ninguém se movia; todos olhavam espantados aquela violência feita de nada, que rugia, gemia, chiava e pingava sobre a soleira vazia; e finalmente, também a outra porta do vestíbulo se escancarou. Formou-se então uma espécie de vértice que, após ter percorrido o corredor, se engolfou na casa; ouviram-se bater todas as portas, próximas ou afastadas, com um estrondo estranho, que não era o das portas atiradas por uma mão irada ou distraída, um estrondo a que se mesclavam as vozes do vento e os choques e hesitações que pareciam preparar o último e mais forte golpe; as salas vazias e altas ecoaram e toda a vila estremeceu como se fosse a certa altura arrancar-se do solo e, girando sobre si mesma como um pião doido, voar com rapidez sobre a crista fosforescente das nuvens.

-E agora-perguntou Leo à mãe, vendo-a fechar a porta após muitos esforços-que fazemos?

-Esperamos-foi a resposta. Calaram-se; Mariagrazia fitava o amante com os olhos desencantados e amargos; abatia-a tanta pressa. Daí a pouco Leo partiria, desapareceria na noite chuvosa deixando-a na sua casa fria, no seu leito vazio; iria para qualquer outra parte, para casa de Lisa, por exemplo, sim, decerto para casa de Lisa onde era esperado avia tanto tempo. Sabe-se lá como se divertiriam aqueles dois nessa noite, sabe-se lá como se ririam dela!

Fez uma última tentativa: apurou o ouvido, contraindo o rosto como quem escuta.

-Parece-me-disse-que há qualquer coisa a bater na sala... Vai, Carla-acrescentou, numa voz impaciente-vai ver-. Escutaram todos. A mãe parecia querer criar, com uma mímica imperiosa, um estrondo de portas à bater que o silêncio da vila lhe negava.

-Não me parece-disse Carla, passado um instante. -Não oiço mesmo nada... mesmo nada.

-Digo-te que sim-insistiu a mãe, ansiosa e obstinada-escuta-acrescentou, no mais perfeito silêncio-ouves como bate?

Então Leo riu.-Mas não-disse, tranquilamente, alegrado pela estupidez da amante-mas não... não há nada a bater-. Viu com prazer renovar-se aquela expressão de dor dos olhos da mulher.-Ilusão-concluiu, voltando a pegar no chapéu alto-ilusão, minha cara senhora.

-Vai-se embora?-perguntou a mãe.

-Claro... já não é sem tempo.

-Mas... não chove demais?-insistiu ela, perdidamente, metendo-se entre a porta e o amante.-Não seria melhor que esperasse ainda mais um pouco?

-Chove-respondeu Leo, abotoando o sobretudo-como as portas batem...-. Beijou a mão à mulher aniquilada, buscou numa algibeira à procura das luvas que estavam na outra, aproximou-se da porta e abriu-a, segurando-a com a mão contra o vento.-Até à vista, Carla-disse à rapariga; apertou a mão que ela lhe estendia, sorriu e saiu.

Voltaram ao átrio. A mãe estremecia:-Que frio... ui, que frio!-repetia; os músculos cansados do rosto haviam-se distendido, estava como que desfeita, os seus olhares perdidos pousavam ao acaso sobre as coisas, vacilavam, flutuavam; espalhava-se na sua cara estragada pela pintura uma nudez sem enfeites, a boca tremia-lhe imperceptivelmente.-Vou-me deitar...-e repetiu, subindo lentamente por trás da balaustrada de madeira da escada-vou-me deitar... boa noite-. A sua sombra subiu até ao tecto, parou sobre o patamar, passou para a parede com movimentos oblíquos e desapareceu.

Agora Carla ficara sozinha no átrio. Aproximou-se da luz... Qualquer coisa rangia no seu punho fechado: era um bilhete de Leo, o bilhete que os seus dedos hesitantes haviam agarrado naquele longo aperto de mão do amante.

O bilhete era breve: «Espero-te daqui a uma hora, com o carro, ao portão do jardim», e trazia também a assinatura: «Leo».

Começou a subir a escada, desconcertada. «Daqui a uma hora», repetia para consigo, «daqui a uma hora vou-me embora». Degrau a degrau, chegou ao patamar estreito e olhou para cima: a antecâmara, de que se via uma poltrona e um canto do sofá, estava vazia; havia naquela obscuridade, naquela atmosfera fechada, um silêncio caseiro e tranquilo; daí a uma hora, sem dúvida que tanto Michele como a mãe estariam mergulhados no sono. Acabou de subir, foi direita à porta do seu quarto, ao fundo do corredor escuro, e entrou;

impressionou-a imediatamente o aspecto íntimo e quente da sala: estava tudo no seu lugar, o candeeiro de abat-jour cor--de-rosa estava aceso, a camisa vaporosa, azul-celeste, estava estendida em cima da cama, os lençóis estavam dobrados e abertos, tudo convidava ao sono: não tinha senão que se despir, meter-se debaixo da roupa e dormir.

Quer fosse a vista daquele leito, que, juntamente com o ruído torrencial do dilúvio contra as portadas lhe inspirava um grande desejo de repouso e de segurança, quer realmente o cansaço daquele dia, o certo é que a assaltaram de repente uma cobardia tão persuasiva, uma repugnância tão forte pela aventura a cujo encontro ia, que teve receio de si mesma. «Vejamos», pensou, «dormir, repousar, está bem... mas depois? Amanhã de manhã estaria novamente como dantes... e então como poderei ter alguma vez uma nova vida?».

Afastou-se do limiar, aproximou-se do espelho do guarda-vestidos e mirou-se, ora aproximando-se ora afastando-se: o rosto aparecia-lhe afogueado até debaixo das pupilas cintilantes, mas se o aproximava descobria, entre aquele rubor vivo e os olhos, um círculo negro e profundo que a perturbava como uma ideia culpada; se, pelo contrário, o afastava, não era mais do que uma rapariga vestida para a festa, com as mãos juntas no regaço, a grande cabeça um pouco reclinada sobre o ombro, e os olhos tristes, o sorriso embaraçado. Nada mais; desejaria penetrar o mistério daquela sua imagem mas não o conseguia.

Deixou o guarda-vestidos, deu alguns passos pelo quarto e sentou-se na cama; uma leve ansiedade impedia-a de pensar; sentia-se preparada, curiosa e impaciente, como quando fazia alguma visita e esperava, passeando e olhando em redor, a sorridente entrada da dona da casa; não era outra coisa. Tinha as pernas cruzadas, a cabeça baixa, tinha ela própria a impressão de meditar profundamente, mas, por certas distracções constantes dos seus olhos, apercebia-se, quando se erguia e mirava no espelho do guarda-vestidos, de não poder pensar.

Esteve assim durante alguns minutos; agora já não se punha a hipótese de dormir; admitiu no seu íntimo, vagamente, que nessa noite se entregaria a Leo, mas não sabia quando e parecia-lhe que esse momento ainda estava, por sorte, muito longe. «Como chove!», pensava, a intervalos, quando o murmúrio da água se tornava mais forte, mas nem sequer lhe passava pela cabeça que deveria sair nessa noite, enfrentar aquela chuva para ir ao encontro do amante; apoderava-se dela uma tontura lânguida; por fim, sem tristeza, lentamente, agarrou a cabeça entre as mãos e deixou-se cair de costas sobre a cama.

Em tal posição, não via senão o tecto iluminado; os únicos ruídos que chegavam aos seus ouvidos eram os da noite tempestuosa: bem depressa, não sem repetir para consigo que, num certo momento, devia levantar-se e partir, fechou os olhos e abandonou-se a uma espécie de torpor cheio de receio e de desconfiança; mas o torpor transformou-se em sono e pouco a pouco, quase sem dar por isso, Carla adormeceu.

Foi um sono vazio, negro como breu, que, sem qualquer dúvida, não pouco contribuiu para as amnésias e as distracções dessa noite. Aquela falta de sonhos devia ter enganado a adormecida sobre a duração do seu letargo; acordou inesperadamente e sem qualquer razão, e gelou-a um medo terrível que lhe fez faltar a respiração por ter verificado que tinha adormecido. «Adormeci», pensou ela, aterrada, erguendo-se na cama e olhando à suavolta o quarto iluminado e tranquilo, «quem sabe que horas serão... duas ou três... e Leo terá partido, terá esperado e ter-se-á ido embora». Teve, por um instante, vontade de rebentar em lágrimas de amargura e de desespero. «Adormeci», repetiu em voz alta, agarrando a cabeça entre as mãos e olhando no espelho a sua imagem, de cabelo em desordem, de olhos assustados, «adormeci!».

Levantou-se e correu para o relógio que estava em cima da cómoda: não haviam passado senão três quartos de hora, o relógio marcava meia-noite menos um quarto.

Pareceu-lhe impossível, pensou que o relógio parara e encostou-o ao ouvido; estava a trabalhar, era verdade, ainda podia ir a casa de Leo. Sentiu-se quase desiludida sem saber explicar a razão; voltou a pousar o relógio sobre a cómoda.

Mas agora assaltava-a outra dúvida: de que maneira e quando devia encontrar-se com o amante? Recordava-se daquela frase: «daqui a uma hora»; também não esquecera o pormenor do carro que a esperaria ao portão do jardim, mas o caso era que não estava completamente certa. «O bilhete», pensou, de repente, «onde está o bilhete?».

Olhou em redor, à procura: não viu nada. Viu na cómoda, entre as bugigangas, nada; dirigiu-se ao leito, desfê-lo, virou a almofada, nada... Invadiu-a uma ansiedade, uma pressa irracional; onde estava aquele bilhete?... Correu pelo quarto, remexendo as coisas, os vestidos, as gavetas... finalmente parou no meio da casa. «Vejamos», pensou, «li-o lá em baixo no átrio mas tinha-o na mão quando entrei, de modo que deve estar aqui. Calma, tem que estar aqui». Como quando se quer

apanhar um animal ágil e pequeno, um rato, uma borboleta, pouco a pouco, meticulosamente, inclinou-se, viu debaixo dos móveis, torcendo-se para não sujar o vestido, rojando a testa e as faces no pó do chão, apurando os olhos para a obscuridade dos esconderijos. De cada vez que voltava a erguer-se sentia por todo o corpo um cansaço nervoso, semicerrava os olhos e, imóvel, com um gesto desolado das mãos abertas, pensava obscuramente que estava a espiar por meio daquela triste pesquisa uma culpa esquecida; de cada vez que se curvava, desejaria partir-se e ficar no chão como uma coisa caída e despedaçada.

Procurou com um escrúpulo pueril até nos lugares absurdos: na cesta dos bordados, na caixa do pó de arroz... Não encontrou nada; sentou-se, assombrada e fraca. Que espécie de escrita era aquela que desaparecia logo depois de lida? A mesma fabulosa irrealidade dos sonhos dava às suas recordações aquela atmosfera impalpável que faz pensar, depois de certos actos rápidos e extraordinários: «Aconteceram ou fui eu que os imaginei, que os sonhei, que os fabriquei?». Aquele aperto de mão, aquele pedaço de papel, haviam interrompido durante um só instante dificilmente reconhecível a continuidade do hábito; depois tudo voltara a ser como anteriormente; agora, na sua confusão, Carla desejaria voltar a ver aquele escrito de Leo! O que lhe faltava não era a lembrança, embora vaga, de ter recebido o bilhete, mas o conhecimento certo e nítido do que continha; tocara-lhe, vira-o e lera-o mas não tivera tempo de se convencer; agora duvidava.

E que tinha escrito? Exactamente uma hora, ou mais, ou menos? Naquela ou na próxima noite? E não era agora demasiado tarde? E não chovia demasiado? E não seria melhor deitar-se e dormir para recomeçar no dia seguinte a vida habitual? Sentada, imóvel, curvada, o tempo ultrapassava-a; parecia-lhe, à força de dúvidas, estar a matar-se por suas próprias mãos, a suicidar-se.

Sobressaltou-se com as pancadas agudas do relógio que soava a meia-noite; teve o primeiro pensamento prático: «Irei; se lá não estiver, quer dizer que terei sonhado». Olhou o mostrador e calculou que Leo devia esperá-la havia já um quarto de hora; então assaltou-a uma pressa absurda: correu à janela, colou o rosto de encontro aos vidros negros para ver se ainda chovia; escutou, olhou: nada, a noite não queria revelar-se e o quarto, atrás de si, com uma fatalidade irónica, opunha-lhe as suas brancas ilusões e a luz indiferente do candeeiro. «Com chuva ou sem chuva», pensou, em fúria, «vamos lá vestir o impermeável». Correu para o guarda-vestidos, tirou o impermeável e vestiu-o diante do espelho; depois curvou-se, apertou as ligas desapertadas; quis também empoar-se, pintar um pouco os lábios, pentear-se; pôs um chapéu qualquer, mal, sobre a nuca. «Como as raparigas americanas, pensou, ao ver a testa redonda e anéis de cabelo de fora da aba estreita. Procurou, procurou: «aquelas malditas luvas». Já não pensava, vivia: uma pressa mecânica abolira nela toda a humanidade. Correu para o relógio com a mesma fúria frívola que, ao preparar-se para alguma visita, entre os chapéus, as meias e os gestos dos seus braços nus, a fazia gritar para a criada: «vamos, depressa... é tarde... é tarde...». Olhou-o. «Já dez minutos passados», pensou, «depressa... depressa». Abriu a porta e, de improviso, contendo artificiosamente o seu ímpeto, saiu em bicos dos pés para o corredor.

A antecâmara estava vazia e iluminada; estava tudo no seu lugar, poltronas e sofá; sem fazer ruído, Carla tirou da gaveta da mesa as chaves da casa e, com mil precauções, ora apoiando-se à parede ora à balaustrada, desceu a escada estreita; os degraus de madeira rangiam sob os seus passos; o outro lanço que lhe apareceu do patamar estava quase totalmente às escuras; apenas se enxergava a passadeira castanha que serpenteava pelos degraus; o átrio estava às escuras. Acendeu a luz, passou pelo corredor por entre as duas filas de espelhos, tirou, no vestíbulo, o chapéu de chuva do benga-leiro e saiu.

Chovia abundantemente; a noite estava negra e húmida e vinha de todos os lados o ruído monótono do dilúvio; Carla desceu a escada de mármore da entrada e abriu o chapéu de chuva com um gesto familiar que a admirou, como se, pensou, em certas circunstâncias extraordinárias tudo fosse feito de maneira diferente da habitual.

Pareceu-lhe que não atribuía à sua fuga toda a triste e vergonhosa importância que outros no seu lugar lhe teriam dado; saía, atravessava o caminho, curvada sob o chapéu, esforçando-se por não molhar a cara com a chuva contrária, por evitar as poças; atravessava o jardim àquela hora tardia, sem receio, sem admiração, sem sequer aquela tristeza vasta e aventurosa que acompanha as acções graves; o saibro molhado rangia sob os seus passos e ela ouvia o ruído com prazer: eis tudo.

Levantou os olhos e viu diante de si a mancha negra do portão, os dois pilares brancos, a folhagem escura de uma grande árvore curvada sob a chuva; abriu a portinhola de serviço e saiu para a rua, voltando os olhos para o lado oposto onde Leo esperava. «Não está», pensou, desiludida, observando a luz tranquila do candeeiro de arco voltaico sobre a calçada molhada e vazia; mas já o automóvel do amante avançava atrás dela, menos rápido do que o raio inesperado dos dois faróis acesos.

Adeus ruas, bairro deserto percorrido pela chuva como por um exército, vilas adormecidas nos seus jardins húmidos, longos caminhos arborizados e parques em tumulto; adeus bairro, alto e rico. Imóvel no seu lugar, ao lado de Leo, Carla olhava pasmada a chuva violenta a pingar sobre o pára-brisas e, nas suas Vigas intermitentes, a coar, diluídas sobre o vidro, todas as luzes da cidade, girândolas e candeeiros. As ruas sucediam-se às ruas; via-as formarem curvas, confluírem umas com as outras, girarem para lá do capot movediço do automóvel; a intervalos, entre os solavancos da corrida, fachadas escuras destacavan-se na noite, passavam e sumiam-se como costados de transatlânticos em rota, não sem dificuldade, através dos vagalhões; grupos negros de pessoas, portas iluminadas, lampiões, cada coisa se mostrava por um instante do percurso e desaparecia depois, engulida definitivamente pela escuridão.

Imóvel, encantada, Carla olhava ora para Leo, para as suas mãos pousadas no volante, a sua maneira calma e reflectida de guiar, ora para a rua; aqueles pormenores fascinavam-na; tinha o espírito vazio. Assim, quando, passados dez minutos, o automóvel parou inesperadamente e lhe ocorreu este pensamento: «chegámos», a impressão foi tal que lhe faltou a respiração.

Mas Leo desceu e ordenou-lhe:-Espera aqui-. Viu-o, através dos vidros molhados do pára-brisas, abrir uma coisa negra que lhe pareceu um portão e desaparecer depois na escuridão do jardim. «É preciso guardar o carro», pensou; de facto chegou até ela, através da chuva, o ruído de uma porta ondulada, a figura do homem voltou a aparecer, ele tornou a subir e, sem lhe dar a mínima atenção, conduziu o carro, primeiro sobre o saibro encharcado e a seguir para dentro do antro escuro da garagem, fedorenta de gasolina e de aço oleado, com uma lanterninha vermelha a um canto; desceram ambos e, não sem esforço, baixaram a porta ondulada, após o que, Leo, meticulosamente, a fechou à chave.

Um lampião redondo iluminava, à direita, a porta da casa, com os seus quatro degraus de mármore e os seus batentes fechados; Leo abriu-a e impeliu Carla para a entrada. Ao contrário do jardinzinho escuro e molhado, tudo ali era colorido e brilhante; pendia do tecto uma lanterna de ferro forjado, as paredes eram caiadas e tinham um Iambrim amarelo, palmas verdes erguiam-se aos cantos; era tudo novo; havia até um ascensor, ao fundo, na sua gaiola, mas preferiram subir a escada.

Subiram, em silêncio dois lanços. No primeiro patamar, um ruído mal sufocado de gramofone irrompeu sobre os ladrilhos brilhantes juntamente com um murmúrio confuso, íntimo e feliz de vozes e de pés.

-Estão a dançar-observou Carla, com um sorriso forçado, apoiando-se à balaustrada-quem são?

-Trata-se-disse Leo, curvando-se e decifrando a chapa de latão da porta-do senhor doutor Innamorati, que-acrescentou, em parte para alegrar Carla, em parte para enganar a própria impaciência-está em casa com a sua gentil senhora e os seus filhos, a receber condignamente uma companhia selecta de amigos e de-idamas da melhor sociedade-. Riu e pegou no braço de Carla.

-Vamos-disse-mais um lanço e chegamos.

Voltaram a subir; ouvia-se na escada branca, vazia e iluminada, a música do gramofone ressoar, longínqua e fra-gorosa; nas pausas, silêncio completo. Adivinhava-se então a pequena sala, os dançarinos parados, de pé, sob o lustre aceso, os risos, o movimento, e, aos cantos, junto às janelas, atrás das cortinas, os galanteios ingénuos... No segundo patamar entraram.

No vestíbulo, Leo tirou o chapéu e o sobretudo e ajudou Carla a despir o impermeável. O vestíbulo era vasto e branco; abriam-se nele três portas; defronte da entrada havia uma grande janela escura, rectangular, que devia, sem dúvida, deitar para um pátio interior. Passaram para a sala. -Ins-talemo-nos aqui-disse Leo, apontando para um grande sofá de pele, cheio de almofadas. Sentaram-se. Um candeeiro de abat-jour vermelho, colocado numa mesa, iluminava-os até ao peito; as suas cabeças e o resto da sala ficavam na penumbra. Permaneceram imóveis por um instante e não falaram; Carla olhava à sua volta sem curiosidade; os seus olhos pousavam, ora sobre uma garrafa de licor, em cima da mesa, ora sobre as paredes, como quem, de preferência a observar, espera com ansiedade uma palavra ou um gesto; Leo admirava Carla.

- Ora bem, minha querida-começou este último, finalmente-que tens tu, que não falas e nem sequer olhas para mim? Vamos, anima-te, diz-me o que pensas, e se desejas alguma coisa não faças cerimónia, pede o que quiseres, faz como se estivesses na tua casa-. Estendeu a mão e acariciou com os dedos o rosto sério da rapariga.

-Não te desagradará por acaso-acrescentou, sem sombra de embaraço-teres vindo?

Ela virou a cabeça.-Não...-respondeu-não, estou... contentíssima... somente, compreendes, preciso de me... habituar.

-Habitua-te... habitua-te-disse Leo, com segurança; aproximou-se de Carla ainda mais do que já estava. «Com os diabos», pensava, perturbado e excitado, «que aborrecimento os preliminares». Rodeou-lhe a cintura com um braço; a rapariga nem pareceu dar por isso.

-Que lindo vestido que tens-começou Leo, em voz baixa e acariciadora.-Quem to fez?... Que linda menina que tu és... verás como estaremos bem juntos; serás a minha menina, a única menina da minha vida, a minha graciosa menina.

Calou-se, aflorou rapidamente com os lábios a mão, o braço nu de Carla, deteve-se no pescoço por um instante e atraiu a si a grande cabeça séria; beijaram-se, separaram-se.

-Senta-te aqui-convidou o homem, indicando os joelhos; Carla obedeceu com docilidade; no movimento que fez para se endireitar, o vestido descobriu-lhe as pernas mas não foi baixado; esta indiferença convenceu definitivamente Leo da solidez da sua conquista.

-Que casa é ali?-perguntou a rapariga, apontando a outra porta da sala.

-O quarto-respondeu o amante, observando-a atentamente, e, passado um instante, abraçando-a de novo, com uma voz persuasiva:-Mas deixa lá isso... ouve... diz-me... amas-me ?

-E tu?...-perguntou ela, com as palavras à flor dos lábios, fitando-o com os olhos sérios.

-Eu?... Para que sou eu chamado?... Amo-te, forçosamente, senão não teria feito o que fiz... claro que amo a minha Carlotta, a minha boneca, a minha Carlottina-acrescentou Leo, metendo os dedos pelo cabelo da rapariga, a revolvê-lo-amo-a muitíssimo e ai de quem lhe tocar... e também a desejo, claro... inteirinha... desejo estes lábios, estas faces, estes belos braços, estes belos ombros, este seu corpo cheio de feminilidade, delicioso, cheio de fascínio e  que... que... que me faz endoidecer-explodiu ele, por fim, e, como assaltado por uma espécie de frenesi, atirou-se a Carla, abra-

çou-a com todas as suas forças, caiu juntamente com ela em cima do sofá; o candeeiro iluminou com a sua luz indiferente as costas do homem, de casaco retesado pelo esforço do tronco, e as pernas de Carla, de meias cor-de-rosa. Assim ficaram por alguns instantes; palavras confusas de ternura saíam da boca do homem por entre os sobressaltos da sensualidade. Carla, pelo contrário, estava calada. A atitude da rapariga durante aqueles furores era dócil mas não resignada, os seus pensamentos não eram tão lúcidos como ela previra, uma excitação vergonhosa e desordenada começava a queimar-lhe as faces; em suma, era inútil escondê-lo, aquelas carícias não a deixavam totalmente indiferente, um certo prazer, tanto mais agudo quanto lhe parecia absurdo, começava a toldar-lhe a consciência. «Vejamos», pensava ela, por entre os frémitos instintivos que lhe arrancavam os apertões libertinos e cruéis do homem, «que estou eu a fazer?...». Nunca como agora a sua ligação lhe aparecera sob um aspecto tão  imperdoável e funesto. «Uma nova vida», pensou ainda, dèbilmente; depois fechou os olhos.

Mas a luxúria do homem sabia não ultrapassar certos limites; ver Carla abandonar-se, de olhos fechados, branca como a cera sobre o fundo escuro do sofá, e pensar: «não... possuí-la aqui, não... ali sim... aqui é muito incómodo», foi uma e a mesma coisa. Ergueu-se e fez a rapariga erguer-se; ficaram por um instante imóveis, ofegantes, sem falar; a luz do candeeiro deixava na sombra Leo, apoiado às costas do sofá, e iluminava Carla: já era completamente diferente da menina de poucos minutos antes; tinha o cabelo desgrenhado, pendia-lhe uma melena diante dos olhos, o rosto estava corado, grave e perturbado, uma das alças do vestido partira-se durante o amplexo e pendia em dois pedaços, um sobre o peito e outro sobre a espádua, descobrindo o ombro branco e nu. Então, enquanto, absorta, olhava em frente, o homem observou uma coisa estranha: qualquer coisa muito parecida com um papel dobrado em quatro enchia a concavidade do vestido entre os seios e retesava a seda vermelha com duas ou três pontas aguçadas; ele sorriu, estendeu a mão e tocou-lhe.

-E isto o que é?-perguntou, sem nenhuma intenção, por pura curiosidade. Carla virou para ele uma cara espantada.

-Isto o quê?

-Esse bocado de papel que tens tão ciosamente no seio -insistiu Leo, com um sorriso quase paternal.

Ela baixou a cabeça e levou a mão ao peito; não havia dúvida, o amante tinha razão, algo que se assemelhava muito a um bocado de papel estava ali escondido, entre a camisa e a carne; somente, não se recordava de o ter metido ali nem conseguia compreender o que era; ergueu os olhos e fitou, desconcertada, o amante.

-O lugar onde todas as raparigas escondem os seus segredos-disse Leo, a quem a ideia de um tal esconderijo enternecia e excitava ao mesmo tempo.-Ora vejamos, Carla, vejamos esse teu segredo-. Estendeu a mão e fez o gesto de a introduzir sob o vestido.

-Não to permito-gritou ela, inesperadamente, sem saber porquê, cobrindo-se com as mãos.

O sorriso do homem desapareceu.-Está bem-disse ele, observando atentamente a rapariga-permito-te que não permitas... tira-o tu cá para fora a esse tesouro... e depois lê-o em voz alta.

Silêncio; Carla fitava o amante entre irresoluta e desorientada; pressentia que aquela história do pedaço de papel começava a irritá-lo, via-se-lhe nos olhos, que se haviam tornado duros, e atormentava-se em vão para saber o que podia conter aquele papel que os seus dedos curiosos palpavam; mas não o tirou, em parte por um triste capricho (e se na verdade fosse um segredo seu, de não confiar a ninguém?), em parte por uma vaga intenção de ver como agia Leo quando o ciúme o pungia.

-E se eu-disse, afinal, em tom de desafio, pousando as mãos sobre os joelhos-se eu não quisesse mostrar-te esta carta?

-Ah, é uma carta!-exclamou Leo, interessado e já inquieto.-E de quem, se não te incomoda, de que pessoa tão importante para a teres aí, precisamente aí, e para a não poderes deixar em casa?

Ela fitou-o por entre as pestanas semicerradas, inclinando a sua grande cabeça desgrenhada sobre o ombro nu.-Isso- respondeu, assumindo uma atitude caprichosa, olhando para o ar e tamborilando tranquilamente com os dedos sobre os joelhos-isso não to digo.

«É capacíssima», pensou Leo, completamente irritado, «capacíssima de ter outro qualquer... capacíssima». Soergueu-se lentamente no sofá.

-Ouve, Carla-disse, espandindo as palavras e fixando nela dois olhos imperiosos e inquisidores-eu quero saber, seja como for, de quem é essa carta.

Ela riu um pouco, divertida com aquele ciúme, mas não modificou a sua atitude desdenhosa.-Adivinha-disse.

-Um homem?-perguntou Leo.

-Pois-comentou ela, em tom chocarreiro-pois, desde que não seja uma mulher-. Para lhe impedir qualquer gesto brusco tinha uma das mãos sobre o peito; olhava para o ar; os seus olhos, voltados para o tecto cheio de sombra, semicerravam-se; sentia-se cansada; desejaria baixar a cabeça sobre aquele seu segredo que não existia, e dormir.

-Já percebi-disse Leo, com um sorriso forçado-já percebi... algum apaixonado... algum rapazote...

-Nem por sonhos...-respondeu ela, sem baixar a cabeça. -Um homem-. Via, sobre a parede oposta, a sombra de Leo, vaga e larga, mover-se ora para um lado ora para o outro, como se estivesse a preparar-se para lhe saltar em cima.

-Um homem-repetiu, em voz mais cansada, sem parar com aquela brincadeira dos dedos.-E se soubesses-acrescentou, embriagando-se com uma tristeza sem razão-se soubesses como o amo!...-. Os seus olhos semicerravam-se cheios de lágrimas, o coração palpitava-lhe. «E pelo contrário», pensou, friamente, «esse homem não existe.

-Um homem... os meus parabéns!-. Agora Leo irritava-se realmente: aquela pureza que não existia, aquela conquista que outrem fizera metiam-lhe o diabo no corpo; a Carla pueril e casta dos seus desejos cedia o lugar a uma mulherzinha perita no amor, que não temia visitar os homens nas suas casas; o formigueiro, o perfume, a flor do idílio desapareciam; o seu amor próprio de sedutor ficava de mãos vazias diante de uma porta aberta.

-A culpa foi minha-acrescentou, convencido-devia ter pensado que não era a primeira vez.

-A primeira vez de quê?-perguntou ela, voltando-se, num ímpeto.

-A primeira vez que... entendes-me... que fazes visitas, que vais a casa de alguém.

Um vivo rubor subiu às faces de Carla; fitou o amante, dividida entre o desejo de protestar e de revelar-lhe a estúpida verdade, e o de continuar o fingimento iniciado; mas seguiu por fim o segundo partido.

-E mesmo que fosse verdade?-disse, olhando-o nos olhos.

-Ah! Então é verdade?-. Leo cerrou por um instante os dentes e os punhos; depois dominou-se e fez uma voz estridente de sarcasmo:-Ah, então, puríssima donzela, tu tens um amante...

-Sim-confessou ela, voltando a corar; aquela ironia e o tom do homem faziam-lhe mal à alma; nunca sentira como agora uma necessidade tão grande de bondade.

- Muito bem, muitíssimo bem-repetiu Leo, com lentidão; olhou Carla nos olhos e, como falando para si mesmo:-Pois é, compreende-se... tal mãe... tal filha-. Depois, bruscamente, um furor rubro injectou-lhe os olhos de sangue; agarrou a rapariga por um braço.

-Sabes o que tu és?... És uma... uma... - . Não conseguia, na sua raiva, encontrar o epíteto justo, e gaguejava-uma desavergonhada... e apesar disso vieste a minha casa?

-Isso é outra coisa-respondeu Carla, com calma.

«Que raio de coisa... que nojo... e dizer que tem só vinte; e quatro anos», repetia Leo para consigo, olhando a rapariga. -E pode-se saber ao menos quem é esse senhor?-perguntou.

-É um homem alto-disse ela, esforçando-se por concretizar aquela vaga imagem ideal para que a sua alma se estendia-tem o cabelo castanho, uma bela fronte calma, rosto oval... não é corado, é antes pálido... tem umas mãos muito compridas.

-Santoro!-exclamou Leo, pegando no primeiro dos amigos de Carla que lhe pareceu semelhante ao retrato que ela estava a fazer.

-Não, não é ele-. Carla olhou em frente. «Oxalá existisse», pensava, «eu não estaria aqui agora». Ficou silenciosa por um instante.

-Ama-me muito e eu amo-o muito-continuou, com uma doçura clara e fácil que a encantava e a maravilhava porcjoie lhe parecia, agora, nem sequer mentir. - Conhecemo-nos há dois anos... e, desde então, temo-nos visto sempre... Ele não é como tu... é... é sobretudo bom, quero dizer que me compreende antes mesmo de eu ter falado, que posso confiar-Lhe tudo o que penso, seja o que for, e ele fala-me como ninguém, toma-me nos seus braços e... e... -. A voz tremeu-lhe, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; nesse momento, ela própria estava convencida do que dizia, quase lhe parecia ver, ali à ssua frente, em carne e osso, aquela criatura da sua fantasia. -E é realmente diferente de todos os outros, e ninguém a não ser ele me teve realmente amor-concluiu, comovida, e até um pouco espantada com a sua própria mentira.

-O nome-disse Leo, de modo nenhum impressionado com aquele tom e aquelas palavras.-Pode-se saber o nome?

Carla abanou a cabeça negativamente.

-O nome não.

Um instante de silêncio; entreolharam-se; depois:-Dá-me essa carta-ordenou o homem, peremptoriamente.

Ela, perturbada, cobriu o peito com as mãos.-Para quê, Leo?...-começou, em voz suplicante.

-A carta... a carta cá para fora-. Agarrou inesperadamente a rapariga pela cintura e tentou à força meter a mão naquele esconderijo; mas Carla desenvencilhou-se, libertou-se e, por fim, desgrenhada, correu para a parede oposta.

-Não sabes que nada se obtém pela violência?-gritou, e, tendo aberto a porta do quarto, desapareceu.

Assaltado por um furor sem limites, Leo precipitou-se contra a porta fechada, mas Carla havia dado volta à chave, do outro lado, e ele não pôde entrar.-Abre-gritou, por fim, no cúmulo da raiva, esmurrando a porta-abre, estúpida...-. Nenhuma resposta.

Acudiu-lhe de súbito ao espírito que podia entrar no quarto pelo lado da casa de banho; correu ao vestíbulo e passou para a casa de banho; estava tudo em ordem; os canos niquelados e os ladrilhos de porcelana reluzente brilhavam na sombra. Verificou com alegria que a porta de vidros verdes estava entreaberta; a princípio não viu Carla; a luz estava apagada e uma obscuridade atenuada enchia o quarto. «Ter-se-á atirado pela janela?», pensou por um instante, sem saber porquê, avançando às apalpadelas. Acendeu a luz: o quarto estava realmente vazio. «Que a leve o diabo. Onde poderá ela ter-se escondido ?», interrogou-se, e ia já a sair para procurar a fugitiva nas outras divisões do apartamento, quando, de súbito, a viu anichada, de pé, atrás da porta da casa de banho.

Foi simplesmente ao seu encontro, agarrou-a por um braço e puxou-a para fora do seu esconderijo, com certa violência, como se faz com as crianças quizilentas.

-Essa carta cá para fora-intimou-a, com severidade, mantendo-a bem segura.

Entreolharam-se; o pensamento de que o amante pudesse aperceber-se da sua mentira assustava e humilhava agora a rapariga; compreendia que aquele bocado de papel não devia ter qualquer importância, devia ser um cartão de visita ou outra estupidez qualquer e sofria com a ideia de ser obrigada a confessar ao homem que os seus sonhos não existiam.

Fez uma última tentativa:-Isso não é justo, Leo...- começou, em voz lamentosa-eu...

-A carta!-intimou o homem, pela segunda vez.

Compreendeu que era inútil revoltar-se. «Há-de ser o que for», pensou, resignada e até um pouco interessada no que a carta pudesse conter; meteu a mão no seio, tirou o bocado de papel e estendeu-o ao homem:-Aqui está.

Leo pegou-lhe mas, antes de o examinar, fitou a rapariga. Então, sabe-se lá porquê, foi como se uma vergonha invencível a houvesse assaltado inesperadamente; o rosto de Carla contraiu-se bruscamente, ela voltou-se e dirigiu-se para a cama, atirando-se sobre ela e escondendo a cara nas mãos; foi apenas um movimento, não o acompanharam nem a vontade nem qualquer verdadeiro sentimento, ela mesma não se enganou sobre o seu verdadeiro significado; depois, de súbito, ouviu o homem rir e voltou a erguer a cabeça.

-Mas é o meu bilhete-gritou ele, indo ao seu encontro -é o meu bilhete que te dei hoje!

Ela não se admirou; no fundo, aquela história da carta era absurda, ninguém podia escrever-lhe, ninguém a amava... mas, não obstante, pareceu-lhe cruelmente injusto que assim fosse, injusta aquela ausência do milagre (porque não podia aquele grande desejo que tinha transformar em epístola amorosa aquele estúpido bilhete?), injusta aquela realidade meticulosa. Empalideceu.

-Pois é, é o teu bilhete-disse, com uma sensação de desilusão amarga e inevitável.-Que querias tu que fosse?

-Mas então-continuou ele, aproximando-se e sentando-se a seu lado, na cama-então sou eu esse homem... cabelo castanho, fronte calma... sou eu que tu amas.

Ela fitou-o longamente, como se quisesse reconhecer naquele rosto corado e satisfeito a imagem sonhada.

-E... e-disse, hesitando e baixando os olhos, com a consciência de voltar a mentir-não o tinhas ainda compreendido?

Pela primeira vez desde que Carla o conhecia, Leo teve um riso fresco, quase jovem, espontâneo.-Eu não-gritou, e agarrou-a pela cintura.

-Seja dado por não dito tudo o que disse-e repetiu-seja dado por não dito-. Inclinou-se, beijou-a nos ombros, no pescoço, nas faces, no peito: aquele corpo voltava a excitá-lo; juntamente com a ilusão reencontrava a sensualidade.

-A minha pequena mentirosa-e repetia-a minha pequenina mentirosa...

Estes desabafos de amor não duraram mais do que um minuto; depois levantou-se desajeitadamente da cama.

