Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS INDOMÁVEIS / Liz Ireland
OS INDOMÁVEIS / Liz Ireland

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS INDOMÁVEIS

 

                   Guthrie, Texas 1886

O homem levantou a cabeça do engordurado balcão do bar apenas o suficiente para erguer levemente as pálpebras e fazer uma última e definitiva declaração.

— Eu não vou — ele anunciou, em seu sotaque de Filadélfia, para logo depois deixar novamente a testa cair na madeira do balcão, o que chegou a fazer barulho.

—Já disse isso antes, professor — observou Jake Reed.

— Não me chame de professor — resmungou o homem. — Meu nome é Pendergast, Eugene W. Pendergast.

Sentado num dos altos bancos do bar, Jake olhou para a figura que estava com quase toda a parte de cima do corpo desmoronada sobre o balcão. As roupas novas do nortista vestido à moda do Oeste, uma calça de brim e uma camisa de algodão, mostravam os efeitos da demorada estada naquele lugar enfumaçado, malcheiroso e empoeirado. Até a valise de couro preta aos pés do homem estava coberta por uma fina camada de pó.

Estaria aquele sujeito assim tão bêbado? Jake esperava que não. O sol já começava a penetrar pelas janelas e o mais prudente era ficar alerta. Mas tudo levava a crer que ele apenas conversava com mais um bêbado.

A garrafa de uísque em cima do balcão estava quase vazia, mas Jake ainda pôde encher o próprio copo e o do homem com quem bebia.

— Mas você é ou não é professor primário, Pendergast?

— Sou, mas não nesta droga de lugar! — respondeu o homem, falando tão alto que as palavras ecoaram no salão vazio do bar, quase despertando o balconista, que cochilava ao fundo do salão. — Não vou para Annsboro ou qualquer outra cidade desta desgraça de Estado, que é quente, seco e sem civilização. Amanhã mesmo entrarei no trem e voltarei para Filadélfia.

Não existia dúvida de que o calor havia influenciado fortemente a opinião do nortista. Jake achou aquilo engraçado.

— Todos os professores de Filadélfia falam assim como você?

— O quê? — perguntou Pendergast, voltando para o interlocutor o rosto de pálpebras pesadas e olhos injetados. Uma mecha de cabelo preto caía sobre a testa dele. — Ah, você perguntou isso porque usei palavras grosseiras… — ele concluiu, tomando mais um generoso gole do copo que Jake havia enchido e derramando uma boa quantidade da bebida sobre o balcão. — Aprendi essas palavras nos livros, porque em Filadélfia todas as pessoas falam com elegância. Tudo em Filadélfia é perfeito.

Um sorriso de beatitude apareceu nos lábios do homem, molhados pela bebida, ao mesmo tempo em que a cabeça dele ia abaixando para o balcão. Pendergast estava quase dormindo. Jake tirou o próprio chapéu e usou-o para cobrir o rosto do mestre-escola. Afinal de contas, quando dormia uma pessoa merecia um pouco de privacidade. Pouco depois um som ritmado escapava da boca de Pendergast.

Filadélfia. A cidade do Amor Fraternal. Jake pensou que talvez devesse ir para lá. E Annsboro? Ele jamais ouvira falar naquele lugar antes de conhecer Pendergast, algumas horas antes, ali mesmo naquele bar. Desde então o professor primário tinha passado um bom tempo tecendo considerações sobre o lugarejo que ainda nem conhecia e resmungando contra o que já vira do Texas até aquele momento. Agora Jake sabia que mais uma pequena cidade do Oeste, pela qual dificilmente passava estrada de ferro, ficaria sem um mestre-escola.

Era bem provável que Annsboro tivesse muito em comum com Redwood, onde Jake havia nascido e crescido e durante algum tempo fora ajudante de delegado. Ele só melhoraria de vida com a morte do xerife Burnet Dobbs, talvez atingido nas costas por várias balas. Não era uma perspectiva agradável, menos ainda porque ele era amigo do bom e honesto Burnet. Também não era lá essas coisas ser ajudante de xerife de uma cidade tão pequena e quieta, mas talvez desse oportunidade para realizar o que ele mais queria na vida desde os dez anos de idade: vingar-se de Otis Darby, o rico fazendeiro que havia se apoderado das terras da família de Jake, expulsando-os e causando a morte do pai dele.

Jake sorriu com amargura ao pensar naquilo. Que vingança. Depois de anos tentando reunir provas contra Darby ele havia descoberto que o fazendeiro, com a ajuda do genro, praticara roubo de cavalos em larga escala. Os dois foram condenados e mandados para a prisão, mas algum juiz idiota os libertou apenas dois anos depois por «bom comportamento». Embora nessa época Jake não fosse mais um homem da lei e trabalhasse como capataz para um fazendeiro de uma cidade vizinha, Darby e o genro, Gunter, saíram no encalço dele.

Desde então ele vinha fugindo dos dois e estava começando a pensar que passaria o resto da vida nessa fuga. Mas nunca se apressava. Darby sempre mandava o comparsa Gunter na frente e Jake saía de onde estava, buscando outro lugar para ficar durante algum tempo. Os perseguidores importunavam os ex-patrões de Jake e não raro recorriam à violência, queimando edificações ou matando o gado. Infelizmente Jake jamais havia conseguido provas dessas barbaridades. Mas sempre sabia quando Darby e Gunter estavam se aproximando, como se tivesse um sexto sentido… assim como sabia o que fatalmente aconteceria se transformasse em realidade o velho sonho de se estabelecer numa fazenda própria. Em menos de uma semana, tudo no lugar se transformaria em cinzas.

No início ele podia ter procurando a ajuda da lei. Talvez Burnet Dobbs pudesse tê-lo ajudado a conseguir que se fizesse justiça, mas Jake preferira não envolver o amigo naquela situação perigosa. Achava melhor enfrentar sozinho seus próprios problemas. Às vezes pensava que podia resolver tudo esperando pela chegada de Gunter e Darby para enfrentá-los. Assim pelo menos teria uma prova de quais eram as verdadeiras intenções daqueles dois. Muito provavelmente essa prova seria o próprio cadáver crivado de balas.

Jake tomou mais um gole da ordinária bebida e fez uma careta enquanto o líquido descia garganta abaixo, queimando. Darby e Gunter logo descobririam que ele estava em Guthrie, um lugarejo que era pouco mais do que uma parada da estrada de ferro, e a perseguição recomeçaria.

Num lugar como Filadélfia ele não poderia ser encontrado. Seria apenas mais um rosto no meio da multidão, alguém que não precisaria ficar o tempo todo olhando para trás ou para os lados. Desde que pudesse mudar de aparência, transformar-se numa pessoa por quem Otis Darby não estivesse procurando.

Um som agudo cortou o ar, seguido pelo barulho provocado pelos vidros da janela se quebrando. Agindo por puro reflexo, Jake jogou-se ao chão… surpreendendo-se ao constatar que, depois de tanta bebida, ainda tinha reflexos. Engatinhando rapidamente ele buscou proteção por trás do balcão do bar. Enquanto isso ouviu o barulho de espelhos e garrafas sendo estilhaçados, o fez cair nas costas dele uma chuva de álcool e cacos de vidro.

Mais um tiro espocou.

— O que está acontecendo? — gritou o balconista, despertando do sono.

— Abaixe-se, seu idiota! — respondeu Jake, também gritando, o que fez com que o homem corresse para onde ele já estava.

Inferno, inferno, inferno! Desta vez ele não havia previsto com a necessária antecedência a aproximação dos perseguidores. Mesmo achando que talvez já não adiantasse tanto, sacou do revólver do qual não se separava nunca.

— Quem é o desgraçado que está lá fora? — gritou o balconista.

Jake passou a manga da camisa pela testa para limpá-la das gotas de suor. Ele sabia quem estava lá fora. Só podia ser Will Gunter, genro de Otis Darby. Pelo que ficara sabendo, a filha do fazendeiro havia morrido enquanto o pai e o marido dela estavam na prisão. Logo depois, pouco antes do disparo de Um terceiro tiro, ele viu de relance pela janela os cabelos muito louros do atacante, o que confirmava a previsão.

Jake sentiu uma onda de raiva, a reação de um animal acuado que não estava disposto a se entregar sem lutar até a morte. Olhando para a janela ele ergueu o revólver e fez pontaria. Desta vez atiraria para matar. Mesmo que não conseguisse isso, deixaria no homem uma marca, uma lembrança que poderia servir como prova da batalha que eles estavam travando e que inculparia o desgraçado.

Jake apertou os olhos, mirando a pequena abertura na janela. Com o dedo encostado no gatilho, ficou esperando para ver algo de relance, algum movimento. Mas agora havia apenas o silêncio.

Então Jake foi se erguendo, bem devagar, cautelosamente. Alguma coisa estava errada. Trinta segundos haviam se passado, se tanto. Três tiros, aos quais ele não havia respondido. Não era do feitio de Gunter retirar-se quando estava com a presa encostada na parede.

Tiros soaram na rua, juntamente com o som de um cavalo que se afastava, e os olhos de Jake se arregalaram ante o perturbador quadro que viu. Pendergast. Na excitação do momento ele havia se esquecido por completo do mestre-escola adormecido. Então sentiu um aperto no estômago. Uma mancha vermelha se espalhava num dos lados da camisa do homem. No outro lado, uma poça de sangue ia se formando no chão em conseqüência de um segundo ferimento. Pendergast não estava mais dormindo.

— Eles o atingiram!

Jake voltou os olhos para o balconista, que estava evidentemente chocado.

— Acho que foi algum tipo de vingança — continuou o homem, respirando com dificuldade, limpando nervosamente as mãos no avental amarrado na cintura. — Ouvi dizer que esse homem já foi ajudante de delegado.

Jake sentiu um frio na espinha ao ouvir aquilo e olhou novamente para Pendergast, que ainda estava com o rosto coberto pelo chapéu dele. Eles dois tinham praticamente a mesma estatura e usavam roupas parecidas. Gunter havia cometido um erro. Um erro fatal para Pendergast.

Três homens entraram correndo no estabelecimento.

— Lou! — gritou um deles. — O que aconteceu?

Um sujeito muito magro e de cabelos grisalhos, com uma desbotada estrela metálica pendurada no bolso da camisa, adiantou-se aos outros.

— Esse homem está morto? — ele perguntou, chocado, apontando para o corpo inerte de Pendergast. — Há mais de um ano que não enterramos ninguém nesta cidade.

— É verdade — concordou um outro. — A última foi a Sra. Grizwald, que morreu aos noventa e três anos de idade.

— Isto aqui está me parecendo assassinato — anunciou o xerife.

Todos permaneceram em volta do morto enquanto o balconista relatava o que havia acontecido. Jake também estava ali, mas apenas ouvia vagamente expressões como ajudante de delegado e vingança. O balconista havia adormecido pouco depois da chegada dele ao bar. Sem dúvida era por isso que contava uma história tão confusa.

Jake sentia a cabeça girando. Gunter pensava que o atingira, que Jake Reed estava morto. Depois de cinco anos sonhando com aquilo e quase dois tentando concretizar o sonho, o escorpião certamente estava triunfante. Na certa, naquele momento cavalgava de volta a Redwood para dar a Darby a boa notícia.

— Vou precisar descobrir o nome do falecido — disse o xerife, dando início a sua investigação oficial.

Jake conteve a respiração ao ver que quatro pares de olhos o fitavam. Então ele abriu a boca para falar, mas hesitou e olhou para a valise preta que estava no chão, bem perto dos pés dele. Por que não? Aquela era a chance de fazer com que Darby e Gunter parassem de correr atrás dele. Assumir uma outra identidade o transformaria num homem livre… livre para caçar aqueles dois e pegá-los com a guarda abaixada.

— O nome é Reed — disse Jake, surpreendendo-se com a rapidez com que havia pensado naquilo e com a tranqüilidade com que pronunciava a mentira. — Pelo que me lembro, ele disse que se chamava Jacob Reed.

Se ia ser oficialmente enterrado, Jake fazia questão de que aquilo se realizasse com todo o nome dele, com toda formalidade.

Os homens balançaram a cabeça.

— Por que não chamamos o doutor para dar uma olhada nesse tal Reed? — sugeriu um deles.

— Não há necessidade disso — descartou um outro. — E claro que ele está morto.

O xerife olhou alternadamente para Jake e para o balconista.

— Por acaso esse Reed disse a algum de vocês de onde ele era?

Jake balançou a cabeça. — Não.

— E vocês viram quem atirou nele?

— Não.

— Esse aí quase não falava — pronunciou-se o balconista, fazendo um gesto de cabeça para o lado de Pendergast, que havia passado o tempo todo tagarelando com Jake até sucumbir ao sono provocado pela bebedeira.

— Fiquei com a impressão de que ele estava fugindo de alguma coisa.

— Então é isso — concluiu o xerife, franzindo a testa.

— Talvez alguém na rua tenha visto alguma coisa, mas duvido muito.

Aquelas palavras do homem da lei faziam crer que a investigação estava oficialmente encerrada.

O balconista olhou para Jake enquanto ele pegava a valise e soltava algumas moedas em cima do balcão.

— Boa sorte, moço. Não deve ter sido nada agradável você presenciar o que aconteceu aqui hoje, já que é um homem do Leste e tudo o mais.

— Isso acontece em qualquer lugar — ponderou Jake, imaginando que o lugar mais ao leste do país que-ele já havia pisado devia ser justamente aquela pequena cidade.

— Para onde está indo?

Jake parou. Se havia assumido a identidade de Pendergast, nem estaria mentindo para responder àquela pergunta.

— Annsboro — ele declarou.

Os homens balançaram afirmativamente a cabeça e passaram a se ocupar com o morto.

Annsboro. Jake não sabia onde ficava aquele lugar, mas ouvira o suficiente de Pendergast. Pensando bem, aquilo seria até bom para a cidade. Pendergast havia decidido no meio do caminho que voltaria para Filadélfia, mas mesmo assim Annsboro teria um novo mestre-escola.

    

Embora setembro já estivesse chegando ao fim, Annsboro estava coberta por uma nevoa seca. A relva há muito tempo fora queimada pelo rigor do tempo e apenas algumas árvores de cedro atenuavam a dureza da paisagem desértica.

Jake tirou do bolso do paletó um dos lenços brancos de Pendergast para enxugar o suor da testa. O mestre-escola havia comprado roupas novas, mas só os lenços pareciam adequados ao clima daquela região. O terno de lã encontrado na valise preta servira para Jake, embora o antigo dono fosse mais gordo e um pouco mais baixo, mas agora era como se ele estivesse andando dentro de um forno aceso.

— Se o senhor olhar para a sua esquerda, verá não apenas o único armazém de Annsboro, mas também a nossa futura farmácia.

Lysander Beasley, auto-indicado guia de Jake naquele pobre lugar, fez um gesto largo para a acanhada construção de tijolos e para o terreno vazio ao lado. Numa grande placa de madeira em cima da loja via-se uma palavra escrita em letras vermelhas: Beasley’s.

— O proprietário e gerente é o seu criado aqui. Orgulhoso, Beasley ergueu a mão para enrolar uma das pontas do bigode. Os cabelos grisalhos do homem, separados no meio da cabeça, estavam cuidadosamente penteados para trás. O terno caro e o relógio com corrente de ouro que ele agora consultava, fazendo-o brilhar ao sol, destinavam-se a ostentar riqueza. Gorducho, falastrão e estúpido, Lysander Beasley era o exemplo perfeito do cidadão próspero, daqueles que era sempre estavam prontos para falar em favor da lei e da ordem. Quando por algum motivo um dedes ia para a cadeia, como Otis Darby, rapidamente descobria o sentido da palavra compaixão.

Uma olhada para a empoeirada rua principal da cidade confirmava a impressão de que o armazém era o empreendimento mais bem-sucedido do lugar, embora talvez disputasse essa primazia com o que parecia ser um cabaré, localizado no outro lado da rua, uns quarenta metros adiante. E aquela disputa devia ser renhida. Se morasse num lugar como aquele, Jake gastaria mais dinheiro bebendo do que fazendo compras no armazém.

Então ele se lembrou de que efetivamente morava ali, o que o fez balançar a cabeça, com um ar de descrença no rosto.

Incrivelmente, Lysander interpretou aquilo de forma errada, achando que o recém-chegado estava maravilhado com o lugar que havia escolhido para morar.

— Ah, Annsboro é uma bela cidade, sem dúvida, embora pequena. E aposto que dentro de dois anos teremos aqui um tribunal e juiz residente!

— Não diga! — exclamou Jake, procurando se mostrar impressionado e provocando o riso do acompanhante.

— Mas é claro que o senhor está mais interessado na escola do que em coisas que ainda nem existe. — Beasley soltou mais uma gargalhada. — Venha comigo, Sr. Pendergast.

Jake olhou para a malcuidada construção de tijolos que ficava no outro lado da empoeirada rua, quase de frente para o armazém. Uma placa dizia que ali funcionava uma oficina de ferreiro, mas as janelas estavam lacradas por pranchas de madeira pregadas na parede. Além de algumas casas espalhadas num raio de cem metros, não havia mais nada na cidade.

— Sr. Pendergast?

Jake levou um susto e olhou para Beasley, que caminhava ao lado dele. Se não se acostumasse com o fato de que agora seria Chamado de Pendergast, logo precisaria dar explicações.

A escola, separada do resto da cidade por uma esburacada rua, tinha uma conservação bem melhor do que os outros prédios da cidade. A pintura nova fazia a estrutura branca ressaltar no terreno de barro vermelho.

— Aos domingos Parson Gibbons vem cuidar da escola, mas fora isso tudo aqui será domínio seu — explicou Beasley. — Cecília Summertree tem tomado conta das crianças desde que o último mestre-escola resolveu ir embora. A srta. Summertree é uma moça maravilhosa.

Pelo tom de voz do homem, Jake percebeu que ele queria dizer justamente o contrário.

— O pai dela é um grande criador de gado. A Fazenda Summertree é uma das maiores da região.

Jake já fora informado daquilo. Seria impossível passar por aquela parte do Texas sem ouvir falar na vastidão das terras de Summertree. Bem que Jake gostaria de ter uma propriedade que representasse apenas uma fração daquela, mas fosse tão bem-sucedida. O que ele não entendia era como a filha de um homem tão rico podia se dispor a atuar como professora primária num lugar como aquele.

— Ela nasceu aqui mesmo? — ele perguntou.

— Ah, sim. Não é uma profissional do ensino formada em faculdade, como é o seu caso. Não tem nenhum diploma que possa exibir. Sabe como é… por aqui nem sempre é possível atender a essas exigências. Este ano Cecília passou cinco meses numa escola para moças de Nova Orleans. — Beasley franziu a testa, como se levantasse alguma duvida não explicitada. — O que se esperava era que a srta. Summertree ficasse por lá um ano…

Talvez a garota tivesse ficado com saudade de casa, pensou Jake, se era possível alguém sentir saudade daquele monte de poeira.

— Sei… — ele murmurou, como se concordasse com as nebulosas suspeitas que Beasley lançava sobre a moça.

Sem dúvida aquele homem esperava que um mestre-escola proveniente de Filadélfia fosse uma pessoa de moral intocável.

— Precisamente — voltou a falar Beasley, continuando a caminhar, parecendo convencido de que já havia recrutado o novo professor para o seu grupo de opinião. — Agora quero lhe falar sobre a minha filha, Beatrice. Trata-se de uma estudante aplicadíssima.

Enquanto eles se aproximavam da escola Jake ouvia apenas partes do que era dito sobre as qualidades de Beatrice Beasley. Sem a menor dúvida, qualquer criança que fosse filha de Lysander Beasley, originário de Louis-ville, no Kentucky, seria nada menos do que um prodígio. Jake estava mais interessado nos risos e esporádicos gritos que vinham da escola. A tarde já ia terminando. Ele havia levado mais da metade do dia para encontrar a cidade, depois de desembarcar do trem em Abilene, naquela manhã. Agora a aula já devia estar chegando ao fim e os alunos já tinham ido para casa.

Certamente percebendo que não estava merecendo toda a atenção do acompanhante, Beasley esticou o pescoço, como se quisesse ter uma melhor audição daqueles ruídos.

— Humm… Parece que a srta. Summertree está no seu costumeiro estado de animação.

— De fato — disse Jake, desta vez sem conseguir esconder uma ponta de censura ao comentário do homem.

— Devo acrescentar que o verdadeiro gênio da minha filha repousa no campo da literatura — prosseguiu o insistente Breasley. — A mãe dela… que Deus a tenha… começou a instruí-la muito cedo. Com apenas três anos Beatrice já recitava Shakespeare de cor.

Jake assentiu com a cabeça mas agora já não prestava a menor atenção. Por uma janela aberta ele viu um jovem vaqueiro e uma moça correndo em volta de uma mesa. A mulher, uma belíssima criatura loura, soltou um grito e pulou para cima da mesa. Nisso, mostrou parte das pernas bem-feita*.

— Venha, Ciei — disse o homem. — Sei que é isso o que você quer.

— Nem se você fosse o único homem do Texas, Buck! — respondeu a moça, com um brilho intenso nos olhos azuis e um misto de divertimento e repulsa na voz.

— Mas eu sou o único homem para você, doçura.

— Você enlouqueceu…

O vaqueiro estendeu as mãos para segurar na cintura da jovem. Ao recuar ela quase perdeu o equilíbrio e viu-se forçada a permitir que o rapaz a erguesse no ar, levantando a cabeça e revirando os olhos. Nisso percebeu o movimento no lado de fora da sala.

Ao ver Beasley a moça pareceu amedrontada. Quando notou a presença de Jake, porém, o que apareceu no rosto dela foi vergonha pelo que estava acontecendo.

Jake teve que rir. Afinal de contas, aquela Cecília Summertree era uma promessa de que a curta permanência dele em Annsboro não seria assim tão desinteressante. A figura da moça, tão facilmente sustentada no ar pelo rústico vaqueiro, parecia tão esbelta quanto flexível. Embora usasse um vestido simples de musselina, a jovem tinha um porte naturalmente elegante e justificava a evidente atração que exercia sobre aquele rapaz. E a reação que tivera ao se ver observada por outras pessoas chegava a ser cômica.

Passado o choque inicial, os olhos azuis de Cecília Summertree pousaram em Jake com curiosidade genuinamente feminina. Não que ele fizesse furor entre as mulheres… bem, nos bons tempos chegara a fazer um bom número de corações femininos baterem mais depressa.

— Ponha-me no chão, seu idiota! — exigia a jovem naquele momento.

Beasley, que havia ultrapassado a janela sem reparar na cena que se desenrolava lá dentro, fez um gesto para que o novo professor o acompanhasse pela entrada. Jake procurou ficar sério e acompanhou-o pelo curto corredor, subitamente interessado em saber por que a Srta. Summertree havia deixado a escola de Nova Orleans antes do tempo previsto. Na verdade, qualquer coisa que dissesse respeito àquela mulher o interessaria.

Quando ele apareceu à porta da sala a jovem já estava no chão e procurava ajeitar o vestido. Os olhos deles se encontraram e os dela estavam um tanto apertados, o que talvez demonstrasse desconfiança.

Jake aborreceu-se por não conseguir deixar aquela mulher mais bem impressionada. Não que tivesse alguma intenção de conquistá-la. Afinal de contas, não pretendia passar naquela cidade mais do que alguns dias.

— Sr. Beasley — disse a jovem, numa voz tão enérgica quanto feminina, o que aumentou ainda mais o fascínio de Jake. — Quem trouxe à escola esta tarde?

— Está me parecendo velho demais para ser um aluno — brincou o rapaz, olhando para Jake com curiosidade.

— Por Deus! — exclamou Beasley, como se aquele comentário fosse um insulto ao recém-chegado à cidade.

— Este é o Sr. Eugene Pendergast. Sr. Pendergast, esta é a Srta. Summertree, sobre quem estive lhe falando. E esse rapaz…

— É Buck McDeere — completou Cecília.

O fato de Beasley não saber o nome do vaqueiro não foi surpresa para Jake, assim como não parecia ser para Cecília.

— O Sr. Pendergast é o nosso novo mestre-escola. Ele acabou de chegar da Filadélfia.

Ao ouvir a palavra mestre-escola Cecília Summertree ficou boquiaberta. Outra vez os olhos azuis da jovem examinaram Jake, agora sem satisfação. Aprumando o corpo ela apontou o queixo para frente.

— Filadélfia, é? — ela inquiriu, como se não acreditasse muito.

Jake esforçou-se para não rir. A moça não o cumprimentava, não pronunciava nenhuma saudação. Apenas perguntava sobre a origem dele enquanto o olhava da cabeça aos pés. Talvez«a Srta. Summertree esperasse que os homens de Filadélfia tivessem melhores alfaiates.

Apesar da recepção fria Jake se inclinou educadamente. Tentando pensar no que dizer, lembrou-se do tio Thelmer, de St. Louis. Ao visitar os parentes do Texas, Thelmer deixara claro que se considerava bem mais civilizado que os primos pobres. E era preciso reconhecer que as mulheres pareciam concordar com isso.

— Encantado em conhecê-la, srta. Summertree — ele disse, procurando imitar da melhor maneira possível a sofisticação de tio Thelmer.

Cecília Summertree apertou os lábios.

— O Sr. demorou um bocado para chegar aqui. Já estávamos começando a pensar que não viria mais.

— Infelizmente fui retido no meio do caminho.

— Retido? — ela repetiu, num tom fingidamente doce. — Onde?

— Mas o que é isso, Cecília? — censurou-a Beasley. — E bem verdade que o esperávamos na semana passada, Sr. Pendergast, mas agora estamos felizes por ter chegado aqui em segurança.

Jake suspirou, contente com a interrupção de Beasley. Não estava esperando ter que enfrentar tão depressa o ceticismo de alguém.

— E eu fico feliz em estar aqui — ele declarou, conseguindo mostrar um meio sorriso.

Cecília apertou os olhos. — Ele não me parece um ianque, um nortista.

— Cecília!

— Meus pais são do Alabama — retrucou Jake, com rispidez.

Aquela mulher estava começando a deixá-lo nervoso. Além disso, os pais dele de fato eram do Alabama.

— Pronto — disse Beasley, como se a origem dos pais de Pendergast explicasse tudo. — E espero que você venha a ser uma boa ajuda para que o Sr. Pendergast se aclimate em seu novo ambiente, Cecília. Hoje, porém, acho que tudo o que você tem a fazer é entregar a chave do lugar.

Cecília cruzou os braços. Era no mínimo vinte e cinco centímetros mais baixa do que Jake, mas isso não parecia intimidá-la. Também não parecia afetá-la o fato de que Beasley se apresentava como defensor do novo mestre-escola. Jake contemplou os cabelos louros e os olhos azuis da jovem com um misto de admiração e aborrecimento. Aparentemente não devia esperar muita ajuda da parte dela.

— Imagino que tenha cursado uma faculdade — disse Cecília, num tom cortante.

Jake abriu um sorriso. — Claro.

Pendergast parecera ser do tipo de sujeito que havia cursado uma faculdade. Apesar da bebedeira, mostrara-se inofensivo e retraído.

— Qual? — voltou à carga Cecília, pegando-o de surpresa. O sorriso de Jake tornou-se amarelo.

— Você quer saber o nome da universidade? — ele perguntou, girando nos dedos o chapéu que segurava.

— Na Universidade da Pensilvânia, Deus do céu! — antecipou-se Beasley, evidentemente enraivecido com a curiosidade de Cecília.

Jake lançou ao odioso homem um olhar de gratidão.

— Sim, foi lá — ele disse, outra vez sorrindo para Cecília.

— A mesma de Watkins — acrescentou Beasley.

— Sim, Watkins — confirmou Jake. Mas quem era Watkins? — Ah, o velho Watkins.

Beasley soltou uma gargalhada.

— Está vendo? Agora está tudo explicado… — Dito isso ele estendeu a mão para Cecília. — Onde está a chave?

— A chave está em cima da mesa — ela respondeu, altiva, fazendo um gesto de cabeça. Logo depois, como se cedesse a um impulso, olhou para Jake e acrescentou: — Mas eu não a entregaria a esse… esse impostor!

Jake empalideceu ao ver que a acusação dela acertava na mosca. Bem, ele podia mesmo ser um impostor, mas não havia escapado por pouco da morte para agora deixar que uma garota rica e petulante o privasse daquela oportunidade. Cerrando os punhos ele se preparou para falar em defesa própria.

Desta vez, porém, ao mesmo tempo em que Beasley soltava um grito de horror, ouviu-se a advertência de Buck.

— Ciei… acho que você devia pensar melhor no que fala…

— Mas é verdade! — ela persistiu. — Esse homem não é mestre-escola mais do que eu sou uma… uma…

Jake não resistiu a completar. — Dama?

Cecília arregalou os olhos, chocada. — Como teve a coragem de dizer isso?

— Olhe aqui, amigo… — disse Buck, com os olhos em Jake, dando a impressão de que jamais vira um homem se dirigir a uma mulher de forma tão desrespeitosa.

— Ele não soube nem dizer o nome da universidade que freqüentou — argumentou Cecília.

— A Universidade da Pensilvânia! — repetiu Beasley, exasperado.

— Foi o que eu disse — declarou Jake, agora dirigindo à moça um sorriso descarado.

Cecília empurrou Buck para o lado e deu um ameaçador passo adiante, apesar do afetado pouco caso de Jake. Antes de pôr os pés naquela pequena sala de aula ele não havia pensado muito nas dificuldades que poderia ter que enfrentar por ter assumido a identidade de uma outra pessoa.

Agora fazia uma boa idéia disso. Quando Cecília voltou a falar foi com o indicador de unha comprida apontado para o peito de Jake.

— Vou ficar de olho em você, Pendergast, e o seguirei como se fosse sua sombra. Você pode enganar os idiotas, os Buck e Beasley desta cidade, mas a mim não engana.

Agora eles estavam a poucos centímetros de distância e Jake admirou-a pela demonstração de bravura.

Desta vez Beasley não correu em defesa dele. Os lábios do comerciante estavam trêmulos, acusando a ofensa proferida pela insolente jovem.

Jake sorriu. — Se uma flor tão linda como você avisa que estará sempre perto de mim, só posso ficar contente com essa perspectiva.

Num gesto que certamente deixaria tio Thelmer orgulhoso, ele segurou na mão de Cecília e, galantemente, levou-a aos lábios. Tomada pela surpresa ela conteve visivelmente a respiração e tentou recolher a mão, quase perdendo o equilíbrio quando ele a soltou.

— Oh! — exclamou Cecília, esbarrando numa carteira ao recuar.

As faces dela ficaram muito coradas enquanto os olhos azuis fuzilavam. Jake preparou-se para receber um tapa no rosto, mas Cecília apenas ficou imóvel, pela primeira vez parecendo não saber o que dizer.

Beasley apressou-se em se postar entre eles dois.

— Que quadro bonito de se ver! Agora que vocês dois resolveram essa pequena diferença, nem vou precisar comunicar a seu pai, quando me encontrar com ele, a forma descortês com que você recebeu o nosso novo mestre-escola, Cecília.

Cecília olhou de frente para o homem. — Meu pai?

Beasley soltou novamente aquele riso repelente, algo que estava começando a deixar Jake nervoso.

— Sabe como é: cooperação — ele se explicou. — Foi à cooperação que fez florescerem comunidades pequenas como a nossa.

Aquilo foi dito como se Beasley tivesse certeza de que tinha a garota na palma da mão. E parecia ser verdade.

Cecília dirigiu um último olhar enraivecido a Jake e marchou para a porta. Antes de sair, ainda pronunciou uma advertência.

— Não esqueça..„ eu estarei de olho — ela avisou. — Vamos, Buck.

Quando a porta se fechou, Beasley abriu o sorriso.

— Como eu lhe disse, trata-se de uma garota maravilhosa. Tão… rica — ele acrescentou, como se quisesse explicar exatamente o que a tornava maravilhosa.

— Sei — murmurou Jake, controlando a repulsa que sentia por aquele sujeitinho.

Beasley não demorou a se entregar a mais um monólogo, desta vez discorrendo sobre os padrões morais que a comunidade esperava de um mestre-escola. Jake mal ouvia aquelas baboseiras, ocupado que estava em observar pela janela a retirada da esbelta e sedutora figura de Cecília Summertree.

Ah, ela era linda. Jake pensou naquilo. Era estranho… Parecia até que muitos anos já se haviam passado desde quando ele reparara pela última vez na beleza de uma mulher. Mas como poderia deixar de prestar atenção naquela? Cecília Summertree era a mulher mais obstinada que ele já havia conhecido, uma pessoa que dizia exatamente o que estava pensando. Muito certamente sempre conseguia o que queria.

Como obrigá-lo a ir embora daquela cidade.

Jake franziu a testa. Aquela mulher poderia representar um problema. Um grande problema.

Cecília marchou para a pensão de Dolly Hudspeth na velocidade que o calor permitia. Mas não era apenas a alta temperatura que a deixava com as faces coradas. Ela queria chegar logo ao espaçoso quarto alugado para começar a planejar a vingança. Aquele asqueroso beijador de mãos do Alabama não levaria a melhor sobre ela.

— Espere, Cecília!

Ao ouvir a voz de Buck ela parou e voltou-se, com as mãos na cintura.

— Por que está me seguindo, Buck?

O rapaz parou a dois metros de distância, confuso.

— Você me chamou quando saímos de lá.

Bem, era verdade, mas ao sair da escola ela não estava pensando direito. Cecília agitou a mão, como se quisesse enxotá-lo.

— É, eu o chamei, mas agora vá para casa. E não diga ao meu pai uma só palavra sobre o que aconteceu hoje!

Um largo sorriso apareceu no rosto de Buck. Era um rosto bonito, bronzeado pelo sol. Os cabelos tinham uma coloração acastanhada, tendendo mais para o louro, e os olhos azuis estavam apertados; mostrando a sinceridade do sorriso. Mesmo assim Cecília não se deixou comover. Aquele homem parecia não querer largá-la desde que ela voltara de Nova Orleans, onde sofreara a pior das humilhações.

— Não acha que já está na hora de voltar para a fazenda, Ciei? — ele perguntou. — Agora nada a retém na cidade.

Nada? Cecília queria se desforrar daquele nortista, e isso era tudo. Não, ela não voltaria logo para a fazenda. Além disso, naquela casa ficava sempre a ponto de explodia por causa das discussões com o pai.

Cecília havia acompanhado o calvário da mãe, que definhara anos a fio naquela fazenda amaldiçoada e deprimente. O pai dela parecia não se importar com isso, embora tivesse permitido que a esposa fosse passar uma temporada com os familiares, em Memphis.

Pouco tempo depois de retornar àquele lugar melancólico, porém, a mulher acabou morrendo de escarlatina. As últimas palavras que Evelyn Summertree disse à filha antes de fechar os olhos continham instruções muito claras sobre o lugar onde ela não deveria viver. Cecília nunca se esqueceu daquilo. Sentada na beirada da cama da mãe moribunda, ela havia erguido a cabeça e olhado pela janela, correndo os olhos molhados de lágrimas pela paisagem árida.

— Vou ficar na cidade — declarou Cecília, firmemente, tentando sufocar a„ dor que sentia sempre que pensava na mãe.

Buck chegou mais perto, com os polegares enfiados por trás do cinto da calça.

— Ah, vamos, Ciei. Você não pode estar achando realmente que aquele homem apenas finge ser um mestre-escola, não é?

— Você não ouviu quando ele me comparou a uma flor? Isso pode ser conversa de um caixeiro-viajante, não de um professor.

— Mas você é uma flor — rebateu Buck, com um sorriso que a deixou exasperada. — Além disso, ele me pareceu um sujeito muito normal.

— É esse o seu problema, Buck. Você gosta de qualquer pessoa que vê.

— Mas é de você que eu gosto mais, doçura. Cecília ignorou o galanteio.

— Ele pode parecer normal, normal até demais, mas mestre-escola não parece. Olhava para os lados como se estivesse entrando numa sala de aula pela primeira vez na vida!

— Talvez no Norte as salas de aula sejam diferentes. Cecília mordeu o lábio inferior, pensativa. Não, havia mais alguma coisa…

Antes que ela pudesse concluir o pensamento Buck deu mais um passo adiante e abraçou-a. Cecília empurrou-o com firmeza, soltando-se.

— Vá para casa, Buck — ela repetiu. — Eu ficarei aqui. O rapaz cruzou os braços.

— Como espera pagar pelo quarto alugado? — ele inquiriu. — Para isso o seu pai não lhe dará dinheiro.

— Deixe o meu pai fora disso. Se ele perguntar alguma coisa, diga que o novo mestre-escola ainda não chegou. Quanto a Dolly, eu arranjarei um jeito de pagar pelo quarto.

— Você sabe que mais cedo ou mais tarde o seu pai vai acabar descobrindo — advertiu Buck. — E ele não vai gostar nada quando souber que você não voltou logo para a fazenda.

— Eu sei, eu sei.

Primeiro ela fora expulsa da escola da Sra. Brubeck, agora tinha mais aquela decepção. Quando descobrisse, o pai provavelmente a deixaria trancada no quarto até a virada do século. Bem… presa no quarto ela pelo menos não seria obrigada a aturar os impertinentes empregados da fazenda.

— Deixe comigo a preocupação quanto ao meu pai — disse Cecília, com firmeza. — Posso muito bem dizer a ele que ainda estou ocupada com a escola. Você ouviu quando Beasley disse que eu devia ajudar Pendergast a se adaptar ao novo ambiente.

Buck girou o corpo, enfiou mais ó chapéu na cabeça e começou a andar. Na direção do cabaré de Grady, sem a menor dúvida.

Livre do importuno vaqueiro, embora continuasse com as mesmas preocupações de antes, Cecília retomou a caminhada para a pensão. Ah, devia ter imaginado como seria duro parar de dar aulas às crianças… Na última semana, já que o homem não aparecia, ela até havia acalentado a esperança de que ele não aparecesse nunca. Mas agora ele estava ali, em carne e osso, o que a deixava sem desculpa para continuar na cidade.

Eugene Pendergast! Ela não sabia o que era, mas havia alguma coisa de errado com aquele homem. Ele não falava direito. E usava umas roupas engraçadas.

Droga! Tinha sido tão bom trabalhar durante algum tempo como professora. Depois de voltar de Nova Orleans numa situação humilhante, o que ela mais queria era ficar longe dos olhares de censura do pai. Cecília não conseguia se entender com ele desde que chegara â idade de usar saia comprida. O homem achava que o único objetivo dela na vida deveria ser casar-se, de preferência com um fazendeiro rico. Desde a morte da mãe, quando ela estava com doze anos, Cecília não contava com ninguém que a apoiasse.

Era sempre uma briga que não acabava nunca, contra tudo e contra todos. Convencer o pai a deixá-la ir para a escola de moças em Nova Orleans já tinha sido um tormento. Depois, graças à própria estupidez, ela acabara expulsa da escola por «comportamento desordeiro». Só por ter escapulido uma noite… uma única noite! De que adiantava estar em Nova Orleans só podendo ver uma pequena parte da cidade, e assim mesmo durante o dia?

O pai dela, porém, ficara lívido ao saber do ocorrido.

Por isso tudo Cecília havia agarrado com as duas mãos a oportunidade de se mudar para a cidade e atuar como professora enquanto o titular da função não aparecesse. Um quarto na pensão de Dolly Hudspeth não era como viver em Nova Orleans, mas pelo menos a deixava longe do inferno. Mas agora, para complicar outra vez a vida dela, o mestre-escola havia aparecido… ou pelo menos alguém que dizia ser ele.

Cecília entrou na pensão e caminhou diretamente para a escada, contente em poder ter privacidade para pensar nos próprios problemas. Talvez devesse preparar um banho… Não, isso daria muito trabalho. Bastaria passar um pano molhado pelo corpo e depois se deitar para uma cochilada na macia cama.

— E você, Cecília? — chamou da sala a voz de Dolly.

— Olá, Dolly — ela respondeu, apenas retardando o passo e continuando a andar para a escada. — Estou morta de cansaço. Será que você pode me chamar na hora do jantar?

— Ah, querida…

Cecília ouviu um farfalhar de saias e parou. Dolly Hudspeth era uma mulher ainda jovem, com menos de trinta anos, e no momento era a única pessoa em que ela podia confiar.

Quando se aproximou a dona da pensão estava com os cabelos louros no penteado costumeiro, mas tinha os músculos do rosto estranhamente contraídos.

— Algum problema? — perguntou Cecília, fazendo menção de continuar a andar para a escada, já que Dolly sempre fazia drama acerca de tudo.

— Ah, bem que eu gostaria de ter sido avisada! — disse a mulher, seguindo atrás dela.

— Avisada de quê? — inquiriu Cecília.

— Agora pelo menos eu teria condições de lidar melhor com isso.

— Pelo amor de Deus, Dolly! — exclamou Cecília, confusa. — Você não está dizendo coisa com coisa. O que aconteceu?

Agora as duas estavam no primeiro andar e ela abriu a porta do quarto. Então pôde ver o que havia acontecido: as coisas dela haviam sumido.

— O que aconteceu? — repetiu Cecília, quase gritando. O baú dela, as roupas, até mesmo o pente de prata que sempre ficava ao lado da tina de tomar banho, tudo havia desaparecido.

— Ouça, Cecília — começou Dolly. — Você sabe que este é o meu melhor quarto e sempre foi ocupado pelo mestre-escola da cidade. Sempre, mesmo quando Jubal era vivo.

Cecília apertou os olhos ao ver a valise preta no chão ao lado da cama. Pertencia a Pendergast. Além de usurpar o trabalho dela, ele agora se apossava do quarto que ela vinha ocupando.

Mas não seria por muito tempo, jurou Cecília.

Depois de respirar fundo para se recompor ela se voltou para a dona da pensão e sorriu.

— Sim, claro. — Cecília até conseguiu soltar um riso rápido, como se a mudança de acomodações não tivesse muita importância para ela. — Foi estupidez minha não me lembrar disso. Mas me diga uma coisa, Dolly: onde estão minhas coisas?

Dolly continuou com a expressão de ansiedade, certamente sem acreditar naquela súbita mudança de ânimo.

— Deixei tudo lá embaixo. Imaginei que você voltaria com Buck para a fazenda.

— Para a fazenda? — repetiu Cecília, fazendo um ar de inocência. — Com Buck? Por quê?

Dolly pôs as duas mãos na cintura.

— Caia na realidade, Cecília. Você deve saber como as coisas estão agora. Tenho aqui apenas três quartos para alugar. Um deles será do mestre-escola e outro vem sendo ocupado pela srta. Fanny, que mora aqui desde quando você freqüentava a escola primária. O terceiro… Bem, não posso pôr na rua Lucinda, a prima de Jubal. Ele sairia da sepultura para apertar o meu pescoço.

O pânico começou a tomar conta de Cecília. A fazenda. Ela estava sendo mandada de volta para casa, para a fazenda, quando tinha tantas coisas para fazer em Annsboro. Como ninguém ali parecia suspeitar de Pendergast, embora ela fosse capaz de apostar qualquer coisa como ele não era nenhum mestre-escola, seria preciso ficar por perto para reunir provas. No final, todos naquela cidade, inclusive Beasley, agradeceriam a ela pelo sacrifício.

Mas seria impossível ficar se Dolly não a ajudasse. Ela não poderia espionar Pendergast. Não teria de volta o trabalho, a própria independência. Ficaria presa na fazenda, murchando, até que finalmente concordasse em se casar com algum fazendeiro que a levaria para outro lugar horroroso. Então murcharia de vez, como havia acontecido com a pobre mãe dela.

Cecília praticamente se jogou aos pés da outra mulher. Oh, Dolly… você tem que ter aqui algum lugar onde eu possa ficar! Qualquer lugar!

Dolly sacudiu a cabeça, aflita. —   Não consigo pensar em nada. A casa só tem quatro quartos, Cecília, sem falar no quartinho ao lado da cozinha que é ocupado pela minha lavadeira, quando ela vem aqui… mas esse não é muito maior do que um armário de louça.

A lavadeira? Cecília lembrou-se de Lupe, a jovem que havia trabalhado como lavadeira antes de se casar com um fazendeiro pobre da região. Então sentiu o coração se encher de esperança.

— Armário de louça? — ela exclamou, excitada. — Não me incomodo com isso. Posso muito bem dormir dentro de um armário!

Dolly pareceu horrorizada.

— Ah, não, Cecília.

— Posso mandar algumas das minhas coisas para casa… Hoje mesmo direi a Buck para levar de volta o meu baú!

— De jeito nenhum — discordou Dolly, outra vez sacudindo a cabeça. — Aquele quarto é da lavadeira. Se dispensá-la, vou ter que lavar eu mesma a roupa dos hóspedes. Além disso, dando casa e comida sempre que a moça vem, não preciso pagar muito pelo trabalho.

Isso era verdade, reconheceu Cecília, perdendo rapidamente a animação. Aquele não era mesmo o dia dela. Dolly começou a rir, o que a deixou irritada.

— Não estou vendo graça nenhuma nesta situação — ela despachou.

O riso de Dolly transformou-se em gargalhada.

— Desculpe, Cecília — disse a mulher, procurando se controlar. — É só que… — O riso obrigou-a a fazer nova pausa. — Ah, é uma bobagem tão grande!

Cecília cruzou os braços e esperou até que a outra parasse de rir.

— O que é? — ela perguntou, impaciente.

Dolly usou os dedos para afastar dos olhos as lágrimas provocadas pelo riso.

— Ah, Cecília… E que eu imaginei como seria vê-la debruçada sobre uma tina, lavando roupas.

Por alguns instantes as duas riram juntas, até que Cecília percebeu o óbvio. Excitadíssima, ela segurou nas mãos de Dolly.

— E isso! — ela gritou, saltitando de alegria. — Dolly, você é um gênio! Quando posso começar?

No mesmo instante Dolly parou de rir.

— Ah, não, Cecília. Eu só fiz uma piada.

— Piada ou não, aceito o trabalho.

— Mas eu não posso lhe oferecer esse trabalho — declarou a mulher, com firmeza. — O seu pai arrancaria a minha pele, e a sua também. Além disso, tem certeza de que sabe lavar roupas? Só de pensar nisso…

A mulher interrompeu o que ia dizendo e as duas riram novamente, às gargalhadas. Mas Cecília controlou-se logo e voltou à carga.

— Qual é o problema se eu trabalhar um pouco? Papai não se incomodou quando passei a dar aulas.

O olhar de Dolly mostrou que nem por um instante ela aceitava aquele argumento.

— Há uma diferença enorme entre dar aulas e ser lavadeira. Imagine só se o seu pai descobrir que você está lavando roupas para ganhar a vida!

— Ele não vai descobrir — persistiu Cecília, abaixando uma oitava o tom de voz em geral alto.

Depois de ter escolhido a mais improvável das soluções, ela não estava disposta a desistir.

Dolly arregalou os olhos, na certa percebendo que estava muito perto de contratar para um trabalho manual a herdeira da família Summertree.

— Não há segredos em Annsboro, Cecília.

— Eu sei — rebateu Cecília, agora numa voz cheia de confiança. — Mas papai não mora em Annsboro, não é mesmo?

    

Como as novas acomodações não contavam com o espaçoso armário que havia no quarto destinado ao mestre-escola, Cecília passou algum tempo separando os itens dos quais não poderia abrir mão nas semanas seguinte. O resto pôs dentro do baú para mandar de volta para casa por Buck, que foi obrigado a jurar que guardaria segredo. Depois que Pendergast fosse escorraçado da cidade, e Cecília cuidaria para que isso não demorasse muito, ela mandaria buscar tudo de volta e outra vez se instalaria no antigo quarto.

Dolly orientou-a sobre o trabalho. Pelo jeito a «lavadeira» tinha também outras pequenas tarefas, como ajudar na cozinha, arrumar os quartos e cortar lenha. Cecília não se importava em fazer o trabalho pesado, embora não tivesse muita experiência no assunto, desde que o retorno fosse compensador. Naquele caso, a recompensa era poder ocupar o quartinho ao lado da cozinha.

O quarto, originalmente construído para servir de despensa, tinha uma estreita cama, uma mesa para a tina de lavar roupa e uma meia janela. Apesar do calor, Cecília imediatamente fechou a janela.

Quando o jantar foi servido ela percebeu que o problema daquele quarto não eram apenas as pequenas dimensões. O fogão a lenha da cozinha ficava a apenas três metros da porta dela e, sem a ventilação que a janela aberta proporcionava, o quartinho se transformava num verdadeiro forno. Depois de lavar o rosto e as mãos antes do jantar, Cecília sentiu certo parentesco com a galinha assada que viu no centro da mesa.

Quando tudo estava pronto Dolly olhou com orgulho para a mesa posta. Estava usando o aparelho de porcelana que herdara da mãe e havia colocado um pequeno cálice de cristal na frente de cada prato.

— E para o licor de depois do jantar — ela explicou a Cecília. — Achei que devíamos receber o Sr. Pendergast da forma certa.

— Está tudo perfeito — disse Cecília, sem nenhum entusiasmo.

Na visão dela, a forma certa de receber aquele homem seria esperá-lo empunhando dois revólveres carregados.

Ouviram-se passos na escada, bem como o barulho da bengala de Fanny Baker vindo da sala de visitas, onde a idosa viúva sempre passava a maior parte do dia. A prima solteirona de Jubal, Lucinda, entrou calmamente na sala de jantar, torcendo nervosamente o nariz ao ver a porcelana na mesa. Lucinda era muito tímida.

Ao ouvir a aproximação de passos mais fortes Cecília rapidamente alisou a saia e passou a mão pelos cabelos. Ficaria mais confiante para enfrentar o adversário se estivesse mais bem arrumada.

Mas quando Pendergast finalmente apareceu, ela pôde ver, com satisfação, que a aparência dele também não era das melhores. O terno marrom estava empoeirado, embora ele obviamente houvesse tentado tirar um pouco do pó, e os cabelos estavam úmidos de suor. Ele havia trocado a camisa que usava por baixo do paletó, o que lembrou Cecília de que aquilo não era bom para ela.

Mais roupa para lavar.

— Que mesa bonita, Sra. Hudspeth — elogiou Pendergast, com uma satisfação que surpreendeu Cecília. — Não sabia que havia um banquete programado para esta noite.

Na modesta sala de jantar de Dolly, Eugene Pendergast parecia mais alto do que Cecília se lembrava. E, por menos que ela quisesse admitir, chegava a ser bonito. Embora sujos, os cabelos castanhos caíam sobre a testa como se a jovialidade fosse algo inerente ao mestre-escola. Além disso, só agora ela reparava que o corpo dele podia ser comparado ao de um atleta. Aquilo a deixou ainda mais desconfiada. Ninguém desenvolvia a musculatura enquanto lia livros!

Mais do que qualquer outra coisa, porém, eram aqueles olhos negros que chamavam a atenção, olhos que brilhavam como duas brasas. Cecília sentiu um arrepio na espinha, mas não foi nada que a impedisse de reparar que nos cantos daqueles olhos fascinantes havia finas rugas. A pele castigada daquele homem era uma indicação de que ele havia passado boa parte da vida ao ar livre.

Com as faces coradas, Dolly sorriu e indicou ao Sr. Pendergast o lugar que ele deveria ocupar. Naquele momento Fanny Baker entrava na sala, dirigindo-se ao lugar que sempre era dela. Por alguns instantes Cecília ficou parada por trás da cadeira, imaginando o instante em que o inimigo se dirigiria a ela. Eles precisavam esperar pelo Sr. Walters, que trabalhava na loja de Beasley e fazia as refeições na pensão de Dolly. Todos o consideravam um recluso, algo que Cecília não entendia. Afinal de contas, o homem passava em público todas as horas em que estava acordado.

— Imagino que não considere grande coisa a nossa cidade, Sr. Pendergast — disse Cecília, ressentida por ele não a ter cumprimentado.

— Ah, srta. Summertree. — Ele a olhou como se ela fosse um inseto que houvesse pousado no encosto da cadeira. — Pensei que há esta hora já estaria na fazenda.

Pendergast falou com naturalidade, mas aquelas palavras deixavam claro que ele não estava muito contente em vê-la.

Cecília sorriu, triunfante. — De jeito nenhum. Como vê, Sr. Pendergast, continuo aqui.

__Então é muita sorte minha e de Annsboro contar com sua agradável presença por… por mais quanto tempo mesmo?

Cecília ergueu um pouco mais a cabeça. — Indefinidamente.

Jake engoliu em seco ao ouvir aquilo. Havia imaginado que Cecília Summertree não ficaria por muito tempo em Annsboro.

— Pois é isso — ela voltou a falar, com um sorriso maldoso. — Estarei aqui para ajudá-lo no que for preciso, exatamente como Lysander Beasley recomendou.

Jake procurou se controlar, sabendo que nada deixaria Cecília mais contente do que ver o mal-estar dele. Aquela mulher parecia muito determinada a importuná-lo de todas as formas, mas talvez aquilo fosse até bom. A presença dela serviria para que ele se lembrasse de que devia ficar sempre atento. Precisaria tomar muito cuidado, pelo menos até não ser mais um forasteiro naquela cidade, ou, melhor ainda, até que pudesse ir embora de Annsboro. Ah, como ele ansiava por esse dia.

Uma conversa difícil se desenrolou até que Walters finalmente apareceu. O calvo homem fez um gesto mudo de cabeça ao ser apresentado a Pendergast e todos se sentaram para devorar a galinha, o feijão e os rolinhos salgados que Dolly havia preparado. Jake ficou contente em poder começar a comer a saborosa comida em silêncio, embora soubesse que aquela sorte não duraria muito tempo.

— Fale-nos da sua cidade — sugeriu Cecília, menos de dois minutos depois de ter começado o jantar. — Sei que Annsboro está muito longe de se comparar a Pittsburgh.

— Filadélfia — ele a corrigiu.

— Isso. — Cecília sorriu, embora Jake fosse capaz de jurar que ela estava desapontada com o fato de que ele se lembrava do nome da cidade de onde dizia vir. — Filadélfia. Annsboro não pode se comparar a Filadélfia, claro.

Embora não conhecesse Filadélfia, Jake concordava com ela. Pensando bem, Annsboro não podia se comparar a nenhuma das cidades que ele conhecia.

Mas ele precisava se mostrar simpático, ganhar tempo.

— A galinha está uma delícia, Sra. Hudspeth — disse Jake, gostando tanto do sorriso de satisfação de Dolly quanto da inquietação que evidentemente dominava Cecília. Antes que ela pudesse cobrar uma resposta para a pergunta ele retomou a palavra. — Tudo o que posso dizer sobre Annsboro é que ela parece ser uma… uma cidade única.

Dolly gostou de ouvir aquilo.

— O senhor não acreditaria se lhe disséssemos o quanto esta cidade tem progredido, Sr. Pendergast.

Não, ele não acreditaria.

— Ouvi dizer que Beasley está construindo uma nova loja.

— E já era tempo — confirmou Dolly entusiasmada.

— Temos quase trinta famílias morando em Annsboro. — Então ela olhou para Cecília, que franzia a testa reprovando aquela mentira. — Bem… nas redondezas, pelo menos — explicou-se a dona da pensão.

— Fazendeiros sujos — resmungou Fanny Baker, que tinha estado entre as primeiras famílias a se fixarem na região. Embora os Baker há muito houvessem perdido as suas terras, ela ainda olhava para os recém-chegados com ares de superioridade. — Poucos deles ficarão até o fim do próximo inverno, mas chegarão outros para ocupar o lugar. Todos querem ter a sua propriedade, mesmo que seja apenas um pedaço de terra seca. Só sobreviverão aqui os grandes fazendeiros, donos de terras onde exista água em abundância.

— Imagino que seja esse o caso da fazenda Summertree.

Jake não conseguiu dizer aquilo sem certa dose de sarcasmo e olhando para Cecília. Ele conhecia grandes fazendeiros e já havia trabalhado para eles. Também havia mandado um deles para a cadeia, façanha pela qual agora pagava muito caro.

— Sim, mas isso não quer dizer que não tenhamos simpatia pelos pequenos fazendeiros — respondeu Cecília, eriçada.

Como ele podia ter a petulância de insultá-la? O que aquele homem de Filadélfia, se realmente fosse de lá, podia saber sobre aquela região?

Agora, mais do que nunca, ela estava determinada a expulsá-lo da cidade.

Dolly riu nervosamente numa tentativa de acalmar a hostilidade entre os comensais.

— Parece que todos por aqui têm idéia formada, Sr. Pendergast — ela disse, lançando à jovem amiga um olhar de repreensão. — Até mesmo as mulheres.

Jake mostrou um sorriso condescendente.

— É uma cidade muito interessante. Um dia quero saber tudo sobre Annsboro.

Outra vez ele acalentou a esperança de poder comer em paz, mas em vão, porque logo Cecília voltou à carga.

— Nesse caso, talvez devamos contar a ele como foi o massacre dos índios.

— Oh, Cecília! — exclamou Dolly, levando a mão à boca. — Não durante a refeição, por favor!

Jake conteve um sorriso ao ver que Cecília parecia contente consigo própria. Foi com satisfação que ele fez um ar de espanto, fingindo ser um homem de Filadélfia ansioso para ouvir sobre os primitivos habitantes daquela região.

— Massacre dos índios? — ele perguntou, fingindo nervosismo.

O Sr. Walter pousou o talher sobre o prato, no que foi imitado pelos demais. Na certa eles não podiam ao mesmo tempo comer e ouvir sobre os índios. Jake também pôs o talher no prato, achando que devia seguir os costumes do lugar. Lucinda e a Sra. Baker balançaram a cabeça, ambas com um ar de desgosto.

— Esta região pertencia aos comanches — começou Cecília.

— Oh, Cecília! — censurou-a Dolly. — Tem mesmo que fazer isso?

— Os comanches eram índios muito ferozes — prosseguiu Cecília, sem dar atenção à amiga.

Por mais dolorosa que fosse a história, valeria a pena contar se isso servisse para deixar aquele homem assustado e disposto a voltar para Filadélfia.

— Comanches? — disse Jake, procurando manter o ar de ansiedade. — Acho que já ouvi falar neles.

— Logo depois que os primeiros colonos se instalaram aqui, os comanches tentaram expulsá-los. Atacaram pela manhã, quando os brancos estavam ocupados em seus afazeres. Três homens morreram trucidados e várias mulheres foram atacadas pelos selvagens.

Jake percebeu que aquela era uma forma delicada de dizer que as mulheres tinham sido violentadas. Lucinda parecia a ponto de desmaiar.  

— Uma menina, na época com doze anos de idade, foi levada como prisioneira e nunca mais se teve notícia dela.

— Oh, meu Deus… — murmurou Jake.

Ele conhecia várias histórias como aquela, mas era sempre algo que deixava qualquer um arrepiado.

— Chega, Cecília — ordenou Dolly.

Cecília estava com as faces coradas enquanto narrava a história, que sempre a fascinava e horrorizava na mesma medida.

— Os colonos resolveram dar ao lugar o nome da garota. Assim, se conseguisse escapar, ela talvez pudesse encontrar o caminho de volta para casa.

Durante um longo momento todos ficaram em silêncio, olhando cada um para o próprio prato. Estava claro que a menina chamada Ann jamais havia retornado. Jake sabia que os índios não haviam sido totalmente banidos daquelas terras e a gente de Annsboro tinha uma lembrança dolorosa da presença deles. As incursões dos comanches eram sempre sangrentas. Quem sobrevivia raramente esquecia. Ou perdoava.

— Era uma menina muito doce — pronunciou-se Fanny Baker.

— Que história horrível! — exclamou Dolly. — Você devia se envergonhar de tocar nesse assunto, Cecília. O Sr. Pendergast poderá ficar com uma impressão errada da nossa cidade!

Só então Jake lembrou-se de que estava ali representando o papel de um mestre-escola. Do outro lado da mesa Cecília sorria para ele, mas era um sorriso de escárnio.

— Espero que não tenha ficado assustado, Sr. Pendergast.

— Ai, meu Deus — ele disse, sacudindo o corpo como se sentisse um arrepio por causa da história. — Não há mais desses comanches por aqui, não é?

Antes que Cecília pudesse dizer qualquer coisa Dolly se antecipou.

— Sumiram há muito tempo. Há mais de sete anos que não aparece um índio de verdade na cidade!

— Graças a Deus.

— Mesmo assim, é sempre bom fechar bem as portas à noite — recomendou Cecília.

Jake olhou-a nos olhos, estranhamente achando que desta vez ela falava sério. Se Eugene Pendergast não tivesse sido morto à bala, uma semana antes, na certa morreria agora, de medo. A estratégia de Cecília não podia ser melhor, embora visasse o alvo errado.

Depois de algum tempo Jake empurrou o prato.

— Acho que perdi o apetite, o que me faz dispensar uma comida maravilhosa.

Dolly soltou um suspiro de exasperação. — Está vendo o que você fez, Cecília?

Cecília arregalou os olhos azuis e fez um ar de inocência.

— Mas o Sr. Pendergast disse que queria ouvir um pouco da nossa história.

Por um instante os olhos deles se cruzaram e Jake viu a determinação de que aquela jovem estava possuída, ela estava decidida a ter de volta a função que vinha desempenhado e faria tudo para conseguir isso, mesmo que tivesse que ferir pessoas inocentes.

Droga! Se o mundo era tão grande, por que Cecília Summertree tinha que querer exatamente o lugar que ele agora ocupava? Jake só precisava ficar ali durante certo tempo, talvez umas poucas semanas, até que Gunter e Darby acreditassem que ele estava morto. Mas, pelo jeito, durante esse curto período ele teria que enfrentar a oposição de uma megera loura e cheia de tenacidade.

Jake jamais havia se considerado um homem sem defeitos, mas as mulheres nunca tinham estado entre as maiores fraquezas dele. Agora já não estava tão certo disso. Apesar de saber que estava diante de uma inimiga, era espantoso a fascínio que sentia por aqueles olhos azuis, pelo jeito com que Cecília Summertree movimentava aquele corpo de deusa. Era preciso tomar muito cuidado, não apenas com ela, mas consigo próprio.

— Também não quero mais comer — disse Dolly, rindo e tentando aliviar a tensão que havia tomado conta da mesa. — Que tal se tomarmos um licor? — Dito isso ela se levantou e caminhou até a mesinha de canto para pegar uma garrafa. — Estou guardando este aqui há mais de um ano para uma ocasião especial.

As pessoas à mesa não esconderam o espanto enquanto a mulher ia enchendo os cálices com o líquido escuro. Mesmo Fanny Baker, que morava ali há muitos anos, jamais vira tanta liberalidade.

— Quando quer você sabe ser sofisticada, Dolly — comentou a velhota.

Dolly segurou no próprio cálice para erguer um brinde.

— Ao nosso mais novo cidadão, vindo diretamente de Filadélfia.

Mesmo numa mesa cercada por pessoas vindas de outros lugares, Filadélfia parecia uma cidade longínqua. Jake moveu a cabeça em agradecimento e todos provaram do licor, que tinha um gosto realmente agradável.

Jake estalou a língua em aprovação. — Saborosíssimo, Sra. Hudspeth.

Dolly sorriu, novamente corada. — Quer mais um pouco? — ela ofereceu, empurrando a garrafa para o lado dele.

Cecília olhou atentamente para o mestre-escola enquanto ele servia de mais licor.

— É um conhecedor de vinhos, Sr. Pendergast?

Jake esforçou-se para não rir. Na verdade ela queria saber se ele era um beberrão.

— Qualquer pessoa aprecia uma bebida de qualidade vez por outra, não concorda? — ele perguntou, num tom displicente.

Cecília não respondeu, demonstrando frustração. Jake aproveitou para desejar boa noite a todos e retirou-se.

Já fora da sala de jantar, enquanto caminhava pelo corredor, ele olhou para trás. Naquela manhã havia pensado que durante algum tempo não precisaria se preocupar com os tradicionais perseguidores, mas agora era Cecília Summertree quem estava nos calcanhares dele.

Uma vez no quarto Jake se deitou na cama. Os lençóis limpos proporcionavam uma sensação muito agradável, o que o fez pensar na eternidade que já se havia passado desde que estivera pela última vez numa casa de verdade, com uma mulher cuidando da comida, da limpeza, do conforto. Há muitos meses que ele não comia uma comida tão boa quanto a que Dolly servira naquela noite. Pelo menos naquele aspecto, a curta estada dele em Annsboro seria agradável. Em geral Jake não se incomodava em viver sempre aqui e ali, às vezes tendo que dormir ao ar livre, mas era muito bom poder contar com os cuidados de uma mulher.

Aquilo o fez lembrar-se da pequena casa onde vivera com a família, antes que Otis Darby pusesse na cabeça que aquele pequeno pedaço de terra tinha uma jazida de carvão mineral. Um especulador envolvido em vários negócios, Darby resolvera que se apossaria da terra da família Reed, de um jeito ou de outro. Em vez de fazer uma oferta pela propriedade, entrou na Justiça alegando que o pai de Jake havia se apossado ilegalmente da terra. A batalha que se seguiu acabou matando o Jonathan Reed, que sofria do coração. Embora ficasse provado que as acusações de Darby eram falsas, Jake e a mãe doente não tiveram como cuidarem sozinhos da propriedade.

Jake procurou sufocar a amargura. Darby acabara se apossando da terra que era dele por direito, uma terra de onde não se retirara um único quilo de carvão mineral ou qualquer outra coisa, O desgraçado provavelmente nem se lembrava mais daquilo. Mas a ganância daquele homem repulsivo acabara levando à morte o pai e a mãe de Jake, e isso ele não esqueceria.

Depois de respirar fundo ele procurou pensar em outra coisa, algo que não fosse triste.

O quarto tinha um perfume agradável. Pensando naquilo Jake concluiu que só podia ser o de Cecília, já que ela morara ali, dormira naquela cama. A imagem daqueles olhos muito azuis e dos lábios rosados apareceu na mente dele, fazendo ansiar por um outro toque feminino do qual estava carente há muito tempo. Mas por enquanto era melhor também não pensar nisso.

No momento Jake tinha um assunto mais doloroso para tratar, mais precisamente o maço de cartas que havia encontrado nas coisas de Pendergast e que há uma semana vinha evitando ler. Por sorte, entre os pertences do desditado mestre-escola encontravam-se coisas mais interessantes, como livros baratos com histórias sobre xerifes, bandidos e outros personagens do Oeste selvagem, todos apresentados na visão dos escritores do Leste.

