Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS INSACIÁVEIS - P.2 / Harold Robbins
OS INSACIÁVEIS - P.2 / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS INSACIÁVEIS

Segunda Parte

 

                   JONAS – 1935

Carregando no pedal esquerdo, do pequeno leme de di­recção, puxei para mim a alavanca de comando. Simultânea­mente abri o gás e o CA-4 elevou-se nos ares numa meia volta em espiral, como uma seta lançada dum arco. Sentia a força da gravidade colar-me ao assento e borbulhar o sangue que me corria nos braços. Nivelei o aparelho ao atingir a altura máxima do voo em espiral e quando observei o quadro dos instrumentos, o altímetro marcava trezentos. Seguíamos sobre o Atlântico, tendo já ultrapassado Long Island.

Curvei-me e toquei no ombro do piloto do Exército, sentado à minha frente.

— Como foi isso, coronel? — perguntei em voz mais alta que o ruído dos dois motores e o sibilar do vento contra o plástico sobre as nossas cabeças.

Vi-o inclinar o rosto como resposta à minha pergunta, mas não se voltou. Sabia o que ele estava a fazer. Controlava o quadro que tinha em frente. O tenente-coronel Forrester era um verdadeiro piloto. Durante todo o percurso do regresso, dirigiu-se a Eddie Rickenbacker e ao velho Hat do esquadrão Ring, mas não do mesmo modo que o velho gene­ral que havíamos deixado no Campo Roosevelt, a quem o Exér­cito mandara fazer uma experiência com o nosso aparelho.

O momento em que o general mais se aproximou de um avião foi quando esteve sentado na mesa de julgamento no con­selho de guerra de Billy Mitchell. Mas ele era a pessoa de maior relevo. Pelo menos tivemos sorte no facto de ele possuir um oficial das Forças Aéreas no seu estado-maior.

Observara-o atentamente na altura em que entrou no hangar, com Morrissey, dando réplica agitada e caminhando vivamente a seu lado. Havia dois ajudantes logo atrás dele — um coronel e um capitão. Nenhum deles trazia no blusão as asas das Forças Aéreas.

Ficara à entrada do hangar, contemplando o CA-4. Ao olhar para o seu rosto, consegui vislumbrar um franzir de sobrancelhas em sinal de desaprovação.

— É feio — exclamou. — Faz lembrar um sapo.

A sua voz ecoou clara pelo hangar, até ò ponto em que me encontrava, na carlinga, fazendo uma última inspecção. Saltei para a asa e deixei-me cair, descalço, no chão do hangar. Aproximei-me dele. Que diabo percebia ele de linhas aerodinâ­micas e de desenhos? Provávelmente tinha a cabeça qua­drada...

— Mr. Cord! — ouvi murmurar atrás de mim com um som sibilante. Voltei-me. Era o mecânico. Havia no seu rosto um curioso esgar. Ele também ouvira a observação do general.

— Que é que você quer?

— Estava precisamente a preparar-me para tirar o apa­relho cá para fora — disse ele rápidamente — e não queria esborrachar-lhe os sapatos.

Fixei-o por um momento, depois sorri.

— Obrigado — exclamei, recuando e calçando-os. Quando alcancei Morrissey e o general, sentia-me calmo.

Morrissey possuía uma cópia dos planos e ia examiná-los para conhecimento do general.

— O Cord Aircraft Four é um conceito revolucionário num caça bombardeiro para dois e com um alcance de voo superior a duas mil milhas. Pode transportar dez metralhadoras, dois canhões e alberga mil libras de bombas sob as asas e numa cavidade especial da sua fuselagem.

Tornei a olhar para o avião, enquanto Morrissey conti­nuava a conversar. Na verdade era uma concepção revolucio­nária. Assemelhava-se a uma grande pantera negra acocorada ali no chão do hangar, com o seu comprido nariz a salientar-se das asas recuadas e o plástico sobre a carlinga a brilhar como o olho de um gato gigantesco na semiobscuridade.              

— Muito interessante — Ouvi o general dizer. — Agora, só mais uma pergunta.

— Qual é, general? — perguntou Morrissey.

O general riu por entre dentes, olhando para os seus aju­dantes. Estes deixaram um pálido sorriso aflorar aos lábios. Pude descobrir que o velho ia dizer uma das suas piadas favoritas.

— Nós, homens do Exército, todos os anos examinamos cerca de trezentos aviões designados por revolucionários. Este voará?

Já não conseguia manter-me calado por mais tempo. O milhão de dólares que me tinha custado chegar ao CA-4 dava-me o direito de soltar a língua.

— Bolas, fará voar tudo quanto tiver no seu Exército, general — exclamei. — E qualquer outro avião do mundo, incluindo os novos caças que Willi Messerschmitt está a cons­truir.

O general voltou-se para mim, com um sorriso de sur­presa no rosto. Vi os seus olhos baixarem sobre a minha capa branca salpicada de gordura.

Morrissey falou apressadamente.

— General Gaddis, Jonas Cord.

Antes que o general articulasse uma palavra, ouviu-se uma voz vinda do limiar da porta que existia atrás dele.

— Como é que você sabe o que o Willi Messerschmitt está a construir?

Levantei os olhos quando o autor destas palavras apa­receu. É evidente que o general trouxera consigo um terceiro ajudante. As asas de prata brilhavam-lhe no blusão, que condi­ziam com as folhas de louro prateadas sobre os ombros. Tinha cerca de quarenta anos, era magro e usava bigode. Trazia ape­nas duas condecorações no blusão — a Croix de Guerre, de França e a Distinguished Flying Cross.

— Ele contou-me — disse eu concisamente.

Havia um ar curioso no rosto do tenente-coronel.

— Como está o Willi?

A voz do general interrompeu-se antes de poder responder.

— Viemos aqui para examinar um aparelho — exclamou com voz entrecortada — e não para trocar informações acerca de amigos mútuos.

Chegou a minha vez de ficar surpreendido. Lancei um olhar rápido ao tenente-coronel, mas já o rosto se lhe havia tornado sombrio. Contudo, pude ver que não tinha deixado de haver estima entre ambos.

— Sim, senhor — afirmou súbitamente. Voltou-se e olhou para o avião.

— Que tal acha o aparelho, Forrester?

Forrester aclarou a voz.

— Interessante, senhor — disse. Voltou-se para mim. — Hélices de passo variável?

Fiz sinal que sim com a cabeça. Ele tinha bons olhos para observar isso com aquela ténue luz.

— Concepção pouco vulgar — exclamou — essa de colocar as asas onde estão e de as fazer recuar. Deviam dar ao aparelho cerca de quatro vezes a área usual de elevação.

— Mas dão — afirmei. Graças a Deus, pelos menos para um homem, que sabia do que se tratava.

— Forrester, perguntei-lhe que tal achava o aparelho — repetia o general de mau humor.

De novo o rosto de Forrester se ensombreceu quando ele se voltou.

— Muito pouco vulgar, general. Diferente.

O general fez um gesto de quem está de acordo.

— Era o que pensava. Feio. Como um sapo ali acocorado.

Já estava farto do seu palavreado.

— Será que o general julga os aviões do mesmo modo que julgaria mulheres num concurso de beleza?

— Claro que não! — vociferou. — Mas há determinadas convenções de desenho que se consideram como padrão. Por exemplo, o novo caça Curtiss que vimos um dia destes. Ora aí está um avião que se parece com um avião e não com uma bomba provida de asas.

— O bebé que ali está transporta o dobro das armas, mais mil libras de bombas, percorre mais setecentas e cinquenta milhas, voa a uma altitude de mais de cinco mil pés e desloca-se a uma velocidade de mais oitenta milhas por hora que o caça Curtiss de que está a falar! — repliquei.

— Curtiss constrói bons aparelhos — exclamou o general em tom rígido.

Olhei atentamente para ele. Não valia a pena discutir. Era o mesmo que falar para uma pedra.

— Não digo menos disso, general — respondi. — Há muitos anos que o Curtiss constrói bons aparelhos, mas o que eu afirmo é que este é melhor do que todos os outros.

O general Gaddis voltou-se para Morrissey.

— Estamos prontos a assistir a uma demonstração do seu aparelho — exclamou com dureza. — Isto é, se o seu piloto estiver pelos ajustes.

Morrissey lançou-me um olhar nervoso. Aparentemente o general nem tinha fixado o meu nome. Fiz-lhe sinal que sim e regressei ao hangar.

— Tirem-no cá para fora! — gritei para os mecânicos.

Morrissey, o general Gaddis e os ajudantes encaminharam-se para fora. Quando cheguei ao exterior, vi que Morrissey e os outros haviam formado um grupo em volta do general, mas Forrester ficou um pouco de lado a conversar com uma jovem, a quem lancei uma rápida olhadela. Era forte, de olhos vivos e boca sensual.

Segui o aparelho até à pista. Ao ouvir passos atrás de mim, voltei-me. Era Morrissey.

— Não devia ter provocado o general dessa maneira.

Sorri para ele com ar de malícia.

— Naturalmente aquele velho procedeu bem. Ele tem à sua volta tanta gente a concordar consigo, que bem podia ser um produtor cinematográfico.

— Contudo, é desagradável enganá-lo assim. Descobri que Curtiss anda a oferecer cento e cinquenta mil por cada avião e você sabe que o máximo para nós é duzentos e vinte e cinco.

— O quê? — exclamei. — É a diferença entre a porcaria e uma salada de frango. Não pode comprar-se um Cadillac pelo mesmo preço que um Ford.

Ele olhou-me por uns momentos e depois encolheu os ombros.

— É o seu dinheiro, Jonas.

Vi-o voltar para junto do general. Podia ser que ele fosse um grande engenheiro da Aeronáutica, mas fazia sempre tudo por tornar-se um excelente caixeiro viajante. Voltei-me para o mecânico.

— Pronto?

— Pronto, quando você estiver, Mr. Cord.

— Óptimo — disse, começando a subir para a carlinga. Senti uma mão puxar-me a perna. Olhei para baixo.

— Importa-se que eu vá? — Era o tenente-coronel.

— De modo nenhum — respondi. — Salte para dentro.

— Obrigado. A propósito, ainda não sei o seu nome.

— Jonas Cord.

— Roger Forrester — disse ele, apertando-me a mão.

Devia ter adivinhado logo que ouvi o seu nome, mas só agora estou a relacionar. Roger Forrester — um dos ases originais da Esquadrilha Lafayette. Vinte e dois aviões ale­mães à sua conta. Fora um dos meus heróis, quando eu era criança.

— Tenho ouvido falar de si — afirmei.

O seu sorriso tomou-se malicioso.

— Tenho ouvido falar muito de si.

Ambos rimos e senti-me melhor. Puxei-o pela mão e ele subiu pela asa, a meu lado. Olhou para dentro da carlinga e depois para trás, fitando-me.

— Não há pára-quedas?

— Nunca o utilizo — respondi. — Fazem-me nervoso. Psi­cológicamente vêm revelar falta de confiança.

Ele riu-se.

— Posso arranjar-lhe um, se quiser.

Tornou a rir.

— Que os diabos o levem.

Já a trinta milhas, sobre o oceano, submeti o aparelho a todos os truques conhecidos e a outros que só o CA-4 podia fazer e ele nem sequer pestanejou.

Como prova decisiva, voei na vertical até que, a catorze mil pés, o aparelho ficou suspenso no céu como uma mosca dançando na ponta de uma agulha. Depois fi-lo descer em parafuso, o que levou o indicador da velocidade do ar a registar um número muito próximo dos quinhentos. Quando baixámos até cerca de mil e quinhentos pés, tirei ambas as mãos da alavanca de comando e toquei-lhe no ombro.

A cabeça dele voltou-se tão depressa que quase se separou do pescoço.

Ri.

O aparelho agora é todo seu, coronel — gritei.

Já descíamos para os mil e duzentos pés na altura em que ele se voltou; para oitocentos pés quando controlava o parafuso, para seiscentos antes de fazer o aparelho picar; e para quatrocentos antes que pudesse puxar a alavanca para trás.

Senti o aparelho tremer debaixo de mim e um som agudo e estridente sair das suas asas. A força da gravidade pregava-me ao lugar, fazendo com que o ar me sufocasse e obrigando as lágrimas a subirem até aos olhos. Súbitamente, a pressão aumen­tou. Estávamos a menos de vinte e cinco pés da água quando começámos a subir.

Forrester olhou para mim.

— Desde os meus quinze anos que não apanhava um susto dentes — gritou abrindo a boca num sorriso. — Quem é que descobriu que o aparelho não perderia as asas num voo a pique como este?

— Quem descobriu? — retorqui. — Mas este momento foi tão bom como qualquer outro para o descobrir!

Ele riu. Vi a sua mão avançar e bater no quadro dos ins­trumentos.

— Que avião! Bem disse você que ele realmente voava!

— Não mo diga a mim. Diga antes àquele pateta.

Uma sombra atravessou-lhe o rosto.

— Vou tentar. Mas não sei se poderá ser muito útil. É todo seu — disse ele, erguendo as mãos. — Regresse agora com o aparelho.

Consegui ver Morrissey e os soldados no campo a obser­var-nos por meio de binóculos, quando os sobrevoávamos. Descrevi com o avião uma curva e toquei no ombro de Forrester. Ele olhou para mim.

— Aposto que sou capaz de tirar o chapéu do general logo à primeira passagem.

Hesitou um momento, depois riu.

— Eis-nos!

Quase de mil pés de altura piquei sobre o campo e nivelei o aparelho a cerca de quinze pés da pista. Pude distinguir a expressão de espanto no seu rosto quando investimos na direcção deles e depois puxei a alavanca. Sobrevoámos as suas cabeças quase num voo vertical, por pouco não os apanhando com as hélices.

Olhei precisamente a tempo de ver o capitão correr atrás do chapéu do general. Tornei a tocar no ombro de Forrester. Este voltou-se, olhando para trás. Ria tanto que tinha lágrimas nos olhos.

O aparelho pousou tão suavemente como um pombo de regresso ao seu poleiro. Afastei a cobertura de plástico e des­cemos. Olhei para o rosto de Forrester quando nos encaminhá­vamos em direcção ao grupo. Todo o riso lhe desaparecera neste momento, para dar lugar outra vez à expressão circuns­pecta.

O general já tinha de novo o chapéu na cabeça.

— Então, Forrester — perguntou com dureza —, que acha?

Forrester procurou ler no rosto do seu superior.

— Senhor, este é sem sombra de dúvida o melhor caça que hoje anda no ar — exclamou num tom sempre igual e frio. — Para fundamentar a minha opinião, sugeria que mandasse um grupo inspeccioná-lo imediatamente.

— Humm — murmurou o general um tanto frio. — Suge­ria, hã?

— Sugeria, senhor general — repetiu Forrester com ar tranquilo.

— Há outros factores a considerar, Forrester. Tem alguma ideia de quanto estes planos podem custar?

— Não — respondeu Forrester. — A minha única responsabilidade é avaliar a capacidade do próprio avião.

— As minhas responsabilidades vão muito mais longe — afirmou o general. — Deve lembrar-se de que estamos a operar com uma verba limitada.

— Sem dúvida, senhor general.

— Tenha isso em mente — disse o general Gaddis com im­paciência. — Se eu desse atenção a cada ideia que vocês, homens das Forças Aéreas, tivessem, não haveria dinheiro para sus­tentar o Exército durante um mês.

O rosto de Forrester ruborizou-se.

— Pois é, senhor general.

Olhei para ele, perguntando a mim próprio a razão por que se encontrava ali. Não fazia sentido. Não com a reputação que tinha. Ele podia sair do Exército e bater vinte vezes o que estava a fazer com qualquer linha aérea do país. Era tão famoso como Rickenbacker.

O general voltou-se para Morrissey.

— Agora, Mr. Morrissey — disse num tom quase jovial, — com quem havemos de falar sobre a possibilidade de obter dados acerca do custo deste aparelho?

— Pode falar-se com Mr. Cord.

— Muito bem! — respondeu o general com voz trovejante. — Entremos no escritório e chamemo-lo.

— Senhor general, não tem necessidade de fazer isso — disse eu rápidamente. — Podemos falar mesmo aqui.

O general fitou-me, depois os seus lábios soltaram aquilo que ele julgava ser um sorriso expansivo.

— Filho, não ofendi deliberadamente. Não relacionei os nomes.

— Não tem importância, senhor general.

— O seu pai e eu somos bons amigos — exclamou ele. Durante a última guerra, comprei-lhe imenso material e, se não vê inconveniente nisso, gostava de tratar com ele deste assunto. Só em recordação dos velhos tempos, percebe? Além disso, pode vir a ser um grande negócio e tenho a certeza de que o paizinho gostaria de fazer parte dele.

Senti-me empalidecer. Fiz tudo por dominar-me. Quanto tempo tive de viver à sombra de um homem? A minha voz soou monótona e forçou até os meus próprios ouvidos.

— Estou certo disso, general, mas receio que tenha de falar comigo; não pode falar com ele.

— Porque não? — A voz tornou-se-lhe súbitamente gelada.

— O meu pai morreu há dez anos — disse, voltando-lhe as costas e caminhando na direcção do hangar.

Dirigi-me à pequena sala das traseiras que Morrissey usava para escritório. Fechei a porta atrás de mim, caminhei para a sua estante e tirei a garrafa de Bourbon, que ali havia sempre à minha disposição. Deitando um golo num copo de papel, lancei o whisky pela garganta abaixo. Queimava como o inferno. Olhei para as mãos. Tremiam.

Há certas pessoas que não podem morrer. Não importa o que se lhes faz. Podem enterrar-se no chão, lançar-se ao oceano ou cremar-se. Mas a recordação delas aniquila a energia, como se ainda estivessem vivas.

Lembrei-me daquilo que meu pai me dissera uma manhã na cerca que ficava atrás da casa. Foi pouco depois do seu casamento com Rina e eu viera uma manhã para ver Nevada amansar um potro. Eram cerca de cinco horas e a primeira claridade da manhã acabava de surgir sobre o deserto.

O potro era um bastardo preto vulgaríssimo, seco e mau que, todas as vezes que derrubava Nevada, avançava para ele para o atacar com os cascos e os dentes. Nevada, de rastos, afas­tava-se e saltava a vedação.

Ali ficava encostado, respirando pesadamente, enquanto os rapazes mexicanos perseguiam o potro. Os seus gritos e berros fendiam o ar da manhã.

— É maluco — disse Nevada.

— Que vais fazer-lhe? — perguntei com curiosidade. Não era frequente ver Nevada dar três quedas a seguir.

Agora eram os mexicanos que tinham o cavalo e Nevada observava-os.

— Experimentem mais uma vez — afirmou ele pensativa­mente — e, se não resultar, soltem-no.

A voz do meu pai ouviu-se por detrás de nós.

— Isso é precisamente o que ele pretende que lhe façam.

Nevada e eu voltámo-nos. O meu pai já estava vestido como se fosse direito à fábrica. Usava o seu fato preto e a gravata estava cuidadosamente centrada no colarinho branco engomado da sua camisa.

— Porque não lhe pões um gancho no focinho, para que não te morda?

Nevada olhou para ele.

— Quem é que pode aproximar-se daquele cavalo sem perder um braço?

— Que disparate! — exclamou o meu pai sóbriamente. Tirou um pequeno laço das cavilhas da vedação e, metendo-se por entre as barras, entrou na cerca. Tive ocasião de ver-lhe as mãos mover a corda à medida que se encaminhava para o cavalo.

Lá estava o potro a escarvar o chão, fitando o meu pai com olhos sinistros. Os mexicanos apertavam os laços em volta do pescoço do animal. O potro empinou-se quando o meu pai aproximou o laço para o apanhar em volta do focinho. Ao mesmo tempo, escoucinhou com as patas dianteiras. O pai ainda conseguiu afastar-se a tempo.

Deteve-se ali por um momento, fitando os olhos do ca­valo; depois aproximou-se de novo. Furioso, o cavalo sacudiu a cabeça atingindo com violência o braço do meu pai. Os cascos tornaram a elevar-se, por pouco não o alcançando.

O cavalo nesta altura estava realmente agitado, torcen­do-se e voltando-se como se houvesse um cavaleiro a montá-lo. Os mexicanos inclinaram-se sobre os laços para o dominar. Pouco depois acalmava e o meu pai voltou para junto dele.

— Maldito — exclamou ele. O cavalo mostrou os dentes e tentou abocanhá-lo. O pai pareceu mover o braço numa fracção de polegada e a cabeça do cavalo quase raspou por ele. — Soltem-no — gritou para os mexicanos.

Os dois rapazes entreolharam-se por um momento, de­pois, encolhendo-se daquele modo quase imperceptível que costumavam empregar para se absolverem de responsabilidades, soltaram os laços.

Desembaraçado, o cavalo ficou imóvel durante uma frac­ção de segundo, desorientado. Na frente dele, o meu pai, alto e forte, envergando o seu fato preto. Os olhos de ambos quase estavam ao mesmo nível. Então o meu pai recomeçou lenta­mente a erguer a mão e o cavalo reagiu, de olhos faiscantes, dentes à mostra, empinando-se e batendo com os cascos. Desta vez meu pai recuou, depois precipitou-se quando o cavalo bai­xou a garupa.

Vi o punho cerrado de meu pai erguer-se sobre a cabeça, num ápice. Os quatro cascos do animal bateram no chão e o punho do pai desceu como um martelo, precisamente sobre os olhos do animal. O ruído surdo da pancada fez eco na casa como se fosse uma explosão. O cavalo ficou quieto por um momento e depois deixou-se cair sobre os joelhos, com as patas anteriores dobradas, como se de repente se tivessem trans­formado em borracha.

Súbitamente meu pai afastou-se para o lado e bateu, com a palma da mão aberta, no pescoço do cavalo. O animal tombou para um lado, ficando assim por um momento, com os flancos a arquejar; ergueu então a cabeça e olhou para o meu pai. Nós os quatro — os mexicanos, Nevada e eu — observávamo-los em silêncio.

A cabeça erguida do cavalo lançava uma sombra enorme na desagradável cerca e essa sombra era apenas sobrepujada pela do meu pai, quando ambos se entreolhavam. Nessa altura pareceu que o cavalo soltou um suspiro gigantesco e deixou cair a cabeça sobre o chão.

O meu pai olhou para ele durante um momento, depois inclinou-se e, levando as rédeas até junto da boca do animal, pô-lo de pé. Assim ficou o cavalo, as pernas a tremer e a cabeça caída, com um ar de vencido. Nem sequer ergueu a cabeça quando o meu pai lhe passou em frente e veio ao nosso encontro, passando pela vedação.

— Já não haverá mais sarilhos com ele — o meu pai tornou a pendurar o laço na cavilha e encaminhou-se para casa. — Vamos tomar o pequeno-almoço, Jonas? — exclamou sem voltar a cabeça ou quebrar o ritmo dos seus passos.

Nevada já tinha voltado à cerca e dirigia-se ao cavalo.

— Sim, pai — respondi, seguindo atrás dele. Alcancei-o no alpendre das traseiras. Voltámo-nos e vimos Nevada mon­tar o cavalo. Este empinou-se e fez alguns movimentos para trás e para diante, mas via-se bem que já não era o mesmo.

Meu pai voltou-se para mim, sem sorrir.

— Alguns cavalos são como as pessoas. A única coisa que compreendem é uma pancada na cabeça.

— Nunca imaginei que o pai se interessasse tanto por cavalos — observei. — Nunca cá vem à cerca.

— Mas eu não me interesso por eles — respondeu pron­tamente. — Por ti é que eu me interesso. Ainda tens muito que aprender.

Ri.

— Oh! Aprendi muito com o facto de o pai ter batido na cabeça dum cavalo.

— Aprendeste que Nevada não conseguia montar aquele animal até eu tornar isso possível.

— Como?

O pai voltou-se. Era um homenzarrão, de quase seis pés de altura, mas eu era mais baixo.

— Como? — disse vagarosamente. — Não interessa o teu tamanho, não serás suficientemente grande para usar os meus sapatos, antes que eu o autorize.

Segui meu pai até à casa de jantar. Rina estava de costas voltadas para mim e os seus cabelos brilhavam como prata quando ergueu o rosto para o beijo matinal. Havia um triunfo calmo nos olhos de meu pai, quando olhou para mim. Não proferiu palavra ao sentar-se na sua cadeira. Nem precisava de o fazer. Eu sabia no que ele estava a pensar. Não tinha necessidade de me bater sobre a cabeça.

— Tomas connosco o pequeno-almoço, Jonas? — pergun­tou Rina delicadamente. Fitei-a por um momento, depois meu pai. Sentia um nó apertar-me a garganta.

— Não, obrigado. Não tenho vontade.

Voltei-me e atravessei rapidamente a porta da casa de jantar, quase chocando com Robair, que vinha precisamente a entrar com uma bandeja. Quando cheguei à cerca, Nevada cavalgava de um lado para o outro, dominando o cavalo com as rédeas. O pai tivera razão. O cavalo não dava mais sarilhos a Nevada.

E agora, já passados doze anos, ainda conseguia ouvir a sua voz, tal como ecoara calmamente no alpendre naquela manhã.

— Vá, velho, vá! — disse zangado, batendo com o punho na secretária vazia. A dor correu como louca do meu braço para o ombro.

— Mr. Cord!

Levantei os olhos, surpreendido. Morrissey encontrava-se no limiar da porta, com a boca parcialmente aberta. Tive que fazer esforço para voltar ao presente.

— Não fique aí — disse bruscamente. — Entre. — Ele en­trou hesitante no escritório e, pouco depois, Forrester apareceu no limiar da porta, por detrás dele. Penetraram silenciosamente no escritório.

— Sentem-se e tomem qualquer coisa — ofereci, impelindo e garrafa de Bourbon para ao pé deles.

— Não se importa que eu beba? — exclamou Forrester segurando a garrafa e uma taça de papel.

Então perguntei:

— Onde está o velhote, o general?

— A caminho da cidade. Tem um encontro marcado com um fabricante de papel higiénico. Soltei uma pequena gargalhada.

— Pelo menos é uma coisa que ele pode experimentar consigo próprio.

Forrester riu mas Morrissey ficou carrancudo. Impeli a garrafa para junto dele.

— Abstém-se de bebidas alcoólicas?

Ele abanou a cabeça.

— Que vai fazer agora? — perguntou.

Fitei-o por um momento, peguei na garrafa e tornei a encher o copo de papel.

— Estava precisamente a pensar em declarar guerra aos Estados Unidos. Eis uma maneira de lhe mostrar como o nosso aparelho é bom.

Morrissey nem sequer soltou um sorriso.

— O CA-4 é o melhor avião que eu já concebi.

— Como? — perguntei. — Cos diabos, não lhe custou nada. O dinheiro era meu. Além disso, quanto é que já ganhou a fabricar aviões? Não chega a um vinte avos dos seus direitos anuais sobre a brassière que concebeu para Rina Marlowe.

Era verdade. Mas fora McAllister quem vira o potencial de comércio naquela maldita coisa e solicitara uma patente em nome de Aviões Cord. Morrissey firmara um contrato, se­gundo o qual todos os inventos e concepções pertenciam à com­panhia, mas McAllister fora um joguete. Dera a Morrissey um interesse de dez por cento nos direitos, como bónus, e no ano anterior o quinhão de Morrissey era mais do que cem mil dóla­res. O mercado ia sempre aumentando.

Morrissey não respondeu. Mas nessa altura eu não esperava que ele o fizesse. Era um tipo que não se importava nada com o dinheiro. Só vivia para o trabalho.

Acabei de beber e acendi um cigarro. Em silêncio amal­diçoei-me a mim mesmo. Ninguém gosta de atirar um milhão de dólares para a sarjeta.

— Talvez eu possa fazer alguma coisa — disse Forrester.

Um raio de esperança aflorou aos olhos de Morrissey.

— Acha que podia?

Forrester encolheu os ombros.

— Não sei — disse lentamente. — Eu disse talvez.

Fitei-o:                      

— Que quer dizer?          

— É o melhor avião que já vi — afirmou. — Não gostaria que o perdêssemos por causa da estupidez do velho.

— Obrigado — exclamei. — Agradecer-lhe-íamos tudo o que pudesse fazer.

Forrester sorriu.

— Nada me deve. Eu sou um tipo antiquado e não gos­taria de nos ver fracassar se as coisas de repente começassem a correr mal.

Acenei com a cabeça.

— Começarão muito em breve. Exactamente logo que Hitler pense que está pronto.

— Quando julga que isso vai acontecer?

— Em três, talvez quatro anos — exclamei. — Quando tiverem aviões e pilotos treinados em número suficiente.

— Como os obterá ele? Não os tem, agora.

— Obtê-los-á — retorqui. — As escolas de voo planado lan­çam por mês dez mil pilotos e, antes de o Verão terminar, Messerschmitt terá o seu ME-109 na linha de produção.

— O estado-maior acha que ele não fará muito quando chegar à linha Maginot.

— Não chegará lá — disse eu. — Voará sobre ela.

Forrester acenou com a cabeça.

— Mais uma razão para eu tentar fazer com que eles veri­fiquem o seu aparelho. — Olhou para mim de modo excên­trico. — Fala como se soubesse.

— Eu sei — respondi. — Estive lá há menos de nove meses.

— Claro — volveu ele. — Estou a lembrar-me. Li uma referência nos jornais. Havia um pouco de má reputa­ção, não havia?

Ri.

— Havia. Algumas pessoas acusavam-me de ser adepto do Nazismo.

— Por causa do milhão de dólares que transferiu para o Banco Nacional Alemão?

Lancei sobre ele um olhar súbito. Forrester não era tão simples como pretendia fazer crer.

— Creio que sim — foi a minha resposta. — Como sabe, transferi o dinheiro precisamente na véspera de Roosevelt ter lançado a sua restrição.

— Sabia que a restrição ia ser posta muito brevemente, não sabia? Você próprio podia ter salvado o dinheiro, se espe­rasse só um dia.

— Não podia dar-me ao luxo de esperar — retorqui. — O dinheiro tinha que estar na Alemanha, era a única coisa a fazer.

— Porquê? Porque lhes enviou o dinheiro quando óbvia­mente compreende que eles são o nosso inimigo potencial?

— Tratava-se do resgate de um judeu — exclamei.

— Alguns dos meus melhores amigos são judeus — respondeu Forrester. — Mas não posso imaginar que se pague um milhão de dólares por um deles.

Fitei-o por um momento e tornei a encher o meu copo de papel.

— Este merecia-o bem.

Chamava-se Otto Strassmer e começou a carreira como engenheiro de contrôle de qualidade numa das muitas fábricas de porcelana da Baviera. Da cerâmica passara aos produtos plásticos e fora ele quem inventara o molde de injecção a alta velocidade que eu comprara e vendera a uma associação de fabricantes americanos. O nosso contrato original fora firmado numa base de direitos e, depois de ter vigorado durante muitos anos, Strassmer quis modificá-lo. Isto passou-se em 1933, pouco depois de Hitler ter subido ao poder.

Viera ao meu quarto no hotel, em Berlim, onde me en­contrava na minha visita anual à Europa, e explicou o que pre­tendia. Dispunha-se a renunciar ao quinhão futuro nos direi­tos para um pagamento uniforme de um milhão de dólares, a manter-se-lhe assegurado nos Estados Unidos. Claro que isto era-me agradável. O seu quinhão nos direitos atingiria muito mais do que isso terminado o período legal. Mas eu não compreendia porquê, de modo que lhe perguntei.

Ergueu-se da sua cadeira e dirigiu-se à janela.

— Pergunta-me porquê, Mr. Cord? — disse no seu inglês que tinha um sotaque estranho. A sua mão apontou a janela. — Ali tem porquê.

Encaminhei-me para a janela e olhei para baixo. Na rua, em frente do Adlon, um grupo de jovens de camisas castanhas, pouco mais do que rapazes, atormentava um homem de sobre­casaca. Das duas vezes que estivemos a observá-los atira­ram-no para a valeta. Podíamos vê-lo deitado na berma do pas­seio, com a cabeça na valeta e o sangue a correr-lhe do nariz.

Os rapazes pararam um pouco a observá-lo, e afastaram-se, depois de lhe darem vários pontapés em sinal de desprezo.

Voltei-me para Strassmer com um ar interrogador.

— Era um judeu, Mr. Cord — disse ele calmamente

— O quê? Porque não chamou a polícia?

Strassmer apontou para a rua. Dois polícias encontra­vam-se na esquina em frente.

— Eles viram tudo o que aconteceu.

— Porque não os detiveram?

— Têm instruções para não o fazer — respondeu. — Hitler declara que os Judeus não têm direitos à face da lei alemã. — Mas que é que isto tem a ver consigo?

— Sou judeu — disse simplesmente.

Fiquei emudecido por um momento. Tirei um cigarro e acendi-o.

— Que pretende você que eu faça ao dinheiro?

— Guarde-o até ter notícias minhas. — Sorriu. — A minha mulher e a minha filha já estão na América. Agradecia muito que lhes comunicasse que estou bem.

— Porque não vai ter com elas? — perguntei.

— Talvez o faça na altura própria. Mas sou alemão — res­pondeu. — E ainda espero que um dia passe esta loucura.

Mas as esperanças de Mr. Strassmer não se concretizariam. Descobri isso menos de um ano depois, quando me encon­trava sentado no escritório do marechal do Reich.

— Os judeus do mundo estão condenados, assim como os judeus da Alemanha — disse com a sua voz delicada. — Nós, os da Nova Ordem, reconhecemo-los e recebemos de braços abertos os nossos amigos e aliados que, atravessando o oceano, querem juntar-se à nossa cruzada.              

Fiquei calado, à espera que ele tornasse a falar.

— Nós, homens do ar, compreendemo-nos bem — afirmou.

Fiz que sim com a cabeça.

— Sim, Excelência.

— Bem — exclamou, sorrindo. — Por isso não temos ne­cessidade de perder tempo. — Lançou alguns papéis sobre a secretária. — De acordo com as novas leis, o Reich confiscou os bens de um tal Otto Strassmer. Compreendemos que há certos dinheiros que lhe são devidos e deste modo, de acordo com as instruções que a si forem dadas, passarão para o Banco Nacional Alemão.

Não gostei da palavra instruções.

— Tenho tentado entrar em contacto com Mr. Strassmer — exclamei.

Göering tornou a rir-se.

— Strassmer teve um esgotamento grave e foi logo levado para um hospital.

— Ah, sim! — disse. Pus-me de pé.

— O terceiro Reich não esquecerá os seus amigos — disse o marechal do Reich. Carregou num botão da sua secretária.

Um jovem tenente alemão surgiu no limiar da porta.

— Heil Hitler — saudou, com o braço erguido segundo a saudação nazi.

— Heil Hitler! — respondeu Göering com negligência. Vol­tou-se para mim. — O tenente Müller escoltá-lo-á até à fábrica de Messerschmitt. Desejo ardentemente tornar a vê-lo ao jan­tar, Mr. Cord.

A fábrica Messerschmitt abriu-me os olhos. Não havia nos Estados Unidos nada como ela a construir aparelhos. As únicas coisas comparáveis eram as linhas de produção de auto­móveis em Detroit. E quando vi alguns dos esboços do ME-109 que enfeitavam o escritório de Messerschmitt, não tive de olhar duas vezes.

Naquela noite, ao jantar, o marechal do Reich apanhou-me entre a espada e a parede.

— Que pensa da nossa fábrica?

— Estou impressionado — respondi.

Ele fez que sim com a cabeça, satisfeito.

— Segue o modelo da vossa fábrica da Califórnia — disse ele. — Mas é muito maior, claro.

— Evidentemente — concordei, perguntando a mim mesmo como é que eles entraram lá. Então compreendi que não era segredo. Até agora, nunca tínhamos tido nenhum trabalho do governo; só havíamos construído aviões comerciais.

Ele riu de satisfação, depois voltou-se para se retirar. Pouco tempo depois, veio outra vez para junto de mim.

— A propósito — murmurou. — O Führer ficou muito satisfeito com a vossa cooperação. Quando poderei informá-lo de que receberemos o dinheiro?

Olhei para ele fixamente.

— No dia em que Mr. Strassmer entrar no meu escritório em Nova Iorque.

Ele olhou para trás com surpresa.

— O Führer não gostará disso — exclamou. — Afirmei-lhe que o senhor era nosso amigo.

— Também sou amigo de Mr. Strassmer.

Tornou a fitar-me durante algum tempo.

— Agora não sei o que hei-de dizer ao Führer. Vai ficar desapontado quando souber que não recebemos o dinheiro.

— Nesse caso — disse eu — porquê desapontá-lo? Um judeu a mais ou a menos não pode interessar à Alemanha.

Ele baixou a cabeça lentamente, num sinal de quem concor­dava.

— Talvez seja esta a melhor maneira.

Exactamente um mês depois o pequeno engenheiro alemão entrava no meu escritório em Nova Iorque.

— Que vai fazer agora? — perguntei.

— Primeiro, vou juntar-me à família do Colorado e des­cansar algum tempo — respondeu. — Depois tenho de procurar emprego. Já não sou rico.

Sorri para ele.        

— Venha trabalhar comigo. Considerarei o milhão de dó­lares um adiantamento contra os seus direitos.

Quando ele saiu do escritório, dei a Morrissey a oportuni­dade de seguir à frente no CA-4. Se o meu pressentimento saía certo, nenhum de nós já tinha muito tempo. Mas era outra história para o Exército dos Estados Unidos acreditar.

Os meus olhos passaram da secretária para Forrester.

— Voltarei à cidade e farei alguns telefonemas para Washing­ton. Ainda lá tenho uns poucos amigos — exclamou ele. — Farei uma paragem para conversar com o general. Talvez consiga persuadi-lo a escutar.

— Magnífico — disse eu. Olhei para o relógio. Era quase meio-dia e meia hora. A reunião dos accionistas já devia ter terminado. McAllister e Pierce devem ter regressado ao hotel com Norman guardado em segurança nas suas algibeiras de trás.

— Tenho uma entrevista à uma, no Waldorf — exclamei. — Posso ir-me embora?

— Obrigado — disse Forrester com ar de gratidão. — Tenho um almoço marcado e por nada desta vida gostava de faltar.

Ele foi comigo ao Waldorf e dirigiu-se a Peacock Alley, logo que me encaminhei para os elevadores. Enquanto ali estive à espera, vi uma mulher levantar-se para ir ao seu encontro. Era a mesma que eu vira com ele no campo. Perguntava vagamente a mim mesmo por que razão ela não o esperava fora daquele lugar.

Indolentemente vi Rico, o maître d'hotel, conduzi-los para uma mesa escondida a um canto. Dirigi-me à entrada e fiquei ali até ele regressar.

— Ah, Mr. Cord. — Sorriu. — Janta sózinho?

— Não venho jantar. Rico — respondi, metendo-lhe uma nota na mão sempre pronta. — Uma pergunta. Quem é a senhora que está com o coronel Forrester?

Rico sorriu intencionalmente. Baixou os dedos.

— Ah, que encantadora — disse. — É Mrs. Gaddis, esposa do general.

Percorri com os olhos a sala de espera à medida que me encaminhava para os elevadores. O general devia andar por ali. Daquilo que eu descortinava da sua atitude para com Forrester, conjecturei que tinha de haver entre eles mais do que apenas o Exército e os aviões.

Descobri-o quando ele atravessava a entrada e se dirigia aos «W.C.» dos homens, que ficavam a seguir aos elevadores mais próximos. Tinha a testa franzida e o rosto congestionado. Parecia alguém que necessitava de mais alívio do que aquele que poderia encontrar no lugar para onde se dirigia.

Esperei, até a porta se fechar atrás dele. Só então me dirigi aos elevadores. Pela primeira vez desde que aterrara com o CA-4 no Campo Roosevelt comecei a sentir-me melhor. Tudo agora parecia voltar aos seus lugares.

Já não me sentia preocupado. O único problema que res­tava era o de quantos aviões as Forças Aéreas comprariam.

Só me apetecia tomar um duche e dormir uma soneca. Não tinha podido pegar no sono até às cinco horas da manhã. Deixei cair a roupa sobre uma cadeira, fui para a casa de banho e liguei o chuveiro. Sentia a rigidez abandonar-me os músculos sob a acção daquele calorzinho confortante. O telefone tocou várias vezes enquanto eu tomava o duche. Deixei-o tocar.

Quando saí, peguei no auscultador e disse à telefonista que não queria receber chamada nenhuma até às quatro horas.

— Mas Mr. McAllister pediu-me que o avisasse no mo­mento em que entrasse em casa — disse com ar pesaroso. — Afir­mou que era muito importante.

— Faça a ligação às quatro horas — exclamei. Baixei o aus­cultador, saltei para cima da cama e adormeci como um bebé.

A campainha do telefone acordou-me. Olhei para o meu relógio de pulso quando estendi a mão para o local. Eram exac­tamente quatro horas.

Tratava-se de Mac.

— Durante toda a tarde tenho tentado apanhá-lo — disse ele. — Cos diabos, onde tem estado?

— A dormir.

— A dormir? — gritou. — Temos uma reunião nos escri­tórios de Norman. Devíamos já estar lá.

— Nunca mo disse.

— Como diabo podia eu dizer-lhe, se não atendia o tele­fone?

— Ponha-me em contacto com o general Gaddis — pedi à telefonista. — Creio que está aqui registado.

Enquanto esperava, acendi um cigarro. O auscultador deu um estalo ao meu ouvido.

— O general Gaddis a atender — anunciou a telefonista.

— General, daqui fala Jonas Cord — exclamei. — Encontro-me no meu apartamento. Trinta e um quinze em Towers. Gostava de falar consigo.

A voz do general era fria.

— Nada temos a discutir. Você é um jovem inconsciente­mente rude.

— Não são as minhas maneiras que pretendo discutir, general — interrompi. — É a sua mulher.

Ouvi-o falar de modo confuso pelo telefone.

— A minha mulher? Que é que ela tem a ver com o nosso negócio?

— Muito, creio eu, general — foi a minha resposta. — Ambos sabemos com quem ela se encontrou hoje, à uma hora, em Peacock Alley. Não posso acreditar que o Ministério da Guerra pudesse olhar favorávelmente para uma animosidade pessoal, que estivesse na base da sua rejeição do CA-4.

Houve um silêncio ao telefone.

— A propósito, general — perguntei —, que toma?

— Scotch — respondeu maquinalmente.

— Bem, tenho aqui uma garrafa à sua espera. Podemos combinar para daqui a cerca de quinze minutos?

Desliguei antes que ele pudesse responder e chamei para o serviço de quartos. Enquanto aguardava resposta, bateram à porta exterior.

— Entre — gritei.

Da cama, vi entrar Mac e Dan Pierce. Quando penetraram no quarto, o rosto de Mac ostentava o seu habitual ar de preo­cupação mas o de Dan desfazia-se em sorrisos. Estava prestes a conseguir tudo o que sempre desejava.

O serviço de quartos chamou finalmente. Ao fundo conse­guia distinguir o bater dos pratos e de repente senti fome. Não comera mais nada desde o pequeno-almoço.

Mandei vir três sandes de bife, uma garrafa de leite, um jarro de café, uma gar­rafa de Scotch Whisky, duas garrafas de Bourbon e uma dose dupla de fritos franceses. Pousei o auscultador e olhei para eles.

— Bem, que tal?

— Bernie guinchou como um porco a ser morto. — Pierce arreganhou os dentes. — Mas nós agarrámo-lo pelos cabelos e ele apercebeu-se disso.

— E quanto ao seu inventário?                      

— Não sei, Jonas — respondeu Mac. — Ele nunca falaria com Dan.

— Contudo, falei ao David Woolf — afirmou Dan rápida­mente. — Disse-lhe que apanhasse o velho com uma disposição própria para o negócio, pois de contrário a companhia abri­ria falência.

— A Secção Setecentos e Vinte e Dois está pronta? — per­guntei a Mac. Ele sabia a que eu me estava a referir — a uma petição para designar um tesoureiro em caso de falência.

— Na minha pasta. Antes da reunião desta manhã, tive aqui unia breve discussão com os nossos advogados. Acham que podiam dirigir a escolha favorável de um candidato.

Fitei-o.

— Não parece que esteja satisfeito com isso.

— Não estou — respondeu. — Norman é um velho manhoso. Não creio que o iluda assim tão facilmente. Sabe que você corre o risco de perder tanto como qualquer outro, se lançar a companhia na falência.

— Ele também é um malandro avarento e não aproveitará a oportunidade de perder o que já ganhou, só pelo mero prazer de me fazer companhia.

— Espero que tenha razão.

— Depressa o descobriremos. — Voltei-me para Dan. — Já conseguiu apanhar Rina?

Abanou a cabeça.

— Tenho tentado muitas vezes, sem sorte. Ninguém responde de casa dela. O estúdio não sabe onde se encontra. Tentei por intermédio de Louella, mas esta também ignora.

— Continue a tentar — afirmei. — Temos de descobri-la. Quero que ela leia esse documento.

— Vou também tentar encontrá-la — exclamou Dan. — Ela é a única coisa que nos mantém, agora que já tenho liquidado o caso De Mille com a Paramount.

— Tudo resolvido com a Paramount?

— Esta manhã — exclamou. — Tenho no bolso o telegrama de Zukor.

— Esplêndido — disse eu. — Este seria o maior filme já feito, e nos domínios de De Mille. — Íamos lançá-lo por um processo novo chamado Technicolor e custaria mais de seis milhões de dólares. Era a história de Maria Madalena e dar-lhe-íamos o título de A Pecadora.

— Não está a avançar demasiado? — perguntou McAllister. — De que vale isso, se ela não o quiser fazer?

— Há-de fazê-lo — assegurei. — Porque diabo julga que pretendo a companhia de Norman? O contrato que este fez com ela é a única coisa que possuem.

— Mas o contrato dela não dá aprovação ao documento.

— Ela aprová-lo-á — exclamei. Tinha que o fazer. Eu havia escrito essa maldita coisa especialmente para ela.

Quando chegou o serviço de quartos, dei uma volta com os pés e fiquei ao lado da cama, mandando o criado colocar a mesa diante de mim. Não imaginara a fome que tinha. Já havia comido uma das sandes de bife e bebido metade da garrafa de leite antes de o criado sair.

Estava no meio da minha segunda sande quando apareceu o general. Dan acompanhou-o até ao quarto e eu apresentei-os, depois pedi-lhes que nos desculpassem.

— Sente-se, general — convidei logo que a porta se fechou — e deite uma bebida no copo. A garrafa de Scotch está na mesa.

— Não, obrigado — recusou o general, contraído, conservando-se de pé.

Encolhi os ombros e peguei na terceira sanduíche. Fui directamente ao âmago da questão.

— Que tem a lucrar, se eu conseguir que o Forrester aban­done as Forças Aéreas?

— Que é que o leva a pensar que eu pretendo isso?

Engoli um bocado da sande.

— Não rodeemos a questão, general. Já sou crescido a tenho olhos. Só pretendo um exame leal ao CA-4. Daí em diante, a coisa fica arrumada consigo. Não há outros problemas pen­dentes.        

— Porque pensa que não farei ao seu avião um exame leal?

Sorri para ele.

— E confia Forrester ainda mais aos olhos da sua mulher?

Vi que a rigidez o abandonou. Por um momento quase tive pena dele. A estrela do generalato sobre o ombro nada signi­ficava. Era apenas outro velho que tentava segurar uma jovem. Senti vontade de dizer-lhe que deixasse de se pôr de parte. Se não fosse o Forrester seria um outro tipo qualquer.

— Creio que tomarei agora a bebida.        

— Sirva-se — exclamei.                    

Abriu a garrafa e deitou o líquido no copo, de um modo rápido. Bebeu-o e enterrou-se na cadeira à minha frente.

— A minha mulher não é má, Mr. Cord — disse ele quase apologéticamente. — O que acontece é que é nova... e impressionável.

Ele não estava a intrujar-me. Perguntei a mim mesmo se estaria a ludibriar-se a si próprio.

— Estou a compreender, general — foi a minha resposta.

— Sabe o que se passa com as raparigas — prosseguiu. — Só vêem o encanto, a emoção num uniforme. Um homem como Forrester — bem, é bem fácil de compreender. As asas de prata do seu blusão, o D. F. C. e a Croix de Guerre 1.

Silenciosamente, fiz que sim com a cabeça, enquanto enchia uma chávena de café.

— Creio que era esse o tipo de soldado que ela supunha que eu fosse, quando casámos — disse pensativamente. — Mas pouco depois ela compreendeu que era apenas uma espécie de agente comprador glorificado.

Ele tornou a encher o copo e olhou para mim.

 

1 Em francês, no original

 

— O Exército é, hoje em dia, uma máquina complexa, Mr. Cord. Por cada homem na frente, tem que haver cinco ou seis homens por detrás das linhas, apenas para o substituir. Sem­pre tive orgulho em mim porque procurava cuidadosamente que esse homem obtivesse o melhor.

— Tenho a certeza disso, general — exclamei, pousando a minha chávena do café.

Ele pôs-se de pé e continuou a olhar para mim. Talvez seja imaginação minha mas, quando ele falou, pareceu-me que se tornava mais alto e mais direito.

— Eis porque vim falar-lhe, Mr. Cord — afirmou com sóbria dignidade. — Não pelo facto de ter metido a minha mulher num caso estranho, mas para lhe dizer que, amanhã de manhã, no Campo Roosevelt, um grupo examinará o seu avião. Requisi­tei-o esta manhã logo que regressei à cidade. Telefonei a Mr. Morrissey mas creio que ele não conseguiu apanhá-lo.

Olhei-o com surpresa. Um sentimento de vergonha começou a invadir-me. Devia ter tido o juízo suficiente para chamar Morrissey antes de abrir a minha boca tagarela.

Um pálido sorriso atravessou o rosto do general.

— Como está a ver, Mr. Cord — disse —, não precisa de fazer quaisquer acordos com Forrester por minha causa. Se o seu avião resultar, os Serviços Aéreos comprá-lo-ão.

A porta fechou-se atrás dele e eu estendi a mão para tirar um cigarro. Tornei a recostar-me contra a cabeceira da cama e aspirei o fumo, profundamente.

A telefonista do Chatham encontrou Forrester no bar.

— Jonas Cord — exclamei. — Estou no Waldorf Towers, na descida da rua. Gostava de falar consigo.

— Também gostava de falar consigo — exclamou ele. — Vão experimentar o seu aparelho de manhã.

— Já sei. É por isso que quero falar consigo.

Em menos de dez minutos chegou ao meu apartamento.

Tinha as faces ruborizadas e dir-se-ia que estivera toda a tarde a beber.

— Parece que o velho viu a luz — disse.

— É isso que pensa, na realidade? — perguntei, enquanto ele se servia de uma bebida.

— Pode dizer-me o que quiser acerca dele, mas Gaddis é um bom soldado. Cumpre o seu dever.

— Encha-me o copo — pedi.

Ele tirou outro copo e passou-mo.

— Creio que já é altura de você deixar de brincar aos sol­dados.

Ele fitou-me.

— Qual é a sua ideia?

— Acho que a companhia Cord vai fazer um grande negócio com as Forças Aéreas, a partir de agora — foi a minha res­posta. — E preciso de alguém que conheça as cordas — os homens, o que eles pretendem num aparelho. Arranje-nos amigos, contactos. Sabe o que quero dizer.

— Sei o que quer dizer — exclamou. — Por exemplo, deixar de ver Virgínia Gaddis, porque isso seria prejudicial à companhia.

— Mais ou menos isso — respondi calmamente.

Ele engoliu a bebida.

— Não sei se isso seria vantajoso. Pertenço às Forças Aéreas desde criança.

— Não pode saber antes de experimentar — foi a minha resposta. — Além disso, você será mais útil às Forças Aéreas fora do que dentro. Não haverá ninguém para o deter, se quiser pôr em prática algumas das suas ideias.

Olhou para mim.              

— Falando de ideias — perguntou —, de quem era isto? Seu ou de Gaddis?

— Meu — respondi. — Tinha a minha decisão tomada esta manhã, depois da nossa conversazinha no escritório de Mor­rissey. E nada tinha que ver com o facto de eles terem ou não tomado em consideração o CA-4.

Abriu subitamente um sorriso largo.

— Também tinha a minha decisão tomada esta manhã — disse ele. — Ia aceitar o emprego, se você mo oferecesse.

— Onde gostaria de começar? — perguntei.

— No máximo — respondeu prontamente. — As Forças Aéreas não respeitam nada a não ser o homem superior.

— Bastante bom — observei. Fazia sentido. — Você é o novo presidente da Companhia Cord. Quanto quer?

— Deixou-me escolher o lugar — respondeu ele. — Vou deixá-lo indicar o salário.

— Vinte e cinco mil por ano e despesas.

Ele assobiou.

— Não preciso de subir tanto. Isso é o quádruplo daquilo que estou agora a receber.

— Lembre-se apenas disso quando vier pedir um aumento — retorqui-lhe.

Ambos rimos e brindámos pelo facto.

— Há umas modificações no aparelho sobre as quais queria falar consigo antes do exame de amanhã — declarei.

Só então McAllister entrou no quarto.

— São quase seis horas, Jonas — exclamou. — Quando tempo acha que podemos fazê-los esperar? Dan só falou com David Woolf. Ele diz que Norman ameaça sair.

— Encontrar-te-ei logo que me vista. — O telefone tocou quando eu abotoava a camisa.

— Fá-lo por mim, não faz?

— E a respeito das mudanças? — perguntou Forrester, en­quanto Mac levantava o auscultador.

— Vai para o campo e manobra-os com Morrissey.

— É Los Angeles — disse McAllister, cobrindo o bocal com a mão. Não temos muito tempo.

Olhei para ele durante um momento.

— Diga-lhes que acabo de sair para uma reunião e que podem encontrar-me nos escritórios de Norman dentro de duas horas.

Ia precisamente começar a refrescar e as raparigas saíam dos seus aposentos ao longo da Park Avenue, vestidas com as suas roupas de Verão e estolas de pele postas ao acaso sobre os ombros.                      

Pela Sixth Avenue, as raparigas também iam saindo. Mas estas não entravam em táxis; dirigiam-se rápidamente ao metropo­litano e desapareciam naquelas goelas, contentes por terem aca­bado mais um dia de trabalho.

Nova Iorque tinha uma forma curiosa de vitalidade que impregnava o ar geral duma depressão que pairava sobre a região. Apesar das queixas da Wall Street, construíam-se aqui escri­tórios e apartamentos caros. Se se supusesse que todo o di­nheiro tinha desaparecido, como se explicaria que tantas prosti­tutas ainda vivessem nos melhores lugares? Ele não desapareceu. Apenas se escondera, se enterrara como as toupeiras, para apa­recer de novo quando os riscos fossem menores e os lucros maiores.

Na Sixth Avenue, os letreiros pendiam, de um modo depri­mido, das agências de empregos. Os quadros com as listas de empregos escritas a giz branco principiavam a ter um ar cansado e as prostitutas de dois dólares já começavam a sua patrulha nocturna.

Uma delas, à beira da multidão, voltou-se para mim quando passei. Tinha uns olhos grandes, cansados e espertos. Ouvi-lhe um murmúrio dos lábios imóveis.

— Serás o primeiro hoje, querido. Não é bom começar o dia bem?

Sorri-lhe e ela tomou o meu sorriso como um sinal de encorajamento. Aproximou-se de mim.

— Só um bocado — segredou ela rápidamente — e ensinar-te-ei coisas que nunca aprendeste na escola.

Parei, ainda a sorrir.

— Aposto que sim.

Mac e Dan tinham avançado alguns passos. Mac voltou-se outra vez para mim, com um ar aborrecido. A mulher lançou-lhes um rápido olhar e depois tornou a fitar-me.

— Diz aos teus amigos que lhes farei a todos um preço especial: cinco dólares.

Rebusquei na minha algibeira e topei com um dólar que lhe entreguei.

— Fica para a outra vez. Mas não creio que os meus pro­fessores consintam.

Ela olhou para o dólar. Uma expressão de bom humor penetrou-lhe os olhos negros e cansados.

— São os tipos como tu que estragam uma rapariga e tornam difícil para ela ir trabalhar.

Meteu-se num restaurante enquanto nós entrámos na sala de espera do edifício da RCA, no centro Rockefeller.

Eu ainda sorria quando nos encaminhámos para a sala do conselho. Norman sentou-se à cabeceira da comprida mesa, David Woolf à sua direita e um homem que eu encontrara no estúdio — Ernest Hawley, o tesoureiro — à esquerda. No outro lado da mesa sentaram-se os nossos candidatos, os dois homens da corretagem, um banqueiro e um contabilista.

Dan e Mac sentaram-se em lados opostos, deixando vaga para mim a cadeira da extremidade. Comecei a sentar-me.

Bernie pôs-se de pé.

— Um momento, Cord — exclamou. — Esta reunião des­tina-se apenas a directores. — Mostrou-se carrancudo. — Antes de sentar-me à mesma mesa consigo, sairia.

Tirei do bolso um maço de cigarros e acendi um.

— Então saia — respondi com toda a calma. — De qual­quer modo você nada terá que fazer aqui após esta reunião.

— Senhores, senhores — interveio McAllister subitamente. — Isto não é maneira de conduzir uma reunião importante. Temos problemas muito graves, relacionados com o futuro desta companhia, para resolver. Não exporemos nenhum deles num ambiente de desconfiança.

— Desconfiança! — gritou Bernie. — Espera que eu con­fie nela? Depois da maneira como me despojou da companhia, nas minhas costas!

— As acções estavam à venda em público e comprei-as.

— Por que preço? — gritou ele. — Primeiro, obriga o mercado a descer, depois compra tudo. Consegue-o abaixo do valor. Nem se importa de colocar tão mal a companhia, ao fazê-lo. Depois dirige-se a mim e espera que eu venda as minhas acções ao mesmo preço irrisório por que pagou as outras.

Sorri para mim mesmo. A transacção estava a ser feita. O velho imaginava que a melhor maneira de conseguir o que pretendia era atacar-me. E o direito da minha presença até fora esquecido.

— O preço que ofereci era duas vezes o que paguei em público.

— Foi você que conduziu a transacção.

— Eu não dirigia a companhia — respondi. — Era você quem estava — e nos últimos seis anos — dirigindo-a embaraçadamente.

Ele deu a volta à mesa em passos largos.

— E você conseguia fazer melhor?

— Se achasse que não, não estaria a pensar em mais de sete milhões de dólares.

Os olhos dele fitaram os meus por um instante, furiosa­mente, depois voltou para a sua cadeira e sentou-se. Puxou dum lápis e bateu com ele na mesa à sua frente.

— A reunião regular do quadro de directores da Norman Picture Company, Incorporated é deste modo convocada para se tomarem decisões — afirmou ele num tom de voz mais calmo. Olhou para o sobrinho. — David, farás de secretário, até eu nomear outro.

O velho prosseguiu:

— Está presente um quórum, assim como Mr. Jonas Cord, por convite. Toma nota disto, David. Mr. Cord está presente, como convidado de alguns dos directores, a não ser que o presidente se oponha.

Fitou-me, esperando da minha parte uma reacção. Conti­nuei sentado, impassívelmente.

— Passaremos agora à segunda ordem de negócios, que consiste na eleição de oficiais da companhia para o próximo ano.

Acenei com a cabeça para McAllister.

— Senhor presidente — disse —, posso sugerir que se deixe para mais tarde a eleição de oficiais até que o senhor e Mr. Cord tenham completado as discussões referentes à venda das vos­sas acções?

— Que é que o faz pensar que estou interessado em ven­dê-las? — perguntou Bernie. — A minha fé no futuro desta companhia permanece tão forte como sempre. Fiz planos para assegurar a operação bem sucedida desta companhia e se pen­sais, amigos, que me podeis deter, lançar-vos-ei numa luta de procuradores como nunca haveis visto.

Até McAllister teve que rir-se disto. Com que lutaria ele? Já estávamos a votar quarenta e um por cento das acções.

— Se a comparticipação do presidente para o futuro desta companhia fosse tão sincera como a nossa — disse McAllister delicadamente — , com certeza que ele veria o prejuízo que podia advir de se iniciar uma luta de procuradores, que pro­vavelmente não ganharia.

Um ar de astúcia inundou o rosto de Bernie.

— Não sou tão louco como pensais — exclamou. — Tenho estado ocupado toda a tarde. Obtive garantias de um número de accionistas suficiente para me controlar, se lutar. Viveria tanto para ceder a minha própria companhia — a companhia que construí com o suor do meu rosto — a Cord, de forma a que ele pudesse dar mais dinheiro aos amigos, os Nazis? — Bateu dramáticamente com o punho na mesa. — Não, nem mesmo que ele me desse sete milhões de dólares só pela minha parte!

Pus-me de pé, de lábios cerrados e furioso.

— Gostava de perguntar a Mr. Norman o que faria com os sete milhões de dólares, se eu lhos entregasse. Dá-los-ia ao Fundo de Auxílio aos Judeus?

— Não é da conta de Mr. Cord aquilo que faço ao dinheiro gritou ele para mim. — Eu não sou rico como ele. Tudo o que possuo se resume a algumas quotas da minha própria com­panhia.

Sorri.

— Mr. Norman, importava-se que eu lesse ao conselho uma lista dos seus rendimentos líquidos e bens, tanto em seu nome como no de sua esposa?

Bernie parecia perplexo.

— Lista? — perguntou. — Qual lista?

Olhei para McAllister. Este entregou-me uma folha de papel, tirada da sua pasta. Comecei a lê-la.

Depósitos em nome de May Norman: Security National Bank, Bóston — um milhão e quatrocentos mil; Bank of Manhattan Company, Nova Iorque — dois milhões e cem mil; Pioneer National Trust Company, Los Angeles — setecentos mil; Lehman Brothers, Nova Iorque — três milhões e cento e cinquenta mil; mais outras contas menores através do país e que ascendem a mais seiscentos ou setecentos mil. A acres­centar a isto, Mrs. Norman possui mil acres de magnífico ter­reno em Westwood, próximo de Beverly Hills, moderadamente avaliado em dois mil dólares por acre.

Bernie fitou-me.

— Onde arranjou essa lista?

— Não importa onde a arranjei.

O velho voltou-se para o sobrinho.

— Vê, David — disse em voz baixa —, vê o que uma boa esposa pode poupar do dinheiro da casa.

Se ele não fosse um ladrão daquela espécie, ter-me-ia rido. Mas um olhar para o rosto do sobrinho mostrou que o rapaz soubera destes rendimentos particulares. O velho voltou-se para mim.                        

— Então a minha mulher desviou alguns dólares. Isso dá-lhe o direito a roubar-me?                        

— Durante os últimos seis anos, enquanto a sua compa­nhia estava a perder quase onze milhões de dólares, pare­ce-me estranho que a sua mulher depositasse cerca de um milhão de dólares por ano nas suas várias contas.

O rosto de Bernie corou.

— A minha mulher é muito esperta quando investe capi­tais — disse ele. — Eu não perco o meu tempo a espreitá-la!

— Talvez devesse — respondi. — Descobriria que ela tem con­tratos praticamente com todos os majores que fornecem equi­pamento e serviços à Companhia Norman. Não vá dizer-me que ignora o facto de ela receber uma comissão de vendas de cinco a quinze por cento nas aquisições, por grosso, feitas por esta companhia.

Enterrou-se na sua cadeira.

— Mas que mal há nisso? É uma prática comercial per­feitamente normal. Nessas venda ela é o nosso caixeiro-viajante, porque não há-de, pois, receber uma comissão?

Já estava farto daquelas mentiras.

— Muito bem, Mr. Norman — disse eu. — Deixemo-nos de intrujices. Ofereci pelas suas acções um preço mais que razoável. Quer ou não quer vendê-las?

— Não por três milhões e meio de dólares. Cinco e eu podia escutar.

— O senhor não está em posição de discutir preços, Mr. Norman — respondi. — Se não aceitar a minha oferta, porei esta companhia na situação de receber. Depois veremos se um juíz federal acha algo de criminoso nas transacções legítimas de esposa. Parece esquecer-se de que o que está a fazer à com­panhia é um assunto federal, uma vez que vendeu acções em público. É um bocadinho diferente de quando possuía tudo sozinho. Podeis até acabar na prisão.

— Você não se atreveria.

— Não? — disse eu. Estendi a mão. McAllister entregou-me a papelada da Secção 722. Atirei-os para Bernie. — É con­sigo. Se não vender, estes papéis estarão no tribunal amanhã de manhã.

Ele deu uma olhadela para os papéis e depois para mim. Havia nos seus olhos um ódio frio.

— Porque me faz isto? — perguntou. — É porque odeia tanto os judeus, quando tudo o que tentei fazer foi ajudá-lo?

Contornei a mesa, arranquei-o da cadeira e empurrei-o contra a parede.

— Olhe, seu malandro — gritei. — Estou farto das suas piadas. Todas as vezes que me ofereceu ajuda, me roubou. O que o faz morder agora é eu não tornar a consentir o mesmo.

— Nazi! — foi o que me lançou à cara.

Lentamente deixei-o sentar-se, e voltei-me para McAllister.

— Segure nos papéis — disse-lhe — e mova uma acção judiciosa contra Norman e à mulher por roubarem a companhia.

Encaminhei-me para a porta.

— Só um momento! — a voz de Bernie deteve-me. Havia no seu rosto um sorriso estranho. — Não precisa de ir-se embora tão arreliado só porque eu me excitei um pouco.

Fitei-o.

— Volte — disse ele, tornando a sentar-se à mesa. — Pode­mos resolver todo este assunto entre nós em poucos minutos. Como cavalheiros.

Eu estava perto da janela a ver Bernie assinar as transferências de acções. Havia algo de incongruente na maneira como ele ali estava sentado, com a caneta a rabiscar no papel à medida que assinava a despedida daquilo que era o trabalho da sua vida. Não precisamos de gostar que um tipo tenha pena dele. E de certo modo era o que eu sentia.

Tratava-se de um velho egoísta, desprezível. Não possuía o sentido da decência, nem honra, nem moral, todos sacrifi­caria do alto do seu poder, mas quando a caneta se movia ao longo de cada certificado, experimentei a sensação de que o sangue da sua vida saía do aparo de oiro misturado com tinta.

Voltei-me e espreitei para fora da janela, daquele trigésimo andar para a rua. Lá em baixo as pessoas eram pequeninas, tinham pequenos sonhos, planos ínfimos. O dia seguinte era sábado. O dia de folga. Talvez fossem para a praia, ou para o parque. Se tivessem dinheiro, talvez dessem uma volta de carro pelo campo. Sentar-se-iam na relva junto das mulheres c veriam os filhos divertir-se e sentir a terra fresca debaixo dos pés. Eram felizes.

Não viviam numa floresta que media o seu valor através da sua capacidade de lidar com os lobos. Não nasceram duns pais que não podiam amar o filho a não ser que fosse a sua própria imagem.

Não andavam rodeados de pessoas cujo único pensamento era associarem-se com as fontes de riqueza. Quando amavam, amavam por causa do que sentiam, não por aquilo que poderiam usufruir.

Senti na boca um travo amargo. Devia ser assim lá em baixo, mas na realidade não tinha a certeza. E não estava particularmente interessado em descobri-lo. Também gostava da vida cá em cima.

Era como estar no céu sem ninguém à volta a dizer-nos o que devemos ou não devemos fazer. No nosso mundo fizemos as nossas próprias leis. E todos tinham que regular-se por elas, quer quisessem, quer não. Enquanto estivemos em cima, durante muito tempo. Isso permitira que, ao pronunciarem o meu nome, todos soubessem quem eu era. O meu nome, não o de meu pai.

Retirei-me da janela e voltei para a mesa. Peguei nos cer­tificados e mirei-os. Estavam devidamente assinados: Bernard B. Norman.

Bernie ergueu os olhos para mim. Forçava um sorriso. Não conseguiu bem. Há anos, quando Bernie Normanovitz abriu a sua primeira casa de divisões na Fourth Street, em East Side, ninguém pensou que ele alguma vez viesse a vender a sua companhia por três milhões e meio de dólares.

Subitamente, deixei de me importar. Já não tinha pena dele. Ele roubara a uma companhia mais do que quinze milhões de dólares e a sua única desculpa era que ele a tinha começado.

— Calculo que também queira isto — disse ele, rebus­cando no bolso do colete e tirando uma folha de papel dobrada.

Entregou-ma e eu abri-a. Era a sua carta de demissão como presidente e leader do conselho. Olhei-o com surpresa.

— Agora, há mais alguma coisa em que lhe possa ser útil?

— Não — respondi.

— Engana-se, Mr. Cord — disse ele brandamente. Depois dirigiu-se ao telefone, que estava na mesa a um canto. — Me­nina, daquilo fala Bernie Norman. Faça agora a ligação para Mr. Cord.

Estendeu-me o telefone.

— Para si — disse sem expressão. Agarrei no auscultador e ouvi a voz da telefonista. — Mr. Cord já está ao telefone, Los Angeles.

Ouviu-se um estalido, depois outro, à medida que a liga­ção ia sendo feita directamente. Vi que Bernie me olhou perspicazmente e depois se encaminhou para a porta; voltou-se e olhou para o sobrinho.    

— Vens, David?

Woolf começou a levantar-se.

— Você — disse eu, tapando com a mão o bocal. — Fique.

David olhou para Bernie, depois abanou a cabeça ligei­ramente e recostou-se na cadeira. O velho encolheu os ombros.

— Porque havia eu de esperar mais da minha própria carne e sangue? — exclamou ele. A porta fechou-se atrás de si.

A voz de uma mulher chegou-me aos ouvidos. Havia nela algo vagamente de familiar.

— Jonas Cord?

— Sim, o próprio. Quem fala?

— Ilene Gaillard. Toda a tarde tenho tentado entrar em contacto consigo. Rina... Rina... — interrompeu a sua voz.

Senti um arrepio horrível constranger-me o coração.

— Sim, Miss Gaillard — perguntei —, que se passa com Rina ?

— Está a morrer, Mr. Cord — soluçou ela ao telefone —, e quer vê-lo.

— A morrer? — repeti eu. Não podia acreditar. Não a Rina. Era indestrutível.

— Sim, Mr. Cord. Encefalite. É melhor não demorar. Os médicos não sabem quanto tempo ainda pode durar. Está no Hospital Colton em Santa Monica. Posso dizer-lhe que vem já?

— Diga-lhe que já vou a caminho! — afirmei, pousando o auscultador.

Voltei-me e olhei para David Woolf. Este observava-me com uma expressão estranha no rosto.

— Você sabia — afirmei.

Ele concordou, levantando-se.

— Sabia.

— Porque não me disse?

— Como podia fazê-lo? — perguntou ele. — O meu tio receava que, se o senhor soubesse, não quisesse as suas acções.

Um silêncio estranho envolveu a sala, quando voltei a levantar o auscultador. Dei à telefonista o número de Morrissey no Campo Roosevelt.

— Quer que me vá já embora? — perguntou Woolf.

Fiz que sim com a cabeça. Já nada me importava agora. Rina era a única coisa importante. Praguejei impacientemente enquanto esperava que Morrissey pegasse no telefone.

A minha única oportunidade de chegar a tempo junto de Rina era voar no CA-4.

O hangar, iluminado feéricamente, era um frenesi de acti­vidade. Os soldadores encontravam-se sobre as asas, com as máscaras postas e as tochas soltando uma chama azul, à medida que soldavam os depósitos de combustível às asas. O monte de sucata ao lado do avião crescia, uma vez que os mecânicos despojavam o aparelho de tudo o que lhe aumentasse o peso e não fosse estritamente necessário ao voo.

Examinei o relógio quando Morrissey se dirigia para mim. Era quase meio-dia. Na Califórnia eram nove horas.

— Quanto tempo ainda? — perguntei.

— Já não leva muito. — Olhou para a folha de papel que tinha na mão. — Despojado de tudo, ainda excedemos a capacidade em mil e quatrocentas libras.

O Midweste estava completamente bloqueado por tempestades, de acordo com as nossas pesquisas meteorológicas. Se eu quisesse voar directamente, teria que rodeá-las, desviando um pouco para sul. Morrissey imaginara que precisaríamos de quarenta e três por cento de mais combustível, só para o voo em si, e pelo menos de mais sete por cento para uma margem de segurança.

— Porque não espera pela manhã? — perguntou Morrissey. — Pode ser que o tempo levante e possa fazer o voo directo.

— Não.

— Por amor de Deus — protestou ele rispidamente. — Não conseguirá nunca descolar. Se deseja assim tanto suicidar-se, porque não usa uma arma?

Voltei-me e contemplei o monte de sucata ao lado do avião.

— Quanto pesa o aparelho de rádio?

— Quinhentas e dez libras — respondeu prontamente. Depois fitou-me. — Não conseguirá passar sem isso! Como diabo saberá onde se encontra e que tal está o tempo à sua frente?

— Procedo da mesma maneira que antes, quando não havia rádio nos aparelhos. Descarregue-o!

Ele pôs-se a caminhar outra vez para o avião, abanando a cabeça. Tive outra ideia.

— O sistema de pressão de oxigénio para a carlinga?

— Seiscentas e setenta libras, incluindo os depósitos.

— Descarregue também isso — exclamei. — Voarei baixo.

— Precisará de oxigénio para voar sobre as Rochosas.

— Ponha um reservatório portátil na carlinga, ao meu lado.

Dirigi-me ao escritório e liguei para Buzz Dalton, no escri­tório da Intercontinental em Los Angeles. Já tinha saído, de modo que fizeram a ligação para sua casa.

— Buzz? Daqui fala Jonas.              

— Já perguntava a mim mesmo quando é que teria notícias tuas.

— Quero que me faças um favor.

— Claro — respondeu prontamente. — Qual é?

— Vou voar esta noite para a costa — exclamei. — E pre­tendia que tivesses sinais de tempo para mim, em todos os lugares ICA espalhados pelo país.

— Que aconteceu ao teu rádio?

— Vou tomar o CA-4 em voo sem paragens. E não posso levar esse peso!

Ele assobiou.

— Nunca o farás, amigo.

— Hei-de fazê-lo — exclamei. — Emprega sinais luminosos de noite, pinta os telhados durante o dia.

— Muito bem. Qual é o teu plano de voo?

— Ainda não decidi o plano. Avisa todos os campos.

— Assim farei — respondeu. — Boa sorte.

Pousei o telefone. Aí estava o que eu pretendia de Buzz. Ele era de confiança. Não perdia tempo com assuntos idiotas, perguntando porquê, quando e onde. Fazia como lhe diziam. Só se preocupava com os aviões. Eis a razão por que a ICA se ia rápidamente tornando a maior linha aérea comer­cial do país.                                        

Tirei da secretária a garrafa de Bourbon e bebi um gole. Depois dirigi-me ao sofá e estendi--me. As minhas pernas estavam dependuradas na extremidade mas não me importei. Podia des­cansar um pouco enquanto os mecânicos acabavam a sua tarefa. Fechei os olhos, durante um momento, mas logo os abri ao sentir Morrissey aproximar-se de mim.

— Pronto? — perguntei olhando para ele.

Fez que sim com a cabeça.

Dei uma volta aos pés, saltei do sofá e levantei-me. Espreitei para o hangar. Estava vazio.

— Onde está o aparelho?

— Cá fora — disse. — Estou a aquecê-lo.              

— Bem — Olhei para o relógio. Passava pouco das três horas. Ele seguiu-me até ao avião.

— Está cansado — exclamou, observando-me enquanto molhava a cara com água fria.                      

— Acha que realmente deve ir?

— Tenho que o fazer.

— Meti no avião, para si, seis sandes de carne assada e dois termos de café.

— Obrigado — respondi, saindo.

A mão dele deteve-me. Estendia um pequeno frasco branco.

— Chamei o médico — disse — e ele trouxe isto para si.

— Que é?

— Umas pílulas novas. Benzedrine. Tome uma se tiver sono. Despertá-lo-á. Mas tenha cuidado com elas. Não tome muitas, senão até atravessa o céu.

— Não abra os seus depósitos de combustível de reserva antes da altura devida.

— Como hei-de saber que os depósitos de reserva estão a trabalhar? — perguntei.

Olhou para mim.

— Não saberá até acabar o combustível. Se o aparelho estiver fechado, a pressão do ar manterá o manómetro num quarto, se o depósito estiver seco.

Lancei sobre ele uma olhadela rápida mas nada disse. Con­tinuámos a caminhar. Trepei para as asas e voltei-me para a carlinga. Uma mão puxou-me pelas calças. Olhei para trás.

Forrester olhava para mim com ar preocupado.

— Que vai fazer com o aparelho?

— Vou à Califórnia.

— E os testes de amanhã? — gritou ele. — Ainda esta noite trouxe aqui o Steve Randall para o ver.

— Tenho muita pena — exclamei. — Convença-o.

— Mas o general — vociferou. — Como hei-de explicar-lhe? Ficará desesperado!

Saltei para a carlinga e olhei para ele.

— Agora isso já não provoca dores de cabeça a mim, mas a si.

— E se acontecer alguma coisa ao avião?

Súbitamente abri um sorriso largo. Não me enganara no pressentimento que tive a respeito dele. Daria um magnífico ge­rente. Não havia nele qualquer preocupação a meu respeito, mas sim a respeito do avião.

— Construirão outro — gritei. — O senhor é presidente da companhia.

Fiz um gesto com a mão e, soltando os travões, comecei a fazer rolar o aparelho lentamente para a pista. Voltei-o para o vento e mantive-o enquanto verificava o motor. Fechei a capota e quando o taquímetro atingiu vinte e oito, manobrei os travões.

Corremos pela pista. Não tentei sequer levantar antes que a velocidade no solo atingisse cento e quarenta. Já estava quase fora da pista quando comecei a avistar um pouco de céu. Depois disso, levantei voo fácilmente.

Nivelei o aparelho a quatro mil pés e tomei o rumo sul. Olhei por sobre o ombro. A Estrela Polar estava precisamente a meio das minhas costas, brilhando extraordináriamente no céu claro-escuro. Era difícil acreditar que, a menos de mil milhas daqui, os céus estivessem perigosos.

Voava sobre Pittsburgh, lembrei-me de uma coisa que Nevada me ensinara quando era garoto. Estávamos a seguir o rasto de um grande gato e ele apontou para a Estrela Polar.

— Os Índios têm um ditado que afirma o seguinte: quando a Estrela Polar brilha assim, uma tempestade move-se para o sul.

Tornei a erguer os olhos. A Estrela Polar brilhava precisa­mente como nessa noite. Também me lembrei doutro ditado que Nevada me ensinou. O caminho mais rápido para o oeste é através do vento.

A escolha estava feita. Se os índios tinham razão, na altura em que eu atingisse o Midwest a tempestade estaria já para sul. Inclinei o aparelho para o vento e quando levantei os olhos da bússola, a Estrela Polar dançava cintilante do meu lado direito.

Doía-me a cabeça, tudo me doía — ombros, braços e pernas — e as minhas pálpebras pesavam uma tonelada. Sentia-as a quererem fechar-se e estendi a mão para apanhar o termo do café. Estava vazio. Olhei para o relógio. Havia doze horas que eu tinha partido do Campo Roosevelt. Meti a mão no bolso e tirei a caixa de pílulas que Morrissey me dera. Pus uma na boca e engoli-a.

Durante uns minutos não senti nada, depois é que comecei a melhorar. Respirei fundo e perscrutei o horizonte. De acordo com o que eu imaginava, não devia estar muito longe das Ro­chosas. Avistei-as daí a vinte e cinco minutos.

Examinei a quantidade de combustível. A agulha mantinha-se firme sobre um quarto. Tinha aberto os depósitos de reserva. A orla da tempestade por que passara no Midwest havia-me custado mais gasolina do que a quantidade destinada a uma hora e precisava de uma abertura no vento para atravessar.

Regulei a alavanca e escutei os motores. O seu ruído soava pesado e plenamente à medida que a mistura mais rica lhe penetrava as veias. Inclinei-me sobre o comando e comecei a trepar em direcção às montanhas. Ainda me sentia um pouco cansado, de modo que meti mais uma pílula na boca.

A doze mil pés comecei a sentir frio. Enfiei os huarachos nos pés e puxei do tubo do oxigénio. Quase no mesmo instante senti como se o avião tivesse saltado três mil pés. Olhei para o altímetro. Só li mil duzentos e quarenta.

Tornei a aspirar o tubo. Uma onda de força atravessou-me o corpo e coloquei as mãos no quadro dos instrumentos. Diabos levassem a gasolina! Conseguia fazer subir este bebé por cima das Rochosas com as mãos nuas. Era apenas uma questão de força de vontade. Tal como os faquires da Índia diziam, quando nos confundiam com os seus truques de levitação — era só uma questão de espírito sobre a matéria. Tudo estava no espírito.

Rina! Quase gritava. Olhei para o altímetro. A agulha des­cera para nove mil e quinhentos pés e continuava ainda a descer. Contemplei a montanha que rastejava em baixo. Pus a mão no comando e puxei para trás. Pareceu-me uma eternidade até a montanha surgir outra vez por debaixo de mim.

Ergui as mãos para enxugar o suor da testa. As minhas faces estavam húmidas de lágrimas. A estranha sensação de domínio desapareceu então e a cabeça começou a doer-me. Morrissey avisara-me das pílulas e o oxigénio também ajudara um pouco. Toquei na válvula reguladora e regulei cuidadosamente a mistura à medida que entrava nos motores.

Ainda tinha quase quatrocentas milhas a percorrer e não queria que a gasolina acabasse.

Aterrei em Burbank às duas horas. Estivera no ar quase quinze horas. Conduzi o avião até aos hangares da Companhia Cord, parei os motores e comecei a descer. Os motores ainda roncavam aos meus ouvidos.

Pisei o chão e uma multidão rodeou-me. Reconheci algumas pessoas, repórteres.

— Tenho muita pena, meus senhores — exclamei furando o meu caminho até ao hangar. — Ainda estou surdo por causa dos motores. Não consigo ouvir o que estão a dizer.

Buzz estava ali, também, de sorriso aberto. Agarrou-me a mão e apertou-a. Os lábios dele moviam-se, mas não ouvi a pri­meira parte do que disse. Depois o ouvido voltou-me súbitamente.

— ...Estabeleceste um novo record este-oeste, de costa a costa.

— Isso agora não interessa. Tens um carro à minha espera?

— Em frente do portão principal — respondeu Buzz.

Um dos repórteres adiantou-se.

— Mr. Cord — gritou-me. — É verdade que fez este voo para ver Rina Marlowe antes de morrer?

Deve ter precisado de um banho após o olhar que lhe lancei. Nem respondi.

— É verdade que comprou as acções de Norman só para se apoderar do contrato dela?

Entrei para a limusina mas eles ainda me dirigiam per­guntas. O carro começou a rodar. Um polícia motorizado abria caminho à nossa frente e pôs a sereia a trabalhar. Aumen­támos a velocidade quando o tráfego à nossa frente se descon­gestionou.

— Tenho muita pena de Rina, Jonas — disse Buzz. — Não sabia que era a mulher do teu pai.

Olhei para ele.

— Onde o descobriste?

— Vem nos jornais — exclamou. — O estúdio Norman tinha-o escrito na autorização da imprensa, juntamente com a história de tu voares até aqui para a ver.

Cerrei os lábios. Era esse o negócio de películas para de. Pareciam vampiros sobre uma sepultura.

— Se quiseres, tenho aqui café e uma sande.

Estendi a mão para agarrar no café. Estava bem escuro e quente e senti-o cair no estômago. Voltei-me e espreitei pela janela. A minha cabeça começou outra vez a latejar e a doer-me.

Perguntava a mim mesmo se podia aguentar, até chegarmos ao hospital, sem ir à casa de banho.

O Hospital Colton parece-se mais com um hotel do que com um hospital. Fica nas Pacific Palisades e dá para o oceano. Para o alcançar, sai-se da estrada marginal e entra-se numa outra estrada, ondulante e estreita, e há um guarda junto do portão de ferro. Passa-se por ele, mas só depois de se mostrarem as respectivas credenciais.

O Dr. Colton não é um charlatão da Califórnia. É um homem perspicaz que reconheceu a necessidade de um hospital verdadeiramente particular. As estrelas de cinema vão lá por tudo, desde o terem um bebé até curarem-se, desde a cirurgia plástica aos esgotamentos cerebrais. E uma vez passado o portão, podem respirar à vontade e descontrair-se, pois nunca constou que ali tivesse entrado algum repórter. Podem estar certas de que não interessa. A razão por que foram ali, a única palavra que alcançará o mundo exterior será a sua.

O guarda esperava-nos porque começou a abrir o portão no momento em que avistou o polícia motorizado. Alguns repórteres gritavam para nós e os fotógrafos tentaram tirar fotografias.

Um deles agarrou-se mesmo ao estribo até entrar­mos o portão. Então apareceu súbitamente um segundo guarda — que o afastou.

Voltei-me para Buzz.

— Eles nunca desistem, pois não?

O rosto de Buzz estava sério.    

— A partir de agora é melhor acostumares-te a isso, Jonas. Tudo o que fizeres será uma novidade.

Fitei-o.

— Loucura — exclamei. — Foi por ser hoje. Amanhã será qualquer outra pessoa.

Buzz abanou a cabeça.

— Não leste os jornais de hoje nem ouviste a rádio. És uma figura nacional. Algo relativo àquilo que estavas a fazer atraiu a imaginação pública. As estações de rádio dão a notícia de meia em meia hora. Amanhã o Examiner começa a contar a história da tua vida. Ninguém como tu percorreu o país desde Lindbergh.

— Que é que te leva a dizer isso?

Sorriu.

— As camionetas com o Examiner de hoje. Têm cartazes com a tua fotografia. LEIAM A HISTÓRIA DA VIDA DO MISTERIOSO HOMEM DE HOLLYWOOD — JONAS CORD. — Por Adela Rogers St. Johns'.

Fitei-o. Creio que teria de habituar-me a isso. St. Johns' era a principal articulista sentimental do Hearst. Isso signifi­cava que o velho San Simeon tinha posto o dedo em sinal de aprovação sobre mim. A partir de agora, passaria a viver num aquário.

O carro parou e apareceu um porteiro.

— Por favor, Mr. Cord, por este caminho — disse ele res­peitosamente.

Segui atrás dele pela escadaria que dá acesso ao hospital. A enfermeira de uniforme branco que estava atrás da secretária sorriu para mim. Indicou um registo preto, forrado de couro.

— Por favor, Mr. Cord — exclamou ela. — É norma do hospital que todos os visitantes tenham de assiná-lo.

Assinei o registo rapidamente, enquanto ela tocava num botão por debaixo do balcão. Logo a seguir apareceu outra enfermeira à secretária.

— Se vier comigo, Mr. Cord — disse delicadamente —, levá-lo-ei ao quarto de Miss Marlowe.

Segui-a até os elevadores que ficavam na retaguarda da sala de entrada. Ela premiu o botão e olhou para o indicador. Um ar preocupado inundava-lhe o rosto.

— Lamento maçá-lo, Mr. Cord, mas terá que esperar alguns minutos. Ambos os elevadores estão em cima, na sala de ope­rações.

Um hospital sempre era um hospital, por mais que o ten­tassem pintar como um hotel. Deitei uma olhadela em volta da sala de espera até localizar aquilo que procurava. Era uma porta que tinha indicado: GENTLEMEN.

Tirei um cigarro do bolso quando as portas do elevador se fecharam atrás de nós. Dentro, havia o cheiro característico dos hospitais: álcool, desinfectantes, aldeído fórmico. A doença e a morte. Risquei um fósforo para acender o cigarro, esperando que a enfermeira não notasse que os meus dedos súbitamente começaram a tremer.

O elevador parou e a porta abriu-se. Entrámos num corredor asseado. Chupava profundamente o cigarro enquanto seguia a enfermeira. Esta parou em frente duma porta.

— Lamento, mas tem que apagar o cigarro, Mr. Cord.

Olhei para cima e vi um letreiro:

         É PROIBIDO FUMAR

         OXIGÉNIO A SER USADO

Chupei mais uma vez e deitei-o para uma caixa junto da porta. Ali me detive, porque se apoderou de mim um receio sú­bito de entrar. A enfermeira abriu a porta.

— Pode entrar, Mr. Cord.

A porta abriu-se, mostrando uma pequena antecâmara. Outra enfermeira estava sentada numa cadeira de braços a ler uma revista. Olhou para mim.

— Entre, Mr. Cord — disse ela num tom falsamente encorajador. — Temos estado à sua espera.

Atravessei lentamente o limiar. Ouvi a porta fechar-se atrás de mim e os passos da enfermeira que me acompanhava desapareceram. Havia outra porta do lado oposto. A enfermeira passou por ela.

— Miss Marlowe está aqui — anunciou.

Fiquei no limiar. A princípio, não consegui ver. Ilene Gaillard, um médico e outra enfermeira estavam junto da cama, com as costas voltadas para mim. Depois, como se tivessem sido despertados por algum sinal, voltaram-se todos súbita­mente. Dirigi-me à cama. A enfermeira afastou-se e Ilene e o médico separaram-se ligeiramente para me darem lugar. Então vi-a.

Uma tenda de plástico claro estava suspensa sobre a sua cabeça e ombros e ela parecia dormir. Tudo, excepto o rosto, estava completamente tapado com uma pesada ligadura branca que lhe escondia os cabelos de tom louro claro. Tinha os olhos fechados e pude ver, sob a carne das pálpebras, um tom azul pálido. A pele, arrepanhada junto às salientes maçãs do rosto, deixava um espaço vazio em volta das faces cavadas, de modo que se ficava com a sensação de que a carne em baixo tinha desaparecido. A sua boca larga, geralmente tão quente e cheia de vida, estava pálida e levemente recuada em relação aos dentes ainda brancos.

Fiquei silencioso por um momento. Não consegui vê-la respirar. Olhei para o médico, que abanou a cabeça.

— Está viva, Mr. Cord — murmurou —, mas por muito pouco tempo.

— Posso falar-lhe?

— Pode tentar, Mr. Cord. Mas não fique desapontado se ela não responder. Há dez horas que se encontra assim. E se res­pondesse, Mr. Cord, não poderia reconhecê-lo.