-E agora?-perguntou, meio a sério meio a brincar, sem compor o cabelo em desordem, que lhe dava um aspecto de ébrio ou de desajeitado.-Não achas que seriam horas de irmos dormir?... Eu tenho um sono... um sono terrível.

Carla sorriu com esforço e fez, timidamente, um sinal afirmativo.

-Então anda-disse o homem. - Isto é o pijama-e mostrou-lhe uma peça de roupa de riscas largas, em cima do travesseiro.-No guarda-fato, se precisares, está o necessário para toucador... despe-te e mete-te na cama que já venho ter contigo...-. Voltou a sorrir-lhe, totalmente confiante, bateu-lhe com a mão no ombro e saiu para a casa de banho.

 

A cama, larga e baixa, ficava a um canto; ela estendeu-se e olhou o quarto: na penumbra que o único candeeiro aceso, junto à cabeceira, não rompia, enxergavam-se dois guarda-fatos de espelhos brilhantes, um à direita da porta da sala e outro do lado oposto, e não havia mais nada; a janela ocupava toda a parede oposta; era baixa, rectangular, de vidrinhos; tinha meias cortinas brancas; sob a janela estava o aquecedor, escondido por uma espécie de grelha; as gelosias estavam fechadas, a porta da sala estava fechada, assim como a da casa de banho, que ela via de esguelha, com os vidros suavemente iluminados como as paredes de um aquário se lhes bate o sol. Baixou os olhos: uma grande pele de urso, branca e hirsuta, estava estendida a seus pés; tinha olhos de celulóide amarelo, uma boca escancarada, cheia de dentes aguçados; a pele achatada, de patas curtas e cauda exígua, dava a impressão de um cilindro gigantesco a ter aplanado daquela maneira, não deixando intacta senão a cabeça feroz. Levantou-se, deu maquinalmente alguns passos pelo quarto, tocou no aquecedor, que estava quente, apartou uma cortina, e depois voltou-se: atrás dos vidros luminosos da casa de banho, a sombra do amante passava e tornava a passar; ouvia-se borbulhar um jacto de água, outros ruídos... Então, não sem ter observado nos espelhos escuros dos guarda-fatos a sua figura desgrenhada e amedrontada, voltou para a cama e começou a despir-se. Não pensava em nada; as acções insólitas que fazia absorviam-na completamente e davam-lhe um assombro estonteado.

O que sobretudo a impressionava era não estar em sua casa, encontrar-se àquela hora naquele quarto; tirou o vestido rasgado, largou-o em cima de uma poltrona que estava aos pés da cama; as meias, e contemplou por um instante as suas pernas nuas; a combinação, as calças; hesitou; devia despir também a camisa? Pensou; sim, era decerto necessário; despiu-a e atirou-a para cima das outras roupas. Não se sentiu nua senão debaixo dos lençóis frios, onde se aninhou toda contra a parede, com uma das mãos entre as pernas e a outra sobre o peito: o pijama de riscas largas, que fazia pensar num uniforme de presidiário, atirara-o para o chão; ocorrera-lhe que a mãe poderia tê-lo vestido.

Pouco a pouco, o seu corpo ardente aquecia os lençóis. Teve de repente a impressão de aquela tepidez haver dissolvido o nó de receio e de assombro que até então lhe atulhara a alma; sentiu-se só, experimentou uma grande ternura, uma piedade indulgente por si mesma, esforçou-se por se encolher, por se enroscar o mais que podia, até tocar com os lábios nos joelhos redondos. O odor são e sensual que emanavam comoveu-a; beijou-os várias vezes apaixonadamente. «Pobre... pobrezinha...», repetia para consigo, acariciando-se. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; desejaria dobrar a cabeça sobre o seu peito farto e chorar sobre ele como no de uma mãe; depois, sem deixar de fixar de olhos atentos a parede mal iluminada pelo candeeiro, escutou: os ruídos que chegavam até ela eram familiares e revelavam irreparàvelmente o lugar onde estava; a chuva caía ainda, ouvia-se o seu murmúrio; alguém se movia na casa de banho; a água corria; se se mexia, a cama afundava-se molemente, com um som surdo e de certo modo longínquo, não sabia se por causa de alguma recordação ou por causa da maleabilidade das penas. Não era a cama da sua casa, dura e estreita, nem uma dessas camas estranhas para cima das quais uma pessoa se atira após uma longa viagem e que parecem imediatamente ser demasiado baixas ou demasiado altas, e nas quais se dorme sem satisfação; não, aquela era uma cama cómoda, maciíssima, cheia de atenções e de cuidados; somente, o seu corpo tinha-lhe medo, anichava-se todo, tremia e, de vez em quando, estendia a mão hesitante a tactear o espaço imenso e frio que ficava atrás de si, aquela Sibéria de pano, desabitada e hostil; era uma sensação desagradável, como a de caminhar por uma rua escura sabendo vir alguém atrás.

Fechou os olhos cansados; havia apenas um minuto e parecia-lhe haver uma hora que estava naquela cama. «Porquenão vem o Leo, interrogou-se, de repente. Este pensamento arrastou outros. «Não me voltarei senão quando ele tiver apagado a luz», disse, sem ódio, para consigo, «não quero vê-lo...».

Estremeceu. «É o fim, pensou, distraidamente e sem convicçãoda vontade de destruição que a levara até àquela cama, nascia agora nela um desejo ávido da escuridão em que, dentro em pouco, se abraçaria com o amante; imaginava, não sem perturbação, não sabia se por uma vontade instintiva de gozar se pelo seu programa de se envilecer completamente, lançar-se, nas trevas e na promiscuidade daquela noite, em todas as mais bestiais libertinagens de que, embora sem ter conhecimento, havia, já há tempo, adivinhado a existência; estas fantasias excitadas não a distraíam, porém, da espera: «Porque não vem o Leo», repetia para si mesma, de vez em quando... E depois, esgotada pelas fadigas daquela luxúria, adormeceria junto do amante; esta ideia agradou-lhe, sabe-se lá porquê, e já pensava que devia ser ao mesmo tempo doce e triste dormirem juntos, um ao lado do outro, talvez abraçados, nus e unidos, na noite; e quase sentia afecto por Leo e imaginava que não se mexeria, que reteria até a respiração para não o acordar... quando a porta da casa de banho se abriu com um tilintar de vidros.

Contra a ansiedade que acabara por invadi-la, aquele ruído inesperado mas familiar foi-lhe grato nesse momento, como uma presença amiga em algum lugar desconhecido ou assustador; com aquele som, daquela maneira, abriam-se as portas de vidro de todo o mundo, tanto na sua casa como em qualquer outro sítio. Esqueceu de golpe todo o seu programa, esbugalhou os olhos, viu sobre a parede a sombra larga do homem e voltou-se: o amante curvava-se sobre ela. Teve apenas tempo de verificar que não vestia nenhum pijama, mas uma espécie de leve roupão de quarto, e que se barbeara, empoara e penteara cuidadosamente; depois, com um gesto simples, sem deixar aquela sua expressão dura e distraída, ele ergueu as roupas e enfiou-se na cama ao seu lado.

 

O primeiro a adormecer foi Leo; o imprevisto desenfreamento de Carla, embora inexperiente, havia-o prostrado. Depois do último abraço, após haverem estado por alguns instantes ambos imóveis, com os corpos húmidos confundidos entre si, de olhos semicerrados e cabeças unidas sobre o travesseiro numa espécie de modorra exausta, a rapariga sentiu o amante retirar pouco a pouco o braço da sua cintura, desenvencilhar as pernas das suas e voltar-se para a parede. «E amanhã de manhã?...», pensou ela, confusamente, ouvindo a respiração tranquila do adormecido, «e amanhã de manhã?». Também ela se sentia cansadíssima, parecia-lhe haver um século que estava mergulhada naquela escuridão densa do quarto, doía-lhe a cabeça, não ousava mover-se; depois, inesperadamente, embora tivesse ainda a nítida sensação daquele corpo nu de encontro ao seu, daqueles lençóis cheios de um calor especial, tão novo para ela, daquela espécie de atmosfera impalpável que não a deixava esquecer, nem por um instante, a casa e o quarto onde se encontrava, inesperadamente todos aqueles elementos extraordinários deixaram de a assombrar, foi como se, de um só golpe, houvesse adquirido o hábito endurecido de tudo aquilo; voltou-se, puxou a roupa do seu lado e adormeceu.

E logo tem um sonho estranho: parece-lhe ver aquele amante imaginário que tão bem soubera descrever a Leo, alto, talvez por estar de pé enquanto ela está deitada, de fronte calma, de olhos cheios ao mesmo tempo de serenidade e de indulgência; muito direito, está vestido descuidadamente e olha-a com uma atenção maravilhada, como se realmente haja entrado então no quarto e a tenha encontrado exactamente assim como está, estendida, nua, naquela cama, com o seu corpo em tempos intacto e agora desflorado e até, sim, até manchado aqui e acolá, no peito, no ventre, nos braços, pelas lascívias recentes de Leo. Ela não se vê, está deitada de costas, mas compreende, pelos olhares do homem, ter o corpo cheio Deus sabe de que manchas ou sinais, já não ser também para ele, estranho, aquela Carla que era antes da ligação; ficam ambos assim, nestas atitudes, por alguns instantes, fitam-se, não se movem, mas, por fim, a vista daquele rosto calmo, severo e atento, a tortura daqueles olhos voltados para o seu corpo desflorado (e o pior é que ela não pode ver-se) tornam-se-lhe intoleráveis; cobre, com um gesto instintivo, a cara com os braços e desejaria chorar; outra surpresa desagradável : os olhos mantêm-se-lhe secos, por mais esforços que faça as lágrimas não jorram, já não pode chorar. E contudo, uma dor imensa, um pesar amargo, não sabe de quê, pungem-na; lamenta-se, berra, ou pelo menos assim lhe parece na confusão do sonho, e, embora mantendo-se deitada de costas (outro tormento: a sensação de estar pregada àquela cama, de não poder levantar-se, dobrar-se...), torce-se com o peito, com as ancas nuas; a intervalos, entre os seus movimentos espasmódicos de borboleta ferida, vê a cabeça calma, lá muito ao longe, aqueles olhos que não deixam de a fitar, aquela fronte justa. «Chorar... chorar...», repete, no seu íntimo; faz todos os esforços para molhar, ao menos com uma só lágrima, as suas pálpebras secas, mas é inútil... a sua dor não se exprime, fica como um peso enorme na sua alma, sufoca-a; por fim não pode mais e estende os braços frenéticos para aquela cabeça longínqua... parece-lhe chamar o homem com os nomes mais doces, nomes novos e espontâneos que a comovem profundamente, e prometer-lhe amá-lo toda a vida, sempre (esta sensação de eternidade dá-lhe uma grande amargura, não sabe porquê. Em vão, porém, pois o homem de repente desaparece e ela recai na escuridão; estala, então, com sonoridade crescente, uma sílaba triste como um dobre de sinos: «San... San... San...», que faz penetrar na sua alma uma confusão e um medo atrozes; depois, bruscamente, ao nome inteiro, «Santoro», acorda.

A mesma escuridão em que adormecera envolvia-a agora, tinha o corpo todo banhado de suor e sentia do lado esquerdo uma zona húmida e ardente de calor. «Onde estou ?», perguntou a si mesma, amedrontada. Foi só um instante de desorientação, visto que logo se recordou de tudo o que sucedera e compreendeu que aquele calor provinha do flanco nu de Leo que se ajustava ao seu; afastou a roupa do peito, pois lhe parecia sufocar, livrou os braços da confusão aborrecida dos lençóis; esta liberdade, esta frescura, deram-lhe um grande alívio; abriu completamente os olhos, pois agora, quer por via do temor de outro pesadelo, quer por causa do nervosismo que a possuía, já não tinha vontade de dormir, e deu-se instintivamente a relembrar os acontecimentos ocorridos desde o princípio daquela noite.

A memória dos factos voltava-lhe aos pedaços: ora lhe parecia voltar a ver-se naquele automóvel, a caminho, sob a chuva, pelas ruas da cidade, ora na sala sentada nos joelhos do amante; quase simultaneamente reapareciam-lhe a imagem de Leo no acto de entrar na cama onde ela o esperava, e a outra, mais estranha e mais perturbadora, de eles dois nus, um ao lado do outro, sonolentos e aturdidos pela luz deslumbrante da casa de banho toda revestida de porcelana branca, direitos, de pé, à espera da água quente com que se lavariam. Estas recordações tão recentes pareciam-lhe, pelo contrário, longínquas e como que desligadas da sua pessoa, não as possuía nem as explicava, pareciam-lhe cheias de uma irrealidade inadmissível; e no entanto não havia dúvida, aquela vida, tão próxima que as figuras que nela se moviam lhe apareciam em tamanho natural, vivera-a ela, bastava que estendesse a mão sob os lençóis para tocar o corpo nu do amante adormecido, ou que acendesse a luz para se convencer de que se encontrava de facto no quarto de Leo e não no seu. «Longe da minha casa», pensou, finalmente, com uma perturbação extraordinária, «aqui... na cama do meu amante...». Mas se as evocações dos factos mais normais daquela noite já a assombravam, algumas outras, de coisas que, embora as previsse, sempre ignorara, perturbavam-na francamente, não se fartava de as analisar, recomeçava várias vezes a reconstituí-las, voltava a saboreá-las, por assim dizer... Por exemplo, a memória precisa de algumas momentâneas observações claras, nas quais, quando o candeeiro ainda estava aceso, surpreendera, embora talvez só por um instante, certas atitudes suas, dela e do amante, de uma tão indecente monstruosidade que se lhe haviam, por assim dizer, imprimido no espírito de modo indelével.

Mas quer fosse por causa da escuridão que a envolvia, quer fosse realmente por causa de uma sensação de medo e de incerteza, estas evocações cansaram-na pouco a pouco e deixaram de ser suficientes para a distraírem da consciência das suas condições presentes. «E agora?», pensou, de repente, «que me irá suceder?». Não queria confessá-lo, mas sentia-se terrivelmente só... era essa a verdade... estava estendida de costas naquela cama, abandonada aos seus pensamentos solitários, aos seus medos, à sua fraqueza; a escuridão enchia os seus olhos dilatados, o amante não a acariciava na testa, não arranjava o seu cabelo descomposto, não a assistia na sua modorra angustiosa, não a defendia, era como se ali não estivesse... Uma respiração tranquila e nada mais, ali a seu lado, tanto podia ser de Leo como de outra pessoa; apenas lhe recordava de vez em quando que não estava só.

Assaltou-a de improviso um desejo histérico de companhia e de carícias. «Porque dorme ?», interrogava-se ela, «Porque não se importa comigo ?». Aquela respiração letárgica, ali a seu lado, acabara insensivelmente por assustá-la, não lhe parecia do amante mas de outro homem desconhecido dela e até talvez hostil; havia, em suma, naquela respiração um ritmo tão indiferente, uma regularidade tão monstruosamente em contraste com as suas angustias e os seus fantasmas, que ela não sabia na verdade se devia amedrontar-se ou indignar-se; tentou esquecê-lo, apurou os ouvidos, escutou os poucos ruídos do apartamento, certos estalidos dos móveis, certos murmúrios, dilatou depois os olhos na escuridão para ver alguma coisa sobre que fixar toda a sua atenção... mas todo o esforço foi inútil, a respiração impunha-se, calma, quase inumana... «Gomo seria belo», pensou afinal, desencorajada, «se ele agora acordasse e me dissesse que me tem amor». E já imaginava como tudo aquilo aconteceria... ele voltaria a atraí-la para si e, face contra face, murmurar-lhe-ia ao ouvido as doces palavras; já, só de pensá-lo, se sentia toda comovida e quase consolada, quando, repentinamente, a gelou um medo terrível.

Pareceu-lhe de repente que a porta da casa de banho, lá ao fundo, se estava a abrir; nesse ponto, quer porque os vidros emanassem alguma luminosidade quer porque as gelosias da casa de banho estivessem abertas e viesse do pátio um pouco de luz, o certo é que as trevas eram menos densas do que no resto do quarto... e eis que... lá ao fundo, não havia dúvida, a porta se abria pouco a pouco, se movia, como se alguém desejoso de entrar a estivesse a empurrar cautelosamente do lado  de  fora.

Com o terror a respiração faltou-lhe, o coração começou a bater-lhe furiosamente no peito; ficou imóvel, rígida, de costas, com os olhos fixos naquela direcção; um pensamento louco, em que, de resto, embora exprimindo-o, não acreditou logo que o teve, atravessou-lhe a mente: «É a mamã que vem surpreender-me...». Depois a porta teve um leve tilintar e isso foi demais para Carla: de olhos fechados, com quanta força podia, com uma sensação de laceração, soltou um grito longo, lamentoso.

Houve um remexer; a luz acendeu-se, reapareceu o quarto tranquilo e Leo, todo ensonado, soergueu-se na cama.

-Eh!... Que aconteceu?

-A porta-balbuciou Carla, branca e ofegante-a porta da casa de banho.

Sem dizer palavra, o amante saiu da cama e ela viu-o abrir a porta, desaparecer na casa de banho e reaparecer.

-Não vejo nada-declarou ele-terá sido o vento... tinha deixado aberta a janela da casa de banho...-. Voltou para a cama, ergueu a roupa e tornou a estender-se.-Não penses mais nisso e dorme-disse ele-bom sono-e apagou a luz.

Aqueles actos do homem foram tão rápidos, tão breve aquele parêntesis de luz, que ela não teve tempo nem de falar nem de, ao menos, exprimir-lhe com um abraço ou com um olhar todo o desejo extremo de carícias e de consolação que nesse momento lhe comprimia a alma; então, na escuridão renovada, passado um instante de incerteza, começou a chorar.

As lágrimas corriam rápidas sobre as suas faces, toda a amargura que acumulara nessa noite irrompia agora de todos os lados da sua alma. «Se me tivesse amor», repetia para consigo, «ter-me-ia consolado... mas, pelo contrário, nada, apagou a luz e voltou-se para o outro lado». Aquela solidão que anteriormente apenas pressentira parecia-lhe agora inevitável; cobriu os olhos com o braço nu; teve, sentiu-o no rosto, um esgar de dor amarga. «Não me ama... ninguém me ama», não cessava de se repetir. Puxava os cabelos -com os dedos, tinha agora as faces completamente alagadas em lágrimas; por fim, o cansaço que incubava em si venceu-a e, chorando, voltou a adormecer.

Devia já ser dia quando acordou; adivinhou-o por um pouco de luz que as tabuínhas das janelas deixavam coar na escuridão diminuída do quarto. Acordou com facilidade, reconheceu imediatamente o lugar onde se encontrava, não se admirou de se ver vestida com aquele pijama de riscas largas que na noite anterior não quisera vestir, embora não se recordasse em que preciso momento da noite teria podido enfiá-lo, nem, logo que se levantou, se apoiou à parede e os seus olhos  ensonados  se habituaram  à penumbra poeirenta do quarto, de avistar, ali sobre a almofada, aquela mancha escura e desgrenhada, a cabeça de Leo. Em suma, aquele sono dissipara todos os assombros e os medos da noite; era como se, agora, estivesse habituada há anos a acordar daquela maneira, na cama do amante; findos o tormento, o assombro, a impaciência, finda aquela sensação de irrealidade triste e aventurosa; de costas encostadas à parede, Carla adivinhava, pela insólita saciedade, pela calma, pela paciência reflexiva que a possuíam, ter realmente entrado numa vida nova. «É estranho», pensou, a certa altura, sem saber se com receio ou com despeito, «é como se me tivesse, de súbito, tornado muito mais velha do que era...». Ficou assim imóvel, vagamente preocupada, durante alguns segundos; depois inclinou-se e abanou o homem por um ombro.

-Leo...-chamou, com uma voz estranha, baixa.

O amante puxara a roupa até às orelhas, parecia mergulhado num sono profundo e, a princípio, ou não ouviu ou fingiu não ouvir; Carla inclinou-se e abanou-o mais uma vez; então veio daquela sombra na almofada a voz ensonada:

- Porque me acordaste?

-É tarde-disse ela, sempre com aquela sua nova entoação baixa e íntima-devem ser horas de eu voltar para casa...

Sem dizer palavra, sem mover o resto do corpo, Leo estendeu um braço de fora da cama e acendeu o candeeiro; voltou aquela luz tranquila da noite anterior e Carla reconheceu completamente os móveis, as duas portas, a pequena poltrona onde estava o montinho branco das suas roupas mais íntimas, e reconheceu-se a si mesma, sentada na cama... O relógio, na mesa de cabeceira, sob a luz do candeeiro, indicava cinco e meia.

-São cinco e meia-e Leo repetiu, com censura e irritação, sem se voltar-pode-se saber porque me acordaste?

-É tarde-repetiu ela, como anteriormente; hesitou; depois, com precaução, passou por cima do corpo do amante e sentou-se na borda da cama.

Ele não pareceu dar por isso, não lhe respondeu; evidentemente, pensou ela, tornara a fechar os olhos e adormecera novamente; então, sem se voltar, sem se importar com ele, Carla começou a vestir-se.

Mas mal havia tirado aquele repugnante uniforme de riscas largas e, toda nua, de pé, estava a preparar-se para enfiar a camisa, quando, de improviso, sentiu um braço agarrá-la por trás, pela cintura. O primeiro movimento foi de medo; deixou cair a peça de roupa no chão e voltou-se vivamente para aquele lado; viu então, de encontro ao seu flanco, a cabeça desgrenhada, sonolenta, corada, do amante.

-Carla-murmurou ele, soerguendo-se na cama, levantando os olhos excitados e mal acordados para a rapariga e fingindo falar com dificuldade por causa de um grande sono que não tinha-porque te vais embora tão cedo? Anda cá... volta para aqui, para junto do teu Leo.

Ela fitou aquele rosto tentador, iluminado de cima pela luz quente do candeeiro e, de improviso, encheu-lhe o peito um sofrimento inexplicável.

-Larga-me-disse, numa voz teimosa, esforçando-se por arrancar de si os cinco dedos que se lhe colavam-é tarde... são horas de ir.

Viu o homem rir, semicerrando os seus olhinhos excitados: -Para certas coisas nunca é tarde-e de repente, sem razão, pois que no seu íntimo admitia muito bem que ao amante dessem tais vontades, a sua cólera atingiu o auge.-Larga-me, estou-te a dizer-repetiu, duramente; como única resposta, Leo estendeu desajeitadamente o outro braço, tentando derrubá-la a seu lado; então ela libertou-se com um puxão, dirigiu-se à poltrona aos pés da cama e, curvada, sem se ocupar mais com ele, sem dizer palavra, começou a enfiar as meias.

Depois das meias foi a vez das ligas; não voltou a erguer os seus olhos preocupados senão passados alguns instantes, e olhou com uma expressão dura para a cama; mas Leo voltara-se para a parede e parecia dormir. «Bom sono», pensou ela; foi um instante, mas, entretanto, como se aquele breve pensamento tivesse podido provocá-la, apertou-lhe o coração uma sensação de medo e de incerteza, voltaram, após tantas horas de completo esquecimento, a ecoar na sua cabeça as velhas palavras: «a nova vida». Inclinou-se e pegou na combinação. «Será possível», pensou, apertando nervosamente aquela peça de roupa e olhando fixamente diante de si, «que seja esta a nova vida?».

Sem deixar de agitar esta ideia na sua alma inerte, acabou de vestir-se e pôs-se de pé.

-Levanta-te-gritou para o adormecido, curvando-se e tocando-lhe no ombro-avia-te... são horas de irmos...

-Está bem-foi a resposta. Certa de voltar a encontrá-lo já vestido, Carla passou para a casa de banho.

Penteou-se com o pente e a escova de Leo, lavou as mãos e examinou no espelho o seu rosto pálido. «Em casa», pensou, «lavar-me-ei toda... tomarei um banho... e depois... e depois tenho de ir logo àquele encontro, ao ténis. Mas não obstante estes pensamentos calmos e práticos, aquela pergunta triste não cessava de ecoar nos planos inferiores da sua consciência: «Será possível que seja isto a nova vida?».

No quarto esperava-a uma surpresa: Leo não se vestira e nem sequer se levantara; estava na mesma posição em que o deixara e parecia continuar a dormir.

Aproximou-se dele, abanou-o.-Leo... é tarde... temos que ir... levanta-te...

O homem voltou-se, ergueu apenas da almofada a cara ensonada e olhou-a:-Hem?... Já estás vestida?

-É tarde...

-É tarde?-repetiu Leo, como se não houvesse compreendido.-E então?

-Então o quê?... É preciso que me acompanhes a casa...

Ele bocejou, alisou o cabelo. - Se soubesses o sono que tenho-começou-não me deixaste toda a noite nem um instante em paz... chamavas-me... falavas-me... davas-me pontapés... sei lá o quê?... Estou a morrer de sono-. Falava com lentidão, arrastando as palavras, evitando olhar a rapariga; Carla, pelo contrário, observava-o com atenção. «Evidentemente», pensou, de súbito, sem ira, com calma, «não é somente porque não dormiu mas também, e sobretudo, porque há pouco lhe não cedi que finge agora ter sono...». Endireitou-se.

-Se queres dormir, Leo-disse, quase com doçura-não te incomodes... também posso ir sozinha...

-Que disparate-. Espreguiçou-se, longamente, sem consideração.-Agora que me acordaste acompanho-te.

«É preciso mostrar-lhe que está enganado», pensou ela, fitando-o, «que... não sou como ele».-Mas não-insistiu, sempre com a mesma mansidão-não... não quero incomodar-te; tens sono, é justo... prefiro ir só.

Leo fitou-a um pouco desconcertado.-Qual só qual nada! -disse, por fim, com uma energia mole.-Dizes isso' agora... mas depois não deixarás de mo censurar... eu sei como vocês são... já decidi, está decidido: acompanho-te. calou-se, abanou com força a cabeça, mas não se moveu; entreolharam-se.

-E se to ordenasse? - perguntou bruscamente a rapariga.

-O quê?

-Que não me acompanhasses.

Leo esbugalhou os olhos, assombrado:-Nesse caso-respondeu, com desconfiança-a questão mudaria de aspecto.

-Pois bem-disse Carla, arranjando tranquilamente o cinto do vestido-ordeno-te.

Um instante de silêncio.-Primeiro querias ir acompanhada -disse, afinal, o homem-agora já não queres... que caprichos que tens!

«Ah, sou eu que tenho caprichos!», pensou ela, de dentes cerrados; sentou-se na borda da cama junto ao amante.

-Não se trata de caprichos-respondeu-mas pensei que a tua companhia podia ser comprometedora... se nos vissem juntos... depois, Michele pode estar já levantado... portanto, compreendes, é melhor ir sozinha... conheço o caminho, daqui a dez minutos estou em casa... e tu... poderás dormir...

Ficaram ambos calados, olhando-se; agora, passada aquela labareda momentânea de desejo, Leo sentia de facto muito sono; nada lhe repugnava mais do que levantar-se e ir com Carla para a rua, talvez debaixo de chuva, e além disso ainda havia que tirar o automóvel da garagem; sorriu-lhe, estendeu a mão e acariciou-lhe a face.

-No fundo-disse-apesar de todas as tuas extravagâncias, és na verdade um amor de rapariga... Então posso realmente deixar-te ir sozinha?...

-Certamente-disse ela, levantando-se; aquele tom de Leo irritava-a.-Não te incomodes... até to peço.

-Seja como for-acrescentou Leo, como que falando para consigo-viste que insisti até à última... Se não te acompanho não é porque queira dormir mas porque como disseste, poderias comprometer-te... portanto, não venhas depois dizer-me...-Mas interrompeu-se; Carla já não estava no quarto, já saíra para ir buscar o chapéu. «Tanto melhor», pensou Leo, «agrada-me, a mim, e agrada-lhe a ela... assim ficamos ambos contentes».

Ela voltou a entrar passado um instante; tinha o chapéu na cabeça, o impermeável, o chapéu de chuva; enfiou uma luva com um rosto preocupado e procurou em vão a outra em todas as algibeiras.-Paciência-disse, por fim-devo tê-la perdido... E, a propósito-acrescentou, sem embaraço, aproximando-se dele-podes dar-me dinheiro para o táxi?... Não trago nenhum.

O casaco de Leo estava pendurado numa cadeira, não longe da cama; ele esticou-se e tirou do bolso uma mancheia de moedas de prata.

-Aqui tens-disse, estendendo-lhas.

Com o dinheiro na algibeira, Carla não pôde impedir-se de pensar: «Começo a ganhar». Aproximou-se da cama, incli-

nou-se.-Então até logo, querido-disse-lhe, quase com afecto, como para compensar aquele seu mau pensamento; beijaram-se.-Fecha bem a porta-gritou-lhe Leo; viu-a sair com precaução e esperou, por um instante, ouvir bater a porta da entrada, mas nenhum ruído chegou aos seus ouvidos; apagou então o candeeiro e, voltando-se para a parede, tornou a adormecer.

 

No sono de Leo, as esquálidas personagens da madrugada, as personagens dos sonos dormidos de manhã, enquanto o sol brilha e, no quarto desarrumado, a luz se infiltra por todos os lados como a água num navio arrombado, entravam e saíam... Carla, a mãe, Michele, tinham gestos complacentes e obscenos, mas as suas figuras empalideciam como se a luz exterior as houvesse descolorido... Embora dormindo, Leo fazia todos os esforços para as reter; «não preciso de acordar», repetia ele, para consigo, inconscientemente, «não preciso de acordar». Uma voz poética e longínqua, cheia de uma débil censura, chamava-o de qualquer lugar remoto: «Leo, Leo, acorda, sou eu». Sempre inconscientemente, tinha a ilusão de não ser senão um sonho e, de olhos obstinadamente fechados, envolvendo-se na roupa o mais que podia, esperava, dissipada aquela confusão momentânea, tornar a entrar na trama cerrada e deliciosa do sonho... mas os chamamentos repetiram-se cada vez mais claros e, por fim, uma mão abanou-o pelo ombro: então abriu os olhos e viu Mariagrazia.

Supôs primeiro ter visto mal; voltou a olhar; sim, não havia dúvida, era mesmo a amante, vestida de cinzento, de chapéu na cabeça, uma pele em redor do pescoço, de pé junto à cama; a sombra da noite abandonara o quarto; devia estar um belo dia; manchas alegres de sol brilhavam um pouco por toda a parte sobre os móveis poeirentos e escuros. -Tu aqui?-disse, afinal.-Como conseguiste entrar?

-Tinha vindo trazer-te um bilhete-respondeu Maria-grazia-mas encontrei a porta aberta e entrei.

Leo olhava-a, pasmado. «A porta aberta?», pensou, «Ah, sim... pode ter sido Carla...». Bocejou e espreguiçou-se sem consideração.

- E vieste dizer-me ?

A mãe sentou-se na cama, naquela sombra toda riscada de fios de luz que as tabuínhas das gelosias deixavam passar.

- Queria telefonar-te-começou-mas como não pagamos

a conta há dois meses cortaram-nos o telefone... prometes-

te-me ontem à noite que nos veríamos amanhã... mas depois

pensei melhor... não estarias livre hoje à tarde?

Leo apertou os joelhos entre os braços.-Hoje à tarde? -repetiu; a proposta não lhe desagradava, calculava que, se se livrasse nesse mesmo dia da maçada da mãe, teria todo o resto da semana livre para Carla; mas, para evitar surpresas, não quis prometer nada.

-Ouve-disse-hoje, depois do almoço, vou a vossa casa... poderei dizer-te então alguma coisa... está bem?

-Está bem.

Seguiu-se um longo silêncio; desconfiada e descontente, Mariagrazia olhava em redor, examinava com atenção as coisas mais notáveis, a cama, o rosto do amante; pareceu-lhe que este último estava pálido e um pouco desfeito; isto e o outro facto de o ter encontrado ainda mergulhado no sono bastaram para confirmar certas suspeitas enciumadas. «Passou a noite com Lisa», pensou, «não há dúvida... talvez Lisa aqui estivesse há pouco». Invadiu-a um áspero rancor e deitou ao amante um olhar cheio de venenosa censura.

-Eu-disse, em tom agridoce-no teu lugar não faria como se tivesse vinte anos.

-Que queres dizer com isso? - perguntou Leo, interdito.

-Quero dizer-respondeu Mariagrazia-que envelheces e não dás por isso... e também não dás por  loucuras como as que provavelmente fizeste esta noite já não as podes fazer... vê-te ao espelho -e acrescentou, elevando a voz-olha, por favor, que olhos que tens, que carranca, que belas cores... olha, por favor...

-Eu envelheço?... E que loucuras?...-repetiu Leo, sobretudo irritado pela alusão directa à sua idade quase madura.-De que loucuras estás a falar?

-Eu cá me entendo-disse a mãe, com um gesto-mas sabes o que te digo?... Que daqui a um ou dois anos, no máximo, têm que te trazer de carrinho... com certeza, não hás-de poder nem sequer andar.

Leo ergueu os ombros com furor:-Se cá vieste para me dizeres esses disparates, é melhor que te vás embora... -. Olhou o relógio na mesa ao lado da cama.-Meio-dia?... E eu a ouvir-te quando tenho uma entrevista ao meio-dia e meia hora... vai-te embora, vai já-. Saltou da cama, enfiou os pés nas pantufas, foi à janela e puxou a gelosia; o quarto encheu-se de luz.

-E o meu roupão de quarto não o vestes?-perguntou a mãe, sem se mexer da cama.-Ou já o ofereceste a qualquer amante de passagem?

Leo não respondeu e passou para a casa de banho; Maria-grazia pôs-se de pé e, um pouco por curiosidade, um pouco por não ter nada que fazer, começou a girar pelo quarto. -Também a outra oferta minha, aquele magnífico vaso de Murano, desapareceu... Também o ofereceste?-gritou ela, a certa altura; novamente nenhuma resposta; ouvia-se na casa de banho borbulhar um jacto de água: Leo tomava um banho de chuveiro.

Desencorajada mas não vencida, Mariagrazia continuou a sua inspecção; cada coisa daquele quarto evocava na sua memória agradáveis recordações; suspirava com frequência, fazendo o confronto entre a miséria presente e os belos tempos passados; a vista da sua própria fotografia, posta sobre a cómoda, voltou a dar-lhe um pouco de confiança. «No fundo, não ama ninguém senão a mim», pensou ela, «quando está doente, quando tem qualquer aborrecimento, é sempre a mim que recorre... isto não é senão uma frieza momentânea... voltará para mim». Tinha preso ao peito com um alfinete um ramo de violetas comprado na rua pouco antes; um pouco por gratidão e um pouco com a vaga ideia de praticar uma gentileza, desprendeu as flores e dispô-las numa jarri-nha junto à fotografia; depois entrou na casa de banho.

De pé, em roupão, Leo fazia a barba.

-Então deixo-te-disse-lhe ela-e... a propósito... logo, quando fores, finge não me teres visto, como se tivesses de facto recebido o bilhete... estamos entendidos?...

-Estamos entendidos-repetiu ele, sem se voltar.

Satisfeita, Mariagrazia foi-se embora; desceu a escada à pressa, e saiu; subiu, à esquina da rua, para um eléctrico que ia para o centro da cidade; havia já talvez vinte minutos que Lisa devia estar à sua espera na loja de chapéus onde haviam combinado encontrar-se para examinarem os últimos modelos de Paris... A mãe ia sentada a um canto ao pé da janela, voltava o mais que podia as costas às pessoas que iam no eléctrico e olhava para a rua; os passeios estavam apinhados, com uma viva multidão de trabalhadores de toda a espécie que voltavam a casa; o sol frio de Fevereiro iluminava-lhes as caras, avermelhadas pelo vento gelado, sob as abas usadas dos chapéus descoloridos e disformes, e as figuras envoltas em capotes desbotados pelo tempo; era um pobre sol branco e sem calor que se espalhava generosamente sobre todos aqueles andrajos como se quisesse abençoá-los; desfilavam, umas atrás das outras, as lojas, brilhantes, com os seus dísticos pintados de vermelho, de branco ou de azul sobre as montras; os reclamos luminosos, fixados nas cornijas, cinzentos e apagados, pareciam larvas incineradas; o eléctrico avançava lentamente, multicor, vulgar e cheio como um carroussel, fremia, tilintava... De vez em quando, avançava sob os olhos da mãe, com um movimento rápido, o capot luzidio e oblongo de um automóvel; parava, procurando uma passagem com os seus grandes faróis, e atirava-se para a frente... via, por trás de uma chapa de vidro, firme no seu lugar, de mãos enluvadas no volante, um motorista todo vestido de cabedal, e a seguir, acomodado nas almofadas de pele, satisfeitíssima, de olhos meio abertos baixados sobre a multidão, uma personagem pançuda, ou então, envolta em soberbas peles, alguma senhora de rosto delicado e pintado... Então, sem querer, a mãe suspirava; nunca poderia passar entre a multidão mal vestida num carro imponente e poderoso, os seus anos haviam-se esvaído, a sua juventude sumira-se no reluzente automóvel dos seus sonhos; pouco a pouco, as figuras da sua inveja, aquelas personagens efémeras que passavam com a rapidez das setas nos seus ruidosos carros, haviam-se afastado até da sua fantasia e da sua esperança; resignada, continuava o seu caminho, não sem uma espécie de dignidade desgostosa, naquele carrão de ferro e de vidro.

