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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MELHORES CONTOS / Graham Greene
OS MELHORES CONTOS / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MELHORES CONTOS de Graham Greene

 

Uma antologia de particular significação. O mundo da infância em confronto com o dos adultos, o sobrenatural humanamente integrado nos fenómenos quotidianos, o homem isolado na sua circunstância, a trágica e apologética intensidade da dúvida e, em contrapartida, a devastante ironia à vacuidade das crenças acomodatícias e epidérmicas - eis alguns dos temas exemplarmente tratados nestas páginas. José Palla e Carmo escreveu para este volume um extenso ensaio, no qual destrinça os diferentes escopos de Greene como romancista ou contista; apresenta, a seguir, um conjunto de dados biográficos inéditos em Portugal, da maior importância para a compreensão da personalidade do autor. Finalmente, analisa algumas das razões que tornam Graham Greene um dos mais sintomáticos representantes da literatura moderna. Aí se focam pontos como a responsabilidade e a escolha; o Isolamento e a incomunicabilidade; a solidariedade humana; o caminho neo-pascaliano para a esperança a partir da angústia do absurdo; o herói contemporâneo em contraste com o herói tradicional.

 

 

               ÍNDICE  

 

               O FIM DA FESTA

               EU VI

               O OUTRO LADO DA PONTE

               PROVA CABAL

                 A OPORTUNIDADE DO SR. LEVER

               VISLUMBRE DE EXPLICAÇÃO

               A SEGUNDA MORTE

               UM DIA POUPADO

                 UM CINEMA BARATO POR DETRÁS DA AVENIDA

               POBRE MALING

               FUNÇÕES ESPECIAIS

               OS DESTRUIDORES

               UMA VISITA A MORIN

 

 

                   O FIM DA FESTA

Peter MORTON acordou sobressaltado e encarou a primeira luz. Pela janela, avistou o ramo duma árvore, que gotejava, envolto numa moldura de prata. A chuva batia de encontro aos vidros. Era o dia cinco de Janeiro.

Olhou para a outra cama através duma mesa, onde uma vela se extinguia no meio dum charco. Francis Morton ainda dormia e Peter voltou a deitar-se com os olhos postos no irmão. Divertia-o imaginar que se observava a si próprio, o mesmo cabelo, os mesmos olhos, os mesmos lábios, a mesma linha do rosto. Mas esse pensamento logo esmoreceu e o seu espírito voltou a apossar-se do facto que dava importância ao dia. Estava-se a cinco de Janeiro. Custava-lhe a crer que já tivesse decorrido um ano desde que Mrs. Henne-Falcon dera a última festa de crianças.

Francis voltou-se subitamente de costas e lançou um braço sobre o rosto, comprimindo a boca. O coração de Peter começou a bater apressadamente, não de alegria, mas de inquietação. Sentou-se na cama e gritou ao irmão por sobre a mesa:

- Acorda!

Os ombros de Francis estremeceram, ao mesmo tempo que o seu punho crispado se erguia no ar, mas os olhos continuaram cerrados. Peter teve a impressão de que todo o quarto escurecia de repente e que ouvia o rápido esvoaçar duma ave gigantesca. Gritou de novo:

- Acorda!

E olhou novamente a luz prateada, enquanto a chuva caía sobre os vidros das janelas.

- Chamaste por mim? - perguntou Francis.

- Estavas com um pesadelo - disse Peter em tom convicto.

A experiência ensinara-lhe já até que ponto o espírito de um reflectia o do outro. Porém, como era mais velho por uma questão de minutos, esse breve intervalo de luz, em que o irmão lutava ainda na dor e na escuridão, tinha-o dotado duma autoconfiança e dum instinto de defesa que o outro não possuía, o que o levava a ter medo de muitas coisas.

- Sonhei que tinha morrido - volveu Francis.

- Como era? - indagou Peter, cheio de curiosidade.

- Não me lembro - respondeu Francis. E os seus olhos voltaram-se com uma expressão de alívio para a luz prateada do dia, deixando que os últimos fragmentos do sonho se dissipassem.

- Estavas a sonhar com uma ave muito grande.

- Sim!?

Francis aceitou sem hesitações a certeza do irmão. Por momentos, ambos permaneceram em silêncio na cama, fitando-se mutuamente: os mesmos olhos verdes, o mesmo nariz arrebitado, os mesmos lábios firmemente separados, o mesmo desenho prematuro do queixo. «Cinco de Janeira!» - voltou a pensar Peter, o espírito saltitando indiferentemente da imagem dos bolos para os prémios que se podiam ganhar nas corridas do ovo na colher, no jogo de pescar maçãs duma bacia de água, ou na cabra-cega.

- Não quero ir - disse Francis de repente. - A Joyce também deve lá estar... e a Mabel Warren.

A ideia de compartilhar a festa com as duas era-lhe odiosa. Eram mais velhas do que ele. Joyce tinha onze anos e Mabel Warren treze. Mal viam aproximar-se um rapaz balouçavam as tranças num gesto de arrogância. O sexo delas humilhava-o quando, correndo desajeitadamente com o ovo na colher, o olhavam por entre as pálpebras desdenhosamente baixas. E no ano anterior... Francis desviou o olhar de Peter, a face escarlate.

- Que tens? - perguntou Peter.

- Oh, nada! Parece-me que não estou bem. Constipei-me. Não devo poder ir à festa.

Peter sentiu-se embaraçado.

- Mas, Francis, achas que estás assim tão constipado?

- Se for à festa, constipo-me ainda mais. Talvez morra, até!

- Então não deves ir - disse Peter cheio de convicção e resolvido a solucionar todas as dificuldades com esta frase simples.

Pronto a delegar em Peter todas as decisões, Francis deixou que os seus nervos se distendessem num alívio delicioso.

Porém, embora estivesse grato ao irmão, não voltou o rosto para ele. As faces ainda lhe escaldavam de vergonha só de pensar no jogo das escondidas do ano passado, na casa às escuras e no grito que tinha soltado quando a Mabel Warren lhe pusera de repente a mão sobre o braço. Não a tinha sentido chegar. As raparigas eram assim. Os sapatos delas nunca chiavam e as tábuas do soalho nunca rangiam sob os seus passos. Moviam-se como gatas de garras almofadadas.

Quando a ama trouxe a água quente, Francis estava tranquilamente deitado, confiando no irmão. Peter disse:

- Ama, o Francis está constipado.

A mulher, alta e muito direita, pousou as toalhas sobre as bacias, dizendo, sem se voltar:

- A roupa só volta amanhã da lavandaria. Tem de lhe emprestar alguns dos seus lenços.

- Mas, ama - perguntou Peter -, não seria melhor ele ficar na cama?

- Um bom passeio durante a manhã - respondeu a ama, -, e os micróbios vão-se todos embora. Agora, toca a levantar! Os dois! - e fechou a porta atrás de si.

- Tenho muita pena - disse Peter, e, inquieto com a aflição e a angústia que lia naquele rosto crispado, continuou: - Porque não ficas na cama? Eu digo à mãe que te sentes muito doente para te poderes levantar.

Mas tal revolta contra o destino não estava nas forças de Francis. De resto, se ficasse na cama, haviam logo de vir cá acima, dar-lhe pancadinhas no peito, meter-lhe o termómetro na boca, fazê-lo deitar a língua de fora e descobririam que estava a fingir-se de doente. É certo que se sentia mal, que tinha uma sensação de agonia e de vazio no estômago, mas bem sabia que a causa de tudo isso era apenas o medo, medo da festa, medo de que o obrigassem a esconder-se sozinho no escuro, sem Peter e sem vela nenhuma a romper as trevas.

- Não, vou levantar-me - disse ele. Depois, num súbito desespero: - Mas não vou à festa de Mrs. Henne-Falcon. Juro sobre a Bíblia que não vou.

«Agora é que tudo ia correr bem», pensou. Deus não permitiria que quebrasse um juramento tão solene. Havia de indicar-lhe uma solução. Tinha toda a manhã diante de si e toda a tarde, até às quatro. Escusava de se preocupar, quando a relva estava ainda tão crespa do gelo da madrugada. Alguma coisa havia de acontecer.

Talvez ele se ferisse, ou partisse uma perna, ou apanhasse mesmo uma constipação. Deus lá se havia de arranjar de qualquer maneira.

Confiava, tanto em Deus que, quando ao almoço a mãe disse: «Ouvi dizer que estavas constipado, Francis», ele assegurou-a de que não era nada.

- Aposto que já se tinha falado mais nisso - disse a mãe com ironia - se não tivéssemos uma festa esta tarde. E Francis sorriu pouco à vontade, embaraçado e ao mesmo tempo atemorizado por ela o conhecer tão pouco. A sua felicidade teria durado mais tempo se, durante o passeio da manhã, não tivesse encontrado Joyce. Naquele momento estava sozinho com a ama. Peter tinha-os deixado para se meter no bosque à procura duma toca de coelho.

Se Peter ali estivesse, ter-se-ia importado menos; a ama era sua e de Peter. Mas, assim, parecia que ela estava lá em casa só por sua causa, porque não confiavam suficientemente nele para o deixarem passear sozinho. Joyce era apenas dois anos mais velha, mas encontrava-se só.

Veio a correr em direcção a eles, sacudindo as tranças. Olhou para Francis com insolência e cumprimentou ostensivamente a ama:

- Olá, ama! Leva o Francis à festa, esta tarde? Eu e a Mabel também vamos.

E lá foi rua abaixo, em direcção à casa da Mabel Warren, consciente da sua liberdade e auto-suficiência, pela longa rua deserta.

- Que menina tão simpática! - disse a ama.

Mas Francis não respondeu. O coração parecia querer saltar-lhe do peito, à ideia de que a hora da festa se aproximava rapidamente. Deus não tinha ainda feito nada por ele e os minutos voavam.

Voavam tão depressa que não podia planear qualquer evasão ou mesmo preparar a alma para a dura prova que ia seguir-se. Sentiu-se quase tomado de pânico quando, sem saber como, se encontrou no degrau da porta, a gola do casaco levantada para se defender do vento frio e a lâmpada eléctrica da ama traçando um breve rasto luminoso através da escuridão. Atrás dele ficavam as luzes do vestíbulo e o rumor duma criada pondo a mesa para o jantar, que o pai e a mãe comeriam sozinhos. Sentiu-se quase tentado a voltar a casa e a gritar à mãe que não iria à festa, que não ousava ir. Não podiam forçá-lo. Quase se ouviu a pronunciar as palavras decisivas que quebrariam para sempre, sabia-o por instinto, a barreira de ignorância que subtraía o seu espírito ao conhecimento dos pais: «Tenho medo de ir. Não vou. Não me atrevo. Eles fazem-me esconder no escuro e eu tenho medo do escuro. Eu grito, grito, grito!».

Imaginou a expressão de espanto no rosto da mãe e depois a segurança fria das respostas das pessoas crescidas: «Não sejas pateta. Aceitámos o convite da Sr.a Henne-Falcon. Por isso, tens de ir».

Mas não podiam obrigá-lo a ir. Hesitante no degrau da porta, enquanto os passos da ama cruzavam a relva coberta de neve até ao portão, ele sabia que não podiam obrigá-lo. Responderia: «Digam que estou doente. Não vou. Tenho medo da escuridão!»

E a mãe: «Não sejas tolo! Bem sabes que não há nada que ter medo do escuro!»

Mas ele já conhecia a falsidade de tais argumentos; também lhe tinham ensinado que não havia que ter medo da morte, e, no entanto, como eles evitavam medrosamente pensar sequer nela! Mas não haviam de obrigá-lo a ir à festa! «Eu grito! Eu grito!»

- Francis, vamos embora.

Ouviu a voz da ama que atravessava o relvado, que brilhava no escuro, e viu o pequeno círculo amarelo da lâmpada, dançando das árvores para os arbustos e dos arbustos para as árvores.

- Já vou - respondeu com desespero, afastando-se da porta iluminada.

Não ia assim desnudar os seus segredos mais íntimos, nem pôr termo à reserva que existia entre ele e a mãe. Havia ainda um último recurso, um possível apelo a Mrs. Henne-Falcon. Confortou-se com esta ideia, enquanto, minúsculo, ia avançando firmemente pelo vestíbulo, em direcção à enorme massa do corpo dela. O coração batia-lhe descompassadamente, mas conseguiu dominar a voz e dizer num tom irrepreensível:

Boa tarde, Mrs. Henne-Falcon. Foi muito amável em ter-me convidado para a festa.

Com a face esticada em direcção à curva dos seus seios e o discurso polido e estudado, mais parecia um velho mirrado pelos anos. Porque Francis raramente se juntava às outras crianças. Sendo gémeo, era quase como se fosse filho único. Falar com Peter, era falar com a sua própria imagem reflectida num espelho, uma imagem um pouco alterada por uma falha do vidro, reflectindo menos uma semelhança com o que ele era do que com o que desejaria ser, com o que seria se não fosse o seu disparatado receio da escuridão, dos passos de estranhos, ou do voo dos morcegos ao lusco-fusco, nos jardins.

- Que lindo menino - disse Mrs. Henne-Falcon distraidamente, abrindo na sua frente os braços, como se as crianças fossem um bando de pintainhos, que enxotasse e impelisse para o programa de brincadeiras por ela preparado - corridas do ovo na colher, corridas de três pernas, o jogo de pescar maçãs -, brincadeiras essas que só serviam para humilhar Francis. Nos intervalos frequentes, quando não precisavam dele para brincar e podia afastar-se sozinho para os cantos, o mais longe possível do olhar insolente da Mabel Warren, estabelecia então vários planos para evitar a aproximação do terror do escuro.

O perigo só começava depois do chá. Até lá sabia ele que nada tinha que recear. Só quando se viu sentado dentro do círculo amarelo de luz, irradiado pelas dez velas do bolo de aniversário da Collin Henne-Falcon, é que teve plena consciência da proximidade do que tanto receava. Através da confusão do seu cérebro, agora assaltado ao mesmo tempo por uma dúzia de planos contraditórios, ouviu a voz de Joyce, que gritava para o outro lado da mesa:

- Depois do chá vamos jogar às escondidas no escuro.

- Oh, não! - exclamou Peter, observando compadecido e sem compreender plenamente o rosto perturbado de Francis. - Isso não! Todos os anos brincamos às escondidas.

- Mas está no programa - gritou Mabel Warren. Eu bem vi. Espreitei por cima do ombro de Mrs. Henne-Falcon. Às cinco, chá. Das seis menos um quarto às seis e meia, escondidas. Está tudo no programa.

Peter não argumentou mais. Se o jogo das escondidas tinha sido incluído no programa de Mrs. Henne-Falcon, não podia evitá-lo, dissesse o que dissesse. Pediu outra fatia do bolo de anos e sorveu o chá a goles lentos. Talvez fosse possível retardar o jogo por um quarto de hora, concedendo a Francis alguns minutos mais para poder formar um plano; mas até nisso Peter falhou, porque as crianças já abandonavam a mesa aos pares e a três e três. Era o seu terceiro fracasso naquele dia, e, de novo, como que reflectindo uma imagem do espírito de outrem, viu uma ave enorme toldar a face do irmão. Mas logo se censurou intimamente por tal tolice e acabou a fatia do bolo, encorajado pela lembrança daquele estribilho adulto «não há nada que ter medo do escuro». Os dois irmãos foram os últimos a deixar a mesa e vieram juntos até ao vestíbulo, onde encontraram os olhos inquiridores e impacientes de Mrs. Henne-Falcon.

- E agora - disse ela - vamos apagar as luzes e jogar às escondidas.

Peter observou o irmão, e, como já esperava, viu os seus lábios apertarem-se um contra o outro. Francis receara este momento desde o começo da festa e tinha tentado encará-lo com coragem, mas desistira. Rezara certamente com desespero para arranjar qualquer artimanha que lhe permitisse escapar à brincadeira, a qual neste momento estava sendo acolhida pelos gritos de excitação das outras crianças.

- Vamos lá! Temos que ver quem fica. Podemos esconder-nos por toda a casa? Onde é o coito?

- Parece-me que não vale a pena eu entrar no jogo - disse Francis Morton, aproximando-se de Mrs. Henne-Falcon, os olhos resolutamente fixos nos seus seios exuberantes. - A minha ama não tarda aí a buscar-me.

- A tua ama espera, Francis - retorquiu Mrs. Henne-Falcon distraidamente, ao mesmo tempo que batia as palmas para reunir junto de si algumas crianças que se dispersavam já pela larga escadaria acima, em direcção aos andares superiores. - Com certeza que a tua mãe não se importa.

Foi este o máximo de astúcia que Francis conseguiu arranjar. Custava-lhe a crer que uma desculpa tão bem preparada pudesse falhar. Apenas conseguiu dizer naquele mesmo tom preciso que as outras crianças tanto detestavam, considerando-o como sinal de presunção:

- Acho melhor não entrar.

Deixou-se ficar imóvel, as feições impassíveis, apesar do medo. Mas a certeza do seu terror ou a reflexão desse mesmo terror atingiu o cérebro do irmão. Naquele momento, Peter Morton poderia ter gritado de pavor, enquanto as luzes se iam extinguindo, deixando-o sozinho, numa ilha de escuridão, rodeado de passos estranhos, que se sobrepunham uns aos outros. Lembrou-se então que aquele medo não era seu, mas do irmão, e, num impulso, disse a Mrs. Henne-Falcon:

- Por favor! Não creio que o Francis possa entrar no jogo. A escuridão fá-lo tremer de medo.

Em má hora pronunciou tais palavras. Logo seis crianças começaram a cantar «medricas, medricas, pastel de nata», voltando para Francis Morton umas caras tão trocistas e inexpressivas como grandes girassóis.

Sem olhar para o irmão, Francis disse:

- Pois claro que posso! Não tenho medo nenhum. Só pensei...

Mas os seus carrascos humanos tinham-no já esquecido e ele encontrou-se sozinho a contemplar a aproximação da tortura mental, da máxima, da tortura sem limites. As crianças discutiam em torno de Mrs. Henne-Falcon, as vozes agudas assediando-a com perguntas e sugestões.

- Pois sim. Podem esconder-se na casa toda. .Vamos apagar todas as luzes. Pois sim, se queres, podes esconder-te no guarda-loiça. Sim, podes ficar escondida o tempo que quiseres. Não haverá coito.

Peter também se afastara, envergonhado pela maneira desastrada como tinha tentado ajudar o irmão. E pôde sentir, alastrando pelos cantos do seu cérebro, todo o ressentimento de Francis por o ter querido proteger. Várias crianças correram escada acima e as luzes do primeiro andar desapareceram. Depois, a escuridão desceu como asas de morcego e pousou no patamar. Alguém foi apagando as luzes no extremo do vestíbulo, até que as crianças se encontraram reunidas dentro do círculo luminoso do lustre, enquanto os morcegos pairavam em volta, de asas coladas ao corpo, aguardando que aquele também se extinguisse.

- Tu e o Francis fazem parte do grupo que se vai esconder - disse uma menina alta.

Depois, a luz apagou-se e a carpete ondulou debaixo dos seus pés, com um sussurro de passos, como se ligeiras correntes de ar frio rastejassem para os cantos, roçando-a.

- Onde está o Francis? - perguntou Peter a si mesmo.

- Se eu me juntar a ele, assustar-se-á menos com estes ruídos todos.

«Estes ruídos» eram a manta do silêncio, que descia lentamente: o estalido duma tábua solta, o cauteloso fechar da porta dum guarda-loiças, o lamento de um dedo que desliza ao longo da madeira polida.

Peter deixou-se ficar de pé, no centro do quarto deserto e escuro, não à escuta, mas à espera que a ideia do esconderijo do irmão lhe penetrasse no cérebro.

Mas Francis estava agachado, os dedos metidos nos ouvidos, os olhos inutilmente cerrados e o espírito tolhido, fechado a qualquer sensação - somente algo de violento poderia atravessar as trevas em que mergulhara. Uma voz gritou «aí vou», e, como se o autodomínio do irmão se despedaçasse ao grito súbito, Peter Morton saltou de medo.

Mas não era o seu próprio medo. Aquilo que no irmão era pânico aceso, não admitindo outros pensamentos senão os que mais atiçavam a chama, era nele uma emoção altruísta, que lhe deixava a razão intacta.

- Se eu fosse o Francis, onde iria esconder-me?

Era isto mais ou menos o que ele pensava. E, porque, se não era Francis era pelo menos a sua imagem, a resposta veio imediata: «Entre a estante de carvalho, à esquerda da porta da sala de estar e o sofá de couro». Peter Morton não se surpreendeu pela rapidez da réplica. Entre os gémeos não podia haver erros de telepatia. Tinham estado juntos no ventre e não poderiam apartar-se.

Peter Morton dirigiu-se nas pontas dos pés para o sítio onde Francis estava escondido. Uma tábua rangeu no sobrado, e, com receio de ser apanhado por um daqueles que em passos de lã desbravavam a escuridão, Peter inclinou-se e desapertou os atacadores. Uma das pontas soltou-se e foi cair no chão; o som metálico pôs em movimente uma hoste de pés cautelosos, deslocando-se na sua direcção. Mas, nessa altura, já ele estava em meias e ter-se-ia rido intimamente da perseguição se o ruído de alguém, ao tropeçar nos sapatos abandonados, não lhe tivesse apertado o coração, reflectindo o sobressalto de outrem. As tábuas já não denunciavam o avanço de Peter Morton. Em meias, movia-se silenciosa e infalivelmente em direcção ao alvo. O instinto dizia-lhe que se aproximava da parede, e, estendendo a mão, encontrou com os dedos a face do irmão.

Francis não gritou, mas Peter sentiu as proporções do terror dele pelo seu próprio coração.

- Não te assustes - sussurrou, tacteando o corpo acocorado, até encontrar a mão crispada. - Sou eu. Vim para ficar ao pé de ti.

E, agarrando o outro com firmeza, ficou-se a escutar a cascata de murmúrios provocada pelas suas palavras. Uma mão tocou a estante mesmo ao pé da cabeça de Peter e ele percebeu que o medo continuava a dominar o irmão, apesar da sua presença. Era menos intenso, mais tolerável, julgava ele, mas permanecia. Sabia que era o medo do irmão e não o seu próprio medo que experimentava. O escuro, para ele, não passava duma ausência de luz. Sentiu de novo uma mão às apalpadelas, desta vez a duma criança que lhe era familiar. Pacientemente, pôs-se à espera de ser descoberto.

Não voltou a falar com o irmão, porque entre Francis e ele, o tacto representava a comunhão mais íntima. Um simples juntar de mãos e o pensamento corria em menos tempo do que os lábios demoravam a formar palavras completas.

Sentiu evoluir a emoção do irmão desde o momento em que este saltara de pânico ao sentir-se inesperadamente tocado até à estabilização do seu pulso num bater regular e compassado, embora acelerado pelo medo. Peter Morton pensou com veemência: «Escusas de ter medo. Tens-me aqui. As luzes não tardam a acender-se outra vez. Não tenhas medo daqueles ruídos, nem daqueles passos; só da Joyce e da Mabel Warren». Bombardeava o corpo caído com pensamentos tranquilizadores, mas percebeu que o medo subsistia. «Começam já a cochichar uns com os outros. Estão cansados de nos procurar. As luzes vão acender-se e nós seremos os vencedores. Não tenhas medo! É alguém nas escadas. Parece-me que é Mrs. Henne-Falcon. Escuta. Andam à procura dos interruptores».

Moveram-se pés sobre a carpete e uma mão roçou a parede. Alguém correu uma cortina, ouviu-se o desandar dum puxador e a porta dum guarda-loiças a abrir-se.

Na prateleira que ficava por cima das suas cabeças, alguém deslocou um livro. «Só da Joyce, só da Mabel Warren ou de Mrs. Henne-Falcon», repetia num crescendo de pensamentos tranquilizadores, até que o lustre se acendeu, como uma árvore de fruto em flor.

As vozes das crianças levantaram-se estridentes no meio do esplendor.

- Onde está o Peter? Já viste lá em cima? E onde está o Francis?

Mas o grito de Mrs. Henne-Falcon reduziu-as ao silêncio. Não fora porém ela a primeira a notar a imobilidade de Francis Morton, que caíra fulminado contra a parede quando o irmão lhe tocara com a mão. Peter continuava a segurar os dedos crispados, numa dor árida e perplexa. Não apenas porque o irmão estava morto. O seu cérebro, demasiado infantil para atingir todo o paradoxo, perguntava com uma obscura piedade por si próprio, por que razão teria o pulso do irmão continuado a bater de medo, quando Francis já se encontrava onde lhe tinham dito que não existia nem temor nem escuridão.

 

                     EU VI

CHARLIE STOWE esperou até ouvir ressonar a mãe, antes de saltar da cama. E, mesmo assim, moveu-se cautelosamente em bicos de pés até à janela. A frente da casa era irregular, de modo que se podia ver a luz acesa no quarto da mãe. Dentro em pouco, todas as janelas ficaram às escuras. Um projector varreu o céu, iluminando o recorte das nuvens e sondando o espaço imenso à procura de aviões inimigos. O vento soprava do mar, e, por sobre o roncar da mãe, Charlie Stowe conseguia distinguir o fragor das ondas. Uma corrente de ar, passando através das frestas dos caixilhos das janelas, agitou-lhe a camisa de noite. Charlie Stowe assustou-se.

Encorajou-o a lembrança da tabacaria do pai, situada doze degraus de madeira abaixo. Tinha doze anos e os rapazes do liceu já faziam troça dele, por nunca ter fumado um cigarro. Os maços de «Gold Flake» e «Players», «De Rezske», «Abdulla» e «Woodbines» empilhavam-se lá em baixo, na pequena loja mergulhada em ténue e permanente neblina de fumo, que deixaria passar o seu crime completamente despercebido. Que era um crime roubar artigos da loja do pai, disso não tinha Charlie Stowe dúvidas, mas ele não amava o pai. O pai era para ele irreal, um fantasma pálido, delgado, indefinido, que só espasmòdicamente dava pela sua existência e até os castigos deixava para a mãe.

Pela mãe, sentia um amor apaixonado, demonstrativo; a presença dela, volumosa e barulhenta, e a sua caridade ruidosa enchiam-lhe o mundo; pelas suas afirmações, ele julgava-a amiga de toda a gente, desde a mulher do reitor à sua «querida rainha»; só não gostava dos Alemães, os monstros que se escondiam nas nuvens em zepelins. O amor do pai, como as suas zangas, era tão vago como as suas acções.

Esta noite, dissera ele, estaria em Norwich, e, no entanto, sabia-se lá se estaria ou não. Charlie Stowe não se sentia muito seguro enquanto rastejava pelas escadas de madeira abaixo. Quando rangiam, ele crispava os dedos na gola da camisa.

Uma vez chegado ao fundo das escadas, encontrou-se de repente na pequena loja. Estava muito escuro para poder distinguir o caminho, mas não ousava acender o interruptor. Durante meio minuto, sentou-se desanimado no último degrau, o queixo metido nas mãos. Depois, a deslocação regular do projector reflectiu-se numa janela do andar superior e o rapaz teve tempo de fixar na memória uma pilha de maços, o balcão e o pequeno vão debaixo deste. Os passos dum polícia sobre o pavimento obrigaram-no a deitar a mão ao maço mais próximo e a mergulhar no vão. Uma luz deslizou ao longo do sobrado e alguém forçou a porta; depois, os passos prosseguiram e Charlie encolheu-se no escuro.

Por fim, conseguiu recobrar coragem, dizendo de si para si, na sua curiosa maneira adulta, que, se fosse apanhado, agora já não havia nada a fazer, e, portanto, o melhor seria fumar o seu cigarro. Pôs um cigarro na boca, mas lembrou-se que não possuía fósforos. Por instantes, não ousou mexer-se. Três vezes o projector iluminou a loja, enquanto ele murmurava chufas e palavras de encorajamento: «perdido por um, perdido por mil»... ou, «medricas, medricas, pastel de nata» - exortações de pessoa crescida, estranhamente misturadas com exclamações infantis.

Mas, quando ia a mover-se, ouviu passos na rua e o barulho que faziam vários homens, caminhando rapidamente. Charlie Stowe já tinha idade suficiente para perceber que aquilo não era normal. Os passos aproximaram-se e pararam; uma chave rodou na fechadura da porta e uma voz disse:

- Fá-lo entrar.

Depois ouviu a voz do pai:

Se não se importam, meus senhores, façam pouco barulho. Não quero acordar a família.

A sua voz indecisa tinha uma entoação que Charlie lhe desconhecia. Acendeu-se uma pilha, e, em seguida, irrompeu do globo eléctrico uma luz azul. O rapaz susteve a respiração. Imaginou se o pai não lhe ouviria o bater do coração, e, cingindo estreitamente a si a camisa de dormir, rezou «Oh, meu Deus, não permitais que me apanhem!» Através duma fenda no balcão via o sítio onde o pai se encontrava, segurando com a mão a gola levantada e rígida, entre dois homens de chapéu de feltro e impermeável apertado por um cinturão. Não os conhecia.

- Vai um cigarro? - perguntou o pai numa voz seca como um biscoito.

Um dos homens abanou a cabeça.

- Não pode ser. Estamos em serviço. Em todo o caso, obrigado.

Falava com delicadeza, mas sem amabilidade. Charlie Stowe pensou que o pai devia estar doente.

- Não se importa que eu meta alguns no bolso? - perguntou o Sr. Stowe, e, vendo o sinal de assentimento do outro, pegou numa pilha de «Gold Flake» e «Players» da prateleira e acariciou os maços com as pontas dos dedos.

- Bom - disse ele -, agora não há nada a fazer. Posso tirar uma fumaça.

Por momentos, Charlie Stowe receou ser descoberto, tão atento e observador era o olhar do pai em redor da loja. Podia-o ter visto logo que entrara.

- É um bom negócio - disse ele - para aqueles que gostam. A mulher há-de trespassá-lo, julgo eu. Ou os vizinhos o farão ir por água abaixo. Bom, os senhores querem ir-se embora. Vou buscar o sobretudo. Mais vale prevenir que remediar.

- Um de nós vai consigo, se não se importa - disse o estranho com delicadeza.

- Não se incomode. Está aqui no cabide. Pronto, estou pronto.

O outro homem disse num tom embaraçado:

- Não quer falar com a sua mulher?

A voz era fraca e decidida:

- Para quê? Nunca faças hoje o que podes deixar para amanhã. Ela há-de saber mais tarde, não lhe parece?

- Pois, pois - disse um dos estranhos, tornando-se muito alegre e animador. - Não esteja muito preocupado. Enquanto há vida... - e, de repente, o pai tentou rir.

Quando a porta se fechou, Charlie Stowe subiu as escadas em bicos de pés e meteu-se na cama. Perguntava a si mesmo por que razão o pai teria saído outra vez de casa, de noite e quem seriam aqueles dois homens.

O espanto e o pavor mantiveram-no acordado por instantes. Era como se uma fotografia familiar tivesse descido da moldura para o censurar com desprezo.

Lembrou-se da maneira como o pai se agarrara firmemente à gola do casaco e se entrincheirara por detrás de provérbios, e, pela primeira vez, pensou que enquanto a mãe era barulhenta e afável, o pai era como ele, fazia as coisas no escuro e isso assustou-o. Gostaria de descer até junto do pai e dizer-lhe como o amava, mas, através da janela, ouviu passos rápidos que se afastaram. Ficou sozinho em casa com a mãe e adormeceu.

 

                   O OUTRO LADO DA PONTE

DIZEM que ele vale um milhão - afirmou Lúcia. Estava sentado na pequena praça mexicana quente e húmida, com um ar de infinita e resignada paciência, um cão deitado aos pés. A nossa atenção desviava-se logo para o cão. Era quase um «setter» inglês; apenas a cauda e o pêlo acusavam uma anomalia qualquer. As palmeiras feneciam sobre a sua cabeça. Tudo era sombra em volta do coreto e o ar corria com dificuldade. Dos aparelhos de rádio, pousados nas prateleiras de madeira, onde se cambiavam com desvaler pesos por dólares, vinha o som de altas vozes que falavam, espanhol. Posso assegurar, pela maneira como lia o jornal, que não percebia uma única palavra; fazia como eu, limitava-se a escolher as palavras parecidas com o inglês.

- Há um mês que aqui está - disse Lúcia. - Expulsaram-no da Guatemala e das Honduras.