Voltei para junto dela.

— Rina — disse com suavidade. — Sou eu, o Jonas.

Ela continuou calma, sem se mover. Pus a mão sob a tenda de plástico e peguei na dela. Apertei-a. Estava fresca e macia. De repente, tudo parou bruscamente dentro de mim. A mão estava fria. Já estava morta. Morta.

Ajoelhei-me ao lado da cama. Afastei o plástico e debrucei--me sobre ela.

— Por favor, Rina! — supliquei com veemência. — Sou eu, o Jonas. Por favor, não morras!

Senti uma pressão leve da sua mão. Baixei os olhos para ela, com lágrimas a correrem-me pela cara. O movimento da sua mão tornou-se um pouco mais forte. Então os olhos abriram-se-lhe lentamente e começaram a fitar o meu rosto.

A princípio, os seus olhos estavam vagos e distantes. Depois aclararam e os lábios curvaram-se numa sugestão de sorriso.

— Jonas — murmurou. — Sabia que virias.

— Bastava só assobiares.

Os seus lábios continuaram a mover-se mas nada se ouvia.

— Nunca consegui aprender a assobiar — disse ela por fim muito baixinho.

A voz do médico fez-se ouvir atrás de mim.

— É melhor descansar um bocadinho agora, Miss Marlowe.

Os olhos de Rina passaram pelo meu ombro para o fitar.

— Não — murmurou. — Por favor. Já disponho de pouco tempo. Deixe-me falar com o Jonas.

Voltei-me para olhar o médico.

— Está bem — anuiu este —, mas só por um momento.

Ouvi a porta estalar atrás de mim, depois baixei os olhos para Rina. A sua mão levantou-se ligeiramente e bateu-me na cara. Agarrei-lhe nos dedos e levei-os aos lábios.

— Tinha que ver-te, Jonas.

— Porque esperaste tanto tempo, Rina?

— Por isso tinha que ver-te — murmurou ela. — Para explicar.

— De que servem agora as explicações?

— Por favor, tenta compreender, Jonas. Amei-te desde o primeiro momento em que te vi. Nunca dei sorte a ninguém que me tivesse amado. A minha mãe e irmãos morreram porque me amavam. O meu pai morreu na prisão dilacerado pela dor.

— A culpa não foi tua.

— Empurrei a Margaret pela escada abaixo e matei-a. Matei o meu filho ainda antes de nascer, roubei a carreira a Nevada e Claude suicidou-se por causa do que eu lhe estava a fazer.

— Essas coisas acontecem porque têm que acontecer. Não foste culpada.

— Fui! — insistiu ela roucamente. — Olha para aquilo que te fiz, ao teu casamento. Eu nunca devia ter ido ao teu hotel naquela noite.

— A culpa foi minha. Fui eu que te fiz ir.

— Ninguém me obrigou — murmurou ela. — Fui, porque quis. Quando ela chegou, percebi como eu andava no erro.

— Agora tenta descansar um pouco.

— Para quê? — murmurou. — Para viver mais alguns dias no mundo louco que tenho na cabeça? Não, Jonas. Dói demasiado. Quero morrer. Mas não me deixes morrer aqui, metida na tenda de plástico. Leva-me para o terraço. Deixa-me mais uma vez contemplar o céu.

Fitei-a.

— O médico...

— Por favor, Jonas.

Olhei para ela e vi-a sorrir. Respondi com um sorriso e afastei a tenda de oxigénio. Levei-a nos meus braços; era leve como uma pena.

— Sabe bem tornar a estar nos teus braços, Jonas — mur­murou.

Beijei-a na testa e saímos para a luz do dia.

— Já me esquecera de como uma árvore pode ser tão verde — disse ela baixinho. — Lá em Boston é que há o carvalho mais verde que jamais se viu em vida. Leva-me até lá, por favor, Jonas.

— Assim farei.

— E não os deixes destruí-lo. Podem fazê-lo.

— Bem sei — respondi.

— Há espaço para mim, Jonas — murmurou ela. — Junto do meu pai.

A sua mão tombou do meu peito e um peso de tipo novo entrou-lhe no corpo. Contemplei-a. Tinha o rosto escondido contra o meu ombro. Voltei-me e olhei para a árvore que a fizera recordar o lar. Mas não consegui vê-la por causa das lágrimas.

Quando me voltei, Ilene e o médico estavam no quarto. Em silêncio tornei a levar Rina para a cama e deitei-a suave­mente. Endireitei-me e olhei para eles.

Tentei falar, mas não consegui durante algum tempo. E quando isso me foi possível, estava enrouquecido pela angústia.

— Ela queria morrer à luz do sol — disse.

Olhei para o sacerdote, cujos lábios se moviam silenciosamente quando lia a Bíblia preta que tinha nas mãos. Ergueu os olhos por um momento, depois fechou a Bíblia e começou a afastar-se. Pouco tempo depois, os outros começaram a segui-lo e em breve Ilene e eu éramos os únicos junto da sepultura.

Ela estava à minha frente, magra e silenciosa, vestida de preto e com um pequeno véu a esconder-lhe os olhos.

— Acabou-se — disse numa voz cansada.

Concordei e olhei para a placa do túmulo. Rina Marlowe. Agora era apenas um nome.

— Espero que tudo tenha decorrido como ela pretendia.

— Tenho a certeza de que sim.

Ficámos silenciosos depois, com o embaraço de duas pessoas que num cemitério têm como único laço o corpo que jaz na sepul­tura. Respirei fundo. Eram horas de ir-me embora.

— Posso dar-lhe uma boleia até ao hotel?

Ela abanou a cabeça.

— Gostava de ficar aqui mais um bocadinho, Mr. Cord.

— Sente-se bem?

Vi os seus olhos de relance, por debaixo do véu.

— Sentir-me-ei bem, Mr. Cord — disse. — Nada mais pode acontecer-me.

— Farei com que um carro a espere. Adeus, Miss Gaillard.

— Adeus, Mr. Cord — respondeu cerimoniosamente. — E... e muito obrigado.

Voltei-me e desci o caminho até à estrada do cemitério. Os mórbidos e os curiosos ainda ali estavam por detrás da polícia, do outro lado da rua. Elevou-se um débil murmúrio, quando eu saí pelo portão do cemitério. Procedera o melhor que me fora possível, mas de qualquer modo há sempre multidões.

O motorista abriu a porta da limusina e eu entrei. Ele fechou-a e dirigiu-se para o lugar da frente. O carro começou a deslizar.

— Para onde, Mr. Cord? — perguntou encorajadoramente. — Quer regressar ao hotel?

Voltei-me e olhei pelo vidro da porta traseira. Estávamos numa pequena subida e consegui ver Ilene dentro de cemitério. Estava sentada ao lado do túmulo, na sua figura vestida de preto, digna de compaixão e recolhida, e com o rosto escondido entre as mãos. Depois contornámos uma curva e ela desapareceu-me de vista.

— Quer regressar ao hotel, Mr. Cord? — repetiu o motorista.

Endireitei-me e tirei um cigarro.

— Não — disse, acendendo-o. — Para o aeroporto.

Aspirei o fumo até aos pulmões e deixei o cigarro a arder. De repente, só me apeteceu descer. Boston e a morte, Rina e sonhos. Tinha imensas recordações.

O ruído enchia-me os ouvidos e comecei a subir a com­prida e escura escada. Quanto mais subia, mais forte era o ruído. Abri os olhos.

Lá fora o Third Avenue El soava estrondosamente. Conseguia ver as pessoas comprimidas dentro e sobre as estreitas plataformas. Então o comboio passara e um silêncio estranho inundou a sala. Deixei os meus olhos vaguear.

Era uma sala pequena e escura, cujo papel já começava a tornar-se castanho nas paredes. Junto da janela havia uma pequena mesa e na parede, sobre ele, um crucifixo. Eu estava deitado numa velha cama de ferro. Lentamente rodei com os pés e levantei-me. A minha cabeça parecia que ia desprender-se.

— Então está acordado, está?

Comecei a voltar a cabeça mas a mulher apareceu na minha frente. Havia no seu rosto algo de familiar mas não me lembrava de onde a tinha visto antes. Levantei a mão e esfreguei a cara. A minha barba estava tão áspera como a lixa.

— Há quanto tempo estou aqui? — perguntei.

Ela riu um bocadinho.

— Quase uma semana — respondeu. — Começava a pensar que a sua sede nunca mais acabava.

— Eu estava a beber?

— Ai isso é que estava — respondeu ela.

Segui os seus olhos, que baixaram para o chão. Havia três caixas cheias de garrafas de whisky vazias. Esfreguei a parte de trás do pescoço.

— Que aconteceu para eu estar aqui? — perguntei.

— Não se lembra?

Disse que não com a cabeça.

— Dirigiu-se a mim em frente do armazém na Sixth Avenue e agarrou-me pelo braço, dizendo que agora estava pronto para a lição. Então entrámos no bar White Rose para tomarmos umas bebidas e foi então que lutou com o empregado do bar. De modo que o trouxe para casa para protecção.

Esfreguei os olhos. Começava agora a recordar-me. Tinha vindo do aeroporto e subia a Sixth Avenue em direcção aos escritórios de Norman quando senti necessidade de uma bebida. Depois disso, tudo vago. Lembrei-me de procurar, em frente duma casa de rádios, a prostituta que prometera ensinar-me algumas coisas que eu nunca aprendera na escola.

— Eras tu? — perguntei.

Ela riu.

— Não, não era. Mas nas condições em que você se encontrava não fazia diferença. Não procurava uma mulher na realidade; a dor é que o esmagava.

Levantei-me. Estava em cuecas. Olhei para ela com ar interrogador.

— Levei as suas roupas para baixo a fim de serem limpas, quando você ontem parou de beber. Enquanto se arranja, vou buscá-las.

— A casa de banho?

Apontou para uma porta.

— Não tenho chuveiro, mas encontrará água quente suficiente para um banho na tina. E na prateleira há uma máquina para a barba.

Quando saí da casa de banho, já as roupas estavam à minha espera.

— O seu dinheiro está no toucador — disse ela, enquanto eu acabava de abotoar a camisa e de vestir o casaco. Dirigi-me ao toucador e agarrei nele.

— Encontrá-lo-á todo, com excepção daquilo que retirei para o whisky.        

Segurando as notas na mão, olhei para ela.

— Porque me trouxe aqui?

Ela encolheu os ombros.

— Somos sentimentais para com os bêbedos.

Olhei para o monte de notas que tinha na mão. Estavam ali cerca de duzentos dólares. Tirei uma de cinco dólares e meti-a no bolso; as restantes pu-las na cómoda.

Ela pegou no dinheiro em silêncio e acompanhou-me à porta.

— Está morta, sabe — disse ela. — E nem todo o whisky do mundo lhe restituirá a vida.

Contemplámo-nos um ao outro por um momento, depois ela fechou a porta; eu desci a escura escadaria e saí para a rua. Fui a uma drogaria à esquina da Third Avenue e da Eighty-second Street e liguei para McAllister.

— Onde é que diabo tem estado? — perguntou ele.

— Bêbedo — respondi. — Conseguiu a cópia do testa­mento de Rina?

— Sim, consegui. Temos andado à sua procura em toda a cidade. Sabe o que está a passar-se na companhia de filmes? Andam a digladiar-se como galos.

— Onde está o testamento?

— No bar do meu apartamento, onde me pediu que o dei­xasse. Se não tiver uma reunião muito breve acerca da com­panhia de filmes, não terá que preocupar-se com o seu inves­timento. Não haverá nenhum.

— Está bem, combinado — disse, desligando, antes que ele tivesse oportunidade de responder-me.

Saí, paguei o táxi e comecei a caminhar ao longo do passeio em frente das casas. Algumas crianças brincavam sobre a relva e olhares curiosos iam-me seguindo. Quase todas as portas estavam abertas, de modo que não conseguia ler os números das casas.

— Quem procura o senhor? — perguntou um dos rapazes.

— Winthrop — respondi. — Mónica Winthrop.

— Ela tem uma filhinha — perguntou a criança — de cerca de cinco anos?

— Creio que sim — afirmei.

— A quarta casa, por ali abaixo.

Agradeci ao rapaz e desci a rua. À entrada da quarta casa, olhei para a chapa que estava debaixo da campainha. Winthrop. Não responderam. Tornei a tocar a campainha.

— Ela ainda não veio do trabalho — exclamou um homem da casa mais próxima. — Vai buscar a filhinha à escola infantil, primeiro.                                    

— Mais ou menos a que horas chega a casa?

— Deve estar a chegar — respondeu.    

Olhei para o relógio. Eram sete menos quinze. O sol já começava a pôr-se e, com ele, desaparecia um tanto do calor do dia. Sentei-me nos degraus e acendi um cigarro. A minha boca sabia-me mal e começava a sentir os ameaços de uma dor de cabeça.

O cigarro estava quase no fim, quando Mónica dobrou a esquina, com uma pequenita à sua frente a saltar à corda.

Pus-me em pé quando a criança parou e ergueu os olhos para mim. O seu nariz enrugou-se e os olhos piscavam-lhe.

— Mamã — disse numa vozinha aguda e alta. — Está um homem nos nossos degraus.

Olhei para Mónica. Durante um momento limitámo-nos a olhar um para o outro. Ela parecia na mesma e contudo tinha mudado alguma coisa. Talvez fosse da maneira como se penteava. Ou então era dos vestidos simples de trabalho. Mas acima de tudo eram os seus olhos. Havia neles uma serena autoconfiança que não existia antes. Estendeu a mão e aconchegou a filha ao seu corpo.    

— Está bem, Jo-Ann — disse, pegando nela ao colo. — É um amigo da mamã.      

A criança sorriu.

— Como está o senhor?

— E tu? — respondi. Olhei para Mónica. — Olá, Mónica.

— Olá, Jonas, como estás?

— Estupendo. Queria ver-te.

— Sobre que assunto? — perguntou. — Pensei que tudo estivesse combinado.

— Não é de nós — respondi prontamente. — É sobre a criança.

Ela apertou a pequenita contra si num gesto súbito.

Os meus olhos ficaram um tanto assustados.

— E o que há acerca de Jo-Ann?

— Nada que a possa preocupar — exclamei.

— Talvez fosse melhor entrarmos.

Afastei-me para o lado enquanto ela abria a porta e segui-a até à sala. Pôs a criança no chão.

— Vai para o teu quarto brincar com as tuas bonecas, Jo-Ann.

A criança riu alegremente e deu uma corrida, afastando-se. Mónica voltou para junto de mim.

— Estás com um ar cansado — disse ela. — Estiveste muito tempo à espera?

Disse que não.

— Não foi muito tempo.

— Senta-te — disse ela com calma. — Vou fazer café.

— Não te incomodes. Não vou roubar-te muito tempo.

— Ora essa! — respondeu prontamente. — Não me importo. Temos tão poucas visitas.

Ela foi para a cozinha e eu sentei-me numa cadeira. Olhei em redor da sala. De qualquer modo, não podia acostumar-me à ideia de que era ali que ela vivia. Parecia que tinha sido mobi­lada com coisas vindas de uma cave. Não porque fossem más. Era o facto de tudo ser limpo, prático e barato. E Mónica costu­mava ser mais do tipo Grosfeld House.

Ela voltou à sala, trazendo uma chávena de café fumegante e colocou-a sobre a mesa que estava junto de mim.

— Duas colheres de açúcar, está bem?

— Sim.

Rápidamente deitou dois torrões de açúcar no café e mexeu-o. Sorvi-o e comecei a sentir-me melhor.

— Este café é bom — observei.

— É G. Washington.

— Que é isso?

— O marido da mulher a dias — disse. — Café instantâneo. Realmente não é muito mau quando nos habituamos a ele.

— Em que pensarão eles a seguir?

— Posso ir buscar-te duas aspirinas? — perguntou ela. — Tens cara de quem está com dores de cabeça.

— Como sabes?

Ela sorriu.

— Estivemos casados algum tempo, lembras-te? Ficas com uma espécie de ruga na testa quando te dói a cabeça.

— Duas, por favor — retorqui. — Obrigado.

Ela sentou-se à minha frente depois de eu as ter tomado. Os seus olhos observavam-me firmemente.

— Estás surpreendido por me veres num sítio destes?

— Um pouco — respondi. — Ignorava, até há pouco, que não conservas nenhum daquele dinheiro que te dei. Porquê?

— Não o queria — disse ela com simplicidade. — E o meu pai quis. De modo que lho dei. Precisava dele para o negócio.

— Que querias tu?

Ela hesitou por um momento antes de responder.

— O que agora tenho: Jo-Ann. E que me deixassem sózinha. Apenas guardei o dinheiro suficiente para vir para Leste e ter o bebé. — Sorriu. — Sei que te não parece muito próprio, mas sou secretária-gerente e ganho setenta dólares por semana.

Fiquei calado um instante, enquanto acabava de tomar o resto do café.

— Como está Amos? — perguntei.

Ela encolheu os ombros.

— Não sei. Em quatro anos nunca ouvi falar dele. Onde descobriste o local em que eu estava a viver?

— Soube-o por Rina — respondi.

Durante um instante ela não disse nada. Depois suspirou profundamente.

— Lamento, Jonas. — Consegui descortinar uma compreensão profunda nos seus olhos. — É provável que não acredites, mas tenho realmente muita pena. Li nos jornais. Foi uma coisa horrível. Ter tanto e desaparecer assim.

— Rina não tinha parentes vivos — disse eu. — Eis porque estou aqui.

Uma expressão de perplexidade aflorou-lhe ao rosto.

— Não compreendo.

— Ela deixou todos os seus rendimentos à tua filha — res­pondi prontamente. — Não sei exactamente quanto, talvez trinta, quarenta mil, depois da contribuições e dívidas. Nomeou--me seu procurador e obrigou-me a prometer que a criança tudo receberia.

Ela empalideceu súbitamente e lágrimas rolaram-lhe pelo rosto.

— Porque fez ela isso? Nada me devia.

— Disse que se sentia culpada pelo que nos tinha acontecido.

— O que nos aconteceu foi por culpa tua e minha — respondeu com veemência. De repente parou, olhando para mim. — É absurdo excitarmo-nos com isso, agora que já é tarde. Acabou-se.

Fitei-a por um momento, depois levantei-me e dirigi-me para a porta.

— Entra em contacto com MacAllister. Terá todos os documentos prontos para ti.

Ela tentou ler no meu rosto.

— Porque não ficas para cear? — perguntou delicadamente. — Tens um ar de fadiga.

Não interessava dizer-lhe que o que ela via era o começo da ressaca.

— Não, obrigado — disse eu, igualmente com delicadeza. — Preciso de voltar. Tenho umas entrevistas de negócios.

Uma expressão de dor e amargura cobriu-lhe a face.

— Oh, quase me esquecia — exclamou. — Os teus ne­gócios.

— Exactamente — disse.

— Julgo dever agradecer-te o teres cá vindo. — Antes de eu poder responder, ela voltou-se e chamou a criança. — Jo-Ann, vem cá dizer adeus a este simpático senhor.

A rapariguinha entrou na sala, segurando uma pequena boneca. Sorriu para mim.

— É a minha bonequinha.

Eu sorri para ela.

— É uma linda bonequinha.

— Diz adeus, Jo-Ann.

Jo-Ann estendeu-me a mão.

— Adeus, meu senhor — disse com ar sério. — Venha visitar-nos outra vez. Noutra altura. Em breve.

Agarrei-lhe na mão.                      

Está bem, Jo-Ann — prometi. — Adeus.

Jo-Ann sorriu e retirou súbitamente a mão, depois saiu a correr da sala.

Pus-me direito.

— Adeus, Mónica — disse. — Se precisares de alguma coisa, telefona-me.

— Estarei bem, Jonas — respondeu, estendendo a mão. Agarrei nela. Mónica sorria a experimentar. — Obrigado, Jonas — disse. — Tenho a certeza de que, se Jo-Ann pudesse compreender, também te agradeceria.

Respondi sorrindo:

— É encantadora.

— Adeus, Jonas. — Ela afastou a mão da minha e ficou na soleira da porta enquanto eu descia à rua.

— Jonas! — chamou ela.

Voltei-me.

— Sim, Mónica?

Hesitou um momento, depois riu.

— Não é nada, Jonas — respondeu. — Não trabalhes demasiado.

Ri.

— Tentarei.

Ela fechou a porta rápidamente e eu continuei a caminhar sobre o passeio. Forest Hills, Queens, que diabo de lugares para se viver. Tive de andar seis quarteirões para arranjar um táxi.

— Mas que vai fazer no que diz respeito à companhia? — perguntou Woolf.

Olhei para ele através da mesa, depois peguei na garrafa de Bourbon e tornei a encher o meu copo. Dirigi-me à janela e espreitei sobre Nova Iorque.

— E que tal A Pecadora? — perguntou Dan. — Ainda preci­samos de decidir o que fazer acerca disso. Já ando em conversa­ções com a Metro para admitir Jean Harlow.

Voltei-me para ele desesperado.

— Não quero Harlow — vociferei. — Esse era o filme de Rina.

— Mas por Deus, Jonas — exclamou Dan. — Não pode deitar fora esse documento. Custar-lhe-á meio milhão na altura em que conseguir liquidar as contas com De Mille.

— Custe o que custar! — disse eu num ar agressivo. — Vou deitá-lo fora.

O silêncio encheu a sala e voltei-me para a janela. Por cima, do meu lado esquerdo, as luzes da Broadway subiam para o céu; à direita, via-se o East. Do outro lado do rio ficava Forest Hills. Fiz uma careta e engoli rápidamente a bebida. Mónica tivera razão numa coisa: eu andava a trabalhar de mais.

Tinha ao meu encargo gente demasiada, demasiados ne­gócios. Explosivos Cord; Plásticos Cord; Companhia de Aviação Cord; Linhas Aéreas Intercontinentais. E agora possuía uma com­panhia de filmes que nem sequer queria.

— Bem, Jonas — disse calmamente McAllister. — Que vai fazer?

Voltei para a mesa e tornei a encher o copo. A decisão estava tomada. Só sabia o que ia fazer a partir de agora. Só o que queria. Que eles ganhassem para se sustentar e me mostrassem como na realidade foram bons.

Fitei Dan Pierce.

— Está sempre a falar de como se poderia fazer filmes me­lhores do que ninguém, no negócio — disse. — Está bem. A pro­dução fica a seu cargo.

Antes que ele tivesse oportunidade de responder, voltei-me para Woolf.

— Está preocupado com o que vai acontecer à companhia. Agora é que pode verdadeiramente preocupar-se. De tudo o mais se encarregará você — vendas, teatros, administração.

Aproximei-me da janela.

— Estupendo, Jonas — afirmou McAllister. — Mas ainda não nos disse quem serão os dirigentes.

— Nas sessões você será o presidente. Mac — disse eu. Dan, presidente-geral. David, vice--presidente executivo. — Bebi um gole do copo. — Mais perguntas?

Entreolharam-se, depois Mac dirigiu-se-me.

— Enquanto esteve fora, David mandou fazer um estudo. A companhia precisa de cerca de três milhões de dólares de cré­dito maleável, para se aguentar este ano, se formos manter o nível corrente de produção.

— Obterão um milhão de dólares — respondi. — Terão que bastar-se com eles.

— Mas, Jonas — protestou Dan. — Como espera então que eu produza aquele tipo de filmes que desejo, se não nos permitir ter o dinheiro?

— Se não os puder fazer — repliquei — vá então para o diabo, que eu arranjarei outro que possa.

Vi a face de Dan empalidecer. Fechou os lábios e não res­pondeu. Depois olhei para o outro.

— O mesmo digo a todos vós. A partir de agora, qualquer homem que não realize pode sair. A partir de agora deixam de maçar-me sobre o que quer que seja. Se eu precisar de vós, entrarei em contacto convosco. Se tiverem algo a declarar, escrevam e enviem a correspondência para o meu escritório. Eis tudo, meus senhores. Boa noite.

Quando a porta se fechou atrás deles, senti um nó duro e desesperado apertar-me a garganta. Espreitei pela janela. Forest Hills. Perguntava a mim mesmo que espécie de escolas haveria lá que pudessem ser frequentadas por uma pequena como Jo-Ann.

Engoli o resto da bebida. Não me passou o nó, ainda se fez sentir mais. De repente tive desejo de possuir uma mulher.

Peguei no telefone e chamei José, o chefe dos criados do Clube Rio.

— Está, Mr. Cord?

— José — disse eu. — Aquela cançonetista do agrupamento da rumba. Uma que tem uns grandes...

— ...Olhos — interrompeu ele, rindo.—Sim, Mr. Cord. Bem sei. Estará aí dentro de meia hora.

Pousei o auscultador e regressei à mesa. Levei comigo a garrafa para a janela enquanto enchia o copo. Tinha apren­dido muita coisa naquela noite.

As pessoas pagariam qualquer preço por aquilo que na realidade desejavam. Mónica viveria em Queens, por isso podia conservar a filha. Dan engoliria os meus insultos, por isso podia fazer filmes. Woolf tudo faria para provar que era capaz de dirigir a companhia melhor do que seu tio Bernie. E Mac pagaria o preço da segurança que eu lhe dera.

Quando descíamos a isso, todas as pessoas tinham o seu preço. A moeda é que diferia. Podia ser dinheiro, poder, gló­ria, sexo. Tudo. Só era necessário saber-se o que elas pretendiam.

Bateram à porta.

— Entre — gritei.

Ela entrou na sala, com os seus olhos negros brilhantes, o cabelo escuro caindo-lhe sobre as costas quase até às ancas, o vestido preto decotado quase até ao umbigo. Sorriu para mim.

— Olá, Mr. Cord — disse ela, sem aquela entoação que lhe era habitual no café. — Foi muito gentil em mandar cha­mar-me.

— Despe o vestido e toma qualquer coisa — respondi.

— Eu não sou dessas! — vociferou, voltando-se e diri­gindo-se à porta.

— Tenho aqui quinhentos dólares.

Ela veio outra vez para junto de mim com um sorriso nos lábios e os dedos já a abrir o fecho de correr, que tinha nas costas do vestido. Voltei-me e espreitei pela janela, enquanto a rapariga se despia.

Não havia tantas luzes em Queens como em Manhattan. E as que havia não eram tão brilhantes. De repente, senti-me zangado e puxei as persianas. Estas desceram com um estalo e taparam a visão da cidade. Voltei para junto da rapariga.

Fitava-me com os olhos muito abertos. Só trazia no corpo as calças pretas, muito justas, e tinha as mãos cruzadas sobre os grandes seios, tapando apenas os bicos.

— Para que fez isso? — disse ela. — Ninguém lá de fora pode espreitar cá para dentro.

— Estou farto de olhar para Queens — exclamei, atravessando o quarto até junto dela.

 

               A História de DAVID WOOLF

David Woolf entrou no quarto do hotel, atirou-se completamente vestido para cima da cama e fitou o tecto escuro. A noite pesava como se tivesse mil anos de idade e contudo sabia que pouco passava da uma hora da noite. Sentia-se cansado sem o estar; orgulhoso mas também deprimido; triunfante e contudo agitado pelo amargo sabor da derrota.

Era o princípio de tudo, o primeiro entrave nas suas secretas ambições, nas suas esperanças, nos seus sonhos. Porquê então frustrada mistura de emoções? Nunca se sentira assim. Sempre soubera exactamente aquilo que queria. Tinha sido muito simples Uma linha recta de princípio ao fim.

Deve ser Cord, pensou. Tinha de ser o Cord. Não havia outra razão. Perguntava a si próprio se Cord impressionara os outros da mesma maneira. Sentia ainda o choque que o percorrera ao entrar no apartamento e o vira pela primeira vez desde que Cord havia deixado a reunião para tomar o avião em direcção à costa.

Quinze dias tinham passado; duas semanas durante as quais o pânico se havia instalado e a companhia começado a desintegrar-se perante os seus olhos. Os sussurros dos empregados no escritório de Nova Iorque ecoavam ainda aos seus ouvidos e sentia as furtivas, assustadas e preocupadas olhadelas que lhe deitavam quando se cruzava com eles nos corredores. E não havia nada que ele pudesse fazer-lhes nem que pudesse dizer-lhes. Era como se a empresa se encontrasse prostrada esperando a transfusão que levasse uma energia nova às suas veias.

E finalmente, Cord ali estava, sentado, com uma garrafa meio vazia de Bourbon na frente, imagem vazia e torturada do homem que ele vira umas curtas semanas antes. Emagrecera e o esgota­mento tinha-lhe deixado profundas marcas na cara. Mas só ao olhar-se-lhe bem para os olhos se compreendia que não era apenas uma mudança física. O homem em si mudara também.

De inicio David não sabia que atitude tomar com ele. Então, de repente, levantou-se uma ponta do véu e compreendeu. Pressen­tiu a verdadeira solidão do homem. Era como se fosse um visi­tante dum mundo diferente. Todos os outros eram para ele como estranhos, tais crianças cujos desejos ele tivesse há muito ultrapassado. Tolerá-las-ia enquanto delas precisasse mas, atin­gido esse fim, retirava-se novamente para o mundo onde vivia só.

Os três desceram silenciosos no elevador, depois de saírem do apartamento do Cord. Só quando, misturados com as pessoas que se dirigiam para o espectáculo da meia-noite que se realizava no Starlight Roof, pararam no vestíbulo da entrada do hotel, McAllister falou:

— Penso que será melhor descobrirmos um lugar calmo para trocarmos impressões.

— O bar, lá em baixo, se ainda estiver aberto — sugeriu Pierce.

Estava ainda aberto, e quando o criado trouxe as bebidas McAllister levantou o seu copo e brindou.

— Boa sorte — disseram todos. Depois de beberem, pou­saram os copos.

McAllister olhou-os um por um antes de falar.

— Bem, daqui para a frente é connosco que temos de contar. Gostaria de dar uma contribuição mais directa — disse num tom formal um tanto afectado — mas sou advogado e prá­ticamente nada sei sobre cinema. O máximo que posso fazer é explicar o plano de reorganização da companhia tal como fora aprovado pelo Jonas antes do acordo, agora definitivamente acabado.

Só nessa altura David viu como Jonas tinha sido clarividente substituindo o velho stock por outro mais moderno, hipotecando para tal todos os valores reais da companhia, incluindo o estúdio e os teatros, por um investimento de um milhão de dólares.

O segundo capítulo que McAllister quis focar foi o das remunerações. A David e Pierce seria dado um contrato de trabalho por sete anos, começando por um ordenado de 65 mil dólares que aumentaria de 30 mil até ao fim do contrato. Além disso cada um seria reembolsado completamente das suas despesas e mesmo gratificado, se houvesse lucros, no montante correspondente a um e meio por cento.        

— E aqui está — concluiu McAllister. — Alguma pergunta?

— Em princípio parece-me bem — disse Dan Pierce. — Mas que garantia nos dá o Jonas de continuarmos no negócio quando acabar o milhão de dólares? Nenhumas. Contudo ele está completamente coberto pelos fundos e pelos títulos de crédito.

— Tem razão — aprovou McAllister. — Vocês não têm nenhumas garantias, mas ele também não sabe se o stock resiste à gerência que vocês venham a impor-lhe. E isso, em minha opinião, depende só de vocês.

— Mas, se o estudioso David falou correctamente — continuou Dan, chegamos a meio do filme sem termos recebido o salário semanal. Não sei o que se passa na cabeça de Jonas. Ninguém pode fazer filmes de meio milhão de dólares sem dinheiro.

— Mas quem lhe disse que tem de fazer filmes de meio milhão de dólares? — perguntou David calmamente.

E de súbito o plano surgiu bem claro. Agora começava a compreender o que Jonas havia feito. Primeiro tinha sentido um certo desapontamento por não ter ficado como director do estúdio. Teria gostado de ver a palavra Presidente escrita na sua porta. Mas o Cord tinha estragado todo o negócio com uma facilidade aterradora. Na realidade o estúdio era apenas a fábrica que punha cá para fora o produto de uma companhia. A administração tudo controlava, vendas, teatros, pois era dela que vinha o dinheiro. O dinheiro sempre ditou a política dos estúdios, e ela é que controlava o dinheiro.

— Com um milhão de dólares podemos fazer uns dez filmes, e receber o lucro do primeiro antes de começarmos o quinto.

— Nem pensar nisso — volveu Dan imediatamente. — A mi­nha ideia de negócio não me leva tão longe. Não vou pôr-me a fazer filmes em série. Isso está bem para a República ou para o Monogram.

— Pois olhe que a Columbia, a Warner e a RKO sentem-se muito orgulhosas disso — observou David já com um tom de aspereza na voz.              

— Deixá-los fazer, se gostam — retorquiu Dan. — Eu tenho de manter a minha reputação.

— Não me dê essa desculpa — explodiu David. — A única coisa que se respeita neste negócio é o sucesso. E não lhes inte­ressa como você o consegue, o que é preciso é que faça subir as receitas. Toda a gente sabe que foi você que levou o Cord a comprar a companhia e por isso mesmo chegou a produtor. Se sair não poderá gabar-se da sua reputação.

— Mas quem falou em sair?

David refastelou-se na cadeira. Novo sentimento de poderio reconfortava-o. Agora compreendia porque o seu tio Bernie tinha achado tão difícil continuar. Encolheu os ombros.

— Você ouviu o que o Cord disse; se não quiser encarre­gar-se disso, alguém o fará.

Pierce fitou-o por momentos, depois olhou para McAllister. O advogado observou-o impassível.

— Tudo isto é muito fácil... — resmungou Pierce — mas enquanto eu estiver para ali a queimar os meus miolos, que fazem vocês?

— Olhe, vamos ver se conseguimos aguentar as coisas para que vocês possam continuar com o programa de trabalho — respondeu David.

— Mas como? — perguntou McAllister com um ar de incre­dulidade estampada no rosto.

— Amanhã começa por despedir quarenta por cento dos empregados de toda a companhia.

— Mas isso é uma medida drástica! — disse McAllister. — E pensa que pode trabalhar nessas condições?

David olhou atentamente para a cara do advogado. Mas res­pondeu, calmo:

— Continuaremos a trabalhar!

— Essa não é positivamente a maneira de se fazerem amigos — disse Pierce.

— Paciência, não posso fazer outra coisa. Não pretendo ga­nhar um concurso de popularidade. A companhia tem de sobre­viver e não devo preocupar-me com aqueles que possam ser atin­gidos pelas medidas que para isso sejam necessárias.

O advogado olhou-o pasmado durante uns momentos. Mas David viu bem no fundo dos seus olhos o esboço de um sorriso. McAllister voltou-se então para Dan:

— Que pensa fazer?

— Havemos de conseguir — disse Dan, já a sorrir. — Para que pensam então que o Jonas o pôs aqui com a batuta na mão?

McAllister foi buscar a pasta e disse para David:

— Aqui está o seu contrato; Jonas quer que o assine esta noite.

David olhou o advogado e perguntou a medo:

— Então e o do Dan?

A cara do McAllister abriu-se num rasgado sorriso:

— Dan assinou o dele no dia da reunião.

Por momentos, David sentiu a fúria dominá-lo. Tudo aquilo não passara de uma comédia para o pôr à prova e ver o que acontecia. Mas resolveu respirar fundo. Afinal que dife­rença fazia? E pegou na caneta que o advogado lhe estendia.

Isto era só o princípio. Eram ainda uns estranhos e levaria muito tempo até saberem tanto sobre a empresa como ele sabia. E nessa altura já nada teria importância. Uma vez assinado o contrato, estaria no poder.

A porta de ligação entre o seu quarto e o do tio abriu-se e a luz difundiu-se pela escuridão.

— Estás aí, David?

Sentou-se na cama e acendeu a lâmpada que estava junto à cabeceira.

— Sim, sou eu, tio Bernie.

Norman entrou no quarto.

— Viste-o?

David cabeceou, enquanto procurava um cigarro.

— Sim, vi-o. — Acendeu o cigarro. — Está com um aspecto terrível. A morte da Rina deve tê-lo atingido profunda­mente.

O velho riu.

— Tenho muita pena mas não sinto nada — disse áspe­ramente. — Nada, depois do que ele me fez. — Tirou um charuto do bolso e pô-lo na boca mesmo apagado. — Ele ofereceu-te um lugar?

David acenou com a cabeça.

— Que lugar?

— Vice-presidente executivo.

O tio ergueu as sobrancelhas.

— Ai sim? — exclamou interessado. — Mas quem é o pre­sidente?

— Dan Pierce. Ele é que faz os filmes. Eu sou para o resto, administração, vendas e teatros.

O charuto andava para baixo e para cima na boca do velhote, tal era o seu nervosismo. Um largo sorriso encheu-lhe a cara.

— Meu rapaz, sinto-me orgulhoso de ti. Sempre disse que mais tarde ou mais cedo subirias alto — disse-lhe enquanto lhe dava uma palmada no ombro.

David olhou com surpresa para o tio. Não era esta a reacção que esperava. Uma acusação de pura traição estava mais de acordo com aquilo que imaginara.

— Está realmente contente?

— Claro que estou. Que outra coisa esperaria eu do filho da minha irmã? — exclamou Bernie com entusiasmo.

David olhou-o admirado.

— É que pensei...

— Pensaste? — disse ainda o velho Bernie sorrindo. — Que importância tem aquilo que tu pensaste? O que lá vai, lá vai. Agora podemos pôr as nossas cabeças a trabalhar em conjunto. Vou mostrar-te a maneira de ganhares dinheiro como tu nunca sonhaste.

— Ganhar dinheiro?

— Certamente — respondeu Bernie, enquanto baixava a voz para um tom confidencial. — Queres saber o que se vai passar? Amanhã direi aos fornecedores que o velho contrato ainda está em vigor. Para começar vais receber vinte e cinco por cento de comissões atrasadas.

— Vinte e cinco por cento?          

— Que há? Vinte e cinco por cento não te chega? — per­guntou Bernie.

David não respondeu.

— Então o teu tio Bernie não tem direito a nada. Bem, não faz mal. Cinquenta por cento, então.

David esmagou o cigarro no cinzeiro. Levantou-se, diri­giu-se silenciosamente para a janela e ficou a olhar o parque que se estendia do outro lado da rua.

— Mas que se passa? — perguntou-lhe o tio, por trás. — Metade para cada um, não achas justo? Tu deves-me alguma coisa, se não fosse eu não terias conseguido o lugar.

David sentiu uma amargura profunda subir-lhe à garganta.

— Devo-lhe alguma coisa? — perguntou furioso. — Devo-lhe alguma coisa por todos estes anos que me manteve aqui preso por uma tuta-e-meia? Todas as vezes que eu lhe pedia aumento, atirava-me à cara com os prejuízos que a companhia estava a ter. E em todo este tempo esteve a meter ao bolso mi­lhões de dólares por ano.      

— Isso era diferente — retorquiu o velho. Não per­cebes!...

David deu uma gargalhada.

— Compreendo mesmo muito bem, tio Bernie. O que se passa é que conseguiu arranjar quinze milhões de dólares, limpinhos. Se vivesse mil anos não conseguiria gastá-los todos, e no entanto ainda quer mais.

— Mas que mal há nisso? — perguntou Bernie. — Trabalhei para isso e a isso tenho direito. Querias que perdesse agora tudo só porque alguns tipos me puseram fora do meu ne­gócio?

— Queria.

— Tu tomas o partido nazi, contra a tua própria família? — O velho voltou para ele a cara vermelha de raiva.

David fitou-o.

— Mas eu não tenho de tomar partidos, tio Bernie — disse calmamente. — O tio admitiu mesmo que a companhia já não lhe pertencia.

— Mas tu conduzes agora a companhia!

— É verdade — concordou David. — Eu conduzo agora a companhia, e não o senhor.

— Ah! então guardas tudo para ti — exclamou o velho acusadoramente.

David voltou-lhe as costas sem responder. Por uns momen­tos só houve silêncio, interrompido depois pela voz do tio.

— Ainda és pior do que ele — disse Bernie ásperamente. — Pelo menos ele não roubava os próprios parentes.

— Deixe-me em paz, tio Bernie — pediu David voltando-se. — Estou cansado e preciso de dormir.

Ouviu as passadas do velho atravessando o quarto e a porta bateu com força, atrás dele. David encostou-se pesada­mente à ombreira da janela. Era então esta a razão por que o velho não tinha partido para a Califórnia logo depois da reunião!... Sentiu um nó na garganta, e súbitamente, sem saber bem porquê, apeteceu-lhe chorar.

O som abafado de uma sereia chegou até ele vindo da rua. Voltou a cabeça ligeiramente olhando pela janela. O barulho da sereia foi crescendo à medida que a ambulância se dirigia para a 59ª avenida, depois de passar pela 5ª. Voltou a cabeça devagar para dentro do quarto. A sereia ia diminuindo de inten­sidade à medida que se afastava. Toda a sua vida tinha sido mais ou menos assim.

Já quando na velha carroça, ao lado do pai, mal acomo­dado no duro banco de madeira, esse era ainda o único som que se lembrava de ter ouvido... o chocalhar dos guizos.

Os badalos das vacas que vinham atrás na carroça, tocavam suavemente e o cavalo relinchava, pesadão, enquanto abria caminho através das carroças dos vendedores ambulantes que ladeavam a Rivington Street.

O calor opressivo do Verão caía-lhe a pino na cabeça. Deixou ir as rédeas frouxas. Pouco era preciso fazer para conduzir o cavalo. Ele próprio abria o caminho através da multidão, parando e avançando automáticamente sempre que podia.

— Compram-se fatos! — Este pregão do seu pai erguia-se mais alto que todos os outros ruídos da rua do mercado, e a sua mensagem subia até às janelas dos velhos apartamentos, olhos abertos para um mundo esfomeado, mas cegos, nus.

— Compram-se fatos velhos!

De cima da carroça ele observava as passadas do pai através do passeio superpovoado, a barbicha ondulando compassadamente, os olhos percorrendo as janelas em busca de um pos­sível negócio. Havia uma certa dignidade no velhote — chapéu preto usado, de abas largas, que viera de outras terras; o casacão preto e comprido que ondulava em volta dos joelhos; a camisa engomada, de colarinhos altos já um tanto amole­cidos e quebrados; e a gravata com um glande nó mesmo abaixo da maçã-de-adão. A cara era pálida e fria, não se via na testa o mais leve sinal de transpiração, enquanto que David estava completamente ensopado em suor. Como se o pesado casaco preto o protegesse do terrível calor.

— Psst, Mr. Junkman!

O pai afastou-se até à valeta para poder ver melhor quem chamava, mas foi David quem viu primeiro uma velhota ace­nando do 5º andar.

— É a Mrs. Saperstein, pai.

— Julgas que sou cego? — ripostou o pai resmungando. — Olá, Mrs. Saperstein!

— É Mister Woolf? — perguntou ela de novo.

— Sim, sou eu. Que é que tem para vender? — gritou o velhote.

— Venha cá cima que já lhe mostro.

— Não me interessam fatos de Inverno, quem os compra agora?                                

— Mas quem falou em fatos de Inverno? Venha cá cima e já vê!

— Bem, prende ali o cavalo e depois sobe para trazeres a mercadoria — disse-lhe o pai enquanto apontava para um lugar vazio entre duas carroças.

David assentiu enquanto o pai desaparecia por uma porta depois de ter atravessado a rua. Puxou o cavalo e prendeu-o a uma boca de incêndio. Pôs-lhe o saco da palha atado ao foci­nho e foi ter com o pai. Lá conseguiu dar com o caminho, pela escada acima, completamente às escuras e parou à porta. Bateu. A porta abriu-se no mesmo instante e Mrs. Saperstein apareceu, com a cabeleira grisalha presa no cimo da cabeça.

— Entra, rapaz, entra!

David entrou para a cozinha e viu o pai sentado à mesa. Tinha na sua frente um prato cheio de bolos.

— Um cházinho, David? — perguntou-lhe a velhota en­quanto se encaminhava para o fogão.

— Não, muito obrigada, Mistres Saperstein — respondeu delicadamente.

Ela tirou de uma prateleira uma latinha encarnada e com todo o cuidado mediu duas colheres de chá que depois deitou na água a ferver. As folhas do chá abriram e imediatamente vie­ram para a superfície. Quando por fim coou o chá num passador e o pôs em frente do pai numa chávena estava tão preto como café.

O pai tirou da taça uma pedra de açúcar, pô-la entre os lábios e começou então a sorver o chá. Depois da primeira golada, abriu a boca e consolado exclamou:

— Ah!

— É bom, não é? — Mrs. Saperstein sorria. — Isto é que é chá. Como na nossa terra. Não gosto desta beberagem que eles aqui me querem vender.

O pai aquiesceu e levou mais uma vez o copo à boca. Quando o pousou estava já vazio e tinha acabado a parte recreativa da visita.

— Vamos a isto, Mistress Saperstein?

Mas Mrs. Saperstein não queria ainda começar com o negócio. Olhou para David e disse amigávelmente:

— Que bonito rapazinho é o seu David. Lembra-me tanto o meu Howard quando tinha esta idade!... — E pegando no prato dos bolos disse: — Anda lá, come um, fui eu mesma que os fiz.

David tirou então um bolo e meteu-o na boca. Era duro e seco mas desfez-se em bocadinhos.

— Tira outro! Está magro, precisa de comer! — disse.

David abanou a cabeça.

— Mistress Saperstein — interrompeu o velhote. — Tenho muito que fazer e já estou atrasado. Tem então alguma coisa para mim?

A velhota disse que sim.

Seguiram-na através do estreito apartamento. No quarto, em cima da cama estavam alguns fatos de homem, saias, ves­tidos, um sobretudo e, em sacos de papel, alguns sapatos.

O pai de David deu uma volta, pegou numa das peças e disse com voz acusadora:

— Então sempre eram fatos de Inverno! E subi eu quatro lanços de escadas para isto?

— Mas repare, Mister Woolf, que estão como novos. Do meu filho e da minha nora. Fizeram só uma estação — disse a velhota. — Eles queriam mandá-los para o exército de salvação mas convenci-os a darem-mos.

O pai de David não respondeu. Estava a passar as peças do vestuário uma por uma, rápidamente.

— Sabe que o meu filho vive em Bronx — disse ela com orgulho. — Vive numa casa nova em Grand Concourse. É mé­dico.

— Dois dólares por isto tudo — ofereceu o pai finalmente.

— Mr. Woolf — exclamou ela. — Pelo menos vinte dóla­res, e vale-os.

Ele encolheu os ombros.

— A única razão por que eu os compro é para os dar à H.I.A.S. Assim pelo menos o exército de salvação não os apanha.

David só ouvia a discussão com um ouvido. H.I.A.S. era a abreviatura de uma associação destinada a ajudar os imigran­tes judeus 1. A afirmação do pai não o tinha impressionado nada, pois sabia que nenhuma peça daquele vestuário alguma vez chegaria à dita associação. Em vez disso, a roupa seria cuida­dosamente escovada e arranjada pela mãe, e iria parar a uma montra de loja de fatos em segunda mão, para as bandas de Bowery e East Broadway.

— Dez dólares — disse Mrs. Saperstein. Tinham-se ido as farroncas e agora ela conversava a sério.

— Por menos não vendo. De outro modo, nem chegava para pagar ao meu filho Howard as despesas desde Bronx!

— Cinco dólares e nem mais um cent.

— Seis — pediu a velhota olhando-o de uma maneira pers­picaz. — É o menos. É a gasolina que ele gastou.

— Então o metropolitano já não funciona? Então eu tenho de pagar só porque o seu filho arma em fino e só pode andar de automóvel?

— Cinco dólares e meio! — propôs a velhota.

O pai de David olhou-a. Depois encolheu os ombros. Afas­tou o casacão e tirou de baixo uma bolsa que tinha presa ao cinto por um atacador de sapato. Abriu-a,

— Pronto, aqui tem os cinco dólares e meio. Mas Deus é testemunha de que perco dinheiro.

 

1 Hebrew Immigrant Aid Society.

 

Enquanto começava a contar o dinheiro, deu, com um gesto, ordem a David para começar a embrulhar os fatos. David meteu tudo dentro do sobretudo que atou pelas man­ga!;. Pôs o fardo ao ombro e começou a descer as escadas. Atirou com o embrulho da roupa para dentro do carro e foi pôr-se à frente da carroça. Retirou a alcofa da palha do focinho do cavalo, desprendeu as rédeas e trepou para a carroça.

— Olá, David!

Olhou para o passeio. Um rapazola alto estava parado a sorrir.

— Tenho andado à tua procura todo o dia, pá.

— Estivemos em Brooklyn — disse David. — O meu pai deve estar mesmo a chegar.

— Bem, vamos então tratar disto depressa. Shocky dá-te alguns dólares se nos trouxeres o cavalo esta noite. Vamos levar um carrego para a cidade.

— Mas é a noite de sexta-feira.

— Exactamente por isso. As ruas estarão vazias. Não haverá ninguém a meter o nariz no nosso trabalho. E ainda para mais os polícias não nos maçarão quando virem a licença de ferro-velho na carroça.

— Bem, tentarei — aceitou David. — A que horas, Needlenose?                                                

— Às nove horas por trás da garagem do Shocky. Ali vem o teu velhote. Até logo.

— Com quem estavas a falar? — perguntou o pai.

— Com um dos rachadores, pai.

— Isidoro Schwartz?

— Sim, Needlenose 1

— David, afasta-te dele— disse-lhe o pai ásperamente. — Não precisamos nada dele. É um vadio, não faz nada. É como todos os outros vadios que giram à volta da garagem do Shocky. Roubam tudo aquilo a que podem deitar a mão.

 

l Needlenose — Bico de Agulha (alcunha por que era conhecido Isidore Schwartz).

 

David aquiesceu baixando a cabeça.

— Leva o cavalo para o estábulo. Eu vou até à sinagoga. Diz à mãe que tenha a sopa pronta às sete horas.

Esther Woolf, com o véu pela cabeça, estava em frente do altar. Quando chegou com o fósforo às velas, saíram destas belas chamas amarelas. Apagou o fósforo e pousou-o numa bandeja que estava em cima de uma pequena mesa. Esperou até que as chamas se transformassem em clarões esbranquiçados, e começou a sua oração.

Primeiro rezou pelo filho, o seu querido Davidinho, que tinha aparecido tão tarde nas suas vidas, quando ela e o marido quase desesperavam de receber aquela bênção. Depois rezou a Jeová para que desse a seu marido, Chaim, vontade de singrar na vida e indulgência para a sua missão ao serviço de Deus. Mais uma vez, chamou a si o pecado de ter desviado o marido da actividade que ele tinha escolhido.

Era estudante do Talmude quando pela primeira vez se encontraram lá, no país dos seus antepassados. Lembrava-se ainda tão bem como ele era nessa altura, tão novo, tão esguio e pálido, a barba encaracolada, com reflexos acobreados. Os olhos eram pretos e luminosos. Costumava sentar-se à mesa na casa paterna e mergulhava bocadinhos de bolo em vinho que comia com o velho rabi e os outros mais velhos.

Quando casaram, Chaim foi trabalhar no negócio do pai. Depois começaram as perseguições, e as caras dos judeus tornaram-se magras e medrosas. Eles fugiam pela noitinha, como os animais da floresta. Ou então escondiam-se nos celeiros das casas, com as portas e janelas trancadas e fechadas à chave tal como as galinhas se escondem no galinheiro quando sentem que alguém se aproxima.

Até que chegou aquela noite em que não pôde suportar a situação por mais tempo. Levantou-se da enxerga, e, lem­brando-se da carta ainda recente que viera do seu irmão Bernard, da América, gritou para o marido:

— Vamos continuar a viver como coelhos escondidos na toca até que os cossacos nos venham buscar? É neste mundo negro que o meu marido pensa que eu poderei dar vida a uma criança? Nem Jeová poderia plantar uma semente numa masmorra.

— Credo! — A voz de Chaim fora um áspero murmúrio. — O nome de Deus não há-de ser evocado em vão. Reza para que Ele não nos abandone.

Ela riu-se amargamente.

— Esquecidos já nós estamos. Ele próprio foge à frente dos cossacos.

— Cala-te, mulher! — A sua voz era agora zangada.

Esther olhou para as outras enxergas no celeiro húmido. A pálida luminosidade permitia-lhe ver indistintamente as faces mil e assustadas dos pais. Nesse mesmo momento, ouviu-se o barulho dos cascos de cavalos na rua e as coronhas das espingardas começaram a bater violentamente na porta trancada.

— Depressa, depressa, filhos! — O pai estava já em pé e a sua voz era apenas um murmúrio. — Fujam pela porta das traseiras do celeiro. Através dos campos, por este lado, eles não conseguirão vê-los.

Chaim agarrou na mão de Esther e puxou-a para a porta das traseiras. Súbitamente parou, aflito, porque os pais não os seguiam.

— Despachem-se — murmurou —, não há tempo a perder.

O pai deixou-se ficar estático na escuridão, o braço rodeando os ombros da mulher.

— Nós não vamos — declarou — é preciso que encontrem alguém ou vão pôr-se à vossa procura por esses campos.

O barulho aumentava cada vez mais e as coronhas das armas começavam já a fazer ceder a madeira da porta. Chaim regressou a casa e disse para o sogro, calmamente:

— Está bem, ficamos todos e afrontá-los-emos. Hão-de ver que os judeus não se deixam matar com facilidade — e enquanto dizia isto desprendeu da porta uma pesada tranca.

— Vai. Demos-te a nossa filha quando casaste. O que mais nos interessa é a sua segurança, e não a nossa — disse o pai lentamente. — A tua bravura, neste caso, é pura estupidez. Há mais de mil anos que os judeus sobrevivem fugindo.

— Mas — protestou Chaim.

— Parte — a voz do velho sibilou. — Parte imediatamente. Nós estamos velhos. A nossa vida está a acabar. Vocês são novos. Os vossos filhos precisam de ter uma oportunidade de viver.

Alguns meses mais tarde estavam já na América. Mas só vinte anos mais tarde Jeová cedeu e lhes deu um filho.

Depois rezou pelo irmão Bernard, que já era então um homem rico e tinha negócios numa terra distante chamada Califórnia, onde todo o ano era Verão. Rezou para que vivesse feliz e não corresse perigo com os índios tal como vira nos filmes quando usava o passe que ele lhe mandara.

Acabadas as suas orações voltou para a cozinha. A sopa fervia no fogão, o aroma a galinha era tão forte que quase se via no ar. Pegou numa colher e inclinando a panela apanhou cuidadosa­mente as bolhas de gordura que se viam à superfície e pô-las num pote. Mais tarde, quando a gordura estivesse fria e congelasse, utilizava-a para espalhar no pão ou misturava-a com bocados de carne seca para lhes dar sabor. Quando fazia este trabalho ouviu a porta da frente abrir-se. Pelas passadas soube logo quem era.

— Duvidele, já chegaste?

— Sim, mamã!

Depois de acabado o seu trabalho, voltou-se devagar. Como sempre, o seu coração encheu-se de orgulho, ao ver o filho, tão alto, tão desempenado.

— O pai foi para a sinagoga — disse David. — Volta às sete horas.

Ela sorriu.        

— Está bem, filho, vai lavar as mãos e limpar-te. A sopa está pronta.

Quando David meteu o cavalo pela ruela que ia dar às traseiras da garagem de Shocky, Needlenose veio ao seu encontro, apressando-o.

— És tu, David?

— Olha lá, quem pensas tu que poderia ser? — volveu David irónico.

— Já não sabíamos se vinhas ou não, são quase dez horas.

— Não pude raspar-me antes do velhote se deitar — disse David enquanto parava a carroça ao lado da garagem.

Logo a seguir apareceu Shocky, com a sua careca luzidia. Era um homem de estatura média com peito largo e pesado e grandes braços que quase lhe chegavam aos joelhos.

— Demoraste de mais — resmungou.

— Mas já cá estou, ou não?                            

Shocky não respondeu. Voltou-se para Needlenose. — Comecem a carregar as vasilhas — disse. — Ele ajuda-te.

David saltou da carroça e seguiu Needlenose até à garagem. A longa fileira de vasilhas metálicas brilhava à luz que vinha da única lâmpada suspensa do tecto. David parou e murmurou baixo.

— Devem estar aqui umas quarenta vasilhas.

— Conta — disse Shocky.

— Ora isso faz uns bons quilos. Não me parece que a velha Bessie possa com tudo isso.

— Da outra vez levaste o mesmo — disse Shocky.

— Ah isso é que não levei! Da outra vez eram só trinta vasilhas. E mesmo assim houve certas alturas em que pensei que a velha Bessie ia estoirar. Imagine que estoirava mesmo. Seria a morte de um cavalo com duzentos galões de bebida na carroça. E ainda pior se o meu velhote soubesse.

— Só esta vez — pediu Shocky. — Prometi ao Gennuario.

— Mas porque não usa um dos seus carros?

— Não posso fazer isso, era o que os chuis queriam — disse Shocky. — Não procurarão numa carroça de ferro-velho.

— O máximo que levo são vinte e cinco vasilhas.

Shocky olhou para ele.

— Olha, dou-te vinte dólares se me fizeres isto, desta vez. Apanhaste-me de mãos atadas.

David estava silencioso. Vinte dólares era mais do que o pai apanhava numa semana, por vezes. E para isso era preciso sair com a carroça seis dias por semana, com chuva e sol, no pino do Verão ou no gelo do Inverno, todos os dias excepto sábado, porque nesse dia o pai ia para a sinagoga.

— Vinte e cinco dólares — voltou Shocky a oferecer.

— Bem, está bem, corro esse risco.

— Vamos então a carregar — disse Shocky enquanto ele próprio começava a carregar as vasilhas com os seus braços com­pridos.

David sentou-se sózinho na carroça e a velha Bessie meteu-se penosamente a caminho da cidade. Afastou-se para um canto para deixar passar um camião. Nessa altura apareceu-lhe na frente um polícia. — Que diabo fazes tu aqui à noite, David?          

David deitou um olhar furtivo para a parte de trás da carroça. As vasilhas com o álcool estavam escondidas debaixo da lona, cobertas por trapos.

— Ouvi dizer que pagam bem o trapo no moinho — respondeu. — Pensei que podia ir até lá limpar a carroça.

— Mas onde está o teu pai?

— Hoje é sexta-feira!                                      

— Ah — exclamou o polícia. E depois com um olhar pers­picaz perguntou-lhe: — Mas ele sabe que tu saíste?

David abanou a cabeça silenciosamente.

O polícia soltou uma gargalhada.

— Vocês, rapazes, são todos os mesmos.

— Bem, deixa-me ir antes que o velhote dê pela minha falta.

Com um estalido da língua, a velha Bessie pôs-se em movimento. Mas o polícia chamou de novo e David parou enquanto olhava para trás.

— Diz ao teu pai que esteja de olho aberto para uns fatos para rapazinho de nove anos. O último fato que lhe comprei já não lhe serve — disse o polícia.

— Está bem, Mr. Doyle, não me esqueço. — David sacudiu as rédeas levemente. Shocky e Needlenose já lá estavam quando David chegou finalmente à plataforma de descarga. Gennuario, na plataforma, observava a descarga.

De repente, da escuridão surgiram polícias, de armas aperradas.

— Muito bem, segurem-nos!

David sentiu-se gelar. Tinha ainda nas mãos uma vasilha. Por momentos pensou ainda em largá-la e fugir, mas a velha Bessie e a carroça também ali estavam. Como iria ele explicar ao pai o seu desaparecimento?

— Larga essa vasilha, rapaz — ordenou um dos detectives.

Devagarinho David pousou no chão a vasilha, e voltou-se para eles.

— Volta-te para a parede.

— Não devias ter tentado isto, Joe — disse um dos detectives para Gennuario, quando chegou.

Gennuario sorriu. Não parecia nada afectado com o que se estava a passar.

— Venha cá dentro, tenente — disse despreocupado. — Vamos deslindar isto com facilidade, tenho a certeza.

O tenente seguiu Gennuario e o tempo que estiveram lá dentro pareceu a David uma eternidade. Mas dez minutos depois saíram ambos sorrindo.

— Vamos embora, rapazes. Parece que nos enganámos. Mr. Gennuario explicou-me tudo. Vamos embora.

E tão depressa como tinham vindo, desapareceram deixando David de boca aberta.

Needlenose sentou-se silenciosamente na carroça ao lado de David e regressaram ao estábulo.

— Tinha-te dito que tudo estava previsto — disse ele, quando atingiram a estrada. David olhou-o. Previsto ou não, aquilo tinha ido longe de mais para o seu gosto. Mesmo os vinte e cinco dólares que tinha na algibeira não eram suficientes.

— Estou farto — disse para Needlenose. — Acabou-se.

Needlenose deu uma gargalhada.

— Estás com medo?

— Diabos me levem se não estou passado. Tem de haver uma maneira mais fácil de se ganhar dinheiro.

— Se encontrares realmente uma não te esqueças de me dizer — pediu Needlenose. — Shocky tem lá no apartamento dele duas raparigas chinesas e disse-me que se quiséssemos podíamos ir beber uns copos com elas esta noite.

David não respondeu.

— A Sing Loo deve lá estar — insistiu Needlenose. — Sabes, aquela pequenina e bonita, a bailarina que rapa o buço.

David hesitava, mas sentiu-se percorrido de repente por uma onda de excitação.

Era uma da noite, no grande relógio da montra do Goldfarb's Delicatessen quando dobrou a esquina da sua rua. Um carro da polícia estava parado em frente da porta de casa. Havia um grupo de pessoas rodopiando e sussurrando em volta.

De súbito, David sentiu medo. Algo de mal acontecera. Provávelmente a polícia tinha vindo prendê-lo. A primeira ideia que lhe ocorreu foi a de fugir. Mas qualquer coisa o empurrou na direcção da casa.

— Que aconteceu? — perguntou a um homem que se encontrava no ajuntamento.                      

— Eu cá não sei. Ouvi um dos polícias dizer que estava alguém a morrer lá em cima.

De repente, frenéticamente, David abriu caminho à força através de toda aquela gente e entrou em casa. À medida que subia as escadas até ao apartamento do terceiro andar, começava a ouvir choros.

A mãe, no vestíbulo de entrada, esbracejava nos braços de dois polícias.

— Chaim, Chaim!

David sentiu o coração apertar-se-lhe.

— Mamã — chamou. — Mas que aconteceu?

A mãe olhou-o com um olhar sem expressão.

— Chamei um médico e só consegui que me trouxessem polícias — disse a mãe enquanto olhava através do átrio para os quartos e gritava de novo: — Chaim, Chaim!

David voltou-se e seguiu o seu olhar. A porta de um dos quartos estava aberta. O pai ali estava, no assento, bizarramente inclinado para a parede, olhos e boca abertos, e a espuma correndo ao longo da barba cinzenta.

— Chaim — gritou a mãe acusadoramente. — Disseste-me que vinhas arranjar o gás. Mas não me disseste que tinhas vindo aqui morrer.

— Foi então por minha culpa que o pai morreu antes dele acabar a escola? — perguntou o tio Bernie já zangado. — Ele que se empregue e estude à noite se tem assim tanta vontade de acabar os estudos.

David, sentado na ponta da cadeira, olhou para a mãe. Estava calado.

— Não é caridade que queremos, Bernie — disse ela. — A única coisa que David quer é um emprego, é isso que estou a pedir-te.

Norman voltou-se e olhou o sobrinho desconfiadamente.

— Se calhar querias o lugar de vice-presidente na minha companhia, ah! ah!...

David pôs-se em pé de repente.

— Mãe, vou-me embora já. Tudo o que dizem dele é verdade.

— Tudo o que dizem de mim? — perguntou o tio zangado. — Mas que é que dizem de mim?

David olhou-o.

— Na sinagoga, quando fui dizer adeus ao pai, falaram-me de si. Disseram que não tinha ido ao funeral porque receava que alguém lhe pedisse algum dinheiro.

— Como é que conseguia ir da Califórnia até lá num dia? Não tenho asas.

David dirigiu-se para a porta.

— Espera um minuto, David — disse-lhe a mãe calmamente. E voltando-se para o irmão: — Quando precisaste de quinhentos dólares antes da guerra para o teu negócio, quem tos emprestou?

Esperou uns momentos antes dela própria responder.

— Foi o teu bom cunhado Chaim, o ferro-velho. Ele deu-te o dinheiro e tu deste-lhe um papel. O papel ainda o temos, mas o dinheiro, até hoje ainda o não vimos.

— Papel — exclamou Bernie —, que papel?

— Ainda o tenho, na mesma caixa onde Chaim o pôs no dia em que te emprestou o dinheiro.

— Deixa-o cá ver — disse Bernie seguindo com o olhar a irmã que saía do quarto. Começava agora a lembrar-se. Era um certificado em que se comprometia com o cunhado a dar-lhe cinco por cento do stock da Companhia Norman, quando esta comprou a velha Companhia de filmes Diamond. Tinha-se esquecido completamente disto. Mas para um advogado esperto esse papel poderia render um dinheirão.

A irmã voltou para o quarto trazendo na mão uma folha de papel. Estava velho e amarelecido, mas a data via-se ainda perfeitamente. 7 de Setembro de 1912. Tinha sido há catorze anos. Como o tempo passara...

Olhou para a irmã.

— É contra os meus princípios empregar pessoas de família nos meus negócios, não fica bem — disse.

— Mas quem sabe que ele é teu sobrinho? Além disso quem melhor do que ele pode zelar pelas tuas coisas? Sempre é da tua família... — volveu a irmã.

Ele fitou-a por momentos, depois olhou para os pés.

— Bem, está bem, eu emprego-o. É absolutamente ao con­trário da minha opinião, mas talvez tenhas razão. O sangue sempre pesa... Perto da rua 43 temos um armazém. Poderá começar a trabalhar lá.

— Muito obrigado, tio Bernie — disse David agrade­cido.

— Mas não te esqueças. Nem uma palavra sobre o parentesco comigo. Se eu ouvir alguma coisa, está tudo acabado.

— Não direi nadinha, tio Bernie.

Norman dirigiu-se para a porta, mas antes voltou-se com o papel na mão. Dobrou-o e meteu-o no bolso.

— Levo isto comigo — disse para a irmã. — Quando chegar ao escritório, mandar-te-ão um cheque de quinhentos dólares mais os juros de catorze anos, a três por cento.

— Vê lá se te faz diferença — disse a irmã com um olhar preocupado. — Não tenhas pressa — disse pressurosa. — Nós cá nos havemos de arranjar se o David se conseguir empregar.

— Claro que não me faz diferença — disse Norman magnânimamente. — Nunca digas a ninguém que Bernie Norman não cumpre a sua palavra.

Perto do rio Hudson havia um velho edifício sujo e cinzento que fora, em tempos, uma fábrica. Depois disso, tinha sido divi­dido em várias partes. Havia dois grandes elevadores de carga e três mais pequenos para passageiros, perto da entrada, pela qual mal cabia a enorme multidão de trabalhadores que todos os dias por ai entrava às 8 horas da manhã, e saía às 6 da tarde. O edifício estava dividido por cinco inquilinos. O rés-do-chão era ocupado por uma companhia de acessórios de automóveis; o primeiro andar por um fabricante de cosméticos; o segundo pelas instalações de uma companhia de discos; o terceiro pela companhia de Henri France, o maior fabricante de preserva­tivos, a preços populares; o quarto e quinto andares perten­ciam aos filmes Norman.

David chegou cedo. Saiu do elevador no quinto andar e ca­minhou devagar ao longo do largo corredor, entre arrumações de aço e prateleiras de madeira. Ao fundo, perto das janelas das traseiras, estavam várias secretárias, colocadas umas contra as outras.

— Hei! — chamou David. — Está aí alguém? — A sua voz ecoou misteriosa através da sala vazia. Um relógio em cima de uma das secretárias marcava 7 horas e meia. A porta do elevador de carga abriu-se e no corredor surgiu, espreitando, a cabeça branca de um homem.

— Pareceu-me ouvir alguém chamar — disse.

Avançou para ele.

— Penso que é a si que devo dirigir-me por causa de um emprego.

— Ah! és tu?

David ficou pasmado.

— Que disse?

— Perguntei se eras tu o rapaz que esperávamos, o sobrinho do velho Norman — disse o homem do elevador.

David não respondeu. Estava demasiadamente surpreendido. O homem do elevador fechou a porta.

— Não está cá ainda ninguém — disse. — Não aparecem antes das oito horas.        

As portas metálicas fecharam-se e o elevador desapareceu.

David voltou-se, pensativo. O tio Bernie tinha-lhe recomendado que nada dissesse e ele nada tinha dito, mas todos sabiam que ele era seu sobrinho. Perguntava a si próprio se o tio saberia que eles estavam ao corrente de tudo. Voltou de novo para as secretárias.

Parou de repente em frente de um grande cartaz. As legendas eram escritas a encarnado vivo — Vilma Banky e Rod LaRocque. A fotografia mostrava Miss Banky deitada num sofá, o fato bastante acima dos joelhos. Por trás dela estava LaRocque, elegante e simpático, género Valentino, como era uso na altura, fitando-a com um olhar de apaixonado.

David pôs-se a observar o cartaz. Um preservativo tinha sido preso com um alfinete às calças do actor e em letras pretas lia-se distintamente: Com os cumprimentos de Henri France.

David sorriu e começou a vaguear ao longo do corredor. Olhou para o interior das grandes caixas metálicas. Cartazes, fotografias para as estradas e anúncios amontoavam-se lá dentro, cada um representando um filme diferente. David viu-os todos cuidadosamente. Era estranho como todos se pareciam. Dir-se-ia que a única coisa que o pintor mudara em cada um fora o nome do artista e o nome do filme, embora as caras fossem todas iguais.

Ouviu o elevador dos passageiros parar e o som de passadas ressoou no corredor. Voltou-se e aguardou.

O primeiro a sair foi um homem alto e magro com o cabelo cor de areia e um olhar preocupado. Ao passar perto das mesas de embalagem deteve-se e olhou para David.

— Chamo-me David Woolf e venho aqui à procura do chefe da secção por causa de um emprego.

— Sou eu o homem. — Voltou-se e enquanto se dirigia para uma das secretárias disse: — Chamo-me Wagner, Jack Wagner.

David estendeu-lhe a mão.

— Muito prazer em conhecê-lo.

O homem olhou espantado para a mão para ele estendida e o seu aperto de mão foi mole e sem convicção.

— Você é o sobrinho de Norman — disse significativamente.

E de súbito David compreendeu que o seu interlocutor estava ainda mais nervoso do que ele próprio. Perguntou a si mesmo porque seria. Não via qualquer razão para ele ficar aborrecido com o seu parentesco com o tio Bernie. Mas era melhor não continuar a falar no assunto; afinal de contas toda a gente já sabia.

— Para todos os efeitos ninguém deve saber isso senão eu — disse Wagner. — Sente-se aí — apontou-lhe uma cadeira perto da secretária, tirou uma folha de papel e empurrou-a para David. — Preencha esta ficha de pessoal. No sítio onde pergunta se tem algum parente na companhia, deixe ficar em branco.

— Sim senhor.

Wagner saiu de trás da secretária e desapareceu. David começou a preencher a ficha. Atrás, ouvia as portas do elevador dos passageiros abrirem e fecharem. Vários homens circulavam por ali e olhavam-no furtivamente por cima das respectivas secre­tárias. Começaram a tirar para fora o material que precisavam para o trabalho. David continuou a preencher o seu questionário. Às 8 horas tocou uma campainha e o barulho próprio de toda a actividade espalhou-se pelo edifício.

Quando Wagner regressou, David estendeu-lhe a folha preenchida. Wagner leu-a vagamente.

— Está bem — disse, enquanto voltava a guardar a folha na secretária e desaparecia outra vez.

David observou-o enquanto falava com o homem que ocupava a mesa de embalagem mais próxima. Voltaram-se ambos de costas para David e este ficou com a certeza de que estavam a falar dele.

Começou a sentir-se nervoso e resolveu acender um cigarro. Wagner, que vinha a entrar, olhou-o com um olhar reprovador e disse:

— Não pode fumar aqui. Não sabe ler os avisos?

— Desculpe — respondeu David enquanto procurava um cinzeiro. Não viu nenhum e súbitamente reparou que todos tinham parado de trabalhar e observavam a cena. Sentiu umas gotas de transpiração cobrirem-lhe a testa.

— Pode ir fumar para a retrete — gritou-lhe Wagner, apontando para o fundo do armazém.

David desceu o corredor e lá encontrou a retrete. Súbitamente sentiu uma necessidade premente e dirigiu-se para o urinol.

A porta por trás dele abriu-se e sentiu a presença de alguém que o fitava.

— Olá — disse-lhe o homem.

David olhou-o fixamente. O homem recuou e abrindo a boca num sorriso mostrou uma fila reluzente de dentes de oiro.

— Então tu és o filho de Chaim Woolf! — exclamou em hebraico.

David aquiesceu.

— Eu sou o chefe, Yitzchak Margolis, da sociedade Prushnitzer, a mesma do teu pai.

— O mundo é pequeno — comentou David. — Trabalha aqui? — perguntou com curiosidade.

— É claro. Mas não vim até aqui para te ver urinar... — E baixando a voz disse num murmúrio confidencial: — O teu tio foi um espertalhão em te pôr aqui.

— Espertalhão?

O encarregado baixou a cabeça careca concordando.

— Espertalhão — repetiu com o mesmo tom. — Há muito tempo que esta gente anda à boa vida. Tudo o que tens de fazer é olhar pelas guias.

— Quais guias?

— Guias de remessa. Eu faço num dia mais do que eles numa semana. Cá por mim não me ralo, mas essa chusma de mandriões bem pode ter cuidado com os seus empregos.

Nesta altura David começou a compreender. Os outros olhavam-no com receio de perderem os empregos.

— Mas eles não têm que se preocupar — retorquiu. — Não vou vigiar o trabalho deles.

— Ai não? — perguntou Margolis com os olhos esbuga­lhados.

— Não, eu estou aqui porque preciso de emprego.

O desapontamento estampou-se na cara do encarregado. Mas de súbito os seus olhos brilharam astutos e retorquiu:

— Esperto, um rapaz esperto é o que tu és. É claro que não vais vigiar ninguém, é claro que não... eu hei-de dizer-lhes. — E principiou a andar mas, já ao pé da porta, parou de novo e voltando-se para David disse: — Sabes, tu lem­bras-me muito o teu tio. Esse fulano nunca deixa que a mão esquerda saiba aquilo que a direita vai fazer.

A porta fechou-se atrás dele. David atirou o cigarro para o urinol e saiu. Ia já a meio do corredor quando encontrou Wagner.

— Sabes manejar uma forquilha?

— Como aquelas que usam para levantar os molhos de palha?

O homem acenou com a cabeça.

— Exactamente desse género.

— É claro que sei — respondeu David.

Por momentos o olhar preocupado de Wagner desapareceu.

— Ora ainda bem. Está um carregamento de quinhentos mil anúncios na entrada e é preciso trazê-los para cima.

O elevador parou com um solavanco no rés-do-chão e as pesadas portas abriram-se para a plataforma completamente cheia de carga. Vários camiões estavam parados à entrada da plataforma e os homens corriam para trás e para a frente carregando uns e descarregando outros. Ao longo da parede do fundo viam-se pilhas de caixas de cartão com diversos materiais. David voltou-se para o homem do elevador e perguntou:

— Qual é o material que eu devo levar para cima?

O homem encolheu os ombros.

— Pergunta ao encarregado da plataforma. Eu só faço andar o elevador, não sei mais nada. — Mas qual é o encarregado da plataforma?

O homem do elevador indicou-lhe um homem forte, em camisola interior. Os cabelos pretos e hirsutos saíam-lhe do peito e dos braços. As suas feições eram rudes e pesadas e a pele tinha o tom avermelhado dos grandes bebedores.

David aproximou-se dele.

— Que é que queres? — perguntou-lhe.

— Mr. Wagner mandou-me levar para cima os prospectos.

O encarregado olhou de soslaio.

— Ah!, o Wagner... Onde está o Sam?

David olhou.

— Sam, qual Sam?

— Sam, o empregado de escritório que toma conta das entradas, topas?

— Mas como diabo quer você que o tope? — perguntou David que começava a irritar-se.

O encarregado olhou por cima da cabeça de David para o homem do elevador:

— Eles não disseram ao Sam para arranjar emprego para este gajo, pois não? — gritou.

— Não. Eu vi-o lá em cima a trabalhar numa das mesas de embalagem.

O encarregado olhou de novo para David e apontou-lhe a parede.

— Ali, junto à parede — disse.

Os prospectos estavam empacotados em grades de madeira em maços de um milhar. Havia quatro grades com cento e vinte e cinco maços cada uma. David rolou a forquilha até uma delas e meteu os dentes por baixo. Pôs-se a fazer força tentando levan­tá-la mas os seus cinquenta e nove quilos de peso não eram suficientes para levantar as grades do chão.

David olhou em volta. O encarregado sorria irónicamente.

— Não pode dar-me aqui uma ajuda?

O homem deu uma risada.

— Tenho mais que fazer — disse. — Diz ao velho Norman que contratou um miúdo para fazer trabalho de homens.

David deu nesse momento pelo silêncio que se tinha feito à sua volta. O homem do elevador sorria de uma maneira estranha. Até os condutores dos camiões se riam. Furioso, sentiu o sangue subir-lhe à cara. Estavam todos a desfrutá-lo, à espera de ver o sobrinho do patrão espalhar-se ali na frente deles. Maquinal­mente tirou um cigarro da algibeira e começou a acendê-lo

— Não se pode fumar na plataforma — disse o encarregado. — Ali na rua já se pode fumar.

David olhou-o durante uns momentos, em silêncio. Depois, devagar, dirigiu-se para a rua, descendo a rampa. Ouviu ainda uma gargalhada atrás dele e a voz do encarregado dizer:

— O judeuzinho duma figa deve já ter percebido que se tem que pôr a mexer.

Deu uma volta ao edifício e depois acendeu o cigarro. Per­guntava a si próprio se não estariam todos a desfrutá-lo e se o próprio Wagner teria ficado satisfeito por o ver aparecer. Tinha-lhe dado uma tarefa que de antemão sabia não poder ser feita por ele.

Olhou para o outro lado da rua. Havia justamente em frente uma garagem e isso deu-lhe uma ideia.

Meio dólar dado ao mecânico e ei-lo de volta com uma ala­vanca hidráulica, usada nas garagens para os camiões. O silên­cio voltou à plataforma e conseguiu pôr a alavanca debaixo dos fardos. Num abrir e fechar de olhos estavam todos dentro do monta-cargas.

— Ora bem — disse para o homem. — Vamos levar isso para cima. — Sorria satisfeito quando as portas se fecharam com ruído na cara carrancuda do encarregado.

Lá em cima, todos os homens levantaram a cabeça do seu trabalho quando as portas do elevador se abriram.

— Espere um momento — disse David para o homem. — Vou primeiro perguntar ao Wagner onde quer ele isto. — Ca­minhou ao longo do corredor até à secretária vazia do encarre­gado. Voltou-se e viu os outros a observarem-no das suas secre­tárias,

— Onde está o Wagner?

Olharam uns para os outros, embaraçados. Finalmente o chefe respondeu:

— Foi até à retrete dar uma fumaça.

David agradeceu e dirigiu-se para a casa de banho. O encarregado estava de cigarro na mão a conversar com outro homem. David aproximou-se por trás e chamou:

— Mr. Wagner!

O outro deu um pulo e voltou-se com uma expressão de espanto na cara.                                

— Que se passa, David? — perguntou zangado. — Não consegues trazer cá para cima os tais prospectos?    

David olhou-o calmamente. Agora tinha a certeza de que o Wagner também estava dentro da história.

— Então? — disse já irritado. — Se não consegues trazê-los, diz.

— Já cá estão todos em cima. A única coisa que preciso de saber é onde devo colocá-los.

— Já cá estão em cima? — disse num falso tom de segu­rança diferente daquela que momentos antes aparentava.

— Sim, senhor.

Wagner deitou o cigarro para a retrete.

— Bem — disse com um olhar um tanto atrapalhado. — Vão ali para o corredor cinco. Já te mostro as caixas.

Às dez e meia já David tinha as grades vazias e as caixas cheias. Pôs o último pacote de prospectos no lugar e endireitou-se. Sentiu o corpo molhado e só então reparou como estava ensopada e suja a camisa que a mãe lhe preparara tão limpa e branca. Passou pela testa a manga da camisa e diri­giu-se de novo para a secretária do encarregado.

— Que faço a seguir?

— O quê, já estão guardados os quinhentos fardos?

— David abanou a cabeça.

O encarregado entregou-lhe uma folha de papel.

— Então assina a factura.

David olhou para o papel enquanto pegava num lápis. Era a conta dos prospectos. 500 fardos de prospectos a cem dólares cada um faz 50 000 dólares. Que papel tão caro. — pensou enquanto rubricava a factura.

O telefone tocou e o encarregado atendeu:

— Armazém!

David ouvia o sussurro da voz do outro lado mas não dis­tinguia as palavras. Wagner acenava com a cabeça.

— Sim, Mr. Bond, acabaram de chegar.

Wagner olhou para David e tapando o auscultador com a mão disse-lhe:

— Dá-me daí um exemplar desses prospectos.

David foi a correr buscar um prospecto que tirou de um dos fardos, e trouxe-o a Wagner. Este arrancou o exem­plar das mãos de David e olhou-o atentamente.

— Não, Mr. Bond, vêm apenas numa cor.

A voz do outro lado do telefone transformou-se num rugido. Wagner começou a sentir-se atrapalhado e pouco depois pousou o auscultador, devagar.

— Era Mr. Bond a chatear.

David ouviu e ficou calado.

Wagner tossicou nervosamente.

— Estes prospectos que acabaram de chegar parece que tinham de ser a duas cores.

David olhou para o prospecto a preto e branco. Afinal eram papéis para deitar fora. Que diferença fazia que fossem a uma ou duas cores?

— Mr. Bond disse para irem para o lixo. David olhou para ele pasmado.

— Para o lixo?!

Wagner disse que sim com a cabeça e pôs-se em pé.

— Tira-os das caixas e escada abaixo com eles nova­mente! Precisamos do espaço para os novos que chegam à tarde.

David encolheu os ombros. Que negócio tramado era aquele, em que uma coisa se deitava fora mesmo antes de ter sido paga! Bem, mas não era da sua conta.

— Vou tratar disso.

Era meio-dia e meia hora quando chegou novamente à plataforma de carga empurrando o primeiro fardo de pros­pectos. O encarregado da plataforma deu um pulo.

— Eh! Que estás a fazer aí com isso?

— É lixo.

— Lixo, isso tudo? — perguntou enquanto olhava para o monta-cargas.

David disse que sim.

— Onde é que deixo esta porcaria?

— Não deixas em parte nenhuma, desandas já com isso novamente lá para cima, e diz ao Wagner que me mande o dinheiro se quer que eu o livre dessa sucata.

David sentiu outra vez uma fúria invadi-lo.

Wagner estava ainda sentado à secretária quando David lá chegou.

— O encarregado da plataforma diz que quer dinheiro para despachar aquela lixarada.

— É verdade — disse Wagner —, já me esquecia. — Tirou da secretária uma caixa estreita e de dentro dela uma nota de cinco dólares.

David olhou-o pasmado.

— O senhor tem realmente que dar esse dinheiro? — per­guntou incrédulo.

Wagner aquiesceu.

— Mas aquilo é uma óptima pasta para fazer jornal — disse David. — O meu pai apanhava daquilo todo o dia. Pagam ao peso e esta quantidade poderia valer uns cinquenta dólares em qualquer ferro-velho.

— Nós aqui não podemos perder tempo com esse género de coisas. Toma, pega lá o dinheiro e acaba com este assunto.

David fitou-o. Nada naquele negócio lhe parecia sensato. Deitavam para o lixo 50 dólares de papel antes de o terem pago e não só não queriam ganhar 50 dólares como pagavam ainda para se verem livres dele. O seu tio não podia ser tão esperto como diziam, se deixava andar o negócio daquela maneira. Se não fosse a má sorte, o seu pai teria sido um milionário. Respirou fundo.

— Tenho direito a uma hora para almoçar, Mr. Wagner?

O encarregado concordou.

— Claro, todos temos.

— E faz mal que eu comece a minha hora do almoço agora?

— Podes começá-la logo que despaches esses prospectos.

— Se não se importa eu trato deles na minha hora do al­moço.

— Por mim está bem, mas não precisas de fazer isso. Tens uma hora livre para o almoço.

— Posso fazer uma chamada? — perguntou David olhando para o telefone.

Wagner disse que sim e David chamou Needlenose para a garagem do Shocky.

— Daqui a quanto tempo podes estar aqui com uma camioneta? — perguntou David enquanto lhe explicava rápidamente qual era o negócio.

— Vinte minutos — disse Needlenose. Houve uma pausa e depois voltou a falar. — Olha, o Shocky diz que só te leva dez dólares pela camioneta.

— Diz-lhe que é negócio fechado. Vem e traz à cautela um par de boxes, às vezes pode haver sarilho.

— Combinado — disse Needlenose.

— Bem, espero-te lá fora.

Wagner olhou-o com um ar aterrado.

— Eu cá não quero sarilhos — observou nervosamente.

David olhou-o espantado. Se todos tinham tanto medo dele que o não deixavam quase fazer o seu trabalho, ele dar-lhes-ia então razão para isso.

— O senhor nem queira saber o sarilho que seria se o meu tio Bernie soubesse que deu cinquenta dólares para perder mais cinquenta.

A cara de Wagner empalideceu. A testa cobriu-se de suor.

— Não sou eu que faço as regras — disse —, eu pago aquilo que o cobrador me pede.

— Então não tem que se preocupar.

Wagner pôs de novo a nota de 5 dólares na caixa e depois fechou a gaveta à chave. Pôs-se em pé.

— Bem, creio que vou almoçar.

David sentou-se na cadeira do encarregado e acendeu um cigarro fazendo vista grossa para o aviso que proibia que se fumasse ali. Os homens da secção de embalagem observavam-no e ele fitava-os também em silêncio. Passados alguns minutos começaram a levantar-se e a sair como se fossem almoçar. Em breve ficava ali apenas o chefe. O velhote olhou por cima da embalagem que estava a acabar de atar.

— Acredite — disse para David —, não vale a pena dei­xar-se matar por isso. O Tony lá de baixo é um verdadeiro cossaco. Diga ao seu tio que lhe dê outro emprego.

— Como é que posso fazer isso, tiozinho? — perguntou David. — Era bonito! Se eu lá aparecesse a chorar, estava despedido!

O velhote aproximou-se.

— Sabes para onde foram todos estes? — perguntou em voz baixa. — Pensas que foram almoçar? Estão todos lá em baixo para verem o Tony dar cabo de ti.

David tirou uma fumaça, pensativo.

— Como é que cinco dólares têm tanta importância?

— Todos os que aqui entram no edifício pagam-lhe qual­quer coisa. Ele não podia deixar-te de fora porque então perdia tudo.

— Mas ele é um gangster — disse David enraivecido. — Tudo o que estava a fazer dizia-me respeito. Nada tinha acon­tecido e ele poderia ter continuado a cobrar a sua comissão.

David pôs-se em pé, atirou o cigarro para o chão e apa­gou-o com o calcanhar. Sentia um sabor amargo na boca. Fora tudo uma estupidez. Além disso não era mais esperto que os outros e tinha-se deixado cair na ratoeira que lhe haviam preparado. Agora já não podia recuar mesmo que qui­sesse, nem podia dar-se ao luxo de perder a luta que ia travar-se lá em baixo. Se perdesse, o tio não deixaria de saber e então lá se ia o emprego.

Needlenose esperava-o ao fundo das escadas.

— Onde está a camioneta? — perguntou.

— Do outro lado da rua. Trouxe-te os boxes. Qual pre­feres, o liso ou o que tem espigões?

— O que tem espigões.

Needlenose tirou da algibeira o de bronze que David segu­rou. Os espigões pontiagudos reluziram à luz. David meteu-o na algibeira.

— Como é que vamos segurar no tipo? — perguntou Needle­nose. — À maneira chinesa?

Era um truque muito comum na China. Um homem pela frente, outro por trás. A vítima avançava para o homem da frente e era apanhado pelas traseiras. Raramente sabia quem lhe batera. David abanou a cabeça.                      

— Não — disse —, tenho de tomar conta deste sózinho, para valer de alguma coisa.

— Mas olha que o tipo mata-te. Tem o dobro do teu peso.

— Se me vir aflito, vens e ajudas-me.

— Se te vires atrapalhado — observou Needlenose seca­mente — então será tarde de mais para fazer qualquer coisa, a não ser sepultar-te.

David olhou para ele e sorriu.

— Nesse caso manda a conta ao meu tio Bernie, foi por culpa dele. Vamos a isto?

Era verdade, lá estavam todos. O chefe tinha razão. Todo o edifício sabia o que se ia passar. Até lá estavam algumas empre­gadas da fábrica dos cosméticos e do Henri France.

Fazia calor e David sentiu a transpiração trespassar-lhe os fatos. A plataforma era um centro de barulho — pessoas conversando enquanto comiam as suas sanduíches. Mas de repente todas as conversas cessaram e todos se esqueceram dos almoços. Um silêncio expectante envolveu-o e sentiu fixos em si os olhares curiosos e esbugalhados. Olhou casualmente para a multidão. Reconheceu no meio dela alguns dos homens que trabalhavam nas mesas de embalagem, os quais desviaram a vista quando ele passou.

Súbitamente sentiu-se agoniado. Era uma loucura. Ele não era nenhum herói, para que serviria tudo aquilo? Que im­portância tinha para ele aquele piolhoso emprego para se deixar matar por ele? Mas, nessa altura, viu o encarregado da plata­forma e tudo se lhe varreu da cabeça. Não podia voltar atrás.

Era sempre a mesma selva por toda a parte — as ruas lá para baixo no lado leste da cidade, as trapeiras dos ferro-velhos ao longo do rio e agora ainda um armazém na Rua 43. Todos tinham o seu rei que precisava de lutar constantemente para conservar o seu pequeno reino, porque havia sempre alguém pronto para lho roubar.