Encontrou Lisa sentada no interior do estabelecimento da modista, cheio de espelhos e de chapéus novos; uma jovem senhora mirava-se vaidosamente no espelho, passeando de um lado para o outro com ademanes nobres e afectados; ouvia-se falar na outra sala e fecharem-se portas envidraçadas; o chão cheirava a cera; a sala era cinzenta e nua; via-se a um canto um monte piramidal de caixas, grandes e leves, de cartão branco, umas fechadas e outras já abertas; no canto oposto crescera uma cerrada vegetação de chapéus novos, de cores frescas, sóbrias e delicadas, todos postos nos seus suportes de madeira.

Logo que viu a mãe, Lisa pôs-se de pé.

-Tenho muita pena-disse-realmente muita pena, mas não posso ficar contigo... é tarde, tenho que voltar para casa.

A mãe fitou-a suspeitosa. «Que egoísta que ela é», pensou, «já fez a sua escolha e quer impedir a minha».

-Então eu fico-disse, com uma cara irresoluta.

-Faz como quiseres-e Lisa já lhe estendia a mão, quando a mãe mudou de ideias.

-Não, vou contigo, pensarei outro dia nos chapéus.

Saíram juntas para a rua cheia de gente.-Acompanho-te- disse a mãe-até ao jardim. Assim teremos tempo de conversar-. Lisa não respondeu; seguiram juntas, parando frequentemente diante das montras, examinando os artigos, comparando os preços; as joalharias entristeciam a mãe.-Tinha um colar como aquele-dizia, apontando com um suspiro um fio de pérolas exposto no seu escrínio-e agora já não tenho-. Lisa olhava-a mas não dizia nada; também as suas jóias haviam partido para longínquos destinos. «Mas as minhas», pensava, «levou-as o meu marido... ao menos não as vendi para ir vivendo». Assim, lentamente, chegaram ao fim da rua.

A mãe seguira a amiga para poder desabafar as suas suspeitas de Leo; a multidão, as lojas, a manhã luminosa, haviam depois mitigado o seu rancor, mas quando, na praça, viu o próprio Leo, parado no passeio com um sujeito vestido de preto, cumprimentá-la sem a olhar e sem interromper a sua conversa, apenas soerguendo o chapéu, voltou-lhe, mais atormentador do que nunca, aquele pensamento.

Fitou Lisa. «Ainda ontem à noite», pensou, «ela esteve com ele». Esta suposição parecia-lhe irrefutável, fundava-a sobre o facto de que, até a olhos mais desapaixonados do que os seus, devia aparecer como evidente que entre aqueles dois «havia qualquer coisa». Fitava Lisa, examinava-a e achava-lhe de facto uma sedução nova, uma felicidade corporal difícil de definir mas incontestável; ora esta modificação era um indício, adivinhava-o a mãe com uma aversão doentia, um indício de amor: não havia dúvida, via-se-lhe no rosto de feições cheias e delicadas como têm muita vez as mulheres loiras, Lisa amava e era amada. Por quem? «Por Leo, pensava a mãe, e o seu ciúme crescia com as imagens de uma fantasia indecente.

«Ainda ontem à noite», pensava; encontrava nos olhos húmidos da amiga, na sensibilidade das suas narinas, uma

confirmação do seu desgosto. «Como se consegue amar uma mulher assim?», interrogava-se, com uma verdadeira e histérica aversão; «eu não poderia sequer tocar-lhe, toda cheia de calor, toda cheia de amor; não é uma mulher, é um animal». E os dedos contraíam-se-lhe de repugnância ao pensar que Leo tivesse podido acariciar, palpar aquele corpo, aquela cabeça, toda aquela coisa quente e palpitante.

Diante dos olhos delas, uma longa avenida arborizada, larga e recta, desenrolava-se agora na distância cinzenta, entre duas filas de vilas meio escondidas nos seus jardins; as árvores, plátanos gigantescos, estavam nuas, o ar frio e parado; pouca gente caminhava por aquele passeio solitário e, com um murmúrio de seda, com um zumbido, passavam sobre o asfalto liso os grandes automóveis com que a mãe sonhava.

Esta última relatava os preparativos para o baile que devia efectuar-se à noite.

-O vestido de espanhola fica maravilhosamente bem com a minha cor de pele-dizia.-Levarei uma grande travessa, sabes, uma daquelas peinetas andaluzas... Estamos convidadas para a mesa dos Berardi... e tu... tu vais?

- Eu-disse Lisa, baixando os olhos-eu, ao baile?... Não tenho quem me acompanhe-. Calou-se, esperando com certa ansiedade a resposta da amiga; pensava que ela a devia convidar para aquele baile; conhecia os Berardi, mascarar-se-ia de qualquer maneira, beberia, divertir-se-ia... Depois, à volta, pediria à mãe que lhe dispensasse o Michele (agradava-lhe tratá-lo como um rapaz), far-se-ia acompanhar a casa, alta noite, brincando, espicaçando-o, excitando-o; far-se-ia acompanhar num automóvel fechado, de luz apagada... O percurso era longo, as ruas escuras; teriam tempo de falar, de se calarem, de se entenderem, numa palavra, e à porta convidá-lo-ia a subir para beber um cálice de licor ou uma chávena de chá antes de voltar a pôr-se a caminho naquela noite fria.

Agradava-lhe este programa por causa da inevitabilidade dos acontecimentos que deviam produzir-se: era impossível...

Mas já a mãe falava; meditara a resposta e, como todas as pessoas que crêem possuir perigosas reservas de malícia, pôs tão pouca nas suas palavras que passou desapercebida.

-Amigos não te faltam-disse, com intenção-faz-te acompanhar por algum deles.

-Os meus amigos são vocês-respondeu Lisa, que queria ser convidada a todo o custo-só as tenho a vocês.

-Muito obrigada, és muito gentil.

-De quem são vocês convidadas? Dos Berardi? Mas esses conheço eu...-continuou Lisa-claro que os conheço... já estivemos juntos nas férias.

-Ah, sim?

-E quem as acompanha a vocês duas?-perguntou Lisa, ingenuamente.

-Leo- respondeu a mãe, destacando as sílabas-vai para outra mesa... Acompanham-nos os Berardi.

«Que me importa a mim o Leo?», pensou Lisa.-E será um bom baile?-acrescentou, em ar de dúvida.

-Muito bom.

Ficaram caladas por um instante.-Gostava de ir...- recomeçou Lisa, negligentemente, olhando diante de si-até para tornar a ver os Berardi... já há tanto tempo que não nos vemos... talvez há mais de dois anos.

-Ah, os Berardi!-A mãe estava a ficar nervosa e batia com a ponteira da sombrinha nas pedras do passeio.-Referes-te mesmo a eles?

-Sim-disse Lisa, sem a olhar, como quem pesquisa entre as recordações-Pippo, Mary, Fanny... estão todos bem?

-Muitíssimo bem... não tenhas receio, a saúde deles não corre nenhum perigo.

Novo silêncio. «E agora?», pensou Lisa, fitando a cara um pouco corada da amiga, «que bicho é que lhe mordeu?». Apercebera-se finalmente do nervosismo da mãe e atribuía-lhe um significado desfavorável aos seus desejos. «Que egoísmo, pensou, com amargura, «compreendeu desde a primeira palavra que eu gostaria de ir, e não me convida só para me fazer uma coisa desagradável». Sentia-se um pouco desencorajada; fez um último esforço.

-Devo confessar-te, Mariagrazia-murmurou, com uma voz persuasiva-que gostaria muito de ir ao baile... não quero incomodar-te... mas talvez pudesses levar-me contigo para a mesa dos Berardi.-Esperou e viu-a rir.

-Ah, essa é boa!-disse a mãe, por entre os frouxos daquele riso amargo.-Talvez eu pudesse?... Muito obrigada, querida, pelo pensamento delicado, estou de facto muito agradecida, mas eu a esses serviços não me presto.

-Que serviços?-começou Lisa, irritada, compreendendo finalmente o verdadeiro significado de todas aquelas ironias; mas a outra interrompeu-a.

-Pois muito bem, queres mesmo que to diga?-perguntou. -Já percebi tudo; tu não vais ao baile por minha causa ou por causa dos Berardi, mas por causa de qualquer outra pessoa, qualquer outra pessoa que te interessa.

-Em que é que pode isso importar-te?

-Pois é-disse a mãe, abanando amargamente a cabeça -pois é... que deveria importar-me tudo isso? Nada, nada, mesmo nada. No fundo, tens razão; que deveria importar-me que me roubem ou me matem? Nada nada, sempre nada. Cidou-se por um instante, saboreando o veneno dos seus pensamentos, e recomeçou:-E isso acontece porque sou boa, demasiado boa... se te tivesse pisado da primeira vez-e a mãe fez o gesto de esmagar qualquer coisa-já isto não aconteceria agora.

-Pisares-me? A mim? Mas tu estás louca, Mariagrazia? Estás louca?

As duas mulheres caminhavam, discutindo, pelo passeio vazio; a mãe trazia um vestido cinzento e Lisa um castanho; tinham ambas ao pescoço uma pele de raposa, fulva a de Lisa, prateada a da mãe; caminhavam e questionavam; os automóveis brilhantes corriam, passava um ou outro par, jovem e elegante; cinzento e ouro: cinzentas as figuras afastadas ou próximas dos que passavam, os profundos jardins, para lá dos gradeamentos, a avenida deserta, os plátanos; de oiro aquele sol novo e frio, ainda coalhado no gelo do inverno, gotejando luz e água dos seus raios derretidos, ridente e frígido como um convalescente, envolto em algodão em rama, o sol de oiro no algodão em rama azul do céu de Fevereiro.

A mãe continuava o seu monólogo.

-Demasiado boa-dizia Lisa, com um riso alto e desdenhoso-demasiado boa, tu?

Um instante de silêncio.-Mas-continuou a mãe, afastando-se da amiga e olhando diante de si como se quisesse falar a uma terceira pessoa-não percebo de modo nenhum como se consegue amar certas mulheres... isso é que eu não percebo.

-É isso que eu também digo.

Lisa empalidecia, os lábios tremiam-lhe; porque se mostrava a amiga tão dura e sem piedade? Nenhum mal lhe fizera; era triste que uma mãe se ocupasse do próprio filho só para prejudicar a antiga rival; que podia importar a Mari?..grazia que ela fosse ao baile para se encontrar com Michele?... E porque era talvez a primeira vez na sua vida que Lisa se via acusada sem razão, o seu rancor era grande e exuberante; por contraste com tais injustiças, parecia-lhe ter regressado aos tempos da sua inocência; sentia em si uma alma e duas asas de anjo, uma auréola de mártir; amava Michele e Michele amava-a; como podia haver ainda alguém que encontrasse numa  história tão pura matéria de reprovação e de escândalo?

-E ontem à noite-continuava a mãe-ontem à noite como correram as coisas? Bem, hum?... Não quis ficar lá em casa, tinha sono, safou-se... está certo, estavas tu à espera dele.- Ficou calada por um instante.-Sabes o que te digo?...- prorrompeu ainda, voltando-se - ...Que devias envergonhar-te!-. Torceu com desgosto a boca pintada, fitando a amiga de alto abaixo,-Já não és nova.

-Temos quase a mesma idade... és mais velha do que eu- respondeu Lisa, docemente e sem erguer a cabeça.

-Não senhora-negou a mãe, com autoridade-é uma coisa diferente... eu sou viúva... mas tu, pelo contrário, ainda és casada... o teu marido existe... Envergonhares-te! Isso é que tu devias fazer.

Passavam nesse momento diante de uma vila de janelas fechadas; nas traseiras da vila, que era toda circundada de grandes árvores nuas, devia estar a realizar-se uma partida de tamboril; ouviam-se os golpes sonoros ecoar no silêncio do céu meridiano com um ruído seco, como se alguma coisa se houvesse despedaçado lá em cima, por detrás do azul; e se o vento que dispersava o fumo branco das chaminés soprava para o lado da rua, até se ouviam as vozes alegres e fortes dos jogadores.

Lisa ficou por um instante a ouvir, meditativa, aquele eco, e fitou depois Mariagrazia; admirou-se; seria possível que aquela cara encolerizada e ciumenta reflectisse... o amor materno? E que espécie de amor materno era aquele que fazia encolerizar a tal ponto uma mulher que nunca se mostrara excessivamente terna com os filhos? Ou não seria antes um ciúme carnal, ciúme de amante?... De repente, compreendeu: o primeiro sentimento foi de alívio; depois fitou a mãe e a dúvida voltou-lhe.

-Mariagrazia-perguntou-diz-me, tu estás a falar do... do Leo, não é verdade?-. Viu a amiga fazer um sinal afirmativo com a cabeça, com uma expressão embaraçada e ainda sentida que parecia dizer: «Porque mo perguntas?... Bem sabes... não o tenho senão a ele...». Entreolharam-se; havia nos olhos de Lisa um grande alívio, uma espécie de triunfante piedade. Disse: -Minha pobre Mariagrazia-e teria podido explicar, desculpar-se, alisar aquela ruga de suspeita que havia no rosto da amiga. -Minha pobre Mariagrazia-repetiu. Agora acudiam-lhe recordações, revia a cena do dia anterior, a da vela, com Leo e Carla abraçados. «É da sua filha», pensava, «é da sua filha que devia ter ciúmes». Sentia um pouco de compaixão pela amiga perdida no erro, mas ao mesmo tempo uma alegria, um tal contentamento de não ser culpada do que a outra a acusava, que não sabia como lhe falar, se com desprezo se com piedade.

-Podes estar segura - disse, finalmente - podes estar segura... não vi Leo, nem ontem nem... nunca. Olha, posso jurar-to pelo que tenho de mais sagrado.

Sem falar, a mãe continuava a sondá-la com os seus olhos inquiridores e suspeitosos.

-Acredita-me-acrescentou Lisa, pouco à vontade sob aqueles olhares-foi um mal-entendido.

A mãe baixou a cabeça.-Será melhor despedirmo-nos- disse, empenhando-se em parecer fria, contida e muito digna -é tarde-. Ouviam-se as pancadas do tamboril e, a intervalos, as vozes dos jogadores... A mãe deu alguns passos.

-Acredita-repetiu Lisa, incerta-um mal-entendido-. Olhava à sua volta, como que buscando um apoio para as suas razões. A avenida estava deserta nesse momento e o sol aumentava aquela solidão iluminando a perder de vista o passeio vazio. Lisa olhava à sua volta e estava parada; Mariagrazia, pelo contrário, afastava-se lentamente, passo a passo, olhando para o chão, numa atitude pensativa e distraída. «Acredita-me», teria querido Lisa gritar-lhe ainda, «é com a Carla que o Leo te atraiçoa, com a tua filha, minha pobre Mariagrazia, não comigo...». Mas havia nas costas um pouco curvadas da mãe uma resolução teimosa de não se voltar para a verdade; Lisa viu-a pouco a pouco diminuir, descolorir-se ao passar através de todo aquele sol, confundir-se com a fuga de sombras dos gradeamentos altos dos jardins; finalmente, não foi mais do que uma mancha negra, ao longe, ao fundo da avenida.

 

Porque tinha Lisa quase admitido, a princípio, ser culpada, e protestado depois a sua inocência? Outrem que não fosse a mãe ter-se-ia perdido perante esta pergunta; a mãe não, para ela tudo era claro, cristalino, perfeitamente explicável; tinha a convicção profunda de que Lisa era hipócrita e mentirosa... não sabia porquê, mas tinha cara disso, palavras, atitudes... Era uma convicção antiga que devia ter origem em qualquer facto esquecido, mas era tão indispensável ao retrato moral que a mãe fazia de Lisa que aboli-la seria como apagar da sua mente a figura da amiga. Sendo, portanto, Lisa mentirosa e hipócrita, então tudo era claro. Porque lhe dissera, quase com compaixão «minha pobre Mariagrazia? Evidentemente para a burlar, para troçar dela, ou quando muito por se compadecer da sua cegueira, da sua ingenuidade, da sua triste figura de atraiçoada. Porque mostrara tanto desejo de ir ao baile com ela e com os Berardi? Transparente: para a manter maquiavelicamente enganada e fazer-lhe crer que nessa noite não esperava Leo. Em suma, Lisa, com a habitual falsidade, imaginara mil estratagemas para a confundir. Conseguira-o Oh! Não, isso não se podia dizer, era preciso muito mais para a enganar a ela, Mariagrazia, muito mais. «Desilude-te, minha rica», era o que desejaria dizer-lhe, raivosamente, «serei idiota... mas não até esse ponto... já lá vai o tempo em que acreditava que todos eram bons, amigos, afeiçoados, gentis... Agora tenho os olhos bem abertos

e já não me deixo embarrilar... Ah, não, minha amiga!... Uma vez basta... Portanto desilude-te, minha amiguinha, já percebi tudo... Essa não me fazes tu engolir, que eu sou fina, muito fina, extremamente fina». Enquanto pensava, abanava a cabeça com grande suficiência e sorria, pintando-se-lhe no rosto uma expressão de superioridade amarga e petulante; o que mais a irritava era que a amiga pudesse supô-la contaminada de simplicidade e de ingenuidade; os olhos contraíam-se-lhe de raiva e cerrava os dentes enquanto ia andando; nunca se sentira tão impiedosa: se Lisa estivesse a morrer de sede ter-lhe-ia recusado o último copo de água, se esfomeada, o último bocado de pão; se a amiga ficasse inesperadamente pobre, poderia suplicar-lhe de joelhos e beijar-lhe as mãos que não lhe daria um centavo de coisa nenhuma; nada; e se estivesse a morrer e a chamasse à cabeceira, deixá-la-ia certamente morrer só como um cão, sim, rebentar sozinha no seu leito sujo, de cara voltada para a parede, no seu quarto vazio; e além disso a mãe sentia-se capaz de a pungir, torturá-la, arrastá-la pelos cabelos e espezinhá-la com os saltos dos sapatos no ventre, no peito, na cabeça e na cara... de tudo seria capaz, nem nunca na sua vida se sentira tão plenamente, voluptuosamente má.

Mas... mas a melhor vingança não era o perdão? Sim, mas que perdão? O perdão afectuoso, amorável, alegre? Ou o outro, desdenhoso, frio, atirado à cara como uma esmola?

O segundo; Lisa arruinava-se, fazia dívidas, empobrecia, tornava-se andrajosa e mendiga, todos a abandonavam; ou então, após uma grave doença, ficava emagrecida, embrutecida, grisalha e, talvez, são coisas que acontecem, talvez idiota e mentecapta, talvez cega... um rosto descarnado, olhos brancos, uma fronte incerta que vai de encontro aos móveis e às pessoas... o dedo de Deus, o castigo do Céu, são coisas que acontecem... Então ela perdoava-lhe... devagar, um momento, perdoava-lhe, sim, mas apenas por metade, com desprezo, frieza e memória tenaz, humilhando-a e sem a deixar aproximar-se muito, como para lhe fazer compreender que não era sequer digna do seu ódio... E como se verificava este perdão? Assim... assim... era uma noite de recepção... a orquestra, ruidosa, ritmava a dança... os pares de bailarinos passavam e tornavam a passar diante das portas douradas dos seus salões... sob os lustres acesos, diante do bufete, nos cantos íntimos, nos átrios, até nos terraços, onde, encostados às balaustradas de mármore, podiam ver a lua a surgir por detrás das pontas negras dos abetos, por toda a parte, na sua

casa, onde se reunia toda a melhor sociedade. Era o momento culminante, quando as conversas e a música se fundem num único rumor, as paixões se incendeiam, as flores murcham, e são murmuradas declarações galantes aos ouvidos das mulheres... Então devia aparecer uma criada a cochichar-lhe: «Está ali a senhora Lisa». Ela punha-se imediatamente de pé... não, fazia-a esperar um pouco, e saía, desculpando-se; dirigia-se ao vestíbulo cheio de abafos e chapéus amontoados uns em cima dos outros, nem uma cadeira livre, e, no meio de toda aquela riqueza de vestes, de pé, pobremente vestida, envelhecida de dez anos pelo menos, encontrava Lisa que, apenas a via, vinha ao seu encontro de braços estendidos... Devagar, devagar, minha amiguinha... e, restabelecidas as distâncias, escutava com magnanimidade aquelas desculpas confusas, aqueles protestos de amizade... depois, muito fria, muito superior, respondia-lhe: «Sim, está bem, perdoo-te... mas tens que ter paciência e esperares aqui ou lá em cima na antecâmara... Sabes, recebo uma quantidade de pessoas a quem não posso apresentar-te... gente nobre, percebes? Aristocratas... gente que não quer conhecer qualquer pessoa... gente muito fechada no seu círculo... Portanto, estamos entendidas, vai lá para cima e espera por mim...». E deixava-a esperar durante toda a longa noite... Finalmente, a altas horas, apresentava-se à infeliz, acabrunhada na sombra e na tristeza, com o seu sorriso mais belo e o seu vestido mais rico: «Peço-te muita desculpa, Lisa», dizia-lhe, «mas esta noite não posso realmente falar contigo... vem amanhã, talvez amanhã», e, com uma explosão de riso, saía... Quem a esperava à porta, junto de um automóvel colossal, de oito cilindros, capot niquelado, com dois motoristas, todo forrado de cetim? Leo... e, juntos, alegres pelo regresso de Lisa, partiam na noite.

Estas imagens cinematográficas, galopantes sem repouso no écran da sua alma, consolavam a mãe; a intervalos, quando erguia os olhos, a paisagem e o sol irrompiam por entre os seus pensamentos. Apercebia-se então de ser a costumada Mariagrazia, mais longe daqueles sonhos do que da índia, de andar a pé, completamente só, pelas ruas vazias do subúrbio; achou-se finalmente diante da vila, empurrou o portão semicerrado e entrou.

Atravessou à pressa a alameda do parque; sentia-se cansada, não sabia se por causa do seu litígio com Lisa se por aquela sensação de vazio que lhe ficava de todas as vezes que se abandonava às suas fantasias. Na antecâmara encontrou Michele, que fumava, sentado numa poltrona.

-Estou morta...-disse, tirando molemente o chapéu.- Onde está a Carla?

-Não está em casa-respondeu Michele; Maria grazia saiu sem acrescentar uma palavra.

Michele estava de mau humor: os acontecimentos da noite anterior haviam-lhe deixado um descontentamento hipocondríaco; compreendia que era preciso vencer, de uma vez por todas, a própria indiferença e agir; a acção era-lhe sem dúvida sugerida por uma lógica estranha à sinceridade; amor filial, ódio contra o amante de sua mãe, afecto familiar, tudo isto eram sentimentos que não conhecia... mas que importava? Quando não se é sincero é preciso fingir e, à força de fingir, acaba-se por crer; é este o princípio de todas as crenças.

Em suma, uma montagem?

Pois, nada mais do que uma montagem. «Lisa, por exemplo», pensava Michele, «não a amo... não a desejo sequer... mas ontem à noite beijei-lhe a mão... hoje vou a casa dela; a princípio serei muito frio, depois excitar-me-ei, aquecerei... é ridículo... mas creio que desta vez me tornarei seu amante». Já não existiam para ele fé, sinceridade, tragédia; tudo lhe aparecia, através do seu tédio, digno de dó, ridículo, falso, mas compreendia a dificuldade e os perigos da sua situação; precisava de se apaixonar, de agir, de sofrer, de vencer aquela fraqueza, aquela piedade, aquela falsidade, aquele sentimento do ridículo, era preciso ser-se trágico e sincero. «Como devia ser belo o mundo», pensava, com um saudosismo irónico, quando um marido atraiçoado podia gritar para a mulher: «Mulher ruim, paga com a vida o preço das tuas culpas», e, o que é mais importante, pensar tais palavras e depois investir, matar a mulher, o amante, os parentes e todos os demais, e ficar sem castigo e sem remorsos; quando ao pensamento se seguia a acção-«odeio-te», e zás, um golpe de punhal, e eis o inimigo ou o amigo estendido no chão, numa poça de sangue; quando não se pensava tanto e o primeiro impulso era sempre o bom, quando a vida não era como agora ridícula, mas trágica, e se morria de verdade, e se matava, e se odiava, e se amava a sério, e se derramavam lágrimas verdadeiras por desgraças verdadeiras, e todos os homens eram feitos de carne e osso e agarrados à realidade como as árvores à terra. Pouco a pouco a ironia desvanecia-se e ficava a saudade; desejaria viver naquela época trágica e sincera, desejaria sentir aqueles grandes ódios arrazadores, elevar-se àqueles sentimentos sem limites... mas mantinha-se no seu tempo e na sua vida, por terra.

Pensava e fumava; sobre a mesa, a caixa de dez cigarros já não continha mais do que um; havia quase duas horas que estava sentado na antecâmara cheia da luz branca da manhã; levantara-se tarde e vestira-se minuciosamente; gravatas, fatos, camisas, quantos cuidados, quantas intenções de se consolar das suas misérias erguendo-se até à brilhante estética dos figurinos ingleses. Agradavam-lhe os cavalheiros, firmes, de pé, junto aos seus modelos torpedo, aqueles sobretudos de formas amplas, aqueles rostos glabros afundados nos quentes cache-cols de lã, e o cenário banal e elegante de um cottage afogado na folhagem de árvores de formas arredondadas e macias como nuvens; seduziam-no as atitudes, os nós de gravata, o corte dos fatos, os cristais e as lãs.

Estava agora sentado na poltrona em atitude nobre e elegante; tinha as pernas cruzadas, as calças impecavelmente levantadas sobre as meias de lã, a cabeça penteada e brilhante um pouco reclinada sobre o ombro, na direcção do cigarro que, com um gesto lânguido, a mão segurava entre dois dedos; na sua cara macia, barbeada e oval, alternavam-se reflexos de ironia com escurecimentos repentinos, como a luz e a sombra no rosto de uma estátua; fumava e pensava.

Chegou Carla do ténis, subindo lentamente a escada; vestia uma camisola polícroma com uma saia branca pregueada; trazia o casaco no braço, a raquette e o saco de rede das bolas; sorria.

-Onde está a mamã?-gritou; acabou de subir a escada e parou diante de Michele.-Encontrei o Pippo Berardi-disse. -Estamos ambas, eu e a mamã, convidadas para jantar. Depois levam-nos ao baile. Se quiseres, podes juntar-te lá a nós-. Calou-se; Michele fumava e não falava.

-Que tens?-perguntou ela, sentindo-se observada.-Porque estás a olhar assim para mim?-. A sua voz nervosa soava na antecâmara vazia como num estranho desafio cheio de melancolia e de esperança; começava a nova vida, deviam sabê-lo todos; mas no íntimo daquele vigor efémero fluía um mal-estar intolerável que a enfraquecia e a fazia desejar fechar os olhos, cruzar os braços e abater-se na escuridão de um sono negro e profundo.

Entrou a mãe.-Sabes, mamã?-repetiu Carla, distraída, em voz menos alegre.-Os Berardi convidaram-nos para jantar... e... depois levam-nos ao baile.

-Está bem-disse a mãe, sem entusiasmo; tinha o nariz avermelhado e frio, a pele do rosto brilhante e sem pó-de-arroz e um olhar frigidíssimo entre as suas pálpebras patéticas.

-Nesse caso-acrescentou-precisamos de nos mascarar cedo.

Sentou-se.-E contigo-disse, olhando Michele-contigo tenho que falar.

Carla saiu. - Comigo ? - repetiu Michele, fingindo um pasmo enorme.-Comigo? E de quê?

A mãe abanou a cabeça.-Sabe-lo melhor do que eu... ontem à noite atiraste o cinzeiro ao Leo... por sorte foi a mim que atingiste... ainda tenho o sinal...-. Levantou a mão e fez o gesto de descobrir o ombro, mas o filho deteve-a.

-Não-disse, aborrecido-não, muito obrigado... deixemo-nos de exibicionismos inúteis... eu não sou o Leo-. Houve um silêncio; o rosto da mãe contraíu-se, os seus olhos ensombraram-se; ficou com a mão sobre o peito, num gesto cheio de dignidade, tal uma Nossa Senhora a apontar o próprio coração trespassado; depois de haver sido ridículo, aquele movimento transformava-se em quase profundo; era como se a mãe houvesse querido mostrar-lhe outra ferida além da produzida pelo cinzeiro. Qual? Michele não seria capaz de o dizer, pois já a atitude mudava e a mulher falava.

-Quero ser boa para ti-disse, em voz alterada.-Que tens tu, Michele, que tens?

-Não tenho nada-, O mal-estar do rapaz aumentava. «Terei de saber o que tenho?», pensava, comovido e exasperado; a voz choramingas da mãe fê-lo estremecer. «Se continua neste tom», pensou, «torna-se patética e ridícula, ridícula e patética... Preciso de impedir a todo o custo os seus romantismos... não quero vê-la chorar, nem gritar, nem suplicar... a todo o custo.

-Michele-continuava a mulher-faz um favor à tua mãe.

-Mil-interrompeu  o  rapaz,   com  uma  cara  amável.

-Então-disse ela, um pouco tranquilizada, enganando-se com aquela ironia-dá-me uma prova... mostra por exemplo, um pouco de amizade a Leo, finge tê-la, ao menos... ouve, basta-me isso.

Ficaram calados por um instante, fitando-se.-E ele-perguntou Michele, com uma cara inesperadamente dura-tem-na por mim?

-Ele?-fez a mãe, com um sorriso jovem, comovente de ingenuidade e de ilusão.-Ele ama-te como um pai.

-Ah! Realmente?-perguntou o rapaz, estupefacto; tanta boa-fé, tanta incompreensão desencorajaram-no. «Não há nada a fazer», pensou, «enquanto estivermos assim, a vida não me pertence a mim mas a ela». E pertencia também à mãe aquele mundo disforme, falso de embotar os dentes, amargamente grotesco; para ele, para a sua clarividência não havia lugar.

-Ele-disse ainda a mãe, com o seu riso claro e triunfante-é o melhor homem do mundo-. Ah, bem, muito bem! Não havia mais nada a dizer; o próprio mundo, ultrajado, deixava de girar; Michele calava-se, resignado,

-Muita vez-prosseguiu a mãe-me fala de ti, das suas preocupações, das suas esperanças...

-Agradeço-lhe-interrompeu o rapaz.

-Não acreditas? - perguntou a mãe. - Olha... ainda anteontem me expôs os seus programas para vocês dois, tu e a Carla... devias tê-lo ouvido para compreender até que ponto chega a bondade daquele homem. «Sei muito bem», dizia-me ele, e aqui a mãe compôs uma cara compungida, como se rezasse uma oração, «que o Michele não é muito meu amigo, mas não importa... eu quero-lhe bem à mesma... Dentro em pouco, logo que a Carla se case, é preciso que ele também comece a trabalhar. E então», escuta, «então as recomendações, as ajudas, os encorajamentos da minha parte não lhe hão-de faltar».

-Ele disse isso?-perguntou Michele, interessado: a sua desconfiança cedia àquelas seduções como uma mulher fácil que se sente beliscada nas ancas e no peito; cedia com um sorriso complacente. «E se fosse verdade?», pensou, «se realmente o Leo quisesse ajudar-me a fazer-me alguém, a tornar-me... rico?». Esta esperança fez relampejar na sua fantasia excitada a imagem dos seus desejos e das suas invejas: as mulheres de luxo, de sorrisos preciosos, as viagens, os hotéis, a vida intensa, dividida entre os negócios e os intensos divertimentos... Era como quando, no cinema, diante dos olhos arregalados da multidão, desfilam ao ritmo triunfal e nostálgico da orquestra as grandes cidades e todas as suas riquezas, as paisagens longínquas, as aventuras, as mulheres mais belas e os homens mais afortunados. Ao ritmo apressado do seu coração iludido, o cinema das suas ambições corria cada vez mais rápido... no écran da sua fantasia as imagens perseguiam-se, encontravam-se, misturavam-se, ultrapassavam-se... era a corrida das esperanças, que tira a respiração, faz tremer a alma, ilude, e finalmente dissolve-se, deixando a medíocre realidade; exactamente como no cinema quando se acende a luz e os espectadores se entreolham com caras desencantadas e amargas.

«Se fosse verdade?», repetiu, para consigo, «se fosse verdade ?».

-Disse isto mesmo-continuava a mãe-e muitas outras coisas.

Calou-se por um instante.-É bom-prosseguiu, olhando à sua frente como se estivesse a ver Leo e a bondade dele, um ao lado da outra, ali, no meio da antecâmara-é verdadeiramente bom... Compreende-se que também ele tem defeitos, mas que atire a primeira pedra quem os não tenha... não se deve julgar pelas aparências... é um homem de poucas falas, brusco, não diz tudo o que pensa, esconde os próprios sentimentos, mas é preciso conhecê-lo na intimidade...

«E tu conhece-lo», pensou Michele, divertido e irritado.

- ...Para compreender como ele pode ser expansivo, alegre, afectuoso... Ainda me lembro-acrescentou a mãe, com um sorriso de ternura-de quando os sentava nos joelhos, a ti e a Carla. Vocês eram pequenos e ele enchia-lhes a boca e as mãos de chocolates... Ou então surpreéndia-o quando ele brincava convosco, Michele, brincava convosco como uma criança...

O rapaz sorriu de piedade.-E diz-me-perguntou, para fugir à pena daquelas lembranças patéticas e familiares-ele disse realmente que me ajudará?

-Claro-disse a mãe, um pouco incerta-claro que te ajudará... Logo que acabes o curso... tem tantos conhecimentos, tantas amizades altamente colocadas...-e a mãe levantou a mão para indicar os fastígios onde aqueles conhecimentos do amante se sentavam, inchados e tesos...-Claro que te ajudará...

-Ah! Ajudar-me-á ?-. Um sorriso de complacência tentava os seus lábios. Aquele óptimo, aquele excelente Leo! A mãe tinha razão, no fundo era um homem prático, brusco, como se sabia, mas um coração de ouro... Um belo dia dirigir-se-ia a ele e dir-lhe-ia: «Ouve, Leo... passa-me um cartão para fulano de tal... sabes, aquele tipo influente...». Ou então: «Por favor, Leo, tens aí cem mil liras que me emprestes?». E Leo: «Imediatamente Michele... senta-te... aqui tens o cartão... aqui tens o dinheiro... queres em moeda líquida ou em cheque?... E, quando precisares», acrescentaria, afectuosamente, acompanhando-o à porta e dando-lhe uma palma-dinha de encorajamento no ombro-volta a aparecer. Sabes... que prometi à tua mamã ajudar-te na vida... seja onde for e sempre». Ah! Leo, Leo, homem forte, hom'em seguro e bom!... A sua alma enchia-se agora de amizade e de afecto... acudiam--lhe mil recordações, mil anedotas em que Leo aparecia modesto, prático, seguro e generoso, cheio de bom humor, de bom senso e de bondade, figura ora séria ora alegre mas nunca ridícula, figura maliciosa e severa, figura paternal e exemplar.

-Sim-continuou a mãe, triunfando gradualmente-sim, ajudar-te-á, mas contanto que tu sejas mais gentil para com ele... de outro modo pode acabar por levar a mal... Olha a Carla, por exemplo: nunca uma palavra a mais, nunca um gesto deslocado... e ele afeiçoou-se-lhe.

-Ah, afeiçoou-se-lhe ?...-interrompeu Michele, com um sorriso trepidante.

-Claro, afeiçoou-se-lhe de tal maneira que pensa sempre nela como numa filha... Por exemplo, compreendeu que é preciso casá-la... ou agora ou nunca... e ocupa-se disso... se visses como pensa no caso!... Ainda ontem no baile me esteve a falar... a dizer-me que Pippo Berardi seria um bom partido...

-É tão feio!-exclamou Michele.

-Feio mas simpático... Como vês-concluiu a mãe-temos que manter seguro o nosso Leo.

«O nosso Leo», repetiu o rapaz para consigo, com um frémito de alegria.

-E não o afastarmos de nós com grosserias, ou, pior, atirando-lhe cinzeiros-. Completamente tranquilizada, pegou na mão de Michele.-Então prometes-me-perguntou-prometes-me que vais ser mais gentil com o Leo?-. A sua voz tremia com uma comoção sincera e imprevista, o seu coração abria-se como um cofre cheio de amor que ela desejaria, no auge daquela ternura, despejar sobre todos, sobre Leo, Carla, Michele, Pippo Berardi...-prometes-mo, Michelino?-repetiu; aquele diminutivo era para ela a infância, o menino de olhos claros, os anos passados, a sua juventude; Michelino era o seu filho, não Michele.

-Claro que sim-respondeu o rapaz, pouco à vontade perante aqueles olhos brilhantes de emoção.-Sim, prometo-te -mas compreendia agora, demasiado tarde, ter-se perdido, com toda a sua visão, na paixão da mãe como num matagal sem luz.

Carla entrou.-Que estão a fazer?-perguntou.-Supunha-os já à mesa.

-Nada-disse Michele, já arrependido da sua promessa -estávamos a falar...

