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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS LIBERTINOS - P.2 / Harold Robbins
OS LIBERTINOS - P.2 / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

CASAMENTO e MODA

        A fumaça pairava pesadamente no ar do porão mal iluminado. Uma orquestra fazia mais barulho do que música. Robert olhou para Denisonde que se aproximava por entre as mesas repletas. Não se levantou quando ela parou ao seu lado. Não tomou conhecimento dela e ficou olhando para o seu pastis.

        — Bobby?

        Nem assim ele levantou a cabeça.

        — Vamos. Está na hora de ir para casa.

        — Você já acabou por esta noite?

        — Já.

        — São apenas duas horas, — disse ele olhando para o relógio.

        — Não há movimento.

        Foi então que ele olhou para ela. Fez um gesto para as mesas cheias.

        — Pois aqui há muito movimento.

        — Lá fora, as ruas estão vazias.

        Ele estendeu a mão e tomou a bolsa dela. Abriu-a e esvaziou-a em cima da mesa. Um batom, um pequeno estojo de pó e espelho, algumas notas amarfanhadas. Pegou as notas e contou-as.

        — Só seis mil francos?

        — Não lhe disse que não há movimento?

        Ele jogou o dinheiro com raiva em cima da mesa.

        — Gastei mais do que isso aqui esperando por você.

        — Desculpe.

        Ele tomou a pegar as notas, meteu-as no bolso e empurrou os outros objetos para ela.

        — Ainda não estou disposto a ir para casa.

        Denisonde guardou as coisas na bolsa e perguntou quase com humildade:

        — Posso sentar-me? Estou cansada.

        Não, vá-se sentar em outro lugar, — disse ele, sem olhar para ela. — Não quero você.

        Ela hesitou um momento e, em seguida, passou por entre as mesas, e se dirigiu para o bar. O homem do bar colocou um pastis em frente dela. Denisonde sentou-se num dos bancos altos.

        — Ele está de novo com um dos seus acessos?

        Ela bateu com a cabeça.

        — Está assim a noite toda. Ainda não falou com ninguém.

        Denisonde nada disse e o homem do bar se inclinou para falar confidencialmente com ela.

        — Não sei como você suporta isso, uma pequena como você. Devia, ter era um homem que lhe desse valor. Um que saísse e a ajudasse. Ele devia arranjar fregueses para você e não ficar aqui parado deixando tudo para você fazer.

        — Ele é um cavalheiro.

        — Cavalheiro coisa nenhuma! Se cavalheiro é assim, prefiro um bom maquereau.

        Saiu um instante para atender a um pedido. Quando acabou, voltou e se inclinou de novo no balcão.

        — Você está-se perdendo. Dê o fora nele e eu lhe arranjarei uma coisa realmente boa. Não terá mais de bater a calçada com esse frio.

 

 

 

 

        Ela riu.

        — Não quero trabalhar numa casa. Prefiro trabalhar sozinha.

        — Não é uma casa. O patrão acaba de me dar a ordem. Disse-me que arranjasse umas boas pequenas e eu pensei logo em você. Você é que é a pequena exata para o lugar. Você tem classe.

        Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele foi para o outro extremo do balcão a fim de atender a um pedido. Nesse momento, a orquestra parou de tocar e os três músicos desceram do estrado. O negro magro que tocava os tambores parou ao lado dela. Tirou um cigarro de um maço amarrotado e botou-o na boca.

        — Alô, Denisonde.

        — Jean-Claude.

        Ele se encostou no bar de modo a olhar para ela e para a sala ao mesmo tempo.

        — Bobby não disse uma palavra durante toda a noite.

        — Houve alguma coisa?

        Jean-Claude sacudiu a cabeça.

        — Não, agora já estamos habituados a Bobby. Todo o mundo passa bem longe dele.

        — Muito bem. — Ela olhou por cima do ombro. Robert ainda estava com os olhos fixos na bebida. — Gostaria de que ele fosse para casa. Está sentindo dor.

        — Como é que sabe?

        — Sempre sei. Percebi no momento em que saímos de casa esta noite. Quase não pude trabalhar de tão preocupada que estava com ele. Foi por isso que vim mais cedo.

        — Você gosta mesmo dele, não gosta, Denisonde?

        — Ele está sozinho e precisa de alguém.

        — Segundo me disseram, está sozinho porque quer.

        — Que foi que você soube, Jean-Claude?

        — O tal homem esteve aqui de novo na noite passada, o tal que veio perguntar por Bobby.

        — Robert falou com ele?

        — Não. Como sempre, Bobby mandou-o embora. Depois disso, Bobby saiu e só voltou pouco antes de você. O homem disse que o pai de Bobby quer que ele volte para casa.

        Houve um momento de silêncio e então Jean-Claude murmurou:

        — É um bobo aquele rapaz. Não compreendo como quem não precisa passa a vida nestas espeluncas.

        — A guerra modificou muito as pessoas.

        — Ora, eu estive na guerra e sou o mesmo que sempre fui.

        — Só lhe posso dizer é que teve sorte.

        O homem do bar chegou nesse momento e disse em voz baixa:

        — Um bom freguês para você, Denisonde. É aquele que está ali na ponta do balcão.

        Denisonde olhou. Era um homem de terno cinza, pequeno, quase insignificante. Ela sacudiu a cabeça.

        — Não, muito obrigada. Bobby não gosta de que eu pegue ninguém aqui.

        — Não seja boba. Ele esperará você lá fora e Bobby não vai saber de nada. Cinco mil francos.

        — Não, obrigada.

        — Denisonde, — disse nesse momento Jean-Claude, — aquele é o homem de que lhe falei, com quem Bobby não quis falar. Deve ter chegado agora mesmo.

        Denisonde olhou para o homem de novo e tomou uma decisão.

        — D’accord, — disse ela ao homem do bar.

        Pegou a bolsa, olhou para Robert, viu que ele ainda estava olhando para o copo, desceu do banco e encaminhou-se para a porta.

        Sentiu um tremor de frio com o ar da noite e fechou mais o casaco em torno do corpo. Andou até à esquina e chegou-se a um portal. Um momento depois, o homem saiu e foi até à esquina.

        — Aqui, — chamou ela do portal.

        O homem dirigiu-se para ela e cumprimentou polidamente.

        — Mam’selle.

        — O homem do bar disse cinco mil francos.

        O homem meteu a mão no bolso e tirou algumas notas. Ela as guardou na bolsa.

        — Em sua casa ou na minha?

        — Na sua.

        — Venha comigo. É ali adiante.

        Denisonde e ele saíram caminhando rapidamente. Pouco depois, chegaram a um edifício. Entraram em silêncio e ela abriu a porta do seu apartamento.

        — O quarto é ali, — disse ela, apontando.

        Jogou o casaco em cima de uma cadeira e fechou a porta. Começou a tirar o vestido quando notou que o homem ainda estava parado na entrada. Ela o olhou.

        — Para que tanta pressa? — disse ele. — Paguei-lhe cinco vezes mais do que é costume. Primeiro, vamos conversar.

        Ela encolheu os ombros e se sentou na cama.

        — Se é isso que você quer, está bem.

        Ele tirou o casaco e se sentou numa cadeira diante dela. Tirou um maço de cigarros.

        — Posso fumar?

        Ela deu de ombros. O homem acendeu o cigarro e logo depois disse:

        — O pai dele quer que ele volte para casa.

        — Por que é que vem falar comigo? Fale com Robert.

        — Ele não quer nem me ouvir.

        — Robert não é meu prisioneiro. Pode sair daqui e me deixar no momento que quiser.

        — O pai dele dará a você um milhão de francos se conseguir que Robert volte para casa.

        — O pai dele não precisa me dar nada. Se Robert quiser, pode ir.

        — Você não está sendo esperta, menina. Um milhão de francos é um bocado de dinheiro. Você não precisaria de levar a vida que leva. Poderia fazer o que quisesse.

        — Posso fazer o que quero agora mesmo. Robert não me prende do mesmo modo que eu não o prendo. Diga ao pai dele que se ele quer mesmo que Robert volte o que tem de fazer é vir aqui e falar diretamente com ele.

        — O pai dele é um homem muito orgulhoso. Nunca faria uma coisa dessas.

        — Bem, o problema é do barão, o filho é dele. Nada posso fazer.

        Ficaram em silêncio durante alguns momentos. Por fim, o homem disse:

        — O barão é muito perigoso para se ter como inimigo.

        — O barão é também um homem sensível. Sabe que Robert está em segurança comigo e que eu cuido dele.

        O homem não respondeu.

        — Mais alguma coisa? — perguntou ela, encerrando o assunto.

        — Claro que sim, — disse ele, levantando-se e começando a tirar a camisa. — Cinco mil francos são muito dinheiro para uma conversa apenas.

 

        Robert ainda estava na mesa quando ela voltou ao bar do porão. Denisonde parou junto à mesa e sem uma palavra colocou as notas em cima da mesa. Sem olhar para ela, ele pegou o dinheiro e meteu-o no bolso. Em seguida, levantou-se.

        — Vamos para casa.

        Ela o seguiu em silêncio para a rua. Dobraram a esquina e subiram as escadas até ao apartamento. Denisonde fechou e trancou a porta enquanto ele ia para o quarto. Daí a alguns momentos voltou e estendeu a mão de repente, batendo-lhe com toda a força no rosto. Ela foi cair para trás numa cadeira, cheia de atordoada surpresa.

        O rosto dele estava contorcido de raiva.

        — Quantas vezes já lhe disse que mude a roupa de cama quando terminar o seu trabalho da noite?

 

        A dor aguda como uma punhalada o sacudiu e Robert gemeu no sono. Sentiu vagamente a mão dela que lhe alisava o rosto.

        — Denisonde, — murmurou ele e caiu de novo no angustioso negrume. Ainda ouvia os gritos que ressoavam nos úmidos corredores de pedra, o pesado passo das botas dos soldados no chão de cimento diante da sua cela.

        Gemeu de novo no sono e de repente sentou-se na cama. Estendeu a mão procurando e viu que estava sozinho na cama.

        — Denisonde! — exclamou, dominado incontrolavelmente pelo medo. — Denisonde!

        A porta do quarto se abriu e ela apareceu com um copo na mão.

        — Estou aqui, Robert. Beba isto. Ele tomou o copo e bebeu o líquido quente, doce e calmante.

        — Pensei que tivesse saído, — disse ele, com voz rouca.

        — Você sabe que eu não faria isso. Agora, dê-me esse copo. Deite-se e vá dormir de novo.

        Ele se estendeu na cama, os dedos entrelaçados com os dela. O opiáceo já lhe estava anuviando os olhos.

        — Não sei o que seria de mim sem você.

        Ela ficou a olhá-lo até ele adormecer. Depois, saiu para a sala. O café estava quente no fogão e ela encheu uma xícara e levou-a para a mesa. Olhou para o relógio. Quase meio-dia. Foi até ao telefone e discou um número. Uma voz de mulher atendeu.

        — Yvette?

        — Oui.

        — Está vestida?

        — Oui.

        — Tenho um encontro marcado e não posso ir.

        — Quanto?

        — Dois mil e quinhentos francos.

        — Não vale a pena, minha filha. Se eu lhe der metade, que é que fica para mim?

        — Não precisa me dar metade. Quero apenas quinhentos francos.

        — D’accord. Onde é o encontro?

        Quando Denisonde desligou, ficou pensando que isso quase sempre acontecia. Perdera muitos fregueses ultimamente, mas nada podia fazer. Não podia abandonar Robert quando ele estava passando tão mal.

        Tomou o café e acendeu um cigarro. Os homens eram tão vaidosos. Mesmo com uma prostituta, tinham de sentir que eram alguma coisa de muito importante e especial e, quando ela não comparecia a algum encontro, o cliente não a procurava mais. Havia perdido muito nos dois anos em que estava com Robert. Quase todos os seus fregueses habituais tinham-na deixado e todo o mundo sabia que a base da vida de uma mulher eram os habituais.

        Naqueles últimos meses, a fim de ganhar o bastante para viver com Robert, tinha voltado a procurar fregueses na rua como uma principiante ou como as velhas que ninguém mais quer. Já duas vezes a polícia a pegara, mas ela conseguira livrar-se na conversa.

        Era preciso tomar alguma providência o mais depressa possível. O que podia ser ela não sabia. Só o homem que estava dormindo no quarto sabia. Só ele podia dar uma solução. Ela não sabia nem tudo o que havia acontecido naquele dia em que ele aparecera à sua porta já fazia dois anos.

        A guerra terminara um ano antes e durante algum tempo eles não se tinham visto. O pai dele voltara dos Estados Unidos e Robert tinha ido trabalhar no banco. A única vez em que fora procurá-la levara-a de maneira muito estranha para tomar chá. Nada mais.

        Ela havia olhado para o rosto fino e abatido do outro lado da mesa e perguntara:

        — Ainda sente dor?

        — Um pouco. Mas os médicos dizem que isso vai passar.

        — Sua irmã vai bem? Ouvi dizer que se casou com um sul- americano.

        — Dax? Sim, ela está com ele nos Estados Unidos.

        Ela se lembrou do intenso rosto moreno do homem e murmurou:

        — Espero que ela seja feliz.

        — Por que diz isso? — perguntou ele vivamente.

        — Por nada.

        — A guerra transformou muitas coisas para minha irmã e para mim. Não sei se qualquer de nós poderá voltar a ser feliz.

        — Você voltará a ser feliz, Robert. Com o tempo, a guerra será esquecida. Olhe o povo na rua. Muita gente já está começando a esquecer. Você, também.

        Robert correu os olhos pela casa de chá repleta. De repente, fechou a cara e levantou-se. Jogou o dinheiro em cima da mesa e disse:

        — Vamos sair daqui.

        Quando chegaram à rua, ele disse:

        — Vou levar você até a sua casa.

        — Não quero mais tomar seu tempo, Robert. Você deve estar muito ocupado.

        — E estou. Meu pai arranjou o moço de recados que mais trabalha no mundo, eu.

        — Ele deve ter outros planos a seu respeito.

        — Se tem, está fazendo um segredo muito grande.

        — Você está zangado, Robert! Foi alguma coisa que eu disse?

        — Não, você não tem culpa nenhuma. Vamos.

        Quando chegaram diante do edifício onde ela morava, Denisonde disse:

        — Não quer subir?

        Ele sacudiu a cabeça. Ela ficou em silêncio por um momento. Depois, pegou a mão dele e disse, quase cerimoniosamente:

        — Muito obrigada pelo chá. Gostei muito.

        — Denisonde, — murmurou ele, prendendo-lhe a mão.

        — Sim, Robert?

        — Há alguma coisa que você queira? Alguma coisa que eu possa fazer por você?

        — Não há nada, — disse ela, rindo. — Tenho tudo de que preciso. Sei controlar minha vida. Mas muito obrigada.

        — Você controla sua vida...

        — Que é que há, Robert? Alguma coisa?

        — Nada! — exclamou ele zangado e largando-lhe a mão. — O que há é comigo! Não sei controlar a minha vida.

        Antes de entrar, ela ficou a olhá-lo até que ele dobrasse a esquina. Teve naquele momento a impressão de que ele voltaria. Quando, como ou por que, não sabia. Mas voltaria. E sentiu-se imensamente triste porque sabia que quando ele voltasse isso não seria bom para nenhum dos dois.

 

        Naquela mesma tarde, Robert estava sentado à sua mesa, examinando papéis. O título no alto da primeira folha fascinava-o.

        DER KUPPEN FARBEN GESELLSCHAFT

 

        Vinha a seguir cerca de cinquenta páginas que continham os detalhes e os balanços das numerosas companhias que haviam formado o maior conjunto industrial da Alemanha. Durante a guerra, aquelas companhias tinham sido alvos preferenciais dos bombardeios aliados. Naquele momento, eram apenas folhas de papel em cima da sua mesa.

        Tinham-lhe sido entregues dias antes pela secretária particular do pai. Em cima havia um bilhete com a letra dele: “Estude esses papéis e venha falar comigo na sexta-feira.”

        Abrira a pasta sem saber o interesse que o pai tinha pelas companhias Kuppen. Lera nos jornais na semana anterior que os Aliados haviam construído uma comissão para estudar o caso do conjunto industrial e formular planos para dissolvê-lo. Julgavam que, como Krupp, o grupo Kuppen representava um potencial de guerra muito grande.

        Ocorreu-lhe então uma ideia. Talvez seu pai tivesse sido convidado para representar a França na comissão. Pensou com um sorriso que neste caso seria um prazer trabalhar no assunto. Havia chegado a odiar o nome porque o mesmo estava ligado de algum modo a todos os instrumentos de destruição que haviam saído da Alemanha. Aviões, submarinos, as bombas V-4 Kuppen que haviam semeado a destruição na Inglaterra e até o fuzil Kuppen, que era o equipamento padrão do exército nazista. Seria uma alegria reduzir aquela companhia a cacos.

        O telefone tocou. Era a secretária de seu pai.

        — O barão pode vê-lo agora.

        — Já vou.

        O barão olhou para Robert quando ele entrou no escritório e lhe apontou uma cadeira.

        — Leu os relatórios?

        — Li, sim, papai.

        — Sabe que no mês passado o Barão Von Kuppen foi conde- nado a cinco anos de prisão pela sua participação nos crimes de guerra?

        — Sei.

        — E sabe também que na semana passada foi formada uma comissão para liquidar as diversas companhias?

        — E já era tempo! — exclamou impetuosamente Robert. — Era isso o que se devia ter feito depois da Primeira Guerra. Talvez assim os nazistas nunca tivessem levantado a cabeça.

        O pai olhou-o placidamente.

        — Acha que foi por isso que lhe dei esses relatórios para estudar?

        — Que outra razão pode haver? Com certeza, a comissão pediu o seu parecer de técnico.

        O pai ficou em silêncio um momento e disse:

        — Ou você é imbecil ou ingênuo e eu não sei o que é pior.

        — Não compreendo, papai.

        — Deve ter lido a relação dos acionistas, não leu?

        — Li.

        — Notou que depois da família Von Kuppen o maior acionista é o Credit Zurich International, da Suíça?

        — Sim, têm trinta por cento das ações. — De repente, a compreensão lhe explodiu na cabeça. — CZI!

        — Sim, — disse o pai secamente. — CZI. Credit Zurich International, o nosso banco na Suíça!

        — Não faz sentido. Quer dizer que nós possuímos 30% das ações da Kuppen Farben?

        — Exatamente. E é por isso que não podemos deixar que liquidem a companhia.

        — Fizemos então guerra a nós mesmos? E ao mesmo tempo tivemos lucro?

        — Já lhe disse que não seja imbecil. Não tivemos lucros com a guerra. Hitler confiscou as nossas ações.

        — Por que pensa então que vai reavê-las agora?

        — O Barão Von Kuppen é um cavalheiro. Tenho uma declaração dele na qual diz que não reconhece o edito dos nazistas. Ele cumprirá a sua obrigação.

        — Claro, — disse Robert sarcasticamente. — Que é que ele tem a perder? Setenta por cento do que pudermos salvar para ele serão muito mais dinheiro do que os 100% de nada que ele terá se a comissão dissolver a companhia.

        — Você está falando como uma criança, Robert.

        — Estou? — perguntou Robert, levantando-se. — Talvez tenha esquecido mas foi essa a gente que tentou varrer-nos da face da Terra. Foram eles que arrastaram sua filha para uma prisão e ali a violentaram e brutalizaram. Foram os mesmos homens que me torturaram para que eu traísse a minha pátria. Já esqueceu, meu pai?

        — Não, não esqueci. Mas que relação tem uma coisa com outra? A guerra já terminou.

        — Já, papai! — exclamou Robert, tirando o paletó e arregaçando a manga da camisa. — A guerra já terminou? Olhe para meu braço e me diga se ainda pensa assim!

        O barão olhou para o braço de Robert e disse:

        — Não compreendo.

        — Então, vou-lhe explicar. Está vendo estes buraquinhos? São picadas de agulha e pode agradecê-las aos seus amigos nazistas. Não puderam obter informações de mim de jeito nenhum e então resolveram fazer de mim um viciado em entorpecentes. Durante muitos e muitos dias, deram-me uma injeção de heroína. Um belo dia, pararam. Faz alguma ideia de quanto eu sofri, papai? Ainda acha que a guerra está terminada para mim?

        — Eu não sabia, Robert, — disse o barão, com voz trêmula.

        — Vou chamar os médicos. Você ficará curado.

        — Já tentei, papai, e não adianta. Já sinto dores de sobra e não quero mais.

        — Você tem de ir-se embora daqui e descansar. Temos de cuidar de você. Arranjarei outra maneira de resolver o caso da Kuppen Farben.

        — Abandone-a, papai! Não precisamos dela! Deixe acabarem com a companhia.

        — Não posso, Robert. Há outros interesses, os de nossos primos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Sou responsável perante todos eles.

        — Diga-lhes então como nos sentimos. Tenho certeza de que concordarão conosco.

        O pai ficou calado.

        Roberto desceu a manga da camisa e apanhou o paletó. Encaminhou-se para a porta.

        — Sinto muito, papai.

        — Para onde é que você vai?

        — Vou-me embora. Não foi o que disse que devia fazer?

 

        Bateram à porta e Denisonde levantou-se da mesa e foi abrir.

        — Monsieur le Baron!

        O Barão de Coyne olhou-a e perguntou com hesitação:

        — Meu filho está?

        — Sim, mas está dormindo, m’sieur.

        — Oh, — murmurou o barão ainda à porta.

        — Desculpe a minha indelicadeza. Quer fazer o favor de entrar?

        — Obrigado, — disse o Barão, entrando com ela no apartamento.

        Ela fechou a porta e olhou-o. O barão havia envelhecido. O rosto estava magro e enrugado e os cabelos diminuídos e grisalhos.

        — Não se lembra de mim, m’sieur?

        Ele sacudiu a cabeça.

        — Nós nos conhecemos antes da guerra. Na casa de Madame Blanchette.

        — É verdade, — disse o Barão, mas de um modo que mostrava que não tinha a menor lembrança. — Mas naquele tempo você devia ser uma criança.

        Ela sorriu:

        — Vou-lhe fazer um café. Depois, irei ver se Robert está acordado.

        Quando ela lhe entregou a xícara de café, o Barão disse:

        — Se ele estiver dormindo, deixe-o. Eu posso esperar.

        — Oui, m’sieur.

        Robert estava acordado, sentado na cama.

        — Quem é que está aí? Já lhe disse que não marcasse nada antes de eu sair de casa.

        — É seu pai, Robert.

        Ele ficou em silêncio um instante e disse:

        — Diga que se vá embora! Não quero falar com ele!

        Ela ficou no mesmo lugar sem se mover.

        — Não ouviu o que eu disse? — gritou ele zangado.

        Denisonde continuou parada.

        Olhou-a com raiva, mas viu afinal que ele é que tinha de ceder.

        — Está bem. Vou falar com ele. Ajude-me a me vestir.

        Ficando sozinho o Barão tirou um cigarro da sua cigarreira de ouro e acendeu-o. Tomou mais um gole de café e olhou para o apartamento pobremente mobiliado. Nada mais estava certo depois da guerra. Todos os velhos padrões pareciam haver desaparecido.

        Quando ele era moço e começara a trabalhar no escritório do pai, contentara-se em passar os muitos anos necessários para adquirir experiência e ganhar a confiança dos mais velhos. Os moços agora eram muito apressados. Era uma coisa que ele podia sentir em quase todas as seções do seu banco. Quando ele passava pelos escritórios sentia a maneira quase de desafio com que os moços olhavam os mais velhos. Era quase como se já soubessem mais do que eles.

        Percebera mais de uma vez o cepticismo com que recebiam as ordens que dava. Pareciam perguntar: Por que acha que está certo? Por que acha que sabe de tudo? Havia muito que vira isso. Até no rosto de seus filhos quando a guerra começara e ele insistira para que fossem para os Estados Unidos. Preferiram ficar como o homem comum da rua, que não tinha outro jeito. Não faziam a menor ideia da sua posição social ou de que esta os elevava acima da vulgaridade do conflito.

        Era um malaise de société, liberté, égalité, fraternité. Os próprios revolucionários reconheciam as diferenças na sua sociedade e sabiam que esses slogans deviam aplicar-se de maneira diversa nas diferentes camadas.

        Ouviu o som de vozes atrás da parede fina do quarto e rodou o cigarro nervosamente na mão. Jogou um pouco de cinza no chão e procurou um cinzeiro. Acabou jogando furtivamente a ponta do cigarro no pires do café. Levantou-se e foi até à janela. A estreita rua perto da Place Pigalle parecia ainda mais sórdida do que à noite. Os letreiros dos clubes noturnos que pareciam tão pitorescos e vivos quando acesos estavam apagados e sujos. A sarjeta estava cheia do lixo da noite passada.

        Enquanto olhava, um homem e uma mulher saíram de uma porta em frente. A mulher sorriu e abriu a bolsa. Entregando algumas notas ao homem, a mulher beijou-o no rosto e saiu na direção de Pigalle com um andar inconfundível.

        O barão sentiu uma súbita vergonha. Aquele homem poderia ser seu filho. Robert não era melhor. Que demônios pessoais o haviam feito cair tanto? Se o filho o abandonara por orgulho, como podia conciliar esse orgulho com a vida ignóbil que estava levando? Ainda se lembrava de como ficara a par de tudo.

        Recebera um telefonema de Madame Blanchette.

        — Seu filho pegou uma de minhas meninas, m’sieur.

        O barão havia rido.

        — Ah! Os moços são assim mesmo. Não se preocupe, Madame. Eu cobrirei todos os seus prejuízos.

        — Não, m’sieur, creio que não compreende. Ela foi viver com ele. Estão num apartamento perto de Pigalle. Ela está trabalhando por conta própria.

        Ele não havia compreendido logo.

        — E Robert? Consente nisso?

        Madame Blanchette não respondeu.

        — Que sujeira! — exclamara o Barão, enfurecido. — Essa pequena não compreende! De mim ela não terá nem um sou!

        — Ela sabe disso, m’sieur.

        — Por que foi então viver com ele?

        — Acho que tem amor por ele.

        — Prostituta não sabe o que é amor, — replicara ele brutalmente.

        A voz de Madame Blanchette se alterou sutilmente.

        — Ela também é mulher, m’sieur, e as mulheres amam.

        Depois de dizer isso, ela desligara o telefone e o barão jogara colericamente o telefone no gancho. Tinha muito o que fazer e tirou a conversa do pensamento. O rapaz voltaria com toda a certeza. Bastaria ele ver que não teria dinheiro dele.

        Mas semanas se foram passando e nada de notícias de Robert. Um dia, a sua secretária entrara no escritório.

        — Um homem da polícia quer falar com o senhor. Diz que é o Inspetor Lebocq.

        — Que é que ele quer?

        — Diz que o assunto é pessoal.

        — Faça-o entrar.

        O detetive era um homem baixo, de terno cinza, com maneiras quase bajulatórias.

        — Quer falar comigo? — perguntara o Barão rispidamente. Sabia como se devia tratar esses funcionários públicos presunçosos.

        — Oui, monsieur. Numa batida que demos na noite passada, prendemos algumas mulheres e os maquereaux delas. Um deles se identificou como seu filho. Este aqui.

        O homem lhe entregara uma fotografia. O Barão viu os olhos desafiadores do filho e a sua primeira ideia foi a de que ele não se estava alimentando bem, pois parecia muito magro.

        — É seu filho mesmo, barão?

        — É, sim. Qual é a acusação que há contra ele?

        — Viver dos rendimentos da prostituição.

        O barão se sentiu de repente muito velho.

        — Que é que vai acontecer?

        — Será condenado à prisão, a menos que pague a multa. Ele diz que não tem dinheiro.

        — Mandou-o procurar-me?

        — Não, monsieur. Nem falou em seu nome. Só vim aqui para verificar a identidade. —Levantou-se e apanhou a fotografia. — Muito obrigado pela sua cooperação, monsieur.

        — Quanto é a multa? Vou pagá-la.

        — Não posso me imiscuir nesses assuntos, monsieur. Mas meu irmão, que é detetive particular, é também advogado e homem muito discreto. Tenho certeza de que poderá resolver o caso para o senhor sem qualquer publicidade.

        — Faça então o favor de pedir a ele que me procure. Ficar-lhe- ei muito grato.

        — Será preciso pagar também a multa da mulher. A acusação é conjunta.

        — Compreendo.

        Naquela tarde, o irmão do detetive foi procurar o barão. Era quase uma cópia em papel carbono do outro. Quando saiu, tudo estava combinado. Não haveria mais dificuldades para Robert ou para a mulher. Afinal de contas, o irmão dele era o encarregado da repressão ao meretrício no arrondissement.

        Já havia quase dois anos. O detetive particular aparecia regularmente no escritório do Barão com um relatório sobre Robert e saía com o bolso cheio de notas. Três semanas antes dissera ao barão que Robert adoecera e fora levado para um hospital como indigente. Mas antes que ele pudesse tomar qualquer providência, Robert saíra voluntariamente do hospital. Quando o Barão leu a ficha médica do hospital, ficou certo de que Robert se estava lentamente matando. Foi então que decidira agir.

        Nesse momento, a porta do quarto se abriu. O Barão sentiu um frio no estômago mas teve energia bastante para levantar os olhos. Robert estava em silêncio na porta.

        O Barão sentiu uma tristeza tão grande que chegou quase a ter um colapso. Era Robert e, ao mesmo tempo, não era. A exagerada magreza, a palidez extrema, os olhos encovados — seria realmente seu filho?

        — Robert!

        Robert não se moveu. Quando falou foi com uma voz estranha, não a voz de que o pai se lembrava.

        — Não recebeu meu recado? Mandei dizer que não queria vê-lo!

        — Robert, quero que você volte para casa.

        — Para quê? Há outros nazistas que queria salvar?

        Robert sorriu, com um sorriso que era mais uma careta.

        — Estou em casa.

        — Escute, Robert, você precisa de tratamento. Você está doente, muito doente. Morrerá se continuar assim.

        — A vida é minha. E de qualquer maneira, já vivi mais do que devia. Eu devia era ter morrido na guerra.

        — Mas não morreu! E matar-se assim é uma loucura. Está procedendo como uma criança. É assim que pretende punir-me? Com a fantasia infantil de ver-me chorando à sua sepultura?

        Robert ia falar, mas o Barão não deixou.

        — Vou chorar, sim, mas não por você, vou chorar por meu filho, pelo que ele poderia ter sido. Com tanta coisa para ser feita neste mundo, com tanta coisa em que se pode ainda acreditar, com tantas coisas que poderia ainda fazer, você prefere jogar fora a sua vida? Você não está sendo um homem! Não passa de um garotinho mimado que faz a greve da fome porque o pai não quer brincar com ele.

        Olhou Robert bem nos olhos.

        — Você pode não concordar comigo mas eu ao menos faço aquilo cm que acredito. Trabalho. Não fujo da vida e vou esconder-me num canto porque as coisas não correm como eu desejo!

        Foi até à porta e abriu-a.

        — Estava preocupado com meu filho, — disse ele, friamente.

        — Não estou mais. Não tenho mais filho. Nenhum filho meu poderia ser tão covarde assim!

        Já ia fechar a porta.

        — Papa!

        Voltou-se.

        — Feche a porta, — disse Robert. — Há uma coisa que eu gostaria de fazer.

        O Barão encostou-se à parede, sentindo uma curiosa fraqueza nas pernas. Olhou em silêncio para Robert.

        — Gostaria de ir para Israel, Papa. Creio que ali poderia reencontrar um sentido para a minha vida e ser útil de novo.

        O Barão bateu com a cabeça sem falar.

        — Antes disso, quero fazer uma coisa. — Voltou-se para a mulher. — Quer casar-se comigo, Denisonde?

        Ela olhou-o. Um momento depois, respondeu com voz clara e firme.

        — Não!

        Foi então que o Barão sorriu. O filho voltara para casa.

        Deixe, meu filho — disse ele, sentindo que toda a energia lhe voltava. — Ela se casará com você.

 

        Dax saiu do mar e se dirigiu pela praia para a cabana. A areia já estava quente sob os seus pés e o ardente sol da Flórida brilhava nas gotas de água que lhe aderiam ao corpo. Olhou para a praia e depois, além das piscinas, para a grande casa de inverno dos Hadleys.

        Ainda era muito cedo e não havia qualquer movimento. Apanhou o seu relógio na mesa perto da cabana. Nove horas. Suspirou com um curioso prazer. Teria ainda quase duas horas de solidão. Ninguém na casa dos Hadleys punha a cabeça de fora antes das onze horas. Entrou na cabana para pegar uma toalha.

        Ficou um instante à porta para habituar os olhos à luz mais fraca e foi então que a viu deitada no sofá. A princípio, só viu os cabelos louros, mas ela se sentou de repente e ele viu que estava completamente nua.

        — Pensei que não ia sair de dentro da água, Dax.

        Ele pegou uma toalha no cabide e jogou-a para ela.

        — Você é uma idiota, Sue Ann!

        Ela não fez qualquer movimento para pegar a toalha, que foi cair no chão ao lado do sofá.

        — Todo mundo está dormindo ainda.

        Dax apanhou outra toalha no cabide e saiu da cabana. Estendeu a toalha na areia e se deitou sobre ela, de bruços, para poder descansar a cabeça nos braços. Um momento depois, sentiu movimento e abriu os olhos.

        Sue Ann vestira um maiô branco que muito pouco lhe ocultava do corpo opulento.

        — Que é que há com você? — perguntou ela, com voz aborrecida. — E não me venha com mentiras a respeito de Caroline. Eu sei que todo mundo em Nova York fala sobre você e Maddy Schneider.

        Ele não respondeu. Estendeu a mão, agarrou-a por um tornozelo e a fez cair na areia.

        — Que quer dizer isso? — perguntou ela, zangada. Mas viu então os dentes alvos abertos num sorriso no rosto moreno e murmurou: — Oh, Dax!

        Ele se afastou um pouco dela e disse, ainda sorrindo:

        — Disfarce e olhe para a casa. O janelão perto do canto no segundo andar.

        Ela virou o corpo e ficou parada um instante com o rosto pousado na areia. Depois, levantou displicentemente a cabeça.

        — É o quarto de James Hadley. Está-nos olhando.

        Dax sorriu.

        — E de binóculo! Como vê, não somos só nós que estamos acordados.

        — Que bode velho! — exclamou ela, rindo. — É assim que ele ainda consegue as suas emoções.

        — Não é só por isso. Ele gosta de estar a par de tudo o que está acontecendo.

        — Não admira que os rapazes sejam tão assanhados. Saíram ao velho.

        Dax riu e levantou-se.

        — Está ficando muito quente. Vou cair na água de novo para refrescar.

        Levantou a cabeça da onda e viu Sue Ann atirar-se na água para onde ele estava. Foi bater nele e Dax rolou levado pela onda. Firmou-se quase sufocado e viu que ela se estava afastando a nado em longas braçadas. Partiu no encalço dela.

        — Ah! Está querendo brincar comigo? — exclamou ele, agarrando-a com uma mão.

        Sem uma palavra, ela aspirou fortemente o ar e deixou-se afundar na água. Dax sentiu-a soltar-se dele e mergulhou também, mas ela já vinha ao seu encontro por baixo da água. Sentiu as mãos dela pegarem-no por dentro do calção.

        A cabeça dela surgiu à tona d’água diante dele.

        — Rende-se?

        Ele sentiu o calor subir-lhe pelo corpo. Olhou para a casa e viu um reflexo na janela. Hadley ainda estava a olhá-los. Ora, ele que fosse para o inferno! Ainda não haviam inventado um binóculo que permitisse ver o que se passava dentro da água. Virou-se para Sue Ann.

        — Um corteguaio nunca se rende!

        — Não? — disse ela, apertando-o com mais força.

        Ele riu, sentindo a tensão crescer dentro dele e, baixando as mãos, procurou por trás a bainha do maiô e levantou-a o suficiente para meter dois dedos por dentro do pano.

        Riu com a súbita surpresa que se mostrou no rosto dela. Debateu-se, tentando livrar-se dele, mas ele manteve facilmente os dedos onde queria. Por fim, tocou o fundo com os pés e ela não se pôde absolutamente mover.

        — Reconheça que há um empate!

        — Largue-me, — disse ela. — O velho está olhando!

        — Que mal faz? Ele não pode ver o que está acontecendo dentro da água.

        De repente, o corpo dela afrouxou.

        — Oh! Oh! — gritou ela freneticamente. — Venha! Vamos!

        Ele firmou as pernas e penetrou-a. Sentiu o calor do corpo dela perto do seu acima da água.

        — Bote os braços fora da água e afaste o busto de mim, — disse ele. — Assim, ninguém nem poderá saber que os nossos corpos estão-se tocando.

        Ela ficou para trás dentro da água, com os braços estendidos e as pernas trançadas nos quadris dele, quase como se estivesse boiando.

        — Que bom! — gemeu Sue Ann quase num paroxismo de prazer. De repente, olhou-o muito preocupada. — Não posso me aguentar nessa posição, Dax! Não posso!

        — Pode, sim! — disse ele, agarrando-a violentamente pelas nádegas. Ela começou a gritar. Ele lhe empurrou a cabeça para dentro da água. Ela voltou à tona, bufando e tossindo, depois se abandonou nos braços dele, vibrante.

        Um momento depois, ela o olhou, sorrindo.

        — Estava precisando disso! Há muito tempo que não sei o que é isso. Agora, deixe-me ir que ele ainda está olhando!

        Dax sacudiu a cabeça, ainda agarrando-a por detrás.

        Ela o olhou com surpresa.

        — Você não pára! — exclamou, ao mesmo tempo que jogava a cabeça para trás e ele tornava a penetrá-la.

        — Ai! Não posso mais!

 

        Não era Hadley a única pessoa que estava olhando. Caroline saiu da janela no momento em que eles voltaram para a praia. Tinha havido alguma coisa entre eles. Tinha certeza disso embora não tivesse podido ver o que fora. Conhecia Sue Ann muito bem e só pelo andar dela sabia.

        Estendeu-se na cama. Tremia apesar do calor e puxou os cobertores para cima do corpo. Que é que há comigo? pensou ela. Não estou nem com ciúmes.

        Ouviu o som de passos no corredor e então a porta se abriu. Fechou os olhos e fingiu que estava dormindo. Quando ouviu Dax chegar junto da cama, abriu os olhos como se estivesse acordando naquele momento.

        — Bom dia, — disse ele;

        Ela forçou um sorriso sonolento.

        — Que horas são?

        — Dez e pouco. — Olhou-a com mais atenção e perguntou: — Está sentindo alguma coisa?

        — Estou bem, apenas um pouco cansada, — disse ela, sentan- do-se na cama. — Como está o dia lá fora?

        — Lindo. Já entrei na água. Está ótima e quente. — Foi até a cômoda para tirar o calção de banho. — Sabe quem estava também na praia? Sue Ann.

        Olhou para a faixa branca em torno dos quadris e das nádegas dele. Como estava preto! Nunca vira ninguém se queimar tanto com o sol como ele. Dax tirou o relógio e chegou de novo junto da cama.

        — Acho que vamos para Hollywood. Recebi um convite de Speldel. Ele quer que eu vá jogar pólo.

        Um forte cheiro masculino se desprendia dele. Fechou os olhos para não vê-lo. Tinha certeza de que havia acontecido alguma coisa com Sue Ann.

        — Giselle anda por lá?

        — Acho que sim. Parece que vai fazer um filme.

        Joe Speidel era chefe de um dos grandes estúdios. Era também produtor e se considerava um grande jogador de pólo. Tinha organizado uma equipe que procurava lisonjear-lhe a vaidade e gostava de atrair bons jogadores. Dax era a sua peça de resistência, tendo mais valor para ele do que os Oscars que se enfileiravam em cima da sua lareira no estúdio.

        Caroline abriu os olhos e disse:

        — Vá vestir alguma coisa. Você sabe que eu não posso suportar ver você assim perto de mim.

        — Vou tomar um banho, — disse ele. Da porta do banheiro, voltou-se para ela: — Então? Que é que você resolve? Vamos ou não vamos?

        — Faz alguma diferença? — Vendo que ele nada dizia, acrescentou: — Se quiser, podemos ir.

        A porta do banheiro se fechou e, no mesmo instante quase, ela ouviu o barulho do chuveiro. Levantou-se. Foi até perto da cômoda e apanhou o calção de banho de Dax. Jogou-o depois zangadamente no chão.

        Voltou para a janela. Sue Ann estava deitada na praia, estendida ao sol como uma gata. Voltou para a cama. Um animal, pensou ela, um animal é que ele é. Capaz de juntar-se com qualquer uma.

        Um miserável animal!

 

        No princípio, Caroline não havia pensado assim. Sentira apenas gratidão e segurança com a presença dele. Mesmo em Paris, nas longas semanas que passara esperando que as autoridades alemãs lhe concedessem o passaporte e o visto de saída, sentira-se em segurança dentro do consulado. Afinal, o passaporte foi concedido. Tinham de deixá-la ir. Não se atreviam a ter divergência com o Corteguay enquanto houvesse uma probabilidade de conseguirem carne.

        Viajaram para Lisboa num velho trem meio desconjuntado e esperaram ali um navio do Corteguay que os levasse para o outro lado do Atlântico. Ainda então, ela se sentira relativamente segura. Ganhara um pouco de peso e os pesadelos que lhe torturavam o sono estavam começando a desaparecer. Mas isso foi até o dia em que viu o homem no restaurante onde estavam jantando.

        Dax parou de repente com o garfo a meio caminho da boca. Caroline estava branca como cera.

        — Que foi?

        — Aquele homem ali! Veio-me buscar!

        — Deixe de tolice, — replicou Dax. — Ninguém pode mais levá-la!

        — Ele pode, — disse ela, sentindo o medo embrulhar-lhe o estômago. — Veio-me buscar. Sabe que me pode obrigar a fazer tudo o que ele quiser!

        Dax virou-se para olhar. Era um homem com um terno cinza comum, que nem estava olhando para eles. A cabeça com o cabelo louro cortado rente estava curvada sobre um prato de sopa.

        — Leve-me daqui! Pelo amor de Deus, Dax!

        Ele se levantara imediatamente, sentindo-lhe a agitação.

        — Vamos, — disse ele, tomando-lhe o braço.

        Sentiu-a tremer quando passaram pelo alemão. Subiram para o quarto no hotel e logo que a porta se fechou ela se entregou a um verdadeiro acesso de choro.

        — Não tenha medo, — disse ele, abraçando-a. — Não deixarei ninguém fazer mal a você.

        — Ele me obrigou a fazer coisas terríveis, — disse ela, soluçando. — E ria durante todo o tempo sabendo que eu ia fazer tudo.

        — Não pense mais nisso — disse ele com voz subitamente áspera. — Prometo que ele nunca mais a aborrecerá.

        Mas foi preciso mais do que essa promessa para acalmá-la. Foi preciso tomar três dos comprimidos que o médico lhe havia receitado para a insônia. Afinal, adormeceu e Dax ficou a olhá-la. Depois, cobriu-a delicadamente e saiu, fechando a porta.

        Ela acordou no dia seguinte ainda atordoada pelo remédio. Levantou-se, vestiu o robe e foi para a sala. Dax estava sentado à mesa tomando café. Olhou-a e sorriu.

        — Tome um pouco de café.

        Ela se sentou e olhou para o jornal em cima da mesa. A fotografia do alemão saltou da página da frente com títulos graúdos em cima. ASSASSINADO O ALEMÃO

        — Ele está morto! — disse ela, olhando para Dax.

        — Claro, — respondeu ele. — Não lhe prometi que ele nunca mais a aborreceria?

        Isso deveria tranquilizá-la, mas tinha havido alguma coisa na maneira pela qual ele falara que a fizera vê-lo sob novo aspecto. E era estranho que isso a apavorasse ainda mais. O selvagem que dormia nele sob a aparência civilizada, não precisava mais do que de uma palavra para voltar â violência primitiva.

        Os pesadelos voltaram e só começaram a desaparecer pouco antes de chegarem a Nova York muitas semanas depois. Outro sentimento começara então a dominá-la. Havia uma forte simpatia entre eles, uma espécie de amor. Não da espécie que ela imaginava que sentiria um dia antes que os alemães a levassem para a prisão. Era mais como o que sentira por seu irmão Robert. Um sentimento de que ele a protegeria e cuidaria dela. Ou como o que sentia pelo pai, a confiança de que nada a atingiria enquanto ele cuidasse dela.

        O Barão tinha ido esperá-los no cais. Lá estavam também o cônsul do Corteguay e muitos repórteres. Tinha havido muito barulho e confusão e no fim ela se vira sozinha no carro com o pai, subindo Park Avenue. Dax ia em outro carro com o cônsul. Havia um assunto qualquer que o obrigara a ir diretamente ao consulado. Mas iria depois jantar com eles.

        O Barão ficou a contemplá-la dentro do carro com um olhar estranhamente terno.

        — Que é que está olhando, papai?

        As lágrimas apareceram inesperadamente nos olhos do Barão.

        — Estou olhando minha filhinha, minha garotinha! '

        Ela também começou a chorar.

        — E Robert? — perguntou o pai, tirando o lenço. — Não tivemos mais notícia dele. Acho que também foi capturado.

        — Robert está em segurança.

        — Você sabe? Como? Onde está ele?

        — Não sei ao certo, papai. Mas Dax diz que ele está em segurança.

        — Como é que ele sabe?

        — Ora, papai, — disse ela com uma confiança quase infantil. — Se Dax diz é porque é mesmo.

        O Barão lembrou-se por um momento da primeira vez em que vira Dax, ainda garoto, adormecido na sala de Madame Blanchette Parecia quase que ele sabia desde aquele momento como as suas vidas iam entrelaçar-se.

        — Você ama seu marido?

        Caroline olhou-o surpresa, como se fosse a primeira vez que havia pensado nisso.

        — É claro.

        O Barão ficou algum tempo em silêncio e disse:

        — Ele é um homem muito forte. E você...

        — É também um homem muito bom, Papa. E muito compreensivo.

        — Mas você é tão frágil! Quero dizer...

        — Está tudo certo, Papa. Dax compreende. E eu não ficarei sempre assim. Agora que estou de novo ao seu lado, voltarei a ser forte, vai ver. O senhor talvez ainda brinque muito com seus netos...

        — Não! — exclamou o Barão com uma nota de angústia na voz. — Não deve haver filhos!

        — Mas, Papa...

        — Você não compreende? — perguntou ele, rudemente. — Podem nascer pretos! Não deve haver filhos!

 

        Ela havia acabado de despertar de um cochilo quando Dax entrou no quarto.

        — Deve haver algum engano, — disse ele. — Levaram a minha bagagem para o quarto do outro lado do corredor.

        Ela não pôde olhar para ele.

        — Papa acha melhor que por enquanto seja assim. Até eu me recuperar de todo.

        — É isso o que você quer?

        — Não sei...

        Ele não esperou que ela completasse a frase.

        — Por esta noite, não tem importância, — disse ele, zangado. — Mas quando eu voltar, terá. Espero que até lá você saiba o que é que quer!

        E encaminhou-se para a porta.

        — Dax! — gritou ela cheia de subido medo. — Para onde é que você vai?

        — Havia ordem no consulado para que eu partisse para o Corteguay amanhã. De lá voltarei para a Europa.

        — Mas acabamos de chegar. Você não pode ir!

        — Não? Foi seu pai também que disse isso?

        A porta se fechou e Caroline ficou sozinha. Começou a chorar. Não estava certo. Nada mais estava certo. Se ela pudesse voltar a sentir o que sentia antes da guerra...

 

        Ele estava de robe, sentado à pequena escrivaninha, quando ela entrou no quarto ainda naquela noite. Havia muitas folhas de papel espalhadas pela mesa. Ele olhou para o relógio.

        — Quase uma hora da madrugada. Você devia estar dormindo.

        — Estou sem sono. Posso entrar?

        — Claro.

        — Que é que       você está fazendo?

        — Lendo relatórios. Estou com o meu serviço muito atrasado.

        Por um momento, ela ficou surpresa. Nunca o havia associado com o trabalho, ao menos com aquele trabalho rotineiro e enfadonho.

        — Não sabia, — murmurou ela. — Devo tê-lo atrapalhado muito.

        — Não tem importância. Eu precisava mesmo de uma mudança.

        — E tem mesmo de voltar para a Europa?

        Ele sorriu.

        — Vou para onde o Presidente me manda. É essa a minha vida.

        — E a guerra? O perigo?

        — Meu país é neutro. Eu sou neutro.

        — Por quanto tempo ainda? Em breve, os Estados Unidos entrarão na guerra. E toda a América do Sul, também, inclusive seu país.

        — Se isso acontecer, eu voltarei.

        — Voltará, se os nazistas deixarem, — murmurou ela, sombriamente.

        — Há uma lei internacional que regula esses assuntos.

        — Não fale comigo como se eu fosse uma criança. Eu sei o que os nazistas pensam da lei internacional.

        — É o meu trabalho. Não tenho outro jeito.

        — Pode pedir demissão, não pode?

        — Para fazer então o quê? — perguntou ele, rindo.

        — Meu       pai ficaria encantado em tê-lo no Banco.

        — Não,        muito obrigado. Não daria para banqueiro. Aliás, não tenho o tipo.

        — Deve haver alguma outra coisa que você possa fazer.

        — É claro, mas jogadores de pólo profissionais não ganham muito dinheiro.

        — Você está-me tratando outra vez como uma criança. Não sou mais um bebê.

        — Eu sei.

        Ela sentiu de repente o rosto corado e baixou os olhos.

        — Não       tenho sido muito esposa para você, não é?

        — Você passou por muita coisa. Precisa de tempo para se recuperar.

        — Quero ser uma boa esposa para você, Dax. Sou muito grata por tudo o que você tem feito por mim.

        — Não me agradeça. Casei-me com você porque queria casar-me.

        — Mas você não me amava. Havia Giselle.

        — Sou homem, — disse ele simplesmente. — E sempre houve pequenas.

        — Giselle não era apenas uma pequena. Vocês se amavam. Até eu pude perceber isso.

        — E ainda que nos amássemos? Foi com você que me casei.

        — Por que se casou comigo? Foi porque não havia outro meio de libertar-me dos nazistas?

        Dax não respondeu.

        — Quer divorciar-se?

        — Não. E você?

        — Não. Pode-me dar um cigarro?

        Ele abriu a cigarreira e acendeu o cigarro para ela.

        — Eu queria casar-me com você, — disse ela. — Já havia chegado a essa conclusão antes da guerra. Mas...

        — Más o quê?

        — Na prisão, não pode calcular como me senti, — disse ela, sentindo as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. — Sentia-me emporcalhada por tudo o que fizeram comigo. Há horas em que duvido de que ainda chegue a me sentir limpa.

        Começou a chorar descontroladamente. Dax a fez pousar a cabeça no colo dele.

        — Não chore. Você tem de deixar de sentir-se culpada. Eu sei o que o medo pode fazer. Uma vez, quando eu era garoto, meti uma bala no coração de meu avô para que não me matassem.

        Ela olhou para ele e viu no seu rosto linhas que nunca havia notado, rugas de dor e de tristeza. Sentiu de repente uma pena imensa dele. Beijou-lhe ternamente a mão.

        — Desculpe, Dax. Tenho sido uma boba de só pensar em mim.

        — Bem, — disse ele, olhando-a com gentileza e carinho, — está na hora de você voltar para sua cama.

        — Não, quero passar a noite com você.

        — Não posso impedir você de ir, mas já é tempo de eu ser sua mulher e não apenas a moça com quem você se casou.

        — Mas...

        E ela tentou. Tentou mesmo. Mas quando chegou o momento, ela só sentiu pânico. Só podia pensar na prisão e nos longos instrumentos com que a haviam torturado.

        Gritou, debateu-se e lutou, tentando afastá-lo dela. Depois, virou a cabeça no travesseiro e chorou. Ao fim de algum tempo, adormeceu. Quando acordou no dia seguinte, Dax já havia partido.

 

        A frase calou fundo no espírito de Caroline. “Sou homem e sempre houve pequenas.” Com a guerra e depois, muitas coisas haviam mudado. Mas aquilo, não. Ouviu contar muitas coisas. De muitas formas, em muitos lugares. Havia sempre pequenas onde quer que ele estivesse.

        Um dia, quase no fim da guerra, o pai dela, depois de um escândalo de que os jornais haviam falado muito, entrara no quarto dela com um jornal na mão.

        — Que é que você vai fazer a respeito disto?

        Caroline leu a manchete na primeira página de um tablóide de Nova York:

        DIPLOMATA APONTADO COMO CÚMPLICE NUM CASO DE DIVÓRCIO

        Em Roma, onde Dax vivia com imunidades diplomáticas especiais, fora acusado de ter uma ligação com a esposa de um conde italiano. Ela devolveu o jornal ao pai e comentou secamente:

        — Dax vai ficar satisfeito. Ao menos, não lhe negaram o título de diplomata.

        — É só o que você tem para dizer?

        — Que devo dizer mais?

        — Ele está-se divertindo a nossa custa, de você, de mim, de nossa família. Todos se riem de nós.

        — Ele é um homem. Quando está fora de casa, é natural que se envolva com mulheres.

        — Não é um homem, — retrucara furiosamente o pai. — É um animal!

        — Por que está tão irritado, quando eu não estou, Papa? Ele é meu marido.

        — Agrada-lhe essa espécie de notoriedade?

        — Claro que não, mas não exerço nenhum controle sobre as manchetes dos jornais. Que quer que eu faça?

        — Divorcie-se dele.

        — Não.

        O pai a olhou.

        — Não compreendo você, Caroline.

        — Sei que não compreende, Papa. Nem a mim, nem a Dax.

        — E você o compreende?

        — De certo modo, sim, se é que alguma mulher chega a compreender o homem com quem se casou. Talvez Dax seja um animal como o senhor diz. Basta apertar os botões indicados para ele reagir. Já o vi reagir ao ódio e ao perigo com violência; à piedade, com gentileza e compreensão; a uma mulher... Bem, acho que nunca fui realmente uma mulher para ele. Mas a uma mulher ele reage como homem.

        — Não vai fazer nada então?

        — Não. Veja que Dax sabia de tudo isso e, entretanto, se casou comigo. Era a única maneira que tinha de ajudar-me e só por isso nunca pedirei divórcio dele. Se ele quiser divorciar-se de mim, não farei objeções. Mas, enquanto isso não acontecer, o menos que posso fazer é manter a minha parte do nosso trato.

        Mas isso com o tempo se tornou cada vez mais difícil. A volta de Dax nada havia facilitado para ela. Uma coisa era saber do que havia acontecido a cinco mil quilômetros de distância e outra coisa era ver o que acontecia diante dos seus olhos, as infidelidades quotidianas. Era preciso que Caroline não fosse humana para não se sentir magoada.

        Por exemplo, o recente caso em Nova York com Maddy Schneider. A idiota chegara ao ponto de abandonar o marido e ir viver num apartamento de hotel, dizendo a todos que ela e Dax iam casar-se. Os jornais tinham sabido disso e um repórter fora procurar Dax no apartamento dele, encontrando-o no momento exato em que, com a bagagem já pronta, ia partir para Palm Beach em companhia de Caroline.

        O repórter ficou naturalmente embaraçado. Afinal, resolveu fazer as suas perguntas. Dax havia sorrido e olhara para Caroline antes de responder:

        — Creio que foi mal informado, meu amigo. A Sra. Schneider e eu somos bons amigos apenas e nada mais do que isso. Como vê, eu e minha mulher vamos partir para Palm Beach em visita a alguns amigos.

        O repórter saiu e os dois se apressaram em tomar o carro. No caminho para o aeroporto, Dax disse:

        — Desculpe o vexame que lhe causei.

        — Não é preciso pedir desculpas. Já estou ficando habituada.

        Ele não disse mais nada. Acendeu um cigarro e ficou a olhá-la pensativamente. Já estava quase chegando ao aeroporto quando ele se lembrou e tirou uma carta do bolso.

        — Isto chegou para você hoje de manhã. Esqueci-me de entregar. Desculpe.

        A carta era do pai dela e, lendo-a, ficou sabendo pela primeira vez do casamento de Robert.

        — Robert se casou!

        — Eu já sabia.

        — Como assim? Por que não me disse nada?

        — O teletipo diplomático deu a notícia. Achei que você iria preferir saber por intermédio de Robert ou de seu pai.

        — Quem é a moça? Não consigo identificar o nome.

        — Denisonde. Será muito boa para Robert.

        — Você a conhece?

        — Conheço. Trabalhou no movimento subterrâneo com ele. Foi quem lhe salvou a vida.

        — Ah! Então é a mesma com quem ele estava vivendo?

        Ele hesitou um momento. Mas era evidente que ela sabia da verdade.

        — Sim, a mesma.

        Os olhos dela se encheram de repente de lágrimas e ela virou o rosto. Pobre Papa, pensou ela. Está recebendo tão pouco de qualquer dos seus filhos...

        James Hadley era o único que estava à mesa no terraço quando Caroline desceu. Ele se levantou e puxou a cadeira para ela.

        — Bom dia, minha cara.

        — Bonjour, Monsieur Hadley. Estou muito atrasada?

        — Decerto que não. Hoje, todo mundo se levantou mais cedo.

        — Só café, por favor, — disse ela ao empregado que apareceu para servi-la.

        — Que espécie de breakfast é esse para uma moça? — perguntou Hadley. — Deve comer alguma coisa.

        — Não, muito obrigada. É só do que gosto de manhã, café. Nós, franceses, não estamos habituados a esses lautos breakfasts americanos.

        — Uma torrada com manteiga ao menos?

        Ela riu.

        — Faz lembrar meu pai. Procurava sempre fazer-me comer mais.

        — É porque ambos gostamos de você.

        Ela o olhou. Havia mais do que simples polidez nas palavras dele? Olhou-o e de repente percebeu que estava ficando vermelha.

        — Só café, por favor.

        Hadley fez um sinal e o criado saiu. Não falaram até ele voltar com o café. Caroline tomou um gole de café e olhou para a praia.

        — Onde estão os outros?

        — Foram passear de barco. São como crianças, — disse ele, de novo com aquela curiosa inflexão na voz. — Estão sempre à procura de alguma coisa para fazer. Não podem ficar parados.

        — Mas o dia está mesmo lindo para um passeio de barco.

        — De fato, mas acho que vou aproveitar a ausência deles e me deitar na praia. É uma das coisas mais raras que pode haver aqui, um dia de sossego.

        Caroline sorriu.

        — Pois eu estava pensando em ir a Palm Beach para fazer umas compras.

        Quase por acaso, a mão dele tocou na dela em cima da mesa, batendo-lhe de leve.

        — Pode ir fazer compras qualquer outro dia. Por que não aproveita a vantagem de passar um dia calmo na praia também?

        A mão dele era queimada de sol, forte e curiosamente jovem. Sentiu o calor subir-lhe ao rosto quando olhou para ele. Mas não tentou tirar a mão.

        — Tem certeza de que não irei atrapalhá-lo?

        Ela sentiu o olhar de admiração dele quando saiu da cabana.

        — Mas você é muito bonita!

        Mais uma vez ela corou.

        — Ora, não me aproximo das belezas americanas. São realmente belas, altas, de pernas compridas. Sou muito pequena.

        — Gosto de mulheres pequenas. Um homem sempre se sente mais alto quando está ao lado de uma mulher pequena.

        Ela tirou um vidro de óleo de bronzear e começou a aplicar o preparado na pele.

        — Queimo-me com muita facilidade.

        — Pois minha pele é como couro. Nunca fico queimado. Fico apenas vermelho.

        — Seria melhor se houvesse um pouco de sombra.

        — Há uma barraca na cabana, — disse ele. — Vou buscá-la.

        Caroline viu-o seguir na direção da cabana. Sabia que tinha mais de cinquenta anos mas isso não transparecia nos seus movimentos. Embora tivesse quase a idade do pai dela, parecia muito mais moço.

        Um instante depois, ele voltava e enfiava na areia o cabo da barraca. Depois de abri-la, sentou-se ao lado dela.

        — Está melhor assim?

        — Muito melhor, — disse ela sorrindo. Entregou-lhe o vidro. — Quer fazer um favor? Passe nas minhas costas que eu não alcanço.

        O toque dos dedos dele era gentil e Caroline fechou os olhos por um momento. Quando ele fez a pergunta, esta na realidade não a surpreendeu.

        — Você o ama?

        Caroline abriu os olhos e ficou por um momento sem ter o que responder.

        — A quem? — perguntou tolamente.

        — A Dax, seu marido.

        Ela então disse acusadoramente.

        — Queria ficar sozinho aqui comigo. Por isso é que não foi passear de barco com os outros.

        — É claro, — respondeu ele sem hesitação. — Mas ainda não respondeu a minha pergunta.

        — É uma pergunta que não devo responder.

        Hadley pegou na mão dela.

        — Para mim, isso é uma resposta suficiente. Por quanto tempo pretende deixar as coisas continuarem assim?

        — Até que chegue ao fim, — murmurou Caroline.

        — Já chegou ao fim há muito tempo, mas nenhum de vocês quer reconhecer isso.

        — A culpa não é dele, é minha. Há alguma coisa em mim que não dá certo.

        — Não há nada em você que não dê certo.

        — Há, sim. Durante a guerra, fui prisioneira dos nazistas. E o que fizeram comigo deu cabo de mim como mulher.

        Ele pegou-lhe o queixo.

        — Olhe para mim.

        Ela levantou lentamente a cabeça. O rosto dele estava firme, quase impassível.

        — O que você quer dizer é que não é mulher para ele. Não significa que não possa ser uma mulher quando encontrar o homem certo.

        Ela começou a chorar. As lágrimas lhe rolaram em silêncio pelo rosto.

        — Tentei ser mulher para ele. Tentei, fiz tudo, mas não foi possível. Acho que não poderei ser para homem algum.

        — Como é que sabe? Já experimentou?

        Caroline olhou-o firmemente. De algum modo sentia-se muito jovem, como se ele pudesse ver no fundo do seu espírito e do seu coração e ela não tivesse segredos para ele.

        — Tem mesmo de fazer essa viagem a Hollywood com ele?

        Ela se sentiu como se estivesse sendo revirada por dentro.

        — Mas eu prometi...

        — Mas tem de ir? — insistiu ele.

        — Por que pergunta?

        — Porque vou voltar para o norte. E quero que se encontre comigo lá.

        Caroline respirou fundo.

        — Se quer ter um caso comigo, acho que vai sentir uma decepção.

        Ele ficou calado.

        — E se está pedindo que eu seja sua amante, não vai dar certo. Não sou muito boa em coisas escondidas.

        — Antes de pedir-lhe isto, teria primeiro de provar a você que você é uma mulher.

        Ele puxou-lhe então o rosto e ela sentiu a suavidade dos seus lábios. Houve dentro dela um calor que havia muito não sentia. Quando Hadley se afastou, ela estava com o olhar perturbado.

        — Não sei...

        — Mas sabia. Disse naquela noite a Dax que ia voltar para Nova York e que ele podia ir para a Califórnia sozinho.

 

        — Tenho navios de sobra, — disse categoricamente Abidijan — Se acha que eles são uma coisa tão boa assim, pode comprá-los. E pague a manutenção também. Não há tanto movimento assim.

        Marcel olhou para o sogro. O velho lhe retribuiu belicosamente o olhar.

        — Pois olhe que eu posso fazer isso, — murmurou Marcel.

        — Pode fazer, mas só quero que me diga uma coisa. Onde é que vai achar o dinheiro?

        Marcel não respondeu.

        — Não conte comigo, está ouvindo? Já tive uma boa amostra dos seus planos malucos. Fui eu que tive de salvá-lo no caso do açúcar, lembra-se?

        — Não teve prejuízo nenhum com o açúcar, — disse Marcel, levantando-se, irritado. E era verdade. Nenhum deles tinha tido prejuízo. Ao contrário, haviam até ganho um bom dinheiro.

        — Sim, mas quanto tempo levamos para tirar o nosso dinheiro? Há coisas melhores para fazer com o dinheiro do que encalhá-lo em navios sem valor.

        — Está bem. Mas não se esqueça de que vim procurá-lo primeiro!

        — Não me esquecerei, — disse Abidijan, com um sorriso. — Agora, se você não leva a mal um pequeno conselho, por que não vai falar com seu sócio Hadley? Ele pode perfeitamente financiar você com os lucros que conseguiu no Corteguay. Não me aborrecerei nada se você fizer aquele camarada perder um pouco de dinheiro.

        Marcel não pôde deixar de sorrir. A má vontade que havia entre Hadley e o velho era bem conhecida. Hadley era o maior concorrente de Amos. Viviam em constante guerra em matéria de fretes e de cargas.

        Abidijan percebeu o sorriso de Marcel e imediatamente mudou de atitude.

        — Escute, estou-lhe falando como um pai. Para que você precisa de mais dinheiro? O que você tem já chega. Tem uma mulher, três belos filhos. E algum dia, quando eu desaparecer, terá tudo isto.

        Sim, pensou Marcel ironicamente, será tudo meu. Pois sim! Seria de Ana e das irmãs. Pode ser até de meus filhos, meu é que nunca será. Forçou um calor na voz que não sentia.

        — Sei disso. Mas o senhor já foi moço e deve saber como eu me sinto.

        — Compreendo. Mas você ainda é muito moço. Não tenha tanta pressa. Há tempo de sobra.

        Marcel deixou o sogro e foi pelo corredor para o seu escritório.

        — O Sr. Rainey telefonou enquanto estava ausente, — disse- lhe a secretária. — Tenho o número da telefonista em Dallas.

        — Pode fazer a ligação.

        Deixou-se cair na cadeira da mesa e olhou pensativamente para os papéis. Pegou um deles e olhou-o. Tinha o título “Excedentes do Governo” e estava mimeografado em papel ruim, enumerando os artigos que o governo tinha à venda. No meio da folha, um lote estava marcado com um círculo azul: 20 navios da classe “Liberty” e dois navios-tanques.

        Pegou outra folha. Quase igual à outra até no título. Só o distrito em que ia ser feita a venda era diferente e o círculo azul marcava um lote de cinco navios-tanques. Estavam à venda 130 navios-tanques ao todo.

        Aquela já era a terceira oferta. Uma nota em cada folha indicava que se os navios-tanques não fossem vendidos dessa vez seriam transformados em sucata. O governo já tinha navios demais encostados.

        Aquilo enfurecia Marcel. O sogro era um tolo, e os gregos também. Só estavam interessados em cargueiros. Tinham navios-tanques em quantidade suficiente. A guerra estava acabada e não havia a mesma procura de petróleo e, se houvesse, eles poderiam sempre aumentar as suas frotas. Mas por enquanto não havia muita carga lucrativa para transportar.

        O telefone tocou e Marcel atendeu.

        — É Campion quem fala.

        — Cal Rainey. — Havia uma nota de animação no sotaque texano do homem. — Você tinha razão. Consegui cópia dos estudos geológicos. Há petróleo na plataforma submarina que parte da Venezuela e se estende a todo o continente.

        — Ao Corteguay também?

        — É onde são maiores as probabilidades.

        — E aquela outra coisa?

        — Estão interessados, — disse Rainey, — mas não querem entrar em negociações enquanto não tiverem certeza de que você garantirá o transporte. Abidijan e os gregos disseram a eles que as despesas eram muito grandes.

        — Compreendo, — disse Marcel, respirando profundamente. Via-se de novo no cassino de Macau, vendo as cartas caírem. Uma de cada vez, com uma fortuna em jogo a cada uma delas, sem se saber se a próxima seria a que arruinaria o jogador. Mas era essa justamente a fascinação, o perigo que o atraía como um ímã irresistível. Talvez seu sogro estivesse certo. Talvez ele não precisasse do dinheiro. Mas ele não podia deixar de meter-se em negócios arriscados, do mesmo modo que não podia deixar de respirar.

        — Volte lá e diga-lhes que eu garanto o transporte.

        — Mas querem saber como poderá garanti-los.

        — Levarei uma lista dos navios disponíveis quando chegar depois de amanhã.

        Desligou o telefone. Esperou um momento e tocou a campainha chamando a sua secretária. Quando ela chegou, entregou-lhe o maço de papéis.

        — Ligue-me com o agente dos excedentes de guerra em cada um desses distritos.

        — Está bem, Sr. Campion.

        — Mas, antes disso, ligue para o consulado do Corteguay. Quero falar com o Sr. Xenos.

        Daí a pouco, o telefone tocou em sua mesa.

        — O Sr. Xenos não está em Nova York. Não sabem onde ele está.

        Marcel pensou um instante. Dax devia andar por ali mesmo. Ainda na noite anterior havia visto Caroline no El Morocco num grupo de que fazia parte James Hadley. Tinha       querido ir falar com eles, mas alguma coisa o havia impedido.

        — Está bem. Comece a telefonar para a lista que lhe dei. Procurarei descobri-lo pelo outro telefone.

        Mudou de telefone e discou para o apartamento de Dax na casa de De Coyne. Um empregado atendeu.

        — O Sr. Xenos está?

        — Não senhor.

        — E a Sra. Xenos?

        — A Sra. Xenos foi para Boston ontem à noite.

        — O Sr. Xenos está com ela?

        — Não, senhor. O Sr. Xenos está em Hollywood. A Sra. Xenos pode ser encontrada no Ritz, em Boston.

        Telefonou para o hotel em Boston.

        — Queria falar com a Sra. Xenos.

        Uma voz de homem atendeu

        — Por favor, queria falar com a Sra. Xenos.

        — Quem quer falar?

        — Marcel Campion.

        Marcel ouviu a alguma distância a voz de um homem e a de uma mulher.

        — Alô, Marcel, — disse Caroline daí a pouco, com voz um tanto cansada.

        Marcel passou a falar em francês.

        — Desculpe incomodá-la, mas preciso muito falar com Dax. Sabe-me dizer onde está ele?

        — Está em casa de Monsieur Speidel em Beverly Hills, Hollywood. Por quê? Houve alguma coisa, Marcel?

        — Não, negócios apenas. Mas tenho de falar com ele.

        Trocaram mais algumas palavras de cortesia e ele desligou. Só

        quase dez minutos depois, no meio da sua primeira conversa pelo telefone com o escritório dos excedentes de guerra em Filadélfia, foi que a coisa lhe ocorreu. Por um momento, ficou tão estupefato que perdeu o fio da conversa. Aquela voz de homem. Não havia engano possível. Ninguém mais tinha aquele sotaque especial em que o irlandês se misturava ao bostoniano. Era James Hadley.

        Quando a conversa acabou, ele havia fechado negócio para os primeiros cinco navios. Disse à sua secretária para só fazer a segunda ligação daí a alguns minutos e discou para um detetive particular que já fizera muitos serviços para ele. Às seis horas da tarde, sabia de tudo.

        Pareciam loucos. Não tinham feito esforço algum para esconder os indícios. Hadley havia-a até instalado no apartamento do hotel reservado permanentemente para a sua companhia.

        Mas não era só isso. Na mesma hora, Marcel possuía também 130 navios-tanques de petróleo. Ao preço médio de 100 mil dólares, teria de entrar com 50% do preço da compra, seis milhões e meio de dólares, até a tarde do dia seguinte.

        Marcel estava esperando no dia seguinte no escritório de James Hadley em Boston quando Hadley chegou. Hadley não se mostrou surpreso.

        — De certo modo, eu já o esperava.

        Havia alguma coisa naquele homem que Marcel admirava. Percebeu de súbito o que era. Hadley tinha uma alma de jogador igual à sua.

        — Esperava? Por quê?

        — A Sra. Xenos voltou para Nova York ontem à noite.

        — Hoje de manhã, quer dizer, — disse Marcel, indo ver o blefe. Não era à toa que era francês. Sabia como se tinha uma ligação e compreendia que nada poderia interferir com uma noite de amor.

        Hadley sentou-se à sua mesa, com uma curiosa palidez.

        — Ela ainda está no hotel, — murmurou.

        Esse é o seu problema, — disse Marcel calmamente. — Vim aqui para discutir o meu.

 

        Cal Rainey estava esperando no aeroporto quando Marcel chegou ao portão.

        — Seja bem-vindo a Dallas, Sr. Campion, — disse ele, estendendo a mão.

        — Prazer em vê-lo, Sr. Rainey, — disse Marcel, sorrindo. — Desculpe ter chegado tão tarde, mas, infelizmente, tive de demorar- me em Boston para resolver outros negócios.

        — Está OK, Sr. Campion. Todas as providências já foram tomadas. Logo que desembaraçarmos a sua bagagem, partiremos para o rancho. O Sr. Horgan colocou à nossa disposição o seu avião particular.

        — Mas eu pensei que fôssemos falar com ele aqui em Dallas. Pedi a um amigo que viesse de avião de Los Angeles para encontrar- se comigo aqui.

        — Não há problema, Sr. Campion. O Sr. Horgan disse que qualquer amigo seu será bem recebido no rancho. Mandaremos o avião voltar para pegá-lo. A que horas ele deverá chegar?

        — A meia-noite. Quer dizer, daqui a duas horas. Talvez fosse melhor esperarmos por ele.

        — Como quiser, Sr. Campion. Neste caso, vamos até ao bar.

        O chefe dos garçons cumprimentou-os.

        — Boa noite, Sr. Rainey, — disse ele, levando-os para uma mesa. — O mesmo de sempre?

        — Sim, disse Rainey e olhou para Marcel.

        — Pastis, — disse automaticamente Marcel, mas percebeu a cara confusa do garçom. — Pernod e água.

        Olhou então para o texano e disse:

        — Agora, diga-me exatamente as providências que foram tomadas.

        — O Sr. Horgan acha melhor que as conversações se realizem no rancho dele durante o fim-de-semana. Já convidou os outros interessados. Dallas é uma cidade pequena e as coisas aqui se espalham com muita facilidade.

        Marcel sorriu. Uma das primeiras coisas que ele havia aprendido é que não há segredos que possam ser guardados se alguém está realmente interessado em descobri-los. Contudo, a precaução era boa. Quanto menos pessoas soubessem do caso, melhor. Provou o seu pastis e recostou-se na cadeira. Era bom poder esticar o corpo depois das longas horas passadas no avião.

        — Há telefone aqui? Eu gostaria de falar para casa.

        — Há uma porção de cabinas ali, logo depois da porta.

        Ana se mostrou preocupada quando atendeu.

        — Que é que está fazendo em Dallas? Pensei que estivesse em Boston.

        — Surgiu um negócio imprevisto. Não tive tempo de telefonar antes de tomar o avião.

        Não podia dizer a Ana o que pretendia fazer. Ela imediatamente contaria a Amos.

        — Como estão as crianças?

        — As gêmeas vão bem. Só Amos é que parece estar resfriado.

        — Já chamou o médico?

        — Médico para quê? É só um resfriado.

        Marcel sorriu. Apesar da sua riqueza, Amos havia educado bem as filhas. Ana era tão econômica em matéria de despesas pessoais quanto o pai.

        — Se ele tiver febre, não deixe de chamar o médico.

        — Não está com febre, — disse Ana — mas já o separei das gêmeas.

        — Ótimo. — Marcel não podia pensar em mais nada para dizer. — Como está o tempo aí?

        — Chuvoso. Quando é que vai voltar?

        — No meio da semana que vem.

        — Onde é que você pode ser encontrado se papai quiser falar com você?

        — Não sei ainda se terei lugar certo. Em todo caso, telefonarei para Amos. E para você também.

        Voltou para o bar. Não tinha dúvida alguma de que Ana já devia estar ligando para o pai. Era muito bom que ele não fosse ficar em Dallas. Assim, o velho levaria mais tempo para descobrir o que ele estava fazendo. É quando descobrisse, não poderia fazer mais nada.

 

        — O rancho está ali à esquerda, — disse o piloto. — O campo de pouso fica a uns dois quilômetros adiante.

        Marcel olhou pela janela. A noite estava escura e não era possível ver muito. Mas havia algumas luzes e via-se vagamente o vulto da casa. Olhou o cinto de segurança e viu que estava apertado.

        Olhou para Gato Gordo, que estava sentado ao lado dele, com a cabeça virada para o lado, dormindo. Em frente, estavam Dax e Giselle d’Arc. Rainey estava sentado ao lado do piloto no Bonanza de seis lugares.

        Deveria ter sido mais específico pelo telefone, pois nesse caso Dax não teria levado a atriz. Mas não tivera coragem. Não se podia saber quantas extensões havia na casa de Speidel. Mas talvez assim fosse melhor. Com Giselle presente, poucas pessoas suspeitariam do verdadeiro fim da visita. Tudo parecia mais um fim-de-semana social.

        O piloto apertou um botão no painel diante dele. As luzes se acenderam imediatamente lá embaixo no campo.

        — Sinal pelo rádio, — disse o piloto. — Acende automaticamente as luzes para o pouso. Evita ficar um homem de plantão a noite toda. Todos os cintos apertados?

        Marcel sentiu o leve tremor quando as rodas tocaram a pista. Um momento depois, faziam táxi em direção ao hangar. O piloto levou o avião para o hangar antes de desligar o motor. No súbito silêncio, a sua voz pareceu muito alta.

        — Um carro estará aqui neste minuto para levá-los para o rancho. Espero que tenham gostado do vôo.

        Quando saltaram do avião, a camioneta já estava esperando. O motorista era um homem magro, vestido de cowboy, que saiu do carro.

        — Sejam bem-vindos ao Rancho Horgan, — disse ele. — Entrem no carro e tomem um drinque enquanto eu pego a bagagem.

        Marcel foi com os outros para o carro. Atrás do banco da frente havia um pequeno bar completamente equipado. Rainey já estava preparando as bebidas quando ele chegou lá.

        — Aposto que não esperava por esta aqui, — disse Rainey a Giselle, sorrindo. — Esta camioneta foi feita especialmente para o Sr. Horgan pelo pessoal da Cadillac.

        Giselle olhou para Marcel e disse em francês:

        — Esses americanos nunca deixam de me surpreender.

        Marcel retribuiu o sorriso, encolhendo expressivamente os ombros. Era mais ou menos o mesmo que ele sentia.

        Marcel ouviu baterem à sua porta quando saía do banheiro.

        — Quem é?

        — Dax.

        Abriu a porta e Dax entrou.

        — Achei que devíamos conversar. Que coisa misteriosa e importante é essa que tornou tão necessária a minha vinda?

        Marcel acendeu um cigarro. Depois, foi até à porta e abriu-a. O corredor estava vazio.

        Disse quase num sussurro:

        — Petróleo ao largo da costa.

        — Como?

        — Dentro da água, no Golfo do México, ao largo das costas do Texas e da Luisiana. Acharam petróleo no fundo do mar.

        — E que é que nós temos com isso?

        — Horgan teve a ideia, mas os outros o barraram. Ele se aborreceu e mandou uma equipe de geólogos à Venezuela. E eles encontraram lá um depósito que parece ser ainda maior.

        — Não li nada nos jornais. Como foi que soube disso?

        — O comandante de um dos meus vapores me disse. Ele estava por lá procurando carga quando lhe propuseram fretar o navio. O dinheiro era bom e ele aceitou. Fizeram muito segredo de tudo mas ele não é tolo. Percebeu logo o que estavam fazendo. Logo que me disse, botei Cal Rainey na pista. Daí a dois dias, ele me confirmou, tudo. É por isso que estamos aqui.

        — E eu para quê?

        — Não compreende? A plataforma de petróleo deve estender-se por toda a costa do continente. O único país sul-americano que não tem contrato de concessão com as companhias de petróleo é o Corteguay.

        — É isso então. Você quer a concessão?

        — Eu? Para quê? Não estou metido nos negócios de petróleo. Isso é com Horgan e os sócios dele. O que eu quero é o transporte de todo o petróleo. Não só desse campo mas de todos os poços que eles possuem espalhados pelo mundo. Acho que isso vale a concessão de exploração do Corteguay.

        — O Presidente é esperto. Ele sabe o que vale essa concessão.

        — Ele conseguirá com Horgan o mesmo que conseguiria com qualquer outra companhia. Além disso, conseguirá, se fizer as coisas a meu jeito, uma linha de navegação que será verdadeiramente do Corteguay, sem sócios externos. Nem Hadley, nem Abidijan, nem De Coynes, nem gregos. Só nós três.

        Dax passara havia muito da idade da ilusão. O seu mundo era muito diferente daquele em que seu pai havia acreditado. E mesmo com todas as roubalheiras sempre sobrava mais do que dantes para o povo. Só havia um ponto fraco em tudo aquilo.

        — De onde virão os navios?

        Marcel sorriu.

        — Fechei ontem negócio com o Serviço Americano de Excedentes de Guerra para a compra de 130 navios-tanques.

        Dax não pôde conter uma exclamação de espanto. Podia fazer uma ideia do custo.

        — E o que fará com esses navios se não fechar essa transação?

        Marcel olhou Dax sombriamente.

        — Terei de me suicidar. Se não fizer essa transação, não terei outro jeito de pagar os navios.

 

        Passava de sete horas da manhã quando Dax desceu vestido com uma camisa velha e calças já desbotadas. Atravessou o salão de jantar vazio e chegou à cozinha. Nenhum dos convidados havia descido ainda.

        Gato Gordo levantou a vista quando ele apareceu.

        — Entre, — disse ele, com a boca cheia de comida. — Venha conhecer uma cozinheira que sabe realmente cozinhar.

        A mexicana que estava junto ao fogão sorriu, toda satisfeita.

        — Mais tarde, — disse Dax. — Antes, quero experimentar um dos famosos cavalos deles.

        Gato Gordo acabou de encher a boca de comida. Levantou-se e sorriu para a cozinheira.

        — Está muy bien. Mil gracias.

        — De nada, — respondeu ela, com um sorriso tímido.

        Acompanhou Dax, mas ao chegar à porta voltou-se e perguntou:

        — A que horas é o almoço? Com uma comida tão boa assim, não quero chegar atrasado.

        — Ao meio-dia.

        — Bueno, estarei aqui.

        Saíram pela porta da cozinha. Gato Gordo olhou para o céu azul onde o sol já brilhava intensamente e disse:

        — Vai fazer muito calor hoje.

        Dax não respondeu. Dirigiu-se para as cocheiras que ficavam atrás das cozinhas. Três homens estavam no cercado tentando colocar uma sela numa égua nova e bastante arisca. Os dois foram para a cerca e ficaram olhando. Cada vez que um dos homens se aproximava, o animal se virava com as orelhas murchas e arrega- nhando os dentes.

        — A égua está um pouco nervosa, hem? — disse Gato Gordo, puxando conversa com os homens.

        Os vaqueiros se entreolharam mas nada disseram. Um deles se aproximou mas a égua se esquivou dele.

        — Por que não cobre os olhos dela?

        Dessa vez, os homens olharam para eles num silêncio afrontoso.

        — Pensei que poderíamos dar um passeio a cavalo, — disse Dax.

        Dessa vez, todos pararam o que estavam fazendo e olharam para Dax. Viram a camisa velha e as calças desbotadas e um deles disse com um tom de desprezo na voz:

        — O Sr. Horgan não permite que empregados montem nos seus cavalos.

        Gato Gordo olhou no mesmo instante para Dax. O rosto de Dax não lhe demonstrou os sentimentos. Só os olhos ficaram de repente sombrios e zangados.

        — Nem nessa égua?

        Os três homens se olharam e um riso apareceu nos seus rostos. O que havia respondido disse a Dax:

        — Se puder botar a sela nela, monte à vontade.

        — Obrigado, — disse Dax cortesmente. Apoiou as mãos na cerca e pulou para dentro.

        Gato Gordo curvou-se para passar por baixo, mas não adiantou. Estava muito grande para poder passar. Quando levantou o corpo, viu os risos na cara dos homens. Botou o pé no pau da cerca de baixo para galgar. O pau quebrou com o seu peso.

        Ressoaram-lhe nos ouvidos as risadas dos vaqueiros. Disse então com um sorriso:

        — Acho que é melhor entrar pela porteira, não?

        Abriu a porteira e entrou no cercado.

        — Estas cercas daqui não são feitas para aguentar o peso de um homem. Devem ter sido feitas para garotos.

        — Para gente como você, não, mexicano, — disse o mais moço dos homens.

        — Não sou mexicano, señor, — disse Gato Gordo com toda a dignidade. — Sou corteguayo.

        — É tudo a mesma coisa.

        Gato Gordo virou-se para ele, com os olhos a lançarem chispas perigosas no fundo das camadas de gordura. A voz de Dax impediu-o de responder.

        — Pegue a sela, Gato Gordo.

        Gato Gordo tomou a sela em silêncio enquanto Dax se aproximava da égua. O homem que havia entregue a sela pegou um laço e começou a rodá-lo displicentemente. Dax pegou o cabresto da égua e disse aos homens delicadamente:

        — Vão para junto da cerca porque a estão fazendo ficar nervosa.

        Os homens recuaram em silêncio para junto da cerca. Dax começou a falar brandamente com o animal em espanhol: “Você é a égua mais linda que já vi”. Cavalos e mulheres. Eram a mesma coisa. Gostavam de ouvir elogios. Continuou a falar com ela suavemente, elogiando-a, até que ela o deixou encostar-lhe a cabeça no peito dele, cobrindo-lhe os olhos. Fez sinal a Gato Gordo.

        Num momento, a sela foi colocada e bem encilhada. Antes que a égua tivesse oportunidade de reagir, Dax estava montado, apertando bem contra os seus flancos as pernas e os joelhos. A égua ficou um segundo parada sem compreender que ele estava em cima dela. De repente, levantou-se no ar e caiu com as patas duras.

        Dax recebeu o choque nas pernas e continuou a falar mansamente com ela. O animal partiu numa tangente pelo cercado, corcoveando e torcendo o corpo, mas nada do que ela fazia podia tirar do lugar o homem que estava em cima dela. No fim do cercado, virou-se e continuou as suas manobras. Mas em determinado ponto faltaram-lhe as forças e ela parou, com os flancos arquejantes.

        Dax continuou a afagar-lhe o pescoço e a falar com ela. Depois de alguns momentos, puxou-a pela rédea e atravessou o cercado com ela. Em frente aos homens que estavam na cerca, virou-a de costas para eles e saltou agilmente da sela.

        — Agora, não precisam mais ter medo dela.

        Olharam-no. Ele ainda estava alisando o pescoço da égua.

        — Está querendo dizer que somos covardes? — perguntou o homem asperamente, com o laço ainda nas mãos.

        Dax olhou-o com desprezo por um momento e, em seguida, se voltou para o animal. Um momento depois, o laço lhe caiu sobre os ombros, puxando-o rudemente de junto da égua. Dax cambaleou para trás, quase caiu, mas depois recuperou o equilíbrio e virou-se.

        O homem que havia jogado o laço estava rindo.

        — Chamou meus amigos de covardes, foi, escurinho?

        Pelo canto dos olhos, Dax viu que Gato Gordo se aproximava deles. Com um rápido gesto, fê-lo parar. O vaqueiro interpretou o gesto como um sinal de medo e puxou a corda. Dax tropeçou, caiu de joelhos e bateu com o rosto no chão no momento em que Marcel, Horgan e outros homens apareceram perto da casa.

        Marcel reagiu prontamente quando viu o que estava acontecendo. Ainda se lembrava do que vira em Ventimiglia.

        — É melhor fazer os seus homens pararem, Sr. Horgan! Podem sair machucados!

        Horgan riu. Era um homem grande e aquilo lhe agradava ao humor texano.

        — Meus homens podem cuidar de si. Estão apenas brincando. Gostam de pilheriar com gente da cidade!

        Marcel olhou-o e encolheu os ombros com típica resignação gaulesa.

        Gato Gordo estava encostado à cerca e suas mãos se moveram até ficarem acima de Dax. O homem do laço puxou a corda com força. Fez uma cara de espanto quando a corda lhe fugiu das mãos. Em seguida, deu um grito de dor ao sentir no joelho uma cutilada de mãos de Dax. Ainda não havia rolado no chão quando Dax apertou o segundo homem com uma violenta chave nas costelas.

        Horgan e os outros estavam a cinco metros de distância, mas ouviram o estalar das costelas do homem quando ele foi ao chão. Dax levantara o corpo quando o terceiro se aproximou dele pelas costas. Mas não deu nem um passo mais. Gato Gordo já lhe havia passado no pescoço a corda que caíra no chão e o sacudia como um gato faz com um rato.

        — Gato Gordo! — gritou Dax.

        Gato Gordo olhou para ele.

        — Basta!

        Gato Gordo largou de repente o homem. Este caiu de joelhos, procurando febrilmente respirar, com o rosto ainda congestionado e esfregando o pescoço. Os outros dois tinham os olhos cheios de dor e de horror.

        — Em minha terra, señores, — disse Gato Gordo com uma voz repassada de desprezo, — até as crianças se defendem melhor. Vocês não durariam um dia na selva.

        Dax olhou para a égua que estava parada ali, com os flancos arquejantes e as patas trêmulas. Alisou-lhe ternamente o pescoço.

        — Vá buscar água para a égua, Gato Gordo. Ela deve estar com muita sede.

        Quando Gato Gordo se voltou, o seu rosto redondo não mudou de expressão ao ver Horgan e os outros que corriam para o cercado.

        — Buenos dias, señores, — disse ele, polidamente.

 

        Marcel entrou na sala com um maço de papéis debaixo do braço.

        — Espero que não os tenha feito esperar.

        — Não, Sr. Campion, — disse Horgan, fechando a porta. — Se está pronto, podemos começar.

        Marcel correu os olhos pelo grupo. Além dele, havia na sala cinco homens: Dax, Cal Rainey, Horgan e os seus dois sócios, Davis e Landing, ambos conhecidos homens de petróleo. Estavam impassíveis. Tinham certeza da sua posição e esperavam que Marcel provasse a sua segurança. Marcel respirou profundamente.

        Vou falar com absoluta franqueza, meus amigos. Sei que têm curiosidade de saber como tomei conhecimento dos estudos que fizeram e naturalmente suspeitam de alguma falha na organização que dirigem. Quanto a isso, fiquem descansados. Tudo foi realmente muito simples. Aconteceu apenas que o navio que fretaram na América do Sul era meu.

        Horgan olhou para os sócios.

        — Essa é muito boa! Por que foi que ninguém pensou em verificar isso?

        Marcel sorriu e continuou:

        — Se tivessem feito alguma verificação, não apurariam coisa alguma. O navio é registrado no nome do comandante. Logo que soube dos estudos que tinham mandado fazer, entrei em contato com o Sr. Rainey. Ao mesmo tempo, encarreguei os meus advogados em Washington de verificarem quais os países sul-americanos que já tinham dado concessões para exploração petrolífera ao largo da costa. Alguns dias depois, soube que quase todos já estavam bem controlados pelas companhias maiores. E os que não estavam tinham já compromissos com homens como Hunt, Richardson, Getty e Murchison. Apurei também que esses homens estavam agindo independentemente. Não faziam parte do sindicato dos senhores.

        Acendeu um cigarro e continuou:

        — Meus advogados me informaram que o único país que até agora não assumiu qualquer compromisso nesse sentido é o Corteguay. O Sr. Rainey confirma que os estudos feitos indicam enorme probabilidade de petróleo naquele setor. O meu departamento de         tráfego fez um levantamento completo das necessidades mundiais que têm de transporte marítimo. De posse desses dados, pedi ao Sr. Rainey que lhes apresentasse diretamente a minha proposta. Agora, — concluiu ele com um sorriso, — já sabem de tudo. Não há mais segredos.

        Horgan pensou um momento e disse:

        — Obrigado, Sr. Campion. Vou procurar falar-lhe com a mesma franqueza. Não vejo exatamente como o senhor entra no negócio. Que é que nos impede de negociar diretamente um acordo com o Corteguay sem a sua assistência?

        — Nada. Qualquer pessoa é livre de entrar em negociações. Mas acho que uma coisa é negociar na base que eu sugiro e outra coisa é negociar no mercado livre.

        — Está sugerindo que nos custará menos negociar por seu intermédio?

        Dax olhou para Marcel.

        — Acho que eu é que devo responder a isso.

        Marcel fez um sinal de assentimento.

        — Pagarão tanto quanto se negociassem diretamente, — disse Dax a Horgan. — Talvez paguem até um pouco mais. Mas conseguirão a concessão.

        Horgan sorriu.

        — Então não posso ver qual é a vantagem. O que o senhor e o Sr. Campion parecem ter esquecido é o fato muito simples de que talvez não haja petróleo lá. Neste caso, perderemos não só os nossos investimentos, mas também as despesas que tivermos para reformar os nossos contratos de transporte marítimo em favor do Sr. Campion.

        — Seja como for, precisa de navios, Sr. Horgan, — disse Marcel. — E eu transportarei todo o seu petróleo por 4% menos do que lhe custam os seus atuais contratos.

        — Talvez, — disse Horgan, — mas se não pudermos fechar o negócio por menos, teremos de ir para o mercado livre.

        Dax olhou para Marcel. O rosto dele nada mostrava mas Dax o conhecia bastante para saber o que significava aquela leve palidez. Dax levantou-se de repente. Estava cansado de aceitar as regras do jogo daqueles milionários cheios de auto-suficiência.

        — No mercado livre, não terá qualquer possibilidade, Sr. Horgan!

        — Que quer dizer com isso?

        — O que disse! Não conseguirá o contrato no mercado livre!

        Horgan levantou-se e encarou Dax.

        — Devo entender que se oporá a isso, Sr. Xenos?

        — Não será preciso, — disse Dax, sorrindo embora a sua voz fosse fria. — Quando voltarmos para lá, não haverá jeito de fazer meu amigo ficar calado. Acha então que o meu país vá fazer um acordo com o senhor depois que Gato Gordo espalhar que o senhor ficou de braços cruzados enquanto os seus homens nos insultavam e agrediam?

        — Mas eles estavam apenas brincando.

        — Estavam mesmo?

        Horgan tomou a sentar-se. Olhou para os seus sócios e olhou para Dax. Depois, voltou-se para Marcel.

        — OK, Sr. Campion. O negócio está fechado.

        Marcel olhou para Dax. Viu um brilho irônico nos olhos de Dax e compreendeu que tudo fora um blefe. Baixou os olhos. Não queria que os outros vissem o alívio que a sua fisionomia estampava.

        — Obrigado, senhores.

        Foi esse o início das Linhas Campion, que em menos de dez anos teriam a maior frota particular do mundo.

 

        — Tudo então está acabado entre vocês dois?

        Giselle olhou para Sergei.

        — Oui. É estranho depois de muitos anos compreender que aquilo que se amava não faz mais parte do homem por quem nos apaixonamos. Dax mudou muito.

        Sergei acendeu-lhe o cigarro. Correu os olhos pelo restaurante e quando o garçom olhou para ele pediu dois copos.

        — Tudo muda. Nada, ninguém fica sempre na mesma.

        — Deixei-o no Texas, — disse Giselle como se não o tivesse ouvido. — De repente, não suportei mais aquilo e tive de vir para casa, para Paris. Chega de América para mim. Nunca mais voltarei lá!

        — Nem mesmo a Hollywood?

        — Nem isso. Aqui eu sou uma atriz. Lá eu não passava de um símbolo, um símbolo do sexo francês, como os postais que os americanos compram em Pigalle.

        — Que foi que Dax disse quando você o deixou?

        — Nada. Que poderia ter dito? C’est le fin. Mas tive a impressão de que isso não tinha mais importância para ele. Talvez fosse o mais duro, ter perdido a importância.

        Giselle tomou um gole da bebida.

        — Ele estava lá com todos aqueles homens horríveis. Só falavam em dinheiro, em petróleo, em navios. Era como se eu não estivesse absolutamente presente. Uma noite, entrei na sala e Dax nem levantou os olhos. Continuou a conversar com os homens. Olhei-o e foi como se eu estivesse vendo Dax pela primeira vez. Vi todos os filhos que poderíamos ter tido e que não tínhamos, a vida que poderíamos ter vivido e não vivemos. Quis de repente desesperadamente os filhos e a vida que nunca tínhamos tido.

        Sergei viu as lágrimas que chegaram aos olhos dela. Mas ela não olhou para ele e continuou:

        — Quando conheci Dax, pensei que depois da guerra, quando toda aquela confusão estivesse resolvida, viveríamos plenamente. Julguei que no fundo do coração ele sentia o mesmo. Mas naquela noite compreendi que estava enganada. Tudo o que ele tinha querido de mim já havia conseguido e tudo o que me queria dar já tinha dado.

        — Giselle ficou em silêncio por um momento.

        Acha que já é tarde para mim, Sergei? Acha que ainda sou jovem bastante para amar, para ter filhos, para ser amada por um homem?

        Sergei viu-a entrar num táxi e olhou à procura de outro. O ponto estava vazio e ele resolveu ir a pé para o seu apartamento. Teria de andar apenas uns quinze minutos.

        O sol causticante de agosto fazia o calor subir da calçada. As luas de Paris estavam quase desertas. Qualquer francês que valia o que comia, dos milionários ao empregado mais humilde, estava em férias. Tinha ido para as montanhas ou para as praias ou simplesmente deixavam-se ficar em casa com as cortinas descidas para fugir ao opressivo calor. Os pequenos cartazes nas portas ou nas vitrinas das lojas eram um testemunho disso: Fermeture annuelle.

        Sergei não sabia por que havia ficado em Paris. Ou melhor, sabia de sobra. O motivo era o de sempre — falta de dinheiro.

        Bernstein, o banqueiro suíço, resumira perfeitamente a situação.

        — O que acontece, meu jovem, é que você não tem boa cabeça para dinheiro. Não importaria que tivesse uma renda de 50 mil libras por ano em vez de 50 mil dólares. Daria um jeito de tomar o dinheiro insuficiente.

        Isso acontecera havia poucas semanas. Já tomara empréstimos sobre o dinheiro que recebia de Sue Ann pelos próximos dois anos.

        — Que devo fazer então?

        — A primeira coisa que deve fazer é desembaraçar-se dos seus desastrosos investimentos. O tal couturier, por exemplo. Desde que começou a investir dinheiro naquele negócio, tem jogado fora nas mãos dele vinte mil dólares por ano só para salvá-lo da ruína.

        — Não posso abandoná-lo! — exclamou Sergei.

        — Por que não? Por acaso gosta do pequeno invertido?

        — Claro que não. Mas acho-o um homem de muito talento. Vencerá um dia, o senhor vai ver. O obstáculo é que ele é muito avançado para a sua época.

        — E quando ele vencer, quem estará arruinado será você.

        — Ele precisa é de quem o patrocine.

        — Você disse isso há um ano e convenceu Giselle d’Arcy a deixá-lo fazer os vestidos dela. Isso não deu nenhum resultado.

        — Ele precisa é de uma americana. São realmente as americanas que impõem o estilo. O que elas aceitam, pega. O que elas rejeitam, cai.

        — Por que não fala com sua ex-esposa?

        Sergei olhou-o. Nunca havia suspeitado de que o banqueiro tivesse senso de humor. Mas ele parecia estar falando a sério.

        — Sue Ann lançar estilos? Não, tem de ser outra pessoa, alguém a quem os americanos já considerem como árbitro da moda.

