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OS MAIAS / Eça de Queiros
OS MAIAS / Eça de Queiros

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MAIAS

Primeira Parte

 

A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na visinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janellas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar d'este fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma timida fila de janellinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia a uma edificação do reinado da sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas. O nome de Ramalhete provinha de certo d'um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no logar heraldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser collocado, e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde se distinguiam letras e numeros d'uma data.

     Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado, com teias d'aranha pelas grades dos postigos terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em 1858 Monsenhor Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o com idéa d'installar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edificio e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe tambem, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos.

Mas Monsenhor, com os seus habitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as agoas d'um jardim de luxo: e o Ramalhete possuia apenas, ao fundo dum terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ás hervas bravas, com um cypreste, um cedro, uma cascatasinha secca, um tanque entulhado, e uma estatua de marmore (onde Monsenhor reconheceu logo Venus Citherêa) ennegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além d'isso, a renda que pedio o velho Villaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de Leão X. Villaça respondeu - que tambem a nobreza não estava nos tempos do sr. D. João V. E o Ramalhete, continuou deshabitado.

     Este inutil pardieiro (como lhe chamava Villaça Junior, agora por morte de seu pae administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobilias e as louças provenientes do palacete de familia em Bemfica, morada quasi historica, que, depois de andar annos em praça, fôra então comprada por um commendador brazileiro. N'essa occasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração elles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Villaça se essa gente estava atrapalhada.

     - Ainda teem um pedaço de pão, disse Villaça sorrindo, e a manteiga para lhe barrar por cima.

     Os Maias eram uma antiga familia da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas collateraes, sem parentellas - e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Affonso da Maia, um velho já, quasi um antepassado, mais edoso que o seculo, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Affonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia já cincoenta mil cruzados: mas desde então tinham-se accumulado as economias de vinte annos de aldêa; viera tambem a herança d'um ultimo parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Napoles, só, occupando-se de numismatica; - e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando fallava dos Maias e da sua fatia de pão.

     A venda da Tojeira fôra realmente aconselhada por Villaça: mas nunca elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica – só pela rasão d'aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso, como dizia Villaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inhabitavel, não possuiam agora uma casa em Lisboa; e se Affonso n'aquella edade amava o socego de Santa Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com effeito, mezes antes de elle deixar Coimbra, Affonso assombrou Villaça annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior era necessitar tantas obras e tantas despezas; depois, a falta d'um jardim devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos de Santa Olavia; e por fim alludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava elle n'uma phrase meditada) até me envergonho de mencionar taes frioleiras n'este seculo de Voltaire, Guisot e outros philosophos liberaes ... »

     Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razões eram excellentes - mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus; se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol.

  1. ex.ª mandava: - e, como esse inverno ia secco, as obras começaram logo, sob a direcção d'um Esteves, architecto, politico, e compadre de Villaça. Este artista enthusiasmára o procurador com um projecto de escada apparatosa, flanqueada por duas figuras symbolisando as conquistas da Guiné e da India. E estava ideando tambem uma cascata de louça na sala de jantar - quando, inesperadamente, Carlos appareceu em Lisboa com um architecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com elle á pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para elle ali crear, exercendo o seu gosto, um interior confortavel, de luxo intelligente e sobrio.

    Villaça resentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um paiz perdido. E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construcção das cocheiras. O artista ia acceitar - quando foi nomeado governador civil.

     Ao fim d'um anno, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa collaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estheticos» - do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Affonso não quizera alterada por constituir a phisionomia da casa. E Villaça não duvidou declarar que Jones Bule (como elle chamava ao inglez) sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigualhas de Bemfica, fizera do Ramalhete «um museu.»

     O que surprehendia logo era o pateo, outr'ora tão lobrego, nú, lageado de pedregulho - agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de marmores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vazos de Quimper, e dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados em talha, solemnes como córos de cathedral. Em cima, na antecamara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-n'a divans cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metalicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura immaculada do marmore, uma figura de rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter o pésinho n'agoa. D'ahi partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas de Bemfica, arcas gothicas, jarrões da India, e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de velludo côr de musgo d'outono, havia uma bella téla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora ingleza, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis enramelhetados d'ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e d'arvoredos.

     Defronte era o bilhar, forrado d'um couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais commoda do Ramalhete: as ottomanas tinham a fofa vastidão de leitos; e o conchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faienças hollandezas.

     Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha camara de prelado. A macissa meza de pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne luxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa - realçada ainda por um quadro attribuido a Rubens, antiga reliquia da casa, um Christo na Cruz, destacando a sua nudez de athleta sobre um ceu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonez bordado a ouro, uma pelle d'urso branco, e uma veneravel cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de sêda.

     No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de farmlia, estavam os quartos de Affonso. Carlos despozera os seus, n'um angulo da casa, com uma entrada particular, e janellas sobre o jardim: eram tres gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a sêda que forrava as paredes, faziam dizer ao Villaça que aquillo não eram aposentos de medico - mas de dançarina!

     A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa; - e foi só nas vésperas da sua chegada, n'esse lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim a deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco annos que elle não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao Villaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia. Mas, que remedio! Não queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com idéas sérias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, não desgostava do Ramalhete, apezar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalisado de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os velludos. Agradava-lhe tambem muito a visinhança, aquela dôce quietação de suburbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar sympathico, com os seus girasoes perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cypreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Venus Cytherêa parecendo agora, no seu tom claro de estatua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande seculo... E desde que a agoa abundava, a cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus tres pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle fundo de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica, esfiado gota a gota na bacia de marmore.

     O que desconsolara Affonso, ao principio, fôra a vista do terraço - d'onde outr'ora, de certo, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte explendido. Agora, uma estreita tira de agoa e monte que se avistava entre dois predios de cinco andares, separados por um córte de rua, formava toda a paizagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Affonso terminou por lhe descobrir um encanto intimo. Era como uma téla marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de côr e luz, os episodios fugitivos d'uma pacata vida de rio: ás vezes uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente á bolina; outras vezes uma galera toda em panno, entrando n'um favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia d'um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó d'ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglez... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rez d'agoa, cheias de expressão - ora faiscantes e despedindo raios das vidraças accezas em braza; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi similhantes a um rubor humano; e d'uma tristeza arripiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.

     O terraço communicava por tres portas envidraçadas com o escriptorio - e foi n'essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residencia em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés ficavam accezas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flôres, como um altar domestico; e era ainda ahi, n'esse aroma e n'essa frescura, que elle gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu querido Rabelais.

     Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia, de ser um velho borralheiro. N'aquella edade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, sahindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na agoa fria. Sempre tivera o amor supersticioso da agoa; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem - que sabor d'agoa, som d'agoa, e vista d'agoa. O que o prendera mais a Santa Olavia fôra a sua grande riqueza d'agoas vivas, nascentes, repuxos, tranquillo espelhar d'agoas paradas, fresco murmurio de agoas regantes... E a esta viva tonificação da agoa attribuia elle o ter vindo assim, desde o começo do seculo, sem uma dôr e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saude da sua familia, duro, resistente aos desgostos e annos – que passavam por elle, tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olavia, annos e vendavaes.

     Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pelle córada, quasi vermelha, o cabello branco todo cortado á escovinha, e a barba de neve aguda e longa - lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das edades heroicas, um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d'Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as apparencias illudem!

     Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do fogão. Elle mesmo costumava dizer, que era simplesmente um egoista: - mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, n'uma caridade enternecida. Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as creanças corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor: - e era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece da sêde d'uma planta.

     Villaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarchas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena de velludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em Santa Olavia, e recebera então o nome de Bonifacio: depois, ao chegar á edade do amor e da caça fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades ecclesiasticas, e era o Reverendo Bonifacio...

 

     Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e clara d'um bello rio de verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora d'uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot, fôra, na opinião de seu pae, algum tempo, o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do pobre moço consistira em lêr Rousseau, Volney, Helvetius, e a Encyclopedia; em atirar foguetes de lagrimas á Constituição; e ir, de chapeu á liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçonicas Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto, porém, bastára para indignar o pae. Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo - o horror, o odio ao Jacobino, aquem attribuia todos os males, os da patria e os seus, desde a perda das colonias até ás crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, déra elle o seu amor ao sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provação comparavel só ás de Job!

     Ao principio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo - cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara á turba que, n'uma noite de festa civica e de luminarias, tinha apedrejado as vidraças apagadas do sr. Legado d'Áustria, enviado da Santa Alliança - considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da India, á lei de bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o de sua casa, sem mezada e sem benção, renegado como um bastardo! Que aquelle pedreiro livre não podia ser do seu sangue!

     As lagrimas da mamã amolleceram-n'o; sobretudo as razões d'uma cunhada de sua mulher, que vivia com elles em Bemfica, senhora irlandeza de alta instrucção, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglez ao menino e o adorava como um bébé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas não cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Bemfica, a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, affirmando-lhe que Deus, o velho Deus d'Ourique, não permittiria jámais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a Revolução! E, á falta de Deus Padre, lá estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.

     E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo d'aquella solidão, onde os chás do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benção, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse paiz de vivos prados e de cabellos d'ouro de que lhe fallara tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas, accedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da Conceição seu confessor, declarou este milagre - não inferior ao de Carnaxide.

     Affonso partiu. Era na primavera - e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquella raça tão séria e tão forte - encantaram-n'o. Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a Republica que quizera fundar, classica e voltarianna, com um triumvirato de Scipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava elle nas corridas d'Epsom, no alto d'uma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurrahs medonhos - bem indifferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o sr. infante espicaçava a chuço, pelas viellas do Bairro Alto, no seu rijo cavallo d'Alter.

     Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ella. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com bellas idéas de patriarcha moço, a fazer obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras á descendencia amada que lhe encantaria a velhice.

     Mas não esquecia a Inglaterra: - e tornava-lh'a mais appetecida essa Lisboa miguelista que elle via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude conjuração apostolica de frades e bolieiros, atroando tavernas e capellas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperenne para o curro, e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava tão bem os vicios e as paixões...

     Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já admittia mesmo o esforço d'uma nobreza para manter o seu privilegio historico; mas então queria uma nobreza intelligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a litteratura, vivendo com fausto e fallando com gosto, exemplo de idéas altas e espelho de maneiras patricias... O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sordido.

     Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as côrtes geraes, a policia invadiu Bemfica, «a procurar papeis e almas escondidas.»

     Affonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado - viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colxões do seu leito. O sr. juiz de fóra não descobriu nada: acceitou mesmo na copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...» Desde essa manhã as janellas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sahir o coche da senhora; e d'ahi a semanas, com a mulher e com o filho, Affonso da Maia partia para Inglaterra e para o exilio.

     Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo d'um parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.

     Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro rispido do sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados; e Affonso da Maia podia viver largamente.

     Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a gente do Belfast, ainda o vieram desassocegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de gerarchias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma idéa – os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres á forra, e a plebe, o exercito, depois dos padecimentos da Galliza, succumbindo agora á fome, á vermina, á febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflictos com os chefes liberaes; foi accusado de

vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então - sem fechar todavia a sua bolsa, d'onde sahiam ás cincoenta, ás cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados, respirou emfim - e, como elle disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar d'Inglaterra!

     Mezes depois sua mãe, que ficara em Bemfica, morria d'uma apoplexia: e a tia Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d'Affonso, com o seu claro juizo, os seus caracóes brancos, os seus modos de discreta Minerva. Alli estava elle pois no seu sonho,

numa digna residência ingleza, entre arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e solido, - como o amava o seu coração.

     Teve relações; estudou a nobre e rica litteratura ingleza; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavallos, pela pratica da caridade; - e pensava com prazer em ficar ali para sempre n'aquella paz e n'aquella ordem.

     Sómente Affonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. Á noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...

     Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella, das egrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo pallidamente, tinha vivido desde que chegara n'um odio surdo áquella terra d'herejes e ao seu idioma barbaro: sempre arripiada, abafada em pelles, olhando com pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores, o seu coração não estivera nunca alli, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se áquella hostilidade ambiente que ella sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia á noite, indo refugiar-se no sotão com as creadas portuguezas, para resar o terço agachada n'uma esteira - gosando ali, n'esse murmurio d'ave-marias em paiz protestante, o encanto de uma conjuração catholica!

     Odiando tudo o que era inglez, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao collegio de Richmond. Debalde Affonso lhe provou que era um collegio catholico! Não queria: aquelle catholicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ella á heresia; - e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capellão do Conde de Runa.

     O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face d'Affonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar d'alguma caçada ou das ruas de Londres, d'entre o forte rumor da vida livre - ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo d'uma treva:

     - Quantos são os inimigos da alma?

     E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

     -Tres. Mundo, Diabo e Carne...

     Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia alli o reverendo Vasques, obeso e sordido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...

     Ás vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho - para o levar, correr com elle sob as arvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã accudia de dentro, em terror, a abafal-o n'uma grande manta: depois lá fóra o menino, acostumado ao collo das creadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores: e pouco a pouco, n'um passo desconsolado, os dois iam pisando em silencio as folhas seccas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pae vergando os hombros pensativo, triste d'aquella fraqueza do filho...

     Mas o menor esforço d'elle para arrancar o rapaz áquelles braços de mãe que o amolleciam, áquella cartilha mortal do padre Vasques - trazia logo á delicada senhora accessos de febre. E Affonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sabia irlandeza mettia os oculos entre as folhas do seu livro, tratado d'Addisson ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os hombros. Que podia ella fazer!...

     Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando - como a tristeza das suas palavras. Já fallava da «sua ambição derradeira», que era ver o sol uma vez mais! Por que não voltariam a Bemfica, ao seu lar, agora que o sr. Infante estava tambem desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Affonso não cedeu: não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas - e os soldados do sr. D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do sr. D. Miguel.

     Por esse tempo veio um grave desgosto á casa: a tia Fanny morreu, d'uma pneumonia, nos frios de março; e isto ennegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito tambem - por ser irlandeza e catholica.

     Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para uma deliciosa villa ao pé de Roma. Ahi não lhe faltava o sol: tinha-o ponctual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureiraes e myrtos. E depois, lá em baixo, entre marmores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!

     Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente appetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando n'um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de sol e de poeira...

     Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica.

     Ahi começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pallida, levando semanas immovel sobre um canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles d'lnglaterra. O padre Vasques, apoderando-se d'aquella alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornára-se o grande homem da casa. De resto Affonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canonicas, de capote e solideo, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sachristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.

     Todos aquelles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripiára-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. José I...

     Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n'um atheismo rancoroso: quereria as egrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de resas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia n'uma quinta a Queluz.

     O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval d'um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis, promptos sempre a humedecer-se, faziam-n'o assemelhar a um bello arabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indifferente a brinquedos, a animaes, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jámais vibrar n'aquella alma meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Italia. Tomára birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarello, com as olheiras fundas e já velho. O seu unico sentimento vivo, intenso, até ahi, fôra a paixão pela mãe.

     Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, á idéa de se separar do seu Pedro, a pobre senhora cahira de joelhos deante d'Affonso, balbuciando e tremendo: e elle, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos supplicantes, essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a cavallo, de creado de farda atraz, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando n'aquella organisação uma grande tendência amorosa: aos dezenove annos teve o seu bastardosinho.

     Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os Maias, valente: não havia muito que elle só, com um chicote, dispersara na estrada tres saloios de

varapau que lhe tinham chamado palmito.

     Quando a mãe morreu, n'uma agonia terrivel de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dôr os arrebatamentos d'uma loucura. Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse, de dormir durante um anno sobre as lageas do pateo: e levado o caixão, sahidos os padres, cahio n'uma angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama n'uma obstinação de penitente. Muitos mezes ainda não o deixou uma tristeza vaga: e Affonso da Maia já se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho e seu herdeiro, sahir todos os dias a passos de monge, lugubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã...

     Esta dôr exagerada e morbida cessou por fim; e succedeu-lhe, quasi sem transição, um periodo de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava affogar em lupanares e botequins as saudades da mamã.

Mas essa exhuberancia anciosa que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem.

     Ao fim d'um anno de disturbios no Marrare, de façanhas nas esperas de toiros, de cavallos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram a reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado n'um fundo de amargura. N'esses periodos tornava-se tambem devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperenne: eram d'esses bruscos abatimentos d'alma que outr'ora levavam os fracos aos mosteiros.

     Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber que elle recolhera de Lisboa, de madrugada, exhausto e bebedo, - do que vel-o, de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para a Egreja de Bemfica.

     E havia agora uma idéa que, a seu pesar, ás vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario, com que na casa se mettia medo ás creanças,enlouquecera - e julgando-se Judas enforcara-se n'uma figueira...

     Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor á Romeu, vindo de repente n'uma troca de olhares fatal e deslumbradora, uma d'essas paixões que assaltam uma existencia, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a rasão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abysmos.

     N'uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, á porta de Mme. Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéo branco, e uma senhora loira, embrulhada num chale de Cashmira.

     O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada d'antigo embarcadiço e o ar gôche, desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare.

     Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d'um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos illuminavam-n'a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnação de marmore: e com o seu perfil grave de

estatua, o modelado nobre dos hombros e dos braços que o chale cingia - pareceu a Pedro n'eses instantes alguma cousa d'immortal e superior á terra.

     Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado á outra hombreira, n'uma pose de tedio - vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado

acima, veiu tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto á face, na sua voz grossa e lenta:

     - Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne?

     Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puchão aos punhos:

     - Por uma dourada tarde d'outomno...

     - André, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira o Champagne!

     O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:

     - O quê! Sem saciar a avidez de meu labio?...

     Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes d'Aurora, explicaria aquella gente da caleche azul n'uma linguagem christã e pratica!...

     - Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!

     Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquelle velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa n'aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado

a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão – uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha d'aquella magnifica creatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de côrte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias. O papá nunca lhe dava o braço: seguia atraz, entalado n'uma grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o oculo, o libretto, um saco de bonbons, o leque e o seu proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranças de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a encarnação d'um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ás outras, ás trigueirotas da assignatura:

     - Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!

     O Magalhães, esse torpe pirata, pozera o dito n'um folhetim do Portuguez. Mas o dito era d'elle, Alencar!

     Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca n'aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manoel. Emfim uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia deante da filha, e dormia n'uma rêde; a senhora, essa, vivia n'um ninho de sedas todo azul-ferrête, e passava o seu dia a ler novellas. Isto não podia satisfazer a soffreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa methodica, habil, paciente... Elle, Alencar, pertencera á devassa.

     E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores: muito moço, uma facada n'uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n'o forçado a fugir a bordo d'um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrára lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo caes, de chinellas de esparto, á procura de embarque para a Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor n'uma plantação da Virginia... Emfim, quando reappareceu á face dos céos commandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova Orleans.

     Escapara aos cruzeiros inglezes, arrancára uma fortuna da pelle do africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...

     - E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido.

     Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bella? Quem fôra a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?...

     - Isso, meu Pedro, são

       mysterios que jámais poude Lisboa

       astuta devassar e só Deus sabe!

 

     Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros, o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em villipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas joias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ella apparecia agora no theatro, D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue das facadas que dera o papázinho! E tinham-n'a calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia o velho, mil perversidades... O excellente Monforte, que soffre de rheumatismos articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos Piryneus... Fora lá que o Mello os conhecera...

     - Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.

     - Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.

     Pedro d'ahi a um momento deixou o Marrare; e n'essa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, d'ahi a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte, á frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate na casaca - egual ás d'um ramo pousado no rebordo de velludo.

     Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d'essas toilettes excessivas e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ella se vestia «como uma comica». Estava de seda côr de trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o collo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação eburnea, banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe o esplendor d'uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pé com o papá Monforte - escondido como sempre no canto negro da frisa.

     O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltára á sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n'elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.

     Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Elle tambem namorou-a publicamente, á antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janella d'ella, immovel e pallido d'extasi.

     Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel - poemas desordenados que ia compôr para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d'elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha á porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:

     - O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.

     E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu bello e franco sorriso:

     - Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever á Maria!

     Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica, sobretudo o Villaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles amores do Pedrinho. Affonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d'um enveloppe com sinete de lacre dourado; - e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço...

     Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos Açores, o chicote de feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia.

     Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, «ambos muito bem e muito distingués», Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar enfastiado:

    - Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante acho má.

     O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d'ouro exclamou com espanto:

     - Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...

     Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, n'uma voz que tremia um pouco tambem:

     - O Villaça de certo não suppõe que meu filho queira casar com essa creatura...

     O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:

     - Isso não, está claro que não...

     E o jogo continuou algum tempo em silencio.

     Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Bemfica. De manhã, se o via, era um momento, quando elle descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma cousa», dava um geito ao bigode deante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se as luzes; até que o pae, inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.

     - Que tens tu? - perguntava-lhe.

     - Enchaqueca, - respondia n'um tom surdo e rouco.

     E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa offerecida que não fôra posta nos cabellos...

     Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo d'aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores - emquanto elle passava alli, inverno e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, á Allemanha, ao Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o primo d'Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente alludiam á Monforte, evidentemente julgavam-n'a perigosa.

     No verão, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Villaça appareceu em Bemfica, muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Elle lá lhe dissera que em setembro, chegando á sua maioridade, tinha a legitima da mamã...

     - Mas não gostei d'isto, meu senhor, não gostei d'isto...

     - E porque, Villaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes á creatura... O amor é um luxo caro, Villaça.

     - Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!

     E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquillisar Villaça.

     D'ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavallos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido côr de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéo, apertadas n'um grande laço que lhe enchia o peito, eram tambem côr de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore grego, apparecia realmente adoravel, illuminada pelos olhos d'um azul sombrio, entre aquelles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéo panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam callados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chavena de café junto aos labios, de olho esgazeado, murmurando:

     - Caramba! É bonita!

     Affonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o todo - como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.

     O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para elle:

     - Meu pae, - disse, esforçando-se por ser claro e decidido - venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

     Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n'uma voz grave e lenta:

     - Não me tinhas fallado d'isso... Creio que é a filha d'um assassino, d'um negreiro, a quem chamam tambem a negreira...

     - Meu pae!

     Affonso ergueu-se diante d'elle, rigido e inexoravel como a encarnação mesma da honra domestica.

     - Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

     Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quasi em soluços:

     - Pois póde estar certo, meu pae, que hei de casar! Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.

     Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos, contando que o menino casára n'essa madrugada – e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia.

     Affonso da Maia sentára-se n'esse instante á mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se n'um vaso do Japão, á chamma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero da Grinalda, jornal de versos que elle costumava receber...

Affonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.

     - Já almoçou, Villaça?

     O procurador, assombrado d'aquella serenidade, balbuciou:

     - Já almocei, meu senhor...

     Então Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:

     - Póde tirar d'alli esse talher, Teixeira. D'aqui por diante ha só um talher á mesa... Sente-se, Villaça, sente-se.

     O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferença o talher do menino. Villaça sentára-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Bemfica. Os passos do escudeiro não faziam ruido no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques d'ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fóra no azul d'inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas; e á janella o papagaio, muito patulêa e educado por Pedro, rosnava injurias aos Cabraes.

     Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente a quinta, os pavões no terrasso; depois ao sahir da sala tomou o braço de Villaça, apoiou-se n'elle com força, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura. Seguiram o corredor, callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona ao pé da janella, começou a encher de vagar o seu cachimbo. Villaça, de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto d'um doente. Um bando de pardaes veiu gralhar um momento nos ramos d'uma alta arvore que roçava a varanda. Depois houve um silencio, e Affonso da Maia disse:

     - Então, Villaça, o Saldanha lá foi demittido do Paço?...

     O outro respondeu, vaga e machinalmente:

     - É verdade, meu senhor, é verdade...

     E não se fallou mais de Pedro da Maia.

 

      Pedro e Maria, no entanto, numa felicidade de novella, iam descendo a Italia, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, n'essa via sagrada que vae desde as flores e das messes da planicie lombarda até ao molle paiz de romanza, Napoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o inverno, n'esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado teem uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o appetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elyseos, e gozarem alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o principe Luiz Napoleão... Além d'isso, aquella velha Italia classica enfastiava-a já: tantos marmores eternos, tantas madonas começavam (como ella dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar tonturas á sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chammas do gaz, ao rumor do boulevard...

Depois tinha medo da Italia onde todo mundo conspirava.

     Foram para França.

     Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de polvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite accordava com a Marselheza; achava um ar feroz á policia; tudo permanecia triste; e as duquezas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, com medo dos operarios, corja insaciavel! Emfim demoraram-se lá até a primavera, no ninho que ella sonhára, todo de velludo azul, abrindo sobre os Campos Elyseos.

     Depois principiou a fallar-se de novo em revolução, em golpe d'estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ella appareceu gravida, anciou por a tirar d'aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a na pacata Lisboa adormecida ao sol.

     Antes de partir porém escreveu ao pae.

     Fôra um conselho, quasi uma exigencia de Maria. A recusa de Affonso da Maia ao principio desesperara-a. Não a affligia a desunião domestica: mas aquelle não affrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquella partida triumphante para Italia, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de familia - deante dos seus braços nus... Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar soirées, crear côrte, a reconciliação tornava-se indispensavel: aquelle pae retirado em Bemfica, com o rigido orgulho de outras edades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço d'esse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas de Viso-rei.

     -Dize-lhe que já o adoro, murmurava ella curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabellos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pôr o nome d'elle... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!

     E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o. Fallou-lhe commovido da esperança de ter um filho varão; as desintelligencias deviam findar em torno do berço d'aquelle pequeno Maia que alli vinha, morgado e herdeiro do nome...

Contava-lhe a sua felicidade com uma effusão de namorado indiscreto: a historia da bondade de Maria, das suas graças, da sua instrucção, enchia duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...

     Com effeito, apenas desembarcou, correu n'um trem a Bemfica. Dois dias antes o pae partira para Santa Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita - e feriu-o acerbamente.

     Fez-se então entre o pae e o filho uma grande separação. Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lh'o participou – dizendo dramaticamente ao Villaça «que já não tinha pae!» Era uma linda bébé, muito gorda, loira e côr de rosa, com os bellos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quiz crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço, em extasi, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na rosquinha das côxas, balbuciando-lhe n'um enlevo nomes de grande amor, e perfurmando-a já, enchendo-a já de laçarotes.

     E n'estes delirios pela filha, brotava, mais amarga, a sua colera contra Affonso da Maia. Considerava-se então insultada em si mesma e n'aquelle cherubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas, o Barbatanas...

     Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella replicou desabridamente: e deante d'aquella face abrazada, onde entre lagrimas os olhos azues pareciam negros de colera, elle só poude balbuciar timidamente:

     - É meu pae, Maria...

     Seu pae! E á face de toda a Lisboa tratava-a então como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de villão. Um D. Fuas, um Barbatanas, nada mais!...

     Arrebatou a filha, e abraçada n'ella, romperam as queixas por entre os prantos:

     - Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer! Tens só a tua mãe! Tratam-te como se fosses bastarda!

     A bébé, sacudida nos braços da mãe, desatou a gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já enternecido, já humilde; e tudo terminou n'um longo beijo.

     E elle, por fim, no seu coração, justificava aquella colera de mãe que vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora a frequentar Arroios, riam d'aquella obstinação de pae gothico, amuado na provincia, porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquellas toilettes, aquella graça, recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, sahira-se já das attitudes empertigadas do seculo XVI!

     E o proprio Villaça, um dia que Pedro lhe fôra mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilisou-se, veio-lhe uma da suas faceis lagrimas, declarou, com a mão no coração, que aquillo era uma caturrice do sr. Affonso da Maia!

     - Pois peior para elle! não querer ver um anjo destes! disse Maria, dando deante do espelho um lindo geito ás flores do cabello.

Tambem não faz cá falta...

     E não fazia falta. N'esse outubro, quando a pequena completou o seu primeiro anno, houve um grande baile na casa de Arroios, que elles agora occupavam toda, e que fôra ricamente remobilada. E as senhoras que outr'ora tinham horror á negreira, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque, lá vieram todas, amaveis e decotadas, com o beijinho prompto, chamando-lhe «querida», admirando as grinaldas de camelias que emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.

     Começara então uma existencia festiva e luxuosa, que, segundo dizia o Alencar, o intimo da casa, o cortesão de Madame, «tinham um saborsinho d'orgia distinguée como os poemas de Byron.» Eram realmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceiava-se á uma hora com Champagne; talhava-se até tarde um monte forte; inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens classicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater á carambola franceza D. João da Cunha, o grande taco da epoca.

     E no meio d'esta festança, atravessada pelo sopro romantico da Regeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte, d'alta gravata branca, com as mãos atraz das costas, rondando pelos cantos, refugiado pelos vãos das janellas, mostrando-se só para salvar alguma bobèche que ia estalar - e não desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil.

     Nunca Maria fôra tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz áquellas altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranças, o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor das grandes sedas. Com rasão, querendo ter, á maneira das damas da Renascença, uma flôr que a symbolisasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.

     Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!... Podia fazel-o! o marido era rico, e ella sem escrupulo arruinal-o-hia, a elle e ao papá Monforte...

     Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se com alarido seu «cavalleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios, tinha lá o seu talher: por aquellas salas soltava as suas phrases ressoantes, por esses sophás arrastava as suas poses de melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinario que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava este nome - MARIA!) ia dedicar-lhe o seu poema, tão annunciado, tão esperado - FLOR DE MARTYRIO! E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:

 

       Vi-te essa noite no explendor das sallas

       Com as loiras tranças volteando louca...

 

     A paixão do Alencar era innocente: mas, dos outros intimos da casa, mais d'um de certo balbuciara já a sua declaração no boudoir azul em que ella recebia ás tres horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas amigas porém, mesmo as peiores, affirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada n'um vão de janella, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciumes, vinha-lhe ás vezes, de repente, um tedio d'aquella existencia de luxo e de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que se atropellavam assim tão ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria.

     Refugiava-se então n'algum canto, trincando com furor o charuto: e ahi, era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome...

     Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens», como ella dizia. Corria para elle, tomava-lhe ambas as mãos, com força, com dominio:

     - Que tens tu, amor? Estás amuado!

     - Não, não estou amuado...

     - Olha então para mim!...

     Collava o seu bello seio contra o peito d'elle; as suas mãos corriam-lhe os braços n'uma caricia lenta e quente, dos pulsos aos hombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lbe os labios. Pedro colhia n'elles um longo beijo, e ficava consolado de tudo.

     Durante esse tempo Affonso da Maia não sahia das sombras de Sta. Olavia, tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo. Já se não fallava d'élle em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima. Só Pedro ás vezes perguntava a Villaça «como ia o papá.» E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria: o papá estava optimo; tinha agora um cosinheiro francez explendido; Sta. Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...

     - O Barbatanas trata-se! ia ella dizer ao pae com rancor.

     E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim feliz em Sta. Olavia; porque nunca cessara de tremer á idéa de ver em Arroios, deante de si, aquelle fidalgo tão severo e de vida tão pura.

     Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno, o socego que então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem do pae abandonado n'aquella tristeza do Douro. Fallou a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescença. E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa, respondeu:

     - Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui...

     Pedro, enthusiasmado com um assentimento tão inesperado, pensou em abalar para Sta. Olavia. Mas ella tinha um plano melhor: Affonso, segundo dizia o Villaça, devia recolher em breve a Bemfica; pois bem, ella iria lá com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-hia a benção para seu neto! Não podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta inspiração de maternidade...

     Para abrandar desde já o papá, Pedro quiz dar ao pequeno o nome de Affonso. Mas n'isso Maria não consentiu. Andava lendo uma novella de que era heroe o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos Eduardo; e, namorada d'elle, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.

     O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito benigna porém; e d'ahi a duas semanas Pedro podia já sahir para uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante d'Almada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado por então a Lisboa, distincto rapaz que lhe fôra apresentado pelo secretario da Legação Ingleza, e com quem Pedro sympathisara vivamente; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria; e vinha fugido de Napoles, onde conspirára contra os Bourbons, e fôra condemnado á morte. O Alencar e D. João Coutinho iam tambem á caçada - e a partida foi de madrugada.

     N'essa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiu carruagens parando á porta, um grande rumor encher a escada; quasi immediatamente Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado:

      - Uma grande desgraça, Maria!

     - Jesus!

     - Feri o rapaz, feri o napolitano!...

     - Como?

     Um desastre estupido!... Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, zás, vae cravar-se no napolitano! Não era possivel fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa. Elle naturalmente não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o medico, duas enfermeiras para o velar, e elle mesmo lá ia passar a noite...

     - E elle?

     - Um heroe!... Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pallido como um morto. Um rapaz adoravel! Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que ia mesmo ao pé d'elle... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz intimo, de confiança! até a gente se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de cerimonia ...

     Uma sege, n'esse instante, entrava o pateo.

     - É o medico!

     E Pedro abalou.

     Voltou d'ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes quasi rira d'aquella bagatella, uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidos nas costas. Promettera-lhe que d'ahi a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira; e o principe estava já fumando o seu charuto.

Bello rapaz! Parecia sympathisar com o papá Monforte...

     Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe dava aquella idéa d'um principe enthusiasta, conspirador, condemnado á morte, ferido agora por cima do seu quarto.

     Logo de manhã cedo - apenas Pedro sahira a fazer transportar, elle mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano - Maria mandou a sua criada franceza de quarto, uma bella moça d'Arles, acima, saber da parte d'ella como S. Alteza passara, e «ver que figura tinha». A arlesiana appareceu, com os olhos brilhantes, a dizer á senhora, nos seus grandes gestos de Provençal, que nunca vira um homem tão formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor Jesus Christo! Que pescoço, que brancura de marmore! Estava muito pallido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...

     Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante, fallar-lhe d'elle, enthusiasmado por aquella existencia pathetica de principe conspirador, partilhando já o seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava n'elle, o mesmo amor da caça, dos cavallos, das armas. Agora logo de manhã, subia para o quarto do Principe, de robe-de-chambre e cachimbo na boca, e passava lá horas n'uma camaradagem, fazendo grogs quentes – permittidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos, o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas. Ás vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o heroe, não cessava de lhe rondar o leito.

     A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia lá a levar toalhas de rendas, um assucareiro que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se além de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o papá e elle Pedro - era necessaria tambem constantemente a sua propria criada no quarto de Sua Alteza!

     Não era. Mas Pedro riu muito á idéa de que a Arlesiana se tivesse namorado do principe. N'esse caso Venus era-lhe propicia! O napolitano tambem a achava picante: un très joli brin de femme, tinha elle dito.

     A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fôra realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquella troça em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ella ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a! Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com almofadas n'uma sege, queria-o fóra, na estalagem...

     - O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!... disse Pedro.

     - É assim.

     E de certo foi muito severa tambem com a Arlesiana, por que n'essa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos affogueados.

     D'ahi a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quiz recolher ao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe artista da Renascença, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão perfumado como ellas: comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na estrada ardente; comparava-a á Beatriz do Dante.

     Isto affigurou-se a todos de uma rara distincção, e, como disse o Alencar, um rasgo á Byron.

     Depois, na soirée do baptisado de Carlos Eduardo, dada d'ahi a uma semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplendido, feito como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabellos castanhos, cabellos de mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados á nazarena - davam-lhe realmente, como dizia a Arlesiana, uma physionomia de bello Christo.

     Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo n'elle fascinava, a sua figura, o seu mysterio, até o seu nome de Tancredo. Muitos corações de mulher palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira, de claque na mão, uma melancolia na face, exhalando o encanto pathetico de um condemnado á morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de velludo. A marqueza d'Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a sua luneta de ouro.

     - É de appetite! exclamou ella. É uma imagem!... E são amigos, são amigos, Pedro?

     - Somos como dois irmãos d'armas, minha senhora.

     N'essa mesma soirée, o Villaça informára Pedro que o pae era esperado no dia seguinte em Bemfica. E Pedro, logo que se recolheram, fallou a Maria em «irem fazer a grande scena ao papá.» Ella, porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos d'aquella teima do papá - ultimamente chamava-lhe sempre o papá - era essa extraordinaria existencia de Arroios...

     - Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos tambem em plena orgia... Alguns amigos que veem...

     Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais calmo e mais domestico. Era mesmo melhor p'ra os bébés. Pois bem, queria que o papá estivesse convencido d'essa transformação, para que as pazes fossem mais faceis e eternas.

     - Deixa passar dois ou tres mezes... Quando elle souber como nós vivemos quietinhos, eu o trarei, socega... É bom tambem que seja quando meu pae partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre papá, coitado, tem medo do teu... Filho, não achas assim melhor?

     - És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mãos.

     Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando. Suspendera as soirées. Começou a passar as noites muito recolhidas, com alguns intimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; abandonara o bilhar; e vestida de preto, com uma flôr nos cabellos, fazia crochet ao pé do candieiro. Estudava-se musica classica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara tambem na gravidade, recitava traducções de Klopstock. Fallava-se com sisudez de politica; Maria era muito regeneradora.

     E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e bello, desenhando alguma flôr para ella bordar, ou tangendo á guitarra canções populares de Napoles. Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o Principe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre elle, palpal-o, sentil-o, respiral-o, murmurando no seu francez de embarcadiço:

     - Ça aller bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo...

     E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto, porque n'esse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou vinha beijal-o na testa.

     De dia occupava-se de cousas serias. Organisara uma util associação de caridade, a Obra pia dos cobertores, com o fim de fazer no inverno ás familias necessitadas distribuições de agasalhos; e presidia no salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões em que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia tambem amiudadas vezes a uma devoção ás Egrejas, toda vestida de preto, a pé, com um véo muito espesso no rosto.

     O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave: a Deusa idealisava-se em Madona; e não era raro ouvil-a de repente suspirar sem razão.

     Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha então dois annos e estava realmente adoravel; vinha todas as noites um momento á sala, vestida com um luxo de princeza; e as exclamações, os extasis de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão, a esfuminho, a aquarella; ajoelhava-se para lhe beijar a mãosinha côr de rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia sempre com ella entre os braços.

     Ao começo d'esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos. Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como se elle largasse de novo para as travessias de Africa.

     Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou a fallar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre aquelle papá tão teimoso...

     - Ainda não, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus. Teu pae é uma especie de santo, ainda o não merecemos...

Mais para o inverno.

 

     Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pae, rompeu a chorar perdidamente.

     - Pedro! que succedeu, filho?

     Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, á idéa do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo á sua solidão os dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo tambem, desprendendo-o de si com grande amor:

     - Socega, filho, que foi?

     Pedro então cahiu para o canapé, como cae um corpo morto; e levantando para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, n'uma voz surda:

     - Estive fóra de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!

     Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande colera. Viu, n'um relance, o escandalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquelle filho que, despresando a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E alli estava! alli jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se para um sophá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passeiar pela sala, rigido e aspero, cerrando os labios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto... - Mas era pae: ouvia, alli ao seu lado, aquelle soluçar

de funda dôr; via tremer aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr'ora emballara nos braços; - parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda creança, restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura inteira.

     - Tinha razão, meu pae, tinha razão, murmurava Pedro entre lagrimas.

     Depois ficaram callados. Fóra, as pancadas successivas da chuva batiam a casa, a quinta, n'um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam n'um vasto vento de inverno.

     Foi Affonso que quebrou o silencio:

     - Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...

     - Não sei nada, respondeu Pedro n'um longo esforço. Sei que fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda feira. N'essa mesma noite, ella partiu de casa numa carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse á governante e á ama do pequeno que ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

     Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes relido, amarrotado com furia. Continha estas palavras:

     «É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar d'ella.»

     - E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Affonso.

     Pedro pareceu recordar-se:

     - Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.

     0 velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e côr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.

     Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia alli aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...

     - Como se chama elle?

     - Carlos Eduardo, murmurou a ama.

     - Carlos Eduardo, hein?

     Ficou a olha-lo muito tempo, como procurando n'elle os signaes da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas que não largavam o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse, disse-lhe:

     - Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario amar o avô!

     E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãosinha, e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso.

     Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo d'avô; depois, com todo o cuidado, foi collocal-o nos braços da ama.

     - Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá vêr o que é necessario.

     Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sophá, nem despregára os olhos do chão.

     - Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos ha tres annos, filho...

     - Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.

     Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:

     - Tinha razão, meu pae, tinha razão...

     E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou a fallar d'aquelles ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridiculo, não é verdade? De certo a fuga fora d'antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de sua mulher... Ir lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade; nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo com outro... Restava-lhe sómente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado e forte.

     Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos dedos, n'uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um riso secco, um brilho feroz nos olhos.

     - Sempre desejei ver a America, e é boa occasião agora... É uma occasião famosa, hein? Posso até naturalisar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!

     - Sim, mais tarde, depois pensarás n'isso, filho, accudiu o velho assustado.

     N'esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.

     - Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.

     Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:

     - Nós jantavamos ás sete...

     Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse. Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...

     - O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda cá está o Teixeira, coitado!

     E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:

     - Vá jantar meu pae, vá jantar, pelo amor de Deus...

     Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada d'uma casa onde há morte. Affonso sentou-se á mesa só; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se n'um vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro.

     Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco n'aquelle melancolico crepusculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n'um tropel pathetico a sua paz de velho. Mas no meio da sua dôr, funda como era, elle percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma cousa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria á chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...

     Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão humido e frio, como se a chuva caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veiu do negro da janella: estava lá, com a vidraça aberta, sentado fóra na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia agreste.

     - Pois estás aqui filho! exclamou Affonso. Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!

     Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente d'aquella ternura do velho.

     - Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!

     O Teixeira trouxe luzes, e atraz d'elle appareceu o criado de Pedro, que chegára n'esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera tambem, como nenhum dos senhores estava em casa...

     - Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. Villaça lá irá amanhã, e elle dará as ordens.

     O criado então, em bicos de pés, foi depôr o estojo sobre o marmore da commoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilette de Pedro: e os castiçaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro com os colxões dobrados ao meio.

     A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado d'Arroios pousando o chapéo a um canto, e sempre em ponta de pés, veiu ajudal-os tambem. Pedro no entanto, como somnambulo, voltara para a varanda, com a cabeça á chuva, attraido por aquella treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo.

     Affonso, então, puxou-lhe o braço quasi com aspereza.

     - Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.

     Elle seguiu maquinalmente o pae á livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do sophá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silencio em que toda a sala ia adormecendo. Uma braza morria no fogão. A noite parecia mais aspera. Eram de repente vergastadas d'agua contra as vidraças, trazidas n'uma rajada, que longamente, n'um clamor teimoso, faziam escoar um diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza, com uma susurração distante de vento fugindo entre ramagens: n'esse silencio as goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia a casa n'um bater de janellas, redomoinhava, partia com silvos desolados.

     - Está uma noite de Inglaterra, disse Affonso, debruçando-se a espertar o lume.

     Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a idéa de Maria, longe, n'um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do adulterio entre os braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos, depois veiu junto do pae, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.

     - Estou realmente cançado, meu pae, vou-me deitar. Boa noite... Amanhã conversaremos mais.

     Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.

     Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, attento só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silencio.

     Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando ao pé da commoda, na penumbra que dava um folio posto deante do candieiro; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus cançado, com o seu guiso apertado na mão. Affonso não ousou beijal-o, para o não acordar com as barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dôr calmar-se n'aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia.

     - É necessário alguma cousa, ama? perguntou, abafando a voz.

     - Não, meu senhor...

     Então, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, á luz de duas vellas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que ergueu, envelhecida e livida, dois sulcos negros faziam-lhe os

olhos mais refulgentes e duros.

     - Estou a escrever, disse elle.

     Esfregou as mãos, como arripiado da friagem do quarto, e accrescentou:

     - Amanhã cedo é necessario que o Villaça vá a Arroios... Estão lá os criados, tenho lá dois cavallos meus, emfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É numero 32 a casa d'elle, não é? O Teixeira ha de saber. Boas noites, papá, boas noites.

     No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso não poude socegar, n'uma oppressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silencio da casa e do vento que calmara, ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro.

     A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo - quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um creado acudia tambem com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de polvora; e aos pés da

cama, caido de bruços, n'uma poça de sangue que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

     Entre as duas vélas que se extinguiam, com fogachos lividos, deixára-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe, numa letra firme: Para o papá.

     D'ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de Sta. Olavia.

 

     Quando Villaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de familia, não pôde conter as lagrimas ao avistar aquella vivenda onde passára tão alegres nataes. Um baetão preto recobria o brazão d'armas, e esse panno de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o proprio encanto de Sta. Olavia, o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E Villaça foi encontrar Affonso na livraria, com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno, caido para uma poltrona, a face cavada sob os cabellos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos...

     O procurador veio dizer para Lisboa que o velho não durava um anno.

 

     Mas esse anno passou, outros annos passaram.

     Por uma manhã de abril, nas vesperas de Paschoa, Villaça chegava de novo a Sta. Olavia.

     Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito d'essa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o sr. administrador com quem ás vezes se correspondia, e conduziu-o á sala de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpreza, deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço.

     As tres portas envidraçadas estavam abertas para o terraço, que se estendia ao sol, com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras: e Villaça, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal poude reconhecer Affonso da Maia n'aquelle velho de barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mão.

     Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéo alto, abafado n'um cache-nez de pelucia, correu a miral-o, curioso – e achou-se arrebatado nos braços do bom Villaça, que largara o guarda sol, o beijava pelo cabello, pela face, balbuciando:

     - Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que está! que crescido que está...

     - Então, sem avisar, Villaça? exclamava Affonso da Maia, chegando de braços abertos. Nós só o esperavamos para a semana, creatura!

     Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se, vivos e humidos, e tornaram a apertar-se commovidos.

     Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanella branca, o casquete da mesma flanella posta de lado sobre os bellos anneis do cabello negro - continuava a mirar o Villaça, que com o beiço tremulo, tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos oculos.

     - E ninguem a esperal-o, nem um criado lá em baixo no rio! dizia Affonso. Emfim, cá o temos, é o essencial... E como você está rijo, Villaça!