Aquelas histórias provavelmente haviam enchido a cabeça de Pendergast, dando a ele uma idéia errada da terra que estava sendo colonizada. Há alguns dias Jake vinha lendo aquelas histórias, o que o ajudava a passar o tempo.

Mas agora ele pensava seriamente na necessidade de escrever à esposa do homem morto, ou à namorada, ou, o que seria pior, à mãe. Teria que relatar a morte trágica de Pendergast, tomando o cuidado de não revelar o equívoco do assassino.

Por alguns instantes Jake ficou olhando para o maço de cartas, muito certamente escritas por uma mulher. Os envelopes ainda exalavam um perfume floral, na certa o preferido da remetente. Além disso, a graciosa caligrafia era evidentemente feminina. Por sorte todas as cartas tinham o mesmo estilo de letra, o que significava que ele só precisaria escrever para uma pessoa.

As cartas não eram muitas e ele as abriu. Pelas datas, eram todas recentes. Jake separou a mais antiga e suspirou antes de começar a leitura.

Querido irmão… Então a remetente era uma irmã de Pendergast. Ele devia ter adivinhado. Bem que eu gostaria de que você não precisasse nos deixar tão cedo, embora entenda perfeitamente a sua inquietação. Provavelmente você ficará espantado ao saber que eu, sua irmã mais velha, também sonho em viajar. Acho que escolheria outra região que não o Texas, mas teria que ser também um lugar selvagem e que satisfizesse às fantasias que alimento desde a adolescência… Jake saltou o último parágrafo e leu a assinatura. Com o amor da sua irmã, Rosalyn.

Todas as outras cartas seguiam a mesma linha. Aquela Rosalyn não era de se deter em tediosos detalhes da vida diária, preferindo um tom filosófico. Mesmo assim Jake pôde recolher alguns fatos. Ficou sabendo que a irmã de Pendergast ainda vivia em Filadélfia, onde dava aulas. Morava na casa de uma tia hipocondríaca e rabugenta, a qual entregava a maior parte do que ganhava. Não era uma vida feliz, concluiu Jake, e seria insuportável para um rapaz.

Quanto a Pendergast, Jake ficou sabendo que ele estivera viajando durante alguns meses, numa jornada sem pressa, visitando parentes a amigos que moravam ao longo do caminho para o Texas. Tudo levava a crer que, ao partir, o jovem mestre-escola não pensava em retornar para Filadélfia ou juntar dinheiro trabalhando como professor para depois reiniciar a viagem sem rumo certo.

O aspecto mais intrigante daquelas cartas era que Rosalyn mostrava-se obviamente determinada a se juntar ao irmão quando ele estivesse instalado. Bem, isso não aconteceria mesmo que Pendergast tivesse sobrevivido, já que estava de volta para Filadélfia quando Jake o conhecera. Agora era preciso tirar aquele projeto da cabeça da irmã do finado mestre-escola.

Parecia arriscado, mas Jake resolveu simplesmente contar a ela a verdade… pelo menos superficialmente. Não havia motivo para que a mulher pensasse que a bala que matara o irmão dela tinha sido realmente destinada a Jake. Acontecera um mal-entendido que acabara causando a morte trágica de Pendergast. O que mais uma mulher iria querer saber, afinal? Jake mandaria no envelope o dinheiro que havia encontrado na carteira de Pendergast, uma quantia razoável e que Rosalyn não precisaria entregar à tia. Provavelmente ela escreveria de volta, pedindo a remessa dos pertences do irmão. Jake apenas alegaria ignorância quanto a isso. Não havia como explicar que não podia devolver as roupas do homem morto porque precisava usá-las.

Dificilmente ela insistiria.. ou pelo menos não antes que ele conseguisse sair daquela enrascada. Depois, com um pouco de sorte, Jake jamais voltaria a ouvir falar em Rosalyn Pendergast.

O nome Sr. Pendergast estava escrito em letras grandes no quadro-negro da classe. As crianças ocupavam seus lugares, trabalhando arduamente. Sentado à sua mesa, Pendergast ajudava Wilbur Smith, de doze anos, em geral o mais desordeiro da classe, a resolver um problema de matemática.

De pé à entrada da sala, Cecília sentiu vontade de gritar. Estava com a palma das mãos vermelha de tanto esfregar roupa em água quente e ainda faltavam várias peças para lavar. Tinha ido até a escola na esperança de ver algo que a animasse, mas aquilo não era o caos que havia esperado encontrar.

Todos os dezoito alunos se comportavam perfeitamente concentrados em resolver o problema que o professor havia apresentado. Vez por outra um murmúrio quebrava o silêncio, mas nada de gritos ou papel voando para todos os lados. Que diabo aquele homem podia ter feito para controlar aquelas crianças? Cecília sentiu um misto de espanto e raiva por causa do que estava vendo.

Com ela aquelas crianças jamais haviam se comportado tão bem!

Talvez ele fosse mesmo um professor e as suspeitas dela resultassem apenas da vontade de que a realidade fosse outra. Se fosse esse o caso, não adiantaria nada continuar em Annsboro escaldando as mãos numa tina de roupa. Na fazenda, mesmo tendo que suportar os olhares de desaprovação do pai, ela podia contar com Clara, a maravilhosa empregada que fazia tudo na casa.

Cecília estava parada a dois passos da porta, no interior da sala de aula. Quando começou a recuar para sair, esbarrou no cabide em forma de árvore onde os alunos penduravam seus casacos e chapéus. Como estava andando para trás ela perdeu o equilíbrio e caiu com o traseiro no chão.

O barulho que aquilo produziu chamou a atenção dos presentes e no mesmo instante dezoito corpinhos se ergueram de seus assentos. Durante o curto período em que estivera à frente daquela classe ela tentara ensinar aos alunos que eles deveriam se levantar sempre que algum adulto entrasse. Pelo jeito Pendergast havia conseguido convencê-los daquilo em apenas um dia.

— Ah, srta. Summertree — disse Pendergast, também se levantando. — Foi muita gentileza sua vir nos fazer uma visita. — Caminhando até onde estava Cecília, ainda Sentada no chão, ele galantemente ofereceu a mão. — No entanto, pelo que vejo na sua expressão eu juraria que estava nos espionando.

— Espionando? Espionando? — repetiu Cecília, imóvel. — É claro que eu não estava espionando!

Risos abafados partiram dos alunos, que formaram um círculo em torno deles dois. Os pequenos deviam achar muito engraçado verem a ex-professora sentada no chão.

Jake também sentia vontade de rir. Ele havia percebido logo a presença de Cecília e perguntara-se por que ela não se anunciava. Muito certamente aquela mulher estava querendo encontrar uma prova de que ele não tinha condições de exercer a função de professor, o que era a pura verdade. Por sorte, no período em que havia trabalhado como ajudante de xerife ele havia aprendido a sair das mais complicadas situações… em alguns casos usando o suborno. Naquele dia, por exemplo, ela havia gasto um bom dinheiro comprando balas e doces para as crianças. Ao ver o olhar de desgosto nos olhos azuis da bela adversária, porém, Jake teve certeza de que valera a pena cada centavo gasto.

Cecília ignorou a mão estendida e levantou-se sozinha.,

— Eu só queria verificar se você estava tendo alguma dificuldade — ela disse, rispidamente, ao mesmo tempo em que batia o pó da saia. — Achei que talvez quisesse ajuda no seu primeiro dia. — Logo depois mostrou um sorriso amarelo. — Mas estou vendo que não precisa da minha ajuda.

— Por Deus, não — ele declarou. — Assim como você não me pediria para pendurar no varal a roupa lavada, — Jake abriu o sorriso, querendo mostrar que sabia muito bem qual era o propósito daquela visita. — Hoje é dia de lavar roupa, não é?

Cecília fez uma expressão de raiva. Não devia estar gostando da idéia de servir de criada pára ele, mesmo indiretamente.

— Tome cuidado, Pendergast, ou qualquer dessas manhãs poderá encontrar a Ode ao Oeste transcrita aí nesse quadro-negro.

Jake apertou os olhos, sem entender. — De que ela estava falando, afinal?

Cecília abriu um sorriso malicioso.

— O poema que encontrei no bolso da sua camisa, Sr. Pendergast.

Droga! Depois de ler tantos livros, o verdadeiro Pendergast havia querido exercitar seu duvidoso talento para a poesia.

— Ah, isso… Não me lembro de onde copiei o poema. Cecília cruzou os braços e apertou os olhos, numa postura a que ele já estava começando a se acostumar.

— No seu lugar eu daria uma boa olhada nos bolsos antes de pôr a roupa para lavar. Do contrário, talvez se espalhe pela cidade que… — Nesse ponto ela abriu os braços e passou a falar numa voz impostada, recitando um dos versos do poema. — … que “o seu coração anseia por repousar no seio da pradaria”.

Mais risos abafados espalharam-se pelos alunos e Cecília correu os olhos pela audiência, reparando também que Pendergast ficava com as faces coradas. Perfeito.

— Tem mais: “O céu é como os olhos de uma amante, piscando para mim à noite”.

Agora as crianças riam abertamente.

— Recite mais, Cecília! — pediu Tommy Beck.

— Sim, mais versos — apoiou o peralta Wilbur. — E que falem de seios!

A mão surpreendente forte de Pendergast apertou o braço de Cecília. Aquele contato provocou uma onda de excitação, mas ela se recuperou a tempo e olhou para ele com uma expressão de doçura.

— A beleza da sua poesia, Sr. Pendergast, quase me fez desmaiar sobre a tina de roupas.

Dito isso ela fechou e abriu languidamente os olhos, arrancando gargalhadas da criançada.

A única coisa que Jake pôde fazer foi amaldiçoar Pendergast, amaldiçoando também o nariz arrebitado de Cecília Summertree e aquele sorriso maldoso. Com aquilo ela havia conseguido fazer com que as crianças se entregassem à algazarra. Para acalmá-las ele teria que gastar mais um dólar em balas e outras guloseimas! Jake foi arrastando Cecília para a porta.

— Obrigado, srta. Summertree, pela sua rápida visita — ele disse, a muito custo se contendo para não fazer algo mais violento.

Se não estivesse representando o papel de um bem-educado professor primário, daria àquela mocinha rica uma boa lição.

Como jamais fora expulsa de nenhum lugar, a não ser de uma escola para moças ou da casa de uns parentes arrogantes de Memphis, Cecília não entendeu muito bem o que Pendergast estava fazendo. Só achava que a atuação dela fora aprovada pela audiência.

— Não sabia que os homens de Filadélfia eram tão fortes. Deve ter passado muito tempo carregando livros pesados, Sr. Pendergast.

Mais risos partiram dos alunos.

— Claro — respondeu Pendergast, dando mais um leve empurrão nela quando eles alcançaram à porta. — De outra forma, como poderia enxotar da minha escola mocinhas impertinentes?

Enxotar’? Mas o que estava acontecendo ali? Aquele homem não tinha o direito de fazer aquilo! Ela não precisaria dizer de quem era filha ou de que família procedia. Queria apenas o respeito devido a qualquer ser humano, o que sempre recebera de todos em Annsboro.

Pelo menos… até aquele dia.

Cecília sentiu uma onda de abatimento. Até o dia anterior ela era Cecília Summertree, a professora interina da cidade, ocupando o melhor quarto da pensão de Dolly Hudspeth. Agora não era nada além de uma lavadeira que ocupava o lugar de Lupe Viega e morava num minúsculo quarto ao lado da cozinha da pensão.

Então Cecília reparou nos muitos pares de olhos que a fitavam. Nenhuma daquelas crianças ali mostrava solidariedade por causa da situação aflitiva que ela enfrentava. Nem mesmo Tommy, que momentos antes agira como um aliado da ex-professora. E aquele menino estava mastigando goma de mascar, o que era contra as normas da escola!

Subitamente Cecília se sentiu constrangida. Não era mais bem-vinda naquela escola, que até recentemente era como se fosse dela. Não enquanto Pendergast desse as ordens por ali.

Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa Jake agarrou-a novamente pelo braço e arrastou-a até os degraus da varanda. Cecília resistiu como pôde, mas ele não se importava com o que ela pudesse pensar ou com o quanto ficasse zangada. A simples presença daquela mulher o deixava nervoso.

Depois que ele a fez descer o último degrau Cecília girou o corpo e encarou-o.

— Seu… seu grosseiro! — ela o acusou, enraivecida.

— Grosseiro? — perguntou Jake, fingindo-se lisonjeado. — Ninguém nunca me chamou disso. Gostei muito.

Mas que homem irritante! E pensar que na noite anterior ela chegara a achá-lo atraente… uma idéia ridícula, sem dúvida.

— Fique longe de mim, Pendergast — advertiu Cecília.

— Ficar longe de você? Mas… não estou entendendo. Ontem mesmo você disse que passaria a ser a minha sombra. Talvez deva seguir o seu próprio conselho.  

Os olhos azuis de Cecília pareciam querer fulminá-lo. —Não foi um conselho, Pendergast, mas uma advertência.

Depois de brindá-lo com mais um olhar de ódio ela girou nos calcanhares e bateu em retirada.

Jake sorriu, admirado da facilidade com que havia sobrevivido àquele embate. E era bem provável que ele não tivesse mais muito trabalho com aquela atrevida. Cecília não agüentaria por muito tempo o duro trabalho que vinha fazendo na pensão de Doly Hudspeth e voltaria para a fazenda do pai, deixando-o em paz.

Enquanto isso não acontecesse, porém, era recomendável ele tomar muito cuidado… e rezar para que tivesse dinheiro suficiente para manter aqueles pivetes sob controle enquanto não estivesse em condições de ir embora para sempre daquela cidade.

    

Cecília jurou que cuidaria para que Eugene Pendergast lamentasse amargamente o dia em que havia resolvido ir para Annsboro. Ele a humilhara na frente dos ex-alunos dela, enxotando-a como se ela fosse uma… uma ninguém! Era preciso reconhecer que, ao aparecer na escola sem ter avisado e sem um bom motivo, ela não tivera um comportamento elogiável… mas a provocação havia partido dele!

Mantendo os punhos cerrados enquanto marchava pela empoeirada rua, Cecília passou da esquina que devia dobrar para chegar à pensão. Enraivecida como estava, em pouco tempo lavaria uma tina cheia de roupa, mas não queria ir logo para lá. Dolly perceberia que alguma coisa havia acontecido e ela preferia não revelar à amiga o que pretendia fazer com Pendergast. Tomaria providências para que ele fosse despedido.

Mas como?

Cecília havia quase atravessado a cidade quando viu Buck saindo do cabaré de Grady. O vaqueiro havia se encarregado de levar as coisas dela de volta para a fazenda na noite anterior. Tudo levava a crer, porém, que ainda não havia saído da cidade.

— Venha cá, Buck McDeere! — chamou-o Cecília.

Embora houvesse apenas eles dois na rua, o rapaz ficou olhando para ela durante algum tempo, parado, como se quisesse reconhecê-la. Depois de esfregar os olhos, começou a se aproximar.

— Ficou nesse lugar desde ontem à noite, Buck? — inquiriu Cecília.

— Não, só vim agora pela manhã.

— Pela manhã? — ela repetiu, achando aquilo esquisito. — Por acaso papai o mandou aqui para buscar alguma coisa?

— Foi, sim. Vim buscar você.

— Veio… me buscar? — gaguejou Cecília.

— Eleja sabe da chegada do novo professor, Ciei. Não gostou da idéia de você continuar na pensão de Dolly.

— Droga!

— Ontem à noite ele ficou um tempão andando de um lado para outro, repetindo que você se acha melhor do que as outras pessoas.

Cecília encheu-se de indignação. — Mas isso não é verdade!

— Eu sei, mas seu pai tem estado furioso desde que você saiu da fazenda.

— Ele está furioso desde que eu voltei de Nova Orleans. Cecília achava natural a ira do pai por ter uma filha que fora expulsa da escola, mas que diferença podia fazer ela ficar ou não na fazenda?

Depois de hesitar por alguns instantes, Buck voltou a falar.

— Ele disse que você devia se casar para aprender qual é o seu lugar.

Casamento!

— Ai, meu Deus! Nunca ouvi nada mais absurdo!

— Eu sabia que você não ia gostar de ouvir isso — disse o rapaz, juntando as mãos como se pedisse desculpas. — Só estou repetindo o que ele disse, Ciei.

Cecília bateu com o pé no chão, enraivecida, e aquele gesto fez levantar uma nuvem de poeira. Havia ocasiões em que o mundo inteiro parecia conspirar contra ela.

— Preciso pensar numa saída. Mas você não precisa ficar tão nervoso que tenha que passar a manhã inteira na companhia de uma garrafa de uísque. Se continuar assim, vai acabar como o velho Dooley Hodges.

A menção a Dooley Hodges fez com que os dois abaixassem a cabeça, com uma expressão triste. Hodges tinha sido um dos melhores empregados da fazenda antes de ter tido a má sorte de se apaixonar por uma mulher do cabaré de Grady. A mulher recusou-se a se casar com ele e Hodges montou sentinela no bar do cabaré, afugentando todos os clientes dela. A garota mudou-se para outra cidade, mas o vaqueiro continuou a ir ao cabaré todos os dias, tornando-se um alcoólatra. Uns parentes dele de Fort Worth apareceram para levá-lo embora e nunca mais se ouviu falar de Dooley em Annsboro.

— Pobre Dooley — lamentou Buck, balançando a cabeça. — Aposto que agora ele trabalha como balconista em alguma loja — acrescentou o vaqueiro, como se aquilo fosse um destino pior do que a própria morte.

— Se os parentes não houvessem aparecido para levá-lo embora, as mulheres daqui certamente o teriam enxotado da cidade.

Buck mexeu a cabeça em concordância. As mulheres dos pequenos proprietários da região não se cansavam de condenar a presença do cabaré na cidade. E não só por causa do bar, mas também porque ali funcionava um bordel. Os homens gastavam com mulheres e bebida o pouco dinheiro que conseguiam, enquanto elas não tinham com que fazer roupas de inverno decentes para os filhos irem à escola…

Escola!

Cecília vislumbrou uma cena em que Eugene Pendergast era expulso da cidade por um bando de mulheres que atiravam pedras nele e gritavam impropérios. Aquilo a fez sorrir. Será que aquilo podia ser conseguido? Talvez Lysander Beasley houvesse recitado para Pendergast o mesmo discurso de moralidade que a obrigara a ouvir.

Cecília sentiu o coração bater mais depressa. Sim, podia dar certo. Ela só precisava de um cúmplice.

— Escute, Buck… Prometo que explicarei pessoalmente a papai o motivo do prolongamento da minha estada aqui, desde que você me faça só mais um favorzinho.

O vaqueiro olhou de lado para ela, desconfiado.

— Ah, Ciei… Por que simplesmente não volta para casa?

— Porque minha casa é aqui — ela respondeu, com firmeza. — Se você gostasse de mim pelo menos metade do que diz gostar, saberia entender isso.

— Eu gosto de você, mas não compreendo…

— Eu sou uma dama, Buck. De que adiante ser uma dama quando se é obrigada a ficar trancada num lugar sem ser vista por ninguém?

Buck cocou o queixo, pensativo.

— E… mas sua mãe era uma dama, mesmo vivendo lá.

— Ela morreu lá — despachou Cecília.

Aquilo aparentemente deixou o vaqueiro sem argumentos.

— Está certo, está certo. O que quer que eu faça?

— Quero que você deixe o novo professor completamente bêbado.

Buck soltou um riso de pura surpresa.

— Você só pode estar brincando comigo.

— Estou falando muito sério — declarou Cecília.

Enquanto Buck se ocupasse em deixar o professor bêbado como um gambá, ela se ocuparia em outra parte do plano. Lysander Beasley havia recolhido fundos entre os membros da comunidade para aumentar o acervo da biblioteca da escola… e isso, é claro, porque a filha dele de seis anos lia melhor do que muitos adultos. Com generosas contribuições do pai de Cecília e de alguns outros, o homem havia adquirido uma boa quantidade de livros didáticos e de histórias infantis. Seria maravilhoso se alguma coisa acontecesse com aqueles preciosos volumes durante o curto período em que Pendergast estivesse à frente da escola.

Buck não parecia muito inclinado a fazer o que ela pedia.

— Mas eu nem conheço direito o homem. Ele pode ser do tipo que não gosta de beber.

— Ontem à noite Pendergast deu conta de dois cálices do licor de Dolly como se estivesse bebendo água. Ele bebe, sim.

— Mas…

— Nem mas nem meio mas — cortou Cecília, como se estivesse tratando com um dos alunos da escola. — Se não fizer o que estou lhe pedindo, Buck McDeere, amanhã mesmo irei para casa e contarei a papai que o vi saindo do cabaré de Grady às onze e meia da manhã. Lembre-se do que aconteceu com Dooley Hodges… Papai não gosta nada de empregados beberrões.

— Ah, Ciei… Mas isso é… é…

— Chantagem — completou Cecília, sorrindo. — Concordo, mas você vem fazendo à mesma coisa comigo desde quando éramos pequenos.

Buck fez uma careta e ela percebeu que o tinha na palma da mão.

— Está certo — submeteu-se o rapaz. — Acho que posso tentar.

Cecília abriu um largo sorriso e afagou o braço do vaqueiro.

— Obrigada por me ajudar, Buck.

O rapaz sorriu de puro contentamento. Parecia um pouco nervoso com a missão que havia recebido e desconfiado dos motivos de Cecília, mas certamente esperava que ela ficasse satisfeita com os esforços dele. Há anos que vinha tentando cortejá-la e aquele devia ser o primeiro carinho espontâneo que recebia da filha do patrão.

    

Pendergast segurou na mão dela e olhou-a nos olhos. Cecília achou que aqueles olhos negros ardiam como fogo, o fogo do desejo que ele sentia por ela.

Eles estavam à margem do lago que havia perto da casa dela, quase seco desde agosto. Mesmo assim as árvores proporcionavam sombras e uma promissora privacidade. Eles estavam sós, perfeitamente sós, e ele a tomou nos braços. Antes que Cecília pudesse reagir, sentiu os lábios cobertos pelos dele. Eram lábios quentes, sedentos…

Logo depois ele começou a cantar.

Cecília sentou-se na cama, num salto, e ansiosamente encheu os pulmões de ar. Pendergast a beijara!

Não, não. Tinha sido apenas um sonho… ou um pesadelo, já que ela estava com a respiração descompassada.

Cecília procurou lembrar-se dos detalhes do sonho, que não podia ser classificado de desagradável. Primeiro ela fora cativada por aqueles olhos, sendo atraída para Pendergast sem que ele precisasse tocá-la. Como aquilo podia ter acontecido?

Na verdade não havia acontecido. Mesmo assim tudo parecia muito real… os lábios dele, a voz de barítono entoando a canção. Cecília se lembrava claramente. E o mais estranho era que, naquele exato instante, ela continuava ouvindo os acordes da balada Lorena!

Cecília levantou-se, saiu do quarto e, na ponta dos pés, caminhou até a janela da sala. De fato alguém estava cantando na rua, embora ela não conseguisse ver nada, mas a voz não era a de Pendergast. Parecia mais a de… Buck!

De volta ao quarto para pegar o robe ela percebeu que aquele tinha sido um dos itens que mandara de volta para a fazenda. Aquilo a fez soltar um suspiro de raiva. Bem, o jeito seria sair da casa vestindo apenas a camisola e com os pés descalços para ir ao encontro do importuno menestrel.

Quando saiu na varanda Cecília viu Pendergast e Buck, um apoiado no outro. Estavam no meio da rua, caminhando com dificuldade para a casa.

Quando os dois chegaram mais perto ela pôde ver a dura realidade: era o vaqueiro quem estava bêbado, enquanto Pendergast apenas o sustentava para que ele não caísse. O mestre-escola estava absolutamente sóbrio!

Será que aquele Buck não conseguia fazer nada direito? Pelo menos ela tivera sucesso na outra parte do plano. Depois que os hóspedes da pensão haviam se recolhido, Cecília saíra furtivamente, entrara na escola pela janela e jogara para fora os livros novos. Ao escapulir do lugar ela havia tropeçado e caído de barriga no chão, mas isso também acabou sendo proveitoso. Uma vez no chão, Cecília descobriu o melhor lugar para esconder os livros: o espaço por baixo dos degraus de entrada da escola.

Sem se lembrar de que estava apenas de camisola, ela atravessou o pequeno jardim de Dolly para ir ao encontro de Pendergast e Buck.

— Você é um idiota, Buck! — ralhou Cecília, parando na frente dos dois. — Pare com essa cantoria ou vai acabar acordando a cidade inteira!

— E as cidades vizinhas — acrescentou Pendergast. Cecília olhou para ele. O homem parecia realmente não ter bebido nada. E aqueles olhos negros não perdiam tempo, reparando que ela estava apenas com a fina camisola por cima do corpo nu.

— Buck queria vê-la — informou Pendergast, com um sorriso maldoso. — Disse alguma coisa sobre um tal Dooley Hodges e declarou que ficaria na sua varanda até que algum parente dele viesse buscá-lo.

— Ai, meu Deus! — disse Cecília, exasperada. — Você não devia tê-lo trazido para cá.

— Mas ele insistiu — explicou-se Pendergast, outra vez passeando os olhos pelo corpo dela, o que a fez sentir-se nua. E isso não estava muito longe da verdade. — E agora entendo o motivo disso — ele acrescentou, com malícia.

A cena do sonho voltou à mente de Cecília, o que a tez corar fortemente. Por sorte a lua estava apenas em Quarto - crescente e ele não podia ver essa reação.

— E agora? — ela perguntou, impaciente. — O que vou fazer com ele?

Pendergast pareceu sensibilizar-se com a aflição dela. — Honestamente, Cecília, eu não podia mandá-lo para a fazenda do seu pai nesse estado. O rapaz pode passar a noite no meu quarto.

Aquilo serviu para que Cecília relaxasse um pouco. A culpa por aquela situação cabia a ela própria e, pensando bem, entre eles três apenas Pendergast agia com honestidade. E ele estava certo. Se Buck voltasse para a fazenda bêbado como estava, não seria muito difícil prever a reação do pai dela.

— Está certo — ela concordou, abaixando-se para olhar no rosto do vaqueiro. — Mas ouça bem, Buck: procure não fazer barulho, ou acabará acordando Dolly ou Lucinda.

— Dolly ou Lu… Lucinda — repetiu Buck, enrolando a língua.

Cecília fez uma careta e olhou para Pendergast.

— Vou ajudá-lo a subir a escada com ele.

— Está certo.

Cecília pegou no outro braço do homem bêbado e passou-o por cima dos ombros. Carregar Buck era complicado e, quando eles começaram a subir a escada, ela já havia perdido as esperanças de não acordar as outras pessoas.

O que ela podia ter feito para merecer aquilo? Bem…i havia preparado uma armadilha para Pendergast. Beasley ficaria furioso quando descobrisse que os livros haviam desaparecido e o mestre-escola receberia todo o impacto da ira do comerciante. Aquele pensamento fez com que Cecília sorrisse.

— Sabe de uma coisa? — disse Pendergast, cochichando e falando num tom sério. — Esse rapaz provavelmente não se entregaria à bebida se você não o provocasse de uma forma tão sem compaixão.

— O quê? — exclamou Cecília, quase gritando. O professor olhou para ela e encostou o dedo nos lábios, recomendando silêncio.

— Fale baixo.                                          

— E não me mande falar baixo, Pendergast — rebateu Cecília, olhando para ele por cima da cabeça do quase inconsciente Buck. — Você chegou a esta cidade há apenas três dias e não tem o direito de me dizer o que fazer!

— Pois bem — ele respondeu. — Não vou mais falar no assunto. Não ligo â mínima se você resolveu destruir a vida de um homem.

Cecília apertou os olhos.

— Você… não liga a mínima? Que linguagem é essa? É assim que as pessoas cultas de Filadélfia falam?

— Não. Na verdade aprendi essa expressão na viagem de trem.

— Aposto que sim — ela disse, como se não estivesse acreditando.

— Sabe de outra coisa? Você devia pensar em fazer uma viagem até Filadélfia. Já no trem começaria a aprender boas maneiras,

— Não diga!

— Fale baixo — repetiu Pendergast, agora sorrindo. — É melhor não acordarmos as senhoras.

Se não corresse o risco de fazer com que Buck desabasse no chão, Cecília teria dado um tapa bem na cara daquele cretino.

— Não consigo entender por que Lysander Beasley precisou mandar buscar um professor tão longe — ela comentou.

Aquela era uma pergunta que Jake também se fazia. Naquele momento, porém, estava gostando demais de provocar Cecília para se preocupar com o assunto. Além disso, ela era tão linda, tão tentadora que ele até lamentava tela como inimiga.

Bem, mas era esse o fato.

— Você devia ter pensado na resposta óbvia — disse Jake, finalmente. — Os ianques são mais inteligentes.

Cecília mostrou-se espantadíssima com aquela audácia, o que fez Jake rir. Na certa ela queria matá-lo. Por sorte eles já estavam se aproximando da porta do quarto. Fazer com que Buck passasse por aquela porta exigiria deles dois uma manobra imaginativa.

Sustentando o peso do homem bêbado com o braço esquerdo, Jake estendeu a mão direita para girar a maçaneta. Como a porta era estreita demais para que três pessoas passassem ao mesmo tempo, eles tiveram que entrar de lado, o que os obrigou a executar uma engraçada dança.

Finalmente os três alcançaram a cama.

— Puxe as cobertas — disse Cecília.

— Para quê?

Cecília olhou para ele como se não acreditasse no que acabava de ouvir.

— Nós não podemos simplesmente jogá-lo em cima da cama. Puxe as cobertas.

Só mesmo uma mulher teria aquela preocupação, pensou Jake, balançando a cabeça.

— Isso é loucura. Se faz tanta questão que o seu namoradinho fique bem aquecido, puxe você as cobertas.

— Ele não é meu namoradinho! — rebateu Cecília. — Além disso, você está mais perto.

Uma rápida olhada para a cama confirmou o que ela dizia. Mesmo assim aquilo continuava sendo uma idiotice.,

— Você não vai agüentar sozinha o peso dele. Aquele argumento era certamente verdadeiro, mas feriu os brios de Cecília.

— Quem disse? — ela inquiriu. Jake revirou os olhos.

— Não vamos discutir. Se você insiste, eu puxarei as desgraçadas cobertas.

— Não precisa usar uma linguagem tão agressiva, Sr. Pendergast, só porque não dará uma exibição de força, algo de que os homens gostam muito.

Jake soltou Buck e afastou-se um passo, observando enquanto Cecília cambaleava ao suportar o súbito peso.

— Foi isso o que eu fiz? — ele perguntou, inocentemente. Cecília demorou alguns segundos para se equilibrar.

— Pelo amor de Deus! — ela protestou. — Por culpa sua, eu quase o deixei cair. Muito obrigada!

Nesse instante Jake ouviu o barulho da porta do quarto de Dolly se abrindo, no outro lado do corredor. Quando olhou para Cecília, viu que ela o fitava com os olhos muito abertos. Aquilo o fez ter uma idéia. Por que não?

— Bem, alegra-me ver que você me agradece por alguma coisa — ele disse, maldosamente. — Agora sugiro que ponha esse homem na cama.

Cecília franziu a testa mas achou lógica a sugestão. Já estava quase se dobrando ao meio por causa do peso de Buck. Com dificuldade e sem que Pendergast a ajudasse, foi se aproximando da cama.

— Você precisa se virar para o outro lado — ele disse.

Cecília parou e soltou um suspiro de exasperação. Devia ter se ocupado ela própria com as cobertas, deixando que Pendergast carregasse Buck.

— Mas isso não faz sentido — ela rebateu. — Se me virar, vou ficar entre ele e a cama.

— Confie em mim — disse Pendergast.

Agindo como uma idiota, mas querendo acabar logo com aquilo, Cecília fez o que ele sugeria. Reunindo as últimas forças, foi girando o corpo enquanto sustentava o pesado Buck, até ficar com a parte de trás das coxas encostada nos pés da cama.

— Eu disse que isso não daria certo — ela lembrou. Pendergast sorriu e Cecília ouviu passos se aproximando da porta. Dolly!

— Ah, não! — ela cochichou, suplicando com o olhar a ajuda dele. — Faça alguma coisa!

Pendergast fez um gesto de concordância com a cabeça e logo depois, com um sorriso demoníaco, encostou os dedos nas costas de Buck e deu um leve empurrão. Aquilo foi suficiente para que Cecília perdesse o equilíbrio e tombasse para trás, levando junto o vaqueiro. No instante seguinte Dolly entrou no quarto.

O que está acontecendo? — gritou a mulher, sem duvida querendo entender os braços e pernas que se entrelaçavam em cima da cama.

Cecília soltou um gemido e Dolly arregalou os olhos.

— Vire o rosto, Sra. Hudspeth — sugeriu Jake, numa voz fingidamente ansiosa e muito contente com a idéia que tivera. — Acho melhor a senhora não olhar.  

Enquanto falava ele segurou no braço da dona da pensão e tentou levá-la de volta para a porta. Dolly fincou pé onde estava.

— Mas não é… não é Cecília quem está por baixo daquele homem?

Cecília contorcia o corpo, querendo a todo custo sair de onde estava.

— Nunca presenciei um escândalo como este — disse Jake, em voz baixa. — Não imaginava que essas coisas aconteciam em casas de respeito!

Dolly levou a mão à boca, momentaneamente esquecida da amiga.

— Não acontecem — ela garantiu, logo depois voltando a olhar para a cama com uma expressão de perplexidade. — Mas quem é aquele homem por cima dela?

— Pelo amor de Deus, Dolly! — gritou Cecília, olhando por cima do ombro do vaqueiro. — É apenas Buck. Ajude-me a sair daqui!

Jake começou a perder as esperanças. Se ao menos tivesse tido tempo para planejar bem aquela cena… Dolly empalideceu.

— Buck? — ela perguntou, numa voz muito fraca. — Buck McDeere?

— É! — respondeu Cecília. — Que outro Buck poderia ser?

Jake viu que a cor retornava rapidamente às faces de Dolly. Logo em seguida ela ficou com lágrimas nos olhos, evidentemente se esforçando para não chorar.

— Sra. Hudspeth? — disse Jake, preocupado, apertando um pouco mais o braço da mulher.

Dolly balançou a cabeça, sem dizer nada e outra vez levando a mão à boca. Quando as lágrimas começarão a rolar em abundância, ela girou nos calcanhares e saiu correndo do quarto.

Jake apenas ficou observando a cena, perguntando-se o que podia ter acontecido.

Cecília finalmente conseguiu se livrar de Buck e saltou para fora da cama, enraivecida.

— Você fez isso de propósito! — ela acusou. Jake cruzou os braços e encarou-a.

— E você instruiu esse homem para que ele tentasse me deixar bêbado.

Por alguns instantes Cecília ficou com a boca aberta.

— Você não pode provar nada — ela reagiu.

Para Jake não faria diferença ela admitir ou não a culpa. Então ele sorriu.

— Está certo. Esta noite nenhum de nós dois se comportou de forma muito exemplar. Acho que devíamos fazer uma trégua.

Cecília apertou os lábios e bateu com o pé no chão.

— Trégua uma ova! Minha melhor amiga ficou transtornada com o que viu, minha reputação está mais baixa do que o chão e provavelmente eu serei obrigada a voltar para casa depois do que aconteceu aqui.

Para Jake aquelas palavras foram como um banho de pétalas de rosa.

— E você? — prosseguiu Cecília. — De que pode se queixar? Parece até que não bebeu nada!

Jake fez um gesto para o lado do adormecido Buck.

— Seu amigo não soube esconder direito o que pretendia.

Cecília cruzou os braços. — Eu devia ter percebido que teria que cuidar disso sozinha.

— Acho que se encher de bebida no cabaré de Grady também não serviria muito para melhorar a sua reputação.

— Muito engraçadinho — ela respondeu, ainda mais enfurecida.

Agora que estava em vantagem, Jake sentia-se mais relaxado. Cecília Summertree havia aprendido uma lição e provavelmente pararia de atormentar a vida dele. O que levava a mais uma conclusão agradável: finalmente eles não seriam mais adversários.

E isso era muito bom, concluiu Jake enquanto examinava aquele rostinho tão belo quanto enraivecido. Embora ela estivesse usando uma recatada camisola que ia até o pescoço, o maleável tecido realçava as curvas daquele corpo tão tentador quanto uma cama quente numa noite de muito frio.

Jake engoliu em seco e olhou-a nos olhos. Agora os seios de Cecília movimentavam-se para cima e para baixo, acompanhando o ritmo da respiração. Ela parecia hipnotizada, mas não era mais por causa da raiva. Jake ergueu a mão, o que a fez recuar.

— Você se enganou — ele disse, dando um passo adiante.

— Em quê? — perguntou Cecília, agora parecendo até tímida.

— Eu tenho algo de que me queixar — respondeu Jake, continuando a avançar e fazendo-a recuar até esbarrar numa mesa.

— O… o quê?

— Fiquei sem cama. — Jake moveu a cabeça na direção de Buck, mas sem afastar os olhos dos dela. — Onde vou dormir?

Cecília sentiu um arrepio e percebeu que havia se arriscado demais. Por que não saíra daquele quarto tão logo se livrara de Buck? Palavras inócuas como dormir e cama pareciam íntimas demais quando se estava com um homem… e no quarto dele. Para complicar, ainda há pouco ela havia sonhado que aquele mesmo homem a beijara.

Logo que esbarrou na mesa, Cecília pôs os braços para trás e tocou em algo duro e liso. A bacia de louça! 0 coração dela batia rapidamente enquanto as mãos tateavam na borda da bacia.

Jake sorriu. Cecília olhava para ele com a cabeça meio abaixada. Ah, como era linda… Não era de admirar Buck fazer todas as vontades dela.

— Tem alguma sugestão? — ele perguntou, chegando mais perto.

Cecília arregalou os olhos quando Jake tocou no braço dela.

— Para resolver o seu pequeno problema?

— É…

Jake mordeu levemente o macio lóbulo da orelha direita dela.

— Sim, sim, acho que sim — ela respondeu, trincando os dentes.

Um dia antes Cecília não teria nem imaginado que aquele professor que usava roupas folgadas era na verdade um libertino. Mas também não havia previsto que ela própria se sentiria atraída por ele. Naquele exato momento estava quase tentada a verificar se na vida real ele beijava tão bem quanto no sonho dela.

Quase.

Jake recuou e olhou nos olhos de Cecília. No mesmo instante ela abriu um largo sorriso, o que o deixou intrigado.

— O que foi? — ele perguntou.

— Apenas isto — respondeu Cecília, girando rapidamente o corpo para jogar no rosto dele metade do conteúdo da bacia.

Tomado de surpresa, Jake instintivamente recuou e passou a mão pelo rosto.

— Respondendo à sua outra pergunta, sugiro que você durma no chão — disse Cecília, para em seguida sair correndo do quarto.

    

Cecília varreu a cozinha com enérgicas vassouradas. Havia previsto que Pendergast causaria problemas, mas não tantos.

No café da manhã daquele dia ele se mostrara absolutamente frio, só se dirigindo a ela para um curto cumprimento. Nem parecia o lobo que, na noite anterior, a acuara contra a mesa.

Depois da saída de Pendergast ela havia subido até o quarto para ver como estava Buck, mas o vaqueiro não se encontrava mais lá. Isso era bom, já que assim ela não precisaria voltar logo para a fazenda. Por outro lado, estava louca para saber o que havia acontecido na noite anterior… antes de ouvir a cantoria de Buck.

Cecília rezou para que Buck inventasse alguma coisa para contar ao pai dela, alguma desculpa para o fato de ela ainda não estar em casa. Mais cedo ou mais tarde teria que dar pessoalmente as explicações, mas enquanto fosse possível continuaria observando Pendergast de perto. Se as suspeitas dela estavam certas, aquele homem nunca fora professor e acabaria cometendo algum erro.

Mesmo que isso não acontecesse logo, ele estaria em maus lençóis quando o desaparecimento dos livros fosse descoberto. Só de pensar naquilo Cecília esfregou as mãos. O assunto envolvia dinheiro e Beasley não se importaria em saber quem era o verdadeiro responsável. Escolheria um culpado e Pendergast era o alvo mais provável.

Cecília ouviu a porta da frente se abrindo e ficou apreensiva. E se fosse Pendergast? Além dela só se encontrava na casa a Sra. Baker, mas a velhota já estava quase surda. E se ele tentasse abraçá-la, como havia tentado na noite anterior?

Ouviram-se passos se aproximando da cozinha e Cecília conteve a respiração. Mas foi Dolly quem apareceu à porta da cozinha e ela relaxou. E claro que não podia ser Pendergast. Àquela hora da manhã o mestre-escola estava com seus alunos.

Cecília concluiu que teria outro problema para resolver ao constatar que Dolly a ignorava. Caminhando até a mesa, ela pegou um pequeno embrulho que a dona da pensão havia colocado lá, na certa alguma coisa comprada no armazém de Beasley.

— O que é isso? — perguntou Cecília, tentando quebrar o silêncio.

Dolly não dissera uma única palavra a ela desde que saíra correndo do quarto de Pendergast, na noite anterior.

— Fermento — respondeu a mulher, evidentemente sem querer falar mais nada.

— Vai fazer alguma massa? — insistiu Cecília. Dolly continuou a ignorá-la, mas fez muito barulho enquanto reunia as coisas de que iria precisar.

— Pão.

Cecília ficou apreensiva. Dada a posição do quarto dela, assar pão no forno significava que ela também seria assada.

— Posso ajudar em alguma coisa? — ela se ofereceu, Procurando falar num tom jovial.

Subitamente, como se algo terrível a torturasse, Dolly começou a chorar.

— O que foi Dolly? — perguntou Cecília, pondo a mão no ombro da amiga, apenas para ser repelida por um safanão. — Sou eu? O que foi que eu fiz?

— O que você fez? — inquiriu a outra, num tom cortante, 0 mesmo tempo que procurava afastar as lágrimas com os dedos trêmulos. — Sabe muito bem a resposta, Cecília.

Cecília ficou ainda mais espantada ao ouvir aquilo.

— Se é por causa do que aconteceu ontem à noite… Sem dizer nada, Dolly lançou a ela um olhar de acusação e soltou um riso rápido e nervoso.

— Sei que pareceu uma cena estranha, mas posso explicar — declarou Cecília. — Bem… quase tudo.

— Não precisa — disse a mulher, com altivez. — Vou ter que relatar ao seu pai o que vi ontem, Cecília. Acho que você não pode continuar aqui.

Cecília sentiu um aperto no peito. Estava sendo expulsa. Enxotada. Exatamente como havia acontecido no dia anterior, quando Pendergast a pusera para fora da escola.

— Não faça isso, Dolly — ela suplicou. — Não foi nada do que pareceu. E você sabe qual será a reação do meu pai. A notícia poderá matá-lo… ou ele me matará.

Por alguns instantes Dolly mostrou uma expressão de firmeza, mas logo recomeçou a chorar, agora convulsivamente. Pareceu até ter dificuldade em alcançar uma das cadeiras em volta da mesa para se sentar.

— Oh, Cecília… — ela disse, entre soluços. — Você não entenderia!

Cecília achou que não entenderia mesmo. Então ela se aproximou e pôs novamente a mão no ombro da amiga, que desta vez não a repeliu.

— Você precisa me contar o que há de errado. Talvez eu possa fazer alguma coisa para ajeitar tudo.

Dolly balançou a cabeça abaixada.

— Você é tão linda, tão jovem… Vai me achar uma idiota.

— Por quê? — perguntou Cecília, perplexa.

— Por esperar que…

A frase deixada pela metade confundiu ainda mais Cecília.

— Esperar o que, Dolly?

A outra pareceu nem ouvir a pergunta dela.

— Depois, quando vi vocês dois juntos …

Cecília ficou boquiaberta, só então começando a entender. Dolly devia ter pensado que havia alguma coisa entre ela e Pendergast. O que certamente não havia. Pelo menos, nada. Além de animosidade. Aquilo era um terrível mal-entendido!

— Ah, não, Dolly. Você está enganada. — Ao ver que a amiga olhava para ela com um ar de longínqua esperança, Cecília balançou firmemente a cabeça. — Não tenho o menor interesse por ele, nem ele por mim. Pelo menos nada do que você está pensando.

Cecília não soube mais o que dizer e ficou pensando no que Dolly havia sugerido. Ah, não, aquilo era loucura. Pendergast era solteiro, estava na idade de se casar e era um homem fisicamente atraente, mas ela só tinha dúvidas a respeito do caráter dele. Além disso, sabia muito pouco sobre aquele homem. Por fim, se desse certo o que ela pretendia fazer, logo ele seria um desempregado. Depois de ficar olhando para ela durante um bom tempo Dolly resolveu falar.

— Isso não é verdade, Cecília. Talvez não haja interesse da sua parte, mas há cinco anos que ele anda atrás de você.

— Cinco anos? — repetiu Cecília, atônita. — Mas o Sr. Pendergast chegou aqui há poucos dias!

Agora foi Dolly quem demonstrou espanto.

— O Sr. Pendergast? O que ele tem a ver com isso?

— Você estava falando dele, não estava? Quem mais… — Uma possibilidade inacreditável surgiu na mente de Cecília, fazendo com que ela deixasse a frase na metade. — Dolly… você não pode estar querendo me dizer que…

Mais lágrimas de amargura escorreu pelas faces de Dolly, que balançou afirmativamente a cabeça. — Sim! — ela confirmou, entre um soluço e outro.

— Você não pode estar se referindo a…

Cecília sentiu-se quase com medo de completar a frase, Que Dolly concluiu por ela.

— Buck! Estou terrivelmente apaixonada por ele!

Cecília ficou olhando para a amiga com um misto de horror e incredulidade.

— Buck? — ela conseguiu dizer, depois de um instante de silêncio. — Buck McDeere?

— Quando vi vocês dois juntos, Cecília, senti alguma coisa morrendo dentro de mim — lamentou-se Dolly, como se fosse a mais desgraçada das mulheres.

Cecília ainda encontrava dificuldade para acreditar no que acabava de ouvir.

— Mas, Dolly… Buck?

— Você é uma esnobe, Cecília — acusou a outra, num tom cortante. — Acha que Buck não serve para mim só porque ele trabalha como vaqueiro para o seu pai!

Cecília ofendeu-se com aquilo. Reconhecia ter muitos defeitos, mas não o esnobismo.

— Está enganada, Dolly. Eu não condenaria um homem por fazer um trabalho honesto. Mas… pense um pouco! Ontem à noite mesmo, quando você o viu comigo, Buck estava bêbado como um gambá!

A resposta de Dolly foi dada em tom de acusação.

— E você não perdeu tempo em se aproveitar da vulnerabilidade do coitado.

Cecília ficou exasperada com a insistência daquela mulher em acreditar em algo que não era verdade.

— Ele caiu por cima de mim, Dolly! — ela se defendeu. — Foi simplesmente isso o que aconteceu, só isso!

Dolly ficou olhando fixamente para Cecília, como se aquilo fosse bom demais para ser verdade.

— Tem certeza?

— Eu juro — respondeu Cecília. — Mesmo assim… Dolly, Buck é um beberrão e só Deus sabe o que mais. Passa a metade da vida no cabaré de Grady.

Dolly abriu um sorriso radiante, como se aquelas palavras na verdade se referissem a um santo.

— Está enganada, Cecília. Ninguém é um caso perdido. Aqui dentro tenho certeza de que Buck McDeere tem potencial para se transformar num homem de valor, num grande homem. Ele só precisa que alguém o ponha no caminho certo.

Cecília suspirou. — Não sei…  

— Pois eu sei o que você está pensando — disse Dolly, agora ressentida. — Acha que sou muito velha para ele.

— Isso nem passou pela minha cabeça — declarou Cecília, com honestidade. Ainda não tivera tempo de pensar nas outras implicações de uma situação que achava inacreditável. — Mas, já que tocou no assunto, você não se interessaria mais por alguém mais… maduro?

Dolly ergueu a cabeça, num gesto de altivez. — Ainda não completei trinta anos e Buck tem quase vinte e quatro. Se fosse eu o homem e ele a mulher, ninguém nem pensaria nessa diferença de idade.

Era um argumento irrefutável, mas Cecília ainda tinha sérias dúvidas sobre a situação toda. Havia se acostumado a pensar em Buck como alguém sem nenhum refinamento, às vezes um importuno, uma mosca insistente que precisasse ser enxotada. Considerá-lo marido de alguém… de qualquer mulher, parecia absurdo. Mais ainda quando se tratava de Dolly, uma mulher sempre preocupada em fazer tudo direitinho.

Não se podia negar que Dolly era uma mulher ainda jovem, bonita e que há alguns anos vinha suportando a solidão da viuvez. Merecia preencher com amor aquele vazio, mas os homens bons eram raros… pelo menos em Annsboro, que ainda estava muito longe de ser a cidade Progressista que Lysander Beasley tanto queria. Assim sendo, por falta de outros, Buck havia se transformado num candidato a marido.

— Talvez eu possa fazer alguma coisa para torná-lo adequado para o casamento — disse Cecília, sentindo-se meio responsável por aquela catástrofe.

— Não quero que ele mude — declarou Dolly, enfática.

— Então… o aceitaria exatamente como ele é? — perguntou Cecília, agora achando que a amiga dela havia enlouquecido

— Bem…

Cecília suspirou de alívio. Pelo menos Dolly não havia perdido por completo o juízo, embora a situação continuasse complicada. E o que Buck pensava de Dolly… se é que chegava a pensar na desditada viúva? Mas que diferença aquilo podia fazer para ela, Cecília? Logo estaria trancada na fazenda, sem poder trocar mexericos com ninguém a não ser nos dias em que fosse à igreja. Era uma perspectiva patética.

Subitamente Cecília teve uma idéia, talvez ditada pelo desespero. Se jogasse as cartas certas, talvez pudesse adiar o desastre por mais um precioso tempo.

— Ah, mas que coisa terrível — ela disse, procurando se mostrar alarmada.

Dolly arregalou os olhos. — O que é tão terrível?

Cecília mordeu o lábio inferior. — Não é nada.

Dolly não se convenceu. — Não, tem que haver alguma coisa. E sobre Buck?

Cecília escolheu cuidadosamente as palavras que diria em seguida.

— Estou muito solidária com você, Dolly, mas… depois que eu voltar para casa papai não terá mais motivos para mandar Buck à cidade com tanta freqüência. Estou do seu lado, claro, mas ficarei de mãos atadas para ajudá-la.

Dolly aprumou o corpo mas ficou em silêncio, aparentemente pensando com seriedade naquela perspectiva.

— Bem que eu poderia dizer a Buck algumas indiretas sobre você — prosseguiu Cecília. — Mas é claro que você não vai querer que ele saiba qual é a extensão dos seus, sentimentos, pelo menos não antes que você saiba quais são os dele.

— Claro que não — concordou Dolly, horrorizada. — Buck não pode saber de nada que nós conversamos aqui.

Cecília franziu a testa, fazendo uma expressão de desânimo. __Pois é… e depois que eu voltar para casa as coisas vão ficar ainda mais difíceis de manobrar.

— Oh, Cecília! — disse Dolly, com um olhar suplicante. — Se você puder me ajudar, juro que nunca direi nada ao seu pai sobre ontem à noite. Eu só ia falar porque… fiquei com ciúme.

Cecília sentiu remorso pelo que estava fazendo com a amiga. Se não estivesse com a liberdade ameaçada, é claro que não conseguiria ser tão convincente.

— Se você tivesse me falado antes, saberia que não tinha o menor motivo para sentir ciúme.

Dolly abaixou a cabeça, evidentemente envergonhada.

— Fui uma tola… mas achava que você riria de mim quando soubesse do que sinto por Buck.

Cecília engoliu em seco. — De jeito nenhum.

— Então fará o que puder para me ajudar a conquistá-lo?

— Claro.

Dolly juntou as mãos. — Vou fazer um vestido novo, seguindo um modelo lindo que vi na loja de Beasley! E o tecido que tenho guardado no meu armário será perfeito… Vou pegar para lhe mostrar.

Dito isso a mulher se levantou e correu para a escada, deixando Cecília simplesmente pasmada. O que, Deus do céu, ela poderia fazer para que Buck se apaixonasse por Dolly? Se não tivesse sucesso nisso, talvez à amiga de agora se transformasse em inimiga sedenta de vingança.

Agora o trabalho dela estava dobrado: além de lidar com Pendergast, teria que cuidar para que Buck estivesse na cidade com freqüência. Do contrário acabaria voltando para a fazenda e perdendo todas as chances de desmascarar o suspeito mestre-escola.

    

Beatrice Beasley, de dez anos, ocupava a mais alta das cadeiras da escola, esperando pelo professor. Duas tranças de cabelos castanhos emolduravam o rosto imaculadamente lavado. Abundantes sardas espalhavam-se pelas faces, braços e mãos, o que se devia à exposição ao forte sol de verão. Mesmo assim ela não escondia as mãos, mantendo-as em cima dos livros que tinha no colo. Os grandes olhos castanhos, tornados ainda maiores pelas grossas lentes dos óculos, focalizaram o adorado Sr. Pendergast, que naquele instante entrava na sala para dar início ao dia de aulas.

Aos pés da menina estava o cachorro dela, Sr. Wiggles, um velho cão de caça amarelo que era tratado por todos em Annsboro como se fosse um delicado cãozinho de salão. O fiel animal circulava pela cidade o dia inteiro até quando chegava à hora de acompanhar a dona de volta para casa, no fim da tarde. Embora Sr. Wiggles às vezes criasse problemas, Lysander Beasley não permitia que ninguém fizesse nada contra o bicho. Por causa da posição social que ocupava, o comerciante temia que a filha fosse seqüestrada e não permitia que ela andasse sem a proteção do cachorro.

Ao ver Bea com o animal Jake soltou um suspiro de desânimo. Aquela menina o atormentava. Bastava ver aquele rostinho de óculos para que ele sentisse arrepios de medo. Entre todas as crianças da escola, a filha de Lysander Beasley era a mais inteligente. Mais até do que o professor, o que fazia Jake ter pesadelos. Às vezes ele achava que até mesmo Sr. Wiggles percebia que o mestre-escola em exercício era uma fraude.

O problema era que Jake só havia completado sete anos como estudante. Enquanto o pai possuía pequena fazenda, ele sempre tinha muitas tarefas a realizar. Depois, quando Otis Darby usurpou a propriedade, ele precisou trabalhar ainda mais para sustentar a mãe.

Em conseqüência disso Jake jamais havia entrado outra vez numa escola, a não ser em ocasião festas. Agora era forçado a rebuscar na memória lições que havia aprendido quase vinte anos antes. A escola tinha poucos livros e apenas um de aritmética. Jake passava um bom tempo ensinando ortografia aos alunos, aproveitando-se do fato de que a escola dispunha de um dicionário novo. Além disso, ele sempre fora bom em gramática.

No sábado, dia da chegada do novo professor a Annsboro, Beasley havia comprado alguns livros novos, de leitura e didáticos, mas Jake não prestara muita atenção naquilo e agora não conseguia encontrar os volumes. Por falta de outra inspiração, levou para a escola um dos livros deixados por Pendergast, Tiroteio no Salão de Baile, e naquele dia leu em voz alta. Talvez não se tratasse de literatura de primeira qualidade, mas as crianças pareciam fascinadas enquanto ele lia a história de Pete Dois-Passos, um fora-da-lei que acabara se transformando em delegado federal, e Willa, uma dançarina de cabaré. Algumas das meninas chegaram a chorar quando, segundo a narrativa, Willa pensou que Pete estava mortalmente ferido.

Bea Beasley era uma das que haviam chorado. E agora olhava para o professor como se fosse Willa olhando para Pete. Jake sentiu um arrepio de medo. Inteligente como era, aquela menina não teria muita dificuldade para descobrir que ele era um impostor. Tudo o que precisaria fazer era dizer ao pai que o novo mestre-escola não parecia bem preparado para a função e no dia seguinte Jake estaria sem o emprego. Talvez ele devesse até ficar grato pelo fascínio que via nos olhos da aluna. Era melhor que ela o visse como herói do que como um ajudante de xerife que se transformara em capataz de fazenda e agora fazia uma sofrível imitação de professor.

Jake sorriu para a aluna, pôs o chapéu na cabeça e marchou para a porta. Pouco depois Bea caminhava ao lado dele, com Sr. Wiggles logo atrás.

— Amanhã vai ler mais sobre Pete e Willa para nós, Sr. Pendergast?

— Acho que sim — ele respondeu. — Você gostou da estória?

— Ah, sim! Vou até perguntar a papai se, quando crescer, eu posso ser dançarina de cabaré, como Willa. j

— Não faça isso! — ele se apressou em dizer, quase entrando em pânico ao imaginar o que Lysander Beasley pensaria daquele livro. Sr. Wiggles rosnou e Jake olhou para o rosto espantado de Bea. — Isto é… as histórias perdem a mágica quando falamos sobre elas com outras pessoas.

Bea ficou ainda mais espantada. — É mesmo?

— Pode acreditar — confirmou Jake, perguntando-se como podia mentir com tanta facilidade. — Temos que guardar segredo sobre elas.

Ele só rezava para que aquilo fizesse com que a menina ficasse de boca calada.

— Ah, sim — disse Bea, parecendo preocupada, na certa pensando nas histórias que havia comentado com os amiguinhos ao longo de seus poucos anos de vida.

Nesse instante Jake viu Cecília e Buck no outro lado da rua, bem na frente da finada oficina de ferreiro. Cecília praticamente empurrava o vaqueiro contra a fachada do estabelecimento, parecendo querer convencê-lo de alguma coisa. Jake sentiu um arrepio ao ver aqueles dois juntos. Sem dúvida aquilo resultaria em algum problema para ele.

— Por que, Cecília? — perguntou Buck.

— Porque Dolly é uma das melhores cozinheiras da cidade. O Sr. Walters até paga para comer lá!

— Eu sei, mas… mas não acha mais interessante conversarmos enquanto caminhamos pela rua?

Cecília pôs as mãos nos quadris, deu um passo adiante e olhou bem nos olhos do rapaz.

— Eu agradeceria muito se você tivesse a decência de pelo menos fingir estar preocupado com a minha reputação.

— Que reputação?

Cecília queria gritar de raiva. Convencer Buck a ir a pensão para uma visita a ela e a Dolly estava sendo mais difícil do que havia imaginado.

— Não vou ter mais reputação nenhuma se você continuar a me seguir por todos os cantos, como vem fazendo. Se não pode ir à casa de Dolly para um jantarzinho agradável, não me procure mais.

Buck empurrou o chapéu para trás e cocou a cabeça.

— É que Dolly é tão…

— Você não precisa se intimidar com ela — interrompeu-o Cecília. — Em minha opinião ela é a mulher mais bonita desta cidade.

— Dolly? — espantou-se Buck.

— E a mais engraçada.

Para confirmar o que dizia, Cecília levantou os olhos para o céu azul de setembro e soltou uma gargalhada. Buck ficou curioso.

— O que foi?

Cecília balançou a cabeça. — Eu estava pensando numa história que Dolly me contou outro dia. — Então ela cobriu a boca com a mão. — Acho que me esqueci, mas sei que falava em você.

— Dolly falou em mim? — espantou-se Buck, depois ficando pensativo.

— Ela fala em você o tempo todo — garantiu Cecília, e isso pelo menos era uma terrível verdade.

Agora que havia revelado o segredo à amiga, Dolly aproveitava todos os momentos livres para pedir a Cecília informações sobre Buck.

— E mesmo? — disse Buck, cocando o queixo e olhando Para os lados, como se Dolly fosse aparecer numa esquina a qualquer momento.

Só de passagem, claro — ressalvou Cecília, com o coração um pouco acelerado e achando que estava quase convencendo o homem. — Mas tenho certeza de que a ouvi dizer que você é um homem bem apessoado. — Nesse ponto ela olhou novamente para cima, fingindo pensar melhor no assunto. Quase sentia a curiosidade de Buck, que esperava pelo que ouviria em seguida. — Sim, acho que ela disse exatamente “bem apessoado”. Ou terá sido “bonitão?”

— Eu? — indagou o vaqueiro, arregalando os olhos como se acabasse de ouvir algo absurdo.

— Ou talvez ela tenha se referido ao Sr. Pendergast.

— Pendergast? Mas…

— Bem, eu não me lembro direito — cortou Cecília, abanando a mão como se não quisesse falar mais naquele assunto.

Mas cinco minutos e Buck concordaria em jantar na casa de Dolly sempre que estivesse em Annsboro.

O vaqueiro olhou por cima do ombro de Cecília e apertou os olhos.

— Por falar no diabo…

Cecília voltou-se para onde Buck olhava. Pendergast e Bea Beasley vinham atravessando a rua, caminhando para onde eles estavam. O mestre-escola tinha uma expressão esquisita, parecendo de determinação.

Cecília ficou apreensiva. Aquilo era a última coisa que ela estava querendo. O intrometido Pendergast aparecia justamente quando Buck estava quase se convencendo. A conversa sobre Dolly não poderia continuar e ela teria que esperar até que o simplório vaqueiro tivesse que ir outra vez à cidade. Dolly ficaria impaciente, o que seria mais um problema.

De onde estava Jake não podia saber com certeza por que aqueles dois olhavam para ele com ar de preocupação, mas podia adivinhar. Obviamente ele estava interrompendo uma discussão íntima. Jake não parou para pensar por que aquilo o irritava. Simplesmente irritava e pronto. E, mesmo que fosse apenas para ser perverso, ele resolveu se aproximar. Talvez conseguisse intimidar o vaqueiro grosseirão e mandá-lo de volta para a fazenda.

— Oi, pessoal — disse Jake. — Estou tentando aprender a falar na linguagem de vocês.

Cecília moveu os lábios num sorriso evidentemente forçado.

— O que está fazendo aqui?

— É isso mesmo — apoiou Buck, num tom hostil. — Nós estamos conversando.

— Uma conversa particular em plena rua? — perguntou Jake, ao mesmo tempo divertido e intrigado pela forma com que Buck o media dos pés à cabeça, como se eles dois fossem rivais.

Então ele olhou para Cecília. Teria ela dito a Buck alguma coisa que o deixasse enciumado?

Embora a princípio enfrentasse bravamente o olhar dele, Cecília logo ficou com as faces rosadas.

— Sim, é uma conversa particular — ela disse.

— Acho que isso quer dizer que nós devemos ir embora — pronunciou-se Bea, puxando a manga da camisa de Jake.

— Só um minutinho — disse Jake, dando um passo adiante, adorando a inquietação de Cecília. — Você está mesmo me mandando embora, assim sem mais nem menos?

Ele disse aquilo na voz sofrida de um amante traído, o que fez Cecília recuar.

— Por que está dizendo isso? — ela quis saber.

—Bem, achei que, depois do que aconteceu ontem à noite…

— O que aconteceu ontem à noite? — exclamou Buck, ficando no mesmo instante com o rosto muito vermelho.

— Não se lembra? — provocou-o Jake. — Você estava lá.

— Não me diga que…

Buck adiantou-se mas Cecília estendeu o braço Para retê-lo.

— Calma, Buck.

— Se ele se aproveitou de você… — ameaçou o vaqueiro.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Cecília, soltando um exagerado suspiro. — Mas o que está acontecendo com vocês dois? Estão se comportando como se nós estivéssemos nos tempos sombrios da Idade Média.

— Nem tanto — discordou Jake, sorrindo para Buck.

— Mesmo assim, quando uma mulher entra no quarto de um homem, as pessoas começam a imaginar coisas.

— No quarto! — gritou Bea, com os olhos parecendo dobrar de tamanho.

— Isso é verdade, Ciei? — perguntou Buck.

— Eu estava carregando um bêbado, seu idiota, e esse bêbado era você — respondeu Cecília, voltando-se depois para Pendergast com os olhos soltando faíscas. — Quanto a você, que tipo de professor sai por aí espalhando mentiras? — Então ela olhou significativamente para Bea.

— Sim, porque se essa história chegar aos ouvidos do Sr. Beasley você estará desempregado.

Beatrice balançou firmemente a cabeça para falar ao herói dela.

— Sr. Pendergast, eu não falarei a papai nada de mal sobre o senhor. Nem sobre a srta. Summertree. Juro.

Jake afagou a cabeça da menina e sorriu para ela.

— Eu ainda quero saber o que aconteceu — insistiu Buck.

Cecília suspirou novamente. — Nada, absolutamente nada. — Como o rapaz continuasse com aquele ar de perplexidade no rosto inocente, ela revirou os olhos. — Vá para casa, Buck.

— Mas…

— Depois eu explicarei tudo — disse Cecília, com firmeza.

Buck olhou alternadamente para ela e Pendergast. — Não gosto da idéia de deixá-la com esse…

— Eu estarei bem. — Cecília estendeu a mão para apertar o braço de Buck. Jake engoliu em seco quando ela dirigiu ao vaqueiro o melhor sorriso. — Obrigada por me acompanhar na caminhada, Buck.

Buck pestanejou, na certa sem entender aquela mudança de tom. Depois ele lançou a Jake mais um olhar de advertência. Finalmente dirigiu-se a Cecília.

— Se precisar de mim…

— Eu o chamarei — ela prometeu.

Buck girou o corpo e marchou para o lado do cabaré, onde havia deixado amarrada à égua. Cecília esperou até que ele se afastasse até não poder ouvi-los e voltou-se para Pendergast.

— Não sei o que está pretendendo, Pendergast, mas já vou avisando que não vai dar certo — ela disse, enraivecida.

Jake abriu um sorriso largo. — É claro que você não sente nada por aquele vaqueiro, não é?

Cecília pareceu surpresa com a pergunta mas logo depois cruzou os braços.

— E se eu sentisse? Isso é da sua conta?

— Prefiro deixar que você responda — rebateu Jake, dando um passo adiante e abaixando a voz. — É da minha conta?

Cecília mordeu o lábio inferior, atarantada. Olhando rapidamente para trás, viu que Buck já estava a cavalo e seguia para o norte.

— Buck é um velho amigo — ela disse, sem querer dar o braço a torcer.