        — Livre-se disso. Não há uma pessoa assim. E se houvesse, já teria sido encontrada por Dior, Balmain, Balenciaga, Chanel ou Maggy Rouff. De qualquer modo, uma pessoa assim nem chegaria a olhar para um desconhecido como o seu amigo. Não dá prestígio comprar vestidos a um ninguém.

        De repente, Sergei deu um pulo da cadeira.

        — Príncipe Nikovitch! Será a solução!

        — Solução para quê? — perguntou o banqueiro.

        — As americanas adoram os títulos. Talvez nem todas possam casar com um nobre, mas todas elas poderiam ser vestidas por um príncipe!

        — Ridículo! — disse Bernstein.

        — Não sei por quê. Só será preciso darmos a impressão de que somos aceitos por francesas ilustres. As americanas então não deixarão de aparecer.

        — Mas como você conseguirá a cooperação de uma francesa ilustre?

        — Caroline de Coyne. Madame Xenos. Caroline fará isso para mim!

        — Mas ela está na América.

        — Pode ser persuadida a voltar.

        — Mas como? Já estamos em julho. Todos os desfiles de modas já se realizaram. Não aparecerá ninguém.

        — Se Caroline vier da América, todo o mundo aparecerá, quando nada para ver o que foi que a atraiu. Lançaremos a nossa coleção no dia 1º. de setembro. E a anunciaremos como o verdadeiro desfile de modas de outono.

        — Pode dar resultado, — disse Bernstein. — Mas onde vai achar dinheiro para as despesas?

        — Isso é o senhor que vai me dar.

        — Está louco? Já lhe disse que está à beira da falência!

        — Madame Bernstein ficaria muito infeliz se descobrisse que deixou de receber convite para a première de uma coleção em Paris em consequência da sua miserabilidade.

        Bernstein olhou-o e houve no seu rosto o esboço de um sorriso.

        — Você é um patife inteiramente sem escrúpulos!

        Sergei riu.

        — Não é isso que está em discussão.

        — Está bem, vou-lhe emprestar o dinheiro, mas sob duas condições.

        — Quais são?

        — A primeira é que você me mostre a aceitação         do seu convite por Madame Xenos. A segunda é que você fique em         Paris na Maison de couture até que a coleção esteja pronta.

        — Concordo, — disse Sergei, passando a mão no telefone.

        — Que é que está fazendo? — perguntou nervosamente o banqueiro.

        — A maneira mais rápida de falar com Madame Xenos é pelo telefone. Ou acha que vou-lhe dar tempo de mudar de ideia?

        A caminho do apartamento, Sergei resolveu ir diretamente para a maison de couture. Parou diante do pequeno prédio e olhou para as placas que mostravam o seu brasão dos dois lados da porta.

        O porteiro apressou-se em abrir a porta e murmurou respeitosamente:

        — Alteza.

        — Essas placas estão brilhando muito, — disse-lhe Sergei. — Procure sujá-las um pouco para não parecerem tão novas.

        Sergei entrou e subiu a escadaria que levava ao salão principal. Os decoradores e pintores haviam trabalhado com vontade. Já o seu brasão aparecia por toda a parte. Atravessou o salão e chegou à oficina do outro lado.

        Ali havia uma atividade febril. As pequenas midinettes corriam de um lado para outro com peças de fazenda, enquanto os modelos esperavam com uma expressão de impaciência, algumas com vestidos presos ao corpo e outras seminuas mostrando com indiferença os pequeninos seios. Sobre tudo isso, ouvia-se a voz de Jean-Jacques a gritar no escritório. Parecia quase alucinado.

        Sergei atravessou a oficina e abriu a porta do escritório. Uma modelo estava sobre uma pequena plataforma. Em torno dela, viam-se duas assistentes e um cortador. Jean-Jacques estava sentado à sua mesa, com o rosto banhado em lágrimas. Quando viu Sergei, correu para ele, torcendo as mãos.

        — Que é que eu vou fazer? São todos tão cretinos e incapazes! Não podem fazer nem as coisas mais simples que eu peço! Estou à beira de um colapso nervoso! Da loucura mesmo! Vou perder o juízo por completo!

        Puxou Sergei pelo braço e levou-o para junto do modelo.

        — Regardez! Vejam o que fizeram com meu projeto! Arruinaram tudo!

        — Acalme-se, Jean-Jacques, — disse Sergei. — Explique-me o que você está querendo. Talvez eu possa ajudá-los a fazer o que você quer.

        Jean-Jacques se colocou em frente do modelo.

        — Regardez! Uma ideia completamente nova para a hora do coquetel. O que idealizo é uma série de triângulos suspensos dos ombros da dama como mobiles, deixando em liberdade todos os pontos importantes — o busto, os quadris, os joelhos.

        Para Sergei, o vestido com que estava o modelo era exatamente como Jean-Jacques o descrevia, exatamente igual ao desenho que ele tinha na mão. Mas podia compreender a frustração do homem. Depois de pronto, o vestido não fazia o efeito que Jean-Jacques pretendera. Olhou várias vezes para o vestido e para o desenho.

        Todos estavam em silêncio, à espera da sua opinião. Afinal, voltou-se para o figurinista.

        — Jean-Jacques, você é um gênio! Compreendo perfeitamente o seu problema. E sei o que o está afligindo!

        — Mesmo? — exclamou Jean-Jacques com uma mistura de orgulho e confusão.

        — Veja isto! — disse Sergei, apontando dramaticamente os quadris do modelo. — Aqui, o triângulo devia ser largo como você queria, mas está muito estreito e preso.

        — Bem...

        — Você falou em “liberdade” e isso me revelou tudo! O vestido deve ser bem largo embaixo para que a dama possa sentir o vento nas coxas quando anda e assim ter constante consciência da sua feminilidade.

        Jean-Jacques ficou em silêncio estudando o modelo. Sergei não lhe deu oportunidade de dizer mais nada.

        — Tenho de ir correndo para o meu escritório.         Tenho hora marcada com uma pessoa. Obrigado por ter-me dado mais essa oportunidade de admirar o seu gênio!

        Parou na porta e disse às assistentes.

        — Tenho certeza agora de que poderão fazer tudo o que a grande sensibilidade dele exige!

        Quando ele saiu, Jean-Jacques murmurou alguma coisa ininteligível e saiu correndo atrás dele.

        As duas assistentes se olharam.

        — Você compreendeu o que Sua Alteza disse?

        A outra sacudiu a cabeça.

        — Nadinha. — Voltou-se para o modelo. — E você?

        Quem é que entende alguém neste negócio de doido? — perguntou ela com uma expressão de enfado, descendo da plataforma. — Não há um só que tenha um pingo de juízo na cabeça. Se eu pegar mais vento do que estou pegando agora, vou acabar com uma pneumonia!

 

        Irma Andersen era uma mulher robusta que já passava dos cinquenta. Tinha um rosto gordo e quase quadrado debaixo dos grossos óculos de aros pretos. Estendeu a mão para Sergei.

        — Fico muito contente de que tenha vindo. Alteza!

        — Acha que poderia resistir ao chamado de tão famosa hostess? — perguntou Sergei, beijando-lhe a mão.

        Irma riu.

        — Sergei, você é um patife simpático. Ao menos, teve a honestidade de não me chamar de bonita.

        Colocou um cigarro numa comprida piteira e esperou que Sergei o acendesse.

        — Há quanto tempo! — exclamou ela, soltando a fumaça pelo nariz como um homem.

        — Desde meu casamento.

        — Você se lembra?

        — Claro! Você estava fazendo uma coluna para o Cosmo-World.

        — Não julguei que se lembrasse. Aposto que não sabe por que foi que lhe telefonei.

        — Confesso que estou um tanto curioso.

        — Recebi um telegrama do meu jornal em Nova York. Souberam que Caroline Xenos vem aí com um grupo de amigos especialmente para a inauguração do seu novo salão. Pediram-me que olhasse o caso.

        — Sim?

        — Está querendo mesmo manter segredo? Por que não me procurou logo?

        Tinha de ser assim, pensou ele, a iniciativa tinha de partir dos Estados Unidos. Se ele houvesse telefonado, como ela dizia, ela teria destroçado a coleção.

        — Não tive coragem, — disse Sergei com a dose apropriada de modéstia. — Você é muito importante para que eu a procurasse sem uma razão suficiente.

        — Qualquer coisa que se relacione com a moda e a sociedade é razão suficiente para mim, Sergei.

        — Mas trata-se apenas de mais um couturier!

        — Sergei, você me está saindo um idiota! Não é todos os dias que um príncipe abre uma maison de couture!

        — Você sabe que eu não sou príncipe, — disse ele, rindo.

        — Você é honesto. Eu sei disso, você sabe. Mas lá nos Estados Unidos você é um príncipe para todos os efeitos. Ninguém poderia casar-se com Sue Ann Daley sem ser.

        — Isso é porque não conhecem Sue Ann!

        — Soube que Sue Ann tem agora um novo amor, um jovem mexicano bonito que ela conheceu em Acapulco mergulhando no mar do alto da montanha. Deve ter no máximo dezessete anos.

        — Melhor para ela, — disse Sergei, sorrindo. — Ao menos, ele é moço bastante.

        Irma Andersen colocou a piteira na boca e perguntou:

        — Você vai-me convidar para o desfile, não vai?

        Sergei fingiu hesitar por um instante.

        — Não tínhamos planos de convidar a imprensa.

        — Não me interessa o que fizer com os outros, mas eu quero ir.

        Sergei ficou calado.

        — Posso ajudá-lo muito, — disse ela. — Você sabe disso.

        Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça.

        — Falei ainda hoje pelo telefone com Lady Corrigan em Londres e disse por acaso que conhecia você. Ela mostrou logo grande interesse em ir comigo ao show.

        Sergei sentiu quase a emoção do triunfo. Lady Corrigan era uma das mulheres mais ricas da Inglaterra. Além disso, havia já dois anos que figurava na lista das dez mulheres mais bem vestidas do mundo.

        — Há muitas outras que eu podia interessar em visitar o seu salão, nomes que poderiam dar-lhe fama da noite para o dia. Bem entendido, desde que você tenha mesmo alguma coisa para mostrar. Não tem receio desse público exigente, tem?

        — Não, — ele respondeu, hesitante.

        — Então.

        Ele abriu as mãos num gesto de derrota.

        — Muito bem, está convidada. Mas compreende que neste caso terei de convidar toda a imprensa?

        — Não quero saber a quem vai convidar. Só quero é que me coloque na primeira fila com as freguesas e não nos fundos com as empregadas.

        — Nem se discute. Você não precisava nem dizer isso.

        — Tenho outra ideia.

        — Qual é?

        — Por que não me deixa dar um jantar para você depois do desfile? Uma coisa pequena mas selecionada. Cinquenta ou sessenta pessoas no máximo.

        — A ideia é ótima e me sensibiliza muito. Mas há uma dificuldade. Posso ser sincero com você?

        — Pode sempre ser sincero comigo.

        — Dinheiro, Irma. Enterrei tudo na coleção.

        — Não me venha com essa! Já verifiquei tudo. O show está sendo financiado pelo banco de Bernstein na Suíça.

        — Já avancei três anos no dinheiro que Sue Ann me paga. Eles não vão além disso.

        — É porque são cretinos! — exclamou Irma, de repente ao lado de Sergei. — Acho que de qualquer maneira devemos fazer o jantar.

        — E onde é que eu vou achar o dinheiro?

        — Deixe isso comigo. Será o meu investimento em você. Tenho a impressão de que você vai ganhar muito dinheiro.

        — Espero que esteja certa. Amanhã de manhã, mandarei entregar-lhe 5% das minhas ações.

        — Dez.

        — Vá lá, 10%.

        Dessa vez Irma estendeu a mão por sobre a mesa como um homem e Sergei solenemente a apertou.

        — Agora, — disse ela, tirando o cigarro da piteira e jogando a ponta no cinzeiro, — logo que eu acabar de carregar isto aqui, quero que me fale sobre a sua coleção, pois tenho de publicar alguma coisa já no domingo.

        Sergei acendeu-lhe o cigarro e ficou esperando que ela botasse papel na máquina.

        — Que é que você quer saber?

        — Primeiro, como foi que começou a se interessar pelas roupas das mulheres?

        Ele riu.

        — Esta é muito fácil. Como sabe, sempre me interessei pelas mulheres.

        — Sei disso, mas sempre gostou de despir as mulheres e não de vesti-las. — Riu um pouco, mas de repente ficou séria. — Pode ser engraçado mas não é aquilo de que preciso para jornais que entram em casa de família. Preciso de outra coisa, um fato que esteja sujeito a controvérsia e mais ou menos perto da verdade.

        Sergei pensou um momento.

        — Que tal o new look? Todo mundo parece ter medo de criticá-lo.

        — Não é mau. Que é que você tem para dizer sobre isso?

        — O new look foi imaginado para esconder os defeitos das mulheres feias, de modo a tornar todas as mulheres parecidas, com a mesma imagem encoberta e horrenda. A minha coleção é diferente. Destina-se principalmente às pessoas belas.

        — Espere um pouco, — exclamou Irma. — É isso mesmo!

        E no mesmo instante os seus dedos começaram a dançar sobre o teclado da máquina.

        Sergei acendeu um cigarro e ficou esperando que ela acabasse.

        — É isso o quê? — perguntou quando ela se virou para ele.

        — Escute: “As Pessoas Belas”. Venho procurando uma frase assim desde que comecei a escrever a minha coluna. Será o título da minha crônica do domingo. Ouça: O título acima me foi sugerido pela mais fascinante e nova personalidade do mundo da moda atualmente, o Príncipe Sergei Nokovitch, da antiga família imperial russa. A designação dada pelo Príncipe Sergei às pessoas para quem planejou a sua coleção indica de maneira exata as pessoas em quem todos estão interessados — na diplomacia, na política, na literatura, na sociedade. “As Pessoas Belas” são afinal de contas líderes do mundo e já sabem por uma rede secreta do que lhes foi preparado. E assim, do mundo inteiro, acorrerão a Paris no dia 1º. de setembro para admirar a coleção do Príncipe Nikovitch. Dos Estados Unidos, virá Caroline Xenos, née Caroline de Coyne, com um grupo de amigas; de Londres, chegará Lady Margaret (Peggy) Corrigan, uma das mulheres mais bem vestidas do mundo. Da América do Sul, da Europa, do mundo todo vêm aí “As Pessoas Belas”!

        — Que tal para começar? — perguntou Irma depois de ler.

        — Só espero é que minha coleção esteja à altura, — disse Sergei, sorrindo.

 

        A tensão lhe formava um bolo no estômago. Sergei olhou por entre as dobras da cortina para o grande salão. As cadeiras estavam dispostas em forma de ferradura, para permitir aos modelos um desfile completo em volta da sala. Iam de fila em fila até quase à parede e estavam todas ocupadas. Atrás delas, havia muita gente em pé e algumas pessoas se espalhavam pelo corredor.

        Irma Andersen havia cumprido a sua palavra. A fila da frente, na qual ela estava, parecia uma lista de celebridades escolhidas das páginas de L’Oficiel e de Vogue. Caroline estava à esquerda de Irma e James Hadley, ex-embaixador americano na Itália, estava ao lado dela. À direita de Irma, estavam Lady Corrigan e o marido. A primeira fila parecia a mesa de va tout em Monte Carlo durante a temporada.

        O som do quarteto de cordas chegou aos ouvidos de Sergei quando ele se afastou da cortina e foi até à oficina. O barulho e a confusão ali eram maiores do que qualquer coisa que ele já tivesse visto. Já nem era mais confusão; era o caos. Parecia que todo o mundo havia enlouquecido de repente.

        Jean-Jacques apareceu correndo.

        — Preparem-se, meninas!

        O silêncio que se fez subitamente inquietou Sergei ainda mais do que o barulho. Ouviu a orquestra tocar a primeira apresentação. Um modelo magro cujo rosto estava pálido sob a maquilagem se aproximou. Parou diante deles e fez uma pirueta.

        — Belo! Belo! — exclamou Jean-Jacques entusiasmado. Beijou o modelo em ambas as faces. Ela olhou para Sergei. Este também a beijou e disse:

        — Coragem, ma petite!

        Ela sorriu e saiu da oficina. Sergei ouviu os aplausos que saudaram a sua aparição.

        — Onde está Charles? — perguntou nervosamente Jean-Jacques. — Onde está ele? Prometeu que estaria aqui! Ele sabe que não posso fazer uma apresentação sem ele!

        Sergei ficou de repente furioso. Já aturava aquilo havia seis semanas. Era demais.

        — Charles está lá em cima no seu escritório com uma pequena!

        Jean-Jacques olhou para       ele, arregalando os olhos. Ficou muito pálido, levou as costas da mão à testa e exclamou:

        — Sinto que vou desmaiar. Estou desmaiando.

        E caiu para trás nos braços das suas duas assistentes. Um momento depois, um homem moço se aproximou dele com um copo de água.

        — Beba isso, querido.

        Jean-Jacques tomou um gole de água. A cor lhe voltou ao rosto. Levantou-se e disse a Sergei em tom de censura:

        — Nunca mais diga uma coisa dessas, mau! Levei um susto! Você sabe que eu e Charles somos fiéis um ao outro!

        A música principiou a tocar para a segunda apresentação. O modelo seguinte se preparou.

        — Tome conta do resto, — disse Sergei de repente a Jean- Jacques. — Vou subir para o meu escritório para tomar um drinque.

        Fechou a porta. Depois, tirou uma garrafa de vodca do armário e serviu uma dose bem grande num copo. Sentou-se, com o copo ainda na mão, e olhou para o retrato da menina em cima da mesa.

        Anastasia tinha cerca de sete anos quando a fotografia fora tirada e o vestido azul com o debrum branco fazia uma bela moldura para os seus cabelos claros e os seus olhos azuis. O sorriso um pouco incerto, mas doce, animava-o. Ergueu o copo.

        — Deus permita que isto dê certo, filhinha, — murmurou ele. — Papai está ficando muito cansado de correr.

        Sergei acabou de beber quando a porta se abriu. Levantou os olhos, surpreso.

        — Sabia que viria encontrá-lo aqui, — disse Giselle. — Ninguém deve ficar sozinho numa noite de estréia.

 

        Irma Andersen estava dando um baile. A verdadeira razão pelo qual ela dava festas é que gostava delas. Irma gostava de tudo o que compunham uma festa — as vistas, os sons, os cheiros, a agitação. Pessoas bem vestidas vivendo exoticamente de uma maneira que ela nem nos seus sonhos da infância havia previsto. As coisas não tinham sido assim nos fundos da pequena casa de delicatessen em Akron, Ohio, onde ela se criara. Nunca havia ali ninguém senão quem ia comprar salsichas, salada de batata ou pão de centeio.

        Daí por diante, Irma havia detestado salsichas e salada de batata e essas eram as únicas coisas que ela jamais havia permitido na sua mesa. Assim, em lugar de salsichas havia pâté de foie gras e, em vez de salada de batata, havia abacate, cortado em fatias e preparado com uma deliciosa maionese.

        Olhou em volta com um sentimento de satisfação. Era uma boa festa. O essencial era saber misturar bem as pessoas. Os que falavam e os que ouviam, os primeiros numa proporção de 65%. Era sempre melhor ter quem falasse do que quem escutasse. O barulho era mais interessante do que o silêncio. Uma festa silenciosa era uma festa morta. Um fracasso.

        Irma tinha pesadelos com uma festa em que ninguém falava. A simples ideia bastava para tirar-lhe o sono. Mas isso havia acontecido no passado. Não podia mais acontecer. E havia outra razão pela qual gostava de dar festas. Eram a maior fonte de informações do mundo. Logo nos primeiros minutos da noite, recolhera alguns boatos magníficos.

        O caso entre Caroline Xenos e James Hadley era estranho, mas delicioso. Em primeiro lugar, a diferença de idade. Hadley tinha idade bastante para ser pai dela. Além disso, o marido de Caroline tinha a reputação de ser um dos maiores conquistadores e playboys do mundo. Qual era a frase que se atribuía a Sue Ann Daley?

        “Estar com Dax é como ter uma metralhadora dentro da gente. Nem ela pára de atirar, nem ele.”

        Mas era isso que havia de maravilhoso em relação às pessoas. Nunca se podia saber o que realmente queriam. Era claro que Caroline desejava alguma coisa mais. E ela parecia não se incomodar de que ninguém soubesse disso, a julgar pela maneira por que olhava para Hadley.

        Irma resolveu perguntar a Sergei o que era que ele sabia sobre isso. Afinal de contas, ele tinha sido amigo íntimo de Dax e devia saber. E não era para fazer comentários na sua coluna. Ela nunca escreveria na sua coluna uma coisa dessas. Aquela gente era uma gente amiga e por nada no mundo iria magoar nenhum deles.

        De uma maneira estranha Irma os amava a todos. Com todas as suas mesquinharias e atitudes amorais de egoísmo, eles a encantavam. Nunca tinham sabido o que era comer salsichas e salada de batata. Eram realmente as pessoas belas. E bastava-lhe estar ao lado delas para sentir-se bela também.

 

        Era quase meia-noite quando saíram da festa e, enquanto esperava que o porteiro fosse chamar o chofer, Caroline disse:

        — Estou muito contente por Sergei.

        — Acha que ele fez sucesso mesmo ou é a ilusão da estréia? — perguntou James Hadley.

        — O sucesso está assegurado. Quase tudo é muito bom e algumas coisas são extraordinárias. Amanhã, ele vai precisar de polícia para conter a freguesia.

        — É tão bom assim?

        — Claro. Mesmo que eu não o conhecesse pessoalmente, não completaria o meu guarda-roupa sem pensar em Sergei.

        O carro parou e o porteiro abriu a porta. Hadley meteu-lhe na mão uma nota de cinco francos e partiram.

        — Peça ao chofer para me deixar em casa de meu pai.

        Hadley ficou surpreso. Deu a ordem ao chofer antes de perguntar a ela:

        — Não acha melhor esperar até amanhã?

        — Não. Disse a Papa que passaria lá         depois do jantar.

        — Quando falou com ele?

        — Hoje à tarde.

        — Como está ele? Tenho um grande respeito por seu pai.

        Caroline olhou-o.

        — Nunca tenho certeza a respeito de meu         pai. Ele é para mim um mistério tão grande quanto você deve ser para seus filhos.

        — Ele disse o que queria com você?

        Ela teve de novo aquele olhar curioso.

        — Ele é meu pai. Já estou aqui há quase uma semana sem telefonar-lhe. Ele então telefonou para mim.

        — Mas ele deve ter dito alguma coisa.

        — Não havia necessidade. Eu sei o que ele quer.

        Hadley arrependeu-se da pergunta logo que a fez.

        — Sabe?

        Ela o olhou então firmemente.

        — A mesma coisa que você havia de querer saber se sua filha estivesse tendo um caso com ele: Que é que ela pretende fazer?

        Hadley ficou calado. Olhou para a rua durante alguns momentos mas não pôde guardar os seus pensamentos consigo.

        — Sabe o que vai dizer a ele?

        — Sim, sei exatamente o que vou dizer.

        Hadley compreendeu que, se perguntasse, ela lhe diria. Mas não perguntou. Alguma coisa dentro dele o impedia. Talvez porque já soubesse o que ela havia decidido e não quisesse ouvir.

        Saltou do carro para ajudá-la a descer em frente à casa do Barão e perguntou:

        — Quer que mande o carro voltar para apanhá-la?

        — Não. Falarei amanhã com você na hora do almoço. — Virou o rosto para ele para o beijo de despedida e disse: — Bon soir, mon cher.

        Hadley compreendeu que tudo estava acabado quando lhe beijou o rosto. Sentiu que devia dizer alguma coisa gentil, alguma coisa compreensiva e terna mas as palavras lhe faltaram. Havia apenas um grande vazio dentro dele enquanto a viu subir os degraus até à porta da frente.

        O Barão estava esperando na biblioteca. Levantou-se logo que ela entrou na sala. O rosto parecia cansado e os cabelos estavam mais grisalhos do que jamais o vira. Sorriu calorosamente ao vê-la.

        — Papa! — exclamou ela com os olhos de repente cheios de lágrimas, atirando-se nos braços dele. — Papa!

        — Caroline, ma petite, ma bebé! Não chore, tudo se resolverá.

        — Tenho sido tão louca, — disse ela, com o rosto contra o peito do pai. — Tenho feito tantas coisas erradas.

        — Você nada tem feito de errado ou de louco, Caroline. A sua culpa única é ser jovem e ser mulher. Ambas as condições comportam uma grande margem de erro.

        — Que é que vou fazer agora? — perguntou ela, olhando para ele.

        — Você já sabe o que vai fazer. Pode falar. O caso com Hadley está encerrado, não está?

        Ela bateu afirmativamente a cabeça.

        — Não é esse o problema então. O problema é       Dax?

        — É,

        O Barão foi até ao aparador e serviu um cálice de xerez.

        — Beba isto que se sentirá melhor.

        O vinho aqueceu-a. O pai esperou que ela acabasse de beber e perguntou:

        — Que é que pretende fazer a respeito de Dax?

        — Divorciar-me dele. Tenho sido injusta com Dax todo esse tempo. Sei disso agora. Eu o fiz esperar, fingindo que estava procurando ser o que nunca podia ser. Tenho de dizer isso a ele agora e não sei como irei dizer.

        — Diga-lhe a verdade. Exatamente como disse a mim. Creio que ele compreenderá.

        — Não pode compreender, — disse ela. — Ninguém pode compreender. Eu estava mentindo a mim mesma.

        — Acho que Dax já compreende.

        Alguma coisa na voz do pai fez Caroline olhá-lo.

        — Por que diz isso?

        — Dax está em Paris desde a semana passada.

        — Em Paris? Mas ninguém me falou nele. Não apareceu em nenhum dos lugares habituais. Nem ao menos telefonou.

        — É isso que me faz chegar à conclusão de que Dax compreende. Passou a semana toda no consulado sem botar o pé na rua. E ele só poderia ter feito isso por um motivo — para não lhe criar embaraços. Indiretamente, foi por isso que lhe telefonei.

        Caroline parecia atônita.

        — Dax deverá partir amanhã cedo para o Corteguay. Achei que vocês dois deviam ver-se antes disso. Ele está esperando na sala.

        Dax já estava de pé quando Caroline entrou. O sorriso com que ele a recebeu foi cordial e sincero.

        — Dax, tenho sido uma criança. Nunca fui mulher para você.

        Ele tomou-lhe a mão.

        — Sente-se.

        — Não sei o que dizer, — murmurou ela. — Perdoe-me.

        — Não peça perdão. Não tenho sido um marido tão bom que você tenha de pedir-me perdão.

        — Que é que se diz então numa hora destas? — perguntou ela, olhando-o.

        Dax tirou o lenço do bolso e entregou-o a ela. Esperou que enxugasse as lágrimas e murmurou:

        — Vamos dizer o seguinte: havia duas pessoas muito amigas que foram forçadas pelas circunstâncias a se casarem e que eram mesmo muito amigas porque, quando o casamento chegou ao fim, viram que nem assim a amizade entre elas havia acabado.

        — É possível isso?

        — É, se esta for a verdade.

        Caroline sentiu que um peso lhe era tirado do coração. Sorriu pela primeira vez.

        — Você é um homem estranho, Dax. Tantas pessoas pensam que o conhecem e não conhecem. Vêem em você somente o que querem ver. Até eu fui assim. Agora, percebo que fui tão cega quanto os outros. Também eu só via o que queria ver.

        — E que é que vê agora?

        — Vejo um homem muito bom e gentil e um amigo verdadeiro.

 

        As rodas do grande avião tocaram a pista e Dax disse a Gato Gordo que estava a seu lado:

        — Bem, estamos em casa.

        Gato Gordo olhou pela janela e viu o novo edifício do aeroporto.

        — Não gosto disso. Prefiro voltar para cá de vapor.

        — Por quê?

        — Quem vem por mar está chegando a uma grande nação. Do ar é que se vê como somos pequenos.

        — Mas o país é mesmo pequeno.

        — Eu sei. Mas não gosto de pensar assim. Gosto de pensar que somos grandes, importantes.

        O avião parou e Dax desapertou o cinto.

        — E somos, mas só entre nós mesmos.

        O forte sol do Corteguay lhes doeu nos olhos quando saltaram do avião. Ao pé da escada, um oficial fez continência.

        — Señor Xenos?

        — Sí.

        — Capitán Maroz, a su servicio. O Presidente pediu que o levasse a ele imediatamente.

        — Gracias, Capitán.

        — Tenho um carro aí esperando, — disse o Capitão Maroz levando-os para os portões do aeroporto. — Todas as providências foram tomadas quanto à sua bagagem.

        Atravessando o aeroporto, Dax notou as belas decorações, os grandes murais de mosaico.

        — Bonito, não é?

        — Muito impressionante, — murmurou Dax.

        O capitão sorriu.

        — O Presidente acha que é muito importante para os turistas. Devem ficar bem impressionados logo que desembarcam no aeroporto.

        Dax olhou para o vasto salão de espera. Havia pouca gente e a maior parte de uniforme.

        — Quantos aviões pousam aqui por dia?

        O Capitão Maroz pareceu embaraçado.

        — Só há dois vôos internacionais por semana, um dos Estados Unidos e outro do México. Passam por aqui a caminho do sul. Mas em breve haverá mais. O Presidente pretende inaugurar no ano que vem a nossa linha aérea nacional. O povo está muito entusiasmado com isso.

        Dax imaginou que deveria estar, pois isso daria trabalho para alguns. Haviam chegado ao carro. O capitão abriu a porta e Dax entrou. O capitão sentou-se ao lado dele. Gato Gordo foi na frente com o chofer.

        O automóvel entrou numa grande estrada de seis pistas. No alto, havia um cartaz gigantesco: BOULEVARD DEL PRESIDENTE. Dax olhou para o homem ao seu lado.

        — Também a estrada é nova, — disse o capitão. — Que é que adianta um aeroporto sem vias de acesso?

        — Para onde         vai a estrada?

        — Para a cidade e,         depois, para o novo palácio de verão do Presidente nas montanhas. A estrada é ótima.

        O grande carro buzinou e desviou-se para o lado a fim de ultrapassar uma carroça puxada a burro e carregada de esterco. Dax virou-se para olhar. O campesino que ia na carroça continuava cochilando e nem havia aberto os olhos quando eles passaram. Dax pôde ver toda a estrada até o aeroporto. Não havia outro carro à vista.

        — A verdade, — disse o capitão, — é que é proibido o uso desta estrada pelos campesinos, mas não há jeito de afastá-los por completo.

        Dax recostou-se no banco do carro. Nos campos por onde passavam, alguns dos campesinos levantavam um instante a cabeça, mas a maioria nem tinha curiosidade. Em dado momento, o carro diminuiu a marcha. Estava chegando à cidade.

 

        — Sei exatamente o que esses texanos pensam. Acham que somos imbecis ou então que somos crianças que eles podem enganar a vontade. Mas vão acabar vendo que as coisas são bem diferentes!

        Dax achou que o Presidente quase não havia mudado. Mas os cabelos pareciam mais escuros. Dax teve uma vaga suspeita. Lembrava-se bem de que na última vez em que o vira, o cabelo do Presidente estava começando a ficar grisalho. Seria possível que ele o estivesse pintando?

        — São uns idiotas se pensam que há petróleo aqui, — continuou o Presidente. — Mas não faz mal que pensem assim. Levarão cinco ou seis anos para descobrirem a verdade.

        Dax olhou-o surpreso.

        — E os estudos geológicos?

        — Ora, disse o Presidente, rindo, —geólogos podem também ser comprados.

        — Mas...

        — Sim, eles têm razão. A plataforma continua diante da nossa costa mas está a 500 quilômetros de distância da costa e a mais de três mil metros de profundidade. Duvido que até mesmo a capacidade técnica dos ianques possa extrair petróleo a essa profundidade. Mas nesses cinco anos eles gastarão muitos dólares aqui e isso dará um grande impulso à nossa economia. Contribuirá também para que os turistas americanos tomem conhecimento da nossa existência.

        Foi até à janela e chamou Dax.

        — Ali, no morro dos Namorados... não acha que será um bom lugar para construir um hotel?

        — Para que, se não há turistas?

        — Mas haverá. A Pan American Airlines já foi sondada a respeito da localização. Pensam que a vista será magnífica.

        — E fará o financiamento?

        — É claro.

        — E o terreno?

        O Presidente voltou à sua mesa.

        — Primeiro, preciso comprar o terreno. Depois, nós o arrendaremos a eles.

        — De quem é o terreno?

        — De Amparo, — disse o Presidente, sorrindo.

        Dax voltou à sua cadeira.

        — Vossa Excelência pensou em tudo. Não sei por que me mandou chamar.

        — Você é muito importante para os nossos planos. É a única pessoa do país conhecida fora daqui. Por isso o estou nomeando chefe da Comissão de Planejamento do Turismo.

        Dax ficou calado.

        — Sei perfeitamente o que você está pensando — que eu sou um velho desonesto e sem escrúpulos. Talvez tenha razão. Mas tudo o que tenho feito nos traz mais dinheiro e contribui para elevar o padrão de vida do Corteguay.

        Dax levantou-se. Sorriu ao pensar em todos os homens espertos em quem aquele velho bandolero havia passado a perna. Os ambiciosos milionários texanos. Marcel. No fim que diferença fazia?

        Para os texanos, seria apenas mais outro campo em que não haviam encontrado petróleo. Continuariam a encontrá-lo em outros pontos. Marcel teria a sua frota. Navegariam com a bandeira do Corteguay e dariam uma boa receita. O Corteguay e o Presidente seriam beneficiados de qualquer maneira.

        — Devo dizer, Excelência, que nunca deixa de assombrar-me.

        O Presidente sorriu.

        — Agora, temos de pensar num meio de atrair os turistas americanos, em alguma coisa que os faça pensar que o Corteguay é um país romântico e interessante.

        — Há nos Estados Unidos companhias que se especializam nesses assuntos. São chamadas de empresas de relações públicas. Entrarei em contato com várias e veremos as ideias que nos poderão dar.

        — Excelente ideia, — disse ele, tocando uma campainha. A conversa estava encerrada. — Espero-o hoje à noite para jantar. Conversaremos mais, então.

        O Capitão Maroz estava esperando na antecâmara.

        — Tenho outro convite para o senhor, Excelência.

        — Sim?

        — É de Sua Excelência, a filha do Presidente. Deseja que o senhor vá tomar chá com ela às cinco horas no seu apartamento.

        Dax olhou para o relógio. Passava um pouco das três. Havia tempo de sobra para uma pequena sesta, um banho e roupas limpas.

        — Diga por favor a Sua Excelência que irei vê-la com prazer.

 

        Jeremy Hadley pisou o acelerador até à tábua e o grande carro galgou possantemente a montanha. Por um momento, pareceu suspenso no ar, com toda a Riviera estendida embaixo, de Monte Carlo a Antibes. Em seguida, desceu para as águas azuis do Mediterrâneo.

        A pequena aproximou-se mais dele e de repente ele lhe sentiu a mão na coxa. Olhou-a pelo canto dos olhos. Tinha os lábios entreabertos, quase como se estivesse dominada por uma excitação sexual. “Vocês, americanos, e seus automóveis!” — gritou ela acima do barulho do vento e do motor.

        Ele sorriu. Dava certo sempre. Por mais que elas fossem sofisticadas, por mais que zombassem do que era americano. Bastava colocar a pequena ao lado dele no carro. Fosse o que fosse — a velocidade, a potência do motor, o cheiro masculino do couro novo —, sempre dava certo.

        Havia um lugar perto da estrada, logo depois da primeira curva e não havia dúvida alguma de que ela estava no ponto. Caiu em cima dele quase antes que ele tivesse tempo de desligar o motor, com os dedos procurando freneticamente os botões que não existiam. Ele correu o fecho das calças e ela teve         uma exclamação ao ver-lhe livre a juventude       e a vida. Depois, a sua         boca quente e úmida cobriu-o.

        O sol estava começando a desaparecer atrás de Antibes quando o carro voltou à estrada. Ela havia puxado para baixo o pára- luz e estava retocando a pintura no espelho. Acabou de passar o batom, levantou de novo o pára-luz e recostou-se no banco.

        — Sei que não vai acreditar, mas esta foi a primeira vez que fui infiel a meu marido.

        Jeremy ficou calado. Não havia necessidade de falar. Se aquela fora a primeira vez, a maneira pela qual ela se conduzira indicava que não seria a última.

        — Não acredita em mim?

        — Acredito, — disse ele, sorrindo.

        Ela tirou o cigarro que ele fumava, puxou uma fumaça e tornou a colocá-lo na boca de Jeremy.

        — Ainda não compreendo o que foi que me deu. Quanto tempo ainda falta para chegarmos lá?

        — Não sei. Depende do tempo que os guardas aduaneiros nos fizerem demorar. Duas horas, talvez.

        — Duas horas? — exclamou ela com uma ponta de aborrecimento.

        — Que diferença faz? Ninguém vai-se incomodar.

        — Meu marido vai. Não lhe agradou a ideia de eu sair de carro sozinha com você.

        — Eu o convidei para vir também, não foi? Ele preferiu ir de iate.

        — Não quer dizer nada. Ainda assim, vai querer saber por que demoramos tanto.

        — Diga-lhe que a gasolina acabou.

        Ele ligou o rádio do carro e começaram a ouvir música numa estação italiana. Isso devia acabar com a conversa, pensou ele.

        Ela estava reclinada no banco, com os olhos semicerrados. Em que estaria pensando? As alemãs eram muito estranhas. E Marlene Von Kuppen era a mais estranha de todas.

        Mas talvez o mais curioso a respeito dela fosse o marido. Fritz Von Kuppen era o segundo filho do velho barão. Alto e louro, tinha sido oficial da aviação alemã durante a guerra, tendo sido derrubado duas vezes com o seu aparelho e dado baixa antes que a guerra houvesse realmente começado. Logo que se conheceram, Jeremy teve quase a certeza de que Von Kuppen era homossexual. Havia alguma coisa na maneira pela qual ele se movimentava na quadra de tênis. Era quase clássico. Derrotara Jeremy com a maior facilidade e depois o convidara para um drinque.

        Ali é que ele conhecera Marlene. Estava sentada a uma mesa no terraço conversando com outra mulher.

        — Minha mulher, Sr. Hadley, — disse Von Kuppen. — O Sr. Hadley joga tênis muito bem, Marlene.

        Jeremy havia sorrido, apertando-lhe a mão.

        — Mas não tão bem assim. Seu marido me derrotou facilmente.

        — O tênis é a única coisa no mundo         que Fritz leva realmente a sério, — disse ela, sorrindo.

        Isso lhe havia chamado a atenção. Haveria alguma intenção oculta na frase? Mas ela tinha prontamente apresentado a mulher com quem conversava e, então, o garçom chegou com os drinques. Durante a conversa, tinha sabido que os Von Kuppen haviam parado na Itália a caminho da Riviera Francesa e que pretendia prosseguir daí a alguns dias.

        Nesse momento, Thomas, seu irmão mais moço, apareceu. Jeremy apresentou-o e pediu bebida para ele.

        — E o barco?

        — O comandante diz que tomará todas as providências. Podemos levá-lo para Antibes amanhã de manhã.

        — Papai vai ficar satisfeito, quando chegar. Você pode ir no iate. Eu irei de carro.

        — É o iate novo que eu vi no porto? — perguntou Von Kuppen.

        Jeremy confirmou.

        — Admirei-o de longe. É muito bonito.

        — Escutem, já que vão para Riviera por que não aproveitam e não vão de iate com meu irmão? Assim, ficariam conhecendo bem o barco...

        — Eu gostaria mas... — murmurou Von Kuppen, olhando com hesitação para Marlene.

        — Sou uma grande decepção para meu marido. Os barcos são o seu segundo amor e eu sempre enjôo a bordo.

        — Poderei levá-la de carro, se quiser, — propôs Jeremy. — Chegaremos à noitinha.

        Ela sacudiu a cabeça.

        — Não, Sr. Hadley, muito obrigada. Isso seria quase uma imposição.

        Mas Von Kuppen se mostrara inesperadamente favorável.

        — Acho que é uma excelente sugestão, Liebchen. Eu gostaria de passar um dia no mar. Sr. Hadley, teremos prazer em aceitar a sua oferta e lhe agradecemos muito.

        Quando eles se retiraram, Thomas sorriu.

        — Você tem alguma coisa com ela?

        — Como é que posso ter? Só a conheci dez         minutos antes de você chegar.

        — Há gente de muita sorte, — comentou Thomas.

        Jeremy desmanchou afetuosamente o cabelo do irmão.

        — Você não tem de que se queixar, Tommy. Não se saiu tão mal assim naquelas últimas semanas na Suíça.

        — Mas não tive nada que se comparasse com essa. Por que é que você pega sempre o creme?

        — Pois trate de pegar também. Tenho a impressão de que o tempo dos divertimentos está chegando ao fim.

        — Como assim?

        — Jim e Papai devem estar de volta no fim da semana. E você bem sabe o que os dois foram fazer em Boston.

        — Você acha que querem mesmo Jim como candidato ao Congresso?

        — Ainda que não queira, Papai os convencerá.

        — Mas isso não nos atrapalhará muito. Ainda falta mais de um ano para a eleição.

        — Você se engana porque quer. Se papai se decidiu, a campanha já começou. E nós todos vamos participar dela. Para papai não é Jim que será candidato e sim toda a família.

 

        O iate estava atracado ao cais particular e Tommy e Von Kuppen estavam na varanda quando Jeremy parou o carro em frente à vila.

        — Fizeram boa viagem? — perguntou Von Kuppen quando os dois saltaram.

        — Seria ainda melhor se a gasolina não tivesse acabado, — disse Marlene.

        — Descuidei-me e não verifiquei o tanque antes de sair, — disse Jeremy.

        — São coisas que acontecem, — murmurou displicentemente Von Kuppen. — Você deve estar muito cansada, querida. Venha que vou mostrar-lhe o seu quarto.

        — Será ótimo. — Voltou-se para Jeremy e disse: — Obrigada pela condução.

        — Não há de quê.

        Depois que o casal entrou, Tommy foi sentar-se no carro ao lado do irmão que ia levá-lo para a garagem.

        — Fiquei muito contente de você ter aparecido agora. As coisas estavam começando a ficar difíceis.

        — Como assim?

        — Von Kuppen não gostou nada. Apesar disso, tive a impressão de que era justamente o que ele esperava. Talvez até o que ele queria.

        — Bem, — murmurou Jeremy pensativamente. Devia ter razão no que havia julgado. O casamento era apenas uma cortina. Não se tratava de um caso excepcional.

        — Ele que vá para o diabo! O problema não é meu, — disse ele, de súbito, aborrecido por estar envolvido numa situação que não havia previsto. — Vamos tomar um drinque.

        Marlene não desceu para o jantar e os três comeram num silêncio curiosamente cortês. Haveria ainda um dia até que os outros chegassem: as irmãs e a mãe, de Paris, onde estavam fazendo compras; a cunhada, a mulher de Jim, com os dois filhos, de Nova York, e Jim e o pai, de Boston. No fim do jantar, Tommy perguntou a Jeremy:

        — Vai precisar do carro esta noite?

        — Não.

        — Estou com vontade de ir até Juan-les-Pins e olhar as coisas por lá.

        — Pode ir que eu vou dormir cedo.

        Von Kuppen voltou-se para Tommy.

        — Se não se incomoda, eu gostaria de acompanhá-lo.

        — Seria um prazer para mim.

        — Muito obrigado, — disse Von Kuppen, levantando-se. — Volto já. Só vou dizer a Marlene que não me espere.

        Os dois irmãos se olharam quando ele saiu da sala.

        — Que é que acha disso? — perguntou Tommy. — Eu seria capaz de apostar que ele nunca mais deixaria vocês dois sozinhos.

        — Não estamos exatamente sozinhos, — disse Jeremy apontando uma empregada e o mordomo que estavam tirando a mesa.

        — Você bem sabe o que eu quero dizer.

        — Isso não me preocupa. Vou é dormir, sabe?

 

        Jeremy saiu do banheiro e esfregou-se vigorosamente com uma grande toalha. Depois, amarrou a toalha na cintura e acendeu um cigarro. Olhou-se ao espelho com um sentimento de satisfação.

        Estava em muito boas condições para a idade. A barriga ainda estava lisa e dura e o peso ainda era o mesmo de quando ele havia entrado para o exército em 1941, oito anos antes. Às vezes, parecia que tinha sido ontem. Tinha naquele tempo vinte anos.

        — Aliste-se agora, — dissera o pai. — Estaremos na guerra antes do fim do ano. Quero que vocês estejam prontos na ocasião.

        Jim tinha ido para a aviação e ele, para a infantaria. Em março de 1942, ambos estavam no estrangeiro. Um dia, naquele mês, olhou para o céu do lugar onde estava, protegido precariamente por algumas pedras e viu as insígnias da esquadrilha de seu irmão nas asas dos aviões que estavam passando. De repente, a idiotice daquela incursão simbólica em Dieppe perdeu toda a importância, o perigo do fogo de barragem com que os alemães os estavam detendo deixou de ser terrível. O irmão estava lá em cima olhando por ele.

        Jeremy voltou da expedição como primeiro-tenente. Ganhou o posto de capitão na praia de Anzio e chegou a major nos campos da Normandia, quando ganhou também a estrela de prata e o coração púrpura.

        Tinha sido para ele o fim da guerra. Quando saiu do hospital, foi transferido para o estado-maior e não reclamou. Para ele, chegava. Mas Jim continuou a voar nos grandes bombardeiros até o dia da vitória na Europa e acabou como coronel.

        Dois dias depois, em consequência de prévio acordo entre eles, tinham-se encontrado ali na vila de Cap d’Antibes, que pertencia havia muitos anos ao pai dele e onde haviam passado muito verões deliciosos.

        O velho François, o caseiro, e sua esposa tinham ido recebê-los à porta.

        — Vejam, messieurs, — dissera o velho com orgulho, — não deixamos os boches entrarem aqui.

        Ele haviam sorrido e agradecido, embora soubesse que os alemães, por este ou por aquele motivo, não se haviam interessado por aquela área. Contudo, a casa estava muito triste, com os jardins maltratados, as janelas fechadas com tábuas e os móveis cobertos com capas.

        Quando ficaram sozinhos, os dois irmãos se olharam. Jim era apenas quatro anos mais velho, mas já tinha cabelos grisalhos e rugas profundas no rosto. A tensão de mais de mil horas de vôo em céus dilacerados pela guerra havia deixado a sua marca. Em compensação, Jeremy parecia quase o mesmo. Talvez isso fosse mais resultado do prolongado repouso no hospital do que da relativa calma do trabalho no estado-maior.

        — E o ferimento? — perguntou Jim.

        — Só um arranhão. Quase nada. E você?

        Jim levantou as mãos numa pose fingida de boxeur.

        — Nem me tocaram! — Mas não havia bom humor na sua voz.

        — Tocaram, sim. Eu tive sorte. Para você as coisas não foram tão fáceis.

        — Você teve sorte, realmente, — disse Jim, com súbita amargura. — Ao menos, lutou contra soldados que queriam matá-lo e a quem você queria matar. A coisa era igual. Mas quando eu lançava uma daquelas grandes bombas, nunca sabia a quem elas iriam matar. Você devia ter visto Colônia depois dos bombardeios. E Berlim. De cada vez que voltávamos era mais fácil. Nem se precisava olhar. Bastava deixar-se guiar pelo cheiro das casas incendiadas que subia pelo céu a cinco mil metros de altura.

        — Espere um pouco, Jim. Você não está tendo pena dos alemães.

        — Claro que estou! Nem todos eram soldados, nem todos eram nazistas. Quantas mulheres e crianças acha você que eu matei? Os soldados estavam em segurança na frente.

        — Não fomos nós que fizemos as regras desta guerra, Jim, foram eles. Na Holanda, na Polônia, na França, na Inglaterra. Pouco se importavam com o lugar onde as bombas caíam ou com as pessoas que matavam. E quem sobrava eles liquidavam em Dachau e Auschwitz.

        — E isso justificou tudo o que nós fizemos?

        — Não, nada justifica a guerra. Mas quando a guerra chega, não se tem outro remédio. Reage-se para matar ou deixa-se ser morto. As regras da guerra moderna são feitas pelo agressor. Se ainda tem alguma dúvida, vá dar um passeio em Conventry.

        — Talvez você tenha razão, — disse Jim, olhando com mais respeito para o irmão mais moço. — Talvez eu esteja apenas cansado. Mas senti mesmo o que lhe estou dizendo.

        — Todos nós sentimos. Mas agora isso está terminado. Ao menos para nós.

        — Assim espero, — murmurou Jim.

        Nesse momento, o velho François apareceu à porta e disse que a comida estava na mesa. Estava com o seu velho uniforme de mordomo, que tinha sido cuidadosamente passado. Foram com ele para a sala de jantar.

        François havia conseguido flores para a mesa e havia velas acesas em cada canto. A prataria rebrilhava e o linho da toalha estava macio e branco. A mulher de François apareceu à porta, com os olhos azuis brilhando por trás dos óculos.

        — Sejam bem-vindos, messieurs.

        Jeremy se levantou e foi beijá-la nas duas faces.

        — Merci!

        Ela voltou para a cozinha toda confusa e os dois começaram a jantar. Mal François havia servido o vinho, ouviram o barulho de um automóvel na alameda. Entreolharam-se surpresos porque não esperavam ninguém. Em seguida, levantaram-se e correram para a porta da frente.

        Viram então o pai saltar do velho táxi Citroen que o levara da estação. Quase não podiam acreditar.

        — Sabia exatamente onde poderia encontrar vocês, rapazes.

        Começaram então a chorar ao mesmo tempo e a fazer milhares de perguntas. Durante o resto do jantar, olharam-se uns para os outros e viram as fotografias do resto da família que o pai havia levado. Pouco depois, era como se nunca tivesse havido a guerra.

        Aquele era o primeiro ano depois da guerra em que voltavam todos a usar a vila. Não tinha havido muita necessidade de reparos, mas outras circunstâncias os haviam afastado de lá. Jim se casara um mês depois de voltar para casa, em junho de 1945, e agora tinha dois filhos, ambos meninos. O velho Hadley levara Jim para o escritório e pouco a pouco o havia posto a par do funcionamento geral dos seus complexos negócios.

        Jim havia quase terminado a sua aprendizagem quando Jeremy concluiu o seu curso em Harvard. Estava ainda incerto sobre o seu futuro, mas, como sempre o pai soubera o que devia ser feito.

        Quando aceitara uma nomeação para a comissão de reparações, levara Jeremy como assistente e, durante dois anos, Jeremy andou pelas repartições do governo de todos os grandes países da Europa. A sua boa aparência e as suas maneiras cordiais faziam-no geralmente estimado. O fato de que ele era americano e rico não ofendia ninguém.

        Jeremy havia apreciado ao máximo a sua posição e a sua vida social. As mulheres européias eram muito mais complicadas do que as americanas. Se mostrou alguma tendência a interessar-se demais por alguma, as suas atividades se encarregaram de corrigir isso. Raramente permanecia em qualquer lugar, o tempo suficiente para criar problemas.

        Quando acabou de cumprir a sua missão, voltou para os Estados Unidos e passou um ano em Washington trabalhando num relatório sobre os trabalhos da comissão. Em abril, concluiu o serviço e voltou a Boston com uma proposta do Departamento de Estado.

        O pai foi mais uma vez categórico.

        — Não aceite. Tome um ano de férias. Volte para a Europa e divirta-se.

        — Mas eu preciso decidir o que vou fazer de minha vida, papai.

        — Não há pressa. Você saberá quando chegar a ocasião. Além disso, já está em tempo de Tommy passar algum tempo por lá também. Precisa de alguém que o oriente. Não teve as oportunidades que você teve.

        Jeremy sorriu com as palavras do pai. Tommy acabara de formar-se em Harvard e como tinha apenas 22 anos não tomara parte na guerra. Mas se o que Jim lhe dissera era verdade, tomara parte em tudo mais. Metade das mães de Boston montavam guarda às filhas quando Tommy aparecia.

        De certo modo havia gostado de mostrar ao irmão a Europa que chegara a conhecer. Era o mesmo que ver-se num espelho da maneira como era antes da guerra. E havia em seu irmão mais moço uma sofisticação que ele e Jim nunca haviam tido. Era quase como se os seis anos de diferença entre ele e Tommy fizessem este pertencer a outra geração. Tinha sido pura e simplesmente a guerra. Nunca mais haveria ingenuidade e inocência nos moços. Havia uma bomba que fazia da morte uma companhia constante para todos os que viviam na terra.

        Jeremy saiu pensativamente da frente do espelho e vestiu o pijama. Pensou no irmão que estava indo para Juan-les-Pins com Von Kuppen e sorriu. Tivera muita pressa de ir ver como iam as coisas por lá. Pela primeira vez, julgava compreender o pai quando dizia que não havia pressa. E ele ainda era moço. Tinha apenas vinte e oito anos.

        Estendeu-se na cama e apagou a luz. Deitado de lado, via as sombras se moverem pela janela fechada com a cortina. Já ia fechando os olhos quando de repente percebeu que havia uma sombra diferente. Não se movia como as outras.

        Procurou olhá-la melhor e ela desapareceu de repente. Pulou da cama e correu para as janelas que davam para o terraço. Não havia ninguém. Só no dia seguinte compreendeu que a imaginação não o fizera ver coisas. Pois quando desceu para o café, soube que os Von Kuppens haviam partido.

 

        Havia um bilhete do alemão na mesa do café agradecendo-lhe a hospitalidade e pedindo desculpas por ter de partir tão cedo sem despedir-se.

        — Já foram? — perguntou ele a François, quando este chegou com o café.

        — Oui. Ele telefonou pedindo um táxi às sete horas. Foram para o Negresco, em Nice.

        Jeremy pegou a xícara, pensando que aquilo era muito estranho. Mais uma hora e ele mesmo os teria levado de carro.

        — Presunto com ovos, monsieur?

        — Quero, sim.

        — Para mim também, — disse Tommy, entrando na sala. Jogou-se numa cadeira e pegou uma xícara de café. — Ai, minha cabeça!

        Jeremy sorriu.

        — Vocês devem ter-se divertido um bocado ontem à noite. Não sei como Von Kuppen pôde levantar-se tão cedo e partir.

        — Mas ele não estava comigo. Já foram?

        Jeremy entregou-lhe o bilhete e perguntou:

        — Ele não saiu daqui com você?

        — Saiu, mas logo que chegamos à estrada, mudou de ideia. Quis trazê-lo de novo para cá, mas ele disse que não era preciso. Gostava de andar um pouco depois do jantar. Deixei-o e segui meu caminho.

        — Não sabia que ele havia voltado, — murmurou Jeremy e então se lembrou. A sombra no terraço... Seria Von Kuppen?

        — Você ficou com uma cara esquisita de repente. Houve alguma coisa?

        Jeremy sacudiu a cabeça. Teria Marlene suspeitado de que o marido lhes havia preparado uma armadilha? François chegou então com o prato de presunto com ovos e ele não pensou mais no caso. Os Von Kuppens tinham-se ido embora e não adiantava mais pensar neles. E até que tinha tido sorte.

        À tarde, havia-os esquecido por completo. Como sempre acon- tecia, a mãe e as irmãs haviam chegado de Paris com hóspedes. Eram Sergei Nikovitch, que estava fazendo os vestidos para elas naquele ano, e Giselle d’Arcy, a atriz. Dizia-se que os dois iam-se casar. Estavam juntos havia alguns anos. À tarde, Ângela, mulher de Jim, chegou com os dois filhos.

        A casa começou a encher-se de gente e dentro em pouco Jeremy teve certeza de que o aumento de decibéis de som em Cap d’Antiber havia avisado a todo o mundo que os Hadleys estavam de volta.

        O jantar daquela noite foi como sempre na família uma movimentada festa. De repente, no meio do jantar, François curvou-se e disse em voz baixa:

        — Telefone, monsieur.

        — Alô?

        — Jeremy?

        Embora a voz estivesse muito baixa, reconheceu-a logo.

        — Sim, Marlene?

        Levantou-se, foi até ao escritório e atendeu na extensão.

        — Preciso ver você. Ele quer-me matar!

        — Deixe de tolice!

        — Quer mesmo! — exclamou ela com voz angustiada. — Você não o conhece. Não sabe de que ele é capaz. É um louco! Só não desci para o jantar ontem à noite porque ele me bateu tanto que eu fiquei toda marcada. Foi por isso que saímos tão cedo hoje.

        — Não compreendo. Ele não tinha motivo nenhum para fazer isso. Só se você contou tudo a ele.

        — Não disse nada. Mas ele jura que continuará a me bater até eu dizer a verdade.

        — Por que não o deixa?

        — Não posso. Quando ele sai, me prende na cama com algemas.

        — Com algemas?

        — Sim, — disse ela em prantos. — Tem sido assim desde que nos casamos. Sempre que ele sai.

        — Como é então que você vai me ver?

        — Ele vai para o cassino às onze horas. Já mandou reservar uma cadeira na mesa do va tout. Venha a meia-noite. Vou falar com o porteiro para deixar você entrar.

        — Mas...

        — Venha! — disse ela de súbito com voz quase selvagem. — Ele vem aí. — Tenho de desligar.

        Jeremy colocou o fone no gancho e ficou pensando. Não lhe agradava o que estava acontecendo, mas o terror da mulher parecia verdadeiro.

        Parou o carro em frente ao Hotel Negresco alguns minutos depois da meia-noite. Hesitou durante alguns minutos. Depois, desceu a Promenade des Anglais e chegou ao Cassino de la Méditerranée. Comprou uma carta de admissão e entrou no cassino.

        Ainda era o início da temporada mas as mesas de roleta já estavam cheias. Passou pelas mesas de trente-quarente e de chemin de fer. Nos fundos do grande salão, estava a mesa do va tout, do bacará sem limite.

        Havia os habituais curiosos, olhando o jogo alto, com fascinação. Procurando esconder-se, olhou por entre eles. Nisso, ao menos, ela dissera a verdade. Von Kuppen estava sentado ao lado do carteador, olhando para a mesa com concentrada atenção.

        Voltou para o hotel e telefonou para ela da portaria.

        — Suba. Quarto 406.

        — Já vou.

        Saltou do elevador no quarto andar e falou com o porteiro do andar que o conduziu pelo corredor e abriu a porta do 406 com a sua chave, recebendo a moeda que Jeremy lhe colocou na mão.

        Ele fechou a porta e chegou à porta da sala. Atravessou até à porta do outro lado. Bateu.

        — Jeremy? — A voz era abafada pela porta.

        — Sou eu. — Tentou abrir a porta e não conseguiu.

        — Ele trancou a porta por fora e levou a chave. Você tem de ir falar com o porteiro.

        — Não seria prudente. — Estava começando a ficar indignado. Von Kuppen parecia mesmo maluco. — Deve haver outra chave por aqui.

        Havia. Num armário embutido na entrada. Com típico espírito francês de economia, as mesmas chaves serviam em todas as fechaduras. Abriu a porta e viu-a. Marlene não havia mentido. Um par de algemas prendia-lhe um tornozelo à cama.

        Ela ficou a olhá-lo com o lençol puxado até o pescoço.

        — Estou horrível, — disse ela inesperadamente e começou a chorar.

        — Não chore, — disse ele, aproximando-se da cama. — Vou tirá-la daqui.

        Experimentou as algemas. Estavam fechadas mesmo.

        — Tenho de procurar alguma coisa para abrir as algemas.

        Procurou na sala e encontrou dentro do armário um furador de gelo.

        — Escorregue mais para os pés da cama. Preciso de tanta folga na corrente quanto for possível.

        Levou quase uma hora mas conseguiu afinal abrir as algemas. Olhou para o tornozelo dela e viu que estava esfolado e sangrando. Olhou-a com um novo respeito.

        — Pode levantar-se?

        — Vou tentar.

        Marlene pôs as pernas para fora da cama e, ainda segurando o lençol, procurou a mão dele para firmar-se. Levantou-se, balançando um pouco o corpo.

        — Está bem?

        — Não, mas vou ficar. Minhas roupas estão ali naquele armário.

        Ele voltou com um vestido e um casaco. Marlene estava encostada à cama.

        — O soutien e as calças estão na primeira gaveta.

        Quando ele lhe levou as peças, ela disse com um sorriso triste:

        — Você tem de me ajudar.

        — Sente-se que será mais fácil.

        Marlene sentou-se na cama com um suspiro de alívio. Deixou cair o lençol para vestir o soutien. Ele a olhou, espantado. O seios estavam cobertos de manchas roxas e havia vergões vermelhos pela barriga e pelas costas.

        — Você não acreditou. Ninguém pode acreditar.

        Ela rolou o corpo na cama. Em cada uma das nádegas havia uma fila de pontos em carne viva e empolados.

        — Fez isso com um charuto.

        — Ontem à noite?

        — Sim, ontem à noite.

        — Mas como? Não ouvimos nada.

        — Ele me botou uma mordaça na boca.

        — Levante-se, — disse ele. — Vou tirar você daqui já!

        De repente, sentiu que todo o ódio que tivera dos alemães durante a guerra havia voltado.

        Só quando estavam no carro e ele havia tomado automaticamente a direção da vila foi que ela falou.

        — Para onde vamos?

        — Vou levá-la para minha casa.

        — Não! Não! Seria o primeiro lugar onde ele iria me procurar.

        — Para onde é então que eu posso levar você? Precisa de um médico.

        — Em qualquer lugar menos lá.

        — Não posso levar você para outro hotel. Ele está com seu passaporte. Até que horas ele costuma ficar no cassino?

        — Até o jogo acabar.

        — São duas e meia. Quer dizer que, no máximo, temos duas horas. É preciso tomar uma decisão antes disso.

        De repente, teve uma ideia. Não se lembrava de como havia sabido disso. Talvez fosse de manhã no Nice Matin que François sempre deixava ao lado do seu prato. Mas sabia que Dax havia arrendado uma vila em Saint-Tropez naquele verão. Passou pela entrada da estrada de Antibes e tomou a estrada da costa. Tomara que Dax estivesse lá. Não o via desde aquela ocasião em Palm Beach, fazia mais de um ano, pouco antes de Dax e Caroline se divorciarem.

 

        Conseguiu saber na gendarmerie onde ficava a vila de Dax. Era no fim da península perto da praia de Tahiti, numa velha estrada estreita pela qual passou lentamente e com cuidado. Olhou para Marlene. Parecia estar dormindo, com os olhos fechados. A vila ficava quase à beira da água. Viu com satisfação que ainda havia luzes acesas. Ao menos, não teria de acordar a casa toda.

        Ouviu um murmúrio de conversas pelas janelas abertas quando parou junto à porta da frente. Puxou o cordão da antiquada campainha e ouviu o barulho ressoar pela casa.

        Marlene chamou-o do carro.

        — Onde estamos?

        — Em casa de um amigo.

        A porta se abriu e Gato Gordo apareceu.

        — Quién es?

        — Sou eu, Gato Gordo. — Moveu-se para que a luz lhe caísse no rosto. — O Sr. Xenos está?

        — Ah, Señor Hadley. Pode entrar.

        Ouviram-se risos no interior da casa. Jeremy hesitou e em seguida, virou o corpo para que Gato Gordo pudesse ver Marlene no carro.

        — Quer pedir ao Sr. Xenos que venha até aqui?

        Gato Gordo olhou para o carro e respondeu:

        — De seguro, señor.

        Voltou um momento depois com Dax que lhe estendeu a mão, todo sorridente.

        — Jeremy! Por que não entrou?

        — Tenho um problema.

        Nesse momento, Dax viu a mulher no carro. Levantou as sobrancelhas, mas não hesitou.

        — Leve o carro para o outro lado da casa. Gato Gordo e eu iremos encontrar-nos com você lá.

        Com um suspiro de alívio, Jeremy voltou para o carro. Entrou e ligou o motor.

        — Para onde vamos? — perguntou ela, ansiosamente.

        — Para o outro lado da casa. Não se preocupe- que tudo está resolvido agora.

        E pela primeira vez naquela noite acreditou nisso.

        Eram quase cinco horas da manhã quando Jeremy chegou no pequeno MG vermelho à Vila de Cap d’Antibes. Pensou com satisfação que Dax sabia o que estava fazendo.

        — Leve meu carro, dissera ele. — Devolverei o seu ao meio-dia. A polícia pode estar à procura dele esta noite.

        A casa estava às escuras e em silêncio. Quanto demoraria ainda para Von Kuppen chegar com os gendarmes? Talvez ainda tivesse tempo de dormir um pouco. Estava exausto. Subiu para o seu quarto e adormeceu quase antes de tirar a roupa.

        O sol entrava pelas janelas quando sentiu Tommy sacudi-lo.

        — Acorde!

        Rolou na cama e esfregou os olhos.

        — Que horas são?

        — Quase meio-dia. E então. Andou bancando o cavaleiro andante?

        — Que quer dizer com isso?

        — Von Kuppen está lá embaixo com dois gendarmes. Diz que você raptou a mulher dele durante a noite. E papai está furioso!

        — Papai já está aqui?

        — Chegou há meia hora. Chegaram quase ao mesmo tempo, ele e Von Kuppen.

        Saltou da cama e foi ao banheiro. A água fria do chuveiro reanimou-o por completo.

        — Quer-me jogar uma toalha, Tommy?

        — Você está calmo demais. Segure lá.

        — Que é que você quer que eu faça? — perguntou Jeremy, enxugando-se vigorosamente.

        — Não sei. Mas eu estaria preocupado se houvesse roubado a mulher de alguém.

        — Talvez não fosse eu.

        Von Kuppen correu impetuosamente ao seu encontro quase antes que ele entrasse na sala.

        — Que       foi que fez       com minha       mulher?

        — Não       sei de que é que está falando, — respondeu Jeremy, olhando-o com frieza.

        O pai dele estava ao lado e disse:

        — O Sr. Von Kuppen alega que você levou a mulher dele do hotel esta noite.

        Jeremy olhou para o pai.

        — Ele me viu com ela?

        — Não era preciso ver! — exclamou Von Kuppen voltando-se furiosamente para os gendarmes. — O porteiro da noite disse que viu minha mulher entrar num conversível Cadillac. Só podia ser o seu carro! Não há muitos Cadillacs conversíveis por aqui!

        — Ele me viu entrar no carro?

        — Que importa isso? Ele reconheceu minha mulher. Isso basta.

        É o que você pensa. A verdade é que ontem à noite não dirigi o Cadillac.

        Olharam-no e Jeremy disse aos polícias:

        — Venham comigo que eu vou provar.

        O velho Hadley se aproximou dele e disse em voz baixa:

        — Espero que você saiba o que está fazendo.

        Jeremy olhou-o. Sempre tinha havido na família completa honestidade. Respondeu baixinho:

        — É o que eu também espero.

        O pai nada disse mas fechou a cara. Um escândalo na família não o faria exatamente feliz, principalmente quando Jim estava ingressando na política.

        Pararam diante do pequeno MG vermelho.

        — Foi este o carro que dirigi ontem à noite.

        — Isso é um truque! — exclamou Von Kuppen. — Onde está o Cadillac?

        Jeremy olhou-o friamente sem responder-lhe.

        — Onde está o Cadillac, monsieur? — perguntou o polícia.

        — Não sei.

        — Não sabe? — insistiu o gendarme.

        — É verdade. Quando saí ontem à noite, encontrei um amigo em frente ao Cassino de la Méditerranée. Ele disse que gostaria de experimentar o meu Cadillac e nós trocamos de carro. Ele saiu então pelo Boulevard des Anglais e eu não o vi mais até agora.

        — A que horas foi isso, monsieur?

        — Não me lembro exatamente. Dez e meia. Talvez onze horas.

        — Deve conhecer muito bem esse homem para trocar o seu carro tão grande por este!

        — Bem, não se troca de carro com uma pessoa estranha.

        — Ele está mentindo! — gritou Von Kuppen furiosamente. — Não vêem que ele está procurando apenas ganhar tempo?

        Jeremy falou-lhe com a voz cheia de desprezo.

        — Sabe que você está muito doente? Nunca lhe sugeriram consultar um psiquiatra?

        Von Kuppen ficou muito vermelho e deu um passo na direção dele. O gendarme imediatamente se colocou entre os dois como se não tivesse visto nada.

        — Quer ter a bondade de dizer o nome do cavalheiro com quem trocou de carro?

        Jeremy olhou para a estrada e viu o Cadillac que ia chegando.

        — Posso dizer. Mas ele mesmo vai chegando aí. Monsieur Xenos. Conhece-o de nome, com certeza.

        — Conhecemos, sim, — disse o gendarme, voltando-se no momento em que o Cadillac parava ao lado deles.

        Jeremy se aproximou dele.

        — Como é, Dax? Gostou?

        — É uma beleza. Mas acho um pouquinho grande para as estradas daqui.

        — É uma trama! — gritou Von Kuppen alucinadamente. —• Não vêem que eles estão combinados?

        Dax virou-se o olhou-o.

        — Quem é esse homem?

        — Chama-se Von Kuppen, — respondeu Jeremy. — Está dizendo...

        — Vou Kuppen? — exclamou Dax. — Isso me poupa muito trabalho. Ia mesmo procurá-lo depois de devolver o seu carro.

        Saltou do carro e disse:

        — Trago-lhe um bilhete de sua mulher.

        — Estão vendo? — exclamou Von Kuppen. — Não disse que era uma trama?

        — Trama? — murmurou Dax. — Que trama?

        — Vou Kuppen afirma que eu raptei a mulher dele do hotel na noite passada.

        Dax sorriu.

        — Desculpe, mas não tive a intenção de envolvê-lo nos meus casos. — Voltou-se para os gendarmes e falou rapidamente em francês. — A Sra. Von Kuppen não foi raptada. Saiu comigo voluntariamente. Disse que não queria saber mais do marido, que estava farta dele e só desejava deixá-lo. Fui buscá-la depois que ela me telefonou.

        — Mentira! — gritou Von Kuppen.

        — Antes de fazer qualquer acusação, tome cuidado porque posso chamá-lo aos tribunais por crime de calúnia. — disse Dax, tirando um envelope do bolso. — Aconselho-o a ler o que sua mulher lhe escreveu.

        Von Kuppen rasgou o envelope. De onde estava, Jeremy julgou ver algumas fotografias e uma folha de papel de carta.

        Von Kuppen estava muito pálido.

        — Não compreendo. Quero vê-la. Tenho de falar com ela.

        — Ela não quer vê-lo, — disse Dax. — Deseja apenas que lhe devolva o passaporte.

        — Mas ela é minha esposa e ninguém me pode impedir de vê-la!

        — Pois eu posso e vou impedir, — disse Dax com fúria. — Ela está na minha vila e, para seu governo, sou embaixador-geral da República do Corteguay e estou na França em missão diplomática. Isso confere automaticamente imunidade diplomática à minha residência. Não é verdade monsieur? — perguntou ele ao gendarme.

        — Desde que se trata de uma questão diplomática, — disse o gendarme, com uma satisfação tipicamente francesa de livrar-se de uma situação difícil, — o caso está fora da minha jurisdição.

        Dax tornou a falar com Von Kuppen.

        — Além da carta que lhe dei, da qual tenho cópias, tenho também uma declaração de sua mulher prestada na devida forma em presença de um notaire. Também tenho um laudo médico sobre o seu estado físico. Espero que não precise recorrer à justiça para que devolva o passaporte. Quer que consiga também um mandado do juiz que o impeça de procurá-la?

        Von Kuppen olhou-o em silêncio. Depois, voltou-se para Jeremy.

        — Para que fez isso com ela? Vivíamos tão bem até você aparecer.

        — Você deve estar doente mesmo se acredita nisso, — disse Jeremy. Em seguida, disse ao pai: — Vamos entrar? Estou precisando de um bom almoço.

        Voltaram para casa, deixando no pátio Von Kuppen e os gendarmes. Logo que eles se afastaram no carro em que tinham vindo, Hadley olhou para o filho:

        — Quem a levou do hotel foi você, não foi?

        — Foi.

        — Por que fez essa coisa maluca?

        Jeremy olhou para Dax.

        — Aquilo eram fotografias, não eram?

        Dax tirou outro envelope do bolso e Jeremy entregou-as ao pai sem olhá-las. O velho abriu o envelope, olhou as fotografias e murmurou:

        — Meu Deus!

        — E não foi só isso, papai. Quando cheguei ao hotel, ela estava algemada à cama pelo pé. Disse que ele é maluco e é mesmo.

        — Tivemos sorte em ter Dax para nos livrar dessa, — disse o velho. — Não quero nem pensar nos transtornos que isso nos iria causar se houvesse escândalo.

        — Pensa que eu não sei disso, Papai? Acha mesmo que eu gostaria de prejudicar a ida de Jim para o Congresso?

        — De Jim? — perguntou o pai. — Pensei que você já houvesse compreendido.

        — Compreendido o quê?

        Por que não deixei você aceitar os outros serviços que lhe ofereceram. Não é Jim que vai candidatar-se ao Congresso. É você!

 

        Robert estava lendo o jornal quando Denisonde entrou no pequeno apartamento com a bolsa de compras quase vazia na mão.

        — Voltou cedo, — disse ela da porta.

        Ele não levantou os olhos do jornal. Ainda movia os lábios no seu esforço de traduzir do hebreu para o francês. Afinal, completou a frase e olhou-a.

        — Não havia nada para fazer no escritório e me deram a tarde de folga.

        Denisonde entrou e se dirigiu para a cozinha. Disse da porta:

        — O correio trouxe um novo France-Soir. Está na mesinha ao lado da sua cama.

        — Obrigado, — disse ele, levantando-se. Mas, não querendo parecer muito ansioso pelo jornal, perguntou: — Como é que se foi hoje?

        — Como sempre. Tenho certeza de que o açougueiro sabe francês, mas fingiu que não me entendia. Obrigou-me a falar em hebreu e depois que todos se divertiram à minha custa disse que não havia carne.

        — Mas os novos cupons de racionamento entram em vigor hoje.

        — Foi o que eu disse ao açougueiro. Ele me disse que eu sabia disso e ele também sabia, mas que tinham esquecido de avisar aos bois.

        — Que foi que você conseguiu?

        — Batatas e um pedaço de carneiro gordo.

        — Quer dizer que foi ao mercado negro de novo?

        — E você queria comer apenas batatas hoje outra vez?

        Robert ficou calado um instante e por fim disse com voz cheia de amargura:

        — Talvez os árabes não nos queiram aqui, mas estão enriquecendo à nossa custa.

        — Não são só os árabes que não nos querem aqui.

        — Agora que os ingleses foram embora, tudo vai ser diferente.

        — Há meses que ouço dizer isso, Robert. Mas não era aos ingleses que eu me referia.

        Ele nada disse. Voltou-se e entrou no quarto, mas um momento depois saía, com o jornal na mão.

        — Leu a notícia sobre Dax com retrato e tudo na primeira página?

        — Não. Que é que diz?

        — Aquele Dax nunca endireita, — disse ele, com um sorriso. — Parece que raptou a mulher de um milionário alemão de um hotel em Nice. Quando o alemão chegou para buscar a mulher, Dax disse que não era possível, porque a casa estava protegida pelas imunidades diplomáticas.

        — Dá o nome dela?

        — Não.

        Denisonde foi até à pia e encheu uma panela de água. Depois, apanhou uma escovinha e passou-a nas batatas.

        — Por que não descasca?

        — A casca das batatas tem bons sais minerais. Além disso, são cinco batatinhas apenas. Não pude arranjar mais.

        — Oh! — disse ele, sentando-se e continuando a ler o jornal.

        Ficaram em silêncio enquanto ela trabalhava. Cortou as batatas em quatro pedaços, retalhou o carneiro em pedacinhos e juntou tudo na panela com algumas verduras que havia guardado. Pegou uma pequena cebola no armário e jogou-a dentro da panela. Pensou um momento, depois tornou a abrir a porta do armário e pegou a outra cebola que restava para jogá-la também na panela. Acrescentou sal e pimenta e cobriu a panela. Não era exatamente uma comida para gourmets mas era melhor do que nada.

        — O jornal tem duas páginas inteiras sobre a nova couture, — disse Robert. — Não quer ver?

        — Quero sim, obrigada.

        Tomou a parte do jornal que Robert lhe passou. Sentou-se numa cadeira defronte dele e leu o título no alto:

        LA PREMIÈRE PRESENTATION DE LA SAISON

        Chanel, Balmain, Dior, Prince Sergei Nikovitch

        A página estava cheia de fotografias dos novos vestidos. Olhou ansiosamente as poses dos modelos. Fechou os olhos. Paris. A época dos shows de modas.

        Era eletrizante. Podia-se ser quem fosse, princesa ou mulher de açougueiro, só se podia conversar sobre a nova moda. Os exemplares de L’Officiel passavam de mão em mão por entre exclamações e suspiros e todas davam a sua opinião a respeito dos novos estilos. Podia-se só comprar um vestido de dez em dez, mas tinha- se direito a dar opinião. E as vizinhas davam importância a essa opinião como se viesse de uma pessoa incluída na lista das dez mais bem vestidas.

        Paris era emocionante naquela época do ano. Vinham compradores do mundo inteiro. Da América do Norte e do Sul, da Alemanha, da Inglaterra, da Itália e até do Extremo Oriente. Os restaurantes, os teatros e os clubes ficavam repletos.

        Há quanto tempo ela não se via num círculo de gente alegre que soubesse rir? Os israelenses não tinham senso de humor. Era um povo soturno. Não os censurava, porém. Viviam num mundo soturno e a tarefa de construir uma nação não era nada fácil. Na verdade, não tinham muitos motivos para rir e quando riam era com um riso estranho e vazio, como se tivesse sido arrancado deles à força.

        Denisonde virou a página e um rosto conhecido lhe apareceu no centro. Conhecia a pequena, tinham estado juntas na casa de Madame Blanchette. Ela sempre disse que queria ser modelo e afinal havia conseguido.

        Em outros tempos, Denisonde tinha tido também essas ambições. Fora logo que ela havia chegado a Paris. Mas as casas de haute couture não puderam aproveitá-la. Tinha o busto muito grande. Os vestidos não lhe caíam direito no corpo. Fizera um regime desesperado, deixando de comer até ficar com o rosto encovado e grandes olheiras. Mas isso de nada havia servido. Ainda tinha busto demais para a haute couture. Afinal, conseguira emprego numa casa de lingerie. O salário era pequeno e havia dois desfiles à tarde e um à noite.

        Denisonde era muito ingênua naquele tempo. Os compradores eram todos homens e ela não via nada demais em desfilar pela sala apenas de soutien e calcinhas. Levantava os olhos para cima quando desabotoava o soutien e tirava-o para mostrar como era feito. E se por acaso um comprador mais interessado, como muitas vezes acontecia, lhe roçava a mão pelos seios, ela julgava isso um acidente normal de profissão.

        Um dia, quando já trabalhava ali havia uma semana, o patrão entrara no camarim. Ela o olhou pelo espelho diante do qual estava sentada. O soutien, o último da noite, que ela havia acabado de tirar, estava em cima da mesa. Não fez nenhuma menção de cobrir-se. Afinal de contas, era o patrão e já a tinha visto e a outras pequenas inúmeras vezes, sem uma peça de roupa no corpo.

        — Amanhã, você vai receber o primeiro pagamento.

        — Uma semana já? — murmurou ela, sorrindo.

        — Sim, uma semana.

        Mas havia alguma coisa na voz dele que a inquietou.

        — Está satisfeito com o meu trabalho?

        — Até agora, sim. Mas é preciso que você cuide também da outra parte do seu trabalho.

        — Qual é a outra parte do meu trabalho?

        — Temos um freguês muito importante esta noite. Ele quer que você saia com ele.

        — Sair com ele? Para quê?

        — Não se faça de desentendida. Bem sabe que não é de graça. Você recebe um extra de cem francos e uma comissão de 5% sobre a encomenda que ele fizer.

        Denisonde não ficou escandalizada, nem sequer ofendida. Afinal de contas, era francesa e realista. O sexo não era novidade para ela, mas até então isso ficara sempre subordinado à sua vontade. O que a surpreendia era o fato de nada lhe haverem dito na ocasião em que lhe deram o emprego.

        — E se eu não quiser sair com ele?

        — Neste caso, não adiantará aparecer para trabalhar amanhã. Não posso ter empregadas que não estejam dispostas a fazer todo o seu serviço.

        Denisonde pensou um momento e levantou-se.

        — Não, neste caso prefiro ser uma cocotte. Ganharei mais dinheiro.

        — Mas terá de ser fichada na polícia e sabe muito bem o que isso representa. Ninguém mais lhe dará um emprego decente. É a primeira coisa que se verifica.

        Denisonde nada disse. Tratou de se vestir.

        — Você está sendo uma tola, — disse o homem.

        — Não, — respondeu Denisonde, sorrindo. — Eu estava sendo tola. Agora, não sou mais.

 

        Depois disso, Denisonde não tivera mais dúvidas quanto à sua ocupação. Tinha espírito ágil e corpo esbelto. Não demorou muito a entrar em contato com Madame Blanchette. Na verdade, fora recomendada por um inspetor de polícia que lhe dissera que o fosse procurar logo que saísse da cadeia para onde ele a havia mandado.

        — Você parece uma boa pequena, —• dissera ele bondosamente. — Precisa de uma boa casa para trabalhar. É perigoso para uma pessoa tão jovem andar pelas ruas tão tarde da noite. Nunca se sabe a quem se pode encontrar.

        O cheiro da carne queimada a despertou dos devaneios. Ficou assustada e olhou para Robert que havia adormecido na cadeira com o jornal na mão. Correu para o fogão. Tirou a panela do fogo, queimando os dedos e jogou-a na pia. A panela virou derramando a carne e as batatas queimadas.

        Olhou para tudo, desolada. De repente, aquilo foi demais para ela.

        — Merde! — exclamou e desandou a chorar.

        — Que foi que houve? — perguntou Robert, entrando na cozinha. Olhou para a pia. — Ah! Deixou queimar o jantar.

        Ela o olhou com o rosto banhado em lágrimas e correu para o quarto gritando:

        — Sim, queimei a droga do jantar!

        Fechou a porta do quarto com o pé e jogou-se em cima da cama num paroxismo de choro. Robert entrou pouco depois e sentou-se na cama ao lado dela. Curvou-se e pousou as mãos nos seus ombros. Ela caiu nos braços dele e escondeu o rosto de encontro ao seu peito.

        — Oh, Robert! Quero ir para casa!

        Ele ficou em silêncio, abraçando-a.

        — Não       está vendo? Esta terra não é minha terra. Essa         gente não é como eu. Sou francesa e não é aqui o meu lugar!

        Robert continuou calado.

        — E o seu lugar também não é aqui! Você não é refugiado e não foi obrigado a vir. Você é francês também. Não nos chamaram e nem ao menos nos querem. Não fazemos senão ocupar um espaço de que outros precisam mais do que nós. Comemos até a comida deles!

        — Você está cansada, disse Robert gentilmente. — Descanse um pouco e vai se sentir melhor.

        — Nada disso! Falei a verdade e você sabe muito bem que é verdade! Se precisassem realmente de você, teriam de dar-lhe um serviço mais importante do que ser empregado num escritório de traduções. Sabe de que é que eles precisam muito mais do que precisam de nós? É de dinheiro. Dinheiro. Dinheiro para construir, para comprar comida, para comprar roupas. Você pode fazer mais por Israel no Banco de seu pai do que aqui.

        — Não posso voltar, Denisonde.

        — Por quê?

        Ele não respondeu.

        — É porque seu pai é um realista e sabe que você tem de fazer coisas de que não gosta para continuar vivo neste mundo.

        — Não é isso...

        — Então já sei! É por minha causa! É por que eu        não faço parte do seu mundo, não é?

        Ele não respondeu.

        — Não se preocupe com isso. Volte para o seu lugar. Nós nos divorciaremos. Você não precisa ter vergonha de mim. — As lágrimas lhe corriam pelo rosto. — Por favor, Robert, não aguento mais isto aqui. Quero voltar para minha terra.

        Continuou a chorar abraçada a ele. Ouviu então a voz dele, muito suave.

        — Eu te amo, Denisonde. Não chora mais. Vamos voltar para a nossa terra.

 

        Menos de seis meses depois, Denisonde olhava-se ao espelho de corpo inteiro no seu quarto na casa dos De Coynes, em Paris. Olhou-se criticamente. Era estranho como fazia diferença o lado do balcão em que se estivesse. Quando ela queria ser modelo, diziam-lhe que o seu busto era muito grande. Como cliente, afirmavam com maior convicção ainda que o tamanho do busto dela era perfeito para os vestidos que faziam. Tinha de achar graça.

        O figurinista na casa do Príncipe Nikovitch quase ficara alucinado. Dera dramaticamente uma palmada na testa e fechara os olhos.

        — Vejo perfeitamente! Uma túnica verde-escura colante, aderindo perfeitamente ao corpo. A gola alta abrindo-se no pescoço caindo numa décolletage ousada em forma de meia-lua para realçar o busto magnífico! E uma saia aberta da bainha até quase o joelho, à lá chinoise. Formidable!

        Abrira então os olhos e perguntara:

        — Que é que acha?

        — Não sei. Nunca usei verde.

        O vestido tinha sido tudo o que o figurinista havia imaginado, mas Robert é que tinha dado o toque final: a esmeralde De Coyne mundialmente famosa, uma pedra de cinquenta e cinco quilates lapidada em forma de coração, cercada de brilhantes retangulares e suspensa de um fio simples de platina. A esmeralda brilhava naquele momento sobre os seus tons dourados de pele bem no centro da décolletage entre os seus seios. Até os olhos fulvos pareciam refletir o seu rico verde.

        De repente, Denisonde se sentiu nervosa. Afastou-se do espelho e olhou para a cunhada, que estava sentada num pequeno pufe atrás dela. Os rumores da festa já em andamento subiam até ali.

        — Não sei o que é que há comigo. De repente, estou com medo de descer.

        — Não deve ter medo, — disse Caroline, rindo. — Ninguém vai devorá-la.

        Denisonde olhou para ela com toda a franqueza.

        — Você não compreende. Alguns desses homens já estiveram comigo. Que é que eu vou dizer quando olhar para eles? Ou para as mulheres deles?

        — Mande-os todos para o inferno! Poderia contar-lhe coisas que fariam você parecer uma inocente.

        — Talvez, mas essas coisas não foram feitas por dinheiro.

        Caroline levantou-se.

        — Venha cá. Olhe para o espelho. Sabe o que essa esmeralda significa?

        Denisonde sacudiu a cabeça.

        — Minha mãe usou essa esmeralda e minha avó antes dela e antes minha bisavó. Nenhuma mulher a usou sem que fosse ou estivesse para ser a Baronesa de De Coyne. Quando meu pai entregou essa esmeralda a Robert para lhe dar, isso foi o fim do seu passado no que nos diz respeito. E não haverá lá embaixo ninguém que não saiba disso!

        Denisonde sentiu lágrimas nos olhos.

        — Robert nunca me disse isso.

        — Robert não lhe diria. Deu tudo por encerrado e assim farão todos.

        — Vou chorar!

        — Não faça isso! Vamos descer antes que você estrague essa maquilagem que deu tanto trabalho!

 

        O Barão passou por entre os convidados e se aproximou de Denisonde.

        — Posso dançar com você, ma filie?...

        Denisonde fez sinal afirmativo com um sorriso. Ele a tomou pela mão e levou-a para o salão. A orquestra começou a tocar uma valsa lenta.

        O Barão sorriu, começando a dançar.

        — Está vendo? Os músicos são bem ensinados. Estão mostrando o devido respeito pela minha idade.

        — Neste caso, deviam tocar uma dessas novas danças americanas bem vivas.

        — Para mim? Não. Como é? Está gostando da festa?

        — Muito! Parece um sonho. Nunca pensei que o mundo pudesse ser assim. — Beijou-lhe o rosto. — Obrigada, mon père.

        — Não         me agradeça. Foi       você que fez tudo possível. Você me devolveu meu filho. Robert está bem?

        — Está falando dos entorpecentes?

        — Sim.

        — Isso está acabado. Não foi fácil para Robert. Passou mal durante muito tempo, mas isso terminou.

        — Felizmente. É outra coisa que devo agradecer-lhe.

        — A mim, não, aos israelenses. São muito severos nessas coisas e foram eles que o puseram bom.

        Estavam perto da porta da biblioteca e o Barão saiu com ela do salão.

        — Entre aqui que eu quero dar-lhe uma coisa.

        Denisonde acompanhou-o, cheia de curiosidade. O Barão abriu uma gaveta da mesa, tirou alguns papéis e entregou-os a ela.

        — Isso aí é seu.

        Denisonde olhou. Estava tudo ali — as fichas da polícia, os atestados médicos, o registro das suas prisões.

        — Como conseguiu tudo isso?

        — Comprei. Agora, o seu nome não consta em lugar algum.

        — Mas por quê? Isso deve ter custado muito caro!

        Sem responder, ele tomou os papéis da mão dela e encami- nhou-se para a lareira. Jogou tudo no fogo e ficou vendo os papéis queimarem-se.

        — Eu queria ver isso, — disse ele. — Aquela Denisonde desapareceu para sempre.

        — Será? E quem foi que ficou? Quem sou eu?

        — Minha nora e mulher de Robert, pessoa de quem muito me orgulho.

 

        Robert desceu o corredor e entrou no escritório do pai.

        — Não vale a pena! — exclamou ele.

        — Por que diz isso, Robert?

        — Eu estive lá. Já se esqueceu de que eu vivi naquele país? Por mais importante que seja o projeto, Israel nunca poderá pagar essa rede de irrigação através do deserto. Nunca mais veremos o nosso dinheiro.

        — Escute, Robert. Você acha o projeto possível?

        — Oui.

        — E necessário?

        — Também, mas não é isso o que eu estou discutindo. Estou pondo em dúvida é o aspecto econômico.

        — Às vezes, é bom negócio para um banqueiro investir dinheiro em coisas que não mostram um lucro imediato, — disse o Barão. — É essa uma das responsabilidades da riqueza, providenciar para que dela resulte algum benefício para todos.

        Robert olhou para o pai com curiosidade.

        — Isso não reflete uma mudança bem radical de atitude da sua parte?

        — Talvez, — disse o pai sorrindo. — Do mesmo modo que as suas objeções refletem em você uma mudança de atitude.

        — E a responsabilidade que tem para com o resto da família? Não foi essa a razão que deu para salvar as empresas de Von Kuppen?

        — Tudo se entrosa para o mesmo resultado, Robert. Se não tivéssemos feito o que fizemos, outra pessoa teria colhido os resultados. É o dinheiro que ganhamos no caso de Von Kuppen que torna o projeto de Israel possível.

        — Quer dizer então que não está interessado em ganhar dinheiro nesse projeto?

        — Não disse isso. Como banqueiro, devo estar sempre interessado em ganhar dinheiro. Mas o dinheiro por si só não é no caso o motivo principal.

        — Mas aceitaria os lucros se eu lhe mostrasse como é possível consegui-los?

        — É claro. Que é exatamente que você tem em vista?

        — A Companhia de Navegação Campion-Israel. Estamos querendo deixar de atender o pedido que ele nos fez de financiamento porque Marcel é muito ambicioso e quer ficar com todos os lucros.

        — Exatamente, — disse o Barão. — O nosso amigo Marcel quer açambarcar tudo o que aparece. Em pouco mais de um ano, já tem quase mais navios do que o sogro e certamente muito mais do que os gregos. Mas os navios dele estão tão empenhados como garantia de tanta coisa que é de recear que qualquer nova aquisição faça tudo rolar por água abaixo.

        — Certo, mas se os lucros da linha israelense não fossem desviados para as outras companhias, não haveria dinheiro bastante para cobrir o déficit operacional do projeto de irrigação?

        — Haveria, sim, mas não bastante como você diz. A margem poderia ser muito estreita.

        — Se juntássemos os dois projetos num só e emprestássemos o dinheiro a Israel a, digamos, meio por cento em vez dos habituais 5% ou 6%, não haveria dinheiro suficiente para ambos?

        — Claro que sim.

        Robert sorriu.

        — E se Marcel não concordar? — perguntou o pai. — É provável que nessas condições ele deixe de ter lucros.

        — Podemos perguntar-lhe. Se ele quer tanto os navios quanto o senhor pensa, aceitará. Poderá encontrar alguém mais disposto a financiá-lo?

        O Barão olhou com admiração para o filho. Era uma ideia basicamente boa e se desse resultado iria beneficiar muito Israel.

        — Marcel está em Nova York, Robert. Por que não vai até lá conversar com ele?

        — Irei, sim. Acho que Denisonde vai gostar. Nunca esteve lá.

        O Barão viu o filho sair. Pegou um papel para examinar mas não pôde concentrar-se. Estava ficando velho. Quando era mais moço, até pouco anos antes, teria percebido imediatamente aquela possibilidade. Talvez estivesse cm tempo de pensar na aposentadoria.

        Não era que se sentisse cansado. Era que havia carregado o peso por muito tempo. Ou talvez sentisse que só lhe sabia ficar na atividade até ter certeza de que havia alguém capaz de tomar-lhe o lugar. Como o pai dele fizera um dia.

 

        A multidão prorrompeu em aclamações antes mesmo que a grande limusina preta houvesse parado diante do palanque decorado de bandeiras. Um homem fardado, um capitão, prontamente saltou para abrir a porta. Viu-se de relance um joelho vestido de seda e Amparo desembarcou com o sol a brilhar no ouro dos seus cabelos.

        — La princesa! La princesa! — gritava o povo delirantemente.

        Amparo ficou a olhá-lo quase com timidez e sorriu para eles. Uma menina correu para ela e lhe entregou um buquê de flores. Beijou carinhosamente a criança, ao mesmo tempo que murmurava “Mil gracias” Foi então cercada pelas autoridades e escoltada até o palanque, onde tomou posição em frente a uma bateria de microfones. Esperou pacientemente que os fotógrafos acabassem de bater as chapas e que os gritos da multidão começassem a diminuir. Quando afinal falou, a sua voz foi baixa, suave e quente de tal modo que parecia que ela falava ao ouvido de cada qual.

        — Meus filhos. Campesinos!

        Começaram de novo a gritar com entusiasmo. Não era ela deles mesmo? O pai dela não descera das montanhas para assumir o seu alto cargo? E não vivia ela constantemente preocupada com os camponeses e os trabalhadores, com o homem do povo? Era ela quem providenciava para que houvesse escolas para seus filhos, hospitais para os seus doentes, comida para os inválidos e cuidado e respeito com os velhos.

        Ainda naquele momento estava diante do magnífico edifício branco e cintilante que tinha dado emprego a tantos deles durante a sua construção e garantiria subsistência de muitos mais quando estivesse funcionando. Ainda mais, o terreno onde estava o maravilhoso hotel, que pertencia a ela e pelo qual poderia receber bom dinheiro do arrendamento, ela também o tinha dado a eles. Era pois bem pequena honra para quem tinha feito tudo isso, para quem tinha dado tanto, ter o nome daquele novo hotel, La Princesa.

        Amparo levantou a mão e as aclamações cessaram. Ela os olhou sem que os olhos sequer pestanejassem ao quente e forte sol. O microfone lhe ampliava a voz baixa e rouca num sussurro íntimo.

        “Este é um dia de que todos nós podemos ficar orgulhosos. Um dia de que todo o Corteguay pode ter orgulho. É um dia que marca um novo início de prosperidade para a nossa amada pátria!”

        Começaram a aclamar e ela de novo pediu silêncio.

        “Estou aqui diante do povo como um símbolo. Um símbolo da verdadeira humildade e da grande modéstia de meu amado pai, cujo trabalho e cuja preocupação com o povo não lhe permitem abandonar a sua labuta!”

        Dessa vez deixou-os gritar à vontade.

        — El Presidente! El Presidente! El Presidente!

        Quando os aplausos cessaram, ela recomeçou.

        “Amanhã, este hotel começará a funcionar. Amanhã, três grandes aviões dos Estados Unidos descerão no nosso aeroporto e um grande navio lançará ferros no porto. Todos trarão visitantes dos países do norte. Vêm gozar as maravilhas e belezas da nossa terra. Devemos dizer-lhes “Bienvenidos”.

        “São os mesmos turistas que levaram riquezas aos nossos vizi- nhos. Cuba e Panamá. Trazem agora a sua riqueza para nós e nós devemos partilhar a nossa riqueza com eles. A felicidade de cada um é um dever sagrado. Queremos que eles levem para a sua terra a mensagem da beleza e da bondade da nossa querida terra e do seu povo.”

        “Devemos demonstrar que a nossa amada pátria, o Corteguay, é uma terra gloriosa, um país pronto a tomar o lugar que lhe cabe na comunidade mundial.”

        O povo voltou a dar vivas. Ela sorriu e levantou a mão.

        “Isso será amanhã — amanhã o hotel estará aberto para eles. Mas hoje está para nós. Todos nós, todos vocês, podem entrar e ver as maravilhas que fizeram graças à fé e à confiança que meu pai tem no seu povo!”

        Calou-se e voltou-se para a fita que estava estendida na entrada do hotel. Alguém lhe entregou uma tesoura, que brilhou um instante ao sol enquanto ela a erguia. De repente, baixou a mão e a fita foi cortada caindo ao chão. Com um só clamor, a multidão se encaminhou para o hotel. A confusão foi grande até que duas filas de soldados formaram a porta do hotel       e obrigaram todos a ficar em ordem para a visita.

        Dax ficou na plataforma enquanto os dignitários e autoridades se despediam e então encaminhou-se para Amparo. Ela estava sozinha, sem contar os soldados que formavam a sua guarda pessoal, os quais nunca a abandonavam.

        — Você se saiu muito bem, — disse ele ao lado dela. — Muito bem mesmo.

        Ela se voltou com um sorriso       cortês nos lábios mas,       quando viu que era Dax, o sorriso se tornou ardente e pessoal.

        — Dax! Não sabia que estava aqui!

        — Cheguei ontem à noite, — disse ele, beijando-lhe a mão. — Você falou muito bem.

        — É prática, sabe?

        Dax olhou para o hotel e perguntou:

        — Não vai lá dentro?

        — Com essa multidão? Só se eu fosse maluca! Não posso suportar essa gente. Foi bom mandarmos soldados para aqui, senão o povo ia despedaçar tudo. Essa gente não tem consideração por coisa alguma.

        — Você não mudou, Amparo. Continua a ser sincera.

        — Por que iria mudar? Você mudou?

        — Acho que sim. Estou mais velho, conheço mais a vida.

        — Ninguém muda, embora pense o contrário. Ainda somos as mesmas pessoas que éramos quando descemos juntos das montanhas.

        — Parece revoltada.

        — Não sou revoltada. Sou apenas realista. As mulheres são mais positivas do que os homens. Novos aeroportos, novas estradas e novos edifícios não nos impressionam.

        — Que é que a impressiona?

        — Você.

        — Eu?

        — Sim. Você fugiu daqui. Para você o mundo não é apenas o Corteguay. Agora, escute, eu preciso de beber alguma coisa. Estou com dor de cabeça de ter ficado tomando todo aquele sol.