E de repente subiu por ele um lampejo de força e de audácia. O mundo era assim; até o seu tio Bernie, sentado lá em cima no topo de tudo aquilo, era um rei também. Mas quantas vezes ele próprio não passaria noites em claro preocupado com os pos­síveis ataques ao seu império.

O rei tinha de habituar-se a viver com medo, mais do que qualquer outro homem. Havia mais coisas a perder. E gra­vada bem dentro deles estava a certeza de que um dia tudo acabava. Porque mesmo os reis são seres humanos e a sua força há-de diminuir e os seus cérebros hão-de começar a pensar mais devagar. Os reis têm de morrer e os seus herdeiros herdar. Seria assim com o encarregado da plataforma e seria assim com o tio Bernie. Um dia, tudo aquilo seria seu porque ele era novo.

— Traz cá a camioneta — gritou pelo canto da boca.

Needlenose desceu a rampa, atravessou a rua em direcção à camioneta. David voltou-se e empurrou o macaco hidráulico para junto de uma das grades de madeira. Deu à bomba e a grade subiu. Veio até à extremidade da plataforma exactamente na altura em que Needlenose chegava com a camioneta.

Needlenose pulou para o chão.

— Queres uma ajuda, David?

— Eu cá me arranjo — disse David. Empurrou a alavanca carregada para dentro da camioneta e carregou no botão. O chão estremeceu. David deu uma olhadela rápida para o encarre­gado da plataforma. O homem não se tinha ainda mexido. Uma vaga esperança começou a crescer dentro de David. Quem sabe se se teria enganado? Talvez todos se tivessem enganado. Colocou a última grade na camioneta. Afinal parece que não ia haver luta, pensou.

Nessa altura começou a ouvir um leve murmúrio vindo da plataforma, enquanto dava volta à alavanca a fim de a rolar para fora da camioneta. Quando olhou para cima viu o encarregado da plataforma que lhe barrava a saída. Impertur­bável, David puxou o macaco para si, mas o encarregado pôs um pé na parte da frente da alavanca e olhou para ele, em silêncio. David fitou o pé calçado com uma bota de sola grossa e atacadores bem apertados que se apoiava na alavanca.

Tentou puxar o macaco para a plataforma de carga. Mas o pé do encarregado voltou-se rápidamente. A pega do macaco voou das mãos de David e o macaco resvalou para o lado com a metade dianteira completamente fora da camioneta.

As rodas continuaram a rodopiar no pequeno espaço que ficou entre a plataforma de carga e o veículo. Um sussurro nervoso partiu de novo de toda aquela gente.

O encarregado da plataforma falou numa voz monótona:

— Para tirares dai a camioneta tens de largar cinquenta dólares. Se não os tens, ficas aí.                      

David meteu a mão ao bolso. Sentiu o metal frio contra os dedos enquanto enfiava na mão o boxe de bronze.

— Tenho aqui uma coisa para si — disse calmamente, dirigindo-se para o homem ainda com a mão no bolso.

— Vês como te está a vir a inteligência, judeu? — riu o homem enquanto olhava para as pessoas presentes. Foi nesse instante que David lhe acertou em cheio. Sentiu uma dor percorrendo-lhe o braço quando bateu na cara do homem. Um débil grito de dor saiu-lhe da garganta pois os espigões metálicos entraram na cara como num melão maduro. Voltou-se e atirou-se selváticamente sobre David, acertando-lhe com um soco no lado da cabeça e projectando-o contra a camioneta. David começou a sentir inchar a cabeça. Tinha de ser uma luta rápida ou então o homem matava-o.

Sacudiu a cabeça e olhando para cima viu-o correr de novo para ele. Fincando os pés contra a camioneta pegou na alavanca e deu com ela na cara do homem. O golpe não acertou no alvo desejado mas o encarregado apanhou com ela no braço e correu para a extremidade da plataforma. Novamente David o atacou. Ele evitou o golpe dando um passo para o lado mas tropeçou e caiu da plataforma abaixo, ficando estendido no chão.

David inclinou-se sobre o macaco hidráulico e olhou para baixo. O outro apoiava-se nos joelhos e nas mãos. Voltou a cara para David. O sangue escorria-lhe pela cara e os lábios estavam horrivelmente inchados.

— Hei-de matar-te por isto, cão judeu...

David olhou-o. O homem estava agora apoiado num joelho.

— Foi você que quis isto — disse David enquanto pro­curava a pega do macaco. O homem deu um grito porque o macaco hidráulico tinha entretanto resvalado e lhe caíra em cima. Depois calou-se e ali ficou com a cara para o chão e o macaco às costas, mais parecendo um monstro primitivo.

David pôs-se em pé, devagar, o peito ofegante, e olhou para os que o rodeavam. Começavam já a dispersar-se, mas as caras estavam ainda brancas de medo. Needlenose saltou para a camioneta e olhou para o homem estendido.

— Achas que este já está arrumado?  

David encolheu os ombros. Meteu o boxe de bronze no bolso do amigo.

— O melhor é levares a camioneta daqui para fora. — Nee­dlenose concordou e saltou para o volante enquanto David trepava para a plataforma. Nesse mesmo instante Wagner chegou ao local, acompanhado de um polícia que, olhando para David, perguntou:

— Que aconteceu aqui?

— Houve um acidente — respondeu David.

O polícia observou então o homem estendido no chão.

— Chamem uma ambulância — disse bruscamente. — Alguém que dê aqui uma ajuda para tirar isto de cima dele.

David deu uma volta e dirigiu-se para o monta-cargas. Foi à casa de banho para se limpar, e nesse mesmo momento che­gou até ele o som da sereia da ambulância. A porta abriu-se e David viu o chefe das embalagens que o fitava, com uma toa­lha nas mãos.

— Pensei que isto podia ser-lhe útil — disse.

David agradeceu e pegando na toalha molhou-a com água quente e encostou-a à cara. O calor aliviou-lhe as dores. Fechou os olhos e ficou-se a ouvir a sereia da ambulância que dimi­nuía à medida que se afastava.

— Sente-se bem? — perguntou o velhote.

— Estou óptimo — respondeu David.

Ouviu o som dos passos do homem afastando-se. A porta fechou-se de novo. Por fim tirou a toalha da cara e olhou-se atentamente no espelho. Exceptuando o grande galo na testa, estava óptimo. Passou a cara por água fria e secou-a depois. Deixou a toalha na borda da bacia e saiu.

Perto do patamar da escada encontrava-se uma rapariga de bata azul, e no bolso via-se o nome de Henri France bordado a letras pretas.

David parou e olhou para ela. Parecia-lhe que já vira aquela cara em qualquer sítio. Devia ser uma das moças que tinham estado lá em baixo. Olhava-o descarada­mente mostrando uns dentes pouco bonitos.

— É verdade que você é o sobrinho do velho Norman?

David acenou com a cabeça.

— Freddie Jones, o que toma conta do laboratório, disse-me que eu devia ir para o cinema. Ele fez-me posar para ele.

— Sim!?

— Tenho as fotografias aqui, quer vê-las?

— Certamente.

Ela sorriu e tirou algumas fotografias da algibeira. O rapaz pegou nas fotografias e olhou-as bem. Esse tal Freddie, quem quer que fosse, sabia realmente tirar fotografias. Ela ficava muito melhor quando não estava a sorrir e sobretudo quando não estava vestida.

— Gosta delas?

— Sim!

— Pode ficar com elas se quiser.

— Obrigado.

— Se alguma vez puder, mostre-as ao seu tio — disse rápida­mente. — Há imensas raparigas que entraram para o cinema desta maneira.

David concordou.

— Vi tudo o que se passou lá em baixo. Já não era sem tempo que o Tony apanhasse nos queixos!

— Não gostava dele?

— Ninguém gosta dele, mas todos têm medo. O polícia perguntou-me o que tinha acontecido e eu disse-lhe que fora um acidente, que a alavanca hidráulica lhe caíra em cima.

Ele olhou-a nos olhos. Eram atrevidos e brilhantes.

— Tu és giro — disse-lhe —, gosto de ti. — Dizendo isto meteu a mão ao bolso e tirou de lá qualquer coisa que lhe esten­deu. Ele viu uma pequena caixa metálica como as das aspirinas e tinha impresso: Henri France-Luxo.

— Não tens que te preocupar quando precisares disto — disse ela. — São os melhores que fabricamos, pode-se ler um jornal através deles. Sou eu que os inspecciono e os enrolo.

— Obrigado.

— Bem, deixa-me cá ir ao trabalho. — Voltou-se e desceu a escada. — Até à vista.

— Até à vista — gritou David. Olhou novamente para a caixa que tinha na mão e abriu-a. Ela tinha razão, podia real­mente ler-se através deles. No fundo da caixa viu uma tira de papel fino. Nele, escrito a lápis leu o nome de Betty e um número de telefone.

Quando David entrou, Wagner estava já sentado à secre­tária.

— Pode gabar-se de ter tido sorte — disse ele. — O médico diz que a única coisa que o Tony tem são umas contusões e um par de costelas partidas. No entanto vai precisar de uns doze pontos na cara.

— Ele é que teve muita sorte... foi um acidente...

— Os homens da garagem ali defronte querem cem dólares para mandarem consertar o macaco.

— Eu levo-lhos amanhã.      

— Não é preciso — disse Wagner — porque eu já lhos dei.

— Obrigado.

O encarregado olhou decididamente para David:

— Gostava que tudo o que se passou esta manhã nunca tivesse sucedido — disse numa voz sumida. — Gostava sincera­mente de começar tudo de novo.

O rapaz fitou-o por um momento. Depois sorriu e esten­dendo de novo a mão disse:

— Chamo-me David Woolf, e venho aqui procurar o encar­regado por causa de um emprego.

Wagner olhou para a mão que David lhe estendia e pôs-se em pé.

— Eu sou Jack Wagner, o encarregado — disse, e o seu aperto de mão foi firme. — Vou apresentar-lhe a rapaziada.

Quando David se voltou para as mesas de embalagem, todos lhe sorriam. De súbito sentiu que já não eram estranhos para ele. Tinham passado a ser amigos.

Bernard Norman entrou no seu escritório de Nova Iorque. Eram dez da manhã. Tinha os olhos brilhantes e a cara vermelha do ar frio de Inverno que o fustigara durante o passeio matinal que fizera, desde o hotel.

— Bom dia, Mr. Norman — disse a secretária. — Gostou do passeio?

Norman sorriu, entrou no gabinete e abriu a janela. Ficou ali por momentos a respirar o ar fresco da manhã. Aquilo sim, era agradável e diferente da Califórnia onde tanto o amanhecer como o pôr do Sol eram sempre iguais.

Foi até à secretária e tirou da caixa um grande charuto. Acendeu-o lentamente e deliciou-se com a fragrância do seu sabor. Até os charutos sabiam melhor em Nova Iorque. Se tivesse tempo, ainda havia de ir comer uns blintzers ao Ratner’s na Rua Delancey. Sentou-se e começou a ler os relatórios que estavam na mesa. Ia abanando a cabeça à medida que verificava o aumento de receitas, bastante superiores às do ano anterior. Pegou nos relatórios dos teatros nova-iorquinos. O Teatro Norman, a sua primeira casa de espectáculos na Broadway, tinha dado um pulo nas receitas desde que começaram a ter variedades no palco, além dos filmes. O Loew’s e o Palace mantinham-se. Continuou a desfolhar as páginas de alguns outros relatórios e subitamente parou, fixando a atenção do Teatro Park. Nos dois últimos meses havia um aumento de receitas de quatro mil e duzentos dólares por semana.

Devia haver engano, o Park não passava de uma sala de reposições, situada no pior sítio da Rua Catorze, e nunca ultra­passara os três mil dólares de receita.

Continuando a ler o relatório, os olhos pousaram no parágrafo que se referia à percentagem que o empregado recebia:

trezentos dólares por semana. Agarrou no telefone. «Há aqui alguém que não está bom da cabeça.» Ele próprio nunca tivera uma percentagem tão grande. «O relatório deve estar errado.»

— Que deseja, Mr. Norman? — a voz da secretária ouviu-se no outro lado da linha.

— Diga ao Ernie que chegue cá imediatamente. — Pousou o telefone. Ernie Hawley era o tesoureiro. Ele deslindaria tudo aquilo.

Hawley apareceu; as lentes grossas dos óculos sombreavam-lhe os olhos.

— Está bom, Bernie? Que tal o passeio?

Norman atirou com o relatório para cima da secretária.

— Que se passa com o Teatro Park? Vocês são uns gajos que não conseguem fazer nada direito.

Hawley olhou-o pasmado.

— O Park? Deixe cá ver!

Norman estendeu-lhe o relatório e recostou-se depois na cadeira fumando sôfregamente o seu charuto.

Hawley levantou os olhos do papel.

— Não vejo aqui nenhum erro — exclamou.

— Não vê? — perguntou Norman sarcástico. — Julga que não sei muito bem que o Park nunca deu mais de trezentos dólares por semana desde que existe? Eu não ando a dormir!

— Mas Bernie, o aumento que vem no relatório está exacto. Os nossos fiscais controlam as receitas todas as semanas.

Bernie franziu o sobrolho.

— E que vem a ser este bónus ao empregado? Dois mil e quatrocentos dólares nos dois últimos meses! Você pensa que eu estou doido? Isto não me passou pelas mãos. Nunca con­cordaria com uma coisa destas.

— Ah, isso é que concordou, Bernie — replicou Hawley. — Durante a baixa que se seguiu ao Natal estabelecemos o bónus de vinte e cinco por cento ao gerente, para que nos aju­dasse.

— Sim, estabelecemos essa quantia para os teatros. Cal­culámos na altura que isso seria uma ninharia. Qual foi o número que pensámos para o Park?      

— Trezentos dólares.

Bernie olhou de novo para o relatório.

— Aqui há aldrabice — disse. — Taubman anda a rou­bar-nos descaradamente. Como é que ele de repente aumenta quatro mil e duzentos dólares nas receitas?

— Não é o Taubman que está agora a gerir o Teatro. Por causa da apendicite, não aparece desde o Natal.

— Mas é a assinatura dele que está no relatório!

— Não, é apenas o carimbo dele. Todos os gerentes têm um carimbo para as assinaturas.

— Bem, então quem toma conta do teatro? — perguntou Bernie. — Quem é o espertalhão que nos está a apanhar tre­zentos dólares todas as semanas?

Hawley sentia-se atrapalhado.

— Bem, você sabe, Bernie, estávamos num beco sem saída. Esta história do Taubman apanhou-nos em má ocasião, não tínhamos mais ninguém para o substituir...

— Deixe-se de rodeios e diga-me quem é ele! — explodiu Bernie.

— É o seu sobrinho, David Woolf... — disse o tesoureiro com muitas reticências.

Norman bateu com a mão na testa, violentamente.

— Já devia calcular isto mesmo! — exclamou.

— Não podíamos fazer outra coisa. Mas a verdade é que o rapaz se desembaraçou muito bem — disse Hawley enquanto deitava mão a um cigarro que acendeu nervosamente. — Fez contratos com todas as lojas que havia por ali e, com algumas borlas, inundou todas as semanas a vizinhança com prospectos. Lembrou-se ainda de arranjar aquilo que ele chamou a noite da família. Assim, às segundas e terças, toda a família podia entrar por setenta e cinco cents. E o que é certo é que estava a ter sucesso.

Os chocolates e as pipocas vendiam-se quatro vezes mais do que antigamente.

— E esse negócio quanto está a custar-nos?

O tesoureiro sentiu-se de novo atrapalhado.

— Bem — gaguejou. — Juntou qualquer coisa mais para despesas de administração, mas creio que bem o merece e vale a pena.

— Portanto — continuou Bernie —, qual a quantia exacta?

Hawley pegou outra vez no relatório e tossiu nervosamente.

— É uma coisa entre oito e oitenta e cinco dólares por semana.

— Uma coisa entre oito e oitenta e cinco dólares por se­mana — repetiu Bernie sarcásticamente. Pôs-se em pé e olhou quase ferozmente para o tesoureiro. — Uma cambada de parvos, é o que eu tenho por minha conta — gritou. — Todo esse pro­gresso é mínimo, para nós, e entretanto ele mete no bolso tre­zentos dólares todas as semanas. — Voltou-se e dirigiu-se para a janela esbracejando furioso. Olhou lá para fora. Um vento frio entrou pela nesga aberta. Que tempo miserável fazia em Nova Iorque, não havia nem sol nem calor como na Califórnia.

— Bem, eu não diria tanto — arriscou Hawley. — Se cal­cular o todo, incluindo também a concessão de vendas, verá que lhe entram a mais todas as semanas mil e quinhentos dólares.

Norman deu uma volta.

— Novecentos dólares por semana do meu rico dinheiro é quanto ele gasta para lhe renderem a ele trezentos. Se calhar queria que o chamasse e o condecorasse ainda por cima, por nos deixar mil e quinhentos dólares, não? — A voz de Bernie tornara-se um verdadeiro guincho. — Ou então agradeço-lhe penhoradamente ainda não ter imaginado a maneira de nos pôr a andar dali!...  

Voltou novamente até à secretária.                  

— Não sei por que razão, mas sempre que venho a Nova Iorque descubro novas chatices. — Atirou com o charuto para o cesto dos papéis e foi buscar outro que começou a mascar.

— Aqui há ano e meio vim a Nova Iorque; e que havia eu de encontrar? David trabalhando no armazém há pouco mais de um ano mas a ganhar já mais dinheiro lá dentro do que nós.

E como? Cem dólares por ano, vendendo prospectos velhos; duzentos, vendendo fotografias pornográficas que manda imprimir às centenas no nosso papel fotográfico e no nosso laboratório. Arranjou a concessão de preservativos que desen­volveu através dos nossos escritórios espalhados por todo o país. Foi uma sorte eu ter acabado com isso ou teríamos ido parar todos à cadeia.

— Mas, Bernie, tem de admitir que o armazém nunca esteve tão bem — objectou Hawley. — Além disso só o inventário perpétuo rotativo fez-nos poupar uma fortuna em encomendas novas.

— Ah, ah — exclamou Bernie —, você está mesmo convencido de que ele fez isso por nossa causa? Não seja tolo. O ordenado dele por semana é de dezassete dólares mas no entanto todos os dias vai para o trabalho num Buick de dois mil e trezentos dólares.

Bernie acendeu um fósforo e levou-o ao charuto, puxando rápidamente umas fumaças até o acender. Depois lançou uma lufada e atirou o fósforo para o cinzeiro.

— Nessa altura — continuou — resolvi pô-lo como ajudante do gerente no cinema Norman. Tudo vai correr sossegadamente e em paz, pensei. Que sarilho pode ele arranjar-me numa casa tão grande como aquela? Sarilho, ah! ah! — riu-se amargamente. — Seis meses depois, quando voltei, vim encontrar o teatro transformado em casa de prostitutas e de apostas. Todas as peças de variedades queriam, súbitamente, ir para o Norman. E como não haviam de querer...? Onde é que no Loew’s ou no Palace eles encontravam, como lá, as mais bonitas arrumadoras de toda a Broadway, prontas para todo o serviço das dez da manhã à uma da noite? Onde é que no Loew’s ou no Palace eles encontravam um gerente que lhes aceitava apostas para corridas em qualquer campo do país sem terem de sair sequer dos vestiários?

— Mas tanto o Gallagher e o Shean, como o Weber e o Fields, e tantos outros grandes espectáculos, foram lá representados e ainda lá estão, não é verdade? Ele, no fim de contas, fez-nos um novo teatro.

— Foi uma sorte eu tê-lo tirado de lá a tempo — disse Norman. — Mandei-o para o Hopkins em Brooklyn. Agora finalmente não tinha que me preocupar, pensei. Pode ficar por lá o resto da vida como assistente do gerente. Que sarilho pode ele arranjar em Brooklyn? Nenhum. Assim, voltei muito sosse­gado para a Costa. Finalmente poderia ignorá-lo.

De repente, pôs-se de novo em pé e continuou:

— Seis meses depois volto e que vejo? Faz troça de toda a companhia e consegue ganhar mais dinheiro que um vice-presidente.

Hawley olhou para ele.

— Olhe, talvez seja isso que deva fazer.

— O quê?

— Fazê-lo vice-presidente — respondeu Hawley.

— Mas ele ainda é um miúdo.

— No mês passado tinha vinte e um anos. Era o rapaz que nos convinha.

— Não, não! — disse Norman olhando pensativamente para Hawley. — Quanto é que ele está agora a ganhar?

— Trinta e cinco dólares por semana — respondeu o outro rápidamente.

— Bem, tire-o de lá e transfira-o para a secção de publici­dade do estúdio — disse. — Aí não arranja sarilhos. Eu pró­prio terei os olhos em cima dele.

Hawley pôs-se em pé.

— Vou já tratar disso, Bernie.

Bernie viu o tesoureiro sair da sala e em seguida pegou no telefone. Ia telefonar à irmã e dizer-lhe que não se preo­cupasse. Todas as despesas da mudança para a Califórnia seriam pagas por ele. Depois lembrou-se que ela não possuía telefone e que tinha de ir atender as chamadas à pastelaria em baixo. Pousou o telefone. Iria vê-la em pessoa depois de ter ido comer os blintzes com o molho amargo característico. Ela nunca saía. Estava sempre em casa.

Sentiu um certo orgulho ao pensar naquele seu sobrinho que não deixava de ser um rapaz esperto, apesar daquelas ideias malucas. Com algumas indicações suas, coisa que ele nunca

tivera do pai, quem podia dizer onde poderia chegar?

Sorriu para si mesmo, enquanto mais uma vez pegava no relatório. Afinal a irmã sempre tinha razão. O sangue pesa mais que a água.

Harry Richards, chefe da guarda do estúdio, estava na guarita quando Nevada entrou pelo portão principal. Saiu da cabina com a mão estendida.

— Que prazer em voltar a vê-lo, Mr. Smith.

Nevada sorriu também satisfeito com o acolhimento calo­roso. Estendeu-lhe a mão.

— Olá, Harry, estás bom?

— Que grande ausência — exclamou Richards.

— É verdade — disse Nevada sorrindo — Sete anos. — A úl­tima vez que ele estivera no estúdio fora exactamente depois de o filme O Renegado ter sido apresentado. — Tenho uma entre­vista marcada com o Dan Pierce — acrescentou.

— Está à sua espera no antigo escritório do velho Norman — disse Richards.

Nevada meteu a mudança e seguiu. Richards afastou-se do carro e gritou:

— Desejo que tudo corra pelo melhor. Era bom que vol­tasse para cá trabalhar, como nos velhos tempos.      

Nevada sorriu e conduziu o carro até ao edifício da admi­nistração. Havia pelo menos uma coisa que não mudara desde os velhos tempos: continuava a não haver segredos. Todos sabiam o que se passava, excepto ele, que neste momento ape­nas sabia o que tinha lido no telegrama que Dan lhe enviara. Ao regressar da herdade encontrara-o na mesa da entrada. Abriu-o, rasgando o selo.

         TENHO IMPORTANTE CONTRATO FILMES FAZER CONSIGO.

         GOS­TARIA CONTACTASSE COMIGO IMEDIATAMENTE

         DAN PIERCE

Martha entrou no hall de entrada enquanto ele lia o telegrama. Como vinha da cozinha tinha ainda o avental por cima do vestido.

— O almoço está quase pronto — disse.            

Ele mostrou-lhe o telegrama.

— Dan Pierce diz que tem um bom contrato para mim.

— Devem estar muito atrapalhados, pois de outra maneira não te vinham chamar depois de tantos anos passados.

Ele encolheu os ombros fingindo uma indiferença que não existia.

— Não é obrigatório que assim seja. O Jonas nunca gostou do Bernie Norman. Como tomou agora conta do estúdio pode ser que as coisas tenham mudado.

— Deus queira que sim. — A voz dela tomou uma certa ênfase. Não quero de maneira nenhuma que eles voltem a fazer-te o mesmo. — Dizendo isto voltou-se e regressou à cozinha.

Ficou a olhá-la por momentos. Era uma das qualidades que mais apreciava nela: dedicada e amiga. Passando à frente de si própria, só ele contava para ela. Sem saber bem como, havia pressentido isso, dois anos antes, quando se tinham casado. A viúva do Charlie Dobbs era a mulher com quem ele devia ter casado há muito mais tempo.

Seguiu-a até à cozinha.

— Como tenho de ir a Los Angeles ao banco, por causa daquele assunto do terreno que quero comprar ao Murchison, já agora dou um pulo ao Dan e fico logo a saber qual é a ideia dele. Não perco nada em passar por lá.

— Não, não perdes — disse ela pousando a caixa do café em cima da mesa.

Ele puxou uma cadeira e encheu a chávena.

— E digo-te mais — volveu ele de repente —, levo-te também, ficamos no Ambassador e vamos fazer uma paródia os dois como antigamente.

Ela observou-o atentamente. Os olhos brilhavam com uma certa excitação. Nessa altura viu que ele não olharia para trás. E não era por causa do dinheiro. Nevada era um homem rico em qualquer parte do mundo. Tudo estava agora a dar dinheiro: a revista Wild-West, que ainda tinha o nome dele, a elegante propriedade em Reno, na qual ele e o seu ex-marido haviam sido sócios; e o rancho de gado ali no Texas, onde viviam.

Não era realmente por dinheiro aquele entusiasmo. Ainda agora tinha recusado uma oferta de milhões de dólares, pagos a contado, para direitos de exploração na parte norte da pro­priedade. Mas ele preferira recusar todo aquele dinheiro a ver o seu rancho estragado com aquelas torres e condutas para o petróleo que teriam de o atravessar.

Era o excitamento por ser reconhecido ao passar na rua. Toda aquela rapaziada gritando e empurrando-se à sua volta. Agora tinham outros heróis. Na verdade, isso fazia-lhe falta, isso e Jonas. No fim de contas era realmente Jonas que lhe fazia mais falta. Jonas encarnava o filho que nunca tivera. Tudo o resto não chegava, nem mesmo ela. Nesse momento olhou-o e sentiu pena.

— Então, que pensas disto? — perguntou-lhe enquanto a observava.

Sentiu dentro dela uma onda de ternura. Sempre a sentira. Bastantes anos atrás, quando ambos eram ainda muito novos ele tinha aparecido no rancho de Reno, onde ela e o marido se tinham fixado; vinha do Texas, perseguido pela lei. Nos olhos dele havia solidão e medo, e logo nessa altura ela leu neles verdadeira bondade e rectidão.

Sorriu.

— Acho uma ideia maravilhosa — disse quase tímidamente.

— Isto é exactamente uma corrida de ratazanas — comentou Dan. — Nós já não fazemos filmes, agora somos uma fábrica que todos os meses tem de pôr cá para fora uma porção de filmes.

Nevada recostou-se na cadeira e sorriu.

— Isso parece estar mesmo a dizer contigo. Pareces-me a pessoa ideal para esse género.

— É muito bonito de se dizer mas as responsabilidades dão cabo de mim. Mas enfim, é um emprego.

Nevada observou-o de soslaio. Dan tinha engordado.

— Mas é o diabo e tem de se fazer para ganhar a vida, não é?

Dan levantou as mãos teatralmente.

— Bem sabia que não é possível a gente enternecer-te. Nevada! — E ambos se puseram a rir. Quando Dan levantou a cabeça da secretária era já grave a sua expressão. — Penso que estás desejoso de saber qual a razão por que te mandei aquele telegrama?

— Sim, realmente, e por isso mesmo aqui estou.

— Não imaginas como aprecio que tivesses vindo até cá. Quando este negócio se delineou, foste tu a primeira pessoa em que pensei.

— Obrigado — disse secamente Nevada. — Qual é a armadilha?

Os olhos de Dan abriram-se num pretenso gesto de ofensa.

— Nevada, meu caro, achas que isso são maneiras de falar a um velho amigo como eu? Não era o teu agente? Quem arran­jou o teu primeiro lugar no cinema?

Nevada sorriu.

— E quem deitou a minha revista por água abaixo, quando viu que ganhava mais dinheiro com o espectáculo do Buffalo Bill?

Pierce afastou-o com um gesto da mão.

— Oh, Nevada, olha que tu!... Trazeres à memória uma coisa passada há tanto tempo...

— Faz parte do meu registo pessoal, caro Dan. Mas vamos ao que interessa, qual é a tua ideia, afinal?

— Sabes como são vendidos presentemente os filmes? perguntou Pierce que continuou sem esperar pela resposta de Nevada. — Vendemo-los com um ano de antecedência. Tantos filmes da categoria A, tantos filmes da B, tantos filmes de aventuras, tantos de horror e tantos westerns. Só uns dez por cento dos filmes acabam por ser produzidos e o resto continua-se mais tarde. É a isto que eu chamo uma corrida de ratazanas. Temos de nos considerar uns felizardos se conseguirmos aguentar-nos sem perdermos o contrato.

— Mas, pergunto eu, porque é que vocês não fazem uma reserva de material que lhes dê uma certa folga na altura das entregas? Isso deveria resolver o vosso problema.

— Sim, resolveria, mas era preciso que se tivesse dinheiro disponível para o fazer. Mas estamos sempre à espera de massa da remessa saída para começarmos uma nova... Como vês, é um círculo vicioso.

— Bem, mas afinal ainda não ouvi a tua proposta — tornou Nevada.

— Vou já esquematizá-la. Espero poder falar-te franca­mente!

Nevada aquiesceu.

— Jonas põe à nossa disposição um orçamento muito curto. Não me queixo, porque certamente ele é que tem razão. Pelo menos até agora não perdemos dinheiro e é a primeira vez desde há cinco anos que isto acontece. Ora, este ano, o departamento de vendas pensa que poderemos vender catorze westerns.

— Isso parece-me bom — exclamou Nevada.

— Mas não temos dinheiro para os começar. O banco diz que nos emprestará o dinheiro se tu entrares neles.

— Como é que sabes? — perguntou Nevada.

— Eu próprio falei com o Moroni e ele acha que é uma boa ideia.

— Quanto é que te avançam? — perguntou de novo Nevada.

— Catorze mil dólares por cada filme.

Nevada deu uma gargalhada.

— Para pagar as despesas de toda a película?

Dan acenou com a cabeça. Nevada pôs-se de pé.

— Obrigado, meu caro amigo.

— Aguenta aí um minuto. Nevada — pediu Dan. — Espera até eu acabar. Bem sabes que não te fazia vir aqui se não soubesse que isto te trazia algum lucro, pois não?

Nevada deixou-se cair de novo na cadeira e ficou silencioso.

— Sei perfeitamente o que pensas dos filmes em série. No entanto, podes crer, estes serão diferentes. Temos ainda em armazém todos os cenários e décors que serviram para O Rene­gado.

É só dar-lhes uma limpadela, modernizá-los e ficarão como novos. Utilizarei a élite da minha equipa de produção. Podes contudo escolher o director e operadores. O mesmo quanto aos escritores e produtores. Como vês penso demasiado em ti para te arruinar.

— Tudo isso está realmente lindo, mas no fim de contas por quanto pensas que eu vou trabalhar, pelo preço do cuspo ou para pagar o tabaco?

— Penso que te arranjei um bom negócio. Pus o nosso conta­bilista a estudar isto e creio que descobrimos uma maneira de poupares algum dinheiro em vez de o deixares apanhar por esses impostos do diabo que o Roosevelt deitou para cima de nós.

Nevada olhou para ele:

— Isso está-me a parecer mais jeitoso!

— Estabelecemos-te um salário de dez notas de mil por cada filme. Ora isso dá-te cinco notas por semana visto que cada filme sai cá para fora de quinze em quinze dias. Adias o recebimento do teu salário até que venham os primeiros lucros e, passados sete anos, damos-te o filme. Assim tu ficas dono de tudo: negativo e gravação, fechadura, stock e cofre. Se quiseres, nessa altura voltamos a comprar-te o filme. Assim, ficas de novo com o capital.

A cara de Nevada ficou impassível.

— Pareces-me tal e qual o Bernie Norman a falar. Deve ser deformação profissional.

Pierce riu.

— A única diferença está em que o Norman estava sempre a ver a maneira de te enrolar e eu não. A única coisa que pretendo é conservar esta fábrica a trabalhar.

— E já pensaste qual é o género de histórias que vais utilizar?

— Não quis pensar nisso sem falar primeiro contigo — disse Dan rápidamente. — Sabes que sempre te achei com uma habilidade especial para escolher os argumentos.

Nevada sorriu. Viu pela maneira como Dan respondera que esse assunto ainda não lhe tinha sequer passado pela cabeça.

— O importante aqui é escolher um género de séries em que a multidão possa acreditar e compreender.

— É exactamente essa a minha opinião — exclamou Dan. — Estive cá a pensar que talvez não te importasses de seres tu a planear. Assim, ao entrares numa nova aventura, já sabes o género, números de sensação, armadilhas, tiros.

Nevada abanou a cabeça negativamente.

— Não, isso não me convence. Soa sempre a imitação barata. Gene Autry e Roy Rogers fazem disso aos montes na Republic. E depois, francamente, não creio que haja alguém que ainda se entusiasme com isso. E então com os meus cabelos brancos...

Pierce olhou-o.

— Mas isso não é problema, podemos pintá-los de preto.

Nevada riu-se.

— Ah, não, muito obrigado, já estou habituado a eles.

— Bem, mas venceremos essas dificuldades — objectou Dan. — Mesmo que tenhamos de apanhar alguma coisa ao Zane Grey ou ao Clarence Mulford. Basta tu falares.

Nevada pôs-se em pé.

— Deixa-me reflectir sobre o caso — disse. — Vou falar nisto à Martha e depois te direi alguma coisa.

— Disseram-me que te tinhas casado outra vez — disse Dan. — Os meus parabéns atrasados.

Nevada encaminhou-se para a porta. A meio do caminho parou e voltando-se para Dan perguntou:

— A propósito, como está o Jonas? '

Pela primeira vez desde que se tinham encontrado, pareceu-lhe que o Pierce hesitava.

— Penso que está óptimo.

— Pensas? Não tens a certeza?

— Não o vejo há mais de dois anos, desde Nova Iorque — respondeu Dan —, desde que tomámos conta da companhia.

— E não voltaste a vê-lo depois disso? Ele não vem com frequência ao estúdio?

Dan baixou a cabeça. Parecia mesmo atrapalhado.

— Nunca mais ninguém o viu com frequência. Uma vez por outra podemos dar-nos por muito felizes por falarmos com ele ao telefone. Às vezes vem até cá, mas é sempre à noite, quando não está ninguém. Só sabemos que ele cá esteve pelas mensagens que deixa.

— Mas que acontece se é preciso resolver alguma coisa importante?

— Chamamos o McAllister que lhe diz o que queremos saber. Algumas vezes telefona-nos depois, outras manda só dizer o que devemos ou não fazer.          

Súbitamente Nevada teve o pressentimento de que Jonas precisava dele. E olhando para Dan disse-lhe:

— Bem, não posso dar uma resposta sem primeiro falar com o Jonas.

— Mas já te expliquei que ninguém consegue vê-lo.

— Vocês querem-me ou não para os filmes? — perguntou Nevada.

— Mas ele pode até estar fora do país, podemos estar mais de um mês sem lhe pormos a vista em cima — exclamou Pierce.

— Não faz mal, eu espero! — respondeu Nevada enquanto abria a porta e saía.

— Ficas para jantar, Duvidele?

— Não posso, mãe. Passei por aqui só para ver como está.

— Como estou? Estou como sempre. A minha artrite maça-me um bom bocado, nem muito nem pouco, o costume.

— Devia ir mais vezes apanhar sol. Para aquilo que aproveita nem valia a pena ter saído de Nova Iorque.

— O que tenho, e me interessa ter, é um filho, embora quase o não veja. É como se estivesse num hotel. Posso dar-me por muito feliz se o vir de três em três meses. E suponho que já podia dar-me por muito satisfeita, porque eras capaz de nem sequer voltar.

— Oh mãe, cale-se com isso. Sabe muito bem a minha vida.

— O teu tio Bernie consegue arranjar tempo para vir para casa todas as noites!

— Os tempos eram outros, mãe! — Não podia dizer-lhe que o irmão era conhecido em Hollywood como o «homem das matinées». — Além disso a tia May já o teria matado se ele alguma vez não tivesse vindo para casa à noite. Mantinha-o debaixo de uma guarda tão cerrada que só podia competir com ela a que o governo americano faz ao tesouro nacional.

— Já cá estás há mais de uma semana e é a segunda vez que vens ver-me. Ainda nem sequer vieste jantar!

— Vou ver se arranjo as coisas para cá vir jantar em breve, mãe! Prometo.

Ela olhou-o com um olhar penetrante e disse de repente:

— Então fica para quinta-feira à noite.

— Mas porquê quinta-feira à noite assim de repente? — perguntou surpreendido.

— Vem cá uma pessoa que gostava muito que conhecesses, uma pessoa muito bonita — disse com um sorriso misterioso estampado na cara.

— Ai, mãe! — resmungou. — Não me diga que é outra rapariga...

— Mas que mal tem conheceres uma rapariga bonita? — perguntou com ar inocente. — É uma rapariga muito bo­nita, David, acredita. A família tem dinheiro e além disso é uma menina educada em colégio!

— Mas, minha mãe, eu não quero conhecer nenhuma rapa­riga, não tenho tempo para essas coisas.

— Não tens tempo? Lembra-te que já tens trinta anos, já devias estar casado com uma bonita rapariga, de boa família. Em vez disso gastas o tempo a correr de um night club para outro com todas essas borboletas atrás.

— Isso é serviço. Tenho mesmo de sair com elas, mãe!

— És muito esperto. Quando queres fazer alguma coisa, dizes que é serviço; quando há alguma coisa que não gostas de fazer, é também por causa do serviço. Tens que dizer se vens jantar quinta-feira ou não.

Olhou-a por alguns momentos. Depois encolheu os ombros e disse resignado:

— Bem, cá estarei então. Mas não se esqueça que quero sair cedo. Tenho muito que fazer. Ela sorriu satisfeita.

— Óptimo — disse. — Não chegues tarde. O jantar é às sete horas em ponto.

Quando chegou ao hotel tinha um recado para. ligar para o Dan Pierce.

— Que há, Dan? — perguntou, logo que este chegou ao telefone.

— Sabes onde pára o Jonas?

David deu uma gargalhada.

— Esse nome, na verdade, não me é estranho.

— Deixa-te de brincadeiras, estou a falar a sério. O Nevada só entra nos western se o Jonas lhe falar primeiro.

— O Nevada sempre entra no acordo? — perguntou David. Nunca pensara que o Nevada pudesse aceitar. Não precisava de dinheiro e todos sabiam o que pensava dos filmes em série.

— Ele aceitará depois de falar com o Jonas.

— Eu próprio precisava de falar com ele, O governo está novamente a lançar uma campanha antimonopólio.

— Já sei disso, tenho essa história dos sindicatos atra­vessada na garganta. Não sei durante quanto tempo vou con­seguir mantê-los na linha. Não podes falar em pobreza ao pé deles, pois viram o último relatório anual. Sabem que pode­mos estar em déficit agora, e para o ano já termos lucros.

— Penso que o melhor é falarmos com o Mac. Pô-lo-emos ao corrente. Aliás acho que dois anos sem uma reunião é dema­siado.                                            

Mas o pior é que McAllister também não sabia onde es­tava Jonas. Quando David pousou o telefone sentiu que se apoderava dele um sentimento de frustração. Parecia que esta­vam a trabalhar no vácuo; tudo quanto se podia fazer era andar com as coisas à roda sem contudo nada se conseguir. Sempre a tentar celebrar contratos e mais contratos. Como se estivessem a pôr pedra sobre pedra numa pirâmide que não tivesse fim. Negociavam com a Fox, com a Loew's, com a Paramount, com a Warner; alugavam-lhes os tea­tros, os outros alugavam os deles e no fim a única coisa que conseguiam era continuar na corda bamba.

Perguntava a si próprio por que razão Jonas tomava aquela atitude para com eles. Não era assim que dirigia os outros negócios. A Cord Aircraft estava a transformar-se rápida­mente num dos grandes potentados industriais. A Inter-Continental Airlines era já a maior companhia de aviação de todo o país, e a Cord Explosivos e Cord Plastics estavam a fazer séria concorrência à Du Pont.

Mas no que se referia à companhia de cinema podiam dar-se por muito satisfeitos de ainda existirem. Mais tarde ou mais cedo teria de enfrentar esta realidade — ou continuava no negócio ou saía — mas enquanto lá estivesse tornava-se necessário andar para a frente. Era a lei da vida no meio cinemato­gráfico: se se pára, morre-se.

E David tinha feito tudo o que estava ao seu alcance. Conseguira provar que a companhia podia sobreviver, mas para fazer aquilo progredir tinham de deitar mão a coisas realmente importantes. Contratos ou filmes — não interessava o quê, mas alguma coisa era preciso fazer.

Presentemente pensava que os contratos eram melhores, mais seguros, e corria-se menos risco do que nos filmes de grande envergadura. Disney, Goldwyn e Bonner estão a pensar em novos mercados de distribuição, vêm com projectos de grandes filmes, bons na medida em que são financiados por eles próprios. Estava ainda à espera da resposta à proposta que fizera ao Goldwyn e ao Disney. Comparecera já a uma conferência com Maurice Bonner mas a resposta definitiva para um contrato deste género só poderia vir de Jonas e de ninguém mais. Bonner queria a mesma posição de destaque que o Hal Wallis tinha na Warner ou o Zanuck tinha na Twenty Century Fox — chefe executivo que superintende a programação, produção de quatro grandes filmes por ano, escolha dos stocks e das opções da companhia.

Era um preço exorbitante a pagar mas necessário se se pretendia o melhor. Skouras também não hesitara quando quis apanhar o Zanuck. Um homem como ele podia sem dificuldade fazer aumentar considerávelmente as reservas e essa era a verdadeira diferença entre manter-se ou procurar alcançar as coroas de glória.

Mas entretanto era necessário descobrir o paradeiro de Jonas. Só ele tinha a chave que abria a porta do oiro.        

— Está ao telefone um Senhor Irving Schwartz à sua procura — ­disse a secretária pelo telefone interno.

David franziu as sobrancelhas:                        

— Não conheço nenhum Irving Schwartz. Que é que ele quer?

— Diz que o conhece muito bem, Mr.Woolf. Disse-me que lhe falasse no nome Needlenose.  

— Needlenose! — exclamou David rindo — Porque é que não começou por aí? Passe-me a chamada.  

Ouviu-se no telefone o estalido da mudança de linha.

— Needlenose! — exclamou David. — Como diabo estás tu?

Needlenose riu-se discretamente.

— Estou óptimo. E tu, David?

— Eu estou fino também mas tenho trabalhado como um cão!

— Bem sei. Tenho ouvido falar muito bem de ti. Nós sen­timos sempre qualquer coisa quando vimos um velho amigo singrar.

— Qual singrar, qual carapuça, isto por enquanto não passa de um emprego. — Começava a soar-lhe a cravanço. Pen­sou rápidamente quanto seria. Atendendo a que era um velho amigo... uns cinquenta ou cem dólares?

— Bem, mas não deixa de ser um emprego importante?...

— Chega de conversa a meu respeito — cortou David an­sioso por mudar de assunto. — Fala-me de ti. Que fazes por cá?                          

— Eu estou bem. Vivo agora aqui. Arranjei uma casa em Coldwater Canyon.

David assobiou de admiração. O seu velho amigo estava a tratar-se muito bem pois as casas ali custavam de setenta e cinco mil dólares para cima. Já se sentia mais descansado por­que pelo menos não seria cravanço.

— Estupendo — disse. — Sempre é melhor que a tua velha Rua Rivington...                      

— É verdade, pá. Gostava de te ver, David.

— Também eu, pá, mas estou de tal maneira amarrado aqui....

A voz do Needlenose continuava calma mas insistente.

— Bem sei, mas se não achasse que era importante não te vinha chatear.

David reflectiu por alguns momentos. Uma vez que não era um cravanço, que coisa tão importante poderia ser?

— Já sei — disse —, porque não dás um pulo até ao estú­dio? Podemos almoçar cá e mostro-te isto por aqui.

— Não, esse sítio não serve. Temos de arranjar um lugar onde ninguém nos veja.

— E se fôssemos para tua casa?

— Também não serve — respondeu Needlenose. — Não confio nas criadas. Restaurantes também não. Alguém podia espiar-nos.

— Olha lá, e não podemos falar pelo telefone?

Needlenose soltou uma gargalhada.

— Também não confio nos telefones.

— Já achei — exclamou David de repente. — Vou jantar hoje com a minha mãe. Vem e jantas connosco. Vive em Westwood nos apartamentos Park.

— Acho bem. Ela ainda faz aquela sopinha com a gordura da galinha a boiar?

— Claro que faz — disse David rindo. — Aquelas bolas de pão ázimo caíam-te no estômago como uma tonelada de tijolos. Lembras-te? Não há meio de te convenceres que já saíste de casa...

— A que horas? — perguntou Needlenose.

— Às sete.

— Lá estarei.

David pousou o telefone e ficou a pensar o que poderia querer o seu amigo Needlenose. Mas não pensou durante muito tempo, porque em seguida entrou o Dan no gabinete com a cara vermelha e os maxilares luzidios de transpiração.

— Recebeste uma chamada dum tipo chamado Schwartz?

— Sim — disse David surpreendido.                  

— Vais encontrar-te com ele?

— Vou, esta noite.

— Graças a Deus! — exclamou Dan enquanto se afundava na cadeira que estava em frente da secretária. Tirou da algibeira um lenço e começou a limpar vagarosamente a testa.

David observou-o, pasmado.

— Mas porque é tão importante o facto de eu me encontrar com um tipo que é meu amigo de infância?

Dan olhou-o por sua vez.

— Não sabes quem ele é?

— Claro que sei. Vivia na casa ao lado da minha na Rua Rivington. Íamos os dois juntos para a escola.

Dan deu uma pequena risada.

— O teu amigo subiu bastante desde essa altura. Foi cá mandado há uns seis meses quando houve aquele sarilho com o Bioff e o Brown. Oficialmente ele é da Federação mas é também o chefe máximo do Sindicato de toda a Costa Oeste.

David olhava para ele sem dizer palavra.

— Toda a minha esperança está em que consigas con­versar com ele, pois só Deus sabe quantas tentativas fiz sem o conseguir. Se não conseguires entender-te com ele dentro de uma semana no máximo, teremos o negócio fechado e então verás o golpe mais danado da tua vida. Tudo encerrado, estú­dio, teatros, enfim, toda a actividade.

David deu uma olhadela à mesa da casa de jantar enquanto seguia a mãe até à cozinha. Estavam sete lugares à mesa.

— Não me disse que tinha visitas para jantar.

A mãe, debruçada sobre uma panela ao fogão, nem se voltou.

— Uma rapariga bonita não deve vir jantar pela primeira vez com um rapaz sem vir acompanhada pelos pais.

David suprimiu a tempo um resmungo. Aquilo ia ser ainda pior do que imaginara.

— A propósito, mãe, talvez fosse melhor pôr outro lugar à mesa. Convidei um velho amigo para jantar connosco.

A mãe olhou-o de relance.

— Convidaste? Para hoje!?

— Tive mesmo de convidar, mãe. Serviço!

A campainha da porta tocou. David olhou para o relógio. Eram exactamente sete horas, devia ser o Needlenose.

— Eu abro, mãe.

Abriu a porta e na sua frente, à entrada, estava um homem baixo, com olhar preocupado, cabelo cinzento e apa­rentando uns sessenta anos. Ao lado dele uma senhora mais ou menos da mesma idade e uma rapariga nova. O ar preo­cupado desapareceu logo que a cara se lhe abriu num sorriso enquanto estendia a mão.

— Você deve ser o David, eu chamo-me Otto Strassmer.

David apertou-lhe a mão.

— Como está, Mr. Strassmer? Muito prazer em conhe­cê-lo.

— Esta é a minha mulher Frieda e esta a minha filha Rosa.

David sorriu para elas. Mr. Strassmer segredou nervosa­mente qualquer coisa em alemão que fez a rapariga dizer com ar simpático:

— Como está?

Houve qualquer coisa na voz dela que fez David fitá-la com atenção. Não era alta e tanto quanto ele podia ver era magra. O cabelo escuro em caracóis curtos sombreava uma testa grande e quase tapava um par de olhos cinzentos com grandes pestanas. Havia um certo ar de desafio na sua boca e pela ex­pressão David teve a certeza que também fora constrangida a vir.

— Quem é, David? — perguntou a mãe lá da cozinha.

— Querem entrar, se fazem favor? — disse David rápida­mente, enquanto se desviava para os deixar passar. — São os Strassmers, mãe!

— Leva-os para a sala — gritou de novo a mãe. — Há bebi­das na mesa.

David fechou a porta de entrada.

— Dá-me o seu casaco? — perguntou à rapariga.

Ela aquiesceu e tirou-o. Levava vestido uma blusa simples e uma saia, presa na cintura estreita por um largo cinto de cabe­dal. Estava surpreendido: tinha experiência suficiente para saber que o peito que ele vislumbrava através da seda da blusa não era produto de um soutien moderno!                  

A mãe dela disse qualquer coisa em alemão. Rosa olhou e disse:  

— A mãe está a dizer para você e o meu pai entrarem para a sala e tomarem as bebidas enquanto nós as duas vamos até à cozinha ver se podemos dar alguma ajuda.

David fixou-a de novo. Aquela voz, aquela pronúncia que ao mesmo tempo não chegava bem a ser pronúncia... Pelo menos era diferente da do pai. As duas senhoras dirigiram-se para a cozinha e Mr. Strassmer seguiu-o para a sala de estar.

David encontrou em cima da mesa dos aperitivos uma gar­rafa de whisky da marca Old Overholt metida em gelo e a custo reprimiu uma careta. Era o whisky que tradicionalmente apa­recia em todas as cerimónias — baptizados, cocktails, casa­mentos e enterros. Mistura forte de whisky de centeio que queimava as goelas e deixava no nariz um desagradável cheiro a álcool. Devia ter sido suficientemente esperto para se lembrar de trazer uma garrafa de scotch. Tinha a certeza de que só por causa deste Old Overholt os judeus não conseguiam gostar de whisky.

Mas em breve viu que Mr. Strassmer não era da mesma opinião. Examinou a garrafa e olhando para David disse:

— Isto é que é uma bebida!

David sorriu, pegou na garrafa, partiu o selo e perguntou:

— Puro ou com água?

A garrafa tinha de estar selada, pois era tradição que, uma vez aberta, mesmo que não fosse totalmente consumida nunca mais poderia voltar à mesa de convidados. Perguntava a si próprio qual o destino de todas as garrafas meio vazias que sobravam nas festas. Provávelmente ficavam a estiolar-se num canto até chegar o dia da libertação.

— Puro — respondeu Mr. Strassmer com uma certa entoa­ção na voz.

David encheu um copo pequeno e estendeu-o.

— Para mim tenho de pôr um bocado de água — disse.

Nesse momento entrou Rosa com um jarro de água e algu­mas canecas de vidro. Sorriu e pousou tudo em cima da mesa.

— Pensei que precisassem disto — declarou.

— Muito obrigado.

Sempre a sorrir, saiu da sala. David deitou água na sua bebida para a tornar menos forte. Voltou-se para Mr. Strassmer. O alemão ergueu o copo enquanto exclamava:

— L’chaim.                                

— L’chaim — exclamou por sua vez David.

Mr. Strassmer esvaziou o copo num gesto rápido, incli­nando a cabeça para trás. Tossiu discretamente e, voltando para David os olhos lacrimejantes, exclamou:

— Que bom!

David sorveu por sua vez um pequeno golo do seu. «Que sabor terrível» pensou para si, «nem mesmo misturado com água disfarça»; mas sorrindo delicadamente perguntou:

— Posso servir-lhe mais um?

Otto Strassmer aquiesceu. David voltou a encher-lhe o copo. O homenzinho sentou-se no sofá e olhando bem para David exclamou:

— Então você é que é o David. Tenho ouvido falar muito de si.

David sorriu também. Toda a noite seria aquilo. Quando acabasse a noite sentiria de certeza a cara dorida de tantos sorriso forçados.

— Sim — continuou Strassmer —, tenho realmente ouvido falar muito em si, e já há muito tempo que gostava de o conhe­cer. Não sei se sabe que ambos trabalhamos para o mesmo homem.

— O mesmo homem?

— Sim, o Jonas Cord. Você trabalha para ele no negócio de filmes e eu no dos plásticos. Conhecemos a sua mãe o ano pas­sado quando fomos à sinagoga no dia de Acção de Graças — disse Mr. Strassmer sempre a sorrir. — Começámos a con­versar e chegámos à conclusão de que a minha mulher era prima em segundo grau do seu pai. Ambas as famílias são da Silésia.

Levando o copo à boca esvaziou o whisky. Engasgou-se, tossiu e ficou novamente com os olhos vidrados.

— O mundo é muito pequeno, não é?

— É verdade, muito pequeno! — concordou David.

Nesse momento chegou até ele a voz da mãe.

— Já são horas de irmos jantar. Onde é que se meteu esse teu amigo?

— Deve estar a chegar, mãe.

— Disseste-lhe que era às sete horas? — perguntou a mãe desconfiada.

David acenou com a cabeça.

— Mas então porque é que não aparece? Ele não sabe que quando chega a hora de irmos para a mesa tem de se comer ou fica tudo sem graça nenhuma?

Nesse momento tocou a campainha da porta. David esbo­çou um gesto de alívio.                          

— Aí está ele, mãe — disse enquanto corria para a porta.

Não havia qualquer parecença entre o homem elegante e simpático que estava ali à sua frente, à entrada da porta, e o rapazito que conhecera em tempos, magro, de olhos escuros e profundos. Em vez daquele nariz em forma de lâmina curva, que lhe valera a alcunha, via-se agora, um nariz quase aquilino que contrastava favorávelmente com a boca rasgada e o maxilar estreito. Riu-se ao ver a expressão de espanto de David.

— Fui a uma fábrica de narizes para o pôr como devia ser. Não ficava bem andar a passear em Beverly Hills com um nariz à moda de East Side. Estendeu a mão. — Estou contente por te ver, David.

David estendeu o braço e o aperto de mão foi franco e vigoroso.

— Entra, entra. A minha mãe está quase a explodir. O jantar está pronto.

Entraram para a sala de estar. Mr. Strassmer pôs-se em pé e a mãe olhou para Needlenose, desconfiada. David deu uma olhadela em volta. Rosa não estava na sala.

— Mãe — disse. — Lembra-se do Irving Schwartz?

— Olá, Mrs. Woolf.

— Yitzchak Schwartz, queres tu dizer? Claro que me lembro. Que aconteceu ao teu nariz?

— Mãe! — protestou David.

— Não faz mal, David — disse Needlenose rindo. — Mandei-o corrigir, Mrs. Woolf.

— Isso é uma amostra... Não sei como consegues res­pirar com um nariz tão pequeno. Arranjaste emprego, Yitz­chak — perguntou com um tom irritante —, ou continuas com os vadios da garagem do Shock's?

— Mãe, o Irving vive aqui agora — disse David rápida­mente.

— Ah! Agora chama-se Irving. — A voz dela parecia mesmo zangada. — Mudar o nariz não chegava, também era preciso mudar o nome. Porque é que o nome que te deram os teus pais — Isidore — não serve, hem?

Needlenose deu uma gargalhada e olhou para David.

— Percebo o que quer dizer, mas asseguro-lhe que não foi com qualquer intenção, foi só porque Irving é mais fácil de se pronunciar.

— Também acabaste a escola como o meu filho, não devias portanto ter assim tanta dificuldade em pronunciá-lo! — con­tinuou ela.

— Então, que é isso, Mrs. Woolf? David prometeu que me dava knaidlach e não posso mais. Tenho andado todo o dia cheio de fome só a pensar nisso.

Mrs. Woolf olhou para ele desconfiada.

— Bem — disse —, se agora és um bom rapaz e se continuares a sê-lo, podes vir cá comer todas as sextas-feiras o knaidlach!

— Venho, sim, Mrs. Woolf!

— Fica combinado. Mas agora vou à cozinha ver se a sopa está quente.

Quando David apresentava Needlenose a Mr. Strassmer, Rosa entrou na sala. Parou à entrada com ar de surpresa estam­pado na cara. Depois caminhou em direcção aos outros.

— Olá, Mr. Schwartz, que prazer em vê-lo!

Irving levantou a cabeça.

— Olá, doutora — disse. — Não sabia que conhecia o meu amigo David!

— Conhecemo-nos só esta noite.

Irving olhou para David e explicou:

— A doutora Strassmer foi quem tratou do meu nariz. Ela é formidável. Lembras-te daquela operação que fez Linda Davis no ano passado? Foi ela que lha fez.

David olhou para Rosa, intrigado. Essa operação da Linda Davis tinha sido realmente um sucesso. Num desastre de auto­móvel a actriz ficara com a cara em tiras mas, um ano depois, apareceu de novo em frente das câmaras sem se notar o mais pequeno sinal do acidente.

Nessa altura teve a sensação de que tanto Mr. como Mrs. Strassmer olhavam para ele, um tanto confundidos, sem saber o que fazer. Rindo-se para Rosa, disse:

— Senhora doutora, você é exactamente a pessoa de quem eu preciso neste momento! Agradecia que me dissesse o que devo fazer para me passar o vazio que de repente senti no estômago?

Ela olhou-o e sorriu satisfeita. Tinha desaparecido o nervosismo e agora os seus olhos reflectiam malícia.

— Penso que um pouco do knaidlach da sua mãe será o aconselhável!

— Knaidlach? Quem falou aí do meu knaidlach? — per­guntou a mãe, da entrada da porta. Entrou na sala com ar im­portante e disse: —Todos para a mesa. A sopa já está a arre­fecer!

Quando acabaram de jantar, Rosa olhou para o relógio.

— Vão desculpar-me por algum tempo mas tenho de ir ao hospital ver um doente.

David olhou para ela e disse:

— Se não se importa, eu levo-a até lá.

— Não vale a pena maçar-se, tenho aqui o meu carro.

— Não maça nada — volveu David delicadamente —, mas deixe-me ao menos fazer-lhe companhia.

Irving pôs-se em pé.

— Também tenho de ir andando — disse. — Muito obri­gado, Mrs. Woolf, pelo seu delicioso jantar. Fez-me saudades de casa!

A mãe de David sorriu.

— Sê bom rapaz, Yitzchak, e podes continuar a vir.

Rosa olhou para Mrs. Woolf e avisou:

— Não me demoro.

— Vão, vão. Não vale a pena apressarem-se. Nós os velhotes temos muito que conversar, não nos aborrecemos — disse isto enquanto olhava para os pais de Rosa.

— Desculpa-me, Irving. — David despedia-se de Needlenose junto à porta de entrada. — Não tivemos grande oportunidade para conversar, talvez possamos encontrar-nos amanhã, que achas?

— Porque não havemos de conversar agora? Tenho a certeza de que podemos confiar na Rosa, não é verdade, doutora?

Rosa fez um gesto evasivo e disse depressa:

— Mas eu posso muito bem esperar no carro.

David segurou-a.

— De maneira nenhuma. Não tem importância. — E vol­tando-se para Irving: — Devo-te ter parecido estúpido ontem, quando me telefonaste, mas sabes, Dan Pierce é quem trata normalmente dos assuntos que respeitam ao trabalho.

— Não faz mal, David. Calculei isso mesmo.

— Dan disse-me que estamos quase na boca do lobo. Penso saberes que não estamos de maneira nenhuma em condições de enfrentar a situação. Ficaríamos reduzidos a nada.

— Bem sei, e faço o que posso para ajudar. Ficarei contudo num beco sem saída se vocês não arranjarem outra espécie de contrato.

— Mas porque é que estás num beco sem saída? Ninguém faz pressão sobre ti. Os membros do teu sindicato sofreram ainda há bem pouco tempo dos maus efeitos de uma crise.

— Sim — concordou Irving —, eles não querem entrar em luta mas os comunistas andam a agitar as coisas. Fazem muito barulho com o que as companhias de cinema ganham. Dizem que querem guardar tudo para elas. É claro que há logo uma quantidade de gente que lhes presta atenção. Fala-se dos salários altíssimos que recebem as estrelas e os administradores e acham muito bem, mas pensam que poderiam também arrecadar mais qualquer coisa e, por isso, fomentam o barulho.

— Mas que se passa então com o Bioff e o Brown?

— São uns suínos! — disse Irving impetuosamente. — Não lhes chegava uma coisa. Queriam puxar a dois carrinhos e por isso pusemo-los a andar!

— Despachaste-os? — perguntou David céptico. — Pensei que eles tinham sido apanhados!

Irving olhou para ele.

— E onde pensas tu que o governo arranjou a documentação para elaborar o processo? Não pensas que a encontraram na rua, pois não?

— Está-me cá a parecer que pretendes servir-te de nós para apagar a fogueira que a tua gente acende — disse David. — Estás a falar nos comunistas como pretexto.

Irving sorriu.

— Talvez, mas a verdade é que os comunistas andam muito activos nos grémios, e toda a indústria assinou novos contratos com o grémio dos Directores e dos Escritores Cinematográficos que supõem vir a ter um desenvolvimento que jamais pensaram alcançar. Os comunistas estão a apanhar agora todo o crédito e começaram a mover-se nas agremiações de ofícios. E sabes como são essas agremiações. Eles calculam que se os comu­nistas conseguem isso dos grémios também o conseguem nas uniões. As eleições estão à porta e os comunistas preparam a luta; se não resolvemos isto depressa, não tarda nada que estejamos na rua a olhar para eles como espectadores num teatro. Se isso acontecer verás então que sempre são mais difíceis de levar do que nós.

David fitou-o.

— Afinal o que dás a entender é que ou negociamos com vocês ou negociamos com os comunistas; temos de escolher. Que pensam sobre o assunto os outros membros? Têm alguma coisa a acrescentar?

A voz de Irving veio segura.

— A maior parte deles são judeus — disse. — O que lhes interessa é o envelope de pagamentos e quem lhes der mais.

Tirou um maço de cigarros do bolso. David ficou silencioso enquanto o amigo acendia o cigarro. Por momentos, o isqueiro de oiro brilhou no escuro, depois voltou para dentro da algibeira. O casaco abriu ligeiramente com o movi­mento e David pode ver a coronha escura de uma arma presa ao ombro.

Isqueiros de oiro, armas, e dois garotos do East Side da cidade de Nova Iorque ali parados numa noite quente de Pri­mavera, debaixo do céu estrelado da Califórnia e falando de dinheiro, poder e comunismo. Perguntava a si próprio qual seria o lucro que daqui tirava Irving, mas achou melhor não perguntar, não eram contas do seu rosário.

— Que queres que eu faça, afinal? — perguntou.

Irving deitou o cigarro na sarjeta.

— Os comunistas pedem um aumento de vinte e cinco cents por hora e a semana de trinta e cinco horas de trabalho.

Nós estabelecemos um aumento de cinco cents por hora, agora, para o ano mais um níquel e a semana de trinta e sete horas e meia. — E olhando bem para os olhos de David continuou: — Dan Pierce afirmou que não tinha autoridade para resolver um problema deste género. Disse que precisava do acordo de Cord e esperei três meses. Agora acabou-se. Se não te decides, a coisa rebenta, perdes tu e perdemos nós; a única diferença está em que tu perdes mais, a companhia vai por água abaixo. Nós ainda continuaremos com acção noutros sectores mas os verdadeiros vencedores serão os comunistas.

David hesitava. Não tinha mais autoridade que Dan para fazer um acordo daquele género, mas por outro lado não havia tempo a perder, esperando por Jonas. Assim, quer gostasse quer não, não havia outra coisa a fazer.                    

— Aceito! — exclamou enchendo o peito de ar.

Os dentes brancos de Irving brilharam. Empurrou leve­mente David pelo ombro.

— És um bom rapaz — exclamou. — Já sabia que só lucrava em te abrir os olhos. Amanhã vai haver uma reunião entre o Comité e o Dan. Vamos deixá-lo anunciar a coisa.        

Voltou-se para Rosa.                              

— Desculpe ter-me vindo aqui meter, doutora, mas gostei muito de a ver.

— Não tem importância, Mr. Schwartz.

Ficaram os dois a observar Irving que seguiu pela borda do passeio até ao carro — um Cadillac descapotável. — Pôs o motor a trabalhar e olhou para eles.

— Sabem que mais?

— Sabemos o quê? — perguntou David.

Irving riu-se irónicamente.

— Como diria a tua mãe, fazem um lindo par!

Viram-no voltar a esquina e só nessa altura David olhou para Rosa. Pareceu-lhe que tinha a cara ligeiramente ruborizada.

— O meu carro está do outro lado — disse pegando-lhe no braço.

Rosa seguiu quase todo o caminho silenciosa.

— Há alguma coisa que a preocupe, doutora? — perguntou David.

— Você acaba de fazer uma coisa que me aborrece muito. Toda a gente me trata por doutora. Prefiro que continue a tra­tar-me por Rosa.

— Que se passa então na sua cabeça, Rosa?

Ela baixou os olhos para o volante.

— E viemos nós para a América fugindo deles...

— Deles quem?

— Os mesmos que havia na Alemanha, os nazis. Gangsters e eles, são a mesma coisa, na realidade. Usam todos a mesma linguagem, dizem o mesmo. Aceitam-nos ou ficam nas mãos dos comunistas. Somos melhores do que eles e connosco podem negociar. Mas no fim acabam por nos levar tudo o que tí­nhamos. Essa era a lengalenga deles para convencerem a Ale­manha que a salvavam dos comunistas!...

— Está a insinuar que o meu amigo Irving Schwartz é um nazi?

— Não, o seu amigo não é um nazi — volveu com ar sério — mas tem a mesma ânsia de poder. O seu amigo é um homem perigoso, não sei se reparou que ele trazia uma pistola.

— Também vi — disse David.

— Ainda gostava de saber o que lhe faria ele se tivesse recusado a proposta.

— Nada, Needlenose não me tocava.

Mais uma vez os olhos cinzentos dela vieram ao seu encontro, luzindo.

— Não com uma arma — disse, rapidamente — ; ele tinha outro arpão para o atingir. O arpão económico que podia levar o seu negócio à falência. Mas também lhe digo que quando um homem traz consigo uma arma é porque pensa usá-la, mais tarde ou mais cedo.

David parou o carro mesmo em frente do hospital.

— Que pensa que devia ter feito? Recusar o acordo com Irving e deixar ir tudo por água abaixo? Tudo aquilo porque te­nho gemido durante anos e anos? Arruinar todos os capitalistas que confiam em nós pondo dinheiro na companhia? Pôr todos os nossos empregados na rua à procura de novos empregos? Era isso que pensa que eu deveria ter feito? É minha culpa se os meus empregados não são suficientemente espertos para escolherem representantes decentes e tratarem de arranjar uma União honesta?

Sem dar por isso, o tom de voz tinha subido. David estava mesmo exaltado.

— Não, claro que não é culpa sua, você fez aquilo que lhe pareceu melhor — emendou ela rápidamente enquanto, incli­nando-se, pôs a mão sobre a dele que tinha ficado no volante. A mão era quente e firme.

O porteiro desceu as escadas e veio abrir a porta.

— Boa noite, Doutora Strassmer — disse.

— Boa noite, Porter. — E voltando-se para David pergun­tou: — Não quer entrar para ver onde trabalho?

— Não quero ir atrapalhá-la. Prefiro esperar aqui no carro, se não se importa.

Ela sorriu e segurou com mais força na mão dele:

— Venha, peco-lhe! Dava-me uma grande alegria. Assim, pelo menos, sei que você não ficou aborrecido comigo pela minha conversa fiada acerca dos seus assuntos.

David deu uma gargalhada; continuando a segurar a mão dele. Rosa saiu do carro e conduziu-o, escadas acima, para o hospital.

Ele parou na ombreira da porta e ficou a observar o cuidado com que ela tirava a ligadura da cara de uma criança. Ergueu a mão silenciosamente para a enfermeira e esta tirou de dentro de uma garrafa uma mecha e deu-lha.

— Isto pode doer um bocadinho mas tu não vais mexer-te nem falar, pois não, Mary?

A criança abanou a cabeça.

— Muito bem, vamos então — disse Rosa. — Muito sossegadinha, muito quietinha — A sua voz era um murmúrio suave e acariciador enquanto as mãos contornavam rápidamente a aresta da boca da criança com a mecha. David viu os olhos da menina encherem-se de repente de lágrimas. Pensou por momentos que ela ia mexer a cabeça, mas não, nem um movimento.

— Está óptimo — disse Rosa baixinho para a enfermeira enquanto esta lhe pegava na mecha. — És uma menina muito corajosa.    

A enfermeira substituiu depois a ligadura em volta da boca da miúda.

— Amanhã de manhã já te tiramos tudo e podes ir para casa.

A miúda pegou num bloco e num lápis que estavam em cima da mesa e escreveu nele durante algum tempo. Depois estendeu o bloco para Rosa.

Ela olhou para baixo e respondeu:

— Amanhã de manhã depois de tirar as ligaduras.

David reparou no sorriso que de repente apareceu nos olhitos da miúda. Saíram depois os dois e caminharam ao longo do corredor.

— Já podemos ir ter com a sua mãe — disse-lhe ela.

— Que bonita era a miudinha — comentou David enquanto esperavam pelo elevador.

— É verdade.

— Que tinha ela?

— Tinha lábio-leporino. Nasceu já com isso! Agora ficará igual a todas as outras. Ninguém mais parará a olhar para ela nem a rir-se — disse com uma voz que mais parecia uma oração.

A porta abriu-se e entraram no elevador. David car­regou no botão e a porta fechou-se. Viu que Rosa tinha ainda na mão o bilhetinho que a miúda lhe escrevera. Pegou nele e leu: quando posso falar? escrito com uma letra infantil.

David olhou para Rosa.

— Estas coisas devem confortá-la extraordináriamente!

Rosa acenou com a cabeça.

— É que a cirurgia plástica não são apenas narizes para modificar, nem duplos queixos de estrelas para corrigir. A parte principal e realmente importante é a ajuda que se pode dar a tantas pessoas, tornando-as normais. Por exemplo, Mary, esta criança que está aqui, não faz ideia como a deformidade que tinha lhe podia afectar sériamente a vida.

David sentiu crescer dentro de si uma onda de respeito por Rosa. Atravessaram o vestíbulo e o porteiro veio trazer-lhe o sobretudo.

— Vou buscar o seu carro, senhor. — E desceu as escadas em correr em direcção ao parque de automóveis. Enquanto espe­ravam, uma bela limusina veio parar à frente deles. David deitou para dentro uma olhadela casual e voltando-se para Rosa perguntou:

— Quer um cigarro, Rosa? — Estendeu-lhe o maço de cigarros.

Ouviu a porta da limusina abrir-se. Tirou também um para si e acendeu-lhe o cigarro.

— Queria ver-me, David ?

David olhou em volta e o isqueiro quase lhe caiu das mãos. Começou por ver a mancha branca de uma camisa, depois uma cabeça, uns ombros e uns pés que foram emergindo da porta do automóvel. Era Jonas Cord e David fitou-o em silêncio. Instintivamente David olhou para Rosa. Havia uma expressão estranha no olhar dela. Pensou que podia ter-se assustado e pegou-lhe na mão.

A voz de Jonas soou, calma, atrás de si.

— Traga também a Rosa!

Rosa deixou-se cair no assento da limusina. Olhou de soslaio para David sentado a seu lado e depois para Jonas. Este sentara-se em frente deles no strapontin, as pernas enormes estendidas por cima da parte de trás do carro.

— Como está o seu pai, Rosa?

— Está bem, Mr. Cord. Fala muitas vezes de si.  

— Dê-lhe cumprimentos meus quando o vir. — Rosa teve a percepção de um sorriso, que não chegou a ver.    

— Não me esquecerei, Mr. Cord — disse.

O carrão ia já a grande velocidade quando passaram em Coast Highway. Rosa olhou pela janela. Iam para o norte a caminho de Santa Barbara, fora de Los Angeles.

— McAllister disse-me que me queria ver, David.

Ela sentiu David agitar-se a seu lado e inclinar-se para a frente.                                                  

— Avançámos sozinhos até ao máximo que nos foi pos­sível. Para podermos prosseguir precisamos do seu consenti­mento.

A voz de Jonas saiu sem expressão.

— Mas para quê ir mais longe? — perguntou. — Eu por mim estou satisfeito com as coisas tal como estão. Vocês con­seguiram eliminar os prejuízos e daqui para a frente devem poder aguentar-se.

— Não vamos conseguir aguentar-nos durante muito tempo. As corporações estão a pedir aumentos ou estoiram. Vão absor­ver todos os lucros.

— Deixá-los. Não são obrigados a dar-lhes nada! — A voz de Jonas continuava apática.

— Mas eu é que já lhes dei — respondeu David.

Rosa sentiu o peso do silêncio que se seguiu. Olhou de um para outro embora não conseguisse vislumbrar-lhes as feições.

— Já lhes deu? — disse Jonas calmamente, se bem que a sua voz fosse gelada. — Pensei que os contratos com as corpora­ções diziam respeito ao Dan!

A voz de David soou firme. Havia nela um tom cauteloso — era a cautela de um homem que caminha por terreno desco­nhecido mas sem medo.

— É verdade, era até esta noite. Desde que isso não afecte a segurança da própria companhia, senão passa a ser da minha conta.

— Porque é que o Dan não podia resolver isso?

— Porque o senhor nunca respondeu às mensagens que ele lhe enviou — respondeu David calmamente. — Pensou que não podia assinar um contrato sem a sua aprovação.

— E você pensa de outra maneira?

— Penso!

A voz de Jonas tornou-se ainda mais fria.

— Que o faz pensar que não precisa da minha aprovação mais do que o Dan?

Rosa ouviu o estalido do isqueiro de David quando este acendeu o cigarro. A chama dançou-lhe na cara durante alguns segundos para logo desaparecer. O cigarro brilhou na es­curidão.

— Porque presumo que se o senhor quisesse que eu tivesse levado a companhia para a falência já mo tinha dito há dois anos.

Jonas fez de conta que não ouvira a resposta.

— E que mais quer agora de mim?

— O governo começou novamente com a campanha antimonopólio. Querem separar-nos o estúdio das casas de espec­táculos. Mandei-lhe dizer na altura as datas respectivas. Teremos de lhes dar uma resposta.

Jonas parecia desinteressado.

— Já disse ao McAllister o que devia fazer. Vamos ganhar tempo até depois da guerra, porque nessa altura poderemos arranjar um bom preço para os teatros. Há sempre inflação depois das guerras.

— E se não tivermos guerra?

— Tem que haver guerra — disse Jonas peremptório. — Dentro de algum tempo Hitler vai sentir-se encurralado. Terá de se expandir ou fará estalar toda aquela falsa prosperidade que levou para a Alemanha.

Rosa sentiu um nó no estômago. Era diferente quando pensava numa coisa, no fundo convencida de que ela não acon­teceria, mas quando essa coisa era posta assim concisamente tal como dois e dois são quatro, sem emoção, era terrível. E logo a guerra. Então, para onde fugir? A Alemanha dominaria o mundo embora o pai dissesse que a pátria estava muito longe e que levariam séculos até os poderem alcançar.

Olhou para David. Seriam os americanos assim tão in­génuos? Acreditariam sinceramente que podiam escapar ilesos a esta guerra? Como podiam estar ali sentados calmamente a discutir negócios como se nada de grave se fosse passar? David também era um judeu. Não sentia ele de igual modo pesar sobre si a sombra negra de Hitler?

Ouviu David rir por entre dentes.

— Então somos da mesma opinião — disse. Ela olhou-o surpreendida e chocada ao vê-lo continuar a falar. — O que fizemos em virtude da economia forçada foi construir uma falsa economia para nós próprios. Contamos como lucros as eco­nomias produzidas pela eliminação dos estragos e despesas inúteis da organização. Mas a verdade é que não criámos nenhuma fonte real de lucros.

— E foi por isso que falou ao Bonner?

Rosa sentiu que David fora apanhado de surpresa. Pela primeira vez naquela noite, a voz dele não foi segura.

— Sim — respondeu.

— E você sentiu-se com autoridade suficiente para iniciar conversações desse género sem me consultar?

A voz de Jonas ainda era calma.

— Há perto de um ano, pedi-lhe, por nota, autorização para entrar em contacto com Zanuck. Nunca recebi resposta e pouco tempo depois Zanuck assinou contrato com a Fox.

— Se a minha ideia fosse a de entrar em contacto com ele, não teria deixado de o informar — ripostou Jonas, agreste. — Porque julga que o Dan não consegue fazer aquilo que o Bennet faz?

David hesitava. Esmagou o cigarro no cinzeiro incorporado no braço do assento.  

— Duas coisas — disse cautelosamente. — Não estou a dar cabo do Dan. Tem dado provas de ser um administrador e um realizador excepcional, competente. Desenvolveu um programa que tem mantido a fábrica a trabalhar com um máximo de eficiência, mas falta-lhe o génio criador de um Bonner ou de um Zanuck, a habilidade para desenvolver uma ideia e transformá-la, com personalidade, numa fita de grande categoria.

Olhou através do escuro para Jonas. Passaram nesse momento por um candeeiro que iluminou por instantes a cara impassível de Jonas, de olhos semicerrados.

— Falta de poder criador é a verdadeira diferença entre um autêntico realizador e um director de estúdio, que é o que Dan realmente é. Génio criador, que o leva a crer que faz melhores filmes que os outros, e a habilidade para fazer os outros acreditarem também. Em minha opinião, o senhor mostrou mais nos dois filmes que fez do que Dan nos cinquenta que produziu nestes dois últimos anos.

— E a segunda? — perguntou Jonas passando por cima das palavras elogiosas de David. Rosa sorriu para si, porque percebeu que ele acreditara no que David lhe dissera.

— A segunda é o dinheiro — respondeu David. — Partindo do princípio que Dan poderia aperfeiçoar essa qualidade, era contudo necessário dinheiro para o conseguir. Pelo menos cinco milhões de dólares para fazer dois filmes de grande metragem. Dinheiro esse que o senhor não quer investir. Bonner, no entanto, faz o seu próprio financiamento. Produz quatro filmes por ano e a nossa parte do investimento é mínima. Entre a distribuição de gratificações e de lucros, não devemos ficar mal, aconteça o que acontecer. A sua direcção para o resto do programa não vai senão ajudar-nos.

— E já pensou o que isso representava para Dan?

David respirou fundo.

— Dan é da sua responsabilidade, não da minha. Da minha responsabilidade é a companhia. — Hesitou um momento. — Há ainda muita coisa que Dan pode fazer.

— Não de maneira que o satisfaça a si — disse secamente. — Nenhum negócio se aguenta com duas cabeças.

David ficou silencioso.

— Bem, está bem. Feche o negócio com o Bonner — a voz de Jonas cortou a escuridão como uma faca. — Mas também é da sua conta desembaraçar-se do Dan.

Voltando-se para trás disse para o motorista:

— Podes levar-nos novamente ao carro de Mr. Woolf, Robair.                            

— Sim, Mr. Cord.

Jonas voltou-se de novo para eles.

— Vi o Nevada há pouco tempo. Vai entrar nas séries.

— Óptimo. Vamos começar já à procura de argumentos.

— Não é preciso — disse Jonas. — Já tratámos disso. Sugeri-lhe que continuássemos a personagem de Max Sand de O Renegado.

— Mas como é isso possível se no fim da série ele rolava pela colina abaixo com morte quase certa?

Jonas sorriu.

— Presumimos que não. Vamos supor que não morreu, mudou de nome, se tornou religioso e passou o resto da vida a ajudar os pobres diabos que não tinham ninguém para quem se voltar. Usa só a arma como último recurso. Nevada gostou do género.

David fitou Jonas. Como é que Nevada não havia de gostar? Esse tema prendia imediatamente a imaginação. Não havia nenhuma estrela de westerns que não acolhesse de braços abertos a possibilidade de fazer uma série desse género. Era isto o que ele chamava génio criador. E Jonas tinha-o realmente.

O carro veio parar em frente do hospital. Jonas inclinou-se e abriu a porta.

— Bem, você sai aqui — disse calmamente.

A entrevista acabara.

Os dois ficaram parados em frente do carro vendo a limusina preta desaparecer na rua. David abriu a porta e Rosa olhou para ele.                          

— Foi uma grande noite, não foi? — perguntou ela suavemente.

— Muito grande, mesmo — respondeu David.

— Não é preciso levar-me. Posso apanhar um táxi, eu compreendo.                                              

Ele olhou para Rosa, primeiro sério, mas depois sorriu.

— Que diria você se fôssemos a qualquer sítio tomar um refresco?

— Tenho uma casa de campo em Malibu — disse hesitante. — Não é longe daqui, poderíamos ir até lá, se quisesse.

Quinze minutos depois estavam em Malibu.

— Não repare no estado da casa — disse, enquanto metia a chave na fechadura. — Não tem havido tempo para tratar dela.

Rosa acendeu a luz e ele seguiu-a até à sala de estar grande e escassamente mobilada; um divã, algumas cadeiras e duas mesas pequenas com candeeiros.

A um dos lados havia um fogão, no outro, em frente, uma parede toda em vidro dava sobre o mar. À frente via-se um cava­lete com um quadro a óleo meio pintado. No chão estava uma bata e uma paleta.

— Que quer beber? — perguntou.

— Um scotch, se tiver.

— Tenho. Sente-se enquanto vou buscar gelo e copos.

Esperou até ela entrar na outra sala e então dirigiu-se para a paleta. Olhou para a pintura. Era um pôr do Sol sobre o Pacífico com colorido encarnado vivo, amarelo e laranja sobre a água quase preta. Ouviu o barulho do gelo a cair dentro do copo mesmo atrás de si e voltou-se. Rosa estendia-lhe uma bebida.

— É sua? — perguntou segurando no copo e indicando a tela.

Rosa acenou com a cabeça.

— Não sou boa pintora. Também toco piano, mal, mas é a maneira que tenho de descontrair, de me libertar da frustração das minhas incapacidades. E a maneira de me compensar por não ser um génio.

— Não há muitas pessoas que o sejam — observou David.— Contudo, tenho ouvido dizer que você é uma boa médica.

— Talvez. Mas não suficientemente boa. O que você disse esta noite era muito verdade.

— Era verdade o quê?

— Acerca do génio criador, a habilidade de se fazer aquilo que ninguém mais é capaz de fazer. Um bom médico ou cirur­gião também precisa de o ter. — Encolheu os ombros. — Sou uma razoável profissional e nada mais.

— Está a ser injusta consigo mesma.

— Não, não estou — respondeu rápidamente. — Durante o meu curso fui dirigida por médicos que eram génios, mas também conheci muitos que o não eram, por isso sei bem aquilo que estou a dizer. O meu pai, à sua maneira, é um génio. Pode fazer coisas com plásticos e com cerâmica que mais ne­nhum homem no mundo sabe fazer. Sigmund Freud, admirado por meu pai, Picasso que conheci em França, George Bernard Shaw, que li no meu colégio de Inglaterra, todos eles são génios. E todos têm em comum a mesma qualidade — o génio criador que os faz ver coisas que nenhum outro homem podia ver. — Abanou a cabeça. — Não, sei que não sou um génio.

— Eu também não sou — disse David. Olhou para o oceano. Rosa aproximou-se e ficou a seu lado. — Tam­bém conheci alguns génios — murmurou. — O tio Bernie, que começou nos filmes Norman, era um génio. Fez sózinho aquilo que agora é preciso dez homens para fazer. E o Jonas Cord também é um génio, à maneira dele. Não sei bem ainda em que capítulo. Há tanta coisa que ele podia fazer, é uma pena.

— Sei o que você quer dizer. O meu pai diz dele a mesma coisa.

— É uma tristeza, não é? — disse ele. — Duas vulgaríssimas pessoas que não são génios aqui paradas a olhar para o Oceano Pacífico.

O riso brilhou nos olhos dela.

— Um oceano tão grande!

— O maior — acentuou ele solenemente. — Ou, como alguns génios disseram, o maior do mundo. — Levantou o seu copo. — Vamos beber por ele.

Beberam e voltaram-se de novo para o oceano.

— Está calor, quase calor suficiente para nadar.

— Penso que o oceano não se importaria se duas vulgares pessoas fossem tomar um banho.

Ele fitou-a e sorriu devagar.

— Acha que podemos?

Ela deu uma gargalhada.

— É claro que podemos. No cacifo da casa de arrumações encontra uns calções de banho.

David saiu da água e deixou-se cair no lençol. Rolou sobre um lado e olhou para Rosa que corria na praia na direcção dele. Susteve a respiração. Era tão feminina que quase se esquecia de a ver como médica. Ela deixou-se cair ao lado dele e pegando numa toalha pô-la aos ombros.

— Não pensei que a água estivesse tão fria.

Ele riu-se.

— Estava maravilhosa. — Foi buscar um cigarro. — Quando era miúdo costumávamos ir nadar para as docas do East River. Nada se compara com este banho. — Acendeu o cigarro e passou-lho.

— Sente-se melhor? — perguntou.

— Fiz exactamente o que a doutora recomendou. Todos os músculos relaxados.

— Óptimo — disse ela. Deu uma fumaça no cigarro e passou-o de novo a David.

— Sabe, Rosa — falou quase a medo —, quando a minha mãe me pediu que viesse jantar para nos encontrarmos, eu não queria vir.

— Bem sei. Comigo foi a mesma coisa. Tinha a certeza de que você era parvo.

Deixou-se cair nos braços dele, oferecendo-lhe a boca, a saber a sal do mar. A mão dele pousou no peito de Rosa, por baixo do fato de banho. Sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo e o peito vibrar-lhe debaixo da mão. Ela afagou-o.

Vagarosamente, baixou-lhe as alças e despiu-a por completo. Ouvia-lhe a respiração ofegante quando apoiou a cara no seu peito. Os braços dela enlaçaram-no. De súbito os seus movi­mentos tornaram-se frenéticos, puxando-o para si, e a voz tor­nou-se rouca e insistente.

— David, não seja tão delicado! Eu sou uma mulher!

Rosa entrou em casa e foi directamente para o quarto. Deu uma olhadela ao relógio da mesa-de-cabeceira. Estava na hora do noticiário das seis. Acendeu o rádio e a voz do locutor encheu o quarto, enquanto começava a despir-se.

— Hoje o orgulhoso exército alemão de Rommel pro­vou pela primeira vez o sabor de areia do deserto ao ser apanhado por uma rodopiante tempestade de areia que os deixou completamente cegos. Montgomery começou a empurrá-los para Tobruk. Os italianos que protegiam os flancos de Rommel, nítidamente mal preparados para um ataque maciço, renderam-se em massa. Com os flancos assim expostos, Rommel não teve outro remédio senão recuar para o mar. Hoje, em Londres, o primeiro-ministro Winston Churchill disse...

Rosa desligou o aparelho. Notícias da guerra. Só se ouviam notícias da guerra. Agora não queria ouvir falar nisso. Voltou-se e viu no espelho da cómoda o seu corpo despido.

Comprimiu o estômago com a mão. Pareceu-lhe rijo e cheio. Voltou-se de lado e mirou-se com atenção. Estava ainda liso e direito mas em breve começaria a arredondar e a encher-se. Sorriu ao lembrar-se da voz de surpresa do Dr. Mayer:

— Mas, doutora, você está grávida. — Havia nos seus olhos uma expressão de espanto.

Ela tinha-se rido.

— Foi exactamente o que eu pensei, doutor.

— Bem, bem — fizera ele com um ar forçado.

— Não fique tão chocado, doutor — dissera Rosa quase se­camente. — Estas coisas acontecem muitas vezes às mulheres!...

E depois ficou surpreendida com o sentimento de orgulho e felicidade que súbitamente a invadira. Nunca pensara que se sentisse assim. Pensar que podia ter uma criança sempre a apa­vorara. Não o receio físico mas sobretudo porque a gravidez iria afastá-la do seu trabalho e interferir na sua vida.

Mas acontecera que não era nada assim. Sentia-se orgulhosa, feliz e excitada. Isto era realmente uma coisa que só ela podia fazer. Não havia memória na história da Medicina de um médico ter dado à luz uma criança.

Atirou um vestido para os ombros e dirigiu-se para a casa de banho. Abriu a torneira da água. Quase lânguidamente espa­lhou os sais de banho na água. A fragrância do perfume chegou ao nariz e ela espirrou.

— Jesus! — exclamou enquanto aparava o estômago com a mão.

Deu uma gargalhada. A criança ainda nem estava feita dentro de si e já pensava nela. Olhou para a sua imagem estam­pada no espelho da casa de banho. A pele estava cor-de-rosa e clara, os olhos brilhantes. Sorriu de novo. Pela primeira vez na sua vida sentia-se contente por ser mulher.

Cuidadosamente entrou na banheira e sentou-se na água. Não ia ali ficar de molho durante muito tempo. Queria estar ao telefone às sete horas quando David lhe telefonasse de Nova Iorque. Queria ouvir a voz feliz dele quando lhe desse a novidade.

David olhou para o livro de capa azul das facturas. Seis milhões de lucros este ano. Quase dois milhões a mais que no ano anterior. Se não se enganava, os números provavam como tinha sido compensador o seu contrato com Bonner. A verdade é que Bonner ficava quase com um tanto para ele. Mas merecia-o. Quase todo aquele dinheiro viera das suas superproduções, as que ele mesmo havia produzido e financiado. Se ao menos David tivesse conseguido persuadir Jonas a financiar quanto Bonner tinha proposto...

Este ano, em vez de seis milhões teriam sido dez. Só uma coisa o preocupara. Durante o ano que pas­sara, Cord estivera a liquidar gradualmente uma parte do seu stock. Já tinha coberto os seus investimentos iniciais e os vinte e três por cento do stock que ainda possuía estavam completamente limpinhos e livres. Normalmente, numa companhia daquela envergadura, isso significa organização. Mas o pior é que alguém estava a comprar. Voltava-se à história do tio Bernie mas desta vez Jonas estava do lado de lá da vedação.

