Martins Pena
COMÉDIA EM UM ATO
PERSONAGENS: MARIANA (mãe de...) EUFRÁSIA LUÍSA (irmã de...) JORGE (marido de Eufrásia) TIBÚRCIO (amante de Luísa) SOUSA (irmão das almas) FELISBERTO Um irmão das almas. Um cabo de Permanentes. Quatro soldados.
A Cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1844, no dia de Finados.
#
#
#
#
#
#
ATO ÚNICO Sala com cadeiras e mesa. Porta no fundo e à direita; à esquerda um armário grande. Durante todo o tempo da representação, ouvem-se ao longe dobres fúnebres.
CENA I
LUÍSA (sentada em uma cadeira junto à mesa) Não é possível viver assim muito tempo! Sofrer e calar é minha vida. Já não posso! (Levanta-se) Sei que sou pesada a D. Mariana e que minha cunhada não me vê com bons olhos, mas quem tem culpa de tudo isto é o mano Jorge. Quem o mandou casar-se, e vir para a companhia de sua sogra? Pobre irmão; como tem pago essa loucura! Eu já podia estar livre de tudo isto, se não fosse o maldito segredo que descobri. Antes não soubesse de nada!
CENA II Eufrásia e Luísa.
EUFRÁSIA (entrando vestida de preto como quem vai visitar igrejas em dia de Finados) Luísa, tu não queres ir ver os finados?
LUÍSA Não posso, estou incomodada. Quero ficar em casa.
EUFRÁSIA Fazes mal. Dizem que este ano há muitas caixinhas e urnas em S. Francisco e no Carmo, e além disso, o dia está bonito e haverá muita gente.
LUÍSA Sei o que perco. Bem quisera ouvir uma missa por alma de minha mãe e de meu pai, mas não posso.
EUFRÁSIA Missas não hei de eu ouvir hoje; missas em Dia de Finados é maçada. Logo três! O que eu gosto é de ver as caixinhas dos ossos. Há agora muito luxo.
LUÍSA Mal empregado.
EUFRÁSIA Por quê? Cada um trata os seus defuntos como pode.
LUÍSA Mas nem todos os choram.
EUFRÁSIA Chorar? E para que serve chorar? Não lhes dá vida.
LUÍSA E que lhes dão as ricas urnas?
EUFRÁSIA O que lhes dão? Nada; mas ao menos fala-se nos parentes que as mandam fazer.
LUÍSA E isso é uma grande consolação para os defuntos...
EUFRÁSIA Não sei se é ou não consolação para os defuntos, mas posso-te afirmar que é divertimento para os vivos. Vai-te vestir e vamos.
LUÍSA Já te disse que não posso.
EUFRÁSIA Luísa, tu és muito velhaca!
LUÍSA E por quê?
EUFRÁSIA Queres ficar em casa para veres o teu namorado passar. Mas não sejas tola; vai à igreja, que lá é que se namora bem no aperto.
LUÍSA (com tristeza) Já lá se foi esse bom tempo de namoro!
EUFRÁSIA Grande novidade! Brigaste com o teu apaixonado?
LUÍSA Não; mas depois do que soube, não devo mais vê-lo.
EUFRÁSIA E o que soubeste então?
LUÍSA Que ele era... Até não me atrevo a dizê-lo.
EUFRÁSIA Assustas-me!
LUÍSA Considera a coisa mais horrorosa que pode ser um homem.
EUFRÁSIA Ladrão?
LUÍSA Pior.
EUFRÁSIA Assassino?
LUÍSA Ainda pior.
EUFRÁSIA Ainda pior que assassino? Rebelde?
LUÍSA Muito pior!
EUFRÁSIA Muito pior que rebelde? Não sei o que seja.
LUÍSA Não sabes? (Com mistério) Pedreiro-livre!
EUFRÁSIA Pedreiro-livre? Santo breve da marca! Homem que fala com o diabo à meia-noite! (Benze-se)
LUÍSA Se fosse só falar com o diabo! Tua mãe diz que todos os que para eles se chegam ficam excomungados, e que antes quisera ver a peste em casa do que um pedreiro-livre. (Benze-se; o mesmo faz Eufrásia) Não, não! Antes quero viver toda a minha vida de favores e acabrunhada, do que casar-me com um pedreiro-livre. (Benze-se)
EUFRÁSIA Tens razão. Eu tenho-lhes um medo de morte; e minha mãe quando os vê, fica tão fora de si que faz desatinos. Ora, quem havia dizer que o Sr. Tibúrcio era também da panelinha!
LUÍSA Eu seria tão feliz com ele, se não fosse isso!...
EUFRÁSIA Também... Perdes um marido; pouco perdes... Para que serve um marido?
LUÍSA Para que serve um marido? Boa pergunta! Para muitas coisas.
EUFRÁSIA Sim, para muitas coisas más.
LUÍSA Dizes isso porque já estás casada.
EUFRÁSIA Essa é que é a desgraça: não termos medo ao burro, senão depois do coice. Um marido! Sabes tu o que é um marido? É um animal exigente, impertinente, insuportável... A mulher que quiser viver bem com o seu, faça o que eu faço: bata o pé, grite mais do que ele, caia em desmaio, ralhe e quebre os trastes. Humilhar-se? Coitada da que se humilha! Então são eles leões. O meu homem será sendeiro toda sua vida... E se hás de ter o trabalho de ensinares a esses animais, é melhor que não te cases.
LUÍSA Isso é bom de se dizer...
EUFRÁSIA E de se fazer. Vou acabar de me vestir. (Sai)
CENA III Luísa e depois Jorge.
LUÍSA (só) Pobre Jorge; com quem te foste casar! Como esta mulher te faz infeliz! Pedreiro-livre!... Quem o dissera!
(Entra Jorge vestido com opa verde de irmão das almas; traz na mão uma bacia de prata com dinheiro, ovos e bananas. Logo que entra, põe a bacia sobre a mesa)
JORGE (entrando) Adeus, mana Luísa.
LUÍSA Já de volta?
JORGE A colheita hoje é boa. É preciso esvaziar a salva. (Faz o que diz) Guarda metade deste dinheiro antes que minha mulher o veja, que tudo é pouco para ela; e faze-me destes ovos uma fritada e dá estas bananas ao macaco.
LUÍSA Tenho tanta repugnância de servir-me deste dinheiro...