        — O bar do hotel já está aberto.

        — Não, venha ao palácio comigo. Lá será mais confortável. A não ser que tenha alguma coisa melhor para fazer,

        — Não, Princesa, — disse ele, sorrindo. — Nada tenho de melhor para fazer.

        Fazia calor dentro do carro e ele se inclinou para descer o vidro.

        — Não, — disse ela. — Primeiro vamos sair do meio da multidão. Ainda há lobos em tomo de nós.

        Dax se recostou nas almofadas, pensando. Talvez ela tivesse razão. As pessoas não mudavam.

        O rosto do homem magro e jovem que estava perto do palanque não mostrava qualquer indício dos seus pensamentos no momento em que ele viu a grande limusine preta afastar-se por entre o povo.

        Eu podia ter matado os dois, pensou ele, quando passaram por mim e os soldados estavam olhando para o outro lado. Poderia ter matado os dois como mataram meu pai. Sem piedade e de emboscada.

        Meteu a mão por dentro do paletó e sentiu dentro do cinto o revólver. Tirou prontamente a mão e meteu-a no bolso para não se trair. Ainda perdido nos seus pensamentos, juntou-se à multidão que se dirigia para o hotel.

        Mas que é que me adiantaria matá-los? Os soldados me matariam e tudo o que vim fazer ficaria por fazer. O Presidente ficaria para sempre no poder. Não foi para isso que fui estudar na escola do outro lado do mar.

        Parou à porta e olhou na direção das montanhas. Amanhã começarei a minha jornada de volta para casa. Para a terra de meu pai para o povo de meu pai. Ouvirão a minha mensagem. Saberão que não estão sozinhos, que não estamos sozinhos e acreditarão.

        Quando as armas chegarem, será chegado o momento de dar morte aos assassinos de meu pai. E eles saberão que quem os matou foi o filho de El Condor.

        Estava tão mergulhado nos seus pensamentos que não notou os dois homens que o seguiam. Quando afinal notou, já era tarde. Estava dominado.

        — São os comunistas! — exclamou o Presidente, cuspindo no chão de mármore. — São eles os culpados dessa nova agitação nas montanhas! São eles que estão mandando armas, dinheiro e guerrilheiros. Não se passa uma noite sem que mais um deles cruze as nossas fronteiras!

        — Se tivéssemos resolvido antes os problemas dos bandoleros, não teríamos essa dificuldade agora.

        — Dax, você não está sendo inteligente! Acha que é só essa explicação? Eu desejaria que fosse, mas não é mais. A doença se espalhou pelo mundo inteiro. Não é só em nosso país. É o Brasil, a Argentina, Cuba... Na Ásia, é no Vietnam, a Coréia...

        — Já há trégua na Coréia há quase um ano, — disse Dax. — Os Estados Unidos e a Rússia retiraram as suas tropas.

        — Não tenho a vantagem dos seus conhecimentos internacionais, — disse o Presidente ironicamente. — Mas conheço bastante os usos do poder para compreender que a trégua na Coréia não irá até o fim deste ano. Quanto tempo acha você que os norte-coreanos continuarão de braços cruzados vendo os seus irmãos do Sul enriquecerem e engordarem nos vales abaixo do paralelo 38 enquanto eles passam fome nas montanhas?

        Dax não respondeu.

        — Ainda hoje de manhã a minha polícia prendeu um moço que voltou para o país depois de haver feito um curso na Rússia. Estava a menos de um metro de Amparo quando ela fazia o seu discurso. Estava armado com um revólver. Foi mandado para assassiná-la.

        — Mas não atirou. Por quê?

        — Sei lá! Talvez por covardia, com medo de ser morto também. Pode ter havido mil razões.

        — Que é que vai acontecer ao homem?

        — Se cooperar e nos der informações, viverá. Do contrário...

        Virou-se e voltou para a sua mesa.

        — Daqui a três semanas o nosso pedido de ingresso nas Nações Unidas será de novo discutido. Desta vez, será aprovado. As potências ocidentais não poderão continuar a alegar a nossa neutralidade na guerra. Agora, enfrentamos todos um inimigo comum.

        — Não será fácil. A Rússia vai vetar.

        — Ora, quando começar a guerra na Coréia, a Rússia não terá coragem de exercer esse veto em face da opinião mundial. É então que devemos estar preparados. Você terá de informar às Nações Unidas que estamos em condições de colocar três batalhões à sua disposição. — Pegou uma folha de papel e entregou-a a Dax. — Enquanto isso, está aqui a sua nomeação como coronel do exército.

        — Para que, Presidente?

        — Vou mandar Amparo fazer uma visita aos Estados Unidos. Numa — como é que vocês dizem? — missão de boa vontade? Você chefiará a delegação.

        — Ainda assim, não vejo razão para o posto.

        Um riso manhoso se espalhou pelo rosto do velho.

        — Não há nada como uma farda para fazer uma mulher parecer mais feminina e mais frágil.

 

        — La Princesa telefonou duas vezes, — disse Gato Gordo. — Diz que precisa de ver você imediatamente.

        — Disse o que queria?

        — Não. Deve ser o de sempre.

        Dax franziu a testa enquanto tirava a túnica: do seu uniforme de coronel. Tinha sido aquilo a viagem toda. Amparo exigia constante atenção. Começou a tirar a gravata.

        — O correspondente do Times de Londres esteve aqui?

        — Saiu há quase uma hora. Amparo começou a telefonar no instante em que ele saiu.

        — Ligue para ela e diga que eu irei logo depois de tomar um banho.

        Dax tirou a camisa. Entrou no quarto e foi-se despindo pelo caminho.

        Deixou a água quente cair-lhe pelo corpo. Sentiu pouco a pouco as tensões se atenuarem. O congressista do Sul que era pessoa tão influente na Comissão de Assuntos Exteriores não era de trato fácil. Se não fosse Jeremy Hadley, teria sido impossível conseguir alguma coisa.

        Mas Jeremy tinha um jeito, uma espécie de ingenuidade declarada que dissimulava a sua hábil mentalidade política. Com delicadeza, com infinita delicadeza, conseguiu insinuar a ideia de que os privilégios de que gozava no Corteguay o sindicato do petróleo do Texas poderiam ser facilmente cancelados. Tinha certeza de que isso não iria acontecer, é claro, mas era uma possibilidade. Por outro lado, o Corteguay era o único país da América do Sul que nada havia pedido aos Estados Unidos no seu programa de ajuda externa. O que o país conseguira fazer fora feito por si mesmo e isso o tornava muito independente.

        O congressista não se deixara embrulhar. Percebera perfeitamente a insinuação. Além disso, agradava-lhe a ideia de que o Corteguay não houvesse feito pedidos aos Estados Unidos. Disse que era muito confortador encontrar um país que preferisse contar apenas consigo mesmo dentro da       grande tradição das Américas. Dax tinha certeza de que o congressista não se esquecia um só momento das grandes contribuições para a sua campanha que os seus amigos do sindicato do petróleo do Texas já haviam feito ou prometido. De qualquer maneira, o encontro tinha sido muito satisfatório. O congressista iria propor ao Departamento de Estado que os Estados Unidos apoiassem o pedido de ingresso do Corteguay na ONU.

        Dax estava tão absorvido nos seus pensamentos que não ouviu a porta do banheiro se abrir. Só teve conhecimento da presença de Amparo quando lhe ouviu a voz.

        — Que é que está fazendo? — perguntou ela, irritada.

        — Estou tomando um banho, — respondeu ele de trás das paredes de vidro fosco do chuveiro. — Que diabo pensou você que eu estivesse fazendo?

        — No meio da tarde?

        — Que mal há nisso?

        — Você esteve com uma       mulher. E foi com aquela alemã.

        — Não seja boba.

        — Eu vi como ela estava olhando para você na hora do almoço.

        Fechou a torneira, aborrecido. Não adiantava explicar a Amparo que a alemã estava era com Jeremy Hadley.

        — Deixe de proceder como uma campesina ciumenta. Há outros motivos para se tomar banho à tarde. Estamos nos Estados Unidos e aqui há água em abundância.

        Abriu a porta do box, pegou uma toalha, embrulhou-se nela e saiu.

        Amparo estava a olhá-lo da porta. Pegou outra toalha e começou a enxugar-se. Pelo espelho, viu que a raiva ia desaparecendo dos olhos dela e perguntou:

        — Que tal foi a entrevista?

        — Tudo bem, mas você devia estar lá. Nunca me sinto bem com os jornalistas quando estou sozinha. Parecem tão... superiores.

        — Todos os jornalistas parecem superiores. Acho que fazem isso de propósito para que a gente pense que eles sabem mais do que realmente sabem.

        — E você? Que foi que fez?

        — Tive a conferência com o congressista americano de que lhe falei.

        — Correu tudo bem?

        — Correu.

        Houve uma pausa e ela murmurou:

        — Gostaria de um drinque.

        — Peça a Gato Gordo. Ele preparará o que você quiser.

        — Que foi que nós tomamos antes do almoço? Aquele coquetel. Gostei daquilo.

        — Martini seco.

        — Muito bom. Esses gringos sabem fazer boas bebidas. Não é como em nossa terra, onde só se gosta de beber aguardente pura.

        — Tenha cuidado com essas bebidas, que são muito fortes. Descem com facilidade, mas turvam a cabeça e desatam a língua.

        — Tomei três no almoço, — disse ela. — Não me fizeram mal. Ao contrário, senti-me muito bem.

        Amparo saiu da porta. Dax acabou de enxugar-se, vestiu um robe e atravessou o quarto, chegando à sala do apartamento. Amparo estava à janela com um coquetel na mão, olhando para Park Avenue.

        — Quanta gente! — disse ela, voltando-se.

        — Só Nova York tem três vezes a população de todo o Corteguay.

        — Vivem e trabalham juntos. Não há guerra aqui, não há bandoleros nas montanhas.

        — Como nós, não, mas eles têm também os seus problemas.

        Os criminosos aqui são sociais e não políticos.

        — Todos aqui têm automóvel, até os mais pobres, — murmurou Amparo. — Nem o México, que eu pensei que era muito rico, é assim. Este país é muito rico. Estou começando a compreender meu pai quando diz que o nosso caminho será muito comprido. Posso tomar outro martini?

        — Sou seu acompanhante e não sua dueña.

        Quando Gato Gordo chegou com outro coquetel, ele disse:

        — Convém não beber demais. Temos um jantar importante hoje e não daria boa impressão você começar a dormir no meio da comida.

        — Não vou dormir, — disse ela um tanto irritada e com o rosto vermelho.

        — Vou fazer uma pequena sesta. Acho que deve fazer o mesmo. Iremos dormir bem tarde nesta noite.

        — Não estou com sono.

        — Como quiser. Com licença, Alteza?

        — Não tem necessidade de ser irônico, — disse ela, acompanhando-o até ao quarto.

        Ele sentou-se na cama.

        — Não estou sendo irônico. Estou apenas cansado.

        Ela o viu estender-se na cama e tomou outro gole do coquetel.

        — Você esteve com aquela alemã hoje à tarde!

        Ele riu.

        — Viu? Eu bem que lhe avisei do coquetel. Você já está começando a ficar com a língua solta.

        — Conheço você muito bem! — disse ela, aproximando-se da cama e com o rosto completamente afogueado. — Se você não tivesse estado com uma mulher, não me deixaria ficar assim como estou!

        — Como é que você me conhece?

        — Leio os jornais estrangeiros. Não são como os do Corteguay que não podem publicar nada contra você. Sei que você andou metido com muitas mulheres!

        — E daí?

        Inesperadamente, Amparo começou a chorar e ficou ainda mais irritada.

        — E eu? Não sou mulher? Tenho alguma coisa de errado?

        — Você é muito mulher e nada tem de errado. Mas...

        — Mas o quê?

        — Seu pai confiou você a mim. É uma questão de honra. Que

        pensaria ele se eu fosse trair essa confiança?

        — Não está falando a sério, está?

        — Claro que estou!

        — Meu pai tem razão. Você é o melhor diplomata que o Corteguay já teve.

        — Que quer dizer com isso?

        — Você sabe muito bem o que eu quero dizer! Para que acha que meu pai nos mandou fazer essa viagem juntos senão com a esperança de que nos entendêssemos?

        Aquilo ainda não havia ocorrido a Dax. Mas estava bem de acordo com os processos tortuosos do velho bandolero. Uma atitude direta seria simples demais para ele.

        — Está tudo acabado entre nós, — disse Dax. — Ele sabe muito bem disso.

        — Então é esse o motivo? Você nunca me perdoou o que aconteceu!

        — Não havia nada que perdoar.

        — Eu não queria enganá-lo. Foi meu pai que insistiu. Pela minha vontade, eu lhe teria contado tudo.

        — Não tem importância...

        — Tem, sim. Não tinha importância naquele tempo, mas agora tem. Para mim, nunca houve ninguém senão você, Dax. Mas eu era muito jovem e você nunca mais que voltava. Gostei de um homem que me lembrava você e meu pai mandou matá-lo. Depois que você partiu, não houve mais nada, não houve mais ninguém. Quando soube do seu casamento, passei uma noite inteira chorando.

        — Não é preciso me dizer tudo isso.

        — Tenho de dizer! — replicou ela, quase com aspereza. — Quanto tempo ainda devo ser punida? Quanto tempo ainda tenho de sofrer a dor de você pensar que eu tentei enganá-lo?

        Ele nada disse.

        Ela se ajoelhou ao lado da cama. Deixando no chão o copo de coquetel vazio, abriu-lhe o robe. Dax sentiu os beijos breves e ardentes por todo o seu corpo.

        De repente, pegou-a pelos cabelos e voltou-lhe o rosto para ele.

        — Amparo, não é a bebida dos gringos que está fazendo você fazer isso?

        — Não, não é a bebida, — respondeu ela em voz baixa, quase tímida, — nem é meu pai. É por mim mesma. Ele nunca saberá.

        Ele ainda a olhava, exigindo a verdade.

        Há alguns minutos, você disse que estava tudo acabado entre nós, Dax, mas está enganado. Nunca chegou a começar. — Tirou-lhe a mão do rosto e beijou-lhe carinhosamente a palma. — Agora é que está começando.

 

        Marcel pegou o telefone em cima da sua mesa e ligou para o escritório no centro da cidade. A secretária atendeu imediatamente.

        — Alguma coisa especial hoje de manhã? — perguntou ele.

        — Não, Sr. Campion. Deixei a manhã livre, como o senhor determinou.

        — Muito bem. Devo voltar antes do almoço.

        — Se houver alguma coisa, posso procurá-lo no escritório do Sr. Schacter?

        — Não. Não quero ser perturbado lá.

        Marcel desligou e desceu, saindo pela sua porta particular, onde o seu carro e o chofer estavam esperando. Parou um momento e olhou para a casa. Teve uma sensação de orgulho. Era uma das últimas casas decentes de Park Avenue e, além do mais, ficava numa esquina.

        Felizmente, não era suficientemente grande para uma embaixada pois neste caso o preço seria proibitivo. Ainda assim, era grande demais para ele. Treze peças. O corretor havia rido meio embaraçado.

        — Há quem diga que dá azar.

        Marcel havia rido, lembrando-se os jogadores que conhecera e que tinham predileção especial pelo número 13. Para ele, este número ou aquele era tudo a mesma coisa.

        — Não me importo. Não sou supersticioso.

        O negócio fora fechado e ele se havia mudado antes mesmo que os operários terminassem a reforma. Estava ansioso para mudar-se do hotel onde tinha ido morar antes de separar-se da mulher. Tinha a impressão de que muitos dos seus assuntos particulares chegavam aos ouvidos do sogro e da mulher. Os empregados de hotel eram sempre muito vulneráveis ao suborno.

        Outra coisa de que ele gostava era a entrada particular. Se quisesse, podia ir diretamente para os seus aposentos sem passar pelo resto da casa. Era muito útil quando não queria que os empregados soubessem das suas idas e vindas ou ficassem a par da identidade das pessoas que recebia.

        Marcel não tinha ilusões a seu respeito. Não se tomara de repente mais simpático apenas porque o seu nome aparecia constantemente nos jornais. Era pura e simplesmente o dinheiro. Era espantosa a diferença que o seu dinheiro fazia na sua atração para as mulheres.

        Ana, o pai e os advogados já estavam à sua espera quando ele chegou ao escritório do advogado.

        — Bom dia, — disse ele cordialmente.

        Ana não respondeu. Olhou-o apenas com um rosto carrancudo que fazia mais acentuada a sombra do lábio superior, que persistia apesar da complexa e dispendiosa eletrólise. Amos Abidijan resmungou alguma coisa ininteligível. Os dois advogados apertaram- se as mãos e Marcel sentou-se.

        Olhou para o advogado interrogativamente. Schacter pigarreou e disse:

        — Achei melhor esperar a sua chegada.

        — Muito obrigado, — murmurou Marcel.

        — Comecemos então.

        Schacter olhou-os. Aquilo tudo era coisa comum para ele. Os ricos e os seus divórcios. O dinheiro era sempre a grande complicação. Por mais que houvesse dinheiro, nunca chegava para dois. Ou o marido ou a mulher, havia sempre um que queria ficar com a parte do leão.

        — Costumo sempre tentar promover uma reconciliação, — disse ele, — mas todos sabemos que as coisas já chegaram a um ponto em que qualquer esforço dessa natureza não teria qualquer resultado prático.

        Esperou um momento e continuou:

        — Assim sendo, o que temos de fazer é procurar o melhor meio de chegar a um acordo entre as partes de um divórcio que tenha os efeitos menos prejudiciais possíveis para os filhos do casal. Para isso, o meu cliente, em vista do grande amor que tem aos filhos, está disposto a concordar com qualquer solução razoável que assentarmos. Não deseja ver as crianças envolvidas numa longa disputa judiciária.

        — Nada há que o seu cliente possa fazer que afete as crianças, — disse um dos outros advogados. — Não se pode nem pôr em dúvida que a Sra. Campion sempre foi uma esposa e uma mãe exemplar.

        Schacter sorriu simpaticamente.

        — De fato, não podemos discutir isto, pelo menos aqui. Contudo, se o caso for a juízo, seremos forçados a agir de maneira completamente diversa, sejam quais forem os nossos sentimentos. Deve compreender isso.

        Amos Abidijan não pôde mais ficar calado.

        — E o dinheiro que ele me deve?

        — Que dinheiro? Tanto quanto sei, o meu cliente nada lhe deve.

        — Foi com o meu dinheiro que ele iniciou os seus negócios. Estávamos trabalhando juntos na transação e ele de repente roubou-a para si só.

        — Não é verdade, — replicou prontamente Marcel. — Sabe muito bem que recusou a minha proposta. Foi você mesmo que sugeriu que eu procurasse financiamento com outras pessoas. Não quis participar da transação.

        Por favor, cavalheiros, — disse Schacter, levantando as mãos. — Uma coisa de cada vez. Não é isso que está em discussão neste momento.

        — Não é possível separar uma coisa da outra! — exclamou Abidijan exasperado. — Ele usou minha filha. Usou a mim. Acha agora que pode jogar minha filha fora porque já conseguiu o que desejava. Não concordaremos com coisa alguma enquanto essa questão não estiver resolvida.

        — Por outras palavras, Sr. Abidijan, — disse Schacter, — o divórcio do Sr. Campion e de sua filha depende de um acordo financeiro com o senhor, é isso?

        — Não foi isso que eu disse! Só me interessa é ver minha filha e meus netos suficientemente protegidos. Para mim, nada quero.

        — Não teria então objeções a que se chegasse a um acordo que visasse apenas ao benefício deles?

        — Não, não teria objeções.

        — Nem nós, — apressou-se em dizer Schacter. — Agora que estamos de acordo em princípio, podemos começar a tratar dos fatos. O senhor tem ideia do que poderia ser considerado uma solução justa?

        — É muito simples, — disse Abidijan, antes que os seus advogados pudessem falar. — Um pagamento imediato de cinco milhões de dólares para cobrir todos os débitos passados e, depois disso, uma divisão de todos os bens na base de 50% para cada lado.

        Marcel se levantou. A exigência não o surpreendia. Mas era absurda e Amos sabia disso. Não tinha tanto dinheiro e ainda que tivesse não poderia concordar. Olhou para o sogro e disse calmamente:

        — Amos, você está completamente caduco. — Voltou-se para Ana. — Aconselho-a a nomear um curador para seu pai antes de nos encontrarmos de novo.

        Ana olhou-o.

        — Não é meu pai que está louco e sim você com a sua sede de dinheiro e de poder. Que acha que todas essas mulheres que o estão cercando querem? Você não é tão bonito assim. Que está querendo provar?

        Marcel voltou-se para o seu advogado.

        — Não lhe disse que esse encontro seria inútil? Vou intentar a ação de divórcio no Corteguay como pretendia a princípio.

        — Não seria reconhecido aqui, — disse um dos advogados de Ana.

        — Acho que seria, — replicou Schacter. — O meu cliente é cidadão do Corteguay e, de acordo com as leis do país, sua mulher e seus filhos também são. As nossas leis são muito claras a esse respeito. Qualquer divórcio válido no país dos participantes é válido aqui também.

        — A Sra. Campion é cidadã americana.

        — De acordo com as leis do Corteguay, não. E estou disposto a discutir isso em juízo depois que o meu cliente obtiver o divórcio.

        Abidijan olhou para os seus advogados. Era uma coisa com que ele não havia contado. E ele conhecia bastante as leis de outros países em virtude de questões com os seus navios para saber que tudo era possível.

        Gostaria de conversar em particular com os meus advogados.

        Schacter levantou-se.

        — Não se incomodem. Eu e o meu cliente iremos para outra sala.

        Marcel olhou para Schacter quando chegaram à outra sala.

        — Que é que acha?

        — Farão o que nós quisermos. Só espero é que a informação que me deu sobre as leis do Corteguay esteja certa.

        Marcel sorriu.

        — Se não estiver, poderei conseguir a legislação necessária. Custaria muito menos do que atender às exigências de Amos.

 

        — Irei a Paris comprar o meu vestido de noiva, — disse Amparo, — e depois eu e Dax daremos um grande passeio pela Europa.

        — Você não irá para lugar algum, — disse calmamente o Presidente, — O seu vestido será feito aqui, como foi o de sua mãe.

        Amparo aproximou-se da mesa e perguntou:

        — Que       vestido de minha mãe? Ela e o senhor nunca se casaram.

        — Não tem nada uma coisa com outra. Sua mãe nunca foi comprar vestidos em Paris.

        — Não foi porque não podia. O senhor tinha medo até de que ela pusesse a cabeça na janela, achando que ela ia deixá-lo.

        — Pode chamar um costureiro. Mas você não sairá daqui. Tem muito o que fazer...

        — Já fiz demais! Agora, quero ver como é o resto do mundo. Não quero passar o resto da vida aqui fuçando na lama com os campesinos.

        — Não se esqueça de que deve a sua posição aos campesinos! Quem foi que lhe deu o título de Princesa?

        — Foram eles.

        — Quem apontou você como exemplo para as mulheres do Corteguay? Os campesinos.

        — E tenho por isso de passar o resto da vida sendo grata a eles?

        — Exatamente. Você não pertence a si mesma. Pertence ao povo.

        — É o mesmo que estar numa prisão. Mas acha que posso ficar enquanto meu marido andará solto pelo mundo?

        — Claro. Ele tem um dever para cumprir do mesmo modo que você tem o seu.

        Amparo começou a rir.

        — Não deve estar no seu juízo perfeito. Sabe muito bem que espécie de homem ele é. As mulheres não lhe dão descanso. Num jantar em Nova York, das doze mulheres presente, onze tinham estado na cama com ele.

        — Foi ele que lhe disse isso? — perguntou o Presidente.

        — Claro que não. Mas eu não sou tola e sei da maneira pela qual uma mulher olha para um homem se já esteve com ele.

        O Presidente pensou por um momento e perguntou:

        — E a décima segunda? Que tal era ela?

        — Velha, velha demais!

        — Você é uma louca. Esse casamento será bom para você. Sabe o que o povo pensa de Dax. Todos o adoram como a você.

        — Não, não será bom. Nem para mim, nem para ele. Somos muito parecidos. Somos muito materiais.

        — Não fale assim! — exclamou ele, rispidamente. — Lembre-se de que é uma dama!

        — Não poderia ser, pois tenho b seu sangue. Na sua idade, quase todos os homens gostam de ficar à noite calmamente em casa, fumando o seu charuto e tomando o seu conhaque. Mas o senhor não. Tem de ter uma nova mulher todas as semanas!

        — Os homens são diferentes.

        — Diferentes por quê? Por que pensa que eu não sou igualzinha a minha mãe? E o senhor sabe como ela era.

        Ele ficou em silêncio durante um momento e disse:

        — Eu me teria casado com ela, se não tivesse morrido.

        — Não acredito. Se não tivesse morrido, não seria tratada melhor do que as outras. O senhor se cansaria dela e a mandaria embora.

        — Bem, Amparo, mudei de ideia. O casamento será esta semana e Dax não ira para Paris. Vou mandá-lo para a Coréia com os batalhões que prometi às Nações Unidas.

        Amparo protestou iradamente.

        — Mas ele vai morrer! Ele nunca foi soldado!

        — Não vai acontecer nada. Os coronéis nunca morrem. Ficam em segurança atrás das linhas nos seus postos de comando. Ao menos, você não terá motivos de preocupação. Ali não haverá mulheres bonitas.

        — Se houver, ele as descobrirá, — disse Amparo. Notou então a expressão do pai. — Quer que ele morra, não quer? Ele está ficando muito popular.

        — Como pode dizer uma coisa dessas? Dax é como se fosse meu filho!

        — Que pai é o senhor! Não basta casá-lo comigo. Isso poderia torná-lo ainda mais popular. Por isso, vai mandá-lo para morrer na guerra.

        O Presidente procedeu como se não tivesse ouvido as acusações. Olhou para o relógio e disse:

        — Está na hora de nos prepararmos. As cerimônias vão começar às três horas.

        — Somos agora um país de primeira ordem. O povo tem de ver como somos importantes para as Nações Unidas.

        — Somos importantes, sim. O Secretário-Geral não costuma visitar todos os países que são admitidos.

        — Não é o secretário-geral que vem. É apenas o assistente dele.

        — Que importância tem isso? Os campesinos não perceberão a diferença.

        Amparo levantou-se.

        — Preciso beber alguma coisa. Estou com um gosto ruim na boca.

        — É muito cedo ainda para beber. Não é meio-dia ainda.

        — Então não vou beber rum. Tomarei uma bebida norte- americana chamada martini. É uma hora da tarde em Nova York.

        O Presidente viu-a afastar-se e falou-lhe antes que ela chegasse à porta.

        — Amparo?

        — Sim, Papai?

        — Confie em mim, — disse ele, olhando-a bem nos olhos.

        Amparo respondeu com uma espécie de desespero na voz:

        — Como posso, se não confio nem em mim mesma?

 

        Um homem atravessava as ruas cheias de gente com o escuro temo surrado a cair-lhe frouxamente sobre o corpo magro. Tinha os olhos baixos, porque ainda não se habituara à claridade do sol depois de passar tantos meses na pequena cela sombria. Caminhava com dificuldade, arrastando os pés como um velho porque a perna quebrada não fora bem encanada e conservava a mão direita metida no bolso para esconder os dedos quebrados que até ele julgava repulsivos.

        Uma pessoa que passava esbarrou nele e ele pediu desculpas mostrando que não tinha um só dente na boca. Os guardas os haviam quebrado com as coronhas dos seus fuzis. Viu a expressão no rosto do outro e virou prontamente a cabeça. Movendo-se a esmo, viu-se de repente colhido no meio da multidão e levado por ela.

        Estava livre, embora ainda não acreditasse muito nisso. Tudo fora tão súbito, tão inesperado. Naquele dia, pela manhã, a pesada porta da cela fora aberta. Estava deitado no pequeno monte de trapos que lhe servia de cama e tentou instintivamente encolher-se quando olhou para o guarda. Não tinha a menor ideia do que iam fazer com ele.

        Uma pequena trouxa foi jogada no chão ao lado dele.

        — Aí estão suas roupas. Trate de vestir-se.

        Ele não se moveu, tentando compreender a que nova tortura iam submete-lo. O guarda deu-lhe brutalmente um pontapé.

        — Não ouviu? Vista-se!

        Estendeu a mão para a trouxa sem se levantar. Não conseguiu desatar os nós do barbante em vista da mão direita estropiada. O guarda proferiu uma praga e, abaixando-se, cortou o barbante com a faca.

        Todo trêmulo, pegou as calças e olhou-as. Não eram dele. O seu terno estava novo quando o haviam capturado. Aquelas roupas eram velhas, sujas, desbotadas e rotas. Olhou para o guarda.

        — Ande depressa! Não posso passar o dia todo aqui!

        Vestiu-se com a pressa que lhe foi possível. O guarda pegou-o então pelos ombros e empurrou-o para a porta.

        — Para fora!

        Chegou cambaleando ao corredor e ficou esperando que o guarda fechasse a porta da cela. Atravessou o corredor, sentindo uma dificuldade enorme em andar.

        Tentou não pensar em nada até chegarem à escada que descia para as salas de interrogatório no porão. Só então começou a fazer suposições sobre o lugar para onde o estavam levando. Ao menos, não ia haver tortura dessa vez. A possibilidade de que o estivessem levando para ser executado não o perturbou. A morte parecia preferível ao porão.

        Passaram pela porta de aço ao fim do bloco de celas e viraram o corredor. Entrou com o guarda no gabinete do diretor da prisão.

        Um corpulento sargento levantou os olhos.

        — É o último?

        — Sí, señor.

        — Bueno. — O sargento olhou para a folha         de papel que tinha na mão e perguntou: — É o prisioneiro 10.614, também conhecido como José Montez?

        — Si, Excelência. — murmurou ele.

        O sargento empurrou o papel para ele.

        — Assine isto.

        Ele tentou pegar a caneta, mas os dedos da mão direita não o deixaram.

        — Escreva com a mão esquerda, — disse o sargento. — Faça uma cruz. De qualquer maneira, você não deve saber mesmo escrever.

        José pegou a caneta e traçou uma cruz com a mão esquerda embaixo da folha. O sargento pegou o papel, olhou-o, pigarreou e fez um pequeno discurso que já devia saber de cor:

        “De acordo com os desejos e a magnanimidade do Presidente está recebendo anistia pelos seus crimes políticos em honra do ingresso do país nas Nações Unidas. Vai ser, portanto, solto, mediante a sua palavra de honra de ser leal ao governo. Compromete- se, portanto, a abster-se de atos contra o governo sob pena de pagar com a vida.” — Voltou-se então para o guarda. — Leve-o até o portão.

        O prisioneiro continuou ali parado até o guarda dar-lhe um empurrão. Começou então a compreender. Iam soltá-lo.

        — Gracias, Excelência, gracias, — murmurou ele, sentindo lágrimas nos olhos.

        O guarda tornou a empurrá-lo e ele o seguiu pelo corredor até o grande pátio. O sol lhe ardeu nos olhos. Lembrou-se então de que ainda estava com o chapéu na mão e meteu-o na cabeça, puxando bem a aba para proteger os olhos.

        Atravessaram o pátio e pararam diante do grande portão de aço.

        — É o último! — gritou o guarda para o homem da torre.

        — Felizmente! Não é fácil abrir e fechar este portão toda hora.

        Lentamente e rangendo muito, o portão subiu para a torre. Mesmo quando o portão ficou completamente aberto, José não se moveu.

        O guarda empurrou-o mais uma vez.

        — Vaya!

        Ele se virou para olhar para o guarda e este riu.

        — Ele não quer sair. Gostou de nós, — gritou para o homem da torre.

        O outro riu e o guarda deu um empurrão mais forte, fazendo-o sair aos trambolhões.

        — Vaya! Não posso perder mais tempo com você!

        José ficou parado do outro lado, vendo o grande portão descer.

        — Vaya! — gritou o guarda de dentro das grades, fazendo um gesto ameaçador com o fuzil.

        José virou-se e começou a correr desajeitadamente, cheio de medo de levar um tiro pelas costas. Os guardas davam gargalhadas.

        Correu até não ouvir mais os risos, até o fôlego faltar-lhe na garganta e ele sentir-se exausto. Foi então para a sombra de um edifício e encostou-se à pedra fria. Ali nada havia senão o bater precipitado do coração. Fechou os olhos e descansou. Depois de muito tempo, levantou-se do chão e começou a andar.

        Havia pela cidade um ar de festa. Viam-se bandeiras por toda a parte. As bandeiras do Corteguay e das Nações Unidas, lado a lado. Em quase todas as janelas havia um retrato do Presidente, sorridente no seu uniforme cheio de condecorações. Mas José não se interessava por nada daquilo. Deixava-se levar pela multidão. Chegou afinal à grande praça no centro da cidade, defronte do palácio do Presidente.

        O povo estava dando vivas quando ele teve de parar porque não tinha mais para onde se mover. Levantou os olhos e sentiu um arrepio pelo corpo e o gosto amargo do ódio na garganta. Os dois estavam lá em cima no balcão diante dele.

        O Presidente todo cheio de condecorações com a ordinária da filha. Junto dela, um homem que ele não conhecia, que era preto mas devia ser gringo a julgar pelo corte das roupas. Ao lado dele, estava o sorridente noivo de Amparo, com um uniforme novo. de coronel.

        “Eu devia ter matado os dois quando tive oportunidade. Agora mesmo, se eu tivesse uma arma... mas não adiantaria. Não pudera pegar uma caneta, quanto mais um revólver e ainda fazer pontaria e puxar o gatilho.”

        Começou a sair dali por entre a multidão. Algum dia, iria matá-los. Mas, primeiro, tinha de voltar para as montanhas. Ah poderia achar abrigo e sossego e recuperar as forças. Ali encontraria amigos e companheiros.

        Mas nesse momento uma lembrança lhe enregelou o coração. Já deviam saber da sua traição e que ele revelara aos gritos os nomes de todos quando lhe esmagaram os dedos no torno. Havia tentado prender a língua mas a dor o fizera abrir a boca.

        Encostou-se a uma parede, tremendo, mas, ao fim de algum tempo, dominou-se. Não saberiam da traição dele. Já deviam todos estar mortos. Se algum ainda vivesse, devia estar no fundo de uma prisão.

        Recomeçou a andar, com uma sensação de alívio. Era melhor que estivessem todos mortos. Dessa maneira, ninguém saberia e ele ainda podia ter outra oportunidade. Dessa vez, não falharia.

 

                                    MODA e POLÍTICA

        Quando Dax chegou às portas do Supremo Quartel-General Americano em Tóquio, os dois soldados lhe fizeram continência. Retribuiu a continência e desceu a escada. Um homem passou por ele levando um maço do último número de Stars and Stripes. Os títulos falavam de outra grande batalha na Coréia. Dax olhava do passeio o palácio do Imperador do outro lado da rua movimentada, quando Gato Gordo apareceu.

        — Vamos voltar para casa?

        — Sim. — disse Dax, olhando ainda para o palácio. — Não precisam mais de nós aqui.

        — Nunca precisaram. Não queriam nem que viéssemos.

        — O Presidente prometeu-lhes um batalhão. Talvez, se tivesse cumprido a sua promessa...

        — O Presidente faz muitas promessas. Agora a guerra na Coréia está quase acabada. O novo presidente dos Estados Unidos vai fazer a paz e nós nem chegamos a lutar.

        — Ainda não está farto de guerras e de lutas. Gato Gordo?

        — E há mais o que se possa fazer na vida? O homem ou anda com mulheres ou luta. Uma coisa faz a outra ainda melhor.

        Dax olhou mais uma vez para o palácio.

        — Que será que pensa o camarada que está ali dentro? Aquilo deve ser para ele mais uma prisão do que um palácio.

        — Deve dar-se por feliz de que o tenham deixado viver. Mas com certeza sente não haver vencido a guerra, —• disse Gato Gordo, começando a enrolar um cigarro. — Ele agora é um deus apenas para as suas flores e para as borboletas.

        — Vamos para o hotel, disse Dax. — Quero tirar logo este uniforme. Estou cansado de brincar de soldado num exército que não existe.

        O exército existia. Mas não para exportação. Dax compreendeu isso no dia do seu casamento com Amparo.

        Os soldados haviam formado nas ruas em frente à sua casa, nas ruas que levavam à catedral onde se realizou a cerimônia, nas ruas que os dois atravessaram dentro do carro blindado do Presidente até ao seu palácio, onde se efetuou a recepção, e depois ao longo de toda a estrada até ao aeroporto. Formaram até na pista onde o avião americano especialmente fretado esperava para levar Amparo e Dax para a sua lua-de-mel.

        A primeira classe do avião fora transformada em sala de estar. Havia várias poltronas confortáveis espalhadas e dois sofás que podiam servir de camas. Havia também uma mesa de jogo, mesinhas de café ao lado das poltronas e um bar instalado na frente, logo depois da cozinha. Do outro lado, havia um pequeno, quarto de vestir fechado por uma cortina e uma porta para o lavatório.

        Quando chegaram a 4.500 metros, o sinal de apertar os cintos se apagou e a aeromoça, num elegante uniforme azul, apareceu.

        — Estaremos na Cidade do México daqui a aproximadamente quatro horas. Se precisarem de alguma coisa, tenham a bondade de tocar a campainha.

        — Quer mandar minha empregada aqui?

        — Pois não.

        Amparo olhou para Dax.

        — Vou tirar estas roupas. Sinto-me abafada dentro delas. Estão coladas ao corpo com o calor.

        Dax levantou-se.

        — Enquanto você troca de roupa, vou cumprimentar o piloto.

        Quando voltou, meia hora depois, o compartimento estava quase às escuras e com as cortinas descidas. Viu Amparo deitada no sofá, envolta num robe de seda. Tinha os olhos fechados e via-se ao seu lado num balde de gelo uma garrafa de champanha pelo meio.

        Dax ficou a olhá-la por um momento. A seda lhe colava ao corpo. Evidentemente, nada havia por baixo. Tirou o paletó e jogou-o em cima de uma poltrona. Depois, tirou a gravata e começou a desabotoar a camisa. Nesse momento, notou que os olhos dela estavam abertos e que ela o estava olhando.

        — Já começava a pensar que teria de voar sozinha até ao México.

        Foi então que ele percebeu que a mão dela se movia lentamente por baixo do robe.

        — Que é que está fazendo?

        Amparo sorriu, fazendo movimentos sensuais.

        — Estou-me preparando para você.

        Dax afastou-lhe impetuosamente a mão e passou a acariciá-la.

        — Ainda não aprendeu que, quando eu quiser você, eu mesmo tratarei de prepará-la?

        Ela deu um grito de dor abafado e se jogou violentamente para a frente como se fosse dar um pulo. Com a outra mão, ele a segurou até que os olhos dela se abriram, voltados para ele.

        — Comigo, você não é La princesa, sabe? Você é minha mulher!

        — Sim, sim, — disse Amparo, levantando os braços para ele. — Você é meu marido e eu sou sua escrava. Sem você, não sou nada, nem mesmo uma mulher.

        — Nunca se esqueça disso!

        — Está bem, está bem! Agora me dê logo o que eu quero antes que eu morra!

 

        México, Miami, Nova York, Roma, Londres, Paris, Lisboa. Depois, a volta. Durante três meses, foi a lua-de-mel mais falada do ano. Por toda a parte, jornalistas-fotógrafos os cercavam. Quase não houve no mundo inteiro jornal ou revista que não lhes publicasse as fotografias.

        Em Roma, foi batida a famosa fotografia de Amparo ajoelhada para beijar o anel do Papa, com os louros cabelos a cair-lhe de sob o véu de rendas pretas e os olhos levantados enquanto ele lhe sorria gentilmente.

        Mais tarde, no seu apartamento no Hassler, Dax disse:

        — Não sabia que você era tão religiosa assim.

        — E não sou.

        Ele mostrou a fotografia no jornal que tinha na mão.

        — Mas você aqui parece que estava em êxtase.

        — E estava.

        — Como?

        — Senti de repente nele tanta bondade e pureza que fiquei empolgada.

        Dax olhou-a, sacudindo a cabeça.

        — Acho que nunca hei de compreender as mulheres.

        Amparo aproximou-se, abraçou-o e beijou-lhe o rosto.

        — Não procure compreender que é bem melhor.

        Dax olhou-a bem nos olhos.

        — Sabe que não mudou muito da meninazinha que conheci?

        Amparo deu-lhe um beijo breve.

        — Esta viagem tem sido maravilhosa. Seria bom que nunca mais tivéssemos de voltar.

        Mas o melhor da viagem para Amparo foi Paris. Todas as outras cidades visitadas eram interessantes, mas eram todas cidades masculinas no seu conceito de vida e que mal toleravam as mulheres. Paris era uma cidade da mulher. O próprio ar parecia conter um perfume de mulher que nem o mau cheiro dos automóveis conseguia apagar. A graça, o estilo, a beleza, o próprio ritmo eram femininos.

        Amparo descobriu Paris e Paris descobriu-a. Era a espécie de mulher que estava ali no seu lugar — altiva, autocrática, imperiosa, com olhos brilhantes e interessados da jeune fille e a exigente boca sensual de uma femme du monde. Era o centro das atrações aonde quer que fosse. Até os mais antigos e desdenhosos couturiers se desdobravam para agradar-lhe.

        Dax se contentava em ficar calmamente de lado enquanto Amparo dominava o centro da cena. Foi numa das recepções que ouviu de repente uma voz bem conhecida.

        — Ela é muito linda.

        Voltou-se, sorrindo. Era Giselle, que estendia as mãos para ele. Beijou-a nas duas faces.

        — Obrigado. Você também está muito bonita!

        — Como sua esposa não, Dax. Já tenho rugas em torno dos olhos, da boca.

        — Tolice. Está tão bela quanto sempre.

        — Não minta para mim, Dax. Sou profissional. O rosto é meu instrumento de trabalho.

        — Então só você vê essas rugas. O resto do mundo deve estar cego.

        Giselle olhou para Amparo e perguntou:

        — Você é feliz com ela, Dax? Foi ela que você sempre quis?

        — Sou feliz.

        — Não respondeu à outra pergunta.

        Ele a olhou em silêncio.

        — Está bem, — disse ela ao fim de um momento. — Eu não tinha o direito de perguntar.

        Um garçom chegou com uma bandeja cheia de taças de champanha. Dax pegou duas taças. Depois, ergueu a sua.

        — Aos que se interessam.

        Giselle tomou o champanha e disse:

        — Tenho de sair.

        — Mas você acaba de chegar.

        — Esquecia-me de que tenho outro encontro marcado. — Já ia saindo, quando se voltou para ele, com sinais de lágrimas nos olhos. — Antes de você sair de Paris, gostaria de vê-lo ainda uma vez.

        Dax ia dizer alguma coisa mas ela o fez parar com um gesto.

        — Assim não. No meu apartamento. Sei que não pode sair à noite, mas ainda estou no mesmo lugar. Você costumava ir lá de manhã.

        Depois que ela saiu, Amparo separou-se do grupo em que estava e se aproximou dele.

        — Quem era aquela mulher com quem você estava falando?

        — Giselle d’Darcy, a estrela de cinema.

        — Disso eu sei. Que foi ela para você?

        Dax fez uma pausa e respondeu:

        — Foi minha amante durante a guerra.

        — Não está pensando em voltar a vê-la, está?

        Ele sorriu.

        — Não estava pensando nisso, mas agora que você falou, não acho que seja uma má ideia.

        — Se fizer isso, eu       o matarei, — disse ela, iradamente. —

        Aquela mulher ainda gosta de você.

        Ele riu. Mas saiu de Paris sem         ter ido procurar Giselle.

        Três dias depois de voltarem para Corteguay, os norte-americanos atravessaram o paralelo 38.

 

        Amparo entrou impetuosamente no gabinete do pai, afastando os dois soldados que estavam de guarda à porta como se eles não existissem.

        — Vai mandá-lo para Nova York! — exclamou furiosa.

        — Ele tem de ir a Nova York antes de seguir para a Coréia, — disse o Presidente. — Já lhe expliquei isso.

        — Sozinho?

        — Claro que sim.

        — Já lhe disse que não o deixaria ir sozinho!

        — Ele tem o seu trabalho para fazer.

        — Sabe o que vai acontecer! Sabe muito bem que espécie de homem ele é!

        — E daí? O problema é seu e não meu.

        — Vou com ele!

        Pela primeira vez desde que Amparo chegara à sala, o Presidente reagiu. Levantou-se, indo para junto dela e exclamou:

        — Você vai ficar aqui e fazer o serviço que lhe compete!

        — Nem pense nisso! Está procurando arruinar a minha vida conjugal como tem arruinado tudo em minha vida! Se ele partir amanhã, eu irei com ele!

        Ele se moveu pronta e inesperadamente. Pegou-a pelo braço, fê-la rodar e jogou-a violentamente ao chão. Ela tentou levantar-se, mas ele plantou o pé no peito dela.

        — Escute, ordinária, você vai fazer exatamente o que eu mandar. Não consegui chegar até onde estou para que agora uma mulher estúpida por causa do seu cio venha atrapalhar os meus planos. Não sentirei o mínimo se tiver de mandar você passar o resto da vida dentro de uma prisão!

        — Não teria essa coragem, — disse ela, mas com um traço de medo na voz. — Eu sou sua filha.

        — E é mesmo? De onde lhe vem essa certeza? Só de eu dizer. Todo mundo sabe que sua mãe não passava de uma vagabunda. Basta dizer que fui vítima de um embuste dela e que só agora descobri a verdade.

        Amparo olhou-o em silêncio. Afinal, ele tirou o pé de cima dela e voltou para a sua mesa. Ela se levantou. Depois, encaminhou-se para a porta.

        — Assim não, — disse ele. — Primeiro, vá-se arrumar e lave o rosto. Há gente lá         fora.

        Amparo foi para o       banheiro. Voltou alguns minutos depois.

        Olhou para ele com o rosto pálido e disse:

        — Preciso beber alguma coisa.

        — Está bem.

        O presidente virou-se na cadeira e abriu um pequeno armário às suas costas. Serviu uma boa dose de rum num copo. Amparo bebeu e um pouco de cor lhe voltou ao rosto.

        — Agora, saia, — disse ele, — e dê a seu marido uma despedida de herói. Ele poderá ficar muito tempo ausente. Veja se arranja um jeito de ficar grávida. Isso lhe dará o que fazer enquanto ele estiver fora.

        — Isso é uma coisa em que não posso obedecer-lhe, — disse ela, com um sorriso triste.

        — Há alguma coisa com seu marido?

        — Com meu marido não. Há comigo. A criança que perdi, filho de Ortega a quem, o senhor mandou matar. Bem, Ortega se vingou. Fiquei estéril. Nunca brincará com seus netos.

        Dax estava sentado diante da mesa do adido militar do Secretário das Nações Unidas. Atrás, através da grande janela, as luzes de Nova York estavam começando a acender-se.

        — Não sei, Coronel Xenos,— disse o adido, dando um tom musical norueguês ao seu inglês um tanto pomposo. — É muito difícil dar uma resposta imediata. Os americanos têm muita relutância em entregar ainda novas armas seja a quem for.

        — Quer dizer que MacArthur não confia nos seus aliados?

        — Não disse isso.

        — É claro que não, mas essa é que está começando a parecer a verdade, como se se tratasse para ele de uma guerra particular. O próprio presidente dos Estados Unidos acabará percebendo isso.

        O general ficou em silêncio.

        — Talvez eu consiga persuadi-lo se for designado para o quartel-general em Tóquio.

        — Talvez.

        — Tenho oitocentos homens prontos, — disse Dax. — São oitocentos homens bem treinados em guerra na selva. Dentro em pouco, teremos dois mil. Mas serão inúteis se não aprenderem o manejo das novas armas. O meu presidente deseja ajudar a causa das Nações Unidas mas não quer mandar homens despreparados.

        O adido olhou pela janela e deu um suspiro.

        — Do outro lado do mundo há homens que estão empenhados numa pequena guerra para que não haja uma guerra maior. Quem sabe quantas pequenas guerras teremos de lutar até que haja paz?

        Dax nada disse.

        — Oitocentos homens, foi o que disse?

        Dax fez um sinal afirmativo.

        — Talvez seja possível fazer alguma coisa. Até um pequeno contingente de um país sul-americano podia ter importante efeito psicológico. Vou incorporá-lo ao meu estado-maior e designá-lo para Tóquio, como sugeriu. Enquanto isso, vou ver se posso obter as novas armas para os seus homens.

        — Obrigado, General.

        — Se tem amigos com influência no governo dos Estados Unidos, acho que deve pedir-lhes ajuda.

        — Compreendo. — O general devia saber perfeitamente quais eram os seus amigos, pensou ele. — Pedirei sem dúvida a ajuda deles.

        O general levantou-se, dando por concluída a conversa.

        — Deve compreender que, se não conseguir convencer MacArthur, eu nada poderei fazer.

        — Compreendo também perfeitamente.

        — Muito bem, — disse o general, estendendo a mão. — Vou mandar expedir as suas ordens. Estarão prontas antes do fim desta semana.

        — Vão bem então as coisas? — perguntou Dax.

        — As coisas nem sempre são o que parecem, — respondeu Marcel. — Tenho inimigos.

        Dax olhou para o antigo empregado de seu pai. O poder e a riqueza não haviam dado a Marcel aparentemente qualquer sentimento de segurança. Parecia até mais nervoso e furtivo do que dantes.

        — Um homem como você não pode deixar de ter alguns inimigos.

        — O pior é que posso enfrentar os que eu conheço, mas há alguns que se escondem. O meu sucesso causa-lhes ressentimento e inveja. Estou convencido de que há muitas tramas contra mim.

        — Não...

        — É verdade. — Marcel baixou a voz, correu os olhos pelo salão de jantar repleto do El Morocco e falou em tom confidencial: — Soube do meu problema com a junta de recrutamento? Querem incorporar-me ao exército, a mim que sou uma figura importante no programa de defesa do país e que sou pai de três filhos.

        — Não é possível! Você não é nem cidadão americano.

        — Acham que eu, sendo um residente estrangeiro, estou sujeito à prestação do serviço militar. É claro que eu tenho advogados e pessoas de influência trabalhando no caso, mas eles resistem e acham que nada é possível fazer. É claro que há gente alta procurando afastar-me.

        — Tem ideia de quem possa ser?

        — Não tenho certeza, mas acho que se trata de Horgan e do grupo dele. Creio que nunca me perdoaram o caso do petróleo do Corteguay depois que descobriram que lá não havia petróleo.

        — Mas ainda fazem negócios com você. Não iriam prejudicar essas relações comerciais.

        — Precisam dos meus navios e não de mim. E têm um contrato que terá de ser cumprido mesmo na minha ausência.

        — Não podia ser seu ex-sogro? Ele certamente não tem grande entusiasmo por você.

        Um olhar de desprezo apareceu no rosto de Marcel.

        — Não. Abidijan é muito cobiçoso. Meus filhos são herdeiros dos meus bens e são netos dele. Não, Abidijan não iria fazer isso. Não sei ainda quem é. Mas vou descobrir. E quando eu souber, quem for vai-se arrepender amargamente!

        Dax olhou para Marcel, Havia uma trepidação na sua voz que ele nunca vira e a expressão do seu rosto era quase a de um neurótico. Dax disse então com uma convicção que não sentia:

        — Isso passará, Marcel. Tenho certeza de que tudo acabará bem.

        — Será melhor que seja assim. Não pretendo cair sozinho. Muitos irão comigo!

        De repente, a expressão carrancuda de Marcel se transformou num sorriso e ele se levantou. Dax também se levantou. Uma mulher alta e sensacionalmente morena estava sendo levada para a mesa deles pelo maitre. Uma espécie de silêncio caiu sobre as mesas à sua passagem.

        Marcel beijou-lhe a mão e disse:

        — Conhece, Dax, não conhece?

        — É claro.

        Ela voltou para Dax os olhos negros e sorriu, estendendo-lhe a mão que Dax beijou. Os dedos estavam frios como gelo.

        — Madame Farkas.

        — Que tal foi o espetáculo?

        Dania olhou para Marcel, enquanto se sentavam e fez um gesto cansado.

        — Como sempre, saí-me muito bem. Mas o tenor! Disse a Bing logo depois do espetáculo. Ou ele ou eu!

 

        A orquestra tocava no centro do grande salão. Havia muita gente dançando e pairava sobre tudo uma névoa de fumaça que nem o ar condicionado conseguira dissipar no recinto fracamente iluminado. Dax estava sozinho à mesa fumando, olhando para Dania Farkas e Marcel que dançavam.

        Uma loura alta que ia para uma mesa parou de repente.

        — Dax?

        Dax levantou os olhos, sorriu e levantou-se.

        — Sue Ann!

        — É você mesmo, Dax? Que diabo é que está fazendo metido nessa farda?

        — Fui recrutado.

        — Está sozinho?

        — Não. Estou com Marcel Campion e Dania Farkas.

        — Mas está sozinho. Vou ficar com você.

        — Mas não veio com alguém?

        — Vim com um chato, um dos advogados de meu pai. Mas foi porque não tinha nada para fazer. Não se incomode que eu resolvo o caso.

        Fez um gesto e o homem que a acompanhava e que havia parado um pouco adiante se aproximou.

        — Sim, Srta. Daley?

        — Encontrei um velho amigo. Não vai-se importar de eu ficar com ele?

        — Claro que não. Boa noite, Srta. Daley.

        Dax fez Sue Ann sentar-se na banqueta e um garçom serviu champanha.

        — Você fica maravilhoso de farda, Dax. Por que não pensou nisso há mais tempo?

        — Só agora o Presidente se lembrou de me fazer militar.

        — Que é que você é? General?

        — Não, apenas coronel. Só há um general no nosso exército, o próprio Presidente.

        — E sua mulher? Está com você?

        — Não. Ela tem muito o que fazer por lá e o Presidente, pai dela, achou que era melhor ela ficar. E seu novo marido?

        — Sei lá! Um imbecil! Estamos divorciados há um mês. Parece que não tenho muita sorte com maridos. Por que foi que você nunca pensou em se casar comigo?

        — Você nunca me pediu, — disse ele, rindo.

        — Foi só por isso?

        — Só. A verdade é que tenho um segredo. Sou tímido.

        — E eu sou idiota. Queria mesmo ouvir isso. Mas não repetirei o mesmo erro. Na próxima vez, vou pedi-lo em casamento.

        — Como sabe que haverá próxima vez?

        — Conheço você e conheço as mulheres. Já duas vezes desde que estou aqui sentada esfreguei a minha perna na sua. Se sua mulher é capaz de deixar você sozinho no mundo, mesmo por ordem do pai, não pode deixar de haver a próxima vez.

        — Você está inteiramente errada. — Disse Dax, sorrindo.

        — Não estou não. E posso esperar. Você vai ser o meu próximo marido. Agora que isso está resolvido e nós já somos praticamente noivos, vamos sair o quanto antes daqui e vamos para um apartamento!

 

        Dania, dançando com Marcel, tinha visto Sue Ann chegar à mesa e sentar-se ao lado de Dax. Experimentou um ressentimento quase imediato, mas que nada tinha a ver com Dax. De certo modo, não gostava dele também. Era a espécie de homem que sempre lhe havia desagradado: positivo, sexual e cheio de confiança em relação às mulheres. Mas o seu ressentimento de verdade se relacionava com Sue Ann.

        Os cabelos louros, os olhos azuis, a pele clara. A sensualidade natural e a consciência da sua própria importância. Tinha havido sempre moças assim nas escolas que ela havia frequentado e no mundo a que ela havia aspirado, moças a quem chegava naturalmente tudo aquilo por que ela tivera de lutar tão desesperadamente.

        Dania tinha sido sempre a morena, a grega, a que falava com sotaque, a alta, a magra, a feia de fisionomia estranha. E elas eram as deusas, as louras atrás de quem os rapazes sempre andavam. E então um dia, quando ela tinha os seus doze anos, alguma coisa havia acontecido.

        Tivera as primeiras regras e a voz de timbre estranho adquirira de repente Uma riqueza nova. Irrompia-lhe da garganta e se elevava bela e majestosamente acima das outras na classe. Um dia, a professora interrompeu o canto e olhou do estrado pelos óculos de aros de metal.

        — Quem foi?

        Dania ficou calada, com receio de haver feito alguma coisa errada.

        — Quem foi? — tornou a perguntar a professora.

        As outras se voltaram e olharam para ela. Não era mais possível esconder. Deu um passo à frente e disse:

        — Fui eu.

        A professora a olhara sem acreditar, não podendo compreender que espécie de milagre havia tocado aquela menina feia, transformando-a.

        — Volte depois da escola e traga sua mãe.

        Foi então que começou tudo. Os anos de luta, de trabalho e renúncia. Quando completou dezessete anos, Dania compreendeu que nunca seria bela. Mas os seus seios se avolumaram com os exercícios e ela ganhou um pouco das profundezas dramáticas da música que estava estudando. Pouco a pouco, isso começou a refletir na maquilagem e nas roupas que vestia. Aprendeu a fazer realçar o que tinha de melhor, que eram os olhos, grandes e negros. Percebeu que, descendo o cabelo sobre a testa, disfarçava um pouco a sua altura e dissimulava as maçãs do rosto, que eram muito altas. Um batom pálido fez a boca parecer menos rasgada.

        Houve a princípio muitos homens porque Dania sabia que a mãe nunca teria o dinheiro necessário para completar os seus estudos musicais. Mas não a haviam tocado. Era quase como se ela os visse de longe agitarem-se e gastarem-se em cima dela, deixando-a tomar deles o pouco que tinham para dar. Houve então um e o fato de que ele tivesse mais trinta anos do que ela não teve qualquer importância. Tinha 55 anos, mas era suficientemente rico para custear tudo o que ainda precisava ser feito. Melhor ainda, tinha muitas relações e isso tornava tudo possível. Dania tinha vinte anos quando se casaram.

        Ela fora a seu modo muito honesta com ele. Nada devia haver entre eles além da música, nada que fosse capaz de prejudicar-lhe a carreira. Ofuscado pelo seu talento, o homem renunciara aos poucos anos de virilidade que lhe restavam e nem uma vez, durante os dez anos em que estavam casados, tinham ido para a cama juntos.

        Havia outros homens e ele sabia disso. Por exemplo, o tenor que cantara a Carmen no Scala ou o compositor e maestro que a havia levado para o Metropolitan de Nova York. Dania tinha trinta anos agora e não precisava de ninguém, nem mesmo dele, e até isso ele aceitara. Contentava-se em que ela lhe usasse o nome e aquecia-se ao radioso sol do seu talento.

        Mas Dania já não vivia contente. Julgava descobrir na sua voz os primeiros leves traços de enfraquecimento e se sentia dominada pelo medo de que, quando a voz desaparecesse, ela não teria mais nada e seria condenada a passar o resto da vida em luxuoso esplendor ao lado de um velho.

        Foi então que conheceu Marcel. Nele, já rico e já poderoso, ela encontrara semelhanças consigo. Tinha como ela os mesmos desejos e ambições egoísticas. Pouca importância tinha o fato de que ele fosse casado e tivesse filhos. Ela, como artista, estava acima dessas coisas. O que importava era que ele, como os outros, era também subserviente ao seu talento e confundia a paixão e o ardor que ela exibia no palco com vigor sexual.

        Esperou confiantemente. Marcel obteve o divórcio, como ela havia pensado que ele faria. Mas tinha havido então alguma coisa desconcertante. Marcel, depois disso, não lhe pediu que se divorciasse do marido para casar-se com ele. Parecia muito satisfeito de que as suas relações continuassem no pé em que estavam. Dania compreendeu que ele tinha muitos problemas e acomodou-se a uma espera vigilante. Enquanto isso, nada estava perdido, pois ela ainda tinha o marido de reserva.

        Viu que Dax e Sue Ann conversavam e riam. De repente, cansou-se da maneira mecânica de dançar de Marcel e bateu-lhe no ombro.

        — Vamo-nos sentar que eu estou cansada.

 

        — Desculpem, — disse Dax, — mas já vou indo. Tenho de tomar o avião para Boston amanhã bem cedo.

        — Mas ainda não são nem três horas, — protestou Marcel.

        — Eu sei, mas fiquei de almoçar com James Hadley amanhã.

        — Também estou cansada, — disse Dania de repente. — O dia de hoje foi muito trabalhoso para mim. Vamos, Marcel?

        — Não, eu vou ficar, — disse Marcel.

        Dania olhou-o sem compreender aquela rebeldia. Mas logo compreendeu que ele estava tentando afirmar-se. Se era esse o jogo, ela também sabia participar dele.

        — Fique então, — disse ela, levantando-se. — O mundo todo não pode ficar acordado só porque você está sem sono,

        — Tenho de ir também, — disse Sue Ann.

        Marcel olhou-os e subitamente uma nuvem lhe passou pelos olhos.

        — Está bem. Peguem o meu carro, — disse ele com voz inesperadamente branda. — Mas digam ao chofer que depois volte para apanhar-me.

        Dax sentou-se no carro entre as duas. O chofer voltou-se e ele disse:

        — Pode levar-me primeiro. O consulado é mais perto. Não se importam?

        As duas mulheres sacudiram as cabeças.

        Já ia tirar um cigarro para fumar quando sentiu as mãos delas. Dania à direita, Sue Ann à esquerda. Sorriu intimamente e meteu as mãos para baixo dos vestidos das duas. Sue Ann já estava vibrando, mas Dania estava quente e seca. Quase no mesmo instante, as mãos delas encontraram a sua virilidade e se tocaram.

        Olharam-se com. surpresa pela frente dele. Dax riu. Levantou as mãos e colocou-as sobre a cabeça das duas, dizendo solenemente:

        — À vontade, meninas.

 

        — Já falou com Jeremy sobre isso? — perguntou James Hadley.

        — Já, — respondeu Dax. — Ele me disse que me daria toda a ajuda possível, mas sugeriu que o senhor poderia fazer ainda mais. Foi por isso que vim procurá-lo.

        Hadley olhou pela vidraça a chuva que caía lá fora e disse:

        — Talvez possa. Jeremy lhe disse que vai abandonar a política?

        — Não, — exclamou Dax, surpreso. — Não me disse nada.

        — Pois vai. Ao menos, a política que se relaciona com cargos eletivos. Quer ir para o Departamento de Estado. A confusão da outra política perdeu todo o interesse para ele.

        — É essa a única razão?

        — Claro que não. Jeremy faz questão de casar-se com aquela alemã. E ele sabe que numa cidade católica como Boston os eleitores não iriam votar num congressista casado com uma estrangeira, especialmente uma divorciada.

        Houve um momento de silêncio e Hadley continuou.

        — Jeremy prometeu o seu apoio a Jack Kennedy. Kennedy irá para o Senado em 52, para a vice-presidência em 56 e para a presidência em 60. Jeremy prometeu que o acompanharia até lá.

        Dax teve pena do velho. Devia ter sido muito duro para ele. Aqueles tinham sido os seus planos para o filho. Outro agora é que iria realizá-los.

        — Foi isso então que Jeremy teve em vista quando disse que o senhor podia ajudar-me. Conhece os Kennedys?

        — Conheço, sim. Têm uma casa não muito longe da minha em Palm Beach. É uma família muito grande.

        Dax sorriu, porque         a de Hadley não era exatamente pequena.

        — Acha que poderiam ter interesse em ajudar-me?

        — Talvez. Não duvido de que Jeremy converse com Jack e eu falarei com o pai dele. Creio que estão muito interessados em fazerem os países sul-americanos participar mais ativamente da ONU. Agora, passando a outro assunto: viu Marcel quando passou por Nova York?

        — Ainda na noite passada jantei com ele. Parece muito preocupado com a sua convocação.

        — Marcel é um tolo. O que é que ele espera quando afronta todo mundo e aparece em todos os cantos? Não pode deixar de despertar ressentimento e inveja. Eu bem que       o aconselhei a ficar na sombra, a afastar-se de clubes noturnos e de jornais. Mas ele não me escutou.

        — O que é que ele devia ter feito?

        — Disse-lhe que agisse com muita calma. Na idade dele, será fácil conseguir que seja designado para algum serviço de escritório. Depois, tratar-se-ia de arranjar a baixa. Mas Marcel não me ouviu.

        — E agora, que é que vai acontecer?

        — Se Marcel continuar assim, cavará a própria ruína. A única coisa que não se pode vencer neste país é a opinião pública. O grande público já o considera um homem que tenta fugir ao serviço militar.

        Dax levantou-se.

        — Bem, deve estar muito ocupado e eu não lhe quero tomar mais o tempo.

        Hadley levou-o até à porta e exclamou de repente:

        — Dax!

        — Que é?

        — Você é um homem muito estranho. Temos conversado muito de negócios, mas você nunca mencionou Caroline.

        Dax encolheu os ombros.

        — Que é que eu poderia dizer?

        Hadley olhou-o firmemente e disse:

        — Sabe que a amei, à minha maneira?

        — Também eu. E também à minha maneira.

        — Ela não era para você e evidentemente não era para mim também.

        Dax ficou calado.

        — Você a tem visto ou tem tido notícias dela?

        — Não. Pelo que me disseram, ainda está vivendo com o pai em Paris.

        — Nunca mais a vi também, — disse Hadley, com uma nota de tristeza na voz. — Acha que é muito tarde para pedir desculpas pelo que fiz?

        — Não há motivo para que peça desculpas. Talvez nós dois é que devêssemos pedir desculpas a Caroline.

        Depois que Dax saiu, James Hadley pegou o telefone em cima da mesa. Perspectiva, pensou ele. Tudo era uma questão de perspectiva. A decisão de Jeremy de abandonar a política. A luta de Marcel com a junta de recrutamento. E até a opinião de Dax a respeito de Caroline.

        A voz de sua secretária interrompeu-lhe os pensamentos.

        — Pronto, Sr. Hadley.

        Para que é que ele havia pegado no telefone? Ah, sim...

        — Quero falar com Joe Kennedy. Quer ligar para ele?

        Sue Ann e Dania estavam no seu apartamento no consulado quando ele chegou do aeroporto. Ergueu as sobrancelhas, surpreso.

        — Que é que vocês duas estão fazendo aqui?

        — Viemos pegar você para jantar, — disse Sue Ann.

        — A mim, não. Vou ficar em casa e dormir cedo. Vou seguir amanhã para o Japão.

        — Neste caso, ficaremos aqui e jantaremos com você. Acha que vamos deixar você passar sozinho a sua última noite antes de ir para a guerra?

        — Tenho muito que fazer. Papéis para assinar e outras coisas.

        — Pode ir tratando disso, — replicou prontamente Sue Ann. — Ficaremos à vontade esperando e eu telefonarei encomendando um jantar divino.

        Dax olhou-a.

        — Que é exatamente que você tem em vista nessa cabecinha obscena?

        — Obscenidade, é claro! Escute, Dax. Sabe o que foi que descobri horrorizada ontem à noite?

        — Não.

        — Dania tem vinte e sete anos. Já se deitou com uma porção de homens e nunca, mas nunca, teve um orgasmo. Já viu coisa mais monstruosa?

        — Bem, isso depende de que ela sinta a necessidade ou não.

        Olhou para Dania, mas esta continuou em silêncio, impassível.

        — Ela pode pensar o que quiser, — continuou Sue Ann, — mas eu acho horrível. Logo que soube disso, vi logo o que tinha de fazer. Ela precisa, uma vez que seja, conhecer um homem de verdade.

        Dax coçou a cabeça.

        — Quem sabe se ela não é homossexual e incapaz de sentir alguma coisa com um homem?

        — Não há chance. Conheço muitas lésbicas e ela não é desse tipo.

        — E você quer que eu faça a experiência? Está bem, Sue Ann. Mas onde é que você ficará enquanto essa experiência decisiva se estiver desenrolando?

        — Ora essa! Aqui mesmo, meu bem! Não perderia isso por nada deste mundo. Não sou egoísta. Há mais do que bastante para nós duas.

 

        — Ela perdeu os sentidos, — disse Dax, olhando para Sue Ann.

        — Não é de admirar. Eu também perderia se tivesse de esperar vinte e sete anos pelo meu primeiro orgasmo. Nem sei como foi que ela resistiu tanto. Você ficou quase uma hora em cima dela.

        Vibrei três vezes só de ficar olhando. Estava começando a pensar que também você iria fracassar com ela.

        Olhou para ele e de repente mudou de expressão.

        — Você ainda quer mais!

        Nisso, o telefone começou a tocar.

        — Quem pode ser? — perguntou Sue Ann, aborrecida.

        — Vamos ver, — disse Dax, estendendo a mão para o         telefone.

        — Quem é? — perguntou Sue Ann num sussurro.

        — Marcel, — disse Dax, tampando o fone. Tirou a mão e disse: — Pronto!

        — Dania está com você?

        — Não.

        — Está, sim! Já procurei por todos os cantos. Só pode estar com você. Eu a ouvi falar baixinho.

        Sue Ann franziu o rosto e tomou o telefone da mão de         Dax.

        — Marcel, quem está falando é Sue Ann. Deixe de ser         idiota e não nos aborreça mais! Estamos ha cama.

        Desligou e voltou-se para Dax.

        — Isso deve resolver o caso com ele. — Olhou depois para a adormecida Dania. — Não sei o que é que ela vê naquele camarada. — Pegou-o de novo. — Você é forte mesmo, hem? Nada o perturba!

        Ela se recostou nos travesseiros e murmurou:

        — Sabe que estou satisfeita de que ela tenha ficado nesse estado? Pensei que seria interessante nós três juntos. Mas, ao fim de algum tempo, comecei a ficar com ciúmes.

        — A ideia foi sua, — disse ele, movendo-se para ela.

        — Ainda não — disse ela, com as mãos nos ombros dele empurrando-o para baixo. Acaricie-me. Você sabe como eu gosto quando você me faz carinhos.

 

        Havia talvez mil maneiras pelas quais Dax podia morrer na Coréia, mas nenhuma delas foi no campo de batalha. O mais perto que ele chegou da linha de frente foi o clube dos oficiais em Seul, onde se reuniam para ver os filmes sobre o andamento da guerra que eram mandados de Tóquio. Durante quinze meses, teve uma mesa no quartel-general na sua qualidade de oficial de ligação com as forças latino-americanas. Tinha, porém, muito pouco o que fazer, pois não havia forças latino-americanas.

        A princípio, chegava pontualmente às oito horas e passava o dia inteiro fazendo desenhos num bloco de papel amarelo. Às cinco da tarde, trancava o bloco na gaveta vazia e ia para o clube dos oficiais tomar um drinque e conversar um pouco. Jantava às sete e, em geral, às 10 ia para a cama.

        Uma vez por semana, apresentava-se ao assistente do chefe do Estado-Maior para saber se havia alguma notícia sobre as suas tropas, recebendo sempre a mesma resposta. Tinha ido a princípio todos os dias. Depois, achou que uma vez por semana era bastante. E se por acaso deixava de aparecer uma semana ou outra, ninguém parecia dar a menor importância a isso.

        Mudou-se dos alojamentos dos oficiais e alugou uma casinha perto do country club dos militares. Ia de manhã e à tarde para o campo de golfe. Dentro de seis meses, já estava jogando razoavelmente.

        Uma tarde, seis meses depois de estar morando na casa, chegou inesperadamente. Ouviu um rumor de vozes no fundo da casa e dirigiu-se para lá, cheio de curiosidade.

        Gato Gordo estava no centro de um grupo de mulheres que falavam todas ao mesmo tempo. Havia na cara dele uma expressão de aborrecimento.

        — Que quer dizer isso?

        Ao som da voz dele, Gato Gordo deu um pulo e as mulheres se calaram instantaneamente, indo esconder-se atrás dele.

        — Que é que elas querem, Gato Gordo? Que estão fazendo aqui?

        A voz de Gato Gordo tomou o tom meio choroso que sempre tinha quando ele fazia alguma coisa que não queria que Dax soubesse. Com a inocente expressão de um querubim na cara redonda, perguntou:

        — Não as está reconhecendo, Excelência?

        — Não. Quem são elas?

        — São nossas empregadas.

        — Todas elas?

        — Sim, Excelência.

        Dax contou-as.

        — Mas são oito? — A casa tinha apenas quatro peças — o seu quarto, o quarto de Gato Gordo, uma combinação de sala de estar e sala de jantar e a cozinha. — Oito! Onde é que elas dormem, Gato Gordo?

        — Aqui, Excelência. Tenha a bondade.

        Levou Dax para o outro lado da casa. Ali, havia uma espécie de telheiro encostado à parede. O teto era coberto de palha e os lados abertos eram fechados por velhos sacos. Dax abriu as cortinas feitas de pano de saco e olhou. Havia sete camas de palha estendidas lado a lado no chão.

        — Mas só há sete camas.

        — É só de que elas precisam, — murmurou Gato Gordo, com uma cara muito desconsolada.

        Dax olhou para ele e soube da resposta antes mesmo de fazer a pergunta.

        — E onde dorme a oitava?

        Gato Gordo não respondeu. Ficou vermelho e começou a gaguejar, sem dizer nada.

        — Onde é? — perguntou sem querer tirá-lo do embaraço.

        — Era sobre isso justamente que nós estávamos falando, compreende?

        — Não, não compreendo nada.

        — Bem, — murmurou Gato Gordo, tomando fôlego, — estávamos discutindo de quem era a vez de ir dormir dentro da casa.

        — Com você?

        — Sim, Excelência. Acontece que três delas já estão grávidas. As outras acham que eu não estou sendo justo em não dar também uma oportunidade a elas.

        — Acho que preciso de beber alguma coisa, — disse Dax, encaminhando-se para a porta da frente e entrando. Tirou o quepe e jogou-se numa poltrona. Um momento depois, Gato Gordo apareceu.

        — Um gim tônica bem geladinho, Excelência, — disse ele, com voz muito macia. Preparou a bebida e colocou-a na mesa ao lado da poltrona. Depois, dirigiu-se para a cozinha.

        A voz de Dax o fez parar.

        — Mande-as embora!

        — Todas, Excelência? — perguntou Gato Gordo, com voz ofendida.

        — Todas.

        — Não seria melhor mandar apenas as que já estão grávidas?

        — Todas!

        — Não posso nem ficar com as duas melhores? Não faz bem à saúde viver sozinho num clima destes!

        — Não, Gato Gordo! Caso você não saiba, estamos adidos a uma força militar estrangeira. Podemos ambos ser submetidos a conselho de guerra e fuzilados pelo que você fez. Ninguém iria acreditar que você tinha um harém aqui dentro de casa e que eu não soubesse de nada!

        Só sete meses depois, quando McArthur fora chamado aos Estados Unidos em 1952, foi que Dax teve de ir ao gabinete do novo chefe de Estado-Maior. O inverno era muito rigoroso no vale de Inchon e tinha havido muitas baixas em face da ofensiva dos norte- coreanos e dos chineses vermelhos.

        O assistente do novo chefe de Estado-Maior sorriu para ele.

        — Tenho boas notícias, Coronel, ao menos para variar. O Comandante-Chefe deseja que o senhor confirme que as suas tropas, até agora de reserva, já receberam o treinamento necessário no manejo das novas armas.

        — Posso confirmar isso imediatamente, General. Recebi um telegrama do meu Presidente na semana passada. Mais de dois mil soldados nossos foram treinados no manejo das novas armas e estão prontos para ser chamados a qualquer momento.

        — Ótimo, vou informar o Comandante-Chefe da sua confirmação. Ele naturalmente pedirá o embarque imediato dos seus homens.

        — Com a sua permissão, General, eu gostaria de mandar um telegrama por via diplomática diretamente para o meu Presidente. Desejo informá-lo logo da possibilidade do pedido.

        — Muito bem, a permissão é concedida. Estava esperando mesmo que fizesse isso, para adiantar as coisas. Os seus homens devem estar prontos para embarcar no momento em que chegarem as ordens.

        Mais dois dias depois, Dax voltava a procurá-lo com um telegrama do Presidente, que entregou ao general, muito pálido e calado. O telegrama dizia:

        “Peço apresentar Comandante-Chefe meu profundo pesar. Devido conclusão prazo alistamento só dispomos agora menos de cinquenta oficiais e soldados treinados manejo novas armas. Providências imediatas serão tomadas para treinar novos alistados. Avisarei quando quota estiver preenchida. Presidente.”

        O general olhou para Dax.

        — Parece que fizeram um jogo político com o senhor, Coronel.

        Dax não disse coisa alguma.

        — Posso mostrar isto ao Comandante-Chefe?

        — Claro, General. E pode levar um pedido meu ao Comandante-Chefe?

        — Qual é?

        — Cheguei à conclusão de que a minha permanência aqui não tem mais qualquer sentido. Gostaria de ser dispensado das minhas funções.

        — Acho que será o melhor. Receberá a sua dispensa amanhã cedo. — Estendeu a mão. — Sinto muito, Coronel.

        — Eu também, — disse Dax.

 

        Não havia segredos naquela guerra e dentro de poucas horas a notícia era conhecida em toda Seul. Até o rádio da Coréia do Norte transmitiu-a, dizendo que o Presidente do Corteguay se negara a participar da guerra de agressão dos imperialistas.

        Dax estava sentado sozinho a uma mesa no clube dos oficiais com um copo quase vazio à sua frente. Acendeu outro cigarro. De vez em quando, algum amigo se aproximava com uma frase de conforto, mas, desde que não sabia mesmo o que ia dizer, logo se retirava.

        Em dado momento, um major de fuzileiros norte-americano entrou no bar. Chegara poucas horas antes da linha de batalha. Ainda tinha a farda suja de lama quando se encostou no bar e pediu uma bebida numa voz ainda habituada a fazer-se ouvir acima do fragor da luta. Os outros soldados começaram a gravitar em torno dele, ansiosos por saber das últimas.

        — A coisa foi realmente dura! — exclamou ele, bebendo apressadamente o copo e pedindo outro. — Perdi quase metade dos homens sob o meu comando. Aqueles patifes amarelos vinham em ondas sobre ondas! Nunca pensei que houvesse tantos!

        O major virou-se então e correu os olhos em torno. Foi aí que viu Dax. Olhou-o por um momento e, em seguida, sem baixar a voz, perguntou sem se dirigir a ninguém em particular:

        — É esse o coronel que vem de um país de medrosos?

        O silêncio caiu sobre a sala. Dax levantou os olhos e encarou o major. Levantou-se lentamente. Deixou em cima da mesa o dinheiro da despesa e se aproximou do major.

        — Invejo-lhe a batalha em que tomou parte, major. Talvez isso lhe dê o direito de dizer tais coisas. Mas não invejo a ignorância com que fala.

        Um momento depois, o major baixou os olhos. Dax deu-lhe as costas e saiu do clube. No dia seguinte, estava em Tóquio, menos de um mês depois, estava a caminho de Nova York. Fazia quase dois anos que o Presidente o mandara como chefe de um exército que nunca existira.

 

        Sergei estava sentado à sua mesa, pensativo, brincando com a espátula de ouro. Olhou para Irma Andersen e, em seguida, para o homem que estava ao lado dela.

        — Não sei, — disse ele. Estamos indo bem aqui. Não gostaria de arriscar-me.

        Irma teve uma exclamação desdenhosa e começou a falar em francês tão depressa que o americano sentado ao lado dela não pôde acompanhá-la.

        — Você é um verdadeiro idiota, Sergei! Você tem aqui um movimento de duzentos mil por ano, com talvez dezessete mil líquidos para você. Acha que isso é ir bem? Lakow está-lhe oferecendo milhões!

        — Mas aqui nós sabemos o que podemos fazer, — replicou Sergei. — Na América, é diferente. O meu negócio é muito especial. Homens melhores e mais espertos do que eu já perderam até a camisa tentando a produção em massa. Além disso, que poderia acontecer aos nossos negócios aqui em Paris? Poderíamos perder tudo se a nossa freguesia chegasse à conclusão de que nos tornamos muito comuns, muito sem classe.

        — Mas atualmente se vendem nos Estados Unidos cópias de todos os seus modelos sem que isso faça diferença alguma.

        — Cópias são uma coisa diferente. Os nossos preços são mantidos. Nem todo mundo pode comprar um modelo original e os royalties não são maus. Mas perderíamos certamente tudo se os nossos preços caíssem.

        — Mas não são apenas os vestidos, — disse Harvey Lakow. — É tudo. Uma linha de vida nova e completa para a mulher americana. O Príncipe Nikovitch terá o nome em tudo. Uma série completa de perfume e produtos de beleza. Lingerie. Trajes esportivos, biquínis e roupas de esquiar. Os maridos não serão também esquecidos. Terão artigos de toucador e gravatas. Creio que não compreende muito bem o que isso poderia representar. Teremos um investimento de cinco milhões antes de fazermos uma só venda.

        Sergei ainda hesitava.

        — Se a ideia é tão boa, por que não foi aceita por nenhuma das outras casas?

        Harvey Lakow sorriu.

        — Porque não as procuramos. Procuramos foi o senhor.

        Sergei não tinha dúvida alguma de que Lakow estava dizendo a verdade. Amalgamated-Federal era a maior cadeia de lojas de departamentos e de artigos para mulheres do mundo. Só nos Estados Unidos possuía mais de mil casas, que iam das lojas imensas nas grandes cidades a estabelecimentos de tamanho médio nas cidades menores.

        — Se podia conseguir a quem quisesse, por que preferiu a mim?

        — Posso falar com franqueza?

        — Claro que pode, — disse Irma. — A verdade não o vai matar!

        Lakow disse a Sergei:

        — Depois que resolvemos instituir o setor de vendas a que chamamos temporariamente de “Paris em Sua Casa”, começamos a procurar a casa que melhor atendesse às nossas necessidades. As casas mais antigas e mais bem estabelecidas foram imediatamente rejeitadas porque estávamos convencidos de que eram muito apegadas às suas praxes e usos. Pensamos então em contratar um dos figurinistas e fazer tudo por nossa conta. Mas isso não nos pareceu prático. É o nome de Dior que é conhecido e não o dos seus figurinistas. Tínhamos de usar um nome que a mulher americana associasse imediatamente com a couture parisiense. Foi por isso que nos decidimos pelo senhor. Por mais estranho que pareça, foi minha mulher quem sugeriu o seu nome. Aprendi a confiar no critério dela, pois tem intuições muito boas. Disse ela que, embora a sua casa fosse relativamente nova, já existia há cinco anos e graças à coluna da Srta. Andersen e outras, a sua casa era mais conhecida do que outras mais antigas. Além disso, minha mulher já o conheceu há anos e o senhor lhe pareceu um homem jovem, brilhante e competente.

        — Sua esposa! — perguntou Sergei, franzindo a testa.

        Harvey Lakow sorriu.

        — Ela disse que o senhor provavelmente não se lembra dela. Foi antes da guerra, quando ela veio a Paris em férias. Veio sozinha. Não pude acompanhá-la em virtude de problemas comerciais. O senhor era então estudante e foi-lhe muito prestimoso. Serviu-lhe de guia durante algum tempo.

        — Sinto muito, mas não me lembro dela, — disse Sergei.

        — Não tem importância. O importante é que o senhor tem uma boa casa com moderado sucesso. Mas em Paris o senhor nunca chegará decerto à condição de uma grande casa. Mas para as mulheres americanas as outras não passam de nomes, ao passo que o senhor é uma personalidade, um homem cuja fotografia elas vêem nos jornais e revistas. Conhecem-no graças ao seu casamento com Sue Ann Daley e através das reportagens da Irma Andersen. O senhor representa para elas glamour, movimento, vida. Não tenho a menor dúvida de que, se o senhor se associar conosco e for para os Estados Unidos, dominaremos em pouco tempo o mercado da moda ali.

        Harvey Lakow se levantou.

        — Sei que tudo isso é muito súbito e que precisa de tempo para pensar. Vou a Roma amanhã e voltarei no sábado. Pode telefonar para o meu hotel nessa ocasião e dar-me a sua resposta?

        Houve silêncio durante algum tempo depois que Lakow saiu.

        — Que é que acha? — perguntou Sergei afinal a Irma.

        — Ele tem razão. Você nunca terá aqui uma grande casa. Sabe muito bem disso porque quis contratar alguns grandes figurinistas e não conseguiu.

        Era verdade. Sergei sentia havia muito a necessidade de outro figurinista, pois o seu pequeno invertido parecia haver perdido o talento.

        — Apesar de tudo, é perigoso. Eu poderia perder tudo.

        — Precisa apenas de alguns anos bons e tudo estaria garantido. Os 15% que ele lhe está oferecendo valem vinte vezes o que consegue aqui. E consentem ainda que você conserve sozinho esta casa aqui.

        — América! Tenho ouvido falar tanto nela, sempre quis ir até lá. E apesar de tudo... tenho medo.

        Irma sorriu.

        — Não tem motivos de preocupar-se. As mulheres americanas não são diferentes das outras. Já deve saber disso. Todas elas gostam do que um homem tem dentro das calças.

        Sergei acendeu um cigarro.

        — Sempre posso contar com você, Irma, para fazer com que eu me veja como realmente sou.

        — É por isso que você é realmente mais conhecido do que o figurinista efeminado que você tem lá embaixo. Não se engane rapaz.

        Sergei tirou uma fumaça do cigarro.

        — Diga-me uma coisa, — disse Irma de repente.

        — Que é?

        — É verdade que não se lembra mesmo da mulher de Lakow?

        — Não, — murmurou Sergei, com uma nota de tristeza no olhar. — Ao contrário, lembro-me muito bem dela.

        — Eu sabia, — disse Irma com satisfação. — Não julguei que você fosse um homem capaz de esquecer-se de qualquer mulher.

 

        — Eu podia estar muito entusiasmado com isso, — disse Sergei depois que o garçom serviu o café. — Mas não estou.

        Giselle nada disse e ficou fitando Sergei com os seus grandes olhos azuis.

        — Tenho trinta e cinco anos e pela primeira vez na vida encontro um lugar para mim mesmo. Não quero arriscar-me a perdê- lo. Acho que é porque me sinto muito a cômodo. Ou será que estou ficando velho?

        — Ora, você é ainda tão moço, — disse Giselle, sorrindo.

        — Mas sinto-me velho. Às vezes, quando penso em minha filha — ela já tem treze anos — vejo como o tempo passa depressa.

        — Como vai Anastasia? — Está indo bem?

        — Tão bem quanto se pode esperar. E ainda há outra coisa: não gostaria de deixá-la aqui e tenho receio de levá-la para um lugar estranho. As coisas já são difíceis para ela como são. Caras novas, uma língua diferente — isso seria demais para ela.

        — As escolas para ela na América são melhores do que as daqui.

        — Parece que você acha que eu devo ir. Pensei que não tivesse gostado da América.

        — Não gostei da América profissionalmente. Mas para você poderia ser um mundo inteiramente novo.

        — Diz isso, mas seria capaz de voltar para lá?

        — Como artista, não. Mas se eu fosse você, ainda jovem e em vista de um mundo para conquistar, não hesitaria.

        Sergei pensou um momento.

        — Não, é impossível. Não posso deixar Anastasia sozinha.

        — Vá, — disse Giselle. — Experimente durante um ano. Se não gostar, poderá voltar. Olharei por sua filha enquanto você estiver fora.

 

        O telefone começou a tocar quando haviam começado a fazer o breakfast em frente à grande janela que se abria para os Champs Elysées. Harvey Lakow se levantou e atendeu.

        — Alô?

        — Sr. Lakow? É o Príncipe Nikovitch.

        — Pode falar.

        — Pensei sobre a sua gentil oferta e resolvi aceitar.

        — Ótimo! Fico muito satisfeito com isso. Garanto que não se arrependerá.

        — Também penso assim.

        — Se estiver livre na segunda-feira de manhã, gostarei de ir até ao seu escritório. Talvez possamos começar a pôr as coisas em movimento.

        — Estou inteiramente às suas ordens.

        Lakow desligou o telefone e voltou para a mesa.

        — Bem, ele vai.

        — Fico satisfeita, — disse a mulher,

        — Quando as Lojas Aliadas souberem disso, vão levar um choque! Ora se vão!

        — Tenho certeza disso, Harvey.

        — Foi uma sorte você ter pensado em Nikovitch. Todos os outros se mostraram desinteressados quando falamos com eles. Como se o nosso dinheiro não servisse para eles.

        — Não se preocupe, Harvey. Vão-se arrepender.

        — Claro que vão! Especialmente quando virem os projetos que temos em relação a Nikovitch. — Tomou um gole de café, fez cara feia e exclamou: — É estranho que os franceses, com tão boa cozinha, não saibam fazer uma xícara de café que preste!

        Ela riu.

        — Achei muito estranho que você se lembrasse dele, mas ele não se lembrasse de você. Por quê?

        — Nada há de estranho nisso, Harvey, — disse ela, voltando os olhos para a janela. — Eu fui provavelmente uma das muitas americanas a quem ele serviu de guia. E ele era tão moço naquele tempo e tão assustado!

        — Se fosse eu, nunca a esqueceria.

        Ela voltou os olhos para ele e por um momento houve neles toda a beleza da sua vida. Ela se curvou sobre a mesa e beijou o rosto do marido.

        — Isso é porque você é você, — murmurou ela, — e porque eu o amo.

 

        O ronco dos motores do DC-7 emudeceu de repente quando o avião atingiu a altitude de cruzeiro e o piloto modificou o passo das hélices. Sergei afrouxou o cinto, ajustou com um botão o encosto, da cadeira, acendeu um cigarro e olhou pela janela. Embaixo, as; luzes de Nova Orleans cintilavam e ficaram para trás enquanto o avião sobrevoava o Golfo do México rumo à península da Flórida.

        — Sr. Nikovitch? — disse Norman Berry, o magro e pálido homem das relações públicas, sentando-se ao lado dele com o habitual maço de papéis na mão e a mesma expressão preocupada no rosto. — Acho que podemos durante um momento passar em revista os planos para amanhã.

        — Depois, Norman. Agora, quero ver se descanso um pouco. Deixe os papéis comigo. Vou examiná-los e chamá-lo-ei quando estiver pronto.

        — Está bem, — disse Berry, levantando-se e deixando os papéis em cima da cadeira. Quando abriu a porta para a cabina da frente, ouviram-se as vozes dos modelos que conversavam animadamente.

        Sergei olhou as folhas mimeografadas. O primeiro parágrafo estava assim redigido: “Promoção do Príncipe Nikovitch. 19 de setembro de 1951. Miami, Flórida. Recepção no Aeroporto, 9 horas. Comissão de Recepção: Prefeito, Conselho Municipal, Câmara de Comércio de Miami, Loja de Departamentos Bartlett’s (A-F Miami), repórteres, fotógrafos, pessoal de jornais cinematográficos e da TV”.

        Tudo estava ali, marcado e detalhado, de minuto a minuto, como um horário de trem. Nada era esquecido. E assim continuava pelo resto do dia até à meia-noite, quando o avião partiria de novo no seu vôo final para Nova York. Sergei largou o papel e correu os olhos pelo avião.

        Irma Andersen já estava dormindo, com a boca entreaberta. Sergei não se cansava de admirá-la. Ele era mais moço, muito mais moço do que ela e, entretanto, sentia-se exausto. Onde ela encontrava o impulso e a energia para fazer o que fazia durante o dia inteiro? Já estavam naquilo havia dez dias, tendo começado em Nova York. Depois, San Francisco, Chicago, Los Angeles, Dallas, Nova Orleans. Voavam à noite. Uma grande cidade todos os dias.

        E não tinha sido só aquela viagem. Todo o ano anterior tinha sido de uma atividade febril. Só então ele estava começando a compreender o poder e o impacto dos negócios nos Estados Unidos. Não era de admirar que os homens de negócios americanos conquistassem o mundo e, depois, morressem moços. Nunca paravam um só momento, nem por coisa alguma.

        Tudo havia começado menos de dois meses depois de haver falado com Lakow em Paris. Começara inocentemente como uma pedrinha que se joga na água e que vai encrespando a superfície em círculos cada vez maiores. Só uma linha impressa. Mas, de repente, começou a aparecer em milhares e milhares de anúncios, colocados pelas lojas A-F em todo o país.

        Vestido — ou chapéu ou sapatos ou o que fosse — da Coleção do Príncipe Nikovitch.

        Maquilagem pelo Príncipe Nikovitch — o Selo Genuíno da Beleza.

        E tudo isso muito antes de haver começado a produção de um só artigo. Assim, aquilo sempre havia parecido a Sergei uma corrida desesperada contra o tempo. Tudo estava acontecendo simultaneamente nos escritórios de cobertura do 70o andar do edifício A-F em Nova York. Era um pandemônio contínuo que fazia o dia mais atarefado que ele já havia passado em Paris parecer um feriado.

        Havia três salas de conferências ao lado do seu escritório e em muitas ocasiões até essas três não bastavam. Ele corria de uma para outra. Tudo era dividido em departamentos e extremamente especializados e, apesar disso, coordenado de uma maneira que só os americanos pareciam capazes de conseguir. E entre todas as reuniões, havia sempre a imprensa, a publicidade que nunca esmorecia.

        Ele era o símbolo, o nome, toda a campanha. Tiravam fotografias dele em todas as estréias da Broadway, na época, nos bailes de caridade, nos importantes acontecimentos sociais. Irma Andersen exercia uma vigilância constante para que o nome dele aparecesse em todas as colunas prestigiosas duas vezes por semana no mínimo. Não se passava um dia sem que em algum ponto dos Estados Unidos aparecesse uma entrevista dele. Não se passava uma semana sem que a sua voz fosse ouvida no rádio ou sem que o seu rosto aparecesse na televisão num dos muitos programas especiais para as mulheres.

        Alguns meses antes, Norman Berry havia entrado no seu escritório, muito agitado, com um exemplar de Advertising Age na mão.

        — Conseguimos! Conseguimos!

        Sergei levantara a vista.

        Conseguimos o quê?

        — Advertising Age diz que você é agora o homem mais conhecido na publicidade americana. Mais conhecido até do que o Comandante... o Comandante...

        — Que comandante?

        — Comandante Whitehead! O tal das bebidas!

        — Ah, sim, — disse Sergei, olhando-o ironicamente. — Não acha que está deixando passar uma oportunidade? Talvez fosse bom acrescentar uma marca de vodca à nossa linha. Vodca Príncipe Nikovitch!

        — Uma ideia genial! — exclamou Berry, entusiasmado. Depois, olhou para Sergei e murmurou: — Você está brincando...

        Sergei sorriu.

        — Estou achando tudo confuso. Nunca me aconteceu nada de parecido com isso!

        — Nem a mim, — murmurou calmamente Sergei.

        A data marcada tinha sido 10 de setembro em Nova York. A coleção seria apresentada exatamente como o fora em Paris. Até os modelos tinham sido levados de avião pela Air France. Depois, tomariam todos um avião especialmente fretado e voariam de cidade em cidade para apresentar a coleção. Dez dias.

        Lakow tinha tido razão. Sergei apanhou o número do Women’s Wear Daily que estava ao lado dele na cadeira. Um grande título estava ali estampado:

        NIKOVITCH! VINTE MILHÕES NO PRIMEIRO ANO?

        Harvey Lakow em pessoa estava no aeroporto quando o grande avião pousou em Nova York na manhã seguinte. Entrou no avião antes que alguém tivesse oportunidade de saltar.

        — Tinha de ver você antes dos jornalistas!

        — Os jornalistas? — perguntou Sergei. — Que é que eles querem? A excursão terminou ontem.

        — Você não compreende, — disse Lakow, sorrindo. — Querem falar com você. Você é notícia. O que de maior aconteceu na moda americana nestes últimos cem anos!

        — Meu Deus! — exclamou Sergei, deixando-se cair na cadeira. — Só quero é me jogar na cama e dormir durante três dias!

        — Não terá muito tempo para dormir, meu velho. Temos de conservar a bola em movimento. Já está na hora de começar a fazer os planos para a primavera!

        Sergei olhou-o sem saber o que dizer.

        — Ah! Antes que me esqueça, — disse Lakow. — Os diretores e gerentes das lojas A-F vão oferecer-lhe um jantarzinho hoje à noite no “21” em homenagem ao magnífico trabalho que você tem feito. Iremos todos com nossas esposas, que estão ansiosas por conhecê-lo.

        Como sempre acontecia, o dia quase não chegou para tudo o que era preciso fazer. Sergei mal teve tempo de vestir o smoking e ir para o restaurante. Quando a série de apresentações terminou, ele se viu por um instante sozinho com Myra Lakow.

        Ela havia mudado muito pouco e, menos do que tudo, os olhos. Eram ainda do mesmo azul-escuro.

        — Muito obrigado por ter-se lembrado de mim, — disse Sergei em voz baixa.

        O sorriso era exatamente o mesmo.

        — Muito obrigada por não ter-se lembrado de mim. — O sorriso desapareceu. — Naquele tempo, eu queria sentir-me jovem e livre.

        — E agora?

        Ela olhou afetuosamente para o marido no outro extremo da sala.

        — Agora? Agora, estou contente e muito feliz de viver de acordo com a idade que tenho.

 

        O modelo tinha a expressão de enfado habitual na sua profissão. A blusa de chiffon se enrugou quando ela se virou.

        — Vamos ver a outra, — disse Sergei.

        Sem mudar de expressão, ela desabotoou a blusa e tirou-a. Os seios pequenos e duros tinham sido levantados um pouco pela armação do soutien. Displicentemente, ela ajeitou os seios e começou a abotoar a outra blusa.

        Sergei examinou-a. Agora, a blusa estava bem ajustada e caía bem, desenhando o busto sem enrugamentos desagradáveis. Mas por baixo do chiffon via-se claramente o soutien, que era o centro do problema.

        Na França, isso não teria tido a menor importância. As francesas esperavam que os seus soutiens fossem visíveis por baixo das suas blusas leves. Era por isso que usavam tantas blusas interessantes — de rendas, de babados, de cores alegres. Mas as americanas eram diferentes. Achavam de mau gosto mostrar o soutien. Usavam combinações sobre eles e o resultado era que as blusas de chiffon, fossem feitas como fossem, nunca vestiam bem.

        Sergei olhou para o figurinista e sacudiu a cabeça.

        — Acho que ainda não conseguimos.

        O figurinista dispensou o modelo e perguntou a Sergei:

        — Como é que vamos fazer? Essas blusas fazem parte integrante da nossa programação para a linha da primavera.

        — Você não tem culpa, — disse Sergei. — A culpada é a mulher americana. Embora todo mundo saiba que ela usa soutien, persiste em criar a ilusão de que isso não acontece.

        — Vou tentar de novo.

        — Está bem, mas não espere demais. A não ser...

        — A não ser o quê?

        — Seria possível fazer um soutien do mesmo chiffon da blusa?

        — Não. A fazenda não tem consistência bastante.

        — E não poderia se cobrir de chiffon um soutien comum?

        — Isso, sim, — disse o figurinista com o rosto sorridente. — Mas o estampado teria de ser escolhido com muito cuidado. Se as flores forem muito grandes, pode ser que não dê resultado.

        — Experimente isso. Se der resultado, poderá ser uma sensass para a linha da primavera. — Sorriu. — Poderíamos até chamá-lo de sensass!