Jake percebeu que fizera uma avaliação correta. Embora não gostasse daquele vaqueiro, Cecília deixava que ele estivesse sempre por perto apenas para não ferir os sentimentos do pobre rapaz. Além disso, numa região como aquela, onde as pessoas eram poucas e viviam isoladas, ter com quem conversar era um privilégio que não devia ser descartado. A certeza de que Cecília não via em Buck um marido em potencial deixou Jake muito contente.

Não que isso tivesse importância, claro, mas Cecília era uma coisinha linda e ele pretendia ficar naquela cidade ainda por um bom tempo. A companhia feminina também não era algo para ser descartado.

— E bom saber que vocês são apenas amigos — ele disse.

— Eu não disse isso — corrigiu-o Cecília. — Buck tem vindo regularmente à cidade desde que eu me encarreguei da escola, no início deste mês.

— Mas agora você não está mais encarregada da escola.

Cecília apertou os olhos. — Não, não estou — ela concordou, para logo depois erguer a cabeça num gesto de desafio. — Por enquanto.

Jake sorriu novamente, achando que, de um jeito ou de outro, tiraria proveito daquela refrega. Ele e Cecília Summertree não precisavam ser necessariamente inimigos. Por outro lado, era muito interessante ter uma adversária tão atraente.

— Se ele fosse realmente seu namorado a esta altura você também estaria correndo para a fazenda — disse Jake, chegando-se mais para perto dela. — Afinal de contas, poderiam se ver com mais freqüência.

Cecília respirou fundo. Não estava gostando nada do olhar de predador que via em Pendergast.

— Fico contente em saber que Buck não é seu namorado — declarou Pendergast, agora falando numa voz meio rouca.

Cecília percebeu o perigo mas achou que não podia fazer nada. Sentia-se cativada pelo fascínio daqueles olhos negros, que pareciam cada vez mais perto.

— Por quê? — ela perguntou.

Pendergast sorriu e o coração de Cecília ficou descompassado.

— Não adivinha? — ele perguntou.

Numa última tentativa para se salvar, Cecília recuou um passo e sentiu que batia com as costas na antiga oficina de ferreiro. É claro que ele não tentaria nada, pelo menos não em plena rua!

— Não — ela respondeu, numa voz muito baixa, embora soubesse que estava mentindo.

Já havia adivinhado o que ele estava querendo dizer, mas jamais reconheceria isso.

Pendergast chegou ainda mais perto.

— Então vou lhe mostrar.

Cecília sentiu-se tonta e segurou com firmeza naqueles braços cuja força havia subestimado.

— Por que está fazendo isso? — ela perguntou, quase sem fôlego.

— Deve conhecer o ditado, professorinha — disse Pendergast, com os olhos negros brilhando muito. — Quando dois querem…

Apenas vagamente Cecília tomou consciência dos lábios que se aproximavam dos dela. O instante que se seguiu pareceu demorar uma eternidade. Os lábios do mestre-escola eram macios demais e instintivamente ela ergueu os braços para envolver os ombros dele.

Nenhuma mulher direita se submeteria àquilo em pleno dia e no meio da rua. Cecília o esbofetearia na cara… se não estivesse com os braços em volta dos ombros dele.

Finalmente Pendergast segurou nos ombros dela, empurrou-a levemente para trás e sorriu.

— Está aí a resposta — ele disse.

Logo depois ele girou o corpo e saiu caminhando calmamente até a esquina.

Que resposta? Cecília ficou olhando para o ponto onde ele havia desaparecido. Instante mais tarde ela havia se esquecido completamente daquela pergunta… talvez porque a resposta fosse fascinante demais.

    

Os olhos de Bea Beasley pareciam querer atravessar as grossas lentes dos óculos. A menina agarrou na mão da ex-professora… e Cecília reconheceu que estava mesmo precisada daquilo, ou perderia o equilíbrio.

— Ele a beijou! — gritou Bea, com um sorriso de orelha a orelha. — Oh, que romântico, srta. Summertree!

Ainda meio tonta, Cecília encostou nos lábios a ponta dos dedos. Então um beijo era assim… Depois que alguns homens haviam tentado beijá-la, ela sempre se perguntava por que as pessoas faziam tanto estardalhaço em torno de uma coisa tão repulsiva.

— Srta. Summertree? — voltou a falar Bea, sacudindo o braço dela. — E exatamente como dizem os livros! Você está pálida e seu pulso está vibrando freneticamente, desvairadamente. Ah, isso tudo é tão excitante que eu poderia morrer agorinha mesmo!

Cecília olhou para o rosto entusiasmado da menina. Freneticamente? Desvairadamente? A última coisa que ela queria naquela situação tão complicada era sentir uma atração desvairada e frenética por quem quer que fosse… menos ainda por Eugene Pendergast, o arquiinimigo.

Aos poucos ela foi voltando ao normal e se sentiu dominada por uma saudável raiva. Aquele escorpião a beijara de propósito! E não porque não pudesse se controlar, a desculpa clássica dos homens, mas sim para exercitar sua presumida superioridade. E o que mais a revoltava era não ter feito nada para impedir a ação dele. Pelo contrário, praticamente havia se derretido nos braços do homem. Oh, Deus!

Com uma expressão sonhadora, Beatrice olhava para o ponto onde Pendergast havia desaparecido. A precoce menina acreditava que havia um lugar no Olímpio reservado para os educadores. E sem dúvida achava que havia testemunhado algo equivalente ao acasalamento dos deuses. Só faltava a notícia daquele beijo se espalhar pela cidade!

— Agora vocês dois podem se casar — sugeriu a entusiasmada Bea. — E nós passaremos a ter dois professores!

Só passando por cima do meu cadáver, pensou Cecília.

— O Sr. Pendergast é tão bonito… parecido com Pete Dois-Passos. Não acha, srta. Pendergast?

Como não conhecia nenhum Pete. Dois-Passos, Cecília apenas moveu a cabeça em concordância. Discordar de Beatrice Beasley só complicaria as coisas. Cecília sabia por experiência própria que quando aquela menina enfiava uma coisa na cabeça não havia como convencê-la do contrário.

— Mas eu não acho que você se pareça com Willa, srta. Summertree — ressalvou Bea. — Seus cabelos não são tão ruivos quanto os dela.

Na verdade os cabelos de Cecília não eram nada ruivos.

— Quem é Willa? — ela perguntou, enquanto tentava pensar numa forma de convencer Bea a não falar com 0 pai sobre aquele incidente.

— Willa é uma dançarina de cabaré. As roupas dela também são mais bonitas do que as suas, eu acho. São vestidos feitos dos mais finos tecidos e que sempre chagam a atenção dos homens. Mas tenho certeza de que 0 Sr. Pendergast não se importa muito com as suas roupas, já que você é uma moça de respeito. Mesmo assim, e preciso reconhecer que os homens sempre gostam mais das mulheres que vez por outra usam um vestido um pouco decotado ou mostram um pedacinho do tornozelo, sejam elas de respeito ou não.

Ah, as história que Bea vivia lendo!

— Beatrice, de onde tirou essas idéias? Não acredito que o seu pai deixe que você leia esse tipo de lixo. Qual é o nome da história?

Talvez ela pudesse recorrer à chantagem para se proteger… ou para se vingar.

A menina apontou o queixo para frente, cheia de altivez.

— O nome é Tiroteio no Salão de Baile, e não é lixo. Só pode ser boa literatura, porque o Sr. Pendergast está lendo para nós.

Aquilo era interessante e Cecília até ficou esperançosa.

— O Sr. Pendergast está lendo na escola um livro chamado Tiroteio no Salão de Baile?

— Está — confirmou a menina. — Ainda não terminou, embora tenha lido a tarde toda. E prometeu que levaria outros dos livros dele para novas leituras.

Cecília encheu-se de alegria. Aquilo era uma prova de que ninguém havia encontrado os livros novinhos em folha que ela havia escondido embaixo dos degraus da varanda da escola.

— O que aconteceu com os livros de histórias infantis que o seu pai comprou para a escola?

Bea deu de ombros.

— Não sei, mas histórias daquele tipo são muito bobinhas. Acho que o Sr. Pendergast é um educador mais progressista.

Cecília engoliu em seco, frustrada. Nada mudaria o fascínio que aquela menina sentia pelo novo professor. Pelo que ela sabia, porém, nem no Leste os professores usavam como recurso pedagógico contar em classes de crianças histórias de dançarinas de cabaré que usavam vestidos decotados e levantavam a saia acima do tornozelo. Alguma coisa naquele Pendergast não estava de acordo com a posição que ele vinha ocupando.

No entanto, a leitura de um livro de qualidade inferior não seria suficiente para fazer com que Pendergast fosse despedido. E talvez nem mesmo o desaparecimento dos livros novos servisse para isso. Cecília precisava pensar em algo mais…

Beatrice olhava para ela cheia de curiosidade.

— Algum problema, srta. Summertree? Dizem que o amor às vezes faz as mulheres ficarem meio aéreas.

Cecília teve que rir. Aquela menina falava como se ela estivesse realmente apaixonada por Pendergast!

Subitamente Cecília teve uma idéia que talvez solucionasse o problema. Se ela tivesse estômago para pôr a idéia em prática.

— É justamente o contrário, Bea. O amor deixa as mulheres curiosas.

— Você está curiosa sobre o quê?

— Sobre o Sr. Pendergast — respondeu Cecília, achando que aquilo até que podia dar certo. — Sabe de uma coisa, Bea… Eu conheço o Sr. Pendergast há muito pouco tempo. Pensando bem, você tem estado com ele muito mais tempo do que eu!

— É… parece que sim.

A percepção daquele fato aparentemente deixava Beatrice espantada, como se ela descobrisse a própria importância. E era justamente isso o que Cecília queria.

— Claro! Você passa o dia inteiro com ele, na escola. Aposto que poderia me contar uma porção de coisas sobre 0 Sr. Pendergast, coisas que eu nunca seria capaz de descobrir sozinha.

Bea franziu a testa e mexeu a cabeça para o lado. — Que coisas?

— Bem, coisas como… o que ele diz na escola, o que lê para vocês. O gosto literário de uma pessoa é sempre muito importante, sabia?

— Sim, claro!

— Na verdade, Beatrice, você poderia me ajudar um bocado. Basta que todos os dias me conte um pouquinho sobre o seu professor.

— Está querendo que eu espione o Sr. Pendergast? — reagiu a menina, como se estivesse sendo aliciada para cometer uma traição.

Cecília resolveu apelar para o romantismo da garota.

— Bem… sim, mas com um objetivo nobre. Você não pode querer que o Sr. Pendergast continue levando uma vida solitária, completamente sem amor, não é?

— Mas você não está apaixonada por ele?

Ai, meu Deus… Cecília engoliu em seco e sorriu.

— Quase, mas uma mulher não pode confiar num homem sobre o qual não sabe nada. É nessa parte que você entra, Bea.

— Estou entendendo — disse a menina. — Eu não estaria realmente espionando, mas apenas verificando se Sr. Pendergast na verdade não é um homem sem coração, um caçador de dotes, um mau-caráter ou coisa assim.

— Que pensamento horrível!

— Mas ao mesmo tempo eu estarei ajudando o Sr. Pendergast — disse Bea, entusiasmando-se com o plano.

Sem dúvida ela achava muito romântica o papel de intermediária que estaria desempenhando naquela história.,

— Isso mesmo, e você também estará me fazendo um grande favor — acrescentou Cecília, piscando o olho. — Nós, mulheres, devemos sempre juntar nossas forças.

— Tem razão — concordou Bea, agitando no ar a mão direita com o punho cerrado.

— E o mais importante, Bea, é você não contar a ninguém o que está fazendo. A principal regra da espionagem… ou melhor, da ajuda… é o segredo.

— Juro que não direi nada a ninguém! — prometeu Beatrice, logo fazendo uma ressalva: — A não ser, talvez, para o Sr. Wiggles.

Cecília olhou para o cachorro, que ao ouvir menção ao nome dele começou a balançar o rabo.

— Acho que podemos confiar no Sr. Wiggles — ela disse, a contragosto, já que aquele bicho sempre a deixava nervosa.

Depois de selarem o acordo com um aperto de mão, Cecília e Bea combinaram um encontro clandestino para o fim daquela semana e saíram das sombras do velho galpão para a luminosidade da tarde. Bea parecia ter incorporado o comportamento do personagem que iria desempenhar e, rumando para casa, movia-se furtivamente entre as árvores. Cecília só esperava que, acreditando na importância do que fazia, a menina se mantivesse de boca calada.

Depois ela suspirou e saiu caminhando para a pensão. Dolly certamente iria querer saber por que ela havia desaparecido. Era bem possível que o amor de fato deixasse as mulheres curiosas. Já que a conversa com Buck tinha sido interrompida, ela precisava pensar em algo encorajador para dizer à amiga. Mas não adiantava ter muitas ilusões, porque Dolly só ficaria satisfeita quando Cecília apresentasse Buck em carne e osso, disposto a pedi-la em casamento. Prevendo um fracasso naquela missão, talvez a mulher já houvesse reservado uma terrível tarefa para Cecília, como fazer manteiga, por exemplo. Ela sentiu dores nas costas só de pensar naquilo.

Isso sem falar que mais uma vez teria que ficar de frente para Pendergast à mesa de jantar, e desta vez tendo que conviver com a lembrança do beijo. Era uma situação humilhante demais.

Tudo isso para que ela pudesse viver com um mínimo de dignidade, como uma mulher independente. Não era a primeira vez que Cecília pensava na trágica ironia da complicação que estava vivendo. Quando estava na posição de viver por conta própria, como uma verdadeira dama, tinha que passar a maior parte do tempo mentindo e recorrendo a expedientes muitas vezes reprováveis. Ou Seja: o oposto do que faria uma mulher digna.

    

Sentada no meio da cama de mogno, Rosalyn Pendergast tentava entender o significado das palavras escritas no papel que tinha diante dos olhos… Lamento informá-la de que o seu irmão recentemente deixou o mundo dos vivos… Aquela frase sobressaía no meio de tudo o que o Sr. Jake Reed havia escrito na carta.

Fora isso o homem escrevia numa linguagem vaga, mais criando dúvidas do que apresentado respostas. Como Eugene, o tímido Eugene que só se interessava por livros, podia ter-se envolvido numa “desordem de bar”? O Sr. Reed não dizia. Também não dizia se o irmão dela fora enterrado como merecia. E onde estavam os pertences de Eugene? Rosalyn estava certa de que o irmão possuía várias outras coisas além dos quarenta e sete dólares que o Sr. Reed mandara junto com a carta.

Não, nada daquilo fazia sentido. Por outro lado, e mesmo chorando desconsoladamente a morte do único irmão, Rosalyn reconhecia que aquele fim não era de todo imprevisto. Por isso ela havia insistido com Eugene para que não partisse, temerosa que estava de que acabasse acontecendo uma tragédia. Mas o querido e tolo irmão dela havia afirmado que o Texas era exatamente o lugar que ele procurava. Garantia que a mudança para lá o transformaria num novo homem.

Rosalyn entendia aquela vontade de ir embora de Filadélfia, mas suplicou ao irmão que procurasse um lugar mais desenvolvido para se fixar. Annsboro, no Texas… no Texas selvagem… Parecia um lugar tão remoto! Tudo o que eles sabiam sobre Annsboro era uma rápida descrição feita por carta por Chadwick Watkins, um antigo e colega de faculdade de Eugene e que agora era superintendente de escolas naquela região. Rosalyn havia sugerido Galveston, também no Texas, mas naquela cidade não havia vaga para um mestre-escola. Mas o próprio Eugene insistira em afirmar que queria algo diferente, um lugar sem muitos recursos, como se uma mudança geográfica tivesse o condão de mudar a personalidade de uma pessoa.    

Pobre Gene. Talvez ela houvesse sufocado demais o irmão, por ser ele o único parente vivo além de tia Patrice.

Embora Rosalyn lecionasse e ganhasse algum dinheiro, Eugene sempre se sentira na obrigação de sustentá-la. Aquilo o deixava amarrado, forçava-o a viver com a velha e rabugenta tia. Na única tentativa que fizera para começar vida nova, o desditado Eugene havia encontrado um fim trágico.

Rosalyn levantou-se vagarosamente e caminhou até o armário para pegar um lenço limpo. No pequeno espelho pendurado na parede, viu a imagem do próprio semblante transtornado pela dor. Estava com os cabelos despenteados, os músculos do rosto contraído e os olhos castanhos avermelhados por causa das lágrimas. Antes de falar com a tia ela precisava se recompor. A notícia triste provavelmente faria com que tia Patrice ficasse de cama por pelo menos um mês.

Embora Rosalyn soubesse que jamais tia Patrice declararia isso, muito provavelmente a velhota consideraria a morte do sobrinho um castigo justo por ele ter cometido a imprudência de ir para um lugar selvagem. A mulher não se cansara de desaprovar o plano de Eugene, principalmente depois de saber que a intenção de Rosalyn era ir ao encontro dele em Annsboro. Chamara os dois de ingratos por terem a coragem de abandonar a pessoa que os havia acolhido quando eram apenas órfãos desvalidos, ocupando-se em educá-los.

Rosalyn concordara. Era mesmo uma ingratidão abandonar a velha tia Patrice depois de tudo o que ela fizera por eles. Mas a idosa mulher simplesmente se recusara a acompanhá-los naquela aventura, apesar de todas as súplicas da sobrinha. Patrice vivia em Filadélfia há mais de sessenta anos, sempre naquela casa, e não tinha a menor intenção de se mudar. Menos ainda para uma região tão quente.

Rosalyn concordara, sim. O que ela e Eugene haviam planejado fazer era uma ingratidão, uma malvadeza sem conta, coisa de gente sem coração. Mesmo assim, ela mal podia esperar pela hora da partida!

Rosalyn até se envergonhava de como secretamente havia ansiado pelo momento em que entraria num trem e daria adeus a Filadélfia e àquela casa velha e bolorenta. Eugene devia ter sentido a mesma coisa, mas pelo menos ele era homem. Não precisava, como ela, acompanhar Patrice nas tediosas visitas que a velhota fazia às mesmas pessoas de sempre, cuidar das dores imaginárias de Patrice, sentar-se na claustrofóbica sala da casa pare ler histórias sem graça para a tia. As únicas horas de liberdade de Rosalyn eram quando saía para dar aulas particulares de latim, francês e matemática. As outras horas eram gastas sempre cuidando da casa ou de Patrice. Rosalyn adorava a tia, quase tanto quanto gostava do irmão, mas o que mais queria era ir para bem longe daquele lugar.

Agora não teria mais para onde ir. Em resumo, era isso o que significava a carta do Sr. Jake Reed.

Outra vez ela sentiu vergonha por pensar apenas em si própria. Pobre Eugene! A morte dele, sim, era a grande perda. Por outro lado…

Bem, pelo menos ele tinha visto alguma coisa do mundo. Rosalyn até sorriu ao se lembrar da felicidade do irmão depois de receber de Chadwick Watkins a confirmação de que a vaga de mestre-escola em Annsboro era dele. Eugene passara a andar nas nuvens, mais contente do que ela jamais o vira em vinte e nove anos de convivência. Talvez o Texas realmente tivesse o poder de conferir nova identidade a uma pessoa.

Rosalyn examinou mais uma vez no espelho o rosto pálido. Uma nova identidade?

Correndo de volta à cama ela retirou a carta do envelope amarelo. Aquela carta dava muito poucas informações. Ela precisaria escrever para o tal Jake Reed.

— Não, isso seria tolice. Se Eugene estava morto, o Sr. Reed a consideraria uma lunática por não acreditar na primeira carta. Além disso, como confiar num estranho que Eugene havia conhecido num bar?

Rosalyn fez rápida contas de cabeça. Além dos quarenta e sete dólares que Jake Reed havia mandado, ela havia conseguido economizar uns trinta dólares. Podia também vender as jóias de que era possuidora, peças sem nenhum valor-sentimental para ela. Juntando tudo, teria mais do que o suficiente para chegar ao Texas!

Mas o que poderia dizer à tia? Muito certamente Patrice acharia que a sobrinha havia perdido o juízo. Afinal de contas, ela não tinha nenhuma prova de que Eugene estava vivo. Pelo contrário, tinha uma carta de uma testemunha ocular afirmando que ele estava morto. Querer usar aquilo como uma prova de que o irmão ainda estava vivo seria totalmente contrário à lógica.

Rosalyn caminhou pelo quarto e parou novamente diante do espelho. O rosto que olhava para ela era o de uma mulher de trinta e um anos. Uma solteirona. Na verdade nada a prendia àquela cidade. Mas ela era uma dama, e as damas não costumavam ir para regiões selvagens em busca de aventura. Seria um absurdo! Ela nem sabia por onde poderia começar a procurar pelo irmão. A viagem mais longa que já fizera na vida tinha sido até Pittsburgh, e mesmo assim na companhia de tia Patrice.

Rosalyn voltou à cama, onde continuava a horrível carta. Alguma coisa naquela história não fazia sentido Para ela. Já que não iria até o Texas para uma confrontação com o Sr. Jake Reed, ela teria que pelo menos investigar, fazendo isso da única maneira que podia.

Enchendo-se de determinação, Rosalyn caminhou até a escrivaninha ao lado da janela, pegou uma folha de papel em branco e molhou na tinha a pena da velha caneta. Na caligrafia elegante de sempre, começou a escrever uma carta para a única pessoa que poderia dar a notícia segura sobre o irmão dela.

Caro Sr. Watkins…

Se alguma coisa realmente houvesse acontecido com Eugene, era estranho até aquele momento Rosalyn não recebido nenhuma comunicação da parte do antigo colega do irmão dela. Eugene até deixara com ela o endereço de Watkins, só para o caso de alguma emergência. Fosse por que motivo fosse, Rosalyn resolveu que não revelaria a Watkins o que a levara a escrever aquela carta. Seria apenas uma irmã mais velha querendo saber notícias do irmão. O homem se sentiria na obrigação de responder… e, pelo que ela esperava, informando que Eugene havia chegado são e salvo a Annsboro.

— Hoje nós estudamos ortografia.

— Ah, sim — disse Cecília.

Ela e Beatrice estavam ao lado do poço que havia à direita da escola, no quarto encontro em quase duas semanas. Um pouco afastado delas, Sr. Wiggles espichava-se no chão à sombra de uma árvore. Se por acaso alguém as visse, pareceria perfeitamente natural Cecília estar apanhando um pouco de água para matar a sede dela e da menina.

— O que mais? — ela perguntou.

— Só isso.

Cecília ouviu com espanto aquela informação. Pendergast usava a didática mais esquisita de que ela já ouvira falar. Um dia inteiro de ortografia?

Bem, o que mais ele deveria fazer? Bea, seguindo instruções de Cecília, informara o pai do desaparecimento dos livros. Lysander Beasley marchara imediatamente para a escola, querendo investigar pessoalmente. Ao constatar que Pendergast não sabia onde estavam os volumes de histórias infantis, o homem quase subira pelas paredes. A versão mais aceita na cidade era de que, por travessura, alguns dos alunos mais velhos haviam sumido com os livros. Cecília sabia que aquilo não era verdade, mas o fato era que Pendergast ficava o dia inteiro sem ter o que fazer com as crianças.

A não ser estudar ortografia, ela pensou, com um sorriso diabólico.

Bea alisou orgulhosamente as grossas trancas.

— É claro que eu sou a melhor da classe em ortografia. Ganhei uma disputa, com cinco outros alunos e o Sr. Pendergast me pediu que comandasse uma sabatina com a classe toda pelo resto do dia.

— Sem dúvida você é a melhor, Bea. Sempre foi — disse Cecília, acariciando o ego da menina. Então ela pegou o bastão doce que naquela tarde havia comprado no armazém de Beasley. — Antes que eu me esqueça, tenho uma coisa para você. Saiba que estou muito agradecida pelo que vem fazendo por mim.

Beatrice pegou o bastão doce e inspecionou-o.

— Parece que na vida real as mulheres levam mais tempo para se apaixonarem do que nos livros.

— É, parece que sim — concordou Cecília, temerosa de que Bea relaxasse a vigilância.

— Bem… nesse caso, acha que podemos inventar outras formas de ação?

Aquela pergunta pegou Cecília de surpresa.

— Como assim?

Bea encheu-se de coragem.

— Por exemplo, acho que não seria má idéia você variar um pouco os doces que traz para mim. Podia vez por outra trazer um bombom de licor no lugar desses enjoativos bastões de açúcar. Meu pai é o dono do armazém e eu sei que o preço é o mesmo.

Cecília cruzou os braços, concluindo que devia tratar aquela menina com mais cuidado. Beatrice Beasley estava se revelando mais esperta do que ela havia imaginado.

— Sta. bem, está bem, você terá o seu bombom de licor — ela prometeu.

A menina fez um leve gesto de cabeça indicando que alguém se aproximava. Cecília nem precisou se voltar Para saber que era Pendergast. A imagem dele estava refletida nos óculos de Beatrice.

— Sr. Pendergast — ela disse, voltando-se.

Bea começou a se afastar. — Eu… eu acho que vou embora.

Antes de sair correndo na direção da loja do pai, a menina piscou o olho para Jake, o que o deixou aliviado. Era uma indicação de que Bea havia convencido Cecília a levar para ela bombons de licor.

— Eu adoro conversar com Bea — disse Cecília, num tom alegre, como se quisesse explicar a presença dela ali.

Jake perguntou-se com que velocidade o humor dela mudaria se soubesse que a pequena espiã agora trabalhava para o inimigo. Depois de cada encontro com Cecília, Bea relatava a ele toda a conversa e o presenteava com os bastões de açúcar que ganhava. Jake repassava a guloseima aos alunos da classe em troca de um pouco de obediência. Até aquele momento o arranjo estava dando muito certo, a não ser pela preferência de alguns alunos mais velhos por bombons de licor. Daí a mudança.

— Se veio de tão longe só para conversar com ela, imagino que isso seja mesmo do seu agrado — disse Jake.

— Bem… na verdade eu estava passando aqui perto e resolvi beber um pouco de água.

Até mesmo aos ouvidos de Cecília aquela desculpa pareceu pobre, já que o balde continuava na borda do poço, absolutamente seco. Rapidamente ela jogou para dentro do poço a corda com o balde e começou a girar a manivela.

Pendergast segurou no braço dela para fazê-la parar. Mais do que aquele toque, foram as palavras dele que a fizeram sentir um arrepio.

— Eu sei o que anda fazendo, srta. Summertree.

— Sabe?

Cecília perguntou-se o que podia significar aquela afirmação. Teria ele descoberto os livros? Ou… Bea dera com a língua nos dentes?

— Mas o que acha exatamente que eu ando fazendo?

— Apaixonando-se por mim, é claro.

Cecília abriu a boca mas não soube o que dizer. Tudo o que conseguiu foi dar um safanão para se livrar do aperto da mão dele.

Jake riu com vontade. Ele até gostava de se fazer passar por Pendergast quando podia usar isso para importunar Cecília.

— Posso lhe garantir uma coisa, Pendergast: se estivesse me apaixonando, não seria por você!

— Nesse caso, será que pode explicar por que vem me seguindo por todos os cantos?

— Seguindo você? — reagiu Cecília, quase gritando. — De onde tirou essa idéia absurda?

Jake cocou o queixo, pensativo.

— Acho que comecei a pensar nisso no dia em que a vi me observando da esquina quando entrei no armazém de Beasley para comprar pó para passar nos dentes.

— Eu estava lá por acaso! — protestou Cecília.

— Então foi na igreja, no último domingo, quando notei que você mudava de lugar para ficar mais perto de mim.

Cecília revirou os olhos..

— Aquilo foi porque, sem reparar, eu havia me sentado ao lado do Sr. Whitman, um homem que não suporto. Não queria passar o serviço religioso inteiro com alguém roncando no meu ouvido!

— Reconheça, srta. Summertree — recomendou Jake.

— Eu não estou apaixonada por você! — rebateu Cecília, sem conseguir controlar a raiva, o que até dava a impressão de que ela estava mentindo.

Pelo menos aquele homem não sabia qual era a verdadeira intenção dela.

— Não acha muita coincidência ter arranjado trabalho na pensão da Sra. Hudspeth justamente quando eu cheguei à cidade?

— Não se levarmos em conta que eu perdi meu outro emprego justamente quando você chegou à cidade. E isso não foi nenhuma coincidência.

— A fazenda do seu pai seria muito mais confortável Para você, não seria?

— Não acho que você tenha alguma coisa a ver com o meu conforto, mas saiba que detesto fazendas

— confessou Cecília, rispidamente. — Prefiro estar perto das pessoas..

Jake abriu o sorriso. — Principalmente de certa pessoa?

Cecília trincou os dentes. — Pela última vez, juro que você não significa nada para mim.

— Como diz uma velha e famosa frase, «acho que a mulher protesta demais».

Jake ficou nervoso, sem saber se fizera corretamente a citação. Agora precisava esperar para ver no que aquilo daria.

Cecília perguntou-se o que poderia dizer para convencer aquele homem. Ouvir Pendergast citando Shakespeare não era um bom sinal. Para falar a verdade, ultimamente nada parecia dar certo para ela.

Ainda sorrindo, ele chegou mais perto e recostou-se displicentemente na borda do poço.

— Devo reconhecer, Cecília, que no início você me deixou desconcertado. Não se importa que eu a chame de Cecília, não é?

— Não posso proibi-lo — ela resmungou.

— Cecília… — ele repetiu, olhando para o alto com um ar sonhador. — Esse nome tem um som delicado, quase melindroso.

— O quê? — exclamou Cecília, mal acreditando no que acabava de ouvir. — Bem, explique-se melhor, Eugene!

O sorriso que ele mostrou foi de puro triunfo.

— Isso mesmo, Cecília! Deve me chamar de Eugene. Quero que sejamos amigos.

— Amigos, é? Há! Prefiro ser amiga de uma cascavel.

Pendergast fez um ar de preocupação.

— Mas eu acho que temos tudo para ser amigos. Como ia dizendo, no princípio fiquei lisonjeado pelas suas óbvias intenções amorosas, até perceber que você era apenas uma coisinha muito jovem e provavelmente despreparada para um relacionamento maduro, profundo.

Cecília enfureceu-se com aquilo.

— Tenho quase dezenove anos. Quando estiver procurando um relacionamento maduro, profundo, pode crer, pendergast, que não irei bater à sua porta.

— Não, eu acho que você é mais do tipo que jogaria indiretas.

— Eu jamais…

Nesse ponto ele chegou mais perto para falar com ares de conspiração.

— Ou mandaria Bea me levar os seus recados.

Então era isso! Bea na certa contara a Pendergast a ridícula história de que ela, Cecília, era uma mulher apaixonada. Bem, isso não causaria nenhum prejuízo, desde que ele não descobrisse que a verdadeira intenção dela era expulsá-lo daquele emprego. Cecília nem fazia questão de que ele mudasse de comportamento. Riria melhor quem risse por último.

— Diga-me uma coisa — pediu Pendergast. — Aquelas pequenas marcas de ferro quente que você sempre deixa nas minhas camisas têm alguma significação especial?

Cecília engoliu em seco. Aquelas pequenas marcas de ferro quente significavam que ela não sabia passar roupa direito.

— Sou muito distraída — ela disse, trincando os dentes.

Era praticamente insuportável ouvir aquele homem sugerir que ela cometia a idiotice de mandar mensagens amorosas enquanto cuidava da roupa dos hóspedes da pensão.

— Ah, sei — disse Pendergast, piscando o olho, como se houvesse entendido que ela se distraía no trabalho Por estar pensando nele.

Cecília sentia vontade de esbofeteá-lo, só para tirar aquele sorriso idiota do rosto dele. Em vez disso resolveu contra-atacar com palavras.

— Só por curiosidade, Pendergast… por que está tentando me convencer a não me apaixonar por você? Por acaso abandonou mulher e filhos lá no Leste?

— Por Deus, não — ele respondeu. — Eu já lhe expliquei isso. Você é apenas uma menina, não na idade, mas emocionalmente. É mais do que óbvio que não está pronta para se relacionar com um homem de verdade.

— E acha que eu vejo em você um homem de verdade!

— A julgar pela sua reação ao nosso inocente beijo, sem dúvida é isso o que pensa.

Cecília sentiu uma onda de revolta. Então aquele beijo tinha sido inocente?

— Estou vendo pelo seu silêncio que você concorda comigo — prosseguiu Pendergast. — E pode acreditar que isso é muito bom. De forma nenhuma eu alimentaria as suas esperanças.

Cecília teve certeza de que explodiria de raiva se ouvisse mais qualquer coisa, mas não resistiu a perguntar:

— Esperanças?

Jake riu. Aquela mulher estava a ponto de explodir.

— Mocinhas como você sempre acham que um simples beijo tem uma enorme significação — ele opinou, enfiando os polegares por trás do cinto da calça. — O que você não entende, minha doce Cecília, é que os homens são como as árvores. Alguns deles podem ser dobrados segundo a sua vontade, enquanto outros se comparam mais aos frondosos carvalhos. Não se dobram de forma nenhuma e dão muito trabalho para serem derrubados.

Cecília perguntou-se por que tinha que ouvir tanta baboseira e ergueu a cabeça em desafio.

— Pode acreditar numa coisa, Pendergast: mesmo que você fosse a última árvore sobre a face da Terra, eu não pegaria num machado para derrubá-lo.

Fazendo um gesto de enfado, Cecília girou o corpo e saiu caminhando apressadamente para o lado da pensão. Jake riu alto enquanto ela se afastava, apenas para irritá-la ainda mais. Depois ele suspirou. Por mais que gostasse das discussões com a pior lavadeira da cidade, era sempre bom perceber que havia sobrevivido a mais um combate. Insistir que ela estava apaixonada por ele tinha sido uma boa estratégia. Jake queria atormentá-la de todas as formas… principalmente agora, quando tinha poucas dúvidas de que ela tivera participação no desaparecimento dos benditos livros.

Jake olhou em volta. Como não viu ninguém, apressou-se em desabotoar o colarinho da camisa. Deus do céu! Há muito tempo que ele não passava tanto calor no início de outubro… e, para piorar, ainda era obrigado a usar as roupas quentes de um ianque. Quando mudasse a estação e a temperatura fosse adequada para aquelas roupas, provavelmente ele já estaria bem longe de Annsboro. Pelo menos assim esperava.

Jake olhou para Cecília, que já ia bem longe, e lamentou o que estava acontecendo entre eles dois. Em outras circunstâncias talvez até tentasse um namorico com ela. Vinha fugindo há tanto tempo que nem se lembrava da última vez em que estivera em contato com uma mulher decente. Enquanto pensava naquilo Jake voltou à escola para pegar algumas coisas que deixara lá. Bem, agora não era muito diferente… a não ser o fato de que, em vez de estar fugindo, ele se via temporariamente preso. Preso e obrigado a viver na mesma casa com uma mulher que o detestava.

Não devia tê-la beijado. Havia pensado que aquilo seria como aplicar em si próprio uma vacina, mas o efeito tinha sido o oposto. Repetidas vezes se surpreendia fazendo justamente aquilo de que a acusava. Seguia furtivamente atrás dela, esperando pelo momento em que eles poderiam conversar… pelo instante em que poderia beijá-la novamente. Bem, na próxima vez em que sentisse essa vontade ele procuraria pensar em Otis Darby e Will Gunter, e não na petulante loura. Isso serviria para aplacar o desejo e lembrá-lo de que estava em Annsboro apenas para matar o tempo antes de sair em busca de vingança.

Naquele instante Jake decidiu que partiria na semana Seguinte. Só mais uma semana e Annsboro seria apenas lembrança.

    

Cecília bufava de raiva quando chegou perto da casa de Dolly. Frondosos carvalhos! Se Pendergast era um frondoso carvalho ela… ela estava era cansada daquilo tudo. A tarefa de recuperar o antigo emprego exigia mais esforços do que ela havia imaginado.

— Cecília!

Olhando para o lado Cecília viu Beasley, esbaforido depois de ter andado na rua com aquele calor. Ver o estado dele até serviu para fazê-la sentir-se menos cansada. Afinal de contas, talvez o comerciante trouxesse boas notícias para ela… ou más notícias para Pendergast, o que significava a mesma coisa.

— Ainda não descobriu livros? — ela perguntou, quando Beasley chegou mais perto.

O comerciante tirou um lenço do bolso para enxugar o suor do rosto.

— Não. Eu estava justamente indo até a escola para ver se eles haviam reaparecido.

Ótimo. Cecília quase não sentia remorso pelo que fizera.

— Ainda há pouco estive conversando com o Sr. Pendergast e… é engraçado, mas ele não tocou nesse assunto. Parece até que não está muito preocupado com o desaparecimento daqueles livros maravilhosos.

— Levei dois anos juntando dinheiro para comprá-los — lamentou Beasley, balançando a cabeça.

Não era o dinheiro que preocupava Cecília.

— Um mestre-escola de verdade teria mais preocupação com o material didático do que aquele homem demonstra.

Beasley fez uma careta, movendo o bigode para cima.

— Está querendo dizer, Cecília, que Pendergast não está à altura da função?

— Bem… — ela disse, deixando a dúvida no ar.

— Ele chegou aqui com as melhores credenciais — afirmou Beasley, aparentemente disposto a defender o professor que ele próprio havia importado do Leste.

Cecília resolveu continuar com cautela.

— Mas às vezes, Sr. Beasley, a experiência prática é igualmente importante.

Beasley voltou-se para o lado da escola e ficou olhando para lá, pensativo. Depois balançou a cabeça, como se houvesse tomado a decisão.

— Bea gosta dele.

Cecília conteve a respiração. — Bea?

— Minha filha não pára de falar no novo professor. Quando me encontrar com Pendergast, preciso me lembrar de dizer que Bea está adorando as aulas de ortografia que ele dá. Boa tarde, Cecília.

Depois de dirigir a ela um rápido sorriso o comerciante se afastou.

Maravilha! Então ela gastava dinheiro com doces apenas para que Bea a sabotasse, colocando aquele homem nas alturas? Talvez não valesse a pena investir naquela menina.

Enquanto continuava a caminhar para a pensão Cecília pensou que, na verdade, devia repensar toda a estratégia.

Ela mal podia esperar até que pudesse se recolher ao pequeno quarto e descansar até a hora do jantar. Isso seria muito bom, embora ela soubesse que ficaria de frente para Pendergast à mesa do jantar e depois ainda teria a tarefa de limpar a cozinha. Só não sabia como Lupe, ma moça tão frágil, tinha sido capaz de dar conta daquilo tudo. Não era de admirar que a jovem tivesse preferido se submeter às rédeas do casamento.

Enquanto pensava naquilo Cecília ouviu gritos vindos do lado da pensão. E as vozes pareciam ser as de Dolly e Buck.

Ao sair da pensão para ir ao encontro de Bea ela vira Buck se aproximando. Depois, preocupada com os próprios problemas, esquecera-se por completo do vaqueiro.

Quando ela ia subindo os degraus da varanda Buck assomou à porta.

— Ainda bem que você apareceu, Ciei! — ele comemorou. — Aquela sua amiga é a mulher mais insuportável que eu já conheci.

Cecília não gostou de saber que estava existindo um atrito entre Dolly e Buck, fosse qual fosse o motivo.

— Era você que estava gritando com Dolly? — ela perguntou, pouco esperançosa de ouvir uma negativa.

Buck cocou a cabeça.

— Todas as vezes que eu apareço aqui ela vem me dizer que eu devia me vestir desse ou daquele jeito. Como é que um homem poder suportar isso o tempo todo?

Aquilo não era justo! A vida inteira Cecília ouvira falar em casamentos dos quais as mulheres se arrependiam pelo resto da vida. Segundo Clara, era isso o que sempre acontecia. Agora era ela quem estava querendo criar a situação propícia para um casamento assim, mas nem isso conseguia. Nada estava a favor dela.

— Buck… por que não tenta ser um pouco mais gentil com Dolly? — ela sugeriu. — Você podia trazer flores para ela, por exemplo.

— Por que eu faria isso? Vim aqui para conversar com você, não com ela. Mas você sempre desaparece e eu sou obrigado a suportar aquela… aquela mulher. — Buck deu um passo adiante. — Não sei, Ciei. Às vezes fico com a sensação de que você está… me evitando.

— Bobagem — mentiu Cecília, sem sentir o menor remorso. — Mas continuo achando que você podia vir a casa de Dolly com regularidade e conversar com ela de forma civilizada. Tem todas as condições para ser um homem charmoso, sabia?

— Tenho?

— Bem… Dolly acha que sim.

Por mais absurdo que pudesse parecer, isso era a pura verdade. Aqueles dois não podiam conversar por mais de dez minutos sem terem uma briga, mas invariavelmente, meia hora depois da visita, Dolly perdoava Buck pelos modos grosseiros dele e se mostrava outra vez uma mulher irremediavelmente apaixonada.

— Hum… — fez Buck, obviamente tão espantado quanto Cecília com a admiração de Dolly. — Bem, então tentarei voltar na semana que vem. Você vai estar aqui?

— Claro.

Cecília sorriu para o vaqueiro, que montou e partiu sem dizer mais nada. Então ela entrou e foi ao encontro de Dolly, que, muito previsivelmente, estava na cozinha em meio a uma crise histérica.

— Não sei por que ainda penso naquele homem! — recriminou-se a mulher, entre soluços. — Oh, Cecília… Você deve me achar uma completa idiota!

Cecília deixou que ela derramasse mais algumas lágrimas antes de fazer um comentário.

— Se você gosta tanto assim de Buck, Dolly…

— Eu hão gosto dele! Juro que não gosto!

— Bem… supondo que gostasse, não acha que deveria se esforçar um pouco para aceitá-lo como ele é? Não pode querer que Buck McDeere se transforme num homem igual ao que era Jubal Hudspeth. Pelo menos não da noite para o dia.

Doly assoou o nariz e pensou por alguns instantes no que acabava de ouvir. — E, acho que não.

— Você só precisa dar algum tempo a Buck.

— Para você deve ser fácil dar conselhos — disse a dona da pensão, parecendo quase invejosa. — Os homens sempre a adulam.

Aquilo era novidade para Cecília.

— Quem?

— Não se faça de inocente, Cecília — ralhou Dolly, abanando a mão. — Não acredito que não tenha reparado que ele só falta babar quando a vê.

— Está falando de Buck? Mas eu já lhe disse que…

— Não se trata de Buck — cortou Dolly, irritada. — Estou falando do Sr. Pendergast.

Só de pensar naquilo Cecília sentiu vontade de gritar de raiva.

— O que aquele homem quer é me ver morta.

— Mas não pára de olhar para você.

Desta vez Cecília gritou de fato. — Na certa Pendergast espera que eu seja fulminada pelo olhar dele.

— Ele ouve atentamente cada palavra que você diz durante o jantar.

— Deve ser para torcer o que eu digo e depois usar isso contra mim.

— Ele sempre ri quando você diz alguma coisa engraçada.

— Ele é um idiota. Ri de tudo.

Dolly fungou. — Ele nunca ri das minhas piadas.

— Bem… — Como não sabia o que responder, Cecília deu de ombros. — Isso simplesmente não é verdade, Dolly. O Sr. Pendergast e eu não somos nada além de inimigos. Então você acha que eu me submeteria a trabalhar como uma escrava aqui só para conquistar um mestre-escola ianque?

Com aquele jeito maternal que sempre fazia Cecília se enternecer, Dolly acariciou a mão dela.

— Eu diria que você quer conquistar um homem, Cecília.

— Se fosse isso, meu alvo não seria Pendergast — insistiu Cecília.

Nada a irritava mais do que ouvir Dolly falando da bem-aventurança que havia experimentado no casamento. Pensando bem, uma coisa ainda pior era a insistência com que Clara repetia que o casamento quase sempre era uma prisão para a mulher, um castigo perene.

Tudo o que Cecília queria era certa dose de independência, e ainda não havia encontrado um homem que estivesse disposto a conceder isso. Menos ainda algum por quem valesse a pena abrir mão da liberdade.

Então ela se levantou.

— Não faço a menor questão de me casar. O que não quero, de jeito nenhum, é ter que morar numa fazenda!

Dito isso Cecília escapuliu para o pequeno quarto, recriminando-se por não ter tido mais paciência. Mas o que podia fazer quando via complicações por todos os lados? Precisava estar atenta a Pendergast e providenciar para que Bea Beasley tivesse doce o suficiente para mantê-la de olhos bem abertos e boca fechada, o que parecia não estar dando muito certo. A menina vivia falando bem do professor para o pai, justo para o pai! Depois ela precisava aproximar Buck de Dolly, duas pessoas que, em quase todos os aspectos, deviam ficar bem longe uma da outra. E isso sem falar nos trabalhos manuais a serem feitos na pensão, muito mais do que havia imaginado que faria na vida inteira… Bem, era demais.

E agora Dolly dizia que Pendergast estava apaixonado Por ela! Isso era absurdo, ainda mais porque, na opinião do ianque, era ela quem estava apaixonada por ele.

Depois de ficar deitada na cama por um bom tempo, olhando para o teto, Cecília teve um pensamento otimista. Talvez Pendergast estivesse insistindo muito naquilo…

Era bem possível que ele houvesse resolvido provocá-la apenas para não ter que pensar nos próprios sentimentos.

Ou talvez o homem secretamente desejasse que ela de fato estivesse apaixonada por ele e, submetida a pressão, acabasse se declarando!

Cecília procurou controlar a onda de satisfação que sentiu quando pensou na possibilidade de que o mestre-escola estivesse apaixonado por ela. Aquele homem era impossível! Apesar da forma quase vergonhosa como ele havia enfeitiçado Beasley, Dolly e todas as outras pessoas da cidade… todas menos ela, claro… às vezes Cecília via alguma coisa no rosto dele quando ninguém mais estava olhando. Em repouso o semblante de Pendergast era frio, taciturno e… cauteloso. Por baixo daquele fino verniz de civilidade estava um homem acostumado a uma vida rude, talvez perigosa. Pendergast estava muito longe de ser o homem dos sonhos de uma dama.

Então por que o coração dela batia daquele jeito quando surgia a idéia de que ele podia estar caído por ela?

A propósito, algumas coisas que Pendergast dizia, indicativas de que ele a observava atentamente, não sugeriam o comportamento de um homem apaixonado? Como ele ter se referido às marcas de ferro quente que ela deixava nas camisas… Provavelmente Pendergast vinha observando aquelas marcas a um bom tempo, tentando identificar naquilo algum significado romântico. Cecília riu sozinha quando o imaginou correndo para examinar as camisas passadas que ela deixava em cima da cama. Ah, que patético.

Pode-se pegar mais moscas com mel… Pela primeira vez na vida, Cecília achou que um dos clichês de Clara tinha alguma utilidade. E aquilo a fez mudar de ânimo. A possibilidade de que Pendergast estivesse apaixonado por ela, mesmo longínqua, mudava tudo. A hostilidade franca não havia intimidado o homem. Até aquele momento, o desaparecimento dos livros resultará apenas no que Beasley pensava ser um aprimoramento nas técnicas pedagógicas. Talvez já fosse hora de experimentar um pouco de charme.

O melhor vestido de Cecília para o dia era de musselina e bonita padronagem violeta que realçada o azul profundo dos olhos. Tinha um discreto decote rendado e uma sai bem rodada, mas a parte de cima do vestido colava-se ao corpo esbelto como uma segunda pele. Era perfeito para ser usado em Nova Orleans, de onde ela o trouxera.

Para Annsboro, porém, parecia um traje um tanto espalhafatoso, sem falar no fato de que o tecido era grosso, duro e desconfortavelmente quente. Naquela manhã, ajudando-a a se vestir, Dolly apertou muito o espartilho, de forma que, depois de pôr o vestido, Cecília se sentiu como uma salsicha humana com a pele enfeitada de violeta.

Mesmo assim, uma olhada no espelho garantiu que o resultado final valeria a pena. Pela primeira vez em muitas semanas ela se sentia realmente bonita. Desconfortável, mas bonita.

— Está um sonho — disse Dolly, examinando a amiga. Logo depois a mulher apertou os lábios. — Mas você não pode usar esse vestido hoje.

— Por que não?

— Há muita poeira lá fora. Esse lindo vestido se sujaria num instante.

Aquilo não pareceu muito importante para Cecília, que apenas teria que lavar o vestido.

— Não se preocupe, Dolly. Eu tomarei cuidado. Não vou muito longe mesmo.

Só até a escola, onde tinha certeza de que Pendergast estava. Aos sábados os alunos saíam ao meio-dia e cerca de meia hora mais tarde ele estaria fechando a escola. Perfeito.

Se chegasse lá um pouco antes disso ela o convenceria a deixá-la entrar e, assim, poderia descobrir alguma coisa condenatória no passado dele. Talvez até encontrasse na sala algo que prejudicasse a reputação do professor diante de Beasley.

A Porta da escola estava aberta quando Cecília chegou, p.m *ato que a fez sorrir. Pendergast estava lá. Lysander Beasley, que sempre superestimava o potencial de Annsboro, mesmo quando o assunto era criminalidade, insistira que a escola estivesse sempre fechada. Principalmente agora, quando de fato vinham acontecendo alguns roubos em residências.

Antes de entrar Cecília bateu levemente na porta aberta, encolheu o estômago e moveu a cabeça um pouco para o lado. Queria maximizar o efeito que esperava produzir na vítima. Pendergast ergueu a cabeça e levantou-se, quase derrubando a cadeira. O plano começava a dar certo.

— Srta. Summert… — Interrompendo o que ia dizendo, ele respirou fundo. — Cecília!

Cecília abriu um luminoso sorriso.

— Olá, Pendergast.

Vagarosamente Jake examinou cada centímetro da beldade que caminhava na direção dele. Seria impossível não fazer isso. Naquele vestido Cecília Summertree era a mulher mais bonita que ele já vira desde… bem, desde que se entendia por gente. E quando ela parou bem na frente da mesa Jake sentiu uma leve fragrância de flores. Seria sabonete? Perfume? Aquele cheiro o deixava meio embriagado. Naquele instante ele sentiu uma vontade enorme de tomá-la nos braços, beijar aqueles lábios rosados…

Então Jake se lembrou de Gunter e Darby, que há um bom tempo o perseguiam. Era preciso estar sempre alerta. Se desse um passo em falso, as pessoas daquela cidade poderiam descobrir que ele estava na verdade usurpando o lugar do verdadeiro mestre-escola. E a notícia se espalharia rapidamente pela região.

Mas Cecília estava tão tentadora, tão linda, parecendo uma flor exótica que havia brotado no deserto inóspito que era a vida dele. E o maravilhoso sorriso que ela mostrava naquele momento o deixava…

Desconfiado. Com gestos estudados, Jake sentou-se novamente, recostou-se na cadeira e cruzou os braços diante do peito. Graças a Deus não havia perdido por completo a disseminação. Alguma coisa estava acontecendo. Cecília não teria se arrumado daquele jeito para visitar o inimigo. E ele precisava descobrir que demoníaco motivo ela poderia ter para agir daquela forma.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Jake. Cecília arregalou os olhos azuis, com um ar de absoluta inocência.

— Eu só estava passando aqui perto e achei que podia fazer uma visitinha ao local da minha antiga lida.

Jake olhava para ela com naturalidade, preparando-se para ouvir alguma explicação tola. Por mais que gostasse do que estava vendo, sabia que tudo o que Cecília Summertree queria dele era um pedido de demissão. O que ela não conseguiria, por mais bela e doce que fosse. Cecília queria aquele emprego, mas era a vida dele que estava em jogo.

Cecília ficou um tanto desconcertada enquanto Pendergast a fitava com aqueles olhos negros como ela jamais vira igual. Aquilo era outra coisa estranha em Pendergast. Quando ele a olhava não era com a indulgência ou o aberto interesse que ela sentira em outros homens que conhecera em Nova Orleans ou Memphis. O olhar daquele homem era por demais agudo e insondável, como se ele pudesse ver o fundo da alma se olhasse mais demoradamente. Bem que Cecília gostaria de que ele olhasse mais para o vestido do que para a alma dela.

Mas por que ele não dizia nada? Finalmente ela entendeu.

— Eu sempre me esqueço de que você é um ian… um homem do Norte. Lida quer dizer…

Cecília fez uma pausa. Seria fácil dizer que «lida» significava trabalho, mas ela queria dar a explicação de uma forma bem elaborada.

Jake revirou os olhos.

— Eu sei o que quer dizer lida.

Aparentemente Pendergast não estava lá muito impressionado com aquela exibição de charme. Nem chegara a dizer que ela estava bonita. Cecília até começou a duvidar da avaliação de Dolly, porque aquele não podia ser o comportamento de um homem apaixonado.

Mesmo assim Cecília resolveu levar adiante o plano para tentar ganhar a confiança dele. Empurrando para o lado um velho livro de geografia, ela delicadamente se empoleirou na beirada da mesa. Depois olhou para ele e fez uma expressão séria.

— Tenho uma confissão a fazer, Pend… Eugene.

Jake ergueu as sobrancelhas numa pergunta muda. Mal podia esperar para ouvir o que ela iria dizer.

— É só que… — Cecília deixou escapar um leve suspiro. — Fico envergonhada por não ajudá-lo tanto quanto podia.

— Estou conseguindo me arranjar razoavelmente bem — disse Jake.

Cecília pensou por alguns instantes. Aquele homem era duro na queda, isso estava bem claro.

— Mas você tem que admitir que eu podia ter sido mais… amistosa.

Enquanto ela movia graciosamente as pálpebras, abaixando e erguendo os cílios compridos, Jake soltou uma gargalhada.

— Uma cascavel também podia ser amistosa, srta. Summertree, mas até prefiro que não seja assim.

Cecília levantou-se da mesa e olhou para ele de cima para baixo, com as mãos na cintura.

— Você é o mais desprezível dos… — ela explodiu, enraivecida. — É mais baixo do que uma cascavel!

— E você é uma coisinha muito linda — respondeu Jake, levantando-se. Não era muito fácil adivinhar o jogo daquela mulher, mas ele estava resolvido a descobrir naquele minuto mesmo. Contornando a mesa, Jake segurou nos braços dela. — O que a fez vestir-se desse jeito para vir aqui?

— Tire essas mãos…

— E não venha me dizer que queria se desculpar não ter me ajudado o suficiente, porque nós dois sabem que isso não é verdade.          

Cecília esperneou e agitou-se, mas Pendergast era surpreendentemente forte e manteve-a presa pelos braços.

Logo ela estava ofegante, tanto por estar com o espartilho apertado demais como por causa do inesperado ataque de Pendergast.

— Está certo — ela reconheceu, apenas querendo se ver livre daquele olhar penetrante. — Vim aqui para espioná-lo.

— Nisso eu acredito — ele disse, soltando-a. — E o que esperava descobrir? Que eu transformei sua preciosa escola num cassino?

— Não — respondeu Cecília, esfregando as mãos nos locais em que os dedos dele quase haviam lacerado a carne. Não seria tola a ponto de revelar a ele a verdade. — Eu… eu só queria saber se você já havia começado a trabalhar para a encenação da colheita.

Pelo menos para ela, a desculpa pareceu razoável.

Jake passou a mão pelos cabelos. Além dos livros que haviam desaparecido, Beasley vinha falando muito ultimamente naquela tal encenação da colheita, que deveria acontecer dentro de algumas semanas, no fim de outubro. Bea também insistia no assunto. Jake não dera muita importância àquilo, já que no fim de outubro esperava estar bem longe.

— Ainda não pensei muito nisso — ele respondeu, com sinceridade.

Cecília abriu muito os olhos, surpresa. — Ah, não?

— Há muita agitação nesse evento?

— Ora… é praticamente o evento do ano em Annsboro —respondeu Cecília. — Na verdade, é o evento do ano. Faz-se um grande piquenique e há uma representação na frente da escola protagonizada pelas crianças. Mais tarde realiza-se um baile ao ar livre.

Jake achou difícil acreditar que Cecília ainda ficasse excitada com aquele tipo de coisa, mas sem dúvida todos em Annsboro eram muito carentes de divertimento. Ele até se sentia culpado por ainda não ter dado a devida importância ao desfile da colheita. Na ocasião poderia estar em outro lugar, mas deixaria toda a população de uma cidade sem assistir à representação infantil que aquela boa gente esperava ver. Não seria correto, principalmente levando em conta a forma como ele fora acolhido pelos habitantes do lugar. Que o tomavam por outro, claro, mas…

— Uma encenação, é?

— As peças em geral são sobre os imigrantes puritanos… e eles sempre são muito maus, se quer saber a verdade.

Ouvindo aquilo Jake sentiu-se mais confiante, porque conhecia bem os tipos maus. Mas Bea não havia falado nada sobre esse aspecto dos puritanos…

— Eu poderia ajudá-lo — ofereceu-se Cecília.

Bea também. Jake preferia não ter Cecília se intrometendo na escola o tempo todo.

— Acho que posso me arranjar sozinho.

Havia apenas uma expressão para descrever a expressão de Cecília naquele momento: de crista caída. A bela e jovem mulher parecia possuída por um desânimo total.

Subitamente Jake se viu querendo consolá-la. Afinal de contas, tão logo ele partisse daquela cidade, o que não devia demorar muito, Cecília Summertree reassumiria o antigo trabalho. Mas ele certamente não podia dizer isso a ela.

Assim sendo, que problema haveria em deixar que ela o ajudasse… só um pouco?

Quando Cecília falou foi com a cabeça abaixada e a voz revelando auto-piedade.

— Está certo… se você não quer a minha ajuda, acho que não tenho mais nada a dizer.

Dito isso ela se voltou para sair, depois de lançar a ele mais um olhar triste.

Jake suspirou. — Nós teríamos que nos encontrar todas as noites — ele disse.

No mesmo instante o semblante de Cecília se se iluminou — Aqui? — ela perguntou.

— Não aqui.

Cecília franziu a testa, juntando as sobrancelhas castanhas, e correu os olhos pelo ambiente.

— Por que não?

Era uma boa pergunta. — Onde é que a encenação em geral se realiza?

Cecília pensou por um momento. — Lá fora.

— Então é lá que podemos nos encontrar.

Cecília pensou na oferta. Bem, era melhor do que nada.

— Está certo. Podemos começar esta noite, se você quiser.

— Amanhã — ele decidiu.

Cecília ficou intrigada. Por que ele a repelia? Dolly só podia estar enganada sobre a atração que Pendergast sentia por ela. Eles poderiam se encontrar numa noite de sábado, sob uma maravilhosa lua cheia… Um homem apaixonado não deixaria passar uma oportunidade assim.

Cecília achou melhor não procurar um motivo para o fato de se sentir deprimida ao perceber que Pendergast não a amava. Ele a deixaria ajudar na encenação e ela estaria sempre por perto, observando-o. Não era esse o plano?

— Negócio fechado — ela disse.

    

Naquela noite, pela primeira vez desde que chegara a Annsboro, Jake entrou em pânico. Virando-se na cama por causa do calor, ele não parava de pensar no que a inesperada visita de Cecília à escola podia significar. Acima de tudo, por que ela havia aparecido arrumada daquele jeito? Muito certamente tinha um motivo para isso, e não saber o que podia ser o deixava nervoso.

Ela havia percebido as intenções dele.

Era essa a única explicação. Cecília sempre havia desconfiado de que ele era uma fraude. Agora, por bem ou por mal, queria encontrar uma evidência que provasse a teoria dela. Mas como? Talvez por intermédio de Bea. Jake não devia ter confiado naquela menina. Era bem possível que, quando ele menos esperasse, as duas aparecessem para jogar na cara dele o que houvessem descoberto. Ou talvez fizessem isso publicamente…

Durante a encenação da colheita! Sim, claro. Cecília estava muito interessada em ajudá-lo na preparação do evento. Ao se oferecer para ajudar ela na verdade queria era poder bisbilhotar na classe, o que agora poderia fazer sem dificuldade.

Droga, droga, droga! Será que ele nunca teria uma folga?

Jake levantou-se e começou a se vestir, maldizendo a má sorte. Entre todas as cidades do Texas que precisavam de um mestre-escola, ele tinha que ter caído justamente naquela, onde uma mulher abelhuda ambicionava a mesma vaga.

E a tal abelhuda tinha que ter os olhos mais lindos que ele jamais vira, além de uma voz tão cheia de feminilidade que as palavras que dizia ficavam nos ouvidos dele muitas horas depois de terem sido pronunciadas. Jake jamais havia pensado que conheceria uma mulher capaz de fazê-lo lamentar ter que ir embora de algum lugar. Estava a tanto tempo se ocupando apenas em fugir de Darby que até já havia desistido da esperança de ter a tranqüila vida doméstica com que todo homem sonhava. Mas Cecília de fato o fizera pensar em como seria ter uma casa, uma mulher trabalhando ao lado dele… de preferência coberta por aquele maravilhoso vestido com padronagem em violeta.

Jake balançou a cabeça e emitiu um som que era um misto de riso e suspiro de arrependimento. Cecília Summertree não tinha nada a ver com ele. Era filha de um rico fazendeiro, enquanto o pai dele tinha sido um agricultor pobre. Até aquele momento da vida ele não havia realizado nada de muito importante, nada que pudesse impressionar Cecília, uma moça que fora aluna de uma bem conceituada escola de Nova Orleans.

Menos ainda quando o que ela mais parecia querer era expulsá-lo do emprego.

O que ele precisava fazer era livrar-se de tudo que pudesse levantar suspeitas. Como os livros de Pendergast. Bea tinha dito que Cecília ficara muito interessada no conteúdo dos livros que ele lia, o que significava que aquelas histórias não deveriam estar sendo lidas para os alunos. Mas o que mais ele poderia fazer para passaro0 dia inteiro naquela escola quente?

Enquanto descia a escada, Jake resolveu que pensaria naquilo mais tarde. No momento o mais importante era não levantar suspeitas.

Era mais uma noite quente e Cecília abriu a janela do pequeno quarto. Não soprava nenhuma brisa e no céu sem nuvens brilhava uma lua amarela cercada por milhões de estrelas. Cecília suspirou e passou os braços por cima do peitoril.

Por que estava tão inquieta? Não conseguia afastar da memória o olhar duro de Pendergast, a forma como ele havia segurado nos braços dela, parecendo pronto a sacudi-la para arrancar a confissão do verdadeiro motivo daquela visita à escola.

Nunca na vida um homem havia provocado nela tantas reações. Normalmente estava segura para lidar com qualquer situação, mas depois da chegada de Pendergast a Annsboro vivia nervosa, a toda hora dizendo o que não devia. Quando estava na pensão, à noite, ou nas ocasiões em que caminhava muito perto da escola, parecia não saber o que fazer com as mãos.

A toda hora estava agindo como uma idiota. E aquilo só pararia quando conseguisse expulsar aquele homem da vida dela. Para sempre.

Nesse instante Cecília viu uma figura se movendo na escuridão e apertou os olhos para identificar a silhueta. Pendergast! Ela mal podia acreditar. O que ele estaria fazendo lá fora no meio da noite? E o homem nem havia ensacado direito a camisa na calça. Pelo jeito, havia se acordado com uma urgente necessidade de visitar o cabaré de Grady. Os homens e a bebida!

Ela só esperava que a necessidade dele se resumisse à bebida…

No entanto, quando alcançou a rua principal Pendergast não se dirigiu ao cabaré, virando à esquerda na direção da escola. Isso agora era interessante.

Rapidamente Cecília jogou um velho vestido por cima da camisola e calçou as botas. Estava já atravessando a cozinha quando parou. Não seria nada bom se alguém a visse saindo da pensão àquela hora. De volta ao quarto, ela abriu novamente a janela e pulou para fora.

Pendergast só podia estar indo para a escola e o melhor seria ela seguir para lá pelo caminho menos provável. Não queria ser vista por ninguém na rua principal, menos ainda por ele. Era impossível adivinhar a intenção de Pendergast, mas ela queria pegá-lo em flagrante.

Dolly aproximou-se da janela e olhou para a bonita noite. Pensando bem, para uma mulher apaixonada todas as noites eram lindas! Então ela sorriu e pensou em Buck, tentando adivinhar onde ele estava, se também olhava para a lua.

Então ela franziu a testa. Era bem provável que Buck estivesse no cabaré.

E ela esperava que ele estivesse apenas bebendo.

Um barulho surdo soou lá embaixo e, instantes mais tarde, Dolly viu Cecília movimentando-se na noite. A jovem estava quase correndo e evidentemente não queria ser vista, já que se esgueirava nas sombras. Aquela menina! Para onde poderia estar indo àquela hora da noite?

No mesmo instante a única resposta possível ocorreu a Dolly e ela lavou a mão à boca, horrorizada, imaginando Cecília correndo para um encontro clandestino com Buck. Com quem mais poderia ser? Pendergast seria o único outro candidato possível para um caso ilícito, mas Cecília havia jurado que odiava o homem. Além disso, ultimamente Cecília ficava cada vez mais inquieta sempre que Dolly falava em Buck.

Era bem possível que, agora que outra mulher se interessava por ele, Cecília estivesse finalmente vendo o homem bom que era Buck McDeere.

Eram dois traidores! Há semanas Cecília vinha insistindo que não sentia nada por Buck, e Dolly, sendo a pessoa crédula que era, havia acreditado. Devia ter percebido logo. Que mulher não se apaixonaria por Buck?

Lágrimas de amargura escorreram pelas faces de Dolly enquanto ela corria para o armário, pegava um vestido e começava a trocar de roupa. Era terrível ser traída, principalmente pela melhor amiga! Uma mulher que ela havia acolhido na própria casa… oferecido um emprego!

Cecília havia tomado o rumo da escola, o que deixava Dolly ainda mais revoltada. Além de roubar o namorado dela, a traidora se encontraria com o homem que ela amava num prédio público! Devia ter tido o bom gosto de escolher outro lugar.

Um ano antes Dolly fizera uma generosa contribuição para a pintura da escola, e agora…

Minutos mais tarde ela caminhava rapidamente pela rua principal. Diferentemente de Cecília, não tinha nada do que se envergonhar! Estava tão enraivecida que se sentia capaz até de atacar fisicamente uma pessoa. Só esperava encontrar Cecília primeira, não Buck.

Pobre Buck. Os homens eram criaturas tão volúveis, tão fáceis de serem desencaminhados.

Primeiro ele viu Pendergast movendo-se furtivamente pela rua com a camisa por fora da calça. Dez minutos depois apareceu Dolly, chorosa, indignada e com o vestido desabotoado às costas, seguindo pelo mesmo caminho do mestre-escola.