JORGE Por quê?
LUÍSA Dinheiro de esmolas que pedes para as almas...
JORGE E então o que tem isso? É verdade que peço para as almas, mas nós também não temos alma? Negar que a temos é ir contra a religião, e além disso, já lá deixei dois cruzados para se dizer missas para as outras almas. É bem que todas se salvem.
LUÍSA Duvido que assim a tua se salve.
JORGE Deixa-te de asneiras! Pois pensas que por alguns miseráveis dois vinténs, que já foram quatro, (pega em uma moeda de dois vinténs) – olha, aqui está o carimbo... – um pai de família vá para o inferno? Ora! Supõe que amanhã afincam outro carimbo deste lado. Não desaparecem os dois vinténs e eu também não fico logrado? Nada, antes que me logrem, logro eu. E demais, tirar esmolas para almas e para os santos é um dos melhores e mais cômodos ofícios que eu conheço. Os santos sempre são credores que não falam... Tenho seis opas para os seis dias da semana; aqui as tenho. (Vai ao armário e tira seis opas) No domingo descanso. Preferi tê-las minhas – é mais seguro; não dou satisfação a tesoureiro nenhum. Às segundas-feiras visto esta verde que tenho no corpo; às terças, esta roxa; às quartas, esta branca; às quintas, esta encarnada; às sextas, esta roxa e branca e aos sábados esta azul.
LUÍSA E não entregas dinheiro nenhum para os santos?
JORGE Nada, o santo destas opas sou eu. Não tenho descanso, mas também o lucro não é mau.
LUÍSA O lucro... Aquele pobre velho que morava defronte do paredão da Glória também pedia esmolas para os santos, e morreu à míngua.
JORGE Minha rica, o fazer as coisas não é nada; o sabê-las fazer é que é tudo. O carola experiente deve conhecer as ruas por que anda, as casas em que entra e as portas a que bate. Ruas há em que se não pilha um real – essas são as da gente rica, civilizada e de bom-tom, que, ou nos conhecem, ou pouco se lhe dá que os santos se alumiem com velas de cera ou de sebo, ou mesmo que estejam às escuras. Enfim, pessoas que pensam que quando se tem dinheiro não se precisa de religião. Por essas ruas não passo eu. Falem-me dos becos aonde vive a gente pobre, das casas de rótulas, das quitandeiras; aí sim, é que a pipineira é grossa! (Vai guardar as opas) Tenho aprendido à minha custa!
LUÍSA (sorrindo-se) À custa dos tolos, deves dizer.
JORGE E quem os manda serem tolos? Mas, ah, neste mundo nem tudo são rosas. Eu vivia tão bem e tão feliz, e por desconto dos meus pecados dei a mais reverente das cabeçadas!
LUÍSA Qual cabeçada?
JORGE O casar-me. Ah, minha filha, o casamento é uma cabeçada que deixa o homem atordoado por toda a vida, se o não mata. Se eu soubesse...
LUÍSA Agora é tarde o arrependimento; queixa-te de ti.
JORGE Que queres? Um dia mete-se o diabo nas tripas de um homem e eilo casado. Ainda alguns são felizes, mas eu fui mesmo desgraçadíssimo! Esbarrei-me de focinhos! Encontrei com uma mulher linguaruda, preguiçosa, desavergonhada e atrevida... E para maior infelicidade, vim viver com minha sogra, que é um demônio; leva todo o dia a atiçar a filha contra mim. Vivo num tormento.
LUÍSA Eu bem o vejo.
JORGE Quando a roda principia a desandar, é assim. Dois meses depois de eu estar casado, morreu nossa mãe e tu te viste obrigada a vires para minha companhia, para aturares estas duas víboras. Ah, suportar uma mulher é um castigo, mas aturar também uma sogra é... nem eu sei o que seja!... É uma injustiça que Deus nos faz. E quando elas têm um conselheiro e compadre da laia do nosso vizinho Sousa... Isso... (Dá estalos com os dedos)
LUÍSA Dizes bem, Jorge, esse nosso vizinho é uma das causas do estado desgraçado em que vives com tua mulher, pelos conselhos que lhe dá.
JORGE Velho infernal, mexeriqueiro baboso! Não te poder eu correr com um pau pela porta fora! Mas ainda isto não é o maior infortúnio... Olha, Luísa, há coisas que um marido, por mais prudente que seja, não pode tragar. Tens visto aqui nesta casa o Felisberto?
LUÍSA Tenho sim.
JORGE Pois esse patife, que ninguém sabe do que vive, que não tem ofício nem benefício, que está todo o santo dia no Largo do Rocio, metido na súcia dos meirinhos, com o pretexto de ser primo de minha mulher entra por esta casa a dentro com toda a sem-cerimônia, sem dizer tir-te, nem guar-te; anda de um quarto para outro com toda a frescura, conversa-se em segredo com minha mulher e cala-se quando eu chego.
LUÍSA E por que o sofre, mano? Não é você o homem desta casa? Até quando há de ter medo de sua mulher?
JORGE Medo? Pois eu tenho medo dela? (Com riso forçado) É o que me faltava! O que eu tenho é prudência; não quero desbaratar...
LUÍSA (à parte) Coitado!
JORGE Ele já veio hoje?
LUÍSA Ainda não.
JORGE Admira-me!
CENA IV Felisberto e os mesmos.
FELISBERTO (entrando) Vivório!
JORGE (à parte) Já tardava!
FELISBERTO (para Luísa, sem dar atenção a Jorge) Adeus, minha bela Luisinha. A prima Eufrásia está lá dentro?
LUÍSA (secamente) Está.
(Felisberto encaminha-se para sair pela direita, sem dar atenção alguma a Jorge)
JORGE (seguindo-o) Então assim se pergunta por minha mulher e vai-se entrando? (Felisberto sai) E então? Querem-na mais clara? Que figura faço eu aqui? Que papel represento? (Passeia agitado de um para outro lado)
LUÍSA (seguindo-o) Meu irmão, por que não fazes um esforço para saíres deste vexame em que vives? Cobre energia! Mostre que é homem! Isto é uma vergonha! Não se acredita! Que fraqueza!
JORGE (parando) É fraqueza?
LUÍSA É, sim.
JORGE Pois quero mostrar-te para que sirvo. Quero mostrar-te que sou homem e que nesta casa governo eu.