Um dia, um agente chamado Sheffield viera procurar David. Corria o rumor de que ele era a cabeça de um sindicato poderoso e os levantamentos deles na companhia eram consi­deráveis. David olhara-o curiosamente enquanto ele se sen­tava.

— Há mais de um ano que estamos a tentar combinar uma reunião com Mr. Cord para discutirmos os nossos mútuos problemas — disse Sheffield. — Mas ninguém parece saber onde ele se encontra ou onde pode procurar-se. Ainda não consegui receber uma única resposta às minhas cartas.

— Mr. Cord é um homem muito ocupado.

— Bem sei — afirmou Sheffield. — Já tive negócios com ele, antes disto. É um excêntrico. — Tirou do bolso uma cigarreira de oiro e abriu-a. Escolheu com todo o cuidado um cigarro que pôs na boca. Acendeu-o e, vagarosamente, voltou a guardar a cigarreira. Atirou uma nuvem de fumo na direcção de David. — A nossa paciência acabou-se — disse. — Temos um investi­mento considerável nesta companhia, um investimento suficiente­mente grande para não tolerar operações diletantes nem negligência nas oportunidades de lucro.

— Parece-me que os investidores têm muito pouco de que se queixar — observou David — especialmente depois dos lucros deste ano.

— Cumprimento a sua lealdade, Mr. Woolf — disse sorrindo — mas ambos sabemos o que se passa. O meu grupo de capita­listas quis fornecer o financiamento para certas películas que poderiam dar-nos o dobro do lucro. Mr. Cord não quis. Que­remos organizar uma quantidade de stock e um plano de distribuições de lucros para uma determinada chave de realizações.

Mr. Cord não quer. E decididamente não estamos interessados em sobrecarregar a companhia com certas despesas tais como as do Hotel Boulevard Park.

David pensava para si mesmo quanto tempo iria levar ele até chegar ao ponto desejado. Era dos tais segredos que todos sabiam no meio industrial. O harém de Cord, como lhe chamavam.

Tinha começado havia dois anos, quando Cord quisera arranjar uma suite num hotel para uma rapariga e lhe fora re­cusado. Usando como subterfúgio a companhia de cinema, alugou vários andares num calmo hotel da orla de Bervely Hills. No dia em que foi assinado o contrato de arrendamento mudou para lá todas as raparigas que constavam da lista dos contratos de actrizes.

Houve um verdadeiro distúrbio quando as trinta raparigas invadiram os vários apartamentos, perante os olhares indignados do gerente do hotel. Os jornais tiveram um dia de balbúrdia, e diziam que nenhuma das raparigas ganhava por ano o que cada apartamento custava por mês. Isso acontecera havia dois anos mas o contrato de arrendamento era válido por quinze anos. Tinha que se admitir que custava à companhia uma boa quantidade de dinheiro. O hotel estava desejoso de cancelar o contrato mas Jonas não ia nisso. Pouco a pouco, todas as rapa­rigas se foram mudando e agora a maior parte dos apartamentos estavam vazios, excepto quando Jonas aparecia com alguma moça que pensava ter algumas possibilidades.

David inclinou-se na cadeira.

— Não preciso de lhe recordar, é claro, que Mr. Cord não recebe da companhia qualquer remuneração, ou dinheiro de qualquer despesa.

Sheffield sorriu.

— Não formularia um comentário se Mr. Cord fizesse qual­quer coisa de útil na companhia. Mas a verdade é que ele não tem aqui nenhuma actividade. Não assistiu a uma única reunião de direcção desde que se associou à companhia.

— Mr. Cord comprou o contrôle dos lucros desta companhia — afirmou David. — Aliás a sua associação com ela não é feita nos moldes dos outros empregados de categoria inferior.

— Sei isso perfeitamente — disse Sheffield. — Mas tem a certeza de que ele ainda conserva o contrôle da companhia nas mãos? Nós presentemente temos tantas acções ou talvez mais do que ele. Julgo que temos agora direito a uma voz na administração.

— Transmitirei com muito gosto a sua sugestão a Mr. Cord.

— Não é necessário. Temos a certeza, pela sua recusa constante aos nossos pedidos para uma reunião, que ele não está interessado.

— Nesse caso, porque veio procurar-me? — Agora que a conversa preliminar tinha acabado iam entrar no âmago da questão.

Sheffield inclinou-se para a frente.

— Estamos convencidos de que o sucesso desta companhia se deve exclusivamente a si e à sua política. Temos a maior consideração pelas suas aptidões e gostaríamos de saber se tomaria o lugar de chefe do executivo. — Esmagou o cigarro no cinzeiro que estava na frente. — Com a devida autoridade e compensações, claro — acrescentou.

David fitou-o. Ofereciam-lhe a Lua numa bandeja de prata.

— Isso é muito agradável — disse cautelosamente. — Que sucederia se eu lhes pedisse que deixassem ficar as coisas como estão? Se eu persuadisse Mr. Cord a aceitar as vossas sugestões? Isso satisfazê-los-ia?

Sheffield abanou a cabeça.

— Com todo o respeito pela sua sinceridade devo dizer-lhe que não. Bem vê, estamos firmemente convencidos de que Cord é prejudicial ao progresso da companhia.

— E você ganhará essa luta de mandatos, se eu não alinhar consigo?  

— Duvido que seja necessário — volveu. — Já lhe disse que é nosso um montante considerável das acções por pagar. Alguns agentes prometeram-nos um adicional de cinco por cento. — Tirou da algibeira um papel e estendeu-o a David. — E aqui está um compromisso de Mr. Bonner para nos vender todas as acções em seu poder em quinze de Dezembro, o dia da reunião anual, na próxima semana. Os dez por cento de Mr. Bonner dão-nos um total de trinta e oito por cento. Com ou sem os seus cinco por cento temos mais do que o suficiente para o contrôle da companhia. Mesmo com mandatos Mr. Cord não poderia votar mais que trinta por cento das acções.

David pegou na folha de papel e olhou para ela. Era real­mente um verdadeiro compromisso assinado pelo próprio Bonner. Empurrou silenciosamente o papel para Sheffield. De súbito lembrou-se do armazém do velho Norman, onde tinha principiado o trabalhar. O rei tem de morrer. Mas agora não era um simples encarregado da plataforma, era Jonas. Até essa altura não quisera nunca pensar nisso. Jonas tinha-lhe sempre parecido invulnerável.

Mas tudo havia mudado. Jonas estava a dormir e o que Shcffield lhe estava a dizer realmente era: enfileira connosco e nós fazemos-te rei. David respirou fundo. Porque não havia ele de ser o rei? Era um desejo que sentira desde o primeiro dia em que entrara no armazém.

Rosa pousou o jornal na cama e pegou num cigarro. Olhou para o relógio. Passava das oito. Eram portanto sete e tal em Nova Iorque. David já devia ter telefonado. Geralmente quando pensava que ia demorar-se arranjava maneira de a prevenir.

Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa? Estaria ferido nal­guma rua de Nova Iorque, a três mil milhas de distância? E só sabia quando fosse demasiado tarde! Pegou no telefone e ligou para o hotel dele em Nova Iorque. Ouviu o ruído da ligação que se fazia através das linhas e depois a campainha a tocar demoradamente.

— Está lá? — disse David com uma voz cautelosa.

— David, aconteceu-te alguma coisa?

— Não, estou óptimo!

— Estava já preocupada, porque não me telefonaste?

— Estou numa reunião.

— Ah! Estás aí sózinho? Tens o telefone no quarto?

— Sim — respondeu, com a mesma voz baixa. — Estou no quarto.

— Sentado na cama?

— Sim!

— Eu estou deitada na cama. — Esperou para que ele lhe fi­zesse a pergunta do costume. Como não a fez, ela mesmo respondeu. — Não tenho nada em cima de mim — murmurou. A cara ficou ligeiramente vermelha. — Oh, David fazes-me tanta falta. Gostava tanto que estivesses aqui ao meu lado.

Ouviu o ruído ténue de um fósforo acender-se.

— Vou aí no fim da semana.

— Não posso esperar! Tu podes?

— Não — disse ele ainda com a voz abafada.

— Deita-te em cima da cama um momento, David — se­gredou. — Quero que me sintas como te sinto.

— Rosa...

— Oh David — murmurou interrompendo-o. — Agora posso ver-te. Forte e alto. Sinto-te com outra vida dentro de mim. — Fechou os olhos e novamente uma onda de calor lhe subiu pelas costas. Ouvia a respiração dele pelo telefone. — David — murmurou —, eu não consigo esperar.

— Rosa — a voz dele era agora severa —, eu...

— O Freud ter-se-ia divertido um bocado comigo — se­gredou com uma vozinha quente e lânguida. — Estás zangado por eu ser tão insaciável?

— Não.

Ela respirou fundo.

— Estou satisfeita — disse. — Tenho notícias maravilhosas para ti, querido.

— Não podem esperar até amanhã, Rosa? — disse ele rá­pidamente. — Estou mesmo no meio de uma reunião muito im­portante.

Ela hesitou em silêncio. Ele tomou isso por concordância.

— És uma linda menina — disse. — Agora, adeus.

Ouviu o clic do telefone antes de ter tempo de responder. Ficou com o auscultador na mão por um momento, atordoada. Depois pousou-o devagar.

Pegou no cigarro ainda a fumegar no cinzeiro. O fumo en­trou-lhe para a garganta e queimou-a. Irritada, esmagou-o. Deitou a cabeça na almofada e assim ficou silenciosa, meditativa.

«Não devia ter-lhe telefonado» pensou. «Ele disse que estava ocupado». Levantou-se da cama e foi para a casa de banho. Olhou para a sua imagem no espelho.

«Tens de compreender. Houve também muitas vezes que tu estiveste ocupada quando ele te telefonou, tu como toda a gente.»

Quase surpreendida viu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos e começarem a descer pela cara abaixo. Dominaram-na por completo e dobrando os joelhos encostou a cabeça à porcelana fria da banheira. Cobriu a cara com as mãos.

Isto é que era ser mulher?

Maurice Bonner sentou-se na cama e observou a rapariga dirigir-se para a cadeira e sentar-se. Estava nua e era maravilhosa. O peito forte e rijo apoiava-se na caixa torácica de finas costelas. Tinha a barriga forte mas direita. Aumentava ligeiramente para baixo e seguiam-se depois duas longas e delgadas pernas.

Via-lhe os músculos das costas começarem a girar quando fez o movimento de apanhar um cigarro da mesa ao lado. Ele abanou a cabeça. Era maravilhosa, não havia dúvida. Talvez não no sentido vulgar que se dava a esta palavra mas tanto quanto uma mulher de vida fácil poderia sê-lo. E nunca era.

— Ai, que feio que estás — disse a rapariga olhando-o.

Ele sorriu deixando ver os dentes curvos e irregulares na grande cara cavalar. O que ela dizia não era novidade; podia vê-lo no espelho. Afastou o lençol e saiu da cama.

— Toma, cobre-te com isso — disse a rapariga atirando-lhe uma toalha. — Pareces um macaco.

Ele apanhou a toalha e enrolou-a em volta da cintura.    

— Tive qualquer interesse para ti? — perguntou com curiosidade, enquanto tirava um cigarro do maço.

Ela não respondeu.

— Valeu u pena?

— Acho que sim — respondeu ela numa voz que não denotava qualquer emoção. Voltou para a cama e sentou-se na borda.

— Só isso? Apenas mais um John?

Ela olhou bem para ele.

— Consideras-te um homem formidável, não é? Queres saber a verdade?

Ele sorriu de novo.

— Certamente que quero saber a verdade!

— Vocês são todos iguais para mim. Não fazem a mí­nima diferença.

— E nunca sentes nada?

— Certamente. Sou um ser humano, mas não para os clientes. Não me posso dar a esse luxo. Eles pagam para ter a perfeição. — Pousou o cigarro no cinzeiro. — Quando sinto necessidade de dar um giro, largo isto por uma semana e vou para um desses ranchos elegantes que recebem mulheres casadas nas férias. Há sempre aí um qualquer que pensa que me ajuda e realmente ajuda porque não preciso de dar-lhe o meu corpo. Os Johns cá estão para pagar. Percebeste agora?

— Mas assim não sentes que estás a enganar os Johns?

Ela sorriu.

— Porquê, sentes-te enganado?

— Não — respondeu. E continuou de repente: — Mas não sabia que estavas a representar!

— Não era representar, era trabalhar. Esta é a minha profissão — disse enquanto tirava outro cigarro.

Ele ficou calado. Ela acendeu o cigarro e estendeu-lho.

— Olha — disse —, tu comes um bom jantar e depois dizes aos teus amigos que comeste um óptimo bife. O melhor que havia. Não te importas de falar nisso e até lhes dizes onde o comeste para eles também poderem ir experimentar, não é?

Bonner aquiesceu.

— É tal e qual o que se passa comigo. Encontras um amigo, por exemplo o Irv Schwartz. Estás a beber gim e ele olha para ti e diz-te: «Tive ontem à noite um belo pedaço. O melhor de todos — Jennie Denton. Dá-lhe uma apitadela. Vens e pões o dinheiro em cima da mesa. Fazes o que te apetecer comigo e ficas cheio de ar como um balão que vagueia, perdido. Aposto que há muitos anos que não te satisfazias três vezes em tão poucas horas. Ainda te sentes enganado?»

Ele deu uma gargalhada. De repente sentiu-se mais novo e desempenado. Ela tinha razão, há muito tempo que não se sentia assim, talvez há mais de vinte anos. Sentiu um calor voltar-lhe às costas. Levantou-se deixando cair a toalha.

Ela riu-se.  

— És mais novo do que eu pensava. Olha, é meia-noite.

— E então? — perguntou olhando-a.

O combinado eram duas notas até à meia-noite. A partir de agora são três notas até de manhã mas inclui o pequeno-almoço.

Deu uma gargalhada.

— És pior do que o MCA. Mas está bem, fica combinado.

Ela sorriu e pôs-se em pé.

— Anda lá, então!

Seguiu-a para um grande quarto de banho com uma banheira enorme em mármore preto assente no chão. Contra a parede, havia por baixo da janela uma mesa para massagens. Apontou para ela e disse:

— Sobe para ali.

Ele sentou-se na borda da mesa e viu-a abrir a porta do armário. Tirou uma máquina de barbear, um tubo de sabão para a barba e uma escova. Encheu uma taça com água, ensopou uma esponja na torneira e colocou-a no canto da bacia, perto da mesa.

— Deita-te — disse enquanto mergulhava o pincel na taça e fazia espuma mexendo o sabão.

— Mas que vais fazer?

— Que é que te parece por estes preparativos? — perguntou ela. — Vou fazer-te a barba.

— Eu barbeei-me esta tarde!

Ela deu uma gargalhada.

— Mas não é à cara, seu estúpido. — Empurrou-o para baixo. — Quero ver como és debaixo de todo esse matagal!

— Mas…

— Deixa-te estar deitado — disse ao mesmo tempo que lhe ensaboava um dos lados do peito. — Não quero cortar-te. Fazia isso constantemente quando estava no hospital.

A espuma era invulgarmente repousante.

— Trabalhaste num hospital?

Ela acenou com a cabeça.

— Tirei o curso de enfermagem com distinção quando tinha vinte anos.

— Porque abandonaste isso?

Práticamente não sentia a máquina percorrer-lhe o corpo. Ela voltou-se para a lavar debaixo da torneira.

— Sessenta e cinco por mês com dezoito horas de trabalho por dia — disse enquanto começava a ensaboar a outra metade do peito. — E muitos brincalhões a quererem abusar.

A máquina começou a passar pelo estômago e ele riu-se.

— Isso faz cócegas!

Ela tornou a passar por água a lâmina,

— Volta-te — disse-lhe, — Quero rapar-te também as costas e os ombros.

Ele rolou e voltou-se com a barriga para baixo apoiando a cara nos braços. Chegou-lhe ao nariz um ligeiro odor a mentol do sabão. Fechou os olhos.

A rapariga foi buscar um sabonete e, rasgando o invó­lucro, estendeu-lho. Ela abrira os olhos.

— Vá, agora toma um bom duche e esfrega-te bem.  

Pouco depois a água caía sobre ele e a casa de banho enchia-se de calor e do cheiro a jasmim do sabonete. Começou a sentir a pele aquecer e a picar. Quando saiu a cara estava ver­melha e sorridente.

Ela estendeu-lhe um grande lençol.

— Seca-te e volta para a mesa das massagens.

Limpou-se depressa e espreguiçou-se. Ela tirou de um armário um pequeno vibrador manual e ligou-o à corrente. Começou a massajá-lo vagarosamente. O som do vibrador fazia distender os músculos do corpo.

— Isto é melhor que um banho turco — disse ele.

— É mesmo um banho turco — respondeu ela secamente. Depois desligou o vibrador e atirou-lhe uma toalha para cima. — Agora vais aí ficar quieto durante uns minutos.

Ele observou-a inclinada sobre a banheira de mármore abrindo a água. Regulou cuidadosamente a temperatura da água. Em seguida deixou continuar a correr. Quando a água chegou à altura de cinquenta centímetros na banheira fechou a torneira.

— Está pronto. Levanta-te.

Ele sentou-se deixando cair a toalha.

— Sabes — disse ela —, sem toda essa lã estás mais escapatório. — Moveu a porta da casa de banho que tinha por trás um espelho de alto a baixo.

Bonner olhou para o espelho e a boca abriu-se num grande sorriso. Ela tinha razão, parecia vinte anos mais novo. O corpo era branco e limpo debaixo de todo aquele pêlo. Até se sentiu mais magro.

Ela sorriu-lhe através do espelho.

— Chega de narcisismos! — disse. — Salta para a banheira.

Ele sentou-se na banheira. A temperatura da água estava apenas um pouco mais elevada que a do corpo...

— Estica-te aí. Venho já.

Deitou-se para trás na banheira e pouco depois ela entrou novamente na casa de banho. Numa mão trazia uma garrafa de champanhe e na outra um pequeno frasco. Pôs o champanhe no chão e deitou algumas gotas do conteúdo do frasco na banheira. Um intenso cheiro a jasmim encheu imediatamente o aposento. Pôs o frasco do jasmim na borda da banheira e pegou na garrafa de champanhe.

Com mão experiente rasgou o estanho e desenrolou o arame da rolha. A rolha saltou e o champanhe caiu pêlos dedos abaixo.

— Esqueceste-te dos copos — disse ele observando a cena.

— Não sejas parvo. Só os parvos bebem disto. É para pôr na banheira. É melhor do que banho de espuma — começou a esvaziar a garrafa para a banheira, em volta dele. O vinho caiu-lhe pelas costas borbulhando e fazendo-lhe cócegas. Deixou contudo uma sensação refrescante. Ela pousou a garrafa no chão e tirou do armário uma caixa de cigarros. Abriu-a e tirou um. Acendeu-o. Sentiu-se o estranho e ácido cheiro da marijuana.

Ela chupou uma vez no cigarro e estendeu-lho.

— Pega, só duas fumaças, nem mais... — disse.

Maurice abanou a cabeça.

— Não, muito obrigado mas não vou nessa história.

— Não me dificultes o trabalho — pediu ela. — Só quero que te sintas um pouco mais quebrado.

Ele tirou-lhe o cigarro das mãos e cuidadosamente pô-lo na boca. Aspirou. O fumo entrou mas não foi possível expeli-lo porque os pulmões absorveram-no por completo. Perguntou a si próprio como podia ter acontecido semelhante coisa. Todo o seu corpo estava limpo e forte. Olhou para ela, à espera ao lado da banheira. Voltou a tirar uma fumaça e começou a sentir-se leve.    

— Chega — disse ela tirando-lhe o cigarro dos lábios e dei­tando-o na bacia.

— Que divertido — comentou, sorrindo, quando ela se estendeu a seu lado na água.                          

— Antes fosse!... — respondeu enquanto lhe pousava a cabeça no peito, coberto por uma escassa camada de água. Deu um salto quando a sentiu dar-lhe uma pequena dentada no peito. Ela levantou a cabeça e olhando-o repetiu: — Antes fosse. Esta garrafa de champanhe custou-me vinte dólares.

Nunca chegou a saber exactamente quando lhe veio à cabeça essa ideia mas devia ter sido enquanto dormira. Não tinha importância. Já pensava nisso ao ir tomar o pequeno-almoço. E pareceu-lhe que teria o mesmo sucesso de outras ideias que já tivera anteriormente.

Ela levantou a cabeça da mesa da casa de jantar quando lhe ouviu os passos no patamar.

— Bom dia, Mr. Bonner, tem fome?

Ele devolveu-lhe o sorriso.

— Estou morto de fome — disse, surpreendido. Há muito tempo que não se lembrava de lhe apetecer um bom pequeno-almoço. Um sumo e um café era o costume.

Viu o pé dela carregar no botão da campainha, debaixo da mesa.

Ouviu-se o som vindo da cozinha nas traseiras da casa.

— Bebe o teu sumo — disse-lhe — ,o pequeno-almoço não tarda aí.

Sentou-se do outro lado da mesa e tirou do gelo um grande copo de sumo de tomate.

— À tua saúde!

Olhou para ela satisfeito. À luz clara da manhã não se lhe via a mais pequena ruga na cara. Os olhos eram escuros e ao mesmo tempo claros, e só os lábios estavam levemente carminados. Os cabelos, de um castanho-claro, estavam amarrados num rabo de cavalo. Os braços pareciam bronzeados porque se destacavam na blusa branca leve e de manga curta, segura por uma saia em godés.

A porta abriu-se e uma pesada criada mexicana entrou com um grande tabuleiro cujo conteúdo mudou para a enorme bandeja giratória que estava no centro da mesa. Tirou depois o copo vazio da frente dele e substituiu-o por um prato.

— O café vem já! — disse quase vaidosa.

— Sirva-se, Mr. Bonner — disse Jennie. — Tem aí presunto, bife, arenques fumados e fígado nos pratos de tampa verde. Há ovos estrelados, escalfados e fritos nos pratos de tampas amarelas.

Empurrou a bandeja giratória até encontrar o presunto e serviu-se. Enquanto enchia o prato, a mexicana entrou com o café, pãezinhos quentes e torradas. Ele olhou para o prato. O presunto estava mesmo como gostava de o comer.

Jennie serviu-se de uma boa quantidade de bife.

— Arranjaste uma mesa muito bem fornecida — comentou Bonner enquanto a mexicana lhe enchia a chávena com café.

Jennie sorriu.

— Não há nada barato nesta casa — disse.

A mexicana foi deitar café na chávena de Jennie e voltou a desaparecer na cozinha.

— Parece que vais jogar ténis! — disse ele.

Ela abanou a cabeça.

— É isso mesmo que vou fazer. Jogo duas horas todas as manhãs.

— Onde é que jogas?                  

— No Bel Airs. Tenho hora marcada com o Frankie Gardner.

Ele ergueu as sobrancelhas. Frankie Gardner era um dos melhores professores de ténis do país. Era muito caro — pelo menos vinte e cinco dólares por hora.

— É um dos teus clientes habituais? — perguntou com curio­sidade.

— Não jogo com os meus clientes. É mau para o negócio. Pago as lições como toda a gente.

— Mas para quê?

— Porque gosto de fazer exercício... Ajuda-me a conservar a linha. Como sabes, às vezes tenho trabalho para uma quanti­dade de horas.

— Percebo... Nunca pensaste fazer outra coisa?

— Que queres dizer? — perguntou. — Já te disse que estudei enfermagem. — Riu com vontade. — Sou da Califórnia, Mr. Bonner!... Tenho visto o que acontece às que aqui vêm parar, muito mais bonitas do que eu. Acabam nas carripanas a fazer hamburgers ou em mulheres da vida ganhando cinco dóla­res no strip-tease. Sei muito bem como isso é!

— Estou a falar a sério — disse ele. — Sabes quem eu sou?

— Claro que sei, Mr. Bonner. Leio os jornais. É um dos maiores produtores de Hollywood.

— Então, talvez concordes que sei o que estou a dizer, hem?

— Talvez saibas, mas eu também me conheço muito bem e sei que não sou actriz.

— Não foi isso que me disseste a noite passada.

— Isso é diferente. É a minha profissão, além disso tens visto o meu nível de vida. Levaria ainda muito tempo até conse­guir ganhar no cinema uma nota de mil numa semana!

— Como é que sabes? Temos um argumento há mais de cinco anos e ainda não conseguimos encontrar a artista para o papel principal. Foi escrito para Rina Marlowe. Estou conven­cido que podias fazer o papel.

— Não estás bom da cabeça! — disse ela rindo-se. — Rina Marlowe foi uma das mulheres mais bonitas do écran. Não podia chegar-lhe aos calcanhares.

Ele ficou sério de repente.

— Há coisas em ti que me lembra muito ela.

— Talvez — disse. — Ouvi dizer que era brava.

— Ainda por cima! — disse, inclinando-se para ela. — Vem ao estúdio amanhã e vamos fazer um teste. Se não for bom esquecemos isto. Se for... só precisarei da aprovação de um homem e terás as tuas duas notas de mil por semana.

— Duas de mil? — perguntou ela fitando-o. — Estás a brincar?

Ele abanou a cabeça.

— Nunca brinco em questões de dinheiro.

— Nem eu — disse ela muito séria. — Quem é esse homem de quem precisas a aprovação? — Jonas Cord.

— Bem, acho que podemos desistir!... Pelo que tenho ouvido contar é um excêntrico difícil de levar.

Irving seguiu David para a cozinha enquanto Rosa lavava os pratos.

— Nunca a vi com tão bom aspecto — disse estenden­do-se na cadeira em frente do fogão. David concordou distraídamente.

— Sim.

— Tens alguma ideia na cabeça, David?

— As coisas do costume —r espondeu ele evasivamente.

— Não foi isso que ouvi dizer.

Houve qualquer coisa no tom de voz que fez David estre­mecer.

— Que ouviste tu dizer?

— O que se diz é que te vão abrir os braços — afirmou Irving em voz baixa.

— E que mais ouviste dizer?

— Os novos querem fazer de ti o chefe, se alinhares com eles. Dizem que o Bonner também já está com eles!

David ficou silencioso. Não acreditava que Jonas soubesse já do que se estava a passar. Mas pelos vistos era possível.

— Não dizes nada, David? Não me trouxeste até aqui para nada!

— Como conseguiste saber isso?

Irving encolheu os ombros.

— Temos umas acções — disse com ar desprendido. — Al­guns rapazes chamaram-me e disseram-me que os agentes os tinham contactado. Queriam saber o que devíamos fazer.

— Quantas acções?

— Oh, só oitenta, noventa mil acções por todo o país. Pareceu-me que era um grande negócio a maneira como estavas a conduzir as coisas.

— Já resolveste — David emendou —, já resolveram qual o caminho que vão seguir? Esse stock pode ser importante. É cerca de três por cento dos dois milhões e meio de acções a liquidar.

— Não, nós somos muito conservadores — disse Irving. — Gostamos de ir ao encontro do dinheiro. E eles têm mostrado. Financiamento completo, o dobro dos lucros e, quem sabe, a divisão do stock dentro de alguns anos.

David acenou com a cabeça. Pegou num cigarro, pensativamente. Deixou-o na boca por acender. Porque é que o Jonas não tinha respondido à mensagem que lhe enviara? Três vezes tentara contactá-lo e três vezes ficara sem resposta. Certamente àquela hora já devia saber. A última vez que procurara indagar, tinham-lhe dito que o Jonas estava fora do país. Se fosse verdade, a coisa não teria remédio quando ele chegasse.

— Que vais fazer, David? — perguntou Irving, calmo.

— Não sei, não sei realmente o que hei-de fazer.

— Não podes continuar muito tempo hesitante, meu velho — disse Irving. — Não se pode viver neste mundo ao lado dos que perdem.

— Bem sei — concordou David que finalmente riscou um fósforo e acendeu o cigarro. — Mas é assim. Sei que o Cord não nos liga muita importância, e até por vezes nos prejudica um bocado. Mas também sei que sabe fazer um filme e que tem verdadeiro sentido do negócio. Não é como esse asno do Sheffield e dos outros. Banqueiros e agentes tornam tudo num inferno, excepto a folha do Deve e Haver.

— Mas os banqueiros e os agentes têm as rédeas na mão.

— Sim — concordou David deitando fora o cigarro.

Irving ficou silencioso por momentos. Depois sorriu.

— Digo-te mais. Vou mandar-te as nossas procurações. Quando decidires o que é melhor, vota por nós.

David olhou-o.

— Vais realmente fazer isso?

Irving riu-se.

— Pela maneira como estou a ver tudo isto, não tenho outro remédio. Não eras tu que transportavas o álcool da gara­gem do Shocky?

— Aqui vem o café — anunciou Rosa trazendo-o numa bandeja.

— Jesus! — exclamou Irving. — Vêm ali bolinhos de cho­colate.

Rosa riu com gosto e respondeu:

— Fui eu mesma que os fiz.

Irving encostou-se para trás no sofá.

— Oh, doutora! — exclamou, olhando para Rosa e fazendo rolar os olhos.

— Mais um?

— Já comi três. Se como mais algum tem de me fazer uma operação estética ao estômago para me pôr outra vez elegante.

— Bem, então é melhor tomar só café — disse ela enchendo de novo a chávena. Começou a recolher os pratos.

— Queria perguntar-te, David, se já ouviste falar no nome de Jennie Denton?

— Jennie Denton? — David abanou a cabeça. — Não.

— Já me esquecia de que vocês têm estado fora da cir­culação — disse olhando de lado para Rosa.

— Que se passa com ela? — perguntou Rosa. — Eu conheci uma Jennie Denton.                      

— Conheceu? E onde?

— No hospital. Há quatro anos havia lá uma enfermeira com esse nome.

— Tinha aí um metro e sessenta de altura, olhos escuros, cabelo castanho-claro, boa figura e uma maneira especial de andar?

Rosa riu-se.

— Você quer dizer sexy?

Irving concordou.

— Sim, era isso que queria dizer.

— Deve ser a mesma — disse Rosa.

— Mas que se passa com ela? — perguntou David.

— Bem, a Jennie é talvez o golpe mais dispendioso do L.A. Tem casa própria com seis divisões, na colina, e se se quiser lá ir, só por marcação se consegue vê-la. Não entra num quarto de hotel. Já tem lista e se quiseres marcar uma data tens de esperar duas ou três semanas. Só trabalha cinco dias por semana.

— Se está a recomendá-la ao meu marido — interrompeu Rosa sorrindo — acho melhor ficar por aí.

Irving também sorriu.

— Bem, parece que uma noite destas Maurice Bonner foi lá e ela aplicou-lhe o tratamento completo. Assim, no outro dia Bonner levou-a ao estúdio para fazer um teste. Apanhou-a em cores nalgumas cenas de argumentos que para lá tinha. Mas depois resolveu fazer uma coisa em bom. Vestiu-a com um lençol de seda branca. Pressupõe-se que é uma cena de baptismo e quando ela sai dá água no tanque grande do palco vêem-se-lhe os contornos do corpo. Em dois dias tornou-se a melhor fita do estúdio. Bonner tem mais pedidos para ela do que o Selznick para o E Tudo o Vento Levou.

David só se lembrava de um argumento em que havia uma cena de baptismo.

— Lembras-te do nome do argumento? — perguntou. Não se chamaria A Pecadora?

— Talvez.

— Se realmente é esse, é o argumento que Cord escreveu especialmente para Rina Marlowe, antes de ela morrer.

— Não me interessa para quem foi escrito — sorriu Irving. — Tens de ver aquilo. Vais dar estalos. Já o vi duas vezes... toda a gente já o viu.

— Amanhã vou ver isso — afirmou David.

— Eu também gostava de ver!    

David olhou para Rosa. Sorriu. Era a primeira vez que ela mostrava qualquer interesse por uma película.

— Vai ter ao estúdio às dez horas. Vamos vê-lo os dois.

— Se não tiver nenhuma reunião importante irei lá ter com vocês — prometeu Irving.

David apertou o pijama e sentou-se perto da janela a olhar para o mar. Ouvia a água correr na bacia da casa de banho e o som da voz de Rosa sussurrando ao longe enquanto lavava a cara. Observou-a. Pelo menos era feliz no seu trabalho. Uma médica não tinha de suportar uma guerra de nervos para pra­ticar a medicina.

A porta bateu atrás dele e Rosa apareceu. Olhou-o com uma expressão absorta e ficou parada na ombreira da porta.

— Tens qualquer coisa para me dizer! Desembucha! — disse sorrindo.

— Não, David — respondeu. Os seus olhos eram meigos. — É dever da mulher ouvir o que o seu amo e senhor tem para dizer!

— Não me considero amo e senhor!

— Há alguma coisa que não corre bem, David?

— Nem sei bem — disse; e começou a contar-lhe a história toda desde o encontro com o Sheffield, na noite em que ela lhe tinha telefonado. Rosa foi para ao pé dele, pôs-lhe os braços em volta da cabeça e encostou-a ao peito.

— Pobre David — segredou. — Tantos problemas!

Voltou a cara para ela.

— Tenho de me decidir muito em breve. Que achas que deva fazer?

Ela olhou-o com os olhos cinzentos brilhando. Sentiu-se contente e calma.

— Seja qual for a tua decisão — disse —, tenho a certeza de que é a melhor para nós.

— Para nós?

Ela sorriu com candura. Essa nova força interior fazia-a sentir-se mais mulher. A voz saiu-lhe baixinho e feliz.

— Vamos ter um filho — murmurou.

A claridade da luz do sol feriu-lhe os olhos quando saíram da escura sala de projecções. Caminharam silenciosamente em direcção ao gabinete de David num dos edifícios da administração.

— Em que estás a pensar, David? — perguntou suavemente. — Este teste fez-te ter pena de seres casado?

David olhou para ela e riu-se. Abriu a porta e passando pela secretária entraram no gabinete particular. David deu a volta à secretária e sentou-se.      

Ela sentou-se também numa cadeira de couro em frente da dele. A sua cara estava ainda pensativa. Tirou um cigarro e acendeu-o.

— Que pensas do teste? — perguntou David.

Ela sorriu.

— Agora percebo porque põe ela todos os homens de cabeça à roda! — respondeu. — Nunca vi coisa mais sugestiva do que a cena em que ela sai da água com o lençol completamente colado ao corpo.                            

— Essa cena não interessa. Se não a tivesses visto nessa parte, qual era a tua opinião sobre ela?

Aspirou o fumo do cigarro e o sorriso desapareceu.

— Acho que é maravilhosa. Quase me partiu o coração naquela cena em que se vê só o pé de Jesus a andar, a ponta da cruz roçando pelo chão e ela arrastando-se pela lama atrás dele, tentando beijar-lhe os pés. Sem dar por isso comecei a chorar com ela. — Parou por momentos e depois perguntou:

— Aquelas lágrimas eram verdadeiras ou caracterização?

— Não, eram verdadeiras. Nunca se usam lágrimas falsas nos testes — respondeu.

David começou a sentir um certo entusiasmo. À sua maneira Rosa tinha-lhe dado a resposta. Havia muito tempo que não voltara a ter a sensação que tivera desde a primeira vez que vira Rina Marlowe no écran. Agora estavam todos demasiada­mente cegos com a cena do baptismo para poderem apreciar as outras sequências do teste.

Tirou uma folha de papel e começou a escrever. Rosa obser­vou-o por momentos, depois deu a volta à secretária e pôs-se a ler por cima do ombro dele. David acabou de escrever e pegou no telefone.

 

       JONAS: PENSO QUE JÁ É TEMPO

       DE VOLTARES PARA OS FILMES

       DÁ-ME NOTÍCIAS TUAS

       DAVID

 

— Ligue-me para McAllister em Reno — ordenou David à secretária. Olhou para Rosa e sorriu. Rosa sorriu também e voltou para a cadeira.

— Olá, Mac — disse David com voz firme. — Vais respon­der-me a duas perguntas.

Rosa sentiu-se orgulhosa do marido. Ainda bem que viera até ao estúdio. Esta era uma faceta da vida dele que nunca tinha podido observar.

— Posso assinar contrato com uma actriz, para a Cord Explosivos? Tenho razões especiais para não querer que ela assine connosco. Razões importantes — acentuou David. E quando ouviu a resposta:

— Óptimo. Agora outra pergunta. Tenho aqui um filme que queria que o Jonas visse imediatamente. Posso mandar-lho?

Esperou um momento.

— Não te peço mais do que isso. Mando-te o filme ao escritório L. A. daqui a duas horas. Obrigado, Mac. Adeus.

Carregou nos botões do telefone para voltar a falar.

— Miss Wilson, ligue-me ao Jess Lee, e depois venha cá.

Continuou ao telefone e tirou um cigarro. Pô-lo na boca. Rosa inclinou-se por cima da secretária e estendeu-lhe um fósforo. Ele aproximou o cigarro e sorriu-lhe.

— Jess — disse enquanto a secretária entrava —, vou mandar-te um cartão. Quero que o fotografes e o ponhas no fim do teste de Jennie Denton, imediatamente.

David cobriu o bocal do telefone com a mão.

— Leve isso a Jess Lee — disse para a secretária indicando o papel em cima da mesa. Ela pegou-lhe e saiu em silêncio.

— Eu sei que é apertado... — continuou ao telefone. — Mas faz uma cópia e manda o teste imediatamente para a secretária do Mac Allister, na Cord Aircraft. Tem de lá estar ao meio--dia.

— Já te decidiste?

David acenou com a cabeça.

— Estou a preparar um belo golpe. Se me engano não me interessa qual deles ganha. Eu perco.

Rosa sorriu.

— Há sempre uma altura destas em cada operação. Pareces o cirurgião e, de acordo com os livros, há muitas coisas que podem fazer-se. Mas na realidade só tens um caminho – o tal. Assim, tomas uma decisão. A tua decisão. Sem interessar o que dizem os livros ou o que te querem obrigar a fazer. Olhou para David ainda a sorrir. — É isso que estás a fazer, David? — perguntou suavemente. — Estás à procura do teu caminho?

David olhou-a encantado com a sua percepção e sensatez e respondeu sem hesitar:

— Sim, estou a seguir o caminho que acho melhor.

Nunca tinha pensado nisso daquela maneira. Sim, ela tinha razão. Sentia-o agora.

Sentada à sua secretária na sala de estar, Jennie preenchia os cheques para pagar as contas do mês quando a campainha da porta tocou. Ouviu a mexicana passar por ela para ir ver quem era. Embrenhou-se novamente no trabalho que estava a fazer.

Tinha sido uma parva por se ter deixado apanhar naquele teste. Agora em Hollywood não se falaria de outra coisa. Pelo menos quatro Johns já tinham telefonado cumprimentando-a, irónicamente, pelo seu teste. Já toda a gente vira. Bem sabia que não era actriz. Como diabo havia ela caído naquela história? Exactamente como qualquer rapariguinha ingénua que aparece para fazer cinema. Pensou que era muito sensata e que nunca cairia nesse género de ratoeiras, mas no fim acontecera-lhe o mesmo que às outras.

Viu isso quando em frente das câmaras lera o nome do argumento: Maria Madalena. Ao princípio quase morreu a rir. Não admira que o Bonner tivesse pensado nela. Era um caso típico, de primeira ordem. Mas depois qualquer coisa na história a tinha tocado. Sentiu-se comovida. Perdeu o contrôle nalgumas partes e houve outras em que chorou e as câmaras estavam a filmar. E.não se lembrava de fazer isso desde pequena. Não admira que eles se rissem. Ela própria teria rido se tivesse presenciado. Uma mulher de vida fácil a chorar por estar a fazer o papel de outra. Nunca devia ter dado ouvidos. Tinha-se pas­sado toda a semana e nem uma palavra do Bonner.

Os passos da mexicana soaram por trás dela. Os olhos da mulher eram completamente inexpressivos.

— Señor Woolf está aquí.

Woolf? Não conhecia ninguém com esse nome. Talvez fosse o novo agente da polícia. Haviam-lhe dito que vinha um novo agente para receber o dinheiro da licença.

— De las películas — disse a criada rápidamente.

— Oh — disse ela. — Tráigale aquí. — E voltou-se de novo para a secretária. Reuniu rápidamente todas as contas num monte e guardou-as numa gaveta. Tinha exactamente acabado quando a criada entrou com o senhor.

Olhou-o friamente da cadeira.

— Foi o Bonner quem o mandou?

— Não — disse. — Para lhe falar verdade, Bonner nem sequer sabe que estou aqui!

— Oh — exclamou. Já sabia a razão por que ele tinha vindo. Viu o teste, é claro!...

David acenou com a cabeça.

A voz dela tornou-se ainda mais fria.

— Então pode ir andando — disse. — Recebo as marcações.

Um ténue sorriso aflorou aos lábios dele. Estava cada vez mais zangada.

— E pode dizer ao Bonner da minha parte que talvez seja melhor deixar de andar a exibir o meu teste ou arrepender-se-à.

Ele primeiro riu-se mas depois ficou sério.

— Já fiz isso mesmo, Miss Denton.

— Ai, sim? — A sua zanga começou a dissipar-se. — Uma coisa destas podia arruinar o meu negócio.

— Penso mesmo que você já acabou o negócio — disse ele calmamente.

Ela olhou-o com os olhos muito abertos.

— Que quer dizer com isso?

— Creio que não me está a perceber — disse, tirando um cartão do bolso e mostrando-lho. Lia-se apenas David Woolf. Em baixo, ao canto, estava escrito vice-presidente executivo. Mais abaixo o nome da companhia a que Bonner estava ligado. Agora começava a lembrar--se de quem ele era. Tinha lido o nome nos jornais. Era o brilhante braço direito do Cord. Olhou para ele.

David voltou a ter um ténue sorriso nos lábios.

— Você estaria interessada em filmar o filme Maria Madalena?

E subitamente ela sentiu-se nervosa.

— Não sei bem — disse hesitante. — Pensei que isto não passasse de uma brincadeira do Bonner.

— Talvez fosse — disse David imediatamente. — Não sei qual era a ideia dele, mas para mim não é brincadeira. Estou convencido que pode vir a ser uma grande estrela. — Fez-se silêncio durante algum tempo. — E a minha mulher é da mesma opinião.

Ela olhou-o com curiosidade.

— Rosa Strassmer! Conheceu-a no hospital há quatro anos.

Os olhos dela brilharam.

— Rosa Strassmer? Aquela que fez a operação à cara de Linda Davis?

Ele voltou a acenar com a cabeça sorrindo.

— Eu era a enfermeira-chefe da cirurgia naquele dia — disse Jennie. — Ela foi fantástica.

— Muito obrigado — murmurou David. — Agora está dis­posta a filmar Maria Madalena?

Súbitamente foi esse o seu maior desejo.

— Quero, pois!

— Tinha esperanças de que seria essa a sua resposta — disse ele enquanto desdobrava uma folha de papel que tirara do bolso. — Quanto é que o Bonner lhe disse que lhe pagava?

— Duzentos dólares por semana!

David tinha já a caneta na mão.

— Espere, Mr. Woolf — disse ela rapidamente. — Eu sei que o Bonner disse aquilo de brincadeira. Não precisa de me pagar tanto.

— Talvez tenha dito. Mas eu não. Ele ofereceu-lhe duzentos dólares; pois é isso que vai ganhar. — Acabou de preencher o contrato e estendeu-lho. — É talvez melhor lê-lo cuidadosamente — acrescentou.

Olhou para a folha impressa. A única coisa que lá estava escrita à mão era o nome dela e a quantia que ia ganhar.

— Tenho realmente de ler? — perguntou.

— Acho que sim. Os contratos são sempre fáceis de assinar mas mais difíceis de cumprir.

Jennie encostou-se na cadeira e começou a ler.

— Reparo que é com a Explosivos Cord que assino!

— Isso pertence-nos também porque o Cord é o dono da companhia.

— Bem — disse ela quando acabou de ler. Pegou numa ca­neta e assinou rapidamente o contrato que estendeu a David.

— E agora, que faço? — perguntou a sorrir.

David meteu o contrato na algibeira.

— A primeira coisa que temos de fazer é mudar o seu nome.

— Mas que mal tem ele?      

— Há muita gente que o iria reconhecer — disse — e mais tarde podia trazer inconvenientes.

— Eu cá não me ralo, e o senhor?

David abanou a cabeça.

— Não, se você não se importa.

Ela riu-se novamente.                                

— O que os Johns iam perder!...

David olhou em volta.

— A casa pertence-lhe ou é alugada? — perguntou.

— Alugada.

— Óptimo. Feche a casa e vá dar uma volta durante algum tempo. Até ao deserto. Palm Springs, pode ser. Não diga a ninguém onde está, menos a mim.

— Está bem — disse. — E que faço depois?        

— Espera — disse ele. — Espera até nós a revelarmos.

— Desculpa, David — disse Pierce pondo-se em pé. Sorria mas os olhos estavam frios. — Não posso ajudar-te nisto.

— Porquê?

— Porque vendi o stock o ano passado.

— Ao Sheffield? — perguntou David.

O agente aquiesceu.

— Mas porque não te puseste em contacto com o Jonas?

— Pela simples razão de que não quis fazê-lo — largou Pierce. — Já se aproveitou muito de mim durante longos anos, para os trabalhos chatos de pôr a fábrica a andar. Mas logo que isto se endireita e começa a dar a sério, traz para cá o Bonner.

— Tu também te aproveitaste dele. Foi no bote com uns mi­lhões porque tu querias um estúdio para brincar. Estás rico graças a ele. Além disso sabias que quando o Bonner veio para cá eras um agente e não produtor. Toda a gente sabia.

— Só porque ele nunca me deu uma oportunidade — res­pondeu Dan sorrindo tristemente. — Agora é a vez de ele suar um bocado. Estou morto para ver se gosta. — Levantou-se e caminhou enfurecido para a porta. Quando aí chegou voltou-se e ao olhar para David a fúria parecia que tinha desaparecido.

— Vai falando, David. Há ainda a possibilidade de dar um pulo e trazer de empréstimo da Metro o Tracy e o Gable, se me apareceres com uma proposta aceitável.

David acenou com a cabeça e Pierce saiu. Olhou para a secretária. O trabalho do costume, pensou amargamente. Pierce só pensava em assegurar um contrato que lhe desse uns milhões de lucro. Era o seu negócio, nada tinha a ver com o Jonas Cord pessoalmente. Mas a venda do stock de acções já era outra coisa.

Pegou no telefone com enfado.

— Estou, Mr. Woolf.

— Telefone para o escritório de Mr. Bonner e pergunte se posso vê-lo imediatamente.

— No escritório dele ou no seu?

David riu-se. Normalmente o protocolo mandava que Bonner viesse ter com ele. Mas que estranhas eram as sensibili­dades dentro de um estúdio! Já todos sabiam que as coisas não estavam bem e até a secretária não estava bem segura da posição dele. Era aquela a sua maneira de indagar.

— No meu escritório, está claro! — disse David desligando o telefone.

Bonner apareceu cerca de três quartos de hora depois. Não era de estranhar atendendo à sua posição em relação a David. Não demasiado tarde para ser malcriado nem demasiado cedo para não parecer subserviente. Atravessou o quarto e veio sentar-se perto da secretária.                            

— Desculpa maçar-te, Maurice — disse David delicada­mente.

— Não faz mal, David — respondeu Maurice no mesmo tom delicado. — Dei um jeito para terminar mais depressa a reu­nião de produção.

— Óptimo. Tens portanto um bocado de tempo para me dedicares?                                              

Bonner olhou para o relógio.

— Devia ter agora uma conferência para estudar um argu­mento.

David sorriu.

— Os escritores estão habituados a esperar.

Bonner olhou para David com curiosidade. Instintivamente, coçou-se por cima da camisa. David viu e rindo-se perguntou-lhe:

— Estás com urticária?

— Ouviste contar a história? — perguntou Bonner.

David acenou com a cabeça.

Bonner sorriu e começou abertamente a coçar-se.

— Está a pôr-me completamente doido. Mas valeu a pena. Tens de experimentar a Jennie um dia. Essa rapariga põe a tua velha rabeca a tocar como um Stradivarius.

— Acredito. Eu vi o teste.

— Queria até perguntar-te, a propósito, porque é que man­daste registá-lo?

— Tinha de ser — disse David. — A Pecadora é proprie­dade nossa. Pertence pessoalmente ao Cord. E tu sabes bem como ele é. Não quero arranjar sarilhos.

Bonner olhou para ele em silêncio.

— Sheffield contou-me a tua venda do stock. — Tinha pa­rado de se coçar. — Sim — prosseguiu —, já calculava que o fizesse.

— Porquê? — perguntou David. — Se queres vender porque não falas com o Cord?

Bonner ficou calado por uns momentos.

— Mas para quê? Nunca o vi, sequer. Não foi suficiente­mente delicado para me vir falar uma única vez durante estes três anos em que trabalhei para ele. Não era agora que ia pôr-me a correr atrás dele. Aliás o meu contrato deve acabar no mês que vem e ainda ninguém veio ter comigo para o renovar. Nem sequer ouvi mais falar do McAllister. — Pôs-se outra vez a coçar-se.

David acendeu um cigarro.

— Porque não vieste procurar-me? — perguntou calmamente. — Fui eu que te trouxe para aqui.

Bonner desviou o olhar.

— Claro que podia ter vindo. Mas toda a gente sabe que não podes fazer nada sem o consentimento do Cord. Até conse­guires pôr-te em contacto com ele por causa do meu contrato, ele acabava-se. E ficava eu com cara de parvo diante de toda a gente.

David engoliu até muito fundo o fumo do cigarro. Eram todos iguais — tão sensatos, tão desembaraçados, tão capazes de fazer grandes coisas e contudo pareciam miúdos com os seus orgulhos acriançados.

Bonner tomou o silêncio de David por resignação.

— Sheffield disse-me que ia tomar conta de nós. Quer-nos a ambos, sabes? Disse-me que estabeleceria um novo con­trato logo que viesse para cá. Vai financiar películas, vai dar-nos um novo esquema de divisão de lucros, e algumas opções nos stocks.

— Tens na tua mão algum papel com isso escrito?

Bonner abanou a cabeça.                      

— Claro que não — disse. — Ele não pode assinar contratos comigo antes de tomar posse. Mas a sua palavra é de confiança. Ê um homem importante. Não como o Cord, que tanto está quente como está frio.

— Já alguma vez o Cord deixou de cumprir a sua palavra contigo?

Bonner abanou a cabeça.

— Não. Também nunca teve essa possibilidade. Eu tinha um contrato. E agora que ele está quase a acabar não vou dar-lhe essa oportunidade.

— És tal e qual como o meu tio — afirmou David. — Dava uma enorme atenção a homens como o Sheffield e acabava por estar metido no meio de acções e obrigações em vez de se dedicar aos filmes. E por isso perdeu a companhia. Agora estás tu a fazer a mesma coisa. Ele não pode dar-te um contrato porque não tem o contrôle da companhia, ainda que tu lhe tornes isso possível dando-lhe o teu consentimento assinado. — David pôs-se em pé, furioso. — E que vais tu responder-lhe, idiota, quando depois de ter conseguido esse contrôle ele te disser que não pode cumprir as suas promessas?

— Mas ele precisa de nós para continuar o negócio! Quem lhe fará as películas se eu o não fizer?

— Foi exactamente assim que o meu tio Bernie pensou — disse sarcasticamente David — Mas a verdade é que o negócio continuou mesmo sem ele. E também continuará sem nós. Sheffield pode sempre arranjar alguém que lhe dirija o estúdio. Schary da Metro está só à espera de uma oportunidade destas. O Matty da Universal correria para lá como peixe para a água. Sempre estava melhor aqui do que lá.

David deixou-se cair pesadamente na cadeira.

— Estás ainda convencido de que ele não consegue fazer andar a companhia sem nós? Bonner olhou para ele.

— Mas que hei-de fazer eu agora, David? Já assinei o meu consentimento por escrito e Sheffield pode processar-me se eu voltar atrás.

David pousou o cigarro.

— Se bem me recordo, tu, no teu acordo, comprometias-te a vender-lhe todo o stock que tivesses em teu poder no dia quinze de Dezembro, não é?

— Pois é.

— E se nessa data só tivesses ainda em teu poder uma pequena parte do stock total? — perguntou David suave­mente. — Se lhe venderes essa pequena parte já não faltas ao teu compromisso!

— Mas isto é já para a semana. Quem arranjavas tu para comprar o stock antes dele?

— Jonas Cord.

— E se não consegues pôr-te em contacto com ele antes disso? Lembra-te que fico a perder quatro milhões de dólares. Se por outro lado puser as acções no mercado para venda, a cotação delas baixa muito.

— Faço com que recebas o teu dinheiro. E, Maurice... — disse David inclinando-se sobre a secretária — podes assinar já o teu contrato.

— Quatro milhões de dólares! — gritou Irving. — Mas onde diabo pensas tu que posso desencantar esse dinheiro?

David olhou para ele.

— Deixa-te dessas coisas, Needlenose, bem vês que isto é história.

— E se o Cord diz que não quer as acções? — perguntou Irving numa voz mais calma. — Que faço eu depois com elas? Usá-las na casa de banho? — Irving trincou o cigarro. — Dizes que és meu amigo. Mas se me enganar num negócio destes, fico sem amigos e mais ninguém me conhece. Volto a ser o antigo Yitzchak Schwartz.

— E não era tão mau como isso!

— Não me digas se era mau!... — disse zangado. — De em­pregos como o meu não se pode ser despedido!

David olhou-o por um momento.

— Desculpa, Irving. Não tenho o direito de te pedir que te arrisques numa coisa como esta. — Voltou-se e dirigiu-se para a porta.

— Eh, espera aí! Aonde vais?

David olhou para ele.

— Já te disse que não fazia isto por ti?

O peito da tia May tremia de indignação.

— O teu tio foi como um pai para ti! — disse na sua voz esga­niçada. — Foste bom filho para ele? Apreciaste devidamente o que ele fez por ti? Não. Nem sequer lhe disseste uma só vez, enquanto foi vivo, obrigado. — Tirando um lenço do decote do vestido começou a enxugar os olhos. O brilhante de doze quilates que tinha no dedo mínimo brilhava como um farol. — E é gra­ças a Deus que a tua tia não precisa de passar o resto dos seus dias num asilo.

David recostou-se na cadeira rija e desconfortável. Começou a sentir o frio do entardecer invadir o quarto quase vazio daquela enorme casa. Sentiu um ligeiro arrepio mas não sabia se era realmente do frio ou se da maneira como aquela casa enorme sempre o impressionara.

— Quer que lhe acenda o fogão, tia?

— Tens frio, Duvidele? — perguntou-lhe a tia.

Ele encolheu os ombros.

— Pensei que a tia pudesse estar com frio.

— Com frio? — repetiu ela. — A tua pobre tia já está acostumada a estar com frio. Mas para poder manter esta casa tenho de olhar bem pelo meu dinheiro.

David olhou para o relógio.

— Está-se a fazer tarde, tia, e tenho de ir andando. Dá-me a procuração?

— Para que te a havia eu de dar? Para ires ajudar aquele artolas sem préstimo que roubou a companhia ao teu tio?

— Ninguém roubou a companhia. O tio tê-la-ia perdido de qualquer maneira. Ele teve foi muita sorte em encontrar um homem como o Cord, que o largou tão facilmente.

— Teve sorte? — a voz era outra vez um guincho. — Ti­rou-lhe todas as acções deixando-lhe apenas vinte e cinco mil. Que aconteceu ao resto delas, anda, diz-me?

— O tio Bernie recebeu por elas três milhões e meio de dólares.

— E depois?

— Não valiam nada — gritou já fora de si. — A tia sabia muito bem que ele se fartava de roubar a companhia. As acções nessa altura não valiam sequer o papel onde estavam impressas.

— Estás a chamar ladrão ao teu tio? — Ela pôs-se em pé com majestade. — Rua! — gritou apontando a porta. — Fora da minha casa!

Ele olhou-a por momentos, depois voltou-se e começou a andar em direcção à porta. Mas de repente parou e veio-lhe à memória uma cena igual que se passara com o tio, que também o tinha posto fora do escritório com as mesmas palavras. Ele saíra mas só depois de conseguir aquilo que pretendia. E a tia era ambiciosa como o tio Bernie nunca fora. Voltou-se pois.

— É verdade que são vinte e cinco mil acções? — obser­vou. — Um miserável um por cento de todo o stock. Mas agora valem qualquer coisa. Finalmente tem alguém na família que zela pelos seus interesses. Mas vá dar a procuração ao Sheffield e verá o que acontece. Foi ele quem empurrou o tio Bernie para a Wall Street. Se o fizer, não quero aqui estar para ver o que acontece aos seus haveres. Todas as acções passarão a ficar novamente pelo preço da uva-mijona.                

— Ela olhou-o por momentos.

— Isso é verdade?

David quase podia sentir os cálculos que estavam a ser feitos naquela máquina, qual máquina calculadora.

— É tudo absolutamente verdade!

Ela encheu o peito de ar.

— Bem, anda lá, então. Assino a procuração em teu nome. — Voltou-se e caminhou pesadamente para um gabinete. — O teu tio sempre disse que seguisse os teus conselhos quando necessitasse de resolver alguma coisa. Este David, dizia ele, tem uma bela cabeça em cima dos ombros.

Viu-a tirar alguns papéis, caminhar para uma secretária, agarrar numa caneta e assinar. Ele pegou depois neles e meteu-os dentro do bolso do casaco.

— Obrigado, tia May!

A tia sorriu-lhe. David ficou surpreendido quando ela lhe pe­gou na mão e começou a bater levemente no braço, quase a medo.

— O teu tio e eu nunca fomos abençoados com a vinda de uma criança — disse com uma voz trémula. — Por isso ele te considerava como um filho. — Fechou os olhos rapidamente — Não imaginas como se orgulhava de ti, mesmo depois de ter saído da companhia, quando lia o que escreviam a teu respeito nos jornais de cinema.

David sentiu na garganta um nó de pena por aquela velhota.

— Eu sei, tia May, eu sei!

Ela tentou sorrir.

— Que mulher tão bonita que tu arranjaste! — disse. — Porque é que não a trazes de vez em quando a tomar chá comigo?          

David pôs o braço em volta da velha tia e deu-lhe um beijo na cara.

— Hei-de trazê-la, sim senhora, e muito em breve.

Rosa estava à espera dele no escritório quando voltou ao estúdio.

— Quando miss Wilson me chamou para me prevenir de que vinhas tarde, pensei que seria boa ideia vir ter contigo e irmos jantar fora.                    

— Boa ideia — disse David dando-lhe um beijo.

— Então?

David sentou-se pesadamente na cadeira atrás da secretária.

— A tia May deu-me a procuração.

— Quer isso dizer que conseguiste arranjar dezanove por cento para votar!

— Não me serve de nada se o Jonas não me ajudar. Irving disse-me que seria obrigado a vender tudo ao Sheffield se o Cord não o viesse buscar.

Ela pôs-se em pé.

— Bem, fizeste tudo o que podias — disse com voz calma. — Agora vamos jantar.

No momento em que David se punha em pé entrou a secre­tária.

— Um telegrama de Londres, Mr. Woolf.

David tirou o sobrescrito e abriu-o.

 

     FIXAR DATA PRODUÇÃO PECADORA MARÇO

     CORD

 

Estava ele a estender o telegrama a Rosa quando a porta se abriu e apareceu de novo a secretária.

— Outro telegrama, Mr. Woolf.

Abriu depressa. Aflorou-lhe aos olhos um clarão de alívio.

 

       MC'ALLISTER PRONTO A DAR

       TODO O DINHEIRO NECESSÁRIO

       PARA MANDAR AO AR SHEFFIELD

       CHEGUEM-LHE FORTE

 

Como o primeiro telegrama, este vinha assinado por Cord. Passou-os ambos para a mão de Rosa. Ela viu-os e olhou para David com os olhos brilhantes.

— Conseguimos — disse ela radiante. Ele tinha começado a levantá-la nos braços quando a porta se abriu mais uma vez.

A rapariga parou hesitante à entrada da porta.

— Desculpe interromper, Mr. Woolf, mas chegou outro telegrama.

— Não fique aí parada e dê-mo. — Olhou para Rosa. — Este é para nós os dois — disse David. — Abre-o tu.

Rosa olhou para o sobrescrito e novamente para o tele­grama que tinha nas mãos.

 

       FELIZ SUCESSO

       ESPERO QUE SEJAM GÉMEOS!

 

Este estava assinado por JONAS.

 

                       JONAS – 1940

— Que raio de estupidez! — vociferou Forrester, enquanto levantava voo no CAB-200 atrás da formação dos Spitfires.

— Que é que é estúpido? — perguntei, olhando por detrás do assento do co-piloto para ver Londres emergindo da neblina da manhã. Vários incêndios ao longe continuavam ateados resultantes dos raids da noite anterior. — Eles ainda não nos compraram os aviões, mas creio que comprarão os B-17 da nossa produção. Que diabo, ambos sabemos que eles têm de uniformizar.

— Não estou a falar disso — resmungou Roger.

— Motores um e dois, em ordem — gritou Morris por detrás de nós. — Motores três e quatro, em ordem. Podem cortar já a gasolina.

— Está bem. — Roger diminuiu a mistura. — É disto que estava a falar — disse ele, apontando para Morrissey, que fazia as vezes de mecânico de bordo. — É estúpido... todos nós no mesmo avião. E se cai? Quem ficaria a dirigir a Companhia?

Sorri-lhe.

— Você preocupa-se de mais.

Devolveu-me o sorriso mas sem grande entusiasmo.

— É para isso que você me paga. O presidente da companhia tem por força que se ralar. Especialmente da maneira como estamos a progredir. Fizemos mais trinta e cinco milhões do que o ano passado; e este ano devemos ultrapassar os cem milhões com as encomendas de guerra. Teremos de treinar o pessoal para nos substituir no caso de suceder algo.

Peguei num cigarro.

— Que nos vai acontecer? — perguntei acendendo o cigarro e olhando para ele através da nuvem de fumo. — A não ser que você tenha ciúmes da RAF e lhe apeteça voltar outra vez ao activo.            

Estendeu o braço, tirou-me o cigarro da boca e pô-lo na sua.    

— Você sabe que não. Não poderia estar em forma como aqueles rapazes. Metiam-me num chinelo e, se tenho de ser um piloto arrumado, prefiro estar aqui onde pelo menos faço parte do vosso estado-maior.

Ele tinha razão no que dizia. A guerra levara-nos a uma expansão que nenhum de nós sonhara e ainda não estávamos no auge.

— Temos de arranjar alguém para dirigir a nossa organização no Canadá.

Concordei com a cabeça, em silêncio. Ele tinha razão — era uma medida acertada. Fabricaríamos as peças nas nossas fábricas nos Estados Unidos e embarcá-las-íamos para o Canadá, onde continuariam a construção em série.

Toda a nossa produção seria transportada pelos RCAF, pelo ar para Inglaterra. Se isto resultasse poderíamos fornecer pelo menos um avião em cada três semanas.

A ideia também nos trazia algumas vantagens fiscais. Os governos inglês e canadiano estavam de acordo em financiar a construção da fábrica poupando nós assim dos dois lados. Custar-nos-ia menos, pois não teríamos os encargos dos juros, e o imposto sobre o lucro líquido podia ser pago no Canadá onde as taxas de depreciação eram quatro vezes superiores àquelas admitidas pelo Tio Sam. E os «bifes» de Sua Majestade ficariam também contentes porque podendo manter-se no bloco esterlino, não teriam de despender os dólares americanos.

— O.K. Concordo. Mas nenhum dos rapazes que trabalham para nós tem a experiência suficiente para um negócio desta grandeza, com excepção de Morrissey, e nós não o podemos dis­pensar. Tem alguma ideia?

— Com certeza — disse olhando para mim curiosamente. — Mas você não vai gostar dela.

— Experimente e verá — disse olhando-o fixamente.

— Amos Winthrop.

— Não!

— É o único homem aqui que o poderá fazer — insistiu. — E não estará por muito tempo disponível. Da maneira como as coisas correm, alguém acaba por apanhá-lo.

— Deixá-lo! É um chato e um vaidoso. Além disso, é bombardeado sempre em tudo o que faz.

— Ele sabia como ninguém de produção de aviões — repetiu Forrester teimosamente olhando para mim outra vez. — Sei o que se passou entre vocês, mas isso nada tem a ver com isto agora.

Não respondi. Por cima de nós vi a formatura dos Spitfires a abanar as asas. Era o sinal de ligar o rádio. Forrester baixou-se e ligou o interruptor.

— Pronto, comandante?

— É aqui que vos deixamos, meu velho.

Olhei para baixo. As águas cinzentas do Atlântico brilhavam atrás de mim. Estávamos a 100 milhas da costa das Ilhas Britânicas.

— O.K., comandante — gritou Forrester. — E obrigado.

— Sãos e salvos, amigos. E não se esqueçam de nos mandarem os grandes. Precisaremos deles no próximo Verão para retribuir aos boches.

Forrester riu-se dentro da sua máscara. Os ingleses tinham acabado de apanhar uma tareia mestra e estavam preocupados com a desforra.

— Tê-los-á, comandante.

— Está bem. Desligo.

Abanando outra vez as asas dos seus Spitfires, a formação afastou-se para longe descrevendo círculos rumo à costa. Fez-se silêncio e lá fomos sozinhos através do Atlântico em direcção a casa.

Tirei o meu cinto de segurança e pus-me de pé.

— Se não se importa vou lá para trás um bocado dormir uma soneca.

Roger acenou com a cabeça em sinal de assentimento. Abri a porta da cabina.

— Pense no que lhe disse — gritou-me.

— Se se está a referir a Amos Winthrop, esqueça-se.

Morrissey estava sentado de maneira deprimente no assento do mecânico. Olhou-me quando entrei.

— Não percebo — disse ele pesarosamente.

Sentei-me na borda do banco.

— É bem fácil de perceber. Os B-17 voam com uma tripu­lação de cinco homens contra nove homens dos nossos. Isto quer dizer que eles podem pôr quase o dobro de aviões no ar do que nós. Ida e volta à Alemanha num máximo de duas mil milhas, de modo que não precisam de aviões de longo raio de acção sendo o custo das operações pouco mais de metade das nossas.

— Mas este avião pode ir dez mil pés mais alto e per­correr duzentas milhas por hora mais — disse Morrissey. — E leva quase o dobro de peso de bombas.

— O seu problema, Morrissey, é estar avançado de mais para a época. Eles ainda não estão preparados para aviões como estes.

Vi no seu olhar uma expressão de receio. Por um momento tive pena dele. E o que eu dissera era verdade. Na minha opinião, ele era o maior mecânico de aviões do mundo inteiro.

— Esqueça-se, e não se rale. Verá que eles ainda lhe darão razão. Qualquer dia terão aviões como estes no ar aos milhares.

— Não será nesta guerra — disse resignado. Tirou um termo duma caixa de cartão; — Vou levar café ao Roger.

Entrou no compartimento do piloto e eu estendi-me no assento. O ruído dos quatro grandes motores entrava-me pelos ouvidos. Fechei os olhos. Durante as três semanas que estivera em Inglaterra não tivera uma única noite descansado, entre bom­bardeamentos e raparigas. Bombardeamentos e raparigas. Os bombardeamentos. As raparigas. Adormeci.

O zumbido agudo de uma bomba atingiu o auge quando caiu muito perto. Toda a conversa na mesa de jantar ficou suspensa por um momento.

— Estou preocupada com a minha filha, Mr. Cord — disse uma senhora magra de cabelos grisalhos, sentada à minha direita. Olhei para ela e depois para Morrissey sentado no lugar oposto ao meu. A sua cara estava tensa e pálida. Olhei novamente para a mulher. A bomba caíra praticamente à porta e ela mostrava-se preocupada com a filha que estava na América. Talvez tivesse razão para isso. Era a mãe de Mónica.

— Não vejo Mónica depois que ela fez nove anos — conti­nuou Mrs. Holme nervosamente. — Isto é, há quase vinte anos. Penso nela muitas vezes.

«Pensa de mais» disse eu com os meus botões. Pensava que era diferente com as mães. Mas eram iguais aos pais. Pensam neles próprios primeiro. Pelo menos era uma coisa que Mónica e eu tínhamos em comum. Os nossos pais nunca se importaram connosco: minha mãe morrera e a dela fugira com outro homem qualquer.

Olhou para mim com os seus olhos de cor profundamente violeta sombreados de longas pestanas pretas. Via-se bem a beleza que tinha transmitido a Mónica.

— Pensa que será possível encontrá-la quando voltar para os Estados Unidos, Mr. Cord?

— Duvido, Mistresse Holme — disse-lhe eu. — Mónica vive em Nova Iorque e eu em Nevada.

Ficou silenciosa por uns momentos olhando-me depois mais uma vez com insistência.

— Não gosta muito de mim, pois não, Mr. Cord?

— Nunca pensei nisso, Mistresse Holme — disse eu rapidamente. — Lamento que lhe tenha dado essa impressão.

Sorriu.

— Não foi nada que dissesse. Foi a expressão do seu olhar no dia em que lhe disse quem eu era. — Brincava nervosamente com a colher. — É natural que Amos lhe tenha contado tudo a meu respeito. Como eu fugi com outro homem, deixando-o com uma filha para criar.

— Winthrop e eu nunca fomos íntimos ao ponto de me contar essas coisas. Nunca falámos de si.

— Tem de me acreditar, Mr. Cord — murmurou ela com súbita intensidade na voz. — Eu não abandonei a minha filha. Quero que ela saiba e que compreenda.

Nada se modificara. Continuava a ser mais importante para os pais serem compreendidos do que compreenderem.

— Amos Winthrop era um mulherengo e um intrujão — continuou calmamente, sem amargura. — Os dez anos que vivemos juntos foram um inferno. Durante a nossa lua-de-mel, encontrei-o com outra mulher. E finalmente quando me enamorei de um homem decente, honesto, fez chantagem comigo, obrigando-me a entregar-lhe a minha filha, ameaçando-me de escândalo e da ruína que provocaria na carreira desse homem ao serviço de Sua Majestade, se o não fizesse.

Olhei para ela. O que acabara de dizer coincidia, pois Amos era homem para isso e muito mais. Eu sabia.

— Alguma vez escreveu a Mónica a contar isso?

— Como é que uma mulher pode escrever isso à sua filha, a contar-lhe uma coisa dessas do seu próprio pai?

Não respondi.

— Há cerca de dez anos, Amos escreveu-me dizendo que ia mandar Mónica para a minha companhia. Pensei que, quando me conhecesse melhor, lhe poderia contar as coisas e então me compreenderia. — Baixou um pouco a cabeça. — Li nos jornais a notícia do vosso casamento e ela nunca veio.

O criado veio tirar os pratos vazios. Outro criado pôs chá­venas à nossa frente. Quando ele se retirou, falei.

— Afinal o que quer que eu faça exactamente, Mrs. Holme?

O seu olhar perscrutou-me durante um momento. Vi-lhe os olhos vagamente húmidos, se bem que a sua voz se mantivesse firme.

— Se chegar a falar com ela, Mr. Cord — disse —, diga-lhe que perguntei por ela, que penso nela e que gosto sempre de ter notícias dela.

— Farei o que me pede, Mrs. Holme — garanti-lhe ace­nando com a cabeça.

O criado começou a servir o café enquanto as bombas res­soavam surdamente lembrando o barulho de uma trovoada de Londres em tempo de paz.

O ruído dos quatro motores voltou a soar aos meus ouvidos quando abri os olhos. Morrissey, sentado, com a cabeça pen­dente para um lado, dormitava numa posição desconfortável. Abriu os olhos quando me sentei.

— Quanto tempo estive a dormir? — perguntei.

— Cerca de quatro horas.

— Talvez seja melhor ir render o Roger — disse eu pondo-me de pé.

Forrester olhou-me quando entrei na cabina.

— Você devia estar cansado. Ressonava tão alto que parecia que tínhamos cinco motores em vez de quatro.

Instalei-me no assento do piloto.

— Acho melhor rendê-lo por um bocado. Onde estamos nós?

— Aqui pouco mais ou menos — disse ele apontando para o mapa colocado entre nós dois. Olhei para baixo. Estávamos a cerca de mil milhas de distância em pleno oceano.

— Estamos atrasados.

Abanou a cabeça.

— Voamos com vento forte pela proa.

Tomei os comandos e puxei-os para trás até ficarem fixos.

— O. K. — gritei. — Já cá estão.

Roger largou os dele, pôs-se de pé e espreguiçou-se.

— Vou ver se passo pelas brasas.

— Muito bem — disse-lhe olhando para fora. Principiava a chover.

— Tem a certeza que poderá estar de olhos abertos por algumas horas?

— Cá me arranjarei.

Riu-se.

— Ou você é melhor do que eu, Gunga Din, ou estou a ficar velho. Durante o tempo em que estivemos em Londres pensei, algumas vezes, se você não iria fazer amor com todas as mulheres.

Olhei para ele sorrindo de esguelha.

— Do modo como aquelas bombas caíam, pensei que deve­ria aproveitar o tempo o melhor possível.

Riu-se novamente e saiu da cabina. Concentrei-me nos comandos. Afinal não era o único a pensar assim. As raparigas também pensavam o mesmo. Havia qualquer coisa de desespe­rado na maneira como elas insistiam e pediam que aceitássemos os favores que concediam.

Começara agora a nevar. Grandes flocos batiam no pára-brisas. Liguei as antigelo, olhando os flocos de neve transfor­mando-se em água no «plexigas». A velocidade era de 200 com tendência a diminuir. Isto queria dizer que o vento estava a au­mentar. Decidi-me a levantar a altitude e tentar o voo por cima de tudo isto.

Puxei os comandos para trás. O grande avião começou lentamente a subir. Atravessámos as nuvens a treze mil pés para um sol lindíssimo. Liguei o giroscópio e deixei o avião seguir na horizontal.

Todo o resto da viagem para casa foi suave e sem nuvens.

Robair estava de pé junto da porta quando saí do elevador. Apesar de serem somente quatro da manhã estava fresco que nem uma alface, de olhos bem abertos e sorridente na sua camisa branca impecável dentro de um casaco de criado feito à medida.

— Bom dia, Mr. Cord. Fez boa viagem?

— Óptima, obrigado Robair.

Fechou a porta atrás dele.

— Mr. McAllister está na sala. Tem estado à sua espera desde as oito da noite.

— Vou falar com ele — disse passando para o átrio.

— Preparei-lhe algumas sanduíches e café, Mr. Cord.

Parei e olhei para o alto negro. Parecia-me que nunca enve­lhecia. O cabelo mantinha-se ainda preto e espesso e a sua estatura continuava gigantesca e robusta.

— Olha. Robair, queres saber uma coisa? Senti saudades tuas!

Sorriu outra vez. Nada havia de subserviente e falso no seu sorriso.

— Também tive saudades suas, Mr. Cord.            

Voltei-me e entrei na sala. Robair era mais do que um amigo. De certo modo ele era o meu anjo da guarda. Não sei como teria resistido sem ele depois da morte de Rina. Quando regressei a Reno, eu era um autêntico náufrago. Não tinha vontade para nada. Bebia, para esquecer, e estava farto de toda a gente. Meu pai fez tudo o que quis de mim. Tomou a mulher que eu queria. Tinha sido a mulher dele que tinha morrido. Porque chorava eu? Porque me sentia tão vazio?

Certa manhã, então, acordei na porcaria do quintal, que dava para a arrecadação, com Robair debruçado sobre mim. Lembra­va-me vagamente de ter encostado a cabeça na parede da arreca­dação após ter bebido uma garrafa de whisky. Tudo aquilo acon­tecera na noite anterior. A garrafa vazia jazia a meu lado. Pus as mãos no chão para me levantar. A cabeça doía-me imenso e tinha a boca seca. Quando quis levantar-me não tinha forças para isso. Senti os braços de Robair a levantarem-me. Começámos a andar sobre a terra batida.

— Obrigado — disse-lhe encostando-me levemente a ele. — Fico bom logo que beba qualquer coisa.

— Acabou-se o whisky, Mr. Cord — disse numa voz tão suave que julguei não ter ouvido bem. Olhei para ele.

— Que é que você disse?

Os seus grandes olhos estavam impassíveis.

— Não há mais whisky — repetiu. — Parece-me que é altura do senhor parar.

Ao ouvir isto a raiva dentro de mim deu-me forças e afas­tei-o.

— Quem diabo julga você que é? — gritei-lhe. — Se eu qui­ser beber bebo mesmo, ouviu?

Ele abanou a cabeça.

— Não há mais whisky. O senhor já não é nenhum rapa­zinho. Não pode esconder-se atrás de uma garrafa de whisky sempre que a vida lhe correr mal.

Olhei para ele sem fala por momentos enquanto o choque e a raiva me percorriam em ondas sucessivas, nas minhas veias. Ao recuperar a voz gritei-lhe:

— Estás despedido. Nenhum filho da puta de um negro me vai dizer o que devo fazer.

Voltei-lhe as costas e dirigi-me para casa. Senti a mão dele no meu ombro. Virei-me. Na sua cara via-se uma grande tristeza.

— Desculpe, Mr. Cord. — disse ele.

— Não há necessidade de pedir desculpa, Robair!

— Não peço desculpa por aquilo que lhe disse, Mr. Cord — respondeu em voz baixa. Vi então o punho dele erguido na minha direcção. Tentei fugir ao golpe mas o meu corpo não obedeceu e fiquei mergulhado em profunda escuridão.

Desta vez, quando acordei, achava-me dentro da minha cama, coberto com lençóis lavados. A lareira estava acesa. Sentia-me muito fraco. Voltei a cabeça e vi Robair sentado numa cadeira, à minha cabeceira. Uma pequena terrina fume­gava com sopa na mesa ao seu lado.

— Tenho aqui uma sopinha quente para o senhor! — disse ele olhando-me bem nos olhos.

— Porque é que me trouxeste para aqui?

— O ar da montanha vai fazer-lhe bem.

— Eu não fico aqui! — bradei, tentando levantar-me. — Fiquei farto disto depois da minha lua-de-mel.

A mão de Robair empurrou-me suavemente para trás deitando-me nas almofadas.

— O senhor vai ficar aqui — disse muito calmo. Mergu­lhou a concha na terrina, despejou-a na tigela e serviu-me uma colher. — Coma!

Havia uma certa autoridade na sua calma e eu abri a boca involuntariamente, antes mesmo de pensar no que fazia. Senti a sopa quente escorrer-me pela garganta. Empurrei-lhe a mão.

— Não quero mais.

Olhei para os seus olhos escuros e senti um nó na garganta. Jamais me sentira tão solitário. De repente comecei a chorar. Ele pousou o prato da sopa.

— Vá, chore à vontade, mas não pense que as lágrimas e o whisky lhe poderão afogar as mágoas.

Quando por fim me decidi a sair do quarto, à tardinha, Robair estava sentado no terraço. Tudo verdejava. Arbustos e árvores cobriam as montanhas e ao longe via-se a areia vermelha e amarela do deserto. Pôs-se de pé, quando apareci. Cheguei-me à grade do terraço e olhei para baixo. Estávamos longe do mundo. Voltei-me e olhei para ele.

— Que temos para o jantar, Robair? — perguntei.

Encolheu os ombros.

— Para lhe dizer a verdade, Mr. Cord, estava à espera de ver como o senhor se sentia. Há aqui um riacho próximo que tem trutas de um tamanho nunca visto. — Sorriu. — Uma caldeirada de trutas parece-me uma óptima ideia!

Há quase dois anos que chegáramos às montanhas. Havia muita caça e uma vez por semana Robair descia para procurar provisões. Eu estava rijo e queimado do sol. As carnes balofas criadas na cidade tinham desaparecido. Sentia os músculos mais robustos no corpo todo. Criáramos uma rotina e era espantoso como os negócios corriam bem sem mim. Isto só confirmava a máxima de que atingindo-se um tamanho não se podia parar. Todas as minhas companhias estavam em franco progresso com excepção da produtora de filmes. Esta tinha uma capitalização deficiente mas isso pouco me importava.

Três vezes por semana falava com McAllister pelo telefone e era o suficiente para resolver a maior parte dos problemas. Uma vez por mês McAllister vinha até cá de carro com a pasta cheia de papelada para eu assinar ou relatórios para estudar. Mac era um homem eficientíssimo. Pouca coisa lhe escapava aos olhos observadores. De um modo para mim misterioso tudo o que acon­tecia por lá de importante aparecia nos seus relatórios. Mas havia outras coisas que tinha de resolver pessoalmente. Aliás à distân­cia pareciam-me insignificantes.

Estávamos aqui há quase ano e meio quando tivemos a pri­meira visita estranha. Tinha estado a caçar e ao voltar por um atalho, com o cinto cheio de perdizes, vi um carro desconhecido parado em frente da casa. Era um Chevrolet com matrícula da Califórnia. Torneei-o e fui ver o registo à frente: Rosa Strassmer, M. D., 1104-Coast Highway, Malibu, Cs. Dei a volta e entrei em casa. Estava uma rapariga sentada no sofá a fumar. Tinha cabelos escuros, olhos cinzentos e queixo firme. Quando se pôs em pé vi que trazia umas calças desbotadas que lhe faziam acentuar as curvas femininas dos quadris.

— Mr. Cord? — perguntou ela num tom de leve curiosi­dade, estendendo-me a mão. — Eu sou Rosa Strassmer, filha de Otto Strassmer.

Tomei-lhe a mão e fitei-a por momentos nos olhos. O aperto foi firme. Tentei não demonstrar o meu aborreci­mento pela intromissão.

— Como soube que eu estava aqui?

Ela tirou um sobrescrito e entregou-mo.

— Mr. McAllister pediu-me que lhe entregasse este sobres­crito quando soube que vinha para estes lados para gozar férias.

Abri o sobrescrito e li o que vinha dentro. Não era nada que não pudesse esperar até à sua próxima visita. Atirei-o para cima da mesa. Robair entrou na sala nesse momento. Olhou para mim com curiosidade enquanto levava a caça e a espingarda para a cozinha.

— Espero que não o tenha incomodado, Mr. Cord! — disse ela rapidamente. Olhei-a. O que eu sentia não era culpa dela. Era o Mac a lembrar-me com subtileza que eu não podia ficar eternamente na montanha.

— Não — respondi. — Deve perdoar a minha surpresa. Não costumo ter aqui muitas visitas.

Ela sorriu de repente. Quando sorria o rosto iluminava-se de uma certa beleza estranha.

— Não compreendo porque é que o senhor não convida pessoas a virem até aqui — disse. — Mais de duas pessoas estragariam um paraíso como este.

Não respondi.

Ela hesitou por um momento e encaminhou-se para a porta.

— Tenho de ir andando — disse desastradamente. — Tive muito prazer em o conhecer. Meu pai tem falado muito de si.

— Drª Strassmer!

— Sim, Mr. Cord — respondeu voltando-se para mim surpreendida.

— Tenho de lhe pedir que me perdoe outra vez — volvi eu rapidamente. — Vivendo aqui como tenho vivido, receio ter perdido as boas maneiras. Como está o seu pai?

— Está bem e satisfeito, Mr, Cord, muito obrigada. Ele nunca se cansa de me contar como o senhor burlou Göering conseguindo que este autorizasse a sua saída da Alemanha. Acha que o senhor é um homem muito corajoso.

Sorri.

— O seu pai é que é corajoso, doutora. O que eu fiz é nada.

— Para minha mãe e para mim fez muito! — disse ela. Hesitou outra vez. — Agora é que tenho mesmo de ir.

— Fique para jantar — pedi-lhe. — Robair faz um coelho recheado com arroz que vai gostar muito.

Os seus olhos fitaram os meus por um momento.

— Fico — aceitou ela. — Mas só com uma condição! Que você me chame Rosa e não doutora.

— Concordo. Agora sente-se outra vez. Vou pedir a Robair que nos traga uma bebida.

Mas Robair já estava à porta com dois martinis. Era tarde de mais para ela sair depois do jantar, de modo que Robair lhe arranjou um pequeno quarto de hóspedes. Rosa retirou-se e só depois de eu ficar mais um momento na sala é que fui para o meu. Custou-me a adormecer, coisa que não me acontecia há muito. Olhava as sombras que se projectavam na parede quando senti um barulho na porta. Sentei-me.

Ela ficou silenciosamente à porta por um momento. Só então entrou no meu quarto. Parou à beira da cama e olhou para mim.

— Não tenha medo, homem solitário — sussurrou numa voz suave. — Eu não quero mais nada de si do que esta noite.

— Mas Rosa...

Pôs o dedo nos meus lábios para me calar e deixou-se cair na cama, toda ela mulher, paixão, calor e compreensão. Afagou-me a cabeça maternalmente.

— Agora compreendo porque o McAllister me mandou cá.

Apertei nas minhas mãos os seus seios jovens e firmes.

— Rosa, você é linda! — murmurei-lhe.

— Sei que não sou linda, mas sinto-me feliz por dizer isso.

Ouvi-a rir baixinho.

Pôs a cabeça para trás sobre as almofadas e olhou-me com os seus olhos meigos e quentes.

— Komen sie, liebchen — disse suavemente puxando-me para os seus braços. — Você trouxe meu pai para o seu mundo, deixe-me que o traga para o seu mundo outra vez.

De manhã, após o pequeno-almoço e depois de ela ter partido, entrei na sala pensativamente. Robair olhou para mim da mesa donde tirava a louça. Não dissemos palavra. Não era necessário. Naquele momento ambos compreendemos que deixar a montanha era só uma questão de tempo. Já não está­vamos muito longe disso.

McAllister estava a dormir no sofá quando entrei na sala. Cheguei-me a ele e toquei-lhe no ombro. Abriu os olhos e olhou para mim.

— Viva, Jonas — disse sentando-se e esfregando os olhos. Tirou um cigarro e acendeu-o. Momentos depois o sono tinha desaparecido. — Esperei por si porque o Sheffield quer por força uma reunião.

Deixei-me cair numa cadeira à sua frente.

— O David sempre foi levantar as acções?

— Sim!

— O Sheffield já sabe?

— Penso que não! — disse ele. — Pela maneira como fala parece estar convencido que as tem no papo. — Esmagou o cigarro no cinzeiro. — Sheffield disse que se você falasse com ele antes da reunião talvez estivesse disposto a dar-lhe preferência pelas suas acções.

Ri-me.

— Isso é muito amável da sua parte, não acha? — Descalcei os sapatos. — Diga-lhe que vá à fava!

— Um momento, Jonas! — disse rapidamente McAllister. — Acho melhor você encontrar--se com ele de qualquer maneira. Pode causar-nos muitos aborrecimentos. Ele tem trinta por cento das acções.

— Deixá-lo! — ripostei. — Se quer luta tê-la-á pela barba.

— Em todo o caso fale com ele — pediu Mac. — Você tem agora muito que fazer e não pode perder tempo em lutas.

Tinha razão, como sempre. Eu não podia estar em seis lugares ao mesmo tempo. Além disso, se eu queria fazer O Pecador não aceitaria que uma pequena minoria de accionistas prejudicasse a produção.

— O. K. Então telefone-lhe e diga-lhe que venha cá já!

— Venha já? — perguntou Mac. — São quatro horas da manhã!

— E então? É ele que quer a entrevista. — Mac foi ao tele­fone. — E quando acabar de falar com ele telefone para Moroni na Costa pergunte-lhe se o banco me dá o dinheiro para comprar as acções do Sheffield se eu lhes der a primeira hipoteca sobre os teatros. — Não via razão para fazer uso do meu dinheiro desde que não fosse absolutamente indispensável.

Eu via Sheffield levar a chávena de café à boca. Estava mais magro, o cabelo um pouco mais grisalho, mas o seu olhar brilhava debaixo dos óculos sem aros pousados no nariz mais parecido com o de uma ave de rapina. Mesmo assim ele aceitou a derrota com mais galhardia do que eu aceitaria se estivesse no lugar dele.

— Onde é que eu errei, Jonas? — perguntou como que casualmente, na sua voz desprendida como um médico com o seu doente. — Eu estava disposto a pagar o suficiente para as adquirir.

Deixei-me enterrar mais na cadeira onde estava sentado.:

— A sua ideia era acertada. Usou foi moeda errada.    

— Não percebo!

— As pessoas do cinema são diferentes. Certamente que gostam de dinheiro como toda a gente. Mas há algo mais que eles querem além disso.

— Poder?

Acenei com a cabeça.

— Em parte! O que querem mais do que tudo é fazerem filmes. Filmes que lhes dêem fama. Querem considerar-se artistas. Bem protegidas com dinheiro, já se vê, mas artistas de qualquer forma.

— E então como você já fez filmes, deram preferência às suas promessas?

— Creio que é isso mesmo. — Sorri. — Quando eu produzo um filme pensam que estou a correr os mesmos riscos que eles.

Eu não arrisco dinheiro. Tudo o que valho vai comigo. A minha reputação, a minha habilidade e o meu poder criador.

— Poder criador?

— É uma expressão de David Woolf. Usou-a para definir certos produtores. Aqueles que fizeram grandes filmes. Aqueles que não fizeram grandes filmes. Em suma, preferiram-me porque eu estava disposto a pensar como eles.

— Já percebo — disse Sheffield pensativo. — Não farei outra asneira igual.

— Tenho a certeza que o não fará. — Comecei a suspeitar. Tudo era fácil de mais. Estava sendo demasiado condescendente. Era um lutador nato. E os lutadores não se deixam vencer tão facilmente. Além disso todo o seu jogo tinha sido encaminhado de uma maneira inconsistente e diferente da sua maneira habitual de negociar. Sheffield era um homem de negócios. Estava habi­tuado a lidar com gente de negócios. Desta vez tinha-se dirigido directamente à gente de teatro. Noutros casos iria ter comigo logo de princípio e teríamos decidido a questão entre os dois. Cada um de nós faria concessões um ao outro e ficaríamos satisfeitos.

Só poderia haver uma resposta para tudo isto. Qualquer coisa que lhe acontecera em Inglaterra, quando lá estive, começou a fazer sentido. Saíra da sala de projecção da nossa organização em Londres depois de ter visto o teste de Jennie Denton, com o nosso director de vendas. O telefone tocara quando entrámos no gabinete. Ele levantara o auscultador e falara durante uns poucos minutos, desligando logo a seguir e olhando para mim.