        — Sensass?

        — Gíria francesa. Quer dizer “sensacional”.

        O desenhista riu.

        — Boa noite.

        — Boa noite, — disse Sergei. Pegou depois o telefone. — Quer pedir ao Sr. Berry que venha falar comigo?

        Levantou-se da mesa e espreguiçou-se. O relógio na capa do seu caderno de compromissos estava marcando seis horas. Foi até à janela. Estava quase escuro e as luzes de Nova York tinham começado a acender-se.

        Virou-se quando Norman entrou.

        — Só quero ter certeza. Que é que eu tenho para fazer esta noite?

        — Pensei que já lhe tivesse dito. Não há nada para esta noite.

        Sergei sentou-se à sua mesa.

        — Quer dizer que eu não tenho nada para fazer?

        — Exatamente.

        — Estou livre, de folga, podendo fazer o que quiser? Até mesmo me deitar com uma mulher?

        — É verdade! Eu nunca havia pensado nisso!

        — Pensado em quê?

        — Mulheres. Eu tinha de algum modo a impressão de que você tinha tudo o que queria.

        Sergei riu.

        — Como era possível? Quando foi que você já me deu um minuto para mim mesmo?

        — Vou dar um jeito nisso agora mesmo, — disse Norman, correndo para o telefone.

        — Não se dê a esse trabalho. Estou cansado demais. Quero é ir para casa, tomar um bom banho quente e jantar. Às dez horas, estarei na cama.

        — Sério?

        — Positivo.

        Mais tarde, quando saiu do edifício, o chofer saltou do Rolls- Royce preto e ouro que a companhia pusera à sua disposição, para abrir-lhe a porta.

        — Para casa, Johnny, — disse Sergei, bem-humorado. — Depois, pode ter folga por hoje.

        — Muito bem, patrão. Até que vou gostar.

        Sergei olhou para a rua. Teve a impressão de que o tráfego estava mais movimentado e os passeios pareciam repletos de gente.

        — Que movimento esta noite! Que é que há, Johnny?

        — Será assim todas as noites durante três semanas, patrão. É o tempo que falta para o Natal. E eu vou aproveitar a folga desta noite para comprar uns presentinhos para os garotos e para a patroa.

        Sergei recostou-se pensativamente no carro. Natal daí a três semanas. Fazia já quinze meses que ele havia saído de Paris.

 

        Eram 9:45. Sergei havia acabado de jantar e estava vendo televisão quando a campainha da porta tocou.

        — Entre, — disse ele, pensando que era o garçom que tinha ido buscar os pratos do jantar.

        Um momento depois, a campainha tomou a tocar e ele foi até à porta. Quando abriu, viu no corredor uma moça bonita e alta.

        — Príncipe Nikovitch?

        — Sim?

        — Posso entrar? — Sem esperar resposta, passou por ele e chegou à sala. — Sou Jackie Crowell. Norman Berry me mandou vir aqui e me pediu que lhe entregasse isto.

        Sergei abriu o envelope. Dentro havia um cartão de visita no qual estava escrito apenas: “Divirta-se”.

        Sentiu-se estranhamente embaraçado. Ficou com o rosto todo vermelho pela primeira vez desde o seu tempo de garoto.

        — Acho que houve um engano. Como vê, acabei de jantar e não pretendia sair esta noite.

        — Não tem importância, — disse a moça, sorrindo. — Nem eu.

        Tirou a capa de mink e jogou-a em cima de uma cadeira. Devia conhecer bem o hotel porque foi diretamente para o quarto.

        Quando Sergei chegou à porta, ela já havia tirado o vestido e estava ali sorrindo, vestida apenas com o soutien e as calcinhas. Levou as mãos às costas para desabotoar o soutien.

        — Por favor, não faça isso.

        Ela hesitou um momento, fazendo uma cara de espanto.

        — Você não é invertido, é? Em geral, conheço quem é no mesmo instante.

        — Não, não sou. Estou apenas cansado, muito cansado.

        — Oh! — disse ela, de novo sorrindo e desabotoando o soutien. — Então, está bem. Norman me disse que você tem trabalhado demais. Mas não se preocupe. Você não vai precisar fazer nada. Deixe tudo por minha conta.

        Sergei olhou para os seios dela. Foi só nesse momento que compreendeu até que ponto estava americanizado. Eram firmes, cheios, com bicos fortes, símbolos, do sexo e o calor cresceu por dentro dele. Quase como se estivesse hipnotizado, entrou no quarto e fechou a porta com o pé.

        A mulher olhou para o rosto dele e riu.

        — É muito engraçado ver a rapidez com que os homens esquecem que estão cansados quando vêem bem os meus peitos.

        No outro dia de manhã, Sergei estava estendido na cama, vendo-a acabar de passar o batom nos lábios. Depois, foi até à sala e voltou com a capa de mink passada

                pelos ombros. Chegou junto da cama e olhou para ele.

        — Está-se sentindo bem?

        Sergei colocou preguiçosamente as mãos debaixo da cabeça no travesseiro.

        — Muito bem.

        — Você se sentiria ainda melhor se não fosse uma coisa.

        — Que coisa?

        — Se você não estivesse amando.

        — Amando? — exclamou Sergei e começou a rir. De repente, parou. — Por que é que diz isso?

        — Sou profissional e sei perfeitamente quando o camarada se interessa apenas um pouco ou de verdade. Você não se interessou de verdade.

        — E tenho de me interessar? — replicou ele, de repente aborrecido. — Mas do que você?

        Ela o olhou um instante e disse:

        — Acho que não. — Foi até à porta. — Bem, se não nos encontrarmos mais, Feliz Natal!

        — Boas Festas! — respondeu Sergei, mas ela já havia saído. Ouviu a porta da frente fechar-se. Mais zangado consigo mesmo do que com ela, deu um soco no travesseiro. Era só de que ele precisava por cima de tudo mais. Feliz Natal de uma puta!

        Olhou para o telefone. Pegou-o impulsivamente.

        — Quero falar com Harvey Lakow em Palen Beach, Flórida. Menos de um minuto depois, Lakow estava ao telefone.

        — Harvey, preciso tirar férias!

        — Pelo amor de Deus, agora não! Agora é que começamos a cortar os vestidos!

        — Já estou fora de casa há quinze meses! — gritou Sergei irritado. — Já faz esse tempo todo que não vejo minha filha e não vou passar o Natal sem ir vê-la!

        — Isso não é problema, — disse Harvey com voz já calma. — Já não é tempo de você compreender que está morando definitivamente em Nova York? Mande buscá-la de avião.

        Os repórteres cercaram Sergei e vários flashes se acenderam.

        — Príncipe Nikovitch, olhe para cá um momento.

        Virou-se e outro flash se acendeu diante dele.

        — Sua filha saiu parecida com a mãe? — perguntou um deles.

        Sergei sorriu.

        — Espero que sim. Sue Ann é uma mulher muito bonita.

        — Há alguma razão especial para que Miss d’Arcy venha com sua filha? Há alguma coisa entre os dois?

        — Não. Giselle é apenas uma velha e querida amiga. Chegamos à conclusão de que a menina não devia viajar sozinha.

        Os alto-falantes anunciaram o pouso do avião.

        — Miss Daley irá ver a filha enquanto estiver em Nova York? — perguntou outro repórter.

        — Espero que sim, — respondeu Sergei. — Agora, por favor, chega. O avião já desceu e eu estou ansioso por ver minha filha.

        Tinha sido muito bom Norman ter-lhe arranjado um passe especial da alfândega. Os repórteres o deixaram e ele transpôs o portão mostrando o passe. Atravessou a longa sala e chegou à Imigração.

        Pareceu uma hora, mas elas chegaram à porta alguns minutos depois. Sergei passou para a outra mão o grande urso de pelúcia e as flores e deu adeus. Giselle foi quem primeiro o viu e apontou-o a Anastasia. A criança viu-o, sorriu e começou a correr para ele. Um funcionário da imigração viu-a e levantou a mão para fazê-la parar. Mas olhou para Sergei e sorriu, deixando-a passar.

        Ficando tímida de repente, ela parou pouco antes de chegar aonde ele estava. Sergei pôs um joelho no chão e estendeu o urso para ela. Os cabelos dourados e os olhos azuis eram de Sue Ann sem dúvida. Mas havia na criança uma delicadeza que não vinha da mãe.

        — Bonjour, Anastasia. Joyeux Noël. Bienvenue a Nova York.

        — Alô, papai, — disse ela num inglês com um sotaque apenas leve. — Feliz Natal.

        Segurou então o urso e caiu nos braços do pai, cujos olhos estavam úmidos, enquanto ele a abraçava e beijava.

        — Está falando inglês! Como foi que aprendeu, quem foi que lhe ensinou?

        Anastasia falou pausadamente e com muito cuidado.

        — Tante... ah, Tia Giselle me ensinou.

        Olhou para ele, depois para Giselle e sorriu orgulhosamente.

        Sergei voltou-se a tempo de ver o sorriso cheio de amor com que Giselle respondeu à menina. Compreendeu então muitas coisas. A prostituta havia acertado e ele tinha sido muito errado. Levan- tou-se lentamente.

        Entregou as flores em silêncio. Giselle recebeu-as em silêncio e caiu nos braços dele. Os lábios dela tremiam quando ele a beijou.

        — É um milagre, — disse ele baixinho. — Como poderei jamais agradecer-lhe?

        — Não, não é milagre nenhum. Anastasia sempre precisou mesmo de uma mãe.

        — Casaram-se na manhã de Natal na casa de Harvey Lakow em Palm Beach.

 

        — Marcel é um louco, — disse Jeremy. — Começou a pensar que era mais importante do que o governo. A pior coisa que ele poderia ter feito era ter levado o caso para os tribunais. Não podia deixar de perder ali.

        O Barão apanhou um charuto e perguntou:

        — Condenaram-no a dezoito meses de prisão, não foi? Mas ele não tinha o direito de apelar?

        — A apelação foi denegada. E Marcel fez tanto barulho em torno de tudo que o juiz, embora estivesse inclinado a suspender por tempo indeterminado a execução da sentença, não teve outro remédio senão fazê-la cumprir.

        — É isso o que acontece quando se contam muitas mentiras. Mais cedo ou mais tarde, a pessoa se dá mal. A sentença não pode ser reduzida em virtude do bom comportamento na prisão?

        — Pode. Daqui a seis meses, estará em condições de obter livramento condicional, desde que saiba calar a boca e proceder bem.

        — Como acha que isso vai repercutir sobre ele?

        — Nos negócios dele? — perguntou Jeremy. — No que ele já tem, não deve influir muito. Mas, se Marcel tem planos para o futuro, deverá agir com muito cuidado. Já está marcado e o público vai observar de perto tudo o que ele fizer.

        O Barão ficou pensando. Já havia mentalmente decidido não renovar o título de Marcel nas linhas Campion-Israel. Isso forçaria Marcel sem dúvida a dispor da sua garantia, mas os israelenses poderiam facilmente tomar conta da companhia de navegação já bem próspera e indenizar Marcel. Com o auxílio do seu Banco, é claro.

        — O seu presidente mostrou muita coragem destituindo Mac- Arthur, — disse ele a Jeremy.

        — Não podia fazer outra coisa. Se deixasse MacArthur no comando, dentro em pouco nos veríamos metidos em outra guerra mundial.

        — Não posso compreender a mentalidade dos militares, — disse o Barão. — O MacArthur de vocês e o nosso De Gaulle são muito parecidos. Cada qual pensa que é um deus. Embora, sem dúvida, MacArthur seja um deus na versão protestante.

        Jeremy riu.

        — Parece que os franceses colocaram De Gaulle no desvio. O partido dele não se mostra muito forte.

        — O R.P.F. é       uma pilhéria. Desaparecerá daqui a mais alguns anos. Mas com De Gaulle não vai acontecer o mesmo. Ele não vai sair de cena como o velho soldado americano.

        — Que é que ele pode fazer então?

        — Pode esperar, — respondeu o Barão. — Sabe muito bem que os franceses não estão tão apegados aos processos democráticos quanto os americanos. Na França, há muitos partidos políticos — há quem diga que um para cada francês — e o poder sempre é mantido por meio de coligações. E desde que há novas coligações todos os dias, também há novos governos. De Gaulle sabe disso do mesmo modo que sabe que a falta de continuidade no governo levará inevitavelmente à ruína. Assim sendo, vai esperar e voltará na hora exata. Será então o fim da Quarta República.

        — E o povo tolerará isso?

        O Barão sorriu.

        — É um erro que vocês, americanos, cometem com muita frequência. Estão de tal modo habituados a um governo democrático que esquecem que com outros povos não se dá o mesmo. O francês médio, como o europeu médio, está sempre disposto a arrojar-se no chão diante de um homem forte. Tivemos decerto a nossa revolução antes da de vocês, mas ainda seguimos cegamente o chefe mal ele aparece. Napoleão voltou. De Gaulle poderá também voltar.

        — Não está querendo insinuar que ele pensa em restaurar a monarquia e ser o rei?

        — Quem sabe? Só De Gaulle e ele nada diz a ninguém. Mas uma coisa é certa — ele voltará e para dominar, não para governar. E talvez tenha razão. Pode ser que a única maneira de fazer a França recuperar a sua altivez e o seu prestígio seja forçá-la a isso.

        Depois que Jeremy saiu, o Barão recostou-se cansadamente na cadeira e fechou os olhos. Mais um ano, pensou ele, e Robert estará em condições de tomar conta de tudo. Poderei então descansar. O pior sempre foi dizer as coisas que os outros queriam ouvir e ainda por cima dizer as coisas que tinham de ser ditas. Talvez estivesse enganado, mas tinha a impressão de que alguns anos atrás tudo era muito mais simples.

        Pensou no homem jovem que acabara de sair e sorriu. Gostava de Jeremy — da sua vivacidade, do seu descortino e até do seu estranho idealismo americano. Com um homem assim é que Caroline devia ter-se casado. Era muito estranho que ela tivesse gostado do pai dele. E talvez não fosse tão estranho assim. Em muitas coisas, o pai era muito parecido com o filho.

        Jeremy ainda teria alguma coisa com a alemã? Haviam dito que os dois iam casar-se, mas já passara muito tempo e nada acontecera. Talvez essa possibilidade estivesse afastada.

        Uma ideia passou de repente pela cabeça do Barão. Hesitou um instante com a mão na direção do telefone e afinal pegou o receptor. Por que não? Não era um projeto assim tão absurdo. Não seria a primeira vez que um filho se casaria com uma mulher que tinha sido amante de seu pai.

        Denisonde atendeu o telefone. O Barão lhe disse que organizasse um jantar para a noite de sábado e não se esquecesse de convidar Jeremy Hadley.

 

        Marlene estava zangada, Jeremy conhecia todos os sinais. Quando voltavam de carro para o hotel, ele olhou para ela uma ou duas vezes, mas ela conservou o rosto firmemente voltado para o outro lado. Mas só depois que chegaram ao apartamento foi que ela explodiu.

        — Que vão para o diabo! — exclamou, jogando iradamente a bolsa no outro lado da sala. — Nunca mais quero ver aquela gente, nenhum deles!

        — Por quê? Achei até o jantar muito agradável!

        — Então você é mais cego do que eu pensava! Não viu o que o Barão estava fazendo?

        — Não. Quer-me dizer o que foi?

        — Estava jogando a filha em cima de você, aí está o que foi! A noite toda era só Caroline isto, Caroline aquilo! Não notou?

        — Não observei nada disso. É a sua imaginação que a está fazendo ver fantasmas.

        — Não é não! E não viu também como foi que me trataram? Como se eu não existisse! Você se sentou na cabeceira da mesa, defronte de Caroline e ao lado do Barão. E a mim me jogaram no outro canto da mesa, entre dois ilustres desconhecidos!

        — Pare com isso, Marlene. Estou muito cansado agora para discutir com você. Além do mais, isso é uma coisa inteiramente absurda. Caroline e eu somos bons amigos há muitos anos.

        — Não vejo nada de absurdo nisso. Caroline serviu para seu pai e o Barão acha que deve servir para você também. Todo mundo sabe que ela foi       amante de seu pai!

        O rosto de Jeremy       ficou de repente muito branco.

        — Pare com isso,       Marlene! Você já falou demais!

        Mas ela não podia       parar.

        — Não me venha com essa hipocrisia de falar na santidade dos Hadleys! Conheço de sobra sua família! Pensa que não sei da segunda família que seu irmão mais velho tem numa casinha em Brooklin? E da estrela do cinema mudo que seu pai ainda está sustentando? Sei também do que seu irmãozinho Kevin faz com os rapazes bonitos com quem anda em Nova York e sei que suas irmãs gostam muito de trocar de maridos nas festas de fim-de-semana.

        A voz de Marlene se estrangulou na garganta quando ele a agarrou pelos ombros e começou a sacudi-la violentamente.

        — Pare com isso! Pare! Pare!

        Ela cambaleou atordoada quando ele a largou e quase perdeu o equilíbrio. Deixou-se cair numa poltrona e ficou a olhá-lo, com o peito arfante.

        — Com certeza já está em tempo de me bater, como Fritz fazia, — murmurou ela ironicamente.

        — Não, — disse Jeremy, sacudindo a cabeça. — Era disso que você gostaria, hem? Isso aplacaria o seu sentimento de culpa alemão, não era?

        — Ao menos, não sou como ela, que se ofereceu primeiro ao pai e agora se oferece ao filho. Mas isso não é de estranhar numa francesa. Os soldados me contaram como elas viviam correndo atrás deles nas ruas, levantando as saias.

        Uma calma gelada descera sobre Jeremy.

        — Não acha que essa história está mal contada? A primeira vez que a ouvi eram as alemãs que faziam isso, primeiro com os russos e depois com os americanos.

        — É isso o que você realmente acha? Fui eu que corri atrás de você?

        — Há qualquer outra maneira de interpretar os fatos? Não se esqueça de que foi você que me telefonou.

 

        O secretário do Presidente levantou-se quando Jeremy entrou no seu gabinete e estendeu-lhe a mão.

        — Vê-lo é sempre um prazer, Congressista.

        O aperto de mãos foi firme, mas breve. Jeremy não fez referência ao fato de ter sido chamado de congressista. O secretário sabia muito bem que ele não fazia mais parte do Congresso.

        — Sente-se, — disse gentilmente o secretário. Empurrou uma caixa de charutos na direção de Jeremy.

        — Não, muito obrigado, vou fumar dos meus, — disse Jeremy, tirando do bolso o maço de cigarros.

        O secretário entrou diretamente no assunto.

        — O Presidente leu as suas cartas com muito interesse. Apreciou muito dos vários pontos abordados e me pediu que lhe externasse a sua gratidão.

        Jeremy fez um sinal de assentimento. Não falou porque não tinha de falar.

        — Conversamos muito sobre a questão da sua nomeação. E o Presidente chegou à conclusão de que a ocasião ainda não é oportuna.

        — Sim? Mas o Senador me deu a impressão de que o assunto já estava resolvido.

        O secretário sorriu.

        — Creio que o Senador entendeu mal as coisas. É um pouco jovem, sabe, às vezes deixa-se levar pelo entusiasmo.

        — Acha? — murmurou Jeremy. O homem não estava dizendo coisa com coisa. O senador podia ser jovem, mas não em política. Principiara a fazer política ainda no berço. E nunca entendera mal coisa alguma.

        — Estamos num ano de eleições, — continuou calmamente o secretário, — e o novo presidente esperaria o seu pedido de demissão como coisa natural. Nestas condições, por que pôr tudo a perder com uma nomeação interina? Julgamos que seria melhor não fazer a nomeação por enquanto.

        — O Presidente pensa assim também?

        O secretário franziu as sobrancelhas. Não gostava de ser interpelado.

        — É claro, — respondeu geladamente.

        O senador estava à sua espera e Jeremy foi levado imediatamente ao gabinete dele.

        — Então, Congressista? — perguntou ele ao ver Jeremy entrar.

        — Então, Senador?

        — Fomos tapeados, Jeremy.

        — Já sabe?

        — Já, — disse o senador. — O Presidente me telefonou hoje de manhã da Casa Branca.

        — Por que não me disse então? Por que me deixou ir até lá?

        O senador sorriu.

        — Queria que visse por si mesmo que não faltei com a minha palavra.

        — Nunca iria pensar numa coisa dessas!

        — Muito obrigado, Jeremy.

        — Por que será que deu terra?

        — Não preciso ficar pensando. Já sei. Não foi o Presidente e não foi o Departamento de Estado. Isso deixa em aberto apenas uma possibilidade.

        — Nosso amigo o secretário?

        — Sim.

        — Mas por quê? Sempre me dei muito bem com ele.

        — Acho que ele não gosta de gente de Harvard, — disse o senador, sorrindo. — O imbecil é de Yale. — O sorriso lhe desapareceu do rosto. — Sinto muito, Jeremy.

        — Ora, não tem importância. Era bom, mas não deu certo.

        — Quais são os seus planos' agora?

        — Não sei. Ainda não pensei muito nisso.

        — Vai à convenção?

        — É claro. Não a perderia por nada.

        — Vamos apoiar Stevenson.

        — Acha que os republicanos conseguirão convencer Eisenhower a ser candidato?

        — Não creio que tenham muito trabalho em convencê-lo, — replicou o senador. — Eles preferem ter Taft como candidato mas, antes de mais nada, querem vencer. Vão indicar Eisenhower.

        — Ike dará um passeio.

        — Também acho, — disse o senador. — De certo modo é uma pena porque tenho a certeza de que Stevenson seria um ótimo presidente. Escute, Jeremy. Com um presidente republicano, precisamos de toda a ajuda possível no Congresso. Ainda está em tempo de você se apresentar.

        — Não, muito obrigado. Não é mais meu campo. Sempre fui um amador. Deixo o caminho livre para vocês que são profissionais.

        — Se os republicanos vencerem, eu talvez não possa fazer nada por você durante muito tempo.

        — Não faz mal. Compreendo.

        O senador levantou-se.

        — Bem, se tomar alguma decisão, procure-me. Talvez possa ajudá-lo mais do que ajudei neste caso.

        — Está bem, — disse Jeremy, levantando-se também. — Terei de pensar em alguma coisa depressa ou meu pai não me dará descanso.

        — Eu sei, — disse o senador, sorrindo. — Também tenho um pai.

        De fato, foi o pai dele que arranjou a proposta do jornal, como lhe disse o proprietário, quando almoçavam no “21”.

        — Estava jantando há algumas noites em casa do seu pai. Surgiu uma discussão sobre a política francesa e seu pai, para provar o seu ponto de vista, foi buscar um maço das suas últimas cartas. Li uma delas e fiquei interessado. Li outra e mais outra. Por fim, perguntei a seu pai se podia levá-las. Naquela noite, fiquei acordado até três horas da madrugada, lendo-as. Pensei a princípio que deviam ser reunidas em livro, pois você sabe escrever mesmo. Mas, depois, pensei diferentemente. A grande coisa nelas é que tinham sido escritas quando os fatos ainda estavam frescos em sua cabeça. Com uma facilidade de escrever como essa, o caminho lógico seria uma coluna num jornal. Está interessado?

        — Todos os dias? Não sei. Na verdade, não sou um escritor.

        — Quem é que é? Houve uma ocasião em que parecia que a única condição para ser romancista era ter servido nas Forças Armadas durante a guerra. Antes disso, houve muita fé nos motoristas de caminhão. Na minha opinião, o essencial para ser um colunista é escrever de maneira agradável e ter alguma coisa para dizer. Ora, você diz o que pensa com simplicidade e clareza.

        — Se quiser simplicidade, veio falar com a pessoa certa, — disse Jeremy, rindo.

        — Vai então pensar no assunto?

        — Poderia pensar, se soubesse sobre que é que vou escrever.

        — Escute, as convenções vêm aí. Por que não vai a ambas e me manda algumas colunas sobre o que está acontecendo? Não para publicação, é claro, mas para vermos o que é que sai e encontrarmos a fórmula certa.

        — Está bem, — disse Jeremy. — Vou tentar. Mas creio que só vai servir para ver como eu não dou mesmo para uma coisa dessas.

        Mas a primeira coisa que escreveu mostrou que ele é que estava errado. Depois de um telefonema urgente do homem do jornal, que pedia autorização para publicar, pedido a que Jeremy, receoso e muito a contragosto, acedeu, a coluna foi publicada em todo o país no dia em que a convenção principiou.

        Tinha o título: “Num País Estrangeiro”.

        O primeiro parágrafo estava assim redigido: “Os países estrangeiros através do mundo são todos muito parecidos. O homem da rua parece feliz em ver os americanos e gostar deles. Só os políticos, os empregados de hotel e os choferes de táxi parecem detestar-nos. Chicago é igualzinho a qualquer outro país estrangeiro”.

        Um ano depois, a coluna estava aparecendo três vezes por semana em mais de duzentos jornais.

        Em Paris, o Barão acabou de ler aquela primeira coluna na edição européia do New York Times e perguntou a Caroline, que estava ao lado dele na mesa do café:

        — Leu isto?

        — Li e achei muito interessante.

        — É um moço muito inteligente.

        — Sim, muito.

        — É estranho, — disse o Barão, franzindo as sobrancelhas, — mas nunca mais tivemos notícia dele depois daquele jantar.

        — Denisonde recebeu um belo apanhado de rosas e um cartão de agradecimento.

        — Mas e você? Ele nunca telefonou nem se comunicou com você?

        — Não, — disse Caroline, sorrindo intimamente. Pobre Papa, ficava sempre mais exposto quando pensava que estava sendo mais hábil e secreto. Não pôde resistir ao prazer de mexer com ele.

        — Por que iria ele procurar-me, Papa? — perguntou inocentemente.

 

        A empregada sacudiu delicadamente o ombro de Amparo.

        — Perdón, Princesa. Seu pai está lá embaixo e quer falar-lhe. Amparo sentiu as têmporas latejarem quando se sentou na cama. Tinha um gosto horrível na boca. Olhou para o rosto ansioso da empregada e perguntou:

        — Meu pai?

        — Sí, Princesa! — disse a empregada, lançando um olhar para o homem nu que estava estendido na cama ao lado dela. — Sua Excelência está com muita pressa!

        Amparo pensou um instante. Devia ser alguma coisa muito grave para o pai ir procurá-la tão cedo. Era a primeira vez que fazia isso.

        — Diga-lhe que já vou descer.

        — Sí, Princesa, — disse a empregada, saindo apressadamente do quarto.

        Amparo voltou-se para o homem na cama.

        — Fique aqui. Eu lhe mandarei dizer quando ele for-se embora.

        Ela estendeu a mão para o negligê jogado em cima de uma cadeira. Nesse momento, a porta se abriu e o Presidente entrou.

        — Excelência! — gritou o homem, cheio de terror, dando um pulo da cama e procurando ficar em posição de sentido.

        O Presidente passou por ele como se ele não existisse. Olhou severamente para Amparo.

        — Preciso falar imediatamente com você!

        Ela segurou o negligê sobre o corpo e olhou primeiro para o pai e, depois, para o homem.

        — Jorge, não seja cretino! Não pode         haver         no mundo nada mais ridículo do que um soldado nu tentando ficar em posição de sentido! Vá saindo!

        O homem pegou febrilmente as roupas e fugiu. Quando a porta se fechou, Amparo voltou-se para o pai.

        — Que é que há?

        — Sei que não se interessa muito pelo que seu marido está fazendo, — disse ele, — mas podia ao menos comunicar-me que ele vai chegar hoje.

        — Hoje?

        — Sim, hoje!

        — Não sabia de nada, — disse ela, com um sorriso irônico. — Acho que desta vez lhe mandaram a fotocópia e se esqueceram de me mandar o original.

        — Se eu tivesse sabido ao menos ontem, poderia ter tomado providências para que não viesse, — disse o Presidente.

        — Que é que adiantaria isso? Mais cedo ou mais tarde, ele saberia do que o senhor está fazendo.

        — Mas logo hoje! — exclamou o pai, tirando um jornal debaixo do braço. — Logo hoje que El Diario publica um artigo de primeira página pedindo que ele seja submetido a um conselho de guerra por haver covardemente renunciado à sua comissão na Coréia! Diz o artigo que isso foi uma desmoralização para todo o Corteguay!

        — Com certeza, o senhor não sabia do artigo? — perguntou sarcasticamente Amparo.

        — Claro que eu sabia, mas não contava com a presença dele aqui hoje. Se soubesse, o artigo poderia ter saído depois.

        — A culpa é dos seus espiões imbecis e não minha, — disse Amparo, tocando o botão de uma campainha. — Vou tomar café. Quer também?

        — Quero.

        — Irei esperá-lo no aeroporto e lhe explicarei tudo.

        — Você não vai explicar nada. Você não vai nem vê-lo!

        — Não vou nem vê-lo? Mas sou mulher dele. Que é que o povo pensará se eu não for esperá-lo?

        — Pouco me interessa o que o povo pense! Você também é filha do Presidente! Não pode aparecer ao lado de um homem acusado de traição!

        — Ah! É assim que vai ser, hem?

        O Presidente nada disse.

        — Encontrou afinal um meio de livrar-se dele, — murmurou ela. — Eu esperava por alguma coisa assim, logo depois da nossa lua-de-mel, quando os jornais começaram a levantar francamente a hipótese de que ele ia ser o seu sucessor.

        — E você? Foi leal a ele? Mal ele deu as costas, você pulou na cama com o homem que estava mais perto.

        Amparo sorriu.

        — O senhor nunca me convencerá de que eu não sou sua filha. Somos muito parecidos em tudo.

        A empregada chegou com o café e saiu mais que depressa do quarto. O Presidente tomou o café com satisfação e disse:

        — Vejo com prazer que está começando a compreender as coisas.

        — Não vai matá-lo como matou os outros, — disse Amparo friamente. — Eu não deixarei.

        — Não deixará? Que é que você pode fazer?

        — Poucos dias depois da partida de Dax, escrevi um longo relatório. Escrevi tudo o que sabia a seu respeito — o que tem feito, as traições que tem cometido, onde escondeu o dinheiro que roubou, tudo. Esse documento está trancado num cofre na casa- forte de um banco nos Estados Unidos com instruções para que o cofre seja aberto e o documento publicado caso alguma coisa aconteça a Dax ou a mim.

        — Não acredito. Nada seu ou de ninguém sai deste país sem que eu saiba.

        Amparo sorriu e tomou um gole de café.

        — Não? Sabe tanto a meu respeito que com certeza deve saber que fui para a cama com um homem poucos dias depois da partida de Dax. Por acaso, ainda se lembra de quem foi?

        Houve uma curiosa expressão no rosto do Presidente, mas ele nada disse.

        — Foi um adido da embaixada do México que ia para os Estados Unidos. De vez em quando, tenho feito alguns acréscimos. Há muita gente que se sente feliz em fazer um pequeno favor à Princesa em troca de uma noite.

        O Presidente deu um suspiro.

        — Que devo fazer então com ele?

        — Mande-o embora de novo. Ele ainda pode servi-lo de muitas maneiras no exterior. Logo que ele voltar, eu me divorciarei dele. Isso mostrará ao povo que ele perdeu todo o seu prestígio junto a nós.

        — E mandará buscar o seu relatório nos Estados Unidos?

        — Claro que não! Ficará lá como um seguro de vida para mim e para ele!

        O pai olhou-a em silêncio por alguns instantes. Depois, estendeu a mão e agarrou um seio que se mostrava dentro do negligê entreaberto. Apertou-o com toda a força, enterrando as unhas na carne.

        Amparo ficou branca, mas a expressão do seu rosto não mudou, nem mesmo quando gotas de suor lhe encheram a testa.

        De repente, ele a largou. Havia uma curiosa expressão de respeito no seu rosto.

        — Você é igualzinha a sua mãe, — murmurou ele. — Loura por cima, morena por baixo.

 

        Os três soldados ficaram em posição de sentido quando Dax e Gato Gordo saltaram do avião. O tenente ao lado fez continência.

        — Coronel Xenos?

        — Sí.

        — O Presidente pediu que o levasse à presença dele imediatamente. Por aqui.

        Em vez de levá-lo para o portão, passando pela sala da alfândega, o homem levou-o por uma porta ao lado no edifício do aeroporto Dax e Gato Gordo acompanharam-no, mas dois soldados barraram a passagem de Gato Gordo.

        — Você fica aqui, — disse um deles.

        Dax viu Gato Gordo levar a mão ao revólver no cinto. Deteve-o com um gesto.

        — Não estou gostando disso, — murmurou Gato Gordo.

        — De que é que está com receio? — perguntou ele em inglês. Passou então para espanhol. — Estamos em nossa terra. Faça o que o tenente está mandando. Espere por mim aqui.

        Dax acompanhou o tenente. Este o fez passar por vários corredores, levando-o afinal a um pátio interno. Ali, escondido das vistas de todos, estava o automóvel blindado do Presidente. O tenente abriu a porta.

        — Entre, Dax, — disse o Presidente.

        Logo que Dax entrou no carro, a porta foi fechada. As cortinas estavam descidas. Estava fresco dentro do carro e ele percebeu que o ar condicionado estava ligado.

        — Por que não me mandou avisar da sua vinda, meu filho?

        — perguntou o Presidente quase untuosamente. — Felizmente, soube da sua chegada por Amparo.

        — Julguei que não tivesse importância. Onde está Amparo?

        — Está inaugurando uma nova clínica no hospital, — disse o Presidente, olhando para o lado.

        O tenente e o motorista estavam a olhá-lo através do vidro do pára-brisa é cada qual tinha uma automática na mão.

        — Não se incomode com eles, — disse o Presidente. — Não podem ouvir-nos.

        — Não é isso que está-me preocupando, — disse Dax, sorrindo.

        — Ora,       isso é procedimento habitual. São muitos zelosos com a minha proteção. Mas o que quero lhe dizer, meu filho, é que escolheu uma ocasião muito imprópria para voltar. Nunca devia ter renunciado ao seu posto.

        — Não podia fazer outra coisa depois que o senhor deixou de mandar as tropas que prometeu.

        — Tive motivos para isso, problemas de que não pode nem fazer ideia.

        — Mas deu a sua palavra, — replicou Dax, — eu dei a minha. Fiz uso dos meus amigos, das minhas relações. Pedi, adulei, fiz tudo para que lhe mandassem as novas armas. Com certeza, não está pensando que houve alguém que acreditasse no que mandou dizer sobre o prazo de alistamento?

        — Que me interessa o que eles tenham acreditado ou não? — murmurou o Presidente com voz aborrecida. — Havia de novo agitação nas montanhas. Os soldados eram mais necessários aqui do que na Coréia.

        — Desde o princípio, foi tudo         mentira! — exclamou Dax. — O senhor nunca teve a intenção de mandar os soldados. Foi tudo um pretexto para conseguir as novas armas!

        O rosto do Presidente ficou branco de raiva e ele com dificuldade controlou a voz.

        — Já mandei fuzilar muita gente que me disse menos do que isso!

        — Pois mande fuzilar-me também. Ao menos, os meus amigos ficarão sabendo que não tive nenhuma participação com o seu embuste.

        O Presidente ficou         em silêncio por alguns momentos. Quando voltou a falar, foi com       voz calma.

        — Prefiro esquecer os seus insultos, pois sei que foram feitos num momento de raiva. Mas lembre-se de uma coisa. O meu primeiro e único interesse é o Corteguay. Tudo mais no mundo só tem importância em função do Corteguay. Está compreendendo?

        — Compreendo muito bem.

        — Você pode não saber nem ser grato, mas eu lhe salvei a vida vindo aqui esperá-lo.

        Dax ficou calado.

        — Os jornais estão pedindo a sua cabeça. Querem que seja submetido a conselho de guerra por haver abandonado o seu posto em plena luta.

        — Não teria interesse para o senhor dizer a verdade, não é mesmo?

        — Diria se me ouvissem. Mas agora é tarde. A opinião pública está toda contra você.

        — Por que não os fez calarem-se desde o início?

        — A coisa foi muito rápida. Antes que eu pudesse tomar qualquer providência, os jornais já haviam inflamado o povo.

        De repente, Dax começou a rir.

        — Não me admira que tivesse convencido meu pai a acreditar no senhor. Controla tudo o que os jornais publicam. Como espera que eu vá acreditar no que está dizendo?

        O Presidente ficou calado.

        — Está muito bem. Quer que eu volte no mesmo avião que me trouxe?

        — Quero, sim. Ainda há muito que pode fazer por nós no estrangeiro.

        — Isso nunca! Já me usou demais, como usou demais meu pai. Arranje outro.

        — Diz isso porque está aborrecido. Mas você é corteguayo. Um dia, mudará de ideia.

        — Serei sempre corteguayo, mas nunca mudarei de ideia.

        O Presidente nada disse.

        — Gostaria de ver Amparo antes de regressar.

        — Amparo não deseja vê-lo, — disse o Presidente friamente.

        — Pediu-me que lhe informasse que vai requerer divórcio. Sendo minha filha, julgo inconveniente manter relações com você.

        — Está bem, — disse Dax estendendo a mão para abrir a porta. — Estou pronto a voltar.

        — Um momento, — disse o Presidente, fazendo um gesto para o chofer. — O fecho das portas é controlado pelo chofer.

        O tenente saiu do carro e deu a volta para abrir a porta. Dax ia saindo quando a voz do Presidente o fez parar.

        — Vaya con Dios, mi hijo.

        Dax voltou-se. O Presidente estava inclinado para a porta aberta. Tinha no rosto uma curiosa expressão de tristeza. Olharam-se por um longo       momento — o velho cansado, cujo rosto       parecia sulcado por milhares de rugas e o moço desiludido.

        — Gracias, Excelência, — disse Dax. — Vaya con Dios.

        O Presidente mandou fechar a porta e desapareceu dentro do grande carro com as cortinas descidas, que saiu do aeroporto a caminho da estrada. Dax voltou então para o edifício do aeroporto para esperar a partida do avião.

 

        O grande avião levantou vôo. Quando os avisos se apagaram à sua frente, Dax tirou um cigarro. Nesse momento, a aeromoça se aproximou dele.

        — Sr. Xenos? O mensageiro que me trouxe isto me pediu que me entregasse logo que o avião estivesse no ar.

        — Obrigado.

        A aeromoça se afastou e Dax abriu o envelope e leu o seguinte bilhete:

        Dax.

        Sinto muito. Veja se me perdoa.

        Amparo."

        Rasgou o bilhete em pedacinhos e jogou-o no cinzeiro. Depois acendeu o cigarro e olhou pela janela. Estavam-se aproximando das montanhas. As montanhas azuis, pontiagudas, coroadas de neve do Corteguay. Sentiu lágrimas nos olhos e fechou-os, recostando-se na cadeira.

        — Nunca mais as veria.

 

        — Ali, — disse Sue Ann, apontando o lugar onde Dax estava estendido na areia, de bruços.

        — Oui, madame, — disse o empregado, sorrindo. Sue Ann seguiu-o em silêncio por entre os banhistas que já enchiam a praia. O empregado desenrolou o matelas e estendeu uma toalha por cima. Sue Ann tirou um franco da bolsa e entregou-lhe.

        Em seguida, estendeu-se de costas sobre a toalha. O sol estava agradável e quente na sua pele. Espreguiçou-se e virou um pouco de lado.

        Dax estava olhando para ela.

        — Alô.

        — Alô, — disse Sue Ann. Tirou um vidro de óleo para bronzear e começou a aplicá-lo. Depois, estendeu-lhe o vidro. — Quer passar em minhas costas?

        — Claro, — disse ele, tocando-lhe as costas com os dedos fortes.

        Sue Ann olhou para o mar azul. Os barcos a vela estavam saindo cedo naquele dia e, perto da praia, uma         lancha passava rebocando um par de esquiadores aquáticos.

        — Você é um homem difícil de ser encontrado, — disse ela.

        — Nem tanto assim. Desde bem cedo que estou aqui na praia.

        — Li nos jornais a notícia do seu divórcio. Fui para Nova York à sua procura, mas não o encontrei mais lá. Disseram-me que tinha ido para Paris. Lá, soube que havia partido para Roma. Em Roma, apurei que tinha vindo para Cannes. Foi realmente uma surpresa encontrá-lo aqui. Julgava que tivesse voltado já para Nova York.

        Ele já lhe havia passado o óleo pelas costas.

        — Chega?

        — Chega. De que é que está fugindo?

        — Não estou fugindo de coisa alguma. Apenas, nada tinha         de melhor para fazer.

        — E a atriz sua amiga? — perguntou Sue Ann, correndo os olhos pela praia. — Onde está ela?

        Dax riu.

        — Dee Dee? É muito cedo para ela. Nunca aparece antes de uma hora da tarde.

        Que é que vê nela, Dax? É tão má atriz. — Ela é engraçada.

        — Não creio. É tão mole e fofa. Acho que um dia você ainda vai esvaziá-la toda.

        — As aparências enganam. Não é tão má atriz assim. E é um bocado forte.

        — Pode ser. Mas não para um homem como você. Não é como eu.

        — Não há ninguém como você!

        — De boa ou de má?

        — As duas coisas.

        Ela pareceu satisfeita com a resposta dele.

        — O marido dela requereu divórcio em Nova York, apontando você como cúmplice. Está pretendendo casar-se com ela?

        — Não. Chegamos à conclusão de que não tenho dinheiro suficiente para mantê-la.

        — Ele diz que encontrou vocês na cama, — disse ela, sorrindo. — Deve ter sido muito embaraçoso.

        — Pois não foi. Ele se mostrou muito civilizado.

        Lembrava-se bem da noite em que a luz foi acesa de repente no quarto de Dee Dee e ele viu o marido parado na porta. Estava com os olhos arregalados de vê-los nus em cima da cama.

        — Oh, perdão.

        — Hugh! — exclamara a mulher. — Que é que está fazendo aqui? Só estava esperando você amanhã.

        O marido olhou para o relógio.

        — Mas já é amanhã. Vim da Califórnia no avião da meia-noite.

        — Esses danados horários! — disse ela. — Nunca pude compreendê-los. — Olhou para Dax e olhou para o marido. — Oh! Acho que ainda não se conhecem. Hugh, este aqui é Dax. Meu marido, Dax.

        — Muito prazer, — disse o homem da porta, meio sem jeito.

        Dax fez um cumprimento de cabeça.

        — Bem, acho que é melhor ir saindo.

        — Espere aí, Hugh, — disse Dee Dee, preocupada. — Onde é que vai achar um lugar para ficar a estas horas da noite?

        — Vou para o meu clube.

        — Ah, então está bem, — disse ela. — Mas peça um quarto com ar condicionado. Está fazendo tanto calor aqui em Nova York!

        Pela primeira vez, ele pareceu horrorizado.

        — Você bem sabe que eu detesto ar condicionado. Bem, vou indo. Boa-noite.

        — Hugh! — gritou ela de repente.

        — Que é?

        — Que cabeça a minha! Já ia-me esquecendo. Dax, me dê esse travesseiro aí.

        Dax tirou o travesseiro de debaixo dele e perguntou:

        — Este?

        — Não, seu bobo. Esse é seu. Aquele ali ao lado, o de Hugh.

        Ela pegou o travesseiro e meteu a mão dentro da fronha, tirando um pequeno embrulho de presente. Saltou da cama sem se incomodar com a sua nudez e correu para o marido.

        — Seu presente de aniversário!

        O marido recebeu o embrulho e disse:

        — Muito obrigado.

        — Espero que lhe agrade, — disse Dee Dee, toda sorridente, beijando o rosto do marido. — Muitas felicidades, Hugh.

        — Obrigado, — disse ele, olhando para ela e para o presente. — Escute, é melhor você voltar logo para a cama. Pode até pegar uma pneumonia com o ar condicionado ligado desse jeito!

 

        — Que é que tem feito depois que voltou da Coréia? — perguntou Sue Ann, fazendo-o voltar ao presente.

        — Quase nada. Estou tomando lições de vôo. Vou tirar o meu brevet.

        — Está pretendendo comprar um avião?

        — Não. Gostaria de um bimotor Cessna, mas é caro demais para mim. Os outros não têm o alcance nem a velocidade que eu quero.

        — Eu compro para você.

        — Para quê?

        — Para nada. Porque quero. Porque posso.

        — Não, muito obrigado, mas um avião assim é como um iate. A manutenção é mais alta do que o preço.

        — E você tem algum plano? — perguntou Sue Ann.

        — Na verdade, não. Estou-me habituando à ideia de não ter nada de especial para fazer. Fui convidado para um safari no Quênia no mês que vem.

        — E vai?

        — Não sei ainda.

        — E sua amiguinha?

        — Dee Dee vai voltar a Paris para trabalhar num filme e eu provavelmente irei no safari. A ideia de passar o verão em Paris não me agrada muito.

        Sue Ann sentiu-se invadida por uma onda de satisfação. Se Dax pensava assim não havia necessidade de ficar preocupada. Houve alguma agitação na praia atrás deles e voltaram-se para olhar. Dee Dee vinha descendo para a plage e os fotógrafos corriam para bater instantâneos dela. Estava com um vestido estampado de chiffon com uma sombrinha aberta da mesma fazenda do vestido. Os fotógrafos afinal a deixaram e ela veio para a praia na direção deles, enterrando os saltos na areia.

        Dax levantou-se.

        — Dee Dee, esta é Sue Ann Daley. Sue Ann, Dee Dee Lester.

        — Tenho ouvido falar tanto na senhora desde menina, — disse a atriz num tom malicioso. — Muito prazer.

        — E eu só hoje é que ouvi falar da senhora, — disse Sue Ann. Olhou para Dax. — Bem, já vou.

        — Não, — disse Dee Dee. — Não quero interromper nada. E nem posso demorar. O sol é prejudicial à minha pele, que é muito delicada. Só vim saber como Dax está.

        — Dax está muito bem, — disse Sue Ann, sorrindo. E não veio interromper nada de importante. Muito prazer.

        Dee Dee sorriu.

        — O prazer foi meu.

        — Seja bonzinho para ela, — continuou Sue Ann. — Afinal de contas, nós vamos nos casar.

        Em seguida, deu-lhes as costas e afastou-se.

 

        A hostess era ainda mulher bem atraente, pensava Jeremy já com mais de quarenta anos, mas possuindo ainda traços da provocante beleza que devia ter tido na mocidade. “Não deixe de ir ao coquetel”, havia-lhe recomendado Dax. “Há sempre algumas coisas interessantes na casa de Madame Fontaine.” Desde que nada tinha de melhor para fazer até a hora do jantar, Jeremy fora.

        Dax tinha razão. Havia algumas pessoas bem interessantes ali, uma mistura conveniente de políticos, diplomatas, escritores, artistas, gente de teatro e cinema e os que eram apenas ricos. Era um brilhante salon e, da maneira agradável e tranquila por que tudo corria, Jeremy deduziu que a hostess estava muito habituada a promover aquelas reuniões.

        — É uma coisa fascinante, — disse o homem à sua esquerda, — a maneira pela qual vocês, americanos, podem eleger um novo presidente e até que ele tome posse o antigo continua em pleno exercício. Toma decisões e até nomeia pessoas que continuam após o seu período de governo.

        Jeremy sorriu.

        — Talvez seja porque o novo presidente saiba que daí a alguns meses terá a mesma oportunidade.

        Viu pelo canto dos olhos a dona da casa, chamada por uma empregada, atender ao telefone.

        — Mas Eisenhower vai à Coréia pôr termo à guerra. Não está usurpando algumas das funções do cargo?

        — Na realidade, não, — explicou Jeremy. — Ainda está agindo inteiramente como um cidadão particular. Não poderá dar início a qualquer plano enquanto não assumir o cargo.

        — Tudo isso para mim é muito complicado, — disse o outro. — Em minha terra, quando um homem é eleito passa a ser presidente no mesmo dia. Nunca houve dois presidentes.

        Jeremy pensou que na terra do homem era um milagre alguém ser eleito, mas nada disse porque não estava muito interessado na conversa. Interessava-lhe muito mais a conversa que a hostess mantinha pelo telefone. Fosse o que fosse, estava tendo um efeito profundo e visível sobre ela. Diante dos seus próprios olhos, ela parecia estar ficando mais velha.

        Finalmente, ela deu um suspiro, disse “A demain” pelo telefone e desligou. Ficou um momento parada como se procurasse recuperar-se. Pouco a pouco, a máscara da vitalidade voltou ao lugar. Pegou uma taça de champanha de uma bandeja que passava e foi para a grande janela do jardim. Ficando ali a olhar para fora em silêncio.

        Jeremy tinha curiosidade de saber o que a estava mantendo por tanto tempo à janela. Esticando o pescoço, pôde ver o jardim onde, como era comum nessas reuniões, havia vários cães, ali deixados pelas donas. E, como de costume, havia um pequeno poodle, mais assanhado do que os outros, que corria alucinadamente de um lado para outro, tentando subir ora numa cadela, ora noutra. No momento em que Jeremy olhava, encontrou afinal uma que não o repeliu e tratou, com uma expressão quase visível de satisfação, de executar a sua tarefa.

        A hostess parecia também fascinada. Ficou em silêncio ali, sozinha na janela, esquecendo inteiramente a sala. Quando finalmente falou, foi como se os seus pensamentos, destinados apenas aos seus ouvidos, lhe saíssem dos lábios sem que ela tivesse consciência do fato.

        — Como aquela cadelinha está feliz com o cachorrinho dançando dentro dela. Olha cheia de orgulho para as outras cadelas. Só ela tem aquilo dentro dela e quer que as outras a invejem. E o cachorrinho, o bobinho, pensa que está fazendo tudo e que a vitória é dele só. Na sua estupidez, pensa que a conquistou, mas ela é que no fim triunfará.

        Jeremy voltou-se para Dax, que havia chegado ao lado dele, e perguntou:

        — Ouviu o que ela disse?

        Dax fez um sinal afirmativo.

        — Acho que todos os outros ouviram também.

        Jeremy olhou para as outras pessoas na sala e viu que todos estavam escutando o que a mulher dizia. Pouco a pouco, as conversas foram cessando e todos escutavam, a princípio disfarçadamente e, depois, sem mais qualquer reserva.

        — Por que alguém não a faz parar? — perguntou Jeremy num sussurro.

        — Porque é melhor deixá-la falar. Isso faz bem a ela. Foi durante muitos anos amante de Monsieur Basse, o ministro. Foi neste mesmo salon que ela pleiteou favores para ele e ajudou-o a fazer carreira. Afirma-se agora que ele encontrou uma mulher mais jovem e não tem mais tempo para ela.

        Apesar do que Dax tinha dito, chegou mais perto da janela para ouvir.

        — Que sabe aquela cadelinha do que deve fazer com o macho a que está presa? Eu sei o que faria. Eu trataria de acariciá-lo, beijá-lo, elogiá-lo, até que ele estivesse realmente cheio de força e poder e então lhe daria um lugar dentro de mim e o faria secar-se até à última gota!

        Jeremy viu Dax gentilmente pegá-la pelo braço. Ela se voltou com uma expressão atônita, como se a tivesse despertado de um sono profundo. Olhou para o salão em silêncio. Estava levemente pálida sob a maquilagem.

        — Ele não virá! — disse ela de repente em voz alta e clara.

        — Quase no mesmo instante, as conversas recomeçaram no ponto em que haviam parado. Mas a festa havia acabado e um por um, os convidados começaram a retirar-se. Jeremy olhou para o relógio. Estava quase na hora de preparar-se para o jantar. Olhou para Dax.

        — Tenho de ir correndo. Até amanhã, na hora do breakfast.

        — Às dez horas, em minha casa.

        Jeremy procurou a hostess mas não a viu mais e saiu sem se despedir.

 

        Jeremy seguiu Gato Gordo para a sala de jantar. Dax estava à sua espera ainda de robe, com o rosto abatido e cansado. Tinha na mão um grande copo de suco de tomate.

        Riu para Jeremy.

        — Positivamente a maior descoberta americana foi que suco de tomate, limão e molho-inglês curam ressaca!

        — Epa! Com que cara você está! Aonde é que foi na noite passada?

        — A lugar algum, — disse Dax, tomando um gole do suco de tomate e fazendo uma careta. — Agora, deviam completar a invenção, pondo mais alguma coisa aqui dentro que fizesse o gosto suportável!

        — Pensei que você iria ao teatro.

        — Mudei de ideia. Fiquei em casa de Madame Fontaine depois que todo o mundo saiu.

        Jeremy olhou-o e perguntou sem poder acreditar:

        — Foi para a       cama com ela?

        — Era o que eu podia fazer de mais digno. Era preciso que a pobre mulher recuperasse o seu orgulho. E quer saber de uma coisa? Não me arrependi. O tal Basse deve ser um idiota. E há mais: acho que de vez em quando cada um de nós devia dar atenção a uma mulher mais velha. Elas ficam tão gratas que isso faz um bem terrível à nossa vaidade!

        — Oh! — exclamou Jeremy, tomando um gole do suco de tomate que Gato Gordo pusera à sua frente.

        — Não concorda? — perguntou Dax.

        — Não só não concordo, como também não compreendo.

        Dax acabou de tomar de um só gole o suco de tomate.

        — Um breakfast francês de café com leite e brioche é muito civilizado para mim esta manhã. Vamos ao primitivo presunto com ovos dos americanos?

        — Ah, isso eu compreendo, — disse Jeremy, rindo.

        Mais tarde, depois do café, Jeremy olhou para o amigo.

        — Você parece inquieto, mudado. Não é mais o mesmo, Dax. Que é que há?

        Dax acendeu um charuto bem fino e disse:

        — Não é fácil levar uma vida de playboy, por mais que os jornais americanos pensem o contrário.

        Acredito, — disse Jeremy, com fingida solenidade. — As vezes, é preciso até andar com algumas pequenas de quem não se gosta.

        — Até isso, — disse Dax, rindo.

        — Mas, falando sério, que é que você vai fazer? Você não é do tipo de homem que pode viver sem fazer nada.

        — Nunca se sabe até se experimentar.

        — Marcel lhe daria tudo se você quisesse ir trabalhar com ele. Faria o público esquecer-se um pouco dele e lhe daria maior liberdade para trabalhar. Talvez fosse bom para ambos.

        — Foi Marcel que lhe disse isso, Jeremy?

        — Não. Não o vi ainda desde que ele saiu da prisão. Poucas pessoas já o viram. Vive metido dentro daquela casa de Park Avenue e manda vir tudo de fora, ate as mulheres.

        — Por que pensou em Marcel para mim?

        — Não fui eu, foi meu pai. Ele me disse que não seria uma má ideia. Ele está pronto a falar com Marcel, se você quiser. Interessa-lhe?

        — A bem dizer, não. Não me posso ver como um homem de negócios.

        — O dinheiro seria bom.

        — O dinheiro que tenho me chega, Jeremy. Não tenho ambições de possuir mais nada neste mundo.

        — Mas não deve ficar ocioso. É uma pena, com a sua capacidade e a sua energia.

        — Talvez você se engane quanto à energia. Talvez já esteja velho demais e não possa encontrar mais maneiras de iludir-me.

        Houve alguns momentos de silêncio entre eles e afinal Jeremy disse:

        — Sue Ann está dizendo a todo o mundo que vai casar-se com você.

        Dax nada disse.

        — Vai casar-se com ela?

        Dax soltou algumas baforadas.       ,

        — Não sei ainda. É possível que um dia, quando estiver bem chateado, me case.

        Olhou então para Jeremy e este julgou que nunca havia visto tanta tristeza nos olhos de um homem.

        — A verdade é que eu e Sue Ann somos muito parecidos em muitas coisas. Nenhum de nós tem mais ilusões sobre coisa alguma.

 

        Marcel olhou e viu do outro lado do portão os jornalistas e os fotógrafos. Virou-se para o guarda que ia levá-lo para fora.

        — Não há outra maneira de sair daqui?

        — Há, sim, — disse o guarda com sinistro humor, — mas não creio que vá querer.

        Marcel deu-lhe um olhar desdenhoso. Eram todos ridículos com as suas fardas e os seus modos burocráticos. Deviam sentir-se muito importantes em dar ordens a um homem como ele. O guarda abriu o portão e ele saiu.

        Os jornalistas cercaram-no no mesmo instante. Os flashes espocaram-lhe no rosto, enquanto ele tentava alcançar o passeio e o carro que o esperava. Mas era quase impossível mover-se.

        — Qual é a sua impressão da liberdade, Sr. Campion?

        — Parece que perdeu peso, Sr. Campion. Quantos quilos?

        — A comida da prisão fez-lhe bem?

        — Sabe que as autoridades de imigração já deram início ao seu processo de deportação?

        — Pretende sair do país?

        A todos Marcel dava a mesma resposta enquanto se encaminhava para o carro.

        — Nada tenho a dizer. Nada tenho a dizer.

        O carro afinal partiu e ele se recostou no banco e fechou os olhos, cansado. Foi então que teve a consciência de um leve perfume. Virou a cabeça lentamente e abriu os olhos.

        Dania o estava olhando com os grandes olhos luminosos e negros.

        — Você emagreceu, Marcel, — disse ela com voz suave.

        — Por que veio? — perguntou ele, quase com aspereza. — Escrevi dizendo que não queria que ninguém me viesse esperar.

        — Pensei... — murmurou ela com os olhos subitamente cheios de lágrimas.

        — Pensou o quê? Que eu teria sofrido tanto na prisão que imediatamente lhe cairia nos braços?

        Dania não respondeu.

        — Não preciso de você, não preciso de ninguém. Eles vão ver. Vou-me vingar de todos os que me mandaram para a prisão. A minha vez chegará!

        — Ninguém o mandou para a prisão, Marcel. Foi você mesmo quem fez isso. Não quis ouvir a ninguém.

        — Não é verdade! — gritou ele. — Foi uma conspiração. Todos se uniram contra mim!

        Os olhos de Dania já estavam secos e havia nela uma modificação sutil, uma dureza que         não tinha havido antes.

        — Eles? Quem?

        — Abidijan, Horgan, os outros. Pensaram que eu não poderia fazer coisa alguma enquanto estivesse na prisão, mas estavam muito enganados. Vão descobrir que eu lhes comprei todas as ações no mercado aberto. Será muito interessante quando descobrirem que eu tenho a maioria na Companhia de Navegação Abidijan e na Companhia de Petróleo Caribtex. Não acharão mais que são tão espertos assim. Virão para mim rastejando. E você sabe que é que eu vou fazer então?

        Dania sacudiu a cabeça.

        — Cuspirei na cara deles! Isso é o que eu vou fazer! Cuspir na cara deles!

        Foi então que Dania compreendeu que Marcel estava realmente transtornado do juízo. Esperou até que ele acabasse de rir e disse gentilmente:

        — Acho é que você está muito cansado, Marcel. Antes de mais nada, devia tirar férias e dar um longo passeio, talvez fazer um cruzeiro. Com um bom repouso, recuperaria toda a sua energia.

        — Eles já sabem! Mandaram você aqui para fazer-me desistir!

        — Marcel! Eu de nada sabia até esse momento!

        — Não acredito! Você está metida com eles contra mim!

        Dania olhou-o, atônita.

        — Compreendo agora por que não quer deixar aquele seu marido decrépito! Durante todo o tempo, esteve fazendo espionagem para eles!

        — Não é verdade, Marcel! — exclamou ela desesperadamente.

        — Não poderia fazer espionagem contra você. Nem os conheço!

        — Mentira! Está mentindo!

        Fez sinal ao chofer, mandando-o parar. O homem aplicou os freios encostando ao meio-fio. Dania foi projetada para a frente, quase caindo. Marcel abriu a porta.

        — Saia!

        Ela o olhou por um momento e sorriu. Perguntou então com a voz cheia de desprezo:

        — Você está mesmo muito doente! Como é que vou sair? Como é que eu posso sair do meu carro?

        Marcel olhou para ela e empalideceu. Em silêncio, passou por diante dela para a porta aberta do carro. No seu nervosismo, prendeu o salto do sapato na borda do carro e caiu a fio comprido no chão, com o rosto na sarjeta.

        Dania nem olhou. Fechou a porta do carro e disse ao chofer:

        — Vamos.

        Foi essa fotografia, um flagrante de Marcel estendido na sarjeta de um subúrbio de Atlanta olhando para o carro que se afastava, que no dia seguinte tirou a guerra da Coréia da primeira página de muitos jornais. Foi tirado por um fotógrafo persistente que havia seguido o carro de Dania.

 

        Havia muitos eletricistas trabalhando na casa quando Schacter foi afinal levado para a sala que Marcel estava usando temporariamente como escritório.

        — Que é que esses homens estão fazendo?

        — Mandei-lhe instalar na casa toda uma rede de alarma contra ladrões.

        — Para quê? — perguntou o advogado. — Você está em Park Avenue, uma das zonas mais bem policiadas da cidade. Quem poderá entrar aqui?

        — É mesmo? Pois já tentaram duas vezes desde que voltei para casa.

        — Comunicou à polícia?

        — Claro que sim e até pedi proteção extra, mas eles se limitaram a rir de mim. Disseram-me que telefonasse se houvesse outra tentativa. Creio que a polícia está toda comprada.

        — A polícia? — disse Schacter, rindo. — Isso é tolice.

        — É o que você pensa! Em primeiro lugar, eu já estive na prisão e isso predispõe a polícia naturalmente contra mim Schacter sabia que não adiantava discutir normalmente sobre certos assuntos com Marcel.

        — Bem, se isso faz você sentir-se bem, está certo.

        — Claro que vou me sentir bem, — disse Marcel, sorrindo.

        Quando isso estiver pronto, ninguém poderá entrar nesta casa sem eu saber.

        Schacter abriu a pasta.

        — Trouxe alguns papéis para você assinar.

        — Que papéis?

        Schacter colocou o primeiro maço de papéis em cima da mesa.

        — Isto aqui é o acordo com a General Mutual Trust para a compra das suas ações na Caribtex a onze e meio.

        — Eu lhe disse onze, — murmurou Marcel, desconfiado.

        — Você me disse que podia ir até doze.

        Era uma coisa que não agradava a Schacter em relação a Marcel. Concordava com uma coisa e, depois, procurava torcer.

        — Quanto é que isso nos dá?

        — Mais 421.000 ações. Cerca de 9%.

        — É mais do que Horgan e o seu grupo possuem?

        — Cerca de 42.000 ações mais. Você agora tem 26,1%, eles têm apenas 25,3%.

        — Ótimo, — disse Marcel, assinando prontamente os acordos. — Que mais?

        — Falei com De Coyne em Paris hoje de manhã. Disse-me que não é possível reformar o título. O mercado de dinheiro lá está muito fechado.

        Marcel ficou com o rosto vermelho de raiva e deu um murro na mesa.

        — Estão também contra mim. Talvez eu vá lá e o faça mudar de ideia!

        — Não pode ir, — disse o advogado. — Bem sabe que a Imigração tem um processo de deportação contra você.

        — Por que foi então que não me deixaram na cadeia?

        Schacter ficou calado. Pensou nas barras de aço que Marcel tinha mandado passar em todas as janelas na semana anterior. Agora, o alarma contra ladrões.

        — Falou com os bancos de Boston a respeito do título?

        — Falei. Não estão interessados.

        — Fui eu que instalei a linha israelense, — disse Marcel. — Fui só eu que quis arriscar-me. Os De Coynes estavam tão ansiosos para que eu fizesse isso que chegaram a adular-me para eu aceitar o dinheiro. Agora que aqueles judeus vêem uma maneira de ganhar mais dinheiro, querem botar-me para fora.

        — Não creio que o fato de serem judeus tenha alguma relação com o caso, — disse firmemente Schacter. — Os De Coynes são banqueiros. Vêem que você está-se estendendo demais nas suas transações. Não pode ter tudo, sabe?

        — Por que não? — perguntou Marcel. — Quem tem mais direito do que eu?

 

        Já era tarde e a festa estava começando a morrer. Em dado momento, Dax viu que só restavam ele, Marcel e algumas pequenas. Olhou para Marcel e este deixou a loura com quem estava conversando e se aproximou dele.

        — Tudo bem?

        — Tudo ótimo, — disse Dax, — mas já é tarde. Prometi sair amanhã cedo no iate de Jacobsen e já vou indo.

        — Não faça isso. O melhor da festa vem agora.

        — O melhor da festa? Quase todos já saíram.

        — Mas as pequenas ainda estão aqui.

        Dax olhou para a sala e viu que havia ainda cinco pequenas. De vez em quando, uma delas olhava para ele.

        — Estão todas na minha folha de pagamentos.

        — Trabalham no seu escritório? — perguntou Dax. Se trabalhavam, não tinham o tipo.

        — É claro que não. Mas trabalham para mim. As leis fiscais estão ficando tão rigorosas que sai mais barato pagar-lhes um salário. Assim, é possível deduzi-las do imposto de renda.

        — Ah!

        — Agora que os outros já foram, podemos subir para os meus aposentos. Prometo que não vai se aborrecer. — Virou-se para as pequenas e disse: — Allons, mes enjants.

        Dax seguiu-o pela escada até o segundo andar, onde Marcel parou diante de uma porta. Tirou uma chave do bolso e colocou-a na fechadura. No mesmo instante, ouviu-se um barulho mecânico mais acima.

        — Só se pode ir aos meus aposentos de elevador, — disse ele.

        — Mandei tirar a escada. — Abriu a porta. — Vou subir com duas das pequenas. Depois, mandarei o elevador para as outras.

        — E os empregados? Como descem para os alojamentos deles?

        — Há uma escada no fundo, mas eu mandei murar a entrada que dá para o meu andar. — Saíram do elevador e Marcel apertou um botão na parede. — Tenho um botão em cada sala e quarto aqui. Ninguém pode subir se eu não soltar o elevador.

        Um momento depois, as outras três pequenas saíram do elevador e Marcel levou-as para uma grande sala. Havia uma mesa posta com hors d’oeuvres, caviar e um pâté. Várias garrafas de champanha estavam gelando em baldes e a um canto havia um bar completamente equipado.

        As pequenas pareciam saber o que deviam fazer, pois desapareceram por uma porta do outro lado da sala.

        — Aquele é o quarto dos hóspedes, — disse Marcel. — Meu quarto fica do outro lado. Vamos tomar alguma coisa?

        — Para mim já chega.

        — Mas é preciso, — disse Marcel com um sorriso peculiar. — Venha.

        Marcel apertou um botão embaixo do bar. Uma porta correu mostrando um aparelho de televisão cuja tela um instante depois se acendeu. O que apareceu foi o quarto dos hóspedes. As pequenas estavam andando por lá e ouvia-se a voz delas pelo alto-falante.

        Uma delas estava tirando o vestido e dizendo com voz aborrecida:

        — Estou mais cansada do que outra coisa.

        Marcel sorriu.

        — É o que pode haver de mais novo, televisão em circuito fechado. Elas nem sabem que as estamos olhando. Estou pensando cm instalar uma em todas as peças da casa. Saberei assim a cada momento tudo o que está acontecendo.

        Marcel parecia completamente absorvido. Quase todas as pequenas já estavam despidas. Uma delas foi até um armário e abriu a porta.

        — Que é que vai ser hoje?

        — Não sei — respondeu outra. — Que foi da última vez?

        — Os vestidos de noiva.

        — Que tal as rendas pretas hoje? Há muito tempo que não as usamos.

        Uma se aproximou do armário e desabotoou o soutien. Os seios um pouco grandes pularam fora.

        — Essa daí conhece truques fantásticos, — disse Marcel baixinho, como se elas o pudessem ouvir. — Mas é uma grande mentirosa! Pensa que não sei do amante que ela leva para o apartamento. Já pensei em despedi-la, mas são todas iguais. Não se pode confiar em nenhuma.

        — Como sabe que ela tem um amante?

        — Sei de tudo. Os telefones delas são interceptados. Tenho até microfones instalados debaixo das camas delas. Você devia ouvir algumas das gravações que eu tenho!

        Dax olhou para a tela. Quase todas elas já estavam vestidas com o mesmo traje. Soutiens e biquínis de rendas pretas e meias de dançarina. Uma delas voltou-se para a câmara e imediatamente a televisão se apagou. A porta correu automaticamente.

        — Há um interruptor no tapete junto à porta. Desliga automaticamente o aparelho no momento em que alguém vai sair do quarto Dax olhou para Marcel.

        — Acho que vou querer aquele drinque agora.

 

        Eram quase quatro horas da manhã quando Dax achou afinal oportunidade de sair. Marcel estava estendido no sofá entre duas mulheres quando Dax se despediu. Estava bem embriagado. Como quase todos os franceses, não tinham muita tolerância para bebidas fortes e havia bebido scotch sem parar durante toda a noite Conseguiu com muito esforço levantar-se.

        — Vou levá-lo até lá embaixo. Quero dizer-lhe uma coisa.

        Dax entrou com ele no elevador e Marcel sorriu.

        — Que foi que achou das minhas empregadinhas?

        — Têm muita experiência. Mas devem ser bem caras.

        — Bem, a experiência é uma coisa que custa caro. Mas não importa. Eu posso pagar.

        Quando saíram do elevador, Marcel disse:

        — Venha até ao meu escritório um momento.

        Marcel entrou com ele no escritório, fechou a porta e sentou-se a mesa.

        — Sabe o que lhe quero dizer?

        Dax sacudiu a cabeça.

        — O Presidente errou muito em tratá-lo como o fez. Algum dia, vai-se arrepender.

        Dax encolheu os ombros.

        — Mas não é isso o que me preocupa e sim o fato de você estar desinteressado de tudo.

        — Como posso estar desinteressado de tudo quando tenho amigos como você?

        Marcel sorriu satisfeito. Mas continuou.

        — Esta bem, mas você não pode limitar a sua vida a andar com as mulheres. Precisa de ter alguma coisa para fazer.

        — Não sei, Marcel. Tenho a impressão de que passei a maior parte de minha vida até agora fazendo sempre alguma outra coisa. Que foi que me adiantou isso? De qualquer modo, ainda não pensei bem no assunto.

        — Já pensou em dedicar-se aos negócios? Fez indiretamente muita gente ganhar muito dinheiro. Já não é tempo de ganhar um pouco para você mesmo?

        Nunca senti a necessidade.

        — Você é como seu pai. Ele nunca pensava em si mesmo. Tudo mais vinha antes. Quando fui trabalhar com ele, fiquei assombrado. Nunca tinha conhecido um homem assim.

        — E não vai conhecer outro.

        — Mas foi por isso que ele morreu pobre.

        — Talvez, mas para os mortos as riquezas não têm qualquer importância.

        — É muito bom falar assim, Dax, mas o mundo não vê as coisas dessa maneira. Só há duas coisas importantes: dinheiro e poder.

        — Sou então um homem feliz, — disse Dax. — Achei um meio de viver sem uma coisa nem outra.

        — É uma pena, Dax, porque eu estava pensando em convencê-lo a trabalhar comigo. Podemos fazer grandes coisas juntos. Você sabe que eu não sou muito estimado. Tenho inimigos que me procuram fazer todo o mal possível. Contando com você, posso pouco a pouco ir passando para segundo plano e com o tempo eles se esquecerão de mim. Isso para você poderá ser muito proveitoso.

        Dax olhou-o sem responder.

        — Você é a única pessoa do mundo a quem eu faria tal proposta, — disse Marcel sinceramente. — Não há ninguém em quem eu confie tanto.

        Dax respirou fundo. Sabia que Marcel estava dizendo a verdade. Não havia ninguém mais em quem ele confiasse. A televisão de circuito fechado, os telefones interceptados, os microfones debaixo das camas. E quando Marcel estivesse fazendo uso disso tudo para ter certeza dele. Isso não poderia deixar de acontecer. Marcel já havia ido muito longe para ainda ter fé em alguém. Dax sacudiu a cabeça lentamente.

        — Muito obrigado, Marcel, mas não quero. Se eu achasse que podia realmente ajudá-lo, ainda iria pensar. Mas sei que não sou homem de negócios. Acredite que com o tempo serei um entrave para você. Mas sinto-me honrado com a sua proposta.

        — Todos ficaram contra mim, — murmurou Marcel com os olhos baixos.

        — Eu não estou contra você. Se estivesse, aceitaria a sua proposta. Poderia fazer-lhe mais mal dentro da sua organização do que fora dela.

        Marcel pensou um instante, como que ponderando o que Dax havia dito.

        — É verdade, — exclamou afinal. — Mas eu o conheço, velho farsante. Você conseguiu uma maneira mais fácil de ter dinheiro.

        — Qual foi?

        — Pensa que já não ouvi falar sobre você e Sue Ann? Não pense que o censuro. É mais fácil casar do que trabalhar para ganhar o dinheiro.

        Dax sorriu. Não se aborreceu com o que Marcel presumia. Se Marcel preferia acreditar nisso, era melhor deixar. Levantou-se.

        — Vou fazê-lo sair.

        Dax esperou até Marcel desligar o sistema de alarma e abrir a porta da frente. Como sempre, não havia táxis na rua aquela hora da madrugada.

        — Vou chamar meu chofer para levá-lo.

        Dax olhou para o céu. Já estava começando a ficar cinzento para os lados do oriente de Park Avenue.

        — A distância não é grande. Irei a pé, aproveitando o fresco da madrugada.

        Da Quinta Avenida, a alguns quarteirões de distância, um grande carro preto vinha na direção deles. Marcel olhou-o nervosamente e disse:

        — Vou entrar. Estou começando a sentir um pouco de frio.

        Dax olhou para a porta fechada. Ouviu o estalo do interruptor e compreendeu que Marcel havia ligado de novo o alarma. Começou a caminhar.

        Era um dos preços que se pagavam pelo dinheiro e pelo poder. Para ele não servia.

 

        Marcel estava sentado à sua mesa quando Schacter entrou.

        — Então?

        Schacter sacudiu a cabeça.

        Abidijan diz que você pode ir para o inferno. Não quis nem escutar o que eu tinha para dizer.

        — Foi só? — perguntou Marcel muito pálido.

        — Não. Disse mais algumas coisas.

        — Que foi?

        — Foram coisas sem importância.

        — Diga-me, — disse Marcel imperiosamente. — Quero saber o que foi que Amos disse.

        — Bem, — disse o advogado constrangido, — disse que você está doente e não sabe mais o que está fazendo. Disse que nada lhe agradaria mais do que ter uma luta com você pelo controle da companhia. A publicidade que você teve agora não foi nada em comparação com a que lhe dará. Depois que ele acabasse com você, não haveria um só acionista capaz de acompanhá-lo. Disse também que, se você tentar representar as ações de seus filhos na companhia, irá para os tribunais e conseguirá que seja decretada a sua incapacidade.

        Marcel quase não podia conter mais a sua raiva.

        — Mas ele não espera que eu vá para os tribunais com um processo movido pelos acionistas em que ele seria o réu, espera?

        — Não, isso ele não pode esperar.

        — Pois é isso que vamos fazer. Dispomos de ações suficientes para forçar o tribunal a nomear um liquidatário para a companhia e talvez até a botá-lo na cadeia para onde ele me mandou.

        — Mas que adiantaria isso? O tribunal nunca lhe entregaria a companhia.

        — Isso não tem a menor importância, — disse Marcel. — O importante é Amos perdê-la.

        — Mas já pensou em seus filhos? — perguntou o advogado. — No que poderá acontecer à herança deles? O depósito em favor deles é quase todo formado pelas ações de Abidijan. Poderia perder todo o valor com um liquidatário. E também provavelmente as suas ações não valeriam nem o papel em que são impressas.

        — Pouco me importa! — exclamou Marcel. — Posso cuidar de meus filhos! Vamos para os tribunais!

        O advogado olhou-o durante algum tempo e sacudiu a cabeça.

        — Não, Marcel, isso eu não farei. Fiz muitas coisas para você, mas para isso não conte comigo. Isso não tem finalidade alguma. É pura destruição.

        — Não fará isso? Diz que não fará isso?

        Marcel levantou-se e correu impiedosamente para ele. Por um momento, Schacter pensou que ia ser agredido. Então as palavras saíram estranguladas da garganta de Marcel:

        — Você me traiu! Você se vendeu aos outros!

        Schacter lançou-lhe um olhar de desprezo!

        — Não me darei nem ao trabalho de responder a isso.

        — Dou-lhe a última oportunidade! — gritou Marcel. — Ou vai ao tribunal ou chamarei outro advogado.

        — Faça o que quiser! — disse Schacter, levantando-se.

        — Farei com que seja proibido de exercer a profissão! Não pode me abandonar assim! Não pode trocar de lado só porque lhe ofereceram mais dinheiro!

        — Ninguém me ofereceu dinheiro, — disse Schacter, encaminhando-se para a porta. — Não tinham motivos para isso. Além disso, como poderia alguém acreditar que você fosse tão maluco a ponto de pensar no que pensou?

        — Vocês, judeus, são todos iguais! — gritou Marcel. — Vendem-se a quem dá mais!

        Pela primeira vez desde os seus tempos de rapaz, Schacter perdeu a calma. Estendeu as mãos e pegou Marcel pela gola do paletó. Por um instante, pareceu que ia suspender Marcel e jogá-lo longe. Mas depois dominou-se e largou-o.

        Encararam-se durante alguns momentos.

        — Por que me está olhando assim? — perguntou Marcel.

        — Eu devia estar cego, — murmurou o advogado. — Agora, acredito em seu sogro. Você está louco!

        Na manhã seguinte, Marcel telefonou-lhe como se nada tivesse acontecido.

        — Estive pensando no que você disse e cheguei à conclusão de que tem razão. Não adianta ir para a justiça. Abidijan já está velho e não viverá para sempre. Quando ele desaparecer, assumirei o controle. Afinal de contas, sou o segundo acionista.

        — Quer dizer que não recorrerá aos tribunais?

        — Claro que não!

        — Mas você disse ontem...

        — Isso foi ontem. Escute, Schacter, você não vai ficar contra mim pelo que eu disse num momento de raiva, não é? Você bem sabe a tensão em que estou vivendo.

        Quando a conversa terminou, Schacter era de novo advogado de Marcel. Mas ele sabia que nunca mais as coisas voltariam a ser as mesmas.

 

        Schacter podia sentir a tensão aumentar dentro da pequena sala. Por um momento, não pôde olhar para a mesa cheia de envelopes, procurações e máquinas de calcular em movimento. Olhou pela janela para o centro de Dallas.

        De repente, houve silêncio. As máquinas de calcular haviam parado. Schacter sabia que a apuração havia acabado. Virou-se para a sala. Não teve de olhar para os totais para saber quem havia ganho. A cara do Horgan dizia tudo. O texano estava pálido.

        O secretário de Caribtex começou a ler os resultados com voz trêmula. Isso era compreensível, pois havia perdido o emprego como a maioria dos homens que estavam ali na sala. De acordo com os estatutos da empresa, ou seria um grupo ou seria outro. Não havia meio-termo. Pela diretoria: 1.100.021. Pela oposição: 1.600.422.

        Houve silêncio na sala quando Schacter deu volta à mesa. O secretário deu-lhe um lugar. Schacter olhou-o e olhou os outros.

        — Obrigado, senhores.

        Os contadores começaram a arrumar os seus apetrechos e a guardá-los em caixas. Tinha sido uma boa ideia de Marcel achar que se devia pedir ao tribunal que indicasse uma companhia de contabilidade para apurar a votação por procuração. Os contabilistas tia companhia não poderiam fazer uma apuração correta.

        — Haverá amanhã às nove horas da manhã uma reunião especial da nova diretoria para o fim de designar novos funcionários.

        Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. Marcel devia estar à espera do seu telefonema. A voz de Horgan o fez parar.

        — Diga a seu amigo que nunca apareça por aqui. Se aparecer, é quase certo alguém enchê-lo de chumbo.

        Schacter sacudiu gravemente a cabeça e saiu.

        Marcel estava bêbado. Tinha bebido durante toda a tarde enquanto esperava o telefonema de Dallas. Agora que tudo estava acabado a bebida lhe corria pelo organismo. Sentia-se crescer, ficando tão alto a ponto de quase tocar o teto. Foi até ao sofá onde a loura de seios grandes estava sentada a olhá-lo. Postou-se diante dela, oscilando o corpo.

        — Sabe quem sou eu?

        Ela ficou em silêncio, olhando-o.

        — Você não sabe.

        Pegou o copo que havia deixado em cima da mesa e levou-o à boca. Derramou um pouco no paletó mas não se incomodou. Bebeu o resto e jogou para o lado o copo que foi espatifar-se na parede.

        — Você não sabe, ninguém sabe. Mas logo vão saber porque ninguém me fará parar mais. Sou o maior homem que já se viu!

        — Puxa, como você está alto! — disse a mulher.

        Marcel não lhe deu atenção. Estava rasgando as roupas que de repente lhe pareciam muito pequenas e ameaçavam sufocá-lo. Por fim, as roupas ficaram todas atiradas no chão. Ficou de pé e nu em cima do sofá e perguntou:

        — Não sou o maior homem que você já viu?

        — É melhor descer daí antes que leve um tombo, — disse ela, estendendo a mão para ampará-lo.

        Ele bateu com a cabeça.

        — Sou grande como Joe Karlo?

        Ela ficou muito pálida e perguntou:

        — Que é que sabe sobre Joe?

        Ele começou a dar gargalhadas.

        — Ora, sua ignorante! Sei tudo sobre você. Sei tudo sobre todo a mundo. Sei até o que vocês disseram na cama ontem à noite.

        — Como sabe?

        — Sei... e pronto! E sei alguma coisa mais que você não sabe.

        Pulou do sofá e foi até um armário. Tirou algumas fotografias.

        — Está pensando que ele vai-se casar com você, pensa que ele está guardando todo o dinheiro que você dá para que um dia possam ir viver juntos? Idiota! Veja para onde está indo o seu dinheiro! Veja!

        Ela olhou para as fotografias. Um homem estava olhando para a máquina com o braço passado pelos ombros de uma mulher simpática e tendo ao lado três crianças sorridentes.

        — Não sabia que ele era casado, hem? Não sabia nem que com o dinheiro que você deu no mês passado compraram uma camionete?

        Ela se sentiu mal de repente.

        — Vou-me embora!

        Marcel deu-lhe uma bofetada e ela caiu em cima do sofá.

        — Não lhe dei ordem de sair!

        Estendeu as duas mãos e agarrou-a pela frente do vestido. A fazenda se rasgou. Ele meteu a mão por dentro do soutien e arrancou-o. Ela o olhava com um medo cada vez maior. Ele então se abaixou até ficar sentado em cima do peito dela.

        — Veja! Examine cuidadosamente e me diga se eu não sou o maior homem que você já viu. Sou ou não sou?

        Apesar do peso dele, a mulher conseguiu fazer um sinal afirmativo.

        — Sou o maior homem do mundo! E logo...

        Tentou dizer mais alguma coisa, mas os olhos se vidraram e ele caiu pesadamente com o corpo por cima dela.

        A mulher ficou ali com receio de mover-se. Depois, começou a torcer o corpo, tentando sair. Com os movimentos dela, o corpo dele foi escorregando lentamente até o chão. Ficou ali estendido com a boca aberta e começou a roncar ruidosamente.

        Ela se sentou no sofá, olhou e murmurou com raiva:

        — Grandíssimo ordinário!

        Depois viu as fotografias espalhadas pelo chão e as lágrimas lhe vieram aos olhos. Começou a soluçar, dizendo com voz entre- cortada:

        Todos, todos são uns ordinários!

 

        Da piscina do outro lado do terraço vinha um riso alegre de crianças. O quente sol da Côte d’Azur caía languidamente sobre as águas azuis. Não fazia muito tempo, pensou Robert, que ele e Caroline haviam brincado naquela piscina com amigos e primos. Não fazia muito tempo, fora antes da guerra.

        — Você está com uma cara tão esquisita, Robert!

        Robert voltou com esforço ao presente. Sorriu para sua prima inglesa.

        — Estava pensando no tempo em que você e eu éramos moços.

        — Não é preciso me lembrar esse tempo porque ainda não me esqueci, — disse Mavis, fazendo uma careta. — Você vivia troçando de mim o tempo todo porque eu era só pele e ossos. E agora veja!

        Robert riu. Mavis não era mais pele e ossos apenas e o mesmo acontecia com a irmã dela. As duas haviam assumido o aspecto bem nutrido de jovens matronas inglesas. Eram os filhos delas e o filho de Robert, Henri, que estava fazendo tanto barulho na piscina.

        — Nenhum de nós ficou exatamente o mesmo.

        — Exceto Caroline, — disse Enid. — Não sei o que ela faz mas parece tão moça como sempre. Acho até que agora está ainda mais bela de corpo do que jamais a conheci.

        — Estão falando de mim?

        — Mavis diz que gostaria de saber do segredo da sua eterna juventude, — disse Robert.

        — Não é segredo nenhum. Eu faço regime, — disse Caroline, rindo.

        — Nunca pude fazer regime, — disse Mavis. — As crianças me deixam às vezes tão nervosa que não tenho outro remédio senão comer.

        Robert olhou para o pai do outro lado da mesa. O Barão parecia esbelto e bem disposto. Tinha setenta e dois anos, mas parecia muito mais moço, especialmente nos olhos, que davam a impressão de nunca envelhecer. Naquele momento mesmo, estavam atentos e vivos, enquanto ele escutava o que lhe dizia Sir Robert.

        Sir Robert havia engordado mas, apesar disso, a sua fisionomia não perdera o leve ar predatório em que ele nunca havia confiado.

        Talvez esse ar de ave de rapina estivesse ainda mais acentuado. Não sabia ao certo por que não gostava de Sir Robert. John, marido de Mavis, um inglês alto, louro e de aspecto atlético, disse:

        John, marido de Mavis, um inglês alto, louro e de aspecto atlético, disse:

        — Parece que o dia está ótimo para sair num barco à vela, Robert. Vamos hoje à tarde?

        — Eu não, — disse Robert, olhando para baixo, onde o iate inglês deles estava atracado ao cais. — Não tenho a energia de vocês, ingleses. O que se pode fazer de bom depois do almoço é tirar uma boa soneca.

        Atravessou o terraço eia entrando na casa quando encontrou Denisonde que saía.

        — Para onde vai, Robert?

        — Vou dormir um pouco lá em cima.

        — Por que não se deita aí mesmo ao sol? Pode dormir tão bem quanto lá em cima e pegará alguma cor. Não adianta vir para a Riviera se não for para isso. Poderia muito bem ter ficado no Banco se era para passar o tempo todo dentro de casa.

        — Já acabou? — perguntou Robert, sorrindo indulgentemente.

        — Já.

        — Que é que está fazendo?

        — Vou levar o remédio de seu pai. Se eu não me lembrar, ele nunca que toma.

        — Bien. Quando acabar, suba e eu lhe mostrarei por que é melhor dormir dentro de casa.

 

        Já passava da meia-noite e a grande vila estava em silêncio quando Robert teve a ideia de descer até à biblioteca para pegar algum livro para ler. Ao abrir a porta, ouviu a voz do pai atrás dele:

        — Está acordado?

        Robert voltou-se. O pai estava sentado numa das fundas poltronas da biblioteca.

        — Estou sem sono, papai. Acho que dormi demais hoje à tarde. O que me espanta é o senhor ainda estar acordado.

        — Estou velho e velho não precisa de muito sono.

        Robert sorriu e escolheu um livro na estante.

        — O nosso primo acha que está em tempo de fazer a fusão dos nossos Bancos, — disse inesperadamente o pai.

        — E o senhor, que é que acha?

        — Essa foi em outros tempos a grande ambição de meu avô — um Banco da família que cobrisse toda a Europa. Não era má a ideia e talvez fosse ainda melhor agora. Os Bancos americanos estão ficando cada vez maiores e até o Banco Borgan está pensando numa fusão. Os Bancos americanos são os nossos concorrentes mais fortes. Se os nossos recursos se juntarem, poderemos enfrentá-los com vantagem.

        — Isso não me agrada, papai.

        — Por quê?

        — Não tenho um motivo definido, mas acho que a fusão nos tiraria a independência. Não poderíamos mais agir com a liberdade com que sempre agimos.

        — Não sei se isso não seria vantajoso para nós. Nosso primo tem tido êxito. O Banco dele é duas vezes maior do que o nosso.

        — A medida não é bem essa, — replicou Robert prontamente.

        — Eles não tiveram de interromper uma só vez as operações em virtude de guerras ou de mudanças de governo. E nós quantas vezes tivemos de interromper os nossos negócios desde o tempo de Napoleão? E de cada vez tivemos de recomeçar dos alicerces. Sir Robert teve a felicidade de contar com um governo contínuo e estável o tempo todo.

        — Neste caso, a fusão poderia ser vantajosa. Guerras e governos não nos perturbariam mais os negócios se a nossa sede fosse em Londres.

        — Se é a segurança que nos interessa, por que não transferirmos a nossa sede para Nova York? Lá, estaríamos ainda mais seguros.

        — Pelo que vejo, — disse o Barão, — não gosta de nosso primo.

        — Não, não gosto, — respondeu Robert.

        O pai não lhe perguntou as razões.

        — Desde menino, Sir Robert sempre foi ambicioso.

        — Se fosse só isso, eu não me preocuparia.

        — Acha que ele quer controlar também o nosso Banco?

        — Pode haver alguma dúvida? O senhor mesmo disse que o Banco dele é duas vezes maior do que o nosso. Não é natural que o tubarão queira devorar as sardinhas?

        — Talvez, mas acho que você está esquecendo uma coisa. Eu tenho um filho e Sir Robert só tem filhas. As leis internas de ambos os Bancos estabelecem que só os filhos homens podem herdar o controle. Essa providência foi tomada pelo nosso avô.

        — Mas os filhos das filhas podem herdar. Ele já tem três netos homens.

        — Filhos, — murmurou o pai. — Foi esse o grande segredo dos Rothschilds. Geravam filhos. Nós não temos tido a mesma sorte         só um por geração. Sir Robert e eu fomos os únicos na nossa. Você é o único da sua. E só tem um filho. — De repente, sorriu. — Que é que está fazendo, Robert? Tome providências.

        — Estou fazendo tudo o que posso, Papa — respondeu Robert, rindo.

        Robert olhou para a folha de papel e virou-se para o contabilista.

        — Tem certeza de que não há erro?

        — Nenhum. Tudo foi verificado.

        — Obrigado.

        Robert ficou por alguns instantes pensativo. Havia já alguns meses que alguém estava comprando os títulos do Banco sem que ele pudesse apurar de quem se tratava. Mas já sabia. Devia ter desconfiado antes. Devia ter sabido que Sir Robert não iria procurar o Barão sem um trunfo escondido na manga. Era por demais profissional para não se preparar para a eventualidade de uma recusa. De repente, tudo se esclareceu, até onde Campion fora buscar o dinheiro para pagar o seu título.

        Levantou-se com a folha de papel na mão e foi ao gabinete do pai.

        — Sabia disto? — perguntou, colocando o papel diante do Barão.

        Este olhou e disse:

        — Já desconfiava disso, mas não podia ter certeza.

        — Por que não o interrompemos então? — perguntou Robert. — Ele já possui títulos nossos em quantidade suficiente para afastar-nos do negócio.

        — Não consegui ver que diferença faria se concordássemos com a fusão.

        — Vai deixar então que ele nos obrigue a fazer a fusão?

        — Não posso fazer muito mais, — disse o Barão. — Já estou velho e cansado. Não tenho mais forças para outra batalha com nosso primo.

        Robert olhou para o pai muito exaltado.

        — O senhor pode não ter, mas eu tenho. Não vou pôr em risco o futuro de meus filhos só porque o senhor está cansado. Tenho de achar um meio de barrar esse nosso primo ambicioso!

        E         saiu do gabinete, batendo a porta.

        O Barão sorriu. Tinha esperado havia muito por aquele momento. Quando Robert confessasse que se interessava pelo Banco tanto quanto ele. Robert queria o Banco para o filho dele como ele o havia querido para Robert.

        Agora podia fazer o que quisesse com a consciência tranquila. Podia afinal descansar.

 

        Robert folheou lentamente as páginas do livro de escrituração confidencial até encontrar o que queria. Ficou então estudando as cifras. Aquela podia ser a solução. Tudo dependia do grau de ambição de Sir Robert.

        O problema sempre fora o capital. Nunca deixava de ser para um Banco particular. Um Banco de propriedade pública tinha muitas maneiras de aumentar o seu capital. Uma delas era emitir ações para a sua capitalização quando fosse necessário. Mas o Banco De Coyne era particular. Não havia acionistas fora das pessoas da família. Sempre tinha sido assim. Não dependiam de ninguém senão de si mesmos.

        Muitos anos antes, seu pai resolvera o problema de melhorar a caixa do Banco sem tomar dinheiro emprestado e sem ceder parte alguma da propriedade do estabelecimento. Emitiria obrigações de prazo curto e desconto mínimo. A reputação do Banco era tal que a aceitação foi imediata. O público adquiriu as obrigações sem hesitação, preferindo-as a outros papéis de maiores possibilidades de lucro, porque sabia que não havia o menor risco. Nunca, em seus quase cem anos de existência, o Banco De Coyne deixara de atender a um compromisso. Dentro em pouco, esses títulos ganharam a reputação de ser mais estáveis do que muitas moedas da Europa. Talvez porque eram pagáveis sempre em dólares e em qualquer país do mundo.

        O Barão havia previsto a possibilidade de que as obrigações fossem entesouradas e procurava anular isso por meio de um programa de resgate. Dez por cento das obrigações existentes eram resgatáveis anualmente em novas obrigações ou em dinheiro. Para assegurar o resgate, só se pagavam juros até a data fixada para o resgate. Depois disso, os juros não eram mais exigíveis.

        O plano dera bom resultado até quase cinco anos antes quando uma pequena percentagem das notas vencidas não foi apresentada nem para troca, nem para resgate. Fizera-se automaticamente uma transferência da importância correspondente do capital de giro para o fundo de reserva. Essa parte aumentara de ano para ano e já havia vinte milhões de dólares nessa conta do fundo de reserva.

        Robert fez prontamente os cálculos. Esse dinheiro de reserva representava só por si uma redução líquida dos lucros possíveis do Banco de cerca de três milhões de dólares, a diferença entre o que essa quantia poderia ter rendido e os juros pagos pelas obrigações. Mas representava coisa ainda mais importante. Limitava a capacidade do Banco de entrar em novos negócios e reduzia a sua posição de competição no mercado de dinheiro.

        Robert pensou que aí estava a solução, se desse resultado. Os investimentos no Corteguay, os mais lucrativos que o Banco possuía. Embora tivessem apenas meio interesse nos investimentos, pois a outra metade pertencia ao Banco de Sir Robert na Inglaterra, só a parte deles representava quase 19 milhões de dólares, com um lucro de quase cinco milhões de dólares por ano.

        Era um lucro muito grande para que       se pudesse abrir mão dele. Quase dois terços dos lucros totais do Banco depois de descontadas todas as despesas operacionais. Mas valeria a pena se com isso fosse possível tirar os títulos das mãos do primo inglês do Barão. Sir Robert devia morder a isca sem ao menos saber quem estava manejando a linha do anzol. Robert pegou o telefone.

        — Procure Monsieur Xenos para mim, — disse ele à secretária e escutou por um momento, acrescentando depois: — Em qualquer ponto do mundo, onde estiver. É da maior importância que eu fale com ele.

 

        Dois homens ainda moços estavam sentados ao lado da mesa de Sir Robert quando Dax foi levado ao escritório. Ambos se levantaram quando Sir Robert estendeu a mão ao visitante.

        — Muito prazer em vê-lo, Dax. Há quanto tempo, hem?

        — É verdade, Sir Robert, — disse Dax, apertando-lhe a mão e sorrindo.

        — Não conhece ainda meus genros, Victor Wadleigh e John Staunton.

        — Muito prazer.

        — Faça o favor de sentar-se, Dax. Naturalmente, deve estar com curiosidade de saber por que mandei chamá-lo, não?

        — A bem dizer, não. Faço mais ou menos uma ideia, — disse Dax, olhando para os dois homens.

        — Pode falar à vontade, — disse Sir Robert. — Os dois trabalham no Banco e estão inteiramente a par dos meus negócios.

        — Muito bem. Não será a respeito dos investimentos do Corteguay que o senhor quer falar?

        — Exatamente. Soubemos que iniciou negociações com o Banco do Barão para a aquisição dos negócios que eles têm no Corteguay.

        — É verdade.

        — Não sabia que ainda tinha papel ativo nos assuntos da sua terra.

        — Não tenho mais. E para dizer a verdade, não estou agindo nem por mim mesmo, nem pelo Corteguay. Represento um sindicato interessado na aquisição. Depois do que me aconteceu, aprendi, embora um pouco tarde na vida, que tenho de cuidar de mim mesmo.

        Sir Robert sorriu. Essa linguagem ele poderia perfeitamente compreender.

        — Se me permite dizer, acho que o trataram muito mal depois de tudo o que fez pelo país.

        Dax nada disse.

        — Esse grupo que representa é americano, não é?

        Dax sorriu.

        — Até aí eu posso ir.

        — Não pode revelar-nos quem são eles?

        — Infelizmente, Sir Robert, nem ao senhor eu poderia dizê-lo.

        — Sabe decerto que nós temos um investimento igual no Corteguay e que a nossa aquiescência seria necessária para que o Barão pudesse vender a parte dele ao seu grupo?

        — Robert me falou nisso, mas disse que esperava que o senhor não criasse dificuldades. Explicou que sempre havia contado com a sua cooperação.

        Sir Robert pensou. O Barão devia estar sentindo o aperto, pois do contrário não pensaria naquela venda. O investimento no Corteguay era o mais rendoso que os dois Bancos já haviam feito. Compreendia também que não podia recusar a sua aprovação se o Barão a pedisse. Se recusasse, o Barão jamais concordaria com a fusão.

        Sentia-se de certo modo entre o fogo e a panela. Se aprovasse a transação, todo aquele lucro estaria perdido, quando fosse feita a fusão. Se recusasse, haveria guerra aberta entre ele e o Barão e não haveria qualquer possibilidade de fusão. A não ser que houvesse uma terceira possibilidade.

        E havia, sim. Decerto, significaria o adiamento da fusão por algum tempo. Mas até isso não teria grande importância em vista do que ganharia com um pequeno investimento a mais da sua parte.

        Tudo dependia de Dax e da sua determinação de cuidar de si mesmo, como havia dito. Sir Robert hesitou um momento, lembrando-se do que havia acontecido entre eles muitos anos antes. Mas foi só um momento. A sua cobiça o levou a pensar que no fundo todos os homens eram motivados apenas pelo dinheiro. E começou a falar.

 

        Robert mal podia disfarçar a sua alegria.

        — Mordeu mesmo a isca?

        — Com anzol, linha e tudo, — respondeu       Dax, sorrindo.

        O Barão olhou-os, intrigado, e disse:

        — Querem explicar-me de que se trata?

        Robert voltou-se para o pai.

        — Quando seu ilustre primo soube que os investimentos no Corteguay poderiam ir parar em outras mãos, resolveu comprá-los. Em primeiro lugar, comprou Dax, oferecendo-lhe duas vezes mais do que julgava que o mítico sindicato estava oferecendo. Depois, cobriu o que julgava ser a proposta do sindicato, 25 milhões de dólares, estabelecendo como condição única que, em vez de dinheiro, 20 milhões seriam pagos com as nossas obrigações.