LUÍSA Felizmente.
JORGE Vou ensiná-las, botar este biltre pela porta a fora! Basta de humilhação! Vai tudo com os diabos!
(Caminha intrepidamente e a passos largos para a porta da direita, mas aí chegando, para)
LUÍSA Então, paras?
JORGE (voltando) Melhor é ter prudência. Tenho medo de fazer uma morte.
LUÍSA Meu Deus, que fraqueza!
JORGE E retiro-me, que não respondo por mim... e mesmo porque vou à botica buscar o sinapismo que minha sogra pediu. (Sai)
CENA V Luísa, só, e depois Mariana.
LUÍSA Isto contado não é crível! Ter um homem medo de sua mulher e de sua sogra a esse ponto! Ah, se eu fosse homem e tivesse uma mulher como esta!...
MARIANA (entrando) Vai coser a renda da minha mantilha! (Luísa sai. Mariana estará de vestido de riscado e saia de lila preta) Pague o que come! É um trambolho que eu tenho em casa. A boa joia do meu genro julga que eu também devo carregar com a irmã. Está enganado; hei de atrapalhá-la até que a desgoste para sair daqui. Arre!
CENA VI Mariana e Sousa.
SOUSA (entrando vestido de opa)
Bons dias, comadre.
MARIANA Oh, compadre Sousa, por cá?
SOUSA Ando no meu fadário, comadre. É preciso ganhar a vida. (Põe a salva sobre a mesa)
MARIANA Isso é assim, compadre.
SOUSA E como já estou velho, escolho o ofício que mais me serve... Tiro esmolas.
MARIANA E as faz render, hein?
SOUSA Nada, comadre. Ganho só duas patacas por dia, que me paga o tesoureiro da irmandade para quem tiro esmola.
MARIANA Só duas patacas? Tão pouco, compadre?
SOUSA Eu podia fazer como grande parte dos meus companheiros, que tiram as esmolas para si, mas isso não faço eu; quisera antes morrer de fome. Dinheiro sagrado! Talvez a comadre zombe do que eu digo...
MARIANA Eu não, compadre.
SOUSA Porque consta-me que seu genro...
MARIANA Meu genro é um tratante.
SOUSA Há em todas as profissões velhacos que as desacreditam.
MARIANA Não se importe com isso, compadre.
SOUSA Oh, eu vivo tranquilo com minha consciência.
MARIANA Faz muito bem.
SOUSA Como vai a comadrinha?
(Aqui aparece à porta do fundo Jorge, que trará uma tigela na mão. Vendo Mariana e Sousa, para e escuta)
MARIANA Vai bem, compadre. Só o diabo do marido é que lhe dá desgostos; é uma besta que meti em casa...
SOUSA Comadre, as bestas também se ensinam...
JORGE (à parte) Patife!
MARIANA Deixe-o comigo, compadre.
SOUSA A comadre é mãe e deve vigiar na felicidade de sua filha. Os maridos são o que as mulheres querem que eles sejam. Sou velho e tenho experiência do mundo. A comadrinha que não fraqueie, senão ele bota-lhe o pé no pescoço.
JORGE (à parte) Tratante!
MARIANA Isso lhe digo eu sempre, e ela o faz. Olhe, compadre, quanto a isso puxou cá à pessoa... O meu defunto não via boia comigo...
CENA VII Os mesmos e Felisberto.
FELISBERTO Adeus, tia; vou-me embora.
MARIANA Vem cá, rapaz.
FELISBERTO O que quer?
MARIANA Ó compadre, você não achará um arranjo para este rapaz?
SOUSA Fraco empenho sou eu, comadre.
FELISBERTO Não preciso de arranjo.
MARIANA É melhor trocar as pernas por essas ruas como um valdevinos, em risco de ser preso para soldado? Andar sempre pingando e sem vintém para comprar uma casaca nova? Vê como os cotovelos desta estão rotos, e esta calça, como está safada.
FELISBERTO Assim mesmo é que eu gosto... É liberdade! Cada um faz o que quer e anda como lhe parece. Não nasci para me assujeitar a ninguém.
MARIANA Ai, que modo de pensar é esse? Então, compadre, não descobre nada?
SOUSA Eu? Só se ele quer também pedir esmolas, posso arranjar-lhe uma opa.
MARIANA Lembra muito bem. Ó sobrinhozinho, queres pedir esmolas?
FELISBERTO (insultado) Pois tia Mariana, acha que eu nasci para pedir esmolas? Isso é insultar-me! E o Sr. Sousa...
SOUSA Eu digo: no caso de querer...
MARIANA Estou vendo que nasceste para príncipe... Já te não lembras que teu pai era malsim?
FELISBERTO Isto foi meu pai; eu não tenho nada com isso.
SOUSA Pedir para santos é uma profissão honesta.
MARIANA Que não desonra a ninguém. Veste-se uma opa, entra-se pelas casas...
FELISBERTO (à parte) Entra-se pelas casas...
MARIANA ...bate-se à escada, e se se demoram a vir saber quem é, assenta-se o homem um momento, descansa...
FELISBERTO (embebido numa ideia, sem ouvir a tia) Entra-se pelas casas...
MARIANA ...vem o moleque ou a rapariga trazer o vintenzinho...
FELISBERTO Pois bem, tia, quero-lhe fazer o gosto; pedirei hoje esmola; até para ver se o ofício me agrada.
MARIANA Sempre te conheci muito juízo, sobrinhozinho. O compadre arranjalhe a opa?
SOUSA Fica a meu cuidado.
MARIANA Muito bem. E dê-me licença, que vou acabar de me vestir. (Sai)
CENA VIII Sousa e Felisberto; e depois Jorge.
FELISBERTO (à parte) Não me lembrava que opa, às vezes, dá entrada até o interior das casas...
SOUSA Vamos?
FELISBERTO Quando quiser.
(Encaminham para a porta do fundo; Jorge entra e passa por entre eles)
SOUSA (para Jorge, quando passa) Um seu criado, Sr. Jorge.
(Jorge não corresponde o cumprimento e dirige-se para a porta da direita)
FELISBERTO (voltando-se) Malcriado!
(Jorge, que está junto à porta para sair, volta-se)
JORGE Hein?
FELISBERTO (chegando-se para ele) Digo-lhe que é um malcriado!
JORGE (com energia) Isso é comigo?