— Eram os compradores da cadeia de teatros Engel — disse ele. — Estão agora ansiosos por produção. Perderam completamente os estúdios durante os primeiros bombardeamentos. Nunca quiseram comprar produção americana como as outras companhias fizeram.

— Que é que eles vão fazer? — perguntei ainda com o pen­samento nos testes. Pela primeira vez, desde que Rina morrera, comecei a sentir o entusiasmo que sentira quando produzia um filme. Só ouvi metade da sua resposta.

— Não sei — respondeu ele. — Têm quatrocentos teatros e se não arranjam produção adicional durante os próximos seis meses terão de fechar pelo menos metade.

— Isso é mau! — foi a minha resposta. Queria lá saber. Engel, tal qual Korda, viera da Europa Central para Inglaterra e entrara no negócio do cinema. Enquanto Korda se concentrou na produção, Engel concentrara-se nos cinemas. Começara a produzir só para resolver o seu problema de fornecimento. A «Rank» a «British Liont», a «Gaumont e Associadas» conseguiram controlar toda a produção, inglesa e americana. Mesmo assim não existia qualquer motivo para o lamentar. Ouvia dizer que os seus investimentos nos Estados Unidos eram para cima de 20 milhões de dólares.

Esquecera este assunto até agora. Tudo condizia perfeita­mente com o que se passava. Era uma trapaça habilidosa se Engel conseguisse roubar a companhia mesmo nas minhas bochechas. E esta era a espécie de sonho que qualquer europeu da Europa Central sonharia realizar.

Olhei para Sheffield.

— Que é que Engel pensa agora fazer com as acções? — perguntei por perguntar.

— Não sei. — Olhou então para mim. — Não admira — disse baixinho. — Agora percebo porque nada conseguimos. Você já sabia disto tudo há muito.  

Não respondi. Vi por detrás dele a expressão de surpresa de Mac que fingi ignorar.

— E eu que começava a acreditar que as pessoas que tra­balham para o cinema eram fixes umas para as outras em qualquer ocasião — observou Sheffield.

Sorri.

— Agora que o negócio falhou, Engel não terá outra alternativa senão fechar os cinemas. Não poderá obter qualquer produção de outro lado qualquer.

Sheffield estava calado de olhos cansados.

— Está bem, Jonas — disse ele. — Que pensa fazer?

Não gostaria Mr. Engel de comprar a «Norman Film Distributors» de Inglaterra? Essa compra garantir-lhe-ia o acesso à nossa produção e talvez não tivesse necessidade de fechar aqueles cinemas.

— Quanto é que isso lhe poderia custar? — perguntou Sheffield.

— Quantas acções possui ele?

— Cerca de seiscentas mil!

— É quanto lhe vai custar.

— Mas são cinco milhões de dólares! A British Norman só rende cerca de trezentos mil por ano. Com este ritmo levaria quase vinte anos para reaver o seu dinheiro.

— Tudo depende do lado que encaramos as coisas. Fe­chando trezentos cinemas significaria uma perda de um milhão de libras por ano.

Olhou para mim durante uns momentos antes de se pôr em pé.

— Posso usar o seu telefone para fazer uma chamada para Londres? Apesar da diferença de horas talvez consiga apa­nhá-lo no seu escritório antes de sair.

— Faça favor — disse eu. Olhando para o meu relógio en­quanto ele se dirigia para o telefone verifiquei que eram nove horas e que ainda o apanharíamos, pois ninguém, nem mesmo Georges Engel, saía do escritório às duas da tarde. E então na «Alegre Inglaterra», onde os escritórios estão abertos até às seis da tarde com os empregados sentados nos bancos altos, às velhas secretárias. E era até possível que o Engel estivesse à secretária à espera da chamada de Sheffield!

Ao meio-dia estava tudo arranjado. Mr. Engel e os seus advogados viriam a Nova Iorque na próxima semana para assinar o contrato! Só havia uma coisa que não estava bem. Eu teria de ficar em Nova Iorque. Peguei no auscultador.

— A quem é que vai telefonar? — perguntou Mac.

— A David Woolf. Ele é o director-geral da nossa compa­nhia. É bom que esteja aqui para assinar os papéis.

— Pouse o telefone! — ripostou Mac aborrecido. — Ele está em Nova Iorque. Trouxe-o comigo.

— Oh! — exclamei. Fui até à janela e olhei para baixo. Nova Iorque a meio da manhã. Senti a tensão do tráfego subindo Park Avenue. Começava a ficar inquieto. Voltei-me para McAllister.

— Bem. Então mande-o chamar. Vou começar um grande filme daqui a dois meses. Quero saber o que é que ele tem feito sobre isto.

— O David trouxe com ele Bonner para estudar consigo todos os pormenores da produção.

Olhei-o fixamente. Tinham pensado em tudo. Atirei-me para uma cadeira. A campainha tocou e Robair abriu a porta. Forrester e Morrissey entraram. Olhei para eles enquanto atravessavam a sala.

— Supunha que você tivesse ido para a Califórnia esta manhã, Morrissey — disse com frieza. — Como diabo vamos nós ter essa produção a andar?

— Não sei se poderemos, Jonas — volveu rapidamente.

— Que diabo quer você dizer com isso? — gritei eu. — Você tinha-me dito que podíamos. Estava lá quando assinámos o contrato.

— Calma, Jonas! — aconselhou Forrester, sereno. — Temos um problema!

— Que espécie de problema?

— O Exército dos Estados Unidos encomendou cinco CA-200. Querem a primeira entrega em Junho ou arranjaremos um sarilho. Não os podemos construir ao mesmo tempo que os B-17. Você terá de decidir quais os que fabricaremos primeiro.

Fixei-o.

— Tome você a decisão. É o director da Companhia…

— Mas você é que é o dono desta trampa! — gritou ele por sua vez. — Qual dos contratos quer cumprir?

— Ambos. Não estamos metidos em negócios para deitar dinheiro fora.

— Então teremos que pôr a fábrica da Califórnia a funcionar imediatamente. Poderemos controlar a pré-fabricação se os B-17 forem montados fora.

— Pois faça-o! — disse.

— O. K. Chame Amos Winthrop para dirigir.

— Já lhe disse antes. Não quero Winthrop.

— Sem Winthrop, nada feito! Não estou disposto a mandar uma quantidade de homens para a morte em aviões montados por amadores, só porque você é teimoso e não quer ouvir a razão.

— Com que então continua armado em herói voador? — per­guntei desdenhosamente. — Que lhe importa quem monta os aviões? Não é você que os vai pilotar!

Ele atravessou o quarto direito a mim olhando-me fixa­mente. Eu estava sentado e pude ver os seus punhos fecharem-se.

— Enquanto você vadiava em Londres atrás das galdérias, estava eu nos campos de aviação vendo aqueles pobres diabos extenuados pelo esforço de evitarem que as bombas dos «boches» caíssem sobre a sua cabeça. Foi nessa altura precisa que resolvi que se apanhássemos aquele contrato, eu, pessoal­mente, teria o cuidado de ver se todos os aviões estariam em condições, sem qualquer relutância de os pilotar eu mesmo.

— Bravo! Bravo! — comentei sarcasticamente.

— Quando é que você decidiu dar o seu nome a aviões de segunda categoria?

Olhei-o por um momento. Tinha razão. Meu pai dissera ó mesmo mas em assunto diferente. Estávamos a inspeccionar uma fábrica em Nevada e Jake Platt, quando o encarregado veio ter com o meu pai falando-lhe do fraco aproveitamento dos desperdícios e sugerindo o aproveitamento numa grande encomenda onde fossem absorvidos. Meu pai ficou furioso. «— E quem absorveria a perda da minha reputação? — gritou ele. — É o meu nome que está em todas aquelas latas de des­perdício. Queime-as imediatamente!»

— Está bem, Roger — disse eu vagarosamente. — Pode chamar Winthrop.

Olhou-me nos olhos por um momento. Quando voltou a falar estava mais calmo.

— Mandarei Morrissey para o Canadá para que comece tudo imediatamente. Eu vou para a Costa iniciar a produção.

— Onde está ele?

— Não sei! — respondeu. — Da última vez que ouvi falar dele estava em Nova Iorque, mas quando procurei saber esta manhã, ninguém sabia onde parava. Parece que se sumiu por encanto!

Atirei-me para um canto da grande limusina e atravessámos a ponte de Queensboro. Já estava arrependido da decisão que tomara em vir aqui. Havia algo que me deprimia o ânimo em Queens. Olhei pela janela do carro enquanto Robair guiava com perícia através de um tráfego intenso. Subitamente fiquei aborrecido com Mónica por morar nestes sítios.

Reconheci o grupo de casinhas enquanto o carro deslizava lentamente até parar. Nada mudara a não ser a relva que estava agora seca. Era Inverno e quando aqui estive no Verão, a última vez, era verde.

— Espera aqui — disse a Robair. Subi os três degraus e carreguei no botão da campainha da porta. Um vento gelado soprava entre os edifícios. Puxei a gola do casaco para cima. Mudei o embrulho de posição que tinha, desconfortavelmente, debaixo do braço. A porta da frente abriu-se e uma garota apareceu olhando surpresa para mim. Os seus olhos eram azul-violeta e muito sérios.

— Jo-Ann! — perguntei.

Ela acenou com a cabeça, em silêncio. Fiquei a olhá-la por momentos. Fez-me lembrar que o tempo passara e que eu principiara a envelhecer. As crianças crescem mais rapidamen­te do que pensamos. A última vez que a vira era um bebé.

— Eu sou Jonas Cord. A tua mãe está em casa?    

— Entre — disse numa voz clara de criança. Entrei atrás dela até à sala. Virou-se e olhou-me atentamente. — Sente-se. A minha mãe está a vestir-se e disse que não se demorava.

Sentou-se numa cadeira à minha frente. Olhou-me com os seus grandes olhos mas nada disse. Comecei a estar pouco à vontade, ao sentir-me observado por aqueles olhos cândidos. Acendi um cigarro. Os olhos dela seguiram-me a mão enquanto procurava um cinzeiro para o fósforo queimado.

— Está ali! — disse apontando para uma mesinha mesmo ao meu lado direito.

— Obrigado.

— Não tem de quê! — Ficou calada novamente olhando para a minha cara. Eu fumava o meu cigarro. Depois de um momento de silêncio falei-lhe.

— Lembras-te de mim, Jo-Ann?

Baixou os olhos e ficou de repente envergonhada, alisando a saia no joelho, num gesto tipicamente feminino.

— Sim — respondeu.

Sorri.

— A última vez que te vi eras deste tamanho — disse eu mostrando a altura, pouco mais ou menos pelo meu joelho.

— Eu sei — murmurou sem olhar para mim. — Estava sentado nos degraus das escadas à nossa espera.

Tirei o embrulho que retinha ainda debaixo do braço e entreguei-lho.

— Trouxe-te um presente — disse-lhe. — É uma boneca.

Tomou o embrulho das minhas mãos e sentou-se no chão a desembrulhá-lo. Os seus olhos sorriam agora. Tirou a boneca da caixa e olhou para mim.

— É muito bonita

— Esperava que gostasses — observei.

— Gosto muito, sim! — Os seus olhos tornaram-se outra vez solenes. — Obrigada!

Pouco tempo depois Mónica entrou na sala. Jo-Ann levan­tou-se num repente e correu ao seu encontro.

— Mãezinha! Olha o que Mr. Cord me trouxe!

— Foste muito amável teres-te lembrado, Jonas — disse Mónica. Pus-me de pé. Ficámos a olhar um para o outro. Havia no seu porte uma plena posse das suas faculdades. Trazia um vestido preto de cocktail e os cabelos escuros caíam-lhe sobre os ombros nus.

A campainha da porta tocou. A rapariga que vinha tomar conta de Jo-Ann entrou. Esta, tão preocupada a mostrar a boneca nova, esqueceu-se de me dizer adeus antes de sair da sala. Robair estava à porta do carro quando saímos.      

— Robair! — disse Mónica estendendo-lhe a mão. — Que prazer tenho em tornar a ver-te.              

— Muito prazer em vê-la também, Mrs. Mónica! — disse ele curvando-se ao cumprimentá--la.

Olhei para fora do carro enquanto este deslizava outra vez por Manhatan, para rever aquela pobre paisagem.

— Porque é que queres viver aqui? — perguntei-lhe.

Mónica tirou um cigarro e esperou que eu lho acen­desse.

— Jo-Ann tem onde brincar cá fora à vontade quando o tempo está bom e não tenho preocupações com o movimento das ruas da cidade. Aqui posso manter-me! A vida é mais razoável aqui do que na cidade.

— Pelo que ouvi dizer, agora estás bem! Se queres viver nos arredores porque é que não te mudas para Westchester? É bastante mais bonito do que isto!

— De qualquer modo a vida lá é mais cara — disse ela. Não tenho tanto dinheiro como julgas. Ainda não sou ne­nhuma editora.

— Mas pareces!

Sorriu.

— Não sei se isso é um cumprimento. Mas na revista Style fazemos por nos apresentar aos leitores como eles imaginam que devíamos ser.

Fitei-a por momentos. Style, era um dos mais populares magazines de modas dedicados às jovens mães de família.

— Mas como é que não és ainda editora?

Ela riu-se.

— Estou um degrau ainda abaixo. Mr. Hardin é um homem de negócios à antiga. Acha que todos os editores se devem dedicar primeiro à parte prática. Deste modo apren­dem um bocado sobre os problemas que envolvem o lançamento de uma revista. Já me deu a entender que a próxima revista a ser editada será minha.

Eu conhecia o velho Hardin. Era um editor de magazines há muitos anos. Pagava em promessas e não em dólares.

— Há quanto tempo vem ele a prometer?

— Há três anos! — disse ela. — Mas creio que deve estar para breve. Planeia editar uma nova revista dedicada ao cinema... em bom! Qualquer coisa parecida com o Photoplay. Já a tem no prelo mas ainda presa por falta de verba.

— Que vais fazer nesse magazine?

— Reportagens — explicou. — Sabes, arranjar histórias acerca de estrelas e outras coisas semelhantes.

Olhei para ela.

— Terias de ir a Hollywood para isso?

Acenou com a cabeça.

— Creio que sim! Mas como Hardin não tem dinheiro é um problema a resolver quando chegar a altura.

Mónica poisou a chávena de café e olhou para mim.

— Foi um jantar magnífico, Jonas! E foste um anfitrião encantador. Agora diz-me a razão deste convite.

— Achas que é preciso uma razão?

Abanou a cabeça.

— Não tem de haver propriamente uma razão — disse ela. — Quando te tornas amável é porque queres qualquer coisa.

Esperei que o criado lhe acendesse o cigarro.

— Vim há pouco de Inglaterra — disse eu calmamente. — Encontrei lá a tua mãe.

O seu olhar tornou-se sombrio.

— Ah, sim?

Acenei com a cabeça.

— Pareceu-me muito simpática.

— É natural, daquilo que me lembro dela — disse Mónica com amargura.

— Deves ter uma excelente memória. Não tinhas a idade de Jo-Ann aproximadamente?

Os seus olhos cor de violeta ficaram duros.

— Há coisas que nós nunca esquecemos — volveu ela. — Quando a nossa mãe nos diz que gosta de nós e de repente desa­parece para nunca mais voltar, por exemplo.

— Talvez ela não pudesse fazer outra coisa. Talvez tivesse uma razão muito forte.

— Que razão? — perguntou com ironia. — Eu nunca deixaria Jo-Ann dessa maneira.

— Se lhe escrevesses talvez ela te pudesse explicar.

— Explicar-me o quê? — perguntou com frieza. — Que se apaixonara por outro homem e que fugira com ele? Isso ainda compreendia. O que não compreendo é a razão por que não me levou com ela. Só compreendo que eu para ela não contava.

— Não conheces tua mãe. Mas pelo menos conheces teu pai. Sabes quanto ele pode odiar quando o fazem zangar.

Os seus olhos fixaram-me.

— Alguém como tu?

Acenei-lhe com a cabeça.

— Alguém como eu — disse. — Aquela noite em que vocês apareceram no meu hotel em Los Angeles, ele pensaria porventura em ti ou vingar-se de mim?

Mónica ficou silenciosa por momentos. Os seus olhos serenaram.

— Teria sido assim com minha mãe?

Acenei-lhe com a cabeça outra vez.

— Foi assim tal e qual — disse baixinho.

Olhou silenciosa para a toalha. Quando levantou os olhos estavam outra vez límpidos.

— Obrigada por me contares tudo isso, Jonas. Parece que me sinto melhor agora.

— Bom.

O criado tornou a servir-nos café.

— A propósito, sabes onde está o teu pai agora?

Com um sorriso amarelo, abanou a cabeça.

— Há coisa de dois anos veio jantar comigo e pediu-me emprestados mil dólares. Foi a última vez que o vi.

— Tens alguma ideia de onde ele possa estar?

— Porquê?

— Tenho um emprego para ele no Canadá. Mas pelos vistos sumiu-se.

Um olhar estranho surgiu-lhe.

— Queres dizer que vais dar-lhe um emprego depois de tudo aquilo que te fez?

— Não tenho outra alternativa — disse eu com relutância. — Não gosto muito da ideia. Mas estamos em guerra e preciso de um homem como ele.

— Tive carta dele há cerca de um ano. Falava-me em ir dirigir o aeroporto de Teterboro.

— Obrigado. Vou procurá-lo por lá — disse.

A mão dela apertou de repente a minha por cima da mesa. Olhei-a surpreendido. Sorriu.

— Sabes uma coisa, Jonas? Descobri que és um melhor amigo do que marido.

McAllister esperava-me no hotel, quando voltei no dia seguinte.

— Encontrou-o? — perguntou-me.

Abanei a cabeça.

— Ele só esteve o tempo suficiente para passar um cheque de quinhentos dólares sem cobertura a um pobre diabo qual­quer.

— Desceu bastante. Tem alguma ideia de onde ele possa estar?

— Não! — bradei atirando com o sobretudo para cima de uma cadeira e sentando-me no sofá. — Por aquilo que me disseram tenho a impressão que é capaz de estar preso em algum lado. Cheque sem cobertura... Jesus!

— Que quer que eu faça? — perguntou Mac.

— Nada! — respondi. Mas prometi ao Roger procurá-lo. — O melhor é arranjarmos uma agência para isso. Se o não conseguirmos, pelo menos Roger saberá que fiz tudo por isso. Você chamou o Hardin?

Mac olhou-me com curiosidade.      

— Sim. Deve estar aqui, dentro de minutos. Porque é que o quer ver?    

— Talvez entremos num negócio de revistas.

— Para quê? — perguntou Mac. — Você nem sequer lê os jornais.

Ri-me.

— Ouvi dizer que ele quer publicar uma revista sobre cinema. Estou a fazer um filme. A melhor maneira de fazermos publicidade é termos uma revista nossa. Creio que se o auxi­liarmos na revista de cinema teremos espaço nas outras. Tudo isto monta para cima de doze milhões de cópias por mês.

Mac nada disse. A campainha da porta tocou. Robair foi abri-la. Era S. J. Hardin, pontual. Entrou na sala com a mão estendida.

— Jonas, meu rapaz — disse com voz rouca —, que prazer em ver-te. — Apertámos as mãos.                

— Conhece o meu advogado, Mr. McAllister? — disse eu.

  1. J. encarou-o sorridente.                    

— Muito prazer — disse dando-lhe um entusiástico aperto de mão. Depois voltou-se para mim:

— Fiquei surpreendido com o seu recado. Que é que há, meu rapaz?

— Ouvi dizer que vai publicar uma revista dedicada ao cinema.

— Tenho pensado nisso — admitiu ele.

— Também ouvi dizer que lhe falta verba para a lançar.

— Sabes bem como é este negócio de revistas — disse esten­dendo a mão expressivamente. — Estamos sempre tesos.

Sorri. Quem o ouvisse julgaria que não tinha onde cair morto. S. J. era riquíssimo, embora chorasse sempre. A própria maneira como dirigia a sua companhia, fundada pelo velho Bernie Norman, lembrava a de um escuteiro.

— Espero fazer o meu primeiro filme dentro de oito anos!

— Parabéns, Jonas — disparou. — É das notícias mais agradáveis que tenho ouvido nestes últimos anos. O cinema bem pode aproveitar um homem como tu. Lembra-me para pedir ao meu corretor que compre algumas acções do Norman.

— Não esquecerei.

— Podes estar certo que as minhas revistas te darão todo o apoio — continuou. — Nós sabemos como se fazem boas tiragens.

— Era exactamente sobre isso que lhe queria falar, Hardin. Penso que é uma pena uma organização como a sua não ter qual­quer revista dedicada ao cinema.

Fixou-me com olhar matreiro.

— Penso da mesma maneira, Jonas.

— Quanto seria preciso para lançar uma nesse género? — perguntei.

— Oh! Duzentos ou talvez mesmo trezentos mil dólares. Tenho de garantir uma tiragem contínua durante um ano, pois leva um ano para qualquer revista dar lucro.

— Não é verdade que o sucesso de uma revista como esta necessita de um redactor qualificado? Um bom redactor é êxito garantido.                                      

— Isso é certo, meu rapaz — disse alegremente. — E eu tenho o melhor corpo redactorial dentro do género, Jonas. Estou sempre à cata de ideias novas.

— Quem vai ser o redactor principal?

— Porquê, Jonas? — observou inocentemente. — Julguei que já sabias. A rapariga com quem jantaste ontem à noite, com certeza.

Comecei a rir. Não o podia evitar. A velha raposa era mais esperta do que eu supunha. Até tinha espiões no «21».

Depois dele sair virei-me para McAllister.

— Olhe lá, não é preciso que eu fique aqui para assinar os papéis do Engel, pois não? Olhou-me fixamente.

— Creio que não. Porquê?

— Quero ir para a Costa. Estou prestes a iniciar um filme e aqui em Nova Iorque nada faço.

— David e Bonner estão aqui. Aguardam um telefonema seu.

— Liga-me para o David. — Momentos depois entregou-me o auscultador. — Viva, David. Como está Rosa?

— Está óptima, Jonas, e muito feliz!

— Belo! Telefonei-te para te dar os parabéns pelo ne­gócio das acções. Olha, não me sinto sossegado aqui em Nova Iorque enquanto não tiver A Pecadora pronto. Vou para a Costa quanto antes.

— Mas Jonas, eu trouxe o Bonner para Nova Iorque.

— Óptimo — respondi. — Manda-o para o estúdio e diz-lhe que irei lá ter com ele. É o único sítio onde podemos pôr o filme a andar.

— O. K., Jonas — disse com voz fraca e desapontada. — Vai de avião?

— Sim? Penso que ainda poderei apanhar o avião da ICA das duas. Assim estarei na Califórnia amanhã de manhã.

— Dê um telefonema a Rosa, Jonas. Ficará muito contente de o ouvir.

— Não esquecerei, David. A propósito! Onde é que poderei encontrar Jennie Denton? Acho que devo tomar con­tacto com a rapariga que interpreta o papel principal de A Pecadora.

— Ela está em Palm Springs, no Hotel Tropical Flower, sob o pseudónimo de Judy Belden.

— Obrigado, David, e adeus.

— Boa viagem, Jonas.

Às 11.30 da manhã, hora da Califórnia, do dia seguinte, parei o meu descapotável em frente ao Tropical Flower em Palm Springs. Perguntei na recepção e segui a pé até ao cottage n.° 5. Quando bati à porta não obtive resposta. Mas como estava aberta, entrei.

— Miss Denton — chamei.

Ninguém respondeu. Ouvia-se o chuveiro do banho a cor­rer. Entrei e abri a porta da casa de banho. Pude ver então a silhueta dela através das cortinas de plástico do banheiro. Cantava numa voz baixa e rouca. Fechei a porta atrás de mim e sentei-me num balde. Acendendo um cigarro pus-me a olhá-la através das cortinas. Não esperei muito tempo. Senti fechar a torneira e a voz dela soou calma:

— Se você é algum dos grooms e está aí à espera, é melhor que saia já ou queixo-me na recepção.

Não respondi. Ela enfiou a cabeça pelas cortinas para agarrar uma toalha. Apanhei uma e entreguei-lha. Senti-a enrolar-se nela. Afastou então as cortinas e ficou a olhar para mim. Os seus olhos eram cinzentos-escuros e não mos­travam qualquer receio.

— Os grooms deste hotel são do pior — disse ela. — En­tram no quarto a qualquer hora!

— Porque é que não fecha as portas à chave?

Ela saiu do banheiro.

— Para quê? Têm chaves duplas!

Levantei-me.

— Jennie Denton?

— Sou Judy Belden neste hotel. — Um olhar de curiosidade percorreu-me de alto a baixo. — Você é da polícia?

Abanei a cabeça.

— Não. Sou Jonas Cord.

Olhou-me com um grande sorriso nos lábios.

— Quem diria. E eu que tenho andado ansiosa por conhecê-lo.

Sorri por minha vez.

— Porquê?

Chegou-se a mim, levantou os braços para me abraçar e pô-los à volta do meu pescoço. A toalha caiu-lhe quando estendeu os braços. Pôs-se em bicos dos pés para me beijar. Depois inclinou-se para trás e olhou-me maliciosamente.

— Patrão! — murmurou ela. — Não acha que é altura de assinarmos o meu contrato?

O pavilhão que servia de escritório era o mesmo de há dez anos quando fiz O Renegado. Nada tinha mudado excepto as secretárias.

— Bom dia, Mr. Cord! — disseram todos quando entrei. Respondi-lhes e entrei para o meu gabinete. Bonner andava nervosamente de um lado para o outro. Dan Pierce estava sentado num sofá encaixado junto à janela. Olhei para ele por momentos, sem falar, dei a volta à secretária e sentei-me.

— Eu pedi a Pierce que viesse cá e tentasse conven­cê-lo — disse Bonner. — Não pode fazer um filme desta cate­goria sem um grande nome.

— Dan não me pode convencer a mijar se eu não tiver von­tade!

— Um momento, Jonas! — cortou Dan rapidamente. — Sei o que você sente mas acredite que quero só o seu bem.  

Virei-me para ele.

— Da mesma maneira que fez quando vendeu as suas acções ao Sheffield sem me consultar?

— As acções eram minhas! — gritou exaltado. — Não tinha de consultar fosse quem fosse. Além disso quem é que poderia falar consigo? Todos sabíamos que não queria saber da companhia para nada, e que tentou mesmo vender as suas próprias acções.

Tirei um cigarro e acendi-o. Depois de uns momentos concordei.

— Você tem razão, Dan! — disse. — As acções eram suas e você não me devia nada. Fez o seu trabalho e eu paguei-o na totalidade dos cinco anos que o contrato duraria. — Encostei--me na cadeira e continuei a puxar fumaças do cigarro. — Só cometi um erro. Você era um bom profissional quando o conheci. Devia tê-lo deixado à vontade.

— Tento evitar que você cometa outro erro, Jonas. Quando o argumento de A Pecadora foi escrito destinava-se a uma grande actriz - Rina Marlowe. Era a maior actriz no seu tempo. Você não pode de modo algum pegar numa rapariga qualquer sem experiência e de quem nunca ouviu falar e colocá-la num filme sem outros actores conhecidos a apoiá-la. Rir-se-ão de si.

Olhei para ele intrigado.

— Então que ideia tem sobre o que devo fazer?

A expressão de autoconfiança voltava ao seu rosto.

— Arranje um grupo de grandes nomes — aconselhou. — Faça uso da rapariga que quer mas com o apoio dos outros. Bogart. Tracy. Colman. Gable. Flynn. Qualquer deles garante--lhe o filme.

— Suponho que você os pode contratar?

Não compreendeu o meu sarcasmo.

— Creio que o posso ajudar! — disse ele cauteloso.

— Muito bem, abençoado coração que se sacrifica a dez por cento. É muito gentil da sua parte. — Pus-me de pé. — Olho da rua, Dan! Olho da rua antes que tenha de o pôr lá fora. E enquanto eu estiver a trabalhar aqui não ponha cá mais os pés.

Fixou-me, pálido como a cal.

— Não julgue que pode falar comigo dessa maneira! — berrou. — Não sou nenhum dos seus paus-mandados que pode comprar e vender a seu bel-prazer.

— Já o comprei e já o vendi! — atirei-lhe friamente. — É mesmo o tipo que tentou arruinar o espectáculo de Nevada no Buffalo Bill. Venderia a sua própria mãe se visse nisso algum lucro. Você não me venderá mais nem eu quero comprar-lhe mais nada.

Toquei a campainha. Uma das secretárias entrou.

— Chamou, Mr. Cord?                

— Mr. Pierce vai sair!

A cara dele estava lívida de raiva.

— Você há-de arrepender-se de tudo isto, Jonas!

Após ter atirado com violência a porta atrás de si voltei-me para Bonner.

— Desculpe, Jonas! Não sabia de nada.

— Não tem importância, homem — disse-lhe calmamente. — Eu sei que você não sabia.

— O filme está a custar-nos até agora cerca de três milhões de dólares. Talvez seja aconselhável metermos alguns actores de nome.

Abanei a cabeça.

— As estrelas são importantes e eu nada tenho contra elas. Mas não desta vez. O nosso filme é baseado num tema bíblico. Quando os espectadores olharem para o ecran e virem João e Pedro eu quero que vejam João e Pedro e não Gable, Tracy ou Bogard. Além disso o papel principal é o da rapariga.

— Mas ela é uma ilustre desconhecida!

— E depois? — perguntei. — Para que é que temos o nosso departamento de publicidade? Logo que o filme seja exibido não haverá ninguém que não queira saber o seu nome. Você achou-a boa quando ela fez o teste, não achou? E tudo quanto sabia a seu respeito foi que a conheceu numa festa.

Um curioso olhar embaraçado cobriu o rosto de Bonner.

— Mas isso é diferente. Foi quase uma graça. Nunca jul­guei que se pudesse tomar a sério.

— David e eu tomámos a coisa a sério.

— Mas um teste não é um filme todo. Não creio que aguente...

Cortei-lhe a palavra:

— Há-de aguentar. E você sabe-o tão bem como eu. E já o sabia quando lhe pediu para fazer o teste.

Olhou-me com a sua cara de cavalo. Nervosamente coçou-se.

— Ela? Ela contou-lhe acerca da festa? — perguntou com hesitação.

Acenei com a cabeça.

— Ela contou-me como você esteve a observá-la toda a noite e como foi ter com ela convidando-a a fazer um teste. — Ri-me. — Vocês rapazes são uns tipos fantásticos. Encontram uma Lana Turner num bar. Descobrem Jennie num jantar. Como é que conseguem isso?

Envolveu-me num olhar confuso. Ia começar a falar quando o telefone da minha secretária tocou. Levantei o auscultador. Era uma das secretárias.

— Miss Denton chegou do cabeleireiro. Pode entrar?

— Sim! — Pousei o auscultador e virei-me para Bonner. — Mandei Jennie ao cabeleireiro. Tenho uma ideia que quero experimentar.

A porta abriu-se e Jennie entrou. Entrou lentamente, com hesitação. Parou em frente da secretária. Voltou-se sobre si, devagar. Os seus longos cabelos já não eram castanhos-claros. Brilhavam numa cor de champanhe e davam-lhe ao rosto queimado do sol uma radiação translúcida.

A voz de Bonner foi um murmúrio.

— Meu Deus!

Olhei para ele. O seu rosto tinha uma expressão estranha. Os lábios moviam-se silenciosamente fixando os olhos nela.

— Parece que a estou a ver!                      

— Muito bem! — disse lentamente. Tornei a olhar para Jennie. Senti um aperto no coração. Rina.

— Quero que a Gaillard a vista! — indiquei suavemente a Bonner.

— Não sei — disse ele. — Está reformada. Creio que foi para o Leste. Boston, creio eu!

Recordei-me duma figura de cabelos brancos ajoelhada perto da sepultura de Rina.

— Mando-lhe um retrato de Jennie. Ela virá.

Bonner veio até à minha secretária e ficou perto de Jennie olhando para mim.

— A propósito, tive notícias de Austin Gilbert, que gostou do argumento. Vem assistir ao teste desta tarde. Se gostar da rapariga fará o filme.

— Bem — disse eu. Era assim que trabalhavam os grandes directores. O que lhes pagamos a princípio nada significa; conseguem isso em qualquer filme. O mais importante é o argumento. E os actores.

Bonner caminhou para a porta, onde parou por momentos, olhando para Jennie.

— Até à vista — disse por fim.

— Adeus, Mr. Bonner — correspondeu Jenni delicada­mente.                                          

Despedi-me dele baixando-lhe a cabeça.

— Posso sentar-me agora? — perguntou Jennie.

— À vontade.

Sentou-se e olhou para mim, silenciosamente, enquanto eu folheava a papelada que estava em cima da secretária. Os pri­meiros orçamentos. As estimativas das montagens. Bonner tinha razão — isto ia custar um dinheirão!

— Terei de me parecer com ela? — perguntou Jennie em voz baixa.

Olhei para ela.

— O quê?        

— Terei de me parecer com ela?

— Porque é que perguntas?

Ela abanou a cabeça.

— Não sei. É que me sinto esquisita, só isso. Parece que já não sou eu. Sinto-me um fantasma.

Não respondi.

— E foi tudo o que viram no teste — Rina Marlowe?

— Ela foi a maior actriz que apareceu no cinema.

— Bem sei — murmurou Jennie lentamente. — Mas eu não sou ela. Nunca o poderei ser. Fixei-a.

— Por dois mil dólares por semana — disse-lhe eu — serás aquilo que eu quiser.

Não respondeu. Ficou somente a olhar-me. Tinha os olhos pintados e sombreados. Ignorava o que ela estava a pensar.

— Lembra-te disto — disse-lhe tranquilamente. — Milhares de raparigas como tu vêm para Hollywood todos os anos. Pode­rei escolher uma qualquer. Se não te agrada volta para o que fazias antes de Bonner te encontrar na festa.

Acautelou-se. Era bom que tivesse um pouco de medo da mim. Estava demasiado segura de si mesmo.

— Bonner falou-lhe em mim?

— Nem uma palavra. Não havia necessidade. Tu disseste tudo o que precisava de saber. Raparigas como tu andam sempre à procura dum produtor. Tiveste sorte — e a sorte só se tem uma vez. Não a deixes fugir.

Respirou fundo. A expressão de cautela desaparecera. De repente sorriu.

— O. K. patrão, você manda.

Dei a volta à secretária e abracei-a. Senti-lhe a boca quente e doce e quando a olhei tinha os olhos fechados. O maldito telefone tocou mesmo nessa altura. Estendi o braço por trás dela e levantei o auscultador. Era McAllister a telefonar-me de Nova Iorque.

— A agência conseguia localizar Winthrop — disse ele.

— Óptimo. Ponha-se em contacto com ele e mande-o falar comigo.

— Da agência dizem que ele não quer.

— Então telefone a Mónica e peça-lhe que fale com ele. Escutá-la-á se for ela a falar.

— Já o fiz — disse Mac imediatamente. — Mas ela tinha partido esta tarde para a Califórnia, para a Twentieth Century. Se o quer é melhor ir você mesmo tratar disso.

— Tenho agora muito que fazer para ir a correr para Nova Iorque.

— Não há necessidade disso. Amos encontra-se em Chicago. A agência de lá dar-lhe-á a morada.

— Chicago? Bem, então terei que ir atrás dele. — Pousei o auscultador e olhei para Jennie.

— O fim-de-semana está a aproximar-se — disse ela suave­mente. — Eu não tenho nada que fazer. Chicago é uma grande cidade.

— Queres vir? — perguntei.

Aquiesceu.

— Vamos de avião, não vamos?

— Todo o caminho — disse eu.

Jennie fitou-me:

— Isto é que é viajar. Um avião só para nós.

Olhei em volta da cabina vazia do ICA que o Buzz pre­parara para mim quando lhe telefonei. Dei uma olhadela ao relógio. Eram quase nove horas. Adiantei-o duas horas para o pôr na hora de Chicago. Sentia a mudança de altitude nos meus ouvidos. Começáramos a descer.

— Deve ser bom ser-se dono duma companhia de avia­ção — disse Jennie sorrindo.

— Faz jeito quando temos pressa de chegar a qualquer sítio.

— Não o percebo.

— Que é que não percebes, rapariga?

— A si — respondeu Jennie. — Confunde-me. Consigo com­preender a maior parte dos tipos com quem tenho contactado. Têm uma meta e procuram alcançá-la. Consigo é diferente. Já tem tudo.

— Nem tudo.

Ela apontou para as luzes de Chicago lá em baixo.

— Quer dizer com isso, se calhar, que não possui aquilo tudo ali em baixo.

— É verdade. Não quero muito. Estou satisfeito por pos­suir isto tudo aqui.

Os olhos dela ficaram sombrios.

— E se cairmos?

Dei um estalo com os dedos.

— Que importa! Assim como se veio assim se vai.

— Não se rala?

— Não me ralo.

Ela, depois de olhar por momentos para fora, voltou-se para mim.

— Creio que me possui de certo modo.

— Não estava a falar de si — disse eu. — Referia-me ao avião.

— Eu sei, mas é a mesma coisa, esta é que é a verdade. Possui toda a gente que trabalha para si, mesmo que pense o contrário. O dinheiro tudo pode.

— O dinheiro tem sido muito por mim — observei.

— Então porque não compra um par de sapatos?

Olhei para os meus pés descalços.

— Não te preocupes — disse. — Eu tenho sapatos. Devem estar por aí algures no avião.

Riu-se mas tornou-se logo séria.

— Com dinheiro até compra o tempo. E também torna as pessoas naquilo que quer que sejam.

Deitei-lhe uma olhadela.

— Não sabia que além de actriz também eras filósofa.

— Não sabe se sou actriz... ainda.

— É bom que o sejas. Não estou disposto a fazer figura de parvo.

Os seus olhos ficaram novamente sérios.

— Disso é que não gostaria de parecer?

— Ninguém gosta — disse eu. — Não sou diferente das outras pessoas.

— Então porque é que procede deste modo, Jonas? Não tem necessidade. Não precisa de dinheiro. Para que é que quer fazer filmes?

Inclinei-me para trás no banco.

— Talvez seja porque quero fazer algo mais do que pólvora, aviões e pratos de plástico.

— Lembrar-se-ão mais de si por todas essas coisas do que por um filme.

— Achas que sim? — Virei a cabeça para ela. — Como é que te recordas de um homem? Pela sensação que te causou ou porque construiu o mais alto edifício do mundo?

— Por tudo — respondeu suavemente. — Se foram todas essas coisas feitas de facto por ele.

— És uma filósofa, não há dúvida. Nunca pensei que compreendesses tão bem os homens. Riu-se.

— Tenho sido mulher toda a vida. Os homens são a coisa que todas as mulheres procuram compreender primeiro.

Senti as rodas tocarem no chão. O avião pousava na pista. Inconscientemente inclinei-me para a frente como se agarrasse nos comandos e tentasse evitar que o esticão fosse grande. Descansei. O hábito é uma coisa curiosa. Nós os pilotos ater­ramos sempre todos os aviões estejamos ou não a pilotá-los.

Quando abriram a porta do avião e entrou a primeira rajada de vento, Jennie estremeceu e levantou a gola do casaco. Havia neve no chão quando atravessámos a passadeira até à aerogare.                                            

Um motorista fez-me parar levando respeitosamente a mão ao boné.                                            

— O seu carro está lá fora, Mr. Cord.          

Jennie tremia ainda quando entrámos no automóvel.

— Esqueci-me como o Inverno é frio — disse.

Em quarenta e cinco minutos chegámos ao hotel Drake. O subgerente veio receber-nos à porta.

— Muito prazer em vê-lo, Mr. Cord. O apartamento está pronto. Telefonaram do seu escritório da Costa a prevenir que chegava, Mr. Cord. — Estalou com os dedos e o elevador apareceu como que por encanto. Subimos com ele num silêncio magnífico.

— Tomei a liberdade de lhe mandar preparar um jantar quente, Mr. Cord.

— Muito obrigado. Carter — disse eu. — É muito gentil da sua parte.

Carter abriu-nos a porta do apartamento. Uma pequena mesa estava posta na casa de jantar e viam-se garrafas relu­zentes sobre o bar.

— Se Mr. Cord telefonar lá para baixo quando estiver pronto, mandarei o jantar imediatamente.

— Dê-nos alguns minutos para nos lavarmos, Carter — pedi.

— Muito bem, senhor.

Olhei para Jennie ainda toda arrepiada de frio.

— Carter!

— Sim, Mr. Cord?

— Miss Denton não veio preparada para o frio, como é óbvio. Será possível arranjar-se um casaco quente?

Carter olhou por segundos para Jennie.

— Creio que se poderá arranjar, senhor. Um vison, cora certeza.

— Pois sim — disse eu.

— Muito bem, senhor. Vou mandar alguns para a menina escolher.          

— Obrigado, Carter.

Fez uma vénia e a porta fechou-se atrás dele. Jennie voltou-se para mim de olhos esbugalhados.

— Isto foi o máximo. Julguei que não haveria mais nada que me impressionasse, mas isto sim. Sabe que horas são?

Olhei para o meu relógio.

— Meia-noite e dez.

— Ninguém, seja quem for, pode comprar um vison depois da meia-noite.

— Nós não vamos fazer compras. Vão-nos é mandar aqui aquilo de que precisamos.

Olhou outra vez para mim durante um momento e abanou a cabeça.

— Ah! Sim — disse ela. — Então essa é a diferença?

— Claro!

— Diga-me. Que o faz assim tão importante aqui?

— Pago a renda.

— Quer dizer que tem permanentemente alugado este apartamento?

— Claro — disse. — Nunca sei quando tenho de vir a Chicago.

— Quando é que cá veio pela última vez?

Esfreguei a cara.

— Há cerca de ano e meio.

O telefone tocou. Levantei o auscultador e entreguei-o a Jennie. Olhou para mim surpreendida.

— Para mim? Mas ninguém sabe que estou aqui.

Entrei na casa de banho e fechei a porta. Quando saí, uns minutos depois, ela estava sentada à beira da cama com um olhar intrigado.

— Era o peleiro — disse. — Queria saber o que preferia: vison claro ou escuro. Queria também saber o tamanho.

— Qual foi o tamanho que lhe disseste?

— Dez.

Abanei a cabeça.

— Pensei que o teu tamanho era o doze. Ninguém compra visons número dez. Não compensa.

— Como disse, você é um louco — comentou ela. Atirou-se para os meus braços e abraçou-me. — Mas um louco maravi­lhoso.

Ri-me com gosto. Os visons faziam sempre destas coisas.

O homem da agência chegou quando estávamos a jantar. Chamava-se Sam Vitale e se achou estranho que Jennie estivesse a jantar vestida com um vison preto, os seus olhos cansados não o deram a entender.

— Está frio em Chicago — explicou Jennie.

— É verdade, minha senhora — disse ele polidamente.

— Teve muito trabalho para encontrar Winthrop? — perguntei.

— Nem por isso. Tudo o que tivemos de fazer foi passar por todas as casas de crédito. Deixou uma lista enorme de cheques sem cobertura. Quando chegámos a Chicago investigámos os Seguros Sociais. Eles mudam de nome mas normalmente nunca brincam com os seus Seguros Sociais. Usa agora o nome de Amos Jordan.

— Onde é que ele trabalha? — perguntei com curiosidade.

— Na garagem Cícero, como mecânico. Ganha o sufi­ciente para se manter. Mas entra bastante nos copos.

— Onde é que ele vive?

— Num quarto alugado, mas só lá vai dormir. Passa a maior parte do tempo numa tasca chamada «La Paree». Sabe o género. Variedades contínuas. Há sempre uma no palco a fazer strip-tease enquanto as outras andam em baixo con­vencendo os anjinhos a beber.

Amos não mudara, pensei. Continuava a frequentar os sítios onde as tipas apareciam. Afastei a minha chávena de café.

— O. K. Vamos buscá-lo.

— Estou pronta — disse Jennie.

Vitale olhou para ela.

— É melhor a senhora não ir. É um lugar muito ordinário.

— O quê? — disse Jennie rapidamente. — Perder uma oportunidade de estrear o meu vison novo?

«La Paree» era igual a cerca de vinte e tantos outros dessa rua igual a todas as outras ruas do país onde existem clubes de strip-tease. As janelas estavam cobertas com cartazes de rapa­rigas meio nuas chamadas Maybellene, Charlele, Darlene e a inevitável Rosie Tookus. Todas elas dançavam nessa noite.

O porteiro sorriu de orelha a orelha quando a grande limusina parou. Abriu-nos a porta com uma vénia.  

— Bem-vindos, amigos. Todos vêm de toda a parte para ver «La Paree.».                            

Vinham com certeza! O porteiro precipitou-se para dentro do clube, onde um homenzinho de fato cinzento se apresen­tou diante de nós. Uma rapariga alta de calças muito justas levou-nos os sobretudos. Jennie abanou a cabeça e conservou o casaco vestido. Seguimos o homem pela sala fora cheia de fumo até uma pequena mesa em frente do palco.

Uma rapariga fazia strip-tease mesmo por cima das nossas cabeças. Os tambores rufavam lentamente enquanto ela ia ti­rando a roupa que trazia, quase até ao fim.

— Duas garrafas de champanhe do melhor que tiverem — disse eu. Não era lugar para se pedir whisky. A não ser que se tivesse um estômago de ferro.

À palavra champanhe, a rapariga que estava no palco parou mesmo no meio da dança e olhou para baixo. Vi os seus olhos fixos em mim enquanto sorria com o seu sorriso mais sedutor. Jennie abanou a cabeça, deixou cair o casaco sobre a cadeira e tirou o turbante. As luzes todas brilharam nos seus longos cabelos loiros. Logo o sorriso da rapariga desapareceu. Olhei para Jennie. Sorriu-me.

— Temos de combater o fogo com o fogo — disse ela.

Ri-me. O criado de camisa branca chegou com duas gar­rafas de champanhe. Rapidamente colocou três taças na mesa, e abriu a primeira garrafa. A rolha saltou e o líquido entor­nou-se pela garrafa abaixo. Encheu as três taças sem esperar que eu o provasse e desapareceu.

Ainda estava pouco gelado mas era bom. Olhei para a garrafa. Heidsieck, 1937. Mesmo que o rótulo fosse falso era -bom. Reparei num papelinho branco perto de mim. Oitenta dólares.

— Se tivesse vindo de táxi — disse Vitale — só lhe levariam vinte dólares por garrafa.                      

— E se tivéssemos vindo a pé?

Sorriu.

— Quinze.

— Chin-Chin — disse eu levantando a taça.

Mal pousávamos as taças na mesa vinha logo o criado enchê-las. Movia-se rapidamente, entornando algum champanhe pela borda das taças e começando depois a despejar a garrafa no balde de gelo.

Detive-o com a mão.

— Calma, amigo. Se não refilei com o preço o menos que podes fazer é deixar-nos acabar a garrafa.

Olhou para mim, abanou com a cabeça e acabou por colocar a garrafa com o gargalo para cima no balde de gelo e afas­tou-se. Ouvimos um grande rufar de tambores e a rapariga que fazia strip-tease desapareceu ao som de palmas desencontradas, pouco entusiásticas.

— Ele está ali, mesmo ao fim do bar — disse Vitale.

Voltei-me para o olhar. Não havia muita luz. Só via um vulto debruçado sobre o bar com um copo na mão fechada.

— É melhor ir lá buscá-lo.

— Acha que precisa de ajuda? — perguntou Vitale.

— Não. Fique aqui com Miss Denton.

As luzes baixaram novamente e outra rapariga apareceu no palco. Enquanto me dirigia para o bar uma rapariga encostou-se a mim, na escuridão.

— Procura alguém, homenzarrão? — murmurou ela.

Era a rapariga que dançara há pouco e descera do palco. Ignorei-a e segui em direcção do bar onde estava Amos. Não olhou para mim quando subi para o banco alto do bar a seu lado.

— Uma garrafa de Budweiser — disse para o barman. A gar­rafa apareceu à minha frente e o dólar que tinha posto no balcão desapareceu antes mesmo de eu me sentar.

Voltei-me e olhei para Amos que vigiava o palco. Senti um arrepio percorrer-me. Estava velho. Incrivelmente velho e todo branco. Tinha o cabelo ralo e a pele das faces pendia pelo queixo abaixo como pendem as peles flácidas dos velhos.

Levou o copo aos lábios. Vi-lhe a mão tremer cheia de manchas vermelhas nas costas. Tentei lembrar-me. Não podia ser assim tão velho. O máximo que teria seriam uns 55 ou 56 anos.

Vi-lhe depois os olhos e tive a resposta.

Fora vencido e nada contava para ele senão o passado. Estava neste estado porque tinham falhado todos os seus sonhos. Nada lhe restava senão cair. Cair, cair até que morresse.

— Olá, Amos — disse eu discretamente.

Ele poisou o copo e voltou-se para mim lentamente. Olhou-me com os olhos vermelhos e húmidos.

— Vai-te embora — murmurou numa voz rouca e avi­nhada. — Aquela que está ali a dançar é a minha rapariga.

Dirigi o olhar para o palco. Ela tinha cabelos vermelhos e devia ter sido interessante nos seus tempos. Faziam um bom par, os dois. Eram ambos uns vencidos da vida.

Esperei até a música parar e falei novamente.

— Tenho uma proposta a fazer-te, Amos.

Virou-se para mim.

— Já disse ao teu emissário que não estava interessado.

Estive quase para descer do banco e ir-me embora. Lá para fora, longe desta porcaria toda, deste cheiro a cerveja retardada, desta podridão. Mas não fui. Não era só a promessa que fizera a Forrester. Ele era o pai de Mónica.

O barman voltou e mandei vir mais uma rodada para os dois. Afastou-se depois de levantar os cinco dólares.

— Falei a Mónica a respeito do emprego. Ficou muito con­tente.

Voltou-se e olhou outra vez para mim.

— Mónica foi sempre uma parva chapada — disse com voz rouca e riu-se. — Sabes bem que ela não se queria divor­ciar de ti. Disse-me que te amava.

Não respondi e ele riu-se outra vez.

— Mas eu abri-lhe os olhos — continuou ele. — Disse-lhe que eras exactamente como eu. Não podíamos resistir ambos ao cheiro da trampa.

— Isso já foi há muito tempo — disse eu. — Já passou à história.

Bateu com o copo no bar com a mão tremente.

— Isso é que não passou — gritou. — Julgas que me posso esquecer da maneira como correste comigo da minha própria companhia? Pensas que me esqueci como me fizeste perder todos os contratos sem poder recomeçar tudo outra vez? — Riu-se com astúcia. — Não sou nenhum parvo. Julgas que não sei que tens homens a seguirem-me por todos os lados?

Encarei-o fixamente. Ele estava doente. Muito mais doente do que eu supunha.

— E vens agora com propostas falsas, hem? — sorriu manhosamente. — Julgas que não sei o que tu queres? Afastares-me do caminho, pois se eles apanharem os meus planos estás perdido.

Escorregou do banco e veio em minha direcção com os punhos cerrados.

— Perdido, Jonas! Perdido! Ouviste?

Virei-me no banco e agarrei-lhe as mãos. Tinha os pulsos magros e frágeis, ossos de velho. Segurei-o pelos braços. De repente caiu para cima de mim com a cabeça pendente no meu peito.

Olhei para ele e vi que tinha os olhos rasos de lágrimas de fraqueza e de raiva. Estava vencido.

— Estou tão cansado, que já não posso mais.

Escorregou dos meus braços e deixou-se cair no chão. A ruiva que tinha vindo de trás dele gritou e a música parou no mesmo instante. Juntou-se imensa gente à nossa volta. Desci do banco. Senti-me empurrado contra o bar com violência por um homenzarrão de fato preto. — Que vem a ser isto?

— Deixa-o, Joe.

A voz de Vitale veio detrás dele que se voltou para o encarar.

— Ah, és tu, Sam?

A pressão contra o meu peito afrouxou. Olhei para Amos. Jennie estava de joelhos ao pé dele, alargando-lhe o colarinho e desapertando o nó da gravata. Debrucei-me.

— Desmaiou?

Jennie olhou para mim.

— Pior do que isso. Está a arder de febre. Acho melhor levá-lo para casa.

— O. K. — concordei. Tirei do bolso um rolo de notas e atirei uma nota de cem dólares para cima do bar. — Isto é para pagar a nossa mesa. — Olhei para cima e vi a ruiva com lágrimas, pretas de rimmel, a escorrerem-lhe pela cara abaixo. Tirei mais uma nota e meti-lha na mão. — Vai secar às lágrimas.

Abaixei-me, levantei Amos nos meus braços e caminhei em direcção à porta. Fiquei admirado com o peso dele. Vitale foi buscar os nossos sobretudos à rapariga do bengaleiro e seguiu-nos.

— Ele vive uns quarteirões mais adiante — explicou Vitale enquanto eu metia Amos dentro do carro.

Era uma casa cinzenta. Dois gatos andavam à volta do caixote de lixo à porta da entrada. Olharam para nós com lindos olhos brilhantes e amarelos. De dentro do carro observei o pré­dio. Não era lugar em que um homem doente pudesse ficar.

O motorista saltou do carro e veio abrir-me a porta. Mas eu tornei a fechá-la.

— Voltamos para Drake — disse-lhe.

Voltei-me e olhei para Amos estendido no banco de trás. Não senti nada de diferente a seu respeito só porque estava doente. Mas não podia deixar de sentir que, se as coisas tivessem corrido de outro modo, talvez o meu pai estivesse no lugar dele.

O médico saiu abanando a cabeça. Jennie vinha atrás dele.

— Amanhã estará bem quando acordar de manhã. Deram-lhe uma grande dose de droga.

— O quê?                               

— Gotas soporíferas — disse Jennie.          

Sorri. O meu pressentimento estava correcto. Vitale olhara por tudo. Eu queria Amos e ele encarregara-se disso.

— Ele está muito por baixo — explicou o médico. — Muito whisky e pouca comida. Tem febres mas com um bocado de cuidado amanhã estará fino.

— Obrigado, doutor — disse levantando-me.

— De nada, Mr. Cord. Passarei amanhã por cá para o ver. Entretanto, Miss Denton, agradeço-lhe que lhe dê estas pílulas de hora a hora.

— Pode estar descansado, doutor.

O médico baixou a cabeça e saiu.

Olhei para Jennie.

— Espera lá. Não tens de ficar aqui toda a noite para tomar conta deste gajo.

— Não me importo — disse ela. — Já não é a primeira vez que fico com um doente.

— Um doente?

— Claro. — Olhou para mim zombeteiramente. — Nunca lhe disseram que eu era uma enfermeira diplomada?

Abanei a cabeça.

— Escola de Enfermagem Santa Maria, em S. Francisco. — disse ela. — Em 1935 trabalhei como enfermeira durante um ano. Depois deixei-me disso.

— Porquê?

— Fiquei farta — respondeu desviando a vista.

Não quis forçar uma confissão. Era com ela e eu não tinha nada com isso.

— Queres um whisky? — perguntei encaminhando-me para o bar.

Abanou a cabeça.

— Não, obrigado. Acho pouco sensato ficarmos ambos aqui a perder a noite. Porque é que não vai para a cama e descansa um pouco?

Olhei-a interrogativamente.

— Estou bem. Posso descansar amanhã de manhã.

Chegou-se a mim e deu-me um beijo na cara.

— Boa noite, Jonas. Obrigada. Acho que você é uma exce­lente pessoa.

Ri-me.

— Não pensas que te comprei um vison e te deixo andar por aí, pois não?

— Não, não penso — disse rapidamente. —. Mas ouvi bem o que ele disse a seu respeito e mesmo assim você trouxe-o para aqui.

— Que havia de fazer? Não o podia deixar ficar por aí.

— Claro! — disse ela de olhos arregalados. — Agora vá dormir.

Voltei-me e entrei no quarto. Foi uma noite de loucura. Sonhei que Amos e meu pai corriam atrás de mim pelo quarto cada um gritando qualquer coisa que eu não conseguia compreen­der. Falavam uma língua estranha. Depois Jennie, ou talvez Rina, entrou no quarto de uniforme branco e começou também a correr à frente deles. Tentei parar a correria conseguindo final­mente levá-la nos meus braços para fora do quarto e fechar a porta. Quando me voltei vi que era Mónica a chorar. Senti um murro na cara. Era o homenzarrão do «La Paree». Este encandeava-me com uma luz de lanterna cada vez mais forte. Abri os olhos e pestanejei. O sol entrava pelo quarto dentro e vi que eram oito horas da manhã.

Jennie estava sentada na sala com uma cafeteira de café e torradas à sua frente.

— Bom dia! Quer uma chávena de café?

Disse que sim e entrei no quarto de Amos para o espreitar. Dormia como um bebé, de papo para o ar. Fechei a porta, fui até ao sofá e sentei-me ao lado de Jennie.

— Deves estar estafada — disse-lhe, pegando na chávena de café.

— Uhm! Um pouco. Mas depois de se começar nem se dá por isso. — Olhou para mim. — Ele falou muito a seu respeito.

— Sim? Nada de bom, espero.

— Culpa-se a ele mesmo de ter estragado o vosso casamento.

— Todos nós tivemos culpa — comentei. — Não a teve mais do que eu — ou do que ela.

— Ou Rina Marlowe?

— Todos, menos Rina — objectei depressa. Tirei um cigarro. — Principalmente porque Móica e eu éramos muito novos. Nunca nos devíamos ter casado.

Ela pegou na chávena de café e bocejou.

— Talvez seja melhor ires descansar um pouco — disse eu.

— Acho que devo ficar até o médico chegar.

— Vais mas é para a cama. Acordo-te quando ele chegar.

— O. K. — disse. Pôs-se de pé e foi para o quarto.

Pouco depois voltou para buscar o vison que estava em cima da cadeira.

— Não precisas dele — disse-lhe. — Deixei a cama quentinha.

Ela esfregou o vison na cara.

— É tão macio. — E voltou para o quarto fechando a porta. Enchi a minha chávena outra vez e peguei no telefone. De repente sentira fome. Pedi duas doses de ovos com presunto e uma nova cafeteira com café.

Amos saiu do quarto enquanto eu comia. Tinha o cobertor enrolado como se fosse uma toga. Chegou-se à mesa e olhou para mim.

— Quem me roubou a roupa?

Agora não tinha tão mau aspecto como a noite passada.

— Deitei-as fora. Sente-se e coma qualquer coisa.

Continuou de pé. Não falou. Momentos depois olhou à volta e perguntou.

— Onde está a rapariga?

— Está a dormir — disse. — Esteve toda a noite acordada a tratar de si.

Ele reflectiu.

— Desmaiei? — Era mais uma confirmação do que uma pergunta. Não respondi.

— Logo vi — murmurou abanando a cabeça. Gemeu. Levantou a mão à cabeça e quase deixou cair o cobertor onde se enrolava. — Foi alguém que me drogou — disse acusadoramente.

— Tenta comer qualquer coisa. Dizem que tem vitaminas.

— Preciso de beber — disse ele.

— À vontade. O bar está ali.

Foi até ao bar e serviu-se de um whisky. Bebeu-o de um trago inclinando a cabeça bem para trás.

— Ah! — disse ele. Serviu-se de mais um que bebeu também rapidamente. As cores voltaram-lhe às faces pálidas.

Aproximou-se da mesa, com a garrafa de whisky na mão, e atirou-se para cima de uma cadeira à minha frente.

— Como é que me encontraste?

— Foi fácil. Seguimos a pista dos cheques sem cobertura.

— Ah! — disse. Deitou mais whisky, mas pôs o copo em frente dele em cima da mesa. De repente os olhos enche­ram-se-lhe de lágrimas. — Isto não custaria tanto se tu fosses outro.

Não respondi e continuei a comer.

— Não sabes o que é envelhecer. Perde-se o tacto.

— Tu não o perdeste. Deitaste-o fora.

Ele levantou o copo.

— Vá. Anda! Bebe se não estás interessado na minha pro­posta.

Observou-me em silêncio por momentos. Depois olhou para o copo cheio de whisky que tinha na mão. A mão tremia-lhe levemente deixando entornar o líquido sobre a toalha da mesa.

— Que é que te fizeram para te tornares assim de repente um bonzarrão?

— Não sou — disse eu. Peguei na chávena de café e sorri-lhe. — Não mudei nada. Continuo a pensar que és o maior dos patifes. Se fosse só comigo nem a vista me punhas em cima. Mas Forrester quer-te para dirigir a nossa fábrica do Canadá. O idiota não te conhece como eu te conheço. Continua a pensar que não há ninguém como tu.

— Roger Forrester, hã? — perguntou. Lentamente pousou o copo de whisky sobre a mesa. — Foi ele que experimentou o “Liberty Five» que desenhei logo depois da guerra. Disse-me que era o melhor avião que jamais pilotara.

Olhei para ele em silêncio. Isso tinha-se passado há mais de vinte anos. Depois já se tinham fabricado outros aviões muito bons. Mas Amos continuava a lembrar-se do «Liberty Five" porque fora esse que o lançara no negócio.

Vi nele a antiga expressão de Amos Winthrop, aquele que eu conhecera há anos.

— Qual é a minha parte no negócio? — perguntou manhosamente.

Encolhi os ombros.

— Isso é contigo e com Roger — disse-lhe.

— Bem. — Voltara-lhe uma certa dignidade. Pôs-se de pé. — Se fosse contigo não o faria de modo algum.

Dirigiu-se para o seu quarto. Mas antes de entrar voltou-se e olhou para mim fixamente.

— A respeito da minha roupa! Que faço eu?

— Há uma loja de roupas aqui em baixo. Telefona-lhe e manda pedir aquilo que quiseres.

Fechou a porta. Peguei num cigarro. Ouvi a voz dele ao telefone. Encostei-me à cadeira e deixei sair o fumo pelo nariz.

Quando a roupa chegou, mandei-a para o quarto. A campainha tocou outra vez. Fiquei irritado pois começava a sentir-me porteiro. Abri a porta.

— Olá, Mr. Cord.

Era a voz de uma criança. Olhei surpreso. Jo-Ann estava ao lado de Mónica com a boneca que lhe tinha dado numa das mãos, tendo a outra agarrada ao casaco da mãe.

— McAllister mandou-me um telegrama — explicou Mónica. — Dizia-me que o encontraria aqui. Encontraste Amos?

Fiquei petrificado. Mac devia estar desorientado. Ele sabia muito bem que havia uma ligação para Chicago e que Mónica não deixaria de aparecer se fosse necessário. E se não me interes­sasse vê-la?

— Encontraste Amos? — repetiu Mónica.

— Encontrei-o, sim!

— Que bom! — exclamou Jo-Ann de repente quando viu o pequeno-almoço na mesa. — Estou cheia de fome. — Correu passando por mim para a cadeira que subiu, pegou numa tor­rada e começou a comê-la. Olhei para ela surpreendido.

Mónica olhou-me pedindo desculpa.

— Desculpa, Jonas — disse. — Sabes como são as crian­ças.

— Tu disseste que podíamos vir tomar o pequeno-almoço com Mr. Cord!

Mónica corou.

— Jo-Ann!

— Não tem importância — disse eu. — Não queres entrar? — Mónica entrou e fechou a porta. — Vou mandar vir o pe­queno-almoço para vocês — acrescentei dirigindo-me para o telefone.

Mónica sorriu.

— Para mim só café — disse ela tirando o casaco.

— O médico já chegou, Jonas?

Mónica ficou estática.

Eu também.

Jennie estava na ombreira da porta. Os seus longos cabelos louros caíam-lhe ao longo do vison que usava como se fosse um roupão. Com o pescoço e as pernas nuas via-se perfeitamente que nada trazia vestido por baixo.

O sorriso desapareceu de repente dos lábios de Mónica. Deitou-me um olhar gelado.

— Peço imensa desculpa, Jonas — disse constrangidamente. — Devia ter telefonado primeiro antes de subir, pois já devia saber por experiência própria como tu eras.

Atravessou a sala e pegou na mão da criança.

— Anda, Jo-Ann.

Só recuperei a voz quando elas chegaram à porta.

— Espera um momento, Mónica — disse asperamente.

Mas a voz de Amos interrompeu-me.

— Ah, vens mesmo a tempo, filha — falou calmamente. — Podemos ir juntos.

Voltei a olhar para ele. O velho sebento e doente da noite passada desaparecera.

Era o Amos dos velhos tempos que estava ali à minha frente, muito bem vestido dentro de um fato de jaquetão cinzento e com uma gabardina escura sobre o braço com grande-à-vontade. Todo o seu aspecto era o de uma pessoa muito importante.

Tinha um sorriso malicioso nos lábios quando atravessou a sala em direcção à porta.

— Não queremos impor a nossa presença, as minhas filhas e eu... — Parou e fez uma vénia a Jennie. Furioso dirigi-me para a porta. Abri-a e senti as portas do elevador fecharem-se seguido de um grande silêncio no vestíbulo.

— Desculpe, Jonas — disse Jennie. — Não tinha intenção de lhe estragar as coisas.

Olhei para ela. Nos seus olhos lia-se grande pesar,

— Não estragaste nada. As coisas há muito que estavam estragadas.

Fui até ao bar e servi-me de um whisky. Tudo o que sentira de bom desaparecera. Era a última vez que faria de bom samaritano. Engoli a bebida e voltei-me para Jennie.

— Alguma vez te deitaste com um casaco de vison? — perguntei zangado.

Havia tristeza e compreensão no seu olhar.

— Não.

Deitei no copo mais um whisky e bebi-o de um trago. Ali ficámos os dois de pé olhando-nos através da sala por momentos. Finalmente falei.

— Então?

Com os olhos postos nos meus acenou com a cabeça lenta­mente. Depois levantou os braços e estendeu-mos. O casaco abriu-se e vi-lhe o corpo nu. Quando falou, o tom de voz era de quem pressentira que tudo isto iria acontecer.

— Venha à mãezinha, pequenino — sussurrou.

 

                   A História de JENNIE DENTON

Jennie atravessou o vão da porta coberto por um espesso cortinado, penetrou na câmara-escura e o realizador gritou:

— Cortem!

E pronto, o trabalho, finalmente, tinha acabado para ela.

Ficou especada por instantes, aturdida, pestanejando durante alguns segundos à medida que os clarões dos poderosos projectores esmoreciam. Depois, o opressivo calor de Agosto desceu sobre ela, sentiu-se esvaída. Estendeu a mão para se apoiar, tentando desesperadamente manter-se de pé. Como se fosse muito à distância, ouviu o gigantesco som do palco tornar-se um clamor de manicómio. Parecia que toda a gente estava a rir e a falar ao mesmo tempo.

Alguém aproximou um copo com água das mãos dela. Bebeu avidamente, sentindo-se grata. De súbito, começou a tremer, com arrepios contínuos, e o camareiro deitou-lhe logo um casaco por cima dos ombros cobrindo o traje diáfano que Jennie trazia.

— Obrigada — murmurou ela.

— Seja bem-vinda, Miss Denton — disse o camareiro. Olhou-a fixamente durante alguns momentos. — Sente-se bem?

— Estou óptima — respondeu Jennie.

Sentiu um suor frio a correr-lhe na fronte. O camareiro fez um gesto e o encarregado da maquilhagem apressou-se a actuar. Passou-lhe rapidamente uma esponja húmida pelo rosto. Um suave aroma a avelã penetrou-lhe nas narinas, e Jennie começou a sentir-se melhor.

— Miss Denton — disse o encarregado da maquilhagem. — O melhor é ir estender-se na cama durante algumas horas. Está exausta.

Docilmente, Jennie deixou-se conduzir para o pequeno quarto de vestir. Olhou para trás, por cima do ombro, enquanto ia avançando. Estavam a abrir garrafas e o whisky gorgolejava nos copos. Todos se amontoavam à volta do realizador, berrando elogios, prestando-lhe a adoração que achavam necessária para assegurar um contrato para a nova fita. Parecia que já a tinham esquecido totalmente.

Jennie fechou a porta atrás de si e estirou-se na pequena cama de lona. Cerrou os olhos, pesadamente. Voltou-se de lado, dobrou as pernas, enrolou-se em si mesma. Pouco a pouco, o calor do seu corpo começou a condensar-se; acabou por se sentir confortada.

Quando voltou a abrir os olhos, Ilene Gaillard estava sen­tada numa cadeira diante dela. Jennie nem sequer a pressentira a entrar no pequeno quarto.

— Olá! — disse Jennie, erguendo-se. — Estou a dormir há muito tempo?

Ilene sorriu:

— Há cerca de uma hora. Precisavas disso.

— Estou tão estonteada! — disse Jennie. — Normalmente, não me deixo vencer assim. Mas agora, confesso, sinto-mo muito fraca.

— Tens estado debaixo de uma tensão horrível. Mas não há nada que te deva preocupar. Quando este filme for exibido, vaia tornar-te uma grande star. Uma das maiores.

— Espero que sim — disse Jennie, humildemente. Olhou fixamente para Ilene. — Quando penso em toda esta gente, o trabalho exaustivo que têm, como se entregam de alma e coração a um filme!... Arriscam-se muito. Não podia suportar a ideia de os ter desapontado.

— Não os desapontaste. Por aquilo que pude ouvir, acha­ram-te extraordinária. — Ilene ficou a contemplá-la durante alguns segundos e depois disse: — Acho que devias tomar uma bebida quente.

Jennie sorriu quando viu Ilene erguer-se e pegar na lata do cacau.

— Chocolate?

— Porque não? — perguntou Ilene. — Dá-te mais forças que o chá. Aliás, já não tens que te preocupar com a tua dieta. O filme acabou.

— Graças a Deus! — exclamou Jennie, levantando-se. — Mais um almoço de sandes de queijo e eu ficava moribunda. — Atravessou o pequeno quarto, dirigindo-se para a casa de banho. — Devia livrar-me de tudo isto em definitivo.

Ilene acenou com a cabeça, num gesto de compreensão. Observou Jennie a despir-se — as delicadas, flutuantes calças de seda de harém, a blusa de gaze transparente e a jaqueta de veludo azul bordada a oiro, que fora o seu traje na última cena do filme. Esquadrinhou a figura da rapariga, com admiração; agradou-lhe tudo nela.

Ilene sentia-se, agora, contente por Jonas a ter mandado chamar. Não se sentira assim ao princípio. Não queria voltar para Hollywood, para aquele mundo de intriga, de sarcasmo, de invejas mesquinhas. Sobretudo, não queria voltar para as recordações.

Porém, ao examinar a fotografia de Jennie, algo na rapariga a fizera mudar de ideias. Podia compreender o que Jonas tinha visto nela. Havia nela algo de Rina, mas também possuía qualidades muito peculiares.

Só depois de ter estudado a fotografia de Jennie durante muito tempo é que Ilene percebeu o que a rapariga tinha de tão especial. Era aquela translucidez estranhamente ascética que se revelava na fotografia, mesmo apesar da sua atracção meramente sensual. Os olhos, mesmo na fotografia, possuíam a diáfana inocência d uma criança, por detrás da sua aparência de conhecimento mundano. Era o rosto de uma rapariga que tinha mantido a alma intocável, incorrupta, fosse o que fosse que já tivesse experimentado através do corpo.

Jennie vestiu um robe, lentamente. Sentou-se e pegou na chávena de chocolate a ferver que

Ilene lhe entregou.             

— De repente, sinto-me vazia — disse, começando a beber em pequenos golos. — Sinto-me toda gasta.

Ilene sorriu e pôs-se a beber também uma chávena de chocolate.

— Toda a gente fica assim quando acaba de fazer um filme.

— Sinto que nunca mais poderei fazer outro filme — conti­nuou Jennie, pensativamente. — Penso que se o fizer, isso não terá qualquer significado para mim. De certo modo, é como se toda eu ficasse esgotada neste filme, e nada tivesse ficado de mim.

Ilene voltou a sorrir.

— Esquecerás isso no instante em que te apresentarem o ar­gumento do próximo filme.

— Achas que sim? — perguntou Jennie. — É isso o que costuma acontecer?

Ilene acenou afirmativamente:

— Aconteceu sempre isso.

Uma revoada de ruídos atravessou as finas paredes do quarto. Jennie sorriu.

— Estão em grande festa, aqueles — murmurou.

— O Cord mandou que se organizasse um grande banquete — explicou Ilene, ao acabar de beber o chocolate, pousando a chávena na mesa. Ficou por momentos a contemplar de novo a rapariga e depois acrescentou: — Na realidade, vim cá para me despedir de ti.

Jennie olhou, intrigada, para Ilene.

— Vais-te embora? — perguntou.

Ilene acenou afirmativamente com a cabeça.

— Parto para o Leste no comboio desta noite — res­pondeu.

— Que pena! — exclamou Jennie. Pousou a sua chávena e levantou-se. Estendeu a mão para Ilene. — Obrigado por tudo o que fizeste por mim. Aprendi muito contigo.

Ilene apertou-lhe a mão.

— Ao princípio, não queria vir, mas agora sinto-me con­tente por ter vindo — disse.

Cumprimentaram-se formalmente.

— Espera que ainda voltaremos a trabalhar juntas outra vez — disse Jennie.

Ilene dirigiu-se para a porta. Ainda olhou para trás para a artista, dizendo:

— Tenho a certeza de que voltaremos a trabalhar juntas. Se me quiseres, terei muita alegria em voltar.

De súbito, a porta abriu-se e Al Petrocelli, o agente de publicidade, enfiou a cabeça para dentro do quarto. Uma rajada de música veio por detrás dele.                                

— Venham — disse. — A festa está animada. O Cord mandou vir uma orquestra.

Jennie pousou o cigarro que tinha começado a fumar.

— Só um segundo — pediu, voltando-se para o espelho e arranjando o cabelo.

O homem olhou-a fixamente.

— Não vais para ali vestida dessa maneira, pois não? — observou incrédulo.

— Porque não? — replicou Jennie. — O filme já acabou.

O homem entrou no quarto e fechou a porta atrás dele,

— Mas, Jennie, tenta compreender, criança. A Life está ali em peso. Como é que os leitores da Life reagirão se a estrela principal do maior filme que se fez desde há dez anos para cá aparecer de robe e chinelos de quarto? Temos de os impressionar de uma maneira mais conveniente do que essa.

— Não voltarei a enfiar aquela roupa — disse Jennie, obstinadamente.

— Por favor, queridinha. Prometi-lhes umas fotografias sensacionais.

— Se é isso que querem, dá-lhes a colecção privada de fotografias minhas, e eles que escolham.

— Agora não é ocasião para teres crises temperamentais — volveu Al. — Tens sido uma rapariguinha muito bem mandada. Não vás agora estragar tudo, peco-te.

— Deixa lá, Al — disse Bonner por detrás dele. — Se a Jennie não se quer vestir, deixa lá. — Sorriu, com aquele seu sorriso agradavelmente feio, ao entrar no pequeno quarto de vestir. — Para dizer a verdade, até acho que será uma surpresa bem recebida pelos leitores da Life.

Al olhou para ele e anuiu:

— Está bem, está bem, Bonner. Se acha que deve ser assim, seja.

Bonner aproximou-se de Jennie, sorrindo.

— Óptimo, foi um trabalho maravilhoso — comentou.

Jennie não respondeu: limitou-se a olhar para Bonner.

— A Pecadora vai ser um êxito difícil de repetir.

— Nunca pensei que havia de ter tanta importância — disse Jennie.

— Claro, nem tu avaliaste isso, nem Jonas. — Bonner riu. — Mas como haviam vocês de avaliar uma coisa dessas? Isso compete-me. Não a vocês. O Jonas faz tudo apenas porque lhe apetece. Se lhe apetece fazer um filme, pronto — faz um filme. E normalmente faz filmes bons. Mas terão de passar mais uns oito anos antes que lhe apeteça fazer outro filme.

— E então?... — disse Jennie, olhando-o bem de frente.

Bonner encolheu os ombros:

— Bem vês: agora eu é que tenho de te manter a trabalhar. Se passares assim tantos anos sem apareceres no cinema, o pú­blico, toda a gente te esquecerá. — Tirou da blusa um pacote de cigarros. — Essa mexicana ainda está a trabalhar para ti?

— Está.

— E ainda a viver no mesmo lugar?

— Claro.

— Tenciono ir lá uma destas noites, na próxima semana. Consegui alguns argumentos. Temos de dar uma vista de olhos por eles. Talvez possamos aproveitar algum.

Jennie manteve-se em silêncio.

— O Jonas vai para fora — anunciou Bonner. — Para o Ca­nadá, em viagem de negócios. — Sorriu. — Sabes, foi uma sorte ele não ter ouvido nenhuma das histórias que contam a teu res­peito, não achas?

Jennie suspirou.

— De facto, foi uma sorte.

— Podemos encontrar-nos quarta-feira à noite, está bem?

— É melhor telefonares primeiro — disse Jennie, por entre dentes.

— Ah, sim, claro. Nada mudou, pois não?

Jennie encarou-o.

— Não — respondeu sombriamente.

Depois, Jennie encaminhou-se à frente dele para a sala onde se realizava a festa. Invadiu-a um grande cansaço. Nada tinha mudado. As coisas corriam sempre da mesma maneira para ela. Nada tinha mudado, excepto a situação económica.

Ao acordar, a primeira imagem que se lhe deparou foi a do linho muito branco a flutuar ao vento, lá fora, junto da ja­nela, na corda da roupa. O aroma excitante do bife a grelhar e das couves a cozer, penetrando no quarto dela com a densa brisa de Verão vinda pela porta da cozinha, fez-lhe lembrar que era domingo. Aos domingos era sempre assim. Só no tempo da sua infância os domingos tinham sido mais agradáveis, mais alegres.

Nesse tempo, aos domingos, quando regressava da igreja com a mãe, o pai já estava a pé e a sorrir, com o bigode cuida­dosamente frisado, o rosto bem barbeado, fresco, macio, per­fumado. Atirava-a ao ar para depois a apanhar nos braços, apertando-a contra o peito e murmurando: «Como está a minha querida Jennie Bear esta manhã? Está purinha, meiga e obe­diente, depois de ter rezado a Deus Todo-Poderoso?»

Ria ele e Jennie e às vezes também a mãe, dizendo: «Então, Thomas Denton, isso são maneiras de um pai falar à filha, metendo-lhe na cabeça a ideia de troçar e desobedecer a Deus?»

O pai e a mãe eram ambos jovens e cheios de alegria e desse sol de Deus que inundava a baía de S. Francisco. E depois do almoço, o pai vestia-se garbosamente, com o seu impecável fato azul-escuro, levava-a a passear pela mão, saíam os dois de casa à procura de aventuras.

A primeira aventura era o encontro com o carro eléctrico que passava à porta da casa deles. Erguendo-a nos braços, o pai saltava com ela para o carro em movimento, mostrando a sua carta de condutor, que lhe permitia viajar de graça em qualquer dos carros da companhia; ia colocar-se com ela ao lado do motorista. Jennie, então, erguia o rosto ao vento, sentindo o ar fresco da tarde, puro, a encher-lhe os pulmões.

«É a minha filha, a minha Jennie Bear» — gritava o pai para todos que quisessem ouvir, erguendo-a orgulhosamente à vista de todos.

E os passageiros, que até então tinham estado absorvidos pelas suas preocupações, sorriam para ela, compartilhando um pouco do júbilo que brilhava como um farol no seu rosto redondo e prazenteiro.

Depois, iam para o parque, ou para o cais, onde comiam camarões cozidos ou caranguejos, com alho, e o pai bebia cerveja em canecas enormes. Mas só para desvanecer o cheiro a alho, é claro. Ou às vezes iam ao jardim zoológico, e o pai comprava-lhe um pacote de amendoins para dar aos macacos. E voltavam a casa à noite, e ela sentia-se cansada e às vezes ador­mecia nos braços do pai. No dia seguinte era segunda-feira, e ela não podia ficar parada, à espera que fosse domingo novamente.

Não, nada passava tão depressa como os domingos da infância. E então, na segunda-feira, tinha de ir para a escola, amedrontada, pelo menos ao princípio, perante as freiras, austeras e silenciosas nos seus trajes negros. O seu rostozinho redondo tomava uma expressão triste, pendia sobre a blusa azul-marinho. Mas elas ensinavam o catecismo pacientemente, faziam acreditar em coisas bonitas, e ia-se perdendo o medo aos poucos, à medida que se aceitava as freiras como professoras, pessoas que conduziam para uma vida cristã mais plena; e os ditosos dias da infância escoam-se assim na memória, até serem recordados com dificuldade.

Jennie repousava serenamente deitada na sua cama de rapariga de dezasseis anos, atenta aos ruídos da manhã de domingo. Durante alguns minutos, houve apenas o silêncio. Mas depois ouviu a voz aguda da mãe:

— Thomas, já é tempo de te pores a pé e de ires à missa.

A voz do pai era rouca, as palavras saíam embrulhadas, indistintas. Agora, Jennie podia vê--lo prostrado na cama, com a barba por fazer e embotado pela noite de estúrdia de sábado, embotado pela bebedeira de cerveja, ouvia, pressentia-o, enconchada na cama fofa, larga, com o rosto adolescente enterrado no travesseiro. Ouvia a mãe a insistir:

— Mas, Thomas, prometi ao Padre Hadley que neste do­mingo tu irias de certeza à missa. Se não te importas com a tua alma, ao menos pensa na da tua mulher e nas almas das tuas filhas.

A mãe não tinha resposta; então, a porta batia com es­trondo, quando a mãe se retirava para a cozinha. Jennie dei­xava deslizar os seus pés descalços para o soalho, procurando, dengosamente, os chinelos de quarto. Encontrava-os, por fim, ficando imóvel e de pé por instantes; depois, a comprida camisa de dormir muito branca, de algodão, flutuava-lhe nas ancas ao atravessar lentamente o quarto.

Passava pela cozinha ao dirigir-se à casa de banho, e a mãe voltava-se para ela, deixando por momentos o seu tra­balho junto do fogão.

— Jennie, minha querida, podes pôr o novo chapéu azul que fiz para ti quando fores à missa — dizia.

— Sim, mãe — respondia Jennie.

Lavava os dentes cuidadosamente, lembrando-se do que a Irmã Filomena tinha dito na aula de Higiene. Movimentos circulares com a escova por sobre as gengivas, de cima para baixo, tirariam todas as partículas de comida que podiam causar cárie dentária. Examinava os dentes com toda a minú­cia ao espelho. Tinha uns dentes bonitos. Brilhantes, brancos e uniformes.

Gostava de se sentir limpa, pura. Não era como a maior parte das raparigas da Mercy High School, que só se lavavam uma vez por semana, aos sábados. Jennie tomava banho todos os dias — apesar de ter de aquecer a água na cozinha do velho prédio em que viviam.

Olhava para o seu próprio rosto, fixava os seus claros olhos cinzentos, tentando imaginar-se com o uniforme de enfer­meira. Em breve teria de se habituar a essa ideia. O exame era no mês seguinte, e nem todas conseguiam uma bolsa para entrar no St. Mary's College de Nursing.

As freiras gostavam dela; sempre tivera notas altas. Além disso, o Padre Hadley tinha escrito para a Madre Ernest, recomendando-a pela sua aplicação aos estudos e devoção no serviço religioso, sendo muito diferente das outras raparigas, que — dizia — passavam mais tempo diante do espelho, a aperaltadas, do que ajoelhadas na igreja perante Deus. O Padre Hadley exprimira a esperança de que a madre pudesse encontrar uma maneira de proteger e recompensar aquela pobre criança.

As bolsas para frequentar o St. Mary's College eram dadas todos os anos às alunas cujo comportamento religioso e escolar fosse considerado o mais exemplar por um júri presidido pelo arcebispo. Nesse ano, a escolhida seria ela, Jennie, se quisesse ir para enfermeira. Nessa manhã, depois da missa, teria de se apresentar à Madre Ernest, na Congregação, para dar uma resposta.

— Foi uma escolha de Deus — disse a Irmã Cyril, ao informa-la da decisão do júri. — Mas terás de decidir. Pode acontecer que socorrer os doentes e os desgraçados não seja, afinal, a tua vocação.

A Irmã Cyril olhara fixamente para a rapariga, de pé, serena, defronte da secretária. Nesse tempo, Jennie já era alta e esbelta, com corpo de mulher; no entanto, havia uma pacífica inocência nos seus serenos olhos cinzentos e translúcidos. Não falava. A irmã Cyril sorriu.

— Tens uma semana para te decidir — disse, ternamente. — Vai à Congregação no próximo domingo, depois da missa. A Madre Mary Ernest estará lá à espera da tua resposta.

O pai berrara furioso quando soubera do caso.

— Que vida pode ser essa para uma rapariga? Limpar os bacios dos velhos! Depois, fazem dela uma freira.

Voltava-se violentamente para a mãe, berrando:

— É o que tu fazes com as tuas manias! Tu e esses estupores desses padres a que dás ouvidos! Que bonito, hem?, meter uma criança entre as paredes de um convento?!

A mãe tinha o rosto branco como a cal.

— Estás a blasfemar, Thomas Denton — disse, severamente. — Se fosses ao menos uma vez falar com o bom Padre Hadley, verias como andas errado. E se a nossa filha se tornar uma freira, fica sabendo que serei a mãe mais orgulhosa de todas as mães cristãs. O que há de mal em oferecer a nossa filha a Cristo?

— Isso! — rosnou o pai. — Mas hás-de arrepender-te quando a tua filha crescer e concluir que lhe tiraste os pra­zeres de ser mulher.

Voltou-se para Jennie e fixou-a longamente.

— Jennie Bear — disse, suavemente —, eu não te proíbo de seres enfermeira, se quiseres sê-lo. Não, não é isso. O que eu quero é que sejas e que faças o que te apetecer. Eu e a tua mãe não temos importância nenhuma. Mesmo a Igreja, aquilo que a Igreja quer, isso também não tem importância ne­nhuma. O que tem importância é aquilo que tu queres. — Suspirou. — Compreendes, minha filha?

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça e disse:

— Compreendo, sim, papá.

— Não estás satisfeito enquanto não vires a tua filha trans­formada numa prostituta! — berrou de súbito a mãe.

O pai voltou-se para ela, serenamente.

— Preferia vê-la como uma prostituta de livre vontade — disse, com secura — do que transformada em santa.

Olhou de novo para Jennie e falou-lhe com uma voz outra vez terna:

— Queres mesmo ser enfermeira, Jennie Bear?

Jennie olhou fixamente para o pai, com os seus transpa­rentes olhos cinzentos.

— Acho que sim, papá — disse.

— Se é isso que realmente queres, Jennie Bear, então fica­rei contente por seres enfermeira.

A mãe olhou para ele, com um brilho de triunfo nos olhos.

— Quando aprenderás que não podes lutar com o Senhor, Thomas Denton?

O pai de Jennie não replicou; comprimiu os lábios e saiu bruscamente da sala.

A Irmã Cyril bateu à pesada porta de madeira de carvalho.

— Entre — disse uma voz clara e serenamente forte. A Irmã Cyril abriu a porta e fez um gesto para Jennie.

Jennie entrou na sala, um tanto hesitante, com a Irmã Cyril atrás dela.

— Esta é a Jennie Denton, Reverenda Madre — disse a Irmã Cyril.

A mulher de meia-idade com o hábito negro da Congre­gação ergueu o olhar por cima da secretária. Tinha na mão uma chávena de chá quase cheia. Estudou a rapariga com um olhar arguto. Passados alguns instantes sorriu, mostrando uns dentes muito brancos e certos.

— Com que então és tu a Jennie Denton — disse, esten­dendo a mão.

Jennie fez uma rápida cortesia e beijou o anel da mão da madre.

— Sou, sim. Reverenda Madre. — Ergueu-se e ficou muito direita, rígida, defronte da secretária.

A Madre Mary Ernest voltou a sorrir, com um brilho de júbilo a derramar-se-lhe dos olhos.

— Podes estar à vontade, minha filha. Não vou comer-te.

Jennie sorriu desajeitadamente.    

A madre ergueu um sobrolho, numa expressão interrogativa.

— Queres tomar uma chávena de chá? — perguntou.

— A mim, uma chávena de chá faz-me sempre sentir melhor.

— Sim, realmente, gostava muito — disse Jennie, timida­mente, numa voz sumida.

A Madre fez um gesto para a Irmã Cyril.

— Vou buscá-la, Reverenda Madre — disse logo a freira.

— E outra chávena para mim, também, se faz favor. — A madre voltou-se outra vez para Jennie. — Adoro uma chávena de bom chá. — Sorriu. — E aqui há desse chá bom. Nada de parecido com a água choca que dão nos hospitais; chá verdadeiro, aromático. Não queres sentar-te, minha filha?

A madre disse estas palavras com tal rapidez que Jennie não teve a certeza de as ouvir.

— Como, madre? — balbuciou.

— Não queres sentar-te, minha filha? Não deves estar nervosa, aqui, junto de mim. Quero ser tua amiga.

— Sim, madre — disse Jennie; e sentou-se, ficando ainda mais nervosa do que já estava.

A madre fixou-a durante alguns minutos e depois disse:

— Então, decidiste vir a ser enfermeira, não é verdade?

— Sim, madre.

Agora, os olhos estranhamente brilhantes da superiora estavam mesmo em cima dela.

— Porquê? — perguntou bruscamente.

— Porquê? — Jennie ficou surpreendida com a pergunta. Baixou os olhos, perante a insistência do olhar da madre. — Por­quê? — Voltou a erguer os olhos, encarando-a. — Não sei. Parece-me que nunca pensei nisso.

— Que idade tens tu, minha filha? — perguntou a madre.

— Faço dezassete anos no mês que vem, uma semana antes de receber o meu diploma da escola.

— Sempre tiveste a ambição de vir a ser enfermeira e de ajudar os doentes, mesmo quando ainda eras uma criança, não?

Jennie abanou negativamente com a cabeça.

— Não — disse, com modos inocentes. — Nunca tinha pensado muito nisso até agora.

— Ser enfermeira é uma coisa muito dura, muito difícil. Terás muito pouco tempo para ti própria em St. Mary. Terás de trabalhar e de estudar durante todo o dia; viverás na escola de enfermagem, sempre. Só terás um dia por mês para ires visitar a tua família. O teu namorado não deve gostar disto, pois não?