     - E v. ex.ª meu senhor! balbuciou o administrador, engulindo um soluço. Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E cá isto! cá esta linda flor!...

     Ia abraçar Carlos outra vez enthusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bella risada, saltou do terraço, foi pendurar-se d'um trapesio armado entre as arvores, e ficou lá, balançando-se em cadencia, forte e airoso, gritando: «tu és o Villaça!»

     O Villaça, de guarda sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.

     - Está uma linda creança! Faz gosto! E parece-se com o pae. Os mesmo olhos, olhos dos Maias, o cabello encaracolado... Mas há de ser muito mais homem!

     - É são, é rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento? Venha você cá para dentro, Villaça, que ha muito que conversar...

     Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam doudos de alegria.

     A Gertrudes, que ficára a observar, acercou-se, com as mãos cruzadas sob o avental branco, familiar, terna.

     - Então, meu senhor, aqui está um regalo, vêr outra vez este ingrato em Sta. Olavia!

     E, com um clarão de sympathia na face, alva e redonda como uma velha lua, ornada já de um buço branco:

     -Ah! sr. Villaça, isto agora é outra cousa! Até os canarios cantam! E tambem eu cantava, se ainda podesse.

     E foi saindo, subitamente commovida, já com vontade de chorar.

     O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia d'uma á outra ponta dos seus altos collarinhos de mordomo.

     - Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr. Villaça, hein? disse Affonso. No quarto em que você costumava ficar dorme agora a viscondessa...

     Então o Villaça apressou-se a perguntar pela sr.ª viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Affonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casára com um fidalgote gallego, o sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viuva e pobre, Affonso recolhera-a por dever de parentella, e para haver uma senhora em Sta. Olavia.

     Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relogio, Affonso interrompeu a relação desses achaques.

     - Villaça, vá-se arranjar, depressa, que d'aqui a pouco é o jantar.

     O administrador surprehendido olhou tambem o relogio, depois a mesa já posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.

     - Então v. ex.ª agora janta de manhã? Eu pensei que era o almoço...

     - Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen. De madrugada está já na quinta; almoça ás sete; e janta á uma hora. E eu, emfim, para vigiar as maneiras do rapaz...

     - E o sr. Affonso da Maia, exclamou Villaça, a mudar de habitos, n'essa edade! O que é ser avô, meu senhor!

     - Tolice! não é isso... É que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se, Villaça, avie-se que Carlos não gosta de esperar... Talvez tenhamos o abbade.

     - O Custodio? Rica cousa! Então, se v. ex.ª me dá licença...

     Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar com o sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o do guarda sol e do chale-manta:

     - Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta sr. Villaça?

     - Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a Sta. Olavia.

     E, pousando familiarmente a mão no hombro do escudeiro, piscando o olho ainda humido:

     - Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão! O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa...

     - Olá! Quem toca por cá? exclamou Villaça, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.

   - É o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino... Muito habilidoso, é um regalo ouvil-o; toca ás vezes á noite na sala, o sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, sr. Villaça, o quarto de v. s.ª...

     - Muito bonito, sim senhor!

    O verniz dos moveis novos brilhava na luz das duas janellas, sobre o tapete alvadio semeado de florsinhas azues: e as bambinellas,os reposteiros de cretóne, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom Villaça.

     Foi logo apalpar os cretónes, esfregou o marmore da commoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as mobilias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, não tinham sido caras. Nem elle fazia idéa! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duas aguarellas inglezas representando vaccas de luxo, deitadas na relva, á sombra de ruinas romanticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relogio na mão:

     - Olhe que v. s.ª tem só dez minutos... O menino não gosta de esperar.

     Então o Villaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado collete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanella escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e atravez das janellas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde d'abril.

     Villaça, sem oculos, um pouco arripiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por traz da orelha, e ia dizendo:

     - Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já se sabe, é elle quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

     Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu o sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia s. s.ª? Coitadinho d'elle, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao sr. Villaça! Não tinha a creança cinco annos já dormia n'um quarto só,

sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro d'uma tina d'agua fria, ás vezes a gear lá fóra... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela creança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, elle, Teixeira, chegara a pensal-o... Mas não, parece que era systema inglez! Deixava-o correr, cair, trepar ás arvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas cousas... E ás vezes a creancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

     E o Teixeira accrescentou:

     - Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós approvassemos a educação que tem levado, isso nunca approvámos, nem eu, nem a Gertrudes.

     Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o Villaça acamava as duas longas repas sobre a calva:

     - Sabe v. s.ª, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr. Villaça, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as habilidades de palhaço; eu n'isso nem gosto de fallar... Que eu sou o primeiro a dizel-o: o Brown é boa pessoa, calado,

asseado, excellente musico. Mas é o que eu tenho repetido á Gertrudes: póde ser muito bom para inglez, não é para ensinar um fidalgo portuguez... Não é. Vá v. s.ª fallar a esse respeito com a sr.ª D. Anna Silveira...

     Bateram de manso á porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou, fez um signal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ella junto do toucador, onde o Villaça, vermelho e apressado, luctava ainda com as repas rebeldes.

   O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mão:

     - É o jantar. Tem v. s.ª dois minutos, sr. Villaça.

     E o administrador d'ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o casaco pelas escadas.

     Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavallo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande historia de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abbade Custodio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de bocca aberta, n'um riso paternal e terno.

     - Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.

     O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na côxa:

     - Esta é nova! Então é o nosso Villaça? E não me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!...

     Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aquelles longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos – uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande corôa aberta n'uma matta de cabello branco. E como elles, de mãos

dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:

     - Villaça! a sr.ª viscondessa...

     O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: - e Villaça descobriu-a emfim a um canto, entre o aparador e a janella, sentada n'uma cadeirinha baixa, vestida de preto, timida e queda, com os braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel, as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra para dizer ao Villaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pallida, com um dedo embrulhado n'um pedaço de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como exhausta d'aquelle esforço.

     Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso.

     Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra historia. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Elle primeiro pensára ir ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneira que os correu a todos...

     - E maiores que tu?

     - Tres rapagões, vôvô, póde perguntar á tia Pedra... Ella viu, que estava na eira. Um d'elles trazia uma foice...

     - Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!

     E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu sentar-se ao alto da meza, sorrindo e dizendo:

     - Já se vae fazendo pesado, já não está para collo...

     Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação do procurador.

     - O sr. Brown, o amigo Villaça... Peço perdão, descuidei-me, foi culpa d'aquelle cavalheiro lá ao fundo da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete!

     O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta á meza, rigido e teso, para vir sacudir o Villaça n'um tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi então que disse ao Villaça, com o seu forte accento inglez:

     - Muito bello dia... glorioso!

     - Tempo de rosas, respondeu o Villaça, comprimentando, intimidado diante d'aquelle athleta.

     Naturalmente, n'esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O Villaça já viera no comboyo até ao Carregado.

     - De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que ia levar á bocca.

     O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu passal, lhe dava o terror d'uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se fallava...

     - Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia Villaça. Digam o que disserem, faz arripiar!

     Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraças d'essas machinas!

     O Villaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Emfim de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto...

     O abbade gostava do progresso... Achava até necessario o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo á lufa-lufa... O paiz não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...

     - E economia! disse o Villaça, puxando para si os pimentões.

     - Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.

     O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe á luz a côr rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso:

     - É do nosso!

     - Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom nectar?

     - Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.

     Então Carlos, estendendo o braço por cima da meza, reclamou tambem Bucellas. E a sua razão era haver festa por ter chegado o Villaça. O avô não consentiu; o menino teria o seu calice de Collares, como de costume, e um só. Carlos crusou os braços sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Então nem para festejar o Villaça poderia apanhar uma gotinha de Bucellas? Ahi estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o sr. administrador, havia de pôr á noite para o chá o fato novo de velludo. Agora observavam-lhe que não era festa, nem caso para Bucellas... Então não entendia.

     O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carão severo.

     - Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoas grandes é que palram á meza.

     Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:

     - Está bom, vôvô, não te zangues. Esperarei para quando for grande...

     Houve um sorriso em volta da meza. A propria viscondessa, deleitada, agitou preguiçosamente o leque: o abbade, com a sua boa face banhada em extasi para o menino, apertava as mãos cabelludas contra o peito, tanto aquillo lhe parecia engraçado: e Affonso tossia por traz do guardanapo, como limpando as barbas - a esconder o riso, a admiração que lhe brilhava nos olhos.

     Tanta vivacidade surprehendeu tambem Villaça. Quiz ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:

     - E diga-me, Carlinhos, já vae adiantado nos seus estudos?

     O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelo cós das flanellas, e respondeu com um tom superior:

     - Já faço ladear a Brigida.

     Então o avô, sem se conter, largou a rir, cahido para o espaldar da cadeira:

     - Essa é boa! Eh ! Eh! Já faz ladear a Brigida! E é verdade, Villaça, já a faz ladear... Pergunte ao Brown; não é verdade, Brown? E a eguasita é uma piorrita, mas fina...

     - Oh vôvô, gritou Carlos já excitado, dize ao Villaça, anda. Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?

     Affonso reassumio um ar severo.

     - Não o nego... Talvez o governasse, se lh'o consentissem. Mas faça-me favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavalleiro deve ser modesto... E sobre tudo não enterrar assim as mãos pela barriga abaixo...

     O bom Villaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observação. Não se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavallo com as regras... Mas elle queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Phedro, o seu Tito Liviosinho...

     - Villaça, Villaça, advertiu o abbade, de garfo no ar e um sorriso de santa malicia, não se deve fallar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admitte, acha que é antigo... Elle, antigo é...

     - Ora sirva-se d'esse fricassé, ande abbade, disse Affonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...

     O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:

     - Deve-se começar pelo latimsinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basesinha!

     - Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça! Musculo...

     E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:

     - Prrimeiro musculo, musculo!...

     Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo d'erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma creança n'uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negocios d'uma nação

extincta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras cousas do Universo em que vive...

     - Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade.

     - Qual classicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessario ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste n'isto: crear a saude, a força e os seus habitos, desenvolver exclusivamente o animal, armal'o d'uma grande superioridade physica. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...

     O abbade coçava a cabeça, com o ar arripiado.

     - A instrucçãosinha é necessaria, disse elle. Você não acha, Villaça? Que v. ex.ª, sr. Affonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas emfim a instrucçãosinha...

     - A instrucção para uma creança não é recitar Tityre, tu patulae recubans... É saber factos, noções, cousas uteis, cousas praticas...

     Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n'um signal ao Villaça, mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos de força, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava, retorcendo os bigodes. E á mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos, n'um silencio reverente, admiravam o menino a fallar inglez.

     - Grande prenda, grande prenda, murmurou Villaça, inclinando-se para a Viscondessa.

     A excellente senhora córou, atravez d'um sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado.

     Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma saude ao Villaça. Todos os copos se ergueram n'um rumor de amizade. Carlos quiz gritar Hurrah! O avô, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:

     - Oh avô, eu gosto do Villaça. O Villaça é nosso amigo.

     - Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão commovido que mal podia erguer o calice na mão.

     O jantar findava. Fóra, o sol deixára o terrasso e a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado

de um fio de limão: os creados, de colletes brancos, moviam o serviço d'onde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se. Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.

     Então Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude.

     - Viva v. s.ª, snr. Carlos de Matta-sete!

     - Sr. Vôvô! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabeçinha de cabellos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa - em quanto todos sorriam, no enternecimento d'aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na bocca, murmurou as graças. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambem as mãos. E Villaça que tinha crenças religiosas não gostou de vêr Carlos, sem se importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, fallar-lhe ao ouvido.

     - Não senhor! não senhor! dizia o velho.

     Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões, n'um murmurio de mimo dôce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.

     - É por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja lá, veja lá...

     O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Villaça pelos braços, fêl-o redomoinhar, e foi cantando n'um rythmo seu:

     - Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Therezinha, inha, inha, inha!

     - É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem amores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.

     O dia fóra convidava, adoravel, d'um azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os geranios vermelhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d'uma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flôres do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve áquelle sol timido de primavera tardia, que ao longe envolvia os

verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta n'uma luz fresca e loura.

     Os tres homens sentaram-se á mesa do café. Defronte do terraço, o Brown, de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao alto a barra do trapezio para Carlos se balouçar. Então o bom Villaça pedio para voltar as costas. Não gostava de vêr gymnasticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-n'o; sahia sempre com o estomago embrulhado...

     - E parece-me imprudente, sobre o jantar...

     - Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquillo!

    Mas Villaça não se moveu, com a face sobre a chavena.

     O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de café esquecido na mão.

     - Olhe para aquillo Villaça, repetio Affonso. Não lhe faz mal, homem!

     O bom Villaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapezio, as mãos ás cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com os cabellos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo elle sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se á aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.

     - Não está mais na minha mão, não gosto, disse o Villaça. Acho imprudente!

     Então Affonso bateu as palmas, o abbade gritou bravo, bravo. Villaça voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha já desapparecido; o trapezio parava, em oscillações lentas; e o Brown, retomando o Times que pozera ao lado sobre o pedestal d'um busto, foi descendo para a quinta envolvido n'uma nuvem de fumo do cachimbo.

     - Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com satisfação outro charuto.

     Villaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bella phrase, arranjada em maxima:

     - Esta educação faz athletas mas não faz christãos. Já o tenho dito.

     - Já o tem dito abbade, já! exclamou Affonso alegremente. Diz-m'o todas as semanas... Quer você saber, Villaça? O nosso Custodio matta-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...

     Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião d'aquelle velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dôres:

     - A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.ª o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não quero fallar na cartilha... Ha outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.

     E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custodio jantava na quinta.

     O bom homem achava horroroso que n'aquella edade um tão lindo moço, herdeiro d'uma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Villaça a historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo passado deante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de creanças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira fallar! Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora alli estava o amigo Villaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas d'uma cousa não o podia convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do cathecismo.

     E Affonso da Maia respondia com bom humor:

     - Então que lhe ensinava você, abbade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...

     - Ha mais alguma cousa...

     - Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um peccado que offende a Deus, já elle sabe que se não deve praticar, por que é indigno d'um cavalheiro e d'um homem de bem...

     - Mas, meu senhor...

     - Ouça abbade. Toda a differença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo ás caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu...

     E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:

     - Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, é quando vem, depois de semanas de chuva, um dia d'estes, ir respirar pelos campos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Villaça não está muito cançado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas...

     O abbade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chavena e sorveu com delicias o resto do seu café.

     Quando Affonso da Maia, Villaça e o abbade recolheram do seu passeio pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.

  1. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da familia, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende. A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma excellente e pachorrenta senhora, de agradavel nutrição, trigueirota

e pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabellos negros como tinta, e o morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada n'aquelles sitios.

     Quasi desde o berço este notavel menino revelara um edificante amor por alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n'um cobertor, folheando in-folios, com o craneosinho calvo de sabio curvado sobre as lettras garrafaes de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito que permanecia horas immovel n'uma cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a lingoasinha de fora.

     Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Annica installava-o logo á mesa, ao pé do candieiro, a admirar as pinturas d'um enorme e rico volume, os Costumes de todos os povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com o plaid de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e preso ao hombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d'um Stuart, d'um valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidão de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh'as tivesse já consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e para os guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em pincaros de serranias.

     Deante do canapé das senhoras lá se achava tambem o fiel amigo, o dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se decidir - contentando-se em comprar todos os annos mais meia duzia de lençoes, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, á brazeira: e as allusões recatadas, mas inevitaveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençoes, aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro - em logar de inflammar o magistrado, inquietavam-n'o. Nos dias seguintes apparecia preoccupado - como se a perspectiva da santa consummação do matrimonio lhe désse o arrepio de uma façanha a emprehender,o ter de agarrar um toiro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer rasão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. E alliviado, tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chás, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviçal, sorrindo a D. Eugenia, não desejando mais prazeres que os d'essa convivencia paternal.

     Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o dr. juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera a dôr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que morrera o mano Manuel...

     - Bem, disse Affonso, bem. A dôr, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado?

     O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava ás ordens.»

     - Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as mãos, no ardor já da partida.

     Os parceiros dirigiram-se á saleta do jogo - que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos de luz que cahiam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. D'ahi a um momento o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho de tres»; e retomou o seu logar ao lado de D. Eugenia, cruzando os pés debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam fallando da dôr do dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua teima em não querer consultar medicos. Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo, amarellando - e a D. Augusta, a mulher, a nutrir á larga, a ganhar côres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Hespanha vira um caso egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fôra o contrario; até sobre isso se tinham feito uns versos...

     - Humores, disse com melancolia o dr. delegado.

     Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Anna Silveira não se esquecera, como todos os annos, de lhe accender uma lamparina por alma, e de lhe resar

tres padre-nossos. A viscondessa pareceu toda afflicta por se não ter lembrado... E ella que tinha o proposito feito!

     - Pois estive para t'o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!

     - Ainda está a tempo, observou o magistrado.

  1. Eugenia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:

     - Cada um tem os seus mortos.

     E no silencio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordára do fidalgo d'Urigo de la Sierra, e murmurava:

     - Cada um tem os seus mortos...

     E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar reflectidamente a mão pela calva:

     - Cada um tem os seus mortos!

     Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava com cautella e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, atravez do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abbade, rosnando com um rancor tranquillo, «passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»

     N'esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.

     Os noivos tinham chegado d'uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se d'uma maneira atroz; quando elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pé d'elle na almofada... Ora senhoras não viajam na almofada.

     - E elle atirou-me ao chão, titi!

     - Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como quando chegámos á estalagem... Ella quiz-se deitar, e eu não quiz... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira cousa que faz é tratar do gado... E os cavallos vinham a escorrer...

     A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:

     - Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavallaram bastante. Senta-te ahi ao pé da sr.ª Viscondessa, Thereza... Olhe essa travessa do cabello... Que desproposito!

     Sempre detestára ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos, brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona passavam sem cessar idéas, suspeitas de ultrages que elle poderia fazer á menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para Sta. Olavia, recommendava-lhe com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o não deixasse mecher-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que não haviam de fazer néné, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu coração mal comprehendido, chamava-lhe arrieiro; elle ameaçava boxal-a, á ingleza; - e separavam-se sempre arrenegados.

     Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos no regaço - Carlos veiu logo estirar-se ao pé d'ella, meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.

     - Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna.

     - Estou cançado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente e sem a olhar.

     De repente porém, d'um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho. Queria-o levar á Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o já pelo seu bello plaid de cavalleiro d'Escossia, quando a mamã accudiu atterrada.

     - Não, com o Eusebiosinho não, filho! Não tem saude para essas cavalladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!

     Mas o Eusebiosinho, a um repellão mais forte, rolara no chão, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe, tremula, agachada junto d'elle, punha-o de pé sobre as perninhas molles, limpando-lhe as grossas lagrimas, já com o lenço, já com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet escossez, e cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações a suffocassem.

     O Eusebiosinho foi então preciosamente collocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgôr de colera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de mãos atraz das costas e aos pulos em roda do

canapé, ria, arreganhando para o Eusebiosinho um labio feroz. Mas n'esse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown appareceu á porta.

     Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa, gritando:

     - Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!

     Então Affonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:

     - Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.

     - Oh vôvô, é festa, que está cá o Villaça!

     Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor – em quanto elle, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:

     - É festa, vôvô... É uma maldade!... O Villaça póde-se escandalisar... Oh vovô, eu não tenho somno!

     Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquella rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...

     - Oh sr. Affonso da Maia, por que não deixou estar a creança?

     - É necessario methodo, é necessario methodo, balbuciou elle, entrando, todo pallido do seu rigor.

     E á mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas, repetia ainda:

     - É necessario methodo. Creanças á noite dormem.

  1. Anna Silveira voltando-se para o Villaça - que cedera o seu lugar ao dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras – teve aquelle sorriso mudo que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em «methodos.»

     Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar d'ironia, que, talvez por ter a intelligencia curta, nunca comprehendera a vantagem dos «methodos»... Era á ingleza, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou Sta. Olavia era no reino de Portugal...

     E como Villaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro não ouvisse, desabafou. O sr. Villaça naturalmente não sabia, mas aquella educação do Carlinhos nunca fôra approvada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um heretico, um protestante, como perceptor na familia dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso tinha aquelle santo do abbade Custodio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria á creança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, preparal-o para fazer boa figura em Coimbra.

     N'esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d'ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Affonso já não podia ouvir, D. Anna ergueu a voz:

     - E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. Villaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que succedeu com a Macedo.

     Villaça já sabia.

     - Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção...

     A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto.

     - Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou lá a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquillo tres noites a fio...

     Calou-se um momento. Villaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de somnolencia passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha molle no crochet; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do sophá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoço.

  1. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idéa:

     - Sem contar que o pequeno está muito atrazado. A não ser um bocado de inglez, não sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!

     - Mas é muito esperto, minha rica senhora! accudiu Villaça.

     - É possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira.

     E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d'ella, quieto como se fosse de gesso:

     - Oh filho, dize tu aqui ao sr. Villaça aquelles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Euzebio, filho, sê bonito...

     Mas o menino, mollengão e tristonho, não se descollava das saias da titi: teve ella de o pôr de pé, amparal-o, para que o tenro prodigio não alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mamã prometteu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella...

     Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d'uma torneira lassa veio de lá escorrendo, n'um fio de voz, um recitativo lento e babujado:

 

       É noite, o astro saudoso

       Rompe a custo um plumbeo céu,

       Tolda-lhe o rosto formoso

       Alvacento, humido véo...

 

     Disse-a toda - sem se mexer, com as mãosinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopea, ia cerrando as palpebras.

     - Muito bem, muito bem! exclamou o Villaça, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! É um prodigio!...

     Os creados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custodio, de pé, com a sua chavena na mão, queixava-se amargamente da maneira porque aquelles senhores o tinham esfolado.

     Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O serviçal dr. delegado dava o braço a D. Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampeão; e o moço das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.

 

     Depois da ceia Villaça acompanhou ainda um momento Affonso da Maia á livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre á ingleza o seu cognac e soda.

     O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e o globo do candieiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silencio da noite.

     Emquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Affonso, n'uma mesa baixa, os crystaes e as garrafas de soda, Villaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a braza da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:

     - Aquelle rapazito é esperto...

     - Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Villaça! O Carlos não gosta d'elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso... Foi já ha mezes. Havia uma procissão e o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n'o cá para o mostrar á viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se d'elle, leva-o para o sotão, e, meu caro Villaça... Em primeiro logar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o peior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a corôa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.

     Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, accrescentou, com uma satisfação profunda:

     - É levado do diabo, Villaça!

     O administrador, sentado agora á borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda, tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que erravam sobre as achas.

     Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas estava enfesado, estiolado, por uma educação á portugueza: d'aquella edade ainda dormia no chôco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanellas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Cathecismo de Perseverança. Elle por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde ha d'ir e onde ha de parar etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...

     Villaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:

     - V. Ex.ª sabe que appareceu a Monforte?

     Affonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo:

     - Em Lisboa?

     - Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa d'ella.

     E ficaram calados. Havia annos que entre elles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preoccupação ardente de Affonso da Maia fôra tirar-lhe a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara com o seu principe: nem pela influencia das legações, nem pagando regiamente a policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir a «toca da fera» como disia então o Villaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e,

dadas essas naturezas bohemias, quem sabe se não errariam agora pela America, pela India, em regiões mais exoticas? Depois, pouco a pouco, Affonso da Maia descorçoado com aquelles esforços vãos, todo occupado do neto que crescia bello e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! E aquella creança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...

     Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa. Junto á mesa, ao pé do candieiro, o Villaça ia percorrendo um a um os papeis da sua carteira.

     - E está em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio do aposento.

     O Villaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:

     - Não senhor, está com quem lhe paga.

     E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Villaça, dando-lhe um papel dobrado, accrescentou:

     - Todas estas cousas são muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu não quiz fiar-me só na minha memoria. Por isso pedi ao Allencar, que é um excellente rapaz, que me escrevesse n'uma carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu não sei mais do que

ahi está escripto. Póde V. Ex.ª ler...

     Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que o Alencar, o poeta das Vozes d'Aurora, o estylista de Elvira, ornára de flores e de galões dourados como uma capella em dia de festa.

     Uma noite, ao sahir da Maison d'Or, elle vira a Monforte saltar d'um coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido: e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro do gaz, no trottoir. Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: Mme. de l'Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte fallou largamente de si: vivera tres annos em Vienna d'Austria com Tancredo, e com o papá que se lhes fôra reunir - e que lá continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toilettes da filha, e dando palmadinhas ternas no hombro do amante como outr'ora no hombro do marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, «n'um drama sombrio de paixão que ella me fez entrever» o napolitano fora morto em duello. O papá morrera tambem n'esse anno, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao baccarat. Passára então um tempo em Londres: e d'ahi viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a elle d'ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais sonoro de Vicomte de Manderville. Emfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lançara-se na existencia d'aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a pallida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camelias é o typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito será perdoado porque muito amaram.» E o poeta terminava: «ella está ainda no esplendor da belleza, mas as rugas virão, e então que avistará em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi d'aquelle boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Villaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos cyprestes. E, desilludido d'esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no boulevard, uma hora de esquecimento.»

     Affonso da Maia deu um repellão á carta, menos enojado das torpezas da historia, que d'aquelles lyrismos relambidos.

     E recomeçou a passear, emquanto o Villaça recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento, do estylo, do ideal d'aquella pagina.

     - E a pequena? perguntou Affonso.

     - Isso não sei. O Alencar não lhe fallaria na filha, nem elle mesmo sabe que ella a levou. Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escandalo. Mas emquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocinio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar a legitima que cabe á creança... Ella sabe a casa que V. Ex.ª tem; ha de haver dias, e são frequentes na vida d'essas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrupulos não tem ella. Se o não faz é que a filha morreu. Não lhe parece a V. Ex.ª?

     - Talvez, disse Affonso.

     E accrescentou, parando deante de Villaça - que olhava outra vez a braza morta tirando estalinhos dos dedos:

     - Talvez... Sopônhamos que morreram ambas, e não se falle mais n'isso.

     Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Villaça passou em Sta. Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.

     Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao quarto d'elle, a entregar-lhe as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira - e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado,

balbuciava os agradecimentos:

     - Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou quinze contos de réis, se ella me quizer entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba d'esse Alencar a morada da mulher em Paris.

     O Villaça não respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d'Affonso, a coçar reflectidamente o queixo.

     - Então que lhe parece, Villaça?

     - Parece-me arriscado.

     E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da mãe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso da Maia trazia uma extranha para casa...

     - Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.

     N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vôvô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã.

     - O Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vôvô viesse ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...

     - Vem depressa, ó vôvô! Depressa, que é necessario ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se póde affligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Villaça vem ver! Ó vôvô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha póde dar pela falta!...

     E impaciente com a lentidão risonha do vôvô, tanta indifferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.

     - Que bom coração! exclamou o Villaça commovido. A pensar nas saudades da coruja... A mãe d'elle é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!

     Affonso encolheu tristemente os hombros. Iam já no corredor quando elle, parando um momento, baixando a voz:

     - Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos sabe que o pae que se matou...

     Villaça arredondou os olhos d'espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: - ó vôvô, o papá matou-se com uma pistola! - Naturalmente algum creado que lh'o contara...

     - E vossa excellencia?

     - Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quiz ser enterrado em Sta. Olavia, ahi está. Não queria que o filho jámais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de

certo, nunca o saberá. Quiz que dois retratos que havia d'ella em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que n'um momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...

     - E elle?

     - E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar tambem uma pistola... E ahi está o resultado d'essa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistola de vento...

     Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avô, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.

     Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.

     Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a Mme. de l'Estorade, contara-lhe que no boudoir d'ella havia um adoravel retrato de creança, de olhos negros, cabello d'azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d'um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e elle perguntara á Monforte se era um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o Villaça. O pobre anjinho está n'uma patria melhor. E para ella, bem melhor!»

     Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara Mme.de l'Estorade, havia semanas que ella partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no Club Imperial, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem Mme. de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos campos Elyseos, homem de fórmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolgára. Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.

     Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao Villaça sem um commentario. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª rasão, é atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois n'um post-scriptum

accrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias d'hospitalidade.»

     Esta carta foi recebida em Sta. Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera alto o P.S. Todos se alegraram,na esperança de ver o bom Villaça em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.

     Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma de Manuel Villaça annunciando que o pae morrera, n'essa manhã, d'uma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Villaça se sentira muito suffocado e com tonturas: ainda tivera forças d'ir ao quarto respirar um pouco d'ether: mas ao voltar á sala cambaleava, queixava-se de vêr tudo amarello, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda n'esse momento se occupou da casa que ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de cortiça, recomendações que o filho já não poude perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!

     Affonso da Maia ficou profundamente affectado, e em Sta. Olavia, mesmo entre os creados, a morte de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d'essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados - quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas num papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Villaça não voltaria a vel-os á quinta.

     - Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vêr.

     O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:

     - O Villaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vôvô, para onde o levaram?

     - Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.

     Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos n'elle:

     - Ó vôvô! porque não lhe mandas fazer uma capellinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?

     O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:

     - Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!

     Assim o bom Villaça teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo - que fôra a alta ambição da sua existencia modesta.

 

     Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia.

     Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Villaça (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se hospedára com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:

     - Neminè! Neminè!

     Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu á porta, abraçou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua batina nova.

     Em cima no quarto, Manuel Villaça, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:

     - Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes até estavam commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir, meu senhor?

     Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:

     - Não sei, Villaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.

     Carlos assomou á porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro - que trazia champagne n'uma salva.

     - Então venha cá, seu maroto, disse Affonso muito branco, com os braços abertos. Bom exame, hein?... Eu...

     Mas não pôde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.

 

     Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre n'aquelle menino realmente uma «vocação para Esculapio».

     A «vocação» revelára-se bruscamente um dia que elle descobriu no sotão, entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as, pregando pelas paredes do quarto figados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio á mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triumpho, a mostrar ás Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa lithographia de um feto de seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com um grito, collando o leque á face: e o dr. delegado, escarlate tambem, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de Affonso.

     - Então que tem, então que tem? dizia elle sorrindo.

     - Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. São indecencias!

     - Não ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorancia... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre machina por dentro, não ha nada mais louvavel...

  1. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a apparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Therezinha brincasse só com elle pelos corredores de Santa Olavia.

     As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o proprio abbade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquillo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.

     - Se péga, dizia então com um gesto prophetico o dr. Trigueiros, temos d'alli coisa grande!

     E parecia pegar.

     Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de logica e rhetorica para se occupar de anatomia: n'umas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras d'um casaco o riso d'uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o seu talentoso collega».

     Esta inesperada carreira de Carlos (pensára-se sempre que elle tomaria capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o snr. Carlos da Maia quizesse «ser medico a sério».

     - Ora essa! exclamou Affonso. E porque não ha de ser medico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser util ao seu paiz...

     - Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, não lhe parece a v. exc.ª que ha outras coisas, importantes tambem, e mais proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar util?...

     - Não vejo, replicou Affonso da Maia. N'um paiz em que a occupação geral é estar doente, o maior serviço patriotico é incontestavelmente saber curar.

     - V. exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.

     E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», pratica e util, as escadas de doentes galgadas á pressa no fogo de uma vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturí, as noites veladas á beira de um leito, entre o terror de uma familia, dando grandes batalhas á morte. Como em pequeno o tinham encantado as fórmas pittorescas das visceras - attrahiam-no agora estes lados militantes e heroicos da sciencia.

     Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para esses longos annos de quieto estudo o avô preparára-lhe uma linda casa em Cellas, isolada, com graças de cottage inglez, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as arvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) poz-lhe o nome de «Paços de Cellas», por causa de luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panoplias d'armas, e um escudeiro de libré.

     Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porém que o dono d'estes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava tambem o paiz uma choldra ignobil - os mais rigidos revolucionarios começaram a vir aos Paços de Cellas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta bohemio, o duro socialista, que tinha apenas por mobilia uma enxerga e uma Biblia.

     Ao fim d'alguns mezes, Carlos, sympathico a todos, conciliára Dandys e Philosophos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que já era addido honorario em Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de Satanaz, encolhido no seu gabão d'Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.

     Os Paços de Cellas, sob a sua apparencia preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica scientifica. Uma velha cozinha fôra convertida em sala d'armas - porque n'aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério: e no salão, sob o lustre de crystal, com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas poltronas - havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metaphysicas, as proprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquettes.

     Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas as fórmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n'um atelier improvisado, a pintura a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia da Salammbô. Além d'isso todas as tardes passeava os seus dois cavallos. No segundo anno levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intellectual, acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente lhe deram um accessit. Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um d'esses medicos litterarios que inventam

doenças de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!

     O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos primeiros tempos a sua presença, agradavel aos cavalheiros da partilha de whist, desorganisou o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa excellencia isto, vossa excellencia aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura, contar anecdotas do seu tempo d'Inglaterra e d'Italia, começaram a consideral-o como um camarada de barbas brancas. Diante d'elle já se fallava de mulheres e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tão rico, que lêra Michelet e o admirava - chegou mesmo a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro d'aquelles moços de estudo, de ideal e de veia.

     Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres; mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais só se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora soberbos pannos d'Arraz, paizagens de

Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e d'arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de parque inglez: através dos macios taboleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existencia n'este meio rico não era agora tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, cahia em somnos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via tambem á mesa a bondosa face do abbade, que lá jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o anno. O dr. juiz de direito com a sua concertina passára para a Relação do Porto; D. Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho, mollengão e tristonho, já sem vestigios sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ás letras, ia casar na Regoa. Só o dr. delegado, esquecido n'aquella comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao portão para vir cavaquear com o collega.

     As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu intimo, o grande João da Ega, a quem Affonso da Maia se affeiçoára muito, por elle e pela sua originalidade, e por ser sobrinho d'André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outr'ora, hospede tambem em Santa Olavia.

     Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente – ora reprovado, ora perdendo o anno. Sua mãi, rica, viuva e beata, retirada n'uma quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e rica tambem, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capellão affirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava á boa senhora, que se occupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos d'esse padre Seraphim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que elle escandalisava com a sua irreligião e as suas facecias hereticas.

     João da Ega, com effeito, era considerado não só em Celorico, mas tambem na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como o maior atheu, o maior demagogo, que jámais apparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio á Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor livre das ficções do matrimonio, a repartição das terras, o culto de Satanaz. O esforço da intelligencia n'este sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a hysionomia; e, com a sua figura esgrouviada e sêcca, os pêllos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito - tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satanico. Desde a sua entrada na Universidade renovára as tradições da antiga Bohemia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze annos, filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de dôce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o appetecido nas familias.

     Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por se enredar n'um episodio romantico com a mulher d'um empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça d'um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fantisára fôra o luxo, o groom, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle viveu semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbytero, dirigiam para Cellas missivas pelo correio com este nome odioso.

     Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto d'elle com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais roliço por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas roxas de frio, e rindo na clara luz - rindo todo elle, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que elle lia Michelet - e enchia-lhe a alma a veneração litteraria da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar alli de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas d'aquelle pobre pae tão inofensivo no seu paletot coçado! Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, d'ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos.

     Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega, foi quando elle, ao fim d'umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga hespanhola, e a installou n'uma casa ao pé de Cellas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a apparição d'uma Dama das Camelias, uma flôr de luxo das civilisações superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoção, quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um pouco da meia de sêda, languida e desdenhosa, com um cãosinho branco no regaço.

     Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lirio d'Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de theologia, rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das instancias de Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo começou a rondar Cellas, com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.

     Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar d'outras paixões que inspirára em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posição da sua familia ainda aparentada com os Medina-Coeli: os seus sapatos de setim verde eram tão antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero - sendo muito conservadora como todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos Paços de Cellas emquanto por lá apparecesse aquelle montão de carne, pago ao arratel, como a de vacca.

     Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surprehendeu-a com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava, emfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Coeli, o Lirio d'Israel, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e á rua de S. Roque, seu elemento natural.

    Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Cellas. Affonso viera de Santa Olavia, Villaça de Lisboa; toda a tarde no quintal, d'entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mólhos de foguetes; e João da Ega, que levára o seu ultimo R no seu ultimo anno, não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapesio e em roda do poço, para a illuminacão da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, Villaça, enfiado e tremulo, fez um speech; ia citar o nosso immortal Castilho quando sob as janellas rompeu, a grande ruido de tambor e pratos, o Hymno Academico. Era uma serenata. - Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu á sacada, a perorar:

     - Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma - ou acabar de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d'estes reinos não chegou já a fama do seu genio, do seu dog-cart, do sebaceo accessit que lhe ennodôa o passado, e d'este vinho do Porto, contemporaneo dos heroes de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana, eu, João da Ega, Johanes ab Ega...

     O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A philarmonica, outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as arvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de dôce, não cessou d'estalar o champagne. E Villaça, limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem:

     - Grande coisa, ter um curso!

 

     E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um anno passou. Chegára esse outono de 1875: e o avô installado emfim no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel organização dos hospitaes de crianças. Assim era: mas passeava tambem por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de seu marido, veneravel magistrado da Haya, uma Mme. Rughel, soberba creatura de cabellos d'ouro fulvo, grande e branca como uma nympha de Rubens.

     Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas de livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo um laboratorio - que trazia o Villaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazens da alfandega.

     - O meu rapaz vem com grandes idéas de trabalho, dizia Affonso aos amigos.

     Havia quatorze mezes que elle o não via, o «seu rapaz», a não ser n'uma photographia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coracão batia-lhe forte, na linda manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binoculo na mão, viu assomar vagarosamente, por traz do alto predio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que lhe trazia o seu neto.

     Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Villaça - não se fartavam d'admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que differença da photographia! Que forte, que saudavel!

     Era decerto um formoso e magnifico moço, alto, bem feito, de hombros largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os d'elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo - o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e humido transbordava d'emoção, todo se orgulhava de o vêr, de o ouvir, n'uma larga veia, fallando da viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor na Prussia, da originalidade de Moscow, das paizagens da Hollanda...

     - E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?

     - Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descançar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!

     Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de bilhar - onde tinham sido collocados os caixotes - a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo chão, pelos sophás, alastrava-se toda uma litteratura em rumas de volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através das lonas descozidas, a luz faiscava n'um crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para aquelle pomposo apparato do saber.

     - E onde vaes tu accommodar este museo?

     Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro, com fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos anatomicos e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma concentração methodica de todos os instrumentos de estudo...

     Os olhos do avô illuminavam-se ouvindo este plano grandioso.

     - E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fizemos n'estes ultimos annos de Santa Olavia algumas economias...

     - Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Villaça.

     As semanas foram passando n'estes planos de installação. Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a sciencia como mera ornamentação interior do espirito, mais inutil para os outros que as proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitario: desejava ser util. Mas as suas ambições fluctuavam, intensas e vagas; ora pensava n'uma larga clinica; ora na composição macissa de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha d'applicação. «Alguma cousa de brilhante,» como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo e homem d'estudo, significava um conjuncto de representação social e de actividade scientifica; o remecher profundo de idéas entre as influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse tambem um Morny... No fundo era um dilletante.

     Villaça fôra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incançavel. Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?...

     Carlos não decidira fazer exclusivamente clinica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então Villaça suggeriu que o consultorio estivesse separado do laboratorio.

     - E a minha razão é esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas, faz esmorecer os doentes...

     - Tem você razão, Villaça! exclamou Affonso. Já meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.

     - Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n'um tom profundo.

     Carlos concordou. E Villaça bem depressa descobriu, para o laboratorio, um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo das Necessidades.

     - E o consultorio, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rocio, alli em pleno Rocio!

     Esta idéa do Villaça não era desinteressada. Grande enthusiasta da Fusão, membro do Centro progressista, Villaça Junior aspirava a ser vereador da camara, e mesmo em dias de satisfação superior (como quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado no Illustrado, ou quando no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que d'ahi a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar d'esquina.

     Carlos mobilou-o com luxo. N'uma antecamara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, á franceza, um creado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita côr, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de collecções do Charivari, de vistas estereoscopicas, d'albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultorio até um piano mostrava o seu teclado branco.

     O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em velludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a Italia - vieram vêr estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se nas photographias d'actrizes; e a unica approvação franca veiu do marquez, que depois de contemplar o divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho, vasto, voluptuoso, fôfo, experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:

     - A calhar.

     Não pareciam acreditar n'estes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos até fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira á Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, - encarregou Villaça de retirar o annuncio.

     Occupava-se então mais do laboratorio, que decidira installar no armazem, ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ia visitar as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquelle espaço em fresco jardinete inglez; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada d'ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu sanctuario de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martellar preguiçoso n'uma poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a claraboia, não cessavam de assobiar, no sol d'inverno, alguma lamuria de fado.

     Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d'obras, que lhe asseverava invariavelmente «como d'ahi a dois dias havia de s. ex.ª vêr a differença.» Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que elle desejava primeiro que tudo era um 93, como em França...

     - O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada e roliça face do demagogo.

     - Não, senhor, um navio, um simples navio...

     - Um navio?

     - Sim, senhor, um navio fretado á custa da nação, em que se mandasse pela barra fóra o rei, a familia real, a cambada dos ministros, dos politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

     Carlos sorria, ás vezes argumentava com elle.

     - Mas está o sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão exactamente diz, desapparecesse pela barra fóra, ficavam resolvidas todas as cousas e tudo atolado em felicidade?

     Não, o sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, supprimida a cambada, não via s. ex.ª? Ficava o paiz desatravancado; e podiam então começar a governar os homens de saber e de progresso...

     - Sabe v. ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade d'essa gente; é muita somma de ignorancia. Não sabem. Não sabem nada. Elles não são maus, mas são umas cavalgaduras!

     - Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relogio e despedindo-se d'elle com um valente shakehands, veja se me andam. Não lh'o peço como proprietario, é como correligionario.

     - D'aqui a dois dias ha de v. ex.ª vêr a differença, respondia o mestre d'obras, desbarretando-se.

     No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tepida suavidade d'aquelle fim de outono não permittia accender lume, mas verdejando todo de plantas d'estufa.

     Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeçarias ovaes dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caçadores medivaes soltando o falcão, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d'um rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a meza resplandecia com as flôres entre os crystaes.

     O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja comia com os senhores, lá estava já, magestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, á sombra de algum grande ramo. Era alli, no aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar estupido, as sopas de leite servidas n'um covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola entufada de pello branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta macia.

     Affonso, - como confessava, sorrindo e humilhado - ía-se tornando com a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração de critico, as obras d'arte do chef francez que tinham agora, um cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Theodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação, precipitando-se sobre o relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um calice de Chartreuse, accendia á pressa um charuto:

     - Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.

     E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella occupação, emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manhã...

     - Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez vá para lá passar um bocado, occupar-me de chimica.

     - E ser talvez um grande chimico. O avô tem já a feitio.

     O velho sorria.

     - Esta carcassa já não dá nada, filho. Está pedindo eternidade!

     - Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia? perguntava Carlos, abotoando á pressa as suas luvas de governar.

     - Bom dia de trabalho.

     - Pouco provavel...

     E no dog-cart, com aquella linda egoa, a Tunante ou no phaeton com que maravilhava Lisboa, Carlos lá partia em grande estylo para a Baixa, para «o trabalho.»

     O seu gabinete, no consultorio, dormia n'uma paz tepida entre os espessos velludos escuros, na penumbra que faziam as stores de seda verde corridas. Na sala, porém, as tres janellas abertas bebiam á farta a luz; tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amaveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não apparecia jámais um doente. E Carlos, - exactamente como o creado que, na ociosidade da antecamara, dormitava sobre o Diario de Noticias, acaçapado na banqueta - accendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, e estendia-se no divan. A prosa porém dos artigos estava como embebida do tedio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava cair o volume.

     Do Rocio, o ruido das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos americanos, subiam, n'uma vibração mais clara, por aquelle ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das arvores de municipio, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco n'aquelle abafado gabinete e resvelando pelos velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n'uma indolencia e n'uma dormencia... Com a cabeça na almofada, fumando, alli ficava, n'essa quietação de sesta, n'um scismar que se ía desprendendo, vago e tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d'uma brazeira meia apagada; até que com um esforço sacudia este torpor, passeiava na sala, abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de walsa, espriguiçava-se - e, com os olhos nas flores do tapete, terminava por decidir que aquellas duas horas de consultorio eram estupidas!

     - Está ahi o carro? ía perguntar ao creado.

     Accendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando comsigo:

     - Dia perdido!

 

     Foi uma d'essas manhãs que preguiçando assim no sophá com a Revista dos Dois Mundos na mão, elle ouviu um rumor na antecamara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:

     - Sua Alteza Real está visivel?

     - Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sophá.

     E cahiram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.

     - Quando chegaste tu?

     - Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu vens esplendido d'esses Londres, d'essas civilisações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não

ha nada como a barba toda!

     Carlos ria, abraçando-o outra vez.

     - E d'onde vens tu, de Celorico?

     - Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O figado, o baço, uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e aguas ardentes...

     Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ás varzeas de Celorico, o adeus de eternidade.

     - Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caíu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda a côrte do céu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diphtericas... A mamã salta immediatamente á conclusão que é a minha presença, a presença do atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha irmã concorda. Consultam o padre Seraphim. O homem, que não gosta de me vêr na quinta, diz que é possivel que haja indignação do Senhor - e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

     - E a epidemia...

     - Desappareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cor de canário.

     Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabello que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d'arroz – e Carlos deixou emfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos labios:

     - Ega, que extraordinario casaco!

     Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenò e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados á Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de thisico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.

     - É uma boa pelliça, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios da epidemia.

     - Como podes tu supportar isso?

     - É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.

     Tornou a recostar-se no sophá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete.

     - E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto explendido!

     Carlos fallou dos seus planos, de altas idéas de trabalho, das obras do laboratorio...

     - Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretária de pau preto.

     - Não sei. O Villaça é que deve saber...

     E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da pelliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:

     - O velludo dá seriedade... E o verde escuro é a côr suprema, é a côr esthetica... Tem a sua expressão propria, enternece e faz pensar... Gosto d'este divan. Movel de amor...

     Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.

     - Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E o cretonesinho agrada-me.

     Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n'um vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de musica aberto, as Canções de Gounod, teve uma surpreza enternecida:

     - Homem, é curioso... Cá me apparece! A Barcarolla! É deliciosa, hein?...

 

     Dites, la jeune belle,

     Ou voulez-vous aller?

     La voile...

 

     Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!

     Carlos teve outra exclamação, e crusando os braços diante d'elle:

     - Tu estás extraordinario, Ega! Tu és outro Ega!... A proposito da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem tu, em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos do Cantico dos Canticos?

     Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monocolo ao lenço de seda branca:

     - Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. É a mulher do Cohen, has de conhecer, um que é director do Banco Nacional... Démos-nos bastante. É sympathica... Mas o marido é uma besta... Foi uma flitartion de praia. Voila tout.

     Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e ainda córado.

     - Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô Affonso? Quem vae por lá?...

     No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrepito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, á espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...

     - Não conheço. Refugiado?... Polaco?...

     - Não, ministro da Filandia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finuras diplomaticas, tantos documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o pobre Villaça aturdido, para se desembaraçar, remetteu-o ao avô. O avô, desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito ao rei da Filandia, á Filandia, vae visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação, o consul, o vice-cousul...

     - Isso é sublime!

     - O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um gentleman, enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade no whist, o avô adopta-o. Não sae do Ramalhete.

     - E de rapazes?

     De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de Souzellas...

     - Não ha mulheres?

     - Não ha quem as receba. É um covil de solteirões. A viscondessa, coitada...

     - Bem sei. Um apopleté...

     - Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...

     - O de Resende, o cretino?

     - O cretino. Euviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo carregado de luto... Um funebre.

     O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que Carlos já notara, disse puchando lentamente os punhos:

     - É necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo, uma bohemiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com litteratura... Tu conheces o Craft?

     - Sim, creio que tenho ouvido fallar...

     Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal...

     - É um inglez, uma especie de doido?...

     Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade tão forte como a de Craft, não podia explical-a senão pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinario!... Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar tres mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!

     - É um negociante do Porto, não é?

     - Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorancia. O Craft é filho d'um clergiman da egreja ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou d'Australia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia, nem sabe o que isso é. Dá largas ao séu temperamento byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona obras d'arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive, vive na grande, na forte, na heroica accepção da palavra. É necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle... Tens razão, caramba, está calor.

     Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.

     - O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete?

     - Não; então não a podia aguentar... Isto é para o effeito moral, para impressionar o indigena... Mas, não ha negal-o, é pesada!

     E immediatamente voltou á sua idéa: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d'arte e dilletantismo, rapazes e mulheres - tres ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das philosophias...

     Carlos ria-se d'esta idéa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illusão de um homem de Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez só, uma cousa bem mais simples - um jantar no campo com actrizes. Pois fôra o escandalo mais engraçado e mais caracteristico: uma não tinha creada e queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma cóça. Esta não tinha vestido para ir; aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pôlhos, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, - emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada...

     - E aqui tens tu Lisboa.

     - Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idéas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilisação custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?

     Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n'uma lucta constante com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e á uma, malharam sobre o paiz...

     Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se n'ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo e d'aventura.

     - John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu?

     - No Universal, esse sanctuario!

     Carlos abominava o Universal, queria que elle viesse para o Ramalhete.

     - Não me convém...

     - Em todo o caso vaes hoje lá jantar, ver o avô.

     - Não posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou lá ámanhã almoçar.

     Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para cima:

     - Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

     - O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.

     - Está esboçado, á brocha larga...

     O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta ansiosa espectativa em torno do seu livro - o Ega decidira-se emfim a escrevel-o.

     Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memorias d'um Atomo, e tinha a fórma d'uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade - e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado d'esta jornada atravez do Ser, repousava - escrevendo as suas Memorias... Tal era este formidavel trabalho - de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

     - É uma Biblia!

 

     No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.

     Esse velho dandy, - a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira n'um leito real - acabava justamente de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo até á raiz dos cabellos.

     Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma voz rouca e surda:

     - Paus, hein?

     E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n'um d'aquelles silencios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Villaça seu parceiro, resingão, e com todo o sangue na face.

     Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; - depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção côr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um Sèvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.

     - O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.

     Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:

     - Como vae ella? Está socegada?

     - Está muito melhor!

     Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsacianna, casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos cabellos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado á morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ás vezes á noite atravessava a rua para a ir vêr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e de gabão pelos hombros, suffocava soluços d'amante, escrevinhando no livro de contas.

     Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora estava realmente agradecido á Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava d'ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno, a prosperidade que trouxera á padaria... Para a convalescença, que se approximava, já lhe mandára até seis garrafas de Chateau-Margaux.

     - Então fóra de perigo, inteiramente fóra de perigo? - perguntou Villaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua sollicitude.

     - Sim, quasi rija - disse Carlos, que se approximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.

     É que a noite, fóra, estava regelada! Desde o anoitecer geava, d'um céu fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como pontas afiadas d'aço; e nenhum d'aquelles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jámais o thermometro tão baixo. Sim,

Villaça lembrava-se d'um janeiro peor no inverno de 64...

     - É necessario carregar no punch, hein, general! - exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira.

     - Não me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a meza.

     Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva d'oiro cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gôso.

     - O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés á chamma. Tem, emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto o Ega estes ultimos dias?

     Ninguem respondeu, no interesse subito que causava a cartada. A longa mão de D. Diogo recolhia de vagar a vasa – e languidamente, no mesmo silencio, soltou uma carta de paus.

     - Ó Diogo! ó Diogo! gritou Affonso, estorcendo-se, como se o trespassasse um ferro.

     Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faiscas, collocou o seu valete; Affonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; Villaça bateu de estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma discussão tremenda sobre a puchada de D. Diogo – em quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debruçava a coçar o ventre fofo do veneravel Reverendo.

     - Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolação nas derrotas. O Ega? Não, ninguem o viu, não tornou a apparecer! Está tambem um bom ingrato, esse John...

     Ao nome do Ega, Villaça, parando de baralhar as cartas, erguera a face curiosa:

     - Então sempre é certo que elle vae montar casa?

     Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo o cachimbo:

     - Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées litterarias, publicar um poema, o diabo!

     - Elle esteve lá no escriptorio, dizia Villaça recomeçando a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultorio, a mobilia de velludo, etc. O velludo verde deu-lhe no gôto... Eu, como é um amigo da casa, lá lhe prestei informações, até lhe mostrei as contas. - E respondendo a uma pergunta do Sequeira: - Sim, a mãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que em quanto a mim, elle vem-se metter na politica. Tem talento, falla bem, o pae já era muito regenerador... Alli ha ambição.

     - Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com peso esta decisão e accentuando-a com uma caricia languida á ponta frisada dos bigodes brancos. Lê-se-lhe na cara, basta vêr-lhe a cara... Alli ha mulher.

     Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino olho á Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quis saber quem era a Dulcinea. Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua experiencia, que essas cousas nunca se sabiam, e era

preferivel não se saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cahir d'alto e com condescendencia este juizo:

     - Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem degagè...

     Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na meza. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaça furiosa.

    - Os senhores são muito viciosos, vou vêr a gente do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquez, a perder já quatro mil réis. Querem o punch aqui?

     Nenhum dos parceiros respondeu.

     E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silencio de solemnidade. O marquez, estirado sobre a tabella, com a perna meia no ar, o começo de calva alvejando á luz crua que cahia dos abat-jours de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apostára por elle, deixára o divan, o cachimbo turco, e, coçando com um gesto nervoso a grenha crespa que lhe ondeava até á gola do jaquetão, vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de Sta. Olavia, estendia tambem o pescoço, affogado n'uma gravata de viuvo de merino negro e sem collarinho, sempre macambuzio, mais mollengo que outr'ora, com as mãos enterradas nos bolsos - tão funebre que tudo n'elle parecia complemento do luto

pesado, até o preto do cabello chato, até o preto das lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken, esperava: e apesar do susto, da emoção d'homem do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a sua linha britanica, - vestido como um inglez, inglez tradicional d'estampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calças de xadrez sobre sapatões de tacão raso.

     - Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinbos para cá, Silveirinha!

     O marquez carambolára, ganhando a partida, e triumphava tambem:

     - Você trouxe-me a sorte, Carlos!

     Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava já sobre a tabella, lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.

     Mas o marquez, de giz na mão, reclamava-o para outras refregas, esfaimado d'ouro filandez.

     - Nada mach!... Vôcê hoje 'stá têrivêl! dizia o diplomata, no seu portuguez fluente, mas de accento barbaro.

     O marquez insistia, plantado diante d'elle, de taco ao hombro como uma vara de campino, dominando-o com a sua macissa, desempenada estatura. E ameaçava-o de destinos medonhos n'uma voz possante habituada a ressoar nas lezirias; queria-o arruinar ao bilhar, forçal-o a empenhar aquelles bellos anneis, leval-o elle, ministro da Filandia e representante d'uma raça de reis fortes, a vender senhas á porta da Rua dos Condes!

     Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um riso franzido e difficil, fixando no marquez o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua myopia a dureza d'um metal. Apesar da sua sympathia pela illustre casa de Souzella, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaças, incompativeis com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia. O marquez, porém, coração d'ouro, abraçava-o já pela cinta, com expansão:

     - Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken amigo!

     A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se logo, dando caricias ligeiras ás suissas, e aos anneis do cabello d'um loiro de espiga desbotada.

     Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como elle dissera a Affonso) eram bons barytonos: e isso trouxera á familia não poucos proventos sociaes. Pela voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano, cantando psalmos lutheranos, coraes escolares, sagas da Dallecarlia - em quanto o taciturno monarcha cachimbava e bebia, até que saturado de emoção religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do sophá, soluçando e babando-se. Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, já como addido, já como segundo secretario. Feito chefe de missão, absteve-se: foi só quando vio o Figaro celebrar repetidamente as walsas do principe Artoff, embaixador da Russia em Paris, e a voz de basso do conde de Baspt, embaixador d'Austria em Londres, que elle, seguindo tão altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em soirées mais intimas, algumas melodias filandezas. Emfim cantou no Paço. E desde então exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de «barytono plenipotenciario,» como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvidava todavia cantarolar o que elle chamava «cançonetas brejêras» - o Amant d'Amanda, ou uma certa ballada ingleza:

 

     On the Serpentine,

     Oh my Caroline...

     Oh!

 

     Este oh! como elle o expellia, gemido, bem puxado, n'um movimento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados.

     N'essa noite, porém, o marquez, que o conduzia pelo braço á sala do piano, exigia uma d'aquellas canções da Filandia, de tanto sentimento e que lhe faziam tão bem á alma...

     - Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk, gluzk... La ra lá, lá, lá!

     - A Primavera, disse o diplomata sorrindo.

     Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o braço de Steinbroken, fez um signal ao Silveirinha para o fundo do corredor - e ahi, sob um sombrio painel de Santa Magdalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de nympha lubrica, interpellou-o quasi com aspereza:

     - Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?

     Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre elles, a respeito d'uma parelha d'egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que elle dizia «ter tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animaes». Pedia por ellas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fôra avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Eusebio cedendo á influencia da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da antiguidade do seu titulo, não ousava recusar. Mas hesitava; e n'essa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:

     - Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos é dinheiro...

     O marquez ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:

     - Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animaes que são duas estampas... Irra ! Sim ou não!

     Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:

     - Eu verei... Elle é dinheiro. Sempre é dinheiro...

     - Queria você, talvez, pagal-as com feijões? Voce leva-me a commetter um excesso!

     O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquez, baboso por musica, immediatamente largou a questão das egoas, recolheu em pontas de pés. Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; emfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como uma sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.

     Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como pousada ás costas, Cruges feria o acompanhamento, d'olhos cravados no livro de Melodias Filandezas. Ao lado, empertigado, quasi official, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, n'um movimento de tarantella triumphante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquez gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera - fresca e silvestre, primavera do norte em paiz de montanhas, quando toda uma aldêa dança em córos sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo elle se ía alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis faiscavam.

     O marquez, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Filandia, e cantava ás vezes aquella Primavera nas suas horas de sentimentalismo flamengo...

     Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz n'um alto, - e immediatamente, afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puchão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges n'um silencioso shake-hands.

     - Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as mãos como malhos.

     E outros applausos resoaram á porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um serviço frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma meza, entre os renques de calices, a puncheira fumegou n'um aroma doce e quente de cognac e limão.

     - Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater amavelmente no hombro, ainda dá d'esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?

     - Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro um copita Porto...

     - Hoje fomos nós as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia o seu punch.

     - Você tãbem, meu genêral?

     - Sim, senhor, tambem me cascaram...

     E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... O que o alegrava n'isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de Broglie e da sua clique. A impertinencia d'aquelle

academico estreito, querendo impôr a opinião de dois ou tres salões doutrinarios á França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lh'as!

     - E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!...

     O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as mãos disse n'uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que apparecem em telegrammas :

     - É gràve... É eqsessivemente gràve...

     Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura proxima, o diplomata tomou mysteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens d'estado, poetas, viajantes ou tenores.

     - É um homè mûto forte. É um homè eqsessivemente forte!

     - O que elle é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu calice.

     E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica - em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Choppin, depois de ter devorado um prato de croquettes.

     O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophá, um com a sua chasada d'invalido, outro com um copo de St. Emilion, a que aspirava o bouquet, fallavam tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta: fôra o unico que durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido» ou que «quizesse comer» como diziam, - não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidadão serio, optimo para chefe do Estado...

     Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.

     O marquez só o vira na Assembléa, presidindo e muito digno...

  1. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar:

     - O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez!

     O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo forte por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hercules...

    - Um Hercules! O que é, é que você apaparica-se muito... A doença é um mau habito em que a gente se põe. É necessario reagir... Você devia fazer gymnastica, e muita agua fria por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!

     - Enferrujadote, enferrujadote... - replicou o outro, sorrindo e desvanecido.

     - Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a você que a esses badamecos que por ahi andam meio

podres... Já não ha homens da sua tempera, Dioguinho!

     - Já não ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruinas d'um mundo.

     Mas era tarde, ia-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou, preguiçando no sophá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava com o seu luxo Luiz XV, os seus floridos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras d'idyllios mortos, transparecendo n'uma trama de seda... Áquella hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços - e atacou, com um pedal solemne, o Hymno da Carta. O marquez fugiu.

     Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n'uma das arcas baixas de carvalho lavrado.

     - A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.

     Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:

     - É necessario salvar a patria!

     Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende, e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos. N'esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de Sta. Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura.

     - Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou tres vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis

Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utiliso d'ella; nem o amigo. É verdade, que o amigo está de luto.

     Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da frisa - se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso molle:

     - Indo assim, até se podem encalacrar...

     Uma tal palavra, tão humilhante, applicada aos Maias, á casa que elle administrava, escandalisou Villaça. Encalacrar! Ora essa!

     - O amigo não me comprehendeu... Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado Deus, a casa póde bem com ellas! É verdade que o rendimento gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas seccas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...

     Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavallos, o cocheiro inglez, os grooms... O procurador acudiu:

     - Isso, amigo, é de razão. Uma gente d'estas deve ter a sua representação, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade... É como o sr. Affonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com elle, que lhe conheço aquelle casaco ha vinte annos... Mas são esmolas, são pensões, são emprestimos que nunca mais vê...

     - Desperdicios...

     - Não lh'o censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos Maias, já meu pae dizia, sahiu ninguem descontente... Mas uma frisa, de que ninguem usa! só para o Cruges, só para o Taveira!...

     Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola d'uma ulster, d'onde sahiam as pontas d'um cachenez de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e elle, de casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da geada, veiu apertar a mão ao caro Villaça, ao amigo Eusebio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chic...

     - Nada, nada, dizia Villaça todo amavel, cá o nosso solzinho portuguez sempre é melhor...

     E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquez, de Carlos, n'uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport.

     - Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu o Taveira.

     Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira reclamou alguma cousa quente. E enterrado n'uma poltrona junto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarette, declarou emfim que não tinha sido um fiasco.

     - Que ella, a meu vêr, é uma insignificancia, não tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgencia, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ella estava contente...

     - Vamos a saber, Taveira, que tal é ella? inquiria o marquez.

     - Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes...

     - E o pésinho? - E o marquez, já com os olhos accesos, passava de vagar a mão pela calva.

     Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...

      - Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.

     - A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá appareceram hoje...

     Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabello côr de cenoura, muito bem feita... Emfim, Carlos não conhecia.

     Villaça encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma columna do partido. Rapaz de talento, segundo o Villaça. O que o espantava é que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado como estava: ainda não havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil réis, no tribunal do commercio...

     - Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.

     - Passa-se lá bem, ás terças feiras... - disse Taveira, mirando a sua meia de seda.

       Depois fallou-se do duello do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes, auctor d'El-Rei Bolacha, a grande magica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes de pulhas e de ladrões: e havia dez interminaveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Villaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela policia...

     - Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que varriam tudo.

     - O ministro não deixa de ter razão, observou Villaça. Isto ás vezes, em duellos, póde bem succeder uma desgraça...

     Houve um curto silencio. Carlos, que caía de somno, perguntou ao Taveira, atravez doutro bocejo, se vira o Ega no theatro.

     - Podera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado...

     - Então essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece clara...

     - Transparente, diaphana! um crystal!...

     Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou logo a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel não se saberem! Mas o marquez, a isto, lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via ahi um facto de represalia social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe ofendia tanto o gosto e a razão como a especie banqueiro. Comprehendia o salteador de clavina, n'um pinheiral; admittia o communista, arriscando a

pelle sobre uma barricada. Mas os argentarios, os Fulanos e Cas. faziam-n'o encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritorio!

     - Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.

     - Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?

     - Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!

     Affonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fôra tambem a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez conseguiu levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer musica a casa, no orgão, até ás tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, lá se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.

 

     O laboratorio de Carlos estava prompto - e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo divan de clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e crystaes; mas as semanas passavam, e todo esse bello material de experimentação, sob a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ia ganhar o seu tostão diario, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.

     Carlos realmente não tinha tempo de se occupar do laboratorio; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das cousas - como elle dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía fazer as suas duas horas d'armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcellina - e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso. Começava a ser conhecido como medico. Tinha visitas no consultorio - ordinariamente bachareis, seus contemporaneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada historia de ternuras funestas. Salvara d'um garrotilho a filha d'um brazileiro, ao Aterro - e ganhara ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operação ovariotomica. E emfim (mas esta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons collegas, que até ahi, vendo-o só a governar os seus cavallos inglezes, fallavam do «talento do Maia» - agora percebendo-lhe estas migalhas de clientella, começavam a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos já fallava a serio da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes d'estylista, dois artigos para a Gazeta Medica; e pensava em fazer um livro d'idéas geraes, que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto, em virtude d'essa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia fallar d'uma estatua ou d'um poeta, attrahia-o singularmente a antiga idéa do Ega, a creação d'uma Revista, que dirigisse o gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...

     Era porém inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago, respondia:

     - Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar n'isso! Havemos de fallar, eu apparecerei...

     Mas não apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; d'onde podesse olhar de vez em quando Rachel Cohen - e ali ficava, silencioso, com a cabeça appoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...

     O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobilias... Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar - ou então no fundo de tipoias de praça, batendo a meio galope, n'um espalhafato de aventura.

     O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d'um Brummel, casaca de botões amarellos sobre collete de setim branco; e Carlos entrando uma manhã cedo no Universal, deu com elle pallido de colera, a despropositar com um creado, por causa d'uns sapatos mal envernisados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, d'olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento.

     Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!» - e dizia-o rilhando o dente: ao marquez não deixava de parecer appetitosa, para uma vez, aquella carnezinha faisandée de mulher de trinta annos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgoia relamboria». Nos jornaes, na secção do High-life, ella era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta d'ouro presa por um fio d'ouro, e a sua caleche azul com cavallos

pretos. Era alta, muito pallida, sobre tudo ás luzes, delicada de saude, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lyrio meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente negros,

ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella deixava habilmente cahir n'uma massa meia solta sobre as costas, como n'um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia phrases. O seu sorriso lasso, pallido, constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre Ega adorava-a.

     Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n'essa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camelia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa d'ella, horas inteiras, cahido para cima da cama.

     Em Lisboa, entre o Gremio o a Casa Havaneza, já se começava a fallar «do arranjinho do Ega». Elle todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romântico do mysterio: e era nos sitios mais desageitados, fóra de portas, para os lados do Matadouro, que ia furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas d'ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até ahi mencionara o nome d'ella, nem deixara jámais escapar um lampejo de exaltação.

     Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:

 

     Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!

 

     Isto fugira-lhe dos labios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

     Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente no puro interesse litterario:

     - No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não ha senão o velho Hugo...

     Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lyrico», injurias peiores.

     Mas n'essa noite o grande phraseador continuou:

     - Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heroico de verdades eternas... É necessario um bocado d'ideal, que diabo!... De resto o ideal póde ser real...

     E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.

     Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia - quando do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.

     - Tens que fazer, doutor?

     - Não, ía a sahir, janota!

     - Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Atomo... Senta-te ahi. Ouve lá.

     Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxão ao collarinho - e Carlos, que se pousara á borda do divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, n'um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.

     - Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o cahos...

     Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.

     - Não, não é o primeiro episodio... Não é o cahos. É já no seculo XV... Mas n'um livro d'estes póde-se começar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a Hebrea.

     A Cohen! pensou Carlos.

     Ega tornou a alargar o collarinho - e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o Atomo do Ega, apparecia alojado no coração do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de heroe palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos.

     Isto contava-o o Atomo n'um monologo, tão recamado d'imagens como um manto da Virgem está recamado d'estrellas - e que era uma declaração d'elle, Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros,

cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Esther - e de Rachel... Emfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da familia hebraica, atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas feudaes; a apparição, n'uma encrusilhada, do principe Franck que vem proteger Esther, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d'um reitre, indo morrer no peito d'Esther, que morre com elle n'um beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas d'estylo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de côr atiradas á larga para fazer ressaltar o tom de vida...

     Ao findar o Atomo exclamava, com a vasta solemnidade d'um cheio d'orgão: - «assim arrefeceu, parou, aquelle coração de heroe que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essencia pura d'esse amor immortal.»

     - Então?... disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.

     Carlos só poude responder:

     - Está ardente.

     Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Ecclesiastes, de noite, entre as ruinas da torre d'Othon, certas imagens d'um grande vôo lyrico.

     Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:

     - Então, parece-te apresentavel?...

     - Vaes publicar?

   - Não, mas emfim... - e ficou n'esta reticencia, fazendo-se corado.

     Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descripção «da leitura feita em casa do exmo. sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu livro - As memorias d'um atomo.» E o jornalista accrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos soffrimentos porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei d'Israel. Que poder de imaginação! Que fluencia d'estylo! O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir da protagonista - vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!»

     Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado...

     - Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas! Leste? Lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo... E depois a fluencia d'estylo. Que burros! Que idiotas!

     Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o. Aquella era a maneira nacional de fallar d'obras d'arte... Não valia a pena bramar...

     - Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara áquelle folliculario!

     - E porque lh'a não quebras?

     - É um amigo dos Cohens.

     E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indifferença de Carlos:

     - Que diabo estás tu ahi a ler? Nature parasitaire des accidents de l'impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serão umas picadas que me veem aos braços, sempre que vou a adormecer?...

     - Pulgas, bichos, vermina... - murmurou Carlos com os olhos no livro.

     - Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.

     - Vaes-te, John?

     - Vou, tenho que fazer! - E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: - Estes burros d'estes jornalistas! São a escoria da sociedade!

     D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e já com outra voz, n'um tom de caso serio:

     - Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?

     - Não tenho um interesse especial, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silencio. Mas não tenho tambem uma repugnancia especial.

     - Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho... Gente intelligente, passa-se lá bem... Então, decidido.! Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.

     Carlos ficou pensando n'aquella proposta do Ega, na maneira como elle sublinhára o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n'aquella facil visinhança de frisa, surprehendera certos olhares d'ella... Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente fazia-lhe um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, d'um grande brilho, dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem feita - e tinha uma pelle muito clara, fina e doce á vista, a que se sentia mesmo de longe o setim.

     Depois d'aquelle dia tristônho de aguaceiros, elle resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas, ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, collocando-se tentadoramente entre elle a sua noite d'estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico!

     Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém á boca da frisa, preparado, de collete branco e perola negra na camisa, - em logar dos cabellos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho á mamã sobre uma jaqueta de botões amarellos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado de pellica pranca. Ambos elles lhe relancearam os olhos bogalhudos, côr de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso.

     Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo - nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria, vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo tambem.

     - Isto está lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro da frisa.

     Cruges, amodorroado n'um accesso de spleen, com o cotovello sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabelleira, todo elle embrulhado em crepes sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d'um sepulchro:

     - Pesadote.

     Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquelle preto de que os seus olhos se não podiam despegar, alli enthronisado na poltrona de reps verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braço, - foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa d'ella; relembrou toilettes com que ella alli estivera; e nunca lhe pareceram tão picantes, como agora que os não via, os seus cabellos ruivos, côr de braza ás luzes, d'um encrespado forte, como crestados da chamma interna. A carapinha do preto, essa, em logar de risca tinha um sulco cavado á thesoura na massa de lã espessa. Quem seriam, por que estavam alli, aquelles africanos de perfil trombudo?

     - Tu já reparaste n'esta extraordinaria carapinha, Cruges?

     O outro, que se não mexera da sua attitude de estatua tumular, grunhiu da sombra um monossyllabo surdo.

     Carlos respeitou-lhe os nervos.

     De repente, ao desafinar mais aspero d'um coro, Cruges deu um salto.

     - Isto só a pontapé... Que empreza esta! rugio elle, envergando furiosamente o paletot.

     Carlos foi leval-o no coupé á rua das Flores, onde elle morava com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentar comsigo o seu serão d'estudo perdido.

     O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo o jornal, na confortavel antecamara dos «quartos do menino», forrada de velludo cor de cereja, ornada de retratos de cavallos e panoplias de velhas armas, com divans do mesmo velludo, e muito allumiada a essa hora por dois candieiros de globo pousados sobre columnas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.

     Carlos tinha desde os onze annos este creado de quarto, que viera com o Brown para Sta. Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação ingleza, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos Paços de Cellas, que Baptista começou a ser um personagem: Affonso correspondia-se com elle de Sta. Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwiches no buffete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cincoenta annos, desempenado, robusto, com um collar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamente gentleman. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par de luvas amarellas espetado na mão, a sua bengala de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha a consideravel apparencia de um alto funccionario. Mas conservava-se tão fino e tão desembaraçado, como quando em Londres aprendera a walsar e a boxar na rude balburdia dos salões-dançantes, ou como quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar o muro do quintal do sr. escrivão de fazenda - aquelle que tinha uma mulher tão garota.

     Carlos foi buscar um livro ao gabinete d'estudo, entrou no quarto, estendeu-se, cansado, n'uma poltrona. Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado de bretanhas, bordados e rendas.

     - Que ha hoje no Jornal da Noite? perguntou elle bocejando, em quanto Baptista o descalçava.

     - Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvesse cousa alguma. Em França continúa socego... Mas a gente nunca póde saber, porque estes jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.

     - São umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso com elles...

     Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um grog quente, Carlos já deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarette, e ficou fumando com as palpebras cerradas, n'uma immensa beatitude. Atravéz das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.

     - Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?

     - Conheço o Pimenta, meu senhor, que é creado de quarto do sr. conde... Creado de quarto e serve a meza.

     - E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos, n'uma voz indolente, depois d'um silencio.

     - Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O sr. Gouvarinho chama-lhe Romão, por que estava acostumado ao outro creado que era Romão. E já isto não é bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente...

     E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a salva com o grog, o assucareiro, as cigarettes, transmittiu as revelações do Pimenta. O conde de Gouvarinho, além de muito massador e muito pequinhento, não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão coçado e tão cheio de riscas de tinta, de limpar a penna á perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente fóra. O conde e a senhora não se avam bem: já no tempo do Pimenta, uma occasião, á mesa, tinham-se pegado de tal modo que ella agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no chão. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o sr. conde, quando começava a repisar, a remoer, não se podia aturar. As questões eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordões á bolsa...

     - Quem é esse Tompson velho, que nos apparece agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.

     - O Tompson velho é o pae da sr.ª condessa. A sr.ª condessa era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto... O sr. Tompson não tem querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta tambem, o sr. conde, furioso, disse á senhora que ella e o pae se deviam lembrar que eram gente de commercio e que fora elle que fizera d'ella uma condessa; e com perdão de v. ex.ª, a senhora condessa ali mesmo á mesa mandou o condado á tabúa... Estas cousas não estão no genero do Pimenta.

     Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tão rigidos escrupulos, a respeito d'uma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava á tabua o titulo dos antepassados. E perguntou:

     - Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ella diverte-se?

     - Creio que não, meu senhor. Mas a creada de confiança d'ella, uma escosseza, essa é desobstinada. E não fica bem á senhora condessa ser assim tão intima com ella...

     Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.

     - Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a saber, ha quanto tempo, não escrevo eu a madame Rughel?

     Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com methodo, estas datas: - «Dia 1 de janeiro, telegramma expedido com felicitações do começo d'anno a madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs Élyseés, Paris. Dia 3, telegramma recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, annunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao correio, para madame Rughel, William-Strasse, Hamburgo, Allemagne. Depois - mais nada. De modo que havia já cinco semanas que o menino não escrevia a madame Rughel...

     - É necessario escrever ámanhã, disse Carlos.

     Baptista tomou uma nota.

     Depois, entre uma fumaça languida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto:

     - Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista? É a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!

     O velho creado metteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar, muito certo de si:

     - Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino dá licença, era aquella senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Vienna.

     Carlos atirou a cigarette para a salva - e escorregando pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordações alegres, exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia dos Paços de Cellas.

     - O sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma nympha de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o explendor d'uma deusa da Renascença, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto... - Retire-se, senhor!

     Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto um olhar solicito, e, contente da ordem em que as cousas adormeciam, saíu, levando o candieiro. Carlos não dormia: e não pensava na coronela de hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe apparecia, n'um vago dourado que provinha do reflexo de seus cabellos soltos, era a Gouvarinho - a Gouvarinho que não tinha o explendor d'uma deusa da Renascença como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pozera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação de Carlos - porque elle esperara-a essa noite e ella não tinha apparecido.

     Na terça-feira promettida Ega não veiu buscar Carlos para se irem gouvarinhar. E foi Carlos que d'ahi a dias, entrando como por acaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:

     - Então quando nos gouvarinhamos?

     N'essa noite, em S. Carlos, n'um entre-acto dos Huguenotes, Ega apresentou-o ao Sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frizas. O conde, muito amavel, lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de Sta. Olavia, quando ía vêr os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios - uma formosa vivenda tambem. Fallaram então do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoavel, pois n'esses ferteis vales nascera e se creara: e fallou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia edosa e doente sua mãe, a sr.ª condessa viuva...

     Ega, que affectara beber as palavras do conde, começou então uma controversia, sustentando como se se tratasse dos dogmas d'uma fé, a belleza superior do Minho, «esse paraiso idillico.» O conde sorria: via ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente no hombro do Ega, a rivalidade das duas provincias. Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...

     - Ahi está, por exemplo, dizia elle, o ciume entre Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Austria... Ouço por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia, acirral-a-hia, se v. exas. me permittem a expressão.

N'esta lucta das duas grandes cidades do reino, podem outros vêr despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilisação!

     Proferia estas cousas como do alto d'um pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente caír dos thesouros do seu intellecto á maneira de dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes da sua luneta d'ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pera curta, havia ao mesmo tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho.

     Carlos dizia: «Tem v. ex.ª razão, sr. conde.» O Ega dizia: «Você vê essas cousas d'alto, Gouvarinho». Elle cruzara as mãos por baixo das abas da casaca - e estavam todos tres muito serios.

     Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu. E d'ahi a um momento, Carlos, apresentado como «visinho de camarote», recebia da sr.ª condessa um grande shake-hand, em que tilintaram uma infinidade d'aros de prata e de blangles indios sobre a sua luva preta de doze botões.

     A sr.ª condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verão passado em Paris, no salão baixo do Café Inglez: até por signal estava n'essa noite um velho abominavel com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma meza defronte, historias horrorosas do sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou; o outro não fez caso, era o velho duque de Grammont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: não se lembrava de nada d'isso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria. Uma cousa tão indispensavel em quem segue a vida publica, a memoria! e elle desgraçadamente, não possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia lêr) os vinte volumes da Historia Universal de Cesar Cantu; lêra-os com attenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo - e ali estava sem saber historia!

     - V. ex.ª tem boa memoria, sr. Maia?

     - Tenho uma rasoavel memoria.

     - Inapreciavel bem de que goza!

     A condessa voltara-se para a platéa, coberta com o leque, com o ar constrangido, como se aquellas palavras pueris do marido a diminuissem, a desfeiassem... Carlos então fallou da opera. Que bello escudeiro huguenote fazia o Pandolli! A condessa não aturava o Corcelli, o tenor, com as suas notas asperas e aquella obesidade que o tornava buffo. Mas tambem (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raça dos Marios, homens de belleza, de inspiração, realisando os grandes typos lyricos. Nicolini era já uma degeneração... Isto fez lembrar a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva d'ouro!...

     Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos movimentos, o cabello crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno d'ella errava, no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha de rendas negras, á Valois, affogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arsinho de provocação e de ataque. De pé, callado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.

     O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a condessa e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.

     - Nós recebemos ás terças feiras, disse a condessa a Carlos - e o resto da phrase perdeu-se n'um murmurio e n'um sorriso.

     O conde acompanhou-o fóra, ao corredor.

     - É sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma

cousa n'este paiz... V. ex.ª é d'esse numero, bem raro infelizmente.

     Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:

     - Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a v. ex.ª podem-se dizer estas cousas, porque pertence á elite: a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo? Não ha um bispo. Quer-se um economista? Não ha um economista. Tudo assim! Veja v. ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se um bom estofador? Não ha um bom estofador...

     Um cheio de instrumentos e vozes, d'um tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a defficiencia dos photographos... Escutou, com a mão no ar:

     - É o coro dos punhaes, não? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Ha philosophia n'esta musica... É pena que lembre tão vivamente os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli incontestavelmente philosophia!

 

     Carlos, n'essa manhã, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa «Villa Balzac», que esse phantasista andára meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha emfim installado.

     Ega dera-lhe esta denominação litteraria, pelos mesmos motivos porque a alugára n'um suburbio longiquo, na solidão da Penha de França, - para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silencio campestre, os ares limpos, tudo alli fosse favoravel ao estudo, ás horas d'arte e d'ideal. Por que ia fechar-se lá, como n'um claustro de lettras, a findar as Memorias d'um Atomo! Sómente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um coupé da companhia.

     Carlos teve difficuldades em encontrar a «Villa Balzac»: não era, como tinha dito Ega no Ramalhete,logo adiante do largo da Graça um chaletsinho retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre arvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se n'uma vereda larga, entre quintaes, descendo pelo pendor da collina, mas accessivel a carruagens; e ahi, n'um recanto, ladeada de muros, apparecia emfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de pedra á porta, e transparentes novos dum escarlate estridente.

     N'essa manhã, porém, debalde Carlos deu puxões desesperados á corda da campainha, martellou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das arvores o nome do Ega: - a «Villa Balzac» permaneceu muda, como deshabitada, no seu retiro rustico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas de Champagne.

     Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...

     - Vae lá ámanhã, se ninguem responder, escala as janellas, pega fogo ao predio, como se fossem apenas as Tulherias.

     Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já a «Villa Balzac» o esperava, toda em festa: á porta «o pagem», um garoto de feições horrívelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botões de metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janellas em cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinellas, bebiam á larga todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, n'um prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do seculo dezoito, vestido de corte de alguma das suas avós, exclamou dobrando a fronte ao chão:

     - Bem vindo, meu principe, ao humilde tegurio do philosopho!

     Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, d'um verde feio e triste, e introduziu o «principe» na sala onde tudo era verde tambem: o reps que recobria uma mobilia de nogueira, o tecto de taboado, as listas verticais do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o reflexo d'um espelho redondo, inclinado sobre o sophá.

     Não havia um quadro, uma flôr, um ornato, um livro - apenas sobre a jardineira uma estatueta de Napoleão I, de pé, equilibrado sobre o orbe terrestre, n'essa conhecida attitude em que o heroe, com um ar pansudo e fatal, esconde uma das mãos por traz das costas, e enterra a outra nas profundidades do seu collete. Ao lado uma garrafa de Champagne, encarapuçada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios.

     - Para que tens tu aqui Napoleão, John?

     - Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre elle a fallar dos tyrannos...

     Esfregou as mãos, radiante. Estava n'essa manhã em alegria e em verve. E quiz immediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: ahi reinava um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da «Villa Balzac»; e n'elle se esgotara a imaginação artistica do Ega. Era de madeira, baixo como um divan, com a barra alta, um roda-pé de renda, e d'ambos os lados um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da India avermelhada envolvia-o n'um apparato de tabernaculo; e dentro, á cabeceira, como n'um lupanar, reluzia um espelho.

     Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu a todo o leito um olhar silencioso e dôce, e disse depois do passar uma pontinha de lingua pelo beiço:

     - Tem seu chic...

     Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montão de livros: a Educação de Spencer ao lado de Beaudelaire, a Logica de Stuart Mill por cima do Cavalleiro da Casa Vermelha. No marmore da commoda havia outra garrafa de Champagne entre dous copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de pó d'arroz no meio de plastrons e gravatas brancas do Ega, e um masso de ganchos do cabello ao lado de ferros de frisar.

     - E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?

     - Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

     Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da janella, e tomado todo por uma mesa de pé de gallo, onde Carlos assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas do Ega, um Diccionario de Rimas...

     E a visita á casa continuou.

     Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello, um armario de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviço barato de louça nova; e do fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que parecia roupão de mulher.

     - É sobrio e simples - exclamou o Ega - como compete áquelle que se alimenta d'uma codea d'Ideal e duas garfadas de Philosophia. Agora, á cosinha!...

     Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janellas abertas; e entreviam-se arvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do collo, ergueu-se, com o Jornal de Noticias na mão. Ega apresentou-a, n'um tom de farça:

     - A sr.ª Josepha, solteira, de temperamento sanguineo, artista culinaria da «Villa Balzac», e como se póde observar pelo papel que lhe pende das garras, cultora das boas letras!

     A moça sorria, sem embaraço, habituada de certo a estas familiaridades bohemias.

     - Eu hoje não janto cá, senhora Josepha, continuava o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e principe de Santa Olavia, dá hoje de papar ao seu amigo e philosopho... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno da innocencia, ou á vigilia da devassidão, aqui lhe ordeno que me tenha amanhã para meu lunch duas formosas perdizes.

     E subitamente, n'uma outra voz, com um olhar que ella devia perceber:

     - Duas perdizesinhas bem assadas e bem córadinhas. Frias, está claro... O costume.

     Travou do braço de Carlos, voltaram á sala.

     - Com franqueza, Carlos, que te parece a «Villa Balzac»?

     Carlos respondeu como a respeito do episodio da Hebrea:

     - Está ardente.

     Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma cella de trabalho...

     - Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as mãos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe de chambre, eu não tolero o bibelot, o bric-à-brac, a cadeira archeologica, essas mobilias d'arte... Que diabo, o movel deve estar em harmonia com a idéa e o sentir do homem que o usa! Eu não penso, nem sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para que me hei de cercar de cousas do seculo XVI? Não ha nada que me faça tanta melancolia, como ver n'uma sala um veneravel contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleições e altas de fundos. Faz-me o effeito d'um bello heroe de armadura d'aço, viseira cahida e crenças profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua attitude propria. O seculo XIX concebeu a Democracia e a sua attitude é esta... - E enterrando-se d'estalo n'uma poltrona, espetou as pernas magras para o ar. - Ora esta attitude é impossivel n'um escabello do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o Champagne.

     E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega accudiu:

     - É excellente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa d'Epernay, arranjou-m'o o Jacob.

     - Que Jacob?

     - O Jacob Cohen, o Jacob.

     Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma subita recordação, e pousando a garrafa outra vez, entalando o monocolo no olho:

     - É verdade! Então, n'outro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente não poude ir.

     Carlos contou a soirée. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas salas, n'um zum-zum dormente, á meia luz dos candieiros. O conde massara-o indiscretamente com a politica, admirações idiotas por um grande orador, um deputado de Mesão Frio, e explicações sem fim sobre a reforma da instrucção. A condessa, que estava muito constipada, horrorisou-o, dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniões da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra é um paiz sem poetas, sem artistas, sem ideaes, occupando-se só de amontoar libras... Emfim, seccara-se.

     - Que diabo! murmurou o Ega n'um tom de viva desconsolação.

     A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio; e n'uma saude muda os dois amigos beberam o Champagne - que Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se regalar com Rachel.

     Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, n'aquella entoação triste de inesperado desapontamento:

     - Que ferro!...

     E após um momento:

     - Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecia...

     Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe fallara d'ella, tivera um caprichosinho, interessara-se por aquelles cabellos côr de brasa...

     - Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...

     Ega sentara-se, com o copo na mão; e depois de contemplar algum tempo as suas meias de seda, escarlates como as d'um prelado, deixou cair, muito serio, estas palavras:

     - É uma mulher deliciosa, Carlinhos.

     E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio: a Gouvarinho era uma senhora de intelligencia e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia, uma pontinha de romantismo muito picante...

     - E, como corpinho de mulher, não ha melhor que aquillo de Badajoz para cá!

     - Vae-te d'ahi, Mephistopheles de Celorico!

     E Ega, divertido, cantarolou:

 

     Je suis Mephisto...

     Je suis Mephisto...

 

     Carlos no entanto, fumando preguiçosamente, continuava a fallar na Gouvarinho e n'essa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ella tres palavras n'uma sala. E não era a primeira vez que tinha d'estes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tedio, em «secca». Eram como os fogachos de polvora sobre uma pedra; uma fagulha atêa-os, n'um momento tornam-se chamma vehemente que parece que vae consumir o Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um d'esses corações de fraco, molles e flaccidos, que não podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles?

     - Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satanaz... Segundo os padres da Egreja, a grande tortura de Satanaz é que não póde amar...

     - Que phrases essas, menino! murmurou Ega.

     Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixões falharem-lhe nas mãos como phosphoros. Por exemplo, com a coronela de hussards em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro rendez-vous, chorara lagrimas como punhos, com a cabeça enterrada no travesseiro e aos coices á roupa. E d'ahi a duas semanas, mandava postar o Baptista á janella do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a hollandeza, com Madame Rughel, peior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse), outras loucuras; depois os braços que ella lhe deitava ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe pesados como chumbo...

     - Passa fóra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega.

     - Isso é outra cousa. Ficamos amigos, puras relações de intelligencia. Madame Rughel é uma mulher de muito espirito. Escreveu um romance, um d'esses estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon: chama-se as Rosas Murchas. Eu nunca li‚ é em hollandez...

     - As Rosas Murchas! em hollandez! exclamou Ega apertando as mãos na cabeça.

     Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monocolo no olho:

     - Tu és extraordinário, menino!... Mas o teu caso é simples, é o caso de D. Juan. D. Juan tambem tinha essas alternações de chamma e cinza. Andava á busca do seu ideal, da sua mulher, procurando-a principalmente, como de justiça, entre as mulheres dos outros. E après avoir couché, declarava que se tinha enganado, que não era aquella. Pedia desculpa e retirava-se. Em Hespanha experimentou assim mil e tres. Tu és simplesmente, como elle, um devasso; e has de vir a acabar desgraçadamente como elle, n'uma tragedia infernal!

     Esvasiou outro copo de Champagne, e a grandes passadas pela sala:

     - Carlinhos da minha alma, é inutil que ninguem ande á busca da sua mulher. Ella virá. Cada um tem a sua mulher, e necessariamente tem de a encontrar. Tu estás aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ella está talvez em Pekin: mas tu, ahi a raspar o meu reps com o verniz dos sapatos, e ella a orar no templo de Confucio, estaes ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentissimo hoje, e temos dito cousas idiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais phrases sobre Satanaz!

     Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto - em quanto dentro o Ega batia com as gavetas, lançando, a todo o desafinado da sua voz roufenha, a Barcarolla de Gounod. Quando appareceu, vinha de casaca, gravata branca, enfiando o paletot - com o olho brilhante do Champagne.

     Desceram. O pagem lá estava á porta perfilado, ao pé do coupé de Carlos, que esperara. E a sua fardeta azul de botões amarellos, a magnifica parelha baia reluzindo como um setim vivo, as pratas dos arreios, a magestade do cocheiro louro com o seu ramo na libré, tudo alli fazia, junto da «Villa Balzac», um quadro rico que deleitou o Ega.

     - A vida é agradavel, disse elle.

     O coupé partiu, ia entrar no largo da Graça, quando uma caleche de praça, aberta, o cruzou a largo trote. Dentro um sujeito de chapéo baixo ia lendo um grande jornal.

     - É o Craft! gritou Ega, debruçando-se pela portinhola.

     O coupé parou. Ega de um pulo estava na calçada, correndo, bradando:

     - Oh Craft! oh Craft!

     Quando, d'ahi a um momento, sentiu duas vozes approximarem-se, Carlos desceu tambem do coupé, achou-se em face d'um homem baixo, louro, de pelle rosada e fresca, e apparencia fria. Sob o fraque correcto percebia-se-lhe uma musculatura de athleta.

     - O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lançando esta apresentação com uma simplicidade classica.

     Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a mão. E Ega insistia para que voltassem todos á Villa Balzac, fossem beber a outra garrafa de Champagne, a celebrar o advento do Justo! Craft recusou, com o seu modo calmo e placido; chegara na vespera do Porto, abraçara já o nobre Ega, e aproveitava agora a viagem áquelle bairro longinquo para ir vêr o velho Shlegen, um allemão que vivia á Penha de França.