Numa cidadezinha de fronteira como esta, era impossível manter um segredo por mais de cinco horas. Lúcia encontrava-se ali havia apenas vinte e quatro horas, mas já conhecia tudo quanto dizia respeito ao Sr. Joseph Calloway. A única razão por que eu próprio não tinha conhecimento da sua história (e estava ali havia duas semanas) é que percebia tanto da língua como o Sr. Calloway. Não havia mais ninguém naquela terra que não conhecesse a sua história - toda a história do Trust Halling de Aplicação de Capitais e dos processos de extradição que lhe diziam respeito. Qualquer dos homens que faziam a limpeza das barracas de câmbio estará mais apto do que eu a contar a história do Sr. Calloway, devido à sua longa observação. Eu apareci já no fim, ao passo que eles assistiram todos à evolução do drama com enorme interesse, compaixão e respeito. Porque, apesar de tudo, ele possuía um milhão.

De espaço a espaço, no decorrer do dia húmido e arrastado, um rapaz vinha engraxar os sapatos do Sr. Calloway. Este não conseguia achar palavras exactas para os impedir e os rapazes pretendiam não perceber o seu inglês. No dia em que eu e Lúcia estivemos a observá-lo, limparam-lhe os sapatos bem uma dúzia de vezes. Ao meio-dia atravessou vagarosamente a praça e foi até ao bar do António beber uma garrafa de cerveja, o cão colado aos calcanhares, como se fossem para um passeio ao campo, na Inglaterra (é preciso não esquecer que ele possuía uma das maiores herdades de Norfolk). Depois da sua garrafa de cerveja, caminhou por entre as barracas de câmbio até ao Rio Grande e olhou através da ponte para os Estados Unidos, onde os carros iam e vinham em movimento contínuo. Depois, voltou à praça e aí ficou até à hora do almoço. Tinha-se instalado no melhor hotel, mas nesta cidade fronteiriça era impossível encontrar bons hotéis; ninguém permanecia aqui mais do que uma noite. Os bons hotéis ficavam do lado de lá da ponte. À noite avistavam-se os seus reclamos luminosos, vinte andares acima da pequena praça, como edifícios todos de luz, assinalando os Estados Unidos.

Perguntareis o que fazia eu há quinze dias num local tão monótono. O local não tinha nada que pudesse interessar fosse a quem fosse; não passava dum sítio húmido e cheio de pobreza, uma espécie de réplica miserável da cidade do outro lado do rio: ambas tinham a praça nos mesmos sítios; ambas tinham o mesmo número de cinemas, só com a diferença que uma era mais limpa do que a outra e a vida do lado de lá era mais cara, muito mais cara.

Havia algumas noites que eu estava ali à espera dum homem, o qual, segundo dizia uma agência turística, vinha de Detroit para Yucatan e cedia um lugar no carro por uma soma fantasticamente diminuta - vinte dólares, julgo eu. Não sei se ele existia realmente, ou se tinha sido inventado pelo optimismo do mestiço da agência; seja como for, nunca mais aparecia e eu, sem me ralar muito, continuava à espera do lado mais barato do rio. Não me fazia grande diferença; ia vivendo. Um dia, pensei em desistir do homem de Detroit e voltar para casa ou ir para o Sul, mas achei mais simples não tomar decisões demasiado apressadas. Lúcia estava à espera dum carro que ia para o outro lado, e, embora tivesse de esperar muito enquanto aguardávamos juntos, pusemo-nos a observar o Sr. Calloway, Deus sabe porquê.

Não sei de que maneira hei-de tratar esta história. Para o Sr. Calloway foi uma tragédia; aos olhos dos accionistas que ele arruinara com as suas falsas transacções, foi, suponho eu, um poético e justo castigo; mas para mim e para Lúcia, na altura em que o encontrámos, não passou de pura comédia, salvo quando ele se punha aos pontapés ao cão. Não sou sentimental em relação a cães; prefiro que as pessoas sejam cruéis com os animais do que com os seres humanos, mas não podia deixar de ficar revoltado pela maneira como ele agredia o cão - parecia veneno ministrado a sangue-frio e não um acto de cólera. Era como se estivesse a ajustar contas com ele por qualquer partida que lhe tivesse pregado havia já muito tempo. Isto acontecia geralmente quando voltava da ponte: era nele a única coisa parecida com emoção. De resto, o seu aspecto era o dum sujeito baixo, calmo e delicado, de bigode e cabelos prateados, óculos de aro de ouro e um dente, de ouro também, que era como um defeito de carácter.

Lúcia não fora exacta quando afirmara que o tinham expulsado da Guatemala e das Honduras; tinha partido voluntariamente, quando lhe pareceu que os processos de extradição se deslocavam para o Norte. O México não tem ainda um governo centralizado, de modo que é possível andar de governador para governador, como do gabinete dum ministro para outro ministro ou de um juiz para outro juiz. Assim, ele aguardava ali na fronteira o próximo movimento. A primeira parte da sua história é, suponho eu, dramática, mas não a presenciei e não posso inventar o que não vi - a longa espera nas antecâmaras, os subornos oferecidos e recusados, o medo crescente da prisão, e, depois, a fuga, que ele conseguira, mas mal, porque já não se tratava de finanças, e em fugas era um amador. Assim fora arrojado para ali, onde eu e Lúcia o víamos, passando os dias sentado debaixo do coreto, sem nada para ler à excepção dum jornal mexicano, sem nada que fazer senão olhar para os Estados Unidos, do outro lado do rio, desconhecendo completamente, suponho eu, que toda a gente sabia tudo o que lhe dizia respeito e agredindo, todos os dias, o cão a pontapé. Talvez a sua raça de meio-«setter» lhe lembrasse, mais do que desejava, as propriedades de Norfolk, embora, julgo eu, fosse essa também a razão principal por que ele o conservava. O acto seguinte foi também de pura comédia. Não ouso pensar o que este homem, que valia um milhão, custava ao seu país, enquanto o expulsavam desta para aquela terra. Talvez alguém começasse a ficar saturado do assunto ou até desinteressado. Seja como for, esse alguém enviou para o lado de cá da ponte dois detectives, que traziam uma fotografia já antiga. Desde que esta fora tirada, ele deixara crescer um bigode grisalho e envelhecera bastante, de maneira que os homens não o reconheceram. Ainda havia duas horas que tinham atravessado a ponte e já toda a gente sabia que na cidade se encontravam dois detectives estrangeiros à procura do Sr. Calloway - toda a gente sabia, quer dizer, toda a gente menos o próprio Sr. Calloway, que não percebia espanhol. Havia imensa gente que lho poderia ter dito em inglês, mas não disse. Não foi por crueldade; foi por uma espécie de temor e respeito.

Como um touro, ele estava no meio da arena e era um espectáculo magnífico, para o qual todos nós possuíamos lugares de primeira.

Corri ao bar do António, onde tinha entrado um dos polícias. Estava desgostoso. Imaginara, que, uma vez atravessada a ponte, a vida ia ser diferente, com muito mais cor e sol, e - parece-me - amor, e afinal, encontrara apenas largas ruas enlameadas, onde a chuva da noite permanecia em charcos, cheias de cães e de maus cheiros, percevejos na cama, e, quanto à possibilidade de amor mais próxima, havia a porta aberta da Academia Comercial, onde lindas raparigas mestiças passavam a manhã a aprender a escrever à máquina. Tip-tap-tip-tap-tip... Talvez elas tivessem também um sonho - empregar-se do outro lado da ponte, onde a vida seria muito mais luxuosa, mais elegante e divertida.

Travámos conversa. Pareceu surpreendido por eu saber quem eles eram e o que pretendiam. Disse-me:

- Informaram-nos de que esse Calloway está na cidade.

- Sim, anda por aí.

- É capaz de no-lo indicar?

- Oh, nunca o vi - manifestei.

Bebeu a cerveja e pôs-se a reflectir.

- Vou sair e sentar-me na «plaza». Ele há-de passar por lá.

Acabei a minha cerveja e corri a encontrar-me com Lúcia.

- Depressa - incitei. - Vamos assistir a uma prisão.

Pouco nos importava que fosse a prisão do Sr. Calloway; ele não passava dum homem de meia-idade, que dava pontapés no cão, enganava os pobres e merecia o que lhe estava a acontecer.

E assim nos dirigimos para a «plaza». Sabíamos perfeitamente que Calloway estava lá, mas a nenhum de nós tinha ocorrido que os detectives não o reconhecessem. Em volta da praça havia um mar de gente. Parecia que os vendedores de fruta e os engraxadores da cidade tinham afluído ali todos ao mesmo tempo. Tivemos de abrir caminho à força.

Dentro do limitado centro verde da praça mal arejada, sentados em bancos contíguos, encontravam-se os dois homens à paisana e o Sr. Calloway. Nunca vi o local tão silencioso. Toda a gente caminhava em bicos de pés. Os polícias à paisana olhavam fixamente a multidão, procurando o Sr. Calloway, e o Sr. Calloway, sentado no seu banco habitual, fixava as lojas de câmbio do lado de lá dos Estados Unidos.

- Isto não vai continuar assim. Não pode continuar dizia Lúcia.

Mas continuou e cada vez se tornava mais fantástico. Alguém devia escrever uma peça acerca do assunto. Sentámo-nos tão perto quanto ousámos. Receávamos a todo o momento desatar a rir. O meio-«setter» coçava as pulgas e o Sr. Calloway observava os Estados Unidos; os dois detectives observavam a multidão e a multidão observava o espectáculo com uma satisfação solene. Então, um dos detectives pôs-se de pé e dirigiu-se ao Sr. Calloway. «É o fim», pensei eu. Mas não foi; foi apenas o começo. Por qualquer razão, que nunca descobrirei, tinham-no eliminado da lista dos suspeitos. Perguntou-lhe o homem:

- Fala inglês?

- Sou inglês - disse o Sr. Calloway.

Nem mesmo isto conseguiu precipitar as coisas e o mais estranho foi a maneira como o Sr. Calloway se animou, talvez porque ninguém falava com ele há algumas semanas. Os mexicanos respeitavam-no demasiado para lhe dirigirem a palavra - era um homem com um milhão - e a mim e a Lúcia nunca nos tinha ocorrido tratá-lo simplesmente como um ser humano; mesmo aos nossos olhos, ele tinha sido deificado pelo roubo colossal e pela perseguição do mundo inteiro. Disse ele:

- Que terra horrível esta, não acha?

- Tem razão - concordou o polícia.

- Não sei o que pode trazer as pessoas para este lado da ponte.

- O trabalho - respondeu o polícia com desalento. - E o senhor? Vai passar para o lado de lá?

- Vou - disse o Sr. Calloway.

- Esperava que aqui houvesse... como hei-de dizer... ...que aqui houvesse vida! Pelas coisas que lemos sobre o México...

- Ora! Vida! - retorquiu o sr. Calloway. Falava com firmeza e precisão, como se estivesse a dirigir-se a uma delegação de accionistas. - Isso começa do lado de lá.

- Só apreciamos a nossa terra depois de a deixarmos.

- Tem razão - apoiou o Sr. Calloway. - Muita razão.

A princípio era difícil conter o riso, mas depois parecia-nos que já não havia motivo nenhum para rir; um velhote que imaginava que só para lá da ponte internacional é que havia coisas boas! Certamente idealizava a cidade em frente como uma mistura de Londres e Norfolk - teatros e bares, caça de vez em quando e um passeio à noite pelos campos com o cão - essa miserável imitação de «setter» que metia o focinho em todas as sarjetas.

Como nunca tinha atravessado a ponte, não podia saber que do lado de lá a vida era exactamente a mesma - até a urbanização era igual. Somente as ruas estavam pavimentadas, os hotéis tinham mais dez andares, a vida era mais cara e tudo era um pouco mais asseado.

Não havia lá nada que o Sr. Calloway pudesse apelidar de «vida» - nem galerias de exposições, nem livrarias; só o Film Fun, o jornal local, o Click e o Focus e goma de mascar.

- Bom - disse o Sr. Calloway. - Vou dar um giro antes do almoço. É preciso fazer apetite para engolir a comida de cá. A esta hora costumo ir até à ponte. Quer vir daí?

O detective abanou a cabeça.

- Não - lamentou-se ele - Estou de serviço. Ando à procura dum tipo.

Isto pô-lo logo a andar. Tanto quanto o Sr. Calloway era capaz de entender, só havia um tipo no mundo de quem podiam andar à procura - o seu cérebro eliminara os amigos que procuram os amigos, os maridos que esperam as esposas, todos os objectivos da procura, excepto um. O seu poder eliminatório fizera dele um financeiro. Para além das acções bancárias, as pessoas nada representavam para ele.

Durante algum tempo não voltámos a vê-lo. Não entrara na botica Paris para comprar a sua aspirina, nem voltara a ir à ponte com o cão. Desaparecera, muito simplesmente, e, logo que desapareceu, as pessoas começaram a falar e os detectives a ouvir o que diziam. Sentiram-se ridicularizados e apressaram-se a ir atrás do velho, ao lado do qual tinham estado sentados no jardim. Depois, desapareceram também. Tanto eles como o Sr. Calloway tinham partido para a capital, para falar com o governador e com o chefe da Polícia.

Também deve ter sido divertido vê-los sentados nas salas de espera, ao lado do Sr. Calloway, depois de terem corrido atrás dele. Suspeito bem que o Sr. Calloway era sempre introduzido em primeiro lugar, pois toda a gente sabia que ele valia um milhão. Só na Europa é possível ser-se ao mesmo tempo rico e criminoso.

Não sei o que aconteceu, mas o que é certo é que passada uma semana, pouco mais ou menos, voltaram todos três no mesmo comboio. O Sr. Calloway viajava numa carruagem-cama e os dois polícias nas carruagens vulgares. Era evidente que não tinham conseguido a extradição.

Entretanto, Lúcia já se havia ido embora. O carro chegara e atravessara a ponte com ela. Fiquei no México a vê-la sair da Alfândega dos Estados Unidos. Não a achava nada de especial, mas à distância parecia-me bela, enquanto me acenava dos Estados Unidos e entrava de novo no carro. De repente, encontrei-me a sentir pena do Sr. Calloway, como se houvesse algo do lado de lá que não pudéssemos encontrar aqui, e, voltando-me, vi-o regressar da sua ronda habitual, com o cão colado aos calcanhares.

Disse-lhe «boa-tarde», como se tivéssemos por hábito cumprimentarmo-nos. Parecia cansado, doente e coberto de pó e eu compadeci-me dele, só de pensar que espécie de vitória era a sua, depois de despender tanto dinheiro e esforço. Como recompensa, tinha esta cidade suja, monótona, com as barracas de câmbio, as cadeiras de verga e os sofás das salas de estar, que mais pareciam salas de recepção dum lupanar, e aquele jardim abafado junto do coreto.

Replicou-me um triste «Bom-dia» e, como o cão começasse a farejar uma porcaria qualquer, voltou-se e deu-lhe um pontapé furioso, deprimido, desesperado.

Nesse momento passou por nós um táxi com os dois polícias dentro e dirigiu-se para a ponte. Eles devem ter visto aquele pontapé. Talvez fossem mais inteligentes do que eu os julgara ou talvez fosse sentimentalismo por causa do bicho e pensassem que faziam uma boa obra... O resto aconteceu por acaso. Mas o facto é que aqueles dois pilares da lei se propuseram roubar o cão ao Sr. Calloway.

Ele ficou a vê-los passar. Depois disse:

- Porque não atravessa a ponte?

- Porque aqui a vida é mais barata - respondi.

- Só por uma noite! Porque não vai jantar àquele restaurante que se vê à noite no céu e vai depois ao teatro?

- Não posso.

Encolerizado e chupando no dente de ouro, disse:

- Faça o que quiser, mas vá daqui para fora.

Pôs-se a observar o fundo da colina e depois levantou os olhos para o outro lado, mas não viu que na rua que subia da outra banda da ponte havia as mesmas barracas de câmbio que da parte de cá.

- Porque é que o senhor não vai? - perguntei-lhe.

Ele respondeu evasivamente:

- Oh... os negócios...

E eu disse-lhe:

- É tudo uma questão de dinheiro. Não precisa de passar pela ponte.

Retorquiu com desinteresse:

- Não sei falar espanhol.

- Não há uma alma nesta terra que não fale inglês - disse-lhe eu.

Olhou-me com surpresa.

- De verdade? - admirou-se ele. - De verdade? Era verdade, sim. Ele é que nunca tentara falar com ninguém e eles sentiam-se demasiado abaixo para lhe falarem - é que ele valia um milhão!

Não sei se deva alegrar-me ou ficar triste por lhe ter dito aquilo. Se não lho tivesse dito, talvez ainda lá estivesse vivo e a sofrer, sentado no coreto, enquanto deixava que lhe engraxassem os sapatos.

Três dias depois, desapareceu-lhe o cão. Encontrei-o enquanto o procurava, envergonhado, chamando-o mansamente por entre as palmeiras do jardim. Pareceu-me embaraçado. Disse-me em voz baixa e colérica:

- Odeio esse cão. Raio do mestiço!

E chamava:

- Rover, Rover! - numa voz que não chegava a cinco metros de distância. Depois disse:

- Em tempos criei «setters». Devia ter morto um cão como este.

Eu bem me parecia que o cão lhe fazia lembrar Norfolk. Esta lembrança dava-lhe vida, mas ele odiava-o pela sua imperfeição. Homem sem família nem amigos, aquele cão era o seu único inimigo.

Não se pode considerar a lei uma inimiga. Um inimigo tem de ser íntimo.

Nessa mesma tarde, alguém lhe disse ter visto o cão a atravessar a ponte. Não era verdade, evidentemente, mas nessa altura ele não sabia. Tinham pago a um mexicano cinco pesos para espalhar o boato. Assim, durante toda aquela tarde e na tarde seguinte, o Sr. Calloway esteve sentado no jardim a engraxar os sapatos vezes sem conta, pensando em como um cão pode assim, sem mais nem menos, atravessar uma ponte e um ser humano, uma alma imortal, tem de ficar para ali acorrentado à rotina dos pequenos passeios, das refeições em silêncio e das aspirinas da botica. O cão, agora, estava a ver coisas que ele não podia ver, aquele cão danado! Isso punha-o furioso, literalmente furioso, julgo eu. É preciso não esquecer que o homem estava ali havia meses seguidos. Tinha um milhão e vivia com duas libras por semana, sem ter em que gastar o dinheiro. E agora, ali estava, sentado, a ruminar a hedionda injustiça daquilo tudo.

O dia de ele atravessar a ponte chegaria de qualquer maneira, mas o cão foi, penso eu, a causa próxima.

No dia seguinte, numa altura em que ninguém o pôde ver, atravessou e eu atravessei também. A cidade americana é tão pequena como a mexicana. Por isso, eu sabia que uma vez lá, não o perderia facilmente de vista. A minha curiosidade não diminuíra; tinha uma certa pena dele, mas não muita.

A primeira vez que o vi foi numa loja a tomar uma coca-cola, e, logo em seguida, à porta dum cinema, a olhar para os cartazes. Vestia com extrema elegância, como se fosse para uma festa, embora não houvesse festa nenhuma. À terceira vez, dei de cara com os detectives. Tomavam coca-colas na mesma loja e devem ter perdido o Sr. Calloway por um triz. Entrei e sentei-me ao balcão.

- Viva! - saudei eu. - Por aqui ainda?

Senti-me subitamente aflito por causa do Sr. Calloway. Não queria que o encontrassem. Um deles perguntou:

- Onde está o Calloway?

- Oh, anda por aí! - disse eu.

- O cão é que não anda - retorquiu um deles a rir.

O outro olhou-o um pouco chocado; não gostava que falassem dum cão daquela maneira tão cínica. Em seguida levantaram-se; tinham o carro lá fora.

- Não tomam outro? - perguntei.

- Não. Obrigado. Temos de ir ao trabalho.

Os dois homens inclinaram-se e disseram-me baixinho:

- O Calloway está do lado de cá.

- Não me diga - exclamei.

- E o cão também.

- Anda à procura do cão - disse o outro.

- Raios me partam se ele anda - comentei, e de novo um deles me pareceu chocado, como se eu tivesse insultado o cão.

Não me parece que o Sr. Calloway andasse à procura do cão. O cão é que o encontrou. Do interior do carro veio um súbito latido de satisfação e o meio-«setter» irrompeu de lá furioso, correndo alegremente rua abaixo. Um dos detectives - o sentimental - chegou ao carro antes que nós alcançássemos a porta e correu atrás do cão. Ao fundo da longa estrada que ia ter à ponte estava o Sr. Calloway. Aposto que fora ali para olhar a margem mexicana, depois de descobrir que na americana nada havia senão a taberna, cinema e papelarias. Quando viu o cão aproximar-se, correndo cegamente em direcção a ele, gritou-lhe que fosse para casa:

- Para casa! Vai para casa! - como se estivesse em Norfolk.

Foi então que viu o carro da polícia e começou a fugir. Depois, tudo se passou rapidamente, mas suponho que a ordem dos acontecimentos foi esta - o cão atravessou-se na estrada, mesmo em frente do carro, e o Sr. Calloway gritou, para o cão ou para o carro, não sei bem para qual deles. Fosse como fosse, o detective guinou o carro (mais tarde, no inquérito que se seguiu, afirmou titubeante que não podia passar por cima do cão) e o Sr. Calloway caiu, numa mistura de vidros partidos, aros de ouro, cabelo branco e sangue. Antes que qualquer de nós chegasse até junto dele, já o cão o estava lambendo, ganindo e lambendo.

Vi o Sr. Calloway levantar a mão e deixá-la cair sobre o pescoço do cão. Os ganidos transformaram-se num estúpido latido de júbilo, mas o Sr. Calloway estava morto. De choque e coração fraco.

- Pobre velhote! - disse um dos detectives. - Aposto que gostava realmente do cão.

E, na verdade, a posição em que ficara mais parecia uma carícia do que uma pancada. Quanto a mim, fora uma pancada, mas talvez o detective tivesse razão. Era tão comovente ser verdade que aquele velho vigarista, com um milhão depositado nas várias barracas de câmbio, jazesse ali morto com um braço passado por cima do pescoço do cão. Mas temos de ser humildes perante a natureza humana. Ele atravessara o rio e viera aqui procurar qualquer coisa. Talvez tivesse vindo efectivamente à procura do cão. Ali estava ele agora, ganindo estupidamente, no seu júbilo de mestiço, sobre o corpo do dono, qual peça de estatuária sentimentalista, o que o identificava mais com as sarjetas, os campos e os horizontes da sua terra. Era cómico e ao mesmo tempo fazia pena, mas não era menos cómico pelo facto de o homem estar morto. A morte não muda a comédia em tragédia e se aquele último gesto fora realmente um gesto de afeição, então era apenas mais um indício da capacidade que um ser humano possui de se enganar a si mesmo, do nosso optimismo infundado, que é muito mais pavoroso que o nosso desespero.

 

                   PROVA CABAL

A voz cansada continuou. Dir-se-ia ter de vencer enormes obstáculos para falar. «O homem está doente», pensou o coronel Crashaw, condoído e ao mesmo tempo irritado. Na sua mocidade tinha escalado os Himalaias e lembrava-se ainda de como era necessário, nas grandes altitudes, respirar várias vezes por cada passo em frente. O estrado de quinze centímetros de altura, da Sala de Concertos do Spa, parecia custar ao orador algo parecido com esse esforço. «Ele nunca devia ter saído de casa com uma tarde tão fria», pensou o coronel Crashaw, enchendo um copo com água e pondo-o na mesa do conferencista. A sala estava mal aquecida e dedos amarelos de nevoeiro invernal tacteavam as fendas das inúmeras janelas. Quase ninguém duvidava de que o orador perdera o contacto com a audiência. Tinha-se dispersado em farrapos pela sala senhoras idosas que não tentavam esconder o seu tédio imenso e alguns cavalheiros com aspecto de oficiais reformados, que fingiam prestar atenção.

O coronel Crashaw, presidente da Associação de Psicologia local, tinha recebido um bilhete do orador havia pouco mais de uma semana. Escrito por mão trémula de doença, idade ou álcool, pedia uma reunião urgente e especial da Associação. Queria revelar-lhes uma experiência extraordinária e verdadeiramente impressionante, enquanto o espírito a mantinha viva, mas a respeito da tal experiência o bilhete era muito vago. O coronel Crashaw teria hesitado em aceder se a assinatura não fosse dum tal major Philip Weaver, do exército da Índia, agora reformado. Tinha de fazer qualquer coisa por um irmão de armas; a tremura da mão era provavelmente devida a idade ou doença.

Verificou-se ser principalmente a segunda quando os dois homens se encontraram pela primeira vez em cima do estrado. O major Weaver não teria mais de sessenta anos. Alto, magro e moreno, com um nariz obstinado e feio e uma centelha de ironia no olhar, era a pessoa com menos probabilidades no mundo de ter experimentado fosse o que fosse de inexplicável. O que o hostilizou mais aos olhos de Crashaw foi o perfume que Weaver usava; um lenço branco, saindo do bolso do peito, exalava um odor tão forte e adocicado como um altar cheio de lírios. Algumas senhoras taparam o nariz com o lenço e o general Leadbitter perguntou em voz alta se podia fumar.

É evidente que Weaver percebeu. Sorriu dum modo provocador e pediu em voz monótona:

- Importa-se de não fumar? A minha garganta não anda boa de há um tempo para cá.

Crashaw murmurou que o tempo estava horrível, que as constipações de garganta eram agora frequentes. Os olhos irónicos voltaram-se para ele e examinaram-no atentamente, enquanto Weaver dizia numa voz que se ouviu ao meio da sala:

- No meu caso, é cancro.

Depois começou a falar, sem esperar pela introdução de Crashaw. As suas palavras caíram no silêncio que se estabeleceu entre os auditores, vexados e chocados pela desnecessária advertência. A princípio, pareceu estar cheio de pressa. Só mais tarde é que surgiram aquelas terríveis hesitações na sua voz. Falava num tom alto, que por vezes culminava em grito agudo, o qual na parada deve ter sido peculiarmente desagradável. Fez alguns elogios à Associação local, mas as suas observações foram suficientemente exageradas para se tornarem irritantes. Estava satisfeito, dizia ele, por lhes dar a oportunidade de o ouvirem, pois o que tinha a comunicar-lhes poderia vir a alterar por completo as suas ideias acerca dos valores relativos do espírito e da matéria.

«Um assunto místico», pensou Crashaw. A voz alta de Weaver começou a disparar vulgaridades apressadas. O espírito, dizia ele, era mais forte do que ninguém supunha; a acção fisiológica do coração, do cérebro e dos nervos estava constantemente subordinada ao espírito. O espírito era tudo. Disse de novo, erguendo para o tecto uma voz que mais parecia um guincho de morcego:

- O espírito é muito mais forte do que pensais.

Pôs a mão na garganta e desviou os olhos para o lado, onde o nevoeiro acariciava os vidros da janela e depois para cima, para o globo eléctrico pobre e superaquecido, o qual espalhava uma luz fraca na tarde sombria.

- É imortal - disse-lhes muito a sério. E eles mexeram-se inquietos nas cadeiras, incomodados e enfastiados.

Foi por esta altura que a sua voz se tornou cansada e o discurso começou a interromper-se. A causa disso foi talvez ele ter percebido que perdera o contacto com o auditório. Uma senhora idosa, que se sentava ao fundo da sala, tirara da mala o tricot e as agulhas; sempre que a luz tomava posse delas, faiscavam ao longo da parede, como um espírito vivo e sarcástico. A ironia abandonou por momentos os olhos de Weaver, e Crashaw viu o vazio deixado por ela, como se a pupila se tivesse tornado vítrea.

- Isto é importante - gritou-lhes o conferencista. Posso contar-vos uma história...

A atenção do auditório prendeu-se por momentos a esta promessa de algo de definido, mas nem as agulhas paradas da senhora o lisonjearam. Disse numa voz escarninha:

- Revelações e prodígios... Depois, perdeu por completo o fio ao discurso. A sua mão passava na garganta dum lado para o outro, enquanto citava Shakespeare e a Epístola de S. Paulo aos Gálatas. À medida que se tornavam mais lentas, as suas palavras pareciam perder toda a ordem lógica, embora de quando em quando Crashaw fosse surpreendido pela sua perspicácia, ao justapor duas ideias opostas. Era uma conversação dum homem de idade, saltitando de assunto para assunto, com um fio de ligação subconsciente.

- Quando estive em Simla... - disse, franzindo as sobrancelhas, como que evitando o brilho do sol na parada do quartel, mas a geada, o nevoeiro, ou a sala sombria estancaram as suas recordações. Voltou a assegurar, perante os rostos enfastiados dos auditores, que o espírito não morria com o corpo, que o corpo só se movia por vontade do espírito. O homem precisava de ser obstinado, de lutar...

«Patético!» pensou Crashaw. «Um homem doente, apegado à sua crença, como se a vida fosse um filho único moribundo, com quem desejasse manter uma forma qualquer de comunicação...»

Da audiência, passaram um bilhete a Crashaw. Vinha de um certo Dr. Brown, um homem pequeno e perspicaz, que estava sentado na terceira fila; a Associação acarinhava-o como o seu céptico favorito. O bilhete dizia: «Não o pode fazer calar? É evidente que o homem está gravemente enfermo. E para que serve o que ele está a dizer?» Crashaw olhou para o lado e depois para cima. Sentiu que a sua compaixão se desvanecia, ao deparar-se-lhe a ironia dos olhos errantes do outro, a qual desmentia as suas palavras, e ao sentir o cheiro insuportavelmente adocicado do perfume em que Weaver tinha empapado o lenço. O homem era um «estranho». Quando chegasse a casa, havia de ir ver a sua folha de serviços nas velhas listas do exército.

A prova cabal - reflectia neste momento Weaver, dando um agudo suspiro de exaustão entre as palavras.

Crashaw pôs o relógio em cima da mesa, mas Weaver não lhe ligou importância.

- Vou dar-vos - insistiu ele, falando com uma dificuldade sempre crescente - a prova cab...

Teve um aperto na voz e calou-se, como uma agulha no fim dum disco, mas o silêncio não durou muito. Um som mais parecido com um miar alto do que com outra coisa saiu da sua cara inexpressiva e alertou a atenção dos auditores. Seguiu-se-lhe, ainda sem qualquer traço de emoção ou entendimento, uma série de sons incompreensíveis, um sussurrar baixo dos lábios, uma música estranhamente dissonante, enquanto os seus dedos tamborilavam na mesa. Esses sons faziam lembrar um sem-número de sessões com «médiuns» de ligação e um pandeiro sacudido a meio do ar, por entre vulgaridades sussurradas pelas almas dos entes queridos, no meio de sujas salas abafadas. Weaver sentou-se devagar na cadeira e deixou cair a cabeça para trás. Uma velhota começou a chorar nervosamente e o Dr. Brown, trepando para o estrado, inclinou-se sobre ele. O coronel Crashaw viu tremer a mão do médico, enquanto tirava o lenço do bolso e o arremessava para longe. Crashaw apercebeu-se doutro cheiro ainda mais desagradável e ouviu o Dr. Brown murmurar:

- Mande-os todos embora. O homem está morto. Falava com uma angústia que não era habitual num médico, acostumado a qualquer espécie de morte. Antes de obedecer, Crashaw olhou o morto por cima do ombro do Dr. Brown. O aspecto do major Weaver perturbou-o. Na sua longa vida, tinha visto muitas mortes diferentes: homens mortos pelas suas próprias mãos, homens mortos no campo de batalha, mas tal aspecto de mortalidade nunca ele havia presenciado. O corpo podia ter sido pescado no mar, muito tempo depois da morte; a carne da face parecia estar prestes a cair, como um fruto demasiado maduro. Assim, não foi com grande espanto que ouviu, nem ficou com isso muito chocado, a afirmação murmurada pelo Dr. Brown:

- O homem deve ter morrido há uma semana.

Aquilo que mais insistentemente atormentava o coronel era o grito de Weaver... «a prova cabal»... Com isso queria provavelmente significar que a alma sobrevivia ao corpo, que era eterna. Mas, ao certo, conseguira apenas revelar que o espírito, sem o auxílio do corpo, degenerava, ao fim de sete dias, num gaguejar sem sentido.

 

                   A OPORTUNIDADE DO SR. LEVER

O Sr. Lever bateu com a cabeça no tecto e praguejou. Por cima havia cereal armazenado e as ratazanas começavam já a mover-se no escuro. Por entre as tábuas deslizaram grãos de arroz, que foram cair sobre a mala «Revelation», a sua cabeça calva, as latas de conserva e a pequena caixa quadrada onde ele guardava os remédios. O moleque já tinha preparado o leito de campanha e colocado a rede por causa dos mosquitos. Lá fora, no meio da atmosfera quente e húmida, esperava-o a mesa e a cadeira de desarmar. As cabanas de colmo, em bico, estendiam-se até à floresta; uma mulher transportava lume de cabana em cabana. A chama iluminou-lhe a face idosa, os seios descaídos e o corpo tatuado e enfermo.