-Pois-explicou, faladora, a mãe.-Estava a dizer-lhe que devia ser mais gentil com o Leo... Não te parece que tenho razão, Carla?... Ele faz-nos uma quantidade de favores, é um velho amigo cá de casa, pode dizer-se que vos viu crescer... é preciso não o tratar como a uma pessoa como outra qualquer

Sem se mover, de pé, direita no meio da antecâmara, Carla fitou a mãe; então, pela primeira vez, vendo-a tão cega e inofensiva, compreendeu tê-la traído. «Que dirias, pensou, «se soubesses a verdade?».

-Eu creio-respondeu, finalmente, numa voz profunda, semicerrando os olhos--que é preciso ser gentil para com todos.

-Isso mesmo-exclamou a mãe, feliz.-Carla também pensa como eu... Anda cá, Carla-acrescentou, com uma ternura inesperada-anda cá, deixa-me ver-te-. Atraíu-a, fê-la sentar-se no braço da poltrona e passou-lhe a mão pelas faces. -Minha filha-disse-pareces-me um pouco pálida... dormiste bem?

-Muito bem.

-Eu não-disse a mãe, com ingenuidade.-Tive um sonho terrível... parecia-me que estava sentado a um canto um senhor muito gordo... Ando eu de um lado para o outro, a pensar em diversas coisas, e, finalmente, aproximo-me e pergunto-lhe que horas são... ele não responde... Penso que é surdo e vou a afastar-me quando vejo que tem os olhos tão enterrados na carne que quase não vê... as pálpebras são inchadas, a fronte toca os zigomas, apenas se entrevê uma coisa clara que espreita e se move entre duas pregas de gordura... em suma, um horror... Compadecida, pergunto-lhe o que tem e ele responde-me que, à força de engordar, acabará por deixar de ver... «Devia comer menos», digo-lhe eu, ou qualquer coisa semelhante, e ele, como anteriormente, não responde... Então penso que seria preciso abrir-lhe os olhos de qualquer maneira, «para poder ver», digo para comigo sem saber porquê, e já vou a estender a mão para descerrar todo aquele toucinho que lhe obstrui a vista, quando começa a nevar... A neve cai tão cerrada e violenta que em breve deixo de ver; tenho os olhos, os ouvidos e o cabelo cheios dela; não faço mais nada senão tropeçar, cair, voltar a erguer-me e tenho tanto frio que bato os dentes... E finalmente acordo e verifico que o vento escancarou a janela... Não é curioso? Dizem que os sonhos podem ser explicações... pois gostaria de saber que significado tem este.

-Sonho invernal-observou Michele.-...E se fôssemos comer ?

Puseram-se de pé.-Realmente, Carla-insistiu a mãe -estás muito pálida... talvez tenhas ficado cansada do ténis.

-Mas não, mamã.

Desceram em silêncio.

Sentaram-se na fria casa de jantar à mesa demasiado grande; comeram sem se olharem, com os gestos gélidos e deferentes de sacerdotes celebrando um rito; não falavam; aquele silêncio, apenas interrompido pelo leve tocar das colheres nos pratos, que, àquele brilho do dia, reflectido na toalha branca, recordava o ruído gelado dos ferros cirúrgicos, nas bacias, durante as operações, aquele frio silêncio sem intimidade aborrecia a mãe, sociável e loquaz.

-Que silêncio!-exclamou, a certa altura, sorrindo. -Passou um anjo... Digam a verdade, não é verdade que se sente a falta de Leo?

-Pois-murmurou Michele, meditativo-de Leo.

Carla levantou a cabeça. «Sentes-lhe agora a falta», quisera perguntar, «e depois? Que farás depois, quando não o vires mais?». Sentia-se leve e perturbada, como quem está prestes a partir e se senta pela última vez à mesa familiar, comendo à pressa e pensando na viagem iminente... A mãe, pelo contrário, aparecia-lhe firme para sempre no seu lugar, petrificada naquela atitude e naquelas palavras de saudade. «Sente-se a falta de Leo», diria também daí a dez, a vinte anos, e sentar--se-ia ali, à cabeceira da mesa, todos os dias, pensando com amargura no amante perdido.

-É um facto-disse a mãe, como se alguém houvesse posto em dúvida as suas palavras-que quando vem o Leo parecemos estar mais alegres... ontem, por exemplo... o que ele disse... o que ele fez... Foi inesgotável.

-Se te faz assim tanta falta-disse Michele, com um sorriso de escárnio-se não podes mesmo passar sem ele, pois convida-o todos os dias... até se podia fornecer-lhe pensão.

-Que disparate-respondeu a mãe, irritada, adivinhando a ironia.-Não quis dizer que não posso viver sem ele, não...-. «Mas a verdade é essa», desejaria Michele interromper.

- ...Mas somente que me agrada a sua companhia porque é alegre, amável, divertido... eis tudo-. Calou-se, continuando a comer.-Falemos de outra coisa-disse, por fim.-Carla, quem foi que te fez o convite, Pippo ou os outros?

-Pippo.

-Ah, estava no ténis... e esteve muito tempo contigo?

-Uma meia hora.

-Só uma meia hora?-repetiu a mãe, desiludida.-E... de que falaram?

-Nada de especial-respondeu Carla, pousando o garfo. -Estávamos a ver a partida.

Silêncio; a criada tirou os pratos e trouxe outros.

-E... como te parece?-insistiu a mãe.

-Hum...   assim,   assim-respondeu   Carla,   vagamente.

-E a ti como te parece?-perguntou a mãe a Michele.

-Feio mas simpático-foi a resposta, com as suas mesmíssimas palavras de poucos minutos antes; ela olhou em volta, insatisfeita, como se houvesse querido ouvir ainda o parecer de mais alguém.

-É um jovem inteligente e culto, viajou muito, conhece muita gente... creio-acrescentou, com uma malícia grosseira -que tem um fraco por ti, Carla.

-Ah, sim?

-Devem ser ricos-continuou a mãe, seguindo a linha das suas ideias-muito ricos...

«E por isso», desejaria Michele concluir, ironicamente, «seria um bom matrimónio». Mas calou-se, contemplando serenamente, curiosamente, todos aqueles erros, como se nem sequer lhe tocassem e ele fosse um espectador longínquo e estranho.

-Têm cinco automóveis-acrescentou a mãe, com evidente exagero.

-Dez-pronunciou, tranquilamente, Michele, sem erguer a cabeça-dez automóveis.

-Não-rectificou Carla-têm só três: um do Pippo, um do pai, e o pequeno, das raparigas.

Entrou, com o segundo prato, a criada, salvando a situação já periclitante da mãe.

-Disse-me a senhora Berardi-continuou ela, servindo-se -que só nos vestidos para a Mary e a Fanny gastam oitenta mil liras por ano.

Também aqui era evidente um leve exagero mas Michele não o fez notar. Para que serviria? A certas coisas não se pode dar remédio.

-Têm lindos vestidos-admitiu Carla, sem inveja mas como subentendendo uma constatação melancólica da pobreza do próprio guarda-roupa; vencia-a um mal-estar branco: neblina ou musselina? Aquele branco fantasma, aquele langor branco que das janelas veladas fluía para a sala, apertava na sua mão enorme e inchada de algodão em rama o seu coração palpitante. O algodão, maleável, rangia a cada apertão, os olhos enchiam-se-lhe de névoa e tudo em seu redor se tornava branco, de uma brancura densa e cintilante em que as vozes solitárias de sua mãe e de Michele se desarticulavam, estirando-se em longas vogais, como um gramofone se se diminui   a  velocidade  do  disco.   Então,   espontaneamente, reconstituíam-se alguns gestos da noite anterior: daquela neblina, que logo lhe engolia o rosto e o corpo, a mão de Leo estendia-se e acariciava os seus grandes seios sensíveis, o seu ventre estreito; apesar da própria imobilidade, parecia-lhe fremir àquelas carícias; depois a névoa dissipava-se e apareciam-lhe, numa realidade mais plástica e mais dura após tais abandonos, a mãe, Michele, a criada que lhe estendia a travessa.

Recusou, com um gesto mole.

-O que tens, Carla, que não comes?-perguntou a mãe.

-Nada...-. Não tinha fome no meio de todas aquelas coisas esfomeadas da sua vida; na verdade, aquela sala onde deveria alimentar-se alimentara-se com ela, todas aquelas coisas inanimadas haviam sugado dia após dia a sua vitalidade, com uma tenacidade mais forte do que as suas vãs tentativas de libertação: na madeira escura das credencias barrigudas fluía o seu melhor sangue; naquela eterna brancura do ar dissolvera-se o leite da sua carne; no velho espelho, ali, em frente do seu lugar, ficara prisioneira a imagem da sua adolescência.

-Nada, não é uma explicação-insistiu a mãe. Comia com avidez, olhando cada bocado antes de o meter na boca. -O pai-acrescentou, continuando a sua interminável biografia-ganha muito.

-Industrial-recitou Michele, servindo-se de vinho-algodões em bruto e trabalhados, algodões estampados.

-Sim, industrial! Um homem inteligente e enérgico que veio do nada e se fez a si mesmo-. A mãe bebeu, enxugou os lábios e finalmente fixou Michele com uma curiosa e átona expressão de saciedade.

-É comendador-disse.

-Ah, realmente?-perguntou Michele, estupefacto.-Be-rardi é comendador? E porquê?

-Como queres que o saiba?-disse a mãe, que nada compreendera.-Talvez tenha prestado algum serviço ao Estado...

-Mas como? Onde? De que maneira?-insistiu Michele, com a maior seriedade.

-Ah, isso não sei-disse a mãe, baixando a cabeça; comeu; depois voltou a erguer aqueles olhos sem  compreensão.

-Sim-repetiu, com uma gravidade distante e sonhadora -comendador... Carla - acrescentou, bruscamente - estive a observar-te no outro dia quando dançavas com o Pippo... pareceste-me fria, rígida... dançavas como um autómato... e de facto nas vezes seguintes já não te convidou.

-Não era eu que estava fria-respondeu Carla, um tanto

vivamente-era ele que estava demasiado quente... teve umas conversas indecentes... e então "disse-lhe que se calasse e dançámos em silêncio...

A mãe, incrédula, abanou a cabeça.-Ora-disse, com um sorriso penetrante-ora... que poderá ter dito assim tão indecente?... Os costumados disparates que os jovens dizem às raparigas... Creio antes, Carla-acrescentou-que tens uma ideia preconcebida contra ele.

Entrou a criada com a fruta; a rapariga esperou que ela saísse, pegou numa maçã e olhou-a.

-Primeiro-disse, sem levantar a cabeça, com voz calma -fez-me elogios à tua beleza.

-À minha beleza!...-interrompeu a mãe, lisonjeada.

-Sim... depois perguntou-me se eu podia ir ao seu estúdio... Perguntei-lhe o que estudava e respondeu-me que se dedicava sobretudo ao nu feminino.

-Então, o que há de mal?-interveio a mãe.-Desde o momento que é pintor...

-Espera... Então eu, ingenuamente, pergunto-lhe se pinta ou se desenha... Ele ri e, naquela sua voz amaneirada, diz: «Nem sequer sei pegar num lápis...». «Oh, então», digo eu, e ele volta a rir. «Venha», diz ele, «venha à mesma... que quanto ao seu nu pode ter a certeza de que alguma coisa se fará...». E ao mesmo tempo faz-me, como dizer, faz-me olhos ternos...-Carla interrompeu aqui o seu relato, fixou, com cómica gravidade, a mãe, estupefacta, e inesperadamente, ridiculamente, piscou-lhe o olho.-Assim mesmo... e pergunta-me se vou... Eu respondo-lhe com um não, seco... e ele... ele, como admirado, exclama: «Não quer decerto dizer-me que seria a primeira vez...». Compreendeste? Supunha que eu estivesse habituada a... a ir aos estúdios. Naturalmente nem sequer lhe respondi e tudo acabou assim...

Seguiu-se um silêncio impressionante; a mãe, muito digna e um pouco ridícula, como se Pippo em pessoa lhe houvesse faltado ao respeito nesse mesmo momento, injuriando-a ou, pior, empurrando-a de maneira a descompor uma das suas atitudes cheias de dignidade, encarnava a indignação e o assombro. Michele, sonhador, fitava Carla: aquela história surpreendera-o em cheio na sua maior indiferença; desejaria convencer-se da baixeza de Pippo, da ofensa feita a sua irmã, mas não o conseguia; tudo aquilo fugia ao seu exame, ficava estranho e longe dos seus olhos... era como se houvesse querido enfurecer-se com a sorte de Lucrécia, jovem, bela e boa, mas tão antiga, violada pelo dissoluto Tarquínio. «É uma enormidade», pensava, mas verificava ao mesmo tempo não saber em que consistia precisamente a enormidade.

Finalmente a mãe pareceu recuperar o uso da palavra; torceu a boca, com desgosto, e deixou cair esta injúria veemente:

-Patife!

-O facto é, mamã-acrescentou Carla, sem erguer a cabeça-que muita gente diz mal de mim.

A sua calma era grande: bem depressa, pensava, as más línguas triunfariam; fugiria com Leo ou far-se-ia surpreender sem remédio; acontecia sempre assim; e entre estas ideias de resignação e de escândalo parecia apagada toda a fé numa nova vida.

-Se não fosse assim, mamã-acrescentou, tristemente -porque falaria o Pippo daquela maneira?

Michele não despregava os olhos da irmã; parecia-lhe melancólica e inofensiva... mas não era capaz de passar além desta comovida constatação. «Vejamos», pensava, compreendendo, entretanto, todo o ridículo desta pergunta: «Vejamos... não deveria enfurecer-me?». Sentia-se frio e especulador; examinava Carla; parecia-lhe sedutora e afigurava-se-lhe compreender melhor a sensualidade de Pippo do que a indignação da rapariga. «É uma linda rapariga», pensou, com uma baixeza superficial, «e o Pippo não tem nada mau gosto... escolheu bem... E além disso, quem sabe, podia muito bem ser que não fosse realmente a primeira vez e que Pippo tivesse razão...». Imaginava, com uma fantasia a frio, de diletante, a irmã nos braços de um homem qualquer: assim... despida, despenteada, de pernas cruzadas, encolhida de encontro ao peito dele, seminua; ou então sentada à vontade nos seus joelhos... Muito possível... ela também era mulher... também devia ter as suas sensualidades... as suas simpatias... muitíssimo desenvolvida de corpo, porque não de temperamento?... Recordava-se de a ter visto um dia, por engano, ao sair do banho: ficara-lhe a impressão de um longo dorso branco, curvado sob a grande cabeça indolente e molhada, e de algo semelhante a uma glande pesada e pálida, um seio, que a posição inclinada fazia pender para a frente, sob a axila morena. «Susana no banho», pensara, discretamente, retirando-se. E agora Pippo... eh, eh, aquele Pippo... não tinha assim tão mau gosto, pois não.

Estava calado durante estas ironias, mas eis que, de repente, se apercebeu de que devia falar; compreendeu que devia, de um certo modo imperiosamente exigido por aquelas tristes circunstâncias, exprimir uma ira adequada e sincera; de outro

modo, recairia, como sempre, naquela indiferença mortal que o impedia de agir e de viver como todos os homens; já havia brincado bastante com as suas fantasias; precisava agora de tentar ser, de uma vez por todas, trágico e sincero. «Agora ou nunca», pensou.

Olhou a mãe.-Um autêntico patife-repetiu, e sentiu-se gelar à sua própria voz que era fria e banal como se tivesse querido dizer «bom dia» ou «que horas são». Então bateu com o punho na mesa.-Mas eu-gritou, com uma veemência estridente e exterior-também sou capaz de ir a casa dele e corrê-lo à bofetada-. Levantou os olhos e viu-se no espelho de Veneza pendurado na parede em frente: era sua ou de algum outro aquela imagem de olhos hipócritas que o olhava de cima para baixo como a dizer-lhe: «Não... não és capaz»?

A mãe pareceu não dar por aquele desabafo de indignação fraternal.

-São todos o que são-repetia-enriquecidos, enriquecidos e nada mais.

Mas Carla ouvira-o e voltou-se.

-Agradeço-te muito-disse-mas já o pus no seu lugar... é melhor que me deixes agir a mim.

Esta pacatez aumentou a necessidade de ira de Michele. -Deixar-te agir a ti?!-exclamou, e observou com alívio ser já sensivelmente mais sincero.-Não crês que duas palavras minhas o fariam compreender melhor que se enganou grosseiramente ?

-Peço-te-repetiu Carla, observando-o atentamente-deixa-me fazer como entender-. Era a primeira vez que lhe acontecia ver Michele sob o aspecto insólito do irmão vingador, e pareceu-lhe desajeitado e exagerado como um mau actor de província. «E se ele soubesse que me entreguei ao Leo», pensou, perturbada, «que faria?». Fitou-o: Michele estava agora calado, inclinando sobre o prato a cabeça brilhante e penteada; estava calado, parecia que pensava e fazia bolinhas de pão com os dedos; nada revelava os seus propósitos viojen-tos. «Que faria?», repetiu ela para consigo; uma subtil falta de à-vontade avisava-a de que havia, sem saber porquê, algo de falso naquela atitude, naquele murro na mesa, naquelas palavras do irmão... e quando Michele ergueu os olhos pareceu-lhe surpreender neles um triste e vergonhoso segredo; estremeceu; o fantasma branco voltava a agarrar o seu coração palpitante; tudo voltava a ficar branco; na névoa, a mãe falava.

O almoço acabara.-E hoje-perguntou Carla, acendendo

um cigarro-que vais fazer mamã?-. Esperou a resposta com certa ansiedade. «Contanto que», pensou, «não me proponha que a acompanhe». Queria passar a tarde em casa do amante, compreendia agora que não poderia deixar de o fazer; o hábito substituíra-se ao desejo de uma nova vida e sentia uma impaciência ávida e dolorosa por voltar àquele quarto, por voltar a encontrar-se com aquele homem.

-Eu?-fez a mãe, num tom desprendido e distante.-Não sei... creio que irei às compras-. calou-se por um instante, baixando os olhos para a ponta acesa do cigarro.

-E tu?-perguntou; o seu coração gasto e iludido palpitava: aquele dia seria seu; o amante voltaria para ela e para o seu velho mas seguro amor, como de outras vezes (e esta experiência enchia-a de esperança e consolava-a muito) depois de erros efémeros.

-Eu?-respondeu Carla, no mesmo tom desprendido que a mãe usara.-Estou convidada para o chá em casa da Cla-retta-. Ambas se calaram, baixando os olhos, como para esconderem os seus olhares modestamente triunfantes e satisfeitos ; a mesma expressão de alívio e de serenidade espalhou-se nos dois rostos, experimentado o da mãe, pueril o da filha; ambas tinham no coração a imagem do amante comum e paxá ele se inclinava gentilmente, naquele momento, a alma de cada uma delas, como para lhe dizer com uma alegria contida e deleitada: «Pronto... vês... está arranjado o enredo... ninguém, querido... ninguém nos incomodará».

Levantaram-se e saíram da casa de jantar; a mãe entrou à frente na sala, estremecendo e esfregando as mãos geladas, e, de súbito, com voz surpresa, exclamou:-Oh, mas está aqui o sr. Merumeci-. Foi ao encontro dele e apertou-lhe a mão.

-Há muito tempo que está à nossa espera?-perguntou. Entrou Carla por sua vez, e também ela, com a voz e o rosto agradavelmente surpreendidos, exclamou:-Oh, está cá o Leo-. Por fim veio Michele; saudou com um gesto, parou a acender um cigarro e voltou a sair.

-Então-perguntou a mãe, sentando-se e esfregando as mãos com maior vigor, como para exprimir o seu contentamento-então... que bons ventos o trouxeram por cá?

-Não precisamente o vento mas o meu automóvel-respondeu Leo, com uma chalaça batida, e as duas mulheres tiveram ambas um riso cordial e nervoso de pessoas fartas que ouvem de boa vontade depois do almoço, na intimidade de uma sala cómoda e fria, gracinhas idiotas.

-Recebi-acrescentou ele, mais a sério, fitando a mãe -a sua carta de negócios e queria exactamente telefonar-lhe... mas soube daquele aborrecimento...

-E veio cá-concluiu a mãe; voltou-se para Carla.- ouve-disse-trata de avisar para fazerem quatro cafés em vez de três.

Carla levantou-se e saiu, de olhos baixos.

-E agora-disse a mãe, com um sorriso adulador, assumindo uma atitude mais confidencial-diz-me... pensaste na resposta que deves dar-me?

-Pensei-respondeu Leo, considerando com atenção a ponta acesa do seu charuto.

-O que há?-perguntou a mãe, insinuante e inquieta, levantando-se subitamente.-O que há, Lulú?-. Com uma cara ansiosa, terna e excitada, como quem quer arrancar alguma confidência e ao mesmo tempo fazer um gesto íntimo, aproximou-se dele, por detrás, pôs-lhe os braços em redor do pescoço e inclinou a cabeça até aflorar com a sua a face do amante.-O que há?-repetiu.

Enfastiado, Leo inclinou a cabeça de lado...-Não há nada-respondeu, continuando a fitar o charuto; a mulher pegou-lhe na mão e passou-a pela cara, esfregando nela, como um cão fiel, o nariz frio e a boca mole.-Amas-me?-perguntou, em voz baixa, antes que ele acabasse a sua frase, e, mudando subitamente de tom, tornando-se bruscamente desenvolta como se houvesse pressentido o perigo deste sentimentalismo:

-Irei hoje-acrescentou-mas hás-de ser ajuizado, muito ajuizado-. Repetia inconscientemente as mesmas palavras ditas da primeira vez que Leo, com um pretexto qualquer, a convidara para a sua casa. «Muito ajuizado», dissera também então, com o seu brilhante sorriso, ao entrar no vestíbulo do apartamento do amante; haviam passado quinze anos e aquele juízo hipocritamente invocado chegara por fim; muito ajuizado, Leo tentava desenvencilhar-se do seu abraço pecaminoso.

-Portar-nos-emos bem-acrescentou, beijando com atenção aquela mão inerte-seremos uns meninos bem comportados-. Mordeu conscienciosamente o polegar e passou a língua pelos lábios.-Meninos bem comportados-repetiu, com uma voz e uma expressão gulosas, antegozando o rito complacente que havia naquela frase condicional; dizía-a com um frémito de alegria e acrescentava-lhe o gesto de um dedo admoestador e uma expressão que tentava ser infantil, de cada vez que, após haver-se estendido, muito branca, gorda, sobre a coberta amarela da cama, chamava o amante para o seu lado; e ele respondia alegremente com o mesmo gesto frenético e admoes-tador: «seremos uns meninos bem comportados», após o que começava o seu amor complicado e cheio de luxúria.

Mas Leo abanou a cabeça.-Tenho que te dizer, Maria-grazia-murmurou, sem embaraço-que não nos podemos ver hoje... tenho uma entrevista de negócio, urgentíssima... é impossível vermo-nos-. Baixou a cabeça fitando o charuto; uma expressão desiludida, estúpida e dolorosa contorceu-se como uma mão sobre o rosto da mulher; manteve-se, porém, na sua atitude de ternura.

-Isso quer dizer-insistiu, hesitante-que não te posso ver hoje.

-Pois é.

O abraço desfez-se, as mãos subiram-lhe pelo peito, parando nos ombros; o rosto da mãe tornou-se duro.

-Eu não-sibilou, dando uma intensidade extraordinária à sua voz baixa-mas as cortezãs como a Lisa sim... para elas-acrescentou-tudo é possível... atiram-se por ares e ventos até os negócios urgentíssimos... fazemo-nos bonitos... vibramos... fervemos... Ferve, Lulú, ferve também-. Aproximou-se dele e, com as pontas dos dedos, deu-lhe, de dentes cerrados, um beliscão no braço.

Leo ergueu os ombros com furor, esfregou a parte ofendida, mas não falou; contemplava a ponta oscilante do seu pé, ora com um olho ora com o outro, e parecia muito absorvido nessa ocupação.

-Mas sabes o que te digo?-disse ela, fixando-o.-Que tens razão .. não uma mas mil vezes razão... Sou eu a estúpida, a idiota, eu, que não sei viver... Mas tu-acrescentou, altivamen .e, endireitando o busto e endurecendo o rosto, com um gesto ameaçador-deixa o caso por minha conta... tanta vez vai o cântaro à fonte... amanhã verás-. Afastou-se um pouco para observar o efeito da ameaça: nenhum; e, segurando a bandeja do café, Carla entrou.

-O Michele saiu - disse. - O Leo beberá o café do Michele.-Encheu as chávenas, distribuiu-as e sentou-se; beberam em silêncio.

-Uma notícia que lhe dará prazer-disse a mãe, pousando a chávena vazia-encontrei esta manhã a sua Lisa...

-Minha?-interrompeu Leo, rindo.-Minha? Porquê? Desde quando?

-A bom entendedor meia palavra basta-disse a mãe, com uma expressão astuciosa e estúpida.-E encarregou-me-acrescentou, sem se aperceber de mentir-de lhe transmitir os seus cumprimentos mais caros, mais afectuosos, mais cordiais.

-Agradeço-lhe muito-respondeu Leo, sem sorrir-mas não compreendo, minha cara senhora, o que significa tudo isso.

-Não tenha receio... o senhor compreende-me muitíssimo bem-disse a mãe, cada vez mais astuciosa e como a excluir Carla de tal compreensão-bem até demais... e recomendo--lhe que não perca alguma das suas entrevistas... seria uma verdadeira pena-. A voz, os lábios tremiam-lhe; Leo ergueu os ombros, sem responder.

-De que se trata?-perguntou Carla, inclinando-se rigidamente para a frente, com todo o busto; uma perturbação irracional apressava as palpitações do seu coração, faltava-lhe a respiração, teria querido levantar-se, deixar aquelas pessoas, sair daquela sala, daquela atmosfera.

-Trata-se...-explicou a mãe, esforçando-se por parecer desenvolta e brincando nervosamente com o seu colar de pérolas falsas-de negócios... O nosso Leo-acrescentou, em voz mais alta, olhando para o ar e acelerando a brincadeira com o colar-é um homem de negócios... ocupadíssimo... um negociante como há poucos... toda a gente o sabe... oh, oh!... -. Riu, com todo o corpo a tremer, e, bruscamente, deu um puxão ao colar; ouviu-se uma granizada seca, no chão: as primeiras pérolas caíam; rigidamente sentada, de busto erecto e mãos sobre os braços da poltrona, a mãe deixava que o colar se soltasse e que as pérolas lhe rolassem pelo peito, caindo no intervalo dos seios; estava muito digna, teatral, e, apesar do seu ridículo inato, trágica. Depois, tão inesperadamente como partira o fio, chorou; duas lágrimas impuras correram dos seus olhos pintados pelo rosto cheio de pó-de-arroz, deixando nele os seus traços húmidos; seguiram-se-lhe outras duas... e as pérolas, tal como as lágrimas, continuavam a cair-lhe do pescoço para o seio trémulo; toda a sua atitude era rígida, com grandes ares, como a de uma estátua, e as coisas que caíam, lágrimas e pérolas, confundiam-se sobre a igual rigidez do rosto e do corpo, ambos contraídos, trémulos e dolorosos.

«Para o diabo as mulheres neurasténicas», pensara Leo ao assistir à quebra do colar.  Agora, que a amante chorava, incomodava-o um embaraço odioso. «Para o diabo as lágrimas», pensava, e tentava fixar, como anteriormente, a ponta bam-boleante do seu pé; entretanto Carla levantara-se.

-O que foi?-perguntava.-Que aconteceu?-. A sua voz era fria e tinha uma expressão de aborrecimento; Leo teve a impressão de a rapariga também estar maçada com todas aquelas lamúrias. «Para o diabo as lágrimas», repetiu para si. A mãe, entretanto, afastava a filha com um gesto da mão e da cabeça, como se não quisesse desmanchar a sua atitude rígida e teatral de dor.

Nesse momento entrou Michele; estava pronto para sair: chapéu, luvas, sobretudo.-Está uma mulher à tua procura -disse à mãe.-Traz uma caixa... creio que é a modista... -. Mas parou de golpe ao ver aquele pranto.

-O que é?-perguntou.

-Nada... nada-respondeu a mãe; levantou-se à pressa, deixando cair as pérolas no chão, e assoou-se.-Venho já -acrescentou, e, corada, um pouco curvada, como quem quer esconder alguma coisa, saiu.

-Que aconteceu?-insistiu Michele, fitando Leo com curiosidade; este encolheu os ombros.

-Nada-respondeu-partiu o colar...  e depois chorou.

Fez-se silêncio; Carla estava, muda, de pé junto à poltrona vazia da mãe; Leo baixava os olhos; imóvel no meio da sala, Michele fixava o homem com um olhar irresoluto e embaraçado; não experimentava nenhuma piedade para com a mãe nem ódio contra Leo; sentia-se supérfluo e inútil; experimentou por um instante um violento desejo de reagir, de interrogar, de altercar, de protestar... depois, não sem um agudo sentimento de humilhação e de tédio, pensou que, afinal de contas, nada daquilo lhe dizia respeito.

-Façam o que quiserem-disse, bruscamente.-Eu, vou-me embora-. E saiu.

-Anda cá, Carla-ordenou Leo, ainda antes de a porta se ter fechado, com uma desenvoltura excitada e grosseira -aqui... ao pé de mim.

-Dormiste bem?-perguntou a rapariga, aproximando-se.

-Muito bem.

Estendeu os braços, rodeou-lhe a cintura e atraiu-a.- Depois vais comigo-acrescentou, numa voz profunda-dizes uma coisa qualquer... uma amiga, uma visita... e vais comigo-. Cingiu-a mais de perto, juntando as mãos em baixo, onde as coxas grossas e musculosas se ligavam às nádegas esféricas numa linha nítida, reconhecível sob o vestido.

-E de manhã-acrescentou, para dizer alguma coisa- correu tudo bem?

-Tudo bem-respondeu ela, fitando, sem saber se com repugnância ou com receio, a cabeça do homem sentado, que lhe falava sem erguer a testa baixa, sem despregar os olhos do seu regaço, como se o diálogo se desenvolvesse entre ele e o seu ventre e não lhe interessasse senão aquela parte do corpo menos nobre-ninguém deu por nada.

-Era cedo...-disse ele, sem mudar de posição, como falando para consigo; quebrou, finalmente, a sua imobilidade, levantou os olhos e fez sentar a rapariga nos joelhos.

-Já não tens medo-perguntou, fitando-a com uma expressão estúpida e obtusa-de que venha alguém?

Carla encolheu os ombros.-Agora-disse, numa voz clara que lhe encheu a boca de saliva-que me importa?

-Mas vejamos-insistiu Leo, divertido.-Se agora... neste momento, a tua mãe entrasse, que farias?

-Dizia toda a verdade.

-E depois?

-E depois-disse ela, numa voz pouco firme, com a sensação angustiosa de mentir quanto a uma verdade mais profunda, brincando com o nó da gravata do homem-iria contigo... iria viver contigo...

Lisonjeado por aquela seriedade com cujas razões se equivocava, Leo sorriu.-És uma querida menina-proferiu, abraçando-a.

Beijaram-se. Separaram-se.

-Podemos estar juntos das três às sete-recomeçou o homem; esta previsão não o entusiasmava; não obstante a sua própria excitação, pressentia obscuramente, apertando aquele grande corpo jovem, que as suas próprias forças seriam cada vez mais insuficientes para satisfazer a sua avidez furibunda. Era um sentimento desagradável e preciso de incapacidade -como dizer?-de impotência; era como se, para o saciarem, lhe houvessem oferecido barris trasbordantes de vinho, mesas imensas vergadas ao peso de todas as mais saborosas iguarias e apartamentos apinhados das mais belas mulheres do mundo, estendidas e amontoadas umas sobre as outras como outros tantos animais. «Das três às sete», pensou, com ironia, «que poderei eu fazer mais?». Mirou-se, por cima do ombro de Carla, num espelho: fronte calva, rosto pesado e corado, faces mais intumescidas que gordas em que a barba não escanhoada punha um reflexo azul e metálico: idade madura. «Estou-me ralando», concluiu, serenamente, com um vivo sentido da realidade, «quando não tiver mais, digo-lhe». Durante aqueles pensamentos passava, distraído, a mão pelo pescoço de Carla.- Como estás quente!-exclamou.

Ela estava calada, fitando atentamente o rosto corado e duro do amante.

-Porque chorou a mamã?-perguntou, por fim.

-Porque lhe disse que não a podia receber hoje.

-Também a mim-perguntou a rapariga, com gentileza -me farás um dia a mesma coisa, Leo?

-Porquê?-. O que mais interessava e divertia o homem nesse momento era o contraste entre as carícias que, não sem prazer, a julgar pelos frémitos do corpo dócil, Carla lhe deixava fazer, e a indiferença, ou até, melhor ainda, a triste dignidade do rosto e das falas; «como se o seu corpo não lhe dissesse respeito», pensou ele, alegre.

Passaram alguns instantes de silêncio; depois, Leo ergueu os olhos para os da rapariga. - Em que pensas? - perguntou.

-No dia-respondeu ela, não sem uma certa falsidade consciente-em que também me dirás a mim que não podes receber-me.

-Tretas-respondeu Leo, tornando a baixar a cabeça e voltando às suas carícias estudiosas.-Que tens tu a ver com a tua mãe?

-Agora-continuou Carla-falas assim... Mas depois?-. Ela não sabia porque falava assim; na verdade, não lhe importava tanto adivinhar se o amante a abandonaria ou não, como ter a certeza de que o próprio destino não seria igual ao da mãe; aquela pergunta significava: «poderei eu ter uma vida diferente da de minha mãe?».

O homem não respondeu; amachucava a saia com atenção.

-O que é isto aqui?-perguntou, carregando com um dedo sobre a perna.

-É a liga-. Ela inclinou a cabeça até bater com a testa na testa dura do amante.-E... amas-me?-perguntou.

Leo olhou-a, surpreendido.-Quero dizer-acrescentou ela, apressadamente-que à mamã nunca a amaste mas a mim sim, não é verdade ?

Um relâmpago iluminou o espírito de Leo. «Tem ciúmes da Mariagrazia... já compreendi... tem ciúmes... ciúmes da mãe». Vaidoso com a sua própria perspicácia, lisonjeado por uma tal rivalidade, sorriu.-Mas, não tenhas receio... nem penses nisso... com a tua mãe está acabado, percebes?... A-ca-ba-do!

-Não é isso...-. E já Carla se esforçava por explicar o seu próprio sentimento obscuro, quando a porta da sala se abriu.

-Larga-me-murmurou ela, desenvencilhando-se-vem aí a mamã-. Libertou-se com um só movimento e escorregou para o chão.

Entrou a mãe, azafamada, serenada, com um embrulho na mão.

-Que estás a fazer ?-perguntou.

-Estou a apanhar as pérolas-respondeu a rapariga; de gatas no tapete, de cabeça baixa e cabelos pendentes, juntava com alacridade as pérolas caídas; Leo, imóvel, considerava com divertimento as nádegas altas, movediças, arredondando-se sobre as costas cavadas e a cabeça quase ausente.

-Não era a modista-disse a mãe-era uma mulher que vende tecidos e almofadas... comprei-lhe uma.

-Uma quê?-perguntou Carla, esforçando-se por apanhar uma pérola que rebolara para debaixo do canapé.

-Uma almofada-explicou a mãe.-Olha-acrescentou, indicando-ali está uma... ali... naquele canto-. Ostentava não se ocupar de Leo e empoara evidentemente de novo a cara.

-Já a vi-disse Carla; apanhava, curvada, as pérolas; mas donde lhe vinha aquela necessidade de se baixar, de se arrastar, de se esconder, com a mão cheia de pérolas e os olhos dilatados, fixos e tristes? Não sabia; levantou-se, um pouco corada, e deitou as pérolas num cinzeiro.

-Vamos a ver-disse.

A mãe abriu o embrulho e mostrou a sua aquisição: era um quadrado de seda azul no qual, em cores brilhantes, vermelho, verde, oiro, fora bordado o habitual dragão chinês de boca chamejante e cauda hirta.

-Bonito-disse Leo.

-Que te parece?-perguntou a mãe à filha, fingindo ignorar a apreciação do amante.

-Parece-me pelo menos inútil-disse Carla, um pouco rudemente.-Temos a casa cheia de coisas destas... não sei onde é que a poderás pôr.

-No átrio-propôs a mãe, com humildade.

-De resto-mitigou Garla, com uma compaixão apressada -não é feia de todo.

-Achas?-perguntou a outra, com um sorriso débil e condescendente.

Carla deu alguns passos para a porta.-Vou-me vestir- disse.-Espera por mim, Leo... saímos juntos.

-É cedo-gritou a mãe, vendo o relógio e correndo atrás dela.

-Não importa-respondeu a rapariga, já ao fundo da sala.

-Mas não-respondeu a mãe-mas não...-e ambas, falando, fazendo barulho, agitando os braços como duas grandes aves assustadas, saíram com um grande ruído de portas,

Leo, só, atirou para um cinzeiro o charuto apagado, estendeu os braços e as pernas, bocejou e, por fim, tirou do bolso uma lima e começou a limpar as unhas; foi nesta ocupação que Carla o surpreendeu dez minutos depois.