     - Então outra cousa! exclamou Ega. Para conversarmos, para que vocês se conheçam mais, venham vocês jantar comigo ámanhã ao Hotel Central. Dito,

     hein? Perfeitamente. Ás seis.

     Apenas o coupé partiu de novo, Ega rompeu nas costumadas admirações pelo Craft, encantado com aquelle encontro que dava mais um retoque luminoso á sua alegria. O que o enthusiasmava no Craft era aquelle ar imperturbavel de gentleman correcto, com que elle egualmente jogaria uma partida de bilhar, entraria n'uma batalha, arremetteria com uma mulher, ou partiria para a Patagonia...

     - É das melhores cousas que tem Lisboa. Vaes-te morrer por elle... E que casa que elle tem nos Olivaes, que sublime bric-a-brac!

     Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga na testa:

     - Como diabo soube elle da Villa Balzac?

     - Tu não fazes segredo d'ella, hein?

     - Não... Mas tambem não a puz nos annuncios! E o Craft chegou hontem, ainda não esteve com ninguem que eu conheça... É curioso!

     - Em Lisboa sabe-se tudo...

     - Canalha de terra! murmurou Ega.

 

     O jantar no Central foi addiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a idéa, convertera-o agora n'uma festa de ceremonia em honra do Cohen.

     - Janto lá muitas vezes, disse elle a Carlos, estou lá todas as noites... É necessario repagar a hospitalidade... Um jantar no Central é o que basta. E para o effeito moral, pespego-lhe á meza o marquez e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim...

     Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquez partira para a Gollegã, e o pobre Steinbroken estava soffrendo d'um incommodo de entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira - mas receiou a cabelleira desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de amargo spleen que estragaria o jantar. Terminou por convidar dois intimos do Cohen; mas teve então de supprimir o Taveira, que estava de mal com um d'esses cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa da «Lola gorda».

     Decididos os convidados, fixado o jantar para uma segunda feira, Ega teve uma conferencia com o maitre de hotel do Central, em que lhe recommendou muita flôr, dois ananazes para enfeitar a meza, e exigiu que um dos pratos do menu, qualquer d'elles, fosse à la Cohen; e elle mesmo suggeriu uma idéa: tomates farcies à la Cohen...

     N'essa tarde, ás seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bric-a-brac do tio Abrahão.

     Entrou. O velho judeo, que estava mostrando a Craft uma falsa faiença do Rato, arrancou logo da cabeça o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mãos sobre o coração.

     Depois, n'uma linguagem exotica, misturada d'inglez, pediu ao seu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful gentleman, que se dignasse examinar uma maravilhasinha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentleman tinha só a voltar os olhos, a maravilhasinha estava alli ao lado, n'uma cadeira. Era um retrato d'hespanhola, apanhado a fortes brochadellas de primeira impressão, e pondo, sobre um fundo audaz de côr de rosa murcha, uma face gasta de velha garça, picada das bexigas, caiáda, ressudando vicio, com um sorriso bestial que promettia tudo.

     Carlos, tranquillamente, offereceu dez tostões. Craft pasmou d'uma tal prodigalidade; e o bom Abrahão, n'um riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca d'um só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores.» Dez tostõesinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomesinho de Fortuny, valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse nomesinho bemdito... Ainda assim valia dez notasinhas de vinte mil réis...

     - Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos.

     E sahiram, deixando o velho intrujão á porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...

     - Não tem uma unica cousa boa, este velho Abrahão, disse Carlos.

     - Tem a filha, disse o Craft.

     Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja.

     Então, a proposito do Abrahão, fallou a Craft d'essas bellas collecções dos Olivaes, que o Ega, apesar do desdem que affectava pelo bibelot e pelo movel d'arte, lhe descrevera como sublimes.

     Craft encolheu os hombros.

     - O Ega não entende nada. Mesmo em Lisboa, não se póde chamar ao que eu tenho uma collecção. É um bric-a-brac d'acaso... De que, de resto, me vou desfazer!

     Isto surprehendeu Carlos. Comprehendera das palavras do Ega ser essa uma collecção formada com amor, no laborioso decurso de annos, orgulho e cuidado d'uma existencia de homem...

     Craft sorrio d'aquella legenda. A verdade era que só em 1872, elle começara a interessar-se pelo bric-a-brac; chegava então da America do Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui e além, accumulara-o n'essa casa dos Olivaes, alugada então por phantasia, uma manhã que aquelle pardieiro, com o seu bocado de quintal em redor, lhe parecera pittoresco, sob o sol de abril. Mas agora se podesse desfazer-se do que tinha, ia dedicar-se então a formar uma collecção homogenea e compacta d'arte do seculo desoito.

     - Aqui nos Olivaes?

     - Não. N'uma quinta que tenho ao pé do Porto, junto mesmo ao rio.

     Entravam então no peristilo do Hotel Central - e n'esse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veiu estacar á porta.

     Um esplendido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo á portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escosseza, de pellos esguedelhados, finos como seda e côr de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, offereceu a mão a uma senhora alta, loura, com um meio véo muito apertado e muito escuro que realçava o explendor da sua carnação eburnea. Craft e Carlos affastaram-se, ella passou diante d'elles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atraz de si como uma claridade, um reflexo de cabellos d'ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco collante de velludo branco de Genova, e um momento sobre as lages do peristillo brilhou o verniz das suas bottinas. O rapaz ao lado, esticado n'um fato de xadresinho inglez, abria negligentemente um telegramma; o preto seguia com a cadelhinha nos braços. E no silencio a voz de Craft murmurou:

     - Très chic.

     Em cima, no gabinete que o creado lhes indicou, Ega esperava, sentado no divan de marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo de provincia, de camelia ao peito e plastron azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o sr. Damaso Salcêde, e mandou servir vermouth, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse requinte litterario e satanico do absintho...

     Fôra um dia d'inverno suave e luminoso, as duas janellas estavam ainda abertas. Sobre o rio, no céu largo, a tarde morria, sem uma aragem, n'uma paz elysea, com nuvensinhas muito altas, paradas, tocadas de côr de rosa; as terras, os longes da outra banda já se iam affogando n'um vapor avelludado, do tom de violeta; a agoa jazia liza e luzidia como uma bela chapa d'aço novo; e aqui e alem, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraçados inglezes, dormiam, com as mastreações immoveis, como tomados de preguiça, cedendo ao affago do clima doce...

     - Vimos agora lá em baixo, disse Craft indo sentar-se no divan, uma esplendida mulher, com uma esplendida cadellinha griffon, e servida por um esplendido preto!

     O sr. Damaso Salcêde, que não despegava os olhos de Carlos, acudiu logo:

     - Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim com elles de Bordeus... Uma gente muito chic que vive em Paris.

     Carlos voltou-se, reparou mais n'elle, perguntou-lhe, affavel e interessando-se:

     - O senhor Salcêde chegou agora de Bordeus?

     Estas palavras pareceram deleitar Damaso como um favor celeste: ergueu-se immediatamente, approximou-se do Maia, banhado n'um sorriso:

     - Vim aqui ha quinze dias, no Orenoque. Vim de Paris... Que eu em podendo é lá que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordeus. Isto é, verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas estavamos todos no Hotel de Nantes... Gente muito chic: creado de quarto, governanta ingleza para a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece incrivel, uns brazileiros... Que ella na voz não tem sutaque nenhum, falla como nós. Elle sim, elle muito sutaque... Mas elegante tambem, v. ex.ª não lhe pareceu?

     - Vermouth? perguntou-lhe o creado, offerecendo a salva.

     - Sim, uma gotinha para o appetite. V. ex.ª não toma, sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho para Paris! Aquillo é que é terra! Isto aqui é um chiqueiro... Eu, em não indo lá todos os annos, acredite v. ex.ª, até começo a andar doente. Aquelle boulevarsinho, hein!... Ai, eu goso aquillo!... E sei gosar, sei gosar, que eu conheço aquillo a palmo... Tenho até um tio em Paris.

     - E que tio! exclamou Ega, approximando-se. Intimo de Gambetta, governa a França... O tio do Damaso governa a França, menino!

     Damaso, escarlate, estourava de gôso.

     - Ah, lá isso influencia tem. Intimo do Gambetta, tratam-se por tu, até vivem quasi juntos... E não é só com o Gambetta; é com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, emfim!... É tudo quanto elle queira. V. ex.ª não o conhece? É um homem de barbas brancas... Era irmão de minha mãe, chama-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...

     N'esse momento a porta envidraçada abriu-se de golpe, Ega exclamou: «Saude ao poeta»!

     E appareceu um individuo muito alto, todo abotoado n'uma sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, romanticos bigodes grisalhos: já todo calvo na frente, os anneis fôfos d'uma grenha muito secca cahiam-lhe inspiradamente sobre a golla: e em toda a sua pessoa havia alguma cousa de antiquado, de artificial e de lugubre.

     Estendeu silenciosamente dous dedos ao Damaso, e abrindo os braços lentos para Craft, disse n'uma voz arrastada, cavernosa, atheatrada:

     - Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? Dá-me cá esses ossos honrados, honrado inglez!

     Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:

     - Não sei se são relações. Carlos da Maia... Thomaz d'Alencar, o nosso poeta...

     Era elle! o illustre cantor das Vozes d'Aurora, o estylista de Elvira, o dramaturgo do Segredo do Commendador. Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mão em silencio - e sensibilisado, mais cavernoso:

     - V. ex.ª, já que as etiquetas sociaes querem que eu lhe dê excellencia, mal sabe a quem apertou agora a mão...

     Carlos, surprehendido, murmurou:

     - Eu conheço muito de nome...

     E o outro com o olho cavo, o labio tremulo:

     - Ao camarada, ao inseparavel, ao intimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro!

     - Então, que diabo, abracem-se! gritou Ega. Abracem-se, com um berro, segundo as regras...

     Alencar já tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mãos, sacudindo-lh'as, com uma ternura ruidosa:

     - E deixemo-nos já de excellencias! que eu vi-te nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao collo! sujaste-me muita calça! Co'os diabos, dá cá outro abraço!

     Craft olhava estas cousas vehementes, impassivel; Damaso parecia impressionado; Ega apresentou um copo de vermouth ao poeta:

     - Que grande scena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoção...

     Alencar esgotou-o d'um trago: e declarou aos amigos que não era a primeira vez que via Carlos. Já o admirara no seu phaeton, muitas vezes, e aos seus bellos cavallos inglezes. Mas não se quizera dar a conhecer. Elle nunca se atirava aos braços de ninguem, a não ser das mulheres... Foi encher outro calice de vermouth, e com elle na mão, plantado diante de Carlos, começou, n'um tom pathetico:

     - A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma d'essa velha litteratura, hoje tão despresada... Lembro-me até que era um volume das Eclogas do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza, esse rouxinol tão portuguez, hoje, está claro, mettido a um canto, desde que para ahi appareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilinios em ismo... N'esso momento passaste, disseram-me quem eras, e cahiu-me o livro da mão... Fiquei alli uma hora, acredita, a pensar, a rever o passado...

     E atirou o vermouth ás goellas. Ega, impaciente, olhava o relogio. Um creado, entrando, accendeu o gaz; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de cristaes e louças, um luxo de camelias em ramos.

     No entanto Alencar (que á luz viva parecia mais gasto e mais velho) começara uma grande historia, e como fôra elle o primeiro que vira Carlos depois de nascer, e como fôra elle que lhe dera o nome.

     - Teu pae, dizia elle, o meu Pedro, queria-te pôr o nome d'Affonso, d'esse santo, d'esse varão d'outras edades, Affonso da Maia! Mas tua mãe que tinha lá as suas idéas teimou em que havias de ser Carlos. E justamente por causa d'um romance que eu lhe emprestára; n'esses tempos podiam-se emprestar romances a senhoras, ainda não havia a pustula e o puz... Era um romance sobre o ultimo Stuart, aquelle bello typo do principe Carlos Eduardo, que vocês, filhos, conhecem todos bem, e que na Escossia, no tempo de Luiz XIV... Emfim, adiante! Tua mãe, devo dizel-o, tinha litteratura e da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre, n'esse tempo eu era alguem, e lembro-me de lhe ter respondido... (Lembro-me apesar de já lá irem vinte e cinco annos... Que digo eu? Vinte e sete! Vejam vocês isto, filhos, vinte e sete annos!) Emfim, voltei-me para tua mãe, e disse-lhe, palavras textuaes: «Ponha-lhe o nome de Carlos Eduardo, minha rica senhora, Carlos Eduardo, que é o verdadeiro nome para o frontespicio d'um poema, para a fama d'um heroismo ou para o labio d'uma mulher!»

     Damaso, que continuava a admirar Carlos, deu bravos estrondosos; Craft bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relogio na mão, soltou de lá um muito bem desenxabido.

     Alencar, radiante com o seu effeito, derramava em roda um sorriso que lhe mostrava os dentes estragados. Abraçou outra vez Carlos, atirou uma palmada ao coração, exclamou:

     - Caramba, filhos, sinto uma luz cá dentro!

     A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo da sua demora - emquanto Ega, que se precipitara para elle, lhe ajudava a despir o palletot. Depois apresentou-o a Carlos - a unica pessoa alli de quem o Cohen não era intimo. E dizia, tocando o botão da campainha electrica:

     - O marquez não pôde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, está com a sua gôtta, a gôtta de diplomata, de lord e de banqueiro... A gôtta que tu has de ter, velhaco!

     Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalçando as luvas, dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a gôtta de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a elle...

     Ega, no entanto, travara-lhe do braço, collocara-o preciosamente á mesa, á sua direita: depois offereceu-lhe um botão de camelia d'um ramo: o Alencar florio-se tambem - e os creados serviram as ostras.

     Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado á navalha por uma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viella em sangue - uma sarrabulhada como disse o Cohen, sorrindo e provando o Bucellas.

     Damaso teve a satisfação de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a que dera as facadas, quando ella era amante do visconde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita. Umas mãos de duqueza... E como aquillo cantava o fado! O peior era que mesmo no tempo do visconde, quando ella era chic, já se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois de casado ía vel-a, e tinha-lhe promettido que se ella quizesse deixar o fado lhe punha uma confeitaria para os lados da Sé. Mas ella não queria. Gostava d'aquillo, do Bairro Alto, dos cafés de lepes, dos chulos...

     Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Isto levou logo a fallar-se do Assommoir, de Zola e do realismo: - e o Alencar immediatamente, limpando os bigodes dos pingos de sôpa, supplicou que se não discutisse, á hora aceada do jantar, essa litteratura latrinaria. Alli todos eram homens d'aceio, de sala, hein? Então, que se não mencionasse o excremento!

     Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da Realeza, da Bureocracia, da Finança, de todas as cousas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadaveres n'um amphitheatro; esses estylos novos, tão precisos e tão ducteis, apanhando em flagrante a linha, a côr, a palpitação mesma da vida; tudo isso (que elle, na sua confusão mental, chamava a Idéa nova) caíndo assim de chofre e escangalhando a cathedral romantica, sob a qual tantos annos elle tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto litterario da sua velhice. Ao principio reagiu. «Para pôr um dique definitivo á torpe maré», como elle disse em plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem os leu; a «maré torpe» alastrou-se, mais profunda, mais larga. Então Alencar refugiou-se na moralidade como n'uma rocha solida. O naturalismo, com as suas alluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social? Pois bem. Elle, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes. Então o poeta das Vozes d'Aurora, que durante vinte annos, em cançoneta e ode, propozera commercios lubricos a todas as damas da capital; então o romancista de Elvira que, em novella e drama, fizera a propaganda do amor illegitimo, representando os deveres conjugaes como montanhas de tedio, dando a todos os maridos fórmas gordurosas e bestiaes, e a todos os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos antigos Apollos; então Thomaz Alencar que (a acreditarem-se as confissões autobiographicas da Flôr de Martyrio) passava elle proprio uma existencia medonha de adulterios, lubricidades, orgias, entre velludos e vinhos de Chypre - d'ora em diante austero, incorruptivel, todo elle uma torre de pudicicia, passou a vigiar attentamente o jornal, o livro, o theatro. E mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n'um beijo que estalava mais alto, n'uma brancura de saia que se arregaçava de mais - eis o nosso Alencar que soltava por sobre o paiz um grande grito de alarme, corria á penna, e as suas imprecações lembravam (a academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porém, Alencar teve uma d'estas revelações que prostram os mais fortes; quanto mais elle denunciava um livro como immoral, mais o livro se vendia como agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o auctor de Elvira encavacou...

     Desde então reduziu a expressão do seu rancor ao minimo, a essa phrase curta, lançada com nojo:

     - Rapazes, não se mencione o excremento!

     Mas n'essa noite teve o regosijo de encontrar alliados. Craft não admittia tambem o naturalismo, a realidade feia das cousas e da sociedade estatelada nua n'um livro. A arte era uma idealisação! Bem: então que mostrasse os typos superiores d'uma humanidade aperfeiçoada, as fórmas mais bellas do viver e do sentir... Ega horrorisado apertava as mãos na cabeça - quando do outro lado Carlos declarou que o mais intoleravel no realismo eram os seus grandes ares scientificos, a sua pretenciosa esthetica deduzida d'uma philosophia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a proposito d'uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

     Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco scientifico, inventar enredos, crear dramas, abandonar-se á phantasia litteraria! a fórma pura da arte naturalista devia ser a monographia, o estudo secco d'um typo, d'um vicio, d'uma paixão, tal qual como se se tratasse d'um caso pathologico, sem pittoresco e sem estylo!...

     - Isso é absurdo, dizia Carlos, os caracteres só se podem manifestar pela acção...

     - E a obra d'arte, accrescentou Craft, vive apenas pela fórma...

     Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessarias tantas philosophias.

     - Vocês estão gastando cêra com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se d'este modo: mão no nariz! Eu quando vejo um d'esses livros, enfrasco-me logo em agua de colonia. Não discutamos o excremento.

     - Sole normande? perguntou-lhe o creado, adiantando a travessa.

     Ega ía fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controversias de litteraturas, calou-se; occupou-se só d'elle, quiz saber que tal elle achava aquelle St. Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de sole normande, lançou com grande alarde de interesse esta pergunta:

     - Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O emprestimo faz-se ou não se faz?

     E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella questão do emprestimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episodio historico!...

     O Cohen collocou uma pitada de sal á beira do prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar absolutamente. Os emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensavel, tão sabida como o imposto. A unica occupação mesmo dos ministerios era esta - cobrar o imposto e fazer o emprestimo. E assim se havia de continuar...

     Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, d'esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente para a banca-rota.

     - N'um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusões, meu caro senhor.

Nem os proprios ministros da fazenda!... A banca-rota é inevitavel: é como quem faz uma somma...

     Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras.

     - A banca-rota é tão certa, as cousas estão tão dispostas para ella - continuava o Cohen - que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos, fazer fallir o paiz...

     Ega gritou soffregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionaria constante; nas vesperas de se lançarem os emprestimos haver duzentos maganões decididos que cahissem á pancada na municipal e quebrassem os candieiros com vivas á Republica; telegraphar isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a banca-rota estalava. Sómente, como elle disse, isto não convinha a ninguem.

     Então Ega protestou com vehemencia. Como não convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! Á banca-rota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um paiz que vive da inscripção, em não lh'a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingança - o primeiro cuidado que tem é varrer a monarchia que lhe representa o calote, e com ella o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, d'essa collecção grotesca de bestas...

     A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens d'ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e patetas, - mas tambem homens de grande valor!

     - Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. Você deve reconhecel-o, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, ha talento, ha saber.

     E, lembrando-se que algumas d'essas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar porém cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para idéas radicaes, para a democracia humanitaria de 1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo politico, como n'um asylo pararello: queria uma republica governada por genios, a fraternisação dos povos, os Estados Unidos da Europa... Além d'isso, tinha longas queixas d'esses politiquotes, agora gente de Poder, outr'ora seus camaradas de redacção, de café e de batota...

     - Isso, disse elle, lá a respeito de talento e de saber, historias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...

     O Cohen acudiu:

     - Não senhor, Alencar, não senhor! Você tambem é dos taes... Até lhe fica mal dizer isso... É exageração. Não senhor, há talento, ha saber.

     E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o marido da divina Rachel, o dono d'essa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tão bem, recalcou o despeito - admittiu que não deixava de haver talento e saber.

     Então, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e á veneração da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz necessitava reformas...

     Ega porém, incorrigivel n'esse dia, soltou outra enormidade:

     - Portugal não necessita refórmas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão hespanhola.

     Alencar, patriota á antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas «um dos paradoxos do nosso Ega.» Mas o Ega fallava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia elle,

invasão não significa perda absoluta de independencia. Um receio tão estupido é digno só de uma sociedade tão estupida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um paiz que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguem consentiria em deixar cahir nas mãos de Hespanha, nação militar e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as allianças que teriamos, a troco das colonias - das colonias que só nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise...

     Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, n'um momento de guerra europea, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisação, perdermos uma ou duas provincias, ver talvez a Galliza estendida até ao Douro...

     - Poulet aux champignons, murmurou o creado, apresentando-lhe a travessa.

     E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a salvação do paiz, nessa catastrophe que tornaria povoação hespanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heroes, berço dos Egas...

     - N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bella situação nos achavamos! Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da inscripção, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha, limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisação como outr'ora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tarêa... Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St. Emilion.

     Agora, n'um rumor animado, discutia-se a invasão. Ah, podia-se fazer uma bella resistencia! Cohen affiançava o dinheiro. Armas, artilheria, iam comprar-se á America - e Craft offereceu logo a sua collecção de espadas do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato...

     - O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou Ega.

     - Ás ordens, meu coronel.

     - O Alencar, continuava Ega, é encarregado de ir despertar pela provincia o patriotismo, com cantos e com odes!

     Então o poeta, pousando o calice, teve um movimento de leão que sacode a juba:

     - Isto é uma velha carcassa, meu rapaz, mas não está só para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par de gallegos... Caramba, rapazes, só a idéa d'essas cousas me põe o coração negro! E como vocés podem fallar n'isso, a rir, quando se trata do paiz, d'esta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de accordo, mas, caramba! é a única que temos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que rebentamos... Irra, fallemos d'outra cousa, fallemos de mulheres!

     Dera um repellão ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paixão patriotica...

     E no silencio que se fez Damaso, que desde as informações sobre a rapariga do Ermidinha emmudecera, occupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura:

     - Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem assim feias, eu cá, á cautela, ia-me raspando para Paris...

     Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli, no labio synthetico de Damaso, o grito espontaneo e genuino do brio portuguez! Raspar-se, pirar-se!...

     Era assim que d'alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!...

     - Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que appareça á fronteira, o paiz em massa foge como uma lebre! Vae ser uma debandada unica na historia!

     Houve uma indignação, Alencar gritou:

     - Abaixo o traidor!

     Cohen interveio, declarou que o soldado portuguez era valente, á maneira dos turcos - sem disciplina, mas teso. O proprio Carlos disse, muito serio:

     - Não senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de se morrer bem.

     Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa pose heroica? Então ignoravam que esta raça, depois de cincoenta annos de constitucionalismo, creada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos lyceus, roída de syphlis, apodrecida no bolôr das secretarías, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o caracter, e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...

     - Isso são os lisboetas, disse Craft.

     - Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fóra de Lisboa não há nada. O paiz está todo entre a Arcada e S. Bento!...

     A mais miseravel raça da Europa! continuava elle a berrar. E que exercito! Um regimento, depois de dois dias de marcha, dava entrada em massa no hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da abertura das Côrtes, um marujo sueco, um rapagão do Norte, fazer debandar, a soccos, uma companhia de soldados; as praças tinham litteralmente largado a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o officíal, enfiado de terror, metteu-se para uma escada, a vomitar!...

     Todos protestaram. Não, não era possivel... Mas se elle tinha visto, que diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos fallazes da phantasia...

     - Juro pela saude da mamã! gritou Ega furioso.

     Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O Cohen ía fallar.

     O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os hespanhoes porém pensassem na invasão isso parecia-lhe certo - sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o mundo lh'o dissera. Já havia mesmo negocios de fornecimentos entabolados...

    - Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e torcendo os bigodes.

     - No Hotel de Paris, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um magistrado, que me disse com um certo ar que não perdia a esperança de se vir estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado muito Lisboa, quando cá estivera a banhos. E em quanto a mim, estou que ha muitos hespanhoes que estão á espera d'este augmento de territorio para se empregarem!

     Então Ega cahiu em extasi, apertou as mãos contra o peito. Oh que delicioso traço! Oh que admiravelmente observado!

     - Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que finamente observado! Que traço adoravel! Hein, Craft?

     Hein, Carlos? Delicioso!

     Todos cortezmente admiraram a finura do Cohen. Elle agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suissas a mão onde reluzia um diamante. E n'esse momento os creados serviam um prato de ervilhas n'um molho branco, murmurando:

     - Petits pois a la Cohen.

     A la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais attentamente. E lá estava, era o legume: petit pois a la Cohen! Damaso, enthusiasmado, declarou isto «chic a valer!» E fez-se, com o Champagne que se abria, a primeira saude ao Cohen!

     Esquecera-se a banca rota, a invasão, a patria - o jantar terminava alegremente. Outras saudes crusaram-se, ardentes e loquazes: o proprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de creança, bebeu á Revolução e á Anarchia, brinde complicado, que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremeza alastrava-se, destroçada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de ananaz mastigado. Damaso, todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha ingleza, e d'aquelle phaeton que era a cousa mais linda que passeiava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razão, Ega arremettera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluil-a d'entre as nações pensantes, ameaçando-a de uma revolução social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com acenos de cabeça, imperturbavel, partindo nozes.

     Os creados serviram o café. E como havia já tres longas horas que estavam á meza, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animação viva que dera o Champagne. A sala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gaz ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreuses e dos licores por entre a nevoa alvadia do fumo.

     Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; e ahi recomeçou logo, n'aquella communidade de gostos que os começava a ligar, a conversa da rua do Alecrim sobre a bella collecção dos Olivaes. Craft dava detalhes; a cousa rica e rara que tinha era um armario hollandez do seculo XVI; de resto, alguns bronzes, faianças e boas armas...

     Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto á meza, estridencias de voz, e como um conflicto que rompia: Alencar, sacudindo a grenha, gritava contra a palhada philosophica; e do outro lado, com o calice de cognac na mão, Ega, pallido e afectando uma tranquillidade superior, declarava toda essa babuge lyrica que por ahi se publica digna da policia correccional...

     - Pegaram-se outra vez, veiu dizer Damaso a Carlos, approximando-se da varanda. É por causa do Craveiro. Estão ambos divinos!

     Era com effeito a proposito de poesia moderna, de Simão Craveiro, do seu poema a Morte de Satanaz. Ega estivera citando, com enthusiasmo, estrophes do episodio da Morte, quando o grande esqueleto symbolico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte, arrastando sedas rumorosas

 

     «E entre duas costellas, no decotte,»

     «Tinha um bouquet de rosas!»

 

     E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da Idéa nova, o paladino do Realismo, triumphara, cascalhara, denunciando logo n'essa simples estrophe dois erros de grammatica, um verso errado, e uma imagem roubada a Beaudelaire!

     Então Ega, que bebera um sobre outro dois calices de cognac, tornou-se muito provocante, muito pessoal.

     - Eu bem sei por que tu fallas, Alencar, dizia elle agora. E o motivo não é nobre. É por causa do epigramma que elle te fez:

 

     O Alencar d'Alemquer,

     Acceso com a primavera...

 

     - Ah, vocês nunca ouviram isto? continuou elle voltando-se, chamando os outros. É delicioso, é das melhores cousas do Craveiro. Nunca ouviste, Carlos? É sublime, sobre tudo esta estrophe:

 

     O Alencar d'Alemquer

     Que quer? Na verde campina

     Não colhe a tenra bonina

     Nem consulta o malmequer...

     Que quer? Na verde campina

     O Alencar d'Alemquer

     Quer menina!

 

     Eu não me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que é a verdadeira critica de todo esse lyrismo pandilha:

 

     O Alencar d'Alemquer

     Quer cacete!

 

     Alencar passou a mão pela testa livida, e com o olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta:

     - Olha, João da Ega, deixa-me dizer-te uma cousa, meu rapaz... Todos esses epigrammas, esses dichotes lorpas do rachitico e dos que o admiram, passam-me pelos pés como um enxurro de cloaca... O que faço é arregaçar as calças! Arregaço as calças... Mais nada, meu Ega. Arregaço as calças!

     E arregaçou-as realmente, mostrando a ceroula, n'um gesto brusco e de delirio.

     - Pois quando encontrares enchurros d'esses, gritou-lhe o Ega, agacha-te e bebe-os! Dão-te sangue e força ao lyrismo!

     Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando o ar:

     - Eu, se esse Craveirete não fosse um rachitico, talvez me entretivesse a rolal-o aos pontapés por esse Chiado abaixo, a elle e á versalhada, a essa lambisgonhice excrementicia com que seringou Satanaz! E depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o craneo!

     - Não se esborracham assim craneos, disse de lá o Ega n'um tom frio de troça.

     Alencar voltou para elle uma face medonha. A colera e o cognac incendiavam-lhe o olhar; todo elle tremia:

     - Esborrachava-lh'o, sim, esborrachava, João da Ega! Esborrachava-lh'o assim, olha, assim mesmo! - Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a sala, fazendo tilintar crystaes e louças. - Mas não quero, rapazes! Dentro d'aquelle craneo só ha excremento, vomito, puz, materia verde, e se lh'o esborrachasse, por que lh'o esborrachava, rapazes, todo o miollo podre sahia, empestava a cidade, tinhamos o cholera! Irra! Tinhamos a peste!

     Carlos, vendo-o tão excitado, tomou-lhe o braço, quiz calmal-o:

     - Então, Alencar! Que tolice... Isso vale lá pena!...

     O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca, soltou o ultimo desabafo:

     - Com effeito, não vale a pena ninguem zangar-se por causa d'esse Craveirote da Idéa nova, esse caloteiro, que se não lembra que a porca da irmã é uma meretriz de doze vintens em Marco de Canavezes!

     - Não, isso agora é de mais, pulha! gritou Ega, arremeçando-se, de punhos fechados.

     Cohen e Damaso, assustados, agarraram-n'o. Carlos puchara logo para o vão da janella o Alencar que se debatia, com os olhos chammejantes, a gravata solta. Tinha cahido uma cadeira; a correcta sala, com os seus divans de marroquim, os seus ramos de camelias, tomava um ar de taverna, n'uma bulha de faias, entre a fumaraça de cigarros. Damaso, muito pallido, quasi sem voz, ía d'um a outro:

     - Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no Hotel Central!...

     E, d'entre os braços do Cohen, Ega berrava, já rouco:

     - Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen! Não, isso hei de esbofeteal-o!... A D. Anna Craveiro, uma santa!... Esse calumniador... Não, isso hei de esganal-o!...

     Craft, no entanto, impassivel, bebia aos golos a sua chartreuse. Já presenceára, mais vezes, duas litteraturas rivaes engalphinhando-se, rolando no chão, n'um latir de injurias: a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes de critica em Portugal: tudo isso o deixava indifferente, com um sorriso de desdem. Além d'isso sabia que a reconciliação não tardaria, ardente e com abraços. E não tardou. Alencar sahiu do vão da janella, atraz de Carlos, abotoando a sobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohen fallava ao Ega com auctoridade, severo, á maneira d'um pae: depois voltou-se, ergueu a mão, ergueu a voz, disse que alli todos eram cavalheiros: e como homens de talento e de coração fidalgo os dois deviam abraçar-se...

     - Vá, um shake-hands, Ega, faça isso por mim!... Alencar, vamos, peço-lh'o eu!

     O auctor de Elvira deu um passo, o auctor das Memorias d'um Atomo estendeu a mão: mas o primeiro aperto foi gôche e molle. Então Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre elle e o Ega não devia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fôra o seu desgraçado genio, esse calor de sangue, que durante toda a existencia só lhe trouxera lagrimas! E alli declarava bem alto que Anna Craveiro era uma santa! Tinha-a conhecido em Marco de Canavezes, em casa dos Peixotos... Como esposa, como mãe, Anna Craveiro era impeccavel. E reconhecia, do fundo d'alma, que o Craveiro tinha carradas de talento!...

     Encheu um copo de Champagne, ergueu-o alto, diante do Ega, como um calice de altar:

     - Á tua, João!

     Ega, generoso tambem, respondeu:

     - Á tua, Thomaz!

     Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na vespera, em casa de D. Joanna Coutinho, elle dissera que não conhecia ninguem mais scintillante que o Ega! Ega affirmou logo que em poemas nenhuns corria, como nos do Alencar, uma tão bella veia lyrica. Apertaram-se outra vez, com palmadas pelos hombros. Trataram-se de irmãos na arte, trataram-se de genios!...

     - São extraordinarios, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapéo. Desorganisam-me, preciso ar!...

     A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu mais cognac. Depois Cohen sahiu levando o Ega. Damaso e Alencar desceram com Carlos – que ía recolher a pé pelo Aterro.

     Á porta, o poeta parou com solemnidade.

     - Filhos, exclamou elle tirando o chapéo e refrescando largamente a fronte, então? Parece-me que me portei como um gentleman!

     Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...

     - Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que é ser gentleman! E agora vamos lá por esse Aterro fóra... Mas deixa-me ir alli primeiro comprar um pacote de tabaco...

     - Que typo! exclamou Damaso, vendo-o affastar-se. E a cousa ía-se pondo feia...

     E immediatamente, sem transição, começou a fazer elogios a Carlos. 0 sr. Maia não imaginava ha quanto tempo elle desejava conhecel-o!

     - Oh senhor...

     Creia v. ex.ª... Eu não sou de sabujices... Mas pode v. ex.ª perguntar ao Ega, quantas vezes o tenho dito: v. ex.ª é a cousa melhor que ha em Lisboa! Carlos, baixava a cabeça, mordendo o riso. Damaso, repetia, do fundo do peito.

     - Olhe que isto é sincero, sr. Maia! Acredite v ex.ª que isto é do coração!

     Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera alli, n'aquelle moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoração muda e profunda; o proprio verniz dos seus sapatos, a côr das suas luvas eram para o Damaso motivo de veneração, e tão importantes como principios. Considerava Carlos um typo supremo de chic, do seu querido chic, um Brummel, um d'Orsay, um Morny, - uma «d'estas cousas que só se vêem lá fóra», como elle dizia arregalando os olhos. N'essa tarde sabendo que vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se como para os braços d'uma mulher; - e por causa de Carlos mandara estacionar alli o coupé, ás dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito.

     - Então essa senhora brazileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera dous passos, olhava uma janella allumiada no segundo andar.

     Damaso seguiu-lhe o olhar.

     - Vive lá do outro lado. Estão aqui ha quinze dias... Gente chic... E ella é de appetecer, v. ex.ª reparou? Eu a bordo atirei-me... E ella dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurasitas...Não tenho podido

cá vir, deixei-lhes só bilhetes; mas trago-a d'olho, que ella demora-se... Talvez venha cá ámanhã, estou cá agora a sentir umas cocegas... E se me pilho só com ella, zás, ferro-lhe logo um beijo! Que eu cá, não sei se v. ex.ª é a mesma cousa, mas eu cá, com mulheres, a minha theoria é esta: attracão! Eu cá, é logo: attracão!

     N'esse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca. Damaso despediu-se, atirando muito alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a adresse da Morelli, segunda dama de S. Carlos.

     - Bom rapaz, este Damaso, dizia Alencar, travando de braço de Carlos, ao seguirem ambos pelo Aterro. É lá muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pae; e a mim tambem. Mas elle assigna Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez inventado. Bom rapaz... O pae era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silva judeu, dinheiro, e a rôdo!»... Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!

     E então por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzes do gaz dormente luzindo em fila d'enterro, Alencar foi fallando d'esses «grandes tempos» da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e, atravéz das suas phrases de lyrico, Carlos sentia vir como um aroma antiquado d'esse mundo defunto... Era quando os rapazes ainda tinham um resto de calor das guerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins ou rebentando pilecas de sejes em galopadas para Cintra. Cintra era então um ninho de amores, e sob as suas romanticas ramagens as fidalgas abandonavam-se aos braços dos poetas. Ellas eram Elviras, elles eram Antonys. O dinheiro abundava; a côrte era alegre; a Regeneração litterata e galante ia engrandecer o paiz, bello jardim da Europa; os bachareis chegavam de Coimbra, frementes de eloquencia; os ministros da corôa recitavam ao piano; o mesmo sopro lyrico inchava as odes e os projectos de lei...

     - Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos.

     - Era outra cousa, meu Carlos! Vivia-se! Não existiriam esses ares scientificos, toda essa palhada philosophica, esses badamecos positivistas... Mas havia coração, rapaz! Tinha-se faisca! Mesmo n'essas cousas da politica... Vê esse chiqueiro agora ahi, essa malta de bandalhos... N'esse tempo ía-se alli á camara e sentia-se a inspiração, sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeças!... E depois, menino, havia muitissimo boas mulheres.

     Os hombros descahiam-lhe na saudade d'esse mundo perdido. E parecia mais lugubre, com a sua grenha d'inspirado sahindo-lhe de sob as abas largas do chapéo velho, a sobrecasaca coçada e mal feita collando-se-lhe lamentavelmente ás ilhargas.

     Um momento caminharam em silencio. Depois, na rua das Janellas Verdes, o Alencar quiz refrescar. Entraram n'uma pequena venda, onde a mancha amarella d'um candieiro de petroleo destacava n'uma penumbra de subterraneo, allumiando o zinco humido do balcão, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste da patroa com um lenço amarrado nos queixos. Alencar parecia intimo no estabelecimento: apenas soube que a sr.ª Candida estava com dôr de dentes, aconselhou logo remedios, familiar, descido das nuvens romanticas, com os cotovellos sobre o balcão. E quando Carlos quiz pagar a canna branca zangou-se, bateu a sua placa de dois tostões sobre o zinco polido, exclamou com nobreza:

     - Eu é que faço a honra da bodega, meu Carlos! Nos palacios os outros pagarão... Cá na taberna pago eu!

     Á porta tomou o braço de Carlos. Depois d'alguns passos lentos no silencio da rua, parou de novo, e murmurou n'uma voz vaga, contemplativa, como repassada da vasta solemnidade da noite:

     - Aquella Rachel Cohen é divinamente bella, menino! Tu conhecel'a?

     - De vista.

     - Não te faz lembrar uma mulher da Biblia? Não digo lá uma d'essas viragos, uma Judith, uma Dalila... Mas um d'esses lyrios poeticos da Biblia...É seraphica!

     Era agora a paixão platonica do Alencar, a sua dama, a sua Beatriz...

     - Tu viste ha tempos, no Diario Nacional, os versos que eu lhe fiz?

 

     «Abril chegou! Sê minha»

     Dizia o vento á rosa.

 

     Não me sahiu mau! Aqui ha uma maliciasinha: Abril chegou, sê minha... Mas logo: dizia o vento á rosa. Comprehendes? Calhou bem este effeito. Mas não imagines lá outras cousas, ou que lhe faço a côrte... Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmão... E a Rachel, para mim, coitadinha, é como uma irmã... Mas é divina. Aquelles olhos, filho, um velludo liquido!...

     Tirou o chapeu, refrescou a fronte vasta. Depois n'outro tom, e como a custo:

     - Aquelle Ega tem muito talento... Vae lá muito aos Cohens... A Rachel acha-lhe graça...

     Carlos parára, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu um olhar á severa frontaria de convento, adormecida, sem um ponto de luz.

     - Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, que eu vou andando por aqui para a minha toca. E quando quizeres, filho, lá me tens na rua do Carvalho, 52, 3.º andar. O predio é meu, mas eu occupo o terceiro andar. Comecei por habitar no primeiro, mas tenho ido trepando... A unica cousa mesmo que tenho trepado, meu Carlos, é de andares...

     Teve um gesto, como desdenhando essas miserias.

     - E has de ir lá jantar um dia. Não te posso dar um banquete, mas has de ter uma sopa e um assado... O meu Matheus, um preto, (um amigo!) que me serve ha muito anno, quando ha que cosinhar, sabe cosinhar! Fez muito jantar a teu pae, ao meu pobre Pedro... Que aquillo foi casa de alegria, meu rapaz. Dei lá cama e mesa, e dinheiro para a algibeira, a muita d'essa canalha que hoje por ahi trota em coupé da companhia e de correio atraz... E agora, quando me avistam, voltam para o lado o focinho...

     - Isso são imaginações, disse Carlos com amisade.

     - Não são, Carlos, respondeu o poeta, muito grave, muito amargo. Não são. Tu não sabes a minha vida. Tenho soffrido muito repellão, rapaz. E não o merecia! Palavra, que o não merecia...

     Agarrou o braço de Carlos, e com a voz abalada:

     - Olha que esses homens que por ahi figuram embebedavam-se comigo, emprestei-lhes muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agora são ministros, são embaixadores, são personagens, são o diabo. Pois offereceram-te elles um bocado do bolo agora que o teem na mão? Não. Nem a mim. Isto é duro, Carlos, isto é muito duro, meu Carlos. E que diabo, eu não queria que me fizessem conde, nem que me dessem uma embaixada... Mas ahi alguma cousa n'uma secretaría... Nem um chavelho! Emfim, ainda há para o bocado do pão, e para a meia onça do tabaco... Mas esta ingratidão tem-me feito cabellos brancos... Pois não te quero massar mais, e que Deus te faça feliz como tu mereces, meu Carlos!

     - Tu não queres subir um bocado, Alencar?

     Tanta franqueza enterneceu o poeta.

     - Obrigado, rapaz, disse elle, abraçando Carlos. E agradeço-te isso, porque sei que vem do coração... Todos vocês teem coração... Já teu pae o tinha, e largo, e grande como o d'um leão! E agora crê uma cousa: é que tens aqui um amigo. Isto não é palavriado, isto vem de dentro... Pois adeus, meu rapaz. Queres tu um charuto?

     Carlos acceitou logo, como um presente do ceu.

     - Então ahi tens um charuto, filho! exclamou Alencar com enthusiasmo.

     E aquelle charuto dado a um homem tão rico, ao dono do Ramalhete, fazia-o por um momento voltar aos tempos em que n'esse Marrare elle estendia em redor a charuteira cheia, com o seu grande ar de Manfredo triste. Interessou-se então pelo charuto. Accendeu elle mesmo um phosphoro. Verificou se ficava bem acceso. E que tal, charuto rasoavel? Carlos achava um excellente charuto!

     - Pois ainda bem que te dei um bom charuto!

     Abraçou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando elle emfim se affastou, mais ligeiro, mais contente de si, trauteando um trecho de fado.

 

     Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o pessimo charuto do Alencar estirado n'uma chaiselongue, em quanto Baptista lhe fazia uma chavena de chá, ficou pensando n'esse estranho passado que lhe evocara o velho lyrico...

     E era sympathico o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado, ao fallar de Pedro, d'Arroios, dos amigos e dos amores d'então, elle evitara pronunciar sequer o nome de Maria Monforte! Mais de uma vez, pelo Aterro fóra, estivera para lhe dizer: - pódes fallar da mamã, amigo Alencar, que eu sei perfeitamente que ella fugiu com um italiano!

     E isto fêl-o insensivelmente recordar da maneira como essa lamentavel historia lhe fôra revelada, em Coimbra, n'uma noite de troça, quasi grotescamente. Por que o avô, obdecendo á carta testamentaria de Pedro, contara-lhe um romance decente: um casamento de paixão, incompatibilidades de naturezas, uma separação cortez, depois a retirada da mamã com a filha para a França, onde tinham morrido ambas. Mais nada. A morte de seu pae fôra-lhe apresentada sempre como o brusco remate d'uma longa nevrose...

     Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceiado ambos; Ega muito bebedo, e n'um accesso de idealismo, lançara-se n'um paradoxo tremendo, condemnando a honestidade das mulheres como origem da decadencia das raças: e dava por prova os bastardos, sempre intelligentes, bravos, gloriosos! Elle, Ega, teria orgulho se sua mãe, sua propria mãe, em logar de ser a santa burgueza que resava o terço á lareira, fosse como a mãe de Carlos, uma inspirada, que por amor d'um exilado abandonara fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir isto, ficara petrificado, no meio da ponte, sob o calmo luar. Mas não poude interrogar o Ega, que já taramellava, agoniado, e que não tardou a vomitar-lhe ignobilmente nos braços. Teve de o arrastar á casa das Seixas, despil-o, aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, até que o deixou abraçado ao travesseiro, babando-se, balbuciando - «que queria ser bastardo, que queria que a mamã fosse uma marafona!...»

     E elle mal podera dormir essa noite, com a idéa d'aquella mãe, tão outra do que lhe haviam contado, fugindo nos braços d'um desterrado - um polaco talvez! Ao outro dia, cedo, entrava pelo quarto do Ega, a pedir-lhe, pela sua grande amisade, a verdade toda...

     Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o lenço que tinha amarrado na cabeça com pannos de agua sedativa: e não achava uma palavra, coitado! Carlos, sentado na cama, como nas noites de cavaco, tranquillisou-o. Não vinha alli offendido, vinha alli curioso!

Tinham-lhe occultado um episodio extraordinario da sua gente, que diabo, queria sabel-o! Havia romance? Para alli o romance!

     Ega, então, lá ganhou animo, lá balbuciou a sua historia - a que ouvira ao tio Ega - a paixão de Maria por um principe, a fuga, o longo silencio d'annos que se fizera sobre ella...

     Justamente as ferias chegavam. Apenas em Sta. Olavia, Carlos contou ao avô a bebedeira do Ega, os seus discursos doidos, aquella revelação vinda entre arrotos. Pobre avô! Um momento nem poude fallar - e a voz por fim veiu-lhe tão debil e dolente como se dentro do peito lhe estivesse morrendo o coração. Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance todo até áquella tarde em que Pedro lhe apparecera, livido, coberto de lama, a cahir-lhe nos braços, chorando a sua dôr com a fraqueza d'uma creança. - E o desfecho d'esse amor culpado, accrescentara o avô, fôra a morte da mãe em Vienna d'Austria, e a morte da pequenita, da neta que elle nunca vira, e que a Monforte levara... E eis ahi tudo. E assim, aquella vergonha domestica estava agora enterrada, alli, no jazigo de Sta. Olavia, e em duas sepulturas distantes, em paiz estrangeiro...

     Carlos recordava-se bem que n'essa tarde, depois da melancolica conversa com o avô, devia elle experimentar uma egoa ingleza: e ao jantar não se fallou senão da egoa que se chamava Sultana. E a verdade era que d'ahi a dias tinha esquecido a mamã. Nem lhe era possivel sentir por esta tragedia senão um interesse vago e como litterario. Isso passara-se havia vinte e tantos annos, n'uma sociedade quasi desapparecida. Era como o episodio historico de uma velha chronica de familia, um antepassado morto em Alcacer-Kebir, ou uma das suas avós dormindo n'um leito real. Aquillo não lhe dera uma lagrima, não lhe pozera um rubor na face. De certo, prefiriria poder orgulhar-se de sua mãe, como d'uma rara e nobre flôr de honra: mas não podia ficar toda a vida a amargurar-se com os seus erros. E porque? A sua honra d'elle não dependia dos impulsos falsos ou torpes que tivera o coração d'ella. Peccara, morrera, acabou-se. Restava, sim, aquella idéa do pae, findando n'uma poça de sangue, no desespero d'essa traição. Mas não conhecera seu pae: tudo o que possuia d'elle e da sua memoria, para amar, era uma fria tela mal pintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moço moreno, de grandes olhos, com luvas de camurça amarellas e um chicote na mão... De sua mãe não ficara nem um daguerreotypo, nem sequer um contorno a lapis. O avô tinha-lhe dito que era loura. Não sabia mais nada. Não os conhecera; não lhes dormira nos braços; nunca recebera o calor da sua ternura. Pae, mãe, eram para elle como symbolos d'um culto convencional. O papá, a mamã, os seres amados, estavam alli todos - no avô.

     Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; - e elle continuava na chaise-longue, como amollecido n'estas recordações, e cedendo já, n'um meio adormecimento, á fadiga do longo jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas palpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou côr, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria n'uma paz elysia. O peristillo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no collo. Uma mulher passava, alta, com uma carnação eburnea, bella como uma Deusa, n'um casaco de velludo branco de Genova. O Craft dizia ao seu lado très-chic. E elle sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de cousas vivas.

     Eram tres horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um bello dia de inverno morria sem uma aragem, banhado de côr de rosa: o banal peristillo de Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadellinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de velludo branco de Genova, mais alta que uma creatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olympo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por trás as saias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia très-chic. Depois tudo se confundia, e era só o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o céu, tapando o brilho das estrellas com a sua sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaçando ao vendaval das paixões, alçando os braços, clamando no espaço:

 

     Abril chegou, sê minha!

 

     No Ramalhete, depois do almoço, com as tres janellas do escriptorio abertas bebendo a tepida luz do bello dia de março, Affonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé da chaminé já sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar

domestico. N'uma facha obliqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme e fôfo, dormia de leve a sua sesta.

     Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no Ramalhete. Carlos e elle, tendo muitas similitudes de gosto e de idéas, o mesmo fervor pelo bric-a-brac e pelo bibelot, o uso apaixonado da esgrima, egual dillettantismo d'espirito, uniram-se immediatamente em

relações de superficie, faceis e amaveis. Affonso, por seu lado começara logo a sentir uma estima elevada por aquelle gentleman de boa raça ingleza, como elle os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves, de habitos rijos, sentindo finamente e pensando com rectidão.

Tinham-se encontrado ambos enthusiastas de Tacito, de Macaulay, de Burke, e até dos poetas lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carater ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez d'um bronze; para Affonso da Maia «aquillo era deveras um homem». Craft, madrugador, sahia cedo dos Olivaes a cavallo, e vinha assim ás vezes almoçar de surpreza com os Maias; por vontade de Affonso jantaria lá sempre; - mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo emfim, como elle dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem sentado, no meio de idéas, e com boa educação.

     Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquella revoada de clientella que lhe dera esperanças d'uma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavallos, o Ramalhete, os habitos de luxo, o condemnavam irremediavelmente ao dillettantismo. Já o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente: «você é muito elegante p'ra medico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o burguez que lhe vae confiar a esposa dentro d'uma alcova?... Você aterra o pater-familias!» O laboratorio mesmo prejudicara-o. Os collegas diziam que o Maia, rico, intelligente, avido de innovações, de modernismos, fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha-se troçado muito a sua idéa, apresentada na Gazeta Medica, a prevenção das epidemias pela inoculação dos virus. Consideravam-no um phantasista. E elle, então, refugiava-se todo n'esse livro sobre a medicina antiga e moderna, o seu livro, trabalhado com vagares d'artista rico, tornando-se o interesse intellectual de um ou dous annos.

     N'essa manhã, em quanto dentro proseguia grave e silenciosa a partida de xadrez, Carlos no terrasso, estendido n'uma vasta cadeira india de bambu, á sombra do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma Revista ingleza, banhado pela caricia tepida d'aquelle bafo de primavera que avelludava o ar, fazia já desejar arvores e relvas...

     Ao lado d'elle, n'uma outra cadeira de bambu, tambem de charuto na boca, o sr. Damaso Salcede percorria o Figaro. De perna estirada, n'uma indolencia familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado, vendo junto ao terrasso as rosas das roseiras de Affonso, sentindo

por trás, atravez das janellas abertas, o rico e nobre interior do Ramalhete - o filho do agiota saboreava alli uma d'essas horas deliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.

     Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o sr. Salcede fôra ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao angulo, n'uma dobra simulada, o seu retratosinho em photographia, um capacete com plumas por cima do nome - DAMASO CANDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras - COMMENDADOR DE CHRISTO, ao fundo a sua adresse – Rua de S. Domingos, á Lapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais apparatosa - GRAND HOTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE N.º l03. Em seguida procurou Carlos no consultorio, confiou ao creado outro cartão. Emfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a pé, correu para elle, pendurou-se d'elle, conseguiu acompanhal-o ao Ramalhete.

     Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admirações extaticas, como dentro d'um museu, lançando, diante dos tapetes, das faienças e dos quadros, a sua grande phrase - «chic a valer!» Carlos levou-o para o fumoir, elle aceitou um charuto; e começou a explicar, de perna traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin, e só estava bem em Paris - sobre tudo por causa do genero «femea» de que em Lisboa se passavam fomes: ainda que n'esse ponto a Providencia não o tratava mal. Gostava tambem do bric-a-brac; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, não lhe pareciam commodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguem o pilhava sem livros á cabeceira da cama; ultimamente andava ás voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chic, mas elle achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, até ás quatro ou cinco da madrugada, no delirio! Agora não, estava mudado e pacato; emfim, não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um excessozinho; mas só em dias duples... E as suas perguntas foram terriveis. O sr. Maia achava chic ter um cab inglez? Qual era mais elegante, assim para um rapaz de sociedade que quizesse ir passar o verão lá fóra, Nice ou Trouville?... Depois ao sahir, muito serio, quasi commovido, perguntou ao sr. Maia (se o sr.Maia não fazia segredo) quem era o seu alfaiate.

     E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos apparecia no theatro, Damaso immediatamente arrancava-se da sua cadeira, ás vezes na solemnidade d'uma bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria d'estalo a claque, vinha-se installar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camelia na casaca, exhibindo os botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Gremio, Damaso abandonou logo a partida, indifferente á indignação dos parceiros, para se vir collar á ilharga do Maia, offerecer-lhe marrasquino ou charutos, seguil-o de sala em sala como um rafeiro. N'uma d'essas occasiões, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Damaso rompendo em risadas soluçantes, rebolando-se pelos sophás, com as mãos nas ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se socios; elle, suffocado, repetia a pilheria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odial-o; respondia-lhe só com monossyllabos; dava voltas perigosas com o dog-cart se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Damaso Candido Salcede filara-o, e para sempre.

     Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete com uma extraordinaria historia. Na vespera, no Gremio (tinham-lhe contado, elle não presenceara) um sujeito, um Gomes, n'um grupo onde se commentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um

asno! Damaso, que estava ao lado mergulhado na Illustração, levantou-se, muito pallido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao sr. Gomes se elle ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o sr. Gomes tragou, com os olhos no chão, a affronta, por ser rachitico de nascença - e porque era inquilino de Damaso e andava muito atrasado na renda. Affonso da Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlos trouxe o sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.

     Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incommodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... D'ahi datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois, n'essa semana, revelou aptidões uteis. Foi despachar á alfandega (Villaça achava-se no Alemtejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido n'um momento em que Carlos copiava um artigo para a Gazeta Medica offereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d'ahi por diante passava horas á banca de Carlos, applicado e vermelho, com a ponta da lingua de fóra, o olho redondo, copiando apontamentos, transcripções de Revistas, materiaes para o livro... Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lh'o.

     Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba que começava agora a deixar crescer até á forma dos sapatos. Lançara-se no bric-a-brac. Trazia sempre o coupé cheio de lixos archeologicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a aza rachada de um bule... E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade:

     - Que te parece? Chic a valer!... Vou mostral-a ao Maia. Olha-me isto, hein! Pura meia edade, do reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de inveja!

     N'esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso horas pesadas. Não era divertido assistir em silencio, do fundo d'uma poltrona, ás infindaveis discussões de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia. E, como elle confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratorio para fazer no seu corpo experiencias de electricidade... - «Pareciam dois demonios engalphinhados em mim, disse elle á sr.ª condessa de Gouvarinho; e eu então que embirro com o spiritismo!...»

     Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando á noite, n'um sophá do Gremio, ou ao chá n'uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a mão pelo cabello:

     - Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bric-a-brac, discutimos... Um dia, chic! Ámanhã tenho uma manhã de trabalho com o Maia... Vamos ás colxas.

     N'esse domingo, justamente, deviam ir ás colxas, ao Lumiar. Carlos concebera um boudoir, todo revestido de colxas antigas de setim, bordadas a dous tons especiaes, perola e botão d'ouro. O tio Abrahão esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios; e n'essa manhã viera annunciar a Carlos a existencia de duas preciosidades, so beautiful! oh! so lovely! em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam o sr. Maia ás duas horas...

     Já tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio, - mas, vendo Carlos confortavelmente mergulhado na Revista, recahia tambem na sua indolencia de homem chic, investigando o Figaro. Emfim, dentro, o relogio Luiz XV cantou argentinamente as duas...

     - Esta é boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. Olha quem aqui me apparece! A Suzanna! A minha Suzanna!

     Carlos não despegara os olhos da pagina.

     - Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve. Ouve esta que é boa. Esta Suzanna é uma pequena que eu tive em Paris... Um romance! Apaixonou-se por mim, quiz-se envenenar, o diabo!... Pois diz aqui o Figaro que debutou nas Folies-Bergeres. Falla n'ella...

É boa, hein? E era rapariguita chic... E o Figaro diz que ella teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo... Todo o mundo sabia em Paris. Ora a Suzanna!... Tinha bonitas pernas. E custou-me a vêr livre d'ella!

     - Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da Revista.

     Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das «suas conquistas», n'aquella solida satisfação em que vivia de que todas as mulheres, desgraçadas d'ellas, soffriam a fascinação da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com coupé e parelha, todas as meninas tinham para elle um olhar doce. E no démi-monde, como elle dizia, «tinha prestigio a valer.» Desde moço fôra celebre, na capital, por pôr casas a hespanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dos prostibulos. Conhecia-se tambem a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens validos do paiz: ía nos cincoenta annos, quando chegou a vez do Damaso - e não era decerto uma delicia ter nos braços aquelle esqueleto rangente e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n'um leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Damaso, e collou-se-lhe ás saias com uma fidelidade tão sabuja, que a decrepita creatura, farta, enojada já, teve de o enxotar á força e com desfeitas. Depois gozou uma tragedia: uma actriz do Principe Real, uma montanha de carne, apaixonada por elle, n'uma noite de ciume e de genebra, engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d'ahi a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava ao lado - mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como elle dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher...

     - Passaram-se scenas com esta Suzanna! mumurou elle depois de um silencio em que estivera catando pelliculas nos beiços.

     E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez um silencio no terrasso. Dentro, a partida continuava. Para lá da sombra do toldo, agora, o sol ía aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca, n'uma refracção d'ouro claro em que palpitavam as azas das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava, immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o amarello das rosas, pela carnação das ultimas camelias... O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul ferrete como o céu: e entre rio e céu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique d'um sino.

     - O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n'um tom entendido e traçando a perna. O duque de Norfolk é chic, não é verdade, ó Carlos?

     Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus um gesto, como exprimindo o infinito do chic!

     Damaso largara o Figaro para metter um charuto na boquilha; depois desapertou os ultimos botões do collete, deu um puchão á camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corôa de conde, e de palpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha...

     - Tu estás hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem a Revista e o contemplava com melancolia.

     Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, á meia côr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita:

     - Eu agora ando bem... Mas, muito blazè.

     E foi realmente com um ar blazè que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a Gazeta Illustrada, «para vêr o que ia pela patria.» Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamação.

     - Outro debute? perguntou Carlos.

     - Não, é a besta do Castro Gomes!

     A Gazeta Illustrada annunciava que «o sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fôra victima da sua dedicação por occasião da desgraça occorrida na Praça Nova, e de que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descripção tão opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado gentleman.»

     - Ora está s. ex.ª restabelecida! exclamou Damaso, atirando para o lado o jornal. Pois deixa estar, que agora é a occasião de lhe dizer na cara o que penso... Aquelle pulha!

     - Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a noticia.

     - Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vêr, se fosse comtigo... É uma besta! É um selvagem!

     E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua chegada de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel Central, elle fôra deixar-lhe bilhetes duas vezes - a ultima na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.ª não se dignara agradecer a visita! Depois elles tinham partido para o Porto; fôra ahi que, passeiando só na Praça Nova, vendo a parelha deuma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançára ao freio dos cavallos - e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de sentimento, lamentando, outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu!

     - Não, isso - exclamava Salcede, passeiando pelo terraço, e recordando estas injurias - hei de lhe fazer uma desfeita!... Não pensei ainda o quê, mas ha de amargar-lhe... Lá isso, desconsiderações não admitto a ninguem! a ninguem!

     Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Gremio, quando o rachitico apavorado emmudecera diante d'elle, Damaso ia-se tornando feroz. Pela menor cousa fallava em «quebrar caras.»

     - A ninguem! repetia elle, com puxões ao collete. Desconsiderações, a ninguem!

     N'esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega - e quasi immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.

     - Olá, Damasosinho!... Carlos, dás-me aqui em baixo uma palavra?

     Desceram do terraço, penetraram no jardim, até junto de duas olaias em flôr.

     - Tu tens dinheiro? - foi ahi logo a exclamação anciosa do Ega.

     E contou a sua terrivel atrapalhação. Tinha uma letra de noventa libras que se vencia no dia seguinte. Além d'isso, vinte e cinco libras que devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n'uma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega...

     - Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta á cara com um escarro. Além d'isso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostões...

     - O Eusebiosinho é homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos.

     Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo áquella amisade, como a um cofre inexgotavel...

     - Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que já não faz frio...

     Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque - em quanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos não tardou, trazendo na mão o cheque, que alargara até cento e vinte libras, para o Ega ficar armado...

     - Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um bello suspiro de allivio.

     Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villão! Mas tinha já uma vingança. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n'um sacco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começando assim: - ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho, etc....

     - Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!...

     Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu Atomo: - e, por fim, n'uma voz diferente, applicando o monocolo a Carlos:

     - Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?

      Carlos tinha só esta rasão: não se divertia lá.

     Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade...

     - Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á cara.

     E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observação, tinha a visão correcta: pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, toda a expressão de um sentimento sincero...

     - Não estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres.

     Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas...

     - Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do codigo, então não fallemos mais n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichões por qualquer cousa, então era uma vez um homem, vae para a Trappa commentar o Ecclesiastes.

     - Não - disse Carlos, sentando-se n'um banco sob as arvores, ainda com uns restos da preguiça do terraço - o meu motivo não é tão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho um massador.

     Ega teve um sorriso mudo.

     - Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores...

     Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silencio o chão areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com melancolia:

     - Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das dez á uma, estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!

     Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se debatia, n'aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se.

     - Meu pobre Ega, então toda a demanda?

     - Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral! E interessei-me! E tive opiniões!... A vida é um inferno.

     Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.

     - Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.

     - Decidiu-se hontem! Não ha cotillon.

     Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A idéa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes proporções de gala artistica, a ressurreição historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa - e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples baile costumé, a capricho...

     - Tu, Carlos, já decidiste como vaes?

     - De dominó, um severo dominó preto, como convém a um homem de sciencia...

     - Então, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominó... Que sensaboria, um dominó!...

     Justamente a sr.ª D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos dominós. E em Carlos não havia desculpa. Não o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da Renascença, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

     - É n'isto, ajuntava elle com fogo, que está a belleza de uma soirée de mascaras! Não lhe parece você, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra...

     - Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no terraço com Craft.

     - Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irmã de Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da Renascença, a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

     Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E appellou logo para elle, para o Craft tambem, ácerca do nefando dominó de Carlos. Não estava aquelle mocetão, com os seus ares de homem d'armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda a gloria de Marignan?

     O velho deu um olhar enternecido á belleza do neto.

     - Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco I, rei de França, não se póde apear de uma tipoia e entrar n'uma sala, só. Precisa côrte, arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso é difficil.

     Ega curvou-se. Sim senhor, d'accordo! Alli estava uma maneira intelligente de comprehender o baile dos Cohens!

     - E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.

     Era um segredo. Tinha a theoria de que, n'aquellas festas, um dos encantos consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de jaquetão, no Bragança, se encontram á noite, um na purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da Calabria...

     - Eu cá não faço segredo, disse ruidosamente Damaso. Eu cá vou de selvagem.

     - Nú?

     - Não. De Nelusko na Africana. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece? Acha chic?

     - Chic não exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas grandioso, é, decerto.

     Quizeram então saber como ía Craft. Craft não ía de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe de chambre.

     Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas indiferenças pelo baile dos Cohens feriam-n'o como injurias pessoaes. Elle estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um trabalho fumegante de imaginação; e pouco a pouco ella tomava aos seus olhos a importancia de uma celebração d'arte, provando o genio de uma cidade. Os «dominós», as abstenções, pareciam-lhe evidencias de inferioridade de espirito. Citou então o exemplo do Gouvarinho: alli estava um homem de occupações, de posição politica, nas vesperas de ser ministro, que não só ía ao baile, mas estudara o seu costume: estudara, e ía muito bem, ía de marquez de Pombal!

     - Reclame para ser ministro, disse Carlos.

     - Não o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condições para ser ministro: tem voz sonora, leu Mauricio Block, está encalacrado, e é um asno!...

     E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:

     - Mas é muito bom rapaz, e não se dá ares nenhuns! É um anjo!

     Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:

     - Ora tu, John, que não respeitas nada...

     O desacato é a condição do progresso, sr. Affonso da Maia. Quem respeita decahe. Começa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... É necessario cautela!

     - Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu és o proprio Anti-Christo...

     Ega ía responder, exhuberante e em veia - mas dentro o tinir argentino do relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o.

     - O que? quatro horas!

     Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos, silenciosos apertos de mão, desappareceu como um sopro.

     Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde! E assim passara a hora de ir ao Lumiar vêr as colxas antigas das senhoras Medeiros...

     - Quer você então meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.

     - Seja: e é necessario dar a lição ao Damaso...

     - É verdade, a lição... - murmurou Damaso sem enthusiasmo, com um sorriso murcho.

     A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era neccessario accender os quatro bicos de gaz. Damaso seguiu, atraz dos dois, com uma lentidão de rez desconfiada.

     Aquellas lições, que elle sollicitara por amor do chic, íam-se-lhe tornando odiosas. E n'essa tarde como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão d'anta, se cobriu com a caraça de arame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante d'elle Craft de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aquelles seus hombros de Hercules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu todo.

     - Firme, gritou-lhe Carlos.

     O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça; o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre elle; Damaso recuou, suffocado, cambaleando e com o braço frouxo...

     - Firme! berrava-lhe Carlos.

     Damaso, exhausto, abaixou a arma.

     - Então que querem vocês, é nervoso! É por ser a brincar... Se fosse a valer, vocês veriam.

     Assim acabava sempre a lição; e ficava depois abatido sobre uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenço, pallido como a cal dos muros.

     - Vou-me até casa, disse elle d'ahi a pouco, fatigado de tanto crusar de ferro. Queres alguma cousa, Carlinhos?

     - Quero que venhas cá jantar ámanhã... Tens o marquez.

     - Chic a valer... Não faltarei.

     Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moço ponctual não appareceu no Ramalhete, Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo, foi uma manhã a casa d'elle, á Lapa. Mas ahi, o creado (um gallego achavascado e triste, que, desde as suas relações com os Maias, Damaso trazia entalado n'uma casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz) affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa saude, e até sahira a cavallo. Carlos veiu então ao tio Abrahão; o tio Abrahão tambem não avistara, havia dias, aquelle bom senhor Salcede, that beautiful gentleman! A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio: no Gremio nenhum creado vira ultimamente o sr. Salcede. «Está por ahi de lua de mel com alguma bella andaluza» pensou Carlos.

     Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que se dirigia ao Aterro, a pé, seguido da sua vittoria a passo. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraçado ataque de entranhas. Mas não tinha já vestigios da doença: vinha todo rosado e loiro, muito solido na sua sobrecasaca, e com uma bella rosa de chá na botoeira. Declarou mesmo a Carlos que estava «mais forrte». E não lamentava os soffrimentos, porque elles lhe tinham dado o meio de apreciar as sympathias que gosava em Lisboa. Estava enternecido. Sobretudo o cuidado de S. M. - o augusto cuidado de S. M. - fizera-lhe melhor que «todos os drogues de botique»! Realmente nunca as relações entre esses dois paizes, tão estreitamente alliados, Portugal e Filandia, tinham sido «màs firmes, pur assi dizerre màs intimes, que durrante seu ataque de intestinaes»!

     Depois, travando do braço a Carlos, alludiu commovido ao offerecimento de Affonso da Maia, que pozera á sua disposição Sta. Olavia, para elle se restabelecer n'esses ares fortes e limpos do Douro. Oh esse convite tocara-o au plus profond de son coeur. Mas, infelizmente, Sta. Olavia era longe, tão longe!... Tinha de se contentar com Cintra, d'onde podia vir todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a Legação. C'était ennuyeux, mais... A Europa estava n'um d'esses momentos de crise, em que homens d'estado, diplomatas, não podiam affastar-se, gosar as menores ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando, informando...

     - C'est très grave, murmurou elle, parando, com um pavor vago no olhar azulado... C'est excessivement grave!

     Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a parte uma confusão, um gachis. Aqui a questão do Oriente; alem o socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo... Oh, très grave!

     - Tenez, la France, par exemple... D'abord Gambetta. Oh, je ne dis pas non, il est très fort, il est excessivement fort... Mais... Voilá! C'est très grave...

     Por outro lado os radicaes, les nouvelles couches... Era excessivamente grave...

     - Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!

     Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do Aterro approximava-se, caminhando depressa, uma senhora - que elle reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela cadellinha côr de prata que lhe trotava junto ás saias, e por aquelle corpo maravilhoso, onde vibrava, sob linhas ricas de marmore antigo, uma graça quente, ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro, n'uma toilette de serge muito simples que era como o complemento natural da sua pessoa, collando-se bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcção, um ar casto e forte; trazia na mão um guarda-sol inglez, apertado e fino como uma cana; e toda ella, adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, n'aquelle caes triste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como o requinte raro de civilisações superiores. Nenhum véo, n'essa tarde, lhe assombreava o rosto. Mas Carlos não poude detalhar-lhe as feições; apenas d'entre o esplendor eburneo da carnação sentiu o negro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivelmente deu um passo para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem vêr nada, estava achando Bismarch assustador. Á maneira que ella se affastava, parecia-lhe maior, mais bella: e aquella imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando pela terra prendia-se-lhe á imaginação. Steinbroken ficara aterrado com o discurso do Chanceller no Reichstag... Sim, era bem uma deusa. Sob o chapéo n'uma fórma de trança enrolada, apparecia o tom do seu cabello castanho, quasi louro á luz; a cadellinha trotava ao lado, com as orelhas direitas.

     - Evidentemente, disse Carlos, Bismarck é inquietador...

     Steinbroken porém já deixara Bismark. Steinbroken agora atacava lord Beaconsfield.

     - Il est très fort... Oui, je vous l'accorde, il est excessivement fort... Mais voilà... Où va-t-il?

     Carlos olhava para o caes de Sodré. Mas tudo lhe parecia deserto. Steinbroken antes de adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos negocios estrangeiros aquillo mesmo: lord Beaconsfield é muito forte, mas para onde vae elle? O que queria elle?... E s. ex.ª tinha encolhido os hombros... S. ex.ª não sabia...

     - Eh, oui! Beaconsfield est très fort... Vous avez lu son speech chez le Lord-Maire? Epatant, mon cher, epatant!... Mais voilà... Où va-t-il?

     - Steinbroken, não me parece que seja prudente deixar-se estar aqui a arrefecer no Aterro...

     - Devérras? exclamou o diplomata, passando logo a mão rapidamente pelo estomago e pelo ventre.

     E não se quiz demorar um instante mais! Como Carlos ía recolher tambem, offereceu-lhe um logar na vittoria até ao Ramalhete.

     - Venha então jantar comnosco, Steinbroken.

     - Charmé, mon cher, charmé...

     A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas e o estomago n'um grande plaid escossez:

     - Pôs, Maia, fezemos um bello passêo... Mas este Atêrro no é deverrtido.

     Não era divertido o Aterro!... Carlos achara-o n'essa tarde o mais delicioso logar da terra!

     Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as arvores, viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado o marido, esticado, apurado n'uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de diamantes no setim negro da gravata, fumava, indolente e languido, e trazia a cadellinha debaixo do braço. Ao passar, deu um olhar surprehendido a Carlos - como descobrindo emfim entre os barbaros um ser de linha civilisada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ella.

     Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e serios: mas não lhe parecera tão bella; trazia uma outra toilette menos simples, de dois tons, côr de chumbo e côr de creme, e no chapéo, d'abas grandes á ingleza, vermelhava alguma cousa, flôr ou penna. N'essa tarde não era a deusa descendo das nuvens d'ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.

     Voltou ainda tres vezes ao Aterro, não a tornou a vêr; e então envergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanesco que o trazia assim n'uma inquietação de rafeiro perdido, farejando o Aterro, da rampa de Santos ao caes de Sodré, á espera de uns olhos negros e de uns cabellos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da Royal Mail levaria uma d'essas manhãs...

     E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a meza! E que todas as tardes, antes de sahir, se demorava ao espelho, estudando a gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza.

 

     Ao fim d'essa semana, Carlos estava no consultorio, já para sahir, calçando as luvas, quando o creado entreabriu o reposteiro, e murmurou com alvoroço:

     - Uma senhora!

     Appareceu um menino muito pallido, de caracoes louros, vestido de velludo preto - e atraz uma mulher, toda de negro, com um véo justo e espesso como uma mascara.

     - Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto da porta. O sr. Carlos da Maia ia sahir...

     Carlos reconheceu a Gouvarinho.

     - Oh senhora condessa!

     Desembaraçou logo o divan dos jornaes e das brochuras; ella olhou um momento, como indecisa, aquelle amplo e molle assento de serralho; depois sentou-se á borda e de leve, com o pequeno junto de si.

     - Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer o véu, como fallando do fundo d'aquella toilette negra que a dissimulava. Não o mandei chamar, por que realmente pouco é, e tinha hoje de passar por aqui... Além d'isso, o meu pequeno é muito nervoso; se vê entrar o medico, parece-lhe que vae morrer. Assim é como uma visita que se faz... E não tens medo, não é verdade, Charlie?

     O pequeno não respondeu; de pé, quedo ao lado da mamã; mimoso e debil sob os caracoes d'anjo que lhe cahiam até aos hombros, devorava Carlos com uns grandes olhos tristes.

     Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta:

     - Que tem elle?

     Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoço. Além d'isso, por traz da orelha, tinha como uma dureza de caroço. Aquillo inquietava-a. Ella era forte, de uma boa raça, que dera athletas e velhos de grande edade. Mas na familia do marido, em todos os Gouvarinhos, havia uma anemia hereditaria. O conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um achacado. E ella, receiando que a influencia debilitante de Lisboa não conviesse a Charlie, estava com o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao campo, em Formoselha, a casa da avó.

     Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braços a Charlie:

     - Ora venha cá o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnifico cabello elle tem, senhora condessa!...

     Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquelle terror do medico de que fallara a mamã veio logo, desapertou delicadamente o seu grande collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou o pescoço macio e alvo como um lyrio.

     Carlos vio apenas uma pequena mancha côr de rosa desvanecendo-se; do «caroço» não havia vestigio; e então uma ligeira vermelhidão subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente os olhos da condessa, como comprehendendo tudo, querendo vêr n'elles a confissão do sentimento que a trouxera alli com um pretexto pueril, sob aquella toilette negra, aquelles véus que a mascaravam...

     Mas ella permaneceu impenetravel, sentada á borda do divan, com as mãos crusadas, attenta, como esperando as suas palavras, n'um vago susto de mãe.

     Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse:

     - Não é absolutamente nada, minha senhora.

     No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen e a natureza de Charlie. A condessa, n'um tom pesaroso, queixou-se de que a educação da creança não fosse, como ella desejava, mais forte e mais viril; mas o pae oppunha-se ao que elle chamava «a aberração ingleza», a agua fria, os exercicios a todo o ar, a gymnastica...

     - A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo, teem melhor reputação do que merecem...

     É o seu unico filho, senhora condessa?

     - É, tem os mimos de morgado, disse ella passando a mão pelos cabellos louros do pequeno.

     Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto nervoso e delicado, Charlie não devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar para os ares de Formoselha... Depois ficaram um momento callados.

     - Não imagina como me tranquillisou, disse ella, erguendo-se, dando um geito ao veu. De mais a mais é um gosto vir consultal-o... Não ha aqui o menor ar de doença, nem de remedios... E realmente tem isto muito bonito... - accrescentou, dando um olhar lento em redor aos velludos do gabinete.

     - Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. Não inspira nenhum respeito pela minha sciencia... Eu estou com idêas d'alterar tudo, pôr aqui um crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto, pilhas d'in-folios...

     - A cella de Fausto.

     - Justamente, a cella de Fausto.

     - Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente, com um olhar que brilhou sob o véo.

     - O que me falta é Margarida!

     A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os hombros, como duvidando discretamente; depois tomou a mão de Charlie, e deu um passo lento para a porta, puxando outra vez o véo.

     - Como v. ex.ª se interessa pela minha installação, acudiu Carlos querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe a outra sala.

     Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou algumas palavras, approvando a frescura dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o piano fel-a sorrir.

     - Os seus doentes dançam quadrilhas?

     - Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, não são bastante numerosos para formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma valsa... O piano está simplesmente alli para dar idêas alegres; é como uma promessa tacita de saude, de futuras soirées, de bonitas arias do Trovador, em familia...

     - É engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns passos na sala, com Charlie collado aos vestidos.

     E Carlos, caminhando ao lado d'ella:

     - V. ex.ª não imagina como eu sou engenhoso!

     - Já n'outro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era muito inventivo quando odiava.

    - Muito mais quando amo, disse elle rindo.

     Mas ella não respondeu: parára junto do piano, remexeu um momento as musicas espalhadas, feriu duas notas no teclado.

     - É um chocalho.

     - Oh, senhora condessa!

     Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado de Landseer - um focinho de cão de S. Bernardo, macisso e bonacheirão, adormecido sobre as patas. Quasi roçando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino perfume de verbena que ella usava sempre exageradamente: e, entre aquelles tons negros que a cobriam, a sua pelle parecia mais clara, mais doce á vista, e attrahindo como um setim.

     - Este é um horror, murmurou ella, voltando-se; mas disse-me o Ega que ha quadros lindos no Ramalhete... Fallou-me sobretudo d'um Greuze e d'um Rubens... É pena que se não possam vêr essas maravilhas.

     Carlos lamentava tambem que uma existencia de solteirões lhes impedisse, a elle e ao avô, de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais alguns mezes, sem que se sentisse alli um calor de vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer a herva pelos tapetes.

     - É por isso, accrescentou elle muito serio, que eu vou obrigar o avô a casar-se.

     A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do véo.

     - Gosto da sua alegria, disse ella.

     - É uma questão de regimen. V. ex.ª não é alegre?

     Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do guarda-sol na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n'um tom d'intimidade e de confidencia:

     - Dizem que não, que sou triste, que tenho spleen...

     O olhar de Carlos seguira o d'ella, pousara-se na botina de verniz que calçava delicadamente um pé fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas do piano - e elle baixou a voz para lhe dizer:

     - É que a senhora condessa tem um mau regimen. É necessario tratar-se, voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer!

     Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d'onde se escapou um clarão de ternura e de triumpho:

      - Venha-m'o antes dizer um d'estes dias, tomar chá comigo, ás cinco horas... Charlie!

     O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braço.

     Carlos, acompanhando-a abaixo á rua, lamentava a fealdade da sua escada de pedra:

     - Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me a honra de me vir consultar...

     Ella gracejou, toda risonha:

     Ah não! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude... E naturalmente não espera que seja eu que venha cá tomar chá comsigo...

     - Oh, minha senhora, eu quando começo a esperar, não ponho limites nenhuns ás minhas esperanças...

     Ella parou, com o pequeno pela mão, olhou para elle, como pasmada, encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo.

     - Então vae por ahi além, por ahi além...?

     - Vou por ahi além, por ahi além, minha senhora!

     Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.

     - Mande-me chegar um coupé.

     Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipoia.

     - E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir á egreja da Graça.

     - A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor dos Passos?

     Ella corou de leve, murmurou:

     - Ando fazendo as minhas devoções...

     Depois saltou ligeiramente para o coupé - deixando Charlie, que Carlos ergueu nos braços e lhe collocou ao lado, paternalmente.

     - Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!

     Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeça - ambos tão doces como caricias.

     Carlos subio: e, sem tirar o chapéo, ficou ainda enrolando uma cigarrette, passeando n'aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora alguma cousa do seu calor e do seu aroma...

     Realmente gostava d'aquella audacia d'ella - ter vindo assim ao consultorio, toda escondida, quasi mascarada n'uma grande toilette negra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para o vêr, para dar um nó brusco e mais apertado n'aquelle leve fio de relações que elle tão negligentemente deixara cahir e quebrar...

     O Ega d'esta vez não phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se, tão claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos errantes e faceis - que bella flôr a colher, a respirar, a deitar fóra depois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se tinha divertido. E o que elle não queria era achar-se envolvido n'uma paixão ciosa, uma d'essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta annos, de que depois se desembaraçaria difficilmente... Nos braços d'ella o seu coração ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, começaria o tedio dos beijos que se não desejam, a horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa, receber pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara d'aquella audacia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e picante... E devia ser deliciosamente bem feita... A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fórmas onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos tentavam-n'o, assim avermelhados, tão crespos e quentes...

     Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o Damaso, n'um coupé lançado a grande trote, que o chamava, mandava parar, com a face á portinhola, vermelho e radiante:

     - Não tenho podido lá ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da mão, apenas Carlos se approximou, e apertando-lh'a com enthusiasmo. Tenho andado n'um turbilhão!... Eu te contarei! Um romance divino... Mas eu te contarei!... Tem cuidado com a roda! Bate lá, ó Calção!

     A parelha abalou; elle ainda se debruçou da portinhola, agitou a mão, gritou no rumor da rua:

     - Um romance divino, chic a valer!

     Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava de «bater» o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo o cachimbo:

     - E noticias do nosso Damaso? Já se esclareceu esse lamentavel desapparecimento?...

     Carlos então contou como o encontrára, afogueado e triumphante, atirando-lhe da portinhola do coupé, em plena rua Nova do Almada, a noticia de um romance divino!

     - Bem sei, disse o Taveira.

     - Como sabes?... exclamou Carlos.

     Taveira vira-o na vespera, n'um grande landeau da Companhia, com uma esplendida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...

     - Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza?

     - Exactamente, uma cadelinha escoceza, um griffon côr de prata... Quem são?

     - E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado?

     - Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente é?

     - Uma gente brazileira, penso eu.

     Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas duas semanas que no terraço o Damaso, de punhos fechados, bramara contra os Castro Gomes e as suas «desconsiderações»! Ia pedir outros pormenores ao Taveira - mas o marquez ergueu a voz do fundo da poltrona onde se estirára, e quiz saber a opinião de Carlos sobre o grande acontecimento d'essa manhã na Gazeta Illustrada. - Na Gazeta Illustrada?... Carlos não sabia, essa manhã não vira jornal nenhum.

     - Então não lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza! Cá ha a Gazeta? Manda buscar a Gazeta!

     Taveira puxou o cordão da campanhia; - e quando o escudeiro trouxe a Gazeta, elle apoderou-se d'ella, quiz fazer uma leitura solemne.

     - Deixa-lhe vêr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se.

     - Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal atraz das costas.

     Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudario desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen... E a prosa que se alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas retintas, era um trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e cantante, celebrando até aos céus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro do Cohen, os ditos d'espirito do Cohen, a mobilia das salas do Cohen; havia ainda um paragrapho alludindo á festa proxima, ao grande sarau de mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado - J. da E. - as iniciaes de João da Ega!

     - Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do bilhar.

     - É mais que tolice, observou Craft; é uma falta de senso moral.

     O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso moral?...

     - Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito natural. É intimo da casa, celebra os donos. É admirador da mulher, lisongea o marido. Está na logica cá da terra... Você verá que successo isto vae ter... E lá que o artigo está lindo, isso está!

     Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir côr de rosa de madame Cohen: «respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle côr de rosa exhalasse de si o aroma que a rosa tem»!

     - Isto, caramba, é lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!...

     - Nada d'isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que seja uma extraordinaria falta de senso moral.

     - Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto d'um sophá, para deixar cahir ás syllabas esta pesada opinião.

     O marquez investiu com elle.

     - Que entende você d'isso, seu maestro? O artigo é sublime! E saiba mais: é de finorio!

     O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar em silencio ao outro canto do sophá.

     E então o marquez, de pé e bracejando, appellou para Carlos, e quiz saber o que é que Craft em principio entendia por senso moral.

     Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não respondeu, tomou o braço do Taveira, levou-o para o corredor.

     - Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que lado iam?

     - Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ás duas horas... Estou convencido que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n'um coupé com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a mulher é divina! Que toilette, que ar, que chic!.. É uma Venus, menino!... Como conheceria elle aquillo?...

     - Em Bordeus, n'um paquete, não sei onde!

     - Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado! Cumprimento para a direita, cumprimento para a esquerda... A debruçar-se, a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno, alardeando conquista...

     - Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pé no tapete.

     - Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher civilisada e decente, e é elle que a conhece, e é elle que vae com ella para Cintra! Chama-lhe besta!... Anda d'ahi, vamos á partidinha de dominó.

     Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete - e havia agora alli, ás vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez. Porque a paixão do Taveira era bater o marquez.

     Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o arrazoado com que estava acabrunhando o Craft - que do fundo da poltrona, de cachimbo na mão e com um ar de somno, respondia por monossyllabos. Era ainda a proposito do artigo do Ega, da definição de senso moral. Já tinha fallado de Deus, de Garibaldi, até do seu famoso perdigueiro Finorio; e agora definia a Consciencia... Segundo elle, era o medo da policia. Tinha o amigo Craft visto já alguem com remorsos? Não, a não ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhões...

     - Acredite você uma cousa, Craft - terminou elle por dizer, cedendo ao Taveira que o puchava para a meza - isto de consciencia é uma questão de educação. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a não metter os dedos no nariz. Questão d'educação... No resto da gente é apenas medo da cadeia, ou da bengala... Ah! vocês querem levar outra sova ao dominó como a de sabbado passado? Perfeitamente, sou todo vosso...

     Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, approximou-se tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as pedras - quando á porta da sala appareceu o conde de Steinbroken, de casaca e crachá, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha jantado no Paço, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirée, em familia...

     Então o marquez que o não via desde o famoso ataque de intestinos, abandonou o dominó, correu a abraçal-o ruidosamente – e sem o deixar sequer sentar, nem estender a mão aos outros, implorou-lhe logo uma das suas bellas canções filandezas, uma só, d'aquellas que lhe faziam tão bem á alma!...

     - Só a Ballada, Steinbroken... Eu tambem não me posso demorar, que tenho aqui a partida á espera. Só a Ballada!... Vá, salta lá para dentro para o piano, Cruges...

     O diplomata sorria, dizia-se cançado, tendo já feito musica deliciosa no Paço com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir áquelle modo folgazão do marquez - e lá foram para a sala do piano, de braço dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se do canto do sophá. E d'ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos, a bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a emballadora melancolia da Ballada, com a sua lettra traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava das nevoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras...

     Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado uma grande partida de dominó, a tostão o ponto. Mas Carlos n'essa noite não se interessava, jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes da Ballada: depois, quando já Taveira tinha só uma pedra diante de si, e elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra, estava aberto todo o anno...

     - A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda, joga!

     Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra.

     - Dominó! gritou Taveira.

     E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos que Carlos perdia.

     Justamente o marquez entrava, e a victoria de Taveira indignou-o.

     - Agora nós, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me você dar aqui uma sova n'este ladrão. Depois jogamos de tres... Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostões o ponto? Ah, queres só a tostão... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraça-te já d'esse dôble-seis, miseravel...

     Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fôra ao escriptorio vêr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges só, entre as duas vélas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente.

   - Dize cá, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ámanhã a Cintra?

     O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado. Carlos nem o deixou falar.

     - Está claro que queres, não te faz senão bem vir a Cintra... Ámanhã lá estou á porta, com o break.

     Mette sempre uma camisa n'uma maleta, que talvez passemos lá a noite... Ás oito em ponto, hein?... E não digas nada lá dentro.

     Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominó. Agora havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braço descahido ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente.

 

     Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente, Carlos parava o break na rua das Flores, diante do conhecido portão da casa do Cruges. Mas o trintanario, que elle mandara acima bater á campainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que o Sr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava então o sr. Cruges? A criada dissera que o Sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir só para Cintra. Depois lá largou para a rua de S. Francisco, amaldiçoando o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera obra egual á Meditação de Outono do Cruges. E ninguem sabia mais nada. Fôra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma senhora viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.

     Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta do senhor e um chaile-manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhões, com um cache-nez de seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando atarantadamente o paletot.

     Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiçada de mulher gritou-lhe de cima:

     - Olha não te esqueçam as queijadas!

     E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando que, com a preoccupação de se levantar tão cedo, tivera uma insomnia abominavel...

     - Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa, sem avisar a gente, homem? - exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do plaid que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.

     - É que esta casa tambem é nossa, disse simplesmente Cruges.

     - Está claro, ahi está uma razão! murmurou Carlos rindo e encolhendo os hombros.

     Partiram.

     Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os seus ceirões d'hortaliças: varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um toque fino de missa.

     Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu um olhar á esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librés, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia - onde fazia mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas côres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n'aquella almofada burgueza de break, lhe dava um arranque de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra... Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios.

     - Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta de ir a Cintra?

     Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart, e pelas fugas de Bach? Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de Deus, que o não revelasse a ninguem!

     E accrescentou, rindo:

     - Deixa-te levar, que não te has de arrepender...

     Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o passeio, gostara sempre muito de Cintra... Todavia não se lembrava bem, tinha apenas uma vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d'aguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove annos não voltara a Cintra.

     O que! o maestro não conhecia Cintra?... Então era necessario ficarem lá, fazer as peregrinações classicas, subir á Pena, ir beber agua á Fonte dos Amores, barquejar na varzea...

     - A mim o que me está a appetecer muito é Sitiaes; e a manteiga fresca.

     - Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros... Emfim, uma ecloga!

     O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de quintas, casarões tristonhos de vidraças quebradas, vendas com o seu masso de cigarros á porta dependurado de uma guita: e a menor arvore, qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de collina verde, encantavam Cruges. Ha que tempos elle não via o campo!

     Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se do seu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot – e declarou-se morto de fome.

     Felizmente estavam chegando á Porcalhota.

     O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado, - mas, como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bella pratada de ovos com chouriço. Era uma cousa que não provava havia annos, e que lhe daria a sensação de estar na aldêa... Quando o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a meza sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mãos, achando aquillo deliciosamente campestre.

     - A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle, puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriço. Tu não tomas nada?...

     Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de café.

     D'ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia:

     - O Rheno tambem deve ser magnifico!

     Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?... É que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idéas de viagens e de paisagens; queria vêr as grandes montanhas onde ha neve, os rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir á Allemanha, percorrer a pé, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses, de Beethoven, de Mozart, de Wagner...

     - Não te appetecia mais ir á Italia? perguntou Carlos accendendo o charuto.

     O maestro esboçou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases sybillinas:

     - Tudo contradanças!...

     Carlos então fallou de um certo plano de ir á Italia, com o Ega, no inverno. Ir á Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual: precisava calmar aquella imaginação tumultuosa de nervoso peninsular entre a placida magestade dos marmores...

     - O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges.

     E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da Gazeta. Achava aquillo, como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa. E o que o affligia é que o Ega, com aquelle talento, aquella verve fumegante, não fizesse nada...

     - Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiçando-se. Tu, por exemplo, que fazes?

     Cruges, depois de um siléncio, rosnou encolhendo os hombros:

     - Se eu fizesse uma boa opera, quem é que m'a representava?

     - E se o Ega fizesse um bello livro, quem é que lh'o lia?