        O Barão sorriu.

        — E você o que foi que fez?

        — Que é que eu podia fazer? Por sentimento de família, tive de aceitar. Os genros dele acabam de voltar para Londres com o acordo assinado.

        O Barão olhou para Dax.

        — Agiu muito bem.

        — Obrigado, — disse Dax, — mas na realidade eu nada fiz.. Quem teve a ideia de tudo foi Robert. Sinto-me até constrangido de aceitar o dinheiro do Banco.

        — Não se sinta, porque fez jus a ele, — disse o Barão que, em seguia, se voltou para o filho. — Você também agiu muito bem.

        Robert sorriu. Os elogios do pai eram coisa muito rara. Abriu a pasta que levara para o escritório do Barão e espalhou em cima da mesa os títulos caprichosamente impressos.

        — Pronto, Papa. As nossas obrigações. Vinte milhões de dólares.

        O Barão olhou-as e, depois, abriu a gaveta da mesa e tirou uma folha de papel. Escreveu a data no papel e entregou-o a Robert.

        — Tome, Robert. Isto é para você.

        Abaixo da data, estavam datilografadas as seguintes palavras:

        “O Banco De Coyne anuncia hoje o afastamento do Barão Henri Raphael Sylvestre De Coyne do seu cargo de Presidente do banco e a eleição de seu filho, Robert Raymond Samuel De Coyne, como seu sucessor. Nesta oportunidade, o Banco De Coyne declara com orgulho que o cargo de Presidente passou de pai para filho pela quarta geração.”

        Havia lágrimas nos olhos do velho quando olhou para Robert.

        — É meu maior desejo que você um dia possa fazer isso por seu filho.

        Robert inclinou-se sobre a cadeira do pai. Beijou-lhe as faces; sentindo o gosto salgado das lágrimas.

        — Obrigado, meu pai. É esse também o meu maior desejo.

 

        Dee Dee entrou no quarto com um jornal na mão.

        — Já leu a coluna de Irma Andersen, Dax?

        — Você bem sabe que eu não leio essas coisas, — disse Dax, rolando na cama.

        Era uma coisa que Dee Dee não podia compreender. Sendo atriz, vivia a ler os jornais para ver se diziam alguma coisa dela. Assinava os serviços de três agências de recortes e era mais fácil sair de casa sem maquilagem do que deixar de ler as colunas todas as manhãs.

        “O avião a jato deu à velocidade uma liberdade -nova. A liberdade do tédio. Tédio? Basta você embarcar num jato e estará amanhã no lugar do mundo que desejar. Pode estar em Paris assistindo ao novo show de modas do Príncipe Nikovitch e ali encontrar Robert de Coyne, novo chefe do tradicional Banco de Coyne, com sua bela esposa, Denisonde, e sua encantadora irmã, Caroline. Pode estar em Londres no Claridge’s e almoçar rosbife vendo na mesa vizinha o Conde de Buckingham e Jeremy Hadley ou talvez dois ou três congressistas americanos em visita. Londres neste caso está muito interessada em política. Ou pode passear pela Via Veneto em Roma e ali passar ao lado de Dee Dee Lester ou qualquer das estrelas de Hollywood que estão acorrendo para a cidade que muitos pensam que vai ser a nova capital mundial do cinema. Ou pode estender-se na areia ao sol da Riviera, sem sequer saber que o homem queimado de sol ao seu lado é o famoso playboy sul-americano Dax Xenos e que a bela moça de biquíni ao lado dele é Sue Ann Daley, provavelmente a mais rica herdeira do mundo.

        Você também pode fazer parte do fabuloso jet set. Não é preciso ser estrela de cinema, ter nascido numa das quatrocentas famílias, ser político ou playboy. Você não precisa nem ser rico. Basta ter uma passagem. Os jatos voam noite e dia.”

 

        Dee Dee acabou de ler a coluna e perguntou a Dax:

        — Que é que acha disto?

        — Se a coisa é assim tão interessante, que diabo é que estamos fazendo em Nova York?

        — Não é disso que estou falando.

        — Irma deve ter recebido bom dinheiro das companhias de aviação.

        — Você se finge de desentendido de propósito.

        — Deixe ver o jornal, — disse Dax. — Não sei de que é que você se está queixando. Seu nome está escrito certinho.

        — Você sabe perfeitamente o que eu quero dizer. Eu em Roma, você na Riviera!

        — Tudo errado! Como os jornalistas são mal informados! Estamos ambos em Nova York.

        Dee Dee arrancou-lhe com raiva o jornal das mãos.

        — Você com Sue Ann Daley! É disso que estou falando! Aquela cadela fez isso de propósito. Queria mostrar que estávamos separados.

        — E estávamos.

        — Confessa então que esteve na Riviera com Sue Ann?

        — É claro. Você não podia querer que eu ficasse em Roma com todo aquele calor enquanto você fazia um filme!

        — Você veio para Nova York com ela. Por isso é que eu tive de vir para cá pára poder vê-lo.

        — Bem, eu vinha para Nova York de qualquer maneira.

        Dee Dee sentou-se de repente e murmurou:

        — Não estou gostando disso.

        — Cuidado! Você está começando a ser muito possessiva.

        Dee Dee o olhou languidamente.

        — Acho que estou começando é a sentir amor por você.

        — Não faça uma coisa dessas! Ninguém está usando amor este ano nem mesmo no jet set!

 

        Dax acompanhou o maitre até o bar. Como sempre, o “21” estava repleto. Cumprimentou várias pessoas conhecidas até chegar à sua mesa no canto.

        — Desculpe o atraso, — disse ele a Jeremy Hadley, quando este se levantou para cumprimentá-lo.

        — Não tem importância. Cheguei agora mesmo.

        Sentaram-se e Dax pediu um Bloody Mary. Quando o garçom se afastou, os dois amigos se olharam.

        — Então?

        Jeremy sorriu.

        — Fiquei um pouco surpreso quando falei em almoço e você sugeriu o “21” em vez do Colony.

        — Para o Colony eu só levo mulheres, — disse Dax, rindo.

        — Curvo-me diante do líder.

        — Líder?

        — Não sabia? É como lhe estão chamando.

        — Palavra que não sei por quê.

        — Acho que os jornais é que começaram. Você se tornou o predileto dos colunistas.

        — Ora, essa gente é um punhado de velhas comadres. Não têm nada mais sobre que escrever.

        — Você sabe que não é verdade, — replicou Jeremy prontamente. — Têm ao contrário um campo muito variado sobre que escrever. Podem falar em qualquer celebridade. Mas preferem você porque representa para eles uma maneira nova de viver. Você sempre aparece nos lugares certos, com as pessoas certas, nas horas certas. Sabe quantas vezes por semana o seu nome aparece nas colunas?

        — Quer dizer que eu agora sou gente “bem”?

        — É mais do que isso, Dax. No que diz respeito às colunas e aos seus milhões de leitores, Eisenhower podia muito bem estar ainda em Topeka, Kansas, em vez de na Casa Branca.

        O garçom trouxe a bebida de Dax.

        — Foi justamente por isso que sugeri que almoçássemos juntos.

        — Não me diga que me quer entrevistar!

        — Acha tão má ideia assim? Pode ser justamente aquilo de que preciso para aumentar o número dos meus leitores.

        — Você não precisa mais disso.

        — Talvez não. Mas escute, — disse Jeremy, baixando a voz e olhando para ver onde estavam os garçons. — O que lhe vou dizer é rigorosamente confidencial. Meu amigo, o senador, está pensando em casar-se.

        — Já sei. Com aquela moça de Back Bay. É muito simpática.

        — Como é que você sabe? — perguntou Jeremy, espantado.

        — Tudo está sendo mantido em muito sigilo. Os jornais ainda não publicaram uma linha.

        — Não sei por que você se espanta. Se eu sou “bem” como você diz, é perfeitamente normal que eu saiba das coisas. Escute, tudo é muito simples. Quando estive em Capri no mês passado, saí para dar um passeio de esqui aquático com uma moça que era o que vocês chamam de girlfriend dele. Devo dizer que ela se mostrou muito calma a respeito de tudo.

        — Epa! Com certeza sabe também por que é que estamos almoçando juntos?

        — Ainda não.

        — Se conhece a moça com quem ele vai casar, sabe também que espécie de moça ela é. Boa família, educada nas melhores escolas aqui e no estrangeiro. De fato, uma moça muito simpática, mas um pouco distante, reservada e fria. O americano médio poderia até julgá-la levemente esnobe.

        — Compreendo, — disse Dax. — Não é essa absolutamente a impressão que um homem que ambiciona ser Presidente gostaria de que sua mulher desse.

        — De certo modo, sim.

        — Ainda não compreendo a relação que isso tem comigo.

        — Já vou chegar lá. Ela está agora com um grande problema de guarda-roupa. Quer ir a Paris comprar o enxoval mas ele se opõe. Receia que possa haver alguma reação política. Compreende o que quero dizer?

        Dax acenou afirmativamente. Tinha alguma ideia das complexidades da política americana.

        — O senador me pediu como amigo que eu o ajudasse a resolver o caso. Sugeri então o Príncipe Nikovitch. Ela comprou algumas coisas com ele no ano passado em Paris e, por isso, aprovou a ideia. O senador também ficou satisfeito porque o príncipe tem agora a sua base de operações nos Estados Unidos.

        — Sergei ficará encantado com isso.

        — Sem dúvida, mas o senador ainda tem uma restrição. Julga que tudo poderia ser mais aceitável se o príncipe declarasse a sua intenção de naturalizar-se americano antes que qualquer notícia fosse divulgada. Dessa forma, as críticas seriam muito poucas.

        — Não deve haver problema. Tenho certeza de que ele concordará.

        — Quer conversar com Sergei para nós? Eu não posso. As minhas ligações com o senador são bem conhecidas.

        — Com prazer. É coisa muito simples.

        — Ainda há outra coisa.

        — Que é?

        — Isso pode ser mais difícil. Meu irmão mais moço, Kevin, vai-se diplomar em Harvard neste ano.

        — O garotinho?

        — Garotinho? — perguntou Jeremy, rindo. — Você devia vê-lo. Tem um metro e oitenta e cinco de altura. Mas o que eu lhe queria dizer é que ele e o irmão do senador, que é colega de turma dele, vão para a Europa sozinhos neste verão. E se eu conheço bem aqueles dois, vinte minutos depois de saltarem do avião, a confusão começará.

        — Sinal de saúde.

        — Se fosse apenas Kevin, não teria tanta importância, mas o irmão do senador atrairá a atenção dos repórteres.

        — Compreendo, — disse Dax. — O seu amigo tem muitos problemas.

        — Nós ambos conhecemos os nossos irmãos mais moços.

        — Que é que você quer que eu faça?

        — Eu estava pensando em algum meio de vigiá-los para que não se metessem em encrencas.

        — Não seria fácil, — murmurou Dax, pensativamente. — Gente moça se move com muita rapidez.

        Ficaram por um momento em silêncio e então Dax disse:

        — Se pudéssemos controlá-los para que fossem para determinado lugar e conhecessem determinadas pessoas, daria resultado. Só pode ser assim... E já sei o que vou fazer. Falarei com uma velha amiga minha. Ela tomará providências para que eles tenham o que fazer desde o momento em que desembarcarem.

        — Mas como?

        — Você não conhece Madame Blanchette. Ela não está mais em atividade mas me fará isso como um favor pessoal.

        — Eles não podem saber que tudo foi arranjado para eles. Se desconfiarem, não adiantará nada.

        — Deixe estar que eles não vão saber o que foi que lhes caiu em cima! — disse Dax, rindo. — O que pode acontecer é que eles não queiram mais voltar. Para onde forem na Europa, estarão enterrados em mulheres até o pescoço!

 

        Dee Dee entrou no apartamento de Dax no hotel em Roma quando ele estava tomando o café da manhã.

        — Onde esteve esta noite?

        — Fora, — disse ele, passando manteiga no pão.

        — Com Sue Ann, — disse ela, jogando um jornal em cima da mesa. — A fotografia está na primeira página.

        Dax olhou o jornal e murmurou:

        — Esses papparazzi são terríveis, mas não tiram boas fotografias, não acha?

        — Você não me disse que Sue Ann estava aqui.

        — Não pensei que você se interessasse muito por ela.

        — Mas nós íamos jantar ontem à noite, — disse ela, quase chorando.

        — É verdade. Esperei você aqui até às dez horas e então telefonei para o estúdio. Disseram-me de lá que você ia trabalhar até meia-noite para concluir o filme, de modo que achei que você estaria muito cansada para fazer outra coisa que não fosse jogar-se em cima da cama.

        Dee Dee olhou-o em silêncio.

        — Escute, Dee Dee. Agora, seja boazinha e vá para o seu quarto dormir mais um pouco. Você bem sabe que eu não gosto de discutir quando estou comendo.

        — Sabe que já estou ficando farta de ver Sue Ann aparecer em todo o lugar para onde nós vamos?

        — Não posso controlar os passos de Sue Ann. Ela viaja por conta própria.

        — Você gosta de tê-la sempre atrás de você!

        — Bem, — disse Dax, — isso não é exatamente um veneno para a minha vaidade masculina.

        — Oh! Como odeio você!

        — Escute, Dee Dee. Tenho uma hipótese nova. Não é atrás de mim que ela anda, é de você. Quem sabe se ela não está apaixonada por você?

        — Você tem de tomar uma decisão! Fique sabendo que não tolero mais isso!

        — Não me ameace, — disse ele com voz muito fria. — Não gosto de ser ameaçado!

        — Não sei o que você vê nela. Parece um animal!

        — É exatamente isso. A gente sai com Sue Ann, ri um pouco, depois vai para a cama. Só. Não há besteiras, não há romantismos nem se mente sobre amor — o dia de amanhã é da gente mesmo, não há promessas nem exigências. Além disso, ela não faz questão de receber aplausos todas as vezes que dá um espirro.

        — E você pensa que eu faço?

        — Não lhe disse isso. Você me fez uma pergunta sobre Sue Ann e eu lhe respondi. Só isso. Agora, vá-se embora. Já lhe disse que não gosto de discutir quando estou comendo.

        — Cachorro egoísta! — exclamou Dee Dee, levantando a mão como se fosse bater nele.

        Dax estendeu instintivamente o braço para aparar a pancada e por acaso o seu punho meio fechado foi atingi-la no rosto. Ela recuou, atônita.

        — Você me bateu! — exclamou ela, correndo para um         espelho. — E no olho! Vai ficar roxo!

        Dax levantou-se com curiosidade. Não julgava que a houvesse atingido com tanta força assim. Depois, sabia como ela tinha tendência a dramatizar tudo.

        — Deixe ver.

        Dee Dee voltou-se para ele.

        — Não é nada, — disse ele, rindo. — Mas parece que o olho vai mesmo arroxear. Vou ver alguma coisa para você botar aí.

        — Afaste-se de mim, animal! Vai é bater em mim de novo!

        — Pare com isso, Dee Dee. O filme acabou ontem à noite. Não é preciso mais representar.

        Ela correu para a porta. Dax a agarrou pelo braço no momento em que ela abria a porta. Ela exclamou furiosamente:

        — Resolva! Ou ela ou eu!

        Dax ainda estava rindo e procurou fazê-la voltar para a sala. Mas ela conseguiu soltar o braço.

        — Você nunca mais me baterá! — exclamou ela, escancarando a porta. E saiu pelo corredor no momento em que o flash se acendia.

        A fotografia ganhou primeira página nos jornais do mundo inteiro.

        Houve ainda mais fotografias quando Dee Dee desembarcou do avião em Nova York no dia seguinte com um pano preto por cima do olho. Pela primeira vez em sua vida, Dee Dee teve toda a publicidade que queria. Foi só uma semana depois, quando um repórter lhe mostrou um jornal com a pergunta: “Algum comentário, Miss Lester?” que ela compreendeu o que havia feito.

        — Sem comentários, — murmurou ela. E virou prontamente o rosto para que o repórter não pudesse ver as lágrimas que de repente lhe afluíam aos olhos.

        Dax e Sue Ann haviam-se casado naquela manhã na Escócia.

        — Está claro aqui dentro.

        — Acho repousante.

        — E que cheiro! Você está fumando outra vez esses horríveis cigarros. — O Presidente atravessou o quarto e, descerrando as cortinas, abriu as janelas. O ar quente e doce jorrou no quarto. Ele ficou ali um momento respirando profundamente e, depois, voltou- se para a filha: — Não compreendo por que fuma isso.

        Amparo estava sentada numa poltrona meio voltada para a janela. Apagou lentamente o cigarro no cinzeiro.

        — Os cigarros me descansam. Às vezes, as coisas ficam pesadas demais para mim. Quando não quero ver nem a mim mesma quanto mais aos outros, eles me dão paz. Retardam tudo e eu posso ver as coisas com mais clareza e arrumar a cabeça.

        — São um narcótico. Pior até do que o uísque.

        — Nem pior, nem melhor. Diferente.

        Ele se aproximou da poltrona e disse:

        — Já sei de onde vêm as armas!

        — De onde é? — perguntou Amparo sem curiosidade.

        — Do americano em Monte Carlo.

        — Mas pensei que fossem de fabricação comunista.

        — E são. O americano é o agente. É ele que as embarca e vende para o mundo inteiro. Essas mesmas armas apareceram em Cuba e também em São Domingos.

        — Oh...

        — É preciso fazê-lo parar.

        — Para quê? Outros tomarão o lugar dele.

        — Cuidaremos também desses outros. Enquanto isso, ganharemos tempo para preparar-nos.

        — Preparar? — Pela primeira vez, o rosto de Amparo mostrou alguma expressão. — Preparar para quê? Para a catástrofe?

        O pai não respondeu. Amparo começou a rir.

        — De que está rindo?

        — De você. Cuba e São Domingos, Batista e Trujillo e agora você. Os homens fortes, com armas e com poder. Não podem ver que o tempo de vocês está chegando ao fim? Que já estão extintos como os dinossauros? Por que procuram todos tão desesperadamente ultrapassar a sua época? Por que não saem calmamente de cena?

        — E quem tomará os nossos lugares?

        Amparo não respondeu.

        — Os comunistas! Que garantias há de que as coisas serão melhores com eles? Talvez sejam até um pouco piores.

        — Pode ser que os comunistas sejam necessários até o povo poder pensar e fazer as coisas por si mesmo, como a noite deve ser escura para que o dia nasça.

        — Se os comunistas vierem, a noite nunca terminará.

        Os olhos de Amparo encheram-se de repente de luz.

        — Até nos pólos, onde as noites parecem eternas, o dia chega. O mundo tem sobrevivido a muitas coisas. Sobreviverá ao comunismo como sobreviverá a você.

        — Estou pensando em mandar Dax entender-se com o americano, — disse o pai de súbito.

        — Dax? Como explicará isso ao povo depois do que já lhe foi dito?

        — O povo? — O Presidente riu? — Será fácil. O povo acredita em tudo o que eu lhe digo. Posso mostrar-me magnânimo. Em atenção aos muitos serviços que Dax prestou ao país, ordenarei que ele seja perdoado pelo único erro que cometeu.

        — E acha que Dax estará ansioso por fazer o que você pedir?

        — Dax é bem filho do pai e de certo modo é também meu filho, desde que o confiei a Gato Gordo e mandei-o para as montanhas.

        — E se ele se negar? Nada poderá fazer. Ele está agora fora do seu alcance.

        — Não se negará. Como o pai não se negou mesmo depois que os meus soldados lhe mataram a mulher e a filha. Foi pelo Corteguay que o pai dele me seguiu e será pelo Corteguay que Dax voltará.

        — Tem certeza? Apesar de haver feito uma vida inteiramente alheia a nós nos dois anos em que tem estado ausente?

        — Sabe então que ele se casou?

        — Sei, — disse Amparo, pegando outro cigarro. — Ouvi pelo rádio americano.

        — Tenho certeza, sim, Amparo. O casamento não modificará Dax. Não é a primeira vez que ele se casa. Nenhuma mulher tem para ele mais importância do que outra.

        — Por que se deu ao trabalho de vir-me dizer isso?

        — Porque você é minha filha, — disse ele, sorrindo. — E desde que você foi mulher dele, achei que devia ser a primeira a saber que ele voltou às minhas boas graças.

        — Quando chegou à porta, Amparo estava acendendo outro cigarro. O estranho e forte odor estava começando de novo a encher o quarto.

        — Ih? Pare com isso! Você está-me machucando!

        A voz de Sue Ann era entrecortada de dor. Ela bateu de repente com as mãos nas costas dele, afastou-o dela e rolou para o lado, ofegante. O colchão se levantou quando Dax saiu de cima dela e foi para fora da cama.

        Sue Ann ouviu-o riscar um fósforo e acender um cigarro. Ela tirou satisfeita o cigarro da mão dele e aspirou profundamente a fumaça. A dor que sentia no corpo se atenuou quando ouviu Dax acender outro cigarro e voltou-se para olhá-lo.

        Ele fora sentar-se na cama e o seu corpo esbelto, musculoso e moreno, estava imóvel. Apenas os insondáveis olhos negros a contemplavam.

        — Está melhor?

        — Muito melhor, obrigada. É a primeira vez que isso me acontece. Fiquei inteiramente saciada.

        Dax sorriu, mostrando os dentes muito brancos na meia-luz do quarto.

        — Talvez seja a primeira vez em que você tem mesmo uma lua-de-mel.

        — Nunca passei quatro dias sem ao menos sair do quarto, se é isso que está querendo dizer.

        — Já está-se queixando? A lua-de-mel acabou.

        Dax levantou-se da cama, foi até à janela e abriu as cortinas. A luz do sol entrou aos borbotões e ele então escancarou as janelas para deixar entrar também o ar frio do mar escocês.

        — Lá fora está um dia lindo.

        — Feche essa janela antes que       eu fique gelada! — gritou Sue Ann, encolhendo-se debaixo dos cobertores.

        Dax fechou a janela e voltou sorrindo para junto dela. Só os olhos e os claros cabelos dela eram visíveis. O resto estava tudo coberto.

        — Que espécie de homem é você?

        Ele não respondeu.

        — Já houve outro como você?

        — Deve ter havido. Adão começou há muito tempo.

        — Não acredito. E desculpe, Dax.

        — Desculpe o quê?

        — Por ter afastado você. Não queria que você parasse, mas não aguentava mais. A dor era muita.

        — A culpa é minha. Nem imaginei...

        — Eu sei e é justamente por isso que é maravilhoso.       Você não imagina, você age.

        Sue Ann olhou Dax que atravessou o quarto nu até à cômoda. Apanhou o relógio de pulso.

        — Que horas são? — perguntou Sue Ann.

        — Esqueci-me de dar corda, — disse Dax, rindo. — Por que seria?

        Sue Ann sorriu ternamente e estendeu a mão para ele.

        — Lembra-se do tempo em que eu costumava ir ao seu quarto em Boston?

        — Claro que me lembro.

        — Imaginou que algum dia nos iríamos casar?

        — Nunca.

        — Pois eu pensei nisso uma ou duas vezes. Imaginava o que seria ser casada com você.

        — Agora, já sabe.

        — Sim, agora sei e não compreendo como foi que pude perder tanto tempo.

        Dax acariciou-lhe delicadamente os cabelos.

        — Todos nós perdemos tempo de uma maneira ou de outra.

        Sue Ann virou o corpo para ver-lhe bem o rosto e perguntou:

        — Está feliz comigo?

        — Sim. Pela primeira vez em minha vida sei exatamente o que se espera de mim.

        Ela deu-lhe um beijo que foi também meia dentada e deu um pulo da cama.

        — Está bem, rapaz. Fiquei aí um instantinho que eu vou tomar uma chuveirada de água quente.

        Ele a pegou no box do banheiro no momento em que a água começava a cair. Levantou-a nos braços e encostou-a à parede. O sabonete caiu da mão de Sue Ann.

        — E agora? — exclamou ele. Está toda molhada e não tem mais desculpa nenhuma.

        Ele a deixou escorregar delicadamente pela parede.

        — Cuidado, Dax! Não vá escorregar no sabonete! — Sentiu-o então dentro dela e fechou os olhos, abraçando-o delirantemente. — É isso! Isso! Isso!

        Mais tarde, quando estavam de novo deitados na cama fumando tranquilamente, ela murmurou!

        — Acho que será bom passarmos uma temporada na casa de Palm Beach no mês que vem.

        — OK.

        — Aquilo ali é ótimo nesta época do ano. O inverno na Europa é uma coisa que nunca me agradou. Além disso, aposto que minha família está ansiosa por saber como você é. — Começou a rir. — Minhas primas sulistas vão ficar quase loucas quando virem você.

        O telefone começou a tocar.

        — Quem pode ser? — perguntou Sue Ann. — Você deu a alguém o nosso telefone?

        — Só a Gato Gordo, — respondeu Dax. — Vou atender.

        — Alô? — disse ele e logo cobriu o receptor com a mão. — É Gato Gordo, sim.

        Sue Ann acendeu outro cigarro e ficou escutando enquanto ele falava num espanhol muito rápido de que ela não percebia uma só palavra. Pensou preguiçosamente nas línguas que ele sabia: espanhol, inglês, francês, italiano, alemão. Era impressionante. Ele nunca havia conseguido passar do francês no curso secundário.

        Dax desligou o telefone e voltou para junto da cama.

        — O consulado em Paris recebeu uma carta muito importante do Presidente para mim.

        — Vão mandar a carta para você?

        — Não. Têm ordem expressa de só entregar pessoalmente a mim. Você se incomodaria muito se fôssemos até lá pegá-la?

        — Claro que não. Estou mesmo precisando de umas roupas. Que iriam dizer em casa se eu aparecesse por lá depois de casada sem um enxoval?

        — Diriam coisas horríveis.

        — Quando quer ir?

        — Se andarmos depressa, ainda podemos pegar o último avião de Prestwick para Londres.

        — Estou vendo que a lua-de-mel acabou mesmo.

        Dax riu.

        Ela teve uma súbita ideia.

        — Talvez não tenha acabado ainda. Dizem que percorrer a França de automóvel é uma coisa muito romântica. Podemos pegar em Paris a sua Ferrari e a carta.

        — Infelizmente, não é possível. Kevin, o irmão mais moço de Jeremy Hadley, e um amigo ficaram com ela para irem até à Itália. Foram com umas pequenas.

        — Pequenas? — perguntou Sue Ann com espanto. — Como pilhéria, não está má.

        — Que é que há de estranho nisso? Rapazes gostam de pequenas. Ou você não sabe disso?

        — Sei perfeitamente, mas não um tipo de rapaz como aquele. Não sabia?

        Dax sacudiu a cabeça.

        — Pois o garoto é um homossexual conhecido.

        Dax viu-a entrar no banheiro e fechar a porta.       Olhou para o telefone, indeciso, e acendeu um cigarro. Era muito tarde para ligar para Madame Blanchette. Ela devia ter ficado aborrecida porque ele não a avisara.

        Jeremy devia ter dito a ele. Não era de admirar que ele se tivesse mostrado tão preocupado com a possível publicidade. Mas, não. Sue Ann devia estar errada. Os dois         estavam na Europa desde o início do verão e Madame Blanchette nunca lhe dissera nada. Tudo devia ter corrido bem, pois do contrário ela teria achado um jeito de fazê-lo saber.

        — Desculpe, mas não vejo absolutamente o que posso fazer.

        Dax olhou para o homem de cara de anjo e olhos azuis. Parecia mais um pequeno negociante do que o homem que havia tomado conta do negócio de Sir Peter Vorilov quando este morrera. Olhou para os dois guarda-costas encostados em silêncio, mas vigilantemente, à parede. Olhou pela janela.

        Barry Baxter havia tomado conta de tudo, até da velha casa de Vorilov no alto do monte, de onde se via lá embaixo Mônaco, a cidade, o porto e uma grande extensão do Mediterrâneo. Virou-se para o americano.

        — A questão não é simplesmente de desculpas, Sr. Baxter. Muita gente continuará a morrer desnecessariamente.

        — Não sou responsável por isso. Sou um homem de negócios. Opero na base do pagamento à vista com entrega imediata. O que é feito com a mercadoria não é da minha conta.

        — Informarei o Presidente das nossas discussões, — disse Dax, levantando-se.

        Baxter levantou-se também.

        — Compreende a minha posição? Se eu começasse a escolher os meus fregueses, estaria tomando partido. Seria um péssimo negócio.

        Dax já ia saindo sem dizer mais nada, mas Baxter levou-o até à porta.

        — Faça o favor de informar ao Presidente que temos uma linha completa de armamentos indicados para operações contra guerrilheiros. Tudo de primeira classe.

        Dax cumprimentou-o em silêncio. Como em virtude de um sinal invisível, a porta se abriu. Dois homens montavam guarda do lado de fora.

        — Bom dia, Sr. Baxter, — disse cerimoniosamente sem estender a mão para o americano.

        — Bom dia, Sr. Xenos. Se houver qualquer outra coisa com que eu possa servi-lo, não hesite por favor em me telefonar.

        Dax saiu pensando que evidentemente não podiam esperar cooperação de Baxter. Tinha desconfiado disso desde o princípio. As remessas de armas teriam de ser sustadas de outra maneira, talvez antes de chegarem ao país. E era esse o problema. Não podiam estar chegando em pequenos barcos porque a quantidade era muito grande. Os bandoleros deviam ter encontrado outro meio.

        Quando Dax chegou ao carro, o chofer lhe abriu respeitosamente a porta. Olhou para o céu. Havia pesadas nuvens negras que vinham pela costa do lado da Itália. Haveria muita chuva naquela noite. A Riviera era assim em fins de setembro.

        — Para o hotel, monsieur? — perguntou o chofer.

        — Oui.

        O carro parou um momento no portão para o porteiro abrir as pesadas portas de ferro. Dax olhou distraidamente para as colunas de pedra branca e de repente quase deu um pulo dentro do carro.

        O brasão de Vorilov ainda gravado na pedra havia-lhe subitamente despertado uma lembrança. Sergei lhe tinha dito um dia que quando estava trabalhando para Sir Peter soubera que Marcel era agente do velho em Macau e que assim é que ganhava o dinheiro para comprar os cargueiros japoneses.

        Marcel se queixava sempre de que os seus navios voltavam para o Corteguay quase vazios. Teria descoberto um meio de aumentar as suas cargas? Marcel não teria quase trabalho com o transporte das armas. O porto quase lhe pertencia. Afinal de contas, a sua linha era a única autorizada pelo Corteguay e o próprio Presidente era o seu maior acionista.

        Era quase meia-noite quando acabaram de jantar. A chuva batia nas vidraças da sala de jantar do cassino voltadas para o mar.

        — Sinto que estou com sorte hoje, — disse Sue Ann.

        Dax sorriu.

        — Estão esperando por você.

        — Primeiro irei ao toilette. Depois, estarei pronta para quebrar a banca em Monte Carlo.

        Depois que Sue Ann saiu, Dax serviu-se de mais café. Já ia levantando a xícara à boca quando ouviu a voz do maitre.

        — Monsieur Xenos?

        — Oui.

        — Telefone para o senhor.

        Dax atravessou a sala e entrou na pequena cabina.

        — Alô?

        Ouviu pelo fio uma voz de americano, um pouco fina e metálica.

        — Sr. Xenos, é Barry Baxter quem fala.

        — Sim, Sr. Baxter?

        — O senhor é dono de uma Ferrari com placas de Paris?

        — Sou, sim.

        — Bem, houve um desastre na Grande Corniche.

        — Coisa grave?

        — Bastante. Duas pessoas morreram.

        Dax sentiu um frio na espinha.

        — Sabe quem eram?

        — Ainda não. Acabo de ouvir a notícia pelo rádio na onda da polícia.

        — Onde foi mesmo? Tenho de ir até lá imediatamente.

        — Não conseguirá encontrar o lugar com esta chuva. Estarei aí para pegá-lo dentro de dez minutos.

        Dax desligou o telefone. Os americanos eram uma gente estranha. Quando se tratava de negócios, não eram capazes de levantar um dedo para fazer um favor. Mas no momento em que se tratava de alguma coisa pessoal, o caso era muito diferente. Voltou para a sua mesa e disse a Sue Ann o que havia acontecido.

        — Irei com você, — disse ela.

        — Não. Quero chamar a atenção o menos possível. Vá para o cassino. Voltarei assim que puder.

        — Acho que não estou mais com sorte.

        — Faça o que estou dizendo. Será melhor do que ficar esperando sozinha no hotel sem saber o que está acontecendo.

        Quando o grande Rolls-Royce subia a estrada para a Grande Corniche, Dax perguntou a Baxter:

        — Soube de mais alguma coisa?

        — Não. E não deve haver mais nada no rádio. Disse ao chef de police que estávamos a caminho e ele mandou suspender as transmissões do caso.

        Dax pensou que Baxter tinha agido inteligentemente, fazendo automaticamente tudo o que sabia que Dax queria que ele fizesse. O grande carro continuou a subir a montanha. Afinal, chegou à Corniche e virou para Nice. A cerca de dezesseis quilômetros de Monte Carlo, entrou por uma pequena estrada que descia para o mar.

        — Isto aqui é um caminho mais curto para a Moyenne Corniche, — disse Baxter. — O desastre foi agora na primeira curva.

        Os faróis iluminaram os carros da polícia quando o Rolls- Royce chegou à curva, diminuiu a marcha e parou. O chef de police se aproximou do carro antes mesmo que a porta se abrisse.

        — Monsieur Baxter? — perguntou ele.

        Baxter apontou para Dax.

        — C’est lui le patron de la Ferrari, Monsieur Xenos.

        — Sinto muito, monsieur, — disse o polícia olhando para Dax, — mas o seu carro está completamente destroçado.

        — Não estou preocupado com o carro, — disse Dax, saltando, debaixo da chuva. Passou por entre os poucos policiais presentes. A Ferrari estava caída de lado, com a frente inteiramente arrebentada de encontro a uma árvore. Um corpo pendia para trás da direção com os braços abertos sobre o assento.

        Um polícia acendeu a lanterna atrás de Dax.

        — Il est mort.

        Era Kevin. Não podia haver dúvida. O rosto estava intacto mas os olhos se mostravam arregalados.

        — Não parece ter um arranhão, — disse Dax ao chefe de polícia. — Que foi que o matou?

        — Regardez, — disse o chefe de polícia apontando.

        A virilha do rapaz atrás da direção era uma poça de         sangue que já se congelava. Dax voltou-se para         o chefe de polícia.

        — Mas como? A direção está intacta.

        — Perdeu sangue até morrer,        — disse o chefe de polícia. — Venha comigo.

        Dax seguiu-o até uma pequena clareira um pouco adiante do carro. Outro corpo estava estendido ali, com o vestido de seda dilacerado e empapado de chuva e com o rosto coberto por um lençol. O polícia ajoelhou-se e suspendeu o lenço. Era um rosto de homem moreno e congestionado.

        — Não é uma mulher, — disse o chefe de polícia. — C’est un travesti de Juan-Ies-Pins. Deviam estar loucos para tentar uma coisa assim nesta estrada e com esta chuva.

        Dax voltou com ele para o carro de Baxter. Este apareceu com uma garrafa de uísque e um copo.

        — Tome. Deve estar precisando disso.

        Dax tomou o uísque, sentindo-o queimar-lhe a garganta.

        — Muito obrigado. O desastre já é uma tragédia suficiente. Gostaria muito de que nenhum dos detalhes transpirasse.

        — Por que ficam aí na chuva? — perguntou Baxter. — Entrem no carro para conversar.

        O chefe de polícia se sentou na cadeirinha do carro e olhou para eles.

        — Já foram batidas as fotografias. É uma exigência da lei.

        — Compreendo, — disse Baxter. — Mas é uma pena que ninguém tivesse notado que a máquina estava com um defeito.

        — Os jornalistas farão perguntas, — disse o chefe de polícia, — e o salário dos meus homens é pequeno.

        — É claro que eles         não deixarão de ser recompensados pela sua cooperação, — disse Dax.

        O chefe de polícia pensou um momento e disse:

        — Bien, como o senhor diz, a tragédia já é suficiente sem ser preciso aumentá-la.

        Nesse momento, Dax lembrou-se do irmão do senador.

        Quando saíram de Paris, havia outro rapaz e uma moça com eles.

        Só havia os dois no carro, monsieur. Os meus homens deram uma busca completa na área.

        — Tenho de descobrir o outro rapaz, — disse Dax. — Devem ter parado em algum lugar enquanto os outros dois continuavam sozinhos.

        — Nós os descobriremos para o senhor, — disse o chefe de polícia, saindo do carro. Foi até ao carro da patrulha, falou pelo rádio e voltou alguns minutos depois.

        — A gendarmerie de Antibes diz que o carro foi visto na vila de Monsieur Hadley. Saiu dali às dez horas esta noite. Só havia duas pessoas nele.

        Dax admirou mais uma vez a eficiência da polícia francesa. Muito pouco acontecia que os seus homens não soubessem. Olhou para Baxter.

        — Terei prazer em levá-lo até lá, — disse ele.

        Dax voltou-se para o polícia.

        — Merci. Telefonarei para o senhor depois de ter falado com a família do rapaz nos Estados Unidos.

        — Apresente a Monsieur Hadley o meu profundo pesar.

        — Assim farei. Muito obrigado.

        O carro saiu do local e tomou o rumo de Nice.

        — Acho que a chuva vai parar.

        Dax concordou olhando pelo vidro do carro. Telefonaria para Sue Ann logo que chegasse à vila. Não adiantava fazê-la esperar por ele. Tinha de botar o irmão do senador no primeiro avião que partisse de Nice no dia seguinte.

        — Uma tragédia terrível, — disse Baxter.

        — Decerto.

        — Desculpe não ter ido ver o desastre em sua companhia, — disse Baxter inesperadamente. — Não posso ver sangue.

        — Tenho uma surpresa para você, — disse Sue Ann quando Dax apareceu no terraço para o breakfast.

        — Outra, Sue Ann? Você tem de parar com isso. Já estou com tantas jóias que estou começando a sentir-me como um gigolô.

        Sue Ann riu, intimamente satisfeita. Ela estava sempre comprando presentes para ele.

        — Não é nada de jóias desta vez. É uma coisa que você sempre quis.

        — Está bem, — disse Dax, servindo-se de uma xícara de café. — Que é então?

        — Não lhe vou dizer agora. Acabe de tomar o seu café. Temos de ir à cidade para pegar o que é.

        Ouviu-se o barulho de uma lancha e Dax olhou. A lancha estava saindo do cais levando uma moça com esquis aquáticos.

        — Quem é aquela que está com toda essa energia hoje de manhã? — perguntou Dax.

        Sue Ann sorriu.

        — É minha prima, Mary Jane, querendo dominar as suas frustrações.

        — Frustrações?

        — Sim. Está com uma paixão aguda por você.

        — Você sempre pensa que todo o mundo tem paixão por mim, — disse Dax, começando a comer um prato de presunto com ovos.

        — Conheço Mary Jane, Dax. Desde que eu era menina, ela sempre quis tudo o que eu tinha. Depois, eu lhe disse que elas ficariam loucas por você.

        — Não havia notado.

        — Mas eu notei. Até Simple Sam não tira os olhos de cima de você. Seria de pensar que o que ela tem em casa lhe chegasse.

        Dax sorriu. Simple Sam era uma ex-corista que se casara com o herdeiro de uma fábrica de refrigerantes que possuía a propriedade ao lado, e vivia dentro de uma névoa alcoólica quase todo o tempo, sem perceber que Simple Sam enchera a casa com amiguinhos seus. Ocupavam todos os lugares disponíveis, de salva-vidas a mordomo. Era um arranjo muito interessante.

        Dax sabia que Sue Ann e Harry, o herdeiro, tinham sido quase criados juntos e, por isso, ela tinha muita pena dele. Não havia qualquer traço de moralidade na atitude de Sue Ann, mas não lhe agradava a ideia de que Harry estivesse sendo enganado de maneira tão baixa e deliberada.

        — Só ela é que me preocupa, — disse de repente Sue Ann.

        — Como assim?

        — Posso compreender as outras. Não passam de cadelinhas e de certo modo se você andasse com elas eu não ficaria muito zangada. É só ver como se jogam para você.

        — É muita generosidade sua, — disse Dax, rindo.

        — Nada disso. Ao menos, elas querem você por si mesmas. Simple Sam é diferente. Ela só quer você para que possa ter a glória de enganar-me como engana Harry.

        Dax acabou de tomar o café e levantou-se.

        — OK. Qual é a grande surpresa?

        — Pensei que fossemos à cidade, — disse Dax depois, quando o carro tomou o rumo do aeroporto de West Palm Beach.

        — Tenho de passar aqui primeiro. Vamos.

        Dax foi com ela até um pequeno escritório.

        — Já chegou? — perguntou ela ao homem que estava por trás do balcão.

        — Já, Sra. Xenos. Está atrás do hangar. Venha comigo.

        Saíram com o homem. Um pouco adiante, ele parou e apontou.

        — Lá está ele. Todo abastecido e pronto para voar 2.000 quilômetros. Não é uma beleza?

        Dax olhou para o avião bimotor que brilhava ao sol como se fosse de prata e voltou-se para Sue Ann.

        — Surpreso, querido?

        Não era preciso dizer. Estava mesmo.

        Dax estava estendido na areia quente da praia. Os breves calções brancos eram uma faixa estreita no corpo queimado. Estava imóvel sob o sol ardente.

        — Está acordado?

        — Estou.

        — Achei que podia querer alguma coisa gelada.

        Dax virou a cabeça para ver. Mary Jane, a prima de Sue Ann, estava ao lado dele com um copo grande em cada mão. Sentou-se.

        — Muito obrigado.       É muita gentileza sua.

        Dax tomou o copo e ela se sentou na areia ao lado dele.

        — Tintim!

        Notou então que ela estava olhando muito atenta para alguma coisa e seguiu a direção do seu olhar. Começou a rir. A areia quente o havia excitado um pouco, sem que ele tivesse consciência disso.

        — Não sei de que é que está achando graça, — murmurou Mary Jane. — Você podia até estar nu aqui na praia. Estou vendo tudo.

        — Não seja hipócrita, menina. Você não é obrigada a olhar. Se olha, é porque gosta.

        — Não seja vulgar, está bem?

        Mas Mary Jane não afastava o olhar. Moveu-se um pouco na areia e estendeu a mão como se fosse atraída por um ímã. Dax pegou-lhe no queixo e disse com o rosto muito perto dela.

        — Ora, ora, priminha. Pode olhar, mas não pode tocar? Acho que Sue Ann não vai gostar.

        Mary Jane levantou-se no mesmo instante, muito zangada e com o rosto vermelho.

        — Agora creio que você é mesmo o animal que Sue Ann diz que você é! — exclamou ela e afastou-se rapidamente.

        Daí a pouco, Sue Ann apareceu e sentou-se ao lado dele.

        — Por que é que Mary Jane está tão irritada? Diz que você tentou agarrá-la.

        — Ela disse isso? — perguntou Dax, rindo. — Ficou zangada porque não a deixei tocar-me.

        Um momento depois, Sue Ann começou a rir.

        — Não disse que você as faria ficarem malucas? Mas         se você estava excitado por que não me chamou? Isso não é coisa que se perca.

        — Ora, — disse Dax, estendendo-se na areia e sorrindo preguiçosamente. — Não valia a pena incomodar você. Foi apenas um projeto...

        O avião prateado pousou na pista e parou quase no lugar onde o repórter estava esperando. Dax saltou do avião e encaminhou-se para ele.

        — Sou Xenos, — disse ele, sorrindo.

        — Stilwell, do Harper's Bazaar, — disse o repórter, apertando-lhe a mão. — Não sabia se o seu carro estaria no aeroporto. Se não estiver, poderemos chamar um táxi.

        Dax sorriu.

        — Telefonei para Sue Ann do avião. A lancha deve estar à nossa espera no cais, ao lado do aeroporto.

        Sue Ann deu adeus da lancha.

        — Fez boa viagem?

        — Muito boa, — disse Dax, pulando para dentro da lancha e beijando-a. — Este é o Sr. Stilwell.

        — Alô. Há bebidas geladas no bar.

        Sue Ann recolheu os cabos de atracação e foi para a roda do leme.

        — Sentem-se que vamos sair, — disse ela.

        Apertou o botão de arranque e o grande motor pegou ruidosamente.

        — Sr. Xenos, — disse o repórter, quase gritando acima do barulho do motor, — não se sente às vezes como uma espécie de Cinderela masculina, sendo casado com a mulher mais rica do mundo?

        Dax olhou-o como se não pudesse acreditar no que ouvira. Depois, fechou o rosto e disse:

        — De todas as perguntas cretinas que já me fizeram, essa foi a mais cretina!

        Agarrou então o repórter, levantou-o e, fazendo passar pela borda da lancha, jogou-o dentro da água.

        O repórter se debateu, gritou e acabou nadando para         o cais.

        — Por que você fez isso? — perguntou Sue Ann.

        — Sabe o que foi que aquele cachorro me perguntou? — disse Dax, repetindo a pergunta.

        Sue Ann começou a rir.

        — Já estava começando a pensar que você ia livrar-se disso.

        — Fizeram essa pergunta a todos os meus maridos!

 

        Posso usar o avião para ir a Atlanta hoje.

        Dax rolou na cama e olhou. Sue Ann estava ali de pé, já toda vestida.

        — Claro. Quer que eu a leve?

        — Não é preciso. Você teria de ficar o dia todo por lá sem fazer nada esperando por mim. Vou com Bill Grady.

        Bill Grady era o homem que haviam contratado para cuidar do avião e servir de co-piloto. Era um ex-piloto de linhas comerciais que fora aposentado pela idade e ficara radiante com o emprego.

        — Está bem, — disse Dax, sentando-se na cama. — Que é que querem com você desta vez?

        — Não sei, Dax. Nunca sei o que eles querem. Mas ficam-me dizendo que eu sou a principal acionista e tenho de estar presente quando certas decisões forem tomadas.

        — Não é fácil ter dinheiro, — disse Dax, rindo. — Muita gente pensa que você não faz nada senão dormir e divertir-se.

        — Agora, durma mais um pouco, — disse Sue Ann da porta.

        — Estarei de volta         na hora do jantar.

        Ela saiu fechando a porta e Dax pegou um cigarro. Era a quarta vez em menos de três semanas que Sue Ann ia a Atlanta.

        O advogado que o pai dela havia contratado tinha sido muito hábil. Estabelecera que Sue Ann teria de comparecer pessoalmente à sede da companhia em Atlanta sempre que a sua presença fosse exigida, sob pena de perder o direito à maior parte das suas ações. Dessa maneira, o pai dela havia assegurado a sua permanência ao menos parcial no país.

        Depois de fumar o cigarro, levantou-se. Foi até ao banheiro e olhou-se no espelho. Passou a mão pelo         rosto. Não era preciso fazer a barba naquele dia. Não haveria ninguém para ver. Pegou os calções de banho.

        Gato Gordo estava esperando no terraço quando ele saiu da água.

        — Os dois homens que o Presidente mandou estão aí de novo.

        — Para quê? — perguntou Dax. — Já dei minha resposta a ele. O que fiz em Monte Carlo foi feito apenas como favor.

        Gato Gordo encolheu os ombros.

        — Disseram apenas que é muito importante falarem com você.

        — Está bem. Diga que irei falar com eles logo que me vestir. Leve-os para a saleta do café.

        Os dois homens se levantaram e cumprimentaram cerimoniosamente quando ele entrou na saleta um pouco depois.

        — Señor Xenos.

        — Señor Prieto. Señor Hoyos. Façam o favor de sentar-se. Aceitam um pouco de café?

        — Sí. Gracias.

        Ficaram em silêncio enquanto Gato Gordo servia o café e, depois, saiu. Dax notou que a porta de serviço estava entreaberta e sorriu. Gato Gordo não abandonava os seus velhos truques.

        — A que devo o prazer dessa visita? — perguntou polidamente.

        O mais velho dos dois homens tomou a palavra.

        — O Presidente pediu ao Señor Prieto e a mim que viéssemos convencê-lo a mudar de ideia.

        — Explicaram minha posição ao Presidente?

        — Explicamos, — disse o outro homem, Señor Prieto.

        — Explicamos, — continuou Hoyos, — mas Sua Excelência disse que essas razões pessoais não podem ser válidas numa ocasião como esta. Pediu-nos que lhe explicássemos mais uma vez que o Corteguay precisa do senhor. Os bandoleros das montanhas estão sendo congregados pelos comunistas do exterior e se não forem tomadas providências o país será mergulhado numa sangrenta guerra civil. O Presidente está disposto a dar-lhe o importante cargo de embaixador geral, além de designá-lo como representante do país nas Nações Unidas. Acredita ele que só o senhor é capaz de impedir a catástrofe que ameaça a nossa pátria.

        — Não, — disse calmamente Dax. — O único homem capaz de impedir isso é o Presidente. Se ele tivesse dado ao povo liberdade de escolher os seus representantes como prometeu há muito tempo, talvez isso nunca tivesse acontecido.

        — O Presidente nos autorizou a dizer-lhe que serão realizadas eleições logo que o país voltar à estabilidade.

        — Ele fez essa mesma promessa a meu pai há quase trinta anos.

        — Seria uma imprudência realizar eleições agora, señor. Os comunistas tomariam conta do país sem luta. Concordo que as eleições deveriam ter-se realizado há muito tempo. Mas agora só serviriam para prejudicar a causa da liberdade.

        — Sinto muito, cavalheiros, — murmurou Dax. — No tempo que já passou depois que o Presidente me dispensou de prestar serviços ao país, comecei uma vida nova. Acho apenas justo que eu e minha mulher continuemos com ela.

        — A pátria está acima de quaisquer interesses, pessoais ou de qualquer natureza, — disse Prieto solenemente.

        — Meu amor ao Corteguay continua o mesmo. Repito que os meus motivos são pessoais.

        — Neste caso, não nos deixa outro recurso, — disse Hoyos levando a mão ao bolso de dentro do paletó. — É com o maior pesar que temos de dar-lhe isto.

        Dax viu a porta de serviço abrir-se e Gato Gordo apareceu com um revólver na mão. Mas no mesmo instante, Hoyos tirou a mão do bolso trazendo um envelope branco.

        Dax fez um sinal imperceptível e Gato Gordo desapareceu de novo.

        — Que é isto? — perguntou Dax, tomando o envelope que Hoyos lhe entregava.

        — Abra e veja.

        Dax abriu o envelope e encontrou cerca de uma dúzia de fotografias. Mostravam Sue Ann e outro homem inteiramente nus em vários momentos de frenética intimidade. Levantou os olhos.

        — Desculpe, señor, — disse Hoyos, sem coragem de encará-lo. — Foram tomadas em Atlanta na semana passada com uma máquina infravermelha. Ao que parece, sua esposa não faz do casamento o mesmo alto conceito que o senhor faz.

        Dax olhou de novo as fotografias. Sentiu um impulso de cólera logo dominado. Foi com rosto impassível que falou.

        — Peço também desculpas, cavalheiros. — Tiveram todo esse trabalho inutilmente. Minha posição continua a mesma.

        Prieto ia dizer alguma coisa, mas o outro o fez calar-se.

        — Estaremos em nosso hotel em Miami até o fim         da semana, — disse ele. — Se mudar de ideia, telefone-nos, señor.

        Despediram-se e Gato Gordo foi levá-los até à porta. Dax foi até à pequena escrivaninha no canto e guardou o envelope na gaveta, trancando-a e colocando a chave no bolso.

        Pouco depois, Gato Gordo chegou.

        — Já quer o seu café?

        — Não, muito obrigado. Não estou com fome.

        Dax estava sentado no terraço vendo o sol desaparecer quando a empregada chegou com o telefone e ligou-o na tomada. Dax atendeu.

        — Alô, querido?

        — Sim?

        — Não calcula como estou aborrecida, querido, — disse Sue Ann, ofegante. — Mas aconteceu alguma coisa no último instante e eu tive de ficar.

        — Claro, — disse ele secamente.

        — Que foi que você disse?

        — Nada.

        — Amanhã estarei aí na hora do jantar.

        — OK.

        — Que é que está fazendo, querido? Parece que está tão longe!

        — Estou apenas sentado no terraço. Talvez mais tarde vá jantar no clube.

        — Faça isso, sim. É melhor do que ficar aí sozinho nesse casarão. Bem, até à volta.

        — Até.

        Dax ainda ficou alguns instantes ali sentado. Depois, entrou para ir mudar de roupa.

 

        Dax estava no bar quando Harry Owens apareceu. Como de hábito, estava meio bêbado.

        — Dax, meu velho, — disse ele jovialmente, batendo-lhe no ombro. — Que é que está fazendo aqui?

        Dax sorriu. Gostava de Harry, que era um         beberrão delicado e inofensivo.

        — Sue Ann está em Atlanta e eu vim         jantar aqui.

        — Ótimo! Então venha jantar comigo e com Sam. A cozinheira saiu. Sam não demora. Ela foi você sabe aonde. Virou-se para o bar e pegou o martini que o homem do bar colocara automaticamente diante dele. — Não o tenho visto ultimamente, Dax.

        — É que tenho andado de cama, sabe? — disse Dax, com um sorriso malicioso.

        — Tem andado de cama... Ah! Essa é muito boa! — disse Harry, tomando o martini e estendendo a mão para pegar outro sem ao menos olhar para ver se o homem do bar já havia preparado o segundo copo.

        Nesse momento, Simple Sam apareceu, com os longos cabelos vermelhos a cair-lhe quase até aos ombros.

        — Dax! Como vai? — disse ela, sorrindo. — Onde está Sue Ann?

        Harry respondeu por ele.

        — Dax vai jantar conosco. Sue Ann está em Atlanta.

        — Ótimo. Encontrei agora mesmo Mary Jane e convidei-a para jantar conosco. Ralph está de novo em Washington.

        Ralph era o marido de Mary Jane, um advogado em questões fiscais que passava a maior parte do tempo fora de casa.

        Simple Sam correu ao encontro de Mary Jane quando esta apareceu.

        — Consegui para você o mais divino companheiro de jantar, querida!

        Mary Jane olhou para Dax.

        — É uma surpresa, — disse Mary Jane sarcasticamente. — Onde está Sue Ann?

        — Em Atlanta, — disse Dax, já cansado de responder àquela pergunta. — Vamos jantar? Estou com fome.

        Na hora da sobremesa, Harry quase não conseguia mais ficar de olhos abertos. Dax já havia dançado com Simple Sam e levantou-se para dançar com Mary Jane. Quando chegaram à pista, a orquestra começou a tocar um samba. Mary Jane era surpreendentemente leve.

        — Dança muito bem o samba.

        — E tenho de dançar, — disse Dax, sorrindo. — É quase a dança nacional em minha terra. Você também dança muito bem.

        Mary Jane olhou para ele.

        — Devo considerar coincidência o fato de você haver corrido para cá no momento em que Sue Ann dá as costas?

        — Que quer dizer com isso?

        — Você sabe o que eu quero dizer. Vi a maneira pela qual você estava olhando para Simple Sam.

        — Olho porque há muito para ver, — disse ele, sabendo que isso iria enfurecer Mary Jane ainda mais.

        — Você olharia para qualquer mulher que usasse um vestido com um decote que vai até ao umbigo.

        — Não sei. Depende, — disse ele, olhando ostensivamente para os pequeninos seios dela.

        Sentiu-a ter um sobressalto e errar o passo.

        — Acho que você arrumou tudo isso. É o que eu         vou dizer a Sue Ann quando ela voltar.

        — Diga, sim. Ela acreditará em você como acreditou na última mentira que você contou.

        Mary Jane se separou impetuosamente dele e voltou para a mesa.

        — Está ficando tarde. Acho que vou para casa.

        — Já? — perguntou Simple Sam, notando a raiva de Mary Jane. — Vamos conversar um pouco mais e tomar alguns drinques.

        — Não, muito obrigada.

        — Vou levá-la para casa, — propôs Dax.

        — Não é preciso incomodar-se, — replicou Mary Jane, com voz gelada. — Tenho meu carro.

        — Que foi que houve com ela? — perguntou Sam, assim que Mary Jane saiu.

        — Ela...

        — Não, não me diga agora, — disse ela, pondo o dedo nos lábios de Dax. — Diga quando estivermos dançando. Você sabe como eu adoro uma rumba.

        Ela se jogou nos braços dele, movendo sensualmente o corpo bem colado a Dax. Ele nunca dançara uma rumba assim tão agarrado a alguém. O calor do corpo de Sam se expandia através do vestido fino. Sentia o bamboleio dos quadris dela e, sem pensar, acompanhava-o.

        Ela o olhou com um sorriso.

        — Já estava começando a pensar que tudo o que me contaram a seu respeito não fosse verdade.

        — E eu estou começando a acreditar que tudo que soube a seu respeito é verdade.

        Sam olhou-o bem nos olhos.

        — E você que é que vai fazer? Só falar?

        Dax olhou para a mesa. Harry servia-se de mais um copo.

        — Estará desacordado daqui a alguns minutos, — disse ela indiferentemente.

        — Levarei então os dois para casa.

        — Não, tenho uma ideia melhor. Irei encontrar-me com você na casa dos barcos de sua casa daqui a meia hora.

        — Estarei lá.

        Dax seguiu-a até à mesa. Sam apanhou o agasalho e a bolsa.

        — Vamos, Harry, — disse ela. — Está na hora de dormir.

        Houve um momento em que ele julgou ter ouvido algum barulho lá fora. Saiu, deu a volta em torno da casa dos barcos mas não viu ninguém. Voltou e olhou para o relógio. Já havia passado quase uma hora. Talvez Sam não viesse mais. Tornou a sair e sentou-se no banco do lado de fora, de frente para o mar. A lua amarela da Flórida dançava sobre as ondas. Acendeu um cigarro.

        — Acenda um para mim também, — disse Sam, bem atrás dele.

        Dax entregou-lhe o seu cigarro e acendeu outro.

        — Já estava pensando que não viria mais.

        — Tive de botar o garotinho na cama. Às vezes, não é tão fácil como parece.

        Dax voltou-se quando ela entrou, passando à frente dele. Ouviu o deslizar metálico de um fecho e, quando olhou, Sam estava nua à porta.

        — Todos os latinos falam tanto quando amam?

        Quase uma hora depois, estavam deitados no grande sofá, fumando, quando a porta foi aberta. Dax sentou-se, resmungando um nome feio e Sam estava procurando alguma coisa para cobrir-se quando uma lanterna elétrica foi acesa sobre eles.

        Dax protegeu os olhos com os braços tentando ver quem estava com a lanterna. Tinha acabado de reconhecer Mary Jane quando ela falou.

        — Ainda acha que devo acreditar que se encontraram aqui por simples coincidência?

        — Não seja tola, Mary Jane, — disse ele irritadamente. — Apague isso senão vai chamar a atenção de todo o mundo.

        Ela riu.

        — E seria bem feito para vocês dois se isso acontecesse. Talvez assim Sue Ann acreditasse!

        — Apague essa luz! — disse ele, encaminhando-se para ela.

        Mary Jane recuou um pouco e baixou a luz da lanterna.

        — Ora, ora! — disse ela, zombeteiramente. — Não está tão grande agora, hem?

        Mas a voz dela se amorteceu enquanto ela continuava a recuar. Por fim, chegou à parede e não pôde mais recuar. Dax estendeu a mão e tomou-lhe a lanterna.

        Jogou-a num canto e segurou Mary Jane pelos ombros.

        — Só uma coisa a fará ficar satisfeita, não é?

        Mary Jane olhou-o e começou de repente a debater-se nas mãos dele, tentando bater-lhe no rosto.

        — Largue-me!

        Dax agarrou-lhe as mãos. Com um movimento rápido, rasgou- lhe o vestido, deixando nus os pequenos seios brancos. Empurrou-a para o chão e ficou de joelhos por sobre o corpo dela.

        — Segure as mãos dela! — ordenou a Simple Sam. — Sei de que é que ela precisa para ficar caladinha!

        Foi na hora do breakfast dois dias depois que as outras fotografias chegaram. O envelope era endereçado a Sue Ann. Ela abriu-o e as fotografias se espalharam em cima da mesa. Sue Ann olhou-as e voltou-se furiosamente para Dax.

        — Então é isso o que você faz no momento em que eu dou as costas?

        Olhou para as fotografias. Lá estavam os três — Simple Sam, Mary Jane e ele. Deviam ter sido tiradas com a mesma máquina. O Presidente não perdia vaza.

        Dax olhou para Sue Ann e disse calmamente:

        — Antes que fique ainda mais zangada, é melhor ver também outras fotografias que tenho para lhe mostrar.

        Foi até à escrivaninha, abriu a gaveta e tirou o envelope, jogando as fotografias em cima da mesa.

        Sue Ann pegou-as e olhou-as em silêncio. Depois, voltou-se para ele, já sem raiva no rosto.

        — Touché, — disse ela. — Quando recebeu isso?

        — No dia em que você foi a Atlanta e não voltou para casa, no mesmo dia em que estas outras foram tiradas.

        — Bem, acho que não sou tão controlada quanto pensei que fosse. Quem teria tirado essas fotografias?

        — Sei quem as mandou tirar. Foi o Presidente. Pouco se importa com o que fizer da minha vida ou da de qualquer pessoa contanto que eu volte.

        — Compreendo, — disse ela. — Se as minhas fotografias não dessem resultado, as suas deviam dar.

        — Exatamente.

        — E que é que você vai fazer, Dax?

        — Vou voltar, é claro.

        — Depois de tudo o que ele lhe fez?

        — Sim, mas não por ele, nem mesmo por causa dele. Por muitos outros motivos. Por minha terra, minha mãe, minha         irmã, meu pai. Para que eles não tenham morrido sem uma razão.

        Sue Ann olhou-o firmemente.

        — Quer o divórcio?

        — Trate você disso. Eu não tenho tempo.

        — Os meus advogados farão o acordo de costume.

        — Nada quero. Não preciso.

        — Conservará as coisas que lhe dei? Eu gostaria disso.

        — Como queira.

        Olharam-se em silêncio.

        — Bem, acho que não há mais nada para dizer.

        — De fato. — Dax encaminhou-se para a porta. A voz de Sue Ann fê-lo parar e voltar-se. — Sim, Sue Ann?

        — Quer saber de uma coisa? — disse ela, olhando para as fotografias. — Sou mais fotogênica e bem feita do que qualquer delas!

 

                                       POLÍTICA e VIOLÊNCIA

        — Não estou gostando disso, — murmurei, entrando com o carro na estreita estrada de terra. — Já devíamos estar ouvindo os latidos dos cachorros.

        — Ele tem cachorros — perguntou a moça.

        Olhei para ela. O rostinho jovem era completamente inocente.

        — Cachorros, gatos, cabras, porcos, galinhas, o que quiser. Se fosse numa estrada da Flórida, ele poderia colocar uma tabuleta dizendo que era um Jardim Zoológico.

        A casa ainda estava escondida atrás do morro em frente.

        — Talvez ele não crie mais animais, — disse ela. — Há muito tempo você não vem por aqui.

        Era verdade. Muito tempo, uns cinco ou seis anos talvez.

        — Se não há mais cachorros, então Martinez morreu. Foi ele quem me deu o cachorro que eu tive no meu tempo de garoto.

        Contornamos o morro e a casa apareceu no calor esbraseado do pequeno vale embaixo.

        — Veja, — disse Gato Gordo, apontando.

        Olhei. No alto do céu, voando em círculos sobre a casa, viam-se dois urubus. Nesse momento, outro levantou vôo dos fundos da casa.

        Não falei até parar o carro diante da porteira. Parte da cerca estava derrubada e perto dela estava estendido um cachorro morto, com a cabeça despedaçada.

        Desliguei o motor e fiquei ali sentado. O ar cheirava a morte. Era a única coisa que não havia mudado, que nunca mudaria. O cheiro peculiar e o silêncio da violência.

        Senti os cabelos da nuca arrepiarem-se. Olhei para Gato Gordo. Estava sentindo a mesma coisa. Tinha o revólver na mão e o rosto banhado de suor.

        Voltei-me para a moça.

        — Espere aqui no carro que nós vamos lá dentro para ver o que foi que aconteceu.

        — O rosto dela estava muito pálido sob a pele queimada, mas ela sacudiu a cabeça.

        — Irei também. Não vou ficar aqui sozinha.

        Olhei pelo espelho. Gato Gordo fez um sinal imperceptível. Saiu do carro e abriu a porta para a moça. Segui à frente pelo caminho que levava à casa.

        A porta estava meio aberta nas dobradiças quebradas. Havia completo silêncio dentro da casa. Fiz um gesto para Gato Gordo, ao mesmo tempo que puxava a moça, encostando-a à parede. Gato Gordo abriu a porta com um pontapé e entrou. Fui logo atrás dele.

        Logo que entrei, virei-me para impedir a moça de entrar também. Mas era tarde. Ela já estava à porta, com o rosto cheio de indizível horror, olhando para o corpo decapitado de Martinez e, depois, para a cabeça cortada         em cima da mesa.

        Corri prontamente para ela e a fiz recuar. Ela se apoiou em mim e segurei-a, pensando que fosse desmaiar, mas, em lugar disso, baixou a cabeça e começou a vomitar.

        — Feche os olhos e respire fundo, — disse eu, segurando-a pelos ombros.

        Tinha coragem aquela menina. Poucos minutos depois, havia-se dominado.

        Gato Gordo saiu da casa com uma folha de papel na mão.

        — O fogão ainda está quente. Estiveram aqui hoje de manhã.

        Peguei o papel e li o que estava escrito a lápis:

        “É esse o destino de todos os que servem o traidor do nossa povo El Condor”.

        Dobrei o papel e guardei-o no bolso. Lembrava-me do rapaz que havia fugido na noite em que o pai fora assassinado. Agora, havia tomado o nome do pai e toda a violência e morte a ele associada. Mas tinha mais alguma coisa que o pai nunca tivera. Ajuda do exterior, fora adestrado em tática política e de guerrilha.

        Mas as armas eram as mesmas de sempre. Violência, terror e morte. Tinha encontrado muitas coisas diferentes no Corteguay, mas aquilo permanecia na mesma. A violência continuava conosco.

        — Está melhor? — perguntei à moça.

        Ela fez um sinal afirmativo.

        — Vá sentar-se no carro e espere por nós.

        Ela obedeceu e eu me voltei para Gato Gordo.

        — Por que não foram até onde nós estávamos? A distância é de menos de quinze quilômetros.

        — Talvez não soubessem que estávamos lá.

        — Sabiam, — disse eu. — Deixaram esse bilhete para nós. Sabiam que nós viríamos procurar Martinez se ele não aparecesse.

        — Talvez desconfiassem de uma armadilha, — murmurou Gato Gordo.

        Era mais provável. Era a primeira vez que eu chegava à minha hacienda sem a escolta de soldados que o Presidente insistia em que me acompanhasse todas as vezes que eu saía da cidade.

        — Veja se encontra uma pá, Gato Gordo. O menos que podemos fazer para o velho é enterrá-lo, para proteger-lhe o corpo dos urubus.

        Nos fundos da casa, as cabras, os carneiros, os porcos e as galinhas tinham sido todos mortos. Até a velha mula ruça de Martinez estava morta na cocheira. Isso era diferente. Dantes, os bandoleros teriam levado os animais. Aquilo era pura destruição.

        Começamos a cavar. O sol já ia descambando quando acabamos. Joguei a última pá de terra na sepultura. Olhei para o céu onde as grandes aves circulavam.

        — Vamos sair daqui, Gato Gordo. Não quero ser surpreendido na estrada à noite.

        — Estou pronto, — disse ele, jogando a pá no chão. — Vamos tocar fogo na casa?

        — Não. Veriam a fumaça, saberiam que estamos aqui e viriam investigar. — Olhei para a sepultura. — Pobre Martinez. Nada muda, hem?

        — Só o mundo lá fora, — disse ele.

        Eu sabia o que ele queria dizer. Para os outros, guerra e paz eram assuntos para discussão. A agonia da morte nunca penetrava nas salas de conselho e nem o seu cheiro, nem o seu horror. Apenas as palavras assépticas que eram gravadas em fitas e escritas no papel.

        Gato Gordo foi comigo para o carro e entrou no banco de trás. Sentei-me ao lado da moça. Ela me fitou com os olhos arregalados e sentia-a tremer ao frio súbito da tarde.

        Liguei a chave de ignição e olhei para o marcador de gasolina. Tinha um quarto de tanque.

        — Gato Gordo, temos gasolina que chegue para voltarmos para a cidade?

        — Temos. Duas latas de dez galões na mala.

        — Vamos encher o tanque agora. Não quero parar no meio da estrada à noite.

        Estávamos a quinhentos quilômetros de Curatu. Dei as chaves da mala a Gato Gordo e ele foi buscar a gasolina. Olhei para a moça. Ainda estava tremendo. Tirei o paletó e cobri-lhe os ombros com ele.

        — Obrigada.

        Fiquei calado.

        — Não vamos voltar para a sua hacienda?

        — Não. Os bandoleros andam por perto.

        — Nunca pensei que fosse assim, — murmurou ela.

        — Ninguém pensa...

        — Meu pai disse...

        Interrompi-a.

        — Ora, seu pai! Que é que ele sabe disso? Não é destas montanhas, sempre viveu dentro da proteção da universidade. Tudo para ele são teorias abstratas. Que é que ele sabe sobre o cheiro mau da morte?

        — As armas, — murmurou ela, quase como se falasse consigo mesma. — Não eram para isso.

        — Armas servem para matar, — disse eu, brutalmente. — Para que foi que julgou que fossem? Enfeites de parede?

        — Ele não compreende essas coisas, — insistiu ela. — Prometeram...

        — Quem foi que prometeu? Os bandoleros? Os comunistas? Esses homens respeitáveis cuja palavra merece toda a confiança há algumas gerações? Seu pai é um ingênuo, um iludido!

        — A culpa é do Presidente! — exclamou ela, irritada. — Ele foi o primeiro a faltar com a palavra!

        — Seu pai se envolveu numa conspiração para matar o Presidente. O golpe falhou, ele fugiu para salvar a vida. Agora, está em segurança em outro país e está mandando armas para cá para os outros fazerem o que ele não pôde fazer. Pouco importa a ele que morram pessoas inocentes como Martinez!

        — Democracia, — disse ela. — Meu pai acredita na democracia.

        — Todo o mundo acredita. Essa palavra é responsável por tantos crimes quanto o amor. No fundo, a democracia está em muitos lados, como Deus.

        — Acha então que o Presidente está certo? Que pode ser perdoada a corrupção do governo dele?

        — Não, não acho. Mas você é ainda muito moça para saber o que era isto antes dele. Ele representou apenas um passo à frente. Há muito mais         para ser feito. Mas não assim.

        — Você acredita nisso, não?

        — Acredito.

        — Acha que se as armas deixassem de vir isso acabaria?

        — Se as armas deixarem de vir, será um começo.

        Ela me olhou bem nos olhos.

        — Posso confiar em você?

        Não respondi. Ela teria de achar a resposta por         si mesma.

        — Não trairá       a meu pai? Nem a mim?

        Isso eu podia responder.

        — Não.

        Ela ficou um instante em silêncio. Depois, respirou fundo e disse:

        — Amanhã de manhã, no porto de Curatu. Chegará um navio com a maré da manhã...

        Era a oportunidade que eu estava esperando desde que voltara, havia um mês. Agora, podia haver um caminho no labirinto de mentiras e enganos que tinha sido tecido em torno de mim por todos com quem eu havia falado do Presidente para baixo.

        Talvez eu pudesse encontrar a verdade que havia fugido a meu pai.

 

        Beatriz Elisabeth Guayanos. Assim se chamava ela. Mas não lhe sabia o nome quando a vi pela primeira vez no aeroporto de Miami. Eu estava esperando a hora de embarcar no avião que vinha trazer-me para o Corteguay e ela estava de pé diante do balcão das passagens.

        Foi a maneira que tinha de conservar a cabeça erguida que me chamou a atenção. Era alta para uma latino-americana, com os cabelos pretos presos atrás num chignon. Esbelta, mas um pouco voluptuosa, com uma sugestão de carne estuante sob o vestido de verão de chiffon preto. Talvez tivesse um pouco de excesso de busto e de redondeza acima da curva dos quadris para agradar ao gosto americano, mas o seu tipo de beleza era clássico entre nós havia gerações. No fim, porém, foram os olhos que me encantaram. Emoldurados pelas curvas lançadas e escuras das sobrancelhas e das pestanas eram os olhos mais verdes que eu já havia visto.

        Ela percebeu que eu a olhava e virou-se um pouco para o lado com aquele ar de desdém que só se pode adquirir com muitos anos de companhia de uma dueña. Sorri. Havia muito tempo que não via ninguém ter esse gesto.

        Ela disse alguma coisa ao homem das passagens e ele olhou involuntariamente para mim. Vi que ele me havia reconhecido. Voltou-se e falou rapidamente com ela. Foi a vez dela olhar. Sorri levemente. Conhecia aquele olhar. Podia quase dizer o que ela estava pensando: por que é que ele faz tanto sucesso com as mulheres? Não é tão alto, nem tão bonito assim. Mas todas aquelas mulheres, todas as coisas que dizem sobre ele. Por que será?

        Vi a interrogação nos olhos dela. Dessa vez não pude conter o sorriso. Senti o sangue correr mais depressa dentro de mim. Era a febre que me tinha chegado com a primeira mulher que eu havia conhecido, o desafio a que eu não podia resistir, o olhar que parecia perguntar: Você é homem bastante?

        Via-se uma mulher. Desejava-se aquela mulher. Nada no mundo tinha mais importância enquanto ela não fosse possuída. Podia-se deixar de comer e de dormir. Sofriam-se as agonias dos malditos até que elas fossem saciadas na agonia ainda maior da carne.

        Encaminhei-me para ela e vi a expressão dos seus olhos mudar. Cheguei a pensar que fosse medo, mas, nesse momento, me tocaram no braço e eu me voltei.

        Hoyos e Prieto estavam ao meu lado.

        — Buenos dias, señores, — disse cortesmente.

        — Que prazer para mim, señor! — disse Hoyos. — Vou voltar para o Corteguay no mesmo avião.

        — Que feliz coincidência, — murmurei, mas ele não percebeu o meu sarcasmo. Não havia necessidade de que o Presidente tivesse tanto trabalho. Eu tinha dado a minha palavra de que voltaria. Além disso, estava ansioso por falar com a moça.

        Mas o outro, Prieto, ainda tinha o que me         dizer.

        — Vou para Nova York a fim de preparar o consulado para a       sua chegada. Tenho certeza de que ficarão muito         contentes de vê-lo depois que tiver concluído as suas consultas com o Presidente.

        — Gracias.

        Nesse momento, apareceram um fotógrafo e um repórter e um flash se acendeu nos meus olhos.

        — Sr. Xenos, — perguntou o repórter, — quais são os seus planos agora que Miss Daley requereu divórcio?

        — Estou voltando para a minha terra para breves férias.

        — E depois?

        — Depois? Ainda não pensei nisso. Com certeza, voltarei ao trabalho.

        O repórter riu.

        — É dura a vida, hem?

        — E não vai ficar mais fácil, — disse eu, rindo também.

        — Pretende voltar a Miami?

        — Espero voltar. É uma bela cidade.

        — Obrigado, Sr. Xenos.

        O repórter saiu, seguido pelo fotógrafo. Voltei-me para procurar a moça mas não a vi mais.

        Prieto tocou de novo em meu braço.

        — Peço-lhe licença, señor. Tenho uns assuntos urgentes para resolver em Miami.

        Bati com a cabeça.

        — Vaya con Dios, — disse ele, já a caminho da saída.

        — Adios, — respondi.

        O alto-falante anunciou o nosso vôo. Fiz sinal a Gato Gordo, que estava de lado olhando e fomos para o portão de embarque. Via-a de novo quando ia descendo a escada. Ela estava na fila da classe turista.

        Olhou para o alto, viu-me e torceu a cabeça altivamente. Sorri. Isso também era esperado. Continuei a descer a escada.

        — É aqui que nos separamos, señor, — disse Hoyos.

        — Mas pensei que fossemos no mesmo avião.

        — E vamos. Mas uma pessoa sem importância como eu viaja como turista.

        — Bem, ver-nos-emos no Corteguay.

        — Se Deus quiser.

        Gato Gordo e eu nos encaminhamos para a seção da primeira classe. Mostrei os passes de embarque ao empregado e ele nos fez sinal para passarmos. Quando me juntei aos outros passageiros que esperavam o momento de embarcar, olhei por cima da grade que nos separava da parte da classe turista. A moça estava mergulhada na leitura de uma revista, mas eu tinha certeza de que sabia que eu a estava olhando.

        Vi que o homem que estava logo atrás dela era Hoyos. Senti um súbito impulso de trocar de lugar com ele e, quase antes de saber o que estava fazendo, acenei, chamando-o.

        Ele se aproximou, surpreso, da grade que nos separava.

        — Quer trocar de lugar comigo señor?

        — Mas por que, Excelência? A primeira classe é mais confortável do que a classe turista.

        Sorri para ele e olhei para a moça. Ele seguiu a direção do meu olhar e fez um gesto de compreensão.

        — Claro, Excelência! Estou às suas ordens.

        Trocamos de passagens e ele foi dar a volta pelo portão. Não me dei a esse trabalho. Pulei a grade que separava as duas seções.

        — Não pode fazer isso, — disse-me um empregado. — Isto aqui é classe turista.

        — Houve um engano, — disse eu, sorrindo e mostrando-lhe a passagem de Hoyos.

        Ele me deixou passar e eu fui imediatamente ficar na fila atrás da moça. Ela olhou para trás com curiosidade.

        — Vai para Curatu? — perguntei.

        Ela não respondeu.

        — Parlez-vous français?

        Ela sacudiu a cabeça.

        — Capite italiano?

        Novo sinal de negação.

        — Sprechen Sie Deutsche?

        Mais uma vez sacudiu a cabeça mas já então mostrava uma sombra de sorriso nos lábios.

        — Bem, — disse eu finalmente em espanhol, fingindo-me desesperado, — se não fala espanhol, acho que vou embarcar no avião errado.

        Ela começou a rir e disse num inglês sem sotaque.

        — Vai embarcar no avião certo, Sr. Xenos. Apenas, não está no seu lugar. Aqui é para as pessoas comuns.

        — Não é justo, sabe? — disse-lhe eu, sorrindo. — Sabe o meu nome e eu não sei o seu.

        — Guayanos, — disse ela. — Beatriz Elisabeth Guayanos.

        Vi que ela parecia estar esperando por alguma coisa.

        — Já nos conhecemos por acaso?

        — Não. Mas conhece meu pai, Dr. José Guayanos.

        — Oh!

        Conhecia sem dúvida o pai dela. Fora Ministro da Educação e, depois, assistente especial do Presidente. Por fim, envolvera-se numa conspiração para matar o Presidente que havia fracassado. Fora ele o único homem do grupo que havia conseguido fugir. Todos os outros tinham sido fuzilados. Dizia-se que Guayanos estava refugiado em Nova York e ainda envolvido em complôs para derrubar o governo do Corteguay.

        — Sim, conheci muito seu pai. Parecia muito bom homem.

        — Com certeza, prefere agora voltar para a primeira classe.

        — Para quê?

        Ela olhou para o outro lado da grade.

        — A Velha Raposa.

        — A Velha Raposa? Está-se referindo a Hoyos?

        — Sim, é assim que ele é chamado. É o chefe da polícia secreta. O Presidente vai saber de tudo.

        — Pouco me importa! — disse eu. — A polícia interna não me interessa e,       ainda que me interessasse, não deixaria de estar aqui com você.

        Os olhos dela se anuviaram como as esmeraldas virgens encontradas no fundo das nossas minas.

        — Por quê?

        — Tinha de descobrir se você cheira tão bem quanto é bonita. Agora, já sei que sim.

 

        Havia polícia por toda a parte quando desembarcamos porque o Presidente tinha ido pessoalmente esperar-me. A aeromoça abriu a porta entre a primeira classe e a classe turista e se aproximou de mim.

        — Sr. Xenos, quer ter a bondade de desembarcar pela porta da primeira classe?

        Sacudi a cabeça e voltei-me para Beatriz.

        — Quer vir comigo?

        — Não. Isso seria muito embaraçoso para todos.

        — Como é que vou ver você? Para onde telefono?

        — Deixe que eu lhe telefono.

        — Quando?

        — Daqui a um dia ou dois. Vai estar muito ocupado.

        — Telefone até amanhã o mais tardar. Não estarei tão ocupado assim.

        — Amanhã cedo, — disse ela, estendendo-me a mão. — Vaya con Dios.

        Beijei-lhe a mão.

        — Hasta mañana.

        Fui com a aeromoça para a primeira classe onde Gato Gordo e Hoyos estavam esperando por mim.

        — Fez boa viagem? — perguntou Hoyos com um sorriso.

        — Ótima, muito obrigado, — disse eu, encaminhando-me para a porta do avião.

        A forte luz do sol me fez pestanejar por um momento. Vi então a limusina preta do Presidente chegar e parar perto da escada de desembarque. Um soldado correu e abriu a porta.

        O Presidente saiu do carro quando eu descia as escadas. Veio para mim com os braços abertos.

        — Meu filho! — exclamou ele, abraçando-me emocionado. — Sabia que você não me falharia!

        — Excelência!

        Abracei-o também e nesse momento os fotógrafos começaram a bater flagrantes de todos os ângulos. Fiquei surpreso com a magra fragilidade do homem debaixo da farda. Tinha lágrimas nos olhos e rugas profundas. As sobrancelhas que sempre tinham sido muito pretas estavam quase inteiramente prateadas. Senti-me de repente muito triste. Parecia-me ter saído do Corteguay na véspera e o deixara com uma aparência ainda jovem e forte. Vinha encontrar um velho alquebrado.

        — Vamos para o carro, — disse ele, pegando-me no braço.

        — O sol está muito quente.

        Entrei com ele na limusina com ar condicionado. Ele se deixou cair no banco, respirando pesadamente e eu fiquei em silêncio, esperando que ele falasse. Fez sinal para o chofer e o carro começou a mover-se. Olhei pelo vidro. Os outros passageiros, que haviam sido retidos até que eu descesse, estavam começando a desembarcar. Por mais que olhasse, não pude ver a moça.

        — Não se preocupe, — disse o Presidente, sem compreender a razão do meu interesse. — A sua bagagem será levada para o hotel.

        Mandei reservar-lhe o melhor apartamento.

        — Muito obrigado.

        — Mas antes temos muito o que falar. Acho que podemos jantar cedo e sozinhos no palácio, onde ninguém nos interromperá.

        — Estou às suas ordens.

        Ele sorriu e colocou a mão no meu braço.

        — Não seja tão cerimonioso comigo. Você não estava assim da última vez.

        Sorri também e disse:

        — Na verdade, se não me falha a memória, nenhum de nós estava.

        — Tudo isso passou e está esquecido, Dax. Estamos unidos de novo e é só o que importa.

        Olhei pela janela quando passamos pelos portões do aeroporto e chegamos à estrada. Dos dois lados, havia de trinta em trinta metros um soldado da polícia com uma metralhadora portátil em posição de tiro.

        — Estamos bem protegidos, Presidente.

        — É necessário, meu filho. Os bandoleros estão ficando cada vez mais ousados. No mês passado, fizeram três tentativas contra a minha vida. Felizmente, falharam.

        Fiquei pensando que era preciso a situação ser muito anormal para que os bandoleros tivessem coragem de vir à cidade. Em geral, ficavam nas montanhas.

        Parece que ele percebeu o que eu estava pensando.

        — Esses de agora não são mais os bandoleros que nós conhecemos. Estão bem diferentes. São agora um pequeno exército bem adestrado comandado por guerrilheiros que recebem instrução comunista como El Condor.

        — El Condor? Mas ele...

        — Sim, o velho morreu. Mas esse é o filho que tomou o nome do pai.

        — Quer dizer que aquele garoto...

        — Não é mais garoto. Foi preparado em escolas especiais na Europa Oriental. Chegamos uma vez a prendê-lo mais ele foi solto por uma anistia geral que concedi por ocasião do nosso ingresso na ONU ou para festejar o seu casamento com Amparo, não me lembro mais. Depois disso, ele organizou um exército de guerrilheiros reunindo quase todos os bandoleros numa espécie de federação...

        — Não foi o mesmo que o senhor fez em outros tempos?

        — Foi, mas desta vez eles estão mais organizados. Têm ajuda do exterior, coisa que nós nunca tivemos. Dinheiro e armas.

        — As armas não pararam de vir?

        — Não. Das muitas coisas que é preciso fazer, talvez esta seja a mais importante. Quando cessar o suprimento de armas, essa união dos bandoleros se liquidará sozinha.

        — As armas só podem estar vindo por mar, — disse eu.

        — Meu primo é o chefe da alfândega no porto.         Afirma categoricamente que isso não é possível.

        Fiquei calado. Como em geral acontecia em situações assim, ninguém dizia a verdade.

        Já estávamos nos arredores da cidade. Era dia de feira e os homens do campo voltavam para casa, caminhando pela beira da estrada com as suas carroças.

        Achei muito estranho que estivessem todos acabrunhados e em silêncio. Em geral, depois da feira, os campesinos ficavam muito felizes. Voltavam pela estrada cantando, rindo e fazendo tilintar o dinheiro nos bolsos, contentes dos bons negócios que haviam feito com a gente esperta da cidade. Enquanto eu olhava, um deles cuspiu com raiva à passagem do carro.

        Olhei para o Presidente. Ele também vira o insulto. Estava pálido e abatido.

        — O veneno já começou até a infectar o homem do povo.

        — É preciso tomar uma providência sobre isso.

        — Qual? Não posso meter todos na cadeia. Todos me culpam pelos seus males. Só Deus sabe que eu sempre fiz tudo o que podia pelo meu povo.

        Olhei-o. Ele realmente acreditava no que dizia. Não me adiantava falar. Talvez depois, quando se conseguisse deter a remessa de armas, as coisas se acalmassem e o povo ouvisse a voz da razão. Com o tempo, até o Presidente podia ouvi-la.

        Com toda a certeza, aquele corpo cansado devia estar ansioso por livrar-se do fardo do poder que carregava havia tanto tempo.

 

        — Voltou então? — perguntou sarcasticamente Amparo no quarto mal iluminado.

        — Voltei, sim.

        — E exatamente como ele disse que você voltaria. Como um cachorrinho que volta batendo o rabo para o dono.

        Que é que eu ia dizer? Dei mais alguns passos dentro do quarto, parei diante da poltrona e olhei para ela. Os olhos estavam escuros e brilhantes. O rosto magro e pálido dava a impressão de que ela não tomava sol desde muitos anos. Tinha um ricto amargo na boca quando me perguntou:

        — Que é que está olhando?

        — Quero vê-la bem. Faz tanto tempo!

        Amparo virou o rosto para o lado.

        — Não me olhe assim que eu não gosto.

        — Está bem, — disse eu, sentando-me numa cadeira ao lado dela. — Disseram-me que você está doente.

        — Que foi mais que lhe disseram?

        — Nada.

        — Nada mesmo?

        — Nada.

        — Não estou doente coisa nenhuma, — disse ela, depois de uma pausa. — Isso é apenas a história que ele espalha. Não concorda com o que eu faço e proíbe-me de aparecer em público.

        Fiquei calado.

        — Não pensei que ele fosse deixar você vir ver-me.

        — Por quê?

        — Bem, eu estava errada. Ele é esperto e sabia que o melhor era deixar você vir. Quando você visse o meu aspecto, não podia haver mais nada entre nós.

        — Não vejo nada no seu aspecto, Amparo. Mas o que houve entre nós, acabou há muito tempo. Foi um erro nosso tentar recuperar uma coisa que se perdeu com a nossa infância.

        Amparo pegou um cigarro. Acendi-o para ela. O cheiro levemente acre do fumo encheu o quarto. Amparo soltou a fumaça lentamente por entre os lábios e olhou para mim

        — Pobre Dax! Não tem tido sorte com suas mulheres, não é?

        Não respondi.

        — Isso aconteceu porque você deixou os outros         escolherem.

        Da próxima vez, escolha você mesmo.

        Continuei calado.

        — Mas não vá escolher Beatriz Guayanos, — disse ela, inesperadamente. — Essa será a sua morte.

        — Como é que você sabe? — perguntei, espantado.

        — Tenho amigos na polícia secreta, — disse ela         e começou a rir. — Gosta do seu apartamento no hotel?

        — Gosto. É muito luxuoso e confortável.

        — Tem de ser. Foi feito especialmente para os hóspedes importantes do Presidente.

        — Se está querendo dizer alguma coisa, Amparo, diga logo. Deixe de proceder como uma criança.

        — Você é que está sendo a criança, — disse ela,         levantando-se. Foi até um armário e abriu uma gaveta. — Venha cá que eu quero mostrar-lhe uma coisa.

        Cheguei lá e olhei. Havia um gravador montado dentro da gaveta.

        — Escute, — disse ela, apertando um botão.

        Ouvi um telefone tocar e depois uma voz de homem. “Alô”. Levei uma fração de segundo até perceber que a voz era minha. Ninguém tem uma noção exata de como é a sua voz para os outros.

        Ouvi então uma voz de mulher.

        “Señor Xenos?”

        “Sim”.

        “Beatriz Guayanos. Prometi que lhe telefonaria...”

        “Passei a manhã toda esperando...”

        Amparo desligou o gravador e olhou para mim.

        — Não é preciso ouvir o resto. Já sabe tudo o que disse.

        Voltou para a poltrona.

        — E não são apenas os telefonemas. Se houvesse uma maneira de gravar os seus pensamentos, ele teria também uma cópia deles.

        — E a fita gravada? Como foi que você a conseguiu?

        — Muito simples. Foi ele que me deu. Para provar uma         coisa que eu já sabia há muito tempo. Mas ele não gosta de facilitar.

        — Por que me está dizendo tudo isso, Amparo?

        — Porque tenho pena de você! Ele vai servir-se de você como se serve de lodo o mundo e, quando não precisar mais de você, joga você fora!

        — Sei muito bem disso.

        — Se sabia por que foi que voltou?

        — Bem, sempre soube disso. Antes mesmo de meu pai morrer. Creio que meu pai sabia também, mas isso para ele não tinha importância. O importante para meu pai era o bem que ele podia fazer. Há muitos homens como seu pai. Ele não é o único. Têm a sua utilidade e com o tempo desaparecem e o mal que fazem desaparece com eles. Só ficarão as coisas boas que tiverem realizado.

        — Acredita realmente nisso?

        — Acredito. Do mesmo modo que acredito que um dia o Corteguay será livre, realmente livre.

        Amparo riu, mas não havia prazer no seu riso e, sim, uma amarga zombaria.

        — Você é um idiota igualzinho aos outros! Não vê então que esse é o segredo da força dele — a promessa tácita que nunca é cumprida?

        Amparo então olhou para mim com um furor que eu nunca lhe havia visto no rosto.

        — O Corteguay nunca será livre enquanto ele estiver vivo. Ele já se investiu a tal ponto do papel de homem providencial que não pode mais parar.

        Amparo pegou outro cigarro e me encarou enquanto eu o acendia.

        — Se o que você quer mesmo para o Corteguay é liberdade, o único meio de consegui-lo é matá-lo!

        — Não, Amparo, — disse eu. — O caminho para a liberdade não é esse. Foi assim que sempre se fez aqui e o povo continua sem liberdade. Desta vez, do povo é que deve partir o desejo de liberdade!

        — O povo... — murmurou Amparo, desdenhosamente. — O povo pensa naquilo que se manda.

        — Nem sempre. Conheço bastante o mundo para saber. Algum dia, as coisas mudarão aqui também.

        — Quando isso acontecer, nós todos estaremos mortos. Todos, exceto meu pai! Este viverá para sempre!

        Nada disse.

        Amparo aspirou com força o cigarro e falou numa voz que era quase um sussurro:

        — Q Presidente tinha razão como sempre. Você é parecido demais com seu pai.

 

        — Esse é o Tenente Giraldo, — disse o Presidente. — Será o responsável pela sua presença enquanto estiver aqui.

        O jovem oficial fez continência.

        — A su servicio, excelencia.

        — Obrigado, Tenente. Mas, Presidente, acha que isso é mesmo necessário?

        — É claro, principalmente se você insistir em ir para a sua hacienda nas montanhas. Os bandoleros estão muito ativos naquela zona.

        — Tenho de ir. Há muito que não visito a sepultura de meus pais.

        — Então Giraldo e os seus homens irão acompanhá-lo. Tenha tudo preparado, Tenente.

        O oficial fez continência e saiu.

        — Esteve com Amparo?

        — Estive.

        Vi no rosto do Presidente uma expressão estranha que não consegui compreender.

        — Que foi que achou, Dax?

        — Amparo mudou muito, — disse cautelosamente.

        — Amparo está muito doente.

        — Não posso dizer. Pareceu-me bem.

        — Fisicamente, não. A doença dela é aqui, — disse o Presidente, batendo com a mão na cabeça.

        Eu nada disse.

        — Ela não disse que você devia matar-me?

        A minha resposta foi tão displicente quanto a pergunta dele.

        — Creio que disse alguma coisa nesse sentido.

        — E isso não é uma prova de loucura? — perguntou ele com uma ponta de raiva na voz controlada. — Esse desejo de matar o próprio pai?

        — De fato, — disse eu, porque não tinha outra resposta para dar. — Já pensou em chamar um médico?

        — Que é que um médico pode fazer? Ela está-se matando com o ódio que me tem.

        — Há médicos no estrangeiro especializados em tais casos.

        Não, ela tem de ficar aqui comigo. Ninguém pode saber o que acontecerá se ela sair de junto de mim. Há muita gente que se aproveitaria da doença dela. — Mudou de assunto abruptamente. — Já falou com o cônsul americano?

        — Ainda não, mas tenho hora marcada com ele hoje à tarde.

        — Ótimo. Depois do encontro, diga-me quais foram as reações dele.

        — Vinte milhões de dólares! — exclamou ele, recostando-se na cadeira.

        — Não fique tão assustado, George. Isso não é nada em comparação com o que vocês têm dado a outros. E é apenas um empréstimo, não um donativo. Muito mais do que isso vocês têm jogado fora com Trujillo e Batista, para não falar em outros.

        — Está certo, está certo. Mas nós sabíamos exatamente em que pé estávamos com eles.

        — Sei disso, — repliquei sarcasticamente. — Talvez se vocês se preocupassem menos com o pé em que estavam com eles não seriam tão odiados pelo povo daqueles países.

        George Baldwin olhou-me firmemente.

        — Não desejo ter uma discussão com você sobre orientação política.

        — Não estou discutindo. Quem vem pedir dinheiro emprestado não discute com o banqueiro.

        — Oh! Você diz as coisas muito diretamente.

        — A situação é grave demais para eu estar com rodeios. Não vou dizer que tudo o que o velho fez está certo. Mas ele tem feito mais por este país do que os outros. E não se esqueça de que fez isso sem a ajuda oficial do governo americano. Agora, o problema não é apenas nosso, mas envolve toda a América Latina e a vocês também. Quer queiram, quer não, os comunistas estão dispostos a conquistar a América Latina. Mas só terão êxito se vocês por ignorância o permitirem.

        — Espere aí, — disse Baldwin, acendendo um cigarro. — Você também já está vendo comunistas em todos os cantos?

        — Não, mas a verdade é que eles são muito espertos. Aliaram-se a muitos grupos. Com o tempo, vocês podem acabar apoiando um deles. Quando assim o fizerem, entregarão um país nas mãos deles.

        — Não acredito nisso. Nós sabemos quem são os comunistas.

        — Sabem mesmo? É possível. E se eles estiverem ocultos? Poderão descobri-los quando eles estiverem bem escondidos abaixo da superfície?

        Ele não respondeu e eu continuei.

        — Esse é um meio que eles têm de vencer. Mas há outro e que será ainda mais fácil para eles. O apoio americano acabou por significar estabilidade para qualquer, governo latino-americano. Basta que retirem ou neguem esse apoio para o governo cair. A primeira vez que fizerem isso estarão cedendo esse país a eles.

        George Baldwin teve um sorriso amargo.

        — O que você está dizendo é que seremos presos por ter cão e presos por não ter.

        — De certo modo, sim.

        — Devemos continuar então a apoiar esses ditadores baratos, quer gostemos disso, quer não?

        — Não é tanto assim. Há valiosas concessões que podem ser obtidas em troca da ajuda. Como as que estamos dispostos a dar.

        — Já conhecemos bem as concessões do Presidente, — disse Baldwin francamente. — Ele não se distingue exatamente por cumprir a sua palavra.

        — Desta vez não será assim. Ele está chegando ao fim e deseja ser lembrado com respeito.

        — Talvez ele já tenha ido tão longe que não adianta mais nada, — disse George pensativamente.

        — Não é por ele que estou pedindo. É pelo Corteguay.

        George ficou em silêncio a olhar-me.

        — De dia para dia, mais armas estão entrando neste país. Não apenas fuzis, mas também armas maiores, morteiros e até canhões ligeiros. É apenas uma questão de tempo para que tudo isso seja usado. E essas armas não vêm das fábricas de vocês, mas do outro lado da Cortina de Ferro. Se uma revolução for vitoriosa, a quem o povo será reconhecido? A vocês ou àqueles que o ajudaram?

        — Bem, — disse George. — Vou transmitir o pedido. Mas não posso prometer nada, você sabe disso.

        — Sei, sim, — disse eu, levantando-me. — Obrigado por ter-me ouvido.

        Ele estendeu a mão.

        — Se estiver livre uma noite, telefone para mim. Talvez você possa vir jantar conosco.

        — Vou ver.

        Mas quando saí da sala com ar condicionado e cheguei ao calor de forno da rua em frente à embaixada, sabia que não faria isso. Do mesmo modo que sabia que os americanos seguiriam os seus padrões clássicos. Fossem quais fossem as suas razões, não se meteriam no caso. E guardariam o seu dinheiro no bolso.

        Olhei para o relógio. Passava um pouco das quatro. Logo depois da sesta. As ruas começavam de novo a encher-se de gente. Era muito cedo para voltar ao palácio. O Presidente não estaria no gabinete antes das cinco.

        Desci vagarosamente a ladeira até ao porto, passando pelo mercado onde os homens estavam expondo de novo à venda as suas mercadorias. Senti o aroma dos frutos tropicais e ouvi as conversas das mulheres que chamavam das janelas dos seus cubículos. Vi as crianças que brincavam, descalças e andrajosas, correndo por entre as barracas nos jogos secretos que eu havia muito esquecera.

        Comprei um sorvete de manga de um vendedor ambulante e sentei-me nos degraus de pedra de onde se via o porto, saboreando o sorvete quase com o mesmo gosto dos meus tempos de garoto.

        Só havia dois navios no porto. Ao longe, do outro lado da baía, viam-se as torres de petróleo que ali se enferrujavam, abandonadas não havia muito tempo.