-Então, Leo-disse, calçando as luvas-vamos?

-AU right-respondeu Leo; levantou-se e seguiu a rapariga; no vestíbulo, abandonou-se às suas extravagâncias gravemente apalhaçadas.

-Posso-perguntou, inclinando-se-ter o prazer e a honra da sua companhia, minha senhora?

-Está concedido-disse Carla, corando um pouco e sorrindo sem querer. Saíram rindo, empurrando-se um ao outro, saltando com agilidade e ligeireza faunescas os degraus de mármore despolidos pelas chuvas recentes. No meio do largo fronteiro à casa, o automóvel de Leo, baixo sobre as grandes rodas, estava estendido ao sol.

Com muitos risos e muitas brincadeiras, aproximaram-se do carro brilhante e subiram para ele com poucos movimentos, primeiro Leo e a seguir Carla; sentaram-se.

-Não te esqueceste de nada?-perguntou o homem, premindo atentamente o botão da ignição.

-De nada-respondeu a rapariga. As suas tristezas e os seus temores haviam-se dissipado no ar frio; sentada ao lado de Leo, gozava o céu azul, a natureza lavada, o carro reluzente.

O automóvel partiu e passou rapidamente por entre os troncos nus das árvores da alameda; o sol, os ramos pendentes, o vento, atingiram por vários modos as duas cabeças imóveis; havia nos seus rostos a mesma admiração infantil, a mesma juventude colorida e brilhante; estranhos à corrida, parecia que se miravam no vidro do pára-brisas, onde, sobre o variar confuso do parque e do céu, se reflectiam alguns traços das suas figuras: os olhos, as bocas, as faces pueris de Carla, o chapéu de feltro de Leo, destacados e suspensos no vazio como uma miragem de compreensão impossível.

 

Michele saíra para visitar Lisa; a ideia deste encontro estivera escondida durante toda a manhã atrás de todos os seus pensamentos, criando o mesmo mal--estar que num grupo numeroso provoca um facto de todos conhecido e de que ninguém ousa falar em primeiro lugar; durante toda a manhã, aquela recordação, o beija-mão do dia anterior, na escuridão, não deixara os planos inferiores da sua consciência, formando em redor dos seus pensamentos uma atmosfera provisória e desanimadora: adivinhava obscuramente que a questão essencial não era a de saber a que horas se dedicaria a esta ou àquela ocupação, mas a de saber se devia voltar a casa de Lisa ou não, que o importante não era ler, escrever, falar, viver de uma maneira qualquer, mas amar Lisa; saíra, finalmente, depois do almoço, a pretexto de um passeio.

A verdadeira razão da sua saída apareceu-lhe imediatamente mal chegou à rua e volveu os olhos para o céu que, limpo poucos minutos antes, estava agora a encher-se de uma quantidade de pequeninas nuvens brancas. «Bem entendido», pensou, com calma, fechando atrás de si a portinha do parque, «que não saio para passear ou para tomar um café... não... preciso de me convencer, saio para ir a casa de Lisa». Pareceu--lhe ser muito forte indo assim ao encontro das próprias vilezas inevitáveis e, de certa maneira, por aceitar corajosamente condições que nenhuma vontade poderia transformar; haviam sido inúteis aquela falsidade teimosa, aquele orgulho pueril que só por um instante lhe tinham feito crer numa nova ligação de Lisa com o antigo amante, e depois o haviam sobrecarregado, obrigando-o a continuar numa direcção errada. Compreendia agora que a vénia irónica da porta, feita a Lisa, em desalinho e ofegante, lhe não fora sugerida por qualquer sentimento verdadeiro; teria podido, com igual facilidade, entrar, sentar-se, conversar, ou então aceitar com serenidade o facto consumado, ou ainda levar Lisa consigo, arrancando-a aos braços de Leo; todavia, com um jeito de comediante obrigado a improvisar o seu papel, escolhera aquela atitude irónica como a mais apropriada, ou melhor, a mais natural e mais tradicional em tais circunstâncias: algumas palavras, uma vénia e ala! Mas depois, na rua, nenhum ciúme, nenhuma dor, apenas um desgosto intolerável por aquela sua indiferença que lhe permitia mudar todos os dias, como os outros de fato, as próprias ideias e as próprias atitudes.

A importância da sua visita era para ele evidente e extrema: era a última prova da sua sinceridade, após cujo malogro, ou se manteria naquelas condições provisórias de dúvida e de busca, ou seguiria pelo caminho oposto, o de todos, onde as acções não são sustentadas por qualquer fé ou sinceridade, todas se equivalem entre si e se acumulam em belas estratificações sobre o espírito esquecido até o sufocarem; mas se a prova tivesse êxito, tudo mudaria: tornaria a encontrar a sua realidade concreta como um artista reencontra a inspiração dos tempos mais felizes; começaria uma nova vida, a verdadeira, a única vida possível.

Voltou para uma rua maior e encontrou-se junto ao sinal diante do qual parava o eléctrico que levava ao bairro de Lisa. Esperá-lo-ia ou não? Olhou para o relógio: era cedo, era melhor ir a pé. Retomou o caminho com os seus pensamentos; portanto, recapitulando, as hipóteses eram duas: ou tinha êxito nos seus fins de sinceridade, ou adaptava-se a viver como todos os outros.

A primeira hipótese era clara; tratava-se de se isolar com poucas ideias', com poucos sentimentos realmente sentidos, com poucas pessoas realmente amadas, se as houvesse, e recomeçar nestas bases exíguas mas sólidas uma vida fiel aos seus princípios de sinceridade. A segunda, ei-la: nada mudaria senão no seu espírito derrotado; acomodaria o melhor que pudesse a situação, como uma feia casa em ruínas que se repara aqui e ali, não sendo possível, por falta de dinheiro, construir uma nova; deixaria que a família se arruinasse ou se fizesse manter por Leo, e resolver-se-ia por sua vez (embora muito o humilhasse contentar-se com tal consolação) a fazer as suas pequenas porcarias com Lisa; porcarias, pequenas baixezas, pequenas falsidades, quem não as depõe em todos os cantos da existência como nos de uma grande casa vazia ? Adeus vida clara, vida límpida: tornar-se-ia amante de Lisa.

E a vila? E a hipoteca? Quanto a isso, faria um acordo com Leo: «Tu dás-me o dinheiro que servirá para eu e a minha família vivermos, e eu, em troca, dou-te...». Mas na verdade, que restava que Leo não houvesse já apanhado?... Vejamos, um momento... restava Lisa... com... com quem Leo tentara, em vão, reatar os antigos laços... Lisa, pois claro... portanto: «Tu dás-me o dinheiro... e eu, em troca, convenço a Lisa...».

Pareceu-lhe ver como correria esta última operação.

Uma noite, após muitas hesitações, falaria no caso à mulher; ela protestaria. «Fá-lo por amor de mim», suplicaria ele então, «se gostas de mim tens que o fazer». Por fim ela resignar-se-ia e talvez, quem sabe, não muito descontente no fundo por voltar às amizades antigas. «Pois seja», responderia, não sem lhe lançar uma olhadela de desprezo, «manda-o vir... mas não creias que o faço pela tua família... só por ti». Ele abraçá-la-ia, agradecer-lhe-ia calorosamente e dirigir-se-ia para a antecâmara, para chamar Leo. «Anda», dir-lhe-ia, «Lisa está à tua espera». E levárlo-ia pela mão, atirá-lo-ia, para os braços da mulher. Onde lhe daria Leo o dinheiro? Em casa de Lisa, sob os olhos da mulher, ou noutro lugar ? Noutro lugar. Depois, discretamente, ir-se-ia embora, fechando a porta atrás de si, desejando-lhes boa-noite; iria esperar por sua vez na antecâmara; que longa, interminável noite passaria então, sentado no vestíbulo, escutando os ruídos do quarto ao lado, onde os dois estavam na cama, dormindo, acordando de vez em quando em sobressalto e voltando sempre a encontrar diante de si o sobretudo pendurado no bengaleiro, revelador da presença do homem junto da sua amante; que noite sem fim! E pela madrugada Leo ir-se-ia embora, sem lhe agradecer, sem o olhar de frente, permitindo-lhe apenas ajudá-lo a vestir o sobretudo; ceder-lhe-ia o lugar numa cama desfeita e emporcalhada, junto de uma Lisa seminua, mergulhada no sono e na escuridão pelo prazer fatigante, como por uma pesada embriaguez. E não seria a primeira nem a última vez; Leo voltaria com frequência, de cada vez que ele tivesse necessidade de dinheiro... «Até esta», concluiu, distraído, «seria uma solução». Mas sentia-se mortalmente cansado, como se todas aquelas fantasias fossem factos reais e acontecidos. E se Leo não quisesse saber de Lisa ou, vice-versa, Lisa de Leo? Então... então... Não restava senão Carla para salvar a situação... Perfeitamente certo... Carla também era um recurso... já que era necessário viver daquela maneira, melhor seria ir até ao fim. Restava, portanto, Carla... para casar, pois, para dar a Leo por mulher... Seria um casamento de conveniência, de dinheiro, como se vêem tantos, e que são depois os que acertam melhor; o amor viria depois... e se não viesse não haveria grande mal... Carla podia consolar-se de tantas maneiras... não havia só Leo no mundo... perfeitamente... Mas... mas... e se Leo não quisesse dar o dinheiro senão com a condição de fazer dela sua amante ?

«Também é capaz disso», pensou Michele, «capacíssimo». Parou por um instante; parecia-lhe que a cabeça lhe girava; um cansaço, uma náusea sem esperança, pesavam sobre ele: o coração palpitava-lhe; mas, implacável, retomou o caminho e os seus pensamentos. «Avante, avante...», pensou, e maravilhava-se, obscuramente, da sua capacidade de descobrir sempre novas abjecções; quando chegaria ao fim? «Preciso de chegar até ao fundo». Sorriu pàlidamente... Portanto, se Leo não quisesse casar... esta hipótese era até provável... nesse caso poderia fazer-se outro acordo entre as duas partes contratantes... Leo daria o dinheiro do costume e, em consideração da juventude intacta, da beleza de Carla, ser-lhe-ia exigida uma soma duas, três vezes maior do que a que bastaria para Lisa, de idade madura e corrompida... Para cada mercadoria o seu preço... e ele... em troca, certamente se empenharia, em tal atmosfera, em tal declive até a isso se podia chegar, empenhar-se-ia em facilitar as coisas junto da irmã. Compromisso difícil; Carla devia ter princípios ou talvez, quem sabe, amar alguém; dificílimo... Eram de tomar em consideração duas tácticas: ou dizer tudo, aduzindo vários pretextos, a honra da família, a miséria, e vencer a batalha de um só golpe, por via da própria violência e subitaneidade da pressão, ou preparar lentamente a rapariga, fazendo-a compreender pouco a pouco, obcecando-a, uma palavra hoje, outra amanhã, fazendo-a adivinhar com alusões repetidas e insistentes o que se exigia dela... Destas duas maneiras qual a melhor?... A segunda, indubitavelmente... muito mais fácil deixá-la perceber certas coisas do que dizer-lhas... e afinal, numa atmosfera de mal-estar, habilmente preparada, à força de menções e de alusões, à força de seduções, Carla, só e fraca, acabaria por ceder... «Sucede a tantas raparigas», pensou, «porque não a ela?». Com uma lucidez alucinada, caminhando passo a passo e olhando para o chão, pareceu-lhe  até poder imaginar como se verificaria aquela sedução... um dia cinzento, como hoje, um dia morto, tépido, sem sol e sem movimento... como hoje, Leo apareceria, convidá-los-ia, a ele e à irmã, para uma volta de automóvel... convite feito, convite aceite, e depois da volta onde iriam tomar o chá?... A casa de Leo, claro, a casa de Leo, onde Carla iria de boa vontade, tranquilizada pela presença do irmão... sairiam os três do carro diante daquela porta, subiriam juntos a escada, lentamente, à frente a rapariga e a seguir os dois homens... No limiar da porta, enquanto Carla tiraria o chapéu em frente do espelho do vestíbulo, os dois trocariam um aperto de mão como selo do entendimento... e após terem visitado e admirado a casa, ei-los todos três, àquela luz branda da tarde, na pequena sala de Leo, todos três com os seus pensamentos diferentes, com os seus rostos imóveis. Depois Carla serviria o chá, o último, e os dois homens sentados receberiam das suas mãos a bebida, os biscoitos farinhentos, o açúcar, o leite; da sua boca amável um sorriso sem suspeita, dos seus olhos um olhar límpido... Todos três sentados ao pé da janela, porque o céu se tornaria um pouco fusco e a sombra começaria a invadir o fundo da sala, todos três beberiam e comeriam juntos... e também falariam, no silêncio da tarde e da casa, os dois homens fitando-se nos olhos, a rapariga rindo, ignorante de tudo, brincando em voz alta... E depois do chá, naquele momento de silêncio e de saciedade devaneadora que se segue a todos os apetites satisfeitos, ele olharia para Leo e Leo devolver-lhe-ia aquele olhar... depois, num rápido movimento, os olhos do homem pousariam na cabeça dócil e um pouco inclinada de Carla e na porta... Ele compreenderia e levantar-se-ia lentamente. «Vou buscar cigarros», dizia, e, com um passo estranhamente firme, de cabeça alta, sairia, deixando os dois, a irmã e o homem, figuras negras e imóveis, diante da janela cheia de céu cinzento. Dirigir-se-ia ao vestíbulo, vestiria o sobretudo e partiria, fechando a porta com precaução... As horas dessa tarde passariam, intermináveis, uma após outra, sem Carla, sem Leo, sem ninguém, pelas ruas ou num pequeno café qualquer, num cinema qualquer. E à noite voltaria para a vila, tornaria a encontrar Carla e talvez também Leo à mesa familiar, e sondaria os seus rostos sem adivinhar, por algum olhar, algum sinal, o que acontecera naquela casa, entre aquelas quatro paredes, após a sua partida... Uma fuga pelo apartamento escuro, com um estrondo de cadeiras derrubadas e de portas abertas e fechadas? Uma breve luta na sombra da pequena sala, em frente da janela crepuscular ? Ou antes uma resigna-

ção mortal perante a queda inevitável, pressentida há longo tempo e finalmente aceite?

Nunca o saberia; apesar dessa tarde e de todos os outros dias em que se repetiria o acontecimento frutuoso e culposo, a vida deles, por força do hábito e da conveniência, continuaria como dantes... um mal-entendido, uma falsidade mais, e adiante... Ou talvez um dia estas vergonhas secretas, como vermes num grande corpo em decomposição, se revelassem numa explosão de egoísmo, provocando a ruína final... E eles achar-se-iam nus, uns diante dos outros... Então seria o fim, o verdadeiro fim...

Sentiu-se sufocar; parou e olhou diante de si, sem a ver, a montra de uma loja. Chegara agora realmente ao fundo do seu futuro: nada mais para vender, nem a inocência de Carla, nem o seu próprio amor por Lisa, nem a própria coragem, nada mais para entregar a Leo em troca do seu dinheiro. Depois destas fantasias, que não eram mais arrojadas do que a realidade para a qual a sua existência se precipitava, tinha vontade de gritar e de chorar pela aridez que lhe secava a boca e lhe rasgava a alma; sentia-se cansado e mortalmente incomodado como se na realidade houvesse deixado, poucos minutos antes, Carla em casa de Leo, e agora, lá no apartamento fechado, aquela vergonha se consumasse, com aqueles actos, a luta, a fuga, o abraço, com aquelas cores, com aquelas formas, os braços estendidos, o peito nu, o corpo prostrado sob a mancha escura e curvada de outro corpo, os olhos fechados e violados, que lhe haviam aparecido em relâmpagos no céu febril da sua imaginação. Sentia pesar sobre si tanto desgosto e tanta fadiga que experimentava uma necessidade instintiva de se lavar, uma necessidade lamentosa de água pura, como se o fluxo fresco das abluções pudesse percorrer os meandros da sua alma... regatos murmurantes entre as ervas, cascatas brancas e vivas precipitando-se com um fragor contínuo do alto de um penhasco, torrentes frias, espumantes nos seus leitos de saibro, os próprios riachos que, da face nevada das montanhas, serpenteiam, no momento do desgelo por caminhos escondidos e se juntam no vale; na sua ânsia triste, todas as águas mais frescas lhe pareciam insuficientes.

Retomou o caminho. Compreendia agora que uma frase: «Por sorte não são senão ideias», não bastaria para o purificar; compreendia, pelo seu ânimo perturbado, pela sua boca amarga, ter vivido aquelas fantasias; impossível tornar a ver Carla com olhos fraternos, esquecer tê-la imaginado sob aquelas aparências impudicas que habitualmente se atribuem às mulheres perdidas. Agora era demasiado tarde para regressar às visões mais tranquilas: pensar era viver.

Mas vira, experimentara no que se tornaria se não fosse capaz de vencer a sua própria indiferença: sem fé, sem amor, só; precisava, para se salvar, ou de viver com sinceridade e segundo os esquemas tradicionais aquela sua intolerável situação, ou de sair dela para sempre; precisava de odiar Leo, amar Lisa, sentir desgosto e compaixão pela mãe e afecto por Carla, tudo sentimentos que não conhecia; ou então ir para outro lado buscar a sua gente, os seus lugares, aquele paraíso onde tudo, as atitudes, as palavras, os sentimentos, tivesse uma imediata aderência à realidade que os houvesse originado.

Este paraíso, de solidez e de verdade, parecera-lhe, dois anos antes, entrevê-lo nas lágrimas de uma mulher pública apanhada na rua e levada para um quarto de hotel. Pequena e frívola, tinha um corpo divertido por causa de certa ingénua desproporção entre as saliências deselegantes dos seios e das nádegas e a esbeltez flexuosa do dorso, de tal modo que, nua, parecia que caminhava dobrada para a frente ostentando vaidosamente, como um pavão a cauda, as suas fartas rotun-didades. Outro contraste estava no facto de que oferecia aquelas suas seduções rosadas e gastas envoltas nuns miseráveis véus negros (e punha-os um pouco de viés como um disfarce de carnaval), andrajosa vestimenta de luto improvisada, segundo lhe confiara ao subir a escada do hotel, sem sombra de tristeza, com aquela indiferente simplicidade que se refere a todos os fenómenos naturais, pela morte da sua mãe, ocorrida uma semana antes. Mas aquele acontecimento lutuoso, que a deixara, segundo a sua expressão, só no mundo, não a impedia de procurar todas as noites um companheiro para a sua solidão: era preciso apesar de tudo continuar a viver. Fizera, no quarto, a sua pequena comédia do pudor, alegremente, com uma certa espontaneidade fresca e feliz. O quarto era pequeno e modesto; ela deixara, um pouco por todos os lados, no chão, como um fugitivo que se liberta pedaço a pedaço da sua armadura para correr mais lesto, as partes leves da sua vestimenta, os véus negros, a saia, a combinação, a roupa íntima, a refugiara-se por fim, só com as meias, no canto mais quente e escuro, junto ao fogão; dali saíra com muitos requebros e com movimentos desajeitados do peito e das ancas que levavam a crer que fazia uma reverência a cada passo; dali saíra com mil protestos, cobrindo-se onde podia com as mãos; entrara cautelosamente na cama, com um sorriso misterioso e amável que parecia prometer sabe-se lá que refinadas delícias... Mas depois, a uma tentativa de Michele de a forçar a algumas habilidades puramente profissionais, recusara-se, e, por fim, como ele insistisse, rebentara em lágrimas; não um pranto digno, ou doloroso e trágico, nem uma daquelas explosões histéricas acompanhadas de g/itos e de contorções... não, uma espécie de choro infantil, com grandes lágrimas e soluços veementes que lhe faziam estremecer todo o corpo e, de modo particular, aqueles dois seios ligeiros e moles como dois inocentes viajantes obrigados por um cavalo bizarro a um pular fatigante e contínuo. Ele fitava-a, assombrado, sem compreender aquela rápida passagem da alegriia para a dor... Finalmente, após muitas perguntas, parecera-lhe compreender que, no momento em que lhe pedia que mostrasse todas as suas sapiên-cias profissionais, naquela cabeça tão próxima e no entanto tão afastada da sua, o pensamento da mãe morta fora tão forte e intolerável que provocara aquela ruidosa explosão de pranto. Feitas estas confusas explicações com voz lamentosa, enquanto o rapaz, ainda atónito, curvado sobre ela, a fitava sem falar, assoara-se rapidamente, enxugara as lágrimas com uma ponta do lençol e voltara a ficar serena, alegre e até zelosa, como se quisesse fazer-se perdoar a sua dor importuna. Tudo correra bem e passada uma hora haviam-se separado à porta do hotel, tinha seguido cada um o seu caminho e nunca mais se haviam voltado a ver.

Aquele pranto voltava-lhe agora à memória como um exemplo de vida profundamente entrelaçada com outras e sincera; aquelas lágrimas derramadas sobre o rosto pintado, choradas naquele momento, sobressaíam da plenitude secreta daquela vida como músculos que, a uma ligeira contracção, afloram inesperadamente sob a pele. Aquela alma era um todo, com os seus vícios e as suas virtudes, e participava da qualidade de todas as coisas verdadeiras e sólidas de revelar a todo"o momento uma verdade profunda e simples. Ele, pelo contrário, não era assim; era como um écran branco e plano; as dores e as alegrias passavam sobre a sua indiferença como sombras, sem deixar vestígios, e, por reflexo, como se aquela sua inconsistência se comunicasse também ao seu mundo exterior, tudo à sua volta era sem peso, sem valor, efémero como um jogo de sombras e de luzes: daqueles fantasmas que deveriam personificar tradicionalmente os membros da sua família, a irmã e a mãe, ou a mulher amada, Lisa, por um desdobramento que podia continuar ao infinito, separavam-se outros, segundo as circunstâncias e a sua fantasia. Assim lhe era possível ver em Carla uma rapariga desonesta, na mãe uma senhora estúpida e ridícula, em Lisa uma cortesã, para não falar de Leo que, de momento a momento, através das conversas dos outros e das suas próprias impressões demasiado objectivas, mudava completamente, de tal modo que, se num primeiro momento supunha odiá-lo, pouco tempo depois amava-o ternamente.

Bastaria um só acto sincero, um acto de fé, para pôr fim àquela barafunda e repor em ordem aqueles valores na sua perspectiva habitual; por consequência, parecia-lhe enorme a importância da sua visita a Lisa; se conseguisse amá-la, tudo seria possível depois: odiar Leo e o resto.

Levantou os olhos e verificou ter ultrapassado a rua onde morava a mulher; voltou para trás. Agora o seu espírito maligno atormentava-o. «E se realmente», perguntava-lhe, «fosses capaz de repor as coisas nos lugares onde estão comum-mente, achas que ficarias a lucrar? Supões que tornares-te um verdadeiro filho, um verdadeiro amante, um verdadeiro homem comum, egcísta e lógico como há tantos, significaria um progresso em relação às tuas condições presentes? Pensa-lo realmente? Tens realmente a certeza?». Tudo perguntas sem resposta. «Não crês, pelo contrário», continuava a voz dubitativa, «que o caminho cheio de dúvidas e de perversidade por onde agora segues te levaria muito mais longe? E não te parece também que seria uma cobardia da tua parte tornares-te como os outros?». «Onde me levaria então», pensou, entre irónico e desesperado, «onde me levaria atingir a sinceridade?». Olhava diante de si, de olhos fixos, iludido pelo próprio reflexo no vidro de uma loja, e pareceu-lhe de repente compreender onde o levaria a sinceridade: no meio da montra, que era de uma perfumaria, entre o cintilar loiro de frascos de água de colónia barata, em cima de uma rima de sabonetes rosados e esverdeados, um boneco de reclamo atraía a atenção dos que passavam; pintado de cores vivas, recortado em cartão, concebido segundo um modelo mais humano do que fantástico, tinha um rosto imóvel, estúpido e hílare e grandes olhos castanhos cheios de fé cândida e inabalável; vestia um elegante casaco de quarto, devia ter-se levantado da cama naquele momento e, sem nunca se cansar, sem abandonar nunca aquele sorriso, passava e tornava a passar, com uma atitude demonstrativa, a lâmina de uma navalha de barba sobre uma tira de cabedal; assentava a navalha. Não podia haver qualquer nexo entre a acção banal que executava e a satisfação feliz da sua cara rosada, mas era exactamente nesse absurdo que estava toda a eficácia do reclamo; aquela felicidade desproporcionada   não   queria   apontar   a   imbecilidade   do homem mas a boa qualidade da navalha, não queria mostrar toda a vantagem de possuir uma inteligência modesta mas a de se barbear com uma boa lâmina; a Michele, porém, mergulhado nos seus pensamentos, fez-lhe um efeito completa-mente diferente.

Pareceu-lhe ver-se a si mesmo e à sua sinceridade, pareceu-lhe receber daquele boneco sorridente a resposta à sua pergunta: «Para que serviria ter fé?». E a resposta eradesa-nimadora: «Serviria», significava o boneco, «para ter uma lâmina, uma felicidade igual à minha, igual à de todos os outros, de origem humilde e estúpida, mas cintilante... e depois, o essencial é que barbeia». Era a mesma resposta que lhe teria dado uma daquelas tantas pessoas de bem: «Faz como eu... e tornar-te-ás como eu», dando a própria pessoa, estúpida, deselegante, vulgar, como exemplo, como um fim a atingir, no alto da dura montanha dos seus pensamentos e das suas renúncias. «Aí está para que serviria», insistia o seu espírito maligno, «serviria para te tornares num boneco estúpido e rosado como este». Fitava, fascinado, o boneco que, com um movimento contínuo, em pequenas sacudidelas automáticas, uma, duas, três, assentava a sua lâmina, e sentia vontade de lhe partir a cara e despedaçar aquele sorriso radioso.

«Devias chorar», pensava, «chorar com grandes lágrimas». Mas o boneco sorria e assentava a navalha.

Afastou-se com dificuldade daquele espectáculo fascinante (e havia na realidade algo de louco e alucinante naquele movimento contínuo), e virou para a rua onde morava Lisa; dançavam na sua cabeça frases estúpidas e absurdas: «Aqui está, Lisa», repetia para consigo, «aqui está o teu pobre boneco da navalha de barba».

 

O corredor escuro estava cheio de um certo cheiro de cozinha que lhe pareceu ter já sentido outras vezes em outras casas iguais; foi a própria Lisa, que acabava evidentemente de se levantar da mesa, com um cigarro entre os lábios e um aspecto entre perturbado e excitado que provinha talvez do muito vinho bebido, que veio abrir.-Por aqui... por aqui...-repetiu, sem responder às suas palavras de cumprimento, e guiou-o para a saleta, fechando à sua passagem portas abertas que revelavam ora um quarto de cama, de lençóis em desordem e atmosfera opaca, ora uma pequena cozinha negra cheia de utensílios, ora a sala já conhecida, poeirenta e escura.-Aqui estamos melhor-disse ela, entrando na saleta. Uma luz branca, ofuscante, entrava naquela divisão pelas duas janelas com cortinas; o céu devia ter clareado um pouco nesse instante e havia, atrás dos vidros das janelas, um reflexo branco intolerável.

Sentaram-se ambos no sofá.-Então como vai isso?-perguntou Lisa, estendendo-lhe uma caixa de cigarros. Ele tirou um sem erguer os olhos, mantendo o rosto preocupado. «Será melhor começar já», pensava, olhando a mulher de soslaio. Muito empoada, Lisa vestia uma velha blusa branca, amarelecida, e uma saia cinzenta de tecido maleável toda deformada à força de a usar; pendia-lhe do pescoço uma gravata de cores vivas, não muito nova, com o nó mal feito, e ornavam--lhe os punhos botões de esmalte, representando cada um uma cabeça de cão... Em contraste, porém, com aqueles atavios masculinos, o peito farto enchia a blusa, e a carne rosada e loira dos ombros explodia na transparência do tecido entre as duas alças brancas e vulgares da combinação.

-Vai mal-respondeu ele, por fim.

-Mal?-. Uma perturbação, provocada, não sabia se pelo vinho que bebera ou por outras causas, acelerava as palpitações do coração de Lisa, interrompia-lhe a respiração e lançava de vez em quando uma onda de sangue na sua cara grave e excitada.- E porquê?-. Fitava Michele e esperava que ele se recordasse do beija-mão do dia anterior, na escuridão da sala.

-Não sei-. Pousou o cigarro e fixou Lisa por um instante. -Pensei diversas coisas... queres que tas diga?-. Viu a mulher fazer um gesto vivo de assentimento:-Dize lá-e assumir uma atitude, da cara e do corpo, como de quem quer ouvir com interesse e até, dir-se-ia, com amor. «Sabe-se lá o que ela pensa que vou dizer-lhe», pensou, com ironia, «talvez que a amo... claro, não espera senão isso...». Tornou a pegar no cigarro.

-Devo dizer-te-começou-que me encontro numa posição curiosa perante vós todos.

-Vós, quem?

-Vós, os da família... tu, Leo, a minha mãe, a minha irmã...

Ela sondou-o com olhares penetrantes.-Também perante min?-perguntou, pegando-lhe na mão, como por acaso, com toda a naturalidade. Entreolharam-se.

-Também perante ti-respondeu ele, apertando maquinalmente os dedos da mulher.-Devia sentir-continuou, encorajado-por cada um de vós um certo sentimento, e digo devia porque verifiquei que, em cada caso, as circunstâncias exigem sempre um... É como ir a um funeral ou a um casamento: em ambos os casos é obrigatória uma certa atitude de dor ou de alegria, tal como o fato de cerimónia... não se pode rir seguindo-se um caixão ou chorar no momento em que dois noivos trocam as alianças... seria escandaloso, ou pior, desumano... Quem, por indiferença, não sente nada, deve fingir...assim eu convosco... finjo odiar Leo... amar a minha mãe...

-Então?-perguntou Lisa, avidamente, vendo-o hesitar e interromper-se.

-Então basta-respondeu ele. Sentira-se aborrecido e triste. «Se esperas que fale de ti!», pensava, fitando o rosto de Lisa.-Somente-acrescentou, e a sua voz tremeu como se houvesse querido erguer um protesto lamentoso-eu não sou capaz de fingir... e então, compreendes, à força de sentimentos, de atitudes, de palavras, de pensamentos falsos, a minha vida torna-se inteiramente uma comédia falhada... Não sou capaz de fingir... compreendes?-. Ficou silencioso por um instante; Lisa contemplava-o e parecia desiludida.-E depois -concluiu, confusamente, desanimado, ouvindo de súbito a sua voz isolada soar sem ser ouvida no silêncio da saleta-nada disto te interessa e não o podes compreender... poderia falar-te durante um dia inteiro que não me compreenderias...-. Baixou a cabeça; ouviu então, finalmente, a voz falsamente inspirada e confidencial da mulher.

-Hei-de compreender-te, meu pobre Michele... tenho a certeza de que hei-de compreender-te-. Pareceu-lhe ouvir a mesma voz que ele teria se quisesse declarar o seu amor a Lisa. «Olha, olha», pensou, com amarga ironia, «estamos ambos nas mesmas condições». Sentiu uma mão pousar-se no seu cabelo e assaltou-o uma compaixão desgostosa por si e pela mulher. «Oh, pobrezinha», disse ele, para consigo, «queres ensinar-me exactamente a mim como se faz a comédia?». Mas levantou os olhos e encontrou um olhar e um rosto tão imperiosamente sentimentais que se assustou. «Já chegou então o momento», pensou, confusamente, como o doente que, após ter imaginado longos preparativos, vê, mal acaba de se estender no leito, brilhar no ar o ferro do cirurgião. Olhava a cara da mulher: lábios entreabertos, suplicantes, olhos perturbados, faces coradas, e compreendia, cedendo pouco a pouco a esta súplica, que mais uma vez a vida impunha à sua indiferença uma atitude falsa; sentiu depois os dedos de Lisa apertarem ligeiramente os seus como para o convidarem a decidir-se, inclinou-se e beijou-a na boca.

Abraço demorado; nuvens passageiras escureceram aquele brilho branco que apenas um minuto antes enchia a saleta, as paredes perderam rapidamente a cor, arrefeceram... e no sofá, entre as duas janelas, os dois, de bocas unidas, sentados um ao lado do outro, com os bustos tão voltados quanto bastava para permitir o beijo, estavam imóveis e rígidos. Se não fossem os seus lábios ávidos e confundidos, a sua posição correcta levaria a pensar mais numa conversa do que num abraço: Michele tinha os braços ao longo do corpo, os olhos bem abertos, e o seu olhar errava ociosamente pela parede em frente; Lisa, com as mãos nas do rapaz, fazia de vez em quando com a cabeça o gesto de quem, bebendo, pára por um instante, e depois, com. avidez renovada, recomeça; por fim separaram-se e olharam-se.

«E agora?», pensava Michele, fixando distraído o rosto confundido, excitado e grave da mulher. «E agora ?». Viu uma expressão de gratidão iluminar as faces incendiadas de Lisa, os lábios húmidos semicerrarem-se admirados e súplices, uma adoração quase religiosa, a que não faltava senão o gesto das palmas das mãos abertas em sinal de piedade, encher-lhe os olhos; depois ela estendeu a mão e passou-lha por entre o cabelo murmurando um «querido...» em voz trémula e falsa.

Baixou os olhos; Lisa estava sentada em difícil equilíbrio sobre as próprias pernas e, sem o dar a perceber, continuando a acariciar-lhe a cabeça, aproximava-se dele, arrastando-se penosamente sobre o sofá; com este movimento, a saia, puxada, revê lava pouco a pouco uma coxa gorda com uma meia frouxa e enrolada. Assaltou-o um mal-estar, uma forte irritação, não sabendo se pelo despeito de se haver deixado arrastar ao abraço, se por causa do contraste hipócrita entre aquelas carícias, aquelas palavras afectuosas, e a nudez impura que aquele movimento sub-reptício vinha descobrindo. «Por quem me toma?», pensou, desgostado; o pouco de sensualidade que o abraço despertara nele desvaneceu-se; recuou e, olhando fixamente Lisa, pôs-se de pé num movimento desajeitado.

-Não-disse, abanando a cabeça-não, não vai...

Espantada, quase escandalizada, sem cobrir a perna nua, sem acalmar a sua excitação, Lisa olhava para ele.

-O que é que não vai?-perguntou; esta frieza de Michele ultrajava o seu pudor e o seu abandono. «Ora o estúpido do rapaz», pensava, irritada, «tínhamos começado tão bem... e agora, pronto... ei-lo que se levanta». Viu-o abanar mais uma vez a cabeça, repetindo:-Não vai-. Então esticou-se e agarrou-lhe uma das mãos com um gesto incerto.

-Anda...-disse, tentando atraí-lo para o seu lado-anda cá... senta-te aqui... diz-me o que é que não vai.

Ele hesitou, depois sentou-se.-Já te disse o que é que não vai-explicou, numa voz aborrecida, fitando atentamente qualquer coisa atrás da cabeça de Lisa e fingindo ignorar a carícia nervosa das mãos da mulher e os seus olhos comovidos -já te disse que me encontro também diante de ti como diante dos outros...

-Que quer isso dizer?

-Sim... assim como não sou capaz dè odiar Leo...

-Nem agora, depois do que te contei?...

Michele fitou a mulher.-Devo dizer-te-começou, com certo embaraço - que o que me disseste da mamã fingi ignorá-lo... mas já o sabia...

-Já sabias?

-Pelo menos há dez anos-. Inclinou-se e apanhou uma faca de papel que caíra da mesa; então, quando a punha no lugar, assaltou-o de repente uma necessidade histérica de verdade.-E assim como não sou capaz de odiar Leo, de quem poderia contar-te ponto por ponto toda a história das suas relações com a mamã... também, do mesmo modo, não sou capaz de amar-te. É sempre a mesma razão... indiferença, sempre a indiferença... Então-concluiu, irritado-em vez de fingir cair-te nos braços, morrer de paixão por ti, fazer-te declarações... visto que não consigo... prefiro não fazer nada...-. Calou-se e fitou Lisa: viu-a tão perplexa e aborrecida que o assaltou uma compaixão desagradável.

-E esforça-te por me compreenderes-acrescentou, tristemente.-Como posso eu fazer uma coisa que não sinto?

-Experimenta...

Ele abanou a cabeça.-Não serve... seria como se eu fosse ter com o Leo e lhe dissesse: «Ouve, meu caro, não te odeio, pelo contrário até me és muito simpático, sou muito teu amigo, desagrada-me muito mas não posso mesmo deixar de o fazer, tenho que te dar uma bofetada», e zás, ele aí vai...

-Mas o amor vem sempre depois...-murmurou ela, obstinada, com uma falta de pudor que pareceu incrível a Michele.-Quando nos conhecermos melhor...

-Conhecemo-nos até bem demais.

Lisa empalideceu; nunca ninguém a repelira com tanta dureza; teve medo de que o seu «adolescente» estivesse para lhe fugir para sempre e, por um instante, assaltou-a a ideia louca de se deitar a seus pés, de lhe suplicar como a uma divindade, mas protestou ainda:-Não estás a falar a sério.