— Eu não tenho nenhum namorado — protestou Jennie.

— Mas tens andado sempre com o Michael Halloran. Tens estudado com ele. E jogas ténis com ele todos os sábados. Ele não é o teu namorado?

Jennie riu.

— Não, madre. Não é o meu namorado, de maneira ne­nhuma. — Riu-se de novo, desta vez para si mesma, ao pen­sar nesse rapaz escanzelado, totalmente incapaz de lhe des­pertar pensamentos românticos. — Ele é só um bom jogador de ténis, só isso. — Depois, acrescentou: — E qualquer dia hei-de batê-lo no ténis.

— Foste chefe do grupo de ténis de raparigas no ano passado?

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça.

— Em St. Mary não vais ter tempo para jogar ténis — avisou a madre.

Jennie não replicou.

— Há alguma coisa que gostasses mais de ser do que enfermeira?

Ela quedou-se a pensar durante alguns segundos. Depois, encarou a madre e disse:

— Gostava de bater Helen Wills no campeonato de ténis dos Estados Unidos.

A madre explodiu numa gargalhada estrepitosa. Ainda estava a rir quando a Irmã Cyril entrou no compartimento com o chá. Fitou a rapariga e depois disse:                    

— Hás-de conseguir isso. E tenho um pressentimento de que também hás-de vir a ser uma boa enfermeira.

Tom Denton pressentiu que qualquer coisa não estava a correr normalmente no momento em que se aproximou da caixa para pedir o envelope com o seu ordenado. Normalmente, o caixa brandia o sobrescrito com um sorriso prazenteiro, pis­cando-lhe o olho mal o via aproximar-se. Desta vez, porém, não houve qualquer movimento dessa amigável malícia que tinha sido o seu encontro semanal há quinze anos, aludindo a borgas com cerveja nos sábados à noite. Em vez disso, o caixa empurrou com brusquidão o sobrescrito por baixo das barras de metal, com o olhar esquivo, de cabeça baixa.

Tom ficou especado a olhar para ele durante alguns minutos. Depois, passou rapidamente o olhar pela fila dos outros trabalhadores, que estavam atrás dele. Eles também sabiam. Tom percebia isso pela maneira como o olhavam. Um estranho sentimento de vergonha apoderou-se dele. Aquilo não era justo! Depois de quinze anos!... Baixou os olhos e desviou-os da caixa, com o envelope na mão.

Claro, os tempos estavam maus. Era em 1931, e a prova dessa crise grave revelava-se em tudo. Famílias a pedir esmola; bichas para o pão e uma sopa: faces exaustas de homens desem­pregados.

Agora, estava quase fora do celeiro. De súbito, não pôde mais e enfiou-se num canto escuro para abrir o envelope. Ras­gou-o com os dedos a tremer. E o que os dedos agarraram logo foi a temida folha verde, que significava estar despedido.

Ficou a olhá-la sem poder acreditar. Não, devia ser engano. Não, não podia ser que eles fizessem uma coisa daquelas. Ele não era empregado de há um ano ou dois ou mesmo cinco. Adquirira direitos de antiguidade. Quinze anos. Não tinham o direito de despedir um empregado com quinze anos. Não, era impossível.

Mas a realidade ali estava. Tom ficou com o olhar esgazeado preso ao papel, imerso na semiobscuridade. Despedido! Que ironia! E a razão que davam para todos os cortes nos ordenados era precisamente a de impedir demissões!... Até o sindicato lhes tinha dito isso!

Amarrotou o sobrescrito e meteu-o no bolso, tentando vencer a súbita sensação de vómito, com o medo a crispar-lhe o estômago. Agora, que ia ele fazer? Tudo o que sabia era conduzir camiões. Esquecera tudo o resto, tudo o que fizera antes. A única outra coisa de que ainda se lembrava era de ter sido carreteiro de construções, quando novo.

Saiu do escuro do celeiro, pestanejando ao entrar na luz do dia. No passeio estava parado um grupo de homens, de uniformes azuis já com lustro a brilhar à luz do sol. Um deles chamou-o.

— Também foste despedido, Denton?

Tom olhou para ele e acenou afirmativamente com a cabeça.

— Nós também fomos — disse outro dos homens. — Estão a despedir os mais velhos porque acham que provocamos uma despesa maior. Só ficam com os que estão há pouco tempo e, portanto, ganham menos.

— Já foram ao sindicato? — perguntou Tom.

— Fomos lá, mas demos com o nariz na porta. Está fechado. O porteiro disse-nos para voltarmos na segunda-feira.

— Já telefonaram ao Riordan?

— O telefone de casa dele não responde.

— Alguém deve saber onde o Riordan está — disse Tom. — Vamos lá e forçamos o porteiro a deixar-nos entrar. Afinal, para que nos serve o sindicato, para que descontamos para ele se não nos pudermos reunir lá?

— Boa ideia, Tom. Não podemos ficar parados. Temos de protestar.

Começaram a encaminhar-se em grupo para o prédio do sindicato, cerca de dois blocos adiante do celeiro. Tom arras­tava-se, silenciosamente. De certo modo, ainda nem sequer podia acreditar no que acontecera. Dez cents por hora não podiam significar muito para a Companhia. Se eles precisas­sem mesmo, ele até teria aceitado outra diminuição do salário. Aquilo que tinham feito, assim, sem mais nem menos, isso é que não estava certo. Tornava--se necessário encontrar Riordan. Ele saberia como actuar. Era o homem do sindicato, o homem que os protegia.

O prédio do sindicato estava imerso em sombras quando eles lá chegaram; bateram à porta ruidosamente, até que o velho guarda-nocturno a abriu.

— Já vos disse que o Riordan não está aqui — disse, numa voz soturna e irritada.

— Onde está o Riordan?

— Não sei — respondeu o guarda-nocturno, começando a fechar novamente a porta. — Vão para casa.

Tom fincou o pé na soleira da porta e empurrou. O velho recuou, vacilante, quase caindo. Os homens precipitaram-se para o interior atrás de Tom.

— Não entrem, não entrem! — gritava o velho, com a sua voz rouca.

Não lhe ligaram, irrompendo para a sala das reuniões, que era uma sala larga ao fundo do corredor. O grupo, ao todo, era agora de cerca de trinta homens. Uma vez chegados à sala, ficaram ali especados, sem saberem o que fazer a seguir. Agruparam-se em roda, olhando uns para os outros.

— Vamos ao gabinete do Riordan — sugeriu Tom. — Talvez encontremos lá algum documento importante.

O gabinete de Riordan era uma divisão envidraçada ao fundo da sala das reuniões. Precipitaram-se de roldão para lá, mas só alguns conseguiram, comprimindo-se, caber no cubículo. Tom vasculhou a secretária do chefe do sindicato. Em cima havia apenas um calendário, um mata-borrão verde e algumas canetas. Abriu bruscamente uma gaveta e depois outra e outra ainda. As únicas coisas que encontrou foram mais canetas e papel e recibos em branco.

O guarda surgiu subitamente na sala.

— Se vocês não se vão embora, rapazes — berrou —, vou chamar os polícias.

— Vai à merda, velho — berrou um motorista fardado voltando-se para ele.

— Estupor! — berrou outro. — Este é o nosso sindicato. Pagamos as quotas e a renda. Podemos ficar aqui se quisermos.

O guarda desapareceu no corredor. Alguns dos homens olharam para Tom.

— Que vamos fazer agora? — perguntou um deles.

— Talvez seja melhor voltarmos na segunda-feira — suge­riu um outro. — Depois já veremos o que o Riordan diz da situação e o que pretende fazer.

— Ná! — exclamou Tom. — Na segunda-feira já não conseguiremos nada. Hoje, hoje é que vamos ajustar as contas com ele!

— Como? — perguntou o outro.

Tom ficou imóvel por instantes, a pensar.

— O sindicato é a única possibilidade que temos para pro­testar. Vamos obrigá-lo a fazer alguma coisa por nós.

— Como poderemos fazer alguma coisa se o Riordan não está aqui?

— O Riordan não é o sindicato — disse Tom. — Nós é que somos. Se não o encontrarmos, actuaremos mesmo sem ele. — Voltou-se para um dos homens. — Patrick: tu fazes parte do conselho de administração. Que é que o Riordan faz normal­mente num caso destes?

Patrick tirou a boina e começou a coçar o cabelo grisalho.

— Não sei, não sei bem — disse, pensativamente. — Mas parece-me que a primeira coisa que devia fazer era convocar uma reunião.

— Óptimo — disse Tom. — Alguns de vocês vão ao celeiro e dizer aos outros que venham imediatamente aqui para uma reunião.

Os homens moveram-se, excitados, e depois alguns deles agruparam-se, decididos a ir ao celeiro. Os outros fizeram roda, à espera.

— Se nos vamos reunir, é preciso organizar a «ordem do dia» — disse alguém. — Nunca se faz uma reunião sem «ordem do dia».

— A «ordem do dia» é apenas: que direito tem a Compa­nhia de nos despedir assim, sem mais nem menos? — eluci­dou Tom.

Todos acenaram afirmativamente com a cabeça.

— Esta questão de nos reunirmos está a dar-me uma sede terrível — disse um dos homens. — Toda esta conversa pôs-me a garganta seca como palha.

— Vamos mandar vir um barril de cerveja — berrou uma voz.

Houve um entusiasmo delirante, revelado por um grito em uníssono de acordo, e foi logo organizada uma colecta. Dois homens foram encarregados de ir buscar a cerveja; quando vol­taram, o barril foi colocado em cima de uma mesa, ao fundo da sala.

— Agora — disse um dos homens, brandindo a sua caneca de cerveja—, agora, sim, podemos meter mãos à obra!

A sala tornou-se uma feira, dominada pelo barulho e pela confusão, à medida que os homens se juntavam cada vez em maior número. Chegaram a agrupar-se mais de cem, discutindo acalo­radamente todos ao mesmo tempo. O primeiro barril de cerveja esgotou-se rapidamente. Outros dois foram trazidos e colocados na mesa.

Tom bateu na mesa com o martelo que tinha encontrado na secretária de Riordan.

— A reunião tem de entrar na ordem! — gritou, repetidas vezes. Bateu assim sem cessar, com violência, quase com deses­pero, até que acabou por chamar a atenção de alguns, que se calaram.

— Silêncio! — bradou um deles. — Ouçamos o que o velho Tom nos tem a dizer.

A balbúrdia tornou-se um murmúrio; depois, todos os homens fixaram o olhar em Tom. Este esperou até se fazer um silêncio total; em seguida pigarreou nervosamente, para aclarar a voz.

— Estamos aqui reunidos porque hoje a Companhia despediu cinquenta homens e não encontrámos o Riordan para nos explicar a razão disso. — Remexeu desajeitadamente com o martelo durante alguns segundos. — O sindicato, cujo dever é proteger-nos, tem de actuar, mesmo que não saibamos onde o Riordan está. Os homens que hoje foram despedidos tinham direitos de antiguidade, e não há nenhuma razão para a Companhia não voltar a admiti-los.

Um brado de revolta brotou da multidão.

— Enquanto vocês bebiam cerveja — prosseguiu Tom — vi o regulamento; e o regulamento diz que uma assembleia tem possibilidades de votar por uma greve se estiverem presentes mais de vinte e cinco membros. Ora, aqui estão muito mais do que vinte e cinco membros, e eu proponho que se vote por uma greve para segunda-feira, a não ser que a Companhia volte a admitir-nos imediatamente, hoje mesmo.

— Greve! Greve! — gritaram todos.

— Temos sido trabalhadores fiéis à Companhia há muitos anos; sempre trabalhámos para eles honestamente. Agora, eles não têm o direito de nos dar assim um pontapé e pôr-nos na rua sem qualquer justificação.

— Apoiado!

— Não te adiantes muito. Tom! — gritou um homem ao fundo. — Pode haver um delator entre nós.

Explodiu uma risada geral.

— Se há um delator — disse Tom, severamente —, deixemo-lo ir à Companhia dizer o que estamos a fazer aqui. Provar-lhes-emos que estamos no nosso direito de protestar.

Rebentou uma revoada de aplausos delirantes.

Tom ergueu a mão.

— Agora, votemos pela greve — disse. — Todos os que concordarem, digam «Sim».

De súbito, todos ficaram paralisados e em silêncio. Olha­vam uns para os outros, nervosamente. A porta ao fundo da sala abrira-se e Riordan surgiu no limiar,

— Que raio de conversa é essa sobre greve, rapazes?

Os operários voltaram-se para trás, fixando-o com expres­são de pasmo. O director do sindicato, de rosto rude e corpo atarracado, avançou por entre a multidão. Houve um murmúrio amedrontado. Ao mesmo tempo, era quase um suspiro de alí­vio. Riordan estava ali. Iria dizer-lhes o que deviam fazer. Resol­veria tudo.

— Olá, Tom — disse Riordan, dando a volta à mesa do comício e aproximando-se do operário. Estendeu-lhe a mão. Tom apertou-lha. Era a primeira vez que o fazia.

— Viemos reunir-nos aqui porque achámos que o sindi­cato deve fazer alguma coisa por nós.

Riordan lançou-lhe um olhar penetrante.

— Claro, Tom — disse, num tom de voz melífluo. — E isso é exactamente o que eu tencionava fazer.

Tom suspirou de alívio. Por instantes, pensara que Rior­dan ficaria furioso por causa da maneira como eles tinham entrado ali e tomado conta da sala. Ficou imóvel, a olhar para o director do sindicato, que ergueu a mão para todos. Um silêncio profundo estabeleceu-se na sala.

— Rapazes — disse Riordan, com uma voz possante e firme. — A razão por que não me encontraram aqui é simples: mal soube que tinham sido despedidos alguns de vocês, corri logo para o escritório da Companhia. Não houve tempo, por enquanto, para convocar uma reunião como deve ser, mas quero que saibam que o sindicato já actuou devidamente em vossa defesa.

Um grito de aplauso brotou de todas as bocas. Olhavam uns para os outros, entusiasmados.

— E quero manifestar a minha admiração a Tom Denton, pelo seu sentido dinâmico, ao convocar-vos todos para aqui. Isso demonstra que Tom Denton, como todos vós, sabe que o sindicato é vosso amigo e que vos protege.

Tom corou quando os homens soltaram outro brado de aplauso. Riordan voltou-se de costas para a multidão.

— Tenho estado a trabalhar toda a tarde, lutando com os directores da Companhia, e consegui por fim fazê-los ceder um pouco.

Outro grito de entusiasmo ainda mais forte abalou o edifício.

Riordan ergueu a mão, sorrindo.

— Não deitem foguetes por enquanto, rapazes. Como disse, apenas consegui fazê-los ceder um pouco; isso é apenas o princípio. Prometeram manter mais conversações comigo no próximo mês.

— Vão readmitir-nos? — perguntou Tom.

Rioran olhou para ele e depois voltou-se para os homens.

— A Direcção concordou em readmitir dez dos homens despedidos esta semana. Também concordaram em readmitir mais dez no próximo mês.

Um insólito silêncio dominou a sala. Os homens olharam uns para os outros, num nervosismo retraído.

— Mas foram despedidos mais de cinquenta — observou Tom, altissonante. — Que é a readmissão de dez homens em mais de cinquenta?

— É o princípio, Tom — replicou Riordan. — Não se pode fazer tudo de uma só vez.

— Porque não? — perguntou Tom, com veemência. — Eles também nos despediram a todos de uma só vez.

— Isso é diferente — replicou Riordan. — A Companhia tem o direito de despedir os empregados se os negócios correrem mal.

— Sim, bem sabemos. Mas o que nos revoltou foi a maneira como o fizeram. Não ligaram aos direitos de antiguidade, que também fazem parte do regulamento, esses direitos com os quais eles concordaram perante o sindicato. Mandaram-nos embora, a nós, os mais antigos da Companhia, e mantêm os mais novos.

— Bem sei — disse Riordan. A voz tornara-se-lhe áspera, acutilante. — Mas o facto de readmitirem dez homens para já é um princípio. Melhor do que continuarem todos na rua. — Voltou-se novamente para os homens. — Dez de vocês voltarão ao trabalho. No próximo mês talvez voltem mais dez. A Companhia não se sente prejudicada se vocês fizerem greve. Dizem até que pouparão dinheiro por não terem de vos pagar durante alguns dias.

— Acho que devemos aceitar — clamou um dos homens. — Como diz o Riordan, trabalharmos dez é melhor do que não trabalhar nenhum.

— Não — gritou Tom. — A Companhia terá de nos readmi­tir a todos. Cada um de nós tem o mesmo direito de ser readmi­tido. Se aceitarmos uma diminuição do salário de sessenta e cinco cents para cinquenta e cinco, a Companhia poderá manter-nos a todos.

Riordan riu alarvemente.

— Ouvem isto, rapazes? — disse, num berro sarcástico. — Gostariam de ter mais uma diminuição dos salários?

Houve um murmúrio geral. Ninguém se sentia à vontade.

— Era preferível uma diminuição dos salários do que con­tinuarmos todos desempregados, ou pelo menos a maioria — insistiu Tom.

Riordan fixou-o. Agora não havia a mais ténue afectivi­dade nos seus olhos. Aliás, sentira-se furioso desde que rece­bera o telefonema da Direcção a avisá-lo de que os operários tinham invadido o sindicato e que devia dominá-los fosse como fosse. Esse telefonema apanhara-o numa ocasião muito má. Tivera de saltar precipitadamente da cama, correndo a pegar nas calças.

— Que se passa, querido? — perguntara-lhe a amante.

— Um elemento subversivo levou os trabalhadores despedidos a tomarem conta do sindicato e está a falar-lhes de greve.

— Mas ele não tem o direito de fazer isso — protestou a amante, com uma voz nervosa. — Prometeste è Direcção que não haveria nenhum levantamento.

— E não haverá! — exclamou, ferozmente. — Ninguém poderá fazer com que Riordan quebre a sua palavra!

Enquanto se dirigia de automóvel para o sindicato, acal­mara. Mas agora estava outra vez furioso. Além de tudo, não sabia como explicar à mulher onde se encontrava nesse sábado.

Voltou-se para a multidão.

— Proponho que resolvamos o caso aqui e agora — cla­mou. — Têm de escolher: ou a readmissão de dez homens ou a greve.

— Um minuto! — protestou Tom.

— Todos já rejeitaram a sua proposta, Tom Denton — vociferou Riordan. Ergueu a mão direita. — Os que votam a favor do regresso ao trabalho, ergam a mão direita.

Cerca de noventa homens ergueram as mãos.

— Agora, os que estão contra.

Apenas alguns ergueram as mãos, ao lado de Tom Denton.

— Venceram os que concordaram. Agora, rapazes, vão todos para os vossos lares. Na segunda-feira informá-los-ei de quais entre vocês podem voltar a trabalhar.

Lentamente, os homens começaram a abandonar a sala, em fila. Tom olhou para Riordan, mas este evitou-lhe o olhar. Dirigiu-se para o seu cubículo envidraçado e pegou no telefone. Tom encaminhou-se pesadamente para a porta de saída. Alguns dos homens ainda olharam para ele, mas logo se afastaram, ligeiros, como se tivessem vergonha de encará-lo. Na soleira da porta, Tom voltou-se e olhou para trás. Viu Riordan ainda a telefonar.

A noite estava límpida e brilhante e uma brisa suave soprava, vinda da baía. Tom deambulava, pensativamente. Não ia ser, de certeza, um dos dez homens que teriam a sorte de poder voltar para o trabalho. Tinha a certeza disso. Sentira ódio nos olhos de Riordan. Ele ficara furioso pela atitude de revolta que tomara. Voltou a esquina e dirigiu-se para a paragem do carro eléctrico, no quarteirão seguinte. Vagamente, ocorreu-lhe se o passe grátis ainda teria validade, agora que fora despedido pela Companhia.

Aproximaram-se dele dois homens, que despontaram da rua sombria.

— Tem lume? — perguntou um deles.

— Com certeza — disse Tom. Vasculhou no bolso. Podia já não ter um emprego, mas fósforos e cigarros ainda tinha. Riscou o fósforo. O súbito brilho de perfídia nos olhos do homem e o som de passos por detrás foram um aviso já tardio. Uma pancada seca na nuca fê-lo dobrar-se de joelhos.

Tom desequilibrou-se, caindo sobre as pernas do homem que estava diante dele. O homem pulou para trás erguendo o joelho de forma a apanhar Tom na virilha.

Tom gritou de dor, estendido no passeio, dando com a cabeça na berma. Como se estivesse muito longe, sentia vagamente os pontapés do homem a martirizá-lo sem cessar. Rolou para a berma do passeio, acabando por ficar meio enterrado na valeta.

Sentiu que a mão de um dos homens lhe vasculhou os bolsos até que encontrou o envelope com o salário da semana. Debilmente, tentou agarrar-lhe a mão.

— Não — replicou. — Por amor de Deus, não faça isso! É o meu salário, o último! É tudo o que tenho!

O homem riu sarcasticamente. Deu um último pontapé na cabeça de Tom. Este ainda viu a pesada bota no instante de se aproximar para lhe bater, mas não pôde evitá-la. Então, tudo explodiu na sua cabeça, e ele rolou, com a face esborrachada no chão, numa poça de água da valeta.

Voltou a si pouco a pouco, penosamente, ao som da água a cair-lhe no rosto. Levantou um pouco a cabeça, com grande esforço. Uma chuva miúda começara a cair.

Sentiu dores agudas por todo o corpo ao apoiar-se nas mãos e erguer-se muito devagar. Cambaleou por alguns instantes e acabou por ter de se apoiar ao lampião para não voltar a cair. Nesse preciso instante, a luz do lampião ficou mais mortiça, acabando por se apagar. Era quase manhã. A difusa luz cinzenta do dia derramava-se à volta dele.

Viu o seu boné azul de motorista caído na valeta, perto do lampião. Lentamente, ajoelhou-se e pegou nele. Sacudiu-o e começou a encaminhar-se para a esquina da rua. Havia um espelho, na montra da drogaria. Parou e mirou-se.

Tinha a farda toda suja e rasgada, a gravata torcida, os botões da camisa arrancados. Levou a mão ao rosto, num gesto de estupefacção. Tinha o nariz inchado e num dos olhos uma enorme nódoa negra. Com a ponta da língua sentiu os bocados aguçados dos dentes partidos.

Ficou ali paralisado de espanto durante alguns minutos. Só depois começou verdadeiramente a compreender o que lhe tinha acontecido. Fora Riordan. Tinha a certeza disso. Tudo combinado. Agora compreendia a razão por que Riordan ficara ao telefone quando ele ia a sair da sala de reuniões do sindicato.

De súbito, teve a consciência de que nunca mais conseguiria voltar para o trabalho de motorista da Companhia. Riordan destruíra-o.

Ficou ali a olhar para si mesmo, crispado pelo medo, e as lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces. Tudo lhe correra mal. Agora, estava sem emprego e sem dinheiro. E teria de contar a Ellen o que se passara.

Ellen não acreditaria que ele não tinha estado a embebedar-se, e o mais irónico de tudo é que ele bebera apenas um copo de cerveja.

— Vais estar para aí sentado todo o dia, a ler os jornais, a ver que emprego pode ser mais digno de ti? — perguntou Ellen Denton, causticamente.

Tinha uma expressão sombria, ameaçadora ao embrulhar a merenda de Jennie numa folha de papel encerado. Tom não replicou, baixando de novo os olhos sobre o jornal quando Jennie entrou na sala.

— Bom dia, mamã — saudou Jennie alegremente. — Bom dia, papá.

— Bom dia, Jennie Bear — disse ele, sorrindo para a filha. Como está a minha Winnie Winkle esta manhã?

— Óptima, papá.

Aquilo era uma brincadeira privada entre os dois. O pai passara a chamá-la assim quando ela conseguira um emprego como dactilógrafa nessa companhia de seguros, no mês ante­rior. Fora exactamente cinco semanas depois de ele ter sido despedido e duas semanas depois de ela ter recebido o diploma da Mercy High School.

— Por agora és uma Winnie Winkle — disse ele. — Mas eu hei-de conseguir um emprego dentro de poucas semanas. Depois poderás voltar para o St. Mary, como tinhas pla­neado.              

— Puseste demasiado bâton, Jennie — disse-lhe a mãe. — É melhor ires tirar algum.        

Tom olhou para a filha. Não tinha assim tanto bâton como a mãe dizia. Tinha até muito menos do que as raparigas que ele costumava encontrar todas as manhãs no carro eléctrico.

— Oh, mãe! — exclamou Jennie. — Mas eu agora estou a trabalhar num escritório. Já não vou para a escola. Não posso fazer má figura.

— Fazeres boa figura é seres decente, é não andares pintalgada.

— Diabo, Ellen! — exclamou Tom. — Deixa a rapariga sossegada.

Ellen olhou furiosa para o marido.

— Quando trouxeres para casa dinheiro para sustentar a família, então podes falar — disse ela.      

Tom fixou-a, o rosto a tomar-se ruborizado, de cólera. Sentia o calor a invadi-lo. Jennie olhou-o com uma expressão piedosa, e isso ainda foi pior. Tom nunca esperara que a filha pudesse algum dia vir a sentir piedade por ele. Apertou os lábios, para não gritar.

— Hoje vou chegar tarde — disse Jenny, preparando-se para sair. Pegou no embrulho com a merenda que estava em cima da mesa e encaminhou-se para a porta da rua.

— Adeus, mamã — disse ainda, por cima do ombro. — Adeus, papá. Um dia feliz.

Tom ouviu os passos da filha a afastar-se pelas escadas abaixo. Voltou a pousar os olhos no jornal.

— Posso beber outra chávena de café? — perguntou para Ellen.

— Não. Uma chávena já é muito. Quanto café supões tu que podemos tomar com os onze dólares por semana que a Jennie ganha?                

— Mas ainda há café na cafeteira. Esse já está feito.

— É para voltar a aquecer amanhã de manhã.

Tom folheou o jornal, percorrendo-o minuciosamente olhos, levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho. Abriu a torneira e deixou a água correr enquanto retirava de um pequeno armário o pincel de barbear e a máquina. Pôs a mão por baixo da torneira. A água continuava a ser fria.

— Ellen: não há água quente para me barbear? — per­guntou à mulher.

— Barbeia-te com água fria — respondeu Ellen. — Não temos dinheiro para usar o gás. Todo o gás que podemos gas­tar é para aquecer água para o banho da Jennie.

Tom fixou-se no espelho. O seu rosto estava agora quase normal, mas ficara com o nariz um pouco amolgado e sem dois dentes da frente. Pousou o pincel de barbear e dirigiu-se para a cozinha.

Ellen manteve-se de costas para ele. Tom colocou-lhe as mãos nos ombros e fez com que a mulher se voltasse.

— Ellen, Ellen — disse, ternamente. — Que foi que nos aconteceu?

Ellen encarou-o durante alguns segundos; depois baixou o rosto e retirou as mãos dele dos seus ombros;

— Não me toques, Thomas Denton. Não me toques.

O tom da voz dela era resignado.

— Porquê, Ellen, porquê? Não tenho culpa daquilo que aconteceu. Foi a vontade de Deus.

— A vontade de Deus? — Ellen soltou uma risada sar­cástica ao dizer isto. — És tu quem fala na vontade de Deus?! Tu não vais à igreja há anos! Se pensasses mais no teu Salva­dor, arrepender-te-ias de te embebedar aos sábados e Ele pode­ria perdoar-te.

Tom suspirou profundamente. Depois, voltou-se, tornou para a casa de banho e começou a barbear-se com água fria. Ellen nunca tinha sido assim como agora era — sarcástica e impiedosa. E fanática, obcecada pelos padres e pela igreja. Noutros tempos, fora a Ellen Fitzgerald de olhar radiante; e gostava de dançar. Evocou-a no Baile Irlandês de Day Street, quando a conhecera.

Nessa noite, Ellen era a mulher mais bonita do baile, com o seu cabelo castanho-escuro e os olhos azuis claros e os pés deli­cados, muito pequenos. Isso fora em 1912, e eles tinham casado no ano seguinte. Um ano depois de casarem, nascera Jennie.

Já nesse tempo Tom era motorista, e quando regressara da guerra eles tinham alugado aquela casa. Um ano depois, nascera um filho.

Pobre Tommy, tão pequenino! Mal vira a luz do mundo: morrera com dois anos. Jennie tinha então oito anos e, portanto, mal compreendera o que sucedeu ao irmão; mas Ellen só encontrara alívio no silêncio da igreja, e começara a levar lá com ela a filha, todos os dias. Ao princípio, Tom não ligara muita importância ao caso. Naquela época, a obsessão de Ellen pela igreja era compreensível; ele supusera que isso havia de passar-lhe em breve.

Mas não passou. Tom sentiu isso certa noite, quando a solicitou na cama e ela se manteve fria, impassível, rígida. Tom puxou-lhe os seios para fora da camisa de dormir de algodão grosso, torceu-lhes os bicos, mas Ellen voltou-lhe as costas.

— Há meses que não te confessas. Não quero que me faças outro filho — disse ela.

Tom tentou levar o caso para a brincadeira.

— Mas quem quer fazer um filho? Tudo o que eu desejo é sentir um bocadinho de prazer.

— Pior ainda, nesse caso — replicou Ellen, severamente, com a voz abafada pelo travesseiro. — Isso é pecado, e eu não posso partilhar desse pecado.                                

— Foi isso que os padrecos te meteram na cabeça? Ensinaram-te a negares-te ao teu marido?  

Ellen não respondeu. Tom agarrou-lhe violentamente no ombro e forçou-a a voltar-se para ele.

— Foi isso? — vociferou.

— Os padres não me ensinaram nada. O que eu faço é aquilo que acho dever fazer. Conheço suficientemente a Bíblia para distinguir o que está certo daquilo que está errado. E deixa-te de berrar. Acabas por acordar a Jennie no quarto ao lado.

— Sim, vou deixar de berrar — disse, com uma fúria interior, enquanto o calor do corpo dela o fez sentir-se febril de desejo, e possuiu-a à força. O espasmo percorreu-o e depois todo ele mergulhou nela, a respiração opressa, os olhos a fixar obsessivamente os dela.

Ellen olhava para ele fria, calma, sem se mover, passiva e impiedosa. Um último estremecimento esgotou nele toda a potência.

Só depois ela falou. Com uma voz calma e distante, despren­dida, como se ele não estivesse ali.

— Já acabaste de deitar toda a porcaria dentro de mim? — perguntou.

Tom sentiu uma crispação de vómito revolver-lhe o estômago. Fixou-a durante alguns segundos e depois rolou bruscamente para o lado.

— Estou farto! — berrou, fora de si.

Ellen saltou da cama e foi ajoelhar-se junto do pequeno san­tuário que colocara por baixo do crucifixo. Mesmo sem a olhar, Tom pressentiu-lhe o rosto voltado para ele na obscuridade do quarto.

— Estou a rezar à Virgem Mãe para que a tua semente não frutifique em mim — murmurou, num tom acutilante.

Tom fechou os olhos e voltou-se de costas para ela. Fora naquilo que os padres a tinham tornado. Haviam destruído tudo o que havia de autêntico entre os dois.

A angústia, uma amarga sensação de irremediável apos­sou-se dele. Desde então, Tom nunca mais entrou numa igreja.

Ali, na nave da igreja, tudo era serenidade. Ellen Denton, de joelhos perante a sagrada imagem, com a cabeça curvada e as contas do rosário apertadas nos dedos, sentia-se em paz. Não havia lamentos nos seus lábios, nenhuns pensamentos sobressaltantes no seu cérebro — havia apenas um sereno, delicioso vazio. Aquilo libertava-a totalmente, afastando-a do mundo.

Os pecados de indiferença que eram as suas horas para além daquelas paredes, não passavam de ecos distantes. O pequeno Tommy jazia serenamente no seu pequeno túmulo, sem uma acusação nos pequenos lábios de botão de rosa pela negligência dela quando ele tinha estado doente. Nenhumas recordações havia no corpo branco e nu dela, que se contorcera de paixão e de prazer enquanto o filhito expirava naquele mesmo quarto.

Parecera ter sido apenas uma vulgar constipação, uma dessas constipações sem consequências que as crianças têm tão frequentemente e de que acordam libertas de um dia para o outro. Como poderia ela saber que enquanto estava deitada, gemendo de prazer, aos ouvidos do marido, um fleimão se alojara na garganta do filho, impedindo-o de respirar? E quando ela se levantou para o aconchegar melhor no berço, como por normal fazia antes de adormecer, foi dar com ele estranhamente frio e já arroxeado. Como poderia ela saber que aquele era o castigo pelo seu pecado da carne?

O padre Hadley tentara dar-lhe um pouco de conforto moral.

— Não te culpes assim, minha filha — disse ele. — O Senhor dá e o Senhor tira. É conforme a Sua vontade.

Mas Ellen sabia melhor a razão da sua culpa. A recordação da alegria que sentira ao pecar continuou a feri-la intensamente, embora ela tencionasse livrar a sua alma daquele fardo indo cen­tenas de vezes ao confessionário. Porém, nenhuma das palavras de conforto dos padres lhe mitigava o sofrimento. A culpa fora toda dela e só ela podia eliminá-la. No entanto, ali, na paz silenciosa da nave da igreja, confessando-se à Virgem Maria, mergulhava na serenidade e no vazio e no esquecimento.

 

Johnny Burke sentia-se aborrecido. O rapaz com a cara cheia de borbulhas que estava ao lado dele olhou-o e disse:

— Vamos embora, ver se a Tessie está ocupada ou não.

— A Tessie está sempre ocupada. Aliás, ouvi dizer que exige muito de um tipo. Por mim, nunca calhou experimentar. — Johnny tirou do maço outro cigarro e acendeu-o, lançando um olhar nervoso e fixo para a rua. — Por acaso, gostava de experi­mentar, a ver se conseguia excitar uma mulher que quase ninguém consegue excitar.

— Mas como havias de conseguir isso, Johnny?

— Bem, eu cá sei. Há processos, Andy — disse Johnny misteriosamente. — Só te digo que há processos para conse­guir isso.

Andy olhou ansioso para Johnny.

— Dizes isso como se realmente soubesses.

Johnny acenou afirmativamente com a cabeça. Deu uma pequena palmada no bolso do casaco.

— Tenho aqui uma coisa que põe maluca seja que gaja for.

— Palavra, Johnny? — perguntou Andy febrilmente. — Que é?

Johnny abaixou o tom de voz, com prudência.

— Cantárida — disse.

— Que é isso?

— Um pó especial extraído de uma mosca, idiota. Roubei um bocado quando o patrão me pediu para vigiar a loja enquanto ele ia lá cima.

— Apre! — exclamou Andy, impressionado com o feito do colega. — E isso fará efeito em qualquer rapariga?

Johnny acenou afirmativamente.

— Claro que faz. É questão de se deitar um pouco numa bebida que ela tomar. Só um bocadinho, e ela ficará mais quente do que um biscoito ao sair do forno.

O patrão meteu a cabeça junto à ombreira da porta e disse:

— Johnny, toma conta da loja por mim. Vou lá cima por alguns minutos.

Viram-no a subir as escadas até ao interior da farmácia. Johnny pôs-se diante do balcão, encostando-se preguiçosamente à caixa registadora.

— Vai uma Coca-Cola, Johnny?

— Não — respondeu Johnny. — Nada de tentações quando estou a tomar conta da loja do patrão.

Pôs-se a abrir e a fechar algumas gavetas por baixo do balcão.

— Queres ver onde o patrão guarda os cheques? — perguntou a Andy.

— Onde?

— Posso beber uma Coca-Cola, por favor?

A rapariga surgiu subitamente, por detrás de um cartaz de publicidade de de águas minerais. Os dois rapazes olharam para ela com uma expressão de culpa. Johnny voltou a fechar a gaveta precipitadamente.

— Claro que sim, Jennie.

— Onde está o patrão?

— Foi lá cima por alguns minutos.

— Ela viu-nos — murmurou Andy ao ouvido do amigo, num momento de distracção da rapariga. — Sabe o que é que nós estávamos a ver.

Johnny olhou fixamente para Jennie. Sim, talvez tivesse percebido. Havia um sorriso misterioso no seu rosto. Johnny abriu a garrafa de Coca-Cola e ficou a olhar para a espuma escura, quase preta, a subir no copo. Depois, serviu a rapariga.

— Já ouviste dizer alguma coisa sobre os resultados do Campeonato, Jennie? — perguntou.

Jennie abanou negativamente a cabeça.

— Esta noite tencionávamos ir ao cinema, mas ele não voltou de Berkeley. Espero que nada lhe tenha corrido mal.

Johnny sorriu.

— Que é que podia correr mal àquele tipo? — disse. — Está safo, com certeza.

Andy aproximou-se de Johnny quando a rapariga parou de beber a Coca-Cola.

— Achas que daria efeito nela? — murmurou de novo ao ouvido de Johnny.

Johnny sabia o que Andy queria dizer com aquilo. Olhou subitamente para a rapariga de uma maneira intensa. Jennie deixara o copo com a Coca-Cola e estava lá fora à porta a ver umas revistas. Johnny gostava da maneira como o vestido justo de Verão lhe marcava as formas. Até então, nunca reparara nelas, nunca reparara que ela tinha umas formas tão desenvolvidas. Não admirava que o Mike Halloran a mantivesse bem presa. De súbito, Johnny meteu a mão no bolso, pegou no pequeno embrulho de papel e esvaziou-o no copo ainda meio de Coca-Cola.

A rapariga tirou uma revista que estava na prateleira à porta do armazém e voltou para junto do balcão. Johnny olhou para o copo. Alguns pequenos fragmentos de pó por dissolver flutuavam ainda ao de cima da Coca-Cola. Pegou no copo e voltou a esguichar um pouco de Coca-Cola, colocando-o depois debaixo do esguicho de soda. Em seguida pôs o copo defronte da rapariga e olhou para o relógio.

— É muito tarde para você andar na rua, não?

— Hoje é sábado — respondeu Jennie. — Estava tanto calor no meu quarto que não pude suportar. Tive de vir tomar ar à rua.

Jennie colocou uma moeda em cima do balcão e pegou numa palhinha para acabar de beber. O rapaz observou-a ansiosa­mente ao levar o copo à boca.

— Está óptima — disse. — Obrigada.

Johnny pegou na moeda que a rapariga deixara no balcão, foi até à caixa registadora e puxou a alavanca dos registos.

— Vi o que fizeste — murmurou Andy.

— Bico calado.

Jennie voltava lentamente as páginas da revista, enquanto continuava a saborear a bebida. Tinha o copo ainda meio quando o dono do armazém voltou.

— Tudo em ordem, Johnny? — perguntou ele.

— Tudo em ordem, patrão.

— Obrigado, Johnny. Queres uma Coca-Cola?

— Não, obrigado, patrão. Até amanhã.

— Para que é que fizeste aquilo com a Jennie? — perguntou Andy na rua. — Agora nunca podemos saber se aquilo deu resultado.

— Havemos de saber — disse Johnny, voltando-se para olhar através da janela.  

Jennie tinha acabado a bebida. Voltou a colocar a revista na prateleira e encaminhou-se para a porta da rua. Johnny correu no encalço dela.

— Vais para casa, Jennie? — perguntou.

Jennie parou e sorriu-lhe.

— Parece-me que vou mas é para o parque. Talvez haja lá uma brisa fresca vinda da baía.

— E se fôssemos juntos? — perguntou Johnny. — Não temos nada que fazer.

Jennie pôs-se a magicar em qual o motivo de Johnny ter assim de repente vontade de passear com ela. Nunca parecera interessado nela até então.

Eram quase dez horas quando Tom Denton saiu do bar, defronte da Companhia. Estava bêbado. Era um bêbado triste, choroso, infeliz. Olhou para o outro lado da rua, para um camião da Companhia. O velho 2-12, ali parado. Agora já não era seu. Nunca mais seria seu. Agora, pertencia a outro.

As lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces. Era um falhado. Sem camião, sem emprego, até sem mulher que o acolhesse no lar. Exactamente nesse momento, Ellen estava, decerto, num recanto da igreja, a rezar.

Não compreendia ela que um homem precisa mais do que orações quando vai para a cama? Se tivesse meia dúzia de dólares no bolso, saberia aonde ir. As raparigas da Maggie sabiam bem como deviam tratar um homem. Vasculhou no bolso, à procura de algumas moedas. Contou-as, com todo o cuidado. Trinta e cinco cents. Pensou em voltar atrás para o bar. Ainda tinha o suficiente para uma bebida. Mas nesse caso, teria de pedir dinheiro à Ellen na segunda-feira.

Começou a sentir os efeitos do álcool a desvanecerem-se. Com fúria, atirou as moedas para o bolso. Embebedar-se não era coisa fácil, agora que tinha de se preocupar por cada cent que gastava. Estava já quase sóbrio. Começou a encaminhar-se para casa, lentamente.

Foi sentar-se à mesa da cozinha, mergulhado em sombras, e só meia hora mais tarde chegou Ellen. Tom olhou-a com uma expressão exausta quando a mulher abriu a luz da cozinha.

— Não esperava que viesses para casa tão cedo — disse Ellen. — Que aconteceu? As bebidas esgotaram-se?

Tom não respondeu.

Ellen saiu da cozinha, caminhando pelo estreito corredor que dava para os quartos. Tom ouviu-a a abrir a porta do quarto de Jennie e depois a fechá-la. Segundos depois, Ellen regres­sou à cozinha.                              

— Onde está a Jennie? — perguntou.              

— Não sei. Naturalmente anda por aí com o Mike.

— O Mike ainda está em Berkeley. A Jennie estava cá quando saí para ir à igreja. Disse-me que ia deitar-se cedo.

— Está calor. Naturalmente saiu a tomar um bocado de ar.

— Não gosto que ela ande assim fora de casa.

— Diabo, não comeces a atezaná-la, Ellen. A Jennie agora já é uma mulher.

Ellen tirou uma cafeteira do armário e encheu-a com água. Colocou-a no fogão e acendeu o gás.

— Queres uma chávena de chá? — perguntou ao marido.

Tom olhou-a com uma expressão de surpresa. Há já muito tempo que Ellen não lhe oferecia uma chávena de chá para tomarem juntos à noite. Abanou com a cabeça afirmativamente, sorrindo de gratidão.

Ellen tirou as chávenas do armário da cozinha e colocou-as em cima da mesa. Depois, sentou-se defronte dele, à espera que a água fervesse. Estava nitidamente apreensiva.

— Não te preocupes — disse Tom, sentindo de repente pena dela. — Jennie deve chegar a casa de um momento para o outro.

Ellen ergueu o rosto e, num raro instante de clarividência, percebeu o que estava a fazer a ele e a si mesma. Sentiu as lágrimas brotarem-lhe dos olhos e pousou a mão em cima da mão do marido.

— Perdoa-me, Tom. Não sei o que se passa comigo. A maior parte das vezes imagino coisas que nunca se passaram.

— Bem sei, Ellen — disse Tom, ternamente. — Bem sei.

Foi então que o polícia bateu à porta da rua e disse que Jennie tinha sido encontrada no parque, violentada e espancada. E pela expressão do rosto de Ellen, Tom compreendeu que eles estavam perdidos para sempre.

Os três saíram da igreja deparando com um sol resplande­cente. Sentiram quase imediatamente os olhares de curiosos ávidos de escândalos a espiá-los. Tom sentiu o súbito tremor que avas­salou a filha e o rubor de vergonha que lhe subiu ao rosto, ainda inchado pelas pancadas de há quase duas semanas antes. Jennie baixou os olhos quando começaram a descer a escadaria da igreja, dirigindo-se para o passeio.

— Ergue a cabeça, Jennie Bear — murmurou-lhe ao ouvido. — Os filhos deles é que devem sentir-se envergonhados, não tu. Jennie ergueu o rosto e sorriu para o pai com gratidão.

— E tu também, Ellen Denton — acrescentou ele. — Dei­xa de olhares para o chão.

De certo modo, Ellen sentiu-se triunfante. O seu marido tinha finalmente voltado ao seio da Santa Madre Igreja. Pensou no que acontecera logo de manhã. Estava já toda vestida e pronta para ir para a igreja quando chamara Jennie. Abrira a porta do quarto de Jennie. A filha ainda estava sentada numa cadeira, imóvel, a olhar fixamente lá para fora.

— Ainda não estás vestida, Jennie — disse, num tom de voz reprovador. — Está na hora de irmos à missa.

— Não vou, mamã — respondeu Jennie, com uma voz sumida.

— Mas ainda não estiveste na igreja desde que vieste do hospital! Mal saíste de casa.

— Saí, mamã. — Voltou-se para a mãe, e os círculos negros à volta dos seus olhos pareciam ainda mais fundos e negros à luz crua da manhã. — Saí, e toda a gente começou a olhar para mim e a cochichar quando eu passava. Não posso suportar isso. Não quero ir à igreja e ser alvo dos olhares e dos ditos de toda a gente.

— Estás a negar o Salvador! — exclamou Ellen, com veemência. — Como esperas ser perdoada pelos teus pecados se não fores à igreja?

— De que pecados precisa essa criança de ser perdoada? — berrou por detrás a voz do marido.

Ellen exaltou-se, gritando:

— É de mais! Já temos um traidor à igreja nesta casa. Não precisamos de ter outro. — Voltou-se para Jennie. — Veste-te. Hás-de de vir comigo nem que tenha de te arrastar pelos cabelos.

— Não vou, mamã — insistiu Jennie. — Não posso ir.

Ellen avançou ameaçadoramente para a filha. De súbito, sentiu o pulso agarrado como por uma tenaz de aço e voltou-se, encarando com o marido. Os seus olhos, normalmente de um azul sereno, tinham agora um brilho frio.

— Deixa a garota em paz! — gritou Tom. — Endoideceste, ou quê?

Ellen encarou-o fixamente durante alguns segundos e depois a onda de fúria desfez-se dentro dela, deixando-a cansada e fraca. As lágrimas começaram a rolar-lhe pelas faces.

— O padre Hadley pediu-me que a levasse. Disse que tinha rezado por ela.

Tom sentiu a fúria da mulher desvanecer-se e então largou-lhe o pulso. O braço dela pendeu debilmente ao longo do seu corpo. Tom voltou-se para a filha.

— É essa a razão por que não queres ir à igreja, Jennie Bear? — perguntou-lhe com ternura. — Por causa de olharem para ti?

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça, em silêncio.

— Irias se eu também fosse? — perguntou de súbito.

Jennie olhou para o pai e encontrou todo um mundo de amor infinito nos seus olhos. Depois de um segundo de êxtase gratp, disse:

— Sim, papá.

— Está bem. Nesse caso, eu vou à igreja, Veste-te. Faço a barba num minuto.                      

Voltou-se e saiu da sala rapidamente. Ellen ficou-se a olhá-lo, demasiadamente surpreendida para compreender o que de facto se tinha passado.

Houvera um murmúrio de surpresa ao caminharem pela nave lateral da igreja até chegarem ao seu banco. Tom pressentia que toda a gente voltava a cabeça para ele num movimento de curiosidade, e sentiu uma fúria justiceira apoderar-se dele perante aquela crueldade. Levava a mão da filha presa à dele; sorriu ao ajoelhar-se perante o altar e persignou-se antes de ficar sen­tado.

Mas por mau que tivesse sido o acolhimento à entrada, à saída foi ainda muito pior. Os curiosos tinham tido tempo para se agruparem na escadaria, à luz do sol. Eram como um pelotão de execução.

— Pronto, já acabou tudo — disse Tom serenamente, ao voltarem a esquina.

Atravessaram a rua, dirigindo-se para o armazém que ficava na esquina seguinte. Havia um grupo de rapazes encostados às montras vestidos com os seus fatos domingueiros. Os rapazes ficaram silenciosos quando eles se aproximaram, olhando-os de soslaio. Tom olhou para trás com uma expressão furiosa e os rapazes baixaram os olhos. Afastaram-se dali, virando à esquina.

Mas Tom ouviu a súbita explosão dos comentários dos rapazes, que supunham já estar a salvo. Riram, lançaram gargalhadas brutalmente sarcásticas, que feriram os ouvidos e o coração de Tom. Num impulso incontrolável, largou o braço de Jennie e precipitou-se para a esquina da rua. Quando o encararam, os rapazes ficaram com uma expres­são de pasmo, os lábios ainda arrepanhados por um riso que ficou paralisado nos seus rostos.

— Qual é a piada, meninos? — perguntou Tom, com o rosto transtornado pela fúria, branco e frio. — Digam-me o que é e pode ser que eu também ria com vocês...

Os rapazes olhavam fixamente e em silêncio para Tom, com a vergonha estampada nos rostos. Depois baixaram os olhos para os pés lançando de relance miradas secretas uns para outros. Miradas cheias de um significado que Tom compreendeu ao recordar a sua própria juventude. Era como se tivessem sido surpreendidos a olhar para revistas obscenas.

Invadiu-o a vergonha por tudo aquilo que ele também fora, na juventude, e a fúria transformou-se dentro dele em exaustão doentia.                                              

— Saiam já da minha vista — disse, numa voz sumida. — E se volto a ouvir algum de vocês a rir ou a fazer qualquer comentário sobre mim ou sobre qualquer membro da minha família, dou-vos uma realíssima tareia!

O rapaz mais alto avançou um passo para Tom. Tinha um olhar insolente. Era de estatura muito mais elevada do que Tom; olhava-o do alto com um sorriso de desdém.

— Estamos num pais livre — disse o rapaz. — Podemos fazer o que nos apeteça.

O ressentimento explodiu subitamente em Tom. Agarrou o rapaz pela lapela do casaco e forçou-o a ajoelhar-se.

— Livre, hem? — berrou, com as veias inchadas a estalarem-lhe na fronte. — Livre para vocês andarem por aí a escolher a rapariga que hão-de violar à noite?

Ergueu a mão aberta para esbofetear o rapaz.

O rapaz tremeu, já sem nenhuma insolência no rosto.

— Que é que está a pensar de nós, Mr. Denton? — disse. — Não fomos nós quem «furou» a Jennie.

Estas palavras como que gelaram o sangue nas veias de Tom. Ficou paralisado, com a mão aberta ainda no ar, diante da cara do rapaz. «Furar a Jennie.» Eles podiam dizer aquilo sobre a sua filha e ele não podia fazer nada para mudar esse facto. Porque era um facto, indiscutível. Lentamente, deixou que a mão pendesse ao longo do corpo; depois, com um gesto violento, afastou o rapaz de ao pé dele.

Olhou-os, um por um. Eram ainda apenas uns adolescentes — disse Tom para si mesmo. E ele não podia odiar todos os rapazes adolescentes lá porque dois deles haviam feito aquilo à filha. O rapaz que tentara intimidá-lo tinha razão. Eles não eram os culpados.

Invadiu-o uma sensação de fracasso. Se alguém tinha culpa, afinal era ele. Se tivesse mantido o emprego, talvez nada daquilo acontecesse.

— Saiam desta esquina — disse, por fim, aos rapazes. — Se por acaso um de vocês tornar a ver-me neste sítio é melhor afastar-se.

Os rapazes olharam para Tom e depois uns para os outros; agora dir-se-ia que tinham piedade dele. De súbito, como se uma mensagem secreta fosse misteriosamente trocada entre eles, começaram a dispersar-se.

Uns instantes depois. Tom estava sozinho à esquina da rua. Ficou para ali, imóvel durante alguns instantes, para serenar o súbito tremor que se apossou dele. Em seguida voltou-se e foi ter com a mulher e a filha, que o esperavam ansiosas.

— Pronto, já acabou tudo — disse, pela segunda vez nessa manhã, ao meter o braço em Jennie e em Ellen, encaminhando-as para casa.

Mas desta vez, como afinal ele próprio bem sabia, nada tinha acabado — nunca mais acabaria enquanto ele vivesse e tivesse memória.

A fria brisa de Setembro prenunciava o Outono. Jennie olhou pela janela do carro eléctrico para a paragem. O pai ali estava, debaixo do lampião à espera dela, como agora acontecia sempre, todas as noites. O carro eléctrico parou e Jennie desceu.

— Viva, papá!

— Viva, Jennie Bear!

Jennie caminhou ao lado dele animadamente, a caminho de casa.

— Que tal, hoje? Conseguiu alguma coisa?

Tom abanou a cabeça negativamente.

— Não percebo. Acontece pura e simplesmente que não há colocações em sítio nenhum.

— Talvez arranje qualquer coisa amanhã.

— Espero que sim. Talvez depois das eleições as coisas me­lhorem. Roosevelt diz que o governo tem de tomar medidas para dar trabalho a todos; diz que os grandes capitalistas faltaram às suas responsabilidades. Importa-se mais com o proletariado do que Hoover e os Republicanos. — Olhou para a filha. — E tu? Como te correu o dia?

— Bem — respondeu Jennie.

Mas a verdade é que no escritório havia um ambiente desagradável, quase opressivo. Muitos agentes da companhia de seguros tinham começado a parar junto da secretária dela, ao entrar ou sair. Às vezes só queriam meter conversa, mas alguns chegavam a fazer-lhe directamente convites insidiosos. Se as coisas fossem diferentes, talvez até Jennie tivesse saído com um ou outro. Mas quando os encarava, percebia o que todos estavam a pensar. Recusava os convites polidamente, e alguns desses sedutores de escritório até ficavam um pouco embaraçados ao verem que ela lhes percebia as intenções.

— Não têm que me esperar todas as noites, papá — disse Jennie subitamente. — Não sinto medo de ir para casa sozinha.

— Bem sei que não sentes medo. Percebi isso desde o primeiro dia em que vim esperar-te. Mas eu é que quero fazer isto. São os únicos momentos, durante todo o dia, em que sinto ter realmente alguma coisa que fazer. Os únicos momentos em que me sinto útil.

Jennie não respondeu; caminharam em silêncio durante alguns minutos.

— Queres que deixe de vir esperar-te? — perguntou Tom, por fim.          

— Não, se o papá quiser vir.

Tinham chegado às escadas de casa, e Jennie começou a subi-las. O pai pousou a mão no braço dela.

— Não vamos já para cima, Jennie Bear. Vamos sentar-nos aqui e falar um pouco.

Jennie fixou o pai, que tinha uma expressão solene.

— Que se passa, papá?

— Não disse nada à tua mãe. Quero encontrar-me hoje mesmo com o padre Hadley.

— Para quê?

— Ele não quer ir ao tribunal responsabilizar-se pelo teu comportamento. Disse-me que era contra as leis da Igreja. E as freiras da escola onde andaste tiveram a mesma atitude.

— O quê?! — exclamou Jennie.

Apossou-se dela uma sensação de nojo. O procurador de jus­tiça tivera razão. Encontrara-se com ela e os pais um mês antes; era um homem de pequena estatura, com olhos de doninha.

Sentara-se à mesa da cozinha, olhando para os três.

— Mister Burke e Mister Tanner pediram-me que viesse falar-vos — disse. — Suponho que sabem como eles lamentam este... — olhara de relance para a rapariga e depois prosse­guira — ...este acidente, e gostariam de indemnizar a vítima pelos danos causados.

O rosto do pai ficou em fogo pela fúria.

— Em primeiro lugar, Mr. O'Connor — disse, impetuosa­mente—, esse acidente, como o senhor lhe chama, não foi um acidente. Esses dois canalhas vi...

O procurador de justiça ergueu a mão no ar, interrompendo-o.

— Bem, sabemos o que eles fizeram — disse. — Mas. Mr. Denton, o julgamento deles só servirá para chamar ainda mais a atenção para a sua filha e fazer lembrar o que já foi para ela uma experiência bem penosa. E que acontecerá se os rapazes forem considerados inocentes?

O pai riu nervoso.

— Inocentes?! Eu estava no posto de polícia quando os le­varam lá. Ouvi-os a lamentar-se, até a chorar ao terem cons­ciência daquilo em que estavam metidos.

— O que eles disseram nesse momento, Mr. Denton — insistiu o procurador de justiça —, não tem importância. O que disseram no tribunal é que conta. E eles afirmam que a sua filha os provocou, pedindo-lhes que fossem com ela ao parque.

— Terão de provar isso — disse o pai, ferozmente.

— Será mais difícil para si negá-lo — volveu o procurador de justiça. — Eles são dois, dois contra a palavra da sua filha. E terão tantas testemunhas para os defender como o senhor terá de arranjar para defender a sua filha.

— Isso até parece que é a minha filha que vai ser julgada, e não eles! — explodiu Tom.

— Exactamente. É isso mesmo que acontece em casos destes. A acusadora costuma perder mais frequentemente do que os acusados.

— A reputação da minha filha fala por si mesma — disse Tom. — O padre Hadley da igreja de São Paulo e as freiras da Mercy High School hão-de provar quem é a minha Jennie.

O procurador de justiça sorriu misteriosamente.

— Duvido, duvido, Mr. Denton — disse, serenamente. — Duvido mesmo muito. — Voltou a olhar fixamente para Jennie e depois outra vez para Tom. — Estou autorizado a oferecer-vos da parte dos meus clientes mil dólares se desistirem da acusação contra os rapazes.

— Acho que é melhor ir-se embora, Mr. O'Connor — bradou o pai, pondo-se de pé. — Não deve comprar o que já foi roubado.

O procurador de justiça levantou-se também. Tirou um cartão do bolso, colocou-o na mesa e dirigiu-se para a porta da rua.

— Pode ir procurar-me ao escritório quando quiser, se mudar de ideias antes do julgamento.

— Que vai fazer agora, papá? — perguntou Jennie, regressando ao presente.

— O padre Hadley disse que informou a tua mãe exactamente da mesma coisa há três semanas.

Jennie olhou fixamente para o pai.

— Nesse caso — disse —, ela sabia tudo e não nos contou.

Tom abanou a cabeça afirmativamente. Um arrepio abalou-a. Havia algo de errado em Deus que deixava a mãe expor a filha à humilhação mais degradante e ao ridículo só para salvar a sua consciência.

— O padre Hadley disse também que ainda podias ir estudar para St. Mary se quisesses, Jennie.

Bruscamente, Jennie explodiu numa gargalhada. Recusavam-se a dar-lhe um nome digno, querendo, no entanto, manter-se piedosos para com ela, fazer um acto de caridade. Mas Jennie é que não podia reconciliar as duas atitudes. Uma era apenas para compensar a outra.

Tom olhou para a filha, surpreendido.

— De que estás a rir, Jennie?

O riso morreu-lhe nos lábios, e a rapariga olhou para ele:

— Nada, papá. Acho que pode dar uma resposta ao pro­curador de justiça.

— Nesse caso, aceitas os mil dólares?

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça.

— Aceito. E os estudos no St. Mary também. Dessa maneira, o pai poderá viver enquanto eu estiver longe.

— Não aceitarei o teu dinheiro.

— Sim, aceitará — garantiu Jennie, ternamente. — Pelo me­nos, até voltar a conseguir um emprego.

Tom sentiu os olhos marejados de lágrimas e de súbito estrei­tou a filha contra o peito.

— Gostas de mim, Jennie Bear? Gostas do teu pobre pai falhado?

— Bem sabe que sim, papá — disse Jennie com veemência, apoiando a cabeça ao peito do pai. E ficaram assim agarrados um ao outro a chorar, ali, nas escadas, no silencioso, frio crepúsculo de Outono.

O único som que havia naquele momento era o ácido crepitar vindo das lâmpadas fluorescentes, na sala das operações. As mãos do Dr. Grant eram rápidas e seguras ao extrair o apêndice absolutamente normal da mulher que estava deitada na mesa de operações. A sua voz densa, máscula, rompeu o silêncio.

— Está perfeito — disse, com um brilho de satisfação nos olhos. — Agora, já pode cosê-la, Dr. Lobb.

Saiu da mesa de operações e uma das enfermeiras enxugou-lhe rapidamente o suor do rosto, enquanto o outro médico começou a coser a operada.

Jennie olhou para a Irmã M. Christopher. Se a enfermeira mais velha achava que o apêndice não infectara, os seus olhos negros, mal visíveis por cima da máscara, não davam qualquer indicação disso.

— Sutura — murmurou o Dr. Lobb, erguendo a mão.

Jennie deu-lha automaticamente. Nesse instante, não tinha tempo para olhar fosse para o que fosse. Estava demasiadamente ocupada. Mas pressentiu que a Irmã Christopher observava. Agora, aquilo já não a punha nervosa, como ao princípio acontecera, cerca de três anos antes. Agora, estava quase diplomada.

A Irmã Christopher observava Jennie com admiração. Era uma das raparigas mais aplicadas. Talvez só uma rapariga em cada cem tinha a vocação de Jennie para ajudar em operações. Os requisitos eram vários e difíceis, mas Jennie possuía-os todos. Ver sangue era coisa que nunca a afligira, mesmo a primeira vez que fizera essa experiência.

E era calma e segura nos movimentos. Rapidamente, desenvolvera-se nela uma afinidade entre ela e os instrumentos e depois entre ela e os cirurgiões. Sem essa afini­dade, que permite uma forma silenciosa de comunicação entre o médico e a enfermeira, a cirurgia seria impossível.

Além disso tudo, um outro factor importante a que Jennie correspondia era a força. Ninguém pode calcular como ser forte é importante para uma enfermeira que ajude a operações. Manter-se de pé durante horas perante aquela brancura impressionante da mesa de operações, mesmo que os membros comecem a ficar rígidos devido à imobilidade do tronco. Conseguir comu­nicar ao médico essa força e assegurá-la, de maneira a que a cadeia da esperança seja indestrutível. E a força de ser-se estóico quando essa cadeia se quebra e o doente expira e é levado numa maca para o silêncio eterno; manter-se então de pé, serenamente, e começar a trabalhar outra vez, com a certeza de que essa cadeia será reconstruída quando um outro doente é trazido para a sala de operações.

O Dr. Lobb ergueu o olhar e abanou afirmativamente com a cabeça.

— Penso — disse.

Colocou a mão, de luva branca, por cima da incisão cosida.

Jennie estava pronta, com a caixa de gaze na mão. Imediata­mente fez o penso de uma maneira firme e ágil.

A Irmã Christopher fez um aceno afirmativo com a cabeça e o doente foi logo coberto e mudado para outra mesa pelos assistentes. Houve um estalido quando a luz fluorescente foi apagada. O período das operações em St. Mary, nessa manhã estava acabado.

— É o quarto apêndice normal que ele extrai este mês — murmurou Jennie, ao lavar as mãos. — Porque é que ele faz isto?

O jovem médico sorriu.

— A duzentos e cinquenta dólares cada um, não se contraria os doentes que querem extraí-lo — explicou.

— Mas ele não tem necessidade disso. É um grande cirurgião.

— Claro — disse o Dr. Lobb. — Mas até os grandes cirurgiões têm comer. Portanto, é natural que de vez em quando extraia um apêndice normal de qualquer hipocondríaco velho e rico. Não há perigo nenhum na operação. E assim o cirurgião pode fazer umas despesas extraordinárias e o doente pode vangloriar-se da operação que fez.

Pôs-se direito, pegando numa toalha.

— Eis — disse, animadamente —, eis o grande homem em carne e osso.

Jennie pegou noutra toalha e pôs-se também a enxugar as mãos. A voz do médico veio detrás dela.

— Miss Denton.

Jonnie voltou-se, olhando para ele.

— Faz favor de dizer, Dr. Grant.

— Ouvi dizer que recebia o diploma no próximo mês.

— Espero que sim.

— Parece-me que de facto pode contar com ele. Tive precisamente agora a falar com a Irmã Christopher. Admira-a muito. E eu também.

— Obrigada.

— Já fez alguns planos para depois de ter conseguido o diploma?

— Não, de facto não fiz — respondeu Jennie. — Vou, com certeza, concorrer para qualquer hospital importante.

— Não há vagas nos grandes hospitais.

Jennie sabia bem o que ele queria realmente dizer. O caso era outro. Nesse tempo, o que acontecia era que não havia dinheiro para pagar ao pessoal necessário. Sobretudo aos elementos das salas de operações. Eram os mais bem pagos.

— Pois é — disse Jennie.

O Dr. Grant hesitou por alguns segundos e depois disse:

— Tem alguma coisa que fazer neste momento?

— Ia lá baixo ao refeitório almoçar.

— Gostava de falar consigo. A Irmã Christopher disse que não havia problema se você saísse do hospital para ir almoçar. Que tal se fôssemos ao Steak'n'Sauce?

— Seria óptimo.

— Vamos, então. — Sorriu. — Encontro-me consigo lá em baixo, no meu carro. É o Packard preto.

— Bem sei — disse imediatamente.

Todas as enfermeiras conheciam esse carro. Estava sempre estacionado defronte do dormitório delas. À parte o Cadillac preto do Dr. Gedeon, era o carro mais luxuoso do hospital.

— Até daqui a quinze minutos.

Jennie encaminhou-se pelo corredor e premiu o botão de chamada do elevador. A porta abriu-se e ela entrou. O Dr. Lobb precipitou-se para o elevador exactamente atrás dela.

— Com que então, o Steak'n'Sauce!... — comentou para Jennie.

— Não imagino o que ele quer — disse a enfermeira.

O médico lançou-lhe um olhar malicioso.

— Pois eu sei, sei o que ele quer — afirmou, lascivamente... — Mas eu não tive sorte nenhuma quando a levei ao Greasy Spoon.

Jennie aguentou-lhe o olhar.

— Ele não terá mais sorte.

— Não sei, não sei — disse o médico, a rir. — Mais dia menos dia, você cederá — você será de alguém...    

— Isso nunca acontecerá assim — disse Jennie. Já aconte­cera, já — pensou. Mas agora isso não tinha importância. Estava tudo esquecido e ninguém ali sabia do caso. — Ainda estou a magicar no que quererá.

— Talvez queira que você vá trabalhar com ele. Ainda não lhe ocorreu essa hipótese?

— Já, já me ocorreu. Mas isso não faz sentido. Porquê eu? Podia conseguir uma enfermeira muito melhor.

O Dr. Lobb sorriu, mas os seus olhos tinham uma expres­são grave.

— Você é o melhor que há — exclamou para Jennie. — Já é tempo de se convencer disso.

O elevador abriu-se e os dois saíram para o corredor do rés-do-chão, onde ficava o refeitório. Jennie olhou para a sua bata branca.

— Tenho de ir tirar isto e pôr um vestido.

— Por mim, ficaria contente se você só tirasse a bata — disse o médico a rir. — Para mim não teria que pôr um vestido.

Jennie olhou para ele, a sorrir. Qualquer dia, aquele jovem seria um dos médicos de renome.

— Talvez ainda lhe faça uma surpresa, qualquer dia — disse Jennie.

 

O Dr. Grant ergueu o maço de cigarros diante dela. Jeanie um e o cirurgião riscou um fósforo. Os olhos dos dois encontraram-se por cima da chama.

— Calcula a razão por que veio almoçar comigo, não?

Jennie abanou a cabeça negativamente.

— Para dizer a verdade, não faço a menor ideia, e gostava de saber.

Grant sorriu.

— Gosto, de facto, de esquecer a minha profissão e o ambiente dos hospitais durante as refeições, mas agora acho que tenho de tratar consigo de um assunto relacionado com a minha profissão.

Jennie permaneceu silenciosa.

— Durante todo o ano, tive uma excelente oportunidade, Miss Denton, para observar o seu trabalho nas operações. Logo do princípio verifiquei as suas qualidades a sempre admirei como cirurgião a sua maneira extremamente competente de prestar assistência.

— Obrigada, Dr. Grant.

— Como deve saber, Miss Denton, tenho disso uma prática longa e variada. Há muitos médicos que me recomendam aos seus doentes como operador. Muitas intervenções cirúrgicas que faço são de natureza melhores e podem portanto ser efectuadas na minha clínica.

Jennie abanou a cabeça, em silêncio.

— Esta manhã, Miss Janney, que tem trabalhado comigo há muitos anos, disse-me que vai casar, projectando mudar-se para a Carolina do Sul. — Puxou uma fumaça. — Quando vim para o hospital, hoje, tomei a liberdade de falar de si à Irmã Christopher. Ela concorda que você seria uma substituta admirável de Miss Janney.

— Quer dizer: deseja que eu vá trabalhar com o senhor?

O cirurgião sorriu.

— Com toda esta minha conversa, era exactamente isso que queria propor-lhe. Está interessada?

— C!aro. Que rapariga não estaria?

— Não é um lugar fácil, sabe? — disse. — Tenho ainda bastantes doentes na minha clínica, e portanto teremos muitas vezes de trabalhar até tarde. De tempos a tempos, aparecem mesmo casos de doentes a que preciso prestar assistência durante toda a noite. Nessas ocasiões, terá de ficar de vela.

— Dr. Grant — disse Jennie, sorrindo — a semana passada só dormi quatro horas por dia. Trabalhar para o senhor será como ir a um piquenique.

O cirurgião retribuiu o sorriso e, dobrando-se sobre a mesa, agarrou a mão dela. Jennie sorriu-lhe. Ao fim e ao cabo, ele não era assim tão mau, apesar de fazer negócio com a extracção de apêndices normais. Aliás, não podia ser respon­sável por diagnósticos errados dos médicos que mandavam os doentes para ele.

No entanto, essa era a ideia que Jennie fazia antes de ir trabalhar para ele e verificar que apêndices normais não era a única coisa que o Dr. Grant extraía. Também tinha uma grande prática em abortos. Na verdade, era até o mais atarefado abortadeiro da Califórnia.

Porém, quando soube disso, não se importou, pois estava apaixonado por ele. Nem tão pouco se importou que já fosse ca­sado e tivesse três filhos.

O telefone tocou exactamente no instante em que Jennie estava para sair do pequeno apartamento de duas salas por cima da clínica. Voltou para trás e levantou o auscultador.

— Clínica do Dr. Grant — disse. Aquele telefone era uma extensão do telefone da clínica, lá em baixo.

— Jennie? — disse alguém, sussurrando.

— Sim.

— Ficas aí por mais alguns instantes?

— Ia justamente agora sair para casa dos meus pais. Já não os vejo há três semanas. Este é o terceiro domingo em que...

A voz do homem interrompeu-a.                      

— Podes ir vê-los depois, durante a semana. Peço-te, Jennie. Tenho de estar contigo agora.

Jennie hesitou por instantes; o homem sentiu a respiração dela pelo telefone.

— Peço-te, Jennie! Enlouqueço se não estiver contigo!

Jennie consultou o relógio. Já passava das sete. Com o tempo que ainda demoraria para atravessar a cidade, quando chegasse a casa encontraria o pai já na cama. Agora estava empregado numa companhia de transportes terrestres onde tinha de entrar de manhã muito cedo.

— Bem, está bem — disse Jennie, serenamente.

A voz do homem ficou menos tensa.                    

— Óptimo, Jennie. Estarei aí dentro de vinte minutos. Amo-te.                                                    

— Também te amo — disse; ouviu-se um estalido ao pousar o auscultador. Lentamente, Jennie voltou a tirar o casaco. Com todo o cuidado, colocou-o na cruzeta e foi sentar-se na poltrona. Acendeu um cigarro, com uma expressão apreensiva.

Quem havia de pensar que quando começou a trabalhar ali na clínica, três meses antes, o cirurgião se apaixonaria por ela? E ela por ele. Mas como podia resolver aquilo? Sobretudo, sabendo como ele reagia quanto ao problema do casamento. Casado com uma jovem rica que constantemente lhe atirava à cara o facto de ter sido com o dinheiro dela que ele pudera montar clínica, que fora a influência do pai o factor determinante para a criação do seu renome. Casado com uma mulher que lhe dera três filhos, não por amor mas por um desejo louco de o manter para sempre preso a ela.

Não admirava que ele tivesse procurado refúgio no trabalho e passado quase todos os momentos da sua vida entregue ao estudo. Agora, Jennie compreendia o que o preocupava. E essas raparigas e mulheres ainda novas que iam à clínica? Ele explicara-lhe, e ela compreendera.

Jennie descobrira a sua delicadeza interior espelhada no rosto enquanto falava.

— Que hei-de fazer, Jennie? Mandá-las embora e deixar que arruínem as suas vidas por um erro de loucura? Ou deixá-las ir parar às mãos de qualquer curandeiro, que talvez as ponham doentes para sempre ou mesmo as matem, tudo por causa de um rígido código religioso? Até as nossas leis civis permitem o aborto, em determinadas circunstâncias especiais. Qualquer dia, há-de ser permitido em todas as circunstâncias, como, aliás, já acontece em muitos países do mundo — Cuba, Dinamarca, Suécia, e outros.

Fixava-a com o seu olhar castanho-escuro muito agudo.

— Jurei, quando acabei a minha formatura, que faria o melhor que pudesse pelos meus doentes, para os ajudar de todas as maneiras que pudesse, física e psicologicamente. Quando qualquer rapariguinha amedrontada vem ter comigo, a pedir-me auxílio, não posso brincar a Deus e recusar-lho.

Jennie achava aquilo lógico. Havia muitas coisas relacionadas com a Igreja que ela não compreendia. Sabia como tinham actuado no seu caso e o ressentimento criara raízes nela. Se o seu bem era tão importante, porque é que essa gente não tinha salvado a sua honra? Tudo o que pretendiam fora dominá-la, não responsabilizar-se por ela.

Assim, Jennie começou a compreender as mulheres que iam ter com o cirurgião a pedir ajuda e começou a sentir piedade por elas. A mulher casada que não podia deixar o emprego porque ela e o marido já tinham mais filhos do que os seus ordenados consentiam; as rapariguinhas apavoradas, algumas ainda na escola ou acabadas de sair de lá; as mulheres de meia-idade que se aproximavam da menopausa, com as suas famílias já formadas; até as prostitutas, que viviam entregues à sorte do dia a dia, mas que no entanto iam à clínica com o terror estampado no rosto por baixo do riso exuberante, espectacular. Jennie sentia pena de todas elas, bem como ele também sentia. E daí até se apaixonar por ele foi apenas um passo.

Isso aconteceu depois de estar lá há cerca de um mês. Encontrava-se em cima, no apartamento, e ouviu ruído na clínica. Eram cerca de oito da noite. Ao princípio ficou confusa, pensando que era um trabalho nocturno de emergência. Mas de súbito pensou que nesse dia era terça-feira e o cirurgião só dava consultas às segundas, quartas e sextas. Baixou a chama por baixo da máquina de fazer café e, envergando o vestido, desceu à clínica a fim de investigar o que se passava.

Quando abriu a porta do gabinete do cirurgião e olhou para dentro viu-o por detrás da secretária, com uma expressão exausta no rosto.

— Perdão, doutor — disse. — Não sabia que era o senhor. Ouvi ruído e…

O cirurgião sorriu penosamente.

— Não faz mal, Miss Denton — disse.

— Boa noite, senhor doutor — despediu-se Jennie, começando a fechar novamente a porta.

— Só um minuto, Miss Denton — pediu o cirurgião inesperadamente.

Jennie voltou a abrir a porta de par em par e fixou-o.

— Precisa de alguma coisa, senhor doutor? — perguntou.

O cirurgião voltou a sorrir.

— Temos estado tão ocupados que ainda não tive tempo para lhe perguntar se está contente com isto.

Jennie abanou a cabeça afirmativamente.

— Sim, senhor doutor, estou até muito contente.

— Ainda bem.

— Devia ir para casa, senhor doutor. Tem um ar de cansaço.

— Para casa? — exclamou ele, com um vago sorriso irónico. — Aqui é que é a minha casa, Miss Denton. Acontece apenas que durmo noutro sítio. Compreende?

— Não... não compreendo, senhor doutor.

— Claro, claro que não — disse o cirurgião, afectuosamente. — Já sabia que não conseguia compreender. É demasiadamente jovem e bonita para se preocupar com problemas como os meus. — Pôs-se de pé. — Vá, agora volte lá para cima, Miss Denton. Tentarei ficar muito silencioso, muito sossegado, para não a per­turbar, Miss Denton.

A luz que se projectava sobre o rosto dele tornava-o ainda mais atraente do que era habitual. Jennie permaneceu no limiar da porta a fixá-lo. Sentia o coração a saltar-lhe com ímpeto no peito.

— Mas eu preocupo-me consigo, senhor doutor — disse, por fim. — Trabalha de mais.

— Não se preocupe — volveu o cirurgião com uma voz sumida.

Encararam-se. A Jennie parecia que se despenhava num vértice ao fixar os ternos olhos castanhos-escuros dele. Sentia as pernas a tremer. Encostou-se ao umbral da porta para se manter de pé. Não conseguia falar; fixava-o obsessivamente, em silêncio.

— Passa-se alguma coisa de especial, Miss Denton? — per­guntou o cirurgião.

Jennie teve de fazer um esforço desesperado para abanar a cabeça negativamente.

— Não — murmurou, desviando o olhar. — Não.

Voltou-se de súbito e correu pela escada acima.

Jennie nem sequer teve consciência de que ele a seguia, até sentir as suas mãos a agarrá-la quando chegou à porta do apartamento. O calor das mãos dele ao tocar-lhe no ombro penetrou-lhe no corpo através do vestido fino.

— Está com medo de mim, Jennie? — perguntou ele, abruptamente.

A jovem fixou-o e viu angústia nos seus olhos. Uma estranha sensação de esvaimento apossou-se dela, e teria caído se o médico não a segurasse.

— Não — sussurrou.

— Então, que se passa?

Jennie baixou os olhos, sem conseguir falar, sentindo que o calor daquela mão a queimava como fogo.

— Diga-me! — insistiu ele, abanando-a.

Jennie encarou-o, com os olhos marejados de lágrimas.

— Pode, Jennie, pode — disse ele, obstinadamente. — Sei o que está a sentir. Está a sentir a mesma coisa que eu. Não posso dormir sem sonhar consigo, sem a imaginar agarrada a mim.

— Não! Peço-lhe! Não, não pode ser! Não está certo!

A mão poderosa do cirurgião agarrou-lhe o pescoço como uma tenaz.

— Amo-te, Jennie! Amo-te!

Jennie fixou-o obsessivamente, vendo o rosto dele a aproximar-se cada vez mais e mais, mais e mais, até que os seus se esmagaram contra os dela. Fechou os olhos durante alguns segundos, sentindo um ardor a queimá-la toda, a envolvê-la como uma serpente. Bruscamente, desviou o rosto. Precipitou-se para o apartamento. O cirurgião seguiu-a, dando um pontapé na porta para a fechar.

— Amas-me? — perguntou, ansioso. — Diz!

Jennie abriu muito os olhos, fixando-o com uma expressão de desvario.

— Não — murmurou.

O cirurgião voltou a agarrá-la, os fortes dedos cravando-se na carne dela.

— Diz! — ordenou, veementemente.

Jennie começou a sentir-se desfalecer. Não conseguia desviar o seu olhar do olhar dele.

— Sim, amo-te — confessou por fim.

O cirurgião voltou a esmagar-lhe os lábios contra os dele. Jennie começou então a sentir a mão dele a penetrar-lhe no corpo, a percorrê-la por baixo do vestido, os dedos a desapertarem ner­vosamente o soutien — até que os seios brotaram, os bicos duros entregando-se exuberantemente a todas as vibrações das mãos dele. Um tremor de êxtase erótico percorreu-a toda, quase a fez desmaiar de prazer.

— Não, não, peço-te que não faças isso — murmurou ainda Jennie, com os lábios debaixo dos lábios dele. — Não, não está certo.

O cirurgião ergueu-a nos braços e transportou-a até à cama. Colocou-a lá ternamente e ajoelhou-se diante dela.

— Quando uma mulher e um homem estão apaixonados um pelo outro — murmurou — nada do que façam no seu lar está mal. E este é o nosso lar.

Dizendo isto, voltou a esmagar-lhe os lábios contra os dele, em delírio.

 

Tom olhou para o relógio da cozinha. Já passavam alguns minutos das dez. Fechou o jornal.

— Estou a ver que a Jennie já não vem hoje — disse para a mulher. — O melhor, portanto, é ir deitar-me. — Pôs-se de pé. — Disseram-me os da Aliança dos Trabalhadores que qualquer dia tornam-me fiscal. Portanto, tenho de me deitar cedo. Não quero chegar tarde ao trabalho.

Ellen suspirou, aborrecida.

— Se continuas a dar ouvidos a esses comunistóides da Aliança dos Trabalhadores, ainda perdes o emprego que tens agora.

— Eles estão a fazer coisas extraordinárias; não podes negar isso. Foram eles até que fizeram com que eu tivesse tra­balho todo o dia em vez de ter só meio dia. São eles que lutam pelo trabalhador.

— Os comunistas são ateus — disse Ellen. — O padre Hadley disse-me que eles estão sempre contra a Igreja, pois não acredi­tam em Deus. Disse-me que só lutam pelos trabalhadores até conseguirem chegar ao poder, como acontece na Rússia. Depois, querem fechar as igrejas e tornar-nos escravos a todos.

— Qual quê! Isso são histórias para enganar os tolos! — bradou Tom. — Olha: o padre Hadley é que não tratou de arranjar-me emprego nem de pagar-me as dívidas. Não: foi a Aliança que arranjou o sustento para mim e para ti. Quero lá saber do que o padre Hadley diz deles, se são eles que lutam por mim!

Ellen teve um sorriso de ressentimento amargo.

— Que bela família que eu tenho! Um marido que é comunista e uma filha que nunca vem a casa!

— Talvez esteja ocupada — admitiu Tom. — Bem sabes que tem agora exige tudo dela. É um trabalho de responsabilidade. Até a Irmã de St. Mary disse que ela teve muita sorte em ir trabalhar para um médico tão importante mal acabou o curso de enfermagem.

— Sim, mas mesmo assim podia vir a casa de vez em quando. Aposto que também nunca mais foi à missa desde que saiu de St. Mary.

— Como podes saber? — perguntou Tom, asperamente. — A igreja de São Paulo não é a única que existe em São Francisco.

— Sei, sei que nunca mais foi à missa — insistiu Ellen. — Sinto isso. Nem se interessa por nos ver. Está a ganhar tanto dinheiro que até tem vergonha de nós.

— E que teria ela de se orgulhar aqui? Contigo a pregares religião a todo o instante e os rapazolas atrás dela a darem-lhe piadas quando vai pela rua? Achas que isso são coisas agradáveis que façam uma rapariga ter vontade de ir a casa?

Ellen teve uma expressão de fúria contida.

— Não está certo que uma rapariga fique assim longe da vigilância dos seus pais — disse, severa. — Todos sabemos o que se passa quando uma rapariga vive assim sozinha. Leio os jornais, sabes? Eu também leio os jornais, e vejo as poucas-vergonhas que se fazem para aí.

— A Jennie é uma rapariga assente. Nunca faria nada disso.

— Não estou assim tão certa como tu. Às vezes, uma tentação é como uma colherada de mel: o suficiente para nos adoçar a língua mas não para nos encher a boca. E bem sabemos que ela já experimentou a tentação...

— Ainda não acreditas nela, hã? — disse Tom, indignada­mente. — És capaz de acreditar mais na palavra desses dois canalhas do que na da tua filha!

— Nesse caso, porque é que ela não quis ir para tribunal? Se não houvesse pelo menos um pouco de verdade naquilo que eles disseram, a Jennie não teria medo. Mas teve: aceitou os mil dólares e deixou que a considerassem uma desavergonhada.

— Sabes tão bem como eu a razão por que ela não quis o tribunal — replicou Tom. — E podes limpar as mãos à parede pelo trabalho que a tua Igreja fez. Nem sequer quiseram ir a tribunal para atestar a honra da Jennie. Não: meteram o rabo entre as pernas. Tiveram medo de que os pais dos rapazolas não gos­tassem dessa atitude e suspendessem as contribuições semanais para lhes encher o papo!...

— Foi a Igreja que mandou a Jennie para o colégio. E arranjou-lhe este emprego. Cumpriram perfeitamente o seu dever.

— Então, nesse caso, de que te queixas?

Manteve-se serenamente sentada, ouvindo-o a atirar os sapatos com fúria para o chão ao despir-se no quarto. Depois pôs-se de pé e ligou o esquentador para aquecer a água. Lem­brou-se de que um banho quente lhe aliviaria as dores nos ossos; todo aquele maldito tempo húmido estava a fazer com que pio­rasse da artrite. Tirou um fósforo da caixa e inclinou-se para o esquentador. Riscando o fósforo, rodou um botão. A chama er­gueu-se durante alguns segundos mas logo depois tornou-se apenas um pequeno círculo amarelo. Ellen olhou para o marcador. Estavam sem gás. A chamazita acabou por se extinguir. Ellen endireitou-se e foi procurar a sua carteira. Abriu-a e vasculhou no interior. Não, não tinha nenhuma moeda de quarto de dólar. Durante alguns segundos ainda pensou em pedir a Tom, mas logo encolheu os ombros, indiferente. Já estava demasiadamente farta dele. Paciência: passaria sem o banho quente. Poderia tomá-lo quando viesse da missa.

Foi à casa de banho e utilizou o resto de água quente para lavar a cara. Tom estava já sentado na cozinha quando ela passou por ele em silêncio, com o dorso nu.

Tom entrou na casa de banho e lavou-se, ruidosamente. De súbito, a água tornou-se fria. Tom enxugou-se, rápido, e depois procurou no bolso uma moeda de quarto de dólar. Encontrou-a e meteu-a no marcador de gás, vendo desaparecer o ponto vermelho no mostrador, que até aí indicava estar vazio o depósito. Teve um sorriso de satisfação. Na manhã acenderia o esquentador e em poucos minutos teria suficiente água quente para se barbear. Foi para o quarto, deixando a porta aberta, sem reparar no silvo do gás que se escapava da parte de baixo do esquentador.

Tirou as calças e dobrou-as na cadeira, sentando-se na cama. Depois, estirou-se. O seu ombro tocou o de Ellen, que imediatamente se voltou de costas para ele.

Raio! que fosse para o inferno! Não percebeu a respiração opressa dela. Já estava a dormir. Sorriu para si próprio na escuridão. Com o amor livre, a vida seria diferente. Se fosse assim o mundo, ela também agiria de uma maneira diferente. Os comunistas tinham razão. Era preciso criar um mundo diferente com pessoas diferentes.

As pálpebras pesaram-lhe. Cerrou-as, juntando-se à mulher no sono. E na morte!

Jennie ergueu-se na cama, puxou o lençol para cima, para cobrir o seu corpo nu, e olhou fixamente, com os olhos muito abertos e assustados, para a mulher que estava à entrada da porta. Do outro lado da cama, Bob abotoava precipitadamente a camisa.

— Pensa que ele me vai deixar por sua causa? — gritava a mulher para Jennie. — Pensa que você foi a primeira amante que ele teve? Ainda não lhe contou as vezes em que eu já o surpreendi assim? — Tinha um tom de voz agudo e desdenhoso. — Ou supõe que ele está realmente apaixonado por si?

Jennie não respondeu.

— Diz-lhe, Robert — bradava a mulher, agora com fúria. — Diz-lhe a verdade: que querias fazer amor comigo esta noite ee como eu recusei vieste a correr para ela. Conta-lhe, conta-lhe a verdade!

Jennie olhou fixamente para Bob, que estava pálido e se furtava ao olhar dela. Viu-o pegar no casaco, estendido em cima da poltrona, e dirigir-se para a mulher.

— Isso é um esgotamento nervoso. Vou levar-te a casa.

Casa. O lar. Jennie sentiu um vómito a revolver-lhe o estô­mago. Ali era o seu lar — dele e dela. Fora ele quem dissera isso. Ali tinham feito amor, ali haviam estado juntos. No entanto, ele estava agora a referir-se a outro lar. Noutro síio.

— Estou sempre com esgotamento nervoso, não estou, Robert? Prometes de todas as vezes que estas coisas não voltam a acontecer. Mas eu bem sei como tu és, não sei? Está bem — volveu, com uma voz subitamente fria e seca. — Vamos para casa. Mas não antes de lhe dizeres a verdade.

— Por favor, querida — disse o cirurgião, nervosamente. — Falamos para outra vez. Não agora.

— Agora, sim, Robert — insistiu a mulher, friamente. — Agora, ou então asseguro-te que todo o mundo saberá que o Dr. Grant é um abortadeiro, um mistificador, um aventureiro. O cirurgião voltou-se e olhou para Jennie, deitada na cama.

— Tem de se ir embora, Miss Denton — disse, secamente. — Bem vê, na verdade não a amo — acrescentou, com a voz a tremer-lhe. — Quem amo é a minha mulher.

E quase exactamente no mesmo instante em que a porta se fechou atrás dele, houve uma explosão num velho prédio situado no outro extremo da cidade. Depois de os bombeiros terem reti­rado os corpos dos escombros ainda em brasa, concluiu-se que as vítimas não tinham sofrido nada. Já estavam mortas antes de o fogo começar.

Charles Standhurst tinha oitenta e um anos quando conheceu Jennie Denton. Eram oito horas de uma manhã de Primavera de 1936 e ele estava numa sala de operações do Hospital Colton, em Santa Monica. Era o doente que ia ser colocado na mesa de operações e Jennie era a enfermeira-chefe de Cirurgia.

Prenderam-no à mesa de operações. Foi então que a viu aproximar-se dele, colocando-se bem perto da mesa. Jennie levantou o lençol que o envolvia.

Sentiu um certo embaraço pela maneira impessoal como ela lhe examinou as partes. Depois de cinco esposas, amantes sem conta e mais de quarenta filhos que espalhara por todos os cantos do mundo, dos quais apenas oito eram resultado do casamento, parecia-lhe estranho que uma mulher pudesse olhar para os seus órgãos genitais de uma maneira assim tão indiferente. Tanta vida tinha brotado daquela fonte!

Jennie voltou a baixar o lençol sobre ele e fixou-o nos olhos. Um brilho de ironia iluminou--lhe o olhar e ele viu que ela percebia.

Jennie aproximou-se da cabeceira da mesa de operações e pegou-lhe no pulso. O velho examinou-a enquanto ela consul­tava o relógio.

— Onde está o Doutor Colton? — perguntou a Jennie.

— Virá dentro de poucos minutos. Está a desinfectar-se.

Jennie largou-lhe o pulso e disse algo para uma pessoa que estava ao seu lado. O velho rolou os olhos para trás e deparou com outra enfermeira. Sentiu a picada de uma agulha no braço: voltou precipitadamente a cabeça para lá.