        As sombras se tornaram mais compridas à medida que o sol descambava. Os pescadores estavam começando a fritar o peixe que não tinham podido vender e o cheiro me chegou ao nariz. Curatu. Tinha havido um tempo em que eu pensava que era a maior cidade do mundo.

        Tornei a olhar para o relógio. Quase cinco horas. Levantei-me e comecei a voltar para a cidade. Um vendedor de bilhete de loteria passou por mim com as fitas dos bilhetes pendentes das mãos. Um dos bilhetes caiu no chão aos meus pês e o homem continuou sem sequer olhar para trás.

        Sorri. Nada havia mudado. Conhecia aquele truque desde o meu tempo de garoto. Faziam isso para vender os bilhetes. Quando a pessoa lhes chamava a atenção para os bilhetes caídos, eles diziam imediatamente que era um aviso da sorte e que não havia qualquer dúvida de que aquele era o bilhete premiado. Se a pessoa não quisesse comprar, ele a acompanharia durante muito tempo, aconselhando-a a que não desse um pontapé na sorte.

        O vendedor deu alguns passos e então, sem poder resistir à tentação, virou-se e olhou para mim. Ri e continuei o meu caminho. Quando ia passando por ele, o homem fechou o rosto. Pegou- me o braço e em silêncio apontou para o chão.

        — São seus, — disse eu. — Não quero.

        Apanhe-os! — disse ele em voz baixa. — Têm um recado para o senhor.

        Voltei e apanhei os bilhetes. O recado estava escrito a lápis nas costas de um deles e dizia:

        “Traidor! Vá-se embora antes que seja tarde. No Corteguay só há morte para quem traiu meu pai.

        El Condor”.

        Procurei o homem dos bilhetes mas não o vi mais. Havia desaparecido no meio da multidão que enchia o mercado. Amassei os bilhetes com raiva e guardei-os no bolso. Tive então muito nítida a sensação do perigo que eu corria. Quase qualquer pessoa das que enchiam o mercado podia ser um agente do bandolero.

        Resolvi nunca mais sair sozinho assim, sem a companhia ao menos de Gato Gordo. Tinham sabido logo da minha volta.

        Tomei um táxi que passava com uma verdadeira sensação de alívio. Estava compreendendo por, que o Presidente tomava tantas precauções. Tinha de seguir quanto antes para as montanhas. La, ao menos, não era preciso ficar preocupado sem saber quem podia vir pelas costas.

 

        Olhei pela janela do carro na direção que Gato Gordo apontava. Havia um leve fio de fumaça que saia preguiçosamente da chaminé.

        — Mora alguém na casa? — perguntou o Tenente Giraldo.

        — Não, — disse eu. — Tem estado fechada desde que saí do Corteguay pela primeira vez.

        — Pare o carro um momento.

        Giraldo saltou do carro e foi até ao jipe que nos vinha seguindo. Falou com os soldados e estes pegaram nos fuzis. Em seguida, voltou para o carro e sentou-se ao meu lado.

        — Podemos ir agora mas eles vão entrar no pátio primeiro.

        — Não deve ser nada.

        — Também acho. Mas não podemos facilitar.

        O jipe passou à nossa frente antes de chegarmos ao pátio. Segui-o e parei em frente à galeria: Ficamos em silêncio olhando para a porta da frente fechada.

        Daí a pouco, saí do carro.

        — Isso é uma tolice. Se fossem os bandoleros, já teriam aberto fogo contra nós.

        Subi a escada e, quando ia botando o pé no último degrau, a porta começou a abrir-se. Senti um frio no estomago. No mesmo instante, ouvi os soldados que tomavam posição e um rumor de passos rápidos na escada. Sem olhar, sabia que Gato Gordo estava ao meu lado.

        — Bienvenido a su casa, Señor Xenos.

        A voz que vinha da porta me despertou uma ressonância na lembrança, mas levei alguns momentos para identificar o homem.

        — Martinez!

        O velho se aproximou e nós nos abraçamos.

        — Ah, señor! — exclamou ele. — Que prazer tornar a vê-lo.

        Sorri para ele. O velho vivia nas divisas das nossas terras, a alguns quilômetros da hacienda. Dava abrigo a todos os animais que apareciam por lá e só comia verduras, pois não tinha coragem de matar as suas galinhas. Fora ele quem me dera Perro, o cachorro que eu tivera quando garoto.

        — Quando soube que tinha voltado, compreendi que não tardaria a aparecer em sua casa, — disse ele. — Não quis que voltasse e encontrasse a casa fria e vazia. Por isso, acendi o fogo e trouxe umas coisas para comer.

        Senti as lágrimas me chegarem aos olhos.

        — Obrigado, Martinez.

        Os soldados estavam voltando para o jipe. Falei com o tenente.

        — Martinez é um velho amigo.

        — Arrumei e limpei o que pude, señor, — continuou o velho enquanto íamos para a casa. — Se eu tivesse mais tempo, teria procurado uma mulher para botar tudo em ordem.

        — Está tudo ótimo, meu bom amigo. Fico-lhe muito grato.

        — É bem pouco para pagar tudo que seu pai fez por mim.

        Muitos anos antes, meu pai tinha deixado Martinez morar numa velha cabana no fim dos canaviais. Meu pai disse que a cabana passava a ser dele e que ele podia morar lá o tempo que quisesse. Em sinal de gratidão, ele costumava aparecer na casa uma vez por semana levando algumas galinhas e às vezes um leitão. Mas levava os animais vivos. La Perla é que tinha de matá-los porque o velho não tinha coragem.

        — Como é que vai vivendo por aqui?

        — Muito bem.

        — Não tem havido dificuldades? — perguntei. — Ouvi falar em bandoleros.

        — Que é que eles iriam querer comigo? — perguntou Martinez, abrindo as mãos. — Nada tenho. E eles não me incomodam.

        — Já viu alguns deles?

        — Não vejo nada. Só vejo os meus companheiros, os animais que vivem comigo. Somos todos felizes juntos.

        Olhei para o Tenente Giraldo. Estava impassível. Sabia tanto quanto eu que ainda que o velho tivesse visto os bandoleros apenas dez minutos antes nada diria.

        — Posso mandar meus homens armarem as barracas no pátio, señor? — perguntou Giraldo.

        — Sem dúvida, Tenente.

        — Mandarei armar a minha barraca também.

        — Não, senhor, — disse eu. — Nada disso. O senhor vai ficar aqui na casa comigo.

        — Muita gentileza sua.

        — Vou ver a comida, — disse Gato Gordo e Martinez saiu com ele.

        — Que é que acha, Excelência? — perguntou-me Giraldo. — Será que o velho os viu?

        — Claro que os viu, Tenente. Mas como acha que ele conseguiu viver tanto tempo aqui, sozinho e sem defesa? Aprendeu a calar a boca e a desmentir os olhos.

 

        Acordei ouvindo o barulho tão conhecido dos passarinhos que cantavam na árvore diante da minha janela. Durante alguns instantes, deixei-me ficar ali, meio acordado, meio sonhando, e voltei a ser menino.

        Olhei para o teto. Estava amarelado e rachado, mas eu me lembrava dele quando era branco e eu ficava deitado ali na cama, olhando para ele. Nas noites muito quentes, imaginava que essa brancura fosse a de neve que cobria o cume das montanhas e isso me refrescava e eu adormecia.

        Podia ainda ouvir os ruídos da casa como eram em outros tempos. Os sussurros das empregadas de pés descalços que passavam pela porta, a voz estridente de La Perla na cozinha, o ranger das rodas dos carros e os relinchos dos cavalos, atrás dos quais corria o meu cachorrinho latindo.

        Ouvia de novo minha irmã derramando a água do jarro na bacia para lavar-se e, depois, o som musical da sua voz, enquanto cantarolava. Os passos macios de minha mãe passando por minha porta e depois o passo mais pesado de meu pai. Quase no mesmo instante, esperava ouvi-la perguntar a La Perla, como sempre fazia ao entrar na cozinha: “Dax ainda não desceu?”

        E lembrava-me da leve exasperação que havia na voz dela ao saber que eu ainda estava deitado. “Esse menino!” dizia ela a meu pai. “Um dia, quando ele se casar e tiver filhos é que vai ver como é importante começar o dia bem cedo!”

        Depois, o riso de meu pai e a voz com que procurava acalmar minha mãe. “Ele é ainda quase um garotinho de fraldas e você já está querendo vê-lo casado e com filhos!”

        Sorri, embebido na doçura das recordações. Casado e com filhos. Como minha mãe ficaria triste se soubesse como as coisas haviam corrido para mim! Que teria ela dito? Provavelmente nada. No fim ela sempre arranjava uma desculpa para tudo o que eu fazia. Eu nunca tinha culpa de coisa alguma. Agora, porém, eu sabia. Havia em mim uma fraqueza que nunca existira em meu pai. Ele tinha uma capacidade natural de amar. Todas as pessoas sentiam isso, embora só minha mãe possuísse o seu amor. Nunca existira outra mulher para ele.

        Eu não era assim. Era vítima da minha própria sensualidade. Bastava-me ver uma nova mulher, sentir-lhe o cheiro, adivinhar-lhe o gosto para que a mulher anterior desaparecesse para mim. E a promessa da próxima só servia para agravar a minha cobiça. A verdade era que eu nunca havia sentido por ninguém o amor terno e delicado que meu pai tivera por minha mãe. Talvez não houvesse em mim a capacidade de amar assim.

        O meu amor era de outra espécie. Era material, impulsivo, exigente. Eu podia estar com uma mulher e satisfazer a ela e a mim saturando os nossos sentidos até à completa exaustão, e, quando tudo acabava, sentir-me de novo sozinho. E a mulher também. Sabíamos no fundo de nós mesmos que nenhum de nós podia dar mais ao outro do que aquilo.

        Talvez fosse         isso, essa coisa a       mais, que Caroline procurara em mim e não encontrara. O filho que Giselle sempre quisera que eu lhe desse e nunca lhe dera. Mesmo com as duas que mais se pareciam comigo, que eram trabalhadas pelos mesmos impulsos físicos e nada mais — Amparo e Sue Ann — faltava alguma coisa. Ou seria porque éramos muito parecidos e só pedíamos aquilo que tínhamos para dar?

        Éramos como estranhos que se encontram no decurso de uma breve viagem. Trocávamos algumas palavras gentis e dávamos um ao outro uma alegria momentânea porque a viagem logo chegaria ao fim e nós nos despediríamos, seguindo cada qual o seu caminho. Depois, olhávamos um para o outro e não nos conhecíamos mais. A noite havia passado e estávamos de novo sozinhos com a certeza em cada um de nós de que passaríamos o dia à procura de outra pessoa estranha com quem pudéssemos passar a noite seguinte, para esquecer a solidão que nos assaltaria mais uma vez ao romper da manhã.

        Houve um súbito silêncio. Eu escutava, mas o canto dos pássaros desaparecera da árvore. Levantei-me e cheguei à janela. Do outro lado do pátio, um soldado estava urinando junto à cerca e outro acendia uma pequena fogueira em frente à barraca.

        Bateram na porta.

        — Quién es?

        — Eu.

        Abri a porta e vi Gato Gordo.

        — Já preparei presunto, tortilhas e feijão. Bati antes mas você não ouviu.

        — Estava pensando na casa como era antigamente.

        Gato Gordo voltou para mim os olhos sabidos e penetrantes e me disse:

        — Às vezes, faz bem à gente escutar os fantasmas da família. Eu ouvi também os seus fantasmas, Dax.

        — E que foi que eles lhe disseram?

        — Que já estão sozinhos aqui há muito tempo nesta casa vazia. Estão esperando que você traga uma mulher para a casa a fim de que eles possam ter paz.

        Depois de dizer isso, Gato Gordo deu-me de repente as costas e saiu pelo corredor. Vi-o descer a escada e, ainda depois de fechar a porta, ouvia o barulho pesado dos seus passos. Voltei para a cama e sentei-me para calçar os sapatos.

        Talvez fosse isso. Eu nunca havia trazido uma mulher para casa, exceto Amparo e naquela única vez. Mas nunca encontrara ninguém capaz de querer bem àquele lugar como eu. Então ocorreu-me uma ideia e eu fiquei sem saber por que nunca havia pensado nisso. Sim, podia haver uma.

        Beatriz. Quase no mesmo instante em que a vira pela primeira vez tinha sentido que pertencíamos ao mesmo mundo, ao mesmo lugar, ao mesmo tempo. Não sentira isso com qualquer das outras.

        Talvez os desejos de minha mãe pudessem, apesar de tudo, cumprir-se.

 

        — Vou dar um pequeno jantar, — disse o Presidente. — Espero que venha com alguém de quem você goste.

        — Convidarei Amparo, — disse eu como devia.

        — Não. Amparo não estará presente.

        Não perguntei por quê. Se ele não a queria, ela não iria mesmo.

        — Pode trazer a filha de Guayanos, se quiser, — disse ele inesperadamente.

        — Mas eu pensei...

        — Não luto com crianças. A minha briga é com o pai dela!

        Era muito estranho aquilo. Eu tinha a impressão de que ele queria a presença de Beatriz.

        — Soube que os dois estão-se vendo muito. É verdade? — perguntou ele.

        — É sim.

        — Traga a moça, então.

        — Estou bem? — perguntou Beatriz nervosamente enquanto Gato Gordo entrava com o carro nos jardins do palácio.

        Sorri.

        — Não tenha dúvida de que você será a mulher mais bonita do jantar.

        Quando o carro parou, um soldado abriu a porta. Saí primeiro e ajudei Beatriz a descer. O longo vestido preto realçava-lhe maravilhosamente o corpo esbelto.

        Sorri para tranquilizá-la quando os nossos nomes foram anunciados, mas senti-lhe a mão tremer quando entramos na sala. Houve silêncio e todos se voltaram para olhar-nos. Pareciam tão curiosos quanto eu de ver como o Presidente receberia a filha do seu maior inimigo.

        O Presidente estava vestido num uniforme azul muito simples e sem medalhas. Só os olhos e o andar eram jovens como sempre quando atravessou a sala ao nosso encontro. Tomou a mão de Beatriz e levou-a aos lábios enquanto ela lhe fazia uma reverência.

        — Está uma mulher ainda mais bonita do que era quando criança, — disse ele, sorrindo.

        — Muito obrigada, Excelência.

        Num canto da sala, uma pequena orquestra começou a tocar.

        — Chegaram bem na hora, — continuou o Presidente e, inclinando a cabeça para mim num gesto meio antiquado de cortesia, perguntou: — Posso ter a honra de dançar com ela?

        Fiz um gesto de aquiescência e ele levou Beatriz pelo braço para o salão. Quando começaram a dançar uma valsa calma, fui até ao bar.

        — Um uísque, por favor.

        — Que é que há, Dax? — perguntou George Baldwin, surgindo ao meu lado. — Estou vendo e não acredito. O velho dançando com a filha do seu mais declarado inimigo.

        — A briga dele é com o pai e não com ela, — disse eu, encolhendo os ombros.

        — Parece uma citação, Dax.

        — E é mesmo.

        — Qual é a intenção?

        — Não sei. Talvez queira mostrar que não é o monstro que você o julga.

        George sorriu.

        — Não, não pode ser isso. Tem de ser mais alguma coisa. Quando foi que ele deu a menor importância ao que os outros pensassem dele?

        Nesse momento, houve gargalhadas no alto da grande escadaria e os olhos de todos se voltaram para lá. Amparo, com um vestido branco, olhava para baixo com o corpo um pouco incerto. Um jovem capitão tentou segurá-la pelo braço, mas ela o afastou, zangada. A orquestra parou.

        — Continuem, continuem, — disse ela, descendo cambaleante a escada. — Resolvi, apesar de tudo, vir à festa.

        Vi que o Presidente a olhava, cheio de implacável cólera. Beatriz, ao lado dele, estava pálida e amedrontada, e eu tive vontade de ir para junto dela. Mas, em vez disso, subi a escada.

        — Amparo! — disse eu, dando-lhe a mão para que se apoiasse. Beijei-lhe a mão. — Que bom vê-la de novo.

        — Dax, — respondeu Amparo com voz incerta. Os olhos estavam sombrios mas com as pupilas largas e distendidas. — Dax.

        A orquestra recomeçou a tocar e eu a levei para o salão de dança. Segurava-a bem para que ela não tropeçasse. Os movimentos eram rígidos, difíceis e exagerados, como se ela não conseguisse controlar os músculos. Fechou os olhos e encostou a cabeça no meu peito.

        — Dax, — sussurrou ela, estremecendo, — estou com medo.

        — Medo de quê? Você está em segurança.

        — Não. Eu não devia ter vindo. Ele me disse que não viesse.

        — Mas você está aqui agora e tudo vai bem. — A música parou e eu saí com ela do salão. — Venha que eu vou pegar alguma coisa para você beber.

        — Não, disse Amparo, agarrando-me nervosamente o braço. — Não me deixe.

        Segui o olhar dela. O Presidente se encaminhava para nós, trazendo Beatriz pelo braço e de rosto impassível.

        — Papa.

        Havia na voz de Amparo um tom de criança que pede compreensão e perdão.

        O Presidente não disse coisa alguma quando se inclinou e beijou o rosto de Amparo.

        — Senti vontade de vir, Papa, — disse ela, ainda com a voz de menina.

        O pai olhou para ela durante algum tempo. Depois, sacudiu a cabeça e voltou-se para Beatriz e para mim.

        — Dão-me licença?

        Ambos meneamos afirmativamente a cabeça.

        — Venha, Amparo, — disse ele, impiedosamente e, voltando-se, começou a afastar-se.

        Como que hipnotizada, Amparo seguiu o pai. Ele, então, voltou-se inesperadamente para Beatriz.

        — Quase ia-me esquecendo de agradecer-lhe o prazer da dança, señorita.

        Beatriz fez um gesto cortês.

        O Presidente virou-se e, dessa vez, segurou o braço de Amparo, levando-a para um canto da sala. As pessoas presentes se afastaram das imediações para que eles pudessem falar em particular. Beatriz olhou para mim, ainda pálida, e murmurou com uma curiosa nota de compaixão na voz:

        — Ela está bem doente.

        — É verdade, — murmurei, olhando-os.

        Mas sabia que aquilo era mais do que simples doença. Reconhecia aquela espécie de doença. Já a havia visto nos olhos de outras pessoas que procuravam fugir à realidade. Amparo era uma viciada em heroína.

        Compreendia por que o quarto dela ficava quase às escuras. Era para que não se vissem as marcas das picadas da agulha nos seus braços.

        Depois de conversar algum tempo com o pai, Amparo pareceu acalmar-se e, quando chegou a hora do jantar, o Presidente levou-a para a mesa, dando-lhe o braço. Colocou-a no lugar da hostess no extremo da mesa. O nervosismo a havia deixado e, dentro em pouco, parecia haver voltado quase ao normal. Os longos cabelos louros e o vestido branco com as mangas que chegavam quase às pontas dos dedos pareciam acentuar o brilho selvagem da sua beleza.

        Na hora da sobremesa, o Presidente levantou-se e pigarreou. O silêncio caiu sobre a mesa e os olhares de todos se voltaram para ele.

        — Naturalmente, todos estão querendo saber por que ofereci este jantar quando há tanto tempo as portas deste palácio estão fechadas. Trata-se de uma homenagem que desejo prestar a um velho amigo, filho de um homem que também foi meu íntimo amigo e um grande patriota. Ao mesmo tempo, esta reunião me dá a oportunidade muito grata de anunciar a nomeação, efetiva, a partir deste momento, de Sua Excelência o Senhor Diógenes Alejandro Xenos como Ministro do Exterior e representante do Corteguay junto às Nações Unidas.

        Senti a mão de Beatriz apertar-me entusiasticamente o braço enquanto os presentes aplaudiam. Todos olharam para mim, mas continuei sentado, pois o Presidente levantava a mão.

        “O fato de eu escolher para ocupar esses dois importantes cargos o mesmo homem é uma prova da consideração pessoal que por ele tenho. É também uma prova do alto conceito que me merecem as Nações Unidas”.

        Houve de novo aplausos e o Presidente tornou a levantar a mão.

        “Nestes tempos difíceis para o Corteguay e para o mundo, creio que não há maior necessidade para nós do que o restabelecimento da paz e da unidade dentro das nossas fronteiras, o que é o meu mais sincero desejo. E para conseguir isso e fortalecer a posição do homem a quem acabo de nomear ofereço o seguinte a todos os que se opõem à nossa política: anistia política total e completa sem qualquer restrição. Convido a todos esses adversários a virem participar de eleições livres que serão realizadas em futuro bem próximo. E para afastar todas as dúvidas que ainda possam persistir, renuncio ao cargo de Juiz Supremo da Corte de Ação Política em favor de Sua Excelência o Sr. Xenos”.

        Ressoaram de novo os aplausos. Vi que George Baldwin, sentado ao lado do Presidente, me olhava cepticamente e eu compreendi que ele estava pensando que tudo aquilo já era do meu conhecimento.

        O Presidente continuou a falar logo que os aplausos diminuíram. Voltou-se para onde eu estava e me olhou, mas eu tive a impressão de que se dirigia mais a Beatriz do que a mim.

        — Renovo o meu convite e o meu apelo. A todos os que procuram dividir o país pela palavra ou pelas armas, aqui e no exterior, peço que se apresentem. Confiem não em mim, mas no Sr. Xenos. E trabalharemos todos juntos como verdadeiros patriotas por um futuro mais glorioso para a nossa amada pátria.

        Sentou-se então e os aplausos dessa vez foram verdadeiramente ensurdecedores. Pouco a pouco, todos se voltaram para mim. O Presidente sorria benignamente. Fez um gesto e eu me levantei enquanto um atento silêncio se estendia pela mesa. Olhei-os e tive plena consciência de que o que eu ia dizer naquele momento, fosse o que fosse, seria no dia seguinte lido e sabido no mundo inteiro.

        Comecei a falar devagar, escolhendo cuidadosamente as palavras.

        — Há pouco mais que eu possa dizer além de que me sinto compelido à humildade por essa honra e pela maneira generosa por que me foi concedida. — Houve breves aplausos que logo cessaram. — Há uma coisa, porém, que desejo acrescentar. Todos aqui presentes foram testemunhas da promessa feita.

        Fiz uma pausa e olhei para todos na mesa. Houve um respeitoso silêncio quando os meus olhos fitaram o rosto do Presidente. Era uma máscara, mas os olhos cintilavam e havia um leve toque de ironia na curva dos seus lábios. Depois de olhá-lo, falei de novo:

        “Farei tudo o que estiver em meu poder para que essa promessa seja cumprida!”

        Sentei-me e todos estavam tão atônitos que ninguém aplaudiu senão depois que o Presidente começou a bater palmas. A música principiou então a tocar na outra sala e o Presidente levantou-se, indo para o salão, seguido pelos outros.

        George Baldwin me pegou no fim da fila que se havia formado para dar-me os parabéns. Dentro em pouco, estávamos sozinhos e ele me disse com aquele seu olhar malicioso.

        — Será que o velho foi mesmo sincero?

        — Você não o ouviu?

        — Ouvi foi a você. Você foi sincero no que disse.

        Fiquei calado.

        — Se ele não foi sincero, Dax, não dou nem dois cents por sua vida, agora.

        Olhei-o ainda sem falar.

        — É um velho patife, — murmurou George, sem poder esconder a admiração que sentia. — Vai conseguir de novo o que deseja. Até há pouco eu não acreditava que o Corteguay tivesse a mínima chance de conseguir um empréstimo americano. Mas agora tenho certeza de que as opiniões em Washington vão-se modificar muito.

 

        Íamos em silêncio no carro que Gato Gordo dirigia pelas ruas escuras rumo à casa de Beatriz. Eram as casas perto da Universidade onde o pai dela tinha sido professor. Beatriz ainda morava na casa onde havia nascido. Não se tratava de uma mansão, mas era uma casa confortável, bem recuada da rua, atrás de um gradil recoberto de flores.

        Quando o carro parou, saltei e segurei a mão de Beatriz.

        — Vou levá-la até à porta.

        Beatriz nada disse. Passou adiante de mim e entrou pelo portão. Segui-a pelos degraus até à pequena varanda e curvei-me para beijá-la.

        — Não, — disse ela, afastando o rosto.

        Olhei-a. Os olhos estavam de um verde ainda mais escuro à débil luz que vinha da janela atrás dela.

        — Não posso continuar a vê-lo, — disse ela. — Está acontecendo tudo o que disseram que ia acontecer. Você é apenas uma armadilha para mim e para meu pai.

        — Disseram? Quem foi que disse?

        — Amigos...

        — Amigos ou pessoas que se servem de você e de seu pai para os seus próprios fins?

        — Não importa, — disse ela. — Não quero discutir política com você.

        — Muito bem, — disse eu, segurando-a pelos braços e puxando-a para mim. — Não foi a política que me fez gostar de você.

        — Largue-me, — disse ela.

        Beijei-a. Julguei por um momento sentir algum calor dentro dela, mas logo ela falou, num sussurro, bem junto dos meus lábios:

        — Largue-me que eu não sou uma das suas mulheres fáceis.

        Soltei-a e murmurei cheio de amargura:

        — Os seus amigos trabalharam bem. Não só lhe impõem as suas opiniões políticas, mas governam até o seu amor.

        — Meus amigos zelam apenas por mim, — disse ela incertamente. — Todo o mundo o conhece e eles não querem que eu venha a sofrer.

        — Cuidado! — gritou de repente Gato Gordo do carro.

        Rodei o corpo, sentindo um movimento nas moitas ao lado da casa e ao mesmo tempo joguei Beatriz violentamente ao chão, caindo junto com ela. Ouvi o estalo de uma arma com silenciador e, então, o rumor de passos que se afastavam enquanto Gato Gordo chegava correndo ao portão.

        Levantei-me e corri para o jardim. Gato Gordo me fez parar.

        — Não adianta. Com esta escuridão, não encontraremos quem foi. Felizmente, pude avisá-lo.

        — Você provavelmente me salvou a vida. Obrigado.

        — Foi uma pena, — murmurou Gato Gordo com a sombra de um sorriso. — Chegaram justamente quando a coisa estava começando a ficar interessante.

        Voltei para onde estava Beatriz. Ajudei-a a levantar-se. O belo vestido preto estava todo amarrotado.

        — Você está bem?

        — Acho que sim... Quem foi?

        — Ora, quem podia ser? Naturalmente um dos seus amigos que, no seu zelo por você, veio matar-me. Não resta dúvida que, se por acaso ele a atingisse também, ficaria muito sentido.

        Os olhos de Beatriz encheram-se de lágrimas.

        — Não sei mais o que pensar.

        A porta da casa se abriu e uma mulher embrulhada num xale, provavelmente uma empregada, apareceu.

        — Que foi? Aconteceu alguma coisa?

        — Nada. Já vou entrar. Volte para a cama.

        A porta se fechou e Beatriz estendeu a mão para mim.

        — Dax...

        Fiquei zangado por um momento e não tomei conhecimento da mão dela.

        — Sinto muito. Acho que me enganei. No meu mundo, só as crianças não sabem o que pensar. É preciso dizer-lhes. Mas os homens e as mulheres pensam por si mesmos.

        E saí, dirigindo-me para o carro. Gato Gordo já estava sentado no lugar da direção.

        — Chegue para lá,— disse eu mal-humorado. — Quem vai guiar sou eu.

        Dei a partida e, quando dobrei a esquina, ouvi-o rir baixinho.

        — Que é que está achando tão engraçado, idiota?

        — Nunca vi você assim.

        Não disse nada. Dobrei a próxima esquina com um ranger desesperado de freios.

        — Você está como uma criança de quem tiraram um bombom!

        Cale-se!

        Gato Gordo fez uma pausa e então falou mais calmamente, quase consigo mesmo:

        — Mas está claro que é ela.

        — É ela o quê?

        Ele me olhou muito sério e respondeu:

        É ela que você deve levar para casa para dar paz na hacienda aos espíritos de sua família.

        O telefone começou a tocar na manhã seguinte às sete horas. Chegavam telefonemas de todos os pontos do mundo. Os jornais e as agências telegráficas não haviam dormido. Um dos primeiros que recebi foi de Jeremy Hadley, de Nova York.

        — Dax, devo dar-lhe parabéns ou ter pena de você? Qual é o significado disso?

        — Exatamente o que você soube.

        — Fala-se aqui que o Presidente está-se preparando para renunciar e entregar o poder a você.

        — Não é verdade. Nada se disse a esse respeito, nem se dirá. O Presidente anunciou apenas que haverá eleições em futuro próximo. Nada disse sobre a sua sucessão.

        — Fala-se também que o Dr. Guayanos já está no Corteguay.

        — Nada soube sobre ele. Ao que me consta, ainda está no exílio.

        — Soube também que você é muito amigo da filha dele e está servindo de intermediário para uma trégua entre Guayanos e o Presidente.

        Boatos. Havia ocasiões em que me parecia que só havia duas coisas no mundo: gente e boatos. E eu não sabia o que dos dois havia em mais quantidade.

        — Tenho visto muito a filha dele, mas não tem havido discussões políticas entre nós.

        — Ora, Dax, pensa que vou acreditar nisso? Como poderia deixar de falar em política justamente com a filha do maior adversário do governo a que você agora pertence?

        — É muito simples, Jeremy, e você que me conhece devia saber disso mais do que ninguém. Quando foi que precisei de outro motivo além do fato de ser ela uma bela mulher?

        Ouvi-o rir.

        — Já estou começando a me sentir melhor, velho patife. Estava com receio de que estivesse começando a se regenerar. Felicidades!

        Desliguei o telefone e, no mesmo instante, ele tocou de novo. Era o gerente do hotel.

        — A portaria está cheia de jornalistas e fotógrafos, Excelência. Que devo dizer a eles?

        Pensei por um momento.

        — Leve a todos para o salão de jantar e mande dar-lhes um café reforçado. Ponha tudo na minha conta. Diga que descerei logo que estiver pronto.

        Desliguei, mas o telefone tocou antes de eu tirar a mão.

        — Pronto.

        — Dax? É Marcel quem fala. Parabéns.

        — Obrigado.

        — Seu pai se fosse vivo estaria muito orgulhoso no dia de hoje.

        — Muito gentil da sua parte, — murmurei, pensando no que Marcel poderia estar querendo. Ele não era homem para perder tempo em gentilezas.

        — Quando é que vem para Nova York? Há muitas coisas importantes que temos de discutir.

        — Não sei. O presidente ainda não assentou comigo a data da minha partida. Mas há alguma coisa urgente, alguma coisa que exija solução imediata?

        — Não, — disse Marcel, hesitante. — Você se lembra da televisão que tenho aqui? Vai querer uma delas aí?

        Compreendi que ele estava querendo dizer que sabia que os telefones estavam controlados.

        — Não, acho que não, Marcel. Aqui temos coisa muito semelhante.

        — Era o que eu pensava. Bem, avise-me quando vier para Nova York. Estou à sua disposição.

        — Obrigado. Deixe que eu avisarei.

        — Por favor, cumprimente o Presidente por mim. Assegure- lhe todo meu respeito e solidariedade.

        Logo que larguei o telefone, ele recomeçou a tocar. Dei um pulo da cama e fui para o banheiro no momento em que Gato Gordo aparecia à porta.

        — Diga à mesa que não ligue mais para cá. A telefonista que tome os recados.

        Gato Gordo pegou o telefone. No mesmo instante, me chamou.

        — O Presidente!

        Peguei o telefone.

        — Pronto, Excelência.

        A voz dele era calma e cordial.

        — Como é? Dormiu bem?

        — Dormi, sim. Muito obrigado.

        — Que está fazendo agora?

        — Ia tomar banho e, depois, descer para enfrentar a imprensa. Não posso deixar de vê-los, não é?

        — Claro. Esse é um dos ônus da vida pública. Os jornalistas nunca nos deixam em paz. Quando acabar, quer dar um pulinho aqui no palácio? Há alguém aqui que eu gostaria muito que você visse.

        — Irei para aí logo que puder. Mas quem é? Alguém importante?

        — Depende do ponto de vista. Se eu fosse você, considerá-lo- ia muito importante. Mas eu não sou você. E nós pensamos de maneira diferente sobre muitas coisas. Mas será interessante ver como você reagirá quando vir o homem.

        — O homem?

        Ele riu.

        — Sim, o homem que tentou matá-lo esta noite. Nós o capturamos hoje de manhã.

 

        Era um homem que eu tinha visto no balcão de passagens ao lado de Beatriz no aeroporto de Miami. Mas não estava mais tão arrumado e elegante quando entrou na sala entre os dois soldados. Estava com os olhos arroxeados e tinha sangue coalhado no rosto e nos cantos da boca.

        — Conhece-o? — perguntou-me o Presidente. — Já o viu em algum lugar?

        O homem levantou a cabeça para mim com uma expressão de receio nos olhos.

        — Não, — disse eu. — Não conheço.

        Não havia necessidade alguma de envolver Beatriz no caso.

        — Vou-lhe dizer então quem é ele, — disse o Presidente. — É o tio da moça, o irmão de Guayanos.

        Senti de repente o absurdo de tudo aquilo. Aproximei-me dele, irritado.

        — Por que foi fazer uma coisa dessas?

        Não respondeu.

        — Ainda que me tivesse matado, que teria adiantado isso? Já pensou que qualquer daquelas duas balas poderia ter matado Beatriz?

        Houve nos olhos dele uma alteração quase imperceptível.

        — Claro que pensei, — disse ele com voz cansada. — E é por isso que ainda está vivo. No último instante, desviei a pistola.

        O Presidente riu.

        — Acredita nisso?

        Não respondi.

        — A moça estava com certeza mancomunada com ele! É por isso que ele está contando essa história!

        — Não! Beatriz não sabia de nada! Ela não sabia nem que eu havia voltado ao Corteguay!

        — Cale-se! — gritou o Presidente. Passou por mim e deu violenta bofetada no tio de Beatriz. A cabeça do homem virou para trás e ele quase foi ao chão. O Presidente tornou a bater.

        — As armas? — gritou ele. — Onde estão sendo desembarcadas?

        — Não sei de nada sobre armas.

        — Mentira! — exclamou o Presidente, atingindo-o dessa vez com o joelho nas virilhas.

        O homem se dobrou todo e caiu de joelhos, dizendo com voz entrecortada de dor.

        — Não sei de nada. Se soubesse, acha que já não teria dito depois de ter passado pela sua polícia?

        O Presidente olhou-o cheio de desprezo e voltou-se para mim.

        — E são vermes assim que se julgam com força suficiente para governar um país!

        Voltou à mesa e apertou o botão do interfone.

        — Diga a Hoyos e Prieto que quero falar com eles.

        Voltou-se para mim.

        — Se não fossem os dois, esse miserável nos teria fugido por completo. Começaram a segui-lo desde o momento em que ele desembarcou.

        Os dois homens entraram na sala.

        — Que foi mais que descobriram? — perguntou o Presidente.

        — Nada, Excelência. Não havia armas no pequeno barco. Ele veio sozinho.

        — Falou com a moça?

        — Não, Excelência. Ela não estava em casa quando ele apareceu por lá. Escondeu-se no jardim e ficou esperando que ela voltasse.

        — Por que não o prenderam nessa ocasião? — perguntei.

        — Esperamos porque pensávamos que ele entregaria alguma mensagem à moça sobre as armas. Não fazíamos a menor ideia de que ele tentaria matá-lo.

        — Olhei para o tio de Beatriz.

        — Por que tentou matar-me?

        — Minha sobrinha é uma boa moça. Achei         que não servia para ela e que o único meio de livrá-la era esse.

        — Não foi então um plano político?

        — Não. Só fiz isso pelo bem dela. É a filha única de meu irmão. Avisei-a da sua reputação, mas parece que ela não deu atenção à minha advertência.

        — Tudo isso é conversa! — gritou o Presidente. — Pela última vez, onde as armas estão sendo desembarcadas?

        — Já disse que não sei.

        — Mentiroso! — exclamou o Presidente com a voz trêmula de cólera. — Por que iria voltar se não fosse pelas armas?

        — Para onde eu poderia ir? O Corteguay é minha terra.

        O Presidente olhou-o e então disse a Hoyos:

        — Leve-o para Escobar. Sabe o que tem de fazer com ele.

        — Sí, Excelência, — disse Hoyos pegando o braço do prisioneiro para levá-lo.

        — Não!

        Eu sabia o que era Escobar. Era a prisão dos condenados à morte. Todos se voltaram para mim cheios de curiosidade e o Presidente mais do que os outros.

        — Deixem-no em liberdade!

        — Deixá-lo em liberdade? — exclamou o Presidente. — Esse homem tentou matá-lo!

        — Deixem-no em liberdade! — repeti.

        — Não seja idiota! — gritou o Presidente. — Só conseguirá com isso que ele procure matá-lo de novo. Eu conheço essa gente!

        Não repliquei.

        — Você ficou muito tempo fora e já esqueceu como isto aqui é.

        Lembrei-me das palavras do Presidente muitos anos antes, quando eu era apenas um garoto e tentara matar outro assassino. Dissera-me que eu não tinha necessidade de matá-lo, pois eu não estava mais na selva.

        — Será que voltamos à selva tão depressa? — perguntei. Ele me olhou espantado e eu vi que não se havia lembrado. — Na noite passada, o senhor me nomeou para a Corte de Ação Política. Investiu-me de todos os seus poderes. Sendo assim, a responsabilidade é minha. Tenho alguma coisa mais importante para o prisioneiro fazer do que morrer. — Olhei para ele. — Quero que leve um recado para seu irmão.

        O prisioneiro me olhou cheio de desconfiança.

        — Lerá nos jornais de hoje que foi concedida ampla anistia a todos os prisioneiros e refugiados políticos. Ficará também sabendo que a Corte está agora a meu cargo. Pedi a todos os que discordam de nós que voltem e resolvam as suas divergências diante do povo numa eleição livre. Diga a seu irmão que isso se aplica a ele como a todos os corteguayos.

        O tio de Beatriz teve um riso de escárnio.

        — Isso não passa de outro truque. Sabemos o que foi que aconteceu depois das outras anistias.

        — Então é um bom truque porque lhe permitirá sair desta sala vivo e livre.

        Ficou ali a olhar-me nervosamente. Era evidente que não se atrevia a acreditar.

        O Presidente disse afinal com voz aborrecida.

        — Joguem esse verme na rua. Esperamos que seja grato à justiça que lhe é concedida.

        Havia uma nota de incredulidade na voz de Hoyos.

        — Quer mesmo que ele fique livre? Assim sem mais nem menos?

        — Não ouviu o que Sua Excelência disse? O prisioneiro está livre! — exclamou o Presidente.

        Hoyos virou-se em silêncio e fez o tio de Beatriz sair à frente dele. Prieto seguiu-o. Houve então silêncio na sala. O Presidente e eu nos olhamos por muito tempo e ele afinal sorriu. Um momento depois, dava gargalhadas.

        — De que está rindo, Presidente?

        — Pensava até agora que você já a havia conseguido. Sei agora que não teve mais sucesso do que os outros.

        Nada disse.

        — Uma lindeza, — murmurou ele.

        — O quê?

        — O seu plano, Dax. Tiro-lhe o chapéu. É tão sutil, tão hábil que até eu me sentiria orgulhoso se o houvesse imaginado.

        — Acha? — disse eu, querendo saber até que ponto eu era sutil.

        — Libertando o tio, você ganha a confiança dela e, ganhando a confiança dela, ganha a pessoa dela. E quando estiver dentro dela, ela entregará o pai direitinho em nossas mãos. Nunca vi uma mulher que pudesse ficar calada depois de bem amada.

 

        Duas semanas depois, eu ainda não tinha tido notícias de Beatriz. Cheguei a pegar no telefone muitas vezes, mas sempre desistia. Quando ela quisesse, devia ser nas condições dela.

        Mas não foram tranquilas essas duas semanas. Passava os dias todos e muitas noites no gabinete que o Presidente me tinha dado no palácio. Passava por minha mesa todo o quadro econômico da nação, todas as tabelas e análises depois de preparadas pelos respectivos departamentos. Ao fim de algum tempo, as coisas começaram a tomar forma.

        Uma noite, quando eu estava no meu gabinete estudando o sumário final, o Presidente apareceu. Foi até à minha mesa e olhou por cima do meu ombro.

        — Que é que acha?

        — Se as cifras apresentadas pelos economistas estão corretas, temos uma chance.

        — Teremos uma chance se conseguirmos financiamento. Já soube alguma coisa do seu amigo?

        Eu sabia que ele se referia a George Baldwin.

        — Não.

        — Por que será que estão demorando?

        — Não sei.

        — Talvez seja melhor você ir logo para Nova York sem esperar o convite.

        — Os americanos são um povo esquisito, — disse eu. — Não gostam de que a pessoa chegue para pedir dinheiro sem ser convidada.

        — Você não irá para Washington, mas para Nova York, onde terá o direito de estar como chefe da nossa delegação às Nações Unidas. E enquanto estiver lá, poderá trabalhar no outro caso.

        — Talvez seja uma boa ideia, — disse eu, olhando com respeito para o velho. Não se passava um dia sem que ele ganhasse mais um pouco da minha relutante admiração. Podia estar velho, mas era muito atilado.

        — É melhor do que ficar aqui sem fazer nada. Quando é que vai partir?

        — Na terça ou quarta, talvez. Há alguns assuntos pessoais que eu gostaria de resolver durante o fim-de-semana.

        — Ele sorriu. Já teve notícias da moça?

        Sacudi a cabeça.

        — E do pai?

        — Também nada.

        — Nenhum deles aceitará, — disse ele com desdém. — São uns vermes que têm medo da luz do sol.

        Não repliquei. Não adiantava dizer-lhe que as duas últimas anistias que anunciara só haviam tido como resultado a morte de todos os que haviam voltado. Por que então iriam pensar que daquela vez seria diferente?

        O Presidente pôs a mão no meu ombro, bateu gentilmente nele e disse:

        — Você vai acabar aprendendo. Devia ter matado o tio quando teve oportunidade. Só compreendem isso.

        Encaminhou-se para a porta e, antes de sair, ainda me disse:

        — Bem, felicidades com a moça.

        Não iria dizer-lhe que Beatriz não figurava absolutamente nos meus planos. Tinha muito que fazer naquele fim-de-semana, mas ia fazer sozinho.

        Queria passar algum tempo na hacienda com as recordações de minha família. Teria de trabalhar pelo menos dois dias com as próprias mãos para limpar e arrumar o pequeno cemitério. Deixá-lo-ia tratado e de novo plantado com flores, como eu sabia que minha mãe o teria querido.

 

        Ouvi o barulho do carro antes que ele fizesse a curva do alto do morro. Larguei a pá com que estava trabalhando, fui até ao gradil do cemitério e peguei o rifle que ali havia deixado encostado. Virei a alavanca para colocar uma bala na câmara e fiquei à espera. Vi tudo dali melhor do que da frente da casa e quem viesse chegando não me poderia ver.

        Martinez havia ido para a cabana dele desde uma hora quase e eu só esperava Gato Gordo no dia seguinte. Ele viera comigo na sexta-feira, mas eu o mandara voltar para a cidade a fim de proteger a minha ausência. Se ninguém atendesse em nosso apartamento, dariam por minha falta e logo imaginariam para onde eu tinha ido. Então, os soldados iriam aparecer porque o Tenente Giraldo não queria arriscar-se a perder o posto, negligenciando os seus deveres.

        Vi o carro parar no alto do morro e dar as duas buzinadas que Gato Gordo e eu havíamos combinado como sinal. O carro começou a descer e eu fiz a bala saltar da câmara do rifle para minha mão, depois do que a coloquei no pente. Peguei o rifle debaixo do braço e desci devagar para a casa. Os músculos do corpo todo me doíam a cada passo. Havia muito que eu não trabalhava assim com as mãos. Mas isso não me era desagradável e o cemitério estava começando a ter o aspecto cuidado que em outros tempos tivera.

        Cheguei à frente da casa e olhei com curiosidade o carro que se aproximava. Devia ser alguma coisa importante senão Gato Gordo não viria com um dia de antecedência. Quando o carro entrou no pátio, percebi que havia outra pessoa sentada ao lado dele.

        O carro parou perto de mim e Beatriz saltou. Ficou parada ali um instante a olhar-me. Acho que eu devia estar com um aspecto horrível — nu da cintura para cima, sujo de terra e com um rifle nos braços. Mas ela falou antes que eu pudesse dizer alguma coisa.

        — Não se zangue. Fiz Gato Gordo trazer-me.

        Eu estava tão surpreso que nem pude falar.

        — Li nos jornais que você vai partir para Nova York na terça-feira. Não quis que você fosse sem vê-lo. Telefonei duas vezes para o hotel na sexta-feira, mas ninguém atendeu. Hoje de manhã, consegui falar com Gato Gordo. Ele não queria trazer-me, mas quando eu disse que viria de qualquer maneira, concordou embora contra a vontade.

        — Podia ter esperado, — disse-lhe eu. — Eu estaria de volta a Curatu na segunda-feira.

        Quando olhou para mim os olhos estavam verdes como as folhas da floresta.

        — Sei disso, — murmurou ela com a voz subitamente trêmula, — mas não podia mais esperar. Já esperei demais.

        Olhei-a. Com os slacks colados ao corpo parecia ainda mais esbelta. A camisa de gola aberta e mangas arregaçadas dava a impressão de uma menina vestida com as roupas do irmão. Mas a bela curva do busto jamais permitiria esse engano. Aproximei-me dela.

        — E que era que estava esperando?

        — Que você me telefonasse. Quando não telefonou, fiquei pensando no que você disse — que só às crianças é que é preciso dizer o que devem fazer. Os homens e as mulheres pensam por si.

        — E o que é que você pensa?

        Vi o rosto dela ficar levemente corado.

        — Penso... penso que estou apaixonada por você.

        Caiu-me então nos braços.

        Acendi o charuto e via-a inclinar-se sobre a balaustrada da galeria e levantar os olhos para o céu da noite.

        — Agora, sei por que você gosta disso aqui. É tão belo. Tem- se a impressão de ser a única pessoa no mundo.

        — Não é apenas isso, Beatriz. Isto é um lar. Nasci naquele quarto ali no alto da escada. Minha mãe, meu pai e minha irmã dormem debaixo da terra perto da casa. As minhas raízes estão aqui.

        Ela se sentou junto de mim e pegou-me a mão.

        — Meu pai conheceu seu pai, Dax. Disse que era realmente um grande homem.

        — Meu pai, — disse eu e parei. Como era que eu podia traduzir em palavras a bondade, a cordura, o amor? — Meu pai era um homem de verdade. Tinha sempre uma desculpa para todos, menos para si mesmo.

        — Você é assim também...

        Olhei um momento para Beatriz e levantei-me.

        — Está na hora de dormir. Gente do campo tem de se levantar com o sol.

        Beatriz se levantou hesitante. Percebi-lhe o nervosismo e sorri. Era ainda mais criança do que ela mesma julgava.

        — Você vai dormir no quarto que foi de minha irmã. Gato Gordo preparou-o para você.

        Eu estava estendido na cama com a luz apagada e ouvia-lhe a voz a cantarolar alguma coisa e o barulho da água do jarro. Dessa, vez, o som era real e não sonho. Escutei atentamente. Gato Gordo tinha razão. Não havia outro som na casa. Os fantasmas estavam todos em paz.

        Sorri, virei-me para o lado e fechei os olhos. Pouco depois, ela parou de cantar e eu adormeci. De repente, acordei porque havia alguém no meu quarto. Rolei na cama e senti na mão a plenitude firme de um seio. O bico estava alto e duro sob o pano fino da camisola.

        A voz dela era bem baixa.

        — Avisaram-me a seu respeito. Ninguém o avisou a respeito de moças como eu? Não vim aqui para ficar sozinha.

        O calor que vinha dela correu pelo meu braço e inflamou-me. Senti os músculos retesarem-se. Puxei-a de encontro a mim e beijei-a tão violentamente que ela deu um grito. Era a primeira vez para ela e de certo modo para mim também. Melhor do que jamais fora, melhor do que eu jamais sonhara que pudesse ser.

        Foi a única vez em que qualquer mulher me havia gritado no meio da dor, da agonia e do prazer da iniciação: “Dê-me seu filho, meu querido! Encha-me de seus filhos!”

 

        Acordei com os primeiros raios de sol que entraram pela janela. Virei-me lentamente, prendendo a respiração para não acordar Beatriz. Estava um pouco de lado, com o lençol fino entre as pernas. Os belos cabelos pretos estavam espalhados sobre a alvura do travesseiro. Os olhos estavam -fechados e a boca se encurvava de leve num sorriso secreto do seu sono.

        Olhei-lhe os seios firmes e cheios e as velazinhas azuis que corriam para os bicos que se erguiam do seu engaste de ameixa. Segui com os olhos a linda curva da cintura fina sobre os quadris e pela breve floresta do púbis até os vigorosos contrafortes das coxas.

        — Está-me achando bonita? — perguntou ela suavemente.

        Olhei-a, surpreso. Os seus verdes olhos sorriam para mim.

        — Não sabia que estava acordada.

        — Sou bonita?

        — Você é linda!

        Ela fechou lentamente os olhos.

        — Acho... achou que eu... que eu fui bem?

        — Você foi admirável — disse eu. E tinha sido mesmo.

        — A princípio, tive medo. Não por mim, mas por você. Tantas coisas podiam não dar certo. Tinham-me contado tantas coisas. Você sabe como é. Que podia doer muito, que uma mulher podia estragar tudo para o marido. E eu queria ser perfeita para você. Queria que tudo corresse bem.

        — E correu.

        Beatriz abriu os olhos e me encarou.

        — E você foi sincero? No que me disse esta noite? — Ao fim de um instante, acrescentou rapidamente. — Não, não responda nada. Não é justo o que estou fazendo. Não quero que você tenha de mentir para mim.

        — Não costumo responder a essas perguntas pessoais, — disse eu, rindo. — Mas a esta gostaria de responder.

        Os olhos dela estavam fitos em mim.

        — Fui sincero no que disse esta noite. Amo você.

        Beatriz sorriu e tornou a fechar os olhos.

        — E eu amo você, — disse ela, estendendo a mão e tocando em mim. Com os olhos ainda fechados, curvou-se e me beijou.

        Abriu então os olhos e ergueu-os para mim, com os lábios ainda em mim.

        — É tão belo, tão rijo, tão forte, — murmurou. — Nunca sonhei que seria sempre assim.

        Comecei a rir. Mas preferia matar-me a desiludi-la.

        — Pronto, — disse eu, plantando a última flor e ajeitando a terra em torno. Levantei-me e olhei para Beatriz.

        Estava encostada ao gradil e, nesse momento, aproximou-se e beijou-me.

        — Da próxima vez, eu o ajudarei. Desta vez, compreendi que você queria fazer tudo sozinho.

        — Eu já devia ter feito isso há muito tempo.

        — Como, se você estava fora?

        Ajoelhou-se junto à sepultura de minha irmã.

        — Tão mocinha, murmurou suavemente. — Treze anos apenas. Como foi que ela morreu?

        — Os bandoleros desceram das montanhas e mataram-na. A ela, a minha mãe e a La Perla, nossa cozinheira.

        — E seu pai? Não estava em casa?

        — Não. Tinha ido a uma aldeia a uns quinze quilômetros daqui.

        — E você.

        — Eu estava escondido na adega atrás de uns caixões para onde minha irmã me tinha empurrado.

        — Então viu.

        — Vi tudo. E nada podia fazer. Quando afinal me descobriram, fugi para a estrada. Felizmente, meu pai estava voltando para a hacienda com o general e os seus soldados.

        — O general?

        — Sim, o Presidente. Mas isso foi antes que ele subisse ao poder.

        Beatriz levantou-se e eu vi lágrimas nos seus olhos.

        — Pobre Dax! Que pavor você deve ter sentido!

        — De certo modo, não foi tão ruim assim. Eu era muito garoto para compreender bem o que havia acontecido. Com meu pai, foi diferente. Depois disso, ele nunca mais foi o mesmo. Continuou a viver, a trabalhar, a cuidar de mim. Mas alguma coisa havia desaparecido da vida dele para sempre.

        — Algum dia, Dax, esta casa ficará de novo cheia com o barulho das crianças. De seus filhos. E então as recordações já não serão tão amargas.

        Ouvi passos atrás de mim. Era Gato Gordo.

        — Já passa de uma hora, — disse ele, — Martinez ainda não chegou.

        — Deve ter-se atrasado por algum motivo. Temos comida para o almoço?

        — Temos, se não se incomodarem de comer o mesmo que comeram de manhã.

        Beatriz sorriu e eu ri.

        — Não nos incomodamos. Gostamos mesmo de tortilhas.

        Ele voltou para a casa e eu apanhei as ferramentas — a pá, a enxada e o ancinho — levando-as ao ombro.

        — Pode levar o rifle, Beatriz?

        — Posso, — disse ela, pegando a arma com o cano voltado para ela.

        — Assim não, — disse eu, corrigindo a posição. — O cano tem de ficar sempre apontado para longe da pessoa, de preferência para o chão.

        — Não gosto de armas. Não posso gostar. Não sei para que Você precisa disto aqui. Não há uma só pessoa por estas redondezas.

        — Está vendo aquele capinzal, Beatriz? Cem pessoas podiam esconder-se ali e nós só saberíamos quando nos atacassem.

        — E se estivessem ali, que poderiam ganhar se nos atacassem?

        — Que foi que eles ganharam atacando minha mãe e minha irmã?

        Beatriz não respondeu.

        — A única desculpa de que precisam são as armas. As armas dão um sentimento de força e eles as estão recebendo cada vez mais.

        — Alguns deles precisam de armas para defender-se.

        — Contra quê? Contra quem?

        — Contra os soldados terroristas do governo.

        — Você não conhece os soldados como eu conheço, Beatriz. Não conheço um que goste mesmo de lutar. São perfeitamente felizes se ficarem sempre bem alojados nos seus quartéis e não tiverem de sair e correr o risco de morrer.

        Tínhamos chegado à casa. Coloquei as ferramentas no chão e tirei-lhe o rifle das mãos.

        — Não, só querem as armas para fazer guerra. Se pudéssemos interromper a remessa das armas, talvez houvesse chance de impedir a carnificina que vai haver. Mas talvez já seja tarde demais.

        Gato Gordo estava à nossa espera na galeria. Ficou em silêncio até Beatriz subir para lavar-se. Fez-me então um gesto.

        — Veja, — disse, entregando-me um binóculo. Apontou na direção da cabana de Martinez.

        Olhei pelo binóculo e examinei o horizonte.

        — Não estou vendo nada.

        — No céu, acima do lugar onde está a casa.

        Tomei a olhar e vi-os. Três urubus voavam deixando-se flutuar nas correntes de ar.

        — E daí? Deve haver alguma carniça de animal morto no campo. Você até parece uma mulher velha.

        — Não estou gostando disso, Dax.

        Já o conhecia o tempo suficiente para confiar nas intuições dele. Em muitas coisas era como um animal da floresta. Podia sentir o perigo antes que acontecesse.

        — Está bem, Gato Gordo. Iremos até lá depois do almoço. OK?

 

        — Não queria mais sair daqui, — disse Beatriz enquanto olhávamos Gato Gordo arrumar tudo no carro. — É tudo tão calmo, tão sossegado, tão belo. Prometa que voltaremos um dia, Dax!

        — Voltaremos, sim.

        Mas isso tinha sido antes de irmos à casa de Martinez e de encontrarmos o que encontramos. Agora, ela tremia ao meu lado no carro e nós corríamos dentro da noite de volta à cidade. Estaria pensando ainda em voltar à hacienda?

        Olhei-a por um momento. Estava embrulhada numa manta para proteger-se do frio da noite, com os olhos abertos para a frente. Em que estaria pensando, que estaria sentindo? Estaria principalmente arrependida de ter ido procurar-me? Mas         ela não falava e eu não quis perturbá-la. Já chegava tudo por que ela havia passado naquele dia.

        Eram quase quatro horas da madrugada quando afinal parei o carro diante da casa dela. Levei-a até à porta.

        — Tenha cuidado, sim? — disse-me ela.

        Eu sabia que ela queria perguntar-me alguma coisa, mas mudara de ideia.

        — Fique descansada que terei cuidado. Amo você demais para não ter.

        De repente, ela me abraçou desesperadamente e começou a soluçar.

        — Dax, Dax! Nada mais faz sentido para mim. Não sei mais o que pensar.

        — Você fez bem. É preciso fazer parar a remessa de armas. E ninguém vai saber de nada.

        Ela me olhou e pouco a pouco as lágrimas cessaram.

        — Acredito em você. Talvez seja porque sou uma mulher, talvez seja porque o ame, mas acredito em você.

        Beijei-a.

        — Agora vá dormir que você deve estar exausta.

        — Esqueci-me de agradecer-lhe, Dax.

        — Agradecer-me o quê?

        — O que você fez por meu tio. Ele me contou.

        — Seu tio foi muito imprudente. Poderia tê-la matado. E não podia deixar de saber que seria preso.

        — Você não compreende. Ele tem verdadeira adoração por meu pai e desde que meu pai não       está aqui, ele acha que       tem o dever de proteger-me. A verdade é que quase sempre eu é que tenho de protegê-lo.

        — Veja então que ele não se meta em novas dificuldades.

        — A anistia, Dax? Desta vez não é um truque?

        — Não, não é um truque.

        Beatriz olhou-me e deu-me um beijo.

        — Boa noite.

 

        O porão do navio estava escuro e impregnado do cheiro pesado do óleo combustível nos tanques.

        — Não há luz aqui?

        O comandante fez um gesto com a lanterna. Um marinheiro ligou um interruptor e duas lâmpadas se acenderam com uma luz amarelada. O pequeno porão estava repleto de caixões pesados. Voltei-me para o Tenente Giraldo.

        — Parece que é isso.

        — Abram um dos caixões — ordenou Giraldo.

        Dois soldados começaram a abrir um dos caixões com os seus machetes. Olhei para o comandante. Estava impassível.

        — Armas! — exclamou o soldado com uma voz estridente que ressoou no porão de aço.

        A expressão do comandante não se modificou. Olhei para o caixão aberto. Os fuzis automáticos brilhavam sob a sua película protetora de óleo. Peguei um deles e examinei-o. As marcas eram miúdas, mas claramente gravadas. Não tinham feito qualquer tentativa de disfarçá-las. KUPPEN FARBEN GESELLSCHAFT ddr. Eu sabia o que significavam as pequenas letras. Alemanha Oriental. A velha fábrica de armamentos da Zona Russa. Haviam conservado o nome porque ainda era respeitado em alguns pontos do mundo. Quem ia saber que a companhia estava sob direção diferente e nada mais tinha com a que funcionava no Ocidente e abandonara a produção de armamentos?

        Joguei o fuzil para um dos soldados e disse:

        — Abram os outros caixões.

        Virei-me para o comandante.

        — Tem o manifesto de carga disto aqui?

        — É claro. Fazem parte de um carregamento para a nossa próxima escala.

        — Posso ver o manifesto?

        Pela primeira vez, houve uma alteração na fisionomia do comandante. Olhou rapidamente para o guarda da alfândega que estava em silêncio ao lado dele.

        — Não está comigo.

        — Com quem está então, Comandante?

        Ele não respondeu.

        — Ora, Comandante, não pode deixar de estar com alguém.

        Ele pareceu responder com dificuldade.

        — Posso ter juntado a outras faturas por engano.

        — E as faturas estão com a alfândega?

        Ele sacudiu a cabeça relutantemente.

        Virei-me para o guarda da alfândega.

        — Onde estão as faturas?

        — Não, vi, não, — disse o homem, gaguejando. — Não temos permissão de conferir essas faturas. Esse serviço é feito pessoalmente pelo Inspetor.

        Virei-me para Giraldo.

        — Deixe metade dos seus homens aqui. Pegue o resto e venha comigo.

        — Sí, Excelência!

        Vi pela primeira vez respeito por mim nos olhos do tenente. Não tinha havido tal respeito quando chegara naquele dia às seis da manhã para chamá-lo no quartel. Dissera-me que não tinha autorização para uma diligência assim e que o seu único dever era proteger-me.

        — Estarão então cumprindo o seu dever, Tenente. Tem de acompanhar-me para a minha proteção.

        — Terei de comunicar o fato aos meus superiores.

        — Não vai comunicar nada a ninguém! As instruções que recebeu foram muito claras. Quer que eu diga ao Presidente que as desrespeitou? Que passei dois dias sozinhos nas montanhas e que voltei para encontrá-lo no quartel sem fazer nada?

        Giraldo pensou um momento, mas não levou muito para descobrir qual dos dois males era o menor. Ainda que a sua decisão de acompanhar-me pudesse criar-lhe dificuldades, não perderia o posto. Se fosse sabido que ele me deixara ir sozinho para as montanhas, devia dar-se por muito contente se o Presidente se limitasse a destituí-lo.

        Em vista disso, convocara os seus homens, arrumando-os em dois jipes que seguiram o meu carro até ao porto. O navio já estava atracado ao cais. Olhei para o emblema vermelho e verde das linhas Campion. Não podia deixar de ser um dos navios de Marcel, pensei enquanto subia a prancha.

        Depois de encontrarmos as armas, a maneira de agir de Giraldo era outra. Deu as suas ordens sem a menor hesitação. Virei-me para o comandante e o guarda da alfândega.

        — Querem ambos vir comigo ao escritório do Inspetor?

        Sem esperar resposta, subi a escada de aço para o convés.

        Depois do ar confinado do porão, o ar quente do mar era uma delícia. Respirei-o profundamente.

        Gato Gordo veio correndo pelo convés.

        — O Presidente acaba de chegar.

        — Está aqui?

        — Sim, no cais. À sua espera.

        Nada disse. Não era preciso. Gato Gordo sabia em que eu estava pensando. Eu nada podia fazer em qualquer ponto da cidade que o Presidente não soubesse.

        Fui com Gato Gordo até à amurada e olhei. O Presidente estava de pé, ao lado da grande limusina preta, cercado de soldados. Viu-me e deu adeus. Retribuí o cumprimento e desci a prancha. Os soldados se afastaram para deixar-me passar.

        — Que foi que encontrou?

        — Justamente o que esperava encontrar. Armas. Armas comunistas. Da mesma espécie das que foram capturadas dos bandoleros nas montanhas.

        O Presidente olhou-me por um momento e chamou:

        — Hoyos!

        O polícia saiu prontamente de trás do carro. Era a primeira vez que o via fardado. A meia lua de ouro de um coronel do Exército brilhava-lhe nos ombros.

        — Pronto, Excelência!

        — Mande um destacamento para bordo para tomar posse das armas.

        — Não é preciso, Presidente, — disse eu. — Os homens do Tenente Giraldo já as estão guardando.

        — Ah, trouxe Giraldo? Muito bem!

        — Vou agora mesmo procurar o Inspetor da Alfândega. Disseram-me que as faturas da carga estão com ele.

        — Irei com você, — disse o Presidente. — Parece que meu primo vai ter muito que explicar.

        O comandante e o guarda aduaneiro foram na frente quando nos dirigimos pelo cais para o edifício da Alfândega.

        — Como foi que soube das armas? — perguntou o Presidente confidencialmente, pegando-me pelo braço. — Foi por intermédio da moça?

        — Não. Quem me disse foi Martinez, o velho que vive perto da minha hacienda. Os bandoleros torturaram-no e o deixaram por morto porque era meu amigo. Ele ouviu as conversas deles e me disse antes de morrer.

        — Martinez? O homem dos bichos?

        O Presidente sempre conseguia surpreender-me. Já devia haver uns trinta anos que não via Martinez, mas se lembrara dele imediatamente.

        — Ele mesmo.

        — Não fazia ideia de que ainda estivesse vivo. Nós costumávamos apanhar galinhas com ele. Devia estar muito velho.

        Chegamos à porta do armazém da alfândega e Hoyos se apressou em abri-la. Dois funcionários sentados às suas mesas levantaram a cabeça, assustados.

        — Meu primo está aí?

        — Não... não sei, Excelência, — disse um deles, levantando-se — Vou ver!

        — Eu mesmo vou ver!

        O funcionário deixou-se cair na cadeira enquanto o Presidente passava e abria a porta do gabinete do Inspetor. Esse se levantou imediatamente e ficou perfilado atrás da sua mesa.

        — Há armas no navio que está ali ancorado! — gritou o Presidente.

        O Inspetor ficou imediatamente muito pálido.

        — Eu não sabia, Excelência! Pode crer!

        — Mentiroso! Traidor! As faturas estão aqui no seu gabinete. Quero vê-las!

        Hoyos entrou no gabinete no momento em que o inspetor abria desesperadamente a gaveta. A gaveta emperrou um pouco, mas ele afinal conseguiu abri-la e meteu a mão lá dentro. Houve um brilho de metal e, no mesmo instante, um tiro soou bem perto de mim. O impacto da bala jogou o inspetor de encontro à parede. Em seguida, o corpo já sem vida desabou no chão.

        Voltei-me para Hoyos. Tinha ainda uma pistola fumegante na mão e murmurou, apertando os lábios finos.

        — Vi um revólver.

        Fui até à mesa, abri mais a gaveta e tirei os papéis que estavam presos por um grande grampo de metal.

        — Era este o revólver? — perguntei.

        Vi os olhares trocados entre Hoyos e o Presidente e compreendi que não importava o que o inspetor tivesse feito. Fora condenado à morte antes de chegarmos ao gabinete. Folheei rapidamente os papéis, mas não vi nem sombra das faturas.

        Havia naquele caso das armas mais coisas do que queriam que eu descobrisse.

 

        — Meu primo — exclamou o Presidente. — Um homem do meu sangue!

        Estava sentado à mesa no seu gabinete do palácio. Apesar do crepe preto que trazia na manga não parecia mais pesaroso do que se mostrara no dia anterior na alfândega.

        — Você tinha razão, — continuou ele. — As armas chegavam nos navios. Não me era possível acreditar nisso. Tinha dado a administração do porto a meu primo. Se não confiasse nele, em quem iria confiar?

        Nada eu podia responder, mas de uma coisa sabia: não havia ninguém em quem ele realmente confiasse senão em si mesmo.

        — Coloquei o porto agora sob a jurisdição de Hoyos. Tudo será controlado agora pelo Exército.

        — E o pessoal da alfândega?

        — Estão todos na cadeia. Estavam mancomunados com ele.

        — Tem provas disso?

        — Não encontramos as armas? Para que mais provas? Para que aquelas armas fossem desembarcadas, todos tinham de saber.

        — E o comandante?

        — Nada fizemos com ele. Acha que iríamos deixá-lo comunicar-se com a Embaixada Americana e criar um caso justamente quando estamos querendo conseguir vinte milhões de dólares dos Estados Unidos?

        Não deixava de haver alguma lógica nisso. Era uma Ocasião em que não nos podíamos permitir qualquer embaraço. Levantei-me e fui até à janela.

        O navio ainda estava no porto. Devia sair com a maré da tarde. Se não fosse um navio da Campion com a nossa bandeira, poderíamos fechar o porto a todos os navios da frota. Mas como poderíamos fechar o porto a barcos que navegavam com a nossa bandeira? As armas continuariam a chegar. Era preciso descobrir um novo meio de sustá-las.

        O Presidente veio para junto de mim na janela.

        — As coisas nunca são simples.

        Voltei-me para olhá-lo.

        — Quando eu era moço, pensava que sabia o meio de resolver tudo. Mas quando vim para este palácio, compreendi que não havia solução pronta e fácil para coisa alguma. Os menores casos costumam transformar-se em problemas insolúveis. E nunca deixa de haver quem faça pressão e dê conselhos. Faça isso. Faça aquilo. Primeiro de um jeito, depois do outro, até que há ocasiões em que se deseja esquecer o que se disse por pura ignorância. Ninguém sabe de nada até chegar a uma posição solitária e precária de poder, quando então compreende o pouco que realmente sabe.

        — Vou falar com Campion quando chegar a Nova York. Talvez ele saiba um meio de impedir que as armas sejam embarcadas nos nossos navios.

        — Pode fazer isso, mas não adiantará nada. Como pode Campion fiscalizar pessoalmente toda a carga que os navios dele recebem? Teria de inspecionar todos os porões, todos os volumes. E se fizesse isso, quanto tempo acha que ficaria em atividade?

        — De qualquer maneira conversarei com ele?

        — Estou começando a achar que só há uma maneira de resolver o caso. É eu mesmo ir à frente de um exército para as montanhas e acabar de uma vez por todas com os malditos bandoleros. Matá-los todos!

        — Não é essa a solução, Presidente. Teria de matar as mulheres e as crianças também e isso não seria possível. Ainda que fosse o único jeito, o mundo todo nos olharia com horror!

        — Sei disso. Os americanos nos acusariam de ser uma ditadura e os soviéticos diriam que somos um prolongamento do imperialismo americano. Não é fácil. Tenho de ficar aqui de braços cruzados enquanto todos os dias mais algumas pessoas são assassinadas ou aliciadas. E eu só posso defender-me e não atacar. É uma guerra sem solução.

        — A anistia...

        Ele me olhou.

        — Ora, a anistia! A anistia foi um fracasso! Já houve um só bandolero ou revolucionário que se apresentasse? Não e não haverá! Fique certo disso!

        — A anistia foi anunciada há apenas duas semanas, — disse eu. — Ainda estão deliberando.

        O Presidente voltou para a sua mesa e disse secamente:

        — Se quer continuar a iludir-se, o problema é seu. Eu prefiro ser realista. Veja, por exemplo, aquele miserável a que você permitiu salvar a vida. Já teve alguma notícia dele? Ou do irmão, aquele covarde traidor? Ou até da moça?

        Não respondi. Não podia dizer ao Presidente que nem teria sabido das armas se não fosse Beatriz. Para mim, isso era uma prova de que a anistia seria ao menos examinada e debatida.

        — Pretende por acaso revogar a anistia?! — perguntei.

        — Não é preciso. Não há necessidade de revogar uma oferta feita publicamente, mas que se sabe particularmente que nunca será aceita. Ao menos, desta vez o fracasso será atribuído a eles.

        Mudou então de assunto abruptamente.

        — E a moça? Que é que pretende fazer em relação a ela?

        — Não sei. Ainda não pensei nisso.

        — Convém pensar então. Tenho a impressão de que você está muito mudado desde que a conheceu.

        — Como assim?

        — Você já está no Corteguay há quase um mês e ainda não houve o menor escândalo. Ainda não recebi uma só queixa de um pai ou de um marido!

        Como sempre, as cortinas estavam fechadas quando entrei no quarto.

        — Amparo, vou viajar amanhã. Vim despedir-me de você.

        — É muita bondade sua. Não era preciso dar-se a esse incômodo.

        — Vim por minha vontade, Amparo. Tenho pensado muito, em você e na possibilidade de fazer alguma coisa para ajudá-la.

        — Para ajudar-me? Por quê?

        — Por muitas razões, algumas das quais você conhece. Mas principalmente por que não gosto de vê-la assim.

        A voz de Amparo era calma e distante como se estivesse falando de outra pessoa.

        — Está falando nos entorpecentes?

        — Sim, há lugares onde você poderia ser tratada e curada.

        — De que é que você quer curar-me, Dax? Da única paz que já conheci?

        — Bem sabe, Amparo, que essa paz não é verdadeira. É apenas uma ilusão.

        — Queria então que eu voltasse ao que era dantes? Torturando-me, vivendo aterrorizada, quase louca por querer coisas que nunca poderia ter? Não, pouco me importa que seja uma ilusão. Deixe-me ficar com ela, Dax.

        — Mas você só está vivendo pela metade.

        — Melhor é viver pela metade do que estar morta de todo.

        — Pegou uma carta em cima da mesa. — Veja isto, Dax. Sabe o que é?

        Sacudi a cabeça.

        — É uma carta de pêsames que passei dois dias tentando escrever sem conseguir. Queria explicar à família de meu primo como sinto que ele tivesse de morrer, sacrificado às ambições de meu pai. Sabe quantas vezes já tive de escrever cartas assim às famílias de homens que meu pai matou? Já perdi até a conta.

        — Foi um acidente. Seu pai não teve culpa.

        — Não foi acidente. O único acidente foi você haver descoberto alguma coisa que não era para você saber. No momento em que isso aconteceu, meu primo foi condenado. Afinal, não pude escrever a carta e na noite passada fui à casa dele. Vi a viúva já de luto e os filhos atordoados sem compreender que nunca mais veriam o pai. Não tive coragem de entrar e voltei da porta.

        Amparo amassou com raiva o papel e jogou-o na cesta. Acendeu um cigarro com os dedos trêmulos. Depois de alguns instantes, o tremor cessou e ela me falou com voz mais calma.

        — Como pode ser tão cego, Dax? Todas as soluções que você procura estão nas suas mãos. Mate-o, Dax, e tudo isso acabará. Estou começando a pensar que até ele está esperando que você faça isso. No fundo, é o que ele deseja.

        Naquela noite, fui à casa de Beatriz e a empregada me disse que ela e o tio haviam viajado. Não, não sabia para onde tinham ido.

        — Só na manhã seguinte, quando passei pelo gabinete do Presidente para despedir-me, foi que ele me informou que os dois haviam partido no avião da véspera para Miami.

 

        Esta visita é rigorosamente particular, — disse Jeremy quando saímos do carro. — Se alguém perguntar, o senador negará categoricamente que tenha falado com você.

        — Compreendo, — disse eu. — Ao menos, fico satisfeito de que alguém queira falar comigo.

        E estava dizendo a verdade. A despeito do que George Baldwin pensara, não tinha havido a menor reação oficial em Washington.

        Já havia três semanas. Então, a pressão começara a crescer dentro de mim. Não eram boas as notícias do Corteguay. Uma aldeia nas montanhas tinha sido ocupada pelos bandoleros. Fora preciso quase meia divisão do Exército para desalojá-los da aldeia e, quando saíram, não deixaram nada. Toda a população estava morta. Cinquenta e sete pessoas — homens, mulheres e crianças.

        Era um fato muito importante para que o Presidente conseguisse silenciá-lo e todos os jornais o publicaram. E por mais objetivo que fosse o tratamento da notícia, a impressão que se tinha era de que o governo era culpado e os bandoleros assumiam ares de figuras românticas, graças ao passado extremamente deformado dos Estados Unidos no Oeste. Os jornais comunistas e europeus eram muito mais diretos. Acusavam abertamente o Presidente de haver mandado trucidar a população como um ato de vingança. Alguns países do bloco vermelho já falavam até em debater o assunto nas Nações Unidas.

        Não fizeram isso, é claro, mas os comentários e as ameaças não nos fizeram bem. Era moda na América considerar o Presidente como outro Perón, Batista ou Trujillo e os políticos americanos, sempre sensíveis às tendências dos seus eleitores, não queriam saber de quaisquer relações conosco.

        Foi depois de receber um telegrama cifrado do Presidente que resolvi forçar a questão. Os bandoleros tinham, na realidade, resistido ao Exército durante três dias com morteiros e fogo de artilharia e as nossas baixas eram maiores do que se havia noticiado. Parecia provável que o inimigo se transferiria para outra aldeia e que lá recomeçaria a mesma coisa. No fim, o nosso Exército não poderia mais desalojá-los.

        Dessa vez, eu eslava disposto a aceitar sem discussão o que o velho dissesse. Eu tinha visto a destruição selvagem que os bandoleros haviam feito na casa de Martinez. Telefonei para Jeremy em Washington e li-lhe o telegrama do Presidente.

        Quando acabei, ele me perguntou depois de um momento de silêncio:

        — Já mostrou isso a alguém do governo americano?

        — Mostrar a quem, Jeremy? Aos olhos de todos eles, já estamos condenados. Baldwin deve ter mandado algum relatório, mas ainda não ouvi falar nisso.

        — Escute, você se lembra da velha casa no Cape?

        — É claro. — No meu primeiro verão nos Estados Unidos, havia passado um fim-de-semana lá. — Não sabia que ainda a tinham.

        — Ainda. Vou até lá de vez em quando sempre que dá jeito. Estava pretendendo ir nesse fim-de-semana. Se pode suportar o sossego, quer ir comigo?

        — Com prazer, — disse eu, sabendo que Jeremy não me convidaria se não tivesse alguma coisa em vista.

        — Muito bem. Vou pegá-lo no         seu escritório e iremos         de carro.

        — Melhor do que isso. Iremos de avião.

        — Não sabia que você tinha um avião.

        — Você não tem lido os jornais. Sue Ann foi muito generosa no acordo que fez comigo.

        Jeremy só me disse que íamos falar com o senador quando chegamos lá. O Cape estava quase deserto naquela época do ano e foi o próprio senador quem nos abriu a porta. Estava à vontade, de suéter, slacks e sandálias. Aparentava até menos do que os trinta e cinco anos que tinha.

        — Alô, — disse ele, estendendo-me a mão. — Há muito que tenho vontade de conhecê-lo. Nunca tive oportunidade de agradecer-lhe o que fez por meu irmão.

        Olhei para Jeremy e vi a fisionomia dele alterar-se. De certo modo, ainda se considerava culpado da morte do irmão. Achava que devia ter tomado ainda mais precauções do que tomara. Eu não sabia onde nem como.

        — Fiz apenas o que podia, — disse.

        Fomos com o senador para um pequeno escritório. A casa estava em silêncio. Não parecia haver mais ninguém lá.

        — Querem beber? — perguntou.

        — Para mim não, obrigado, — disse eu.

        Depois de preparar scotch com água para Jeremy e para si, sentou-se diante de mim e disse:

        — Jeremy já lhe deve ter dito que esta visita é inteiramente sigilosa. Não sei o que posso fazer para ajudá-lo. Talvez nada possa. Mas gostaria de ouvi-lo como a um amigo.

        — Conte-lhe tudo, — disse-me Jeremy.

        E foi o que eu fiz. Desde o começo. Sem omitir coisa alguma. Fiz um resumo da história do Corteguay e disse o que tinha sido a vida ali até o Presidente descer das montanhas e tomar o poder. Depois, falei no que havia acontecido no Corteguay daí por diante. Escutou em silêncio e com atenção, interrompendo-me apenas às vezes para esclarecer um ponto que não havia percebido bem. Quando acabei, quase duas horas haviam passado.

        — Acho que falei demais.

        — De modo algum, — disse o senador. — Interessou-me muito.

        — Agora, aceito um uísque.

        Ele se levantou e preparou bebida para todos nós. Em seguida, disse-me:

        — Disse que sempre houve bandoleros nas montanhas, mas que eles agora são apoiados pelos comunistas. Tem certeza disso? Todo o mundo que nos vem pedir ajuda diz isso.

        — Vi as armas. Tive-as nas mãos. Foram feitas na fábrica Von Kuppen na Alemanha Oriental.

        — Já ouvi falar nisso, — disse o senador. — Aparentemente, estão produzindo máquinas agrícolas. — Depois, botou na boca um charuto que não acendeu e disse: — Bem sabe que o seu Presidente está bem longe de ser perfeito. Nunca passou também de um bandido.

        — Qual é o Presidente perfeito, Senador? Por mais honesto e sincero que o daqui seja, o máximo que se pode dizer dele é que foi um bom general.

        Houve uma sombra de um sorriso no rosto do senador. Embora não fizesse comentário, havia gostado do que eu dissera. Acrescentei:

        — Uma coisa eu posso dizer. Quando o Presidente desceu das montanhas representava apenas o povo do Corteguay. Não tinha qualquer apoio do estrangeiro, nem mesmo dos Estados Unidos. Os americanos tinham-se comprometido muito com o governo anterior e nada fizeram por ele. O que ele conseguiu foi por si mesmo com ajuda apenas dos corteguayos.

        — Acha que ele representa a vontade da maioria do seu povo atualmente?

        — Não sei. E duvido de que qualquer dos meus compatriotas pudesse sinceramente dar-lhe uma resposta. Prometeu eleições para que o povo decida, mas uma eleição com um candidato único seria uma farsa. E até agora não se apresentou nenhum outro candidato.

        — Já ouviu falar num homem chamado Guayanos? — perguntou o senador.

        — Tenho ouvido falar muito no Dr. Guayanos, mas não o conheço pessoalmente. — Vi Jeremy olhar-me pelo canto dos olhos e acrescentei, sorrindo: — Mas conheço a filha dele.

        — Não conheço o Dr. Guayanos nem a filha, — disse o senador, — mas há vários colegas meus que parecem acreditar no que ele lhes disse. Segundo o Dr. Guayanos, a oferta de anistia e a promessa de eleições não passam de um truque para fazê-los voltar ao país, onde seriam imediatamente presos ou assassinados.

        Pela primeira vez, perdi a calma.

        — Cinquenta e sete pessoas, homens, mulheres e crianças, morreram há menos de duas semanas numa aldeia de minha terra. Talvez os bandoleros as houvessem matado, talvez fossem os soldados. Isso depende, em grande parte, do jornal que se ler. Mas, para mim, não importa saber quem foi que matou essa gente. O importante é que estão mortos e os responsáveis por essas mortes são os que estão ajudando os bandoleros com armas e com dinheiro. Os soldados não receberam ordem de atacar uma aldeia de mulheres e crianças. Tiveram ordem de desalojar de lá os bandoleros. Há muito tempo, minha terra é governada por homens que subiram ao poder em consequência de carnificinas. Se o Dr. Guayanos está tão interessado quando diz, apresente-se como candidato à presidência. O mundo descobrirá então se é um truque ou não. Mas creio que no fundo Guayanos não é melhor do que os outros. É muito mais seguro arrebatar o poder do que se arriscar a uma recusa do eleitorado.

        — Ou de perder a vida, — disse o senador.

        — Por que especialmente a vida dele? Será mais preciosa do que qualquer outra?

        O senador me olhou pensativamente. Por fim, disse com voz delicada:

        — O mundo está cheio de covardes que pedem aos heróis que morram por eles.

        Alguns minutos depois, levantei-me.

        — Peço desculpas por ter-lhe tomado o tempo mais do que pretendia. Obrigado por ter-me permitido isso.

        — Quem deve agradecer-lhe sou eu, — disse o senador, levantando-se. — Aprendi muito. Mas, como disse, não sei o que poderei fazer.

        — Ouviu-me e isso representa muito. É mais do que qualquer pessoa no seu governo quis até agora fazer.

        Fomos até à porta.

        — Gostaria de vê-lo de novo, — disse o Senador. — Socialmente, para que pudéssemos ser amigos.

        — Também gostaria.

        — Aceitaria um convite de minha irmã para um jantar se o recebesse?

        — Seria um prazer.

        — Ótimo, — disse o senador sorrindo como um garoto que venha de realizar uma façanha. — Ela seria capaz de matar-me se recusasse. Está ansiosa por conhecê-lo.

 

        Foi na segunda-feira à noite, depois que voltei do Cape. Jeremy tinha voltado para Washington, onde a sua agência de notícias o havia colocado e eu passara um dia cheio de frustrações na ONU trabalhando em pequenas comissões. Já passava das onze quando me levantei da minha mesa no consulado. Estava inquieto e sabia que não iria dormir se me deitasse. Lembrei-me de repente de que não havia jantado.

        O próprio John Perona levantou a corda de veludo no El Morocco para que eu passasse. Fez cara feia quando me viu.

        — Você não me parece feliz, — disse-lhe eu, sorrindo.

        — Quem poderia ser feliz num lugar destes? Problemas, só problemas. Estava agora mesmo dizendo a meu filho que esperava que você não viesse aqui hoje e olhe aí você.

        — Por que eu especialmente?

        — Suas três ex-esposas estão aí e três ou quatro de suas antigas paixões.

        — Gostaria de que eu pedisse a elas que fossem para outro lugar?

        Ele me olhou por um momento sem saber se eu estava brincando ou não. Depois, sacudiu a cabeça.

        — Não, é só esta noite. Parece que todo o mundo de Nova York está aqui. Talvez       do mundo inteiro.

        Segui-o através da sala até uma mesa vazia encostada à parede. Ele não havia exagerado muito. Aly Khan       estava numa mesa com um grupo. Amos Abidijan, ex-sogro de Marcel, em outra. Aristóteles e Tina Onassis estavam na sua mesa habitual com Rubirosa e sua esposa francesa. A colônia do cinema era representada por Sam Spiegel e Darryl Zanuck, em mesas separadas, e em outra o famoso advogado internacional Paul Gitlin pontificava sobre os seus dois assuntos favoritos, o seu peso e importantes temas literários como as taxas de royalties e as vendas de livros à indústria cinematográfica. Zelda, sua paciente esposa, escutava-o à espera de uma oportunidade de dizer alguma coisa de vez em quando.

        Sentei-me e antes que pedisse alguma coisa um garçom colocou uma garrafa de champanha na minha mesa, abriu-a e encheu uma taça. Olhei para Perona.

        — Vai beber champanha esta noite, — disse ele. — Estamos tão ocupados que não podemos servir outra coisa.

        — Não é muito civilizado isso. Além do mais, estou com fome.

        — Mandarei já uma pessoa atendê-lo.

        Daí a pouco um garçom se materializou como por encanto.

        — Oui, monsieur.

        Pedi uma salada de alface com azeite, vinagre e caviar Beluga gros-grain e um bife grosso, no ponto, com batatas fritas. Recostei- me na cadeira, acendi um charuto e olhei a sala.

        Por um momento, tive vontade de mandar chamar Perona e informar-lhe que, embora ele não estivesse inteiramente errado, também não fora completamente exato. Já havia visto Caroline e Sue Ann, mas não acreditava que Amparo pudesse estar ali e realmente não estava. O garçom trouxe a minha salada e eu comecei a comer.

        De repente, ouvi uma voz diante da minha mesa.

        — Não posso acreditar no que estou vendo! As coisas estão muito mudadas! Você jantando sozinho!

        Não precisei de olhar para saber de quem era aquela voz inconfundível. Levantei-me.

        — Irma Andersen!

        — Dax, velho amigo, — disse ela, estendendo-me a mão.

        Beijei-a, ocorrendo-me no momento a dúvida de que aqueles dedos roliços tivessem algum dia conhecido a mocidade.

        — Trabalhei até tarde e só vim aqui jantar um instantinho. Quer tomar um pouco de champanha comigo?

        — E minha dieta? Não, obrigada. Mas vou sentar-me um instante com você.

        Um garçom correu para puxar-lhe a cadeira.

        — Que é que você anda fazendo? — perguntou-me Irma. — Pensei que iríamos vê-lo mais agora que voltou para Nova York.

        — Tem havido problemas no Corteguay.

        — Eu sei. Têm acontecido coisas horríveis por lá. Todos dizem que vai haver revolução.

        — As pessoas gostam de falar. Não vai haver revolução.

        — É uma pena. Se não dissessem essas coisas, poderia haver uma oportunidade de incentivar o turismo para lá. Todo o mundo anda à procura de um novo lugar para onde ir Os mesmos pontos a vida toda acabam cansando.

        Conhecia bem Irma. Ela era muito sabida para estar dizendo alguma coisa só pelo prazer de escutar a própria voz.

        — Se acha mesmo que não vai haver revolução e que dentro em pouco as coisas por lá se acalmarão, o que vocês estão precisando é de um novo programa de relações públicas.

        Já via o que ela queria.

        — Tem toda a razão. Mas quem, a não ser você, poderia encarregar-se com eficiência de uma campanha dessas? Ninguém. E você está muito ocupada.

        — Para lhe dizer a verdade, — disse ela, baixando a voz, — estou querendo alguma coisa nova. Sergei agora já está com a carreira feita e estou começando a ter mais tempo livre.

        — Magnífico! Posso telefonar-lhe amanhã? Marcaremos um encontro para conversar sobre o assunto.

        — Faça isso, sim, Dax, — disse Irma, levantando-se. — Escute, sabia que Caroline de Coyne e Sue Ann Daley estão aqui esta noite?

        — Sabia. Já as vi.

        — E Maddy Schneider e Dee Dee Lester e...

        Irma ia continuar, mas eu levantei a mão.

        — Não é preciso, Irma. Vi todas.

        — E apesar disso está jantando sozinho?

        — Não tenha pena de mim. Gosto às vezes de comer sozinho.

        Mas não fiquei sozinho por muito tempo. Dania Farkas apareceu depois do espetáculo e convidei-a a sentar-se à minha mesa. E, talvez porque eu não estivesse sozinho, as outras também vieram. Primeiro, Sue Ann que tinha curiosidade de saber se havia alguma coisa entre Dania e mim. Depois, veio Dee Dee, que não resistiu ao prazer de fazer uma cena quando Sue Ann estava presente. E, mais tarde, Caroline, seguida de Maddy Schneider, que não podia suportar ficar fora de coisa alguma.

        Percebi de repente um constrangido silêncio na mesa. Elas se entreolhavam sem saber o que tinham ido fazer. John Perona chegou correndo, acompanhado de dois garçons, cada qual com uma garrafa de champanha. Inclinou-se com um ar preocupado e me disse num cochicho que todo mundo ouviu: “Espero que não haja dificuldades”.

        De repente, ri alto. Aquilo era grande, pois eu, naquele momento, parecia mesmo o Sultão de Marrocos ou, pelo menos, o Sultão do El Morocco.

        — Não se preocupe, — disse-lhe eu. — As senhoras resolveram apenas, fazer uma reunião improvisada de ex-alunas.

        Houve risos e a tensão desapareceu da mesa. E enquanto conversávamos e ríamos, os outros no restaurante voltaram à sua ocupação normal que era falar da vida alheia.

        Eram duas da madrugada quando saí do restaurante em companhia de Dania.

        — Foi muito engraçado, — disse ela, sorrindo. — Cada uma de nós olhando para as outras e querendo saber o que cada uma estava pensando.

        — Foi divertido, — disse eu, — mas não gostaria de fazer isso todos os dias. Cansa muito.

        Ela riu.

        — Venha até ao meu apartamento. Tomará alguma coisa para acalmar-se.

        — Está bem, mas só ficarei durante alguns minutos. O dia de amanhã vai ser cheio de trabalho para mim.

        Já passava das cinco quando saí do apartamento dela e me olhei no espelho do elevador. Parecia destroçado. Tinha dois compridos arranhões no pescoço e os ouvidos ainda me doíam dos seus gemidos e gritos de prazer. Tinha sido muito mais do que eu queria.

        O porteiro me abriu a porta. Não havia um só táxi à vista e eu comecei a dirigir-me para Park Avenue, onde sempre havia táxis. Só percebi que um carro havia parado perto de mim quando ouvi a voz dela.

        — Dax.

        — Beatriz!

        Ela estava sentada junto ao motorista, com uma expressão curiosa de mágoa nos olhos verdes.

        — Nós o estamos seguindo a noite toda, — disse ela, — na esperança de encontrá-lo um momento sozinho!

 

        Uma das boas coisas de Nova York é que, seja qual for a hora do dia ou da noite, há sempre um lugar aonde se pode ir. Às cinco horas da manhã, quando se está do lado leste de Manhattan, o lugar indicado é o Reuben’s, onde se pode conseguir tudo, de uma xícara de café a uma refeição completa.

        Estava quase vazio quando entrei com Beatriz. Havia alguns retardatários deixados pela noite e os fregueses do dia ainda não haviam saído da cama. O garçom nem olhou para meu smoking. Estava habituado a isso e era perfeitamente normal àquela hora.

        — Que é que vai ser?

        — Café, — disse eu. — Muito café. Forte e simples.

        Olhei para Beatriz.

        — Também quero café.

        O garçom afastou-se. Procurei a mão dela, mas ela fingiu não ver o meu gesto.

        — Fiquei muito preocupado quando soube que você havia viajado, — disse eu. — Tenho pensado desde então todos os dias em você.

        Beatriz ainda estava com os olhos magoados.

        — Está com o pescoço arranhado e o seu colarinho está manchado de sangue.

        — Tenho de chamar a atenção do meu barbeiro. Ele anda muito descuidado.

        Beatriz não sorriu.

        — Não acho graça nenhuma.

        — Por que não me disse que ia viajar?

        Ela só respondeu depois que o garçom nos trouxe o café.

        — Você não estava muito preocupado.

        Tomei um gole do café. Estava quente e bom. Comecei a sentir-me melhor.

        — Não quero discutir, Beatriz. Além do mais, não foi para brigarmos que você resolveu procurar-me.

        Talvez não fosse muito delicado dizer-lhe isso, mas era verdade. Ela olhou para mim.

        — Meu pai não acreditou no que eu contei a ele. Diz que é tudo um truque.

        — E ele acha que é também um truque os cinquenta e sete campesinos mortos em Matanza?

        Ela não respondeu.

        Pensei no que o senador me havia dito sobre os covardes que pediam aos heróis que morressem por eles.

        — Que foi que você disse?

        Não tinha percebido que estava falando em voz alta. Repeti, acrescentando algumas palavras minhas.

        — Seu pai é como um general sentado a muitos quilômetros do campo de batalha, em segurança e conforto, certo de que o sangue derramado em consequência das suas ordens nunca lhe manchará as mãos. Se seu pai acredita mesmo que representa a vontade do povo. por que não vai enfrentar o Presidente numa eleição? Ou tem medo de ser derrotado e apontado como um charlatão?

        — Ele faria justamente isso se acreditasse que o Presidente era capaz de manter a sua palavra a respeito da anistia.

        — O Presidente cumprirá a sua palavra! Não pode deixar de fazê-lo, pois se comprometeu perante o mundo inteiro. Acha que ele poderá recuar agora?

        — Acredita mesmo nisso? — perguntou Beatriz.

        — Acredito, — disse eu, fechando-me num zangado silêncio.

        Depois de alguns minutos, Beatriz me perguntou:

        — Está disposto a encontrar-se com meu pai e conversar com ele?

        — A qualquer hora.

        — Não haveria qualquer compromisso ou condição e você iria sozinho?

        — Sim.

        — Vou falar com ele. — Levantou-se e eu já ia levantar-me também, mas ela me disse: — Não se levante. E não me acompanhe.

        — Beatriz, — disse eu, tentando tomar-lhe a mão.

        — Não. Cometi um erro. Pensei que vivêssemos no mesmo mundo. Mas numa coisa os outros tinham razão. Vejo isso agora.

        — Beatriz, eu posso explicar.

        — Não explique! — disse ela com voz trêmula. Depois, virou-se e saiu apressadamente.

        Ela saiu e alguma coisa dentro de mim doeu profundamente. Levantei-me, olhei pela janela e vi-a entrar no carro, que se afastou.

        — Mais alguma coisa? — perguntou o garçom.

        — Não.

        Só quando estava de novo na rua à luz cinzenta da manhã foi que compreendi que não lhe perguntara quando nos voltaríamos a ver.

        A voz de Marcel ao telefone era confidencial.

        — Tenho a informação que você me pediu.

        — Ótimo.

        — Sim, — disse ele, interrompendo-me. Não confiava em telefones. — Quando pode aparecer para discutir o caso?

        — Bem, tenho um jantar hoje à noite. Posso ir depois disso?

        — Muito bem. A que horas mais ou menos?

        — Meia-noite é muito tarde?.

        — Não. Vou dizer que o esperem.

        Desliguei pensativamente o telefone. Nunca havia esperado que Marcel me desse de fato a informação que eu queria a respeito das armas ou do dinheiro com que as mesmas eram pagas.

        Bateram à porta. Era Prieto, que entrou com um jornal nas mãos.

        — Já viu isso?

        Era uma pequena nota numa das páginas de dentro do Herald Tribune. Dizia:

        SOBRE O CORTEGUAY

        O Dr. José Guayanos, ex-presidente da Universidade do Corteguay que já exerceu o cargo de vice-presidente daquele país, atualmente exilado nos Estados Unidos, falará hoje à noite na Universidade de Columbia sobre o tema “Necessidade de um Governo Democrático para o Corteguay”.

 

        Já fazia mais de uma semana que eu falara com Beatriz. Aquela era a primeira notícia que eu tinha que se referia indiretamente a ela.

        — Que é que vamos fazer? — perguntou Prieto.

        — Nada.

        — Nada? — exclamou Prieto espantado. — Vai permitir que ele diga as mentiras que quiser em público?

        — Isto aqui não é o Corteguay, Prieto. Aqui todos têm         o direito de dizer o que bem entendem.

        — O Presidente não vai gostar disso. Há mais de dois anos que procuramos esse homem. Ele agora tem coragem de vir fazer abertamente as suas falsas acusações.

        — Não tem importância que o Presidente goste ou não goste.

        Prieto não podia deixar de ver que aquilo era o primeiro passo dado para verificar a sinceridade da anistia. Senti nascer em mim uma ponta de admiração por Guayanos. Falar contra o Presidente, mesmo em Nova York, exigia uma grande dose de coragem.

        — Mas... — protestou Prieto.

        — A responsabilidade é minha. Afaste-se dele! Não tome qualquer medida em relação a ele!

        — Sí, Excelência, — disse ele.

        — E há mais uma coisa! Se eu descobrir que você ou qualquer dos seus homens se aproximaram dele, mandarei você voltar imediatamente para o Corteguay a fim de ser castigado lá! Compreendeu bem?

        — Sí, Excelência.

        Logo que ele saiu da sala, peguei o telefone e liguei para o meu apartamento em cima. Disse a Gato Gordo que descesse. Por mais que tivesse vontade, não poderia ir assistir à conferência de Guayanos. O que se aplicava a Prieto também se aplicava a mim. A minha simples presença podia ser considerada uma intervenção.

        Mas nada impedia a ida de Gato Gordo. Eu tinha a impressão de que Guayanos esperava que eu mandasse alguém e aquele a quem eu escolhesse podia ser muito importante. Gato Gordo me parecia a pessoa indicada por várias razões.

        Ele não podia de modo algum ser considerado político e era bem sabido que as suas relações comigo eram pessoais. Podia também confiar em que Gato Gordo me dissesse exatamente, sem parcialidade ou distorção, o que Guayanos dissera, que era provavelmente o que Guayanos queria. E, por fim, Gato Gordo poderia dizer-me se Prieto havia cumprido as minhas determinações.

 

        A irmã do senador me recebeu à porta.

        — Sou Edie Smith, — disse ela, sorrindo. — Fico muito satisfeita de que tivesse vindo. Este é meu marido, Jack.

        O homem alto e robusto que estava atrás dela sorriu.

        — Prazer em conhecê-lo, Sr. Xenos, — disse ele, com uma leve nota da fala do Médio-Oeste na voz.

        — O prazer é meu, Sr. Smith.

        — Vamos para a sala, — disse a mulher, tomando-me o braço.

        — Estamos todos lá tomando um drinque.

        Havia seis ou sete pessoas na sala. Conheci-as todas, exceto a esposa do senador, uma bela morena sentada numa poltrona e que evidentemente estava grávida.

        — Creio que só não conhece aqui meu irmão e a esposa. Vamos resolver isso e a festa pode começar.

        A Sra. Smith era politicamente bem orientada. Sabia exatamente o que tinha de fazer.

        Apertei a mão do senador como se fosse a primeira vez que nos víamos e cumprimentei com uma inclinação de cabeça a esposa dele. Voltei-me então para os outros.

        Giselle me dirigiu um olhar de censura quando me aproximei dela.

        — Não se sente envergonhado — disse ela em francês — de só nos encontrarmos na casa dos outros? Você já recusou tantos convites nossos para jantar que deixei de convidá-lo.