-Tudo quanto há de mais sério.

Ela aproximou-se e pegou-lhe na mão; o coração palpitava--lhe, uma ansiedade irracional avermelhava-lhe as faces. -Não sejas mau-insistiu, numa voz hesitante, acariciando-lhe a mão.-Vejamos... não sentes nada... mesmo nada pela tua Lisa?... Diz-me, não é verdade que me darás esse prazer?-. E acrescentou, pondo um braço em volta do pescoço do rapaz: -Não é verdade, Michele... que terás um pouco de amor por mim?-. O rosto da mulher estava desfigurado por um rubor muito vivo, uma excitação irritada; a sua voz era insinuante, sentimental... toda estendida para Michele, tocava com o joelho a perna do rapaz; este abanou a cabeça.-Compreende-me- repetiu; uma forte irritação invadia-o agora contra esta sensualidade teimosa.-Onde iria acabar esse teu amor se eu, sem me importar muito com os meus sentimentos, como se faz com as mulheres perdidas, te... te agarrasse... e te derrubasse sem grandes cerimónias sobre o sofá?...  Compreende-me...

-Mas não chegámos ainda a esse ponto de... de me derrubares sobre o sofá...-disse ela, com um sorriso estúpido e lisonjeado; hesitou um instante e, depois, com um gesto mole e irresistível, deitou-lhe os braços ao pescoço, deixando-se ao mesmo tempo cair para trás sobre o sofá. Este primeiro movimento saiu-lhe bem; Michele, surpreendido, não resistiu e caiu para a frente, mas ao ver o rosto corado e excitado de Lisa, os sobrolhos arqueados em sinal de comando sobre os olhos perturbados, o pescoço esticado, ao sentir na sua nuca todo o peso daquele corpo, invadiram-no uma cólera e um desgosto intoleráveis; soergueu a cabeça, assentou a palma da mão naquela cara imperiosa e suplicante e, com um só impulso, libertou-se do abraço e pôs-se de pé.

-Se tens assim tanto desejo...-disse, zangado, compondo, maquinalmente, a gravata desarranjada-então volta... volta para o Leo...

Abatida no sofá, de rosto entre as mãos e peito em tumulto, Lisa fingia uma dor e uma vergonha humilhada, ambas inexistentes, mas, ao nome do antigo amante, viu-a erguer-se com os olhos alucinados e um gesto acusador.

-Leo... disseste o Leo... que devo voltar para o Leo- gritou ela, sem se importar com o cabelo em desordem e o vestido em desalinho-e, se não estou em erro, também disseste que não consegues odiar o Leo, não é verdade? Nem mesmo sabendo aquilo que sabes?

-Sim-balbuciou ele, fitando-a, perturbado por aquele furor imprevisto-sim... mas que tem uma coisa com a outra?

-Eu é que sei...-e teve um riso breve e nervoso-eu é que sei...-. Ficou calada por um instante, engolindo a saliva e a própria impaciência.-Sabes o que te digo ? -prorrompeu de novo, esticando o corpo na direcção dele e fixando-o com aqueles olhos alucinados.-Que há só uma razão mas boa, para tu poderes odiar o Leo e eu não voltar para ele...

-Minha mãe-arriscou Michele, incomodado por aquela mão acusadora; mas viu Lisa romper numa gargalhada desdenhosa.

-A tua mãe... é mesmo da tua mãe que se trata!...- repetiu ela por entre os frouxos da sua gargalhada amarga. -Mas, meu pobre Michele, a tua mãe já está há bastante tempo fora de combate... já há muito tempo...

Olhou-a; pareceu-lhe então ver muito de cima, com uma superioridade que lhe advinha mais da compaixão desgostosa que experimentava por ela do que pela sua maior pureza, numa infelicidade mais profunda e mais cega do que a sua, aquela figura vingativa; sentia vontade de se inclinar, arranjar aqueles cabelos descompostos, acalmar aquele gesto de acusação; mas não teve tempo.

-Não...-continuou ela, fixando-o sempre com aqueles olhos que pareciam ver, para lá da saleta, para lá da casa, as figuras da sua memória-não, meu caro... alguém, mas não a tua mãe... adivinha... adivinha-. Teve um pequeno riso nervoso, compôs o cabelo e o vestido e sentou-se mais comodamente.

-Tu-proferiu ele.

-Eu?

Ela teve um gesto de quem cai das nuvens.-Eu?... Mas, meu pobre Michele, já te disse que há uma boa razão para eu não voltar para o Leo... e essa razão sabes quem é... sabes quem é? -. Havia um nome nos lábios dela, ia a proferi-lo mas conteve-se. - Não - acrescentou, abanando a cabeça -não... é melhor não dizer nada-. Passado o primeiro momento de excitação sincera, Lisa voltava agora à sua falsidade costumada, na qual, como num jogo subtil e apaixo-nante, encontrava as mais fortes consolações para as suas desventuras.-Não gostaria que, por minha culpa, sucedessem coisas graves...-. Acendeu um cigarro e, como quem está decidido a não falar, fixou os olhos no tapete.

-Ouve, Lisa-proferiu Michele, por fim-diz o que queres dizer... porque se vê que já não podes mais... e acaba com isso...

Aproximou-se dela, pôs-lhe a mão no cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás... Então, olhando-a nos olhos, pareceu-lhe descobrir na impiedosa e estúpida fixidez que ela lhe opunha um erro endurecido e incurável; invadiu-o a mesma compaixão desgostada de anteriormente. «Se a amasse», pensou, afastando de si a cabeça, «ela não seria assim...». Voltou a sentar-se. -Que maneiras-e Lisa repetia, perturbada, em voz lenta e teimosa, alisando o cabelo descomposto-que maneiras!-. Michele fitava-a. «A culpa não é dele, pensava, «é minha... têm necessidade dos meus sentimentos... e eu não os tenho».

-Então  queres realmente saber  tudo?-perguntou  ela.

-Quero... e avia-te...

Um instante de silêncio.-Disseste-começou Lisa, com alguma hesitação-que querias e não podes odiar o  Leo?

-Sim - respondeu ele - e também disse - acrescentou, embaraçado-que queria amar-te e não posso...

Um gesto seco.-Não te incomodes comigo-disse ela, friamente. Ficou pensativa por um instante, como quem reúne as próprias recordações antes de contar.-A história é breve- começou, por fim, baixando os olhos e fitando as mãos. -Ontem... lembras-te ?... o Leo, a tua mãe e a tua irmã vieram do baile... faltou a luz e arranjaram velas... Depois a tua mãe levou-me ao quarto para me mostrar um vestido novo que mandou vir de Paris... é um belo vestido, mas tem um defeito na cintura... A certa altura, não me lembro porquê, pensei em sair... abro uma porta, dou um passo em frente... adivinha quem vejo eu na antecâmara?

Michele fitou-a; toda a narrativa havia sido feita em voz fria, parcimoniosa, sem nunca abandonar aquela contemplação das mãos; ouvira-a distraído, sem interesse, como qualquer história banal, mas agora, inesperadamente, recordou-se de que todos aqueles preâmbulos não diziam respeito senão a Leo; aquelas voltas concêntricas apertavam-se ao redor do seu nome; assaltou-o uma ansiedade obscura e ameaçadora, e tão brusca que lhe faltou a respiração.

- ...o Leo-disse, num sopro.

-O Leo, sim-repetiu Lisa, sacudindo tranquilamente, ostensivamente, a cinza do cigarro-o Leo com a Carla... abraçados.

Olharam um para o outro; Michele, imóvel, sem assombro, mas com aquela fixidez inconsciente de tudo que faz ver em dobro e em triplo como um vidro defeituoso; Lisa com curiosidade, receio e um certo orgulho ridículo, como quem sabe ter vibrado um belo golpe ou dito uma grande frase.

-Abraçados como?-perguntou ele, afinal.

-Abraçados-repetiu a mulher, com crueldade, irritada por aquela incompreensão como pelos sobressaltos de um animal ferido que não se decide a morrer.-Abraçados como? Gomo toda a gente faz... ela nos joelhos dele, boca com boca... em suma abraçados.

Silêncio; imóvel, Michele fitava o tapete, também cor-de--rosa como o resto da saleta, todo pelado nas pontas; no tapete estavam pousados os pés unidos de Lisa e, mais além, estava o sofá. «Abraçados», repetia, entretanto, no seu íntimo, «abraçados... esta é extraordinária»; tinha desejo de gritar «essa é fantástica», divertido, cheio de curiosidade por um caso tão imprevisto. Não sentia indignação, nem sequer desgosto; quanto muito, pungia-o um vivo interesse de obter esclarecimentos, de saber mais alguma coisa.

Tal estado de ânimo durou poucos segundos; depois, quando já se preparava para fazer perguntas, apercebeu-se de repente, quase com espanto, de estar mais uma vez privado dos sentimentos que aquele triste facto lhe deveria inspirar; Leo e Carla abraçados não lhe sugeriam senão uma curiosidade por assim dizer mundana, este novo desastre não o comovia, falhava esta prova suprema e não prevista da sua sinceridade; aqueles dois, abraçados, apareciam-lhe como tantos outros pares conhecidos e desconhecidos e não cada um deles com a personalidade que mais lhe dizia respeito. «Vejamos», pensou, «trata-se de Carla, de minha irmã... Lisa viu-a abraçada àquele homem, ao amante da minha mãe... Não é horrível ? Não é repugnante ?... Vejamos... não é quase um incesto ?»• Mas Carla e Leo abraçados e incestuosos permaneciam afastados das suas atitudes de consternação e de desgosto; não podia tocá-los.

Fitou a mulher e compreendeu, pelos olhos, por toda a sua atitude, que ela esperava com delícia e curiosidade uma bela cena de fúria virtuosa e familiar. «Cólera... ira... ódio», pensou, febrilmente, «todas as riquezas do mundo por um pouco de ódio sincero». Mas o seu espírito mantinha-se inerte, como de chumbo; nem cólera, nem ira, nem ódio. Carla lavada em lágrimas, nua, perdida; Leo, com a sua feroz avidez, aquela vergonha, aquele mal-estar, nada servia para o abalar.

Então ocorreu-lhe uma ideia desesperada; já que falhara a última prova e nenhum dos estimulantes mais violentos conseguira galvanizar o seu espírito morto, não seria melhor decidir-se de uma vez por todas a fingir tudo, o amor, o ódio, a fúria, fingir sem parcimónia, com largueza, até com grandiosidade, como quem tem até para deitar fora?... Ideia louca. «É o fim», pensou, e pareceu-lhe na verdade renunciar para sempre ao refrigério inatingível das fontes espontâneas, límpidas e contínuas da vida, «o fim... mas tem que acontecer alguma coisa... alguma coisa acontecerá».

Pôs-se de pé. Não-disse, começando a andar de um lado para o outro pela saleta, como convém a um homem irado e preocupado-isto é demais... não, não é possível continuar assim... isto é o cúmulo...-. Sentia-se frio e irónico; pareceu--lhe que não tinha uma voz suficientemente resoluta e resolveu modificá-la; silêncio.

-O Leo supõe que tudo lhe é permitido-continuou, pois Lisa, curvada e imóvel, o olhava e não falava-mas engana-se...-. «Não, isto é muito fraco», pensou, sem cessar as suas idas e vindas, «é preciso dizer alguma coisa mais forte... sou o irmão ultrajado pelo amante da mãe na honra da irmã (todas estas palavras virtuosas e familiares lhe faziam um efeito ridículo, como se fossem arcaicas); é preciso achar alguma coisa mais dura... exagerar até, se for necessário...». O seu cansaço triste aumentava porém com aquelas falsidades irónicas ; desejaria abandonar aquela comédia, ajoelhar diante de Lisa como diante da mulher que se ama e dizer toda a verdade: «Lisa, eu não sou sincero, nada me importa a minha irmã, nada me importa seja quem for... Lisa, que devo fazer?». Mas Lisa não era a mulher amada e não o compreenderia; exigia dele, como todos os outros, uma atitude necessária e natural.

-Que farás?...-perguntou a mulher.

Parou e olhou-a, esforçando-se por dar aos seus olhos calmos uma aparência alucinada.-Que farei? Que farei?... Que farei?-repetiu, com rapidez.-É claro o que devo fazer... ir ter com aquele patife e agarrá-lo pelo pescoço-. Pareceu-lhe que Lisa ficara assombrada com a sua violência.

-Quando?-perguntou ela, fixando-o sagazmente por entre o fumo do cigarro que lhe pendia dos lábios.

-Quando?... Amanhã... hoje mesmo... imediatamente-. Tirou um cigarro da caixa e acendeu-o; viu Lisa esquadrinhá-lo de alto a baixo num relance de olhos rápido e perplexo.

-E que lhe dirás?-interrogou ela.

-Oh! Falar-lhe-ei muito mas muito friamente-respondeu ele, com um gesto; olhava diante de si, de olhos sombrios, como quem vê o próprio destino; agora estava a sair-se cada vez melhor no desempenho do seu papel.-Poucas palavras... e compreenderá que não é caso para brincadeiras...-. Outro relance de olhos de Lisa. «Que imbecil que eu sou», pensou ele.

-Mas o que mais me repugna-continuou, com um vivo desejo de se acalorar e convencer a si mesmo e à mulher-é a falsidade do Leo... a sua baixeza... Se ele se tivesse realmente apaixonado pela minha irmã, paciência... isso não o desculparia mas explicaria parcialmente a coisa... Mas não... tenho a certeza de que não a ama; está-lhe na massa do sangue; agradou-lhe, achou-a bonita e quer divertir-se com ela... eis tudo... Ora, à parte o facto de ser sempre uma vileza abusar da inexperiência de uma rapariga, é três vezes vil o homem que o faz com o espírito frio e nas condições em que ele se encontra perante a Carla e todos nós!... Não se poderia ser mais...-procurou a palavra mais expressiva para qualificar a conduta de Leo-... mais porco... E depois, já o disse, paciência se o tivesse feito por força da paixão... arrastado pelo próprio sentimento... mas, pelo contrário, aqui não há amor, não há paixão, não há afecto... não há nada senão a lascívia e a falsidade mais odiosa, mais repugnante, a que simula sentimentos-puros e ideais... não se pode desculpar nem compreender... apenas condenar-. Incerto a princípio, depois cada vez mais seguro, Michele proferiu as últimas palavras com uma força estranha e profunda que a si mesmo espantou.-Quanto a Carla-concluiu, passado um instante-não tem culpa... deixou-se aturdir por aquele homem...

Silêncio; sentada no sofá, imóvel, com a cabeça entre as mãos, Lisa considerava o rapaz.-Não há dúvida-disse, afinal, num tom de vaga aprovação-que a falsidade é um defeito muito ruim.

-Muitíssimo ruim-. Ele moveu-se e dirigiu-se para a janela; o sol desaparecera e uma cortina baixa e densa de nuvens cinzentas estava suspensa sobre a cidade. Lisa morava no primeiro andar, mas a casa erguia-se numa espécie de colina e, daquele lado, estendia-se diante da janela um vasto panorama de telhados; cumieiras, telhas, terraços, trapeiras, varandas, toda a visão tinha, sob o céu cinzento, uma cor húmida e aborrecida entre o amarelo e o castanho, a que o vidro defeituoso da janela emprestava falhas e deformações de cenário desbotado e mal pintado; mais ao longe, o fumo que todas as casas deitavam confundia-se com as nuvens e formava uma espécie de névoa em que os perfis irregulares dos telhados e a selva das chaminés perdiam toda a perspectiva, adensavam-se e confundiam-se.

Debaixo da janela as telhas eram avermelhadas e cresciam tufos de erva entre elas. Michele contemplava esta paisagem; era a primeira vez que dava por ela e não era capaz de se afastar; aqueles telhados todos impressionavam-no. «Descobri-los», pensava, «e ver o que se passa dentro das casas...». Depois, um gato preto passou rapidamente de uma trapeira para outra; seguiu-o por um instante com os olhos. «Vai chover», pensou, olhando o céu cinzento e o espaço húmido e longínquo; estremeceu; voltou-se; apareceram-lhe a saleta descolorida e, no seu sofá esfarrapado, Lisa, pensativa e imóvel; aproximou-se dela. «Fingir», pensou, voltando a agarrar-se com esforço à sua falsa realidade, «queria... queria dormir... mas é preciso fingir». Não havia nenhuma conexão entre o «fingir» e o «dormir», mas esta última palavra ocorrera-lhe, espontânea, como a expressão do cansaço mortal que o oprimia.

-Que horas são?-perguntou, bruscamente.-Serão já horas de ir a casa do Leo ?

Lisa abandonou a sua imobilidade com uma lentidão preguiçosa e viu o relógio que tinha no pulso.

-Quatro-disse, considerando atentamente o rapaz; silêncio.-Mas talvez seja melhor-acrescentou ela-telefonares a saber se está em casa-. Levantou-se e dirigiu-se para a porta.

No corredor a escuridão era completa; Lisa deu volta ao interruptor e uma luz amarela, de vela, escorreu do tecto baixo pelas paredes escuras. O telefone estava preso à parede junto à porta da saleta, à altura de um homem; debaixo dele estava a lista; Lisa desfolhou-a rapidamente e deu várias voltas à manivela.

-Mas depois vais?-perguntou, dubitativa, voltando-se para Michele.

-Ainda o duvidas?-respondeu ele, com energia; mas pareceu-lhe que os olhos da mulher estavam cheios de uma dúvida maliciosa e perversa.

-Não... muito pelo contrário-disse ela; voltou-se e recomeçou a dar voltas à manivela.

A campainha do telefone tocava; erguendo-se nas pontas dos pés, Lisa gritava:-Está lá?... Está?...-esperava um instante, muda e atenta, e recomeçava. Ele contemplava o corredor: dois armários, uma espécie de estante vazia, cadeiras... Lisa voltava-lhe as costas; a blusa, banhada pela luz amarelenta, deixava entrever ainda mais do que na saleta a abundância rosada e loira do dorso apertado pelas duas alças opacas da combinação; as ancas, sumidas na sombra, pareciam menos largas e menos tortas as pernas... tudo isto ele observou com olhos distraídos... «Aqui estou eu em casa de Lisa... no corredor», repetia para si, «é preciso fingir... nem um minuto de repouso... fingir». Sem saber que fazer, chegou-se à mulher e abraçou-a pela cintura.-Então-perguntou, numa voz insinuante e falsa, aflorando-lhe a nuca com os lábios-então, ainda estás zangada comigo?-. Alguém falava ao telefone; Lisa deu o número e voltou-se.

-Não penses em mim-disse, com o mesmo relance de olhos avaliador de anteriormente-pensa antes na tua irmã, no Leo...

-Já pensei-respondeu ele, desconcertado; mas largou-a e encostou-se à parede. «Fingir», pensou, desiludido, «mas até quando?». Aquele segundo olhar bastava-lhe; Lisa duvidava evidentemente da sinceridade da sua fúria; que fazer para a convencer ?

Agora ela falava: - Quem? - e repetia: - Quem?... o senhor... O sr. Merumeci?... Oh, perdão!... Enganei-me no número-. Repôs o auscultador no seu lugar e voltou-se.

-Está em casa-disse, secamente.-E provável que o encontres se lá fores agora.-Fitaram-se. «Não me acredita», pensava Michele, sondando-a suspeitosamente.

-Então, vai-acrescentou ela, por fim. O rapaz fez um gesto pueril e prudente que podia significar «devagar... não há pressa» e moveu-se.-Vou, sim... vou-repetiu.

-Também podes não ir-disse a mulher, numa voz dura -fingir que não sabes nada... a mim, pessoalmente, não me importa se vais ou não vais.

Ajudou-o, no vestíbulo, a enfiar o sobretudo e estendeu--lhe o chapéu.

-Então-disse ele-volto amanhã para te contar.

-Está bem... até amanhã.

Mas Michele ia-se embora de má vontade; pressentia que Lisa não acreditara nem numa palavra do que ele dissera; desejaria fazer juras, grandes gestos, frases profundas, convencê-la, em suma; hesitou.-Tenho a certeza-disse, por fim, pegando na mão que Lisa lhe estendia-que não acreditas no meu ódio contra o Leo, no meu desgosto.

Silêncio.-De facto, não acredito-respondeu ela, com simplicidade.

-E porquê?

-Porque não.

Novamente o silêncio.-E se eu-perguntou Michele-to provasse com os factos?

-Que factos?

Voltou a hesitar; os olhos de Lisa exprimiam agora uma imperiosidade pouco segura. «Que factos, na verdade?», repetiu ele para consigo. Invadiu-o um leve receio de não ser capaz de indicar o facto que conseguiria convencer a mulher da sua sinceridade; depois, transferindo os seus pensamentos de Lisa para o seu inimigo, espontaneamente, como quando se encontra uma coisa longamente procurada sem se dar por isso, descobriu-o: matar Leo. A ideia agradou-lhe, não por pensar realizá-la mas por causa da sua suposta eficácia sobre o ânimo da mulher.

-Por exemplo-proferiu, afinal, tranquilamente-acreditarias se eu matasse o Leo ?

-Se o matasses?...-. O primeiro movimento de Lisa foi de susto; ele sorriu, satisfeito com a impressão que estas palavras haviam causado.

-Sim... se o matasse...

Mas Lisa tornava a ficar serena, observara aquele rosto calmo, aqueles olhos sem ira.-Então sim...-sorriu, com ironia-mas basta ver o modo como o dizes para perceber que não o farás...

Silêncio. «O modo», pensou Michele, irritado por ter estragado a tal ponto o seu efeito, «que modo?... Também existe um modo de dizer que se quer matar alguém?».

Caía o pano, acabara a comédia; nada mais lhe restava senão ir-se.

-Então não me supões capaz de matar o Leo?-insistiu ele; viu a mulher rebentar a rir, não demasiado segura, mas com certeza não assustada.

-Eu não... meu pobre Michele-respondeu ela, por fim, alegre e compassiva.--São coisas que se dizem... mas entre o dizer e o fazer... e além do mais já te disse: basta olhar-te para a cara para perceber que não tens nenhuma intenção de o fazer... De resto-acrescentou, como para sufocar em si mesma a última dúvida-se o tivesses dito a sério, não te deixaria sair assim da minha casa...-. Abriu a porta e estendeu-lhe a mão.-Avia-te-acrescentou-senão não consegues sequer ver o Leo.

-E se eu o matasse?-repetiu ele no patamar, com um sorriso amargo, como um estribilho.

-Então sim... então acreditava-respondeu ela, com um sorriso profundamente incrédulo; a porta fechou-se.

 

Uma luz branca, vinda da clarabóia, incidia sobre a escada; a porta estava fechada; silêncio. «Ninguém me acredita», pensou ele, começando a descer, «ninguém me acreditará nunca». Desceu lentamente alguns degraus; oprimia-o um leve e angustioso mal-estar e, por mais esforços que fizesse, não conseguia desembrulhar a triste confusão do seu espírito.

De vez em quando, as figuras e os factos da sua infelicidade, a sedução de Carla, a incredulidade de Lisa, sua mãe, Leo, apareciam-lhe em bruscas visões claras, como trechos de uma só paisagem iluminada pelos relâmpagos de uma tempestade nocturna. «Ninguém me acredita», e logo a seguir: «Carla entregou-se a Leo». E tornava a ver, com um sentimento de humilhação, a cara irónica de Lisa no intervalo da porta, ou, mais tristemente, adivinhava Carla em desalinho e seminua nos braços do amante... Mas se tentava reunir estas suas imaginações, reagrupar estes factos e assenhorear-se deles como um titeriteiro que consegue ter mão nos fios de todos os seus fantoches, se se esforçava por considerar friamente, desapai-xonadamente, toda a meada em que se metera, então atarantava-se, sufocado: os seus fracos pensamentos não bastavam para emoldurar a dura realidade, os seus o^os para verem, até ao fundo e por todos os lados, este seu panorama da vida. Tentou raciocinar, sistematizar: «Vejamos», pensou, «vejamos... a questão tem duas faces, uma interna e outra externa... interna, a minha indiferença, a minha falta de fé e de sinceridade... externa, todos os acontecimentos contra os quais não sei reagir... e ambas as faces são igualmente intoleráveis». Levantou os olhos como se quisesse ver aquelas duas faces da sua questão. «Não», pensou, ainda descontente, «a culpa é minha... não sou capaz de me apaixonar pela vida». Recomeçou a descer; a culpa também era de Carla. «Carla», teria querido perguntar-lhe, «porque fizeste isto?». E de sua mãe; a culpa era de todos, era impossível descobrir-lhe a origem, a razão primeira; todos eram culpados... parecia-lhe vê-los a todos, ali, no patamar, encostados à parede... «Vocês são uns desgraçados», pensava, «fazem-me dó... todos... até tu, mãe, com os teus ciúmes ridículos, e tu também, Leo, com os teus ares de vitória...». Supunha ver Leo, pegar-lhe na mão. «Tu, sobretudo, fazes-me dó... sim, exactamente tu... pensas que és o mais forte... Ah! Ah! Pobre. Leo». Desejaria dizer-lhe aquelas palavras, ao seu inimigo, assim, tranquilamente... possuía-a uma espécie de embriaguez e atirava a cabeça para trás. «Pobres de vós... não sois senão desgraçados... pobres de vós... agora estais bem arranjados... vereis o que vos acontecerá...». À porta, porém, deu por ter ainda o chapéu na mão; esta bagatela, esta distracção, bastou para o fazer cair do alto da sua superioridade; invadiram-no uma raiva e uma angústia indizíveis. «Sou eu, o mais são histórias... sou eu o desgraçado», pensou; estava de novo por terra, em baixo; enterrou o chapéu na cabeça e saiu.

As casas estavam mortas, mudos os plátanos, imóvel o dia; um céu de pedra pesava sobre os telhados curvados; nem sombra nem luz ao longo de toda a rua, mas apenas uma ânsia estéril de tempestade. «Agora vamos lá a casa do Leo», pensou ele; a esta ideia possuiu-o uma exaltação irreprimível. «Ah! Tu não acreditas que eu seja capaz de matar o Leo...», repetia, para consigo, com rapidez, «não acreditas... e se o matasse ?». Caminhava apressadamente, pondo uma grande força nos seus passos, dando a toda a sua pessoa uma decisão e uma segurança irresistíveis; frases absurdas bailavam, àquele ritmo de marcha, na sua cabeça vazia: «vamos, Lisa, vamos juntos matar o Leo... depois cozinhamo-lo... cozinhamo-lo a fogo lento». Ou então: «Leo, Leuccio, Leuccino, deixa-te matar como um cachorrinho». Olhava em frente e sorria, com um sorriso frio e desesperado: «Também se acabou para ti, Leo, uma carreira tão bonita... um futuro tão radioso... que pena... sou eu o primeiro a lastimar... mas que hás-de fazer? Também está tudo acabado para ti». Tinha vontade de cantar «a-ca-ba-da,  a-ca-ba-da a bela vida»,  com a ária de qualquer canção célebre e melancólica; caminhava apressadamente; caminhava com os passos rígidos e hirtos de um soldado que vai para uma batalha.

A rua era modesta e secundária; viam-se ora ali ora acolá pequenas lojas muito especiais, de montras miseráveis; observou assim um estabelecimento de florista que expunha coroas mortuárias, uma tipografia revestida de cartões de visita de toda a espécie, uma carpintaria, um barbeiro. «Pronto», pensou, «estás servido, Leo; encomendo primeiro aquele belo caixão, depois compro-te aquela linda coroa e ponho-lhe o meu cartão de visita... e o barbeiro... o barbeiro far-te-á cuidadosamente a barba...». Á seguir à carpintaria, havia uma casa de aspecto severo, com um portão profundo de convento; passou por ela, não sem deitar um olhar para a entrada vazia; entreviu uma loja; a montra ficava do seu lado e a seguir era a porta; o reflexo do vidro, de esguelha, confundia as coisas; mais um passo, e então apareceram-lhe «Armeiro», escrito em letras brancas, e, sobre um fundo castanho, um suporte de espingardas de caça. «E aqui compro um revólver», pensou; mas não foi para diante; parou defronte da porta, hesitou, fez uma reviravolta e entrou.

-Queria um revólver-disse logo, em voz alta, encostando-se ao balcão. O mais difícil estava feito; assaltou-o um grande receio de que o armeiro compreendesse as suas intenções e assumiu um aspecto frio, paciente, de olhos baixos e mãos imóveis; não via, do dono da loja, senão o busto vestido de negro que se movia lentamente, com gestos peculiares à profissão, entre o balcão e as estantes; viu, sob o vidro do balcão, uma quantidade de navalhas brilhantes dispostas sobre um fundo avermelhado, algumas simples, outras complicadas e cheias de lâminas, umas abertas em leque e as outras, largas, fechadas. Ergueu os olhos: a loja, pequena e escura, era toda revestida de vitrinas; algumas continham suportes com espingardas, outras coleiras para cães; mais longe, sobre o balcão, observou um cepo em que estavam encastoados, por ordem de grandeza, grãos de chumbo; pareciam o sol e todos os seus planetas. O vendedor, um homem cansado, magro, grisalho, de gestos lentos e olhos inexpressivos, dispunha agora sobre o vidro, uma de cada vez, diferentes armas, e dizia o preço de cada uma com voz igual, logo que a pousava: cem, setenta, duzentas e cinquenta, noventa e cinco; algumas eram achatadas e negras, outras barrigudas e reluzentes; automáticas as primeiras e de tambor giratório as segundas. «Para o Leo aquela é que estava bem», pensou ele, com ironia, olhando para uma pistola enorme, de coronha dobradiça, uma espécie de metralhadora, pendurada na parede; sentia-se calmo nos pensamentos e espontâneo nos gestos; baixou os olhos e escolheu com decisão a mais económica:-Este-disse, em voz clara-e uma carga-. «O dinheiro é à justa», pensou, de carteira na mão, pondo o dinheiro em cima do balcão; um ruído metálico; pegou enfim no embrulho, meteu-o na algibeira e saiu.

«Ora vamos lá a casa do Leo», repetia ele, para si. Agora, o espaço cinzento e imóvel parecia de vez em quando desfazer-se em lágrimas inconstantes; à esquina da rua havia uma espécie de oficina mecânica de reparações; no limiar da porta, um homem de fato-macaco sujo desmontava uma roda de bicicleta; estava calor; nem uma só voz; as lágrimas do céu deformavam à sua passagem as casas de seis andares-via-as torcerem-se, dobrarem-se flexivelmente com todas as suas janelas-mas não deixavam rasto algum nas pedras do passeio; grandes escarros amarelados aqui e ali mas nenhuma lágrima; alucinação ?

Deu a volta e desembocou numa rua mais importante; depois de a ter percorrido toda e atravessado a praça, encontrar-se-ia na rua de Leo; não havia pressa; caminhava devagar como um vadio qualquer, observando as pessoas, os cartazes dos cinemas, as montras das lojas; o revolver pesava-lhe no bolso. Parou em frente de um estabelecimento e, pouco a pouco, desfez o embrulho e apertou o punho da arma; estranho, frio contacto; o gatilho, uma leve pressão e tudo estaria acabado para Leo; um tiro, dois, três tiros, e depois... Eis o cano, eis as estrias... Cerrou os dentes, apertou a coronha do revólver; parecia-lhe ver como aconteceria tudo aquilo: subiria a escada, entraria na sala e esperaria com a arma na mão; finalmente Leo: «O que é, Michele ?», perguntaria ele. «Aqui tens o que é», responderia, e dispararia imediatamente; a primeira bala bastaria que acertasse no corpo, numa parte qualquer; era um alvo grande; Leo cairia e ele poderia apontar à cabeça; curvar-se-ia; Leo ali estava, estendido no chão, com as mãos contraídas no tapete e a cara de borco, no estertor da agonia; encostar-lhe-ia o cano do revólver exactamente ao meio da têmpora; estranha sensação; a cabeça mover-se-ia ou os olhos, aterrorizados, fitá-lo-iam; então dispararia mais uma vez; o estrondo; o fumo; depois precisava de sair sem olhar para trás, sair daquela pequena divisãx> onde, sob o olhar branco das janelas, irrepreensivelmente vestido, jazia o homem morto, de braços abertos, no chão, descer a escada antes que algum inquilino acorresse, e sair para a rua; a multidão; o movimento; o assassinado, lá em cima, entre as quatro paredes daquela pequena divisão; procuraria um guarda (onde são aqueles comissariados onde uma pessoa vai entregar-se à prisão?), um polícia parado no meio de um cruzamento, e tocar-lhe-ia ao de leve no ombro; este voltar-se-ia, supondo-o alguma pessoa de passagem que desejasse informações: «Por favor», diria ele, tranquilamente, «prenda-me... matei um homem»; o outro olharia para ele sem compreender; «matei um homem», repetiria ele, «prenda-me»; durante estas falas a multidão mover-se-ia em todas as direcções, os veículos continuariam a passar... e, por fim, o outro acompanhá-lo-ia, incrédulo, sem compreensão; acompanhá-lo-ia sem o agarrar pelo pescoço, sem lhie pôr as algemas, ao comissariado mais próximo; sala poeirenta; registo; guardas; fedor requentado e frio de fumo de charuto; o banco; o comissário grisalho, corpulento, vulgar; o interrogatório; tinha lá estado uma vez para denunciar um furto; devia ser assim.

Afastou-se da montra da loja e continuou a andar; depois processá-lo-iam; todos os jornais falariam do seu crime; títulos enormes; longos relatos; fotografias suas, do morto, do «activo» Comissário da Segurança Pública que o prendera, da sala onde o facto acontecera, e nem sequer faltaria uma cruzinha a indicar o lugar onde fora encontrado o cadáver. Interesse mórbido; no dia da audiência a sala do Tribunal estaria apinhada de público; senhoras elegantes na primeira fila, gente conhecida, como no teatro; espera; entraria o juiz, parecia-lhe vê-lo, um velhote tranquilo e distraído que lhe falaria como um mestre-escola fala a um aluno, do alto do seu trono empoeirado, inclinando a cabeça para o seu lado, fixando-o sem severidade sob o arco das suas sobrancelhas brancas; parecia-lhe ouvi-lo:

«Acusado, que tem a dizer?».

A este convite ele pôr-se-ia de pé; todos os olhares apontados para si; contaria o seu crime; comodamente sentadas, as senhoras do público seguiriam muito atentas todas as suas frases, não sem fazerem de vez em quando alguns gestos frívolos, como comporem um cabelo rebelde ou cruzarem as pernas cansadas; poderia ouvir-se voar uma mosca; ele falaria naquele silêncio, com sinceridade; cada uma das suas palavras, carregada da sua triste verdade, o envolveria cada vez mais numa atmosfera especial, como o choco, que se envolve nas trevas da sua tinta quando é assaltado. Pouco a pouco, enquanto confessasse a sua falta de sinceridade, de fé, o seu diletantismo, parecer-lhe-ia que o velho juiz se houvera aproximado de si de algum modo, baixando até ele; a sala cinzenta despejar-se-ia sem ruído e não ficariam senão eles dois, o juiz e ele, sobre o estrado poeirento, perante a esqualidez das paredes e das cadeiras vazias; ele continuaria a falar: «Aqui está, concluiria, por fim, «matei Leo sem ódio, a frio... sem sinceridade... Poderia, com a mesma indiferença, ter-lhe dito: «Congratulo-me contigo, a minha irmã é uma bela rapariga...». Este é o meu verdadeiro crime... pequei por indiferença...». Silêncio; o juiz olharia para ele com curiosidade, como se olha para um ser disforme; finalmente um ruído de cadeiras arrastadas, muito sonoro, como os ecos que se repercutem sob as naves das igrejas; o juiz deixaria o seu trono, viria simplesmente ao seu encontro sobre o estrado poeirento do Tribunal; pequeno, baixo, de grandes pés, a toga negra chegar-lhe-ia até aos calcanhares, como para esconder alguma monstruosidade; talvez, à força de estar sentado no seu trono para fazer justiça, as pernas lhe houvessem encolhido; pequeno, baixo, com uma grande cabeça benevolente.

«Oh juiz!... Juiz...», e deitar-se-ia aos pés do velho. «Estás absolvido do teu crime», diria aquele, passado um instante de silêncio, «mas és condenado pela tua falta de sinceridade e de fé... condenado por toda a vida». Veredicto inexorável; e quando tivesse reerguido a cabeça, verificaria de repente que estava de novo no Tribunal apinhado de gente, perante o juiz distraído, entre dois guardas armados; sonho no sonho; fantasmas.

A realidade seria muito diferente; dar-lhe-iam um advogado célebre, exaltariam a sua figura de irmão e de filho, primeiro sofredor e humilhado e depois, finalmente, vingador; talvez até o aplaudissem durante o processo; desfilariam as testemunhas; viria Lisa, como um farrapo, desleixada, e contaria com aquela sua voz falsa como havia descoberto a ligação entre Leo e Carla; profunda impressão; narraria como lhe havia manifestado o propósito de matar Leo e como ela não acreditara.

E porque não acreditara? Por causa do tom em que ele o dissera.

E como o dissera? Tranquilamente, quase a brincar.

Michele sabia da mãe? Sim, sabia.