— Você é rápida — disse o velho.

— É o meu dever.

— Eu também costumo ser.

Jennie voltou a ter um brilho de malícia irónica no olhar.

— Bem sei — disse. — Leio os jornais.

Exactamente nesse instante entrou o Dr. Colton.

— Olá, Mr. Standhurst — disse, no seu tom jovial do costume.

— Aqui estou no matadouro, doutor.

O Dr. Colton sorriu.

— Não tem que se preocupar. Costumamos tirar essas pedrinhas do fígado enquanto o diabo esfrega um olho.

— Mesmo assim, doutor. Nunca se sabe o que ma querem cortar... com inveja... Ainda bem que arranjou um especialista.

O Dr. Colton riu novamente. Conheciam-se há muito tempo. Fora Charles Standhurst quem lhe dera dinheiro para montar aquele hospital. O sarcasmo velado do velho não o perturbou.                          

O cirurgião entrou na sala de operações e foi colocar-se ao todo do Dr, Colton.

— Está pronto, Mr. Standhurst?

— Mais pronto do que nunca. Mas deixe alguma coisa para as moças, hem?...

O cirurgião acenou afirmativamente com a cabeça e Standhurst sentiu uma picada no outro braço. Voltou a cabeça e o seu olhar encontrou o de Jennie.

— Menina dos olhos cinzentos... — disse para ela. A sua segunda mulher também tinha olhos cinzentos. A segunda ou a terceira? Já não se lembrava. — Não quer tirar a sua máscara, para poder ver o resto da sua cara?

Voltou a descobrir um brilho de malícia nos olhos dela.

— Parece-me que os senhores doutores não gostariam que eu fizesse isso — disse. — Mas depois da operação irei visitá-lo, está bem?

— Óptimo. Tenho cá um pressentimento de que você é bonita.

Não reparou que o anestesista fizera um sinal afirmativo com a cabeça por detrás dele. Jennie inclinou-se para o velho.

— Agora, Mr. Standhurst — disse —, conte desde dez comigo. Vá: dez, nove, oito...

— Sete, seis, quatro, cinco, dois, nove... — Os lábios do velho começaram a mover-se muito lentamente e tudo lhe parecia extinguir-se ao longe. — Dez, oito, um, três... seis... quatro... um… quatro… um... dois...

A voz desvaneceu-se.

O anestesista olhou para o cirurgião.

— Está pronto — disse.

Todos viram aquilo ao mesmo tempo, olhando para a cavidade que o cirurgião abrira no corpo do velho — a massa de pus que cobria quase todo um dos lados do fígado, ameaçando o outro. Sem erguer a cabeça, o cirurgião começou a cortar.

— Patologia — sussurrou Jennie para a outra enfermeira.

Jennie pegou em dois hemostatos e entregou-os ao cirurgião assistente, que ligou duas veias que o outro cirurgião tinha exposto.

— Não se espera pela biopsia? — perguntou o Dr. Colton ao outro cirurgião. Mas este não respondeu. Os dedos moviam-se quase mecanicamente na massa cinzenta.

— Não — respondeu, por fim. — A não ser que você queira.

Ergueu a mão e Jennie colocou nela uma pequena curita. Actuava com rapidez, preparando--se para extrair o fígado infectado.

Colton hesitou.

— Charles Standhurst não é um homem normal — disse.

Todos que estavam à volta da mesa de operações sabiam disso. Mais cedo ou mais tarde, aquele homem podia ser tudo aquilo que desejasse. Governador, senador, tudo. Com mais de vinte jornais importantes espalhados por todo o país e uma for­tuna em petróleo e oiro, na verdade, quisera sempre ser ele pró­prio.

O cirurgião, homem ainda novo que depressa se tor­nara um dos maiores especialistas do mundo, viera de Nova Iorque especialmente para fazer aquela operação. Começou a extrair o fígado. A enfermeira por detrás de Jennie deu-lhe uma palmada no ombro. Jennie pegou na folha de papel que ela lhe estendia e entregou-a ao cirurgião. Viu as palavras nitidamente: Carcinoma. Metástase. Maligno.                            

O cirurgião suspirou e olhou para o Dr. Colton.

— Pois agora ele é um homem normal — disse.

Standhurst estava acordado na manhã seguinte, quando o cirurgião entrou no seu apartamento reservado do hospital. Aproximou-se da cabeceira da cama e olhou-o.

— Vim dizer-lhe adeus, Mr. Standhurst. Parto para Nova Iorque esta manhã.

O velho olhou-o e arreganhou os dentes, num sorriso.

— Oh doutor: alguém já lhe disse alguma vez que o seu pai era alfaiate?

— É verdade, Mr. Standhurst. O meu pai era alfaiate.

— Conheço-o — disse Standhurst. — Ainda tem a loja em Stanton Street. Sei muitas coisas sobre você. Foi presidente da Save Sacco-Vanzetti Society do City College quando se formou, em 1927, e membro dos Jovens Socialistas. Ainda é um socialista do partido, em Nova Iorque. E decerto vai votar por Norman Thomas para presidente.

O cirurgião sorriu.

— Sabe muito sobre mim, de facto. Supunha que não gostasse de mim. Deve estar informado daquilo que os Socia­listas pensam de si.

O velho explodiu numa gargalhada, mas logo sé retraiu, num espasmo de dor.

— Diabo! Eu vejo-o antes de mais como médico e só depois como socialista. — Fixou-o agudamente. — Sabe, doutor: se votasse na lista dos Republicanos, podia fazer de si um milio­nário em menos de três anos.

O médico riu e abanou a cabeça.

— Não, obrigado. Teria demasiadas preocupações, sem saber o que fazer a tanto dinheiro.

— Porque é que ainda não perguntou como eu me sentia, doutor? O Colton já cá esteve quatro vezes, e de todas me per­guntou como eu estava.

O médico encolheu os ombros.

— Porque havia de o fazer? Bem sei como o senhor está.

— Sofro muito, doutor. É um inferno! O Colton disse-me que as pedras que me tirou do fígado eram grandes como bolas de basebol.

— Sim, eram um bocadinho crescidas.

— Também, me disse que tenho de trazer o raio deste saco que o doutor meteu dentro de mim até que o fígado esteja definitivamente são.

— Sim, tem de ficar com ele durante bastante tempo.

O velho teve um esgar.

— Sabem — disse —, vocês são todos uns carniceiros. Agora, ficarei com isto até morrer. Levo isto para o túmulo. O que não acontecerá daqui a muito tempo.

— Não diga isso.

— É o que é. Olhe, doutor: tenho oitenta e um anos. E aos oitenta e um anos, se um homem viveu muito intensamente, cheira a morte ao longe. Para todos, inclusive para si mesmo. O doutor bem topa isso, na minha cara e nos meus olhos. Portanto, não me iluda. Quanto tempo tenho ainda para viver?

O médico olhou bem fundo para o velho e verificou que ele não tinha medo. O seu olhar reflectia antes uma curiosidade ávida. Fez um rápido raciocínio. Colton errava na maneira como tratava aquele velho. Era apenas um homem velho. Mere­cia saber a verdade.

— Três meses, se tiver sorte. Seis se não tiver.

O velho nem sequer pestanejou.

— Cancro? — perguntou ainda.

O cirurgião abanou afirmativamente com a cabeça.

— Maligno e metastático — respondeu. — Extraí um fígado completo e quase metade do outro. É essa a razão por que lhe meti esse saco.

— Será doloroso?

— Muito. Mas pode-se dominar a dor com morfina.

— Para o diabo com a morfina! — bradou o velho. — A morte lenta é a única coisa na vida que ainda não experimentei. E é uma coisa que não quero perder. Como poderei saber quando é o fim?

— Vigie a urina — disse o médico. — Quanto mais vermelha for, mais o fim estará próximo. Esse facto significará que pelo fígado restante passa sangue em vez de urina, pois o cancro acabará por obstruir totalmente o fígado.          

O olhar do velho era vivo, corajoso.

— Provavelmente morrerei de intoxicação urémica, não verdade?

— Provavelmente. Se as coisas não correrem pior.

Standhurst riu.

— Sabe, doutor: podia ter evitado isto há vinte anos, se não continuasse a beber.

— Mas tinha perdido muito da vida — disse o cirurgião, rindo

O velho sorriu com ironia.

— Vocês, os Socialistas, de certo vão declarar o dia da minha morte festa nacional, não?

— Talvez não — disse o médico, replicando com outro sorriso irónico.

— Não estou preocupado, aliás — exclamou o velho. — Ainda cá ficam o Hearst e o Patterson, dois capitalistas pode­rosos, com muita influência.

O médico ergueu a mão.

— Bem, tenho de ir, Mr. Standhurst — disse, cumprimentando-o.

Encaminhou-se para a porta. A voz do velho chamou-o ainda, fazendo-o voltar-se.

— Quer fazer-me um favor?

— Tudo o que possa, Mr. Standhurst.

— Aquela enfermeira que esteve na sala de operações... Aquela de olhos cinzentos e tetas grandes...

O cirurgião bem sabia o que o capitalista queria dizer.

— Miss Denton?

— Sim, sim. Ela disse que se eu quisesse vê-la sem más­cara viria visitar-me. Pode dizer de passagem ao Colton que a convido para almoçar hoje comigo?

O cirurgião riu.

— Está bem, está bem, Mr. Standhurst.

Jennie pegou na garrafa de champanhe e encheu a taça alta, com cubos de gelo. O vinho brotou com uma delicada espuma. Meteu um pequeno tubo de vidro na taça, que entregou a Standhurst.

— Aqui está a sua ginger ale, Charlie.

Standhurst fez uma careta maliciosa.

— Se quers qualquer coisa que te ponha excitada, o melhor de tudo é o champanhe. — Saboreou-o lentamente, dando um estalido com a língua. — Ah! — exclamou. — Bebe um bocado também. Talvez te faça sentir vontade de fazer amor.

— Que bem lhe fazia a si se eu ficasse com vontade de fazer amor?

— Sentir-me-ia bem só de me lembrar daquilo que fiz tantas vezes há vinte anos.

— E melhor teria sido há quarenta, não?

— Não — disse o velho, abanando veementemente a cabeça. — Há vinte anos é que foi o melhor. Talvez porque nesse tempo apreciava melhor essas coisas, sabendo que já não duraria muito.

O teletipo ao canto da pequena biblioteca começou a matraquear. Jennie levantou-se e foi ver. Quando o teletipo parou, Jennie tirou a mensagem e voltou para junto de Standhurst. — Nomearam o Roosevelt pela segunda vez — disse, entregando-lhe a folha de papel amarelo.

— Já esperava que isso acontecesse — disse o velho. — Agora, nunca mais derrubam esse filho da mãe. Mas porque eu preocupar-me? Já não andarei por cá.

O telefone começou a tocar mal Standhurst acabou de dizer isto. Era uma chamada directa do seu jornal de Los Angeles. Jennie pegou no aparelho de cima da secretária e levou-o para junto do velho.

— Standhurst — disse ele, depois de levantar o auscultador.

Jennie ouvia uma espécie de zumbido do outro lado do fio. O rosto do velho mantinha-se inexpressivo enquanto escutava.

— Diabo! não! — berrou, de súbito. — Há muito tempo de publicar isso depois de ele ter feito o discurso de aceitação. Então já teremos pelo menos, uma ideia das promessas a que vai faltar. Nada de artigos de fundo até amanhã. Isto é uma ordem para todos os jornais. Transmitam-na pelo teletipo.

O velho desligou o telefone e olhou para Jennie. Imedia­tamente o teletipo começou a matraquear outra vez. Jennie atravessou o quarto e foi ver o que se passava. Letras verdes começaram a aparecer no papel amarelo.

De Charles Standhurst para todos os jornais. Importante. Nenhum fundo reeleição Roosevelt até o discurso de aceitação ser pronunciado e examinado. Repete-se: nenhum fundo reelei­ção Roosevelt...

Jennie desviou-se do teletipo, que continuou a matraquear.

— São as suas ordens, patrão.

— Óptimo. Agora, desliga essa coisa, para nós podermos falar em sossego.

Jennie foi carregar num botão do teletipo e depois voltou, sentando-se defronte do velho. Puxou de um cigarro e acendeu-o enquanto ele saboreava o champanhe através do pequeno tubo de vidro, apreensivamente.

— Quais são os teus planos para quando saíres daqui? — perguntou, por fim, o velho.

— Ainda não pensei muito nisso.

— É melhor começares a pensar. Agora, já não falta muito para ires embora.

Jennie sorriu para o velho.

— Está ansioso de se ver livre de mim?

— Não sejas tola! A única razão por que ainda me tenho mantido vivo é porque não quero deixar-te.

Algo na voz dele fez com que Jennie o olhasse com uma expressão interrogativa.

— Sabes, Charlie, acredito que realmente isso é verdade.

— Claro, claro que é — disse o velho com veemência.

Emocionada, Jennie aproximou-se mais dele e beijou-o na face.

— Eh, enfermeira Denton: está a faltar ao regulamento. Ainda me queixo de si...

Jennie sorriu.

— O que houve de errado connosco — disse depois —, foi que nos encontrámos demasiadamente tarde.            

Quando Jennie pensava no caso, sentia intensamente essa verdade. No próprio dia em que almoçara pela primeira vez com ele no hospital, no dia após a operação, gostara daquele velho estranho. Sabia que ele estava prestes a morrer e, pouco depois, soube também que de sabia disso. No entanto, tal facto não o impediu de ser um dom juan em relação a ela.

A comida para Standhurst ia num carro com escolta policial, sereia e tudo mais. E juntamente com o carro iam um maître d’hotel e dois criados para o servir.

Standhurst sentou-se na cama saboreando o champanhe e observando Jennie a comer. Gostava da maneira que ela tinha de comer. As mulheres que comiam assim, eram normalmente amantes egoístas. Não davam nada, exigindo na cama aquela mesma satisfação que sentiam ao comer. Raciocinou e expôs o seu raciocínio rapidamente, como era hábito dele.

— Vou estar doente durante alguns meses — disse. — Preciso de uma enfermeira. Você gostaria de ser a minha enfermeira privativa?

Jennie fixou-o, erguendo os olhos da chávena de café, a pestanejar.

— Há enfermeiras especializadas em trabalhos de casa, Mr. Standhurst. Suponho que para si essas serão melhores do que eu.

— Mas eu escolhi-a.

— Tenho um emprego na Los Angeles General — declarou. — Um bom emprego. Às vezes, chamam-me para ajudar em operações aqui; como agora aconteceu na operação que o senhor fez. Aliás, esse é o trabalho em que sou melhor.

— Quanto ganha?

— Oitenta e cinco dólares por mês, além do alojamento e da alimentação.

— Pagar-lhe-ei cem dólares por semana, além do aloja­mento e da alimentação.

— Mas isso é incrível!

— Acha? Tenho possibilidade de o fazer. E quando o médico veio visitar-me, esta manhã, disse-me que tinha apenas três meses de vida.

Jennie baixou os olhos, enquanto o criado voltava a encher a chávena do café dela.

— Estará aqui mais três semanas — disse, por fim, Jennie. — Isso dá-me tempo para lhe responder. Quando quer que comece?

— Agora mesmo. E não se preocupe com medo de ficar mal vista. Já disse ao Colton e à Los Angeles General que você ia ser a minha enfermeira.

Jennie fixou-o por instantes; depois, pousou a chávena de chá e pôs-se de pé. Fez um gesto para o maître d'hotel e os criados começaram imediatamente a levantar a mesa.

— Eh, que ideia foi essa? — perguntou Standhurst.

Jennie não respondeu logo. Foi tirar a taça de champanhe das mãos do velho.

— Se vou passar a ser sua enfermeira privativa, acho que já é altura de obrigá-lo a descansar um pouco.

O tempo nunca passa tão depressa como quando está a esgotar-se — pensou Standhurst. De certo modo, ao pensa­mento tudo parece mais lógico, mais nítido; as decisões são mesmo tomadas mais facilmente. Talvez porque a responsa­bilidade por elas não pode ter repercussões no futuro. Ninguém pode fazer nada perante um túmulo.

Sentiu a dor feri-lo como uma navalha. Não a disfarçou perante Jennie — já sabia que ela não ignorava. Uma estranha espécie de comunicação se estabelecera entre ambos. As pala­vras não eram necessárias. Às vezes, Standhurst chegava a pensar que ela também sentia as dores dele.

— Talvez seja melhor ir para a cama — disse Jennie.

— Não, ainda não. Quero falar contigo.      

— Vá, então diga.

— Nunca mais voltas para o hospital, pois não?

— Não sei. Realmente, ainda não tinha pensado nisso.

— Nunca mais serás feliz com um emprego desses. Ami­mei-te. Estraguei-te. Agora, não há nada para ti como ter bas­tante dinheiro.

Jennie riu.

— É tão bom para mim, Charlie. Tenho pensado nisso. De facto, sinto que nada me vai parecer bom, nunca mais.

O velho examinou-a pensativamente.

— Podia deixar-te alguma coisa no meu testamento. Ou mesmo casar contigo. Mas os meus filhos levariam o caso para tribunal, dizendo que foste tu que me influenciaste. Terias uma carga de trabalhos.

Jennie fixou-o a sorrir.

— De qualquer maneira, sinto-me grata, Charlie.

— Precisas de fazer dinheiro. Por que razão decidiste ser enfermeira? Sempre quiseste essa vida?

— Não — disse Jennie, encolhendo os ombros. — O que queria realmente ser era como Helen Wills. Mas tirei o curso de St. Mary e depois tive de empregar-me.

— Mesmo uma tenista pode ganhar bastante dinheiro.

— Sim, bem sei. Seja como for, agora já é demasiadamente tarde. Contento-me em ter uma coisa estável e que me permita umas horas livres. Provavelmente, volto para o hospital.

— Não tens necessariamente de voltar.

— Que quer dizer com isso? Só de enfermeira é que tenho prática.

— Adquiriste prática de uma outra coisa antes de come­çares a tirar o curso de enfermagem: ser mulher.

— Bem, disso não tive assim tanta prática como parece — disse Jennie, com uma expressão maliciosa. — A primeira vez que agi como mulher estava com a cabeça maluca,

— Referes-te ao Dr. Grant, no Frisco?

— Como soube disso?

— Em parte, foi uma desconfiança que tive. Mas o jornal mantém-me sempre informado... mesmo das notícias proibidas. Q Grant tem reputação de sedutor, e o facto de tu teres tra­balhado para ele e de repente deixares o emprego, tão precipi­tadamente, levou-me logo a concluir isso. Mas em pormenor, que aconteceu? A mulher surpreendeu-vos na cama?

Jennie abanou afirmativamente com a cabeça.

— Foi horrível.

— Isso acontece sempre assim quando nos deixamos envol­ver pelas emoções. A mim também já me aconteceu, mais do que uma vez. — Voltou a encher a taça com champanhe.

— O segredo está em não nos deixarmos envolver emocionalmente.

— Como se consegue isso?

— Fazendo que nos paguem.

— Nesse caso, está a sugerir que devo tornar-me uma pros­tituta? — disse Jennie com um tom de voz de quem está cho­cado, mesmo indignado.

Standhurst sorriu.

— A tua parte de católica é que está a fazer-te falar assim. No fundo, até tu concordas que isto que eu te disse é lógico.

— Mas uma prostituta?... — insistiu Jennie, no tom de voz ainda indignado.

— Não propriamente uma prostituta, não, mas sim uma cortesã ou a sua equivalente actual: a amante que se chama pelo telefone. Nas civilizações antigas, ser cortesã era uma pro­fissão altamente respeitável. Tanto homens de Estado como filósofos procuravam os seus favores. E não é só dinheiro que a torna atraente. É uma forma de vida plena. Luxuriosa e cheia de imprevisto.

Jennie pôs-se a rir.

— Você não passa de um velho lúbrico, Charlie.

Standhurst riu com ela.

— Porque não havia de sê-lo? Em novo também já era assim lúbrico. Mas nunca fui estúpido. Tu tens todas as qualidades necessárias para te tornares uma cortesã de categoria. O corpo, a cabeça — mesmo a tua prática de enfermeira pode ser apro­veitada. O verdadeiro sexo exige um intelectualismo muito maior do que o simples cio animal.

— Bem, agora já é tempo de ir para a cama — cortou Jennie, rindo ainda. — Da próxima vez, estou a ver que sugere que eu vá para uma escola aprender tudo sobre isso.

— É uma ideia, uma boa ideia — disse o velho, lançando uma risada que parecia um cacarejo. — Andam sempre atrás de mim para abrir uma escola dessas. Porque não? A Escola de Ensino Sexual Standhurst.

Riu com veemência, com um entusiasmo delirante, mas de súbito teve um esgar de dor. O seu rosto empalideceu impressionantemente e um suor frio escorreu-lhe pela fronte. Atirou—se para a sua cadeira de rodas.

Jennie pôs-se logo ao lado dele, puxando a manga do roupão e expondo o braço do velho. Com rapidez prodigiosa, enterrou a agulha da injecção de morfina nas veias de Standhurst. Os dedos ossudos do velho crisparam-se na enfermeira, tentando empurrá-la. Standhurst olhava para Jennie com um olhar de moribundo.                        

— Por amor de Deus, Charlie! — bradou Jennie com fúria. — Não se torça assim!

A crispação dos dedos do velho diminuiu, relaxou, enquanto Jennie lhe dava outra injecção de morfina. Depois observou-o: o velho como que estava a combater o conforto que a morfina lhe dava. Pegou na mão frágil dele e ergueu-a, levando-a ternamente aos lábios.

Standhurst sorriu, a ser dominado pela morfina.

— Pobre Jenniezinha! — murmurou. — Se fosse noutro tempo, teria feito de ti a minha rainha. — Os seus dedos afloraram delicadamente as faces da rapariga. — Mas não me esquecerei daquilo em que estivemos a falar. Não vou abandonar-te assim só porque não posso estar ao teu lado para gozar com a tua companhia.

Três dias mais tarde, estavam eles a almoçar no terraço quando Jennie viu um Rolls-Royce cinzento parar defronte, na rua. Um motorista fardado a preceito abriu a porta do automóvel

e dele desceu uma mulher. Alguns minutos depois, o mordomo apareceu no terraço.

— Está ali Mrs. Schwartz para Mr. Standhurst.

Standhurst sorriu.

— Ponha outro talher, Judson, e pergunte à Mrs. Schwartz se quer vir acompanhar-nos no almoço.

O mordomo inclinou-se.

— Sim, Mr. Standhurst — disse, retirando-se.

Segundos depois, surgiu uma mulher no terraço.

— Charlie! — exclamou, com evidente prazer. — Que ale­gria em ver-te!

— Aida — disse Standhurst, beijando-lhe a mão. — Des­culpa-me por não me levantar. — Olhou para o rosto dela. — Estás mais bonita do que nunca.

— Não mudaste nada, Charlie. Podes ver uma mulher feia como o diabo, mas mesmo assim continuas a mentir sem ver­gonha.

Standhurst riu.

— Aida: esta é a Jennie Denton.

— Muito prazer — murmurou Jennie.

Examinou-a. Era uma mulher de meia-idade, talvez com cinquenta e tal anos, luxuosamente vestida. A mulher voltou-se para ela com um sorriso franco e amistoso, mas Jennie teve de súbito a sensação de que estava a ser espiada.

A mulher voltou-se para Standhurst.

— É esta a rapariga de quem me tens falado pelo telefone?

Standhurst sacudiu a cabeça afirmativamente. A mulher voltou-se de novo para Jennie. Desta vez, os seus olhos muito abertos tinham uma expressão de admiração incontível. Sorriu-lhe.

— Apesar de teres perdido as tuas sagradas bolas, Charlie — disse, com uma voz maliciosa, quase canalha — ainda não perdeste o gosto.

Jennie abriu a boca, numa expressão de espanto e embaraço, olhando para os dois fixamente. Standhurst explodiu numa gargalhada e o mordomo surgiu à entrada do terraço, com uma cadeira. Colocou-a junto da mesa, para Mrs. Schwartz, que se sentou.

— Um sherry para Mrs. Schwartz, Judson — ordenou o velho.

O mordomo inclinou-se e saiu do terraço.

Standhurst voltou-se para Jennie.

— Suponho que estás a calcular para que é tudo isto, não?

Jennie abanou com a cabeça, ainda incapaz de falar.

— Há vinte e cinco anos que Aida Schwartz dirige a maior casa de raparigas do Oeste: a Casa das Irmãs Everleigh, em Chicago.

Mrs. Schwartz inclinou-se e deu uma palmada na mão do velho.

— O Charlie lembra-se de tudo — disse para Jennie. — Lembrou-se mesmo de que nunca bebo nada a não ser sherry. — Olhou para o copo na mesa. — E tu, suponho que ainda bebes champanhe em taças altas e com gelo, não?

Standhurst moveu a cabeça, afirmativamente.

— Os velhos hábitos, como os velhos amigos, Aida, nunca se podem abandonar.

O mordomo veio e colocou a bebida diante de Mrs. Schwartz, que ergueu o cálice delicadamente e bebeu um pouco, sabo­reando. Olhou para o mordomo e sorriu, dizendo:

— Obrigada.

— Obrigado eu, Madame — disse o mordomo.

Mrs. Schwartz ergueu o sobrolho, com uma expressão de agradável surpresa.

— É muito bom — disse. — Não calculam como é difícil arranjar cocktails verdadeiramente bons, mesmo nos restaurantes mais caros. Hoje em dia, parece que as senhoras só bebem martinis. É horrível! No meu tempo, nenhuma senhora provava sequer uma bebida como essa!

Standhurst olhou para Jennie.

— Aida nunca deixa as suas raparigas beber seja o que for excepto sherry — explicou.

— O whisky dá voltas à cabeça — disse a outra, afectada­mente. — E as minhas raparigas não são pagas para beber.

O velho pôs-se a rir, com aquele cacarejar malicioso que lhe era habitual. Tinha uma expressão de saudade no rosto.

— Não, realmente nunca foram. Aida: lembras-te, antes da guerra, quando eu ia à vossa casa para uma massagem na prós­tata?...

— É verdade — disse a mulher, sorrindo.

O velho olhou para Jennie.

— Tinha apanhado uma doença, e o médico recomendara-me massagens na próstata três vezes por mês — disse. — Da pri­meira vez, fui ao consultório dele. Mas depois, pensei cá para comigo que já que tinha de levar massagens, devia ao menos torná-las uma coisa agradável. Por isso, em três noites da semana, passei a ir a casa das raparigas da Aida, para me tratar.

— O que ele não diz — acrescentou Aida—, é que esse trata­mento prostrou-o... As minhas raparigas nunca desapontam um cliente. Quando o Charlie voltou ao médico, duas semanas depois, e lhe explicou o tratamento que estava a experimentar, o médico ficou furioso.

Standhurst não parava de rir.

— Imagina, o médico disse que ia processar Aida por exercer medicina sem licença — disse para Jennie.

Mrs. Schwartz inclinou-se e deu outra palmada na mão de Standhurst.

— E o Ed Barry? Lembras-te do Ed Barry?

— Claro que sim — disse o velho, cacarejando sempre. — Ed Barry é um desses austeros chatos anabaptistas do Sul, para quem tudo é pecado.

Era o tempo das eleições e Ed estava à frente de uma lista de votos para governador. Consegui fazê-lo beber, aproveitando-me da excitação de tudo aquilo; pela meia-noite, estava bêbado como um cacho. De maneira que, sem lhe dizer para onde íamos, levei-o à casa de raparigas da Aida. O Ed Barry nunca mais esqueceu isso.                    

Standhurst riu a bandeiras despregadas, limpando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos.

— Pobre Ed! — continuou. — Nunca soube verdadeira­mente o que lhe tinha acontecido. Perdeu as eleições. No dia em que a Aida fechou a casa, quando entrámos na guerra, o Ed Barry estava no bar, chorando como se o mundo tivesse acabado.

— Bons tempos! — disse Aida. — Nunca mais voltaremos a eles.

— Porque fechou a casa? — perguntou Jennie, com curiosidade.

— Por várias razões — disse Aida, com uma expressão solene, voltando-se para a rapariga. — Durante a guerra, havia demasiada competição. Todas as raparigas andavam por aí... E tornou-se verdadeiramente muito difícil encontrar raparigas interessadas e dedicadas suficientemente para corresponderem ao alto nível que eu queria manter. Elas estavam interessadas apenas era em ser prostitutas. Como não tinha necessidade urgente de dinheiro, fechei a casa.

— A Aida é uma mulher muito rica. Aplica todo o dinheiro cm propriedades e prédios, aqui e na maior parte das grandes cidades do país — explicou Standhurst. Olhou para a mulher. — Quais são em média os teus rendimentos agora, Aida?

A mulher encolheu os ombros, num momento de hesitação, e depois disse:

— Cerca de seis milhões de dólares. Graças a ti e a outros bons amigos meus como tu.                                

Standhurst sorriu ironicamente, dirigindo o olhar para Jennie.

— E agora — disse —, ainda pensas em voltar para o hospital?

Jennie não respondeu.

— Então, que achas, Jennie? — insistiu o velho.

Jennie olhou fixamente para ele e depois para Aida. Estavam ambos a observá-la intencionalmente. Jennie ainda quis falar, mas as palavras não lhe saiam dos lábios.

Mrs. Schwartz inclinou-se e deu a familiar palmada na mão de Standhurst, com uma expressão calma.

— Dá-lhe tempo, dá-lhe um bocado de tempo para ela poder pensar, Charlie — disse, delicadamente. — É uma decisão que uma rapariga tem de tomar perante ela própria.

Havia um brilho curiosamente afectuoso nos olhos de Standhurst, ao sorrir para Jennie.

— Terá de resolver-se depressa — disse. — Não há tempo a perder.

Nesse momento, Standhurst não o sabia — mas na verdade só havia exactamente dois dias.

Duas manhãs depois, Standhurst voltou a cabeça ao ver Jennie entrar no quarto.

— Parece-me que hoje tenho de ficar todo o dia na cama, Jennie — disse, numa voz sumida.

Correndo as persianas, Jennie olhou-o à luz crua do dia que se derramava em cima da cama. Tinha o rosto branco como a cal e os ossos a furarem a pele davam-lhe um aspecto cadavérico. Semicerrou os olhos, como se a luz os tivesse ferido profunda­mente.

Jennie foi colocar-se à cabeceira da cama, examinando-o.

— Quer que chame o médico, Charlie?

— Que podia ele fazer? — disse Standhrrst, com o suor frio a marcar-lhe o rosto cavado, sulcando-o desde a fronte. Jennie pegou numa pequena toalha que estava em cima da mesa-de-cabe-ceira e enxugou-lhe o rosto. Depois, puxou para baixo o cobertor, descobrindo o pijama de modelo antigo que o velho usava. Rapidamente, retirou o saco urinário, sentindo os olhos dele a espiar-lhe os movimentos. Pegou no saco e foi à casa de banho.

— Mau, não? — perguntou o velho, com os olhos cravados na rapariga quando ela regressou.

— Sim.

— Eu sei — murmurou. — Examinei o saco antes de tu chegares. Estava preto como as cavernas do inferno.

Jennie colocou um braço por detrás dele e ajudou-o a erguer-se um pouco, enquanto colocava melhor o travesseiro. Deixou-o cair para trás delicadamente.

— Não sei bem. Houve manhãs em que já o vi pior.

— Não disfarces. — Fechou os olhos por instantes; depois voltou a abri-los. — Aposto que hoje é o grande dia — sus­surrou, com os olhos cravados na rapariga.              

— Vai sentir-se melhor depois de eu lhe trazer um pouco de sumo de laranja, verá.

— Para o diabo com o sumo de laranja! — bradou o velho, com uma fúria de impotente. — Dá-me mas é uma taça de champanhe.

Silenciosamente, Jennie pegou numa taça alta de champanhe. Encheu-a com cubos de gelo e deitou o champanhe. Colocando um pequeno tubo de vidro dentro da taça, entregou-lha.                                                      

— Ainda consigo beber o que me apetece — disse o velho.  

O teletipo começou a matraquear. Jennie foi ver o que era.

— Que é? — perguntou o velho.

— A notícia de um discurso que o Landon fez num jantar de Republicanos, a noite passada.

— Desliga o teletipo — disse o velho.

Entregou-lhe a taça de champanhe, que Jennie colocou em cima da mesa. O telefone tocou. Jennie levantou o auscultador.

— É o director com quem queria falar ontem — trans­mitiu ao velho.

— Diz-lhe que quero que venha cá o Dick Tracy.

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça, deu o recado e depois desligou. Voltou para junto do velho e viu-lhe o rosto de novo coberto de suor frio.

— O seu irmão Charles pediu-me que o chamasse quando eu achasse necessário — disse Jennie.

— Não chames — murmurou o velho por entre dentes. — Para que é que preciso dele? O filho da mãe há anos que está à espera que eu estoire. Quer apossar-se dos jornais. — Riu, com um cacarejo abafado, quase sinistro. — Aposto que o estupor vai pôr todos os jornais a dizerem bem do Roosevelt no dia se­guinte ao do meu funeral.

Um espasmo de dor abalou-o, fazendo-o quase saltar abruptamente da cama.

— Oh! Jesus! — murmurou, agarrando-se ao ventre.

Jennie correu a pôr os braços à volta dos ombros dele, apoiando-o contra o peito, enquanto que com a mão procurava a seringa para lhe dar a injecção de morfina.

— Não, ainda não, Jennie, peço-te — disse o velho.

Jennie fixou-o durante alguns segundos e depois voltou a colocar a seringa na mesa.

— Está bem — disse. — Quando quiser, diga-me.

O velho revolveu-se e Jennie voltou a limpar-lhe o suor da fronte. Em seguida, o velho fechou os olhos e ficou assim, sereno, durante alguns segundos. Mas logo os abriu, com uma expressão de terror que Jennie nunca vira.

— Parece-me que vou vomitar — disse o velho, tentando erguer-se e colocando a mão na boca.

Rapidamente, sem o abandonar, Jennie pegou na aparadeira que estava em cima da mesa c colocou-lha debaixo da boca. Standhurst tossiu, revolveu-se e acabou por vomitar uma aguadilha esverdeada. Jennie voltou a colocar a aparadeira em cima da mesa e limpou a boca e o queixo do velho, deixando-o recostar-se novamente no travesseiro.

Standhurst olhou-a, vendo-lhe os olhos marejados de lá­grimas. Tentou sorrir.

— Diabo! — murmurou, com uma voz rouca. — Isto sabe a merda!

Jennie não disse nada e o velho fechou os olhos pesadamente. Viu-o a tremer como varas verdes, com os espasmos da dor. Depois de alguns minutos daquele delirium-tremens, o velho falou, sem abrir os olhos.

— Sabes, Jennie — sussurrou. — Isto é duro!

Abriu os olhos e fixou-a. O terror já se desvanecera deles, substituído por uma calma profunda, total, absoluta. Sorriu, com dificuldade.

— Bem, Jennie — murmurou, olhando-a bem no fundo dos olhos. — Agora já podes injectar a morfina.

Os olhos da jovem continuaram presos aos dele, enquanto tacteava atrás, à procura dá seringa. Automaticamente, pro­curou a veia e enterrou a seringa. O velho sorriu.

— Obrigado, Jennie — murmurou.

Jennie inclinou-se e beijou a fronte húmida do velho.

— Adeus, Charlie — ciciou-lhe.

O velho estendeu-se mais para trás e fechou os olhos quando Jennie aplicou a segunda dose de morfina. Em poucos minu­tos, aplicou-lhe seis doses. Acabou por se sentar serena­mente à cabeceira, com os dedos premindo o pulso do velho, sentindo a pulsação a tornar-se cada vez mais fraca. Por fim, parou completamente. Jennie fixou-o durante alguns segundos; depois, desceu-lhe as pálpebras e ocultou-lhe o rosto com o cobertor. Feito isto, ergueu-se e pegou no auscultador.

O mordomo encontrou-a no corredor, quando ela se dirigia para o quarto. Trazia um sobrescrito na mão.

— Mr. Standhurst pediu-me que lhe entregasse isto, Miss Denton. Deu-mo antes de Miss Denton entrar de serviço esta manhã.

— Obrigada, Judson.

Jennie fechou a porta do quarto e rasgou o sobrescrito. Lá dentro estavam cinco mil dólares e um pequeno bilhete, es­crito com a caligrafia tremida do velho.

 

         Querida Jennie

Agora já deves ter compreendido a razão por que quis que estivesses sempre ao meu lado. Uma coisa que nunca compreendera foi a falsa piedade, tão exaltada por muitas pessoas, de prolongar a agonia quando a morte se aproxima inexoravelmente.

Dentro deste envelope vai a gratificação justa pêlos teus serviços. Podes aplicar esse dinheiro como muito bem entenderes — para te aguentares nos dias mais difíceis se quiseres continuar nessa vida geralmente sem compensação de cuidar dos outros; ou para, se tiveres a inteligência que eu acho que tens e fores a mulher madura que pareces, aplicares como capital de entrada na escola da Aida, que para ter mais categoria quero que passe a chamar-se Escola Standhurst, prosseguindo depois numa vida mais ambiciosa.

Com gratidão e afecto, sou o teu

     sinceramente,

  1. Standhurst

 

Levando ainda na mão o bilhete escrito por Standhurst, Jennie foi à sala de arrumos e pegou numa mala. Colocou-a na cama e começou a enchê-la de roupa.

Menos de uma hora depois, saltou de um táxi e precipitou-se para a igreja, colocando na cabeça o lenço que costumava usar à volta do pescoço. Ajoelhou-se à entrada e encaminhou-se pela nave até próximo do altar, postando-se diante da imagem da Virgem. Ajoelhou-se e juntou as mãos em oração, com a cabeça baixa. Ficou assim durante alguns minutos. Depois, voltou-se, pegou numa vela que trazia na carteira e, acen­dendo-a, foi colocá-la debaixo da imagem da Virgem, no meio de outras velas também acesas. Baixou novamente a cabeça, ajoelhada, em oração. Em seguida ergueu-se e encaminhou-se rapidamente para a saída, atravessando a nave da igreja. À porta, mergulhou os dedos na água benta. A seguir abriu a carteira e introduziu uma nota na caixa das esmolas.

Nessa noite, o padre daquela igreja teve uma agradável sur­presa. Na caixa das esmolas, entre moedas de prata e cobre, de­parou com uma nota nova de mil dólares.

O Rolls-Royce cinzento estava estacionado defronte da velha casa da Dalehurst Avenue, em Westwood, quando Jennie desceu de um táxi. Pagou ao motorista e encaminhou-se para a porta da rua, colocando a mala no chão ao tocar a campainha.

Em qualquer parte da casa soou o toque de um relógio de parede. Uns segundos depois, a porta abriu-se e surgiu uma criada, que disse para Jennie:

— Por aqui, se faz favor, Miss.

Aida estava sentada numa poltrona, tendo uma bandeja com chá e bolos na mesa diante dela.

— Pode ir arrumar a mala junto das outras, Mary — orde­nou à criada.

— Sim, minha senhora — disse a criada.

Jennie aproximou-se de Aida. Um jornal estava aberto em cima da poltrona junto dela. A grandes caracteres negros, ao cimo da primeira página, lia-se:

 

            STANDHURST MORREU!

 

Aida levantou-se e estendeu a mão para Jennie, convidando-a a sentar-se também na poltrona.

— Sente-se, minha querida — disse, ternamente. — Estava mesmo à sua espera. Temos muito tempo para tomar uma chá­vena de chá antes de irmos para o comboio.

— Para o comboio?

— Claro, minha querida — disse Aida. — Vamos para Chicago. É o único lugar dos Estados Unidos onde uma ra­pariga deve começar a sua carreira.

A Life publicou uma fotografia sensacional de Jennie dei­tada numa cama, dengosamente, coberta de sedas que lhe reve­lavam o corpo túmido. Apenas uma palavra se destacava a letras brancas e grandes, por baixo:

 

               DENTON

 

Isso aconteceu em Outubro de 1943, quando o filme A Pecadora estava para ser estreado em Nova Iorque.

Já passara um ano sobre isso. Agora, Jennie evocava a sur­presa que sentira, ao passear com Jonas ao seu lado vendo as revistas espalhadas em todas as montras de livrarias e quiosques, com a fotografia dela como um cartaz de publicidade.

— Olha! — exclamou, maravilhada.

Jonas sorriu para ela dessa maneira especial que Jennie descobriu significar prazer absoluto. Atirou uma moeda, pegando na revista. Entregou-lha ao subirem no elevador.

Jennie abriu a revista de par em par. O título do artigo que tinham escrito sobre ela era: Espiritualidade no sexo.

«Jonas Cord, um jovem rico que produz aeroplanos, explo­sivos, artigos de plástico e dinheiro (ver Life de Outubro ds 1939) e que, quando se sente inspirado, faz também, de vez em quando, um filme (O Renegado —1930, Diabos no Céu — 1932), acaba, de realizar uma versão extremamente pessoal, embora na tradição de De Mille, da história bíblica de Maria Madalena. Com a sua franqueza habitual, deu-lhe o título de A Pecadora.

Sem dúvida alguma, o factor mais importante que contribui para o êxito deste filme é a extraordinária actuação da jovem que Cord escolheu para o papel principal — Jennie Denton.

Jennie Denton, sem experiência anterior em filmes ou mesmo no teatro, tem sobre o espectador o efeito mais galvanizante que se pode imaginar. Com toda a maturidade sexual que as me­didas do seu corpo (32-21-36) sugerem, o espectador tem ao mesmo tempo consciência da qualidade profundamente espiri­tual que sempre emana da actriz. Isso deve-se talvez aos seus olhos, que são grandes e cinzentos e profundos, revelando o sofrimento e o amor e a morte muito para além da sua idade. De uma estranha maneira, Jennie Denton parece concentrar em si os paradoxais contrastes dos nossos tempos — o espírito agressivo da ansie­dade do homem actual pela satisfação física e o seu desejo de valores espirituais maiores do que ele próprio.»

A porta do elevador abriu-se e Jennie sentiu a mão de Jonas no braço dela. Fechou a revista e saíram ambos do elevador.

— Meu Deus! Eles pensarão mesmo isto que escrevem sobre mim? — disse Jennie.

Jonas sorriu.

— Parece-me que sim. Isso não é uma revista qualquer. Bem te disse que ias ser uma grande estrela — acrescentou Jonas, enquanto se dirigiam para o apartamento. Jennie ia partir imedia­tamente depois da estreia, para começar outro filme.

Ao entrar, Jennie viu o caderno com o novo argumento, em cima da mesa, defronte da poltrona. Jonas atravessou o apartamento e pegou no caderno, folheando-o com modos bruscos.

— Não gosto disto — disse.

— Também eu não gosto. Mas o Maurice diz que vai ser um êxito.

— Quero lá saber que ele diga isso. Não gosto, não quero que entres nesse filme. — Levantou o auscultador do telefone. — Dê-me Mr. Bonner, em Sherry-Netherland.

— Maurice? Daqui é o Jonas — disse, passados alguns mi­nutos. — Cancele o novo filme. Não quero que a Jennie entre nele.

Jennie ouviu os berros de protesto de Maurice.

— Não importa! — insistiu Jonas. — Arranja outra qual­quer para fazer esse papel... Quem?... Hayworth, Sheridan. Quem quiser. E de agora em diante, Jennie Denton não aceitará mais nenhuma proposta antes de eu aprovar o argumento.

Pousou o auscultador e virou-se para Jennie. Sorriu.

— Ouviste? — disse para a rapariga.  

Jennie sorriu-lhe também.            

— Está bem, patrão — disse,                

A fotografia na Life fora um sucesso instantâneo. Por todo o lado se impôs sendo até aproveitada para calendá­rios. Jennie estava em plena glória. Agora era já uma estrela com história.

Mas passara um ano. Nesse ano acontecera muita coisa, in­cluindo a catástrofe de Pearl Harbour, e Jennie nunca mais voltara a entrar noutro filme. Não porque já estivesse esque­cida. A Pecadora continuava a ser um êxito, exibindo-se ainda no grande Norman Theater de Nova Iorque, esgotando as lota­ções por toda a parte do mundo. Fora até o filme mais lucrativo que aquela produtora tinha lançado.

No entanto, tudo se tornara em rotina para Jennie. Entre as aparições publicitárias em público quando se realizava uma estreia à medida que o filme ia correndo o país, Jennie perma­necia na Costa. Todas as manhãs, ia ao estúdio. Aí, o seu dia a dia era preenchido fundamentalmente — lições dramáticas de manhã; almoço, geralmente com qualquer jornalista que ia entrevis­tá-la; lições de dança, de voz e de canto à tarde. Passava as noites quase sempre sozinha, excepto quando Jonas aparecia na cidade. Então, estava com ele toda a noite.

De vez em quando, jantava com David e Rosa Woolf. Jennie gostava de Rosa e do seu adorável bebé, que mal começara a andar e que tinha o interessante nome de Henri Bernard, pro­veniente da origem francesa do pai e do tio de David. Mas a maior parte do tempo, Jennie ficava em casa com a sua criada mexicana. Todos sabiam que ela era a rapariga de Jonas.

Só quando estava com Jonas, Jennie não sentia a solidão e o vazio que se tornavam dentro dela cada vez mais acabrunhantes. Começava a sentir-se impaciente. Já era tempo de começar a trabalhar a sério.

Lia argumentos sobre argumentos e várias vezes o mesmo avidamente; quando encontrava algum que lhe agradava, comunicava-o a Jonas. Ele lia-o mas passados dias telefonava-lhe a dizer que não o achava apropriado para ela. Havia sempre uma razão qualquer para desaprovar.

Certa vez, desesperada, perguntara-lhe por que razão ele a mantinha a ganhar quando ela não trabalhava nada. Durante alguns segundos, Jonas mantivera-se em silêncio. Quando falou, a sua voz soara fria e determinante:

— Tu não és uma actriz. És uma estrela. E as estrelas só podem brilhar em momentos privilegiados.

Alguns dias depois, Al Petrocelli, o agente de publicidade, foi ao camarote de Jennie no estúdio.

— Bob Hope está a dar um espectáculo para os rapazes em Camp Pendleton — disse ele. — Quer que tu vás lá.

Jennie voltou-se na poltrona em que estava sentada e pousou o caderno do argumento cinematográfico que lia nesse momento.

— Achas que posso fazer isso? — perguntou, olhando para Al Petrocelli.

Ambos sabiam aquilo a que Jennie se referia.

— O Bonner falou ao Cord. Concordaram em que essa apa­rição em público será boa para ti.

— Óptimo — disse Jennie, pondo-se de pé. — Será muito agradável para mim ter novamente alguma coisa que fazer.

E agora, após seis semanas de exaustivo ensaio de um pe­queno discurso introdutório e de uma canção, que fora cuida­dosamente escolhida para revelar a rouquidão sensual da voz dela em todos os seus fascínios, ali estava prestes a entrar em cena. Tremia.

Olhou de relance para a audiência através dos cortinados do palco. Um bramido de gargalhadas chegou até ela vindo de filas e filas de soldados amontoados diante do palco até perder de vista. Bob Hope estava a contar uma daquelas suas famosas histórias de guerra. Jennie retirou a cabeça de entre os cortinados, ainda a tremer.

— Nervosa, não? — perguntou Al Petrocelli. — Nunca tiveste de enfrentar um público com reacções imediatas. É natu­ral. Não te preocupes. Isso passa-te já.

Uma recordação súbita de Aida e da exibição que a obrigara a executar perante um pequeno mas seleccionado grupo de ri­caços em Nova Orleães, passou-lhe pela memória como um relâm­pago.

— Na verdade, já me exibi perante um público — disse Jennie para Al Petrocelli. Mas quando viu a expressão de espanto do agente de publicidade, acrescentou: — Foi no tempo em que estava no colégio.

Voltou-se, para observar novamente por entre os cortinados do palco. Viu Bob Hope. De certo modo, a evocação dos tempos de Aida fê-la sentir-se melhor.

Al voltou-se para o soldado que estava junto dele, também atrás do palco.

— Agora, sabe o que tem a fazer, não é verdade, sargento?

— Compreendi perfeitamente, Mr. Petrocelli.

— Óptimo — disse o agente. Olhou de relance para o palco. Bob Hope estava a acabar a sua actuação. Petrocelli vol­tou-se para o sargento, com uma nota de vinte dólares que sur­giu como que por magia na mão dele. — Jennie Denton entra em cena dentro de poucos minutos. Agora, vá, coloque-se junto do palco. E não se esqueça: fale num tom alto e claro.

— Sim, Mr. Petrocelli — disse o sargento, metendo a nota dos vinte dólares no bolso.

— Receberá outra nota depois de terminado o espectáculo, se tudo correr bem — prometeu ainda.

— Dando-me duas notas de vinte, Mr. Petrocelli — disse o sargento—, não tem que se preocupar. Hão-de ouvir a minha voz daqui até ao Alasca.

Petrocelli acenou afirmativamente com a cabeça e voltou a olhar de relance para o palco. Bob Hope estava exactamente nesse momento a começar a apresentação de Jennie.

— E agora, rapazes — disse Bob Hope ao microfone — a grande figura da noite, a grande... — Fez uma pausa por mo­mentos, erguendo as mãos para impor silêncio perante a revoada de aplausos ensurdecedores que encheu sala. — Eis a razão por que estamos aqui. Mesmo os oficiais. — Esperou que as risadas se desvanecessem. — Pois, rapazes — continuou —, quando disse ao Departamento de Guerra quem estava para vir aqui esta noite, disseram-me: «Oh, não, Mr. Hope. Não temos cintos de segurança suficientes para tanta gente...» Mas eu sosseguei-os. Disse-lhes que vocês sabiam dominar-se fosse em que situação fosse. — Novas risadas. Bop Hope voltou a erguer as mãos. Assim, rapazes, entrego-vos a...

O recinto mergulhou na semiobscuridade enquanto Jennie se aproximava mais do palco.

— Apertem os cintos, rapazes! — gritou Bob Hope. — Eis Jennie Denton!

E o palco mergulhou imediatamente na escuridão total, excepto quanto a um foco projectado sobre Jennie. Um rugido brotou da assistência quando Jennie, lentamente, surgiu no palco, com o andar dengoso que tinha ensaiado.

O ruído tornou-se delirante e Jennie sentiu o chão tre­mer ao parar diante do microfone. Ficou imóvel olhando a plateia, vendo o louro do cabelo cortado à escovinha dos soldados a reflectir. Todos assobiaram e gritaram e bateram com os pés.

Passados alguns minutos, durante os quais toda aquela bal­búrdia parecia nunca mais acabar, Jennie dobrou-se para o mi­crofone.

— Se me derem apenas um minuto para falar — disse, numa voz cava, deixando a capa de arminho que trazia escorregar mini dos ombros —, tiro a capa.

O ruído tornou-se se possível ainda mais ensurdecedor à medida que Jennie tirava a capa, com requintes de lubricidade. Deixou-a cair para o chão diante dela e ficou como uma estátua de carne, branca e túmida. Inclinou-se novamente para o micro­fone, deixando escorregar no ombro uma alça do vestido de noite decotado e justo. Mas logo a prendeu com os dedos, num gesto estudado.

— Confesso que estou embaraçada — disse para a assistência. — Nunca estive com tantos homens ao mesmo tempo.

Houve um vozear de entusiasmo.

— Não sei o que fazer — acrescentou, numa voz melosa.

— Não faças nada, queridinha — bradou uma voz estentórica, em baixo, junto do palco. — Vem para aqui!

De novo se estabeleceu uma confusão diabólica de ruídos, enquanto Jennie sorria languidamente e olhava de uma ma­neira fixa em direcção da voz. Esperou até o pandemónio abrandar.

— Há uma canção que gostaria de cantar para vocês — disse, por fim. — Querem?

— Sim! — foi a resposta que explodiu de cem gargantas ao mesmo tempo.

— Óptimo — disse Jennie, aproximando-se mais do micro­fone e prendendo novamente a alça do vestido que ia a cair. — Se quiserem imaginar que estão em casa, a ouvir a rádio, fe­chem os olhos...

— Fechar os olhos? — bradou novamente a voz estentórica. — Estamos no Exército, queridinha, mas não somos idiotas!

Jennie sorriu, intimidada perante as estrondosas gargalhadas que se seguiram a este dito, enquanto a música começou a fa­zer-se ouvir. Pouco a pouco, o foco de luz reduziu-se apenas ao seu rosto, à medida que a assistência se tomava silenciosa. A música era em fita gravada. Uma velha canção popular mas em ritmo de beguine, com o piano, os instrumentos de sopro e os violinos tocando a melodia, enquanto o ritmo era marcado surdamente pelos tambores e pelo contrabaixo.

Jennie colocou-se no extremo do palco, com os olhos semi-cerrados, o rosto erguido para o foco de luz leitosa, os lábios carnudos a vibrarem.

— Quero ser amada por ti...— cantava, com uma voz rouca.

— Por ti e por mais ninguém.

— Quero ser amada por ti... — repetia a assistência em coro.

Aquelas vozes sobrepunham-se à dela e por instantes Jennie ficou intimidada, mesmo assustada perante a sexualidade recal­cada que pressentiu nelas.

Maurice Bonner entrou no Hollywood Brown Derby, com o volumoso caderno azul do argumento cinematográfico debaixo do braço. O chefe dos porteiros inclinou-se para ele.

— Boa tarde, Mr. Bonner. Mr. Piercejá chegou.

Encaminharam-se para um compartimento reservado ao fundo do restaurante. Dan ergueu os olhos do Hollywood Reporter. Colocou o jornal junto da bebida, em cima da mesa.

— Olá, Maurice — saudou.

Bonner sentou-se defronte dele.

— Olá — disse. — Olhou para o jornal. — Já viste o artigo que escreveram sobre a nossa rapariga? — perguntou para o outro.

Dan acenou afirmativamente com a cabeça.

— E isso ainda não é tudo — acrescentou Bonner. — O Al Petrocelli disse-me que nunca tinha visto uma coisa daquelas. Não queriam deixá-la sair do palco, e depois quase a despiram quando ia a meter-se no automóvel. O Bob Hope chamou-me hoje logo de manhã e disse-me que a queria para actuar sempre que ela estivesse livre.

— Isso prova ainda mais que eu tenho razão — disse Pierce. — Acho que a Jennie é agora maior do que a Marlowe foi mesmo no pináculo da fama.

— Sabes que depois de A Pecadora ter sido estreada, o Cord rasgou o contrato antigo da Jennie e deu-lhe outro?

— Porquê?

— É simples — explicou Bonner. — Na manhã em que assinou o contrato, Jennie veio ao meu escritório. Pediu-me a caneta para assinar; depois olhou para mim e disse: «Agora não tenho de andar para aí a dar-me a ninguém! Nem mesmo a ti!» Pegou no contrato e saiu.

Pierce riu.

— Incrível! Mulher que algum dia é «coisa», nunca mais deixa de sê-io. Conseguiu uma boa isca.

— É verdade: Jonas Cord. Aposto que vai casar com ele.

— Isso é bem feito que aconteça a um filho da mãe desses! — disse Pierce, secamente. — O Cord ainda não sabe que ela foi prostituta?

— Não.

— Qual é a intenção dele?

— Fazer dinheiro. Só isso — disse Bonner. — Mas tu conhe­ces o Jonas. Ainda não é feliz.

— Porquê?

— Tentou alistar-se na Força Aérea mas não o aceitaram. É um tipo disperso.

Dan murmurou depois, num tom confidencial:

— Já leste o argumento?

Bonner pegou no caderno que estava no assento ao lado dele e colocou-o em cima da mesa.

— Já — respondeu.

— Bom, não é? — perguntou Pierce, com um entusiasmo crescente na voz.

— É óptimo — disse Dan, abanando com a cabeça pedantemente. — No entanto vai dar muito trabalho para ser trans­posto para o cinema.

— Que argumento não dá esse trabalho? — observou Pierce, sorrindo. Inclinou-se para a frente. — Agora, ouve o que quero dizer-te: este argumento necessita de um produtor poderoso como tu.

— Não iludamos a questão, Dan. Ambos sabemos que um argumento só é bom quando se consegue uma rapariga sensacional para interpretar o principal papel feminino. E ambos sabemos também quem é essa rapariga.

— Jennie Denton — disse Pierce imediatamente. — Também acho. Por isso é que quero falar contigo. Ela está ligada a ti por contratos de produção.

— Mas o Jonas é que tem a palavra final quanto a ela e aos filmes que pode interpretar. E já recusou alguns bons argumentos.

— Que quer ele, afinal? — bradou Pierce. — Fechá-la em casa e mantê-la só para ele? Não se pode fazer isso a uma estrela de cinema. Mais tarde ou mais cedo, ela fica esquecida.

Bonner encolheu os ombros.

— Conheces bem o Jonas. Nunca dá satisfações a nin­guém.

— Mas talvez goste deste argumento.

— Mesmo que goste — disse Bonner—, mal saiba que és tu o agente, vai tudo por água abaixo.

— E se a Jennie insistir, dizendo que quer fazer este filme dê para onde der?

Bonner voltou a encolher os ombros.

— Sabes tanto como eu — disse. — Mas não sou eu quem vai apresentar-lhe este argumento. Não quero meter-me em sarilhos.

Pierce olhou fixamente para Dan, apertando quase com fero­cidade os lábios carnudos.

— Acho que podemos fazer com que a Jennie esteja pelo nosso lado — disse. — Pensei em...

Bonner interrompeu-o.

— Não me digas nada. Se o teu plano der resultado, deixa que ele seja para mim uma surpresa agradável. Não quero saber nada dele.

Pierce olhou ainda fixamente para Dan durante alguns se­gundos e depois recostou-se no assento, pegando na ementa.

— Está bem, Maurice — disse Bonner, sorrindo. — Que queres comer?

A correspondência estava na pequena secretária da sala de estar quando Jennie voltou do estúdio. Jennie aproximou-se e sentou-se.

— Vamos jantar às oito e meia — disse. — Quero tomar banho e descansar um pouco antes.

— Si, señorita — disse Maria, a criada mexicana, afastando-se.

Jennie olhou para a correspondência. Havia dois sobrescritos, um deles de tipo comercial, volumoso, que Jennie, por experiên­cia, adivinhou conter o original de um argumento cinemato­gráfico. Abriu primeiro a carta. Em caracteres nítidos, ao alto, lia-se: Escola de Enfermagem St. Mary. Os olhos de Jennie per­correram avidamente a carta. A letra, muito cuidada, era da Irmã Christopher.

 

Querida Jennie

Aqui vai um pequeno bilhete para manifestar a admiração dos estudantes e da direcção da Escola de St. Mary pelo êxito do filme que interpretaste.

A Reverenda Madre e as Irmãs, incluindo eu, ficámos todas muito emocionadas pela poderosa expressão de fé e amor por Cristo que dás à tua interpretação. Essa interpretação foi tanto mais bri­lhante quanto é certo que estava sujeita a limitações publicitárias. De facto, pareceu-nos errado que os responsáveis pelo filme achassem necessário certas cenas que podiam muito bem ser omi­tidas, sem prejuízo da história de Madalena. Porém, no conjunto, ficámos extremamente contentes por nestes tempos de degradação espiritual haver uma manifestação tão nobre da Graça Redentora, demonstrando que o Amor de Nosso Senhor é ofertado a todos.

Tenho de acabar, pois dentro de poucos minutos serei neces­sária na Cirurgia. Desde que começou a guerra, todos nós na escola temos trabalho a duplicar. Mas com a Graça de Nosso Senhor, triunfaremos.

A Reverenda Madre dá-te a Sua mais graciosa bênção e rezará para que continues a ter êxito e felicidade na tua nova carreira.

       Sinceramente tua em J. C.

      Irmã M. Christopher

 

Uma visão do austero, vigilante rosto da freira atravessou como um clarão a mente de Jennie, ao mesmo tempo que uma certa nostalgia pelos anos que tinha passado na escola de enfer­magem. Parecia-lhe ter sido há muito, muito tempo. Era como se agora fosse uma pessoa completamente diferente da rapariga ner­vosa, de olhos espantadiços que aparecera no gabinete da Madre Superiora.

Evocou as serenas horas de estudo e os longos dias de treino no hospital. Havia ocasiões em que chorava, sentindo-se frustrada, pela impossibilidade de aprender tudo o que lhe era ensinado. Era nesses momentos que a máscara da austeridade desaparecia do rosto da irmã, que punha a mão no ombro da rapariga, numa atitude de encorajamento.

— Trabalha muito e reza muito, Jennie — dizia ela, ternamente—, e assim hás-de aprender tudo.

E dessa maneira ela se sentia confortada, com as forças renovadas, vendo os esforços inesgotáveis que a freira aplicava com todos, quer doentes quer estudantes. Fosse a que hora fosse do dia ou da noite, a Irmã Christopher estava sempre próxima, em serena vigilância.

Jennie tirou um cigarro do maço. Todos deviam estar a trabalhar exaustivamente, como a Irmã dizia na carta. A Irmã Christopher nunca se vangloriava dos seus esforços. Uma sensação de inutilidade apossou-se dela, ao pensar na vida relativamente fácil que levava. Olhou para as suas longas, magras mãos. Agora, fazia tão poucas coisas com elas! Parecia ter os dedos paralisados. Tinha de haver qualquer coisa que pudesse fazer pelas irmãs.

Havia. Levantou o auscultador do telefone mal a ideia lhe atravessou o cérebro e ligou rapidamente.

— Rosa? Aqui fala a Jennie.

— Como estás, Jennie? O David disse-me como tu quase destruíste o Exército dos Estados Unidos no espectáculo do Bob Hope.

Jennie riu.

— Os desgraçados há muito tempo que não sabiam o que era uma mulher.    

— Não digas isso. Os jornais afirmam que foste extraordinária.

— Foi o David que tos deu a ler?

— Claro que sim.

— Como está o vosso pequerrucho, o Bernie?

— Óptimo. Mas porque não vens cá jantar um destes dias? Há muito tempo que não nos vemos.

— Irei. Em breve.

— Queres falar ao David?

— Se estiver aí.                    

— Então adeus. E espero que o jantar seja para breve. Aqui tens o David.

— Como vai isso? — perguntou David.

— Excelente. Desculpa incomodar-te, David, mas tenho um pequeno problema a resolver sobre o qual suponho que possas aconselhar-me.

A voz do homem tornou-se solene.

— Desabafa — disse.

Jennie aclarou a voz.

— Frequentei a Escola de Enfermagem de St. Mary, e ten­cionava agora arranjar processo de tirar uma parte do meu ordenado, semanalmente, para lá. Seria uma espécie de recom­pensa por tudo aquilo que fizeram por mim.

— É fácil — disse David, a rir, com uma espécie de alívio na voz. — Basta mandar-me amanhã de manhã um bilhete a dizer quanto queres que mande, e nós faremos o resto. Mais al­guma coisa?

— Não, é tudo.

— Óptimo. Então, vem cá jantar qualquer dia, destes, como disse a Rosa.

— Vou, vou, David. Adeus.

Jennie pousou o auscultador e voltou a olhar para a carta. Começava a sentir-se melhor. Já que não podia estar lá para ajudar, pelo menos o seu dinheiro faria alguma coisa de bom. Afastou a carta e pegou no envelope comercial, abrindo-o. Acertara. Era um argumento, volumoso.

Leu o título: Afrodite — argumento baseado numa novela de Pierre Louys. Abriu o manuscrito na primeira página e um bilhete saltou do meio. Era breve e directo.

 

         Cara Miss Denton

Há muito tempo que não faz um filme. Pensei portanto que, graças ao seu bom senso, estava à espera de um argumento apropriado com que pudesse criar um sucesso semelhante ao de A Pecadora.

Afrodite, creio eu, é esse argumento. É o único que me parece corresponder aos seus dotes excepcionais de actriz cinematográfica. Estou muito interessado em saber qual é a sua opinião.

             Sinceramente,

             Dan Pierce

 

Aquele Dan Pierce era influente. Saberia como apresentar o caso ao estúdio.

Jennie pegou no manuscrito e encaminhou-se para o seu quarto, subindo as escadas. Ia lê-lo na cama, depois do jantar.

 

         Caro Mr. Pierce

Obrigada por me ter enviado o argumento de Afrodite, que devolvo. Acho-o muito interessante. No entanto, não sinto especial atracção por ele.                        

       Jennie Denton

 

Jennie ainda pensou se estava certo devolver o manuscrito assim, com palavras tão secas. Ficara impressionada em vários sentidos por aquela história. À noite, na cama, lendo-o pela pri­meira vez, sentira-se fascinada. Havia de facto uma fascinação na­quela história que fez recordar a Jennie a descrição de Standhurst sobre a vida da cortesã. O argumento captava a ideia sensual e de poesia da obra de origem, e no entanto tornava isso tudo cinema puro. Porém, quanto mais Jennie o leu menos entusiás­tica se sentiu.

Não havia uma única frase ou cena que pudesse dizer-se sujeita a objecções. Aparentemente. Por baixo dessa aparência, havia uma consciência aguda da excitação erótica que iria ser desencadeada na assistência, através do subconsciente. Jennie acabou por concluir que a única intenção do autor era essa exci­tação.

Adormeceu, estranhamente perturbada, e acordou ainda per­turbada. No estúdio, na manhã seguinte, pediu à biblioteca um exemplar da novela original e passou todo esse dia e parte do seguinte a lê-la. Depois, voltou a ler o argumento. Foi então que verificou como a beleza e a essência da história tinham sido deso­nestamente alteradas.

No entanto, pensou, não havia dúvida de que dali podia fazer-se um filme de êxito assegurado. E havia ainda menos dú­vidas de que a actriz que interpretasse Afrodite se tornaria a mais discutida e importante actriz dessa estação. A Afrodite do argu­mento era, decerto, a mulher que representava todas as coisas para todos os homens. Isso, porém, não bastava.

Jennie colocou o envelope na mesa e premiu o botão para vir um criado, exactamente no instante em que o telefone tocou. Jennie levantou o auscultador. Só quando ouviu a voz de Jonas sentiu como necessitava dele.

— Jonas! Onde estás?

— Estou em Burbank. Quero ver-te,

— Oh, Jonas! Eu também quero ver-te. Parece que o tempo nunca mais passa quando não te vejo.

— Queres vir aqui almoçar?

— Bem sabes que sim.

— À uma hora?            

— Sim — disse Jennie, pousando o auscultador,

— Podes retirar-te — disse Jonas. — Nós cá nos arran­jamos.

— Sim, Mr. Cord — disse o carregador. Olhou para Jennie e depois novamente para Jonas. — Poderia — começou a dizer, hesitantemente—, poderia pedir um autógrafo a Miss Jennie?

Jonas riu.

— Diz-lhe.

O carregador olhou interrogativamente para Jennie. A rapariga sorriu e anuiu com a cabeça. O carregador pegou numa caneta e num papel do bolso e Jennie assinou.

— Obrigado, Miss Denton.

Jennie riu quando a porta se fechou atrás do carregador.

— Assinar o meu autógrafo faz-me sentir uma rainha — comentou. Olhou à volta. — Isto é bonito.

— Não é meu — disse Jonas, deitando café em duas chávenas. — É do Forrester. Só o posso utilizar enquanto ele está para fora.

— E onde é o teu gabinete? — perguntou Jennie.

— Não tenho nenhum, excepto aquele do meu pai, na velha propriedade de Nevada. Nunca estou em nenhum sítio tempo suficiente para precisar de algum.

Jonas puxou uma cadeira, colocando-a junto de Jennie, e sentou-se. Bebeu o café e olhou para ela serenamente.

Jennie sentiu um rubor de embaraço a colorir-lhe as faces.

— Estou com boa aparência? Estará a maquilhagem esborratada ou qualquer coisa no género? — perguntou.

Jonas abanou a cabeça negativamente e sorriu.

— Não — disse. — Estás óptima.

Jennie levou a chávena de café aos lábios e um silêncio incomodativo caiu sobre eles.

— Que tens feito? — perguntou Jennie, por fim.

— Pensando, sobretudo, acerca de nós — respondeu Jonas, olhando sempre para Jennie. — Tu. Eu. A primeira vez que me afastei de ti foi também a primeira vez em que me senti sozinho. Nada me parecia bem. Não quis ver outras raparigas. Só a ti queria ver.

O coração de Jennie parecia inchar-lhe no peito. Sentiu que se tentasse mover-se cairia desmaiada no chão. Jonas meteu a mão no bolso e aproximou-se mais de Jennie, com uma pequena caixa, que lhe entregou. Jennie fitou a caixa, em silêncio, As pequenas letras doiradas saltaram-lhe logo à vista: Van Cleef & Arpels.

Os seus dedos tremeram ao abrir a caixa. Um belo diamante cortado em forma de coração brotou subitamente do interior da caixa em todo o seu brilho esplendoroso.

— Quero casar contigo — disse Jonas, com ternura.

Jennie sentiu as lágrimas quentes de gratidão prestes a saltarem-lhe dos olhos quando olhou para Jonas. Os lábios tre­miam-lhe. Não conseguiu falar.

Esse pedido de casamento foi o tema e a história da coluna de crónica jornalística escrita por Louella no dia seguinte. O te­lefone tocou toda a manhã. Por fim, Jennie acabou por pedir à criada que atendesse todas a chamadas.

A voz do operador tinha um tom de respeito que era novo aos ouvidos de Jennie.

— Miss Denton — disse ele. — Todas as raparigas do quadro de distribuição desejam-lhe as maiores felicidades.

Jennie sentiu um calor invadi-la.

— Obrigada — agradeceu.

Depois, à tarde, foi a vez de Rosa telefonar.

— Sinto-me muito feliz por vocês os dois — disse.

— Estou confusa — balbuciou Jennie, rindo e olhando para o diamante que lhe brilhava no dedo.

— Lembras-te daquele convite para jantares connosco?

— Lembro.

— David e eu estávamos a pensar em transformá-lo numa festa de pedido de casamento. No Romanoff, com toda a gala.

— Não sei. O melhor é dizer ao Jonas.

— Está bem. Olha, o Bernie está a berrar, a pedir de comer. Telefono-te logo à noite, para combinarmos tudo em definitivo.

— Obrigada, Rosa. Adeus.

Havia um carro estranho estacionado à porta quando Jennie chegou a casa nessa noite, ida do estúdio. Entrou pelas traseiras. Se fosse outro repórter, não o veria.

A criada mexicana estava na cozinha.

— O señor Pierce está na sala de espera, señorita — disse.

Que diabo quereria ele? — magicou Jennie. Talvez ainda não tivesse recebido o manuscrito do argumento devolvido, e vinha procurar uma resposta.

Pierce estava sentado numa poltrona funda, com um exemplar do manuscrito sobre os joelhos. Pôs-se de pé e cumprimentou.

— Miss Denton.

— Mr. Pierce. Recebeu o manuscrito? Já o mandei há alguns dias.

Dan Pierce sorriu.

— Recebi-o. Mas pensei que talvez pudéssemos discutir o caso melhor. Espero fazê-la mudar de ideias.

Jennie abanou negativamente a cabeça.

— Não me parece — afirmou.

— Antes de falarmos no caso, permita-me que lhe dê os parabéns pelo seu casamento.

— Obrigada. Agora, peco-lhe desculpa mas retiro-me. Tenho um encontro.

— Roubar-lhe-ei poucos minutos — disse Dan Pierce. Incli­nou-se e pegou numa maleta colocada no chão atrás da pol­trona.

— Mas na realidade, Mr. Pierce... — disse Jennie.

— Só uns minutos — replicou ele. Havia uma segurança especial na sua voz. Era como se soubesse antecipadamente que Jennie não ousaria recusar-se a atendê-lo. Premiu um botão e a parte superior da maleta abriu-se em leque. — Sabe o que é isto, Miss Denton? — perguntou.

Jennie não respondeu. Começava a ficar furiosa. Se aquilo era tudo uma brincadeira, não poderia suportá-la.

— É um projector de oito milímetros — explicou Dan Pierce. — A espécie de projectores usada normalmente para filmes projectados em casa.

— Muito curioso. Mas não consigo perceber o que tem isso a ver comigo.

— Vai ver — prometeu Dan Pierce, fixando-a. Tinha um olhar gélido. Voltou-se procurando uma tomada de corrente. Encontrou uma na parede por detrás da poltrona e ligou.

— Parece-me que esta parede branca servirá muito bem de écran, não acha? — Voltou o projector para ela e fechou a luz da sala. — Tomei a liberdade de arranjar um filme real para lhe mostrar.

O zunido da máquina de projectar começou a fazer-se ouvir e Jennie voltou-se, observando as imagens. A cena mos­trava duas raparigas nuas deitadas num canapé, com os braços entrelaçados e os rostos ocultos. Um sinal de alarme ecoou na mente de Jennie. Havia naquela cena qualquer coisa que lhe era familiar.

— Arranjei este filme através de um amigo meu de Nova Orleães — dizia a voz de Dan Pierce num tom monocórdico, enquanto que um homem entrava em cena. O homem também estava nu e uma das raparigas voltou-se para ele, enfrentando a câmara.

Inconscientemente, Jennie lançou um grito de agonia. A rapariga que se voltara de frente para a câmara de filmar era ela própria. Depois, Jennie lembrou-se. Fora o período de Nova Orleães. Voltou-se, para olhar fixamente Dan Pierce, com o rosto branco como a cal.

— Já nesse tempo você era fotogénica — observou o homem. — Devia ter-se assegurado de que não havia ali câmara de filmar.

— E não havia — murmurou Jennie, a arfar. — A Aida nunca o consentiria. — Fixava Dan Pierce em silêncio, com a boca e a garganta subitamente secas.

Dan Pierce abriu a luz da sala e desligou a máquina de projectar.

— Já vejo que não está muito interessada em filmes casei­ros... — disse.

— Que quer? — perguntou Jennie.              

— Quero-a a si. — Começou a fechar a máquina. — Mas não, é claro, na acepção vulgar — acrescentou imediatamente.

— Quero-a para interpretar o papel de Afrodite.

— E se eu recusar?

— Você é venerada, é uma estrela, está noiva. Pode deixar de ser tudo isto se este filme cair em más mãos. Juntamente com uma relação das suas actividades profissionais. — Os olhos gélidos fulminavam Jennie. — Nenhum homem, incluindo um homem tão louco como Jonas Cord, quer casar com a prosti­tuta da cidade.

— Estou contratada por Norman. O meu contrato não permite fazer filmes para outros produtores.

— Bem sei — disse Pierce calmamente. — Mas tenho a certeza de que o Jonas Cord autorizaria a compra deste argumento se você lhe pedisse isso. O Bonner faria o filme.

— E se ele não quiser? O Jonas tem ideias muito pessoais sobre filmes.                                    

Um vago sorriso aflorou aos lábios de Dan Pierce.

— Então, faça-o mudar de ideias — disse.

— E se eu conseguir? — perguntou, recuperando o sangue-frio.

— Nesse caso, entrego-lhe este filme, é claro — respondeu Dan Pierce.

— O negativo também?

O homem abanou com a cabeça afirmativamente.

— Como posso ter a certeza de não ser enganada?

— Vejo que está a compreender-me. Paguei quinhentos dólares por este filme. Não o teria feito sem a certeza de que não há outras cópias.

Preparou-se para sair.

— Deixo o manuscrito do argumento consigo.

Jennie não respondeu.                  

Dan Pierce voltou-se, com a mão na porta, e olhou para trás:

— Prometi-lhe que só lhe roubaria alguns minutos. Por isso me vou embora.

Dan Pierce pôs-se de pé, remexendo a sua chávena com uma pequena colher. Fitava a mesa, com um olhar de coruja. Estava bêbado, alegremente bêbado.

Abanou a cabeça quando todos olharam para ele.

— Dan Pierce nunca se esquece dos amigos verdadeiros. Dan Pierce faz tudo pela justiça. Dei ao par de noivos um presente muito interessante. — Voltou-se dando um estalido com os dedos.

— Sim, Mr. Pierce — disse imediatamente o maître d'hotel. Fez um gesto e entrou um criado com dois embrulhos, colo­cando o da caixa doirada defronte de Jonas e o mais pequeno, de papel cor de prata, defronte de Jennie.

— Obrigado, Dan — disse Jonas.

— Abra-a, Jonas — pediu Dan Pierce, com a voz empastada. — Gostava que todos vissem os presentes.

Jennie teve um estranho pressentimento.

—Abrimo-los mais tarde, Dan.

— Não — insistiu ele. — Agora.

Jennie olhava à volta da mesa. Estavam todos a espiar. Olhou para Jonas. O noivo encolheu os ombros e sorriu-lhe. Jennie começou a abrir o embrulho com a prenda para ela. Jonas secundou-a.

— Eh! — disse Jonas, a rir, erguendo a prenda para todos verem. — É uma garrafa-gigante de champanhe!

O presente de Jennie estava dentro de pequeno mas perfeitamente acabado estojo de mogno. Jennie abriu e olhou, sentindo-se empalidecer. Jonas pegou no estojo e ergueu-o no ar, para toda a gente ver.

— Imaginem! É um estojo inglês de lâminas para a barba — disse, fazendo uma careta para Dan. — O criado deve ter misturado as caixas. Obrigado, mais uma vez, Dan.

Pierce sentou-se abruptamente. Sorria.

Jennie sentia que toda a gente a observava. Ergueu a cabeça e olhou à volta. Era como se soubesse o que todos pen­savam. Dos doze casais sentados à volta da ampla mesa, Jennie conhecera cinco dos homens, antes de entrar para o cinema. Só em dois desses homens Jennie podia encontrar alguma sim­patia: David e Nevada Smith.

Jennie compreendia a razão por que David sentia pena dela nesse momento. Mas não compreendia Nevada. Mal a conhe­cera. Sempre parecera tão fechado, mesmo tímido! Mas agora havia uma espécie de fúria selvagem no fundo dos seus olhos negros de índio, ao olhar fixamente para Dan Pierce.

Sentiu que alguém lhe tocava no ombro. A voz de Rosa quebrou o silêncio que parecia querer tragar Jennie.

— Vamos ao quarto do pequeno Bernie, ver como ele está — disse Rosa.

Jennie acenou afirmativamente com a cabeça e seguiu-a, levantando-se da mesa silenciosamente. Sentiu os olhos dos outros colados a ela, a seguirem-na sempre e sempre.

Mal chegaram ao quarto de Rosa, Jennie desfez-se em lágri­mas, apoiando a cabeça no ombro da amiga.

Dan Pierce cochichava para si próprio, enquanto tentava andar pelo parque de estacionamento até chegar ao seu carro.

Jonas havia de ficar destruido! — murmurava raivosamente. Bastaria que a história se espalhasse.

Uma silhueta negra brotou de repente das sombras, defronte de Dan Pierce, que piscou os olhos, tentando ver quem era que sorrateiramente se aproximava dele mais e mais.

— Oh, é você, Nevada — disse, reconhecendo, por fim, a silhueta. — Não sabia quem era.

Nevada foi postar-se diante dele, silencioso.

Dan soltou de repente uma gargalhada sarcástica.

— Aquilo é que ela era uma bicha, hem? — disse para Nevada. — Pensei que ia estourar quando abriu o estojo com lâminas para a barba!

De súbito, Nevada ergueu o punho e atirou-lhe um soco para a barriga como uma pancada de martelo. Uma vez e outra e outra. Dan dobrou-se todo, vomitou. Ficou prostrado no chão, a olhar para Nevada com uma expressão de terror.

Só então Nevada falou, num tom acutilante.

— Há muito que devia ter feito isto. Devia matá-lo. Mas você nem sequer é digno da câmara de gás.

Voltou-lhe as costas, numa atitude de desprezo total, e afastou-se na noite.

 

Jonas seguiu atrás de Jennie, entrando na casa, que estava às escuras.

— Estás cansada — observou, ternamente, olhando para o rosto pálido de Jennie. — Foi uma noite exaustiva. Vai já para a cama.

— Não — disse Jennie, peremptoriamente.

Sabia bem o que tinha a fazer. Voltou-se e encaminhou-se para a sala de estar, abrindo a luz. Jonas seguiu-a, perplexo.

De súbito, Jennie tirou o anel do dedo e entregou-lho. Jonas olhou para o anel e depois para ela, imóvel.

— Porquê? Porque fazes isso? Fiz alguma coisa de mal esta noite? — perguntou ele por fim.

Jennie abanou negativamente a cabeça.

— Não. Não tem nada a ver contigo. Mas peço-te que fiques com o anel.

— Tenho o direito de saber porquê, Jennie.

— Não te amo — disse ela. — Isso não basta?

— Não, agora já não basta essa razão.

— Então, tenho uma razão melhor — disse, decidida. Antes de vir para o cinema, fui a prostituta mais bem paga de Hollywood.

Jonas fixou-a como que paralisado durante alguns segundos.

— Não acredito — disse, por fim, num murmúrio. — Não, não podes ter-me enganado dessa maneira.

— És um tolo! — exclamou, violentamente. — Se não acre­ditas em mim, pergunta ao Bonner ou a qualquer outro dos homens que estavam sentados hoje à nossa mesa.

— Não, ainda não acredito, não posso acreditar — insis­tiu Jonas, numa voz sumida.

Começou a sentir-se enjoado.

— E porque supões que te pedi para entrar no Afrodite? Não por pensar que era um bom filme. Apenas para calar a boca ao Pierce.

Jonas aproximou-se mais dela.

— Agora, está tudo acabado. Não importa. O que lá vai, lá vai.

— Não importa? Vais ver como acabas por te importar.

— Mas eu amo-te, Jennie.

— Não te iludas. Tu não me amas. Nunca me amaste, Estás apaixonado pela recordação. A recordação de uma rapa­riga que preferiu o teu pai a ti. Queres fazer-me à imagem dela. Mesmo na cama — com todas essas coisas que queres que eu faça.

Jennie tinha ainda o anel na mão. Pousou-o em cima da mesa, defronte de Jonas.

— Aqui tens — disse.

Jonas fixou o anel. Depois olhou para Jennie.

— Fica com ele — murmurou; voltou as costas e saiu.

Jennie estava estendida na cama, olhando para o escuro. Se ao menos pudesse chorar, sentir-se-ia melhor. Mas estava vazia, roída pelos seus pecados. Não tinha nada para dar a ninguém. Esgotara-se.

Se pudesse voltar atrás e recomeçar!... Voltar aos tempos de infância, a esses domingos com a casa a cheirar a bife e a sopa de couves. Voltar ao som delicado do murmúrio dos lábios na missa da manhã. Voltar ao júbilo interior de fazer parte da obra de Deus.

De súbito, fez-se luz na sua mente. Lembrou-se do pai. Já não sentia medo.

— Sim, papá — murmurou.

A terna voz dele ecoou na sua memória: — Então, ves­te-te, Jennie, e eu vou contigo à missa.

Só cerca de dois anos depois dessa festa é que Rosa ouviu falar novamente de Jennie. Tinham passado quase seis meses desde que recebera a notícia do Departamento de Guerra infor­mando que David fora morto em Anzio, em Maio de 1944.

Agora, vivia apenas o quotidiano de criação de um novo futuro: o do filho.

Tudo aconteceu nesse dia em que recebeu uma carta de Jennie. Era endereçada a ela, numa letra que não reconheceu. Reparou no impresso: tinha uma cruz e por baixo estas pala­vras: Irmãs da Misericórdia — Burlingame, Califórnia. A carta dizia:

 

       10 de Outubro de 1944

       Querida Rosa

É com muita comoção que te escrevo. Não falo de ninguém do passado, mas só há dias soube a perda irreparável que tinhas sofrido. Quis assim dizer-te que rezei por ti e pelo Bernie.

O David era um homem recto, um ser humano cheio de sen­sibilidade. Cito-o nas minhas orações todos os dias e sinto-me con­fortada pelas palavras do Nosso Senhor e Salvador: “Sou a res­surreição e a vida; aquele que acredita em mim, mesmo quando morrer, viverá; e viva onde viver, desde que acredite em mim, nunca morrerá.”

     Sinceramente tua em J. C.

     Irmã M. Thomas

 

Na semana seguinte, Rosa foi visitar Jennie a Burlingame.

Ainda hesitara. Talvez Jennie nunca mais quisesse ver ninguém ligado ao seu passado. Mas não. Jennie transcendera o passado, transcendera tudo.

Rosa levantou-se da cadeira quando a Irmã Thomas entrou na sala de visitas.

— Jennie! — disse, hesitando. — Quero dizer, Irmã Thomas.

— Rosa! Que alegria sinto em voltar a ver-te!

Rosa examinou-a. Os grandes olhos cinzentos e o rosto deslumbrante continuavam a ser de Jennie, mas a serenidade plena que havia naquela voz era já da Irmã Thomas.

— Jennie! — exclamou Rosa, novamente. — Sinto-me tão feliz que me apetece abraçar-te!

A Irmã Thomas abriu os braços, correspondendo com toda a efusão ao entusiasmo de Rosa.

Mais tarde, caminhando ao longo dos campos, ao crepúsculo e chegando ao cimo de uma colina, pararam, contemplando o vale verde que se lhes estendia aos pés.

— A beleza de Deus está em todo o lado — disse a Irmã Thomas, ternamente, voltando-se para a amiga. — Encontrei o meu lugar na casa d'Ele.

Rosa fitou-a.

— Quanto tempo tens de estar no noviciado? — perguntou.

— Dois anos. Até ao próximo Maio.

— E depois, que vais fazer?

— Se Deus assim quiser, se eu provar que mereço a Sua graça, tomo o véu negro e prossigo na estrada da religião, para levar a misericórdia de Deus a todos que precisem dela.

Olhou bem fundo para os olhos de Rosa, que voltou a descobrir uma serenidade plena dentro dela.

— Sinto-me agora mais feliz do que nunca—acrescentou a Irmã Thomas, humildemente. — Já me treinara para esta vida. Os meus anos de hospital ajudar-me-ão, seja para onde for que me mandem. E assim servirei sempre bem a Deus e aos meus semelhantes.

 

               JONAS-1945

Lá fora, o rubro sol de meados de Julho abatia-se sobre o Nevada. Mas, no gabinete do general, o esforçado condicionador de ar sibilava e mantinha a temperatura a um nível inferior a dezoito graus. Olhei para Morrissey, a seguir para o general no outro lado da mesa e para o seu estado-maior.

— Eis a história, senhores — disse eu. — O CA-JET-XP tem obrigação de conseguir seiscentos mais facilmente que os cinco ou seis pontos e meio de que eles se gabam ter feito com o British De Haviland. — Sorri-lhes e levantei-me. — E agora, senhores, se quiserem sair, mostrar-lhes-ei que é verdade.

— Não duvido disso, Mr. Cord — disse o general polidamente. — Se tivesse havido qualquer dúvida, o senhor nunca teria conseguido o contrato.

— Então por que esperamos? Vamos.

— Só um momento, Mr. Cord — disse o general, vivamente. — Não podemos permitir-lhe que faça a demonstração do jacto.

Olhei-o fixamente.

— Porque não?

— O senhor não foi considerado em condições de pilotar jactos — disse ele. Olhou para uma folha de papel sobre a mesa. — A sua informação médica indica um ligeiro atraso nos reflexos. Perfeitamente normal, claro, considerando a sua idade, mas decerto compreenderá porque não o deixamos voar.

— Isso é uma boa história, general. Quem demónio pensa o senhor que o pilotou até aqui para lho entregar?

— Tinha todo o direito de o fazer — replicou o general. — O avião era seu. Mas desde o momento que ele tocou o campo ali fora, de acordo com o contrato, tornou-se propriedade do Exército. E nós não podemos permitir-nos o risco de o autorizar a levá-lo.

Bati com o punho na mão, furioso. Regulamentos, só regulamentos. A grande dificuldade destes danados contratos. Ontem, podia tê-lo levado para o Alasca e voltar que não me teriam podido impedir. Nem mesmo agarrar-me. O CA-JET XP era duas centenas e tal de milhas por hora mais rápido do que qualquer dos tipos usuais que o Exército trazia no ar. Qualquer dia terei de arranjar tempo para ler aqueles con­tratos.

O general sorriu e ladeando a mesa caminhou para mim.

— Sei bem como se sente, Mr. Cord — disse. — Quando os médicos me disseram que estava demasiado velho para combates aéreos e me puseram atrás de uma secretária, não era mais velho do que o senhor agora. Ninguém gosta que se lhe diga que está a envelhecer.

Que diabo estava ele para ali a dizer? Eu tinha apenas qua­renta e um anos. Isto não é ser velho. Podia ainda cabriolar à volta da maior parte daqueles macambúzios e orelhudos rapa­zinhos que passeavam lá fora com faixas de oiro e prata e folhas de louro nos ombros. Olhei para o general.

Deve ter lido a surpresa nos meus olhos, porque sorriu de novo.

— Foi apenas há um ano. Tenho agora quarenta e três. Ofereceu-me um cigarro. Peguei nele em silêncio. — O tenente-coronel Shaw pilotá-lo-á. Está na pista à nossa espera.

De novo, leu a surpresa nos meus olhos.

— Não se preocupe, tranquilizou-me. — Shaw está completamente familiarizado com o avião. Passou as últimas três semanas nas suas oficinas em Burbank a verificá-lo.

Olhei de relance para Morrissey, mas ele observava com atenção qualquer coisa, nesse momento. Estava metido na coisa, também. Havia de o fazer suar por aquilo. Voltei-me para o general.

— O. K., general. Vamos ver esse bebé voar.

Bebé era a palavra correcta e não apenas para o avião. O tenente-coronel Shaw não teria mais que vinte anos. Observei-o a descolar, mas não podia continuar ali a acompanhá-lo no voo, de coração apertado e olhos fixos no céu a pestanejarem. Sentia-me como alguém que, ao ir para um encontro com uma virgem, de cabeça perdida e disposto a enfrentar uma mão-cheia de sarilhos, desse com ela nos braços de outro, no próprio quarto e quando tudo parecia bem encaminhado.

— Há por aqui onde se possa beber um café?

— Lá em baixo há uma cantina, próximo do portão principal — respondeu um dos soldados.

— Muito obrigado.