O Sr. Lever quase não acreditava que, cinco semanas antes, ainda se encontrava em Londres.

Não havia espaço para estar de pé; pôs as mãos e os joelhos no chão térreo e abriu a mala.

Tirou para fora a fotografia da mulher e pô-la em cima da caixa que continha os mantimentos; tirou ainda um bloco de carta e um lápis indelével. Com o calor, o lápis havia amolecido e manchara os pijamas de nódoas cor de malva. Depois, como a luz do candeeiro pusesse à vista baratas do tamanho de carochas ao longo da parede de lama, ele fechou a mala cuidadosamente. Tinham-lhe bastado dez dias para ficar a saber que comiam qualquer coisa: meias, camisas, ou até os próprios atacadores dos sapatos. O Sr. Lever saiu para o exterior. Várias mariposas embateram no candeeiro, mas não se viam mosquitos. Desde que chegara ali, não vira nem ouvira um sequer. Sentou-se dentro do círculo da luz, atentamente observado pelos negros, que se agachavam fora das cabanas a olhá-lo. Eram amáveis, atenciosos, divertidos, mas a sua atenção insistente irritava o Sr. Lever. Sentia que o interesse à sua volta aumentava nitidamente quando começava a escrever, quando parava de escrever, quando enxugava com o lenço as mãos húmidas. Não podia mexer num bolso, que não visse logo um esticar de pescoços.

Minha querida Emília: - escrevia ele. - Já comecei o trabalho. Mandarei esta carta por um portador, logo que tiver localizado o Davidson. Sinto-me muito bem, embora, é claro, tudo me pareça um pouco estranho. Cuida de ti, minha querida, e não te preocupes.

- Patrão compra galinha - disse o cozinheiro, surgindo subitamente de entre as cabanas, com uma avezita magrizela a estrebuchar-lhe nas mãos.

- Então! - admirou-se o Sr. Lever. - Não te dei já um xelim?

- Eles não gosta - tornou o cozinheiro -, esses negros ruim.

- Não gostam porquê? É dinheiro bom.

- Eles querê dinheiro de rei - decidiu o cozinheiro, restituindo-lhe o xelim vitoriano.

O Sr. Lever teve de se levantar para voltar à cabana. Agarrou no cofre e procurou dinheiro trocado entre as vinte libras.

Não o deixavam sossegado. Tinha aprendido isso rapidamente. E precisava de economizar (aquela viagem era um sorvedouro que o atemorizava). Não tinha sequer podido contratar maqueiros. Depois de caminhar sete horas a pé chegara estafado a uma aldeia, da qual nem sequer sabia o nome e nem por um minuto conseguia sentar-se quieto e sossegado.

Tinha de apertar a mão ao soba, de arranjar uma cabana, de aceitar presentes de vinho de palma, que receava beber, comprar arroz e óleo de palma para os carregadores, dar-lhes sais e aspirinas, enfim, pintar-lhes as chagas com tintura de iodo. Nunca o deixavam em paz por cinco minutos, até que finalmente se metia na cama. Era então a vez das ratazanas. Logo que apagava a luz, deslizavam como água pelas paredes abaixo, dando cambalhotas por entre os caixotes.

«Estou muito velho», dizia o Sr. Lever para consigo próprio. «Estou muito velho» e escrevia em tinta indelével:

- Espero encontrar amanhã o Davidson. Se o encontrar, talvez volte ao mesmo tempo que esta carta. Não economizes na cerveja, nem no leite e manda chamar o médico se te sentires mal. Tenho o pressentimento de que vou ser bem sucedido nesta viagem. Faremos depois umas férias. Bem precisas dumas férias - e, olhando em frente para além das cabanas, dos rostos negros e das bananeiras, fixou os olhos na floresta, donde tinha vindo e onde se embrenharia no dia seguinte. Pensou: «Eastbourne. Sim, Eastbourne far-lhe-ia um bem extraordinário». E continuou a escrever a única espécie de mentiras que jamais dissera a Emily, as mentiras que confortam:

- Devo ganhar pelo menos trezentas libras de comissão, fora as ajudas de custo.

Mas este local não era nada que se parecesse com os outros onde ele tinha vendido máquinas pesadas.

Durante trinta anos percorrera a Europa e os Estados Unidos, mas nunca estivera em lugar nenhum como este. Ouviu o filtro gotejar dentro da cabana, e, algures, alguém que tocava qualquer coisa (sentia-se tão perdido que nem os termos mais simples lhe ocorriam), algo de monótono, melancólico e superficial, um lamento em fibras de palmeira, que parecia dizer-lhe que ninguém é feliz, mas isso também pouco importava, as coisas seriam sempre assim.

- Cuida de ti, Emily - repetiu. Era a única coisa que se sentia capaz de escrever; não podia descrever-lhe os caminhos escarpados e estreitos, perdidos do mundo, nem as serpentes sibilantes como línguas de fogo, nem as ratazanas, nem o pó e os corpos enfermos e nus. Já não podia mais com tanta nudez.

- Não te esqueças. - Era como viver com uma manada de bois.

- O soba - segredou o moleque.

Por entre as cabanas, à luz ondulante dum archote, aproximava-se um velho robusto, que trazia um vestido de pano indígena e um chapéu de feltro amolgado. Atrás dele vinham os seus homens, transportando seis taças de arroz, uma taça de óleo de palma e duas tigelas de carne retalhada.

- É carne para os trabalhadores - explicou o moleque. E o Sr. Lever teve de levantar-se, sorrir, agradecer e tentar explicar por gestos que estava satisfeito, que a carne era excelente, que o soba teria uma boa gorjeta na manhã seguinte.

- Pergunta-lhe - disse ele ao moleque - se viu passar por aqui há pouco tempo um homem branco. Pergunta-lhe se andou por aqui um homem branco a cavar. Cos diabos! - explodiu o Sr. Lever, o suor rebentando-lhe nas costas das mãos e na cabeça calva. - Pergunta-lhe se viu Davidson!

- Davidson?!

- Que diabo! - exclamou o Sr. Lever. - Bem sabes o que eu quero dizer. O homem branco de quem ando à procura.

- Um homem branco?

- Que julgas tu que vim aqui fazer, hem? Um homem branco? Pois claro, um homem branco! Não vim aqui para tratar da saúde!

Uma vaca mugiu, roçando os chifres pela cabana, e dois bodes irromperam entre ele e o soba, voltando as tigelas com os pedaços de carne dentro. Ninguém se importou. Voltaram a apanhar a carne caída no pó e no estrume.

O Sr. Lever sentou-se e cobriu a face com as mãos, umas mãos brancas, gordas e bem cuidadas, com refegos à roda dos anéis. Sentia-se muito velho para estas coisas.

Chefe dizê que nenhum branco está aqui há muito tempo.

- Quanto tempo?

- Chefe dizê que desde quando paga imposto de cabana.

- Há quanto tempo é isso?

- Há muito, muito tempo.

- Pergunta-lhe quanto é daqui a Greh, amanhã.

- Chefe dizê muito longe.

- Que disparate! - disse o Sr. Lever.

- Chefe dizê muito longe. Melhor fica aqui. Bonita cidade. Ninguém incomoda patrão.

O Sr. Lever resmungou qualquer coisa. Todas as noites era o mesmo sarilho. A próxima cidade era sempre muito longe. Tinham sempre qualquer desculpa a dar para o demorarem e eles próprios descansarem.

- Pergunta ao chefe quantas horas são.

- Muitas, muitas

Não faziam ideia nenhuma do tempo.

- Este sê bom chefe. Boa carne. Carregadores cansados. Ninguém incomoda patrão.

- Vamos para a frente.

- Esta boa cidade. Chefe dizê...

Ele pensou: «Se esta não fosse a última oportunidade, desistia».

Maçavam-no tanto, que desejou de repente falar com outro homem branco (não Davidson, não ousava dizer nada a Davidson) para lhe explicar a sua sorte desesperada. Não era justo que após trinta anos de caixeiro viajante tivesse necessidade de andar de porta em porta a pedir emprego. Tinha sido um bom viajante, tinha ganho dinheiro para muita gente, tinha óptimas referências, mas o mundo mudara muito desde que ele começara. Já não andava a par de muitas coisas. Não andava, não. Estava reformado havia dez anos quando a depressão lhe levou quanto dinheiro possuía.

O Sr. Lever andou então Victoria Street abaixo, Victoria Street acima, mostrando as suas credenciais. Muitos conheciam-no. Ofereciam-lhe charutos e riam-se amigavelmente de ele querer voltar a arranjar emprego na sua idade. («Não sei porquê não posso ficar em casa. Compreendem, sou um velho cavalo de batalha...») Fazia soar uma ou duas graças à saída e voltava nessa noite para casa, em Maidenhead, silencioso na sua carruagem de primeira classe, amarfanhado pela idade e pela ruína, pensando como a vida lhe corria mal e o pobre diabo da mulher provavelmente doente.

Foi num acanhado e modesto escritório de Leadenhall Street que o Sr. Lever encontrou a sua oportunidade. Intitulavam-se eles uma Firma de Engenharia, embora possuíssem apenas duas salas, uma dactilógrafa - uma rapariga com dentes de oiro - e o Sr. Lucas, um homem alto e magro, com um tique numa pálpebra.

Durante todo o tempo que durou a entrevista, a pálpebra tremelicou diante do Sr. Lever. O Sr. Lever nunca descera tanto.

Mas o Sr. Lucas deu-lhe a impressão de ser um homem relativamente honesto. Pôs «todas as cartas na mesa». Não tinha capital, mas tinha esperanças - possuía uma patente para uma nova trituradora. Representava um negócio rendoso, mas não era de esperar que as grandes empresas fossem renovar as suas máquinas numa altura como aquela. As coisas estavam muito negras. Era preciso começar pelo princípio e era aí, pois claro, era aí que aparecia o soba, as tigelas com carne, esta maçada toda, as ratazanas, o calor.

Estes diziam constituir uma república, como explicou o Sr. Lucas, embora ele próprio não soubesse nada ao certo sobre o assunto. Supunha apenas que não eram tão negros como os pintavam (ah! ah! ah! riu nervosamente). Uma empresa espalhara vários agentes pela fronteira e acabara por conseguir uma concessão de oiro e diamantes. Podia mesmo confidenciar ao Sr. Lever que essa grande empresa suspeitava poder encontrar qualquer coisa de muito mais importante. Ora, para um homem de iniciativa, bastava saber furar (o Sr. Lucas gostava muito da palavra «furar». Tornava tudo mais fácil e secreto) e apresentar-lhes esta nova trituradora, que os faria poupar milhares quando começassem a trabalhar. Seria uma comissão choruda, e, depois, com um princípio destes... era uma fortuna para todos.

- Mas não poderei fazer isso na Europa? Tiquetique, fez a pálpebra do Sr. Lucas.

- Muitos deles são belgas, mas relegaram todas as decisões no homem que lá está, um inglês chamado Davidson.

- E quanto a despesas?

- Isso é que é o diabo! - disse o Sr. Lucas. - Estamos apenas no começo e precisamos dum sócio. Não podemos mandar ninguém por nossa conta. Mas se quer arriscar... damos-lhe vinte por cento de comissão.

- Chefe pedir desculpa...

Os carregadores acocoravam-se em volta das tigelas e mostravam a mão esquerda cheia de arroz.

- Claro. Pois claro - disse distraidamente o Sr. Lever. - É muito amável.

Estava muito longe do pó e da escuridão, longe do fedor dos bodes, do óleo de palma e das cadelas prenhes. Viu-se de novo no almoço de rotários no Stone's, com a sua caneca de «Old» e os jornais de comércio; voltou a ser aquele tipo um pouco «tocado», que tentava encontrar o caminho para Golders Green, o emblema maçónico tilitando na corrente do relógio; desde a estação do metropolitano até à sua casa em Finchley Road, levara consigo uma sensação de camaradagem, de histórias picantes e fanfarronadas, um sentimento de bravura.

Precisava agora de toda a sua bravura - as últimas economias tinham desaparecido na viagem. Em trinta anos aprendera a distinguir uma coisa boa só de a ver e não tinha quaisquer dúvidas sobre a nova trituradora. Duvidava era da sua habilidade para encontrar Davidson. Para começar, não havia mapas da região. Na República viajava-se assim: escrevia-se uma lista de nomes e esperava-se que nas várias aldeias por onde se ia passando alguém percebesse o que se tinha escrito e conhecesse o caminho. Mas eles diziam sempre «muito longe». Toda a cordialidade esmorecia logo a esta frase.

- O quinino - pediu o Sr. Lever. - Onde está o meu quinino?

O moleque nunca sabia de nada. Eles queriam lá saber do que lhe acontecia! O sorriso na face deles não significava nada e o Sr. Lever, que dos negócios conhecia melhor que ninguém o valor dum sorriso sem significado, ressentia-se do seu desinteresse. Voltou para o moleque indolente uma expressão de malogro e desgosto.

- Chefe dizê que homem branco está na selva, a cinco horas daqui.

- Assim já nos entendemos - retorquiu o Sr. Lever. - Deve ser Davidson. Viram-no cavar à procura de oiro?

- Sim. Homem branco cava a selva para oiro.

- Partiremos amanhã de manhã   cedo - disse o Sr. Lever.

- Chefe dizê melhor fica nossa cidade. Febre atacou homem branco.

- Que pena! - lamentou o Sr. Lever, mas pensou com satisfação: «A minha sorte mudou. Ele deve precisar de auxílio. Não me recusará nada. Um amigo na necessidade, é um amigo de verdade» - e, no seu coração, sentiu afecto por Davidson. Já se via saindo da floresta como que em resposta a uma prece, qual mensageiro bíblico ou voz humana. Pensou: «uma prece... Vou rezar esta noite. É uma coisa que um tipo deixa de fazer, mas que compensa; é qualquer coisa especial», e recordou a longa prece angustiada, feita de joelhos ao pé do guarda-loiça, por baixo das garrafas, quando Emily tinha ido para o hospital.

- Chefe dizê homem branco está morto.

O Sr. Lever voltou-lhe as costas e entrou na cabana. A manga do casaco quase fez tombar o candeeiro. Despiu-se rapidamente e meteu a roupa numa mala, por causa das baratas. Não acreditava no que eles tinham dito; mal dele se acreditasse. Se Davidson estivesse morto, só lhe restaria voltar. Tinha gasto mais do que estava nas suas posses. Seria um homem arruinado. Emily poderia ir morar com o irmão, mas não era de esperar que o irmão... Começou a chorar, mas, na cabana às escuras, era difícil distinguir o suor das lágrimas. Ajoelhou-se diante do leito de campanha e da rede contra os mosquitos e rezou no pó do chão térreo. Até então tinha tido o máximo cuidado em não tocar o solo com os pés nus, com receio das matacanhas. Por toda a parte havia matacanhas. Era só dar-lhes ocasião a introduzirem-se nas unhas dos pés, onde punham os ovos e se multiplicavam.

- Oh, meu Deus! - rezou o Sr. Lever. - Não permitais que Davidson tenha morrido. Fazei somente que esteja doente e fique contente por me ver.

Não suportava a ideia de já não poder sustentar Emily.

- Oh, Deus! Faria tudo por ela.

Mas era uma frase oca. Na realidade, não tinha uma noção exacta daquilo que era capaz de fazer por Emily. Havia trinta e cinco anos que eram felizes; nunca lhe havia sido infiel, a não ser momentaneamente, quando, um pouco tocado depois dum jantar de rotários, fora arrastado pelos companheiros.

Encontrasse a mulher que encontrasse, nunca pensava, nem por momentos, que poderia ter casado com outra. Agora não era justo que, velhos e precisando mais do que nunca um do outro, tivessem ficado sem dinheiro e fossem forçados a separar-se.

Mas, evidentemente, Davidson não tinha morrido. De que havia ele de ter morrido? Os pretos eram afáveis, e, embora se dissesse que a terra era insalubre, ele nunca ouvira um único mosquito sequer. Além de que ninguém morre de malária. Basta uma pessoa deitar-se entre cobertores e tomar quinino para sentir que, com o suor, expulsa a morte do corpo para fora. Havia ainda a desinteria, mas Davidson era um campista experiente. Bastava ferver e filtrar a água. De facto a água era venenosa, mesmo ao tacto. Era perigoso até molhar os pés, por causa da filária, mas ninguém morre de filaria.

O Sr. Lever deitou-se na cama. Os pensamentos, girando-lhe na cabeça, não o deixavam dormir. Pensava ele: «Não se morre por causa das filárias. Abrem chagas nos pés, mas, pondo o pé dentro de água, vêem-se perfeitamente os ovos a sair cá para fora. É preciso é descobrir o fim do verme semelhante a um fio de algodão e enrolá-lo à roda dum fósforo, ou em volta da perna, sem o partir. Às vezes chega até ao joelho. Estou muito velho para esta terra.»

Viu então o criado novamente diante de si. Através da rede dos mosquitos, sussurrou apressadamente ao Sr. Lever:

- Patrão, os carregadores dizê que vão para casa.

- Para casa? - exclamou o Sr. Lever aborrecido. Já tinha ouvido aquilo tantas vezes!

- Porque querem eles ir para casa? Que temos agora? Mas, na verdade, não lhe interessava saber qual tinha sido desta vez a disputa: que não mandavam os negros bande acarretar água, porque o capataz era um bande; que um roubara uma lata de melaço vazia e a vendera na aldeia por um pataco; que aquele outro não tinha força» para levar a carga que lhe pertencia; que a jornada do dia seguinte era «muito longe». Disse ao rapaz:

- Pois diz-lhes que podem ir. Amanhã de manhã pago-lhes. Mas não levam gorjeta. Se ficassem, haviam de ter uma boa gorjeta.

Ele bem sabia que aquilo era nova tentativa da parte deles. Não estava assim tão verde.

- Sim, patrão. Mas eles não querê gorjeta.

- O quê?

- Tem medo que febre apanhá-los, como apanha homem branco.

- Podem ir para casa. Arranjarei carregadores na aldeia.

- Eu ir também, patrão.

- Põe-te a mexer - disse o Sr. Lever. Esta gota fizera transbordar a taça. - Põe-te a mexer e deixa-me dormir.

O rapaz desapareceu logo, obedecendo, apesar de desertor, e o Sr. Lever pensou: «Dormir! Quem me dera!

Levantou a rede, saltou da cama (de novo descalço. Queria lá saber das matacanhas) e procurou a caixa dos remédios. Estava fechada à chave, evidentemente, e ele teve de ir à mala buscar a chave, que se encontrava no bolso das calças. Sentia como nunca os nervos em franja, até que encontrou as pílulas para dormir e tomou três duma vez. Isso obrigou-o a dormir um sono pesado e sem sonhos, mas, quando acordou, qualquer coisa o levou a lançar um braço para fora da rede. Se houvesse por ali algum mosquito, tê-lo-ia picado com certeza, mas não havia nenhum.

Percebeu logo que os sarilhos não tinham acabado.

A aldeia - não sabia como se chamava - coroava o topo duma colina; a leste e a oeste e desdobrando-se abaixo do planalto, havia a floresta; a oeste era uma massa escura e incaracterística como água, mas a leste distinguia-se a sua irregularidade, com as grandes e cinzentas árvores do algodão erguendo-se acima das palmeiras. O Sr. Lever costumava ser acordado antes do amanhecer, mas hoje ninguém o tinha chamado. Alguns dos seus carregadores estavam sentados no exterior duma cabana, e falavam com ar taciturno. O moleque estava com eles. O Sr. Lever reentrou na cabana e vestiu-se. Pensava insistentemente que tinha de mostrar-se firme, mas sentia-se aterrado, aterrado à ideia de ser abandonado, de ter de tornar para trás.

Quando voltou a sair, a aldeia tinha acordado: as mulheres desciam a colina para ir buscar água, torneando em silêncio os carregadores sentados, as pedras lisas das sepulturas dos grandes chefes e o pequeno maciço de árvores, onde os papa-figos, semelhantes a canários verdes e amarelos, faziam o ninho. O Sr. Lever instalou-se na cadeira de desarmar, no meio das galinhas, das cadelas prenhes e da bosta dos bois e chamou o moleque. Adoptou um ar decidido, embora não soubesse o que ia acontecer.

- Vai dizer ao chefe que quero falar-lhe - ordenou ele. Houve uma curta demora; o chefe ainda não se tinha levantado, mas logo apareceu nas suas vestes azuis e brancas, o chapéu de feltro muito direito sobre a cabeça.

- Diz-lhe - pediu o Sr. Lever - que quero carregadores para me levarem até onde está o homem branco e depois voltar. Por dois dias.

- Chefe não está de acordo - traduziu o moleque.

O Sr. Lever ficou furioso:

- Que vá pró diabo, se não está de acordo. Também não há-de ver dinheiro meu. Nem um centavo.

Ocorreu-lhe quase logo que dependia desesperadamente da honestidade desta gente. Dentro da sua cabana, à vista de todos, encontrava-se a caixa onde guardava o dinheiro. Era só pegar nela e levá-la. Isto aqui não era uma colónia britânica ou francesa. Os negros do litoral pouco se importariam, ou nada poderiam fazer, mesmo que se importassem, se um inglês fosse roubado no interior.

- Chefe pergunta quantos.

- É só por dois dias - explicou o Sr. Lever. - Posso arranjar-me com seis.

- Chefe pergunta por quanto.

- Seis dinheiros por dia, com comida.

- Chefe não está de acordo.

- Sejam então nove dinheiros.

- Chefe está muito longe. Um xelim.

- Está bem. Está bem - concordou o Sr. Lever. Seja um xelim. Vós outros podeis ir para casa, se quiserdes. Pago-vos agora, mas não tereis gorjeta. Nem um centavo.

Na verdade, nunca julgara que pudessem abandoná-lo e sentiu-se tristemente só quando os viu debandar de rosto carrancudo (envergonhados consigo próprios) pela colina abaixo, na direcção oeste. Não iam carregados, mas também não cantavam. Iam desaparecendo em silêncio, levando consigo o moleque e deixando-o sozinho com uma pilha de caixotes e com o chefe, que não falava uma palavra de inglês. O Sr. Lever teve um sorriso nervoso.

Eram já dez horas quando os novos carregadores acabaram de ser escolhidos. Bem sabia que nenhum deles desejava ir e que teriam de caminhar debaixo do calor do meio-dia se quisessem encontrar Davidson antes do escurecer. Oxalá o chefe tivesse explicado convenientemente o local para onde iam. Sentia-se completamente isolado deles, e, quando começaram a descer a colina pela encosta leste, era como se caminhasse sozinho.

Foram imediatamente cercados pela floresta. A floresta traz sempre uma sensação de selvajaria e beleza, de força natural e activa, mas esta mata liberiana não era mais que um insípido ermo verde. Por um atalho que tinha pouco mais que a largura dum pé, atravessava-se um interminável mato de ervas daninhas, emaranhadas umas nas outras. Dava a impressão que em vez de crescerem, estavam morrendo em torno de nós. Não havia ali qualquer espécie de vida, salvo algumas grandes aves, cujas asas rangiam por cima da cabeça, no céu invisível, como portas não lubrificadas. Não havia horizonte nem saída para os olhos, nenhuma mudança de cenário. Não era o calor que cansava, mas o tédio; era preciso pensar em coisas em que pensar; mas nem mesmo Emily conseguia preencher-lhe o espírito por mais de três minutos de cada vez. Foi um alívio e uma variante quando o caminho apareceu inundado e o Sr. Lever teve de ser transportado às costas dum homem. A princípio sentira-se incomodado pelo forte odor amargo que eles exalavam (lembrava-lhe qualquer coisa que lhe davam em criança ao pequeno almoço), mas depressa se habituara. Agora, nem notava que eles tinham qualquer cheiro. Tão-pouco notava a beleza das grandes borboletas, semelhantes a caudas de andorinhas, que se levantavam em bandos à borda de água e esvoaçavam em compactas nuvens verdes em torno do seu peito. Os seus sentidos encontravam-se embotados e pouco mais registavam que o próprio aborrecimento.

Mas conseguiram ainda registar uma sensação nítida de alívio quando o chefe dos carregadores apontou para um buraco rectangular, cavado mesmo ao lado do caminho. O Sr. Lever compreendeu. Davidson tinha vindo por ali. Parou e olhou para o buraco. Parecia uma sepultura destinada a um homem baixo, embora mais profunda do que costumam ser as sepulturas. Cerca de uns trinta e cinco metros abaixo, corria água negra, e as escoras que impediam as paredes de ruir começavam a apodrecer. O buraco devia ter sido cavado depois das chuvas. Mas não parecia bastante, aquele buraco, para ter feito surgir ali o Sr. Lever, com todos os seus planos e cálculos para uma nova trituradora. Ele estava acostumado às grandes empresas industriais, às bocas de mina, ao fumo das chaminés, às imundas filas de casas, traseira com traseira, às cadeiras de braços estofados dos gabinetes, ao bom charuto e aos maçónicos apertos de mão, e, de novo, como no escritório do Sr. Lucas, pareceu-lhe que tinha descido muito. Era como se esperassem que ele entrasse a falar de negócios à vista dum buraco cavado por uma criança num terreno abandonado.

Abanou a cabeça. Não devia desanimar. Esta cova era já antiga. Desde então, Davidson fizera com certeza melhor. Não passava de mera crença supor que o filão de oiro, minado na Nigéria numa extremidade e na outra em Serra Leoa, passava através da República. Até as minas maiores tinham de começar por um simples buraco no solo. A companhia (ele falara em Bruxelas com os directores) tinha-se mostrado muito confiante. Bastava-lhes que o homem que estava ali aprovasse a nova trituradora como apropriada às condições locais. Não tinha mais que obter uma assinatura, pensava consigo mesmo ao fixar o fundo lamacento da água escura.

Cinco horas, dissera o chefe, mas já tinham decorrido seis e eles continuavam a caminhar. O Sr. Lever não comera nada; primeiro queria chegar até Davidson.

Envolto pelo calor do dia, ele caminhava. A vegetação protegia-o do sol directo, mas impedia a entrada do ar e as clareiras que atravessavam de quando em quando, embora ressequidas pelos raios verticais, pareciam mais frescas que a sombra, pois havia um pouco mais de ar para respirar.

Às quatro horas, o calor diminuiu, mas ele começou a temer não chegar junto de Davidson antes do cair da noite. Doía-lhe um pé - a noite passada tinha apanhado uma matacanha. Parecia que estavam a chegar-lhe um fósforo aceso ao dedo. Depois, às cinco horas, encontraram um preto morto.

Um segundo buraco rectangular, cavado no meio dum pequeno espaço liberto da vegetação empoeirada, atraíra o olhar do Sr. Lever. Quando se inclinou, ficou chocado com um rosto que retribuía o seu olhar, as córneas luzentes como fósforo na água escura. O negro tinha sido dobrado em dois para caber ali. O buraco era realmente tão pequeno que não servia de sepultura e o corpo inchara.

Assemelhava-se a uma empola que se poderia furar com uma agulha. O Sr. Lever sentiu-se agoniado e cansado; se houvesse possibilidade de chegar à aldeia antes do cair da noite teria voltado para trás. Mas, assim, não havia outra coisa a fazer senão prosseguir. Felizmente, os carregadores não tinham visto o corpo. Fez-lhes sinal para continuarem e cambaleou atrás deles por entre as raízes, lutando contra a náusea. Abanou-se com o capacete; o rosto largo e gordo estava pálido e húmido de suor. Até então nunca tinha visto um corpo abandonado. Os pais haviam sido cuidadosamente sepultados, de olhos fechados e rosto lavado, tinham «adormecido», como rezava o epitáfio, mas não se poderia dizer o mesmo daquelas córneas brancas e face inchada. O Sr. Lever gostaria de ter dito uma prece, mas qualquer prece estaria deslocada na floresta morta, silenciosa e sempre igual. Não lhe ocorria nenhuma.

Com o lusco-fusco sentiu-se despertar um fragmento de vida: algo vivia entre as ervas secas e as árvores frágeis ainda que fossem só macacos. Ouviam-se-lhes as vozes e os gritos, mas já estava tão escuro que não os via; como cegos no meio duma multidão, assustada por qualquer motivo que desconheciam, caminhavam também os carregadores assustados. Corriam vergados ao peso da carga de cinquenta libras, seguindo a luz vacilante da lanterna, os enormes pés chatos de carregador batendo o pó como luvas vazias. O Sr. Lever estava nervosamente atento ao zumbido dos mosquitos. Era natural que houvesse já alguns àquela hora, mas não ouviu um sequer.

Então, no topo duma colina acima dum pequeno curso de água, encontraram Davidson. O solo fora limpo numa zona correspondente a um quadrado de doze pés, onde se levantava uma pequena tenda. Tinha cavado outro buraco. O local ia surgindo obscuramente, à medida que eles subiam o carreiro: os caixotes de mantimentos empilhados no exterior da tenda, o sifão da água gasosa, o filtro, uma bacia de esmalte. Mas não se via luz nem se ouvia qualquer som. A abertura da tenda não estava fechada e o Sr. Lever começou a encarar a possibilidade de o chefe ter razão.

O Sr. Lever pegou na lanterna e penetrou na tenda. Na cama jazia um corpo. A princípio, o Sr. Lever julgou que Davidson estava coberto de sangue, mas só depois compreendeu que fora um vómito escuro o que lhe manchara a camisa e a bela pêra que lhe cobria o queixo. Estendendo a mão, tocou a face de Davidson, e, não fora ter sentido uma leve respiração sobre a palma, tê-lo-ia dado por morto, tão fria estava a pele. Aproximou mais a lanterna e a face amarelo-limão do outro revelou-lhe tudo quanto queria saber. Nunca tinha pensado em tal, quando o moleque lhe falara de febre. Era realmente verdade que ninguém morria de malária, mas veio-lhe à ideia uma notícia que lera casualmente em 98, na cidade de Nova Iorque - deflagrara uma epidemia de febre amarela no Rio e noventa e quatro por cento dos casos tinham sido fatais.

Pouco significara para ele tal notícia, na altura em que a lera. Mas agora interessava-lhe bastante. Enquanto ele olhava, Davidson estava mal, inerte; parecia uma torneira, por onde se escoava qualquer coisa.

A princípio, o Sr. Lever teve a sensação de que aquilo era o fim, o fim da viagem, das suas esperanças, da sua vida com Emily. Já não podia fazer nada por Davidson. O homem estava inconsciente e o pulso era por vezes tão fraco e irregular que o Sr. Lever o julgaria morto, se nova lufada negra não lhe irrompesse de vez em quando da boca. Nem sequer valia a pena limpá-lo.

O Sr. Lever pôs os seus próprios cobertores sobre a cama, em cima de Davidson, porque este estava muito frio, mas não fazia ideia se procedia bem ou se estava a cometer um erro fatal. A possibilidade de sobreviver, se é que havia alguma, não dependia de nenhum deles. Lá fora, os carregadores tinham acendido uma fogueira e cozinhavam o arroz que haviam trazido consigo. O Sr. Lever armou a cadeira e sentou-se junto da cama. Queria manter-se acordado; parecia-lhe que era o que tinha a fazer. Abriu a mala e encontrou a carta que começara a escrever para Emily.

Sentado junto de Davidson, tentou escrever, mas não conseguia pensar em nada de diferente daquilo que já tinha escrito: «cuida de ti. Não te esqueças de beber cerveja preta e leite».

Adormeceu em cima da almofada e acordou às duas. Pensou que Davidson já tinha morrido, mas enganou-se novamente. Estava cheio de sede; o moleque fazia-lhe falta. A primeira coisa que o moleque costumava fazer ao fim duma caminhada era acender uma fogueira e pôr uma chaleira em cima. Depois, quando a mesa e a cadeira estavam a postos, havia já água pronta para o filtro. O Sr. Lever encontrou meio copo de água no sifão de Davidson. Se estivesse apenas em jogo a sua saúde, ele teria descido até ao rio para beber, mas tinha de lembrar-se de Emily. Ao lado da cama havia uma máquina de escrever e ocorreu então ao Sr. Lever que podia muito bem começar o relatório do seu fracasso. Mantê-lo-ia acordado. Parecia-lhe que dormir era uma afronta ao moribundo. Encontrou papel debaixo de algumas cartas, que tinham sido dactilografadas e assinadas, mas não seladas. Davidson devia ter adoecido muito de repente. O Sr. Lever perguntou a si mesmo se teria sido ele quem pusera o preto na cova; talvez tivesse sido o moleque, - porém, não se viam sinais de criados.