Encarrapitado na sela do cavalo, Buck cocou o queixo, pensativo. Ia partir de volta à fazenda, mas agora não conseguia sair do lugar. Mesmo tendo bebido uma boa quantidade de uísque, estava pensando com clareza. Além disso, não era preciso ser um gênio para adivinhar o que estava acontecendo. Aquele mestre-escola ianque havia se aproveitado de Dolly e agora tentava fugir dela.

Buck sentiu o sangue fervendo nas veias. Não que ele gostasse muito de Dolly… Por que gostaria? Aquela mulher só o atazanava! Mesmo assim, não merecia ser tratada como uma das garotas que trabalhavam no cabaré. E ainda por cima pelo desgraçado mestre-escola, que deixava Ciei tão irritada.

Ela afirmava detestar aquele homem, mas Buck não acreditava muito. Ciei não podia tapar o sol com uma peneira. Buck já vira aquilo milhares de vezes… bem, pelo menos algumas vezes. Só porque um homem como Pendergast falava de forma diferente, usava roupas boas e vinha do Leste, as mulheres se agitavam.

Pobre Dolly. Nas últimas semanas ela não parava de importuná-lo, tentando transformá-lo num outro Pendergast. Mas o que Pendergast podia ter que ele não tinha? Nada além de um terno folgado e um emprego um pouco melhor. E, para falar a verdade, aquele homem não parecia tão instruído assim. Pelo menos não mais do que as outras pessoas. Além disso, o mestre-escola não se parecia muito com um nortista. De que adiantaria uma mulher se apaixonar por um ianque que não falava como um ianque?

Buck mexeu-se na sela, tentando imaginar o pequeno drama que estava para se desenrolar na escola. Pobre Dolly. Na verdade ela não era tão chata assim. Algumas vezes, nas últimas semanas, Buck chegara a pensar que aquela mulher tinha uma queda por ele. E Ciei vivia dizendo que Dolly o achava engraçado, bonito. Pensando bem, era até possível que Dolly gostasse mais dele do que de Pendergast. Apenas ainda não havia percebido isso. Quando o assunto era amor, as mulheres sempre confundiam tudo.

Ah, o cretino do Pendergast! Buck só esperava que Dolly não fizesse nenhuma tolice, como tentar convencer o mestre-escola a se casar com ela ou coisa assim. Uma mulher distinta como Dolly não precisava suplicar o amor de um homem. Principalmente quando possuía a maior casa de Annsboro e era a melhor cozinheira da cidade, além de ser bonita. Por falar nisso, Buck até juraria que Dolly era pelo menos tão bonita quanto Ciei.

O sangue dele fervia, sim. Buck estava muito inclinado a mostrar àquele Pendergast como um cavalheiro do Sul reagia diante de uma situação como aquela, mas havia deixado o rifle na fazenda. Droga! Bem, Pendergast não era maior do que ele. Buck poderia dar conta daquele cretino usando apenas as mãos.

Ainda mais quando a honra de Dolly estava ameaçada!

Buck esporeou a égua, que saiu a galope. Estava escuro mas ele ainda conseguia ver Dolly. Pobre Dolly. Quando chegou bem perto ele puxou com força as rédeas, obrigando a égua a parar, o que quase o fez voar por cima da cabeça do animal.

— Vou pegá-lo para você, doçura — ele declarou, enquanto a égua arranhava o chão com a pata dianteira, inquieta. — Vou mostrar a ele o tratamento que os homens do Texas reservam para aqueles que abusam da honra de uma mulher!

Dolly ergueu a cabeça, espantadíssima.

— Buck! — Quando viu o estado em que ele se encontrava, o espanto dela se transformou em raiva. — Já vi que está bêbado! Não é a pessoa mais indicada para falar da minha honra quando você mesmo está quase…

Buck não entendeu muito bem aquela reação, mas a palavra “honra” chamou a atenção dele.

— Vou mostrar àquele Pendergast como se deve tratar uma mulher honrada!

— Pendergast? — Dolly olhou rapidamente para a escola. — Mas eu pensei que…

Bem naquele instante Pendergast apareceu na frente da escola com uma trouxa nos braços. Quando já ia fechar a porta, olhou para frente e reparou na presença de Buck e Dolly. O mestre-escola pareceu envergonhado, como se quisesse encontrar um buraco onde se esconder.

Bem que o tratante merecia estar num buraco, pensou Buck, enraivecido, enquanto desmontava. Dolly segurou nos braços dele. A querida, doce e indefesa Dolly.

— Venha para fora e lute como um homem, Pendergast! — gritou Buck.

Enquanto ele se aproximava Pendergast ficou imóvel no mesmo lugar. O covarde.

— Ele já está fora, seu idiota — disse Dolly, colocando-se na frente de Buck para impedir o progresso dele.

— Bem… — Por alguns instantes Buck pensou na situação. — Então apenas venha lutar!

Buck era forte como um touro. Quando ele empurrou Dolly para o lado, ela começou a suspeitar de que o vaqueiro estivesse interpretando erradamente a situação.

Cecília saiu do meio de uma formação de cedros no instante em que Buck ia subir o primeiro degrau da varanda.

— O que está acontecendo? — ela inquiriu, parando.

— Esse covarde vai receber o que merece — respondeu Buck.

Antes que Cecília pudesse se juntar a Dolly para detê-lo, o enraivecido vaqueiro agarrou o mestre-escola pela parte da frente da camisa e puxou-o para baixo. Vários livros voaram dos braços de Pendergast, espalhando-se pelos degraus e pela terra.

Jake não sabia o que estava acontecendo, mas o instinto de sobrevivência entrou em ação no instante em que ele e Buck rolaram no chão. O vaqueiro era inegavelmente mais forte, mas pelo menos ele estava sóbrio.

— Pare com isso, Buck! — gritou inutilmente Dolly enquanto os dois homens se socavam.

— Pelo amor de Deus! — apoiou Cecília.

Quando chegou mais perto para tentar impedir a continuação daquela insanidade, ela teve a atenção chamada para um dos livros. Tiroteio no Salão de Baile.

Perto daqueles livros estavam pelo menos uns dez outros, todos com ilustrações na capa que mostravam cenas de ação. Enquanto os dois homens rolavam na poeira, Cecília rapidamente apanhou alguns volumes, divertida com os títulos pomposos e as capas exageradamente violentas. Então ela se lembrou, de um comentário que Bea fizera sobre o livro que Pendergast lera para os alunos e sorriu. Agora ele até se parecia um pouco com o tal Pete- Dois-Passos.

Uma coisa era certa: a julgar por aquele exemplo, Eugene Pendergast tinha uma idéia interessante sobre o tipo de literatura que era mais indicado para crianças. Mas por que, Deus do céu, ele saíra no meio da noite para retirar da escola aqueles livros?

— Cecília, você precisa fazê-los parar! — gritou Dolly. — Oh, Buck, tome cuidado!

Tentando adivinhar como seria a figura de Willa, a dançarina de cabaré, Cecília correu até o poço, encheu um balde de água e retornou.

— Segure isso — ela disse, entregando a Dolly os livros.

Depois se aproximou dos homens engalfinhados e despejou o conteúdo do balde em cima deles, brindando cada um com a mesma quantidade de água no rosto.

— Hei! — gritou Buck, agarrando o colarinho de Pendergast com a mão esquerda. — Isso não é justo.

Jake balançou a cabeça, desolado. — Não fui eu que joguei a água, seu palerma.

Buck voltou os olhos para Cecília e Dolly, que olhavam para ele. A água aparentemente servira para deixá-lo um pouco mais sóbrio.

— O que está fazendo aqui, Ciei?

— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta — ela rebateu.

Dolly passou por Cecília e ajoelhou-se no chão.

— Oh, meu querido — ela disse, num tom cheio de preocupação e ternura, ao mesmo tempo em que tomava no regaço a cabeça do vaqueiro. — Está ferido?

— Dolly — ele murmurou, escondendo o rosto no macio tecido do vestido dela. — Eu só estava querendo proteger a sua honra.

— Meu bem… o que poderá fazê-lo sentir-se melhor?

Buck enfiou a mão no bolso traseiro da calça e tirou de lá um frasco de uísque vagabundo.

— Isto aqui.

Jake balançou a cabeça e afastou-se para longe da cena. Sentando-se no chão, recostou-se na plataforma da varanda para recuperar a respiração. Mas que confusão. E os livros que ele fora buscar estavam todos espalhados.

Quando apanhava um dos que estavam mais perto ele viu alguma coisa. O luar filtrava-se por uma rachadura num dos degraus de madeira, permitindo ver o que parecia ser um amontoado de livros.

Um rápido exame manual por baixo dos degraus confirmou a suspeita. Jake retirou de lá um dos livros e, levantando-se, cambaleou para o poço, perguntando-se se estava muito machucado. Pelo que sentia, não devia estar com nada mais grave do que alguns arranhões e hematomas. Pior do que qualquer prejuízo físico era o fato de que agora Cecília folheava um dos livros de Pendergast com evidente interesse. Ao ver que ele se dirigia ao poço ela correu para lá.

— Você não me parece muito machucado! — ela disse, espantada.

— Obrigado. O que você esperava?

Jake girou a manivela, pegou o balde e espalhou água pelo rosto e pelos braços.

— Achei que Buck faria picadinho de você.

Jake sorriu. — E aposto que ficou muito preocupada com essa possibilidade.

Era surpreendente Pendergast rir daquela situação, pensou Cecília, com renovada curiosidade. No lugar dele, qualquer outro homem ainda estaria furioso. Ela não havia prestado muita atenção na briga, mas aparentemente Pendergast sabia se defender… mesmo enfrentando Buck, que era temido por todos os valentões da região.

— Parece que, para um… um intelectual, você sabe se defender direitinho — ela comentou, erguendo o exemplar de Tiroteio no Salão de Baile.

A capa do romance barato parecia caçoar dele tanto quanto Cecília.

— E uma história engraçada, não acha?

Triunfante, Cecília abriu um sorriso de orelha a orelha, enquanto segurava o livro com a ponta dos dedos como 8e fosse algo repugnante.

— Aposto que Lysander Beasley ficará muito interessado em ver o que as crianças de Annsboro vêm lendo

Com um sorriso igualmente largo, Jake mostrou uma edição recente de Contos de Fadas, dos irmãos Grimm

— Em oposição a isto aqui?

Por alguns instantes Cecília ficou boquiaberta.

— Mas… é um dos livros que desapareceu!

— Parece que sim.

Por alguns instantes Cecília moveu-se nervosamente de um lado para outro, sob o olhar atento dele. Depois se recompôs e exclamou:

— Aqueles meninos!

Jake soltou uma gargalhada.

— Então acha que foram os meninos, é?

— Claro — respondeu Cecília, nervosa, encostando-se na borda do poço e cruzando os braços. — Agora me lembro de que uma vez Tommy Beck enfiou Bea embaixo dos degraus da varanda, lá mesmo onde estava esse livro.

— Nos degraus da varanda? — inquiriu Jake, chegando bem perto, quase a obrigando a se dobrar para dentro do poço. — Mas como foi que você chegou à conclusão de que os livros estavam escondidos embaixo dos degraus da varanda?

Outra vez a boca de Cecília se abriu sem que ela dissesse nada. Mesmo à fraca luz da lua, Jake viu que aquele rostinho bonito estava muito vermelho. Ele a tinha na palma da mão.

— Eu não acho que Beasley consideraria a leitura de histórias de aventura, histórias até inofensivas, mais ofensivo do que o desvio de propriedades da escola.

Cecília apontou o queixo para ele.

— Seria a sua palavra contra a minha.

— E em quem você acha que ele acreditaria? — Perguntou Jake, pondo as duas mãos na borda do poço, nos dois lados da cintura dela.

Em Pendergast, naturalmente, ela concluiu.

— Não me importo nem um pouco em quem as pessoas vão ou não vão acreditar! — ela rebateu, em tom de desafio. — Continuo achando que, como professor, você é muito esquisito.

— Esquisito? Como assim? — perguntou Jake, deliciando-se com a forma com que aqueles olhos azuis refletiam o luar.

— Para começar, você é um ianque mas não se parece nada com um ianque. Depois, tem idéias esquisitas sobre o que seus alunos devem fazer durante o dia. Além disso, faz umas coisas que não são muito próprias de um professor, como se sair bem de uma briga… E sei que você não beija como um professor!

Agora, além das faces, também as orelhas de Cecília estavam muito vermelhas.

Oh, Deus, como ela era linda… Jake lembrou-se de quando a vira usando o bonito vestido, naquela tarde, mas em roupas simples Cecília Summertree era igualmente tentadora. Então ele chegou bem perto para sentir a doce fragrância feminina daqueles cabelos louros.

— Como é que um professor deve beijar, Cecília?

— Não como você — ela respondeu, olhando para o peito dele.

— Bem, você é uma professora — ele lembrou, sentindo o coração bater muito depressa. — Ensine-me como é isso.

Quando a beijou Jake percebeu que ela estava com a respiração contida. E desta vez Cecília imediatamente ergueu os braços para envolver os ombros dele, exatamente como acontecia nos sonhos que ele tinha todas as noites. Era como se há muito tempo ela viesse tendo o mesmo sonho…

Mesmo que estivessem sonhando eles seriam despertados pelo som da voz de Dolly, que ainda estava sentada no chão a alguns metros de distância.

— Cecília?

Levando um susto, Cecília entreabriu os olhos e olhou Para Pendergast, que sorria para ela. Era um sorriso de quem acabava de obter uma segunda vitória numa mesma noite. Então ela se afastou, horrorizada.

— Só posso ter perdido a cabeça!

— Ou talvez não saiba o que está na sua cabeça — sugeriu Jake, adorando a confusão que via naquele rosto adorável. — Pelo que ouvi dizer, isso é muito comum nas mulheres.

— Ora, seu… O que aconteceu foi…

— Foi, sim — ela a interrompeu. — E você adorou cada segundo.

Cecília sentiu-se perdida, porque Pendergast sabia exatamente como ela se sentia. Também, pudera! Pela queimação que sentia nas faces, devia estar vermelha como um tomate maduro. Pendergast segurou no queixo dela, como se fosse beijá-la novamente.

— Cecília? — voltou a gritar Dolly, salvando-a. — Acho que preciso de ajuda com Buck.

Cecília recuou um passo de Pendergast e lançou a ele um olhar de acusação. Mas de que poderia acusá-lo? Ela nem de longe havia tentado resistir ao beijo.

— Não direi nada a ninguém se você também não disser — ele propôs.

— Sobre o beijo? — ela perguntou, chocada. Parecia até que ele estava ameaçando espalhar aquilo para a cidade inteira.

— Não, sobre os livros.

O tiro acabara saindo pela culatra! Era mais um plano que dava errado, e agora tão completamente que Cecília nem sabia que erro havia cometido. Também não fazia a menor idéia do que poderia fazer em seguida.

Sem responder à proposta ela girou o corpo e marchou para o local onde Buck tentava se levantar do chão. Pendergast seguiu atrás e Cecília balançou a cabeça, lembrando-se de quando eles dois haviam legado o vaqueiro bêbado para a pensão. Pelo jeito estava para acontecer a mesma coisa.

— Segure num dos braços dele que eu segurarei no outro — ela disse, olhando rapidamente para Pendergast.

— Talvez seja melhor se o pusermos na sela do cavalo — ele sugeriu.

Bem, isso era verdade. Com a ajuda de Dolly, eles levantaram Buck do chão e começaram a arrastá-lo para o cavalo.

— Pobre Buck — lamentou Dolly. — Parece que ele bebeu um bocado.

Ao ouvir o próprio nome, Buck saiu do estupor em que se encontrava e conseguiu falar.

— Eu não to bêbado, Dolly. Só tava querendo defender a sua honra.

— Buck, meu querido — disse Dolly, cheia de ternura. — Procure não dizer “to” nem “tava”.

Por sorte Buck perdeu novamente a consciência, o que impediu uma nova briga.

Jake olhou para Cecília enquanto pegava a rédea para puxar o animal, mas ela evitava olhar para ele. Encontrar os livros desaparecidos tinha sido uma coisa muito boa. Se Cecília tentasse alguma coisa, ele podia desgraçá-la aos olhos de Beasley.

Sim, ele a tinha na palma da mão.

Por outro lado, depois daquele beijo Cecília Summertree podia fazer o que bem quisesse com ele.

    

No domingo pela manhã, quando já se pensava que o verão duraria até o Natal, o outono invadiu Annsboro com uma forte rajada de vento. Jake resolveu que deixaria aquela ventania para trás, indo embora da cidade.

Já havia esperado o suficiente. Além disso, depois do que havia acontecido na noite anterior, era muito possível que Cecília descobrisse mais alguma coisa para incriminá-lo.

Alegando que não se sentia bem, ele não fora com os outros à igreja e agora perambulava pela pensão reunindo as coisas de que precisaria. Levaria as roupas de Pendergast, que finalmente estavam de acordo com a estação, o revólver, algumas coisas da despensa da pensão e o pequeno frasco de uísque de Buck que Dolly havia escondido ali. O melhor seria partir logo, antes que os outros retornassem.

De volta ao quarto Jake olhou pela janela para a cidade deserta. Então viu o cavalo de Buck amarrado à sombra de uma árvore, no lado de fora da casa. Dolly havia arrastado para a igreja o acabrunhado Buck, que passara a noite enrolado num cobertor no sofá da sala. Pobre homem. Naquele dia, como recompensa por ter ido à igreja pela manhã, o vaqueiro teria o cavalo roubado.

Mas Jake sabia que a partida dele atenderia às preces de pelo menos uma pessoa. Imaginava Cecília saltando de alegria ao saber que ele fora embora para sempre.

Ela teria de volta a emprego e o precioso quarto, além do que nunca mais na vida precisaria lavar roupas.

Aquele pensamento provocou em Jake um sorriso tristonho. Por causa de Cecília ele quase sentira vontade de permanecer em Annsboro. Quase. Gostava da vivacidade dela… mas era justamente por causa dessa vivacidade que precisava partir da cidade o mais depressa possível.

No pé em que estavam as coisas, seria impossível dizer o que ela faria em seguida para ver-se livre dele. Apesar da doçura do beijo dela, Jake sabia que Cecília não desistiria do que pretendia. Aquela mulher era como uma tartaruga mordendo: quando cravava os dentes em alguma coisa, nada a faria largar.

Talvez até o fato de ter correspondido ao beijo dele fosse apenas mais uma tática dela. Quem poderia dizer? Aquela mulher o afetava tanto que Jake nem sabia o que pensar. Ele não tirava da lembrança o instante em que Cecília o abraçara, apertando aquele corpo de deusa contra o dele. Aquilo o fizera soltar um gemido de prazer. Ainda bem que ele logo estaria bem longe.

Mas a verdade era que já estava completamente enfeitiçado por ela. Há várias semanas a preocupação com Gunter e Darby havia sido substituída pelos sonhos com Cecília. E, é claro, pelo temor de que ela finalmente encontrasse uma forma de provar que ele era uma fraude.

Jake balançou a cabeça, perplexo. Talvez fosse ele o único homem em Annsboro que pudesse dar o devido valor a Cecília Summertree, Há mais de um ano vinha fugindo, escapando das balas, sonhando com um lugar onde pudesse por dois dias seguidos contemplar o pôr-do-sol. A estada naquela pacata e pequena cidade devia ser uma trégua, um descanso, mas ter Cecília sempre por perto causava tanta tensão quanto fugir de Darby e Gunter.

Na verdade, a campanha de Cecília contra ele tinha ido tão bem-sucedida que sair da cidade seria quase um alivio. Jake sabia, pelo menos, que Gunter não estaria por perto esperando por ele. A fazenda de Otis Darby ficava a uns dois dias de viagem dali, para o sul, e ele pretendia ir diretamente para lá a fim de surpreender o inimigo. O homem provavelmente pensaria estar vendo um fantasma e isso funcionaria a favor de Jake.

O problema seria se Gunter por acaso estivesse visitando o sogro. Nesse caso seriam dois contra um. Por um instante Jake pensou em pedir apoio ao velho protetor Burnet Dobbs, mas rapidamente descartou a idéia. Estava há um bom tempo se arranjando sozinho e iria assim até o fim. Pelo menos, tinha a seu favor o elemento surpresa.

Jake desceu a escada e abriu a porta com cuidado. 0 serviço religioso ainda demoraria um pouco para terminar mas ele não queria chamar a atenção de ninguém quando estivesse escapando com o cabalo de Buck. Quando estava atravessando a varanda da casa de Dolly, ouviu a voz de Lysander Beasley chamando pelo nome dele.

— Pendergast! Tenho uma surpresa para você! Droga! Logo agora…

Jake virou a cabeça e viu o comerciante atravessando o jardim na companhia de outro homem bem vestido. Enquanto os dois se aproximavam ele concentrou-se nos detalhes físicos para tentar adivinhar a identidade do desconhecido. O homem usava chapéu-coco e era franzino. Talvez para compensar a magreza do rosto, usava suíças e um grosso bigode. Evidentemente não era um habitante de Annsboro. No entanto, quando foi se aproximando o homem sorriu e estendeu a mão, como se estivesse indo ao encontro de um velho conhecido.

Aquilo deixou Jake nervoso, mas não tanto quanto o acompanhante de Beasley pareceu ficar quando chegou bem perto e pôde ver com mais clareza o rosto dele. O homem manteve a mão estendida mas o sorriso dele desapareceu, substituído por uma expressão de surpresa.

— Pendergast?

Sem saber o que responder, Jake apertou efusivamente a mão estendida. Enquanto isso procurava se lembrar se o verdadeiro mestre-escola havia se referido àquele homem. Não, Pendergast quase só falara de si próprio. Além disso, na ocasião eles dois estavam bêbados. Só então Jake se deu conta de que não havia pensado na possibilidade de que Pendergast conhecesse alguém na região. Como aquele homem ainda não havia falado o suficiente para que ele identificasse o sotaque, seria impossível dizer se era algum amigo ou parente do finado professor que acabava de chegar de Filadélfia.

O desconhecido finalmente retirou a mão e recuou um passo para olhar melhor. Jake desviou os olhos. Ainda havia a esperança de que aquele homem não fosse um amigo de Pendergast, ou pelo menos que não o houvesse conhecido muito bem…

— Ora, ora! — ele disse, olhando para Beasley e falando num tom jovial. — Isso é mesmo uma surpresa maravilhosa!

Surpresa maravilhosa… bem na hora em que ele iria embora daquela cidade para sempre! Beasley abriu um largo sorriso.

— Ele bateu na minha porta pouco antes de começar o serviço religioso e perguntou por você. Eu achei que provavelmente o encontraríamos na escola.

— Eu estava indo para lá — mentiu Jake.

— Nós também — disse Beasley. — Mas achei que deveria oferecer uma xícara de café ao nosso amigo e por isso nos atrasamos. Com esse tempo frio e tudo o mais…

— Sim, finalmente — disse Jake, sentindo a garganta seca enquanto o desconhecido permanecia em silêncio.

Quem era aquele homem e por que não dizia a Beasley que estava diante de um impostor? Agarrando-se a uma ultima esperança, Jake pensou que talvez se parecesse com Pendergast mais até do que havia pensado. Afinal de contas, Gunter havia atirado no professor pensando que…

— Você mudou um bocado! — exclamou o homem, crescendo as esperanças de Jake.

— E… mudei — ele respondeu, reunindo coragem para olhar nos olhos do desconhecido. — Você também.

Antes curioso, o homem fez um ar de espanto.

— Eu mudei?

— As suíças — arriscou Jake.

Nenhum homem, nem mesmo aquele, cultivaria durante muito tempo algo tão trabalhoso. O desconhecido riu e alisou as suíças.

— Elas me deixam com uma aparência mais jovial, não acha?

Jake achou que ele se parecia mais com um cãozinho, mas concordou.

— Sem a menor dúvida, meu velho — ele disse, batendo efusivamente nas costas do sujeito.

— Está gostando de Annsboro, Eugene?

Jake confirmou com a cabeça e sorriu. — Ah, sim.

Apesar da temperatura baixa, ele sentia gotas de suor na testa. Então enfiou a mão no bolso em busca de um lenço, mas encontrou apenas o frasco de uísque de Buck.

Se tivesse saído dois minutos antes…

O riso de Beasley quebrou o silêncio.

— Watkins me revelou que na faculdade você tinha uma bela reputação como orador, Pendergast. E eu estava dizendo a ele que não demorará muito para que tenhamos uma faculdade aqui…

Watkins. Jake mal conseguia continuar sorrindo, porque aquilo era pior do que ele havia imaginado. Pendergast e Watkins tinham sido colegas de faculdade, então. Dificilmente ele conseguiria sustentar aquela farsa por mais alguns minutos.

Jake sentiu um mal-estar ao pensar nas repercussões da visita daquele homem. Logo ele seria expulso pelos cidadãos de Annsboro. E a notícia do escândalo se espalharia pela região. Darby e Gunter recomeçariam a caçada e logo estariam nos calcanhares dele.

O mal-estar de Jake era tão real quanto crescente. O que dizer a Cecília, a todos?

Subitamente ele pensou numa possível solução para o dilema. Talvez Watkins não fosse bom de memória ou tivesse a vista ruim. Sem dúvida aquele homem não ficaria indefinidamente em Annsboro, o que significava que Jake só precisaria evitar o máximo possível estar em contato com ele. E a melhor forma de conseguir isso seria ficar fora do serviço ativo.

Beasley deixou na metade uma frase que ia pronunciando e fez um ar de preocupação.

— Pendergast… você está bem?

Jake ergueu a mão para a testa realmente suada. — Eu… eu…

Logo depois ele dobrou os joelhos.

— Pendergast? — exclamou Watkins.

— Pendergast! — gritou Beasley.

Tomados pela surpresa, os dois homens demoraram a intervir e ele desabou no chão da varanda.

Mesmo com os olhos fechados Jake concluiu que tinha sido um desmaio convincente.

— Nós estávamos conversando e de repente ele desmaiou! — Lysander Beasley pôs-se a relatar pela décima vez o incidente logo depois que Jake foi finalmente carregado para o quarto e posto de bruços na cama. Enquanto todas estavam de costas ouvindo o relato de Beasley, ele rapidamente esvaziou os bolsos e escondeu embaixo da cama o revólver, o frasco de uísque e duas pêras.

Watkins… Jake mal podia acreditar naquela falta de sorte. Sempre soubera que o superintendente regional das escolas podia aparecer na cidade a qualquer momento, mas jamais havia imaginado que se tratava de um antigo colega de Pendergast.

A cada relato Beasley acrescentava algum detalhe à estória, transformando num drama o desmaio do mestre-escola na varanda da casa de Dolly. Aquilo era bom Para Jake. Quanto mais as pessoas pensassem que a doença dele era real e grave, menos atenção daria quando Watkins dissesse que ele se parecia muito pouco com o Pendergast dos tempos de faculdade. Ainda bem que Watkins parecia ser do tipo que falava pouco.

Jake ouviu os passos de alguém subindo a escada de dois em dois degraus e logo depois Cecília irrompeu no quarto. Pelo jeito ela acabava de ouvir a boa notícia.

— O que aconteceu com ele? — ela inquiriu, sentando-se na beirada da cama e encostando a mão na testa de Jake para verificar a temperatura.

— Achei-o um pouco febril — opinou Dolly.

— Para mim a temperatura está normal — declarou Cecília.

Dolly não quis mudar de idéia.

— Ele me disse que não estava se sentindo bem e por isso não iria à igreja. Eu devia ter ficado em casa!

Cecília retirou a mão e ficou em silêncio por alguns instantes..

— Por que ele está deitado de bruços? — ela perguntou, finalmente.

Dolly abriu os braços.

— Ele se virou sozinho, na certa porque se sente melhor assim. Se quiser se deitar de costas, ele mesmo fará isso.

De jeito nenhum. Jake não queria correr o risco de que Watkins desse mais uma boa olhada no rosto dele. Queria muito ver a expressão de Cecília, tentar adivinhar o que ela podia estar pensando daquilo tudo, mas também não se arriscaria a abrir os olhos.

Certamente a voz ansiosa de Cecília indicava uma coisa: quanto mais doente ele estivesse, melhor para ela. Jake sentiu dedos macios apalpando os membros dele.

— Parece que não há nada quebrado — disse Cecília, parecendo desapontada. — Onde está o Dr. Parker?

— Foi à fazenda dos Landers para cuidar de um parto — respondeu Beasley. — Mesmo assim mandei Walters até lá para avisá-lo de que precisamos dele aqui.

— Um parto! — lamentou Cecília. — Isso vai demorar uma eternidade.

Jake quase riu ao pensar no desapontamento da linda inimiga dele.

A tarde inteira Cecília ficou ao lado da cama, em vigília. Algo suspeito estava acontecendo e ela não arredaria pé enquanto não descobrisse o que era. Apesar do que Dolly dissera, Cecília não vira evidência de febre e Pendergast não tinha nenhum ferimento na cabeça.

Por que aquele homem havia desmaiado na varanda de Dolly? Os nortistas não se davam bem com o calor, mas agora até fazia frio!

Na igreja Cecília havia pedido a intervenção divina em favor dela e aparentemente estava sendo atendida. Era bem verdade que ficara um pouco preocupada ao saber do desmaio de Pendergast… mas ninguém em sã consciência diria que aquele homem estava de fato doente!

Cecília havia pensado que Pendergast se sentiria senhor da situação depois da descoberta dos livros escondidos por ela. Assim sendo, por que aquele subterfúgio? Além disso, se estivesse doente, o que não estava, o que ele fora fazer na varanda quando devia estar na cama?

Ao longo da tarde, por várias vezes Chadwick Watkins entrou no quarto e olhou para as costas de Pendergast. Depois se punha a andar de um lado para outro, balançando a cabeça. Na terceira vez em que isso aconteceu, Cecília começou a suspeitar de que a doença de Pendergast tinha alguma coisa a ver com a chegada de Watkins. Mas como aquilo podia ser? Segundo Watkins, eles dois tinham sido colegas de faculdade na Pensilvânia. Por intermédio do antigo colega Pendergast havia conseguido o emprego em Annsboro.

No quarto aparecimento do superintendente escolar Cecília resolveu falar.

— Sr. Watkins, estou curiosa… Por que está sempre olhando para o Sr. Pendergast e balançando a cabeça?

Watkins se aproximou da cama alisando as suíças.

Pessoalmente,, aquele homem sempre deixava Cecília um tanto nervosa.

— E só que, na primeira vez em que vi Pendergast hoje, alguma coisa me pareceu estranha.

Cecília estava puxando o lençol por cima dos ombros de Pendergast e parou.

— Como assim?

— Bem… — Por mais algum tempo o homem ficou co-fiando as suíças. Ah, aquilo realmente deixava Cecília irritada. — Sabe… na verdade nós nunca fomos muito chegados, embora pertencêssemos à mesma turma, mas eu me lembro de que Pendergast era um pouco mais baixo.

— Mais baixo do que o senhor? — perguntou Cecília, imediatamente se arrependendo de ter feito a pergunta.

Watkins, que não devia ter mais de um metro e setenta, aprumou o corpo e lançou a ela um olhar de desdém.

— Não, mas certamente era mais baixo do que esse homem.

“Esse homem” parecia uma estranha forma de alguém se referir a um antigo colega de turma.

— Será que ele não cresceu um pouco desde então?

— Não estou afirmando que isso não tenha acontecido — apressou-se em dizer Watkins. — Tem que haver uma explicação.

— O senhor acha que ele apenas mudou de estatura… ou existe mais alguma coisa? — perguntou Cecília.

Pendergast soltou um gemido e todo o corpo dele começou a tremer. Impostor, pensou Cecília, observando que as fingidas convulsões dele diminuíam.

Quando a calma voltou ao quarto Watkins se dispôs a falar, em voz baixa.

— Repito que nunca fomos muito chegados… mas esse homem não se parece muito com o Pendergast que conheci. A voz de Eugene não era tão grave.

— A voz de um homem sempre fica mais grave quando ele se torna adulto — argumentou Cecília, fazendo o papel de advogada do diabo.

Watkins era um tolo. Além disso, se alguém iria desmoralizar Pendergast diante da população de Annsboro, esse alguém seria ela.

— Não estou dizendo que esse homem não é Pendergast — ressalvou Watkins. — Só vi diferenças no tamanho, na voz e…

— E o quê? -— quis saber Cecília.

— Bem, o sotaque desse homem é bem diferente.

— Os pais do Sr. Pendergast eram do Alabama.

— Eu não sabia disso — confessou Watkins. — Volto a dizer que não éramos tão amigos assim.

Cecília sorriu. Aquele homem era tão covarde que não queria admitir o que era mais do que evidente!

— Além disso, há já um mês que o Sr. Pendergast está no Texas — ela reforçou. — Ele sempre se mostrou muito interessado em incorporar os nossos hábitos.

— Tem toda razão. Com certeza o problema é a minha pobre memória. Mesmo assim…

— Está pensando em alguma outra característica física, Sr. Watkins? — perguntou Cecília, num tom quase irritado.

Se havia alguma evidência conclusiva, por que aquele homem não falava logo? Watkins hesitou.

— Talvez seja apenas impressão minha…

— Mas não custa nada falar.

— E difícil explicar. Estou me referindo aos olhos dele.

Cecília sentiu um arrepio. Aqueles olhos brilhantes como brasas… Ela sempre havia suspeitado de que olhos como aqueles não podiam pertencer a um manso mestre-escola.

— Eu sempre achei que o jeito de olhar de um homem torna-se mais duro com a passagem do tempo —justificou Cecília, depois de engolir em seco.

Watkins balançou afirmativamente a cabeça. — Concordo plenamente, srta. Summertree. É bobagem minha ficar aqui levantando dúvidas quando só vi o Sr. Pendergast muito rapidamente.

— E ele é um velho amigo seu! — resmungou Cecília. Mas na verdade ela estava felicíssima. Se Watkins estivesse certo, aquele homem não apenas não era um mestre-escola como também não era Pendergast! Era bom demais para ser verdade.

Agora ela só precisava esperar pelo Dr. Parker. Depois que o médico confirmasse que não havia nada de errado com Pendergast, Cecília reuniria Watkins e Parker e levaria os dois diante de Beasley para que confirmassem que ela sempre estivera certa sobre o mestre-escola. Se o comerciante tivesse alguma decência, o emprego na escola voltaria a ser dela. Finalmente, a vingança!

Ela só esperava que Watkins não procurasse logo Beasley. Isso estragaria tudo. A ação de Cecília precisava ficar clara no desmascaramento daquele impostor. A cidade falaria no assunto durante anos e ela seria vista como uma heroína.

Finalmente Dolly entrou no quarto acompanhada pelo Dr. Parker. O velho barbudo puxou uma cadeira para perto da cama e descobriu completamente o enfermo.

— Você vai ter que sair do quarto, Cecília — disse Dolly.

Cecília detestava quando Dolly, mesmo já tendo sido uma mulher casada, dizia coisas como aquela.

— Mas ele está vestido — ela argumentou. — Além disso, fiquei sentada aqui a tarde inteira e posso ter observado alguma coisa que seja útil para o Dr. Parker.

Aquelas palavras pareceram convencer Dolly, mas o médico mostrou-se cético.

— Você de fato observou alguma coisa? — ele inquiriu.

— Bem…

— Tremores? — ajudou Watkins, de pé ao fundo do quarto.

— Ah, sim — confirmou Cecília. Certa de que Pendergast estava apenas fingindo, ela havia se esquecido por completo daquilo. — Ele teve convulsivos tremores.

Como se quisesse ilustrar o que ela dizia, Pendergast soltou um gemido e tremeu o corpo todo.

Cecília não deixou de reparar que Watkins saía silenciosamente do quarto, mas não poderia segui-lo. Estava interessada demais em ouvir o diagnóstico do médico.

Parker coçou o queixo antes de se pôr a apalpar o corpo do paciente. Depois de examinar também um dos olhos de Pendergast, encostou a mão na testa do homem deitado, como Cecília e Dolly tinham feito repetidas vezes.

— Já tem alguma idéia de qual é o problema? — perguntou Dolly.

Nada, quis dizer Cecília. Mas ela sabia que o Dr. Parker nunca saía de uma casa sem examinar cuidadosamente o paciente que estivesse visitando, mesmo que fosse para descobrir que não havia nada demais com a pessoa.

Depois de ficar em silêncio por um bom tempo, Parker se pronunciou.

— O problema é sério… O delírio do paciente é conseqüência da febre causada pela mudança súbita de temperatura.

— O quê?

Cecília não esperava ouvir da boca do médico aquele diagnóstico, quando era mais do que evidente que Pendergast não padecia de nenhuma doença.

Parker balançou a cabeça, com uma expressão grave.

— Ele vai ter que ficar de cama durante algum tempo. Pode ser perigoso levantar-se antes de se recuperar por completo.

Ah, não! Se aquele velho não via que Pendergast na verdade estava se fingindo de doente, devia se aposentar imediatamente!

Cecília estava a ponto de dizer isso claramente quando ouviu a voz de Dolly.

— Cecília, não acha que devia descer para limpar a cozinha. A tarde toda você não saiu deste quarto e já é hora de começar a fazer o jantar.

Cecília desceu para a cozinha e, contendo com dificuldade a raiva que sentia, ouviu quando Dolly acompanhou o médico até a porta. Preocupada em não perder o emprego, pôs-se a passar um pano no chão quando Dolly entrou e sentou-se à mesa, choramingando.

— Pobre Sr. Pendergast! — lamentou a mulher. Cecília não agüentou mais.

— Por que todos por aqui são tão crédulos quando se trata daquele homem?

Dolly ficou espantadíssima.

— Que falta de caridade, Cecília. Você ouviu o médico. O Sr. Watkins ficou muito preocupado!

Watkins! Só então Cecília se lembrou de que pelo menos o superintendente escolar poderia apoiá-la. Inventando a desculpa de que precisava comprar alguma coisa no armazém de Beasley, ela saiu da casa e correu para a loja. Quando entrou, viu vários homens que arrumavam as mercadorias que haviam descarregado de uma carroça. À aproximação dela os homens fizeram silêncio. No meio deles estava Beasley.

— Preciso falar com o senhor — disse Cecília, indo direto ao assunto. — É sobre Pendergast.

— Espero que ele esteja bem! — alarmou-se o comerciante.

Cecília revirou os olhos. — E claro que ele está bem.

— Eu estava justamente contando ao pessoal aqui o que havia acontecido quando o Dr. Parker apareceu e…

Cecília abanou a mão. — O Dr. Parker não passa de um velho gagá.

Alguns dos presentes riram, mas não Beasley, que se mostrou revoltado com o que acabava de ouvir.

— Ele é um ótimo médico! Veio de Baton Rouge há oito anos.

— Pendergast é um impostor — rebateu Cecília. — Pode perguntar a Watkins. Ele lhe dirá a verdade.

Beasley estofou o peito e cruzou os braços.

— Watkins partiu daqui há dez minutas. E não me disse nada sobre essa história de que Pendergast é um impostor.

Cecília abriu a boca de surpresa. — Watkins partiu? — E sem dizer nada a Beasley sobre Pendergast? — Para onde ele foi?

— Para Abilene. Disse que precisava despachar uma carta antes que o correio fechasse.

Mas que azar! Cecília soltou um suspiro de frustração. Agora ela teria que se arranjar sozinha. Como sempre.

— Bem, antes de partir o Sr. Watkins me disse que Pendergast não se parecia nada com o antigo colega dele.

Beasley soltou uma risada rápida.

— Mas é claro que não. Já se passaram oito anos desde que eles se encontraram pela última vez.

— Mas não foi só isso…

Beasley abriu um sorriso condescendente.

— Cecília, minha querida… por favor não insista nessa história de que aquele homem não é um mestre-escola.

— Mas ele não é! — ela persistiu.

Beasley aproximou-se e passou paternamente o braço por cima dos ombros de Cecília.

— Pensei que já havíamos resolvido isso. Pendergast é um dos mais talentosos educadores que Filadélfia já produziu. E tem as melhores credenciais entre todos os professores do oeste do Texas.

— Mas Watkins disse que…

— Eu estava presente quando os dois homens se encontraram, Cecília — interrompeu-a Beasley. — Watkins reconheceu Pendergast sem pestanejar.

— Mas… mas como é que um homem desmaia daquele jeito? — gaguejou Cecília. — Ontem à noite ele estava perfeitamente bem!

O comerciante deu de ombros, evidentemente pouco interessado em explicar os mistérios da saúde humana.

— Pouco antes de desmaiar o homem ficou suando emito e a pele dele adquiriu uma tonalidade esverdeada. Vi isso com os meus próprios olhos.

— Ele estava fingindo, tenho certeza — insistiu Cecília. —Mentiu ao dizer que era professor e agora está mentindo quanto a essa misteriosa doença. Se o que Watkins me disse é verdade, o nome dele nem é Pendergast!

A histeria dela provocou risos e gracejos por parte dos ajudantes de Beasley.

— É melhor alguém pegar uma corda—brincou um deles.

— Se quisesse mentir sobre o meu nome, eu certamente arranjaria um mais bonito do que… Eugene — acrescentou um outro.

Cecília dirigiu ao grupo um olhar fulminante. Homens que viviam mascando tabaco não podiam mesmo ter nada na cabeça.

— Estou lhe dizendo, Sr. Beasley, que aquele homem está nos fazendo de idiotas.

Beasley estalou a língua e fez um ar de censura.

— Estou surpreso com você, Cecília. Achei que teria a decência de não sabotar um homem que no momento não tem como se defender. Que coisa feia…

— Ele está tão indefeso quando tigre! — rebateu Cecília.

— O Dr. Parker nos disse ainda há pouco que o Sr. Pendergast está seriamente enfermo, e agora você aparece para tentar tirar o ganha-pão dele?

Pelos murmúrios que partiram dos presentes, ficou claro que Beasley tinha o apoio de todos ali. Como o cretino do Pendergast podia ter tanta facilidade para ganhar a simpatia das pessoas daquela cidade? Cecília sentiu-se dominada por uma enorme frustração.

Beasley empurrou-a levemente para a porta.

— Agora volte para a casa de Dolly e cuide das coisas por lá, Cecília. Se encontrar alguma evidência… pelo menos algo escrito… de que aquele homem não é o professor que todos em Annsboro acreditamos que ele seja, não deixe de me procurar, minha jovem.

Pouco depois Cecília se viu novamente na rua, caminhando na direção da pensão. Não havia se afastado muito quando ouviu novamente a voz de Beasley.

— Mas esteja pronta para assumir a direção da escola se Pendergast não puder voltar ao trabalho amanhã. Fará isso, não é?

Cecília parou de andar, apertou os lábios e voltou-se. Aquele homem queria que ela substituísse temporariamente Pendergast enquanto ele passava o dia inteiro na cama. Isso era revoltante!

Mesmo assim não era uma oferta que ela pudesse recusar. Quando finalmente arranjasse um jeito de expulsar Pendergast, queria ter as boas graças de Beasley.

— Claro — ela disse, mostrando os dentes num arremedo de sorriso. — Será um prazer.

Desta vez Jake tomaria mais cuidado. Devia ter previsto que não seria fácil escapar da cidade em plena luz do dia. Agora estava esperando até as três da madrugada. Vagarosamente ele desceu a escada calçado apenas com as meias, as botas na mão. Sentia-se duro como uma tábua por ter ficado deitado o dia inteiro, mas pelo menos estava descansado para a longa viagem. Com Cecília e Dolly sempre de olho, só restara a ele o recurso de dormir um sono intermitente.

Jake não confiava naquela Cecília. Não podia saber o que ela fora fazer ao sair da pensão naquela tarde, mas uma coisa era certa: não estava de bom humor ao retornar. Em mais de uma ocasião ele havia pensado em pôr um ponto final naquela história explicando tudo a ela. Por que não? Pretendia mesmo ir embora quando tivesse certeza de que todos estavam dormindo. Sabedora de que voltaria a ser a rainha da escola, Cecília finalmente o deixaria em paz.

No entanto, considerando os apuros que ele a fizera Passar nas últimas semanas, não podia haver certeza de que ela ficaria com a boca calada. Não, Cecília Summertree o incriminaria diante de todos, repetindo que sempre estivera certa.

Era engraçado… Aquela mulher queria a cabeça dele, mas Jake sabia que sentiria saudade dela. E daquela casa, ele concluiu enquanto parava por um instante no vestíbulo, os ouvidos atentos. A estada ali não tinha sido tão tranqüila quanto ele havia esperado, mas se sentira em casa, sempre tendo alguém com quem desenvolver uma conversa agradável. Também tivera Cecília para atazanar, ou namorar… em geral as duas coisas juntas.

Jake não queria voltar à antiga vida e por isso era importante resolver de uma vez por todas o assunto com Gunter e Darby. Não poderia ter uma vida normal enquanto não se livrasse daqueles dois, jamais poderia comprar um pedaço de terra para começar a fazenda com que sempre havia sonhado. Até mesmo uma curta estada numa cidade pequena como aquela, e usando a identidade de outro homem, tinha sido uma dor de cabeça. Sim, ele precisava resolver a pendência com Darby e Gunter. Já.

Por sorte a porta da rua nem rangeu quando ele saiu. Jake respirou fundo e sorriu. Bons ventos para uma longa viagem. Boas condições para a solução de uma antiga diferença.

 

A comprida carroça aberta, puxada por três velhos pangarés, sacolejava na estrada esburacada. Sentado ao lado de Jake, o homem que segurava as rédeas era muito magro, embora tivesse a maior barriga que ele já vira numa pessoa. O ranger das rodas da velha carroça estava se tornando quase insuportável. Jake achou que talvez devesse ter continuado a pé. O melhor mesmo teria sido roubar um cavalo.

Quando ele saíra da pensão, muito previsivelmente a égua de Buck não estava amarrada ali perto. Jake pensou em roubar o cavalo de alguma outra pessoa, mas acabou mudando de idéia. E não era só porque não se sentia à vontade para se transformar num ladrão. Poderia fazer barulho na empreitada ou, mesmo que isso não acontecesse, o dono do cavalo logo estaria no encalço dele. Quando fosse apanhado, o que poderia dizer? Que no “delírio da febre” havia resolvido sair para uma cavalgada noturna?

Pensando bem, era até sorte ter encontrado aquele agricultor que oferecia carona até Buffalo Gap, onde ele entraria na diligência para Fredericksburg.

Chegando a Buffalo Gap Jake fez um balanço das próprias finanças e balançou a cabeça. O trabalho de mestre-escola em Annsboro não o transformara exatamente num milionário. Então ele teve uma idéia. A diligência daquele dia para Fredericksburg, que era aberta, já estava lotada e seria preciso esperar dois dias pela seguinte. Se ele pudesse ir como guarda armado, não precisaria adiar a viagem e pouparia o dinheiro da passagem. Jake surpreendeu-se com a rapidez com que o gerente da empresa de diligências aceitou a oferta dele.

Horas mais tarde, cansado de engolir poeira, ele se perguntava quando finalmente poderia se dirigir para a fazenda de Darby. Mantinha os olhos no horizonte em busca de uma paisagem conhecida, mas jamais havia passado por aquela estrada.

Outra coisa que Jake se perguntava era o que as pessoas em Annsboro haviam pensado ao se darem conta do desaparecimento dele. Cecília sem dúvida estava triunfante. Naquele momento mesmo ela devia estar diante dos alunos, discorrendo sobre os mais famosos vilões da história universal… Judas Eucariotes, Brutus, o traidor de Júlio César, e também Eugene Pendergast, que ela sempre soubera ser um impostor.

Jake balançou a cabeça. Devia mesmo ter roubado um cavalo. A reputação dele em Annsboro não poderia ser pior depois da fuga no meio da noite e das histórias que Cecília se encarregaria de contar.

Na verdade, a cidadezinha não era um mau lugar. Não havia muito que se fazer por lá, mas ele não havia se envolvido muito na preparação do arrasta-pé da colheita. Isso era ruim. Em geral Jake não participava ativamente dessas coisas, mas queria ter a chance de dançar com Cecília, apertá-la nos braços por um bom tempo sob a luz das estrelas.

Mas agora era pouco provável que isso viesse a acontecer. Talvez ele nem sobrevivesse para contar a história do acerto de contas com Darby. Mesmo que tivesse a sorte de sair vencedor, o povo de Annsboro não o acolheria de braços abertos. Ao contrário, era bem provável que Lysander Beasley quisesse escalpelá-lo se ele chegasse perto da cidade.

Mas, afinal de contas, que motivo ele teria para voltar lá?

— Quer dizer que você é mestre-escola? — perguntou o condutor da diligência, sem desviar os olhos do traseiro dos cavalos enquanto falava.

— É.

Jake achara melhor não desistir por enquanto da falsa identidade. Era melhor ser perseguido por Lysander Beasley do que por Will Gunter. E era pouco provável que o que ele dissesse àquele cocheiro resultasse em algum prejuízo. O homem não conseguia manter uma conversa fluente por mais de uns poucos minutos e depois apenas voltava aos temas já discutidos.

Depois de ficar mais alguns minutos pensativos o homem retomou a palavra.

— Em Annsboro, não é isso?

— Isso mesmo.

Vagarosamente o cocheiro moveu a cabeça para cima e para baixo, indicando compreensão. Haveria alguma coisa que aquele sujeito não fizesse devagar?

Por trás deles duas matronas tagarelavam sem cessar desde a partida de Buffalo Gap, falando de pessoas conhecidas, do marido de cada uma delas e de vários outros assuntos, como plantas ornamentais, receitas de comida e costura. Era de se pensar até que aquelas duas jamais tinham tido com quem conversar na vida e agora queriam recuperar o tempo perdido. Uma delas, a Sra. Randall, o nome que Jake se lembrava de ter ouvido, era a robusta mulher de um fazendeiro. A outra tinha um carregado sotaque alemão, o que não era de admirar, já que a diligência se dirigia para Fredericksburg. O que surpreendia mesmo era depois de tantas horas aquelas mulheres continuarem falando sem parar.

Vez por outra as duas se comunicavam com as companheiras de viagem, quatro garotas com idades entre treze e dezesseis anos. Também essas não paravam de falar, mas em alemão e concluindo com risos tudo o que diziam com suas agudas vozes. As quatro eram louras, com cabelos em diferentes tonalidades, mas todas usavam trancas que deixavam cair às costas, trajavam vestidos azuis feitos segundo o mesmo modelo e calçavam botas pretas. Talvez fossem irmãs, filhas da matrona que conversava com a outra. Jake não podia ter certeza. Também não fazia idéia do assunto tão engraçado sobre o qual elas falavam.

Depois de certo tempo ele evitou olhar para as mulheres, já que isso parecia provocar mais risos.

— Você tem algum negócio lá no sul? — perguntou o condutor da diligência.

Finalmente uma nova pergunta!

No entanto, Jake apenas deu de ombros para responder. Bem que queria conversar com aquele homem para passar o tempo, mas não queria deixar rastros nem ser obrigado a reassumir logo a antiga identidade. A medida que fosse mais para longe de Annsboro, deixaria naturalmente a personalidade mais gregária de Pendergast, como se estivesse descartando uma antiga pele. Jake lembrava-se de que, antes de Annsboro, sempre fora um homem de poucas palavras, um homem que preferia viver na periferia da cidade. Independente.

Era engraçado reparar que isso nunca o fizera se sentir solitário, mas era como se sentia agora. Amargava um vazio por dentro, como se não estivesse convenientemente enraizado. Quando pensou no rosto bonito de Cecília ele fechou os olhos, esperando com isso poder reter aquela imagem. Mas logo ela desapareceu, ardilosa como sempre, e quando abriu os olhos Jake viu apenas a mesma paisagem agreste e desconhecida de antes.

Ele não se lembrava de ter sentido antes tanto desejo por uma mulher, nem aquela vontade de não ir para longe de alguém. Mais de uma vez havia pensado em voltar. Mas voltar para quê? Só porque se sentia como um mascote carente de amor e carinho, isso não queria dizer que ela sentia a mesma coisa. Pensando bem, era pouco provável que o orgulho de Cecília um dia permitisse que ela se entregasse por completo a outra pessoa… mas bem que ele gostaria de ser o homem encarregado de verificar se ela mesmo esse o caso.

Volte, dizia uma voz no íntimo de Jake. Talvez a vida houvesse reservado para ele algo capaz de compensar todos os sofrimentos causados por Darby e Gunter. Ele até se perguntou se, passando a perseguir Darby, não estava descendo até o nível daquele canalha. Por alguns instantes Jake sonhou com a possibilidade de deixar de lado a amargura e optar por uma vida tranqüila, uma casa, um inverno com Cecília para aquecê-lo nas noites de frio.

Mas outra voz o mandava seguir adiante, buscar vingança. Ou o que ele ouvia eram apenas as vozes estridentes das seis mulheres? Jake suspirou de frustração.

— Viagem comprida — comentou o cocheiro.

Sem dúvida, já que aqueles cavalos não ganhariam uma corrida mesmo que estivessem competindo com lesmas.

— Ainda falta um bom pedaço até Fredericksburg. — revelou o homem. — Provavelmente ainda estamos mais perto de Buffalo Gap do que do lugar para onde você está indo.

A frustração de Jake aumentou tanto que ele quase gritou.

— Mas… para onde você está indo? — perguntou o cocheiro.

Jake permaneceu em silêncio, olhando fixamente para frente. Aquela era uma informação que ele não daria, nem mesmo mentindo, nem que aquele homem repetisse várias vezes a pergunta.

Nesse instante Jake ouviu um barulho. Rapidamente ele levou a mão ao revólver e girou o corpo no assento, correndo os olhos pela paisagem de vegetação rasteira.

Nada. Devia ter sido apenas um coelho ou algum outro bicho.

A tensão que instantaneamente o dominara foi relaxada com um demorado suspiro. As mulheres, com os olhos azuis arregalados e os lábios apartados num instante de abençoado silêncio, logo voltaram a falar e rir. Já estavam outra vez tagarelando naquela língua cheia de erres quando Jake voltou a cabeça para frente, carrancudo.

— Está nervoso, hein? — comentou o cocheiro.

Mas quem não ficaria nervoso? Talvez Pendergast, o verdadeiro Pendergast, houvesse falado a coisa certa. Jake devia ter deixado tudo para trás e ido para algum lugar como Filadélfia, para a civilização. Ele não sabia muito sobre lugares assim, mas certamente teria mais tranqüilidade do que tinha agora, ou do que tivera no último mês, ou do que tivera na vida inteira. Jake não se lembrava de ter tido uma única noite de sono tranqüilo desde a morte do pai, desde quando morava na pequena propriedade da família.

E ele não estava pedindo muita1 coisa. Queria apenas um pedaço de terra, uma casa, uma vida em que não fosse perseguido por dois homens enlouquecidos. Jake tentou imaginar o lugar, como se tivesse mesmo condições de um dia consegui-lo. Um pasto pontilhado por cabeças de gado cercaria a pequena casa. Haveria também um jardim que ficaria a cargo da esposa dele.

A esposa dele? Jake balançou a cabeça. De onde podia ter vindo aquele pensamento?

Ah, mas ele sabia a resposta, porque durante a curta fantasia não parará de pensar na mulher que estaria ao lado dele… uma mulher de sedosos cabelos louros, olhos azuis, lábios de carmim…

Jake pensou melhor naquilo e quase soltou uma gargalhada. Cecília Summertree cuidando de um jardim. Aquilo só podia mesmo ser uma fantasia!

— Inferno! — gritou o cocheiro, girando no assento e açoitando com as rédeas o lombo dos cavalos.

Saindo do ridículo sonho à luz do dia, Jake viu os dois cavaleiros que desciam uma colina na direção deles. A diligência sacolejou violentamente quando os cavalos responderam ao comando do cocheiro. Instantes mais tarde, quando olhou para trás, Jake viu o que parecia ser o prenuncio de uma tragédia: os dois cavaleiros, de chapéu e com o rosto coberto por um lenço, agora quase flanqueavam a diligência.

Apavoradas, as mulheres viram os revólveres que aqueles homens empunhavam.

— Bandidos! — elas gritaram, num coro estridente. Eram bandidos, sim, e não demoraria muito para que estivessem atirando nos dois homens da diligência. Sacando do revólver, Jake passou a gritar ordens para as mulheres.

— Abaixem-se! Abaixem-se vocês todas!

Prontamente as mulheres se amontoaram no assoalho da diligência. O cocheiro tinha um rifle mas aparentemente não era um perito com armas. Embora preocupado com o homem moreno que cavalgava no lado dele, Jake precisava também ver o posicionamento do outro assaltante.

Um tiro foi disparado e Jake surpreendeu-se ao constatar que não fora atingido. Então ele mirou no moreno e apertou o gatilho, acertando em cheio. O homem tombou do cavalo enquanto a diligência continuava em sua desabalada e perigosa carreira pela estrada cheia de buracos. Um a menos, pensou Jake, com o coração batendo mais depressa do que os cascos dos animais. Logo depois ele sentiu um esbarrão.

Jake virou-se para a esquerda. Muito pálido, o cocheiro agarrava o ombro dele com a mão direita enquanto segurava as rédeas com a esquerda. Jake empurrou o corpo do homem mais para baixo e concentrou a atenção no segundo assaltante. Então viu, entre a aba do chapéu preto e o lenço marrom que escondia o nariz do homem, os olhos azuis muito claros que o fitavam.

Jake não quis acreditar! Parecia absurdo, mas aqueles olhos frios só podiam pertencer a uma pessoa: Gunter!

O que ele estaria fazendo ali? Será que agora Darby e o genro viviam de assaltar diligências?

Jake abaixou a cabeça e fez pontaria. Com o balanço da diligência era impossível mirar com perfeição, mas ele se esforçou para conseguir o melhor resultado possível.

Depois de um rápido tiroteio que encheu o ar de estampidos, Gunter foi jogado para fora da sela. Mesmo assim Jake não pôde sorrir de satisfação, dominado que foi por uma terrível dor. Era como se as entranhas dele estivessem escorrendo pelo lado da diligência. Jake procurou manter o revólver na mão trêmula até que pudesse verificar como estava Gunter.

O cavalo do homem galopou para longe e logo desapareceu de vista. Gunter estava caído, mas vivo.

Jake não sabia se podia usar a mesma descrição para si própria. Sentia-se enjoado e tonto.

— Pare! — ele gritou. — Pare a diligência!

Aos ouvidos dele, o barulho dos cascos dos animais e das rodas do veículo parecia o ribombar de trovões. E agora havia também outro barulho… a sinfonia de vozes femininas, com todas aquelas mulheres chorando e gritando umas às outras palavras de consolo. Apesar do vento frio, Jake se sentia quente. Febre. Mesmo depois que ele repetiu a ordem para que o cocheiro parasse a diligência, o veículo continuava a sacolejar violentamente.

Jake olhou para o lado e viu o corpo sem vida do cocheiro caído no assento. Há quanto tempo aqueles cavalos vinham galopando sem comando? Não era de admirar o pânico que havia tomado conta das mulheres! Jake tomou as rédeas nas mãos e moveu o corpo para trás, procurando controlar os assustados cavalos.

O veículo continuou a sacudir durante o que pareceu ser uma eternidade antes que o mundo se se torna outra vez calmo. Sinistramente calmo. Jake tentou abrir os olhos e focalizar o céu azul lá em cima. Azul, ele pensou, grogue. Os olhos de Cecília eram azuis como aquele céu…

Passado um instante de silêncio, Jake ouviu novamente os gritos das mulheres. Não entendeu nada até ouvir a voz da única dentre elas que falava inglês com perfeição.

— O mestre-escola! Ele ainda está vivo!

Outra vez entreabrindo os olhos, Jake vislumbrou o rosto redondo da Sra. Randall, que se debruçava sobre ele.

— Sr. Pendergast! Onde está ferido?

Jake engoliu em seco e fez uma careta por causa do esforço.

— Pendergast — ele corrigiu, quase se entusiasmando com o fato de que conseguia falar. Era um bom sinal e ele tentou novamente. — Annsboro… Preciso voltar para Annsboro.

— O ferimento é neste lado do corpo — disse a mulher à acompanhante alemã, ignorando os murmúrios dele.

Jake sentiu uma mão abrindo a camisa dele e teve a sensação de que a pele estava sendo arrancada. Aquilo o fez gemer de agonia.

— Que ele está dizendo? — perguntou uma outra voz.

— Disse que é de Annsboro — explicou a matrona. — Temos que levá-lo a um médico. Meninas, ajudem-nos aqui!

Jake não havia imaginado o tormento que seria ser retirado de onde estava e colocado no assoalho da diligência. A dor que o dominava era tão grande que por um instante a vista escureceu, permitindo apenas a audição das vozes femininas que comentavam a desgraça dele.

— Tem que haver um médico em Buffalo Gap.

Ah, não… Jake pensou nas longas horas que eles haviam levado para chegar até ali. E claro que não podiam voltar! É claro que… O que ele queria era se levantar para dizer algumas verdades àquelas mulheres. Será que elas não percebiam que ele estava morrendo?

Quando finalmente a visão retornou, Jake viu os quatro pares de olhos azuis da moças alemães espiando para ele, como curiosos anjos vestidos de azul. Pelo menos agora elas não estavam rindo.

Quando ele tentou falar, só conseguiu pronunciar uma palavra:

— Cecília…

Enquanto se sentia desfalecer Jake perguntou-se por que o último pensamento dele focalizava Cecília. Talvez fosse por causa dos cabelos loiros daquelas mulheres. Ou talvez por ele saber o quanto era ruim morrer naquele momento. Não teria mais a oportunidade de dançar com ela.

Beatrice Beasley bateu no queixo com os dedos gorduchos.

— Eu sinto saudade do Sr. Pendergast. Você não sente? Espichado no primeiro degrau da varanda da escola,

Sr. Wiggles emitiu um som rouco, como se estivesse concordando.

Mas era Cecília o alvo da pergunta. — Um-hum — ela murmurou, distraída.

Bea fitou-a com os olhos úmidos.

— Você é tão corajosa, srta. Summertree! Sempre que me lembro de que sou a única que sabe do seu sofrimento, fico com vontade de chorar.

Cecília não soube o que responder. Com toda honestidade, também não sabia como classificar a louca mistura de sentimentos de que estava possuída. Pendergast havia desaparecido há dois dias e a verdade era que ela continuava perplexa.

O desaparecimento daquele homem havia abalado os alicerces de Annsboro. Metade da cidade, a metade composta pelos seguidores de Beasley, achava que o mentiroso ianque havia fugido depois de se apoderar de fundos cuja falta ainda estava para ser determinada. A outra metade, o contingente liderado por Dolly pelo Dr. Parker, sustentava que Pendergast havia cambaleado para fora da cidade no delírio da febre a agora só Deus sabia onde ele poderia estar. Dolly até havia sugerido que se formasse um grupo de resgate, mas Buck a dissuadira da idéia. Na opinião dele, o mestre-escola devia ter seguido diretamente para o Golfo do México.

Cecília mantinha a opinião que tinha desde o princípio. O mais importante para ela não era saber para onde Pendergast tinha ido, mas sim o que ela sentia com a partida dele. Primeiro havia o desapontamento. Afinal de contas, as pessoas não a cumprimentavam na rua por ter sido ela a primeira a perceber que o homem que se dizia mestre-escola era um impostor. E ser reinstalada na escola não era exatamente a recompensa que ela havia esperado. Com o desaparecimento de Pendergast ela fora privada de uma vitória decisiva.

Por fim era preciso lidar com aquela estranha inquietação que a dominava e que ela atribuía a todos os outros aborrecimentos. Por mais irritante que aquele homem fosse, pelo menos proporcionaram ela algo em que concentrar todas as atenções. Naqueles últimos dois dias Cecília havia tentado pensar apenas na preparação da encenação que os alunos iriam fazer, mas naquele momento isso não parecia algo muito excitante.

— É possível que, no delírio da febre, o Sr. Pendergast tenha perambulado sem rumo até entrar numa comunidade de religiosos quakers, como aconteceu com o herói de O Pacificador Armado — comentou Bea, pensando alto, já que ao dizer aquilo apoiava uma das teses do pai dela.

Cecília estava começando a pensar que teria que ler alguns dos livros de Pendergast, que deixara empilhados ao lado da cama. Na opinião de Bea, isso faria com que ela não chorasse muito.

— E claro que isso não resolve nada para você — acrescentou a menina. — Se o Sr. Pendergast se apaixonasse por uma mulher quaker, como você ficaria? Terá que continuar aqui, envelhecendo na tristeza, longe de seu amado, tornando-se cada vez mais amarga até que a cidade inteira a considere uma chata.

— Ora, muito obrigada, Bea.

— Bem… eu só… — gaguejou a menina, parecendo perceber que acabava de dizer o que não devia. — Espero que não pense que eu a estava criticando, srta. Summertree, quando disse que sentia saudade do Sr. Pendergast — garantiu Bea.

— Eu não me ofendi — respondeu Cecília.

Depois de um momento de silêncio Bea passou o dedo pela tábua do degrau onde estava sentada.

— Sabe de uma coisa?

Por um instante pareceu que a menina iria revelar algum segredo sobre Pendergast.

— O quê?

— Este ano não quero ser Priscilla.

Primeiro Cecília sentiu certo desapontamento, depois arregalou os olhos de espanto. Desde os cinco anos de idade Beatrice Beasley vinha representando o papel de Priscilla Mullins nas encenações da escola. A garota devia estar realmente muito deprimida!

— Ah, Bea… Você não pode estar disposta mesmo a desistir do papel! O Sr. Pendergast sem dúvida iria querer que você o fizesse.

Bea soltou um demorado suspiro. — Bem, claro. Naturalmente eu ainda quero estar na encenação, mas este ano prefiro representar Dolly Madison.

— Dolly Madison não era uma imigrante puritana — lembrou Cecília.

Bea revirou os olhos.

— Eu sei disso. Acho que este ano devíamos representar o incêndio da Casa Branca. O Sr. Pendergast disse que podíamos.

Fantástico. Cecília preferia que o homem a houvesse consultado antes de fazer todo tipo de promessa a Bea se tinha a intenção de desaparecer. Agora cabia a ela lidar com a questão. E o pior era que, em se tratando da encenação da colheita, a vontade de Bea era sempre soberana. O incêndio da Casa Branca? Como ela iria resolver aquilo?

— Acho que vou para casa — disse Cecília, abstendo-se de comentar a idéia da menina.