     O maestro terminou por dizer:

     - Isto é um paiz impossivel... Parece-me que tambem vou tomar café.

     Os cavallos tinham descançado, Cruges pagou a conta, partiram. D'ahi a pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D'ambos os lados, a perder de vista, era um chão escuro e triste; e por cima um azul sem fim, que n'aquella solidão parecia triste tambem. O trote compassado dos cavallos batia monotonamente a estrada. Não havia um rumor: por vezes um passaro cortava o ar, n'um vôo brusco, fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço, olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavallos.

     Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente não sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle não avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ella tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar n'ella assim por aquella estrada fóra, penetrar, com essa doçura no coração, sob as bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel que d'ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roçasse talvez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella lá estivesse, decerto viria jantar á sala, aquella sala que elle conhecia tão bem, que já lhe estava appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de latão antigo... Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle vira passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos seus; e, muito simplesmente, á ingleza, ella estender-lhe-hia a mão...

     - Ora até que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio e respirando melhor.

     Chegavam ás primeiras casas de Cintra, havia já verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.

     E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora sussurração de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de agoas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava, rescendendo ás verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, passaros chilreavam de leve; e n'aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se vêr, a religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão... Cruges respirava largamente, voluptuosamente.

     - A Lawrence onde é? Na serra? - perguntou elle com a idéa repentina de ficar alli um mez n'aquelle paraiso.

     - Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente do seu silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos lá muito melhor!

     Era uma idéa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras casas de S. Pedro, e o break começara a rolar n'aquellas estradas onde a cada momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se misturava um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim a Cintra, ainda que ella o não reconhecesse, indo installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de um logar á mesma meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe a idéa de lhe ser apresentado pelo Damaso: via-o já, bochechudo e vestido de campo, a esboçar um gesto de ceremonia, a mostrar o seu amigo Maia, a tratal-o por tu, affectando intimidades com ella, cocando-a com um olho terno... Isto seria intoleravel.

     - Vamos para o Nunes, que se come melhor!

     Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impressão religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos fragosos da serra entrevistos um instante lá em cima nas nuvens, d'esse aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro doce de aguas descendo para os valles...

     Só ao avistar o Paço descerrou os labios:

     - Sim senhor, tem cachet!

     E foi o que mais lhe agradou - este macisso e silencioso palacio, sem florões e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da villa, com as suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o valle aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés collossaes, disformes, resumindo tudo, como se essa residencia fosse toda ella uma cosinha talhada ás proporções de uma gula de Rei que cada dia come todo um Reino...

     E apenas o break parou á porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar, timido e de longe - receiando alguma palavra rude da sentinella.

     Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou á parte o criado do hotel, que descera a recolher as maletas.

     - Vossê conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle está em Cintra?

     O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pandiga é que o sr. Damaso vinha para o Nunes.

     - Então, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de creança, certo agora que ella estava em Cintra. E uma sala particular, só para nós, para almoçarmos!

     Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria. Preferia a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se typos...

     - Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as mãos, põe o almoço na sala de jantar, põe-n'o até na Praça... E muita manteiga fresca para o sr. Cruges!

     O cocheiro levou o break, o creado sobraçou as maletas. Cruges, enthusiasmado com Cintra, rompeu pela escada acima, a assobiar - conservando aos hombros o chaile-manta, de que se não queria separar, porque lh'o emprestara a mamã. E apenas chegou á porta da sala de jantar, estacou, ergueu os braços, teve um grito.

     - Oh Euzebiosinho!

     Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando de almoçar, com duas raparigas hespanholas.

     Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e de pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a larga fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela de taffetá negro sobre o pescoço tapando alguma espinha rebentada.

     Uma das hespanholas era um mulherão trigueiro, com sygnaes de bexigas na cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que o pó de arroz não desfarçava. Ambas vestiam de setim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janella, pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos colxões, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo á sucia havia um outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja.

     Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito, com o garfo no ar; depois lá se ergueu, de guardanapo na mão, veiu apertar os dedos aos amigos, balbuciando logo uma justificação embrulhada, a ordem do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o acompanhara, e que quizera trazer raparigas... E nunca parecera tão funebre, tão relles, como resmungando estas cousas hypocritas, encolhido á sombra de Carlos.

     - Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no hombro. Lisboa está um horror, e o amor é cousa doce.

     O outro continuava a justificar-se. Então a hespanhola magrita, que fumava, afastada da meza e com a perna traçada, elevou a voz, perguntou ao Cruges se elle não lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento, e partiu de braços abertos para a sua amiga Lolla. E foi, n'esse canto da meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de mão, e hombre, que no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti! e caramba, que reguapa estas... Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido, apresentou o outro mulherão, la señorita Concha...

     Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade - o sujeito obeso, que apenas levantara um instante a cabeça do prato, decidiu-se a examinar mais attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o guardanapo a bocca, a testa e o pescoço, encavallou laboriosamente no nariz uma grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e côr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com uma impudencia tranquilla.

     Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo o nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman, que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo, arredou para fóra a cadeira; e de pé, estendendo a Carlos os dedos molles e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da sobremeza:

     - Se v. ex.ª é servido, é sem ceremonia... Que isto quando a gente vem a Cintra, é para abrir o appetite e fazer bem á barriga...

     Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e gracejava com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua apresentação:

     - Carlos, quero que conheças aqui a lindissima Lolla, relações antigas, e a señorita Concha, que eu tive agora o prazer...

     Carlos saudou respeitosamente as damas.

     O mulherão da Concha rosnou seccamente os buenos dias: parecia de mau humor, pesada do almoço, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra, com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados, ora fumando, ora palitando os dentes. Mas a Lolla foi amavel, fez de senhora, ergueu-se, offereceu a Carlos a mãosita suada. Depois retomando o cigarro, dando um geito ás pulseiras de ouro, declarou com um requebro d'olhos, que conhecia de ha muito Carlos...

     - No ha estado ustêd con Encarnacion?

     Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito d'ella, d'essa bella Encarnacion?

     A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. Não acreditava que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion... Emfim, terminou por dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.

     - Mas olhe que não é com o duque de Saldanha! exclamou Palma, que se conservara de pé, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um grande cigarro.

     A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha não seria duque, mas era um chico muy decente...

     - Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca da algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda não ha tres semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu... Foi até no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo o chapéo parar ao meio da rua... O sr. Maia ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que elle tambem tem um carrito e um cavallo.

     Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se de novo, saudando as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d'aquellas meninas era a esposa do amigo Eusebio.

     Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem erguer as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio, não tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma...

     E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de perna estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro á borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha d'ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!... E como o Eusebio, já enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma festa – ella despropositou, atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre punhadas na meza, com uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas manchas de sangue no carão trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe pelo braço: a outra deu-lhe um repellão; e, mais excitada com a estridencia da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco, accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil.

     Palma afflicto, debruçado sobre a meza, exclamava n'um tom ancioso:

     - Ó Concha, escuta lá!... Ouve lá!... Concha, eu te explico...

     De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulherão abalou pela sala fóra, a grande cauda de setim varreu desabridamente o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No chão ficara cahido um pedaço da mantilha de renda.

     O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o olho curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi servindo em roda o café.

     Durante um momento houve um silencio. Apenas porém o criado sahiu - a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho. Elle portara-se muito mal! Aquillo não fôra de cavalheiro! Tinha trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, não a ter renegado assim, á bruta, diante de todos...

     - Esto no se hace, dizia a Lolita, de pé, gesticulando, com os olhos brilhantes, voltada para Carlos, ha sido una cosa muy fêa!...

     E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da catastrophe - ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra com pouca vontade, e desde manhã estava de muy malo humor... Pero lo de Silbeira habia sido una gran pulhice...

     Elle, coitado, com a cabeça cahida e as orelhas em braza, remexia desoladamente o seu café; não se lhe viam os olhos escondidos pelas lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluço que lhe affogava a garganta. Então Palma pouzou a chavena, lambeu os beiços, e de pé no meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n'um tom entendido o resumo d'aquelle desgosto.

     - Tudo provém d'isto, e desculpe-me você dizel-o, Silveira: é que você não sabe tratar com hespanholas!

     A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n'elles, vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade, - e desabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios:

     - Vejam vocês! vem a gente a um sitio d'estes para gosar um bocado de poesia, e no fim é uma d'estas!...

     Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:

     - A vida é assim, Eusebiosinho.

     Cruges fez-lhe uma festa nas costas:

     - Não se póde contar com prazeres, Silveirinha.

     Mas Palma, mais pratico, declarou que era forçoso arranjarem-se as cousas. Virem a Cintra, para questões e amuos, isso não! N'aquellas pandegas queria-se harmonia, chalaça, e gosar. Couces, não. Então ficava-se em Lisboa, que era mais barato.

     Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor:

     - Anda Lolita, vae tu lá dentro á Concha, dize-lhe que se não faça tola, que venha tomar café... Anda, que tu sabe-l'a levar... Dize-lhe que peço eu!

     Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito ao cabello diante do espelho, apanhou a cauda - e sahiu, atirando a Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho.

     Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario leval-as por bons modos; por isso é que ellas se pellavam por portuguezes, porque lá em Hespanha era á bordoada... Emfim, elle não dizia que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas, não fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando se devia bater? Quando ellas não gostavam da gente, e se faziam ariscas. Então, sim. Então zás, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiço... Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas...

     - Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr. Maia que lhe diga se isto não é verdade, elle que tem tambem experiencia e sabe viver com hespanholas!

     E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito - que Cruges desatou a rir, fez rir Carlos tambem.

     O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para elles:

     - Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu comecei a lidar com hespanholas aos quinze annos! Não, escusam de rir, que n'isso ninguem me ganha! Lá o que se chama ter geito para hespanholas, cá o meco! E, vamos lá, que não é facil! É necessario ter um certo talento!... Olhem, o Herculano é capaz de fazer bellos artigos e estylo catita... Agora tragam-n'o cá para lidar com hespanholas e veremos! Não dá meia...

     Eusebiosinho no entanto fôra duas vezes escutar á porta. Todo o hotel cahira n'um grande silencio, a Lolita não voltava. Então Palma aconselhou um grande passo:

     - Vá você lá dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim sem mais nem menos, chegue-se ao pé d'ella...

     - E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma.

     - Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão... N'este caso é pedir perdão... E como pretexto, Silveira, leve-lhe você mesmo o café.

     Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas o seu coração já decidira: e d'ahi a um momento, com o pedaço de mantilha n'uma das mãos, a chavena de café na outra, enfiado e commovido, lá partia a passos lentos pelo corredor a pedir perdão á Concha.

     E, logo atraz d'elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem do sr. Palma - que de resto, indifferente tambem, já se accommodara á meza a preparar regaladamente o seu grog.

 

     Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer esse passeio a Sitiaes - que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça, por defronte das lojas vasias e silenciosas, cães vadios dormiam ao sol: atravez das grades da cadêa os presos pediam esmola. Creanças, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno, entre as arvores já verdes. De vez em quando apparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castello da Pena, solitario, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha a doçura do seu velludo.

     Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges.

     - Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, só para vêr aquella scena... E então com quê o sr. Carlos da Maia tem experiencia de hespanholas?

     Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavam d'aquella fachada banal, onde só uma janella estava aberta com um par de botinas de duraque seccando ao ar. Á porta, dous rapazes inglezes, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte, sentados sobre um banco de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.

     Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo do silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas recordações, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo Castro Gomes tocava flauta...

     - Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.

     Parara diante da grade d'onde se domina o valle. E d'ali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo áquella distancia, n'o brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma idéa de artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.

     Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava a tragos deliciosos:

     - Que ar! Isto dá saude, menino! Isto faz reviver!...

     Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n'um bocado de muro baixo, defronte de um alto terraço gradeado, onde velhas arvores assombreiam bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das suas ramagens, cheias do piar das aves. E como Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que fugiam para ir vêr o palacio, a Pena, as outras bellezas de Cintra - o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo correr a agua, a vêr monumentos caturras...

     - Cintra não são pedras velhas, nem cousas gothicas... Cintra é isto, uma pouca de agua, um bocado de musgo... Isto é um paraiso!...

     E, n'aquella satisfação que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo a sua chalaça:

     - E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!...

     - Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava pensativamente o chão com a bengala.

     Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores, suffocando-se n'uma prodigalidade de bosque silvestre, deixando apenas espaço para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada, com dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob a sombra d'aquella ramaria profusa. Aqui e alem, entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se arranjos de gosto burguez, uma volta de ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de um gesso. N'outros recantos, aquelle jardim de gente rica, exposto ás vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos, braços aguardasolados de auraucarias erguendo-se d'entre as agulhas negras dos pinheiros bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roçando a rama leve e perfumada das olaias floridas de côr de rosa. A espaços, com uma graça discreta, branquejava um grande pé de margaridas; ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam borboletas aos pares.

     - Que pena que isto não pertença a um artista! murmurou o maestro. Só um artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores...

     Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, só amam na natureza os effeitos de linha e côr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para cuidar de que um craveiro não soffra sede, para sentir magoa de que a geada tenha queimado os primeiros rebentões das acacias - para isso só o burguez, o burguez que todas as manhãs desce ao seu quintal com um chapéo velho e um regador, e vê nas arvores e nas plantas uma outra familia muda, por que elle é tambem responsavel...

     Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:

     - Diabo! É necessario que não me esqueçam as queijadas!

     Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era ella, e que elle ia vêr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas estrellas. A caleche passou, levando um ancião de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza com o regaço cheio de flores e o véo azul fluctuando ao ar. E logo atraz, quasi no pó que as rodas tinham erguido, appareceu, caminhando pensativamente, de mãos atraz das costas, um homem alto, todo de preto, com um grande chapéo Panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos, que gritou:

     - Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...

     Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braços abertos, no meio da estrada. Depois, com a mesma effusão ruidosa, apertou Carlos contra o coração, beijou o Cruges na face - porque conhecia Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi uma surpreza que elle não trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrão de os vêr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?

     E não esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello, recommendara-lhe mudança d'ares. Ora elle, bons ares, só comprehendia os de Cintra: porque alli não eram só os pulmões que lhe respiravam bem, era tambem o coração, rapazes!... De sorte que viera na vespera, no omnibus.

     - E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.

     - Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha Lawrence. Coitada! está bem velha! mas para mim é sempre uma amiga, é quasi uma irmã!... E vocês, que diabo? Para onde vão vocês com essas flores nas lapellas?

     - A Sitiaes... Vou mostrar Sitiaes ao maestro.

     Então tambem elle voltava a Sitiaes! Não tinha nada que fazer senão sorver bom ar, e scismar... Toda a manhã andara alli, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora já os não largava; era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as honras de Sitiaes...

     - Que aquillo é sitio muito meu, filhos! Não ha alli arvore que me não conheça... Eu não vos quero começar já a impingir versos; mas emfim, vocês lembram-se de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se gostou...

 

       Quantos luares eu lá vi!

       Que doces manhãs d'abril!

       E os ais que soltei alli

       Não foram sete, mas mil!

 

     Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão para conhecer Sitiaes...

     O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam todos tres callados.

     - Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no braço do poeta. O Damaso está na Lawrence?

     Não, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas chegara, fôra-se deitar, fatigado; e n'essa manhã almoçara só com dois rapazes inglezes. O unico animal que avistara fôra um lindo cãosinho de luxo, ladrando no corredor...

     - E vocês onde estão?

     - No Nunes.

     Então o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia:

     - Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!... Quantas vezes eu tenho dito áquelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu que mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um Choppin, é necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem...

     Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado:

     - Tem muito talento, tem muita idéa melodica!... Olha que andei com aquillo ás cabritas... E a mãe, menino, foi muitissimo boa mulher.

     - Vejam vocês isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto é sublime.

     Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dous velhos muros cobertos d'hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda: no chão tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se não via ia fugindo e cantando.

     - Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, então tens de subir á serra. Ahi tens o espaço, tens a nuvem, tens a arte...

     - Não sei, talvez goste mais d'isto, murmurou o maestro.

     A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos, feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaço de muro musgoso, logares de quietação e de sombra, onde se aninha com um conforto maior o scismar dos indolentes...

     - De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra é divino. Não ha cantinho que não seja um poema... Olha, alli tens tu, por exemplo, aquella linda florinha azul... - e, ternamente, apanhou-a.

     - Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora, desde que o poeta fallara do cãosinho de luxo, mais certo de que ella estava na Lawrence, e que a ía brevemente encontrar.

     Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusão diante d'aquelle vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a idéa, de pequeno, que Sitiaes era um montão pittoresco de rochedos, dominando a profundidade de um valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordação de luar e de guitarras... Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento.

     - A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos. Anda para diante!

     E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez mais animado, lhe gritava a chalaça do dia:

     - E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!...

     Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido, curioso, quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro no Nunes e os furores da Concha.

     Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto; a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de botões de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos brancos. Nenhuma folha se movia: atravez da ramaria ligeira o sol atirava mólhos de raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de silencio luminoso; e só se ouvia, ás vezes, monotona e dormente, a voz de um cuco nos castanheiros.

     Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus florões de pedra roídos da chuva, o pesado brazão rococó, as janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente n'aquella verde solidão, - amuada com a vida, desde que d'alli tinham desapparecido as ultimas graças do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Cruges ía descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiosinho, com a chavena de café na mão, a ir pedir perdão á Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapéo panamá, se agachava a colher florinhas silvestres.

     Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n'um dos bancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle bocado de terraço a sombra dos seus muros tristes; do valle subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou com nojo do Eusebiosinho. - Ahi está uma torpeza que elle nunca commettera, trazer meretrizes a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religião d'aquellas arvores e o amor d'aquellas sombras...

     - E esse Palma, accrescentou elle, é um traste! Eu conheço-o; elle teve uma especie de jornal, e já lhe dei muita bofetada na rua do Alecrim. Foi uma historia curiosa... Ora eu t'a conto, Carlos... Aquelle canalha! quando me lembro!... Aquella vil bolinha de matéria putrida!... Aquelle chouricinho de pus!

     Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes, já excitado pela lembrança d'aquella velha desordem, vergastando o Palma com nomes ferozes, todo n'uma d'essas fervuras de sangue que eram a sua desgraça.

     Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno feito de remendos assim que elle tinha na meza do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, n'uma massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, n'aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte, tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido, e que dormia enovellado e suspenso na luz...

     - Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia. Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pés, crusei os braços e disse-lhe: ahi tem você a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as mãos!

     - Que diabo, não me hão de esquecer as queijadas! murmurou Cruges, para si mesmo, affastando-se do parapeito.

     Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes, Cruges quiz explorar o outro terraço ao lado: e, apenas subira os dous velhos degraus de pedra, soltou de lá um grito alegre:

     - Bem dizia eu! cá estão elles... E vocês a dizer que não!

     Foram-n'o encontrar triumphante, diante de um montão de penedos, polidos pelo uso, já com um vago feitio de assentos, deixados ali outr'ora, poeticamente, para dar ao terraço uma graça agreste de selva brava. Então, não dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes havia penedos!

     - Se eu me lembrava perfeitamente! Penedo da Saudade, não é que se chama, Alencar?

     Mas o poeta não respondeu. Diante d'aquellas pedras crusara os braços, sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panamá carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n'um olhar lento e triste.

     Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:

     - Vocês lembram-se, rapazes, nas Flôres e Martyrios, de uma das cousas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto? Não se lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!

     Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E com elle fluctuante na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n'uma

paixão ephemera de nervoso:

 

       Vieste! Cingi-te ao peito.

       Em redor que noite escura!

       Não tinha rendas o leito,

       Nem tinha lavores na barra

       Que era só a rocha dura...

       Muito ao longe uma guitarra

       Gemia vagos harpejos...

       (Vê tu que não me esqueceu)...

       E a rocha dura aqueceu

       Ao calor dos nossos beijos!

 

     Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:

     - Foi alli.

     E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo panamá, com o lenço branco na mão. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do terraço - o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.

     Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava os maus dentes n'um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:

     - Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela sublime.

     O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi phantastica, como a illustração de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda côr de violeta escura, coroada pelo castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro...

     Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma bella phrase sobre a imaginação dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.

     Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir á Pena. Alencar, por si, ía tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que elle seguia... Por fim teve uma idéa.

     - Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se quizermos ir á Pena, arranjam-se lá os burros...

     E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera tambem uma idéa, fallava de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico, ornava o chapéo de folhas de hera.

     Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, não tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiçavam ao sol.

     - Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...

     Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.

     - Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e aqui está o burrinho tambem para v. ex.ª, meu amo!

     Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fôra para a Pena estava no Nunes...

     - A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio...

     - Uma senhora alta?

     - Sim senhor.

     - Com um sujeito de barba preta?

     - Sim senhor.

     - E uma cadellinha?

     - Sim senhor.

     - Tu conheces o sr. Damaso Salcede?

     - Não senhor... É o que tira retratos?

     - Não, não tira retratos... Tomae lá.

     Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem á Pena.

     - Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio. Isso é que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?...

      - Eu vos digo, filhos, começou o auctor de Elvira, historicamente fallando...

     - E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

     - Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessario não perder tempo; a caminho!

     Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo já o portão, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo peito, e o cãosinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e em hespanhol.

     Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os pedaços d'um bello marmore quebrado. Não esperou mais pelos outros, nem os quiz encontrar. Correu á Lawrence por um caminho differente, avido de uma certeza: - e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra...

     - E de lá?...

     O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá voltavam a Lisboa.

     - Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima da meza, traga-me você um calice de cognac, e uma pouca d'agua fresca.

     Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não teve animo de voltar ao palacio, nem quis sahir mais d'ali; e arrancando as luvas, passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos n'ella!... Porque, o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera perigrinações ridiculas de theatro em theatro: n'uma manhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a vêr. Agora sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e não a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n'alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao céo, d'ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as estrellas d'acaso! Ellas não são d'uma essencia differente, nem contéem mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Elle não a tornara a vêr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle não a via, e não socegava...

     O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez, quasi córando, fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ás sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia só. O sr. Castro Gomes, que dormia n'um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite, ficava uma eternidade á meza, fumando cigarettes e molhando os beiços em copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominó. A senhora tinha montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar até domingo, mas fôra ella que apressára a partida...

     - Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?...

     - Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V. ex.ª toma mais cognac?

     Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraço. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada, n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraço, vendo tambem cahir a tarde - se ella não estivesse impaciente por tornar a vêr a filha, algum bébésinho loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante deusa era tambem uma boa mamã; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento humano nas suas bellas fórmas de marmore.

     Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu peignoir, com o cabello enrolado á pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bébé nos seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe com um riso d'ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu

coração fugia para ella... Ah! poder ter o direito de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d'ella; depois, que divina existencia, escondida n'um ninho de flôres e de sol, longe, n'algum canto da Italia...

     E, toda a sorte de idéas d'amor, de devoção absoluta, de sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente - emquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d'aquelle bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa côr d'ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra n'uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de repente parado n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...

     - Oh Carlos, tu estás ahi?

     Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos appareceu á varanda do terraço.

     - Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando alegremente o seu panamá. Nós lá estivemos á espera, no covil real... Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te á cadeia!

     E o poeta riu largamente da sua pilheria - emquanto Cruges, ao lado, de mãos atraz das costas, e a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.

     - Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sêde.

     Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraço - depois de ter gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima meia da fina.

     - Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os passos. Então, parece-me que o que nos resta a fazer é jantar, e abalar...

     Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d'aquelle vasto casarão historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, «melhores que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.; e

trazia de lá uma pouca d'essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.

     E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, começava a entristecel-o.

     Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas, mandar vir á porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa.

     - E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac, enquanto vocês vão ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender la abaixo á cosinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um bacalhau á Alencar, recipe meu... E vocês verão o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!

     Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontrassem mais o Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pés nos primeiros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, já todos reconciliados, a Concha contente – e installados aos dois cantos d'uma meza, com cartas. O Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca.

     O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára miseravelmente com duas corôas, já luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, até de madrugada.

     - Então vv. exas. não se tentam? Isto é para passar o tempo... Em Cintra tudo serve... Valete! Perdeu você outro mico no rei. Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!

     Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado - no momento em que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado, quiz verificar, com as lunetas negras sobre o baralho, se lá estavam todos os reis.

     Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo a honra do seu homem: então Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis estavam lá.

     Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e recomeçou a baralhar magestosamente.

     - Então v. ex.ª não se tenta? repetia elle para o maestro.

     Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela meza, com o olho nas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o. Com a mão nervosa, escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.

     - Então tu?... exclamou Carlos com severidade.

     - Já desço, rosnou o maestro.

     E, á pressa, foi á paz da libra, n'um terno contra o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi com emoção que elle começou a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n'um vagar mortal. A apparição de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas as mãos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:

     - Então, sempre continúa toda a libra?...

     - Toda.

     Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente as cartas.

     - Rei! gritou elle, empolgando o ouro.

     Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso.

     Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito horas, com luzes; - e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n'esse dia as desillusões da vida, todos os rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordações da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da Regeneração... Tudo isto com estridencias de voz, e filhos isto! e rapazes aquillo! e gestos que faziam oscillar as chamas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza, os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdem, para esta desordenada exhuberancia de meridional.

     A apparição do bacalhau foi um triumpho: - e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!

     - Sempre queria que elle provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... N'outro dia fil-o lá em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pae Dumas não é um poeta... E então d'Artagnan? D'Artagnan é um poema... É a faisca, é a phantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arrobo! Então, pôço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes á hespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, historias... Um lyrio é tão natural como um persevejo... Uns preferem fedôr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pós de marechala n'um seio branco; a mim o seio, e, lá vae á vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-n'o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo... Pois, assim é que elles se querem, e, lá vae á saude do Ega!

     Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:

     - E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta portuguez!...

     Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta portuguez, e o jantar terminou n'um café tranquillo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.

     Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padre de aldêa, levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá na maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram. Cintra ficava dormindo ao luar.

     Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaços, a estrada apparecia banhada d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores com um ar de melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio d'aroma. Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua.

     Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d'entre os seus agasalhos:

     - Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...

     O poeta condescendeu logo - apesar de um dos criados ir ali ao lado d'elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, ía dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, n'um tom familiar e simples:

 

       Era o jardim d'uma vivenda antiga,

       Sem arrebiques d'arte ou flôres de luxo;

       Ruas singellas d'alfazema e buxo,

       Cravos, roseiras...

 

     - Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanario.

     O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:

     - Esqueceram-me as queijadas!

 

     O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d'essa semana tão luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre o jardim, vira um céu baixo que pesava como se fosse feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de sudoeste. Decidira não sahir - e desde as nove horas, sentado á banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o bello ar de um principe artista da Renascença, tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de café, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o céu fóra, conservava-se-lhe n'essa manhã afogado em nevoas. Tinha d'estes dias terriveis; julgava-se então «uma besta»; e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete aos pés, davam-lhe a sensação de ser todo elle uma ruina.

     Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta com as idéas rebeldes, quando Baptista annunciou Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda de montados no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.

     - Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapéo a um canto da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois contos de réis... E não é mau presente, logo assim pela manhã...

     Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as mãos por trás da cabeça:

     - Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos de réis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d'uma estupidez!

     Villaça considerou-o um momento, com malicia.

     - Quer v. ex.ª dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que receber assim perto de quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são gostos... Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas dous contos de réis, são dous contos de réis... Olhe que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio é este. Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braços cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que Villaça trazia (um macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os com um ar moribundo.

     - Então não fica para almoçar, Villaça? disse elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braço.

     - Muito agradecido a v. exa. Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio... Vamos ao ministerio do reino, elle tem lá uma pertenção... Quer a commenda da Conceição... Mas este governo está desgostoso com elle.

     - Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d'um bocejo, o governo não está contente com o Eusebiosinho?

     - Não se portou bem nas eleições. Ainda ha dias, o ministro do reino me dizia, em confidencia: «O Eusebio é rapaz de merecimento, mas atravessado...» V. Ex.ª n'outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o em Cintra.

     - Sim, lá estava a fazer jus á commenda da Conceição.

     Quando Villaça saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um momento, com os olhos na pagina meio-escripta, coçando a barba, desanimado e esteril. Mas quasi em seguida appareceu Affonso da Maia, ainda de chapéo, á volta do seu passeio matinal no

bairro, e com uma carta na mão, que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio. Além d'isso, esperava encontrar ali o Villaça.

     - Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o Eusebiosinho - disse Carlos, abrindo a carta.

     E teve uma surpreza, vendo no papel - que cheirava a verbena como a condessa de Gouvarinho - um convite do conde para jantar no sabbado seguinte, feito em termos de sympathia tão escolhidos que eram quasi poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos atomos em gancho de Descartes. Carlos desatou a rir, contou ao avô que era um par do reino que o convidava a jantar, citando Descartes...

     - São capazes de tudo, murmurou o velho.

     E dando um olhar risonho aos manuscriptos espalhados sobre a banca:

     - Então, aqui, trabalha-se, hein?

     Carlos encolheu os hombros:

     - Se é que se póde chamar a isto tabalhar... Olhe ahi para o chão. Veja esses destroços... Em quanto se trata de tomar notas, colligir documentos, reunir materiaes, bem, lá vou indo. Mas quando se trata de pôr as idéas, a observação, n'uma fórma de gosto e de symetria, dar-lhe côr, dar-lhe relevo, então... Então foi-se!

     - Preoccupação peninsular, filho, disse Affonso, sentando-se ao pé da mesa, com o seu chapéo desabado na mão. Desembaraça-te d'ella. É o que eu dizia n'outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez nunca póde ser homem de idéas, por causa da paixão da fórma. A sua mania é fazer bellas phrases, vêr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fôr necessario falsear a idéa, deixal-a incompleta, exageral-a, para a phrase ganhar em belleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela agoa abaixo o pensamento, mas salve-se a bella phrase.

     - Questão de temperamento, disse Carlos. Ha sêres inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante que a exactidão de um systema... Eu sou d'esses monstros.

     - Diabo! então és um rhetorico...

     - Quem o não é? E resta saber por fim se o estylo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia de uma phrase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéa... Viva a bella phrase!

     - O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando começava justamente a tocar a sineta do almoço.

     - Fallae na phrase... - disse Affonso, rindo.

     - Hein? Que phrase? O que?... - exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui a esta hora sr. Affonso da Maia! Como está v. ex.ª? Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirar d'uma

atrapalhação... Tu terás por acaso uma espada que me sirva?

     E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impaciente:

     - Sim, homem, uma espada! Não é para me batter, estou em paz com toda a humanidade... É para esta noute, para o fato de mascara.

     O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera o costume para o baile: e, qual é o seu horror, ao vêr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh'o passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahão, que só tinha espadins de côrte, reles e pelintras como a propria côrte! Lembrara-se do Craft e da sua collecção; vinha de lá; mas ahi eram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a India... Nada que lhe servisse. Fôra então que lhe tinham vindo á idéa as panóplias antigas do Ramalhete.

     - Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos em concha, d'aço rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz!

     Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas...

     - Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com a mão no reposteiro.

     Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Não estavam á vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixões em que tinham vindo de Bemfica.

     - Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse Carlos, erguendo-se com resignação. Mas olha que ellas não têem bainhas.

     Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idéa, o salvou.

     - Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n'uma hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate...

     - Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!

     E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.

     - Veja v. ex.ª isto, um sabre da guarda municipal! E é quem faz ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!... E é tudo assim, isto é um paiz insensato!...

     - Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado, sete milhões d'almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?

     - Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mãos enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O costumier com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as Meditações de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema...

     Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, uma folha do seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como uma renda - e tendo gravado no aço o nome illustre do espadeiro, Francisco Ruy de Toledo.

     Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou á pressa o almoço que lhe ofereciam, deu dous vivos shake-hands, atirou o chapéu para a nuca, ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:

     - Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é uma espada cá da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... Vê como te serves d'ella!

     Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado no Jornal do Commercio:

     - Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra. Au revoir!

     - Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz é este John!... Pois vae-te arranjando filho, que já tocou a primeira vez para o almoço.

     Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, á entrada particular, o timbre electrico começou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na

ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido, d'olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando os braços ao ar:

     - Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d'ahi, que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquella gente brazileira. Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

     Carlos erguera-se, pallido:

     - É ella?

     - Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é minha!

     - É um bébé, não é?

     - Qual bébé!... É uma pequena crescida, de seis annos... Anda d'ahi!

     Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botões da bota. E Damaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a estalar de importancia.

     - Sempre a gente se vê em coisas!... Olha que responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo ás vezes, de manhã... E vae, tinham partido para Queluz.

     Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:

     - Mas então?...

     - Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico inglez, porque não falla senão inglez... Do hotel foram procurar o Smith, que não appareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!

     E acrescentou, dando um olhar ao jardim:

     - Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes! Hão-de-se divertir... Estás prompto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vaes muito bem sem luvas!

     - O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.

     Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi o assento.

     - Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores.

     Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a apparição do Damaso lhe faiscava nos labios.

     - Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?...

     O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra tudo um equivoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido d'um gentleman. Senão quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguem! a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do Grand Hotel em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que elle vivia lá, obdecendo á indicação, mandara para lá os seus cartões! Curioso, hein? E de estupido... E a falta de resposta aos telegrammas fôra culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de afflicção, vendo o marido com o braço escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram intimos, estava lá quasi sempre...

     - Emfim, menino, um romance... Mas isso é para mais tarde!

     O coupé parara á porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu ao guarda portão.

     Mandou o telegramma, Antonio?

     - Já lá vae...

     - Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes logo um telegramma para o hotel em Queluz. Não estou para ter mais responsabilidades!...

     No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um guardanapo debaixo do braço:

     - Como está a menina? gritou-lhe o Damaso.

     O criado encolheu os hombros, sem comprehender.

     Mas Damaso já trepava o outro lanço de escada, soprando, gritando:

     - Por aqui Carlos, eu conheço isto a palmos! Numero 26!

     Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava á janella, voltou-se.

     Ah bonjour, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creança estava melhor? l'enfant etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur le docteur Maia.

     Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como uma faisca.

     A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps azul, e um grande espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficára enrolado um bordado.

     - Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com um esforço sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que gente!

     - Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos, vendo sobre a meza os numeros do Pays.

     - Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas tem pouco fundo.

     Melanie voltou pedindo a Monsieur le Docteur para entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalhacahida, de dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos.

Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de sa responsabilité, et que il etait très affligé.

     Carlos ficou só, na intimidade d'aquelle gabinete de toilette, que n'essa manhã ainda não fôra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço polido, estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte côr de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e baptistes, d'um brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda, e tão leves, que uma aragem as faria voar; e, no chão corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo, e grandes fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda côr de rosa, onde de certo viajara a cadellinha.

    Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um sophá onde ficára estendido, com as duas mangas abertas, á maneira de dous braços que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a vira, a primeira vez, apear-se á porta do hotel.

O forro, de setim branco, não tinha o menor acolxoado, tão perfeito devia ser o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sophá, n'essa attitude viva, n'um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fórma d'um corpo amoroso, desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos sentiu bater o coração. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave de caricia...

     Então desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do hotel Shneid. Quando se voltou, miss Sarah estava diante d'elle, vestida de preto e muito córada: era uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos só percebeu docteur.

     - Yes, I am the doctor, disse elle.

     A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão bom, ter emfim com quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-a d'uma responsabilidade!...

     Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n'um quarto com as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu a fórma d'um grande leito e o brilho de cristaes n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas?

     Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem á menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.

     Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve a sua admiração.

     - Que linda creança!

     E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo d'artista, pensando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinação de luz, não egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa: e esta adoravel brancura era ainda realçada por um cabello negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d'um azul profundo e liquido, pareciam n'esse instante maiores, muito serios, e muito abertos para elle.

     Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da dôr, perdida n'aquelle vasto leito, e apertando nos braços uma enorme boneca paramentada, de pello riçado, d'olhos tambem azues e arregalados tambem.

     Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh'a, - perguntando se a boneca tambem estava doente.

     - Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito séria, sem tirar d'elle os seus magnificos olhos. Eu já não tenho...

     Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e a sua vontade já de lunchar.

     Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava boa. O que a assustara fôra achar-se ali só, sem a mamã, com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma creança ingleza saía com ella para o ar... Mas estas meninas estrangeiras, tão debeis, tão delicadas... E o labiosinbo gordo da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raças inferiores e deterioradas.

     - Mas a mamã não é doente?

     Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco...

     - E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado á cabeceira do leito.

     - Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que eu que sou Rosicler.

     - Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle nome de livro de cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas.

     Então, como colhendo simplesmente informações de medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudança de clima.

Habitavam ordinariamente Paris, não é verdade?

     Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verão iam para uma quinta da Touraine, ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até ao começo da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que Ella estava com Madame.

     Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braços, não cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando, sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da mãe eram negros: os do pae d'azeviche e pequeninos: quem herdara ella aquellas maravilhosas pupillas d'um azul tão rico, liquido e doce.

     Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella installação banal d'hotel, certos retoques d'uma elegância delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lençoes não eram do hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados a duas côres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarçava o medonho reps desbotado.

     Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros de encadernações ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular - o Manual de interpretação dos sonhos. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante, uma enorme caixa de pó de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d'um circulo de brilhantes miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal.

     Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botão de rosa; elle não ousou beijal-a assim n'aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas na testa.

     - Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco.

     - Não é necessario vir outra vez, minha querida. Tu estás boa, e Cri-cri tambem.

     - Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah que eu posso tomar o meu lunch... E Cri-cri tambem.

     - Sim já podeis ambas petiscar alguma cousa...

     Fez as suas recommendações á mestra, e depois, apertando a mãosinba da pequena:

     - E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que és Rosicler...

     E não quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um shake-hands.

     Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com duas covinhas na face.

     Não era necessario, lembrou Carlos, conservar a creança na cama, nem tortural-a com cautellas exageradas...

     - Oh, nò, sir!

     E se a dôr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar...

     - Oh yes, sir!

     E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.

     - Oh thank you, sir!

     Ao voltar á sala, o Damaso saltou do sophá, onde percorria um jornal, como uma féra a quem se abre a jaula.

     - Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida! Que estivestes tu a fazer? Irra, que estopada!

     Carlos, calçando as luvas, sorria, sem responder.

     - Então, é cousa de cuidado?

     - Não tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordinario.

     - Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapéo com mau modo; muito ridiculo, não é verdade?

     A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da sala, - dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo com o medico; e que havia de voltar á noite para lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham gostado de Queluz - si ils avaient aimè Queluz.

     Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeça, para dizer ao guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego.

     O guarda livros sorrio e cortejou.

     - Queres que te vá levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo, abrindo a porta do coupé, ainda com um resto de mau humor.

     Carlos preferia ir a pé.

     - E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora não tens que fazer.

     Damaso hesitou, olhando o céu aspero, as nuvens pesadas de chuva. Mas Carlos tomara-lhe o braço, arrastava-o, amavel e gracejando.

     - Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o romance... Tu disseste que tinhas um romance. Não te largo. És meu. Venha o romance. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o romance!

     Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de satisfação.

     - Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia.

     - Vocês estiveram em Cintra?...

     - Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance é outro!

     Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fóra de contar o seu romance.

     - A coisa é esta... O marido d'aqui a dias vai para o Brazil, tem lá negocíos. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, á espera, dois ou tres mezes. Diz que já andaram até a vêr casas mobiladas, que ella não quer estar no hotel... E eu, intimo, a única pessoa que ella conhece, mettido de dentro... Hein, percebes agora?

     - Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um gesto nervoso. E de certo, a pobre creatura já está fascinada! Já lhe déste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! Já a desgraçada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando a abandonares!

     Damaso enfiava.

     - Não venhas já tu com o espirito e com a chufasinha... Não lhe dei beijos que ainda não houve occasião... Mas, o que te posso dizer, é que tenho mulher!

     - Pois já era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e atirando-lhe as palavras como chicotadas. Já era tempo! Andavas ahi mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralé de lupanar... Emfim, agora ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n'uma ordem de sentimentos decentes... Mas vê lá... Não sejas o costumado Damaso! Não te vás pôr a alardear isso pelo Gremio e pela casa Havaneza!

     D'esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo, semelhante azedume. E terminou por balbuciar, livido:

     - Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas lá a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, não me dás licções...

     Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o tão innofensivo, tão insignificante, com o seu ar bochechudo, e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe o braço, teve duas palavras amaveis.

     - Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não te quiz fazer zangar... É para teu bem... O que eu receava é que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscríção...

     E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se ao braço do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante chic. Não, elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade...

     - Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito...

     E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia não havia elle de «perder a cousa». Aquillo ia com todas as regras. Lá n'isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie já a tinha na mão; já lhe dera duas libras.

     - Isto de mais a mais é uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, é intima d'elle desde pequena, tratam-se até por tu...

     - Que tio?

     - Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães. Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta...

     - Ah sim, o communista...

     - Qual communista, até tem carruagem!

     Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar Carlos.

     - Ámanhã vou jantar com elles, e vão tambem dois brazileiros, amigos d'elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um é chic, é da Legação do Brazil em Londres. De maneira que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes não me disse nada; mas que te parece, achas que vá de casaca?...

     - Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.

     O Damaso olhou-o, pensativo.

     - A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.

     - O habito de Christo... Sim, põe o habito de Christo ao pescoço, e põe a rosa na botoeira.

     - Será talvez de mais, Carlos!

     - Não, fica bem ao teu typo.

     Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no ultimo aperto de mão a Carlos:

     - Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o á noite á brazileira... Entro no Hotel embrulhado n'um capote, e appareço-lhes de repente na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:

 

     Alerta, marinari,

     Il vento cangia...

     Chic a valer!... Good bye!

 

     Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fóra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d'agoa, que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominó de já setim negro com um grande laço azul-claro.

     Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chavena de chá preto que elle estava bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e de gravata branca.

     De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento.

     - Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje é o dia das surprezas...

     Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir - quando em baixo vibrou outro repique brutal, d'uma impaciencia phrenetica.

     Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e ahi, á meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos côr de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite, apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha, com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um manto escarlate esvoaçou - e o Ega estava diante d'elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles!

     Carlos apenas poude dizer bravo - o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de caracterisação que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas - sentia-se bem a afflicção em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n'uma terrivel pallidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.

     Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos, n'uma voz rouca e d'agonia:

     - Tu sabes o que me succedeu, Carlos?

     Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d'elle, devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.

     - Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforço e quasi balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já estavam duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já no meio da rua... Já no meio da rua senão, diante d'esta gente, corro-o a pontapés!» E eu, Carlos...

     Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiços, recalcando os soluços, com os olhos reluzentes de lagrimas.

     Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:

     - Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos, metter-lhe uma bala no coração!

     Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo furiosamente o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia da propria voz.

     - Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!

     Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, ás patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal afivelada batendo-lhe as canellas escarlates.

     - Então descobriu tudo, murmurou Carlos.

     - Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os braços ao ar. Como descobriu, não sei. Sei isto, já não é pouco. Poz-me fóra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo! Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coração!... Quero que vás lá logo pela manhã com o Craft... E as condições são estas: á pistolla, a quinze passos!

     Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de chá. Depois disse muito simplesmente:

     - Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.

     O outro estacou de repellão, atirando pelos olhos dois relampagos d'ira - a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo ondeando na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.

     - Não o posso mandar desafiar?

     - Não.

     - Então põe-me fóra de casa...

     - Estava no seu direito.

     - No seu direito!... Diante de toda a gente?...

     - E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...

     O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um grande gesto:

     - Não se trata da mulher!... não se fallou da mulher!... É uma questão d'honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o...

     Carlos encolheu os hombros.

     - Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar ámanhã em casa, a vêr se elle te manda desafiar a ti...

     - O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde, é um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu estás doido...

     E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellões para traz ao manto que faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas.

     Carlos não dizia nada, de pé junto da meza, enchendo lentamente de novo a sua chavena. Tudo aquillo começava a parecer-lhe pouco serio, pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furores melodramaticos do Ega: - e mesmo não podia deixar de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d'honra e de morte, com sobrancelhas postiças, e escarcella de coiro á cinta.

     - Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca resolução. Quero vêr o que diz o Craft. Tenho lá em baixo uma tipoia, estamos lá n'um instante!

     - Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.

     - Se és meu amigo, Carlos!...

     Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.

     Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de chá, deitando-lhe rhum, ainda tão nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. Fóra, a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão molle do jardim.

     - Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos de dentro.

     - Aguenta, é o Canhôto, disse Ega.

     Agora reparara no dominó, fôra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o bello laço azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande espelho-psyché, entalou o monoculo no olho, recuou um passo, contemplou-se d'alto a baixo; - e terminou por pousar uma das mãos na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.

     - Eu não estava mal, oh Carlos, hein?

     - Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como estava ella?

     - Devia estar de Margarida.

     - E elle?

     - A besta? De beduino.

     E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto por traz, n'uma prega fidalga.

     - Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mãos, tu não fazes idéa do que se passou, o que elle diria á mulher, o escandalo...

     - Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Rachel... Depois é que ellas são!

     Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:

     - É horroroso!

     Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a face:

     - Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!

     - Tira-as...

     Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz. Mas arrancou-as por fim - e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça. Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. - E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate á Carlos IX emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentável d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho.

     Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:

     - Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...

     O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que nada no mundo ia bem.

     Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer d'agua, atroando a calçada.

     Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braços d'outros, anciosa, á espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito - todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.

     Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se offereciam...

     Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão lamacento.

     Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.

     Ega rompera logo a contar o seu caso - emquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão. Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accomodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.

     - Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas tu agora?

     - Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que não manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.

     - Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.

     Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos.

Ali estava, n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua teima - um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não! Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, á civilisação!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...

     - Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um sophá.

     Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.

     Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril, nem theatral... A questão estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés...

     - Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: «Guarde-a».

     - Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de ter feito isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve portanto um acto de moderação. E tu queres mandal-o desafiar por isso?...

     Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n'aquelle simples gibão escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se não tratava d'isso! Não, não se tratava da mulher! A questão era outra...

     Carlos então zangou-se.

     - Para que diabo te expulsou elle de casa então? Não disparates, homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E é triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua

amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se elle não quizer fazer nada, tens de ficar de braços cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te infame...