FELISBERTO É sim.
JORGE (vindo para a frente da Cena) Há muito tempo que eu procuro esta ocasião para nos entendermos.
FELISBERTO Muito estimo. (Arregaça as mangas da casaca)
SOUSA Acomodem-se...
JORGE O senhor tem tomado muitas liberdades em minha casa.
FELISBERTO Primeiramente, a casa não é sua; e segundo, hei de tomar as liberdades que bem me parecerem.
SOUSA Senhor Felisberto!...
JORGE O senhor entra por aqui e não faz caso de mim?
FELISBERTO E que figura é o senhor para eu fazer caso?
SOUSA Senhor Jorge!... (Metendo-se no meio)
JORGE Chegue-se para lá; deixe-me, que estou zangado. O senhor fala com minha mulher em segredo, na minha presença...
FELISBERTO Faço muito bem, porque é minha prima.
JORGE (gritando e batendo com os pés) Mas é minha mulher! E sabe que mais? É por consideração a ela que agora mesmo não lhe esmurro estas ventas. (Sai com passos largos)
FELISBERTO Anda cá! (Quer segui-lo; Sousa o retém)
SOUSA Aonde vai?
FELISBERTO (rindo-se) Ah, ah, ah! Não sei aonde foi a prima achar este côdea para marido. Tenho-lhe dito muitas vezes que é a vergonha da família.
SOUSA É um homem sem princípios!
FELISBERTO Eu regalo-me de não fazer caso nenhum dele... (Ouvem-se gritos dentro) Ouça, ouça! Não ouve esses gritos? É a tia e a prima que andam com ele às voltas. Ah, ah!
SOUSA Deixá-lo, e vamos, que se vai fazendo tarde. (Saem ambos, rindo-se)
CENA IX Entra Jorge desesperado.
JORGE Os diabos que as carreguem, corujas do diabo! Assim não vai longe; desanda tudo em muita pancadaria. Ora cebolório! Que culpa tenho eu que o boticário se demorasse em fazer o sinapismo? É bem feito, Sr. Jorge, é bem feito! Quem o mandou ser tolo? Agora aguente... (Gritos dentro) Grita, grita, canalha, até que arrebentem pelas ilhargas! Triste sorte... Que sogra, que mulher! Ah, diabos! Maldita seja a hora em que eu te dei a minha mão; antes te tivesse dado o pé, e um coice que arrebentasse a ti, a tua mãe e a toda tua geração passada e por passar. É preciso eu tomar uma resolução. A mana Luísa tem razão; isto é fraqueza. Vou ensinar àquelas víboras!
(Diz as últimas palavras caminhando com resolução para a porta; aí aparece Eufrásia e ele recua)
CENA X Jorge e Eufrásia.
EUFRÁSIA Quem é víbora?
(Eufrásia caminha para ele, que vai recuando)
JORGE Não falo contigo... (Recua)
EUFRÁSIA (seguindo-o) Quem é víbora?
JORGE (recuando sempre, e encosta-se no bastidor da esquerda) Já disse que não falo contigo!
EUFRÁSIA (junto dele) Então quem é? Sou eu? Fala!
JORGE (querendo mostrar-se forte) Eufrásia!...
EUFRÁSIA Qual Eufrásia! Sou um raio que te parta!...
JORGE Retira-te! Olha que te perco o respeito!
EUFRÁSIA (com desprezo) Pedaço de asno!
JORGE Pedaço de asno? Olha que te... (Faz menção de dar uma bofetada)
EUFRÁSIA (volta para trás, gritando)
Minha mãe, minha mãe!
JORGE (seguindo-a) Cala-te, demônio!
EUFRÁSIA (junto à porta) Venha cá!
CENA XI Mariana e os mesmos.
MARIANA (entrando com um pano de sinapismo na mão) O que é? O que é?
JORGE (recuando) Agora sim!
EUFRÁSIA Sô Jorge está-me maltratando!
MARIANA Grandessíssimo sacripante!
JORGE Sacripante?
EUFRÁSIA Deu-me uma bofetada!
MARIANA Uma bofetada na minha filha?
JORGE (atravessa por diante de Mariana e chega-se, rancoroso, para Eufrásia) Dei-te uma bofetada, hein?
MARIANA (puxando-o pelo braço) Que atrevimento é esse, grandessíssimo patife?
JORGE (desesperado) Hoje aqui há morte!
EUFRÁSIA Morte! Queres-me matar?
MARIANA Ameaças, grandessíssimo traste?
JORGE (para Mariana) Grandessíssima tartaruga!
MARIANA Tartaruga! A mim?
EUFRÁSIA (puxando-lhe pelo braço) Insultas a minha mãe?
JORGE (para Eufrásia) Grandessíssima lampreia!
EUFRÁSIA Que afronta! Ai, ai, que morro... (Vai cair sentada em uma cadeira e finge-se desmaiada)
JORGE Morre, arrebenta, que te leve a breca!
(Quer sair; Mariana o retém pela opa)
MARIANA Tu matas minha filha, patifão, mas eu hei de arrancar-te os olhos da cara...
JORGE Largue a opa!
MARIANA ...encher essa cara de bofetões!
JORGE Largue a opa!
MARIANA Pensas que minha filha não tem mãe?
JORGE Largue a opa!
MARIANA Pensas que eu hei de aturar a ti, e a lambisgoia da tua irmã?
JORGE (com raiva) Senhora!...
MARIANA Queres-me matar também, mariola?
JORGE (cerrando os dentes de raiva e metendo a cara diante da de Mariana) Senhora!... Diabo!...
MARIANA Ah!
(Dá-lhe com o pano de sinapismo na cara. Jorge dá um grito de dor, leva as mãos à cara e sai gritando)
JORGE Estou cego! Água, água!...
(Sai pelo fundo. Mariana desfecha a rir às gargalhadas, e o mesmo faz Eufrásia, que se levanta da cadeira. Conservam-se a rir por alguns instantes, sem poderem falar. Luísa aparece à porta)
EUFRÁSIA Que boa lembrança! Ah, ah!
LUÍSA (à parte) O que será?
MARIANA Que bela receita para maridos desavergonhados! Ah, ah!
EUFRÁSIA Já não posso rir-me... Ah, ah!
MARIANA Que cara fez ele (Vendo Luísa) O que queres?
LUÍSA (tímida) Eu...
MARIANA Bisbilhoteira! Vai buscar minha mantilha e o leque de tua cunhada!
(Luísa sai)
EUFRÁSIA Já sei o remédio daqui por diante.
MARIANA Sinapismo nele.
EUFRÁSIA Mas não vá ele ficar cego.
MARIANA Melhor para ti! (Entra Luísa com uma mantilha na mão e um leque, que entrega a Eufrásia) Dá cá; não podias trazê-la sem machucar? Desazada! (Põe a mantilha sobre a cabeça) Vamos que vai ficando tarde. Iremos primeiro a S. Francisco, que está aqui pertinho. (Para Luísa) E tu, fica tomando conta na casa, já que não tens préstimo para nada... Pague o que come; não sou burra de ninguém. Vamos, menina.
CENA XII Luísa e depois Tibúrcio.
LUÍSA (só) Não tenho préstimo... Sempre insultos! Sou a criada de todos nesta casa. Vou pedir ao mano que me meta no Convento da Ajuda.
TIBÚRCIO (dentro) Esmola para missas das almas.
LUÍSA Quem é?
(Tibúrcio aparece à porta, vestido de irmão das almas)
TIBÚRCIO Esmola para missas das almas.
LUÍSA (sem o reconhecer) Deus o favoreça!
TIBÚRCIO Amém. (Adianta-se)
LUÍSA O senhor o que quer?
TIBÚRCIO Deus me favorece...
LUÍSA O senhor Tibúrcio!
TIBÚRCIO Ele mesmo, que morria longe de ti.
LUÍSA Vá-se embora!
TIBÚRCIO Cruel, que te fiz eu?
LUÍSA Não fez nada, mas vá-se embora.
TIBÚRCIO Há oito dias que não te vejo. Tenho tanto que te dizer... Oito dias e oito noites levei a passar pela tua porta, e tu não me aparecias; até que tomei a resolução de vestir esta opa para poder entrar aqui sem causar desconfiança. Seremos felizes; nossa sorte mudou. (Põe a bacia sobre a mesa)
LUÍSA Mudou?
TIBÚRCIO Bem sabes que há muito tempo que ando atrás de um lugar de guarda da Alfândega, e que não tenho podido alcançar; mas agora já não preciso.
LUÍSA Não precisa?
TIBÚRCIO Comprei uma cautela de vigésimo, na "Casa da Fama", do Largo de Santa Rita, e saiu-me um conto de réis.
LUÍSA Ah!
TIBÚRCIO Vou abrir um armarinho. Agora posso pedir-te a teu irmão.
LUÍSA Não, não, não pode ser!
TIBÚRCIO Não queres ser minha mulher? Terás mudado? Ingrata!
LUÍSA Não posso, não posso! Meu Deus!
TIBÚRCIO Ah, já sei, amas outro. Pois bem; casa-te com ele. Quem o diria?
LUÍSA (chorando) Escuta-me...
TIBÚRCIO Não tenho que escutar. Vou-me embora, vou-me meter em uma das barcas de vapor da Praia Grande, até que ela arrebente... (Falsa saída)
LUÍSA Quanto sou infeliz!
TIBÚRCIO (voltando) Ainda me amas?
LUÍSA Ainda.
TIBÚRCIO Então por que não queres casar comigo?
LUÍSA Oh, acredita-me, é que eu não devo...
TIBÚRCIO Não deves? Pois adeus, vou para o Rio Grande. (Falsa saída)
LUÍSA Isto é um tormento que eu sofro!
TIBÚRCIO (voltando) Então, queres que eu vá para o Rio Grande?
LUÍSA Bem sabes quanto eu te amava, Tibúrcio; tenho disto te dado provas bastantes, e se...
TIBÚRCIO Pois dá-me a única que te peço: casa-te comigo. Ah, não respondes? Adeus, vou para Montevidéu. (Sai pelo fundo)
LUÍSA (só) Nasci para ser desgraçada! Eu seria tão feliz com ele; mas é pedreiro-livre... Foi bom que ele se fosse embora. Eu não poderia resistir...
TIBÚRCIO (parecendo à porta) Então, queres que eu vá para Montevidéu?
LUÍSA Meu Deus!
TIBÚRCIO (caminhando para frente) Antes que eu parta desta terra ingrata; antes que eu vá afrontar esses mares, um só favor te peço, em nome de nosso antigo amor.
Dize-me, por que não queres casar comigo? Disseram-te que eu era aleijado, que tinha algum defeito oculto? Se foi isso, é mentira.
LUÍSA Nada disso me disseram.
TIBÚRCIO Então por que é?
LUÍSA É porque... (Hesita)
TIBÚRCIO Acaba, dize...
LUÍSA Porque és... pedreiro-livre. (Benze-se)
TIBÚRCIO Ah, ah, ah! (Rindo-se às gargalhadas)
LUÍSA E ri-se?
TIBÚRCIO Pois não me hei de rir? Meu amor, isto são caraminholas que te meteram na cabeça.
LUÍSA Eu bem sei o que é. Falas com o diabo à meia-noite; mata as crianças para lhes beber o sangue; entregaste tua alma ao diabo; frequenta as...
TIBÚRCIO (interrompendo-a) Tá, tá, tá! O que aí vai de asneiras! Não sejas pateta; não acredite nestas baboseiras.
LUÍSA Baboseiras, sim!
TIBÚRCIO Um pedreiro-livre, minha Luísa, é um homem como outro qualquer; nunca comeu crianças nem falou com o diabo à meia-noite.
LUÍSA Visto isso, não é verdade o que te digo?
TIBÚRCIO Qual! São carapetões que te meteram nos miolos para talvez te indisporem comigo. A maçonaria é uma instituição...
LUÍSA Dá-me a sua palavra de honra que nunca falou com o diabo?
TIBÚRCIO Juro-te que é sujeitinho com quem nunca me encontrei.
LUÍSA Hoje ouviu missa?
TIBÚRCIO Nem menos de três.
LUÍSA Ah, que peso me tiraste do coração!
TIBÚRCIO Consentes que eu fale a teu mano?
LUÍSA (vergonhosa) Não sei...
Tibúrcio (beijando-lhe a mão)
Malditos tagarelas, que iam-me fazendo perder este torrão de açúcar! Minha Luísa, nós seremos muito felizes, e eu te...
MARIANA (dentro) Devagar, devagar, que não posso.
LUÍSA (assustada) É D. Mariana!
TIBÚRCIO Vou-me embora!
LUÍSA Não, não, que o podem encontrar no corredor! Minha cunhada o conhece... Esconda-se até que elas entrem, e depois saia!
TIBÚRCIO Mas aonde?
LUÍSA Neste armário.
(Tibúrcio esconde-se no armário, deixando a bacia sobre a mesa)
CENA XIII Entra Mariana, apoiada nos braços de Eufrásia e de Sousa.
MARIANA Ai, quase morri... Tira-me esta mantilha. (Luísa tira-lhe a mantilha) Ai! (Senta-se) Muito obrigada, compadre.
SOUSA Não há de quê, comadre.
EUFRÁSIA Acha-se melhor, minha mãe?
MARIANA Um pouco. Se o compadre não estivesse lá à porta da igreja para tirar-me do aperto, eu morria, certamente.
SOUSA Aquilo é um desaforo!
MARIANA É assim, é. Ajuntam-se esses brejeiros nos corredores das catacumbas para apertarem as velhas e darem beliscões nas moças.
SOUSA E nos rasgarem as opas e darem caçoletas.
EUFRÁSIA É uma indecência!
MARIANA Espremeram-me de tal modo, que ia botando a alma pela boca a fora.
EUFRÁSIA E a mim deram um beliscão, que quase arrancaram carne.
MARIANA É insuportável!
SOUSA Principalmente, comadre, em S. Francisco de Paula.
MARIANA Estão horas inteiras num vaivém, só para fazerem patifarias.
EUFRÁSIA A polícia não vê isso?
MARIANA Ai, estou que não posso. Compadre, dê-me licença, que vou-me deitar um pouco.
SOUSA Essa é boa, comadre!
MARIANA (levanta-se) Já arranjou a opa para meu sobrinho?
SOUSA A esta hora já está tirando esmolas.
MARIANA Muito obrigada, compadre. Não se vá embora, jante hoje conosco.
SOUSA A comadre manda, não pede.
MARIANA Até já; descanse.
(Saem Mariana, Eufrásia e Luísa)
CENA XIV Sousa e depois Felisberto.
SOUSA (só) Estou estafado! (Senta-se) A pobre da comadre, se não sou eu, morre; já estava vermelha como um camarão. (Ouvem-se dentro gritos de “pega ladrão!”) O que será? (Levanta-se; os gritos continuam) É pega ladrão!
(Vai para a porta do fundo; nesse instante entra Felisberto, que virá de opa e bacia, precipitadamente. Esbarra-se com Sousa e salta-lhe o dinheiro da bacia no chão)
FELISBERTO Salve-me, salve-me, colega! (Trazendo-o para frente da Cena)
SOUSA O que é isto homem? Explique-se!
FELISBERTO (tirando um relógio da algibeira) Tome este relógio, guarde-o.
(Sousa toma o relógio maquinalmente)
SOUSA Que relógio é esse?
FELISBERTO O povo aí vem atrás de mim, gritando: "Pega ladrão!" – mas creio que o logrei.
SOUSA E o senhor roubou este relógio?
FELISBERTO Não senhor! Entrei em uma casa para pedir esmola, e quando saí, achei-me com este relógio na mão, sem saber como... (Vozearia dentro) Aí vêm eles! (Corre e esconde-se no armário)
SOUSA (com o relógio na mão) E me meteu em boas, deixando-me com o relógio na mão! Se assim me pilham estou perdido. (Põe o relógio sobre a mesa) Antes que aqui me encontrem, safo-me. (Vai a sair; ao chegar à porta, para ouvir a voz de Jorge)
JORGE (dentro) Isto é um insulto! Não sou ladrão! Em minha casa não entrou ladrão nenhum!
SOUSA (voltando) Aí vêm!... E este relógio que me acusa... Pelo menos prendem-me como cúmplice. (Corre e esconde-se no armário)
CENA XV Entra Jorge.
JORGE Não se dá maior pouca vergonha... Julgarem que eu era ladrão! Creio que algum tratante aproveita-se da opa para entrar com liberdade nas casas e surrupiar alguma coisa, e os mais que andam de opa, que paguem!... Eu, roubar relógio!... Pois olhem, precisava bem de um. (Vê o relógio sobre a mesa) Um relógio! Que diabo! (Pegando no relógio) De quem será? Será roubado? Quatro bacias com esmolas! E então! E então tenho três homens dentro de casa? Oh, com os diabos! E todos três irmãos das almas... E ladrões ainda em cima! Vou saber como é isto. Mas, não; se eu perguntar, não me dizem nada. (Aqui aparece à porta da direita Eufrásia, sem que ele a veja) É melhor que eu veja com meus próprios olhos. Vou esconder-me no armário e de lá espreitarei. (Vai para o armário; Eufrásia o segue pé ante pé. Logo que entra no armário, ela dá um pulo e fecha o armário com a chave)
EUFRÁSIA Está preso! Minha mãe, venha ver o canário! (Sai)
CENA XVI Ouve-se dentro do armário uma questão de palavras, gritos e pancadas nas portas; isto dura por alguns instantes. Entra Mariana e Eufrásia.
EUFRÁSIA Está ali, minha mãe, eu o prendi!
MARIANA Fizeste muito bem. (Chega-se para o armário)
EUFRÁSIA Como grita! Que bulha faz!
MARIANA Aqui há mais de uma pessoa...
EUFRÁSIA Não senhora.
(Os gritos dentro redobram e ouve-se muitas vezes a palavra – ladrão! – pronunciada por Jorge)
MARIANA São ladrões! (Ambas gritam pela sala de um lado para outro) Ladrões, ladrões, ladrões!
(Luísa aparece à porta)
LUÍSA (entrando) O que é isto?
EUFRÁSIA Ladrões em casa!
(As três, correndo pela sala: – Ladrões, ladrões! Quem nos acode? Ladrões!)
CENA XVII Entra uma patrulha de quatro permanentes e um cabo. Virão de fardeta branca, cinturão e pistolas.
CABO (entrando) Que gritos são esses?
MARIANA Temos ladrões em casa!
CABO Aonde estão?
EUFRÁSIA Ali no armário!
LUÍSA (à parte) No armário! Que fiz eu? Está perdido...
(O cabo dirige-se para o armário com os soldados. Mariana, Eufrásia e Luísa encostam-se para a esquerda, junto à porta)
CABO (junto ao armário) Quem está aí?
JORGE (dentro) Abra, com todos os diabos!
CABO Sentido, camaradas! (O cabo abre a porta do armário; por ela sai Jorge, e torna a fechar a porta com presteza. O cabo agarra-lhe na gola da casaca) Está preso.
JORGE (depois de ter fechado o armário) Que diabo é isto?
CABO Nada de resistência.
JORGE O ladrão não sou eu.
EUFRÁSIA (do lugar onde está) Senhor permanente, este é meu marido.
JORGE Sim senhor. Eu tenho a honra de ser o marido da senhora.
EUFRÁSIA Fui eu que o fechei no armário, e por isso é que se deu com os ladrões que ainda estão lá dentro.
JORGE Sim senhor, a senhora fez-me o favor de me fechar aqui dentro, e por isso é que se deu com os ladrões... que aqui estão ainda...
CABO Pois abra.
(O cabo diz essas palavras a Jorge porque ele conserva-se, enquanto fala, com as costas apoiado no armário. Jorge abre a porta, sai Sousa; o cabo segura em Sousa. Jorge torna a fechar o armário e encosta-se. Sousa e o cabo que o segura caminham um pouco para a frente)
JORGE Este que é o ladrão.
SOUSA Não sou ladrão. Deixe-me!
MARIANA O compadre!
SOUSA Comadre... (Mariana chega-se para ele)
JORGE Segure-o bem, senão foge.
SOUSA Fale por mim comadre. Diga ao senhor que eu não sou ladrão.
JORGE É ele mesmo, e o outro que aqui está dentro.
CABO Vamos.
SOUSA Espere.
MARIANA Como é que você, compadre, estava ali dentro?
SOUSA Por causa de um maldito relógio que...
JORGE Vê? Está confessando que roubou o relógio. Ali está sobre a mesa.
CABO Siga-me.
SOUSA Espere!
MARIANA Um momento.
CABO Senão vai à força. Camaradas!
JORGE Duro com ele!
(Chegam-se dois soldados e agarram em Sousa)
CABO Levem este homem para o quartel.
SOUSA (debatendo-se) Deixem-me falar...
CABO Lá falará.
(Os soldados levam Sousa à força)
SOUSA Comadre! Comadre!
JORGE Sim, sim; lá falará! Patife, ladrão!
MARIANA Estou confusa!
JORGE Vamos aos outros que cá estão.
EUFRÁSIA Não explico isto!
(Jorge abre a porta do armário; sai por ela, com impetuosidade, Felisberto. Atira com Jorge no chão e foge pela porta do fundo. O cabo e os dois soldados correm em seu alcance)
CABO Pega, pega!
(Sai, assim como os soldados. Jorge levanta-se)
JORGE Pega ladrão! Pega ladrão! (Sai atrás, correndo)
CENA XVIII
Mariana, Eufrásia e Luísa.
MARIANA É meu sobrinho!
EUFRÁSIA É o primo!
LUÍSA (à parte) Terá ele saído?
MARIANA Não sei como foi isto.
EUFRÁSIA Nem eu.
MARIANA Deixei o compadre aqui sentado.
EUFRÁSIA O primo estava pedindo esmolas.
MARIANA Isto foi traição do patife do meu genro.
EUFRÁSIA Não pode ser outra coisa.
MARIANA Mas deixe-o voltar...
EUFRÁSIA Eu lhe ensinarei...
(Durante este pequeno diálogo, Luísa, que está um pouco mais para o fundo, vê Tibúrcio, que da porta do armário lhe faz acenos)
MARIANA O que estás tu a fazer acenos? Vem cá. (Pega-lhe pelo braço) Viste o que fez o belo do teu irmão? Como ele não está aqui, tu é que me hás de pagar.
LUÍSA Eu? E por quê?
MARIANA Ainda pergunta por quê? Não viste como ele fez prender a meu compadre e a meu sobrinho? Isto são coisas arranjadas por ele e por ti.
LUÍSA Por mim?
EUFRÁSIA Sim, por ti mesma.
LUÍSA Oh!
MARIANA Faze-te de nova! Não bastava aturar eu o desavergonhado do irmão; hei de também sofrer as poucas vergonhas desta deslambida. (Luísa chora. Aqui aparece à porta do fundo Jorge; vendo o que se passa, para em observação) Hoje mesmo não me dorme em casa. Não quero. Vai ajuntar a tua roupa, e rua! (Tibúrcio sai do armário e encaminha-se para elas)
TIBÚRCIO Não ficará desamparada.
(Mariana e Eufrásia assustam-se)
LUÍSA Que fazes?
TIBÚRCIO Vem, Luísa.
MARIANA Quem é o senhor?
TIBÚRCIO (para Luísa) Vamos procurar teu irmão.
LUÍSA Espera.
(Eufrásia observa com atenção a Tibúrcio)
MARIANA Isto está galante. Muito bem! Com que a menina tem os amantéticos escondidos. Está adiantada...
TIBÚRCIO Senhora, mais respeito!
MARIANA Olá!
LUÍSA Tibúrcio!...
EUFRÁSIA Tibúrcio! É ele mesmo! Fuja, minha mãe!... (Recua)
MARIANA O que é?
EUFRÁSIA Fuja, que é um pedreiro-livre! (Deita a correr para dentro)
MARIANA (aterrorizada) Santa Bárbara, São Jerônimo, acudam-me! (Sai correndo)
TIBÚRCIO (admirado) E esta!...
CENA XIX Jorge, que da porta tem observado tudo, logo que Mariana sai, corre e abraça-se com Tibúrcio.
JORGE Meu Salvador! Meu libertador!
TIBÚRCIO O que é lá isso? Temos outra?
JORGE Homem incomparável!
LUÍSA Mano!
TIBÚRCIO O senhor está doido?
JORGE (abraçando-se com os pés de Tibúrcio) Deixe-me beijar seus pés, vigésima maravilha do mundo!
TIBÚRCIO Levante-se, homem!
LUÍSA O que é isto, Jorge?
JORGE (de joelhos)
E adorar-te como o maior descobridor dos tempos modernos.
TIBÚRCIO Não há dúvida, está doido!
LUÍSA Doido? Faltava-me esta desgraça!