Levantando-se do degrau ela começou a se afastar. Não demorou para que Bea e Sr. Wiggles a alcançassem.

— E o meu pai prometeu fornecer qualquer material que a escola precise para a encenação.

— É muita generosidade — disse Cecília.

— Desde que eu consiga o papel de Dolly Madison — condicionou Bea.

Cecília trincou os dentes. Havia se esquecido de que demonstrar satisfação em ser controlada por uma menina de dez anos era uma das condições para manter a posição de professora em Annsboro. Agora ela se perguntava se valera a pena mover uma campanha contra Pendergast com o objetivo de ter de volta o antigo emprego. Trabalhar na pensão de Dolly talvez fosse mais cansativo, mas não provocava tanta dor de cabeça.

— Tenho certeza de que conseguiremos pensar em alguma coisa — disse Cecília.

— Ah, ótimo! Srta. Summertree, como professora você é quase tão boa quanto o Sr. Pendergast!

— Obrigada.

— Estou falando sério! Posso dizer a papai que faremos a encenação?

— Pode — concordou Cecília.

Bea e o cachorro amarelo saíram correndo pela rua, levantando poeira. Quando Cecília chegou perto da pensão de Dolly, o assunto da encenação estava quase esquecido e outra vez ela pensava em Pendergast.

Parecia estranho não tê-lo mais na pensão. As conversas durante o jantar agora eram muito sem graça, depois que as especulações sobre o destino de Pendergast haviam perdido o interesse. Ela sentia falta daqueles travessos olhos negros que a observavam do outro lado da mesa. E à noite, no espaçoso quarto, quando se deitava na macia cama em que ele havia dormido por tantas noites, sentindo o cheiro másculo que Pendergast havia deixado no travesseiro, era praticamente impossível conciliar o sono com todas as perguntas que surgiam na mente dela.

Quem ele era, realmente, e para onde tinha ido? Cecília não conseguia parar de pensar nas vezes em que ele a beijara, nas ocasiões em que a envolvera pela cintura para apertá-la contra o peito. Estaria ele também se lembrando daqueles momentos, ou já os esquecera entre muitos outros casos passageiros?

Ah, era terrível a capacidade que o suposto Eugene Pendergast havia demonstrado para manipulá-la. Aquele homem era insuportável e irritante. Agora que ele havia partido ela estava mil vezes melhor, tinha o emprego de volta… até que Beasley encontrasse um outro professor que preenchesse os requisitos por ele determinados. Talvez ela devesse tentar conseguir um diploma de professora. O pai dela de bom grado concordaria em mandá-la para a faculdade de pedagogia se acreditasse que isso a manteria longe de problemas.

Antes que Pendergast surgisse em cena, ela só se interessara pelo emprego porque seria uma forma de ficar longe da fazenda. Agora que o homem havia partido, estava mais claro do que nunca que aquela cidade também era um lugar enfadonho. Havia muita gente chata com quem lidar!

Gomo se fosse para confirmar aquele pensamento, Cecília viu o cavalo de Buck amarrado no lado de fora da pensão. Atravessando a porta ela foi diretamente para a cozinha, esperando encontrar alguma coisa para comer antes do jantar. Infelizmente, Buck e Dolly estavam namoricando lá.

— Olá, Cecília — disse o vaqueiro, dirigindo a ela apenas um rápido olhar.

Desde a noite do sábado anterior na frente da escola, Buck não dissera a ela mais do que duas ou três palavras, embora parecessem disposto a mostrar a maravilhosa oportunidade que ela havia deixado passar de ter um namorado. E o carinhoso apelido Ciei agora era coisa do passado. Buck só tinha olhos para Dolly… olhos espantados, como se o homem não soubesse direito o que estava acontecendo com ele.

Dolly, no entanto, era outra vez uma mulher cheia de benevolência. E por que não deveria ser assim? O homem com quem ela sonhava estava ali, de joelhos, transbordante de amor. Tudo estava maravilhoso para Dolly.

Naturalmente muita coisa tinha dado certo também para ela, Cecília, como a recuperação do emprego, do quarto e… Nesse ponto ela suspirou. Considerando tudo, ter o emprego e o quarto era melhor do que nada. Uma semana antes as duas coisas haviam parecido importantes para ela.

Cecília pegou uma jarra de água em cima do balcão da pia e encheu um copo.

— O dia foi puxado? — perguntou Dolly.

— Um-hum — respondeu Cecília, levando o copo à boca.

— Talvez você devesse cochilar um pouco — sugeriu a amiga dela, parecendo preocupada.

— Não estou cansada. Não se preocupe comigo. Cecília suspirou. Na verdade ela não sabia o que queria fazer. Embora a companhia daqueles dois às vezes fosse enfadonha, pelo menos Buck e Dolly eram pessoas adultas com quem elas poderia conversar depois de um dia inteiro cuidando de um bando de crianças levadas.

Cecília reparou que Dolly dirigia a Buck um disfarçado sorriso.

— O que foi? — ela perguntou.

— Nada, nada — respondeu a mulher, voltando a sorrir.

Cecília detestava quando Dolly fazia aquilo. — O que é, Dolly? — ela insistiu.

— É só que eu estava conversando com Buck sobre a minha pequena teoria.

Cecília não tinha muita certeza de que queria ouvir mais explicações, mas automaticamente fez a pergunta.

— Que teoria?

— De que você está apaixonada por Pendergast.

— O quê?

Cecília quase derramou a água restante no copo que segurava. Ouvir aquele tipo de coisa da boca de Bea até que era compreensível. Afinal de contas, ela havia mentido para a menina. Mas de onde Dolly havia tirado aquela idéia absurda?

— Bem, você anda muito esquisita desde que ele foi embora — explicou-se a mulher.

— Eu pensei que você ficaria feliz quando conseguisse o que queria e tudo o mais — acrescentou Buck, meio distraído.

— Mas eu estou feliz! — garantiu Cecília.

— Ah, pobrezinha… — voltou a falar Dolly, num tom maternal. — Não precisa se fazer de forte na nossa frente. Além disso, Cecília, naquela noite na frente da escola, eu vi o que vocês dois fizeram ao lado do poço.

Cecília empalideceu na mesma medida em que Buck ficava com as faces vermelhas.

— O que vocês estavam fazendo? — perguntou o vaqueiro, num tom raivoso, talvez até voltando a pensar em organizar o grupo de buscas.

— Ah, pelo amor de Deus! — disse Cecília, abrindo os braços. — Foi apenas um beijo sem importância.

— Tem certeza? — questionou Dolly, erguendo dramaticamente as sobrancelhas.

Cecília fez um ar de exasperação.

— Parece até que eu pedi a ele que me beijasse! — ela protestou.

— Cecília, você o seguiu até lá — lembrou Dolly, como se ela própria não houvesse feito a mesma coisa, só que indo atrás de Buck.

— Droga — resmungou Buck. — Cecília andava nos calcanhares de Pendergast há um bom tempo. O cretino na certa achou que ela seria presa fácil

Cecília mal acreditava-nos próprios ouvidos. Mas o que aqueles dois estavam pensando dela, afinal?

— Tudo o que eu queria era provar que Pendergast não era quem afirmava ser!

— Beijando-o? — perguntou Buck.

— Eu não o beijei — ela rebateu, o que fez Buck e Dolly riram. — Além disso, estava certa no que pensava sobre ele, não estava?

Dolly balançou tristemente a cabeça. — Pobre Sr. Pendergast. Agora deve estar andando por aí como uma vagabundo, uma alma penada.

Cecília bufou de raiva. — Ele provavelmente está em alguma outra cidade, fingindo ser o professor de lá.

— Por que acha que ele faria isso? — perguntou Dolly. Era uma boa pergunta. Por mais que tentasse, Cecília não conseguia imaginar qual era o jogo de Pendergast.

Buck reprimiu o riso. — Talvez o que ele quer mesmo é tirar o emprego da antiga professora… de lá.

Outra vez Cecília não acreditou no que estava ouvindo. Buck, o homem que até poucos dias antes jurava amor eterno por ela, agora tentava ridicularizá-la!

Nesse instante ela viu que o vaqueiro estendia a mão por cima da mesa para cobrir a de Dolly. Aquilo a fez sentir-se sobrando. O melhor era sair dali antes que aqueles dois protagonizassem uma cena amorosa bem diante dos olhos dela.

— Acho que vou subir para descansar um pouco.

Dolly e Buck mostraram sorrisos complacentes enquanto ela se afastava, sentindo-se mais solitária e inquieta do que nunca.

— E estou muito contente por ele ter ido embora! — acrescentou Cecília, sem se voltar, só para que aqueles dois não ficassem pensando que ela podia estar arrasada.

A visão do espaçoso quarto devia ter o poder de oferecer a ela um pouco de conforto, mas não foi o que aconteceu. Quando olhou para a cama Cecília lembrou-se de que o cheiro de Pendergast ainda estava ali, concluindo que deitar-se provocaria sensações que em nada contribuiriam para acalmá-la. Quando ela de dirigiu para a cadeira de balanço, viu que a pequena valise de Pendergast ainda estava ali embaixo.

O conteúdo daquela valise preta não era segredo para ela. Já perdera a conta das vezes em que examinara aquelas velhas roupas e o pequeno maço de cartas. Dolly também havia olhado aquelas coisas, mas sem se achar no direito de ler as cartas. Diferentemente da escrupulosa amiga, Cecília lera cada uma das cartas tão logo se vira sozinha, sentindo um enorme alívio ao constatar que a Rosalyn Pendergast que as escrevera era apenas uma irmã solteirona.

Infelizmente, nada naquelas cartas indicava uma contradição na história de Pendergast. Mas por que ele nunca se referira à irmã? O homem havia atravessado seis Estados levando consigo aquelas cartas… A menos que se levasse em consideração a teoria de Dolly, segundo a qual Pendergast estava perambulando sem rumo depois de ter perdido a razão em conseqüência da doença, por que deixaria para trás as cartas da irmã como se elas fossem roupas velhas?

Era estranho. No entanto, como jamais havia conversado Com Pendergast sobre assuntos pessoais, ela não podia mesmo saber nada sobre a irmã dele. E ele podia simplesmente ter se esquecido das cartas.

Agora Cecília lamentava não ter feito a Pendergast perguntas pessoais. Não só porque isso poderia ter fornecido uma pista do motivo que o levara a deixar as cartas, mas também porque agora ela poderia ter respostas para perguntas que a atormentavam. Principalmente quando Cecília estava em repouso, essas perguntas espocavam na mente dela.

Quem eram os pais dele? Em que tipo de casa ele havia nascido e crescido? Em alguma época tivera uma namorada? Esta última pergunta estava entre as mais constantes, juntamente com outra que parecia fútil mas que tinha uma importância enorme para ela: quem era realmente Eugene Pendergast?

Talvez ela nunca tivesse as respostas. Cecília deixou escapar um suspiro e puxou a cadeira para perto da janela. Não iria ler novamente aquelas cartas. De que adiantaria?

Mas foi impossível resistir à compulsão. Automaticamente ela estendeu a mão para pegar a valise, esperando encontrar respostas que já estava cansada de saber que não se encontravam ali.

Bem, já sabia quase de cor o que estava nas cartas. Assim sendo, que mal haveria em lê-las novamente?

Quando ela começou a desamarrar a fita que envolvia o maço de envelopes, viu pela janela que certa movimentação estava acontecendo perto da loja de Beasley. Esquecida momentaneamente do que ia fazer, Cecília chegou mais perto da janela e olhou com curiosidade para o lado do armazém, na frente do qual uma diligência acabava de parar. Duas mulheres maduras e uns punhados de moças desembarcaram e cercaram o veículo, de forma que Cecília não pôde ver o que estava acontecendo.

Várias outras pessoas começaram a se aglomerar diante da loja. Subitamente Beatrice Beasley saiu do meio daquela multidão e começou a correr pela rua na direção da casa de Dolly. O cachorro a seguia, claro, latindo enquanto a dona gritava a plenos pulmões.

— Sra. Hudspeth! Srta. Summertree!

Cecília ouviu a porta da frente se abrindo e logo depois Buck e Dolly apareceram embaixo da janela dela. Dolly ergueu a mão para proteger os olhos do sol enquanto Bea, sacudindo as trancas na carreira, chegava perto para dar a notícia.

— O Sr. Pendergast voltou!

Tomada de surpresa, Cecília sentiu as pernas fracas e temeu tombar para frente, o que a faria cair em cima de Buck. Então ela respirou fundo, com tanta ânsia que chamou a atenção dos que estavam lá embaixo.

— Srta. Summertree! — gritou novamente Bea, numa voz cheia de contentamento, com os raios do sol refletindo-se nas lentes dos óculos. — O Sr. Pendergast voltou!

— Eu não acredito — murmurou Cecília para si própria, enquanto o coração dela batia descompassadamente.

Que motivos aquele homem teria para voltar? Bea estava tão exultante que nem deu atenção ao choque de Cecília.

— Ele voltou — ela repetiu. — E voltou como um herói!

    

Beasley estava eufórico. Ele próprio conduziu a diligência até a pensão de Dolly e supervisionou os preparativos para que Pendergast fosse reinstalado no quarto do mestre-escola, que agora até parecia ser um santuário. Todos na cidade queriam ver e reverenciar o cidadão de Annsboro que havia arriscado a própria vida para salvar duas mulheres e quatro estudantes alemães do ataque de perigosos bandidos.

E, acrescentava Dolly numa voz embargada, o homem estava num estado de meio delírio ao realizar aquele ato de heroísmo.

Cecília teria ficado ainda mais indignada com o que provavelmente era mais uma encenação se as primeiras notícias sobre o estado de Pendergast não fossem tão terríveis. Ela precisou abrir caminho na multidão que se aglomerava à porta do quarto e passar entre quatro lindas adolescentes louras para dar uma olhada nele. Duas corpulentas mulheres montavam guarda ao lado da cama.

Cecília ignorou o olhar de desaprovação daquelas duas e, espantada, pôs os olhos no velho adversário. A pele normalmente morena estava muito pálida e, a julgar pelas bandagens que cobriam boa parte do peito dele, era de admirar que o homem ainda estivesse vivo.

Desta vez era mais do que evidente que ele não estava fingindo.

Sentindo-se sem forças, Cecília se deixou cair sentada na borda da cama. Ouviu que uma das mulheres que haviam trazido Pendergast de volta à cidade resmungava alguma coisa e percebeu que Dolly corria em socorro dela.

— Sra. Randall, eles estão quase noivos — murmurou a dona da casa para a mulher, logo depois dirigindo a Cecília um encorajador sorriso. — Não se preocupe, Cecília. Elas me disseram que, na opinião do médico, o estado dele não é tão ruim quando parece.

Por um momento Cecília pensou que precisaria ter uma boa conversa com Dolly sobre aquele suposto namoro dela com Pendergast, mas isso certamente não podia ser feito naquele momento. Além disso, e apesar do que a amiga dela acabava de dizer, ele parecia realmente mal.

— Na verdade o ferimento é só na carne — anunciou a matrona. — Foi o que disse o médico em Buffalo Gap. O doutor ministrou uma boa dose de analgésico para a dor.

Cecília balançou a cabeça.

— Eu não compreendo… Por que ele voltou para cá?

— O homem pronunciava o tempo todo a palavra “Annsboro” e concluímos que era para cá que ele queria vir. Resolvemos atender ao pedido. Afinal de contas, ele salvou as nossas vidas.

O quarto ficou em silêncio enquanto a mulher contava pela centésima vez a história do assalto à vagarosa diligência para Fredericksburg, falava dos dois bandidos e relatava a heróica ação de Pendergast em defesa das seis mulheres, matando um dos assaltantes e ferindo, o outro. A voz da Sra. Randall tremia de emoção ao contar como o salvador delas, mesmo ferido, havia conseguido conter os enlouquecidos cavalos quando o cocheiro já estava morto. Enquanto a mulher falava as quatro garotas de azul limpavam as lágrimas, com os olhos fixos no herói prostrado na cama.

Até mesmo Cecília ficou emocionada. Apesar da longa série de perguntas que ainda tinha sem respostas, era impossível deixar de sentir admiração pelo que aquele homem tinha feito.

Beasley, que durante dois dias seguidos mal conseguia dizer outras palavras que não fossem o ladrão ianque, agora recorria a um vocabulário bem diverso.

— Eu sempre afirmei que esse homem tinha um caráter acima de qualquer prova — ele declarou.

Dolly apressou-se em concordar.

— E ele também é muito corajoso — ela acrescentou. Um santo, sem dúvida, pensou Cecília, sabendo que seria linchada se fizesse em voz alta aquele comentário. Mesmo assim, enquanto contemplava o queixo forte do homem inconsciente, os lábios que havia beijado tão apaixonadamente, se não com completa sinceridade, ela teve que admitir que teria ficado triste se nunca mais voltasse a vê-lo. Muito triste… mas não arrasada! Pelo menos para si própria, era preciso estabelecer essa diferença. A angústia que havia sentido ao receber a notícia de que ele estava gravemente ferido agora estava num lugar bem resguardado da memória.

— Bem, acho que o homem precisa descansar — pronunciou-se Beasley.

Ajudado por Dolly, o comerciante ocupou-se em conduzir a multidão para fora do quarto.

— Espero que vocês fiquem para o jantar — disse Dolly às mulheres visitantes. — E há espaço suficiente para que passem a noite aqui. Tenho um quarto vazio ao lado da coz… —Dolly parou a frase no meio e olhou para Cecília. — Ah, desculpe. Eu me esqueci de que aquele é o seu quarto.

Cecília ficou ressentida. Outra vez seria jogada para o minúsculo quarto ao lado da cozinha. E agora teria também que abrir mão daquilo em favor daquelas mulheres. Ele salvou a vida de quatro estudantes alemãs, ela se lembrou, suspirando.

— Não se preocupe comigo, Dolly — disse Cecília, procurando parecer sincera. — Arranjarei algum lugar onde dormir.

— Ah, você é um anjo — disse Dolly, conduzindo as duas mulheres e as garotas para fora do quarto. Antes de sair a mulher parou e voltou-se. — Você não se incomoda de ficar tomando conta dele enquanto eu sirvo o jantar a elas, não é?

— De jeito nenhum — garantiu Cecília, que desta vez queria observar Pendergast de perto.

— Foi o que pensei — disse Dolly, piscando o olho. — Sei que você deve estar muito contente com a volta dele!

Cecília não respondeu. Mesmo assim, ficou no quarto do doente até bem depois do jantar, saindo apenas o tempo suficiente para comer alguma coisa na cozinha e respirar um pouco do ar da noite. Tentava clarear o pensamento e amainar as conflitantes emoções que a dominavam, mas a mente voltava sempre para o centro do problema: Pendergast.

Será que ninguém ali achava estranho ò fato de um pacato mestre-escola da noite para o dia se transformar num destemido pistoleiro? E por que o homem viajava como guarda na diligência que rumava para Fredericksburg? Seria ele daquela cidade? Se for isso, por que havia querido retornar para Annsboro?

Cecília mal podia esperar até que ele estivesse em condições de responder àquelas perguntas. Depois de dois dias refletindo sobre o mesmo assunto, porém, ela não tinha a menor dúvida de que ouviria apenas mentiras. Na verdade só queria conversar com ele, sentir-se outra vez fitada por aqueles olhos negros penetrantes.

Quando Cecília retornou ao quarto Dolly estava ao lado de Pendergast, mas de bom grado cedeu o posto à amiga. Fazia muito sentido ela passar a noite de vigília, concluiu Cecília, já que não tinha nenhum outro lugar para dormir. Depois de empurrar para o fundo do quarto a pequena poltrona que haviam trazido para servir de acomodação à enfermeira de plantão, ela puxou para perto da cama a cadeira de balanço. O enfermo estava atravessado na cama por baixo do lençol, que o cobria apenas até a metade do peito. Ainda estava muito pálido, mas a cada vez que o olhava Cecília tinha mais certeza de que ele sobreviveria.

Percebendo algo brilhante ao lado da cama ela estendeu a mão e empunhou o pesado Colt. Então sentiu um estremecimento.

Cecília sempre fora cautelosa em relação a armas, mas naquele instante achou que aquele Colt podia fornecer uma pista sobre o misterioso Pendergast. Ele podia muito bem ser algo até mais sinistro de que um simples impostor. Podia não ser herói nenhum, mas sim um pistoleiro, um fora-da-lei.

Mais uma vez Cecília examinou o rosto moreno do homem deitado, o queixo poderoso, o corpo musculoso. Então se lembrou novamente daqueles olhos e ficou com a pulsação acelerada. Era muito possível que o ataque dos bandidos à diligência não fosse nenhuma coincidência! Talvez ele conhecesse o homem que havia matado e o outro que deixara ferido na estrada… Pendergast podia ter partido no meio da noite para ajustar contas com uma dupla de desafetos… iguais a ele!

Uma coisa era certa: naquela noite Pendergast não iria escapar.

Jake despertou sentindo um frio aço contra as costelas e procurou se sentar. A dor que se espalhou pelo peito dele obrigou-o a se deitar novamente, com os dentes trincados.

Se estava deitado numa cama, era pouco provável que Gunter estivesse por perto.

Então ele respirou vagarosamente e olhou para o teto, procurando se localizar sem ter que fazer muito esforço físico. O dia estava amanhecendo. A maciez daquele colchão até o fez pensar que estava ocupando a antiga cama na pensão de Dolly. Embora aquilo parecesse bom demais para ser verdade, o travesseiro, as cobertas… tudo parecia confirmar essa suspeita. Mas como chegara ali? Em ondas sucessivas as lembranças do dia anterior voltaram à mente dele: a diligência, os bandidos, o tiroteio. Depois disso era só a dor.

E havia um aroma de flores no ar, algo que o fazia lembrar-se do que havia de mais excitante na pensão de Dolly… Cecília.

Jake moveu a cabeça, viu uma cabeça loura e sorriu. Cecília estava parada numa posição absolutamente desconfortável. Sentada na cadeira de balanço, tinha o torso ereto e os dois braços estendidos para a cama. A mão esquerda segurava os cabelos dele, enquanto a direita empunhava o Colt que parecia ser o que ele havia herdado do pai. Jake sorriu novamente, embora soubesse que o revólver estava apontado para o peito dele.

Então ele fechou os olhos e agradeceu mentalmente a quem o havia transportado. Era exatamente ali que queria estar.

Enfrentado a dor que aquilo causaria, Jake ergueu as duas mãos e retirou o revólver que ela empunhava. No mesmo instante Cecília sacudiu o corpo e abriu muito os olhos.

— Você acordou! — ela Constatou, quase gritando.

— E, mas nenhum homem gosta de despertar sentindo no peito o cano de um revólver — gracejou Jake. — A não ser quando é para ver ao lado da cama uma mulher tão linda quanto você.

A linda mulher a que ele se referia rapidamente se aprumou, quase derrubando a cadeira. Em seguida as faces dela se escureceram, certamente por causa do rubor.

— Eu estava tomando conta de você.

Jake riu novamente, mas se controlando para não sentir dor.

— Ah, sim, com o revólver apontado para o meu peito e tudo.

Cecília cruzou os braços e balançou-se na cadeira.

— Não precisa me agradecer por eu ter me oferecido para passar a noite a seu lado.

Jake ergueu as sobrancelhas. — Estava mesmo preocupada comigo, doçura?

— Não me chame de doçura! — ela o proibiu, cheia de altivez. — Sim. Se quiser saber, eu estava preocupada com a possibilidade de que você fugisse outra vez.

Jake não havia se esquecido do quanto ela era bela, do rosto de anjo, dos lábios carnudos, dos olhos maravilhosamente azuis… mas a realidade era sempre melhor do que qualquer lembrança.

— Só de vê-la eu me sinto muito melhor, Cecília — ele declarou.

— Pois não devia, porque minha intenção é impedir que você leve adiante a farsa que vem representando nesta cidade.

— Mas que farsa você acha que eu estou representando? — ele perguntou, procurando não demonstrar a preocupação que agora sentia.

Teria ela descoberto alguma coisa? Teria ele falado enquanto dormia… ou esquecido na fuga algo que o incriminasse?

— O que eu acho… — Cecília olhou para a própria mão e alarmou-se ao ver que estava desarmada. — Onde está o revólver?

Jake retirou a arma do meio das cobertas. — Este aqui? — ele perguntou, inocentemente.

— Mas como…

Jake riu. — Você precisa de umas aulas sobre como ficar alerta. Cecília olhou para ele com desconfiança.

— É, e aposto que você pode me ensinar umas coisinhas sobre o assunto.

Opa. Agora as suspeitas dela pareciam estar chegando perto da verdade.

— Não se faça de engraçadinho — recomendou Cecília, partindo para o ataque. — Eu sei quem você é, Pendergast.

Jake sentiu o sangue gelar. Seria desmascarado quando estava em cima de uma cama com um buraco enorme no peito!

— Pois muito bem — ele a desafiou. — Quem sou eu?

Por alguns instantes eles ficaram se olhando fixamente, num mudo confronto. Sendo a primeira a entregar os pontos, Cecília desviou os olhos e bateu com os punhos cerrados nos braços da cadeira de balanço.

— Eu não sei, droga!

— Você é tão ruim para blefar quanto para ficar em vigilância, não é?

Cecília pôs-se a se balançar na cadeira, enraivecida.

— Pela sua reação quando eu disse que sabia quem você era, é pouco provável que se orgulhe dos seus feitos.

Jake suspirou. — Se eu fosse o sujeito perigoso que você está dizendo, Cecília, provavelmente já teria acabado com você… principalmente agora, que o revólver está comigo.

Cecília mostrou-se mais revoltada do que temerosa.

— Isso é uma ameaça?

Jake olhou para cima. — Não.

O quarto ficou em silêncio por alguns instantes e Cecília olhou pela janela. Parecia estar tramando alguma coisa naquela cabecinha adornada por lindos cabelos louros. Depois moveu os lábios num sorriso demoníaco.

— Quem é Rosalyn? — ela perguntou, voltando-se rapidamente para observar a reação dele.

Rosalyn? Rosalyn? A mente de Jake trabalhava freneticamente tentando se lembrar do nome… As cartas!

Então ele fez um ar soturno, como se a lembrança daquele nome o fizesse sofrer. Talvez aquilo desviasse a atenção de Cecília do fato de que ele havia demorado muito para se lembrar.

— Rosalyn é minha irmã.

— Por que estava indo para Fredericksburg?

— Tinha que resolver um negócio lá.

— Que negócio?

Jake dirigiu a ela um olhar frio. — Um assunto pessoal.

— Mas era um assunto pessoal tão urgente que você nem pôde deixar para partir quando o dia amanhecesse?

Jake revirou os olhos, mas sentia o coração batendo muito depressa. Desta vez ela não deixaria que ele mudasse de assunto.

— Diga-me uma coisa — pediu Jake. — Você já não conseguiu convencer a cidade inteira de que eu sou um cretino, um mau-caráter?

— Há! — exclamou Cecília, o que deixou Jake espantado. — Tudo o que eu quero saber é o que o fez pedir àquelas mulheres que o trouxessem de volta para cá.

Agora ela fazia uma pergunta fácil. Jake achou que nem precisaria mentir para responder e abriu um sorriso largo.

— Eu queria dançar com você.

Cecília ficou olhando para ele com os lábios apartados de surpresa. Pelo menos Pendergast conseguia surpreendê-la mais uma vez.

— Estou falando sério — ela insistiu. — Estou curiosa para saber o motivo que você teve para voltar, já que sabia dos problemas que enfrentaria aqui.

Jake pestanejou e ignorou aquelas palavras.

— O que você prefere dançar? Valsa? Polca?

— Não mude de assunto!

— A dança mexicana dos chapéus?

— Valsa — respondeu Cecília, irritada. — Agora me conte a verdade.

— Eu já contei..

A cadeira parou de balançar e, quando os olhos deles se encontraram, o rubor voltou às faces de Cecília. Jake sorriu novamente.

— Você fica ainda mais linda quando enrubesce, Cecília.

— O tiro que você levou no peito parece ter afetado o seu cérebro, Pendergast.

— Talvez ele tenha me feito ver o que é mais importante.

— Dançar? — Cecília soltou um riso de escárnio. — Pelo jeito, nem tão cedo você vai poder fazer isso.

Jake moveu a cabeça para o lado e fez um ar de desespero.

— Mas que desgraça! Pelo menos parece que essa vontade me trouxe de volta ao lugar onde eu queria estar.

Cecília levantou-se, ultrajada. — Sim, de volta ao meu quarto!

Sem responder, Jake riu da revolta dela.

— Não tem graça nenhuma! — protestou Cecília. — E enquanto você estiver se recuperando, vou ter que fazer o seu trabalho e o meu!

— Então diga a Beasley que não fará isso.

— Você sabe que não posso me negar.

— Por que não?

— Porque quero ter Beasley do meu lado quando reunir provas suficientes para expulsar você desta cidade de uma vez por todas.

Jake ergueu as sobrancelhas. — Então agora ele está do meu lado?

— Há!

Ela estava sempre dizendo aquele há. O que aquilo significaria? Jake teve a sensação de que alguma coisa estava acontecendo sem que ele ainda tivesse conhecimento.

— A cidade mudou muito desde a minha partida?

Cecília fez um gesto de desdém. — Annsboro? Esta cidade não mudará nem daqui a cem anos!

— Ainda não tem nem um tribunal?

Para surpresa dele, Cecília riu de verdade daquela pergunta e chegou mais perto para responder.

— Não. E, se quer saber, a loja nova de Beasley também ainda não foi inaugurada.

Jake estendeu a mão e segurou a dela. Aquilo provocou uma dor aguda, mas valeu a pena sentir a maciez da pele de Cecília, acariciar os dedos finos.

— No dia em que saí daqui, também pensei no seu riso.

Cecília forçou levemente o braço, tentando retirar a mão, mas ele não a soltou. A expressão dela era de confusão e, por mais espantoso que pudesse parecer, de timidez. Cecília… tímida? Jake sentiu uma onda de desejo que chegou a surpreendê-lo, considerando o estado físico em que se encontrava.

— Ah, pelo amor de Deus — ela disse, embora sem a ênfase com que costumava protestar. — Imagino que essa seja mais uma de suas táticas para impedir que eu volte ao ataque.

— Estou começando a achar que isso é impossível.

— Está vendo? Então reconhece que era isso o que estava fazendo nas outras vezes?

Jake ficou perplexo.

— Que outras vezes?

Cecília mordeu o lábio e, timidamente, olhou para o lado.

— Ah… você sabe. — Quando olhou novamente para Jake ela torceu o canto da boca e revirou os olhos. — Primeiro na antiga oficina de ferreiro, depois naquela noite ao lado do poço…

Só então Jake entendeu.

— Está se referindo às ocasiões em que eu a beijei?

— É! E não venha me dizer que já se esqueceu. Nunca.

— Enquanto estive fora, você ficou o tempo todo pensando naqueles beijos?

— De jeito nenhum! — protestou Cecília, horrorizada. — Eu mal tenho pensado nisso, a não ser quando quero me lembrar de como você é traiçoeiro.

— Por beijar você?

— Por tentar manipular minhas emoções e me deixar desnorteada no que quero provar contra você.

— É, parece que o meu tiro saiu pela culatra.

Cecília retirou a mão com um safanão e inclinou-se para frente.

— Como assim?

— Depois que a beijei você ficou mais cuidadosa do que nunca. Provavelmente tendo percebido isso, agora parece que está querendo mais.

— Isso não é verdade!

— Então por que esta manhã tive o prazer de me acordar com você na minha cama?

Cecília abriu e fechou a boca várias vezes antes de encontra palavras.

— Eu já lhe disse. Só estava querendo…

— Eu sei o que você disse.

— E é verdade — ela insistiu.

— Pois vou lhe dizer qual é a verdade, Cecília. — Antes de dizer as palavras seguintes, que escolheu com cuidado, Jake certificou-se de que ela a olhava nos olhos. — Nunca senti tanta vontade de beijar uma mulher quanto senti de beijá-la naquela noite ao lado do poço da escola. E não é só isso. Se estivéssemos sozinhos em algum outro lugar, dificilmente eu teria parado no beijo.

Cecília arregalou os olhos, evidentemente pasmada.

— Mas… Está querendo dizer que…

Jake confirmou com a cabeça, sorrindo para ela, contente em perceber que finalmente conseguia deixar Cecília completamente confusa. Ela estava muito pálida e apenas ficou parada, parecendo não saber o que dizer. Se não estivesse naquelas condições ele a tomaria nos braços no mesmo instante.

O tenso silêncio do quarto foi quebrado pela entrada de Dolly, já de banho tomado e vestida para as tarefas do dia.

— Bom dia! — ela exclamou, sorrindo para Jake. — O senhor me parece bem melhor.

Jake mostrou um sorriso afável.

— Graças a você, Dolly, e acho que também a Cecília.

Quando olhou para a amiga Dolly fez um ar de preocupação.

— Está se sentindo bem, Cecília?

Cecília respondeu com um resmungo. — Hum.

— Pobrezinha! — lamentou Dolly. — Não deve ter dormido quase nada. Mas como poderia, se nem tinha uma cama?

Jake espantou-se com aquilo. — Mas… e aquele quarto?

— As garotas o ocuparam.

— Que garotas?

— As que o trouxeram até aqui. — Dolly pôs as duas mãos na cintura. — Cecília não lhe contou que agora o senhor é um herói em Annsboro?

Há, pensou Jake. Era por isso que Cecília estava tão aborrecida. Então ele virou a cabeça e viu que ela continuava no mesmo lugar onde estava quando da chegada de Dolly.

— Caso não se lembre, o senhor salvou uma diligência que transportava seis mulheres! — informou a dona da pensão, com orgulho. — Elas a trouxeram para cá, ferido, mas vamos tratá-lo como um rei até que esteja recuperado.

Jake dirigiu à mulher um sorriso um tanto tímido.

— Qualquer um teria feito à mesma coisa.

— Não sei… O fato é que não temos uma demonstração de heroísmo igual à sua desde… bem, desde o ataque dos índios! Em minha opinião o que o senhor fez deveria passar a constar nos livros de história, não acha, Cecília? Cecília? — Outra vez Dolly olhou com preocupação para a amiga. — Cecília, acho que você deveria sair para um passeio matinal. Não me parece com boas cores!

Cecília caminhou para a porta, sem dizer nada. Olhou para Jake e abriu a boca para falar, mas desistiu e saiu apressadamente do quarto.

— Mas o que está acontecendo com essa menina? — disse Dolly, dirigindo a Jake um meio sorriso de cumplicidade. — Ela tem estado muito esquisita desde que o senhor desapareceu.

Por mais alguns instantes Jake observou a caminhada de Cecília pelo corredor, desejando poder sair da cama para correr atrás dela. Talvez ele tivesse sido afoito demais. Não queria que ela fugisse assustada.

Naturalmente, considerando que o encontro que ele tivera com o homem que queria matá-lo tinha sido apenas fruto do acaso, aquilo até podia ser bom. Tão logo estivesse recuperado, Jake pretendia sair novamente à caça de Darby. A atração que sentia por Cecília o levara de volta ao paraíso de segurança que era Annsboro. No entanto, se Gunter o houvesse reconhecido durante o breve tiroteio entre eles dois, por quanto tempo ainda Annsboro seria um lugar seguro?

Cecília sentia os membros trêmulos e fracos. É porque tive que dormir numa cadeira de balanço, ela procurou se convencer.

É porque você está se apaixonando por um homem que pode ser um bandido, dizia uma voz no íntimo dela.

Aquilo simplesmente não era possível! Cecília respirou profundamente e exalou o ar bem devagar. Estava outra vez sendo ridícula. Pendergast não era um fora-da-lei ela certamente não estava se apaixonando por ele. Tudo o que sentia por aquele homem era desprezo.

Então ela se lembrou do revólver e de quando ele dissera que, em outras circunstâncias, dificilmente teria parado no beijo. Não eram palavras de um cavalheiro. E aquele Colt não era exatamente uma pistola que um homem honrado usaria num duelo justo.

Cecília reconsiderou tudo. Talvez ele fosse um fora-da-lei, e já havia percebido que ela sabia disso. Por isso havia voltado… para obrigá-la a ficar de boca calada. Era para isso que servia o revólver!

Cecília caminhou alguns passos pela rua, ainda perto da casa de Dolly, e olhou para a cidade. Naquele dia precisaria dar aula na escola, mas estava tão confusa que nem sabia como se desincumbiria da tarefa. O coração batia tão depressa que ela respirava com dificuldade.

Estaria Pendergast apenas esperando se recuperar do ferimento para liquidar com ela? Ou falara a verdade ao dizer que havia voltado para dançar com ela? Era pouco provável, mas mesmo assim… Ao dizer que sentia desejo por ela, o homem parecia transmitir aquilo também com os olhos. E Cecília ficara com a impressão de que só naquele instante aprendia o verdadeiro significado da palavra desejo. Não era só impressão, porque nenhum outro homem dissera com tanta clareza que sentia desejo por ela.

E jamais Cecília havia respondido com o silêncio! Mas como definir com palavras os sentimentos que a dominavam quando era fitada por aqueles olhos negros? Se Dolly não houvesse entrado no quarto, Cecília sabia agora que podia ter feito algo de que se arrependeria pelo resto da vida, como se acomodar naquela cama… submetendo-se por completo.

Mesmo que Pendergast não fosse um bandido, o desejo que ele afirmava sentir provocava nela perigosas sensações. Quando estava a ponto de conseguir o que queria, ela não podia cometer o erro sobre o qual Clara sempre falava: apaixonar-se pelo homem errado.

Mas como Dolly havia percebido? A amiga dela parecia estar apenas brincando ao dizer que ela estava se apaixonando pelo Sr. Pendergast, mas acertara em cheio! Cecília só não sabia se aquilo podia se chamar amor. Em nenhum momento Pendergast havia usado aquele termo. Às vezes ele a olhava como se ela fosse uma das garotas que trabalhavam para Grady… Embora também parecesse querer desafiá-la.

Cecília buscou a sombra de uma árvore e encostou-se no tronco. E se alguém mais além de Dolly já houvesse percebido o que ela estava sentindo por aquele homem? O que pensariam dela quando ficasse comprovado que Pendergast não era nenhum herói, mas sim um bandido, talvez um assassino?

Ah, como podia ter sido tão idiota? Aquilo acabaria com a reputação dela. Beasley jamais permitiria que a amante de um bandido continuasse dando aulas na escola. E não era só isso. Quando descobrisse que ela estava apaixonada por um facínora, o pai dela a arrastaria de volta para a fazenda e a deixaria trancada lá. Pelo resto da vida ela ouviria a mesma pergunta de Clara: Eu não disse?

Cecília afastou-se da árvore. Não podia ficar parada ali, a ponto de entrar em pânico. Pelo menos para si mesma, precisava reconhecer a atração que sentia por Pendergast, mas isso não significava que a situação era irremediável… significava que ela precisava, mais desesperadamente do que nunca, expulsar aquele homem da cidade.

Rapidamente Cecília caminhou pela rua, ignorando os cumprimentos das pessoas que se dirigiam para o trabalho. Um pouco adiante ela se encontrou com Bea, que vinha em sentido contrário.

— Srta. Summertree? Não vamos ter aula hoje? — perguntou a menina, parecendo horrorizada com a possibilidade de ficar um dia sem ir à escola.

— Sim! — respondeu Cecília, tentando pensar com rapidez. — É que eu preciso conversar com o seu pai sobre um assunto urgente, Bea. Será que você pode tomar conta da classe até que eu chegue?

Os olhos da menina cresceram muito por trás dos óculos e um enorme sorriso apareceu no rosto dela.

— Mas é claro! — gritou Bea, entusiasmada, correndo para cuidar da tarefa de que fora incumbida.

Cecília marchou para o armazém. Lembrando-se do que havia acontecido na última vez em que estivera ali, parou e procurou pensar direitinho no que iria dizer. Fosse como fosse, Beasley certamente se interessaria em saber que havia na cidade uma pessoa potencialmente perigosa.

Quando ela empurrou a porta foi com um dócil sorriso no rosto, o que reforçou desejando bom dia aos primeiros fregueses da loja. Beasley estava por trás de um balcão, aparentemente ocupado com um livro de escrituração.

— Algum problema na escola, Cecília?

— Não, não — ela garantiu. — Estou justamente indo para lá, mas achei que primeiro devia lhe dar uma informação sobre Pendergast.

No mesmo instante o homem ergueu os olhos dos papéis que examinava.

— Nenhuma informação ruim, espero.

— Não sei…

— Então o que é, menina? — Beasley apontou para um dos fregueses. — Eu já ia pedir ao amigo Bert que, na viagem que fará hoje a Abilene, passasse na redação do jornal de lá para ver se eles podiam mandar alguém a Annsboro para fazer uma reportagem sobre Pendergast.

O comerciante esticou os suspensórios com os polegares, orgulhoso, como se a reportagem já tivesse sido feita.

— Sr. Beasley, eu tenho umas suspeitas sobre Pendergast.

Cecília ouviu risos das pessoas presentes e esforçou-se para não se voltar.

Beasley gesticulou com as mãos, impaciente. — Ah, não… Isso outra vez? O que é agora? Nós já sabemos que você acha que ele não é um professor de verdade.

— Não é isso — disse Cecília, — Estou achando que ele é um criminoso.

Agora havia mais gente na loja e aparentemente todas elas riram ao mesmo tempo, algumas gargalhando. Desta vez Cecília olhou para trás.

— Será que vocês não estão vendo o que está mais do que claro? — ela inquiriu, nervosa. — O nosso dissimulado Sr. Pendergast escapuliu no meio da noite, armado, defendeu-se quando foi atacado por algum desafeto e depois voltou para se esconder aqui.

— Ah, então ele voltou para se esconder — repetiu Beasley, irônico. — Mas de que você acha que ele está se escondendo?

— Não sei — teve que reconhecer Cecília. — Ocupados demais em reverenciar o herói em que transformaram Pendergast, vocês não conseguem ver o que ele realmente é.

— Mas o que ele é? — perguntou um dos empregados de Beasley.

— Um perigoso fora-da-lei.

Outra vez um coro de gargalhadas encheu a loja.

— É isso mesmo — gracejou o homem chamado Bert. — Poderemos contar aos nossos netos que Jesse James trabalhou como mestre-escola aqui mesmo em Annsboro.

— Talvez ele não seja tão famoso assim — reconheceu Cecília. — Mas algum de vocês já viu o revólver que ele tem?

— Muitos homens andam armados, Cecília — disse Beasley, num tom condescendente.

— Até mesmo os ianques — acrescentou alguém.

— Durante a Guerra de Secessão, por exemplo, eles andavam armados até os dentes — comentou um velhote, provocando mais risos.

— Mas por que ele saiu daqui às escondidas e rumou para Fredericksburg? — questionou Cecília.

— Como é que eu vou saber? — rebateu Beasley, parecendo a ponto de perder a paciência. — O homem estava com febre alta, na certa nem tinha consciência dos próprios atos.

— Duvido muito disso — opinou Cecília. Beasley abriu os braços.

— Você duvida porque quer que o homem vá embora. É assim desde que Pendergast chegou aqui. Primeiro levantou suspeitas contra ele. Depois, quando o coitado estava em cima de uma cama, doente, tentou fazer com que nós todos nos voltássemos contra ele. E agora joga pedras num homem que está sendo reverenciado por todos. Ontem, quando o seu emprego parecia seguro, você não me procurou para dizer que Pendergast era um bandido.

Um murmúrio de aprovação se espalhou pelos presentes, o que deixou Cecília furiosa. A cidade inteira parecia pensar que ela agia em interesse próprio! Aparentemente nada do que dissesse mudaria a situação, porque todos estavam do lado de Pendergast.

— Se quer fazer um favor a esta cidade, volte para a escola e cuide para que a encenação da colheita deste ano seja a melhor que já tivemos — sugeriu Beasley, naquele seu insuportável tom de cidadão respeitável.

Cecília apertou os lábios. O sucesso seria a melhor vingança, mas que sucesso ela poderia obter com uma tola peça teatral protagonizada por crianças? Em nada aquilo serviria para desmerecer Pendergast. Mas talvez um bom espetáculo mostrasse àquela gente de mente estreita que tinha sido um erro tirá-la da escola para dar lugar ao ianque. E ele fatalmente seria desmascarado, disso ela não tinha a menor dúvida.

— Vocês ainda me darão razão — profetizou Cecília, marchando para fora da loja.

A situação era sem dúvida desesperadora, mas ela quase entrou em pânico quando chegou à escola e encontrou a sala de aula vazia. Para onde teriam ido os alunos? Cecília havia encarregado Beatrice de controlar os colegas. Responsável como era, Bea não podia ter simplesmente dispensado a turma. Provavelmente resolvera que a aula daquele dia seria em outro lugar…

— Mas é claro! — ela quase gritou, furiosa, marchando para fora da escola e tomando o rumo da pensão de Dolly.

Cecília entrou na pensão e subiu diretamente para o quarto de Pendergast. Deitado na cama, o cretino lia em voz alta O Pacificador Armado, num tom cheio de dramaticidade e saboreando a sua condição de herói. Sentados pelo chão do quarto, os alunos pareciam hipnotizados pela narrativa.

Quando ela entrou, Pendergast virou a cabeça e mostrou um sorriso malicioso.

— Algum problema, Cecília?

    

— Acho que a nossa paciente está nos enganando — disse o idoso médico, contendo o riso.

— Entendi.

Rosalyn espiou pela porta aberta para dentro do quarto da tia dela. A velhota evidentemente tentava ouvir o que se dizia no corredor sobre o «estado de saúde» dela.

O Dr. Fitzhugh bateu gentilmente no ombro de Rosalyn e tossiu. A saúde daquele homem não podia ser melhor do que a da maioria dos pacientes dele.

— Às vezes acontecimentos inesperados, como o que ocorreu com seu pobre irmão… que Deus o tenha… podem deixar de cama uma pessoa sem que haja nenhum sintoma de problema físico.

— Entendi — repetiu Rosalyn.

Por pior que tivesse sido a notícia da morte de Eugene, porém, a esperta tia Patrice só caíra de cama dias mais tarde, quando Rosalyn anunciara que estava pensando em viajar para o Texas. E ela havia ressalvado que queria apenas visitar o local onde Eugene fora enterrado, mas mesmo assim a velha mergulhara numa sucessão de desmaios que já durava uma semana.

Rosalyn começou a pensar que aquilo nunca teria fim… e que ela jamais teria condições de saber o que realmente havia acontecido com Eugene. O Sr. Watkins não havia respondido à carta dela e o jeito seria ir até o local para verificar pessoalmente. Ela já havia vendido as jóias para levantar o dinheiro necessário para a viagem, de forma que podia partir na hora que quisesse. A única coisa que a retinha era o temor de que acabasse fazendo uma longa viagem para nada.

E, é claro, a tia. Mas agora o próprio médico afirmava que Patrice estava perfeitamente bem de saúde.

— Tem certeza de que ela não tem nenhuma doença? — perguntou Rosalyn. — O coração…

O médico riu da pergunta.

— Conheço Patrice Pendergast desde quando ela usava saia curta. Pode acreditar numa coisa, Rosalyn: a saúde da sua tia pode ser comparada à de um boi.

— Acha que ela seria capaz de cuidar de si própria durante algum tempo? — perguntou Rosalyn, cochichando.

— Pretende viajar, Rosalyn? — perguntou o médico, surpreso.

Por que ela não podia viajar? Nunca tinha ido a lugar nenhum na vida.

— Sim, para o Texas — explicou Rosalyn, depois de tossir. — Não será por muito tempo… um, dois meses. — De que adiantava mentir. Rosalyn aproximou-se do médico para falar ainda mais baixo: — Talvez por mais tempo. Tem a ver com o meu irmão. — Olhando para o quarto da tia ela vacilou. — Pensando bem, talvez eu não deva ir…

O Dr. Fitzhugh ficou sério outra vez, falando num tom profissional.

— Em minha opinião sua tia não teria nenhum problema. Acho até que isso seria bom para ela. Se a conheço bem Patrice, bastaria que você se afastasse para que ela se levantasse da cama e voltasse a visitar as amigas.

Aquelas palavras fizeram Rosalyn se sentir infinitamente melhor, embora ainda hesitante. Sempre havia morado naquela casa… Num certo sentido, cuidar das doenças da tia, reais ou inventadas, tinha sido o objetivo da vida dela. Como seria viver sozinha num lugar estranho? A perspectiva era tão excitante quanto aterradora. Rosalyn estava levando o médico até a porta quando o carteiro chegou para entregar uma correspondência. Pegando o envelope branco ela sorriu para o rapaz e examinou a letra desconhecida do remetente. A carta vinha de Abilene, o mesmo lugar de onde Jake Reed havia despachado a carta dele. Aquela só podia ser a resposta que ela estava esperando de Chadwick Watkins… tinha que ser!

— Más notícias? — perguntou o médico, preocupado.

— Não — ela garantiu, embora não se sentisse tão segura assim.

Talvez aquele envelope contivesse uma mensagem de condolências.

No entanto, quando chegou ao quarto e leu o estranho relato de Chadwick Watkins sobre a visita dele ao irmão dela, descrevendo-o como «misteriosamente mudado», pela primeira vez Rosalyn sentiu confiança nos próprios instintos. Algo de muito terrível estava acontecendo naquela pequena cidade chamada Annsboro, e era bem provável que envolvesse Jake Reed.

A partida dela para o Texas não podia esperar nem mais um instante.

No dia da encenação da colheita a casa de Dolly fervilhava de atividade. Havia muita comida para preparar, roupas para lavar e passar. Cecília precisava chegar cedo à escola para tomar as últimas providências relativas à encenação, mas prometeu a Dolly que a ajudaria a se vestir.

Naquela manhã Dolly confidenciara que, finalmente, Buck a pedira em casamento.

Finalmente? Mas… eles estavam namorando há pouco mais de duas semanas! E não era só isso. Dolly revelou também que, em vez de um longo noivado, eles queriam se casar imediatamente.

— É inacreditável! — disse Cecília para si própria enquanto retirava uma camisa do varal e a jogava num cesto aos pés dela.

Sr. Wiggles aproximou-se para cheirar as peças de roupa jogadas no cesto e Cecília o enxotou. Cachorro impertinente! Bea na certa estava repassando o papel que iria representar e não tinha tempo para brincar com o cachorro, que naquela tarde parecia especialmente excitado. Cecília tinha um milhão de coisas para fazer.

O vestido de Dolly, ainda pendurado na corda, devia ser passado. E era preciso tomar muito cuidado naquilo, já que aquela noite seria muito especial para Dolly: o noivado dela seria anunciado. Cecília precisava também correr até a escola para dar as últimas instruções às crianças. Bea certamente faria tudo muito direitinho, mas os meninos mais velhos sempre davam dores de cabeça.

Resignada, Cecília achou que talvez nem tivesse um tempinho para si própria. O vestido violeta estava em cima da cama, mas não haveria tempo para o demorado banho que ela sempre tomava antes das festas. Não, era preciso correr, correr, correr… Seria sorte de Dolly tivesse tempo para ajudá-la com o espartilho.

Sr. Wiggles rosnou e Cecília olhou para o lado dele. O que viu a deixou horrorizada. Como ela havia deixado claro que não estava para brincadeira, o cachorro resolvera brincar com as peças de roupa. E naquele instante tinha entre os dentes o vestido branco de Dolly!

Cecília conteve a respiração e ficou imóvel onde estava, com os olhos fixos no desmiolado bicho. Quando Sr. Wiggles sacudiu a cabeça, certamente a convidando para participar da peraltice, mas na prática ameaçando rasgar o vestido em dois, ela viu que precisava entrar em ação. Vagarosamente foi se aproximando do cachorro, murmurando palavras tranqüilizadoras. Sr. Wiggles rosnou e Cecília sorriu, ansiosa.

— Venha cá, Sr. Wiggles. É claro que você não vai querer comer esse vestido velho, não é?

O cachorro mostrou os caninos, confirmando que havia produzido dois pequenos buracos no fino tecido do vestido. Cecília quase se desesperou. Procurando em volta algo que pudesse distrair o cachorro, ela rapidamente se abaixou e apanhou um bastão de madeira. Girando o braço por alguns segundos, atirou o bastão para bem longe do varal.

Sempre com o vestido de Dolly nos dentes, Sr. Wiggles ficou hesitante. Olhou primeiro para o ponto onde o bastão havia caído, depois para Cecília, que estava pronta para se apoderar do vestido no instante em que ele o soltasse. Era hora de tomar uma decisão e o rabo do animal agitava-se furiosamente. Finalmente ele se decidiu. Com um forte puxão, arrancou o vestido da corda e partiu em busca do bastão. Na carreira, vestido branco de Dolly tremulava por cima de Sr. Wiggles como uma bandeira ao vento.

Cecília quase gritou de desespero, certa de que os dois pequenos buracos feitos pelos dentes do cachorro agora estavam bem maiores. Então ela correu atrás e agarrou o vestido com as duas mãos. Reagindo ao ataque, Sr. Wiggles resistiu bravamente e puxou-a para campo aberto.

— Largue isso, seu vira-lata!

O cachorro rosnou ferozmente e Cecília ouviu o barulho indicativo de que mais alguns centímetros do vestido de Dolly se perdiam.

— Cecília! Cecília! O que ele tem na boca?

A voz que ela mais temia ouvir partia de uma das janelas do segundo andar da casa.

Cecília trincou os dentes e procurou falar com a naturalidade possível.

— Não se preocupe, Dolly! Está tudo bem!

Outra voz se fez ouvir, vinda de outra janela… mas para caçoar dela.

— Não se esqueça de nos escrever quando chegar ao lugar para onde está indo, Cecília!

Pendergast! Era insuportável saber que aquele homem estava testemunhando a situação humilhante por que ela passava.

No instante seguinte Dolly percebeu o que estava acontecendo.

— Oh, meu Deus!

Não é seu Deus, mas o seu vestido, pensou Cecília, reparando que a amiga dela desaparecia da janela.

— Agüente firme — gritou Pendergast. — Os reforços estão a caminho.

Cecília irritou-se ainda mais. Aquele homem não estava doente? Desde o retorno Pendergast ficara trancado no quarto, só recentemente começando a descer para as refeições. Até se recusara a receber o repórter de Abilene que queria entrevistá-lo. Todos na cidade se espantaram com a modéstia do herói, enquanto Beasley, muito previsivelmente, aproveitou a oportunidade para falar ao jornalista sobre seus mirabolantes projetos. Cecília sentira-se como a única pessoa racional do mundo. Sabia que Pendergast na verdade estava se escondendo. Mas é claro que ele tinha que sair do esconderijo só para vê-la numa situação embaraçosa.

Ah, aquilo era terrível! Num instante Dolly apareceria correndo para ver o deplorável estado em que se encontrava o lindo vestido dela. Cecília desesperou-se. Como poderia concertar aquela situação?

Mas não era culpa exclusivamente dela o cachorro de Bea Beasley estar comendo o vestido, mas Dolly certamente exigiria uma reparação… de alguma forma. E não demorou muito para que o preço a ser pago pelo desafortunado acidente de trabalho de Cecília fosse estipulado.

— Você está linda, Dolly — disse Cecília, meia hora mais tarde, procurando não demonstrar abatimento.

Rodopiando diante do espelho pendurado na parede do quarto, Dolly se examinava de todos os ângulos. O vestido violeta de Cecília, a única roupa decente que ela levara para a cidade, servia perfeitamente na mulher, enchendo de sensualidade o corpo esbelto e bem-feito.

Em outras circunstâncias Cecília não se importaria em emprestar ò vestido à amiga, mas… O que, Deu£ do céu, ela iria usar?

— Você foi uma gracinha em me oferecer o vestido — disse Dolly.

— Era o mínimo que eu podia fazer — respondeu Cecília, distraída, procurando se lembrar das roupas que ainda tinha no armário.

Só dispunha de vestidos para o dia-a-dia, na maioria já desbotados. Tinha um amarelo para o verão, mas muito velho e que talvez já nem servisse mais.

Cecília conteve um suspiro de frustração. Realizava-se apenas um evento social por ano em Annsboro, e ela não poderia se apresentar vestida decentemente.

Esfuziante, Dolly girou novamente diante do espelho.

— Acho que Buck gostará de me ver assim.

— Pode acreditar — respondeu Cecília, esforçando-se para não mostrar despeito. Naquela noite era ela quem devia brilhar, já que havia organizado a encenação, mas seria uma estrela apagada. — Bem, acho que também vou me vestir.

Antes que ela saísse do quarto Dolly a segurou pelo braço e falou numa voz cantada e conspiradora.

— Hoje conversei com certa pessoa que está muito interessada em dançar com você.

— Não o Sr. Walters! — rezou Cecília. Só faltava essa… — Aquele homem não consegue dar dois passos numa dança sem pisar no pé da parceira.

— É o Sr. Pendergast — esclareceu Dolly. Cecília ficou pasmada.

— Mas eu pensava que ele tinha que continuar em repouso!

— Hoje pela manhã eu estava lá quando o Dr. Parker o declarou pronto para voltar ao trabalho. No mesmo instante o Sr. Pendergast perguntou se também podia dançar valsa. — Dolly riu. — Isso não é maravilhoso? E eu acho que ele gosta de você!

Cecília dirigiu à amiga um olhar de repreensão… ao mesmo tempo que sufocava a vontade de dizer que não emprestaria mais o vestido. Vinha evitando aquele homem de todas as formas, embora não conseguisse parar de pensar nele. Havia esperado não vê-lo na representação teatral nem no baile que se realizaria em seguida.

Uma vez no quarto ela tirou o vestido amarelo do armário e o pôs em cima da cama para uma inspeção, no lugar de honra onde estivera o violeta. Mordendo o lábio, procurou pensar objetivamente na situação. Na realidade não havia nada de terrivelmente errado com aquele vestido. Ele apenas não tinha… brilho.

Cecília achou aquele pensamento simplesmente ridículo. Que necessidade ela teria de brilhar, principalmente numa festinha de escola? No mesmo instante ela pensou em Pendergast e ficou enfurecida. Quem estava interessada em chamar a atenção de um homem que provavelmente era um bandoleiro? Ela? Há! Não faria a menor diferença se ele passasse a festa inteira sem olhar para ela. Também não a incomodaria nem um pouco se ele não a convidasse para dançar.

Mesmo assim era preciso admitir, pelo menos para si própria, que todas as suspeitas dela e o cuidado com que o evitava estavam resultando em nada.

Enquanto se despia de um vestido para pôr o outro, Cecília lembrou-se de que sabia muito pouco sobre Pendergast, não mais, na verdade, do que sabia sobre ele no dia em que Lysander Beasley levara à escola o novo mestre-escola. A única diferença era que agora ela ficava com o coração descompassado sempre que ele a fitava com aqueles olhos negros e duros. E também se via sonhando acordado toda vez que se lembrava de quando estivera nos braços dele.

Cecília sentiu um arrepio. A terrível verdade era que ela queria ser outra vez envolvida pelos braços daquele homem, fosse ele quem fosse.

Cobertores e coloridas toalhas de mesa espalhavam-se pelo terreno em volta da escola. Mulheres em seus melhores vestidos de domingo serviram à família o lanche do piquenique antes que todos se acomodassem para assistir ao teatrinho.

O espetáculo que Cecília havia ajudado as crianças a preparar felizmente era curto. Quatro lanternas a querosene iluminavam a varanda da escola, ao fundo da qual estava pendurado um lençol onde se via pintada a Casa Branca em chamas. Beatrice Beasley, usando um vestido da época e com os cabelos esbranquiçados por farinha de trigo, narrou para a audiência os acontecimentos da Guerra de 1812 até o momento em que os casacas-vermelhas haviam incendiado Washington. Os meninos maiores, usando chapéus de jornal pintados de vermelho para desempenhar seus papéis de malvados ingleses, quase atrapalhavam Bea enquanto circulavam por trás dela.

Pouco depois eles saíram e Bea voltou a ser o único foco das atenções. Para espanto da audiência, quando os casacas-vermelhas retornaram, minutos mais tarde, empunhavam tochas que queimavam de verdade!

Um pouco nervosa, Cecília ficou observando enquanto os garotos corriam em volta de Bea. A menina havia detestado ensaiar aquela parte, insistindo que as tochas acesas impediriam que a audiência prestasse atenção na narrativa. No entanto, pela admiração que se via no rosto dos presentes, a própria Bea teria que admitir que a inclusão pirotécnica tinha sido uma boa idéia.

Até que um grito partiu do meio da assistência.

— Fogo! A Casa Branca está pegando fogo!

Cecília revirou os olhos. Claro que estava pegando fogo, e era justamente essa a idéia!

No entanto, quando várias pessoas se levantaram, alarmadas, ela olhou para o cenário e viu o lençol de fato pegando fogo.

— Água! — gritou Cecília, agitando as mãos para alguns rapazes postados ao lado do poço. — Tragam água para cá!

A manivela do poço começou a ser girada rapidamente enquanto várias mulheres reuniam as crianças que estavam no palco e as levavam para longe do fogo. Há dois meses que não chovia e em pouco tempo o prédio da escola estaria destruído se aquele foco não fosse rapidamente dominado.

Olhando horrorizada para as chamas pintadas que eram destruídas pelo fogo de verdade, Cecília apanhou no chão o cobertor de Dolly e correu para a varanda. As vasilhas de comida que a amiga dela havia levado rolaram pelo chão, o que provocou um grito de protesto de Dolly, mas não havia tempo para se preocupar com aquilo. Abrindo o cobertor o máximo possível, Cecília subiu os degraus da varanda e atacou as chamas com vigorosas batidas. A fumaça a envolveu, rapidamente invadindo os pulmões dela. Cecília começou a tossir e no instante seguinte sentiu-se agarrada por mãos fortes. Com os olhos cheios de lágrimas por causa da fumaça, viu que era Pendergast quem a arrastava para fora da varanda.

— Está querendo se matar, sua maluca? — ele gritou. Dito isso o homem arrancou o cobertor das mãos dela e correu de volta à varanda.

— E você? — também gritou Cecília, retirando o xale dos ombros e correndo para o lado dele. — Também está querendo se matar.

Valendo-se do xale ela atacou as chamas da mesma forma, como ele fazia com o cobertor. O resultado da ação dela foi quase nulo, porque não demorou muito para que os fios de lã deixassem de existir, mas Cecília não podia simplesmente ficar olhando sem fazer nada. Aquela escola significava muito para ela, talvez mais até do que para as crianças que diariamente assistiam as aulas ali, e certamente muito mais do que para Pendergast.

Olhando para o lado ele fez um ar de repreensão.

— Volte para lá, Cecília!

— Não! — ela gritou.

Um homem chegou correndo e jogou um balde de água no lençol que queimava… e nela. Cecília ficou parada por alguns instantes, em choque, olhando a água que escorria pelos braços nus. Depois se afastou, instantes antes que uma nova cascata de água atingisse a parede.

Dominado o princípio de incêndio, Pendergast desceu os degraus e sorriu para ela, os dentes brancos brilhando na noite.

— Eu lhe disse para sair de lá.

Antes que Cecília pudesse dar a resposta que ele merecia ouvir, Dolly empurrou-a para o lado e aproximou-se do risonho cretino.

— Quanta bravura, Sr. Pendergast! Graças à sua rápida intervenção, nossa escola está salva!

— Vocês viram? — secundou-a Lysander Beasley, que havia se aproximado para dar palmadinhas nas costas do homem. — Senhoras e senhores, Eugene Pendergast acaba de realizar mais um dos seus feitos!

Palmas, gritos e assobios partiram dos presentes, todos de pé e excitados em função do ocorrido.

Pendergast havia salvado a escola? Cecília olhou para os rapazes que haviam jogado baldes de água para apagar o fogo e constatou que até eles aplaudiam o impostor.

— Agora está tudo bem, pessoal — disse Pendergast, usurpando sem a menor cerimônia a função de Cecília.

— Agora que o fogo está dominado, Beatrice lhes contará como nossos compatriotas combateram um outro incêndio setenta anos atrás.

Agora com os cabelos esbranquiçados meio em desalinho, Bea postou-se à frente da multidão para reassumir seu papel. Enquanto a voz agora trêmula da menina prosseguia com a narrativa, os meninos menores da escola, representando as sitiadas forças americanas, encenavam um combate ao fogo com baldes vazios.

— Tomem cuidado para não molhar Cecília outra vez! — gracejou Jim Brennan, um dos empregados da Fazenda Summertree. Olhando para onde estava Cecília, praticamente ao lado dele, o rapaz fingiu uma cara de surpresa.

— Ah, não se preocupem, meninos. Ela está bem aqui!

Cecília fez uma careta e balançou o rosto para Jim. — Muito engraçadinho!

Já bastava Pendergast ter-se levantado da cama para usurpar uma glória que seria dela.

Enquanto Bea ia terminando a narrativa, meninas usando toucas do início do século XIX entraram em cena para retirar o painel de madeira onde estava a ilustração do histórico incêndio. Por trás apareceu um outro painel, surpreendentemente intacto, mostrando a atual Casa Branca. Logo depois todos os alunos se reuniram para finalizar a apresentação entoando em coro uma canção patriótica.

Finalmente, ainda ao som dos aplausos, várias mães e pais se aproximaram para abraçar seus rebentos transformados em atores, embora as crianças preferissem imediatamente se entregar a uma brincadeira de pega-pega. Enquanto atravessava a multidão Cecília constatou que quase todas as conversar versavam sobre o incêndio. Apesar da calamidade, ou mais provavelmente por causa dela, várias pessoas afirmava que, levando em conta a intervenção de Pendergast, aquela tinha sido a melhor de todas as encenações da colheita.

De volta à pensão Cecília abriu o armário e olhou com desânimo para os vestidos que restavam ali. Ainda bem que estava escuro lá fora. Talvez ninguém notasse que o vestido com que ela voltaria à festa estava com as mangas esgarçadas, o mesmo acontecendo com partes da saia.

Cecília tirou o vestido amarelo e entrou na tina, que enchera de água logo ao chegar. Pelo menos por dez minutos ela precisou esfregar os braços e o pescoço para retirar aquele cheiro de fumaça. Depois de enxugar o corpo e enfiar-se no vestido limpo, pôs no pescoço um colar de pequenas pérolas. Ainda sentindo cheiro de fumaça, passou um pouco de perfume nos pulsos e por trás das orelhas.

