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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MELHORES CONTOS / Oscar Wilde
OS MELHORES CONTOS / Oscar Wilde

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MELHORES CONTOS

 

                       ÍNDICE

 

             O Reizinho

             O Aniversário da Infanta

             O Pescador e a Alma

             Filho de Estrela

             O Príncipe Feliz

             O Rouxinol e a Rosa

             O Gigante Egoísta

             O Amigo Fiel

             O Foguete de Lágrimas

 

 

                   O REIZINHO

Véspera da coroação, à noite: ei-lo só, o reizinho, no seu quarto esplendoroso. Os cortesãos haviam-se retira­do, curvando a cabeça até ao chão, de acordo com a prag­mática daquele tempo, e encontravam-se agora no vestí­bulo maior do Paço, a fim de receberem as últimas lições do mestre de cerimónias - visto alguns deles ainda con­servarem certa naturalidade de maneiras, o que num pala­ciano constitui falta grave, escusado será dizer.

O rapazinho - pois tinha apenas dezasseis anos - não entristecera com o facto de os ver partir; até se reclinara, com um suspiro de alívio, nas almofadas macias do leito bordado e ali permanecera esgazeado e boquiaberto como um fauno dos bosques ou um animal bravio recentemen­te capturado.

Na verdade, dir-se-ia ter sido apanhado na rede, quase por acaso, descalço e de gaita pastoril, quando conduzia o rebanho do pobre cabreiro que o criara e de quem sempre se imaginara filho. Nascido da filha única do rei, dum ca­samento secreto com alguém de mais baixa condição (pa­rece que estrangeiro e tocador de alaúde, de cuja música maravilhosa a princesa se enamorara, fora arrancado do lado da mãe, enquanto esta dormia, e entregue aos cuida­dos dum casal de camponeses sem descendência, habitan­tes dum lugar que ficava na remota floresta, distante cer­ca de vinte e quatro horas de jornada. O pai, a quem se atribuía a qualidade de artista, desaparecera de repente da cidade, deixando incompleto o trabalho que executava na Catedral; e a mãe morrera logo ao despertar, de dor ou de peste, segundo o físico da corte, ou pela acção dum subti­líssimo veneno italiano, conforme insinuavam outros. Quando o portador da criança, escudeiro fiel, se apeou do cavalo estafado e bateu à porta da cabana do pastor, o ca­dáver da filha do rei baixava à mesma cova dum cemitério rural onde se diz que já repousava outro corpo, o de um rapaz de peregrina beleza, cujas mãos haviam sido atadas atrás das costas e cujo peito estava retalhado de muitas fe­ridas rubras.

Tal a história que se propalava à boca pequena no país. O certo era que o rei velho, ou movido pelo remorso ou para evitar somente que o trono se apartasse da sua linha­gem, mandara buscar, à hora da morte, aquele neto rene­gado e, na presença dos seus conselheiros, o reconhecera como seu sucessor. Desde o momento em que havia sido legitimado, o rapazinho dera provas de entranhada paixão pelas coisas belas, paixão que havia de ter tão grande in­fluência na sua vida. Os que o acompanharam aos apo­sentos que lhe estavam reservados muitas vezes aludiram ao grito de alegria que se lhe escapara dos lábios ao ver o vestuário precioso e as jóias de tanta valia que se destina­vam ao seu uso pessoal; notaram também a satisfação qua­se selvática com que se despojara da grosseira túnica de couro e do não menos rude capote de pele de cabra. É cla­ro que de tempos a tempos se lembrava com saudade da existência livre de outrora e se aborrecia com o cerimonial enfadonho da corte, tão demorado que lhe ocupava gran­de parte do dia; mas o palácio maravilhoso de que era do­no presentemente aparecia-lhe também como um novo mundo feito de propósito para seu regalo, e, logo que po­dia fugir da mesa do despacho e das audiências, precipi­tava-se pela escadaria, ladeada de leões de bronze doura­do e coberta de pórfiro cintilante, e vagueava de sala em sala, de corredor em corredor, como quem procura achar na beleza um refrigério para a dor e um cordial para a fra­queza.

Nesses dias de descoberta (como ele os classificava) e que eram, de facto, autênticas viagens através dum reino encantado, fazia-se acompanhar, com frequência, pelos esbeltos e loiros pajens do seu serviço, os quais tinham capas esvoaçantes e faixas de cores alegres. Noutras oca­siões, porém, ia só, pois sentia, por instinto natural, que os mistérios da arte se aprendem melhor em segredo e que a Beleza, do mesmo modo que a Sabedoria, concede a pre­ferência ao adorador solitário.

Durante este período contaram-se a seu respeito muitas histórias curiosas. Dizia-se que um burgomestre qual­quer, ao vir à capital a fim de apresentar certa reclamação em favor dos seus munícipes, o surpreendera ajoelhado diante dum quadro trazido de Veneza e cujo assunto pa­recia ser a adoração de novos deuses. Doutra vez estivera afastado durante horas, sem que ninguém soubesse do seu paradeiro, até que o foram descobrir, depois de buscas porfiadas, num dos torreões setentrionais do palácio, ex­tasiado defronte duma jóia grega esculpida, que represen­tava a figura de Adónis. E fora visto ainda, a dar crédito a estes boatos, poisando os lábios ardentes na face de már­more duma estátua antiga, encontrada no leito do rio aquando da construção duma ponte de pedra, e onde se lia, inscrito, o nome do escravo bitínio de Adriano. Uma noite inteira passara ele deslumbrado com o efeito do luar numa imagem de prata de Endimião.

Fascinavam-no todas as matérias raras e preciosas e, na ânsia de as obter, despachara muitos mercadores, uns pa­ra junto da rude população piscatória dos mares do Nor­te, onde há o tráfico do âmbar, outros para o Egipto, em busca dessa estranha turquesa verde que só se encontra nos túmulos dos faraós e dizem possuir propriedades má­gicas, outros para a Pérsia a fim de comprarem tapetes de seda e vasos pintados, e outros para a índia, onde adqui­ririam gazas e mármores de cor, pedras opalinas, pau de sândalo, esmaltes azuis e xailes de lã finíssima.

Todavia, o que mais o ocupara fora o traje a usar no dia da coroação, fato de oiro tecido, coroa cravejada de rubis, ceptro com aros e fiadas de pérolas. Era nisso, realmente, que ele pensava nessa noite, reclinado no luxuoso leito e observando a acha de pinho que ardia no fogão. Os dese­nhos, feitos pelos mais famosos artistas da época, haviam­-lhe sido submetidos uns meses antes, e o reizinho dera ordem para que os mestres e oficiais trabalhassem noite e dia e que se percorressem todos os países em cata de jóias que fossem dignas de figurar no adereço real. Via-se já no altar-mor da Catedral, no seu belo traje de soberano, e, ao pensar em tais coisas, brincava-lhe nos lábios infantis um sorriso e tremia-lhe nos olhos obscuros um brilho novo.

Passado algum tempo levantou-se e, apoiando-se ao pa­no de fogão esculpido, circunvagou a vista pelo quarto imerso em penumbra. Das paredes pendiam tapeçarias opulentas que figuravam o Triunfo da Beleza. Preenchia um canto certo armário embutido de ágata e lápis-lazúli; em frente da janela ostentava-se uma escrivaninha singu­larmente trabalhada, com painéis de mosaico dourado e de laca, e sobre a qual se viam copos admiráveis de cristal de Veneza e um vaso de ónix raiado de negro. Na colcha de seda da cama estavam bordadas papoilas pálidas, como se houvessem caído das mãos fatigadas do sono; e susti­nham o dossel de veludo altas colunas de marfim estriado, donde se erguiam para o tecto de prata fosca tufos de pe­nas de avestruz. Um Narciso risonho segurava, acima da cabeça, um espelho cintilante. Sobre o tampo da mesa des­cansava uma taça baixa de ametista.

Lá fora, avultava a imensa cúpula da Catedral, luzindo como uma bolha imensa acima das casas indefinidas; viam-se também as sentinelas fatigadas que iam e vinham na esplanada húmida, junto ao rio. Mais longe, no pomar, cantava um rouxinol. Através da janela aberta entrava um vago aroma de jasmim. O reizinho lançou para trás a ma­deixa castanha e encaracolada que lhe pendia na testa e, pegando num alaúde, deixou correr os dedos pelas cordas. Pesaram-lhe as pálpebras, invadiu-o uma estranha lassi­dão. Nunca antes sentira, nem com tão vivo e apurado gosto, a magia e o mistério das coisas belas.

Quando a meia-noite soou no relógio da torre, ele to­cou uma sineta e os pajens entraram e despiram-no com todo o cerimonial, deitando-lhe água de rosas nas mãos e aspergindo-lhe o travesseiro de flores. E adormeceu pou­co depois de eles haverem saído.

Sonhou durante o sono, e eis o que o seu sonho foi: Estava num sótão comprido e baixo, entre o zumbido e o estardalhaço de muitos teares. Pelas janelas gradeadas espreitava a luz pálida do dia, mostrando-lhe o rosto magro dos tecelões que se curvavam no trabalho. Sob vigas­-mestras agachavam-se crianças macilentas, de ar doentio.

Quando as lançadeiras saltavam através da urdidura, os pequeninos operários levantavam os pesados sarrafos e, se elas paravam, eles detinham-se também. Que rostos reve­ladores de fome, que trémulos dedos enfezados! Sentadas a uma das mesas, cosiam mulheres de cara encovada. En­chia o quarto um cheiro nauseabundo, tornando o ar compacto e insuportável. Pelas paredes escorriam fios de água.

O reizinho aproximou-se de cada um dos tecelões, pa­rando e observando. Um deles fitou-o zangado e pergun­tou:

            - Por que me espiais? Foi o nosso patrão que vos man­dou?

            - Quem é o teu patrão? - inquiriu o pequeno.

- O nosso! - replicou o homem, com amarga triste­za. - É um sujeito como eu. Para falar verdade só existe uma diferença entre nós: ele usa trajes opulentos e eu an­do andrajoso; enquanto passo fome, ele sofre de fartura.

- A terra é livre - disse o reizinho - e tu não és es­cravo de ninguém.

- Na terra - prosseguiu o tecelão - os fortes escra­vizam os fracos e, na paz, os ricos escravizam os pobres. Precisamos de trabalhar para viver, e eles dão-nos salários tão mesquinhos que nos acarretam a morte. Mourejamos para eles todo o santo dia, e ei-los que amontoam oiro nos seus cofres, e os nossos filhos definham prematuramente, e as faces dos que amamos tornam-se duras e velhas. Pisa­mos as uvas e os outros bebem o vinho. Ceifamos o trigo e temos a mesa sem pão. Arrastamos correntes invisíveis, continuamos escravos com carta de alforria...

- Sois todos assim?

- Sim, senhor - respondeu o operário. - Tanto os moços como os adultos, tanto as mulheres como os homens, tanto as crianças como os velhos. Os mercadores oprimem-nos e nós temos de sujeitar-nos. Cavalgando, passa o cura junto de nós, a desfiar o seu rosário, mas nin­guém se preocupa connosco. Através das nossas vielas sombrias arrasta-se a Pobreza de olhos famélicos, e o Pe­cado, de rosto alvar, segue-lhe as pisadas. De manhã acorda-nos a Miséria, e a Ignomínia compartilha, à noite, o nosso leito. Mas que vos importam estas coisas? Não sois dos nossos, a vossa face respira felicidade.

Afastou-se de cenho carregado, repelindo o tear, e o rei­zinho viu que o fio era de oiro. Então apoderou-se dele o terror e novamente interpelou o operário:

- Que vestido é esse que estais a tecer?

- O que há-de servir para a coroação do rei. Mas que tendes vós com isso?

O rapazinho soltou um grito, despertou e viu-se na sua cama. Através da janela descobriu uma Lua enorme e cor de mel, suspensa no ar torvo.

E outra vez adormeceu e sonhou, e eis o que o seu so­nho foi:

Estava no convés duma galera muito grande na qual re­mavam cem escravos. A seu lado, sobre um tapete, ia sen­tado o arrais, negro como o ébano, e de turbante de seda carmesim. Dos lobos espessos das orelhas pendiam-lhe volumosos brincos de prata; nas mãos segurava uma ba­lança de marfim.

Os escravos tinham apenas a cobri-los uma tanga esfar­rapada e cada um deles estava preso por uma corrente ao seu companheiro. A luz do Sol batia-lhes em cheio: cá e lá andavam vários pretos munidos de chicote, com que fus­tigavam os remadores, e estes distendiam os braços esque­léticos, lutando contra a água. O sal esparrinhava das pás.

Chegaram a uma angra e começaram a tomar fundo. So­prava da costa um vento fresco, cobrindo de fina poalha vermelha o convés e a vela latina da galera. Apareceram então três árabes, montados em burros bravos, e arremes­saram lanças aos recém-vindos. O arrais deitou mão dum arco e despediu uma frecha contra um deles, atingindo-o na garganta; o árabe caiu pesadamente na ressaca e os ou­tros dois fugiram. Passou um camelo com uma mulher em cima, envolta num véu amarelo, a qual de vez em quando olhava para trás, para o cadáver do guerreiro.

Logo que soltaram a âncora e arrearam a vela, os pretos desceram ao porão e trouxeram uma longa escada de cor­da, lastrada de chumbo. O arrais deitou-a pela borda, atando solidamente as pontas a duas escoras de ferro. En­tão os pretos agarraram o mais novo dos escravos, tiraram-lhe os grilhões, encheram-lhe de cera as narinas e os ouvidos e ataram-lhe uma pedra grossa à cintura: o ho­mem desceu devagar a escada e desapareceu no mar, sur­gindo logo bolhas à superfície no sítio em que ele mergu­lhara. Alguns dos escravos espreitavam, curiosos, dos la­dos da galera. À proa desta um encantador de tubarões batia monotonamente num tambor.

Passou-se um bocado e o mergulhador surgiu anelante da água e subiu a escada, exibindo uma pérola na mão di­reita; os pretos apoderaram-se dela e obrigaram-no a des­cer de novo. A este tempo já muitos dos escravos haviam adormecido, curvados sobre os remos.

De cada vez que o mergulhador voltava à superfície tra­zia uma linda pérola na mão. O arrais verificava-lhes o pe­so e guardava-as num saquitel de couro verde. O reizinho tentou falar, porém a língua dir-se-ia colar-se-lhe ao céu da boca e os lábios recusarem-se ao menor movimento. Tagarelando uns com os outros, os pretos começaram a disputar acerca dum fio de contas cintilantes. Em círculos sobre o barco voavam dois grous. Reapareceu o mergu­lhador pela última vez, trazendo uma pérola mais bela do que todas as de Ormuz, pois tinha a forma da lua cheia e era mais branca do que a estrela da manhã. Mas o rosto dele vinha extremamente pálido e, quando descansou no convés, o sangue brotou-lhe dos ouvidos e das narinas; por instantes sacudiu-o um leve tremor, e depois ficou imóvel. Os pretos encolheram os ombros e atiraram-lhe com o corpo pela borda fora.

            Riu-se o arrais, que avançou para tomar a pérola. Ao vê-la, apertou-a contra a fronte e curvou-se reverente.

            - Há-de ser - declarou - para o ceptro do reizinho.

            Em seguida fez sinal aos pretos para que levantassem a âncora.

            Quando ouviu isto o moço rei deu um grito e acordou, e viu através da janela os dedos foscos da aurora a colhe­rem as estrelas que se apagavam.

E de novo adormeceu, e sonhou, e eis o que o seu so­nho foi:

Pensou que vagueava por uma floresta densa, de cujas árvores pendiam frutos estranhos e belas flores venenosas. As serpentes assobiavam-lhe quando ele passava e os pa­pagaios de cores vivas saltavam gritando de ramo em ra­mo. Na lama quente jaziam tartarugas enormes, adorme­cidas. As árvores estavam cheias de macacos e pavões.

Pouco a pouco ele foi andando até que chegou à orla da floresta e aí viu uma grande quantidade de homens que trabalhavam no leito seco dum rio. Subiam e desciam o precipício como um carreiro de formigas. Uns abriam fundas covas no chão e metiam-se nelas; outros fendiam as rochas armados de picaretas. Outros, ainda, vasculhavam na areia. Arrancavam cactos pela raiz e com os pés esma­gavam as flores encarnadas. Azafamavam-se, chamando uns pelos outros, sem que nenhum se conservasse ocioso. No negrume duma caverna espreitavam-nos a Morte e a Avareza, e disse aquela:

            - Já estou cansada. Dá-me a terça parte desses homens e vou-me embora daqui.

Mas a Avareza abanou a cabeça, respondendo:

- São meus servos.

- Que tens na mão? - inquiriu a outra.

- Três grãos de trigo. Que te importa?

- Dá-me um deles. Plantá-lo-ei no meu jardim. Dá-me um só e eu vou-me embora daqui.

            - Não te darei nenhum - replicou a Avareza, escon­dendo a mão numa prega do vestido.

Riu-se a Morte, pegou numa taça, mergulhou-a numa poça de água e da taça surgiu a Malária. Esta passou pelo meio da multidão e um terço dos homens tombou aniqui­lado. Acompanhava-a uma neblina fria, e para ela corre­ram as cobras-d'água.

E quando a Avareza verificou que a terça parte dos ope­rários estava morta, bateu no peito e carpiu. Bateu no pei­to estéril e pranteou em altas vozes.

- Mataste um terço dos meus servos - disse ela. ­

Vai-te daqui! Há guerra nas montanhas da Tartária, e os reis de ambos os lados chamam por ti. Os Afegãs mataram o boi preto e marcham para o campo de batalha. Tange­ram os escudos com as lanças e enfiaram os elmos de fer­ro. Que significa o meu vale para ti, para que te demores tanto tempo nele? Parte, e nunca mais voltes.

            - Não irei - respondeu a Morte - sem que me dês um grão de trigo.

            A Avareza, porém, fechou a mão e cerrou os dentes.

- Não te darei nada - murmurou.

E a Morte riu, apanhou uma pedra escura e atirou-a para

a floresta, e da espessura bravia dos abetos saiu a Febre ves­tida de fogo. Passou pelo meio da multidão, e morreu cada homem em que ela tocava. A erva secava-lhe sob os pés.

A Avareza estremeceu e coroou-se de cinzas.

- És cruel! Crudelíssima! - exclamou. - Há fome nas cidades muradas da Índia e estão secas as cisternas de Samarcanda. Há fome nas cidades muradas do Egipto e os gafanhotos invadiram-nas, vindos do deserto. O Nilo não alagou as suas margens e os sacerdotes amaldiçoaram Ísis e Osíris. Vai para junto daqueles que precisam de ti e deixa-me em paz com os meus servos.

            - Não - redarguiu a Morte - sem que me dês um grão de trigo.

            - Não te darei nada! - disse outra vez a Avareza.

E a Morte tornou a rir, assobiou com os dedos e surgiu uma mulher voando pelos ares. Tinha inscrita na testa a palavra Peste e ao seu redor voava uma imensidão de abu­tres. Ao cobrir o vale com as asas não deixou vivo ne­nhum homem. A Avareza fugiu, a tremer, para a floresta e a Morte saltou para o seu cavalo baio e começou a galo­par, a galopar mais célere do que o vento.

No lodo do fundo do vale rastejaram dragões e seres horríveis cobertos de escamas. Os chacais vieram a trotar sobre a areia, de focinho erguido, farejando.

E o reizinho chorou e disse:

- Quem eram aqueles homens e que procuravam eles? Alguém, por trás, respondeu:

- Rubis para a coroa real.

Estremeceu o rapazinho, voltou-se e viu um homem com roupa de peregrino, a segurar na mão um espelho de prata.

            - Para a coroa de que rei? - insistiu o primeiro, cada vez mais pálido.

            - Olha neste espelho e saberás de quem - volveu o peregrino.

Olhou o moço rei e, vendo o seu próprio rosto, soltou um grito e acordou. O sol brilhante inundava-lhe a alco­va, e nas árvores do jardim os pássaros cantavam.

Entraram no quarto o camarista e os oficiais de serviço, que se curvaram diante do monarca. Os pajens trouxeram-lhe o fato tecido de oiro e apresentaram-lhe a coroa e o ceptro. O moço rei olhou para aquelas coisas e notou como eram belas, mais belas do que tudo o que ele até ali vira. Mas lembrou-se dos sonhos e disse aos seus áulicos:

- Levai-os. Não usarei nada disso.

Os cortesãos ficaram espantados; alguns até se riram, supondo que o soberano estava a brincar. Este, porém, falou-lhes de novo, ordenando:

- Levai esses objectos e escondei-os da minha vista. Embora seja hoje o dia da minha coroação, não enverga­rei esse fato, que foi tecido no tear da tristeza, pelas mãos brancas da dor. Há sangue no coração do rubi, morte no âmago da pérola: não usarei coroa nem ceptro.

Em seguida, contou-lhes os sonhos que tivera.

Depois de o haverem escutado, os familiares do Paço entreolharam-se, cochichando:

- Não há dúvida que ensandeceu. Pois que é um sonho senão um sonho? Uma visão não passa duma visão. Não são coisas reais, a que se dê importância. Que temos a ver com a existência dos que trabalham para nós? Precisamos de ver o semeador para podermos comer pão? Temos de falar com o vinhateiro para que possamos beber vinho?

O camarista dirigiu-se então ao rei nestes termos:

- Senhor, rogo-vos que ponhais de parte esses negros pensamentos, que envergueis o vosso esplêndido fato e que cinjais a fronte com esta bela coroa. Como há-de o povo saber que sois o rei, se não tendes vestida a indu­           mentária real?

O reizinho fitou-o e retorquiu:

- É deveras como dizes? Não me reconhecerão como rei se eu não tiver a indumentária real?

            - Não vos reconhecerão, Senhor - confirmou o ca­marista.

- Eu pensava que havia homens com aparência de rei... Mas talvez tenhas razão. No entanto, não usarei esse fato nem cingirei essa coroa. Como vim para o palácio, assim sairei dele.

E despediu-os a todos, excepto um pajem que ele esco­lhera para companheiro e que era apenas um ano mais no­vo. Depois de se ter banhado em água límpida, abriu uma arca e tirou dela a túnica de couro e o capote grosseiro de pele de cabra, traje que usara quando guardava rebanhos nas colinas. Vestiu aquelas coisas e empunhou o rude ca­jado de pastor.

O pajem esbugalhou os olhos azuis e disse-lhe, sorrindo: - Senhor, tendes o vestido e o ceptro, mas onde está a coroa?

Então o reizinho cortou um ramo de roseira-brava que subia até à varanda, enrolou-o e pô-lo na cabeça, obser­vando:

            - Coroa também já tenho.

Neste preparo saiu do quarto e passou no vestíbulo de honra, onde o esperavam os fidalgos, que se divertiram com o espectáculo, comentando um deles:

            - Senhor, o povo aguarda o seu rei. Vós mostrais-lhes um mendigo.

Outro indignou-se e declarou:

- Este rapaz enche de opróbrio o nosso país. Acho-o indigno de ser monarca.

Ele, porém, nada lhes respondeu e seguiu avante. Des­ceu a escadaria de pórfiro, transpôs o portão de bronze, montou no seu cavalo e dirigiu-se à Catedral. Atrás corria o pajem favorito.

O povo ria, dizendo:

- É o bobo de el-rei.

O rapazinho puxou as rédeas e declarou:

- Sou o próprio rei.

Em seguida contou os três sonhos que tivera.

Saiu nesse momento um homem do meio da multidão e falou-lhe severamente:

- Senhor, não sabeis que a existência dos pobres de­pende do luxo dos ricos? A vossa pompa alimenta-nos, os vossos vícios dão-nos saúde. É duro trabalhar para um pa­trão, mas não ter patrão é mais duro ainda. Pensais que os corvos nos hão-de nutrir? Que remédio tendes para estas coisas? Direis ao que compra: «o preço é este» e o mesmo imporeis ao vendedor? Não creio. Voltai, portanto, ao Pa­ço, vesti a vossa púrpura e as vossas cambraias finas. Que vos importam a nossa condição e os nossos sofrimentos?

            - Os ricos e os pobres não são irmãos? – perguntoi o rei.

            - São - respondeu o homem - e o nome do irmão ri­co é Caim.

E os olhos do rapazinho encheram-se de lágrimas e ele continuou a galopar através dos murmúrios do povo. O pajem atemorizou-se e abandonou-o.

            Quando chegou ao adro da Catedral, os soldados er­gueram os chuços e disseram:

            - Que quereis aqui? Por esta porta só o rei é que entra.

Ruborizou-se-lhe a face de cólera e replicou:

- O rei sou eu.

E, afastando os chuços, entrou. Vendo-o chegar o bispo naquele traje de pastor, levantou-se muito admirado e foi ao seu encontro, exclamando:

- Meu filho, é esse o vestuário dum rei? E com que co­roa vos hei-de coroar, e que ceptro vos porei na mão? Es­te dia devia ser de júbilo para vós, e não de vergonha.

            - Há-de a Alegria usar o que a Dor fabricou? - re­torquiu o rei.

E contou-lhe os três sonhos que tivera.

Depois de o bispo haver escutado, franziu o sobrolho e respondeu:

- Meu filho, sou um velho, já no inverno dos meus dias, e sei que neste vasto mundo se fazem muitas coisas nocivas. Das montanhas descem ladrões ferozes para rou­bar crianças, que vão vender aos mouros. Os leões espe­ram as caravanas e devoram os camelos, o javali desarrei­ga o trigo do vale, as raposas roem as vinhas nas encostas, os piratas devastam o litoral e incendeiam os barcos dos pescadores, depois de lhes tirarem as redes. Os leprosos vivem nas lagoas salinas, têm casas de junco e ninguém se lhes pode aproximar; os mendigos vagueiam pelas cidades e comem com os cães. Podeis impedir que tudo isto acon­teça? Quereis deitar o lázaro na vossa cama e sentar o pe­dinte à vossa mesa? Cumprirá o leão as vossas ordens, obedecer-vos-á o javali? Aquele que fez a miséria não se­rá mais sábio que vós? Não vos louvo pela vossa acção, e mando-vos que volteis ao Paço; comporeis um rosto ale­gre, vestireis os trajes reais, e eu vos cingirei a coroa de oi­ro e vos colocarei na mão o ceptro de pérolas. E quanto aos vossos sonhos, não penseis mais neles. O peso deste mundo é demasiadamente grande para que um só homem o suporte, e as tristezas do mundo excessivamente pesadas para que as sofra um só coração.

- Dizeis isso nesta casa? - redarguiu o antigo pastor. E, ultrapassando o prelado, subiu os degraus do altar e permaneceu diante da imagem de Cristo.

Estava diante da imagem de Cristo, e tinha à direita e à esquerda os maravilhosos vasos de oiro, o cálice de vinho e a galheta com os santos óleos. Ajoelhou perante aquela imagem, enquanto os círios enormes ardiam esplendoro­samente junto do sacrário engastado de jóias e o fumo do incenso subia em volutas azuis pela abóbada. Inclinou a cabeça em oração, e os padres afastaram-se do altar, en­voltos nas suas capas rígidas de asperges.

E, de súbito, chegou da rua o rumor dum tumulto; os nobres entraram no templo, de espadas desembainhadas, plumas ondulantes e escudos de aço brunido.

- Onde está o sonhador de sonhos? - indagaram. ­Onde está esse rei que se veste de pedinte, esse rapaz que lança a humilhação no país? Havemos de o matar, pois não é digno de reinar sobre nós!

De novo o reizinho baixou a cabeça e orou, e, quando acabou a sua oração, levantou-se e mirou-os com tristeza, circunvagando a vista.

E então, pelos vitrais das ogivas jorrou sobre ele a luz do Sol, e os raios luminosos teceram-lhe em redor um ves­tido mais belo do que esse que fora talhado para seu de­leite. O ramo seco floresceu e encheu-lhe a cabeça de ro­sas mais rubras do que rubis. Mais brancos do que finas pérolas eram os lírios, cujos caules pareciam de prata cin­tilante. Mais vermelhas do que rubis eram as rosas, cujas folhas se diriam de oiro batido.

Ali ficou ele com traje de rei, e as portas do sacrário abriram-se, e no cristal de mil raios do ostensório brilhou uma luz maravilhosa e mística. Ali ficou ele com traje de rei, e a glória de Deus encheu a Catedral, enquanto nos seus nichos os santos pareciam mexer-se. Com traje de rei ali ficou ele diante de todos, e o órgão entoou a sua músi­ca, e os trombeteiros sopraram as suas trombetas e os me­ninos do coro cantaram.

E o povo ajoelhou estarrecido, e os nobres embainha­ram as espadas e prestaram vassalagem, e o rosto do bispo empalideceu, e as mãos tremeram-lhe.

- Maior do que eu, outro vos coroou - disse, prosternando-se.

E o reizinho desceu do altar-mor e seguiu para o palá­cio através da multidão. Mas ninguém se atreveu a contemplar-lhe a face, porque a sua face era como a dum anjo.

 

 

                   O ANIVERSÁRIO DA INFANTA

Era o dia do aniversário da infanta: completava doze anos, e o sol brilhava magnífico nos jardins do palácio.

Embora ela fosse princesa real e infanta de Espanha, fazia anos apenas uma vez em doze meses, como os filhos dos po­bres; por isso se tornava deveras importante que em seme­lhante dia o tempo estivesse muito bom, o que na verdade aconteceu. As altas túlipas raiadas empertigavam-se nos seus caules, lembrando longas filas de soldados, e olhavam com ar de desafio para as rosas, através da relva, como a dizerem­-lhes: «Agora já somos tão belas como vocês.» Com pó doi­rado nas asas, adejavam em torno borboletas cor de púrpu­ra, visitando todas as flores, sem faltar nenhuma. Das fendas dos muros saíam as sardaniscas, e ficavam a aquecer-se à luz esplendorosa. Com o calor, as romãs estalavam e exibiam os seus corações vermelhos e sangrentos. Até os pálidos limões amarelos, que pendiam em profusão entre os encanastrados carunchosos e ao comprido das arcadas sombrias, pareciam haver tomado da claridade fulva do Sol um tom mais rico e mais intenso. As magnólias desabrochavam as suas flores feitas de camadas de marfim; como grandes globos, e im­pregnavam a atmosfera dum aroma suave e quente.

A princesinha andava cá e lá no terraço, com os seus companheiros, e jogava aos esconderelos de roda dos va­sos de pedra e das velhas estátuas cobertas de musgo. Noutro dia qualquer só lhe consentiriam que brincasse com as crianças da sua condição, de que resultava entreter-se sempre sozinha; mas o dia de anos era uma ex­cepção, e o rei dera ordem para que ela convidasse os ami­gos juvenis que fossem do seu gosto, a fim de brincarem todos juntos. Que majestosa graça nesses pequenos espa­nhóis, eles de chapéu emplumado e capas curtas esvoa­çantes, elas a segurarem a cauda do vestido de brocado, protegendo os olhos da luz muito viva com enormes le­ques negros e prateados! Mas a infanta era a mais gracio­sa de todas as crianças, a que estava vestida com maior ele­gância, à moda um tanto embaraçosa da época. O vestido dela era de cetim pardo, com a saia e as largas mangas tu­fadas repletas de bordados de prata e o rígido corpete guarnecido de pérolas valiosas. Quando dava um passo, surgia-lhe de baixo do vestido o sapatinho de enorme la­ço cor-de-rosa. Deste tom, e também do de pérola, era o vasto leque de gaza; e no cabelo, que lhe emoldurava a fa­cezinha pálida como uma auréola de oiro desmaiado, sus­tinha uma rosa branca e formosíssima.

Observava-os o rei melancólico, lá duma janela do pa­lácio. Seu mano D. Pedro de Aragão, a quem odiava, per­manecia um pouco atrás dele, e o inquisidor-mor de Gra­nada havia-se sentado à sua beira. O rei conservava-se mais triste que de costume, lembrando-se da rainha que lhe parecia ter chegado dias antes da alegre terra de Fran­ça e que afinal se estiolara já no sombrio esplendor da cor­te espanhola, morta precisamente seis meses depois do nascimento da filha e antes que houvesse visto as amen­doeiras florescer duas vezes no pomar ou colhido o fruto do segundo ano da velha e rugosa figueira que avultava no meio do pátio, agora invadido pelas ervas. Tão grande fo­ra o seu amor por ela que nem suportara que o túmulo lha escondesse: embalsamara-a um físico mouro que em paga desse serviço salvara a vida, condenada já pelo Santo Ofí­cio, ao que se dizia, por ser herético e suspeito de praticar as artes mágicas. Agora o corpo da rainha jazia numa ur­na envolta em tapeçarias, na capela de mármore preto do palácio, e tal como os frades a trouxeram doze anos antes, naquele tempestuoso dia de Março. Uma vez por mês o rei, embrulhado na capa negra e de lanterna fosca na mão, ia ajoelhar a seu lado, chamando em voz alta mi reina, mi reina! Às vezes, quebrando a rigorosa etiqueta (que em Espanha governa cada acto da vida e até põe limites à dor dum rei) pegava nas lívidas mãos cheias de jóias, e, no des­vario da sua aflição, tentava despertar com beijos loucos a face fria e pintada.

Ao ver a infanta saudando, com infantil gravidade, os cortesãos reunidos, ou rindo, por trás do leque, da feia duquesa de Albuquerque, que sempre a acompanhava, o rei evocou de novo a rainha defunta, como a contemplara a primeira vez no castelo de Fontainebleau, quando ele ti­nha apenas quinze anos e ela era ainda mais nova. Por es­sa altura haviam ficado oficialmente noivos, com a bênção do núncio apostólico e em presença do rei de França e de toda a corte. Ele voltara depois para o Escorial, trazendo consigo um anel de cabelo loiro e a recordação de dois lá­bios infantis que se curvavam para lhe beijar a mão, no momento de entrar para a carruagem. Mais tarde seguira­-se o casamento, celebrado à pressa em Burgos, cidadezi­nha fronteiriça aos dois reinos, e a entrada espectaculosa em Madrid, com a habitual missa cantada na igreja de Atocha e um soleníssimo auto-de-fé, em que cerca de trezentos heréticos, entre os quais muitos ingleses, foram en­tregues ao braço secular, para serem queimados.

Amara-a, sem dúvida, loucamente, e, na opinião de muitos, em prejuízo do seu país, que se batia então com a Inglaterra pela posse do Novo Mundo. A custo permitira que ela se afastasse da sua vista; por ela esquecera, ou pa­recera esquecer, os mais graves negócios de Estado. E, com aquela terrível cegueira que a Paixão provoca nos que se lhe entregam, não percebera que as complicadas ceri­mónias com que se supunha cativá-la só serviam para lhe agravar ainda mais a misteriosa doença de que padecia. Quando ela morreu, ele, durante uns tempos, andou co­mo doido. E decerto que abdicaria, retirando-se para o mosteiro trapista de Granada, se não temesse deixar a in­fanta à mercê do irmão, cuja crueldade, mesmo em Espa­nha, era coisa por de mais sabida; até havia quem suspei­tasse ser esse homem a causa da morte da rainha, conse­guida por meio dum par de luvas envenenadas com que D. Pedro a presenteara quando a cunhada fora em visita ao castelo de Aragão. Ainda depois de expirados os três anos de luto oficial, ordenado em todos os domínios por um edicto régio, o monarca não tolerava que os ministros lhe falassem de novo matrimónio; ao oferecer-lhe o próprio imperador a mão da encantadora arquiduquesa da Boé­mia, sua sobrinha, ordenou ele aos embaixadores que in­formassem o seu soberano que o rei de Espanha estava já casado com a Dor e que, embora fosse uma noiva estéril, lhe tinha mais amor do que à Beleza - resposta que cus­tou à coroa as ricas províncias dos Países Baixos, as quais depressa, a instigação do imperador, se revoltaram sob a chefia de alguns fanáticos da Reforma.

A sua vida inteira de casado, com as alegrias dos pri­meiros tempos e o desespero do súbito desenlace, pareciam agora ressuscitar pelo condão da infanta que brinca­va no terraço. Tinha toda a bela petulância da rainha, o mesmo modo voluntarioso de agitar a cabeça, a mesma curva orgulhosa da linda boca, o mesmo sorriso encantador - de facto, vrai sourire de France - quando erguia

de vez em quando o olhar para a janela ou estendia a mão­zita a beijar aos soberbos fidalgos espanhóis. Mas o riso estridente das crianças dir-se-ia espicaçar os ouvidos do rei e o sol brilhante troçar impiedosamente da sua melancolia; e um cheiro pesado de estranhas drogas, como as que usam os embalsamadores, parecia corromper (ou era imaginação?) a p_reza do ar matutino. Escondeu o rosto nas mãos, e, quando a infanta voltou a olhar para cima, os reposteiros tinham-se fechado e o monarca já não estava ali. Ela então fez um gesto de contrariedade e encolheu os ombros. Achava que o pai a devia ter acompanhado mais tempo, no dia do seu aniversário. Que importavam os es­túpidos negócios de Estado? Ou fora àquela soturna ca­pela onde os círios ardiam de contínuo e onde nunca lhe permitiam que entrasse? Que disparate, quando o sol es­tava tão claro e toda a gente se sentia feliz! Além disso, perderia a corrida de touros simulada para a qual já tinha soado a trombeta, não falando do espectáculo de títeres e de outras coisas deliciosas. O tio e o inquisidor-mor eram muito mais sensatos: haviam saído para o terraço e dirigiam-lhe amáveis parabéns. A infanta sacudiu a cabe­ça e, tomando D. Pedro pela mão, desceu devagar os de­graus que conduziam a uma comprida tenda de seda cor de púrpura, adrede erecta ao fundo do jardim. As outras crianças seguiram-na, observando rigorosamente as precedências: à frente iam as que usavam maior quantidade de apelidos.

Ao seu encontro veio um cortejo de rapazinhos nobres, graciosamente vestidos de toureiros. O conde de Tierra Nueva, lindo menino dos seus catorze anos, descobrindo­-se com o à-vontade dum fidalgo de raça e grande de Es­panha, conduziu-a solenemente a uma cadeira pequena, cor de oiro e de marfim, colocada sob um dossel, acima da arena. As crianças agruparam-se à volta, agitando os le­ques espaventosos e falando baixinho umas com as outras, enquanto D. Pedro e o inquisidor-mor se detinham, rin­do, à entrada. Até a duquesa (camareira-mor, como lhe chamavam), mulher magra e de feições duras, com golilha amarela, parecia não estar com o seu mau humor habitual: algo de semelhante a um sorriso gelado lhe perpassava pe­la face enrugada e lhe torcia os lábios delgados e exangues.

Que tourada extraordinária! Mais bonita, pensava a in­fanta, do que essa verdadeira que ela vira em Sevilha, por ocasião da visita que o duque de Parma fizera ao rei. Al­guns dos rapazes curveteavam em cavalos de pau rica­mente ajaezados, brandindo compridas farpas enfeitadas de fitas vistosas; outros iam a pé, agitando capas verme­lhas diante do touro e saltando rápidos a barreira quando este os acometia. No que respeitava ao touro, era exacta­mente como os touros a valer, embora fosse feito de ver­ga e duma pele esticada; às vezes insistia em dar a volta ao redondel, erguido nas pernas traseiras, coisa que um ani­mal genuíno jamais se lembraria de fazer. E quanto a lutar, também não pedia meças a ninguém. As crianças excitavam-se tanto que trepavam para cima das bancadas, ondulavam os lenços e repetiam: «Bravo, touro!» tal co­mo é hábito das pessoas crescidas. Enfim, depois de pro­longado combate, durante o qual mais dum cavaleiro foi escorneado e desmontado, o moço conde de Tierra Nue­va obrigou o touro a ajoelhar e, obtida autorização da infanta para dar o golpe de misericórdia, mergulhou com tal violência a espada de pau no cachaço do animal que a ca­beça deste se desprendeu e mostrou a face risonha do pe­queno Lorraine, filho do embaixador francês em Madrid.

Foi então. a arena desembaraçada no meio de muitos aplausos e arrastados os cavalos mortos, do que se encar­regaram dois pajens mouros vestidos de amarelo e preto. Seguiu-se um curto intervalo, e o mestre francês de ginás­tica exibiu-se na corda bamba; representou-se depois a tragédia semiclássica Sofonisba, por bonifrates italianos, no palco dum teatrinho expressamente edificado para es­se fim. Moveram-se tão bem, foram tão naturais os seus gestos, que no final da peça os olhos da infanta estavam húmidos de lágrimas. Houve uma ou outra criança que chorou a valer e só se calou quando ingeriu guloseimas; o próprio inquisidor-mor, comovido, não pôde deixar de dizer a D. Pedro achar intolerável que simples bonecos de madeira e cera colorida, accionados por cordelinhos, fos­sem tão infelizes e suportassem tão grandes desgraças.

Veio depois um prestidigitador africano. Trazia um ces­to muito grande coberto com toalha; pô-lo no meio da arena, tirou do turbante uma esquisita flauta de cana e principiou a tocar. Daí a pouco a toalha mexia-se e, con­forme se tornava mais aguda a música, surgiram duas ser­pentes amarelas e verdes, que espetavam a cabeça cunei­forme e se erguiam lentamente, balançando-se a compas­so como plantas que a água fizesse oscilar num tanque. Os pequenos, contudo, assustaram-se um tanto com esses ca­pelos malhados e essas línguas inquietas, e ficaram mais sossegados quando o prestidigitador conseguiu fazer bro­tar da areia uma laranjeira, que deu belas flores brancas e ostentou frutos verdadeiros; e quando pegou no leque du­ma petiza, filha da marquesa de Las Torres, e o transfor­mou num pássaro azul que voou em roda da tenda e se pôs a cantar. Nessa altura a admiração e o entusiasmo das crianças não conheceram limites.

Foi também adorável o minuete, executado pelo grupo de dança, composto de rapazes da Igreja de Nossa Senho­ra do Pilar. A infanta nunca tinha visto essa maravilhosa ce­rimónia que todos os anos se realiza em Maio, em frente do altar da Virgem e em seu louvor; de facto, nenhum mem­bro da família real espanhola frequentava a catedral de Sa­ragoça desde que um padre louco, que alguns supuseram a soldo de Isabel de Inglaterra, tentara administrar uma hós­tia envenenada ao Príncipe das Astúrias. Só, pois, de tradi­ção é que ela conhecia a «dança de Nossa Senhora», sem dúvida belíssimo espectáculo. Os rapazes trajavam antigos fatos da corte, de veludo branco e curiosos tricórnios oria­dos de prata, sobrepostos de grandes plumas de avestruz; quando se moviam ao sol, acentuava-se-lhes ainda mais a cor trigueira do rosto e o tom negro dos cabelos compri­dos no meio da brancura ofuscante do vestido. Os assis­tentes ficaram encantados com a dignidade grave com que eles avançavam e recuavam, consoante a figuração do esti­lo, e com a graça complicada dos seus gestos lentos e vénias majestosas. Ao finalizar o número, tiraram à infanta os lar­gos chapéus emplumados, saudação a que ela correspon­deu com toda a distinção, fazendo mentalmente voto de mandar um círio enorme para o santuário da Senhora do Pilar, em paga do prazer que ela lhe proporcionara. Avançou então na arena um grupo de vistosos egípcios, como eram designados nesse tempo os ciganos; sentando­-se em círculo, de pernas cruzadas, começaram a tanger baixinho as cítaras, movendo o corpo em cadência e en­toando no mesmo diapasão uma ária embaladora. Ao des­cobrirem o vulto de D. Pedro, olharam-no de cenho carregado, e alguns pareceram amedrontar-se, pois havia poucas semanas que mandara enforcar por feitiçaria dois da sua tribo, na praça de Sevilha; mas a formosa infanta, recostada na cadeira e espreitando por cima do leque com os seus grandes olhos azuis, tranquilizou-os e deu-lhes a certeza de que uma criatura assim tão bela jamais poderia ser cruel fosse para quem fosse. Por isso continuaram a tocar com toda a suavidade, mal aflorando as cordas das cítaras com as longas unhas pontiagudas e balanceando a cabeça como se estivessem a cair de sono. De súbito, com um grito tão estridente que todas as crianças se assustaram e D. Pedro apertou na mão o cabo de ágata do seu punhal, ergueram-se num pulo e rodopiaram como loucos em tor­no da arena, batendo os pandeiros e entoando uma canção bárbara de amor na sua linguagem gutural. Depois, a ou­tro sinal, lançaram-se de novo ao chão e ali ficaram muito quietos, ouvindo-se apenas o tom monótono das cítaras a quebrar o silêncio envolvente. Repetiram a cena várias ve­zes até que desapareceram, para voltarem com um urso­-pardo e hirsuto, preso por uma corrente, e dois ou três macaquinhos da Berberia, empoleirados nos ombros. O urso pôs-se de cabeça para baixo e pés no ar, com a maior naturalidade, e os macacos raquíticos fizeram toda a espé­cie de gaifonas de sociedade com dois pequenos ciganos, que pareciam ser os donos; lutaram com espadas peque­nas, dispararam espingardas, e praticaram exercícios mili­tares com a mesma perfeição que a própria guarda real. O número dos ciganos foi, efectivamente, um êxito.

N o entanto, a parte mais divertida desta festa matinal forneceu-a o anão com a sua dança. Quando ele entrou no redondel, bamboleando-se nas pernas arqueadas e aba­nando a cabeça disforme, para um lado e outro, as crian­ças soltaram um grito de prazer e a infanta riu tanto que a camareira se viu forçada a recordar-lhe que, embora hou­vesse precedentes de princesas espanholas chorarem em público, não havia nenhum de uma filha de rei desatar às gargalhadas diante dos seus inferiores. O anão, porém, era deveras irresistível; nem mesmo na corte de Espanha, co­nhecida pela sua paixão do horrível, fora jamais visto um monstrozinho tão extraordinário. Era aquela, na verdade, a sua primeira exibição. Tinham-no descoberto apenas na véspera, quando corria pelo bosque: viram-no dois fidal­gos que andavam à caça numa zona mais distante do so­bral que envolve a cidade, e haviam-no trazido para o pa­ço, a fim de fazer surpresa à infanta. O pai do monstro, que era um pobre carvoeiro, não pusera dificuldades em se desfazer duma criança tão feia e inútil. Talvez que o mais engraçado nele fosse a completa inconsciência em que vivia quanto ao seu aspecto grotesco. Dir-se-ia até que se considerava feliz, tão boa era a sua disposição. Quando o público infantil se ria, ele ria também com a mesma alegria sincera, e no fim de cada dança cumpri­mentava um por um com vénias profundas e cómicas, e sorrindo, tal se fosse um simples espectador e não a cria­turinha disforme que a natureza trocista se comprouvera em engendrar para gáudio dos outros.

Quanto à infanta, deslumbrara-o em toda a linha. Não podia despegar dela os olhos, e só para ela parecia dançar. Terminada a exibição, lembrou-se a pequena que a corte lançara flores a Caffarelli (famoso soprano que o papa en­viara da sua própria capela, a Madrid, na esperança de cu­rar a melancolia do rei com a doçura daquela voz) e então, parte por brincadeira, parte para arreliar a duquesa, arran­cou a bela rosa branca do cabelo e atirou-a, com um sor­riso adorável, para o lado da arena em que estava o anão. Este apanhou-a, levou a flor aos lábios grossos e pô-la de­ pois ao peito, ao mesmo tempo que ájoelhava em terra e sorria num esgar que lhe arregaçava a boca de orelha a orelha e enchia os olhos dum brilho jubiloso.

Tanto a cena perturbou a gravidade da infanta que esta continuou a rir já muito depois de o anão haver desapareci­do, e expressou ao tio o desejo de que o número fosse bisa­do. Contudo a camareira, sob o pretexto de que o sol esta­va muito quente, decidiu ser melhor que Sua Alteza voltas­se sem demora ao palácio, onde fora preparada em sua hon­ra uma festa sumptuosa. Haveria um bolo de anos com as suas iniciais desenhadas a granjeias e um estandarte de pra­ta a ondular no topo. Levantou-se, pois, a princesa, com to­da a dignidade, e, tendo dado ordem para que o anão dan­çasse mais uma vez para ela, depois da sesta, e agradecido ao moço conde de Tierra Nueva a bela recepção que lhe pro­porcionara, retirou-se para os seus aposentos, seguida por todas as crianças na mesma ordem por que haviam entrado.

Quando o anãozinho soube que teria de dançar mais uma vez diante da infanta e por sua ordem expressa, ficou tão orgulhoso que correu para o jardim, beijando a rosa branca em raptos de insensato prazer e fazendo os mais toscos e desgraciosos gestos de alegria.

As flores mostraram-se indignadas com tamanha ousa­dia: atrever-se a penetrar na sua linda mansão! Ao verem­-no pular pelas alamedas, agitando os braços de modo tão ridículo, não puderam por mais tempo reprimir os senti­mentos que as animavam.

            - É realmente feio de mais para se permitir o gosto de brincar onde nós estamos - exclamaram as túlipas.

- Devia beber suco de papoilas e dormir milhares de anos - observaram os lírios escarlates. E, de irritados, fi­caram ainda mais vermelhos.

- É um verdadeiro horror! - gritou um cacto. – É torcido, atarracado, e tem a cabeça em desproporção com as pernas. Dá-me comichões por todo o corpo só de pen­sar nele. Se se aproximar de mim não tenho dúvida em o picar.

- E ostenta um dos meus botões mais formosos ­acudiu a roseira branca. - Eu mesma o dei à infanta esta manhã, como presente de anos, e ele furtou-lho. - E bra­dou três vezes a palavra «ladrão».

Até os gerânios encarnados, que em geral se não dão grandes ares, e que todos sabem como têm muitos paren­tes pobres, se enroscaram de nojo maIo viram; e quando a violeta modestamente notou que ele, embora feio em ex­tremo, culpa não tinha de o ser, os gerânios retorquiram, com certa razão, que o facto de estar inocente não impli­cava maior condescendência. De facto, algumas violetas sentiam que a fealdade do anão era quase agressiva e que ele teria mostrado melhor gosto se se apresentasse triste, ou pelo menos pensativo, em vez de saltar alegremente, tomando atitudes disparatadas e impróprias.

Quanto ao girassol, flor notável que tivera a honra de dizer as horas do dia nada menos que ao imperador Car­los V, achava-se tão surpreendido com o aparecimento do anãozinho que quase se esqueceu de marcar dois mi­nutos completos com o seu longo ponteiro do caule, e não pôde deixar de referir ao pavão branco (nesse mo­mento a apanhar sol na balaustrada) que toda a gente sa­bia que os filhos dos reis eram reis e os filhos dos car­voeiros, carvoeiros; e que era disparate pretender o con­trário. Com isto concordou inteiramente o pavão, o qual soltou um guincho de assentimento tão forte, na sua voz alta e áspera, que os peixes doirados, habitadores do tan­que da fonte fresca, assomaram a cabeça fora de água e perguntaram aos enormes tritões de pedra que é que se estava a passar.

As aves, porém, gostavam dele. Tinham-no visto muitas vezes no bosque, dançando como um elfo atrás das folhas redemoinhantes, ou aninhado no côncavo dum velho car­valho, a compartilhar com os esquilos o seu quinhão de frutos. Não se importava nada que ele fosse feio, porque também o rouxinol, que tão suavemente cantava à noite nos laranjais, forçando por vezes a Lua a inclinar-se para o ouvir, o rouxinol, enfim, não era nenhuma beldade; além disso o anão fora bondoso para com elas: durante aquele Inverno terrível, quando não havia bagas nas árvores, e a terra era dura como aço, e os lobos desciam até às portas da cidade em busca de alimento, ele jamais se esquecera das avezinhas, e sempre lhes dera migalhas do seu naco de pão negro e os restos do seu pobre almoço.

Por isso voavam em torno do anão, quase a roçar-lhe a face com as asas e palrando umas com as outras. Ele fica­va tão contente que não resistia a mostrar-lhes a linda ro­sa branca e a dizer-lhes que a princesa lha dera em prova do seu amor. Não percebiam patavina do que esse ente humano contava, mas isso não tinha importância, e pu­nham então a cabecinha de lado, com ar sisudo, o que é o mesmo que entender as coisas e por sinal muito mais fácil.

Os lagartos também simpatizavam com ele e, quando o viam cansado de correr e estirado no chão a repousar, brincavam por sua vez trepando-lhe pelo corpo, na ideia de o divertirem a seu modo: «Nem todos podem ser tão belos como um lagarto», diziam lá consigo. «Seria esperar o impossível. E, embora custe a acreditar, este anãozinho não é tão feio como parece: basta fechar-se os olhos e olhar para outro lado...» Filósofos por natureza, os lagar­tos às vezes ficam horas e horas a meditar, quando o tem­po está de chuva e eles não podem sair.

As flores, contudo, aborreciam-se bastante com o pro­cedimento destes bichos e também com o das aves. «Só conseguem demonstrar», murmuravam, «a vulgaridade das corridas e dos voos repetidos. Os seres bem-educados conservam-se, como nós, sempre no mesmo lugar. Nunca ninguém nos viu aos pulos nos passeios ou a galopar doi­damente pela relva atrás das borboletas. Quando necessi­tamos de mudança de ares, chamamos o jardineiro e ele leva-nos para outro alegrete. Assim é que é digno, e assim se deve fazer. As aves e os lagartos não têm a noção do sossego e, a falar verdade, aquelas nem sequer possuem morada fixa. São simples vagabundas, como os ciganos, e como tal devem ser tratadas.» De modo que as flores er­gueram o nariz com ar altivo, e se regozijaram ao ver daía pouco o anão levantar-se e dirigir-se, através do terraço, para o palácio real.

- Deviam conservá-lo dentro de casa para o resto da vi­da - declararam. - Reparem naquela giba e naquelas per­nas tortas! - E, dizendo isto, mal podiam conter o riso.

Mas o anãozinho ignorava tudo isto. Adorava os pássa­ros e os lagartos e achava que as flores eram as coisas mais extraordinárias do mundo, exceptuando, já se sabe, a in­fanta: essa, afinal, dera-lhe uma rosa lindíssima e parecia amá-lo, no que se diferençava grandemente de todos os mais. Gostaria tanto de ter voltado para ela! Colocá-lo-ia decerto à sua mão direita, sorrir-lhe-ia, e ele jamais sairia do seu lado. Torná-la-ia sua companheira de folguedos, ensinar-lhe-ia toda a espécie de jogos engraçados. Se bem que jamais houvesse estado num palácio, sabia muitas coi­sas surpreendentes: fazia gaiolas pequeninas de cana, para as cigarras cantarem lá dentro, e transformava um galho ele bambu em flauta, dessas cuja música Pã se recreia a ou­vir. Conhecia o canto de todas as aves, era capaz de cha­fJ1ar os estorninhos do cimo das ramadas ou as garças da fJ1argem das lagoas. Conhecia o rastro de cada animal e era capaz de seguir a lebre pelas suas pegadas leves ou o java­li pelas folhas pisadas do chão. Todas as danças bárbaras conhecia, a dança louca, em trajes rubros, de Outono, a dança ligeira, de sandálias azuis, sobre as searas, a dança das grinaldas cor de neve, do Inverno, a dança das flores, através dos pomares, da Primavera. Sabia onde os pombos-bravos fazem ninho; duma vez, quando certo criador de aves apanhara um casal, ele próprio fora buscar OS filhotes e arranjara-lhes um pombal pequenino no côn­cavo dum ulmeiro. Ficaram muito mansos e costumavam vir comer-lhe à mão, todas as manhãs. A infanta havia de gostar desses borrachinhos, e dos coelhos que correm en­tre os fetos altos, e dos gaios de penas metálicas e bico preto, e dos ouriços-cacheiros que se enroscam em bola coberta de espinhos, e das enormes e pacatas tartarugas que se arrastam lentamente, meneando a cabeça e mordis­cando as folhas tenras. Devia vir, sim, para a floresta, brin­car com ele. O anão ceder-lhe-ia a sua própria cama e fi­caria a vigiá-la de fora da janela até romper a manhã, para que não lhe fizesse mal o gado graúdo nem se aproximas­sem da cabana os lobos esfaimados. E, quando rompesse a alvorada, bater-lhe-ia ao postigo para a despertar e irem ambos divertir-se o dia inteiro. Na realidade, a floresta não era um lugar muito ermo. Às vezes passava um bispo montado na sua mula branca, a ler um livro iluminado; outras, vinham falcoeiros de boné de veludo verde e gibão de camurça, segurando no punho os falcões carapuçados. Quando chegava o tempo das vindimas, viam-se homens de pés e mãos tintos de roxo, coroados de hera, a ­ transportar odres gotejantes; e os carvoeiros sentavam-se à noi­te de roda das altas fogueiras, observando as achas secas a carbonizarem-se pouco a pouco, e a assar castanhas nas brasas. Para confraternizar com eles, saíam ladrões das ca­vernas. Em certo momento, vira uma linda procissão serpenteando na longa estrada poeirenta de Toledo; iam adiante os frades a entoar cânticos suaves e a alçar flâmu­las vistosas e cruzes de oiro, em seguida os soldados de ar­maduras de prata, mosquetes e lanças, e no meio três ho­mens descalços, com esquisitos fatos amarelos, como sa­cos pintados com figuras estranhas, e de círios acesos na mão. Havia, pois, muito que ver na floresta; e, quando ela estivesse fatigada, ele descobriria um banco de musgo ma­cio, ou levá-la-ia nos braços, porque era forte, se bem que soubesse não possuir grande estatura. Far-lhe-ia ainda um colar de bagas vermelhas de norça, que seriam decerto tão belas como as contas brancas que ela usava no vestido e das quais poderia despojar-se para trocar por outras no­vas. Trar-lhe-ia também cálices de bolota, e anémonas or­valhadas, e pirilampos que seriam como estrelas no seu ca­belo de oiro pálido.

Mas onde estava a infanta? Perguntou à rosa que tinha na mão e ficou sem resposta. O palácio dir-se-ia adorme­cido de lés a lés; nos vãos em que não tinham fechado os taipais, pendiam grossos reposteiros para deter o fulgor da luz. Vagueou então por acolá, em busca dum lugar por onde pudesse introduzir-se, até que avistou uma portinha de serviço que haviam deixado aberta. Insinuou-se por ela e viu-se num átrio esplêndido, mais vasto, pensou, que o próprio bosque e mais cheio de reflexos oirescentes. O soalho era feito de largas lajes coloridas, que compunham um desenho geométrico. A infanta, porém, não se encon­trava ali e só algumas soberbas estátuas brancas o olhavam do seu pedestal de jaspe, com tristes olhos vazios e estra­nhos lábios sorridentes.

No extremo do átrio pendia uma cortina de veludo pre­to, ricamente bordada; polvilhada de sóis e de estrelas, emblemas favoritos do rei, recortados na cor que ele mais amava. Quem sabe se ela se escondera aí atrás? Fosse co­mo fosse, espreitaria.

Aproximou-se devagar e afastou a cortina. Não estava lá. Havia ainda outra sala, talvez mais bonita do que essa donde acabava de sair. Das paredes desciam panos de rás, que representavam em tons verdes uma cena de caça. Na­quela composição, feita por artistas flamengos, haviam despendido sete anos de labor: fora ali outrora o quarto de João, o Louco, esse rei que tanto gostava de caçar que muitas vezes, no seu delírio, tentara montar os cavalos fo­gosos da tapeçaria, e abater o veado sobre que saltavam os galgos enormes, e fazer soar a trompa, e erguer nas mãos a adaga... Servia agora de sala do Conselho de Estado: ao centro, avultava a mesa com as pastas encarnadas dos se­cretários, nas quais se viam gravados os lises de oiro de Espanha e as armas e emblemas da casa de Habsburgo.

O lhou em volta o anãozinho, espantado e receoso de avançar. Os estranhos cavaleiros silenciosos, que tão velo­zes galopavam pelos atalhos da mata, traziam-lhe à me­mória os fantasmas terríveis de que ouvira os carvoeiros falar: homens que só caçavam de noite e que, se encontra­vam algum ser humano, o transformavam em corça e a matavam. Recordou-se, porém, da linda princesa e encheu-se de coragem. Era provável que estivesse na sala seguinte.

Correu sobre as fofas alcatifas mouriscas e abriu a por­ta. Não, também ali não estava. A sala mostrou-se-lhe in­teiramente deserta. Era a sala do trono, que servia para receber embaixadores estrangeiros, quando o rei (o que já raras vezes acontecia) se dignava conceder audiências par­ticulares; a mesma que, muitos anos antes, acolhera os emissários da Inglaterra quando foram tratar do casamen­to da sua rainha, então uma das soberanas católicas da Eu­ropa, com o filho mais velho do imperador. As colgaduras eram de couro dourado de Córdova, e um pesado lustre da mesma cor pendia do tecto branco e negro, ostentando trezentas velas de cera. Por baixo do amplo dossel de te­cido dourado, no qual estavam bordados a aljôfar os leões e os castelos do reino, ficava o trono, coberto por um pa­no rico de veludo preto guarnecido de lises dourados e primorosamente franjado de prata e pérolas. No segundo degrau do trono estava colocado o genuflexório da infan­ta, com a sua almofada de tecido argênteo, e mais abaixo, fora do âmbito do dossel, a cadeira para o núncio apostó­lico, a única pessoa que podia sentar-se em presença do rei nas cerimónias públicas, e cujo barrete cardinalício, com as borlas escarlates, se via defronte, num tamborete de púrpura. Na parede, em frente do trono, estadeava um re­trato de Carlos V em tamanho natural, de traje de caçador, acompanhado dum cão enorme; havia ainda um quadro que representava Filipe II a receber vassalagem dos Ho­landeses, mas este ocupava o meio da outra parede. Entre as janelas, uma escrivaninha de ébano embutida de mar­fim, na qual as figuras da Dança da Morte, de Holbein, ti­nham sido gravadas, dizia-se, pela mão do próprio artista.

O anãozinho, porém, pouco se importava com estes es­plendores. Não teria dado a sua rosa por todas as pérolas do dossel, nem uma das pétalas pelo próprio trono. O que queria era ver a princesa antes que ela descesse à tenda e pedir-lhe que viesse com ele quando a dança terminasse. Ali, no palácio, o ar era denso e pesado, mas na floresta o vento soprava livremente e os raios solares, com mãos de oiro trémulas, afastavam as folhas para os lados. Lá, havia flores, talvez não tão imponentes como as dos jardins do Paço, porém mais docemente perfumadas: jacintos, na Primavera, que inundavam de púrpura os frescos vales e as colinas verdejantes, prímulas amarelas que se aninha­vam em grupos junto às raízes ásperas dos carvalhos; celi­dónias brancas, campainhas azuis e íris douradas e de tons de lilás. Havia flores alvadias nas aveleiras, as digitais do­bravam ao peso dos seus alvéolos frequentados pelas abe­lhas. O castanheiro ostentava as suas estrelas brancas e o espinheiro as suas luas pálidas. Ah, se a encontrasse, sem dúvida que ela viria! Viria com ele à floresta imaculada e, para a entreter, o anãozinho dançaria o dia inteiro. A esta ideia dardejou-lhe um sorriso nos olhos - e então passou à câmara imediata.

Era esta, de todas as salas, a mais bela e a mais resplan­decente. As paredes estavam cobertas de damasco cor-de­-rosa, historiado de pássaros e melindrosas flores de pra­ta. De prata maciça era a mobília, com festões, grinaldas, Cupidos esvoaçantes. Em frente das vastas lareiras, dois guarda-fogos bordados com papagaios e pavões; e o chão, de ónix verde-mar, dir-se-ia perder-se na distância. Con­tudo, ele não estava sozinho. De pé, enquadrado numa porta do extremo da sala, viu uma figura pequenina que o observava. Tremeu-lhe o coração, dos lábios soltou-se-Ihe um grito de alegria, e ei-lo a caminhar para lá. Conforme avançava, viu a figurinha vir também ao seu encontro.

A infanta? Não, era um monstro, o mais grotesco de to­dos os monstros. Em vez de talhada como as outras pes­soas, esta apresentava-se corcunda, de pernas tortas, com uma cabeça enorme e pendente e uma densa crina sombria. O anãozinho carregou o cenho, e o monstro tam­bém. Riu, e o outro riu com ele, e afastou as mãos para o lado, exactamente como ele fazia. Baixou a cabeça numa vénia trocista, e viu retribuído o cumprimento. Adiantou­-se e o imitador veio ao seu encontro, arremedando-lhe cada passo e parando quando o anão parava. Este gritou, divertido, correu para a frente, estendeu a mão, e a mão do monstro tocou a sua, fria como gelo. Teve medo, afastou os dedos, e os outros dedos afastaram-se. Tentou depois agarrá-los, mas impedia-o qualquer coisa ao mesmo tem­po macia e dura. A face do monstro estava agora muito perto da sua e parecia também aterrorizada. Sacudiu o ca­belo, que lhe caía nos olhos, e o outro fez o mesmo. Bateu-lhe, e ele respondeu, pancada por pancada. Boce­jou, e viu a carantonha abrir a porta. Recuou, e o monstro recuou também.

Que seria aquilo? Pensou um instante e olhou derredor para o resto da sala. Era esquisito, mas a verdade é que ca­da objecto se lhe afigurou ter o seu duplo nessa parede in­visível, duma limpidez de água. Qualquer quadro mostra­va além o seu igual, qualquer sofá se repetia exactamente lá defronte. O Fauno adormecido, que jazia no vão da pa­rede, junto à porta, era irmão gémeo de outro que dormia também, e a Vénus argêntea, banhada agora pela luz do Sol, estendia os braços a uma Vénus tão encantadora co­mo ela.

Seria o eco? Falara alto, certa vez no vale, e o eco repetira-lhe a fala, palavra por palavra. Poderia troçar dos olhos, como troçava da voz? Saberia fazer um mundo de imitação, em tudo semelhante ao verdadeiro? Teriam as sombras das coisas vida, cor e movimento? Admitir-se-ia que... ?

Estremeceu, e, tirando do peito a linda rosa branca, voltou-se e beijou-a. O monstro possuía também a sua ro­sa, igual em todas as pétalas; beijou-a com beijos iguais e apertou-a ao coração em gestos horripilantes.

Quando nele a verdade alvoreceu, soltou o anão um gri­to de desespero, selvático, e tombou por terra, a soluçar. Era ele, pois, o contrafeito, o corcunda, o grotesco, o risí­vel! Era o próprio monstro, de quem riam todas as crianças, e até a princesinha; ela, que o anão julgou que o amava, ape­nas escarnecera da sua fealdade, dos seus membros disfor­mes. Por que o não haviam deixado na floresta, onde não existiam espelhos que lhe dissessem quanto era hediondo? Por que não o matara o pai, em vez de o vender e o expor à humilhação? Pelas faces desciam-lhe lágrimas escaldantes. Desfez em pedaços a rosa branca, e o monstro do espelho procedeu do mesmo modo, atirando ao ar as pétalas delica­das. Rojou-se no chão, e, quando olhou para o seu duplo, este observava-o com uma expressão dolorosa. Afastou-se, com medo de o ver, e tapou os olhos com as mãos; rastejou, como um animal ferido, para o escuro, e ali ficou a gemer.

Neste comenos entrou a infanta com os seus compa­nheiros, vindo pela janela rasgada; quando viram o feio anãozinho deitado, a bater no pavimento com os punhos cerrados, num exagero espectaculoso, soltaram grandes risadas e apinharam-se à volta dele, a observá-lo.

- Quando dança é muito engraçado - disse a infanta -, mas a representar não é menos. Quase tão bom como os bonifrates, só com a diferença de não ser tão natural.

Falando assim, agitou o vasto leque e aplaudiu.

            Mas o anãozinho nunca ergueu a vista, e os soluços foram-se-lhe tornando cada vez mais fracos. De súbito, abriu a boca para respirar, levou a mão ao peito, e caiu ou­tra vez para ficar completamente imóvel.

- Muito bem! - exclamou a infanta, depois dum ins­tante de silêncio. - Agora podes dançar.

- Pois é claro - volveram as outras crianças. - É al­tura de ele se levantar e dançar. Tem a habilidade dum ma­caquinho, e ainda nos dá mais vontade de rir do que os verdadeiros macacos!

O anão, contudo, permaneceu imóvel.

A infanta bateu o pé e chamou pelo tio, que passava no terraço com o camareiro-mor, lendo cartas acabadas de chegar do México, onde fora recentemente instituído o tribunal do Santo Ofício.

            - O meu anãozinho - disse a pequena - está de trom­bas. - Mandai-o que se levante e que dance para eu ver.

Os dois homens sorriram um para o outro e entraram na sala. D. Pedro curvou-se e bateu na cara do anão, com a luva bordada.

            - Tens de dançar, petit monstre - ordenou. - A in­fanta de Espanha e das Índias quer que a distraiam.

            Mas o anãozinho não se mexeu.

            - Dum chicote é que ele precisa - murmurou D. Pe­dro, enfadado, voltando para o terraço.

O camareiro-mor tomou, porém, um ar grave e, ajoe­lhando ao lado do bobo, pôs-lhe a mão sobre o peito. Es­teve assim um momento, depois encolheu os ombros, ergueu-se e, fazendo uma profunda vénia à infanta, decla­rou:

- Mi bella Princesa, o vosso anão, tão divertido, não voltará a dançar. Tenho pena, porque é tão feio que talvez fizesse o rei sorrir.

            - E por que é que não volta a dançar? - inquiriu a in­fanta, rindo.

            - Porque o coração se lhe quebrou - respondeu o camareiro.

            A infanta franziu as sobrancelhas, e os lábios de pétala de rosa encolheram-se num movimento desdenhoso.

            - Daqui por diante - disse ela - quero que os meus bobos não tenham coração.

            E foi a correr para o jardim.

 

 

                   O PESCADOR E A ALMA

Todas as noites ia para o mar o moço pescador, e lança­va a rede à água.

Quando soprava o terral, não apanhava nada, ou muito pouco, pois era um vento áspero, de asas negras, a cujo encontro se erguiam revoltas ondas. Mas se a brisa vinha na direcção da costa, o peixe subia das profundezas, encaminhava-se para a rede, e ele levava-o depois ao mer­cado, onde o vendia muito bem.

Todas as noites ia para o mar, e numa delas a rede ficou tão pesada que ele a custo a içou para bordo. Rindo, disse lá consigo:

- Não há dúvida que apanhei todos os peixes que ha­via, ou então foi algum monstro que há-de maravilhar as gentes, ou qualquer ser horrível que a nossa rainha dese­jará ver com certeza.

E, empregando quanta força tinha, puxou as cordas grossas até as veias se lhe marcarem nos braços, como se fossem linhas de esmalte azul à roda dum vaso de bronze. Puxou em seguida as cordas delgadas, e cada vez se aproximava o círculo das boiazinhas de cortiça. Por fim surgiu a rede à tona de água.

Contudo, não havia lá nenhum peixe, nem monstro, nem ente horrível, mas apenas uma sereiazinha adormecida.

Eram os seus cabelos como um velo de oiro húmido, e cada um deles, de per si, um fio de oiro numa taça de cris­tal. O corpo branco parecia talhado em marfim e a cauda dir-se-ia feita de madrepérola e de prata; em volta desta enrolavam-se algas verdes. Semelhantes a conchas mari­nhas eram as suas orelhas, e os lábios faziam pensar no co­ral. As ondas frias batiam-lhe nos frios seios, e sobre as pálpebras cintilava o sal. Tão formosa se lhe afigurou, que o moço pescador se sentiu tomado da maior admiração; estendeu mais o braço, puxou o resto da rede e, debruçan­do-se na borda do barco, apertou a sereia ao peito. Ao tocar-lhe, ouviu que ela dava um grito, tal como uma gai­vota assustada; acordou, fitou-o cheia de medo com os seus olhos cor de lilás e fez o possível por lhe escapar. Mas ele apertou-a muito bem e não a deixou fugir.

            Ao ver que estava prisioneira, ela começou a chorar e disse ao homem:

            - Rogo-te que me deixes partir, porque sou filha única dum rei, e meu pai é velho e sozinho.

            Ao que o pescador retorquiu:

            - Não to consinto sem que me prometas vir cantar pa­ra mim sempre que eu te chame, pois os peixes adoram ouvir canções do mar e eu assim poderei encher a minha rede.

            - Deixas-me realmente partir, se eu fizer essa pro­messa?

            - Afianço-te que sim.

            A sereia prometeu então o que ele queria, e fez o jura­mento solene dos da sua raça. Abriu o pescador os braços e logo ela mergulhou no mar, trémula ainda de susto.

Todas as noites o moço pescador saía para o mar, cha­mava a sereia e esta emergia das águas e punha-se a cantar. Derredor dela nadavam golfinhos. Voltejavam-lhe gaivo­tas sobre a cabeça.

A sereia entoava uma canção surpreendente, canção que se referia à gente do mar que conduz os seus rebanhos de caverna em caverna e leva aos ombros os animais novi­nhos; aos tritões que têm compridas barbas verdes, e pei­tos cabeludos, e sopram os búzios quando passa o rei; ao palácio real que é todo feito de âmbar, coberto de límpida esmeralda e pavimentado de pérolas fulgentes; aos jardins marinhos onde o dia inteiro ondulam grandes leques de filigrana de coral, e os peixes se arremessam como pássa­ros de prata, e as anémonas se prendem às rochas, e cres­cem outras flores na areia fulva e listada. Cantava acerca das enormes baleias que descem dos mares setentrionais e trazem pingentes de gelo nas barbatanas; das sereias que contam extraordinárias coisas, obrigando os mercadores a taparem com cera os ouvidos, receosos de as escutarem e cederem à tentação de cair à água, afogando-se; das gale­ras submersas e dos seus altos mastros, dos marinheiros enregelados e presos ao cordame, e das cavalas que entram e saem pelas vigias abertas; das pequeninas percebas que são grandes viajantes, se agarram às quilhas dos navios e dão a volta ao mundo; dos polvos que vivem junto das es­carpas, estendem os seus longos tentáculos negros e fazem noite quando lhes convém. Cantava a respeito do caracol do mar, que tem um barco próprio, cavado numa opala, com uma vela de seda; dos tritões afortunados que tocam harpa e conseguem adormecer os monstros fabulosos; das criancinhas que apanham os viscosos marsuínos e os ca­valgam brincando; das sereias que jazem reclinadas na es­puma branca e estendem os braços aos marujos; das focas de colmilhos curvos e dos cavalos-marinhos de crinas flu­tuantes.

E, quando ela cantava, todos os atuns subiam do fundo para a escutar, e o moço pescador lançava a rede, com que apanhava uns, e apanhava outros com o arpão. Ao ver o barco bem cheio, a sereia mergulhava no mar, sorrindo para o homem.

Não se aproximava, todavia, o bastante para que ele lhe pudesse tocar. Por mais que ouvisse chamar e suplicar, tei­mava sempre em se manter afastada. Se o rapaz diligencia­va agarrá-la, a sereia desaparecia e ele não a tornava a ver naquela noite. De cada vez o som dessa voz parecia mais doce aos ouvidos do pescador, tão doce que este se esque­cia da rede e do seu ardil e não prestava atenção ao que fa­zia. Passavam aos cardumes os atuns de barbatanas rubras e de olhos de oiro salientes, mas ele parece que os não via. O arpão ficava inútil à sua beira, e vazios os cestos de vi­me encanastrado. De lábios entreabertos, olhar abstracto, permanecia indolente no barco, e escutava, escutava até que o envolviam as neblinas do mar e a lua errante lhe manchava de prata as pernas e os braços morenos.

Certa noite chamou-a e disse-lhe:

- Sereiazinha, sereiazinha, eu amo-te. Aceita-me para teu marido.

Ela, porém, abanou a cabeça.

- A tua alma é humana - respondeu. - Se te desfi­zesses dela, então eu poderia amar-te.

«De que me serve a alma?» pensou o pescador. «Não a vejo, não a sinto, não a conheço. Posso à vontade desfa­zer-me dela, e a minha ventura será grande.» Escapou-se­-lhe dos lábios um grito de alegria e, pondo-se de pé no barco, estendeu os braços à sereia. - Mandarei embora a minha alma - declarou-lhe. - Serás minha noiva e eu serei teu noivo. Juntos viveremos nas profundezas do mar. Mostrar-me-ás tudo o que tens cantado, eu farei tudo o que quiseres, e as nossas vidas jamais se apartarão.

            A sereiazinha riu de prazer, escondendo a cara nas mãos.

- Mas como hei-de mandar a alma embora? - per­guntou o pescador. - Diz-me o que devo fazer, e eu ime­diatamente o farei.

- Ai de mim! - retorquiu a sereia. - Os habitantes do mar não têm alma.

E, olhando-o ansiosa, desceu ao fundo do abismo.

Na manhã seguinte, antes que o Sol estivesse um palmo acima do monte, o moço pescador foi a casa do cura e ba­teu à porta três vezes. O noviço espreitou pelo postigo e, vendo quem era, deixou cair o ferrolho e disse:

- Entra.

O rapaz entrou, ajoelhou na esteira aromática que co­bria o soalho e falou em voz alta ao sacerdote que estava a ler a Bíblia.

- Meu reverendo, apaixonei-me por uma criatura do mar, mas a alma impede que eu realize o meu desejo. Dizei-me como posso desfazer-me da alma, pois a verda­de é que não preciso dela. Que valor tem para mim? Não a vejo, não a sinto, não a conheço.

O cura bateu no peito e respondeu:

- Meu Deus, meu Deus! Enlouqueceste ou ingeriste alguma erva peçonhenta? A alma é a parte mais nobre do homem e foi-nos dada pelo Criador para que a usássemos nobremente. Não há nada mais precioso do que a alma humana, nem coisa terrena que se lhe possa comparar. Va­le todo o oiro que há no mundo e é mais considerável do que as jóias dos reis. Esquece, pois, meu filho, esse amor que é um pecado sem perdão. Quanto aos habitantes do mar, esses estão perdidos, e da mesma forma estão os que têm comércio com eles. São como os animais do campo que não distinguem o bem do mal. Não foi por eles que Nosso Senhor morreu.

Encheram-se de lágrimas os olhos do moço pescador quando ouviu as palavras amargas do sacerdote. E, levantando-se, redarguiu:

- Os faunos, meu reverendo, vivem nos bosques e são felizes; nas rochas estão os tritões, com as suas harpas de oiro rubro. Deixai-me ser como eles, rogo-vos, porque os meus dias são como os dias das flores. E quanto à minha alma, de que me serve, se se interpõe entre mim e aquela que eu amo?

- O amor carnal é vil! - bradou o cura, irritado. – E vis e maus são os entes pagãos que Deus permite que va­gueiem pelo seu reino. Malditos os faunos do bosque e malditas as cantoras do mar! Eu ouvi-as de noite e elas pretenderam distrair-me das minhas orações. Batem-me à janela e riem. Murmuram-me aos ouvidos a história das suas perigosas alegrias. Tentam-me, e escarnecem-me quando quero rezar, vociferando insolências. Estão perdi­das, repito. Para esses seres não há Céu nem Inferno, em parte nenhuma louvarão o nome de Deus.

- Não sabeis o que estais a dizer, meu reverendo! ­exclamou o moço pescador. - Apanhei uma vez, na rede, a filha dum rei. É mais bela do que a estrela de alva, mais branca do que a Lua. Pelo seu corpo eu daria a minha al­ma e pelo seu amor renunciaria ao Céu. Dizei-me o que vos pergunto e deixai-me ir em paz.

- Fora! Fora! - gritou o cura. - A tua amante está perdida e tu perder-te-ás com ela. - E, sem lhe dar a bên­ção, expulsou -o de sua casa.

O moço pescador foi ao mercado, vagarosamente e de cabeça baixa, como esses a quem a dor aflige. E quando os mercadores o viram chegar, cochicharam uns com os ou­tros e um deles aproximou-se, chamou-o pelo nome e in­dagou:

- Que vens vender?

- Vendo a minha alma! - respondeu. - Peço-vos que a compreis, porque estou farto dela. Que utilidade tem para mim? Não a vejo, não a sinto, não a conheço.

Os mercadores, porém, riram-se dele.

- De que nos serviria a alma dum homem? - retor­quiram. - Não vale um corno furado. Vende-nos antes o teu corpo, como escravo, e nós vestir-te-emos de púrpu­ra, poremos um anel no teu dedo e tu serás o favorito da poderosa rainha. Mas não nos fales da alma, porque é ze­ro para nós e não tem nenhum préstimo para os nossos negócios.

«Estranha coisa esta!», disse o rapaz com os seus botões. «O cura declarou-me que a alma vale todo o oiro da terra e os mercadores afiançam que não vale um corno furado.»

Saiu da praça, desceu à praia e ficou a matutar no que devia fazer.

Ao meio-dia lembrou-se que um dos seus companhei­ros, segador de perrexil, lhe falara duma bruxa nova que morava numa gruta da ponta da baía e que era muito pe­rita nas suas feitiçarias. Começou logo a correr para lá, tão ansioso estava de se desembaraçar da alma. Enquanto cor­ria pela praia, sobre a areia, seguia-o uma nuvem de pó. Pelo prurido da palma da mão, a bruxa conheceu a sua vinda, e riu, soltando os cabelos ruivos; e, envolta neles, postou-se à entrada da caverna, segurando na mão um ra­mo de cicuta florida.

- Em que te posso servir? - gritou, quando ele aca­bou de trepar, ofegante, a escarpa e se curvou à sua frente. - Queres peixe para a tua rede, quando o vento corre fu­rioso? Possuo uma flauta de cana, e, ao soprar nela, a mu­gem acode à baía. Mas isso tem preço, meu lindo rapaz, tem preço. Que desejas afinal? Um temporal que faça naufragar os navios e atire contra a costa as arcas cheias de tesouros? Movo mais tempestades do que o vento, pois sirvo alguém que é mais forte do que ele. Com uma ciran­da e um balde, sou capaz de mandar as grandes naus para os abismos do oceano. Mas isso tem preço, meu lindo ra­paz, tem preço. Que queres então? Sei duma flor que nas­ce no vale e ninguém a conhece senão eu. É de pétalas ro­xas, com uma estrela no âmago e de suco alvo como leite. Tocasses tu com essa flor os lábios da rainha e ela seguir­-te-ia por toda a terra; levantar-se-ia da cama do rei e por toda a terra te seguiria. Mas tem preço, meu rapaz, tem preço. Que queres de mim? Sei pisar um sapo no almofa­riz e fazer dele um caldo que se mexe com mão de defun­to. Deita-o sobre o teu inimigo, quando ele estiver a dor­mir, e torná-lo-ás em víbora negra e a própria mãe o ma­tará. Com uma roda, posso arrancar a Lua do céu, e num cristal fazer-te ver a Morte. Que pretendes? Que preten­des? Diz-me qual é o teu desejo, que eu o satisfaço. E tu me pagarás o preço, meu lindo rapaz!

- O meu desejo é simples - volveu o moço pescador. - No entanto, o cura indignou-se comigo e pôs-me fora de casa. O meu desejo é simples e os mercadores troçaram de mim e recusaram satisfazer-mo. Por isso vim ter con­vosco, seja qual for o preço que pedirdes e embora vos considerem má.

- Que é que querias, enfim? - perguntou a feiticeira, aproximando-se mais dele.

- Queria desfazer-me da alma - declarou o pescador. A bruxa empalideceu, teve um arrepio e escondeu o rosto no manto azul.

- Terrível coisa é essa, meu lindo rapaz!

Ele, porém, sacudiu os cabelos castanhos e ondulados e desatou a rir.

            - A alma não é nada para mim - exclamou. - Não a vejo, não a sinto, não a conheço.

            - Que me darias tu se eu te ensinasse a maneira? - in­quiriu a bruxa, poisando nele os seus belos olhos.

- Cem peças de ouro, e as minhas redes, e a choça de canas onde vivo, e o barco pintado em que navego. Dizei­-me só como hei-de libertar-me da alma, e todas essas coi­sas serão vossas.

            Ela riu-se, em ar de mofa, e borrifou-o com o ramo de cicuta.

            - Posso transformar em ouro as folhas do Outono - replicou - e tecer os raios de luar como se fossem fios de prata. Aquele a quem sirvo é mais rico do que todos, to­dos os reis da Terra e impera sobre os seus domínios.

            - Que quereis, então, que vos dê - bradou ele -, se o vosso preço não é ouro nem prata?

            A bruxa alisou o cabelo com a sua mão branca e magra. Sorrindo, participou-lhe:

- Terias de dançar comigo.

- Só isso? - replicou o rapaz, pondo-se logo de pé.

- Só isso - confirmou ela, e, mais uma vez, lhe sorriu. - Então, ao pôr-do-sol, em qualquer lugar oculto, nós dançaremos juntos - disse ele. - Depois, ensinar-me-ás o que quero saber.

A feiticeira abanou a cabeça.

- Quando for lua cheia, quando for lua cheia - mur­murou.

Em seguida, olhando em volta, apurou o ouvido. Do ni­nho levantara-se um pássaro azul, que principiou a piar e a dar voltas sobre os médãos. Pela erva crescida roçaram três aves malhadas, que assobiaram umas às outras. Não havia mais nenhum som além do das ondas a bater de en­contro aos seixos polidos. De modo que a bruxa estendeu a mão, puxou o rapaz para si e chegou-lhe ao ouvido os lábios secos.

            - Esta noite - segredou - tens de ir ao cimo do mon­te. É noite sabática e ele há-de vir.

            O moço pescador estremeceu e fitou-a. E ela riu, mos­           trando os dentes alvos.

            - Quem é esse de quem falais? - perguntou.

            - Não interessa saber. Vai hoje e espera-me debaixo dos ramos da carpa. Se correr para ti um cão preto, bate­-lhe com uma vara de salgueiro e ele fugirá. Se um mocho te falar, não lhe respondas. Quando a Lua estiver cheia, dançaremos os dois sobre a erva.

            - Mas jurais-me dizer como hei-de libertar-me da al­ma?

            Ela saiu para o sol, e nos seus cabelos ruivos brincou o vento.

            - Juro-te pelos pés de cabra - retorquiu.

            - Sois a melhor das bruxas - exclamou o moço pes­cador - e eu hei-de dançar convosco esta noite, no alto do monte. Se em vez disso me tivésseis pedido ouro ou prata, eu gostaria muito mais; visto que é esse o vosso pre­ço, recebê-lo-eis, pois é coisa pouca.

            Tirou-lhe o barrete, baixou a cabeça e voltou apressado para a cidade. Não cabia em si de contente.

A bruxa viu-o partir. Quando o perdeu de vista, entrou na gruta, tirou um espelho da arca de cedro esculpida, colocou-o na moldura, queimou verbena diante dele, sobre umas brasas, e espreitou entre as espirais do fumo. Daía pouco, desesperada, enclavinhou as mãos.

- Devia ter sido meu - murmurou. - Eu sou tão for­mosa como a outra.

Naquela noite, quando nasceu a Lua, o moço pescador subiu ao alto do monte e parou debaixo dos ramos duma carpa. Como um broquel de metal polido, o mar redondo jazia-lhe aos pés. As sombras dos barcos de pesca desliza­vam na baía. Chamou-o pelo seu nome um volumoso mo­cho, de olhos amarelos como enxofre; mas não obteve res­posta. Correu para ele, rosnando, um cão preto. O pesca­dor bateu-lhe com uma chibata de salgueiro e o animal fu­giu a ganir.

            À meia-noite chegaram as feiticeiras, voando pelo ar co­mo morcegos.

- Olá! - exclamaram, ao poisar no chão. - Há aqui alguém que não conhecemos. - E puseram-se a farejar, tagarelando umas com as outras, e fazendo sinais. A últi­ma que veio foi a bruxa nova, de cabelo ruivo a flutuar ao vento. Trajava de tecido de oiro, bordado de azul e verde. Na cabeça, trazia um chapelinho de veludo.

- Onde está ele? Onde está ele? - guincharam as bru­xas, ao vê-la. Ela riu-se, e foi direita à árvore e, pegando na mão do pescador, conduziu-o para o luar e começaram a dançar.

Giravam, giravam em roda, e a bruxa nova pulava tão al­to que ele lhe podia ver os saltos vermelhos dos sapatos. Depois, através dos que bailavam, chegou o ruído dum ga­lope, sem que se visse o cavalo. E o pescador teve medo.

- Mais depressa! - gritou a feiticeira, passando-lhe os braços em volta do pescoço e soprando-lhe na face um há­lito de fogo. - Mais depressa, mais depressa! – bradava ela, e a terra parecia girar debaixo dos pés do pescador, cu­jo cérebro se perturbou. Invadia-o um terror enorme, co­mo se alguma coisa horrível o espreitasse, até que viu à sombra dum rochedo uma figura que antes ali não estava.

Era um homem vestido de veludo preto, à moda espa­nhola. Tinha a cara extremamente pálida, mas os lábios sobressaíam como uma flor vermelha e orgulhosa. Dir-se­-ia cansado: encostara-se à rocha, brincando distraído com o punho da sua adaga. Ao lado, no chão, estava um chapéu de plumas e um par de luvas de montar, com pu­nhos de rendas doiradas e um estranho lema bordado a al­jôfar. Pendia-lhe do ombro uma capa curta, debruada de peles de marta, e os dedos delicados e brancos rutilavam de anéis. Sobre os olhos desciam-lhe as pálpebras pesadas.

O moço pescador não desviava dele a vista, como se es­tivesse enfeitiçado. Por fim os olhos de ambos encontra­ram-se e, onde quer que dançasse, julgava cravado nele o olhar daquele desconhecido. Ouviu a bruxa rir, e agarrou-a pela cintura e girou com ela doidamente, sem­pre à roda.

De repente, ladrou um cão na floresta, e os pares dan­çantes interromperam-se; indo dois a dois, ajoelharam e beijaram as mãos do homem. Nesse momento aflorou-lhe aos lábios um sorriso ténue, como uma asa de ave que ro­ça a água e a encrespa; mas era um sorriso de desdém. Jamais deixou de olhar para o moço pescador.

- Vamos, vamos adorar! - dizia a feiticeira ao ouvido dele, arrastando-o. Invadiu-o então um desejo enorme de lhe obedecer, e seguiu-a. Ao aproximar-se, sem saber por­quê, persignou-se e invocou o santo nome.

Logo as bruxas desataram a gritar, como falcões, e fugi­ram. A face pálida que observava o rapaz contraiu-se num espasmo doloroso. O homem avançou para um bosquete e soltou um assobio, e ao seu encontro veio a correr um ginete ajaezado de prata. Ao saltar para a sela, voltou-se e fitou o rapaz com ar triste. A bruxa de cabelos ruivos também tentou fugir, mas o pescador agarrou-a pelos pulsos e segurou-a muito bem.

- Larga-me! - gritou ela. - Por que nomeaste o que não deve ser nomeado e fizeste o sinal que não deve ser visto?

            - Não - respondeu ele. - Sem que me digais o se­gredo, eu não vos deixarei partir.