Como se comportava o assassinado em casa da amante? Como patrão.

Há quanto tempo durava aquela relação com a mãe? Há quinze anos.

E com a filha? Tanto quanto sabia, há poucos dias.

A filha sabia da ligação da mãe ? Sim, sabia.

Que relações havia entre o réu e o morto? Amigáveis.

De negócios? Também.

Que espécie de negócios? Não se recordava com precisão; parecia-lhe que era uma hipoteca sobre a vila.

Era verdade que o acusado dissera a propósito do assassinado que este o reduzia à ruína ? Era verdade.

Que razões a haviam levado a revelar a Michele a ligação da irmã ? Razões de afecto para com o rapaz e de amizade para com a família.

Qual fora até então o comportamento do assassinado para com Carla ? Como o de um pai: conhecera-a menina, de tranças sobre os ombros e pernas à vela.

Tinha Carla reputação de rapariga honesta, séria, ou não ? Não... era geralmente julgada com severidade.

Acreditava ela em alguma paixão por parte do homem? Não.

E por parte de Carla? Também não.

Acreditava que o assassinado tivesse a intenção de casar com Carla? Não, tanto quanto sabia.

Era verdade que o assassinado não escondia dos filhos as suas relações com a mãe? Era verdade.

E que as desavenças eram frequentes entre os dois amantes ? Sim.

Porquê? Porque a mãe era ciumenta.

De quem? De todos.

A mãe suspeitava da filha? Não, até lhe confidenciara muitas vezes que o amante nutria pela rapariga sentimentos puramente paternais.

Uma última pergunta: acreditara ela alguma vez que o rapaz fosse capaz de tal crime? Não.

Porquê? Porque era demasiado fraco.

Viria a mãe, vestida de luto, pintada, muito digna, incerta; ultrapassaria a barra das testemunhas e iria direita ao juiz como ao encontro de uma pessoa do seu conhecimento; interrogada, contaria uma longa história, remontando às mais distantes origens; uma voz patética, gestos teatrais e todos aqueles véus negros em contínua agitação, todos aqueles véus negros como para uma mascarada; interrogada insidiosamente pelos advogados de defesa que se atirariam sobre aquela presa como esqualos de dentes agudos sobre uma mole baleia, a mãe reafirmaria por fim o seu apego ao assassinado; à pergunta sobre se era verdade que este a despojara do seu património, responderia que não.

E da sedução de Gaxla o que é que sabia? Que fora uma loucura, mas que atirasse a primeira pedra quem as não cometesse.

«Pois chamemos-lhe loucura», sublinharia, ironicamente, o advogado de Michele; disputa das partes; admoestação enérgica do presidente.

E ela acreditava que Leo reparasse de qualquer maneira aquela loucura casando com Carla? Incerteza... Não... não estava certa disso.

Sensação. E adaptar-se-ia ela a uma tal situação, com aquele homem lá por casa, seu amante e de sua filha? Embaraço. Não, mas Leo já pensara nisso e já decidira arranjar um marido para Carla.

Risos. Observações irónicas.

Era verdade que o assassinado daria um certo dote à rapariga? Era verdade.

«E em troca», notaria o advogado de defesa, «reservara para si, com antecipação, o jus primae noctis. Nova disputa; assobios na multidão; o público tomaria partido por ele; ameaça do presidente de fazer evacuar a sala; sucede sempre assim.

Era verdade que entre o assassinado e Michele houvera nos últimos tempos explicações violentas? Sim, era verdade.

E que Michele atirara uma noite um cinzeiro contra Leo? Sim, mas atingira-a a ela, no ombro.

A razão? Michele pensava, sem razão, que o assassinado queria aproveitar-se da hipoteca para a expoliar.

E como se comportara o assassinado nessa ocasião? Paternalmente, como um homem superior.

Era verdade que rebentavam frequentes desavenças entre ela e o assassinado? Não, unia-os o mais perfeito acordo.

Mas a testemunha Lisa dera a entender que não era assim? Compreendia-se; tinha boas razões para caluniar a memória do desaparecido.

Que razões? Oh! Uma única mas suficiente: fora sua amante.

Sensação. «Parece-me», observaria o advogado de Michele, «que não se salvava nenhuma!»

Quando? Antes dela.

Durante a instrução acusara Lisa de ter instigado ao crime; e agora? Agora repetia a acusação.

As razões de Lisa? Razões de ciúme e de inveja.

E acusava-a ainda de ter querido corromper Michele? Claro... era uma cortesã sem pudor, uma desavergonhada.

Impresssão; admoestação do presidente no sentido de uma linguagem mais moderada; rebelião da mãe.

Sim, era uma cortesã, gritaria ela, com força, uma cortesã e uma assassina.

Nova admoestação.

E era verdade que, perante a frieza do amante, ela suspeitara de Lisa em vez da filha? Sim, porque observara há algum tempo que Lisa fazia a corte ao homem.

Em suma, segundo ela, Lisa era a principal culpada? Claro, fora ela que instigara ao crime, que exaltara Michele; fora ela que fizera tudo.

E, segundo ela, o assassinado também fizera bem em seduzir-lhe a filha? Não, mas sabe-se o que são as fraquezas humanas, e além disso a culpa não devia ter sido toda do assassinado.

E Michele? Michele era um pobre rapaz irresponsável, um instrumento de Lisa; era muito fraco para agir só por si.

Última das três mulheres da sua vida, viria Carla; um pouco emagrecida, pálida, mais mulher; adiantar-se-ia por entre a frenética curiosidade do público, nem tímida nem estouvada; traria um vestidinho claro, era de manhã, meias claras, um chapelinho claro, uma pele ao pescoço; talvez pintada e certamente elegante. O velho juiz olhá-la-ia sem severidade, como o olhara a ele; viria apoiar-se à barra e falaria com lentidão; curiosidade do público, expectativa ávida de pormenores escabrosos, sobreexcitação; mas após uma breve confabulação, o presidente mandaria evacuar a sala e continuar a audiência à porta fechada; desilusão da multidão, murmúrios, assobios; a sala esvaziar-se-ia lentamente; e ali estava Carla, sozinha, mancha de cor entre os instrumentos cinzentos e negros da justiça; o interrogatório continuaria.

Era verdade que nos últimos tempos se haviam estreitado laços íntimos entre ela e o assassinado? Sim, era verdade.

Sabia de sua mãe? Certamente, desde a infância.

Como desde a infância? Sim, já em pequena os vira um dia abraçarem-se diante de um espelho.

Sabia que o assassinado não podia ou não queria casar com ela? Sim, sabia.

Sabia que o assassinado tinha deitado as mãos ao seu património? Também sabia isso.

E não obstante o conhecimento de todos esses elementos, entregara-se a ele? Sim.

Porquê? Porque sim.

Como se comportara o assassinado com ela? Como um homem apaixonado ou como um libertino? Como um libertino.

Então não a amava? Não, não a amava.

Por que modo lhe manifestara ele a suá paixão? Um dia em que ela estava sozinha em casa e se aborrecia, a ler, ele aparecera, falara e haviam chegado pouco a pouco a uma espécie de intimidade excitada; depois ele beijara-a e convidara-a para ir a sua casa.

E ela fora? Sim, no dia seguinte.

Que acontecera nesse encontro? Tudo.

E voltara lá? Sim, todos os dias.

Era verdade que Lisa a surpreendera na antecâmara na noite de um baile, sentada nos joelhos do amante, abraçada a ele? Sim, era possível.

Não tinha medo, nesse momento, de ser descoberta pela mãe? Não.

Não pensava arruinar-se metendo-se com aquele homem? Não.

Porquê? Porque não.

A mãe não lhe escondia as suas relações com o assassinado ? Não, pelo contrário, até se confiava a ela.

O assassinado falara-lhe alguma vez da mãe? Sim.

Como? Mal.

Que dizia dela? Que estava velha, estúpida, que já não a amava.

Segundo a sua mãe, o assassinado, não obstante as suas relações com ele, propunha-se dar-lhe um dote e casá-la; era verdade? Não, não era verdade.

Como sabia? Porque o assassinado lhe propuzera que ela abandonasse a família e fosse viver para um pequeno apartamento onde poderia visitá-la quando quisesse.

E ela teria aceitado? Talvez.

O assassinado não pensava que Michele se oporia a esse programa? Não.

Porquê? Porque dizia que com algum dinheiro Michele ficaria quieto.

E a mãe ? A mãe gritaria mas depois também se acalmaria.

Sabia de altercações precedentes entre o assassinado e Michele? Sim, uma noite o assassinado havia ameaçado Michele de lhe puxar as orelhas.

E Michele ? Michele atirara-lhe com um cinzeiro à cabeça, o qual, no entanto, atingira a mãe.

Alguma vez o irmão lhe manifestara o propósito de matar Leo? Nunca como se mostrava Michele nos assuntos de família? Indiferente e fraco.

Carla também se iria embora, mas viria primeiro cumprimentá-lo; pareceu-lhe vê-la: embaraçada, séria, com uns olhos entre suplicantes e comovidos; perguntar-lhe-ia como estava e apertariam a mão um ao outro; depois partiria, com aquele passo frívolo dos saltos altos e o seu vestidinho curto; e pelo porte de uma modéstia prudente e incerta, pelo movimento mórbido das ancas, pelos pormenores de toda a sua pessoa, ele imaginaria uma vida nova que o luto cheio de trapos e sem dignidade da mãe lhe deixara entrever.

Desapareceriam da sua vida as três mulheres, a irmã, a mãe e a amante, cada uma pelo seu caminho; o processo continuaria; poucos dias depois falaria o ministério público. Um forte discurso; depois de se haver esforçado por pintar com cores escuras o ambiente corrupto e corruptor em que o crime se desenrolara, embora concedendo a Michele as atenuantes, sustentaria em cheio a tese da premeditação.

«Sim, senhores jurados», exclamaria nessa ocasião, batendo com o punho na mesa, «trata-se de um crime premeditado; Michele recebe de Lisa a notícia da sedução da irmã e vai-se embora, aludindo, de brincadeira, segundo o depoimento da testemunha, a um possível assassínio do sedutor... portanto, estava já tudo decidido, Leo já estava condenado. Michele não vai a casa de Leo para lhe pedir explicações mas para o assassinar, sejam ou não verdadeiras as palavras de Lisa. Entre aquela revelação e o crime passam-se quase duas horas; que faz Michele durante esse tempo ? Mal sai de casa da mulher, na mesma rua onde ela mora, precipita-se como louco para um armeiro e compra um revólver por setenta liras, depois do que vagueia sem objectivo pela cidade, abandonado a si mesmo e aos seus propósitos sanguinários de vingança como um barco na tempestade; estais a vê-lo, com o revólver no bolso, a parar diante dos estabelecimentos, a ver as montras, a caminhar, a percorrer várias vezes a rua onde mora Leo, estais a vê-lo por fim diante da sua porta, hesitar, entrar, subir a escada... Ei-lo na sala do seu inimigo; este vem ao seu encontro, risonho, afectuoso, amigável, sorrindo-lhe... aquele sorriso, senhores jurados, aquele sorriso do homem que ia sem saber ao encontro da morte!... estendendo-lhe a mão... Então Michele dispara; o homem cai; Michele inclina-se e friamente, impiedosamente, acaba-o com um tiro na têmpora; depois, com uma calma de delinquente inveterado, fecha atrás de si a porta da casa e vai entregar-se à prisão...». O orador analisaria a obstinada, implacável vontade que Michele tivera de matar Leo, apesar de saber que «Carla, como resultava dos testemunhos, não era aquela rapariga pura, intacta, virginal, que podia crer, mas muito pelo contrário, e que, por consequência, não houvera sedução no verdadeiro sentido da palavra». Impressão. «Carla», definiria o orador, «é uma dessas raparigas que nunca foram inocentes; hoje um, amanhã outro, lastimável figura do nosso tempo corrupto». Insistiria sobre o facto de que, com todas as probabilidades, não fora Leo a fazer a corte à rapariga, mas vice-versa, e isso por causa de uma espécie de rivalidade insana e mórbida entre a mãe e a filha. «Senhores jurados», concluiria ele, por fim, «ninguém tem o direito de substituir-se à justiça humana e muito menos à justiça divina; Michele ousou-o; Michele condenou o seu inimigo e executou a condenação; esta atroz e fria vontade de matar é o seu verdadeiro crime, não uma explosão passional, senhores jurados, não a deflagração de uma ira virtuosa, mas a preparação e a execução de um propósito sanguinário longamente meditado; recordai-vos disto, recordai-vos de que, para Michele, Leo já estava morto embora vivesse ainda e o seu lugar entre os homens não estivesse ainda assinalado por uma campa». «E tu, Michele», exclamaria, dirigindo-se ao réu, «aceita esta condenação como uma expiação e uma purificação, depois da qual poderás voltar à tua família e aos homens».

«Sabe-se lá porque é que», pensou nesta altura o rapaz, «os advogados, nas suas discussões, supõem dever tratar os réus por tu». Abanou a cabeça. «Não tens razão, acusador público», pensou, com ironia, «não tens razão... nem purificação nem expiação e nem mesmo família... indiferença, indiferença, apenas indiferença». Sorriu distraidamente; e quem falaria depois do acusador? O seu advogado; levantar-se-ia esse luminar, esse novo Demóstenes, desenharia uma por uma as torpes figuras daquele processo; também ele pintaria com cores escuras o ambiente e as pessoas da sua família: cortesã sem pudor a mãe, explorador e incestuoso Leo, mulher mexeriqueira e de costumes fáceis Lisa; vítimas eles dois, ele e Carla, filhos de um alcoólico («o pai é sempre um alcoólico», pensou ele), criados sem o amor dos pais, sem religião, sem moral.

«Amante, primeiro de Lisa e depois da mãe», gritaria o orador, «Leo torna-se também amante da filha, da filha, senhores jurados...», repetiria, em voz patética e comovida, «que havia visto menina inocente, de tranças pelos ombros e pernas à vela, que tivera sobre os joelhos, que houvera, por assim dizer, criado para si e para os seus imundos desejos... Aquela casa era o seu harém... não contente com isso estende as mãos ávidas para o património familiar...». E depois de ter acumulado as afrontas de Leo como as pedras de um edifício de malvadez, o orador exaltaria, numa explosão generosa de voz, a justiça daquele crime; e já lhe parecia vê-lo, aquele seu Cícero, vermelho, congestionado, de cabelos no ar, aos murros na mesa; parecia-lhe ouvi-lo: «Condenaríeis Michele por ter vingado a honra ultrajada e espezinhada da própria família?...», quando, levantando os olhos, verificou que estava na rua onde Leo morava.

Um mal-estar frio e mortal gelou-lhe o sangue. «Pronto, cá estamos», pensou. Era realmente aquela a rua que procurava; casas novas, brancas, jardins ainda ralos, aqui e além construções ainda carregadas de andaimes, passeios sem empedrado; o campo não devia estar longe; passava pouca gente; ninguém se voltava para o olhar, ninguém o observava. «E contudo vou matar um homem», pensou; frase inverosímil; meteu a mão no bolso e palpou o revólver; matar Leo significava matá-lo realmente, riscá-lo do número dos vivos, fazer correr o seu sangue. «É preciso matá-lo», pensou, febrilmente, «matá-lo... assim... sem demasiado ruído... assim... desta maneira: apontar ao peito... ele cai... cai no chão... inclino-me, sem fazer barulho com lentidão, e acabo com ele». A cena que devia ser fulminante aparecia-lhe longuíssima, decomposta nos seus gestos, silenciosa; vencia-o um mal-estar mortal. «Seria preciso matá-lo sem dar por isso», pensou, «então sim, tudo correria bem».

O céu estava cinzento; passava pouca gente; um automóvel; vilas; jardins; o revólver no fundo da algibeira; o gatilho; a coronha. Parou um instante a olhar o número do portão; nesse momento, a sua própria tranquilidade assustou-o. «Se continuo com esta calma», pensou, aterrado, «nada feito... é preciso estar encolerizado, furioso...». Recomeçou a andar; o número oitenta e três era mais longe. «É preciso fazer figura», pensou, febrilmente, «vejamos... vejamos as razões que tenho para odiar Leo... minha mãe... a minha irmã... era pura há poucos dias... agora naquela mesma cama... nua... perdida... Leo apoderou-se dela... possuiu-a... a minha irmã... possuiu-a... a minha irmã... possuiu-a... a minha irmã... a minha irmã... tratada como uma cortesã... estendida naquele leito sujo... horrível, horrível... nua naqueles braços... a minha alma freme só de o pensar... submetida ao vício daquele homem... a minha irmã... horrível». Passou a mão pelo pescoço; sentia a garganta seca. «A minha irmã que vá para o diabo», pensou, desesperado, voltando a achar-se com a mesma calma de anteriormente; aquelas fantasias todas não o haviam abalado; olhou para um portão; era já o número sessenta e cinco; invadiu-o um medo atroz de não ser capaz de agir; meteu a mão no bolso e apertou o revólver. «Que vão todos para o diabo... que importam as razões?... Decidi matá-lo e matá--lo-ei». Apressou o passo; as casas desfilavam, uma após a outra, mais rápidas, mais rápidas... era preciso matá-lo e matá-lo-ia... eis tudo. O número setenta e cinco, setenta e seis, uma rua, setenta e sete, setenta e oito; de repente deitou a correr; o revólver batia-lhe de encontro à coxa; observou sobre o passeio uma menina de uns dez anos que, trazendo pela mão um menino mais pequeno, vinha ao seu encontro; pensou cruzar-se com eles, mas atingiu antes disso o portão de Leo e entrou com pena de não lhes ter pelo menos tocado ao de leve. «E agora», pensou, trepando a escada «o mais bonito seria não o encontrar em casa». Subiu dois lanços de corrida e, no segundo patamar, à direita, encontrou a porta do seu inimigo; estava gravado numa chapa de latão: Gav. Leo Merumeci.

Não tocou; queria entrar com a respiração tranquila e estava ofegante; esperou, direito, imóvel, que a ânsia e as palpitações do coração se acalmassem; mas não se acalmavam; o coração pulsava, saltava com ruído no seu peito, os pulmões soerguiam-se contra a sua vontade numa respiração dolorosa. «Oh, coração! Oh, alento!», pensou, com um despeito triste e nervoso, «Também vocês se põem contra mim?». Comprimiu o lado do peito com a mão, tentou dominar-se; quanto tempo seria necessário para o corpo estar preparado como a sua alma? Contou até sessenta, ridiculamente, imóvel de encontro àquela porta silenciosa; recomeçou... finalmente, cansado, interrompeu-se e tocou.

Ouviu a campainha ecoar no apartamento vazio; silêncio, imobilidade. «Não está em casa», pensou, com uma alegria e um alívio profundos. «Tocarei mais uma vez por escrúpulo... e depois vou-me embora». E já, ao preparar-se para carregar de novo no botão, já imaginava voltar a descer para a rua e ir para a cidade, livre, distrair-se, já esquecia os seus propósitos de vingança, quando soaram passos pesados do lado de lá da porta; depois esta abriu-se e apareceu Leo.

Envergava um roupão de quarto, tinha a cabeça despenteada e o peito nu; esquadrinhou o rapaz de alto a baixo.

-Tu aqui?!-exclamou, com uma cara e uma voz enso-nadas, sem o convidar a entrar.-Que queres?

Entreolharam-se. «Que quero?», desejaria Michele gritar. «Sabes muito bem o que quero, desavergonhado». Mas con-teve-se.

-Nada-disse, num sopro, pois a respiração voltava agora a faltar-lhe-apenas falar-te.

Leo ergueu os olhos; passou-lhe pelo rosto uma expressão impudente e estúpida.-Essa é boa. Falares-me? A esta hora? -disse, com um espanto exagerado; continuava no meio do umbral.-E o que é que me queres dizer?... Ouve, ouve meu caro-acrescentou, começando a fechar a porta-não seria melhor outro dia? Estava a dormir e não tenho a cabeça bastante clara... amanhã, por exemplo.

A porta fechava-se. «Não é verdade que estavas a dormir», pensou Michele, e, de repente, surgiu-lhe esta ideia: «Carla está cá... no quarto dele», e pareceu-lhe vê-la nua, sentada à beira da cama, no acto de escutar ansiosamente aquele diálogo entre o amante e o visitante desconhecido; deu um empurrão à porta e entrou.

-Não-disse, numa voz firme e alterada-não, tenho de te falar hoje mesmo... agora.

Uma hesitação.-Pois seja-proferiu o outro, como quem está no limite da sua paciência; Michele entrou. «Carla está ali», pensava, e apoderava-se dele uma perturbação extraordinária.

-Diz a verdade-proferiu afinal, com esforço, enquanto Leo fechava a porta, pondo-lhe a mão no ombro-diz a verdade, que vim perturbar algum doce colóquio... está alguém ali, não é verdade?... Hem?... Alguma bela rapariga...-. Viu o homem voltar-se e defender-se com um sorriso odioso de vaidade mal escondida.-Absolutamente ninguém... estava a dormir-. Percebeu ter acertado no alvo.

Meteu a mão no bolso e apertou o revólver.-Estava de facto a dormir-repetiu Leo, sem se voltar, precedendo-o na antecâmara-estava a dormir profundamente e tinha sonhos lindíssimos.

-Ah, sim?

-Sim... e tu vieste acordar-me.

«Não, atingi-lo pelas costas não», pensou Michele; tirou o revólver da algibeira e, mantendo a mão encostada à ilharga, apontou-o na direcção de Leo... logo que ele se voltasse, dispararia.

Leo entrou à frente na sala, dirigiu-se à mesa e acendeu um cigarro; envolto no roupão, como um lutador, de pernas abertas, com a cabeça desgrenhada e forte inclinada para o acendedor invisível, dava a impressão de um homem seguro de si e da sua vida; depois voltou-se; então, não sem ódio, Michele levantou a mão e disparou.

Não houve fumo nem estrondo; à vista do revólver, Leo, assustadíssimo, atirara-se com uma espécie de mugido para trás de uma cadeira; depois o ruído seco do gatilho. «Encravou-se», pensou o rapaz; ouviu Leo berrar:-Estás doido! - e viu-o levantar uma cadeira no ar, mostrando o corpo todo. Atirou-se para a frente e voltou a disparar; novo ruído do gatilho. «Está descarregado», compreendeu por fim, aterrado, «e as balas tenho-as eu no bolso». Deu um salto de lado, para evitar a cadeira de Leo, e correu para o canto oposto; a cabeça girava-lhe, tinha a garganta seca e o coração em tumulto. «Uma bala», pensou, desesperadamente, «apenas uma bala». Buscou, agarrou com os dedos febris alguns projécteis e ergueu a cabeça, tentando, curvado, com as mãos enlouquecidas, abrir o tambor e carregá-lo; mas Leo descobriu o seu gesto e ele recebeu, de esguelha, uma pancada da cadeira nas mãos e nos joelhos, tão forte que o revólver caiu no chão; fechou os olhos com a dor e, depois, invadiu-o uma raiva indizível; atirou-se a Leo, tentando agarrá-lo pelo pescoço; mas foi apanhado, atirado primeiro para a direita e a seguir para a esquerda, e, por fim, repelido com tanta violência que, após ter chocado cegamente com uma cadeira, virando-a, caiu sobre o sofá... O outro saltou-lhe imediatamente em cima e agarrou-o pelos pulsos.

Silêncio; entreolharam-se; vermelho, arquejante, apertado em má posição de encontro ao sofá, Michele fez um esforço para se libertar; Leo respondeu torcendo-lhe os pulsos; outro esforço, outra torção; por fim, a dor e a raiva venceram o rapaz: pareceu-lhe, sombriamente, que a vida nunca fora tão dura como nesse momento em que, assim brutalmente oprimido, lhe voltava um desejo lamentoso de certas longínquas carícias maternas; os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; afrouxou os músculos doloridos e abandonou-se. O homem olhou-o por um instante; o roupão estava entreaberto e o peito nu e peludo soerguia-se numa respiração que, de vez em quando, era expelida pelas narinas frementes numa espécie de sopro ferino; olhava, olhava e toda a sua pessoa exprimia uma fúria ameaçadora dificilmente contida.

-Estás doido!-proferiu afinal, com energia, abanando a cabeça; e largou-o.

Michele levantou-se esfregando os pulsos doridos; via Leo, direito, imóvel no meio da sala, a cadeira caída e, ao canto, aquela coisa negra, o revólver... tudo acabara, na verdade... tudo fora feito... mas não conseguia compreender... não sabia se devia mostrar-se ainda indignado ou, pelo contrário, atemorizado... olhava para Leo e, maquinalmente, continuava a esfregar os pulsos.

-E agora - disse o homem, por fim, voltando-se para a porta-faz-me o santíssimo favor de te ires embora-. Tinha vontade de proferir alguma violência mas conteve-se.-E quanto a este disparate teu-acrescentou-falarei com a tua mãe.

Mas Michele não se moveu. «Não me censura, não desabafa, tem pressa de que eu me vá», pensou, «porque teme que eu descubra Carla... Carla está ali... no quarto contíguo». Fitava a segunda porta e quase se admirava de a ver tão comum e igual a todas as outras e de que a presença da irmã não se revelasse nela de qualquer maneira, como, por exemplo, por uma extremidade do vestido que tivesse ficado entalado no momento em que fora precipitadamente fechada.

-Onde está a Carla?-perguntou, afinal, numa voz clara; perpassou no rosto impudente do homem um ligeiríssimo pasmo; mas foi um quase nada.

-Carla?-repetiu ele, com a maior naturalidade.-Como queres tu que eu saiba? Pode estar em casa, ou então na rua-. Aproximou-se dele e agarrou-o por um braço.-Queres-te ir embora ou não?

-Chuta!-disse o rapaz, empalidecendo e olhando-o, sem se soltar.-Não creias que me metes medo... hei-de ir quando quiser.

-Queres-te ir embora ou não?-repetiu Leo, em voz mais alta; fez um primeiro movimento para arrastar Michele para a porta; o outro resistiu.

-Creio-gritou, apressadamente, firmando os pés-que Carla está ali, no teu quarto-. Um empurrão.-E tu, larga-me-ordenou,   debatendo-se;   mas   Leo não o largou.

-Hás-de ir-repetia, quase com alegria.-Na minha casa faço eu aquilo que me parece e agrada... hás-de ir como um santo-. Empurrado pelas costas, Michele não sabia como se voltar.

-Ah, patife! -gritou, sentindo o chão faltar-lhe debaixo dos pés. -Patife!...

-Patife, sim... como quiseres-repetiu Leo, empurrando-o -mas tu vais.

Foi nesse momento que se abriu a porta e entrou Carla.

Não trazia casaco; envergava uma saia curta e uma camisola de lã castanha; devia ter-se vestido nesse momento, muito à pressa; os cabelos estavam desgrenhados e ela estava pálida, com aquele aspecto particular, entre desataviado e cansado das mulheres que não quiseram ou puderam arranjar-se. Fechou a porta atrás de si e, direita, de olhos fixos, avançou para o meio da sala.

-Ouvi barulho-disse-e vim.

-Mas porquê?-. Passado o primeiro momento de estupor, Leo largara Michele, correra ao encontro dela e sacudia-a agora por um braço.-Mas porquê? Digo-te que te deixes estar e tu vens à mesma... porquê? Por quem me tomas?... Vocês são todos doidos... Mas porquê?-. Enfurecido, não conseguia falar; depois pareceu dominar-se.-Pois muito bem, desde o momento que quiseste aparecer-acrescentou-pois muito bem, aí tens o teu irmão Michele que dispara sobre as pessoas... fala-lhe tu, faz o que quiseres... eu lavo daí as minhas mãos...-. Largou-a e, como quem não quer ser incomodado, foi sentar-se ao pé da janela.

Michele fitava Carla; onde ficara a ira virtuosa que imaginara dever sentir num tal momento? Algures. A própria ideia da sedução não lhe ocorreria se Leo não tivesse, com aqueles modos brutais, agarrado a rapariga por um braço, e se uma certa negligência não houvesse revelado que ela se vestira à pressa. «Sabe Deus como estava quando eu cheguei», pensava, e buscava, buscava com uma avidez dolorosa os vestígios da culpa: no rosto pálido, os olhos pisados, quebrantados, os lábios descorados pelo uso, a expressão confusa e saciada, tudo confirmava a sua suspeita; mas o corpo, o corpo possuído, queimado, submetido de mil maneiras à lascívia, o corpo nada revelava, estava como em todos os outros dias; apenas o princípio do seio lhe causava a estranha impressão de já não ser aquela coisa inocente que se habituara a considerar desligada, separada das outras partes do corpo escondidas, mas um limite impuro pelo qual se podia adivinhar todo o corpo nu.

-Apresento-te os meus melhores cumprimentos-disse, por fim, com esforço-mas era inútil que te incomodasses a vestir-te... podias aparecer como o Leo... de roupão-eapcn-tou o homem; este teve um gesto irritado e cobriu o peito.

Silêncio.-Não fales assim, Michele-disse ela, de repente, suplicante e ansiosa-deixa-me explicar-te...

-Não há nada a explicar-. Michele aproximou-se da mesa e apoiou-se a ela.-Nada, se tu o amas-continuou, como se o outro não estivesse também presente,  ali, ao pé da janela-mas claro que fizeste muito mal... Sabias o que ele representa para a mamã e que espécie de homem é, e contudo entregaste-te a ele... e além de tudo o mais tenho a certeza de que não o amas...

-Não o amo-admitiu ela, sem erguer os olhos-mas há outra razão...

«Ah! Havia outra razão!», repetiu Leo para consigo; olhava-os a ambos, irmão e irmã, com uma espécie de desprezo divertido; a ira arrefecera agora e não restava outra coisa a fazer senão aguardar os acontecimentos. «Eu é que te diria a razão», pensou, e voltava-lhe ao espírito a atitude lasciva em que se recordava de ter visto Carla não mais de dez minutos antes; «é o desejo, minha cara, a necessidade que tinhas...».

-Nem mesmo tu sabes por que fizeste isso-continuou Michele; inflamado, parecia-lhe ler na culpa da irmã como num livro aberto. -Nem mesmo tu o saberás dizer.

-Sei.

-Então diz.

Perturbada, Carla olhou para Michele e depois para Leo. «Para ter uma nova vida», desejaria responder; mas não teve coragem; aquela sua longínqua razão, agora que via que nada mudara a não ser no seu corpo possuído, parecia-lhe ridícula e indigna, e um pudor, um receio de não ser acreditada ou de ser troçada, impediam-na de a revelar; calou-se, baixando a cabeça.

-Digo-te eu porquê-continuou Michele, triunfante, embora no seu íntimo terrivelmente irritado pelo papel que lhe cabia desempenhar («O que sou eu?», pensava, «Um pai de família?»).-Tiveste um momento de fraqueza, de tédio, nem sequer quiseste procurar para além do Leo, aceitaste-o logo, como terias aceitado outro qualquer que se adiantasse... cedeste-lhe sem saberes porquê, talvez apenas para fazeres alguma coisa.

-Sim... para fazer alguma coisa-repetiu ela.

«Chama àquilo que fez alguma coisa», pensou Leo, com ironia; sentia-se sem piedade para com aqueles dois; parecia--lhe, sobretudo, absurdo e ridículo que Michele, aquele rapaz estúpido que tentara dar-lhe um tiro e se esquecera de carregar o revólver, e aquela aprendiza de prostituta, Carla, que tivera nua nos seus braços até poucos minutos antes, na sua cama, e a quem fizera tudo quanto quisera, se erigissem agora ambos em juizes, se munissem de asas de anjinho e de auréolas de santos, fizessem de puros, deixando-o a ele na baixeza e na lama. «Mas façam-me o santíssimo favor», sentia vontade de gritar, «de deixarem essas caras conapungid;is, esses discursos graves... chamem pão ao pão e vinho ao vinho... sejam o que são e nada mais». Mas conteve-se, curioso de saber como acabaria aquela cena fraterna.

-E depois verificaste que não tinhas feito nada-continuava Michele-que saíras de uma situação impossível para encontrares outra não menos triste e aborrecida... aqui está como te correram as coisas...-. Cálou-se por-um instante, olhando para Carla; então, vendo-a ali, direita, à sua* frente, muda e obstinada, não como uma culpada mas como uma pessoa no acto de ouvir com respeito, talvez até com submissão, mas certamente com indiferença, uma repreensão qualquer, e sentindo-se entretanto tão longe da verdade e envolvido a tal ponto nas mentiras a que o obrigava a inércia do seu espírito, invadiram-no uma angústia, um sofrimento humilhado. «Não há senão escuridão», pensou, «nada mais senão escuridão...». Baixou os olhos.-Agora temos que recomeçar tudo...-acrescentou, em voz profunda e pouco firme.-Os nossos erros foram inspirados pelo tédio e pela impaciência de viver... tu não amas este homem, eu não o odeio... e contudo fizemos dele o centro das nossas acções opostas...-. O coração palpitava-lhe e tinha vontade de gritar com o mal-estar e incapacidade que sentia em si.-Tudo a recomeçar-repetiu, amargamente-será uma nova vida.

-Uma nova vida?-. Desanimada, Carla aproximou-se da janela; as primeiras gotas de chuva riscavam os vidros empoeirados; olhou por um instante, distraída. Uma nova vida ? Então nada mudara na realidade? Aquela sua suja aventura ficava como uma suja aventura e nada mais? Pareceu-lhe sufocar.

-Não-disse, em voz clara, sem se voltar-não creio que seja possível uma nova vida.

-Fui com ele-e indicou, com um gesto desajeitado, o amante, imóvel na sua cadeira-fiz isto por essa nova vida, compreendes?... Agora, porém, apercebo-me de que nada mudou... é melhor então não fazer mais tentativas... ficar assim.

-Mas não, mas não-começou Michele, numa voz indiferente; agora, forçado a baixar do seu próprio sentimento comovido para o caso particular da irmã, verificava, com temor, que até aquele pouco de fé o abandonava.-Mas não... não mudou nada porque tu não amas o Leo... foi um erro inútil... é preciso, para viver e mudar, agir sinceramente... -. De repente, pareceu-lhe extraordinário e estúpido que todos os casos convergissem para o seu, como acontece com aqueles doentes que atribuem a todos a sua própria doença; teve medo de ser egoísta, de não ver senão a si mesmo, de não compreender Carla.-Pelo menos creio que é assim-acrescentou, desanimado-creio que deves separar-te deste homem que não amas... venderemos a vila, pagar-lhe-emos, e se nos ficar alguma coisa tanto melhor... deixaremos todas estas festas, esta gente, este ambiente, tudo isto que acabou por nos trazer o tédio... iremos viver para uma casa de poucas divisões... será uma nova vida-. Mas faltavam-lhe, compreendia-o, o calor, a voz forte, a mão no ombro, o tom seguro e cordial; sentia-se indiferente e cansado.

Carla despregou o olhar daqueles olhos sem fé e sem ilusão e íixcu-o na direcção da janela.-É impossível-disse, por fim, como falando de si para consigo.

Silêncio; o discurso do rapaz gelara Leo mesmo no meio da sua ironia acre e cálida. «Vender a vila... aquele está doido», pensou; claro, se vendessem a vila o negócio sumia-se; se a vendessem mandá-la-iam avaliar, e então ressaltaria o verdadeiro valor daquela ampla moradia, situada no centro do melhor bairro da cidade, circundada por aquele vasto parque cuja área podia vantajosamente ser vendida em lotes para novas construções... então o negócio iria por água abaixo. Olhava para Carla, para Michele. «E um descalabro», pensava, «é tudo menos uma nova vida». De repente, ocorreu-lhe uma ideia e, como àqueles medicamentos desesperados que não são discutidos, decidiu aplicá-la imediatamente.

-Um momento-gritou-um momento... eu também aqui estou-. Levantou-se, afastou Michele com um gesto, agarrou a amante por um braço e obrigou-a a sentar-se.-Senta-te aqui-. A rapariga obedeceu com uma docilidade que pareceu horrível a Michele. «Não se fará mais nada dela», pensou, desesperado; Leo, por sua vez, sentara-se diante de Carla.

-Decerto-começou, com aquela resolução e aquela precisão que punha em todos os seus negócios-decerto fizemos mal... cometemos erros... pensei nisso enquanto vocês falavam, pensei nisso, Carla... Agora, que dirias se eu te propusesse uma reparação... se te propusesse que nos casássemos?-. Florescia nos seus lábios carnudos um sorriso entre triunfante e persuasivo; estava seguro de a convencer.-Que dirias a isso, hem?-repetiu, pegando-lhe na mão sobre a mesa.

A mão de Carla tentou soltar-se mas não conseguiu. -Casarmo-nos?- repetiu ela, com um sorriso desiludido.- Nós os dois, casarmo-nos?

-Pois-insistiu Leo--nós os dois, casarmo-nos... que haveria nisso de estranho?