Pôs a máquina em cima dos joelhos, e, no alto da carta, escreveu «Num acampamento, perto de Greh».

Parecia-lhe injusto ter vindo até tão longe, gasto tanto dinheiro, cansado um corpo já bastante velho, para encontrar a sua inevitável ruína numa tenda escura, perante um homem moribundo, quando podia tê-la encontrado à mesma em casa, junto de Emily, na pequena almofada da sala de estar. Revoltou-o a lembrança das preces que em vão rezara, ajoelhado junto do leito de campanha, entre matacanhas, ratazanas e baratas. Um mosquito, o primeiro que ouvia, começou a zumbir em volta da tenda. Atacou-o selvàticamente - não se teria reconhecido entre os rotários. Estava perdido e ao mesmo tempo liberto. A moralidade tornava um homem capaz de viver feliz e considerado entre os semelhantes, mas o Sr. Lever não era feliz nem considerado e o seu único semelhante na pequena tenda abafada não viria a ser incomodado por uma «Mentira Publicitária», nem pelo facto de o Sr. Lever cobiçar a galinha da vizinha. Não era possível manter intactas as ideias depois de descobrir a sua natureza geográfica.

A Solenidade da Morte... A morte não era solene; era apenas uma pele amarelo-limão e um vómito negro. A Honestidade é a mãe da Prudência... De repente, compreendeu como aquilo era falso e foi um anarquista aquele que se sentou satisfeito diante da máquina de escrever, um anarquista que não reconhecia nada, além duma relação pessoal, a sua afeição por Emily. O Sr. Lever começou a escrever à máquina: Examinei os planos e os cálculos da nova trituradora Lucas.

O Sr. Lever pensou com uma felicidade selvagem: «ganhei». Esta seria a última carta que a companhia receberia de Davidson. O sócio mais novo abri-la-ia no asseado escritório de Bruxelas, bateria na dentadura postiça com uma caneta Waterman, e iria depois falar com M. Golz. Tomando todos estes factos em consideração, recomendo que aceitem... Telegrafariam a Lucas.

Quanto a Davidson, esse fiel agente da empresa, teria morrido de febre amarela, numa data impossível de precisar. Nomeariam outro agente e a trituradora... O Sr. Lever copiou cuidadosamente a assinatura de Davidson sobre uma folha de papel à parte. Não ficou satisfeito. Voltou o original ao contrário e imitou-o nessa posição, para não ser influenciado pela disposição normal duma carta. Estava melhor, mas não se deu ainda por satisfeito. Pôs-se à procura, até que encontrou a caneta do próprio Davidson e de novo copiou a assinatura repetidas vezes. Adormeceu a copiá-la e, ao acordar uma hora mais tarde, descobriu que a lanterna se tinha extinguido; o petróleo havia-se esgotado. Ficou ali sentado, diante da cama de Davidson, até ao amanhecer. Um mosquito picou-o no tornozelo e ele fez estalar a mão, já demasiado tarde, sobre o sítio da picada. O insecto saiu da tenda zumbindo. Quando a luz do dia surgiu, o Sr. Lever verificou que Davidson estava morto.

- Valha-me Deus! - exclamou ele. - Pobre tipo.

Com estas palavras, cuspiu muito delicadamente para um canto o mau gosto matutino da boca. Eram as fezes do seu convencionalismo.

O Sr. Lever incumbiu dois carregadores de meterem Davidson convenientemente no seu buraco. Já não os temia; tão-pouco receava que o abandonassem ou que fracassasse. Rasgou a carta que escrevera para Emily. Na sua timidez, nos seus receios íntimos, nas suas ternas frases de inquietação - não esqueças a cerveja. Cuida de ti. já não reflectia o seu estado de espírito. Chegaria a casa ao mesmo tempo que a carta e fariam juntos muita coisa que nunca tinham sonhado fazer. O dinheiro da trituradora era apenas o começo. O seu pensamento ultrapassava Eastbourne e estendia-se até à Suiça. Tinha a sensação de que se ele quisesse, poderia mesmo conduzi-lo até à Riviera. Como se sentia feliz ao empreender aquela que imaginava ser a sua «viagem de regresso». Estava enfim liberto das peias que o tinham manietado ao longo da sua carreira pedante - o medo dum destino consciente que tem a noção da desonestidade, das prostitutas de Piccadilly, do copo a mais de bom vinho do Stone's. Agora tinha mandado ao diabo todos esses disparates...

Mas tu, leitor, tu que sabes muito mais que o Sr. Lever, que és capaz de seguir o voo do mosquito desde o corpo

inchado do preto até à tenda de Davidson e daí ao tornozelo do Sr. Lever, talvez acredites em Deus, um deus amável e condescendente para com a fragilidade humana, pronto a proporcionar ao Sr. Lever três dias de felicidade, três dias sem a dolorosa grilheta, enquanto atravessava a floresta, levando consigo as suas falsificações de amador e no sangue a infecção da febre amarela. A sua história poderia muito bem ter aumentado a minha fé nessa terna omnisciência, se esta não tivesse sido abalada pelo conhecimento directo da floresta erma e sempre igual, por onde o Sr. Lever caminhava agora tão alegre e onde é impossível crer em qualquer espécie de vida espiritual, em qualquer coisa que não seja a natureza morrendo em volta de nós, ou a míngua dos arbustos. Mas, evidentemente, há sempre duas opiniões acerca de tudo. Esta era a frase favorita do Sr. Lever, quando bebia cerveja no Ruhr, em Pernod, Lorena. e vendia maquinaria pesada.

 

                   VISLUMBRE DE EXPLICAÇÃO

MA longa viagem de comboio, ao fim duma tarde de Dezembro, nesta nova versão de paz, é uma experiência fatigante. E, no entanto, eu e o meu companheiro de viagem devíamos dar-nos por muito felizes por termos um compartimento só para nós, apesar do aquecimento não funcionar, das luzes se extinguirem por completo nos frequentes túneis apeninos, mergulhando-mos numa penumbra que não permitia ler sem forçar demasiado a vista, e apesar de não haver vagão-restaurante, para ao menos nos proporcionar uma mudança de cenário. Foi quando tentámos mastigar ambos o mesmo bolo seco, comprado no mesmo bufete de estação, que eu e o meu companheiro chegámos à fala. Até ali, tínhamos permanecido sentados extremos opostos da carruagem, ambos abafados até ao queixo dentro do sobretudo, ambos debruçados sobre a leitura que mal conseguíamos decifrar; porém, no ’momento em que lancei os restos do bolo sob o assento, os nossos olhos encontraram-se e ele pousou o livro.

Quando íamos a meio caminho do entroncamento de Bedwell, tínhamos descoberto um sem-número de assuntos para discussão; a partir do bolo e do tempo atmosférico, chegámos às questões políticas, ao governo e à política externa, à bomba atómica, e, por um progresso inevitável, a Deus. Contudo, nenhum de nós se tornou azedo ou agressivo.

O meu companheiro, sentado agora defronte de mim e um pouco inclinado para a frente, de modo que os nossos joelhos quase se tocavam, tinha um aspecto tão sereno, que teria sido impossível questionar com ele, por muito que os nossos pontos de vista diferissem, e diferiam na verdade profundamente.

Em breve compreendi que falava com um católico, alguém que acreditava - como costumam eles dizer? numa Divindade omnipotente e omnisciente, ao passo que eu, eu sou o que se costuma livremente designar por um agnóstico. Uma certa intuição diz-me (mas eu não acredito, porque se fundamenta em experiências e necessidades infantis) que Deus existe, e, por vezes, surpreendo-me a crer, em tal coisa, devido às extraordinárias coincidências que se atravessam no nosso caminho, como armadilhas postas na selva para apanhar leopardos, mas, intelectualmente, sinto-me revoltado pela noção de um Deus que abandona as suas criaturas às enormidades do Livre Arbítrio. Encontrei-me a exprimir esta ideia ao meu companheiro, que me escutava em silêncio respeitoso. Não fez qualquer tentativa para me interromper, nem deu mostras daquela impaciência ou arrogância intelectual que eu me acostumara a esperar dos católicos. Quando as luzes duma estação brilharam no seu rosto, que até então tinha escapado aos raios luminosos do único globo do compartimento, surpreendi nele um súbito relâmpago de... de quê? Cessei de falar, tão forte foi a impressão. Recuei dez anos atrás, antes do grande e inútil conflito, e vi-me numa pequena cidade, Gisors, na Normandia. Por momentos, voltei a caminhar pelas antigas ameias e a olhar por sobre os telhados cinzentos, até que os meus olhos pousaram, não sei porquê, numa das muitas traseiras de pedra, onde o rosto dum homem de meia-idade se comprimia contra o vidro da janela (julgo que esse rosto deixou já de existir, assim como creio que a cidadezinha, com todos os seus monumentos medievais, está agora reduzida a pó). Lembrei-me de ter dito para mim mesmo, com espanto: «aquele homem é feliz, totalmente feliz».

Olhei através do compartimento para o meu companheiro de viagem, mas o rosto dele mergulhara de novo na sombra. Disse em voz fraca:

- Quando penso no que Deus permite... se é que Deus existe. Não é somente a dor física, mas pense na corrupção, até das próprias crianças...

Ele retorquiu:

- A nossa compreensão é tão limitada! - e eu fiquei desapontado pelo convencionalismo da sua resposta. O meu desapontamento não lhe deve ter passado despercebido (os nossos pensamentos pareciam ter-se unido tão estreitamente como os nossos corpos o tinham feito para se aquecerem), porque ele continuou logo:

- Evidentemente que não encontramos resposta para isso. Só vislumbres...

Depois, o comboio, entrou, rugindo, noutro túnel e as luzes apagaram-se novamente. Este era o túnel mais comprido; seguimos através dele oscilando e o frio pareceu tornar-se mais intenso com a escuridão, como um nevoeiro gelado. Talvez quando um dos sentidos - a vista nos é tirado, os outros se tornem mais agudos. Quando emergimos no cinzento da noite e o globo se acendeu mais uma vez, reparei que o meu companheiro se recostava no assento.

Repeti as suas últimas palavras numa pergunta:

- Vislumbres?

- Oh! Significam muito pouco em letra morta ou na simples fala - disse ele, estremecendo dentro do sobretudo. - E não têm qualquer sentido para qualquer ser humano. Só para aquele que é capaz de os apreender. Não representam uma evidência científica, nem nada que torne o assunto claro. São acontecimentos que se dão diferentemente da intenção com que tinham sido pensados pelos actores humanos, ou pela coisa que se esconde por detrás desses actores humanos.

- A «coisa»?

- A palavra Satanás é tão antropomórfica!

Inclinei-me para a frente. Queria ouvir bem o que ele tinha para dizer. Costumo ser - Deus sabe como sou aberto à convicção.

Disse ele:

- As nossas palavras são sempre cruéis, mas às vezes tenho pena dessa «coisa». Esforça-se continuamente por encontrar a melhor arma a usar contra o seu Inimigo, mas todas as armas se quebram no seu próprio peito. Às vezes parece-me que ele é... impotente. Há pouco, o senhor disse qualquer coisa acerca da corrupção das crianças: isso lembrou-me um acontecimento da minha própria infância. O senhor é a primeira pessoa - além doutra - a quem vou contar o que se passou, talvez porque é um desconhecido. Não é uma história muito longa, mas, de certo modo, vem muito a propósito.

- Gostaria muito de a ouvir - exclamei.

- Não espere demasiado dela. Mas, segundo penso, encerra um vislumbre. Mais nada. Apenas um vislumbre.

Continuou a falar com lentidão, escolhendo as palavras exactas e voltando o rosto para o vidro, embora não pudesse ver no exterior qualquer sinal de realidade, à excepção duma luz numa janela ou uma pequena estação de província, que a velocidade do comboio deixava logo para trás.

- Quando era criança - começou ele - ensinaram-me a ajudar à missa. A igreja era pequena, porque na terra onde eu vivia, os católicos eram poucos. Era uma cidade mercantil em East Anglia, rodeada de monótonos campos gredosos e valas, muitas valas, Julgo que ao todo não havia mais de cinquenta católicos, e, por qualquer razão, existia contra nós uma hostilidade tradicional. Um mártir protestante fora queimado no século dezasseis. Havia um Marco a assinalar o local, perto do sítio onde às quartas-feiras se encontravam os talhos. Talvez esse fosse o motivo. Não tinha plena consciência dessa inimizade, embora soubesse que a minha alcunha escolar de «Martinho Padreca» estava de qualquer modo relacionada com a minha religião e tivesse ouvido dizer que, quando o meu pai chegara à cidade, não o tinham querido admitir no Clube Constitucional.

«Todos os domingos vestia a minha sobrepeliz e ia ajudar à missa. Detestava fazê-lo - sempre detestei vestir-me fosse do que fosse (o que, se pensarmos bem, tem a sua piada), mas receava ao mesmo tempo perder o meu lugar no serviço divino e cometer qualquer erro que me metesse a ridículo.

«Os ofícios divinos na nossa igreja realizavam-se a horas diferentes dos dos anglicanos, e, quando o nosso pequeno, mas seleccionado grupo, saía da capela feia, toda a gente da terra parecia afluir ao caminho que ia ter à igreja verdadeira - sempre a considerei a verdadeira.

«Tínhamos de passar perante olhares observadores, indiferentes, arrogantemente trocistas. Não supõe como a religião pode ser tomada a sério numa cidade pequena, ainda que apenas por motivos sociais.

«Entre essa gente havia especialmente um homem, um dos dois padeiros da cidade, donde a minha família não gastava. Julgo mesmo que nenhum católico gastava de lá, pois ele era o que chamavam um livre-pensador - uma designação estranha, porque, pobre homem, nenhumas ideias eram menos livres que as suas, limitadas pelo ódio que nos votava. Era um homem muito feio, com um olho vesgo e a cabeça do formato dum nabo, sem cabelo na coroa, e não era casado. Pelo menos, aparentemente, não tinha quaisquer outros interesses além da padaria e do seu ódio, embora agora, que sou adulto, comece a distinguir outras facetas do seu carácter - que continha, talvez, uma furtiva centelha de amor. Encontrava-o às vezes de repente, num passeio pelo campo, especialmente ao domingo, quando estava sozinho. Parecia surgir das valas, e o pó que lhe cobria as roupas fazia lembrar a farinha sobre o seu fato de trabalho. Costumava ter uma vara na mão, com a qual fustigava os arbustos, mas se estava mal disposto chamava-nos nomes feios e esquisitos, que mais pareciam duma língua estrangeira - hoje sei o significado dessas palavras, evidentemente. Uma vez, a polícia apareceu-lhe em casa, por causa do que um rapazito dissera ter visto, mas o caso não passou disso; somente, o ódio apossou-se dele com maior intensidade. Esse homem chamava-se Blacker e metia-me medo.

«Julgo que ele odiava especialmente o meu pai, não sei bem porquê. O meu pai era director do Banco Midland. Talvez Blacker tenha tido alguma vez negócios pouco limpos com o banco. O meu pai era um homem muito prudente, que toda a sua vida sofreu por causa do dinheiro, do dele e dos outros. Hoje, ao tentar retratar Blacker, vejo-o avançando ao longo dum caminho estreito, ladeado de altas paredes sem janelas, ao fundo do qual se encontra um rapazito de dez anos - eu. Não sei bem se é uma imagem simbólica, ou se é a recordação de algum dos nossos encontros - os nossos encontros, que cada vez se tornavam mais frequentes.

«O senhor falou há pouco na corrupção das crianças. Aquele pobre homem preparava-se para se vingar de tudo o que odiava - do meu pai, dos católicos, do Deus em que as pessoas persistiam em crer - e, para isso, ia tentar a minha corrupção. Tinha imaginado um plano tão horrível como engenhoso.

«Lembro-me da primeira vez que me dirigiu uma palavra amável. Eu passava junto da loja dele o mais depressa que me era possível, quando ouvi a sua voz chamar-me num tom de astuta subserviência, como se fosse meu criado: «Senhor David» - chamava ele - «Senhor David» - mas eu estuguei o passo.

«Da outra vez que passei por lá, estava ele à porta (deve-me ter visto aproximar), e segurava na mão um desses bolos secos a que chamamos caracóis. Não queria aceitar, mas ele obrigou-me e eu tive por isso de mostrar-me delicado quando me pediu que entrasse para a sala, que ficava por detrás da loja, porque tinha lá uma coisa especial para eu ver.

«Era um pequeno comboio eléctrico - coisa rara naqueles dias - e ele insistiu em mostrar-me como funcionava. Obrigou-me a manejar as agulhas, a pará-lo e a pô-lo em movimento e disse-me que poderia voltar lá noutra manhã para brincar com ele. Usou a palavra «brincar» como se se tratasse de qualquer jogo secreto, e, na verdade, eu nunca falei à minha família nesse convite, nem do desejo fremente que me levou a entrar na loja umas duas vezes por semana, durante aquelas férias - não sem antes olhar para um e outro lado da rua - para brincar com o pequeno comboio.»

O nosso comboio de adultos, maior e mais sujo, penetrou num túnel e a luz extinguiu-se. Sentados em silêncio no escuro, ficámos a ouvir o barulho do rodado, que obstruía como cera os nossos ouvidos. Depois de sairmos de sob a terra, permanecemos em silêncio e eu tive de o incitar a prosseguir.

- Uma sedução bem estudada - observei.

- Não pense que os planos dele eram assim tão simples - disse o meu companheiro - ou tão néscios. O seu carácter, pobre homem, abrigava mais ódio do que amor. Acha que é possível odiar uma coisa em que não se acredita? E, no entanto, ele intitulava-se livre-pensador. Que paradoxo incrível, ser livre e ao mesmo tempo obcecado! Dia após dia, durante aquelas férias, a sua obsessão deve ter aumentado, mas ele tinha mão nela; aguardava a sua vez. Talvez essa «coisa» de que falei lhe desse força e prudência. Foi só uma semana antes de acabarem as férias que ele me falou daquilo que tão profundamente o interessava.

«Ouvi-os atrás de mim, numa altura em que me ajoelhava no solo para juntar duas carruagens. Disse-me:

«Quando começar a escola já não pode brincar com isso, Senhor David». Não tinha comentários a fazer a esta frase, e tão-pouco à que se lhe seguiu: «se fosse seu, se fosse seu...». A habilidade e a naturalidade com que ele me infiltrou esse desejo, a possibilidade de vir a tê-lo!

«...Agora ia lá todos os dias. Compreende, tinha de aproveitar todas as oportunidades, antes que as malfadadas aulas começassem, e, afinal, ia-me acostumando a Blacker, ao olho vesgo, à sua cabeça de nabo, àquele servilismo repulsivo. O Papa, como sabe, intitula-se a si mesmo «servo dos servos de Deus», e Blacker... por vezes penso que Blacker era o servo dos servos do... bem, deixemos isso.

«Foi precisamente no dia seguinte, quando, em pé diante da porta, me via brincar, que ele começou a falar-me sobre assuntos religiosos. Disse-me, com uma falsidade que até eu pude reconhecer, que admirava muito os católicos, que desejaria poder também ser capaz de crer, mas como podia um padeiro ser crente? Frisou «um padeiro» como poderia ter dito um biólogo, enquanto o minúsculo comboio girava em volta da pista.

«Disse ainda: «Mas sou capaz de cozer tão bem isso que vocês comem, como qualquer católico» e desapareceu no interior da loja.

«Não fazia ideia do que ele queria dizer com aquilo. Surgiu então novamente, trazendo na mão uma pequena hóstia. «Tome», disse ele, «coma isto e depois diga-me...»

«Quando a coloquei na boca, ia jurar que era igualzinha às hóstias que comungamos, somente a forma era um tanto ou quanto irregular. Senti-me culpado e absurdamente aterrado. «Acha-lhe alguma diferença?» - perguntou-me. «Diferença?» - disse eu. «É ou não igual às que come na igreja?». «Mas esta não está consagrada», retorqui eu com afectação.

«Ele respondeu: «Pensa que se notava a diferença se eu visse as duas ao microscópio?» Mas, mesmo aos dez anos, eu tinha resposta para aquela pergunta. «Não», disse eu, «o... aspecto exterior é o mesmo» e ao pronunciar a palavra «aspecto» hesitei um pouco, porque me sugeriu a ideia da morte e da dor física.

«Blacker ripostou com um calor súbito: «Quem me dera apanhar uma das vossas na minha boca, só para ver...»

«Pode parecer-lhe estranho, mas, pela primeira vez, a ideia da transubstanciação adquiriu no meu espírito o seu verdadeiro significado. Tinha-a aprendido de cor e crescido assim com ela. A missa era para mim uma coisa tão morta como as frases do De Bello Galico e a comunhão uma coisa tão rotineira como a ginástica da escola, mas agora, de repente, encontrava-me em presença dum homem que a tomava a sério, tão a sério como o padre, o qual, naturalmente, pouco contava - era a sua profissão.

«Senti-me mais assustado que nunca. Ele disse: «Eu sei que isto é um disparate, mas gostava de provar uma». Respondi com ingenuidade: «Se fosse católico, podia prová-la». Olhou para mim com o olho são. Parecia um ciclope. Depois disse: «Não costuma ajudar à missa? Então não lhe deve ser difícil arranjar-me uma coisa dessas. Escute, dou-lhe este comboio em troca duma das suas hóstias... mas consagrada, note bem. Tem de estar consagrada».

«- Posso tirar uma do cálix», respondi-lhe. «Eu ainda pensava que o seu interesse era apenas profissional. Como padeiro, queria ver como eram feitas. «Não, não», disse ele. «Quero saber qual é o sabor do seu Deus». «- Não posso fazer tal coisa».

«- Nem por um comboio eléctrico, um comboio só para si? Não se aflija, em sua casa ninguém saberia. Mandava-lho embrulhado, com uma dedicatória dentro, que o seu pai poderia muito bem ler: Ao filhinho do Sr. Director. Um cliente agradecido. Ele ficava todo contente».

«Para nós, que somos adultos, isto parece-nos uma tentação vulgar, não acha? Mas tente reportar-se à sua própria infância.

«Tinha aos meus pês, assente no chão, uma rede completa de vias férreas rectas e curvas e uma pequena estação com carregadores, passageiros, um túnel, uma ponte para peões, uma passagem de nível, sinais, pára-choques, e, sobretudo, uma plataforma giratória. Subiram-me aos olhos lágrimas de desejo quando olhei para a plataforma. Era a minha peça favorita. Tinha um aspecto tão feio, mas tão prático e real!

«Disse numa voz fraca: «E como havia eu de fazer isso?».

«Como ele tinha estudado bem o terreno! Deve ter entrado surrateiramente na igreja por várias vezes e assistido à missa, escondido ao fundo. Não teria sido prudente, como deve compreender, apresentar-se à comunhão, numa cidade tão pequena como aquela. Toda a gente sabia quem ele era. Por isso, disse-me: «Quando fosse comungar, podia reter a hóstia por alguns momentos sob a língua. O menino e o outro acólito são os primeiros a comungar e eu reparei que um dia, depois disso, o menino foi atrás dum reposteiro buscar uma daquelas garrafinhas, que lá tinha esquecido». «A galheta», disse eu. «Sim, o sal e a pimenta», riu ele jovialmente e eu... bem, eu olhava para aquele pequeno comboio, com o qual não voltaria a brincar depois das aulas começarem.

«Disse-lhe. «E você engulia-a?». «Certamente», respondeu ele. «Era só enguli-la».

«Naquele dia não me apeteceu brincar mais com o comboio. Levantei-me e dirigi-me para a porta, mas ele deteve-me, agarrando-me pela lapela. «Este segredo é só entre nós dois», disse. «Amanhã é domingo. Ponha-a dentro dum sobrescrito e meta-ma à tarde na caixa do correio. Segunda-feira de manhã despacharei o comboio logo de manhã cedo.»

«Amanhã não», implorei-lhe.

«Outro domingo não me interessa. Dou-lhe somente esta oportunidade». Sacudiu-me devagar para cá e para lá. «Mas isto fica entre nós para sempre», repetiu. «Se alguém soubesse, tiravam-lhe o comboio e eu ajustava contas consigo. Havia de ser uma coisa horrível. Sabe bem como eu sou às vezes nos meus passeios de domingo. É impossível escapar-me. Apareço sempre onde menos me esperam. Nem mesmo em sua casa estaria seguro. Conheço muitas maneiras de entrar numa casa, quando as pessoas estão a dormir.»

«Arrastou-me para dentro da loja e abriu uma gaveta. Dentro da gaveta havia uma chave de aspecto esquisito e uma navalha de barba. «Esta gazua abre todas as fechaduras que eu quiser, e, além disso, posso usá-la também para ferir as pessoas». Depois, deu-me uma pancadinha na cara com os dedos gordos cheios de farinha e disse: «Não faça caso. O menino e eu somos amigos.»

«A missa daquele domingo está tão gravada na minha memória, em todos os seus pormenores, como se tivesse sido celebrada apenas há uma semana. Desde a Confissão até ao momento da Consagração, assumiu para mim uma importância terrível. Em toda a minha vida, só outra conseguiu ter a mesma importância - e talvez nem mesmo essa, porque esta era uma missa única, que não voltaria a repetir-se. Quando ajoelhei diante do altar juntamente com o outro acólito, e o padre, inclinado sobre mim, pousou a hóstia na minha língua, pareceu-me tão decisiva como os últimos sacramentos.

«Suponho que a minha resolução estava tomada, que ia realmente cometer o terrível acto - porque, como sabe, a nós parece-nos sempre um acto terrível - desde que vi Blacker observar-me do fundo da igreja. Tinha vestido o seu melhor fato domingueiro, e, como se lhe fosse impossível fugir à marca da profissão, tinha numa das faces uma pasta de talco seco, que aplicara certamente depois de ter feito uso da navalha que eu lhe vira. Durante todo o tempo não tirou os olhos de cima de mim e julgo que foi o medo - medo daquela coisa horrível e indefinida que ele ameaçara fazer - e a cobiça que me levaram a cumprir as suas instruções.

«O outro acólito levantou-se rapidamente, e, pegando na bandeja da comunhão, precedeu o padre Carey até à balaustrada do altar, onde ajoelhavam os outros comungantes. Eu colocara a hóstia sob a língua e tinha a sensação de ter ali uma bolha. Levantei-me e dirigi-me ao reposteiro para ir buscar a galheta, que propositadamente deixara na sacristia. Quando lá cheguei, olhei rapidamente em volta, à procura dum esconderijo e vi um exemplar antigo do Universe pousado numa cadeira. Tirei a hóstia da boca e inseria-a entre duas folhas - uma pasta informe e húmida. Depois pensei: «Talvez o padre Carey tenha posto aqui o jornal por qualquer motivo e encontre a hóstia antes que eu tenha tempo de vir cá buscá-la» e a enormidade do meu acto voltou a tomar posse de mim ao tentar imaginar qual o castigo em que incorreria. O assassínio é um crime corrente e tem já uma pena definida, mas para um acto como aquele o meu cérebro hesitava em fixar qualquer retribuição. Tentei tirar dali a hóstia, mas tinha-se colado pegajosamente entre as duas páginas; no meu desespero, rasguei um pedaço do jornal, e, amarrotando tudo, meti-o no bolso das calças. Quando voltei a cruzar o reposteiro, trazendo comigo a galheta, os meus olhos encontraram os de Blacker, que fez um esgar de encorajamento e infelicidade - sim, tenho a certeza, de infelicidade. Seria que ele procurava afinal algo de incorruptível?

«Pouco mais me lembro do que se passou naquele dia. Suponho que o meu espírito estava bastante atordoado e horrorizado, e, além disso, fui apanhado pelo familiar reboliço do domingo. O domingo, numa cidade de província, é o dia da sociabilidade. Toda a família se encontra em casa e os primos e tios mais afastados chegam a todo o momento, empilhados nos bancos detrás dos carros dos outros. Lembro-me de ver uma multidão como essa desembarcar em nossa casa e isso afastou temporariamente Blacker do primeiro plano do meu espírito. Havia entre eles uma tia Lucy, com um sorriso sonoro e cavo, que enchia toda a casa duma alegria mecânica e mais parecia o som dum riso gravado no interior duma parede de espelhos. Não tive oportunidade de sair sozinho, nem mesmo que o quisesse ter feito. Quando chegaram as seis horas e a tia Lucy e os primos partiram e a calma voltou, era demasiado tarde para ir a casa de Blacker e às oito era a hora de eu ir para a cama.

«Quase esquecera o que tinha guardado. Mas quando esvaziei os bolsos, a pequena bola de jornal recordou-me logo a missa, o padre inclinado sobre mim e o esgar de Blacker. Pousei o embrulho em cima da cadeira, junto da cama e tentei dormir, mas sentia-me apavorado com as sombras que os cortinados, movidos pelo vento, projectavam na parede, pelos estalidos dos móveis, pelo murmúrio do vento na chaminé, aterrado pela presença de Deus, ali em cima da cadeira. A hóstia sempre fora para mim... pois bem, apenas a hóstia. Conhecia teoricamente, como já lhe disse, aquilo em que devia acreditar, mas, de repente, quando alguém assobiou lá fora na rua, um assobio baixo, que eu conhecia, percebi que aquilo que tinha junto da cama era algo de infinito valor - algo pelo qual seria preciso pagar com a própria paz de espírito, algo tão odiado que devia ser amado como quem ama um pária ou uma criança em perigo.

«Esta é a linguagem de um adulto e era uma criança de dez anos quem jazia apavorada na sua cama, escutando o assobio vindo da rua, o assobio de Blacker; porém, suponho que ela sentia nitidamente o que estou agora a descrever.

O que eu quis explicar, quando falei dessa Coisa, seja ela o que for, que usa contra Deus todas as armas possíveis, foi que as suas intenções se malogram sempre, e em toda a parte, quando está à beira do êxito. Ela deve ter pensado que me tinha nas mãos, como Blacker pensara. Também devia estar muito certa de Blacker. Mas, meditando no que aconteceu depois ao pobre homem, pergunto a mim mesmo se não é caso para pensar que, mais uma vez, as suas próprias armas se voltaram contra ela.

«Por fim, não pude suportar mais aquele assobio e saltei da cama. Afastei um pouco as cortinas, e, mesmo por baixo da minha janela, com a luz batendo-lhe no rosto, estava Blacker. Se eu tivesse estendido o braço na direcção dele, os seus dedos poderiam ter-me tocado. Olhou para mim, o olho são brilhante de fome - só agora compreendo que o êxito próximo deve ter desenvolvido a sua obsessão quase até ao ponto da loucura. O desespero tinha-o trazido à minha casa. Sibilou na minha direcção: «David, onde está?».

«Retirei apressadamente a cabeça para dentro. «Dê-ma», disse ele em voz rápida. «Amanhã terá o comboio».

«Abanei a cabeça e ele insistiu: «Tenho aqui a navalha e a chave. É melhor deitá-la cá para baixo».

«Vá-se embora», disse-lhe eu, mas o medo não me deixava falar.

«Dou-lhe uma navalhada e depois apanho-a na mesma.» «Não, não fará isso», retorqui-lhe. Depois, dirigi-me à cadeira e peguei n'Ele. Havia apenas um local onde Ele estaria a salvo. Como não podia despegar a hóstia do papel, engoli ambos. O papel de jornal colou-se-me como uma casca de ameixa ao fundo da garganta, mas eu empurrei-o com água do jarro. Depois, voltei à janela e olhei para Blacker. Falou-me numa voz meiga, tentando conquistar-me. «Que fez dela, David? E para que fazemos tanto barulho por causa dum bocado de pão?» Olhava para cima com tanta cobiça e um ar tão suplicante, que, mesmo assim tão criança, duvidei que ele a considerasse apenas isso, já que a desejava tanto.

«Engoli-a», disse eu.

«Engoliu-a?»

«Sim. Vá-se embora».

«Aconteceu então uma coisa, que hoje me parece ainda mais terrível que o seu desejo de corrupção e que o meu acto irreflectido - começou a chorar. As lágrimas corriam obliquamente do olho são e os ombros estremeciam-lhe. Vi-lhe o rosto apenas por momentos, antes de ele curvar a cabeça e desaparecer no escuro a passos rápidos, sacudindo o crânio calvo como um nabo. Quando hoje penso nisso, é como se tivesse visto essa Coisa chorar a sua inevitável derrota. Tinha tentado usar-me como arma; eu quebrara-lhe nas mãos e ela chorava lágrimas de desespero, por meio de um dos olhos de Blacker.»

Os negros fornos do entroncamento de Bedwell ganharam forma ao longo da linha. O comboio fez a agulha e nós fomos atirados duma linha para a outra. Um saltar de faíscas, um sinal luminoso mudando para vermelho, altas chaminés lançando-se para o cinzento céu nocturno, vapores emanando de máquinas gigantescas, - e metade da fria jornada tinha passado.

Agora restava a longa espera pelo vagaroso comboio regional.

- É uma história interessante - disse eu. - Porém eu julgo que, no seu lugar, teria dado a Blacker o que ele desejava, para ver o que ele faria.

- O que eu suponho - manifestou o meu companheiro

- é que, primeiro que tudo, ele teria ido vê-la ao microscópio, antes de fazer o mais que deve ter planeado.

- E o vislumbre? - perguntei. - Não percebo bem o que me quis dizer com isso.

- Oh! - disse ele com ar vago. - Sabe, quando penso naquele começo, parece-me ter sido bem estranho.

E eu nunca teria percebido o que ele queria dizer, se, quando se ergueu para ir retirar a mala da rede, eu não tivesse visto, através do casaco aberto, o cabeção dum padre.

- Parece-me que o senhor deve muito a Blacker - disse eu.

- Sem dúvida - respondeu-me. - Compreende, sou realmente um homem muito feliz.

 

                   A SEGUNDA MORTE

ELA encontrou-me à tardinha, debaixo das árvores que cresciam fora da aldeia. Nunca lhe ligara importância e ter-me-ia escondido se a tivesse visto chegar. Tenho a certeza de que era a culpada dos vícios do filho, se é que eram vícios. Estou muito longe de admitir que eram. Afinal ele era generoso e nunca mesquinho, como muitos outros da aldeia, que eu poderia mencionar, se quisesse.

Eu estava profundamente absorto a contemplar uma folha; doutro modo, ela nunca me teria encontrado. Pendia da haste, quebrada pelo vento ou talvez por uma pedra lançada por algum dos garotos da aldeia. Apenas a pele verde e resistente da haste a mantinha em suspensão.

Estava a observá-la muito de perto, porque uma lagarta rastejava ao longo da sua superfície, fazendo baloiçar a folha para cá e para lá.

A lagarta pretendia atingir a haste e eu perguntava a mim mesmo se ela conseguiria alcançá-la, ou se a folha cairia antes disso, arrastando-a consigo para a água. Sob as árvores havia um lago, onde a água parecia sempre vermelha, devido à densa argila do solo.

Nunca soube se a lagarta chegou a alcançar a haste, porque, como disse, o diabo da mulher deu comigo. Só me apercebi da sua chegada quando lhe ouvi a voz, mesmo por detrás do meu ouvido.

- Procurei-o em todas as tabernas - falou ela no seu tom esganiçado de velha.

Aquele «todas as tabernas» era mesmo dela, quando afinal só havia duas no lugar. Gostava muito que lhe atribuíssem trabalho que nunca tinha tido.

Fiquei aborecido e não pude deixar de lhe falar num tom um pouco áspero.

- Podia ter-se poupado a maçada - observei-lhe eu. Tinha obrigação de saber que eu não iria à taberna numa noite tão bonita como esta.

A velha víbora tornou-se logo humilde. Sabia ser mansa sempre que queria qualquer coisa.

- É por causa do meu pobre filho - acrescentou ela.

Aquilo queria dizer que ele estava doente. Quando se encontrava de saúde, nunca lhe ouvi coisa melhor que «aquele danado do rapaz». Obrigava-o a estar em casa à meia-noite todos os dias da semana, como se um homem pudesse perder alguma coisa numa aldeia tão pequena como a nossa. Claro que não tardámos muito a arranjar maneira de a intrujar, mas o que eu não aceitava era o fundamento daquela ideia - um homem adulto, com mais de trinta anos, a ser mandado pela mãe, lá porque ela não tinha marido para dominar. Mas, bastava ele adoecer com uma pequenina constipação, para passar logo a ser o «meu pobre filho».

- Está a morrer - lamentou-se ela. - Deus sabe o que farei sem ele.

- Não vejo em que possa ajudá-la - retorqui.

Estava irritado. Estivera já a morrer uma vez e ela tinha feito tudo, excepto sepultá-lo mesmo. Supunha que era a mesma coisa desta vez, aquela espécie de morte que um homem vence facilmente. Ainda uma semana antes me detivera a vê-lo subir a colina para ir ter com a rapariga da herdade, que possuía uns grandes seios. Observei-o até que ele não foi mais que uma manchazinha negra, que estacionou repentinamente junto dum caixote quadrado cinzento, no meio dum campo. Era o celeiro onde eles costumavam encontrar-se. Como tenho bons olhos, divirto-me a experimentar o grau de nitidez e até que distância eles podem ver. Encontrei-o novamente algum tempo depois da meia-noite e ajudei-o a entrar em casa sem que a mãe o visse. Nessa altura, ele estava bastante bem; somente um pouco sonolento e cansado. A velha víbora voltava ao mesmo:

- Tem perguntado por si - gritou a sua voz esganiçada.

- Se ele está tão doente como você o pinta - comentei eu - o melhor que tem a fazer é chamar o doutor.

- O doutor está lá, mas não pode fazer nada.

Admito que aquilo me desorientou um pouco, até que pensei: «lá está o manhoso a fingir. Tem alguma na cabeça». Ele era suficientemente esperto para intrujar o médico. Já o tinha visto a fingir um ataque que teria enganado Moisés.

- Pelo amor de Deus! Venha! - pediu ela. - Ele parece assustado.

A sua voz teve um sobressalto autêntico, porque, suponho que embora muito à sua maneira, ela gostava dele. Por momentos não pude deixar de ter pena dela, pois sabia bem que ele nunca lhe ligara nem um bocadinho e nem mesmo se dera ao trabalho de o dissimular.

Deixei as árvores, o lago vermelho e a lagarta, que se debatia. Sabia bem que ela não me largaria, agora que o seu «pobre filho» chamava por mim. E, no entanto, uma semana atrás ela teria feito tudo para nos manter separados. Considerava-me responsável pelos seus actos; como se houvesse algum mortal capaz de o afastar duma mulher bonita, quando lhe chegavam os apetites...

Se não me engano, era a primeira vez, desde que chegara à aldeia, havia dez anos, que eu entrava na casa pela porta da frente. Lancei um olhar divertido para a janela dele. Pareceu-me ver ainda as marcas deixadas na parede pela escada que tínhamos utilizado na semana anterior. Tivéramos grande dificuldade em pô-la de pé, mas a mãe dormia a sono solto. Ele havia trazido a escada do celeiro, e, quando o vi a salvo dentro de casa, transportei-a de novo para lá. Mas ninguém se podia fiar na sua palavra. Mentiria ao melhor dos amigos. Quando cheguei ao celeiro, a rapariga tinha desaparecido. Se não podia subornar-nos com o dinheiro da mãe, subornava-nos com promessas das outras pessoas.

Comecei a sentir-me pouco à vontade mal entrei a porta. Era natural que a casa estivesse tranquila, porque, tanto um como o outro nunca tinham visitas dos amigos, embora a velha tivesse uma cunhada que vivia apenas a algumas milhas de distância. Mas não gostei do som dos passos do médico, enquanto descia as escadas ao nosso encontro. Para nos agradar, tinha retorcido a face numa solenidade piedosa, como se a morte implicasse algo de sagrado, mesmo a morte do meu amigo.

- Está consciente - disse ele -, mas morre. Não posso fazer nada. Se quer que ele morra em paz, deixe subir o amigo. Há qualquer coisa que o assusta.

O médico tinha razão. Quando me inclinei sob a verga da porta e entrei no quarto do meu amigo percebi logo isso. Uma almofada sustinha-lhe o corpo e os seus olhos estavam fixos na porta, aguardando a minha chegada. Eram uns olhos brilhantes e assustados e o cabelo colava-se-lhe em cordas à fronte. Nunca, como então, reparara como ele era um tipo feio. Tinha uns olhos matreiros, que nos observavam demasiado pelo canto; porém, quando estava de perfeita saúde, mantinham um pestanejar rápido que nos fazia esquecer essa astúcia. Havia algo de prazenteiro e insolente nesse pestanejar que parecia dizer «Eu sei que sou matreiro e feio. Mas que importa? Tenho fibra». Tenho a impressão de que era esse tique que as mulheres achavam tão atraente e estimulante. Agora que desaparecera, o aspecto dele era apenas o de um velhaco.

Pensei que era meu dever animá-lo, e, assim, fiz anedota do facto de ele se encontrar sozinho na cama. Pareceu não gostar e comecei a recear que também ele estivesse a considerar a morte do ponto de vista religioso, quando, em tom desabrido, disse que me sentasse.

- Estou a morrer - sussurrou rapidamente - e quero perguntar-te uma coisa. Não pude falar com o médico. Julgar-me-ia delirante. Tenho medo, meu velho. Quero ser tranquilizado - e depois duma longa pausa - por alguém de bom senso.

Deslizou da almofada um pouco mais para dentro da cama.

- Esta é a segunda vez que me encontro gravemente doente - balbuciou ele. - A primeira foi antes de vires para cá. Dizem que eu estava como morto. Foi quando já me iam a sepultar, que o médico os impediu.

Tinha ouvido falar de muitos casos como aquele e não via razão para ele me contar tal coisa. Depois pareceu-me perceber porquê.

Dessa vez a mãe não se manifestara muito interessada em verificar se ele estava realmente morto, embora eu não duvide que se mostrou bastante desgostosa. «Meu pobre filho! Não sei o que farei sem ele!» E tenho a certeza de que fazia a cena com bastante convicção, como a fazia também neste momento. Não era nenhuma criminosa. Tinha apenas propensão para ser prematura.

- Escuta, meu velho - disse eu, soerguendo-o um pouco na almofada -, escusas de ter medo. Não estás para morrer e eu teria o cuidado de recomendar ao médico que te cortasse uma veia antes de te virem buscar. Estás a falar em coisas mórbidas. Aposto a minha camisa em como tens muitos anos à tua frente. E também muitas raparigas - ajuntei para o fazer sorrir.

- Não podes deixar-te disso? - volveu, e eu tive a certeza de que ele se tornara religioso.

- Fica sabendo - continuou - que, se vivesse, não voltaria a tocar noutra rapariga; não, em nenhuma.

Tentei não sorrir a estas palavras, mas não foi fácil conter-me. A moralidade dum homem doente dá-me sempre vontade de rir.

- Seja como for - afirmei -, não precisas de ter medo.

- Não é isso - retorquiu. - Meu velho, quando voltei a mim daquela vez, julguei que tinha estado morto. Não fora como um sono ou um descanso tranquilo. Havia alguém à minha volta que sabia tudo. De todas as mulheres que eu tinha tido. Mesmo daquela novinha que não percebeu nada. Foi antes de te conhecer. Vivia a uma milha daqui, lá em baixo ao lado da estrada, onde vive agora a Raquel, mas ela e a família foram-se embora depois disso. Até sabia do dinheiro que eu tirava à minha mãe. Não chamo a isso roubar. Fica tudo em família e eu nunca tive ocasião de me explicar. Até dos meus pensamentos. Um homem não pode evitar os seus pensamentos!

- Um pesadelo - aventei.

- Sim, deve ter sido um sonho, não achas? Aquela espécie de sonhos que a gente tem quando está doente. E eu estava mesmo a ver o que me ia acontecer. Não suporto que me magoem. Não era justo. Desejei desmaiar mas não pude, porque estava morto.

- No sonho - observei-lhe eu.

O medo dele punha-me nervoso.

- No sonho - repeti.

- Sim, deve ter sido um sonho, não deve? Porque acordei. O mais curioso é que me senti forte e bom. Levantei-me e pus-me de pé na estrada; um pouco mais abaixo e fazendo grande barulho, afastava-se um pequeno grupo de gente que levava consigo um homem - o médico que os impedira de me sepultarem.

- E então? - inquiri.

- Meu velho - explicou - supõe que foi verdade.

Supõe que morri. Nessa altura estava convencido disso, sabes, e a minha mãe também. Mas nela é impossível a gente fiar-se. Durante alguns anos andei direitinho. Pensava que podia ser uma espécie de segunda oportunidade que me davam. Depois, tudo se foi desvanecendo, e de resto... não me parecia realmente possível. Não é possível, claro que não é. Não te parece?

- Pois claro que não - respondi. - Milagres desses não acontecem hoje. E ainda que assim fosse, não era provável que acontecessem contigo, pois não? E muito mais nesta terra.

- Era horrível - redarguiu - se tivesse sido verdade e eu tivesse de passar outra vez pelo mesmo. Tu nem imaginas as coisas que iam acontecer-me naquele sonho. E agora seria pior.

Parou de falar, e, passado algum tempo, acrescentou, como se estivesse a relatar um facto:

- Quando se está morto, a inconsciência desaparece para sempre.

- Podes ter a certeza de que foi um sonho - repeti, apertando-lhe a mão.

As histórias dele começavam a assustar-me. Desejei que morresse depressa, para poder fugir aos seus aterrados olhos matreiros e injectados de sangue e ver qualquer coisa alegre e divertida, como por exemplo a Raquel que ele mencionara, aquela que vivia a uma milha dali, lá em baixo ao lado da estrada.

- Ora! - objectei. - Se existisse alguém disposto a fazer milagres desses, já tínhamos ouvido falar doutros, podes ter a certeza. Mesmo desterrados neste lugar esquecido de Deus.

- Já houve outros - tornou ele. - Mas são histórias que só aconteceram com gente pobre e esses acreditam em qualquer coisa, não é? Dizem que ele curou imensos doentes e aleijados. E que um homem que nascera cego recobrou a vista mal ele se aproximou e lhe tocou nas pálpebras. Mas isso são histórias de mulheres, não achas? - perguntou-me, gaguejando de medo e ficando de repente quieto a um lado da cama.

Comecei a dizer:

- Pois claro que são tudo mentiras... - mas detive-me, pois não era preciso dizer mais nada.

Limitei-me a descer as escadas e a dizer à mãe que subisse a fechar-lhe os olhos. Não lhes teria tocado por dinheiro algum deste mundo. Havia muito tempo que eu não pensava nesse dia de há muitos anos, muitos séculos, em que senti um contacto frio como saliva sobre as pálpebras, e, abrindo os olhos, vi um homem que se afastava, semelhante a uma árvore, rodeado de outras árvores.

 

                    UM DIA POUPADO

TINHA-ME colado a ele como uma sombra, como se costuma dizer. Mas isto é absurdo. Eu não sou nenhuma sombra. Podeis sentir-me, tocar-me, ouvir-me, cheirar-me. Chamo-me Robinson. Mas tinha-me sentado na mesa contígua à dele, seguira-o a vinte jardas ao longo de todas as ruas, e, quando ele subiu umas escadas, esperei-o ao fundo e, quando voltou a descê-las, saí antes dele e esperei-o na primeira esquina. Assim, eu era realmente como uma sombra, porque umas vezes encontrava-me à sua frente, outras atrás.

Quem era ele? Nunca soube o seu nome. Era baixo, de aspecto vulgar, trazia um guarda-chuva e o chapéu era de feltro. Usava também luvas castanhas. Mas o que para mim tinha importância era ele trazer consigo uma coisa que eu desejava a todo o custo, desesperadamente. Trazia-a sob as roupas, possivelmente dentro duma bolsa ou dum saquinho, ou talvez pendente junto à pele. Quem sabe lá a esperteza que se esconde sob o homem mais vulgar? Os cirurgiões são capazes de habilidosas incisões.

Talvez ele a trouxesse muito perto do coração, em vez de a ter junto à epiderme.

Quem era? Nunca o soube. Posso apenas tentar adivinhar, como poderia fazer com o seu nome, chamando-lhe Jones ou Douglas, Wales, Canby ou Fotheringay. Uma vez, num restaurante, murmurei devagar, sobre a minha sopa, «Fotheringay», e pareceu-me tê-lo visto olhar para cima e à sua volta. Não sei. É esse o horror a que não consigo fugir - não saber nada, nem o seu nome, nem o que trazia consigo, nem porque o desejava eu tanto, ou porque o seguia.

Um dia chegámos a uma ponte de caminho de ferro, debaixo da qual ele encontrou um amigo. Lá estou eu a usar palavras inexactas. Tenham paciência. Tento ser preciso. Peço a Deus para ser preciso. Tudo quanto desejo neste mundo é saber. E por isso, quando digo que encontrou um amigo, não sei se era amigo, sei apenas que era alguém que ele pareceu cumprimentar com afecto.

O amigo perguntou-lhe:

- Quando partes?

Ele respondeu:

- Às duas, de Dover.

Asseguro-vos que apalpei o bolso para me certificar de que o bilhete estava lá.

Em seguida, disse-lhe o amigo:

- Se fores de avião poupas um dia.

Ele fez um sinal com a cabeça, concordou, disse que sacrificaria o bilhete, que pouparia um dia.

E eu pergunto-vos: que significa para ele ou para qualquer outra pessoa poupar um dia? Poupar um dia de quê? Para quê? Em vez de passardes o dia em viagem, vereis um amigo um dia mais cedo, mas não podereis permanecer com ele indefinidamente. Voltareis para casa vinte e quatro horas mais cedo, eis tudo. E, se voltardes de avião, poupareis ainda outro dia. Poupareis de quê? Para quê? Começareis a trabalhar um dia mais cedo, mas não podereis continuar a trabalhar indefinidamente. Isso significa apenas que cessareis de trabalhar um dia mais cedo. E então, e depois? Não se pode morrer um dia mais cedo. Nessa altura, talvez compreendais como fostes apressados em poupar um dia, quando descobrirdes que não podereis fugir a essas vinte e quatro horas que tão cuidadosamente preservastes. Podereis adiá-las e voltar a adiar, mas algum dia elas terão de ser gastas, e, então, talvez vos arrependais de as não terdes gasto inocentemente, como por exemplo dentro do comboio de Ostend.

Mas este pensamento nunca lhe tinha ocorrido.

- Sim, isso é verdade. Pouparei um dia. Vou de avião - disse ele.

Nessa altura estive quase para lhe falar. O egoísmo do homem! Porque esse dia, que ele julgava poupar e que talvez anos mais tarde fosse o seu desespero, era agora o meu, naquele instante. Porque eu já antevia a longa viagem de comboio, num compartimento comum. Era Inverno, o comboio estaria quase vazio, e, com um mínimo de sorte, ficaríamos sozinhos os dois. Tinha planeado tudo. Estava decidido a falar-lhe. Como não sabia nada acerca dele, começaria da maneira usual, perguntando-lhe se ele se importava que levantasse ou baixasse um pouco a janela. Isso mostrar-lhe-ia que ambos falávamos a mesma língua e ele provavelmente dispor-se-ia logo a falar, sentindo que se encontrava num país estrangeiro; agradecer-me-ia qualquer auxílio que eu lhe pudesse prestar, traduzindo esta ou aquela palavra.

Evidentemente que nunca acreditei que a conversa fosse o suficiente. Saberia muitas coisas a seu respeito, mas, certamente, teria de matá-lo antes de saber tudo. Matá-lo-ia, pensava eu, à noite, entre as duas estações bastante afastadas uma da outra, depois de a alfândega ter examinado a nossa bagagem e os nossos passaportes terem sido visados na fronteira e depois de termos corrido as persianas e apagado a luz. Até tinha planeado o que faria ao corpo, com o seu chapéu de feltro e o guarda-chuva e as luvas castanhas, mas só se isso fosse necessário, só se não huovesse outra maneira de forçá-lo a dar-me aquilo que eu queria. Sou um sujeito brando, não me exalto facilmente.

Mas eis que ele decidira ir de avião e eu não podia fazer nada. Segui-o, é claro; sentei-me no lugar atrás dele, vi nele o receio de quem voa pela primeira vez e como evitou durante muito tempo olhar o mar; vi-o conservar o chapéu de feltro nos joelhos e o peito arfar-lhe ligeiramente quando a asa cinzenta se ergueu no céu como a vela dum moinho de vento e as casas ficaram oblíquas. Houve alturas, julgo eu, em que ele lamentou ter poupado um dia.

Saímos ao mesmo tempo do avião e ele teve um pequeno aborrecimento com a alfândega. Servi-lhe de tradutor. Olhou-me com curiosidade e disse-me:

- Muito obrigado.

Mostrou-se - de novo sugiro que sei, quando o que quero dizer é que, pelos seus modos e conversa, suponho que estava - estúpido e bem disposto, mas, julgo que por momentos suspeitou de mim, pensou que me tinha visto já algures, no metropolitano, no autocarro, ou nos banhos públicos, sob a ponte do caminho de ferro, em inúmeras escadas. Perguntei-lhe as horas. Ele respondeu:

- Aqui atrasamos os relógios uma hora - e o rosto iluminou-se-lhe dum absurdo prazer, porque tinha poupado uma hora, além do dia.

Bebi um copo com ele; vários copos. Mostrou-se absurdamente grato pelo meu auxílio. Tomei com ele uma cerveja num local, depois «gin» noutro e num terceiro ele insistiu em partilhar comigo uma garrafa de vinho. Pouco a pouco fomo-nos tornando amigos.

Sentia-me mais atraído por ele do que por qualquer pessoa que eu tinha conhecido, porque tal como acontece com o amor entre uma mulher e um homem, a minha afeição era em parte curiosidade. Disse-lhe que me chamava Robinson; ele fez menção de me dar um cartão seu, mas, enquanto o procurava, bebeu outro copo de vinho e esqueceu-se. Estávamos ambos um tanto tocados. A certa altura comecei a chamar-lhe Fotheringay. Não me contradisse, talvez fosse esse o seu nome, mas parece-me que me lembro de lhe ter também chamado Douglas, Wales e Canby, sem que ele me corrigisse. Era muito generoso e descobri ser fácil falar com ele; as pessoas estúpidas são muitas vezes sociáveis. Manifestei que estava desesperado e ofereceu-me dinheiro. Não podia compreender aquilo que eu desejava. Disse-lhe:

- Já que poupou um dia, pode vir comigo esta noite a um local que eu conheço.

Ele respondeu:

- Tenho de tomar o comboio esta noite.

Indicou o nome da cidade para onde ia e não ficou surpreendido quando eu lhe disse que ia também.

Passámos a tarde a beber e fomos juntos para a estação, enquanto eu planeava matá-lo, se fosse preciso. Pensei com amizade que, talvez, no fim de contas, eu conseguisse evitar-lhe o trabalho de ele poupar um dia. Mas era um pequeno comboio local. Arrastava-se de estação para estação e, em cada paragem, umas pessoas saíam e outras entravam. Ele insistira em viajar em terceira e a carruagem nunca estava deserta. Como não conhecia uma única palavra da língua, enrolou-se num canto e adormeceu. Fui eu quem ficou acordado e teve de escutar a maçadora e penosa tagarelice, uma criada a falar da patroa, uma camponesa que regressava do mercado, um ministro da Igreja e um homem que devia ser perito em adultério, em vermes e na colheita de há três anos.

Eram duas da manhã quando chegámos ao fim da nossa viagem. Caminhei com ele até à casa onde viviam os seus amigos. Era muito perto da estação e por isso não tive tempo de planear ou levar a cabo qualquer plano. O portão do jardim estava aberto. Ele convidou-me a entrar. Respondi-lhe que não, que ia para um hotel. Disse-me que os seus amigos ficariam encantados em alojar-me durante o resto da noite, mas eu recusei. Havia luz numa sala do rés-do-chão, onde as cortinas não estavam corridas. Um homem dormia numa cadeira junto de um grande fogão, onde havia uma bandeja com copos, uma garrafa de whisky, duas garrafas de cerveja e uma garrafa de vinho do Reno, alta e esguia. Retrocedi, enquanto ele entrava, e, quase em seguida, a sala encheu-se de gente. Pelos seus olhos e gestos, percebi que lhe davam as boas-vindas. Havia uma mulher de roupão e uma rapariga sentada, com os magros joelhos encostados ao queixo, e três homens, dois dos quais já velhos. Não correram as cortinas, embora ele tenha com certeza suspeitado que eu os observava. No jardim estava frio - os canteiros de Inverno encontravam-se atapetados de ervas daninhas. Pousei a mão sobre uns arbustos espinhosos.

Parecia exibir deliberadamente a sua união e camaradagem. O meu amigo - chamo-lhe amigo, mas, na realidade, ele não passava dum simples conhecimento que foi meu amigo enquanto durou a nossa bebedeira comum sentou-se no meio deles todos, e, pela maneira como os seus lábios se moviam, percebi que lhes contava imensas coisas de que nunca me tinha falado. Houve uma altura em que me pareceu poder depreender dos movimentos dos seus lábios «poupei um dia». Pareceu-me estúpido, bem disposto e feliz. Não pude suportar o espectáculo por muito tempo. Era uma impertinência exibir-se assim diante de mim. Desde aquele momento nunca mais deixei de rezar para que o dia que ele poupou lhe seja retardado, cada vez mais retardado, até que um dia, por acaso, ele lhe sofra os oitenta e seis mil e quatrocentos segundos, quando sentir a mais desesperada necessidade, quando estiver seguindo outrem como eu o segui a ele, tão de perto, segundo costuma dizer-se, como uma sombra e que ele tenha de parar, como eu tinha, para certificar: podeis cheirar-me, podeis tocar-me, podeis ouvir-me, não sou uma sombra: sou Fotheringay, Wales, Canby, sou Robinson.

 

                   UM CINEMA BARATO POR DETRÁS DA AVENIDA

Craven passou a estátua de Aquiles, enquanto subia a rua debaixo da fina chuva de Verão. Era à hora em que as luzes acabavam justamente de acender-se, porém, os carros encontravam-se já alinhados ao longo de todo o percurso que ia dar ao Arco de Mármore e começavam a aparecer rostos perscrutadores e cúpidos, prontos a divertir-se com fosse o que fosse que lhes aparecesse no caminho. Craven passou cheio de amargura, a gola do impermeável levantada no pescoço. Estava num dos seus maus dias.

Enquanto subia o parque despertou-lhe no pensamento a paixão, mas é preciso ter dinheiro para o amor. Um homem pobre, quando muito, podia ter prazer. O amor precisa dum bom fato, dum carro, dum apartamento algures ou dum bom hotel. Precisa de ser embrulhado em celofane. E ele estava a todo o momento consciente da gravata em tiras que usava por baixo do impermeável e das mangas em franja. Arrastava consigo o próprio corpo, como algo que odiava (havia momentos de felicidade, na sala de leitura do Museu Britânico, mas o corpo chamava-o à realidade). Como sentimento, conservava apenas a lembrança de coisas feias praticadas em bancos de jardim. Toda a gente dizia que o corpo morria demasiado cedo mas não era isso que ralava Craven; de modo nenhum. O corpo mantinha-se vivo - e, no meio da chuva de gotas resplandecentes, passou um homenzinho de fato preto que se encaminhou para uma tribuna, com um letreiro que dizia «O corpo ressuscitará». Lembrou-se dum sonho, do qual acordara três vezes a tremer. Encontrava-se sozinho dentro da enorme caverna escura que serve de túmulo aos mortos de todo o mundo. As covas comunicavam umas com as outras, por debaixo do chão.

O globo compunha-se de favos de mel para sustentar os mortos, e, de todas as vezes que voltara a sonhar com aquilo, verificara o horroroso facto de que o corpo se decompunha. Não havia vermes ou liquefacção. Sob o solo, o mundo> estava semeado de pedaços e pedaços de carne morta, prontos a ressuscitar com todas as suas verrugas, furúnculos e erupções. Depois de acordar, e estendido na cama, ele lembrara-se - como «uma nova muito alegre» - que o corpo era afinal corrupto.

Entrou a passo rápido na Avenida de Edgware. Os guardas andavam na rua aos pares, enormes bestas lânguidas e alongadas, os corpos de vermes metidos nas calças justas. Odiava-os e odiava o próprio ódio, porque sabia muito bem que era inveja. Sabia muito bem que qualquer deles tinha um corpo melhor que o seu. A indigestão contraiu-lhe o estômago - tinha a certeza que o seu hálito era imundo, mas a quem poderia ele perguntar? Por vezes perfumava-se aqui e ali: era um dos seus segredos mais feios. Porque lhe pediam para acreditar na ressurreição desse corpo que ele desejava esquecer?

Às vezes, à noite, rezava (havia no seu peito uns restos de crença, como um verme dentro duma noz), pedindo que o seu corpo, pelo menos, nunca viesse a ressuscitar.

Conhecia todas as ruas laterais em volta da Avenida de Edgware. Quando estava de mau humor caminhava até ficar exausto, olhando de través a sua própria imagem reflectida nas montras do Salmon e Gluckstein ou nos ABC.

Foi então que deu pelos cartazes afixados no teatro de culpar Road, onde ninguém geralmente ia. Mas não eram para espantar. Às vezes, o Grupo Dramático de Barclays Bank alugava o recinto por uma noite, ou exibia-se lá um filme desconhecido com fins comerciais. O teatro tinha sido construído em 1920 por um optimista, que pensara compensar com a barateza dos preços a desvantagem do edifício se encontrar a uma milha da zona convencional para casas de espectáculos. Mas nunca peça alguma obteve ali êxito e em breve ele foi abandonado aos ratos e às teias de aranha. O estofo das cadeiras nunca tinha sido renovado e tudo quanto lá acontecera resumira-se à temporária vida falsa duma peça de amador ou a uma exibição comercial.

Craven parou para ler. Pelos vistos ainda havia optimistas, mesmo em 1939, porque ninguém, a não ser o optimista mais cego, poderia esperar tirar dinheiro daquele local como «Refúgio do Cinema Mudo».

Anunciava-se a primeira época de «primitivos» (uma frase pretensiosamente intelectual). Não voltaria a haver segunda. Enfim, como os lugares eram baratos, talvez valesse a pena, agora que se sentia cansado, entrar em qualquer sítio onde não chovesse. Craven comprou um bilhete e penetrou na plateia escura.

Na pesada escuridão, um piano martelava qualquer coisa monótona, que lembrava Mendelssohn. Sentou-se numa cadeira da coxia e sentiu imediatamente a sala vazia à sua volta. Não, não voltaria a haver segunda época. Na tela, uma mulher enorme, vestida com uma espécie de toga, retorcia as mãos e dirigia-se em passo vacilante para um canapé, fazendo uns trejeitos espasmódicos. Aí, sentou-se e fixou distraidamente o olhar de cão rafeiro, através do cabelo preto, que lhe caía desfeito em cordas. De vez em quando, parecia dissolver-se em manchas, pontos brilhantes e ziguezagues. Uma legenda explicava: «Pompília, traída pelo seu bem-amado Augusto, procura pôr termo aos seus sofrimentos».

Craven começou finalmente a ver: um confuso desperdício de cadeiras. Não havia vinte pessoas dentro da sala - alguns pares que segredavam de cabeça encostada e uns poucos de homens, sozinhos como ele, usando a mesma farda de impermeável barato. Estavam espalhados a espaços, como cadáveres, e, de novo, a obsessão de Craven voltou: aquela dor de dentes horrorosa.

Pensou com aflição: «eu enlouqueço. As outras pessoas não sentem isto, com certeza». Até um teatro abandonado lhe sugeria aquelas cavernas intermináveis, onde os corpos aguardavam a ressurreição.

«Escravo da paixão, Augusto manda vir mais vinho».

Um actor teutónico de meia-idade, apoiado sobre um cotovelo, passava o braço em torno duma mulher gorda em camisa. A «Canção da Primavera» continuava a ser muito martelada e a tela vacilou, como uma pessoa com indigestão. Allguém procurou abrir caminho no escuro, roçando os joelhos de Craven.

Era um homem pequeno. Craven experimentou a desagradável sensação duma longa barba picando-lhe a boca. Depois, ouviu-se um prolongado suspiro, quando o recém-chegado encontrou a cadeira ao lado. Na tela, os acontecimentos haviam decorrido com tal rapidez que Pompília já se tinha apunhalado - ou, pelo menos, era o que Craven supunha - e jazia inerte e serena entre as aias chorosas.

Uma voz baixa e ofegante murmurou junto do ouvido de Craven:

- Que aconteceu? Está adormecida?

- Não. Morta.

- Mataram-na? - perguntou a voz com vivo interesse.

- Não me parece. Matou-se com um punhal. Ninguém fez psiu. Ninguém estava suficientemente interessado para ser capaz de protestar contra uma só voz. Estavam caídos entre as cadeiras vazias, evidenciando uma entediada falta de atenção.