— Seja bem-vindo — disse ele automaticamente, sem despegar os olhos do avião no céu enquanto me afastava.

A cantina não tinha ar condicionado, mas mantinham-na na penumbra e não se estava mal de todo, ainda que os cubos de gelo no café gelado se tivessem derretido antes de chegar com o copo ao meu lugar.

Fixava os olhos tristemente na janela em frente da minha mesa. Demasiado jovem ou demasiado velho. Esta era a história da minha vida. Tinha catorze anos quando a última guerra acabara, em 1918, e quase a idade limite quando entrámos nesta. Algumas pessoas nascem com uma má estrela. Pensei sempre que esta guerra viera para as duas gerações, mas eu não era nem de uma nem de outra. Tive a má fortuna de ter nascido no meio.

Um camião do Exército, de tamanho médio, estacou em frente da cantina. Começaram a juntar-se homens e eu olhei-os, pois nada mais havia para ver. Não eram soldados. Nem civis. E não eram jovens, também. Muitos deles traziam as jaquetas no braço e, um pequeno número, na mão livre. Havia alguns já grisalhos e muitos completamente calvos. Algo neles me prendeu a atenção. Nenhum sorria. Nem mesmo quando falavam uns com os outros em pequenos grupos, logo formados no passeio em frente do camião.

Porque deviam sorrir?, perguntei a mim próprio com amar­gura. Não tinham de que sorrir. Eram todos uns pobres diabos como eu. Tirei um cigarro e acendi um fósforo. A aragem do ventilador apagou-o. Acendi outro, virando as costas ao ventilador e protegi o cigarro com as mãos em concha.

— Herr Cord! Não pode deixar de ser uma surpresa! Que está aqui a fazer?

Olhei para Herr Strassmer.

— Acabo de entregar um novo avião — disse eu, esten­dendo a mão. — Mas que está aqui a fazer? Imaginava-o em Nova Iorque.

— Apertou-me a mão na sua peculiar maneira europeia. O sorriso abandonou-lhe os olhos.

— Nós também fizemos uma entrega. E agora regressamos.

— Estava com esse grupo lá fora?

Acenou afirmativamente com a cabeça. Olhou-os pela janela e um ar preocupado apareceu--lhe nos olhos.

— Sim — disse ele, lentamente. — Viemos todos no mesmo avião, mas regressamos em aviões diferentes. Trabalhámos três anos juntos, e agora acabou-se o trabalho. Em breve voltarei para a Califórnia.

— Espero que sim — ri eu. — Certamente podemos utili­zá-lo na fábrica, e talvez por algum tempo, ainda. A guerra na Europa pode estar no fim, mas se Tarawa e Okinawa são uma indicação, temos ainda para, pelo menos, seis meses a um ano antes que o Japão se renda.

Não respondeu.

Olhei-o e, de súbito, lembrei-me. Estes europeus são muito susceptíveis.

— Desculpe-me, Herr Strassmer — disse rapidamente. — Não quer acompanhar-me num café?

— Não tenho tempo. — Havia uma curiosa hesitação nos seus olhos. — Há por aqui uma retrete, como em todos os locais semelhantes?

— Sim — respondi, olhando-o. Eu tinha passado pela porta com a indicação «HOMENS». — É nas traseiras da casa.

— Voltarei aqui dentro de cinco minutos — disse ele e saiu apressadamente.

Pela janela vi-o juntar-se a um dos grupos e começar a falar com os homens. Perguntava a mim mesmo se aquele demónio não estaria a ficar patarata. Não se podia afirmar, mas talvez tivesse trabalhado demasiado e pensasse que estava de regresso à Alemanha nazi. Não tinha com certeza nenhuma razão para ser tão reservado quanto a ser visto a conversar comigo. No fim de contas estávamos do mesmo lado.

Esmaguei o cigarro num cinzeiro e passeei um pouco. Nunca me olhou de relance sequer, quando passei junto do seu grupo, a caminho do urinol. Entrou no compartimento um momento depois de eu ali ter chegado. Os seus olhos brilhavam nervosamente na direcção das latrinas.

— Estamos sós?

— Creio que sim — respondi, olhando-o. Interrogava-me como se conseguiria um médico por estas bandas se houvesse sinais da sua crise.

Dirigiu-se para as retretes, abriu as portas e olhou. Satisfeito, voltou-se para mim. O seu rosto estava tenso e pálido. Pequenas gotas de suor caíam-lhe pela testa. Pensei reconhecer os sintomas. O sol intenso deste Nevada é mortal se não se estiver habituado. As suas primeiras palavras convenceram-me que eu linha razão.

— Herr Cord — murmurou roucamente. — A guerra não acabará em seis meses.

— Claro que não — respondi com calma. Pelo que ouvira, a primeira coisa a fazer era estar de acordo com ele, tentar acalmá-lo. Desejava ser capaz de me recordar da segunda. Voltei--me para o lavatório. — Oiça, deixe-me oferecer-lhe um copo de…

— Acabará no próximo mês!

O que eu pensei deve ter-se-me estampado no rosto, pois a minha boca pendeu aberta da surpresa.

Não, não estou idiota, Herr Cord — disse Strassmer rapidamente. — A ninguém mais, senão a si, diria isto. É a única maneira que tenho de pagar-lhe o ter-me salvado a vida. Sei como pode ser importante para o seu trabalho.

— Mas... mas como...

— Nada mais posso dizer-lhe — interrompeu ele. — Acredi­te-me, apenas. No próximo mês, o Japão estará verfallen1 — Voltou-se e saiu quase a correr pela porta fora.

Segui-o fixamente durante um momento. Depois debrucei-me na bacia e lavei a cara com água fria. Senti que devia estar ainda mais idiota que ele, ainda que começasse a acreditá-lo. Mas como? Aquilo não fazia sentido. Sem dúvida que estávamos a levar os nipónicos à nossa frente; mas ainda tinham a Malásia, Hong Kong e as Indias Orientais Holandesas. E, com a filosofia do seu micado, seria preciso um milagre para acabar a guerra num mês.

Ainda estava a pensar nisto, quando Morrissey e eu subimos para o comboio.

— Sabe com quem topei ali atrás? — perguntei. Não lhe dei tempo para responder. — Com Otto Strassmer.

Julguei descobrir uma espécie de alívio no seu sorriso. Suponho que invocou todos os demónios do inferno para não ter que me falar daquele teste da Air Corps.

— É um belo tipo — disse. — Que tal está ele?

— Pareceu-me esplêndido — respondi. — Preparava-se para regressar a Nova Iorque. — Pela janela olhei a planície desér­tica do Nevada.

— A propósito, já lhe constou em que é que ele estava a trabalhar exactamente?

— Exactamente, não.

Olhei-o.

— Que é que lhe constou?

— Não foi a ele que ouvi — disse Morrissey. — Soube isto de um meu amigo, no clube dos engenheiros, que trabalhou nisso por pouco tempo. Mas não sabia muito, de qualquer maneira. Tudo o que sabia é que se chamava o Projecto Manhattan, e que tinha qualquer coisa com o professor Einstein.

Senti as minhas sobrancelhas franzirem-se, perplexas. Que podia Strassmer fazer por um homem como Einstein?

Sorriu outra vez.

 

1 Derrotado (em alemão, no original). (N. do T.)

 

— Strassmer inventou um plástico mais forte que o metal, ao fim e ao cabo.

— E então? — perguntei.

— Então. Talvez o professor quisesse que Otto inventasse uma cápsula de plástico para lhe meter os seus átomos dentro — disse Morrissey, rindo.

Senti uma excitação desenfreada percorrer-me o corpo. Uma cápsula para átomos, energia numa garrafa, pronta para explodir ao tirar-se-lhe a rolha. O homenzinho não estava louco. Sabia o que dizia. O louco fora eu.

Seria preciso um milagre, pensara. Bem, Strassmer e os seus amigos vieram para o deserto e fizeram-no. Agora iam para casa. O trabalho estava acabado. O que era ou como o fizeram não o podia supor, nem isso me preocupava.

Mas entranhou-se em mim. Estava certo que acontecera.

O milagre que poria fim à guerra.    

Desci do comboio em Reno, enquanto que Morrissey con­tinuou até Los Angeles. Não havia tempo de telefonar para o rancho, a Robair. Por isso tomei um táxi para a fábrica. Passámos pelo portão de aço electrificado, sob o grande letreiro onde se lia EXPLOSIVOS CORD, a não mais de uma milha da oficina principal.

A fábrica tinha-se expandido tremendamente desde a guerra. E o mesmo se verificara com as outras companhias. Parecia sem razão o que fizemos. Nunca havia espaço bastante.

Saltei do carro e paguei; quando ele se afastou, olhei para o velho e familiar edifício. Agora estava gasto e parecia sujo e obsoleto comparado com os novos, mas os seus telhados fulgu­ravam de brancura e brilhavam ao sol. Não sei porquê, nunca pude resolver-me a mudar quando os outros directores passaram os seus gabinetes para o novo edifício da administração. Deixei cair o cigarro e enterrei-o na poeira com o calcanhar. Depois entrei no edifício.

O cheiro era o mesmo de sempre e o murmúrio que vinha dos homens e mulheres que ali trabalhavam também o mesmo que sempre ouvira quando eu era conhecido por El hijo. O filho. Tinham sido vinte anos; muitos deles ainda ali não estavam quando o meu pai morreu e, no entanto, chamavam-me assim. Alguns dos mais jovens tinham menos de metade da minha idade.

O escritório era o mesmo, também. A pesada e enorme secretária, adornada com o tampo de couro, mostrava já as fendas e o desgaste do tempo. Não havia contínuo cá fora e não me surpreendi. Não havia razão para que lá estivesse. Não me esperavam.

Passei para detrás da secretária e premi o interruptor do rádio que me pôs em ligação directa com o gabinete de McAllister, no novo edifício, a um quarto de milha de distância. A surpresa ecoou na sua voz.

— Jonas! De onde vens?

— Da Air Corps — respondi. — Acabámos de entregar o CA-JET X. P.

— Óptimo. Agradou-lhes?

— Creio que sim — disse eu. — Não me confiaram a pilotagem dele. — Encostei-me e abri a porta do armário por baixo do telefone. Agarrei a garrafa de Bourbon que ali estava e pu-la em cima da mesa, na minha frente. — Qual é a nossa situação quanto a contratos de guerra se a guerra terminar amanhã?

— A companhia de explosivos? — perguntou Mac.

— Todas as companhias — disse eu. Sabia que ele guardava cópia de todos os contratos, cá em baixo, pois considerava este o seu escritório particular.

— Isso levará algum tempo. Porei alguém a trabalhar imediatamente.

— Uma hora, digamos?

Ele hesitou. Quando falou, uma nota de curiosidade acompanhava a sua voz.

— Está bem, se é muito importante.

— É muito importante.

— Sabes alguma novidade?

— Não — respondi com sinceridade. De facto, não sabia. Fazia suposições, apenas. — Preciso disso, nada mais.

Fez-se silêncio por um momento. Depois Mac voltou a falar.

— Acabo de receber as cópias dos planos da Engenharia, para a conversão do radar e de pequenas secções de avião por proposta da companhia electrónica. Levo-as?

— Sim — disse eu, dando um piparote no interruptor.

Tirei um copo da bandeja junto do termo. Enchi-o até meio com o Bourbon. Olhei para a parede do outro lado do gabinete, onde o retraio do meu pai me fitava do alto. Ergui o copo para ele.

— Já lá vai muito tempo, pai — disse eu, e engoli o whisky.

Tirei as mãos das cópias dos planos colocadas em cima da mesa e fi-las estalar ao fechá-las como se apertasse uma mola. Olhei para McAllister.

— Parecem-me boas. Mac.

Ele aprovou com a cabeça.

— Dou-as como aprovadas e farei a sua descarga em Com­pras a fim de tê-las em requisição de materiais aguardando ordens, para serem entregues quando a guerra acabar. — Olhou para a garrafa de Bourbon. — Não estás muito hospitaleiro. Que dizes a uma bebida?

Olhei-o, surpreendido. Mac não era muito de bebidas. Espe­cialmente durante as horas de trabalho. Empurrei a garrafa e um copo na direcção dele.

— Serve-te.

Deitou um pequeno gole e bebeu-o de um trago. Pigarreou. Olhei-o.

— Há um outro plano para o após-guerra. Queria falar-te dele — disse Mac desastradamente.

— Continua.

— Eu próprio — prosseguiu com hesitação. — Já não sou mais um jovem. Quero retirar-me.

— Retirar? — Não podia acreditar no que ouvia. — Porquê? Que diabo ias tu fazer?

Mac enrubesceu, embaraçado.

— Tenho trabalhado arduamente toda a minha vida — res­pondeu ele. — Arranjei dois filhos e uma filha e cinco netos, três dos quais nunca vi. A mulher e eu gostaríamos de passar algum tempo com eles. Conhecê-los antes que seja demasiado tarde.

Eu ri.

— Falas como se esperasses as três badaladas e o balde de cal de um momento para o outro. Contudo és um jovem.

— Tenho sessenta e três anos. Estou contigo há vinte.

Olhei-o demoradamente. Vinte anos. Em que se tinham passado? Os médicos do Exército tinham razão. Também eu já não era um garoto.

— Vamos ficar sem ti — disse com sinceridade. — Não faço ideia de como vamos fazer andar isto sem ti. — Era o que pensava, realmente. Mac era o homem em quem eu senti poder confiar sempre, de todas as vezes que precisei dele.

— Tu dirigirás na perfeição. Temos mais de quarenta agentes a trabalhar agora para nós, e cada um é especialista no seu campo. Tu não és apenas um homem, tu és uma grande companhia. Precisas de ter uma grande máquina legal para cuidar de ti.

— O quê? — exclamei. — Não se pode chamar ao telefone uma máquina, no meio da noite, quando se está em dificuldade.

— Pode, sim. Está equipada para todas as emergências.

— Mas que queres fazer? Não podes dizer-me que vais ser feliz, deitado a brincar aos avós. Terás de arranjar qualquer coisa em que ocupar o espírito.

— Tenho pensado nisso — disse ele, um ar sério estampado no rosto. — Brinquei tanto tempo com as leis dos impostos e sociedades que quase esqueci o mais importante de tudo. As leis que regulam os seres humanos. — Procurou novamente a garrafa e despejou outro gole. Não era fácil para ele sentar-se ali e dizer-me o que estava a pensar.

— Pensei que devia pendurar a minha tabuleta à porta de casa em qualquer pequena cidade. Estou cansado de falar sempre em termos de milhões de dólares. Por uma vez, gostaria de ajudar algum pobre diabo que realmente precisasse.

Olhei-o fixamente. Trabalha-se com um homem durante vinte anos, e, contudo, não o conhecemos. Este era um dos aspectos de McAllister que nunca teria suspeitado existir.

— Claro, anularemos tudo nos contratos e acordos entre nós — disse ele.

Eu olhava-o. Sabia que não desejava o dinheiro. Mas, então, também eu não.

— Que demónio nos podia obrigar? Sentares-te apenas na mesa de reunião dos directores de tantos em tantos meses, assim, poder ver-te de quando em quando, um momento, pelo menos.

— Então tu — tu aprovas?

Fiz que sim com a cabeça.

— Sim, damos uma volta nisso quando a guerra acabar.

As folhas de papel empilhavam-se conforme ele ia folheando o sumário de cada um dos contratos. Finalmente, Mac acabou e ergueu os olhos para mim.

— Temos amplas cláusulas de protecção em todos os contra­tos, excepto num — disse ele. — Baseia-se na entrega antes do fim da guerra.

— Qual é?

— O hidroavião que estamos a construir para a marinha em San Diego.

Sabia de que é que ele estava a falar. Do CENTURION. Destinava-se a ser o maior avião jamais construído, planeado para transportar uma companhia completa de cento e cinquenta homens mais os doze da tripulação, dois tanques ligeiros anfíbios e grande quantidade de morteiros, artilharia ligeira, armas, munições e abastecimentos para uma companhia inteira. Tinha sido ideia minha de que um avião como este devia ser útil nas incursões por detrás das linhas nas pequenas ilhas do Pacífico.

— Como aconteceu fazermos um contrato desses?

— Foste tu que quiseste — disse ele. — Recordas-te?

— Recordava-me. A Marinha fora céptica, duvidando que o avião pudesse alguma vez voar. Deste modo, fizemos um acordo baseado num ensaio completo antes da guerra acabar. Fora há cerca de sete meses.

Quase imediatamente, vimo-nos em apuros. Testes de resis­tência demonstraram que os metais convencionais tornavam o avião demasiado pesado para os motores o fazerem subir. Per­demos dois meses naquilo, até que os engenheiros vieram com um composto de Fiberglas que tinha menos de um décimo do peso do metal e era quatro vezes mais forte. Tivemos, por isso, de cons­truir maquinaria especial para trabalhar o novo material. Trouxe até do Canadá Amos Winthrop para se debruçar sobre o projecto. O velho bastardo fizera lá um negócio fantástico e tinha uma maneira fanfarrona de negociar quando não havia concor­rentes.

O velho leopardo não mudara nada. Eu estava de calças na mão e ele sabia-o. Atirou-me com uma vice-presidência na Cord Aircraft antes de cá vir abaixo.

— Quanto gastámos já? — perguntei.

Mac olhou os papéis.

— Dezasseis milhões, oitocentos e setenta e seis mil qui­nhentos e noventa e quatro dólares e trinta cents, até ao dia trinta de Junho.

— Estamos em maus lençóis — disse eu, procurando o tele­fone. Ouvi a voz da telefonista. — Ligue-me para Amos Winthrop, San Diego. E enquanto espero para falar com ele, ligue--me para o gabinete de Mr. Dalton na Inter-Continental Airlines, em Los Angeles, e peça-lhe que me envie para baixo uma licença especial.

— Qual é o sarilho? — perguntou Mac, observando-me.

— Dezassete milhões de dólares. Caminhamos para uma derrocada se não conseguirmos pôr este avião no ar imedia­tamente.

Amos veio ao telefone.

— Quando espera pôr no ar o CENTURION? — perguntei.

— Estamos a andar optimamente, agora. Faltam apenas os últimos retoques. Calculo que seremos capazes de o pôr a voar em Setembro ou no princípio de Outubro.

— Que é que falta?

— O material habitual. Acessórios, ajustes, polir, impermea­bilizar. Você sabe.

Sabia. A pequena mas importante parte que toma mais tempo que tudo o mais. Mas nada realmente essencial, nada que impedisse o avião de voar.

— Apronte-o — ordenei-lhe. — Subirei com ele, amanhã.

— Está louco? Nunca lhe pusemos gasolina nos depósitos, sequer.

— Então, encha-os.

— Mas o casco ainda não foi sujeito ao teste de água — ber­rou ele. — Como sabe que não irá direitinho ao fundo da Baía de San Diego quando o atirar para cima da água?

— Nesse caso faça o teste. Tem de conseguir em vinte e qua­tro horas a certeza de que flutua. Estarei aí em cima esta noite, se precisar de ajuda.

Isto não constituía despesa suplementar, projecto de dinheiro garantido, que o governo cobriria, quer ganhasse, perdesse ou largasse. Era o meu dinheiro e não me agradava a ideia de o perder.

Por dezassete milhões de dólares, o CENTURION voaria nem que eu tivesse de o erguer da água com as minhas mãos.

Robair levou-me para o rancho, onde tomei um duche quente e mudei de roupa antes de apanhar o avião para San Diego. Acabava de sair de casa quando o telefone tocou.

— É para si, Mr. Jonas — disse Robair. — É Mr. McAllister.

Peguei no telefone que ele me estendeu.

— Sim, Mac?

— Desculpa incomodar-te, Jonas, mas é importante.

— Atira.

— Bonner acaba de telefonar do estúdio. Vai no fim do mês para a Paramount. Conseguiu um contrato com eles para só fazer coisas de nível.

— Oferece-lhe mais dinheiro.

— Já o fiz. Não quer. Quer ir-se embora.

— Que diz o contrato dele?

— Acaba no fim deste mês — respondeu Mac. — Não o podemos obrigar se se quiser ir embora.                  

— Para o diabo com ele, então. Se se quer ir, que vá.

— Estamos metidos num fosso — disse Mac, sério. — Temos de encontrar alguém para dirigir o estúdio. Não se pode andar para a frente com uma companhia cinematográfica sem ter quem faça os filmes.

Não era nada que eu não soubesse. Seria bom que David Woolf estivesse de volta. Podia confiar nele. Sentiu pelo cinema a mesma inclinação que eu pelos aviões. Mas tinha-se fixado em Anzio.

— Quero estar em San Diego esta noite — disse eu. — Dei­xa-me pensar e nós trabalharemos isso no teu escritório em Los Angeles, depois de amanhã. — Neste momento tinha maiores preocupações. Um CENTURION custa quase tanto como toda a produção do estúdio num ano.

Aterrámos no aeroporto de San Diego cerca de uma hora da manhã. Apanhei um táxi directamente para uma pequena doca flutuante que tínhamos arrendado próximo da base naval. Podia ver as luzes resplandecendo até alguma distância. Sorri para mim mesmo. Pensei renunciar a isto para que Amos aprontasse as coisas. Tinha uma noite, com o pessoal a trabalhar furiosamente, mesmo que tivesse de quebrar os regulamentos do blackout para conseguir acabar.

Passei junto do grande e velho navio-oficina que estávamos a usar como hangar, justamente a tempo de ouvir alguém gritar:

— Iluminem a carreira!

E, a seguir, o CENTURION saiu do hangar, a cauda primeiro, observando o mundo como um feio condor gigante voando de costas. Como um porco engordado, foi atirado pela carreira abaixo para a água. Um grande berro partiu do hangar e fui quase esmagado por um grupo de homens que corriam atrás do avião. Antes que me apercebesse do que se tratava, tinham passado por mim e estavam em baixo, junto à água. Vi Amos no meio do grupo e gritava mais que qualquer outro.

Houve um grande cachão no instante em que o CENTURION fendeu a água, num momento de pesado silêncio quando a cauda mergulhou, quase cobrindo os três grandes lemes e, por fim, um grito de triunfo quando se endireitou e flutuou na baía. Começou a voltar-se, arrastado para fora da doca, e ouvi o guincho das correntes dos grandes guindastes rebocando-o.

Os homens ainda gritavam quando alcancei Amos.

— Que demónio de ideia foi essa? — berrei, tentando fazer-me ouvir no meio do barulho. — Que pensam vocês que estão a fazer?

— O que me disse para fazer... experimentá-lo na água.

— Pateta sem remissão! Podia tê-lo metido no fundo. Porque não arranjou um tanque de pressão?

— Não havia tempo. Não conseguiria obtê-lo em menos de três dias. Não disse que queria voar com ele amanhã?

Os guindastes tinham arrastado parcialmente o avião para a rampa, a proa fora de água.

— Espere aqui um minuto — disse Amos. — Consegui que os homens trabalhassem. Estão todos a ganhar horas triplicadas.

Desceu para a doca onde um operário colocara já uma escada contra o bojo do gigantesco avião. Trepando como um homem com metade da sua idade, Amos abriu a porta a seguir à cabina e desapareceu no interior do aparelho. Um momento depois, ouvi o ruído de um motor vindo algures de dentro dele e à proa abriu-se uma bocarra bastante grande para passar nela um camião. Amos apareceu no cimo, dentro do avião.

— O. K., pessoal. Sabem o que temos a fazer. Atirem fora os cabos. Não pagamos horas a triplicar para conversar.

A seguir veio ter comigo e fomos para o seu gabinete. Havia uma garrafa de whisky sobre a mesa. Tirou dois copos de papel do armário na parede e começou a deitar-lhes whisky.

— Pensa subir com ele amanhã?

Fiz que sim com a cabeça.

— Eu não o faria — disse ele. — Lá porque flutua, não quer dizer que voe. Há muitíssimas coisas de que ainda não estamos seguros. Mesmo que suba, não há garantia de que se aguente lá por cima. Pode mesmo partir-se ao meio.

— Isso seria duro — comentei. — Mas subirei com ele, de qualquer maneira.

Encolheu os ombros.

— O senhor é o patrão — continuou, estendendo-me um dos copos de papel. Ergueu-o até aos lábios. — Boa sorte.

Pelas duas da tarde seguinte, ainda não estávamos prontos. O segundo motor de estibordo cuspia óleo em borbotões de cada vez que o púnhamos a trabalhar, e não conseguíamos descobrir a fuga. Eu estava na doca, os olhos poisados nele.

— Temos que o arrancar — disse Amos — e levá-lo para a oficina.

Olhei-o.

— Quanto tempo leva isso?

— Duas, três horas. Se tivermos sorte e dermos com a rotura imediatamente. Talvez fosse melhor adiar o voo para amanhã.

Olhei o meu relógio.

— Para quê? Ainda temos três horas e meia de sol até às cinco. — Parti na direcção do gabinete dele. — Vou voltar ao seu gabinete e dormir uma soneca na poltrona. Chame-me logo que ele esteja em condições.

Não teria sido pior se tentasse dormir dentro da caldeira de uma fábrica, por causa de toda a gritaria e blasfémias, das marteladas e rebitagem. O telefone tocou. Levantei-me para responder.

— Está, papá? — Era a voz de Mónica.

— Não, fala Jonas. Vou procurá-lo.

— Obrigado.

Poisando o telefone na mesa, fui à porta e chamei Amos. Voltei à poltrona e estirei-me enquanto ele levantava o auscul­tador. Deitou-me um olhar peculiar quando ouviu a voz dela.

— Sim, estou um pouco ocupado.

Esteve em silêncio por um curto espaço de tempo, ouvin­do-a. Quando voltou a falar, sorria.

— Isso é maravilhoso. Quando partes?... Então, voarei para Nova Iorque logo que este trabalho estiver concluído. Faremos uma festa. Dá saudades à Jo-Ann.

Pousou o auscultador e avançou para mim.

— Era Mónica — disse.

— Já sabia.

— Vai esta noite para Nova Iorque. S. J. Hardin acaba de a nomear directora do Style e quere-a de volta imediata­mente.

— Excelente — murmurei.

— Leva Jo-Ann com ela. Já não vê a miúda há muito tempo, pois não?

— Desde que saiu com as duas do meu apartamento, na Drake, em Chicago, há cinco anos.

— Devia vê-la. A moça está a ficar uma verdadeira beleza.

Ergui os olhos para ele. Compreendi tudo. Amos Winthrop estava a fazer o papel de avô ufano.

— Homem, realmente você mudou, não é verdade?

— Mais tarde ou mais cedo, um homem tem que tornar-se sensato — disse Amos, ruborizando-se cheio de embaraço. — Descobre-se que se fez uma quantidade de disparates para ferir as pessoas que se ama e, se não se está completamente desumanizado, deve tentar-se compensá-las.

— Já ouvi falar nisso, também — comentei, sarcástico.

Eu não estava na disposição de receber prelecções do velho bastardo, nem de saber como se tinha emendado.

— Disseram-me que, geralmente, isso acontece quando já não podemos arrastar os pés.

A cólera surgiu no rosto do velho Amos. Estava furioso, pude notá-lo.

— Tenho de lhe dizer um par de coisas, Jonas.

— Por exemplo, Amos?

— Tudo pronto para montar o motor, Mr. Winthrop — chamou um homem, à porta.

— Estarei lá num minuto. — Amos voltou-se para mim. — Lembre-me isto depois de voltarmos do voo de experiência.

Fiz um esgar, vendo-o sair a porta. Pelo menos não estava tão santinho que não me desse a sua marrada. Levantei-me e comecei a procurar os meus sapatos debaixo do sofá.

Quando saí, o motor estava a trabalhar, suave, docemente.

— Parece-me O.K., agora — disse Amos, virando-se para mim.

Olhei o meu relógio. Eram quatro e meia.

— Então, vamos. Por que esperamos?

Pôs uma mão no meu braço.

— Tem a certeza que não posso fazê-lo mudar de ideias?

Abanei a cabeça. Dezassete milhões de dólares era um argumento de peso. Levou as mãos à boca, em forma de concha.

— Toda a gente fora do aparelho, excepto a tripulação de voo.

Quase imediatamente, houve um silêncio no estaleiro quando o motor parou. Alguns minutos depois, o último desceu a ponte. A cabeça de um homem surgiu na pequena janela da cabina do piloto.

— Toda a gente saiu excepto a tripulação, Mr. Winthrop.

Amos e eu subimos a ponte para o avião, depois pela pe­quena escada da coberta da carga para a cabina dos passageiros e, avançando, entrámos na cabina de voo onde se encontravam três jovens. Olhavam-me curiosamente. Ainda tinham os cha­péus de estopa da doca flutuante.

— Eis a sua tripulação, Mr. Cord — disse Amos, formal­mente. — À direita, Joe Cates, telegrafista. No meio, Steve Jablonski, mecânico de voo dos motores de estibordo, um, três e cinco. À esquerda, Barry Gold, mecânico de voo dos moto­res de bombordo, dois, quatro e seis. Não tem que se preocupar com eles. São todos veteranos da Marinha e conhecem do seu ofício

Apertámo-nos as mãos e voltei-me para Amos.

— Onde estão o co-piloto e o navegador?

— Aqui — respondeu Amos.

— Onde?

— Eu.

— Que demónio.

Fez uma careta.

— Tem alguém que conheça este bebé melhor? Além disso, dormi todas as noites com ele durante mais de meio ano. Quem tem mais direito de desempenhar um papel no seu primeiro voo?

Fixei-o por um momento. Dei-me por vencido. Sabia exac­tamente como ele se sentia. Eu sentira o mesmo ontem, quando não me deixaram pilotar o jacto. Subi para o lugar do piloto.

— Ocupem os vossos postos, senhores.

— Sim, sim, senhor.

Fiz uma careta para mim mesmo. Eram homens da mari­nha, muito bem. Levantei a lista de verificação.

— Rampa de abordagem levantada — disse eu, lendo.

Um motor começou a gemer por baixo de mim. Pouco depois, uma lâmpada vermelha brilhou no painel na minha frente e o motor calou-se.

— Rampa de abordagem levantada, senhor.

— Liguem os motores um e dois — disse, dobrando-me para a frente e inclinando para baixo os comutadores que deviam permitir aos mecânicos de voo ligá-los. Os enormes motores expeliram fumo negro. As hélices começaram a girar lentamente, a seguir os motores pegaram e as hélices fixaram-se num suave lamento.

— Motor de estibordo um, ligado, senhor.

— Motor de estibordo dois, ligado, senhor.

O que se seguia na lista era novo para mim. Sorri. Isto não era um avião, era realmente um barco da Marinha com asas.

— Soltar as amarras — ordenei.

Do assento à minha direita, Amos alcançou e soltou a alavanca que ligava às amarras. Outra luz vermelha brilhou no painel, e senti o CENTURION deslizar na água. Houve um ligeiro e demorado balanço como se repousasse num suave movimento de embalar. Do fundo, por baixo de nós, vinha o som longínquo da água chapinhando contra o casco. Inclinei-me e manobrei os comandos. Lentamente o grande avião começou a mover-se na direcção da ampla baía. Fitei Amos. Fez um esgar.

Olhei para trás num arreganho. Quanto mais longe, melhor. Pelo menos, fomos levados pelo mar.

Uma onda veio quebrar-se na proa do avião, salpicando de espuma o vidro na minha frente, quando estava no último item da lista de verificação. Houvera quase uma centena deles. Pareceu-me terem-se passado horas desde que partimos. Olhei para o meu relógio. Tinham decorrido apenas dezasseis minu­tos desde que abandonáramos a doca. Olhei pelas janelas. O enorme hexamotor trabalhava suavemente, e as hélices brilhavam com o sol e a espuma. Senti tocarem-me no ombro e olhei para trás. O telegrafista estava de pé junto de mim, uma mae-west pneumática numa mão e um pára-quedas pendu­rado na outra.

— Traje de emergência, senhor.

Fitei-o. Já tinha enfiado o seu; os outros dois homens, também.

— Ponha atrás do meu assento.

Olhei para Amos. Quase pronto, estava a apertar o cinto do pára-quedas. Afundou-se no assento com um desconfor­tável gemido. Observou-me.

— Deve pôr isso.

— Sou supersticioso com essa coisa — disse eu. — Se não se puser, nunca se precisará dele.

Não respondeu, e encolhendo os ombros quando o tele­grafista voltou para o lugar afivelou o cinto do assento.

— Tudo em ordem nos postos de voo? — perguntei.

Responderam todos ao mesmo tempo.

— Sim, senhor!

Inclinei-me para a frente e toquei ao de leve o botão sobre o painel: todas as luzes passaram do vermelho ao verde. De agora em diante, apenas voltariam ao vermelho se estivéssemos metidos em sarilhos. Virei o avião na direcção do mar.

— O. K., senhores. Cá vamos!  

Abri o gás pouco a pouco. O enorme avião guinou, a proa mergulhou nas ondas, depois ergueu-se lentamente quando as seis hélices começaram a cortar o ar. Começámos a erguer--nos, como um barco de corridas nas competições de Verão. Olhei para o painel. O indicador de velocidade marcava noventa.

A voz de Amos chegou até mim.

— Calculada a velocidade de subida, neste voo, um, dez.

Aprovei sem o olhar e mantive aberto o gás. A agulha subiu para cem, depois um-dez. As ondas batiam contra o fundo do casco como um martelo de rebitar. Levei a agulha para um quinze, em seguida comecei a afrouxar.

Durante algum tempo nada aconteceu e eu aumentei velocidade para um vinte. De repente, o CENTURION pareceu tremer, depois saltou da água. A agulha passou para um-dezasseis e os comandos moviam-se facilmente nas minhas mãos. Olhei pela janela. A água estava a duzentos pés abaixo de nós. Éramos arrastados pelo ar.

— Maldito calor! — murmurou um dos homens atrás de mim.

Amos virou-se no lugar.

— O. K., amigos — disse ele, erguendo a mão. — Paguem-me. Olhou para mim e fez uma careta. — Cada um destes rapazes apostou comigo um dólar em como nunca arrancaríamos da água.

Sorri para ele e mantive o avião numa subida suave até atingirmos os seis mil pés. Depois virei-o para oeste e meti-o direito ao sol-poente.

— Manobra como se fosse um carro ligeiro — gargalhou Amos alegremente do seu lugar.

Ergui os olhos para ele, detrás do telegrafista, onde esti­vera sentado quando me explicou o novo registador automático.

Tudo o que havia a fazer era enviar a mensagem uma vez, rodar o automático e o registador repeti-la-ia para todo o mundo até que a potência se acabasse. O sol tornara o cabelo branco de Amos no flamejante vermelho da sua juventude. Olhei o meu relógio. Eram seis e cinquenta e sobrevoávamos o Pací­fico a cerca de duas centenas de milhas de distância.

— É melhor regressarmos, Amos — disse eu. — Não quero que faça escuro a primeira vez que aterramos com ele.

— O termo na Marinha, capitão, é «amarar». — O telegrafista sorriu numa careta para mim.

— O. K., marujo — disse eu.

Virei-me para Amos.

— «Amarar».

— Sim, sim, senhor.

Descrevia um semicírculo para regressar, quando me inclinei novamente sobre o ombro do telegrafista. De súbito, o avião guinara e quase tombei sobre ele. Acabara de me agarrar ao seu ombro, quando o mecânico de estibordo gritou:

— O número cinco voltou a falhar.

Saltei para o meu lugar e olhei pela janela. O motor espirrava óleo como um géiser.

— Elimine-o! — gritei, amarrando-me ao assento.

As cordas do pescoço de Amos estavam esticadas como fios de aço, no seu esforço sobre os comandos do leme quando do súbito coice do avião. Agarrei-me aos meus e, juntos, manti­vemos o aparelho firme. Pouco a pouco, fomos aliviando o esforço sobre os manípulos.

— O número cinco, liquidado, senhor — gritou o mecânico.

Olhei o motor, de relance. A hélice girava lentamente com o vento, mas o óleo parara de esguichar. Vi que Amos tinha o rosto branco e a suar, mas ele sorriu.

— Podemos regressar com isto, sem sarilhos, com cinco motores.

— Sim.

Podíamos levá-lo de volta com três motores, de acordo com os cálculos. Mas não me agradava semelhante experiência. Analisei o painel. A luz vermelha estava acesa para o motor número cinco. Enquanto olhava, uma luz vermelha começou a piscar no número quatro.

— Que inferno!

Começara a cuspinhar e a tossicar mesmo na altura em que me voltei para o olhar.            

— Verifique o número quatro! — berrei.

Voltei-me para o painel. A luz vermelha acendera-se na conduta de combustível do número quatro.

— Conduta de combustível do número quatro, obstruída!

— Desentupa-a com a bomba de ar!

— Sim, senhor.      

Ouvi o estalido quando ele abriu a bomba de ar. Outra luz vermelha saltou na minha frente.

— Bomba de ar avariada, senhor!

— Elimine o número quatro! — gritei.

Não havia vantagem em deixar a conduta aberta, na esperança de que se desentupisse por si. As condutas obstruídas têm tendência para se incendiarem.

E ainda nos restavam quatro motores.      

— Número quatro eliminado, senhor!

Suspirei aliviado após terem-se passado dez minutos, sem que nada de novo viesse preocupar-nos.

— Penso que agora tudo correrá bem — admiti.

Devia não ter aberto a minha presunçosa boca. Mal acabara de falar, o motor número um começou a engasgar-se e a cuspinhar e o painel dos instrumentos na minha frente iluminou--se como uma árvore de Natal. O motor número seis começou também a falhar.

— Depósito principal sem combustível.

Atirei uma olhadela para o altímetro. Estávamos a cinco mil pés e em queda.                                

— Rádio de emergência e preparar para abandonar o avião! — gritei.

Ouvi a voz do telegrafista «Mayday! Mayday! Cord Aircraft Experimental. Vamos descer no Pacífico. Posição aproximada um dois cinco milhas a oeste de San Diego. Repito. Posição aproximada um dois cinco milhas a oeste de San Diego. Mayday! Mayday!»

Soou um forte estalido e a mensagem começou a ouvir-se de novo. Senti uma mão no ombro. Dei uma olhadela e vi o telegrafista. No mais fundo da minha mente houve uma confusa surpresa, até que me lembrei que o registo transmitia agora o pedido de socorro.

— Ficaremos se o desejar, senhor — disse ele, tenso.

— Isto não é «Por Deus e a Pátria», marujo! Isto é por dinheiro. Saltem!

Olhei Amos, que continuava no seu lugar.

— Você também. Amos.

Não respondeu.

Desapertou o cinto de segurança e levantou-se. Ouvi atrás de mim a porta da cabina abrir-se, quando se dirigiam para a porta de emergência no compartimento dos passageiros.

O altímetro marcava três mil e oitocentos e acabei com os motores um e seis. Talvez conseguisse pousá-lo na água se os dois restantes pudessem aguentar-se com o combustível desviado dos outros. Estávamos a três mil e quatrocentos, quando a luz vermelha da porta de emergência brilhou. Lancei um rápido olhar para trás, através da janela. Três pára-quedas abriram-se, um após outro, em rápida sucessão. Observei o quadro. Dois mil e oitocentos.

Ouvi um ruído junto de mim e olhei em torno. Era Amos, recostando-se no seu lugar.

— Disse-lhe que saltasse — gritei.

Esticou-se para os comandos.

— Os garotos saltaram e estão salvos. Farei figura consigo se tivermos a sorte de o poisar no cimo das ondas.

— Suponha que o não conseguimos? — gritei, furioso.

— Não perderemos muito. Não temos tanto tempo a perder como eles. Além disso, este bebé custou muita massa!

— E então? — gritei. — O dinheiro não é seu!

Houve um curioso rito de reprovação na sua cara.

— O dinheiro não é a única coisa posta neste avião. Cons­truí-o!

A novecentos pés, o número três começou a fazer care­tas. Atirámos o nosso peso contra os manípulos para compensar o planador de estibordo. A duas centenas de pés, o motor número três parou e nós tombámos sobre estibordo.

— Corte os motores! — gritou Amos. — Vamos fazer-nos em cacos!

Toquei ao de leve no comutador, exactamente quando a mia de estibordo mordeu a água. Quebrou-se como se fosse um pau de fósforo, e o avião capotou na água à laia de um bate-estacas. Senti o cinto de segurança dilacerar-me, colando-me a barriga às costas, a pontos de quase ter de gritar com a pressão. Depois, subitamente, aliviou. Os meus olhos abriram-se e olhei para fora. Elevávamo-nos ao sabor da ondulação, inquietadoramente, uma das asas apontadas para o céu. A água corria já, suave, debaixo dos meus pés.

— Com mil demónios, saiamos daqui — gritou Amos, movendo-se na direcção da porta da cabina, que se tinha fechado com estrondo. Deu a volta à maçaneta e empurrou. A seguir atirou-se contra ela. A porta não se mexeu. — Emperrou! — gritou ele, virando-se para mim. Fixei-o e saltei para o postigo de emergência do piloto por cima das nossas cabeças. Puxei a fechadura com a mão direita e empurrei o postigo com a outra. Não aconteceu nada. Levantei os olhos e vi porquê. O caixilho dilatara-se e entortara-se. Nenhuma espécie de dinamite o abriria.

Amos não esperou que eu lho dissesse. Arrancou uma chave inglesa do estojo de ferramentas de urgência e despedaçou o vidro até que ficou só uma moldura irregular na grande portinhola. Depois pegou na mae-west e atirou-ma. Enfiei-a rapidamente, verificando se a válvula automática estava em ordem, pois devia funcionar logo que eu tocasse na água.

— O. K. — disse ele. — Salte.

Sorri, num esgar.

— Tradições do mar, Amos. O capitão é sempre o último a abandonar o barco. Depois de você, Alphonse.

— Enlouqueceu, homem? — berrou ele. — Não poderia sair aquela portinhola mesmo que me cortassem em dois!

— Não seja tão grande — respondi. — Vamos experimentar.

De repente, sorriu. Eu devia ter desconfiado de Amos, quando sorriu daquele modo. Era um feroz e peculiar sorriso, sinal de que se preparava para fazer das suas.

— Muito bem, Gaston. És o capitão.

— Assim é melhor — disse eu, esforçando-me por fazer das minhas mãos um degrau para o erguer até à portinhola. — Eu sabia que alguma vez havias de aprender a distinguir o patrão.

Mas ele não respondeu — e nem faço a menor ideia do objecto com que me agrediu. Naveguei pelo país dos sonhos como se levasse uma grande carga em cima de mim. Estava consciente. Sabia o que se passava, mas não podia fazer nada. Os meus braços e pernas e cabeça, mesmo o meu corpo não me pertenciam.

Senti Amos empurrar-me na direcção do postigo, depois uma sensação de ardor, como quando um gato nos passa as unhas pela cara, mas coube no estreito postigo e caí. Era como se caísse de cerca de mil milhas, durante mil horas. Ainda estava à procura da corda do pára-quedas quando me estatelei sobre a asa.

Arrastei-me e tentei trepar pela parede da cabina até o postigo.

— Sai daí, pulha, filho de uma cadela! — gritei. Come­cei a chorar. — Sai daí que hei-de matar-te!

Depois o avião guinou e uma peça soltou-se da asa, atirando-me à água. Ouvi o ligeiro assobio do ar comprimido quando a mae-west começou a enfolar à minha volta. Encostei a cabeça sobre as suas suaves almofadas e adormeci.

No Nevada, onde nasci e me criei, há principalmente areia e rochas e algumas pequenas montanhas. Mas não há oceanos. Rios e lagos, e piscinas em cada clube regional e hotel, mas estão todas cheias com água fresca e doce que borbulha nas nossas bocas como vinho, se nos acontece bebê-la em vez de nos banharmos nela.

Já estive num par de oceanos, nas minhas férias. No Atlântico, por alturas de Miami Beach e em Atlantic City, no Pacífico, por alturas de Malibu, e nas águas azuis do Mediterrâneo, próximo da Riviera. Estive também nas águas tépidas da Corrente do Golfo, por alturas da praia de areia branca da Bermuda, perseguindo uma rapariga nua, cuja única ambição era nadar como um peixe. Nunca consegui descobrir como conseguem os porcos-marinhos fazer isso, porque, de qualquer modo, na água salgada tudo me escapa. Nunca gostei de água salgada. Adere fortemente à pele, queima o nariz, irrita os olhos. E se acontece beber-se um pirolito, sabe como se fosse a água de lavar os dentes na véspera.

Então, que estava eu aqui a fazer?

Maldito calor, homenzinho, todas as estrelas brilham e se riem para ti. Isto ensinar-te-á a ter algum respeito pelos oceanos. Não gostas de água salgada? Bem, que tal um milhão, um bilião, um trilião, de galões dela? Triliões de galões?

— Ah!, ah!, o diabo que te carregue — disse eu, e voltei a adormecer.

Vinha a virar a esquina da camarata correndo tanto quanto os meus oito anos me consentiam, arrastando pela areia a pesada cartucheira e o coldre atrás de mim.

Ouvi a voz do meu pai.

— Eh, rapaz! Que levas aí?

Virei-me para ele, tentando encobrir a cartucheira e o revólver.

— Nada — disse eu, sem o olhar.

— Nada? — repetiu o meu pai. — Deixa-me ver, então.

Procurou atrás de mim e arrancou-me a cartucheira da mão. Quando a levantou, o revólver e uma folha de papel dobrada tombaram do coldre. Abaixou-se e levantou-os.

— De onde tiraste isto?

— Da parede do dormitório, junto da cama de Nevada — expliquei. — Tive que trepar.

O meu pai pôs a arma no coldre. Era um revólver negro; um revólver negro, regular, com as iniciais M. S. na coronha negra. Porém, já tinha idade bastante para saber que alguém se tinha enganado nas iniciais de Nevada.

O meu pai começou a pôr a folha de papel dobrada dentro do coldre, mas deixou-a cair e ela abriu-se. Pude ver que era um retrato de Nevada, com alguns números em cima e letras por baixo. Meu pai fixou-a por um momento, depois dobrou-a e empurrou o papel para dentro do coldre.

— Vais pô-lo onde o tiraste — disse ele, furioso. Dir-se-ia que tinha perdido o juízo. — Não quero voltar a pegar em coisas que tragas sem te pertencerem. Nunca mais! Ou faço-te em cacos.

— Não tem necessidade de o fazer em cacos, Mr. Cord. — A voz de Nevada veio detrás de nós. — A culpa é minha, por deixar isso onde o rapaz pode chegar.

Voltámo-nos. Ali estava, de pé, a cara de índio, negra, sem expressão, a mão levantada.

— Se quiser dar-mo, levá-lo-ei.

Silenciosamente, meu pai estendeu-lhe o revólver e ali fica­ram, olhando um para o outro. Nenhum deles pronunciava uma palavra. Eu olhava-os desorientado. Cada um parecia investigar os olhos do outro. Por fim. Nevada falou.

— Irei dar uma volta se, quiser, Mr. Cord.

Eu sabia o que aquilo queria dizer. Nevada ia-se embora. No mesmo instante soltei um uivo.

— Não — esganicei-me. — Não farei isso nunca mais. Prometo.

Meu pai baixou os olhos para mim um momento, a seguir voltou-se para Nevada. Um ligeiro sorriso aflorou-lhe o olhar.

— As crianças e os animais sabem realmente o que querem, o que é melhor para eles.

— De facto.

— Era melhor isso longe, onde ninguém lhe pusesse os olhos em cima.

O mesmo sorriso apareceu também nos olhos de Nevada.

— Sim, Mr. Cord. Garanto que o farei.

O meu pai olhou-me e o seu sorriso desvaneceu-se.

— Ouves-me, rapaz? Toca no que não é teu e desfaço-te.

— Sim, pai — respondi alto e forte. — Ouvi-o.

Engoli água salgada. Tossi e engasguei-me e cuspi-a. Abri os olhos. As estrelas ainda piscavam, mas para leste o céu começava a clarear. Julguei ouvir o som de um motor na distância; era apenas, provavelmente, um eco ressoando nos meus ouvidos.

Senti uma dor na ilharga e pela perna abaixo, como se tivesse dormido sobre ela. Quando me mexi, apanhou-me a cabeça e deixou-me aturdido. As estrelas começaram a andar à roda e sentia-me fatigado só de as olhar; voltei a adormecer.

O sol no deserto é grande e forte, e percorre o céu tão próximo da nossa cabeça que algumas vezes temos a sensação de que se erguêssemos as mãos o tocaríamos e queimaríamos os dedos.

E quando aquece assim, procuramos cuidadosamente o terreno que pisamos junto às rochas, porque, debaixo delas, à sombra, dormindo longe da calma do dia, estão as cascavéis, enroscadas e indolentes, com a malfadada cólera do seu sangue frio. São rápidas a enfurecer-se, rápidas a atacar, com as suas cuspidelas traiçoeiras se, por acidente, lhes perturbamos o repouso. As pessoas são assim, também.

Temos a nossa torre de marfim, a nossa rocha secreta, onde nos escondemos; e se acontece a alguém tropeçar em nós, temos que o lamentar, porque, então, somos como as cascavéis no deserto. Atacamos cegamente quem quer que seja.

— Mas eu amo-te — disse eu, e, mesmo quando lho disse, reconhecia a insinceridade das minhas palavras.

E ela devia-o ter sabido também para, na sua denúncia, me acusar das ofensas de todos os homens que conhecera. E não injustamente, porque eram também as minhas ofensas.

— Mas eu amo-te — repetia eu e, quando dizia isto, sabia que ela reconhecia a fragilidade das minhas palavras. Tornavam-se vazias e falhas de sinceridade na minha boca. Se tivesse sido honesto, ainda que no mais secreto de mim mesmo, seria isto que eu teria dito: “Quero-te. Quero-te para seres o que eu quero que sejas. O reflexo da imagem dos meus sonhos, o espelho dos meus desejos secretos, a face que eu desejo mostrar ao mundo, o brocado em que quero bordar a minha glória. Se és todas estas coisas, far-te-ei mercê da minha presença e da minha casa. Mas não para o que tu és, mas para mim e o que eu quero que tu sejas.”

Pouco fiz e por ali me fiquei, murmurando lugares-comuns, enquanto as palavras que lhe saíam da boca eram apenas o meu próprio veneno, assimilado por ela. Por ignorância, tropeçou na minha torre de marfim.

Ali fiquei, desabituado do calor e da luz intensa do sol, secretamente envergonhado do frio que me percorria o sangue nas veias e me punha à margem das outras gentes. Desprotegida, deixei-a usar o meu veneno na sua destruição.

E quando o veneno fez o seu trabalho, fui-me embora, dei­xando-a só com a fechada, pequena e assustada alma da sua in­fância.

Com a falta de compaixão peculiar à minha espécie, safei-me. Fugi dos seus terrores, das suas necessidades de conforto e segu­rança, do seu não manifestado rogo de carinho e amor e compreensão. Evitei o sol, fugindo para a segurança da minha torre de marfim.

Mas agora já não havia conforto nas suas sombras secretas, porque a luz passava-lhe pelas fendas, e já não havia conforto no fluxo frio e desprendido do meu sangue. A torre parecia diminuir mais e mais, enquanto o sol não parava de aumentar. Tentei fazer-me pequenino para encontrar abrigo sob o seu tecto, mas não havia salvação. Em breve não haveria torre de marfim para mim. O sol brilhava mais e mais. Mais e mais.

Abri os olhos.

Havia um fino raio de luz a brilhar sobre eles. Pestanejei e o penetrante raio de luz moveu-se para um lado. Podia ver para além dele, agora. Estava deitado sobre uma mesa num quarto e, do outro lado, movia-se um homem de bata e barretina brancas. A luz vinha do reflexo de um pequeno espelho redondo que pôs sobre o olho quando me observou. Podia ver-lhe no rosto os pequenos pêlos da barba que a navalha havia falhado. Tinha os lábios cerrados.

— Meu Deus! — A voz veio de trás de mim. — A cara dele é uma massa. Deve ter uma centena de pedaços de vidro nela.

Os meus olhos pestanejavam e viram o segundo homem quando o primeiro se virou para ele.

— Caluda, seu parvo! Não vê que ele está acordado?

Comecei a erguer a cabeça, mas uma ligeira e suave mão pousou no meu ombro, empurrando-me para trás, e então apareceu-me o seu rosto. O seu rosto, olhando-me com piedade e compaixão, que o meu pai nunca mostrara.                    

Jennie!                            

A sua mão fez de novo ligeira pressão no meu ombro. Olhou para alguém por cima da minha cabeça.

— Chame a Doutora Rosa Strassmer, do Los Angeles General, ou do Hospital Colton, em Santa Monica. Diga-lhe que Jonas Cord teve um mau acidente e que venha imediatamente.

— Sim, Irmã Thomas. — Era a voz de uma jovem e veio de trás de mim. Ouvi passos a afastarem-se.

A dor estava a voltar à ilharga e à perna e eu rangi os dentes. Senti que a dor me forçava às lágrimas. Fechei os olhos, por um momento, depois abri-os e fitei-a. — Jennie! — murmurei. — Jennie, desculpa!

— Está bem, Jonas — respondeu ela num murmúrio. Levou as mãos sob o lençol que me cobria. Senti uma picada aguda no braço. — Não fales. Vai tudo bem, agora.

Sorri cheio de gratidão e voltei a adormecer, conjecturando vagamente na razão por que ela usava aquele engraçado véu branco sobre o cabelo.

Através das minhas janelas, iluminadas agora pelo sol da manhã, vindos das ruas chegavam ainda os sons dos festejos. Embora usualmente sem buliço e sossegada, parte da Hillcrest Drive, que ladeava o hospital, enchia-se de ruídos alegres e do tropel do povo. Da Estação Naval espalhava-se pela cidade de San Diego o som triunfante do apito de um barco. Estivera assim toda a noite, desde a tarde anterior, quando a notícia chegou. O Japão tinha-se rendido. A guerra acabara.

Sabia agora o que Otto Strassmer me tentara dizer. Conhecia agora o milagre do deserto. Pelos jornais e pelo rádio próximo do meu quarto. Contavam todos a história da pequena bomba atómica que levara a humanidade às portas do Céu. Ou do Inferno. Mexi-me na cama à procura de posição mais confortável, quando as roldanas que suspendiam as minhas pernas guincharam, juntando o seu gritinho de rato aos outros ruídos.

Tivera sorte, disse-me uma das enfermeiras. A minha perna direita quebrara-se em três lados, o meu quadril direito noutro, e várias costelas tinham estoirado. Contudo, ainda espreitava o mundo, por detrás da camada de finas ligaduras que me cobriam todo o rosto, excepto o espaço para os olhos, o nariz e a boca. Mas tivera sorte. Pelo menos ainda estava vivo.

Não era assim com Amos, que continuava sentado na cabina do CENTURION, enquanto ele repousar no cimo de um banco de areia, a alguns quatrocentos pés da superfície do Oceano Pacífico.

Pobre Amos. Os três homens da tripulação tinham sido encon­trados sem danos e eu ainda estou vivo, graças a Deus e aos pobres pescadores que me encontraram a flutuar na água e me levaram para a praia, enquanto Amos está sentado em silêncio no seu túmulo de água, sempre aos comandos do avião que construiu e que não me deixou pilotar sozinho.

Lembrava-me da sua voz de contabilista, ao telefone, de Los Angeles, quando me telefonou, animador.

— Não se preocupe, Mr. Cord. Podemos lançar tudo tendo em conta as taxas sobre lucros. Quando se aplicar a quantia principal à taxa de quarenta por cento, e o excesso de lucros à taxa de noventa por cento, o líquido de perda para nós vem para menos de dois milhões.

Atirei com o telefone, desligando. Caminhava tudo sobre rodas. Mas como se pode escriturar sobre uma folha de balanço a vida de um homem que foi morto pela nossa ganância? Há uma dedução admissível para a morte na taxa de lucro de receitas? Fui eu que matei Amos e não importava saber de que é que podia ilibar a minha consciência. Não podia fazê-lo regressar à vida.

A porta abriu-se e eu ergui os olhos. Rosa entrou no quarto seguida por um interno e uma enfermeira conduzindo um pe­queno carro. Passou para o lado esquerdo do leito e ali se quedou, sorrindo para mim.

— Olá, Jonas.

— Olá, Rosa — mastiguei através das ligaduras. — É altura de mudá-las outra vez? Só a esperava depois de amanhã.

— A guerra acabou.

— Sim — disse eu. — Já sei.

— E, quando me levantei, estava uma manhã tão maravi­lhosa que me decidi a voar até cá abaixo e tirar-lhe as liga­duras.

Olhei-a de olhos semicerrados.

— Compreendo — murmurei. — Interrogava-me constantemente para saber onde vão os médicos buscar a sua lógica

— Isto não é lógica de médico. É lógica de mulher. Tenho a vantagem de ter sido uma mulher, muito antes de me tornar uma médica.

Ri-me.

— Estou cheio de gratidão pela lógica, quer venha da médica, quer da mulher. Será agradável tirar as ligaduras, ainda que por um curto momento.

Continuou a rir, porém, os seus olhos estavam sérios.

— Desta vez, vão-se tirar definitivamente, Jonas.

Olhei-a surpreendido quando ergueu uma tesoura do carro. Soergui-me e detive-lhe a mão. Subitamente, receei tê-la ali, a tirar as ligaduras. Sentia-me seguro com elas enroladas à volta do rosto como um casulo, escondendo-me dos olhos curiosos do mundo.

— Não era cedo de mais? Já estará bom?

Ela pressentiu o que se passava em mim.

— O seu rosto estará ferido por algum tempo, ainda — disse retalhando o casulo de ligaduras. — Mesmo quando a carne e os músculos recomeçarem o seu trabalho. Mas isso passará. Não se pode ficar para sempre escondido atrás de uma máscara, pois não?

Era a médica a falar, não a mulher. Ergui os olhos para a cara dela enquanto tesourava e desenrolava, tesourava e descobria, até que todas as ligaduras foram tiradas e me senti tão despido como um bebé recém-nascido, uma estranha frescura no rosto. Tentei ver-me reflectido nos olhos dela, mas estavam calmos e inexpressivos, impessoais e profissionalmente desprendidos. Senti-lhe os dedos fazerem pressão contra as minhas bochechas, o meu queixo. Suavemente, afastarem-me os cabelos da testa.

— Feche os olhos.

Fechei-os. Senti-lhe os dedos tocarem ao de leve as pálpebras.

— Abra.

Abri-os. A sua cara continuava sossegada e nada revelava.

— Sorria — disse ela. — Assim. — Fez uma larga e desgraciosa careta que era uma cómica imitação do seu quente e habitual sorriso.

Esforcei-me. Esforcei-me até que finíssimas dores me apanharam a cara e começaram a queimar como se estivesse no inferno. Mas insisti.

— O. K. — disse ela, sorrindo agora. Sorrindo realmente. — Pode parar.              

Parei e fixei-a.                          

— Que tal, doutora? — Tentava manter o diálogo. — Horrível?

— Não está mau — afirmou sem indulgência. — Você sabe que nunca foi uma beleza de fazer delirar. — Tirou um espelho do carro. — Aqui está. Veja você mesmo.

Não olhei para o espelho. Não me queria ver precisamente agora.

— Posso fumar primeiro um cigarro, doutora?

Silenciosamente, voltou a pôr o espelho no carro e tirou um maço de cigarros do bolso do casaco. Sentou-se na beira da minha cama, colocou um nos lábios, acendeu-o, depois estendeu-mo. Pude sentir ainda o ligeiro sabor do seu bâton quando engoli o fumo.                                        

— Cortou-se terrivelmente quando Winthrop o empurrou pelo postigo. Mas, felizmente...                

— Soube isso? — perguntei, interrompendo-a. — Acerca de Amos, quero dizer. Como soube?      

— De si. Enquanto esteve sob a anestesia. Obtivemos os fragmentos da história enquanto íamos retirando os fragmentos de vidro. Felizmente, nenhum dos importantes músculos faciais foi severamente afectado. Eram, de maneira geral, lesões super­ficiais. Pudemos fazer os necessários enxertos rapidamente e com sucesso, posso acrescentar.

Ergui a mão.

— Agora já posso pegar no espelho, doutora.

Agarrou-me no cigarro e estendeu-me o espelho. Levan­tei-o e, quando o olhei, senti percorrer-me um calafrio.

— Doutora — murmurei roucamente. — Pareço-me exactamente com o meu pai!

Tirou-me o espelho da mão e eu levantei os olhos para ela. Sorria.

— Sério, Jonas? Mas você pareceu-se sempre com ele.

Mais tarde, Robair trouxe-me os jornais. Vinham cheios com a capitulação do Japão. Passei os olhos por eles despreocupadamente e atirei-os para o lado.

— Quer que lhe arranje outra coisa para ler, Mr. Jonas?

— Não — respondi. — Não, obrigado. Não tenho muito gosto pela leitura.                                          

— Está bem, Mr. Jonas. Talvez prefira dormir um pouco.

Encaminhou-se na direcção da porta.

— Robair.

— Sim, Mr. Jonas?

— Pareci-me... — hesitei, os meus dedos tocaram instinti­vamente a minha cara. — Pareci-me sempre assim?

Os seus dentes brancos brilharam num sorriso.

— Sim, Mr. Jonas.

— Com meu pai?

— Escarrapachado.

Quedei-me em silêncio. É estranho como toda a vida se tenta não ser como certa pessoa e saber-se, simplesmente, que se foi marcado de forma indelével pelo sangue que nos corre nas veias.

— Mais alguma coisa, Mr. Jonas?

Olhei para Robair e sacudi a cabeça.

— Vou tentar dormir.

Recostei-me sobre a almofada, fechei os olhos. Ouvi a porta fechar-se e, pouco a pouco, o barulho da rua esbateu-se. Adormeci. Parecia-me que dormia muito ultimamente. Como se tentasse recuperar todo o sono que me neguei no passado. Mas não devia ter adormecido há muito, pressenti alguém dentro do quarto.                                            

Abri os olhos. De pé, junto da minha cama, Jennie observava-me. Quando me viu os olhos abertos, riu-se.

— Olá, Jonas.                                          

— Estava a dormir — disse eu, como uma criança que acaba de dormir a sesta. — Sonhava qualquer idiotice. Sonhava que era centenas de anos mais velho.

— Foi um sonho feliz, então. Estou contente. Sonhos fe­lizes ajudar-te-ão a pôr bom depressa.

Ergui-me sobre um cotovelo para alcançar os cigarros em cima da mesa-de-cabeceira e as roldanas guincharam. Bateu rapi­damente as almofadas e ajeitou-as nas minhas costas. Acendi um cigarro. O fumo acordou-me por completo.

— Dentro de semanas tiram-te o aparelho da perna e podes voltar para casa.

— Espero que sim, Jennie — disse eu.  

De repente, compreendi que não vestia a bata branca do hospital.          

— É a primeira vez que te vejo de véu preto. Alguma coisa especial?

— Não, Jonas. É o que visto sempre, excepto quando estou de serviço no hospital.

— Então, é o teu dia de folga?

— Não há dias de folga quando se está ao serviço de Nosso Senhor — disse ela com simplicidade. — Não, Jonas, vim para te dizer adeus.

— Adeus? Mas não compreendo. Disseste que ainda passa­riam algumas semanas antes que eu...

— Vou-me embora, Jonas.

Fixei-a estupidamente. — Vais-te embora?

— Sim, Jonas — afirmou ela, sossegadamente. — Estive aqui no Mercy Hospital só até conseguir transporte para as Filipinas. Estamos a reconstruir lá um hospital destruído pela guerra. Agora posso partir, por avião.

— Mas não podes, Jennie — protestei. — Não podes deixar o povo que conheces, a língua que falas. Serás uma estrangeira, estarás só.

Os seus dedos tocaram o crucifixo suspenso do cinto de couro negro por baixo da roupa. Um ar de profunda calma nos olhos cinzentos.

— Nunca estou só — murmurou com simplicidade. — Ele está sempre comigo.

— Não és obrigada, Jennie — disse eu. Peguei no folheto que encontrara em cima da mesa-de-cabeceira e abri-o. — Professaste temporariamente, apenas. Podes desistir em qualquer altura que queiras. Há ainda um período probatório de três anos, antes que tomes os votos finais. Não nasceste para isto, Jennie, É apenas porque estás ferida e desesperada. És demasiado jovem e bela para te esconderes por detrás de um véu negro.

Continuou calada.

— Não compreendes o que estou a dizer, Jennie? Quero que voltes para onde pertences.

Fechou os olhos lentamente e quando os abriu estavam mare­jados de lágrimas. Mas quando falou, a sua voz era firme com a segurança da sua inteligência e fé.

— És tu que não compreendes, Jonas — disse ela. — Não há lugar para onde eu deseje voltar, porque é aqui, na Sua casa, que eu pertenço.

Comecei a falar, mas ela levantou a mão, brandamente.

— Pensas que vim para Ele ferida e desesperada? Estás enga­nado — volveu-me com calma. — Não se foge da vida para Deus, mas corre-se para Deus para viver. Toda a vida pensei n'Ele, sem saber do que andava à procura. O amor que encontrei fora daqui era um mero escárnio do que eu sabia ser o amor; a cari­dade que pratiquei não foi senão a mais pequena parcela da que havia em mim para dar; a bondade que eu mostrava não era nada comparado com a bondade de Deus que existia em mim. Aqui, na Sua casa e no Seu trabalho, encontrei maior amor do que aquele que jamais conhecera. Com o Seu amor encon­trei segurança, contentamento e felicidade, de acordo com o Seu divino desejo.

Fez uma pequena pausa, olhando para o crucifixo nos dedos. Quando voltou a fitar-me, tinha os olhos límpidos e serenos.

— Há alguma coisa por esse mundo, Jonas, que possa oferecer-me mais que Deus?

Não respondi.

Lentamente, ergueu a mão esquerda na minha direcção. Baixei os olhos e vi o pesado anel de prata no seu terceiro dedo.

— Ele convidou-me para a Sua casa — prosseguiu ela — e tomei o Seu anel no meu dedo para poder estar em Sua glória para sempre.

Tomei-lhe a mão e os meus lábios afloraram o anel. Sen­ti-lhe os dedos deslizarem pelo meu cabelo, suavemente. A se­guir andou até aos pés da cama, onde se voltou para me olhar.

— Pensarei em ti com frequência, meu amigo — prometeu ela, gentilmente. — E orarei por ti.

Estava silencioso quando atirei fora o cigarro. Havia nos olhos de Jennie um encanto que nunca tinha visto antes.

— Obrigado, Irmã — disse, reconfortado.

Sem dizer mais nada, voltou-se e saiu. Olhei demoradamente para os pés da cama, onde ela estivera. Mas, agora, até o seu fan­tasma tinha desaparecido.

Afundei a cara na almofada e chorei.

Deixei o hospital no princípio de Setembro. Estava sentado na cadeira de rodas a ver Robair a empacotar o resto das minhas coisas, quando a porta se abriu.

— Eh!, Júnior!

— Nevada! Que andas a fazer cá por baixo?

— Vim para te levar para casa.

Ri-me. É engraçado como se sente uma grande alegria quando, de repente, se encontra alguém em quem andámos a pensar sempre durante anos.

— Não devias ter feito isso — disse eu. — Robair seria capaz de se desenrascar bem.

— Pedi-lhe para vir, Mr. Jonas. Calculei que seria como nos velhos tempos. Fora do rancho, sem nada que fazer, fica-se extremamente só.

— Eu calculei que podia gozar umas férias — disse Nevada. — A guerra acabou e o circo está encerrado por causa do Inverno. E não há nada que mais agrade a Martha do que tratar de um pequeno inválido. Está lá em baixo a aprontar-nos as coisas.

Olhei para os dois e fiz uma careta.

— É negócio arrumado, hã?

— Exactamente — disse Nevada. Colocou-se atrás da ca­deira de rodas. — Pronto?

Robair fechou a mala e pegou-lhe.

— Tudo em ordem, Mr. Nevada.

— Vamos, então — respondeu Nevada e empurrou a cadeira de rodas pela porta.

— Temos que parar em Burbank — disse eu, virando-me para ele. — Mac tem uma montanha de papéis para eu assinar. — Podia estar de cama, mas os negócios continuavam.

Buzz Dalton tinha uma carta ICA à nossa espera no aero­porto de San Diego. Chegámos a Burbank pelas duas horas dessa tarde. McAllister levantou-se e rodeou a secretária quando me empurraram o carro para dentro do seu gabinete.

— Sabes, é a primeira vez que me lembro de te ver sentado.

Ri-me.

— Aproveita agora. Os médicos dizem que ficarei como novo dentro de duas semanas.

— Bem, entretanto, vou aproveitando. Empurrem-no para detrás da secretária, amigos. Já tenho a caneta pronta.

Eram quase quatro horas quando assinei o último documento. Levantei os olhos, fatigado.

— Então, que novidades temos mais?

Mac olhou-me. Dirigiu-se para uma mesa encostada à parede.

— Isto — disse ele, e destapou algo que parecia um rádio com uma janela.

— Que é?

— O primeiro produto da Cord Electronics Company — explicou orgulhosamente. — Transformámos isto numa secção de radar convertido. É um aparelho de televisão.

— Televisão? — perguntei.

— Imagens pelo ar como rádio — disse ele. — Aparece sobre este écran como se fosse cinema em casa.

— Oh, é aquilo em que Dumont matraqueava antes da guerra. Não trabalha.

— Agora trabalha, disse Mac. — É o próximo grande acon­tecimento. Todas as companhias electrónicas e de rádio se estão a meter nisto. RCA, Columbia, Emerson, IT & T, GE, Philco. Todas. Queres ver como trabalha?

— Claro.

Afastou-se e pegou no telefone.

— Ligue-me para o laboratório. — Cobriu o bocal do telefone. — Vou mandá-los fazer uma demonstração — disse ele.

Um momento depois, caminhou para o aparelho e rodou um botão. Uma luz brilhou na janelinha. A seguir surgiu uma série de círculos e linhas. Gradualmente, apareceram letras.

 

       CORDS ELECTRONICS APRESENTA

 

De súbito, a legenda foi substituída por uma imagem, uma cena do Oeste. Um homem montado num cavalo caminhava direito à câmara. A câmara apanhou a cabeça do cavaleiro em grande plano e eu vi que era Nevada. Reconheci a cena, também. Era a cena de caça de O Renegado. Durante cinco minutos olhámos para o écran, em silêncio.

— Bem, cos demónios — exclamou Nevada, quando a cena acabou.                                          

Olhei para Robair. Havia uma expressão de pasmo na sua cara. Fitou-me.

— Aqui está o que eu chamo um milagre, Mr. Jonas — disse ele em voz baixa. — Agora posso ver um filme na minha própria casa, sem ter que ir sentar-me no galinheiro destinado aos negros.

— Então, é por isso que querem comprar os meus velhos filmes — disse Nevada.

Levantei os olhos para ele.

— Que queres dizer?

— Recordas-te daqueles noventa e tal filmes que fizemos e que hoje me pertencem? Inclinei a cabeça.

— Andam atrás de mim para os vender. Oferecem-me bom dinheiro por eles, também. Cinco mil dólares cada.

Olhei-o fixamente.

— Há uma coisa que aprendi no negócio de filmes — disse eu. — Nunca vendas completamente aquilo sobre que possas obter uma percentagem.

— Queres dizer que devo alugar como faço para um teatro?

— Exactamente. Conheço essas companhias. Se têm in­teresse em comprar por cinco, planeiam ganhar cinquenta.

— Não presto para grandes negócios como esse — comentou Nevada. — Estaria interessado em agarrar isso por mim, Mac?

— Não sei, Nevada. Não sou agente.

— Vai para diante e trata do negócio, Mac — disse eu. — Lembras-te do que me disseste acerca de fazer um ponto no momento oportuno?

Subitamente, sorriu.

— Okay, Nevada.

De repente, senti-me cansado. Atirei-me para trás na ca­deira. Robair estava ao meu lado num salto.

— Sente-se bem, Mr. Jonas?

— Estou apenas cansado — respondi.

— Talvez seja melhor ficar no apartamento esta noite. Podemos ir para o rancho de manhã.

Olhei Robair. A ideia de me meter na cama era muito bem vinda. O meu rabo estava ferido da cadeira de rodas.

— Mandarei vir um carro — disse Mac pegando no telefone. — Podem deixar-me no estúdio no caminho para a cidade. Tenho algum trabalho para acabar lá.

O meu cérebro manteve-se a trabalhar todo o tempo que rodámos em direcção ao estúdio. Quando o carro parou junto dos portões, algo se tornou claro para mim, subita­mente.

— Temos de fazer qualquer coisa quanto à substituição de Bonner — disse Mac, saindo. — Não é bom negócio ter um advo­gado a dirigir um estúdio. Não sei nada de filmes.

Olhei-o, pensativamente. Ele tinha razão, claro. Mas, então, quem? Apenas David, que se tinha ido embora. Não me inquietei de modo nenhum. Não havia qualquer imagem dentro de mim, ninguém que eu quisesse colocar na tela para todo o mundo ver. E no gabinete que eu acabara de deixar lá atrás havia uma pequena caixa com um écran que brevemente estaria em todos os lares. Ricos ou pobres. Aquela caixinha ia realmente mastigar o filme, como os teatros nunca tinham conseguido. Mas ainda não me inquietava.

Nos meus tempos de garoto, quando tinha um brinquedo entregava-me todo a ele. Não voltarei mais a esses tempos.

— Vende os teatros — murmurei para Mac.

— O quê? — gritou, como se não pudesse crer nos próprios ouvidos. — São a única coisa neste negócio que está a dar algum dinheiro.

— Vende os teatros — repeti.— Daqui a dez anos, ninguém mais lá porá os pés. Pelo menos, da maneira como estão agora. E enquanto se puder ver cinema nos próprios lares.

Mac encarou-me.

— E que queres que eu faça ao estúdio? — perguntou, uma ponta de sarcasmo na voz. — Vendo-o, também?

— Sim — respondi, muito calmamente. — Mas não agora. Daqui a dez anos, talvez. Quando as pessoas que fazem filmes para aquelas caixinhas se sentirem comprimidas e desesperadas por espaços. Vende-o, então.

— Que faremos dele, entretanto? Deixamo-lo apodrecer en­quanto pagamos impostos sobre ele?

— Não — repliquei. — Transforma-o num estúdio rentável como o do velho e afortunado Goldwyn. Se falirmos ou perdermos um pouco, não me queixarei.

Ele olhava para mim.

— Pensas realmente isso?

— Penso isso — respondi, olhando para o telhado do es­túdio. Pela primeira vez, via-o, realmente. Era negro e feio, com alcatrão. — Mac, vês aquele telhado?

Voltou-se e olhou, defendendo os olhos do sol-pôr.

— Antes de mais nada — disse eu, suavemente — pinta-os de branco.

Voltei a cabeça para dentro. Nevada olhava para mim de maneira estranha. A sua voz era quase triste.

— Nada mudou, pois não, júnior?

— Não — respondi fatigado. — Nada mudou.

Sentei-me no alpendre, olhando obliquamente o sol da tarde. Nevada saiu da casa à minha retaguarda e deixou-se cair numa cadeira. Tirou um pedaço de tabaco do bolso e, dando-lhe uma dentada, voltou a guardá-lo. Depois, do outro bolso, tirou um bocado de madeira e uma navalha e começou a cortar.

Olhei para ele. Vestia um par de desbotadas levis azuis. Uma velha camisa de anta, manchada de suor, que já tinha conhecido melhores dias, colava-se-lhe ao forte peito e aos ombros largos; um lenço vermelho e branco à volta do pescoço protegia-o do suor. Com excepção dos cabelos brancos, via-o sempre como quando eu era rapaz, as mãos rápidas, trigueiras e fortes.

Olhou-me sem os seus olhos brilhantes.

— Duas artes perdidas — disse ele.

— O quê?

— Mastigar e cortar.

Não respondi.

Olhou a peça de madeira que tinha nas mãos.

— Foram muitas as tardes que passei no alpendre com o teu pai, mastigando e cortando.

— Sim?

Virou-se e cuspiu um pedaço de tabaco sobre o parapeito para o chão.

Voltou-se para mim.

— Lembro-me de uma noite — disse ele. — O teu pai e eu estávamos sentados aqui, justamente como agora. Tinha sido um dia verdadeiramente infernal. Um desses esturricadores que nos fazem sentir as partes como se estivessem a afogar-se no próprio suor. — Subitamente, ergueu os olhos para mim e disse: — Ne­vada, nada poderei recear se cuidares do meu rapaz, estás a ouvir? Jonas é um bom rapaz. Algumas vezes o rabo pede-lhe demasiados açoites, mas é um bom rapaz e consegue fazer-se um homem melhor do que o pai, qualquer dia. Amo esse garoto, Nevada. É tudo quanto consegui.»

— Ele nunca me disse isso — volvi olhando para Nevada. Nunca. Nem uma única vez!  

Os olhos de Nevada brilharam.

— Os homens como o teu pai não perdem muito tempo a falar dessas coisas.

Ri-me.

— Não se limitou apenas a não me falar disso — repeti. — Nunca o mostrou. Estava sempre a espancar-me o rabo por isto ou por aquilo.

Os olhos de Nevada mergulharam fundo nos meus.

— Estava sempre onde quer que tu estivesses em dificuldades. Podia ter malhado, mas nunca te abandonou.

— Casou com a minha rapariga — disse eu, amargamente.

— Talvez fosse para teu bem. Talvez fosse porque sabia que ela nunca seria para ti.

— Porque me dizes isso agora? — perguntei.

Era incapaz de decifrar os seus olhos de índio.

— Porque o teu pai pediu-me uma vez que cuidasse de ti. Já cometi um erro. Vi como eras esperto nos negócios. Imaginei que tinhas crescido. Mas não. E eu não gostaria de falhar duas vezes a um homem como o teu pai.

Ficámos sentados em silêncio durante alguns minutos. Depois Martha veio com o meu chá e disse a Nevada que dei­tasse fora o tabaco mascado e deixasse de sujar o alpendre. Ele olhou para mim quase timidamente, ergueu-se e desceu para se desembaraçar do tabaco atrás das moitas.

Ouvimos um carro virar para a nossa estrada como se viesse para o alpendre.

— Gostava de saber quem é? — perguntou Martha.

— Talvez seja o doutor — disse eu. Era de supor que o velho Doutor Hanley aparecesse e me observasse uma vez por semana.

Entretanto, o carro estava na estrada e eu sabia quem era. Ergui-me, apoiado na minha bengala, quando Mónica e Jo-Ann se aproximaram de nós.

— Olá — gritei.

Tinham regressado à Califórnia para deixar o apartamento, explicava Mónica, e como queriam falar comigo acerca de Amos, pararam em Reno no regresso para Nova Iorque. O comboio não partia antes das sete horas.

Vi Martha olhar de relance significativamente para Nevada quando ouviu aquilo. Nevada pôs-se de pé e olhou para Jo-Ann.

— Tenho um gentil cavalo baio na cerca justamente dese­joso de ser cavalgado por uma jovem como a senhora.

Jo-Ann olhou-o com veneração. Podia-se afirmar que tinha estado no cinema pela maneira como o olhava. Era um verda­deiro herói vivo.

— Não sei — disse ela, de modo ambíguo. — Verdadeira­mente, nunca montei um cavalo.            

— Posso ensiná-la. Ê fácil, mais fácil do que rachar um cepo.

— Mas ela não está vestida para andar a cavalo — interveio Mónica.

Não estava. Não podia ser com aquele belo e florido ves­tido que a fazia parecer-se tanto com a mãe. Martha falou rapida­mente:

— Tenho um par de calções que encolheram até metade da minha estatura. Devem ficar-lhe bem!

Não sei de quem eram, mas uma coisa era certa. Nunca tinham sido de Martha, pela maneira como assentavam nos quadris de catorze anos de Jo-Ann, apertados e lisos, com a sugestão apenas das curvas a aparecerem. O cabelo de Jo-Ann estava puxado para trás em forma de rabo de cavalo e havia algo de curiosamente familiar no seu aspecto. Não consegui decifrar bem o que era.

Vi-a sair a porta a correr atrás de Nevada e voltar-se para Mónica. Ria-se para mim. Devolvi-lhe o sorriso.

— Está a crescer — disse eu. — Está a pôr-se uma bela moça.

— Num dia são crianças, no dia seguinte são jovens senhoras. Crescem demasiado depressa.

Aprovei com a cabeça. Estávamos sós, agora, e um estúpido silêncio tombou entre nós. Procurei um cigarro e olhei para ela.

— Quero falar-te de Amos.

Eram quase seis horas quando acabei de lhe contar o que aconteceu. Não havia lágrimas nos seus olhos. Porém o seu rosto estava triste e pensativo.

— Não posso chorar por ele, Jonas — disse ela, olhando-me. — Porque já chorei demasiadas vezes por sua causa. Compreendes?

Fiz que sim com a cabeça.

— Cometeu muitíssimas injustiças durante toda a sua vida. Sinto-me contente por que, finalmente, tenha feito uma coisa boa.

— Fez uma coisa muito corajosa. Pensei sempre que ele me odiava.

— Odiava — disse ela rapidamente. — Via em ti qualquer coisa que ele não era. Activo, afortunado, rico. Odiava-te visce­ralmente. Suponho que para o fim compreendeu como aquilo era idiota e o prejuízo que já te tinha causado. Por isso, tentava pôr as coisas direitas.

Eu observava-a.

— Que prejuízo me causou ele? Entre nós havia apenas ne­gócios.

Olhou para mim de forma peculiar.

— Ainda não consegues perceber?

— Não.

— Então, suponho que nunca perceberás — disse ela e ca­minhou para o alpendre.

Pudemos ouvir a gargalhada de Jo-Ann quando cavalgava o grande baio na cerca. Estava a ir muito bem para uma princi­piante. Olhei para Mónica.

— Parece que nasceu para a sela.

— E porque não? — replicou Mónica. — Diz-se que essas coisas são hereditárias.

— Não sabia que montavas.

Virou-se para mim, furiosa, de olhos magoados.

— Não sou o seu único autor — atirou ela friamente.

Encarei-a. Pela primeira vez se referia a qualquer coisa acerca do pai de Jo-Ann. Mas era um pouco tarde, agora, para estar furiosa por isso.

Ouvi a velha carripana do Doutor Hanley entrar na estrada. Parou junto da cerca e, saltando do carro, dirigiu-se para a bar­reira. Parava sempre que via um cavalo.

— É o Doutor Hanley. Está convencido que cuida de mim.

— Então não quero roubar-te mais tempo — disse Mónica, serenamente. — Despeço-me aqui mesmo.

Desceu as escadas e partiu na direcção da cerca. Acom­panhei-a com o olhar, perplexo. Nunca a imaginara com estas maneiras idiotas.

— Robair vai levá-las à estação — gritei.

— Muito obrigado! — atirou ela por sobre os ombros, sem se voltar. Vi-a parar e falar com o doutor; depois entrei em casa. Entrei na sala que meu pai utilizava como gabinete de estudo e afundei-me na poltrona. Mónica tivera sempre um tempera­mento irritável. Concluir-se-á agora que aprendera a domi­nar-se.

Comecei a sorrir, pensando como ela ia empertigada e pa­recia provocadora ao afastar-se de mim, de nariz no ar. Ainda era muito bela para uma mulher da sua idade. Eu tinha quarenta e um, o que queria dizer que ela tinha trinta e quatro. E nada, na forma como se meneava, o dava a entender.

A complicação com o Doutor Hanley é que ele era um conversador. Podemos tapar os ouvidos, coser a boca, fechar os olhos. Ele fala sempre. Não temos qualquer alternativa. Desde que a guerra começou tínhamo-lo a ele ou nada. Todos os jovens médicos haviam ido para o serviço militar.      

Eram seis e meia quando ele terminou o exame e começou a arrumar o estojo dos instrumentos.

— Está a ir muito bem — assegurou. — Mas não navego com eles nessa nova invenção de se pôr uma pessoa de pé tão depressa se possa mexer. Se isso ficasse agora a meu cargo, mantê-lo-ia outro mês no hospital.

Nevada, encostado à parede do gabinete, sorria quando enfiei as ceroulas. Olhei para ele e encolhi os ombros. Virei-me para o médico.

— Daqui a quanto tempo posso realmente começar a dar uns passeios?

O Doutor Hanley espreitou por cima das lentes bifocais.

— Pode começar imediatamente.

— Mas eu pensava que não estava de acordo com esses mé­dicos da cidade — repliquei. — Pensava que queria que eu re­pousasse um pouco mais.

— Não estou de acordo com eles — ripostou. — Mas desde que anda levantado, e como nada há a fazer quanto a isso, pode do mesmo modo dar um giro. Não faz sentido que ande por aí estendido.

Fechou o estojo dos instrumentos, pegou nele e dirigiu-se para a porta. Voltou-se e olhou para num.

— Aquilo é uma audaciosa que ali tem, a sua filha.

Encarei-o.

— Minha filha?

— Claro — disse ele. — Com o cabelo puxado para trás daquele modo, nunca vi uma rapariga que tenha tanto do pai. É a sua cara chapada quando era rapaz.

Sentia-me incapaz de falar. Olhava fixamente, apenas. Teria o idiota saído agora da barriga da mãe? Toda a gente sabia que Jo-Ann não era minha filha.

O doutor riu-se de súbito e deu uma palmada na coxa.

— Nunca esquecerei aquela vez em que a mãe dela veio ao meu consultório — contou. — Era então a sua mulher, claro. Nunca tinha visto uma barriga tão grande. Como eu calculava, não admirava que tivesse casado tão depressa. Começara cedo a fazer a sua sementeira.

Ergueu os olhos para mim, ainda a sorrir.

— Foi antes de a ter examinado, compreende — disse ele rapidamente. Podia ter-se rido de mim quando o exame acusou o facto apenas seis semanas depois. Mas estava tão nervosa e transtornada precisamente por causa disso que explodiu como se fosse um balão de gás. Ainda voltei aos papéis para verificar a data do vosso casamento e ter a certeza.

E arrisco as minhas ceroulas se não foi um facto que você a acordou quando muito duas semanas depois do casamento. Mas há uma coisa que tenho para lhe dizer, rapaz. — Voltou-se para a porta. — Quando você as enche, enche-as bem. Exactamente como o velho Gazizzis, onde pega! — E sempre a rir lascivamente foi-se embora.

Senti um nó apertado dentro de mim. Sentei-me na poltrona. Afinal, eu tinha-me enganado todos estes anos. De repente, compreendi o que Amos me queria dizer quando regressássemos do voo. Ele tinha visto como eu fui desequilibrado naquela noite e virou o meu próprio ódio contra mim. E Mónica era capaz e ter tomado parte nisso.

Que seria de elos, entre mim e Amos! Mas, ele pelo menos, tinha visto a luz por si próprio. Ninguém o podia atingir com isso. Tentara arrumar o assunto. Eu — eu nunca me debrucei para procurar resolvê-lo. Contentei-me em vituperar o mundo com a minha própria estupidez. E fora o único que estivera em guerra com o meu pai porque pensava que ele não gostava de mim. Era a maior de todas as anedotas.

Agora, podia enfrentar a verdade. Não era do seu amor que eu tinha dúvidas. Era do meu. No mais profundo de mim mesmo, eu soube sempre que não podia amá-lo tanto como ele a mim. Olhei para Nevada. Continuava encostado à parede, mas agora já não sorria.

— Também compreendeste, tu?

— Claro — confirmou ele. — Toda a gente compreendeu, excepto tu.

Fechei os olhos. Agora compreendia. Como naquela manhã no hospital quando me olhei ao espelho e vi a cara de meu pai. Foi o que eu vi em Jo-Ann ao pensar que havia nela algo de tão familiar esta tarde. A cara do pai. A minha cara.

— Que devo fazer, Nevada? — perguntei com voz rouca.

— Que queres fazer, filho?

— Quero-as de volta.

— Tens a certeza que é isso que desejas?

Fiz que sim com a cabeça.

— Então, façamo-las voltar — disse ele. Olhou para o relógio. — Temos ainda quinze minutos antes da partida do comboio.

— Mas como? Nunca conseguiremos chegar a tempo!

Fez menção de se dirigir para a secretária.

— Há o telefone.

Olhei-o de maneira idiota. Depois coxeei para o telefone. Liguei para o gabinete do chefe da estação de Reno e pedi-lhe que a procurasse. Enquanto esperava, olhei para Nevada. De repente, assustei-me e, como sempre que me assustava quando era miúdo, busquei o auxílio de Nevada.

— E se ela não quiser voltar?

— Voltará — disse ele, confiante. Sorriu. — Ainda está apaixonada por ti. É uma coisa que toda a gente vê menos tu.

Pelo telefone ouviu-se a voz dela, inquieta e ansiosa.

— Jonas, estás bem? Aconteceu alguma coisa?

Durante um momento não fui capaz de falar; depois recuperei a voz.

— Mónica. Não partas!

— Mas tenho de partir, Jonas. Tenho que estar no emprego até ao fim da semana.

— Manda o emprego à fava, preciso de ti!

O telefone quedou silencioso e, por um momento, pensei que ela tinha desligado.

— Mónica, está lá?

Ouvi-lhe a respiração no auscultador.

— Ainda estou, Jonas.

— Tenho sido injusto todo este tempo. Não sabia o que se passava com Jo-Ann. Acredita-me.

De novo o silêncio.

— Por favor, Mónica!

Começou a chorar. Conseguia ouvir-lhe o murmúrio da voz ao meu ouvido.

— Oh, Jonas, nunca deixei de te amar.

Olhei para Nevada. Ele sorriu e saiu, fechando a porta atrás dele.

Ouvia-a fungar. Depois, a voz subitamente clara e o som cheio e quente de apaixonada.

— Quando Jo-Ann era uma menina andava sempre a pedir um irmão.

— Apressa-te — respondi. — Farei o meu melhor.

Ela riu-se e houve um estalido quando a linha foi desligada. Não pousei o telefone, porque sentia que enquanto o segurasse Mónica estava presa a mim. Olhei então para a fotografia de meu pai sobre a mesa.

— Bem, velhote — disse eu, pedindo a sua aprovação pela primeira vez na minha vida —, fiz bem?

 

 

                                                                                Harold Robbins  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor