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OS JARDINS DA MEMÓRIA - P.2 / Orhan Pamuk
OS JARDINS DA MEMÓRIA - P.2 / Orhan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O telefone começara a tocar três ou quatro segundos depois de a porta abrir, mas Galip sentiu-se enlouquecer à ideia de que existisse uma ligação mecânica entre a campainha e a porta, à semelhança do que acontece com os implacáveis mugidos dos alarmes nos filmes de gangsters. Enquanto o telefone tocava pela terceira vez, Galip, na convicção de que ia chocar com Djélâl, tentava, no escuro, alcançar o aparelho. Ao quarto toque, decidiu que não havia ninguém no apartamento, mas à quinta que havia com certeza alguém, porque ninguém insiste em chamar tanto tempo um número de telefone se não souber que a casa não está deserta. Ao quinto toque, esforçava-se por reconstituir a topografia do apartamento-fantasma onde entrara pela última vez havia quinze anos; procurava às apalpadelas os interruptores, e surpreendeu-se ao deparar com o móvel pelo caminho: correu na direcção do toque, por entre a escuridão mais completa, esbarrou em móveis, derrubando alguns.

 

 

 

 

Quando, ao fim de muitos esforços, acabou por descobrir o aparelho, o seu corpo descobrira instintivamente uma poltrona, na qual se instalou.

— Está?

— Então, sempre acabou por voltar para casa! — disse-lhe uma voz desconhecida.

— Sim...

— Djélâl bey, há dias e dias que ando à sua procura. Peço-lhe desculpa de o incomodar tão tarde, mas preciso absolutamente de o ver, e o mais depressa possível.

— Não reconheci a sua voz...

— Já nos conhecemos, foi há muito tempo, num baile por altura da Festa da República. Apresentei-me a si, Djélâl bey, mas provavelmente você não se lembra de mim. Ao longo dos anos que foram passando depois desse baile, enderecei-lhe duas cartas, assinadas com pseudónimos que eu próprio esqueci. Numa dessas cartas, falava-lhe de uma explicação plausível para o mistério que rodeia a morte do sultão Abdulhamit. Na outra, referia-me a essa maquinação conhecida pelo nome de «crime da mala», que teria sido cometido por certos estudantes da Universidade. E aludia na minha carta ao papel desempenhado por um agente secreto que posteriormente desapareceu; a partir daí, você investigou o caso, resolveu-o, com a sua profunda inteligência, e falou detidamente dele nalgumas das suas crónicas.

— Sim.

— Neste momento, tenho outro dossier, aqui à minha frente.

— Deixe-mo no jornal.

— Sei que já lá não vai há muito tempo. Além disso, não sei até que ponto posso fiar-me nas pessoas da redacção, uma vez que se trata de um assunto escaldante e tão actual.

— Bom, nesse caso, deixe-o ao meu porteiro.

— Mas não sei a sua direcção. Nos Telefones, as Informações não fornecem a direcção correspondente a um número. E talvez você apareça na lista sob um nome falso: pelo menos não há qualquer indicação sobre uma pessoa chamada Djélâl Salik. Descobri um certo Djélâleddine Roumi, mas deve tratar-se de um nome literário.

— A pessoa que lhe forneceu este número não lhe deu o meu endereço?

— Não.

— Como é que arranjou o meu número de telefone?

— Através de um amigo comum. Hei-de explicar-lhe quando nos virmos. Há dias que ando à sua procura. Experimentei todos os meios imagináveis. Telefonei aos seus próximos. Falei com a sua tia, que parece gostar muito de si. Fui a certos lugares de Istambul que lhe são queridos, percorri a ruas de Kassime-Pacha e de Djihanguir, fui ao Konak, na esperança de o encontrar. Foi assim que soube que uma equipa de televisão inglesa, instalada no Péra-Palace, tinha a intenção de preparar uma emissão a seu respeito, e andam à sua procura por todo lado, também eles. Sabia?

— De que é que trata o seu dossier?

— Não quero revelar-lho pelo telefone. Dê-me a sua direcção, ainda não é muito tarde, e eu chego aí num instante. É realmente em Nichantache que mora?

— Sim — disse Galip com sangue-frio. — Mas esse género de casos já não me interessam.

— Não é nada disso, trata-se de um assunto que o vai interessar e que você comentará nos seus artigos. Vai poder até falar do caso aos membros da equipa de televisão inglesa... Dê-me a sua direcção.

— Desculpa lá, meu velho — disse Galip com um bom humor que o surpreendeu a ele próprio. — Mas deixei de frequentar os apreciadores de literatura.

Poisou muito calmamente o auscultador, estendeu automaticamente o braço, e a sua mão descobriu o interruptor do candeeiro, mesmo ao lado dele, em cima da secretária. Quando mais tarde pensasse nisso, Galip qualificaria de «miragem» o espanto e o medo que se apoderaram dele ao ver uma pálida luz alaranjada invadir a sala.

A sala era exactamente a mesma que quando ali vivia Djélâl, jovem jornalista, celibatário, havia vinte e cinco anos. A localização de todos os móveis, dos cortinados, das luzes, as suas cores, as suas sombras e os seus cheiros eram os mesmos. Dir-se-ia que certos móveis, que lhe pareciam novos, imitavam alguns dos móveis de outrora, para pregarem uma partida a Galip, para o fazerem crer que nunca vivera o último quarto de século. Mas quando os examinou de mais perto, Galip sentiu-se inclinado a concluir que os móveis não estavam a tentar enganá-lo, que o tempo que vivera desde a infância se dissipara bruscamente, como que por encanto, para desaparecer para sempre. Os móveis que haviam de súbito surgido da escuridão inquietante não eram novos; se lhe tinham dado a ilusão da novidade, era por ressurgirem diante dele, ao fim de tantos anos, sob o aspecto que apresentavam quando os vira pela última vez e que esquecera, quando os imaginava envelhecidos, quebrados, como as suas próprias recordações, talvez desaparecidos. Como se as mesas velhas, os cortinados murchos, os cinzeiros sujos, os sofás fatigados se tivessem recusado a submeter-se às aventuras e ao destino que a vida e as recordações de Galip lhes impunham; disse para consigo que um certo dia (o dia em que o tio Mélih, a mulher e a filha tinham chegado de Izmir para se instalarem no prédio) os móveis se tinham revoltado contra o destino que para eles fora imaginado, para depois procurarem e descobrirem a maneira de realizarem o seu próprio universo. Uma vez mais, Galip compreendeu com terror que todos os móveis, todos os objectos tinham sido dispostos no apartamento exactamente como estavam havia vinte e cinco anos, quando Djélâl, jovem jornalista, ali morava na companhia da mãe.

A mesma mesa de nogueira com as pernas que acabavam em garra, na mesma posição relativamente à janela com os mesmos cortinados verde-petróleo, o sofá forrado com o mesmo tecido da Sumerbank (tinham passado vinte e cinco anos, mas os mesmos galgos enfurecidos perseguiam ali com o mesmo ardor as mesmas infelizes gazelas numa floresta cheia de folhagens violeta); no encosto do sofá, a mesma mancha (gordura, cabelos, brilhantina...) continuava a lembrar uma silhueta humana; dentro de uma vitrina poeirenta, numa bandeja de cobre, o setter vindo dos filmes ingleses contemplava com a mesma paciência o mesmo universo; os relógios parados, as chávenas, as tesouras das unhas em cima dos radiadores, todas as coisas ali estavam, tal como Galip as deixara um dia, àquela mesma luz alaranjada, para nunca mais pensar nelas. «Limitamo-nos a esquecer certas coisas. Quanto a outras, nem sequer nos lembramos de as ter esquecido. São essas que devemos esforçar-nos por reencontrar!», escrevera Djélâl numa das suas crónicas mais recentes. Galip lembrava-se bem: quando os pais de Ruya tinham vindo instalar-se naquele apartamento, afastando Djélâl, aqueles móveis haviam pouco a pouco mudado de lugar, tinham envelhecido, tinham sido reparados e depois acabado por se afundar no desconhecido, não deixando qualquer rasto nas memórias. Quando o telefone voltou a tocar, Galip debruçou-se da velha poltrona onde se sentara sem despir o sobretudo e pegou no aparelho que lhe parecia agora tão familiar, sem pensar no que estava a fazer, certo como se sentia de ser capaz de imitar a voz de Djélâl.

Era outra vez a mesma voz ao telefone. Acedendo ao pedido de Galip, o homem apresentou-se, não já por meio de recordações comuns, mas declinando o seu nome de família e o seu primeiro nome: Mahir Ikindji. Em Galip, estas duas palavras não evocaram qualquer rosto, qualquer personagem.

— Estão a preparar um golpe de Estado. Trata-se de uma pequena organização no interior das forças armadas. Uma associação integrista, uma espécie de confraria. Acreditam na chegada do Messias. Crêem que os tempos chegaram. Além disso, vão passar à acção baseando-se nos seus artigos.

— Nunca me interessei por esse género de imbecilidades.

— Interessou, sim, Djélâl bey, interessou, sim senhor! Se já não te lembras, é porque estás a perder a memória, como confessaste nos teus artigos, ou então porque mudaste de opinião. Vai ver as tuas crónicas antigas, relê-as, e hás-de recuperar a memória.

— Não me vou lembrar de nada.

— Vais! Porque, tal como te conheço, não és homem para te deixares ficar na tua poltrona quando se anuncia um putsch militar.

— Sim, não sou dessa espécie de homem. Nem mesmo de espécie nenhuma.

— Vou ter contigo agora mesmo. Vou devolver-te a memória do teu passado, as recordações que perdeste. Acabarás por me dar razão e por te dedicar a fundo a este caso.

— Gostava muito, mas não posso ir ver-te.

— Vou eu ver-te a ti.

— Se conseguires descobrir a minha direcção. Já não saio de casa.

— Ouve uma coisa: na lista de Istambul há os números de telefone de trezentos e dez mil assinantes. Dado que eu tenho uma ideia do primeiro algarismo, sou capaz de verificar cinco mil números por hora. O que significa que daqui a cinco dias, o mais tardar, sou capaz de descobrir a tua direcção e o nome sob o qual te escondes, e a verdade é que estou cheio de curiosidade de te conhecer.

— Vais ter muito trabalho para nada! — disse Galip, fingindo-se seguro. — O meu número não vem na lista.

— Adoras os pseudónimos. Há anos que leio tudo o que escreves; sempre adoraste os nomes literários, os subterfúgios, todos os truques que uma pessoa pode usar para se fazer passar por outra. Em vez de teres pedido para não vires na lista, deves ter-te divertido a inventar um novo pseudónimo. Já tentei certos cognomes de que tu gostavas muito, verifiquei algumas das minhas suposições.

— Quais suposições?

O homem enumerou-as. Galip voltou a poisar o auscultador, desligou a ficha do telefone e disse para consigo que todos os nomes que acabava de ouvir se iam apagar da sua memória sem deixarem o mais pequeno rasto. Tirou o desenho do exercício escolar do bolso e escreveu esses nomes. O facto de um leitor seguir e se lembrar ainda melhor do que ele de tudo o que Djélâl escrevia pareceu-lhe tão estranho, tão surpreendente que o seu próprio corpo lhe pareceu perder a realidade. Adivinhou-se capaz de se apegar como a um irmão àquele leitor tão atento, embora ele lhe inspirasse antipatia. Se pudesse discutir com o homem as crónicas antigas de Djélâl, a poltrona em que estava sentado, aquela sala tão irreal, talvez adquirissem um sentido mais profundo.

Antes da chegada de Ruya e dos seus pais, quando, com seis anos de idade, subia até ao andar de Djélâl às escondidas do pai e da mãe -— que pouco apreciavam tais visitas —, nos domingos à tarde, à hora em que os outros membros da família ouviam todos juntos o relato do desafio de futebol na rádio (o próprio Vassif abanava a cabeça fingindo ouvir), era naquela mesma poltrona que se instalava para observar cheio de admiração a velocidade com que Djélâl, com um cigarro na boca, redigia na sua máquina de escrever a continuação de um folhetim sobre os grandes campeões de luta, que o grande especialista na matéria tivera o capricho de interromper.

Durante as noites frias de Inverno, no tempo em que Djélâl ainda não tivera de deixar aquele apartamento e lá moravam, todos juntos, ele, o tio Mélih, a mulher e a filha deste, e quando Galip subia a visitá-los, autorizado pelos pais, menos para ouvir as memórias africanas do tio Mélih do que para contemplar a tia Suzan e Ruya — mal começara ainda a descobrir então que Ruya era tão incrivelmente bela como a mãe —, era também naquela mesma poltrona que se sentava, bem em frente de Djélâl, que, com a sua mímica, troçava das histórias do pai. Nos meses seguintes, quando Djélâl desapareceu bruscamente e as discussões entre o pai de Galip e o tio Mélih faziam chorar sem descanso a avó, enquanto, lá em baixo, no apartamento dos avós todos discutiam questões de propriedade e de partes e de andares, alguém acabava por dizer: «Deviam mandar as crianças lá para cima», e eles ficavam os dois, um com o outro no meio daqueles móveis silenciosos. Ruya sentava-se na borda da poltrona, os pés dela ainda não chegavam ao soalho, e Galip ficava a contemplá-la com veneração. Fora havia vinte e cinco anos.

Ficou por muito tempo sentado na poltrona, silencioso. Depois, na esperança de descobrir qualquer indício que o levasse ao local onde Ruya e o irmão se escondiam, começou a esquadrinhar sistematicamente as outras divisões da casa-fantasma que Djélâl recriara para reencontrar as suas próprias recordações de infância e de juventude. Duas horas mais tarde, depois de ter vagueado por divisões e corredores, examinado cuidadosamente o conteúdo dos armários e roupeiros, menos à maneira do marido detective contra-vontade, lançado na busca da sua mulher desaparecida, do que como o apaixonado, transtornado pelo amor e pelo respeito, que percorre o primeiro museu consagrado ao objecto da sua paixão, chegara às seguintes conclusões: A julgar pelas duas chávenas poisadas na prateleira que Galip derrubara quando se precipitara no escuro em busca do telefone, acontecia a Djélâl receber visitas. Mas como as chávenas de porcelana fina se tinham partido, não lhe fora possível deduzir fosse o que fosse provando a fina camada de borra ressequida que ficara depositada no fundo (Ruya bebia sempre com muito açúcar o café). Segundo a data do mais antigo dos Milliyet metidos por baixo da porta, Djélâl encontrava-se no apartamento no dia do desaparecimento de Ruya. A crónica publicada nesse dia, intitulada «O dia em que se retirarão as águas do Bósforo», cujas gralhas haviam sido corrigidas com uma esferográfica verde, com a caligrafia sempre nervosa de Djélâl, fora poisada ao lado da velha Remington. No armário do quarto de dormir e no do corredor ao lado da porta, da entrada, nada indicava que Djélâl tivesse partido em viagem ou deixado a casa por algum tempo. Do pijama às riscas azuis dos armazéns militares a um par de sapatos nos quais a lama ainda não secara, do sobretudo azul-marinho que ele usava muitas vezes naquela altura do ano aos casacos de malha de Inverno e às inúmeras peças de roupa interior (numa das suas crónicas antigas, Djélâl pretendia que os homens que viveram com dificuldades na infância e na juventude, e enriquecem a partir de certa idade, são atingidos, todos eles, pela mesma doença: a mania de comprarem cuecas e camisolas interiores em tal quantidade que deixam por usar a maior parte dessas peças de roupa), sem esquecer as meias sujas no cesto da roupa para lavar, a casa era a de um homem que podia entrar a todo o momento, para retomar a seguir a sua vida quotidiana. Era sem dúvida difícil deduzir, a partir de pormenores como os lençóis ou as toalhas, a parte de reconstituição do antigo cenário, mas, segundo toda a evidência, o princípio de «casa-fantasma» aplicado na sala de estar fora-o igualmente nas restantes divisões do apartamento. Assim, reencontravam-se ali as paredes de um azul infantil do antigo quarto de Ruya, a carcaça (uma cópia?) da cama em cima da qual a mãe de Djélâl tinha o hábito de amontoar o seu material de costura, as amostras, os tecidos importados da Europa que as belas senhoras de Nichantache ou de Chichli lhe confiavam acompanhados de um modelo ou de uma fotografia. Se os cheiros — o que se compreendia com facilidade — se acumulam em certos lugares, com a sua carga de velhas evocações, para repetirem o passado, devem contudo associar-se a um dado visual que os complete. Galip compreendera que os cheiros só existem graças aos objectos que os rodeiam; assim, a mistura de perfume dos sabonetes Puro de outrora que lhe subia às narinas quando se aproximava do belo divã onde então dormia Ruya, e de água de colónia Yorgui Tomatis, hoje impossível de encontrar, que o tio Mélih usava. Mas não se via no mesmo quarto a cómoda onde se acumulavam os livros ilustrados que eram enviados para Izmir, para Ruya, depois de terem sido comprados em Beyoglou ou na loja de Alâaddine, as bonecas, os ganchos de cabelo, os rebuçados, os lápis e os álbuns para colorir; e também ali se não viam os sabonetes que soltavam sempre o mesmo perfume à volta da cama de Ruya, nem as imitações das águas de colónia Pe-Re-Ja, nem as pastilhas elásticas com sabor a hortelã.

Era muito difícil estabelecer, a partir deste cenário fantasma, a frequência das visitas de Djélâl ou o tempo que ele ali passava. Mas podia pensar-se que o número de pontas de cigarro de YeniHarman e de Guélindjik, nos velhos cinzeiros que pareciam dispostos ao acaso por aqui e ali, o asseio da louça nos armários de parede da cozinha, a frescura da pasta dentífrica no tubo de Ipana deixado aberto e implacavelmente estrangulado, com a raiva que inspirara o artigo de Djélâl, escrito muitos anos antes, no qual atacava essa marca de pasta, constituíam os elementos essenciais e constantes daquele museu, organizado com uma atenção e um cuidado quase doentios. Podia ir-se ainda mais longe e pensar que a própria poeira acumulada nos candeeiros, as próprias sombras que atravessavam essa poeira e se iam reflectir nas paredes descoloridas, e as próprias imagens dos desertos da Ásia Central ou das florestas de África que as formas dessas sombras despertavam havia vinte e cinco anos na imaginação de duas crianças de Istambul, tal como os fantasmas e as silhuetas aterradoras das fuinhas e dos lobos das histórias de bruxas e de demónios que lhes contavam a avó e as tias, constituíam fragmentos da incomparável reconstitui-ção que fora levada a cabo naquele museu (Galip repisava esta ideia, comovido a ponto de ter dificuldade em engolir a saliva). Era por isso que se tornava impossível calcular quanto tempo fora habitado o apartamento, a partir dos minúsculos rastos de água em frente da porta da varanda, que não fora bem fechada, ou dos carneiros de pó cinzento e sedoso que serpenteavam ao longo das paredes, ou do ranger das tábuas do soalho dilatadas sob o efeito do calor emanado pelos radiadores velhos. O pomposo relógio de parede em frente da porta da cozinha, e que, como gostava de repetir a tia Hâlé, era exactamente o mesmo que tiquetaqueava e dava alegremente as horas em casa de Djevdet bey, nos tempos do seu esplendor, parecia ter sido parado deliberadamente, a uma hora precisa — indicaria uma morte? —, como acontece com todos os relógios de todos os museus consagrados a Atatiirk nos mais diferentes pontos do país, dando assim unanimemente testemunho da mesma fidelidade doentia. Mas as nove horas e trinta e cinco minutos indicadas pelo relógio seriam as nove e trinta e cinco da manhã ou da noite, e que morte poderiam comemorar? Galip não pensou em pôr-se essa questão.

O peso espectral do passado, o sentimento de tristeza e de rancor que exalam os velhos móveis, vendidos porque já não há em casa lugar para eles, e que partem não se sabe para que horizontes longínquos e para o esquecimento, chocalhando ao ritmo da carroça do ferro-velho, abateram-se sobre ele, deixando-o sem o mínimo recurso. Só muito mais tarde Galip passou ao corredor, na intenção de esquadrinhar, para examinar a papelada que o enchia, o único móvel novo que descobrira naquela casa, a estante de madeira de olmo envidraçada, que ocupava toda a parede entre a casa de banho e a cozinha. E eis o que lá descobriu, depois de breves buscas, muito bem arrumado nas prateleiras com um cuidado maníaco:

Recortes de certas reportagens, de certos casos do dia, datando da época em que Djélâl era um jovem repórter; recortes de todos os artigos que falavam de Djélâl, dizendo bem ou mal dele; todas as crónicas, todos os artigos publicados por Djélâl sob nomes de empréstimo; todas as crónicas assinadas com o seu próprio nome; recortes de todos «Parece incrível, mas é verdade», «A chave dos vossos sonhos», «Outrora, hoje», «O vosso carácter revelado pela vossa letra», «O vosso rosto, a vossa personalidade», palavras cruzadas, adivinhas e outros escritos do mesmo género, praticados outrora por Djélâl; recortes de todas as entrevistas concedidas por Djélâl; rascunhos de artigos não publicados por diversas razões; notas pessoais; dezenas de milhares de recortes de artigos, de fotografias que Djélâl conservara ao longo dos anos; cadernos onde registara sonhos ou fantasias; coisas «a não esquecer»; cartas de leitores, aos milhares, classificadas e guardadas em caixas de frutos secos ou de castanhas conservadas em açúcar, ou também em caixas de sapatos; recortes de diversos folhetins redigidos no todo ou em parte por Djélâl, sob pseudónimos vários; duplicados das centenas de cartas de Djélâl aos seus leitores; centenas de brochuras, de revistas ilustradas, de livros bizarros, de anuários das Grandes Escolas Públicas ou da Escola Militar; caixas cheias de fotografias recortadas de jornais ou publicações ilustradas; fotografias pornográficas; fotografias de insectos ou de animais estranhos; dois grandes caixotes cheios de artigos sobre os houroufis e a ciência das letras; velhos bilhetes de futebol, de autocarro, de cinema, rabiscados de sinais, de letras, de símbolos; fotografias coladas em álbuns; fotografias avulsas; prémios atribuídos pelas associações de jornalistas; notas de banco da Rússia czarista, moedas turcas fora de circulação; agendas com endereços e números de telefone...

Galip descobriu três novos cadernos de endereços e voltou a sentar-se na poltrona da sala de estar para os ler escrupulosamente, página a página. Depois de investigações que duraram quarenta e cinco minutos, concluiu que todas as pessoas citadas naqueles cadernos tinham desempenhado um papel na vida de Djélâl ao longo dos anos 1950-1960; que as suas casas tinham sido muito provavelmente demolidas na sua maioria e que aquelas pessoas deviam ter mudado de direcção, pelo que se tornava impossível descobrir Djélâl e Ruya por meio dos seus antigos números de telefone. Depois de examinar rapidamente as antiguidades das prateleiras, Galip começou a ler as crónicas de Djélâl datando do início dos anos setenta e as cartas que recebera dos seus leitores durante o mesmo período, na esperança de encontrar entre elas a carta que aquele Mahir Ikindji afirmava ter escrito acerca do «crime da mala», bem como as crónicas de Djélâl sobre o mesmo assunto.

O próprio Galip se interessara por esse assassinato político, baptizado «o crime da mala» pelos jornais, porque conhecera alguns dos protagonistas do caso, durante os seus anos de liceu. Djélâl, pelo seu lado, interessara-se também, porque num país onde, segundo ele afirmava, tudo era plagiato, alguns jovens dotados de imaginação e organizados numa facção política tinham, decerto sem darem por isso, reproduzido um romance de Dostoievski, Os Possessos, até aos mais ínfimos pormenores. Enquanto folheava as cartas de leitores datadas dessa época, Galip tentava lembrar-se dos dois ou três serões em que Djélâl lhe falara desse assassinato. Fora um período sombrio, funesto e triste, que estava hoje esquecido e que era preciso esquecer. Ruya estava então casada com aquele «rapaz sério», relativamente ao qual Galip hesitava entre o respeito e o desprezo, a tal ponto que acabava por se esquecer do nome dele. Quando, deixando-se levar por uma curiosidade que, uma e outra vez, o fazia mais tarde arrepender-se do seu interesse, Galip dava ouvidos ao que se dizia do casal ou tentava informar-se a seu respeito, eram sempre notícias políticas que obtinha, muito mais que factos que lhe permitissem decidir se os recém-casados eram felizes ou infelizes... Uma noite de Inverno, enquanto Vassif estava sossegadamente ocupado a alimentar os seus peixes japoneses (wakin e tvatonai, de caudas em franja, abastardados pelas uniões consanguíneas) e a tia Hâlé fazia as palavras cruzadas do Milliyet, com um olho na televisão, a avó morrrera, com os olhos postos no tecto frio da fria divisão vizinha. Vestida com um sobretudo usado, tendo na cabeça um lenço ainda mais usado, Ruya aparecera sozinha no enterro («É muito melhor assim», declarara o tio Mélih, que não escondia o ódio que lhe inspirava aquele genro de extracção provinciana, e assim dava abertamente voz à opinião secreta de Galip), para desaparecer de novo, logo a seguir. Nos dias que se seguiram ao enterro, numa noite em que a família se encontrava reunida num dos andares do prédio, Djélâl perguntara a Galip o que sabia ele acerca do crime da mala, mas não conseguira obter resposta à pergunta que mais o interessava: de todos os jovens apaixonados pela política que Galip conhecera, algum deles, um único que fosse, teria lido o romance do escritor russo?

— Porque todos os crimes são imitações, como todos os livros. É por isso que nunca hei-de publicar um livro em meu nome — dissera Djélâl nessa noite. E na noite do dia seguinte, no apartamento da defunta, onde toda a família voltara a reunir-se, quando Galip e ele se viram a sós um com o outro, já muito tarde, Djélâl tornara ao assunto: — Mas os crimes mais sórdidos apresentam sempre alguma particularidade que não encontramos nos livros, nem sequer nos piores — dissera ele. E num silogismo que, ao longo dos anos seguintes, proporcionaria a Galip o gosto de uma aventura sempre que pensava nele, Djélâl prosseguira o seu pensamento: — Portanto, não são os crimes que são plágios completos, mas os livros. Os crimes que imitam os livros, porque se transformam em cópia de uma cópia, coisa que nos é tão querida, e os livros que contam crimes dirigem-se, tanto uns como outros, a um sentimento que existe em cada um de nós. O homem não pode abater a sua maça sobre o crânio da sua vítima a não ser se for capaz de se pôr no lugar de um outro (porque ninguém pode suportar de facto ver-se como assassino). A criatividade nasce a maior parte do tempo da cólera, dessa cólera que faz esquecer tudo, mas a cólera não pode fazer-nos passar à acção a não ser por intermédio dos métodos que os outros nos ensinaram: as facas, as pistolas, os venenos, as técnicas literárias, as formas do romance, as rimas, etc. O assassino «vindo do povo» que declara: «Eu já não pensava pela minha cabeça, senhor doutor juiz!», exprime a seguinte verdade bem conhecida: o crime é qualquer coisa que os outros nos ensinam, em todos os seus pormenores, com todas as suas tradições; aprendemo-lo nas lendas, nos contos, nas memórias, nos jornais, na literatura, numa palavra. O crime mais elementar, o homicídio involuntário, por exemplo, cometido por ciúme, é uma imitação inconsciente, uma cópia da literatura. E se eu fizesse um artigo acerca disto, que me dizes? — Mas nunca o escrevera.

Muito depois da meia-noite, enquanto Galip continuava a ler as velhas crónicas encontradas na estante, as luzes da sala empalideceram pouco a pouco, como as que iluminam um pano de teatro, e a seguir o motor do frigorífico soltou um gemido melancólico, com o cansaço de um camião com demasiada carga que muda de velocidade ao subir uma encosta íngreme e coberta de lama, e o apartamento mergulhou nas trevas. Como todos os habitantes de Istambul habituados a estes cortes de corrente, Galip disse para consigo que a luz em breve voltaria e deixou-se ficar por um longo momento imóvel na sua poltrona, com as pastas cheias de recortes de jornais poisadas nos joelhos. Ouvia os ruídos do prédio, esquecidos havia tantos anos, o ronronar dos radiadores, o silêncio das paredes, os estalidos das tábuas do soalho, os gemidos das torneiras e dos canos, o tiquetaque abafado de um relógio cuja localização esquecera, e o rugido inquietante do poço de ventilação. Era sem dúvida muito tarde quando, tacteando, se dirigiu para o quarto de dormir. Despiu-se e, enquanto enfiava o pijama de Djélâl, pensou na história do infeliz escritor que ouvira na véspera à noite no bar, nesse personagem que se deitava no escuro na cama vazia e silenciosa de um outro. Deitou-se, mas não conseguiu adormecer logo a seguir.

 

Você meteu-se na cama. Instalou-se entre móveis e objectos que lhe são familiares, entre os seus lençóis e os seus cobertores impregnados do seu cheiro e das suas recordações; a sua cabeça redescobriu o fofo habitual da sua almofada, você deitou-se de lado; uma vez recolhidas as pernas contra o ventre, inclina a cabeça, a forra fresca da almofada refresca-lhe a face; muito em breve, adormecerá, e esquecer-se-á de tudo no escuro, de tudo.

Vai esquecer-se de tudo: o poder implacável dos seus superiores, as palavras inconsideradas deles, a sua estupidez, o trabalho que você não pôde terminar, a incompreensão, a deslealdade, a injustiça, a indiferença, e os que lançam contra si acusações e os que estão prestes a fazê-lo, as suas preocupações monetárias, o tempo que passa depressa de mais, o tempo que não se decide a passar, tudo isto e todos os que não voltareis a ver, a sua solidão, a sua vergonha, as suas derrotas, os seus infortúnios, o seu estado tão lastimável, em breve terá esquecido tudo isso. E sentir-se-á feliz porque vai esquecer tudo. Fica à espera.

E consigo, os móveis à sua volta ficam também à espera, os armários tão banais, tão familiares, mergulhados no escuro ou na penumbra, as gavetas, as mesas, as prateleiras, as cadeiras, os cortinados corridos, a roupa que você acaba de despir, o seu maço de cigarros, a sua carteira e a sua caixa de fósforos no bolso do casaco, o seu relógio de pulso. Também eles ficam à espera.

E, ao longo dessa espera, ouve os ruídos costumados da rua, de um carro que passa na calçada, familiares também, e nas poças de água junto ao passeio, uma porta que bate algures nos arredores, o motor do frigorífico velho, dos cães que ladram ao longe, o corno de bruma que vem do mar, o estore de ferro de uma leitaria, bruscamente descido. Com o sono e os sonhos que evocam, esses ruídos carregados de recordações que desembocam no novo mundo do esquecimento bem-aventurado lembram-lhe que, muito em breve, os vai esquecer a todos, do mesmo modo que aos móveis que o rodeiam, do mesmo modo que à sua cama que lhe é tão querida, e que você vai deslizar para o interior de um outro universo. Está preparado.

Está preparado. Dir-se-ia que se distanciou do seu próprio corpo, das suas ancas, das suas pernas, com que está tão contente, dos seus próprios braços, das suas mãos, ainda mais próximas de si. Está preparado, e está tão feliz por estar preparado que já não experimenta a necessidade destes prolongamentos do seu corpo, e sabe, enquanto os seus olhos se fecham, que os vai esquecer também.

Sob as suas pálpebras cerradas, sabe que bastou um fraco movimento muscular para que as suas pupilas se afastassem da luz. Certos de que tudo vai bem, graças ao que evocam os cheiros e os ruídos familiares, os seus olhos parecem comunicar-lhe, não a luz quase imperceptível que reina no quarto, mas as mil cores de uma luz tão fulgurante como um fogo-de-artifício, que incendeia o seu espírito cada vez mais distendido, e que desliza cada vez mais em direcção à serenidade; você contempla as manchas e os clarões azuis, as brumas e as cúpulas violeta, as vagas de um azul carregado e trémulo, as sombras das cascatas malva, o balouçar das lavas violeta que surgem de uma boca de vulcão, o azul da Prússia das estrelas cintilantes e silenciosas. As formas e as cores repetem-se, desaparecem, reaparecem, transformam-se lentamente, fazem ressurgir certas cenas esquecidas, outras que nunca tiveram lugar, recordações reais ou imaginárias, e você maravilha-se com as mil cores que se atropelam no seu espírito. E, todavia, continua a não conseguir adormecer. Não será ainda muito cedo para o fazer lembrar esta evidência? Rememore aquilo que pensa nas noites em que adormece em sossego. Não pense sobretudo no que hoje fez, nem naquilo que conta amanhã fazer; evoque antes recordações gratas que o levem ao esquecimento no sono: elas esperaram o seu regresso e você acabou por regressar para elas, que se sentem por isso tão felizes! Ou então, não, não se vire para elas, você está num comboio que corre entre postes cobertos de neve, tendo a seu lado, num saco, tudo aquilo de que mais gosta; ou ainda, pronuncia em voz alta as palavras belíssimas que agora acorrem ao seu espírito; apresenta respostas inteligentes; todos os mais compreendem como se enganaram, calam-se e sentem admiração por si, ainda que a não manifestem; você estreita nos seus braços o corpo que é tão belo e que o ama tanto, e que se aperta contra si; regressa a esse jardim que nunca pôde esquecer, e onde colhe cerejas muito maduras; é Verão, é Inverno, é Primavera; e em breve será manhã, uma manhã completamente azul, uma manhã lindíssima, cheia de sol, uma manhã feliz em que tudo correrá bem... Mas você continua a não conseguir adormecer...

Então, faça como eu: movendo muito lentamente os seus braços, as suas pernas, sem as incomodar demasiado, vire-se devagar na sua cama, fazendo com que a sua cabeça alcance a outra extremidade da almofada, e a sua face, um canto fresco da fronha. Depois, pense na princesa Maria Paleóloga que, há setecentos anos, partiu de Bizâncio para se tornar na esposa do kban mongol Húlagú. Deixou Constantinopla, a cidade onde hoje você vive, para desposar Húlagú, que reinava no Irão, mas tendo Húlagú morrido antes da sua chegada, acabou por casar com Abaka, que sucedera ao seu pai. Viveu quinze anos no palácio do Grande Mongol, e depois, tendo o marido sido assassinado, ela voltou a estas sete colinas, a este mesmo lugar onde você tanto deseja dormir em sossego. Para conseguir identificar-se com a princesa Maria, imagine a tristeza dela quando se pôs a caminho, depois os dias que viveu na igreja que mandou construir quando voltou ao Corno de Ouro, e que transformou em seu lugar de retiro. Pense nos anões da sultana Handan. A mãe do sultão Ahmet I mandara construir para eles uma casa em eskudar, destinada a garantir a felicidade dos seus pequenos amigos a quem tanto queria; os anões ali viveram durante anos e depois, sempre auxiliados pela sultana, construíram um galeão, que deveria levá-los até uma região desconhecida de todos, um paraíso cuja localização nos mapas eles próprios ignoravam. Tinham partido de Istambul nesse navio. Pense no dia da partida deles, na tristeza da sultana ao separar-se dos seus queridos amigos, na melancolia dos anões agitando os seus lenços para lhe dizerem adeus do alto do galeão; imagine-os, como se estivesse a partir de Istambul, você também, e todos os seres humanos que lhe são queridos.

E quando tudo isto não basta para me fazer adormecer, meus queridos leitores, imagino então um homem atormentado, inquieto, que anda de um lado para o outro no cais de uma estação deserta, onde está à espera de um comboio que não chega. E quando posso decidir do lugar para onde ele conta partir, é porque me transformei nesse homem. Penso nos que se bateram num subterrâneo na porta de Silivri, para ajudarem os gregos que cercavam Istambul a penetrar na cidade.

Imagino a estupefacção do homem que descobriu o outro sentido das coisas. Sonho com o outro universo, nesse que surgiu do nosso. Comprazo-me a imaginar a minha embriaguez nesse outro universo, rodeado de significações inteiramente novas. Imagino o espanto bem-aventurado do amnésico. Imagino-me abandonado numa cidade-fantasma que me é desconhecida; aí onde viviam outrora milhões de homens, os bairros, as ruas, as pontes, as mesquitas, os navios, tudo está deserto, e, enquanto vaguear por esses lugares vazios e espectrais, lembrar-me-ei, com as lágrimas nos olhos, do meu próprio passado e da minha própria cidade, e ver-me-ei andar a passo lento a caminho do meu bairro, da minha casa, e desta cama onde me esforço por adormecer. Imagino que sou François Champollion, que, à noite, saía da cama para decifrar os hieróglifos da Pedra de Roseta, mas um Champollion que errasse nos meandros obscuros da minha memória, mergulhado neste sonho de sonâmbulo, entrando em becos para neles descobrir recordações perdidas. Imagino que sou Murat IV, a disfarçar-se uma noite para ir verificar a eficácia da interdição do álcool; armado da certeza de que ninguém poderá atacar-me, uma vez que os meus guardas me acompanham, também eles disfarçados, trato de ir ver com os meus olhos como vivem os meus súbditos nas mesquitas, nas raras lojas ainda abertas, e, entre eles, os que dormitam nas salas de fumo de ópio escondidas em passagens secretas... Aconteceu-me transformar-me num aprendiz de cardador, que vai de porta em porta murmurando ao ouvido dos homens das lojas a primeira e a última sílaba de uma senha, enquanto é fomentada uma das últimas revoltas dos janízaros do século XIX. Ou então, sou um mensageiro vindo do seu medressé, para despertar de um sono e de um silêncio de muitos anos os loucos de Deus de uma confraria proibida. E se continuo a não poder adormecer, queridos leitores, transformo-me no amante infeliz, seguindo as pistas das suas recordações, errando em busca da bem-amada perdida; abro uma a uma todas as portas da cidade; e por toda a parte onde se fuma ópio, por toda a parte onde as pessoas contam histórias umas às outras, em todas as casas onde se canta uma canção, procuro os traços do meu passado e os da minha bem-amada. E se a minha memória e a minha imaginação e os meus sonhos, que arrasto comigo, continuam a resistir ao cansaço destas peregrinações, num desses instantes bem-aventurados na fronteira entre o sono e o despertar, introduzo-me no primeiro espaço conhecido que me aparece, a casa de um amigo longínquo, ou a habitação abandonada de um parente próximo, abrindo as portas umas a seguir às outras, como se percorresse os recantos mais esquecidos da minha memória, e penetro na última sala, sopro a minha vela; deito-me na cama, adormeço entre objectos remotos, insólitos, estrangeiros.

 

Quando Galip acordou tranquilamente na manhã seguinte, depois de um longo sono profundo, a lâmpada, com mais de sessenta anos, continuava acesa no tecto, com o seu clarão amarelo como o papel envelhecido. Ainda com o pijama de Djélâl vestido, Galip apagou todas as luzes de casa, foi buscar o Milliyet que lhe tinham enfiado por baixo da porta, e instalou-se para o ler diante da mesa de trabalho do primo. Quando descobriu na crónica do dia as mesmas gralhas que descobrira durante a sua visita à redacção, no sábado à tarde (sejamos nós próprios em vez de seja você próprio), a sua mão estendeu-se maquinalmente para a gaveta, encontrou uma esferográfica verde e corrigiu o texto. E quando terminou o artigo, imaginou Djélâl, vestido com aquele pijama às riscas azuis, sentado àquela mesma mesa, a corrigir gralhas com aquela mesma esferográfica enquanto fumava um cigarro.

Tinha a impressão de estar no bom caminho. Tomou o pequeno-almoço com o optimismo do homem que, a seguir a uma boa noite de sono, começa com segurança um dia duro. Cheio de confiança em si próprio, parecia-lhe não ter de facto necessidade de se transformar num outro.

Preparou uma chávena de café, escolheu na estante algumas caixas cheias de cartas, de artigos e de recortes de jornais, e dispô-las em cima da mesa. Estava convencido de que acabaria por achar o que procurava contanto que examinasse com toda a atenção toda aquela papelada; não tinha dúvidas disso.

Ao longo das crónicas que abordavam os temas mais diversos: a vida cruel das crianças abandonadas que vivem nos pontões da Ponte de Gaiata, os directores de orfanatos gagos e malvados; os concursos de voo entre os amadores da ciência que, com as suas asas coloridas, se precipitam nos ares do alto da Torre de Gaiata como se se atirassem à água; a pederastia na história e a história dos que hoje a transformam num negócio, Galip soube dar provas da paciência e da atenção necessárias. Leu assim com a mesma boa-fé e a mesma confiança as recordações de um antigo mecânico do bairro de Béchiktache, que conduzira o primeiro Ford T de Istambul; um artigo sobre a necessidade de instalar um relógio de música em cada bairro da cidade; a significação histórica da interdição no Egipto e todas as passagens as Mil e Uma Noites que tratam de encontros galantes entre as mulheres dos haréns e escravos negros; as vantagens dos tramways puxados por cavalos de outrora que podiam ser apanhados em andamento; a história dos papagaios que tinham fugido de Istambul, onde os corvos os tinham substituído, e as precipitações de neve subsequentes...

A medida que ia lendo, recordava os dias em que lera aquelas crónicas pela primeira vez, tomava notas em pedaços de papel, relia certos parágrafos, detinha-se em certas palavras, voltava a guardar a crónica na caixa de onde retirava apaixonadamente uma outra.

O sol não entrava na sala, mal chegava a aflorar o rebordo das janelas. Os cortinados estavam abertos. Pingava água gota a gota das estalactites de gelo na beira do telhado fronteiro e dos algerozes a transbordar de neve e de lixo. Entre o triângulo de um telhado cor de tijolo e de neve suja e o rectângulo de uma longa chaminé que expelia por entre os dentes negros fumo de lenhite, aparecia uma nesga de céu de um azul cintilante. Sempre que Galip levantava a cabeça para repousar os olhos cansados da leitura no espaço entre o triângulo e o rectângulo, via o rápido voo dos corvos zebrando o azul; depois regressava aos papéis que tinha à sua frente e dizia para consigo que também Djélâl devia contemplar o voo dos corvos quando estava cansado de escrever.

Muito mais tarde, quando o sol feriu as janelas com os cortinados ainda corridos do prédio fronteiro, o belo optimismo de Galip começou a dissipar-se: os móveis, as palavras, os sentidos ocultos, talvez tudo estivesse ainda no seu lugar, mas quanto mais avançava na leitura, mais comprovava com amargura o apagar-se da realidade profunda graças à qual o conjunto se mantinha de pé. Lia as crónicas que Djélâl consagrara aos diversos Messias, aos falsos profetas, aos impostores erigidos em soberanos, às relações entre Mevlâna e Chems de Tabriz, ao ourives Selâhaddine do qual o grande poeta se aproximou depois da morte de Chems, e ao qual sucedeu Tchelebi Husamettine. Para escapar ao mal-estar que o invadia, Galip chegou até a reler os «Parece incrível, mas é verdade» escolhidos outrora por Djélâl. Mas não conseguia livrar-se da angústia enquanto relia a história do poeta Figaní, que, tendo ofendido com um dístico o grão-vizir do sultão Ibrahim, foi condenado a atravessar, amarrado de pés e mãos, em cima de um burro, todas as ruas de Istambul; ou ainda a do Xeque Eflâki, que, tendo desposado as suas irmãs uma a seguir à outra, causara involuntariamente a sua morte. Passou a cartas que descobriu noutra caixa, e surpreendeu-se, como nos seus tempos de miúdo, com o número e a variedade dos leitores que se interessavam por Djélâl; mas as cartas de pessoas que lhe pediam dinheiro, ou daqueles que se acusavam uns aos outros de todos os crimes, ou que afirmavam que as esposas de certos cronistas que polemizavam com Djélâl não passavam de putas, ou que denunciavam as conjuras das confrarias religiosas ou as luvas recebidas pelos directores comerciais dos Monopólios, as cartas enfim de todos os que proclamavam os seus amores e os seus ódios serviam apenas para alimentar a desconfiança que crescia em Galip.

Sabia que tudo aquilo se ligava à transformação da imagem que tivera de Djélâl no momento em que se sentara à sua mesa de trabalho. De manhã, quando os móveis e os objectos eram ainda extensões de um mundo inteligível, Djélâl continuava a ser aos seus olhos o personagem cujos artigos lia havia anos, e cujos aspectos desconhecidos, admitindo que os desconhecia, apreendera como que de longe. Durante a tarde, durante as horas em que o elevador funcionou sem descanso com a sua carga de mulheres grávidas ou doentes que se dirigiam ao consultório do ginecologista, no andar de baixo, quando Galip compreendeu que essa imagem de Djélâl se transformava estranhamente numa imagem que qualificou de incompleta, sentiu que a mesa à sua frente, a mobília e a sala à sua volta tinham mudado. Os móveis tinham-se convertido agora nos signos inquietantes e hostis de um universo cujos mistérios não eram fáceis de penetrar.

Como adivinhava que uma tal transformação se ligava ao que Djélâl escrevera sobre Mevlâna, Galip decidiu estudar o assunto mais de perto. Descobriu sem perda de tempo todos os artigos acerca do poeta e começou a lê-los rapidamente.

O que aproximava Djélâl do poeta místico mais influente de todos os tempos não eram nem os poemas que escrevera em persa no século XIII, em Konya, nem as citações demasiado repisadas, apresentadas como exemplos nas aulas de moral dos colégios. O ritual mevlevi em que os dervixes descalços e vestindo saias imensas dançam, para grande gáudio dos turistas e dos editores de postais, não tinha para Djélâl mais interesse do que as belas frases que muitos autores medíocres usam como epígrafes. Mevlâna, que inspira há mais de setecentos anos dezenas de milhares de tomos de comentários, e a confraria que se formara depois da sua morte, haviam seduzido Djélâl por constituírem simplesmente um tema curioso e do qual um cronista poderia e deveria tirar partido. Aquilo que mais o interessara em Mevlâna eram as relações místicas e sexuais que o poeta tivera em certas épocas da sua vida com certos homens e o mistério que se desprendia dessas histórias, bem como as conclusões que de tudo isso seria possível extrair.

Mevlâna, que herdara do seu pai o lugar de xeque em Konya, e que não só os seus discípulos, mas todos os habitantes da cidade veneravam e estimavam, sofrera aos quarenta e cinco anos de idade a influência de um dervixe que errava de cidade em cidade chamado Chems de Tabriz, que não se lhe assemelhava nem pela sua maneira de viver nem pelo seu saber nem pelas suas qualidades: um comportamento inexplicável na opinião de Djélâl. Provavam-no bem as vãs tentativas dos comentadores que havia sete séculos se esforçavam por torná-lo «compreensível». Depois do desaparecimento (ou do assassinato) de Chems, e a despeito dos protestos dos seus discípulos, Mevlâna designou como seu sucessor um ourives muito ignorante e destituído de qualidades. Segundo Djélâl, tal escolha era reveladora do estado psíquico e sexual de Mevlâna, e não da «poderosa atracção súfica» que Chems de Tabriz teria exercido sobre ele e que tanta gente se esforçara por provar. De resto, a seguir à morte do novo «sucessor», Mevlâna escolheu como outro «ele próprio» um homem ainda mais apagado e banal do que o anterior.

Na opinião de Djélâl, imaginar, como se tem feito há séculos, toda a espécie de desculpas destinadas a tornar inteligíveis estas três relações que parecem incompreensíveis, atribuir aos três «sucessores» extraordinárias virtudes demasiado pesadas para eles, e sobretudo, como fizeram certos exegetas, inventar árvores genealógicas visando provar que os três descendiam de Mahomet ou de Ali era perder de vista um aspecto importantíssimo da vida de Mevlâna. Uma particularidade que, dizia Djélâl, se reflecte também na obra do poeta, e da qual falara numa das suas crónicas dominicais, por ocasião das comemorações de Mevlâna, que se celebram todos os anos em Konya. Quando Galip releu vinte anos mais tarde essa crónica, que achara aborrecida na sua infância, como tudo o que dizia respeito à religião, e que só recordava graças à série de selos comemorativa de Mevlâna (nesse ano, os selos de quinze piastras eram cor-de-rosa, os de trinta piastras eram azuis e os de sessenta piastras — muito raros — eram verdes), teve de novo a impressão de que tudo à sua volta mudara.

Aos olhos de Djélâl, era verdade que Mevlâna exercera uma forte influência sobre o dervixe errante Chems de Tabriz, desde o seu primeiro encontro, em Konya, e que ele próprio fora também influenciado por Chems, conforme disseram milhares de vezes todos os comentadores que colocam o encontro de ambos no centro dos seus comentários. Mas se esta influência se pôde exercer tão rapidamente, não foi, como se julga, por Mevlâna ter prontamente compreendido que o dervixe era um sábio, na sequência do célebre diálogo entabulado entre os dois homens, a partir de uma questão levantada por Chems de Tabriz. O diálogo em causa baseava-se numa «parábola sobre a modéstia», da qual encontramos milhares de exemplos nos livros que tratam do misticismo, sem exclusão dos mais medíocres. Se Mevlâna era tão sábio e instruído como se diz, não poderia ter-se sentido impressionado por uma parábola tão banal; terá, quando muito, podido fingir admiração.

Foi decerto o que fez; comportou-se como se tivesse descoberto em Chems uma individualidade realmente profunda, um espírito fascinante. Segundo Djélâl, nesse dia, à chuva, Mevlâna, que contava na altura cerca de quarenta e cinco anos, tinha realmente necessidade de descobrir uma «alma» assim, um ser em cujo rosto lhe fosse possível distinguir a sua própria imagem. Deste modo, a partir do seu encontro com Chems, convenceu-se de que este era o ser que proccurava e, naturalmente, não teve dificuldade em convencer Chems do alto valor da sua personalidade. Logo a seguir a este encontro, que teve lugar a 23 de Outubro de 1244, fecharam-se ambos numa cela de medresse, da qual não saíram durante seis meses. Que tinham feito durante seis meses nessa cela, de que tinham conversado, era uma questão, de carácter «laico», que os melevis raramente abordaram, mas que Djélâl abordava na sua crónica, com circunspecção, para evitar chocar os sentimentos dos seus leitores devotos, antes de entrar no tema que de facto lhe importava.

Mevlâna passara a vida em busca de um «outro», que lhe permitisse agir, que insuflasse nele a chama necessária, que fosse um espelho reflectindo o seu próprio rosto e o seu próprio espírito. Tudo o que fizeram na sua cela, tudo o que aí se disseram — exactamente como acontece nas obras de Mevlâna —, foram as acções, as palavras, a voz de uma só pessoa que se esconde sob uma aparência dupla, ou de mais que uma pessoa sob a aparência de uma pessoa só. Para poder suportar a admiração de discípulos supersticiosos (mas aos quais era incapaz de renunciar) e a atmosfera sufocante de uma cidade da Anatólia do século XIII, o poeta precisava de dispor, não só dos disfarces que escondia no seu armário, mas também de certos companheiros, dos quais nunca se separava, o que lhe permitia respirar abrigando-se, quando necessário, por trás da personalidade deles. Para melhor explicar esta necessidade profunda, Djélâl recorrera a uma comparação amiúde presente nas suas crónicas: «Como esses trajos de camponês que esconde no seu armário, para os envergar à noite e com eles percorrer as ruas da sua capital, o soberano cansado de reinar sobre um país habitado por imbecis, entre os cortesãos, os malvados e os miseráveis.»

Como Galip esperava, um mês depois da publicação desta crónica, acolhida por ameaças de morte vindas de leitores apegados à sua religião e por felicitações dos cidadãos republicanos e laicos, Djélâl voltara ao assunto, apesar de o patrão do jornal lhe ter pedido que não tornasse a abordá-lo.

Nessa segunda crónica, Djélâl começava por recordar certos factos fundamentais, que todos os melevis conheciam bem: os outros discípulos, invejando o interesse testemunhado por Mevlâna àquele dervixe de origem duvidosa, tinham ameaçado Chems de morte. Pouco depois, a 15 de Fevereiro de 1246, num frio dia de Inverno em que a neve caía sobre Konya (Galip gostava muito da mania que Djélâl tinha de fornecer datas precisas, o que o fazia pensar nos manuais escolares cheios de gralhas), Chems desapareceu. Incapaz de suportar a ausência do seu bem-amado e também a perda desse «outro» por trás do qual podia dissimular-se, Mevlâna, tendo ouvido falar da presença de Chems em Damasco, mandou regressar imediatamente a Konya o seu «bem-amado» (termo que Djélâl punha sempre entre aspas para excitar ainda mais as suspeitas dos seus leitores) e casara-o com uma das suas filhas adoptivas. Todavia, o cerco de ciúmes e de ódios continuou a cerrar-se cada vez mais à volta de Chems, e, em breve, no décimo quinto dia, uma quinta-feira do mês de Dezembro de 1247, Chems era alvo de uma cilada — o próprio filho de Mevlâna, Alâaddine, se contava entre os assassinos — e abatido à punhalada nessa mesma noite, sob uma morrinha fria, tendo depois o seu cadáver sido atirado a um poço, próximo da casa de Mevlâna. Na continuação do artigo, que descrevia o poço onde fora lançado o cadáver de Chems, Galip descobriu certos traços que lhe pareceram familiares. Tudo o que Djélâl contava acerca do poço, a solidão e a tristeza do morto, lhe parecia muito estranho e aterrador, mas tinha também a impressão de ter diante dos olhos o poço com setecentos anos para onde fora atirado o cadáver, de conhecer as pedras e a argamassa à moda do Khorassan que nele tinham sido utilizadas.

Depois de ter lido e relido o artigo, impelido por um pressentimento, percorreu outros e descobriu que, para descrever o poço, Djélâl se servira exactamente de certas frases de uma outra crónica, na qual falava de um poço de ventilação entre dois prédios; observou do mesmo modo que Djélâl soubera habilmente manter o mesmo estilo nos dois artigos.

Impressionado por esse jogo, que não o teria surpreendido se o tivesse descoberto depois de mergulhar nos artigos do seu primo consagrados aos houroufis, Galip releu com outros olhos as crónicas que reunira em cima da mesa. Foi então que compreendeu, à medida que ia lendo, porque era que as coisas mudavam à sua volta, porque é que tinham desaparecido o sentido profundo e o optimismo que ligavam entre si as mesas, os cortinados, as luzes, os cinzeiros, as cadeiras e o par de tesouras poisado em cima do radiador, todas as antiguidades da sala.

Djélâl falava de Mevlâna como se falasse de si próprio; valendo-se de interpolações quase esotéricas, que não se detectavam à primeira vista, conseguia desse modo pôr-se no lugar do poeta. Quando Galip verificou de novo que Djélâl usara as mesmas frases, os mesmos parágrafos em certos artigos onde falava de si próprio e nas crónicas de tema «histórico» que tratavam de Mevlâna, e que, mais ainda, recorria ao mesmo estilo impregnado de tristeza, deixou de ter dúvidas quanto a essas interpolações e intercalações. O que tornava inquietante este estranho jogo era o facto de os cadernos íntimos de Djélâl, os rascunhos de artigos que não publicara, as suas notas sobre história, os seus ensaios sobre o Xeque Galip, as suas interpretações de sonhos, as suas recordações de Istambul e os temas que abordara em grande número das suas crónicas não fazerem outra coisa que não fosse reiterá-lo.

Na sua rubrica «Parece incrível mas é verdade», Djélâl contara centenas de vezes histórias de reis que se tomavam por um outro, de imperadores da China que, para se tornarem um outro, incendiavam os seus próprios palácios, de sultões cujo o gosto de se disfarçarem para se misturarem de noite com o resto da população se tornara uma mania, de tal modo que acabavam por desprezar dias a fio os seus palácios e os assuntos de Estado. Num caderno onde Djélâl reunira algumas breves novelas inacabadas, que se assemelhavam a recordações, Galip pôde descobrir que o primo, no decorrer de um só dia de Verão, se tomara sucessivamente por Leibniz, pelo grande homem de negócios Djevdet bey, pelo profeta Mahomet, por um patrão dos jornais, por Anatole France, por um cozinheiro de renome, por um imã muito conhecido pelos seus sermões, por Robinson Crusoé, por Balzac e por seis outros personagens cujos nomes depois apagara. Galip examinou a seguir caricaturas feitas pelo primo a partir de selos e de cartazes consagrados a Mevlâna, e descobriu também um desenho desajeitado representando uma sepultura e no qual se podia ler: «Mevlâna Djélâl». Uma crónica inédita começava assim: «O Mesnevi, que se considera a principal obra de Mevlâna, não passa, de uma ponta à outra, de um plágio!»

Depois Djélâl enumerava, forçando um pouco o traço, as semelhanças detectadas pelos exegetas mais académicos, que hesitam entre o medo do desrespeito e a preocupação com a verdade. Certa história do Mesnevi fora extraída de Kalila e Dimna; outra do Mantik-ut Tayr de Attar; outra pequena história fora inteiramente roubada a Leylâ e Majnun, outra furtada do Menakib-i Evliya. Na longa lista das fontes assim pilhadas, Galip descobriu o Kissasi Enbiya, As Mil e Uma Noites e Ibn Zerhani. Djélâl acrescentara à sua lista aquilo que Mevlâna pensava da contracção de empréstimos literários. Cada vez mais pessimista à medida que a tarde caía, Galip leu esse texto com a impressão de que ele não exprimia apenas as ideias de Mevlâna, mas também as de Djélâl, que se identificava com Mevlâna.

Segundo Djélâl, como todos os que não se resignam a ser eles próprios e que só encontram a paz quando conseguem fundir-se na personalidade de um outro, também Mevlâna não podia, quando começava a contar uma história, deixar de repetir o que um outro dissera. De resto, para todos os infelizes que ardem no desejo de serem um outro, contar uma história não passa de um ardil que descobriram para se escaparem desse seu corpo e desse seu espírito que os fazem morrer de tédio. Mevlâna queria contar uma história, com o simples propósito de contar uma história. Do mesmo modo que as Mil e Uma Noites, o Mesnevi era uma composição estranha e desordenada, onde uma segunda história começa quando a primeira ainda não terminou, onde se passa a uma terceira antes do fim da segunda, e onde as histórias incompletas são incessantemente abandonadas, tal como nos cansamos de uma personalidade que adoptámos para escolhermos uma outra. Nos tomos do Mesnevi que folheou, Galip descobriu passagens sublinhadas em certos contos eróticos, páginas inteiras cobertas de pontos de interrogação e de exclamação, de correcções e de rabiscos, tudo a tinta verde, e como que com raiva. Depois de ter rapidamente percorrido as histórias referidas nessas páginas sujas de tinta, Galip compreendeu que o tema de muitas das crónicas de Djélâl, que lera na juventude, era tomado de empréstimo ao Mesnevi e adaptado em seguida à Istambul dos nossos dias.

Lembrou-se das noites em que Djélâl lhes falava durante horas da arte da glosa ou naziré, afirmando que era essa a única verdadeira arte. Enquanto Ruya devorava os bolos comprados durante o caminho de regresso a casa,Djélâl declarava que escrevera grande número das suas crónicas — talvez todas — com o auxílio de outros autores; o importante, acrescentava ele, não é «criar», mas poder dizer qualquer coisa de inteiramente novo, a partir de obras-primas maravilhosas criadas ao longo dos séculos por milhares de cérebros, modificando-as ligeiramente, e afirmava de novo que sempre fora buscar a outros os temas dos seus artigos. O que enervou Galip, fazendo-o perder a sua fé na realidade dos móveis à sua volta, dos papéis em cima da mesa, não foi descobrir que certas histórias que, durante anos, atribuíra a Djélâl haviam sido imaginadas por outros, mas as consequências que dessa revelação decorriam.

Disse para consigo que talvez houvesse algures em Istambul um apartamento e uma sala, exactamente mobilados como aquele apartamento e aquela sala, que, pelo seu lado, reconstituíam com todos os seus pormenores um passado de havia vinte e cinco anos. E ainda que, nessa outra sala, não se encontrassem nem Djélâl a contar uma história, nem Ruya para a ouvir com bom humor, haveria talvez um pobre tipo que se parecia com Galip e que esperava descobrir a pista da sua mulher desaparecida relendo velhas colecções de jornais. Tal como as coisas, os desenhos, os símbolos observados nos objectos ou nos sacos de plástico indicavam uma coisa diferente daquilo que eram, e tal como cada crónica de Djélâl adquiria um sentido novo a cada leitura, cada vez que pensava na sua própria vida, pensou Galip, descobria nela um sentido novo, e disse para consigo ainda que acabaria por se perder entre todas aquelas significações que se sucediam implacavelmente como os vagões de um comboio. Lá fora, a noite caíra; uma luminosidade glauca, quase material, que fazia pensar no cheiro a mofo e a morte de obscuros subterrâneos atapetados de teias de aranha, enchia a sala. Galip compreendeu que a única maneira de escapar ao pesadelo deste outro mundo espectral em que mergulhara sem querer era continuar a ler com os seus olhos cansados, e acendeu a luz da secretária.

Regressou assim ao poço atapetado de teias de aranha onde fora lançado o cadáver de Chems. Na continuação da narrativa, o poeta, desvairado de mágoa pela perda do amigo, do «bem-amado», recusava-se a admitir a sua morte. Não queria acreditar que o corpo dele tivesse sido atirado para dentro de um poço; furioso contra os que queriam mostrar-lhe o poço, inventava pretextos para partir em busca do seu bem-amado. Porque não teria Chems voltado para Damasco, como por altura do seu primeiro desaparecimento?

Mevlâna foi então a Damasco e começou a vaguear pelas ruas da cidade em busca do seu bem-amado. Percorria cada rua, entrava em todas as tabernas, em todas as casas, numa divisão atrás da outra, esquadrinhava todos os recantos, levantava do chão pedra atrás de pedra; visitou as mesquitas, os tekke, todos os lugares que Chems gostara outrora de frequentar; foi ver os seus antigos amigos e os seus amigos comuns, de tal modo que a sua demanda acabou por se tornar aos seus olhos mais importante que o objecto procurado. Ao chegar a este ponto da crónica de Djélâl, o leitor acabava por se encontrar no meio dos fumos de ópio, do cheiro a água-de-rosas e dos morcegos de um universo místico e panteísta, onde aquele que procura muda de lugar com aquele que é procurado, onde conta mais avançar em direcção a um fim do que alcançá-lo, onde o amor é mais importante do que o objecto do amor, que já não passa de um pretexto. O artigo demonstrava brevemente que as diversas aventuras vividas por Mevlâna nas ruas da grande cidade correspondem às diversas etapas que o peregrino da confraria deve transpor no seu avanço a caminho da verdade e da perfeição: a cena em que o poeta toma com assombro conhecimento do desaparecimento do seu bem-amado, a busca em que se precipita correspondem à etapa da provação, do mesmo modo que as cenas em que aparecem os antigos amigos ou inimigos do bem-amado, e aquelas em que o poeta examina todos os lugares frequentados outrora pelo desaparecido e que despertam nele recordações cruéis, bem como os seus objectos pessoais e as suas roupas, concordam com os diferentes graus da iniciação. A cena do bordel simboliza a reabsorção no amor, a destruição no inferno e no paraíso das páginas enfeitadas de parábolas, de jogos e de armadilhas literárias, recordando as cartas que se descobriram em casa de Hallaji Mansur depois do seu suplício, significa o itinerário pelos vales maravilhosos descritos por Attar. Se os narradores que contam alternadamente uma história de amor, à noite, na taberna, são tomados de empréstimo ao Colóquio das Aves de Attar, o facto de o poeta, ébrio de cansaço à força de deambular pelas ruas, de examinar as lojas e as janelas pululantes de mistérios da cidade, compreender que aquilo que foi procurar ao cume do Monte Kaf é apenas ele próprio, constitui um exemplo da fusão do indivíduo no absoluto, retirado do mesmo livro.

Esmaltavam o longo artigo de Djélâl citações rimadas e pomposas extraídas dos numerosos poetas místicos que trataram do problema da fusão entre aquele que busca e o objecto da sua busca. O verso célebre de Mevlâna, fatigado das suas buscas de vários meses pelas ruas de Damasco, aparecia igualmente, traduzido em prosa por Djélâl, que abominava as traduções poéticas: «Uma vez que sou ele, porquê continuar a procurá-lo?», declarara um dia o poeta, perdido nos mistérios da cidade. Ao chegar a este ponto culminante, Djélâl rematava a sua crónica com este truísmo literário que todos os melevis repetem com orgulho.

Transposta assim a última etapa, Mevlâna reunira os seus poemas sob o título de Divã de Cbems de Tabriz sem utilizar o seu próprio nome.

Tal como nos seus tempos de criança, o que mais interessou Galip nesta crónica foi a «trama policial» da narrativa da busca: Djélâl chegava a uma conclusão que sem dúvida irritara uma vez mais aqueles de entre os seus leitores que sentiam respeito pela religião, e divertira muito os seus leitores laicos e republicanos: «Segundo toda a evidência, quem mandou assassinar Chems e ordenou que o seu corpo fosse atirado a um poço, não foi outro senão o próprio Mevlâna!» Djélâl sustentava esta teoria servindo-se dos métodos utilizados pelo ministério público e pela polícia, que conhecia bem por ter tido, durante os anos cinquenta, a seu cargo no jornal os casos do dia e as notícias dos tribunais. Recordava assim, à maneira de um procurador da República da província, disposto a acusar fosse quem fosse e de qualquer maneira, que era o próprio Mevlâna quem, no caso em apreço, beneficiava com o crime, uma vez que, graças a esse homicídio, se tornara o maior poeta místico de todos os tempos, em vez de continuar a ser um simples hodja entre muitos outros, pelo que decerto desejara a morte de Chems. Transpondo assim a estreita margem jurídica que separa o desejo do homicídio e a ordem de matar, que só nos romances cristãos encontramos, Djélâl assinalava factos estranhos, como a recusa por parte de Mevlâna de acreditar na morte da vítima, ou de examinar o cadáver atirado para o poço, a alienação provocada pela dor, atitudes que são apenas manifestações do sentimento de culpa, pequenos ardis utilizados pelos assassinos inexperientes. Depois mudava bruscamente de assunto, mergulhando Galip no desespero: que significavam então aquelas buscas de vários meses nas ruas de Damasco, depois de cometido o homicídio, essas investigações repetidamente conduzidas por toda a cidade?

Djélâl consagrara muito mais tempo do que poderia parecer à redacção desta crónica; Galip compreendeu-o graças a certas indicações anotadas em cadernos, graças também a um plano da cidade de Damasco, que descobriu numa caixa onde Djélâl guardava os bilhetes de certos desafios de futebol celebérrimos (Turquia 3-Hungria 1) e bilhetes de cinema (A Mulher à Janela ou Regresso a Casa). No mapa da cidade, os itinerários seguidos por Mevlâna tinham sido sublinhados com uma esferográfica verde. Dado que Mevlâna não podia estar à procura de Chems, uma vez que o sabia morto, o fim que visava na sua busca era completamente outro. Mas de que se tratava, então? Todos os lugares onde o poeta estivera tinham sido sublinhados no mapa; os nomes dos bairros, das estalagens para caravanas, das albergarias, das tabernas que ele visitara tinham sido registados no verso. Djélâl tentara sem dúvida descobrir um sentido oculto, uma simetria secreta nas letras e nas sílabas de todos os nomes enumerados por uma lista interminável.

Já muito depois do cair da noite, numa caixa onde Djélâl conservava todo um conjunto de antiguidades datando da época em que examinara numa série de crónicas os enigmas policiais das Mil e Uma Noites («Ali o Desperto», «O Ladrão Astucioso», etc), Galp descobriu um plano do Cairo e um plano de Istambul editado em 1934 pela municipalidade. Como esperava, setas desenhadas a tinta verde indicavam no plano do Cairo os locais onde se desenrolavam as histórias das Mil e Uma Noites. Descobriu também no plano de Istambul, em certos bairros, setas sempre traçadas com a tinta verde, senão com a mesma esferográfica. E ao seguir os trajectos desenhados pelas setas no emaranhado dos mapas, pareceu-lhe ver o percurso da sua própria errância dos últimos dias na cidade. Para se persuadir de que se tratava apenas de uma ilusão, disse para consigo que as setas conduziam a edifícios, a mesquitas onde ele nunca entrara, a encostas que nunca subira, e contudo passara por edifícios vizinhos, entrara em mesquitas muito próximas, subia ruas que levavam a essas colinas. Pouco importava o que aparecia nos mapas, mas toda a cidade de Istambul transbordava de viajantes que haviam empreendido a mesma viagem! Galip dispôs lado a lado os planos do Cairo, de Damasco e de Istambul, como Djélâl aconselhava numa crónica, escrita muitos anos antes e inspirada por Edgar Allan Poe. Para o poder fazer, teve de recortar as páginas de um mapa municipal encadernado, com uma lâmina de barba que descobriu na casa de banho, e na qual alguns pêlos da barba de Djélâl provavam que este a usara. Quando acabou de dispor os planos lado a lado, ficou sem saber que fazer ao certo daquelas redes de linhas e de signos de diferentes dimensões. Depois, como na infância faziam, Ruya e ele, para copiarem uma imagem de uma revista ilustrada, sobrepôs os três mapas contra a porta envidraçada da sala, a fim de os examinar à transparência, à luz de uma lâmpada. Em seguida, tal como a mãe de Djélâl quando estudava os modelos que dispunha em cima daquela mesma mesa, voltou a colocar lado a lado os mapas das três cidades, que tentou considerar como as peças de um puzzle. A única imagem que vagamente conseguiu distinguir nos mapas sobrepostos foi a do rosto enrugado e perfeitamente fortuito de um homem muito velho.

Contemplou esse rosto tão longamente que teve a impressão de o conhecer de havia muito. Este sentimento familiar e o silêncio da noite permitiram-lhe recobrar a calma: uma serenidade tranquilizadora, porque parecia já vivida, planificada, prevista por um outro. Disse sinceramente para consigo que Djélâl lhe estava a indicar uma certa direcção. O primo escrevera várias crónicas sobre a significação dos rostos, mas Galip lembrou-se também de certas frases sobre a «paz interior» que Djélâl experimentava quando contemplava os rostos das actrizes de cinema estrangeiras. E decidiu prontamente reler as críticas de filmes que datavam dos primeiros tempos de jornalista do primo.

Nesses artigos, Djélâl falava com tristeza e nostalgia dos rostos de certas estrelas americanas, como se descrevesse estátuas de mármore transparente, ou a superfície sedosa e escondida de um planeta, como se evocasse certos contos de certos países longínquos, tão leves como sonhos. E ao reler aquelas linhas, Galip compreendeu que o gosto que lhes era comum, a Djélâl e a si próprio, era o da harmonia dessa nostalgia, semelhante a uma melodia suave, quase inaudível, muito mais que o afecto que os dois sentiam por Ruya ou o interesse que experimentavam por tudo o que fosse história. Amava — e temia — tudo o que descobriam ambos naqueles mapas, naqueles planos, nos rostos e nas palavras. Teria gostado muito de mergulhar mais fundo no conteúdo das críticas de cinema, para aí descobrir aquela pequena música, mas hesitou, tomado de receio; Djélâl nunca utilizava esse tom para falar dos actores turcos, ainda que se tratasse dos mais célebres. Os seus rostos, dizia, lembravam-lhe comunicados de guerra de há meio século, cujos código e sentido se tinham perdido havia muito.

Sabia muito bem, agora, porque fora que o optimismo que o invadira de manhã, quando tomara o pequeno-almoço e se instalara à mesa de trabalho, se dissipara depois. Após oito horas de leitura, a imagem que tinha de Djélâl transformara-se por completo, de tal modo que ele próprio tinha a impressão de se ter tornado outro. Ao passo que de manhã não sentia minimamente ainda a necessidade de se tornar outro, quando a sua fé no universo em redor permanecia ainda intacta, quando acreditava ainda ingenuamente que um paciente labor lhe permitiria penetrar um segredo essencial que o mundo lhe escondia. Mas agora, à medida que os mistérios do universo se afastavam dele, que os objectos e os escritos que se encontravam na sala e que ele julgava conhecer se transformavam em objectos incompreensíveis vindos de um mundo desconhecido, ou em planos de rostos que não conseguia identificar, Galip queria desembaraçar-se do homem em que se tornara e que lançava sobre o universo inteiro aquele olhar angustiado, despido de esperança; queria tornar-se outro. Quando, na esperança de descobrir um indício que lhe permitisse averiguar o verdadeiro laço que unia Djélâl a Mevlâna e à filosofia da sua congregação, se dedicou à leitura das crónicas em que o primo evocava certas recordações, a hora do jantar chegara já e o clarão azul dos televisores reflectia-se na avenida Techvikiyé.

Se Djélâl se debruçara tantas vezes sobre a história da confraria dos mevlevis, não fora apenas por causa do interesse algo inexplicável que os leitores votavam ao tema, mas também porque o segundo marido da mãe dele fora membro dessa confraria. Esse homem (que a mãe de Djélâl desposara porque não conseguia viver e fazer viver o filho com os seus trabalhos de costura depois de ter tido de se divorciar, uma vez que o tio Mélih não se decidia a regressar da Europa ou, mais tarde, do Norte de África) frequentava um convento de mevlevis, situado perto de uma cisterna bizantina, numa ruela do bairro Yavuz-Sultan; Galip adivinhou-o pelo retrato traçado por Djélâl — com uma ironia voltaireana e uma hostilidade bem laica — de um advogado «corcunda e fanhoso» que assistia a cerimónias rituais secretas. Enquanto descobria, assim, que, nos tempos em que o primo vivera sob o mesmo tecto que o padrasto, tivera, para ganhar a vida, de trabalhar como «arrumador» nos cinemas de bairro, onde muitas vezes sovara os clientes — ou fora ele próprio sovado — na sequência de rixas muito frequentes nas salas escuras e a abarrotar; à leitura da crónica em que Djélâl contava que vendia gasosa nos intervalos e que, com o objectivo de aumentar o consumo desta, se entendera com o pasteleiro levando-o a pôr sal e pimenta nos bolos secos consumidos pelos espectadores, Galip, como todos os bons leitores, pôs-se sucessivamente no lugar de todos os personagens, arrumadores, pasteleiros, espectadores irascíveis, e o próprio Djélâl.

Numa outra crónica sobre as suas recordações de infância, em que Djélâl evocava os dias passados numa oficina de encadernação, que cheirava a papel e a cola, onde trabalhara depois de ter deixado o seu posto de arrumador numa sala de Chehzadé-Bachi, uma outra frase chamou a atenção de Galip, porque lhe pareceu por um breve instante conter uma premonição da sua situação actual. Tratava-se de uma frase bana-líssima, utilizada por todos os autores que inventam um passado doloroso, mas do qual se podem orgulhar. «Lia tudo o que me caía nas mãos», escrevera Djélâl. E Galip, que lia tudo o que apanhava acerca de Djélâl, compreendera imediatamente que, naquela crónica, o primo falava não dos dias passados por ele na oficina de encadernação, mas na realidade do próprio Galip...

Até ao momento em que saiu do apartamento, tarde na noite, sempre que se lembrava desta frase, Galip via nela a prova de que Djélâl estava a par de tudo o que Galip fazia, instante por instante. De tal maneira que os esforços que multiplicava havia uma semana deixaram de ser aos seus olhos os elementos de uma busca que empreendia, tentando descobrir Djélâl e Ruya, para se transformarem num jogo imaginado por Djélâl (e talvez também por Ruya). Como esta ideia concordava com o gosto que Djélâl tinha de conduzir à sua maneira as pessoas onde bem entendia graças aos pequenos ardis e às vagas alusões de que se servia nas suas crónicas, Galip disse para consigo que as buscas que estava a desenvolver naquele museu vivo eram uma expressão da liberdade de escolha de Djélâl, e não da sua.

Queria sair o mais depressa possível do apartamento, não só porque já não podia suportar a impressão de asfixia que ali experimentava, ao mesmo tempo que os olhos lhe doíam de tanto ler, mas sobretudo porque não descobrira nada que se comesse na cozinha. Tirou do armário de parede ao pé da porta de entrada o casaco azul-marinho de Djélâl, para que o porteiro e a mulher — decerto amodorrados, senão já adormecidos — imaginassem ver passar diante da sua janela as pernas e o casaco de Djélâl. Desceu as escadas sem acender a luz e verificou que nenhuma luz se via também na janelinha do porteiro que dava para a rua. Deixou entreaberta a porta do prédio cuja chave não tinha. Ao dar os primeiros passos no passeio, a ideia de que o homem do telefone, no qual havia um bom momento se recusava a pensar, ia aparecer no escuro fê-lo estremecer. Disse para consigo que esse homem — não se tratava de um desconhecido, disso tinha a certeza — detinha não um dossier relativo aos preparativos de um novo golpe de Estado militar, mas um segredo muito mais perigoso e aterrador. A rua estava deserta. Enquanto caminhava, Galip perguntou-se se a voz do telefone não seria em busca dele próprio que andava. Mas não, ele não estava a tentar pôr-se no lugar de um outro: «Vejo tudo, claramente, tal como é», murmurava de si para si, ao passar diante da esquadra. Os polícias de guarda, de metralhadora na mão, lançaram-lhe olhares desconfiados e pesados de sono. Galip andava olhando bem a direito, à sua frente, para evitar ler as letras dos anúncios luminosos, cujos néons crepitavam, dos cartazes e das palavras de ordem políticas escritas nas paredes. Todos os restaurantes e tascas do bairro estavam fechados.

Muito mais tarde, depois de ter percorrido longamente os passeios onde caía neve fundida dos beirais num murmúrio melancólico, passando por castanheiros, plátanos e ciprestes, apurando o ouvido para os seus próprios passos e para o tumulto que lhe chegava dos pequenos cafés de bairro, entrou numa leitaria onde se encheu de sopa, de frango e de kadayif, para retomar em seguida a direcção do «Coração da Cidade», depois de ter comprado num botequim fruta, pão e queijo.

 

O artigo mais importante que alguma vez escrevi, o que nos permitiria, sem que sequer déssemos por isso, decifrar o mistério de toda a nossa vida, não é decerto a crónica escrita há dezasseis anos e quatro meses, na qual eu revelava as incríveis semelhanças que se podem observar entre os mapas de Damasco, do Cairo e de Istambul. (Os que o desejarem poderão descobrir nessa crónica que o Darb-el-Mustakim, o Khalili-Khan e o nosso Grande Bazar desenham nos três mapas a mesma letra do alfabeto árabe, Mim, e nela poderão descobrir também o rosto evocado por essas letras.)

A história mais «carregada de sentido» que contei também não é essa, com duzentos e vinte anos de idade, que descreve como o infortunado Xeque Mahmout, para adquirir a imortalidade, vendeu a um espião francês os segredos da sua confraria, coisa de que viria a arrepender-se amargamente. (Os que quiserem saber como o xeque, em busca de um homem disposto a assumir o peso da sua imortalidade, se dirigia aos campos de batalha, para tentar convencer disso os combatentes na agonia, ensopando-se no sangue deles, poderão descobrir todos os pormenores da história na minha crónica.)

Quando penso em todas as histórias sobre os gangsters de Beyoglou, os poetas feridos de amnésia, os ilusionistas, as cantoras com dupla identidade, os amantes desesperados, dos quais falei outrora, verifico que deixei sempre de lado o tema mais importante ou então que me limitei a andar à volta dele, de longe, com uma estranha reserva. Mas não sou o único a proceder assim! Há trinta anos que escrevo. E consagrei à leitura o mesmo número de anos ou quase. Mas nunca descobri, nem no Oriente nem no Ocidente, um único autor que tenha chamado a atenção para aquilo de que vou falar aqui.

E agora, à medida que forem lendo o que vou escrever, imaginem, por favor, os rostos que evoco. (De resto, ler será mais que atribuir uma imagem, no ecrã mudo da nossa inteligência, a tudo aquilo que o escritor conta com letras?) No ecrã do vosso cérebro, façam passar uma loja de vendedor de tintas, numa cidade do Leste da Anatólia. Numa fria tarde de Inverno, quando a noite cai muito depressa, o barbeiro — que confiou a sua loja ao aprendiz porque o mercado está quase deserto —, um velho reformado, o irmão mais novo do barbeiro e um cliente do bairro, que ali estão menos para fazer compras do que para cavaquear, estão sentados à volta do fogão; conversam, evocam recordações do serviço militar, folheiam os jornais, mexericam, gracejam de tempos a tempos. Mas um deles está pouco à vontade, porque é ele quem fala menos, quem sabe menos fazer-se ouvir. Trata-se do irmão do barbeiro. Também ele tem histórias para contar, gracejos a transmitir, mas é em vão que arde do desejo de falar, não sabe contar nem narrar uma história, falta-lhe a vivacidade. Ao longo da tarde, sempre que tenta começar uma, os outros cortam-lhe a palavra, sem o fazerem sequer propositadamente, e por isso, imaginem, por favor, a expressão do irmão do barbeiro sempre que os outros o interrompem, sempre que é obrigado a deixar por começar a sua história.

E depois, imaginem, por favor, uma cerimónia de pedido de casamento numa casa de família, a de um médico de Istambul, que nunca conseguiu ganhar o suficiente. Uma família ocidentalizada. Alguns dos convidados que invadiram a casa encontram-se por acaso no quarto da jovem noiva, à volta da cama, em cima da qual os casacos se foram amontoando. Entre eles, uma rapariga bonita e simpática, e dois jovens que se interessam muito por ela. Um deles não é muito bonito, nem muito inteligente, mas não é tímido, fala com facilidade. É por isso que a rapariga e os convidados mais velhos que ali estão prestam atenção às histórias que ele conta. Agora, imaginem o outro jovem muito mais inteligente e sensível que o tagarela, mas que não sabe fazer-se ouvir.

E por fim, imaginem três irmãs, todas elas casadas com dois anos de intervalo. Dois meses depois do casamento da mais nova, juntam-se em casa da mãe. É a casa de um pequeno comerciante, onde se ouve o tiquetaque de um relógio enorme e um canário que se aborrece na sua gaiola. Enquanto toma o seu chá na luz pardacenta de uma tarde de Inverno, a mais nova, que foi sempre animada e faladora, descreve a sua experiência de mulher que casou há dois meses, sabe descrever tão bem certas situações, certos incidentes cómicos, que a mais velha, que é também a mais bela, confessa a si própria com melancolia que talvez falte alguma coisa na sua vida — e talvez também no marido. Imaginem o seu belo rosto impregnado de tristeza.

Imaginaram bem estes rostos? Não se assemelham todos, estranhamente? Não vêem uma parecença entre eles, e o laço invisível que une entre si estas pessoas tão diferentes umas das outras? Os silenciosos, os mudos, os que não sabem contar, que parecem sem importância, todos os que não sabem descobrir a réplica adequada excepto depois de terem já voltado para casa; e também aqueles cujas histórias não interessam a ninguém —, não parecem os seus rostos mais expressivos, muito menos vazios que os demais? Dir-se-ia que, nesses rostos, fervilham as letras de todas as histórias que não puderam contar; dir-se-ia que são portadores dos estigmas do silêncio, da humilhação e, mais ainda, da derrota. E talvez entre esses rostos, tenhamos descoberto o nosso, não é assim? Como somos dignos de dó, tão numerosos, como somos desesperados, a maior parte de nós!

Mas não gostaria, apesar de tudo, de vos iludir: não sou um dos vossos. O homem que é capaz de se exprimir com papel e um lápis, que consegue melhor ou pior fazer com que os outros leiam o que escreve, é mais ou menos poupado por essa doença. E é por isso que nunca encontrei um autor que falasse com acerto de um tema tão importante. Hoje, sempre que rapo da pena, compreendo que só me resta uma questão a tratar: doravante vou esforçar-me por penetrar a poesia secreta dos nossos rostos, o mistério aterrador dos nossos rostos. Podem contar com isso.

 

Quando, terça-feira de manhã, Galip se instalou diante da mesa onde se acumulavam os artigos, estava muito menos optimista que havia vinte e quatro horas. Depois de um dia de trabalho, a imagem que até então tinha de Djélâl sofrera uma transformação que lhe parecia desagradável, de tal maneira que o objectivo da sua busca lhe parecia agora muito vago. Todavia, continuava a ler as crónicas e as notas que descobrira na estante, porque a leitura era para ele o único meio de construir certas teorias relativas ao lugar onde Djélâl e Ruya se escondiam. E acalmava-se com a ideia de que ler, sentado àquela mesa, era a única coisa que podia fazer para evitar não sabia lá muito bem que desgraça. Além disso, reler os artigos de Djélâl naquela sala onde, desde a infância, sempre se sentira feliz na companhia das suas recordações, era muito mais agradável do que estudar os contratos de inquilinos que tentavam proteger-se contra as agressões do seu senhorio, ou os dossiers dos vendedores de ferro-velho ou de tapetes que só pensavam em roubar-se uns aos outros. Sentia dentro de si o entusiasmo do funcionário promovido a um posto mais interessante, que obteve uma mesa de trabalho muito mais confortável do que a anterior, ainda que devendo essas vantagens a uma catástrofe.

E sob o efeito deste entusiasmo, enquanto bebia um segundo café, examinou de novo a lista dos indícios de que dispunha. Lembrava-se de ter lido a crónica intitulada «Enfermidades e sarcasmos», que descobriu no Milliyet que o porteiro enfiara por baixo da porta, muitos anos antes: portanto, Djélâl não entregara na redacção um novo artigo. Era a sexta vez consecutiva que uma crónica antiga aparecia no jornal. E já só restava um artigo na pasta das «Reservas». O que significava que, a partir de quinta-feira, as colunas reservadas a Djélâl ficariam vazias, se não enviasse para o jornal novos artigos ao longo das trinta e seis horas seguintes. Até então, Djélâl nunca abandonara a sua crónica, como faziam outros cronistas, a pretexto de férias ou de doença. E sempre que pensava no vazio que assim poderia aparecer na segunda página do jornal, Galip experimentava com terror a iminência de uma desgraça: uma catástrofe que lhe lembrava a retirada das águas do Bósforo.

A fim de permanecer acessível a qualquer eventual indício, voltou a ligar o telefone cuja ficha desligara depois de entrar no apartamento. Tentava recordar todos os pormenores da conversa que tivera com essa voz que se apresentara sob o nome de Mahir Ikindji. Tudo o que o desconhecido contara acerca do «crime da mala» e de um golpe de Estado militar o fez pensar em certas crónicas de Djélâl. Procurou-as na caixa, leu-as atentamente, e pensou noutros artigos, noutros parágrafos também, que falavam do Messias. Descobrir o rasto dessas frases espalhadas por diversas crónicas e a data da sua publicação tomou-lhe tanto tempo que, quando voltou a sentar-se à mesa, sentia-se tão esgotado como ao fim de um dia de trabalho.

No começo dos anos sessenta, na época em que evocava num tom de provocação a iminência de um golpe de Estado militar, Djélâl pensara sem dúvida num dos motivos que o haviam impelido a escrever artigos sobre Mevlâna: um jornalista que quer fazer aceitar uma ideia a um grande número de leitores tem de ser capaz de fazer voltar à superfície as ideias e as recordações enterradas na vasa das suas memórias, como se fossem outras tantas carcaças de golfinho afogadas havia séculos no Mar Negro. Foi por isso que Galip ficou à espera, como todos os leitores que se respeitam, enquanto relia nesse fito os episódios extraídos por Djélâl de diversas fontes históricas, de um frémito no lodo da sua própria memória. Enquanto lia como o Duodécimo Imã mergulhou um dia no terror os ourives das ruelas do Grande Bazar que utilizavam balanças viciadas, ou como o filho do xeque, do qual Silahtar fala na sua História, proclamado Messias pelo seu próprio pai, atacou as fortalezas, seguido pelos seus bandos de ferreiros e de pastores curdos; ou ainda a história do lavador de pratos aprendiz, que, tendo visto em sonhos o Profeta sentado no banco traseiro de um Cadillac branco descapotável, que avançava pelo empedrado coberto de lama de Beyoglou, se proclamou, também ele, Messias, a fim de aliciar as putas, as ciganas, os carteiristas, os mendigos, os vadios, os vendedores de cigarros do mercado negro, os engraxadores para o combate que queria empreender contra os proxenetas e os grandes gangsters, imaginava todos esses acontecimentos envolvidos no vermelho de tijolo e no tom alaranjado da aurora da sua própria vida e dos seus próprios sonhos. Descobriu histórias que excitaram tanto a sua memória como a sua imaginação: quando leu a história de Mehmet, o Caçador, que, príncipe herdeiro e depois sultão durante anos e anos, acabou por se proclamar igualmente profeta, Galip lembrou-se da noite em que Djélâl evocara a necessidade de formar um falso Djélâl capaz de o substituir na redacção das suas crónicas (um tipo capaz de se apropriar da minha memória, dissera ele), o que fizera sorrir Ruya, com um olhar como sempre benevolente e um tanto sonolento. No mesmo instante, Galip tivera a impressão de se estar a deixar arrastar para um jogo perigoso, que poderia ter por desfecho uma armadilha mortal.

Releu uns atrás dos outros os nomes e os endereços que descobrira numa agenda, comparando-os com os da lista. Marcou certos números que haviam despertado as suas suspeitas: tratava-se de uma oficina em Lâléli, onde se fabricavam bacias, baldes e cestos de roupa de plástico; bastava fornecer um modelo à oficina para que esta entregasse, no prazo de uma semana, várias centenas de cópias, fosse qual fosse a forma ou a cor escolhidas. A segunda tentativa, respondeu uma criança: morava ali, com o pai, com a mãe e com a avó; o pai tinha saído. Antes de a mãe, desconfiada, ter conseguido apoderar-se do telefone, um irmão mais velho — que a primeira criança não mencionara — interveio no diálogo, declarando que se recusavam a comunicar os seus nomes a um desconhecido. «Quem fala? Quem é o senhor?», perguntou a mãe, prudente e receosa. «Está enganado no número.»

Era já meio-dia quando Galip começou a tentar decifrar tudo o que Djélâl anotara em bilhetes de autocarros ou de cinema. Nalguns bilhetes, Djélâl escrevera, com uma caligrafia muito aplicada, o que pensara do filme, e por vezes até mesmo os nomes dos actores. Galip esforçou-se por descobrir porque fora que alguns dos nomes tinham sido sublinhados. Também nos bilhetes de autocarro, havia nomes e palavras. Num deles, Galip desenhara um rosto, composto de letras do alfabeto latino. (A julgar pela tarifa — quinze piastras — o bilhete datava do começo dos anos sessenta.) Galip examinou atentamente as letras do rosto. Depois leu antigas críticas de filmes, algumas das primeiras reportagens de Djélâl («A muito conhecida actriz americana Mary Marlove esteve ontem na nossa cidade»), esquemas inacabados de palavras cruzadas, cartas de leitores que escolheu ao acaso, e vários recortes de jornais, todos eles relativos a crimes cometidos no bairro de Beyoglou e que tinham chamado a atenção de Djélâl: a maior parte dos assassinatos em causa pareciam copiados uns dos outros, não só por terem sido perpetrados com instrumentos cortantes geralmente utilizados em cozinhas, e sempre em plena noite, ou porque o assassino ou a vítima — ou por vezes ambos — estavam bêbados que nem cachos, mas sobretudo por serem relatados numa linguagem que insistia no sentimentalismo «macho», e num tom extremamente moralizador: «Assim acabam os que se metem em negócios duvidosos!» Para abordar o assunto, Djélâl utilizara certos recortes descrevendo «Os pontos mais notáveis de Istambul» (os bairros de Taksim, Djihanguir, Lâleli, Kourtoulouche). Uma série de artigos intitulada «As estreias da nossa história», descoberta na mesma caixa, lembrara a Galip que o primeiro livro a utilizar o alfabeto latino na Turquia fora impresso em 1928, por Kassime bey, proprietário da Biblioteca do Ensino Público. Em cada folheto do Calendário do Ensino Público, publicado pelo mesmo editor, além das receitas culinárias que Ruya muito apreciava, das citações de Atatiirk, dos grandes pensadores do Islão ou de estrangeiros ilustres como Benjamin Franklin ou Bottfolio, ou dos trocadilhos e ditos espirituosos, via-se um mostrador de relógio que indicava as horas das orações de cada dia. Quando, em certos folhetos, Galip observou que Djélâl retocara a lápis o mostrador-horário para o transformar num rosto humano com o nariz e os bigodes muito compridos, convenceu-se de ter descoberto nisso um novo indício, e registou-o numa folha de papel branco. E enquanto almoçava um pedaço de pão, queijo e uma maçã, examinou com um interesse estranho a posição dessa nota no papel.

Nas últimas páginas de um caderno que continha o resumo de romances policiais como O Escaravelho de Ouro ou A Sétima Carta, informações sobre os códigos e as chaves de código, extraídas de livros sobre a Linha Maginot ou os espiões alemães, descobriu algumas linhas trémulas traçadas com uma esferográfica verde. Lembravam um pouco as linhas verdes que atravessavam os mapas do Cairo, de Damasco e de Istambul, ou talvez um rosto, por vezes flores ou os meandros de um rio na planície. Depois de ter estudado as curvas assimétricas e desprovidas de sentido das quatro primeiras páginas, Galip só na quinta página descobriu a chave do mistério: fora solta uma formiga no meio de uma página branca, e o percurso hesitante do insecto desvairado fora sublinhado pela esferográfica. Depois, o caderno fora fechado e, mesmo no meio da quinta página, o cadáver ressequido do insecto ficara colado no local onde a formiga exausta traçara círculos hesitantes. Galip tentou então adivinhar a quando remontava a morte da infeliz formiga, castigada por não chegar a qualquer resultado; perguntou-se também se esta estranha experiência teria alguma relação com as crónicas que o primo consagrara a Mevlâna. No quarto tomo do seu Mesnevi, Mevlâna referia com efeito a história da formiga que percorrera os seus rascunhos: o insecto começava por tomar as letras do alfabeto árabe por lírios e narcisos, depois compreendia que era o cálamo que criava aquele jardim de flores, e que o cálamo era dirigido pela mão, e que a mão obedecia ao cérebro. «E compreendia em seguida que essa inteligência era movida por uma outra inteligência», acrescentara Djélâl numa sua crónica. As imagens evocadas pelo poeta místico confundiam-se assim uma vez mais com os sonhos de Djélâl. Talvez Galip estivesse prestes a estabelecer uma ligação significativa entre aqueles artigos e a data em que o caderno fora utilizado, mas as últimas páginas eram inteiramente consagradas aos grandes incêndios de outrora, aos bairros de Istambul que tinham devastado, e ao número de grandes casas de madeira que haviam então desaparecido. Leu ainda outra crónica em que Djélâl contava as aventuras de um empregado de alfarrabista viajante que, no começo do século, vendia livros de porta em porta. O jovem apanhava o barco para se dirigir cada dia a um bairro diferente de Istambul; batia à porta das casas mais ricas para aí vender, depois de muitos regateios, os livros que trazia no seu fardo às mulheres do Harém, aos velhos que já não saíam de casa, aos funcionários com o dia demasiado ocupado, às crianças sonhadoras, mas o essencial da sua clientela era constituída pelos ministros, que não podiam sair de casa a não ser para ir aos seus ministérios, de acordo com a proibição decretada pelo sultão Abdulhamit que a fazia controlar pelos seus espiões. Enquanto lia como o jovem caixeiro-viajante comunicava a esses pachás (aos seus leitores, escrevera Djélâl) mensagens que ele próprio introduzia no texto dos livros que lhes vendia, e que os ensinava a decifrar com o auxílio de certos segredos dos Houroufis, Galip disse para consigo que pouco a pouco se estava a tornar outro homem, o homem que queria ser. E no momento em que concebeu que os segredos do houroufismo não eram muito complicados mas tão simples como o mistério das letras e dos signos, desvendado no final de um romance americano que se passa em mares longínquos, e cuja versão simplificada Djélâl oferecera a Ruya, num sábado à tarde dos seus tempos de miúdos, Galip convencera-se de que uma pessoa pode, à força de ler, tornar-se outra. Foi então que o telefone tocou. Era evidentemente o mesmo homem quem telefonava:

— Estou muito contente por verificar que voltaste a ligar o telefone, Djélâl bey! — disse a voz que evocava para Galip um homem de certa idade.

— Recusava-me a admitir que um homem com o teu valor pudesse manter-se à margem de uma cidade inteira, de um país inteiro, nestes dias em que se corre o risco de que sobrevenham os acontecimentos mais terríveis!

— Em que página da lista vais?

— Estou a esforçar-me muito, mas o trabalho avança muito menos depressa do que eu esperava. Quando lemos números durante horas a fio, começamos a pensar em coisas em que nunca pensamos. Agora, comecei a distinguir nos números fórmulas mágicas, disposições simétricas, repetições, clichés, formas... Isso diminui o meu rendimento.

— Também há rostos?

— Sim, mas só aparecem graças a combinações de algarismos. E depois, os números nem sempre se exprimem, acontece-lhes ficarem em silêncio. Às vezes adivinho que os quatros me estão a segredar não sei o quê, sucedem-se sem descanso. Dois a dois a princípio, depois mudam de coluna de maneira simétrica, e eis que de repente se transformam em dezasseis. De súbito, há setes que se introduzem na coluna que os quatros abandonaram, e trauteiam-me a mesma melodia. Repito de mim para mim que tudo isto são só acasos sem sentido, mas o número de telefone 140 22 40, que é de um tal Timour Beyazit, não te faz imediatamente pensar, também a ti, na batalha de Ankara de 1402, e nesse bárbaro do Timour que, depois de vencer, reduziu à condição de concubina a esposa de Beyazit, cognominado o Relâmpago? Toda a nossa história, toda a cidade de Istambul palpita nesta lista. Não lhe passo as páginas na esperança de descobrir coincidências, mas não consigo descobrir-te, quando sei que és o único homem capaz de desarmar a mais grave de todas as conspirações até hoje urdidas. Tu próprio dobraste o arco que lançou a flecha, e por isso só tu és capaz de deter este golpe de Estado militar, Djélâl bey!

— E isso porquê?

— Não foi em vão que te disse, durante a nossa primeira conversa, que eles acreditavam na vinda do Messias! São apenas um punhado de militares, mas leram sem dúvida alguns dos teus artigos, há já muitos anos. E leram-nos acreditando neles, tal como eu acreditava também, pelo meu lado. Lembra-te lá de algumas das tuas crónicas dos primeiros meses de 1961, do teu pastiche de «O Grande Inquisidor», relê a conclusão desse artigo pretensioso, em que explicavas porque é que não acreditavas na felicidade da família reunida das cautelas da Lotaria Nacional (A mãe está a fazer malha, o pai lê o jornal — talvez a tua crónica — deitado no chão, o filho faz os deveres, o gato e a avó dormitam ao pé do fogão. «Se toda a gente é tão feliz, se todas as famílias se parecem com a minha, porque é que se vendem tantos bilhetes de lotaria?», dizias tu). Relê também algumas das tuas críticas de cinema. Porque é que fizeste tanta troça dos filmes turcos nessa época? Porque é que, nesses filmes, que tanta gente contemplava com mais ou menos prazer, e que exprimiam apesar de tudo os sentimentos do nosso povo, tu só vias o cenário, o frasco de perfume na mesinha-de-cabeceira, junto à cama, as fotografias em cima dos pianos que nunca se abriam, votados às teias de aranha, os postais que emolduravam os espelhos, os cães de porcelana mergulhados no sono em cima do aparelho de rádio familiar?

— Não faço ideia.

— É claro que fazes! Era para tornares todos esses pormenores símbolos da nossa miséria e da nossa decadência! Falavas no mesmo tom dos lixos miseráveis atirados para os poços de ventilação entre os prédios, das famílias que viviam em apartamentos situados em diferentes andares do mesmo prédio e, consequência dessa promiscuidade, dos primos que casavam com as primas, ou dos sofás sempre cobertos de forros de protecção que os preservassem de envelhecer! Fornecias-nos todos estes elementos como outros tantos sinais lamentáveis da decadência inelutável, da banalidade, da insipidez em que estávamos mergulhados. Mas a seguir fazias-nos adivinhar, nos teus artigos pretensamente históricos, que a libertação é sempre possível, e que nos piores momentos, poderia aparecer um salvador que nos libertasse da miséria. E seria então o regresso, sob uma outra aparência, a ressurreição de um redentor que vivera havia centenas de anos, e que surgiria desta feita em Istambul, ao fim de cinco séculos, sob a aparência de Mevlâna Djélâleddine ou do Xeque Galip, ou ainda de um cronista! Quando falavas assim, quando evocavas a infelicidade das mulheres que faziam bicha diante de uma fonte nos bairros pobres, os gritos de amor dignos de dó gravados nas costas de madeira dos bancos dos eléctricos velhos, havia jovens oficiais que acreditavam no que tu dizias. Convenciam-se de que o regresso do Mehdi em que acreditavam assinalaria o fim desta tristeza e desta miséria, e que tudo voltaria a entrar na ordem. Foste tu quem os fez acreditar! Conheceste-os! Era em intenção deles que escrevias todas essas coisas!

— Bom, mas que queres agora de mim?

— Tudo o que quero é encontrar-me contigo.

— Porquê? Esse famoso dossier afinal não existe, não é verdade? -— Quero ver-te, explico-te tudo depois.

— E o nome que me deste não é o teu nome, pois não?

— Quero ver-te — repetiu a voz; essa voz afectada, mas estranhamente triste e convincente, do actor encarregado da sonorização e da dobragem de um filme e que pronuncia as palavras: «Amo-a...».

— Hás-de compreender porquê quando nos virmos. Ninguém te pode conhecer tão bem como eu, ninguém! Sei que passas as tuas noites a fantasiar, a ingerir chá e café que tu próprio fazes, a fumar os Maltépé que pões a secar no radiador. Sei que escreves os teus artigos à máquina, que os corriges com uma esferográfica verde, e que não estás nem contente contigo nem satisfeito com a tua vida. Sei que passas as tuas noites a andar de um lado para o outro do quarto, que continuas a desejar estar no lugar de um outro, mas que nunca consegues decidir quem será esse outro...

— Contei tudo isso muitas vezes, nas minhas crónicas — disse Galip.

— Também sei que não gostas do teu pai, e que ele, quando voltou de África com a sua segunda mulher, te expulsou do apartamento nas águas-furtadas onde te tinhas refugiado. Estou igualmente a par de todas as dificuldades materiais que sofreste, ao longo desses anos em que foste obrigado a viver em casa da tua mãe. Ah, meu pobre irmão! Quando eras um miserável jovem repórter no bairro de Beyoglou, inventaste crimes inverosímeis para despertar o interesse dos leitores. Entrevistaste no Péra-Palace vedetas que nunca existiram, de filmes americanos que nunca foram realizados! Chegaste a fumar ópio para poderes redigir as confissões de um fumador de ópio turco! Apanhaste uma sova durante uma viagem que estavas a fazer à Anatólia para terminares uma série de vidas de campeões de luta que publicavas sob pseudónimo! Na tua rubrica «Parece incrível mas é verdade», contaste, com as lágrimas nos olhos, a tua própria vida e ninguém pareceu dar por isso! Também sei que tens sempre as mãos húmidas, que tiveste dois acidentes de automóvel, que nunca conseguiste descobrir uns sapatos impermeáveis à água. E que viveste sempre sozinho, apesar do teu medo da solidão. Gostas de subir ao alto dos minaretes, gostas das revistas pornográficas, gostas de te demorar na loja de Alâaddine, gostas de conversar com a tua irmã. Quem mais, senão eu, poderia saber tudo isto?

— Uma quantidade de gente — respondeu Galip. — Porque todos esses pormenores podem ser conhecidos por meio das minhas crónicas. Queres dizer-me porque é que realmente te queres encontrar comigo?

— Por causa do golpe de Estado!

— Vou desligar...

— Juro-te! — disse a voz enlouquecida, desesperada. — Digo-te tudo se conseguir encontrar-te!

Galip desligou a ficha do telefone. Deitou a mão a um anuário que vira na véspera na estante do corredor e sentou-se na poltrona onde

Djélâl se instalava ao voltar para casa, exausto. Tratava-se da lista, cuidadosamente encadernada, da promoção de 1947 da Escola Militar. Além das fotografias, acompanhadas de máximas e citações de Atatiirk, do Presidente da República, do comandante do estado-maior, de todos os chefes do exército, do comandante e dos professores da Escola Militar, o anuário incluía as fotografias cuidadosamente tiradas dos alunos da promoção. Enquanto passava as páginas, separadas por folhas de papel vegetal, Galip não conseguia compreender o que o levara a examinar o álbum, na sequência da conversa que tivera ao telefone; dizia para consigo que todos os rostos, todos os olhares se pareciam estranhamente, do mesmo modo que os quépis e as insígnias. Tinha a impressão de estar a folhear uma velha revista de numismática, encontrada numa das caixas poeirentas cheias de livros lamentáveis vendidos ao desbarato que os alfarrabistas põem em frente das portas das suas lojas, e de contemplar as reproduções de velhas moedas de prata, cujas origem e efígie só os especialistas são capazes de distinguir. Sentia subir dentro de si a pequena música que ouvia quando andava de um lado para o outro nas ruas, ou quando se encontrava no meio da massa dos passageiros de um barco. Gostava de ver os rostos.

E, continuando a percorrer as páginas do anuário, redescobriu a impressão que experimentava em criança quando folheava a publicação ilustrada cuja edição esperara durante semanas e que cheirava tão bem a papel e a tinta de impressão. Havia sempre uma ligação entre todas as coisas, como se diz nos livros. Começava a ver nas fotografias a expressão fugitiva dos rostos com que se cruzava nas ruas, e sentia o mesmo prazer em contemplar à sua vontade os rostos e em decifrar o que significavam.

Exceptuados os generais que se tinham limitado a dirigir piscadelas de olho encorajadoras aos conspiradores, sem se exporem eles próprios ao perigo, a maior parte dos que tinham fomentado as conspirações votadas ao fracasso no começo dos anos sessenta faziam decerto parte dos jovens oficiais cujas fotografias apareciam no anuário. Mas Galip não descobriu qualquer ligação entre os golpes de Estado militares e as palavras, os desenhos que Djélâl rabiscara nas páginas do álbum, e até mesmo nos separadores de papel vegetal. Uma barba, um par de bigodes tinham sido acrescentados — como por obra de uma criança — a certos rostos; noutros, as maçãs do rosto ou os bigodes tinham sido acentuados a traço de lápis. Noutros ainda, as rugas da fronte haviam sido transformadas em marcas do destino, onde se podiam ler as letras do alfabeto latino, palavras desprovidas de sentido. As bolsas por baixo dos olhos de alguns tinham sido sublinhadas por arcos de círculo que ora faziam um O ora um C; estrelas, óculos, cornos enfeitavam ainda certos rostos. Os maxilares, a testa, a aresta do nariz tinham sido vincados a negro; alguns traços também a negro pareciam medir as proporções entre a largura e o comprimento de outros rostos, entre o nariz e os lábios, a testa e o queixo. Por baixo de algumas fotografias, uma indicação remetia para outras páginas e outras fotografias. Ao rosto de um grande número de alunos oficiais tinham sido acrescentadas borbulhas, verrugas, manchas, cicatrizes de abcessos de Alep, hematomas ou queimaduras. Ao lado de um rosto tão aberto e luminoso que era impossível adicionar-lhe um risco ou uma letra, Galip pôde ler as seguintes palavras: «As fotografias retocadas matam as almas!»

Galip descobriu a mesma frase noutros anuários que encontrou no mesmo canto do armário; nas fotografias que figuravam nos anuários da Escola de Engenharia, dos professores da Escola de Medicina, dos deputados da Assembleia Nacional em 1950, dos engenheiros e dos administradores da rede ferroviária Sivas-Kayséri, do Comité de Embelezamento da Cidade de Bursa, e até mesmo nas dos voluntários de Alsandjak, em Izmir, a época a Guerra da Coreia, deparou com os mesmos gatafunhos. A maior parte dos rostos tinham sido divididos por um traço vertical, com o objectivo evidente de destacar as letras desenhadas nas duas metades. Galip folheava rapidamente as páginas, mas acontecia-lhe também deter-se longamente num rosto, como se se esforçasse por apreender uma recordação vagamente rememorada, no momento preciso em que ela ia mergulhar no abismo do esquecimento, ou por redescobrir a localização de uma casa, onde o tivessem levado uma vez só e em plena noite. Alguns de entre aqueles rostos nada forneciam para lá daquilo que prometiam à primeira vista; outros debitavam bruscamente uma história que a sua superfície lisa, serena, não deixava prever. Nesses momentos, Galip lembrava-se de certas cores, do sorriso melancólico de uma empregada de restaurante, entrevista havia anos num filme estrangeiro; recordava a última audição na rádio de uma melodia que gostaria de voltar a ouvir, mas que perdia sempre.

Ao cair da noite, Galip transportara para a mesa de trabalho todas as agendas, todos os álbuns, todas as caixas cheias de fotografias recortadas de jornais ou de revistas, investigava-as ao acaso, como que tomado por uma embriaguez. Descobria rostos anónimos, fotografados não sabia onde, nem quando, nem como; raparigas, senhores de ar distinto com um chapéu de feltro, mulheres com os cabelos tapados por um lenço, jovens de rosto aberto, desesperados havia muito perdidos. Via rostos infelizes que podia adivinhar onde e porquê haviam sido fotografados.

Dois honestos cidadãos seguiam com os olhos, e um ar inquieto, o seu presidente da câmara, que transmitia ao primeiro-ministro as suas pretensões, sob os olhares benevolentes dos outros ministros e da sua escolta de guardas; uma mãe que conseguira salvar das chamas o seu filho e uma trouxa, durante o incêndio de Déréboyou, no bairro de Béchiktahe; uma bicha de mulheres, diante das bilheteiras do Alhambra, onde são passados filmes de Abdulvahap, o cantor egípcio; a dançarina do ventre, ilustre estrela de cinema, detida na posse de haxixe, cercada de polícias da esquadra de Beyoglou; o rosto subitamente desfeito do contabilista, culpado de desvio de fundos. Galip tinha a impressão de que todas as fotografias, que ia extraindo ao acaso das caixas, procuravam explicar-lhe porque é que haviam sido tiradas e conservadas. «Que pode haver de mais revelador, de mais curioso, de mais persuasivo que uma fotografia, um documento no qual se esconde a expressão de um rosto?», pensou Galip de si para si.

Por trás dos rostos, até mesmo dos mais vazios, cujo sentido e cuja expressão tinham sido distorcidos pelos retoques e arranjos, adivinhava uma melancolia, uma história carregada de recordações e de medos, um segredo bem guardado, uma dor que se reflectia nos olhos, nas sobrancelhas, no olhar, à falta de poder exprimir-se por palavras. De tal modo que acabou por ficar de lágrimas nos olhos enquanto examinava o rosto exultante e espantado do aprendiz de cardador, feliz contemplado com o grande prémio da Lotaria Nacional; o do empregado de seguros que acabava de apunhalar a mulher ou ainda o de uma Miss Turquia, terceira entre as rainhas de beleza, que se preparava para representar «o mais dignamente possível» o nosso país em toda a Europa.

E porque reencontrava nalguns desses rostos os rastos de uma melancolia que detectava por vezes nas crónicas de Djélâl, decidiu que o primo escrevera aquelas crónicas enquanto contemplava as fotografias: a que falava da roupa posta a secar nos pequenos quintais de casas pobres, por trás de armazéns de fábrica, Djélâl escrevera-a decerto sondando o rosto do nosso campeão de boxe amador (cinquenta e sete quilos). A redacção da crónica que explicava que as ruelas cheias de desvios de Gaiata só são na verdade tortuosas aos olhos dos turistas estrangeiros, fora sem dúvida concebida a partir do rosto esbranquiçado e violáceo da nossa cantora nacional, com cento e onze anos de idade, que, por meio de alusões, se orgulhava de ter ido para a cama com Atatiirk. As fotografias dos cadáveres, ainda de cabeça coberta, dos peregrinos que haviam perecido num acidente rodoviário, quando regressavam de Meca, lembraram a Galip uma crônica sobre as velhas gravuras e os velhos mapas de Istambul. Djélâl afirmava nela que a localização dos tesouros desaparecidos era indicada por alguns desses mapas, e que em gravuras efectuadas por pintores estrangeiros, tinham sido traçados certos sinais, acusando personagens vestidos à moda europeia de serem inimigos do nosso país, que tinham vindo a Istambul animados do projecto insensato de atentar contra a vida do sultão. Galip disse para consigo que existia decerto um nexo entre os mapas das cidades, sublinhados a tinta verde, e aquela crónica, redigida sem dúvida por Djélâl num dos períodos em que vivia sozinho durante mais de uma semana, num apartamento que todos os demais ignoravam, num qualquer canto de Istambul.

Pôs-se então a ler em voz alta, sílaba a sílaba, os nomes dos bairros no plano de Istambul. Alguns desses nomes, porque os utilizara milhares de meses havia anos na sua vida de todos os dias, estavam tão carregados de recordações que já nada de definido lhe lembravam, como acontece com as palavras «água» ou «coisas». Em contrapartida, os nomes de bairros que tinham desempenhado um papel menos importante na sua existência suscitavam nele associações de imagens imediatas, para tanto bastando que os repetisse em voz alta. Galip lembrou-se de uma série de artigos em que Djélâl evocava certos bairros de Istambul. Essas crónicas, que encontrou na estante, tinham todas por título «Os cantos secretos de Istambul», mas à medida que as relia, verificava que não lhe ensinavam grande coisa sobre os segredos desses cantos da cidade e que se compunham simplesmente de pequenos episódios. Esta decepção, que se teria limitado a fazê-lo sorrir noutras ocasiões, exasperou-o a ponto de o levar a dizer de si para si que, ao longo de toda a sua carreira de jornalista, Djélâl não só iludira os seus leitores, mas também mentira conscientemente a si próprio. Enquanto lia uma a seguir à outra a história de uma discussão num eléctrico da linha Fatih-Harbiyé; a do garoto que os pais tinham mandado à mercearia da esquina e que saíra da sua casa em Férikeuy para não mais voltar e o quadro do tiquetaque musical que enchia uma loja de relojoeiro do bairro do Arsenal, Galip murmurou para consigo que nunca mais se deixaria enganar. Mas, em breve, quando pensou que Djélâl podia muito bem estar escondido algures em Harbiyé, em Férikeuy ou em Top-Hané, a sua cólera virou-se, já não contra Djélâl, que lhe teria montado uma armadilha, mas contra a própria conformação do seu espírito, que o levava a descobrir pistas e indícios em todos os artigos do primo. E sentiu horror por esse espírito, incapaz de subsistir sem se alimentar de histórias, como de repente se pode sentir horror por uma criança que exige que a todo o instante a divirtam; e bruscamente, decidiu que não havia lugar neste mundo para tudo o que fossem indícios, signos, duplos ou triplos sentidos, segredos, mistérios; tudo isso eram somente frutos da sua imaginação, das suas próprias ilusões, do seu espírito que teimava em descobrir e em decifrar todos os sinais. Despertou nele o desejo de viver num universo onde cada objecto fosse muito simplesmente o objecto que acontecesse ser; um mundo onde nem as palavras impressas ou escritas, nem as letras que compunham essas palavras, nem os rostos, nem os candeeiros que iluminavam as ruas, nem a mesa de trabalho de Djélâl, nem a estante herdada do tio Mélih, nem esta tesoura ou esta esferográfica ainda com as impressões digitais de Ruya, fossem já os sinais equívocos que indiciam um segredo. Perguntou-se como poderia aceder a esse universo onde a esferográfica verde fosse apenas uma esferográfica verde, e onde ele não quisesse ser outro que não ele próprio. Como a criança que se imagina a viver no país longínquo que vê num filme, Galip, para se convencer de que vivia nesse universo, examinou os mapas desdobrados em cima da mesa: pareceu-lhe de início ver o seu próprio rosto, tão enrugado como a fronte de um velho, a seguir vários rostos de sultões que se confundiram diante dos seus olhos; um rosto que não lhe era estranho, talvez o de certo príncipe herdeiro, seguiu-se aos anteriores, mas apagou-se antes que ele tivesse tempo para o reconhecer.

Mais tarde, instalou-se na poltrona dizendo-se que poderia olhar os rostos coleccionados por Djélâl como se fossem imagens desse novo universo onde queria viver. Nas fotografias que ao acaso tirava das caixas, esforçava-se por examinar os rostos sem neles descobrir signos ou segredos. De tal maneira que cada rosto lhe surgia agora como a descrição de um objecto concreto, comportando simplesmente um nariz, uma boca, um par de olhos, como nas fotografias das autorizações de estadia ou dos bilhetes de identidade. Assim que sentia uma breve emoção, a que se apodera do empregado diante de um belo rosto de mulher marcado pela dor, cuja fotografia figura num dossier de seguros, dominava-se prontamente e passava a outra, que não exalava melancolia, que não contava qualquer história. E para não se deixar apanhar na armadilha de tudo o que diziam os rostos evitava ler as legendas das fotografias, e as palavras que Djélâl escrevera. Depois de ter contemplado longamente aquelas imagens de homens e de mulheres, esforçando-se por não distinguir nelas senão mapas e planos, enquanto as nuvens da noite se fechavam sobre a praça de Nichantache e os seus olhos de novo se enchiam de lágrimas, só pudera examinar ainda uma parte muito pequena das fotografias que Djélâl reunira ao longo de trinta anos.

 

Porque nos comove tanto um homem que chora amargamente? Uma mulher em lágrimas é aos nossos olhos uma parte tocante e aflitiva da nossa vida quotidiana; acolhemos esse espectáculo com sinceridade e ternura. Um homem que chora, pelo seu lado, enche-nos o coração de um sentimento de infelicidade. Dir-se-ia que esse homem chegou ao desfecho último de um universo, ou ao fundo dos fundos, ao extremo limite das suas capacidades, das suas possibilidades, e experimentamos o mesmo sentimento que experimentamos perante a morte de um ser querido. Ou então, existe no seu universo próprio qualquer coisa que não condiz com o nosso, qualquer coisa que nos perturba, ou, mais ainda, talvez nos aterrorize. Todos conhecemos o assombro e a aflição de depararmos com uma região que desconhecíamos no mapa que julgávamos conhecer tão bem, e a que chamamos um rosto. Ao ler a História dos Carrascos de Edirnéli Kadri, dei com uma história que é relatada no tomo VI da História de NaYma e na História dos Icoglanos de Mehmet Halifé.

Apenas há trezentos anos, numa noite de Primavera, o carrasco mais célebre do tempo, Kara Eumer, aproximava-se, montando o seu cavalo, da fortaleza de Erzurum. Aí fora enviado por ordem do sultão; o Bostandji-Bachi entregara-lhe por sua própria mão um documento que o encarregava de executar Abdi pacha, governador da fortaleza. Sentia-se muito satisfeito por ter feito em doze dias o caminho de Istambul a Erzurum, que um viajante comum percorria num mês. O fresco da noite fazia-o esquecer a sua fadiga, mas experimentava, apesar disso, uma dúvida, um abatimento insólitos. Como se pairasse sobre ele a sombra de um mau-olhado, de uma incerteza que o impedisse de cumprir honradamente a sua tarefa, de dar provas dos seus talentos.

Sem dúvida, o que tinha a fazer não era nada fácil: ia penetrar sozinho na casa guardada por homens armados de um pachá que não conhecia, que nunca vira; entregar-lhe-ia a ordem, comunicaria ao pachá e ao seu séquito a inanidade de qualquer rebelião contra as decisões imperiais; e se não conseguisse transmitir-lhes essa impressão, se o pachá tardasse a dar-se conta da inutilidade de qualquer resistência, o que era muito pouco provável, teria de o abater ali mesmo, antes de o seu séquito ter tempo para passar à acção. Não era decerto a falta de experiência que suscitava nele esta apreensão: ao longo de trinta anos de vida profissional, executara uma vintena de príncipes imperiais, dois grão-vizires, seis vizires, vinte e três pachás e mais de seiscentos malandros ou pessoas sérias, culpados ou inocentes, cristãos ou muçulmanos, homens ou mulheres, velhos ou crianças, do mesmo modo que, desde os seus anos de aprendizagem, infligira a tortura a milhares de seres humanos.

No dia seguinte, portanto, numa bela manhã de Primavera, antes de entrar na cidade, o carrasco apeou-se perto de um ribeiro, fez as suas abluções, recitou as suas preces, apurando o ouvido para o alegre chilreio dos pássaros. Acontecia-lhe raramente pedir a Deus que o ajudasse a cumprir a sua tarefa, mas, como sempre, o Senhor acedeu às súplicas daquela criatura tão conscienciosa. Tudo se passou bem. Assim que viu o carrasco com a cabeça rapada sob o seu gorro de feltro vermelho e o laço bem untado de sebo que trazia à cintura, o pachá adivinhou o que o esperava, mas não levantou a mais pequena dificuldade. Talvez se tivesse preparado havia muito para aquela sorte pois conhecia bem os seus crimes.

Primeiro, leu e releu o firmão, sempre extremamente atento (o que é uma característica dos cidadãos respeitadores da lei); poisou em seguida os lábios no firmão, levou-o à fronte, com todos os sinais do respeito (maneira de proceder que vemos muitas vezes nos que podem ainda procurar impor-se e que Kara Eumer achava bastante estúpida); declarou que desejava ler o Corão e fazer as suas orações (necessidade característica dos que procuram ganhar tempo ou dos crentes sinceros). Depois de ter terminado as suas devoções, distribuiu pelo seu séquito as pedras preciosas, os anéis ou outras jóias que tinha consigo: «Em minha memória!», dizia, mas com o objectivo evidente de não os abandonar ao seu carrasco (outra reacção característica dos que são muito apegados ao mundo e suficientemente superficiais para quererem mal ao seu carrasco). E depois, como a maior parte daqueles que manifestavam não uma ou duas destas reacções, mas todas elas ao mesmo tempo, tentou por fim debater-se injuriando o carrasco antes de este lhe pôr o laço no pescoço. Mas um violento murro no maxilar bastou para lhe cortar braços e pernas e para que o pachá se resignasse. Chorava.

Tratava-se de uma reacção frequente das vítimas em tal momento. Mas no rosto coberto de lágrimas do pachá, o carrasco apercebeu-se de qualquer coisa de tão estranho que, pela primeira vez em trinta anos de vida profissional, hesitou. E, num gesto não habitual nele, tapou com um pano o rosto do pachá antes de o estrangular. Era uma precaução que sempre reprovara quando com ela deparara nos seus colegas; porque, era essa a sua convicção, um carrasco, se quisesse realizar um trabalho tão perfeito como rápido, devia ser capaz de olhar até ao fim a vítima nos olhos.

Depois de se certificar de que o pachá estava de facto morto, apressou-se a separar a cabeça do corpo, com uma navalha especial chamada «cifra»; guardou em seguida a cabeça no saco de couro cheio de mel de que se munira. Porque, para provar que levara bem a cabo a sua tarefa, precisava de levar consigo aquela cabeça e de a entregar aos responsáveis encarregados de a identificarem em Istambul, e isto sem deixar que o tempo causasse a sua decomposição. E, enquanto a colocava cuidadosamente no saco, voltou a ver com assombro o olhar em lágrimas do pachá, e a sua expressão tão surpreendente como aterradora, que não poderia esquecer até aos últimos dias — de resto bastante próximos — da sua vida.

Montou a cavalo e saiu imediatamente da cidade, porque fazia questão de estar sempre pelo menos a dois dias de distância do lugar da execução, quando o corpo decapitado descesse à terra, depois do funeral que decorreria entre lágrimas e desolação, revolvendo o coração de todos os participantes. Depois de cavalgar sem tréguas um dia e meio, chegou à floresta de Kemah. Ceou na albergaria das caravanas, retirou-se logo a seguir para uma cela e adormeceu.

Quando emergiu do fundo de um sono de chumbo que durara doze horas, estava a sonhar que se encontrava em Edirné, a cidade onde passara a sua infância. Aproximava-se de um enorme bocal, cheio do doce de figo que a mãe cozera e recozera tanto que o perfume agridoce dos frutos invadira não só a casa e o jardim, mas o quarteirão inteiro. Começava por compreender que as pequenas bolas verdes que tomara por figos eram os olhos de um rosto que chorava; destapava o bocal, com a impressão de cometer uma falta, não por se tratar de uma acção interdita, mas antes pelo facto de ser testemunha do terror que impregnava o rosto em lágrimas; e quando começaram a irromper do bocal os soluços de um homem maduro, inteiriçava-se imobilizado, tolhido pela impotência.

Na noite seguinte, quando dormia numa outra cela, de uma outra albergaria de caravanas, reviveu um fim de dia da sua primeira juventude: continuava a ser em Edirné, numa ruela, pouco antes do cair da noite. A convite de um amigo que não conseguia reconhecer, via o Sol baixar numa extremidade do céu, e na outra, subir a face lívida da Lua cheia. Depois, à medida que o Sol desaparecia e a noite tombava, o rosto redondo da Lua acendia-se, tornava-se mais preciso, e em breve se revelava que esse rosto resplandecente era o rosto, coberto de lágrimas, de um homem. E o que transformava as ruas de Edirné, que se tornavam as de uma cidade desconhecida, inteiramente diferente, não era, como se poderia crer, a tristeza do astro transformado em rosto em lágrimas, mas o seu aspecto enigmático.

De manhã, o carrasco disse para consigo que esta descoberta, feita durante o sono, era resultado das suas próprias recordações: ao longo de toda a sua vida profissional, vira milhares de rostos de homens em lágrimas; mas nenhum deles lhe causara o mais pequeno sentimento de medo ou crueldade, ou sequer de culpa. Ao contrário do que se poderia pensar, as suas vítimas sempre lhe haviam inspirado alguma tristeza, mas esta piedade era imediatamente contrabalançada por uma lógica de obrigação, de lei, de sem recurso. Porque sabia que os infelizes que estrangulava, esquartejava ou decapitava conheciam sempre melhor do que o seu carrasco o encadeamento dos motivos que os levara à morte. Nada havia de insuportável na imagem de um homem que era levado para o suplício rogando, debatendo-se, sacudido de soluços e espasmos, com o rosto coberto de lágrimas e de ranho. Ao contrário de certos imbecis que exigem dos homens prestes a ser executados atitudes afectadas, discursos heróicos susceptíveis de passarem à posteridade e à lenda, o carrasco não experimentava qualquer desprezo por esses homens em lágrimas, mas ao contrário de uma outra espécie de imbecis, que nada compreendiam da crueldade inelutável e ligada aos acasos da vida, nunca cedia também a uma compaixão que lhe inutilizaria braços e pernas.

Mas o que era então que o paralizava nos seus sonhos? Enquanto passava entre ravinas profundas cobertas de rochedos, numa bela manhã de sol esplendoroso, com o saco de couro preso no arção, o carrasco disse para consigo que esta indecisão que o invadira antes de entrar em Erzurum se ligava sem dúvida ao imperceptível pressentimento funesto que obscurecera a sua alma. No rosto — que normalmente deveria ter esquecido logo a seguir — da sua vítima, distinguira um segredo, de tal maneira que tivera de o dissimular sob um pano de burel antes de a estrangular. Ao longo do dia todo, que não havia maneira de acabar, o carrasco conduziu o seu cavalo entre rochedos abruptos, com estranhas formas — um veleiro de casco redondo como uma marmita, um leão cuja cabeça era uma figueira —, entre pinheiros e faias que lhe pareciam desconhecidos e mais insólitos que de costume; enquanto o cavalo avançava sobre um cascalho estranho, quase inquietante, por margens que ladeavam águas geladas, não voltou a pensar uma só vez no rosto da cabeça cortada que trazia à garupa. Agora, o que havia de mais espantoso aos seus olhos era o universo, um mundo novo que redescobria, que discernia pela primeira vez.

Pela primeira vez, verificava que as árvores se pareciam com as sombras que se agitavam na sua memória, durante as noites de insónia. Pela primeira vez, dava-se conta de que os pastores com o coração puro, que apascentavam os seus rebanhos de ovelhas nos taludes verdejantes, carregavam a cabeça em cima dos ombros como se fosse um fardo que nem sequer lhes pertencesse. Pela primeira vez, compreendia que os pequenos lugares com uma dezena de casas, encarrapitados nos flancos das montanhas, lembravam os sapatos alinhados às portas das mesquitas. Pela primeira vez, adivinhava que as montanhas violeta que se erguiam para oeste e que atravessaria doze horas mais tarde, as nuvens, extraídas de miniaturas, que as encimavam, lhe diziam que o universo é um lugar nu, inteiramente nu. Conseguia agora compreender que todos os vegetais, todos os animais, todas as coisas eram sinais de um universo tão aterrador como os pesadelos, tão vazio como o desespero, tão velho como as recordações. À medida que avançava para oeste e que as sombras se alongavam e mudavam de significação, o carrasco descobria indícios, signos que não conseguia decifrar e que pareciam chover uns atrás dos outros à sua volta, como sangue a escapar-se gota a gota de um recipiente rachado.

Restaurou-se numa albergaria de caravanas que alcançou ao cair da noite, mas sentiu-se incapaz de dormir fechado com o saco numa cela; sabia que não seria capaz de suportar o pesadelo aterrador que invadiria pouco a pouco o seu sono, como o pus que escorre de um abcesso rebentado, esse rosto desolado, coberto de lágrimas que, como todas as noites, lhe apareceria sob uma outra forma. Repousou um longo momento contemplando com assombro a multidão dos rostos à sua volta, e depois retomou o seu caminho.

A noite estava silenciosa e fria, sem um sopro de vento; o seu cavalo extenuado decidia sozinho o rumo que tomava. Avançou assim um bom pedaço de tempo sem nada ver e sem se pôr a menor questão embaraçosa: porque fazia muito escuro, dir-se-ia ele mais tarde.

Porque, assim que a Lua surgiu entre as nuvens, as árvores, os rochedos, as sombras transformaram-se lentamente noutros tantos indícios de um mistério insolúvel. O mais assustador não eram nem as pedras tumulares melancólicas dos cemitérios, nem os ciprestes solitários, nem os uivos dos lobos na noite silenciosa. O que tornava aos seus olhos o universo tão surpreendente, a ponto de se tornar tremendo, eram os esforços que esse universo fazia por lhe contar uma história, sim, parecia querer dizer ao carrasco, indicar-lhe uma certa significação; mas tal como durante as paragens para repouso, as explicações perdiam-se numa imprecisão brumosa. E pela manhã, o carrasco ouviu soluços muito próximos.

Ao romper do dia, disse para consigo que esses soluços não passavam de um jogo do vento por entre os ramos; mais tarde, decidiu que tudo aquilo era apenas um efeito da fadiga e da falta de sono. Por volta do meio-dia, os soluços que saíam do saco pendurado do arção tinham-se tornado tão nítidos que ele se apeou do cavalo, como quem sai de uma cama bem quente em plena noite para pôr fim ao ranger irritante de uma janela mal fechada, e apertou com toda a força as cordas que fechavam o saco. Mas, um pouco mais tarde, sob a chuva que começara a cair, não só continuaria a ouvir os soluços, mas sentiria também na sua própria pele as lágrimas da cabeça cortada.

Quando o Sol tornou a aparecer, compreendeu que havia uma ligação entre o mistério do universo e o que se lia no rosto em lágrimas, e dir-se-ia que o universo, que lhe era outrora conhecido, familiar, inteligível, escapava ao aniquilamento graças à expressão normal, comum, dos rostos. Do mesmo modo que tudo se transforma quando uma taça encantada voa em pedaços, quando se quebra um frasco de cristal mágico, todo o sentido do universo se dissipara desde que aquela estranha expressão surgira no rosto em lágrimas, entregando o carrasco a uma aterradora solidão. Enquanto as suas roupas molhadas pela chuva secavam ao sol, compreendeu de súbito que precisava de mudar a expressão colada ao rosto como uma máscara se quisesse que tudo voltasse à ordem antiga. Por outro lado, a sua consciência profissional ordenava-lhe que conduzisse a Istambul a cabeça que mergulhara, sem lhe dar tempo para arrefecer, no saco cheio de mel.

Depois de ter passado a cavalo, sem pregar olho, uma noite terrível, que lhe fazia perder a razão, envolvida no som ininterrupto dos soluços, que haviam tomado a forma de um refrão irritante, o carrasco deparou com o mundo inteiramente transformado, de tal modo que mal podia acreditar que continuava a ser ele próprio. Os plátanos, os pinheiros, os caminhos lamacentos, as fontes, as pessoas que se afastavam com terror ao vê-lo, surgiam de um mundo que não reconhecia, que ignorava por completo. Numa povoação onde chegou a meio da jornada, e que nunca atravessara até então, teve dificuldade em identificar os alimentos que se limitou a devorar instintivamente, como um animal. Quando se deitou à sombra de uma árvore, à saída da aldeia, para permitir ao cavalo descansar, compreendeu que aquilo a que até então chamara céu era uma estranha cúpula azul. Ao pôr-do-sol, voltou a montar a cavalo. Restavam-lhe ainda seis dias de jornada. Compreendera agora que nunca poderia chegar a Istambul se não fizesse calar os soluços, se não conseguisse fazer o rosto mudar de expressão, se não conseguisse realizar o passe de magia que lhe permitisse devolver ao universo o seu antigo rosto familiar.

Ao cair da noite, descobriu um poço nos arredores de uma aldeia, onde ouvia ladrar cães, e apeou-se do cavalo. Apoderou-se do saco de couro, abriu-o, tirou para fora a cabeça segurando-a pelos cabelos. Lavou-a com muita água, mas com delicadeza, como se se tratasse de um recém-nascido. Depois de a ter cuidadosamente enxugado com um pano, secando-lhe bem os cabelos e os ouvidos, examinou-a à luz do luar: não se notava nela qualquer alteração e exprimia sempre o mesmo desespero, insuportável, inesquecível; continuava a chorar.

Poisou-a na borda do poço, foi buscar ao arção da sela os seus instrumentos de trabalho, os seus dois cutelos e as grossas barras de ferro que utilizava nos suplícios. Em primeiro lugar, com as suas facas, tentou transformar o rosto puxando-lhe com força as comissuras dos lábios, a pele e os ossos. Depois de prolongados esforços, deixara os lábios desfeitos, mas conseguira desenhar na boca o esboço apenas de um sorriso, um pouco de través. Depois dedicou-se a um trabalho mais delicado: aplicou-se a abrir os olhos que a dor tinha pregueado. Depois de demorados esforços esgotantes, quando finalmente conseguiu tornar sorridente o rosto, estava sem forças, e já não se sentia tão tenso. Regozijou-se até ao ver na pele a marca roxa do murro que tivera de infligir a Abdi pacha antes de o estrangular. Cheio de uma alegria infantil, apressou-se a guardar os seus instrumentos nos arções. Mas quando voltou ao poço, a cabeça desaparecera. Por um breve instante, pensou que se tratasse de uma partida que ela lhe tivesse pregado. Quando compreendeu que caíra para dentro do poço, não hesitou mais, correu até à casa mais próxima e bateu com muita força à porta para acordar os moradores. Bastou ao velho camponês e ao seu filho verem o carrasco para, aterrados, obedecerem com toda a prontidão às suas ordens. Até de manhã, entregaram-se os três ao trabalho de retirar a cabeça do interior do poço, que não era muito profundo. Ao romper do dia, o rapaz, que tinham feito descer ao poço, seguro por uma corda presa à cintura, voltou à superfície uivando de terror, com a cabeça, que agarrara pelos cabelos. Estava muito estragada, mas já não chorava. O carrasco, que recobrara a calma, enxugou-a com todo o cuidado, voltou a pô-la dentro do saco de mel, ofereceu algumas piastras ao jovem e ao pai, e voltou a partir muito feliz para oeste.

Quando o Sol subiu no céu, enquanto os pássaros chilreavam nas árvores em flor, o carrasco, com uma alegria e um entusiasmo sem limites, tão imensos como o céu, compreendeu que o universo voltara a ser o antigo universo familiar. Já não ouvia soluços irrompendo do saco. Apeou-se do cavalo cerca do meio-dia, à beira de um lago fechado entre colinas cobertas de pinheiros e, na sua felicidade, entregou-se ao sono profundo que esperava em vão havia tantos dias. Todavia, antes de adormecer, levantara-se de um salto, com vivacidade, e correra até ao lago para nele contemplar a imagem do seu rosto, e verificara, uma vez mais, que o universo não mudara.

Cinco dias mais tarde, em Istambul, quando certas testemunhas que haviam conhecido bem Abdi pacha afirmaram que aquela cabeça cortada não era a dele, e que a expressão sorridente que nele se via não lembrava de maneira nenhuma o defunto, o carrasco pensou no rosto feliz que lhe fora dado contemplar no espelho do lago. Acusaram-no de ter recebido dinheiro de Abdi pacha e guardado no saco a cabeça de outro homem, de um pastor inocente, por exemplo, que teria assassinado pelo caminho para esconder a sua desonestidade. O carrasco não tentou desculpar-se, sabia que qualquer desmentido seu seria inútil: vira já o carrasco encarregado de o decapitar transpor a porta de entrada.

A história do inocente pastor decapitado em vez de Abdi pachá espalhou-se muito rapidamente. De tal maneira que o pacha, que esperava a pé firme a chegada do segundo carrasco à sua bela residência de Erzurum, o mandou executar de imediato. Foi assim que começou a rebelião conduzida por Abdi pacha, que alguns acusaram de ser um impostor, depois de terem decifrado as letras do seu rosto; rebelião que durou vinte anos e fez cair seis mil e quinhentas cabeças.

 

Quando chegou a hora de jantar na cidade, quando a circulação diminuiu na praça de Nichantache e se calaram os sons de apito furiosos do agente encarregado de regular o trânsito à esquina da praça, Galip contemplava havia tanto tempo as fotografias que a melancolia, a tristeza ou a piedade, que nele tinham podido despertar os rostos dos seus compatriotas, se haviam esgotado; as lágrimas já não lhe corriam pelo rosto. E do mesmo modo tinham desaparecido também o bom humor, a alegria ou a emoção que essas fisionomias tivessem podido inspirar-lhe. Dir-se-ia que nada mais esperava da vida. Sentia diante das fotografias a indiferença de quem perdeu a memória, as esperanças e o futuro. Num recanto do seu cérebro, sentia revolver-se lentamente o silêncio que parecia invadir todo o seu corpo. Enquanto comia o pão e o queijo que descobrira na cozinha e bebia o resto do chá da véspera, continuava a contemplar as fotografias em cima das quais deixava que as migalhas caíssem. A agitação da cidade, tão resoluta como incrível, chegara ao fim, substituída pelos ruídos da noite. Agora, podia ouvir o ronronar do frigorífico, um estore metálico que descia ao fundo da rua, uma explosão de riso chegada da loja de Alaaddine. Por vezes apurava o ouvido para o som de sapatos de salto alto que avançavam muito depressa na rua. Acontecia-lhe também esquecer o silêncio enquanto examinava um dos retratos com uma expressão de medo, ou até mesmo de terror no rosto e um assombro que acabava por deixá-lo exausto.

Foi então que começou a reflectir sobre as relações entre a expressão dos rostos e os segredos das letras: mais no desejo de imitar os heróis dos romances policiais caros a Ruya do que no propósito de decifrar o que Djélâl rabiscara nas fotografias. «Para poder ser como os personagens dos romances, capazes, esses, de descobrirem sem parar novos indícios», dizia-se Galip, fatigado, «basta acreditarmos que as coisas que nos rodeiam nos escondem segredos.» Foi buscar à estante do corredor as caixas onde Djélâl guardara todos os livros, as brochuras, os recortes de jornais e de revistas que tratavam da ciência das letras e acumulara milhares de fotografias, e recomeçou o trabalho.

Descobriu rostos que constituíam letras do alfabeto árabe, vav e ayin, que desenhavam olhos, ze e ri, que traçavam sobrancelhas, narizes que eram elif. Djélâl sublinhara cada uma das letras utilizadas com a aplicação e o cuidado do bom aluno que se dedicou à tarefa de aprender o alfabeto antigo. Num velho livro litografado, Galip descobriu também olhos de onde corriam lágrimas numa combinação de vav e de djim: o ponto por cima do djim era uma lágrima que deslizava para o fundo da página. Numa velha fotografia a preto e branco, verificou que era fácil descobrir essas mesmas letras nas sobrancelhas, nos olhos, no nariz e nos lábios; por baixo da fotografia, Djélâl escrevera muito legivelmente o nome de um xeque bektachi. Galip descobriu também caligrafias de máximas ou de poesias («Ah, os meus antigos amores!»), galeões sacudidos pelas tempestades, relâmpagos que caíam do céu e tinham a forma de um olho ou de um olhar aterrador, enigmas onde as cabeças humanas se confundiam com os ramos, inteiramente desenhados com letras, incluindo certas barbas das quais cada pêlo era uma letra. Encontrou ainda rostos lívidos, recortados de fotografias, e aos quais tinham sido furados os olhos, outros rostos de inocentes com os lábios maculados por letras portadoras das marcas do pecado, rostos de pecadores cujo destino tremendo se podia ler nas rugas que lhes cobriam a fronte. Por cima da longa camisa branca e do auto da sua execução que traziam ao pescoço, viu a expressão transtornada de primeiros-ministros ou de bandidos enforcados, fixando o solo que os seus pés não podiam alcançar. Em fotografias de cores envelhecidas enviadas por leitores que adivinhavam nos olhos descaradamente pintados de uma actriz de cinema bem conhecida os seus talentos de puta, nas dos supostos sósias de Rudolph Valentino ou de Benito Mussolini, ou ainda de sultões ou de pachás, lia as letras que tinham sublinhado na sua própria fotografia ou na dos homens com quem se imaginavam parecidos. Nas cartas de leitores que tinham sido capazes de decifrar a mensagem que Djélâl lhes enviava num artigo em que sublinhava o sentido muito particular da letra h, a última letra do nome de Allah, ou dos que revelavam as simetrias das palavras, manhã, rosto, sol, que Djélâl durante um mês, uma semana ou um ano usara nas suas crónicas, nas longas cartas dos que se esforçavam por lhe provar que o estudo das letras em nada era diferente da idolatria, Galip reencontrou os rastos dos jogos de letras que Djélâl imaginara. Examinou cópias de miniaturas representando o fundador do houroufismo, Fazlallah de Esterabad, às quais tinham sido acrescentadas letras dos alfabetos árabe e latino; as palavras ou as letras que enfeitavam as fotografias de futebolistas e de actores de cinema, as que se viam em pacotes de bolachas e de pastilhas elásticas tão grossos como a massa dos crepes que Alâaddine vendia na sua loja; as fotografias de assassinos, de simples pecadores ou de chefes de confrarias. Descobriu centenas, milhares, dezenas de milhares de fotografias de «gente da nossa terra», pululantes de letras. Dessas fotografias, havia realmente milhares, tiradas em todos os cantos da Anatólia, nas pequenas cidades cinzentas de poeira, nas povoações mais longínquas, onde o chão estala no Verão crestado pelo sol, nessas que nada nem ninguém — excepto os lobos esfaimados — pode alcançar no Inverno, isoladas como ficam durante quatro meses pela neve; nas aldeias de contrabandistas na fronteira com a Síria, essas aldeias onde metade da população masculina só tem uma perna por ter sido vítima das minas; nas aldeias de montanha desde sempre à espera de uma estrada; em bares e salas de dança da noite, ou em matadouros clandestinos escondidos nas grutas; em cafés frequentados por traficantes de haxixe ou vendedores de cigarros no mercado negro; escritórios da «direcção» em estações de caminho-de-ferro longínquas e desertas; «salões» de hotéis onde os negociantes duvidosos passam as suas noites; em bordéis de Sogukoluk: milhares de retratos «tirados» por fotógrafos, com a cabeça metida de baixo de um pano preto, que fazem funcionar as suas velhas Leica manipulando, como alquimistas ou adivinhos que lêem a sina, as placas cobertas de produtos químicos, os obturadores, as bombas e os foles dos seus aparelhos que pérolas azuis protegem do mau olhado, em cima dos seus tripés, instalados nos arredores dos hotéis ou dos serviços administrativos, ao lado das mesas de trabalho dos escrivães públicos. Não era difícil adivinhar que as pessoas da nossa terra, no momento em que fixavam a objectiva, eram presas de um vago medo da morte, de um sentimento do tempo que passa mesclado de aspiração à imortalidade, que as faziam estremecer. Galip podia compreender imediatamente que esse desejo profundo estava ligado aos sentimentos de derrota, de morte e de desespero cujos sinais descobria nos rostos dos humanos e nos mapas das idades. Dir-se-ia que as cinzas e as poeiras de um vulcão tinham recoberto o passado de uma camada espessa, quando a derrota sucedera aos anos felizes e que, para descobrir o sentido secreto e esquecido de havia muito das recordações, Galip teria de ler e de decifrar os sinais que invadiam os rostos.

Adivinhava-se, por certos pormenores anotados no verso, que certas fotografias tinham sido enviadas a Djélâl no começo dos anos cinquenta, na época em que estava encarregado no jornal não só das palavras cruzadas, das críticas de filmes e da crónica «Parece incrível mas é verdade», mas ainda da rubrica «O seu rosto, a sua personalidade». Adivinhava-se também que outras lhe tinham sido enviadas mais tarde, em resposta a um apelo que lançara («Desejamos ver as fotografias dos nossos leitores e publicar algumas delas para ilustrar a nossa crónica!»); ou ainda letras, pedaços de papel, palavras rabiscadas no verso permitiam compreender que certas fotografias tinham sido enviadas para acrescentar algumas precisões a cartas cujo conteúdo Galip não conseguia compreender. As pessoas fixavam a objectiva como se rememorassem uma recordação ligada a um passado muito longínquo, ou como se contemplassem o fulgor esverdeado de um relâmpago aceso por cima de uma costa distante, que mal conseguia ver-se; como se, com um olhar habituado, vissem decompor-se num pântano sombrio o seu próprio destino; tinham o olhar do amnésico, convencido de que a memória perdida nunca mais lhe voltará. Ao mesmo tempo que sentia que o silêncio daqueles personagens invadia cada vez mais o seu espírito, Galip compreendia claramente porque fora que Djélâl pudera cobrir de letras essas fotografias, esses recortes, esses rostos, esses olhares, e isso desde havia tantos anos; mas assim que tentava utilizar tais motivos como uma chave para explicar a ligação entre a sua vida e as de Djélâl e de Ruya, para se perguntar como iria deixar aquele apartamento fantasma e o que seria o seu futuro, sentia-se inteiriçado, por um breve instante, como os rostos nas fotografias, e a sua razão, que deveria ter descoberto um nexo lógico entre os acontecimentos, extraviava-se nas brumas de uma certa significação, que se encontrava algures entre os rostos e as letras. Foi assim que se aproximou do terror que descobriria nos rostos e onde se afundaria pouco a pouco.

Em velhos livros litografados, em folhetos recheados de erros ortográficos, descobriu todos os pormenores da vida de Fazlallah, profeta e fundador do houroufismo: nascera em 1339 no Khorassan, em Esterabad, perto do Mar Cáspio. Desde os dezoito anos, consagrara-se ao misticismo, fizera a peregrinação a Meca e tornara-se discípulo de um certo Xeque Hassan. Enquanto lia como Fazlallah aumentara o seu saber no decorrer das suas viagens, percorrendo de cidade em cidade o Irão e o Azerbaijão, enquanto descobria os temas das suas entrevistas com os xeques de Tebriz, de Chirvan ou de Baku, Galip experimentava uma irresistível necessidade de tudo recomeçar, de viver uma «vida nova», como diziam aqueles velhos alfarrábios. As profecias de Fazlallah sobre o seu destino e a sua morte — que se cumpriram todas — deram a Galip a impressão de tratarem de coisas completamente banais, que poderiam acontecer a qualquer homem decidido a viver a vida nova a que ele, Galip, aspirava. Num dos seus sonhos, Fazlallah vira duas poupas empoleiradas numa árvore, o profeta Salomão e ele próprio dormiam aos pés da árvore, sob o olhar dos pássaros, e o sonho do profeta Salomão e o de Fazlallah tinham-se confundido num sonho único, enquanto os dois pássaros no ramo se confundiam igualmente num só. Uma outra vez, sonhara com um dervixe que vinha visitá-lo na caverna para onde se retirara, mas em seguida o mesmo dervixe viera de facto vê-lo, em carne e osso, e comunicara-lhe que ele próprio vira em sonhos Fazlallah: sentados ao lado um do outro, folheavam um livro numa caverna, distinguiam os seus rostos nas letras do livro, e quando se viravam um para o outro para se olharem, viam as letras do livro nos seus rostos.

Para Fazlallah, o fonema, a voz, era a linha de demarcação entre o ser e o não-ser. Porque, quando se passa do mundo invisível ao mundo material, só o som que toda a coisa produz é material. Para o comprovar, bastava bater umas nas outras as coisas «mais mudas». A forma mais evoluída do som é naturalmente a fala, o fenómeno mais elevado a que chamamos «verbo», o mistério a que chamamos «palavra» e que é feito de letras. E era possível ler distintamente no rosto humano as letras, sentido e essência do ser, representação de Deus na terra. Há nos nossos rostos duas sobrancelhas, quatro pestanas, mais a raiz dos cabelos, ou seja um total de sete linhas. Quando, a estas linhas, vêm acrescentar-se os sete traços do nariz, que se desenvolve mais tarde, com a puberdade, o número de letras eleva-se a catorze. Se se dobrassem estes números, adicionando o seu valor numérico e a sua aparência material, que é mais poética, era claro que o número vinte e oito, número das letras utilizadas por Mahomet e graças às quais foi enunciado o Corão, não era fruto do acaso. E quando Galip leu que, para se alcançar o total das trinta e duas letras do persa, língua que Fazlallah falava e na qual escreveu o seu célebre Javidanname, era preciso examinar mais atentamente a linha dos cabelos e a que há por baixo do queixo, e dividi-las por dois e lê-las como duas letras distintas, compreendeu porque era que em certas fotografias, a cabeça — rosto e cabeleira — se dividia em duas por meio de um traço mediano que lembrava a risca do cabelo abrilhantinado dos actores dos filmes americanos dos anos trinta. Tudo parecia agora muito simples a Galip; feliz com uma simplicidade tão infantil, compreendeu uma vez mais o que atraíra Djélâl em tais jogos de letras.

Tal como o «Ele» cuja história Djélâl relatara, Fazlallah proclamara-se o Salvador, o Profeta, o Messias esperado pelos judeus, o Redentor que os cristãos esperam ver descer do céu, o Mehdi cuja vinda Mahomet igualmente anuncia. Depois, após ter reunido à sua volta sete discípulos que acreditavam nele, começara a difundir a sua fé. Quando Galip leu que Fazlallah, indo de cidade em cidade, declarava na sua pregação que o universo não revelava o seu sentido ao primeiro olhar, que fervilhava de mistérios e que, para penetrar esses segredos, era indispensável o conhecimento do segredo das letras, experimentou uma serenidade profunda, como se estivesse perante a prova de que o seu universo próprio também estava cheio de segredos, exactamente como ele sempre crera e esperara. Adivinhava também que a serenidade que o invadira estava ligada à simplicidade desta prova. Se era exacto que o universo pululava de mistérios, o universo secreto que lhe designavam a chávena de café, o cinzeiro, o corta-papéis que via em cima da mesa, e até a sua própria mão, que parecia um caranguejo adormecido, poisado ao lado do corta-papéis, esse universo secreto do qual a sua mão fazia parte existia deveras. E Ruya, também ela, se encontrava nele. Galip, pelo seu lado, estava no limiar desse universo, prestes a penetrar nele. Muito em breve, haveria de o conseguir fazer, graças ao segredo das letras.

E, para tanto, devia continuar a ler, com a mais extrema atenção. Releu a descrição da vida e da morte de Fazlallah. Soube que ele vira a sua morte em sonhos e que se encaminhara para a morte como num sonho. Fora acusado de ateísmo e de blasfémia, reprovavam-lhe o facto de não adorar Deus, mas o homem, as letras e os ídolos; de se ter proclamado Messias; de não acreditar no sentido visível, real, do Corão, mas nas suas próprias ilusões que, aos olhos dele, constituíam o sentido secreto, invisível, do Livro. Fora preso, julgado e enforcado.

Depois da execução de Fazlallah e dos seus discípulos chegados, os houroufis, perseguidos no Irão, tinham podido refugiar-se na Anatólia graças ao poeta Nesimí, que foi um dos sucessores do Profeta. Transportando consigo as obras de Fazlallah e todos os seus manuscritos sobre a sua doutrina numa arca verde, mais tarde tornada lendária para os houroufis, percorreu todas as cidades da Anatólia, e encontrou novos adeptos nos medresse desertos onde dormitavam aranhas, nos conventos onde os dervixes fumavam haxixe e formigavam os lagartos; e a fim de provar aos seus discípulos que não só o Corão, mas o universo inteiro transbordavam de segredos, recorrera a jogos de letras e de palavras extraídos do xadrez, jogo que muito apreciava.

Este poeta, que, em dois versos apenas, comparava uma das linhas do rosto da sua bem-amada e um seu sinal a uma letra e a um ponto, e essa letra e esse ponto a uma esponja e a uma pérola no fundo do mar, para se comparar a si próprio ao pescador de esponjas que mergulha em busca da pérola, depois esse homem que se lança de livre vontade nos braços da morte ao «louco de amor» em busca de Deus, comparando por fim Deus à sua bem-amada — e o círculo completava-se assim —, fora preso em Alep, esfolado vivo depois de um processo muito prolongado; o seu cadáver foi exibido em seguida na cidade, pendurado numa forca, depois esquartejado em sete partes que, para exemplo, foram enterradas nas sete cidades onde o poeta fizera discípulos e os seus poemas haviam sido aprendidos de cor.

O houroufismo, que, graças a Nesimí, se difundiu rapidamente no Império Otomano, exerceu uma forte influência em Mehmet, o Conquistador, quinze anos depois da conquista de Istambul. Quando os ulemás souberam que o sultão, citando os escritos de Fazlallah, gostava de discutir os mistérios do universo, as interrogações que as letras propunham, e os segredos de Bizâncio, que contemplava do palácio onde acabava de se instalar, e que procurava descobrir como cada cúpula, cada chaminé, cada árvore que apontava com o dedo ao seu séquito, podia constituir a chave dos mistérios de um segundo universo, um universo subterrâneo, fomentaram uma conspiração e fizeram com que fossem queimados vivos todos os horoufis que tinham conseguido insinuar-se nas boas graças do soberano.

Num livrinho, que, a dar crédito a uma nota acrescentada à mão na última página, teria sido feito clandestinamente numa tipografia de Horassan, perto de Erzurum, no início da Segunda Guerra Mundial, Galip descobriu uma gravura: nela se viam a ser consumidos em fogueiras houroufis decapitados na sequência de uma conspiração falhada contra Beyazit II, o filho do Conquistador. Numa outra página, viam-se ainda membros da seita, queimados vivos por não se terem submetido ao édito de proscrição de Solimão; era sempre o mesmo desenho infantil e a mesma expressão de terror. Nas chamas que envolviam os corpos dos mártires, distinguiam-se os elif t os Iam, que compõem o nome de Allah. Mais estranho ainda, lágrimas desenhadas com O, U e C do alfabeto latino irrompiam dos olhos dos supliciados, a arder no meio de grandes labaredas. Foi nesta imagem que Galip encontrou a primeira aplicação do houroufismo à reforma do alfabeto de 1928, à passagem dos caracteres árabes para os caracteres latinos, mas como, nesse momento, se preocupava sobretudo com o mistério que queria resolver, continuou a ler o conteúdo da caixa sem compreender bem o que significava aquilo que vira.

Leu assim páginas e páginas sobre o kanzi mahfi, o «tesouro secreto» da natureza de Deus; todo o problema era descobrir a via que levaria a esse segredo, compreender como ele se reflectia no universo; realizar que o mistério se manifestava em toda a parte, em cada objecto, em cada coisa e em cada ser humano. O universo era um oceano de indícios, e cada gota desse oceano tinha o gosto do sal que poderia levar ao segredo que nele se dissimulava. Galip estava persuadido de que poderia mergulhar nos mistérios desse oceano, contanto que continuasse a devorar todas aquelas páginas com os seus olhos avermelhados pela fadiga.

Tal como as suas manifestações se encontravam por toda a parte e em tudo, o mistério estava em tudo e por toda a parte. Galip podia verificar claramente, à medida que ia lendo, como as coisas à sua volta eram indícios do segredo do qual lentamente se aproximava, do mesmo modo que o eram nos poemas o rosto da bem-amada, as pérolas, as rosas, as taças de vinho, as cabeleiras de ouro, as noites e as chamas. O facto de o cortinado ferido pela luz pálida da lâmpada, os velhos sofás que se confundiam com as recordações de Ruya, as sombras nas paredes, o telefone com o seu aspecto aterrador, estarem tão carregados de sentido e de histórias, despertou em Galip — como lhe acontecia na infância — a impressão de entrar sem dar por isso num jogo: um jogo no qual cada um dos jogadores imitava outro e no qual cada coisa imitava outra coisa. Convencido de que era capaz de sair desse jogo perigoso tornando-se outro — como na sua infância fazia —, continuou o seu caminho a despeito de uma vaga de apreensão. «Se tens medo, posso acender-te a luz», dizia ele quando, ao jogar no escuro com Ruya, adivinhava nela a mesma ansiedade. «Acima de tudo, não acendas!», respondia-lhe Ruya, a corajosa, que gostava do jogo e do medo. Galip continuou a ler.

No início do século XVII, nos anos em que as rebeliões djélâlis subverteram a Anatólia, certos houroufis foram instalar-se nas aldeias abandonadas pelos camponeses, que fugiam dos pachás, dos cádis, dos bandidos e dos imãs. Enquanto se esforçava por decifrar as estrofes de um poema muito longo celebrando a vida cheia de alegrias e de sentido dessa aldeias houroufis, Galip pensou uma vez mais nas recordações felizes da sua própria infância.

Nesses tempos longínquos e felizes, o sentido da vida e a maneira de viver eram uma só e mesma coisa. Nesses tempos paradisíacos, as mobílias com que enchíamos as nossas casas correspondiam aos sonhos que sonhávamos. Nesses anos tão felizes, toda a gente sabia que as ferramentas e os objectos, os punhais e os calamos em que pegávamos eram o prolongamento não só dos nossos corpos, mas também das nossas almas.

Nesse tempo, quando os poetas falavam de uma árvore, cada um podia imaginar uma árvore tal como a árvore é, todos sabiam que não era necessário demonstrar grande talento, nem contar o número das folhas e dos ramos para descrever a árvore no poema ou a árvore no jardim. Nesse tempo, toda a gente sabia que os objectos descritos e as palavras utilizadas para os descrever estavam muito próximos e se confundiam nas manhãs em que a bruma descia sobre a aldeia-fantasma. Nessas manhãs, ao despertar, todos eram incapazes de distinguir o sonho da realidade, a vida da poesia, os homens e os seus nomes. Nesse tempo, os rostos eram tão expressivos que até mesmo aqueles que não sabiam ler, que acreditavam que o alfa era o nome de um fruto, que tomavam o e/z/por uma trave ou o A por um chapéu, podiam a todo o instante decifrar as letras que se liam nos rostos.

Ao mesmo tempo que lia como, para falarem da feliz e longínqua época em que os homens nem sequer conheciam o tempo, os poetas descreviam o Sol cor de laranja imóvel no horizonte ao cair da noite, e os galeões cujas velas inchavam sob o efeito de um vento que não soprava sobre o mar liso cor de vidro e de cinza, e que nunca mudavam de lugar ainda quando avançavam; ao deparar com a descrição de mesquitas muito brancas que se erguiam junto ao mar, semelhantes a miragens que nunca desaparecem, e dos seus minaretes ainda mais brancos, Galip disse para consigo que os sonhos e o modo de vida dos houroufis, que se mantiveram secretos do século XVII até aos nossos dias, haviam de facto invadido igualmente Istambul. Quando descobriu continuando a ler as cegonhas e os albatrozes que batem as asas entre os brancos minaretes com três galerias, e as fénix e os Simorgh e todos os outros pássaros fabulosos que planam desde há séculos por cima das cúpulas de Istambul, como se estivessem presos ao firmamento; quando concebeu que um passeio nas ruas de Istambul, que nunca formam um ângulo recto quando se cruzam, e das quais nunca se sabe quando vão cruzar-se, é tão vertiginosa e tão distractiva como uma volta na grande roda, que lança o viajante em direcção ao infinito; quando soube que pelas noites quentes de Verão e de luar, quando os baldes sobem dos poços tão cheios de mistérios e de sinais vindos das estrelas como de uma água glacial, as pessoas recitavam até de manhã poemas que falavam do sentido e dos indícios veiculados por tais sinais, Galip compreendeu que o verdadeiro houroufismo fora outrora que vivera a sua idade de ouro em Istambul; compreendeu também que os anos de felicidade que tinham, Ruya e ele, conhecido já não eram mais que passado. Essa idade de ouro e de beatitude não havia decerto durado muito. Porque logo a seguir a essa época em que todos os mistérios eram revelados, a seita começara a fechar-se em si própria: para tornarem os seus segredos ainda mais herméticos, do mesmo modo que faziam os houroufis instalados nas al-deias-fantasma, alguns punham todas as suas esperanças em elixires confeccionados com sangue, com gema de ovo, com pêlos e excrementos, outros cavavam subterrâneos por baixo das suas casas, nos cantos mais secretos de Istambul, para aí esconderem os seus tesouros. Galip descobriu ainda que certos membros da seita, com menos sorte que os cavadores de subterrâneos, tinham sido presos e enforcados por terem participado numa revolta de janízaros, e as letras tornaram-se ilegíveis nos seus rostos deformados pelo nó corredio. E os rapsodos, que, com o seu saz na mão, se dirigiam em plena noite aos conventos de dervixes dos bairros pobres para aí sussurrarem os segredos dos houroufis, rapidamente esbarraram numa muralha de incompreensão. Todos estes dados provavam que uma grande desolação pusera fim à idade de ouro que a doutrina conhecera, nas aldeias mais remotas do país ou nos recantos mais secretos, nas ruelas mais misteriosas de Istambul.

No final de um velho livro de poesia, com as páginas roídas pelos ratos, onde manchas de bolor verde-acinzentado e verde-garrafa alastravam num cheiro bom a papel e a humidade, Galip descobriu uma nota: podiam encontrar-se informações sobre o mesmo tema numa outra brochura. E nas últimas páginas da brochura, a dar-se crédito a uma frase bastante comprida e mal construída, que o impressor de Horassan introduzira em caracteres mínimos entre os últimos versos de um poema monótono e indicações sobre o endereço do editor e do impressor, a data de edição, a brochura em causa, intitulada O Segredo das Letras e o Desaparecimento do Segredo, sétima obra da mesma colecção, igualmente publicada em Horassan, perto de Erzurum, fora redigida por um certo F. M. Utchundju e atraíra os louvores de Sélime Katchmaz, jornalista em Istambul.

Conquistado pela sonolência e pelo cansaço, com o espírito toldado pelos fantasmas de letras e de palavras e pela recordação de Ruya, Galip tentou rememorar os primórdios da carreira do seu primo. Nesse tempo, o interesse de Djélâl pelos jogos de letras e de palavras limitava-se às mensagens que endereçava aos seus próximos e às suas amiguinhas através de rubricas como «Parece incrível mas é verdade» ou «O horóscopo do dia». Galip começou a revolver, enraivecido, nas revistas, jornais e papéis amontoados, procurando a brochura. Depois de ter instalado o caos numa das caixas que continuava a examinar sem esperança, era perto da meia-noite quando descobriu a obra dissimulada entre os recortes de jornais, alguns artigos que aludiam a uma polémica e nunca haviam sido publicados e fotografias bizarras.

E nas ruas reinava o silêncio dos períodos de estado de sítio e de recolher obrigatório, esse silêncio que nos faz pele de galinha e nos mergulha no desespero.

Como muitas outras «obras» do mesmo género cuja próxima publicação era anunciada, O Segredo das Letras e o Desaparecimento do Segredo fora composto vários anos mais tarde e numa outra cidade: em 1962 e em Górdio, onde nesse tempo existia, portanto, uma tipografia, o que muito espantou Galip. Um livro de duzentas e vinte páginas. A capa envelhecida estava enfeitada com uma ilustração enegrecida, devida a uma chapa defeituosa e a tinta de má qualidade: uma estrada, entre duas alas de castanheiros, perdia-se no infinito da perspectiva. Atrás de cada uma das árvores adivinhavam-se letras aterradoras, que causavam arrepios.

A primeira vista, o livro assemelhava-se aos numerosos ensaios que oficiais «idealistas» publicavam ao tempo, do género: «Porque é que não atingimos ao fim de duzentos anos o nível do Ocidente?», ou «Como garantir o desenvolvimento do país?», «Aluno da Escola Militar! Só tu podes salvar o teu país!». O livro abria com esta apóstrofe que se encontrava na maior parte da mesma espécie de trabalhos, todos publicados em edição do autor nalguma povoação remota da Anatólia. Mas, quando se pôs a percorrer as páginas, Galip compreendeu que estava na presença de um tema muito diferente. Deixou a poltrona, instalou-se à mesa de trabalho de Djélâl e, com os cotovelos bem firmados na mesa, começou a ler atentamente o livro.

O Segredo das Letras e o Desaparecimento do Segredo compunha-se de três partes, das quais as duas primeiras se encontravam no título. «O segredo das letras» começava pela narrativa da vida do fundador do houroufismo. Mas F. M. Utchundju dera uma dimensão laica ao personagem: mais que o Fazlallah místico, era o filósofo racionalista, o matemático, o semântico que passava para o primeiro plano. Fazlallah era, sem dúvida, um profeta, um Mehdi, um mártir, um santo, um justo, mas era ainda mais um filósofo subtil, um génio, e além disso era acima de tudo um homem da «nossa terra». Era por isso que qualquer tentativa de explicar as suas ideias — como faziam os orientalistas ocidentais —, evocando a influência do panteísmo ou da Cabala, de Plotino ou de Pitágoras, não podia ser senão um golpe traiçoeiro contra Fazlallah, um recurso ao pensamento ocidental visando um homem que a ele se opusera durante a sua vida toda. Fazlallah era um puro oriental.

Segundo F. M. Utchundju, o Oriente e o Ocidente dividiam o mundo; opunham-se um ao outro como o rosto e o verso, eram dois antónimos, como o bem e o mal, o negro e o branco, o anjo e o demónio.

Era impossível a esses dois universos viverem em paz, lado a lado, como pensavam os utopistas, que se embalavam com ilusões. Ao longo de toda a história, e alternadamente, um dos dois triunfara; alternadamente, um fora senhor e o outro reduzido à servidão. Uma série completa de exemplos históricos particularmente significativos ilustravam esta guerra gemelar incessante: o livro citava Górdio (em turco kordugum, nó extremamente complicado) onde Alexandre cortara o nó (ou seja, o número, dizia o autor) com um golpe de espada; as Cruzadas; as letras e os algarismos com duplo sentido que figuravam no relógio que Haroun al-Rachid enviara a Carlos Magno; a passagem dos Alpes por Aníbal; as vitórias muçulmanas na Andaluzia (uma página inteira era consagrada ao número das colunas da mesquita de Córdova); falava de Mehmet, o Conquistador, também ele houroufi, e da sua conquista do Império Bizantino e de Constantinopla; da ruína do Império Khazar bem como das derrotas sofridas pelos otomanos perante Veneza e Doppio (o Castelo Branco).

Segundo F. M. Utchundju, todos estes factos históricos exprimiam uma ideia da maior importância, que Fazlallah exprimira também em termos velados. Os períodos de dominação do Ocidente e do Oriente não obedeciam ao acaso, mas à lógica. Aquele destes dois universos que, em certos momentos históricos, conseguia ver o mundo como um lugar misterioso, de sentidos múltiplos, pululante de segredos, conseguia vencer, esmagar o outro. Aqueles para os quais o universo era um lugar simples, de sentido único, despojado de mistérios, estavam condenados à derrota e à servidão, que é o desfecho inelutável da derrota.

  1. M. Utchundju consagrara a segunda parte do livro a um minucioso exame do desaparecimento do segredo. Quer na idea da filosofia grega, no Deus dos neoplatónicos cristãos, no Nirvana indiano, na Ave Simorgh de Attar ou no «bem-amado» de Mevlâna, no Tesouro Secreto dos houroufis, no númeno de Kant ou na descrição do assassino num romance policial, o mistério significava sempre o «centro» secreto, escondido, do mundo. E portanto, dizia F. M. Utchundju, se uma civilização perdeu a ideia de mistério, isso significa que o seu pensamento é desprovido de «centro» e perdeu por completo o equilíbrio.

Nas páginas seguintes, Galip descobriu longas frases consideravelmente incompreensíveis sobre as razões que haviam forçado Mevlâna a matar o seu «bem- amado», Chems de Tebriz, e depois a dirigir-se a Damasco para fazer durar o mistério que «forjara de extremo a extremo» com essa morte; sobre o facto de as suas idas e vindas, as suas «investigações» na cidade não bastarem para manter a ideia de «mistério»; depois sobre o sentido atribuído aos diversos pontos de Damasco percorridos pelo poeta no decorrer das suas

deambulações, na esperança de redescobrir o «centro» do seu pensamento que se perdia pouco a pouco. Cometer um assassínio, quando o assassino não podia ser identificado, ou desaparecer sem deixar rasto — passar à clandestinidade —, era, na opinião do autor, um método eficaz de recriação de um segredo desaparecido.

Adiante, F. M. Utchundju passava à relação «letras/rosto» que é o elemento mais importante da doutrina houroufi. Como Fazlallah fizera no seujavidanname, insistia na ideia de que Deus — invisível — se manifestava no rosto humano; estudava longamente os traços desse rosto, e as relações desses traços com as letras do alfabeto árabe. Depois de algumas digressões um pouco ingénuas sobre a prosódia dos poetas houroufis, como Nesimí, Rafii, Missali, Ruhi de Bagdad ou Gul-Baba, havia uma lógica que se desprendia do livro: nas épocas de felicidade e de vitórias, para cada um de nós, o rosto tem um sentido, da mesma maneira que o mundo em que vivemos. Esse sentido foi-nos revelado pelos houroufis, que souberam penetrar os mistérios do universo e discernir as letras nos nossos rostos. Mas, com o desaparecimento da doutrina, as letras tinham-se apagado dos nossos rostos, tal como o segredo do universo se perdera. Os nossos rostos estavam doravante vazios, já não era possível ler neles o que quer que fosse: os nossos olhos, as nossas sobrancelhas, o nosso nariz, o nosso olhar, a nossa expressão, o nosso rosto já não tinham qualquer sentido. Galip sentiu vontade de se levantar para ir ver o seu próprio rosto ao espelho, mas continuou a ler com a maior atenção.

Tudo se ligava ao vazio dos nossos rostos, quer se tratasse da estranha topografia que faz pensar na face oculta da Lua e que redescobrimos nos rostos das estrelas do cinema turco, árabe ou indiano, ou dos resultados aterradores e misteriosos que a fotografia obtém quando se interessa pelo homem. Se as multidões que enchem as ruas de Istambul, do Cairo ou de Damasco se parecem tanto, como fantasmas enchendo a noite com os seus gemidos; se os homens de sobrancelhas sempre franzidas deixam crescer todos o mesmo bigode; se as mulheres com o mesmo lenço na cabeça, mantêm os olhos no chão quando avançam pelos passeios cobertos de lama, a razão é sempre a mesma: o vazio dos rostos. Por conseguinte, a única coisa a fazer é devolver uma expressão ao vazio dos nossos rostos, criar um sistema que nos permita descobrir neles as letras do alfabeto latino. O capítulo II anuciava que esse sistema seria examinado na terceira parte, intitulada «A descoberta do segredo».

Galip apreciara muito este F. M. Utchundju que tão bem sabia utilizar os jogos verbais e explorar o duplo sentido das palavras, com uma ingenuidade infantil: havia nele qualquer coisa que lhe lembrava Djélal.

 

Um dos nossos leitores, que deseja conservar o anonimato, possui uma carta que esclarece certos pontos que permanecem obscuros de um período da nossa história recente: esse a que se chama a «transição para a democracia». A carta ter-lhe-ia chegado às mãos através de uma série de acasos, por caminhos semeados de ciladas e de perfídias, que, justificadamente, o nosso leitor se recusa a revelar. Publico na íntegra essa carta, a qual teria sido escrita pelo ditador da época a um dos seus filhos então no estrangeiro, sem nada mudar do seu estilo — o de um militar de alta patente.

«Por essa noite de Agosto, há seis semanas, fazia muito calor, até mesmo no aposento onde morreu o fundador da nossa República; o ar estava tão sufocante que tínhamos a impressão de que não só o relógio cheio de dourados que marca para sempre as nove horas e um quarto, o instante da morte de Atatiirk — o que vos fazia rir muito porque induzi em erro a minha pobre mãe —, mas todos os relógios tinham parado no palácio de Dolma-Bahtchè e em Istambul; no meio desse calor implacável, o pensamento, o movimento, o tempo pareciam ter-se petrificado. Nas janelas que dão para o Bósforo, as cortinas sempre agitadas pela brisa não se mexiam nessa noite. Na penumbra, os guardas alinhados ao longo do cais mantinham-se tão imóveis como manequins, como se estivessem ali não por minha ordem, mas porque o tempo parara de correr. Pressentindo que chegara a hora de passar à execução daquilo que sonhava fazer havia tantos anos e que nunca me decidira a realizar, escolhi no meu armário um trajo de camponês, que enverguei. E, enquanto me escapulia do palácio pela porta do Harém, há tanto tempo inutilizada, pensei, para me dar coragem, em todos os sultões que durante cinco séculos tinham saído por portas escusas de todos os outros palácios de Istambul — Topkapi, Beylerbey, Yildiz — ou ainda por aquela mesma porta, para mergulharem nas trevas da vida urbana que tanto desejavam descobrir, tendo regressado sãos e salvos dessas sortidas.

«Como Istambul estava mudada! Decididamente, os vidros do meu Chevrolet blindado não são apenas à prova de bala; impedem igualmente a vida real da minha cidade, desta cidade que amo tanto, de chegar até mim. Depois de me ter afastado dos muros do parque, enquanto avançava para Karakeuy, comprei halva a um vendedor ambulante: o caramelo sabia a queimado. Nos cafés ainda abertos, falei com homens que jogavam às cartas ou ao triquetraque, ou que ouviam a rádio. Vi putas que atendiam o cliente em lojas de manjar branco, crianças que mendigavam em frente dos restaurantes apontando com o dedo os kébap exibidos nas montras. Entrei nos pátios das mesquitas para me misturar com as multidões que saíam depois das últimas orações. Nas casas de chá de clientela familiar, nos bairros pobres bebi chá e mordisquei sementes de girassol como toda a gente. Numa ruela lajeada, encontrei um jovem casal que regressava de uma visita a casa de vizinhos: devias ver com que amor a mulher, com os cabelos tapados por um lenço, se apoiava no braço do marido, que trazia aos ombros um rapazinho semiadormecido. Fiquei com as lágrimas nos olhos.

«Não, não era com a felicidade — ou com a infelicidade — dos meus concidadãos que me preocupava. Até mesmo nessa noite de liberdade e de sonho, o espectáculo — por parcial e fragmentado que fosse — da sua vida real reavivara em mim o sentimento de me encontrar fora da realidade, a tristeza e o temor de ser acordado dos meus sonhos. E esforçava-me por me desembaraçar dessas ilusões e desse medo contemplando Istambul. De novo as lágrimas me subiam aos olhos, enquanto olhava as montras das pastelarias e as multidões que saíam dos barcos com as suas chaminés elegantes das Linhas Marítimas Municipais, regressando do seu último trajecto.

«Aproximava-se a hora do recolher obrigatório. Em Emineumu, na esperança de aproveitar a frescura da água, fui ter com um barqueiro, estendi-lhe cinquenta piastras e pedi-lhe que me levasse, sem se apressar, à outra margem, a Karakeuy ou a Kabatache. "Perdeste a cabeça?", disse-me ele. "Então, não sabes que o general-presidente passeia por aqui todas as noites a esta hora e manda para a prisão todos os que encontra no mar?" Tirei do bolso um maço dessas notas de banco cor-de-rosa, a propósito das quais, bem sei, os meus inimigos inventaram tantas calúnias infames, por nelas aparecer impresso o meu retrato, e estendi-lhas no escuro. "Se formos para o largo com o teu barco, podes mostrar-me o barco do presidente?" Ele arrancou-me as notas das mãos e indicou-me a proa da embarcação: "Põe-te ali, debaixo daquele toldo, e sobretudo fica quieto! Que Deus nos ajude!" E pegou nos remos.

«Para onde nos dirigíamos, naquele mar sombrio, para o Bósforo, para o Corno de Ouro ou para Mármara? Ignorava-o. O mar calmo estava tão silencioso como a cidade às escuras. Do banco onde me estendera, podia sentir o cheiro leve da bruma sobre a água. Ouviu-se um ruído de motor: "Aí está ele, está a chegar!", segredou o barqueiro. "Vem aqui todas as noites!". A nossa embarcação foi esconder-se entre os pontões cobertos de mexilhão do porto. Eu não conseguia afastar o olhar do poderoso feixe de luz que girava para a direita, depois para a esquerda, e se deslocava implacavelmente para a cidade, as costas, o mar e as mesquitas. Vi o grande navio branco que se aproximava lentamente, podia distinguir os guardas, com o colete de salvação às costas, as armas na mão, e, mais acima, algumas silhuetas na ponte de comando, depois, no ponto mais alto, só, o falso general-presidente. Tinha dificuldade em ver-lhe o rosto porque o escuro o dissimulava, mas apesar de tudo pude comprovar, por entre a névoa ligeira, que se vestia como eu. Pedi ao barqueiro que seguisse o navio, mas em vão: explicou-me que a hora do recolher obrigatório chegara e que ele tinha amor à vida, e levou-me para Kabatache. Segui por ruelas desertas e entrei no palácio sem ser notado.

«Passei o resto da noite a pensar no meu sósia, nesse falso pachá, não para me perguntar de quem se trataria e o que procuraria ali, no mar, em plena noite; pensava nele porque, graças a ele, podia reflectir sobre mim próprio. No propósito de poder seguir mais facilmente o que ele fazia, ordenei logo no dia seguinte de manhã aos comandantes responsáveis pelo estado de sítio que atrasassem uma hora o recolher obrigatório. A rádio comunicou imediatamente a ordem, acompanhada por um dos meus discursos. E para dar a ilusão de um sopro de liberalização, mandei igualmente que fossem libertados alguns presos, ordem prontamente executada.

«Terá sido a noite seguinte mais alegre em Istambul? De modo nenhum! O que prova que a tristeza constante de que a nossa nação sofre não é causada pela opressão política, como afirmam os meus adversários do seu ponto de vista tão superficial, mas se alimenta de razões mais profundas, insuperáveis. As pessoas fumavam, comiam gelados, mascavam sementes de girassol, os clientes dos cafés continuavam a ouvir com a mesma melancolia e a mesma indiferença o discurso no qual eu anunciava a redução do recolher obrigatório. Mas eram tão reais! Quando me encontrava entre eles, experimentava a dor do sonâmbulo, incapaz de regressar à realidade por não poder despertar. O barqueiro estava à minha espera em Emineunu, sabe Deus como. Fizemo-nos rapidamente ao largo.

«Nessa noite, o vento soprava, o mar estava agitado. O general-presidente fez-nos esperar, como se um sinal o tivesse prevenido da nossa presença. Enquanto, ao abrigo de uma bóia ao largo de Kabatache, observava a chegada do navio, e a seguir o próprio general-presidente, disse para comigo que ele era belo — belo e real, se estas duas palavras podem ser utilizadas lado a lado. Seria possível? Acima da massa de gente que se apinhava na ponte do navio, os seus olhos viravam-se como projectores para Istambul e para as pessoas de Istambul, parecia estar a contemplar a história. Mas que veria?

«Meti um maço de notas de banco cor-de-rosa no bolso do barqueiro; ele pegou nos remos. Sacudidos, agitados pelas vagas, alcançámo-los em Kassime-Pacha, perto do arsenal, e pudemos observá-los, mas somente de longe. Desapareceram todos dentro de automóveis pintados de azul-marinho ou de negro — entre os quais se via o meu Chevrolet — e sumiram-se nas trevas de Gaiata. O barqueiro praguejava sem parar, repetia-me que era tarde e que se aproximava a hora do recolher obrigatório.

«Depois de ter sido tão prolongadamente sacudido pelas vagas, pensei que o sentimento de irrealidade que me tomou quando pus o pé no cais se devia a uma simples questão de equilíbrio. Nada disso. Enquanto caminhava nas ruas onde já não encontrava ninguém, dado o adiantado da hora, nas avenidas desertas por minha ordem, fui de novo invadido pelo mesmo sentimento de irrealidade, um sentimento tão forte que fez com que me aparecesse uma imagem que se diria vinda de um sonho. No caminho que vai de Findiki a Dolma-Bahtchè, não se viam senão matilhas de cães vadios. Só um vendedor de milho cozido empurrava o seu carrinho, vinte metros à minha frente, quase a correr e virando-se muitas vezes para me observar. Adivinhava pelos olhares que me lançava que lhe causava medo e que ele estava a fugir de mim, enquanto, pelo meu lado, eu gostaria de lhe dizer que a coisa que ele devia temer se escondia por trás dos enormes castanheiros que ladeavam o caminho. Mas era incapaz de lho explicar, como acontece sempre nos sonhos, e, sempre como nos sonhos, tinha medo, porque não podia dizer-lhe aquilo que queria dizer-lhe, ou pelo contrário, não podia dizer-lho porque tinha medo. A coisa que me fazia medo, essa, encontrava-se atrás das árvores que desfilavam dos dois lados da estrada, cada vez mais depressa porque eu estugava o passo, e porque o vendedor de milho o estugava também, por me ver fazê-lo. No entanto, não sabia de que coisa se tratava; pior ainda, sabia que aquela ameaça não era um sonho.

«No dia seguinte de manhã, como não queria voltar a experimentar o mesmo medo, ordenei atrasar mais uma boa hora o recolher obrigatório e libertar mais um certo número de presos. Não fiz sequer qualquer declaração a esse propósito na rádio; foi apenas difundido um dos meus anteriores discursos.

«Mas sabia, pela experiência dos velhos a quem a vida ensina que nada muda nunca, que voltaria a ver as mesmas imagens nas ruas da cidade. Não me enganava. Alguns cinemas ao ar livre tinham atrasado a hora das sessões, e era tudo. As mãos dos vendedores de algodão doce estavam como sempre manchadas de cor-de-rosa; e os rostos dos turistas ocidentais que tinham coragem para sair à noite, ainda que na companhia dos seus guias, eram muito brancos, como sempre.

«O meu barqueiro esperava-me como de costume no mesmo local. O mesmo posso dizer do falso pachá. Cruzámo-lo logo a seguir a ter deixado a costa. A noite estava tão calma como a primeira o estivera, mas sem um farrapo de bruma. No espelho obscuro do mar, podia ver reflectir-se, tal como os minaretes e as luzes da cidade, a silhueta do general-presidente, empoleirada na ponte. Ele era real. Além disso, naquela noite clara, vira-nos. Como nos teria visto qualquer ser de carne e osso naquela noite clara.

«A nossa embarcação seguiu o navio e singrou atrás dele até diante do embarcadouro de Kassime-Pacha. Acabava de pôr discretamente o pé no cais quando alguns indivíduos que pareciam mais vigilantes de estabelecimentos nocturnos que militares se precipitaram sobre mim: que fazia eu ali, de noite e tão tarde? Desvairado, protestei, a hora do recolher obrigatório ainda não soara, eu era um pobre camponês, estava hospedado num hotel do bairro de Sirkedji, quisera dar um passeio de barco na minha última noite em Istambul, antes de regressar à aldeia, não estava a par do decreto do presidente. Mas o barqueiro amedrontado confessou tudo, e os guardas explicaram o que se passava ao general-presidente, que se aproximara de nós. Trajado à «civil», o general-presidente parecia-se ainda mais comigo, e eu parecia um camponês. Fez-nos repetir as nossas declarações, depois deu as suas ordens: o barqueiro podia ir-se embora. Quanto a mim, devia acompanhá-lo.

«Sentados lado a lado no banco traseiro, o general-presidente e eu estávamos sós no Chevrolet blindado que saía do porto. A presença do motorista, do qual nos separava um vidro à prova de som — que não existia no meu próprio Chevrolet —, tão silencioso e espectral como o automóvel, não atenuava a nossa solidão, acentuava-a ainda mais.

«Esperávamos há tantos anos este encontro!», disse o general- presidente, com uma voz que me pareceu totalmente diferente da minha. «Por mim, eu sabia que o esperava, tu nada sabias, e embora o esperássemos os dois, ignorávamos que se daria assim».

«Falava com uma voz cansada, hesitante, menos comovido pela ideia de poder contar-me, enfim, a sua história do que tranquilizado pela alegria de lhe pôr fim. Ele e eu estivéramos, dizia ele, no mesmo ano na Escola Militar. Os mesmos professores tinham-nos prodigalizado as mesmas lições, participáramos nos mesmos exercícios em noites de Inverno geladas, esperáramos ambos a chegada da água às torneiras do nosso quartel durante os dias quentes do Verão; nos dias de licença, percorríamos juntos a cidade de Istambul que tanto amávamos, ao que ele dizia. Já nessa época, ele previra a evolução dos acontecimentos, afirmou também, embora não tivesse previsto os dados mais particulares da situação actual.

«Já nesse tempo, enquanto travávamos um combate secreto, ele e eu, pois ambos queríamos conseguir as melhores notas em matemática, obter o máximo de pontos no campo de tiro, conquistar a estima dos nossos camaradas e ser o primeiro, com a melhor folha de serviços, ele compreendera, dizia, que eu teria melhores resultados e residiria um dia em palácios, onde a minha pobre mãe se sentiria desconcertada pelos relógios parados. Fi-lo notar que esse combate — se era que realmente o traváramos — devia ter permanecido muito secreto, porque não me lembrava de maneira nenhuma de ter vivido qualquer rivalidade durante os meus anos de Escola Militar com um dos meus condiscípulos — coisa em que sempre vos aconselhei a imitarem-me —, do mesmo modo que também não me lembrava de ter sido seu amigo. Mas ele não pareceu minimamente afectado. Replicou-me que eu era demasiado seguro de mim para ter dado por essa rivalidade surda, à qual ele próprio renunciara por ter compreendido que eu era muito superior, já nesse tempo, a todos os alunos do nosso ano, a todos os alunos da Escola, aos tenentes e até mesmo aos capitães; recusara-se a continuar a ser uma pálida cópia, um êxito de segunda. Queria ser «ele próprio», ser uma realidade, e não uma sombra. Enquanto se ia assim explicando, eu contemplava as ruas desertas de Istambul da janela do Chevrolet, que notava pouco a pouco não ser afinal demasiado parecido com o meu, e de vez em quando olhava os nossos joelhos e as nossas pernas, imóveis, estendidos para a frente, exactamente na mesma posição.

«Mais tarde, explicou-me que nunca houvera lugar para o acaso nos seus cálculos. Na época, não era necessário ser-se um grande mago para prever que o nosso povo se submeteria a um ditador pela segunda vez em quarenta anos, e lhe entregaria Istambul, e que esse ditador seria um militar da nossa geração. Nem para se chegar à conclusão de que eu seria esse soldado. Por meio de uma simples operação intelectual, previra todo o futuro, quando era ainda aluno da Escola Militar. Ou seria eu que me tornaria general-presidente, e ele ficaria numa Istambul indecisa quanto ao futuro, tornar-se-ia numa sombra quase espectral a mover-se entre a reallidade e o apagamento, entre o desespero do presente e os fantasmas do passado e do futuro; ou então consagraria a sua vida a descobrir outro meio de se realizar. Quando me contou que, para descobrir essa outra via, cometera um delito suficientemente grave para ser expulso do exército, mas suficientemente benigno para não o levar à prisão, e que conseguira fazer-se apanhar quando, envergando o uniforme de comandante da Escola, passava em revista todas as sentinelas, acabei, mas só então, por me lembrar daquele meu companheiro, bastante apagado, de outros tempos. Depois de sair da Escola, ingressara no comércio. «No nosso país, o que há de mais fácil é enriquecer, toda a gente o sabe!», declarou com orgulho. «Pelo contrário, se há tantos pobres entre nós, é porque ensinam às pessoas, ao longo de toda a sua vida, a maneira, não de enriquecerem, mas de continuarem a ser pobres!», explicou-me ele ainda. Depois de um breve silêncio, acrescentou que fora eu quem assim o ensinara a assumir-se. «Tu!», exclamou ele, vincando bem a palavra. «Tu, que esta noite verifico com assombro, ao fim de tantos anos, seres ainda menos real do que eu! Pobre diabo de camponês!»

«Seguiu-se um longo, muito longo silêncio. Vestindo a roupa que um ajudante de campo me preparara declarando-me orgulhosamente que era assim que se vestiam os camponeses dos arredores de Konya, sentia-me, não ridículo, mas, pior que isso, excluído da realidade, transformado, contra a minha vontade, numa parte de um sonho. Compreendi igualmente que esse sonho não passava de uma montagem, realizada a partir de diversas imagens de uma Istambul mergulhada no escuro, que desfilavam silenciosamente do outro lado dos vidros como num filme mudo: ruas vazias, praças, passeios desertos. Chegara a hora do meu recolher obrigatório; dir-se-ia que a cidade fora evacuada.

«Compreendera enfim que aquilo que o meu ex-camarada cheio de orgulho me estava a mostrar era o fantasma de cidade que eu próprio criara.

Passávamos por casas de madeira perdidas entre ciprestes imensos que as faziam parecer ainda mais minúsculas, por bairros pobres e periféricos que se confundiam com os cemitérios, a tal ponto que estávamos como que no limiar da região dos sonhos. Percorrêramos ruas empedradas muito inclinadas, abandonadas às matilhas de cães que se batiam entre si; subíramos outras, muito íngremes, que os candeeiros de rua tornavam ainda mais escuras. Enquanto passávamos por essas ruas espectrais, cheias de muros em ruína, e chaminés demolidas, de fontes sem água, que eu só em sonhos teria pensado ver, ao mesmo tempo que contemplava com uma apreensão estranha as mesquitas afundadas no sono, semelhantes na noite a gigantes lendários; enquanto atravessávamos praças com os relógios parados, com os lagos secos, com estátuas havia muito esquecidas, que me davam a impressão de que o tempo se detivera, não só no meu palácio, mas na cidade inteira, deixara de prestar atenção à história que o meu duplo me narrava dos seus triunfos comerciais, bem como às anedotas que me contava também, pretendendo que evocavam a nossa situação (o episódio do velho pastor que surpreende a mulher com o amante e a passagem das Mil e Uma Noites em que Harun al-Rachid se extravia nas ruas da cidade). Um pouco antes da aurora, a avenida que tem o meu nome — o teu — parecia-me menos uma realidade do que o prolongamento de um sonho, como todas as outras avenidas, as ruas e as praças.

«Estava a fazer-me recordar o sonho de Mevlâna, conhecido sob o nome de "História do concurso de pintura" quando redigi o comunicado que anunciava o meu abandono de um título demasiado pomposo e que fiz em seguida difundir pela rádio — esse comunicado sobre cujas razões secretas os nossos amigos ocidentais, aí, sem dúvida te interrogam. Após aquela longa noite branca, quando tentava adormecer, sonhei que todas as noites as multidões enchiam as praças e que os relógios parados recomeçavam a funcionar; que uma vida mais real do que a dos fantasmas e dos sonhos ia começar nos cafés onde as pessoas comem sementes de girassol, nas pontes, em frente dos cinemas. Não sei a que ponto este sonho se realizou, nem se a cidade de Istambul se transformou num mapa onde eu poderia voltar a ser real. Mas sei pelos meus ajudantes de campo que a liberdade, como sempre, inspira muito mais os meus inimigos do que os sonhos. Continuam a reunir-se nas casas de chá, em quartos de hotel debaixo das pontes, para fomentarem contra mim novas conspirações. Os malandretes continuam a escrever nas paredes do palácio mensagens em código, indecifráveis, ao que se diz. Mas nada disto tem muita importância. Os tempos em que os sultões se disfarçavam para se misturarem com os seus súbditos passaram; são histórias que já só nos livros acontecem.

«Li noutro dia, foi na História dos Otomanos de Hammer, que o sultão Sélime, o Temido, ainda príncipe herdeiro, tinha ido a Tabriz disfarçado de dervixe. Como jogava maravilhosamente xadrez, conquistara rapidamente um certo renome, e o xá Ismail, ele próprio grande amador do xadrez, chamara ao seu palácio o jovem dervixe. Sélime saíra vencedor de uma partida que durara muito tempo. Foi então que me interroguei: muitos anos mais tarde, quando o xá Ismail compreendeu que o jovem que o batera no jogo não era um dervixe, mas o sultão Sélime, o Temido, que conquistaria Tabiz a seguir à batalha de Tchaldiran, terá conseguido recordar-se da sucessão dos lances da partida? O meu duplo, cheio de orgulho, pelo seu lado, lembra-se decerto de todos os lances da partida que disputámos. A propósito de xadrez, a minha assinatura de King and Pawn deve ter caducado; deixei de receber a revista. Mando-te dinheiro, através da embaixada, para que ma renoves.»

 

Antes de mergulhar na leitura do capítulo III de O Segredo das Letras e o Desaparecimento do Segredo, Galip preparou um café muito forte. Foi passar o rosto por água fria a fim de lutar contra o sono, evitando cuidadosamente ao mesmo tempo olhar-se no espelho. Quando se instalou de novo, com a sua chávena de café, à mesa de trabalho de Djélâl, experimentava o ardor de um aluno do liceu bem decidido a resolver o problema de matemática em que esbarrou há dias.

Segundo F. M. Utchundju, nesses tempos em que se esperava que aparecesse na Anatólia, nas terras turcas, um Mehdi que salvaria todo o Oriente, a primeira coisa a fazer — se se quisesse redescobrir o segredo perdido — era fornecer, utilizando os traços do rosto humano, uma base sólida às vinte e nove letras do alfabeto latino que, a partir de 1928, foram adoptadas pelo turco. Com exemplos extraídos de escritos houroufis havia muito caídos no esquecimento, de fórmulas bektachis, do imaginário popular da Anatólia, dos rastos muito vagos que se podiam ainda encontrar nas aldeias houroufis, dos signos traçados nas paredes dos conventos de confrarias ou das velhas residências de pachás, e dos milhares de caligrafias, o autor demonstrava os valores adquiridos por certos sons, no decorrer da sua passagem do árabe ou do persa para o turco. Descobrira e sublinhara essas letras em certas fotografias, com uma precisão perturbadora. Enquanto observava esses rostos, nos quais, acrescentava o autor, não era sequer necessário distinguir as letras do alfabeto latino para lhes apreender de imediato o sentido, Galip estremeceu como estremecera ao ver as fotografias descobertas na biblioteca de Djélâl. Examinou as páginas ilustradas a partir de chapas de má qualidade, de retratos de Fazlallah e dos seus dois sucessores, de um retrato de Mevlâna «executado segundo uma miniatura», e o do «nosso campeão olímpico, o lutador Hamit Kaplan», e foi dominado pelo medo quando deu com uma fotografia de Djélâl, datada dos anos cinquenta. Como nas outras, certas letras tinham nessa fotografia sido sublinhadas por meio de setas. Na fotografia de Djélâl, que teria então cerca de trinta e cinco anos, F. M. Utchundju pudera ver um U no nariz, uns Z no canto dos olhos e, no conjunto do rosto, um H reclinado de flanco. Galip folheou rapidamente o livro; verificou que tinham sido acrescentados a esta série de imagens os retratos dos xeques houroufis e dos imãs mais célebres, regressados à terra após uma breve viagem ao além; as fotografias de actores de cinema americanos com o «rosto expressivo», como Greta Garbo, Humphrey Bogart, Edward G. Robinson e Bette Davis; as dos carrascos mais conhecidos e as de alguns bandidos de Beyoglou cujas aventuras Djélâl relatara. Mais longe, o autor afirmava que cada uma das letras que sublinhara nos rostos significava duas coisas: o sentido do papel que desempenhava na escrita, e o sentido secreto revelado pelo rosto.

Se admitirmos que cada letra possui um sentido secreto, correspondendo a um conceito, dizia a seguir F. M. Utchundju, para esclarecer o seu pensamento, então cada palavra composta por letras possui necessariamente um segundo sentido, que é um sentido secreto. O mesmo se passa com as frases, os parágrafos do discurso, em suma, com tudo o que é escrito. Mas uma vez que tais significações podem expressar-se por outras palavras, outras frases, quer dizer, outras letras, o resultado é uma série ilimitada de significações secretas, que se podem «comentar» passando de uma interpretação para outra e, desta última a outra e a outra ainda. Aquilo que poderíamos comparar à teia de aranha tecida no interior de uma cidade pelas inumeráveis ruas que desembocam umas nas outras; aos mapas, cada um dos quais evoca um rosto. O que faz com que o leitor que tenta penetrar o mistério, contentando-se com os seus próprios conhecimentos e servindo-se das regras de que dispõe, é sob todos os aspectos semelhante ao viajante que penetra o segredo à medida que vai percorrendo as ruas indicadas no mapa, mas que, quanto mais avança, mais descobre novos segredos e isso nas ruas por onde caminha, nos percursos que escolhe, nas encostas que sobe, no seu próprio caminho e na sua própria vida. Do mesmo modo, o Redentor tão esperado — chamemos-lhe «Ele» ou Messias —, surgiria no ponto preciso onde os leitores, os infelizes ou os amadores de histórias acabam por se perder, à medida que penetram nas profundidades do mistério. Assim, o viajante, semelhante ao da Via Mística, que reconheceria o sinal lançado pelo Mehdi, no vivido ou no escrito, nos pontos de intersecção dos rostos desenhados pelos planos, na cidade e nos signos, deveria descobrir o seu caminho utilizando as chaves e o código dos quais dispunha. Tal como o transeunte que descobre o seu caminho graças a sinalizações instaladas nas ruas e nas avenidas, concluía F. M. Utchundju, com uma alegria infantil. Tratava-se portanto de poder discernir no vivido e no escrito os signos que neles dispusesse o Messias.

Segundo F. M. Utchundju, para resolvermos este problema, deveríamos desde o momento presente pôr-nos no lugar do Mehdi, prever como Ele agiria, quer dizer, prever os lances, como faz o jogador de xadrez. E pedia ao seu leitor — que convidava a proceder a tais previsões na sua companhia — que imaginasse um homem capaz de se dirigir, constantemente e em todos os casos, a uma vasta massa de leitores. «Pensemos por exemplo num jornalista», acrescentava ele logo a seguir. Um cronista, um editorialista, cujo artigo é lido todos os dias por centenas de milhares de pessoas nos quatro cantos do país, nos barcos, nos autocarros, nos táxis colectivos, nos cafés ou nas barbearias, era um bom exemplo do indivíduo capaz de difundir os signos por meio dos quais o Messias anunciasse a via a seguir. Para os que ignoravam o segredo, os artigos desse editorialista teriam apenas um sentido: o que se desprendia da simples leitura. Mas os que tivessem ouvido falar dos códigos e das fórmulas seriam capazes de discernir um sentido secreto, a partir do outro sentido das letras. Se o Messias colocasse por exemplo num dos seus artigos uma frase como: «Reflectia sobre tudo isto contemplando-me do exterior...», os leitores comuns limitar-se-iam a dar-se conta do insólito da frase; mas os outros, os que conheciam o sentido das letras, verificariam de imediato que a mesma frase constituía o comunicado, o apelo tão esperado, e, utilizando o seu código, lançar-se-iam na aventura que os levaria a uma vida e a uma via novas.

O título do capítulo III, «A descoberta dos segredos» fazia portanto alusão, não só à redescoberta do segredo que, porque perdido, causara a submissão do Oriente ao Ocidente, mas também às frases que o Mehdi dissimularia nos seus artigos.

  1. M. Utchundju examinava em seguida, criticando-os, os códigos que Edgar Allan Poe propõe no seu artigo «Algumas palavras sobre os escritos secretos». Afirmava que, entre esses métodos, o da mudança da ordem alfabética fora utilizado por Halladj-i Mansur nas suas letras codificadas e que era o mais próximo do método que o Messias iria escolher.

Nas últimas linhas do livro, chegava de súbito a uma conclusão da maior importância: as letras que cada «viajante da Via» podia ler no seu próprio rosto constituíam o ponto de partida de todos os códigos, de todas as fórmulas. Qualquer homem desejoso de se comprometer com a Via, de criar um mundo novo, deveria começar por decifrar as letras que apareciam no seu próprio rosto. Este livro sem ambição era um guia para o leitor, um guia permitindo-lhe descobrir essas letras. Tratava-se apenas de uma introdução aos códigos e às fórmulas permitindo o acesso ao segredo. Colocar essas fórmulas nos artigos seria evidentemente a tarefa do Mehdi, que, em breve, se elevaria no firmamento como um sol.

Quando Galip disse de si para si que tal palavra era também uma alusão ao nome do bem-amado de Mevlâna (Chems, «sol» em persa), abandonara o livro e dirigia-se à casa de banho para se ver ao espelho. Uma ideia até aí vaga transformava-se francamente em assombro: «Djélâl leu de há muito já o que está escrito no meu rosto!» Voltou a experimentar o sentimento de catástrofe que sentia nos anos da sua infância e da sua adolescência, quando cometera alguma falta, ou quando se persuadia de que se tornara um outro ou de que estava envolvido num mistério, porque tudo fora por água abaixo e nada já se podia arranjar. «Tornei-me outro!», disse para consigo, como uma criança mergulhada no seu jogo, e também como um homem lançado numa viagem sem regresso.

Eram exactamente três horas e doze; no apartamento como na cidade reinava esse silêncio mágico que só a essas horas se pode observar; e mais que o silêncio, a impressão de silêncio, porque podia ouvir, quase imperceptível, o vibrar lancinante de uma caldeira, num dos prédios vizinhos, ou o de um gerador num navio ao longe. Decidira havia muito que a hora chegara, mas refreava-se agora um pouco antes de passar à acção.

A ideia que se esforçava por afastar nos últimos três dias atravessou-lhe o espírito: se Djélâl não enviara um novo artigo para a redacção, as colunas da sua crónica ficariam vazias a partir do dia seguinte, pela primeira vez em tantos anos. Galip recusava-se a imaginá-lo: tinha a impressão de que, se não fosse publicado um novo artigo, Djélâl e Ruya não poderiam continuar a esperá-lo, brincando e fazendo troça dele, enfiados no seu esconderijo, algures na cidade. E, bruscamente, enquanto lia uma das velhas crónicas, escolhida ao acaso na estante, disse para consigo: «Sou capaz de escrever isto, eu também!» Doravante, dispunha de uma receita. E não se tratava da que o velho jornalista lhe fornecera havia três dias. «Li todos os teus artigos, sei tudo sobre ti, li tudo, tudo!» Murmurara estas últimas palavras quase em voz alta.

Estava a ler uma outra crónica, extraída também ao acaso da estante, ou não a lia, não, percorria-a articulando as palavras silenciosamente, e demorava-se no duplo sentido que se esforçava por descobrir nalgumas delas, em certas letras, ao mesmo tempo que tinha cada vez mais a impressão de se aproximar de Djélâl. Ler não seria apropriar-se pouco a pouco da memória de um outro?

Agora estava em condições de se colocar em frente do espelho e de ler as letras no seu próprio rosto. Entrou na casa de banho e olhou-se ao espelho. E depois tudo se passou muito depressa.

Bastante mais tarde, quando tivessem passado meses, sempre que se instalasse naquele mesmo apartamento, à mesa de trabalho, entre aqueles móveis que reconstituíam um passado de havia trinta anos com uma fidelidade silenciosa e implacável, Galip pensaria muitas vezes no instante em que se olhara ao espelho e, de todas as vezes, as mesmas palavras lhe viriam ao espírito: é terrível. Ao passo que no momento em que examinara o seu rosto no espelho, não sentira o medo que esse qualificativo podia evocar, mas antes um sentimento de vazio, um buraco na memória, uma ausência de reacção. Porque esse rosto que via no espelho, à luz de uma lâmpada nua, começara por contemplá-lo como olhava os rostos dos primeiros-ministros ou dos actores de cinema, que se tornavam extremamente familiares à força de aparecerem nos jornais. Olhara-se, não na esperança de descobrir uma solução para o jogo misterioso que conduzia havia dias, mas como se voltasse a deparar com um velho casaco familiar ou numa bela manhã de Inverno visse, sem o ver, um velho guarda-chuva, que, para si, fizesse parte do seu destino. «Nesse tempo, estava tão habituado a viver comigo próprio que não notava o meu rosto», dir-se-ia ele, muito mais tarde ainda. Mas esta indiferença não durara. Porque desde que pudera observar o seu rosto ao espelho como havia dias examinava os rostos nas fotografias e as ilustrações, depressa passara a distinguir nele as sombras das letras.

A primeira coisa que lhe pareceu estranha foi poder olhar-se como se fosse um pedaço de papel onde foram rabiscadas algumas palavras, ver nesse rosto um painel que mostrava sinais a outros rostos, outros olhares, mas não se preocupara nesse instante, porque podia doravante distinguir claramente as letras que lhe apareciam entre os olhos e as sobrancelhas. Rapidamente, as letras tornaram-se tão precisas que se surpreendera por as não ter notado mais cedo. Dissera de facto para consigo que podia tratar-se de uma ilusão de óptica ou de uma habituação dos olhos, causada pelo facto de ter visto demasiadas letras nos rostos, nas fotografias, e que tudo aquilo era efeito de um artifício, de um trompe-l'oeil', de um jogo jogado com boa-fé; mas quando desviava os olhos do espelho, para depois se olhar outra vez, redescobria as letras onde as deixara. Não desapareciam para reaparecer como esses desenhos nas revistas para crianças onde se distinguem ora os ramos de uma árvore, ora o ladrão dissimulado entre esses ramos; tinham de facto o seu lugar na topografia do rosto que Galip barbeava maquinalmente cada manhã, faziam parte da superfície chamada a oval do rosto, estavam nos olhos, nas sobrancelhas, na linha do nariz, precisamente aí onde os houroufis haviam obstinadamente introduzido a letra elif. A tal ponto que agora lhe era mais fácil decifrar as letras do que não dar por elas. Galip esforçara-se muito por se desembaraçar dessa máscara irritante colada no seu rosto, tentava recorrer à condescendência que sempre conseguira conservar, num canto da sua razão, desde o momento em que se lançara no exame atento do imaginário e da literatura houroufis. Procurara accionar o seu cepticismo que considerava infantis, artificiais e ridículas todas estas histórias sobre as letras e o rosto humano. Mas as linhas e as curvas do seu rosto formavam tão claramente certas letras que não pudera afastar-se do espelho.

Foi nesse preciso momento que o invadiu o sentimento que posteriormente qualificaria de «terrível». Tudo se passara tão depressa, fora tão rapidamente capaz de ver as letras no seu rosto e de ler a palavra que compunham, que nunca saberia mais tarde se fora presa de terror por ver o seu rosto tornar-se uma máscara carregada de signos ou devido ao horror daquilo que as letras significavam. Indicavam uma realidade que ele conhecia bem, mas que havia anos procurava esquecer, uma verdade de que se lembrava bem, mas que julgava ter esquecido, que ignorava embora a tivesse aprendido, um segredo que lembraria com palavras inteiramente diferentes, quando procurasse descrevê-lo por escrito. Mas quando as lera no seu rosto, com uma nitidez que não deixava subsistir quaisquer dúvidas, dissera-se que tudo era simples e compreensível; que sabia do que se tratava e que não devia surpreender-se. Aquilo que a seguir qualificaria de «terrível» talvez não fosse o assombro provocado por um facto tão simples como evidente, tal como é aterrador o facto de o pensamento poder num relâmpago ver um copo de chá como um objecto incrivelmente espantoso enquanto os olhos podem ver imediatamente o copo tal como é.

Quando decidiu que aquilo que as letras designavam no seu rosto não era uma ilusão, Galip afastou-se do espelho e saiu para o corredor. Adivinhara que esse sentimento que consideraria «aterrador» provinha menos da transformação do seu rosto, tornado uma máscara ou o rosto de um outro ou ainda um painel de sinalização, do que daquilo que o painel lhe mostrara. Porque, em última análise, dadas as regras do jogo, essas letras podiam encontrar-se em todos os rostos humanos. Estava persuadido disso, a ponto de se perguntar se não andaria a procurar iludir-se a si próprio. Mas no momento em que examinava as prateleiras da estante do corredor, invadiu-o uma dor fulgurante, e teve uma vontade tão violenta de voltar a ver Ruya e Djélâl que mal conseguiu manter-se em pé. Dir-se-ia que o seu corpo e a sua alma o abandonavam, o deixavam só com pecados que nunca cometera; dir-se-ia que a sua memória já só conservava reminiscências de derrota e de ruína; dir-se-ia que a melancolia e a recordação de uma história e de um mistério que os outros tinham querido esquecer e tinham tido a felicidade de esquecer continuavam a pesar sobre a memória e os ombros dele. Posteriormente, sempre que tentasse lembrar-se daquilo que fizera depois de se ter visto ao espelho, no decorrer dos quatro ou cinco minutos que então tinham passado — porque tudo se passara muito depressa —, recordar-se-ia do breve lapso de tempo que vivera entre a estante do corredor e as janelas que davam para o poço de ventilação; quando, depois de ter penetrado no terror, tivera tanta dificuldade em respirar que só pensava em afastar-se do espelho que permanecia no escuro enquanto um suor frio lhe perlava a fronte. Pensou em voltar ao espelho, imaginando que poderia arrancar aquela máscara tão fina do seu rosto, como se arranca a crosta de uma ferida, na esperança de deixar de poder ler as letras que então apareceriam, do mesmo modo que não conseguia decifrar as letras e os signos que encontrava nas ruas, nos cartazes ou nos sacos de plástico. Para esquecer a sua dor, tentou ler um artigo que tirou ao acaso da estante. Mas, dali em diante, compreendera tudo; conhecia tudo o que Djélâl escrevera, como se ele próprio o tivesse escrito. Tal como muitas vezes faria mais tarde, imaginou-se cego, dois berlindes de mármore tinham substituído os seus olhos, a boca tornara- se um buraco, as suas narinas já não passavam de buracos abertos por parafusos ferrugentos. Sempre que pensava no seu rosto, dizia para consigo que Djélâl vira as letras que nele se desenhavam, que sempre soubera que Galip as decifraria um dia, e que se tinham lançado os dois nesse jogo. Mas nunca teria a certeza de ter claramente pensado em tudo isso desde o início. Tinha vontade de chorar sem o conseguir, respirava com dificuldade e não pôde reprimir um gemido; a sua mão encaminhou-se por si própria para o fecho, ele queria tornar a ver o poço de ventilação, aquilo a que chamavam o «buraco negro»: naquele sítio onde houvera outrora um poço. Teve a impressão de estar a imitar alguém, como uma criança, sem saber sequer quem imitava.

Abrira a janela, debruçara-se sobre o buraco, com os cotovelos apoiados no rebordo, inclinado por cima do poço perdido. Subia dele

um odor fétido, o fedor dos excrementos de pombo, dos lixos que ali se acumulavam havia meio século, da porcaria que revestia o prédio devido às exalações dos fumos da cidade, da lama, do asfalto, do desespero. As pessoas sempre tinham para ali deitado aquilo que queriam esquecer. Galip teve vontade de se precipitar nas trevas de onde nada voltava nunca, entre esses fragmentos de recordações dos quais não subsistia o mais pequeno fragmento na memória daqueles que ou-trora haviam vivido naquele prédio; de se atirar para o interior daquele cilindro sombrio, que Djélâl elaborara havia anos e anos e que celebrara por meio dos temas dos poços, do mistério e do medo na poesia antiga; mas limitou-se a fixar o buraco negro, esforçando-se por, como um bêbado, pôr em ordem as suas ideias. As suas recordações dos anos de infância que tinham vivido no prédio, Ruya e ele, estavam intimamente ligadas àquele cheiro. Este contribuíra para a formação da criança ingénua, do jovem transbordante de boa-fé, do feliz marido que fora, do simples cidadão que vivia, sem o saber, na orla do mistério. O seu desejo de voltar a ver Ruya e Djélâl tornou-se tão violento que teve vontade de gritar; era como num sonho, em que uma parte do seu corpo se desprendesse dele, fosse arrastada para muito longe no escuro, para uma armadilha da qual não poderia escapar a não ser uivando com toda a sua voz. Contemplava o buraco, sentia no rosto a humidade glacial da noite de Inverno e da neve. Tinha a impressão de que a dor que trazia em si havia dias era enfim partilhada por outros; o motivo do medo fora descoberto, via claramente aquilo a que chamaria mais tarde as razões secretas da derrota, da miséria e da ruína, tudo fora preparado havia muito tempo, como a sua própria vida, caída numa armadilha que Djélâl montara minuciosamente. Com meio corpo debruçado da janela que dava para o poço, contemplou longamente o local do poço de outrora. Muito depois já de ter sentido o frio no rosto, no pescoço, na testa, endireitou-se e voltou a fechar a janela.

Tudo o que se seguiu foi claro, inteligível, acessível. Quando, muito mais tarde, pensasse naquilo que fizera nessa noite até ao romper do dia, consideraria todos os seus gestos lógicos, necessários e adequados; lembrar-se-ia da lucidez e da precisão que os tinham marcado. Regressou à sala de estar e deixou-se cair num sofá para repousar um pouco. Depois arrumou as coisas na mesa de trabalho, guardou cuidadosamente os papéis, os recortes de jornais, as fotografias nas suas caixas e as caixas no seu lugar exacto na estante. Não se contentou com fazer desaparecer a desordem que em dois dias causara no apartamento, e arrumou igualmente tudo o que Djélâl não arrumara: despejou os cinzeiros, lavou os copos e as chávenas, entreabriu as janelas para arejar a casa. Passou o rosto por água, fez outro café muito forte, depois instalou a pesada Remington antiga de Djélâl na secretária que arrumara cuidadosamente e sentou-se na sua poltrona. Descobriu numa gaveta papel de máquina, sempre o mesmo havia tantos anos, pôs uma folha no cilindro e começou imediatamente a bater as teclas.

Trabalhou sem se levantar durante cerca de duas horas. Consciente de que tudo, doravante, estava no seu lugar, escrevia com o entusiasmo que o papel virgem lhe insuflava. À medida que batia nas teclas, cujo ruído lhe lembrava uma música familiar, compreendia melhor que sabia o que ia escrever, qualquer coisa em que pensava havia muito tempo. De quando em quando, experimentava a necessidade de abrandar, de reflectir na palavra que melhor convinha, mas escrevia «sem se forçar», segundo uma expressão de Djélâl; deixava-se levar pelo fluxo das ideias e das frases.

«Vi-me ao espelho e li o meu rosto» foi a primeira frase do primeiro artigo. O segundo começava por: «Vi em sonho que me tornara finalmente o homem que havia tantos anos queria ser.» Lançou-se no terceiro recorrendo a velhas histórias do bairro de Beyoglou. Redigiu o segundo e o terceiro artigos com mais facilidade do que o primeiro, com uma melancolia e uma esperança ainda mais profundas. Aquelas crónicas ocupariam perfeitamente o seu lugar na lucarna de Djélâl, pensava Galip, convicto. E assinou os três textos com a assinatura de Djélâl, que imitara milhares de vezes nos seus cadernos da escola primária.

Ao romper do dia, à hora em que os homens do lixo passavam enchendo a rua com o estrondear dos caixotes contra o camião, Galip examinou longamente a fotografia de Djélâl no livro de F. M. Utchundju. Por baixo de uma das outras fotografias que ilustravam o livro, todas igualmente pálidas e murchas, não havia qualquer legenda: Galip disse para consigo que devia tratar-se do retrato do autor. Leu atentamente a sua biografia, que aparecia no início do volume, calculando a sua idade no tempo em que o homem se envolvera no golpe de Estado falhado de 1962. Devia ter a idade de Djélâl, uma vez que pudera acompanhar as primeiras proezas do campeão de luta Hamit Kaplan, quando ocupara o seu primeiro posto na Anatólia, com a patente de tenente. Galip examinou de novo os anuários dos cursos da Escola Militar dos anos 1944-1945-1946. Descobriu alguns rostos que poderiam ser todos — em mais jovens — o da fotografia anónima de A Descoberta dos Segredos. Mas o crânio calvo que era o traço mais característico do retrato era evidentemente invisível sob o quépi dos jovens militares.

Às oito e meia, vestiu o sobretudo e, com os três artigos cuidadosamente dobrados no bolso do casaco, saiu com brevidade do «Coração da Cidade», com a pressa do bom pai de família que vai para o trabalho, e atravessou a rua. Ninguém dera por ele; pelo menos, ninguém o interpelara. O tempo estava límpido, o céu de um azul invernal, os passeios cobertos de neve, de gelo e de lama. Penetrou na passagem onde ficava o «Salão Vénus», a loja do barbeiro que, na sua infância, ia barbear todas as manhãs o avô e que, durante anos, lhes cortara ali os cabelos, a Djélâl e a ele; entrou, ao fundo da passagem coberta, na oficina do serralheiro, a quem confiou a chave do apartamento do primo. Depois, comprou o Milliyet no posto de venda da esquina e entrou na leitaria «Leite Bom», onde Djélâl tomava às vezes o pequeno-almoço e pediu chá, ovos estrelados, mel e nata de búfala. Enquanto almoçava e lia a crónica de Djélâl, disse de si para si que os heróis dos romances policiais de Ruya deviam sem dúvida sentir o que ele próprio estava a experimentar, quando conseguiam construir uma história lógica a partir dos indícios de que dispunham. E sentia-se agora no estado de espírito do detective que, tendo descoberto a chave do mistério, se prepara para, com essa chave, abrir novas portas.

A crónica do dia era a última das que Galip pudera ver no sábado anterior na pasta das «Reservas» e, como as outras, não era inédita. Galip não tentou sequer descobrir o sentido oculto das letras que a compunham. Uma vez terminado o pequeno-almoço, quando se encontrava na bicha da paragem dos táxis colectivos, pensou no homem que até então fora e na vida que esse homem vivera: todas as manhãs, lia o jornal no táxi, pensava na hora em que voltaria à tarde para casa, evocava a imagem da mulher ainda mergulhada no sono. As lágrimas subiram-lhe aos olhos.

«Para cada um de nós se convencer de que o mundo se transformou radicalmente», disse para consigo, enquanto o táxi passava diante do palácio de Dolma-Bahtchè, «basta que compreenda que ele próprio se tornou outro homem.» A cidade que desfilava do outro lado dos vidros das janelas do táxi não era a Istambul que sempre conhecera, mas uma outra Istambul, cujo mistério ele mal acabava de penetrar, uma cidade sobre a qual escreveria mais tarde muitos outros artigos.

Na redacção do jornal, o chefe de redacção e os chefes das secções estavam em reunião. Galip bateu levemente à porta do escritório de Djélâl, e esperou um momento antes de entrar. Na sala como na secretária nada mudara desde a sua visita anterior. Galip instalou-se a mesa de trabalho e examinou à pressa o conteúdo das gavetas: convites para exposições havia muito fora do prazo, «comunicados» enviados por facções políticas de direita ou de esquerda, os recortes de jornais que já vira, botões, uma gravata, um relógio de pulso, tinteiros vazios, caixas de medicamentos e um par de óculos escuros em que não reparara por ocasião da sua última visita... Pô-los no nariz antes de sair do escritório. Entrou em seguida na grande sala da redacção. Néchati, o velho polemista, trabalhava, instalado diante da sua mesa. A cadeira ao seu lado — a que o redactor do suplemento ilustrado ocupava quando Galip ali estivera pela última vez — estava livre. Sentou-se nela. «Lembra-se de mim?», perguntou ao fim de um momento ao velho jornalista.

— Claro! Também você é uma flor no jardim da minha memória! — respondeu Néchati, sem levantar a cabeça. — Quem foi que disse que a memória era um jardim?

— Foi o Djélâl Salik.

— Não, foi Bottfolio — disse o velho jornalista, e levantou a cabeça. — Na sua tradução muito clássica de Ibn Zerhani. Como sempre, o Djélâl Salk roubou-lhe essa imagem. Como você lhe roubou os óculos, a ele.

— São os meus — protestou Galip.

— Então, os óculos têm um duplo, como os seres humanos. Passemos cá.

Galip tirou os óculos e estendeu-lhos. O velho examinou-os brevemente, depois pô-los no nariz; ficou de súbito parecido com um dos lendários gangsters dos anos cinquenta, proprietário de bordéis, de bares nocturnos e de cafés-concerto, que um dia desaparecera com o seu Cadillac, e de quem Djélâl falara muitas vezes nas suas crónicas. Virou-se para Galip com um sorriso estranho.

— Aqui está porque se diz que de vez em quando devemos ser capazes de ver o mundo com os olhos de um outro. Só então podemos perceber os segredos do universo e dos homens, é pelo menos o que se diz. E é de quem esta citação?

— F. M. Utchundju — disse Galip.

— Nada disso! Esse não passa de um cretino — disse o velho. — Um pobre tipo, um falhado... Quem foi que te falou dele?

— O Djélâl disse-me que se tratava de um pseudónimo que tinha utilizado durante anos.

— O que significa que quem cai no gatismo não se limita a renegar o seu passado e os seus escritos, mas começa a lembrar-se dos outros tomando-se por eles. Mas não acredito nada que o malandro do Djélâl esteja assim tão senil. Mentiu deliberadamente, deve ter algum interesse nisso. O F. M. Utchundju é uma pessoa de carne e osso, existiu deveras. Era um oficial que, há vinte e cinco anos, inundava o jornal de cartas.

Como tínhamos publicado uma ou duas delas, para não o ofendermos, ele ganhou o hábito de aparecer no jornal todos os dias, com o seu ar pretensioso, como se fizesse parte da nossa redacção. Depois, um belo dia desapareceu; ninguém o viu durante vinte anos. Mas há uma semana voltou a aparecer, com a sua cabeça calva bem luzidia; tinha vindo ver-me, porque gostava muito dos meus artigos, dizia ele. Metia realmente dó. Explicou-me que tinham aparecido sinais.

— Que sinais?

— Não te armes em inocente. Ou o Djélâl não te fala disso? Bem sabes: os tempos chegaram, os sinais apareceram, estão na rua, todos se conjugam, esses disparates todos, sei eu lá. O Juízo Final, a revolução, a libertação do Oriente, etc.

— Ainda noutro dia falámos de si a esse propósito, deve ter sentido as orelhas a arder...

— E onde anda ele escondido?

— Já não sei.

— Está a haver uma reunião com o chefe de redacção — disse o velho cronista. — Ele vai ser posto na rua, o teu tio Djélâl, porque deixou de nos enviar novos artigos. Querem confiar-me a crónica dele, na página dois, mas eu vou recusar, diz-lhe isso.

— Ainda anteontem, quando me explicava o golpe de Estado em que vocês estiveram os dois metidos, no começo dos anos sessenta, o Djélâl me falou de si com muita amizade.

— É mentira! Ele detesta-me, detesta-nos a todos, porque traiu o movimento — disse o velho jornalista, sem tirar os óculos escuros que não pareciam incomodá-lo; agora, dir-se-ia mais um mestre pensador que um gangster de outros tempos. — Vendeu os seus amigos. Claro, não te deve ter contado as coisas como elas de facto se passaram; gabou-se sem dúvida de ter sido ele a organizar tudo, mas como sempre, o teu tio Djélâl só se meteu na história a partir do momento em que toda a gente começou a acreditar no êxito do golpe de Estado. Na época em que se constituíam redes de leitores pelos quatro cantos da Anatólia, em que as imagens de pirâmides, de minaretes, de símbolos maçónicos, olho triangular, compassos misteriosos, de lagartos, de cúpulas seldjúcidas, de velhos rublos marcados datando do tempo dos czares ou de cabeças de lobo, circulavam de mão em mão, o Djélâl passava o seu tempo a coleccionar as fotografias dos seus leitores, como os miúdos coleccionam fotografias de actores de cinema. Um dia, inventava uma história de uma oficina de um fabricante de manequins; outro dia, falava de um Olho que o perseguia noite dentro pelas ruelas. Compreendemos que se queria juntar a nós, e aceitámo-lo.

Dizíamos para connosco que abriria as suas colunas à causa, que poderia por meio dos seus escritos convencer certos militares, ainda reticentes. Não imaginas! Estávamos rodeados de doidos, de penduras, de tipos do género do teu F. M. Utchundju. O teu primo começou por enrolá-los a todos. Depois, por meio de códigos, de fórmulas secretas, de joguinhos alfanuméricos, entrou em contacto com outra malta, de gente duvidosa. Depois de ter consolidado essas relações, que considerava outras tantas vitórias, vinha ter connosco para negociar a pasta ministerial que queria que lhe atribuíssemos. E, para reforçar os seus trunfos nessas negociações, pretendia ter contactos com certas nulidades das antigas confrarias religiosas, ou com os grupos que esperam o Messias, ou ainda com supostos emissários de príncipes otomanos que vegetam em França ou em Portugal; jurava que recebia de certos personagens, inteiramente imaginários, cartas que mais tarde nos poderia mostrar; afirmava que havia descendentes de pachás ou de xeques que o visitavam para lhe confiarem alfarrábios ou testamentos cheios de segredos; que recebia aqui em plena noite estranhos visitantes. Todos estes personagens eram simples frutos da sua imaginação. E quando o homem, que nem sequer falava aceitavelmente francês, tentou difundir o rumor de que seria nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros depois da revolução, eu decidi denunciar uma das suas intrujices. Era no tempo em que ele contava nas crónicas histórias esquisitas, que afirmava serem testamento de uma figura misteriosa; ou ainda as divagações, cheias de profetas, de Messias ou de apocalipses, dos filiados de uma certa conjura, que se preparavam para revelar um segredo ligado à nossa história. Escrevi então um artigo em que citava Ibn Zerhani e Bottfolio, e que restabelecia a verdade. O Djélâl não passava de um poltrão! Afastou-se imediatamente de nós e juntou-se a outro grupo. Para provar aos seus novos amigos, cujas ligações com os jovens oficiais eram mais estreitas, que os personagens que eu afirmava serem imaginários eram gente viva e real, diz-se que se disfarçava de noite para os interpretar. Parece que certa noite chegou a mostrar-se sob a aparência do Messias, ou de Mehmet, o Conquistador, já não sei, diante da multidão estupefacta que fazia bicha à porta de um cinema, e proferiu um sermão de alto lá com ele para convencer as pessoas a mudarem de vida mudando de atitude; uma vez que os filmes americanos eram tão desprovidos de esperança como os nossos filmes, não tínhamos sequer interesse em plagiá-los, dizia ele; mas o que realmente queria era lançar a multidão contra os produtores da rua Yéchil-Tcham. Nessa época, era a Turquia inteira que esperava um Salvador, e não só os lastimáveis pequeno-burgueses que vivem nos bairros pobres de Istambul, em velhas casas de madeira em derrocada, e nessas ruas cobertas de lama que ele descreve tantas vezes nas crónicas. As pessoas acreditavam com a mesma sinceridade e com a mesma esperança de sempre que um golpe de Estado militar faria descer o preço do pão, que as portas do Paraíso se abririam para todos contanto que os responsáveis fossem castigados. Mas por causa da avidez do Djélâl, da sua mania de conquistar todas as simpatias, os conspiradores dividiram-se em facções e o golpe de Estado falhou. Em vez de irem cercar a Casa da Rádio, os carros de assalto voltaram para os quartéis. Resultado: continuamos na miséria, como podes ver. Porque temos vergonha dos europeus, chegamos a ir votar, de vez em quando, a fim de podermos afirmar aos jornalistas estrangeiros que vêm cobrir as eleições que em nada nos distinguimos deles. Mas nada disto significa que devamos perder toda a esperança; que nunca mais possamos sair daqui. A saída existe. Se os tipos da televisão britânica tivessem manifestado o desejo de fazerem uma entrevista não com o senhor Djélâl Salik mas comigo, eu ter-lhes-ia explicado porque é que o Oriente pode viver na felicidade, milhares de anos ainda, e continuar a ser o Oriente. Galip bey, meu filho, o teu primo Djélâl não passa de um desvairado, de um pobre tipo. Se realmente queremos redescobrir a nossa identidade, não precisamos para nada de esconder como ele faz nos nossos armários cabeleiras, falsas barbas ou trajos históricos, preparos esquisitos. Mahmout I passeava todas as noites incógnito pela cidade; sabes como se vestia para o fazer? Trocava o turbante imperial por um fez, pegava numa bengala, e era tudo! Não precisamos de nos mascarar durante horas, todas as noites, como o Djélâl faz, de arranjarmos roupas extravagantes ou andrajos de mendigo. O nosso universo é um universo inteiro, não um universo despedaçado. Neste universo, há outro, que não é secreto, dissimulado como o dos ocidentais, por trás de cenários, de imagens; a nós, basta-nos afastar os véus para descobrirmos vitoriosamente a realidade. O nosso modesto universo está em toda a parte, não tem centro, não aparece nos mapas da geografia. E é aqui que está o nosso segredo. Que é difícil de captar. Muito difícil. Para o apreendermos, é preciso termos conhecido longas provações. Quantos homens há entre nós suficientemente sábios para admitirem que são eles próprios o universo cujo segredo procuram penetrar, e que o universo inteiro está no homem que procura penetrar esse segredo? É o que lhe pergunto. Só depois de termos atingido este nível de perfeição, temos o direito de passarmos por um outro, de nos disfarçarmos. Há só um sentimento que compartilhamos os dois, o teu tio Djélâl e eu: como ele, sinto compaixão diante dos nossos pobres actores de cinema, as nossas estrelas, que não podem ser eles próprios nem tornar-se outros. E tenho ainda mais compaixão das pessoas da nossa terra que se reconhecem nesses actores. O nosso país teria podido salvar-se, tê-lo-ia podido o Oriente inteiro, mas o teu tio ou, antes, o teu primo Djélâl traiu-nos para satisfazer as suas próprias ambições. E hoje, tem medo daquilo que fez, esconde-se de todos, disfarça-se com essas bizarras indumentárias que guarda nos armários. E porque se esconde ele então?

— Você bem sabe porquê — disse Galip. — Envolve-se todos os dias em quinze assassinatos políticos.

— Não são crimes políticos, mas crimes causados pela intolerância! Aliás, se falsos marxistas, falsos fascistas e falsos integristas dão cabo uns dos outros, se matam uns aos outros, o que é que o Djélâl tem a ver com isso? Ele já não interessa a ninguém. Pelo próprio facto de se esconder, atrai a morte, a fim de nos provar que é suficientemente importante para que o assassinem. Nos tempos do Partido Democrata, havia um jornalista, hoje falecido, um homenzinho, tão sossegado como cobarde; mandava todos os dias para a polícia, sob nomes falsos, cartas que o denunciavam. Tudo isso para serem tomadas medidas contra ele que dessem que falar. Ainda por cima, afirmava que éramos nós, os seus colegas, que escrevíamos as cartas. Estás a ver? Juntamente com a sua memória, o nosso caro Djélâl perdeu o seu passado, que era o único laço a existir entre ele e este país. Não é por acaso que se acha incapaz de escrever novos artigos.

— Foi ele que me mandou aqui vir — disse Galip. Tirou os artigos do bolso. — Pediu-me para trazer cá as suas novas crónicas.

— Passa-mas para cá.

Enquanto o velho jornalista lia os artigos sem tirar os óculos escuros, Galip pôde ver que o livro aberto diante dele era uma tradução das Memórias de Além-Túmulo, uma tradução antiga, impressa em caracteres árabes. O jornalista fez sinal a um tipo alto que saía da sala de redacção.

— Aqui estão as novas crónicas do nosso caro Djélâl — disse-lhe ele. — Sempre a mesma investigação, a mesma...

— É preciso mandá-las já para a tipografia — disse o homem.

- Tínhamos decidido publicar uma das antigas.

— Doravante, vou ser eu, pelo menos durante algum tempo, a trazer-vos os artigos dele — disse Galip.

— Porque é que ninguém lhe põe a vista em cima? — disse o tipo alto. — Tanto mais que tem havido muita gente a querer vê-lo nestes últimos dias.

— Passam as noites a vadiar disfarçados, ele e este — disse o velho jornalista, designando Galip com um movimento do nariz.

E, enquanto o tipo alto se afastava a rir, virou-se para Galip: — Vocês andam pelas ruas assombradas por fantasmas, não é, à procura de casos duvidosos, de mistérios estranhos, de almas penadas, de cadáveres com mais de cento e vinte anos, deambulam pelos terrenos vagos, entre as mesquitas com os minaretes em ruínas, pelos conventos abandonados, no meio de moedeiros falsos e de laboratórios clandestinos de heroína, vocês os dois, com as vossas indumentárias esquisitas, as vossas máscaras, estes óculos escuros, hem? Mudaste muito desde a última vez, Galip bey, meu rapaz. Estás com a pele lívida e os olhos cavados. Transformaste-te noutro homem. Não têm fim, as noites de Istambul... Um espectro que os remorsos impedem de dormir, hem... — Posso pedir-lhe que me devolva os óculos, senhor? Tenho de me ir embora.

 

Levantei-me e li o meu rosto. O espelho era um mar silencioso e o meu rosto, um papel pálido, com palavras traçadas com a tinta verde do mar. «Oh, meu querido, estás com a cara tão branca como o papel!», dizia-me a tua mãe, a tua linda mãezinha, a mulher do meu tio, quando outrora o meu olhar ficava demasiado desprovido de qualquer expressão. Tinha o olhar vazio, porque sentia sem saber medo do que estava escrito no meu rosto; porque tinha medo de não te voltar a encontrar lá onde te deixara. Lá onde te deixara, entre as mesas velhas, as cadeiras cansadas, as luzes pálidas, os cortinados, os jornais, os cigarros. No Inverno, anoitecia depressa. E assim que ficava escuro, assim que as portas se fechavam, que se acendiam as luzes, eu começava a pensar no canto onde estavas sentada, tu, depois de passada a porta, em andares diferentes quando éramos miúdos, do outro lado desta porta depois de crescidos.

Leitor, meu querido leitor, tu que adivinhas que estou a falar da priminha que vive sob o mesmo tecto, a mesma chaminé que eu: quando leres estas linhas, põe-te no meu lugar, e presta atenção aos dados que te forneço, sei que é de ti que falo, e quando conto a tua história, tu sabes, pelo teu lado, que são as minhas próprias recordações que estou a contar.

Vi-me ao espelho e li o meu rosto. O meu rosto era a pedra de Roseta que eu decifrava no meu sonho. O meu rosto era uma pedra tumular, que perdera o turbante que o encimava. O meu rosto era um espelho de pele, onde o leitor podia contemplar-se; respirávamos pelos mesmos poros, ele e eu; nós os dois, tu e eu, quando o fumo dos nossos cigarros enchia a sala de estar onde se iam empilhando os romances policiais que devoravas; o motor do frigorífico fazia-se ouvir melancolicamente na cozinha mergulhada em trevas; do quebra-luz em tons de pergaminho, a luz do candeeiro de mesa, com a cor da tua pele, derramava-se sobre os meus dedos sem inocência e sobre as tuas pernas tão compridas.

O herói tão triste e tão desembaraçado do livro que lias era eu; o viajante que, na companhia do seu guia, corria pelas lajes de mármore, entre as imensas colunas e os rochedos sombrios, ao encontro dos escravos de um universo subterrâneo fervilhante de vida; que subia os degraus dos Sete Céus atapetados de estrelas, era eu. O detective que gritava à sua bem-amada, no outro extremo da ponte por cima do abismo: «Eu és tu!», o espírito ardiloso que, protegido pelo autor, é sempre capaz de detectar os rastos de veneno no cinzeiro, era eu... Tu viravas a página, impaciente, intrigada. Cometi crimes, por amor. Atravessei o Eufrates com o meu cavalo, enterrei-me nas pirâmides,-assassinei cardeais: «Que história conta esse livro?» Tu eras uma mulher casada, uma mulher em casa; eu era o marido que volta à noite para casa. «Oh, nada!» Quando o último autocarro passava depressa diante do prédio, as nossas duas poltronas estremeciam, em frente uma da outra. Tu, com o teu livro de capa cartonada na mão; eu, com o jornal que não conseguia ler, fazia-te a pergunta: «Se fosse eu, o herói do teu romance gostavas de mim?» «Não digas disparates!» Nos livros que lias, falava-se do silêncio implacável da noite. Eu sabia, pelo meu lado, o que significava a crueldade do silêncio.

Disse para comigo que a tua mãe tinha razão, o meu rosto foi sempre pálido. Cinco letras nesse rosto. Por cima do grande cavalo do abecedário, podia ler-se: cavalo. Por cima de um ramo, um B maiúsculo. Dois B, baba, papá em francês, mamã, tio, tia, família. O Monte Kaf rodeado de serpentes não existia na realidade. Com as vírgulas, eu avançava a passo de corrida, abrandava nos pontos, e as interjeições espantavam-me! Como era surpreendente o mundo nos livros e nos mapas! O ranger que se chamava Tom Mix vivia ali, no Nevada. «Punho de Ferro», o herói do Texas, encontrava-se exactamente ali, em Boston. E Kara-Oglan, com a sua espada, no centro da Ásia. «O Homem dos Mil Rostos», «O Bebedor de Conhaque» e Rody e o Homem-Morcego, Alâaddine, Alâaddine, por favor, o número cento e vinte e cinco do Texas já chegou? «Quietos», dizia a avó, que nos roubava as revistas para as ler, «sentem-se! Se essa porcaria de revista ainda não tiver chegado, eu conto-vos uma história.» E contava-a, com o cigarro na boca. Subíamos ao cume do Monte Kaf, nós os dois, para lá colhermos a maçã mágica, voltávamos a descer escorregando pelos caules do feijão, entrávamos dentro das casas passando pela chaminé, seguíamos pistas. Exceptuados nós, os que seguiam melhor pistas eram Sherlock Holmes, e a seguir Pena Branca, o amigo de Pecos Bill, e depois Ali, o Coxo, o amigo e Mehmed, o Esguio. Leitor, meu leitor, conseguirás tu, pelo teu lado, seguir a pista das minhas letras? Porque eu não o sabia, não sabia nada, mas o meu rosto é um mapa geográfico, e eu nunca me dera conta disso. «E depois», dizias tu balouçando as pernas do alto da tua cadeira, em frente da avó, «e depois, avó?» E depois, muitos anos mais tarde, no tempo em que eu era o marido cansado que voltava à noite do trabalho para casa, quando tirava da minha pasta a revista que acabara de comprar na loja de Alâaddine, arrancavas-ma das mãos e, sempre sentada na mesma cadeira, balouçavas as pernas — ó meu Deus! — sempre com a mesma decisão. Eu fixava em ti o mesmo olhar vazio, e perguntava-me, a medo: «Em que está ela a pensar? Que segredos se dissimulam no jardim misterioso dos pensamentos dela?» Por cima do teu ombro escondido pelos teus cabelos compridos, procurava descobrir o segredo do jardim dos teus pensamentos, na revista ilustrada a cores, o segredo que te levava a balouçar as pernas: arranha-céus em Nova Iorque, fogos-de-artifício em Paris, belos revolucionários, milionários com um ar decidido. (Vira a página, vira a página.) Aviões com piscina, superestrelas com lenços cor-de-rosa, génios universais, e os comunicados mais recentes. (Vira a página.) Jovens estrelas de Hollywood, cantores de intervenção, príncipes e princesas internacionais. (Vira a página.) Notícia local: uma mesa-redonda, com dois poetas e três críticos literários, sobre os benefícios da leitura.

Pelo meu lado, continuava sem conseguir resolver o enigma, mas tu, ao fim de muitas páginas e de muitas horas, e depois da passagem, tarde na noite, das hordas de cães errantes diante do prédio, tu acabaras por resolver as palavras cruzadas: deusa da Saúde entre os Sumérios: Bo; uma planície em Itália: Pó; uma regra especial: Té; uma nota: Ré; um rio que corre de juzante para montante: alfabeto; uma montanha que se erguia outrora na planície das letras árabes: Kaf; uma palavra mágica: fé; teatro irreal: sonho; belo actor de cinema na fotografia acima: és sempre tu quem descobre a resposta, eu nunca o reconheço. No silêncio da noite, quando levantavas os olhos da revista, metade do rosto iluminado, a outra metade, um espelho sombrio, fazias a pergunta, mas eu nunca sabia se te dirigias a mim ou ao personagem tão belo, que ocupava o centro do problema: «E se eu cortasse o cabelo?» E de novo eu fixava em ti um olhar vazio, sim, meu querido leitor!

Nunca te pude convencer das razões porque acreditava num mundo sem heróis. Nunca te pude explicar que os infelizes escritores que inventam esses heróis nada têm de heróis. Nunca te pude explicar que essas pessoas cujas fotografias aparecem nas revistas são de uma espécie diferente da nossa. Nunca te pude convencer da obrigação que te cabia de viveres como todos os demais. Nunca te pude fazer aceitar que nessa vida como a dos outros, eu devia ter um lugar, eu também.

 

Depois de ter saído do edifício do Milliyet, com os óculos escuros postos, Galip não se dirigiu para o escritório, mas para o Grande ftazar. A falta de sono oprimiu-o de súbito, a tal ponto que Istambul lhe pareceu ser uma cidade completamente diferente. Os sacos de couro, os cachimbos de espuma do mar, os moinhos de café já não eram objectos próprios de uma cidade que acabara por se assemelhar aos homens que nela tinham vivido milhares de anos, mas evocavam uma sinalização inquietante, numa região misteriosa onde milhões de pessoas purgavam por um certo período uma pena de desterro. «O mais estranho», disse para consigo Galip, enquanto se perdia no labirinto das vielas do Grande Bazar, «é que conservo optimismo suficiente para imaginar que poderia ser eu próprio, depois de ter lido as letras do meu rosto.»

Quando entrou no mercado das pantufas, estava prestes a convencer-se de que fora ele, e não a cidade, a mudar. O que era impossível, uma vez que ele penetrara o segredo da cidade, como decidira a partir do momento em que conseguira decifrar as letras no seu rosto. Parado diante da montra de um vendedor de tapetes, alguma coisa o impeliu a pensar que já vira os tapetes ali expostos, que já os pisara, durante anos, com sapatos sujos ou pantufas velhas; conhecia bem, dizia de si para si, o vendedor que bebia café à porta da loja e que o observava com um olhar desconfiado; a história, cheia de pequenas fraudes e de infracções sem envergadura, daquela loja que cheirava a pó, era-lhe, assim lhe parecia, tão familiar como a sua própria vida. Teve a mesma impressão diante das montras dos ourives, dos antiquários e dos vendedores de calçado. Duas ruelas mais longe, voltou a dizer-se que conhecia todas as mercadorias que se vendiam no Grande Bazar, dos gomis de cobre às balanças de fiel; todos os vendedores que por trás dos seus balcões deitavam o olho aos clientes. Toda a cidade de Istambul lhe era familiar; já não tinha segredos para ele.

Com a serenidade que esta impressão lhe proporcionava, deambulava pelas ruelas como num sonho. Pela primeira vez na sua vida, qualquer antiguidade que via nas montras, os rostos com que se cruzava, pareciam-lhe tão surpreendentes como os que assombravam os seus sonhos, mas igualmente tranquilizadores, familiares, como as fisionomias dos convivas reunidos para uma refeição em família. Quando passou diante das montras cintilantes dos ourives, perguntou a si próprio se a serenidade que experimentava não estaria ligada ao segredo das cartas que lera com assombro no seu rosto. Mas desde que as decifrara, recusava-se a pensar no pobre tipo, esmagado pelo passado, que abandonara atrás de si. A única coisa que tornava o universo misterioso era a presença do duplo que cada um traz em si, do irmão gémeo com que cada um vive. Depois de ter atravessado o mercado dos sapateiros, onde, à entrada das lojas, os vendedores desocupados se embasbacavam, reparou em certos postais brilhantemente coloridos, panoramas de Istambul, expostos à porta de uma lojinha minúscula e, depois de ter visto essas paisagens, decidiu que deixara havia muito o duplo para trás. As imagens da cidade eram tão banais, tão comuns, tão familiares, que ao examinar os barcos das Linhas Municipais acostando à ponte de Gaiata, as chaminés do palácio de Topkapi e a Torre de Leandro, ou ainda a ponte sobre o Bósforo, teve a impressão de que a cidade já não tinha o mais pequeno segredo para ele. Mas essa impressão desapareceu quando penetrou nas ruelas do mercado dos ourives, onde os vidros das montras verde-garrafa se espelhavam uns aos outros. «Alguém me segue!», disse para consigo com terror.

Em todo o caso não havia nenhuma presença duvidosa à sua volta. Mas o sentimento de que uma catástrofe inevitável se aproximava continuava a invadi-lo. Apressou o passo. Ao chegar ao mercado dos colbacks, virou à direita, seguiu a rua até ao fim e saiu do Grande Bazar. Tencionava atravessar, sem afrouxar o passo, o mercado dos alfarrabistas, mas quando se viu diante da livraria «Elif», esse nome, que sempre lhe parecera tão normal, transformou-se bruscamente num sinal.

O elif, primeira letra do nome de Allah e primeira letra do alfabeto árabe, da qual nasceram todas as outras letras e, por conseguinte, o universo inteiro, segundo os houroufis, e mais estranho ainda, o nome que encimava o escaparate fora escrito em letras latinas, conforme F. M. Utchundju previra. Galip bem teria querido ver nisso apenas um nome, muito corrente, de resto, e não um sinal, quando avistou de repente a loja do Xeque Mouammer éfendi: a livraria do xeque da confraria dos Zamanis, frequentada outrora pelas viúvas necessitadas dos bairros pobres e por milionários americanos tão dignos de lástima como elas, estava fechada. Galip recusou-se a atribuir este encerramento a um motivo banalíssimo: o xeque talvez tivesse morrido, ou, mais simplesmente, talvez não tivesse querido sair de casa numa noite tão fria. Pelo contrário, viu nisso um outro sinal do mistério que a cidade continha. «Se continuo a ver sinais disseminados pela cidade», disse de si para si ao avançar entre os Comentários do Corão e os romances policiais traduzidos do inglês, amontoados pelos alfarrabistas diante das suas lojas, «é porque continuo também sem poder compreender o que me mostraram as letras do meu rosto.» Mas o verdadeiro motivo era completamente diferente. Sempre que repetia para consigo que estava a ser seguido, apressava involuntariamente o passo; a cidade já não era um lugar tranquilo onde pululavam objectos e signos familiares, mas transformava-se num universo fervilhante de mistérios e de perigos. Galip compreendeu que precisava de andar depressa, ainda mais depressa, se quisesse despistar a sombra que o seguia e desembaraçar-se da impressão do mistério que tanto o perturbava.

Atravessou a praça de Beyazit para entrar o mais rapidamente possível na avenida dos Tecelões de Tendas, tomou pela rua dos Samovares, porque gostava do seu nome, desceu a rua paralela, a dos Narguilés, na direcção do Corno de Ouro, depois subiu a rua dos Almofarizes. Pôde ver oficinas onde se fabricavam utensílios de plástico, lojas de artigos de cozinha, serralharias. «Estava portanto escrito que eu encontraria estas lojas no meu caminho, no momento em que enceto uma vida nova», disse ele para consigo. Viu armazéns onde se vendiam baldes, bacias, pérolas de vidro, lantejoulas, fardas para polícias e para militares. Caminhou um longo momento na direcção da Torre de Beyazit, que se fixara como objectivo, depois voltou atrás e, passando por entre camiões, tabuleiros de laranjas, frigoríficos velhos, carrinhos de moços de fretes, lixos amontoados e palavras de ordem política nas paredes da Universidade, encaminhou-se dessa feita para a Suleymaniyé. Entrou no pátio da mesquita, passou por baixo dos ciprestes, mas a lama obrigou-o a retomar a rua, do lado dos medresse.

Agora, avançava entre casas de madeira com a tinta a estalar, apoiadas umas nas outras. Os tubos de fogão que surgiam das janelas do primeiro andar das casas a cair fizeram-no pensar em periscópios carcomidos pela ferrugem ou em bocas de canhão ameaçadoras, em canos de espingardas apontadas para a rua, dizia ele para consigo, a fim de tentar evitar a palavra «como», porque se recusava a estabelecer relações entre as coisas.

Para voltar à rua do Mancebo, tomou pela rua da Fonte-dos-anões, cujo nome o atingiu tão em cheio que se perguntou se aquilo não seria mais um sinal. No mesmo instante, decidiu que as ruas empedradas pululavam de signos e encaminhou-se na direcção das avenidas de asfalto; viu-se na avenida de Chehzadé-Bachi, onde deparou com vendedores de biscoitos, motoristas de mini-autocarros colectivos que bebiam chá, e estudantes que, com uma pizza na mão, examinavam os cartazes de um cinema: três filmes seguidos, dos quais dois de karaté, com Bruce Lee; nos anúncios rasgados e nas fotografias envelhecidas do terceiro, Djuneyit Akin, no papel de um bey das marcas seldjúcidas, desancava os bizantinos e dormia com as mulheres deles. Galip empreendeu a fuga, como se tivesse medo de ser ferido de cegueira se continuasse a contemplar por mais tempo os rostos alaranjados dos autores, nas fotografias expostas no átrio. Ao passar junto da mesquita do Príncipe Herdeiro, esforçou-se por não pensar no outro príncipe imperial, esse cuja história o perseguia. Mas os signos misteriosos continuavam a fervilhar à sua volta, nos sinais de trânsito devorados pela ferrugem, nos anúncios das casas de pasto e dos hotéis, nos cartazes que gabavam os méritos de cantores «arabizantes» ou de marcas de detergente, nos grafitis informes que cobriam as paredes. Mesmo quando conseguia, graças a esforços sobre-humanos, evitar deter-se nos sinais, imaginava, enquanto seguia ao longo do aqueduto de Bozdogan, os sacerdotes bizantinos com as suas barbas ruivas dos filmes «históricos» da sua infância; e quando passou em frente da loja tão conhecida pelo seu suco de painço fermentado, lembrou-se da noite de festa, havia tantos anos já, em que o tio Mélih, que se embriagara com incontáveis copos de licor, fretara táxis para levar toda a família a beber aquela célebre boza. E estas imagens tornavam-se imediatamente sinais, os sinais de um mistério que permanecia enterrado no seu passado.

Enquanto atravessava a passo de corrida a avenida Atatiirk, decidiu uma vez mais que doravante veria as imagens e as letras que a cidade lhe propunha, tal como eram, e não como os fragmentos de um mistério. Penetrou com a máxima rapidez possível na rua dos Tecelões de tendas, passou dela à rua dos Vendedores de Ferragens, e andou por um bom momento sem ver os nomes das ruas por onde ia. Nelas deparou com prédios num estado lamentável encostados a casas de madeira com varandas de ferro oxidado, camiões de 1950 com o focinho alongado, crianças que brincavam com velhos pneus, postes eléctricos tortos, passeios esburacados por trincheiras abandonadas, gatos que esgaravatavam nos caixotes do lixo, velhas que fumavam de cigarro na mão, com os cabelos tapados por um lenço, vendedores ambulantes de iogurte, trabalhadores dos esgotos, oficinas onde se fabricavam colchões.

Quando se dirigia para a avenida da Pátria, atravessando a dos Vendedores de Tapetes, virou bruscamente à esquerda, e mudou duas vezes de passeio. Entrou numa mercearia para beber iogurte com água, e disse para consigo que aquela impressão que tinha de estar a ser «seguido» lhe vinha dos romances policiais tão caros a Ruya. E contudo sabia bem que já não poderia escapar a essa impressão, bem como à ideia de um mistério da cidade. Entrou na rua das Duas Rolas, virou de novo à esquerda na primeira ocasião, e recomeçou a avançar a passo de corrida pela rua do Erudito. Ao chegar aos primeiros semáforos, atravessou a avenida Fevzi-Pacha correndo por entre os mini-autocarros. Quando uma placa lhe disse que a rua que seguira se chamava a rua do Circo dos Leões, ficou por um instante tomado de terror: se a mão misteriosa cuja presença suspeitara havia quatro dias, na ponte Gaiata, continuava a espalhar em sua intenção sinais por aqui e ali em Istambul, era porque o segredo, do qual já não duvidava, estava ainda muito longe.

No mercado do peixe, onde havia muita gente, viu os tabuleiros de rodovalhos, de salmões, de tainhas, e chegou ao pátio da mesquita de Fatih, onde desembocavam todas as ruelas da zona do mercado. A vasta praça estava deserta. Um só transeunte: um homem de sobretudo e barba negros, que avançava na neve com o ar de um corvo. O pequeno cemitério estava igualmente deserto. A porta do túmulo do Conquistador estava fechada à chave. Ao mesmo tempo que observava por uma janela o interior do edifício, Galip apurava o ouvido para o ruído surdo da cidade: o apregoar dos vendedores do mercado, as buzinas, os gritos de crianças vindos de uma escola de bairro distante, o mugido dos motores, o piar dos pardais, o crocitar dos corvos que enchiam os ramos das árvores, a algazarra dos mini-autocarros e das motos, o bater das portas e das janelas que se abriam e fechavam algures muito perto, o tumulto que subia dos prédios em construção, das casas, das ruas, das árvores, dos jardins públicos, do mar, dos barcos, dos bairros da cidade e da cidade inteira. O homem cujo túmulo Galip contemplava através da vidraça poeirenta, e que teria gostado de imitar, Mehmet, o Conquistador, conseguira, ele sim, graças aos escritos dos houroufis que pudera estudar, decifrar o mistério da cidade que conquistara cinco séculos antes do nascimento de Galip; e esforçara-se por compreender, pouco a pouco, um universo onde todas as coisas — cada porta, cada chaminé, cada rua, cada ponte, cada plátano — eram um signo que designava outra coisa.

«Se todos os manuscritos houroufis e os próprios houroufis não tivessem sido queimados no desfecho de uma vasta conspiração dirigida contra eles, e se o sultão tivesse conseguido resolver o mistério da cidade que teria podido descobrir, ao percorrer as ruas de Bizâncio recém-conquistada, ao contemplar, como eu estou a fazer, as paredes em ruínas, os plátanos centenários, as ruas cheias de pó, os terrenos vagos?», perguntou-se Galip, que se dirigia para Zeyrek, passando pela rua do calígrafo Izzet. E quando alcançou os edifícios tão velhos como inquietantes dos Aramazéns dos Tabacos, em Djibali, murmurou de si para si a resposta à pergunta que se pusera, resposta que conhecia desde que lera as letras do seu rosto: «Reconheceu decerto uma cidade que via pela primeira vez, como se a tivesse percorrido já milhares de vezes.» Mas Istambul continuava a parecer uma cidade recém-conquistada, e era isso o mais surpreendente. Galip não conseguia convencer-se de que já vira, de que conhecia aquelas ruas cobertas de lama, aqueles passeios desfeitos, aqueles automóveis velhos, aqueles autocarros ainda mais vetustos, as paredes que desabavam, as árvores de um cinzento de chumbo que faziam dó, todos aqueles rostos impregnados de tristeza, todos parecidos uns com os outros, e os cães que eram só pele e osso.

Depois de ter compreendido que não poderia escapar à sombra que o seguia, mas de cuja presença duvidava, continuou a avançar passando entre as arcadas bizantinas arruinadas, as oficinas, os bidões amontoados do Corno de Ouro, os operários de fato-macaco que matavam o bicho ou jogavam futebol na lama, e sentiu subir em si o desejo de ver na cidade uma enseada de paz povoada de imagens familiares, um desejo tão violento que tentou fingir ser um outro, como fazia em miúdo; imaginou ser o próprio Mehmet, o Conquistador. Depois de ter andado um bom momento invadido por esse desejo infantil que não lhe parecia nem louco nem ridículo, lembrou-se de uma crónica de Djélâl escrita havia muitos anos, por altura da comemoração da conquista de Istambul: nessa crónica, o seu primo afirmava que, entre os cento e vinte e quatro soberanos que haviam reinado em Istambul ao longo dos mil seiscentos e cinquenta anos passados desde Constantino até aos nossos dias, o Conquistador fora o único a não experimentar a necessidade de percorrer disfarçado a cidade em plena noite. «Por motivos bem conhecidos de alguns dos nossos leitores», dizia Djélâl no texto que Galip agora evocava, sacudido por entre a massa dos passageiros do autocarro Sirkédji-Eyup, que avançava aos solavancos pela calçada. Mais tarde, num outro autocarro que apanhara em Ounkapani e que se dirigia para a praça de Taksim, espantou-se com a rapidez com que o homem que o seguia conseguira, tal como ele, mudar de autocarro. Sentia-lhe o olhar na nuca, mais próximo do que nunca. Quando mudou pela terceira vez de autocarro, na praça de Taksim, disse para consigo que se metesse conversa com o velho senhor sentado ao seu lado, poderia transformar-se num outro e escapar assim à sombra que não o largava.

— Acha que vai continuar a nevar? — disse, olhando pela janela.

— Quem sabe? — respondeu-lhe o homem; talvez se preparasse para acrescentar qualquer coisa, mas Galip cortou-lhe a palavra:

— O que significa esta neve? — disse ele. — Que nos anuncia? Conhece a história da chave, do grande Mevlâna? Tive a sorte de ver essa chave em sonhos, a noite passada. À minha volta, era tudo branco, branco como esta neve. De súbito acordei, sentia uma dor violenta no peito, uma coisa fria, glacial. Comecei por pensar que uma bola de neve me pesava no coração, ou uma bola de cristal. Nada disso: em cima do meu coração, o que havia era a chave de diamante do grande poeta. Então, peguei na chave, levantei-me, tentei servir-me dela para abrir a porta do meu quarto, e ela rodou na fechadura. Mas eu estava agora num outro quarto, onde havia um homem a dormir na sua cama, que se parecia comigo, mas que não era eu. Abri a outra porta desse quarto com a chave que estava poisada no coração do homem adormecido. E quanto à outra chave, a primeira, poisei-a em cima do coração do adormecido e entrei num terceiro quarto. E era sempre a mesma coisa, duplos que se pareciam comigo, mas mais bonitos do que eu, e em cima do coração, uma chave... Da mesma maneira, no outro quarto e num outro ainda e no quarto que se lhe seguia, vi também que havia outros homens, sombras, fantasmas sonâmbulos como eu, todos com as suas chaves na mão. E em cada quarto uma cama, e em cada cama, um homem a sonhar como eu! E compreendi então que me encontrava no mercado do paraíso. Um mercado onde não há nem vendas nem compras, nem ouro nem prata; tudo o que lá se vê são rostos e duplos. Podemos escolher o duplo que nos convenha, pomos o rosto escolhido na cara, como uma máscara, para começarmos uma vida nova. Mas o duplo que eu procuro, bem sei, está no último dos mil e um quartos, e eis que a última das chaves não abre essa porta. É então que compreendo: teria podido abrir a porta com a primeira chave, com a que descobri poisada no meu peito, essa que era fria como a neve, mas onde estará ela agora, quem a tem, qual era o quarto, qual a cama que deixei, sou incapaz de o saber, e tomado de um remorso terrível, em lágrimas, compreendo que vou errar, por toda a eternidade, como todos os outros desesperados, de porta em porta, de quarto em quarto, apoderando-me de uma chave, abandonando outra, presa do assombro à vista de cada um dos duplos que descubro mergulhados no sono, para a eternidade...

— Olha — disse o velho —, olha ali!

Por trás dos seus óculos escuros, Galip olhou para o sítio que o homem lhe apontava com o dedo e calou-se. Precisamente em frente da Casa da Rádio, havia um morto caído no passeio, e, à volta dele, duas ou três pessoas que gritavam e pediam socorro, e também basbaques que tinham acorrido logo a seguir. Seguiu-se o engarrafamento; todos os passageiros do autocarro, os que estavam sentados e os que se agarravam às barras de metal, se debruçaram das janelas para contemplarem com medo, com terror, mas em silêncio, o morto coberto de sangue.

A circulação foi restabelecida, mas o silêncio prolongou-se por um longo momento. Galip apeou-se do autocarro diante do cinema Konak e entrou no Bazar de Ankara para comprar atum salgado, tarama, língua fumada, maçãs e bananas. Depois encaminhou-se muito depressa para o «Coração da Cidade». Sentia-se transformado, a tal ponto que já não desejava ser outro. Ao chegar ao prédio, desceu até aos aposentos do porteiro. Ismail, Kamer hanim e o benjamim dos seus netos, instalados à volta da mesa coberta por uma toalha de oleado, comiam hachis com batatas; envolvia-os uma atmosfera de felicidade em família que pareceu extremamente longínqua a Galip: dir-se-ia que aquela cena se passava havia muitos séculos.

— Bom apetite — disse Galip. Houve um silêncio, e ele acrescentou: — Parece que não entregaram o envelope ao Djélâl.

— Tocámos, tocámos, e ele não estava em casa — disse a mulher do porteiro.

— Mas está agora. Onde está o envelope?

— Ele está em casa? — disse Ismail éfendi. — Se lá vais, dá-lhe esta factura da electricidade.

Levantara-se e examinava umas atrás das outras, as facturas amontoadas em cima da televisão. Galip tirou a chave do bolso e pendurou-a destramente num prego, na borda da prateleira, por cima do radiador. Os outros nada tinham visto. Apoderou-se do envelope e da factura e saiu.

— Vais dizer ao Djélâl que não se preocupe, eu não falo dele a ninguém! — gritou atrás dele Kamer hanim, com uma veemência um tanto forçada.

Galip saboreou o prazer de subir pela primeira vez, depois de tantos anos, no velho elevador que cheirava como outrora a lubrificante e a cera; quando começava a andar, gemia como um velho com dores no lumbago. O espelho diante do qual comparavam outrora a sua altura, Ruya e ele, continuava no seu lugar. Mas Galip não se viu nele, sentia demasiado medo de se ver de novo assaltado pelo terror das letras.

Uma vez no apartamento, mal teve tempo de se desembaraçar do sobretudo e do casaco, pendurando-os no cabide: a campainha do telefone começou a tocar. Antes de atender, precipitou-se para a casa de banho para estar preparado para qualquer eventualidade, e olhou-se no espelho durante alguns segundos com determinação e coragem. Não, não era portanto um acaso, as letras ali estavam, e o universo e o seu segredo. «Eu sei», disse para consigo ao pegar no telefone. «Tenho a certeza.» Sabia antes ainda de levantar o auscultador que ia ouvir aquela voz, a voz que lhe falara da iminência de um golpe de Estado militar.

— Está?

— Que nome terás desta vez? — disse Galip. — Não são os pseudónimos que faltam, acabo por me perder!

— Aí está uma maneira bem hábil de pegar no assunto! — disse a voz; exprimia uma segurança que Galip não esperava. — Bom, escolhe-me então um nome, Djélâl bey!

— Mehmet...

— Mehmet, como o Conquistador?

— Exactamente.

— Muito bem. Sou eu, o Mehmet. Não consegui descobrir o teu nome na lista. Dá-me a tua direcção, para eu poder ir ver-te.

— Porque te havia eu de dar a minha direcção, se a escondo de toda a gente?

— Porque eu sou um cidadão comum, como tantos outros, cheio de boas intenções, que deseja fornecer a um jornalista célebre as provas da iminência de um golpe de Estado militar que vai ser sangrento.

— Sabes demasiadas coisas a meu respeito para seres um cidadão como os outros — disse Galip.

— Há seis anos, encontrei uma pessoa na estação de Kars — disse a voz baptizada Mehmet. — Um cidadão como tantos outros. Era um droguista que ia a Erzurum tratar de negócios. Ao longo de todo o trajecto, falámos de ti. Ele sabia porque é que começaras o primeiro artigo assinado com o teu nome pela palavra «escuta», equivalente da palavra persa bichnov, que é a primeira palavra do Mesnevi de Mevlâna. Do mesmo modo, sabia que num artigo do mês de Julho de 1956, compararas a vida com os romances em folhetim, e que, numa outra crónica, publicada exactamente um ano mais tarde, tinhas declarado que os folhetins se pareciam com a vida; tinha notado a simetria secreta destas comparações, tinha compreendido como as usavas habilmente, porque, ao longo desse ano, tinha adivinhado pelo teu estilo que tinhas apanhado em andamento e assinado com um pseudónimo o folhetim sobre a nobre arte da luta, abandonado por um cronista muito conhecido que se tinha zangado com o patrão. Sabia também que, num artigo escrito na mesma época e que começava pela seguinte frase: «Olhe com afecto, com um sorriso, como se faz na Europa, as mulheres bonitas com que se cruza na rua, e não com uma expressão zangada, franzindo o sobrolho!», a mulher tão bela que descrevias com tanto amor não era outra senão a segunda mulher do teu pai. Quando, seis anos mais tarde, comparavas ironicamente a infelizes peixes japoneses, prisioneiros do seu aquário, uma família numerosa, confinada num apartamento de Istambul, a Poeirenta, o droguista sabia, pelo seu lado, que os peixes em questão eram os de um teu tio surdo-mudo, e que a família era a tua. Esse homem, que nunca vira Istambul, que nunca pusera os pés em Erzurum, conhecia todos os teus parentes, cujos nomes nunca citaras; conhecia as casas onde moraste, as ruas de Nichantache, a esquadra na esquina da praça e, em frente, a loja de Alâaddine, o pátio e o lago da mesquita de Techvikiyé, os últimos jardins que se podem encontrar na cidade, a leitaria «Bom Leite», os castanheiros e as tílias que orlam os passeios; conhecia-os tão bem como o interior da sua pequena loja, situada junto à fortaleza de Kars, onde, tal como Alâaddine, vendia um pouco de tudo, à mistura, dos perfumes aos atacadores para sapatos, dos cigarros às agulhas de costura ou aos carrinhos de linha. Sabia também que, três semanas depois da publicação de uma crónica onde fazias troça do «Concurso das Onze Perguntas», patrocinado pela pasta dentífrica Ipana na Rádio de Istambul — num tempo em que não tinha sido ainda criada a rede nacional —, a pergunta de mil e duzentas libras tinha sido a respeito da tua pessoa, na intenção de te fazerem calar o bico; mas que tu, como de resto ele esperava de ti, tinhas desprezado esse miserável arranjo, e aconselhado imediatamente os teus leitores a deixarem de usar pastas de dentes americanas e a lavarem a boca com um sabão mentolado que poderiam preparar com as suas próprias mãos bem lavadas. Claro, ignoras que o nosso droguista demasiado confiante massajou as gengivas, durante anos, utilizando essa fórmula que tu tinhas inventado de uma ponta à outra, o que teve como resultado fazê-lo perder todos os seus dentes! Passámos o resto da viagem, o droguista e eu, a imaginar um jogo sobre o tema «O nosso cronista Djélâl Salik», e eu tive muita dificuldade em vencer o homenzinho cujo medo maior era o de deixar passar a estação de Erzurum. Era um cidadão como os outros, envelhecido prematuramente, sem dinheiro suficiente para pagar uma dentadura, e cujo único prazer (à parte a leitura das tuas crónicas) consistia em criar pássaros em gaiolas espalhadas pelo seu jardim, e em contar histórias de pássaros. Como podes ver, Djélâl bey, também o cidadão-como-os-outros (sobretudo não continues a pensar em subestimá-lo) te conhece bem. Mas eu, eu conheço-te ainda melhor que o cidadão comum. É por isso que vamos falar, tu e eu, até à noite!

— Voltei a pegar nessa história da pasta de dentes noutro artigo, quatro meses mais tarde — disse Galip. — Como foi?

— Falavas do doce perfume mentolado que exalam as bocas dos meninos e das meninas que, antes de irem para a cama, desejam, beijando-os, uma boa noite aos pais, aos tios, às tias, paternos e maternos, aos meios-irmãos. O menos que se pode dizer é que não era uma grande crónica!

— E no tocante aos peixes japoneses, podes dar-me outros exemplos?

— Sim, há seis anos, numa crónica em que falavas da morte e do silêncio a que aspiravas. E um mês depois, noutro artigo, aludias aos peixes vermelhos afirmando que tudo o que buscavas era paz e harmonia. E mais tarde, comparaste muitas vezes o aquário com o aparelho de televisão das nossas casas. Falaste das infelicidades que os casamentos consanguíneos provocaram entre os Wakins; apresentavas alguns dados extraídos da Encyclopaedia Britannika. Quem te traduziu a entrada: a tua irmã ou o teu primo?

— Posto de polícia?

— É um termo que evoca para ti o azul-marinho, o espancamento, o   bilhete de identidade, a confusão do conceito de cidadania, os tubos enferrujados, as botas pretas, as noites sem estrelas, as trombas franzidas, uma impressão de imobilismo metafísico, o azar, lembra-te de que és turco e que os telhados caem; lembra-te também a morte, evidentemente.

— E o droguista sabia tudo isso?

— Sim. E muitas coisas mais.

— Conta-me o que ele te perguntou.

— Esse homem que nunca viu um tramway e que, muito provavelmente, nunca verá, interrogou-me sobre a diferença dos cheiros nos tramways puxados por cavalos e os eléctricos. Expliquei-lhe que a diferença, deixando de parte o cheiro dos cavalos suados, resultava dos cheiros dos motores, dos lubrificantes e da electricidade. Ele perguntou-me então se em Istambul a electricidade tinha cheiro. Era uma coisa que não especificavas no teu artigo e, apesar disso, ele antecipara essa conclusão. Pediu-me que lhe descrevesse o cheiro do jornal que sai da tipografia. Resposta: a dar ouvidos a uma das tuas crónicas do Inverno de 1958, era uma mistura de quinino, de enxofre, de cave e de vinho, um cheiro que causa vertigens. Ele disse-me que o jornal perdia esse cheiro pelo caminho, ao longo dos três dias que levava de Istambul a Kars. A pergunta mais difícil, daquelas que o droguista me fez, dizia respeito ao perfume dos lilases. Eu ignorava que tivesses manifestado um interesse particular por essa flor. Segundo o droguista, que falava com os olhos coruscantes de alegria, como os de um velho que evoca as suas recordações embelezando-as, terias falado três vezes desse perfume: a primeira, foi quando contaste a história desse estranho príncipe imperial, que vivia na solidão e na expectativa do instante em que acederia ao trono, e que surpreendia tanto a sua comitiva; terias dito que a sua bem-amada cheirava a lilás. As duas outras vezes, repetindo-te, inspirado muito provavelmente pela filha de um dos teus próximos, terias descrito uma rapariguinha, com um avental muito limpo e muito bem passado, com os cabelos presos por uma fita novinha em folha, que voltava para a escola no fim das férias, por um belo dia soalheiro e melancólico do começo do Outono, e terias falado do perfume de lilás que se desprendia dos cabelos dela, na primeira crónica, do seu rosto, na segunda, publicada um ano mais tarde. Tratar-se-ia de um facto que se tinha repetido na vida real, ou do engano de um autor que se plagia a si próprio? Por um longo momento, Galip ficou sem saber que responder.

— Não me lembro — disse por fim, como se saísse do sono.

— Lembro-me bem de ter pensado em escrever a história do príncipe, mas não me lembro de o ter feito.

— O droguista lembrava-se bem. E além disso, tinha o sentido dos lugares, como tinha o sentido dos cheiros. Da mesma maneira que, a partir das tuas crónicas, imaginava Istambul como uma confusão de cheiros, conhecia também todos os bairros da cidade: aqueles onde ias passear, os que preferias, os que amavas às escondidas de todos, os que te pareciam cheios de mistério. Mas, tal como não conseguia imaginar certos cheiros, não tinha qualquer noção da distância entre os bairros, ou da sua proximidade. Aconteceu-me muitas vezes ir à tua procura a esses recantos da cidade, que também eu conhecia muito bem, e graças a ti, mas como o teu número de telefone me permitiu adivinhar que te enfiaste num sítio qualquer entre Nichantache e Chichli, desta vez não me dei ao trabalho de ir lá procurar-te. Aconselhei o droguista a escrever-te; digo-to porque tu deves estar a pôr-te a questão. O sobrinho que lhe lê as tuas crónicas sabe ler, claro, mas não sabe escrever. O droguista, pelo seu lado, claro, não sabe nem ler nem escrever. Escreveste algures que o conhecimento das letras provoca um enfraquecimento da memória. Queres que te conte como consegui vencer esse homem, que só conhecia os teus artigos por os ouvir ler, no momento em que o nosso comboio a vapor chegava ruidosamente a Erzurum?

— E inútil.

— Ele lembrava-se de cada um dos conceitos que utilizavas nas tuas crónicas, mas parecia incapaz de lhes apreender o sentido. Assim, não fazia a menor noção do plagiato, essa pilhagem literária. O seu sobrinho limitava-se a ler-lhe os teus artigos no jornal; e ele não experimentava a mais pequena curiosidade pelo resto. Dir-se-ia que estava persuadido de que tudo o que se publicava no mundo era escrito por um só homem, ou no mesmo momento. Perguntei-lhe porque falavas tantas vezes de Mevlâna. Não respondeu. Perguntei-lhe qual era a parte de Poe e qual a tua na crónica intitulada «O Mistério dos escritos secretos», que data de 1961. Respondeu-me logo, dessa feita: afirmou-me que o artigo era todo escrito por ti. Interroguei-o sobre o dilema «original da história/narrativa do original», que constituía o ponto mais importante da polémica (o droguista utilizava, pelo seu lado, o termo «querela») que vos opôs, Néchati e tu, a propósito de Bottfolio e de Ibn Zerhani. Declarou-me convictamente que as letras eram a própria substância das coisas. Não tinha, por conseguinte, compreendido nada E eu tinha-o batido!

— Mas nessa polémica — declarou Galip — os argumentos que eu utilizava contra o Néchati baseavam-se na ideia de que as letras são a essência da coisa nomeada.

— Essa é a ideia de Fazlallah, e não de Zerhani. Para te livrares da situação em que te tinhas enterrado com o teu pastiche do «Grande Inquisidor», vias-te obrigado a recorrer a Ibn Zerhani. Na altura em que escrevias esses artigos, só tinhas uma ideia na cabeça: provocar a desgraça do Néchati e fazer com que, no jornal, o pusessem na rua, bem sei. Na discussão do tema «tradução ou plagiato?», armaste uma ratoeira ao Néchati, louco de ciúme; levaste-o a declarar que se tratava de plagiato. A seguir, porque ele tinha afirmado que tu tinhas plagiado Ibn Zerhani, que tinha ele próprio plagiado Bottfolio, deste habilmente a impressão de que ele insinuava que o Oriente não podia ser criador, pelo que ele desprezava os turcos, e bruscamente lançaste-te em defesa da nossa gloriosa história e da nossa «cultura nacional», ao mesmo tempo que incitavas os leitores a endereçarem ao patrão do jornal cartas de protesto. O pobre leitor do nosso país, sempre sensível às «cruzadas modernas», sempre

pronto a castigar os «degenerados» que ousam afirmar que Sinan, «o maior arquitecto turco», era na realidade um arménio de Kayseri, aproveitou como sempre a ocasião; as cartas choveram no gabinete do patrão protestando contra o «bastardo» do Néchati, e o infeliz, a quem a alegria de ter descoberto a tua desonestidade literária tinha feito perder a cabeça, perdeu também a crónica e o emprego. Toda a gente sabe (até os passarinhos no céu!) que, nesse jornal onde trabalha como tu, embora não passe de um escritor fora de moda, ele se esforça por te minar o terreno...

— A propósito de minas, o que foi que eu escrevi sobre o poço?

— Esse é um tema vastíssimo, inesgotável, a tal ponto que chega a ser vergonhoso fazeres essa pergunta a um leitor tão fiel como eu! Não te vou recordar o poço, motivo da poesia do Divan, o poço para onde foi atirado Chems de Mevlâna, o bem-amado; os poços de onde surgem os djinns, as feiticeiras e os gigantes nas Mil e Uma Noites, essa obra que sempre pilhaste sem pudor; os poços de ventilação entalados entre os prédios, ou ainda as trevas sem fundo onde afirmas que serão lançadas as nossas almas; falaste vezes de mais de todos estes poços. Mas ouve antes o que te vou dizer: no Outono de 1957, escreveste um artigo bem trabalhado, cheio de cólera e de tristeza, sobre as florestas de tristes minaretes de betão (porque não tinhas quaisquer objecções a fazer aos minaretes de pedra), que, agressivas como florestas de lanças, cercam as nossas grandes cidades e as pequenas neo-cidades que se vão construindo na orla das primeiras. Nesse artigo, que não atraiu grandemente a atenção dos leitores, como acontece sempre que não abordas a política dos políticos ou os escândalos de cada dia, consagravas as últimas linhas à descrição de um jardim, invadido por fetos simétricos e silvados assimétricos, por trás de uma mesquita com o minarete baixote, num subúrbio deserdado, e falavas de um poço perdido, escuro e silencioso. Eu compreendi logo que por meio desse poço real, que caracterizavas com três epítetos: perdido, escuro e silencioso, nos convidavas, graças a uma alusão hábil, a virarmos os olhos, não para a altura dos minaretes, mas para as almas e as serpentes que assombram os poços negros e ressequidos do nosso passado, enterrados no nosso inconsciente. Dez anos mais tarde, durante uma noite de insónia e de desespero, em que te batias sozinho contra os fantasmas dos teus remorsos, escrevias um artigo que se inspirava no teu triste passado e nos ciclopes, falavas do Olho do remorso, do sentimento de culpa, que implacavelmente te perseguia havia anos. E se comparavas o órgão da vista a «um poço escuro, situado precisamente a meio da testa», não se tratava decerto de uma coincidência, mas de uma necessidade.

Aquela voz, por trás da qual Galip adivinhava um rosto de espectro, um colarinho branco e um casaco usado, leria as frases ou construí-las-ia sob o efeito das suas recordações entusiásticas? Era o que Galip se perguntava. Tomando o silêncio dele por uma aprovação, a voz teve uma explosão de riso triunfal. Depois começou a sussurrar, como para confiar um segredo, num tom amistoso, fraternal, nascido do sentimento de partilhar com o interlocutor as extremidades de um cordão umbilical vindo da mesma mãe, o dessa linha telefónica que passava sabia Deus por baixo de que colina da cidade, se insinuava por caminhos tortuosos, túneis cheios de moedas bizantinas e de crânios otomanos, se estendia como uma corda de roupa entre postos ferrugentos, plátanos e castanheiros, se prendia como vinha virgem aos flancos dos velhos edifícios, com as paredes degradadas. O homem continuava a sussurrar: gostava muito de Djélâl, respeitava-o, conhecia-o muito bem. E Djélâl já não tinha dúvidas a esse respeito, pois não?

— Não sei — disse Galip.

— Mas porque não suprimirmos estes aparelhos tão negros entre nós?, propôs a voz: a campainha às vezes tocava por sua própria inciativa, e era mais assustadora do que útil; o auscultador negro como alcatrão pesava tanto como um haltere; quando se discavam os números, o aparelho gemia, emitia uma melodia rangente, como os velhos torniquetes das portas de entrada para os embarcadouros das linhas Kadikeuy-Karakeuy; acontecia muitas vezes não ligar para o número marcado, mas para outro, como melhor lhe parecesse. — Compreendeste, Djélâl bey? Dá-me a tua direcção, e eu estou aí!

Como o professor primário embaraçado pelas conclusões geniais do aluno superdotado, Galip hesitou. Depois, espantado pela profusão das flores que, a cada resposta fornecida pelo desconhecido, desabrochavam no jardim da sua memória, e a cada pergunta, pelo infinito dessa memória, surpreendido pela armadilha em que pouco a pouco se ia deixando prender, disparou uma nova pergunta:

— Meias de nylon.

— Numa crónica de 1958, contavas que dois anos antes, quer dizer, na época em que o teu nome ainda não aparecia no jornal, e em que assinavas os teus artigos com pseudónimos que nunca tiveram grande êxito, como, num dia quente de Verão, num cinema de Beyoglou (o Ruya) onde só entraras para escapares à canícula, e também para esqueceres a tua infelicidade, enquanto seguias no ecrã o primeiro dos dois filmes da sessão (de resto, perderas o começo), entre as fartas gargalhadas dos gangsters de Chicago, dobrados pelos lamentáveis actores dos estúdios de Beyoglou, o crepitar das metra-

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lhadoras, o ruído das montras e das garrafas partidas, um som muito próximo te fez estremecer: unhas compridas de mulher rangendo em meias de nylon. Quando as luzes se acenderam no final do filme, viste, duas filas mais longe, um rapazinho com cerca de dez anos, com um ar muito ajuizado, e a mãe, elegante e bela. Tinhas observado longamente a maneira como se falavam, como se ouviam, com atenção e afecto. Na crónica que escreverias dois anos mais tarde sobre esse assunto, explicavas-nos que, ao longo de todo o segundo filme, apuraras o ouvido tentando captar, não o embate das espadas ou o rugir das tempestades no mar, que irrompiam dos altifalantes, mas o ranger das unhas de uma mão nervosa numas pernas oferecidas como pasto aos mosquitos das noites de Verão de Istambul; e que, perdendo todo o interesse pelas aventuras dos piratas no ecrã, não pensavas noutra coisa que não fosse aquele afecto que unia a mãe e o filho. Como explicarias numa outra crónica que escreveste doze anos mais tarde, o patrão tinha-te dado uma ensaboadela por causa do artigo sobre as meias de nylon: ignorarias que era perigoso, muito perigoso até, evocar a sexualidade das mulheres casadas e mães de família? Que o leitor turco não tolerava essas alusões? E se querias fazer uma carreira de cronista, devias desconfiar das mulheres casadas e ter mais cuidado com o teu estilo.

— O estilo? Uma resposta breve, fazes-me o favor.

— Para ti, o estilo era a vida. O estilo, para ti, era a voz. Eram os teus pensamentos. Era a tua verdadeira personalidade que se exprimia no teu estilo, e não havia só uma personalidade, mas duas, três...

— Que são?

— A primeira, a que tu chamas o meu eu simples, a voz que mostras a todos, que instalas à mesa familiar, durante as refeições com os teus parentes, a que suscita boatos, por entre o fumo dos cigarros, a seguir ao jantar; aquela a que deves tantos dados de pormenor sobre a vida quotidiana. A segunda é a do homem que terias querido ser, uma máscara tomada de empréstimo a essas pessoas admiráveis, que nunca conhecem a serenidade neste mundo, que vivem num outro universo, na luz difusa da sua magia. Escreveste-o e eu li-o, com as lágrimas nos olhos: sem esse hábito de conversares murmurando com o «herói», de quem começaste por querer ser uma simples cópia, antes de desejares ser «ele»; de repetir os jogos de palavras, as adivinhas, os sarcasmos, os gracejos que ele te segreda ao ouvido, com a obstinação dos velhos senis que retomam sem descanso as lengalengas de que não conseguem libertar-se, terias sido incapaz de suportar a vida quotidiana, ter-te-ias refugiado no teu canto à espera da morte, como tantos desgraçados fazem! A tua terceira personalidade, a que tu resumias como «personalidade sombria, estilo sombrio», transportava-te (e também a mim, claro) para um universo que as duas primeiras não podiam atingir, e que tu qualificavas de «estilo objectivo e estilo subjectivo»... Conheço melhor que tu os artigos que escreveste nas noites em que te sentias infeliz a ponto de a imitação e a máscara se revelarem insuficientes, mas aquilo que fizeste na tua vida, sabe-lo tu, melhor que eu, meu irmão. Vamos descobrir-nos, vamos compreender-nos, vamos disfarçar-nos juntos, tu e eu! Dá-me o teu endereço!.

— Endereço?

— As cidades constroem-se a partir de endereços, os endereços a partir de letras, e as letras a partir de rostos. Na segunda-feira, 12 de Outubro de 1963, descrevias-nos o bairro de Kourtoulouche afirmando que era o teu preferido em Istambul. Kourtoulouche, outrora Tatavla, um bairro arménio. Li essa crónica com muito prazer.

— A palavra «ler»?

— Escreveste um dia, em Fevereiro de 1962, se queres que precise a data, durante esse período tão febril da tua vida, quando preparavas o terreno para o golpe militar que salvaria o país da miséria, escreveste então que uma noite de Inverno, numa rua escura de Beyoglou, tinhas visto um imenso espelho emoldurado a doirado que estava a ser transportado, sabe Deus com que estranho objectivo, de um bar nocturno, onde trabalhavam dançarinas do ventre e ilusionistas, para outro ca-baré; o espelho tinha começado por estalar, sob o efeito do frio ou por qualquer outra razão, depois partira-se diante dos teus olhos em mil pedaços, e tu compreendeste de repente que não era por acaso que a mesma palavra designava em turco o «estanho», que transforma o vidro em espelho, e o «segredo». Depois de teres descrito na tua crónica o instante em que tiveste essa inspiração, acrescentavas: «Ler é olhar o espelho; o que conhece o 'segredo' pode atravessá-lo; e aquele que ignora o segredo das letras não pode descobrir neste mundo senão a insipidez, a banalidade do seu próprio rosto.»

— E que segredo era esse, então?

— Só eu, além de ti, conheço o segredo. Bem sabes que não se pode falar dele pelo telefone. Dá-me o teu endereço.

— Era o quê, esse segredo?

— Bem podes dizer-te que, para o descobrir, um leitor deveria consagrar-te a sua vida inteira. Foi o que eu fiz. Para adivinhar esse segredo, li tudo, tudo o que foste escrevendo durante os anos em que ainda não assinavas os teus artigos, os folhetins dos autores a quem servias de negro, as palavras cruzadas, os jogos, os retratos, as reportagens políticas ou cor-de-rosa; a tremer de frio nas bibliotecas públicas onde os fogões nunca estavam acesos, embrulhado no meu

sobretudo, com o chapéu na cabeça, luvas de lã nas mãos, li tudo, incluindo aquilo que não sabia se tinhas sido tu a escrever! O que faz (dado que escreveste regularmente uma média de oito páginas por dia ao longo de mais de trinta anos) cem mil páginas, ou seja trezentos livros de trezentas e trinta e três páginas. Só por isso já merecias que este país te fizesse um monumento.

— E outro em tua memória, por teres lido tudo isso — disse Galip. — Bom, e a palavra «monumento»?

— Durante uma das minhas viagens à Anatólia, numa pequena cidade cujo nome esqueci, enquanto esperava pela hora da partida do autocarro num jardim público que dava para uma praça, um homem ainda novo veio sentar-se ao pé de mim. Metemos conversa. Começámos por falar da estátua de Atatiirk, que apontava com o dedo para a estação rodoviária, como para indicar que a única coisa a fazer naquela povoação sinistra era deixá-la o mais depressa possível. Em seguida, levei a conversa para um dos teus artigos, aquele em que falas das estátuas de Atatiirk, cujo número é de mais de dois mil no nosso país. Afirmavas que todas essas horríveis estátuas acabariam por se animar, numa noite de apocalipse, numa noite em que os relâmpagos e os trovões rasgariam as trevas e a terra tremeria. Descrevias as estátuas cobertas de excrementos de pombo, umas vestidas à ocidental, outras em uniforme de gala de marechal e carregadas de condecorações, outras cavalgando corcéis temíveis, com o sexo enorme, que se empinavam lá em cima; outras ainda, de chapéu alto, e com uma capa espectral pelos ombros; começariam a mover-se sem se apressar, desceriam dos seus pedestais rodeados de ramos de flores e de coroas secas, à volta dos quais, havia tantos anos, rodavam os velhos autocarros cinzentos de pó, as carroças e as moscas, e formavam para cantar o hino nacional os soldados tresandando a suor e as alunas do liceu feminino, com a roupa a cheirar a naftalina; desapareceriam nas trevas. O jovem apaixonado e sensível, sentado ao meu lado, tinha lido essa crónica, onde nos descrevias o terror que sentiam os nossos pobres compatriotas, ouvindo o ruído das botas e dos cascos de bronze ou de mármore, a martelar os passeios dos subúrbios populares nessa noite de fim do mundo, enquanto a terra tremeria e se fenderiam os céus. O jovem tinha-se sentido tão impressionado por essa crónica que te escreveu logo a seguir para te interrogar sobre a data precisa em que esses prodígios ocorreriam. A dar-lhe crédito, tu ter-lhe-ias enviado uma breve resposta, pedindo-lhe uma fotografia de bilhete de identidade. Depois de teres recebido essa fotografia, ter-lhe-ias revelado um «segredo», o dos signos precursores da aproximação desse dia. Claro, não se tratava do «segredo». Naquele parque com a relva pelada, com o lago vazio, o jovem, decepcionado pelos anos de expectativa, revelou-me também um segredo que deveria ter guardado para si próprio." além do sentido oculto de certas letras, tu ter-lhe-ias fornecido uma frase, que ele encontraria um dia numa das tuas crónicas, e que seria o Sinal. Assim que lesse a frase, o jovem decifraria o sentido oculto da crónica e passaria à acção.

— E que dizia essa frase?

— «A minha vida inteira estava cheia de más recordações deste género.» Tal era a frase. Não sei se realmente a escreveste ou se era ele que inventava tudo aquilo. Mas como que por acaso, quando nestes últimos tempos te queixas da tua memória que fraqueja, e até mesmo de a teres perdido por completo, li essa frase, entre outras, numa das tuas velhas crónicas que o jornal retomou num destes dias. Dá-me o teu endereço, posso ir imediatamente ter contigo para te explicar o que significa tudo isto.

— E as outras frases de que estás a falar?

— Dá-me a tua direcção! Diz-ma! Sei que hoje já não te interessas por essas frases nem por outras. Perdeste toda a esperança neste país, a tal ponto que já nada te interessa. Nesse buraco de rato onde te escondes, com o coração cheio de ódio, estás prestes a perder a bússola, à força de viveres sozinho, sem amigos, sem companheiros. Dá-me o teu endereço, eu digo-te onde é que, no mercado dos alfarrabistas, podes encontrar os alunos do liceu de teologia que trocam entre si fotografias tuas com dedicatória, ou os árbitros de luta livre que gostam de rapazes. O teu endereço, dá-mo: poderás ver gravuras, mostrando em plena acção dezoito soberanos otomanos que gostam de encontrar em lugares secretos de Istambul mulheres do seu harém disfarçadas de putas europeias. Sabes que esta mania que exigia uma enorme quantidade de vestidos e de jóias foi baptizada pelos costureiros e pelos bordéis mais luxuosos de Paris «o fantasma turco», sabias? Numa dessas gravuras, vê-se o sultão Mahmout II a fazer amor, incógnito e em pêlo, numa ruela qualquer de má-fama de Istambul, e sabes que o soberano tem calçadas nas pernas nuas as botas de Napoleão durante a sua campanha do Egipto? E que a sua esposa preferida, a futura sultana viúva Bezmiâlem (que deu o seu nome a um navio otomano e foi avó desse príncipe imperial de cuja história tanto gostas), aparece na gravura com uma despudorada cruz de diamantes e de rubis ao pescoço?

— A palavra «cruz»? — disse Galip, quase alegremente; pela primeira vez desde que a mulher o abandonara, quer dizer, havia cinco dias e quatro horas, redescobria o gosto pela vida.

— Não foi decerto por acaso, bem sei, que a notícia do casamento do Edward G. Robinson (o duro do palco e do ecrã, o homem que sem parar mordia a ponta de um charuto, um actor de que eu gostava muito) com a Jane Adler, desenhadora da moda em Nova Iorque, e a fotografia que mostrava os recém-casados à sombra de uma cruz aparecera no jornal mesmo por baixo da crónica que escreveste a 18 de Janeiro de 1958, e na qual evocavas a geometria egípcia arcaica, a álgebra árabe e o neoplatonismo entre os assírio-caldaicos, para provar que a cruz (enquanto forma) era o antónimo, a negação, o «negativo» do crescente... Diz-me onde moras. Só uma semana mais tarde, afirmavas que a educação dos nossos filhos no terror da cruz e na exaltação do crescente provocava neles uma inibição que os impedia ao longo de toda a sua adolescência de decifrar os rostos mágicos dos actores de Hollywood, os mantinha numa incerteza sexual que os levava a tomar todas as mulheres de rosto lunar por mãe ou tia; e para provares a pertinência dessa ideia, contavas que controlos efectuados nos domitórios de todos os internatos para bolseiros do Estado permitiriam descobrir que centenas de alunos tinham urinado na cama na noite que se seguia às aulas de história acerca das Cruzadas. Mais ainda: se me disseres onde moras, posso levar-te uma quantidade de histórias que falam de cruzes, informações inauditas que descobri em jornais de província e nas bibliotecas municipais que frequentei, à procura de tudo o que tivesses escrito: o condenado à morte que regressa da região da morte porque a corda da forca se partiu descreve as cruzes que encontrou durante a sua breve descida aos infernos: Correio de Erdiyès, Kayseri, 1962. «O nosso chefe de redacção dirigiu hoje um telegrama ao Presidente da República para lhe dizer que conviria à nossa cultura nacional substituir por um (.) a letra que tem a forma de uma cruz.» Konya-a-Verde, Konya, 1951. E tantas outras coisas, ainda! Podia levar-tas, dentro de caixas, num instante, se me desses o teu endereço... Não te vou dizer que poderás servir-te delas para os teus artigos, bem sei que sempre te fizeram horror os cronistas que acham que a vida é um material a utilizar. Levo-te todos os recortes que amontoei, dentro de caixas, na minha mesa, à minha frente. Vamos lê-los juntos, rir ou chorar com eles, tu e eu. Vamos lá, diz-me onde moras, levo-te essa série de artigos publicados na imprensa local, acerca desses gagos de Iskendéroune, que só se livram da sua doença nos estabelecimentos nocturnos, porque só às raparigas dos bares se atrevem a falar do ódio que sentem pelo pai. Diz-me onde moras... Levo-te esse artigo que fala de um empregado de café analfabeto, incapaz ainda por cima de falar correctamente turco, e que, embora sem saber uma palavra de persa, recitava poemas inéditos de Omar Khayyam, porque «as suas almas eram gémeas», dizia ele, e fazia toda a espécie de predições sobre o amor e a morte. Diz-me o teu endereço. Dou-te a ler também a história dos sonhos desse tipógrafo de Bayburt, jornalista quando lhe calhava, que, a partir do momento em que se deu conta das falhas da sua memória, passou a publicar na última página do jornal (do qual era também o patrão) todos os seus conhecimentos, todas as suas memórias, toda a história da sua vida; e fê-lo até à hora da morte. Entre as folhas mortas, as rosas murchas, os frutos ressequidos do vasto jardim que descreveu no seu último sonho, sei que encontrarás a tua própria história, meu irmão. Sei que, para adiares o esgotamento da tua memória, tomas medicamentos para a circulação do sangue, sei que vais pescar, uma a uma, as tuas recordações, a esse poço ingrato e perdido, passando horas, todos os dias, deitado de costas, com os pés contra a parede, e o rosto congestionado à força de estares de cabeça para baixo, para que o sangue irrigue de novo o teu cérebro, enquanto procuras lembrar-te do dia 16 de Março de 1957, por exemplo. «A 16 de Março de 1957», dizes para contigo depois de muitos esforços, «na companhia de todos os colegas do jornal, almoçávamos na churrasqueira ao lado da prefeitura, e eu falei-lhes das máscaras que o ciúme pode colar no nosso rosto!» E esforçando-te sempre, dizes ainda: «No mês de Maio de 1962, sim, sim, quando acordei depois de uma longa e inacreditável sessão de amor, a história passava-se numa casa de Kourtou-louche, numa ruela, declarei à mulher deitada ao meu lado que os sinais na pele do seu corpo nu me lembravam a minha sogra.» Mas a dúvida apodera-se logo a seguir de ti, essa dúvida que qualificas de implacável; essas palavras, tê-las-ás dito a essa mulher ou à outra, à mulher de tez tão branca, a história passava-se numa casa de pedra, onde se ouvia, pelas janelas que fechavam sempre mal, o rumor incessante do mercado de Béchiktache, ou dirigir-te-ias à mulher de olhos de bruma, a essa que te amava a ponto de correr o risco de chegar atrasada a casa, junto do marido e dos filhos; a que saiu uma vez do apartamento cujas janelas davam para o parque de Djihanguir para ir até Beyoglou comprar-te o isqueiro que desejavas com uma obstinação de menino mimado, por uma razão que muito depressa te escapou, como escreveste mais tarde, numa das tuas crónicas? Diz-me o teu endereço; eu levo-te Mnemonics, esse medicamento recente que apareceu na Europa e que, num abrir e fechar de olhos, dilatará as artérias do teu cérebro, entupidas pela nicotina e as más recordações, para te reconduzir aos belos dias do paraíso perdido. Assim que tiveres começado a deitar todas as manhãs no teu chá vinte gotas desse líquido malva — e não duas, como as instruções dizem —, vais redescobrir uma infinidade de recordações, esquecidas de há muito, a tal ponto que te terás esquecido de as teres esquecido. Como descobrimos de repente, atrás de um velho armário, os lápis de cor, os pentes ou os berlindes malva da nossa infância... Se me deres a tua direcção, hás-de conseguir lembrar-te do artigo em que afirmavas que cada um de nós traz um mapa no rosto, um plano a fervilhar de indicações, acerca de todos os cantos sem os quais não poderíamos passar na cidade onde vivemos, e hás-de recordar também porque escreveste esse artigo. Se me disseres onde moras, vais lembrar-te porque precisaste de me contar nas tuas colunas a história do concurso entre célebres pintores narrada por Mevlâna. Se me deres o teu endereço, recordarás porquê escreveste essa crónica misteriosa em que afirmavas que não podia haver uma solidão realmente sem esperança, porque as mulheres dos nossos sonhos nos acompanham até mesmo nos momentos em que nos encontramos mais sós, e porque, além disso, essas mulheres às quais a intuição permite sempre adivinhar os nossos sonhos, nos hão-de esperar, pôr-se à nossa procura, acabando por nos encontrar, pelo menos algumas de entre elas. Dá-me a tua direcção, para que eu te recorde tudo aquilo que já não consegues recordar, meu pobre irmão, que estás em vias de perder pouco a pouco todos os paraísos e todos os infernos com que sonhas ou que viveste. Diz-me onde moras, para eu poder voar já em teu socorro, antes que a tua memória se afunde por completo no poço perdido do esquecimento. Sei tudo de ti, li tudo o que escreveste: sou o único a poder ajudar-te a recriar esse universo, a escrever de novo essas crónicas mágicas, que se difundiam por todo o país, de dia como águias rapazes, e de noite como outros tantos espectros astuciosos. Quando te tiver visto, vais poder redigir de novo esses artigos que inflamavam os corações dos adolescentes nos cafés das aldeias mais recuadas da Anatólia; que faziam chorar com lágrimas escaldantes os professores primários e os seus alunos, nas aldeias perdidas das montanhas; que despertavam a fúria de viver nas mães jovens, que, nas ruelas de pequenas cidades de província, ficam à espera da morte lendo fotonovelas. Diz-me onde moras; discutiremos até de manhã, tu e eu, e tu hás-de reencontrar não só o teu passado perdido, mas também o teu amor por este país e pelos seus homens. Pensa um pouco nesses homens sem esperança que te escrevem de povoações encostadas ao sopé das montanhas cobertas de neve, e onde o carteiro não passa senão de quinze em quinze dias. Pensa em todos os cretinos que te escrevem para te pedir a tua opinião, antes de romperem os seus noivados ou de fazerem as suas peregrinações a Meca, ou de irem votar; nos infelizes garotos que, durante as aulas de geografia, lêem os teus artigos, na última fila da sala; nos lamentáveis encarregados das escritas que esperam pela reforma, atrás da sua secretária relegada para um canto da sala, ao mesmo tempo que leem furtivamente a tua crónica; em todos os desgraçados que, sem ti, seriam incapazes de descobrir à noite no café um tema de conversa diferente dos dos programas radiofónicos. Pensa em todos os que te lêem nas paragens de autocarros sem abrigo, nos átrios dos cinemas melancólicos e sujos ou ainda em remotas gares desertas. Esperam de ti um milagre, todos eles! Dá-me o teu endereço, a dois, faremos melhor as coisas. Diz-lhes que o dia da salvação está próximo, que em breve deixarão de ter que fazer bicha, com um bidão de plástico na mão, em frente da fonte do bairro, esperando que a água se digne a correr; diz-lhes que as liceais mais fogosas deixarão de ir parar aos bordéis de Gaiata e que um dia poderão tornar-se estrelas de cinema; jura-lhes que por um milagre que em breve terá lugar, todas as cautelas da Lotaria Nacional serão premiadas, que os bêbados deixarão de espancar as mulheres quando voltarem para casa; a partir desse dia prodigioso, serão acresentadas carruagens aos comboios suburbanos, e, nas praças de todas as cidades, haverá bandas que darão concertos, como na Europa; diz-lhes também que seremos todos heróicos e célebres; diz-lhes que um dia muito próximo os homens vão poder deitar-se com todas as mulheres que desejem — sem exclusão da mãe — e que, devido a um prodígio qualquer, a mulher ao seu lado na cama será sempre uma virgem angélica, uma irmã. Diz-lhes que os documentos secretos foram enfim descobertos, esses que revelam o segredo histórico que nos mantém na miséria há séculos; que a rede de homens de fé que rodeia a Anatólia está prestes a passar à acção; diz-lhes ainda que foram identificados finalmente os pederastas, os padres, os banqueiros, as putas e os seus agentes locais que fomentaram a conspiração internacional que nos condena à miséria. Aponta-lhes a dedo os seus inimigos, hão-de conhecer então a paz porque terão o seu bode expiatório, que poderão tornar responsável por todos os seus males. Faz com que entrevejam a maneira de se desembaraçarem desses inimigos, e eles poderão, assim, nas horas em que tremem de raiva e de infortúnio, imaginar-se capazes de realizar um dia qualquer coisa da maior, da máxima importância; explica-lhes bem que a miséria que suportaram a vida inteira, a devem a esses indivíduos ignóbeis: atirando para cima de outros o peso dos seus pecados, sentir-se-ão de consciência limpa. Meu irmão, eu sei, graças ao que escreveste, que todos os sonhos, as histórias mais loucas, os milagres mais incríveis poderão ser realizados. E isso será feito graças às palavras maravilhosas, às recordações extraordinárias que pescarás no poço perdido da tua memória. Se o nosso droguista de Kars pôde, durante anos, aprender, por muito acreditar, tudo o que dizias sobre as ruas onde se passou a tua infância, foi porque adivinhava os sonhos dissimulados entre as linhas; devolve-lhe os seus sonhos. Houve um tempo em que as tuas crónicas faziam estremecer os mais deserdados, arrepiavam-nos, transtornavam-lhes a memória, faziam-nos crer nos dias felizes que viriam, como se os teus artigos lhes recordassem os dias de festa da infância, com os seus balouços e os seus carrosséis. Dá-me o teu endereço. E poderás voltar a escrever essas coisas. Neste país maldito, as pessoas como tu, que podem fazer senão escrever? Sei que escreves porque és incapaz de fazer outra coisa, muito simplesmente por impotência. Ah, se soubesses como tenho podido imaginar, desde há tantos anos, os teus momentos de confusão! Comovias-te quando olhavas os retratos de generais ou as naturezas-mortas nas paredes dos lugares de fruta e de hortaliça; tomava-te a tristeza quando, nos cafés medíocres dos subúrbios, vias os teus irmãos com um olhar melancólico e duro que jogavam o «sessenta e seis» com cartas amolecidas pela humidade. E eu, quando via na palidez das horas da manhã uma mãe e o filho na bicha diante dos armazéns do Estado de carne e peixe, na esperança de poderem comprar alguma coisa a preço reduzido; quando, durante as minhas viagens à Anatólia, o meu comboio passava pelas pequenas praças onde se fazem os «mercados de mão-de-obra», ou quando, nos domingos à tarde, observava os pais de família sentados com a mulher e os filhos, em parques sem árvores e sem relva, com o chão enlameado, que fumavam o seu cigarro à espera que aquelas horas intermináveis de tédio passassem, perguntava a mim próprio o que terias tu pensado de tudo isso. Dizia para comigo que, se tivesses podido ver aqueles rostos, te instalarias ao regressar no teu quarto, diante da tua mesa de trabalho, que convém tanto a este pobre país esquecido por toda a gente, para escreveres as suas histórias nas tuas folhas de mau papel branco em que a tinta desbota. Gostava de te imaginar, com a cabeça inclinada, via-te levantares-te da poltrona em plena noite, triste, desesperado, abrires o frigorífico e examinares o seu interior com um olhar distraído, sem nada veres, sem pegares em nada, como tinhas contado numa das tuas crónicas, e via-te depois vagueares pelo apartamento ou à volta da tua mesa, como vagueia um sonâmbulo. Ah, meu querido irmão, estavas tão sozinho, estavas tão triste, eras infeliz! E como eu gostava de ti! Durante anos, não fazia senão pensar em ti quando lia a tua crónica. Dá-me o teu endereço, suplico-to, ou pelo menos responde-me. Vou contar-te como pude ver letras, que pareciam enormes aranhas mortas, coladas nos rostos dos alunos da Escola Militar que um dia encontrei no barco de Yalova, e como esses rapazes robustos enlouqueciam como miúdos quando se viam a sós comigo nas casas de banho sujas do barco. Vou falar-te do vendedor de cautelas cego, que anda de um lado para o outro com as respostas que lhe enviaste, e que, à noite, depois de beber o seu primeiro copo de raki, as dá a ler a todos os clientes da taberna; e fá-los, uma e outra vez, fá-los sempre notar com orgulho o segredo que lhe revelas entre as linhas, para a seguir todas as manhãs fazer com que o filho lhe leia o Milliyet na esperança de descobrir a frase que completará as tuas revelações. Nos envelopes dessas cartas, podia decifrar-se o carimbo do correio de Techvikiyé... Está lá? Estás a ouvir? Diz-me pelo menos que ainda aí estás, por amor de Deus! Ouço-te respirar. Ouve-me bem, vou dizer-te frases que preparei com o maior cuidado; ouve com atenção. Quando nos explicaste porque era que as chaminés dos velhos barcos do Bósforo, que expeliam jactos de fumo melancólicos, te pareciam tão frágeis, tão elegantes, eu compreendi o que querias dizer. Compreendi-te, eu, quando nos disseste porque era que a atmosfera dessas bodas de província, em que as mulheres dançam umas com as outras e os homens com os homens, de súbito te parecia irrespirável. No dia em que nos revelaste que a angústia que te toma quando passas pelos subúrbios populares, entre as casas de madeira que caem em ruínas, cercadas por cemitérios, se transforma em lágrimas quando voltas para casa à noite, muito tarde, eu compreendi-te. Quando nos contaste que nos velhos cinemas, nesses a cujas portas se instalam os garotos que querem revender os seus Tom Mix ou os seus Texas e onde passam filmes sobre a história de Roma ou cujos heróis são Hércules ou Sansão, em certos momentos, quando o rosto melancólico e as longas pernas esguias de uma actriz americana de terceira ordem, no papel da bela escrava, surgem no ecrã, o silêncio que se abate sobre a sala onde se ouvia até então o rumor de uma clientela masculina te desolava a ponto de te causar uma brusca vontade de morreres, uma vez mais te compreendi bem. Que pensas tu? Mas será que, pelo menos, me compreendes? Responde, sacana! Eu sou o leitor «impossível de encontrar», o leitor que qualquer autor fica feliz ao encontrar, ainda que só por uma vez na sua vida! Diz-me onde moras, levo-te as fotografias das tuas admiradoras dos liceus para raparigas, são cento e vinte e sete, exactamente. Nalguns casos com um endereço no verso e, noutros, com frases que te cobrem de louvores, copiadas dos seus «cadernos de impressões». Dessas raparigas, trinta e três usam óculos, onze aparelhos dentários, seis têm um longo pescoço de cisne, e vinte e quatro um rabo-de-cavalo, como tu tanto gostas, bem sei. Todas estão apaixonadas por ti, loucas a valer por ti, garanto-te. Dá-me o teu endereço, vou levar-te a lista de todas as mulheres sinceramente convencidas de terem sido o objecto dos teus pensamentos quando, numa das tuas crónicas do começo dos anos sessenta, escrevias num tom jocoso: «Ouviram a rádio ontem à noite?

Eu, quando estava a ouvir 'A hora dos apaixonados', só tinha uma ideia na cabeça.» Sabes que tens tantas admiradoras nos meios mais snobes como entre as esposas de funcionários ou de militares das pequenas cidades de província ou as alunas das escolas mais emotivas e apaixonadas? Se me disseres onde moras, posso mostrar-te uma série de fotografias de mulheres da nossa terra que parecem estar sempre disfarçadas, tanto nesses bailes «mundanos» tão deprimentes como na sua vida de todos os dias, e nessas fotografias poderás vê-las assim arranjadas. Escreveste um dia com razão que entre nós não havia «vida privada», que éramos até incapazes de apreender o sentido desse termo, que aparece nas traduções de romances estrangeiros ou nas «actualidades» que os nossos jornais vão buscar às revistas do Ocidente. E quando vires as fotografias dessas mulheres que calçam botas de salto muito alto, escondendo o rosto por detrás de uma máscara diabólica... Vamos lá, anda, dá-me o teu endereço, peço-to. Levo-te imediatamente todas as fotografias de rostos incríveis que colecciono há vinte anos: os desses amantes ciumentos que cobrem com vitríolo os seus rostos; a fotografia foi tirada logo a seguir ao drama. Há também as dos fanáticos com ou sem barba, surpreendidos em flagrante delito durante uma cerimónia ritual secreta, com letras do alfabeto árabe no rosto; as de rebeldes curdos com os rostos queimados pelo napalme e por isso esvaziados de todas as letras; as da execução de violadores, discretamente enforcados em pequenas cidades de província, que são fotografias dos seus dossiers que arranjei subornando os funcionários: no momento em que a corda parte a nuca, o enforcado não deita a língua de fora, ao contrário do que se vê nas caricaturas. Em contrapartida, as letras tornam-se mais visíveis no seu rosto. Sei agora que desejo secreto te levava a declarar numa das tuas velhas crónicas que preferias as execuções e os carrascos de outrora. Tal como conheço o teu gosto pelos códigos secretos e pelos jogos de palavras e pelos alfarrábios antigos, sei bem que disfarces utilizas quando a meio da noite te misturas à massa de pessoas simples que nós somos, com o propósito de recriares uma atmosfera de mistério há muito desaparecida. Estou a par das partidas condenáveis que a tua irmã e tu gostam de pregar ao advogado que é marido dela, quando passam a noite a rir de tudo e de todos, e a dizer-lhe as vossas verdades. Sei também que falavas verdade quando afirmavas, em resposta a leitoras irritadas por certas crónicas em que troçavas dos advogados, que não era da corporação que te rias. Mas agora, dá-me o teu endereço! Conheço também o que significam exactamente todos os cães, todas as cabeças cortadas, todos os cavalos e todas as feiticeiras que assombram sem tréguas os teus sonhos. E todas as histórias sobre o amor que te inspiraram as pequenas imagens que os motoristas de táxi gostam de colar ao pé do retrovisor, mulheres nuas, futebolistas, pistolas, bandeiras, caveiras, flores... Conheço ainda certas frases-chave que envias aos teus admiradores lamentáveis para te veres livre deles, e sei que tens sempre ao alcance da mão os cadernos onde registas essas frases, bem como os disfarces pseudo-históricos que utilizas...

Muito mais tarde, depois de ter desligado discretamente a ficha do telefone, e examinado os armários, os cadernos, as notas e as roupas velhas, com os gestos de um sonâmbulo em busca das suas recordações, Galip deitou-se na cama de Djélâl, vestido com o pijama dele, e deixou-se cair num sono profundo, enquanto ouvia os ruídos nocturnos vindos da praça de Nichantache. E compreendeu uma vez mais que aquilo que no sono havia de mais belo era a possibilidade que nos proporciona de esquecermos a distância desesperante entre o ser que somos e aquele em que gostaríamos de nos tornar; e de confundirmos com uma serenidade imensa o que sentimos e o que nunca sentimos, o que vimos e o que nunca vimos, o que sabemos e o que ignoramos.

 

Sonhei que acabara por me tornar o homem que há tantos anos quero ser. Precisamente no meio desta vida a que se chama «sonho», na floresta dos prédios da cidade coberta de lama, algures entre as ruas sombrias e os rostos ainda mais sombrios, enquanto dormia esgotado pelo infortúnio, encontrei-te. Compreendia que podias amar-me, ainda que eu não conseguisse tornar-me outro; compreendia também que devia aceitar-me tal como era, com a resignação que experimento quando vejo o meu próprio bilhete de identidade; compreendia como era estúpido esforçar-me tanto por me tornar um outro: num sonho, ou então numa história. A medida que avançávamos, as ruas escuras e os prédios horríveis que se aproximavam de nós com um ar ameaçador afastavam-se para nos deixarem passar; quanto mais andávamos, mais os passeios e as lojas voltavam a fazer sentido.

Há quantos anos descobrimos, tu e eu, pela primeira vez esse jogo mágico que tantas vezes encontramos na vida? Fora antes das festas, num dia em que as nossas mães nos tinham levado à secção para crianças de um grande armazém (nesse tempo tão belo e tão feliz em que as secções ainda se não tinham separado, para ti e para mim, em «senhoras» e «cavalheiros»), e no momento em que nos encontrámos por acaso, de pé entre dois grandes espelhos, colocados diante um do outro num canto obscuro do grande armazém, para nós mais aborrecido ainda do que a mais aborrecida das aulas de religião, vimos as nossas imagens multiplicarem-se reduzindo-se e confundindo-se até ao infinito.

Dois anos mais tarde, num dia em que líamos no mais extremo silêncio a rubrica «As grandes descobertas» em A Semana das Crianças, depois de nos termos rido com gosto de alguns amigos que tinham enviado a sua fotografia para o «Clube dos Amigos dos Animais», reparáramos de repente na capa: uma rapariguinha a ler a revista ilustrada que tínhamos na mão, e, examinando mais atentamente o jornal que ela segurava, observáramos que as imagens se multiplicavam encaixando-se umas nas outras: a rapariguinha de cabelos ruivos que lia A Semana das Crianças na capa era a mesma que lia a mesma revista na capa da revista que nós próprios tínhamos nas mãos e que era a mesma, diminuindo constantemente de tamanho, que a rapariguinha da capa da revista que tinha na mão, e que a revista, também ela, era sempre a mesma.

Tal como — ao longo dos anos em que continuávamos a crescer e a afastar-nos um do outro — no frasco de puré de azeitona recentemente lançado no mercado, e que eu só podia ver na vossa mesa, ao domingo de manhã, porque não o comíamos em nossa casa: na etiqueta do frasco, cujo anúncio na rádio dizia «Oh, pelo que vejo está a comer caviar! — Mas não, é puré de azeitonas Enderl», via-se uma família tão feliz como exemplar: o pai, a mãe, o rapazinho e a rapariguinha, reunidos à volta da mesa do pequeno-almoço. Quando te fiz notar que havia nessa mesa o mesmo frasco de puré de azeitona e que a família feliz e o frasco diminuíam de tamanho de imagem para imagem, até se tornarem invisíveis a olho nu, já conhecíamos o princípio da história que te vou contar, mas ignorávamos-lhe o fim.

Era uma vez uma rapariguinha e um rapazinho que pertenciam à mesma família. Cresciam em andares diferentes de um mesmo prédio, subiam as mesmas escadas, comiam os mesmos lokoums e os mesmos bombons «Do Leão», faziam juntos os deveres, apanhavam as mesmas doenças, iam esconder-se para meterem medo um ao outro. Tinham a mesma idade. Andavam na mesma escola e para lá iam todos os dias juntos. Os filmes que viam, os discos e os programas de rádio que ouviam eram os mesmos; liam os mesmos livros e a mesma Semana das Crianças, revolviam os mesmos armários, as mesmas malas de onde surgiam toalhas, velhos fez ou botas velhas. Um dia em que o irmão da rapariguinha, já um jovem, e que lhes contava histórias com que eles deliravam, viera visitar os diversos andares do prédio, tinham-lhe roubado um livro que o tinham visto ler e começaram a lê-lo.

Esse livro, que fazia rir muito o rapazinho e a rapariguinha com as suas palavras antiquadas, as suas construções pomposas e as suas expressões extraídas do persa, de início aborrecera-os; tinham-no posto de parte, depois retomado por curiosidade, na esperança de nele descobrirem uma cena de tortura, um corpo nu ou a fotografia de um submarino, de tal modo que acabaram por ler de ponta a ponta esse livro, que era muito, muito comprido. Mas algures, no começo, dava-se entre os dois personagens principais uma cena de amor tão bela que o rapazinho desejara estar no lugar do jovem herói. O amor era tão bem descrito que ele tivera vontade de estar apaixonado, como o personagem do livro. E quando notou no seu próprio comportamento as manifestações de uma paixão da qual sonhara que o conto lhe forneceria todos os indícios (impaciência durante as refeições, impossibilidade de beber um copo de água quando a sede era enorme, pretextos diversos imaginados para ir ter com a rapariguinha), compreendeu que se apaixonara por ela no instante mágico em que tinham posto os olhos nas páginas desse livro, que folheavam juntos.

Bom, mas que história era a narrada pelo livro que os dois tinham nas mãos? Tratava-se de uma história que se passara havia muito, muito tempo, história de uma rapariga e de um rapaz, nascidos na mesma tribo. Viviam na orla do deserto, chamavam-se Husn (Bela) e Achk (Amor). Tinham nascido na mesma noite, recebido lições do mesmo mestre, passeado à volta do mesmo tanque de águas límpidas e haviam-se apaixonado um pelo outro. Quando, mais tarde, Amor pediu Bela em casamento, os anciãos da tribo puseram uma condição: o jovem teria de ir à Cidadela dos Corações para de lá trazer um elixir mágico. Achk pôs-se a caminho e conheceu grandes atribulações ao longo da sua viagem: caiu num poço onde uma feticeira com o rosto pintado o fez prisioneiro; os milhares de rostos e de duplos que encontrou noutro poço fizeram-no perder a razão; apaixonou-se pela filha do Imperador da China porque ela se parecia com a sua bem-amada; conseguiu escapar do poço, mas viu-se cativo no interior de outras fortalezas; foi perseguido por inimigos, perseguiu inimigos, enfrentou as tormentas do Inverno; percorreu as estradas, seguiu signos e pistas, mergulhou no segredo das letras, contou histórias, ouviu as histórias que lhe contavam. Por fim, um certo Suhan, que o seguia disfarçado e que o salvara de todas as suas desgraças, disse-lhe: «Tu és a tua bem-amada, e a tua bem-amada é tu. Não o soubeste sempre?» E então, o jovem recordou como se apaixonara por Bela, no tempo em que seguiam as lições de um mesmo mestre, e enquanto liam o mesmo livro.

E esse livro que tinham lido juntos contava a história de um soberano, chamado Chah-Hurrem, apaixonado por um belo jovem chamado Djavíd, e adivinhaste sem dúvida — muito antes do tolo do sultão — que nesta história igualmente os dois amantes começarão a amar-se quando, também eles, lerem juntos uma terceira história de amor. E nessa terceira história de amor, os dois personagens apaixonavam-se um pelo outro quando descobriam num livro uma história de dois amantes tomados pela mesma paixão ao lerem uma história de amor.

Quando, muitos anos depois dos espelhos do grande armazém, da capa de A Semana das Crianças e da etiqueta do frasco de puré de azeitona preta, descobri que estes contos de amor se encaixavam uns nos outros, do mesmo modo que os jardins das nossas memórias, e que constituíam uma série de histórias cujas portas se abriam umas atrás das outras, tu saíras de casa e eu, pelo meu lado, mergulhara nas histórias e na minha própria história. Todas essas histórias de amor, que se passavam umas nos desertos da Arábia ou em Damasco, nas estepes da Ásia ou no Khorassan, as outras junto aos Alpes, em Verona, ou nas margens do Tigre em Bagdad, eram tristes, e todas elas melancólicas, todas elas pungentes. Mais tocante ainda, todas se fixavam facilmente e o leitor podia sem esforço pôr-se no lugar do mais ingénuo, do mais infeliz dos heróis, daquele que fora mais posto à prova.

Se, um dia, alguém (talvez eu) quiser contar a nossa história, que não posso ainda imaginar como terminará, não sei se o leitor poderá substituir-se a um de nós como eu faço ao ler histórias, nem se as memórias guardarão a nossa história, mas quis redigir estes «avisos ao leitor», como os que incluem as histórias deste género, e que servem para distinguir e para diferenciar os temas e os personagens dos livros, tornando-os incomparáveis.

Quando íamos de visita a algum lado, tu e eu, numa sala invadida pelo fumo azul dos cigarros, e quando tu parecias ouvir com atenção a história contada por um narrador sentado a três passos de distância, e quando, tarde na noite, eu via aparecer pouco a pouco no teu rosto essa expressão que significava «já não estou aqui», eu amava-te; quando, ao fim de uma semana inteira de negligência e de preguiça, te punhas sem convicção à procura de um cinto por entre os teus camiseiros, as tuas camisolas verdes e todas essas velhas camisas de noite das quais nunca te decidias a livrar-te, eu amava o sentimento de derrota que se lia no teu rosto perante a inacreditável confusão do armário cujas portas abrias. No tempo em que, ainda garota, tiveste vontade de ser pintora, quando te instalavas ao lado do avô para te lançares no desenho de uma árvore, e quando te rias sem te ofenderes dos seus gracejos incongruentes, eu amava-te; amava também a tua estupefacção simulada quando a porta do táxi se fechava entalando o pano do teu casaco violeta, ou quando vias a moeda de cinco libras que apertavas nos dedos escapar-se de súbito e cair por entre as grades da sarjeta, descrevendo um arco de círculo perfeito; amava-te quando, por um belo dia de Abril cintilante de luz, constatavas na nossa varandinha que o lenço que puseras a secar de manhã ainda não secara e que tinhas sido enganada pelo sol; e amava-te também quando, logo a seguir, apuravas o ouvido, com um ar melancólico, para o chilrear das crianças no terreno vago atrás do prédio; amava-te quando contavas a um terceiro um filme que víramos juntos, tu e eu, e quando realizava com temor como a tua memória e as tuas recordações eram diferentes das minhas; amava-te quando te via refugiares-te num canto para consultares às escondidas as pérolas desse professor que publica num jornal abundantemente ilustrado pomposos artigos sobre os casamentos consanguíneos; não sentia o mais pequeno amor pelo que lias, mas amava-te quando te via ler, e o teu lábio superior avançava como nas heroínas de Tolstoi; amava a tua maneira de lançares um olhar ao teu reflexo no espelho do elevador, como se estivesses a olhar uma outra, e logo a seguir punhas-te a remexer o saco à procura de qualquer coisa que te viera à memória por causa desse olhar, sabe Deus porquê; amava também essa maneira que tinhas de calçar a toda a pressa os teus sapatos de salto alto que te esperavam havia horas lado a lado, um parecido com um esguio veleiro deitado sobre o flanco, o outro formando o dorso farto de um gato, e mais tarde, quando regressavas a casa, no momento em que os abandonavas à sua lama e à sua solidão assimétrica, amava contemplar os movimentos flexíveis das tuas ancas, primeiro, depois das tuas pernas e dos teus pés; amava-te, quando pensamentos melancólicos te levavam eu não sabia onde, e quando ficavas de olhos presos no cinzeiro, onde se acumulavam as pontas de cigarros e os fósforos, com as cabeças negras resignadamente curvadas; amava-te nas ruas onde andávamos lado a lado, quando surgia bruscamente diante de nós uma esquina até então desconhecida, ou uma luz completamente nova, fazendo crer que o sol nessa manhã se levantara a oeste, e não eram as ruas, eras tu que eu amava; pelos dias de Inverno, quando o vento se punha de súbito a soprar do sul fazendo derreter a neve e dispersava as nuvens de poluição por cima de Istambul, eras tu que eu amava e não o Monte Olimpo que me apontavas com o dedo, estremecendo, com a cabeça metida entre os ombros, para além das antenas, dos minaretes e das Ilhas; amava-te quando troçavas das pessoas que nos recomendam que nunca demos esmola, porque todos os mendigos são na realidade riquíssimos; amava-te tamém pelo teu riso alegre quando, à saída de um cinema, descobrias um atalho que nos permitia chegarmos ao passeio antes de toda a gente, enquanto os demais saíam penosamente das profundidades seguindo o labirinto das escadas. Amava a tua maneira de desprender do Calendário das Ciências e das Horas o folheto que nos aproximava os dois da morte; de ler com uma voz grave um pouco melancólica — como se se tratasse do anúncio dessa morte cada vez mais próxima — a ementa aconselhada para aquele dia: grão-de-bico com carne, pilaf, legumes de salmoura, compota de vários frutos; e quando, depois de me teres pacientemente explicado que para abrir o tubo de creme de anchovas A Águia, era preciso começar por tirar a rodela de cartão antes de soltar a rolha, acrescentavas: «Com os cumprimentos da casa Veneris»; e quando, nas manhãs de Inverno, notava que o teu rosto tinha o mesmo branco muito pálido que o céu por cima da cidade, amava-te com uma inquietação surda, tal como, quando éramos miúdos, te via passares de um passeio para outro, numa corrida louca e alegre, por entre a vaga dos automóveis da avenida; amava-te quando observavas com um pequeno sorriso o corvo que vinha inclinar-se sobre um caixão, poisado nas lajes do pátio da mesquita; amava-te quando interpretavas para mim as querelas entre os teus pais, imitando as vozes do teatro radiofónico; amava-te quando encontrava junto da jarra de flores a aliança que lá deixaras, por uma razão que eu ignorava, alguns dias antes; amava-te quando, depois de um longo abraço, que evocava o lento levantar voo de aves míticas, adivinhava que participaras naquela alegria cheia de gravidade com todo o teu humor e toda a tua imaginação. Amava-te quando me mostravas a estrela perfeita que aparecia na maçã que cortaras na horizontal; amava-te quando, a meio do dia, descobria na minha secretária um cabelo teu, perguntando-me como fora ele ali parar; quando, os dois de pé num autocarro a abarrotar, notava com tristeza como se pareciam pouco as nossas mãos poisadas lado a lado, entre todas as que se agarravam à barra de apoio, amava-te como se reconhecesse em ti o meu próprio corpo, como se estivesse em busca da minha alma que me abandonara, como se compreendesse com tanta dor como alegria que era um outro; amava a expressão misteriosa que surgia no teu rosto quando vias passar um comboio que seguia para um destino desconhecido, ou ao cair da noite, à hora em que as nuvens de corvos atravessam o céu crocitando alto, como que tomados de loucura, ou ainda, a seguir a um corte prolongado de electricidade, quando a penumbra da casa e a claridade do exterior se cedem mutuamente o lugar, voltava a descobrir, com o mesmo sentimento de ciúme e de desespero, a expressão melancólica e enigmática do teu rosto.

 

Galip emergiu quinta-feira de manhã, ao nascer do dia, do sono em que mergulhara quarta-feira à noite, depois de ter passado duas noites em branco; mas não se tratava de um verdadeiro despertar. Como recordaria muito mais tarde, quando tentasse explicar a si próprio todos os factos e todos os seus pensamentos, encontrou-se, entre o momento em que saiu da cama às quatro horas da manhã, e aquele em que voltou a deitar-se às sete horas depois de ouvir o apelo à oração, no meio das «maravilhas da região das lendas, entre o sono e o despertar», segundo a expressão muitas vezes utilizada por Djélâl nas suas crónicas.

Como todos os que, depois de um longo período de insónia e de esgotamento, despertam de um sono profundo, ou se descobrem numa cama que lhes é estranha, Galip tivera dificuldade em reconhecer a cama, os aposentos e a casa em que estava a acordar; mas pouco se esforçara por escapar a esse extraviar-se da sua memória, tão enfeitiçante.

Assim, quando viu no sítio onde o poisara antes de se deitar, ao pé da mesa de trabalho, o caixote onde Djélâl arrumava os seus disfarces, não experimentou qualquer surpresa e foi tirar de dentro dele todos os objectos que lhe eram já familiares: um chapéu de coco, altos turbantes de sultão, cafetãs, bengalas, botas, cintos e camisas de seda manchadas, postiços, cabeleiras e barbas, de todos os tamanhos e de todas as cores, relógios de bolso, aros de óculos, tarbuches e fez, punhais, algemas, adereços de janízaro, toda uma série de objectos heteróclitos como os que podem encontrar-se na loja de Erol bey em Beyoglou, o fornecedor bem conhecido de roupas e objectos aos cineastas que rodam filmes históricos. Como se quisesse redescobrir uma recordação profundamente recalcada na sua memória, tentou em seguida imaginar Djélâl, assim disfarçado, vagueando em plena noite pelas ruas de Beyoglou. Mas do mesmo modo que os telhados azulados, as ruas sem pretensões e os personagens espectrais que tinham assombrado o sonho que acabava de ter, essas sessões de disfarce pareceram-lhe uma das lendas «dessa região que se encontra entre o despertar e o sono»: qualquer coisa de maravilhoso, nem misterioso, nem real, nem compreensível, nem por completo incompreensível. No seu sonho, andava à procura de um endereço, num bairro que se situava em Damasco, mas também em Istambul, e ainda ao pé da fortaleza de Kars; não tinha qualquer dificuldade em descobrir o que procurava, achara-o tão sem esforço como as palavras mais simples das palavras cruzadas das revistas.

Como tinha ainda o sonho presente no espírito, no instante em que viu uma agenda de endereços em cima da mesa de trabalho, essa coincidência surpreendeu-o; sentiu-se muito feliz com ela, como se estivesse diante de um indício fornecido por uma mão secreta e engenhosa, ou o rasto deixado por uma divindade jocosa, que gostasse, como uma criança, de jogar às escondidas. Subitamente contente com a vida, examinou sorrindo os endereços e as notas que os acompanhavam. Só Deus sabia como eram numerosos os admiradores e os amadores que esperavam nos quatro cantos de Istambul e da Anatólia o dia em que descobririam aquelas frases numa crónica de Djélâl; alguns talvez as tivessem já encontrado. Ainda perdido nas brumas do sono e do sonho, Galip tentou lembrar-se: vira já aquelas frases nas crónicas do primo, lera-as já anos antes? Não se lembrava de ter lido algumas dessas fórmulas, mas ouvira-as várias vezes da boca de Djélâl: «O que torna um prodígio prodigioso é a sua banalidade, e o que faz a sua banalidade é o seu lado prodigioso.»

Lembrava-se de ter já prestado atenção a certas citações, ainda que se não recordasse de as ter lido escritas pelo punho de Djélâl ou de as ter conhecido através dele. Assim, o seguinte verso do Xeque Galip, datado de havia duzentos anos, e que se encontra na sua descrição dos anos de estudos de Husn e de Achk:

«Segredo é Rei — mostra-lhe deferência.»

Havia outras frases que ele tinha a certeza de nunca ter lido nem em Djélâl nem noutros, nem ouvido da boca do primo, as que lhe pareciam familiares, como se as já tivesse lido, em Djélâl ou noutros.

A seguinte frase, por exemplo, destinada a fornecer um indício a um leitor, um certo Fahrettine Dalkiran, domiciliado em Sérendjebey, no bairro de Béchiktache: «Nestes dias de liberdade e de apocalipse, em que muitos sonham espancar o seu professor primário deixando-o a urinar sangue, ou ainda matar alegremente o pai — o que é muito mais simples —, esse senhor, que era um homem cheio de bom senso, a ponto de imaginar que o seu gémeo, que havia tantos anos, só lhe voltaria a aparecer depois da morte, preferira renunciar ao mundo, vivia recluso num refúgio ignorado de todos e nunca saía de lá.» Quem era então aquele «senhor»?

Um pouco antes da aurora, Galip voltou instintivamente a ligar a ficha do telefone; arranjou-se, tomou o pequeno-almoço com o que havia no frigorífico, a seguir, pouco depois da oração da manhã, foi deitar-se na cama de Djélâl. Antes de adormecer, quando estava ainda na região que se estende entre a vigília e o sono, mais perto do sonho que da fantasia desperta, viu-se em criança com Ruya: tinham ido dar um passeio de barco. Estavam sozinhos, não havia mais ninguém no barco, nem as tias, nem as mães; nem sequer o barqueiro. Galip sentia-se um tanto inquieto ao ver-se sozinho com Ruya.

O telefone estava a tocar quando acordou. E durante o tempo que levou a chegar ao aparelho, decidiu que não era Ruya quem estava a fazer a chamada, mas de novo o homem que já lhe telefonara antes. Ficou como que paralisado quando ouviu uma voz de mulher:

— Djélâl? És tu, Djélâl?

A voz de uma mulher que já não era muito nova e que não lhe era, em absoluto, familiar.

— Sim.

— Onde estás então, meu amor, para onde foi que desapareceste? Há dias que ando à tua procura, procurei-te por toda a parte, ah!

A última sílaba prolongou-se, transformando-se em lágrimas e soluços.

— Não consigo reconhecer a sua voz — disse Galip.

— A sua voz! — disse a mulher, imitando a voz dele. — A sua voz! Ele diz a sua voz quando está a falar comigo! Agora transformei-me em a sua voz!

Houve um silêncio, e a mulher declarou depois, com a segurança do jogador que se fia nas suas cartas, num tom em que transpareciam o orgulho e também o prazer de quem compartilha um segredo: — E a Eminé!

O nome não despertou qualquer eco na memória de Galip.

— Ah! Sim?

— Sim? É tudo o que tens para me dizer?

— Ao fim de tantos anos... — murmurou Galip.

— Sim, meu amor, ao fim de tantos anos, finalmente. Quando li a tua crónica, quando li o apelo que nela me lançavas, sabes o que senti? Havia vinte anos que estava à espera desse dia. Podes imaginar a minha reacção quando li aquela frase que esperava há vinte anos? Tive vontade de gritar, de me dirigir ao mundo inteiro. Estava como louca, custou-me muito conter-me, pus-me a chorar. Sabes que mandaram o Mehmet para a reforma por ele estar metido no golpe de Estado. Mas todas as manhãs, ele sai de casa, tem sempre alguma coisa a fazer. Eu também me escapei, logo a seguir a ele ter saído, e corri para Kourtoulouche, até à nossa ruazinha, mas não encontrei lá nada, nada de nada. Tudo tinha mudado, tinha sido tudo demolido, não ficou nada. Até a casa desapareceu, a nossa casa. Pus-me a chorar em plena rua. As pessoas tiveram pena de mim, deram-me um copo de água. Voltei logo para casa, fiz as minhas malas, fugi antes de o Mehmet voltar. Djélâl, meu amor, diz-me agora como posso encontrar-te. Há uma semana que ando pelas ruas, que me hospedo em quartos de hotel, que peço hospitalidade a parentes afastados sem conseguir esconder-lhes a minha vergonha. Quantas vezes não telefonei já para o jornal! A resposta era sempre a mesma: «Não sabemos onde ele está.» Telefonei para a tua família. Responderam-me a mesma coisa. Liguei para este número; ninguém atendia. Trouxe de casa muito pouca coisa e não posso voltar lá a buscar mais. Parece que o Mehmet anda à minha procura por todo o lado, que está louco de inquietação. Deixei-lhe uma carta muito curta, sem lhe dar explicações. Ele não sabe porque saí de casa. Ninguém sabe, não disse nada a ninguém, não revelei a ninguém o segredo, que é o único orgulho da minha vida, meu amor, nosso amor, meu querido. Mas que vai acontecer agora? Tenho medo. Fiquei sozinha. Já não tenho responsabilidades perante seja quem for. Já não vais ser infeliz como noutros tempos, quando a tua coelhinha te deixava para voltar para casa para o jantar e ir ter com o marido. Os meus filhos são adultos, um deles trabalha na Alemanha, o outro está a fazer o serviço militar. Vou poder consagrar-te todo o meu tempo, toda a minha vida, tudo! Vou passar-te a roupa a ferro, arrumar a tua mesa de trabalho, classificar os teus artigos, as tuas crónicas! Mudo-te as fronhas das almofadas. Dizer que nunca te vi senão nesse quarto onde nos encontrávamos, nessa divisão sem móveis, sem armários. Estou tão curiosa de conhecer a tua casa, as tuas coisas, os teus livros. Onde estás tu agora, meu amor? Como vou ter contigo? Porque é que não me indicaste o teu endereço na crónica servindo-te do nosso código? Dá-me a tua direcção. Também tu pensaste em mim durante todos estes anos, não pensaste? Vamos ficar outra vez os dois sozinhos, tu e eu, no nosso quarto, como antigamente, naquela casinha onde, à tarde, o sol se insinuava por entre as folhas das tílias para acariciar os nossos rostos, os nossos copos de chá, as nossas mãos que se conheciam tão bem... Mas essa casa já não existe, Djélâl, foi demolida, desapareceu, como as nossas velhas lojas, e os nossos vizinhos arménios já lá não moram... Não sabias? O que querias era que eu fosse lá para ficar a chorar? Porque foi que não me disseste nada na tua crónica? Podias tê-lo feito, tu que és capaz de dizer tudo nos teus artigos. Agora, fala comigo, depois de vinte anos de silêncio, diz-me alguma coisa! Continuas a ficar com as mãos húmidas quando te sentes embaraçado? E durante o sono, continuas com a mesma expressão infantil? Conta-me... Diz-me «meu amor»! Como é que nos vamos ver?

— Querida senhora — respondeu Galip com prudência. — Querida senhora, eu esqueci-me de tudo. Trata-se de um engano. Há dias que não entrego crónicas novas no jornal. Por isso, eles publicam os meus artigos de há trinta anos. Está a compreender?

— Não.

— Nunca tive a intenção de dirigir uma mensagem, nem a si nem a ninguém, de recordar seja o que for. Já não escrevo nada. É por isso que no jornal publicam as minhas crónicas antigas. A frase a que aludiu deve ser de um artigo de há trinta anos.

— Estás a mentir! — gritou a mulher. — Estás a mentir! Tu amas-me. Amaste-me tanto. Não fizeste outra coisa que não fosse falar de mim nos teus artigos. Nos que dedicaste aos recantos mais belos de Istambul, foi a nossa rua, a rua da casa onde nos amámos tanto, foi o nosso bairro que descreveste, o nosso canto; não se tratava de um apartamento qualquer. As tílias que vias no jardim eram as nossas. Quando falavas do rosto redondo como a lua do bem-amado de Mevlâna, não estavas a fazer literatura, era a mim que tu descrevias, a mim, a tua bem-amada de rosto lunar... Falavas das cerejas dos meus lábios, dos crescentes lunares das minhas sobrancelhas, e tudo isso era bem eu a inspirar-to. Quando os americanos foram à Lua e tu falaste das pequenas manchas escuras que se vêem na superfície do astro, compreendi que estavas a aludir aos sinais que há na minha face. Não o negues, meu amor. E quando falavas do «vazio sem fim tão aterrador dos poços escuros», era bem dos meus olhos pretos que falavas; chorei ao lê-lo, e agradeço-te. Quando escrevias: «voltei a esse prédio», pensavas evidentemente na casinha de dois andares, mas para que ninguém fosse capaz de adivinhar o nosso amor secreto, o nosso amor interdito, falavas de um grande prédio de seis andares, com elevador, situado em Nichantache, bem sei. Quando era naquela casa de Kourtoulouche, há dezoito anos, que nos encontrávamos... Cinco vezes, exactamente. Peço-te, não tentes negá-lo, eu sei que tu me amas.

— Querida senhora, como a própria senhora diz, tudo isso se passou há tanto tempo... — disse Galip. —Já não me lembro de nada. Pouco a pouco, vou esquecendo tudo...

— Djélâl, meu querido Djélâl, meu amor, não és tu quem está a falar assim! Não posso acreditar. Há aí alguém ao pé de ti que te impeça de falar? Não estás sozinho? Diz-me só a verdade, diz-me que me amas há muitos anos, não quero mais nada. Esperei dezoito anos, sou capaz de esperar outros dezoito. Diz-se só uma vez, só uma, que me amas. Bom, diz-me pelo menos que me amaste, e eu desligo este telefone para sempre.

— Amei-te, sim.

— Diz-me: meu amor...

— Meu amor.

— Ah, não é assim! Diz-mo do fundo do coração!

— Por favor, minha senhora! Deixemos o passado no passado. Eu envelheci e a senhora também talvez já não seja muito jovem. Não sou de maneira nenhuma o homem que imagina. Por favor, vamos esquecer o mais depressa possível o engano causado pela crónica, a partida que a falta de atenção nos pregou.

— Oh, meu Deus! Mas que vai ser de mim?

— Vai voltar para casa, vair ter com o seu marido. Se a ama, vai perdoar-lhe. A senhora inventa uma história e ele, se a ama, vai acreditar logo nela. Volte para casa o mais depressa possível, sem magoar mais o seu fiel marido, que a ama.

— Queria voltar a ver-te, só uma vez, ao fim destes anos todos, ao fim de dezoito anos!

— Eu já não sou o homem que era há dezoito anos, minha querida senhora.

— Isso não é verdade, continuas a ser o mesmo homem. Leio todos os teus artigos. Sei tudo a teu respeito. Tenho pensado tanto em ti! Tanto! Diz-me: o dia da salvação de que falas, está próximo, não está? E quem é esse Salvador? Também eu estou à espera dele. E «Ele» és tu. Eu sei. Muita gente sabe. Tu és o detentor do mistério. Não é num cavalo branco, mas num Cadillac branco que vais aparecer. É o sonho de todos nós. Amei-te tanto, meu Djélâl querido. Permite-me voltar a ver-te, só uma vez, deixa-me ver-te de longe: num parque, no parque de Matchka por exemplo. Vem ter comigo ao parque de Matchka, às cinco horas!

— Minha querida senhora, vou desligar, pedindo-lhe que me desculpe. Mas antes, como homem de certa idade que renunciou a todas as vaidades deste mundo, e fiando-me também nesses sentimentos que me quis testemunhar e dos quais nunca fui digno, vou fazer-lhe um pedido. Poderá dizer-me como obteve o meu número de telefone? Dispõe igualmente de um endereço meu? Tudo isto é muito importante para mim.

— Se eu te responder, permites-me ver-te, só uma vez? Houve um silêncio.

— Prometo — disse Galip. Um outro silêncio.

— Mas primeiro dá-me a tua direcção — disse a mulher numa voz que deixava a astúcia transparecer. —Já não me fio em ti, ao fim de todos estes anos, confesso-to.

Galip reflectiu. Podia ouvir do outro lado da linha a respiração nervosa, irregular como a de uma locomotiva exausta, de uma mulher — talvez de duas, dizia ele para consigo — e, em pano de fundo, uma vaga música de rádio, do género qualificado como «música popular» nos programas, e que para ele evocava os últimos anos e os últimos cigarros do seu avô e da sua avó, muito mais que o amor, o abandono e a dor de que aquelas canções falavam. Esforçou-se por imaginar uma sala, e, a um canto da sala, um velho aparelho de rádio, enorme, e, do outro lado da sala, uma mulher asmática, com os olhos lacrimejantes, sentada num sofá muito usado, com o telefone na mão. Mas foi o quarto, dois andares mais abaixo, onde a avó e o avô passavam a vida, havia muito tempo já, fumando cada um o seu cigarro, que lhe apareceu na memória. Ruya e ele também lá estavam a jogar ao homem invisível.

— Esses endereços... — disse Galip depois de um silêncio. Mas a mulher começou a gritar com todas as suas forças:

— Não, não, não digas nada! Ele está a ouvir! É ele que me obriga a falar. Djélâl, meu amor, não nos digas onde moras, o que ele quer é descobrir-te, para te matar! Ah, oh, ah!

No auscultador que comprimia com força contra o ouvido, Galip ouvia aqueles gemidos, e também estranhos ruídos metálicos, aterradores, estalidos incompreensíveis, e imaginava uma briga. E, de súbito, houve como que uma explosão: a detonação de uma pistola, talvez, ou então fora o telefone que caíra entre dois encontrões. Seguiu-se, brusco, um silêncio, mas que não era total: Galip podia ouvir os «Malandro, malandro, não passas de um patife!» repetidos de Béhiyé Aksoy na rádio, e os soluços da mulher, que lhe chegavam agora de longe, de tão longe como o som do aparelho.

Ouvia também respirar a pessoa que pegara no auscultador, mas que não dizia nada. Estes diversos ruídos prolongaram-se por muito tempo. Na rádio começou outra canção; mas os soluços que se tinham tornado monótonos da mulher e a respiração do outro lado da linha continuavam a ser os mesmos.

— Está lá? — disse Galip, com os nervos desfeitos. — Está lá? Está?

— Sou eu! — disse enfim uma voz masculina; era a voz que Galip ouvia havia dias, a voz de sempre. O homem falara com calma, com serenidade, como se procurasse acalmar Galip, como se quisesse pôr fim a um assunto desagradável. — Ontem, a Eminé confessou-me tudo. Fui buscá-la, trouxe-a outra vez para casa. Por ti, meu senhor de meia-tigela, só sinto nojo, e vou dar-te uma boa lição! — E acrescentou, com uma voz neutra, no tom de um árbitro que anuncia o resultado de um jogo que durou demasiado tempo e que não agradou a ninguém: — Vou-te matar!

Houve um silêncio.

— E se me ouvisses um pouco, a mim? — disse Galip com o desembaraço da sua profissão. — Essa crónica foi publicada por engano. Tratava-se de um dos meus textos antigos.

— Deixa-te disso — disse aquele que afirmara chamar-se Mehmet. Que nome de família teria? — Ouvi-te há bocado. Já ouvi demasiadas histórias dessas. E não é por isso que te vou matar, ainda que mereças a morte por causa do que fizeste. Sabes porque é que te vou matar? — Não fazia a pergunta para obter de Djélâl (ou de Galip) uma resposta, que devia ter a postos na cabeça havia muito. E Galip ouviu-o, porque se habituara a fazê-lo: — Se te matar, não será por teres traído a causa desses militares, que teriam podido salvar este país de hipócritas; nem por teres troçado a seguir dos valentes oficiais que se tinham lançado por amor da pátria nesse combate que ridicularizaste, aqueles homens corajosos que sofreram depois mil misérias; nem porque, tranquilamente sentado à tua mesa de trabalho, imaginavas intrigas maquiavélicas, enquanto eles, desafiando todos os perigos, dispostos ao sacrifício, se lançavam na aventura para a qual os tinhas impelido, depois de eles te terem acolhido com admiração e afecto e de te terem revelado os planos do golpe de Estado. Também não vai ser por teres sido capaz de urdir as tuas intrigas, no meio desses homens sem ambição, que amavam o seu país, coisa que só te foi possível por te teres introduzido entre eles, conquistando a sua confiança! Se te matar, não será, e fico por aqui, por teres dado a volta à cabeça à minha pobre mulher, desorientada como estava nessa altura em que todos nós nos deixávamos arrastar pelo entusiasmo revolucionário. Não. Vou matar-te porque nos enganaste a todos, porque iludiste o país inteiro; porque, durante anos, fizeste com que o país inteiro, e eu em primeiro lugar, engolisse as tuas fantasias estúpidas, os teus fantasmas sem pés nem cabeça, as tuas mentiras desavergonhadas, fazendo passar tudo isso por amáveis farsas, ou subtilezas sedutoras, ou discursos sérios. Mas as escamas caíram-me finalmente dos olhos. E quero que o mesmo aconteça com todos os outros. Aquele droguista, cuja história ouviste enquanto te rias dele, pois bem, vou vingar esse homem que, com um riso breve, afastaste dos teus pensamentos. Compreendi que a tua morte era a única solução, depois de todos estes dias que passei a percorrer a cidade, palmo a palmo, à procura do teu rasto. Este país, e eu em primeiro lugar, tem de conservar na memória a lição. Estamos demasiado habituados a abandonar os nossos escritores mortos ao seu sono eterno, no poço escuro do esquecimento, a seguir ao primeiro Outono que chega depois do seu funeral, foste tu quem o escreveu, não é verdade?

— Estou inteiramente de acordo contigo e do mais fundo do coração — disse Galip. — Mas já te expliquei que, a seguir a esses artigos que escrevo para me livrar dos últimos fragmentos de recordações que a minha memória cada vez mais vacilante ainda conserva, renuncio à escrita, e de vez. A propósito, o que achaste da minha crónica de hoje?

— Sacana! Sabes o que significam a responsabilidade, a lealdade, a fidelidade, o sacrifício? Que te inspiram estas palavras quando não as utilizas para te rires dos teus leitores, ou para lançares um sinal cómico a uma pobre criatura que tenhas conseguido seduzir? Humanidade, fraternidade, sabes ao menos o que essas palavras querem dizer?

Galip tentou responder afirmativamente, menos com a esperança de defender Djélâl do que pelo facto de a pergunta lhe parecer interessante. Mas, do outro lado, o dito Mehmet — de que Mehmet ou Muhammet poderia tratar-se? — já se lançara numa torrente de injúrias lamentáveis e forçadas.

— Cala-te, já basta! — gritou o homem, quando o seu repertório de insultos se esgotou. Ao silêncio que se seguiu, Galip adivinhou que o homem se dirigira assim à mulher que continuava a chorar a um canto da sala. Conseguiu ouvir a voz dela, que parecia fornecer uma explicação e o estalido da rádio que alguém desligava.

— Escreveste artigos pretensiosos sobre os amores consanguíneos, porque sabias que ela era filha do meu tio paterno — continuou a voz que declarara chamar-se Mehmet. — Sabias que metade dos cidadãos deste país casam com as filhas dos tios paternos, e a outra metade casa com os filhos das tias maternas; e no entanto escreveste essas crónicas escandalosas, desavergonhadas, em que ridicularizavas os casamentos entre os membros de uma mesma família. Não, meu caro senhor, casei com a minha prima, não por não ter tido ensejo de conhecer outra rapariga, nem por todas as mulheres, excepto as da minha família, me meterem medo; não era por estar persuadido de que, deixando de lado a minha mãe, as minhas tias, maternas ou paternas, e as filhas delas, nenhuma mulher do mundo poderia ter por mim um sentimento verdadeiro, ou sequer a paciência de me aturar! Se casei com ela, foi porque a amava. Que se ame uma rapariga que partilhou os nossos jogos desde a infância, poderás tu ao menos conceber uma coisa assim? Amo a mulher que, neste instante, está a chorar por tua causa há mais de cinquenta anos. Amo-a desde a infância, vê se compreendes, e continuo a amá-la. Amar, saberás tu o que isso quer dizer? Contemplar com uma incessante nostalgia um ser que nos completa, vê-lo como se nos víssemos em sonho a nós próprios? O amor, saberás o que isso é? Terão sido estas palavras para ti coisa diferente de material para esses artigos lamentáveis que despachas, com um simples gesto, e escreves em intenção dos teus leitores débeis mentais, sempre prontos a deixarem-se enganar pelas tretas que lhes contas? Fazes-me pena, desprezo-te, sofro por tua causa. Ao longo de toda a tua vida, terás feito alguma vez outra coisa que não fossem malabarismos verbais, forçar as palavras em todos os sentidos? Responde!

— Era a minha profissão, meu caro amigo — disse Galip.

— A tua profissão! — gritou a voz. — Enganaste-nos, iludiste-nos, humilhaste-nos! Inspiravas-me uma tal confiança que eu te dava razão quando lia as tuas crónicas berrantes com as quais me provavas cruelmente que a minha vida inteira não passava de uma sucessão de misérias, de uma série de imbecilidades e de erros, de um inferno a fervilhar de pesadelos, de uma obra-prima de actos mesquinhos baseada na pequenez e na vulgaridade. Pior ainda, em vez de me sentir humilhado, mortificado, sentia, pelo contrário, orgulho, porque tinha tido a honra de encontrar e conhecer um escritor de pena tão acerada, com pensamentos tão sublimes; porque me tinha encontrado com ele no mesmo barco, o de um golpe de Estado militar, que se afundou assim que entrou na água. Admirava-te tanto, monte de estrume, que quando afirmavas que a única razão de todas as misérias da minha vida era a minha própria estupidez, e não só a minha, mas a de um povo inteiro, eu me perguntava tristemente porque seria tão cobarde e que erro me teria habituado assim à cobardia; tu eras aos meus olhos a própria imagem da coragem, tu que sei hoje seres muito mais poltrão do que eu. Eras o meu ídolo, relia cem vezes as tuas crónicas, onde, porque já não experimentavas qualquer interesse por nós, te contentavas com evocar as tuas recordações de juventude, tão banais, tão pouco diferentes das nossas, as escadas escuras, cheirando a cebola guisada, do velho prédio onde passaste uma parte da tua infância; esses artigos em que descrevias os teus sonhos assombrados por fantasmas e por feiticeiras, ou as tuas experiências metafísicas sem pés nem cabeça; li-os e reli-os para lhes descobrir o sentido oculto, fazia-os ler à minha mulher, e depois de os ter discutido com ela à noite, horas a fio, dizia para comigo que a única coisa em que se podia acreditar era o segredo a que a crónica aludia, e convencia-me de ter compreendido esse famoso sentido secreto, inteiramente desprovido de sentido.

— Nunca quis provocar admirações desse género — tentou Galip dizer.

— Estás a mentir! Ao longo de toda a tua carreira de jornalista, esforçaste-te por enrolar as pessoas como eu. Respondeste às suas cartas, pediste-lhes fotografias, estudaste a sua letra, fingiste revelar-lhes segredos, fornecer-lhes fórmulas e palavras mágicas...

— Tudo isso era por causa da revolução, uma revolução militar! Para anunciar o fim dos tempos, a chegada do Messias, a hora da libertação...

— Mas depois? Quando foi que renunciaste?

— Apesar de tudo, graças a esses artigos, também os leitores acabavam por acreditar nalguma coisa.

— Acreditavam em ti, e tu adoravas... Mas ouve. Eu admirava-te tanto que estremecia de alegria quando, sentado na minha poltrona, lia os teus artigos, e as lágrimas corriam-me dos olhos, não suportava continuar onde estava, levantava-me, andava de um lado para o outro da sala, ia vaguear pelas ruas, sonhava contigo. E pior, pensava tanto em ti que a linha de demarcação entre as duas personalidades acabava por desaparecer por entre as brumas e os fumos dos meus sonhos. Não, nunca perdi a cabeça a ponto de imaginar que era eu o autor desses artigos. Não passo de um leitor fiel, não sou um doente mental, e não o esqueço. Mas tinha a impressão de que, por um desvio qualquer, complicado, indeterminável, tinha alguma coisa a ver com a disposição dessas frases deslumbrantes, nessa busca das ideias e do estilo, e de que tu terias sido incapaz de gerar todas essas pretensas obras-primas se eu ali não estivesse! Mas vê se me compreendes bem: não me refiro às ideias que me roubaste durante anos, sem uma só vez sentires a necessidade de me pedires autorização. Também não falo daquilo que a ciência das letras me inspirou, das descobertas nesse campo que expunha na última parte do meu livro, esse livro que me foi tão difícil conseguir publicar. De resto, todas essas ideias te pertenciam. O que estou a tentar explicar-te é a impressão de que tivemos as mesmas ideias, tu e eu, a impressão de que eu tinha alguma coisa a ver com o teu sucesso. Estás a perceber?

— Estou — disse Galip. — Cheguei até a escrever qualquer coisa sobre isso...

— É exacto, nesse mesmo artigo que acaba de ser novamente publicado, devido a uma coincidência desastrosa. Mas tu não compreendeste nada. Caso contrário, adoptarias o meu ponto de vista. E é por isso que te vou matar! Porque sempre fingiste compreender, embora nunca tenhas compreendido nada; porque conseguiste penetrar vergonhosamente nas nossas almas, até assombrares os nossos sonhos à noite, ao mesmo tempo que nunca estiveste do nosso lado. Para me convencer de que participava um pouco nas tuas crónicas tão brilhantes, depois de as ter lido com voracidade durante tantos anos, tentava lembrar-me se, nos tempos felizes em que éramos amigos, tínhamos podido partilhar as mesmas ideias ou falar do mesmo assunto, tu e eu. Pensava nisso com tanta força, pensava tantas vezes em ti que, quando travava conhecimento com um dos teus admiradores, tinha a impressão de que os louvores que ele te prodigalizava se dirigiam igualmente a mim, que eu era tão célebre como tu. Aos meus olhos, os rumores que circulavam sobre a tua vida secreta, misteriosa, provavam que, tal como tu, eu não era um homem como tantos outros; os teus poderes mágicos comunicavam-se um pouco à minha pessoa; eu transformava-me, como tu, numa lenda. Graças a ti, sentia-me cheio de entusiasmo; tornava-me outro, graças a ti. De início, quando ouvia, num barco das Linhas Municipais, dois dos nossos concidadãos falarem de ti, com o jornal na mão, sentia sempre vontade de lhes gritar com toda a força: «Eu conheço o Djélâl Salik, meus senhores, conheço-o até de muito perto!», para saborear o seu assombro, a sua admiração; sentia vontade de lhes falar dos nossos segredos. Mais tarde, esta necessidade tornou-se cada vez mais violenta; assim que via pessoas que estavam a falar de ti ou que liam os teus artigos, tomava-me uma vontade furiosa de lhes gritar: «Meus senhores, estão neste momento muito perto do Djélâl Salik! Posso até dizer-vos que o Djélâl Salik sou eu!» Esta ideia era para mim tão perturbante, tão vertiginosa, que o meu coração rufava como um tambor sempre que ela me atravessava o espírito; o suor perlava-me a testa, eu sentia-me desmaiar de prazer imaginando o espanto que leria naqueles rostos estupefactos. Se nunca gritei alto essas palavras, se não uivei o meu triunfo e a minha felicidade, não foi porque os achasse estúpidos ou exagerados, não, foi porque me bastava repeti-los para mim próprio. Compreendes o que quero dizer?

— Compreendo, sim.

— Lia os teus artigos com um sentimento de vitória, sentindo-me tão inteligente como tu. Os outros aplaudiam-me, também a mim; eu estava convencido de que não era só a ti. Éramos excepções, tu e eu, muito longe das massas. Compreendia-te tão bem! Da mesma maneira que tu, tinha começado a odiar as multidões que enchiam as salas de cinema, as feiras, as quermesses, os estádios de futebol. Na tua opinião, nunca se faria nada dessas pessoas, continuariam a cometer sempre as mesmas asneiras, deixar-se-iam enganar sempre pelas mesmas histórias; nos piores momentos da sua miséria e do seu infortúnio, quando pareciam tão desarmadas, tão inocentes, dizias tu, não eram apenas vítimas, eram culpadas, também elas, ou pelo menos cúmplices. Já não podias suportar esses charlatões dos quais os outros continuavam a esperar a salvação, estavas farto dos seus golpes de Estado militares, da sua democracia, da sua tortura e até mesmo dos seus cinemas. Era por isso que eu te amava. Durante anos sempre que lia a tua crónica do dia, dizia de mim para mim: «Aqui está porque amo o Djélâl Salik!», e amava-te; tomado de um entusiasmo constantemente renovado, as lágrimas corriam-me pelo rosto... Terias alguma vez adivinhado a existência de um leitor como eu, se eu não te tivesse provado ontem, com o bom humor de um tentilhão, que tinha lido todos os teus artigos, incluindo os mais antigos?

— Adivinhava um pouco...

— Então, ouve-me bem... Nos piores momentos de solidão da minha pobre vida, ou nos instantes mais insignificantes, mais banais que constituem o nosso miserável universo, quando, por exemplo, quando entalava o dedo numa porta de táxi fechada por uma cavalgadura por desbastar, ou ainda, quando preenchia formulários para obter uma pequena reforma suplementar e tinha de ouvir as descomposturas de uma nulidade qualquer, quer dizer, quando me encontrava em plena miséria psicológica, agarrava-me como a uma bóia à seguinte ideia: «Que teria feito o Djélâl Salik se se visse nesta situação? Que teria dito? Estarei a reagir como ele reagiria?» Esta pergunta tornou-se em mim numa verdadeira mania, durante estes últimos vinte anos. Repetia-a de mim para mim quando, convidado para um casamento em casa de parentes, me juntava à roda, para fazer como os outros, e para não lhes estragar a festa; ou quando, no pequeno café onde tinha entrado para matar o tempo, soltava grandes risadas felizes, por ter vencido uma partida de cartas; e dizia-me bruscamente: «O Djélâl Salik nunca teria feito o que eu estou a fazer!» O que bastava para me estragar o serão, para me estragar a vida! Passei-a a perguntar-me: «O que faria agora o Djélâl Salik? O que poderá estar a fazer agora o Djélâl Salik? Em que poderá estar a pensar o Djélâl Salik neste momento?»

E não me ficava por tão pouco! Uma outra pergunta vinha obcecar-me: «O que é que o Djélâl Salik pensará de mim?» Raramente, muito raramente, quando era capaz de reflectir de modo suficientemente lógico para me dizer que não podias lembrar-te de mim, nem pensar em mim, e que nunca me dedicarias o mais breve pensamento, a pergunta mudava de forma: «Se o Djélâl Salik me visse neste momento, que pensaria de mim? Que diria o Djélâl Salik se me visse a queimar o meu primeiro cigarro ainda em pijama, a seguir ao pequeno-almoço? Que teria pensado de mim o Djélâl Salik se me tivesse visto descompor o patife que se meteu com a senhora casada e de vestido curto que estava sentada ao meu lado no barco? Que sentimentos teria o Djélâl Salik a meu respeito se soubesse que eu recorto todos os artigos dele para os classificar numa pasta de marca Onka?»

— Meu caro amigo, meu caro leitor — disse Galip — , diz-me porque foi que nunca tentaste contactar-me durante todos estes anos?

— Julgas que nunca pensei nisso? Tinha medo. Oh, vê se me entendes bem! Não tinha medo de me rebaixar diante de ti, de não conseguir impedir-me de te dar graxa, como em casos semelhantes acontece, de receber com assombro as tuas afirmações mais banais, como se fossem palavras de extrema sabedoria, ou então, pelo contrário, com risadas intempestivas, no mau momento, por pensar que era essa a reacção que esperavas de mim... Não, já tinha deixado para trás todas essas situações que imaginei milhares de vezes.

— E és muito mais inteligente do que me levaria a pensar aquilo que me estás a descrever — disse-lhe amavelmente Galip.

— O que eu temia era que, durante esse encontro, depois de te ter dirigido elogios sinceros, mas também aduladores, como tudo o que acabo de contar-te, ficássemos sem mais nada para nos dizermos os dois, tu e eu.

— Mas não se passou nada disso, como vês — disse-lhe Galip. — Repara como cavaqueamos tão agradavelmente, tu e eu.

Houve um silêncio.

— Vou matar-te — disse a voz. — Vou matar-te! Por tua causa nunca pude ser eu próprio.

— Nunca podemos ser nós próprios.

— Escreveste isso muitas vezes, mas não podes senti-lo como eu o sinto; é uma verdade que nunca poderás compreender tão bem como eu... Aquilo a que tu chamavas «segredo» era para mim o facto de tu adivinhares essa verdade, de a descreveres sem a teres compreendido... Porque não podemos descobrir essa verdade sem sermos nós próprios quando comprovámos que não éramos nós próprios.

As duas coisas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Compreendes o paradoxo?

— Mas eu, eu sou eu próprio e sou também outro — disse Galip.

— Não, não acreditas do fundo do coração no que estás a dizer — afirmou o homem do outro lado da linha. — E é por isso que vais morrer. És convincente, como sempre foste nas tuas crónicas, mas não acreditas tu próprio naquilo que dizes, e consegues ser convincente precisamente por não acreditares. Mas quando os que consegues convencer compreendem que és capaz de fazer com que os outros acreditem naquilo em que tu próprio não acreditas, ficam com medo!

— Medo?

— Tenho medo daquilo a que tu chamas o «segredo», não compreendes? Dessa imprecisão, dessa fluidez, desse pequeno jogo de impostura chamado «escrita», tenho medo dos rostos negros das letras. Durante anos, sempre que lia as tuas crónicas, tinha a impressão de estar ao mesmo tempo onde as lia, sentado na minha poltrona ou instalado à minha mesa de trabalho, mas também num lugar completamente diferente, algures ao lado do autor que me contava aquelas histórias. Sabes o que significa suspeitarmos que fomos enganados por alguém que não acredita naquilo que nos diz? Saber que aqueles que nos fazem acreditar nalguma coisa não acreditam eles próprios nela? Não me queixo de não ter podido ser eu próprio por tua causa. Isso enriqueceu a minha pobre vida, tão digna de lástima. Pude assim emergir da obscuridade da minha banalidade, transformar-me em ti, mas nunca estive certo a respeito dessa entidade mágica a que chamo «tu». Não sei nada, mas sabia-o sem o saber. Poderemos em tal caso dizer que sabemos? Quando aquela que é a minha mulher há trinta anos desapareceu deixando-me uma carta de poucas linhas em cima da mesa da sala de jantar, sem me dar explicações, creio de facto que sabia onde ela tinha ido. Mas não sabia que o sabia. E como o ignorava, durante todo o tempo em que percorri a cidade em todos os sentidos, não eras tu, mas ela quem eu procurava. E, no entanto, enquanto a procurava, procurava-te a ti também, sem o saber: vagueava pela cidade, rua a rua, em busca dos segredos dela, e havia uma ideia aterradora a perseguir-me; desde o primeiro dia que me perguntava: «Que diria o Djélâl Salik se soubesse que a minha mulher me deixou como o fez, tão bruscamente e sem razão?» Tinha imediatamente decidido que a minha situação era um caso «à Djélâl Salik». Gostaria de te contar tudo. Dizia para comigo que era esse o tema por excelência a discutir contigo, esse tema que eu procurava em vão havia tantos anos. Esta ideia comoveu-me tanto que, pela primeira vez em muitos anos, descobri a coragem suficiente para me pôr a procurar-te. Mas não conseguia encontrar-te, não estavas em parte nenhuma.

Sim, eu sabia tudo, mas não sabia que o sabia. Dispunha de alguns números de telefone, tinha-os ido conseguindo, ao longo dos anos, dizendo de mim para mim que talvez um dia te telefonasse. Liguei para esses números, não estavas. Telefonei à tua família inteira: à tua tia, que gosta muito de ti, à tua madrasta, que parece ter por ti um apego apaixonado, ao teu pai, que continua a não conseguir esconder o interesse que sente por ti, aos teus tios, que estão todos muito ligados à tua pessoa, mas tu não estavas. Fui ao Milliyet, e tu não estavas. De resto, não era eu o único a procurar-te, havia também o teu primo Galip, o marido da tua irmã, que queria que te encontrasses com uma equipa da televisão britânica, por causa de uma entrevista. Instintivamente, segui-o. Dizia para comigo que aquele rapaz sonhador, que tem todo o aspecto de um sonâmbulo, devia conhecer o lugar onde te escondias. Repetia de mim para mim: ele deve saber onde é o esconderijo dele e, além disso, deve saber que sabe. Segui-o portanto como se fosse a sua sombra por toda a cidade. Caminhava alguns passos atrás dele, percorremos ruas, entrámos em velhos armazéns de pedra, em velhas lojas, em passagens de espelhos, salas de cinema sujas, atravessámos todo o Grande Bazar, passo a passo, dos subúrbios às ruas sem passeios, cruzámos pontes, penetrámos nos cantos mais sombrios, em bairros desconhecidos de Istambul, andámos pelo meio do pó, da lama, do lixo. Não chegávamos a lado nenhum e continuávamos sempre a andar. Andávamos como se soubéssemos a cidade de cor, e tudo nos era desconhecido. Perdi-o, voltei a encontrá-lo, perdi-o de novo, reencontrei-o, perdi-o uma vez mais, e por fim foi ele quem me encontrou a mim, num bar nocturno extremamente lamentável. E aí, num grupo instalado à roda da mesma mesa, contámos histórias, alternadamente. Gosto muito de contar histórias, mas nunca descubro um ouvinte. Nessa noite, os outros escutavam-me. E então, quando ia a meio da minha história, enquanto os olhares intrigados, impacientes, dos meus ouvintes tentavam, como em tais casos acontece sempre, ler no meu rosto o fim da minha história, e enquanto eu, pelo meu lado, receava que o desfecho nele transparecesse, o que me dividia entre esse pensamento e o meu conto, compreendi bruscamente que a minha mulher me tinha deixado por ti. E disse para comigo: «Portanto, eu sabia que ela se tinha ido embora para ir ter com o Djélâl.» Sabia-o, mas não sabia que o sabia. Aquilo que procurava era sem dúvida esse estado de alma. Tinha conseguido passar uma porta que dava para a minha alma, penetrar num universo novo. Pela primeira vez ao fim de tantos anos, tinha conseguido ser ao mesmo tempo eu próprio e um outro, como tinha desejado tanto. Por um lado, sentia vontade de mentir declarando: «Li esta história na crónica de um jornalista», e por outro, sentia ter alcançado a serenidade que havia anos em vão buscava. Enquanto percorria Istambul rua por rua, enquanto avançava por passeios desfeitos, em frente de lojas imundas, lendo ao mesmo tempo a tristeza dos rostos dos meus concidadãos, enquanto examinava as tuas velhas crónicas na esperança de através delas descobrir o teu esconderijo, aquela maldita serenidade parecia-se muito com um sentimento que eu ia descobrindo com terror. Mas agora tinha terminado a minha história e adivinhado onde se encontrava a minha mulher. Tinha descoberto igualmente a conclusão daquilo que tinha compreendido um pouco mais cedo, ao ouvir as histórias do empregado do bar, do fotógrafo, e do escritor pernalta. Tinha sido traído, enganado durante a minha vida inteira! Oh, meu Deus! Terão estas palavras algum sentido para ti?

— Sim.

— Nesse caso, ouve. Eis a conclusão a que cheguei a propósito dessa evidência a que tu chamavas «segredo» e que nos fazias perseguir havia anos, essa verdade que exprimias sem a conhecer, sem a compreender: neste país nenhum de nós pode ser ele próprio! Neste país de vencidos e de oprimidos existir é ser-se um outro! Sou outro, logo sou! Bom, mas se esse outro que eu gostaria de ser não fosse senão um outro? Aqui está o que quero dizer quando afirmo que fui iludido, enganado. Porque o homem cujos escritos eu lia, em quem tinha fé, não teria sido capaz de roubar a mulher a alguém que o admirava tão cegamente. Nessa noite, naquele bar, tive vontade de gritar aos empregados, às putas, aos fotógrafos, aos cornudos sentados à roda da mesa, que contavam histórias uns aos outros, sim, tive vontade de lhes gritar: «Vocês, os vencidos, os oprimidos, vocês, os malditos, os esquecidos, os obscuros, não tenham medo, nenhum de nós é ele próprio! Nenhum! Nem sequer os ricos, os sultões, as celebridades, os cheios de sorte em cujo lugar vocês queriam estar! Desembaracem-se deles! Então, vocês próprios hão-de descobrir a história que eles vos contam como se vos confiassem um segredo. Matem-nos! Criem vocês próprios o vosso segredo, descubram vocês próprios o vosso mistério!» Compreendes o que quero dizer? Vou matar-te. Não vou fazê-lo movido por um desejo de vingança ou por uma cólera bestial, como a maior parte dos maridos enganados, mas porque me recuso a deixar-me atrair ao universo novo para onde queres empurrar-me. E então, toda a cidade de Istambul, todas as letras e todos os indícios e os rostos que introduzes nas tuas crónicas hão-de redescobrir o seu verdadeiro segredo. «O Djélâl Salik foi assassinado!», dirão os títulos dos jornais. «Misterioso assassinato!». Um crime misterioso que nunca será elucidado. O universo perderá talvez o seu segredo, se é que tem um. Durante esses dias que evocarão a vinda do Messias e o fim dos tempos, vão produzir-se perturbações em Istambul, mas eu e muitos outros redescobriremos assim a sabedoria e os segredos perdidos. Porque ninguém poderá resolver o mistério que se esconde por trás dessa morte. Não poderá ser a descoberta, a redescoberta do mistério a que eu aludo nessa modesta obra que publiquei graças a ti, mistério que tu compreendes tão bem?

— Não será assim — declarou Galip. — Podes cometer o crime mais misterioso do mundo, mas eles, esses pobres e esses oprimidos, esses cretinos e esses esquecidos da vida, vão pôr-se imediatamente de acordo para imaginar uma história que provará uma ausência total de mistério. E, graças a essa história, na qual acreditarão tão depressa como a inventaram, o meu assassinato vai transformar-se numa peripécia muito simples de uma conspiração banal. Antes ainda do meu funeral, todos terão decidido que a minha morte se deveu a uma conspiração pondo em perigo a nossa identidade nacional, ou então a uma aventura amorosa que teria começado havia anos para desembocar num drama de ciúme. O assassino era um instrumento dos traficantes de droga, não, dos perpetradores do golpe de Estado, dirão uns; o assassinato foi organizado pela confraria dos nakchibendis, não, pelo sindicato dos proxenetas, dirão outros; foram os descendents do último dos sultões os instigadores deste trabalho sujo, ou então os inimigos da nossa pátria, os que queimam a nossa bandeira; tratou-se, bem vêem, de um golpe montado pelos que querem atingir a nossa democracia e a nossa república! Os que preparam uma nova cruzada contra nós participaram na conspiração!, vão jurar as pessoas. O cadáver de um dos nossos jornalistas de maior prestígio, misteriosamente descoberto no centro de Istambul, na lama de um passeio, entre montões de lixo, restos de hortaliça, carcaças de cães mortos, e velhas cautelas da Lotaria Nacional... Como explicar de outro modo a esses desastrados que temos de descobrir um segredo enterrado algures, muito longe no nosso passado, na borra das nossas recordações, entre as palavras e as frases, na extrema fronteira do esquecimento, mas sempre presente sob os seus disfarces?

— E com a experiência que me valeram trinta anos de jornalismo que te falo — disse Galip —, não vão lembrar-se de nada. De nada de nada. Por outro lado, não é certo que me consigas descobrir e arranjar maneira de me matares. É possível que falhes ou que te limites a ferir-me. E enquanto estiverem a espancar-te (já não evoco sequer a tortura) na esquadra da polícia, eu ter-me-ei tornado um herói, e serei obrigado a ouvir as imbecilidades que o primeiro-ministro me debitará, quando vier desejar-me um pronto restabelecimento. Acredita, não vale a pena. Eles já não querem acreditar na existência de um segredo por trás deste universo, um segredo que nunca hão-de compreender!

— Quem poderá provar-me que toda a minha existência não foi um logro, uma brincadeira de mau gosto?

— Eu! — disse Galip. — Ouve...

— Em persa, bichnov? Não, não quero ouvir-te...

— Acredita, eu também acreditava, acreditava como tu.

— E mesmo se eu acreditar em ti? — exclamou Mehmet. — Mesmo se eu acreditar, para conservar um sentido para a minha vida, que será dos aprendizes das lojas de colchões, desses aprendizes que procuram soletrar o sentido perdido da sua existência servindo-se das mensagens codificadas que lhes são endereçadas nos teus artigos? Que será dessas virgens românticas que passam a vida à espera de noivos que nunca voltarão da Alemanha e nunca lhes pedirão que vão lá ter com eles, dessas virgens que sonham com mobílias, espremedores de limões, lâmpadas com a forma de cabeças de peixe, ou lençóis enfeitados com rendas que imaginam graças aos teus artigos e que esperam usar nos dias felizes, paradisíacos, que tu lhes prometes? Que farão esses revisores de autocarro na reforma, que conseguem ver no seu próprio rosto, graças a um método fornecido pelas tuas crónicas, a planta do apartamento, onde, com o seu título de propriedade nas mãos, se hão-de instalar como no paraíso que lhes foi prometido? Que será dos empregados do registo cadastral, dos que contam o gás, dos vendedores de barquilhos, dos mendigos, que, inspirados pelos teus escritos, se julgam capazes de calcular, graças ao método do valor numérico das letras do alfabeto árabe, o dia em que o Mehdi, aquele que há-de salvar o nosso país, aparecerá nas ruas ainda calcetadas à albanesa (como estás a ver, ainda não consigo escapar ao teu vocabulário), que será do nosso droguista e de todos os teus leitores (os teus infelizes leitores) quando compreenderem, graças a ti, que são eles próprios a ave mítica que perseguem?

— Esquece-os — disse Galip, temendo ouvir a voz prolongar pelo telefone a enumeração. — Esquece-os, esquece-os a todos, não penses mais neles. Pensa antes nos últimos soberanos otomanos que percorriam a cidade sob disfarce. Pensa no conformismo dos gangsters de Beyoglou, que, fiéis às suas tradições, continuam a torturar as suas vítimas antes de as matar, tentando descobrir se terão algum pé-de-meia escondido não se sabe onde ou o conhecimento de algum segredo. Pergunta a ti próprio porque é que os gráficos das nossas redacções pintam sempre o céu de azul, da Prússia e transformam a lama do nosso país em relva inglesa nos originais a preto e branco das fotografias de futebolistas, de bailarinas, das Miss Turquia, das pontes, das mesquitas, recortadas todas elas de A Vida, A Voz, Domingo, O Correio, O Dia, Vária, A Fada, Revista, A Semana, que vemos coladas nas paredes de dois mil e quinhentos salões de cabeleireiro. Pensa nos dicionários turcos que é preciso consultar para descobrir as centenas de milhares de palavras utilizáveis na descrição dos milhares de cheiros e dos milhares e milhares de sínteses de cheiro que há nas escadas escuras e assustadoras dos nossos prédios.

— Ah, sacana de escritor!

— O primeiro navio a vapor que os turcos compraram em Inglaterra chamava-se Sivift; há aí um mistério, pensa nisso. Pensa na paixão da ordem e da simetria desse calígrafo canhoto, que, porque gostava de ler as borras de café, reproduzia a borra dos milhares de chávenas de café que bebeu ao longo de toda a sua vida, e também todos os desenhos que se formavam nas chávenas, além das próprias chávenas, e que acrescentava com a sua soberba caligrafia, à volta desses desenhos, aquilo que a leitura da borra de café revelava, para assim nos deixar uma obra de trezentas páginas manuscritas!

— Desta vez, não vais enrolar-me!

— Quando as centenas de milhares de poços, escavados durante dois mil e quinhentos anos nos jardins da nossa cidade, foram cobertos de pedras e de betão, no tempo em que foram lançados os alicerces de todos esses prédios, pensa em tudo o que ficou enterrado: escorpiões, rãs, gafanhotos de todos os tamanhos, moedas de ouro cintilantes lícias, frigias, romanas, bizantinas, otomanas, diamantes e rubis, crucifixos, ícones proibidos, livros, brochuras, mapas de tesouros escondidos, crânios de pobres vítimas de homicídios nunca esclarecidos...

— Continuas a pensar nessa história do cadáver de Chems de Tabriz, que foi atirado a um poço?

— ... e em tudo o que pesa por cima de tudo isso: o betão, os ferros, os apartamentos, as portas, os velhos porteiros, os soalhos com as ranhuras enegrecidas entre as tábuas como unhas sujas, as mães preocupadas, os pais irascíveis, os armários com portas que não fecham, as irmãs, as meias-irmãs...

— E Chems de Tabriz és tu, não? O Dejjal? O Messias és tu?

— ... o primo que casou com a meia-irmã, o elevador hidráulico, o espelho no elevador...

— Bom, bom, já escreveste tudo isso.

— ... os cantos secretos que as crianças descobrem para brincar, os lençóis de enxoval, o tecido de seda que o tetravô comprou a um comerciante chinês, quando era governador em Damasco, e que ninguém se atreveu ainda a usar...

— E tu continuas a tentar seduzir-me, é isso?

— ... pensa em todos os mistérios da nossa vida. Neste, por exemplo: porque é que os carrascos de outrora chamavam o «número» à navalha bem afiada que utilizavam para separar do corpo do supliciado a cabeça que seria exposta no patíbulo? Pensa na sabedoria do coronel reformado que rebaptizou as peças do xadrez em função dos membros da vasta família turca média: o rei transformou-se na «mãe», a rainha, no «pai», o bispo chamava-se «tio», o cavalo chamava-se «tia», mas preferiu utilizar a palavra «chacal», para designar as peças.

— Depois de teres traído a nossa causa, não sabes que só te vi uma vez, e creio que estavas estranhamente disfarçado de Mehmet, o Conquistador, com a indumentária dos houroufis.

— Imagina a serenidade sem limites do homem que passa horas à sua mesa de trabalho, à noite, a fazer as palavras cruzadas do jornal, ou resolver os enigmas extraídos da poesia do Divan. Exceptuados os papéis e as palavras iluminados pela lâmpada, tudo na sala está mergulhado em sombras: os cinzeiros, as cortinas, os relógios, e também o tempo, as recordações, os desgostos, a tristeza, a cólera, as traições, as derrotas, sobretudo as derrotas. Diz a ti próprio que o sentimento de não ter peso que invade o amador de palavras cruzadas, perante o vazio misterioso das letras na horizontal e na vertical, só pode ser comparado às ciladas incríveis que o disfarce proporciona.

— Ouve, meu amigo — disse a voz do outro lado da linha com uma segurança que surpreendeu Galip —, vamos pôr de lado por um momento todas essas ciladas, esses joguinhos, todas essas letras e os seus duplos, porque tudo isso ficou para trás. Claro, eu tinha-te montado uma cilada, mas as coisas não funcionaram. Tu sabe-lo e eu reconheço-o: não há risco de um novo golpe de Estado, eu não possuo qualquer dossier, o teu nome não vem na lista. A minha mulher e eu gostamos de ti, apreciamos-te, admiramos-te deveras. Toda a nossa vida se passou na tua companhia, e vai continuar a ser assim. Agora, esqueçamos tudo. Vamos ter contigo, a Éminé e eu. Esta noite. Conversamos, como se nada se tivesse passado. Falarás até te fartares, como estás a falar neste momento. Diz-me que sim, suplico-te. Confia em mim, farei tudo o que me pedires que faça, e levo-te tudo o que tu quiseres!

Galip reflectiu um momento.

— Dá-me todas as direcções, todos os números de telefone meus de que dispões.

— É para já... De resto, nunca poderei esquecê-los!

O homem foi buscar a agenda, e a mulher pegou no telefone.

— Podes confiar nele — segredou-lhe ela. — Está a ser sincero, lamenta realmente o que fez. Gosta deveras de ti. Tinha a intenção de fazer uma loucura, mas renunciou a isso, há muito tempo.

Não se vai virar senão contra mim, a ti não te fará nada, é um poltrão, garanto-to eu. Tudo se arranjou, graças a Deus! Esta noite levo a saia de que tu gostas tanto, aquela aos quadrados azuis. Faremos tudo o que quiseres, meu amor, tudo o que tu exigires! Outra coisa ainda: para se parecer contigo, aquelas roupas do Conquistador, e também as letras que conseguiu ler nos rostos dos membros da tua família...

O ruído dos passos do marido dela voltou a ouvir-se; a mulher calou-se.

O homem pegou de novo no aparelho. Na última página de um livro que tirou da prateleira mais próxima (tratava-se dos Caracteres de La Bruyère), Galip tomou cuidadosamente nota de todos os números de telefone e dos endereços que o outro lhe ditava, fazendo com que ele lhos repetisse várias vezes. Preparava-se para lhe anunciar que mudara de opinião, que não queria vê-los, que não tinha tempo para admiradores demasiado obstinados, mas no último momento, renumciou. Acabava de ter uma ideia. Quando, muito mais tarde, tentasse recordar mais ou menos claramente o que se passara nessa noite, confessaria que se deixara tomar pela curiosidade: «Pela curiosidade de ver o casal, ainda que de longe», diria para consigo. «Tinha sem dúvida a intenção, depois de os descobrir graças àqueles endereços e números de telefone, de contar à Ruya e ao Djélâl esta história inverosímil, mas queria também descrever-lhes o homem e a mulher, o seu aspecto, a maneira que tinham de andar, de se vestirem.

— Não vos vou dar a minha direcção — disse ele. — Mas podemos encontrar-nos num lado qualquer. Às nove horas, esta noite, em Nichantache, em frente da loja do Alâadine, por exemplo.

Esta pequena concessão bastou para fazer a felicidade do casal, a tal ponto que Galip se sentiu incomodado pela atmosfera de gratidão desvairada que adivinhava do outro lado da linha: Djélâl bey gostaria de um bolo de amêndoa, ou de uns petits fours da casa Omur, ou ainda, dado que a conversa seria longa, de uma garrafa de conhaque, talvez, com avelãs e pistácios?

— Vou levar-te a minha colecção de fotografias, a dos rostos, e também a das liceais! — gritou o marido com uma voz que revelava o seu cansaço; e quando soltou uma gargalhada insólita, assustadora, Galip adivinhou a presença de uma outra garrafa de conhaque, acompanhando o casal, e aberta havia já muito. Repetiram a hora e o local do encontro, os dois solícitos e sinceros, e desligaram o telefone.

 

Foi no princípio do Verão de 1952, no primeiro sábado do mês de Junho, exactamente, que abriu, numa das ruelas que levam da rua dos bordéis em Beyoglou ao consulado da Grã-Bretanha, o maior casino, não só de Istambul e da Turquia, mas também dos Balcãs e até do Médio Oriente. Essa data fausta assinalava o fim de um concurso muito ambicioso, que se prolongara por seis meses. Porque o gangster mais célebre de Beyoglou nessa época — o mesmo que, muitos anos mais tarde, desapareceria no Bósforo com o seu Cadillac, para desse modo se tornar um personagem lendário — decidira fazer decorar o grande átrio do seu estabelecimento com paisagens de Istambul.

O homem mandara pintar aqueles quadros, não para encorajar a arte, em que sofremos de um grande atraso devido às interdições do islão (estou a falar da pintura e não da prostituição), mas para oferecer no seu palácio de todos os prazeres, além da música, do álcool, da droga e das mulheres, o espectáculo das belezas de Istambul, à sua clientela tão escolhida, que chegava dos quatro cantos da cidade e de toda a Anatólia. Tendo os nossos pintores académicos, que, de compasso e esquadro na mão, plagiam os cubistas do Ocidente e transformam em beldades as nossas jovens aldeãs, rejeitado, porque só aceitam as encomendas dos grandes bancos, a proposta do gangster, este recorreu aos pintores de tabuletas ou de paredes, aos que decoram os tectos das casas burguesas de província, as paliçadas dos cinemas ao ar livre, as tendas de devoradores de serpentes das feiras e também carroças e camiões. Ao fim de vários meses de indagações, rivalizando os dois artesãos seleccionados em ambição — como todos os verdadeiros artistas —, o nosso gangster, inspirado pelos métodos dos bancos, criara o concurso, representando uma bela quantia, do Melhor Pintor de Istambul, e pusera duas das paredes da entrada do seu palácio à disposição desses pintores cheios de ambição.

Os pintores, que desconfiavam um do outro, tinham, desde o primeiro dia, posto a separá-los um espesso reposteiro. Esse velho reposteiro cheio de remendos podia ser ainda visto cento e oitenta dias mais tarde, no dia da inauguração do palácio dos prazeres, no átrio pejado de sofás com enfeites doirados, forrados de veludo vermelho, de tapetes de Gordes, de candelabros de prata, de jarras de cristal, e retratos de Atatiirk, de serviços de porcelana, de mesinhas baixas com incrustações de nácar. Quando o patrão abriu o reposteiro de juta, na presença dos numerosos convidados cuidadosamente escolhidos, entre os quais se contava o prefeito em pessoa, depois de o casino ter sido oficialmente baptizado «Clube da Salvaguarda das Artes Clássicas Turcas» —, todos os presentes puderam descobrir numa das paredes uma «vista esplêndida» de Istambul, e na outra, um imenso espelho no qual se reflectia a mesma paisagem, ainda mais bela, ainda mais siderante, ainda mais esplendorosa à luz dos candelabros de prata. Evidentemente, foi o pintor que montara o espelho que obteve o prémio. Mas durante anos, a maior parte dos clientes do casino continuaram enfeitiçados por aquelas imagens de uma inacreditável beleza. Apreciavam-nas, cada um à sua maneira, a ponto de passarem horas a contemplá-las, entre uma parede e a outra, na esperança de descobrirem o mistério da sua sedução.

O cão vadio muito sujo e com um ar triste da primeira parede ficava transformado no espelho, sempre melancólico, mas também cheio de astúcia agora; é quando o espectador se virava para a parede pintada dava-se conta de que a astúcia lá fora igualmente representada, e descobria no cão um movimento que despertava as suas suspeitas; e quando se virava de novo para o espelho, via nele certos frémitos, certos indícios perturbantes, que davam a impressão do movimento, de tal modo que, completamente desorientado, tinha dificuldade em conter-se e não correr de novo a ver o quadro.

Um cliente de certa idade e de um temperamento dado à angústia chegara a ver no espelho a água a correr na grande fonte, que se via na pequena praça, ao fundo da rua percorrida pelo cão melancólico. Mas quando se virara de novo para a parede pintada, com a precipitação do velho distraído que se lembra bruscamente de ter deixado por fechar uma torneira ao sair, verificara que a fonte lá não corria. Regressando ao espelho, e tendo visto a água continuar a correr com a mesma abundância, tentara compartilhar a sua descoberta com as «raparigas»; mas acolhido com indiferença pelas animadoras do bar, que já não se emocionavam havia muito com aqueles jogos incessantes entre o original e o espelho, o infeliz resignara-se a voltar à sua solidão, a uma existência sufocante que sofrera perante a incompreensão de todos os seus próximos.

O tema não era todavia totalmente indiferente às raparigas que trabalhavam no palácio dos prazeres; pelas noites de Inverno embranquecidas pela neve que passavam entre a expectativa e o tédio, a contarem umas às outras as mesmas histórias sempiternas, serviam-se do quadro e dos jogos mágicos do espelho como de uma pedra de toque divertida, definindo a personalidade dos hóspedes: havia os clientes apressados, pouco sensíveis, atarefados, que não notavam as misteriosas discordâncias entre a paisagem e a sua imagem no espelho; esses passavam o tempo a repisar as suas próprias preocupações ou limitavam-se a tentar obter o mais rapidamente possível das hospedeiras — que eram incapazes de distinguir umas das outras — aquilo que todos os homens esperavam delas. Outros davam-se bem conta dos jogos do quadro e do espelho, mas não lhes atribuíam importância; eram homens audaciosos, que tinham visto muita coisa, que se estavam nas tintas para tudo, e dos quais se devia desconfiar. Havia ainda os que, presas de uma mania da simetria incurável, se obstinavam como crianças a pôr urgentemente fim àquelas incongruências entre o espelho e a parede pintada e que, com a sua agitação e as suas reclamações, passavam o tempo a importunar as hospedeiras, os empregados de bar e os chulos. Os homens assim eram difíceis na cama, ávidos e calculistas, incapazes de esquecerem o que os rodeava quando bebiam ou até mesmo quando faziam amor; a sua raiva planificadora tornava-os fracos amantes, corações pouco merecedores de confiança.

Enquanto os ocupantes do local se iam habituando aos caprichos do espelho, o comissário da polícia de Beyoglou, que honrava frequentemente com a sua presença o estabelecimento — graças à afeição de certos anjos tutelares bem mais do que à sua fortuna pessoal —, descobriu um dia no espelho o olhar do personagem calvo que o pintor representara de pistola na mão, numa rua escura, e compreendeu imediatamente que se tratava do autor do «crime da praça de Chichli», homicídio célebre e nunca esclarecido, e, convencido de que o artista que ali pusera o espelho detinha a chave do mistério, iniciou logo a seguir uma investigação a seu respeito.

Durante uma noite de Verão, em que as águas sujas das valetas se transformavam em vapor antes ainda de chegarem às bocas dos esgotos, o filho de um rico proprietário fundiário, que arrumara o seu Mercedes diante de um sinal de «estacionamento proibido», decidiu que a rapariga, evidentemente séria, que via no espelho a fazer um tapete num bairro pobre de Istambul, era a que ele amava em segredo havia anos e tentava em vão encontrar. Mas quando olhou para o quadro, viu à sua frente uma dessas camponesas, tão apagadas como infelizes, que viviam numa das múltiplas aldeias pertencentes ao seu pai. A dar ouvidos ao patrão do casino, que, anos mais tarde, descobriria ele próprio os mistérios do além, conduzindo, como se conduz um cavalo, o seu Cadillac nas correntes do Bósforo, todas aquelas agradáveis brincadeiras, aquelas coincidências tão divertidas e aqueles pretensos segredos do universo não se deviam de maneira nenhuma aos jogos do espelho ou do quadro; no instante em que os clientes, bêbados de raki ou de haxixe, começavam a planar nas brumas da sua melancolia e das suas mágoas, redescobriam esse universo de felicidade com que sempre tinham sonhado, e na alegria infantil do reencontro com o paraíso perdido, os enigmas dos seus sonhos confundiam-se com as imagens que viam. A despeito do seu realismo, podia ver-se o célebre gangster, em companhia dos filhos das hospedeiras que esperavam que as mães esgotadas os levassem ao cinema, nas manhãs de domingo, jogar com bom humor a descobrir as «sete diferenças entre as duas imagens», como quem tentasse resolver um enigma no suplemento do seu diário favorito.

Mas não havia só sete diferenças entre a parede pintada e o espelho; as dissemelhanças, as transformações assombrosas que se podiam observar eram incontáveis. A paisagem de Istambul fazia de facto pensar, pela sua técnica, nas imagens que se vêem nas carroças ou nos estrados das feiras; mas lembrava, pelo seu espírito, essas gravuras demasiado sombrias que causam calafrios, e a concepção, o tratamento do tema constituíam realmente um vasto fresco. A ave gigantesca que se via no ponto mais alto da composição batia lentamente as asas no espelho, como uma ave lendária; as fachadas deslavadas das velhas casas de madeira transformavam-se noutros tantos rostos aterradores; os carrosséis dos cavalos de pau das feiras animavam-se e tingiam-se de mil cores; todos os velhos eléctricos, as carroças, as pontes, os minaretes, os assassinos, os donos de leitaria, os parques, os cafés que davam para o mar, os barcos das Linhas Municipais, as tabuletas metamorfoseavam-se em outros tantos indícios conduzindo a um universo inteiramente diferente. O livro de capa negra, que o pintor colocara ironicamente na mão de um mendigo cego, cindia-se no espelho; transformava-se numa história com a trama fragmentada e cheia de sentidos que se desdobravam noutros, para, assim que o espectador olhava de novo o quadro, voltar a ser um só livro cujo mistério se perdera por completo. Uma das nossas estrelas de cinema com pestanas imensas, lábios vermelhos, olhar requebrado, que o pintor representara inspirando-se nos seus próprios painéis de feira, tornava-se no espelho «a mãe» de peito generoso, pobre e altiva, de todo um povo, mas quando o olhar, toldado pelo álcool, do visitante, se virava de novo para a parede, podia verificar, com assombro e também com algum prazer, que a mãe desaparecera e dera lugar à esposa familiar e fiel.

Mas o que espantava mais os clientes do palácio dos prazeres era verem no espelho novos sentidos, sinais insólitos, o universo desconhecido que apareciam nos rostos dos personagens que o pintor dispusera por aqui e ali no interior da paisagem, e cujo número parecia aumentar sem descanso, como os rostos das multidões que pululavam nas pontes. Quando, no rosto de certo transeunte, simples cidadão entre tantos outros, com a sua melancolia e o seu olhar tristonho, ou de certo outro, com um chapéu de feltro na cabeça, dinâmico e trabalhador no que lhe tocava, com o ar de quem está contente com a sua própria pessoa, se desenhavam no espelho as linhas de um mapa urbano, e emergiam os elementos de uma história ou de um segredo, o cliente um pouco bebido, que via além do mais a sua própria imagem instalar-se no espelho, enquanto ia e vinha por entre os sofás de veludo vermelho, tinha a impressão de penetrar um segredo reservado a um número muito reduzido de eleitos. Toda a gente sabia que esses clientes, aos quais as hospedeiras prodigalizavam as suas atenções, não podiam parar enquanto não resolvessem o segredo do quadro e do espelho, e que estavam dispostos a enfrentar viagens inumeráveis, aventuras inumeráveis e inumeráveis rixas, até descobrirem a explicação daqueles mistérios.

Mais tarde, anos depois do mergulho do patrão no desconhecido das águas do Bósforo, por ocasião de uma visita do comissário da polícia de Beyoglou ao estabelecimento que entretanto deixara de estar na moda, as consumidoras envelhecidas adivinharam pela sua expressão magoada que também pertencia ao número dos inquietos.

Viera, dizia o comissário, examinar uma vez mais o espelho, na esperança de elucidar o mistério do «crime da praça de Chichli». Explicaram-lhe que uma semana antes, no decurso de uma rixa entre jovens delinquentes, provocada mais pela desocupação e pelo tédio do que por questões de mulheres ou de dinheiro, o espelho caíra sobre os combatentes e se partira em mil pedaços, com um estrondo imenso. Assim, o comissário, que estava já perto da reforma, não pôde descobrir nos fragmentos de vidro nem o autor do misterioso homicídio, nem o segredo que atrás do espelho se escondia.

 

Pouco antes de ter sido decidido o encontro em frente da loja de Alâaddine, a voz ao telefone ditara a Galip sete números de telefone que teriam sido os de Djélâl. Galip duvidava tão pouco de poder descobrir Ruya e o irmão dela graças a um desses números que imaginava já as ruas, os apartamentos e os limiares e portas em que eles poderiam aparecer-lhe. Sabia também que, assim que os tivesse voltado a ver e desde as primeiras palavras que trocassem, acharia lógicas e fundamentadas todas as razões que os dois lhe forneceriam para explicarem o seu desaparecimento. De resto, tinha a certeza: «Mas, Galip, também nós te procurámos por toda a parte, tu não estavas nem em casa, nem no teu escritório, onde te tinhas tu metido?», dir-lhe-iam imediatamente Djélâl e Ruya.

Levantou-se do sofá que não deixara durante horas e horas, despiu o pijama de Djélâl, lavou-se, barbeou-se, vestiu-se. Quando examinou o seu rosto ao espelho, as letras que nele pôde ler facilmente não lhe deram a impressão de ser a consequência de uma conspiração misteriosa ou de um jogo delirante, nem uma ilusão de óptica susceptível de o fazer duvidar da sua própria identidade. Essas letras faziam parte de um mundo real, do mesmo modo que o sabonete Lux cor-de-rosa — o que Silvana Mangano usava — ou a velha gilete poisada diante do espelho.

No Milliyet enfiado por baixo da porta, leu as suas frases publicadas nas colunas de Djélâl como se fossem as frases de um outro. Pertenciam de facto a Djélâl, uma vez que apareciam coroadas pela sua fotografia enquadrada. No entanto, sabia perfeitamente que fora ele a escrever aquelas palavras. O que não lhe parecia ser contraditório, mas pelo contrário o prolongamento de um universo acessível. Imaginava Djélâl, algures, numa das casas cujos números de telefone detinha, a ler nas suas próprias colunas um artigo escrito por um outro; mas tinha a certeza de que o primo não veria nisso uma agressão nem uma fraude. Segundo toda a probabilidade, não compreenderia sequer que não estava a ler uma das suas crónicas antigas.

Depois de ter devorado pão, tarama, língua fumada e uma banana, Galip decidiu retomar o trabalho empreendido com o propósito de reforçar os seus laços com o mundo real. Telefonou a um dos seus amigos, advogado, com o qual seguia certos processos políticos, e explicou-lhe que uma viagem imprevista o obrigara a ausentar-se havia alguns dias de Istambul. Pôde assim saber que um dos processos continuava a avançar com extrema lentidão, que o tribunal proferira a sentença no desfecho de um outro processo, também político, e que os seus clientes haviam sido condenados a seis anos de prisão cada um, por terem acoitado malfeitores, oferecido refúgio a membros de uma organização comunista clandestina. Galip lembrou-se então de ter acabado de ler essa notícia no jornal, mas com um olhar distraído, sem estabelecer qualquer nexo entre o processo e o seu caso, e sentiu-se tomado de cólera, sem saber bem com quem e por que razão se zangava. Telefonou a seguir para sua casa, como se fizesse a coisa mais natural do mundo: «Se a Ruya estiver em casa, desta vez sou eu quem lhe prega uma partida», decidiu; disfarçaria a voz e pretenderia estar à procura de Djélâl. Mas ninguém lhe respondeu.

Telefonou em seguida a Iskender para lhe declarar que esperava em breve descobrir Djélâl, e perguntou-lhe quantos dias ainda a equipa de televisão britânica contava passar em Istambul. «A noite de hoje é a última que cá passam», disse-lhe Iskender. «Partem de regresso para Londres amanhã de manhã muito cedo.» Galip repetiu-lhe que em breve descobriria Djélâl: Djélâl desejava ver os tipos da televisão, segundo lhe dissera, para lhes fazer certas revelações sobre assuntos «escaldantes»; também ele atribuía grande importância à entrevista. «Nesse caso», disse Iskender, «tenho de organizar um encontro para esta noite, porque eles também querem a todo o custo vê-lo.» «Neste momento, ele deve estar neste número», respondeu-lhe Galip comunicando-lhe o que estava escrito no aparelho.

Para telefonar à tia Hâlé, Galip disfarçou a voz, apresentou-se como um leitor tão fiel como cheio de admiração, desejoso de felicitar Djélâl pela sua crónica do dia. E enquanto falava, perguntava de si para si: teriam ido avisar a polícia por estarem sem saber o que seria feito de Ruya e de Galip? Ou estariam à espera que eles regressassem de Izmir? E se Ruya tivesse ido vê-los para lhes contar tudo? Djélâl ter-se-ia manifestado durante todos aqueles dias? As informações que a tia Hâlé lhe forneceu, com a sua voz pausada, a saber que Djélâl bey não estava em casa daqueles seus parentes e que o melhor seria telefonar para a redacção do jornal, não foram de molde a responder às perguntas que ele se punha. E às duas horas e vinte em ponto, Galip decidiu telefonar para os sete números que anotara na última página dos Caracteres.

Quando, depois de ter ligado para os sete números, compreendeu que todos eles eram os de famílias desconhecidas, de crianças faladoras — como essas que há por toda a parte —, de tios com uma voz estridente ou grosseira, de churrasqueiras, de agências imobiliárias com empregados pretensiosos que afirmavam nunca se terem interessado pela identidade dos assinantes precedentes, de uma costureira elegante e amável que lhe declarou que aquele número era o dela havia anos e de um jovem casal que só voltaria bastante mais tarde, eram já sete horas. Mas enquanto se debatia com o telefone, descobrira, na prateleira inferior da estante de madeira de ulmeiro, dez fotografias, entre as que enchiam uma caixa pela qual até então não se interessara.

Uma excursão à beira-Bósforo, no café próximo do grande plátano de Emirgân, o tio Mélih, de casaco e gravata, a bela tia Suzan, que se parecia terrivelmente com Ruya, e um desconhecido que poderia ser o imã da mesquita de Emirgân, se não se tratasse de um dos estranhos companheiros que Djélâl trazia sempre consigo; Ruya, com onze anos de idade, fixava com curiosidade a objectiva da máquina fotográfica decerto manejada por Djélâl... Com o vestido de alças que usava no Verão em que passara do primeiro para o segundo ano do complementar, Ruya, ao lado de Vassif, mostra os peixes do aquário a um gatinho de dois meses, que é Carvão, o gato da tia Hâlé. Esma hanim olha para eles a rir, com os olhos semicerrados porque tem um cigarro na boca, enquanto ajusta o lenço na cabeça, embora não tenha a certeza de ficar na fotografia... Um dia de Inverno, Ruya, revolucionária e desmazelada, que, ao longo do primeiro ano do seu primeiro casamento, raramente visitava a mãe, os tios e as tias, está a dormir com os punhos cerrados na cama da avó, vencida pelo cansaço, depois de ter enchido o estômago durante a refeição que reunia a família por altura das festas do Ramadão; aparecera sem prevenir ninguém: está a dormir, deitada como um cão de caça, com o rosto enterrado na almofada, exactamente na mesma posição em que há sete dias e onze horas Galip a viu pela última vez... Alinhada à porta do «Coração da Cidade», a família em peso, além do porteiro e da sua mulher, Kamer, posam olhando para a objectiva; Ruya, com os cabelos presos por um laço, nos braços de Djélâl, contempla no passeio um cão vadio que deve ter morrido há muito... A tia Suzan, Esma hanim e Ruya, no meio da multidão parada ao longo dos passeios da avenida de Techvikiyé, entre o liceu feminino e a loja de Alâaddine, vêem passar De Gaulle, que a fotografia não mostra, deixando ver apenas a ponta do focinho do seu automóvel... Sentada diante do toucador da mãe, onde se dispõem os pós, os tubos de creme Pertev, os frascos de água-de-colónia e de água-de-rosas, os vaporizadores, as limas para as unhas e os ganchos, Ruya insinua a cabeça e os seus cabelos curtos entre os batentes do espelho, o que eleva a cinco, a nove, a dezassete, a trinta e três o número de Ruya... Ruya aos quinze anos, com um vestido de algodão sem mangas, que ignora que está a ser fotografada, e se debruça sobre um jornal onde bate o sol que entra pela janela aberta, tendo no rosto essa expressão que sempre fez medo a Galip, porque o leva a sentir-se deixado de «fora», enquanto torce uma madeixa, com uma tigela de grão-de-bico torrado ao seu lado, e faz palavras cruzadas, com um lápis cuja borracha mordisca... Ruya, há quando muito cinco meses, uma vez que tem ao pescoço o sol hitita que Galip lhe ofereceu pelo seu último aniversário, soltando uma alegre gargalhada nesta mesma sala, que Galip ocupa há horas e horas, junto ao telefone que Galip acaba de utilizar, sentada na poltrona onde neste momento Galip está sentado... Numa tasca que Galip não consegue situar, com um ar triste devido às discussões dos pais, discussões que azedavam assim que saíam de casa, Ruya diverte-se... Na praia de Kilyos, onde estivera de férias no ano em que terminara o liceu, com o mar branco de espuma como fundo, e tendo ao lado uma bicicleta que não é a dela, mas com o braço poisado no selim, como se a bicicleta lhe pertencesse, enverga um biquini, que deixa a descoberto a cicatriz da sua operação ao apêndice, os dois sinais gémeos, do tamanho de lentilhas, entre o umbigo e a cicatriz, e as leves sombras das costelas que lhe marcam a pele acetinada; tem na mão uma revista cujo nome Galip não consegue ler, não porque a fotografia esteja tremida, mas porque é ele que tem os olhos cheios de lágrimas, e quer parecer alegre, mas sorri com essa melancolia, essa tristeza cujo sentido o seu marido, contemplando agora as fotografias, nunca pôde penetrar.

Eis que, com as suas lágrimas, Galip voltava a encontrar-se no coração do mistério. Tinha a impressão de estar num lugar bem conhecido, mas que ignorava conhecer; ou entre as páginas de um livro já lido, mas que relia com a mesma emoção porque se esquecera de o ter lido. Sabia que já conhecera o sentimento de frustração e de catástrofe que o invadira, e também que essa dor era tão fulgurante que o homem não a podia sentir mais que uma só vez na vida. Pensava que a dor de se sentir iludido, enganado, abandonado, lhe era própria e que não podia acusar mais ninguém; mas adivinhava também vagamente que essa dor não era senão a consequência de uma cilada que alguém montara contra ele, uma cilada cuidadosamente preparada, calculada como o lance que um jogador de xadrez medita.

Respirando com dificuldade, sempre imóvel na sua poltrona, não enxugava as lágrimas que caíam nas fotografias de Ruya. Da praça de Nichantache chegavam-lhe aos ouvidos os ruídos da sexta-feira à noite. O roncar dos motores exaustos dos autocarros a transbordar de passageiros, dos automóveis que buzinavam às cegas à menor ameaça de engarrafamento, o som do apito nervoso do polícia que estava na esquina da avenida, os altifalantes das lojas de discos e de cassetes às entradas das galerias cobertas e o zunzum da multidão que se acotovelava nos passeios faziam tremer as vidraças e por vezes os próprios móveis da sala. Quando prestou atenção a esses frémitos, Galip disse para consigo que os móveis e objectos à sua volta possuíam um universo, um tempo que lhes eram próprios, exteriores ao espaço e ao tempo partilhados por todos.

Devaneava: Ruya estava com ele, mas não naquela sala, estavam em casa, iam jantar fora, depois veriam um filme no Konak. Durante o caminho de regresso, comprariam a última edição dos jornais, instalar-se-iam na suas poltronas a ler. Imaginou também uma outra versão: um ser de rosto espectral dizia-lhe: «Há anos que eu bem sei quem tu és, mas tu, tu nem sequer me conheces.» E quando Galip se lembrava da identidade daquele que proferia tais palavras, compreendia que esse espectro o rondava havia anos, e depois, muito depressa, que não era ele, mas Ruya quem o espectro rondava. Acontecera-lhe outrora vigiar discretamente Ruya e Djélâl, e de todas as vezes sentira um pavor que não esperava. «Era como se estivesse morto e observasse de longe, com dor, como a vida continuava sem mim.» Foi sentar-se à mesa de trabalho, redigiu de um jacto uma crónica que começava por esta frase e assinou-a com o nome de Djélâl. Havia alguém que o vigiava, tinha a certeza; e ainda que se não tratasse de um ser humano, havia um olho, pelo menos, que o espiava.

O zumbido das televisões que lhe chegava vindo dos prédios contíguos substituía-se pouco a pouco ao ruído da praça de Nichantache. Quando ouviu o sinal musical das informações das vinte horas, Galip disse para consigo que toda a população da cidade de Istambul estava reunida à volta da mesa, nas salas de jantar, e que seis milhões de homens e de mulheres tinham os olhos presos ao ecrã da televisão. Pensou em masturbar-se. E sentiu-se incomodado pela presença do olho que imaginava. O desejo que sentia de ser ele próprio, e só ele próprio, tornou-se tão violento que teve vontade de partir tudo o que havia na sala, e também de matar aqueles aos quais devia o facto de ter chegado a um tal ponto. Perguntava-se se não seria preferível desligar o telefone quando este último começou a tocar.

Era Iskender: estivera com os jornalistas da televisão britânica, eles tinham ficado encantados, esperavam Djélâl para a entrevista, no Péra-Palace, num dos quartos do hotel. Galip conseguira falar com ele?

— Sim, mas claro que sim! — disse Galip, estupefacto perante o furor que o tomara. — O Djélâl está de acordo. Prepara-se para fazer revelações da maior importância. Lá estaremos às dez horas, no Péra-Palace.

Depois de desligar, sentiu-se presa de uma emoção que oscilava entre o medo e a felicidade, a serenidade e o desvario, o desejo de vingança e o amor aos outros. Pôs-se a procurar, apressando-se, entre os cadernos, os papéis, os velhos artigos, os recortes de jornais, não sabia bem o quê. Um indício, capaz de provar a presença das letras no seu rosto? Mas essas letras e o que significavam eram de uma tal evidência que ele não precisava de provas. Uma lógica, capaz de o ajudar a escolher as histórias que ia contar? Mas, exceptuadas a sua cólera e a sua emoção, não estava em condições de acreditar fosse no que fosse. Um exemplo, capaz de pôr em evidência a beleza do segredo? Sabia que lhe bastaria falar e acreditar nas histórias que contasse. Procurou ainda na estante e nos armários, percorreu muito depressa as agendas, leu sílaba por sílaba as «frases-chave» das crónicas, examinou os mapas das cidades, contemplou uns atrás dos outros, sempre muito depressa, os rostos das fotografias. Recomeçara a revolver o caixote dos disfarces quando, às nove horas menos três minutos, teve de sair do apartamento a passo de corrida, atormentado pelo remorso de estar deliberadamente atrasado para o encontro que marcara.

Às nove horas e dois minutos em ponto, postara-se na penumbra, diante da porta de um prédio, precisamente em frente da loja de Alâaddine; mas não viu no outro passeio ninguém que se parecesse com o escritor calvo ou a sua mulher. Estava furioso com eles, porque os números de telefone que lhe haviam fornecido não o tinham levado a nada: quem procurava enganar quem? Quem estava, afinal, a brincar?

Para lá da entrada, onde se amontoava um conjunto de velharias, podia ver-se apenas em parte o interior da loja, ainda bem iluminada, de Alâaddine. Entre as pistolas de brinquedo, os sacos de rede das bolas de futebol, as máscaras de Frankenstein ou de orangotango, penduradas do tecto na ponta de um fio, as embalagens dos jogos de sala, as garrafas de licor ou de raki, as revistas ilustradas ou os semanários desportivos na montra, presos com molas de roupa, as bonecas nas suas caixas, Galip podia distinguir de vez em quando a silhueta de Alâaddine, a cabeça dele que ora descia, ora subia; estava a fazer as suas contas. Não havia mais ninguém na loja. A mulher de Alâaddine devia estar na cozinha à espera do regresso do marido, que passava o dia inteiro atrás do balcão. Um cliente entrou na loja, e Alâaddine retomou o seu posto. Depois, foi a vez de um casal de idade, e Galip sentiu o coração bater com muita força. O primeiro cliente, insolitamente vestido, saiu da loja, seguido pelo casal; o marido trazia uma grande garrafa na mão, e ambos se afastaram de braço dado. Não podiam ser eles os que esperava, compreendeu prontamente Galip: aqueles dois pareciam demasiado fechados no seu próprio universo. Um senhor distinto, com um paletó com a gola de pele, entrou na loja; estava a falar com Alâaddine, e Galip involuntariamente sentiu prazer em imaginar o que estariam a dizer-se.

Agora, não havia ninguém no passeio que lhe chamasse a atenção, nem do lado da praça de Nichantache, nem do lado da mesquita, nem na rua que ia para Ihlamour: alguns transeuntes com ar pensativo, caixeiros, lojistas sem sobretudo que andavam muito depressa, solitários ainda mais perdidos devido ao azul-cinzento da noite. E, de súbito, a rua e os passeios ficaram inteiramente desertos; Galip teve a impressão de ouvir crepitar o néon do anúncio luminoso, por cima da montra onde estavam em exposição as máquinas de costura. A excepção do polícia de guarda à porta da esquadra, com a metralhadora na mão, não se via ninguém. Mas quando levantou a cabeça para os ramos sombrios e despidos do castanheiro onde Alâaddine pendurava com molas de roupa os elásticos para cuecas e as revistas coloridas, Galip teve medo: tinha a impressão de estar a ser observado, ou até mesmo em perigo. Houve um ruído brusco: um Dodge 54 que vinha de Ihlamour e um velho autocarro Skoda que se dirigia para Nichantache, por pouco não tinham chocado. No autocarro, que travara brutalmente, Galip pôde ver os passageiros levantarem-se, virando todos a cabeça para o outro extremo da rua. À fraca luz que se soltava do autocarro, apenas a um metro de distância, Galip viu um rosto fatigado, que não parecia interessar-se minimamente pelo que acontecera, um homem com um ar exausto, na casa dos sessenta, e um estranho olhar, cheio de dor, de desgosto. Já o teria visto antes? Um advogado na reforma ou um professor primário à espera da morte? A favor deste encontro que a vida urbana lhes proporcionava, encararam-se sem embaraço, tendo talvez ambos na cabeça as mesmas reflexões. Depois o autocarro arrancou bruscamente, e perderam-se os dois de vista, decerto para nunca mais se voltarem a ver. Por entre o fumo azul do tubo de escape, Galip verificou que havia de novo animação no passeio do outro lado: dois jovens estavam parados em frente da loja de Alâaddine, acendiam os seus cigarros — estudantes que deviam estar à espera de um terceiro amigo, antes da sessão da sexta-feira à noite. E eis que de súbito um vendedor de laranjas com um bigode enorme se instalara à esquina da rua, com o seu carrinho de empurrar. Estaria ali havia muito já e sem que Galip tivesse dado por ele? Um casal carregado de embrulhos aproximava-se, ao fundo do passeio, do lado da mesquita, e o jovem pai trazia uma criança nos braços. No mesmo momento, na pequena pastelaria atrás dele, a velha senhora grega apagou as luzes, saiu enfiada num sobretudo coçado, sorriu educadamente a Galip, puxou com um gancho o estore metálico, que fechou ruidosamente. A loja de Alâaddine e os passeios estavam agora desertos. O louco do quarteirão de cima, o que se julgava uma celebridade futebolística, apareceu do lado do liceu feminino, com um casacão azul-marinho e amarelo, e passou lentamente por Galip empurrando um carrinho de criança: nesse landó cujas rodas emitiam ao mover-se uma musicazinha que agradava a Galip, carregava os jornais que vendia à porta do cinema Indji, em Pangalti. Soprou um vento, não muito forte. Galip de repente sentiu frio. Eram nove horas e vinte minutos. «Vou esperar que passem ainda mais três», decidiu. Agora, já não via Alâaddine dentro da sua loja, nem o polícia de guarda à porta da esquadra. Num prédio fronteiro, a porta-janela que dava para uma varanda minúscula abriu-se, e Galip viu o brilho avermelhado de um cigarro que o homem atirou para a rua antes de voltar para dentro. Os passeios só muito levemente estavam molhados; as luzes com um brilho metálico dos néons e dos anúncios publicitários reflectiam-se no chão; bocados de papel, pontas de cigarro, sacos de plástico, lixo... Aquela rua, que conhecia tão bem desde a infância, e cujas transformações observara nos seus mínimos pormenores, aquele bairro, aqueles prédios ao longe, cujas chaminés se destacavam no azul-marinho daquela noite desagradável, pareceram-lhe tão distantes, tão estranhos como os dinossauros dos livros da sua infância. E ele sentiu que se tornava o homem cujos olhos lançavam raios X, que sonhava ser em criança: conseguia penetrar o segredo do universo, que lhe era revelado pelas letras das tabuletas da loja de tapetes e do restaurante, os bolos e os croissants da pastelaria, as máquinas de costura e os jornais nas montras.

Todas aquelas pobres pessoas, que avançavam com um passo sonâmbulo pelos passeios, mal conseguiam viver a sua existência estreita, contentando-se com o único sentido de que dispunham, porque se tinham esquecido da recordação desse universo, cujos mistérios haviam conhecido outrora; tal como essas outras pessoas que tinham esquecido o amor, a fraternidade, o heroísmo, e que se contentavam com olhar aquilo que deles os filmes diziam. Galip caminhou até à praça de Techvikiyé, onde apanhou um táxi.

Quando o carro passou diante da loja de Alâaddine, imaginou que o homem calvo se escondia num canto, como ele próprio fizera, e que estava ali à espera de Djélâl. Não sabia ao certo se fora uma ilusão ou se vira realmente, à luz do néon, entre os manequins estranhos e inquietantes que pareciam estar a coser à máquina, uma sombra insolitamente trajada e inquietante, também ela. Na praça de Nichantache, pediu ao motorista que parasse para comprar a última edição — a chamada edição das tabernas — do Milliyet. Leu com um sentimento de alegria e de surpresa, mesclado de curiosidade, o artigo que redigira, leu-o como se se tratasse de uma crónica de Djélâl, enquanto se esforçava, mas sem o conseguir, por imaginar o primo a ler um artigo escrito por outro, mas assinado com o nome dele, e publicado com a fotografia dele por cima. E sentiu subir dentro de si a cólera contra Djélâl, mas também contra Ruya: «Vão ver, vocês os dois!», murmurou ele. Mas queria dizer com isso que se vingaria deles ou que os felicitava por terem montado tão bem o golpe? Além disso, ainda sonhava vagamente encontrá-los no Péra-Palace. Enquanto o táxi passava pelas ruas tortuosas de Tarlabachi, diante dos hotéis com as luzes apagadas e os cafés mal afamados com as paredes nuas, onde se apinhava uma clientela exclusivamente masculina, teve a impressão de que toda a Istambul vivia na expectativa de não sabia bem o quê. Depois surpreendeu-se, como se a notasse pela primeira vez, com a decrepitude dos automóveis, dos autocarros, dos camiões com que se cruzava o táxi. O átrio do Péra-Palace transbordava de luz, e estava calor lá dentro. No grande salão da direita, sentado entre turistas num dos velhos canapés, Iskender seguia o trabalho de uma equipa, que utilizava o cenário de fim do século XIX do hotel, para rodar um filme histórico. No salão bem iluminado, reinava uma atmosfera de amizade e de alegria. Galip começou a explicar-se:

— O Djélâl não pôde vir — disse ele a Iskender. — Um impedimento; uma coisa qualquer, mas muito grave; é forçado a esconder-se. Foi por isso que me pediu para falar em vez dele. Sei de cor, em todos os seus pormenores, as histórias que tenho de lhes contar. Vou falar em vez dele.

— Mas eles concordarão? Não sei bem.

— Só tens que lhes dizer que eu sou o Djélâl Salik — relicou Galip, irritado e surpreendido, ele próprio, pela sua irritação.

— Mas como?

— O que importa não é o narrador, mas aquilo que narra. E agora temos coisas para lhes contar.

— Mas eles conhecem-te! — protestou Iskender. — Contaste-lhes uma história, na outra noite, quando estivemos no bar.

— Conhecem-me, a mim? — disse Galip, instalando-se no canapé. — Não é a palavra própria: viram-me, e foi tudo. Além disso, hoje eu sou outro. Não conhecem nem o homem que viram nessa noite nem aquele que hoje vão ver. Pensam com certeza que todos os turcos são parecidos.

— Mesmo que lhes digamos que não és o homem que viram na outra noite, que estão diante de outra pessoa, é certo e seguro que estão à espera de um Djélâl Salik muito mais velho do que tu! — declarou Iskender.

— Que sabem eles do Djélâl? — disse Galip. — Alguém lhes deve ter dito: então tentem ver esse jornalista célebre na Turquia, será óptimo para o vosso programa. E devem ter tomado nota do nome num papel, mas não perguntaram com certeza nem que idade nem que cara ele tinha!

No mesmo instante, ouviram-se explosões de riso vindas do canto do salão onde o filme estava a ser rodado. Viraram-se ambos para esse lado sem se levantarem.

— Porque é que eles se estão a rir? — perguntou Galip.

— Não ouvi — disse Iskender, que no entanto sorria como se tivesse compreendido.

— Nenhum, de entre todos nós, é ele próprio — disse Galip; sussurrava como quem está a confiar um segredo. — Não podemos ser nós próprios. Toda a gente pode ver um outro em ti, tens alguma dúvida a esse respeito? Tens a certeza de seres tu próprio? E ainda que tenhas, tens a certeza de conhecer o homem que tanto tens a certeza de ser? Que esperam de nós essas pessoas? O homem que querem ver não é por acaso um estrangeiro cujas preocupações e a tristeza os telespectadores ingleses que vêem televisão depois do jantar poderão partilhar por um instante, e cujas histórias poderão ter algum efeito sobre eles? Pelo meu lado, disponho de uma história que preenche perfeitamente todas as condições. De resto, não é preciso que ninguém me veja. Basta que me filmem deixando o meu rosto na sombra. Um misterioso jornalista turco, muito conhecido no seu país, que tem medo de um governo repressivo, dos assassinatos políticos e dos golpes de Estado militares; e, ainda por cima, muçulmano, o que é para eles o aspecto mais importante, não te esqueças!, respondeu às perguntas da BBC pedindo para o fazer incógnito. Não é muito melhor assim?

— Bom — disse Iskender. — Vou telefonar lá para cima. Eles devem estar à nossa espera.

Galip começou a seguir as filmagens que decorriam no outro extremo do grande salão. Um pachá otomano barbudo, com um fez na cabeça, vestindo um flamante uniforme novo, rutilante de condecorações, com as suas medalhas de ouro e o seu cinturão dourado, conversava com a filha, que docilmente escutava o pai bem-amado. Mas o actor não olhava para a filha, mantinha-se frente à câmara, que funcionava laboriosamente, e que os empregados do hotel observavam com um silêncio respeitoso.

— Já não nos prestam auxílio, perdemos toda a esperança, todas as nossas forças; já não temos nada, e o universo inteiro é hostil aos turcos! — dizia o pachá. — Só Deus sabe se o Estado não se verá obrigado a abandonar esta fortaleza...

— Mas não, meu pai, ele ainda aqui está! — protestava a filha, mostrando ao espectador, mais do que ao pai, o livro que tinha na mão. Mas Galip não pôde adivinhar pelo seu discurso de que estava ela a falar. A repetição da cena não lhe permitiu compreender melhor de que livro se tratava, o que o intrigava ainda mais por ter visto que não era um Corão.

Quando, depois de terem subido no velho elevador, Iskender o fez entrar no quarto número 212, Galip estava ainda sob o efeito do sentimento de frustração que experimentava quando não conseguia lembrar-se do título de um livro.

Os três jornalistas ingleses, que Galip vira no bar, ali estavam. Munidos de um copo de raki, os homens controlavam a câmara e os projectores. A mulher, que estava a ler uma revista, levantou a cabeça quando ambos entraram.

— O nosso jornalista bem conhecido, o nosso célebre cronista Djélâl Salik em pessoa! — disse Iskender, num inglês que Galip, como bom aluno que fora, retraduziu imediatamente e achou pouco correcto.

— Encantada! — exclamou a mulher. — Encantado! — declararam os dois homens que falavam a uma só voz, como os gémeos de uma célebre banda desenhada. — Mas não nos conhecemos já? — perguntou a jornalista.

— Ela pergunta-te se não se conheceram já — traduziu Iskender.

— Mas onde? — perguntou Galip virando-se para Iskender. Iskender traduziu de novo: — Onde?

— Naquele night-club — disse a mulher.

— Há anos que eu não ponho os pés num night-club, e não voltarei a pôr tão cedo — disse Galip cheio de convicção. — Creio bem que nunca entrei em estabelecimentos nocturnos. Acho esse género de actividades sociais, esses locais demasiado frequentados, pouco favoráveis à solidão, ao equilíbrio mental de que preciso para escrever. De resto, a violência da nossa vida profissional, violência que atinge proporções inquietantes, a densidade da minha vida intelectual, as pressões sofridas, os assassinatos políticos, ainda mais desmesurados, impediram-me sempre de levar uma existência desse género. Por outro lado, não ignoro que se encontram, não só nos quatro cantos de Istambul, mas um pouco por todo o país, pessoas que se tomam por Djélâl Salik, ou que se fazem passar por ele, impelidas por um desejo muito legítimo. Nas noites em que passeio disfarçado por esta cidade, nos recantos dos bairros mais pobres, no coração da nossa cidade, tão escura, tão misteriosa, acontece-me encontrar alguns desses homens. Chegou a acontecer-me entabular amizade com esses infelizes que conseguem tornar-se «em», de uma maneira que me aterra. Istambul é uma região muito vasta, um país incompreensível!

Iskender começou a traduzir esta declaração e Galip virou-se para o Corno de Ouro e para as luzes pálidas dos velhos bairros que via pela janela aberta: a municipalidade iluminara «para os turistas» a mesquita de Selime, o Terrível, mas uma certa quantidade de lâmpadas deviam ter sido roubadas, como de costume, e a mesquita transformara-se num amontoado de pedras, estranho e temeroso, lembrando a boca escura de um velho desdentado. Quando a tradução terminou, a jornalista pediu desculpa pelo seu engano, com uma cortesia que deixava transparecer humor e sentido do jogo: confundira o Senhor Salik com aquele romancista, aquele que era muito alto, usava óculos e lhes contara uma história na noite do bar. Mas não parecia muito convencida do que estava a dizer. Decidira sem dúvida aceitar a situação tal como era e considerar Galip como um exemplo interessante, uma especificidade do país, e adoptara a atitude tolerante do intelectual confrontado com uma cultura estrangeira: «Não compreendo, mas respeito». Galip experimentou simpatia por aquela mulher com uma inteligência tão compreensiva, que sabia apreciar a fantasia e continuava a jogar o jogo, embora soubesse que as cartas estavam marcadas. Não se pareceria um pouco com Ruya?

Quando Galip se encontrou instalado numa poltrona, que lembrava uma cadeira eléctrica, no meio de uma profusão de fios, de projectores, de microfones e de câmaras, os jornalistas adivinharam sem dúvida que ele se sentia pouco à vontade: cortês e sorridente, um dos homens pôs-lhe um copo na mão, e encheu-o de água e de raki segundo as indicações do próprio Galip.

Sempre na mesma atmosfera lúdica — de resto, os três sorriam constantemente —, a jornalista introduziu uma cassete no videogravador e carregou no botão, com o arzinho maroto de alguém que se prepara para passar um filme pornográfico, e no pequeno ecrã apareceram as imagens que a equipa reunira ao longo da semana. Olharam-nas em silêncio, com uma vaga ponta de humor, mas sem permanecerem por completo indiferentes, sempre como se estivessem a ver um filme pornográfico: um mendigo acrobata que exibia com bom humor os seus braços e as suas pernas disformes; um comício político inflamado e um líder cujo discurso era igualmente inflamado; dois velhos que jogavam triquetraque; imagens de tabernas e de estabelecimentos nocturnos; um vendedor de tapetes altivamente especado diante da sua montra; nómadas que subiam uma estrada de montanha atrás dos seus camelos; uma locomotiva a vapor que avançava soltando golfadas de fumo; num bairro de lata, alguns garotos que acenavam para a câmara; mulheres veladas diante dos montes de laranjas que havia à porta de um lugar de fruta; os restos, cobertos de jornais, da vítima de um assassinato político; um velho na sua carroça de mudanças transportando um piano de cauda...

— Eu conheço-o! — declarou subitamente Galip. — Foi ele quem, há vinte anos, transportou os nossos móveis, quando saímos do «Coração da Cidade».

Com atenção, mas sempre como quem joga um jogo, todos examinaram o velho que sorria para a câmara, com a mesma expressão de prazer, enquanto entrava com a carroça e o piano para o pátio de um velho prédio.

— Eis o regresso do piano do príncipe imperial — disse Galip. Já não sabia que voz imitava, nem quem era, mas sabia que tudo estava a correr bem. — Um príncipe herdeiro vivia no pavilhão de caça que outrora havia onde está agora este prédio. Vou contar-vos a história dele!

Rapidamente, tudo ficou a postos. Iskender repetiu que um jornalista turco muito célebre ali estava para fazer uma declaração de alcance histórico, da máxima importância. Na sua apresentação, a jornalista explicou num tom entusiástico que a declaração se referiria aos últimos soberanos otomanos, ao Partido Comunista clandestino, à misteriosa herança de Atatiirk, que permanecera secreta, aos movimentos islamistas da Turquia, aos assassinatos políticos e à eventualidade de um golpe de Estado militar.

— Outrora, na cidade onde nos encontramos, vivia um príncipe imperial, que tinha descoberto que, para o homem, o problema mais

importante da vida era poder ou não poder ser ele próprio — disse Galip à laia de preâmbulo. Ao contar a história, sentia tão intensamente a história do príncipe que se via a si próprio como um outro. Mas quem era esse outro? Quando descreveu a infância do príncipe, adivinhou que esse novo ele próprio não era outro senão o rapazinho chamado Galip que ele fora. Quando descreveu o príncipe a debater-se com os livros, transformou-se nos autores desses livros. Quando falou da solidão do príncipe no seu pavilhão de caça, pôs-se na pele de cada um dos personagens da história. E quando explicou como ditava o príncipe as suas reflexões ao seu secretário, pareceu-lhe ser o homem que transparecia através dessas reflexões. Enquanto contava a história do príncipe, no tom em que Djélâl contava as suas histórias, sentia que se tornava o herói de uma história contada por Djélâl. Narrava os últimos meses da vida do príncipe e dizia para consigo: «O Djélâl teria com certeza contado a história como também eu estou a fazê-lo», e irritava-se com os demais presentes na sala por eles serem incapazes de se dar conta desse facto. Falava com raiva, de tal maneira que os ingleses o ouviam com interesse, como se compreendessem o turco. Quando terminou a descrição dos últimos dias do príncipe, retomou a sua introdução: — Outrora, na cidade onde nos encontramos, vivia um príncipe da família imperial, que tinha descoberto o problema essencial da vida, o de cada um poder ser ele próprio, ou de não o conseguir — repetiu, sempre com a mesma convicção.

Ao regressar ao «Coração da Cidade», quatro horas mais tarde, quando reflectisse na diferença entre as duas vezes em que formulara essa frase, calcularia que Djélâl estava ainda vivo quando a usara pela primeira vez, e que o seu cadáver, coberto de jornais, estava estendido no passeio, diante da esquadra de Techvikiyé, em frente da loja de Alâaddine, no minuto em que a retomara. Fizera e voltara a fazer a descrição, insistindo em certos pontos que ia descobrindo uns atrás dos outros. E acabara por compreender que lhe era possível tornar-se outro homem sempre que retomava a sua história. Esteve prestes a declarar: «Se vos conto a história deste príncipe, é para me tornar ele próprio, como ele.»

Terminou pela última vez a sua história, cheio de ressentimento contra todos os que não lhe permitiam sentir-se ele próprio; persuadido de que a única maneira para ele de resolver os mistérios da vida e da cidade, em que estava embarcado, era contar histórias; invadido pelo sentimento da morte e da brancura de neve do fim da história. Houve um silêncio na sala. Depois Iskender e os jornalistas aplaudiram bruscamente, com a espontaneidade do público que aplaude um bom actor, no termo de uma prestação magistral.

 

Outrora, na cidade onde nos encontramos, vivia um príncipe imperial que descobrira o problema essencial da vida, o de cada um poder ser ele próprio — ou de não o conseguir. Esta descoberta foi a sua vida inteira, e a sua vida inteira resume-se a esta descoberta. Uma tão breve definição da sua vida, também ela breve, foi o próprio príncipe a fornecê-la quando, perto do fim dos seus dias, recorreu aos serviços de um secretário que pusesse por escrito a relação da sua descoberta. O príncipe ditava, o secretário escrevia.

Nesse tempo — há precisamente cem anos —, Istambul não se tornara ainda esta cidade onde milhões de desocupados erram numa espécie de pasmo, onde os lixos se amontoam e os esgotos se despejam debaixo das pontes, onde os fumos negros como alcatrão irrompem das chaminés, e onde as pessoas se acotovelam implacavelmente nas paragens de autocarros. Nesse tempo, os tramways puxados por cavalos avançavam tão lentamente que podíamos subir ou descer deles em andamento. Os barcos do Bósforo deslocavam-se com uma tal lentidão que certos passageiros saíam num dos embarcadouros para irem a pé até ao seguinte, conversando debaixo das tílias, dos castanheiros e dos plátanos do caminho, e ainda arranjavam tempo para beber um copo de chá num café, antes de voltarem a apanhar o mesmo barco para seguirem viagem. Nesse tempo, as nogueiras e os castanheiros não tinham sido ainda cortados para serem transformados em postes eléctricos, onde alfaiates e circuncisadores poderiam pendurar os seus anúncios.

Não havia vazadouros públicos e colinas peladas cobertas de postes de alta tensão que se estendiam onde a cidade acabava, mas bosques, florestas onde os sultões melancólicos e severos iam caçar. E numa dessas colinas verdejantes, que desapareceriam mais tarde devoradas pelos prédios, as canalizações e as estradas pavimentadas, o príncipe imperial viveu num pavilhão de caça durante vinte e dois anos e três meses.

Fazer recolher por escrito as suas reflexões foi para o príncipe uma maneira de se afirmar a si próprio. Estava persuadido de não o conseguir a não ser quando as ditava ao secretário, instalado diante de uma mesa de acaju. Somente assim o príncipe era capaz de se desembaraçar da pressão das vozes que lhe ressoavam nos ouvidos ao longo do dia inteiro, das histórias que outros contavam e das quais ele tomava conhecimento quando andava de um lado para o outro nos aposentos do pavilhão de caça, e sobretudo das ideias dos outros, cujos efeitos o perseguiam até mesmo quando passeava nos jardins cercados por muros muito altos. «Para podermos ser nós próprios, é indispensável não ouvirmos em nós senão a nossa própria voz, a nossa própria história, o nosso próprio pensamento!», dizia o príncipe, e o secretário tomava nota daquelas palavras.

O que não significava todavia que o príncipe, quando ditava, só ouvisse a sua própria voz. Pelo contrário, sabia-o bem, quando começava a contar uma história, pensava na história de um outro; no preciso momento em que desenvolvia o seu pensamento, um pensamento expresso por um outro acudia-lhe ao espírito e sentia também a cólera de um outro quando ele próprio se encolerizava. Sabia igualmente que o homem só pode ouvir a sua própria voz elevando-a contra todos os outros; contando histórias que recusem as dos outros; «debatendo-se contra os seus ganidos», segundo a expressão do príncipe, que pensava que o ditado das suas reflexões era um campo de batalha, onde o combate teria por desfecho a sua vitória.

Enquanto lutava assim, neste campo de batalha, com as ideias, as histórias e as palavras, o príncipe andava de um lado para o outro pelas salas do pavilhão de caça; modificava a frase iniciada nos degraus de umas escadas quando descia outras escadas, e depois, antes de voltar a subir pelos primeiros degraus, ou ainda sentado ou deitado num divã, diante da mesa de trabalho, fazia com que o secretário relesse o que acabava de escrever. «Relê-me tudo isso, agora», dizia o príncipe, e o secretário relia com uma voz monótona as últimas linhas ditadas pelo seu senhor.

— O príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi sabia bem que naquelas terras malditas, o problema primordial era para o homem o de poder ser ele próprio, e que estávamos condenados à decadência, à derrota, à servidão enquanto não descobríssemos uma solução para o problema. Todos os povos que não foram capazes de descobrir maneira de serem eles próprios estão condenados à servidão, todas as raças à decadência, todas as nações ao desaparecimento — dizia Osman Djélâlettine éfendi —, ao desaparecimento.

— Escreve três vezes ao desaparecimento, não duas, três — dizia o príncipe imperial, do alto dos degraus das escadas ou medindo com os seus passos o salão onde se encontrava a mesa do secretário. Mas a voz, o tom em que pronunciara essas palavras faziam-no de súbito pensar que estava a imitar as maneiras de monsieur François, que lhe ensinara francês na sua infância, a atitude nervosa do preceptor e até a entoação doutoral que adoptava durante a lição de «ditado»; e o príncipe tornava-se bruscamente presa de uma crise, «que paralisava as suas faculdades intelectuais, fazia empalidecer todas as cores da sua imaginação». Instruído pela experiência dos anos e habituado àquelas crises, o secretário poisava a pena e, com o rosto dissimulado sob uma máscara rígida, vazia de expressão, esperava que passasse a cólera provocada no príncipe pela comprovação de não conseguir ser ele próprio.

As recordações de infância e de juventude do príncipe imperial Osman Djélâlettine eram muito diversas e por vezes contraditórias. O secretário lembrava-se de ter muitas vezes transcrito no passado cenas de felicidade de uma infância e de uma adolescência decorridas por entre alegria e animação, em Istambul, nos palácios, nas mansões e nos pavilhões de Verão ou de caça da dinastia imperial. Mas esse género de evocações só aparecia nos primeiros cadernos. «Sendo minha mãe Nourou-Djihan Kadine éfendi de todas as suas esposas aquela que ele mais amava, eu era, entre os trinta filhos de meu pai Abdul-Médjit Han, o seu preferido», revelara o príncipe, muitos anos antes. Mas, mais tarde, numa outra ocasião, ao evocar de novo a sua felicidade de outrora: «Era porque, dos seus trinta filhos, eu era o que meu pai, o sultão Abdul-Médjit Han, mais amava, que minha mãe, a sua segunda esposa, Nourou-Djihan Kadine, era a que, entre todas, ele preferia», afirmara também o príncipe.

O secretário escrevera tudo o que o príncipe ditara: nos apartamentos do Harém, no palácio de Dolma-Bahtchè, a corrida desvairada no dédalo dos corredores e das escadas, cujos degraus galgara quatro a quatro, do principezinho que procura escapar à perseguição do seu irmão mais velho Réchat, e o eunuco negro, guarda do Harém, que perde os sentidos ao apanhar na cara com a porta que o menino fechara com toda a força atrás de si; a sultana Muniré, com catorze anos, que desposa um mono de quarenta e cinco anos; na noite do seu casamento com o pachá, aperta nos braços o seu irmãozinho e jura-lhe que é infeliz porque doravante vai ter de viver longe dele, e por essa razão somente: «Pôs-se a chorar, e a gola branca do principezinho ficou encharcada com as lágrimas que ela derramou», escrevera o secretário. Durante uma recepção no palácio, em honra dos oficiais ingleses e franceses que tinham vindo a Istambul por ocasião da Guerra da Crimeia, a mãe do príncipe autorizou-o a dançar com uma inglesinha de onze anos, e sempre na companhia do seu par, o príncipe percorreu demoradamente as páginas de um livro ilustrado, no qual se podiam ver imagens de caminhos-de-ferro, de pinguins e de corsários, registara o secretário. No dia em que um novo navio recebeu o nome da sultana Bezmi-Alem, sua avó paterna, tendo o principezinho conseguido, depois de uma aposta, ingurgitar mais de dois quilos de lokoums com pistácio e água-de-rosas, aplicara uma sonora palmada na nuca do imbecil do seu irmão mais velho. Num grande armazém de Beyoglou, onde os automóveis do palácio os tinham levado a todos, irmãos e irmãs, eles, indiferentes às águas-de-colónia, às luvas, aos guarda-chuvas ou chapéus, tinham-se limitado a comprar o avental que o jovem caixeiro trazia posto, a pretexto de que poderiam utilizá-lo nos espectáculos que organizavam entre si, o que lhes valera uma severa punição depois de tal notícia ter chegado ao conhecimento do palácio, escrevera o secretário. Relatara toda a infância e toda a adolescência do príncipe; os livros que lia, os nomes dos seus médicos, anedotas sobre o embaixador da Grã-Bretanha, os navios que passavam diante das suas janelas, as vagas do Bósforo, os grandes vizires, os rangidos das portas, as vozes agudas dos eunucos, as caleches e as atrelagens, o som da chuva nas vidraças, as multidões em lágrimas durante o enterro do sultão, as imitações que o principezinho fazia do professor de piano italiano, Guateli pacha, tudo isso o secretário registara. E mais tarde, sempre que o príncipe imperial retomasse estas recordações, sempre com os mesmos pormenores, mas acrescentando-lhes comentários de ódio e de cólera, precisaria que as recordações deveriam ser sempre evocadas num contexto de bolos, de doces, de espelhos, de livros e de brinquedos abundantes, e de beijos que lhe haviam sido dados por dúzias de mulheres e de raparigas, cujas idades variavam entre sete e setenta anos.

A partir do dia em que contratou os serviços de um secretário que tomasse nota das suas reflexões e da história do seu passado, o príncipe imperial comprazia-se em repetir: «Estes anos tão felizes da minha infância duraram muito tempo. A estúpida felicidade da minha infância durou tanto tempo que, até à idade de exactamente vinte e nove anos, vivi como uma criança feliz e estúpida. Um império que faz com que um príncipe susceptível de um dia subir ao trono leve a vida de uma criança feliz e estúpida, e isso até aos vinte e nove anos de idade, está naturalmente condenado ao desmembramento, à derrocada e ao desaparecimento.» Até à idade de vinte e nove anos, o príncipe conhecera os prazeres, na medida em que um príncipe, que ocupa a quinta posição entre os herdeiros do trono, podia dispor do seu tempo; amara mulheres, lera livros, adquirira bens e mobílias; interessara-se, superficialmente, pela música e pela pintura, e mais superficialmente ainda pela carreira das armas; casara, tivera três filhos, dos quais dois eram rapazes e, como toda a gente, fizera amigos e inimigos. «Foi-me portanto necessário atingir a idade de vinte e nove anos para me desembaraçar de todos esses fardos, de todos esses objectos e dessas mulheres e desses amigos e de todas as minhas ideias estúpidas», diria mais tarde o príncipe ao secretário. Com a idade de vinte e nove anos, na sequência de certos acontecimentos históricos imprevistos, passara bruscamente da quinta para a terceira posição entre os herdeiros do trono. Mas, na opinião do príncipe, só os imbecis podiam considerar os acontecimentos em causa imprevistos. Depois da doença e da morte do seu tio Abdul-ziz, cujo espírito era tão extraviado como vagas as suas ideias e fraca a sua vontade, depois da subida ao trono do seu irmão mais velho, a única evolução lógica só podia ser a deposição do sobearno, a seguir à sua rápida queda na loucura. E depois de ter ditado estas frases do cimo das duplas escadas, no pavilhão de caça, o príncipe acrescentava que o seu irmão Abdulhamit era tão louco como aquele a quem sucedera; e quando descia pelo outro lado, afirmava que o príncipe herdeiro que presentemente o precedia, e que esperava, tal como ele, mas noutra residência, subir ao trono, era ainda mais louco do que os seus irmãos mais velhos. E depois de ter transcrito preto no branco e pela milésima vez estas palavras tão perigosas, o secretário registava pacientemente as declarações do príncipe, que explicava porque fora que todos os seus irmãos tinham enlouquecido; porque era que estavam condenados a enlouquecer, e porque era que todos os príncipes herdeiros otomanos não podiam deixar de enlouquecer.

Porque qualquer homem que passa a vida a esperar subir ao trono de um império está condenado à loucura, dizia o príncipe; porque qualquer homem que vê os seus irmãos enlouquecerem à força de esperarem a realização do mesmo sonho e se descobre forçosamente perante a alternativa: perder ou não perder a razão, acaba por, de modo automático, se afundar na demência; porque enlouquecemos, não por querermos ser loucos, mas porque tememos vir a sê-lo e vivemos nessa apreensão; porque nenhum príncipe imperial que, ao longo de anos de expectativa, se lembra pelo menos uma vez de que os seus avós, assim que subiam ao trono, suprimiam todos os seus irmãos por meio de estrangulamento, pode evitar a loucura; porque qualquer príncipe imperial que descobre num livro de história como um dos seus antepassados, o sultão Mehmet III, mandou executar os seus dezanove irmãos, sem excluir os ainda de colo, assim que foi proclamado sultão — porque qualquer príncipe herdeiro é obrigado a conhecer a história do Estado cujos destinos talvez vá governar e tem de ler por isso a história dos sultões que mandaram matar todos os seus irmãos sem excepção — fica consequentemente condenado à loucura; porque a certo momento dessa insuportável espera da morte, por meio do veneno ou do laço ou ainda a coberto de um suicídio, para todos esses príncipes que esperavam a sua vez como se espera pela morte, a loucura acabava por se tornar a saída mais fácil, uma vez que significava: «Retiro-me da corrida!»; era ela de facto o seu desejo mais profundo, mais secreto; a demência era o melhor meio de escapar aos espiões encarregados de os vigiarem, às armadilhas e às intrigas dos políticos que conseguiam introduzir-se junto deles, insinuando-se por entre as malhas desse controlo incessante. De escapar sobretudo às tão insuportáveis ilusões de vir a reinar. Porque qualquer príncipe que lançava um olhar ao mapa do Império sobre o qual sonhava reinar um dia e realizava como eram imensas, gigantescas, as regiões pelas quais talvez tivesse em breve de assumir a responsabilidade, e sobre as quais deveria reinar exclusivamente mediante a utilização da sua vontade, acabava por se ver muito depressa no limiar da loucura. De resto, qualquer príncipe que não experimentasse esse sentimento de imensidão ilimitada devia ser considerado louco, pois não se dava conta da dimensão do império cujos destinos dirigiria um dia. «Se, hoje, sou mais inteligente do que todos esses cretinos, esses dementes, esses imbecis que governam o Império Otomano, é graças a esse sentimento de imensidão aterradora!», acrescentava o príncipe Osman Djélâlettine éfendi, quando chegava a este ponto da enumeração dos motivos que levavam os príncipes à loucura. «A ideia da responsabilidade sem limites que deveria um dia assumir não me fez perder a razão, como a esses desgraçados tão estúpidos e tão fracos, não, pelo contrário, o facto de ter reflectido com seriedade sobre esse sentimento ajudou-me a tomar conta de mim; foi porque o pude colocar sob o controlo da minha atenção, da minha vontade, da minha decisão que descobri o problema mais importante da vida: podermos ser nós próprios ou não o podermos...»

A partir do momento em que passara da quinta para a terceira posição na lista de espera dos pretendentes ao trono, consagrara a sua vida aos livros. Considerava que qualquer príncipe, para quem a subida ao trono talvez não dependesse de um milagre, tinha a obrigação de se instruir, e pensava, com certo optimismo, que a leitura era o único meio de conseguir tal coisa. Como nutria ainda obstinadamente o sonho de descobrir em cada um dos livros que devorava ideias úteis, «viradas para o progresso», que poria rapidamente em prática, em vista da felicidade do Império Otomano e do seu radioso futuro; no desejo também de acreditar nesses sonhos aos quais se agarrava com todas as suas forças para evitar a loucura, e para se desembaraçar o mais depressa possível de tudo o que o fazia lembrar a sua antiga vida estúpida e infantil, abandonara o seu yali sobre o Bósforo, a sua mulher, os seus filhos, os seus móveis e os seus bibelôs, e todos os seus hábitos, e instalara-se num modesto pavilhão de caça, onde iria viver durante vinte e dois anos e três meses. O pavilhão ficava no topo de uma colina que, cem anos mais tarde, se cobriria de estradas pavimentadas, de carris, de construções de toda a espécie, sombrias, aterradoras, vagas cópias de diferentes estilos ocidentais, de liceus masculinos e femininos, de uma esquadra, de uma mesquita, de lavandarias, de lojas onde se vendiam roupas, flores e tapetes. Do outro lado dos muros construídos por ordem do príncipe imperial desejoso de se proteger das imbecilidades da vida no exterior, ou por ordem talvez do sultão, no propósito de vigiar melhor aquele irmão que se lhe afigurava perigoso, só se viam castanheiros e plátanos imensos, cujos ramos cem anos mais tarde se misturariam com os fios telefónicos e cujos troncos desapareceriam, tapados por revistas ilustradas com fotografias de mulheres nuas. E também cem anos mais tarde, os únicos sons que viriam do pavilhão seriam o crocitar dos corvos, suficientemente loucos para não abandonarem a colina, e, nos dias em que o vento soprava do mar, a música da fanfarra e os ecos do exercício que subiriam até ali dos quartéis empoleirados na colina fronteira. O príncipe imperial fizera com que fosse escrito muitas vezes que os seis primeiros anos passados naquele pavilhão tinham sido os mais felizes da sua vida: «Porque vivi esse período exclusivamente consagrado à leitura», ditava o príncipe. «Porque não fiz então outra coisa que não fosse sonhar com aquilo que lia. Porque vivi esses seis anos na companhia apenas das ideias e das vozes dos autores cujos livros lia.» E acrescentava: «No entanto, ao longo desses seis anos, nunca consegui ser eu próprio.» Sempre que o príncipe se lembrava com melancolia e nostalgia desses seis anos de felicidade, ditava ao seu secretário a mesma frase: «Eu não era eu próprio, talvez fosse isso a fazer a minha felicidade, mas o dever de um soberano não é ser feliz, é ser ele próprio!» E não deixava de acrescentar a seguinte reflexão que o secretário transcreveu talvez milhares de vezes: «Sermos nós próprios não é apenas um dever dos soberanos, mas o de cada um de todos os indivíduos!»

O príncipe descobrira claramente, certa noite, ao fim de seis anos, esta verdade, que descrevia como «o fim essencial, a descoberta mais importante» da sua existência: «Como fazia muitas vezes, durante essas noites de felicidade, imaginava-me sentado no trono otomano, admoestava algum imbecil, igualmente imaginário, a propósito de um assunto de Estado importante. E sempre em imaginação, terminava assim o meu discurso: "como tão bem diz Voltaire!" Era então que a imobilidade me inteiriçava, porque me dava conta do que tinha feito: o homem que, na minha imaginação, eu instalara no trono imperial, o trigésimo quinto soberano da dinastia, não era eu, mas Voltaire, ou antes, um indivíduo que imitava Voltaire. Um soberano que dispunha de plena autoridade sobre a vida ou a morte de milhões de súbditos, que reinava sobre regiões tão vastas, ilimitadas nos mapas, podia portanto não ser ele próprio, mas um outro! Foi nesse preciso instante que compreendi pela primeira vez a extrema gravidade de tal situação.»

Posteriormente, nos seus acessos de furor, o príncipe imperial narrou outros pormenores relativos às circunstâncias da sua descoberta; mas o secretário sabia bem que se resumiam numa intuição: um soberano que reinava sobre milhões de súbditos poderia permitir-se deixar que errassem no seu espírito frases pronunciadas por um outro? Um príncipe herdeiro destinado a dirigir um dos mais poderosos impérios do mundo não deveria obrigatoriamente agir segundo a sua própria vontade? O homem cujo cérebro é percorrido pelas ideias de um outro, como por pesadelos intermináveis, deverá ser considerado um soberano ou a sombra, o duplo desse outro?

«Quando compreendi que não devia ser uma sombra, mas um verdadeiro soberano, que devia ser eu próprio e não outro, decidi que devia libertar-me da influência dos livros que lera, não só ao longo dos seis últimos anos, mas de toda a minha vida», dizia o príncipe imperial quando iniciava a narração dos dez anos seguintes da sua existência. «Para ser eu próprio, e apenas eu próprio, era obrigado a desembaraçar-me de todos esses livros, de todos esses autores, de todas essas histórias e de todas essas vozes. O que me tomou dez anos...»

O príncipe decidiu fazer registar pelo seu secretário como conseguira eliminar, uns atrás dos outros, os livros que tinham exercido influência sobre ele. O secretário escreveu, seguindo o ditado do príncipe, que este queimara todos os volumes das obras completas de Voltaire que existiam no pavilhão, porque à força de o ler, à força de rememorar as suas ideias, transformava-se num francês, num ateu, dotado do sentido da réplica, apreciador de gracejos. As obras de Schopenhauer foram afastadas do pavilhão porque, sob a sua influência, o príncipe identificava-se com um pensador que reflectia horas e dias sobre uma «vontade livre», a tal ponto que o indivíduo pessimista em que ele próprio se tornava já não era o príncipe que acederia um dia ao trono dos seus antepassados, mas o filósofo alemão em pessoa, escrevia o secretário. Todos os tomos da preciosa edição das obras de Rousseau, que o príncipe fizera dispendiosamente vir do estrangeiro, tinham sido rasgados e afastados do pavilhão, porque o transformavam num selvagem, que procurava incessantemente surpreender-se em flagrante delito de pecado. — Mandei igualmente queimar todos os livros dos filósofos franceses, como Deltour ou De Passet, os de Morelli, que dizia que o universo era um lugar apreensível pela razão, como os de Brichot, que afirmava exactamente o contrário — ditava o príncipe imperial — porque, à força de os ler, eu deixava de ser quem tinha para comigo o dever de ser, um príncipe que um dia seria rei, para me tornar um polemista, um professor irónico, esforçando-se por refutar as observações estúpidas dos pensadores que o precederam. — Mandara também queimar as Mil e Uma Noites, porque aqueles sultões que percorriam a capital disfarçados e com os quais ele se identificava sob a influência do livro, já nada tinham de comum com o soberano que o príncipe queria tornar-se. Mandara queimar o Macbeth, porque sempre que relia a peça, descobria-se a si próprio nesse personagem tão imbecil, nesse poltrão disposto a manchar as mãos de sangue para subir ao trono e que, pior ainda, longe de se envergonhar desse facto, extraía dele uma espécie de orgulho lírico. Mandara retirar do pavilhão o Mesnevi de Mevlâna, porque sempre que se extraviava na confusão e na desordem das suas histórias, acabava por se identificar com um dervixe optimista, persuadido de que as histórias desordenadas constituíam a própria essência da vida. — Mandei queimar Xeque Galip porque, ao lê-lo, via-me sob o aspecto de um rapsodo melancólico — explicava o príncipe. — Mandei queimar Bottfolio, porque quanto mais o lia, mais me sentia a transformar-me num homem do Ocidente que sonhava tornar-se um homem do Oriente; e mandei queimar Ibn Zerhani porque, à sua leitura, transformava-me num oriental que queria tornar-se um homem do Ocidente. Porque me recusava a tornar-me sucessivamente um oriental, um ocidental, um aventureiro, um maníaco, um personagem qualquer saído de todos esses livros. — E logo a seguir a tais comentários, o príncipe imperial repetia com entusiasmo a seguinte frase que, para o secretário que a registara havia tantos anos num número incalculável de cadernos, se transformara numa espécie de refrão: «Queria ser só eu próprio, ser eu próprio, só eu próprio e nada mais!»

Mas sabia que não se tratava de coisa fácil. Uma vez desembaraçado de toda uma série de livros, quando acabou por deixar de ouvir os ecos das histórias que esses livros continuaram a contar-lhe durante anos, o silêncio que invadiu o seu espírito tornara-se insuportável, e o príncipe mandava contra vontade um dos seus homens à cidade para adquirir novos livros. Começava por troçar dos autores desses livros que lia com avidez assim que os desembrulhava, depois queimava-os com raiva, sempre segundo o mesmo ritual; mas porque continuava a ouvir as suas vozes, porque continuava involuntariamente a imitar os autores dessas vozes, decidia que só poderia desembaraçar-se deles por meio da leitura de outros livros deles, com a impressão dolorosa de trocar um mal por outro, e enviava de novo o seu servidor a Babiâli ou a Beyoglou, aos livreiros que vendiam livros estrangeiros e que esperavam a visita do enviado do príncipe com extrema impaciência. «A partir do dia em que decidiu ser ele próprio, o príncipe Osman Djélâlettine éfendi bateu-se contra os livros durante exactamente dez anos», escrevera o secretário. «Substitui "bateu-se" por "esteve em rixa", corrigira o príncipe. Depois de ter travado durante dez anos o seu combate contra os livros e os ecos que os livros despertavam nele, Osman Djélâlettine éfendi compreendera que só poderia ser ele próprio contando as suas próprias histórias, elevando a sua própria voz para sufocar a dos livros, e contratara então um secretário.

— Durante esses dez anos, o príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi bateu-se não só contra os livros e as suas histórias, mas contra tudo o que, em seu entender, o impedia de ser ele próprio — acrescentava o príncipe gritando do alto das escadas, e o secretário transcrevia cuidadosamente pela milésima primeira vez essa frase enunciada sempre com a mesma convicção e a mesma emoção, apesar de mil vezes repetida, bem como as frases que se lhe seguiam, carregadas todas da mesma determinação. O secretário descrevera ainda o combate travado pelo príncipe ao longo desses dez anos, não só contra os livros, mas igualmente contra tudo o que o rodeava e que o influenciava tanto como os livros: porque aqueles móveis, aquelas mesas, aqueles sofás, aquelas mesinhas punham em risco o seu objectivo, pela serenidade ou pela angústia que podiam provocar nele; porque todos aqueles cinzeiros ou aqueles candelabros atraíam o seu olhar, o príncipe imperial não conseguia concentrar-se nas suas reflexões que lhe permitiriam ser ele próprio; porque aquelas paredes nuas, aqueles jarros em cima das mesas, aquelas almofadas macias dos divãs, mergulhavam-no em estados de alma aos quais ele se recusava; porque aqueles relógios, aquelas taças, aquelas penas, aquelas velhas cadeiras estavam carregados de recordações, de associações de ideias que o impediam de ser ele próprio.

Durante esses dez anos, escreveu o secretário, o príncipe não se contentara com bater-se contra os móveis e os bibelôs que afastara do seu olhar, mandando-os queimar, partir ou deitar fora, batera-se também contra as recordações que o transformavam fazendo dele, de cada vez, um outro homem. — Ver ressurgir de súbito no meio dos meus pensamentos e dos meus sonhos um pormenor do meu passado, por simples, por mínimo, por sem importância que fosse, como um assassino implacável apostado na minha perda, um louco furioso visando durante anos uma misteriosa vingança, desvaira-me a ponto de me impedir de reflectir — dizia o príncipe imperial. Para um homem que, depois de ter acedido ao trono otomano, teria de se preocupar com a sorte de milhões de pobres pessoas, descobrir nos seus pensamentos uma taça de morangos que comera em criança ou o gracejo estúpido de um banal eunuco transformava-se numa experiência aterradora. Um soberano que tem o dever de ser ele próprio, preocupando-se unicamente com as suas reflexões, consciente das consequências da sua vontade e das suas decisões, é obrigado a lutar contra a melodia caprichosa e sempre fortuita que as suas recordações lhe cantam (e não se trata apenas do caso do soberano, mas do de todos e de cada um!) «Para se defender das recordações que vinham perturbar o seu pensamento e a sua decisão, o príncipe Osman Djélâlettine éfendi mandara suprimir todos os perfumes no seu pavilhão, todos os objectos e roupas que lhe eram familiares; deixara de se interessar por essa arte apaziguadora a que chamamos música; já não abria o seu piano branco e chegara ao ponto de mandar pintar de branco todas as paredes», escrevia o secretário.

— Mas o que há de pior, o que é ainda mais insuportável do que todas as recordações, objectos ou livros são ainda os homens! — acrescentava o príncipe, deitado no único divã que conservara, depois de ter feito com que o secretário relesse o que acabara de lhe ditar. Os visitantes de toda a espécie: os que conseguiam introduzir-se no pavilhão às horas mais incongruentes, nos momentos mais inoportunos, arrastando atrás de si os seus boatos miseráveis, referindo os rumores mais vulgares, que pretendiam vir prestar um serviço, mas se limitavam a perturbar a sua serenidade. Longe de ser tranquilizador, o seu afecto tornava-se sufocante. Falavam apenas com o objectivo de provarem que tinham opiniões, debitavam histórias umas atrás das outras para se mostrarem interessantes. Incomodavam quando queriam manifestar amor. Talvez nada disto fosse muito grave, mas a seguir a cada visita de tais imbecis, dessas pessoas completamente desinteressantes, desses denunciantes em envergadura, o príncipe, tão preocupado em permanecer a sós com as suas reflexões, tinha dificuldade em desembaraçar-se do sentimento de não ser ele próprio. «Para o príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi, o maior obstáculo em que esbarra aquele que quer ser ele próprio são os outros», registara um dia o secretário. E, numa outra ocasião, escrevera: «O maior prazer dos humanos é forçar os outros a parecerem-se com eles.» «O que mais receava o príncipe imperial eram as relações que um dia teria de estabelecer com os outros no dia em que acedesse ao trono», transcrevera ainda o secretário. — Deixamo-nos influenciar pela compaixão pelos desgraçados, pelos miseráveis — dizia o príncipe. — Deixamo-nos influenciar pelas pessoas mais comuns, as que não têm personalidade, porque, em contacto com essas pessoas, acabamos por nos tornar tão comuns, tão desprovidos de particularidades como elas. Mas os que têm personalidade, que merecem o nosso respeito, também nos influenciam, porque nos pomos a imitá-los sem dar por isso. E, para dizer a verdade, os mais perigosos para nós são estes últimos -— dizia o príncipe. — Escreve também que os afastei a todos de mim, a todos! Regista-o bem! Regista ainda que não travo este combate por mim apenas, apenas para poder ser eu próprio, mas que me bato pela salvação de milhões de homens!

Com efeito, no decorrer do décimo sexto ano da «batalha inaudita», do combate que era para ele «uma questão de vida ou de morte», e que travava para não se deixar influenciar por ninguém, uma noite entre tantas outras em que se debatia contra os objectos familiares, os perfumes preferidos, os livros cuja influência sofrera, o príncipe, que contemplava através das persianas «à ocidental» o luar e o grande jardim sob a neve, compreendera que o seu combate, no fundo, não era apenas seu, mas o de milhões de infelizes, cuja sorte estava ligada à do Império Otomano em pleno declínio. Como o secretário escreveu dezenas de milhares de vezes, talvez ao longo dos últimos seis anos do príncipe, «todas as nações incapazes de serem elas próprias, todas as civilizações que copiam outras, todos os povos que as histórias dos outros tornam felizes» estavam condenados à queda, ao desaparecimento, ao esquecimento. Assim, no decorrer do décimo sexto ano que viveu retirado no seu pavilhão e na expectativa da sua subida ao trono, na época em que compreendeu claramente que o único meio para ele de lutar contra as histórias que o assombravam era dar brilho ao que ele próprio contava, e em que decidiu por isso contratar os serviços de um secretário, o príncipe soube enfim que a luta que vivera durante dezasseis anos como uma experiência individual e espiritual, era na realidade «uma luta de vida ou de morte histórica», «o último estádio do combate a favor ou contra uma mutação, com que se confrontava um povo uma vez todos os mil anos», a etapa mais importante de uma evolução, «aquilo que os historiadores considerarão, dentro de alguns séculos, justificadamente, uma viragem histórica.»

Pouco depois dessa noite de luar, que, por cima do jardim coberto de neve, lembrava o infinito e o medo que ele inspira, na época em que o príncipe instalou diante de uma mesa de acaju, em frente do seu divã, o velho secretário fiel e paciente que escolhera, e em que começou a contar a sua própria história e a sua descoberta, recordaria que na verdade tomara consciência havia muitos anos dessa «dimensão histórica, extremamente importante» da sua própria história. Antes de se encerrar no seu pavilhão, não vira com os seus olhos que as ruas de Istambul se transformavam um pouco mais de dia para dia, imitando uma cidade imaginária de um país estrangeiro que não existia? Não sabia que os desgraçados que se apinhavam nessas ruas tinham mudado a sua maneira de vestir, adoptando a indumentária dos viajantes ocidentais ou as roupas que podiam ver nas fotografias estrangeiras? Não descobrira que em vez de se contarem os contos que lhes haviam sido transmitidos pelos seus pais, os homens melancólicos que à noite se reuniam à volta de um fogão, nos cafés dos subúrbios, ouviam ler em voz alta as debilidades com que os jornalistas de terceira ordem enchiam os jornais, ou os plágios de Os Três Mosqueteiros ou de O Conde de Monte Cristo, cujos heróis eram enfeitados com nomes muçulmanos? Pior ainda: não tivera ele próprio outrora o hábito de frequentar as livrarias de arménios que editavam esses livros ridículos, a pretexto de que faziam «passar o tempo»? No meio dessa banalidade para que se deixava arrastar na companhia de criaturas tão lamentáveis, tão infelizes, deserdadas, antes de ter dado provas da sua coragem e da sua determinação retirando-se para o seu pavilhão isolado, sempre que se via ao espelho, não experimentava o príncipe a impressão de ver apagar-se a pouco e pouco o mistério do seu rosto, do mesmo modo que todas as outras pobres pessoas tinham perdido também a sua expressão? «Sem dúvida», escrevia o secretário, a seguir a cada uma destas interrogações; bem sabia ele que era esse o voto do príncipe. «Sim, o príncipe imperial comprovava a mudança que se operava no seu rosto.»

Não tinham passado dois anos desde o início dos seus «trabalhos», como dizia o príncipe, quando este último fez com que o secretário tudo registasse: do seu gosto dos lokoums aos sons dos barcos que tanto gostava de imitar na sua infância, dos pesadelos que o tinham assaltado durante os quarenta e sete anos que vivera, aos títulos de todos os livros que lera ou à descrição das roupas que envergara, das que gostara de vestir como das que não gostara, a todas as doenças por que passara, ou a todas as espécies animais que conhecia. Fazia-o, como gostava de repetir, «atribuindo o seu justo valor a cada palavra, a cada frase, à luz da verdade» que descobrira. De manhã, quando o secretário tomara já lugar à mesa de acaju e o príncipe, pelo seu lado, se instalara no divã em frente da mesa, ou andava de um lado para o outro da sala, ou se postava num dos degraus das escadas, talvez já soubessem os dois que o príncipe não teria nesse dia uma história para contar. Mas o que procuravam ambos era aquele silêncio. — Quando o homem já não tem nada para contar, isso significa que está muito perto de ser ele próprio — dizia o príncipe. — É só quando se esgota tudo o que o homem tinha para contar, quando ele fica nesse silêncio profundo, que significa que se calaram todas as recordações, todos os livros, todas as histórias, e a sua própria memória também, é só então que pode ouvir subir, do mais fundo da sua alma, dos labirintos tenebrosos e sem limites do seu ser, a sua própria voz, essa voz que lhe permitirá ser ele próprio.

Numa dessas manhãs, enquanto esperavam os dois que essa voz subisse, que se elevasse lentamente até eles, como se viesse de muito longe, do poço perdido dos contos populares, o príncipe pôs-se a falar do amor e das mulheres, tema que raramente até então abordara, qualificando-o de «muito perigoso». Durante cerca de seis meses, falou dos seus antigos amores, das ligações em que o amor não desempenhara qualquer papel, das suas relações com as mulheres do Harém, que evocava com melancolia e compaixão, sob reserva de apenas duas ou três excepções.

O lado aterrador de toda essa espécie de relações, segundo o príncipe, era o próprio facto de uma mulher como todas as outras, nada tendo de notável, poder invadir, sem que nos déssemos conta, uma grande parte dos nossos pensamentos. O que não o inquietara na sua primeira juventude, na época do seu casamento, nem sequer quando viera instalar-se no pavilhão de caça, abandonando a sua esposa e os seus filhos no yali na margem do Bósforo, quer dizer, até à idade de trinta e cinco anos, porque não descobrira ainda o fim que mais tarde se fixara: «Ser simplesmente o seu Si Próprio», «não sofrer qualquer influência». Nessa época, tal como as multidões nas ruas, o príncipe extraíra até orgulho de estar apaixonado, porque «esta sociedade acarneirada e destituída de carácter» lhe ensinara, como a todos os outros, que a possibilidade de esquecer tudo o resto graças ao amor experimentado por uma mulher ou um efebo ou ainda o amor de Deus, «o desaparecimento efectivo do ser no amor», eram sentimentos dos quais nos podíamos gabar e orgulhar.

Depois de se ter encerrado no seu pavilhão e de ter consagrado seis anos à leitura, quando compreendeu que o problema essencial da vida era o de conseguirmos ser nós próprios, o príncipe em breve decidira que devia evitar as mulheres. Confessava, sem dúvida, que a total ausência da mulher despertava nele um sentimento de frustração. Mas sabia com certeza que qualquer mulher de que se aproximasse perturbaria os seus pensamentos, e que se introduziria pouco a pouco nos sonhos que ele queria extrair apenas de si próprio. Durante um certo período, pensara de facto em prevenir-se do veneno chamado amor, mantendo relações com um grande número de mulheres, mas como agia com um propósito unicamente utilitário, o de se habituar ao amor, de se saciar da embriaguez do amor, essas mulheres não o tinham interessado. A partir de então, passara a ver sobretudo Leylâ hanim, «a mais terna, a mais inocente, a menos original, a menos perigosa», fizera ele com que o secretário registasse, das mulheres que conhecera, porque estava certo de nunca poder apaixonar-se por ela, justamente devido às suas características. «O príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi pôde confiar-se com toda a serenidade a Leylâ hanim, porque estava convencido de que nunca a poderia amar», escrevera uma noite o secretário, transcrevendo o ditado do príncipe, porque doravante trabalhavam também de noite. «Mas como era a única mulher a quem eu podia falar de coração aberto, apaixonei-me imediatamente por ela», acrescentara o príncipe. «Foi um dos períodos mais tremendos da minha vida.»

O secretário registara a narração das querelas que se davam entre o príncipe e Leylâ hanim, quando se encontravam no pavilhão. Leylâ hanim deixava a mansão do pachá seu pai na sua caleche, escoltada pelos seus guardas, e chegava ao pavilhão ao fim de meio dia de viagem. Instalados diante da mesa posta para eles e que se parecia com aquelas cujas descrições que se liam nos romances franceses, jantavam a discutir poesia ou música, como os personagens tão distintos dos mesmos romances, e logo a seguir ao fim do jantar, precipitavam-se numa querela, que despertava a inquietação dos cozinheiros, dos criados e dos cocheiros, que os ouviam pelas portas entreabertas, porque a hora da partida chegara. — O motivo destas querelas nunca era muito evidente — explicou um dia o príncipe. — Irritava-me com ela muito simplesmente por ela me impedir de ser eu próprio, porque os meus pensamentos perdiam a sua clareza por sua causa, porque, sempre por sua causa, eu me tornava incapaz de ouvir a voz que subia do mais fundo de mim próprio. E isto durou até à morte dela, que sobreveio na sequência de um erro, em relação ao qual ignoro, e ignorarei sempre, se fui ou não responsável.

O príncipe fizera com que o secretário registasse um dia que a morte de Leylâ hanim lhe causara desgosto, mas que o libertara. O secretário, sempre discreto, sempre dócil, sempre respeitador, agiu então como nunca fizera ao longo de seis anos de trabalho; mas inutilmente tentou, e por várias vezes, voltar ao tema daquele amor e daquela morte, pois o príncipe não voltou a referir-se-lhe senão quando bem entendeu e sob a forma que escolhera.

Assim, dezasseis meses antes da sua morte, uma noite, depois de ter explicado ao secretário que se não conseguisse ser ele próprio, se fosse derrotado no combate que havia quinze anos travava no seu pavilhão, as ruas de Istambul se tornariam as de uma cidade de infortúnio, «que não pôde ser ela própria», e que os desgraçados que iam e vinham pelas ruas, os parques, as praças que eram arremedos de praças, de passeios e de parques de outras cidades, também nunca, pelo seu lado, poderiam ser autênticos; embora não tendo jamais, durante tantos anos, saído do jardim do seu pavilhão, dizia ele, conhecia de cor todas as ruas daquela cidade que lhe era tão querida, cada um dos seus passeios, cada um dos seus candeeiros de rua, cada um dos seus armazéns, que permaneciam intactos na sua imaginação, a tal ponto que se diria que voltava todos os dias a vê-los; uma noite, portanto, com uma voz melancólica, velada, na qual já não transparecia a sua cólera habitual, fizera o secretário registar como, na época em que Leylâ hanim vinha vê-lo todos os dias ao pavilhão, ele passava uma parte do seu tempo a imaginar a caleche dela atravessando as ruas da cidade. «Nesses dias em que o príncipe imperai Osman Djélâlettine éfendi se batia por ser ele próprio, consagrava metade do dia a perguntar-se por que ruas passava a caleche, puxada por um cavalo castanho e outro alazão, que ladeiras subia, e depois do jantar e da querela costumada, passava o resto da noite a representar-se o regresso da caleche, que, seguindo as mais das vezes o mesmo trajecto, voltava a levar para casa de seu pai Leylâ hanim, com os olhos molhados de lágrimas», escrevera o secretário com a sua bela caligrafia tão cuidada. Numa outra ocasião, cem dias apenas antes da sua morte, para abafar sem dúvida as vozes e as histórias dos outros que recomeçava a ouvir, o príncipe pusera-se a enumerar com raiva as diversas personalidades que, ao longo de toda a sua vida, adoptara, consciente ou inconscientemente, que trouxera em si, como uma segunda alma, e fizera com que o secretário registasse que, entre todas as personalidades que um pobre sultão reduzido a apresentar-se sempre sob um aspecto diferente tivera de envergar como nova indumentária, aquela que ele preferia era a do homem apaixonado por uma mulher cujos cabelos cheiravam a lilás. O secretário, que lia e relia atentamente cada linha, cada frase, e que, ao longo de dez anos, tomara posse, até ao pormenor, da memória e do passado do príncipe, que deles se impregnara, compreendera que a mulher perfumada de lilás não era outra senão Leylâ hanim. Porque se lembrara de que o príncipe já lhe ditara a história de um amante que não conseguira ser ele próprio por culpa de uma mulher cujos cabelos cheiravam a lilás, e que morrera devido a um acidente ou a um engano, do qual o amante talvez tivesse sido responsável — sem jamais poder sabê-lo ao certo —, sendo certo apenas que, nem sequer depois da morte da mulher, ele conseguira tornar-se ele próprio, uma vez que não pôde esquecer o perfume de lilases.

Os últimos meses que o príncipe e o secretário viveram no pavilhão decorreram no meio «de um trabalho intenso, de uma esperança imensa e de uma fé profunda», como declarara o príncipe com o entusiasmo que precedera a sua doença. Foram esses os dias em que o príncipe ouviu ainda mais fortemente a voz que lhe asseverava a sua autenticidade, à medida que ia ditando as suas próprias histórias. Trabalhavam de noite até muito tarde, e depois o secretário voltava para sua casa, fosse a hora que fosse, na carruagem que, atrelada, o esperava no jardim, para regressar muito cedo na manhã seguinte, para retomar o seu lugar à mesa de acaju.

O príncipe imperial ditava-lhe a história dos reinos que tinham tombado por não terem podido ser eles próprios; das nações que haviam desaparecido por terem copiado outras nações; dos povos caídos no esquecimento em regiões desconhecidas e longínquas, por não terem podido viver a sua própria vida. Os ilírios tinham desaparecido da cena da história porque não tinham sido capazes de encontrar em dois séculos um rei ou uma personalidade suficientemente forte para os ensinar simplesmente a serem eles próprios. A queda de Babel não ficara a dever-se, ao contrário do que se pensava, ao desafio lançado a Deus pelo rei Nemrod, mas ao facto de ele ter deixado secar todas as fontes que lhe teriam permitido ser ele próprio ao consagrar toda a sua energia à construção da torre. Na época, os Lapitas nómadas estavam em vias de se sedentarizarem e de fundarem um verdadeiro Estado, mas, fascinados pelo modo de vida dos habitantes de Aitipal, com quem mantinham relações comerciais, começaram a imitá-los em todas as coisas, pelo que desapareceram. Como diz Tebarí na sua História, a queda dos Sassânidas ficou a dever-se ao facto de os seus três últimos soberanos, Kavaz, Ardashir e Yazdgard, enfeitiçados pelos Bizantinos, os Árabes e os Judeus, tendo sido incapazes de ser eles próprios, ao longo de toda a sua vida. A poderosa Lídia caiu cinquenta anos apenas depois da construção, em Sardes, a sua capital, do primeiro templo edificado sob a influência de Suza, e desapareceu para sempre da cena da história. Os Seberos, que estavam à beira de construir um grande império na Ásia, eram um povo de que nem sequer os próprios historiadores se lembravam já, como se toda a sua população tivesse sido levada por uma epidemia, não só por terem perdido a sua memória, assim que começaram a imitar o trajo e os enfeites dos Sármatas e a recitar os seus poemas, mas por terem também esquecido o segredo que lhes permitira ser eles próprios. — Os Medos, os Pafequiões, os Celtas... — ditava o príncipe — conheceram o declínio e o desaparecimento porque deixaram de ser eles próprios — acrescentava o secretário sem esperar que o seu senhor proferisse estas últimas palavras. — Os Cíntias, os Calmuques, os Micênicos... — enumerava o príncipe — ... conheceram o declínio e o desaparecimento porque deixaram de ser eles próprios — escrevia o secretário. Quando, extenuados, interrompiam muito tarde o seu trabalho, podiam ouvir no jardim um grilo audacioso quebrando o silêncio da noite.

Quando o príncipe apanhou frio e teve de se acamar, num dia de Outono e de vento, em que as folhas avermelhadas dos castanheiros caíam no tanque onde os nenúfares ainda estavam em flor e as rãs coaxavam, nem ele nem o secretário atribuíram grande importância a esse facto. Era o período em que o príncipe descrevia as desgraças que se abateriam sobre as multidões extraviadas, nas ruas cada vez mais abastardadas de Istambul, se o príncipe não conseguisse ser ele próprio, ocupar o trono otomano dispondo da força que então lhe garantiria a sua personalidade. — Essas pessoas terão por sua própria vida o olhar dos outros — predizia o príncipe — ouvirão as histórias dos outros povos em vez de prestarem atenção às suas próprias histórias, ficarão fascindas pelo espectáculo dos rostos dos outros, e esquecerão os seus próprios rostos. — Fizeram uma tisana com as flores das tílias do jardim e trabalharam até muito tarde pela noite dentro.

Quando, no dia seguinte, o secretário subiu ao primeiro piso, para ir buscar um segundo edredão para o seu senhor, que estava deitado no divã e ardia em febre, verificou, com uma estupefacção estranha, que as divisões do pavilhão estavam vazias: ao longo dos anos, todas as portas tinham sido retiradas, todos os móveis, mesas e cadeiras, tinham desaparecido. Nas salas desertas, nas paredes nuas, na caixa das escadas reinava uma brancura que parecia vinda de um sonho. Numa das divisões mostrava-se ainda um Steinway branco, único em Istambul e que datava da infância do príncipe; não era utilizado havia anos e se não fora deitado fora, era sem dúvida porque todos o tinham esquecido. Aquela brancura, que dava a impressão de que todas as recordações se tinham dissipado, de que a memória se petrificara, e de que com o desaparecimento dos sons, dos perfumes e dos objectos, o próprio tempo parara, o secretário redescobriu-a na da luz que entrava em grandes vagas pelas janelas do pavilhão, como se se derramasse sobre um outro planeta misterioso. Enquanto descia os degraus das escadas, com um edredão branco e que não exalava qualquer perfume nos braços, o secretário teve a impressão de que o divã onde o príncipe estava deitado, a mesa de acaju na qual trabalhava havia tantos anos, as folhas brancas em cima da mesa, e as próprias janelas, eram tão frágeis, tão débeis e tão irreais como os elementos de uma casa de bonecas. Quando estendeu o edredão por cima do seu senhor, que não se barbeava havia dois dias, notou que a barba dele embranquecera. Tinha à cabeceira meio copo de água e comprimidos brancos.

— A noite passada, vi a minha mãe em sonhos, ela estava à minha espera numa floresta impenetrável e sombria, numa região distante

— ditou o príncipe do seu divã. — Derramava-se água de um imenso jarro vermelho, derramava-se lentamente, espessa como xarope. E eu compreendia então que pudera aguentar, porque me obstinara, ao longo de toda a minha vida, em ser eu próprio! — ditou o príncipe.

— O príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi passou a vida a esperar que se fizesse silêncio nele, para conseguir ouvir a sua própria voz e a sua própria história — escreveu o secretário. — Para ouvir o silêncio — repetiu o príncipe. — É necessário que os relógios não parem em Istambul — ditou o príncipe. — Quando, no meu sonho, eu via os relógios — disse o príncipe. O secretário completou a frase: — pensou que só contavam as histórias dos outros.

— Houve um silêncio. — Tenho ciúmes das pedras do deserto, dos rochedos das montanhas onde nunca ninguém pôs o pé, das árvores dos vales que nunca ninguém pôde ver; tenho ciúmes deles porque eles puderam permanecer eles próprios — ditou o príncipe com uma voz firme, decidida. — No meu sonho, enquanto passeava no jardim das minhas recordações..'. — disse o príncipe, e depois calou-se. — Não, não, nada — acrescentou. — Nada — registou cuidadosamente o secretário. Houve de novo um silêncio longo, muito longo. Depois o secretário levantou-se, aproximou-se do divã, examinou atentamente o rosto do príncipe, e regressou sem fazer barulho à sua mesa: «O príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi, imediatamente a seguir a ter-me ditado estas palavras, morreu nesta quinta-feira, 7 de Chabane de 1321, às três horas e um quarto da manhã, no seu pavilhão de caça na colina de Techvikiyé», escreveu. E vinte anos mais tarde, sempre com a mesma caligrafia, o secretário registou: «Sete anos depois da morte do príncipe imperial Osman Djélâlettine éfendi, cuja vida foi demasiado breve para lhe permitir aceder ao poder, o seu irmão mais velho. Mehmet Réchat éfendi — aquele a quem o príncipe aplicara uma palmada na infância — subiu ao trono. Durante o seu reinado, o Império Otomano envolveu-se na guerra e caiu.»

Estes cadernos tinham sido confiados a Djélâl Salik por um parente do secretário. E esta crónica foi encontrada entre os papéis do jornalista depois da sua morte.

 

— Sim, eu, sou eu — disse Galip, depois de ter terminado a história do príncipe imperial. — Eu sou eu! —. Porque conseguira contá-la, estava tão convencido de se ter tornado ele próprio, tão feliz, que morria de vontade de correr ao «Coração da Cidade», para se instalar à mesa de trabalho e escrever novas crónicas sob o nome de Djélâl.

Saiu do hotel. O motorista do táxi começou a contar-lhe uma história. Como compreendera bem que só podemos ser nós próprios contando histórias, Galip ouvia-o com benevolência.

Um século mais cedo, numa quente noite de Verão, enquanto os engenheiros turcos e alemães encarregados da construção da gare de Haydar-Pacha estudavam os seus planos desdobrados em cima de uma mesa, um homem que fazia pesca submarina, muito perto da costa, descobriu uma moeda no fundo do mar. Nela figurava um rosto de mulher, estranho e fascinante. O pescador foi mostrar a moeda a um dos engenheiros turcos que estava a trabalhar à sombra de grandes guarda-sóis negros, na esperança de que ele lhe pudesse revelar, graças às letras representadas no rosto, o mistério que este lhe escondia. Mais que pela legenda gravada na moeda, o jovem engenheiro ficou impressionado pela expressão enfeitiçante do rosto da imperatriz bizantina, a tal ponto que se deixou tomar por uma estupefacção, um medo que surpreenderam o pescador: no rosto imperial, rodeado pelas letras que ele transcrevera imediatamente em caracteres latinos e árabes, o jovem descobrira com efeito uma certa semelhança com uma prima sua, com a qual durante anos sonhara casar e que estava prestes a casar-se com outro...

— Sim, a rua está vedada ao trânsito do lado da esquadra de Techvikiyé — respondeu o motorista à pergunta de Galip. — Parece que voltaram a matar lá alguém.

Galip apeou-se do táxi e tomou pela pequena rua que liga a avenida Emlâk à avenida de Techvikiyé. As luzes azuis dos faróis rotativos dos carros de polícia parados ao fundo da rua reflectiam-se no asfalto molhado com o fulgor baço e triste do néon. Na praça pequena, precisamente em frente da loja de Alâaddine, onde as luzes ainda estavam acesas, reinava um silêncio que Galip nunca conhecera até então; um silêncio que só nos seus sonhos lhe não teria parecido estranho.

A circulação fora interrompida. Nem um ramo de árvore se agitava. Não havia o mais pequeno sopro de vento. Na pequena praça reinava a atmosfera de cores e sons artificiais de um palco de teatro. Entre as máquinas de costura Singer da montra, os manequins pareciam dispostos a irem juntar-se aos polícias fardados e à paisana. «Sim, também eu sou eu próprio!», teve Galip vontade de gritar. Quando o flasb azul-prateado de um fotógrafo cintilou entre os curiosos e os polícias, exactamente como se descobrisse a chave de um sonho, ou uma chave perdida havia anos, como se reconhecesse um rosto que não queria ver mais, deu por uma mancha branca que jazia no passeio, a dois passos da montra com as máquinas de costura. Um corpo só: Djélâl? O cadáver fora tapado com jornais. Mas onde estava Ruya? Galip aproximou-se do morto.

Uma cabeça emergia da coberta de jornais que tapava por completo o corpo, e repousava no passeio enlameado, como numa almofada. Os olhos estavam muito abertos, lia-se uma expressão de cansaço no rosto, que parecia mergulhado nas suas reflexões, ou num sonho, e sereno também, como se contemplasse as estrelas: estou a repousar e a lembrar-me, parecia ele dizer. Onde estava Ruya? Um sentimento de jogo, de brincadeira e também de remorso invadiu Galip. Não se via uma mancha de sangue. Como adivinhara ele, antes ainda de o ver, que o cadáver era de Djélâl? «Bem sabem, eu não sabia que sabia tudo!», sentia vontade de dizer. Lembrava-me, lembrávamo-nos todos: um poço, um botão violeta, algumas moedas, caídas para trás do armário, caricas de garrafas de gasosa, botões. Contemplamos as estrelas, entre os ramos das árvores, as estrelas. Tapem-me bem com a coberta, parecia dizer o morto, não quero ter frio. Tapem-no bem, para ele não ter frio. Galip teve muito frio. «Eu sou eu!» Reparou que as folhas de jornal largamente abertas sobre o cadáver tinham sido tiradas de dois diários: o Milliyet e o Tercuman. O arco-íris das manchas de fuel. Aquelas páginas onde nunca havia quem deixasse de procurar um artigo de Djélâl. Sobretudo, não apanhes frio. Está frio.

Pela porta aberta de um carro de polícia, Galip ouviu a voz metálica da rádio: estavam a chamar o chefe da esquadra. Mas onde está a Ruya, meus senhores, onde está ela? Os semáforos ao fundo da rua acendiam e apagavam em vão: verdes, vermelhos. Uma vez e outra: verdes, vermelhos. Reflectiam-se na montra da pastelaria: verdes, vermelhos. Eu lembro-me, eu lembro-me, repetia Djélâl. O estore metálico da loja de Alâaddine estava descido, mas lá dentro as luzes estavam ainda acesas. Poderia tratar-se de um indício? Senhor comissário, estou a escrever o primeiro romance policial deste país, teve Galip vontade de dizer, e olhem, aqui está o primeiro indício: as luzes ainda estão acesas. No chão, há pontas de cigarros, bocados de papel, lixo. Entre os polícias, Galip escolheu o mais jovem, aproximou-se dele para lhe fazer algumas perguntas.

O homicídio tivera lugar entre as vinte e uma horas e trinta e as vinte e duas horas. Não, não se sabia quem fora o assassino. O infeliz devia ter caído morto imediatamente. Sim, tratava-se de um jornalista muito conhecido. Não, estava sozinho. O polícia também não sabia, pelo seu lado, porque é que conservavam a vítima no local do crime. Não, obrigado, não fumava. Sim, a profissão de polícia era dura. Não, não, não havia mais ninguém, a vítima estava sozinha, disso tinha a certeza. Mas porque era que o senhor estava a fazer tantas perguntas? Qual era a profissão do senhor? E que fazia ali de noite, tão tarde? O senhor podia mostrar-lhe os seus documentos?

O polícia estava a examinar o seu bilhete de identidade; Galip virou-se para a coberta de papel que tapava o cadáver de Djélâl. De longe, via-se ainda melhor em cima dos jornais o reflexo cor-de-rosa pálido dos néons da montra dos manequins. Senhor guarda, saiba que o defunto prestava a máxima atenção aos pequenos pormenores deste género, disse Galip para consigo. Sim, essa fotografia é de facto minha. Esse rosto é o meu. Aqui tem o seu bilhete de identidade. Obrigado. Tenho de me ir embora. A minha mulher está em casa à minha espera. Acho que me saí bem, foi fácil.

Passou sem se deter diante do «Coração da Cidade» e atravessou a praça de Nichantache a passo de corrida, depois tomou pela rua onde morava. Um cão vadio, um rafeiro cor de lama, pôs-se a rosnar e a ladrar, como se tivesse a intenção de se atirar a ele. Era a primeira vez desde havia anos que aquilo lhe acontecia. Mais um sinal, mas de quê?

Galip mudou de passeio. As luzes da sala estariam acesas? Porque fora que não prestara atenção, perguntou de si para si no elevador.

O apartamento estava deserto. Nada indicava que Ruya ali tivesse estado. Tudo aquilo em que tocava com o dedo, os puxadores das portas, os objectos, os móveis, as tesouras, as colheres, espalhados por aqui e ali, os cinzeiros que Ruya enchia com as suas pontas de cigarro, a mesa na qual tomavam as suas refeições, as poltronas tristemente vazias onde outrora se instalavam um em frente do outro, tudo na casa exalava uma melancolia insuportável. Voltou a sair, sempre a correr.

Caminhou, longamente. Não havia um sinal de vida nas ruas que ligavam o bairro de Nichantache ao de Chichli, nos passeios que atravessavam, Ruya e ele, andando muito depressa, com entusiasmo, para irem ao cinema Central da sua infância. Excepto os cães que revolviam os caixotes do lixo. Quantas vezes falaste destes cães nas tuas crónicas? E eu, em quantas crónicas vou falar deles? Depois de ter caminhado longamente, fez um desvio pela rua que passava por trás da mesquita e regressou à praça de Techvikiyé. Conforme esperava, os seus passos levaram-no até ao local onde havia quarenta e cinco minutos jazia o cadáver de Djélâl. Mas também aí não havia ninguém. Juntamente com o cadáver, tudo desaparecera, os carros da polícia, os jornalistas, os curiosos. A luz dos néons da montra dos manequins e das máquinas de costura, Galip não conseguiu descobrir qualquer rasto no passeio onde vira o cadáver de Djélâl deitado ao comprido. Os jornais que tapavam o morto tinham sido cuidadosamente recolhidos. Como todas as noites, um polícia estava de sentinela em frente da esquadra.

Quando entrou no «Coração da Cidade», experimentou um cansaço fora do habitual. O apartamento de Djélâl, onde tudo exprimia a vontade de reconstituir o passado, pareceu a Galip tão espantoso como familiar, comovente ao ponto de lhe fazer subir as lágrimas aos olhos, como o abrigo do guerreiro que regressa depois de anos de aventuras e combates. Como aquele passado lhe parecia distante! Quando apenas seis horas tinham decorrido desde que saíra do apartamento. Um passado que o atraía tanto como o sono.

Foi estender-se na cama de Djélâl, com a mentalidade da criança apanhada em falta ou acusada por engano, dizendo-se que ia reencontrar nos seus sonhos as crónicas de Djélâl, as fotografias à luz do candeeiro, os mistérios e os segredos de Ruya, e que não cometeria falta alguma no seu sono, ou talvez cometesse, e adormeceu logo a seguir.

— Hoje é sábado! — disse ele quando despertou. Era de facto sábado e era já meio-dia; um dia sem escritório, sem tribunais.

Foi descalço buscar o Milliyet que fora enfiado por baixo da porta. «Djélâl Salik foi assassinado!» A notícia aparecia num grande título da primeira página. Com uma fotografia de Djélâl morto, antes de o seu cadáver ter sido tapado com jornais. A página inteira era consagrada ao sucedido; eram transcritas também as declarações do primeiro-ministro, de outras personalidades oficiais e de pessoas conhecidas. O artigo cifrado em que Galip lançara o seu apelo: «Volta para casa!» fora publicado, enquadrado e sob o título «A sua última crónica». Fora acrescentada uma boa fotografia de Djélâl, recente. Todas as declarações das personalidades ouvidas concordavam: as balas que tinham sido disparadas sobre o jornalista tinham por alvo a democracia, a liberdade de opinião, e também a paz, além de uma quantidade de belas outras coisas, como as que costumam ser evocadas em ocasiões do género. Haviam sido tomadas medidas imediatas visando a descoberta do assassino.

Sentado diante da mesa onde se amontoavam os papéis e os recortes de jornais, Galip acendeu um cigarro. Não saiu da cadeira, durante muito tempo, sempre de pijama, acendendo um cigarro atrás do outro. Mas quando tocaram à porta, teve a impressão de que era sempre o mesmo cigarro que fumava havia uma hora. Era Kamer hanim, com as chaves na mão; quando a porta se abriu bruscamente e ela viu Galip, olhou-o com terror, como se lhe tivesse aparecido um fantasma, antes de entrar no apartamento, e depois aproximou-se com grande esforço da poltrona ao lado do telefone, onde se deixou cair irrompendo em soluços: julgava-os todos mortos, incluindo Galip. Toda a gente andava numa grande inquietação por causa deles havia dias. Assim que lera a notícia no jornal, correra a casa da tia Hâlé; mas vira uma quantidade de gente na loja de Alâaddine, quando por lá passara. Só então soubera que o cadáver de Ruya fora encontrado na loja. Alâaddine descobrira-o no meio das bonecas, como se Ruya ali estivesse adormecida, quando de manhã muito cedo abrira a loja...

Leitor, ó meu leitor, ao chegares a este ponto do meu livro, deste livro em que tentei desde o início separar cuidadosamente o narrador dos personagens, as crónicas de jornal das páginas onde são relatados os factos, e ainda que não o tenha conseguido bem, permite-me, depois de tantos esforços transbordantes de boa-fé, que talvez tenhas reconhecido, que intervenha uma última vez antes de enviar estas linhas para a tipografia: há páginas, em certos livros, que parecem tão bem construídas, ou movendo-se por si próprias, sem nada deverem ao talento do autor, que nos comovem profundamente, a tal ponto que nunca mais as esquecemos. Essas páginas ficam gravadas no nosso espírito, ou no nosso coração, como quiserem, não como a obra-prima de um autor hábil no seu campo, mas como certas horas paradisíacas ou infernais, ou as duas coisas ao mesmo tempo ou, mais ainda, para além do paraíso ou do inferno, da nossa vida, como recordações comoventes, pungentes ou cruéis, que lembraremos durante anos. Pois bem, se eu fosse um escritor de talento, um verdadeiro profissional, e não um cronista improvisado, teria podido dizer-me com alguma segurança que chegámos a uma página dessa qualidade, suficientemente boa para acompanhar durante anos os leitores tão sensíveis como inteligentes do meu livro intitulado Ruya e Galip. Mas como sou bastante realista no que se refere às minhas capacidades e aos meus escritos, não possuo essa segurança. É por isso que gostaria, ao chegar a estas páginas, de deixar o leitor a sós com as suas próprias recordações. O melhor será ainda recomendar ao tipógrafo que cubra estas páginas de tinta negra. Para que possas aqui imaginar as coisas que não sei dizer-te segundo a tua própria fantasia. Para te dar uma ideia das trevas do pesadelo em que me encontrei no instante em que interrompi a minha narrativa, para te lembrar incessantemente o silêncio que invadia o meu espírito à medida que se iam desenrolando os acontecimentos que eu atravessava como um sonâmbulo. Sim, considera por favor as páginas que se seguem como páginas inteiramente negras, como as recordações de um sonâmbulo.

Da loja de Alâaddine, Kamer hanim correra para casa da tia Hâlé. Aí encontrou todos em lágrimas, e convencidos de que Galip estava também morto. Kamer hanim acabara por lhes revelar o segredo de Djélâl, confessara-lhes que ele se escondia havia anos no último andar do «Coração da Cidade», e que Galip e Ruya lá se encontravam também havia uma semana. Por isso, ninguém duvidara da morte de Galip. Kamer hanim regressara depois ao «Coração da Cidade»; a conselho do marido: «Vai lá acima ver o que se passa!», subira ao último andar, presa de uma estranha apreensão, prontamente seguida da esperança de deparar com Galip em vida. Kamer trazia um avental muito sujo e uma saia verde-amêndoa que Galip não lhe conhecia.

Quando, mais tarde, ele próprio se dirigiu a casa da tia Hâlé, observou que ela tinha um vestido do mesmo tecido, fundo verde-amêndoa com flores violeta. Seria apenas um acaso ou, pelo contrário, uma fatalidade inelutável, com trinta e cinco anos de idade, que vinha lembrar-lhe que o universo é tão mágico como os jardins da memória? À mãe, ao pai, ao tio Mélih, à tia Suzan, a todos os que o ouviam em lágrimas, explicou que tinham voltado havia cinco dias de Izmir, Ruya e ele, que haviam passado a maior parte desses cinco dias — e por vezes também a noite — com Djélâl, no «Coração da Cidade». Havia vários anos que Djélâl comprara aquele apartamento, no último andar, mas sem o dizer a ninguém. Escondia-se lá, porque havia desconhecidos que o ameaçavam. Quando, já muito tarde, Galip forneceu as mesmas explicações ao procurador da República e a um funcionário dos Serviços de Informações, encarregados de recolherem as suas declarações, falou-lhes longamente da voz ao telefone, sem conseguir interessar pela sua história os dois homens, que o ouviam com o ar de quem diz: «Nós sabemos tudo». Sentiu então a impotência daquele que não consegue emergir dos seus sonhos e que se vê incapaz de atrair para eles seja quem for. Um longo silêncio, um silêncio profundo instalou-se então na sua cabeça.

Ao cair da noite, esteve por um momento no quarto de Vassif. Talvez porque fosse a única divisão da casa onde não havia ninguém a chorar, pôde redescobrir os traços intactos de uma vida familiar feliz, que pertencia ao passado. Os peixes japoneses degenerados por toda uma série de uniões consanguíneas flutuavam, serenos, no aquário. Carvão, o gato da tia Hâlé, deitado a um canto do tapete, seguia com um olhar distraído os gestos de Vassif. Sentado à beira da cama, Vassif examinava um monte de papéis: as centenas de telegramas de pêsames cujos remetentes iam do primeiro-ministro ao mais modesto leitor. E Galip redescobria no rosto de Vassif a expressão de jogo e de espanto que nele aparecia quando, sentado naquela mesma cama entre Galip e Ruya, ele contemplava os velhos recortes de jornais. A luz fraca que reinava no quarto continuava a ser a do tempo em que ali se reuniam os três, antes do jantar preparado pela tia Hâlé ou, noutros tempos, pela avó. Uma luz que dava vontade de dormir, uma combinação inevitável da baixa voltagem, da lâmpada nua, dos móveis velhos e do papel descolorido das paredes, e que lembrou a Galip a melancolia associada a todas as evocações dos dias passados com Ruya, os acessos de tristeza que o esmagavam, como uma doença incurável, mas agora essa tristeza e essa melancolia tornavam-se para ele recordações de felicidade. Fez sinal a Vassif, pedindo-lhe que se levantasse, apagou a luz, estendeu-se completamente vestido na cama, como uma criança que quer chorar antes do sono, e dormiu doze horas seguidas.

No dia seguinte, depois do serviço fúnebre que se desenrolou na mesquita de Techvikiyé, Galip anunciou ao chefe de redacção, quando conseguiu falar com ele a sós, que tinha caixotes e caixotes cheios de artigos inéditos; Djélâl enviara poucas crónicas para o jornal ao longo das últimas semanas, mas trabalhara enormemente, realizara antigos projectos, completara certos artigos inacabados e abordara num tom de jogo e brincadeira muitos temas em que até então não pegara. O chefe de redacção declarou que estava, evidentemente, interessado em publicar esses inéditos nas colunas de Djélâl. Foi assim que começou a carreira literária de Galip, carreira que duraria anos e anos nas colunas consagradas a Djélâl Salik. Enquanto a multidão saía da mesquita e se encaminhava para a praça de Nichantache, onde os carros funerários estavam à espera, Galip viu Alâaddine à entrada da loja: seguia o cortejo com um olhar pensativo e tinha na mão uma boneca que se preparava para embrulhar num jornal.

Galip sonhou pela primeira vez com Ruya e essa boneca na noite do dia em que foi entregar ao Milliyet algumas crónicas inéditas de Djélâl. Depois de as ter confiado à redacção, de ter ouvido os amigos e inimigos de Djélâl — o velho jornalista Néchati, entre outros — exprimirem a sua consternação e as suas opiniões sobre os dois assassinatos, Galip retirara-se para o gabinete do primo e mergulhara na leitura dos jornais dos cinco últimos dias, que se empilhavam em cima da mesa. Entre os artigos que atribuíam a autoria dos homicídios aos arménios, à mafia turca (Galip sentiu vontade de substituir com a sua esferográfica verde a palavra «mafia» por «os gangsters de Beyoglou»), aos comunistas, às redes de contrabandistas de cigarros americanos, aos gregos, aos integristas, aos extremistas nacionalistas, aos russos e aos membros da confraria dos Nakchibendis; entre as declarações lacrimejantes e os fragmentos de recordações exacerbadamente elogiosas, as colunas consagradas aos assassinatos da mesma natureza cometidos ao longo da história do nosso país, Galip prestara atenção ao artigo de um jovem jornalista que investigara o duplo homicídio. No artigo, que fora publicado no Cumhuriyet no dia do funeral, e que era breve, claro, mas redigido não sem ênfase, os personagens eram mencionados, não pelos seus nomes, mas pela sua profissão ou qualidade, sublinhadas por maiúsculas.

O Célebre Cronista e a Irmã tinham saído, na sexta-feira à noite, pelas dezanove horas, do domicílio do jornalista em Nichantache a caminho do cinema Konak. O filme, Regresso a Casa, terminara às vinte e uma horas e vinte e cinco. O Cronista e a Irmã (casada com um jovem Advogado) — pela primeira vez na sua vida, e ainda que apenas entre parênteses, Galip via a sua profissão mencionada num jornal — tinham saído do cinema, por entre a massa dos espectadores. A neve que, havia dez dias, punha duramente à prova Istambul, deixara de cair, mas continuava a estar muito frio. O Célebre Cronista e a Irmã tinham atravessado a rua do Palácio do Governador, tomado pela avenida Emlâk, e a seguir entrado na avenida Techvikiyé. A morte ferira-os às vinte e uma horas e trinta e cinco em ponto, nas imediações da esquadra.

O assassino, que se servira de uma dessas velhas pistolas fabricadas em Kirik-Kalé que todos os militares reformados possuem, visara muito provavelmente o Cronista, mas a Irmã fora, também ela, atingida. Talvez a arma se tivesse encravado; três das cinco balas disparadas tinham atingido o Cronista, a quarta ferira a Irmã, a quinta embatera na parede da mesquita de Techvikiyé. O Cronista, tendo recebido uma das balas em cheio no coração, caíra no mesmo instante e tivera morte imediata. Uma outra bala reduzira a estilhaços a esferográfica que trazia no bolso do casaco (todos os jornais se tinham prontamente apoderado desse símbolo devido ao acaso e falavam dele com emoção), de tal modo que a camisa branca do Cronista ficara mais impregnada de tinta verde que manchada de sangue. Quanto à Irmã, gravemente ferida no pulmão esquerdo, conseguira dar alguns passos e entrar numa tabacaria-papelaria tão próxima do local do atentado como a esquadra fronteira. Com a minúcia do detective que faz com que lhe projectem e voltem a projectar uma bobina de filme muito importante, o jornalista reconstituíra até ao pormenor o desenrolar dos factos: a jovem mulher devia ter-se aproximado a passos lentos do estabelecimento, mais conhecido no bairro pelo nome de «a loja de Alâaddine», entrado na loja sem ser vista por Alâaddine, que, pelo seu lado, se refugiara atrás de uma árvore. Esta longa e paciente demonstração evocava uma cena de bailado, dançada a uma luz azul-marinho. A irmã do jornalista entrava devagar no estabelecimento, caía num canto no meio das bonecas. O filme de repente tornava-se mais rápido, e perdia toda a lógica: em pânico por causa dos tios, o patrão da tabacaria, que estava a recolher os jornais expostos no tronco do castanheiro que havia em frente da loja, não vira a jovem mulher entrar, descera a toda a pressa o estore metálico, e fugira para casa o mais rapidamente possível.

Embora as luzes da tabacaria, conhecida no bairro pelo nome de «a loja de Alâaddine», tenham ficado acesas até de manhã, ninguém dera pela presença da mulher que agonizava lá dentro; nem sequer a polícia que examinava as imediações. Do mesmo modo, as autoridades competentes consideravam estranho e surpreendente o facto de o polícia de sentinela no passeio fronteiro, não só não ter intervindo, como também não se ter chegado a dar conta da presença de uma segunda vítima.

O assassino fugira não se sabia em que direcção. Um honesto cidadão, que se apresentara por sua própria iniciativa à polícia, afirmava que na véspera, pouco antes do duplo assassinato, depois de ter comprado uma cautela da Lotaria Nacional na loja de Alâaddine, avistara, muito perto do local do crime, uma silhueta escura, com um aspecto inquietante, envergando um capote, e cuja insólita indumentária se diria extraída de um filme histórico («Quase juraríamos estar a ver o sultão Mehmet, o Conquistador», declarara o autor do testemunho); falara dessa figura à mulher e à cunhada, com certa emoção, antes ainda de tomar pelos jornais conhecimento do sucedido. O jovem jornalista terminava o seu artigo formulando um voto: esperava que aquela pista não fosse descurada por indiferença ou por incompetência, como acontecera com a jovem mulher cujo cadáver só na manhã seguinte à do crime fora encontrado no meio das bonecas.

De novo nessa noite, Galip sonhou com Ruya, no meio das bonecas, na loja de Alâaddine. Não estava morta. Ouvia a sua respiração leve e também a das bonecas, enquanto ela permanecia à espera no escuro e lhe piscava o olho, mas era tarde demais, era-lhe impossível ir ter com ela, tudo o que podia fazer era contemplar, da janela do «Coração da Cidade» e com lágrimas nos olhos, os reflexos das luzes da montra de Alâaddine no passeio coberto de neve.

Nos princípios de Fevereiro, numa bela manhã soalheira, Galip soube pelo pai que o tio Mélih obtivera uma resposta a um pedido de informação endereçado aos serviços de registo predial de Chichli: descobrira-se que Djélâl possuía um segundo apartamento algures no bairro de Nichantache.

O apartamento, ao qual, acompanhados por um serralheiro corcunda, o tio Mélih e Galip se deslocaram, ficava no piso superior de um dos prédios de três ou quatro andares, com a fachada enegrecida pela fuligem e pelos fumos, e com a pintura a cair em palcas escamadas, fazendo pensar numa doença de pele incurável, que se distribuem pelas ruas estreitas, por trás de Nichantache, com a calçada e os passeios desfeitos, e onde Galip se perguntava, quando lhe acontecia por ali passar, porque teria sido que, numa certa época, os ricos se haviam instalado em recantos tão miseráveis, ou então porque teria sido qualificada de gente rica a população que ali habitava. O serralheiro não teve a mais pequena dificuldade em abrir a fechadura vetusta da porta, onde não havia a indicação de nome algum.

Na parte de trás do apartamento encontravam-se dois quartos de cama muito apertados, com uma cama em cada um deles. Na parte da frente, depararam com uma pequena sala de estar, iluminada por uma janela que dava para a rua e cujo centro era ocupado por uma mesa enorme. Em cima da mesa, ladeada por duas poltronas, amontoavam-se recortes de jornais que se referiam sobretudo aos homicídios mais recentes, fotografias, revistas de desporto e de cinema, reedições dos Texas ou dos Tom Mix que datavam da infância de Galip, romances policiais, diários e outros papéis. Cascas de pistácio enchiam um grande cinzeiro de cobre; tal foi para Galip a prova indubitável de que Ruya estivera de facto sentada àquela mesa.

Na divisão que parecia ser o quarto de Djélâl, Galip descobriu caixas de anticoagulantes, de aspirina ou de fósforos, tubos de Mnemonics para as falhas da memória. No de Ruya, verificou que ela levara muito pouca coisa ao sair de casa, a ajuizar pelo que ali se podia ver: alguns artigos de beleza, o porta-chaves vazio que ela pensava dar-lhe sorte, a escova de cabelos com um espelho incrustado na parte de trás, e por fim as pantufas. Galip olhou tão fixamente esses objectos poisados em cima de uma cadeira Thonet naquela divisão semivazia e com as paredes nuas, que se sentiu de súbito desembaraçado do feitiço de uma ilusão, e convencido de que apreendera o sentido secreto que aquelas coisas lhe indicavam, o mistério havia muito esquecido do universo. «Vieram para aqui contar histórias um ao outro», disse para consigo, ao ir ter de novo com o tio Mélih, ainda sem fôlego. A maneira como as grandes folhas brancas tinham sido dispostas em cima da mesa indicava que Ruya começara a transcrever as histórias que Djélâl lhe contava; e, segundo toda a evidência, durante toda a semana, Djélâl ocupara a poltrona onde estava agora sentado o tio Mélih. E Ruya instalara-se na outra, a que estava agora vazia. Galip enfiou no bolso todas as histórias de Djélâl, das quais se serviria mais tarde nas suas crónicas do Milliyet. Depois lançou-se em explicações que o tio Mélih parecia esperar sem excessiva impaciência:

Djélâl sofria desde havia certo tempo de uma terrível perda de memória, doença descoberta pelo célebre médico inglês Cole Ridge, mas para a qual este não conseguira produzir qualquer remédio. Era para dissimular essa doença que Djélâl se escondia naqueles dois apartamentos e que reclamava sem descanso a ajuda de Galip e de Ruya. Era por isso que, alternadamente, Galip e Ruya passavam a noite com ele, para ouvirem e até mesmo transcreverem as histórias que ele lhes contava, na esperança de reencontrar e restabelecer o seu passado. Sim, Djélâl contava-lhes, horas a fio, histórias intermináveis, enquanto lá fora a neve caía.

O tio Mélih ficou por um longo momento em silêncio, como se de facto tivesse compreendido tudo. Depois chorou. Acendeu um cigarro. Atravessou uma breve crise de sufocação. Declarou que Djélâl sempre se enganara. Aquela estranha obsessão, que havia nele, de se vingar de toda a família, porque imaginava que fora expulso do «Coração da Cidade», e que o pai, depois de ter voltado a casar, procedera mal com ele e com a sua mãe! Quando a verdade era que o pai gostava dele tanto ou mais do que de Ruya. Agora, perdera os seus dois filhos. Ou melhor, não, doravante o seu único filho era Galip.

Lágrimas. O silêncio. Os ruídos de uma casa estranha. Galip sentiu vontade de aconselhar o tio Mélih a ir comprar uma garrafa de raki à mercearia da esquina e a voltar para casa o mais depressa possível. Mas, em vez de o fazer, pôs a si próprio a seguinte pergunta que não devia voltar a pôr-se e que os leitores que prefiram ser eles próprios a fazer as perguntas farão bem em ignorar (saltando um parágrafo):

O que eram essas recordações, esses contos, essas histórias, o que eram essas flores que desabrochavam no paraíso das suas memórias, para que Djélâl e Ruya, a fim de melhor apreciarem o seu perfume, o seu sabor, o seu prazer, se tivessem sentido obrigados a proibir que Galip lhes tivesse acesso? Seria pelo facto de Galip não saber contar uma história? Por não ser nem tão vivo nem tão brilhante como eles? Por lhe acontecer não compreender as histórias? Por lhes estragar o prazer devido a uma admiração excessiva? Por eles terem querido escapar à incurável melancolia que Galip semeava em seu redor, como uma doença contagiosa?

Deu-se conta de que Ruya colocara debaixo do velho radiador coberto de pó, que pingava, um recipiente de iogurte de plástico, como costumava fazer em casa.

Porque todas as recordações associadas a Ruya se tornavam para ele insuportáveis, porque nos tormentos aterradores do seu desgosto todos os objectos à sua volta pareciam animar-se, Galip deixou, para o fim do Verão, o apartamento onde vivera com a sua mulher para se instalar no de Djélâl, no «Coração da Cidade». Tal como se recusara a ver o cadáver de Ruya, não queria voltar a ver os seus móveis, que o tio Mélih se encarregou de vender ou de oferecer a vizinhos. Tornara-se incapaz de imaginar, como fazia com optimismo nos seus sonhos, que Ruya surgiria de algures um dia, tal como ressurgira outrora depois do seu primeiro casamento, e que poderiam ambos continuar a sua vida, como se retomassem um livro abandonado a meio caminho quando o liam juntos. Os dias quentes de Verão tinham sido intermináveis.

No fim do Verão, houve um golpe de Estado militar. O novo governo, constituído por patriotas suficientemente prudentes para não terem até então chafurdado na cloaca da política, declarou que os autores de todos os assassinatos políticos cometidos no passado seriam descobertos, todos, sem excepção. Assim, na altura do primeiro aniversário da morte de Djélâl, os jornais, que a censura proibia de abordarem qualquer tema político, recordaram, num estilo tão avisado como distinto, que «nem o mistério do assassinato de Djélâl Salik fora ainda elucidado». Um grande diário — não se tratava do Milliyet, sabe Deus porquê — prometeu uma avultada recompensa a qualquer pessoa capaz de fornecer alguma informação susceptível de levar à descoberta do culpado: uma soma que permitiria comprar um camião ou uma pequena fábrica de moagem ou uma mercearia, cujo rendimento poderia assegurar uma boa situação vitalícia! Desencadearam-se deste modo no país o ardor e o entusiasmo suscitados pela esperança da revelação dos segredos que se escondiam por trás do «caso do assassinato de Djélâl Salik». Temendo deixarem fugir esta última ocasião de acederem à imortalidade, todos os militares responsáveis pela manutenção do estado de sítio nas cidades de província arregaçaram as mangas e passaram à acção.

Todos terão adivinhado pelo meu estilo que retomei de novo a narração dos acontecimentos. Da mesma maneira que os castanheiros que voltavam a cobrir-se de folhas, também eu mudava; o homem mergulhado na dor transformava-se pouco a pouco num homem furioso. Este novo homem furioso não prestava atenção às informações que os correspondentes de província faziam chegar a Istambul, sublinhando que «nada tinha sido revelado das investigações». Descobria assim que o autor do homicídio fora preso numa pequena cidade perdida nas montanhas, cujo nome só conhecia porque um autocarro transportando a bordo uma equipa de futebol e os seus apaniguados aí acabava de se esmagar no fundo de um precipício, tendo todos os passageiros perecido no acidente. Na semana seguinte, o assassino era detido quando, de uma aldeia à beira-mar, contemplava com nostalgia, e também com o sentimento do dever plenamente cumprido, as costas distantes do país vizinho que lhe pagara um saco cheio de dinheiro pela sua malfeitoria. Como estas informações insuflavam coragem aos cidadãos que já nem a praticar a delação se atreviam, e ardor aos diversos comandantes responsáveis pelo estado de sítio, invejosos do êxito de certos de entre os seus colegas, uma vaga de notícias anunciando a detenção do assassino inundou o país, no começo do Verão. Foi nessa altura que os responsáveis pela segurança adquiriram o hábito de me conduzirem em plena noite à sede da sua direcção em Istambul, para «identificar os suspeitos» e «lhes prestar as informações» de que dispusesse.

Tal como nas pequenas povoações distantes, apegadas à sua religião e aos seus cemitérios, onde, à falta de meios, a municipalidade pára os geradores a partir da meia-noite, e onde reinam silenciosas trevas, enquanto os magarefes clandestinos degolam a toda a pressa as pilecas velhas, numa atmosfera de execução sumária, o recolher obrigatório cortava em duas a vida do país, que ficava como que dividido à faca em preto ou em branco. Um pouco depois da meia-noite, deixava a minha mesa de trabalho, onde redigia a crónica de Djélâl com uma inspiração e uma criatividade dignas dele, emergia pouco a pouco de entre o fumo dos meus cigarros e da bruma dos meus pensamentos, e descia devagar até ao rés-do-chão do «Coração da Cidade», ia postar-me no passeio deserto, onde esperava o automóvel que me levaria às instalações dos serviços secretos, que se erguem no alto de Béchiktache, semelhantes a uma fortaleza com as suas muralhas. O interior do castelo era tão animado, fervilhante de agitação e transbor-dante de luz como a cidade vazia, escura e inerte.

Mostravam-me fotografias de jovens desgrenhados, com olhos sonhadores, cujas olheiras violáceas indicavam que haviam sido privados do sono. Alguns lembravam-me o filho do fornecedor de água, esse rapaz que, havia muitos anos, costumava acompanhar o pai para observar, com os seus olhos negros tão penetrantes como projectores, tudo o que se encontrava em seu redor, a fim de o gravar no mesmo instante na sua memória. Outros faziam-me pensar no melhor amigo do irmão mais velho de um amigo, um rapaz desembaraçado e que sofria de acne, que, uma vez que tínhamos ido ao cinema, abordara Ruya, que estava a saborear o seu gelado, durante o intervalo de cinco minutos, e isso sem conceder a mais pequena atenção ao primo que a acompanhava. Outros ainda faziam-me pensar no caixeiro, da mesma idade que nós, que da porta entreaberta de um muito velho armazém de tecidos, lugar célebre e histórico, bem conhecido no sector geográfico casa-escola, contemplava com um olhar pesado de sono a massa dos alunos que saía da escola. E havia outros — eram esses os mais aterradores — que não faziam pensar em ninguém, que não despertavam qualquer associação de ideias. Enquanto contemplava aqueles rostos desprovidos de expressão, e mais assustadores ainda pelo facto de nada exprimirem, aqueles homens perfilados à força contra paredes que nunca eram pintadas de novo, sujas de manchas sabe Deus de que natureza, das diversas secções da Segurança; no momento em que conseguia — ou não conseguia — fazer surgir da bruma das minhas recordações uma sombra muito vaga, uma expressão que se negava a confiar-se, mas que não era totalmente indeterminada, quer dizer, no instante em que me demorava numa fotogafia, os agentes secretos e astutos que me cercavam começavam a encorajar-me, fornecendo-me dados incitativos acerca da personalidade do rosto espectral ali retratado: aquele jovem fora preso em Sivas na sequência de uma denúncia, num café frequentado exclusivamente por ultranacionalistas; era acusado de quatro homicídios., Um outro, cujo bigode não passava ainda de penugem, publicara numa revista pró-Enver Hodja uma série de artigos que declaravam Djélâl um homem a abater. Aquele, cujo casaco só tinha um botão, vinha de Malatya: tratava-se de um professor primário que falara, com uma pesada insistência, aos seus alunos de nove anos, da obrigação de executar Djélâl, por este ter blasfemado contra Mevlâna, num artigo de havia quinze anos, faltando assim ao respeito devido ao grande homem de fé. Um outro ainda, de certa idade já, um bêbado com um ar assustado e aspecto de bom pai de família: numa taberna de Beyoglou, discorrera longamente sobre a necessidade de eliminar todos os micróbios do nosso país; um bom cidadão, sentado a uma mesa vizinha, e que só pensava na recompensa, fora denunciá-lo à esquadra mais próxima, declarando que o nome de Djélâl tinha sido citado entre os micróbios a abater. Galip bey conhecia aquele bêbado sonolento, aqueles lamurientos, aqueles tipos desiludidos de tudo, aqueles infelizes perdidos nos seus sonhos? Ao longo dos últimos meses ou até dos últimos anos, Galip bey teria visto, na companhia de Djélâl bey, um — um qualquer, tanto fazia — daqueles rostos com um olhar de iluminados ou de criminosos? No mesmo Verão, na altura em que vi a efígie de Mevlâna aparecer nas novas notas de cinco mil libras, descobri nos jornais a participação de óbito de um coronel reformado chamado Mehmet Utchundju. No mês de Julho, em plena canícula, os convites nocturnos obrigatórios tornaram-se mais frequentes e o número das fotografias que me mostravam passou a ser consideravelmente maior. Nessas fotografias, pude ver rostos mais melancólicos, mais desesperados, mais aterradores, mais incríveis ainda que aqueles que descobrira na modesta colecção de Djélâl: mecânicos de bicicletas, estudantes de arqueologia, operários da confecção, encarregados das bombas de gasolina, caixeiros de mercearia, figurantes cinematográficos, gerentes de cafés, autores de brochuras pias, revisores de autocarro, guardas de parques, porteiros de discotecas, jovens contabilistas, vendedores de enciclopédias ao domicílio... Todos tinham conhecido a tortura, todos tinham sido espancados, maltratados, mais ou menos severamente, todos tinham olhado para a objectiva com o ar de quem diz: «Não estou aqui, eu», ou ainda: «De qualquer maneira, eu sou outro»; e todos tinham no rosto colada uma expressão que mascarava a tristeza e o terror, como se todos tivessem querido esquecer, enterrar tudo no fundo de um poço perdido para que aí desaparecessem para sempre o mistério, o saber secreto que se escondiam na sua memória e cuja recordação tinham perdido, que já não procuravam reencontrar porque os tinham esquecido.

Como não queria voltar a falar da disposição das peças de um jogo já antigo e que me parecia (como aos meus leitores) resolvido havia muito, nem dos lances que calculara tão demoradamente, sem me dar conta de que haviam sido havia muito previstos, decidira não me referir mais às letras que distinguia nos rostos. Mas numa dessas noites intermináveis passadas no castelo (não seria a palavra «fortaleza» mais adequada?), enquanto recusava sempre com a mesma certeza todas as fotogafias que me mostravam, um funcionário dos serviços secretos, coronel do estado-maior, como vim a saber mais tarde, fez-me a seguinte pergunta: «Mas as letras», disse-me ele, «não consegue ver as letras? Conhecemos, também nós, a dificuldade que cada um tem de ser ele próprio neste país. E se nos ajudasse um pouco?», acrescentou por fim, com uma circunspecção absolutamente profissional.

Numa outra noite, um capitão rechonchudo deu-me a sua opinião sobre a perenidade da crença na vinda do Mehdi por parte das confrarias religiosas que subsistiam na Anatólia; falava disso como se evocasse recordações da sua própria infância, uma infância obscura e baça, e não as conclusões do seu trabalho: durante uma das viagens que efectuara, rodeada do maior segredo, à Anatólia, Djélâl teria tentado estabelecer contactos com essas «sequelas do obscurantismo»; teria até mesmo conseguido encontrar-se com certos iluminados na oficina de um carpinteiro de carroças dos arredores de Konya, e na de um fabricante de colchões em Sivas; ter-lhes-ia falado da sua intenção de introduzir nos seus artigos os Signos da Aproximação do Apocalipse, pedindo-lhes que tivessem paciência por algum tempo ainda. Os mesmos signos pululavam de resto nas suas crónicas sobre os Ciclopes, sobre o Bósforo, cujas águas se retiravam, e também naquelas em que falava dos sultões e dos pachás que percorriam disfarçados as ruas das cidades.

Quando um desses funcionários cheios de zelo, persuadido de que acabaria por decifrar os signos, me declarava muito seriamente que estava prestes a descodificar certas mensagens secretas que Djélâl transmitira nas suas crónicas, eu senti vontade de lhe dizer: «A solução, conheço-a eu». Quando me faziam notar que o livro em que Khomeyni relata a sua vida e os seus combates se chama o Kecbful-Esrar, «A Descoberta dos Segredos», e me mostravam fotografias do Imã tiradas nas ruas obscuras de Bursa, na época em que vivia no exílio, compreendia muito bem o que queriam fazer-me notar; e sentia vontade de lhes dizer: «Eu sei». Tal como eles, eu conhecia a pessoa e o segredo dissimulados nos artigos que Djélâl consagrara a Mevlâna. Quando afirmavam gracejando que procurara um assassino, porque perdera a memória — porque ficara com os pirolitos avariados, diziam eles —, à força de se esforçar por criar um segredo esquecido; ou então, quando numa das fotografias à minha frente, descobria uma estranha semelhança com um desses homens com os rostos tão tristes, tão melancólicos, desprovidos de qualquer expressão, cujas fotografias descobria na estante de Djélâl, sentia vontade de lhes dizer: «Eu sabia». Teria gostado também de lhes dizer que conhecia a bem-amada à qual se dirigia na sua crónica sobre o Bósforo que perdera as suas águas, a esposa imaginária da sua crónica sobre um fantasma de beijo, e todos os personagens que encontrava nos seus sonhos de antes de adormecer. Quando me explicaram ironicamente que o jovem cuja história Djélâl contara, esse rapaz que vendia bilhetes de cinema no mercado negro e que, apaixonando-se pela jovem caixeira grega de tez muito pálida, perdera a razão, era na realidade um chui à paisana que trabalhava para os serviços dele; quando, noite alta, depois de ter examinado longamente o rosto de um suspeito, ao qual os espancamentos, a tortura, a privação de sono haviam feito perder todo o sentido, toda a identidade, todo o segredo, mas que estava ainda mais perturbado pelo espelho mágico que se interpunha entre nós, porque nós podíamos vê-lo ao mesmo tempo que éramos invisíveis para ele, eu acabava por declarar que não o conhecia; e quando eles me afirmavam então que tudo o que Djélâl escrevera sobre os rostos e os mapas urbanos não passava de um truque muito banal, e que, por meio desse método barato, ele proporcionara um pouco de felicidade, mistificando-os, aos leitores que dele esperavam um sinal de solidariedade, de afinidade, a revelação de um segredo, eu sentia ainda vontade de lhes dizer: «Eu sabia», embora não acreditasse numa única palavra do que me diziam.

Talvez soubessem tão bem como eu aquilo que eu sabia e aquilo que eu ignorava. Mas como queriam acabar o mais depressa possível o seu trabalho, e impedir a dúvida de germinar não só no seu espírito, mas no de todos os leitores, de todos os cidadãos, queriam também aniquilar o mistério perdido de Djélâl, dissimulado sob o alcatrão negro e o lodo acinzentado das nossas existências, sem nos deixar tempo para sermos nós próprios a descobri-lo.

De vez em quando, um dos agentes, mais despachado do que os outros, considerando que o caso se arrastava havia demasiado tempo, um general enérgico e decidido que eu via pela primeira vez, ou ainda um procurador magricela que eu conhecera alguns meses antes, lançava-se numa narrativa bem ordenada, exactamente como o «privado» tão pouco convincente que, com a destreza do ilusionista, consegue revelar ao leitor o sentido secreto de todos os pormenores, de todos os indícios, disseminados pelo romance policial. E enquanto o orador desenvolvia a sua exposição, enquanto me lembrava as últimas páginas dos policiais tão caros a Ruya, todas as pessoas presentes ouviam com paciência e orgulho, como fazem os professores que compõem o júri dos «debates de escola», as pérolas daquele brilhante aluno, ao mesmo tempo que tomavam notas em folhas de papel com cabeçalho da Repartição dos Abastecimentos Públicos: o assassino não passava de um peão, utilizado pelas potências estrangeiras, para desestabilizar a nossa sociedade; os membros das confrarias bektachi ou nakchibendi, que viam os seus segredos tornarem-se objecto de troça, ou certos poetas que escreviam acrósticos servindo-se ainda da prosódia clássica, ou outros mais modernos, todos cripto-houroufis, se encarregavam alegremente, sem sequer se darem conta, de desempenhar o papel de agentes dessas potências estrangeiras, nessa conspiração que visava provocar perturbações no nosso país, afundá-lo num caos apocalíptico; não, de maneira nenhuma, aquele assassinato nada tinha de um crime político. Bastava recordar que o jornalista assassinado passava o seu tempo a enegrecer papel com todos os disparates, completamente estranhos à política, que lhe passavam pela cabeça; fazia-o num espírito havia muito fora de moda, com rodeios e um estilo que o tornavam ilegível. O assassino era decerto um gangster notório de Beyoglou, que, tomando por sarcasmos as atoardas que Djélâl publicava a seu respeito, o matara ele próprio ou o mandara abater por um dos seus homens de mão. Uma noite em que a tortura estava a ser utilizada para fazer renunciar às suas confissões alguns estudantes, que, para se cobrirem de glória, se tinham declarado autores da morte de Djélâl, e para extorquir confissões a alguns inocentes detidos numa mesquita, chegou um general das Informações Gerais, na companhia de um professor especialista na poesia do Divan, cuja placa dentária era demasiado evidente: a sua infância decorrera nos mesmos pequenos jardins e nas mesmas ruas, entre casas com janelas gradeadas, da velha Istambul. Depois de uma exposição bastante aborrecida, entrecortada pelos gracejos do auditório, sobre o Houroufismo e sobre a arte dos jogos verbais e dos trocadilhos na literatura antiga, o professor ouvira a minha história — que eu lhe contava de muito má vontade — e acabara inclusivamente por declarar, com a afectação de uma vidente de terceira ordem, que se podia muito bem, e sem forçar demasiado as coisas, considerar o desenrolar dos factos como um decalque do Husnu Achk de Xeque Galip. As cartas de denúncia, endereçadas aos jornais ou à Segurança, cujo número crescia sob o efeito da recompensa prometida, eram então examinadas no Castelo por uma comissão: este parecer do professor, que incidia sobre questões poéticas datando de havia dois séculos, não reteve a atenção dos seus membros.

Foi nessa altura que decidiram que o assassino era um barbeiro vítima de uma denúncia. Depois de me terem mostrado esse homenzinho frágil, na casa dos sessenta anos, e de se terem convencido de que eu era incapaz de o identificar, nunca mais me convidaram para as loucas cerimónias de vida e de morte, de mistérios e de poder que se desenrolavam no Castelo. Uma semana mais tarde, os jornais publicaram com todos os pormenores a história do barbeiro que começara por rejeitar as acusações, que passara em seguida à confissão dos factos, e depois a desmentira para acabar por confessar tudo uma segunda vez. Havia muitos anos, Djélâl Salik falara pela primeira vez desse homem numa crónica intitulada «Tenho de ser eu próprio». Nessa crónica e noutras posteriores, relatara a visita que o barbeiro lhe fizera na redacção do jornal; o homem interrogara-o sobre um segredo de extrema importância para o Oriente, para o nosso país, para a nossa própria existência. Mas a todas as suas perguntas, Djélâl só respondera por meio de gracejos. O barbeiro constatara com raiva que esses gracejos, proferidos perante testemunhas, e que considerara injuriosos para a sua pessoa, tinham sido retomados numa crónica e mais tarde evocados em diversas ocasiões. Ao ver-se de novo insultado vinte e três anos mais tarde pela publicação do mesmo artigo, sempre com o mesmo título, e estando por outro lado sob a influência das provocações de certos focos de intriga do mundo que o rodeava, o barbeiro decidira vingar-se do jornalista. Nunca foi possível descobrir quem eram esses elementos provocadores cuja existência o barbeiro de resto negava: ele próprio utilizava a gíria da polícia e da imprensa, e qualificava o seu gesto de acto de «terrorismo individual». A fotografia do homem com o seu rosto apagado, esgotado, desprovido de expressão e do qual tinham desaparecido todas as letras, foi publicada nos jornais. Pouco depois, na sequência da sentença pronunciada no termo de um julgamento diligentemente conduzido — para dar o exemplo — e imediatamente ratificada — sempre para dar o exemplo —, o barbeiro foi enforcado de manhã, muito cedo, à hora em que só vagueiam pelas ruas de Istambul as hordas de cães de triste aparência, indiferentes às imposições do recolher obrigatório.

Nessa altura, eu interessava-me por todas as lendas associadas ao mito do Monte Kaf, por todos os contos de que me lembrava e pelas histórias sobre o mesmo tema que conseguia descobrir. O resto do meu tempo, passava-o a ouvir, numa doce sonolência, as hipóteses adiantadas por pessoas que vinham ter comigo ao meu escritório, na intenção de «esclarecerem os factos». Mas não lhes podia ser minimamente útil. Foi assim que ouvi o aluno do liceu teológico, um obsessivo, que, lendo os artigos de Djélâl, chegara à convicção de que Djélâl era o Dejjal, o Falso Messias, e que me explicou longamente que o assassino podia muito bem ter chegado à mesma conclusão, de tal maneira que, matando Djélâl, se pusera a si próprio no lugar do Mehdi, no «Seu» lugar, só «Dele». Designara-me a seguir certas letras em recortes de jornais que se referiam exclusivamente a histórias de carrascos. Ouvi do mesmo modo o alfaiate de Nichantache que me afirmou ter confeccionado para Djélâl trajos de personagens históricos. Tive até muita dificuldade em lembrar-me, como nos lembramos vagamente de um filme que vimos há muito tempo, de que se tratava do alfaiate que vira a trabalhar na sua loja, na noite de neve do desaparecimento de Ruya. Experimentei a mesma reacção com Saím, que viera procurar-me para obter dados acerca da riqueza dos arquivos das Informações Gerais, e para me dar uma boa notícia: o verdadeiro Mehmet Yilmaz fora finalmente descoberto, e o estudante injustamente acusado, devolvido à liberdade. Enquanto Saim me chamava a atenção para o título da crónica que teria impelido o barbeiro ao crime e conduzia um longo raciocínio sobre as palavras: «Tenho de ser eu próprio...», eu sentia-me muito longe de ser eu próprio, a ponto de ter a impressão de me afastar tanto deste livro negro como do próprio Galip. Durante um certo tempo, consagrei-me inteiramente à minha profissão e aos processos dos meus clientes. Veio depois um período em que descurei o meu trabalho, recomecei a frequentar os meus antigos amigos, passei a ir ao restaurante ou aos bares com os meus novos conhecimentos. Certos dias, notava que as nuvens por cima de Istambul se tingiam de um amarelo ou de um cendrado incrível; mas tentava também persuadir-me de que o céu da cidade era o céu de sempre, o nosso céu familiar. Em plena noite, depois de ter redigido duas ou três crónicas da semana, sempre sob o nome de Djélâl — escrevia-as de um jacto, exactamente como ele durante os seus períodos mais fecundos —, deixava a minha mesa de trabalho, instalava-me na poltrona ao lado do telefone, punha os pés em cima da mesa baixa, e esperava pela lenta metamorfose dos objectos que me rodeavam em objectos e signos vindos de um outro universo. E então, no fundo mais fundo da minha memória, sentia flutuar uma recordação, uma sombra indistinta avançar passando de um dos jardins da memória para outro; atravessava as portas de um segundo, depois de um terceiro jardim, e ao longo de todo esse processo familiar as portas do recinto da minha própria personalidade pareciam, também elas, abrir-se, fechar-se, e eu tornava-me pouco a pouco um outro, susceptível de se confundir com aquela sombra e de conhecer a felicidade com ela, de tal maneira que acabava por me surpreender a ponto de falar com a voz de um outro.

Com medo de dar por mim, sem estar preparado para isso, confrontado com recordações associadas a Ruya, mantinha a minha vida sob um certo controlo, ainda que esse controlo não fosse demasiado severo; evitava cuidadosamente a tristeza que poderia apoderar-se de mim num momento ou num lugar inesperados. Duas ou três vezes por semana, ia jantar a casa da tia Hâlé; dava de comer aos peixes japoneses de Vassif, mas sem nunca me sentar ao lado dele na borda da cama, para ver os seus recortes de jornais. (A despeito de tais precauções, tropecei um dia numa fotografia de Edward G. Robinson, apresentada por engano como sendo a de Djélâl e descobri assim entre eles um vago ar de família.) Quando o meu pai ou a tia Suzan me recomendavam que não voltasse muito tarde, dir-se-ia que Ruya, doente, estava à minha espera em casa: «Claro, mais vale que eu volte antes da hora do recolher obrigatório...», respondia-lhes eu imediatamente. Mas nunca tomava pela rua que passava diante da loja de Alâaddine e que costumávamos percorrer, Ruya e eu; escolhia outras, que tornavam ainda mais longo o meu caminho até ao nosso antigo apartamento e em direcção ao «Coração da Cidade»; tinha igualmente de mudar de itinerário para evitar as ruas que Djélâl e Ruya tinham atravessado, naquela noite, depois de terem saído do cinema, e via-me assim nas ruelas sombrias e estranhas de Istambul, entre os seus lampadários, os seus muros, as suas letras, que me eram desconhecidos, os seus prédios cegos com fachadas aterradoras, os seus reposteiros corridos que não deixavam passar uma réstia de luz, os seus pátios de mesquita desertos. Este longo trajecto entre todos aqueles signos obscuros e inanimados fazia de mim um outro homem; de tal maneira que, uma vez chegado ao passeio do «Coração da Cidade», alguns minutos antes da hora do recolher obrigatório, quando via o pano ainda atado à grade da varanda, via-o sem dificuldade como o sinal de que Ruya estava em casa à minha espera.

Quando, depois de ter atravessado todas aquelas ruas sombrias e desertas, voltava a ver na grade da varanda flutuar o sinal que Ruya me endereçava, recordava uma longa conversa que tivéramos, por uma noite de Inverno em que nevava, durante o terceiro ano do nosso casamento. Faláramos sem trocar a mais leve ferroada, como dois velhos amigos compreensivos e cúmplices, e também sem deixarmos que o diálogo se afundasse no poço perdido da indiferença de Ruya, sem sentirmos sequer aproximar-se o silêncio profundo que tantas vezes surgia entre nós, bruscamente, como um fantasma. Nessa noite, entregáramo-nos ao jogo de imaginar um dia nosso quando tivéssemos chegado à idade de setenta e três anos. A ideia fora minha, mas a fantasia de Ruya tinha dado todo o seu sabor ao nosso jogo.

Tínhamos, portanto, setenta e três anos. Por um belo dia de Inverno, íamos os dois a Beyoglou; com as nossas magras economias, oferecíamo-nos presentes: um par de luvas, uma camisola. Vestíamos os nossos sobretudos familiares, velhos e pesados, impregnados do nosso cheiro. Enquanto conversávamos, víamos as montras, mas sem demasiado interesse, sem estarmos à procura de nada de muito preciso. Com exclamações de horror, lamentávamos todas aquelas transformações, declarávamos que tudo era mais belo outrora: montras, roupas, transeuntes; sabíamos todavia que, se o fazíamos, era porque éramos demasiado velhos para esperarmos alguma coisa do futuro, mas isso em nada modificava o nosso comporrtamento. Comprávamos um quilo de castanhas em açúcar, sem tirarmos os olhos do pasteleiro que as pesava e embrulhava. Depois, algures numa ruela de Beyoglou, descobríamos uma velha livraria, pela qual até então nunca déramos; felicitávamo-nos pelo achado, maravilhados. Na livraria, havia uma quantidade de livros a preço reduzido, policiais que Ruya nunca lera, ou que lera e esquecera. Estávamos a remexer tudo procedendo à nossa escolha quando um velho gato se insinuou entre as pilhas de livros e miou na nossa direcção, enquanto a livreira nos dirigia um olhar cúmplice. Saíamos da livraria, com os embrulhos na mão, felizes por termos feito uma boa compra, com uma provisão de romances policiais que satisfariam as necessidades de Ruya pelo menos durante dois meses. Estávamos a beber um copo de chá num café, e surgia entre nós uma discussão sem importância. Era porque tínhamos setenta e três anos que discutíamos, porque sabíamos, como todas as pessoas da nossa idade, que vivêramos para nada. Uma vez regressados a casa, abríamos os nossos embrulhos, e depois tirávamos a roupa sem o mínimo embaraço perante os nossos velhos corpos demasiado brancos e os nossos músculos flácidos, e fazíamos longamente amor, numa orgia de castanhas em açúcar pegajosas. A pele demasiado pálida dos nossos corpos envelhecidos, fatigados, era do mesmo branco cremoso, quase diáfano, que a nossa tez da infância, no tempo em que nos havíamos conhecido, sessenta e sete anos antes. Ruya, cuja imaginação fora sempre mais rica do que a minha, acrescentara um pormenor: interrompíamo-nos a meio desta louca cena de amor, para acender um cigarro e derramar algumas lágrimas. Fora eu que imaginara esta história, porque sabia que aos setenta e três anos Ruya já não poderia sonhar outras vidas e acabaria por amar-me. Como os meus leitores terão decerto observado, Istambul não mudara neste sonho, a cidade continuaria a arrastar a mesma existência miserável.

Acontece-me ainda encontrar nas velhas caixas de Djélâl ou nas gavetas dos móveis do meu escritório, ou também em casa da tia Hâlé, algum objecto que pertenceu a Ruya, e que não foi atirado fora por estranhamente ter escapado à minha atenção: o botão violeta do vestido às flores que ela usava no dia em que a vi pela primeira vez; um par de óculos, «modernos», em forma de borboleta, desses que apareceram nos anos sessenta, no rosto das mulheres dinâmicas e transbordantes de saúde das revistas estrangeiras; Ruya usara esses óculos seis meses antes de os deitar fora; pequenos ganchos de cabelo pretos (com um gancho entre os lábios, com as duas mãos, introduzia outro na massa dos seus cabelos); a tampa que lamentava havia anos ter perdido, da caixa em forma de pato onde guardava as agulhas e os carrinhos de linha; uma «redacção», perdida entre os papéis do tio Mélih; tema: a ave mítica Simorgh, que vive no Monte Kaf, e as aventuras dos viajantes que se lançam em sua busca, tudo copiado de uma enciclopédia; alguns cabelos de Ruya na escova da tia Suzan; uma lista de compras, redigida em minha intenção (atum em salmoura, a revista O Ecrã do Cinema, gasolina para isqueiro, chocolate Bonibon com avelãs); uma árvore, desenhada com a ajuda do avô; a imagem do cavalo no abecedário; uma das meias que ela tinha calçadas, há dezanove anos, quando subiu pela primeira vez para cima de uma bicicleta de aluguer.

Antes de ir furtivamente deitar fora, mas com muito respeito e delicadeza, estes objectos, uns atrás dos outros, num dos caixotes do lixo alinhados diante dos prédios da rua de Nichantache, para depois me afastar a correr, trazia-os nos bolsos durante alguns dias, por vezes algumas semanas, senão um ou dois meses, reconheço-o; e até mesmo depois de me ter desembaraçado deles com aflição, gostava de imaginar que todos esses símbolos da tristeza voltariam um dia para mim, uns atrás dos outros, com as recordações que evocavam, como essas que subiam outrora do poço de ventilação do velho prédio.

Hoje, tudo o que me resta de Ruya são apenas escritos, estas páginas escuras, completamente negras. Quando me acontece pensar nas histórias que contam, a do carrasco, por exemplo, ou quando me lembro da noite branca de neve em que ouvimos pela primeira vez, da boca do próprio Djélâl, o conto intitulado «Ruya e Galip», recordo uma outra história, a que explicava que o único modo de sermos nós próprios era sermos um outro, ou então perdermo-nos nas histórias contadas por um outro; e estas histórias, que tentei dispor ao lado umas das outras num livro negro, comovem-me e recordam-me uma outra história, depois outra ainda, exactamente como se passa na nossa memória ou nas histórias de amor dos contos da nossa terra, que se encaixam umas nas outras, a do amante perdido nas ruas de Istambul e que assim se torna um outro homem; ou a do homem que se lançou em busca do segredo e do sentido perdidos do seu rosto; de tal maneira que mergulho com mais prazer ainda no meu novo trabalho, que consiste em reescrever velhas histórias, muito, muito antigas, e assim chego ao fim do meu livro tão negro. Neste fim, Galip está a escrever a última crónica de Djélâl, que, para dizer a verdade, quase já a ninguém interessa. Depois, um pouco antes da aurora, pensa em Ruya, com dor, abandona a sua mesa de trabalho, contempla Istambul, que desperta no escuro. Penso em Ruya, abandono a minha mesa de trabalho, e contemplo a cidade mergulhada no escuro. Pensamos em Ruya, e contemplamos a cidade ainda mergulhada no escuro e somos todos invadidos pela emoção, pela tristeza que se apoderam de mim quando, semiadormecido, imagino em plena noite redescobrir o rasto de Ruya no edredão aos quadrados azuis e brancos. Porque nada pode ser tão surpreendente como a vida. Excepto a escrita. Excepto a escrita, sim, evidentemente, excepto a escrita, que é a única consolação. 

 

                                                                  Orhan Pamuk

 

 

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