A rapariga abanou a cabeça: repugnava-lhe a ideia deste matrimónio, com a mãe em casa, amante e ciumenta do seu marido; além disso era demasiado tarde, não sabia porquê mas era demasiado tarde para se casarem; conheciam-se já demasiado bem para se tornarem marido e mulher... era melhor ir-se embora... separarem-se... ou então, quem sabe?... ou então ficarem assim... amantes... No seu primeiro impulso de desgosto, no seu primeiro movimento instintivo de defesa daquela ideia pura e longínqua do matrimónio, todas as situações mais vis e penosas lhe pareciam preferíveis às núpcias; pensava-o mas não era capaz de falar, como que fascinada pelo sorriso e pelos olhares do amante; depois sentiu duas mãos pousarem-lhe nos ombros, as mãos de Michele.-Não -murmurou-lhe ele-diz-lhe que não-mas com uma voz não suficientemente baixa para Leo não a ouvir.

Este deixou a mão de Carla e pôs-se de pé.-Queres fazer-me o favor de deixares a tua irmã em paz de uma vez por todas?... -gritou, irritado.-Ela é que deve casar, não és tu... deixa-a pensar... deixa-a responder segundo o seu interesse... Até seria quase melhor que saísses por um momento e nos deixasses sós, a mim e à Carla... depois chamar-te-íamos quando o caso estivesse resolvido.

-Acalma-te... eu fico aqui-respondeu Michele, em tom de desafio; o outro fez um gesto impaciente mas não respondeu.

-Então-disse, voltando a sentar-se-pensa nisso-. Apertou de novo a mão de Carla.-Pensa nisso... não sou um partido para desprezar... tenho um capital, uma posição sólida, sou conhecido e estimado... pensa nisso...-. Calou-se por um instante.-Além do mais-acrescentou-como queres tu encontrar um marido nestas tuas condições?

-Porquê... nestas tuas condições?-repetiu ela, fitando-o.

-Porque sim-. Leo torceu a boca.-Estás sem um centavo...  e...  será preciso dizer-to?...  bastante desacreditada.

-Como desacreditada?-interrompeu ela de novo, num fio de voz.

-Desacreditada-repetiu Leo.-Todos esses teus amigos te não consideram como uma rapariga séria... eu explico-me... abusariam de ti mas não casariam contigo... enquanto se trata de se divertirem todos são bons...

Entreolharam-se em silêncio. «É por vossa culpa, tua e da mamã, que estou assim», desejaria ela gritar; mas conteve-se e baixou a cabeça.

-Eu, pelo contrário-continuou Leo-poria tudo em regra... não apenas contigo mas também com a tua família... ficaríamos com a tua mãe em casa... Michele trabalharia... talvez eu o levasse a fazer qualquer coisa, arranjar-lhe-ia um lugar-. Olhava atentamente Carla a cada nova promessa, como o lenhador que, a cada golpe de machado, observa o tronco cortado da árvore para ver se cai; mas Carla contemplava a janela sobre a qual a chuva silenciosa corria agora abundantemente, e não respondia.

Uma sombra húmida de caverna invadira a sala; Michele passeava naquela sombra de um lado para o outro. «Arranjar um lugar... trabalhar», pensava, perturbado; Leo falava sèria-mente, sem qualquer dúvida... faria o que afirmava... fá-lo-ia ganhar dinheiro... àquela sua vaga sinceridade o homem contrapunha promessas sólidas... que escolher?... A tentação era forte... dinheiro, conhecimentos, mulheres, talvez viagens, talvez opulências, de qualquer modo uma vida segura, direita, clara, cheia de satisfações, de trabalho, de festas, de palavras cordiais... tudo isto lhe daria o matrimónio de Carla... Não venderia a sua irmã, não acreditava naquelas palavras grandes e terríveis, não acreditava na honra e no dever... sentia-se indiferente, como sempre, especulativo e indiferente. «Não lhe direi nada», pensou afinal, quase sem querer, «deixá-la-ei decidir... se aceitar estará bem... se recusar também estará bem». Mas um ligeiro mal-estar avisava-o da baixeza destes pensamentos; levantou os olhos e olhou para o lado da janela; as duas cabeças desenhavam-se nitidamente àquela luz incerta, negras sobre os vidros cinzentos; devia chover; recomeçou a passear e, de vez em quando, parava e olhava: onde vira já aquelas duas figuras negras contra a luz daquela janela? Invadia-o uma tristeza nervosa de cada vez que as observava.

«Aqui está», pensava, «aqui está... eu passeio de um lado para o outro nesta obscuridade... eles estão ali sentados, ao pé da janela, e eu passeio... eles falam... estamos separados... longe um dos outros... porque estamos assim? É como se estivéssemos sós, é como se não nos víssemos». Os olhos enchiam--se-lhe de lágrimas; onde as vira já?

Leo falava:-Se hesitas por causa da tua mãe, fica com o teu espírito em paz... asseguro-te que acabou já há tempo tudo o que havia entre nós.

Silêncio; Carla abanou a cabeça.-Não, não é por causa da minha mãe-respondeu-não é por isso.

-Talvez por causa de Lisa-sugeriu ainda Leo.

-Oh, não!

-Então?!-exclamou ele.-Porque recusarias?... Não vejo por que devas recusar... Não será decerto...-acrescentou, com um sorriso e um aperto na mão da rapariga-por razões sentimentais.

Ela fitou-o; seguia-se agora ao seu primeiro impulso de recusar uma espécie de clarividência triste. «Na verdade, porque haveria de negar-lhe a minha mão depois de lhe ter concedido tudo o mais ?». Havia na sua alma uma nova dureza; as promessas de Leo não a convenciam, oh, não! «Não nos amamos», pensava, «será um casamento infeliz». Mas as de Michele pareciam-lhe perfeitamente pueris. «A vida não muda», pensou ainda, «nunca mudará... Leo tem razão... é melhor casarmo-nos». E já ia a ceder, a dizer-lhe que sim, com um sorriso entre humilhado e envergonhado, já imaginava que o seu futuro marido a cingiria pela cintura e a beijaria na testa, imaginava uma bela cena comovente, quando, do fundo da saleta, se ergueu a voz de Michele:-Por amor de Deus, Carla, por amor de Deus, diz-lhe que não.

Voltaram-se; de pé no meio da saleta, Michele parecia quase envergonhado por aquela invocação comovida; Leo levantara-se e batera com o punho na mesa.

-Queres deixar-te disso?-gritava.-Queres deixar de uma vez por todas de te interessares pelos assuntos que não te dizem respeito?

Michele deu um passo à frente.-É minha irmã-disse.

-É tua irmã-repetiu Leo-e daí? Não será talvez livre de escolher o marido que mais lhe agrada?-. Voltou a sentar-se.-Dá-me ouvidos a mim, Carla-insistiu-não oiças os conselhos do teu irmão... ele não sabe o que diz.

Mas a rapariga fez-lhe, com a mão, um sinal para se calar.-Porquê-perguntou, dirigindo-se ao rapaz-deveria eu dizer que não?

Viu-o hesitar.-Não o amas-começou ele.

-Não é razão suficiente... o amor também se faz, até com menos.

-Há a nossa mãe.

-Oh! Ela?-. Carla encolheu os ombros. - Não me incomoda.

Silêncio.-Carla-insistiu Michele, passado um instante -devias recusá-lo apenas porque to peço eu... Se casares com Leo, olha... seria um verdadeiro descalabro...-. A sua voz tremia. «Decerto», pensou ela, observando o rapaz, «belo não seria». Mas depois da embriaguez da nova vida apossara-se dela uma necessidade triste e mesquinha de realidade.

-E em troca-perguntou, numa voz áspera-o que é que teria?

-O que é que terias?-. Fitou-a: os olhos de Carla estavam calmos e vazios, negras as faces; uma massa indolente de cabelos eriçados circundava-lhe a cara.-O que é que terias?... Serias livre... livre para fazeres uma nova vida-. Silêncio. -Não creias que digo coisas falsas-acrescentou ele, chocado pela vacuidade das suas próprias palavras.-Eu também estou de certo modo nas tuas condições... sei que se opõem muitas dificuldades... mas por fim chegaremos... chegaremos à nossa vida-. Viu Carla abanar a cabeça sem tirar os olhos da janela. «Tem fé», desejaria gritar-lhe; Leo sorria, seguro.

-Palavras-repetia-a vida não é nova nem velha, é aquilo que é.

Ela moveu-se por fim e voltou-se para o amante. -E assim, Leo-perguntou, com uma garridice forçada-queres que nos casemos ?

-Claro-respondeu ele, com veemência.

-E não tens medo de que corra mal?-insistiu ela.-Eu, por exemplo-acrescentou, tranquilamente-tenho a certeza de que me hás-de atraiçoar.

«Hás-de ser tu que me atraiçoarás, minha aprendiza de prostituta», pensou Leo, fixando aquela farta cabeleira devorada pela sombra; desejaria dar-lhe uma palmadinha nos grandes seios, uma palmadinha de alegria escarninha e sem ilusões, pois lhe parecia de vez em quando voltar a vê-la como estivera poucos minutos antes, nua e branca, com aqueles movimentos de animal canhestro que dá a inexperiência. «Caso com uma prostituta», repetiu para consigo; e estendeu a mão.

-Juro-te-disse, com solenidade-que te serei sempre fiel.

-Carla - insistiu Michele - diz-lhe que não. - Aproximou-se dela, pôs-lhe a mão no ombro.-Diz-lhe que não... há uma razão... depois a saberás.

Carla estava calada fitando a janela; a grande cabeça esférica parecia desproporcionada para aqueles ombros estreitos; agora era noite; retirava-se dos vidros molhados um resto de luz, uma espécie de fosforescência incerta; chovia; a obscuridade da casa reunira-os: não se viam senão as caras cavada*, sumidas, e as mãos pousadas sobre a mesa.

-São horas de ir-disse ela, finalmente; levantou-se.

-E a resposta?-perguntou Leo; também ele se levantou, dirigiu-se para a parede às apalpadelas e acendeu a luz;

entreolharam-se na claridade com os olhos deslumbrados, como espantados por se verem, Carla e Michele ao lado um do outro, ao pé da janela, e Leo junto à porta. Então, pela primeira vez, o homem observou uma certa semelhança entre o irmão e a irmã: a mesma expressão indecisa, a mesma posição acanhada dos braços; o rosto de Carla, porém, não estava senão cansado, ei-la que levava a mão aos olhos quebrantados, enquanto que no de Michele era reconhecível uma tristeza entre nervosa e fantástica; estavam ao lado um do outro, no vão da janela, e pareciam receosos dele.

-A resposta?-repetiu a rapariga, passado um instante. -Amanhã, Leo... amanhã... tenho que falar à mamã-. Voltou-se para o irmão e pôs-lhe a mão no peito.-Espera aqui por mim, Michele-acrescentou, olhando-o atentamente.- Vou pôr o chapéu e venho já-. Passou entre o rapaz e a mesa com uma agilidade frívola e desenvolta, passou pela frente do amante e abriu a porta à direita; não a fechou; depois aquele quarto iluminou-se; Michele viu uma cómoda com espelho, um tapete, uma cadeira para a qual fora atirada uma camisa de homem; uma das mangas pendia; Carla andava de um lado para o outro diante daquele espelho; primeiro, como pessoa habituada ao lugar, acendeu o candeeiro em cima da cómoda e penteou-se cuidadosamente; depois saiu, voltou com o casaco e chapéu, vestiu-se, não sem garridice, desapareceu de novo; voltou com a mala, empoou-se... Durante estes preparativos os dois homens não se moveram nem falaram; Leo ficou junto à porta, no seu roupão cingido à cintura, curto e abundantemente pregueado, de pernas abertas, peito nu, os olhos e a cabeça baixos, como se estivesse a meditar profundamente; sobre a sua fronte calva, os cabelos desgrenhados e finos tinham o aspecto de uma pequena nuvem lívida; tinha as mãos juntas atrás das costas e, de vez em quando, sem levantar a cabeça, erguia-se nas pontas dos pés e recaía pesadamente sobre os calcanhares; Michele não se afastou da janela, donde, com olhos distraídos, observou os movimentos familiares e frívolos da irmã diante do espelho. Parecia-lhe que uma atmosfera pesada e corrupta enchia o quarto contíguo; devia lá haver uma desordem impura, lençóis em desalinho, roupas atiradas para cima das cadeiras, almofadas caídas, perfumes, cheiros de tabaco e de sono... e nessa atmosfera, nessa desordem, Carla movia-se livremente, quase alegremente, com as suas pernas ágeis... estava despenteada, cansada, pálida... Ei-la agora, pronta para sair, com o chapelinho bem posto sobre os olhos, a cara empoada, fresca, rosada, os lábios pintados, dois caracóis sobre as faces; ei-la que deixava aquele espelho embaciado, aquele ar turvo, aquela parede, aquela cadeira, e vinha ao seu encontro.

-Vamos-disse ela, tranquilamente; estendeu a mão a Leo.-Até mais ver, Leo.

-Então é sim, não é verdade?-murmurou ele, beijando--lhe as pontas dos dedos; sentia-se contente e seguro; Carla olhou-o mas não respondeu; saíram os três para o vestíbulo, primeiro a rapariga depois os dois homens; satisfeito, quase excitado, Leo girava à volta da amante.-Casar-nos-emos... casar-nos-emos-murmurou-lhe enquanto Michele, no canto oposto, enfiava o sobretudo; desejaria vê-la sorrir ou, pelo menos, conceder-lhe um olhar, um sinal que revelasse um possível consentimento; mas Carla foi inflexível e repetiu, distraída, saindo, como se não tivesse ouvido nem visto:-Até mais ver, Leo-. Ele observou, por um pouco, através da greta da porta entreaberta, os dois que desciam a escada sem se falarem, sem se voltarem para trás, seguidos, sobre a parede, por duas sombras oblíquas e vagas; finalmente, fechou a porta e voltou à sala; viu no chão o revólver de Michele, apanhou-o e ficou distraidamente a olhar para o ar, sopesando-o. Recordou-se de ter um convite para o baile do Grande Hotel e recordou-se também de que a mãe decidira ir. «Será uma boa ocasião para reforçar em Carla a ideia do casamento», pensou; inteiramente satisfeito, dirigiu-se ao espelho do quarto e mirou-se. «Deixa que vais bem», disse, em voz alta, e sentia vontade de dar uma palmadinha na própria barriga, «mesmo casado hás-de ser sempre o mesmo Leo». Depois foi para a casa de banho e começou a lavar-se.

 

Quando chegaram ao limiar do portão verificaram que chovia a cântaros, sem violência mas com uma abundância  desordenada,   como  de  um  alguidar  roto; enchia a obscuridade um grande murmúrio torrencial; ricochetava sobre o pavimento da rua um lívido véu de água; dos algerozes, das goteiras, das caleiras, a chuva grossa, acumulada durante duas semanas, despejava por todos os lados o seu jorro impuro, demoradamente fermentado nos flancos das nuvens; as casas, sob o dilúvio, eram hirtas e negras; os candeeiros não iluminavam; os passeios inundados assumiam o aspecto anfíbio dos cais meio submersos, nos portos de mar. Curvados sob o aguaceiro, caminharam à pressa, junto às paredes, cuidando de se abrigarem sob o único chapéu de chuva que tinham; ao virar de uma esquina, um automóvel de praça, livre, assaltou-os com o raio direito dos seus faróis acesos; subiram e partiram.

Sentaram-se um ao lado do outro, na obscuridade; não se entreolharam, não falaram; os solavancos faziam-nos saltar e chocarem-se como dois fantoches sem vida, de corpo de madeira, de olhos arregalados e estáticos; Michele ia quase estendido, encostado ao fundo, e parecia meditar; Carla, sentada, um pouco curvada, tentava seguir o percurso e não o conseguia; os vidros estavam encharcados, embaciados por um«vapor frio; era impossível ver fosse o que fosse. Pareceu-lhe estar fechada, fora do mundo, sozinha com o irmão naquela caixa escura, e ser levada a grande velocidade para um lugar desconhecido; para onde ? Assim acabavam o dia e a sua velha vida: com uma pergunta a que era impossível responder; para onde se vai, de dia ou de noite, com a escuridão  a  ou em plena luz ? Ninguém o sabe. Teve medo, quis restringir a sua meta, fazer mais pequeno o seu mundo, ver toda a sua existência como uma sala acanhada. «Casarei com o Leo», pensou. Fixava com os seus olhos cansados o vidro em frente, e pareceu-lhe ver aparecerem nele, desenharem-se sobre aquela superfície brilhante e escura figurinhas luminosas; oh, os vidros da casa, nas noites chuvosas, os vidros do comboio, expressivos e monótonos, de cintilações misteriosas, janelas abertas para o campo negro dos sonhos: eis... eis que afloravam naquela sombra os degraus ensoalhados de uma igreja, e ela, toda de branco nos seus longos véus de noiva, de figura um pouco curvada, devia ser um dia de sol, agarrada ao braço do seu companheiro; e que saíam atrás deles, surgindo daquela escuridão, uma por uma, as figuras do cortejo nupcial; a mãe, muito afastada, devia certamente chorar mas não se via, com um ramo de flores enorme e resplandecente nas mãos; Michele, de cabeça baixa, como se estivesse a ver onde punha os pés; Lisa, com um extraordinário vestido primaveril, e muitos outros convidados de quem não se distinguiam as caras, as mulheres vestidas de branco, os homens de preto, espalhados em multidão atrás deles, alguns ainda meio na sombra, outros em plena luz, todos muito elegantes; podiam distinguir-se os vincos impecáveis das calças dos homens; cada um deles apertava entre as mãos uma trompa reluzente de muitos reflexos; podiam-se distinguir flor por flor os ramos coloridos e redondos das mulheres... Todos saíam do portal invisível da igreja e desciam atrás dos noivos; os degraus estavam cheios de sol; depois, inesperadamente, rompia uma música lenta, religiosa, que parecia seguir passo a passo o cortejo nupcial; um carrilhão? Parecia-lhe ouvir aqueles sons triunfais que a acompanhavam; eram solenes, mas cheios de uma tristeza amarga e exultante, como se ela, assim vestida, assim agarrada ao braço do marido, não estivesse a dirigir-se para a alegria mas, pelo contrário, para um sacrifício ingrato, para uma vida cheia de desânimo e de dificuldades insuperáveis...

Moveu-se; uma mão, a de Michele, apertava a sua; a sombra do vidro alastrava rapidamente sobre as figurinhas luminosas do cortejo nupcial, como a de uma chapa fotográfica queimada pelo sol; o automóvel afrouxara, parara e esperava, imóvel, para atravessar uma rua cheia de gente; chuva; murmúrios;  campainhas;   buzinas; vozes; luzes; caras; por fim, com um solavanco, o automóvel moveu-se e voltou a partir.

-Então-perguntou ela, voltando-se-o que é?

Viu o irmão fazer um gesto desajeitado e convulso com a mão.-Se não estou em erro-disse ele, com esforço-se não estou em erro, não te disse a razão porque deverias recusar o Leo.

Ela fitou-o.-Não.

-Ei-la-. O rapaz inclinou-se e começou apressadamente, sem transição, a contar.-Eis a razão... Hoje, antes de ir a casa da Lisa... a propósito, foi ela que me revelou tudo a teu respeito e do Leo...

-Ah! Foi ela?!

-Foi. Ao que parece, surpreendera-vos ontem na antecâmara... Mas vamos adiante... hoje, antes de ir a casa da Lisa, comecei, não me recordo como, a pensar nas nossas coisas, nas nossas condições que, na verdade, são muito más... e, pouco a pouco, tanto me enfronhei nos meus raciocínios que perdi-como hei-de dizer?-perdi toda a reserva e surpreendi-me a pensar pouco mais ou menos isto: «Estamos arruinados; não há remédio; dentro de um ano, se continuarmos assim, cairemos na miséria... para evitar este desastre não seria aconselhável fazer algum sacrifício ou, talvez, chegar a um compromisso ?». A única pessoa com a qual se podia contar para uma semelhante combinação era o Leo... Portanto, por exemplo, pensei eu então, quase sem dar por isso, dado o carácter do homem, femeeiro, que daria tudo quanto tem por uma mulher que lhe agrade, não seria útil dar-lhe a entender que em troca do seu dinheiro, eu me empenharia em levar-lhe a minha irmã, Carla, tu, em suma, em levá-la a sua casa? Pensaste isso?-perguntou e, voltando-se vivamente e olhando-o; nesse momento a luz de um candeeiro iluminou por um instante a cara de Michele; ela viu-lhe os olhos abertos, dilados, e, no rosto branco que fazia um sinal afirmativo, uma humildade canhestra e repugnante; virou a cabeça; uma tristeza angustiosa apertou o seu coração palpitante; o automóvel corria; Michele falava:

-Pensei isso... e parecia-me vê-lo, sabes?-e fez um gesto, como se quisesse agarrar alguma coisa.-Parecia-me ver como iríamos os três, eu, tu e o Leo, a casa dele... quando estou perturbado parece-me ver as coisas que penso... como tomaríamos o chá na saleta do Leo, como, finalmente, eu sairia, discretamente, segundo os acordos preestabelecidos, deixando-te sozinha com o Leo...

-É horrível-murmurou carla, com espanto, mas Michele não a ouviu.

-Então... compreendes?... Quando vos vi há pouco, sentados um em frente do outro, diante da janela da saleta, e ouvi o Leo propor-te que casasses com ele... pareceu-me avistar a cena que imaginara... sucede a todos... vamos pela rua, pensamos encontrar pessoas em certas atitudes, e encontramo--las de facto... Mas no meu caso havia a mais aquele cálculo, aquele cálculo sobre o dinheiro do Leo. «Pronto», disse eu, com os meus botões, «tudo se passou como eu pensei, como não devia ter pensado, tudo se passa como se realment'e eu tivesse dito ao Leo: «Ouve Leo... está aqui a Carla, a minha irmã... é uma linda rapariga, em flor...». Não te ofendas... era assim que imaginava falar-lhe...

-Não me ofendo-murmurou ela, sem se voltar.-Mas continua.

-«Uma rapariga linda e em flor»-repetiu Michele.-«Tu dás-me dinheiro, muito dinheiro, encarregas-te do sustento da minha família, e eu em troca... em troca deixo-te as mãos livres quanto a Carla... faz dela o que quiseres...».

- Mas que pensavas tu...-prorrompeu ela, triste e irri

tada-que pensavas tu que eu era? Uma coisa? um animal?

-Não, mas sabia-respondeu Michele, com um meio sorriso de vitória-que te aborrecias... como direi?... que estavas nas condições apropriadas, que cederias facilmente...

- Sabias isso?-murmurou ela.

-Que não tivesse agido-continuou Michele, sem responder-já não tinha agora importância... logo teria o remorso da mesma maneira... ao vê-los casados, vivendo daquele dinheiro, sofreria sempre como por uma verdadeira culpa... compreendes?... Compreendes?...-repetiu ele, tomado por uma súbita exasperação, agarrando-a por um braço.-Compreendes?... Pensamos numa má acção, vil, mas não a praticamos... depois tudo acontece como pensámos, mas não completamente, até um certo ponto, de maneira a podermos ainda impedir a execução... Que devemos então fazer? Procurarmos opor-nos, impedir que essa coisa horrível se verifique... se o não fizermos, é como se tivéssemos sido cúmplices do princípio ao fim, é como se eu te houvesse realmente cedido ao Leo pelo seu dinheiro e te houvesse realmente levado a casa dele... Compreendes agora? Para mim, se casas com ele, é como se realmente eu tivesse favorecido a vossa união, a vossa culpa, te houvesse por um lado impelido para os braços do Leo  e  por  outro  recebido  o  dinheiro...   Compreendes?...

Compreendes agora?...-. Um solavanco do carro atirou-os, repugnados, um de encontro ao outro; silêncio; o automóvel corria.

-Perdoas-me ?-perguntou afinal o rapaz, numa voz comovida e humilde, curvando-se para a frente, ao lado da irmã. -Perdoas-me, Carla?

-Não há nada que perdoar-respondeu ela-não me fizeste nada... nada de mal... que teria eu a perdoar-te? -. Silêncio.-Não tenho nada que perdoar a ninguém-e repetiu, exasperada, numa voz de choro, sem tirar os olhos do vidro do automóvel-a ninguém... não quero senão que me deixem em paz-. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas; todos eram culpados e ninguém o era, mas ela estava cansada de se examinar, a si e aos outros; não queria perdoar, não queria condenar, a vida era o que era e era melhor aceitá-la do que julgá-la; que a deixassem em paz.

A Michele pareceu-lhe encontrar naquelas palavras a sua condenação definitiva. «Não fiz nada», repetiu para consigo, com espanto, pois lhe parecia ter envelhecido, ter vivido muito naquele único dia. «E verdade... não fiz nada... nada senão pensar...». Agitou-o um £ emito de medo. «Não amei Lisa... não matei o Leo... não fiz senão pensar... eis o meu erro». Inclinou-se e agarrou a mão da rapariga.

-Mas recusá-lo-ás, não é verdade?-perguntou, ansiosamente.-Diz-me que o recusarás...

Silêncio.-Casarei com ele-disse ela, finalmente; de novo o silêncio.-Que seria de mim se não casasse com ele?-continuou ela, numa voz triste e dura.-Em que me tornaria?... Pensa um instante... nestas condições...-e fez um gesto como para se mostrar tal como era, nua, perdida, pobre-seria uma loucura recusá-lo, não me resta senão casar com ele...-. Calou-se, olhando como anteriormente diante de si.

A rigidez do tom havia persuadido Michele mais do que qualquer razão. «Está tudo acabado», pensou, olhando as faces pueris de Carla que a luz do automóvel iluminava, «está uma mulher». Sentiu-se vencido.-E assim, Carla-perguntou ainda, como um menino mal convencido-casarás com ele?

-Casarei com ele-repetiu ela, sem se voltar.

A corrida do automóvel chegava ao fim; as ruas alargavam-se, despovoavam-se; já não casas, mas vilas claras e escuros jardins encharcados de chuva; escassos os candeeiros, largos e desertos os passeios. Carla seguia atentamente a corrida e os pensamentos turbilhonavam na sua mente excitada e cansada com a mesma velocidade; o automóvel era a sua vida, lançada cegamente na escuridão. Casaria com Leo... vida em comum, dormirem juntos, comerem juntos, saírem juntos, viagens, sofrimentos, alegrias... teriam uma bela casa, um belo apartamento num bairro elegante da cidade... alguém entra na saleta decorada com luxo e bom gosto; é uma senhora sua amiga, ela vem ao seu encontro... tomam o chá juntas, depois saem; o seu automóvel espera-a à porta; sobem; partem... Chamar-lhe-iam senhora, a sr.a Merumeci, que estranho, sr.a Merumeci... Parecia-lhe ver-se um pouco mais alta, maior, com as pernas mais grossas, as ancas mais largas, o casamento engorda, jóias ao pescoço e nos dedos, nos pulsos; mais dura, mais fria, esplêndida mas fria, como se tivesse um segredo por detrás dos seus olhos duros, um segredo, e, para o conservar escondido, tivesse matado todos os sentimentos na sua alma. Assim ataviada, elegantemente vestida, ei-la a entrar na sala apinhada de um hotel; segue-a o marido, Leo, um pouco mais calvo, um pouco mais gordo, mas não muito mudado; sentam-se, tomam chá, bailam, muitos a olham e pensam: «Linda, linda mulher, mas má... nunca sorri... tem os olhos duros... parece uma estátua... sabe-se lá o que ela pensa». Outros, de pé, ao fundo, junto às colunas da sala, murmuram entre si: «Casou com o amigo da mãe... um homem mais velho do que ela... não o ama e deve certamente ter um amante» Todos murmuram, pensam, olham-na; está sentada ao lado do marido, tem as pernas cruzadas, fuma... efeito das pernas, o vestido é curto, o decote é profundo... todos a observam com cobiça como se quisessem mordê-la; ela responde-lhes com olhares cheios de indiferença... Um quarto... eis a sf.a Merumeci que, atrasada por qualquer visita de obrigação, corre ao encontro do amante; entre aqueles braços perde a sua dureza de estátua, estas mulheres rígidas são sempre as mais ardentes, torna a ser rapariga, chora, ri, balbucia, é como uma prisioneira libertada que volta por fim a ver a luz... a sua alegria é branca, o quarto é todo branco, ela está sem mácula nos braços do amante... a pureza é reencontrada. Depois, quando chega a hora, volta à casa conjugal e recompõe sobre o rosto a habitual frieza... A sua vida continua assim durante anos... muitos a invejam... é rica, diverte-se, vi.ja, tem um amante, que mais desejar? Tem tudo quanto uma mulher pode ter.

O automóvel parou; desceram; já não chovia; a atmosfera estava fria e nublada; um vento húmido agitava sem repouso a folhíigem escura dos jardins. Carla saltou agilmente a larga poça que se interpunha entre o passeio e a rua e esperou, ao pé de um candeeiro, que o irmão pagasse; observou então, encalhada à margem da rua, como um cetáceo ali deixado pela enxurrada, uma forma negra e longa, um grande automóvel; o capot brilhava; com o boné baixado para os olhos, enterrado no seu assento, o condutor dormia. «O carro dos Berardi», pensou ela, pasmada, e, de repente, lembrou-se do convite para o baile de máscaras.

-Michele-disse ao irmão, que vinha ao seu encontro, transpondo com precaução as poças da valeta-o carro dos Berardi.

-Pois é-observou ele, com uma olhadela rápida para o automóvel-devem ter vindo buscar-nos.

Entraram no parque; atravessaram-no em silêncio, vendo com cautela onde punham os pés; ruído do saibro pisado; humidade; sombras escuras e fantásticas contra o céu nublado; vasto murmúrio oceânico das grandes árvores; sensação de trégua; já não chovia.

Michele tirou o sobretudo no vestíbulo quente e iluminado.

-Carla-disse, finalmente, à irmã, que o esperava no limiar da porta-quando falas desse casamento à mamã?

Ela fitou-o.-Amanhã-respondeu, tranquilamente.

Passaram pelo corredor; vinha da sala um ruído de vozes e de risos; a rapariga aproximou-se dos reposteiros que escondiam a porta, abriu-os com precaução e espreitou por um instante.

-Estão ali todos-disse, voltando-se-todos três... Pippo, Mary e Fanny.

Subiram a escada; a mãe e Lisa vieram ao seu encontro na antecâmara; a mãe já estava mascarada de espanhola: tinha a cara flácida e patética toda suja de uma pintura exuberante, as faces rubras e ponteadas de sinais, os lábios vermelhos, os olhos afogados numa lânguida cor negra; o traje de espanhola, longo e te do negro, ondeava à sua volta a cada requebro das ancas com uma mole abundância de pregas; uma sumptuosa mantilha bordada caía-lhe da larga travessa de tartaruga sobre os ombros gordos, sobre os braços grossos, trémulos e nus; tinha nas mãos um leque de penas de avestruz, sorria estupidamente e, como receosa de perturbar com qualquer movimento o equilíbrio do penteado, caminhava com a cabeça erecta e rígida; a seu lado, como o dia ao pé da noite, estava Lisa, aloirada, de uma brancura farinhenta, toda vestida de claro.

Logo que viu Carla e Michele, a mãe veio ao seu encontro.

-É tarde-gritou, ainda antes de terem acabado de subir. -Os Berardi já estão à espera há um quarto de hora.

Estava satisfeita, contente: Lisa passara toda a tarde com ela e, por consequência, o amante dissera-lhe a verdade e não a atraiçoava; com a alegria, mostrara-se afabilíssima com a amiga, fizera-lhe mil confidências e até pensara, por um instante, em convidá-la para o baile dessa noite; renunciara, porém, um tanto por causa de um egoísmo parcimonioso, um tanto porque os Berardi conheciam pouquíssimo Lisa e poderiam ofender-se com a sua liberdade.-Depressa... depressa -repetia a Carla, que a contemplava, imóvel-depressa, vai mascar ar-te...

-Tenho que me mascarar?-perguntou a rapariga, numa voz hesitante e profunda, sem levantar os olhos do chão.

A mãe riu.-Acorda, Carla-disse, agitando-se com a sua ondulante mantilha espanhola.-Em que pensas?... Não queres com certeza ir ao baile sem te mascarares-. Agarrou a filha por um braço.-Vamos-acrescentou-vamos... senão chegamos tarde.

Carla tirou o chapéu com um gesto mecânico e, abanando a grande cabeça indolente e despenteada, seguiu a mãe; a mantilha espanhola ondeava com elegância sobre as duas saliências das nádegas; Carla olhava-a e parecia-lhe, ao vê-la assim igual a si mesma, assim imutável, que nada acontecera nessa tarde. «E contudo», pensava, «será necessário informá-la deste casamento». Assim, uma arrastando a outra, saíram da antecâmara.

Lisa e Michele ficaram sós; a mulher observara do seu canto, desde o primeiro momento, com uma curiosidade ávida e perturbada, aqueles dois, irmão e irmã, que chegavam juntos; agora, após ter esperado em vão que o rapaz fosse o primeiro a falar, aproximou-se dele.

-Então-perguntou, sem esconder o seu interesse indiscreto-diz-me... como é que correu?

Ele voltou-se e olhou-a.-Como correu?-repetiu, lentamente.-Como correu?...  Correu mal... disparei sobre ele.

-Misericórdia!-exclamou Lisa, com um terror exagerado, olhando-o vivamente.-E feriste-o?

-Nem lhe toquei.

-Anda cá-. Excitada, atraiu-o para o sofá e sentou-se a seu lado.-Senta-te aqui... conta-me...

Mas Michele teve um gesto cansado e impaciente.-Agora não... mais tarde-. Observava aquela carne rosada e loira, aquele peito farto... invadia-o um desejo insaciável de esquecer nem que fosse por um instante a sua desventura...-Vais ao baile ? -perguntou, afinal, depois de ter deixado de a examinar.

-Não.

-Então-ele hesitou-então, como eu também não vou, vou cear a tua casa... e assim... conto-te tudo.

Viu-a assentir com entusiasmo.-Está bem, está muito bem... cearemos juntos-. E sorriu com amargura.

«Desta vez», pensou, irritado e complacente, «não tenhas receio, não temas, que não te repelirei».

Oprimia-o um desgosto sombrio; os seus pensamentos não eram senão aridez, deserto; nenhuma fé, nenhuma esperança a cuja sombra repousar e refrescar-se; a falsidade e a abjecção de que tinha a alma cheia via-as nos outros, sempre; era impossível tirar dos seus olhos aquele olhar desanimado, impuro, que se interpunha entre ele e a vida; um pouco de sinceridade, repetia a si mesmo, tornando a agarrar-se à sua velha ideia fixa, «um pouco de fé... e teria matado o Leo... mas agora estaria límpido como uma gota de água».

Sentia-se sufocar; olhou para Lisa; parecia contente. «Como vives ?», sentia vontade de gritar-lhe. «Sinceramente ? Com fé ? Diz-me como consegues viver». Os seus pensamentos eram confusos, contraditórios. «E todavia», pensava, num regresso brusco e desesperado à realidade, «talvez isso dependa apenas dos meus nervos abalados... talvez não seja senão uma questão de dinheiro ou de tempo ou de circunstâncias». Mas quanto mais se esforçava.por reduzir, por simplificar o seu problema, tanto mais este lhe aparecia difícil, assustador. «É impossível continuar assim». Sentia vontade de chorar; a floresta da vida cercava-o por todos os lados, intrincada, cega; nenhuma luz brilhava ao longe; «impossível».

Voltaram, a mãe e Carla, esta última mascarada de Pierrot; tinha o rosto escondido por uma mascarilha de cetim negro, trazia uma gola enorme oscilando-lhe à volta do pescoço, gibão, calças, escarpins de seda branca com grandes botões negros; caminhava nas pontas dos pés, com o tricorne um pouco de lado, e sorria misteriosamente.

-Como nos acham?-perguntou a mãe.

-Muito  bem...   muito  bem-repetiu  Lisa-divirtam-se.

-É o que faremos-disse a rapariga, com um frouxo de riso; assim mascarada sentia-se outra, mais alegre, mais leve... Aproximou-se do irmão, deu-lhe uma pancadinha no ombro com o leque.-E contigo falaremos amanhã-disse, em voz baixa; a confissão no automóvel deixara-lhe uma impressão penosa; parecia-lhe que Michele estava a arruinar a sua vida. «E no entanto é tudo tão simples», pensara, enfiando diante do espelho as calças de Pierrot, «prova-o o facto de que, não obstante o que aconteceu, eu me mascaro e vou ao baile». Desejaria gritá-lo a Michele: «é tudo tão simples», e já estava a pensar em lhe arranjar trabalho, um lugar, uma ocupação qualquer, por intermédio de Leo, logo que se casassem... Mas a mãe arrastava-a.

-Vamos-e repetia-vamos... os Berardi estão à espera.

Desceram a escada, uma ao lado da outra, o Pierrot branco e a espanhola negra; a mãe fez parar a filha no patamar.

-Lembra-te-murmurou-lhe ao ouvido-de seres... como direi?... gentil com o Pippo... Pensei melhor... talvez te ame... é um bom partido.

-Não tenhas receio-respondeu Carla, seriamente.

Desceram o segundo lanço. A mãe sorria agora satisfeita: pensava que o amante também iria ao baile e antegozava uma noitada agradável.

 

 

                                                                  Alberto Moravia

 

 

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