     - Então tenho de engolir a affronta?

     Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano - e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de affronta.

     Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou um momento a cabeça enterrada nas mãos.

     - Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem ter rasão... Eu estou-me a sentir idiota... Então, vamos, que hei de eu fazer?

     - Vocês teem a tipoia á espera? perguntou tranquillamente Craft.

     Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.

     - Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de morrer ámanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver uma garrafa de Bourgonhe...

     D'ahi a pouco estavam á mesa - n'aquella bella sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaes representando bocados solitarios d'arvoredo, as severas faenças da Persia, e a sua original chaminé flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com veneração, duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.

     Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin.

     Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocês chegaram, estava a lêr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra...

     - Que é aquillo, além, n'aquella lata? perguntou Ega, com uma voz moribunda.

     Um pâté de foie-gras. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.

     - Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.

     - Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Não te romantises. Tu o que tens é fome. Todas as tuas idéas esta noite se ressentem da debilidade!

     Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitação do seu trage de Satanaz nem jantára, contando ceiar bem em casa do outro... Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente foie-gras...

     E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú, uma porção immensa de lingua d'Oxford, duas vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle só bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin.

     O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era vaidoso, e de rancores longos! N'um convento tambem não a fechava, sendo judia...

     - Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade. Ega, já com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle então entrava n'um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear uma ordem para elle! Craft lembrou a Santa Blague!

     - Vocês não teem coração, exclamou Ega, enchendo outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava aquella mulher!

     Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos melhores de toda aquella paixão, - porque poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias vaidosas. Começou por contar o encontro com ella na Foz - emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em que ella se assignava Violetta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes de mãos á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados entre as lapides funebres...

     - Muito curioso! dizia o Craft.

     Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft fôra buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.

     O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeçou as confidencias, contou a volta a Lisboa, a Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá com ella no calor d'um ninho d'amor...

     Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento a cabeça entre os punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer!

     - Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocês um peito...

     - Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu estás bebado, miseravel!

     Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado á meza.

     Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido tudo, até agua raz. Nunca! Não podia...

     - Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu verás... E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta... Ora ahi tens. Dá cá a garrafa.

     Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle, com a face livida.

     - Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa, ou te metto uma bala no coração... Não, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha!

     De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d'ahi sobre o chão, como um fardo.

     - Terra! disse tranquillamente Craft.

     Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da Ega. E emquanto o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz, não cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mãos de Carlos, balbuciando:

     - Rachelsinha!... Racaqué, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?...

     Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, já clareava a alvorada.

     Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o nariz dentro dos lençoes.

     Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lençoes até ao queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolação de deixar aquelles fofos colxões, a paz confortavel da quinta - para ir affrontar a Lisboa toda a sorte de cousas amargas.

     - Está frio lá fóra? perguntou elle melancholicamente.

     - Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se lá fôr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...

     Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só achou o gibão de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calças de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez, voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:

     - Vamos a isso!

     Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão, onde esperava o coupé de Carlos. Na alameda de acacias, tão tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d'elles.

     - Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.

     - Não, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem não estava bebado... O que estava era fraco.

     Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e philosophico, esta reflexão:

     - O que é a gente beber bons vinhos... Estou como se não fosse nada!

     Craft recommendou que, se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o coupé partiu.

     Durante a manhã não veiu telegramma á quinta; e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava á porta, já escurecera, duas vélas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago: e Ega passeiava d'um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella sécca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.

     - Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.

     Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia que elle tivesse assassinado a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por capricho de derramar sangue...

     - Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou elle aterrado.

     E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que, áquella hora, não podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria estar só na sala: e lá ficou, mais pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.

     - Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridão do quarto.

     Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n'um desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabão; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo.

     Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava o toucador, onde havia um maço de ganchos de cabello, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.

     Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi á cozinha. A criada estava sentada á meza, com a mão mettida pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n'uma cadeira, chupava o seu cigarro.

     - Quem foi que entrou? perguntou Carlos.

     - Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das costas.

     Carlos voltou ao quarto, annunciando:

     - É a confidente. As cousas terminam amavelmente.

     - E como queria você que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que não convém um escandalo... É isto que calma os maridos. Além d'isso, já se satisfez, já lhe offereceu pontapes...

     N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.

     - Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça, e vão ámanhã para Inglaterra!

     Carlos olhou para o Craft - que movia a cabeça, como vendo todas as suas previsões realisadas, e approvando plenamente.

     - Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n'uma voz que sibillava. E depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um menage modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha!

     Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel - não perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer á paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeça de galgo por castão. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixão! Aquillo pozera vergões roxos onde os seus labios tinham avivado signaes côr de rosa! E tinham feito as pazes. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas não! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as applicações de arnica! Aquillo acabava em arnica!

     - Entre vocemecê para aqui, sr.ª Adelia, gritou elle para a sala, entre para aqui! Aqui só ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto são amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.ª Adelia, sente-se... Não faça ceremonia... E póde contar.... Aqui a sr.ª Adelia, meninos, viu tudo, viu a coça!

     A sr.ª Adelia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um chapéo de flôres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. Não, ella não vira... Então o sr. Ega não tinha percebido bem... Ella só ouvira.

     - Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o Domingos á espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei até que eram ladrões.

Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, lá para o fundo da alcova. Eu ainda puz o olho á fechadura, mas não pude vêr nada... Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões, e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo ao Domingos «ai que é uma questão, ai que lá se foi tudo.» Mas de repente, silencio geral! Nós voltámos para a cozinba; d'ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podíamos deitar, que elles não precisavam nada, e que ámanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado, até me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.

     A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coça!... Se um covarde d'aquelles não merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!... Tudo uma corja!

     - E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como elle descobriu?...

     - Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos na cabeça.

     Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!

     - Estranho, estranho! murmurava Craft.

     Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.

     - Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha alto.

     Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo até á roda das saias, com os olhos faiscantes.

     - Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham.

     A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:

     - Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle.

     Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mão tremula.

     Então Carlos enojado, cançado d'aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...

     - Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.

     De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se lá outra vez.

     - Você não está farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.

     - Não. Acho um estudo curioso.

     Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo - quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia partira.

      - Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?

     E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.

     No André tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera para os senhores se entreterem.

     De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.

     - Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado descobriu!...

     - A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.

     Ega erguera-se:

     - Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel ía vêl-a de vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?... Além d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e punha um waterproof...

     Craft cumprimentou.

     - É brilhante! Parece de Scribe.

     - Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...

     - A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... Ás vezes mesmo em casa d'ella.

     - Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se.

     - Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco libras.

     O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio accommodaram-se á meza.

     Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir, receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce.

     Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde ardiam as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel: - e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a veria! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo - e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.

     Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe, - escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.

     - Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava estas cousas com um ar cançado e doente.

     Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.

     Ah, elle sabia-o bem! Tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica, e

fosse independente.

     Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos - que fôra excellente - contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.

     Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n'essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as Memorias d'um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos não perturbou esta radiante illusão.

     Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens - e elle seria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.

     Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações. A mãe do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se

com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi uma divertida carreira de faia.

     Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas?

     Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente. Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam «cousas contra a natureza», e que o pagem não era só para servir á meza... Nauseado até á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor romantico:

     - Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro!

 

     Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:

     - Má estreia, filho, pessima estreia!

     E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem comsigo: - Pessima estreia!... E nem só a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso, as palavras do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memorias d'um Atomo, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima estreia!

     Não, a vida não lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!... Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.

     Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.

     - Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já visto a pequena...

     Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando um recado, faiscando d'impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro - o primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher

ao lado, e a cadellinha no collo.

     Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes d'elle partir para o Brazil... Não podia mais, precisava ouvir a voz d'ella, vêr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto.

     Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos. Começou por encontrar o conde, que lhe travou do braço, arrastou-o á rua de S. Marçal, installou-o n'uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao Jornal do Commercio sobre a situação dos partidos em Portugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de croquet. Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa noite, ella fallou d'um livro de Tennyson, que não lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o levar ao outro dia, de manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam já a voz, as duas cadeias estavam mais juntas - quando o escudeiro annunciou a sr.ª D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria, a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia de sympathia por todos os peccados - e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular á condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d'essas tardes tomar chá, e fallar de Tennyson.

     Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de «ferro». O telhudo do Castro Gomes mudára de idéa, já não ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão! De sorte que estava tudo estragado...

     Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação ao Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquê, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.

     Damaso no entanto maldizia a sua chance:

     - E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasião. Mas que diabo queres tu, assim?...

     Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida d'aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles não se davam bem. Na vespera houvera de certo questão. Quando elle entrara, ella estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d'hora...

     - Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar á fava.

   Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ás vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d'estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.

     - Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos pôr o chapeu.

     Ia tomar chá com a Gouvarinho.

     - Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca! Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:

     - Vem, fazes-me até favor...

     A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.

     - Ha que tempos que não damos assim um passeio juntos, disse Damaso.

     - Tu andas lá mettido com estrangeiros!...

     Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada. Depois, á porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.ª condessa recebia, resolveu subitamente não entrar. Não, não entrava. Estava muito estupido, incapaz de achar uma palavra...

     - Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos diante do portão. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia de mandar pela visita á pequena... Eu disse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os.

     Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!

     - Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar ámanhã! exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mão ao seu amigo.

     Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir chá. A sala, forrada d'um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas havia cestos de flôres. No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na mão. A condessa, ao estender os dedos a Carlos, ficara tão côr de rosa - como a seda acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pé d'um velador de pau santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que não era possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde...

     O conde ainda não apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrucção Publica.

     Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos. As pobres creanças succumbiam verdadeiramente á quantidade exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Joãosinho, andava tão pallido e tão desfigurado, que ella ás vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades que punham, só para poder deitar RR... Ao pequeno d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era o sabão, porque lavava o sabão?...

     A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominação. O marido d'ella - continuava a dama de preto - ficara tão desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!... Não havia verdadeiramente senão uma cousa digna de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creança com botanica, astronomia, physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno d'ella, agora, tinha lições de chimica... Que absurdo! Era o que o pae dizia - para que, se elle o não queria para boticario?

     Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.

     Carlos ficou só com a sr.ª condessa, que reoccupara a sua cadeira côr de rosa.

     Immediatamente ella perguntou pelo Ega.

     - Coitado, lá está para Celorico.

     Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tão feia «lá está para Celorico» Não, não queria... Coitado do Ega! Merecia uma melhor oração funebre. Celorico era horrivel para um fim de romance...

     - De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: lá está para Jerusalem!

     N'esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da Instrucção, levou as mãos á cabeça como lamentando um tão feio desperdício de tempo, e não se quiz demorar. Não, nem mesmo o excellente chá da sr.ª condessa o tentava. A verdade era que estava tão abandonado da graça de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara, não para vêr a sr.ª condessa – mas simplesmente fallar ao conde. Então ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma tão rude sinceridade de montanhez não fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia, quis saber quando o principe de Sta. Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.ª condessa indignou-se. Não, era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante d'ella, - um homem que fallava tanto da sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera jámais um prato de chou-crôute!

     Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua sala de jantar para dar á sr.ª condessa uma festa, que havia de ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.

     - Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse a condessa.

     - Muito alegre, disse Carlos.

     Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, áquella hora ella já não recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por

Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella. Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha n'essa tarde uma toilette exaggerada, d'um tom de folha de outono amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.

     - Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.

     - Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e não imagina... Era d'uma belleza de idyllio.

     E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra, n'aquella sala.

     Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido, fallando de algumas canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novidades frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia - The pale star. Não, Carlos não conhecia. Mas todas essas canções inglezas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito miss. E trata-se sempre d'um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros...

   Então a condessa leu alto a letra da Pale star. E era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo sob as arvores...

     - É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre delicioso.

     Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.

     - Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.

     Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente...

     A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...

     - Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!

     Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; - e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o sr. Conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.

     D'ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella, diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no sophá - e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenço de seda da India.

     Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhã, na camara, se lembrara d'elle...

     - Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.

     - O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.

     - Fallaste? exclamou ella, voltando-se com um interesse encantador.

     É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres Valente (homem de litteratuta, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira defender a gymnastica obrigatoria nos collegios - erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.

     - Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba!

     O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!...

     - Ah, esta piada, sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que v. ex.ª ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um chic!

     O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo impregnado de cathecismo», elle lançara-lhe uma palavra cruel.

     - Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando o lenço para se assoar outra vez.

     - Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este paiz retomará o seu logar á testa da civilisação, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de instrucção, nós outros os legisladores formos, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio...

     - Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço.

     Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia adoravel.

     E o conde, quando elle se despediu, não se contentou com um simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez, movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do sophá - debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.

 

     Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada, e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva, - Carlos apeava-se d'um coupé de praça, que viera parar, de vagar, á esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos. Dous sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente d'uma portinha suspeita. E com effeito a velha traquitana de rodas amarellas acabava de ser uma alcova d'amor, perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro d'ella, pela estrada de Queluz, com a sr.ª condessa de Gouvarinho.

     A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidão da Patriarchal para se desembaraçar do calhambeque d'assento duro, onde durante a ultima hora suffocára, sem ousar descer as vidraças, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis que ella lhe dava na barba...

     Até ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n'uma casa da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fôra para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem de cathechisação á provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas á treva catholica, purificando (como ella dizia) o tremedal papista... Já na escada havia um cheirinho adocicado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar pendia um largo cartão, com um distico em letras de ouro entrelaçadas de lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeçando logo n'um montão de Biblias. O quarto todo era um ninho de Biblias; havia-as ás pilhas por cima dos moveis, transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a pares de galochas, cahidas para o fundo da bacia d'assento, todas do mesmo formato, entaladas n'uma encadernação negra como n'uma armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em lettras de côr, irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaças insolentes do inferno... E no meio d'esta religiosidade anglicana, á cabeceira d'um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas quasi vasias de cognac e de gin. Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.

     Depois a condessa começou a ter medo d'uma visinha, uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma occasião em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas á porta atroaram a casa. A pobre condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo á janella, viu um homem que se affastava, com uma estatueta de gesso na mão, outras dentro d'um cesto. Mas a condessa jurava que fôra a Borges quem mandára o italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres avisos, tres rebates da Moral... Não quizera voltar mais ao beatifico cuté da titi. E n'essa tarde, como não havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro d'aquella tipoia de praça.

     Mas Carlos vinha de lá enervado, amollecido, sentindo já na alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles braços perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoço, - e agora, pelo passeio de S. Pedro d'Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que       batia as folhagens da alameda, elle ía pensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa ía-se tornando absurda com aquella determinação anciosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar n'ella o logar mais largo e mais profundo - como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os labios de ambos um momento, mas os seus destinos tambem e para sempre. N'essa tarde lá tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu peito, com os olhos affogados n'uma ternura supplicante: Se tu quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sós!... E isto era claro – a condessa concebera a idéa extravagante de fugir com elle, ir viver n'um sonho eterno de amor lyrico, n'algum canto do mundo, o mais longe possivel da rua de S. Marçal! Se tu quizesses! Não, com mil demonios, não queria fugir com a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

     E não era só isto - mas ainda exigencias, egoismos, explosões tumultuosas d'um temperamento cioso: já mais de uma vez, n'essas duas curtas semanas, por pieguices, ella despropositára, fallara de morrer, debulhada em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda uma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o inquietava eram certos clarões que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso dos olhos seccos, revelando a paixão que se accendera n'aquelles nervos de mulher de trinta e tres annos, e a queimava até ás profundidades do seu ser... Certamente este amor punha na sua vida um luxo mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha os olhos turvos d'agua, e fallava em morrer, e torcia os braços, e queria fugir com elle - então adeus! Tudo estava estragado; e a sr.ª condessa com a sua verbena, os seus cabellos côr de braza, e o seu pranto, era apenas um trambolho!

     O chuveiro parara, um bocado d'azul lavado appareceu entre nuvens. E Carlos descia a rua de S. Roque - quando encontrou o marquez, sahindo d'uma confeitaria, tristonho, com um embrulho na mão, e o pescoço abafado n'um enorme cache-nez de seda branca.

     - Que é isso? Constipação? perguntou Carlos.

     - Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d'elle com uma lentidão de moribundo. Deitei-me tarde. Cançasso.

Oppressão no peito. Pigarreira. Dôres no lado. Um horror... Levo já aqui rebuçados.

     - Não seja piegas, homem! Você o que precisa é roast-beef e uma garrafa de Borgonha... Não é hoje que você janta lá no Ramalhete?... É, até tem lá o Craft e o Damaso... Então descemos por essa rua do Alecrim, que já não chove, depois pelo Aterro fóra, a passo gymnastico, e em chegando lá você está curado.

     O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo, uma dôr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, liquidado. O mundo começava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos, uma preoccupação angustiosa da Eternidade.

N'esses dias fechava-se no quarto com o padre capellão - com quem ás vezes, todavia, terminava por jogar as damas.

     - Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar pela porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me você ir primeiro ao Gremio... Quero escrever á Manoeleta que não conte comigo esta noite...

     Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d'esse devasso do Ega. Esse devasso do Ega lá estava em Celorico, na quinta materna, ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na grande arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia chamar o Lodaçal - escripta para se vingar de Lisboa.

     - O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais no cache-nez, é se eu estou assim no domingo para as corridas!

     - O quê! exclamou Carlos, então as corridas são já no domingo?

     O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande sportman de Cordova, que devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford

era um gentleman e com os seus cavallos de raça, os seus jockeys inglezes, constituia a unica feição séria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era uma brincadeira de pilecas e d'abas...

     - Você não conhece o Clifford?... Bello rapaz! Um pouco poseur, mas oiro de lei.

     Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braço a Carlos.

     - Veja esse pulso!

     - O pulso está excellente... Vá você dar lá esse golpe á Manoela, que eu fico aqui á espera.

     No domingo pois, d'ahi a cinco dias, eram as corridas... E ella estaria lá, elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas semanas vira-a duas vezes: uma occasião, estando a conversar com o Taveira á porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de chapeu, calçando uma grande luva preta; d'outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella viera parar á porta do Mourão, ao Chiado, n'um coupé da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava dentro á loja um embrulho que tinha a fórma d'um cofre, apertado com uma fita vermelha.

     D'ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n'elle um momento: e parecera a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se, n'uma leve doçura, ao pousar no seu... Era talvez uma illusão; mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a realisar a antiga idéa (ainda que desagradavel) de ser apresentado pelo Damaso ao Castro Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d'esta exigencia, ficou perturbado; e com um ar de cão que defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel comportamento do Castro Gomes, que não viera como lh'o annunciara, havia tres semanas, deixar o seu cartão ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de sport; nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse dar com correcção o nó da gravata; e seria agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos de vez em quando, com o Craft, com o marquez, a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso, que terminou por propôr a Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porém não queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu na mão, atraz do Damaso. Resolveram então esperar pelas corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. «Ahi, no recinto da pesagem, disse o Damaso, a apresentação é mais chic... É mesmo pôdre de chic.»

     - Deus queira com effeito que não chova no domingo, murmurou Carlos quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.

     Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao Ferregial. Adiante do Gremio, encostado ao passeio, estava um coupé da Companhia, com um trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado á portinhola, um rosto de creança, d'uma brancura adoravel, sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella não se contentou em sorrír, com o seu doce olhar azul fugindo todo para elle, - deitou a mãosinha de fóra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro d'estatua, um tom ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, tão perturbado, que os seu passos hesitaram. Ella abaixou a cabeça, de leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d'emoção, espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, da mãe e da filha, ao mesmo tempo, viesse para elle uma suave e quente emanação de sympathia.

     - Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a impressão de Madame Gomes.

     Carlos córou.

     - Não, é uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha...

     - Irra! que gratidão! rosnou o outro de dentro das dobras do seu cachenez.

     Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idéa que lhe viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que é que Damaso não levaria uma manhã o Castro Gomes aos Olivaes, a vêr as collecções do Craft?... Elle estaria lá, abria-se uma garrafa de Champagne, discutiam bric-à-brac. Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro Gomes a almoçar no Ramalhete, para lhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E assim, já antes das corridas existiria entre elles uma camaradagem, talvez um tratamento de você.

     No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, até ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella lenta inclinação de cabeça, o olhar d'ella, o vivo rubor fugitivo... Ella até ahi não o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande adeus, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mãe, a dizer-lhe decerto que aquelle era o medico que a curara, a ella e á boneca... E então a linda côr que lhe enternecera o rosto tomava uma significação mais profunda - era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o homem que ella notára já de algum modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado á beira do seu leito...

     Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora, mais brilhante. Porque não iria ella tambem vêr as curiosidades do Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava um lunch delicado no seu velho serviço de Wedgewood. Elle ficava á meza junto d'ella. Depois iam vêr o jardim já em flôr; ou tomavam chá no pavilhão japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando ambos diante d'uma bella faiença ou d'um movel raro, e sentindo, atravez da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos seus corações... Nunca a vira tão formosa como n'essa tarde, dentro do coupé forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura do seu perfil. Sobre o regaço do vestido negro pousava o tom claro das suas luvas; e no chapéo frisava-se a ponta de uma penna cor de neve.

     A tipoia parara ao portão do Ramalhete, estavam agora entre as silenciosas tapessarias da ante-camara.

     - Como é que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez, com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache-nez.

     Carlos olhou para elle, como mal acordado.

     - Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem você razão!... Aquella era a casa do Cruges! A carruagem estava parada á porta do Cruges!... Talvez alguem que móre n'outro andar.

     - Não móra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor. Em todo o caso, é um mulherão.

     Carlos achou a palavra odiosa.

     Do corredor ouvia-se já no escriptorio de Affonso, atravez da porta aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d'handicap e de dead-beat... E foram-n'o encontrar discursando sobre as corridas, com convicção, com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto do sophá, Craft folheava um livro.

     E o Damaso appellou logo para o marquez. Não era verdade, como elle estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores corridas que se tinham feito em Lisboa? Só para o grande premio nacional de seiscentos mil réis havia oito cavallos inscriptos!

E, além d'isso, o Clifford trazia a Mist.

     - Ah, é verdade, oh marquez, é necessario que você appareça sexta-feira á noite no Jockey-Club, para acabarmos o handicap!

     O marquez arrastara uma cadeira para o pé de Affonso, para lhe fazer a confidencia dos seus achaques; mas como Damazo se mettia entre elles, fallando ainda da Mist, decidindo que a Mist era chic, querendo apostar cinco libras pela Mist contra o campo – o marquez terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos... Apostar pela Mist! Todo o patriota devia apostar pelos cavallos do visconde de Darque, que era o unico criador portuguez!...

     - Pois não é verdade, sr. Affonso da Maia?

     O velho sorrio, amaciando o seu gato.

     - O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de corridas, fazer uma boa tourada.

     Damazo levou as mãos á cabeça. Uma tourada! Então o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um inglez!...

     - Um simples beirão, sr. Salcede, um simples beirão, e que faz gosto n'isso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então, me pôz fóra do meu paiz... Pois é verdade, tenho esse fraco portuguez, prefiro touros. Cada raça possue o seu sport proprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca, e foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual é a vantagem da toirada? É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza... Em Portugal não ha instituição que tenha uma importancia egual á tourada de curiosos. E acredite uma cousa: é que se n'esta triste geração moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco, deve-se isso ao touro e á tourada de curiosos...

     O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo é que era fallar! Aquillo é que era dar a philosophia do toiro! Está claro que a tourada era uma grande educação phisica! E havia imbecis que fallavam em acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes então com a coragem portuguesa!...

     - Nós não temos os jogos de destresa das outras nações, exclamava elle, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. Não temos o cricket, nem o football, nem o running, como os inglezes; não temos a gymnastica como ella se faz em França; não temos o serviço militar obrigatorio que é o que torna o allemão solido... Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos só a tourada... Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha, a mellarem-se pelo Chiado! Pois você não acha, Craft?

     Craft, do canto do sophá, onde Carlos se fôra sentar e lhe fallava baixo, respondeu, convencido:

     - O que, o touro? Está claro! o touro devia ser n'este paiz como o ensino é lá fóra: gratuito e obrigatorio.

     Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem muito de touros. Ah, lá n'essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava a palma... Mas as corridas tinham outro chic! Aquelles Bois de Boulogne, n'um dia de Grand-Prix, hein!... Era de embatucar!

     - Sabes o que é pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos. É que tu não tenhas um four-in-hand, um mail coach. Iamos todos d'aqui, cahia tudo de chic!

     Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena não ter um four-in-hand. Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da Conceição irem todos dentro d'um omnibus.

     Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braços, descorçoado:

     - Ahi está, sr. Affonso da Maia! Ahi está por que em Portugal nunca se faz nada em termos! É por que ninguem quer concorrer para que as cousas saiam bem... Assim não é possivel! Eu cá entendo isto: que n'um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto possa,

para a civilisação.

     - Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande palavra!

     - Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo...

     - Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste tu pela civilisação?...

     - Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou de véo azul no chapéo!

     Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n'uma salva. O velho, sorrindo ainda das idéas de Damaso sobre a civilisação, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio.

     - Isto é que é ter gosto, isto é que é comprehender as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços para Carlos, quando o velho desappareceu atravez do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino, é podre de chic!...

     - Deixa lá o chic do avô... Anda cá, que te quero dizer uma cousa.

     Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá o Damaso, e disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle já fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de flores. E agora só restava que Damaso amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro Gomes...

     - Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás com furor de a conhecer!

     Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasião para elle!... Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as curiosidades ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, zás, ia para a quinta passear com ella... A calhar!

     - Pois vou ámanhã já fallar-lhes... Estou convencido que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac!

     - E vens dizer-me se acceitaram ou não...

     - Venho dizer-te... Tu vaes gostar d'ella; tem lido muito, entende tambem de litteratura; e olha que ás vezes a conversar atrapalha...

     O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a porta envidraçada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal...

     - E é isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente do braço.

     - Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se d'elle e olhando-o com ferocidade. E você é-o no sentimento. E o Craft é-o na respeitabilidade. E o Damasosinho é-o na tolice. Em Portugal é tudo Pieguice e Companhia!

     Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na ante-camara, deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto, que lhe beijava a mão, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos d'agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquez instinctivamente levou a mão á algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: ellas desciam, encolhidas, abençoando-o, n'um murmurio de soluços; e elle voltando-se para Carlos, quasi se desculpou n'uma voz que ainda tremia:

     - Sempre estes peditorios... Caso bem triste todavia... E o que é peior é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquez.

     - Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez commovido.

     No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito molas, levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se installara no Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em que para o lado do Hyppodromo estavam já estalando foguetes. Um dos criados desceu a comprar o bilhete de pesagem para o Craft, n'uma tosca guarita de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia um homemsinho de grandes barbas grisalhas. Era um dia já quente, azul ferrete, com um d'esses rutilantes soes de festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baça do ar, poem fulgores d'espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, d'um vivo monotono e implacavel, que na lentidão das horas de verão cança a alma, e vagamente entristece. No largo dos Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus esperava, desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho ao collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das corridas que ninguem comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se com a sua bilha á sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam a passo aquella solidão. E a distancia, sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente.

     No entanto o trintanario continuava debruçado na guarita, sem poder arranjar lá dentro o troco d'uma libra. Foi necessario Craft saltar da almofada, ir lá parlamentar - emquanto Carlos, impaciente, raspando com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava no largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os labios. É que toda aquella semana, desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos Olivaes, fôra desconsoladora. O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, não procurara o Damaso. Os dias tinham passado, vazios; não se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a esperava nas corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n'o de melancolia e de malestar.

     Uma caleche de praça passou, com dous sujeitos de flores ao peito, acabando de calçar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas propheticas.

     Para além do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras debruçadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a cavallo, atravancavam a rua.

     Á entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n'um muro de quintarola, o phaeton teve de parar atráz do dog-cart do homem gordo - que não podia tambem avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um policia. Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra, que era do Jockey Club, tinha-lhe dito que elle podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho disséra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O policia bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem - quando, trotando na grande horsa, um municipal de punho alçado correu, gritou, injuriou o cavalleiro gordo, fez rodar para óra a caleche. Outro municipal entrometteu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E atravez do reboliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a Traviata.

     O phaeton entrou - atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de furia, voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal.

     - Tudo isto está arranjado com decencia, murmurou Craft.

     Diante d'elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações da cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.

     No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, no brilho do sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, d'onde sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d'um vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro. Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição, erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques d'arraial. A da esquerda vasia, por pintar, mostrava á luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fóra d'azul claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas permanecia deserto e desconsolado, d'um tom alvadio de madeira, que abafava as côres alegres dos raros vestidos de verão. Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio caía do ceu faiscante.

     Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia mais soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem triste que estava á entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro d'um enorme collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava até aos joelhos - Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio.

     Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira á porta do buffete onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos amarellos ao peito, polainas brancas, - e queria animar as corridas. Já vira a Mist, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela Mist. Que cabeça d'animal, meninos, que finura de pernas!...

     - Palavra que me enthusiasmou! E está decidido, um dia não são dias, é necessario animar isto! Aposto trez mil réis. Quer você Craft?

     - Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vêr o aspecto geral.

     No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia só homens, a gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte á vontade, com jaquetões claros, e de chapéo côco; outros mais em estilo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraçados e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela relva, entre leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um cavalheiro, parado, de mãos atraz das costas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preço dos bilhetes, achando aquillo «uma semsaboria de rachar.»

     Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por soldados: e junto á corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente, com as carruagens pelo meio, sem um rumor, n'uma pasmaceira tristonha, sob o peso do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava agua fresca. Lá ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tão azul como o ceu, n'uma pulverisação fina de luz.

     O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que começa a engordar, veio apertar a mão a Carlos e a Craft. E mal elles lhe fallaram dos seus cavallos (Rabbino, o favorito, e o outro potro) encolheu os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica. Então, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas elle, realmente, não podia apresentar um cavallo decente, com as suas côres, senão d'ahi a quatro annos. De resto não apurava cavallos para aquella melancolia de Belem, não imaginassem os amigos que elle era tão patriota: o seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo...

     - Emfim, vamos a vêr... Dê você cá lume. Isto está um horror. E depois, que diabo, para corridas é necessario cocottes e Champagne. Com esta gente seria, e agua fresca, não vae!

     N'esse momento um dos commissarios das corridas, um rapagão sem barba, vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapéo branco deitado para a nuca, veio arrebatar o Darque, «que era muito preciso, lá na pesagem, para uma duvidasinha.»

     - Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros resignadamente. De vez em quando vem um d'estes senhores do Jockey-Club, e folheia-me... Veja você, Maia, em que estado eu fico depois das corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me de novo...

     E lá foi, rindo da sua pilheria - empurrado para diante pelo commissario, que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava catita.

     - Vamos nós vêr as mulheres, disse Carlos.

     Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no rebordo, n'uma fila muda, olhando vagamente, como d'uma janella em dia de procissão, estavam ali todas as senhoras que vêem no high-life dos jornaes, as dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e além um d'esses grandes chapéos emplumados á Gainsborough, que então se começavam a usar, carregava d'uma sombra maior o tom trigueiro d'uma carinha miuda. E na luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta, as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com um baço de pó de arroz.

     Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d'Alvim, nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras, de côres claras, interessando-se pelas corridas, uma de programma na mão, a outra de pé e de binoculo estudando a pista. Ao lado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. N'uma bancada isolada, em silencio, Villaça com duas damas de preto.

     A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava tambem aquella que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.

     - É um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo um dito do Ega.

     Carlos, no entanto, fôra fallar á sua velha amiga D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso de bôa mamã. Era a unica senhora que ousara descer do retiro ajanellado da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ella disse, não aturara a séca de estar lá em cima perfilada, á espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus cabellos já grisalhos, só ella parecia divertir-se alli, muito á vontade, com os pés pousados na travessa d'uma cadeira, o binoculo no regaço, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes por meninos... Tinha comsigo uma parenta que apresentou a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria bonita se não fossem as olheiras negras, cavadas até ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé d'ella, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...

     - Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.

     - Entramos todos, sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...

     N'esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan mollengão de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapéo branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora hespanhola, essa, tomou o oculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descançadamente, poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a musica, dando ás corridas um ar de arraial... Além d'isso, que tolice, o hymno, como n'um dia de parada!

     - E este hymno, então, que é medonho, dizia Carlos. A sr.ª D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua theoria dos hymnos?

Maravilhosa!

     - Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, já encantada.

     - O Ega diz que o hymno é a definição pela musica do caracter d'um povo. Tal é o compasso do hymno nacional, diz elle, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a sr.ª D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A Marselheza avança com uma espada núa. O God save the queen adianta-se, arrastando um manto real...

     - E o hymno da Carta?

     - O hymno da Carta ginga, de rabona.

     E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente o binoculo no regaço, murmurou:

     - Tiene cara de buena persona.

     - Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!

     No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos Productos. Eram o n.º1 e o n.º 4. D. Maria Telles quiz-lhe saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programma:

     - Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braço. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia...

     Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma, e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado n'esse dia, com um lustre d'oleo na grenha, levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente

  1. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham dançado muita ardente mazurka nos salões de Arroios. Ella tratava-o por tu. Elle dizia sempre boa amiga, e querida Maria.

     - Deixa vêr os nomes d'esses cavallos, Alencar... Senta-t'ahi, anda, faze companhia.

     Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes dos cavallos eram Jupiter e Escossez...

     - Nenhum d'esses nomes me agrada, não aposto. E então que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha...

     Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e passando a mão pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de elegancia, um perfume de côrte... Depois, lá em baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia

do apuramento das raças cavallares...

     - Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d'isso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que o apuramento...

     - Sim, com effeito, o apuramento, muito importante... - disse Carlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.

     Eram quasi tres horas, e agora, de certo, ella já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não apparecia tambem... Começava a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tédio.

     No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos d'ourello, passou pelo braço do irmão, abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas côr de tomate, a estalar dentro d'um vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atraz o barão, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande chapéo de palha.

  1. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de perú, a voz da baroneza achando que c'était charmant, c'était très beau. O barão, aos pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante

d'aquelles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte núa.

     Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica, deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!

  1. Maria sorria, olhando com sympatia o poeta. E voltando-se de repente para a senhora hespanhola:

     - Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico...

     N'esse momento, alguns dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escossez. Outros affirmavam que fôra Jupiter. E no silencio que se fez, de lassidão e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins da banda, a valsa de madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna - onde as senhoras continuavam debruçadas no parapeito, á espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressões, dizendo que tudo aquillo era uma intrujice.

     E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueñas e do coração d'Espronceda.

     O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos Olivaes - e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do Rei d'Hespanha, homem de todos os chics. Elle, muito á vontade, um pouco poseur, com um simples veston de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Não se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n'um jantar, em casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais intimo - e Craft quiz que fossem regar aquella flor d'amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.

     O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nú, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam á pressa as fatias de sandwiches com as mãos humidas da espuma da cerveja.

     Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d'um dos barrotes que especavam os degraus da tribuna, n'um grupo animado, com copos de champagne na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo do braço enrolada a bandeira vermelha de Starter, e o commissario imberbe, com o chapéo branco cada vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho já molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford, rompeu para elle, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu vozeirão:

     - Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da península, e rapaz cá dos nossos!... Hip hip, hurrah!

     Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do starter. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas - em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas.

     - Muito gosto em conhecer...

     - Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou o commissario. Cá a rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto cá é a confraria, e todo o resto é chinfrinada!

     E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia mais sangue á face:

     - Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da patria! a melhor mão de redea... Hip, hip, hurrah...

     - Hip, hip, hip... Hurrah!

     E foi ainda a voz do starter que deu o hurrah mais vibrante e mais enthusiasta.

     Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gritando já de fóra, com o olho acceso:

     - Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar no liquido! E você, oh lá de baixo, o patrão, sô Manuel, mande vir esse gelo... Está a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, vá você, rebente! Irra!

     No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradição de jantarem juntos, sempre que se encontravam.

     - Olá! o general por aqui! exclamou Craft.

     Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentão, entalado n'uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braço.

     Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford...

     - E que me diz você a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se para Carlos.

     Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o Jockey-Club rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d'um divertimento que não estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não, então historias!... Em Inglaterra e em França, sim! Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... Então já viam!

     E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do apuramento das raças, e da remonta, - o outro ergueu os hombros, com indignação:

     - Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura a raça para a remonta da cavallaria?... Ora vá lá montar o exercito com cavallos de corridas!... Em serviço o que se quer não é o cavallo que corra mais, é o cavallo que aguente mais... O resto é uma historia... Cavallos de corridas são phenomenos! São como o boi com duas cabeças... Então historias!... Em França até lhe dão Champagne, homem!... Então veja lá!...

     E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d'um trago, esvasiou o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em conhecer o sr. Clifford, rodou sobre os tacões, sahiu, bufando, entalando mais debaixo do braço o chicote - que tremia na ponta como avido de vergastar alguem.

     Craft sorria, batia no hombro de Clifford.

     - Veja você! cá nós, velhos portuguezes, não gostamos de novidades, e de sports... Somos pelo toiro...

     - Com razão, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho. Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha...

     De repente, fóra, houve um reboliço, e vozes sobresaltadas gritando ordem! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para dentro do buffete, enfiada. Um policia passou, correndo.

     Era uma desordem!

     Carlos e os outros, sahindo á pressa, viram ao pé da tribuna real um magote de homens - onde bracejava o Vargas. Do largo da pesagem, os rapazes corriam com curiosidade, já excitados, apinhando-se, alçando-se em bicos de pés; do recinto das carruagens acudiam outros, saltando as cordas da pista, apesar dos repellões dos policias: - e agora era uma massa tumultuosa de chapéos altos, de fatos claros, empurrando-se contra as escadas da tribuna real, onde um ajudante d'el-rei, reluzente de agulhetas e em cabello, olhava tranquillamente.

     E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio do montão um dos sujeitos que correra no premio dos Productos, o que montava Jupiter, ainda de botas, com um paletot alvadio por cima da jaqueta de jockey, furioso, perdido, injuriando o juiz das corridas, o Mendonça, que arregalava os olhos, aturdido e sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n'o, queriam que elle fizesse um protesto. Mas elle batia o pé, tremulo, livido, gritando que não se importava nada com protestos! Perdera a corrida por uma pouca vergonha! O protesto alli era um arrocho! Porque o que havia n'aquelle hyppodromo era compadrice e ladroeira!

     Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade.

     - Fóra! Fóra!

     Alguns tomavam o partido do jockey; já aos lados outras questões surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berrava que o Mendonça decidira pelo Pinheiro, que montava Escossez, por ser intimo d'elle; outro cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava

aquella insinuação infame; e os dois, frente a frente, com os punhos fechados, tratavam-se furiosamente de pulhas.

     E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes collarinhos de pintinhas, procurava romper, erguia os braços, exclamava, n'uma voz supplicante e rouca:

     - Por quem são, meus senhores... Um momento... Eu tenho experiencia... Eu tenho experiencia!

     De repente o vozeirão do Vargas dominou tudo, como um urro de toiro. Diante do jockey, sem chapéo, com a face a estoirar de sangue, gritava-lhe que era indigno de estar alli, entre gente decente! Quando um gentleman duvida do juiz da corrida, faz um protesto!

Mas vir dizer que ha ladrões, era só d'um canalha e d'um fadista, como elle, que nunca devia ter pertencido ao Jockey-Club! - O outro, agarrado pelos amigos, esticando o pescoço magro como para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo. Então o Vargas, com um encontrão para os lados, abriu espaço, repuxou as mangas, berrou:

     - Repita lá isso! repita lá isso!

     E immediatamente aquella massa de gente oscillou, embateu contra o taboado da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes de ordem e morra, chapéos pelo ar, baques surdos de murros.

     Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da policia; senhoras, com as saias apanhadas, fugiam atravez da pista, procurando espavoridamente as carruagens; - e um sopro grosseiro de desordem relles passava sobre o hyppodromo, desmanchando a linha postiça de civilisação e a attitude forçada de decoro...

     Carlos achou-se ao pé do marquez, que exclamava, pallido:

     - Isto é incrivel, isto é incrivel!...

     Carlos, pelo contrario, achava pittoresco.

     - Qual pittoresco, homem! É uma vergonha, com todos esses estrangeiros!

     No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao official de guarda, um moço pequenino mas decidido, que, em bicos de pés, aconselhava para os lados, n'uma voz de orador, «cavalheirismo» e «prudencia...» O jockey de paletot alvadio affastou-se, apoiado ao braço d'um amigo, cocheando, com o nariz a pingar sangue: e o commissario desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante, sem collarinho, arranjando o chapéo achatado n'uma pasta. A musica tocava a marcha do Propheta; em quanto o desgraçado juiz das corridas, o Mendonça, encostado á tribuna real, com os braços cahidos, aparvalhado, balbuciava n'um resto d'assombro:

     - Isto só a mim! Isto só a mim!

     O marquez, n'um grupo a que se juntára o Clifford, Craft, e Taveira, continuava a vociferar:

     - Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto é um paiz que só supporta hortas e arraiaes... Corridas, como muitas outras coisas civilisadas lá de fóra, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Ahi está o que é!

     Ao lado d'elle Clifford, que no meio d'aquelle desmancho todo esticava mais correctamente a sua linha de gentleman, mordia um sorriso, assegurando, com um ar de consolação, que conflictos eguaes succedem em toda a parte... Mas no fundo parecia achar tudo aquillo ignobil. Dizia-se mesmo que elle ia retirar a Mist. E alguns davam-lhe razão. Que diabo! Era aviltante para um bello animal de raça correr n'um hyppodromo sem ordem e sem decencia, onde a todo o momento podiam reluzir navalhas.

     - Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Damaso? perguntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o...

     - Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a Josephina do Salazar... Anda extraordinario, de sobrecasaca branca, e de véo no chapéo!

     Mas, quando d'ahi a pouco, Carlos quiz atravessar, a pista estava fechada. Ia-se correr o Grande premio nacional. Os numeros já tinham subido ao indicador, um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do Darque, o Rabbino, com o seu jockey de encarnado e branco, descia, trazido á redea por um groom e acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos paravam a examinar-lhe as pernas, com o olho serio, affectando entender. Carlos demorou-se um momento tambem, admirando-o: era d'um bonito castanho escuro, nervoso e ligeiro, mas com o peito estreito.

     Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabava de certo de chegar, e conversava de pé com D. Maria da Cunha. Estava com uma toilette ingleza, justa e simples, toda de cazimira branca, d'um branco de creme, onde as grandes luvas negras á mosqueteira punham um contraste audaz: e o chapéo preto tambem desapparecia sob as pregas finas d'um véo branco, enrolado em volta da cabeça, cobrindo-lhe metade do rosto, com um ar oriental que não ía bem ao seu narizinho curto, ao seu cabello côr de braza. Mas em redor os homens olhavam para ella como para um quadro.

     Ao avistar Carlos, a condessa não conteve um sorriso, um brilho de olhos que a illuminou. Instinctivamente deu um passo para elle: e ficaram um instante isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os observava, sorrindo, cheia já de benevolencia, prompta já a abençoal-os maternalmente.

     - Estive para não vir, dizia a condessa, que parecia nervosa. O Gastão fez-se tão desagradavel hoje! E naturalmente tenho d'ir ámanhã para o Porto.

     - Para o Porto?...

     - O papá quer que eu lá vá, são os annos d'elle...

     Coitado, vae-se fazendo velho, escreveu-me uma carta tão triste... Ha dois annos que me não vê...

     - O conde vae?

     - Não.

     E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera, que a cumprimentava de passagem, aos pulinhos, acrescentou, mergulhando o olhar nos olhos de Carlos:

     - E quero uma coisa.

     - O que?

     - Que venhas tambem.

     Justamente n'esse instante, Telles da Gama, de programma e lapis na mão, parou junto d'elles:

     - Você quer entrar n'uma poule monstro, Maia? Quinze bilhetes, dez tostões cada um... Lá em cima ao canto da tribuna está-se apostando ferozmente... A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo acordou... Quer v. ex.ª tambem, sr.ª condessa?

     Sim, a condessa tambem entrava na poule. Telles da Gama inscreveu-a, e abalou atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo florído, de chapéo branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado, mais loiro, mais inglez, n'este dia solemne de sport official.

     - Ah, comme vous êtes belle, comtesse!... Voilá une toilette merveilleuse, n'est ce pas, Maia?... Est ce que nous n'allons pas parier quelque chose?

     A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos, risonha todavia, lamentou-se de ter já uma fortuna compromettida... Emfim sempre apostava cinco tostões com a Filandia. Que cavallo tomava elle?

     - Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux... D'abord, quand on parie...

     Ella, impaciente, offereceu-lhe Vladimiro. E teve de estender a mão a outro filandez, o secretario de Steinbroken, um moço loiro, lento, languido, que se curvara em silencio diante d'ella, deixando escorregar do olho claro e vago o seu monoculo d'ouro. Quasi immediatamente Taveira excitado veiu dizer que Clifford retirara a Mist.

     Vendo-a assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente o olhar de D. Maria, que o não deixara, chamava-o agora, mais carinhoso e vivo. Quando elle se chegou, ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruçar, para lhe murmurar ao ouvido, deliciada:

     - Está hoje tão galante!

     - Quem?

  1. Maria encolheu os hombros, impaciente.

     - Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe.

     - Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente.

     De pé, junto de D. Maria, tirando de vagar uma cigarrette, elle ruminava, quasi com indignação, as palavras da condessa. Ir com ella para o Porto!... E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia impertinente a dispôr do seu tempo, dos seus passos, da sua vida! Tinha um desejo de voltar junto d'ella, dizer-lhe que não, seccamente, desabridamente, sem motivos, sem explicações, como um brutal.

     Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de Steinbroken, ella vinha agora caminhando lentamente para elle: e o olhar alegre com que o envolvia irritou-o mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir calmo, quanto ella estava certa da sua submissão.