        Beijei-lhe a mão e olhei para Sergei. Havia engordado um pouco e parecia muito bem.

        — Não deixe de convidar, — respondi. — Do jeito que as coisas vão, só Deus sabe quando posso precisar de um bom jantar.

        O sorriso desapareceu do rosto de Sergei.

        — As notícias dos jornais não têm sido boas.

        — A coisa é grave, meu amigo. Muito grave.

        — Mas você não corre qualquer perigo, não é? — perguntou Giselle, preocupada.

        — Como poderia correr? Estou aqui.

        — Mas se for chamado...

        Sergei interrompeu-a.

        — Não há necessidade de preocupar-se, querida. Dax sabe cuidar de si mesmo. A verdade, Dax, é que pensamos muito em você. A nossa amizade é grande.

        — Sei disso. — Acreditava em Sergei porque já havíamos vivido tempo de sobra para saber quais eram nossos amigos. Vi Giselle estender a mão para Sergei que a apertou, tranquilizando-a. Por um momento, quase tive inveja deles. — Vocês dois estão muito bem. E Anastasia como vai?

        — Você devia vê-la! — Foi Giselle quem respondeu, antes que Sergei tivesse oportunidade de falar. Havia na sua voz um orgulho maternal. Então riu. — Não, é melhor que não a veja. Está saindo uma moça muito bonita.

        Jeremy se aproximou.

        — Vocês três estão rindo com tanta satisfação que quero saber o que há!

        Mas a irmã do senador apareceu e me tomou a mim e a Jeremy pelo braço.

        — Uma das prerrogativas da dona de casa — disse ela — é poder apropriar-se dos dois únicos solteiros do grupo como seus companheiros de jantar.

        Todos riram e fomos jantar. Olhei várias vezes durante o jantar para Giselle e Sergei e tive de desviar os olhos para não chamar a atenção. Tratavam-se com grande intimidade e amor. Sempre que os olhava pensava em Beatriz. Nós também podíamos ser assim. Se tivéssemos oportunidade.

        Depois do jantar, o senador me levou para um canto da sala.

        — Não esqueci a nossa conversa. E tenho feito por conta própria algumas indagações discretas.

        — Muito obrigado, Senador. Saber que está interessado ajuda muito.

        — Espero fazer mais do que isso e talvez tenha algumas notícias na próxima semana. Estará em Nova York?

        — Assim espero.

        — Procurá-lo-ei.

        Saímos então do canto e fomos para onde estava a esposa dele, que se sentara de novo na poltrona. O senador parou diante dela e perguntou:

        — Como é, garotinha? Cansada?

        — Um pouco.

        — Vamos então, — disse ele sorrindo. — Deixemos esses moços entregues à sua orgia.

        Depois que o senador saiu, o grupo começou a dissolver-se. Saí com Giselle e Sergei. O carro e o chofer deles estavam à porta e os dois me sugeriram que eu os acompanhasse até a casa para um drinque.

        — Não, — disse eu. — Agradeço muito, mas não é possível. Tenho um encontro marcado.

        Sergei riu.

        — Continua o mesmo, hem, Dax?

        — Gostaria de conservar as suas ilusões. Mas é um encontro de negócios. Tenho de falar com Marcel.

        — Dizem que ele nunca sai de casa, — disse Giselle.

        — É verdade, — disse Sergei antes que eu pudesse responder. — Já estive lá numa vez. A casa é tão bem guardada como se fosse a caixa-forte de um banco.

        — Foi lá para falar com ele? — perguntei. Sergei e Marcel nunca tinham tido muito em comum.

        — Isso foi há alguns anos, logo que eu cheguei aqui. Você sabe como ele é. Queria vender-me uma parte de uma companhia que tinha.

        — E você comprou?

        — Claro que sim. Não gosto de Marcel, mas uma coisa que ele sabe fazer é ganhar dinheiro, tenho de reconhecer. Eu nem sabia de quem era a companhia, mas ele me fez presidente dela e, de três em três meses, recebo pontualmente 2.500 dólares de dividendos.

        Giselle olhou para mim.

        — Lembro-me daquela vez no Texas... — disse ela, mas olhou para Sergei e não continuou.

        Olhei para o relógio.

        — Bem, acho que vou indo.

        Beijei Giselle no rosto. Sergei apertou-me a mão.

        — Você está com aspecto muito cansado, Dax. Veja se diminui um pouco o ritmo.

        — É o que eu vou fazer depois que essa confusão toda acabar.

        — E venha ver-nos na sua primeira noite livre, — disse Giselle.

        — Farei todo o possível.

        Vi-os entrar no grande Rolls-Royce com brasão dourado na porta. Deram-me adeus quando o carro arrancou e eu comecei a caminhar em direção a Park Avenue, Eram apenas alguns quarteirões de distância para a casa de Marcel e cheguei lá alguns minutos antes de meia-noite.

        Quando dobrei a esquina, um homem estava saindo da casa. Tomou um táxi enquanto eu subia a escada da frente e tocava a campainha. O jeito do homem que saíra da casa não era estranho, mas estava escuro e eu não pudera ver-lhe o rosto.

        Vi uma luz acendesse no alto da porta e compreendi que o porteiro estava-me olhando na televisão de circuito fechado. Depois, a luz se apagou e a porta abriu-se devagar.

        — Entre, Sr. Xenos, — disse o mordomo. — O Sr. Campion está à sua espera.

        Segui-o. Ele me levou até ao elevador particular para o apartamento de Marcel e segurou a porta.

        — Tenha a bondade de apertar o primeiro botão.

        A porta se fechou e o elevador começou a subir. Saltei no andar de Marcel. Ele estava saindo da sala dos hóspedes quando entrei, na sala de estar.

        — Dax! — exclamou ele. — Quanto prazer em vê-lo! Um drinque?

        Fomos para o bar. Marcel pegou uma garrafa de scotch e serviu-o puro com gelo. Peguei o copo.

        — E você? — perguntei.

        — Infelizmente, não posso beber. Ordem do médico. Não faz bem à minha úlcera.

        — Viva! — disse eu, tomando um gole. — Espero que ele não tenha proibido mais nada.

        Marcel riu.

        — Não, apenas a bebida. — Apertou um botão no bar. — Veja isso.

        Olhei para a televisão. Dessa vez, só havia uma pequena. Estava estendida na cama inteiramente nua, com uma garrafa de champanhe na mesinha de cabeceira. Virou-se para pegar um cigarro e Marcel desligou.

        — Boazinha, hem?

        Fiz um sinal afirmativo.

        — Ela é nova. Comecei com ela há poucos dias. Cansei-me das outras. Queriam apenas uma coisa — dinheiro.

        Nada disse. Que era que ele esperava — amor?

        — Umas ordinárias! — disse Marcel, subitamente zangado. — Acho que vou beber alguma coisa, apesar de tudo. Os médicos não sabem de nada.

        Esperei que ele preparasse um copo e lhe disse:

        — Escute, não quero tomar-lhe muito tempo.

        Marcel olhou para mim.

        — Tem tido notícias do Presidente?

        — Não. Tudo parece calmo por enquanto.

        — Acha que ele poderá dominar a situação?

        — Creio que sim. Principalmente se conseguirmos descobrir de onde vêm as armas e sustar as remessas.

        — Tenho os papéis que você quer, — disse Marcel.

        Foi até à mesa, tirou alguns papéis       de uma gaveta e trouxe-os para mim.

        Examinei-os. A fatura de embarque estava no nome de uma companhia evidentemente fictícia e não         me serviria de nada, mas o cheque para pagamento do frete era legítimo. Olhei o verso da fatura. O número do cheque, o nome da conta e o banco estavam escritos ali.

        O nome da conta não era conhecido mas o banco era o CZI. Respirei fundo. Era mais sorte do que eu havia esperado. Era um dos bancos de De Coyne.

        — Isso significa alguma coisa para você? — perguntou Marcel.

        — Bem pouca — respondi reservadamente, guardando os papéis no bolso. — Mas vou examinar tudo mais atentamente amanhã. Talvez apure alguma coisa.

        — Desejo que tenha mais sorte do que eu, — disse Marcel. — Não descobri nada. Você bem sabe como são esses bancos suíços.

        — Direi a você o que apurar. Espero que todos os seus comandantes estejam fiscalizando bem as cargas. Não seria bom se o Presidente descobrisse mais armas nos seus navios.

        — Estão avisados e deverão tomar cuidado, — disse Marcel.

        — Mas nunca se pode ter certeza. Gostam de ganhar um extra de vez em quando.

        — Para seu bem, Marcel, espero que eles se contenham. Mais uma remessa e o velho pode cancelar a sua licença.

        — Estou fazendo tudo o que posso.

        Olhei com curiosidade para Marcel. Não parecia absolutamente perturbado com a ameaça, embora a perda da licença tirasse a possibilidade do uso pelos seus navios da bandeira corteguaya e o levasse provavelmente a encerrar as suas atividades marítimas. Mas cheguei, à conclusão de que ele devia estar exercendo rigoroso controle e por isso não se preocupava.

        — Bem, já vou, Marcel. Se me demorar mais, a sua amiguinha pode pegar no sono.

        Deixei o copo em cima da mesa e fiquei sabendo de repente quem era o homem que eu vira sair da casa de Marcel. Prieto. Um dos meus charutos estava apagado e fumado pela metade no cinzeiro da mesa. Eu tinha dado vários a Prieto alguns dias antes quando ele me dissera que gostava muito do aroma deles. Dei boa noite a Marcel e desci para tomar um táxi.

        Prieto. Que espécie de ligação poderia ter ele com Marcel? Não podia imaginar. Mas uma coisa eu sabia pelo menos. Prieto não fora à conferência de Guayanos.

        Gato Gordo estava à minha espera.

        — Então? Como correram as coisas? — perguntei-lhe.

        Gato Gordo entregou-me algumas folhas impressas.

        — Está tudo aqui. Ele estava com isso pronto para a imprensa.

        Não olhei para os papéis.

        — Não vi Prieto.

        Fiquei calado.

        — Ah, sim, — disse ele, como se só então houvesse pensado nisso. — Vi a moça.

        — Ela viu você? Disse-lhe alguma coisa?

        — Disse, sim, mas eu não compreendi. Falou de você ir encontrar-se com ela amanhã à meia-noite na casa de um tal Reuben. Não conheço ninguém com esse nome. Você conhece?

 

        — Dax, este é meu pai.

        O homem de rosto magro e pálido com a roupa velha de veludo cinza levantou-se de trás da velha mesa. Estendeu-me a mão, apertando a minha com firmeza, apesar da aparente fragilidade.

        — Muito prazer, Dr. Guayanos.

        — Prazer, Sr. Xenos.

        Voltou-se para apontar os outros dois homens na sala, os quais nos olhavam em silêncio.

        — Já conhece meu irmão, — disse ele. — O outro cavalheiro é um bom amigo que merece toda a minha confiança.

        Cumprimentei-os com a cabeça. Compreendia por que não mencionara o nome do amigo. Mas isso não tinha importância porque eu o havia reconhecido no mesmo instante. Era Alberto Mendonza, ex-oficial do Exército, a quem fora apresentado um dia numa recepção. Saberia ele que o havia identificado?

        Ficamos ali um instante meio sem jeito até Guayanos voltar-se para os outros.

        — Querem dar-nos licença? Eu gostaria de falar com o Sr. Xenos em particular.

        Mendoza pareceu hesitante.

        — Está tudo certo, — disse Guayanos. — Tenho certeza de que o Sr. Xenos não pretende fazer-me mal algum.

        — Talvez não — disse Mendoza —, mas podem tê-lo seguido. Não confio em Prieto.

        — O carro não foi seguido. Tenho certeza disso, — declarou o irmão de Guayanos.

        — Como é que sabe? — perguntou Mendoza. — Você estava dirigindo.

        Não falei porque nada tinha a dizer. Consentira que me vendassem os olhos atendendo a um pedido de Beatriz. Não sabia nem em que parte da cidade estávamos.

        — Não fomos seguidos, — disse Beatriz categoricamente. — Observei o tempo todo da janelinha de trás.

        Mendoza me lançou um olhar desconfiado e saiu em silêncio da sala. Beatriz e o tio saíram depois dele. Quando a porta se fechou, o Dr. Guayanos olhou para mim.

        — Quer fazer o favor de sentar-se? Muito obrigado, — disse eu, sentando-me na cadeira em frente a ele.

        — Conheci muito seu pai, — disse ele. — Era um grande homem e um verdadeiro patriota.

        — Obrigado.

        — Como seu pai, senti-me a princípio fascinado pelo Presidente. Mas logo me desiludi. Nunca pude compreender por que seu pai nunca se levantou em oposição ao Presidente.

        Olhei-o com firmeza.

        — Foi porque ele pensava que já fora derramado muito sangue no Corteguay. Não queria que recomeçasse o doloroso processo. Estava convencido de que a tarefa essencial era a reconstrução do país. Foi a ela que dedicou a vida.

        — Todos nós pensávamos assim. Mas em breve se tornou evidente até para os mais broncos que só estávamos fazendo com isso era perturbar o Presidente no poder. Ele se atribuía o mérito de tudo o que era feito.

        — Não vejo nada de errado nisso, Dr. Guayanos. Pelo que tenho observado, os chefes de Estado no mundo inteiro fazem a mesma coisa. E mais uma coisa: que se poderia ter feito se o Presidente não estivesse lá?

        Guayanos não respondeu.

        — Hoje em dia, todas as crianças do país frequentam a escola até os quatorze anos. Antes do Presidente, só os filhos dos ricos iam à escola. Hoje 40% da nossa população é alfabetizada. Dantes, a percentagem não chegava a 3%...

        — Estou a par das estatísticas, — disse Guayanos, levantando a mão num gesto cansado. — O que acontece é que elas não justificam a corrupção e a fortuna pessoal do Presidente acumulada à custa do povo.

        — Concordo. Mas ainda assim foi uma grande melhoria em relação ao passado, quando nada se fazia.

        Meti a mão no bolso para tirar um cigarro e ele teve um sobressalto.

        — Posso fumar?

        Ele sorriu.

        — É claro.

        Acendi o cigarro e continuei:

        — Mas toda essa discussão sobre o passado nada prova. É o futuro que nos interessa. Creio que até o Presidente chegou a essa conclusão.

        — Por que agora de repente e não antes? — perguntou Guayanos. — Até agora, nada parecia preocupá-lo senão a sua manutenção no poder.

        — A isso não posso dar uma resposta. Para tanto, teria de entrar na cabeça dele e saber dos seus pensamentos. Minha impressão pessoal é que está começando a reconhecer que é mortal como os outros. Gostaria de ser lembrado como o grande benfeitor do país.

        — Não acredito nisso, — disse categoricamente Guayanos. — Para mim, ele está é amedrontado pela tendência do povo, pela simpatia que este demonstra em relação aos guerrilheiros e pelo fato de que a revolução declarada já o ameaça.

        — Se realmente acredita nisso, está cometendo um erro, Dr. Guayanos. O Presidente é um dos poucos homens que eu conheço que não sabe o que é medo. Além disso, é muito esperto e inteligente. Reconhece que os homens a quem o senhor chama de guerrilheiros eram conhecidos até há poucos anos como bandoleros e se dedicavam apenas ao saque, à devastação e ao assassinato. Percebe também o uso político que deles fazem os comunistas. Mas a situação é incerta e muita gente está morrendo desnecessariamente para alcançar aquilo que poderia ser conseguido por meios pacíficos.

        Guayanos me olhou por um momento e disse:

        — Fala exatamente como seu pai.

        — Não seria filho dele se não falasse.

        — Acha então que o Presidente é sincero na sua oferta de eleições e anistia?

        — Acho. Por que iria desejar mais sangue? Sabe que a inquietação está prejudicando o progresso do país. Se não fossem os bandoleros, só o turismo poderia aumentar em cinquenta milhões de dólares anuais as nossas receitas.

        — Foi marcada uma data para as eleições?

        — Para quê? A oposição ainda não apresentou candidato e nem sequer se organizou. Uma eleição com um candidato       único seria uma farsa.

        — Que       garantias seriam dadas para a segurança da oposição?

        — Que garantias o senhor exigiria?

        — Plena liberdade de locomoção dentro do país de acordo com a minha vontade, acesso sem restrições à imprensa e ao rádio, o direito de proteger-me com homens da minha escolha, ainda que alguns deles pudessem ser estrangeiros, e realização das eleições sob a supervisão de um observador imparcial das Nações Unidas ou da Organização dos Estados Americanos.

        — Tudo isso me parece justo. Dr. Guayanos. Vou transmitir as suas sugestões ao Presidente. Posso fazer-lhe em troca um pedido?

        Ele fez um gesto cansado de aquiescência.

        — Tem condições de garantir que cessará a oposição ilegal ao governo?

        — Não poderia dar essa garantia e o senhor sabe muito bem disso. Os meus contatos com outros grupos são, na melhor das hipóteses, frouxos e tênues. Mas pode ter certeza de que não haveria mais oposição do meu grupo e que eu usaria nesse sentido a influência que possa ter sobre os outros.

        — Muito obrigado. Era isso que eu queria ouvir.

        — Não desejo também mais derramamento de sangue.

        — Esperemos, pelo bem da nossa pátria, que não haja mais.

        Guayanos se levantou e foi até à porta. Antes de abri-la, voltou-se para mim.

        — Não lhe agradeci o que fez por meu irmão. Ele é impulsivo e procede às vezes irrefletidamente.

        — Beatriz já me explicou isso. Fiz apenas o que me pareceu justo.

        Tive por um momento a impressão de que o Dr. Guayanos queria dizer mais alguma coisa, mas abriu a porta em lugar disso.

        — Podem vir, — disse ele. — O Sr. Xenos e eu já terminamos.

        Perguntou-me então, quase com pesar:

        — Ficará muito aborrecido se lhe pedirmos que se sujeite de novo a ter os olhos vendados?

        Sacudi a cabeça.

        Beatriz se aproximou de mim com o pano preto na mão. Baixei a cabeça para que lhe fosse mais fácil. Nesse momento, percebi de relance o rosto de Mendoza atrás dela e compreendi por que ele tinha agido com tão evidente má vontade em relação a mim. As razões não eram apenas políticas. Ele também amava Beatriz.

        Quando a venda me foi retirada, estávamos diante do Reuben’s. Perguntei a Beatriz:

        — Quer ir tomar uma xícara de café comigo?

        — Não. É melhor eu voltar.

        Procurei-lhe a mão. Ela me deixou apertá-la mas não manifestou qualquer reação.

        — Tenho de ver você, nós dois sozinhos. Assim, não.

        Ela nada disse.

        — Beatriz, fui sincero no que disse naquela noite. Eu não estava brincando.

        Ela olhou para mim, com as lágrimas toldando-lhe a luminosidade dos olhos verdes.

        — Não... não posso compreendê-lo. É melhor ir-se embora.

        Saí lentamente do carro.

        — Escute, Dax. Meu pai estará em segurança? Pensou bem no que disse?

        — Sim, Beatriz. Pensei bem no que disse.

        — Se alguma coisa acontecesse a meu pai, nunca deixaria de considerar-me culpada.

        — Nada vai acontecer a ele.

        Um instante depois, vi o carro virar para o sul, entrando em Madison Avenue. Pela primeira vez, senti-me realmente deprimido e desanimado. Um vago sentimento de condenação me pesava sobre os ombros. Sacudi a cabeça iradamente. Que motivo tinha eu para sentir-me assim?

        Entrei no restaurante e pedi uma bebida. O uísque me reanimou um pouco. Mas essa sensação era falsa. Em futuro bem próximo, iria recordar as minhas palavras e não compreender por que fora leviano ao ponto de fazer uma promessa que não podia cumprir.

 

        O Presidente escutou em silêncio tudo o que lhe contei a respeito do meu encontro com o Dr. Guayanos. Expus-lhe as condições que ele exigia e quando cheguei à última, a exigência de observadores imparciais, houve um momento de silêncio. Depois, a voz do Presidente explodiu pelo telefone.

        — Que bandido! Pede tudo! Só falta pedir que eu vote nele!

        Tive de rir.

        — E acho que só não pediu porque sabia que não conseguiria.

        — Que é que acha? Se eu concordar, ele voltará?

        — Creio que sim.

        — Não gosto disso. Se concordarmos com os observadores imparciais, confessaremos que estávamos errados.

        — Que diferença faz, Presidente? Não espera que ele ganhe, não é mesmo? A sua vitória evidenciaria que o senhor é apoiado pela maioria da população.

        — É verdade. Está bem, aceito as condições dele e acrescento uma condição minha. Mas esta nada tem que ver com ele. Com você apenas.

        — Qual é?

        — Que você forme a chapa comigo como vice-presidente. Há muito que venho pensando nisso. Não posso durar para sempre. Quero ter certeza de que o governo continuará em boas mãos.

        Não havia absolutamente contado com isso. Compreendi que o velho me colocara num dilema terrível. Se eu realmente acreditava no que dizia, teria de candidatar-me com ele. E, se me candidatasse, perderia todas as chances de ser um futuro candidato da oposição, pois passaria a ser definitivamente do grupo dele.

        — Por que está hesitando? — perguntou ele.

        — Fiquei surpreso e aturdido com a honra. Mas acha que está fazendo o que deve? Podia ser uma desvantagem para o senhor. Há muita gente aí que não me tolera.

        Não entrei nas razões. Ele as conhecia tão bem quanto eu. A igreja, por exemplo, era contra mim. Não se passava um domingo sem que, em algum púlpito, eu fosse atacado como dissoluto e playboy.

        — Se eu não estou preocupado com isso, — perguntou o Presidente, — por que você está?

        — Excelência, tenho o prazer e a honra de aceitar o seu generoso oferecimento.

        — Muito bem. Pode informar então ao traidor que as condições dele foram aceitas. E que a data marcada para as eleições é o Domingo de Páscoa.

        — Obrigado, Excelência. Vou informar-lhe.

        — Certo. Vou esperar a sua comunicação de que falou com cie e então divulgarei a notícia pela imprensa. — Riu satisfeito. — Você se saiu bem. Não duvidei um só momento de que a mocinha faria tudo o que você quisesse.

        Tinha um gosto amargo na boca quando desliguei o telefone. Todos tinham esperado isso. O Casanova moderno. Tirei o aborrecimento da cabeça e peguei o telefone para falar com Guayanos. Só então me lembrei de que não tinha meios de falar-lhe enquanto ele não estivesse disposto a entrar em contato comigo.

        Olhei para a folhinha. Oito de janeiro. Seria melhor que ele não demorasse muito ou as eleições se realizariam sem ele saber que era candidato.

 

        Voltei para o consulado às quatro da tarde, depois de uma das intermináveis reuniões nas Nações Unidas. Naquele dia, não tinha podido suportar mais aquilo e saíra no meio. Havia um recado em cima de minha mesa para telefonar para o senador. Peguei o telefone.

        A secretária dele fez imediatamente a ligação.

        — Creio que tenho boas notícias para dar-lhe, — disse ele — Quando pode vir até aqui?

        Olhei para o relógio.

        — Acho que posso tomar um avião às seis horas. É tarde demais para o senhor?

        — Não. Será muito bem. Estará aqui às oito horas. Vá diretamente jantar em minha casa.

        Havia mais três pessoas além do senador e de mim. A esposa dele não esteve conosco salvo para um drinque, indo depois descansar. Quando me sentei à mesa, compreendi que o que o senador tinha para me dizer era importante, pois do contrário aqueles homens não estariam presentes. À minha direita, estava o subsecretário de estado para Assuntos Latino-Americanos; do outro lado da mesa, juntos, os presidentes das Comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado.

        — Podemos esperar até depois do jantar ou começar com a sopa, — disse o senador. — Não me incomodo de tratar de negócios enquanto estou comendo.

        — Depende dos senhores, — disse eu.

        — Comecemos então agora, — disse o senador.

        — Conversei muito com os cavalheiros aqui presentes sobre a situação no Corteguay, — começou o senador. — Contei-lhes detalhadamente o que me disse. Ficaram tão impressionados quanto eu. Mas chegamos à conclusão de que há certos pontos a respeito dos quais gostaríamos que nos esclarecesse.

        — Perguntem, por favor, tudo o que quiserem, sem qualquer constrangimento.

        Durante vinte minutos, fui submetido a um verdadeiro fogo de barragem de perguntas. Com grande surpresa, descobri que aqueles homens estavam mais bem informados do que eu julgara. Desconheciam muito pouco do que havia acontecido no Corteguay naqueles últimos vinte e cinco anos.

        No fim, encarávamo-nos numa espécie de mútuo respeito que não é muito comum em reuniões dessa espécie. Tinham sido brutalmente francos nas suas perguntas e eu fora inflexivelmente direto nas minhas respostas. O senador olhou em torno da mesa, como se estivesse pedindo permissão aos outros para continuar. Fizeram um por um sinal de aquiescência e ele voltou para mim.

        — Como sabe, o seu pedido de um empréstimo de vinte milhões de dólares há muito que anda por aí sem solução.

        Sacudi a cabeça afirmativamente.

        — Isso aconteceu de certo modo porque não sabíamos exatamente o que fazer. Sabíamos da ameaça comunista ao seu país e gostaríamos de ajudar a combatê-la. Mas, por outro lado, tínhamos conhecimento de que o atual governo não foi no passado imune à corrupção e ao terrorismo político. Falando com franqueza, a verdade é que, em muitos setores do governo, o regime vigente em seu país é considerado um caso clássico de fascismo e o seu presidente um ditador como os outros.

        — Nestas condições, — continuou, — bem pode compreender a nossa dificuldade em chegar a uma decisão. Mas, de pleno acordo com os que estão aqui presentes, vou fazer-lhe uma proposta. Estaremos dispostos a patrocinar um empréstimo ao Corteguay mediante uma condição. Se o seu Presidente estivesse disposto a afastar-se do governo, a bem do país, em favor da sua pessoa, não haveria dificuldades quanto ao apoio dos Estados Unidos.

        Fiquei em silêncio e corri os olhos em torno da mesa. Todos me olhavam com curiosidade. Por fim, encontrei as palavras que queria.

        — Falando por mim mesmo, senhores, agradeço-lhes a confiança demonstrada. Mas falando pelo meu país, devo dizer que lamento profundamente o fato de julgarem que o dinheiro americano lhes dá o direito de interferirem nos nossos assuntos internos. E por fim, falando pelo meu presidente, não posso dizer o que ele faria, mas vou dizer o que fez hoje mesmo pela manhã.

        Via que estavam todos interessados. Os seus instintos, aguçados pela experiência, os advertiam de que haviam quase caído numa armadilha.

        — Aceitei hoje um convite do meu presidente para que eu formasse a chapa com ele, como candidato a vice-presidente, nas eleições que se realizarão no Domingo de Páscoa. O candidato de oposição ao Presidente será o Dr. Guayanos. Este e o Presidente ajustaram algumas condições para a realização das eleições. A principal é que serão efetuadas sob os auspícios imparciais das Nações Unidas ou da Organização dos Estados Americanos.

        — Não me disse isso pelo telefone, — exclamou o senador.

        — O senhor não me deu oportunidade.

        — Acha que Guayanos tem possibilidades?

        — Nenhuma. Como se diz aqui nos Estados Unidos, “tantas possibilidades quanto as de uma bola de neve no inferno”.

        — Nada é certo em política, — disse o congressista do outro lado da mesa.

        — Se Guayanos ganhar, não ficarei satisfeito, — disse o subsecretário com voz muito firme. — Está ligado demais aos comunistas para dar tranquilidade. Mendoza, por exemplo, parece ter entrada franca no Kremlin.

        Dissimulei a minha surpresa. Era uma coisa que eu ignorava, mas que ao menos me permitia saber qual era o laço entre Guayanos e El Condor. Não conseguira até então descobri-lo.

        — Todas essas conjecturas são supérfluas, — disse eu. — O Presidente ganhará as eleições.

        — E o senhor será o vice-presidente?

        — Isso mesmo.

        O senador correu os olhos pela mesa.

        — Que é que acham, senhores?

        Levantei-me.

        — Posso sair da sala se preferirem falar em particular.

        O senador fez sinal para que eu me sentasse e disse:

        — Temos falado abertamente e a esta altura nada temos que esconder.

        O subsecretário disse então:

        — Da minha parte, estou disposto a aceitar a base indicada pelo Sr. Xenos.

        Os outros manifestaram o seu acordo.

        — Estamos combinados então, — disse o senador. — Pode contar com o nosso apoio em favor do empréstimo tão logo se confirme oficialmente a notícia das eleições.

        Respirei profundamente. Pela primeira vez, senti que tinha feito algum progresso. Mas tudo isso na manhã seguinte voou pelos ares. Tudo acabou quando atendi o telefone na manhã seguinte e ouvi a voz de Beatriz.

        Quase não podia conter a minha exultação. As palavras se me atropelavam nos lábios.

        — Foi muito bom você ter telefonado! Diga a seu pai que já falei com o Presidente e todas as exigências dele foram aceitas.

        Ela ficou em silêncio.

        — Não ouviu o que disse, Beatriz?

        De novo o estranho silêncio.

        — Beatriz?

        — Não leu os jornais nem ouviu o rádio hoje?

        — Não. Fiquei em Washington até tarde da noite e dormi o tempo todo no trem. Cheguei neste momento. Não tive nem tempo de mudar a camisa.

        Por um momento, a voz dela tremeu, mas logo se tornou clara e firme.

        — Quer dizer que não sabe de nada mesmo agora?

        — Sobre que, Beatriz? Deixe de falar por enigmas como uma criança!

        — Muito bem. Às duas horas da madrugada, meu pai desceu para dar um passeio e respirar um pouco de ar. Como de costume, Mendoza estava com ele. Atiraram neles de um carro preto que passou. Mendoza levou uma bala no braço. Meu pai morreu uma hora depois numa ambulância, quando era levado para o hospital.

        De repente, a voz dela se alterou e a calma gelada com que estava falando desapareceu.

        — Você prometeu, Dax! Você jurou que nada iria acontecer a ele, que ele estaria em segurança!

        — Eu não sabia, Beatriz! Por favor, acredite em mim! Eu não. sabia! — Mais do que tudo no mundo eu queria que ela acreditasse em mim. — Onde está você? Tenho de ver você!

        — Para que, Dax? Para me dizer mais mentiras? Para me fazer mais promessas que nunca serão cumpridas? Não posso sofrer isso de novo!

        — Beatriz!

        Mas ela desligou o telefone e eu fiquei por um instante aniquilado com o telefone nas mãos. Depois, levantei-me e fui até à porta.

        — Diga a Prieto que venha falar imediatamente comigo!

        Voltei para a minha mesa quando o telefone tocou. Era a minha secretária.

        — Pensei que o senhor soubesse. O Sr. Prieto partiu hoje para o Corteguay no avião das nove horas.

        Senti as têmporas latejarem. Parecia que a minha cabeça estava sendo apertada num torno. Tudo, tudo perdido. O trabalho, as esperanças, tudo! Firmei os cotovelos na mesa e comprimi a cabeça com as mãos para dominar aquela agitação e pensar. Tinha de pensar!

        Prieto conseguira saber onde Guayanos morava. E só podia ter sabido graças a mim. De que maneira, eu não sabia, mas não tinha a menor dúvida de que fosse capaz disso sem ser percebido, depois do que ele e Hoyos haviam feito comigo na Flórida. Eu é que devia ter pressentido que ele seria capaz de fazer isso e devia tê-lo mandado embora antes.

        Mas não. Eu era muito sabido. Estava tão certo de que tudo iria correr exatamente como eu queria. Prieto não se atreveria a levantar-se contra mim. Bem, eu não era sabido, nem inteligente. Era pura e simplesmente um cretino. O Presidente é que fora esperto. Mandara Prieto fazer o que sabia que eu nunca faria.

        Senti uma súbita náusea e corri até o banheiro. Vomitei até nada mais haver dentro de mim. Depois, lavei o rosto e voltei para a minha mesa.

        Respirei fundo. No excesso da minha raiva comigo mesmo havia quase esquecido que o mais importante ainda estava por fazer.

        Era preciso sustar as armas.

 

        — O senador está fuzilando, — disse-me Jeremy pelo telefone. — Acha que você fez dele um instrumento e o ludibriou.

        Escutei fatigadamente. Já estava cansado de dar explicações. Aliás, ninguém dava atenção a elas. Ou, se davam, não acreditavam no que eu dizia. Chegava a desejar que não houvesse imunidades diplomáticas. Teriam então de provar abertamente o que pensavam.

        Mas nada me podiam fazer. Eu podia até deixar de responder a qualquer pergunta, se quisesse. Tinham, portanto, inteira liberdade de pensar de mim o que entendessem e as imunidades diplomáticas eram uma saída tão fácil para eles quanto para mim.

        — Disse a ele o que eu lhe disse ontem?

        — Disse.

        Era assim. Como todos os outros.

        — Talvez se você não estivesse na casa do senador quando o caso aconteceu a situação seria melhor. O senador acha que você só foi à casa dele para estabelecer um álibi.

        Nada disse. Não adiantava.

        — Compreende que agora não há mais possibilidade de ser feito o empréstimo? — disse Jeremy.

        — Sei disso.

        Minha secretária entrou e colocou minha pasta em cima da mesa.

        — O carro já está pronto para levá-lo ao aeroporto, — disse ela.

        — Quais são os seus planos agora? — perguntou Jeremy.

        Fiquei de repente farto de confiar nos outros. Nenhum dos meus planos se realizava afinal de contas e eu não podia culpar os outros de me julgarem um mentiroso.

        — Neste momento, vou sair daqui e tomar um avião para Paris.

        — Paris? Perdeu o juízo? Sabe o que vão pensar, não sabe?

        — Estou-me lixando para o que pensarem.

        — Está procedendo como um idiota. Parece que não está ligando a mais nada.

        — E não estou mesmo!

        — Não posso acreditar. Conheço você. Que é que vai fazer em Paris, Dax?

        — Jogar a vida! — disse com grosseria. — Que é que se vai fazer em Paris senão isso?

        Desliguei o telefone com raiva. Arrependi-me no mesmo instante. Eu não tinha o direito de fazer com Jeremy o que tinha feito. Ele estava do meu lado. Ao menos, ainda falava comigo.

        Pensei em ligar de novo o telefone para ele, mas nesse momento a secretária abriu a porta.

        — O motorista diz que se não sair agora mesmo perderá o avião.

        Peguei a pasta e saí pela porta a fora. Teria tempo de sobra de telefonar para Jeremy quando voltasse.

        Pareceu-me estranho ver Robert no escritório do pai, sentado à mesa e na cadeira do Barão. Mas a estranheza logo desapareceu. Parecia que sempre se sentara ali. Afinal de contas, nascera para aquilo.

        — Você conhece a lei, — disse Robert. — Além disso, o governo suíço é muito rigoroso. Poderíamos perder a licença se eu lhe desse essa informação.

        — Conheço a lei e foi por isso que vim procurá-lo.

        Robert mostrou uma expressão de tal aflição que não insisti.

        Ele ainda devia recordar-se da amizade que tinha havido entre nós.

        — Como vão Denisonde e as crianças?

        — Não me faça começar, — disse Robert, sorrindo. — Sou um pai igualzinho aos outros.

        — Todos estão bons então?

        — Você nunca saberá o que se sente, Dax, enquanto não tiver filhos seus.

        Primeiro Sergei e agora Robert. Havia neles estabilidade, segurança, raízes bem plantadas e crescimento. Eu era como uma árvore mutilada que não podia desenvolver-se.

        — Tenho, inveja de você, — disse com toda a sinceridade.

        — É muito estranho que você diga isso.

        — Eu sei, tenho uma vida divertida. Sou o         playboy do jet set.

        — Não tive a intenção de ofendê-lo, Dax.

        — Eu sei. A culpa é minha que ando irritado. Parece que nada do que tento se resolve.

        — E agora? Que é que vai acontecer?

        — Não sei. Mas, se as armas não forem sustadas, vai         morrer muita gente inocente.

        — Você sabe que não estamos procurando proteger qualquer interesse nosso? — perguntou Robert.

        Sacudi a cabeça. Ele não precisava dizer isso. Eu estava presente quando ele transferira os seus investimentos no Corteguay para o primo inglês.

        — Acontece que agora eu tenho responsabilidade, Dax. Há muita gente que depende de mim.

        Levantei-me.

        — Compreendo perfeitamente. Sinto a mesma coisa, mas no meu caso é de vidas humanas que se trata e não de meios de vida. De qualquer maneira, muito obrigado. Não lhe vou tomar mais tempo.

        — Que é que vai fazer?

        Dessa vez eu não estava despistando quando respondi:

        — Desde que não tenho nada mais para fazer, vou ver se arranjo uma pequena.

        Marlene Von Kuppen. Tinha lido poucos dias antes na coluna de Irma Andersen — ou ouvira alguém dizer — que ela estava morando em Paris. Era um tiro no escuro mas era melhor do que nada. Era possível que ela ainda tivesse relações com gente que me pudesse dar a informação da Alemanha Oriental que eu queria. Afinal, ela tinha sido uma Von Kuppen.

        Um amigo que eu tinha num jornal deu-me o telefone dela e eu liguei para lá quase a tarde toda sem que ninguém atendesse. Afinal, às cinco horas ouvi a voz dela, enrolada como se tivesse acordado naquele momento.

        — Alô.

        — Marlene?

        — Quem fala?

        — Diógenes Xenos.

        — Quem?

        — Dax.

        — Dax? — perguntou ela num tom levemente irônico. — Não o Dax que conheço?

        — Ele mesmo.

        — A que devo a honra dessa lembrança?

        — Soube que estava em Paris e pensei em convidá-la para jantar esta noite se não tiver compromissos.

        — Tenho um compromisso. Não acha que telefonou um pouco tarde?

        — Passei a tarde telefonando para você sem ninguém atender. Calculei que estivesse fora.

        — Você me conhece há muito tempo. Por que só agora, assim de repente?

        Para uma pergunta sincera uma resposta desonesta.

        — Você estava com um amigo meu.

        — Pelo que me contaram, isso nunca o fez recuar de coisa alguma.

        — Acontece que Jeremy é um amigo muito íntimo. Mas desde aquela noite em que vi você pela primeira vez na casa de Saint- Tropez, disse comigo mesmo — um dia...

        — Bem, como lhe disse, tenho um compromisso hoje, — disse Marlene com uma nota       de satisfação na voz que me         indicou que o caso estava resolvido. — Vamos deixar para amanhã?

        — O dia é hoje. Já esperei demais. Livre-se desse compromisso. Não sei onde estarei amanhã.

        — Não sei... — murmurou ela,       mas logo a sua voz se tornou meiga e rendida. — Está bem.

        Já passava de três da madrugada quando o carro parou diante do apartamento dela na Avenue Kléber.

        — Gostaria de subir?

        — Acho que sim, — disse eu cerimoniosamente. — Muito obrigado.

        Paguei ao chofer e saltamos. Atravessamos em silêncio o passeio arborizado da entrada lateral atravancada de carros parados O chão ainda estava molhado da chuva de fins de janeiro que só pouco antes cessara e das últimas folhas caídas do outono.

        Paramos em frente à porta do apartamento e ela tirou a chave da bolsa e me entregou. Abri a porta e entramos.

        Quando chegamos ao living, ela me perguntou:

        — Quer um drinque? Encontrará tudo ali naquele bar. Eu já venho.

        Ela foi para outra peça do apartamento. Servi-me de conhaque e sentei-me no sofá. Alguma coisa não dera certo. Eu estragara tudo. Que diabo estava havendo comigo.

        Marlene voltou à sala. Tinha mudado o vestido de noite e estava com um palazzo-pijama de veludo preto e um pequeno bolero que quase tocava o alto das calças abombachadas. Quando ela se moveu, era muito leve a sugestão da suave carne clara sob o pijama. O preto combinava muito bem com cabelos louros e os seus olhos azuis de nórdica.

        — Très jolie.

        Marlene não respondeu. Serviu-se também de um conhaque e sentou-se diante de mim. Levantou o copo.

        — Viva!

        — Viva!

        Tomamos um gole de conhaque.

        — Escute, — disse Marlene calmamente. — Não estou zangada, mas por que foi mesmo que você me telefonou?

        Olhei-a sem responder. Não podia dizer ao certo. Tinha sido desde o começo uma ideia errada.

        — Não foi pelo que você disse ao telefone, — continuou ela.

        — Não sou mais uma criança. Sei quando um homem está interessado.

        Era isso mesmo. Não sei o que era que eu havia esperado. Talvez ingenuamente esperasse encontrar a mesma criatura amedrontada que chegara à minha casa em Saint-Tropez sete anos antes. Mas já não era a mesma. Marlene era agora uma mulher adulta, senhora de si, e de muitas maneiras diferente da pessoa que eu havia esperado. Sabia tanto quanto eu ou talvez mais.

        — Desculpe, Marlene. Tenho sérios problemas e, por mais que faça, não consigo tirá-los da cabeça.

        — Sei disso. Li os jornais. Mas não é só isso. Você tem todos os sintomas de um homem apaixonado sem esperança.

        — Isso também.

        — Eu sabia. Conheço os sinais porque passei por isso. Achou então que a melhor cura seria outra mulher e, desde que estava em Paris, pensou em mim. Mas não adianta mesmo, não é? Não, Marlene, não adianta.

        — Eu sei. Fiquei assim depois que Jeremy me deixou. Não sabia o que ia fazer de mim. Eu o amava mesmo, sabe? Devia ter compreendido desde o começo que era impossível. Primeiro, a política. Depois, a família dele. E durante todo o tempo, eu mesma. Sou alemã e para muitas pessoas a guerra ainda não acabou.

        “Eu era uma criança, não tinha nem dezoito anos quando me casei. Fritz era para mim o herói com que eu havia sonhado — alto, belo e rico. Mas eu não compreendia o que ele realmente era. Não sabia dos “rapazes” dele e da tara que exigia que ele fizesse alguém sofrer para sentir ainda o mais breve prazer. Quando Jeremy apareceu, foi muito natural que me apaixonasse por ele. Jeremy era simples, direto, sem qualquer complicação. Tive consciência pela primeira vez do meu poder como mulher e também das minhas necessidades.

        “Parece estranho que eu diga isso? Na verdade, só então fiquei sabendo disso. Eu sempre me havia culpado do meu insucesso com Fritz. Pensava que não podia deixar de ser minha a culpa, até porque ele me dizia isso com muita frequência”.

        Houve silêncio entre nós. Marlene levantou-se e foi servir mais conhaque. Lá fora, ouvia-se o rumor surdo do tráfego em torno do Arco do Triunfo, que ficava perto.

        — Com você foi assim também?

        — Não, — respondi. — Só o resultado final é que foi o mesmo.

        — Ela ama você?

        — Acho que sim.

        — Então é uma tola! — exclamou Marlene. — Que motivo pode haver para ela não querer você?

        — Você não leu os jornais? O nome do pai dela é Guayanos.

        — Ah, é isso?

        — Sim, e, de certo modo, foi por isso que lhe telefonei. As armas que estão sendo contrabandeadas para meu país vêm das fábricas que pertenceram à companhia Von Kuppen, na Alemanha Oriental. Se essas remessas de armas não pararem, haverá uma guerra e muitas pessoas inocentes morrerão. Estou vendo se consigo acabar com isso. Mas só poderei fazer alguma coisa depois que souber quem está pagando as armas. Tinha a esperança de você conhecer alguém que me possa dar a informação.

        — Não sei, — disse Marlene. — Tudo isso já foi há tanto tempo.

        — Eu lhe seria muito grato por qualquer informação que me pudesse dar. Já vi guerra que chegasse pelo resto da minha vida.

        — E eu também, — disse Marlene em voz sombria. — Eu era menina em Berlim na época dos bombardeios.

        Depois de alguns minutos de silêncio, ela disse:

        — Havia um homem, um suíço chamado Braunschweiger. Vivia em Zurique e eu me lembro dele nas várias ocasiões em que foi falar com Fritz. É claro que nada tinha oficialmente com as fábricas da Alemanha Oriental. Mas sabia de tudo o que estava acontecendo por lá e ia levar regularmente os seus relatórios a Fritz.

        Comecei a sentir-me animado.

        — E acha que ele poderá falar comigo?

        — Não sei, — disse ela. — Não sei nem se ainda está vivo.

        — Mas vale a pena tentar. Qual é o endereço dele?

        — Não me lembro, Dax. Você sabe, havia muito sigilo. Tenho certeza até de que o nome dele não figurava nem na lista de telefones da cidade. Mas me lembro da casa onde ele morava. Tinha uma espécie de telhado em cima de cada janela. Talvez eu fosse capaz de encontrá-la.

        — Não tenho o direito de pedir-lhe isso depois desta noite, mas quer ir a Zurique comigo e ver se a encontra?

        — Você tem todo o direito, — disse ela. — Se não fosse você, eu talvez nunca me livrasse de Fritz.

        — Obrigado, — disse eu, levantando-me. — Telefonarei amanhã depois de reservar as passagens no avião.

        Marlene levantou-se e se aproximou de mim, olhando-me bem nos olhos.

        — Hoje já é amanhã, embora amanhã ainda esteja distante. Estamos ambos aqui agora, sem ilusões, vazios e solitários.

        Talvez fosse a maneira por que Marlene dissera isso, mas vi nela de repente o que tinha tantas vezes em mim mesmo. A solidão, a angústia de tocar, de encontrar, a necessidade momentânea de outro ser humano, o medo da noite sombria. Ou talvez fosse o cheiro feminino, o calor que dela emanava, a vista da sua carne que o veludo não podia esconder. Tomei-a nos braços.

        Ela era forte, mais forte do que eu havia julgado. Mas usei a força dela e ela usou a minha até que ficamos juntos nos braços um do outro completamente esgotados. Refugiamo-nos no calor um do outro como dois animais que dormissem dentro da noite.

        Levamos três dias para       encontrar a casa. Três dias de carro através de ruas, avenidas e travessas. Como todas as cidades do mundo, Zurique estava mudada. Os velhos pontos de referência haviam desaparecido e novos edifícios tomavam-lhes o lugar. Acabamos descobrindo a casa por acaso.

        Já escurecia e o frio da noite estava caindo. Marlene parecia cansada. Disse ao motorista:

        — Leve-nos para o hotel o mais depressa possível.

        Recostei-me no banco e acendi um cigarro. Aquilo era o mesmo que procurar uma agulha num monte de palha. Tinha fechado os olhos para descansar um instante, quando senti no braço a mão de Marlene.

        — É ali! — disse ela, nervosamente. — Aquela rua! Tenho certeza de que é aquela!

        Falei com o motorista e ele encostou o carro ao meio-fio.

        — Tem certeza?

        Marlene estava olhando pela janelinha de trás e disse:

        — Não sei. Pareceu-me que era, mas...

        O meu cansaço havia de repente desaparecido.

        — Vamos olhar para ter certeza, — disse eu, abrindo a porta.

        Mandei o motorista esperar e saí, dando o braço a Marlene.

        Fomos até à esquina e ficamos olhando a rua. O bairro parecia ter conhecido dias melhores e no momento aparentava ter apenas pensões para turistas.

        — Que é que acha? — perguntei a Marlene.

        — Estou quase com receio de afirmar, mas acho que é esta. Lembro-me de que a casa era um pouco mais recuada do passeio do que as outras. E olhe ali no meio da rua uma casa que parece escondida pelas outras.

        Marlene começou a andar rapidamente pela rua. Segui-a até à frente da casa e ficamos a olhá-la. Era sem dúvida alguma a que procurávamos. Era de pedra cinzenta e tinha sobre cada janela uma espécie de telhado em forma de tricórnio.

        — Vamos entrar.

        Tomei-lhe o braço e nos encaminhamos para a porta da frente. Tocamos a campainha e uma velha com um desbotado uniforme de empregada apareceu.

        — Ja?

        — Herr Braunschweiger?

        Ela nos olhou com desconfiança.

        — Quem quer falar com ele.

        A voz de Marlene tomou inconscientemente o tom de autoridade que só as classes altas alemãs sabem ter quando falam com os empregados.

        — Frau Marlene Von Kuppen.

        Foi o nome de Von Kuppen que operou a transformação. A velha quase se curvou até o chão. Levou-nos respeitosamente para uma salinha de espera, desmanchando-se em desculpas por ter-nos feito esperar, depois do que saiu correndo para ir chamar o patrão.

        Recuei para o canto mais sombrio da sala quando ouvi um passo pesado no corredor. A porta se abriu e Braunschweiger entrou. Era um homem grande e robusto de quase sessenta anos.

        — Frau Von Kuppen, — disse ele, batendo os calcanhares e curvando-se para beijar-lhe a mão. — É um prazer tornar a vê-la. Considero uma honra que se tenha lembrado de mim.

        O sorriso untuoso desapareceu quando saí do canto onde fora ficar.

        — Herr Braunschweiger, posso apresentar-lhe Herr Xenos, Embaixador do Corteguay junto às Nações Unidas?

        — Excelência, — disse ele rigidamente, batendo os calcanhares e inclinando a cabeça.

        — Herr Braunschweiger.

        Ele olhou para Marlene e disse:

        — Não compreendo. Qual é a finalidade desta visita?

        — O Embaixador Xenos pode explicar melhor do que eu, — disse Marlene. Eu havia notado a insistência dela no meu título. Sabia o que estava fazendo, porque aquele homem sem dúvida se impressionava com os títulos.

        — Herr Braunschweiger, — disse eu — tenho alguns assuntos importantes para tratar com o senhor. Vamos ficar de pé nesta salinha pouco confortável?

        O tom arrogante surtiu efeito.

        — Claro que não, Excelência. Tenham a bondade de subir para o meu escritório.

        — Subimos a escada com Braunschweiger. Era uma sala grande, decorada à antiga com os pesados móveis da velha escola, teutônica, e havia um fogo aceso na pequena lareira metida na parede. Apontou-nos as cadeiras e foi para trás da sua mesa, sentando-se. A sua voz era quase servil quando nos disse:

        — Estou inteiramente às suas ordens.

        Fui direto ao assunto:

        — Quero saber quem está pagando as armas que a fábrica Von Kuppen, da Alemanha Oriental, está mandando para a minha terra.

        — Deve haver algum engano, — murmurou Braunschweiger. — Segundo sei a fábrica só está produzindo equipamento agrícola. Por outro lado, nada sei sobre as suas atividades. Já faz anos que me desliguei da Fábrica Von Kuppen.

        — Quantos anos, Herr Braunschweiger?

        Ele não respondeu.

        — Antes da guerra? Depois?

        — Não posso perceber que isso seja da sua conta, cavalheiro, — disse ele secamente, levantando-se. — Parece-me inútil continuar essa conversa.

        Continuei na minha cadeira, procurando dar à minha voz o maior tom de ameaça possível.

        — Nós, nas Nações Unidas, temos acesso a muitas informações que não são divulgadas publicamente e que não são nem comunicadas aos governos envolvidos. Sabemos tudo a respeito da sua antiga ligação com a Fábrica Von Kuppen. Sabemos também das suas atuais atividades, Herr Braunschweiger.

        Peguei um cigarro e acendi-o lentamente para dar-lhe tempo de pensar no que eu havia dito.

        — Não estamos interessados no momento em resolver o que passou ou em criar dificuldades para os que tiverem relações com a Von Kuppen, particularmente quando se tratar de pessoas que cooperem conosco.

        Felizmente, Braunschweiger mordeu a isca.

        — Deve compreender que eu, como ex-gerente da fábrica, não posso ser responsável pela política da companhia. Era responsável apenas pela produção.

        — Mas era filiado ao Partido Nazista, — disse eu, presumindo que ele não deveria ocupar cargo tão importante se não o fosse. — Em vista disso, estava perfeitamente em condições de saber o fim a que se destinava a sua produção.

        O rosto de Braunschweiger empalideceu. Sabia tão bem quanto eu que no fim da guerra sua fábrica é que havia fornecido 90% dos gases venenosos usados em Dachau e Auschwitz.

        — Eu não sabia de nada, — murmurou. — Era apenas um empregado e cumpria ordens.

        — Parece aceitável, mas não sei se sabe que foi essa justamente a defesa apresentada por todos os réus nos julgamentos de Nurembergue.

        — Sou cidadão suíço! — exclamou ele. — Sou protegido pela constituição suíça.

        — Por quanto tempo acha que o seu governo o protegerá quando se souber como ajudou os nazistas?

        — Nada fizeram àqueles que ajudaram aos Aliados!

        — Eu sei, mas o senhor cometeu um grave erro. Escolheu o lado errado, o lado que perdeu.

        Braunschweiger olhou para mim, tirou os óculos, tornou a botá-los e murmurou.

        — É impossível! Ainda que quisesse dar-lhe essa informação, não tenho meios de obtê-la.

        — É uma pena, Herr Braunschweiger, — disse eu, levantando-me. — Mas quero que compreenda que podemos forçá-lo a depor. Vamos, Frau Von Kuppen. É inútil ficarmos mais tempo.

        — Um momento, Excelência!

        Voltei-me para Herr Braunschweiger.

        — Se pudesse conseguir-lhe essa informação... o outro caso poderia ser...

        — Será esquecido. Ninguém precisará saber.

        Herr Braunschweiger tirou os óculos e limpou-os com o lenço.

        — Não vai ser fácil. Pode demorar alguns dias.

        — Hoje é terça-feira, — repliquei. — O meu secretário já tem ordem de divulgar o seu caso na sexta-feira caso não receba antes contra-ordem minha.

        — Terá a informação que deseja na quinta-feira à noite, o mais tardar.

        — Estou hospedado no Grand Hotel, — disse eu. — Vamos, Frau Von Kuppen.

        Herr Braunschweiger ainda estava todo perfilado quando saímos.

        Na quinta-feira de manhã, Marlene olhava por cima do meu ombro enquanto eu lia o relatório que Braunschweiger me mandara por mensageiro especial. Ela me perguntou sem compreender:

        — Que quer dizer isso, afinal?

        — Quer dizer que vamos voltar a Paris.

        Se significava o que eu realmente pensava, nem Robert deixaria de dar-me a informação que me havia recusado.

        A imprensa caiu sobre nós como uma matilha de lobos quando desembarcamos do avião em Orly. Os jornalistas franceses, com o faro que têm para o escândalo, desabavam sobre nós em plena força. Um dos repórteres me mostrou uma manchete. Era do France Soir e ocupava em grandes letras metade da primeira página. Perfeitamente francês, o título podia ser lido a muitos metros de distância.

        PLAYBOY E DIPLOMATA EM IDILIO NA SUIÇA COM A EX-HERDEIRA VON KUPPEN

        Peguei Marlene pelo braço e consegui sair dali. Estava mais aborrecido comigo mesmo do que com eles. E eu devia ter esperado por isso. As coisas já eram bem difíceis e aquela espécie de publicidade não iria absolutamente facilitá-las.

        Quando já estávamos quase no carro, um repórter mais tenaz plantou-se firmemente diante de nós.

        — O senhor e a Sra. Von Kuppen pretendem casar-se?

        Olhei-o furiosamente sem responder.

        — Por que foram então para a Suíça?

        — Para mandar consertar meu relógio, idiota!

        Entramos no carro e o motorista deu a partida. Gato Gordo, que estava sentado ao lado dele, disse:

        — Tenho um telegrama para você.

        Peguei o telegrama, abri-o e não tive dificuldade em lê-lo. O Presidente nem se dera ao trabalho de redigi-lo no nosso código simples. Dizia:

        Que está fazendo na Europa? Volte para Nova York. Isto não é hora para parrandas.

        Parranda... significava em nossa terra farra, pagodeira. Amassei com raiva o telegrama.

        — Alguma notícia ruim? — perguntou Marlene.

        — Não. Apenas o Presidente está, como todo mundo, fazendo mau juízo de nós.

        — Bem, acho que não estão inteiramente errados, — disse ela, rindo. — Tivemos bons momentos.

        Olhei-a e tive de rir também.

        — Alguns foram até ótimos.

        — Principalmente os que gozamos correndo as ruas de Zurique para cima e para baixo.

 

        Robert pareceu surpreso ao ouvir-me a voz pelo telefone.

        — Pensei que estivesse na Suíça.

        — Estive. Gostaria de falar com você o mais depressa possível.

        — Estou ocupadíssimo hoje.

        — É importante, Robert.

        Tinha de vê-lo naquele dia. O dia seguinte era sábado e os bancos suíços estariam fechados.

        — Vou almoçar com meu pai no Grillon. Quer almoçar conosco? Sei que ele terá prazer em vê-lo.

        — Estarei lá.

 

        — Está com muito bom aspecto, Barão.

        Ele me olhou calmamente, velho realista que era.

        — É muita bondade sua dizer isso, mas a verdade é que estou ficando velho.

        Houve uma troca de olhares entre ele e o filho. Olhei para Robert.

        — Papai tem sentido algumas dores e eu tenho tentado convencê-lo de que são coisas normais da idade.

        — Como é que você sabe? — perguntou o Barão, rindo. — Não se esqueça de que aqui só quem tem a experiência da idade sou eu.

        O garçom trouxe o café e o Barão pegou a sua xícara.

        — Acabo de receber uma carta de Caroline. Ela diz que o viu há algumas semanas em Nova York.

        — É verdade. Tomamos um drinque juntos no El Morocco.

        — El Morocco, — disse o Barão sorrindo. — Lembro-me muito bem. É uma espécie de clube onde se encontra todo mundo. Bem, se vocês têm negócios para discutir, por que não começam? Não estou mais em atividade, mas ainda estou interessado.

        — Muito obrigado.

        O meu agradecimento era sincero. Já estávamos no fim do almoço e Robert ainda não me dera uma chance. Ainda nesse momento, me olhou e disse:

        — Se é a respeito do mesmo assunto, a minha resposta ainda é a mesma. Já tem conhecimento da minha posição.

        Não quis fazer pressão sobre você, Robert, e não quero agora. Mas não quer reconsiderar a sua posição?

        Robert calou-se num silêncio obstinado, fechando a cara.

        O Barão nos olhou com curiosidade e disse:

        — Não tenho conhecimento do problema que existe entre vocês.

        Não me cabia certamente falar.

        — Dax me pediu acesso a informações confidenciais e sigilosas relativas ao nosso Banco na Suíça. Neguei essas informações.

        — Robert tem razão, — disse o Barão com voz calma. — Não só há leis específicas a esse respeito, mas também se trata de uma questão de ética.

        — Compreendo perfeitamente. Mas esse assunto é da maior importância para mim.

        — É importante a ponto de pedir a um amigo que falte aos seus princípios e ao seu dever?

        — Não apenas isso, — respondi. — É também importante ao ponto de fazer cessar uma velha amizade, se necessário.

        O Barão ficou em silêncio por um momento e então voltou-se para Robert.

        — Há quanto tempo conhece Dax?

        — Sabe disso tão bem quanto eu, meu pai, — respondeu Robert, com surpresa.

        — Algum dia ele já lhe fez um pedido desses?

        Robert sacudiu a cabeça.

        — Qualquer pedido?

        — Não.

        — E você alguma vez já pediu ajuda a Dax?

        O Barão falava com voz bem mansa, mas Robert estava claramente nervoso.

        — Sabe muito bem que sim.

        — E sei mais, — disse o Barão. — Sei que durante a guerra Dax ajudou a sua irmã e a você sem que ninguém lhe pedisse nada. E sei que ele nos ajudou também quando estávamos em dificuldades com nosso primo. Em nenhuma dessas vezes, ele hesitou sequer.

        — Mas foi diferente, — replicou Robert obstinadamente. — Não pedimos a ele que faltasse ao seu dever.

        — Tem certeza? Se não estou enganado, Robert, ele mentiu para nós. E quando um homem mente a outro, seja qual for o motivo, falta ao seu dever, na minha opinião. Não pensa assim também?

        — Não! — exclamou Robert veementemente. — Tratava-se de uma transação comercial. Dadas as circunstâncias, agimos normalmente.

        — Não estou falando de normalidade e, sim, de moralidade.

        — A moral nada tem que ver com o caso! — replicou Robert, irritado. — E o senhor nem sempre respeitou a moral quando presidia o Banco!

        O Barão sorriu.

        — Claro que não. Sou o primeiro a reconhecer que nem tudo o que fiz estava moralmente certo. E confesso que poderia tomar a agir assim. Mas ao menos agia com plena compreensão do que estava fazendo. Não procurava iludir-me como você agora.

        Voltou-se então para mim.

        — Sinto muito não poder ajudá-lo, Dax. Acho que me conhece muito bem para acreditar em mim quando lhe digo que se tivesse autoridade lhe daria a informação que deseja.

        — Acredito firmemente, Barão.

        O Barão levantou-se.

        — Bem, agora tenho de ir. Não, não se levantem. Adeus, Dax.

        — Adeus, Barão!

        O Barão virou-se para Robert.

        — Meu filho, pior ainda do que um velho tolo é um tolo jovem que pensa que não tem mais nada para aprender. Você deve aprender a escutar.

        — Escutei e a minha resposta é a mesma!

        — Então não deve ter escutado tudo. Lembro-me perfeitamente de ter ouvido Dax dizer que não faria pressão sobre você se estivesse disposto a reconsiderar a sua posição. Conhecendo Dax como conheço, só posso presumir que ele tem os meios de forçá-lo a dar essa informação, quer você queira, quer não.

        O Barão colocou delicadamente a mão no ombro do filho.

        — Robert, em vista do que você, do que nós devemos a Dax, não seria mais fácil torcer um pouco isso a que chama de ética? Dando a um amigo o que ele deseja, você não o forçará a tornar-se um adversário.

        Ficamos vendo em silêncio o Barão sair do restaurante, passando por entre as mesas, e depois nos olhamos.

        — Desde que deixou de trabalhar, meu pai se tomou mole e sentimental, — disse Robert com um riso forçado. — Parece que é a doença profissional dos velhos.

        De repente, perdi a calma e a causa imediata foi o que Robert dissera sobre o pai. Como podia um homem saber tanto e ter aprendido tão pouco?

        — Você vai envelhecer um bocado dentro de poucos minutos, fique sabendo! — disse-lhe eu.

        — Pare com isso, Dax! — exclamou Robert, rindo. — Você pode ter enganado a meu pai com essa encenação, mas a mim não engana. Sei onde estou pisando!

        — Sabe mesmo? Sabe também alguma coisa sobre uma companhia chamada Empresa de Fretes De Coyne?

        — Claro que sei. Foi fundada para facilitar os embarques para o Corteguay. Fazia parte do nosso acordo de investimento original e você sabe disso tão bem quanto eu. Foi seu pai que assinou os papéis em nome do governo do Corteguay.

        — A companhia ainda pertence ao Banco?

        — Não.

        — A quem pertence?

        — Isso não lhe sei dizer. Quando não precisamos mais da companhia, que tinha ficado muitos anos inativa, nós a vendemos, concordando em permanecer como responsáveis nominais para os novos proprietários. Isso é perfeitamente legal dentro das leis suíças e é muito comum.

        — Neste caso, perante o público, vocês ainda são os proprietários e, portanto, responsáveis pelas atividades da companhia.

        — Até certo ponto, — disse Robert com uma ruga de preocupação na testa. — Como já lhe disse, isso é muito comum e todo mundo sabe que se trata de um artifício legal.

        Olhei para Robert e deixei que ele ficasse ainda mais preocupado. Alguns momentos depois, perguntei:

        — Presumo que saiba também quais são as atividades atuais da companhia, sabe?

        — Tenho uma ideia, — disse Robert cautelosamente.

        Peguei os papéis que Braunschweiger me havia fornecido e joguei-os em cima da mesa. Em seguida, fui tão sutil quanto um pontapé nos testículos.

        — Creio então que o Banco De Coyne não faz objeção a servir de agente para o embarque de armas e munições manufaturadas pela antiga Fábrica Von Kuppen na Alemanha Oriental?

        A cor desapareceu de repente do rosto de Robert.

        — Que... que quer dizer com isso?

        — Examine estes papéis.

        Robert leu então o resumo do contrato entre o governo da Alemanha Oriental e a Empresa de Fretes De Coyne, companhia suíça. Quando acabou de ler, tinha a testa banhada de suor.

        Não tive a menor pena dele. Robert merecia aquilo pela sua obstinação. O Barão tinha razão. Seria melhor termos resolvido aquilo como amigos. Uma revelação como aquela poderia acabar com o Banco De Coyne, que havia resistido a tudo mais. Sabíamos ambos que ninguém acreditaria nos protestos de inocência do Banco.

        — Você não era tão esperto quanto sempre julgou que fosse, Robert, — murmurei implacavelmente.

        Naquela tarde, os documentos necessários foram mandados de avião da Suíça e Robert e eu passamos a metade da noite no escritório dele, examinando-os. Quando saí finalmente, com a pasta cheia de papéis, sabia de toda a infame história e esta não era nada edificante. No centro dela, estava Marcel, como um polvo que estendia os seus repulsivos tentáculos em todas as direções.

 

        Telefonei para Marlene de manhã para despedir-me.

        — Vai partir?

        — Já estou no aeroporto.

        — Sinto muito o que os jornais estão publicando, Dax. Espero que ela não acredite.

        — Não tem importância, — disse eu e era sincero. Já havia muita coisa errada entre Beatriz e mim. — De qualquer maneira, você não teve culpa, Marlene.

        — Mas foi bom, Dax, não foi? Entre nós dois?

        — Foi, sim, Marlene.

        Ela ficou em silêncio por um momento e então disse com voz tão baixa que quase não pude ouvi-la.

        — Auf wiedersehen, Dax. Tenha cuidado.

        — Adeus, Marlene.

 

        Quando entrei no consulado, deparei com o Tenente Giraldo. Eu parei e ele se levantou, ficando em posição de sentido.

        — Excelência!

        — Tenente Giraldo! — disse eu, estendendo-lhe a mão. — É uma surpresa vê-lo em Nova York.

        — Vir para cá também foi uma surpresa para mim. Por ocasião da guerra da Coréia, fiz um curso de pilotagem com a Força Aérea Americana. Agora, recebi ordem para vir fazer um curso de atualização.

        — Mas para quê? Não temos aviões.

        — E foi por isso mesmo que me mandaram para cá.

        — Venha para o meu gabinete, — disse eu. Giraldo me seguiu e eu fechei a porta. — Quer dizer que você é piloto?

        — Sim, mas de aviões de hélice monomotores. Vou treinar agora em aviões a jato.

        — Jatos? — O Presidente tinha grandes expectativas. Como iria realizá-las era o que eu não sabia. — Como estão as coisas no Corteguay, Tenente?

        — Na mesma, — respondeu Giraldo com alguma hesitação. — Não estão bem. Os bandoleros estão ficando cada vez mais ousados. Mais algumas aldeias foram atacadas, embora os jornais não houvessem noticiado isso. Por isso é que me mandaram para cá. Dizem que vamos ter jatos para lutar contra eles.

        — E as armas?

        — Não sei. Hoyos é quem está administrando o porto, de modo que não se sabe de nada. Não houve notícias de outros carregamentos interceptados.

        Se as minhas previsões estavam certas, as armas ainda estavam chegando ao país e Hoyos não era suficiente para impedi-lo.

        — Curatu parece mais uma praça de guerra, — acrescentou Giraldo. — Há soldados por toda a parte. A população está em silêncio e sob tensão como se soubesse que vai acontecer alguma coisa. Depois das oito horas da noite ninguém mais põe o pé fora de casa. Parece uma cidade morta.

        — Talvez as coisas vão melhorar, — disse eu.

        — É o que eu espero, — disse Giraldo. — É horrível viver assim. Parece até que estamos dentro de uma imensa prisão.

        O rosto de Sergei estava vermelho e zangado.

        — Vou matar aquele bandido!

        Olhei pelas janelas do escritório dele. O sol da tarde brilhava no alto dos grandes edifícios brancos. Senti os olhos arderem e as pálpebras ficarem pesadas. Tinha uma necessidade imperiosa de sono. A verdade é que nunca se descansava realmente naquelas longas viagens de avião.

        — Eu devia ter desconfiado! — exclamou Sergei. — Sempre que aquele patife oferece alguma coisa em troca de nada, é preciso ter cuidado. Eu devia ter compreendido que havia alguma bandalheira no caso.

        — Você sempre foi ambicioso, Sergei, — disse eu. — Quando ele o procurou, foi porque sabia.

        — Qual é o mal em querer ganhar mais um pouco de dinheiro, Dax? Os impostos comem a gente vivo. Desvia-se então um pouco para a Suíça. Todo mundo faz isso.

        Olhei para o seu luxuoso escritório. Pensei no apartamento duplex que ele tinha na Quinta Avenida e na sua casa magnífica em Connecticut. Pensei no Rolls-Royce preto e amarelo com o brasão na porta.

        — Quando você não possuía nada, não tinha impostos para pagar.

        Sergei compreendeu com certeza o que eu estava pensando porque apertou os olhos.

        — Você foi um trouxa, Sergei, de arriscar tanto por tão pouco, de colocar-se nas mãos de um ladrão por alguns miseráveis dólares.

        — Ao menos, não fui o único.

        Se Sergei queria consolar-se com isso, o problema era dele. Infelizmente, ele tinha razão. A cobiça de Robert fizera-o cair na mesma armadilha e só Deus e Marcel sabiam a quantos mais.

        — E que é que eu faço agora? — perguntou Sergei.

        — Você não vai fazer nada. Deixe que eu faço.

        Sergei estava inteiramente disposto a cooperar.

        Repassei mentalmente o caso todo. Marcel comprara a companhia a Robert em nome de Sergei, explicando que ia ser usada para o transporte dos produtos de Sergei da França para os Estados Unidos. E Robert, sabendo do sucesso de Sergei e prevendo o grande volume de material a ser transportado, fizera a transação sem hesitar.

        Marcel dissera então a Sergei que havia uma parte da Empresa de Fretes De Coyne disponível e vendeu-lhe 5% das ações por quase nada. O nome De Coyne era sinônimo de segurança no espírito de Sergei e quando Marcel lhe disse que havia falado com Robert e este concordara em dar-lhe a presidência, ele se sentira muito lisonjeado. Os dividendos que Sergei recebia e as comissões pagas ao Banco De Coyne satisfaziam a ambos e freavam qualquer curiosidade.

        Na realidade, eu é que era o maior culpado de não saber o que estava acontecendo. Tivera uma leve suspeita desde o momento em que soubera das remessas de armas. Talvez me lembrasse subconscientemente de ter ouvido dizer que Marcel comprara os seus primeiros navios vendendo armas no Oriente. Sabia, portanto, os lucros fabulosos que dava o comércio de armamentos. Mas ao meu jeito eu tinha sido tão cego quanto os outros.

        Olhei para Sergei.

        — Você como presidente da companhia assinava papéis, não era?

        — Assinava.

        — Estão com você esses papéis?

        — Não. Marcel guarda tudo. Diz que assim há mais segurança.

        — Não tem nada então da companhia?

        — Só os certificados das minhas ações.

        — Quero vê-los.

        Sergei pegou o telefone em cima da mesa.

        — Quer fazer o favor de me trazer a pasta vermelha que está no meu arquivo pessoal?

        Um momento depois, a secretária entrou.

        — Foi isto que pediu, Alteza?

        Olhei-a para ver se estava dizendo isso a sério. Estava.

        — Foi, sim. Muito obrigado.

        Quando ela saiu do escritório, não pude deixar de sorrir.

        — Quer dizer que esse negócio de Alteza pegou mesmo, hem?

        Sergei teve a decência de ficar vermelho.

        — Ora, isso é comercial apenas.

        Tirou as ações da pasta e entregou-me. Examinei-as cuidadosamente. Eram do tipo usual impresso com floreados, numa leve sugestão de tratar-se de dinheiro. No alto, o nome da companhia impresso. Depois, batido a máquina, o número das ações que o certificado representava. Embaixo, em cada canto, estavam as duas assinaturas autorizadas. Uma era a de Sergei como presidente da companhia. Olhei para a outra esperando encontrar o nome de Marcel. Mas não. Com o seu instinto de conservação, ele não assinara nada.

        Mas o nome que encontrei me esclareceu muito mais porque juntava tudo — as armas, os bandoleros e o grupo do Dr. Guayanos. A outra assinatura era a de Alberto Mendoza, como secretário da companhia.

 

        O telefone me acordou.

        — Pronto.

        Era um dos funcionários do consulado embaixo.

        — Já tenho a informação que pediu, Excelência.

        Ainda tonto de sono, não me lembrava do que havia pedido. Parece que o funcionário sentiu isso porque disse:

        — Sobre Alberto Mendoza, Excelência.

        — Ah, sim. Quer trazer aqui ao meu apartamento?

        Olhei para o relógio. Quase meia-noite. Lembrava-me de ter chegado ao consulado depois que saíra do escritório de Sergei e de haver pedido que me mandassem tudo o que houvesse sobre Mendoza. Depois, havia subido para tomar um banho de chuveiro. Em seguida, estendi-me na cama para repousar alguns minutos. E era mó de que eu me lembrava até o telefone tocar.

        Sentia a boca seca. As roupas estavam amarfanhadas e coladas ao corpo. Levantei-me e espreguicei-me. Bateram na         porta de leve e eu me dirigi para ela, desabotoando a camisa.

        Ouvi a voz de Gato Gordo do outro lado da porta.

        — Señor Pérez está aqui.

        — Mande-o entrar.

        A porta se abriu e um funcionário de cabelos grisalhos entrou timidamente.

        — Entre, Pérez, — disse eu. — Foi muito gentil       da sua parte ficar trabalhando até estas horas.

        — Foi um prazer, Excelência. Aqui está a informação, — disse ele, entregando-me uma folha de papel datilografada.

        — Obrigado, Pérez.

        — Mais alguma coisa, Excelência?

        — Não, muito obrigado. Já fez demais. Boa noite.

        — Boa noite, Excelência.

        Coloquei a folha de papel em cima da cômoda e li-a enquanto me despia. Alberto Mendoza: idade, 34 anos, nascido a 28-7-1921 em Curatu. Pais: Pedro Mendoza, negociante; Dolores, née García. Instrução: Escola de Jesuítas, Curatu; diplomado com distinção em 1939, Universidade do México; licenciado em Economia e Ciência Política em 1943 pela Universidade da Colômbia em Bogotá. Grau de Mestre em Ciência Política, 1944. Carreira: Nomeado tenente do Exército em julho de 1944. Submetido a conselho de guerra a 10 de novembro de 1945; acusação: distribuição de literatura comunista e tentativa de organizar células comunistas entre as tropas. Veredicto: culpado. Condenado a dez anos de trabalhos forçados. Perdoado na anistia política geral de 1950. Outros fatos: Partiu do Corteguay para a Europa em 1950. Ações e movimento desconhecidos até setembro de 1954 quando se ligou a Guayanos. Nada se sabe sobre a sua vida pessoal.

 

        Sentei-me na cama e tirei os sapatos. Tudo parecia articular-se. O Presidente tinha razão. Havia dito que Guayanos era patrocina- nado pelos comunistas. Pensei em Beatriz e fiquei triste. Com tanta coisa contra nós, nunca mais teríamos uma chance. Não era de admirar que ela pensasse que eu tivera alguma relação com a morte do pai.

        Murmurei um nome e de repente fiquei desperto de vez. Não podia voltar para a cama. Olhei para o relógio. Marcel ainda devia estar acordado. Nunca ia dormir antes das três da madrugada. Não era muito tarde para o que eu tinha de fazer.

 

        Marcel já estava meio bêbado quando abriu a porta. Estava no vestíbulo do seu apartamento balançando um pouco o corpo e sorrindo. Quase caiu por cima de mim, agarrando-se ao meu paletó.

        — Dax, você é incorrigível. Soube de tudo pelos jornais.

        Tive de segurá-lo pelo braço para que não caísse.

        — Tenho lido também algumas coisas.

        Marcel não entendeu.

        — Você sabe que durante algum tempo cheguei a dar você por perdido. Pensei que se tivesse regenerado. Agora, estou mais tranquilo.

        — Sem dúvida.

        — Chegou bem na hora. Estou dando uma festinha, mas já estava ficando meio chata. Vamos.

        Pegando-me pelo braço, ele quase que me empurrou para a sala, que estava em penumbra. Só algumas lâmpadas fracas estavam acesas nos cantos. Duas mulheres estavam sentadas no sofá, com o rosto escondido nas sombras.

        Havia um tom curioso na voz de Marcel quando disse:

        — Acho que conhece as pequenas. Beth, diga alô a Dax.

        — Alô.

        Reconheci a loura de seios grandes que já vira ali em outras ocasiões.

        — Alô, Beth.

        — Não fique sentada aí como uma idiota. Prepare um drinque para Dax.

        Beth se levantou e dirigiu-se para o bar. A outra continuou sentada, sem mover-se, com o rosto ligeiramente virado para o lado.

        — Você conhece Dax, — disse-lhe Marcel sarcasticamente. — Isso é maneira de tratar um velho amigo?

        A mulher olhou para mim, com os longos cabelos negros afastando-se do rosto.

        — Dania!

        — Sim, Dania, — murmurou Marcel. — Nunca esperou encontrá-la aqui, hem? Dania Farkas devia ser muito independente e importante para vir aqui, não é?

        Fiquei calado.

        — Besteira! — gritou Marcel. — É tão ordinária quanto as outras!

        Beth voltou do bar com um copo de bebida em cada mão. Marcel segurou um e me entregou o outro. Beth foi de novo ao bar e voltou com drinques para ela e para Dania.

        — Vamos, Marcel, — disse ela. — Nossa festa está muito sem animação. Bote alguma música na vitrola e vamos dançar!

        — Não, não estou com vontade! — Marcel bebeu metade do copo de uma vez e jogou-se no sofá ao lado de Dania. — Deixe de tanta cerimônia, Dania. Você está entre amigos. — Começou a meter a mão pelo decote do vestido dela, mas Dania afastou-lhe a mão sem dizer nada.

        Beth ligou a vitrola e a música se espalhou pela sala. Curvou- se sobre Marcel, com os seios quase a pularem do vestido.

        — Vamos dançar, ande!

        Até eu podia ver que ela estava com pena de Dania.

        Marcel deu-lhe um violento safanão na mão, fazendo o copo voar longe e ir despedaçar-se na parede.

        — Desligue essa porcaria! Já lhe disse que não estou com vontade!

        Intenso ódio fuzilou por um momento nos olhos de Beth. Ela poderia matá-lo naquele instante se tivesse coragem. Mas pouco depois, a música parou.

        — Você não está no palco diante de uma platéia, — disse Marcel a Dania, com voz fria. — Não é preciso representar. Nem para mim, nem para Dax. Nós dois já a conhecemos bem, já fomos para a cama com você. Pensa que eu não sei? — Começou a rir. — Sei de tudo. Naquela noite em que ele saiu com você do El Morocco e foi levá-la em casa. Só saiu do seu apartamento às cinco da manhã.

        Dania levantou-se.

        — Quer levar-me para casa, Dax?

        — Quer levar-me para casa, Dax? — disse Marcel, arreme- dando-a. — Faça isso sim, Dax! Dizem que você é formidável. Talvez ela queira que você ande de novo com ela. Mas vai perder seu tempo, Dax. É como se você estivesse em cima de uma estátua de mármore. Ela não faz nada senão abrir as pernas. É igualzinha às outras! Sabe por que ela vem aqui? É porque acha que eu ainda posso me casar com ela. Está ficando velha, a voz está acabando e ela tem medo de ficar de mãos abanando quando perder a voz!

        Marcel começou a rir e continuou a falar:

        — Mas acontece que eu não sou tão trouxa assim! Por que iria me casar com ela se posso escolher todas as mulheres que quiser no mundo inteiro? Dania estará sempre à minha disposição enquanto eu tiver dinheiro.

        — Dax, por favor... — murmurou Dania, muito pálida.

        Para mim também já chegava.

        — Vamos, Dania.

        — Pode ir! — gritou Marcel. — Pensa que eu não sei o que você foi fazer na Suíça? Um rei com as mulheres, o maior amoroso do mundo! Porcaria! — disse ele, cuspindo no chão aos meus pés.

        — A única inteligência que você sempre teve foi na cama!

        O meu gênio explodiu. Peguei Marcel por baixo dos braços e fi-lo levantar-se do sofá.

        — Devia matá-lo agora mesmo, cachorro nojento!

        Marcel olhou-me malevolamente.

        — Você não tem coragem para tanto!

        Comecei a sacudi-lo como um animal até que senti no braço a mão de Dania.

        — Dax! Dax? Pare com isso!

        Joguei Marcel com raiva em cima do sofá. Mas ele continuou a falar.

        — Viu o que foi que eu disse? Você só é homem mesmo é para as mulheres! Não teve coragem para fazer o que queria. Houve um tempo em que eu pensei que você tivesse, Dax. Mas, se já teve, não tem mais!

        Olhei-o cheio de desprezo e de nojo.

        Marcel riu.

        Não me olhe assim que eu já conheço esse olhar e isso não me impressiona. Significa apenas que você está-se sentindo muito correto e muito bom em relação a mim. Mas não devia sentir-se assim. Você sempre seguiu o caminho fácil. Sempre foi para onde os instintos o levavam e convenceu-se de que o que você não queria ver não existia. Durante toda a sua vida, você brincou de ser uma porção de coisas e nunca foi nenhuma delas. Você sempre viveu à custa dos outros, Dax. À custa do Presidente, de suas mulheres e até às minhas custas. Já é tempo de você abrir os olhos e ver o que realmente é. Você não passa de um repulsivo parasita, Dax, de um gigolô bem vestido!

        Respirou fundo e continuou:

        — Acha que fez uma grande descoberta na Suíça? Muito bem! E o que vai fazer agora? Nada. Tudo o que fizer irá destruí-lo e a todos os seus amigos.

        Olhei para Marcel. Pela primeira vez, um arrepio de medo me correu pela espinha. Aquele homem estava desequilibrado, louco.

        — Pensa que pode sustar a remessa de armas, Dax? Sabe quem é um dos grandes acionistas da companhia? O Presidente! Acha que eu poderia ter feito alguma coisa sem a ajuda dele? Ele queria o dinheiro e não tinha receio de uma pequena agitação. Dizia que isso ajudaria a unir o povo em torno dele. Mas acontece que a coisa se tornou um tanto maior do que ele esperava e queria. E isso não me preocupa, Dax! Seja quem for que ganhar, o meu lucro é certo!

        Tudo aquilo me fazia mal porque eu sabia que ele estava dizendo a verdade. Voltei-me para Dania.

        — Vamos.

        — Espere que ainda não acabei com você! — Meteu a mão no bolso, tirou uma chave e jogou-a para mim. — Volte depois que andar com ela. Ainda temos contas a ajustar.

        Peguei a chave e guardei-a no bolso.

        — Vá-se embora também! — gritou Marcel para Beth. — Já estou enjoado e farto de você também! Saia!

        Marcel nos seguiu, de copo na mão, até ao elevador. As últimas palavras que disse foram:

        — Volte, Dax, e se eu estiver dormindo, fique esperando até eu acordar!

        O elevador chegou. Quando o mordomo nos abriu a porta da rua para sairmos, eu disse a ele:

        — Vou voltar.

        E pretendia mesmo voltar. A única maneira pela qual se podia encarar Marcel era a mesma pela qual um operador encara um câncer. Marcel destruiria tudo o que o cercava se fosse deixado em paz. O único recurso era extirpá-lo. Havia tomado a decisão. Marcel tinha de morrer. Não havia outra solução.

 

        — Não preciso de táxi, —• disse Beth, quando chegamos à rua. — Moro ali defronte. Marcel gosta de que eu fique perto dele. Bem, boa noite.

        Vimos Beth atravessar a rua e entrar num edifício do outro lado da rua. Chamamos um táxi e eu abri a porta. Dania entrou. Apoiou-se em mim e eu senti o corpo tremer-lhe por baixo da capa de vison. Começou a chorar em silêncio, estremecendo em soluços convulsivos.

        — Não fique assim, — disse-lhe eu. — Afinal de contas, você não tem necessidade alguma de voltar lá.

        — Ah, se eu pudesse!

        — Não me diga que é forçada a ir. Que é que ele lhe pode fazer?

        — Tudo. Só ganho agora bom dinheiro mesmo é com o contrato que tenho com uma gravadora de discos. É ele o dono da companhia.

        — Quando foi que descobriu isso?

        — Hoje. Esta noite. Marcel me telefonou pouco antes de eu sair de casa e me disse que queria que eu fosse conversar com ele a respeito disso. Ficou furioso quando respondi que estava muito cansada. Disse-me que, se eu não fosse lá logo depois do espetáculo, nunca mais gravaria outro disco enquanto o contrato estivesse em vigor.

        — E qual é o tempo que ainda há de contrato?

        — Muito tempo. Sete anos.

        — Mas ele teria de pagar-lhe, apesar disso.

        — Só o mínimo. O dinheiro mesmo que eu ganho é com as percentagens sobre as vendas de discos. Além disso, de acordo com o contrato, Marcel pode impedir-me de cantar em qualquer teatro. Ainda que o teatro quisesse contratar-me, não poderia sem o consentimento dele.

        — Que relação pode ter o seu contrato de gravações com o seu trabalho no teatro?

        — Muita relação. As grandes companhias líricas cobrem os seus déficits gravando óperas completas. A venda desses discos e os direitos pagos pelas estações de rádio dão muito dinheiro. As gravadoras com as quais temos contrato em geral concordam com isso, ainda que não façam as gravações. Tudo beneficia a todos. Mas Marcel poderia negar autorização e nenhuma companhia me contraria.

        — Sete anos não são tanto tempo assim.

        — Para mim, é tempo demais, Dax. Não sou mais uma criança. Já passei dos trinta. Daqui a sete anos, minha voz já não será a mesma coisa. E ainda que seja, quem me contrataria? Haverá novas cantoras mais jovens. Ninguém mais se lembraria de Dania Farkas.

        Quando o táxi parou diante da casa dela, ainda estava tremendo.

        — Quer ter a bondade de subir comigo? Não suportarei ficar sozinha.

        Paguei ao chofer e subi com ela. Quando chegamos à porta do apartamento, ela me perguntou, com os olhos ainda vermelhos:

        — Quer uma xícara de café?

        Aceitei. Entramos no living e ela foi para a cozinha fazer o café. A vitrola estava aberta e eu olhei o disco que estava no prato. Li a etiqueta: Dania Farkas Canta Carmen!

        Liguei o aparelho e a sua voz bela e cheia tomou a sala. Fechei os olhos. Se já houve uma ópera composta para um latino- americano foi aquela e se uma cantora já nasceu expressamente para cantar a Carmen, foi Dania. Naqueles breves momentos de canto, Dania era Carmen.

        Voltou com uma bandeja.

        — Espero que não se incomode. É café solúvel.

        — Desde que esteja quente, não tem importância.

        — Está quente. Vá-se servindo que eu já venho, — disse ela, colocando a bandeja em cima de uma mesinha.

        Estava na minha segunda xícara e no outro lado do LP quando Dania voltou. Tinha vestido um longo robe e se serviu de café. Tomou um comprido gole e, depois disso, pareceu menos pálida.

        — Marcel me disse que havia custado muito a conseguir o controle da companhia, — disse ela.

        Não fiz comentários.

        — Houve um tempo em que eu gostei de Marcel. Mas gostei mesmo. O que acontece é que ele não ama a ninguém senão a si mesmo. Para ele, só existimos para servi-lo.

        O disco terminou. Fiquei ainda ali um momento, com a música a ressoar-me nos ouvidos e então levantei-me.

        — Tenho de ir.

        — Vai voltar à casa dele?

        Vou. Dania chegou junto de mim, encostou a cabeça no meu peito e murmurou:

        — Pobre Dax! Ele domina a você como a mim, como a todos!

        — Não domina nada! — repliquei com voz irritada. — Não domina ninguém! E vai descobrir isso daqui a pouco!

        Dania percebeu intuitivamente quais eram os meus planos.

        — Não faça isso, Dax! Ele não merece os aborrecimentos que você pode ter!

        Sem responder, dirigi-me para a porta. Quando a abri, Dania me fez parar.

        — Eu não sou como ele disse, sou, Dax? Sou uma estátua de mármore?

        O canalha sabia ferir exatamente onde doía mais. Descobrira certeiramente a zona onde eram maiores as dúvidas de Dania. Sacudi a cabeça e beijei-lhe o rosto.

        — Não, você não é absolutamente assim! E que é que um homem como ele pode saber de mulheres? Se não tivesse o dinheiro que tem, teria de contentar-se com a mão.

 

        Gato Gordo entrou no meu quarto quando eu estava botando balas no pequeno revólver. Piscou os olhos rapidamente e o sono desapareceu.

        — Que é que vai fazer?

        — Uma coisa que já devia ter feito há muito tempo.

        — Campion.

        — Sim.

        Gato Gordo hesitou um momento e me disse:

        — É melhor deixar que eu me encarrego disso. Tenho mais experiência.

        — Não, — disse eu, guardando a arma no bolso do paletó.

        — Pode não dar bom resultado para você e para o Corteguay. Já basta o que se fala sobre o caso de Guayanos.

        — Terão mais alguma coisa de que falar. Além disso, eu tenho mais chance de convencer a polícia de que foi um acidente do que você. Que dúvida haverá quando eu disser que estava examinando a arma e ela disparou por acaso?

        Gato Gordo me olhou incredulamente.

        — Afinal de contas, sou embaixador, ou não sou?

        Um momento depois, Gato Gordo encolheu os ombros.

        — Está bem, Dax. Mas tome cuidado. Ainda se lembra mesmo de como essa coisa funciona?

        — Claro que me lembro.

        — Tome cuidado então. Não vá a bala pegar em você.

        Quase três horas depois que eu saíra da casa de Marcel, o taciturno mordomo oriental me abriu a porta. Passava um pouco das quatro da madrugada, mas ele dava a impressão de que nunca dormia.

        — Tenho a chave do elevador, — disse-lhe eu.

        — O Sr. Campion me disse. Não se esqueça de virar a chave quando sair do elevador.

        A porta da sala de Marcel estava aberta. Tranquei a porta do elevador e entrei. As luzes continuavam acesas, mas não havia ninguém na sala.

        A porta do quarto de Marcel estava entreaberta e eu fui até lá e olhei, contendo o impulso que tinha de chamá-lo em altos brados. Era absurdo ser cortês com um homem a quem já se resolvera matar. O quarto estava às escuras. Acendi a luz. A cama estava vazia. Ninguém se deitara nela ainda. Olhei o quarto de vestir e, depois, o banheiro. Não havia ninguém.

        Voltei para a sala e tentei a porta do quarto dos hóspedes. Estava trancada por dentro. Ou Marcel chamara outra mulher e estava lá dentro com ela ou estava dormindo e, com a sua habitual paranóia, trancara a porta. De qualquer maneira, eu não ia ficar esperando para saber. Bati com força na porta e gritei:

        — Marcel!

        Esperei um momento e tornei a chamar. Nenhuma resposta. Voltei para o bar e servi-me um uísque. Tinha certeza ao menos de que ele estava sozinho. Se houvesse alguém com ele, teria havido uma resposta. Com certeza, entrara no quarto e ficara desacordado de tanta bebida.

        Tomei um gole de uísque e nesse momento me lembrei da televisão de circuito fechado. Dei volta ao bar, descobri o botão e apertei-o.

        A porta se abriu e o aparelho demorou um instante a esquentar. O primeiro lugar para onde olhei foi a cama. Estava vazia. Vi então Marcel. Dei um lento suspiro. Alguém me havia tomado a frente. Marcel já estava morto.

        Estava estendido de bruços no chão ao lado da cama. A cabeça estava estranhamente torcida, com os olhos esbugalhados e a língua para fora. Estava em mangas de camisa, com a gola aberta e com uma cordinha de seda preta em torno do pescoço, que depois lhe ia amarrar as mãos nas costas e daí descia para os tornozelos. Estava amarrada de tal maneira que o corpo estava todo arqueado.

        Era uma coisa perversamente simples e executada com perfeição. Quem fizera aquilo era um profissional. Não havia dúvida alguma de que Marcel estava vivo quando o assassino saíra do quarto. Mas só por alguns momentos. Ele com certeza se matara a si mesmo, pois os seus esforços para libertar-se tinham servido apenas para apertar a cordinha em torno do seu miserável pescoço.

        Tomei um bom gole de uísque e fui até ao telefone do bar. Apertei o botão marcado Mordomo.

        — Pronto, Sr. Campion, — disse o homem, com a sua voz de sibilante sotaque oriental.

        — Não é o Sr. Campion. É o Sr. Xenos. Veio alguém falar com o Sr. Campion enquanto estive ausente?

        Houve uma breve hesitação.

        — Não, senhor, que eu saiba, não. Não abri a porta da frente para ninguém depois que o senhor saiu com as senhoras.

        — Acho então que deve chamar a polícia. Parece que o Sr. Campion está morto.

        Desliguei o telefone e acendi um cigarro. Fiquei fumando e bebendo à espera da polícia. Lembrei-me do que me dissera um dia Willie Sutton, um ladrão de banco que eu havia conhecido. Tinha escrito um livro sobre a sua vida de crime e fora durante algum tempo um favorito da sociedade.

        “Não há cofre, casa forte, banco ou prisão que o homem faça e que um homem não possa arrombar para sair ou para entrar, desde que esteja realmente empenhado nisso.”

        Que teria dito Marcel se tivesse ouvido essas palavras? Provavelmente nada. Pensava que era o homem mais sabido deste mundo e que havia previsto tudo.

        E qual era o bem que lhe estavam fazendo naquele momento todos os seus planos e todo o seu dinheiro?

 

        O assassinato de Marcel tinha todos os elementos clássicos que os repórteres adoram e de que se aproveitam ao máximo. A casa bem protegida, o apartamento impenetrável, o quarto trancado e um dos homens mais ricos e mais odiados do mundo como vítima. Havia ainda toques de uma intriga financeira internacional e centenas de fotografias de mulheres belas e de call girls de alto luxo. Era como um presente de Natal para os jornais. Tinham tudo o que queriam menos uma coisa — o assassino.

        Um capitão da turma especializada em homicídios expôs o caso muito bem uma tarde, cerca de uma semana depois, no meu gabinete. A essa altura, já estava começando a parecer que nos conhecíamos muito bem. Não tinha havido um só dia desde o crime em que não nos víssemos.

        — Sr. Xenos, — disse ele, batendo a cinza do cachimbo no cinzeiro da minha mesa, — essa investigação pode levar anos para ser completada. E quando chegarmos ao fim, talvez não estejamos mais perto do culpado do que estamos agora. Não é por falta de suspeitos. Poderia dizer-lhe agora mesmo o nome de cinquenta pessoas no mínimo que teriam bons motivos para matá-lo.

        Sorri intimamente. Aquele polícia não era imbecil, mas se mostrava delicado em não dizer que o meu nome estava entre esses cinquenta.

        — Examinamos tudo no apartamento dele várias vezes e de alto a baixo. Não descobrimos jeito algum pelo qual um assassino pudesse entrar na casa e, muito menos, subir até ao apartamento.

        — Mas houve alguém que fez exatamente isso.

        — Claro. Mas não foram os empregados. A velha pilhéria sobre a culpa do mordomo não se aplica desta vez. Todos os empregados têm álibis indestrutíveis. Bem, já lhe tomei mais tempo do que pretendia. — Levantou-se e estendeu-me a mão. — Vou aposentar-me no fim do ano, Sr. Xenos. Espero que não nos vejamos mais. Ao menos, em circunstâncias assim. Já nos encontramos duas vezes nos últimos dois meses e em ambas as ocasiões um homem tinha sido assassinado.

        Lembrei-me então de que ele me havia interrogado sobre o caso de Guayanos. Apertei-lhe a mão e ri.

        — Espere um pouco, Capitão. Está dizendo isso como se fosse perigoso eu conhecer alguém.

        — Não foi isso o que eu quis dizer. Ora, o senhor sabe perfeitamente o que eu quis dizer.

        — Não é preciso explicar, Capitão. Compreendo. Agora, pode fazer-me um favor?

        — Se estiver ao meu alcance.

        — Gostaria de falar com a filha de Guayanos. Sabe onde posso encontrá-la?

        — Não sabe então? — perguntou, surpreso.

        Sacudi a cabeça.

        — Logo depois do enterro, foi para a terra dela com o tio.

        — Para o Corteguay?

        — Sim, e foi por isso que pensei que soubesse. O seu consulado aqui visou os passaportes.

        Ele não sabia que eu estava na Europa nessa ocasião.

        — Um homem chamado Mendoza foi com eles?

        — Acho que sim. Ao menos, embarcou no mesmo avião com eles. Mas há uma parada em Miami e ele pode ter desembarcado lá. Posso verificar isso, se quiser.

        — Não é necessário, Capitão. Muito obrigado. Não tem tanta importância assim.

        O capitão saiu e eu fiquei pensando. Era estranho que eu de nada tivesse sabido. Deviam ter-me mandado dizer alguma coisa do Corteguay. Mendoza não era homem que Hoyos deixasse passar despercebido. Pedi as listas da chegada e saída de passageiros do aeroporto de Curatu naquela semana.

        Constavam das listas os nomes de Beatriz e do tio, mas não havia nome algum parecido com o de Mendoza. Apesar disso, eu tinha quase certeza de que Mendoza estava no Corteguay. Cheguei a pensar em mandar um telegrama, mas resolvi não mandar. Eu não era da polícia secreta. Hoyos e Prieto que fizessem o seu sujo trabalho.

        A revolução só foi estourar quase dois meses depois. A primeira notícia que tive do levante foi na manhã, do Domingo de Páscoa, o mesmo dia marcado para as eleições. Eu estava no apartamento de Dania. Estávamos sentados na cama tomando o café da manhã quando ela acionou o dispositivo de controle remoto que fazia funcionar a televisão.

        — Você se importa de que eu ligue o jornal do meio-dia?

        — Se eu não tiver de me vestir, não me importo, — disse eu.

        Dania riu e ligou o botão. Um momento depois, a imagem apareceu. Como de costume, era o anúncio de algum sabão. Depois, viu-se uma dessas carinhas bonitas e inexpressivas que não faltam na televisão. “E agora, prezados ouvintes, da redação da CBS em Nova York — as últimas notícias!”

        A tela apresentou um homem de cara séria sentado a uma mesa. O rosto um tanto gordo, o nariz proeminente, os fartos bigodes e os olhos bem grandes formavam um conjunto que inspirava imediatamente confiança. Aquele homem podia estar lendo o que outros haviam escrito para ele, mas era evidente que sabia o que estava dizendo.

        Mordi um pedaço de torrada e olhei.

        “Bom dia. senhoras e senhores. Quem fala é Walter Johnson, do Noticiário CBS. Agora, a primeira notícia.

        “Temos outro boletim sobre a luta no Corteguay”.

        Tive apenas tempo de olhar para Dania e ver-lhe o olhar espantado.

        O homem continuou:

        “As batalhas nas montanhas entre as tropas do governo e os guerrilheiros continuaram durante toda a noite. Os rebeldes ocuparam mais duas aldeias e afirmam que infligiram pesadas baixas às forças legais. De acordo com as suas afirmações, colhidas da sua estação de rádio no local, parecem estar apenas 100 quilômetros de Curatu, capital do país. Dominam quase toda a região norte do país.