Quando se aproximou do local onde as pessoas reuniam as cestas do piquenique, Cecília ouviu o som da rabeca de Charlie Moore e da harmônica de Toby Clark vindo do lado da escola. Então ela marchou para onde estavam Dolly e Buck, esperando poder mastigar um pedaço de galinha assada. Ao ouvir o pedido de comida, Dolly fez um ar de tristeza.

— Galinha? Cecília, toda a galinha que trouxemos rolou na poeira quando você agarrou o cobertor para tentar apagar o incêndio. Buck, fazendo-se de engraçadinho, perguntou se eu havia usado barro no lugar de farinha de trigo para fritar os pedaços da galinha.

Buck riu mas logo ficou sério.

— Você não usou a cabeça quando correu para o fogo daquele jeito, Cecília.

— Minha cabeça não estava pensando no seu estômago — ela rebateu, com mais rispidez do que pretendia. — Bem, talvez eu consiga algo para comer com os rapazes da fazenda.

Dolly riu alto.

— Aquelas aves de rapina? Na certa eles devoraram toda a comida que Clara mandou, porque olhavam com olhos compridos para as cestas de lanche das outras pessoas. Aposto que apanharam no chão os pedaços de galinha que você espalhou.

O estômago de Cecília roncou em protesto. Mais aquela!

— Vem, vou tomar um pouco de água. Isto é, se não apareceu alguém para tirar toda a água do poço.

Cecília andou para o lado do poço. No caminho, como estava escuro, tinha que apertar os olhos para identificar as pessoas que a saudavam… e as que brincavam com ela por causa do banho que havia tomado durante o incêndio. Ninguém se lembrava de cumprimentá-la pela melhor espetáculo teatral que se fazia na escola em muitos anos.

Por sorte não havia ninguém no poço e Cecília bebeu água tranqüilamente enquanto observava a multidão. As lanternas a querosene que haviam iluminado a varanda durante a encenação agora prestavam serviço na clareira que servia de pista de dança. Alguns pares já estavam por lá, rodopiando ao som de uma valsa rápida. Quase sem querer, Cecília acompanhava com o pé o ritmo da música, enquanto os olhos dela buscavam Pendergast no meio da multidão, mas o homem aparentemente havia desaparecido.

— Aí está você!

A voz grave quase a fez se engasgar com a água que ainda estava bebendo. Cecília voltou-se e, tossindo, viu-se diante do olhar desaprovador de Silas Summertree.

— Pa… papai? — ela disse, tentando recuperar o fôlego. Cecília se concentrara tanto em descobrir onde estava

Pendergast que até se esquecera do pai, que certamente estaria na festa.

Silas Summertree não era um homem alto, superando a filha apenas em alguns centímetros. E os cabelos louros que povoavam fartamente a cabeça dela quase já não existiam mais na dele. A maior semelhança entre os dois eram os olhos profundamente azuis, que freqüentemente se enfrentavam com irritação ou pura teimosia.

— Bem, é bom ver que você ainda reconhece o seu pai — ele resmungou. — Como só a vejo muito raramente, achei que podia não se lembrar mais.

— Ora, pelo amor de Deus, papai — rebateu Cecília, abraçando rapidamente o pai. — Eu não tenho tido muito tempo ultimamente.

— Sei… — disse Silas, tirando um charuto do bolso do paletó. — Não tem tido ou não quis ter? — ele perguntou, riscando um fósforo.

Aquele cheiro adocicado de tabaco fez com que Cecília se lembrasse de casa. Então ela sorriu, sentindo-se nostálgica.

— Não tenho tido. Dolly precisou de mim. Buck não lhe contou?

— Buck! — repetiu o pai dela, quase gritando. — Há semanas que ele não fala em nada que não seja a Sra. Hudspeth. Eu ofereci a fazenda para que eles realizem o casamento lá, no próximo domingo.

— No domingo! — espantou-se Cecília. — Mas é quase uma vergonha eles se casarem tão depressa assim!

— Não há vergonha nenhuma em se casar — rebateu Silas, com rispidez. — Bem que você devia pensar nisso.

Cecília olhou para o céu. — Para me casar com quem? Com o Sr. Walters?

Silas adiantou-se um passo e apontou o dedo para o rosto dela. — Esse problema é seu. Você é exigente demais!

— Clara sempre disse que o melhor é ser exigente ao extremo.

— Aquela mulher! — resmungou Silas, fazendo um gesto de frustração. — Eu a deixei em casa, preparando docinhos para o casamento.

— Clara detesta essas coisas — lembrou-o Cecília. — Ela acha que dançar não faz bem ao bom senso das pessoas.

Nesse ponto Silas fez um ar de surpresa. Como se estivesse vendo a filha pela primeira vez na vida, olhou-a da cabeça aos pés.

— Meu Deus! Mas o que você está vestindo, menina?

— Um vestido — ela respondeu.

— Mas é horroroso! — protestou o homem, revoltado ao ver a filha trajando aqueles trapos.

Cecília não respondeu, fingindo não dar importância ao insulto.

— Acho que já é hora de você voltar para casa — voltou a falar Silas.

— Ah, não — ela respondeu, em tom de lamento.

— Desça do pedestal, Cecília. Na semana passada fiz amizade com o dono de uma fazenda perto de San Antônio. É um sujeito até bonitão… Você devia comprar roupas novas, arrumar-se um pouco…

Cecília torceu o nariz.

— Sabe muito bem o que penso de fazendeiros, papaizinho.

— Então por que diabo não arranja um homem de outra profissão para se casar?

— Eu já lhe disse: não existe nenhum.

Silas Summertree abriu muito os olhos azuis, como se acabasse de ter uma idéia.

— O que me diz desse sujeito… o novo professor? Imagino que você o veja por aí com freqüência.

— O que quer saber sobre ele? — perguntou Cecília, desconfiada, concluindo que sem dúvida Buck havia falado o que não devia.

— Ouvi dizer que ele é um sujeito bem apessoado — respondeu o pai dela. — E ainda por cima um herói. — Silas esticou o pescoço curto e correu os olhos pela multidão.

— Mas o que aconteceu com todas aquelas alemãs, afinal?

— Já voltaram para Fredericksburg.

Graças a Deus. Já era duro suportar Pendergast sozinho. Com um bando de aduladoras, então…

— Quando cheguei aqui, esta noite, fiquei sabendo que esse mestre-escola dominou praticamente sozinho um foco de incêndio que ameaçava destruir a escola! — comentou Silas, admirado.

— Isso não é verdade — ela protestou, de pronto. — Eu ajudei.

— Deve ser por isso que está com esse cheiro esquisito! — concluiu o homem, parecendo até aliviado, mas preocupado demais com a nova idéia sobre o mestre-escola para reparar na reação da filha, que ficou obviamente ofendida. — E parece que ele também é um sujeito inteligente… o tipo certo para você.

— Nem de longe — declarou Cecília.

O pai dela ficou na ponta dos pés e outra vez espichou o pescoço para olhar em volta.

— Mas onde está esse homem… Como é mesmo o nome dele? Pender… Pender…

— Pendergast — disse Cecília, com os dentes trincados.

— Isso! Na verdade, quanto mais ouço falar no sujeito mais gosto dele. — Silas parou de falar e olhou para a filha com interesse. — Por acaso é por causa desse Pender não sei o quê que você não quer voltar para casa?

— Não! — respondeu Cecília, enfática. — Você não sabe o que está dizendo, papai. Pendergast não é o tipo de homem com quem uma moça deve pensar em se casar. Quando você ficar sabendo mais sobre ele…

— Sobre quem?

Pai e filha voltaram-se ao mesmo tempo e deram de cara com o motivo da discussão deles: Pendergast em pessoa, com um sorriso de malícia nos lábios.

— Cá estamos nós no poço outra vez — ele brincou.

Cecília abriu a boca para responder à altura, mas antes que ela pudesse falar Pendergast estendeu a mão para o pai dela.

— O senhor deve ser Silas Summertree. Meu nome é Eugene Pendergast.

O pai de Cecília, bem mais baixo do que o professor, sacudiu vigorosamente a mão estendida.

— Ora, ora! — ele disse, impressionado.

— Pelo que pude constatar, um homem não viaja dez quilômetros nesta parte do país sem ouvir falar na Fazenda Summertree — comentou Pendergast.

Silas Summertree saboreou o elogio e retribuiu no mesmo tom.

— E pelo que pude constatar, em muito pouco tempo você angariou a estima de muita gente por aqui. Eu estava justamente dizendo à minha filha que você e ela…

— O que está fazendo aqui, Pendergast? — interrompeu Cecília, antes que o pai dela a embaraçasse por completo.

— Não se lembra mais? — ele perguntou, com os olhos negros brilhando muito.

Uma valsa soava a distância. Por alguns instantes Cecília ficou olhando para ele, hipnotizada por aquele olhar, fascinada pela idéia de estar outra vez nos braços dele. Só Deus sabia o quanto ela queria…

— Não — ela mentiu, achando que devia demonstrar altivez.

— Eu disse à sua filha que voltei para Annsboro só para dançar com ela. Como esta é a oportunidade perfeita…

Silas Summertree riu de pura satisfação.

— Então foi isso mesmo! — ele exclamou, olhando para a filha e fingindo ralhar com ela. — Você estava mesmo cultivando um romancezinho aqui na cidade.

— Eu não estava! — protestou Cecília, horrorizada.

Pendergast piscou o olho para ela. — Todos vão acabar descobrindo, doçura.

Cecília empalideceu. Por que ele estava dizendo aquilo na frente do pai dela? E era mentira, porque não havia nada entre eles dois! Ou havia?

— Você estava de cama — ela argumentou. — Ainda não pode dançar.

Pendergast estendeu a mão, desafiando-a. — Não prefere verificar isso na prática?

Cecília hesitou e o pai dela deu um passo adiante para juntar as mãos deles.

— Ai, meu Deus! Por que gente jovem é tão complicada? Vão dançar, vocês dois!

— Mas…

Tarde demais. Arrastada para a pista de dança por Pendergast e empurrada na mesma direção pelo pai, Cecília logo se viu nos braços do homem que tanto a amedrontava quanto enraivecia, revoltava e… fascinava.

    

— Adular meu pai não lhe servirá de nada — disse Cecília, procurando acompanhar o ritmo da música.

A mão firme de Pendergast na parte de trás da cintura dela a puxava para perto dele. Perto demais. O tempo todo Cecília havia tentado evitá-lo, mas agora estava nos braços dele, sob o olhar de aprovação do pai dela e aparentemente da cidade inteira.

Pendergast sorriu. — Mas talvez sirva para convencê-la de que não sou um completo vilão.

Cecília soltou um riso de escárnio. — Por Deus, não. Para todos aqui você é praticamente uma lenda viva.

— Todos menos você, não é?

— É, menos eu — ela concordou.

— O que eu sou para você?

— Uma dor de cabeça.

— Se me conhecer um pouco melhor, talvez mude de opinião.

— Ter enganado uma cidade inteira já não é suficiente para você? — ela perguntou, impaciente. — Acha que pode também me fazer de tola?

— Para mim a pessoa mais importante é você.

Cecília dirigiu a ele um olhar de desprezo. — Sou importante porque posso prejudicar seus planos, não é isso?

— Não. Você pode prejudicar minha cabeça, porque está me deixando louco.

A forma como Pendergast a olhava a fez suspeitar de que talvez ele estivesse sendo sincero. Outra vez o coração de Cecília disparou. Será que ele gostava realmente dela, mesmo depois de tudo o que ela fizera para sabota-lo?

— E, pelo que ouvi dizer, você teve muita dificuldade para me esquecer enquanto eu estive fora.

Aquela Dolly! — É claro que tive… Não se falava em outra coisa!

Pendergast riu baixinho e inclinou-se para falar ao ouvido dela. — Dolly me garantiu que você ficou abatida.

Cecília notou que ele aumentava o aperto da mão, como se quisesse que eles continuassem a dança à distância de agora.

— Abatida? — ela repetiu, reparando pela primeira vez que era exatamente assim que havia se sentido. Mas jamais deixaria que ele soubesse disso. — Caso não tenha reparado, ultimamente não o tenho procurado muito.

— Está me evitando.

— Exatamente.

— Porque está com medo de gostar de mim.

— Isso é ridículo! — protestou Cecília, procurando se afastar para que os seios dela não ficassem colados ao peito dele daquele jeito.

Pendergast a reteve sem dificuldade e um sorriso apareceu nos lábios dele.

— Então por que é que você cora terrivelmente toda vez que nos olhamos durante o jantar na pensão de Dolly?

— Quem disse que eu coro?

— Está corando agorinha mesmo.

Cecília pediu a ajuda dos céus. Pelo jeito aquele homem seria capaz de fazer com ela o que bem quisesse. Não havia dúvida de que Pendergast não era quem dizia ser, mas o mistério envolvendo a identidade dele só o tornava ainda mais fascinante. Ela precisava se livrar dele, mas nada do que fazia dava certo. Tentar não pensar nele também parecia ser inútil. A única coisa que dava certo era tomar cuidado para não ficar sozinha com ele… mas agora lá estava ela, dançando com o inimigo, diante dos olhos da cidade inteira. E adorando aquilo…

Pelo menos em parte, porque era muito difícil deixar de desconfiar.

— Já estou acostumada com isso. Uma vez você me acusou de estar apaixonada por você.

— E agora você pode ver que eu tinha razão. Cecília soltou um suspiro de exasperação.

— Para um homem que há uma semana estava às portas da morte, você me parece muito serelepe.

— Obrigado — disse Pendergast, fazendo uma espalhafatosa reverência com a cabeça. — Devo a você a minha recuperação.

— A mim?

— Foi pensando nesta dança que eu reuni forças para sair da cama.

— Sorte sua o mascarado não ter acertado o tiro no seu pé.

— Eu arranjaria um jeito.

— Está tão determinado assim a me conquistar? Pendergast chegou mais perto.

— E você está tão determinada assim a resistir?

— Eu… eu…

Teria ela essa determinação? Agora eles estavam muito perto, olhando-se nos olhos, e bastaria que Pendergast movesse a cabeça para encostar os lábios nos dela. Cecília resolveu esperar para ver o que iria fazer.

O tempo pareceu parar de transcorrer. Cecília não saberia dizer se continuava a dançar ou não. Nem ouvia o som dos instrumentos que entoavam a valsa. Sabia que praticamente todos os cidadãos de Annsboro presenciavam a cena, mas não se preocupava nem um pouco com o que eles pensariam se Pendergast apenas inclinasse a cabeça e…

— Tenho um anúncio a fazer!

A voz grave e metálica do pai dela interrompeu o momento de sensualidade que Cecília vivia. Então ela virou o rosto e examinou a cena. Silas Summertree postava-se a não mais de quatro metros de onde ela estava, ainda nos braços de Pendergast. Um pouco atrás de Silas estava Dolly, risonha e linda no vestido violeta. Ao lado dela via-se Buck, encabulado, movendo o corpo de um lado para outro.

— Vocês certamente já ouviram falar que Dolly e Buck estão para se casar — começou Summertree.

— Ah, já ouvimos — comentou alguém. — Guardar segredo não é o forte de Dolly.

O riso se espalhou pelos presentes, principalmente quando as faces de Dolly ficaram muito vermelhas.

— A cerimônia terá lugar na Fazenda Summertree, depois de amanhã, às duas da tarde. Isso me deixa muito honrado e eu espero a presença de cada um de vocês lá em casa, no domingo.

— Principalmente a presença de Buck! — exclamou um dos empregados da fazenda, provocando risos e aplausos dos presentes.

— Agora vamos dançar em homenagem a Buck e Dolly — sugeriu Silas.

Charlie e Toby se entreolharam e, chegando a um entendimento, começaram a tocar uma frenética polca.

Cecília levou um susto com aquela mudança de ritmo. Imaginava que continuaria a dançar uma romântica valsa, talvez ouvindo o trinado de passarinhos. Então percebeu que Pendergast continuava a abraçá-la como se eles ainda estivessem envolvidos numa dança vagarosa. Reunindo coragem para olhar naqueles olhos negros, sentiu-se outra vez dominada pelo desejo que viu no homem que a abraçava.

— Parece que estamos em desacordo com o resto do mundo — ela disse, procurando se afastar mas deixando que ele continuasse a segurá-la pela mão.

— Não quer caminhar um pouco? — ele sugeriu. Era um convite tentador. Cecília imaginou-se de braço dado com ele, caminhando pelo campo, só eles dois, a lua e as estrelas. A certa altura talvez ele parasse e a tomasse nos braços. Estariam ainda mais perto do que estavam agora e ele finalmente voltaria a beijá-la.

— Se estivéssemos sozinhos dificilmente eu teria parado no beijo.

Reunindo a força de dez Cecília ela saiu do abraço dele. — Não.

Agora ela sentia as faces quentes e as pernas fracas. Precisava se acalmar, pensar, passar algum tempo sozinha. Totalmente sozinha!

Infelizmente aquela não era uma noite apropriada para a solidão. Cecília olhou para a multidão e o estômago dela roncou de novo, lembrando-a de que havia passado boa parte do piquenique trocando de roupa.

— Estou com fome — ela disse a Pendergast. Ao ouvir aquilo ele franziu a testa.

— Com fome?

Aparentemente naquele momento não havia espaço na mente dele para o assunto trivial como comida.

— Hum — confirmou Cecília. Subitamente ela pensou numa forma de obter certo tempo para se acalmar. — Se você me conseguir alguma comida, talvez possamos encontrar um lugar discreto para conversar…

Um sorriso apareceu no rosto de Pendergast.

— Seu pedido é uma ordem. Um jantar saindo!

Dito isso ele girou o corpo e saiu em busca de comida.

Cecília caminhou na direção contrária, mas não conseguiu ir muito longe.

— Hei, Cecília! Há quanto tempo!

Jim Brennan, um sujeito alto que trabalhava para Silas Summertree desde quando ela nem se lembrava, a identificara no meio da multidão. Aproximando-se ele segurou nos braços dela e a fez dar um rodopio completo.

— Você se transformou mesmo numa garota da cidade, Ciei.

Cecília riu junto com despachado vaqueiro, que, pelo que ela podia ver, àquela altura já havia bebido um pouco além da conta.

— Na certa não sobrou nada da comida que Clara mandou para vocês, não é?

— Venha comigo. Acho que sobrou uma boa quantidade, sim. Clara deve ter adivinhado que você estaria aqui.

Pouco depois eles se juntaram ao grupo de empregados da fazenda. Cecília percebeu que sentia falta da camaradagem existente entre os homens que trabalhavam para o pai dela. Os rapazes a saudaram efusivamente, batendo nas costas dela e fazendo brincadeiras.

— Fique sabendo, Cecília, que eu ainda me lembro de quando você usava saia curta e calções amarrados nos tornozelos — disse Abel Scott, superando outras vozes.

Cecília corou. — Na certa você já bebeu mais do que devia, não é, Abe?

O simpático vaqueiro ergueu uma garrafa de uísque barato sem rótulo.

— Quer um pouco.

— Parece que você se esqueceu de uma coisa: eu tenho que agir como uma dama.

Cecília pôs as duas mãos na cintura, estofou o peito e ergueu a cabeça, fazendo um ar esnobe, o que arrancaram gargalhadas dos rapazes. Ah, era tão bom estar no meio de gente amiga, fazendo palhaçadas sem nenhuma preocupação, assim como era bom parar um pouco de pensar em Pendergast, embora constantemente os olhos dela vasculhassem a multidão à procura dele.

— O que aconteceu, Ciei, para que Buck trocasse você por Dolly?

Cecília encostou-se no tronco de uma árvore e riu com vontade. Aquele era um assunto sobre o qual ela falaria de bom grado, e com honestidade.

— Ah, ele me trocou por ela, sim; Não estão vendo como eu estou arrasada?

Mais gargalhadas se ouviram, mas Jim achou que devia esclarecer melhor aquele assunto.

— Pela forma como a vi dançando ainda há pouco, tenho a impressão de que você acha até bom ter sido abandonada por aquele boboca.

Outra vez Cecília sentiu-se enrubescer e afastou-se da árvore.

— Parece que uma moça não pode ir a uma festa para se divertir, mesmo que seja apenas uma vez por ano, sem que as pessoas comecem a espalhar boatos.

O velho Pitt Wilson cuspiu o tabaco que estava mascando e abriu um sorriso.

— Na última vez em que dancei com uma garota daquele jeito, no dia seguinte fui obrigado a me casar com ela. É sorte sua Clara não estar aqui, Ciei. A esta altura ela já estaria procurando descobrir alguma coisa que pudesse falar contra esse sujeito por quem você está apaixonada.

— Eu não estou apaixonada por ele! — ela declarou, o que provocou o riso dos homens, fazendo-a corar ainda mais. — Não estou, não!

— Talvez ela esteja falando a verdade, pessoal — apoiou-a Hank. — Mas não foi uma nem duas vezes que eu vi o professor com olhos compridos para o lado de Ciei. Tenho a impressão de que o apaixonado é ele!

— Aquele homem apaixonado? — caçoou Cecília. — Ele disse que ia me arranjar comida, mas até agora não apareceu.

— Talvez ele ainda esteja meio tonto depois de ter dançado com você — conjeturou Pitt. — Acho que você nem notou, Ciei, já que estava ocupada demais em não se mostrar uma garota apaixonada, mas a rebeca estava tocando uma polca, não uma valsa.

Outra vez o riso se espalhou pelo grupo e Cecília cruzou os braços.

— Vocês não têm nada para fazer além de ficar dizendo gracinhas sobre as pessoas que estavam dançando?

— É claro que não — respondeu Scott. — Foi justamente para isso que viemos aqui.

Os outros apoiaram de pronto. Cecília achou melhor não prosseguiu naquele assunto e girou o corpo para procurar por Pendergast. Naquele exato momento ele vinha se aproximando… logo atrás de Silas.

E o pai dela parecia enfurecido.

— Cecília Summertree quero ouvir uma explicação sua.

Segurando um pedaço de bolo de chocolate numa das mãos, Pendergast deu de ombros inocentemente, como se não fizesse a menor idéia do que se passava na cabeça do fazendeiro. Mas Cecília não acreditava naquilo. Evidentemente ele tinha alguma coisa a ver com o mau humor do pai dela.

— O que é? — ela perguntou, numa voz macia, pendurando-se no braço do pai.

Silas a rechaçou e plantou na cintura os punhos cerrados.

— Não se faça de inocente comigo, menina. Sei muito bem qual é a sua intenção!

Subitamente Cecília se sentiu muito sozinha. O pai dela estava de costas para Pendergast, praticamente o alijando da discussão, e os homens que antes a cercavam, todos eles conhecedores do temperamento de Silas Summertree, havia recuado até uma distância segura.

Cecília olhou de frente para o pai.  

— O que foi que eu fiz desta vez?

— Desta vez você se cobriu de vergonha, e a mim também!

Ser tratada, daquele jeito pelo pai na frente de Pendergast chegava a ser humilhante.

— Papai, procure falar mais baixo, por favor.

Abaixando um pouco o tom de voz, o fazendeiro apontou o dedo para o rosto dela.

— Depois do que aconteceu em Nova Orleans, eu já devia saber que você não podia ficar sozinha. E suas tias de Memphis já haviam me avisado de que você procura os problemas antes mesmo de que eles a procurem.

Automaticamente Cecília olhou para Pendergast. Com a cabeça abaixada, ele olhava atentamente para o pedaço de bolo que segurava, mas era mais do que evidente que estava se divertindo muito com aquilo. Ah, como ela queria socar aquele cretino.

— Mas eu nunca… nunca imaginei que você chegaria a esse ponto! — prosseguiu Silas, furioso.

— Ah, pelo amor de Deus, papai! — exclamou Cecília, ansiosa para acabar com aquela batalha. — O que foi que eu fiz?

Silas Summertree ergueu a cabeça, num gesto de revoltada altivez.

— Você envergonhou outra vez o nome da sua família!

Cecília revirou os olhos, exasperada. — Outra vez? Como assim?

— Acabo de saber que você vinha trabalhando na pensão de Dolly.

Então era só isso? Depois de todo aquele barulho, Cecília esperava ouvir uma acusação de altíssima gravidade.

Outra vez ela olhou para Pendergast, que agora mexia na terra com a ponta da bota… um claro sinal de culpabilidade.

— E se for verdade?

Silas apertou os lábios. — Ah, eu vou lhe dizer. Filha minha não vai ficar por aí trabalhando como uma mula…

— Mas você sempre disse que trabalhar era boa coisa — protestou Cecília.

— Trabalho próprio para uma dama! — ele ressalvou, gritando. — Eu não a mandei para uma bem conceituada escola de Nova Orleans para que você acabasse trabalhando como lavadeira!

— Eu achei que você ficaria orgulhoso quando soubesse que eu estava trabalhando para me sustentar.

— Há muitas coisas a fazer na fazenda, como você já teve oportunidade de ver — rebateu Silas.

Cecília empalideceu. Depois olhou para Pendergast e ficou vermelha de raiva. Em vez de ir procurar comida para ela, como havia prometido, ele certamente saíra à procura do pai dela para soltar o veneno. E ela ficara esperando como uma namoradinha apaixonada, exatamente como os rapazes da fazenda tinham dito!

A humilhação quase a fez querer desistir da luta. Quase.

— Não posso voltar para a fazenda — ela declarou, mais para Pendergast do que para o pai.

Mesmo assim foi Silas quem respondeu.

— Ah, pode, sim. Amanhã mandarei Buck até aqui para apanhá-la e você voltará para a fazenda para sempre.

Aquilo era como uma sentença de morte. E Pendergast continuava mudo por trás do pai dela, como se quisesse ser ele o carrasco.

Mesmo a ponto de explodir de raiva, Cecília viu que não adiantaria nada resistir.

— Está certo, papai, já que não tenho outra escolha.

Ela não podia culpar o pai. Afinal de contas, desde o começo sabia como Silas Summertree ficaria quando soubesse o que a filha dele vinha fazendo para poder continuar na cidade. Era em Pendergast que ela devia descarregar toda a raiva.

Cecília deu dois passos e olhou bem na cara do cretino.

— Não pense que eu vou esquecer. E também nunca perdoarei. Nunca.

Pendergast abriu muito os olhos, confuso. — Você não pode estar pensando que eu… — Então ele encolheu os ombros e tentou sorrir. — Só vim lhe trazer um pedaço de bolo.

Dito isso ele estendeu a mão com o bolo de chocolate, como se aquilo fosse resolver todos os problemas dela.

Mas a última coisa que Cecília queria era uma paz oferecida por aquele homem, uma víbora que só a usava e iludia. Mesmo com o estômago roncando de fome, quando pegou o pedaço de bolo da mão dele ela considerava a necessidade de vingança bem mais importante.

— Talvez isso a faça se sentir melhor — ele disse, numa débil tentativa de acalmá-la.

Os olhos de Cecília brilharam.

— Eu sei exatamente o que fará com que eu me sinta melhor.

Pendergast ergueu as sobrancelhas numa pergunta muda, mas a curiosidade se transformou em pânico quando ele viu o pedaço de bolo viajando pelo ar bem na direção do nariz dele. Com a força de quem sabia que não tinha mais nada a perder, Cecília fizera o arremesso com pontaria certeira e abriu um largo sorriso quando o projétil atingiu o alvo. Pendergast recuou, tentando limpar o glacê do rosto com as costas dos dedos.

— Nunca mais faça jogo duplo comigo, Pendergast — ela o advertiu. — E não me procure mais, está entendendo? Eu nunca mais quero vê-lo. Nunca mais!

Jake percebeu que precisaria passar imediatamente no poço para lavar o rosto. Por sorte o lugar estava deserto e ele não precisaria explicar a ninguém como havia se lambuzado daquele jeito.

Enquanto deixava para trás as luzes da festa, sentiu que as pernas começavam a se movimentar mais depressa, depois a correr. Não podia deixar que Cecília saísse da cidade pensando mal dele.

Aquela confusão havia acontecido justamente quando tudo estava indo tão bem entre eles dois!

A casa estava às escuras quando ele atravessou a varanda. Chegando ao vestíbulo Jake viu um brilho de luz vindo do quarto de Cecília, ao lado da cozinha. Sem fazer barulho ele foi se aproximando daquela luz, a atenção concentrada nos barulhos que ouvia: batidas, imprecações, soluços.

Jake aproximou-se da porta aberta. No interior do pequeno quarto, iluminado apenas por uma bruxuleante vela, Cecília ia arrumando as coisas dela numa mala aberta em cima da cama. Estava com os olhos vermelhos e as faces molhadas de lágrimas. Não era do tipo de mulher que sofria em silêncio. Quando chegou bem perto da porta ele ouviu mais um protesto dela.

— Inferno! — Cecília não precisou levantar a cabeça para saber que Pendergast estava ali. Então ela se sentou ao lado da mala. Jamais havia se sentido tão derrotada. — Por que teve que me seguir?

— Por que você fugiu?

— Você sabe muito bem.

Cuidadosamente Jake se aproximou da cama. — Se acha que fiz alguma coisa para enraivecer seu pai, está muito enganada.

— Há! — exclamou Cecília. — Você vem planejando isso desde o dia em que chegou a esta cidade. Só estava esperando a hora certa para me mandar de volta para a fazenda de papai, que fica a trinta quilômetros daqui!

Depois das confusões que já haviam acontecido entre eles dois, não era de admirar Cecília querer culpá-lo. Naquela noite, porém, enquanto eles dançavam, Jake havia pensado que aquela fase começava a ser superada. Ela podia pelo menos dar a ele o benefício da dúvida.

— É isso mesmo o que você acha? Que o tempo todo eu só queria me ver livre de você?

— É — despachou Cecília, revoltada com a tentativa daquele homem de se fazer de inocente. — E eu não acho. Eu sei!

Pendergast chegou mais perto e segurou nas mãos dela, obrigando-a a sê levantar. Não havia muito espaço de manobra naquele quarto e Cecília se viu com os seios tocando no peito dele. Soltando uma das mãos ele segurou no queixo dela. Outra vez a fitava com aquele olhar intenso.

— Por que eu faria isso? — ele perguntou, num tom grave.

Pela primeira vez na vida Jake desejou realmente ser tio Thelmer, que sempre soubera o que dizer a uma mulher. Por mais que tentasse, ele não conseguia encontrar palavras capazes de dobrar a resistência de Cecília Summertree.

Cecília ergueu a mão para limpar outra lágrima que escorreu.

— Ah, isso é fácil de responder. Desde que você chegou aqui, eu só tenho lhe causado problemas.

— Você tem me causado problemas, sim. — Jake chegou ainda mais perto, a ponto de sentir o cheiro dos cabelos dela. — Tomou conta dos meus pensamentos, noite e dia. E, quando eu parti, senti que o tempo todo você me arrastava de volta para cá.

Praticamente não havia mais espaço entre eles dois e Cecília perguntou-se como aquilo podia ter acontecido. Não querendo confiar no adversário, ela recuou mas continuou ao alcance dos braços dele.

— Como posso confiar em você? — ela perguntou, erguendo a cabeça.

Então ele se inclinou para frente e passou a falar bem perto do ouvido dela.

— Da mesma fora como eu sei que posso confiar em você, embora há algumas semanas você já tenha adivinhado tudo sobre mim.

Cecília recuou a cabeça e olhou naqueles olhos negros. Ele estava reconhecendo que não era quem sempre afirmara ser! Sustentando o olhar, ela ergueu as mãos para segurar nos ombros fortes de Pendergast.

— Está enganado. Eu não sei quem você é.

Cecília ficou chocada com as palavras que acabava de pronunciar. Embora soubesse muito pouco sobre aquele homem, tinha que reconhecer que a presença dele havia abalado as estruturas do mundo dela.

— Ah, não? — ele perguntou, abaixando a cabeça para morder levemente o pescoço dela.

Cecília apertou os dedos nos ombros dele, quase rasgando com as unhas o tecido da camisa.

— Não sei o seu nome, Pendergast.

Soltando um rápido riso, ele usou as mãos para envolver a cintura dela.

— Mas você acabou de pronunciá-lo.

Cecília fez questão de continuar cética. — Estou me referindo ao seu nome verdadeiro — ela disse, enquanto ele encostava os lábios na região entre os seios dela que o decote do vestido deixava descoberta. Aquilo a fez mover a cabeça para trás e fechar os olhos, deixando-a também com dificuldade para pensar com clareza. — E eu não sei… de onde você é… — Estava ficando difícil falar por causa do descompasso da respiração, o que se intensificou quando ela sentiu que, por ação dos dedos dele, o botão superior do vestido escapava da casa. — Também não sei o que… você faz…

Uma coisa Cecília sabia: o que ele fazia com ela naquele momento era maravilhoso. Um a um os botões do vestido foram sendo soltos entre os seios dela. Fechar aqueles botões era sempre uma tarefa tediosa e demorada. Ela jamais havia imaginado que sentir os dedos dele desabotoando o vestido pudesse proporcionar tanto prazer. Então ergueu mais as mãos para enfiar os dedos nos cabelos dele.

Jake roçou o nariz na beirada do espartilho de Cecília. Deixando-a em pé, sentou-se na beirada da cama e observou o movimento dos seios dela. Quando a olhou no rosto viu um turbilhão de emoções naqueles brilhantes olhos azuis. Aquilo o fez pronunciar palavras que vinham do fundo da alma.

— Eu acho que você me conhece, Cecília — ele disse, numa voz um tanto rouca. — Assim como eu a conheço.

Cecília balançou a cabeça, mas a expressão dela era a de quem havia entendido.

— Certamente sabe a atração que eu sinto, embora todos os meus instintos me tivessem dito que você só me causaria problemas — ele insistiu. — Não é isso o que também sente?

Jake abaixou a frente do espartilho e os seios dela foram se revelando.

Cecília soltou um gemido enquanto continuava a acariciar os cabelos dele. Sentir aqueles dedos no couro cabeludo quase o deixava louco.

— Sim, você me causa problemas — ela respondeu, numa voz surpreendentemente baixa. — É um mentiroso.

— E você é linda — ele murmurou.

— Você é desprezível e maldoso. — Cecília abaixou a cabeça e roçou os lábios pela testa dele. — Tem um senso de humor depravado.

Jake riu novamente. — Você me deixa com vontade de fazer coisas depravadas.

Cecília constatou que as dúvidas dela em relação àquele homem estavam sendo postas de lado, como se não tivessem mais importância. E, enquanto ele ia soltando o cadarço da frente do espartilho, já estando na altura do estômago, deixou também de se preocupar com aquilo. Ele tinha razão: contra tudo o que recomendavam os instintos, ela desejava aquele homem. Só que…

Cecília umedeceu os lábios com a língua. — Você não merece a minha confiança. Contou ao meu pai…

— Cecília — ele a interrompeu, sentando-a no colo e encostando os lábios no pescoço dela. — Por que eu faria alguma coisa para que o seu pai a levasse embora, quando o que mais quero é tê-la comigo?

Por um longo e agonizante momento eles ficaram se olhando nos olhos. Ele gostava dela… Aquelas palavras, pronunciadas quase com reverência, martelavam na cabeça de Cecília, fazendo-a sentir uma combinação de alegria, medo e desejo, algo que ela jamais havia experimentado. Um calor começou a crescer no íntimo dela, espalhando-se por todo o corpo. Ele gostava dela…

— Pendergast. — Cecília murmurou o nome pelo qual o conhecia. Quando ele ergueu a cabeça, brindou-o com um sorriso cheio de ternura. — Eu não queria ir para longe de você — ela confessou. — Por isso estava chorando.

E agora estava outra vez chorando, constatou Jake, beijando o local por onde as lágrimas escorriam. Cecília virou a cabeça e os lábios deles se encontraram, numa explosão de emoções. Instantes mais tarde ela estava sem o vestido e com o espartilho totalmente aberto na frente. Então pressionou os seios nus contra o peito de Pendergast. Quando se viu deitada na cama por baixo dele, achou abençoado o peso que comprimia a parte baixa do corpo dela.

A certa altura Cecília sentiu vontade de tocá-lo como estava sendo tocada. Com os dedos trêmulos, desabotoou a camisa dele e correu as mãos pela rala camada de pêlos que recobria aquele peito musculoso. A luz da vela dançava na parte revelada do corpo dele e Cecília moveu a cabeça para sentir o gosto e a textura daquela pele bronzeada. Agora estava totalmente nua da cintura para cima e sentia a viagem que as mãos de Pendergast faziam pelas costas dela. Logo depois, sem muito esforço e menor resistência ainda por parte dela, ele terminou de despi-la…

— Você é linda — ele disse, num tom de voz que era uma carícia, enquanto corria vagarosamente os olhos pelo corpo nu de Cecília.

Ela estava sem fala, mas não sentia nem uma pequena parcela da vergonha que havia imaginado que sentiria. O desejo que a Dominava era forte demais para deixá-la preocupar-se com o recato.

Cecília ergueu os braços para envolver o pescoço de Pendergast, obrigando-o a abaixar a cabeça. Enquanto eles se beijavam ela pressionou os quadris contra os deles, primeiro timidamente, depois com mais agressividade. Agora as mãos dela percorriam nervosamente as costas, os ombros e o peito dele, repetidas vezes passando pela recente cicatriz provocada pelo tiro. Mas ela queria mais e foi gradativamente abaixando as mãos, até alcançar a fivela do cinto de Pendergast. Nesse instante ele soltou um gemido.

— Cecília, não… — Jake trincou os dentes enquanto sentia se esvair o que restava de autocontrole nele. — Eu te quero. Está entendendo?

Cecília apertou o torso dele com os braços.

— Oh, sim… Eu também te quero.

Aquelas eram as palavras que Jake mais queria ouvir. Afastando-se de Cecília apenas o tempo suficiente para se livrar das roupas e das botas, ele retornou para ela possuído por um desejo que jamais havia sentido igual. Mesmo assim sabia que, em atenção a ela, devia agir sem pressa. Cuidadosamente deitou-se por cima de Cecília e quase perdeu a razão quando sentiu o sexo enrijecido roçar no dela. E isso se intensificou quando ela moveu os quadris para cima, como se pedisse a consumação do ato de amor.

Cecília soltou um gemido ao sentir o contato da ereção dele. Então abriu os olhos e viu que Pendergast a olhava.

— Confie em mim — ele murmurou. Confie em mim…

Cecília engoliu em seco, consciente de que eles estavam prestes a fazer algo irrevogável. Todo o corpo dela ansiava por aquilo, mas a mente sabia a significação que o ato teria. Ele não insistiria se ela se recusasse, por mais doloroso que isso fosse. Pendergast ainda era um mistério para ela, tanto quanto as intimidades entre um homem e uma mulher, mas agora Cecília sabia que jamais havia desejado tanto uma coisa quanto agora desejava aquele homem. E talvez jamais voltasse a sentir tanto desejo.

Olhando novamente nos olhos dele, Cecília viu desejo e ternura misturados em partes iguais. Ela só precisava dizer as palavras, concordando ou se recusando.

Depois de alguns instantes de hesitação Cecília ergueu um pouco a cabeça e beijou-o ternamente nos lábios.

— Eu confio em você — ela murmurou, mergulhando no abraço dele.

    

Cecília abriu os olhos e rapidamente examinou o ambiente que a cercava. O longínquo barulho que ouvia lá fora vinha do lado da escola, indicando que a festa ainda não havia acabado. A vela havia se apagado, talvez por causa da brisa que entrava pela janela entreaberta, o que explicava a escuridão do quarto. E ela estava suportando um peso de uns noventa quilos…

Era Pendergast!

O som ritmado que ela ouvia era a respiração dele, e essa constatação a fez corar dos pés à raiz dos cabelos. Com o rosto afundado por cima do ombro esquerdo de Cecília, Pendergast parecia ser o mais pesado e doce dos cobertores. Pelo jeito, excetuando o rosto, não havia uma única parte dela que não estivesse tocando o corpo nu dele. Mas a verdade era que não existia um centímetro quadrado do corpo dela que aquele homem não houvesse tocado, beijado ou pelo menos contemplado.

Envergonhada. Cecília estava muito envergonhada.

Várias cenas daquela noite voltaram à lembrança dela… o incêndio, a dança, a discussão com o pai. Mas o que havia acontecido depois que Pendergast entrara no quarto dela era o que estava mais claro. Cada gemido, cada toque, a aguda dor da penetração seguida por uma estonteante e indescritível onda de prazer… nunca mais ela se esqueceria de nada daquilo. Nem mesmo quando estivesse velhinha, talvez cheia de netos.

O adormecido Pendergast moveu a cabeça e suspirou, com um sorriso de bem-aventurança nos lábios. Cecília obrigou-se a ficar imóvel, o que não era difícil, já que boa parte da circulação dela estava cortada. Não queria encarar logo Pendergast… ou nunca mais, se isso fosse possível. Infelizmente, sair da posição em que estava sem acordá-lo parecia uma tarefa muito difícil.

Cecília olhou para a pequena janela, a mente trabalhando rapidamente. O que ela podia fazer? O que devia fazer? Jamais se sentira tão envergonhada! Pendergast dissera apenas que gostava dela, mas fora o suficiente para fazê-la agir como uma mascote faminta à qual ele oferecesse uma terrina de comida. Nem por um segundo ela havia parado para examinar os próprios sentimentos. Acalentar fantasias sobre um misterioso forasteiro era até compreensível, mas entregar-se sem restrições a um homem que podia muito bem ser um criminoso…

De onde ele era? E se fosse realmente um fora-da-lei… talvez um assassino? Em que situação ela ficaria?

Oh, Deus! Ela havia entrado naquele quarto inocente como um cordeiro, mas agora estava transformada na amante de um criminoso!

Cecília não quis mais ficar em silêncio.

— Acorde, Pendergast! — ela exclamou, batendo nos braços dele.

No mesmo instante ele abriu os olhos, apoiou-se nos cotovelos e olhou para ela. Agora estava inteiramente alerta, como se estivesse acostumado a despertar no meio da noite ao menor barulho. Cecília sentiu uma onda de medo.

— Quem é você, Pendergast?

Por mais alguns instantes ele ficou olhando para ela, desconfiado. Depois suspirou profundamente e se deixou cair novamente por cima dela.

— Ah, é você?

Se era ela? Essa agora era muito boa! Cecília bateu novamente nos braços dele, desta vez com mais força.

— Saia de cima de mim, seu brutamonte! Acha que sou feita de pedra?

Pendergast roçou o rosto nos seios dela, como se quisesse ter mais segurança para responder.

— De jeito nenhum, doçura…

Quando sentiu no bico de um dos seios o contato dos lábios dele, Cecília ouviu, juntamente com o arrepio que a dominou, uma voz que recomendava a resistência. Então ela plantou as duas mãos no peito dele e empurrou-o para trás, com toda força, até que eles se viram sentados na cama, olhando um para o outro num tenso silêncio.

Finalmente os lábios dele se moveram num sorriso.

— Você é mesmo uma mulher cheia de surpresas.

Cecília soltou um riso sem vontade enquanto puxava o lençol para cobrir a própria nudez.

— Não estou mais interessada em surpresas, Pendergast. Quero saber quem você é.

Jake procurou pensar com rapidez, mas ainda estava meio tonto por causa do amor que eles tinham feito. Havia cochilado durante poucos minutos, mas isso parecia ter sido suficiente para que Cecília mudasse de idéia. Naquele momento o que ele queria mesmo era deitá-la novamente na cama para mais uma troca de carinhos, mas sabia que dificilmente isso viria a acontecer. Era mais do que evidente que ela queria respostas, as quais ele não acreditava que seria recebida com satisfação.

Uma súbita onda de remorso o assaltou com a força de um vendaval. Ele havia pedido a confiança dela, obtendo uma resposta positiva, e agora percebia que não fizera nada para merecer isso. Absolutamente nada. Procurara aquela mulher com meias verdades e meias mentiras, e mesmo assim ela o acolhera. O que Cecília pensaria se ele confessasse agora que era um homem em fuga, um impostor que se envergonhava de ter assumido a identidade de um homem morto?

Havia certamente a possibilidade de que ela corresse para contar tudo ao pai e a Lysander Beasley, mas não era só isso que o deixava temeroso de revelar toda a verdade. Era muito possível que ela simplesmente rejeitasse Jake Reed, um homem de poucos mistérios e muitos defeitos.

— Quem é você? — repetiu Cecília, erguendo um pouco o tom de voz. — Quero saber o seu nome, Pendergast.

Isso ele podia contar.

— Não é Pendergast, mas Reed. Jake Reed.

— Jake Reed? — Aparentemente Cecília não ficaria mais surpresa se ele dissesse se chamar George Washington. — Que tipo de nome é esse?

Era mais do que evidente que ela não havia gostado do nome.

— É apenas o meu nome.

— Jake Reed? — disse novamente Cecília, olhando nos olhos dele como se pedisse confirmação. — Jacob?

— É.

De certa forma, revelar o nome verdadeiro o fazia sentir-se nu, mais ainda do que de fato estava.

Quando estava na diligência para Fredericksburg Jake havia pensado que uma coisa era mais importante do que acertar contas com Gunter e Darby, e talvez isso fosse verdade. Ao ver Cecília agora, porém, olhando para ele cheia de confiança e vulnerabilidade, lembrou-se de que logo aqueles dois voltariam a persegui-lo. Não seria direito envolvê-la num perigo tão grande.

Tarde demais, pensou Jake. Mas ainda não era tarde para resguardá-la de toda aquela feia história. Ou para se abster de fazer promessas que talvez não pudesse cumprir.

— Você é professor?                          

— Não posso dizer que sou — reconheceu Jake, depois de certa relutância.

— Eu sei que você não é de Filadélfia. Onde nasceu?

Por alguns instantes Jake ficou olhando para ela. Depois desviou o rosto e deu de ombros. — Por aí.

Cecília suspirou. Depois de um instante de silêncio, voltou à carga.

— Você matou alguém?

Jake voltou a olhar nos olhos dela. — Não — ele respondeu.

Mas isso não quer dizer que eu não queira matar um homem… ou dois. Ao ver a dor que havia naqueles lindos olhos azuis ele se sentiu tentado a contar toda a verdade, mas não podia chegar a esse ponto. Ela o queria como um homem diferente do que ele era, certamente o rejeitaria se soubesse que estava lidando com um homem cercado pelo perigo.

— O que aconteceu com o verdadeiro Pendergast? — ela quis saber.

— Eu já lhe disse, Cecília, que não sou um assassino. Quer saber de mais alguma coisa?

Mais alguma coisa? Cecília tinha ainda um sem-número de perguntas, muitas, tantas que não poderia fazê-las todas numa só noite.

— Amanhã eu voltarei para a fazenda do meu pai. Quando voltaremos a nos ver?

Jake sentiu um aperto no peito, e não foi por causa do tiro que havia levado. — Não sei ao certo.

Se partisse no dia seguinte ele poderia estar de volta na metade da semana seguinte, mas isso se pudesse contar com a sorte. Se as coisas não saíssem conforme ele esperava, talvez nem voltasse. Talvez jamais voltasse a ver Cecília.

— Você irá ao casamento de Dolly, no domingo? — perguntou Cecília.

Jake olhou naqueles suplicantes olhos azuis. Deus, o que ele tinha feito?

— Sim, claro que irei.

Jake sabia que seria fisicamente impossível ir até a fazenda de Darby e voltar antes do domingo. Não conseguiria isso nem mesmo se fosse uma ave e fizesse todo o trajeto pelo espaço.

O desapontamento apareceu nos olhos de Cecília. Jake diria qualquer coisa para que ela desfizesse aquela expressão sofrida.

— Eu estarei lá.

No dia seguinte ele daria um jeito de comprar um cavalo. Não se arriscaria novamente numa viagem de diligência.

Um sorriso tímido apareceu nos lábios de Cecília, que correu os olhos pelo quarto.

— Não será como agora… — ela disse. — Isto é, haverá muita gente em volta, mas poderemos pelo menos dançar novamente.

A perspectiva já era boa demais para Jake. — Mal posso esperar.

Fez-se uma pausa, depois da qual Cecília olhou nervosamente para ele.

— Mas… quando é que você vai me contar esse seu grande segredo?

Tentando mudar o clima que reinava no pequeno quarto, Jake levantou-se, apanhou as roupas e começou a se vestir. Um deles dois precisava voltar à festa, ou o pai de Cecília não o deixaria viver até o domingo.

— Uma coisa eu posso lhe prometer — ele disse.

Cecília mostrou-se prontamente interessada. — O quê?

— Quando chegar a hora, você será a primeira pessoa a quem contarei.

Era mais do que óbvio que não saber quem ele era estava a ponto de deixar Cecília louca.

— Não posso esperar tanto tempo! — ela protestou. — Não posso voltar para a fazenda sem saber quem você é, ou se…

Cecília não concluiu a frase e Jake sentiu o coração a ponto de saltar para fora do peito. A preocupação dela era que aquilo tudo não houvesse significado nada para ele.

Então Jake estendeu a mão e segurou no queixo dela. O que viu nos olhos de Cecília era metade ressentimento, metade submissão ditada pelo amor.

— Eu estarei lá no domingo, Cecília. Isso eu lhe prometo.

Clara fez um ar de desolação enquanto enfiava mais um alfinete no vestido de noiva de Dolly.

— Isso não é bom — ela resmungou. Há dois dias que a diminuta mulher não parava de balançar a cabeça, desde que soubera que Buck havia arranjado uma noiva. — Não é nada bom.

— Ai! — protestou Dolly, sentindo na pele a ponta de um dos alfinetes que Clara esgrimia.

Cecília olhou para o bonito vestido de seda creme, mas quase sem vê-lo. Até aquele momento havia conseguido sorrir, assentir com a cabeça e pronunciar as palavras certas para elogiar o vestido da noiva, mas agora estava com o pensamento longe.

Ou talvez simplesmente tivesse perdido a cabeça, a capacidade de pensar. De que outra forma explicar a coisa terrível que tinha feito?

Jake Reed! Pela milionésima vez Cecília repetiu aquele nome, como se isso pudesse dar uma idéia melhor de quem ele era, ou se não estava mentindo quando dissera que voltaria a vê-la. Ah, tinha sido idiotice acreditar naquele homem. Pelo que ela sabia, naquele momento ele nem estava em Annsboro. E não era a primeira vez que desaparecia sem dizer uma palavra. Qual poderia ser a natureza daquele «assunto pessoal» que ele fora resolver em Fredericksburg?

Desde a sexta-feira à noite, as emoções de Cicília eram tão inconstantes que ela se sentia tonta com aqueles altos e baixos. Num minuto estava sonhando com todos os tipos de possibilidades maravilhosas quanto à identidade do homem. Não seria ele um ricaço… um milionário excêntrico que se fingira de mestre-escola? Aquele pensamento durou dois minutos. No instante seguinte Cecília se convencia de que ele era exatamente o que ela havia pensado e que, depois de ter obtido dela o que queria, simplesmente a descartara.

Ela devia ter dado ouvidos aos conselhos de Clara!

— Em que está pensando, Cecília? — perguntou Dolly, quando Clara terminou de ajustar o vestido ao corpo dela.

Faltando menos de doze horas para o casamento, Dolly queria que o velho vestido ficasse tão bonito quanto no dia em que ela havia se casado com Jubal, quase doze anos antes.

Cecília enfiou na boca um dos docinhos que havia roubado da despensa. A boa comida sempre melhorava o humor dela, principalmente quando existia à vontade.

Dolly corou levemente.

— Acha mesmo que Buck não se incomodará por eu usar este vestido?

Cecília até pensou em dizer que Buck não se importaria com nada desde que ouvisse o «sim» da noiva, mas percebeu que aquilo não seria muito lisonjeiro.

— Acho que seria um desperdício não usá-lo — argumentou Dolly. — Ele ainda serve em mim e está muito bem conservado.

Cecília levantou-se, afastou-se um pouco e procurou prestar atenção no vestido.

— Buck só pensará no fato de que você estará linda — ela declarou.

Dolly estava realmente muito bonita naquele vestido de corpete apertado e saia rodada. As mangas eram justas e os ombros ficavam cobertos, embora houvesse um profundo decote em V. Mas o que mais chamava atenção em Dolly era o fato de que ela transpirava felicidade, exatamente o oposto do que Cecília sentia.

Distraidamente ela pôs na boca outro docinho, que ficou mastigando.

— Pare de pegar os doces da festa, Ciei! — ralhou Clara, confiscando o prato de doces que ela levara para o quarto. — Desse jeito vai ficar gorda como uma mulher grávida!

Cecília sentiu-se corar. Aquele era uma possibilidade em que vinha tentando não pensar desde a sexta-feira à noite.

— Só estou com fome — ela se defendeu.

Ah, como tinha sido idiota. Como seria se jamais voltasse a ver Jake Reed? E se agora estivesse carregando no ventre o filho de um fora-da-lei?

— Quem não come direito no jantar só pode mesmo ficar com fome — disse Clara, em tom de censura.

A verdade era que ultimamente Cecília não tinha muito apetite. Tudo, até mesmo comida, atrapalhava a atividade a que ela mais vinha se dedicando: meditar.

— Eu sei de um segredo — disse Dolly, olhando furtivamente para Cecília e piscando o olho para Clara.

Cecília inclinou-se para frente na cadeira, sentindo um aperto no estômago. Será que Dolly havia adivinhado… ou, pior, será que todos já haviam percebido? Clara sempre dissera que era possível identificar uma mulher libertina pelo jeito de andar. Teria o jeito de andar dela sofrido alguma mudança? Sentindo gotas de suor na testa ela automaticamente estendeu a mão para o prato de doces, apenas para constatar que ele não estava mais ali.

— Que segredo é esse? — ele perguntou.

— Cecília está apaixonada — anunciou Dolly, dirigindo-se a Clara com um largo sorriso no rosto.

Cecília respirou fundo, pensando no que acabava de ouvir, e recostou-se novamente na cadeira.

— Por quem? — quis saber Clara, apertando os olhos como se quisesse identificar alguma coisa na expressão de Cecília. — Pelo tal mestre-escola?

— Pelo Sr. Pendergast.

— Não estou apaixonada por Eugene Pendergast — ela rebateu, e pelo menos isso era verdade.

— Ela o detestava — prosseguiu Dolly. — Mas ele ficou encantado com ela tão logo chegou à cidade. E eu vi logo que os dois acabariam juntos. O homem estava o tempo todo olhando para Cecília.

— E que ele ficava nervoso por saber que eu já havia percebido o impostor que ele era.

— Ora, Cecília — reagiu Dolly. — Vai bater sempre na mesma tecla?

— Mas é verdade!

— O amor e o ódio, duas faces de uma mesma moeda — filosofou Clara. — E trata-se de uma moeda de muito valor.

— Eu nem me importo se nunca mais voltar a vê-lo — declarou Cecília.

E aquela era uma possibilidade muito palpável. Era bem verdade que ele havia prometido que a veria no dia seguinte, mas como ela poderia acreditar num homem que nem queria dizer que profissão tinha?

Clara balançou a cabeça, no que foi imitada por Dolly. As duas pareciam sentir pena dela.

— Quantas vezes eu não disse isso me referindo ao meu adorado Buck? — relembrou Dolly, pensativa. — E agora olhem só para mim.

Dito isso ela sorriu, um sorriso de noiva, de uma mulher que realizava um sonho.

Nesse instante elas ouviram batidas na porta e logo depois Silas Summertree entrou no quarto.

— Ora, ora — ele disse, num tom paternal. — Ela não está mesmo linda?

Clara abriu um alegre sorriso.

— Obrigada. Só espero que Buck concorde com isso.

Cecília não fez nenhum comentário mas soltou um suspiro de impaciência.

— Qual é o problema, Cecília? — perguntou o pai dela, bem-humorado. — Está com ciúme da sua amiga?

— Ah, pelo amor de Deus, papai! — ela exclamou, irritada.

— Aposto que o namorado dela a pedirá em casamento qualquer dia desses — profetizou Dolly.

Cecília apertou os lábios. Se aquelas pessoas soubessem da verdade, se tivessem conhecimento do tipo de homem que era Jake Reed e de como ele a havia tratado…

— Então foi o mestre-escola quem finalmente conquistou o coração da minha garotinha! — exclamou o fazendeiro, como se comemorasse aquilo.

— Nós não sabemos nada sobre ele! — protestou Cecília.

Silas riu. — Nada, a não ser o fato de que quando se fala nele você fica muito vermelha.

Cecília achou que o pai dela só podia estar perdendo o juízo. Há dias que ela não dormia direito e só podia estar muito pálida! Desde que voltara para a fazenda, sempre que se recolhia ao quarto era para chorar. A única coisa que fazia com satisfação era trabalhar, porque isso pelo menos ajudava a suportar aqueles dias intermináveis.

— Eu pensava, papai, que você se importaria mais em saber como ele ganha a vida do que em reparar se eu fico ou deixo de ficar vermelha — ela declarou.

O sorriso de Silas Summertree perdeu um pouco do entusiasmo, mas não desapareceu por completo.

— Parece que a minha filhinha é tão linda quanto cínica — ele disse. — É claro que me preocupo com a situação dele, mas tive a impressão de que se trata de um homem de futuro brilhante.

— E um herói! — exclamou Dolly.

— Aposto que nunca mais voltaremos a vê-lo — pronunciou-se Cecília.

Três pares de olhos se fixaram nela, com um ar de perplexidade, e só então ela percebeu que havia falado o que não devia.

— Por que não? — inquiriu Silas. — Ele ainda é o mestre-escola de Annsboro, não é?

— Ele não disse que viria ao meu casamento? — perguntou Cecília, aparentemente preocupada com a possibilidade de que algum dos convidados não comparecesse.

Clara abriu mais os olhos. — Vocês tiveram alguma briga de namorados?

— Nós não somos namorados! — respondeu Cecília, batendo com os punhos fechados nos joelhos.

Os outros três riram daquela reação.

— Ele virá — previu Dolly. — E aposto que, quando assistir ao casamento, ele vai ter uma idéia do que, deve fazer.

— É bem possível que, antes do fim do ano, estejamos festejando mais um casamento — conjeturou Silas. — Desde que você não jogue mais um pedaço de bolo na cara dele, filha.

— Pendergast? Não, não conheço.

Rosalyn suspirou enquanto o homem na frente dela voltava novamente os olhos para o jornal que estava lendo. O trem já ia chegando a Abilene, a última parada, e até aquele momento ela não havia encontrado ninguém que conhecesse Eugene ou Jake Reed. O surpreendente era algumas pessoas dizerem já ter ouvido falar no mestre-escola de Annsboro, mas o feito heróico que narravam não podia ter nada a ver com o irmão dela. Não que Eugene fosse um covarde, mas jamais havia andado armado e nem sabia atirar. Ela não acreditava que, sozinho, ele houvesse resistido ao ataque de dois bandoleiros e salvado uma diligência cheia de mulheres indefesas!

O que a deixava com uma única certeza: algo de muito estranho estava acontecendo naquela pequena cidade chamada Annsboro.

Aparentemente Rosalyn precisaria esperar até que estivesse lá para encontrar respostas para as perguntas que a carta de Watkins havia posto na cabeça dela. Estaria Eugene realmente «muito mudado», como dissera Watkins? Ou, o que era mais provável, algum outro homem estava se fazendo passar por Eugene? Se fosse esse o caso, esse homem só podia ser o tal Jake Reed.

Rosalyn recostou-se no assento e contemplou pela janela a paisagem amarelada que se espalhava em todas as direções. Como as pessoas viveriam naquela região, especialmente as mulheres? Ao longo da viagem ela vinha encontrando alguma dificuldade em se comunicar com aquela gente. Por outro lado, sentia admiração por pessoas que conseguiam sobreviver numa região tão inóspita.

Rosalyn sorriu. Embora não soubesse explicar direito por que, achava que se afeiçoaria com facilidade ao lugar. E perguntava-se se Eugene havia sentido a mesma coisa… ou se ainda sentia.

Ela ainda não havia decidido qual o melhor plano a pôr em prática. Não sabia se, ao chegar a Annsboro, deveria procurar discretamente uma pista do irmão ou se diria claramente quem era. Pelo jeito a cidade era tão pequena que seria difícil para ela se manter incógnita. Bem, não demoraria muito para que surgissem as respostas.

— Com licença, moça.

Quase se assustando, Rosalyn levantou a cabeça para o homem que, vestido numa rústica calça de brim e numa camisa azul desbotada, segurava no encosto do assento dela para se equilibrar enquanto o trem sacolejava. Mas aquele homem de olhos azuis parecia confiável. Devia ser um trabalhador simples, talvez um vaqueiro.

— Eu não pude deixar de ouvir a sua conversa com o homem aí na frente — ele se explicou.

— Sim? — disse Rosalyn, sentindo o coração bater mais depressa.

— Talvez eu possa ajudá-la — disse o homem. Prontamente Rosalyn chegou-se mais para o lado da janela, abrindo espaço para que o desconhecido se sentasse. Enquanto ele ocupava o lugar vago ela o examinou e engoliu em seco. O homem tinha uma cicatriz recente na testa, que se tornava muito evidente por causa do contraste com os cabelos muito louros, quase brancos.

Ansiosa para ter alguma informação ela resolveu iniciar a conversa.

— Meu nome é Rosalyn Pendergast. Será que o senhor sabe alguma coisa do meu irmão, Eugene?

O homem pareceu confuso.

— Não… Infelizmente nunca ouvi falar no seu irmão, srta. Pendergast.

Rosalyn suspirou.

— Mas o senhor disse que…

— A senhorita se referiu a um outro nome. — O homem louro fez uma expressão dura. — Jake Reed. Desse eu já ouvi falar muito.

Finalmente! — O senhor sabe se o Sr. Reed mora em Annsboro?

— Não que eu saiba. — Agora era o desconhecido quem parecia curioso. — Por que diz isso?

Rosalyn pegou na bolsa a carta que havia recebido de Jake Reed e mostrou-a ao interlocutor.

— Recebi uma correspondência do Sr. Reed informando-me de que o meu irmão, que estava a caminho de Annsboro para assumir a função de mestre-escola, havia morrido antes de chegar ao seu destino durante um tiroteio ocorrido numa cidade chamada Guthrie.

O homem fechou o semblante. — Ah, foi?

Rosalyn confirmou com a cabeça. — Algumas semanas depois, recebi uma carta de um antigo colega do meu irmão, atual superintendente escolar na região, informando-me de que Eugene estava dando aulas em Annsboro, mas que parecia muito mudado.

O homem mexeu-se nervosamente no assento e só então Rosalyn reparou que ele tinha uma expressão sinistra. Quando o desconhecido quis pegar a carta ela afastou a mão e, sem saber bem por que fazia aquilo, guardou-a novamente na bolsa.

— Quero ter uma conversa com a pessoa que está se fazendo passar pelo meu irmão — disse Rosalyn, com amargura.

— Eu também — pronunciou-se o desconhecido, numa voz quase inaudível e com os olhos apertados.

Rosalyn sentiu um arrepio mas achou que talvez pudesse tirar algum proveito daquela situação.

— Se também está procurando por ele, talvez possamos ir juntos para Annsboro — ela propôs.

Subitamente o homem se levantou.

— Não, acho que não — ele disse, falando depressa.

— Ouvi dizer que é difícil conseguir transporte para Annsboro — insistiu Rosalyn, esperando fazê-lo mudar de idéia. — Podíamos dividir a despesa.

Sem dizer mais nada o homem pôs o chapéu na cabeça e marchou par ao outro vagão. Rosalyn resistiu à vontade de chamar por ele. Não seria uma atitude própria de uma dama e ela nem sabia o nome daquele desconhecido.

Além disso, tinha a estranha sensação de que voltaria a ver aquele homem muito louro.

    

Segurando o chapéu para que o vento não o levasse, Cecília encostou-se na cerca que delimitava a Fazenda Summertree e olhou ansiosamente para a estrada que levava a Annsboro.

Onde estava Jake Reed? Todos os outros convidados para o casamento de Dolly já haviam chegado… menos ele.

O pai dela, Clara e Dolly achavam que ela havia se oferecido para receber os convidados à entrada da fazenda apenas para ter uma conversinha com Pendergast quando ele aparecesse.

Se ele aparecesse, algo que Cecília estava começando a achar que não aconteceria. Afinal de contas, já eram quase duas da tarde!

A brisa balançou a saia do vestido de organdi que Cecília usava. Não era um vestido novo, embora pouco usado. Ela o havia comprado quando estava na casa das tias, em Memphis, e começara a freqüentar as festas da sociedade. Mesmo velho, o vestido a deixava com um ar juvenil, impedindo que as pessoas percebessem que estavam diante de uma mulher que já havia sido possuída por um homem.

Uma charrete apareceu no horizonte e ela apertou os olhos. Não era Reed… mas quem podia ser? Todos os convidados de Dolly já haviam chegado.

Cecília abriu a porteira e saiu para receber a desconhecida, uma mulher de aparência distinta e que evidentemente dirigia uma charrete pela primeira vez na vida.

— Pare, menina — disse a mulher, puxando as rédeas do animal.

— E um rapaz — corrigiu-a Cecília, segurando a rédea para que o animal parasse.

A mulher olhou-a com curiosidade. — Por favor, aqui é a Fazenda Summertree?

— Você chegou bem na hora — respondeu Cecília. — O casamento começará daqui a pouco.

Por alguns instantes elas ficaram se olhando e Cecília aprumou o corpo, como na época em que era interpelada pelas professoras da escola em Nova Orleans. Mas aquela mulher parecia uma dama de verdade… Pelo menos, não tinha o sotaque do Sul.

— Um casamento? — disse a recém-chegada, parecendo espantada.

Cecília ficou hesitante. — Sim, o casamento de Dolly… Você conhece Dolly, não conhece?

— Pode parecer estranho… Bem, tudo nessa viagem é muito estranho — disse a mulher. — Eu sabia que Annsboro era uma cidade pequena, mas não imaginei que a encontraria quase deserta.

— É que todos vieram para o casamento — explicou Cecília.

— Sim, o homem que encontrei na cidade me disse exatamente isso.

No mesmo instante Cecília soltou as rédeas do animal e recuou.

— Homem? Que Homem? Por acaso era Pendergast?

A recém-chegada arregalou os olhos. — Eugene?

Só podia ser Pendergast, ou Reed, corrigiu-se Cecília. Mas onde estava ele? Por que não havia chegado com aquela mulher?

Depois de alguns instantes Cecília se lembrou do que a mulher havia perguntado.