O filme acabava ali. Havia crianças envolvidas no caso - continuaria numa segunda geração? Mas o homenzinho da barba, sentado ao lado, parecia apenas interessado na morte de Pompília. O facto de ter entrado precisamente naquele momento parecia fasciná-lo. Craven ouviu-lhe duas vezes a palavra «coincidência» e depois continuar a dizer consigo mesmo, em voz baixa e ofegante: «se pensarmos bem, é um absurdo» e ainda «e sem sangrar»!

Craven não o escutava. Sentado, com as mãos afiveladas entre os joelhos, encarava o facto que tantas outras vezes já tinha enfrentado, o facto de que corria o risco de endoidecer. Tinha de cobrar ânimo, de fazer umas férias, ou consultar um médico (Deus sabe que infecção correria nas suas veias). Percebeu que o seu barbudo vizinho se lhe dirigia directamente:

- O quê? - perguntou-lhe com impaciência. - Que é que disse?

- Haveria muito mais sangue do que imagina.

- De que está para aí a falar?

Ao falar, o homem borrifou-o com um hálito húmido. Qualquer coisa pareceu barrar-lhe a fala.

- Quando se assassina um homem - balbuciou ele.

- Neste caso é uma mulher - observou Craven impaciente.

- Tanto faz.

- E nada tem que ver com assassínio.

- Isso não quer dizer nada.

Pareciam ter chegado a um enigma absurdo e sem sentido, tecido no escuro.

- Compreende, eu tenho experiência - retorquiu o homenzinho da barba num tom de enorme presunção.

- Experiência de quê?

- Dessas coisas - replicou ele com cautelosa ambiguidade.

Craven voltou-se e tentou vê-lo claramente. Estaria doido? Seria isto um prenúncio do que ele próprio poderia vir a fazer - balbuciar coisas ininteligíveis aos estranhos, nos cinemas?

Pensou: «Santo Deus, não! Vejamos. Ainda estou são de espírito! Tenho de estar!»

Conseguiu lobrigar apenas a pequena corcova negra do corpo. O homem falava novamente consigo mesmo. Dizia «Tretas! Tudo tretas! Dirão que foi tudo por cinquenta libras, mas é mentira. Foi por muitos outros motivos, mas eles agarram-se logo ao primeiro. Nunca querem saber do passado. Trinta anos de motivos. Palermas», ajuntou de novo naquele tom de ofegante e enorme presunção. Era então isto a loucura. Se ainda era capaz de dar por ela, então é porque continuava são de espírito, relativamente falando. Talvez não tão lúcido como aqueles que esperam no parque ou como os guardas da Avenida de Edgware, mas mais são do que este. Quando o piano voltou a soar, foi como que uma mensagem de energia. O homenzinho volveu-se de novo e tornou a borrifá-lo.

- Matou-se, afirma você? Quem sabe isso ao certo? A questão não está na mão que segura a faca.

De súbito, pousou confiadamente a sua mão na de Craven. Estava húmida e pegajosa. Como começasse a perceber qualquer coisa, Craven disse horrorizado:

- De que está o senhor a falar?

- Eu sei - respondeu o homenzinho. - Um homem na minha situação consegue saber quase tudo.

- E qual é a sua situação? - perguntou Craven, sentindo a mão viscosa na sua e tentando compreender se começava a ficar histérico ou não; afinal havia uma dúzia de explicações possíveis, podia ser melaço.

- É bem desesperada, parece-me.

De vez em quando a voz quase lhe morria na garganta. Na tela acontecera qualquer coisa que ele não percebia - basta desviar os olhos por um momento desses filmes primitivos e o enredo dá logo um salto... Apenas os actores se moviam devagar e com movimentos bruscos.

Uma mulher jovem em camisa de noite parecia chorar nos braços de um centurião romano. Craven via-os pela prineira vez. Nos teus braços, não receio a morte, Lucius». O homenzinho teve um sorriso reprimido e intencional. Falava de novo sozinho. Teria sido fácil ignorá-lo por completo se não fossem aquelas mãos viscosas que ele agora retirava - parecia procurar alguma coisa no assento em frente dele.

A sua cabeça tinha por hábito cair de repente para o lado, como a duma criança idiota. Pronunciou com clareza e absolutamente fora de propósito: «A tragédia de Bayswater».

- Que disse? - perguntou Craven com vivacidade. Lera as mesmas palavras num cartaz, antes de entrar no parque.

- O quê?

- Sobre a tragédia.

- Parece-me que lhe chamam os Estábulos Cullen de Bayswater.

De repente o homenzinho começou a tossir, voltando a cara na direcção de Craven e tossindo mesmo para cima dele; parecia querer vingar-se. A voz saiu-lhe em arrancos:

- Deixe-me ver... Onde está o meu guarda-chuva? - e levantou-se.

- O senhor não trazia guarda-chuva nenhum.

- O meu guarda-chuva - repetiu ele. - O meu... - e pareceu perder a outra palavra. Saiu, roçando de novo os joelhos de Craven.

Craven deixou-o partir, mas antes que ele alcançasse as cortinas ondulantes e empoeiradas da saída, o écran ficou branco e brilhante - o filme partira-se e alguém se apressara a acender o candelabro do tecto, coberto de lixo. A luz que chegou até cá abaixo foi suficiente para Craven observar o unto das mãos. Isto não era histeria, era um facto. Ele não estava maluco. Sentara-se junto dum louco, que num estábulo - como se chamava, Colon, Colin... Craven saltou da cadeira e encaminhou-se para a saída. A cortina negra bateu-lhe na boca. Mas já era tarde - o homem desaparecera e ele tinha diante de si três corredores à escolha. Em vez disso preferiu uma cabina telefónica, e, com uma estranha sensação da sua própria saúde de espírito e decisão, marcou 999.

Não levou dois minutos a conseguir a secção que desejava. Mostraram-se interessados e muito amáveis. Sim, tinha havido um assassínio num estábulo, o estábulo de Cullen. Tinham cortado o pescoço dum homem, de orelha a orelha, com uma faca de pão - um crime horroroso. Começou a contar-lhes como estivera sentado no cinema ao lado do assassino. Não podia ser outra pessoa, ainda tinha sangue nas mãos e lembrava-se com repulsa, dizia ele, da barba húmida. Deve ter corrido muito sangue. Mas a voz da Yard interrompeu-o:

- Não, não - dizia. - Já temos o assassino. Não, não há dúvidas. O cadáver é que desapareceu.

Craven pousou o auscultador. Disse alto para si mesmo: «Porque havia de me acontecer isto? Porquê a mim?»,

Voltou ao sonho horroroso - a rua escura e esquálida lá fora era apenas um dos inúmeros túneis que ligavam umas sepulturas às outras, onde jazem os corpos incorruptos. Exclamou: «Foi um sonho, um sonho», e, inclinando-se para a frente, viu no espelho por cima do telefone a sua própria face salpicada de finas gotas de sangue, como borrifos de um pulverizador de perfume. Desatou a gritar: «Não vou endoidecer. Não endoideço. Estou são. Não endoideço». Começou a afluir uma pequena multidão e não tardou a chegar um polícia.

 

                   POBRE MALING!

Pobre, inofensivo, inútil Maling! Não quero que vocês se riam de Maling e da sua Borborygmi, como sempre fizeram todos os médicos que ele consultou e como devem ter feito, mesmo depois do triste clímax de 3 de Setembro de 1940, quando a sua Borborygmi fez parar pelo espaço de vinte e quatro horas as Companhias Impressoras Reunidas da Simcox e Hythe. Os interesses da Simcox sempre tinham sido para Maling mais caros que a própria vida- trabalhador, consciencioso, amante da profissão, ele não desejava posição mais elevada que a de segundo-secretário - e, por motivos em que seria insensato entrarmos, pois envolvem umas trapalhadas acerca de leis britânicas relativas a imposto sobre rendimento, acontece que essas vinte e quatro horas foram fatais à existência da Companhia. Desde esse dia, ele desapareceu para nunca mais ser visto, e ninguém me tira da cabeça que se retirou para qualquer tipografia de província, para aí morrer de desgosto.

Ah, pobre Maling!

Foram os médicos quem apelidou de Borborygmi a sua doença - em Inglaterra temos por hábito chamar-lhe pura e simplesmente «gases estomacais». Se não me engano, costuma ser uma espécie de indigestão totalmente inofensiva, mas, no caso de Maling, assumiu uma forma bastante estranha. O seu estômago, queixava-se ele, pestanejando tristemente do alto dos óculos semicirculares que usava para ler, tinha «ouvido». Apanhava sons duma maneira espantosa e tornava a emiti-los após as refeições. Maling tinha ido a uns concertos sinfónicos no Queen's Hall (nunca mais lá voltou).

Nunca hei-de esquecer aquele chá embaraçoso que um dia tomámos no Hotel Picadilly em honra de alguns impressores da província. Foi um ano antes da guerra.

Ao longe, uma orquestra de dança tocava «The Lambeth Walk» (como a gente se fartou de ouvir essa música em 1938, cheia de maliciosa folia e falsa bonomia e de «óis). Subitamente, no meio dum silêncio feliz entre duas danças, quando os impressores se recostavam, repousando dum desbaste de bolinhos de chá torrados, fizeram-se ouvir - baixinho, como que vindos dum local distante do hotel, tristes e ofegantes - os primeiros acordes dum concerto de Brahms.

Um impressor escocês, que gostava de boa música, exclamou num tom melancólico: «Santo Deus! Como aquele homem sabe tocar!» Então, a música parou abruptamente e uma estranha suspeita levou-me a olhar para Maling. Estava vermelho como uma beterraba. Ninguém dera por nada, pois a orquestra de dança, com grande desgosto do escocês, recomeçou a tocar «Boomps-a-Daisy», e, se não me engano, fui eu a única pessoa a dar por um fraco e curioso trautear a meio tom do «The Lambeth Walk», que parecia vir da cadeira onde Maling se sentava.

Passava das dez quando os impressores partiram para Euston empilhados em táxis e Maling me contou a história do seu estômago.

- É inconcebível! - disse ele. - Parece um papagaio a fixar coisas ao acaso - ajuntou com lágrimas na voz. Já não posso saborear a comida com prazer. Nunca sei o que acontecerá depois. Esta tarde ainda não foi o pior. Às vezes fala alto. - Calou-se abatido. - Quando era rapaz eu gostava de ouvir bandas alemãs...

- Não consultou o médico?

- Não comprendem. Dizem que é indigestão, que escuso de me preocupar. Escuso de me preocupar! Mas é que das vezes que tenho ido ao médico, ele está sempre calado.

Notei que falava do estômago como se fosse um animal odioso... Olhou friamente para os nós dos dedos e prosseguiu:

- Agora estou sempre à espera de novos ruídos. Nunca sei. A alguns, não liga nenhuma, mas outros parecem... pois bem, parecem fasciná-lo. Logo à primeira audição. O ano passado, quando andaram a reparar o Picadilly, foram as brocas. Costumava reouvi-las, invariavelmente, depois do jantar.

Perguntei-lhe estupidamente:

- É claro que já experimentou os sais habituais?!

E lembro-me - foi a última vez que o vi - da sua expressão de desespero, como se já não esperasse encontrar compreensão em nenhum ser vivo.

Nunca mais o voltei a ver porque a guerra arrancou-me à minha profissão de impressor, precipitando-me em toda a espécie de estranhas ocupações; foi apenas por segundas vias que ouvi o relato daquela curiosa reunião que iria destroçar o coração do pobre Maling.

Aquilo que os jornais denominaram de guerra de ataques aéreos a intervalos contra a Grã-Bretanha estava a decorrer havia uma semana. Em Londres, habituáramo-nos às sereias de alarme, que soavam à razão de cinco a seis vezes por dia, mas o dia 3 de Setembro, aniversário da guerra, tinha sido relativamente tranquilo. Havia contudo um pressentimento geral de que Hitler celebraria o aniversário com uma grande ofensiva. Foi portanto num clima de certo modo tenso que a Simcox e Hythe efectuou a reunião do seu corpo administrativo.

Realizou-se na tradicional salinha suja por cima dos escritórios da Simcox, em Fetter Lane, com a sua mesa redonda, que vinha já do primeiro Joshua Simcox, e uma zincogravura dum trabalho impresso, de 1875, e uma cópia da Bíblia, que não vinha nada a propósito e sempre fora o único livro na grande estante de vidro, à excepção dum volume de tipos de impressão. O velho Sir Joshua Simcox encontrava-se na sua cadeira. Imaginem-lhe o cabelo branco como neve e as feições conformistas, pálidas como carne de porco. Wesby Hythe também lá estava e mais meia dúzia de directores de rosto estreito e sagaz e impecável casaco preto - pareciam todos um tanto fatigados. Se queriam fugir às leis do novo imposto de rendimento tinham de andar depressa. Quanto a Maling, de nariz em cima do bloco, estava nervosamente pronto a dar informações a quem quer que fosse, ou sobre o que quer que fosse.

Houve uma interrupção durante a leitura das actas. Wesby Hythe, que era inválido, queixou-se de que a máquina de escrever na sala ao lado estava a enervá-lo. Maling corou e saiu. Julgo que deve ter ido tomar uma pastilha, porque a máquina deixou de se ouvir. Hythe estava impaciente.

- Avie-se - disse ele. - Avie-se. Não vamos ficar aqui toda a noite.

Mas, exactamente, iam mesmo.

Depois da leitura das actas, Sir Joshua, com um sotaque yorkshiriano, começou a explicar cuidadosamente que os seus motivos eram patrióticos o mais possível. Não tinham qualquer intenção de se subtrair aos impostos; apenas queriam contribuir para a economia e o esforço que a guerra requeria. Depois disse: «A prova do pudim...» mas, neste momento, as sereias de alarme começaram a tocar. Como já disse, esperava-se um ataque cerrado. Não havia tempo a perder - um homem morto não podia subtrair-se a impostos de rendimento. Os directores reuniram os seus papéis e fugiram todos para a cave.

Todos, excepto Maling. Compreendem, ele sabia o que se passava. Deve ter sido a alusão ao pudim que despertou a fera adormecida.

É claro que ele devia ter confessado a verdade, mas pensem só! Quem teria a coragem de o fazer, ao ver em debandada todos aqueles homens respeitáveis, de colete às riscas brancas, procurando pôr-se a salvo com uma horrível falta de dignidade? Tenho a certeza de que eu faria exactamente o que Maling fez - seguiu Sir Joshua até à cave, na desesperada esperança de que, ao menos uma vez, o estômago se portasse bem, remediando as coisas. Mas não. Os directores da Simcox e Hythe permaneceram no abrigo durante doze horas e Maling ficou com eles, sem nada dizer. É que, por qualquer preferência inexplicável, o estômago do pobre Maling apanhara com eficácia a toada do alerta, mas, fosse pelo que fosse, nunca tinha fixado a do final de alerta.

 

                   FUNÇÕES ESPECIAIS

WILLIAM FERRARO, da Ferraro & Smith, vivia numa grande casa, situada na Praça de Montagu. Uma ala era ocupada pela mulher, que se considerava uma inválida e obedecia estritamente à ideia corrente de que devemos viver cada dia como se fosse o último. Por essa razão a sua ala abrigava, invariavelmente, nos últimos dez anos, um padre jesuíta ou um dominicano qualquer, que apreciava o bom vinho e o whisky e que tinha à cabeceira uma campainha de alarme. O Sr. Ferraro cuidava da salvação da alma duma maneira um pouco mais independente. Possuía aquela firme compreensão das coisas práticas que permitira ao avô, colega de exílio de Mazzini, encontrar o grande negócio da Ferraro & Smith num país estrangeiro. Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e o Sr. Ferraro achava razoável retribuir o cumprimento e considerar Deus como director dum negócio supremo qualquer, que, apesar de supremo, dependesse em certa medida das suas actividades na Ferraro & Smith. A força duma cadeia está no seu elo mais fraco e o Sr. Ferraro não esquecia as suas próprias responsabilidades.

Antes de sair para o escritório, às 9.30, o Sr. Ferraro, por mera cortesia, telefonava à esposa, alojada na outra ala.

- Daqui fala o padre Dewes - dizia uma voz.

- Como está a minha mulher?

- Passou bem a noite.

A conversação raras vezes variava. Tinha havido uma altura em que o predecessor do padre Dewes fizera uma tentativa para tornar mais íntimas as relações entre o Sr. e a Sr.a Ferraro, mas desistira, ao perceber que o seu intento era vão e que, nas poucas ocasiões em que o Sr. Ferraro jantara com eles na outra ala, lhe serviam um clarete de qualidade inferior e não se bebia whisky antes do jantar. O Sr. Ferraro, depois de telefonar do quarto, onde tomava o pequeno almoço, atravessava, como Deus o seu jardim, a biblioteca, onde se alinhavam os clássicos autênticos, e a sala de estar, de cujas paredes pendia uma das mais valiosas colecções de arte particulares. Há pessoas que conseguem ter um Degas, um Renoir ou um Cézanne; o Sr. Ferraro comprara por atacado - tinha seis Renoirs, quatro Degas, cinco Cézannes. Nunca se cansava da sua presença; representavam para ele uma economia substancial, no seu tributo à morte.

Nesta manhã particular de segunda-feira era o primeiro de Maio. O cheiro da Primavera chegara pontualmente a Londres e os pardais cantavam ruidosamente sobre o pó. Também o Sr. Ferraro apareceu a horas, mas, ao contrário das estações, ele era tão certo como o tempo de Greenwich. Acompanhado do secretário particular - um homem chamado Hopkinson - percorreu a lista das coisas a fazer naquele dia. Não era muito pesada, porque o Sr. Ferraro possuía a rara qualidade de ser capaz de relegar noutrem as suas reponsabilidades. Procedia assim com toda a segurança, pois tinha por hábito fazer verificações inesperadas e ai do empregado que apanhasse em falta! Até o seu próprio médico era submetido a uma súbita contraverificação por um colega rival.

- Tenho a impressão - disse ele a Hopkinson - que esta tarde vou passar pela Christie, a ver como vai o Maverick. (O Maverick era seu agente na compra de quadros.)

Que melhor coisa poderia ele fazer numa linda tarde de Maio do que proceder a uma visita de fiscalização a Maverick? Depois disse:

- Mande entrar a Menina Saunders - e pôs na sua frente um arquivo pessoal, que nem mesmo Hopkinson tinha permissão de consultar.

A Menina Saunders esgueirou-se para dentro da sala. Dava a impressão de mover-se rente ao chão. Tinha aproximadamente trinta anos, cabelo de cor indefinida e olhos de um azul extremamente claro, que a tornavam parecida com uma figura sagrada e sem os quais a sua face passaria despercebida. Constava nos livros da firma como «segunda-secretária particular» e as suas funções eram consideradas «especiais».

Até as suas referências eram especiais. Distinguira-se no Convento de Santa Latitudinária, em Woking, tendo obtido, em três anos consecutivos, o prémio especial de Piedade - um pequeno tríptico de Nossa Senhora sobre fundo de seda azul, emoldurado de couro florentino fabricado por Burns Oates & Washbourne. Tinha também uma longa folha de desinteressados serviços como Filha de Maria.

- Menina Saunders - disse o Sr. Ferraro -, não vejo aqui a lista das indulgências a ganhar em Junho.

- Tenho-a aqui, senhor. Até cheguei tarde a casa ontem à noite porque a indulgência plenária em Santa Etheldreda incluía as Estações do Calvário.

Pousou uma lista dactilografada sobre a secretária do Sr. Ferraro - na primeira coluna, a data, na segunda, a igreja ou o local da peregrinação onde a indulgência era obtida, e na terceira coluna, marcados a tinta vermelha, os dias a menos de penas temporais no Purgatório. O Sr. Ferraro leu-a com cuidado.

- Parece-me, Menina Saunders - observou ele - que perde muito tempo com coisas pequenas. Sessenta dias aqui, cinquenta acolá. Tem a certeza de que não é perder tempo? Uma indulgência de 300 dias incluía todas estas. Só agora reparo que os seus números para Maio são ainda mais baixos que os de Abril e que a sua estimativa para Junho é quase tão baixa como a de Março. Cinco indulgências plenárias e 1565 dias. Bom trabalho este de Abril! Não quero que afrouxe.

- Abril é um mês bom para ganhar indulgências, senhor, por causa da Páscoa. Em Maio só podemos contar com o facto de ser o mês de Nossa Senhora. Junho é pouco frutífero, se xcluirmos o Corpo Santo. Verá aí mencionada uma igreja polaca em Cambridgeshire...

- É preciso que não se esqueça, Menina Saunders, que nenhum de nós caminha para a juventude. Tenho muita confiança em si, Menina Saunders. Se tivesse menos que fazer aqui, eu próprio me encarregaria de obter algumas dessas indulgências. Espero que continue a ter o máximo cuidado com as condições que lhe foram impostas.

- Certamente, Sr. Ferraro.

- Tem sempre o cuidado de se encontrar em estado de graça?

A Menina Saunders baixou os olhos.

- Isso, no meu caso, não é muito difícil, Sr. Ferraro.

- Qual é o seu programa para hoje?

- Aqui o tem, Sr. Ferraro.

- Ah, sim. S. Praxedes, em Canon Wood. É muito longe. E vai gastar a tarde toda só para obter uma indulgência de sessenta dias?

- Foi a única coisa que consegui encontrar para hoje. É claro que há sempre as indulgências plenárias na Catedral. Mas eu sei que o senhor não gosta que faça repetições ao longo do mês.

- É essa a minha única superstição - concordou o Sr. Ferraro. - Não tem fundamento, é claro, conforme a Igreja ensina.

- Talvez queira uma vez, por acaso, dedicar uma repetição a um membro da sua família, Sr. Ferraro: à sua esposa, por exemplo.

- Segundo os ensinamentos que nos deram, Menina Saunders, devemos, primeiro que tudo, cuidar das nossas próprias almas. A minha mulher que cuide das suas próprias indulgências. Tem um excelente conselheiro jesuíta. A menina está ao meu serviço para cuidar das minhas.

- Não tem então objecções contra Canon Wood?

- Se é realmente o melhor que pode e desde que não envolva horas extraordinárias!

- Não, não, Sr. Ferraro. É apenas um mistério do Rosário.

Depois de almoçar cedo - um almoço simples numa charcutaria da City, que terminou por um pouco de Stilton e um copo de excelente porto - o Sr. Ferraro foi visitar a «Christie». Maverick ia menos mal no lugar e o Sr. Ferraro não se deu à maçada de ficar à espera do Bonnard e do Monet que o agente lhe aconselhara a comprar. O dia continuava quente e cheio de sol, mas uns sons confusos, vindos da direcção da Praça Trafalgar, continuavam a lembrar ao Sr. Ferraro que era o Dia do Trabalho. Algo havia nesses cortejos de homens sem gravata, que levavam monótonas bandeiras cobertas duma letra mal cuidada, que não se coadunava com o sol nem com as flores prematuras que cresciam sob as árvores do parque. Um súbito desejo de fazer feriado invadiu o Sr. Ferraro, e esteve quase a dizer ao motorista que o levasse a Richmond Park. Mas como preferia, sempre que era possível, aliar o útil ao agradável, acorreu-lhe que se fosse de carro até Canon Wood poderia encontrar a Menina Saunders, que devia chegar lá quase ao mesmo tempo, para iniciar a sua tarefa da tarde, depois do intervalo do almoço.

Canon Wood era um daqueles subúrbios novos, erguidos em torno duma velha quinta. A quinta era agora um jardim público e a casa, outrora famosa por nela habitar um ministro menor que servira sob as ordens de Lorde North no tempo da rebelião da América, era presentemente um museu local; uma rua tinha sido traçada no cimo da pequena colina ventosa, em tempos um campo de cem acres, e nela se ergueram uma agência de carvão Charrington, com a montra adornada por uma grande pepita de ouro num cesto de metal, uns armazéns da Home & Colonial, o cinema Odéon, uma grande igreja anglicana. O Sr. Ferraro ordenou ao motorista que perguntasse o caminho para a igreja católica romana.

- Não há aqui nenhuma - disse o polícia.

- S. Praxedes?

O Sr. Ferraro, tal como uma figura bíblica, sentiu uma cólica na barriga.

- S. Praxedes de Canon Wood.

- Não existe, senhor - respondeu o polícia.

O Sr. Ferraro mandou seguir devagar para a cidade. Era a primeira vez que ele fiscalizava a Menina Saunders. - Três prémios em Piedade tinham conquistado a sua confiança. Agora, a caminho de casa, lembrou-se que Hitler fora educado por jesuítas; no entanto, embora já sem esperanças, ainda esperava.

Já no escritório, abriu uma gaveta fechada à chave e tirou para fora o arquivo especial. Teria ele confundido Canonbury com Canon Wood?

Mas não tinha, e, de repente, uma dúvida terrível o assaltou: quantas vezes, nos últimos três anos, teria a Menina Saunders traído a sua confiança? (Fora há três anos, depois duma forte pneumonia, que ele a contratara - a ideia tinha-lhe ocorrido durante as longas insónias da convalescença.) Seria possível que nenhuma daquelas indulgências tivesse sido ganha? Não queria acreditar em tal coisa. Certamente que alguns dias daquele enorme total,

36 892 dias, deviam ser válidos. Mas quantos, só a Menina Saunders lhe poderia dizer. E que faria ela durante as horas de trabalho - essas longas horas de peregrinação? Duma vez, tinha passado um fim de semana completo em Walsingham.

Tocou para o Sr. Hopkinson, o qual não pôde deixar de notar a palidez no rosto do patrão.

- Sente-se bem, Sr. Ferraro?

- Sofri um choque terrível. Sabe dizer-me onde mora a Menina Saunders?

- Mora perto de Westbourne Greve, com a mãe inválida.

- Quero a direcção exacta, se faz favor.

O Sr. Ferraro foi de carro até às tristes ruínas de Bayswater. As grandes moradias tinham sido convertidas em hotéis particulares ou tão felizmente bombardeadas que se tinham transformado em parques de estacionamento. Contra a balaustrada dos terraços recuados reclinavam-se raparigas de aspecto duvidoso; à esquina duma rua uma banda tocava furiosamente. O Sr. Ferraro deu com a casa, mas não foi capaz de fazer soar a campainha. Ficou enrolado dentro do seu Daimler, à espera que alguma coisa acontecesse. Teria sido a intensa fixidez do seu olhar que atraiu a Menina Saunders a uma janela lá no alto, ou uma coincidência, uma retribuição? A princípio o Sr. Ferraro pensou que era o calor a causa de ela estar tão sumariamente vestida, quando fez deslizar a janela para a abrir um pouco mais. Mas logo um braço lhe rodeou o busto e a face de um rapaz espreitou para a rua, enquanto a mão corria uma cortina com a familiaridade do hábito. O Sr. Ferraro verificou ser mais que evidente que nem mesmo as condições para ganhar indulgências eram satisfatórias.

Se alguns dos amigos do Sr. Ferraro o pudesse ter visto nessa noite subindo os degraus da Praça Montagu, teria ficado surpreendido pelo seu envelhecimento repentino. Era quase como se, durante aquela tarde, tivesse tomado posse daqueles 36 892 dias que julgara ter subtraído ao Purgatório. Alguém correu os cortinados, as luzes acenderam-se, e, na outra ala, o padre Dewes vazava com certeza o primeiro whisky da noite. O Sr. Ferraro não tocou e entrou sem fazer barulho. O espesso tapete, como areia movediça, abafou os seus passos. Não acendeu luz nenhuma. Em todas as salas estava aceso um candeeiro, com um quebra-luz vermelho, que guiava agora os seus passos. Os quadros da sala de visitas recordaram-lhe os seus deveres para com a morte: um vasto fundo de Degas dominava um banho, como uma explosão atómica. O Sr. Ferraro passou à biblioteca - os clássicos encadernados de couro lembraram-lhe autores mortos. Sentou-se numa cadeira e uma ténue dor no peito trouxe-lhe à memória a sua pneumonia dupla. Estava agora três anos mais perto da morte do que quando contratara a Menina Saunders. Ao fim dum longo espaço de tempo, o Sr. Ferraro uniu os dedos, como as pessoas costumam fazer para orar. No Sr. Ferraro, era um sinal de decisão. O pior já tinha passado. O tempo alongava-se de novo à sua frente. Pensou: «Amanhã começarei a procurar uma secretária em quem possa realmente confiar.»

 

                  OS DESTRUIDORES

FOI na véspera do feriado nacional de Agosto que o membro mais recente se tornou o chefe do bando do baldio de Wormsley. Ninguém ficou surpreendido, à excepção de Mike, mas Mike, que tinha nove anos, surpreendia-se sempre com tudo. «Se não fechas a boca», dissera-lhe um dia alguém, «ainda te metem uma rã por ela abaixo». A partir dessa altura, Mike mantinha os dentes firmemente cerrados, a não ser que o espanto fosse muito grande.

O novo membro estava com o bando desde o princípio das férias grandes e o seu silêncio taciturno abrigava possibilidades que todos reconheciam. Nunca desperdiçara uma palavra, nem mesmo para dizer o seu nome, a não ser quando isso lhe foi exigido pelas regras. Quando ele disse «Trevor», foi uma afirmação de facto e não de vergonha ou desafio, como acontecera com os outros. Nem ninguém rira, a não ser Mike, o qual, sem apoio e ao dar com os olhos escuros do recém-chegado ao grupo, abriu a boca e voltou a calar-se.

Havia mais que razões para que T., como depois se referiam a ele, fosse objecto de troça - havia o nome (que eles substituíram pela inicial, porque foi a única desculpa que encontraram para não troçar dele), havia o facto de o pai, antes arquitecto e agora simples empregado, ter «baixado de posição» e ainda a mãe considerar-se melhor do que todos os vizinhos.

Que outra coisa senão um estranho amor do perigo, do imprevisto, o teria introduzido no bando sem qualquer ignóbil cerimónia de iniciação?

O bando reunia-se todas as manhãs num parque de estacionamento, improvisado pela queda da última bomba do primeiro ataque aéreo. O chefe, que era conhecido por Blackie, afirmava que a vira cair e nenhum dos outros tinha uma ideia segura das datas, para pôr a descoberto que, nessa altura, ele devia ter um ano e se encontrava adormecido no tablado inferior da estação do metropolitano do baldio de Wormsley.

De um dos lados do parque de estacionamento pendia a única casa habitada, o nº 3, do despedaçado Bairro de Northwood - literalmente inclinada, pois fora danificada pela explosão da bomba e as paredes laterais apoiavam-se sobre esteios de madeira. Uma bomba mais pequena e algumas incendiárias tinham caído mais além, de maneira que a casa mantinha-se ali de pé, como um dente aguçado, e conservava na parede posterior relíquias da casa vizinha, tais como um soco e os restos dum fogão de sala. T., cujas palavras se limitavam quase ao voto «sim» ou «não» no plano de operações propostas todos os dias por Blackie, espantou um dia o bando, quando disse numa voz lúgubre:

- O meu pai diz que foi o Wren quem construiu aquela casa.

- Quem é o Wren?

- O homem que fez a Catedral de S. Paulo.

- E isso que importa? - replicou Blackie. - Não deixa de ser a casa do Velho Misérias.

O Velho Misérias - cujo verdadeiro nome era Thomas - fora em tempos construtor e decorador. Vivia sozinho na casa estropiada, bastando-se a si próprio. Uma vez por semana viam-no atravessar o baldio, transportando pão e vegetais, e um dia em que os rapazes brincavam no parque de estacionamento ele deitou a cabeça fora do muro arruinado do jardim e olhou para eles.

- Foi à «casinha!» - disse um dos rapazes, pois era do conhecimento de todos que, desde que as bombas tinham caído, a canalização da casa avariara-se e o Velho Misérias era por de mais avarento para gastar dinheiro na propriedade. Conseguiu tornar a decorá-la pelo preço de custo, mas nunca tinha aprendido de picheleiro. A «casinha» era um barracão de madeira ao fundo do estreito jardim, que tinha na porta um buraco em forma de estrela - escapara à explosão que havia destruído a casa ao lado e arrebatado a caixilharia das janelas do nº 3.

Da segunda vez que o bando se apercebeu do Sr. Thomas foi ainda mais espantoso. Blackie, Mike e um rapaz magro e amarelo, que por qualquer razão eles chamavam pelo sobrenome, que era Summers, encontraram-no no baldio, quando voltava do mercado. O Sr. Thomas deteve-os e disse-lhes mal-humorado:

- Fazeis parte da malta que costuma brincar no parque de estacionamento?

Mike ia a responder, quando Blackie o interrompeu. Como chefe, a responsabilidade era sua.

- E se fizéssemos? - interrogou num tom ambíguo.

- Comprei chocolates - disse o Sr. Thomas. - Para mim não são. Não gosto. Aqui tendes. Não chega para todos. Nunca chega - ajuntou com sombria convicção, estendendo-lhes três caixas de Smarties.

O bando ficou embaraçado e perturbado por esta acção

e tentou explicá-la.

- Aposto que alguém os deitou fora e ele os apanhou

do chão - sugeriu um dos rapazes.

- Certamente palmou-os e agora está cheio de miúfa - pensou outro em voz alta.

- Está a subornar-nos - disse Summers. - É para que deixemos de atirar a bola com força contra o muro dele.

- Nós lhe mostraremos que não vamos em subornos - disse Blackie. E sacrificaram uma manhã inteira a lançar para lá a bola, coisa que apenas poderia divertir Mike, por ser o mais novo. Não havia sinais do Sr. Thomas.

No dia seguinte, T., surpreendeu-os a todos. Chegou tarde ao encontro e a votação para as explorações daquele dia realizou-se sem ele. Por sugestão de Blackie, o bando dispersar-se-ia aos pares e tomaria autocarros ao acaso, a ver quantas viagens de borla conseguia dos condutores incautos. (A operação seria efectivada aos pares para não haver batota.)

Estavam profetizando muitas borlas para cada um dos companheiros, quando T. chegou.

- Onde estiveste metido, T.? - perguntou Blackie. Agora já não podes votar. Conheces as regras.

- Estive lá - disse T., olhando para o chão, como se tivesse pensamentos a esconder.

- Onde?

- Na casa do Velho Misérias.

A boca de Mike abriu-se, mas voltou a fechar-se apressadamente com um estalido. Lembrara-se da rã.

- Na casa do Misérias? - admirou-se Blackie.

As regras não impediam tal coisa, mas tinha o pressentimento que T. se aventurara num terreno perigoso. Perguntou cheio de esperança:

- Assaltaste a casa?

- Não. Toquei a campainha.

- E depois, que disseste?

- Que queria ver a casa dele.

- E ele que fez?

- Mostrou-ma.

- Palmaste alguma coisa? - Não.

- Então porque foste lá ?

O bando tinha-se agrupado em torno dele como um tribunal improvisado que estivesse prestes a reunir-se para julgar um caso de fraude. T. disse:

- É uma bela casa - e, continuando a fixar o chão, sem olhar ninguém, lambeu os lábios uma vez, depois outra.

- Que queres tu dizer com essa da «bela casa»? - perguntou Blackie com desdém.

- Tem uma escadaria com duzentos anos de existência. Parece um saca-rolhas. Não tem nada a segurá-la.

- Que ideia! Não tem nada a segurá-la. Queres tu dizer que flutua?

- O Misérias diz que é qualquer coisa relacionada com forças opostas.

- E que mais?

- Há lá quadros.

- Como no Javali Azul?

- De há duzentos anos.

- O Misérias também tem duzentos anos?

Mike teve uma risada súbita e depois ficou de novo calado. A reunião estava a tomar um aspecto sério. Pela primeira vez, desde que T. entrara no parque de estacionamento no começo das férias, a sua posição estava em perigo. Bastava o simples uso do seu verdadeiro nome para o bando correr com ele.

- E porque fizeste isso? - perguntou Blackie.

Era justo, não tinha ciúmes e estava a fazer todos os possíveis para que T. continuasse a fazer parte do bando. A palavra «bela» é que o preocupara - pertencia a um mundo da elite, que se podia ainda ver caricaturado no Empire do baldio de Wormsley, por um homem de chapéu alto e monóculo, que falava numa voz enfática. Sentiu-se tentado a dizer «meu caro amigo Trevor» e a soltar os seus cães danados.

- Se tivesses assaltado a casa - disse ele numa voz triste-, isso sim, teria sido uma explicação digna da malta.

- Fiz ainda melhor - disse T. - Descobri umas coisas. Continuava a olhar para os pés, sem encontrar o olhar dos outros, como se estivesse absorto num sonho que não queria ou se envergonhava de compartilhar.

- Quais coisas?

- O Velho Misérias vai estar fora amanhã e no dia feriado.

Blackie disse aliviado:

- Queres dizer que podíamos assaltar a casa?

- E gamar coisas? - perguntou alguém.

Blackie disse:

- Ninguém vai gamar nada. Fazer um assalto já não é nada mau, não achas? Não queremos sarilhos com a justiça.

- Eu cá não quero palmar nada. Tenho uma idiea melhor do que essa.

- Qual é?

  1. levantou os olhos, tão cinzentos e turvos como o pardo dia de Agosto.

- Vamos deitá-la abaixo - disse ele. - Destruí-la.

Blackie deu uma gargalhada; depois, como Mike, calou-se, intimidado pela fixidez severa e implacável dos olhos do outro.

- E julgas que a polícia ficava quieta enquanto o fazíamos?

- Não dava por nada. Começávamos pelo interior. Já descobri maneira de entrar.

Depois disse com mais veemência:

- Seríamos como vermes, entendem? Como vermes dentro duma maçã. Quando saíssemos para fora, não haveria lá nada, nem escadaria, nem quadros, nem nada; só paredes. E depois, arranjávamos maneira de fazer cair as paredes.

- íamos parar à choça - comentou Blackie.

- Quem ia arranjar provas? De resto, nós não palmávamos coisa nenhuma.

Depois acrescentou, sem o mínimo sinal de satisfação:

- Quando acabarmos, não haverá nada que palmar.

- Nunca ouvi dizer que se ia preso por partir coisas - falou Summers.

- Não teremos tempo - proferiu Blackie. - Já tenho visto homens a demolir casas.

- Somos doze - observou T. - Formaríamos uma equipa.

- Nenhum de nós sabe do ofício...

- Sei eu - afirmou T.

Os seus olhos pousaram em Blackie:

- Tens algum plano melhor?

- Hoje íamos fazer batota com os bilhetes de autocarro - disse Mike sem tacto nenhum.

- Batota com os bilhetes! - espantou-se T. - Se preferes, podes ficar de lado, Blackie.

- A malta vai votar. - Vamos lá a isso.

Blackie disse com uma voz um pouco segura:

- Propõe-se que entre amanhã e segunda-feira seja destruída a casa do Velho Misérias.

- Pronto, pronto - pronunciou-se um rapaz gordo chamado Joe.

- Quem é a favor?

  1. decidiu:

- Está assente.

- Como começamos? - perguntou Summers.

- Ele que te diga - respondeu Blackie.

Era o fim do seu mandato. Retirou-se para a parte mais afastada do parque de estacionamento e começou a dar pontapés numa pedra, fazendo-a saltitar numa direcção e noutra. No parque encontrava-se apenas um velho Morris, pois poucos carros eram deixados ali, a não ser camiões - sem guarda, era pouco seguro. Deu um pontapé no ar e atingiu o carro, arrancando-lhe um bocado de tinta do guarda-lamas da retaguarda. Do outro lado, não lhe prestando mais atenção do que a um estranho, o bando tinha-se reunido em volta de T. Blackie apercebeu-se, se bem que obscuramente, da inconstância do favoritismo. Pensou em ir para casa, em nunca mais voltar, em deixar que eles descobrissem a falta de consistência da chefia de T., mas, e se ao fim e ao cabo a proposta de T. fosse realizável? Nada de semelhante se fizera, até então. A fama do bando do parque de estacionamento do baldio de Wormsley chegaria com certeza a Londres. Os jornais trariam grandes cabeçalhos. Até os bandos de adultos, que dominavam as apostas de luta-livre e os carregadores do cais ouviriam com respeito a história da destruição da casa do Velho Misérias. Levado pelo puro e único desejo altruísta da fama do bando, Blackie voltou até onde T. se encontrava, à sombra do muro do Misérias.

  1. dava as ordens com decisão - era como se o plano tivesse estado dentro dele desde que nascera, ponderado através das estações e cristalizado agora aos quinze anos, com a dor da puberdade.

- Tu - disse ele a Mike - trazes pregos grandes, os maiores que encontrares e um martelo. Quem quiser pode trazer também martelo e uma chave de parafusos. Vamos precisar de muitos. E também formões. Nunca serão de mais. Alguém pode trazer uma serra?

- Posso eu - disse Mike.

- Quero uma serra a valer.

Blackie encontrou-se a levantar a mão como qualquer membro ordinário do bando.

- Óptimo. Traz tu uma, Blackie. Mas há ainda uma dificuldade. Precisamos duma serra de cortar metal.

- Nunca vi nenhuma - proferiu alguém.

- Na loja do Woolworth há-as - lembrou Summers. O rapaz gordo chamado Joe disse numa voz triste:

- Eu logo vi que isto acabava numa subscrição.

- Eu próprio arranjarei uma - prometeu T. - Não preciso do vosso dinheiro. Mas um malho é que não posso comprar.

Blackie disse:

- No nº 15 estão a fazer umas obras. Eu sei onde eles vão deixar as ferramentas durante o feriado.

- Então temos tudo - concluiu T. - Encontramo-nos aqui às nove em ponto.

- Tenho de ir à igreja - declarou Mike.

- Então vem pelo muro e assobia, que nós deixamo-te entrar.

 

No domingo de manhã todos foram pontuais, excepto Blackie. Até mesmo Mike, que tivera um inesperado golpe de sorte. A mãe sentiu-se doente, o pai estava cansado da noite de sábado, e, assim, mandaram-no à igreja sozinho, mas com as inúmeras recomendações do que lhe aconteceria se faltasse. Blackie sentira dificuldade em apoderar-se do serrote e ainda em encontrar o malho nas traseiras do nº 15. Aproximou-se da casa por uma travessa à retaguarda do jardim, com receio da ronda da polícia na rua principal. As sempre-verdes, cansadas, encolhiam-se sob um sol de trovoada: outro feriado chuvoso se preparava por sobre o Atlântico, começando em remoinhos de poeira sob as árvores. Blackie trepou o muro e penetrou no jardim do Misérias.

Não havia sinal de vivalma em parte alguma. O barracão parecia um túmulo de cemitério abandonado. As cortinas encontravam-se corridas. A casa dormia. Blackie caminhava com dificuldade, devido ao serrote e ao malho. Aproximou-se da casa; talvez afinal ninguém tivesse comparecido - o plano fora uma invenção louca e eles tinham acordado mais sensatos. Mas, quando estava mais perto da porta das traseiras, ouviu sons confusos, pouco mais audíveis que um enxame num cortiço - um clique-claque, um estrondo súbito e aflitivo. Pensou: «afinal é verdade». E assobiou.

Abriram-lhe a porta das traseiras e ele entrou. Teve imediatamente uma sensação de disciplina, muito diferente das irreflectidas operações do passado sob a sua chefia. Durante algum tempo desceu e subiu escadas, procurando T. Ninguém lhe falou. Sentia em todos uma grande pressa e começava já a poder ver os efeitos do plano. O interior da casa estava a ser cuidadosamente destruído, sem que as paredes exteriores fossem atingidas. Summers, de martelo e formão na mão, rachava e esburacava os socos do chão da sala de jantar, depois de ter já destruído as almofadas da porta. Na mesma sala, Joe levantava os lambris, pondo à vista a madeira macia que cobria a cave. Rolos de fio saíram do soco desmantelado e Mike sentou-se todo contente no chão, começando a cortar os fios.

Na escada circular, dois do bando trabalhavam activamente no corrimão, com um inadequado serrote de criança. Ao verem a grande serra de Blackie, acenaram-lhe sem dizer palavra. Quando voltou a vê-los, um quarto do corrimão pendia para o vestíbulo. Finalmente, foi encontrar T. na casa de banho - estava com um ar carrancudo, sentado na dependência da casa a que os outros menos tinham ligado e escutava os seus sons vindos de baixo.

- Sempre conseguiste fazê-lo? - perguntou Blackie com respeito. - E agora, que vai acontecer?

- Ainda mal começámos - respondeu T. Ao ver o malho, deu as suas instruções.

- Pica aqui e parte a banheira e a bacia em pedaços. Deixa lá os canos. Mais tarde iremos a eles.

Mike apareceu diante da porta.

- Já acabei os fios, T. - disse.

- Óptimo. Vai dar uma volta pela cozinha. É no rés-do-chão. Estilhaça todas as porcelanas, vidros e garrafas que puderes. Deixa as torneiras. Não queremos inundações por enquanto. Depois entra nos quartos e vaza as gavetas. Se estiverem fechadas, vai buscar um dos outros para as arrombarem. Rasga todos os papéis que encontrares e quebra todos os objectos decorativos. É melhor levares um canivete para a cozinha. O quarto de cama é aqui em frente. Abre as almofadas e estiraça os lençóis. Por agora chega. E tu, Blackie, quando acabares isto, vai rachando com o teu malho todo o estuque que encontrares até lá acima.

- E tu que vais fazer? - indagou Blackie.

- Ando à procura de qualquer coisa especial disse T.

Eram quase horas de almoço e Blackie ainda não acabara. Foi à procura de T. O caos tinha aumentado. A cozinha era um amontoado de vidro e porcelana partidos. A sala de jantar estava semeada de lambris, o soco levantado, a porta fora dos gonzos e os destruidores tinham subido um andar. Frestas de luz escoavam-se através das portas fechadas, e, lá dentro, eles laboravam com a seriedade de criadores - afinal a destruição é uma forma de criação. Uma espécie de poder criador tinha visto esta casa no estado em que se encontrava agora. Mike disse:

- Tenho de ir a casa por causa do jantar.

- Quem mais? - perguntou T., mas todos os outros tinham arranjado qualquer pretexto para trazerem provisões.

Acocoraram-se entre as ruínas e trocaram uns com os outros as sanduíches que não lhes apeteciam. Meia hora para o almoço e tornaram ao trabalho. Quando Mike voltou estavam no último andar e às seis horas davam por terminados os estragos superficiais. As portas estavam todas tiradas, os socos todos levantados, os móveis pilhados, fendidos em pedaços - ninguém poderia pernoitar naquela casa, a não ser sobre um leito de bocados de cal.

  1. deu as suas ordens - voltariam às oito horas da manhã seguinte.

E, para não despertarem suspeitas, saltaram um a um o muro do jardim que dava para o parque de estacionamento. Só lá ficaram Blackie e T. Era quase noite; quando deram volta a um comutador, nada se acendeu. Mike fizera um trabalho perfeito.

- Encontraste a tal coisa especial? - perguntou Blackie.

  1. fez com a cabeça um sinal afirmativo.

- Anda cá ver - disse ele.

Tirou de ambos os bolsos alguns maços de notas de libra.

- São as economias do Misérias - declarou.

- O Mike rasgou o colchão, mas não deu por elas.

- Que tencionas fazer? Dividi-las por todos?

- Não somos ladrões - disse T. - Ninguém vai levar nada desta casa. Guardei isto para tu e eu fazermos uma pequena festa.

Ajoelhou-se no chão e contou-as até ao fim: setenta.

- Vamos queimá-las - disse ele - uma por uma - e, ora um, ora outro, iam erguendo nota por nota e inflamando o canto superior, de modo que a chama queimava-a lentamente até chegar aos seus próprios dedos. A cinza flutuava por momentos por cima deles e caía-lhes como a velhice sobre as cabeças.

- Muito eu gostava de ver a cara do Velho Misérias quando acabarmos - disse T.

- Odeia-lo muito? - perguntou Blackie.

- Que ideia! Não o odeio nada - replicou T. - Se o odiasse, isto não tinha piada nenhuma.

A chama da última nota a arder iluminou-lhe o rosto pensativo.

- Todo esse ódio e esse amor - disse ele - é tolice, é um disparate. - Só as coisas existem realmente - e olhou em volta do quarto, povoado de sombras pouco comuns, as sombras de meias coisas, de coisas partidas de coisas que tinham sido.

- Vou levar-te a casa, Blackie - ofereceu-se.

 

Na manhã seguinte começou a destruição a sério. Faltavam dois - Mike e outro rapaz, cujos pais tinham ido a Southend Brighton, apesar dos pingos quentes que a pouco e pouco tinham começado a cair e do ribombar da trovoada sobre o estuário, semelhante às primeiras detonações dos passados ataques aéreos.

- Temos de andar depressa - disse T.

Summers parecia inquieto.

- Não achas que já chega? - inquiriu. - Deram-me um xelim e eu podia ir tentar a sorte numa máquina de jogo. Isto é como estar a trabalhar.

- Ainda mal começámos - considerou T. - Faltam os soalhos todos e as escadas. Tu votaste como os outros e vais destruir esta casa. Quando acabarmos, não haverá uma única coisa de pé.

Começaram novamente pelo primeiro andar, levantando as tábuas do sobrado junto das paredes exteriores e deixando as traves à vista. Depois, serraram as vigas e tinham recuado para o vestíbulo quando o que ainda restava do sobrado se inclinou e cedeu. A prática tornou-os mais experientes e o sobrado do segundo andar ruiu já com mais facilidade. Pela tardinha apossou-se deles uma estranha alegria, ao olharem por sobre o grande vazio que havia dentro da casa. O risco era agora grande e eles cometiam erros: quando se lembraram das janelas, era demasiado tarde para as alcançar.

- Côa breca! - exclamou Joe, lançando um «penny» para o grande poço seco, atulhado de cacos. Ouviu-se um tinido e a moeda perdeu-se no montão de vidros partidos.

  1. estava já no rés-do-chão, cavando entre os cacos para abrir um sulco ao longo da parede exterior.

- Porque fizemos nós isto? - perguntou Summers com espanto.

- Abram as torneiras - disse ele. - Já está muito escuro para alguém ver e amanhã de manhã já não faz mal.

A água passou por eles na escada e caiu através dos quartos sem soalho.

Foi então que ouviram o assobio de Mike nas traseiras.

- Deve haver alguma novidade! - exclamou Blackie.

Podiam ouvir-lhe a respiração ofegante enquanto lhe abriam a porta.

- São os chuis ? - perguntou Summers.

- É o Velho Misérias que vem aí a caminho - disse Mike.

Meteu a cabeça entre os joelhos, arquejando.

- Corri todo o caminho - proferiu com orgulho.

- Mas como é isso? - admirou-se T. - Ele disse-me... Protestava com a fúria da criança que nunca tinha sido. Não se faz.

- Estava em Southend - contou Mike - e ia voltar para trás no comboio. Disse que estava lá muito frio e humidade.

Fez uma pausa e fitou a água.

- Ena! Que inundação! O tecto mete água?

- Quanto tempo levará ele a chegar cá?

- Cinco minutos. Sem a minha mãe dar por isso, pirei-me e vim a correr.

- É melhor cavarmos - sugeriu Summers. - De qualquer maneira, já fizemos bastante.

- Ah não, isso é que não fizemos! Qualquer um podia ter feito isto.

«Isto» era a casa despedaçada e oca, da qual nada restava além das paredes. No entanto, as paredes poderiam vir a ser aproveitadas. As fachadas são sempre valiosas.

Podiam construir-lhe de novo qualquer coisa por dentro, ainda mais bonita do que antes. Isto podia voltar a ser uma casa. E encolerizado, ele acrescentou:

- Temos de acabar com tudo. Não se mexam. Deixem-me pensar.

- Não há tempo - falou um dos rapazes.

- Há-de haver uma maneira - disse T. - Não íamos chegar a este ponto para...

- Já fizemos muito - disse Blackie.

- Não. Não fizemos nada. Um de vós vá vigiar a frente da casa.

- Não podemos fazer mais nada.

- Ele pode entrar pelas traseiras.

- Vigiem também as traseiras. T. começou a implorar:

- Dêem-me só um minuto que eu arranjo qualquer coisa. Juro que arranjo.

Mas a sua autoridade desaparecera com a sua hesitação. Agora, não era mais que um dos do bando.

- Por favor! - pediu ele.

- Por favor! - arremedou Summers, e, então, de repente, tocou no vivo com o nome fatal.

- Foge para casa, Trevor.

  1. permanecia de costas para os destroços, como um pugilista batido, cambaleando de encontro às cordas. As palavras abandonaram-no, enquanto os «seus sonhos vacilavam e caíam por terra. Foi então que Blackie agiu, antes que o bando tivesse tempo para rir. Empurrou Summers para trás e disse:

- Eu próprio vigiarei a frente, T.

Abriu cautelosamente as portas de madeira das janelas do vestíbulo. O baldio cinzento e húmido desdobrava-se diante dele e os candeeiros reflectiam-se, cintilantes, nas poças de água.

- Vem aí alguém, T. Não, não é ele. Já arranjaste algum plano, T.?

- Diz ao Mike que se esconda junto do barracão. Quando ouvir o meu assobio, que conte até dez e depois comece a gritar.

- A gritar o quê?

- Oh, qualquer coisa! Socorro, por exemplo.

- Ouviste, Mike? - disse Blackie.

Voltara a ser o chefe. Olhou novamente através das portas de madeira.

- Ele aí vem, T.

- Depressa, Mike. Ao barracão. Fica aqui, Blackie. E vós todos também, até eu dar sinal.

- Não te preocupes. Eu trato disto. Não disse que tratava?

O Velho Misérias atravessou o baldio em passo trôpego. Tinha lama nos sapatos e parou a raspá-los na borda do passeio. Não queria sujar a casa, que se erguia escura, entalada entre os dois sítios onde as bombas tinham caído, salva por um triz, julgava ele, da destruição. Até a bandeira da porta ficara intacta, depois da explosão da bomba. Alguém, assobiou ao longe. O Velho Misérias olhou em volta com atenção. Desconfiava dos assobios. Uma criança gritou. Parecia vir do seu próprio jardim. Então, um rapaz surgiu na rua, vindo do parque de estacionamento.

- Sr. Thomas! - chamou ele. - Sr. Thomas!

- Que foi?

- Desculpe, Sr. Thomas. Um de nós estava «aflito» e pensou que o senhor não se importava. Mas agora não pode sair cá para fora.

- Que estás para aí a dizer, rapaz?

- Que ficou preso no seu barracão.

- Ele não tinha nada que ir lá... Não te vi já nalgum sítio?

- O senhor mostrou-me a sua casa.

- Pois mostrei. É verdade. Mas isso não te dá o direito de...

- Depressa, Sr. Thomas, senão ele sufoca.

- Que disparate! Sufoca agora! Espera que eu vou pôr a minha mala dentro de casa.

- Eu levo-lha.

- Não levas nada. Eu levo. -. Por aqui, Sr. Thomas.

- Não posso entrar no jardim por aí. Tenho de ir por dentro de casa.

- Pode, sim senhor, entrar por aqui, Sr. Thomas. Nós entramos muitas vezes.

- Ah, entrais?

Foi atrás do rapaz, escandalizado e ao mesmo tempo fascinado.

- Quando? Com que direito?...

- Vê? O muro é baixo.

- Não vou agora trepar os muros do meu próprio jardim. É absurdo.

- Mas é como nós fazemos. Um pé aqui, outro ali e upa.

O rapaz inclinou o rosto, um braço estendeu-se e o Sr. Thomas viu a mala ser levada e depositada do outro lado do muro.

- Dá-me a minha mala - pediu o Sr. Thomas.

Do barracão vinham repetidos gritos duma criança.

- Olha que eu chamo a polícia!

- A sua mala está a salvo, Sr. Thomas. Olhe. É pôr um pé aí à sua direita. Depois outro mais acima, à sua esquerda.

O Sr. Thomas trepou o muro do seu próprio jardim.

- Aqui tem a sua mala, Sr. Thomas.

- Vou mandar reconstruir o muro - desabafou o Sr. Thomas. - Não consinto que a garotada passe por aqui para fazer uso do meu barracão.

Tropeçou no caminho, mas o rapaz agarrou-o pelo cotovelo e conseguiu segurá-lo.

- Obrigado. Obrigado, meu rapaz - murmurou ele automaticamente.

Alguém gritou de novo no meio da escuridão.

- Já aí vou, já aí vou - gritou o Sr. Thomas.

Disse para o rapaz, que caminhava à sua frente:

- Também sei ser razoável, desde que tudo se faça nos seus devidos termos. Também já fui rapaz. Não me importo que vocês andem a jogar por aqui aos domingos de manhã. Às vezes gosto de companhia. Mas tudo tem de ser feito nos devidos termos. Se um de vós pede licença, está bem, eu direi que sim. Mas às vezes direi que não, se me apetecer. E haveis de vir pela porta da frente ou pela das traseiras. Mas não pelos muros do jardim.

- Vá tirá-lo de lá para fora, Sr. Thomas.

- Não lhe acontece mal nenhum dentro do meu barracão - tranquilizou-o o Sr. Thomas, caminhando aos tropeções pelo jardim fora.

- Ai o meu reumático! - gemia ele. - Volta sempre neste feriado. Tenho de andar com cuidado. Há por aqui pedras soltas. Dá-me a tua mão. Sabes o que dizia o meu horoscópio, ontem? Abstém-te de negócios na primeira metade da semana. Há o perigo duma séria derrocada. É possível que ela aconteça neste caminho - continuou o Sr. Thomas. - Eles falam sempre por metáforas e segundos sentidos.

Parou à porta do barracão.

- Que é isto aqui? - gritou. Não obteve resposta.

- Talvez ele tenha desmaiado - lembrou o rapaz.

- No meu barracão? Não pode ser. Eh! sai cá para fora! - gritou o Sr. Thomas, e, dando um grande empurrão na porta, quase caiu de costas, quando ela oscilou, francamente aberta.

Alguém o segurou primeiro, para o empurrar em seguida rudemente. A sua cabeça embateu na parede oposta e ele sentou-se pesadamente no chão. A mala caiu-lhe em cima dos pés. Tiraram a chave da fechadura e a porta bateu com força.

- Deixem-me sair - gritou, ao ouvir girar a chave na fechadura.

«Uma séria derrocada», pensou, sentindo-se confuso, trémulo e velho.

Uma voz veio até si através do buraco da porta em forma de estrela.

- Não se aflija, Sr. Thomas - dizia. - Se estiver sossegado, não lhe faremos mal nenhum.

O Sr. Thomas mergulhou a cabeça nas mãos e pôs-se a reflectir. Notara que no parque de estacionamento se encontrava apenas um camião e com certeza que o motorista não viria antes do amanhecer. Ninguém o ouviria da rua que ficava em frente e a travessa das traseiras raramente era utilizada. Só por lá passava quem queria encurtar caminho para casa e esse não iria parar por causa duma coisa, que tomaria, certamente, por gritos de bêbado. E, mesmo que gritasse por socorro, quem, num deserto fim de tarde de feriado teria a coragem de se aventurar?

O Sr. Thomas, sentado no seu barracão, ponderava tudo com a sabedoria da idade.

Ao fim de algum tempo pareceu-lhe ouvir ruídos no meio do silêncio - eram fracos e vinham do lado da sua casa. Pôs-se de pé e espreitou através do buraco de ventilação. Por entre as frestas das portas de madeira viu uma luz. Não a luz dum candeeiro, mas a trémula claridade que uma vela podia produzir. Depois, pareceu-lhe ouvir martelar, rachar, escavar. Pensou em ladrões - talvez tivessem usado o pequeno como espião. Mas, porque haviam os ladrões de estar ocupados num trabalho que cada vez mais lhe parecia uma confusa forma de carpinteirar. O Sr. Thomas experimentou gritar, mas ninguém lhe respondeu. A voz não chegou sequer até aos seus inimigos.

 

Mike tinha ido para casa dormir, mas os outros ficaram. O problema da chefia já não interessava o bando. Com pregos, cinzéis, chaves de parafusos, tudo quanto fosse afiado e penetrante, eles andavam de cá para lá, em torno das paredes interiores, esburacando a argamassa de entre os tijolos. Começaram demasiado alto e foi Blackie quem descobriu a camada impermeabilizante e percebeu que se pouparia metade do trabalho se começassem por enfraquecer as juntas imediatamente acima. Foi um trabalho longo, estafante e pouco divertido, mas por fim ficou concluído. A casa desventrada mantinha-se de pé, equilibrada por algumas polegadas de argamassa entre a camada impermeabilizante e os tijolos.

A tarefa mais difícil de todas ficou para o fim. Tinha de ser feita ao ar livre, no extremo da zona onde a bomba caíra. Summers foi encarregado de vigiar a rua, por causa dos transeuntes, e o Sr. Thomas, sentado no barracão, ouvia agora nitidamente o ruído de serras. Já não provinha da sua casa e isso tranquilizou-o. Desinteressou-se um pouco. Talvez os outros ruídos que ouvia não tivessem também qualquer significado.

Uma voz falou-lhe através do buraco:

- Sr. Thomas...

- Quero sair daqui para fora - gritou o Sr. Thomas asperamente.

- Aqui tem um cobertor - disse a voz e uma longa salsicha cinzenta foi passando através do buraco, caindo em pregas sobre a cabeça do Sr. Thomas.

- Não temos nada contra o senhor - volveu a voz. Queremos que passe uma noite confortável.

- Noite? - repetiu o Sr. Thomas em voz incrédula.

- Apanhe - continuou a voz. - São biscoitos. Pusemos-lhes manteiga. Isto são pães com salsicha. Não queremos que passe fome, Sr. Thomas.

O Sr. Thomas implorou com desespero:

- Já chega de brincadeira, meu pequeno. Deixa-me sair que eu não contarei nada a ninguém. Tenho reumático. Preciso de dormir confortàvelmente.

- Na sua casa não terá conforto nenhum. Agora já não terá.

- Que queres tu dizer com isso, pequeno? - mas os passos afastaram-se.

Só se ouvia o silêncio da noite. O ruído do serrote tinha cessado. O Sr. Thomas tentou gritar mais uma vez, mas sentiu-se atemorizado e reprimido pelo silêncio - muito ao longe piou um mocho, que se afastou depois num voo sem ruído, através do mundo silencioso.

Às sete da manhã o motorista veio buscar o camião. Trepou para o assento e tentou pôr o motor a trabalhar. Pareceu-lhe ouvir vagamente uma voz a gritar, mas não fez caso. Por fim, o motor pegou e ele fez marcha atrás, até tocar a forte escora de madeira que sustinha a casa do Sr. Thomas.

Dessa maneira, ele podia descer directamente a rua Dem ter de mudar de direcção. O camião avançou, mas foi momentaneamente retido, como se alguma coisa o estivesse a puxar à retaguarda; em seguida, ouviu-se o estrondo duma retumbante derrocada. O motorista ficou atónito, ao ver tijolos voarem por sobre a sua cabeça, ao mesmo tempo que o tejadilho do camião era atingido por pedras. Travou o veículo, e, quando pôs o pé em terra, a paisagem em redor tinha-se modificado dum momento para o outro. Diante do parque de estacionamento não havia casa nenhuma; somente um montão de destroços. Foi de volta para examinar os estragos causados na traseira do carro; descobriu uma corda atada nela, a qual, na outra extremidade, continuava ainda enrolada a um esteio de madeira.

O motorista ouviu de novo gritos. Vinham do barracão de madeira, que era a coisa mais parecida com uma casa, no meio daquela desolação de tijolo partido. O motorista trepou o muro desmantelado e deu a volta à chave. O Sr. Thomas saiu do barracão. Vinha embrulhado num cobertor cinzento, com restos de bolo pegados. A voz saiu-lhe num soluço:

- A minha casa! - lamuriou. - Onde está a minha casa?

- Pergunta-me a mim? - exclamou o motorista.

Os seus olhos pousaram nos restos duma banheira e naquilo que antes tinha sido um armário, e desatou a rir. Não. Não restava absolutamente nada em sítio nenhum.

- Como se atreve a rir? - gritou o Sr. Thomas. - Era A minha casa! A minha casa!

- Desculpe - volveu o motorista, fazendo um esforço heróico, mas, quando se lembrou do súbito puxão que sentira no carro e do estrondo dos tijolos a cair, recomeçou a rir convulsivamente.

Um momento antes, a casa erguia-se com marcada dignidade entre as ruínas dos bombardeamentos, como um homem de chapéu alto, e depois, puim, catapum, nada restava - nem nada!

- Desculpe - disse ele -, mas não me posso conter, Sr. Thomas. Não tenho nada contra o senhor, mas há-de concordar que é divertidíssimo.

 

                   UMA VISITA A MORIN

Le Diable au Ciel - ali estava ele, numa prateleira da Livraria Colmar, despertando em mim recordações do passado de há vinte anos. Não era muito frequente, nos anos de 1950, ver em exposição romances de Pierre Morin, e, no entanto, aqui estavam dois exemplares do seu livro, outrora famoso. Percorrendo as filas de brochuras, descobri outros, como se ali na Alsácia existisse uma Cave escondida, idêntica àquelas caves secretas onde outrora se preservavam do inimigo os vinhos, para os dias em que a paz tornasse.