JORGE (levanta-se) Pedro Alves Cabral quando descobriu a Índia, Camões quando descobriu o Brasil, não foram mais felizes do que eu sou por ter descoberto o meio de meter medo a minha sogra e a minha mulher. E a quem devo eu esta felicidade? A ti, homem sublime.
TIBÚRCIO E é só por isso?
JORGE Acha pouco? Sabe o que é uma sogra e uma mulher? O senhor gosta da mana?
TIBÚRCIO Fazia tenção de o procurar hoje mesmo, para falar-lhe a este respeito.
JORGE Quer casar-se com ela?
LUÍSA Jorge!
TIBÚRCIO Seria minha maior ventura.
JORGE Pois bem, pratique com minha sogra o que eu praticar com minha mulher.
TIBÚRCIO Como é lá isso?
LUÍSA Que loucura!
JORGE Quer-se casar? É decidir, e depressa.
TIBÚRCIO Homem, se a coisa não é impossível...
JORGE Qual impossível! Minha sogra é uma velha.
TIBÚRCIO Por isso mesmo.
JORGE Luísa, vai chamá-las. Dize-lhes que estou só e que preciso muito falar-lhes. E tu não apareças enquanto elas cá estiverem. Anda!
(Luísa sai)
CENA XX Jorge e Tibúrcio.
TIBÚRCIO O que quer fazer?
JORGE Saberá. Esconda-se outra vez no armário, e quando eu bater com o pé e gritar: Satanás!, salte para fora, agarre-se a minha sogra e faça quanto eu fizer.
TIBÚRCIO Aqui mesmo nesta sala?
JORGE Sim, sim. E avie-se, que elas não tardam.
TIBÚRCIO Vá feito! Como é para ao depois casar-me... (Esconde-se no armário)
JORGE (à parte) Toleirão! Casa-te e depois dá-me novas. (Senta-se) Hoje é dia de felicidades para mim. Achei um marido para a mana; dei com dois tratantes no xilindró, e para coroar a obra vim a descobrir o meio de me fazer respeitar nesta casa. Ainda bem que eu tinha meus receios de encontrar-me com elas... Hão de estar danadas.
CENA XXI Mariana e Eufrásia aparecem à porta e, receosas, espreitam para a Cena.
JORGE Podem entrar.
MARIANA (adiantando-se) Podem entrar? A casa é tua?
EUFRÁSIA De hoje em diante hás de tu e a desavergonhada da tua irmã porem os quartos na rua.
JORGE Veremos...
MARIANA Que desaforo é esse? Ai, que arrebento!
JORGE (levanta-se e coloca-se entre as duas)
Até aqui tenho vivido nesta casa como um cão...
EUFRÁSIA Assim o merecias.
MARIANA E ainda mais.
JORGE Mas como tudo neste mundo tem fim, o meu tratamento de cão também o terá.
MARIANA Agora também digo eu – veremos!
JORGE Até agora não tenho sido homem, mas era preciso sê-lo. E o que havia eu de fazer para ser homem. (Com exaltação) Entrar nessa sociedade portentosa, universal e sesquipedal, aonde se aprendem os verdadeiros direitos do homem. (Faz momices e sinais extravagantes com as mãos)
EUFRÁSIA O que quer isto dizer?
MARIANA Ai, o que está ele a fazer?
JORGE Estes são os sinais da ordem. (Faz os sinais)
MARIANA Está doido!
JORGE (segurando-as pelos punhos)
A senhora tem feito de mim seu gato-sapato; e a senhora, seu moleque; mas isto acabou-se! (Levanta os braços das duas, que dão um grito) Acabou-se! Sou pedreiro-livre! Satanás!
MARIANA Misericórdia!
EUFRÁSIA Jesus!
(Tibúrcio salta do armário. Jorge deixa o braço de Mariana e, segurando em ambos os de Eufrásia, gira com ela pela sala, gritando: Sou pedreiro-livre! O diabo é meu compadre! Tibúrcio faz com Mariana tudo quanto vê Jorge fazer. As duas gritam aterrorizadas. Jorge larga a Eufrásia, que corre para dentro. Tibúrcio, que nessa ocasião está do lado esquerdo da Cena, larga também a Mariana, que atravessa a Cena para acompanhar Eufrásia; encontra-se no caminho com Jorge, que faz-lhe uma careta e a obriga a fazer um rodeio para sair. Os dois desatam a rir)
JORGE Bem diz o ditado, que ri-se com gosto quem se ri por último. Luísa? Luísa? (Para Tibúrcio) Um abraço. Que achado!
CENA XXII Entra Luísa.
JORGE Vem cá. (Conduzindo-a para Tibúrcio) Eis aqui a paga do serviço que acaba de fazer-me. Sejam felizes se o puderem, que eu de hoje em diante, se não for feliz, hei de ao menos ser senhor em minha casa. (Aqui entram correndo Mariana e Eufrásia, como querendo fugirem de casa. Mariana trará a mantilha na cabeça e uma trouxa de roupa debaixo do braço; o mesmo trará Eufrásia. Jorge, vendo-as) Pega nelas! (Jorge diz estas palavras logo que as vê. Corre de encontro a elas e fica por conseguinte junto à porta que dá para o interior, quando elas já estão quase junto à porta da rua. Aparece da porta um irmão das almas)
IRMÃO Esmola para missas das almas!
(As duas quase que se esbarram, na carreira que levam, contra o irmão. Dão um grito e voltam correndo para saírem por onde entraram, mas aí encontrando Jorge, que lhes fecha a saída, atravessam a Cena e, esbarrandose do outro lado com Tibúrcio, largam as trouxas no chão e caem de joelhos a tremer)
EUFRÁSIA Estamos cercadas!
MARIANA Meus senhorezinhos, não nos levem para o inferno!
JORGE Descansem, que para lá irão sem que ninguém as leve...
AMBAS Piedade! Piedade!
JORGE Bravo! Sou senhor em minha casa! E eu que pensava que era mais difícil governar mulheres!
(Mariana e Eufrásia conservam-se de joelhos, no meio de Jorge, Tibúrcio e Luísa, que riem-se às gargalhadas até abaixar o pano)
IRMÃO (enquanto eles riem e desce o pano) Esmola para missas das almas!
Martins Pena
O melhor da literatura para todos os gostos e idades