— Por acaso está procurando por Eugene Pendergast? — ela quis saber, lembrando-se de que devia existir um verdadeiro Eugene Pendergast.

— Não. Isto é… sim. — A mulher balançou a cabeça, confusa, e pegou na bolsa um lenço para enxugar algumas lágrimas que escorreram dos olhos dela. — Na verdade eu vim até aqui para tentar descobrir o que aconteceu com ele.

Cecília engoliu em seco. — É parenta dele?

— Meu nome é Rosalyn Pendergast — disse a recém-chegada, sorrindo automaticamente ao se apresentar. — Sou irmã dele. Vim de Filadélfia para saber o que aconteceu com Eugene. Você o conhece?

Cecília sentiu o estômago embrulhado. Aquela era Rosalyn, a autora das cartas que ela havia lido e relido em busca de pistas sobre a identidade de Pendergast. Agora era Rosalyn quem estava ali atrás de pistas.

Cecília sentiu uma onda de medo. — Esse homem na cidade… era alto, tinha cabelos castanhos escuros e olhos negros?

Rosalyn pareceu muito espantado com o interesse demonstrado pelo homem que havia ensinado o caminho a ela.

— Sim, muito negros.

— E você não o reconheceu?

Rosalyn balançou a cabeça. — Não, mas ele foi muito simpático. Disse que meu irmão não estava lá, mas quando eu falei num homem chamado Jake Reed ele disse que sabia quem era e que talvez eu o encontrasse aqui nesta fazenda.

Além de Cecília, só outra pessoa em Annsboro tinha conhecimento daquele nome: o próprio Reed.

— Por que você está procurando por Jake Reed?

— Porque ele é um patife, um mentiroso! Veja isto! A mulher tirou de dentro de uma sacola de veludo um envelope de carta, que brandiu como uma prova apresentada perante um tribunal.

— Posso ler? — perguntou Cecília, pegando a carta.

Ao ver a caligrafia ela prontamente se lembrou do nome Sr. Pendergast que vira no quadro-negro da escola. Quando correram os olhos pelo que dizia a carta, sentiu um arrepio. Teria Reed realmente assassinado o irmão de Rosalyn Pendergast… o verdadeiro Eugene Pendergast, antes de ir para Annsboro? Provavelmente ele havia escrito a carta quando já estava na pensão de Dolly e era amado pela cidade inteira.

Amor? Teria ela se apaixonado por um assassino, alguém que matava a sangue-frio? Mas seria possível um homem que fazia amor com tanta ternura ser um assassino?

Cecília sentiu-se tonta. Ela estivera certa até recentemente, mas caíra no erro de acreditar na palavra dele. Como uma idiota, havia deixado que ele a seduzisse e a tirasse do caminho.

Quanto mais ficava clara a traição daquele homem, mais Cecília se enraivecia. Mas desta vez ela faria o possível e o impossível para que Jake Reed pagasse pelos seus crimes.

— Onde ele está? — ela perguntou.

— Ele quem?

— O homem com quem você falou na cidade.

— Ele ia sair a cavalo quando eu partir. Mas não veio nesta direção.

Já era de se prever. Mas por que Reed havia mandado Rosalyn para a fazenda… e para onde ele fora?

— Preciso falar com o xerife — declarou Rosalyn, — Ele está aqui?

— Nós não temos xerife — informou Cecília.

Por algum motivo, a idéia de que os agentes da lei se pusessem no encalça de Reed a deixou ansiosa. Rosalyn franziu a testa.

— Então… deve haver alguém que possa me ajudar.

A mente de Cecília trabalhou rapidamente. Se uma patrulha se formasse imediatamente para sair atrás de Reed, seria impossível prever o que poderia acontecer. Rosalyn tinha uma evidência muito forte contra ele e os homens poderiam querer fazer justiça com as próprias mãos. Cecília não só era contra isso, como também ainda guardava no coração a esperança de que ele pudesse explicar aquilo tudo… uma esperança longínqua, mas sempre uma esperança. Fosse como fosse ela teria que confrontar Reed, e precisaria fazer isso sozinha.

Cecília resolveu que iria atrás dele, mas antes precisaria se livrar de Rosalyn.

— Eu a ajudarei—ela declarou, devolvendo a carta. — Vamos entrar. Você certamente precisa descansar e beber alguma coisa.

Rosalyn mostrou um sorriso de gratidão. — Sim, um pouco de água, por favor.

Quando aquela situação se resolvesse Rosalyn Pendergast precisaria de algo mais forte do que água, pensou Cecília, subindo na charrete e pegando as rédeas para conduzir o veículo até a casa. No curto trajeto ela procurou pensar num plano. Uma coisa era certa: não poderia ficar para assistir ao casamento de Dolly e Buck.

Entrando pela porta dos fundos elas pararam rapidamente na cozinha para que Rosalyn matasse a sede. Depois, movendo-se furtivamente para não chamar a atenção, rumaram para o quarto de Cecília.

— Fique à vontade para cochilar um pouco aqui — ela disse. — Quando a cerimônia terminar eu virei chamá-la e nós procuraremos alguém que possa nos ajudar.

Rosalyn conteve um bocejo. — Você está sendo muito gentil, mas eu preciso voltar a Annsboro. Ainda há muitas coisas que preciso compreender. Se puder dar uma olhada na escola, talvez…

Cecília levantou as cobertas da cama, esperando que aquilo convencesse a visitante dormir um pouco.

— Nós resolveremos tudo, srta. Pendergast. Eu a ajudarei — prometeu Cecília, ficando mais confiantes quando Rosalyn repousou a cabeça no travesseiro.

Logo depois ela segurou na saia com as duas mãos e correu para o quarto de hóspedes, onde foi recebida por uma nervosa Dolly, que estava de pé diante do espelho já quase pronta. Clara circulava em torno da noiva numa furiosa atividade.

— Já estou sendo esperada? — perguntou Dolly, alarmada. — Pensei ter ouvido a música!

— Não — respondeu Cecília.

Dolly parecia disposta a correr para fora do quarto no instante em que ouvisse as primeiras notas da marcha nupcial, estivesse ou não pronta.

— Calma — recomendou Cecília, usando um grampo para prender com mais firmeza o véu de tule à cabeça da noiva. — O casamento não se realizará sem você.

Dolly riu. — Estou muito nervosa.

Cecília abraçou a amiga, rapidamente mas com sinceridade.

— Ah, Dolly, você está linda. E tenho certeza de que será muito feliz.

— É o que espero! — disse Dolly, impedida de retribuir o abraço ao ser atingida no couro cabelo pelo grampo com que Clara fixava a grinalda dela. — Ai!

— Acho que isso é tudo — decretou a governanta. — Posso ir dizer que você está pronta?

Dolly moveu afirmativamente a cabeça.

Cecília deixaria de assistir ao casamento de dois bons amigos, mas não tinha tempo a perder. E nem podia ter certeza de que alcançaria Reed. Mesmo assim, tinha o palpite de que ele estava rumando para o sul, com destino a Fredericksburg.

A marcha nupcial começou a ser tocada lá embaixo pela rabeca de Charlie e Cecília escoltou Dolly até a escada.

— Boa sorte — ela desejou, observando até que a amiga desapareceu lá embaixo a caminho do salão.

Sem perder tempo, Cecília retornou e entrou no quarto do pai. Depois de correr os olhos pelo cômodo parcamente mobiliado, agarrou o rifle Spencer de Silas, que estava encostado na parede ao lado da cabeceira da cama.

Depois de descer rapidamente a escada Cecília rumou para os fundos da casa, onde ficava a estrebaria. Todos estavam no salão, onde se realizava a cerimônia de casamento, e ela não encontrou ninguém pelo caminho. Entrar na estrebaria foi como descobrir uma mina de ouro. Parecia até que todos os cavalos de Annsboro estavam ali, cada um deles com a marca do dono. Cecília resolveu usar o alazão de Jim, que, graças a Deus, estava selado. Depois de ajustar a altura dos estribos às pernas curtas, acomodou-se na sela. Sem se dar tempo para pensar duas vezes no que iria fazer, logo ela estava em campo aberto, cavalgando a toda brida.

Jake estava indo numa boa velocidade. O velho cavalo preto que havia arranjado mostrava ter mais energia do que ele havia imaginado. Tinha sido muita sorte encontrar um animal tão veloz.

Jake havia pensado em adiar aquela viagem por pelo menos mais um dia, mas isso tinha sido antes de dar de cara com a mulher que menos queria ou esperava encontrar, que o abordara bem na hora em que ele ia sair ao encontro de Cecília.

No instante em que Rosalyn Pendergast revelou que havia conversado com certo homem de cabelos muito claros, Jake teve certeza de que a sorte estava lançada. Não havia um minuto a perder. O fato de se ver frente a frente com a irmã de Pendergast já tinha sido um susto e tanto. Saber que Gunter estava a caminho de Annsboro o deixou com o sangue gelado.

Jake pôs-se de pé nos estribos e examinou a área em volta. Não viu nada de suspeito, apenas pastos pontilhados aqui e ali por pequenas árvores e arbustos.

Esporeando outra vez o animal ele suspirou. Não tinha sido fácil partir de Annsboro, mesmo sabendo que Gunter estava por perto. O pensamento de que talvez jamais voltasse a ver Cecília era quase insuportável. Ele quase havia pedido à irmã de Pendergast que levasse um bilhete para ela, mas concluiu que aquilo não adiantaria nada.

Diabo! Jake ainda se perguntava se Gunter o havia reconhecido naquele dia na estrada para Fredericksburg. Era bem possível, e o mais provável era que desde então o desgraçado o viesse caçando. Mas isso não explicava por que Gunter se ocupava em assaltar uma diligência quando podia estar confortavelmente instalado na fazenda do rico sogro, a apenas um dia a cavalo dali.

A única coisa que Jake sabia com certeza era que o quanto antes se livrasse de Darby e Gunter, mais cedo poderia voltar para tentar resolver a confusão que havia deixado armada em Annsboro. Mais especificamente, mais cedo poderia voltar para Cecília. Daria qualquer coisa para ter essa chance.

Partindo de algum lugar às costas dele um tiro quebrou o silêncio. Jake cravou as esporas no animal e- rumou para o arbusto mais próximo em busca de proteção. Estava com o coração em disparada e a respiração contida enquanto olhava rapidamente em volta, mas sem ver nada.

Quando se escondeu com o cavalo atrás da moita ele apurou os ouvidos. Então ouviu o barulho dos cascos de um animal que se aproximava rapidamente. Muito tenso, Jake sacou do revólver e ficou esperando. Apenas alguns segundos se passaram antes que ele pudesse ver de quem se tratava. Estava preparado para Gunter, para uma batalha, até para a morte… mas não para o que via agora. Cecília!

Vestida num elegante vestido de festa azul-claro, Cecília se aproximada do lugar onde ele estava como um furacão, os cabelos louros ao vento e a saia tremulando como uma bandeira de batalha. Jake não quis acreditar nos próprios olhos… principalmente quando viu o rifle que ela empunhava.

Jake recolocou o revólver no coldre e soltou um suspiro que era um misto de alívio e aborrecimento. O que ela estava fazendo ali? E por que havia atirado?

Cecília parou a não mais de três metros dele, o cavalo bufando depois da desabalada carreira.

— Fique bem aí, Reed. Ela estava com os lábios apertados e apontava o rifle diretamente para o peito dele. Ao mesmo tempo o examinava, certamente reparando que ele vestia roupas que não usava desde que deixara Guthrie, muitas semanas antes.

— Por acaso ficou maluca, Cecília?

Ao ouvir a pergunta ela soltou um riso nervoso. — Pelo contrário. Finalmente pude pensar com clareza… depois de conversar com Rosalyn Pendergast.

Jake procurou engolir a raiva. Cecília tinha todo o direito de se enfurecer, mas não podia ficar ali quando Gunter podia estar por perto ansioso para crivá-lo de balas. Então ele começou a avançar, vagarosamente, e Cecília arregalou os olhos.

— Pare bem aí! — ela ordenou.

O comprido cano do rifle tremeu e Jake perguntou-se se ela sabia mesmo atirar, embora fosse muito difícil alguém errar um tiro de uma distância tão curta. Nem mesmo uma criança erraria.

— Eu mandei que você parasse! — ela voltou à carga. Jake resolveu obedecer. Por enquanto.

— Também estou armado, sabia?

— Sou rápida no gatilho, Reed.

— Não tanto quanto eu, doçura.

Embora a palavra carinhosa a atingisse fundo, Cecília procurou se concentrar no tom com que ele havia pronunciado aquela frase. Se Jake Reed fosse realmente um homem procurado pela lei, devia saber sacar rapidamente e atirar com precisão. Depois de olhar de relance para o Colt que ele trazia no coldre, ela dirigiu novamente o olhar para os olhos negros que tanto a fascinavam. Agora ele parecia se divertir com a situação, o que a irritou ainda mais.

— Por acaso está vendo alguma graça nisso tudo? — ela inquiriu.

— Não, só estava pensando que nunca a vi tão linda. Como é mesmo que se chama a tonalidade de azul do seu vestido?

— Simplesmente azul-claro — ela respondeu, com rispidez. — Mas não pense que vai distrair minha atenção passando a falar de moda. Quero saber o que você fez com Pendergast.

— Nada.

— Então onde ele está?

— Numa cidade chamada Guthrie, mortinho da silva. Foi morto por acaso num tiroteio. O assassino queria me matar mas o confundiu comigo,

— E então você saiu por aí se fazendo passar por um homem morto?

Jake confirmou com a cabeça.

— Tive que fazer isso.

Cecília ergueu as sobrancelhas claras.

— Por quê? Por acaso roubou um banco… matou alguém? Desta vez quero a verdade!

Jake suspirou. Não queria que Cecília soubesse de nada enquanto o assunto dele com Gunter não estivesse resolvido. De que adiantaria ela saber? Bem, agora estava evidente que ela não o deixaria dar mais um passo sem que ele fornecesse algumas respostas. O quanto antes ele respondesse, mais cedo estaria livre para se confrontar com Darby e Gunter… e voltar para ela. Se conseguisse sair com vida.

— Ao contrário do que você pensa, não sou um bandido — ele se defendeu. — Há vários anos que os homens responsáveis pela morte de Pendergast estão atrás de mim. Um deles conversou com Rosalyn Pendergast no trem, esta manhã, e já sabe onde eu estou. O sogro dele vive ao sul daqui… e é o mandante de tudo. Minha intenção é me livrar dos dois permanentemente.

Cecília pensou rapidamente na situação. Aquilo significava que um dos homens estava na frente e o outro atrás, com eles dois no meio como o recheio de um sanduíche.

— Você pretende matá-los?

— Eles são assassinos,

Ele não queria admitir, mas não estava disposto a abdicar da missão. Então ela relaxou o corpo na sela e abaixou o cano do rifle. Havia se enganado sobre aquele homem, tanto quanto Rosalyn.

— Está querendo vingar a morte de Pendergast.

Jake quase riu. — Meus motivos não são tão nobres assim, Cecília. Estou querendo salvar a minha pele. A situação é a seguinte: eles ou eu.

— Quanto tempo acha que vai demorar nisso?

Jake deu de ombros. Ah, ia ser muito difícil se afastar outra vez daquela mulher, mesmo aquele encontro tendo sido muito rápido. Ele não podia dizer quando iria retornar, já que não podia saber se sobreviveria. Mas agora precisava arranjar um jeito de fazê-la voltar em segurança para a fazenda.

— Não precisa responder — disse Cecília. — Eu vou com você.

— Uma ova que vai! — ele rebateu, de pronto. — Você tem que voltar para casa… Pensando bem, como não quero que cavalgue sozinha por esta região, pretendo acompanhá-la até a fazenda do seu pai.

— Não há tempo para isso — argumentou Cecília. — Você disse que esse homem… Como é mesmo o nome?

— Gunter.

— Sim, Gunter. Se ele falou com Rosalyn Pendergast, é muito provável que esteja nos nossos calcanhares.

Oh, Deus, por que ela o havia seguido? Cecília era a última pessoa que Jake queria ver envolvida naquilo.

— Você não está entendendo, Cecília — disse Jake, resolvendo deixar tudo às claras. — Isso é muito perigoso, e para você também

— Eu sei disso — ela rebateu, impaciente.

— Talvez eu não escape com vida.

Cecília Summertree se aprumou na sela, outra vez assumindo aquela postura de altivez.

— Precisamente — ela disse, com frieza. — Mas se me tiver ao seu lado suas chances melhorarão muito. Sou uma excelente atiradora.

— Quantas aulas de tiro vocês tinham por semana naquela escola de Nova Orleans? — perguntou Jake, descrente.

Um sorriso confiante apareceu nos lábios dela.

— Qualquer dia desses você ainda vai se surpreender muito comigo.

Aquele era o dia. Desde que se entendia por gente, mesmo nos anos em que havia trabalhado como ajudante de xerife, Jake jamais havia conhecido uma mulher que enfrentasse o perigo com tanta naturalidade. Mas Cecília não era uma mulher qualquer, disso ele não tinha a menor dúvida. Pensando bem, não seria má idéia tê-la como companheira naquela empreitada…

Jake afastou rapidamente aquele pensamento. — De jeito nenhum.

Os olhos azuis de Cecília continuaram nele, desafiando-o.

— Você pode me mandar de volta, ou até mesmo me acompanhar até a fazenda. Para mim não faz a menor diferença, porque sairei no seu rastro tão logo você parta.

Jake abaixou a cabeça. Aquela mulher era mesmo muito capaz de sair atrás dele, o que o deixava louco de preocupação. Por outro lado, também o deixava sem escolha.

Rosalyn olhou para a rua principal de Annsboro e sentiu um arrepio. Jamais se vira numa cidade tão deserta. Ao ver Cecília Summertree partindo a cavalo da fazenda ela ficara com a certeza de que a moça estava rumando para a cidade, mas agora não tinha tanta certeza disso. Cecília não estava em Annsboro. Pelo jeito não havia ninguém ali.

Mal havia recostado a cabeça no travesseiro, Rosalyn encontrara a solução para aquela charada. A srta. Summertree tinha perguntado se o homem que falara com ela na cidade se chamava Pendergast… o que significava que estava esperando por alguém com esse nome. Depois, quando ela mostrara a carta de Jake Reed, um homem que a srta. Summertree afirmava não conhecer, a atitude da moça havia mudado por completo. Infelizmente Rosalyn havia demorando muito para chegar à conclusão de que o homem que havia ensinado a ela o caminho para a fazenda era Reed. Ao se levantar da cama e correr para a janela, vira Cecília já a caminho da cidade.

Mas onde estava a srta. Summertree?

Rosalyn sentiu um arrepio. Seria possível o homem chamado Reed ter seqüestrado a moça com quem ela havia conversado? Oh, que coisa horrível. Ao falar com a srta. Summertree ela devia ter sido mais veemente sobre o mau-caráter que era Jake Reed.

Rosalyn recriminou-se por ter saído da Fazenda Summertree sem falar com ninguém. Agora, se não reencontrasse a srta. Summertree, ninguém ali saberia quem ela era.

Quase no fim da rua principal havia uma espaçosa construção de madeira com o nome Grady’s escrito por cima da porta. Depois de ter viajado por boa parte daquele estranho Estado, Rosalyn concluiu que aquele devia ser o local onde os homens da cidade bebiam e arranjavam outros divertimentos. A primeira coisa em que ela pensou foi em tomar uma bebida. A segunda foi que na certa havia gente no cabaré, talvez até alguém sóbrio e que pudesse dar algum conselho a ela.

Rosalyn ouviu o trote de um cavalo e, aliviada, voltou-se para ver quem se aproximava. Esperava ver a srta. Summertree ou alguém que pudesse ajudá-la.

Com surpresa e espanto, ela constatou que o cavaleiro era o homem de cabelos muito claros que havia conhecido no trem. Por uma fração de segundo eles ficaram se olhando. Quando viu a frieza que havia naqueles olhos azuis, porém, mesmo a uma distância de quase cinqüenta metros, o alívio de Rosalyn se transformou em medo. Os olhos daquele homem revelavam as piores intenções.

A medida que o louro se aproximava, o ritmo do coração de Rosalyn se intensificava. Em vão ela olhou em volta, procurando uma porta aberta por onde pudesse entrar. Não viu nenhuma. Também não adiantaria nada gritar por socorro, já que ninguém a ouviria.

Tudo o que ela pôde fazer foi dirigir aos céus uma rápida prece antes de ser arrancada da charrete pelo braço forte do homem. Rosalyn sentiu uma forte dor nas ancas quando bateu contra a sela, na frente dele. E o braço direito também doía muito, já que estava torcido e imprensado entre as costas dela e o peito do homem, que a segurava com firmeza pela cintura. Rosalyn ficou muda de pavor enquanto o poderoso animal galopava para campo aberto.

    

— Não me acostumo a chamá-lo de Reed — disse Cecília por cima do pescoço do bonito alazão.

Ela também achava muito diferente a nova aparência de Reed. Depois de três horas de dura cavalgada, ainda achava espantoso como ele parecia mudado apenas por estar usando uma calça de brim azul e uma batida camisa de algodão cor de vinho. Na cabeça dele ela via um chapéu de feltro cinzento que parecia ter nascido junto com o homem.

Eles haviam parado à beira de um riacho para esticar as pernas e deixar que os animais matassem a sede.

— Experimente Jake — ele sugeriu.

Cecília achava estranho pensar que durante um bom tempo o conhecera como Pendergast, um nome sonoro e que não se adequava ao homem que ela agora começava a conhecer. Pendergast tinha sido um sujeito descuidado e às vezes brincalhão, enquanto Jake Reed era um homem seco, desconfiado e sempre alerta. Tinha uma postura ao mesmo tempo de presa e predador. Durante a cavalgada, a fria cautela daqueles olhos havia deixado Cecília com o coração apertado.

Ainda assim os dois eram um só homem, sempre um mistério. Ela não sabia nada sobre Jake Reed, a não ser que ele estava vivendo uma situação muito complicada.

— Quem é você, na realidade? — perguntou Cecília, afagando o pescoço do alazão.

Jake continuou com os olhos atentos no horizonte.

— Você precisa mesmo saber disso agora?

— Sim, preciso — respondeu Cecília.

— Fiz a pergunta por que nem devíamos ter parado aqui por tanto tempo.

Cecília respirou fundo. — Até agora aceitei sua palavra numa porção de coisas, mas não voltarei a montar enquanto não me disser quem é, droga!

Jake olhou naqueles olhos azuis e sentiu um remorso muito grande. Permitira que Cecília o acompanhasse porque seria a única forma de impedir que ela se metesse em confusão, mas tê-la ali o fazia sentir-se vulnerável. Não era justo ir em busca de vingança levando junto uma pessoa que não tinha nada a ver com o assunto a ser resolvido.

Sim, ela merecia pelo menos saber da verdade. Jake suspirou e por alguns instantes ficou com o olhar distante.

— A maior parte da minha vida eu vivi em Redwood. Cecília apertou os olhos.

— É uma cidade ao sul daqui, não é?

— É para lá que estamos indo, doçura.

— Ah, sim…

Cecília continuou olhando para ele, esperando. Jake respirou fundo mais uma vez, reunindo coragem para continuar.

— Eu não sou professor. — Tinha sido muito mais fácil esconder a própria identidade durante um bom tempo do que lidar agora com aquele medo de que, sabendo quem ele era de fato, ela simplesmente o rejeitasse. — durante alguns anos fui ajudante de xerife.

Cecília abriu a boca, espantada. — Então você é a lei?

— Eu fui. Não era um trabalho de muito futuro, mas resolvi aceitar a oferta do xerife depois da morte do meu pai.

— Isso tudo é muito… emocionante! — exclamou Cecília, o que o encorajou.

Jake franziu a testa. — Burnet Dobbs, um velho amigo da minha família, pôs uma estrela no meu peito. Eu fiz direitinho o meu trabalho, mas como resultado acabei sendo caçado como um coelho. Não acho que isso seja lá muito… emocionante.

Cecília mordeu o lábio inferior e Jake sentiu uma vontade enorme de tomá-la nos braços para beijá-la da mesma forma como fizera quando eles tinham estado no quarto dela, sozinhos. Ela era tão doce, tão cheia de vitalidade… tão pronta para enfrentar o perigo.

— Eu devia tê-la mandado de volta para casa — ele disse.

— Ainda bem que não fez isso — disse Cecília, evidentemente querendo tornar aquela conversa mais leve. — Além disso, como já lhe disse, eu teria saído outra vez atrás de você.

Jake balançou a cabeça. — Antes disso você ficaria sabendo quem realmente eu era. Pensaria duas vezes antes de me seguir.

Com um sorriso tímido, Cecília chegou-se mais para perto dele.

— Eu permiti que me possuísse quando não sabia praticamente nada sobre você. Agora que sei, acha mesmo que eu o abandonaria?

Quando ela encostou a mão no peito dele Jake recuou.

— Não faça isso — proibiu-a Jake, embora sentindo prontamente a reação do corpo.

Então ele correu novamente os olhos pela região que os cercava, tentando não olhar naqueles tentadores olhos azuis. Durante a cavalgada havia resolvido não tocar em Cecília enquanto aquela situação não estivesse resolvida, embora a vontade dele fosse tomá-la nos braços para possuí-la ali mesmo, no meio do pasto.

— Precisamos prosseguir — disse Jake, tentando ignorar o fato de que tinha ao alcance da mão uma mulher linda e pronta a se entregar.

— Está certo — ela respondeu, puxando o cavalo até certa distância do riacho e montando.

Enquanto eles cavalgavam Cecília ficou pensativa. Jake Reed sem dúvida a considerava uma pedra no sapato dele, e isso a deixava enraivecida. Por que um homem iria querer enfrentar sozinho uma situação como aquela? Mais que isso, por que, depois do maravilhoso ato de amor que eles haviam praticado na sexta-feira, ele agora fingia não sentir a poderosa atração que existia entre eles dois.

Finalmente, quando eles estavam se aproximando de uma densa formação de árvores, ela emparelhou o cavalo com o dele.

— Se quer saber minha opinião…

— Se quiser a sua opinião eu perguntarei.

— Acho que você está fingindo que não liga para mim só para que eu não chore muito caso você morra — ela teorizou. — Mas saiba que isso é uma bobagem. Se você morrer, não me ajudará em nada pensar que você não gostava de mim. Vou chorar do mesmo jeito.

— Essa é a lógica mais absurda que já ouvi — replicou Jake.

Cecília deu de ombros. — A lógica do absurdo muitas vezes funciona, sabia? Principalmente quando lidamos com uma pessoa que não reage com franqueza ao que dizemos.

Finalmente Jake sorriu.

— Está certo, doçura. Vou ser franco com você. Eu sou um egoísta.

— Como assim?

— Não quero que você chore de jeito nenhum, caso eu morra ou não. Mas também não quero passar pelo inferno que vou ter que suportar se alguma coisa acontecer com você.

Ao ouvir aquilo Cecília ficou com a pulsação acelerada.

— Você não precisa se preocupar comigo. Sei me defender.

— Ótimo.

Jake dirigiu a ela um sorriso tenso e esporeou o animal para que ele galopasse mais depressa.

Cecília alcançou-o sem dificuldade, mas durante um bom tempo eles prosseguiram em silêncio. Jake Reed não era o tipo de homem que abria o coração com facilidade, mas o que ele havia revelado até aquele momento a deixava esperançosa sobre os sentimentos dele por ela.

Cecília perguntou-se como seria a vida com um homem como Jake. Até bem pouco antes ela havia pensado que eles não tinham nada em comum, mas era preciso levar em conta que Jake Reed estivera fingindo o tempo todo.

Finalmente eles divisaram uma casa de fazenda isolada e Cecília pôs o cavalo num passo vagaroso ao lado do dele.

— O que pretende fazer quando tudo isso terminar? — ela perguntou.

Jake vasculhou o horizonte com os olhos, pensando na pergunta dela. Será que aquele calvário um dia terminaria? Ele já havia acalentado muitos planos, mas nos últimos dois anos aprendera a não ter muitas ilusões. Na certa teria que trabalhar como empregado de alguém, pelo menos por muitos meses.

— Pretende retomar o trabalho de ajudante de xerife em Redwood? — voltou à carga Cecília.

Jake ficou apreensivo ao ouvir aquela pergunta. Duvidava que Cecília concordasse com a forma como ele via aquele problema, mas o melhor seria falar com franqueza.

— Não acho que arranjarei algum outro emprego.

— Um emprego? — perguntou Cecília, interessada. — Numa loja, por exemplo?

Jake balançou a cabeça. — Ah, não.

— Onde, então? — ela insistiu.

— Numa fazenda.

Cecília suspirou. Claro, todos os homens gostavam de trabalhar em fazendas, mas ela havia se acostumado a pensar naquele homem como Pendergast, o bem-educado professor que beijava a mão das damas. Só que aquilo tinha sido fingimento. Jake Reed não era um professor, nem o perigoso assassino que ela havia pensado. A dura verdade era que ela havia se apaixonado por um vaqueiro.

Cecília quase riu daquela ironia do destino. — Você trabalhou muito tempo como vaqueiro? — ela perguntou.

— E o que tenho feito desde que saí de Redwood. — Jake mexeu a cabeça para o lado. — Bem, qualquer um tem o direito de sonhar… Eu sempre pensei em ter a minha própria fazendinha.

Ah, sim, pensou Cecília balançando a cabeça. Justamente quando ela concluía que havia conhecido o homem com quem queria passar o resto da vida, descobria que ele queria viver numa fazenda! Por sorte ainda não havia se transformado numa idiota completa.

Então ela se lembrou. Já havia se transformado numa idiota completa. Agora era tarde demais para fingir que não estava apaixonada por aquele homem.

Uma fazenda. Oh, Deus… Como ela suportaria aquilo?

    

Uma fazenda! Cecília soltou aquela exclamação quase sem querer, mas foi como algo que viesse crescendo no íntimo dela durante a longa cavalgada para sair agora, enquanto eles comiam o espartano jantar de biscoitos, maçãs e água. Já era ruim ter perdido a cabeça por um homem que fingia ser quem não era, mas saber que ele na verdade era… ou queria ser um fazendeiro… Ah, isso tornava o erro dez vezes mais sério.

A vida inteira ela havia lutado por um único objetivo: viver uma vida melhor do que a que tivera a mãe. E agora se via caindo justamente na armadilha que tentara evitar!

Jake olhou para ela por cima do fogo aceso perto de um frondoso carvalho.

— Por acaso alguma vez eu falei mal da vida de fazendeiro? — ele perguntou, como se quisesse se defender.

Cecília cruzou os braços numa atitude de desafio.

— Não, mas sabia o que eu sentia a respeito disso. Por alguns instantes eles ficaram se olhando, num silêncio tenso. Finalmente Jake desviou os olhos.

— Esqueça — ele disse. — Não precisamos ficar a vida inteira falando sobre isso.

Cecília revirou os olhos. — Ai, meu Deus! Eu puxei esse assunto há dois minutos, mas isso é uma eternidade! — ela rebateu, numa voz cheia de sarcasmo.

Jake não respondeu e por alguns instantes eles travaram uma muda batalha de olhares e carrancas. Como vinha acontecendo desde que Cecília o alcançara, ele estava dividido entre o desejo quase incontrolável e a consciência de que não devia tocar nela enquanto o perigo não estivesse superado. Mas também estava com medo. Quem dissesse que os homens não sentiam medo não viveria por muito tempo. Jake ficava apavorado quando olhava para Cecília e imaginava alguma coisa acontecendo com ela por culpa dele. Quando aquilo tudo se resolvesse, ele cuidaria para que nunca mais ela se envolvesse numa situação tão perigosa.

Persistente, Cecília quebrou o silêncio para retomar a discussão.

— Mesmo assim você devia ter me contado.

— Quando você fazia tudo para me expulsar da cidade? — rebateu Jake. — Eu nunca disse que era um cavalheiro.

— Mas fingia ser um cavalheiro! Em nenhum momento disse que queria ser… fazendeiro.

Ela disse aquilo como se falasse de algo repulsivo. Jake teve que rir. Cecília tinha motivos de sobra para acusá-lo de não ter sido honesto com ela, mas certamente estava exagerando sobre aquele assunto.

— Uma fazenda pode ser um lugar muito interessante para se morar, sabia?

Cecília lançou a ele um olhar fulminante. — Você parece até o meu pai! Ele acha que o lugar de toda mulher é numa fazenda.

— E você discorda.

— Claro! O que eu quero é morar numa cidade grande.

Desta vez Jake riu com vontade. — Parece que resolveu começar por baixo.

— Bem, eu tinha a intenção de morar em Nova Orleans — respondeu Cecília, amuada. — Mas não deu muito certo.

Jake já ouvira falar das desventuras da Srta. Summertree em Nova Orleans. — Fiquei sabendo que você foi chutada de lá.

— Por causa de uma besteira! Eu saí escondida da escola, mas só uma vez.

— Para se encontrar com um homem? — perguntou Jake, sentindo certa dose de ciúme.

Aquilo pareceu fazer Cecília lembrar-se de algo que a fez bufar de raiva.

— Não… mas me encontrei por acaso com um rapaz conhecido. Logo depois, por cúmulo do azar, fomos vistos pelo marido da diretora da escola!

— Parece que você estava no lugar errado na hora errada.

Cecília encolheu os ombros franzinos. — Para complicar, esse lugar errado era um cassino.

— Então tudo foi piorando; como uma bola de neve — adivinhou Jake.

— Antes de entender direito o que estava acontecendo eu me vi mandada de volta para a fazenda de papai — ela relembrou. — Você nem imagina o quanto me alegrou poder trabalhar como professora substituta em Annsboro.

Jake riu novamente. — Mas você não acha Annsboro uma cidade pequena demais?

Cecília plantou os cotovelos nos joelhos e apoiou o queixo nas mãos. — Não é bem isso. O problema é que Annsboro é um lugar aborrecido… provinciano.

— Onde seus pais moravam antes de vir para cá?

— No leste do Texas. Lá eles tinham uma fazenda que rendia razoavelmente bem, mas papai queria vastas extensões de terra. Assim sendo, minha pobre mãe teve que segui-lo. Eles estiveram entre as primeiras famílias que se fixaram aqui.

— Imagino que sua mãe não tenha se incomodado com isso.

— Ah, ela se incomodou, sim — respondeu Cecília, agora muito séria, ficando em silêncio por alguns segundos antes de prosseguir. — Lembra-se daquela história sobre o ataque dos comanches?

Jake lembrou-se da primeira noite em que havia jantado na pensão de Dolly. — A história da garota que foi levada pelos índios?

— Ann Summertree era minha irmã mais velha.

Jake não soube o que dizer, sentindo uma enorme pena dela, de toda a família Summertree.

— A última vez em que vi minha mãe realmente feliz foi naquela manhã, antes do ataque dos índios. Ela e eu tínhamos ido até um local onde a água do rio fica represada, a uns dois quilômetros da casa da fazenda. Fazia muito calor, mesmo pela manhã. Nós duas entramos na água e ficamos brincando durante um bom tempo. Voltamos para casa com as roupas encharcadas.

Cecília sorriu ao relembrar aquilo, mas logo depois ficou outra vez séria.

— Quando chegamos lá, tudo estava consumado. Nossa pequena casa estava destruída e Ann havia desaparecido. Não muito longe dali morava uma família que teve o pai e um dos filhos assassinados. Houve mais um morto, além de várias casas destruídas. Eu fiquei horrorizada… mais ainda por não ter estado presente, acho. Era muito pequena, ficava imaginando as piores coisas…

A fraca luz do luar Jake viu uma lágrima escorrer pela face esquerda de Cecília, que não quis ter o trabalho de afastá-la. Quando mais lágrimas brotaram daqueles olhos azuis, ele contornou a fogueira e tomou-a nos braços. Então ela escondeu o rosto no peito dele e começou a soluçar baixinho.

— Ah, Cecília… — murmurou Jake. Cecília procurou controlar os soluços.

— Mamãe nunca deixou que falássemos sobre o assunto, nem mesmo quando as pessoas da comunidade resolveram chamar a cidade de Annsboro, em homenagem a Ann. Pelo resto da vida, ela passava várias horas do dia olhando para o horizonte, como se a qualquer momento Ann fosse voltar correndo para casa, ainda uma garotinha. Mamãe nunca deixou de ter esperanças. Jake beijou-a no alto da cabeça e na testa.

— Chore à vontade — ele disse.

Ainda abraçada a ele, Cecília bateu com os calcanhares no chão, frustrada.

— Eu detesto chorar — ela declarou, fungando. — Mas agora acho que você entende por que não posso viver aqui.

Jake pensou por alguns instantes. Não estava disposto a abrir mão daquela mulher, por mais que ela proclamasse que eles dois não tinha nada a ver um com o outro.

— Pois eu acho que você não pode viver em nenhum outro lugar.

Cecília olhou para ele, os olhos claros refletindo o luar. Outra vez estava com aquele ar petulante.

— Durante um bom tempo freqüentei a alta sociedade, sabia? E não foi só em Nova Orleans, porque por certo período que morei com minhas tias em Memphis.

— E detestou cada minuto — adivinhou Jake.

Cecília abriu a boca para protestar, mas lembrou-se da bolorenta sala de visitas de tia Caroline, em Memphis, das visitas que era obrigada a fazer a pessoas com quem não tinha nada a ver e dos intermináveis jantares durante os quais só se discutia o preço do algodão ou as coisas da política. Na verdade, em Memphis ela só havia convivido com pessoas idosas ou jovens mimados e esnobes. Além disse, sempre tivera a sensação de que era vigiada de perto para que não fizesse nada que pudesse depor contra o nome da família.

— E não acredito que você tenha sido mandada embora de Nova Orleans apenas por causa de algumas coincidências — continuou Jake. — Aposto que, embora não queira reconhecer isso, ficou aliviada quando chegou em casa.

— Há! — fez Cecília, embora sem contradizê-lo.

Jake apertou-a levemente. — Você pertence a esta região, Cecília. As pessoas daqui a aceitam como você é.

Como ele podia saber daquilo? De fato, em Memphis e Nova Orleans ela havia se sentido um tanto deslocada…

— Você tem um temperamento selvagem, Cecília — murmurou Jake ao ouvido dela, o que a deixou arrepiada da cabeça aos pés. — Procura esconder isso, mas é uma coisa que sempre fica muito clara.

— Hum… — gemeu Cecília, enquanto ele mordiscava a orelha dela. — Está enganado.

A resposta de Jake foi roçar os lábios pelo pescoço dela. Cecília ajeitou o corpo e, com isso, esfregou os seios no peito dele. Como sempre dizia o pai dela, se existia uma coceira o jeito era cocar…

— Eu só perco o controle… — ela murmurou, sentindo que ele erguia a mão para apertar os seios dela.

— Ah, é? — disse Jake, agora com os lábios bem perto dos dela.

— É, sim… quando estou zangada.

— Já a vi perder o controle quando não estava zangada — discordou Jake, beijando-a em seguida.

A essa altura Cecília já estava queimando de desejo e entregou-se ao beijo com uma paixão descontrolada. Enquanto isso eles usavam as mãos para se apalpar e apertar, na mais enlouquecida troca de carícias. Mas Cecília queria mais e pronunciou a única palavra em que conseguia pensar.

— Jake…

Ao ouvir o som do próprio nome, o nome que ela recentemente dissera não se acostumar a usar, Jake sentiu um estranho triunfo. A voz de Cecília se espalhava pela mente dele como o fogo no querosene jogado numa fogueira. O desejo que sentia era tão grande que imediatamente ele a deitou no cobertor que havia aberto sobre a relva.

Com dedos nervosos Jake começou a desabotoar o vestido dela. E a cada centímetro daquele corpo maravilhoso que ia se revelando o desejo dele só aumentava. Ah, a pele dela era tão macia, tão alva, tão quente…

Cecília sentia-se tonta de prazer com os demorados movimentos de Jake. Quando ficou sem o vestido e se viu diante dele apenas com as roupas de baixo, percebeu que isso não a deixava nem um pouco envergonhada. Ah, era muito bom entregar-se sem reservas, despudoradamente.

Instantes mais tarde, quando eles ficaram completamente nus um ao lado do outro, ela se demorou na contemplação daquele fantástico corpo masculino. Também não sentia vergonha em olhá-lo, apenas uma indescritível alegria.

Então Jake se deitou por cima dela e penetrou-a, vagarosamente. Cecília pensou que seria consumida pelo fogo que queimava nas entranhas dela. Pouco a pouco os movimentos dele foram se tornando mais intensos, até que eles chegaram juntos ao orgasmo, numa louca confusão de braços e pernas.

Depois ficaram imóveis nos braços um dos outro. O único som que quebrava o silêncio da noite era a respiração deles, que só indicava satisfação.

Satisfeita. Era assim que Cecília se sentia. Apesar do perigo que os cercava, ela estava com a cabeça leve. Os problemas que ficassem para o dia seguinte. Naquela noite só importava a felicidade, a plena felicidade.

Cecília sentiu o delicioso cheiro de café e espreguiçou-se languidamente. Todo o corpo dela se encontrava em estado de graça e apenas um instante se passou antes que viesse à lembrança o que havia motivado aquilo. Então ela sorriu e mexeu o corpo para se ajeitar por baixo do cobertor.

— Hora de se levantar.

Ao ouvir o som daquela voz Cecília abriu os olhos para ver Jake sentado ao lado dela, segurando uma caneca de café fumegante.

— Bom dia — ela disse com um sorriso que era um misto de sedução e timidez.

O movimento fez com que o cobertor escorregasse, revelando os ombros dela. Ao ver aquilo Jake fechou o semblante.

— Tome — ele disse, virando o rosto.

Cecília pegou a caneca mas prontamente a pôs no chão, decidida a fazê-lo mudar de atitude. Num traiçoeiro gesto de serpente, passou o braço por trás do pescoço dele e puxou-o para bem perto.

— É assim que você me deseja bom dia? — ela perguntou, antes de beijá-lo nos lábios.

Jake não conseguiu se soltar imediatamente. Sentir o gosto dos lábios de Cecília era o mais delicioso café da manhã que já havia experimentado, mas ainda havia quilômetros a cobrir naquele dia e eles precisavam se pôr logo em movimento. Mesmo relutante ele segurou nos ombros dela e a empurrou até uma distância segura, tentando afastar da memória as lembranças da noite de amor que eles haviam partilhado.

Cecília segurou nos braços dele, impedindo-o de se afastar.

— Algum problema, Jake?

Antes de responder Jake engoliu em seco.

— Eu… bem, acho melhor pararmos um pouco de pensar no que aconteceu ontem à noite.

Cecília ficou confusa e sentiu-se corar. Nada daquilo fazia sentido para ela, menos ainda as palavras de amor que ouvira dele durante o ato sexual. Então ela se sentou, cuidadosamente escondida pelo cobertor, e procurou no rosto de Jake alguma indicação de que ele também pensava nas intimidades que eles haviam partilhado não muitas horas antes. Nada.

Então ela desviou os olhos para as cinzas da fogueira.

— Bem… acho que as pessoas não fazem… aquilo pela manhã, não é?

Jake esforçou-se para não rir. Só Deus sabia o quanto ele queria tirar as roupas para ficar embaixo do cobertor com ela, mas isso era impossível. Eles precisavam juntar tudo e sair dali o mais depressa possível. Gunter devia estar por perto e, se os encontrasse, dificilmente respeitaria a privacidade deles. Mas não era só isso, porque ao fazer amor eles podiam criar um outro problema… se já não haviam criado.

Mas aquela não era a hora de explicar isso a Cecília, que parecia tão despreocupada com as possíveis conseqüências do que eles tinham feito quanto na noite anterior.

Jake achou melhor não tocar no assunto. — Você precisa se vestir — ele disse.

Cecília empalideceu. — Está certo — ela disse, indignada. — No entanto, já que estou nua, você vai ter que pegar as minhas roupas. Depois, gostaria também que me fizesse o favor de se afastar daqui.

Jake levantou-se e deu alguns passos recolhendo as roupas dela, que entregou com a mão direita estendida. — É um prazer. Os olhos de Cecília faiscavam.

— Agora suma, por favor.

Jake virou as costas e foi para a beira do riacho ali perto, para onde havia levado os cavalos antes de acordar Cecília. Oh, Deus! Como aquela mulher podia pensar que ele não a desejava? Durante quase uma hora ele ficara olhando para aquele lindo rosto adormecido, dominado por sucessivas ondas de enternecimento e desejo.

Jake olhou para o lado e viu que Cecília se dirigia para o riacho, já envergando o amarrotado vestido.

Depois de lavar rapidamente o rosto, ela ergueu o corpo e caminhou para onde ele se ocupava em arrear os cavalos.

— Pode deixar que eu cuido do alazão — ela disse, com altivez.

— Fique à vontade — respondeu Jake, com absoluta naturalidade, passando a se ocupar apenas do cavalo dele.

Cecília ficou pasmada. Bem, Clara devia ter razão quando dizia que os homens não mostravam nenhum respeito por uma garota depois de terem se aproveitado dela.

Cecília ergueu a cabeça. Será que aquele homem não tinha nenhum respeito por ela? Não, isso não seria possível. Jake tinha sido tão terno, tão amoroso… Devia haver um motivo para as moças se precaverem tanto contra situações como aquela e Cecília desconfiava de que acabava de descobrir qual era. Aquilo era mais doloroso do que ter a reputação manchada ou causar um escândalo na família. Um homem como Jake Reed podia fazer uma mulher sofrer muito.

Ela estava sofrendo, um fato que a deixava pasmada. Como podia ter deixado que aquilo acontecesse? A vida inteira havia tomado todos os cuidados para não se apaixonar, mas acabara caindo direitinho na armadilha, mesmo sabendo que aquele homem não era quem dizia ser, mesmo sabendo que se sentia atraída por ele como jamais se sentira por nenhum outro homem. Devia ter previsto que, depois de receber o amor e a confiança dela, Jake Reed simplesmente a descartaria.

Como podia ter sido tão idiota? Mesmo assim Cecília sabia que bastaria ele estalar os dedos e ela repetiria a insensatez da noite anterior. Mais preocupante ainda era ela ficar com vontade de chorar como uma criança por saber que ele não voltaria a pedir isso, nunca mais.

Depois de arrear o próprio cavalo, Jake olhou para o dela.

— Posso selar o meu cavalo — disse Cecília, adiantando-se.

— É, eu sei — ele respondeu, afastando-se um pouco.

— Também sei entender as indiretas.

Jake franziu a testa e olhou para ela. — Como assim? Cecília suspirou.

— Estou querendo dizer que você não precisa se preocupar porque não vou tentar seduzi-lo. Saberei manter distância de você.

— Ótimo — disse Jake, ocupando-se em examinar os arreios do animal.

Ótimo? Cecília quase gritou de raiva. Será que aquele cretino achava que podia se livrar dela como se estivesse batendo a poeira das roupas? Ah, ele ia ver uma coisa!

Cecília pegou o rifle do pai, verificou se estava carregado e apontou-o para o peito de Jake Reed.

— Acho recomendável você procurar uma forma mais bem-educada de me tratar — ela disse, em tom de ameaça.

Jake olhou para o cano da arma com olhos arregalados.

— Que história é essa?

Estou dizendo que, se você já se fartou de mim, podia pelo menos ter a decência de fingir o contrário.

— Mas eu não me fartei de você — rebateu Jake, o que deixou Cecília ainda mais enraivecida, temerosa mesmo de apertar o gatilho do rifle. Percebendo aquilo, ele se apressou em explicar: — E só que… nós não podemos fazer amor novamente.

Cecília corou de vergonha ao ouvi-lo dizer aquilo com tanta clareza.

— Concordo plenamente — ela declarou, tentando a todo custo salvar o próprio orgulho. — Não devíamos ter feito na primeira vez. Nem na segunda.

— Cecília, há um homem muito perigoso querendo nos pegar. E ele podia ter nos encontrado ontem à noite.

— Já disse que concordo com você, Jake.

Por que ele tinha que jogar sal nas feridas dela? Jake suspirou profundamente e voltou os olhos para o horizonte.

— E acho também que devíamos nos casar.

Ao ouvir aquilo Cecília sentiu o sangue gelar nas veias. Depois de refletir por alguns segundos sobre as palavras dele, foi abaixando o rifle, devagar, dominada pela perplexidade.

— Você… quer se casar comigo?

Se ele queria se casar com ela? Jake até achava surpreendente ela não rir por ele ter tido a audácia de sugerir aquilo. E era bem possível que ainda risse. Recentemente Cecília dissera que não queria nada com alguém que quisesse viver numa fazenda. Então ele assentiu com a cabeça, cautelosamente.

— É, eu quero.

Aquilo era como um milagre… um milagre relutante, a julgar pelo tom de voz dele. Casamento. Sra. Jake Reed. Nem parecia ser verdade. Cecília já ouvira outras propostas de casamento, mas nada que levasse tão a sério como a de agora. No entanto, a forma como ele havia se expressado a deixava pensativa.

— Espero que você não se sinta na obrigação de se casar comigo, Jake.

Jake soltou um riso de incredulidade. — Não acha que eu devia?

— Não, não acho — ela respondeu, com altivez.

— Bem, está enganada.

— Não quero que você se case comigo só por se sentir obrigado a isso — ela declarou, rispidamente.

Jake não quis acreditar no que ouvia, mas ela estava rechaçando a proposta de casamento. Então ele segurou no braço dela e puxou-a mais para perto.

— Cecília… sei que você não está acostumada a pensar em coisas mundanas, assuntos práticos, mas o que fizemos ontem à noite tem suas conseqüências.

Conseqüências. Cecília sentiu-se como se uma montanha estivesse desabando em cima dela.

— Se está preocupado com o preço do pecado…

— Você não está?

— Posso cuidar de mim sozinha.

— Mas não vai fazer isso — rebateu Jake, sacudindo-a para enfatizar o que dizia. — Não enquanto eu estiver por perto.

Cecília tentou inutilmente soltar-se da mão dele, com os olhos faiscando.

— E que sua proposta de casamento me deixou tonta, Sr. Reed — ela disse, num tom cheio de sarcasmo.

— Eu pensei que você ficaria aliviada.

Cecília pensou, com sentimento de culpa, no alívio que de fato havia sentido… por Jake ainda a desejar, não por ele querer se casar com ela. Mas não teria coragem de dizer que aceitaria continuar a situação anterior, sem fazer questão do que ele estava propondo. Além disso, nem uma única palavra havia sido pronunciada sobre amor, um ingrediente que ela considerava indispensável num casamento. De que outra forma duas pessoas poderiam se suportar durante uma vida inteira?

Mas o orgulho de Cecília não permitia que ela pedisse amor, a quem quer que fosse.

— Nem de longe você é o tipo de homem com quem eu quero passar o resto da vida — ela declarou.

Jake ficou tão espantado que soltou o braço dela. Não era natural uma mulher ficar lisonjeada ao ouvir uma proposta de casamento? Na opinião dele era isso o que Cecília sentia e aquela era apenas a forma que ela havia encontrado para demonstrar isso, já que era sempre uma cabeça-dura. Fosse qual fosse o caso, tudo levava a crer que ele teria pela frente uma vida inteira de trocas de insultos. Para demonstrar um pouco de boa vontade ele deu um passo adiante.

Aquele gesto foi respondido pelo disparo de um rifle. O cavalo preto relinchou, assustado, e Jake no mesmo instante se jogou ao chão, levando Cecília consigo e correndo os olhos em volta. Eles estavam no fundo de uma leve depressão do terreno e acima havia uma formação de árvores. A única proteção com que poderiam contar eram alguns arbustos perto do riacho.

— Precisamos buscar abrigo — cochichou Cecília. Antes que Jake pudesse responder ela se levantou e correu para os arbustos, atraindo uma bala que milagrosamente não a atingiu.

Jake arrastou-se rapidamente até onde ela estava.

— Ficou maluca? — ele gritou, quando ela espiou por cima da folhagem. — Mantenha-se abaixada.

Cecília já estava com o rifle pronto para entrar em ação enquanto ele ainda tentava fazer um balanço da situação. Jake girou o tambor do Colt para conferir a munição, com o coração em disparada. Gunter! A situação era desesperadora, principalmente porque Cecília continuava ajoelhada ao lado dele, com uma aparência absolutamente calma.

—Abaixe essa coisa e fique atrás de mim — ele instruiu, olhando para as árvores no alto da pequena colina.

Se eles permanecessem ali, seriam abatidos como patos indefesos.

— Por que acha que devemos nos esconder? — perguntou Cecília.

—Você não conhece Gunter — disse Jake, como resposta.

— Será que ele está sozinho?

Jake não disse nada. Gunter não estava sozinho ao atacá-lo na estrada para Fredericksburg, mas aquele não era um jogo de adivinhação. Era um jogo de morte, com Cecília e ele na alça de mira do assassino.

Por quanto tempo Gunter os manteria naquela situação? Por experiências passadas, Jake sabia que paciência era o que não faltava àquele desgraçado.

Por intermináveis minutos eles ficaram escondidos por trás do arbusto, olhando para frente. Finalmente Jake resolveu quebrar o silêncio.

— Apareça, Gunter! — ele gritou para o alto da colina. A resposta foi uma bala que passou a poucos centímetros do crânio dele. Jake sentiu uma onda de raiva.

— Você errou, Gunter! Saia de onde está e venha lutar como homem, só você e eu!

Outra bala assobiou no ar.

— Diabo! — resmungou Jake, olhando para o lado para ver se Cecília não fora atingida.

Ela continuava olhando fixamente para as árvores, lá em cima. Aparentemente mantinha o sangue-frio, mas talvez fosse mais fácil lidar com uma mulher que, numa situação como aquela, estivesse chorando histericamente. Pelo menos ele saberia o que fazer para protegê-la.

Mesmo assim era preciso tentar.

— Há uma mulher aqui embaixo, Gunter. Ela não tem nada a ver com as nossas diferenças.

Cecília balançou furiosamente a cabeça. — Não faça isso, Jake.

Por alguns instantes fez-se silêncio, até que uma sinistra gargalhada alcançou os ouvidos deles.

— Também tenho alguém comigo, Reed.

Cecília e Jake trocaram um olhar de espanto e logo depois viram uma silhueta aparecendo do meio das árvores. Era uma mulher, alguém que Cecília já vira. Aquilo a fez levar a mão à boca para conter um grito.

— Ele está com Rosalyn Pendergast! — ela cochichou, numa voz cheia de raiva.

Jake perguntou-se como aquela mulher podia ter se metido naquela encrenca. E agora Gunter a empurrava para frente, usando-a como escudo. Há muito tempo que Jake odiava aquele desgraçado, mas não tanto quanto agora.

Enquanto os dois iam se aproximando, com Gunter tão perto da srta. Pendergast que certamente estava com as pernas coladas nas dela, Jake percebeu que as chances de sobrevivência dele e de Cecília eram mínimas. Ele jamais conseguiria acertar uma bala em Gunter com aquela mulher na frente. E, o que era pior, usando-a como proteção Gunter chegaria tão perto que até poderia atirar nele a queima-roupa. Depois faria o que bem quisesse com Cecília e a outra mulher.

Vagarosamente Cecília foi se afastando dele, buscando a outra extremidade do arbusto.

— Fique quieta — ordenou Jake.

— Não se preocupe comigo — ela respondeu, num tom cortante.

Não se preocupar com ela? Há dias que ele não pensava em outra coisa! Silenciosamente Jake rezou para que Cecília não cometesse a loucura de tentar correr até onde estavam os cavalos deles.

— Solte a mulher! — ele gritou.

Oh, Deus, como aquilo podia estar acontecendo? Há um bom tempo que Jake vinha enfrentando sozinho aquela luta, mas agora tinha a responsabilidade de pensar em salvar a vida de duas mulheres. E uma delas era a irmã de Pendergast, que havia morrido no lugar dele!

Gunter havia amordaçado a Srta. Pendergast com um velho lenço. Jake sentiu um arrepio ao se perguntar o que mais o cretino podia ter feito com aquela pobre mulher. Agora o patife soltava outra gargalhada. Em todos aqueles anos Jake jamais ouvira aquele som. Na certa Gunter achava que havia chegado à hora do triunfo.

— Por que não manda para cá a mulher que está com você, Reed? Depois disso, talvez eu solte a que tenho comigo!

Jake olhou para Cecília, que estava com os dentes trincados. E ela mantinha o Spencer apontado para frente, o que não devia ser fácil, já que aquele rifle era pesado.

— Ela não quer ir, Gunter — ele respondeu, resolvendo caçoar do adversário. — Parece que não confia muito em você.

— Então venha você — gritou Gunter. —Do contrário, meterei uma bala na cabeça desta aqui.

Dito isso o homem encostou o cano do revólver na têmpora de Rosalyn Pendergast. Jake sentiu um aperto no coração ao ver a expressão de pavor da mulher. Era como se ela estivesse suplicando misericórdia a um homem que não conhecia o significado dessa palavra. E também pedia socorro a Jake, que só poderia ajudá-la se expondo à sanha daquele assassino. Mas o que seria dela depois que ele estivesse morto? O que seria de Cecília?

Jake apontou o revólver, esperando que, por algum milagre, pudesse atingir Gunter. Não havia outra saída. Os cabelos muito claros por baixo do chapéu preto do homem proporcionavam um bom alvo, mas Gunter tomava o cuidado de ficar se mexendo, o que impedia Jake de atirar sem correr o sério risco de atingir a mulher.

Finalmente ele concluiu que precisaria correr aquele risco. Teria que concentrar toda a atenção na cabeça do homem. Um tiro. Se errasse, tudo estaria perdido.

Quando os cabelos louros de Gunter pararam por um instante no lado esquerdo da cabeça da mulher, Jake não hesitou mais e rapidamente engatilhou o Colt. Mas não foi rápido o suficiente. Gunter ouviu o clique da arma e apontou o revólver para o arbusto. Naquele segundo, o segundo antes que a bala assassina cortasse o ar, Jake teve certeza de que era um homem morto.

Ele nem apertou o gatilho do Colt, esperando o projétil que o atingiria no peito. Em vez disso ouviu uma explosão e um clarão vermelho. A primeira coisa em que pensou foi que Rosalyn tinha sido atingida, já que ela caía ao chão, mas aquilo havia acontecido apenas porque a mulher se vira livre do aperto do braço de Gunter. Ao mesmo tempo o homem de cabelos muito claros era jogado violentamente para trás, agitava os membros num reflexo e logo depois ficava imóvel. Para sempre.

Jake olhou para o Colt, que continuava frio na mão dele, e depois se voltou para Cecília. Os olhos azuis brilhavam de satisfação, embora os lábios estivessem contraídos, como se ela sentisse um gosto amargo na boca.

— Eu o peguei — ela disse, finalmente abaixando o rifle.

No instante seguinte Rosalyn soltou um gemido. Jake pensou que talvez ela também estivesse ferida, mas a mulher apenas retirou a mordaça da boca e debruçou-se para vomitar. Cecília e Jake levantaram-se, ainda cautelosamente empunhando as armas, e foram se aproximando.

Quando chegou bem perto, Jake segurou no braço de Rosalyn para ajudá-la. Não podia censurá-la por ter tido aquela reação. Só de ver o velho inimigo esparramado no chão com um enorme buraco na testa, ele também sentia o estômago embrulhado. Certamente não era o tipo de cena a que uma dama de Filadélfia estaria acostumada.

    

— Está morto — constatou Cecília, examinando o corpo de Gunter sem o menor sinal de pena. — Acertei em cheio.

Jake continuava perplexo. — Mal posso acreditar que você tenha feito isso.

— Eu disse que você se surpreenderia comigo, não disse? — Logo depois Cecília deu de ombros e limpou o suor da testa com a manga do vestido. — Minha posição era melhor do que a sua. Gunter ouviu sua voz e encaminhou-se para o local onde você estava. Além disso, eu estava bem mais para a esquerda e podia ver uma boa parte do corpo dele.

— Eu tive medo de atingir a Srta. Pendergast — disse Jake.

— Se tivesse atirado, provavelmente acertaria nela — concordou Cecília.

Rosalyn abaixou a cabeça para limpar os lábios na saia e, tremendo muito, tentou levantar-se.

— Oh, meu Deus — ela gemeu.

— Está se sentindo melhor? — perguntou Jake.

A mulher balançou afirmativamente a cabeça e, para surpresa de Jake, caminhou para onde estava Gunter. Com cuidado ela empurrou a perna do homem morto com o bico do sapato, como se tivesse medo de que ele voltasse à vida.

— Desgraçado! — disse a mulher, cuspindo no cadáver de Gunter. — Desgraçado!

Como se quisesse se certificar, ela chutou novamente a perna do homem caído, agora com mais força. Jake segurou no braço dela.

— O homem está morto — ele garantiu, procurando afastá-la daquela cena macabra. — Recebeu o que merecia.

— Não! — discordou Rosalyn Pendergast, gritando. — Nada, por mais terrível que fosse, seria suficiente para castigar um homem como esse, nem mesmo se ele tivesse a pele arrancada e depois fosse jogado em óleo fervente, tivesse as unhas e os olhos retirados.

— Tem certeza de que está bem, moça? — perguntou Jake, trocando com Cecília um olhar de espanto.

Lágrimas de revolta começaram a escorrer pelas faces de Rosalyn e ela olhou para Jake como se quisessem pedir desculpas.

— Você é Jake Reed, não é?

— Sim — ele confirmou.

A mulher sacudiu a cabeça. — Ah, estou tão envergonhada… Havia começado a pensar que era você o assassino do meu irmão e inadvertidamente revelei àquele desgraçado o seu paradeiro.

— Sinto muito pelo que aconteceu com seu irmão, srta. Pendergast. E peço desculpas por não ter podido lhe revelar logo a verdade.

Rapidamente ele discorreu sobre os eventos que deixara de revelar na carta. Rosalyn balançou a cabeça.

— Gunter me contou o que aconteceu em Guthrie… pelo menos o que ele tinha conhecimento. Eu só precisei juntar as partes do quebra-cabeça.

— Você deve ter ficado apavorada — disse Cecília, ainda surpresa com a reação da mulher, mesmo aquela raiva toda se destinando ao assassino do irmão dela. — Por acaso ele… fez mais alguma coisa com você?

Rosalyn dirigiu um olhar de nojo e desprezo ao homem caído. — Se tivesse tentado, eu o mataria com as minhas próprias mãos.

Outra vez Cecília e Jake se entreolharam.

— Graças a Deus agora está tudo acabado — disse Cecília, apertando levemente o ombro de Rosalyn. — Voltaremos para casa e logo você poderá retornar a Filadélfia.

— Filadélfia? — repetiu Rosalyn, como se não entendesse o significado daquela palavra.

Era compreensível. Depois de tudo por que havia passado, aquela mulher devia achar que havia partido a muitos anos da cidade natal.

— Ninguém vai voltar para casa ainda.

Cecília e Rosalyn voltaram-se para Jake, que olhava para o horizonte, outra vez com aquela expressão de frieza.

— Não sei quais são os seus planos, mas tudo o que eu quero é um bom banho quente e a deliciosa comidinha de Clara — declarou Cecília.

O semblante de Jake não se modificou.

— Bem, você terá que esperar até que cheguemos a Redwood.

— Redwood? — protestou Cecília. — Mas isso é mais um dia de viagem e eu quero ir para casa! — Então ela apontou para o norte, enfática. — Para lá.

Jake balançou vagarosamente a cabeça, com os lábios apertados.

— Sinto muito. Darby ainda está lá, esperando por mim.

— Darby? — disse Rosalyn, espantada, talvez se perguntando se havia um outro homem ameaçando seqüestrá-la.

— Não era Darby quem perseguia você — argumentou Cecília.

— Mas estava por trás de tudo isso. Gunter era apenas o testa-de-ferro dele.

— Então você devia procurar os agentes da lei.

Jake fez uma careta. — Eu era a lei, mas isso nunca me ajudou em nada.

— Mas se você contar o que Darby fez…

— O que Darby fez? — interrompeu-o Jake. — É justamente esse o problema, Cecília. Homens como Darby não os executam os próprios trabalho sujo. O homem expulsou a minha família da nossa terra e praticamente matou meu pai. Mesmo assim, a única queixa que consegui apresentar contra ele foi a de roubo de cavalo, e nem isso adiantou muito.

— Você disse que ele passou uma temporada na cadeia. Talvez isso o tenha reabilitado.

Jake soltou uma gargalhada que era um misto de revolta e indignação.

— Reabilitado? Isso é conversa de otimistas incorrigíveis. O que sempre acontece é um criminoso sair da cadeia ainda pior do que quando entrou.

— Meu pai sempre disse que só se deve atirar em alguém que seja uma ameaça presente — tentou argumentar Cecília. — Você mesmo disse que não vê Darby há anos.

— Mas eu o conheço. Darby é mau. Gunter era genro dele e os dois estiveram juntos na cadeia… por minha causa. Foi lá que planejaram a minha morte. Não posso deixá-lo livre por aí.

— Mas você não tem certeza! — persistiu Cecília, frustrada. — Não pode persegui-lo sem ter uma única evidência contra ele.

Ao ouvir aquela palavra Jake sentiu vontade de cuspir para o lado, como Rosalyn fizera no cadáver de Gunter.

— Quer saber qual é a evidência que eu tenho?

— Qual? — perguntou Cecília, com a cabeça erguida.

— Ter sido caçado implacavelmente por mais de um ano — respondeu Jake. — Minha evidência é não ter podido levar uma vida normal, ter que ficar correndo de um lugar para outro para não ser morto. E tenho mais evidências: um homem que morreu no meu lugar e a irmã dele, que foi seqüestrada por minha causa.

— Por Gunter! — persistiu Cecília. — Para ir à caça de Darby você precisa ter a lei a seu lado.

— Cecília tem razão — pronunciou-se Rosalyn, balançando solenemente a cabeça.

— Não, ela está redondamente enganada — rebateu Jake, mesmo sem saber como provar o que dizia. Cecília podia argumentar à vontade, mas o que importava era o que os instintos dele mandavam. Darby teria que pagar pelos crimes que havia planejado. — Nós vamos para Redwood. Sinto muito, srta. Pendergast.

Talvez influenciada pela veemência dele, Rosalyn se submeteu.

— Bem, acho que devemos fazer o que você achar mais correto.