Admirara Pierre Morin em rapaz, mas tinha-o esquecido. Já nesse tempo ele era um escritor mais velho, prestes a ser votado ao abandono pelos seus próprios leitores, mas as classes de língua dos colégios ingleses andam sempre muito aquém das modas de Paris. Assim era que em Collingworth, tínhamos um mestre católico-romano, que pertencera à geração a quem Morin agradara ou ofendera. Ofendera os católicos ortodoxos do seu próprio país e agradara aos católicos liberais do estrangeiro; agradara também aos protestantes, que acreditavam em Deus com a mesma intensidade que ele parecia evidenciar e conseguira encontrar leitores entusiastas entre os não cristãos, os quais, já que aceitavam imaginativamente as suas premissas, descobriam talvez na sua obra aquela liberdade de especulação que punha de sobreaviso os seus correligionários católicos. Como a sua obra tinha parecido fresca e excitante para a geração do meu mestre. Para mim, educado duma forma mais humilde, sobre Les Misérábles e os poemas de Lamartine, ele era um escritor revolucionário. Mas a aceitação do mundo é fatal aos revolucionários. A exaltação desapareceu das páginas de Morin. Somente os ortodoxos o lêem, agora que todo o mundo parece preparado para crer num deus, embora duma maneira bastante estranha - mas não quero antecipar o ponto essencial da minha pequena narrativa, que pode, apesar de tudo, fornecer um apontamento para a história literária dos tempos de Morin. Quando eu a publicar já não fará mal nenhum. Morin terá morrido, quer física quer literariamente, e, tanto quanto sei, não deixou descendentes ou discípulos.

Ainda recordo com prazer aquelas aulas de francês, regidas por um certo Sr. Strangeways, do Chile. Os inimigos afirmavam que a sua tez morena era indício de sangue espanhol (estava-se no período da Guerra Civil, em que tudo o que fosse espanhol ou latino era olhado como fascista) e os amigos, entre os quais eu, um vestígio índio, mas a estúpida realidade é que o pai era um estrangeiro de Wolverhampton e a mãe oriunda da Luisiana e latina há apenas três gerações. Nestas classes adiantadas nós já não era fraco. O Sr. Strangeways lia-nos em voz alta, nós líamos-lhe em voz alta mas, passados cinco minutos, caíamos na crítica literária, destruindo com ousadia juvenil - o Sr. Strangeways, como tantos mestres-escola, permanecia jovem - os grandes nomes consagrados e exaltando com exagerado apreço aqueles que ainda não tinham «arribado». É claro que Morin tinha arribado alguns anos atrás, nós ainda não estávamos ao facto disso, na nossa prisão de tijolo a quinhentas milhas do Sena - não penetrara nos livros de texto da escola, pois ainda não tinha sido mumificado por Messrs. Hachette et Cie, e aquelas passagens, das quais não entendíamos o sentido, não traziam notas do editor para aniquilar a especulação.

- Será possível que ele acredite nisso? - lembro-me de ter exclamado para o Sr. Strangeways, quando uma personagem de Le Diable au Ciel fazia qualquer tenebrosa e horrível afirmação sobre a Expiação ou a Redenção. Recordo-me da áspera réplica do Sr. Strangeways, enquanto agitava as mangas da curta bata preta:

- Mas eu também acredito, Sr. Dunlop.

Não deixaria a coisa assim, nem arriscaria ver-se envolvido num debate teológico, que poderia ter feito perigar o seu posto na minha escola protestante. O que disse em seguida, foi para explicar que nada tínhamos com a crença do autor. O autor escolhera como ponto de vista o carácter dum católico ortodoxo - todos os seus pensamentos, pois, tinham de ser afectados, como o seriam na vida real, pela sua ortodoxia. A técnica de Morin impedia-o de ele próprio tomar parte na história - até evidenciar ironia seria fazer batota, embora fosse possível descobrir algo acerca das ideias do próprio Morin, do facto de a ortodoxia de Durobier ser levada até aos limites mais extremos, de modo que, quando fechávamos o livro, ficávamos com a impressão dum homem encurralado numa longa faixa de areia, onde não havia possibilidades de avanço e donde, recuar em direcção à praia, equivaleria a render-se. «Isto é ou não verdade?». Todo o seu credo se limitava à resposta.

- Quer dizer - perguntei ao Sr. Strangeways - que talvez Morin não seja crente?

- Não quero dizer nada disso. Ninguém pôs seriamente em causa o seu catolicismo, mas apenas a sua prudência. De qualquer forma, isso não é uma verdadeira crítica. Um romance é feito de palavras e personagens. As palavras são bem escolhidas e as personagens vivem? Tudo o mais é vão discurso literário. Não frequentais esta classe para aprenderdes a ser escritores de conversa fiada.

E, contudo, naquela altura, eu desejaria ter sabido.

Por vezes, o Sr. Strangeways, reconhecendo o meu interesse por Morin, emprestava-me periódicos literários católico-romanos, que traziam notícias sobre a obra do romancista, as quais, muitas vezes, iam contra o seu princípio de deixar de fora as ideias do autor. Descobri que Morin era umas vezes acusado de jansenismo - fosse isso o que fosse -, outras apelidado de augustiano - designação esta que significava também muito pouco para mim; e, nas revistas de melhor impressão e maior volume, parecia-me descobrir uma certa nota de pesar. Ele acreditava em tudo o que era preciso, não lhe encontravam qualquer falta específica e no entanto... algumas das suas personagens pareciam aceitar um dogma tão entusiasticamente, que levavam as suas implicações até ao limite do absurdo, ao passo que outros examinavam um dogma, como advogados constitucionais decididos a confiná-lo dentro duma espécie de mínimo legal. Durobier, tenho a certeza, arriscaria a vida pela Assunção tomada à letra: em determinado ponto da História, algures nos últimos anos do século I depois de Cristo, o corpo da Virgem elevara-se para o Céu, deixando um túmulo vazio. Pelo contrário, havia uma personagem de nome Sagrin, num dos seus romances menores, talvez Le Bien Pensant, que acreditava que o corpo Santo tinha apodrecido na sepultura como todos os outros corpos. O estranho é que ambos os pontos de vista pareciam possuir características que irritavam os críticos católicos, e, contudo, ambos provaram estar igualmente de acordo com a proclamação do dogma, quando ela se deu. Podia pois, afirmar-se, que eles eram ortodoxos, e, no entanto, os críticos ortodoxos pareciam farejar heresia, como rato morto algures sob as tábuas, num sítio que não lhes era possível localizar.

Estas, evidentemente, eram críticas antigas, pescadas do guarda-louça do Sr. Strangeways, cheio de velhas revistas francesas, que ascendiam à sua longínqua estadia em Paris, em certa altura durante os últimos «anos de vinte», quando assistia, a conferências na Sorbona e bebia cerveja no Dome. A palavra «paradoxo» era frequentemente usada em tom de censura. Talvez os ortodoxos tivessem razão, afinal, pois eu iria precisamente descobrir até que ponto Morin levara, dentro da sua própria vida, o sentido do paradoxo.

 

Não sou daqueles que voltam a visitar a velha escola, senão, que desapontamento eu não teria sido para o Sr. Strangeways, que deve estar prestes a reformar-se. Creio que ele imaginara o meu futuro como o de um ilustre autor escrevendo para os semanários sobre assuntos de literatura francesa - talvez mesmo o de autor duma biografia erudita de Corneille. Na realidade, após uma folha de serviços de guerra vulgar e por intermédio de influentes relações, obtive um lugar numa firma de negociantes de vinhos. A minha sintaxe francesa, tão desprezada pelo Sr. Strangeways, tinha melhorado com a guerra e demonstrado ser útil à firma; segundo parece, eu possuía uma certa aptidão que me permitiu melhorar os catálogos, de estilo já bastante antiquado. Os directores tinham-se contentado tempo de mais com o arrazoado da Sociedade de Vinhos - «Um vinho insignificante, mas agradável para as alegres reuniões de amigos.» Introduzi uma nota mais realista e substituí a familiaridade pela informação. «Este vinho provém duma pequena vinha da encosta ocidental das colinas do Mont Soleil. O solo desta região contém elementos jurássicos, porque a vinha está situada na orla da grande fissura jurássica que se estende através da Europa, partindo dos Urales, o que é propício ao cultivo duma uva escura, pequena e rija, que possui elevado conteúdo de açúcar e menos sujeita às mudanças de clima do que muitos vinhos famosos». Evidentemente que continuava a ser o mesmo vinho «insignificante», mas a minha descrição fornecia mais material à vaidade do dono da casa.

Os negócios tinham-me trazido até Colmar - achávamos que era necessário substituir o nosso agente ali, e, como sou solteiro e acho os natais solitários de Londres tristes e penosos, tinha resolvido conciliar a minha visita com o feriado do Natal. No estrangeiro não sentimos a solidão imaginava-me a beber durante todo o tempo da festa em qualquer bierhaus decorada com azevinho e eu próprio invisível por detrás do fumo dos charutos. Um Natal alemão é um Natal par excellence: canções, sentimento, gulodices.

Dirigi-me à empregada da loja.

- Parece ter bastantes livros de M. Morin.

- É muito popular - declarou.

- Tive a impressão de que em Paris não é muito lido.

- Nós aqui somos católicos - disse ela em tom de censura. Além disso, ele vive aqui perto de Colmar e nós sentimos muito orgulho por ele ter preferido estabelecer-se na nossa vizinhança.

- Há quanto tempo está aqui?

- Veio imediatamente a seguir à guerra. Já o consideramos quase um dos nossos. Temos todos os seus livros também em alemão. Pode vê-los ali em cima. Alguns de nós pensam que ele é ainda melhor em alemão do que em francês. O alemão - disse ela, examinando-me com desdém, enquanto eu pegava numa edição francesa de Le Diable au Ciel - tem melhor vocabulário para as coisas profundas.

Informei-a de que admirava os romances de M. Morin desde os meus tempos da escola. Ela abrandou então e eu deixei a loja com o endereço de M. Morin - uma aldeia a quinze milhas de Colmar. Continuava indeciso, sem saber se devia ou não visitá-lo. Que desculpa tinha eu a apresentar-lhe para a minha vulgar curiosidade? Escrever é a mais íntima de todas as artes, e, contudo, poucos de nós hesitam em invadir a casa dum escritor. Todos nós conhecemos a história do visitante de Porclock, porém, centenas de visitantes continuam todos os dias a tocar a campainha, a telefonar ou a forçar a sua entrada no espaço secreto onde um escritor trabalha e vive.

Duvido que me tivesse aventurado a tocar a campainha da porta da M. Morin; dois dias mais tarde, porém, avistei-o na Missa do Galo, numa aldeia dos arredores de Colmar. Não era a aldeia onde me tinham dito que ele habitava e eu perguntei a mim mesmo qual a razão por que teria vindo sozinho de tão longe. A Missa do Galo é um acto do culto que até mesmo um descrente como eu acha inexplicavelmente comovedor. Talvez seja alguma recordação da infância que torna comoventes e significativas a jornada através da escuridão, as janelas iluminadas, a noite gelada e a lenta reunião de estranhos silenciosos, vindos dos quatro cantos do campo.

Havia um presépio à esquerda da porta quando entrei o menino de gesso, deitado no regaço de gesso e as vacas, os carneiros e o pastor projectavam longas sombras à luz das velas. Entre as mulheres ajoelhadas encontrava-se um homem idoso, cuja face me pareceu recordar - uma cabeça redonda como a de um camponês, sem cabelo na coroa, a pele enrugada como uma maçã murcha. Ajoelhou-se, inclinou a cabeça e tornou a levantar-se. Apenas tinha tido tempo, suponho eu, para uma prece formal, mas deve ter sido muito curta. O seu queixo estava coberto de restolho branco, como os campos lá fora; e havia tão pouca coisa nele que sugerisse um membro da Academia Francesa, que eu poderia tê-lo tomado pelo camponês que aparentava ser, no seu fato dum preto respeitável e luzidio e na sua gravata preta, semelhante a um atacador, se não tivesse sido atraído pelos olhos. Os olhos denunciavam-no: pareciam conhecer muito mais e ter visto muito mais coisas do que as estações e os campos - de um azul pálido muito claro, vagueavam continuamente, ora olhando perto ora olhando para longe, observadores, tristonhos e curiosos, como os dum homem atingido por uma grande catástrofe que tem o dever de registar, mas que não suporta contemplar por mais tempo. Não foi, evidentemente, durante a sua curta prece diante do presépio, que eu tive tempo de observar tão de perto Morin, mas quando os fiéis arrastaram os pés em direcção ao altar, para a mesa da Comunhão. Morin e eu encontrámo-nos sozinhos entre as cadeiras vazias. Foi então que o reconheci - recordando talvez velhas fotografias das revistas do Sr. Strangeways, não sei, mas convenci-me de que era ele; e perguntava a mim mesmo o que impediria este velho e ilustre católico de ir com os outros, nesta Missa de Todas as Missas do ano, receber o Sacramento. Teria ele, talvez inadvertidamente, quebrado o seu jejum, ou seria um homem que sofria de escrúpulos, supondo-se culpado de qualquer acto de falta de caridade ou de gula? Não podia haver muitas tentações sérias, pensava eu, para um homem que devia andar perto dos oitenta. E, no entanto, eu nunca o teria julgado escrupuloso. Através dos seus próprios romances, eu tomara conhecimento da existência dessa doença da religião, mas nunca teria suposto que o criador de Durobier sofresse do mesmo mal que a sua personagem. Afinal, um romancista pode às vezes escrever bastante objectivamente acerca das próprias fraquezas.

Éramos as duas únicas pessoas sentadas ao fundo da igreja. O ar estava tão frio e quieto como uma árvore gelada e as velas ardiam erectas no altar; e Deus, assim acreditavam eles, ia passando ao longo da mesa da comunhão. Era o nascimento do Cristianismo - lá fora, na escuridão, havia a velha e primitiva Judeia, mas aqui dentro o mundo tinha apenas alguns minutos de vida. Era de novo o Ano Um e eu voltei a sentir o meu antigo e sentimental desejo de crer, como aqueles criam, julgo eu, e que voltavam um por um da balaustrada do altar, as mãos cruzadas e os lábios unidos como portas cerradas, guardando a hóstia que se dissolvia.

Se eu tivesse pedido a um deles: «ensina-me porque crês», qual teria sido a sua resposta? Pensei que talvez afinal eu soubesse, pois uma vez durante a guerra - levado pelo medo e pela náusea perante o espectáculo da morte eu tinha falado a um capelão católico, fazendo-lhe justamente a mesma pergunta. Não pertencia à minha unidade e era um homem muito ocupado: a missão dum capelão, na frente de batalha, não é instruir ou converter, portanto, ninguém podia censurá-lo de não poder transmitir nada a um estranho, como eu, à sua fé. Emprestou-me dois livros: um, um catecismo barato, com a sua lista de perguntas e respostas absurdas, muito concisas e explicativas - o mistério reduzido a uma borboleta morta com cianido, imobilizada e pregada com alfinetes em tiras de papel; outro, um estudo bastante sóbrio sobre episódios do evangelho. Perdi-os ambos daí a alguns dias, com três garrafas de whisky, o «jeep» e o meu cabo, cujo nome nem tive tempo de saber antes de o matarem, quando espiava o canal verde. Não me parece, em qualquer caso, que eu tivesse conservado os livros por mais tempo. Não eram o tipo de auxílio de que eu precisava, nem o capelão era o homem indicado para mo dar. Lembro-me de ter-lhe perguntado se lera os romances de Morin.

- Não tenho tempo para desperdiçar com ele - proferiu abruptamente.

- Foram os seus primeiros livros - disse eu - que me fizeram interessar pela vossa fé.

- Faria muito melhor se tivesse lido Chesterton - retrucou-me.

Por isso, era estranho que eu me encontrasse ali, na retaguarda da igreja, com Morin em pessoa. Foi o primeiro a sair e eu segui-o até cá fora. Estava satisfeito por me vir embora, pois a atracção sentimental da Missa do Galo tinha-se dissipado com a morosa e aborrecida cerimónia da comunhão.

- M. Morin - murmurei naquela voz baixa que costumamos adoptar numa igreja ou num hospital.

Ele olhou para cima com um movimento rápido, defensivamente, assim me pareceu.

- Desculpe se lhe falo assim sem mais nem menos, M. Morin, mas os seus livros deram-me tanto prazer!

Teria o homem de Porclock empregado as mesmas frases triviais?

- É inglês? - inquiriu.

- Sou.

Falou-me então em inglês:

- O senhor também escreve? Desculpe se lhe faço a pergunta, mas não sei o seu nome.

- Dunlop. Mas não escrevo. Compro e vendo vinhos.

- Uma profissão digna de muito respeito - achou M. Morin. - Se quiser vir no meu carro, vivo a uns dez quilómetros daqui; posso mostrar-lhe um vinho como talvez não tenha ainda encontrado.

- Já é muito tarde, M. Morin. E eu tenho ali o motorista.

- Mande-o embora. Depois da Missa do Galo tenho sempre dificuldade em dormir. Até me faria um favor.

Vendo-me hesitar, ele disse:

- Quanto a amanhã, é justamente igual a qualquer outro dia do ano e eu não gosto de visitantes.

Tentei gracejar com o facto:

- Quer dizer que é a minha única oportunidade?

- Isso mesmo.

As portas da igreja abriram-se de par em par e os fiéis saíram lentamente para o esplendor do gelo, tocando na pia da água benta com as pontas dos dedos, tagarelando de novo alegremente, à medida que o mistério ficava para trás, cumprimentado os vizinhos. Os lamentos duma criança marcavam como um relógio o adiantado da hora. M. Morin afastou-se a passos largos e eu segui-o.

 

  1. Morin guiava com uma violência desajeitada, arranhando as mudanças e roçando os arbustos da margem direita, como se o carro fosse um invento novo e ele um ousado pioneiro no seu uso.

- Então leu alguns dos meus livros? - perguntou-me.

- Muitos, quando andava na escola.

- Quer dizer que só são bons para crianças?

- Não quero dizer nada disso.

- Que pode uma criança encontrar neles?

- Tinha dezasseis anos quando comecei a lê-los. Já não se é criança.

- Ah, bem. Agora só são lidos pelos velhos e pelos devotos. É um devoto, Sr. Dunlop?

- Não sou católico.

- Muito folgo de ouvir isso. Então não o ofenderei.

- Outrora cheguei a pensar em sê-lo.

- Os segundos pensamentos são os melhores.

- Julgo que foram os seus livros que me despertaram a curiosidade.

- Não quero assumir essa responsabilidade - disse ele. - Não sou teólogo.

Saltámos por cima dum pequeno ramal de caminho de ferro sem alterar a velocidade e desviámo-nos para a direita, passando um portão muito necessitado de reparações. Um candeeiro pendente dum alpendre mostrava a porta aberta.

- Não é costume fecharem-se as portas por estes sítios? - perguntei-lhe.

Ele respondeu:

- Há dez anos (então os tempos iam mal) um homem morria de fome e frio aqui perto, numa manhã de Natal. Não encontrou ninguém que lhe abrisse a porta. Havia uma tempestade de neve, mas eles estavam todos na igreja. Entre - disse ele do alpendre, encolerizado. - Está a olhar em volta para tomar notas sobre a maneira como vivo? O senhor intrujou-me? É jornalista?

Se tivesse ali o meu carro, ter-me-ia vindo embora.

- M. Morin, há diferentes espécies de fome - afirmei. - O senhor parece saber saciar apenas uma.

Conduziu-me até um gabinete - uma secretária, uma mesa, duas cadeiras confortáveis e algumas estantes estranhamente vazias - não via sinais de livros seus. Havia uma garrafa de brande sobre a mesa, aguardando talvez o estranho e a tempestade de neve, que nunca mais voltariam juntos a este lugar.

- Sente-se - disse ele. - Desculpe se fui pouco delicado. Desabituei-me das pessoas. Vou ver se encontro o vinho de que lhe falei. Ponha-se à vontade.

Nunca tinha visto um homem menos à vontade do que ele próprio. Era como se eu tivesse vindo instalar-me numa casa que pertencia a outrem.

Enquanto esteve ausente, olhei as estantes com mais atenção. Não mandara encadernar nenhum dos livros brochados e as prateleiras tinham o aspecto dum armazém falido: pequenos bocados de papel rasgado, cobertos de pó e descoloridos pela luz do Sol. Havia muitas obras de teologia, algumas de poesia e muito poucos romances.

Voltou com o vinho e um prato com salame. Começou por provar o vinho e depois serviu-me um copo.

- Vai gostar - disse.

- É excelente. Notável.

- É duma pequena vinha a umas vinte milhas daqui. Se quer, dou-lhe o endereço antes de partir. Quanto a mim, numa noite como esta, prefiro brande.

Então, talvez fosse na realidade para ele e não para o estranho, pensei, que a garrafa estava a postos.

- Está muito frio. Não me referia ao tempo.

- Estive a ler os seus livros. Lê muita teologia?

- Agora não.

- Não me poderá aconselhar... - mas tive menos êxito com ele do que com o capelão.

- Não. Se deseja ser crente, se é tão parvo que queira sê-lo, deve evitar a teologia.

- Não compreendo.

Ele disse:

- Um homem é capaz de concordar que tem qualquer coisa a ver com Deus, enquanto os eruditos não começam a entrar em pormenores e deduções. Um homem é capaz de aceitar a Trindade, mas os argumentos que se seguem...

- teve um gesto de recusa. - Eu nunca tentaria determinar um ponto no cálculo diferencial, com uma tabuada de dois vezes dois. Acabamos por descrer do cálculo. Encheu mais dois copos e bebeu o seu como se fosse vodca.

- Houve um tempo em que acreditei no Apocalipse, mas nunca acreditei nas capacidades do cérebro humano.

- Acreditou?

- Sim, Sr. Dunlop. É esse o seu nome? Acreditei. Se o senhor é daqueles que vêm à procura de crença, vá-se embora. Não a encontrará aqui.

- Mas dos seus livros...

- Não encontrará nem um, nas minhas estantes.

- Notei que tem alguns de teologia.

- Até a descrença - disse ele com os olhos na garrafa do brande - precisa de esteios, sejam eles quais forem.

Notei que o brande tinha sobre ele um efeito muito rápido, não só pela prontidão das suas respostas, mas ainda pelo aspecto físico das suas pupilas. Era como se os pequenos glóbulos sanguíneos houvessem aguardado, sob a membrana branca, para rebentarem todos ao mesmo tempo como botões, por altura do terceiro copo. Disse-me:

- Não acha que não há nada menos adequado à existência de Deus que os argumentos escolásticos?

- Desconheço-os.

- Os argumentos de agente e causa?

- Não conheço.

- Dizem-lhe que em todas as mudanças há dois elementos, o que é mudado e aquele que faz mudar. Cada agente de mudança, por sua vez, é determinado por outro agente superior. Poderá isto continuar ad infinitum? Ah não, dizem eles, isso não daria a finalidade que o pensamento exige. Mas exigi-lo-á? Porque não há-de a cadeia cotinuar indefinidamente? O homem inventou a ideia de infinito. Seja como for, como deve ser trivial qualquer argumento baseado no que o pensamento humano exige. Os seus pensamentos, os meus, os de Monsieur Dupont... Eu cá prefiro os pensamentos dum macaco. Os instintos dele estão menos corrompidos. Mostre-me um gorila a rezar e talvez eu volte a crer.

- Mas deve haver com certeza outros argumentos?

- Quatro. Qual deles o mais inadequado. Basta que uma criança diga a esses teólogos: porquê? Porque não? Porque não uma série infinita de causas? Por que razão há-de a existência dum bom e dum melhor implicar a existência dum óptimo? Isto é jogar com as palavras.

Inventamos as palavras e fabricamos argumentos para as justificarmos. O melhor não é um facto; é apenas uma palavra e um juízo dos homens.

- O senhor está a argumentar - disse eu - com uma pessoa que não pode retorquir-lhe. Compreende, M. Morin, eu também não acredito. Sou um curioso, nada mais.

- Ah! - tornou ele - já mo tinha dito. Um curioso. A curiosidade é uma grande amadilha. Costumavam vir aqui às dúzias, para me visitarem. Recebia cartas, a dizerem como eu os tinha convertido por meio deste ou daquele livro. Muito tempo ainda depois de eu próprio deixar de crer, continuava a ser um portador de crença, como um homem pode ser portador duma doença, sem estar doente. Para as mulheres, especialmente - acrescentou com repugnância. - Bastava dormir com uma mulher para fazer uma convertida.

Voltou os olhos vermelhos para mim e parecia realmente aguardar uma resposta, quando perguntou:

- Que espécie de vida de Rasputine era essa?

Nesta altura, o brande tinha-se apossado dele por completo. Perguntei a mim mesmo quanto tempo não teria ele esperado por um estranho sem fé, a quem pudesse falar com franqueza.

- Nunca falou nisso a um padre? Sempre imaginei a sua fé...

- Tem havido sempre padres de mais à minha volta - disse ele. - Os padres enxameavam como moscas. Em volta de mim ou de qualquer mulher que eu conhecesse. A princípio, eu era um testemunho da sua fé. Era-lhes útil, era um símbolo em que até um homem inteligente podia acreditar. Esse foi o período dos Dominicanos, que gostavam do ambiente literário e do bom vinho. Depois, quando os livros cessaram e eles cheiraram qualquer coisa - zombaria - na minha religião, foi a vez dos Jesuítas, que nunca desesperam daquilo a que chamam a alma dum homem.

- E por que razão cessaram os livros?

- Sabe-se lá. Nunca escreveu versos a uma rapariga, quando era novo?

- Sem dúvida.

- Mas não casou com ela, pois não? O poeta não profissional escreve acerca dos seus próprios sentimentos e, uma vez o poema acabado, descobre que o seu amor morreu com essa página.

- Talvez eu tenha esgotado a minha crença, como o jovem mata esse amor, transcrevendo-o para o papel. Simplesmente, comigo levou mais tempo - vinte anos em quinze livros. - Ergueu a garrafa. - Outro copo?

- Prefiro um pouco do seu brande.

Ao contrário do vinho, era duma marca pouco refinada, ordinária, e eu pensei de novo: «para um mendigo ou para ele próprio?»

- Em todo o caso, o senhor vai à missa.

- Vou à Missa do Galo em vésperas de Natal - disse Morin. - O pior dos Católicos vai lá nesse dia, até mesmo aqueles que não vão na Páscoa. É a missa da nossa infância. E do perdão. Que pensariam eles se eu não fosse? Não gosto de dar escândalo. Deve compreender que nunca falaria a nenhum dos meus vizinhos como lhe falei a si. Compreende, sou o autor católico deles. O seu académico. Nunca desejei ajudar ninguém a crer, mas Deus sabe que não ajudaria a roubar-lhes...

- Houve uma coisa que me surpreendeu quando o vi lá, M. Morin.

- Sim?

Disse-lhe precipitadamente:

- O senhor e eu fomos os únicos que não comungámos.

- É por isso que não vou à igreja da minha aldeia. Isso tornar-se-ia muito notado e causaria escândalo.

- Pois. Compreendo perfeitamente. - A minha voz arrastava-se pesadamente. (Talvez o brande me tivesse tocado também.) - Desculpe, M. Morin, mas nessa altura perguntei a mim mesmo qual a razão que poderia mantê-lo afastado da comunhão, na sua idade. Evidentemente que agora já sei.

- Sabe? - descreu Morin. - Duvido, meu rapaz. Olhou para mim através do copo com uma antipatia impessoal e disse:

- Não percebeu absolutamente nada do que eu tenho estado a dizer, pois não? Que história você não faria disto se fosse um jornalista. E, no entanto, não haveria nela uma palavra de verdade...

Objectei rudemente:

- Pensei que o senhor tinha declarado claramente que perdera a fé.

- Julga que isso poderia manter alguém afastado da confissão? O senhor está muito longe de compreender a Igreja ou a mente humana, Sr. Dunlop. Porque, uma das mais frequentes confissões que um padre ouve, quase tão frequente como o adultério, é: «Padre, perdi a minha fé». O padre, pode o senhor estar certo, fá-la a si mesmo muitas vezes junto do altar, antes de receber a hóstia.

Eu retorqui, desta vez encolerizado:

- Então que é que o mantém afastado? O seu orgulho? Uma das suas mulheres rasputinescas?

- Como pensou e muito bem - disse ele -, as mulheres já não constituem problema na minha idade. - Olhou para o relógio. - Duas e meia. Talvez seja melhor eu ir levá-lo.

- Não - disse eu. - Não quero despedir-me assim. É o álcool que nos torna irritáveis. Os seus livros continuam a ser importantes para mim. Bem sei que sou ignorante. Não sou católico nem nunca virei a sê-lo, mas nos meus velhos tempos, os seus livros fizeram-me compreender que, pelo menos, era possível ser-se crente. O senhor nunca me fechou a porta na cara, como está fazendo neste momento. Nem as suas personagens, Durobier e Sagrin. - Apontei para a garrafa do brande. - Ainda há pouco lhe disse: as pessoas não têm só fome e sede disso. Visto que perdeu a sua fé...

Interrompeu-me ferozmente:

- Nunca lhe falei de tal coisa.

- Então de que tem estado a falar durante este tempo todo?

- Disse-lhe que tinha perdido a crença. É uma coisa muito diferente. Mas como há-de você perceber?

- O senhor não me deu oportunidade.

Ele fazia um esforço evidente para ter paciência. Arguiu:

- Vou pôr-lhe a coisa nos seguintes termos: se um médico lhe receitasse uma droga e lha mandasse tomar todos os dias para o resto da vida e você cessasse de lhe obedecer, não a tomando mais e a sua saúde piorasse, deixava de acreditar no médico?

- Talvez. Mas continuo a não o compreender.

- Durante vinte anos - disse Morin - excomunguei-me voluntariamente. Nunca fui à confissão. Amava tanto uma mulher, que não podia enganar a mim mesmo com a promessa de a deixar. Conhece a condição para ser absolvido? Um firme propósito de emenda. Nunca tive tal propósito. A minha amante morreu há cinco anos e o meu sexo morreu com ela.

- Então porque não retrocedeu?

- Tive medo. E continuo a ter medo.

- Daquilo que o padre diria?

- Que ideia estranha você faz da Igreja. Não, não daquilo que o padre diria. Ele não diria nada. Ouso mesmo dizer que não há dádiva maior para um padre no confessionáro, Sr. Dunlop, do que voltar a ele após muitos anos de ausência. Ele sente que é útil outra vez. Mas não percebe? Eu assim posso dizer a mim próprio que a minha falta de crença é uma prova concludente de que a Igreja tem razão e de que a fé é verdadeira. Afastei-me voluntariamente da graça durante vinte anos e a minha crença murchou, como os padres tinham dito que murcharia. Não acredito em Deus, nem no Seu Filho, nem nos Seus anjos e nos Seus santos, mas sei a razão por que não acredito, e essa razão é: a Igreja é verdadeira e o que ela me ensinou é verdade. Durante vinte anos, não recebi os sacramentos e posso ver qual o resultado. A hóstia tem de ser mais do que uma hóstia.

- Mas se retrocedesse...

- Se voltasse atrás e a crença não tornasse? É isso que eu receio, Sr. Dunlop. Enquanto me mantiver afastado dos sacramentos, a minha falta de crença é um argumento a favor da Igreja. Mas se eu voltasse e ela me perdesse, então eu seria realmente um homem sem fé, que faria melhor em se afundar rapidamente no túmulo, para não desencorajar os outros - riu pouco à vontade. - Paradoxal, Sr. Dunlop?

- Foi o que eles disseram dos seus livros.

- Eu sei.

- As suas personagens levavam as suas ideias a limites extremos. Pelo menos, assim diziam os críticos.

- E o senhor pensa o mesmo?

- Penso, M. Morin.

Os seus olhos encontraram os meus. Fez um esgar e olhou para além de mim.

- Pelo menos, agora já não sou um portador de doença. O senhor escapou à infecção. São horas de ir para a cama, Sr. Dunlop. Horas de ir para a cama. Os novos precisam de dormir mais.

- Não sou tão novo como isso.

- Ao pé de mim, parece-me muito novo.

Levou-me no carro ao hotel. Mal falámos. Eu pensava na fé estranha que o sustentava, mesmo agora, depois de ter deixado de crer. Pouca curiosidade tinha sentido, depois daquele momento durante a guerra, em que falara com o capelão, mas agora, começava de novo a desejar saber. M. Morin considerava que deixara de ser um portador de doença e eu não podia deixar de esperar que ele tivesse razão. Esquecera-se de me dar o endereço do vinho e eu esqueci-me de lho perguntar, quando lhe dei as boas-noites.

 

                                                                                Graham Greene  

 

                      

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