        “Enquanto isso, ao sul, outras forças rebeldes têm sido engrossadas pela defecção em massa das tropas regulares do exército e marcham para o norte, a fim de fazerem junção com a concentração de tropas dos rebeldes do outro lado do Curatu.

        “Na capital, foi decretado o toque de recolher. As ruas estão desertas, mas ouvem-se tiroteios esparsos especialmente na zona portuária, onde os soldados estão estacionados para impedir o acesso à cidade pelo mar, atirando em qualquer coisa que se mova.

        “Enquanto isso, várias vezes na manhã de hoje, o Presidente Córdoba falou pelo rádio fazendo um apelo à população para manter-se em calma durante a crise. Pediu às autoridades responsáveis e ao exército que se mantivessem leais ao governo e determinados no que chamou textualmente de “oposição às seduções e promessas dos comunistas ao sul e à ilegalidade e violência dos bandoleros ao norte.” O Presidente Córdoba disse que o que estava havendo não era uma revolução mas a primeira invasão aberta da América Latina pelos comunistas. Alegou que a mesma — palavras dele — “foi planejada, concebida, dirigida e abastecida por homens e forças de fora do país”. Declarou ainda que assumirá amanhã pessoalmente o comando do exército depois de tomar certas providências para a continuação em ordem do governo. Prometeu — torno a citar as palavras dele — “não descansar enquanto não tiver tangido os bandidos para além das fronteiras e do mar de onde vieram”.

        A câmara mudou de ângulo e o locutor pegou outra folha de papel. “O Departamento de Estado em Washington declarou que já tomou providências para a segurança e imediata evacuação dos americanos que estejam no Corteguay, desde que isso seja necessário”.

        Pegou outro papel. “A Pan American Airlines anunciou a suspensão dos vôos para Curatu até que a situação se normalize. As rotas diárias com os pontos de escala de Nova York para Miami, Curatu e Bogotá, passarão a tocar de Nova York em Miami e Bogotá.”

        A câmara mudou novamente de ângulo e o comentarista falou, dessa vez sem notas: “As tentativas de entrar em contato com a embaixada do Corteguay nesta cidade foram infrutíferas. As portas do consulado corteguayo foram fechadas à imprensa desde as primeiras horas da manhã. Não se sabe se o Sr. Xenos, que tanto tem figurado no noticiário ultimamente, está ou não na cidade.”

        Eu já estava fora da cama e meio vestido quando Dania desligou a televisão e se voltou para olhar-me.

        — Que quer dizer tudo isso? — perguntou ela.

        Que queria dizer tudo aquilo? Milhares de pensamentos me passaram pela cabeça. Marcel talvez tivesse razão. Que direito tinha eu de passar as noites fora do consulado quando dentro de mim mesmo sempre soubera que a revolução poderia explodir a qualquer momento? Não era preciso querer saber onde estava a minha inteligência. Marcel o dissera com muita clareza.

        Experimentei um estranho sentimento de culpa, um senso pessoal de tragédia e perda que não havia conhecido desde a morte de meu pai. Havia nos meus olhos a pressão quase invencível das lágrimas.

        — Que quer dizer tudo isso? — tornou a perguntar Dania.

        — Quer dizer, — respondi tristemente, — que em tudo o que eu fiz, e em tudo o que tentei fazer, fracassei por completo!

 

        Quando cheguei ao consulado, não tive tempo para torturar- me com autocríticas. Passei por entre os repórteres com um breve “Sem comentários” e consegui entrar. Gato Gordo e um dos funcionários tiveram de empurrar a porta com o corpo e mantê-la fechada até poder ser trancada.

        — Telefonem para a polícia, — ordenei. — Peçam que mandem alguns homens para isolarem a entrada a fim de poder haver passagem livre. Venha comigo, Gato Gordo.

        A secretária me olhou da sua mesa, com uma expressão de alívio no rosto.

        — Há uma porção de telefonemas, — disse ela. — O Presidente já tentou várias vezes falar com o senhor. Também o Departamento de Estado em Washington...

        — Mande a lista dos telefonemas para o meu gabinete. — Entrei, tranquei a porta e perguntei a Gato Gordo. — A situação é tão ruim quanto diz a televisão?

        — Quién sabe? — murmurou Gato Gordo. — Numa hora destas ninguém diz a verdade. Mas a situação boa é que não está.

        — Giraldo ainda está aí?

        — Está lá em cima, tentando captar as notícias diretamente pelo rádio.

        — Diga-lhe que venha falar comigo.

        Gato Gordo saiu da sala e a secretária me entregou a lista dos telefonemas.

        — Ligue para o Presidente, — disse eu antes mesmo de olhar para a lista.

        Corri os olhos por ela. Parecia que pela primeira vez o mundo estava tomando conhecimento da existência do Corteguay. Havia telefonemas de toda parte — da ONU, dos consulados de vários países e dos jornais. Além do Departamento de Estado, também o senador e os dois congressistas que tinham estado presentes ao jantar em casa dele haviam telefonado.

        O telefone tocou e eu atendi.

        A voz do Presidente estava áspera e irritada.

        — Onde andava você? Passei a noite toda tentando falar-lhe!

        Não tinha desculpa para dar e fiquei calado.

        — Se você estivesse aqui, mandaria fuzilá-lo! — gritou ele.

        Fiquei aborrecido. Essa conversa não adiantava nada.

        — Então mande-me fuzilar para a semana, se até lá ainda estivermos com a quitanda aberta! — gritei no mesmo diapasão. — Até lá, qual é exatamente a situação?

        O Presidente tardou um instante a responder e eu compreendi que a minha reação surtira efeito. Quando respondeu, tinha a voz mais calma.

        — É difícil, mas acho que poderemos aguentar se o resto do exército se mantiver leal.

        — E manter-se-á?

        — Não sei, — disse ele e pela primeira vez notei uma nota de desânimo em sua voz. — Alguns dos que eu pensava que ficariam comigo até à morte — Vásquez, Pardo, Mosquera — já se passaram para os rebeldes com os seus regimentos. Outros que eu sempre julguei que seriam os primeiros a abandonar-me — como Zuluaga e Tulia — ainda estão comigo. Tudo depende do tempo em que eu ainda puder convencê-los de que venceremos.

        — E venceremos?

        — Se tivermos ajuda, poderemos resistir muito tempo. Tenho a impressão de que os rebeldes resolveram atacar agora porque souberam que as remessas das armas seriam sustadas. Se esperassem mais tempo, os seus suprimentos se reduziriam muito. Para eles, era agora ou nunca.

        Como tudo era paradoxal e complexo! O que eu havia esperado conseguir com a morte de Marcel dera um resultado exatamente contrário.

        — De que espécie de ajuda necessita?

        — De tudo o que for possível conseguir. Peça a todos — às Nações Unidas, aos Estados Unidos, a quem quiser escutar. Precisamos de dinheiros, armas, munições, homens, o que puderem dar. Faça-os compreender que, se não nos ajudarem agora, entregarão o país ao comunismo.

        — Pode ser que queiram saber quem são os comunistas, — disse eu. — Talvez não se satisfaçam com a simples alegação de que são os comunistas que estão em armas.

        — A lista será transmitida agora mesmo para o seu telex. El Condor, Mendoza...

        — Mendoza conseguiu entrar no país?

        — Sim, raspou o bigode e passou pela polícia como se fosse invisível. Parece que estava todo mundo interessado demais na sua pequena.

        — E ela está bem?

        — Está em segurança, — disse ele rapidamente. — E a reação por aí qual é? Acha que conseguiremos algum apoio?

        — Não sei. É cedo ainda para dizer. Recebi mais telefonemas do que posso responder.

        — Trate então de responder!

        — Os jornais estão ansiosos por uma declaração!

        — Reproduziram os meus discursos?

        — Sim, e também ouvi trechos pela televisão.

        — Bem, é só do que precisam saber no momento, — disse o Presidente com uma nota de satisfação na voz. — Falarei com você quando houver necessidade de outras declarações.

        Desliguei o telefone e, um instante depois, Gato Gordo e Giraldo entraram no meu gabinete.

        — Como vão as coisas? — perguntou Gato Gordo.

        — Até agora, sob controle.

        — Bueno.

        — Mandou-me chamar, Excelência? — perguntou Giraldo.

        — Você me disse que sabia pilotar aviões pequenos. Pode encarregar-se de um bimotor-Breechcraft?

        — Posso, sim.

        — Ótimo. Gato Gordo, vá com ele para o aeroporto que eu quero que ele examine meu avião. Se for capaz de pilotá-lo, quero que vocês dois vão com ele para a Flórida.

        — Posso pilotar o avião, sim.

        — Muito bem. Leve-o então para o aeroporto de Broward, em Fort Lauderdale, perto de Miami. Se fosse para Miami, poderia chamar muita atenção. Quando chegarem lá, telefonem-me. Posso querer partir para o Corteguay às pressas e a Pan American cancelou todos os vôos para lá.

        — Muito bem, Excelência, — disse Giraldo, saindo logo a seguir.

        Gato Gordo não o acompanhou.

        — Você será um idiota se for para lá agora, — disse-me ele.

        — Não poderá fazer nada.

        — Não estou pretendendo ir. Quero apenas que o avião esteja pronto, caso eu precise de ir.

        — Você seria mais do que um idiota. O melhor que pode fazer é ficar aqui. Indo para lá, talvez só consiga ser morto.

        Talvez ele tivesse razão. Mas eu não podia fazer outra coisa. Havia ficado por demais alheio às coisas.

        — Meu pai teria ido, — murmurei.

        Gato Gordo me olhou em silêncio. Havia ocasiões em que eu não podia fazer a menor ideia daquilo em que ele estava pensando e aquela era uma delas.

        Por fim, encolheu os ombros, com o rosto ainda impassível.

        — Se é o que deseja, está bem.

        Depois que Gato Gordo saiu, peguei a lista de telefones em cima de minha mesa e disse a minha secretária que começasse a fazer as ligações. Todas as pessoas com quem falei externaram o seu sentimento e preocupação com o que estava acontecendo, mas ninguém ofereceu qualquer ajuda concreta. Estavam todos observando e esperando.

        O Secretário da ONU foi muito atencioso mas também muito categórico. Não era caso para a convocação do Conselho de Segurança. Para a ONU tratava-se de uma questão interna e eles não tinham o direito de intervir nos assuntos internos de qualquer país. Mas achava que seria possível eu falar na Assembléia-Geral se os oradores já inscritos para falar na reunião do dia seguinte desistissem. Ia tentar, mas não prometia nem isso.

        O Departamento de Estado queria apenas saber que providências tinham sido tomadas para a segurança dos americanos no Corteguay. Tinham um destróier perto da costa para a evacuação desses americanos caso fosse necessário. Assegurei que todas as precauções tinham sido tomadas e que o Departamento seria avisado se houvesse necessidade de outras medidas.

        Os países latino-americanos se mostraram pesarosos, mas todos lutavam com problemas semelhantes. E a Europa estava apenas curiosa, como estaria em qualquer jogo de forças entre as potências. Aquilo era considerado apenas como um episódio da luta entre as esferas de influência do Ocidente e do Oriente. Embora me parecesse que nos eram favoráveis, estariam dispostos a entender-se com os rebeldes se fosse necessário. O certo é que os países da Europa não queriam envolver-se no conflito. Quanto às novas nações da Ásia e da África, a nossa situação era bem conhecida deles e lhes lembrava os mesmos problemas que estavam enfrentando.

        Por fim, cheguei na lista ao senador, que me disse imediatamente:

        — Gostaria de conversar com o senhor amanhã. Pode vir até aqui?

        — Infelizmente, não. Talvez tenha de falar na Assembléia- Geral da ONU amanhã à tarde.

        — Já falou com algum congressista?

        — Não. Ainda não tive tempo de responder a todos os telefonemas.

        — Não fale então com eles. Iremos até aí amanhã. Acha que poderá chegar ao apartamento de minha irmã sem ser observado?

        — Posso tentar.

        — A que horas?

        — Quanto mais cedo, melhor. Há menos probabilidade de que os repórteres já estejam acordados.

        — Então, às seis horas para o breakfast?

        — Muito bem. Estarei lá.

        Desliguei o telefone e fiquei pensando por um momento. Que estaria querendo fazer o senador? Que mais poderia ele fazer quando o seu governo me tratara com tanta frieza? Não cheguei a uma solução imediata e peguei de novo no telefone.

        Gato Gordo entrou enquanto eu esperava a próxima ligação.

        — Por que tenho de ir com Giraldo? Você sabe que eu não entendo nada de aviões.

        — Mas pode ficar de olho nele.

        — Não confia no homem?

        — Não sei. Num momento destes, não podemos nos arriscar. Aquele avião é o único meio que eu tenho de voltar para o Corteguay se precisar. Não quero, portanto, perdê-lo.

        — Que é que eu farei se ele tentar sabotar o avião enquanto estivermos no ar?

        — Começar a rezar, — disse eu, enquanto o telefone tocava.

        — Vaya con Dios.

 

        Consegui sair sem ser observado pela porta do porão do consulado e dali para o edifício vizinho pela passagem entre os dois prédios. Saí então para Madison Avenue e peguei um táxi para o apartamento da irmã do senador, que não ficava longe.

        Falara duas vezes durante a noite com o Presidente. As notícias não eram nada boas. Os bandoleros ao norte já estavam a cerca de 70 quilômetros de Curatu e haviam capturado a cidade principal na estrada do sul. O Presidente havia mandado todas as suas reservas para Santa Clara com ordem de ali opor uma resistência até à morte. E Santa Clara ficava a apenas 30 quilômetros de Curatu, pouco além do aeroporto.

        As notícias boas só o eram porque deixavam de ser ruins. Os regimentos que haviam passado para o inimigo no sul estavam paralisados mais em consequência de confusão do que por qualquer oposição que tivessem enfrentado. Havia já divergências entre vários coronéis e, apesar disso, as tropas leais não haviam conseguido grandes êxitos. Mas, pelo menos, haviam conseguido impedir que os rebeldes cercassem Curatu e fizessem junção com as tropas do norte. Quando conseguissem isso, Curatu ficaria isolada do resto do país e a guerra estaria virtualmente terminada.

        A irmã do senador me abriu a porta. Tinha o rosto muito sério e, como o irmão, não perdeu tempo em delicadezas.

        — Estão esperando na sala de jantar.

        O senador estava sentado à cabeceira da mesa, com os outros agrupados em tomo dele. Havia entre eles uma pessoa que eu não havia esperado. George Baldwin, do consulado americano em Curatu.

        A minha curiosidade a respeito dele foi logo satisfeita. Estava em Washington desde a semana anterior, dando as últimas informações.

        — Havia muito que esperávamos por isso, — disse ele. — Mas não sabíamos exatamente quando ia ser.

        — Com licença? — perguntei, estendendo a mão para a cafeteira. O senador fez um gesto de assentimento e eu enchi a minha xícara. — Bem, senhores, queriam ver-me e aqui estou.

        — Todos nós aqui, — disse o senador sem hesitação, — julgamos ter-lhe feito uma grande injustiça. E, consequência disso, cometemos um erro desastroso.

        — Por que chegaram a essa conclusão? — perguntei.

        — Havíamos todos presumido que estivesse envolvido no assassinato do Dr. Guayanos. Quando Baldwin chegou na semana passada esclareceu tudo.

        — É verdade, — disse Baldwin. — Temos bem fundados motivos para crer que foi Mendoza que mandou matá-lo.

        — Mendoza?

        — Sim. Parece que Mendoza compreendeu que, se Guayanos aceitasse a proposta do Presidente, o poder e a influência dele, Mendoza, em breve desapareceriam. Poderia ser até desmascarado como comunista e responsável pelo comércio das armas. Mendoza tomou então providências para que Guayanos fosse assassinado, sabendo que a culpa seria atribuída a você ou ao Presidente. Só ficou ferido porque, quando se jogou ao chão, uma bala o atingiu de ricochete no braço.

        — Quem lhe disse? — perguntei.

        — Temos as nossas fontes de informação. E em Nova York as nossas são melhores do que as suas.

        Não discuti. Era curioso que Beatriz me culpasse da morte do pai e ajudasse o verdadeiro assassino. Voltei-me para o senador.

        — Muito bem. Fico satisfeito em saber dessa mudança de atitude.

        Mas eles bem sabiam que o que não dizia era bem mais importante do que o que eu havia dito. O importante era saber o que estavam dispostos a fazer. O senador se incumbiu de esclarecer esse ponto.

        — Todos nós, inclusive George, estamos querendo decidir sobre a imediata concessão de um empréstimo ao Corteguay.

        — Muito obrigado, — disse eu. — Não estou em posição de recusar, a minha impressão é de que o seu governo, como de costume, chega muito tarde para que a sua ajuda tenha qualquer sentido.

        — Que poderíamos fazer que tivesse sentido? — perguntou o senador.

        — Poderiam pedir ao governo americano que mandasse tropas para restabelecer a ordem. Não para manter o Presidente no poder mas para dar ao povo oportunidade de eleger um novo governo numa eleição objetiva.

        — Bem sabe que não poderíamos fazer isso, — disse o senador. — O mundo inteiro nos censuraria a intervenção.

        Terminei o meu café e disse com a maior calma possível:

        — Só quero fazer-lhes uma pergunta. Que têm feito todos estes anos em meu país senão intervir? Intervieram não fazendo nada, intervieram quando só reconheceram o nosso governo na ocasião em que não era mais possível desconhecê-lo, intervieram oferecendo um empréstimo sob a condição de que eu usurpasse o poder. Será que não consideram isso intervenção e julgam que se trata apenas de boa política?

        Não esperei que me respondessem e levantei-me.

        — Perdoem-me a opinião, mas creio que as grandes potências do mundo — e isso abrange tanto os Estados quanto a Rússia e a China — estão constantemente intervindo nos assuntos dos seus vizinhos menores. Apesar da nobreza dos motivos dos senhores, que não tenho a menor dúvida em reconhecer, o que sempre houve e há não é nada mais do que isso — intervenção.

        Ficaram em silêncio. Então, George me perguntou:

        — Qual é a situação hoje de manhã?

        — Não é boa, — disse eu. — As tropas do governo estão entrincheiradas em Santa Clara, pouco além do aeroporto. Curatu fica quarenta quilômetros ao sul. Muito obrigado, senhores, pela atenção que me dispensaram.

        O senador me levou até à porta.

        — Sinto muito, Dax. Mas o que está pedindo é impossível e bem sabe disso. Não poderíamos mandar tropas para o seu país, mesmo a pedido do seu governo. O mundo inteiro nos acusaria de imperialismo.

        — Algum dia, farão exatamente isso. Terão então de reconhecer que são realmente responsáveis por tudo o que acontece na esfera de influência dos Estados Unidos. Não farão isso agora, talvez não o façam da próxima vez. Mas bastará um país americano cair em poder dos comunistas e terão de fazê-lo.

        — Espero que isso não aconteça, — disse o senador. — Não gostaria de tomar uma decisão dessas.

        — Uma das responsabilidades do poder é a obrigação de tomar decisões.

        Um certo embaraço transpareceu no seu olhar.

        — Cometi pessoalmente um erro, Dax. Sinto muito.

        — Meu pai dizia que os erros eram o começo da experiência e a experiência o começo da sabedoria.

        Despedimo-nos e eu voltei para o tumulto do consulado. Quando lá cheguei, encontrei um recado em cima de minha mesa. O avião havia chegado à Flórida sem novidades.

        Houve um leve rumor polido de aplausos depois do meu discurso, mas tive a impressão de que haviam partido mais das galerias para o público em cima do que dos delegados reunidos no recinto. Desci lentamente da tribuna e voltei para a minha cadeira. Atrás de mim, ouvi o bater do martelo do presidente encerrando a sessão.

        Não olhei nem para a direita nem para a esquerda, quando me sentei. Não desejava causar embaraços a qualquer dos delegados parecendo estar procurando a aprovação deles. Já muitos deles se iam retirando da grande sala. Havia um estranho silêncio em lugar das animadas conversas sempre que iam saindo. Um outro parou junto à minha cadeira por um momento e murmurou uma palavra bondosa. Mas a maioria passou em silêncio, evitando olhar para mim. Fiquei desanimadamente sentado ali. Não adiantava, nada adiantava. Havia falhado mais uma vez.

        Que poderia eu dizer àqueles homens que já sabiam tanto que pudesse alterar as opiniões que já haviam formado? Eu não era orador, homem de frases convincentes e gestos inflamados. Na metade do tempo, proferi palavras que nem a mim convenciam. Comecei lentamente a guardar os meus papéis na pasta.

        As notícias chegadas naquela tarde, antes da minha partida para a assembléia, não tinham sido boas. E essas notícias eram quase todas procedentes do noticiário do rádio e da televisão. Não havia conseguido falar com o Presidente naquele dia. E pouco antes da minha saída do consulado, as estações de rádio diziam que havia renhida luta nas imediações de Santa Clara e que as forças legais estavam recuando.

        — Foi um bom discurso, — disse alguém.

        Era Jeremy Hadley. Havia uma expressão de compaixão nos olhos dele.

        — Você ouviu?

        — Não perdi uma palavra. Estava nas galerias. Você se saiu muito bem.

        — Mas não suficientemente bem. Pelo menos, os outros delegados assim pensaram.

        — Sentiram profundamente o que você disse, Dax. É a primeira vez que os vejo saírem daqui nesse silêncio. Não há nenhum deles que não sinta no fundo do coração a vergonha da situação.

        — Que é que adianta isso, Jeremy? Amanhã, nenhum deles se lembrará mais de que ficou envergonhado. O que disse será apenas mais algumas palavras perdidas entre os milhões que ficarão enterrados para sempre nos arquivos da ONU.

        — Você se engana, Dax. Daqui a anos os homens se lembrarão do que você disse aqui hoje.

        — Mas não se lembrarão agora. Para o Corteguay é o imediato que interessa e não o que se possa pensar amanhã.

        Acabei de guardar os papéis na pasta, fechei-a e levantei-me. Saímos juntos.

        — Quais são os seus planos, Dax?

        — Vou voltar.

        — Para o Corteguay?

        — Sim. Já fiz tudo o que podia fazer aqui e não tenho outro lugar para onde ir.

        — Será perigoso para você. E que poderá fazer? A guerra está quase terminada.

        — Não sei o que posso ainda fazer. Mas uma coisa eu sei. Não posso ficar aqui ou em qualquer outro lugar. Não posso viver com a ideia de que nesta hora, desta vez, não fiz tudo o que me era possível fazer.

        — Quanto mais o conheço, menos o entendo, Dax, — disse ele, com um estranho respeito nos olhos.

        Não respondi. Olhei para a grande sala vazia. Tantas esperanças humanas haviam nascido ah. E tantas morreriam, como as minhas haviam morrido.

        Jeremy devia ter pensado a mesma coisa, porque, quando o olhei, o seu rosto estava muito triste. Estendeu-me a mão.

        — Como você mesmo, diz, Dax, vaya con Dios!

 

        Eram mais ou menos quatro horas da madrugada e ainda estava escuro quando sobrevoamos a costa do Corteguay. Tínhamos saído havia pouco mais de quatro horas do Panamá. Olhei para baixo, procurando devassar a escuridão, mas não pude ver nada. As luzes que eram habitualmente acesas estavam apagadas naquela noite.

        Olhei para o indicador de combustível. Marcava pouco mais de meio tanque e o tanque de reserva ainda estava intacto. Isso era tranquilizador. Quando nada, tínhamos gasolina suficiente para voltar, se fosse necessário.

        — Ligue o rádio, — disse eu a Giraldo. — Vamos ver se pegamos alguma coisa.

        Ele sacudiu a cabeça. Tinha o rosto estranhamente verde da iluminação da carlinga. Ligou o rádio e a música de um samba inundou a cabina.

        — Você pegou o Brasil.

        Giraldo começou a rodar o dial. Parou em 120 megaciclos.

        — Curatu é aqui, — disse ele. — Não estão no ar.

        Esperei um momento. Em geral, a estação de Curatu ficava no ar a noite toda. Mas nada havia.

        — Experimente a faixa militar e a da polícia.

        Giraldo obedeceu prontamente. Mas, por mais que rodasse o dial, nada conseguiu.

        — Se houvesse alguma luz, — disse eu, — tentaria pousar em algum campo. Mas não estou enxergando nada.

        — Podemos circular um pouco, — disse Giraldo. — Não tarda a amanhecer.

        — Não, temos de poupar o combustível. A reserva que temos é a conta para voltar.

        — Que vai fazer então? — perguntou Gato Gordo atrás de mim.

        — Tentar o aeroporto.

        — E se Santa Clara tiver caído em poder dos rebeldes? Neste caso, já devem ter ocupado o aeroporto.

        — Só podemos ter certeza disso depois de pousarmos. Não desligarei os motores e se houver alguma coisa suspeita tomaremos a levantar vôo.

        — Santa Mãe de Deus! — murmurou Gato Gordo.

        Virei para o norte sobre o mar. Só voltaríamos para terra no último instante possível.

        — Ligue a faixa aérea.

        Giraldo mexeu no rádio.

        — Pronto.

        Três minutos depois, virei para oeste, sobrevoando a terra. A voz que vinha pelo rádio pareceu de súbito trovejar dentro da cabina. Quem era estava falando em inglês, mas parecia muito nervoso. O sotaque era tão pronunciado que chegava a ser quase ininteligível.

        — Vou responder, — disse eu. O meu inglês era suficientemente bom para convencer a um corteguayo comum de que eu era estrangeiro, ao menos pelo telefone ou pelo rádio.

        Apertei o botão do microfone.

        — Fala o avião particular licença dos Estados Unidos número C-310395 pedindo permissão para pousar no aeroporto de Curatu. Favor dar-nos instruções de pouso.

        A voz ainda estava nervosa.

        — Quer identificar-se novamente?

        Repeti o pedido, falando dessa vez mais devagar.

        Houve um momento de silêncio. Depois uma pergunta:

        — Quantas pessoas a bordo do avião? Favor declarar o objetivo da visita.

        — Três pessoas a bordo. Piloto, co-piloto e um passageiro. Avião fretado por uma agência jornalística americana.

        Dessa vez, o tempo de espera foi de quase um minuto.

        — Está na nossa tela de radar a cerca de oito quilômetros a oeste e cinco quilômetros ao sul do aeroporto, seguindo no rumo norte. Continue até lhe darmos o sinal de virar para o sul e tomar o seu plano de pouso. Confirme e repita.

        Confirmei e repeti.

        — Que é que acha? — perguntou Gato Gordo.

        — Parece OK, a menos que o exército tenha-se passado para os rebeldes. De qualquer maneira, vamos saber dentro de poucos minutos.

        Deram-nos o mínimo de luzes necessário para o pouso. Logo que as nossas rodas tocaram a pista, as luzes se apagaram e nós fizemos táxi com as nossas próprias luzes para o edifício fracamente iluminado do aeroporto.

        — Está vendo alguma coisa? — perguntou Gato Gordo.

        — Ainda não, — disse Giraldo.

        Um momento depois, chegamos ao pátio de carga. Virei o avião, com o motor em funcionamento para que pudéssemos sair dali da mesma maneira por que havíamos chegado.

        De repente, vimos soldados que corriam de todos os lados, cercando o avião. Havia pelo menos uns quarenta, todos eles armados de fuzis.

        — São nossos ou deles? — perguntou Gato Gordo inquieto.

        Olhei à luz dos nossos faróis. Um homem baixo marchava pomposamente para onde estávamos, envergando uma farda de capitão. Ri de repente e desliguei os motores.

        — Nossos!

        — Como é que você sabe?

        — Olhe! — disse eu, apontando.

        Não era possível confundir o homem. Prieto. Vestido com um uniforme de oficial. Sorri. Nunca em minha vida havia pensado que teria prazer em tomar a ver Prieto.

 

        — Como vão as coisas? — perguntei depois de entrarmos no edifício do aeroporto.

        A única iluminação era de um abajur aceso em cima da mesa de Prieto, que nos serviu café.

        — Ainda há luta em Santa Clara.

        Peguei a xícara e tomei muito satisfeito um gole de café.

        — Soubemos que Santa Clara havia caído.

        — Não. Os rebeldes estão a uns dois quilômetros da cidade. Estão entrincheirados, à espera das forças do sul que vão juntar-se a eles.

        Houve algum movimento lá fora. Depois, ouviu-se um tiro e, a seguir, um grito. Silêncio. Olhei para Prieto.

        — Os homens estão nervosos, — disse ele, com um sorriso fraco. — Atiram em tudo o que se move, até nas sombras. Depois, gritam.

        — Alguns rebeldes já tentaram chegar aqui?

        — Alguns, mas morreram todos, — disse Prieto. Pegou um cigarro e eu notei que a mão dele tremia um pouco. — Pegamos vocês no radar a uns oitenta quilômetros de distância. Pensamos logo que era você mas só tivemos certeza depois que se identificou.

        — Estavam-me esperando?

        — De Nova York tivemos notícia de que você vinha para cá. Foi o Presidente que calculou que viria no seu avião. Mandou um carro para esperá-lo desde o fim da tarde.

        Acabei o café e disse:

        — Ótimo. Já estou pronto.

        Prieto levantou-se lentamente.

        — Você pensou que fui eu que matei Guayanos, não foi?

        Sacudiu a cabeça em silêncio.

        — Devia conhecer-me melhor. Se fosse eu, Mendoza não teria escapado. Era muito mais importante.

 

        Disse a Giraldo que ficasse tomando conta do avião até receber novas ordens minhas. Depois, Gato Gordo e eu tomamos o jipe do exército e fomos para a cidade. Havia seis lugares. Gato

        Gordo e eu íamos no meio, com o motorista e outro soldado na frente. Atrás, iam mais dois soldados. Todos tinham os fuzis em posição de atirar, salvo o motorista.

        Viajamos de faróis apagados até entrarmos a um quilômetro mais ou menos da cidade. Havia ocasiões em que eu me espantava de que o motorista estivesse vendo alguma coisa, mas aparentemente ele conhecia a estrada. Quando afinal os faróis foram acesos, não precisávamos mais deles. O céu já estava começando a clarear para os lados do oriente.

        Duas vezes, nos arredores da cidade e, depois, nas primeiras ruas, tivemos de parar diante de barreiras no caminho. Em ambas as vezes, os soldados se limitaram a olhar para o jipe e fizeram sinal para passarmos. Deviam ter tido notícia da minha chegada. Já era dia claro quando o carro parou no pátio do palácio do Presidente. Saltamos e entramos.

        Um capitão do exército estava à nossa espera junto à porta.

        — Sr. Xenos, o Presidente pediu que fosse levado imediatamente até ele.

        Seguiu-o pelo corredor até ao gabinete presidencial. O capitão bateu na porta e, sem esperar - resposta, abriu-a, afastando-se para que eu passasse.

        O Presidente estava no centro de um grupo de oficiais reunidos em torno da sua mesa. Sorriu ao ver-me. Levantou-se prontamente e veio ao meu encontro, abrindo os braços.

        — Dax, meu filho! — exclamou ele, calorosamente. — Como estou contente de você ter chegado a tempo de ver o fim!

        Fiquei atônito enquanto ele me abraçava. Não esperava encontrá-lo assim. Animado, quase alegre.

        Não era assim que um homem agia nos seus funerais.

 

        — Fiquei ao lado do Presidente olhando para o mapa estendido em cima da mesa. Estava coberto de cruzes e pontos, cada qual de uma cor. Não compreendi nada até ele me explicar.

        — A única chance que tinham era vencer prontamente. Rapidez. Três dias, no máximo quatro. Tirando daí, tudo estará resolvido assim! — disse ele, estalando os dedos.

        Os oficiais em torno de nós murmuraram a sua aprovação.

        — Compreendi isso imediatamente, — disse ele com uma nota de satisfação na voz. — Tinham tantas armas, tantas munições. O que tinham era ótimo se eles se limitassem a prosseguir nas suas incursões, mas não chegava para uma guerra. Tomei uma decisão imediatamente. Vamos recuar das montanhas e deixar que estirem as suas linhas de abastecimento e gastem a sua munição. Vamos deixar que pensem que estão vencendo para que esgotem a sua capacidade de abastecimento. E foi o que fizeram. Estão a quase quinhentos quilômetros das montanhas e nada deixaram para manter as linhas de abastecimento. Não têm caminhões. Apenas alguns automóveis e cavalos e burros. — O Presidente riu. — Imaginem só! Cavalos e burros nesta época!

        Os oficiais riram quase em coro, mas ficaram em silêncio logo que ele recomeçou a falar.

        — Podíamos organizar a resistência em Santa Clara, que fica tão perto da cidade que eles podiam pensar que tinham uma chance. Naturalmente, parariam ali e pediriam reforços aos traidores ao sul para prosseguirem na marcha sobre Curatu.

        “Mas só havia um meio pelo qual os traidores ao sul poderiam ajudá-los. A estrada estava bloqueada pelas tropas leais, de modo que eles teriam de deslocar-se para oeste, contornando as nossas tropas pela península. Ontem pela manhã, começaram a marchar. À noite, as três divisões, com alguns dos rebeldes, estavam na península. Fizemos então a nossa manobra contra eles. Duas divisões blindadas e três de infantaria bloquearam-lhe todas as passagens. Ficaram apenas com um caminho de fuga: jogarem-se dentro do mar.”

        O Presidente me olhou com um ar de triunfo.

        — Os coronéis traidores compreenderam imediatamente que haviam caído numa armadilha e que não tinham qualquer esperança de fuga. Já nesta manhã tive notícia de que iam pedir condições para a sua rendição. E agora, já de manhã, quando passou há muito o tempo de chegarem os reforços, os bandoleros em Santa Clara estão começando a perceber que se estenderam demais. Já recebi informações de que alguns deles estão começando a desertar. Mas estes também vão ter uma surpresa. Duas divisões blindadas, levadas do oeste, estão agora entre eles e as montanhas. Vão ser completamente esmagados!

        — Senti a cabeça rodar e os olhos pesados de sono. Mas as notícias eram tão invariavelmente más, — disse eu.

        — Parecia que estavam vencendo.

        — E estavam a princípio, — disse o Presidente, sorrindo. — Mas quando pus o meu plano em ação, proibi que se dessem quaisquer notícias nesse sentido. Uma palavra sobre a nossa possível vitória e eles poderiam recuar a tempo de livrar-se da armadilha. E eu estava empenhado em que dessa vez não escapassem. Tinham de ficar sabendo de uma vez por todas que eu sou o governo, que eu sou o Corteguay!

        O Presidente olhou para mim e voltou-se para os outros.

        — No momento, é só, senhores.

        Só falou depois que todos saíram e a porta se fechou. Depois, fez um gesto de desprezo.

        — São todos uns canalhas e covardes! Acham que eu não sei que estavam esperando para ver qual era o lado que tinha mais probabilidades de ganhar para então se decidirem!

        Os anos pareciam haver-se afastado do velho. Estava tão forte e cheio de vitalidade como sempre fora.

        O Presidente me pegou pelo braço e disse:

        — Você foi o único de quem nunca duvidei! Sabia que viria ficar ao meu lado, acontecesse o que acontecesse. Não foi preciso me dizerem que você vinha para cá. Eu já sabia.

        Fiquei calado.

        Ele voltou para a sua cadeira e sentou-se.

        — Você deve estar muito cansado da viagem. Vá para o meu apartamento, tome um banho e repouse. Haverá uma farda nova para você quando acordar.

        — Uma farda?

        — Claro. Você ainda é coronel do exército, não é? Além disso, tenho uma missão para você. Estou muito ocupado e não posso sair daqui. Você participará como meu representante das negociações com os traidores no sul.

        — No sul?

        — Sim. Para os bandoleros do norte, não haverá rendição. Vou matá-los todos!

 

        No dia seguinte, às dez horas da manhã, a chuva caía pesadamente do lado de fora da cabana onde eu esperava os oficiais rebeldes. Da janela, viam-se vários carneiros e uma cabra que pastavam no campo, indiferentes à chuva que caía.

        O Coronel Tulia voltou-se da porta e disse:

        — Aí vêm eles!

        Levantei-me e fiquei de frente para a porta, enquanto ele dava volta à mesa para colocar-se um pouco ao meu lado. Ouvi o barulho dos fuzis quando os guardas apresentaram armas e eles entraram. Estavam com os uniformes molhados e enlameados e os rostos abatidos e exaustos. Logo que passaram pela porta, pararam e ficaram a olhar-nos.

        Eu já conhecia aqueles homens. O Coronel Tulia provavelmente os conhecia havia anos e os tratava pelo nome de batismo. Com toda a certeza, dava-se com a família deles. Contudo, estávamos todos ali em silêncio. As formalidades tinham de ser observadas.

        Um jovem capitão do estado-maior de Tulia fez as apresentações.

        — Coronel Vásquez, Coronel Pardo. — Fez uma breve pausa. — Coronel Xenos, Coronel Tulia.

        Os dois oficiais deram um passo à frente e fizeram continência. Respondemos a continência. O jovem capitão fechou a porta.

        — Não querem sentar-se, senhores? — disse eu, apontando as cadeiras diante da mesa. Olhei para Gato Gordo que estava num canto atrás de nós. — Quer mandar trazer café?

        Gato Gordo já ia saindo, mas lembrou-se e virou o corpo desajeitadamente, fazendo continência de tal maneira que as costuras da túnica muito justa quase se rebentaram. Dissimulei um sorriso, respondi à continência e voltei-me para os outros.

        — Só estão dois aqui, — disse eu. — Disseram-me que haveria um terceiro, o Coronel Mosquera, se não estou enganado.

        Os dois coronéis se entreolharam rapidamente.

        — O Coronel Mosquera foi morto acidentalmente hoje de manhã quando limpava o seu revólver, — disse Vásquez.

        Olhei para Tulia. Nós ambos sabíamos o que queria dizer aquilo. Não fora acidente. Na linguagem do exército, isso significava que Mosquera se havia suicidado.

        Gato Gordo voltou à sala com quatro canecas de fumegante e forte café do Corteguay.

        — Vamos tratar do assunto que nos reúne aqui, senhores?

        Os coronéis assentiram.

        Abri a pasta, tirei os papéis datilografados e coloquei-os em cima da mesa.

        — Presumo que já tenham lido a minuta deste documento que lhes foi mandada ontem à noite e que compreenderam tudo e aceitam todas as condições.

        — Há apenas uma condição que eu gostaria de ter a sua permissão para discutir, — disse Vásquez.

        — Pode falar.

        — É a cláusula seis, relativa à punição individual do pessoal, de acordo com a patente, a responsabilidade e a         culpa, conforme for determinado em conselho de guerra.

        — Sim, Coronel. Qual é a pergunta?

        — Não se trata de uma pergunta. O Coronel Pardo e eu estamos perfeitamente dispostos a aceitar a         punição que nos for imposta. Mas pensamos que só nós é que devemos ser punidos. Os oficiais e os soldados sob o nosso comando limitaram-se a cumprir as ordens recebidas. São bons soldados e aprenderam a obedecer aos seus superiores sem discussão. Não têm evidentemente culpa alguma do que aconteceu.

        — É verdade, — disse o outro coronel. — Não é possível punir três regimentos porque foram mal comandados.

        — Não é essa a nossa intenção, senhores, — disse eu. — Os seus comandados se tomaram culpados de insurreição e rebelião contra o governo. Tenho certeza de que sabiam o que estava acontecendo e apesar disso, atiraram nos seus companheiros de armas.

        Os dois oficiais não replicaram.

        — Redigi a cláusula seis com muito cuidado e de maneira muito explícita, — disse eu. — Qualquer excesso de severidade e de injustiça será tanto quanto possível evitado. Chamo-lhes a atenção para as palavras “punição individual do pessoal”. Isso quer dizer que não haverá julgamento coletivo em que um homem possa ser punido pelos erros dos seus companheiros. Cada qual será julgado separadamente.

        — Peço anistia para os meus homens... — disse Vásquez.

        — Sinto muito, Coronel, mas não tenho autoridade para modificar as condições apresentadas. Foram lidas e aprovadas pelo Presidente.

        Pardo hesitou um momento e disse:

        — Vou assinar.

        Um instante depois, Vásquez assinou e, em seguida, Tulia e eu. Levantamo-nos todos.

        — Ficarão com os seus homens sob a custódia do Coronel Tulia. Na ocasião própria, ele dará as instruções necessárias.

        — Sí, Coronel, — disseram eles, fazendo continência.

        Respondi à continência e, antes de saírem, o Coronel Vásquez voltou-se para mim.

        — Peço desculpas das minhas lágrimas, Excelência.

        Olhei-lhe o rosto triste e cansado e disse:

        — As suas lágrimas fazem-lhe honra, Coronel.

        Vásquez dirigiu-se para a porta. A guerra no sul havia acabado.

 

        Mas a guerra no norte não acabara ainda. Os bandoleros não eram soldados. Não lutavam de acordo com as regras da guerra. Para eles, a guerra não era um jogo como o xadrez em que, quando a situação está perdida, abandona-se. Para eles, a guerra era até à morte. Continuariam a matar até o momento em que fossem mortos.

        E morriam. Às centenas. Mas, antes de morrer, matavam e não apenas os soldados mas tudo o que lhes surgia pela frente. Passavam pela terra como a peste e como a peste a sua ferocidade era contagiosa. Os nossos soldados se tornaram insensíveis e impiedosos. Dentro de poucos dias, não se distinguiam do inimigo. Começaram também a destruir tudo o que aparecia, apenas para chegarem ao inimigo.

        As estradas ficaram atulhadas de campesinos, mulheres e crianças, que fugiam ora para um lado, ora para o outro. Não sabiam quem era amigo ou inimigo deles, nem de que lado estava a segurança. As notícias que chegavam a Curatu, contadas pelos refugiados, eram quase impossíveis de acreditar.

        O assassinato e o estupro eram coisas comuns, a tortura e a morte se haviam tornado uma maneira de viver. E a ilegalidade era comum a soldados e bandoleros. Entre ambos os lados, aldeias inteiras foram arrasadas em nome da guerra. Os bandoleros agiam pelo receio de que os moradores pudessem revelar-lhes os esconderijos ao exército e este reagia porque tinha receio de que os campesinos pudessem dar ajuda aos bandoleros. Colhidos entre dois fogos, os pobre campesinos não tinham outro remédio senão morrer, porque se os soldados não os matassem, os bandoleros matariam.

        E por bandolero que o exército matasse, outro conseguia passar por entre as suas linhas. Mas o exército continuava a persegui-los implacavelmente. De dia para dia, a guerra se tornava mais cruel, mais desumana. Não era mais batalha. Era um extermínio total.

        Na quinta manhã depois da minha volta do sul, o Presidente me pediu que o levasse no avião para sobrevoar os campos de batalha. Queria ver pessoalmente o andamento da guerra. Voamos à claridade brilhante do sol sobre a terra mais desolada que olhos humanos já viram. Tudo parecia ter sido literalmente arrasado. Em muitos lugares, as plantações do inverno ainda fumegavam e centenas de animais mortos apodreciam. Aldeias inteiras tinham sido incendiadas e as casas que ainda restavam de pé estavam vazias e em silêncio. Não se via o menor sinal de vida.

        De vez em quando, embaixo, nas estradas, um veículo do exército passava ou um contingente de soldados marchava para o norte. Mas, fora disso, as únicas pessoas que víamos eram grupos de refugiados, curvados sob a sua carga, que rumavam para a segurança de Curatu. Só vimos verdadeiramente guerra quando já estávamos quase chegando às montanhas, não muito longe da minha hacienda.

        Vimos então todo um regimento que sitiava uma pequena aldeia. Os soldados tinham canhões e morteiros É estavam martelando implacavelmente a diminuta povoação. Eu não via como qualquer pessoa poderia ficar viva depois daquele bombardeio. Olhei para o Presidente a fim de ver qual a sua reação.

        Ele estava observando tudo impassivelmente. Fiz uma longa viragem em tomo da aldeia. Vimos dois homens saírem de uma casa, armados de rifles. Atrás deles, vinha uma mulher que puxava uma criança pela mão. A mulher virou-se e começou a correr por entre as casas. Os homens estavam evidentemente procurando proteger a fuga dela. Os quatro já estavam quase no fim da aldeia quando os homens foram abatidos por tremendo fogo cruzado. A mulher chegou à última casa e deixou-se cair com a criança nos braços.

        Voltei, inclinando um pouco a asa do avião. Os soldados estavam avançando lenta e cautelosamente. Não havia qualquer reação. Um grupo de soldados se reuniu em torno da mulher e da criança, que estavam encolhidos no chão, olhando para eles.

        Um dos soldados fez um gesto para a mulher. Ela se levantou lentamente e num estranho gesto sacudiu a terra da saia. O soldado tornou a fazer um gesto e ela segurou a mão da criança. Ele a empurrou com o cano do fuzil e ela tropeçou na porta da casa. O soldado a mandou entrar e ela hesitou. Ele levantou o fuzil ameaçadoramente. Com um último olhar desesperado, ela empurrou a criança diante dela e entrou. Um instante depois, o soldado e vários dos seus companheiros entraram também.

        Tomei a olhar para o Presidente. Tinha os lábios apertados e os olhos cintilavam. De repente, percebeu que eu o estava observando. Os nossos olhares se encontraram, mas o rosto dele perdeu de novo toda a expressão.

        — Isso servirá de lição para todos eles, — exclamou. — Para os bandoleros e para os campesinos que os ajudam! Vai passar muito tempo sem que eles tenham vontade de fazer guerra de novo!

        — Se aquela criança escapar, — disse-lhe eu, — vai odiar o governo pelo resto da vida. Se for menino, irá também para as montanhas logo que tiver idade para isso.

        O Presidente compreendia muito bem o que eu estava dizendo. Tinha sido sempre assim. As crianças que escapavam dos períodos de violência não podiam mais viver uma vida normal e levavam dentro de si até à morte as sementes da violência.

        — A guerra é assim mesmo, — disse friamente o Presidente, •— e nada se pode fazer.

        — Mas são soldados e não animais! Onde estão os oficiais que deveriam contê-los? Quer mesmo que eles sejam iguais a bandoleros?

        — São soldados, sim, mas também, são homens. Homens impregnados do entusiasmo da vitória ou do medo da morte e que percebem de súbito o vazio das suas vidas.

        Não respondi. Não tinha o que responder.

        — Podemos voltar, Dax.

        Resolvi antes sobrevoar a hacienda. Dez minutos depois está- vamos lá e desci até cerca de trezentos metros. Nada mais restava salvo alguns destroços carbonizados e as pedras dos alicerces. Até os galpões tinham sido incendiados.

        Só o cemitério estava intacto, com as suas lápides brancas destacando-se dos campos devastados. Olhei para o Presidente. Estava olhando pela janela, mas duvidei de que soubesse onde estávamos. A sua fisionomia estava inalterada.

        Mudei de rumo e voltei diretamente para Curatu. Sentia no peito uma estranha opressão. Pela primeira vez naqueles dias febris, pela primeira vez desde que voltara, pensei em Beatriz.

        Mas alguma coisa me confortava. Fora bom que a tivesse levado lá antes que fosse tarde demais. E fora bom que ela tivesse libertado os fantasmas de minha família, poupando-lhes a dor de ver o seu lar destruído.

        Pousei o avião e desliguei os motores perto da limusina preta do Presidente que nos esperava na pista. Virou-se para mim antes de desembarcar.

        — Verifique se o avião está em ordem. Amanhã, você vai voltar nele para Nova York. Quero conversar com você hoje à noite, sozinhos. Temos muito o que combinar. Acho que os americanos nos concederão o empréstimo agora. Chegue ao meu apartamento às onze horas. Darei ordem para que o façam entrar. Se eu não estiver, espere por mim.

        — Está bem.

        — E fique sabendo que desta vez não agirá como um simples embaixador. Agora, falará como vice-presidente do Corteguay. A notícia foi divulgada pelo rádio ao meio-dia, mais ou menos quando estávamos voando sobre a sua hacienda.

        Eu estava tão atônito que nada pude dizer.

        O Presidente sorriu, deu-me adeus e afastou-se. Vi o carro dele sair pelos portões até ligar os motores de novo e fazer táxi até o hangar.

        Nova York. Seria bom voltar para Nova York. Nada mais havia que me prendesse ali. Salvo uma coisa. Beatriz. Não voltaria sozinho. Ela iria comigo. Como minha esposa.

 

        A modificação da minha posição se manifestou desde o momento em que saltei do avião no hangar. Giraldo, que já se havia habituado a mim e se mostrava um tanto negligente em relação ao uniforme e às maneiras, perfilou-se com a farda bem escovada e limpa. Os dois mecânicos perfilaram-se também. O próprio Gato Gordo, à sua maneira desajeitada, procurava também mostrar-me mais respeito, embora eu soubesse que isso era mais por causa dos outros do que de mim.

        — Tenente...

        — Sí, Excelência! — disse Giraldo antes que eu tivesse oportunidade de dizer o que queria. Teria de falar com mais rapidez dali por diante, senão teria de dividir as minhas ordens em duas partes.

        — Mande abastecer e verificar o avião.

        — Sí, Excelência!

        — Espere. Ainda não acabei.

        — Perdone, Excelência.

        Tive de sorrir.

        — Encha os tanques e fique de sobreaviso. Vamos voltar em breve para Nova York.

        — Sí, Excelência! — disse Giraldo, fazendo continência e acrescentando, depois de alguma hesitação: — Permita que lhe dê os meus parabéns e votos de felicidade, com a certeza da minha lealdade.

        — Muito obrigado, Giraldo.

        Fez de novo continência e dessa vez respondi. Saí do hangar ouvindo-o dar ordens aos mecânicos. Já se julgava adido ao gabinete do Vice-Presidente.

        Pelo canto dos olhos, vi que Gaio Gordo me seguia. Ainda estava na estranha pose       militar que lhe era tão difícil.

        — Fique à vontade, Gato Gordo, — disse eu em voz baixa. — Assim você é capaz de quebrar alguma coisa aí por dentro.

        Quase imediatamente ele fez murchar o peito e dilatou o estômago.

        — Graças a Deus! — murmurou. — Já estava até         pensando que tinha de ficar assim o resto da vida!

        Os dois soldados que me tinham levado para o aeroporto estavam perfilados ao lado do jipe. Fizeram continência, respondi, tornaram a fazer e, para acabar com aquilo, entrei no carro.

        — Como está         tudo por lá? — perguntou Gato Gordo enquanto voltávamos para a cidade.

        — Bem mal. Só daqui a muitos anos será possível recuperar tudo. A hacienda desapareceu. Só restam cinzas.

        — Pode construí-la de novo.

        — Não. Outra casa, sim. Mas não aquela.

        Compreendi então toda a extensão do que havia perdido. Era como se uma parte da minha vida houvesse desaparecido.

        Gato Gordo sabia o que eu estava sentindo e mudou de assunto.

        — Eu estava na torre de controle quando o rádio deu a notícia. Todo mundo queria saber o que significava isso. Alguns pensavam que afinal o velho queria afastar-se e entregar tudo a você.

        — E que foi que você disse?

        — Que é que         eu podia dizer? Deixá-los pensar que eu não sabia de nada? Não. Mas a notícia foi uma surpresa para mim como para eles.

        — Foi também surpresa para mim, Gato Gordo.

        Ele achou que eu estava dizendo a verdade, porque a mágoa lhe desapareceu dos olhos.

        Descobri logo que havia algumas vantagens na minha nova posição. Passamos por todas as barreiras sem que nos fizessem parar e quando cheguei ao palácio vi que me haviam mudado da salinha que ocupava desde a minha chegada. Estava agora num vasto conjunto de salas ao lado do Presidente.

 

        Antes de chegar lá, tive de sofrer um verdadeiro fogo de barragem de parabéns e protestos de lealdade. Foi com um sentimento de alívio que afinal consegui fechar a porta do meu escritório particular e me deixei cair na cadeira atrás da minha mesa. Experimentei a cadeira para ver se era confortável.

        — Até parece que levou a vida inteira sentado, aí — disse Gato Gordo.

        — Não comece com isso, Gato Gordo. Vá ao nosso apartamento e traga-me um terno. Estou ansioso para tirar esta farda.

        Já não me sentia bem dentro dela. Gato Gordo saiu e, um momento depois, tive o primeiro visitante oficial. Era o Coronel Tulia.

        — Desculpe incomodá-lo, Excelência, mas trouxe uns papéis importantes que exigem a sua assinatura.

        Havia alguma coisa que me agradava naquele soldado alto e reservado. Não sentia nele nada da expansividade latino-americana, dos falsos elogios ou da bajulação aos superiores. Não fizera nem referência ao meu novo cargo.

        — Minha assinatura?

        — Sim, como vice-presidente.

        — Que papéis são esses?

        — A ordem de execução de Pardo e Vásquez, — disse ele, tirando os papéis da pasta.

        — Não me avisaram da realização do conselho de guerra.

        — Não houve conselho de guerra, Excelência. Foram condenados por ordem do Presidente.

        Olhei-o. Tulia sabia tão bem quanto eu que isso era contrário à cláusula seis do acordo de rendição assinado. Nenhum dos homens podia ser punido sem julgamento.

        — Por que então o Presidente não assinou a ordem de execução?

        — De acordo com a nossa constituição, — respondeu o coronel, — é o vice-presidente que tem poder de decretar a pena máxima nos casos de traição. O presidente é considerado o governo e, portanto, sujeito a julgar em causa própria. Só na ausência ou falta do vice-presidente pode o presidente agir. Mas o senhor é agora o vice-presidente.

        Não era preciso que Tulia me explicasse. Eu já estava compreendendo. Olhei para os papéis. Se o Presidente os assinasse, haveria um clamor universal. Havia-se negado aos dois homens direitos assegurados pelo acordo de rendição. Mas se eu os assinasse, não. A responsabilidade seria minha.

        Perguntei a Tulia:

        — Se esses homens tivessem sido submetidos a conselho de guerra, qual teria sido, na sua opinião, o veredicto?

        — Não posso adivinhar as decisões alheias.

        — Se o senhor fizesse parte de um conselho de guerra julgá- los-ia culpados?

        Tulia hesitou um momento.

        — Não.

        — Embora tivessem comandado as suas tropas contra o seu governo?

        — Sim. Acontece que sei por que tomaram essa decisão.

        — A verdade?

        Tulia sacudiu a cabeça.

        — Gostaria de ouvi-la.

        Notei então a tensão em que estava Tulia. Gotas de suor banhavam-lhe a fronte. Compreendi a coragem que ele demonstrara em chegar até àquele ponto comigo. Uma palavra e ele poderia ir ficar ao lado dos outros no muro de fuzilamento.

        — Sente-se, Coronel, — disse eu cordialmente. — Está entre amigos.

        Tulia deixou-se cair numa cadeira. Para dar-lhe tempo de acalmar-se tirei um charuto, ofereci-lhe também mas ele recusou e, depois de riscar o fósforo e acender o charuto, recostei-me na cadeira e esperei.

        — Havia sete regimentos no campo quando a luta começou. Sete regimentos e sete coronéis, inclusive Mosquera, que está morto. Em muitos sentidos, o ataque dos rebeldes foi quase o início repentino das hostilidades que já se tornou clássico na guerra moderna. Como a blitzkrieg dos alemães na Polônia e o ataque dos japoneses a Pearl Harbor, chegou imprevistamente, sem qualquer aviso. Colheu-nos inteiramente de surpresa.

        “Foi numa manhã de sábado que os ataques começaram no norte. A princípio, não se falou muito no caso porque todos julgaram que se tratava apenas de outra incursão dos bandoleros. Quando compreendemos que era mais do que isso, a luta já havia começado no sul. Quando chegou a notícia, os sete coronéis estavam jantando em minha casa. Não pode imaginar a confusão e os rumores. Houve um momento durante a noite em que soubemos que o Presidente tinha sido assassinado e que os rebeldes haviam já assumido o poder.

        Tulia acendeu um cigarro.

        — Foi nesse momento que recebemos um convite do comunista Mendoza para aderir à revolução. Prometia que seriamos recebidos no sul como companheiros de armas.

        “Ficamos os sete em torno da mesa examinando a mensagem. As linhas telegráficas para Curatu estavam interrompidas e não podíamos nem entrar em contato com a capital pelo rádio. As estações de rádio do estrangeiro davam notícias contraditórias. As do Brasil e da Colômbia diziam que o governo já havia caído. Do Presidente não nos chegava uma palavra. Não sabíamos o que fazer.

        “Continuar a luta se o governo já fora derrubado só poderia dar em resultado mortes desnecessárias. Aderir aos rebeldes sem o governo ter caído poderia assegurar-lhes a vitória. Foi Vásquez quem afinal encontrou uma solução para nosso dilema, com a sua sabedoria de Salomão. Propôs que formássemos ali uma junta. Combinamos que os três regimentos mais fracos se passariam para os rebeldes. Procurariam retardar-se e procrastinar qualquer ação até que a situação se esclarecesse. Os três regimentos mais fracos eram os de Vásquez, Pardo e Mosquera. Marcharam de propósito com os seus regimentos para a península, onde sabiam que seriam cercados. Mendoza ficou furioso com esse ato que lhe parecia incompetente, mas nada podia fazer. Já era tarde. Não sei se Mendoza descobriu que nós o havíamos enganado.

        — Mendoza foi capturado?

        — Foi, mas conseguiu fugir na noite passada.

        Gente daquela espécie sempre conseguia fugir. Eram como ratos portadores da peste. Olhei para os papéis.

        — Esses são apenas os primeiros que será solicitado a assinar, — disse o Coronel Tulia. — Todos os oficiais dos três regimentos de tenente para cima serão também condenados. As datilógrafas estão fazendo serão batendo as ordens de execução.

        — Todos os oficiais? — perguntei incredulamente.

        — Sim, quase uma centena.

        Eram homens assim que o Presidente queria matar enquanto criaturas como Mendoza estavam em liberdade para espalhar o seu veneno. Levantei-me.

        — Deixe os papéis comigo, Coronel. Em vista do que me disse, acho que o Presidente terá de reconsiderar o assunto.

 

        Saltei do jipe diante da casa de Beatriz. As persianas estavam descidas e a casa parecia vazia.

        — Vão para os fundos, — ordenei aos dois soldados.

        — Sí. Excelência, — disseram eles, já correndo.

        — Venha comigo, — disse eu a Gato Gordo. Fui até à porta da frente. Bati com a pesada aldrava metálica. O som ecoou por dentro da casa. Esperei um momento e tornei a bater.

        Ninguém atendeu. Mas eu tinha a ideia de que Mendoza só poderia estar refugiado ali.

        — Não há ninguém em casa, — disse Gato Gordo. Está tudo trancado.

        Não havia decerto qualquer sinal de movimento dentro da casa. Demos volta à mesma, verificando todas as janelas. Estavam todas fechadas, salvo uma pequena no segundo andar, que devia ser do banheiro.

        Passamos pelos soldados.

        — Viram alguma coisa?

        Sacudiram a cabeça. Gato Gordo e eu continuamos. A pequena janela era a única que estava aberta. Olhei para ela. Não me convencia de estar errado.

        Gato Gordo seguiu o meu olhar.

        — Eu poderia subir naquela árvore e chegar à janela.

        Olhei para Gato Gordo e sorri.

        — Você não poderia entrar por aquela janela ainda que tivesse vinte quilos menos.

        — Podemos mandar um dos soldados.

        — Não. — Se Beatriz estava na casa, eu não queria arriscar- me a que lhe acontecesse alguma coisa. — Eu mesmo vou.

        Alcancei facilmente o galho mais baixo da árvore e subi. Não era tão fácil quanto no meu tempo de garoto. Estava quase sem fôlego quando afinal cheguei lá em cima. Empurrei a janela e passei para lá.

        — Tenha cuidado! — disse-me Gato Gordo lá de baixo.

        Eu tinha razão. Era um banheiro. Fui cautelosamente até à porta, abria-a e fiquei escutando. Não havia na casa o menor ruído.

        — Beatriz!

        Minha voz ressoou pela casa. Comecei a avançar lentamente pelo corredor. Havia quatro portas. Três deviam ser quartos. A única que não dava margem a dúvidas era a que ficava em frente à escada. Era fácil ver que se tratava de um armário embutido.

        Abri a porta do primeiro quarto. Um leve resíduo de perfume mostrava que era o quarto de Beatriz. Fiz uma busca rápida. As roupas dela ainda estavam nos armários. As gavetas da cômoda não tinham sido sequer tocadas. Estivesse onde estivesse, não devia ter sido por muito tempo. Tudo estava em ordem. Até as maletas dela ainda estavam no armário.

        O segundo quarto devia ser do tio. Parecia também em perfeita ordem. O terceiro, que era o menor de todos, devia ser da empregada. Era o único que estava desarrumado. A cama estava desfeita como se alguém tivesse dormido nela até pouco antes, Mas o armário estava vazio, bem como as gavetas da cômoda.

        Voltei para o corredor pensando em tudo aquilo. Não fazia sentido. Por que o quarto da empregada dava a impressão de que ela se havia ido embora? E por que era o único em que alguém parecia ter dormido?

        Comecei a descer a escada, mas, em dado momento, mudei de ideia. Ainda pensando na desarrumação do quarto da criada, abri a porta do armário embutido. O meu pressentimento estava certo, mas quase me custou a vida.

        Mendoza saiu do armário como um projétil. Agarrei-me a ele e então caímos rolando pela escada. Fomos parar lá embaixo, com ele em cima de mim, e eu com a cabeça estourando e os pulmões quase sem ar. Vi o brilho de uma faca e agarrei-lhe desesperadamente o pulso. Senti a tensão nos braços enquanto lutava para impedir que ele usasse a faca.

        — Gato Gordo! — gritei. — Gato Gordo.

        Ele me tampou violentamente a boca para que eu não gritasse de novo. A leve diminuição da pressão me permitiu torcer-lhe o braço e afastá-lo de mim. Levantei o corpo e fi-lo rolar para o chão, saindo de cima de mim.

        Ficamos de pé quase no mesmo instante. Ele avançou para mim, com a faca ainda na mão. Esquivei-me do golpe da lâmina ameaçadora. Às minhas costas, ouvia violentos empurrões na porta. Mendoza olhou um instante para a porta, mas foi tão rápido que não pude aproveitar-me disso.

        — Você não me interessa, Mendoza! — gritei-lhe. — Onde está Beatriz?

        — Como se você não soubesse! — gritou ele, atacando-me.

        Pulei de novo para o lado e tomei a perguntar.

        — Onde está Beatriz?

        Mendoza começou então a dar gargalhadas. Devia estar louco. Começou a atacar-me desordenadamente, ao mesmo tempo que dizia:

        — Vocês não podem ganhar! Derrubaremos vocês um dia, todos vocês! Não podem ganhar!

        Eu estava tão atento a esquivar-me da faca que não previ o salto súbito que deu. Foi cair sobre mim e o seu peso nos fez a ambos ir ao chão. Mas dessa vez fui mais ligeiro. Rodei o corpo de baixo dele e voltei, pegando-lhe a mão que empunhava a faca no momento em que ia levantar-se.

        Era um velho truque de bandolero. Prendi a mão armada de faca com um joelho e um braço e, então, dobrando o braço, empurrei a ponta do cotovelo com toda a força na garganta, logo abaixo do seu pomo-de-adão.

        Com a mão livre, ele tentou atingir-me os olhos, mas desviei a cabeça. Fiz mais força com o cotovelo. Podia ouvir quase despedaçar-se a traquéia do homem. Continuei a exercer pressão até que afinal as mãos dele cessaram de agitar-se e os olhos esbugalhados e a língua para fora me mostraram que estava morto.

        Só então afastei o corpo e fiquei estendido, ofegante no chão ao lado dele. Os baques na pesada porta haviam cessado. Daí a pouco, ouvi uma chave girar na fechadura e tratei de sentar-me.

        Gato Gordo foi o primeiro a entrar. Pulou por cima do corpo de Mendoza e chegou junto de mim.

        — Está bem?

        Fiz um sinal afirmativo e virei-me.

        Hoyos estava ali de pé, tendo na mão a chave com que abrira a porta. Beatriz estava ao lado dele, com os olhos arregalados e apavorados.

        Ninguém precisava dizer-me onde estivera Beatriz porque eu estava vendo as algemas ainda nos pulsos dela. O Presidente me havia assegurado que ela estava em segurança e não mentira inteiramente. Estava muito em segurança. Na cadeia.

 

        Beatriz estava sentada num canto do sofá. Ainda estava chorando. Da entrada, Hoyos nos olhava. O corpo de Mendoza já fora levado. Levantei-me e fechei a porta. Voltei para junto de Beatriz e disse-lhe com voz enérgica:

        — Chega!

        Surpresa com a aspereza da minha voz, ela me olhou com os olhos verdes ainda cheios de lágrimas.

        — Chega de chorar! Só está chorando com pena de si mesma. Está na hora de parar!

        — Você o matou! Agora que meu tio morreu durante a luta, não me resta mais nada. Estou sozinha!

        — Você estava sozinha antes que eu o matasse. Deve saber que foi ele quem mandou matar seu pai.

        — Não acredito! — disse ela, com os olhos de novo cheios de lágrimas.

        Dessa vez, perdi a paciência. Dei-lhe um tapa no rosto.

        — Pare com isso!

        Deixou de chorar com o choque. Levantou-se do sofá e atirou- se contra mim.

        — Odeio você! Odeio você!

        Agarrei-lhe os braços e segurei-a num abraço. Senti-lhe o calor do corpo firme e jovem por baixo do vestido leve. Vi-lhe os olhos zangados e ri. Sabia que ela estava sentindo a minha reação quase imediata ao contato dela.

        Estava então imóvel, mas ainda com os olhos cheios de raiva. Mas era uma raiva diferente, uma raiva de si mesma, como se tivesse acabado de provar uma coisa que sempre soubera.

        — Animal! Com certeza vai violentar-me agora!

        — Era o que eu devia fazer e provavelmente é disso que você precisa mais do que qualquer outra coisa!

        Ela se desvencilhou de mim e me encarou com os olhos fuzilantes e o seio magnífico ofegante.

        — Quero ir-me embora, — disse ela, procurando controlar a voz. — Quero sair do Corteguay. É uma terra de loucos. Todo o mundo aqui é louco. De mim já tirou tudo. Não tenho mais nada para dar. Meu pai morreu por ela, meu tio...

        — Eu bem disse que seu tio era louco! — exclamei. — Quem foi que mandou juntar-se aos rebeldes? Mendoza?

        — Está muito orgulhoso de você, não está? A população levou a sua lição e ficou sabendo qual é o seu lugar. Agora, você pode, ficar descansado e voltar para as suas mulheres fáceis que nada exigem de você. Não terá mais de preocupar-se conosco. O Presidente cuidará de tudo, dará tudo — principalmente prisões e extermínio!

        — Isso já acabou, — disse eu, subitamente cansado.

        — Acabou? Tem coragem de dizer isso quando ainda tem as mãos manchadas com o sangue de um inocente? Um homem que não queria senão a liberdade do seu povo?

        — Não, ele não era o que você pensa. Foi um homem que mentiu a você, a seu pai, a todos. Um homem que espalhava veneno por onde podia. Um homem responsável pela morte não apenas de seu pai mas também de milhares de pessoas nestas últimas semanas. É essa a espécie de homem de que você está falando. Fico satisfeito de tê-lo matado.

        — E ainda se vangloria disso! — exclamou Beatriz, com desprezo. — Você me causa náuseas!

        Ficamos a olhar-nos e então a sua expressão se alterou repentinamente.

        — Meu Deus, estou enjoada!

        Correu para fora pela cozinha e eu ouvi o som ansiado dos seus vômitos. Quando cheguei lá ela estava com a cabeça cansada encostada à parede da casa.

        — Beatriz, — disse eu, tentando tomá-la nos braços.

        — Não, Dax. Deixe-me! Quero apenas que me faça sair daqui. Ajude-me a ir-me embora do Corteguay. É só o que quero de você!

        — Se é isso o que você quer, arrume uma mala. Providenciarei para que você saia no primeiro avião ou navio que partir daqui.

        Voltei então para casa. No meio do caminho, a minha raiva desapareceu e eu comecei a sorrir. Que faria Beatriz quando descobrisse que o primeiro avião que ia sair seria o meu?

        O Coronel Tulia estava esperando na antecâmara quando voltei ao palácio.

        — Tomei a liberdade de esperar a sua volta, Excelência.

        — Não tive ainda tempo de discutir o caso com o Presidente.

        — Sei disso. E já soube da notícia. Mendoza está morto. O Presidente deu a notícia há coisa de uma hora e meia.

        Hoyos não perdia tempo. Teria dito também ao Presidente que eu havia determinado que Beatriz ficasse em liberdade.

        — As datilógrafas já terminaram o trabalho, — disse-me Tulia. — Talvez fosse bom ver o resto das ordens de execução antes de falar com o Presidente.

        Sentei-me e Tulia abriu a pasta. Uma pilha de papéis ficou em cima da minha mesa. Peguei a primeira ordem de execução e examinei-a. O nome nada significava para mim. Nunca ouvira falar nele. Mas era um jovem tenente de apenas 23 anos.

        Acendi um cigarro e olhei a pilha de papéis. Era a primeira vez que eu percebia que a morte podia ser dada de maneira tão simples e impessoal. Bastava a minha assinatura e cada uma daquelas folhas de papel significaria um homem morto.

        Minha assinatura. Aspirei fortemente a fumaça. De quantas maneiras mais pretendia o Presidente usar a minha pessoa? Comecei a sentir-me revoltado. Quantos mais teriam de morrer para ele conservar o seu poder?

        Lembrei-me da satisfação com que ele me dissera no avião que toda aquela violência e crueldade serviriam de lição ao povo.

        A explicação de tudo nasceu de repente dentro de mim. Era como se sempre ali tivesse estado embora eu me negasse a aceitá-la. A lição era velha como o tempo. Um inglês a exprimira em frase perfeita: “O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente”.

        O Presidente era muito mais esperto do que eu havia julgado. Aquela era a última tentação e ele sabia muito bem disso. O poder de vida e morte. Que poder maior seria dado a qualquer homem? Ele sabia melhor do que ninguém que no momento em que eu assinasse aqueles papéis, estaria comprometido com o poder por mais nobres que fossem os meus motivos. Daí por diante, a minha corrupção era inevitável.

        O que meu pai não vira ou não quisera ver é que não podia haver meio-termo. Não havia o cinzento. Ou era preto ou era branco. E por mais que se ganhasse no momento, no fim mais se perderia.

        Respirei fundo. Pela primeira vez em minha vida, senti-me livre. Era dono de mim mesmo. Não pertencia a ninguém, nem ao Presidente e nem mesmo à memória de meu pai, mas exclusivamente a mim mesmo. Pela primeira vez, eu sabia o que queria.

        — Coronel Tulia, quantos oficiais superiores há além do senhor?

        — Cinco coronéis, inclusive Hoyos, da polícia secreta, e Pardo e Vásquez, os prisioneiros. Na realidade, só Zuluaga e eu. Os outros estão em campanha.

        — Pode-se convocar um conselho de guerra.

        — Se incluíssemos Hoyos. As regras exigem um mínimo de três oficiais.

        — E os prisioneiros? Estão também em Curatu?

        — Estão. Mas há uma dificuldade. Precisamos de mais um oficial para presidir o conselho de guerra.

        — Não há problema então, Coronel. Ainda estou usando a farda do exército. — Olhei para o relógio. — São sete horas. Acha que pode ter tudo pronto para daqui a uma hora?

 

        Subi para o meu quarto, fiz a barba e tomei um banho de chuveiro. Quando desci, poucos minutos antes das oito, estavam todos presentes. Só Hoyos entre eles não parecia à vontade.

        Sentei-me à minha mesa e disse:

        — Todos sabemos por que estamos reunidos aqui, senhores. Tratemos, pois, dos nossos trabalhos.

        Tulia voltou-se para mim.

        — A primeira providência do conselho deve ser a escolha de um oficial para presidi-lo.

        Um instante depois, eu estava eleito.

        — Em seguida, o conselho deve ter conhecimento das acusações formuladas contra os réus. — disse Tulia colocando uma folha de papel em cima da mesa.

        Ele tinha sido minucioso. Encontrara tempo para escrever tudo o que tinha de dizer.

        — Coronel Vásquez, este conselho de guerra se reúne de acordo com os regulamentos do exército e a cláusula seis do acordo de rendição que assinou...

        Os dois julgamentos se efetuaram em questão de minutos. Os dois oficiais foram absolvidos de todas as acusações por dois votos contra um. O voto contrário foi evidentemente de Hoyos. Como presidente, cancelei as acusações e determinei que Pardo e Vásquez fossem restaurados nos seus postos com todas as vantagens a que tinham direito.

        Tulia redigiu prontamente uma breve ata do julgamento, que foi assinada por todos nós. Assinei duas vezes: como presidente do conselho de guerra e como vice-presidente.

        Vásquez me estendeu a mão.

        — Obrigado.

        Hoyos levantou-se.

        — Já que a reunião terminou, vou voltar às minhas obrigações.

        — Não!

        Hoyos me olhou espantado e um súbito silêncio caiu sobre a sala.

        — Tenho providências importantes para tomar, — disse Hoyos em voz quase macia.

        — Essas providências podem esperar.

        Não queria que Hoyos informasse antes de mim o Presidente do que havia acontecido. Era uma coisa que eu tinha de fazer pessoalmente.

        — Tenha a bondade de voltar para a sua cadeira e esperar com os oficiais seus colegas até que eu tenha informado o Presidente das decisões deste conselho.

        — Não tem autoridade para deter-me, — protestou ele. — Só sou responsável perante o Presidente.

        — Como oficial do exército, é também responsável perante o vice-presidente!

        Hoyos me olhou um momento, depois encolheu os ombros e voltou para a sua cadeira.

        — Está bem, Excelência.

        Alguma coisa no seu tom de voz me despertou as suspeitas e só precisei de alguns minutos para verificar que havia microfones na sala. Peguei um pequeno microfone e olhei-o.

        Ele estava muito pálido, mas nada disse.

        — Por que não me avisou? Se soubéssemos que tudo estava sendo gravado, não teríamos tido o trabalho de redigir uma ata!

 

        Só uma hora depois cheguei ao apartamento do Presidente. O que eu tivera de fazer me exigira esse tempo.

        Um empregado me abriu a porta.

        — O Presidente o espera, Excelência, mas às onze horas.

        — É um caso urgente, — disse eu com autoridade. — Tenho de falar imediatamente com ele.

        — Ele está com a Princesa. Nunca nos permite perturbá-lo quando está no apartamento dela.

        — Voltarei daqui a uma hora então.

        Desci a escada e atravessei o pátio da residência rumo ao pequeno palácio que Amparo passara a ocupar. Os soldados de guarda ficaram em posição de sentido.

        — O Presidente mandou chamar-me.

        — Sí, Excelência!

        Um deles apressou-se em abrir-me a porta.

        Entrei. O pequeno palácio não havia mudado desde que ali havia estado pela última vez. Eu era ainda garoto naquele dia em que uma bomba havia arrancado o braço de meu pai. Era justo que Amparo estivesse presente porque o que eu tinha de dizer iria afetá-la também. Bati de leve na porta do quarto.

        Ninguém respondeu. Tornei a bater, dessa vez com mais força. Nenhuma resposta.

        Girei a maçaneta e entrei. Só um fraco abajur estava aceso num canto. Estendi a mão e acendi as luzes. Foi então que ouvi murmúrios no quarto. Atravessei a sala e ouvi com mais força os murmúrios. Sabia o que significavam. Afinal de contas, fora casado com Amparo durante algum tempo.

        O empregado devia estar enganado ou mentira deliberadamente. O Presidente não estava ali. Já ia dar as costas e sair quando ouvi um grito de dor. Depois, outro. Havia nesses gritos tanta agonia e terror que, quase involuntariamente, meti o ombro na porta e irrompi pelo quarto.

        De repente, parei e fiquei olhando com a náusea a embrulhar- me o estômago. Estavam ambos nus na cama, Amparo e o Presidente. Este estava com um objeto obsceno amarrado na cintura e um chicote na mão.

        O velho voltou os olhos para mim e disse:

        — Chegou a tempo de ajudar-me a castigá-la, Dax!

        A voz dele interrompeu a paralisia momentânea de que eu fora atacado. Aproximei-me e afastei-o dela, dizendo:

        — Está louco? Quer matá-la?

        Amparo voltou a cabeça.

        — Para que fez isso, Dax. Agora, ele vai ficar com raiva de você também!

        Os olhos dela estavam dilatados pela ação da heroína. Cobri-a e voltei-me para o Presidente.

        — Assinou as ordens, Dax? — perguntou ele com voz normal, como se nada houvesse acontecido.

        — Não há ordens para assinar. Foram absolvidos por um conselho de guerra.

        — Um conselho de guerra?

        — Sim, — disse eu. — Não haverá mais execuções, nem extermínio do povo. Expedi há uma hora a ordem de cessação do fogo. O exército só lutará agora se for atacado!

        — Traidor! — exclamou ele, deixando cair as calças. Apareceu com um revólver, que devia estar num dos bolsos das calças.

        — Traidor! — exclamou de novo, apertando o gatilho.

        Esperei a bala, mas o percussor bateu numa câmara vazia. Avancei para ele antes que pudesse atirar pela segunda vez e com uma pancada fiz-lhe cair o revólver da mão. Saltou sobre mim, proferindo obscenidades, agitando os braços magros e tentando atingir-me com os dedos os olhos e o rosto. Tentei segurá-lo, mas ele me empurrou e eu caí em cima de uma cadeira. Foi apanhar o revólver e eu o segui, lutando com ele pelo chão.

        Percebi de repente Amparo que pulava nua em torno de nós.

        — Mate-o, Dax! Mate-o!

        O Presidente estendeu a mão para a arma e eu vi no rosto dele uma expressão de que me lembrava desde a infância. Era o mesmo olhar de concentração que eu vira nele quando segurara a metralhadora para mim. Eu tinha sido uma criança naquele tempo e não compreendia o que era matar. Pensara que ele ia fazer minha mãe e minha irmã viverem de novo.

        Com raiva e pela primeira vez, bati naquele rosto odioso. O Presidente caiu, batendo com a cabeça no chão. Apanhei o revólver no chão.

        — Mate-o, Dax! — gritava Amparo aos meus ouvidos. — É essa a sua oportunidade! Mate-o!

        Olhei para o Presidente imóvel no chão. Tantos haviam morrido por causa dele. Aquilo era apenas justiça.

        — Agora, Dax! Agora! Agora!

        A voz de Amparo era um refrão obsceno em meus ouvidos. Levantei o revólver e fiz pontaria. Ele abriu os olhos, e por um longo momento nos encaramos.

        Amparo começou a gritar histericamente.

        — Mate-o! Mate-o! Mate-o!

        Senti o dedo retesar-se no gatilho.

        — Não, Dax, — disse ele, com uma voz em que não havia medo. — Se você fizer isso, não será diferente de mim!

        Baixei o revólver. A tentação havia passado. Amparo me batia nervosamente nos ombros. Empurrei-a.

        — Vá para a sua cama, Amparo.

        Ela obedeceu no mesmo instante.

        O Presidente estava começando a levantar-se. Vi-o então como havia chegado a ser — um velho magro e trêmulo. Instintivamente, estendi o braço para que ele se firmasse.

        Olhou para mim e deixou-se cair numa cadeira.

        — Está tudo acabado?

        Era mais uma afirmação do que uma pergunta.

        — Está.

        — Aprendeu bem comigo. Que é que vai acontecer?

        — Exílio.

        Ele bateu pensativamente com a cabeça.

        — Você era para mim como é um filho. Quando meus filhos morreram, coloquei você no lugar deles.

        Não respondi.

        Ele olhou para Amparo e perguntou:

        — Quando é que partiremos?

        — Agora. Logo que estiverem vestidos.

        — Para onde? — perguntou Amparo da cama.

        — Primeiro para o Panamá. Depois, para qualquer lugar da Europa que quiserem. Mas antes terá de assinar estes papéis.

        — Que papéis?

        — A sua renúncia como Presidente e o seu compromisso de conservar-se em exílio voluntário pelo resto da vida.

        — Dê-me uma caneta.

        Assinou sem ao menos ler.

        — Vou esperar lá fora enquanto se vestem.

        Fui para a sala, peguei o telefone e liguei para o meu gabinete. Tulia atendeu.

        — Mande o carro para o pequeno palácio, Coronel. Estão prontos para ir.

        Desliguei e lembrei-me da promessa que fizera a Beatriz de fazê-la sair no primeiro avião. Liguei para ela.

        — Ainda quer sair do Corteguay?

        — Ainda.

        — Então esteja pronta dentro de meia hora. Passarei por aí para pegá-la.

        Amparo saiu do quarto, embrulhada num robe.

        — Meu pai gostaria de uma farda limpa. Sabe como ele é. A que está usando está toda suja.

        Apontei o telefone.

        Ela ligou para o apartamento do pai e pediu ao empregado que levasse uma farda limpa. Depois, dirigiu-se de novo para o quarto.

        — Amparo! — Ela se voltou e olhou para mim. — Por que o deixou fazer isso?

        — Porque era o Presidente e porque era um velho e meu pai. Não havia ninguém mais que se prestasse a fazê-lo manter a ilusão.

 

        Peguei a mala de Beatriz quando ela saiu da porta e trancou-a. Fomos em silêncio até ao jipe. Os outros já haviam ido para o aeroporto.

        — Prometi-lhe que partiria no primeiro avião. Estou cumprindo a minha palavra. Mas gostaria que pensasse um pouco mais. Dentro de poucos dias, os aviões comerciais estarão trafegando de novo.

        — Não! — disse ela, sem olhar para mim. — A minha decisão já está tomada.

        — Como você é teimosa!

        Fizemos quase toda a viagem em silêncio. Quando já estávamos quase chegando ao aeroporto foi que ela voltou a falar.

        — Dax, você não compreende? — disse ela de repente. — Eu...

        — Não compreende o quê?

        — Nada. Apenas não posso ficar aqui. São muitas as recordações.

        — Está bem. Não é preciso explicar. Quero apenas que me prometa uma coisa.

        — Que é?

        — Se for aos Estados Unidos, procure meu amigo Jeremy Hadley e ele a levará ao Departamento de Estado. Ao menos, assim ficará sabendo da verdade sobre o que aconteceu a seu pai.

        Quando ela falou, a voz era muito baixa e parecia haver lágrimas nela.

        — Está bem.

 

        No último minuto, houve mais um passageiro, Hoyos. Aproximou-se de mim enquanto os outros estavam embarcando.

        — Já falei com o Presidente. Ele quer que eu o acompanhe se houver lugar para mim no avião. Estou muito velho para servir a outros chefes. Não há mais lugar para mim aqui.

        — Pode ir.

        — Obrigado, Excelência.

        O Presidente e Amparo foram os primeiros a embarcar. Não falaram com ninguém. Não pude ver-lhe o rosto escondido pela gola levantada do capote, mas no último momento voltou-se e olhou para fora como se estivesse procurando alguma coisa. Mas, um instante depois, entrou e desapareceu.

        Hoyos embarcou depois. Subiu a escada sem olhar para trás. Beatriz foi a seguinte. Aproximou-se de mim, beijou-me o rosto e disse:

        — Obrigado, Dax.

        Ela subiu apressadamente a escada e de repente senti-me melhor. Daí a poucos dias, quando eu também fosse para Nova York, talvez as coisas se acertassem entre nós.

        A porta da cabina se fechou e, um momento depois, Giraldo acionou os motores. Escutei-os. Estavam funcionando macios como seda. Giraldo botou a cabeça para fora da janela e me fez um sinal com o polegar levantado. Retribui o gesto e gritei acima do barulho dos motores:

        — Volte depois que os deixar no Panamá!

        Ele bateu com a cabeça, sorrindo. Depois, fechou a janela e começou a fazer táxi para a pista. Vi o avião tomar posição, receber o sinal da torre de controle e levantar vôo. Segui-o até que as luzes vermelha e verde que piscavam desaparecessem entre as estrelas. Voltei-me então e olhei para os outros.

        Foi Vásquez quem disse melhor:

        — Uma vez, talvez de cem em cem anos, aparece um homem como o Presidente. Um homem cuja capacidade para o bem e para o mal é tão vasta que ultrapassa a compreensão do homem comum. Ele foi assim e nós não o esqueceremos. Pelas boas coisas que fez e pelas más. E o que é trágico é que, com um pequeno esforço da parte dele, tudo poderia ser bom. Rogo a Deus que nunca mais vejamos outro como ele.

 

        Já passava de quatro da madrugada e ainda estávamos no meu gabinete. Já havíamos feito muito. A ordem de cessar fogo fora confirmada e os termos de uma anistia geral e completa tinham sido aceitos. Seria decretada na manhã seguinte.

        — Senhores — disse eu —, é agora dever desta junta escolher um presidente provisório para governar em seu nome até à realização de eleições. Como ficou combinado, só votarei em caso de empate. Há quatro votos entre os senhores.

        Tulia se levantou.

        — Tomei a liberdade de consultar os chefes militares em todo o país. São todos de opinião que o senhor é a pessoa lógica para exercer o governo até as eleições.

        — Sinto-me muito honrado, senhores, mas a minha resposta é ainda a mesma que dei no começo desta reunião. Não. A honra que me fazem é grande, mas a tentação ainda é maior. Há muito tempo em nosso país tem sido esse o meio clássico de chegar ao poder. Ao menos desta vez não deve ser dito que agimos por motivos pessoais, mas, sim, pelo bem do país. Na verdade, o meu lugar não é mais aqui. Tenho estado muito tempo ausente e conheço bem pouco sobre as necessidades do nosso povo. Precisamos é de um homem que conheça e ame o povo do Corteguay, o povo todo, tanto os campesinos quanto os habitantes das cidades. Há bons homens entre os senhores. Escolham um e eu considerarei uma honra servir sob as ordens dele.

        Tulia olhou para os outros e voltou-se para mim.

        —Prevendo a sua recusa, escolhemos um nome em segundo lugar.

        Vásquez levantou-se e disse com voz magoada:

        — Como assim? Esqueceu-se de me consultar, Coronel Tulia!

        Os outros começaram a sorrir e Tulia disse:

        — Queira aceitar as minhas desculpas, Sr. Presidente!

        Descemos o corredor até ao gabinete do Presidente, que não era mais dele. Achei que com o tempo nos habituaríamos a isso.

        Abri a porta e disse:

        — De amanhã em diante, este gabinete, Sr. Presidente, será seu.

        Vásquez me olhou e disse:

        — Será meu amanhã, mas essa noite é seu. Sem a sua ação, não haveria o dia de amanhã. — Fez-me entrar no gabinete e disse: Boa noite, Sr. Presidente.

        Despediram-se de mim um por um e desapareceram pelo corredor. Voltei-me para Gato Gordo que esperava encostado à parede.

        — Vamos entrar?

        — Não, — disse ele. — Tenho um pressentimento.

        — Você e os seus pressentimentos, — disse eu, rindo e entrando.

        Sentei-me na cadeira. Era realmente uma cadeira para fazer um homem sentir-se forte e poderoso. Recostei-me nela e meti as mãos nos bolsos. Senti o revólver do presidente num deles e tirei-o, entregando a Gato Gordo.

        — Onde encontrou isso?

        — O Presidente tentou matar-me esta noite mas a arma negou fogo.

        Gato Gordo fechou a cara.

        — Já escapou duas vezes hoje. A terceira é a perigosa. Vamo- nos embora.

        — Só depois que fizer café. Há uma cozinha ali. Vá fazer um pouco.

        — Não sei. Não gosto de deixá-lo sozinho.

        — Que é que me pode acontecer enquanto você faz um café? Veja, o dia já está amanhecendo.

        Gato Gordo continuou parado.

        — E ainda tenho isto, — disse eu, levantando-me e tirando da parede um machete que o Presidente mandara colocar ali.

        Gato Gordo sacudiu a cabeça e foi para a cozinha. Ouvi o barulho das panelas e da água. Levantei-me e comecei a andar pelo gabinete. Estava cheio de recordações do Presidente. Havia retratos dele por toda a parte — medalhas, medalhões, pergaminhos, taças, tudo gravado com o seu nome.

        A luz cinzenta da manhã começou a encher a sala. Fui até à janela e olhei para a cidade. As luzes estavam começando a apagar- se perto do porto e dentro em breve o sol surgiria por trás das montanhas. Abri as portas e saí para o jardim a fim de respirar o ar da manhã.

        Atravessei o jardim e fui até o muro do lado de leste para ver os primeiros raios do sol sobre as montanhas. Ouvi um ruído atrás de mim. Comecei a virar-me, mas de repente me senti preso por um aperto de braço. Um braço estava passado pelo meu pescoço, pelas costas, ao mesmo tempo que uma voz áspera me dizia:

        — Nem um pio ou será um homem morto.

        Tentei virar-me, mas o braço me prendia como se eu fosse uma criança. A voz tornou a fazer-se ouvir.

        — Onde está o Presidente?

        — Partiu. Foi exilado.

        — Mentira!

        — Não faz mal, — disse outra voz. — Esse também serve.

        Olhei para o homem que apareceu à minha frente. Era uma das criaturas mais feias que eu já tinha visto. A boca era retorcida num ricto permanente sobre os dentes postiços de aço preto. A mão direita era aleijada, com os dedos retorcidos. Uma espingarda de cano duplo cortado estava no outro braço.

        — Não me está conhecendo?

        Sacudi a cabeça.

        — Lembra-se do garoto cujo pai você convenceu a descer das montanhas para ser assassinado?

        Começou a rir quando viu a expressão nos meus olhos.

        — É isso mesmo, El Condor. Não me esqueci do seu rosto, como podia você esquecer-se do meu?

        Não respondi. Não poderia responder ainda que quisesse. O braço que me apertava o pescoço mal me deixava respirar.

        — Largue-o.

        O braço afastou-se do meu pescoço e eu fui jogado de encontro ao muro. Tropecei e quase caí, mas consegui virar-me e ficar de frente para eles. O outro homem era mais velho e muito robusto. Tinha duas pistolas metidas no cinto.

        — É bom ser vítima de uma cilada como meu pai foi? — perguntou El Condor.

        Não respondi.

        — Jurei que não voltaria às montanhas desta vez sem o sangue de ao menos um dos assassinos de meu pai!

        Eu estava retesando os músculos para uma tentativa de fuga. Procurei calcular a distância entre nós. Devia estar a uns dois metros e pouco de distância.

        — Vai morrer, assassino! — gritou de repente El Condor.

        Saltei sobre ele no momento em que vi o clarão no cano da espingarda. Pensei a princípio que ele tivesse errado, mas fui cair no chão diante dele, olhando para ele e vi que acertara. O mais curioso de tudo é que não havia dor. Sempre havia pensado que doesse.

        Tudo parecia levar um tempo enorme para acontecer. Até o sorriso de El Condor quando levantou a espingarda para atirar de novo. Aconteceu então uma coisa muito esquisita. Houve um clarão e o braço que segurava a espingarda pareceu sair do ombro do homem e sair voando pelo ar. Vi El Condor abrir a boca e ouvi o grito dele quando o sangue lhe saiu da boca. Houve outro clarão e o grito dele se acabou.

        Ouvi os tiros e pude contá-los enquanto virava a cabeça. Três quatro, cinco, seis. Havia uma expressão horrível na cara de Gato Gordo quando ele caminhou para El Condor, com o machete ensanguentado ainda seguro nas duas mãos como um machado de lenhador.

        O outro bandolero levou a mão para a outra pistola que tinha no cinto, mas estava tão apavorado que não conseguiu tirá-la. Deu um grito e começou a correr. Tinha dado apenas quatro passos quando Gato Gordo jogou o machete nele. O homem pareceu abrir-se da nuca até embaixo na espinha. Caiu para a frente sobre algumas moitas e eu não o vi mais.

        Virei a cabeça para Gato Gordo. Caminhava para onde eu estava, mas de repente pareceu tropeçar e cair. Ficou estendido no chão a poucos metros de mim.

        — Gato Gordo! — chamei, mas a minha voz estava muito fraca.

        Pensei a princípio que não me tivesse ouvido, mas ele levantou a cabeça e olhou para mim. Começou a rastejar lentamente, rolando o corpo e com os cotovelos no chão. O sangue lhe corria da boca e de um buraco no pescoço.

        Olhei-o cheio de surpresa. Gato Gordo estava morrendo. Não podia acreditar nisso, Gato Gordo não. Ele não podia nunca morrer; era indestrutível. “Gato Gordo, desculpe”, quis dizer, mas as palavras não saíram.

        Os nossos rostos quase se tocavam e nós estávamos ali na terra que rodava olhando um para os olhos do outro. Sentia um frio de gelo subir-me pelo corpo. “Estou com frio, Gato Gordo”, murmurei. Desde criança detestava o frio. Eu gostava era do sol.

        Mas o sol que aparecia sobre as montanhas não me dava calor. Só uma claridade ofuscante que me doía nos olhos e não me deixava ver as coisas. E o frio cada vez era mais forte e subia mais.

        “Estou com medo, Gato Gordo”, sussurrei. Virei os olhos contra o sol para poder ver o rosto dele.

        Gato Gordo levantou a cabeça e eu vi nos olhos dele um brilho que eu não conhecia. Eram todos os olhares de amor numa só expressão. De amigo, de pai, de filho. Estendeu a mão para mim e eu a agarrei fortemente.

        A voz era rouca, mas suave:

        Segure a minha mão, menino, e eu levarei você em segurança através das montanhas.

 

                                     PÓS-ESCRITO

        Hildebrandt, o chofer, estava esperando quando ele saiu da alfândega.

        — O carro está lá fora, — disse ele, pegando a maleta. — Fez boa viagem?

        — Sim, foi um bom vôo, — disse Jeremy.

        O carro seguiu velozmente dentro da noite. Havia pouco tráfego àquela hora e dentro em pouco estavam passando pelas luzes multicoloridas da Feira Mundial e aproximando-se da Ponte Triborough.

        — Telefonei para a Sra. Hadley quando soube que o seu avião ia chegar tarde.

        — Obrigado, Artie.

        Passaram pela ponte e entraram na quase vazia East River Drive e, virando para o centro, entraram pela Rua 63. Mais alguns quarteirões e foram parar numa tranquila rua arborizada a leste do Parque Central.

        Ela estava esperando à porta quando ele atravessou o passeio e subiu os degraus da casa cinzenta. Ele entrou, fechou a porta e tomou-a nos braços. Ficaram abraçados durante um breve momento silencioso.

        Ela sentiu nele o cansaço da viagem. E mais alguma coisa. Um estranho silêncio que era alheio à sua natureza. Ela o beijou delicadamente. Depois, tomou-lhe a mão e o levou para a sala de estar.

        — As empregadas hoje estão de folga, — disse ela. — Fiz sanduíches e café. Estão na cozinha.

        — Está bem, — disse Jeremy. — Mas não estou com fome. E como foi?

        — Horrível. Nunca pensei que pudesse ser assim.

        — Havia mais alguém lá?

        — Não. Eu era a única pessoa.

        Ela ficou em silêncio, olhando-o,

        — Não teria sido tão ruim se houvesse mais alguém. Mas fui eu o único. E tinha sempre havido tanta gente...

        — Não fale mais sobre isso, — disse ela, tocando-lhe os lábios com os dedos. — Vá lavar o rosto. Depois que comer alguma coisa, vai sentir-se melhor.

        Jeremy subiu para o banheiro. Alguns minutos depois, olhou nos quartos das crianças. O das meninas primeiro. O deles ficava ao lado.

        Estavam dormindo profundamente, as queridas. Sorriu. Uma tinha três e a outra, cinco anos. Nada havia que pudesse acordá-las. Nem mesmo um terremoto.

        Mas o menino era diferente. Tinha o sono muito leve e a menor coisa o acordava. Quando Jeremy entrou no quarto, ele se moveu e acordou.

        — Papai? — perguntou na sua voz de garoto de nove anos.

        — Sim, Dax.

        — Em que avião foi que você veio desta vez?

        — Num 707, — disse ele. Curvou-se e beijou a testa da criança.

        — Agora, continue a dormir.

        — Boa noite, papai.

        — Boa noite, meu filho. — disse Jeremy, saindo do quarto.

        Ela o estava esperando lá embaixo, com a mesa posta na cozinha com sanduíches, café e bolo.

        Ele sentiu fome então. Sentou-se e começou a comer. Ela sentou-se diante dele e serviu o café.

        — Estava mesmo com fome, — disse ele.

        Ela sorriu.

        Ele tomou um gole de café e os seus olhos de novo ficaram tristes.

        — Ninguém foi.

        — Poucas pessoas fazem isso mesmo nas melhores circunstâncias. Dez anos são tempo demais para alguém se lembrar.

        — Será que algum dia saberemos mesmo a história daquele último dia?

        — Nunca, — disse ela. — Poucos meses depois, estavam todos mortos. Exceto Vásquez.

        — Acha que ele os matou?

        — Acho. Quando Dax morreu, ele sabia que a junta se dissolveria. Quem iria ser a sua consciência? Vásquez não se mostrou muito melhor do que o Presidente.

        — Fala-se de revolução.

        — Pouco me interessa, Jeremy.       Saí de lá há muito tempo, farta e enojada de tudo aquilo porque não       pensava senão em morte e destruição. Nunca mais quero saber de lá.

        — Está bem, está bem. Mas ainda me lembro do último discurso que ele fez nas Nações Unidas. Do seu aspecto quando falou. Como se ele estivesse recordando ao mundo a sua consciência. “Não haja entre vós ninguém que ajude um homem a fazer guerra a seu irmão”.

        Ela nada disse.

        Jeremy meteu a mão no bolso e tirou um anel.

        — Deram-me isto aqui. Isto é, pensei que me tivessem dado até que percebi que tinha de comprá-lo.

        Ela tirou o anel da mão dele, olhou-o.

        — Sempre estranhei essa inscrição.

        — É um anel de formatura. Ele       era da turma de Jim em Harvard. Deram-lhe o anel porque ele saiu da universidade antes de formar-se. Escute, Beatriz, quando estive lá em cima no quarto do menino, fiquei pensando. Ele é tão parecido com o pai. Acho que ele devia saber.

        — O menino só conhece um pai. E chega.

        — Ele teria muito orgulho do pai.

        — Ele tem muito orgulho de você.

        — Ele está crescendo, Beatriz. E se um dia descobrir?

        — Correrei esse risco.

        — Acha justo para o pai?

        — O pai está morto e a justiça não tem mais importância para ele.

        Levantou-se, abriu a tampa da lixeira e deixou cair o anel, que desceu batendo pelas paredes.

        — Por que fez isso? — perguntou elo quando ela voltou.

        — Agora, ele desapareceu. Nada mais resta dele senão um sonho que todos nós tivemos quando éramos moços.

        Jeremy ia dizer alguma coisa mas viu as lágrimas nos olhos verdes dela. Levantou-se e abraçou-a ternamente.

        Ela estava errada e bem sabia disso.

        Haveria sempre o menino lá em cima.

 

 

                                                                  Harold Robbins

 

 

 

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