Cecília abriu os braços. Podia simplesmente cavalgar para o norte, o que atenderia aos interesses deles dois, mas ela não tinha a menor intenção de se afastar de Jake. Sem ter certeza de que ele estava bem, como poderia dormir à noite?

— Não vou perder você de vista — ela declarou.

— Ah, vai, sim — respondeu Jake. — Logo que chegarmos perto, mandarei você e a srta. Pendergast para a cidade. Vocês duas esperarão por mim lá.

Cecília ofendeu-se com aquilo. Estava querendo ajudá-lo, mas ele recusava até aquilo!

— Esperar por você? — ela repetiu, amuada. — Esperar até que você seja morto, não é isso?

— Pelo que estou vendo, você acredita um bocado em mim — rebateu Jake.

Ele disse aquilo imitando o jeito como ela falava, o que deixou Cecília furiosa. Como Jake podia brincar com aquele assunto quando ela havia se entregado fisicamente a ele, saído atrás dele numa situação terrivelmente perigosa e ficado ao lado dele durante um tiroteio, chegando mesmo a abater o homem que o ameaçava? Não eram demonstrações eloqüentes de confiança? No lugar dela, uma moça prudente teria voltado para casa e esperado que aquele ajuste de contas se resolvesse, em vez de se postar ao lado do homem amado pronta para enfrentar qualquer perigo.

— Eu confiava em que você percebesse que seria mais prudente ter a ajuda de alguém — ela disse, procurando esquecer a raiva.

— Desta vez será um contra um — respondeu Jake. — Acho que tenho boas chances.

— Mas se tiver minha ajuda suas chances melhorarão um bocado.

Jake balançou a cabeça, devagar. Aquela mulher não estava querendo mesmo entender.

— Não, Cecília. Se você estiver lá, eu ficarei o tempo todo preocupado com a sua segurança em vez de pensar apenas em realizar o serviço.

— Aqui eu fui de grande ajuda, lembra-se? — ela insistiu, sem querer recuar um milímetro.

— Sim, mas fiquei o tempo todo morrendo de medo de que alguma coisa acontecesse com você. Desta vez seremos apenas Darby e eu.

Cecília cerrou os punhos. — Mas que coisa, homem! Parece até que você está procurando a morte.

Nada podia estar mais longe da verdade. Ao vê-la com aquele ar petulante, enfrentando-o com tanta bravura, Jake sabia que tinha um motivo muito forte para viver. Cecília estava dando sentido à vida dele. Se ela ficasse em perigo, ele não teria mais motivos para buscar a vitória na batalha com Darby.

Na certa percebendo a tensão que envolvia aquela discussão, Rosalyn afastou-se discretamente dirigindo-se para o local onde eles haviam acampado na noite anterior.

Jake estendeu a mão para segurar no braço de Cecília, achando que um contato físico talvez servisse para acalmá-la, mas ela se furtou do toque. Era difícil acreditar que pouco tempo antes ele havia proposto casamento àquela mulher e que com ela havia passado os momentos mais prazerosos da vida dele. E eram justamente esses os motivos por que queria protegê-la.

— Se for para ver alguma coisa ruim acontecendo com você, prefiro morrer mesmo — declarou Jake.

Cecília mostrou-se sensibilizada com aquilo, mas não mudou de idéia.

— Se estivermos juntos, nenhum de nós dois correrá perigo.

Jake estava muito tentado a concordar, a satisfazê-la. Se a tivesse por perto, pelo menos poderia ficar de olho nela. Mas seria perigoso demais. Um leve descuido e ele estaria morto… Cecília estaria morta.

— Não.

Cecília deu um passo adiante, com um olhar suplicante. — Não quer nem pensar no assunto?

Jake balançou a cabeça. — Quando nos aproximarmos de Redwood você e a srta. Pendergast irão para a cidade. Se quiser tomar conta de alguém, cuide dela.

Cecília lançou a ele um olhar cheio de amargura. — Não quero ter nada com um homem que não me trata em pé de igualdade, Jake Reed. Se você não me respeita…

Jake abriu os braços. — Isso não tem nada a ver com respeito. A briga não é sua, Cecília.

Cecília parecia a ponta de gritar, mas controlou-se. Pelo menos um pouco. Então ela olhou de lado e viu que Rosalyn não estava por perto.

— Se pensa que vim até aqui para servir de enfermeira para uma ianque enquanto você caminha para a morte, está muito enganado.

— A srta. Pendergast é uma dama — disse Jake, achando que aquela discussão talvez a levasse de volta à razão. — Enquanto banca a enfermeira, talvez você possa aprender alguma coisa com ela… pelo menos a ter um pouco de sensibilidade.

Cecília empalideceu e Jake percebeu que não havia escolhido direito as palavras.

— Sensibilidade! — ela repetiu, agora vermelha de raiva. — Se acha que é ter sensibilidade ir sozinho ao encontro de um homem que sempre quis a sua morte, fique à vontade.

Cecília virou as costas e caminhou para o acampamento. Logo depois, vendo que Rosalyn estava lá, caminhou em outra direção. Evidentemente queria ficar sozinha. Jake pensou em segui-la mas ficou onde estava. Se a alcançasse seria para abraçá-la e dizer que a amava e tinha um medo terrível de perdê-la. Também repetiria que a queria por esposa, desejando amá-la pelo resto da vida.

Mas não era a hora certa para dizer nada daquilo. Cecília sentia muita atração pela aventura, pelo desafio, exatamente os principais ingredientes daquela situação. E ela também deixara claro que não sentia a menor atração pelo que ele pretendia fazer da vida depois que aquilo tudo estivesse resolvido. Assim sendo, não seria justo deixar que ela se envolvesse ainda mais com ele, para depois vê-la frustrada.

Jake suspirou. Quando se livrasse de Darby ele teria paz… mas não teria Cecília.

Rosalyn Pendergast lançou um olhar de desgosto aos três cobertores alinhados ao lado do fogo.

— Isso é agradavelmente romântico, não é mesmo? Para Cecília aquilo apenas a lembrava de que teria que passar mais uma noite rolando no chão duro… e desta vez sozinha.                        

— Vamos esperar que você tenha as costas resistentes — ela respondeu.

— Ah, não é isso o que me preocupa, mas…

A mulher interrompeu o que ia dizendo e correu os olhos pelas cercanias, nervosa.

Cecília também olhou em volta, mas não viu nada que chamasse a atenção.

— O que a preocupa, então?

— Bem… acho que não é nada.

Rosalyn Pendergast havia falado muito pouco durante a longa cavalgada, sem se queixar de nada, embora Cecília soubesse que ela havia querido parar para descansar pelo menos duas vezes mais do que Jake havia sugerido.

— Se alguma coisa a perturba, Rosalyn, é melhor falar agora.

— Bem, eu sei que… Sei que posso parecer muito puritana, mas… Bem, não acha que dormirmos nós três desse jeito é um tanto… primitivo?

Cecília olhou novamente para os três cobertores e riu. — Se eu pudesse, roubaria uma cama com colchão de plumas para você — ela respondeu.

Pelo menos naquela noite Jake havia deixado que eles dormissem com o fogo acesso, já que Gunter não era mais uma ameaça.

Rosalyn olhou furtivamente para as árvores no meio das quais Jake havia desaparecido em busca de gravetos. Depois voltou os olhos novamente para o cobertor onde ele iria dormir.

— Eu só quis dizer que isso parece um tanto impróprio. Embora a mulher agora estivesse sendo bem mais clara, Cecília demorou alguns instantes para entender.

— Ah, você não quer dormir ao lado de Jake, não é?

Rosalyn corou fortemente. — Acho que é tolice minha ficar pensando essas coisas.

Cecília ouviu os passos de Jake na escuridão e sorriu maliciosamente. Tolice? A única tolice era ela não ter pensado naquilo antes.

— Ah, não — ela disse, muito séria, enquanto enrolava o velho cobertor de Jake. — Fico até envergonhada por não ter me preocupado com isso.

— Eu não queria causar essa inconveniência ao Sr. Reed…

— Que inconveniência, srta. Pendergast? — perguntou Jake, aproximando-se das duas.

Cecília voltou-se e, com uma expressão de sobriedade, estendeu as duas mãos segurando o cobertor enrolado.

— Resolvemos que seria melhor você dormir em outro lugar — ela o informou.

— Mas se alguma coisa… — Jake interrompeu o que ia dizendo quando viu os olhos arregalados de Rosalyn. Não seria boa coisa assustá-la ainda mais falando do que poderia ameaçá-las no meio da noite. — Vocês duas ficariam sem proteção — ele concluiu.

Rosalyn ergueu as sobrancelhas, certamente pensando naquele argumento.

Cecília, ao contrário, apenas se divertia com aquilo. Depois de ter ouvido de Jake a sugestão de que aprendesse com Rosalyn como devia ser o comportamento de uma dama, não podia deixar passar aquela oportunidade.

— Por favor, Jake… Não seria direito — ela disse, cheia de recato. — Afinal de contas, somos duas damas.

Desta vez foi Jake quem franziu a testa. — A que distância vocês querem que eu fique?

Rosalyn parecia muito constrangida com aquela situação. — Se isso for muito complicado…

— Bem longe — cortou Cecília, fechando e abrindo lentamente as pálpebras. — Nós, damas, sempre damos muita importância à nossa privacidade.

Jake torceu o canto da boca. Mesmo assim ele não iria discutir se Cecília era ou não uma dama na frente de uma pessoa estranha, menos ainda na presença de alguém que muito provavelmente voltaria com eles para Annsboro. Se soubesse do que já havia acontecido entre eles dois, aquela mulher talvez desse com a língua nos dentes quando chegasse à cidade, o que seria terrível para a reputação de Cecília.

— Está certo — ele concordou, finalmente pegando o cobertor.

Vinte e quatro horas antes ele havia passado uma noite maravilhosa, mas agora… Ainda bem que, depois daquela longa cavalgada, Jake estava tão cansado que provavelmente dormiria tão logo se deitasse.

Com um sorriso nos lábios Cecília ficou olhando para Jake, que se afastava vagarosamente. Até piscou o olho quando ele se voltou para olhá-la.

— Aqui está bom, majestade? — ele perguntou, erguendo a voz, depois de ter se afastado certa distância.

— Está, mas procure não roncar muito alto — respondeu Cecília, implacável.

Rosalyn olhou timidamente para ela. — Vocês dois estão… namorando, não é?

— Há! — exclamou Cecília, desabando no cobertor e espichando as pernas. — Mas tenho o palpite de que amanhã iremos juntos para Redwood.

Minutos mais tarde, vestindo um pesado camisolão, Rosalyn sentou-se ereta no cobertor que ia usar. Eles haviam expropriado de Gunter aquele cobertor, juntamente com o cavalo e todos os arreios.

— Deve ser excitante estar envolvida com um homem assim — comentou a mulher.

— Irritante, talvez — opinou Cecília. — Jake Reed é duro na queda.

— Você também — declarou Rosalyn, na certa sem pensar direito no que dizia. Ao ver a reação de Cecília ela rapidamente procurou se explicar. — Eu quis dizer que admiro muito a sua coragem. Você salvou a minha vida.

Aquilo tranqüilizou Cecília, embora ela não desse muita importância ao elogio.

— Mesmo que estivesse desarmado, Jake teria liquidado aquele cretino antes que ele pudesse causar um único arranhão em qualquer uma de nós.

— Eu estava apavorada — disse Rosalyn. — Mas você, não! Em nenhum instante demonstrou hesitação! Quando tudo terminou eu era um farrapo de pessoa, enquanto você estava perfeitamente controlada.

— Nunca senti tanto medo na vida — confessou Cecília, embaraçada por Rosalyn estar se referindo a ela como um ente sobrenatural. — A única diferença entre nós duas era que eu estava armada e você não.

— Não adiantaria nada se eu estivesse armada! — declarou Rosalyn, rindo. — Nunca empunhei uma arma. Você acredita nisso?

— Nunca? — perguntou Cecília, espantada.

— Na casa da minha tia, em Filadélfia, não temos nenhuma arma.

Até mesmo na respeitada escola de Nova Orleans onde Cecília havia estudado havia pendurada na parede uma velha espingarda Gatling, relíquia da guerra. Se por acaso um assaltante invadisse o prédio da escola, à noite, qualquer uma das garotas internas ali saberia como usar aquela arma. A própria Cecília havia aprendido a atirar ainda menina.

Mas Filadélfia ficava muito longe de Nova Orleans, devia ser um mundo bem diferente do Texas. Cecília às vezes sonhava em ter uma vida como a daquela mulher, achava que se adaptaria. Rosalyn era diferente de todas as mulheres que ela já havia conhecido, mais franca, sincera e genuinamente refinada. Jake estava enganado ao sugerir que ela aprendesse a ser uma dama com Rosalyn. A graça natural não era coisa que se aprendesse a ter tomando aulas.

Cecília sentiu uma onda de inveja quando se sentou perto do fogo e tentou imitar a postura de Rosalyn. Conseguia manter as pernas juntas e dobradas para o lado, com as mãos no colo, uma em cima da outra. Infelizmente, mal conseguia controlar a vontade de abrir as pernas.

Mas para que ter aquela preocupação? Quem se importaria com a postura de uma mulher num lugar como aquele?

Cecília olhou para a escuridão, sem ouvir um único ruído vindo do lado onde estava Jake.

— As pessoas coisas são diferentes por aqui — ela disse, finalmente retomando o assunto que Rosalyn havia puxado. — Para nós, às vezes uma arma pode significar a sobrevivência.

— Essa obsessão em se proteger parece uma coisa primitiva — opinou Rosalyn. — Mesmo assim, acho excitante.

— Excitante? — repetiu Cecília, sem querer acreditar no que estava ouvindo. — Depois de tudo o que tivemos que enfrentar, eu imaginava que você iria querer entrar num trem e voltar o mais depressa possível para a civilização.

— Mas isto é civilização — respondeu Rosalyn, agora cheia de entusiasmo. — O que se vê aqui é o brotar de uma sociedade com sua dinâmica praticamente visível. Acho isso incrível!

Cecília ficou boquiaberta, chocada com a forma como a mulher caracterizava o que ela sempre havia considerado, na melhor das hipóteses, um fim de mundo.

Rosalyn soltou um riso alegre.

— Parece que a surpreendi. Mas é assim que sinto. Embora meu irmão tenha perdido a vida aqui de forma tão brutal, isso serviu para que eu conhecesse uma região maravilhosa e da qual ele sempre quis fazer parte.

— Mas você pretende voltar para Filadélfia, não?

Rosalyn balançou a cabeça. — Não consigo me imaginar voltando para aquela vidinha sem graça depois de tudo por que já passei aqui.

— Mas… — Cecília queria gritar de frustração. Como alguém podia querer desistir de tanto por tão pouco? — Você não sabe no que está se metendo.

Rosalyn franziu a testa e mexeu a cabeça para o lado. — Talvez não, mas sei que há muito mais coisas para admirar por aqui. Quando cheguei ao Texas, comecei a perceber o tipo de pessoa que eu quero ser.

Cecília hesitou por alguns instantes, mas finalmente fez a pergunta. — Que tipo?

— Assim como você.

Aquela foi a maior de todas as surpresas. — Como eu?

— Ah, sim — confirmou Rosalyn, com os olhos cheios de admiração. — Gostaria muito de ter a sua determinação, a sua coragem.

Qualquer pessoa se encheria de orgulho ao ouvir aquilo, pensou Cecília. De fato ela soubera ficar de cabeça erguida numa situação muito perigosa. Além disso, o tiro que havia abatido Gunter não podia ter sido mais certeiro… nem mais oportuno.

Infelizmente elas haviam mandado Jake para longe. Bem que ele precisava ouvir as opiniões de Rosalyn.

Cecília achou que precisava mostrar um pouco de humildade.

— Quando atirei em Gunter eu também pensava em salvar minha pele.

— Está vendo? — exclamou Rosalyn. — É justamente isso o que acho maravilhoso em você: a honestidade, a franqueza.

Cecília corou fortemente, lembrando-se de tudo o que fizera na tentativa de expulsar Jake da cidade. Naquela empreitada não havia atuado de forma muito honesta… além de não ter tido sucesso nenhum.

— Você está exagerando — ela disse, abaixando a cabeça.

— E as pessoas a levam a sério! — prosseguiu Rosalyn, sem dar atenção às palavras de Cecília.

— É mesmo? Que pessoas?

— O Sr. Reed, por exemplo.

Essa agora era novidade! — Desde quando?

— Bem… ele ouviu seus argumentos quando você quis convencê-lo de que não devia ir sozinho ao encontro desse tal Sr. Darby.

Cecília fez uma careta. — Mas continuou com a decisão que já havia tomado. Rosalyn ficou em silêncio por alguns segundos antes de voltar a falar.

— Acho que você podia fazê-lo mudar de idéia, se quisesse. Aquele homem respeita o que você diz. Isso fica muito evidente nos olhos dele.

— Eu poderia falar até ficar roxa, mas nada mudaria — disse Cecília, descrente. — Não tem jeito. Nós duas iremos para Redwood.

Rosalyn olhou-a nos olhos. — E isso a desagrada?

Cecília soltou um demorado suspiro. — Jake enfrentará sozinho um perigo muito grande.

— Você o ama, não é? — perguntou Rosalyn, num tom brando.

Cecília ergueu a cabeça para dar uma resposta ácida, mas ao ver a expressão de franqueza e solidariedade da mulher todo o cinismo dela desapareceu.

— Sim, eu o amo — ela admitiu, detestando dizer aquilo em voz alta, mas ao mesmo tempo sentindo um enorme alívio.

Pelo jeito a vida de Rosalyn era tão ou mais opressiva do que a dela e nem de longe se comparava à liberdade que ela havia sentido nos braços de Jake. Considerando tudo, talvez não fosse tão ruim assim viver com um fazendeiro.

— Tudo o que ele quer é protegê-la — pronunciou-se Rosalyn.

— Não sei por quê — resmungou Cecília. — A esta altura já devia saber que sou uma excelente atiradora.

— Ele sabe, mas não consegue agir de outra forma. Quer protegê-la simplesmente porque a ama.

Outra vez Cecília ficou boquiaberta. Jake a amava? Ele jamais dissera nada sobre aquilo. Bem, naquele seu jeito rude, não deixar que ela corresse perigo talvez fosse a forma que havia encontrado para dizer que a amava.

Cecília deitou-se no cobertor, olhou as estrelas e sorriu. Ah, ela podia mostrar àquele homem algumas coisinhas sobre o amor.

    

O coração de Jake quase parou quando ele olhou, do alto da colina, para a cidade de Redwood. A terra natal dele. Naquele momento, claro, não se sentia em casa, assim como não se sentiria em nenhum outro lugar se Cecília não estivesse ao lado dele.

Montada no cavalo ela estava com uma expressão de indecifrável sobriedade. Jake não sabia se aquilo significava tristeza, raiva ou preocupação. Também não sabia qual daquelas possibilidades o deixaria pior. Eles mal haviam se falado desde a discussão do dia anterior e agora Jake achava que talvez nunca fosse capaz de dizer a Cecília o quanto ela significava para ele.

Bem, talvez fosse melhor assim.

Quando chegou a hora da separação, Rosalyn parecia ainda mais triste do que Cecília.

— Acho melhor você levar a égua que estou usando — ela ofereceu.

Jake olhou para o musculoso animal, perguntando-se se seria prudente entrar nas terras de Darby montado na montaria que tinha sido de Gunter.

— Você mesmo disse que ela era mais rápida do que esse cavalo preto aí.

Finalmente Jake concordou e eles fizeram a troca. — Instalem-se no hotel da cidade e esperem por mim lá — ele instruiu.

Ao ouvir isso Cecília olhou para ele com um ar de inocência. — Esperar para quê?

Rosalyn pôs a mão no braço dela e olhou para Jake.

— Nós ficaremos no hotel, sim, e quando você voltar…

— Se ele voltar! — interrompeu-a Cecília.

Rosalyn suspirou e prosseguiu. — Quando você voltar, nós iremos juntos ao xerife e explicaremos a coisa horrorosa que aconteceu com o tal Gunter.

— E Darby. — Cecília lançou a Jake um olhar de ressentimento. — Ou talvez tenhamos uma triste história para contar a ele sobre você, Jake Reed.

— Não quero ouvir — ele declarou.

— Ah, você não vai ouvir.

Durante algum tempo eles ficaram se olhando em silêncio. Aquela devia ser uma despedida emocionada, pensou Jake, frustrado. Mais uma vez, porém, a animosidade que havia entre eles dois tornava mais fácil a separação. Quando ele voltasse, talvez pudesse explicar a ela por que tinha que fazer aquilo sozinho. Se ela ainda estivesse esperando…

— Tudo o que quero é que vocês fiquem quietinhas no hotel — ele disse, desta vez com mais ênfase.

Cecília manteve-se em silêncio, com os lábios apertados.

— Nós ficaremos — prometeu Rosalyn.

Por que ele não havia se apaixonado por alguém como Rosalyn? Aquela, sim, era uma mulher que sabia chorar e sorrir de forma encorajadora diante de um homem que estava prestes a cavalgar para o que talvez significasse a morte dele. Em vez disso Jake havia se apaixonado por Cecília Summertree, uma beldade tão turrona quanto ele.

Amor. Depois de tudo por que havia passado, Jake achava espantoso estar apaixonado. Pouco tempo atrás achava praticamente impossível encontrar alguém com quem quisesse partilhar a vida, mas era exatamente isso o que havia acontecido. Só que agora era um pouco tarde para dizer isso a Cecília. E ela não iria mesmo querer ouvir.

— Não se preocupe conosco — voltou a falar Rosalyn.

Aquela recomendação quase o fez rir. Como podia não se preocupar quando nem sabia o que iria encontrar na fazenda de Darby, e isso depois de ter deixado para trás a pessoa que era para ele o tesouro mais valioso do mundo? A vida sempre tinha caminhos amargos, mas aquele era o pior de todos.

Bem, eles precisavam se despedir.

— Boa sorte, Jake — desejou Rosalyn, sorrindo para ele ao mesmo tempo em que enxugava delicadamente os olhos com um velho lenço branco.

Os olhos de Cecília estavam absolutamente secos. — Até a vista, Reed — ela disse. — Espero que saiba o que está fazendo.

E do que está abrindo mão, o tom de voz dela parecia dizer.

Jake bateu com as esporas no animal e cavalgou para longe, com as palavras de Cecília ressoando nos ouvidos dele.

Quando ele não era mais do que uma mancha no horizonte, Cecília olhou para Rosalyn e balançou a cabeça.

— Você é mesmo a mais desavergonhada mentirosa que eu já conheci. — Então ela olhou para o alto, como se quisesse fazer uma grave acusação perante o Criador. — Essa mulher estava chorando, Deus do céu!

— Ah, Cecília… ele estava tão abatido. Você podia ter dado ao pobre homem pelo menos um pouco de esperança, sabia?

— Pretendo dar a ele algo bem melhor do que esperança — respondeu Cecília, esporeando o animal para descer a colina a galope na direção da cidade, seguida por Rosalyn. — Vou ajudar Jake Reed — ela gritou, olhando rapidamente para trás.

O xerife Burnet Dobbs morava numa simpática casa de madeira por trás da pequena cadeia. Uma mulher que caminhava pela rua com uma cesta de ovos pendurada no braço ensinou o caminho a Cecília e Rosalyn, que, mal chegaram lá, desmontaram e bateram na porta. Instantes mais tarde um homenzarrão de cabelos grisalhos e olhos acinzentados apareceu para atendê-las. O xerife pareceu muito espantado ao ver duas belas mulheres à porta dele quando o dia mal havia começado.

— Hum… — ele fez, reparando nos amarrotados e sujos vestidos que elas envergavam, especialmente o de Cecília. — Parece até que vocês duas vieram diretamente de Paris para cá!

— Não exatamente — respondeu Cecília, sem querer perder tempo e indo direto ao assunto. — Nós somos de Annsboro. Viemos aqui para lhe falar sobre Jake Reed.

O nome chamou a atenção de Dobbs.

— Jake? — ele murmurou. — Há um tempão que não tenho notícia dele.

— O senhor precisa ir atrás dele, xerife, mas antes tem que reunir todos os homens disponíveis para…

— Opa, opa! — interrompeu-a o homem, enquanto Cecília agitava as mãos, em pânico. — Calminha, moça. — ele disse, segurando nos ombros dela. — Agora quero que me conte direitinho qual é o problema.

Falando muito depressa, Cecília explicou o que havia acontecido, disse quem era Rosalyn e revelou a missão que Jake resolvera cumprir naquele dia.

— Alguém precisa ajudá-lo!

O xerife arregalou os olhos, alarmado.

— Dar cabo de Will Gunter foi o melhor serviço que alguém já prestou a esta comunidade, em muitos anos. Mas Darby…

Cecília sentiu um arrepio e trocou um olhar com Rosalyn.

— Isso é tão problemático assim, xerife?

— Se Jake matar Darby, será assassinato a sangue-frio.

— Mas o homem é um canalha! — gritou Cecília, ansiosa para defender Jake. — O senhor nem imagina o que ele fez com Jake! Nós temos que ajudá-lo!

O xerife balançou a cabeça. — Otis Darby é um louco.

Aquilo aumentou o pavor de Cecília, que se recriminou por ter deixado Jake ir sozinho ao encontro de um homem enlouquecido. Devia ter insistido mais, até que ele aceitasse a ajuda dela.

Só restava rezar para que não fosse tarde demais. Então ela se voltou para sair, finalmente deixando rolar as lágrimas que há um bom tempo vinha segurando.

— Se o senhor não vai, xerife, eu irei sozinha ajudá-lo.

— Espere — chamou Dobbs.

— Não há um segundo a perder! Darby o matará!

— Não, ele não fará isso — respondeu o xerife.

— Mas o senhor disse que Darby é um louco — lembrou Rosalyn, apoiando Cecília.

— Sim, eu disse, mas ele também é inofensivo. Perdeu a razão desde que saiu da cadeia.

— Inofensivo? — repetiu Cecília, perplexa.

— Desde que ficou sabendo da morte da filha, Darby nem se lembra mais do próprio nome.

Inofensivo. Cecília fechou os olhos e suspirou, sentindo um enorme alívio. Por um instante ela se encostou na porta para dar graças aos céus, até reparar que o xerife havia posto na cintura o cinto com o revólver e agora carregava o rifle, na certa se preparando para uma cavalgada até a fazenda de Darby.

— O que está fazendo?

Se Darby era inofensivo, aquele arsenal todo era para uma possível confrontação… com Jake.

O xerife enfiou no bolso um punhado de cartuchos.

— Nós temos que alcançá-lo. Se Jake ficar cara a cara com o homem, pode até atirar logo e deixar para fazer as perguntas depois.

— Mas ele não fará isso se perceber…

Então Cecília se lembrou da determinação que vira no rosto de Jake. Aquela longa viagem tivera apenas um objetivo: ajustar contas com Darby.

Nervosa, ela fez uma prece silenciosa para que Jake tivesse um pouco de bom senso.

— O senhor acha que o alcançaremos a tempo?

— Talvez. — O xerife agarrou o rifle e abriu a porta. — Darby não está mais morando na casa-grande da fazenda. Jake não sabe disso.

Cecília olhou para Rosalyn. — Acho melhor você ficar aqui, está bem?

Depois de receber um encorajador sorriso da nova amiga ela correu atrás do xerife e montou no cavalo.

Cecília culpava-se por ter deixado Jake ir sozinho. Podia ter mandado Rosalyn sozinha até a cidade e corrido atrás dele. Nunca, jamais podia tê-lo perdido de vista. O arrependimento a dominava naquela louca cavalgada ao lado do xerife na tentativa de interceptar Jake. Antes ela tinha medo de que ele morresse, mas agora estava apavorada com a possibilidade de vê-lo envolvido em algo que era ainda mais sério: ser acusado do assassinato de um homem indefeso.

Cecília tentou afastar da mente aquele pensamento, mas era impossível. O que ela faria se Jake fosse mandado para a cadeia? Um mês antes aquela pergunta pareceria tola, mas agora só comportava uma resposta: ela esperaria por ele, por mais longa que fosse a pena. Mas era preciso considerar também que nem sempre um crime de morte era punido apenas com a prisão…

Cecília sentiu um arrepio. Ela não devia, não podia pensar aquilo. A única coisa de que tinha certeza era que não devia ter se afastado dele. Quando o reencontrasse, nunca mais o deixaria. Só esperava alcançá-lo a tempo.

Depois que eles cavalgaram durante algum tempo pelas terras de Darby, alcançaram o alto de uma colina de onde podiam ver a casa de dois andares. O xerife fez um gesto para que ela diminuísse a velocidade e apontou para baixo. Cecília não queria parar enquanto não encontrasse Jake, mas submeteu-se à ordem.

Por trás da casa havia uma estrebaria e um celeiro. Mais para adiante se via uma pequena casa de tábuas sem pintura. Era para lá que se dirigia o olhar do xerife Dobbs.

— E a casa do feitor? — perguntou Cecília. Dobbs balançou a cabeça.

— Há mais de cinco anos que não existe feitor por aqui. E ali que Darby vive atualmente, já que o lugar é menor e mais fácil de cuidar.

Com o coração batendo muito depressa, Cecília apertou os olhos ao divisar duas figuras na frente da pequena casa.

— Olhe! — ela gritou.

Um homem estava ajoelhado na frente de um outro que o ameaçava com um revólver.

O xerife não ficou olhando por muito tempo. Seguido quase no mesmo instante por Cecília, esporeou o cavalo e desceu a colina em desabalado galope. Tarde demais, ela pensou. Eu não podia ter demorado tanto!

Cecília esperava ver uma cena ainda mais terrível do que a que a morte de Gunter havia criado, mas o que viu quando finalmente parou o cavalo e desmontou, na frente da pequena casa, foi algo de cortar o coração.

Os dois homens continuavam na mesma posição em que ela os vira de longe, com Darby, os olhos esbugalhados de confusão e medo, ajoelhado na frente de Jake. Mas o revólver que antes ela vira apontado para a testa do homem demente agora estava abaixado. E o que havia no semblante de Jake era a mais absoluta perplexidade.

Cecília olhou para o velho adversário de Jake, um homem velho, muito magro e que parecia assustadíssimo com a aparição daquele justiceiro no quintal dele. E aparentemente não reconhecia ninguém, nem mesmo o xerife Dobbs, que se aproximou querendo ajudá-lo a se levantar.

— Eu não fiz nada — declarou o velho, numa voz tão desesperada quanto fraca. — Já cumpri minha pena. Já acabou.

— Tem toda razão, Otis — disse o xerife, como se falasse com um garotinho. — Já acabou. Você consegue ficar de pé?

Mas o velho estava assustado demais para sair daquela posição.

— Já cumpri minha pena — ele insistiu, — Agora vocês não podem exigir mais nada de mim.

— Nós só passamos aqui para ver se você estava bem, Otis.

Jake cruzou o olhar com o de Cecília e ela correu para se pendurar no braço dele, como se tivesse medo de cair.

— Oh, Jake… eu estava com tanto medo! Não sabia o que poderíamos encontrar…

— Se o visse fora daqui, eu jamais o reconheceria — ele disse, quase cochichando. E não havia rancor naquela voz, só pena. — E mal reconheci a fazenda. Está tudo tão mudado.

Jake olhou em volta e Cecília fez o mesmo. Os prédios à volta deles estavam em péssimas condições e o mato estava crescido. Duas galinhas magras catavam migalhas na frente da pequena casa, indiferentes à cena que se desenrolava a poucos metros delas.

Depois de todos aqueles anos, Jake sentia pena do velho inimigo. Num certo sentido, o estado de Darby era uma punição ainda mais severa por uma vida inteira de maldades do que se ele recebesse uma bala na cabeça.

— Ele está na miséria — disse o xerife. — Ficou sem condições para tocar a fazenda.

Reparando que Dobbs falava em voz baixa, Darby ergueu a cabeça.

— Eu não conheço você? — ele perguntou, começando a tremer quando viu a estrela no peito do homem da lei. — Conheço, sim! Você é da cadeia!

— Não, não — disse o xerife, apertando levemente o ombro do aterrorizado homem. — Nós só viemos ver como você está, se precisa de alguma comida.

Darby olhou para o xerife com gratidão. — Comida? Não tenho pão aqui.

— Pelo que pude ver, ele é o único ser vivente em toda a propriedade — disse Jake, balançando a cabeça, ainda perplexo,. — Esta já foi uma das melhores fazendas da região. Agora está abandonada…

Darby virou a cabeça e focalizou os olhos em alguma coisa às costas de Jake. Então deu a impressão de que ia chorar.

— Eleanor — ele disse, quase sem emitir som. — Eleanor, minha filha!

Os outros três se entreolharam, confusos, depois se voltaram para ver a aproximação da égua malhada de Gunter. O velho se levantou e estendeu as mãos para ir ao encontro da égua.

— Onde vocês a encontraram? — ele perguntou, afagando o pescoço do animal. — Minha filha criou esta égua desde quando ela nasceu.

— Gunter deve ter se apoderado da montaria — adivinhou o xerife, falando para Jake e Cecília. Logo depois Dobbs se aproximou do local onde o velho confraternizava com a égua. — Como é o nome dela, Darby?

Outra vez Darby pareceu aturdido.

— Eu… não me lembro. — Por alguns instantes ele pareceu rebuscar na memória, mas logo depois mudou de idéia. — Posso ficar com ela?

Ao mesmo tempo o xerife e Cecília se voltaram para Jake, como se fosse ele o proprietário do animal. Ainda perplexo com o estado em que havia encontrado o homem com quem pretendia ajustar contas, ele estendeu para frente às duas mãos.

— Ela é sua, Darby.

Darby sorriu, um sorriso triste e quase sem dentes.

— Então vou chamá-la de Eleanor — ele disse ao ouvido da égua. Depois repetiu o mesmo nome, parecendo não se lembrar se aquele nome havia pertencido a um cavalo, a uma mulher ou a um anjo. — Eleanor.

— Um homem perde o ganha-pão, depois o próprio orgulho e finalmente o único ente querido… — Burnet Dobbs suspirou e encolheu os ombros largos. — Tanta desgraça é suficiente para afetar uma pessoa.

Eles estavam sentados em volta da pequena mesa da cozinha do xerife, tomando um café preto e forte. Haviam deixado Otis Darby com a promessa de que levariam provisões. O reencontro com o cavalo da filha parecia ter proporcionado um pouco de alegria ao pobre homem. Darby até se arriscara a perguntar ao xerife se poderia ir até a cidade, já que agora dispunha de montaria.

Jake ainda estava espantado com o farrapo humano em que havia se transformado o perigoso Otis Darby.

— Eu quase o matei, mas quando olhei naqueles olhos vi que ele não estava bem.

— Por sorte você chegou perto o bastante para ver isso — pronunciou-se Cecília.

Jake balançou a cabeça, envergonhado por ter agido de cabeça quente.

— Eu fui até lá com o único propósito de fazer com que Darby caísse de joelhos diante de mim e suplicasse perdão. Foi por isso que cheguei tão perto… para ver o pavor nos olhos dele. Havia esperado tanto por esse momento, chegava a sonhar… Então, quando finalmente chegou à hora…

— Você percebeu que há muito tempo ele havia deixado de ser seu adversário — concluiu Cecília, estendendo a mão para cobrir a dele.

— Você não tem nada a temer daquele homem — disse o xerife, balançando a cabeça para logo depois esvaziar a xícara de café. — A morte da filha, Eleanor, ocorreu enquanto ele estava na cadeia e foi um golpe terrível para Darby. Quando ele saiu, não sabia o que fazer da vida. Não tinha dinheiro e descobriu que, antes de adoecer, Eleanor havia vendido todo o gado para comprar remédios e ter o que comer. Cada vez que ele vinha à cidade parecia pior, até que passamos uns dois meses sem vê-lo.

Dobbs pegou o bule no centro da mesa e serviu-se de mais um pouco de café.

— Então resolvi ir até a fazenda para ver como estavam as coisas… mais porque nunca confiei naquele Will Gunter, que imaginávamos estar vivendo com Darby. Quando cheguei lá… acho que isso foi há um ano e meio, mais ou menos… Darby me disse que Gunter havia desaparecido. Não demorei para perceber que o homem estava mentalmente doente. Depois disso as pessoas daqui passaram a levar regularmente comida para ele, mas não há nada mais que se possa fazer. O homem está liquidado.

— Então ele não sabia que Gunter estava perseguindo Jake? — perguntou Cecília.

— Gunter também estava enlouquecido, só que de uma forma mais violenta — respondeu o xerife, muito sério. — Darby achava que o genro dele tinha ido mais para o oeste. Se soubesse que Gunter estava atrás de você, Jake, Otis teria me dito, e eu faria alguma coisa para ajudá-lo.

Jake franziu a testa.

— Talvez Gunter tenha me culpado pela morte da mulher dele e pela loucura do sogro. — Então ele se lembrou da perversidade que vira nos olhos de Gunter durante o assalto à diligência. — Ou talvez ele simplesmente fosse uma pessoa de instinto ruim.

— Ele era uma víbora — opinou Rosalyn, enfática. — Mereceu o fim que teve.

— Mas Darby… — Por um instante Jake hesitou. — Acho que ele já pagou até mais do que precisava pelos crimes que cometeu.

— Será que ouvi direito? — exclamou o xerife, olhando para o antigo auxiliar. — Por acaso você está pensando em permanecer em Redwood.

— Isso eu não sei — disse Jake, olhando rapidamente para Cecília. — Não há muita coisa aqui para mim.

Era verdade, porque tudo o que ele queria estava em Annsboro.

— Mas há uma porção de cidades por aí precisando de um bom xerife — declarou Dobbs. — Posso mandar cartas de recomendação para uma porção de amigos meus. Jake balançou a cabeça.

— Para falar a verdade, não sei mais que tipo de trabalho devo fazer… mas sei que não é o de xerife.

Enquanto falava ele tomava todos os cuidados para não olhar para Cecília. Eles dois precisavam ter uma boa conversa, logo… e em particular.

— Algumas pessoas andam a esmo durante tanto tempo que acabam perdendo o norte — filosofou o xerife. — Tome cuidado para que isso não aconteça com você, meu amigo.

— Não se preocupe com isso — respondeu Jake, piscando o olho para o antigo chefe. — Talvez eu não tenha um projeto pronto para o resto da minha vida, mas a curto prazo sei direitinho o que devo fazer.

Cecília conteve a respiração e sentiu que Rosalyn olhava para ela.

— E o que é? — quis saber Dobbs.

— Preciso escoltar essas moças até em casa.

    

— Quer mais café, srta. Pendergast? Rosalyn balançou a cabeça, sorriu para Jake e encolheu os ombros olhando para Cecília, que estava de pé um pouco afastada do fogo, parecendo muito abatida enquanto tomava o café da manhã.

Na verdade Cecília estava com o corpo doído depois de ter passado quase toda a noite em claro, pensando no homem que… por insistência de Rosalyn, dormia a vários metros de distância dela.

Havia pensado que o fato de que Jake se oferecera para acompanhá-las até Annsboro era um bom sinal, mas o homem mal falara com ela desde a partida de Redwood.

— Acho que vou caminhar um pouco antes de retomarmos a cavalgada — declarou Rosalyn, dirigindo a Cecília um olhar indicativo de que não queria companhia.

Desde que eles haviam saído de Redwood Jake não sabia o que dizer a Cecília. O temor dele era que, agora sabendo que não teria ao lado dele uma vida cheia de perigos e aventuras, ela simplesmente o rejeitasse. O que mais ele poderia oferecer? Não tinha dinheiro, uma casa, uma profissão… nada. Mesmo assim, quando se lembrava de quando fizera amor com Cecília, de como era bom estar com ela…

Jake aproximou-se dela com o devido cuidado mas procurando não perder tempo. Afinal de contas, Rosalyn não ficaria caminhando pelo resto da vida.

Cecília virou as costas, num gesto cheio de altivez, mas mesmo assim ele continuou se aproximando. Estava decidido a explicar tudo direitinho a ela, não importava o tempo que isso tomasse. Se fosse o caso, pediria a Rosalyn que atravessa o Texas inteiro a pé.

Quando chegou bem perto Jake pôs as duas mãos nos ombros da mulher amada.

— Cecília, temos certas coisas para conversar.

No mesmo instante ela se voltou, com uma expressão tão interessada quanto desconfiada.

— Mais especificamente… é sobre nós dois — explicou Jake, depois de certa hesitação.

Cecília sentiu o coração bater mais depressa mas mesmo assim torceu o nariz.

— Você não parecia muito preocupado com nós dois quando saiu naquela louca cavalgada para ir ao encontro de Darby.

— Eu só estava pensando no nosso futuro — justificou-se Jake.

— Com o nosso futuro? — Cecília pôs as duas mãos na cintura e bateu com o pé no chão, irritada. — Como eu podia adivinhar isso, se só sabia que você estava indo ajustar contas com o pior dos inimigos?

— Você podia ter confiado um pouco em mim — respondeu Jake, na defensiva.

— Mas tudo o que eu queria era ajudar! — rebateu Cecília, com revolta na voz.

Por um minuto inteiro eles ficaram se olhando, ambos frustrados. A intenção primeira de Jake tinha sido tomá-la nos braços para dizer tudo de maravilhoso que ela significava para ele… o amor, uma família, um futuro. Agora só conseguia pensar no presente e nas inseguranças do futuro.                                                

Então ele suspirou. Bem, a melhor estratégia era partir para o ataque. Sempre fora. Cecília não podia ser tão indiferente quanto queria fazê-lo acreditar. Afinal de contas, quando eles estavam nos braços um do outro… Jake resolveu que era agora ou nunca.

— Nós temos que nos casar o mais depressa possível.

Depois de ficar com a boca aberta por alguns instantes, Cecília cruzou os braços e olhou fixamente para ele, a cabeça erguida. Jake não estava entendendo. As mulheres não deviam se mostrar lisonjeadas ao ouvirem uma proposta de casamento? Ah, sim… Aquela era uma mulher diferente.

— E não pense que estou dizendo isso porque me sinto obrigado a me casar com você — ele declarou.

— Você quase me enganou — disse Cecília, friamente.

— Só porque eu falei antes nas possíveis conseqüências… — Agora foi Jake quem bateu com o pé no chão, frustrado. — Droga! Você não se preocupa nem um pouco com a possibilidade de estar carregando no ventre um filho meu?

Cecília ergueu ainda mais a cabeça. Como havia permitido que a situação chegasse àquele ponto? Uma mulher como Rosalyn jamais deixaria que um homem a pedisse em casamento usando aqueles argumentos!

Mesmo assim ela achou que havia sinceridade nas palavras de Jake e resolveu responder.

— Eu me preocupo, sim.

Jake pareceu gostar da resposta.

— E isso não é um bom motivo para que nos casemos?

— Talvez — ela admitiu.

Sentindo o coração descompassado, Jake deu um passo adiante e segurou nas mãos dela.

— Então por que toda essa hesitação? Vamos…

Cecília sacudiu as mãos para se soltar e recuou, impaciente.

— Espere um pouquinho — ela o interrompeu, balançando a cabeça. — Não vou me casar com homem nenhum só para salvar as aparências. Quando eu me casar, se um dia me casar, vai ser que alguém muito… especial.

Jake recuou um passo e ficou olhando para ela. — Especial, é?

Então ele cocou o queixo, pensativo. Mas o que eles tinham já não era especial? Ou especial era apenas uma nova forma para designar um homem rico?

Cecília olhou para o horizonte. — Tem que ser alguém que não só goste muito de mim…

Jake achou que o coração dele havia parado. Ninguém podia gostar daquela mulher mais do que ele. Mas se ela queria ainda mais…

— E ele vai ter que me achar mais bonita do que o sol…

Jake abriu um largo sorriso. Agora ela estava falando uma linguagem que ele entendia.

— Ah, agora sim! — ele exclamou. — 0 bobalhão aqui tem o seu nome escrito na testa, Cecília! E ele também acha que você é mais bonita do que o sol, mais desejável do que a lua, mais linda do que todas as estrelas reunidas. — Então ele se inclinou para falar ao ouvido dela. — Esta noite vou lhe mostrar isso direitinho.

Cecília controlou-se para continuar séria. Até aquele momento a tática dela estava dando muito certo.

— E ele também terá que respeitar minhas opiniões — ela condicionou, lembrando-se da última discussão que eles tinham tido. — Não permitirei que me mande para longe só porque acha que minha companhia não é necessária.

Jake juntou as duas mãos no peito e falou como um ator no palco. — Nunca mais darei um passo sem pedir a sua opinião. — Então ele a tomou nos braços. — E nunca mais permitirei que fique longe da minha vista.

— Nunca mais? — perguntou Cecília, erguendo as sobrancelhas ao ver que Jake falava com desinibição.

— Exatamente — ele confirmou. — Você ficará enjoada de mim.

Cecília riu. — Isso não me surpreenderia nem um pouco.

Jake afastou-se um passo e fez uma espalhafatosa reverência.

— Existe mais algum requisito que eu precise preencher, caríssima Srta. Summertree?

— Bem, você precisa me fazer uma proposta de casamento de acordo com a etiqueta — respondeu Cecília, procurando continuar séria enquanto Jake fazia uma engraçada expressão de espanto. — Por exemplo, tenho reparado que você não tem problema em bancar o cortesão com Rosalyn… ou talvez eu deva dizer Srta. Pendergast.

Dito isso ela jogou a cabeça para trás, num gesto petulante. Antes de responder, Jake ficou pensativo por alguns instantes, como se pesasse as palavras dela.

— Então… quer dizer que você gostaria de ver um pouco mais de formalidade de minha parte?

Cecília confirmou com um rápido gesto de cabeça.

Para surpresa e espanto dela, Jake deixou-se cair com um dos joelhos no chão, segurou a mão direita dela e usou o braço livre para envolvê-la pelas pernas.

— Oh, srta. Summertree… se ao menos soubesse o que as suas farpas e os seus insultos têm significado para mim — ele começou, numa voz trêmula e cheia de dramaticidade.

Cecília identificou sarcasmo naquelas palavras e tentou livrar a mão. Bem que ela queria engolir o próprio orgulho para… Estava proporcionando a Jake a oportunidade perfeita para declarar um imorredouro amor, mas aparentemente não iria ouvir isso dos lábios dele. Então ela puxou a mão com mais força, mas isso só serviu para fazê-la perder o equilíbrio. Talvez tivesse sido melhor esparramar-se no chão, porque ao se desequilibrar ela acabou caindo com o traseiro no joelho dobrado de Jake.

— Você fez isso de propósito! — ela o acusou, ultrajada. Jake riu com vontade.

— Não, mas bem que gostaria. Infelizmente, tenho a impressão de que nada que se refira a nós dois sairá de acordo com o planejado.

Então ele se levantou e puxou-a para bem perto. Mesmo a contragosto, Cecília deixou-se envolver pela emoção que viu naqueles olhos negros. Logo depois, quando ele a beijou ela teve medo de que pudesse se derreter de amor. Era como se Jake concentrasse num único beijo toda a ternura com que a brindara ao fazer amor com ela.

Quando ele finalmente afastou a cabeça, Cecília ficou com a cabeça encostada no peito dele, ofegante por causa do beijo mas sentindo-se portadora de uma vitalidade como jamais tivera. Ouvia as batidas do coração de Jake e sentiu uma enorme alegria ao constatar que o ritmo era igual ao do dela. Havia uma atração física muito forte entre eles dois, mas era preciso haver algo mais do que isso… tinha que haver.

Durante longos minutos nenhum deles dois disse nada, apenas ouvindo o barulho da relva agitada pelo vento e o som da respiração um do outro. Finalmente o mundo parecia inteiramente em paz. Era perfeito.

— Eu te amo, Cecília.

Cecília ergueu os olhos para ele, atônita, e Jake repetiu a declaração, como se estivesse respondendo a uma prece muda.

— Eu te amo.

A surpresa instantaneamente se transformou em alegria.

— Eu não posso acreditar que você tenha dito isso! — exclamou Cecília, com um luminoso sorriso.

Jake riu. — É tão bom assim?

— O que você acha? — ela perguntou. — Eu também te amo.

Jake aproximou novamente os lábios dos dela. — Então é melhor do que bom — ele concluiu.

Aquilo era como um milagre, algo que ela vinha suplicando aos céus mas duvidava de que um dia acontecesse. Dois dias antes Cecília havia jurado que jamais suplicaria o amor de alguém, mas ainda há pouco estivera a ponto de fazer justamente isso… Já que havia percebido que não conseguiria viver sem aquele homem. Uma estonteante alegria a dominava quando eles voltaram a se beijar.

Finalmente Jake segurou nos ombros dela e afastou-se um passo, parecendo encontrar alguma dificuldade nisso.

— Ainda não sei bem como vai ser a nossa vida — ele começou.

A expressão nossa vida soou como música aos ouvidos dela.

— Será cheia de felicidade. Não precisamos de mais nada.

Jake franziu a testa. — Cecília… estou tentando falar sério. Vou ter que arranjar um meio de vida. Talvez até tenha que me afastar durante algum tempo…

— Pensei que você nunca mais ia me perder de vista.

Jake suspirou. — Você não perde tempo quando quer usar minhas palavras como argumento, não é?

— Só quando posso tirar vantagem disso… — respondeu Cecília, com um ar de inocência.

— Bem, teremos tempo para discutir isso. — Nesse ponto Jake olhou para ela com curiosidade. — Se você se opôs tanto à nossa separação, isso quer dizer que já havia tomado uma decisão?

— Sobre o quê?

— Casamento.

Apenas por um instante Cecília hesitou, perguntando-se se devia castigá-lo um pouco mais, mas logo depois saltou para se pendurar nos ombros dele, o que os fez perder o equilíbrio. Rindo muito eles rolaram na relva, abraçados.

— Sim! — gritou Cecília, transbordante de alegria. — Mas quando nos casaremos?

Jake sorriu de satisfação. — Tão logo encontremos um pastor.

— Sr. Reed! Cecília!

Esbaforida e segurando a saia com as mãos, Rosalyn apareceu correndo para onde eles estavam. Parando a um metro de distância, a mulher arregalou os olhos ao vê-los no chão, mas logo recuperou a compostura… se não o fôlego.

— Um cavaleiro! — ela exclamou, apontando para a colina mais próxima. — E ele está vindo para cá!

— Talvez ele tenha visto a fumaça do nosso fogo — opinou Cecília.

Imediatamente Jake entrou em ação, sacudindo o pó das roupas e verificando a carga do revólver.

— Escondam-se vocês duas — ele ordenou, falando rapidamente.

Cecília torceu o canto esquerdo da boca. — Jake…

Jake pareceu espantado por ela e Rosalyn permanecerem estáticas.

— Não ouviram o que eu disse? — ele perguntou, impaciente.

— Mas Jake… por que alguém estaria no nosso encalço?

Vagarosamente Jake abaixou o revólver, embora sem relaxar por completo. Não devia ser fácil abandonar um antigo hábito.

— Nós não sabemos de quem se trata — ele argumentou. Cecília pegou o rifle do pai e ficou esperando até que o barulho dos cascos do cavalo que se aproximava ficasse mais audível. O cavaleiro, que de fato vinha na direção deles, foi diminuindo a velocidade à medida que os via com mais clareza. Depois, como se chegasse a uma decisão, esporeou novamente o animal e retomou a desabalada cavalgada. Quando estava a uns trinta metros de distância, soltou um grito que Cecília conhecia muito bem.

— Ciei!

Rosalyn e Jake olharam para Cecília, surpresos, e viram o largo sorriso que apareceu no rosto dela.

— Buck! — ela também gritou, soltando o rifle e correndo ao encontro do vaqueiro.

Ela havia saído de casa há apenas quatro dias, mas era como se há muitos anos não visse o rosto querido de Buck. Evidentemente possuído de uma alegria comparável à dela, o homem saltou ao chão tão logo o cavalo parou e abraçou-a. Foi um abraço tão vigoroso que aqueles dois pareciam esquecidos de que ele era casado e ela, embora não oficialmente, estava noiva.

— Eu já havia perdido as esperanças de encontrá-la — pronunciou-se Buck.

— Então estava procurando por mim? — perguntou Cecília, surpresa.

Silas certamente ficara preocupado com o desaparecimento da filha, mas ela não havia imaginado que ele despacharia um grupo de busca.

Como se percebesse aquilo pela primeira vez, Buck reparou na presença de duas pessoas a certa distância deles dois. Primeiro olhou para Rosalyn, depois para Jake.

— Pendergast! — ele vociferou. — Você vai ver…

— Eu sou Rosalyn Pendergast — interrompeu-o Rosalyn, aproximando-se com a mão estendida.

Mais uma vez Cecília admirou aquela mulher por ela saber controlar uma situação com tanta classe e presença de espírito.

Boquiaberto, Buck olhou alternadamente para Jake e Rosalyn.

— Srta. Pendergast?

— Senhorita —corrigiu-o Rosalyn.

— Esse aí é Jake Reed, Buck — disse Cecília. Logo depois ela abanou a mão. — Seria muito demorado explicar tudo.

Buck balançou a cabeça e voltou a atenção para ela.

— Não é só isso que você precisa explicar, Ciei. No dia do seu desaparecimento, as garotas do cabaré de Grady disseram ter ouvido um tiroteio e uma delas afirmou que vira pela janela quando um homem seqüestrava uma moça… — Interrompendo o que dizia, ele virou vagarosamente o rosto para o lado de Rosalyn. — Você?

— Sim, isso foi comigo — ela confirmou.

Outra vez Buck olhou para Cecília.

— Então você e Pend… ou seja lá quem for esse aí…

— Nós dois saímos para um passeio a cavalo — disse Cecília, em tom de brincadeira.

Buck fez uma careta. — Seu pai não vai gostar disso nem um pouquinho, Ciei — ele advertiu. — Ele até já disse que arrancaria a pele de Pender… ou sei lá como é o nome… se o cretino mostrasse as caras por lá novamente.

Cecília riu alto. — Ah, Buck, não há problema nenhum. Jake e eu vamos nos casar.

Boquiaberto, Buck olhou para Jake, depois outra vez para Cecília.

— Então Dolly estava mesmo certa sobre você e… como é mesmo o nome? — ele perguntou, sacudindo o polegar para o lado de Jake.

— Jake Reed — repetiu Cecília. — Sim, Dolly estava absolutamente certa.

Rosalyn soltou um gritinho de alegria.

— Oh, Cecília, estou tão feliz por você! — Então ela correu para abraçar rapidamente a nova amiga, dirigindo depois um sorriso a Jake. — Devo reconhecer que fiquei um pouco preocupada quando encontrei vocês dois rolando no chão, mas agora…

Cecília e Jake riram, ao mesmo tempo em que trocavam um olhar cheio de amor.

Buck cocou a cabeça. — É, acho que vocês dois vão ter que se amarrar mesmo.

O resto do dia eles passaram cavalgando, aqui e ali reunindo os membros do grupo formado para sair à procura de Cecília. Quando finalmente chegaram à fazenda, constaram que Dolly e todos os hóspedes da pensão, além de várias outras pessoas da cidade, como a família Beasley, o reverendo Parson Gibbons e outros, todos querendo oferecer conforto a Silas Summertree. O tento grupo correu para a varanda quando os cavalos se aproximaram da casa e o ar se encheu com o sentimento de alívio e júbilo que se apoderou daquelas pessoas. Tão logo identificou Cecília,

Lysander Beasley jogou o chapéu-coco para o alto e soltou uma exclamação, no que era muito próprio dele.

— Você nos Causou uma preocupação enorme, mocinha! — ralhou Fanny Baker. — Principalmente ao seu pai.

Cecília reuniu coragem e olhou para o pai. Não havia imaginado que o desaparecimento dela causaria tanta preocupação… nem tanto estardalhaço. Mas aparentemente aquelas pessoas tinham tido a preocupação de que uma outra filha da família Summertree houvesse desaparecido tragicamente.

Silas estava com os olhos rasos de lágrimas ao olhar para ela.

— Cecília… — ele disse, numa voz entrecortada. — Minha filha.

— Oh, papai — ela respondeu, correndo para abraçá-lo. Uma emoção muito grande a dominou, porque era a primeira vez que via o pai chorar. — Eu voltei, papai.

Segurando nos ombros da filha, o homem afastou-se um pouco e olhou-a da cabeça aos pés, como se quisesse se certificar de que ela estava inteira.

— Eu estava tão preocupado, filha. Quando me disseram que o tal Pendergast…

Um tanto relutante, Jake adiantou-se para enfrentar o furioso olhar do fazendeiro.

— Meu nome é Jake Reed, Sr. Summertree.

Um murmúrio de espanto se espalhou pelo grupo que os cercava.

— Então você não é Eugene Pendergast? — inquiriu Lysander Beasley, adiantando-se.

Os olhos do homem pareciam querer saltar para fora das órbitas.

— Não, Sr. Beasley — admitiu Jake.

Um bom tempo foi necessário para que se explicasse a Beasley e aos outros quem Jake realmente era. Depois todos entraram, com Silas Summertree parecendo achar difícil acreditar que a filha dele havia se metido numa confusão como aquela.

Clara não tinha essa dificuldade. — Moças muito independentes sempre se metem em encrencas — ela comentou.

— Mas, como vocês estão vendo, tudo acabou bem — rebateu Cecília, correndo os olhos pelas pessoas que enchiam a sala.

— Puxa, vida! — exclamou Bea Beasley, entrando na sala como um furacão, os óculos de grossas lentes quase saltando do rostinho. Agarrando na mão de Jake, ela o olhou com mais adoração do que nunca. — Isso é ainda mais excitante do que o que aconteceu com Pete e Willa!

— Quem são esses? — perguntou Lysander à filha, num tom indulgente.

— Um pistoleiro e uma mulher de má reputação — respondeu prontamente Bea, em alto e bom som. — O Sr. Pen… Isto é, o Sr. Reed leu a história para nós na escola.

— Uma mulher de… de má… — gaguejou o pai da menina, deixando cair o queixo.

Jake empalideceu. — Bea, acho que este não é exatamente o momento para… A menina olhou para o pai com um ar de contrição.

— Pete e Willa não eram más pessoas, papai. E eles nem se beijavam tanto quanto o Sr. Reed e a Srta. Summertree.

Cecília sentiu as faces quentes enquanto todos os presentes voltavam os olhos para ela.

Bea ficou com um ar sonhador, sem dar a menor atenção às reações à volta dela.

— Outra diferença foi que Pete e Willa foram muito mais felizes, porque acabaram se casando.

Cecília abriu a boca para falar, mas desistiu ao ver que o pai marchava para o lado dela. Teve a impressão de que a audiência estava se preparando para presenciar uma cena de violência no seio da família Summertree.

No ultimo instante, porém, Jake avançou para se colocar entre pai e filha.

— Na verdade, antes de virmos para cá, Cecília me prometeu que se tornaria minha esposa.

Enquanto falava ele passou o braço por trás da cintura de Cecília, mesmo estando cara a cara com o pai dela.

Por um agonizante momento a sala ficou no mais absoluto silêncio. Cecília olhou para cada um daqueles rostos espantados antes de encontrar os olhos de águia do pai. Vagarosamente, como se quisesse atender ao olhar suplicante da filha, o homem abriu um sorriso que se tornou tão largo quanto o de Jake.

Foi como se num único momento dez anos de lamentações desaparecessem de Silas Summertree. As escuras olheiras que sempre sombreavam aqueles olhos nem chegavam a ser notadas, tanta era a felicidade que ele irradiava.

Estendendo a mão, o pai de Cecília sacudiu energicamente o braço de Jake.

— Ora, ora! — ele exclamou. — O tempo todo eu disse a eles que isso não passava de uma briguinha de namorados.

O riso dos presentes misturou-se com aplausos. Cecília mal podia acreditar que o terrível drama por que eles haviam passado estivesse agora sendo reduzido ao status de uma «briguinha de namorados».

— Não, você não entendeu, papai — ela se pronunciou, falando alto para se sobrepor ao barulho. — Como eu lhe disse, estávamos sendo perseguidos por um homem enlouquecido!

Silas estendeu a mão e apertou a bochecha dela.

— Você não me engana, sua pequena tratante. Quando vi vocês dois dançando, percebi logo que estavam apaixonados.

Quando ia negar aquilo, Cecília lembrou-se do que havia acontecido depois que ela saíra da festa. Agora sabia que há várias semanas estava apaixonada por Jake Reed. Bem, algumas pessoas levavam mais tempo do que outros para avaliar os próprios sentimentos… principalmente quando estavam lidando com alguém que nem queria reconhecer quem de fato era.

Então ela olhou para Jake. Há anos que sonhava em ser uma pessoa diferente da que era, viver uma vida que não estava de acordo com o temperamento dela. Mas agora sabia quem era, com quem queria passar o resto da vida… e onde.

Jake olhou para ela e piscou o olho.

— Você prometeu que se casaria comigo tão logo encontrássemos um pastor, lembra-se? — ele cobrou.

Cecília olhou em volta e viu que o reverendo Parson Gibbons a observava, com um sorriso de aprovação.

— Sim, eu me lembro — ela respondeu, sem hesitar. — Será que a hora já está muito avançada para que nos casemos hoje mesmo? O que vocês acham?

Silas concordou de pronto. Cecília não se lembrava de ter visto o pai mais feliz do que naquele momento, cercado pelas pessoas mais representativas da cidade, tendo em perspectiva o surgimento de uma nova família que também teria o sangue dele.

E a alegria do homem aumentou ainda mais quando Jake anunciou que pretendia tocar uma fazenda.

— E para isso não há lugar melhor do que aqui mesmo — declarou o pai de Cecília, oferecendo ao genro a função que ele quisesse desempenhar na Fazenda Summertree.

Jake ficou hesitante, mas ao pensar que seria muito bom para o velho fazendeiro ter por perto o que restava da família dele, prometeu pensar no assunto.

Silas comemorou aquilo como se o futuro genro dele já houvesse aceitado a oferta.

A única pessoa mais satisfeita do que o pai de Cecília com aquele arranjo era Dolly.

— Isso é maravilhoso! — ela exclamou. — Haverá mesmo uma vaga na fazenda com a mudança de Buck para a cidade.

Embora não parecesse tão alegre, Buck tinha um sorriso plantado no rosto.

— É isso mesmo. Vou reabrir a antiga oficina de ferreiro de Jubal Hudspeth.

— A cidade precisa mesmo de um ferreiro — justificou Dolly, fazendo uma reverência de agradecimento quando

Lysander Beasley murmurou uma aprovação. — Como vêem, é a solução perfeita!

Perfeita para todos, menos para os cavalos, pensou Cecília.

A cerimônia de casamento foi rápida, com Cecília sendo conduzida pelo pai até a presença do pastor e Rosalyn servindo de dama de honra. Bea, tendo representado o mesmo papel no casamento de Dolly, encarregou-se de carregar as alianças, emprestadas não se sabia por quem, Não havia um tapete vermelho sobre o qual marchar e nem mesmo um buquê de flores, mas Cecília não lamentou nada disso.

Depois do casamento, Silas abriu o melhor vinho para fazer um brinde aos recém-casados. Dolly foi a primeira a abraçar a amiga, agora recém-casada como ela.

— Oh, Cecília, eu sabia que você seria a seguinte.

— Obrigada, Dolly.

Imediatamente depois, porém, enquanto Cecília recebia um tímido mas afetuoso abraço de Lucinda, a prática Dolly pôs em Jake seus olhos de empresária.

— Só que agora vou ficar com um quarto vazio na pensão! E quem se ensinará das crianças na escola?

— Essa é uma boa pergunta — declarou Beasley. — Vocês nem imaginam como é difícil encontrar um professor capacitado como…

O homem parou de falar quando olhou para Jake e lembrou-se de que a importação de um professor de Filadélfia não tinha dado certo mesmo.

Todos os olhos se voltaram para Cecília.

— Ah, não — ela protestou. — Agora sou uma mulher casada. Tenho outras coisas em que pensar.

Beasley parecia muito abatido, e tinha bons motivos para isso. Precisava resolver o problema sem ser novamente enganado.

— Eu sou professora — anunciou Rosalyn.

Ao se ver olhada por todos ela enrubesceu, mas tinha os olhos brilhando de determinação.

— Você? — espantou-se Cecília. — Mas não quer voltar para Filadélfia? Achei que só tinha vindo até aqui para saber o que havia acontecido com seu irmão.

— Eu vou ficar — insistiu Rosalyn. — Assim, posso ser útil em alguma coisa.

Depois de conversar com Rosalyn durante cinco minutos, Lysander considerou-a mais do que capacitada para ser a nova professora interina de Annsboro, com promessa de efetivação caso tudo saísse bem.

Os recém-casados levaram algum tempo para se desembaraçar da multidão. Quando conseguiram, saíram para uma caminhada. O céu era um cobertor escuro pontilhado de estrelas brilhantes. Era certamente a noite mais bonita de toda a vida de Cecília. Ela e Jake caminhavam de braço dado e às vezes paravam para demorados beijos.

— Nesta manhã você imaginaria que à noite estaríamos casados? — ele murmurou ao ouvido dela.

Cecília estava exultante, pensando na eternidade de alegrias que teria para usufruir. Mas a eternidade seria suficiente?

— Eu só estava esperando que você fizesse o pedido.

— É sempre assim — reclamou Jake, encostando a testa na dela. — A culpa tinha que ser minha.

— Em geral é você o culpado — respondeu Cecília.

Jake tomou-a nos braços e beijou-a como se aquele fosse o último dia da vida deles.

— Eu me sinto como se pudesse viver a vida inteira à luz do luar — disse Cecília, respirando fundo quando eles interromperam o beijo.

Jake beijou-a levemente, desta vez no alto da cabeça.

— Se existe alguém assim, só pode ser você. Seus cabelos são tão louros e seus olhos são tão azuis que você deve ter sido criada mesmo para viver na noite. Além disso, que outro motivo haveria para que brilhasse uma lua tão bonita?

Cecília soltou um riso alegre e juntou as mãos por trás do pescoço dele.

— Por falar nisso, lembre-se de que me prometeu ir buscar a lua para mim.

Jake mostrou um sorriso matreiro.

— Não sei se conseguirei isso… mas posso fazer com que você se sinta no céu, pertinho da lua.

— É mesmo? — exclamou Cecília, saltitando de alegria. — Então comece logo.

Jake beijou-a novamente, deixando claro que aquela promessa seria cumprida.

 

                                                                                Liz Ireland  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"