     E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente - ella, muito tranquilla, alli mesmo junto de D. Maria, fallando em inglez, e apontando para a pista como se commentasse os cavallos do Darque, explicou-lhe um plano que imaginara, encantador. Em logar de partir na terça feira para o Porto - ia na segunda á noite, só com a criada escocessa, sua confidente, n'um compartimento reservado. Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarem, desciam ambos, muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinte ella seguia para o Porto, elle recolhia a Lisboa...

     Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido. Não esperava aquella extravagancia. Suppozera que ella o queria no Porto, escondido no Francfort, para passeios romanticos á Foz, ou visita furtivas a algum casebre da Aguardente... Mas a idéa d'uma noite, n'um hotel, em Santarem!

     Terminou por encolher os hombros, indignado. Como queria ella, n'uma linha de caminho de ferro em que se encontra constantemente gente conhecida, apear-se com elle na estação de Santarem, dar-lhe o braço, maritalmente, e enfiarem para uma estalagem? Ella, porém, pensára em todos os detalhes. Ninguem a conheceria, disfarçada n'um grande water-proof, e com uma cabelleira postiça.

     - Com uma cabelleira!?

     - O Gastão! murmurou ella de repente.

     Era o conde, por traz d'elle, abraçando-o ternamente pela cintura. E quiz logo saber a opinião do amigo Maia sobre as corridas.

Bastante animação, não é verdade? E bonitas toilettes, certo ar de luxo... Emfim, não envergonhavam. E ahi estava provado o que elle sempre dissera, que todos os requintes da civilisação se aclimatavam bem em Portugal...

     - O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico, é um solo abençoado!

     A condessa voltara para o pé de D. Maria. E Telles da Gama, passando de novo, n'aquella faina ruidosa em que o trazia a formação da sua poule, chamou Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete, e apostar com as senhoras...

     - Oh Gouvarinho! venha tambem d'ahi, homem! exclamou elle. Que diabo! É necessario animar isto, é até patriotico.

     E o conde condescendeu, por patriotismo.

     - É bom, dizia elle, travando do braço de Carlos, fomentar os divertimentos elegantes. Já uma vez o disse na camara: o luxo é conservador.

     Em cima, a um canto, n'um grupo de senhoras, foram com effeito encontrar uma animação - que quasi fazia escandalo n'aquella tribuna silenciosa e á espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim dobrava atarefadamente os bilhetes da poule: uma secretariasinha da Russia, de bonitos olhos garços, apostava desesperadamente placas de cinco tostões, estonteada, já embrulhada, rabiscando com phrenesi o seu programma. A Pinheiro, a mais magra, com um vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia covas

nas claviculas, dava opiniões pretenciosas sobre os cavallos, em inglez: emquanto o Taveira, de olhos humidos no meio de todas aquellas saias, fallava de arruinar as senhoras, de viver á custa das senhoras... E todos os homens, acotovelando-se, queriam fazer uma aposta com a Joanninha Villar, que, de costas contra o rebordo da tribuna, gordinha e languida, sorrindo, com a cabeça deitada para traz, as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas mãos, que se estendiam gulosamente para ella, o seu appetitoso peito de rola.

     Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confusão alegre. Os bilhetes estavam dobrados, era necessario um chapéo... Então os cavalheiros affectaram um amor desordenado pelos seus chapéos, não os querendo confiar ás mãos nervosas das senhoras; um rapaz, todo de luto, excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu, com ambas as mãos, aos gritos.

     A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou por offerecer o barrete de marujo do seu pequeno - uma creança obesa, pousada alli para um lado como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou em roda os bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiçosamente;

emquanto o secretario de Steinbroken, grave, como exercendo uma funcção, recolhia no seu grande chapéo as placas cahindo uma a uma com um som argentino. E a tiragem foi o lindo divertimento da poule. Como estavam só quatro cavallos inscriptos, e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes brancos que aterravam. Todos ambicionavam tirar o numero tres, o de Rabbino, o cavallo de Darque, favorito do Premio Nacional. Assim cada mãosinha soffrega que se demorava no fundo do barrete, remexendo, tenteando os papeis, causava uma indignação folgasã, n'um exagero de risos.

     - A sr.ª viscondessa procura de mais!... E dobrou os numeros, conhece-os... É necessario probidade, sr.ª viscondessa!

     - Oh, mon Dieu, j'ai Minhoto, cette rosse!

     - Je vous l'achette, madame!

     - Ó sr.ª D. Maria Pinheiro, v. ex.ª leva dous numeros!...

     - Ah! je suis perdue... Blanc!

     - E eu! É necessario fazer outra poule! Vamos fazer outra poule!

     - Isso! Outra poule, outra poule!

     No entanto a enorme baroneza de Craben, n'um degrau mais elevado, que ella occupava só, como um throno, erguera-se, com o seu bilhete na mão. Tinha tirado Rabbino: e affectava superiormente não comprehender esta fortuna, perguntava o que era Rabbino.

Quando o conde de Gouvarinho lhe explicou muito serio a importancia de Rabbino, e que Rabbino era quasi uma gloria publica, ella mostrou a dentuça, condescendeu em rosnar do fundo do papo que c'etait charmant. Todo o mundo a invejava; e a vasta baleia alastrou-se de novo sobre o seu throno, abanando-se, com magestade.

     E subitamente houve uma surpreza: em quanto elles tiravam os bilhetes, os cavallos tinham partido, passavam juntos diante da tribuna. Todos se ergueram, de binoculos na mão. O starter ainda estava na pista, com a bandeira vermelha inclinada ao chão: e as ancas de cavallos fugiam       na curva, lustrosos á luz, sob as jaquetas enfunadas dos jockeys.

     Então todo o rumor de vozes caíu; e no silencio a bella tarde pareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira, sem a vibração dos raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada: defronte da tribuna, na collina, a relva era d'um louro quente: no grupo de carruagens scintillava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de um arreio, ou de pé, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma figura de chapeo alto; e pela pista verde, os cavallos corriam, mais pequenos, finamente recortados na luz.

Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve agoada côr de rosa: e o distante horizonte resplandecia, com dourados de sol, brilhos de po vidrado, fundindo-se n'uma nevoa luminosa, onde as collinas, nos seus tons azulados, tinham quasi transparencia, como feitas d'uma substancia preciosa...

     - É Rabbino! exclamou por traz de Carlos, um sugeito, de pé n'um degrau.

     As côres encarnadas e brancas do Darque corriam com effeito na frente. Os dous outros cavallos iam juntos; e, o ultimo, n'um galope que adormecia, era Vladimiro, outro potro do Darque, baio-claro, quasi louro á luz.

     Então, a secretaria da Russia bateu as palmas, interpellou Carlos, que justamente tirara na poule o numero de Vladimiro. A ella coubera Minhoto, uma pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito sobre os dous cavallos uma aposta complicada de uvas e de amendoas. Já umas poucas de vezes os seus lindos olhos garços tinham procurado os de Carlos; e agora tocava-lhe no braço com o leque, gracejava, triumphava...

     - Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c'est un vieux cheval de fiacre, vôtre Vladimir.

     Como um cavallo de fiacre? Vladimiro era o melhor potro do Darque! Talvez ainda viesse a ser a unica gloria de Portugal, como outr'ora o Gladiador era a unica gloria da França! Talvez ainda substituisse Camões...

     - Ah, vous plaisantez...

     Não, Carlos não gracejava. Estava até prompto a apostar tudo por Vladimiro.

     - Você aposta por Vladimiro? gritou Telles da Gama, voltando-se vivamente.

     Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quê, declarou que tomava Vladimiro. Então, em roda, foi uma surpreza; e todo o mundo quiz apostar, aproveitar-se d'aquella phantasia de homem rico, que sustentava um potro verde, de tres quartos de sangue, a que o proprio Darque chamava pileca. Elle sorria, aceitava; terminou ate por erguer a voz, proclamar Vladimiro contra o campo. E de todos os lados o chamavam, n'uma sofreguidão de saque.

     - Mr. de Maia, dix tostons.

     - Parfaitement, madame.

     - Oh Maia, você quer meia libra?

     - Ás ordens.

     - Maia, tambem eu! Ouça lá... Tambem eu!... Dous mil réis.

     - Ó sr. Maia, eu vou dez tostões...

     - Com o maior prazer, minha senhora...

     Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do terreno. Rabbino já desapparecera, - e Vladimiro n'um galope a que se sentia o cançasso, corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava. Então Carlos, que continuava a tomar Vladimiro contra o campo, sentiu que lhe puxavam de vagar pela manga; voltou-se; era o secretario de Steinbroken, chegando subtilmente a tomar tambem parte no saque á bolsa do Maia, propondo dous soberanos, em seu nome e em nome do seu chefe, como uma aposta collectiva da legação, a aposta do reino da Filandia.

     - C'est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo.

     Agora começava a divertir-se. Apenas vira de relance Vladimiro, e gostara da cabeça ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; mas apostava sobre tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres. Telles da Gama ao lado approvava-o, achava aquillo patriotico e chic.

     - É Minhoto! gritou de repente Taveira.

     Na volta, com effeito, fizera-se uma mudança. Subitamente Rabbino perdera terreno, resistindo á subida, com o folego curto. E agora era Minhoto, o cavallicoque obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava para a frente, vinha devorando a pista, n'um esforço continuo, admiravelmente montado por um jockey hespanhol. E logo atraz vinham as côres escarlates e brancas de Darque: ao principio ainda pareceu que era Rabbino: mas, apanhado de repente n'um raio obliquo de sol, o cavallo cobriu-se de tons lustrosos de baio claro, e foi uma surpreza ao reconhecer-se que era Vladimiro! A corrida travava-se entre elle e Minhoto.

     Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam, de chapéos no ar:

     - Minhoto, Minhoto!

     E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo contra Vladimiro faziam tambem votos por Minhoto, em bicos de pés, junto do parapeito da tribuna, estendendo o braço para elle, enimando-o:

     - Anda Minhoto!... Isso, assim!.... Aguenta, rapaz!... Bravo!... Minhoto! Minhoto!

     A russa, toda nervosa, na esperança de ganhar a poule, batia as palmas. Até a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna, enchendo-a com os seus gorgorões azues e brancos:- em quanto que, ao lado d'ella, o conde de Gouvarinho, tambem de pé, sorria, contente no seu peito de patriota, vendo n'aquelles jockeys à desfilada, nos chapéos que se agitavam, brilhar civilisação...

     De repente, de baixo, d'ao pè da tribuna, d'entre os rapazes que cercavam o Darque, uma exclamação partiu.

     -Vladimiro ! Vladimiro!

     Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a Minhoto: e agora chegavam furiosamente, com brilhos vivos de côres claras, os focinhos juntos, os olhos esbugalhados, sob uma chuva de vergastas.

     Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seu intimo, berrava por Vladimiro. A russa, de pé n'um degrau, apoiada sobre o hombro de Carlos, pallida, excitada, animava Minhoto com gritinhos, com pancadas de leque. A agitação d'aquelle

canto da tribuna estendera-se em baixo ao recinto - onde se via uma linha de homens, contra a corda da pista, bracejando. Do outro lado, era uma fila de rostos pallidos, fixos n'uma curta anciedade. Algumas senhoras tinham-se posto de pé nas carruagens. E atravez da collina, para ver a chegada, dous cavalleiros, segurando com as mãos os chapéos baixos, corriam á desfilada.

     - Vladimiro! Vladimiro! foram de novo os gritos isolados, aqui, além.

     Os dous cavallos approximavam-se, com um som surdo das patas, trazendo um ar de rajada.

     - Minhoto! Minhoto!

     - Vladimiro! Vladimiro!

     Chegavam... De repente o jockey inglez de Vladimiro, todo em fogo, levantando o potro que lhe parecia fugir d'entre as pernas, esticado e lustroso, fez silvar triumphantemente o chicote, e d'um arremesso directo lançou-o além da meta, duas cabeças adiante de Minhoto, todo coberto d'espuma.

     Então em volta de Carlos foi uma desconsolação, um longo murmurio de lassidão. Todos perdiam; elle apanhava a poule, ganhava as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro da poule, empallideceu ao separar-se do lenço cheio de prata: e de todos os lados mãosinhas calçadas de gris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que elle recolhia, rindo, no chapéo.

     - Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa, mefiez-vous... Vous connaissez le proverbe: heureux au jeu...

     - Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe o chapéo.

     E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braço. Era o secretario de Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e o dinheiro do seu chefe, a aposta do reino da Filandia.

     - Quanto ganha você? exclamou Telles da Gama, assombrado.

     Carlos não sabia. No fundo do chapéo já reluzia ouro. Telles contou, com o olho brilhante.

     - Você ganha doze libras! disse elle maravilhado, e olhando Carlos com respeito.

     Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor, n'um rumor de espanto. Doze libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando os chapéos, davam ainda hurrahs. Mas uma indifferença, um tedio lento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente. Os rapazes vinham-se deixar cahir nas cadeiras, bocejando, com um ar exhausto. A musica, desanimada tambem, tocava cousas plangentes da Norma.

     Carlos, no entanto, n'um degrau da tribuna, com a idéa de descobrir o Damaso, sondava de binoculo o recinto das carruagens. A gente, agora, ia dispersando pela collina. As senhoras tinham retomado a immobilidade melancolica, no fundo das caleches, de mãos no regaço. Aqui e além um dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. N'uma vittoria estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho, a Concha e a Carmen, de sombrinhas escarlates. E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam para um char-à-bancs a quatro attrelado á Daumont onde, entre uma familia triste, uma ama de lenço de lavradeira dava de mamar a uma creança cheia de rendas. Dous garotos esganiçados passeavam bilhas d'agua fresca.

     Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Damaso - quando deu justamente de frente com elle, dirigindo-se para a escada, affogueado, flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.

     - Onde diabo tens tu estado, creatura?

     O Damaso agarrou-o pelo braço, alçou-se em bicos de pés, para lhe contar ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gaja divina, a Josephina do Salazar... Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe que tinha mulher!

     - Ah, Sardanapalo!...

     - Faz-se pela vida... Volta cá acima á tribuna, anda. Eu ainda hoje não pude cavaquear com o high-life!... Mas estou furioso, sabes? Implicaram com o meu veo azul. Isto é um paiz de bestas! Logo troça, e olhe não creste a pelle, e onde mora, ó catitinha? e chalaça...

Uma canalha! Tive de tirar o veo... Mas já resolvi. Para as outras corridas venho nú. Palavra, venho nú! Isto é a vergonha da civilisação, esta terra! Não vens d'ahi? Então até já.

     Carlos deteve-o.

     - Escuta lá homem, tenho que te dizer... Então, essa visita aos Olivaes?... Nunca mais appareceste... tinhamos combinado que fosses convidar o Castro Gomes, que viesses dar a resposta... Não vens, não mandas... O Craft á espera... Emfim um procedimento de selvagem.

     Damaso atirou os braços ao ar. Então Carlos não sabia? Havia grandes novidades! Elle não voltara ao Ramalhete, como estava combinado, porque o Carlos Gomes não podia ir aos Olivaes. Ia partir para o Brazil. Já partira mesmo, na quarta feira. A coisa mais extraordinaria... Elle chega lá, para fazer o convite, e s. ex.ª declara-lhe que sente muito, mas que parte no dia seguinte para o Rio... E já de mala feita, já alugada uma casa para a mulher ficar aqui á espera tres mezes, já a passagem no bolso. Tudo de repente, feito de sabbado para segunda feira... Telhudo, aquelle Castro Gomes.

     - E lá partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar a viscondessa d'Alvim e Joanninha Villar que desciam das tribunas. Lá partiu, e ella já está installada. Até já antes de hontem a fui visitar, mas não estava em casa... Sabes do que tenho medo? É que ella, n'estes primeiros tempos, por causa da visinhança, como está só, não queira que eu lá vá muito... Que te parece?

     - Talvez... E onde mora ella?

     Em quatro palavras, Damaso explicou a installação de madame. Era muito engraçado, morava no predio do Cruges! A mamã Cruges, havia já annos, alugava aquelle primeiro andar mobilado: o inverno passado estivera lá o Bertonni, o tenor, com a familia. Casa

bem arranjada, o Castro Gomes tinha tido dedo...

     - E para mim, muito commodo, alli ao pé do Gremio... Então não voltas cá acima, a cavaquear com o femeaço? Até logo... Está hoje chic a valer a Gouvarinho! E está a pedir homem! Good-bye.

     Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo de D. Maria a que se viera juntar a Alvim e Joanninha Villar, não cessava de o chamar com o olhar inquieto, turturando o seu grande leque negro. Mas elle não obedeceu logo, parado ao pé dos degraus datribuna, accendendo vagamente uma cigarrette, perturbado por todas aquellas palavras do Damaso que lhe deixavam n'alma um sulco luminoso. Agora que a sabia só em Lisboa, vivendo na mesma casa do Cruges, parecia-lhe que já a conhecia, sentia-se muito perto d'ella - podendo assim a todo o momento entrar os hombraes da sua porta, pisar os degraus que ella pisava. Na sua imaginação transluziam já possibilidades d'um encontro, alguma palavra trocada, cousas pequeninas, subtis como fios, mas por onde os seus destinos se começariam a prender... E immediatamente veio-lhe a tentação pueril de ir lá, logo n'essa mesma tarde, n'esse instante, gosar como amigo do Cruges o direito de subir a escada d'ella, parar diante da porta d'ella - e surprehender uma voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua vida.

     O olhar da condessa não o deixava. Elle approximou-se, emfim, contrariado: ella ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando alguns passos com elle pela relva, recomeçou a fallar na ida a Santarem. Carlos, então, muito seccamente, declarou toda essa invenção insensata.

     - Porque?...

     Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridiculo... Emfim, a ella como mulher ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de romance; mas a elle competia-lhe ter bom senso.

     Ella mordia o beiço, com todo o sangue na face.E não via alli bom senso. Via só frieza. Quando ella arriscava tanto, elle podia bem, por uma noite, affrontar os desconfortos da estalagem...

     - Mas não é isso!...

     Então que era? Tinha medo? Não havia mais perigo do que nas idas a casa da titi. Ninguem a podia conhecer, com outra côr de cabello, toda a sorte de véos, disfarçada n'um grande water-proof. Chegavam de noite, entravam para o quarto, d'onde não sahiam mais, servidos apenas pela escosseza. No dia seguinte, no comboio da noite, ella seguia para o Porto, tudo acabava... E n'aquella insistencia ella era o homem, o seductor, com a sua vehemencia de paixão activa, tentando-o, soprando-lhe o desejo; emquanto elle parecia a mulher, hesitante e assustada. E Carlos sentia isto. A sua resistencia a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaçava ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade que emanava d'aquelle seio, arfando junto d'elle e por elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou por a olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe accendesse emfim de repente á curta chamma que faiscava nas pupillas d'ella, negras, humidas, avidas, promettendo mil cousas, disse, um pouco pallido:

     - Pois bem, perfeitamente... Ámanhã á noite, na estação.

     N'esse momento, em redor, romperam exclamações de troça: era um cavallo solitario que chegava, n'um galope pacato, passava a meta sem se apressar, como se descesse uma avenida do Campo Grande n'uma tarde de domingo. E em redor perguntava-se que corrida era aquella d'um cavallo só - quando ao longe, como sahindo da claridade loura do sol que descia sobre o rio, appareceu uma pobre pileca branca, empurrando-se, arquejando, n'um esforço doloroso, sob as chicotadas atarantadas d'um jockey de roxo e preto. Quando ella chegou, emfim, já o outro gentleman-rider voltara da meta, a passo, pachorrentamente, - e estava conversando com os amigos, encostado á corda da pista.

     Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d'El-rei terminou assim, grotescamente.

     Ainda havia o Premio de Consolação - mas agora desapparecera todo o interesse ficticio pelos cavallos. Perante a calma e radiante belleza da tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a pesagem, cançadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se mais cadeiras: aqui e além, sobre a relva pisada, formavam-se grupos alegrados por algum vestido claro ou por uma pluma viva de chapéo: e palrava-se, como n'uma sala de inverno, fumando-se familiarmente. Em redor de D. Maria e da Alvim projectava-se um grande pic-nic a Queluz. Alencar e o Gouvarinho discutiam a reforma de instrucção. A horrivel Craben, entre outros diplomatas e moços de binoculo a tiracolo, dava do fundo grosso do papo, opiniões sobre Daudet, que elle achava très agreable. E, quando Carlos emfim abalou, o recinto, esquecidas as corridas, tomava um tom de soirée, no ar claro e fresco da collina, com o murmurio de vozes, um mover de leques, e ao fundo a musica tocando uma valsa de Strauss.

     Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no buffete com o Darque, com outros, bebendo mais champagne.

     - Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e vou no phaeton. Abandono torpemente. Você vá para o Ramalhete como poder...

     - Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha já a gravata toda desmanchada. Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego d'elle... O Craft fica por minha conta... É necessario recibo? Á saude do Craft, inglez cá dos meus... Hurrah!

     - Hurrah! Hip, hip, hurrah!

     D'ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos descia o Chiado, dava a volta para a rua de S. Francisco. Ia n'uma perturbação deliciosa e singular, com aquella certeza de que ella estava só na casa do Cruges: o ultimo olhar que ella lhe déra parecia ir adiante d'elle, chamando-o: e um despertar tumultuoso de esperanças sem nome atirava-lhe a alma para o azul.

     Quando parou diante do portão - alguem, por dentro das janellas d'ella, ía correndo lentamente os stores. Na rua silenciosa cahia já uma sombra de crepusculo. Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o pateo. Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira esta escada; e pareceu-lhe horrorosa, com os seus frios degrau de pedra, sem tapete, as paredes nuas e enxovalhadas alvejando tristemente no começo de escuridão. No patamar do primeiro andar parou. Era alli que ella vivia. E ficou olhando, com uma devoção ingenua, para as tres portas pintadas d'azul: a do centro estava inutilisada por um banco comprido de palhinha, e na do lado direito pendia, com uma enorme bola, o cordão da campainha. De dentro não vinha um rumor: - e este pesado silencio, juntando-se ao movimento de stores que elle vira fechar-se, parecia cercar as pessoas que alli viviam de solidão e de impenetrabilidade. Uma desconsolação passou-lhe na alma. Se ella agora, só, sem o marido, começasse uma vida reclusa e solitaria? Se elle não tornasse mais a encontrar os seus olhos?

     Foi subindo de vagar até ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia de dizer ao maestro para explicar aquella visita extranha, deslocada... Foi um allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino Victorino tinha sahido.

     Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando lentamente o phaeton até ao largo da Bibliotheca. Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do store branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a como se olha uma estrella.

     Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pó, estava-se justamente apeando de uma calecha de praça. Um momento ficaram alli á porta, em quanto Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas. No Premio de Consolação, um dos cavalleiros tinha cahido, quasi ao pé da meta, sem se magoar: e, por ultimo, já á partida, o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um criado do buffete, com ferocidade.

     - Assim, disse Craft completando o seu troco, estas corridas foram boas pelo velho principe Shakespereano de que tudo é bom quanto acaba bem.

     - Um murro, disse Carlos rindo, é com effeito um bello ponto final.

     No peristillo, o velho guarda-portão esperava, descoberto, com uma carta na mão para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instantes antes de s. ex.ª chegar.

     Era uma letra ingleza de mulher, n'um enveloppe largo, lacrado com um sinete d'armas. Carlos alli mesmo abriu-a: e, logo á primeira linha, teve um movimento tão vivo, de tão bella surpreza, illuminando-se-lhe tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo:

     - Aventura? Herança?...

     Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou:

     - Um bilhete apenas, um doente...

     Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas começava assim: - «Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o obsequio...» - depois, em duas breves palavras, pedia-lhe para ir ver na manhã seguinte, o mais cedo possivel, uma pessoa de familia, que se achava incommodada.

     - Bem, eu vou-me vestir, disse Craft... Jantar ás sete e meia, hein?

     - Sim, o jantar... - respondeu Carlos, sem saber o quê, banhado todo n'um sorriso, como em extase.

     Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar o chapéo, leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda, contemplando enlevadamente a forma da letra, procurando voluptuosamente o perfume do papel.

     Era datada d'esse mesmo dia á tarde. Assim, quando elle passara defronte da sua porta, já ella a escrevera, já o seu pensamento se demorara n'elle - quando mais não fosse senão ao traçar as lettras simples do seu nome. Não era ella que estava doente. Se fosse Rosa, ella não diria tão friamente «uma pessoa de familia.» Era talvez o esplendido preto de carapinha grisalha. Talvez miss Sarah, abençoada fosse ela para sempre, que queria um medico que entendesse inglez... Emfim havia lá uma pessoa n'uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria, atravez dos corredores interiores d'aquella casa - que havia apenas instantes sentira tão fechada, e como impenetravel para sempre!... E depois este adorado bilhete, este delicioso pedido para ir a sua casa, agora que ella o conhecia, que vira Rosa atirar-lhe um grande adeus - tomava uma significação profunda, perturbadora...

     Se ella não quizesse comprehender, nem acceitar o distante amor que os seus olhos lhe tinham offerecido claramente, o mais luminosamente que tinham podido, n'esses fugitivos instantes que se tinham cruzado com os d'ella - então poderia ter mandado chamar outro medico, um clinico qualquer, um estranho. Mas não: o seu olhar respondera ao d'elle, e ella abria-lhe a sua porta... - E o que sentia a esta idéa era uma gratidão ineffavel, um impulso tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pés, ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente, eternamente, sem querer mais nada, sem pedir mais nada...

     Quando Craft d'alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado, correcto - achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de chapéo na cabeça, passeando o quarto, n'esta agitação radiante.

     - Você está a faiscar, homem! disse Craft, parando deante d'elle, com as mãos nos bolsos, e contemplando-o um instante do alto do seu resplandecente collarinho. Você flameja!... Você parece que tem uma auréola na nuca!... Você succedeu-lhe o quer que seja de muito bom!

     Carlos espreguiçou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um momento, em silencio, encolheu os hombros, e murmurou:

     - A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe succede é, em definitivo, bom ou mau.

     - Ordinariamente é mau, disse o outro friamente, aproximando-se do espelho a retocar com mais correcção o nó da gravata branca.

 

       Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do Ramalhete até á rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da claraboia, uma velha de lenço na cabeça, encolhida n'um chalesinho preto, esperava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um relogio ronceiro estava batendo dez horas.

       - A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapéo.

       A velha murmurou, d'entre a sombra do lenço que lhe cahia para os olhos, n'um tom cançado e doente:

       - Já, sim, meu senhor. Já fizeram o favor de me fallar. O criado, o snr. Domingos, não tarda...

       Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um barulho alegre de crianças brincando; por cima, o moço do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro, infindavel. A velha, d'entre a negrura do lenço, deu um suspirosinho abatido. Lá ao fundo um canario rompera a cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha.

       Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n'um jaquetão de flanella, appareceu correndo, com uma travessa na mão, abafada n'um guardanapo; e ao vêr Carlos ficou tão atarantado, bambaleando á porta, que um pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o soalho.

       - Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d'entrar!... Ora esta! Tem a bondade d'esperar um instantinho, que eu abro já a sala... Tome lá, snr.ª Augusta, tome lá, olhe não entorne mais! A senhora diz que lá manda logo o vinho do Porto... Desculpe v. exc.ª, snr. D. Carlos... Por aqui, meu senhor...

      Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n'uma sala alta, espaçosa, com um papel de ramagens azues, e duas varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo á pressa os dois transparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se s. exc.ª não se lembrava já do Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os canhões das mangas, Carlos reconbeceu-o pelas suissas ruivas. Era com effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no começo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrioticas, birras ciumentas, com o cozinheiro francez.

       - Não o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar é um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E então vossê agora aqui, hein? E está contente?

       - Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O snr. Cruges tambem mora cá por cima...

       - Bem sei, bem sei...

       - Tenha v. exc.ª a paciencia de esperar um instantinho que eu vou dar parte á snr.ª D. Maria Eduarda...

       Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d'ella; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se não presagiava a concordancia dos seus destinos!

       Domingos, no entanto, já á porta da sala, com a mão no reposteiro, parou ainda, para dizer n'um tom de confidencia e sorrindo:

       - É a governante ingleza que está doente...

       - Ah! é a governante?

       - Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito...

       - Ah!...

       O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contempiando Carlos com admiração:

       - E o avôsinho de v. exc.ª passa bem?

       - Obrigado, Domingos, passa bem.

       - Aquillo é que é um grande senhor!... Não ha, não ha outro assim em Lisboa!

       - Obrigado, Domingos, obrigado...

       Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fôra esteirado de novo. Ao pé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de musicas, de jornaes illustrados, pousava um vaso do Japão onde murchavam tres bellos lirios brancos; todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pés do sofá estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta inlallação summaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituido as classicas bambinellas de cassa: um pequeno contador arabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio Abrahão, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: o tapete de pellucia d'uma mesa oval, collocada ao centro, desapparecia sob lindas encadernações de livros, albuns, duas taças japonezas de bronze, um cesto para flôres de porcelana de Dresde, objectos delicados d'arte que não pertenciam decerto á mãi Cruges. E parecia errar alli, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquelle indefinido perfume que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim.

       Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho crú, com ramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janella, fazendo um recanto mais resguardado e mais intimo. Havia lá uma cadeirinha baixa de setim escarlate, uma grande almofada para os pés, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher interrompido, numeros de jornaes de modas, um bordado enrolado, mólhos de lã de côres transbordando de um açafate. E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ahi, n'esse momento, a famosa cadellinha escosseza, que tantas vezes passára nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atraz de uma radiante figura pelo Aterro fóra, ou aninhada e adormecida n'um doce regaço...

       - Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe as sympathias.

       A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d'orelhas fitas, dardejando para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois bellos olhos de azeviche, desconfiados, d'uma penetração quasi humana. Um instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas a cadellinha de repente namorára-se d'elle, deitada já na cadeira. de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventresinho ás suas caricias. Carlos ia coçal-a e amimal-a, quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.

       Foi como uma inesperada apparição - e vergou profundamente os hombros, menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido simples e justo de sarja preta, um collarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente á borda do sofá de reps. E depois d'um instante de silencio, que lhe pareceu profundo, quasi solemne, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, d'um tom d'ouro que acariciava.

       Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella lhe agradecia os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava n'ella um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra fórma da sua perfeição. Os cabellos não eram louros, como julgára de longe á claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muilo dôce. Por um geito familiar cruzava ás vezes, ao fallar, as mãos sobre os joelhos. E através da manga justa de sarja, terminando n'um punho branco, elle sentia a belleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus braços.

       Ella calára-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo Domingos que a doente era a governante, só achou, na sua perturbação, esta pergunta timida:

     - Não é sua filha que está doente, minha senhora?

       - Oh não! graças a Deus!

       E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante ingleza havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...

       - Imaginámos ao principio que era uma constipação passageira; mas hontem á tarde esteva peor, e estou agora impaciente que a veja...

       Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pendia ao lado do piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeça, deixava uma pennugem d'ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do pescoço. Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d'estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d'uma belleza mais nobre, e quasi inaccesivel; e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tão francamente, com uma tão clara adoração, como quando a encontrava na rua.

       - Que linda cadellinha v. exc.ª tem, minha senhora disse elle, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já n'estas palavras simples, ditas a sorrir, um accento de ternura.

       Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava uma doçura mais mimosa ás suas feições sérias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:

       - Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!

       Niniche appareceu a hocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava Niniche...

       N'esse instante a criada entrou - a rapariga magra e sardenta, d'olhar petulante, que Carlos vira já no Hotel Central.

       - Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu não o acompanho, porque ella é tão timida, tem tanto escrupulo em incommodar, que diante de mim é capaz de negar tudo, dizer que não tem nada...

       - Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n'um encanto de tudo.

       E pareceu-lhe então que no olhar d'ella alguma coisa brilhára, fugira para elle, de mais vivo, de mais dôce.

       Com o seu chapéo na mão, pisando familiarmente aquelle corredor intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria d'uma posse. Por uma porta meio aberta pôde entrevêr uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas d'aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d'estas coisas tão simples, tão banaes, evidencias de vida delicada.

       Melanie correu um reposteiro de linho crú, fêl-o entrar n'um quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n'um leitosinho de ferro, sentada, com um laço de sêda azul ao pescoço, e os bandós tão lisos, tão acamados pela escova, como se fosse sahir n'um domingo para a capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes estavam escrupulosamente dobrados, junto d'um copo com duas bellas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da familia real d'Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria a commoda, até ás suas botinas bem ngraxadas, classificadas, perfiladas n'uma prateleira de pinho.

       Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinha nada. Era a senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forcára a metter-se na cama... E para ella era um desgosto vêr-se alli ociosa, inutil, agora que Madame estava tão só, n'uma casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma prisão para Madame!...

       Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda n'um rubor afficto, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era absolutamente necessario... Sim, decerto, era neccssario... Achou-lhe o pulmão direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhva, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua familia. Ella contou que era de York, filha de um clergyman, e tinha quatorze irmãos: os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram d'uma robustez de athletas. Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.

       Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenças de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. O papá, já muito velho, morrera do couce de uma egua.

       Carlos, no entanto, pó de pé, com o chapéo na mão, continuava a observal-a, reflectindo. Então, de repente, sem motivo, ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas tímidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mão.

       - Oh! Thank you sir! murmurou ella, commovida de todo.

       Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flôres pousada ao lado n'uma cadeira, e o regáço cheio de cravos. Uma bella restea de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche, deitada alli, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhã de sol, a walsa da Madame Angot. Pelo andar de cima tinham recomeçado as correrias de crianças brincando.

       - Então? exclamou ella, voltando-se logo, com um mólho de cravos na mão.

       Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira, com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela...

       - Certamente! E ha de tomar algum remedio, não é verdade?

       Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir uma secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E estes cuidados perturbavam Carlos como caricias.

       - Oh minha senhora!... murmurava elle, um lapis basta...

       Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida n'esses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos d'ella - um sinete d'agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monogramma de prata ao lado

d'uma taçasinha de Saxe cheia d'estaropilhas; e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo calára-se, por cima do tecto já não cavallavam as crianças. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.

       - Que bonitas flôres v. exc.ª tem, minha senhora! disse elle, voltando a cabeça, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita.

       De pé, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India, ella arranjava folhas em volta de duas rosas.

       - Dão frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas flôres. Não ha nada que se compare ás flôres de França... Pois não é verdade?

       Elle não respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doçura de ficar alli eternamente n'aquella sala de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silencio, a vêl-a pôr folhas verdes em torno de pés de rosa!

       - Em Cintra ha lindas flôres, murmurou por fim.

       - Oh, Cintra é um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal só por causa de Cintra.

       N'esse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sêda preta, uma onda negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande boneca. Ao vêr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para elle, toda encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha em camisa.

       - Não conheces? perguntou-lhe a mãi, indo sentar-se outra vez diante do seu cesto de flôres.

       Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d'uma linda côr. E assim, toda d'alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu dôce mimo de fórma, a sua graça ligeira, os seus grandes olhos cheios d'azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendida para renovar o antigo conhecimento - ella ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.

       Depois quiz apertar a mão á sua velha amiga Cri-cri. E então, de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr.

       - É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde é que está o robe-de-chambre?

       - Vejam esta desarranjada murmurava a mãi olhando-a com um sorriso lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas... pois não é verdade, snr. Carlos da Maia?

       Elle, ainda com a sua receita na mão, sorria tambem, sem dizer nada, todo no enternecimento d'aquella intimidade em que se seutia penetrar dôcemente.

       A pequena então veio encostar-se à mãi, roçando-se pelo seu braço, com uma vozinha languida, lenta, e de mimo:

       - Anda, dize... Não sejas má... Anda... Onde está o robe-de-chambre? Dize...

     Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço de seda branca que lhe pendia no alto cabello. Depois ficou mais séria:

       - Está bem, está quieta... Tu sabes que não sou eu que trata dos arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie.

       E Rosa obedeceu logo, séria também, comprimentando agora Carlos ao passar, com um arzinho senhoril:

       - Bonjour, Monsieur...

       - É encantadora! murmurou elle.

       A mãi sorriu. Tinha acabado de compôr o seu ramo de cravos; - e immediatamente attendeu a Carlos, que pousára a receita sobre a mesa, e sem se apressar, installando-se n'uma poltrona, lhe foi fallando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeina que se lhe deviam dar de tres em tres horas...

       - Pobre Sarah! dizia ella. E é curioso, não é verdade? Veio com o presentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal...

       - Então vem a detestar Portugal!

      - Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Emfim é infelicissima, está ardendo por se ir embora...

       Carlos ria d'aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a boa miss Sarah tinha talvez razão...

       - E v. exc.ª tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?

       - Ela encolheu os hombros, indecisa.

       - Sim... Devo dar-me bem... É o meu paiz.

       O seu paiz!... E elle que a julgava brazileira!

       - Não, sou portugueza.

       E, durante um momento, houve um silencio. Ella tomára de sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado de flôres vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma doçura nova penetrar-lhe no coração. Depois ella fallou da sua viagem que fôra muito agradavel; adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhã da chegada a Lisboa, com um céo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e já um calorzinho de clima dôce... Mas depois, apenas desembarcados, tudo corrra desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. Niniche, uma noite, assustára-os muito com uma indigestão. Em seguida no Porto viera aquelle desastre...

       - Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.ª, na Praça Nova...

       Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo pelo Damaso...

       - São muito amigos, creio eu.

       Depois d'uma leve hesitação, que ella comprehendeu, Carlos murmurou:

       - Sim... O Damaso vai bastante ao Ramalhete... É de resto um rapaz que eu conheço apenas ha mezes...

       Ella abriu os olhos, pasmada.

       - O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram até parentes...

       Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo.

       - É uma bella illusão... E se isso o faz feliz!...

       Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros.

       - E v. exc.ª, minha senhora, continuou logo Carlos não querendo fallar mais do Damaso, como acha Lisboa?

       Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional... Mas, havia tão poucos confortos!... A vida tinha aqui um ar que ella não pudera perceber ainda - se era de simplicidade ou de pobreza.

       - Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...

       Ella riu.

       - Não direi isso. Mas supponho que são como os gregos: contentam-se em comer uma azeitona, olhando o céo que é bonito...

       Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu coração fugiu para ella.

       Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de commodidade, tão despidas de gosto, tão desleixadas. Aquella em que vivia fazia a sua desgraça. A cozinha era atroz, as portas não fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e collinas que lhe tiravam o appetite...

       - Além d'isso, acrescentou, é um horror não ter um quintal, um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar...

       - Não é facil encontrar assim uma casa nas condições d'esta e com jardim, disse Carlos.

       Deu um olhar ás paredes, ao estuque enxovalhado do tecto - e lembrou-lhe de repente a Quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas ruas de acacias.

       Felizmente, Maria Eduarda tomara a casa apenas ao mez, e estava pensando em ir passar à beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.

       - De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris, o dr. Chaplain.

       O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain. Ouvira-lhe as lições, visitára-o até intimamente na sua propriedade de Maisonnettes, ao pé de Saint-Germain. Era um grande mestre, era um espirito bem superior!

       - E tão bom coração! disse ella com um claro sorriso, um olhar que brilhou.

       E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais dôcemente: cada um n'esse instante adorou o dr. Chaplain: e continuaram ainda fallando d'elle prolongadamente, gozando, através d'essa trivial sympathia por um velho clinico, a nascente concordancia dos seus corações.

       O bom dr. Chaplain! Que physionomia tão amavel, tão fina!... empre com o seu barretinho de sêda... E sempre com a sua grande flôr na casaca... De resto, o pratico maior que sahira da geração de Trousseau.

       - E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, é uma pessoa encantadora... Não é verdade?

       Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.

       Dentro o relogio ronceiro começára a bater onze horas. E Carlos então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel, deliciosa visita...

       Quando ella lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe de novo á face ao tocar aquella palma tão macia e tão fresca. Pediu os seus comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, á porta, já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, n'uma ultima saudação, a receber o olhar suave com que ella o seguia...

       - Até ámanhã, está claro! exclamou ella de repente, com o seu lindo sorriso.

       - Até ámanhã, decerto!

       O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.

       - É coisa de cuidado, meu senhor?

       - Não é nada, Domingos... Estimei vêl-o por aqui.

       - E eu muito a v. exc.ª Até ámanhã, meu senhor.

       - Até ámanhã.

       Niniche appareceu tambem no patamar. Elle abaixou-se ternamente a afagal-a, e disse-lhe tambem, radiante:

       - Até ámanhã, Niniche!

       - Até ámanhã! Voltando para o Ramalhete, era esta a unica idéa que elle sentia distinctamente através da nevoa luminosa que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo: - mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, elle penetraria outra vez n'aquella sala de reps vermelho, onde ella o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas verdes em torno de pés de rosa...

     Pelo Aterro, por entre a poeira de verão e o ruido das carroças, o que elle via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara: por vezes uma phrase que ella dissera cantava-lhe na memoria, com o tom d'ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus anneis entremettidos pelos pêllos de Niniche. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seu sorriso d'uma graça tão delicada; era cheia de intelligencia, era cheia de gosto; e a pobre velha á porta, esse doente a quem ella mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que o encantava é que não tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, á busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se diante d'elle a porta da sua casa: e tudo de repente na vida parecia tornar-se facil, equilibrado, sem duvidas e sem imapciencias.

       No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.

       - Trouxe-a a escosseza, já v. exc.ª tinha sahido.

       Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a lapis - all rigth. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... Não se tornára quasi a lembrar d'ella, desde a vespera, no radiante tumulto em que andára o seu coração. E era no comboio d'essa noite, d'ahi a horas, que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos n'uma estalagem! Elle promettera-lh'o, a sério; já ella se preparára decerto, com a atroz cabelleira postiça, com o water-proof de grande roda; tudo estava all right... Achou-a n'esse instante ridicula, reles, estupida... Oh, era claro como a luz que não ia, que nunca iria, jámais! Mas tinha d'apparecer na estação de Santa Apolonia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir á sua desconsolação, vêr-lhe os olhos marejados de lagrimas. Que massada!... Teve-lhe odio.

       Quando chegou á mesa do almoço Craft e Affonso, já sentados, fallavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que elle continuava gravemente a publicar no Jornal do Commercio.

       - Que besta essa! exclamou Carlos n'uma voz que sibilava, desabafando sobre a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as importunidades amorosas da mulher.

       Affonso e Craft olharam-n'o, pasmados de tanta violencia. E Craft censurou-lhe a ingratidão. Porque, realmente, não havia em toda a terra um enthusiasmo como o que aquelle desventuroso homem d'estado tinha por Carlos...

       - V. exc.ª não faz idéa, snr. Affonso da Maia. É um culto. É uma idolatria!

       Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, já bem disposto para com o homem que assim admirava tão prodigamente o seu neto, murmurou com bondade:

       - Coitado, supponho que é inoffensivo...

       Craft fez uma ovação ao velho:

       - Inoffensivo! Admiravel, snr. Affonso da Maia! Inoffensivo, applicado a um homem d'estado, a um par, a um ministro, a um legislador, é um achado! E é com effeito o que elle é, inoffensivo... E é o que elles são...

       - Chablis? murmurou o escudeiro.

       - Não, tomo chá.

       E acrescentou:

       - Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pôr uma semana a regimen de leite.

       Então fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Clifford, e do véo azul do Damaso.

       - Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinbo, disse Craft remexendo o seu chá. Ficava-lhe admiravelmente aquelle branco creme, tocado de tons negros. Uma verdadeira toilette de corridas... C'était un oeillet blanc panaché de noir... Vossê não achou, Carlos?

       - Sim, rosnou Carlos, estava bem.

       Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na sua vida conversa em que não surgisse a Gouvarinho, e que não haveria caminho na sua vida que o não atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo, á mesa, decidiu comsigo não a tornar a vêr, escrever-lhe um bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarem, sem razões...

       Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrette, sem achar phrase que não fosse pueril ou brutal. Nem tinha a sympathia precisa para lhe dar o banal tratamento de querida: Vinha-lhe até por ella uma indefinida repulsão physica: devia ser intoleravel toda uma noite o seu, cheiro exagerado de verbena; - e lembrava-se que aquella pelle do seu pescoço, que se lhe afigurava outr'ora um setim, tinha um tom pegajoso, um tom amarellado, para além da linha de pós d'arroz. Decidiu não lhe escrever. Iria à noite a

Santa Apolonia, e no momento do comboio partir correria á portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; não lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar; um rapido aperto de mão, e adeus, para nunca mais...

       Á noite, porém, á hora de ir á estação, que sacrificio em se arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que, por causa d'uma rosa e d'um certo vestido côr de folha morta que lhe ficava bem, elle se achára cahido com ella n'um sofá...

       Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, já quasi vazia áquella hora, a comprar uma admissão; e ainda ahi esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mãos lentas e molles arranjar laboriosamente os patacos d'um troco.

       Penetrava emfim na sala d'espera - quando esbarrou com o Damaso, de chapéo desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso agarrou-lhe as mãos, enternecido:

       - Ó menino! pois tiveste o incommodo?... E como soubeste tu que eu partia ?

       Carlos não o desilludiu, balbuciando que lh'o dissera o Taveira, que encontrára o Taveira...

       - Pois eu estava mais longe d'uma d'estas! exclamou o Damaso. Esta manhã, muito regalado na cama, quando me vem o telegramma... fiquei furioso! Isto é, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!...

       Foi então que Carlos reparou que elle estava carregado de luto, com fumo no chapéo, luvas pretas, polainas pretas, barca preta no lenço... Murmurou, embaraçado:

       - O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada... Morreu-te alguem?

       - Meu tio Guimarães.

       - O communista? o de Paris?

       - Não, o irmão d'elle, o mais velho, o de Penafiel... Espera ahi que eu volto já, vou alli ao café encher o frasco de cognac. Com a afflição esquecia-me o cognac...

Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pó, com chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens. D'uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado a retroz, pendia todo um cacho d'amigos politicos, respeitosamente e em silencio. A um canto uma senhora soluçava por baixo do véo.

       Carlos, vendo um wagon com a papeleta de reservado imaginou lá a condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanação d'um santuario. Que queria elle, que queria...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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