- Que segredo? - perguntou a bruxa, debatendo-se como um gato-bravo e mordendo-o com os beiços mo­lhados de espuma.

- Vós o sabeis - retorquiu o rapaz.

            Com os olhos verdes turvados de lágrimas, disse ela ao pescador:

- Pede-me o que quiseres, menos isso!

Ele riu, e apertou-a mais.

E quando a bruxa viu que não podia desenvencilhar-se, murmurou:

            - Acredita que sou tão bela como a filha do mar, tão atraente como essas que vivem nas águas azuis.

            Dizendo isto, pôs-se a acariciá-lo, e uniu o rosto ao do rapaz.

            Este, porém, repeliu-a, de cenho carregado, declarando:

            - Se não cumprirdes a vossa promessa, matar-vos-ei como a uma feiticeira intrujona.

            Fez-se ela pálida como a flor da árvore-de-judas, e tre­meu.

            - Pois seja - redarguiu num suspiro. - Trata-se da tua alma e não da minha. Faça-se a tua vontade.

            Tirou do cinto uma faca pequena, cujo cabo era revesti­do de pele de cobra, e entregou-lha.

            - De que me serve isto? - inquiriu o pescador, sur­preendido.

A bruxa conservou-se por instantes calada. Sombreou­-lhe a expressão uma nuvem de terror. Depois sacudiu os cabelos e disse, rindo de modo singular:

- O que se chama vulgarmente a sombra do corpo não é senão o corpo da alma. Vai à beira-mar, volta as costas à Lua e corta em volta dos pés a tua sombra, que é o corpo da tua alma. Ordena-lhe depois que te deixe, e ela assim fará.

Arrepiou-se o pescador, e retorquiu:

- É certo?

- Certíssimo. Mais valia que to não dissesse.

Agarrou-se-lhe aos joelhos, depois destas palavras, a chorar. O rapaz, no entanto, repeliu-a de novo, e deixou­-a por terra, e, dirigindo-se à borda do monte, principiou a descer, levando a faca no cinturão. A alma, que estava dentro dele, chamou -o e disse-lhe:

            - O quê? Eu morei em ti todos estes anos e fui a tua serva. Não me despeças agora. Que mal te fiz?

            Riu-se o moço pescador, observando:

- Mal não me fizeste nenhum, mas a verdade é que não preciso de ti. O mundo é vasto e há também o Céu e o In­ferno, e essa mansão crepuscular que fica entre os dois. Vai para onde te aprouver, e não me estorves, porque o meu amor chama por mim.

A alma suplicou-lhe compungida, mas ele não a aten­deu, antes, saltando de fraga em fraga, ágil como uma ca­bra montes a, chegou afinal à planície e à costa doirada do mar.

De membros brônzeos, bem constituído, semelhante a uma estátua grega, deteve-se na areia, de costas para a Lua, enquanto da alva espuma do mar surgiam braços que lhe acenavam e das ondas se erguiam formas que lhe rendiam tributo. Diante dele estava a sua sombra, que era a corpo­rização da alma, e atrás flutuava a Lua no ar cor de mel.

Disse-lhe a alma:

            - Se sempre queres afastar-me de ti, não me despeças sem coração. O mundo é cruel, dá-me o teu coração para eu levar comigo.

            - Como - replicou ele, abanando a cabeça – como poderia eu amar se te desse o coração?

            - Sê piedoso - insistiu a alma. - Dá-me o teu cora­ção, porque o mundo é cruel e eu tenho medo.

            - O meu coração pertence ao meu amor. Não te de­mores, pois, e trata de partir.

            - Mas se te amo também!

- Vai-te, que não preciso de ti! - gritou o pescador. E, tirando do cinturão a faca de cabo revestido de pele de co­bra, cortou a sombra em volta dos pés, e a sombra ergueu­-se, parou defronte dele e olhou-o. Era como se fosse o próprio!

            O pescador recuou, guardou a faca e sentiu-se domina­do por um sentimento de terror.

            - Vai-te - ordenou em voz baixa. - Que eu não tor­ne a ver-te!

            - Não - replicou ela -, temos de nos encontrar ain­da.

            Falava num murmúrio, quase sem mover os lábios.

            - Encontrar-nos como? - repetiu ele. - Não vais seguir-me, com certeza, às profundezas do mar.

- Uma vez em cada ano, virei a este lugar e chamarei por ti - esclareceu a alma. - Quem sabe se terás neces­sidade de mim?

            - Que necessidade posso ter de ti? - retrucou o pes­cador. - No entanto, faça-se a tua vontade.

Disse isto e mergulhou na água, os tritões sopraram a trompa e a sereiazinha subiu ao encontro dele, abraçou-o e beijou-o na boca.

Só, na praia, a alma observava-os. E, quando eles desa­pareceram no abismo, ela afastou-se chorando para a re­gião dos pântanos.

 

            Passou-se um ano, a alma compareceu na beira-mar e chamou pelo pescador. Este emergiu das águas e indagou:

            - Por que me chamas?

Respondeu ela:

- Aproxima-te, porque te quero falar. Vi coisas ex­traordinárias.

O rapaz aproximou-se, escolheu uma poça não muito funda para se sentar, e, inclinando a cabeça, dispôs-se a ouvir.

 

- Quando te deixei - começou a alma - voltei o ros­to para o oriente e meti-me a caminho. Do oriente é que vem tudo quanto é sensato. Viajei durante seis dias, e na manhã do sétimo dia alcancei uma colina do país dos Tártaros. Sentei-me debaixo duma tamargueira, para me abri­gar do sol. A terra é seca e ardente. Lá em baixo, na planí­cie, via as pessoas andarem dum lado para outro como moscas passeando num disco de cobre polido.

«Ao dar meio-dia, subiu no horizonte uma nuvem de poeira encarnada. Viram-na os Tártaros, aprontaram os arcos pintados, e, saltando para os cavalos, largaram ao seu encontro. As mulheres, aos gritos, fugiram para as carroças e esconderam-se por trás dos cortinados de fel­tro. Pelo crepúsculo, os Tártaros voltaram, mas faltavam cinco deles e muitos dos que estavam de regresso vinham feridos. Atrelaram os cavalos às carroças e afastaram-se a toda a brida. Duma toca, surgiram três chacais, que se pu­seram a espreitá-los; depois farejaram o ar e correram em sentido oposto.

«Nasceu a Lua, e eu vi ardendo na planície a fogueira dum acampamento. Dirigi-me para lá. A volta dela, em ta­petes, estava sentado um grupo de mercadores. Os came­los haviam-nos amarrado mais atrás, e os criados pretos armavam tendas de pele curtida, sobre a areia, e cons­truíam uma vedação alta de ramos espinhosos.

«Aproximei-me deles, e o principal dos mercadores levantou-se, desembainhou a espada e perguntou que é que eu desejava. Respondi ser príncipe no meu país de origem, e que andava fugido dos Tártaros, os quais pre­tendiam fazer-me seu escravo. Ele sorriu e mostrou-me cinco cabeças espetadas em compridas hastes de bambu. Em seguida quis saber quem era para mim o profeta de Deus, e eu disse-lhe que Mafoma.

«Ao ouvir o nome do falso profeta, curvou a cabeça, pegou-me pela mão e colocou-me à sua ilharga. Um dos pretos trouxe leite de égua numa tigela de pau e um boca­do de carneiro assado.

«Quando rompeu a manhã, metemo-nos a caminho. Eu cavalguei um camelo de pêlo fulvo, ao lado do mercador principal, enquanto à nossa frente corria o homem que transportava a lança. De cada banda seguiam os guerrei­ros, e atrás de nós as mulas carregadas de mercadorias. Compunha-se de quarenta camelos a caravana, e de do­brado número de mulas. Partimos do país dos Tártaros para o daqueles que amaldiçoam a Lua. Vimos os grifos que guardam o oiro desses idólatras nas rochas brancas e os dragões de escamas dormindo nas cavernas. Na ocasião de transpor as montanhas, sustivemos a respiração com medo de que as neves se despenhassem sobre nós; cada homem atou diante dos olhos um véu de gaza. Ao passar­mos através dos vales, os Pigmeus lançaram-nos frechas de dentro de buracos de árvores, e à noite ouvimos os sel­vagens rufarem tambores. Chegados que fomos à torre dos macacos, pusemos frutos diante deles, e não nos fize­ram mal; depois alcançámos a das serpentes, demos-lhes leite quente em pratos de bronze, e elas deixaram-nos prosseguir. Por três vezes, nessa viagem, atingimos as margens do Oxo, que atravessámos em jangadas de ma­deira, com grandes bexigas cheias de ar. Os hipopótamos procuravam atacar-nos e dar cabo de nós. Os camelos tre­meram só de os ver.

«Os reis de cada cidade impunham-nos multas e não consentiam que entrássemos as portas. Por cima das mu­ralhas atiravam-nos pão, bolinhos de mel, outros rechea­dos de tâmaras. Por uma centena de cestos pagávamos uma bola de âmbar.

«Quando os moradores das aldeias nos viam chegar, en­venenavam os poços e fugiam para o alto dos montes. Lu­támos com os Magadás, que nascem velhos e vão rejuve­nescendo de ano para ano até morrerem crianças; com os Latróis, que se intitulam filhos de tigres e se tingem de amarelo e preto; com os Aurantes, que depõem os mortos no cimo das árvores e vivem em grutas sombrias, temen­do que o Sol, seu Deus, os sacrifique; como os Crinianos, adoradores do crocodilo, ao qual enfeitam de feixes de er­va e alimentam de manteiga e aves frescas; com os Aga­zombas, que têm focinho de cão; e com os Sibães, que providos de patas de cavalo correm mais velozes do que estes. Um terço do nosso grupo morreu em combate, ou­tro terço morreu de privações. Os restantes murmuraram de mim, alegando que eu lhes levara má sorte. Tirei uma víbora debaixo duma pedra e deixei que ela me picasse; quando viram que eu continuava de saúde, começaram a temer-me.

«Ao quarto mês atingimos a cidade de IleI. Era noite quando chegámos ao bosque de fora de portas: o ar esta­va sufocante, porque a Lua passava em Escorpião. Colhe­mos romãs da árvore, partimo-las e tomámos o sumo ado­cicado. Em seguida deitámo-nos sobre os nossos tapetes, à espera do alvorecer.

«Assim, ao romper da madrugada, levantámo-nos e bate­mos à porta da cidade. Era de bronze e tinha cavalos­-marinhos e leões alados em relevo. Olharam-nos os guar­das, das seteiras, e perguntaram que queríamos. Respondeu o língua da caravana, dizendo que vínhamos da Síria, carre­gados de fazenda; eles quiseram reféns e declararam que nos abririam a porta ao meio-dia. Entretanto, que esperássemos.

«Era meio-dia quando, de facto, a franquearam. O po­vo despejava as casas só para nos ver, enquanto percorria a cidade o pregoeiro, gritando por um búzio. Parámos no mercado e os pretos desataram os fardos de pano colori­dos e abriam as arcas de sicômoro trabalhado. Terminados estes preparativos, os comerciantes expuseram as suas es­tranhas mercadorias: linho encerado do Egipto e linho es­tampado do país dos Etíopes; esponjas purpúreas de Tiro, tapeçarias azuis de Sídon, taças de âmbar translúcido, va­sos de vidro delicado e outros de barro, esquisitos. Do te­lhado duma casa observava-nos um grupo de mulheres: uma delas usava máscara de cabedal, dourada.

«No primeiro dia compareceram os sacerdotes a trafi­car connosco, no segundo vieram os nobres, no terceiro os artífices e os escravos. Tal é o seu modo de proceder, enquanto os mercadores se demoram na cidade.

«Estivemos ali durante uma lua inteira; quando ela co­meçava a minguar, eu, aborrecendo-me, vagueei através das ruas e fui ter ao jardim da divindade local. Os sacer­dotes, de túnica amarela, divagavam silenciosos pelo meio das árvores viçosas; sobre o pavimento de mármore preto erguia-se a casa rósea que era a morada do deus. As por­tas eram de laca, onde havia em relevo, e de oiro polido, figuras de touros e pavões. Cobriam-na telhas de porcela­na verde-mar, e das goteiras salientes pendiam campainhas minúsculas; quando as pombas brancas passavam perto, roçando-lhes com as asas, aquelas começavam a tilintar.

«Fronteira ao templo havia uma lagoa de água límpida, pavimentada de ónix raiado. Estendi-me na margem e, com os meus dedos pálidos, toquei nas folhas largas dos nenúfares. Aproximou-se um dos sacerdotes e estacou atrás de mim. Vestia uma pele de serpente, outra de ave ainda coberta de plumagem, e usava sandálias nos pés; na cabeça ostentava a mitra de feltro negro, ornada de cres­centes de prata. A túnica apresentava sete tons diferentes de amarelo. Os cabelos frisados tingira-os com antimónio.     «Daí a pouco falou-me e perguntou qual seria o meu desejo. Respondi-lhe que era ver o deus.»

«- O deus anda à caça - elucidou-me o sacerdote, mirando-me de forma estranha com os seus olhinhos oblíquos.

            «- Dizei-me em que floresta e eu cavalgarei com ele.

            «Com as unhas aguçadas, pôs-se a endireitar as franjas leves da túnica. E murmurou:»

«- O deus está a dormir.

«- Dizei-me em que leito, para eu o velar.

«- O deus está num festim! - bradou então.

«- Se o vinho for doce, beberei com ele, e, se amargo, beberei também.

            «Curvou a cabeça, perplexo, e, pegando-me na mão, ergueu-me e conduziu-me ao templo.»

«Na primeira câmara vi um ídolo sentado num trono de jaspe contornado de enormes pérolas orientais. Era uma escultura de ébano, do tamanho dum homem. Na testa exibia um rubi, e do cabelo, sobre as coxas, escorria-lhe um óleo muito espesso. Os pés estavam rubros do sangue fresco dum cabrito, e os quadris cingidos num cinto de      cobre guarnecido de sete berilos.

«Perguntei ao sacerdote: «- Este é que é o deus?

«- É este o deus - replicou.

«- Mostrai-me o deus - ordenei. - Senão, tiro-vos a vida.

            «Toquei-lhe na mão e ela mirrou-se. E o homem supli­cou-me:

«- Curai a minha mão, para que vos mostre o deus. «Bafejei-lhe os dedos secos e logo se vivificaram.

«Ainda trémulo, acompanhou-me à segunda câmara, onde vi um ídolo de pé sobre uma folha de lódão feita de jaspe, da qual pendiam grandes esmeraldas. Era uma es­cultura de marfim do tamanho do dobro dum homem. Na frente apresentava um crisólito e os peitos estavam ungi­dos de mirra e cinamono. Numa das mãos erguia um bá­culo de jade, e na outra um globo de cristal. Em volta do pescoço forte tinha um colar de selenites. Nos pés, borze­      guins de latão.

«Disse eu ao sacerdote:

«- Este é que é o deus?

«- É este o deus - replicou.

«- Mostrai-me o deus - insisti - ou eu vos matarei. «Pus-lhe um dedo nos olhos e o homem ficou cego.

«- Curai-me - suplicou - e eu vos mostrarei o deus. «Bafejei-lhe os olhos, aos quais voltou a vista. Ele tre­meu de novo e conduziu-me à terceira câmara. Mas ali não havia nenhuma imagem: apenas um espelho redondo de metal sobre um altar de pedra.

«- Onde está o deus? - perguntei. «Respondeu-me:

            «- Não há deus nenhum, mas só este espelho que aqui vedes e que é o Espelho da Sabedoria. Reflecte todas as coisas que estão no Céu e na Terra, excepto o rosto de quem o contempla: isso não reflecte, a fim de que possa ser discreto aquele que o olhar. Há muitos outros espe­lhos, mas são espelhos de Opinião; só este é o da Sabedo­ria. Quem o possui sabe tudo, nada lhe pode ser escondi­do; quem o não possui não tem sabedoria. É ele, pois, o deus e como talo adoramos.

«Olhei para o espelho e vi que o homem tinha razão. Fiz uma coisa estranha, mas o que fiz não importa: num vale que fica a um dia de viagem deste lugar, eu ocultei o Espelho da Sabedoria. Permite que eu, tua alma, entre de novo em ti, e seja tua escrava. Serás mais sábio do que to­dos os sábios. A Sabedoria pertencer-te-á. Consente que eu entre em ti, e ninguém será tão sábio como tu.»

Mas o moço pescador riu-se e retorquiu:

- O Amor é preferível à Sabedoria. E a sereiazinha concede-me o seu amor.

            - Não há nada melhor do que a Sabedoria - insistiu a alma.

            - O Amor é melhor - repetiu o pescador, mergu­lhando nas águas.

            E a alma, chorando, afastou-se para o lado dos pânta­nos.

 

Passou-se mais um ano, e a alma desceu ao litoral e cha­mou o moço pescador. Este subiu das profundezas e in­dagou:

- Por que me chamas?

Replicou aquela:

- Aproxima-te mais para que te possa falar. Vi coisas extraordinárias.

            Ele obedeceu e deitou-se numa poça não muito profun­da, apoiou a cabeça na mão e dispôs-se a ouvir.

- Quando te deixei - começou a alma - voltei a cara para o sul e caminhei. Do sul vem tudo o que é precioso. Seis dias viajei pelas estradas que levam à cidade de Aster, compridas e poeirentas, por onde passam os peregrinos. Na manhã do sétimo dia, firmei o olhar e - pronto! - a cidade jazia-me aos pés, porque fica situada num vale.

«Tem nove portas, e defronte de cada uma está um ca­valo de bronze, que rincha quando os beduínos descem das montanhas. As muralhas são revestidas de cobre, e as albarrãs cobertas de latão. Em cada torre há um archeiro com o seu arco na mão. Ao nascer do Sol, atinge com uma frecha o tantã, e ao poente sopra numa trompa de corno.

«Quando eu quis entrar, os guardas impediram-me a passagem e perguntaram quem era. Respondi ser um der­vixe em viagem para Meca, onde está um véu verde no qual o Alcorão foi bordado a letras de prata pelas mãos dos anjos. Os guardas espantaram-se com o caso e deixaram-me passar.

«É tudo como um bazar, lá dentro. Devias ter ido comi­go. Através das ruas estreitas flutuavam vistosas lanternas de papel, que pareciam borboletas. Quando sopra o vento nos telhados, elas sobem e descem como bolhas coloridas. Defronte das suas tendas vêem-se os mercadores sentados sobre tapetes de seda. Usam compridas barbas pretas e or­nam os fezes de moedas de oiro. Entre os dedos frios deslizam-lhes longos cordões de âmbar e de caroços de pês­sego esculpidos. Alguns deles vendem gálbano e nardo, e perfumes raros das ilhas do oceano Índico, e espesso óleo de rosas rubras, e mirra, e especiarias em forma de cravo. Quando alguém pára a fim de lhes falar, eles atiram para um braseiro pedrinhas de incenso, que perfumam o ar. Vi um sírio que ostentava na mão uma vara delgada de junco. De­la saíam espirais de fumo cinzento, e o cheiro da combustão era o das amendoeiras na Primavera. Outros vendiam bra­celetes de prata ornamentados em toda a roda de turquesas azuis, e aros para os tornozelos, de fio de latão, debruados de perolazinhas, e garras de leopardo engastadas em oiro, e brincos de esmeralda, e anéis de jade. Das casas de chá vi­nha o som duma viola, e os fumadores de ópio, de rostos lí­vidos e sorridentes, voltavam-se para os transeuntes.

«Devias ter ido comigo. Os vendedores de vinho abriam caminho à cotovelada, através da multidão, tra­zendo às costas odres enormes de pele negra. Na maioria vendiam vinho de Xiraz, que é tão doce como mel e vem servido em tacinhas de metal, onde flutuam pétalas de ro­sa. Havia também negociantes de fruta, de todas as espé­cies: figos maduros, de capa rota e tom de púrpura; melões que cheiram a almíscar e são de cor de topázio; limões, e maçãs, e cachos de uvas brancas, e laranjas douradas. Cer­ta vez vi passar um elefante, com a tromba pintada de ci­nábrio e curcuma; por cima das orelhas passava-lhe uma rede de seda carmesim. Parou defronte duma das tendas e começou a devorar as laranjas. O cornaca limitou-se a rir. Não fazes ideia de quanto é estranha aquela gente! Quan­do a alegria lhes bate à porta, vão aos vendedores de aves e compram uma qualquer engaiolada, só pelo prazer de lhe dar liberdade; se estão tristes, flagelam-se com espi­nhos para fazer render a dor.

«Uma tarde vi pretos a carregarem um pesado palan­quim através do bazar. Era feito de bambu dourado e as varas de laca vermelha guarnecidas de pavões de latão. Em frente das janelas pendiam cortinados leves de musselina bordados com asas de escaravelho e aljôfar. Quando pas­sou por mim, espreitou de dentro uma circassiana de face pálida, que me sorriu. Segui atrás deles, e os pretos estugaram o passo, nada satisfeitos. Eu não me importei: a cu­riosidade espicaçava-me.

«Por fim pararam diante duma casa branca, quadrangu­lar, que não tinha janelas, mas apenas uma porta pequena, como a dum jazigo. Pousaram o palanquim e bateram três vezes, com um martelo de cobre. Pelo postigo espreitou um arménio de cafetão de couro verde; vendo-os, abriu a porta, estendeu um tapete no chão e a mulher passou por cima, voltando-se para trás, ao entrar, a fim de me sorrir de novo. Nunca eu vira uma pessoa tão pálida!

«Ao nascer da Lua, tornei ao mesmo ponto e procurei a casa, porém já não estava lá. Compreendi então quem era a mulher e por que motivo me sorrira.

«Devias ter ido comigo. Pela festa da lua nova, o moço imperador saiu do palácio e foi orar à mesquita. Tinha barba e cabelo tingidos de folhas de rosa, e as faces em­poadas de fina poalha de oiro. As plantas dos pés e as pal­mas das mãos estavam amarelas de açafrão.

«Ao nascer do Sol saiu do Paço vestido de prata e ao poente tornou a sair com uma túnica de oiro. O povo arremessava-se ao chão, ocultando o rosto, coisa que eu não fiz. Mantive-me de pé junto à tenda dum vendedor de tâmaras, e esperei. Quando o imperador me desco­briu, ergueu as sobrancelhas pintadas e esperou tam­bém. Não me mexi de onde estava, maravilhando o po­vo com o meu arrojo. Aconselharam-me a fugir da cidade. Sem lhes dar atenção, fui para o meio dos vendedo­res de deuses estrangeiros, que são detestados em razão do seu ofício. Ao saberem o que eu tinha feito, cada um deles me ofereceu um deus e me pediu que os deixasse em paz.

«Nessa noite, tendo-me deitado numa almofada da casa de chá, situada na Rua das Romãs, entraram os guardas do imperador e levaram-me ao palácio. Conforme eu ia en­trando, iam eles fechando as portas atrás de mim, pondo em todas uma corrente. No interior havia um claustro amplo, com arcadas em toda a volta. As paredes eram de alabastro branco, guarnecidas aqui e ali de azulejos ver­des. Viam-se colunas de mármore desta cor, e no pavi­mento predominava o tom de flor de pessegueiro. Nunca na minha vida eu vira uma coisa assim.

«Quando atravessei o claustro, duas mulheres, cobertas de véu, olharam-me duma varanda e amaldiçoaram-me. Os guardas apressaram o passo, batendo com a extremi­dade das lanças na superfície polida das lajes; abriram um portão de marfim trabalhado, e eu encontrei-me num jar­dim muito húmido, com sete terraços, onde havia túlipas, margaritas dobradas, aloés estriados. Semelhante a uma vara delgada de cristal caía a água duma fonte naquele am­biente melancólico. Os ciprestes lembravam tochas apagadas, e num deles cantava um rouxinol.

«Ao fundo do jardim erguia-se um pavilhão não muito grande. Quando nos aproximávamos, vieram dois eunu­cos ao nosso encontro, balançando os corpos flácidos. Fitaram-me sob as pálpebras amarelas, e disse um deles ao capitão da guarda não sei o quê, em voz baixa. O outro mascava bétele, que ia tirando, com gestos afectados, du­ma caixa oval de esmalte roxo.

«Daí a pouco despediu o capitão os soldados. Estes vol­taram ao palácio, e os eunucos seguiram-nos devagar, co­lhendo amoras nas árvores por onde passavam. Em certa altura o mais velho dos dois olhou para mim e esboçou um sornso perverso.

«Então o capitão da guarda mandou-me que avançasse para a entrada do pavilhão. Andei sem receio e, afastando o reposteiro pesado, entrei ali.

«O moço imperador estava estendido num divã de pe­les de leão tingidas e tinha um gerifalte empoleirado no punho. Atrás dele, de pé, um núbio de elmo de bronze, nu da cinta para cima, com grandes brincos nas orelhas fendidas. Sobre a mesa, ao lado do divã, jazia uma cimitarra de aço, imponente.

            «Ao ver-me, o imperador carregou o sobrolho e disse­-me:

            «- Como te chamas? Não sabes que sou o imperador desta cidade?

«Eu, todavia, conservava-me calado. Ele apontou para a cimitarra, e o núbio, agarrando-a, precipitou-se sobre mim e bateu-me com grande violência. A lâmina zumbiu­-me através do corpo e não me fez mal nenhum. O ho­mem caíra no chão; quando se levantou, os dentes entrechocavam-se-lhe de terror. Até se foi esconder por trás do divã.

«O imperador pôs-se de pé, pegou numa lança e arremessou-ma. Eu apanhei-a no voo e parti-a em duas. Disparou-me uma seta, mas eu ergui as mãos e imobilizei­-a. Por fim tirou um punhal do cinto de couro branco e feriu o núbio na garganta, com medo de que o escravo contasse tamanha afronta. O homem torceu-se como uma cobra atropelada e aos lábios aflorou-lhe espuma verme­lha.

«Logo que o escravo deixou de existir, o imperador virou-se para mim, depois de limpar o suor luzente da tes­ta com um lenço bordado de seda roxa, e disse-me:

«- És algum profeta, que eu seja incapaz de ferir, ou o filho dum profeta, para que não possa causar-te nenhum dano? Peço-te que deixes a cidade esta noite, pois en­quanto nela estiveres eu não serei o seu senhor.

«E eu respondi-lhe:

«- Fá-lo-ei por metade dos teus tesouros. Dá-me essa metade e eu ir-me-ei embora.

«O imperador pegou-me na mão e levou-me até ao jar­dim. Quando o capitão da guarda me viu, ficou boquia­berto de espanto; e quando os eunucos me viram, tremeram-lhes os joelhos e eles caíram no chão.

«Há uma sala no palácio que tem oito paredes de pórfi­ro; e do tecto, de lâminas de bronze, pendem inúmeras lâmpadas. O imperador tocou numa das paredes, que se abriu: descemos então a um corredor iluminado por mui­tos fachos. De ambos os lados, em nichos, havia grandes jarros de vinho cheios até à borda de moedas de prata. Ao chegarmos ao centro do corredor, proferiu uma palavra que não deve ser proferida, e logo girou uma porta de gra­nito por meio de qualquer mola oculta; ele pôs as mãos diante dos olhos para não ficar deslumbrado.

«Não fazes ideia do que era aquele lugar portentoso! Acumulavam-se acolá conchas de tartaruga, selenites, ocos, enormes, repletos de rubis, oiro m aciço guardado em arcas de pele de elefante, e oiro em pó dentro de gar­rafas de couro. Havia opalas e safiras, as primeiras em ta­ças de cristal, as segundas em taças de jade. Dispostas em ordem, sobre pratos delgados de marfim, estavam esme­raldas verdes, redondas, e a um canto, dentro de sacos de seda, turquesas e berilos. Vi cornucópias de marfim cheias de ametistas purpúreas, e outras de bronze com calcedónias e sárdios. As colunas eram de cedro e delas pendiam cordões de olhos-de-lince amarelos. Em escudos ovais guardavam-se carbúnculos vermelhos e verdes. E isto não é senão uma pequena parte do tesouro.

«Quando o imperador tirou as mãos dos olhos, disse­-me:

«- Esta é a minha casa-forte, e metade do que contém é teu, conforme te prometi. Dar-te-ei camelos e camelei­ros, que cumprirão as tuas ordens e levarão a tua parte do tesouro para onde desejes ir. Isso tem de ser esta noite, porque não quero que o Sol, meu pai, veja nesta cidade um homem que eu não consigo matar.

«Contudo, eu retorqui:

            «- O oiro que aqui está é teu, é tua a prata, tuas as jóias preciosas e as demais coisas de valor. Quanto a mim, não necessito de nada disso, nem receberei nada de ti senão o anel que tens no dedo.

«O imperador volveu-me, carrancudo:

            «- É simplesmente um anel de chumbo. Não tem ne­nhum valor. Aceita, antes, metade do tesouro e sai da mi­nha cidade.

            «- Não! - respondi. - Só quero esse anel de chum­bo, porque sei o que está inscrito nele, e com que fim.

            «Tremeu o imperador, suplicando-me:

            «- Toma o teu tesouro e sai da cidade. A minha meta­de será tua também.

«Eu fiz então uma coisa estranha. Mas o que fiz não im­porta, pois, numa gruta que fica apenas a um dia de via­gem deste lugar, escondi o Anel da Riqueza. É apenas a um dia de viagem e está a esperar por ti. Quem possuir es­se anel será mais rico do que todos os reis da Terra. Vem, portanto, e toma-o, e a riqueza do mundo será tua.»

Riu-se, porém, o moço pescador.

«- O amor é melhor do que a riqueza! - exclamou. ­E eu tenho o amor da sereiazinha.

            «- Não, não há nada melhor do que a riqueza - asse­verou a alma.

            «- O amor é melhor - insistiu o pescador, tornando a mergulhar na profundeza das águas.»

            E a alma, a chorar, afastou-se para o lado dos pântanos.

 

N o fim do terceiro ano, a alma desceu à praia e chamou pelo moço pescador. Este surgiu das águas e perguntou: - Por que me chamas?

Respondeu a alma:

- Chega-te mais para mim, para que eu possa falar-te.

Vi coisas extraordinárias.

            E ele aproximou-se, deitou-se numa poça não muito funda, apoiou a cabeça na mão e dispôs-se a escutar.

- Numa cidade que eu conheço - disse a alma – há uma estalagem à beira dum rio. Sentei-me lá com mari­nheiros que bebiam vinho de duas cores diferentes e co­miam pão feito de cevada e peixinhos salgados servidos em folhas de louro, com vinagre. E quando ali estávamos a folgar, entrou um velho com um tapete de cabedal e um alaúde, onde havia dois chifres de âmbar. Depois de deitar o tapete no chão, feriu com uma palheta as cordas do alaú­de e entrou e começou a dançar uma rapariga que tinha o rosto velado. Velava-lhe o rosto um véu de gaza, mas os pés estavam descalços. Descalços estavam os pés e moviam-se sobre o tapete como duas pombas brancas. Nunca vi nada mais belo, e a cidade onde ela dança é so­mente a um dia de jornada deste lugar.

Ora, ouvindo o moço pescador as palavras da alma, lembrou-se de que a sereiazinha não tinha pés e não podia dançar. Invadiu-o um grande desejo e disse de si para si: «Se é apenas um dia de jornada, voltarei depois para o meu amor.» Riu-se, pôs-se em pé na água pouco profun­da e avançou pela praia. Ao atingir um ponto seco, riu-se de novo e estendeu os braços à alma. Esta soltou um gran­de grito de alegria, correu ao seu encontro, entrou dentro dele, e o pescador viu logo estendida à sua frente, na areia, aquela sombra do corpo que é o corpo da alma.

E disse-lhe a alma:

            - Não nos demoremos, vamo-nos embora já. Os deu­ses do mar são ciumentos e têm monstros que lhes obede­cem.

Apressaram-se, pois, e caminharam a noite inteira ao luar, e no dia seguinte ao sol até que, na noite desse dia,     chegaram a uma cidade. Disse o pescador à sua alma:

- É esta a cidade onde dança aquela de quem me falaste? - Não é esta, mas outra - respondeu a alma. - Con­tudo, vamos entrar.

Entraram, percorreram as ruas, e passaram pela dos Ourives. O moço pescador viu uma linda taça de prata numa loja.

            - Pega nessa taça e esconde-a - aconselhou-lhe a al­ma.

Ele assim fez, ocultou-a nas dobras da túnica e saíram apressadamente da cidade. Quando iam a uma légua de distância, o pescador franziu o cenho, deitou fora a taça e perguntou:

            - Por que me disseste que tirasse esta taça e a escon­desse, se era uma acção má?

            - Sossega, sossega - retorquiu a alma.

            Na noite do segundo dia alcançaram outra cidade, e o rapaz indagou:

            - É aqui que dança aquela de quem me falaste?

            - Não é aqui, mas mais adiante - respondeu a alma. - Entretanto, podemos entrar.

Entraram, percorreram as ruas e passaram na dos Mer­cadores de Sandálias. O moço pescador viu uma criança ao pé dum jarro de água.

- Bate naquela criança - ordenou a alma.

Ele bateu no pequeno, até este chorar, e depois de isto fei­to desapareceram apressadamente da cidade. Quando iam a uma légua de distância, o rapaz, indignado, inquiriu da alma:

- Por que me disseste que batesse naquela criança, se era uma acção má?

Mas a alma respondeu:

- Sossega, sossega.

N a noite do terceiro dia chegaram a uma cidade, e o pescador perguntou:

- É aqui que dança aquela de quem me falaste? Retorquiu a alma:

- Talvez seja aqui. Vamos entrar.

Entraram, percorreram as ruas, mas em parte nenhuma o moço pescador encontrou o rio e a estalagem que lhe fi­cava perto. O povo da cidade olhava-o com curiosidade, o que o assustou.

            - Vamo-nos embora - disse ele à alma - pois não es­tá cá a dançarina dos pés alvos.

            - Não, fiquemos - objectou a alma. - A noite vai es­cura e há ladrões pela estrada.

            Sentou-se ele então a descansar no mercado. Pouco de­pois passou ali um mercador, de capa de pano da Tartária e com uma lanterna feita de chifre furado, posta na extre­midade duma cana. Perguntou-lhe este homem:

            - Por que estás sentado na praça, se vês as tendas fe­chadas e atados de cordas os fardos?

            Volveu-lhe o pescador:

            - Não encontro estalagem nesta cidade nem tenho pa­rentes que me abriguem.

- Nós somos todos parentes - observou o mercador. - Pois não foi um único Deus quem nos criou? Anda co­migo, que tenho um quarto de hóspedes.

Levantou-se o rapaz e seguiu o outro até sua casa. Atra­vessaram um jardim cheio de romãzeiras, e o mercador entrou na residência e trouxe ao convidado uma bacia com água de rosas para este lavar as mãos e melões madu­ros para se dessedentar. Pôs-lhe também defronte uma ti­gela de arroz e um naco de cabrito assado.

Quando o hóspede acabou de comer, o dono da casa levou-o ao quarto que lhe destinava e disse-lhe que des­cansasse e dormisse. O pescador agradeceu-lhe, beijou o anel que o outro tinha no dedo e estirou-se nos tapetes de peles de cabra tingidas. E, depois de se ter coberto com uma pele de cordeiro preto, o rapaz adormeceu.

            Três horas antes de alvorecer, enquanto era ainda noite, a alma despertou-o nestes termos.

- Levanta-te, vai ao quarto do mercador, que está a dormir, mata-o e rouba-lhe o oiro, porque precisamos dele.

O pescador levantou-se e dirigiu-se de rastos ao quarto do mercador. Sobre os pés deste estava um sabre e numa bandeja ao lado havia nove bolsas de oiro. Estendeu a mão, tocou na espada e nesse momento o mercador acor­dou; pondo-se de pé, agarrou na arma e disse em altos brados ao rapaz:

- Pagas o bem com o mal, retribuis com derramamen­ to de sangue a bondade que eu tive para contigo?

Murmurou a alma ao pescador:

- Fere-o!

O rapaz assim fez, deixando-o desfalecido, apoderou -se das bolsas de oiro e fugiu a toda a pressa através do pomar de romãzeiras, olhando sempre para a estrela de alva.

            Quando iam a uma légua da cidade, o pescador bateu no peito e disse à alma:

            - Por que me ordenaste que matasse o mercador e lhe         roubasse o dinheiro? Não há dúvida de que és perversa.

            - Sossega, sossega - respondeu-lhe a alma.

            - Não - redarguiu ele -, não posso ter sossego por­que abomino tudo o que me obrigaste a fazer. Também te abomino a ti, e quero que me digas por que me forçaste a semelhantes coisas.

- Quando me mandaste embora - retorquiu a alma - não me deste coração, de modo que aprendi a praticar          e a apreciar estes actos.

- Que me dizes? - insistiu o pescador.

- Nenhuma novidade - volveu ela. - Esqueceste-te de que me não deste coração? Custa-me a crer! Não te apoquentes, pois, deixa-me em paz, porque não há dor de que não te libertes nem prazer de que não venhas a pro­var.

            Ao ouvir estas palavras, o moço pescador estremeceu e disse à alma:

            - És maldosa, fizeste-me esquecer o meu amor, ofereces-me tentações, encaminhas-me para o pecado.

- Tu - contraveio ela - não esqueceste que me man­daste correr mundo, sem me teres sequer dado coração. Agora vamos divertir-nos para outra cidade. Somos pos­suidores de nove bolsas de oiro.

Mas o rapaz pegou nas bolsas, lançou-as ao chão e calcou-as aos pés.

- Não! - exclamou ele. - Não quero mais nada con­tigo, nem irei contigo a mais nenhuma parte. Assim como te despedi uma vez, novamente te despeço agora. Não me fizeste bem nenhum. - Voltou-se então de costas para a Lua, e, com uma faca pequena, cujo cabo era revestido de pele de cobra, esforçou-se por separar dos pés aquela sombra do corpo que representa o corpo da alma.

Contudo, a alma não se afastou dele, nem lhe obedeceu à intimação. Limitou-se a dizer:

- O feitiço que a bruxa te ensinou já não serve, porque eu não posso deixar-te mais nenhuma vez nem tu me po­des expulsar. Aquele que recebe a alma de que se havia desfeito tem de a conservar toda a vida. É o seu castigo e também a sua recompensa.

            O moço pescador ficou lívido, cerrou os punhos e ex­clamou:

            - A bruxa atraiçoou-me, porque não me disse tal coisa.

            - Não - replicou a alma -, foi sincera e fiel para comesse que ela adora e de quem será sempre escrava.

Quando o rapaz compreendeu que não poderia, nunca mais, libertar-se da alma, e que a sua alma era perversa, e que nele viveria sempre daí por diante, deixou-se cair no chão e começou a chorar amargamente.

Nasceu o dia, e o moço pescador levantou-se e partici­pou à alma:

- Vou atar as mãos para não poder executar o que me ordenas, e cerrar os lábios a fim de não proferir as palavras que me sugeres; e, assim, voltarei para onde mora aquela que eu amo. Para o mar voltarei, e à angra onde ela costu­ma cantar. Chamá-la-ei para lhe dizer o que fiz e o mal que me fizeste.

Tentou-o a alma, retorquindo:

- Quem é o teu amor, para que tornes a ele? O mundo tem criaturas muito mais formosas. Há as bailarinas de Sa­maria que dançam ao modo de qualquer ave ou fera. Têm os pés pintados com alcana e usam nas mãos pequeninos guizos de cobre. Riem durante a dança, e o seu riso é argentino como o riso da água. Anda comigo que eu tas mostrarei. Que vem a ser essa tua preocupação quanto ao pecado? Não foram feitas para o que come as coisas gra­tas ao paladar? Será veneno a bebida que nos sabe tão bem? Não te aflijas e anda comigo para outra cidade. Há uma aqui perto, com um jardim cheio de túlipas, e nele vi­vem pavões brancos e outros cujo peito é azul; ao abrirem-se ao sol, as caudas são como discos de marfim e como discos de oiro. Aquela que os alimenta dança por gosto, tanto sobre as mãos como sobre os pés, e tem olhos pintados de antimónio e narinas talhadas em asa de ando­rinha. Numa das suas narinas há uns ganchos donde pen­de uma flor que foi cortada duma pérola. Ri, ao bailar, e as argolas de prata dos tornozelos tilintam como campainhas argênteas. Não te preocupes, pois, e anda comigo a essa cidade.

Mas o moço pescador não respondeu, antes fechou os lábios com o selo do silêncio, e com uma corda atou as mãos, e viajou ao invés donde tinha vindo, até à baiazinha onde o seu amor lhe cantara. A alma foi a tentá-lo por to­do o caminho, sem que ele replicasse ou fizesse qualquer das maldades que ela lhe propunha. Tão grande era a for­ça do amor que tinha dentro de si!

Quando alcançou o litoral, desatou a corda das mãos, tirou dos lábios o selo do silêncio e chamou pela sereiazi­nha. Ela, porém, não acudiu à chamada, se bem que ele in­           sistisse todo o dia, e suplicasse.

Escarneceu-o a alma, dizendo:

- Sem dúvida que pouco prazer achou no teu amor. És como esses que em dias de necessidade vertem água numa bilha quebrada. Dás o que tens e nada recebes em troca. Mais valia que me acompanhasses, porque eu sei onde fica o Vale do Prazer e conheço as coisas que lá se desfrutam.

Mas o moço pescador não respondeu, antes na fenda duma rocha construiu uma choça de caniços e ali morou por espaço dum ano. Cada manhã chamava pela sereia, e ao meio-dia chamava-a outra vez, e todas as noites lhe re­petia o nome. Ela, contudo, nunca reapareceu do mar pa­ra vir ao seu encontro, nem em parte nenhuma das águas ele a conseguiu descobrir, se bem que a buscasse nas ca­vernas e nas ondas, nas poças deixadas pela vazante e nos abismos profundos.

A alma tentava-o sempre com o mal, segredando-lhe projectos terríveis. Mas nunca logrou êxito, tão grande era a força daquele amor!

Passou-se mais um ano, e a alma, dentro dele, pensou: «Tentei meu amo e senhor com o mal, e a sua paixão foi mais forte do que eu. Tentá-lo-ei agora com o bem, e tal­vez ele venha comigo.» De maneira que lhe falou assim:

- Contei-te as alegrias da terra e tu não me deste ouvi­dos. Deixa agora que te conte as dores do mundo; é pro­vável que me escutes. A Dor, realmente, é que tudo go­verna, e ninguém escapa às suas malhas. Há gente sem roupa, há gente sem pão. Há viúvas que se vestem de púr­pura e outras que se escondem sob os andrajos. Cá e lá nos pauis andam lázaros, sem caridade uns para com os outros. Pelas estradas erram mendigos de sacola vazia. Nas ruas das cidades caminha a Fome, a Peste senta-se às portas das muralhas. Vamos corrigir tudo isto, aniquilar tamanhos males. Por que hás-de permanecer aqui a invo­car o teu amor, se ele não responde ao chamamento? E o que é o amor, para que lhe dês tanta importância?

O pescador, no entanto, manteve-se calado, tal era a força do seu amor. Cada manhã chamava pela sereia, chamava-a ao meio-dia e tornava a chamá-la à noite. Ela, porém, nunca veio ao seu encontro, nem ele a pôde achar em parte alguma, embora a procurasse nas correntes do mar, nos vales submersos, nas águas que ao anoitecer se tingem de roxo e se volvem pardacentas com a aurora.

Passou-se mais um ano, e a alma disse uma noite ao pes­cador, quando ele estava na sua casa de caniços:

- Já te hei tentado com o mal, e o mesmo fiz com o bem, e o teu amor é mais forte do que eu. Daqui por dian­te não te tentarei mais; o que te peço é que me deixes en­trar no teu coração para que sejamos unos como outrora.

- Sem dúvida que podes entrar - respondeu o pesca­dor -, porque, no tempo em que correste mundo, muito havias de ter sofrido por falta de coração.

            - Ai de mim! - bradou a alma. - Como posso ar­ranjar lugar se o teu coração está repleto de amor?

            - No entanto gostaria de te ajudar - observou o pes­cador.

E, enquanto ele falava, chegou do mar um imenso grito de dor, aquele mesmo que se ouve quando morre alguém que vive lá. Num pulo, o rapaz pôs-se de pé, deixou a casa de canas e foi a correr para a praia. Para acolá se preci­pitavam as ondas negras, trazendo consigo um fardo que era mais branco do que prata. Branco como a espuma é que era, e, tal uma flor, baloiçava-se nas vagas. A ressaca tomou-o das ondas, a espuma tomou-o da ressaca, e a praia recebeu-o da espuma: aos pés do pescador jazia o corpo da sereia. Morta aos pés dele estava a sereia.

A chorar como quem experimenta um golpe rude, ele ajoelhou e beijou a boca fria e vermelha e brincou com o âmbar molhado dos cabelos. Rojou-se depois ao lado do cadáver, pranteando e tremendo (como se treme de alegria) e apertando-o de encontro ao peito com os seus bra­ços morenos. Frios eram os lábios e, contudo, ele beijou­-os. Salgado era o mel desse cabelo e todavia ele provou­-o com amargurado júbilo. Osculou-lhe as pálpebras fe­chadas. A espuma do mar que ficara nas órbitas era menos salgada do que as suas lágrimas.

Confessou-se então ao ente morto. Nas conchas dos ouvidos depôs-lhe o vinho acre da sua história. Passou­-lhe as mãos delicadas em torno da própria cabeça e, com os dedos, tocou-lhe no junco fino do pescoço. Amarga, amarga era a sua alegria, e a sua dor estava repleta dum re­gozijo incompreensível.

O mar sombrio aproximava-se cada vez mais, e a alva es­puma gemia como um lázaro. O mar, com as garras bran­cas de espuma, tacteava a areia da praia. Do palácio do Rei dos Mares chegou novo grito de dor, e lá ao longe, sobre as águas, os tritões sopraram roucamente nas suas trompas.

- Foge! - disse a alma. - As ondas sobem sempre e, se não te afastas, matar-te-ão. Foge, que eu tenho medo, vendo o teu coração fechado para mim em razão do teu imenso amor. Foge para lugar seguro. Decerto que não queres mandar-me sem coração para o outro mundo.

Mas o pescador não escutou a alma. Só se ocupava da sereia, e dizia-lhe:

- O amor é melhor do que a sabedoria, mais precioso do que a riqueza e mais belo do que os pés das filhas dos homens. Não o pode destruir o fogo, nem apagá-lo a água. Chamei-te de madrugada e não me respondeste. A Lua ouviu o teu nome, e tu não me deste atenção. Arrependo-me de te ter deixado para ir vaguear por lon­ge; o teu amor, porém, levei-o sempre comigo, tão forte que nunca pôde ser vencido, embora eu tenha alçado os olhos tanto para o bem como para o mal. Agora, que mor­reste, é natural que eu morra também.

A alma suplicou-lhe que partisse; ele, contudo, não o quis, tão grande era o seu amor. O mar aproximou-se mais e tentou cobri-lo com as suas ondas; assim, vendo que o fim não tardava, o pescador beijou loucamente os lábios frios da sereia e estalou o coração que ele tinha dentro de si. E como pela sua grande paixão o coração se lhe partira, a alma pôde ter ingresso e nele se instalou como outrora. E o mar, com as suas ondas, cobriu o corpo do pescador.

Pela manhã saiu o cura a benzer o mar, que estivera an­tes revolto. Com ele iam os frades e os músicos, e os que levam os círios, e os que seguram os turíbulos, e muito acompanhamento de povo.

Ao chegar à costa, viu o pescador afogado na ressaca, com o corpo da sereia apertado nos braços. Então recuou, de má catadura, e, tendo feito o sinal-da-cruz, disse em voz alta:

- Não abençoarei o mar nem nada do que nele existe. Malditos sejam os seus habitantes e os que têm trato com ele. E quanto ao que, pelo seu amor, se esqueceu de Deus e aqui jaz com a sua amante despedaçada por sentença do Altíssimo, digo que lhe peguem no corpo, e igualmente no dela, e que os enterrem longe, sem pôr na campa sinal de nenhuma espécie, para que ninguém saiba o lugar em que repousam. Foram malditos em vida e malditos serão na morte.

O povo fez como ele ordenou, e num campo afastado, onde não crescem ervas odoríferas, abriu-se uma cova funda e nela puseram os dois cadáveres.

Passou o terceiro ano e, num dia santificado, o cura foi à capela para mostrar ao povo as chagas do Senhor e falar acerca da ira divina.

Depois de se haver paramentado, entrou na capela, curvou-se diante do altar e notou que este estava coberto de estranhas flores, como ele jamais vira. Eram maravi­lhosas à vista, e a sua beleza perturbou-o, e o seu aroma afagou-lhe as narinas, e ele sentiu-se contente sem no en­tanto saber a razão.

Abriu o tabernáculo, incensou o ostensório que nele se continha e mostrou ao povo a sagrada partícula. Ocultou­-a de novo atrás do véu dos véus e começou a falar aos fiéis, desejoso de se ocupar da cólera celeste. Mas a beleza das flores perturbava-o, e a suavidade do perfume deliciava-lhe o olfacto, e as palavras que lhe vinham aos lábios não se referiam à ira divina mas apenas ao amor de Deus. Por que motivo assim se expressava, ele não o sabia.

Quando chegou ao fim, a multidão chorou, e o cura retirou-se para a sacristia com os olhos repletos de lágri­mas. Os diáconos entraram e começaram a desvesti-lo, tiraram-lhe a alva e a faixa, o manípulo e a estola. Ele, po­rém, estava como no meio dum sonho.

            Depois de lhe haverem tirado os paramentos, o cura olhou para eles e perguntou:

            - Que flores são as que estão no altar e donde vieram?

            - Vieram daquele terreno em que enterrámos o pesca­dor... Que flores são, não sabemos.

            O sacerdote estremeceu, voltou para casa e orou.

Na manhã seguinte, antes de nascer o Sol, saiu com os frades e os músicos, e os portadores de círios e de turíbu­los, e muito povo, e foi à praia benzer o mar, assim como todas as coisas que nele existem. E abençoou também os faunos, e os seres pequeninos que dançam na floresta e os entes de olhos vivos que espreitam do meio das folhas. Todas as coisas do reino de Deus abençoou, e o povo es­tava espantado e alegre ao mesmo tempo. Contudo, nun­ca mais no terreno da cova nasceram flores de qualquer espécie, pois voltou a ser estéril como antes fora. Nem os habitantes do mar voltaram à baía, como era seu costume, porque se retiraram para outra parte das águas.

 

 

                   FILHO DE ESTRELA

Era uma vez dois pobres lenhadores que iam a caminho de casa através dum extenso pinhal. Estava-se no Inverno, em noite de frio áspero. No chão a neve já tinha grande al­tura, assim como nos ramos das árvores: a geada fustigava-lhes os rebentos de cada lado do atalho, no mo­mento em que os homens passavam. E, quando chegaram à Torrente da Montanha, viram-na suspensa no ar, porque o Rei do Gelo a beijara.

            Com aquele frio tão intenso, nem as feras nem as aves sabiam que fazer.

- Df! - rosnava o lobo arrastando-se pelo meio do matagal, com o rabo entre as pernas. - Que tempo insu­portável! Merecia que o Governo olhasse para isto.

            - Uít, uít! - gorjeavam os verdelhões. - A velhíssima Terra está morta, e até lhe puseram esta mortalha branca.

- A Terra vai mas é casar, e este é o vestido de noiva­segredavam entre si as rolas, que tinham os róseos pezi­nhos gelados mas que se sentiam compelidas a levar a coi­sa para o lado sentimental.

- Que disparate! - uivava o lobo. - Digo que a cul­pa é só do Governo e estou disposto a tragar todo aquele que me desmentir. (É cheio de senso prático, o lobo, e ja­mais perde ocasião de fazer valer o seu critério.)

- Ora eu, por minha banda, não preciso de teorias pa­ra explicar o que quero - declarou o pica-pau, que era fi­lósofo nato. - O que é, é; e nesta ocasião o que está é um frio horrível.

E tinha razão, não haja dúvida. Os esquilos pequeninos, moradores do abeto muito alto, esfregavam reciproca­mente os focinhos, na esperança de se aquecerem, e os coelhos enroscavam-se lá nas tocas, sem se aventurarem a deitar o nariz de fora. Os únicos animais que pareciam sa­tisfeitos eram os bufos, os quais tinham as penas entorpe­cidas pela geada, mas não ligavam importância ao caso, rolando os grandes olhos amarelos e chamando uns pelos outros, através da mata:

- Tuí, tuu, tuí, tuu... Que tempo delicioso! Entretanto os lenhadores seguiam o seu caminho, so­prando com força nos dedos e calcando a neve dura com as largas botas ferradas. Uma vez tombaram numa cova funda e saíram de lá como moleiros enfarinhados; doutra vez, escorregaram no gelo polido (porque a água do char­co tinha gelado) e lá se lhes espalhou a lenha toda, sendo preciso reuni-la e atá-la de novo; e de outra, ainda, julgaram-se transviados e tomaram-se de grande medo, pois bem sabiam quanto a neve é cruel para quem lhe dor­me nos braços. Confiaram, porém, no bom do São Marti­nho, que protege os viandantes, retrocederam nos mes­mos passos e prosseguiram com maior cautela, até alcan­çarem a orla da floresta e descobrirem lá em baixo, no va­le, as luzes da aldeia em que moravam.

Ficaram tão contentes por se sentirem salvos que riram alto, e a Terra lhes pareceu semelhante a uma flor de pra­ta e a Lua a uma flor de oiro. No entanto, depois de terem rido, de novo entristeceram, lembrando-se da sua pobre­za. Disse um deles ao outro:

- Por que nos rimos, sabendo que a vida é para os ri­cos e não para os pobres como nós? Mais valia que tivés­semos morrido de frio na floresta ou que alguma fera nos houvesse devorado.

- De facto - volveu o companheiro - há uns que possuem a mais e outros que têm de menos. A injustiça dividiu o mundo e só foi equitativa na distribuição dos in­fortúnios.

Enquanto deploravam as suas tristezas, aconteceu ali uma coisa estranha: caiu do céu uma estrela resplandecen­te e lindíssima. Escorregou por um lado do firmamento, passou de caminho pelas outras estrelas e, deixando-os a eles boquiabertos de espanto, dir-se-ia ir-se afundar atrás dos salgueiros que estavam junto a um curral, à distância apenas duma pedrada.

- Atenção! - exclamaram. - Um púcaro de oiro pa­ra quem a encontrar. - E deitaram a correr, ansioso da re­compensa.

Um dos lenhadores era mais lesto; ultrapassou o com­panheiro, abriu caminho através das árvores, chegou ao outro lado e - pronto! - ali estava uma coisa doirada em cima da neve branca. Precipitou-se sobre ela e, abaixando­-se, tocou-lhe com as mãos: era uma capa de tecido oires­cente, artisticamente feita de estrelinhas e com muitas pre­gas. Gritou então ao camarada, a anunciar-lhe que achara o tesouro caído do céu. Quando aquele chegou, sentaram­-se ambos sobre a neve e desfizeram as pregas da capa a fim de poderem dividir o oiro. Mas - oh decepção! ­não havia ali oiro nenhum, nem prata, nem realmente te­souro de qualquer espécie, mas apenas uma criancinha adormecida.

- Triste fim das nossas esperanças - comentou um de­les. - Pouca sorte a nossa, pois de que nos servirá este ne­né? Vamos deixá-lo aqui e seguir o nosso caminho. Já so­mos pobres e temos os nossos próprios filhos, de cuja boca não podemos desviar o pão.

Mas o outro objectou:

- Não, é crueldade abandonar a criança, que morreria gelada. Se bem que eu seja tão pobre como tu, e haja mui­ta gente a sustentar, e pouco com que lhe acudir, ainda as­sim vou levá-la comigo e a minha mulher se encarregará dela.

E, com imensa ternura, pegou no petiz, embrulhou-o de novo na capa a fim de o proteger do frio agreste, e des­ceu a colina em direcção à aldeia. O companheiro admi­rou-se muito de tanta loucura e tanta abnegação, mas sólhe disse, ao fim da jornada:

            - Já que ficas com a criança, dá-me então a capa, uma vez que tínhamos resolvido dividir o achado.

            - Tem paciência - respondeu o primeiro -, mas a ca­pa não é minha nem tua; é da criança.

            Desejou-lhe prosperidades, encaminhou-se para a sua residência e bateu à porta.

Ao abrir e ao ver o marido são e salvo, a mulher abra­çou-o e beijou-o, tirou-lhe das costas o feixe de lenha, sacudiu-lhe a neve das botas e disse-lhe que entrasse.

            Ele, porém, detinha-se cá fora.

            - Encontrei uma coisa na mata, e trouxe-a para ti. To­ma conta dela...

- Que é? - perguntou a mulher. - Deixa ver já. Te­mos a casa vazia e precisamos, realmente, de bastantes coisas.

            O homem desdobrou a capa e exibiu a criança adorme­cida.

- Por amor de Deus! - bradou ela. - Já temos tantos pequenos e ainda trazes mais esse? É capaz de nos dar má sorte! E como o havemos de criar?

Estava deveras aborrecida.

- Escuta, este é filho de estrela. - E contou-lhe como a história se passara.

            A mulher, contudo, não se deu por satisfeita, e até tro­çou do marido.

- Os nossos filhos não têm de comer - gritou - e queres ainda por cima sustentar os dos outros? Quem é que se interessa por nós? Quem nos alimenta?

            - Deus olha pelos pardais e faz com que não morram de fome - observou o lenhador.

            - Achas que eles escapam aos rigores do Inverno? Pois no Inverno estamos agora!

O marido não respondeu e continuou parado à porta. Pela casa dentro soprou o vento áspero, fazendo arrepiar a mulher.

            - Não te resolves a entrar? Estou transida de frio!

            - Numa casa onde há corações duros, não admira que haja frio também - retorquiu ele.

            Foi a vez de ela se calar. Entretanto aproximara-se da la­reira.

Daí a pouco virou-se para o marido, e este viu-lhe os olhos rasos de lágrimas. Rapidamente o homem depôs-lhe a criança nos braços, e ela beijou-a, indo depois deitá-la num catrezinho onde dormia o filho mais novo.

Na manhã seguinte, o lenhador pegou na misteriosa ca­pa de oiro e guardou-a no baú. Por sua vez, a mulher ti­rou um colar de âmbar que a criança trazia no pescoço e pô-lo no mesmo lugar.

Assim se criou o Filho de Estrela com os filhos do le­nhador; sentava-se com eles à mesma mesa, brincava com eles aos mesmos jogos. De ano para ano se tornava mais belo, causando a admiração de quantos viviam naquela al­deia, pois ao passo que os outros eram trigueiros e de ca­belo preto, ele era fino e branco como marfim, e os seus caracóis loiros pareciam feitos de pétalas de narciso. Os lábios assemelhavam-se a uma flor vermelha, os olhos a violetas à beira de água, o corpo a uma haste em pleno campo, esquecida pelo segador.

A beleza, contudo, tornou-o mau, porque se fez orgu­lhoso, cruel e egoísta. Desprezava os filhos do lenhador e os outros pequenos da aldeia, dizendo que eram de baixa extracção enquanto ele pertencia à linhagem dos nobres, por ser filho duma estrela. Arvorou-se, pois, em senhor de­les, a quem considerou como escravos. Não tinha dó dos pobres, nem dos cegos, nem dos estropiados, nem dos in­felizes: atirava-lhes pedras, expulsava-os, mandava-os pe­dir esmola a outra porta, a tal ponto que ninguém (excep­to os proscritos) se atrevia a mendigar por aquelas para­gens. Sentia-se enamorado da própria beleza e troçava dos menos favorecidos de dotes naturais. Amava-se a si mes­mo, e no Verão, quando o ar está calmo, ia deitar-se junto ao poço do pomar do cura, a fim de contemplar o rosto no      espelho da água, o que o fazia rir de pura satisfação.

Muitas vezes lhe ralhavam o lenhador e a mulher.

- Repara - diziam - que não te tratámos como tu tratas os desgraçados, que não acham quem os auxilie. Que necessidade tens de ser tão mau com eles?

            Em certas ocasiões o cura mandava-o chamar e fazia o possível de lhe incutir o amor dos seres vivos.

            - A mosca é tua irmã; não lhe faças mal. As aves que voam pela floresta dispõem da sua liberdade; não te divir­tas a privá-las desse direito. Deus criou os vermes e as toupeiras e cada qual tem o seu lugar na Terra. Quem és tu, para distribuíres o sofrimento no reino de Deus? Até o gado bravo o adora.

Mas ele, Filho de Estrela, não dava atenção a esses con­selhos: ou ficava carrancudo, ou fazia troça, e de novo no meio dos camaradas tomava o comando das brincadeiras. Estes seguiam-no, porque o rapaz era belo, de pés ligei­ros, sabia dançar, tocar música, apitar com os dedos. Pa­ra que ele os guiasse, todos o acompanhavam cegamente. Se, com uma cana aguçada, traspassava os olhos duma toupeira, os outros riam divertidos; se atirava pedras aos leprosos, os pequenos riam da mesma maneira. Em tudo os governava, e assim os tornou, a seu modo, duros de coração.

Ora um dia passou pela aldeia uma pobre mendiga, de vestido roto e pés a sangrarem da aspereza dos caminhos. Via-se que estava nos maiores apuros. Cansada como vinha, sentou-se debaixo dum castanheiro, a repousar.

Viu-a o Filho de Estrela e disse aos seus companheiros:

- Atenção! Está acolá uma pedinte medonha, por bai­xo daquela linda árvore de folhas verdes. Vamos pô-la a andar. Não gosto de gente feia e suja.

Aproximou-se da mulher, atirou-lhe pedras e escarne­ceu-a. Ela ergueu a vista horrorizada, sem a desviar do rosto do rapaz. E quando o lenhador, que ali perto racha­va cepos, viu o que o filho adoptivo estava a fazer, correu a censurá-lo, observando:

            - És realmente muito mau. Não sabes o que é ter com­paixão. Que mal te fez esta criatura, para a tratares assim?

            O interpelado enrubesceu de fúria, bateu o pé no chão e retorquiu:

            - E quem sois vós, para me falardes desse modo? Não sou vosso filho e não vos devo obediência.

- Disseste a verdade - replicou o lenhador. - Mas também é certo que me condoí de ti, quando te encontrei na floresta.

Ao ouvir estas palavras, a mendiga soltou um grito agu­do e desmaiou. O homem levou-a para casa, a mulher de­le tratou-a, e, quando a infeliz voltou a si do desmaio, trouxeram-lhe de comer e de beber a fim de a reconfortarem.

            Ela, porém, não quis uma coisa nem outra, e falou nes­tes termos ao lenhador:

            - Dissestes que essa criança foi encontrada na floresta. Faz hoje dez anos que isso aconteceu, não é assim?

            - Tendes razão, foi na floresta e completam-se hoje dez anos.

- Que tinha o pequeno consigo? Um colar de âmbar ao pescoço? Não vinha embrulhado numa capa de tecido de ouro, toda bordada de estrelinhas?

            - De facto - confirmou o lenhador - é exactamente como dizeis.

Abriu o baú e mostrou a capa e o colar, que ali estavam guardados. Vendo isso, a mendiga desatou a chorar de ale­gria.

- É o meu filho! - exclamou. - Perdi-o na floresta. Peço-vos que o mandeis chamar depressa. Em procura de­le tenho calcorreado o mundo inteiro.

O lenhador e a mulher foram buscar o rapazinho, e recomendaram -lhe:

            - Vai andando para casa. Lá encontrarás tua mãe, que espera por ti.

            Ele correu, cheio de curiosidade e alegria. Mas, ao ver quem o aguardava, riu-se, escarninho, e comentou:

            - Então onde está a minha mãe? Aqui só vejo esta miserável pedinte.

            - Sou eu a tua mãe - retorquiu ela.

            - Sois doida, para falar assim! - exclamou, indignado o Filho de Estrela. - Eu não sou vosso filho, porque sois uma pobre feia e andrajosa. Ponde-vos a andar, que eu não torne a ver essa horrível carantonha.

- Repito que és meu filho e que te levei para a floresta - insistiu ela, caindo de joelhos e estendendo os braços ao pequeno. - Os ladrões roubaram-te e depois expuseram-te ao frio, para que morresses. Mas eu reconheci-te logo que te vi, assim como te reconheço pelos sinais ali guardados: a capa de tecido de ouro e o colar de âmbar. Por isso te peço que me acompanhes, pois andei por toda a parte à tua busca. Vem comigo, que tenho necessidade do teu amor.

Não se mexia, porém, o Filho de Estrela. Fechara contra a mãe as portas do coração, e nenhum som se ouvia além dos soluços da mulher que chorava a sua dor. Por fim o pequeno falou, e foi com voz dura e amarga que disse:

- Se na verdade sois minha mãe, mais valia que ficásseis longe, em vez de terdes vindo cá encher-me de vergonha, tanto mais que eu pensava ser filho duma estrela e não duma pedinte, como acabais de dizer que sou. Ide-vos, pois, embora, para que vos não torne a ver.

            - Meu Deus! - bradou ela. - Não queres ao menos beijar-me, antes de eu partir? Sofri tanto a procurar-te.

            - Não quero, não. Sois repugnante, e eu mais depressa beijaria uma cobra ou um sapo.

A mulher pôs-se então de pé e encaminhou-se para a mata, chorando amargamente. Ao ver que ela tinha. partido, o Filho de Estrela reuniu-se muito contente aos seus companheiros, disposto a recomeçar nos jogos. Eles porém, chasquearam, dizendo-lhe:

- És tão repelente como a cobra, tão imundo como o sapo. Gira daqui, porque não consentimos que brinques        connosco!

E expulsaram-no do quintal.

De semblante carregado, o pequeno disse lá consigo: «Que vem a ser isto? Vou mirar-me na água do poço e ela confirmará a minha beleza.»

Dirigiu-se ao poço, olhou para a água, e - Jesus! - o seu rosto era o focinho dum sapo, o corpo estava cheio de escamas como o duma serpente. Atirou-se ao chão, mal­disse a sua sorte e reflectiu:

«Isto aconteceu-me, sem dúvida, por haver pecado. Re­neguei a minha mãe, mandei-a embora, e fui para com ela orgulhoso e cruel. Resta-me agora ir procurá-la, correndo o mundo de lés a lés, pois não terei descanso enquanto não a descobrir.»

            Chegou-se então ao pé dele a filha do lenhador, pôs-lhe a mão no ombro e observou:

            - Que importância tem haveres perdido a beleza? Fica em nossa casa, que eu não troçarei de ti.

- Não - replicou o pequeno. - Fui cruel para com minha mãe, e essa feia acção recaiu sobre mim como cas­tigo. Tenho, portanto, de ir e vaguear pelo mundo até que a encontre e ela me perdoe.

Assim se encaminhou ele para a floresta, chamando pe­la mãe, mas sem obter resposta. Todo o dia a chamou, e, ao anoitecer, preparou-se para dormir num leito de fo­lhas. As aves e os outros animais evitavam-no, lembran­do-se da sua crueldade. Só lhe faziam companhia os sa­pos, e ainda as cobras que rastejavam vagarosamente no seu encontro.

De manhã levantou-se, colheu das árvores frutos amar­gos, que comeu, e continuou a andar através da floresta, chorando abundantemente. A tudo e a todos perguntava se tinham visto a mãe.

Falou à toupeira deste modo:

- Tu, que és capaz de perfurar a terra, dize-me se está lá a minha mãe.

            - Cegaste-me - respondeu ela. - Como queres ago­ra que eu saiba?

            E ao pintarroxo:

            -Tu, que sabes voar ao topo das árvores, e abranges to­do o horizonte, dize-me onde está a minha mãe.

            E o pintarroxo declarou:

            - Cortaste-me as asas, para te divertires. Como hei-de agora voar?

            - Onde está a minha mãe? - indagou do esquilo que vivia num abeto e se encontrava sozinho.

            - Mataste a minha - respondeu aquele. - Procuras a tua para a matar também?

Chorou de novo o Filho de Estrela, e, curvando a cabe­ça, implorou perdão aos entes do Senhor, continuando de­pois a percorrer a floresta, à cata da mendiga. Ao terceiro dia atingiu uma clareira e desceu até à planície. Ao passar pelas aldeias, as crianças motejavam-no e atiravam-lhe pe­dras. Se queria dormir nalgum curral, os donos das vacas não lho consentiam, receosos de que contagiasse os ani­mais. Os jornaleiros expulsavam-no, ninguém se compa­decia da sua hediondez. Também em parte nenhuma podia obter informes acerca da mulher que era sua mãe, embora durante três anos errasse pelo mundo. Às vezes parecia-lhe vê-la adiante de si, na estrada, chamava-a, corria-lhe no en­calço e ficava com os pés em sangue. Sempre tudo balda­do! Aqueles que moravam rente ao caminho replicavam invariavelmente que não a tinham visto passar, nem a ela nem a outra que se lhe parecesse. E até se riam da sua dor.

Pelo espaço de três anos assim vagueou pela Terra, on­de não achou amor, nem carinho, nem misericórdia: era um mundo semelhante ao que ele próprio fizera, no tem­po da perdida arrogância.

 

Certa noite chegou à porta duma cidade fortemente de­fendida e que ficava na margem dum rio. Se bem que esti­vesse cansado, de pés muito doridos, dispôs-se todavia a entrar. Mas os soldados que se encontravam de sentinela vedaram-lhe o acesso com as suas alabardas, dizendo-lhe em tom rude:

- Que negócios tens nesta cidade?

- Procuro a minha mãe - volveu ele - e peço-vos me deixeis passar porque talvez a descubra aqui.

            Os soldados, porém, escarneceram-no, e um deles, co­fiando a barba preta, pousou o escudo e disse:

- Pensando bem, tua mãe não ficaria satisfeita se te vis­se, porque tu foste menos favorecido pela natureza do que o sapo dos charcos ou a cobra que se arrasta nos pauis. Some-te! Tua mãe não vive nesta cidade.

Outro, que segurava um estandarte na mão, indagou:

- Quem é tua mãe e porque a procuras?

- Minha mãe - respondeu - é, como eu, pedinte. Tratei-a mal, por isso vos rogo me deixeis passar, a fim de que ela me perdoe, se acaso mora nesta cidade.

Não lho consentiram, apesar de tudo, e até o espetaram com os chuços. Quando ele se voltou, chorando, um dos militares (cu­ja armadura tinha flores de oiro e cujo elmo ostentava um leão alado) aproximou-se dos primeiros e inquiriu-os quanto à identidade do pretendente.

- É um mendigo, filho de mendiga. Pusemo-lo a an­dar.

- Ora, podíamo-lo ter vendido como escravo. Com o dinheiro comprava-se vinho!

- Por esse preço eu compro-o - acudiu um velho de má cara, que nesse instante passava por ali. Pagou o esti­pulado, agarrou o pequeno pela mão, e entrou com ele na cidade. Depois de atravessarem muitas ruas, chegaram a certa porta praticada num muro coberto por uma romã­zeira. O velho bateu com o anel de jaspe esculpido, a por­ta abriu-se, e eles desceram cinco degraus de bronze até a um jardim cheio de papoulas pretas e jarros verdes de bar­ro cozido. O velho tirou então do turbante um lenço de seda estampada e com ele vendou os olhos do rapaz, empurrando-o depois à sua frente. Quando lhe retiraram a venda, o Filho de Estrela achou-se num calabouço, que era iluminado por uma lanterna em forma de cornucópia.

O velho mostrou-lhe num trincho um pedaço de pão bolorento e disse: - Come. - E uma tigela de água nau­seabunda e disse: - Bebe. - E após o pequeno haver co­mido e bebido, o homem foi-se embora, fechando a porta atrás de si e prendendo-a com uma corrente de ferro.

Na manhã seguinte, o velho (que era afinal o mais es­perto dos mágicos tíbios e aprendera a sua arte com outro que habitava nos túmulos do Nilo) apareceu outra vez, carregou o cenho e disse:

- Num bosque não longe da porta desta cidade de pa­gãos, existem três moedas de oiro. Uma é de oiro branco, outra de oiro amarelo, outra de oiro vermelho. Hoje irás buscar-me a primeira e, se a não trouxeres, punir-te-ei com cem vergastadas. Vai depressa e ao pôr-do-sol esperar-te-ei à porta do jardim. Repara bem se é de oiro branco, ou então arrepender-te-ás, pois és meu escravo, comprado pelo preço dum jarro de vinho.

Vendou-lhe os olhos com o lenço de seda estampada, levou-o através da casa e do jardim de papoulas e fê-lo su­bir os cinco degraus de bronze. Depois de abrir a porta com o anel, conduziu-o até à rua.

O Filho de Estrela saiu a porta da cidade e entrou no bosque de que o mágico lhe havia falado.

Visto por fora, aquele bosque era tentador e parecia cheio de pássaros que cantavam e de flores que perfuma­vam o ar; por isso o rapazinho enveredou por ele alegre­mente. Contudo a beleza do recinto de pouco lhe servia, porque por onde quer que passasse se erguiam espinhos do chão, a incomodá-lo, e lhe surgiam cardos dum lado e outro, que o torturavam. Em parte nenhuma achou a moeda de oiro branco de que lhe falara o mago, embora a procurasse desde manhã até ao meio-dia e do meio-dia até ao crepúsculo. A essa hora regressou a casa, choran­do com amargura, porque já sabia qual a sorte que o es­perava.

Ao chegar, porém, à orla da floresta, ouviu um grito vindo da espessura, como de alguém que estivesse aflito. Esquecendo a própria mágoa, retrocedeu para aquele sítio e viu uma lebre pequenina presa num laço que lhe armara algum caçador. O rapazinho teve pena dela, deu-lhe liberdade, e disse-lhe:

- Eu não passo dum escravo, mas a ti posso libertar-te. Retorquiu a lebre:

- Agradeço-te muito. Que desejas em troca?

- Ando em busca duma moeda de oiro branco, mas não consigo encontrá-la em parte nenhuma. Se não a levar ao meu dono, ele espancar-me-á.

- Vem comigo - disse a lebre, - Levar-te-ei até lá. Sei onde está escondida, e por que motivo.

Assim acompanhou a lebre o Filho de Estrela, e - jus­tos Céus! - no buraco dum carvalho enorme viu a moe­da de oiro branco que procurava. Satisfeitíssimo, agarrou­-a e declarou ao animal:

            - O favor que te fiz retribuíste-mo com outro muito maior. Centuplicaste a bondade que tive contigo.

- Não - replicou a lebre -, tratei-te como me tratas­te. - E, falando assim, fugiu a toda a velocidade, enquan­to o Filho de Estrela se encaminhava para a cidade.

Ora, a uma das portas, estava sentado um leproso, cuja face lha cobria um capuz de pano pardo. Os olhos, pelos buracos deste, luziam como brasas. Ao ver aproximar-se o rapaz, bateu numa tigela de pau, agitou uma campainha, e chamou por ele, dizendo:

            - Dá-me uma esmola, que morro de fome. Expulsaram­-me da cidade e ninguém se condói da minha desgraça.

- Ai de mim! - exclamou o interpelado. - No bolso só tenho uma moeda e, se a não levar ao meu senhor, ele bate-me, pois sou seu escravo.

            O lázaro, contudo, suplicava, instava, até que o Filho de Estrela se condoeu e lhe entregou a moeda de oiro branco.

            Chegou à casa do mago, este abriu-lhe a porta, levou-o para dentro e perguntou:

- Trazes a moeda de oiro branco?

- Não a trago - respondeu o pequeno.

O outro caiu sobre ele, espancou-o, e, apresentando-lhe uma escudela vazia, disse: - Come! - e mostrando-lhe uma taça, vazia também, acrescentou: - Bebe!

E outra vez o lançou na masmorra.

Na manhã seguinte apareceu-lhe e falou assim:

- Se hoje não me trouxeres a moeda de oiro amarelo, ficarás meu escravo toda a vida e apanharás trezentas chi­cotadas.

Partiu o Filho de Estrela para a floresta e fartou-se de procurar a moeda de oiro amarelo, sem a poder encontrar em parte alguma. Ao pôr-do-sol sentou-se e começou a chorar, e, enquanto chorava, veio ter com ele a lebre pequenina salva do laço na véspera.

E perguntou-lhe:

- Por que choras? Que andas a procurar na floresta?

Respondeu o rapaz:

- Procuro uma moeda de oiro amarelo que está aqui escondida. Se a não encontrar, o meu dono bater-me-á, visto que me tem como seu escravo.

- Acompanha-me - ordenou-lhe o animal, que desa­tou a correr até chegar a uma lagoa. E no fundo dessa la­goa jazia a moeda de oiro amarelo.

            - Como hei-de agradecer-te? - disse o Filho de Es­trela. - É já a segunda vez que vens em meu socorro.

            - Ora, tu foste o primeiro a ter piedade de mim - vol­veu a lebre, que logo desapareceu velocíssima.

O rapaz pegou na moeda e meteu-a no bolso; em segui­da tomou o caminho da cidade. Viu-o, porém, o leproso, que foi ao encontro dele, ajoelhou e disse:

- Dá-me uma esmola ou morrerei de fome. Replicou-lhe o interpelado:

- Não tenho comigo senão uma moeda de oiro amare­lo, e, se eu chegar a casa sem ela, o meu senhor bater-me­-á, pois que sou seu escravo.

            Mas o lázaro tanto lhe rogou que o outro se compade­ceu e lhe entregou a moeda.

            Ao chegar à residência do mágico, este abriu a porta, fê­-lo entrar e inquiriu:

- Trazes a moeda de oiro amarelo?

Respondeu-lhe o pequeno:

- Não a trago.

            Então o mago caiu sobre a sua vítima, a quem espancou, encheu de ferros e atirou de novo para a prisão.

            Na manhã seguinte, tornou a aparecer, dizendo:

            - Se me trouxeres hoje a moeda de oiro vermelho, dar­-te-ei a liberdade. Caso contrário, podes ter como certo que te arranco a vida.

Foi o rapaz para a floresta e todo o dia procurou a moe­da de oiro vermelho, sem a achar em parte alguma. Ao anoitecer sentou-se a chorar, e no meio do choro surgiu­-lhe a pequenina lebre.

- A moeda de oiro vermelho - explicou o animal ­está na caverna atrás de ti. Portanto, não chores mais e alegra-te.

            - Que recompensa te hei-de dar? - exclamou o Filho de Estrela. - É a terceira vez que me acodes.

            - Ora, tu foste o primeiro a ter dó de mim - redar­guiu a lebre, afastando-se rapidamente.

O rapaz entrou na caverna e, no canto mais distante, encontrou a moeda de oiro vermelho. Guardou-a, pois, no bolso e voltou apressado para a cidade. Vendo-o che­gar, o leproso parou no meio da estrada e gritou-lhe:

- Dá-me uma esmola ou morrerei de fome.

E o Filho de Estrela mais uma vez se apiedou do desgra­çado, entregou-lhe a moeda de oiro vermelho e observou:

- A tua necessidade é maior do que a minha.

Tinha, contudo, o coração angustiado, porque bem sa­bia a triste sorte que o esperava.

Mas - vede agora! - ao passar a porta da cidade, os guardas curvaram-se até ao chão, rendendo-lhe homena­gem e comentando:

- Como o nosso senhor é belo! Seguia-o a multidão, que dizia:

- Não há decerto, no mundo, ninguém que se lhe compare em beleza.

O Filho de Estrela, com as lágrimas nos olhos, pensou: «Metem-se comigo, troçando da minha infelicidade.» Tão grande era o acompanhamento que ele se perdeu no caminho, até que foi dar a uma vasta praça, onde fica­va o palácio real.

Abriu-se o portão do palácio, e os sacerdotes e altos funcionários correram ao seu encontro, cumprimenta­ram-no reverentes e disseram:

            - Sois o nosso senhor, a quem aguardávamos. Sois o fi­lho do rei.

            Replicou-lhes o pequeno:

            - Não sou filho de rei, mas sim duma pobre mendiga.

E como é que me proclamais belo, se eu sei que sou me­donho?

            Então aquele cuja armadura tinha flores de ouro e em cujo elmo havia um leão alado, ergueu o escudo e bradou:

            - Como podeis dizer, senhor, que não sois belo?

            O rapaz olhou para o escudo e viu o seu rosto como an­tigamente. Voltara-lhe a beleza, e, nos olhos, descobriu o que antes nunca tinha visto.

            Os sacerdotes e os altos funcionários ajoelharam, di­zendo:

- Estava de há muito escrito que nesta hora chegaria aquele que nos há-de governar. Por isso, que cinja a coroa e empunhe o ceptro e que seja nosso rei para nos conce­der justiça e mercês.

- Não sou digno - replicou ele - porque reneguei minha mãe e não poderei descansar sem que a encontre e ela me perdoe. Deixai-me, então, partir, pois é necessário que percorra outra vez a terra. Não posso demorar-me, embora me oferteis a coroa e o ceptro.

Falando, desviou o rosto para a rua que levava à porta da cidade, e - oh, milagre! - entre a turba que se com­primia em roda dos soldados viu a pedinte que era sua mãe e, a seu lado, o leproso que mendigava à beira da es­trada.

Dos lábios irrompeu-lhe um grito de alegria, e ele cor­reu para a mãe e ajoelhou a seus pés, regando-os com ar­dentes lágrimas. Vergou a cabeça, tocando-a no pó do chão, e soluçando como se o coração se lhe despedaçasse, exclamou:

- Mãe, eu reneguei-vos na hora do meu orgulho; aceitai-me na hora da humilhação. Mãe, eu odiei-vos; retribuí-me com o vosso amor. Eu repeli-vos, mãe; agora, recebei o vosso filho.

Mas a mendiga não lhe respondeu.

Ele então estendeu os braços, agarrou os pés lívidos do leproso e implorou:

- Por três vezes vos auxiliei. Intercedei junto de minha mãe, para que ela me fale. - Mas o leproso não lhe res­pondeu.

            Então soluçou de novo, dizendo:

            - Mãe, o meu sofrimento é tão grande que não o pos­so suportar. Concedei-me o vosso perdão e deixai-me vol­tar para a floresta.

E a mendiga pôs-lhe a mão na cabeça e ordenou:

- Levanta-te!

E o lázaro pôs-lhe a mão na cabeça e ordenou também:

- Levanta-te!

O rapaz levantou-se, olhou-os, e - oh, milagre! ­eram um rei e uma rainha.

Disse-lhe a rainha:

- Este que tu socorreste é teu pai.

E disse-lhe o rei:

- Esta, cujos pés banhaste de lágrimas, é tua mãe. Rodearam-lhe o pescoço com os braços, beijaram-no e conduziram-no ao palácio. Ali lhe vestiram um belo fato e lhe puseram a coroa na cabeça e o ceptro na mão, e na cidade da beira do rio ele reinou e foi seu senhor. Minis­trou muita justiça e concedeu muitas mercês a todos. Ex­pulsou o malvado do mágico, ao lenhador e à mulher mandou ricos presentes e outorgou grandes honras aos filhos do casal. Não permitiu que ninguém fosse cruel para com as aves ou quaisquer outros animais, mas ensinou o amor, e a bondade, e a misericórdia. Aos pobres deu pão, aos nus deu vestidos, e houve paz e fartura na terra.

Todavia não reinou muito tempo; tão grande fora o seu sofrimento, tão amargo o fel das suas provações, que ao fim de três anos se finou. E o que lhe sucedeu reinou en­tão como um déspota.

 

 

                   O PRÍNCIPE FELIZ

Sobranceira à cidade, numa coluna alta, erguia-se a es­tátua do Príncipe Feliz, revestida de cima a baixo de finas flores de oiro. Por olhos tinha duas safiras cintilantes, e no punho da espada brilhava-lhe um rubi enorme. Toda a gente a admirava.

- Linda como um cata-vento - notou um dos verea­dores, que se arrogava gostos artísticos. - Só com a dife­rença de não ser tão útil - acrescentou logo, com medo de que o considerassem homem pouco prático, o que na realidade não era.

- Por que não hás-de ser como o Príncipe Feliz? ­perguntou certa mãe ao filho que chorava por não lhe da­rem a Lua. - O Príncipe Feliz nunca se lembra de chorar seja pelo que for.

- Regozijo-me por verificar que existe neste mundo alguém inteiramente feliz - murmurou um desiludido ao contemplar a soberba estátua.

- Parece mesmo um anjo - disseram os meninos do Recolhimento ao saírem da Catedral, com as suas capas de escarlate vivo e os seus bibes brancos muito limpos.

            - Como o sabeis? - replicou o professor de Matemá­tica. - Nunca vistes nenhum!

- Ah, vemo-los em sonhos - afirmaram as crianças, enquanto o professor ficava carrancudo, pois não concor­dava com isso de os meninos sonharem.

Uma noite, por cima da cidade, voou uma andorinha. As companheiras tinham partido já para o Egipto, havia seis semanas, mas esta deixara-se ficar para trás por estar enamorada dum junco formosíssimo. Conhecera-o no princípio da Primavera, quando descia o rio atrás duma grande borboleta amarela, e fora de tal modo cativada pe­la sua cintura esbelta que se demorara para falar com ele.

- Gostas de mim? - inquiriu a andorinha, que ia sem­pre direita ao fim, sem maiores rodeios. O junco dobrou­-se numa inclinação profunda, e ela voou então várias ve­zes em torno dele, roçando a água com as asas e produ­zindo ondulações de prata. Era o seu processo de fazer a corte. O namoro prolongou-se todo o Verão.

- Que afecto tão ridículo - chilreavam as amigas. ­O junco não tem dinheiro e a família é numerosa. - De facto, o rio estava cheio de juncos. Com a chegada do Ou­tono, as outras andorinhas debandaram.

            Depois disso, começou ela a sentir-se muito só e a enfastiar-se do seu amado.

«Não sabe conversar», dizia consigo. «Além disso, des­confio que é volúvel, pois está sempre a requebrar-se diante da viração.»

            Na verdade, sempre que a viração soprava, o junco flec­tia em amáveis cortesias.

«Concordo que seja muito caseiro», continuava ela nas suas reflexões; «mas eu adoro viajar, e o meu marido, por consequência, deve viajar também.»

            - Queres vir comigo? - acabou por indagar.

Mas o junco abanou a cabeça. Estava tão apegado ao lar! - Entretiveste-te comigo, nada mais - observou ela.

- Pois agora vou até às Pirâmides. Adeus!

            Disse isto e voou. Voou todo o dia, e à noite chegou à cidade.

            «Onde hei-de instalar-me?», pensou. «Calculo que a ci­dade tenha feito os seus preparativos.»

            Viu então a estátua do Príncipe Feliz, na sua elevada co­luna.

            «Instalar-me-ei ali», declarou a si mesma. «A situação é óptima e não me faltará ar fresco.»

            E foi poisar mesmo aos pés do Príncipe Feliz.

            «Tenho um quarto doirado», murmurou, olhando em roda e preparando-se para dormir. Mas, no preciso ins­tante em que ia meter a cabeça debaixo da asa, caiu-lhe em cima uma grossa gota de água. «É curioso!», exclamou. «Não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão puras e brilhantes, e no entanto chove! O clima da Europa Se­tentrional é realmente detestável. O junco apreciava a chuva, mas era só por egoísmo.»

Caiu então outra gota.

«De que serve uma estátua», reflectiu, «se se não conse­gue proteger-nos da chuva? O que devo fazer é procurar uma chaminé.» E resolveu mudar-se quanto antes.

Mal, porém, abria as asas, tombou-lhe em cima terceira gota. Olhou para o alto, e viu... Ah, que viu ela?

Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, e as lágrimas corriam-lhe pelas faces de oiro... Era tão belo o seu rosto, visto assim ao luar, que a andorinha se sentiu apiedada.

- Quem sois? - perguntou.

- O Príncipe Feliz.

- Então por que chorais? Já me encharcastes toda!

- Quando estava vivo e tinha coração humano - res­pondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no palácio de Sans-Souci, onde se não permite que entre a dor. De dia brincava no jardim, com os meus companheiros, e à noite dirigia o baile nos salões. Em volta do parque há um muro elevadíssimo, mas nunca me importei saber o que estava para além dele. Derredor de mim tudo era belo. Os cortesãos chamavam-me Príncipe Feliz, e eu era realmente feliz, se o prazer constitui felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora, que estou morto, colocaram­-me aqui tão alto que é possível ver toda a fealdade e misé­ria da minha cidade. E, se bem que o meu coração seja fei­to de chumbo, não posso impedir-me de chorar.

«O quê? Não é de oiro maciço?», disse a andorinha consigo mesma. Era demasiadamente bem-educada para fazer observações pessoais em voz alta.

- Ali adiante - continuou a estátua, em voz baixa e mu­sical - há aquela ruazinha com uma casa modesta. Uma das janelas está aberta, e através dela vejo a moradora senta­da à mesa. Tem rosto magro e cansado, e mãos vermelhas e magoadas da agulha, pois é costureira. Borda flores de mar­tírio num vestido de cetim para a mais bela das damas de honor da rainha usar no próximo baile da corte. Na cama, a um canto do quarto, está deitado o filho doente, que tem febre e pede laranjas. A mãe não tem nada que lhe dê senão água do rio, e por isso chora. Minha querida andorinha, não lhe queres levar o rubi do punho da minha espada? Tenho os pés soldados ao pedestal, não posso mexer-me.

- Esperam-me no Egipto - respondeu a andorinha. - As minhas companheiras voam sobre o Nilo, abaixo e acima, a conversar com as imensas flores de lódão. Em breve irão dormir no túmulo do faraó, que lá repousa no seu sarcófago pintado, envolto em linho amarelo e embal­samado com drogas aromáticas. Em torno do pescoço os­tenta um colar de jade verde-pálido. As suas mãos são co­mo folhas murchas.

- Minha querida andorinha - disse o Príncipe -, fi­ca ao menos uma noite e sê minha emissária. O pequeno está sequioso e a mãe parece tão triste!

- Não me agradam muito os rapazinhos - asseverou a andorinha. - No Verão que passou, quando eu andava no rio, estavam lá dois deles, grosseirões, filhos do molei­ro, os quais não se fartavam de me atirar pedras. É claro que nunca me acertaram: nós andorinhas voamos muito bem, e, além disso, procedo duma família notável pela sua agilidade. Mas aquilo não deixava de ser falta de respeito.

Contudo, o Príncipe ficara tão triste que a andorinha se comoveu.

            - Apesar de estar muito frio aqui - declarou ela -          permanecerei convosco esta noite e serei vossa mensageira.

- Obrigado, querida andorinha, obrigado.

Assim arrancou ela da espada do Príncipe o enorme ru­bi e o levou no bico, por cima dos telhados da cidade.

Passou junto da torre da Catedral, onde há estátuas de anjos de mármore branco; passou pelo palácio e ouviu sons duma dança: à varanda assomou uma rapariga, com o seu namorado.

            - Que lindas são as estrelas - dizia ele. - E que ex­traordinário é o poder do amor!

- Espero que o meu vestido fique pronto para o baile de gala - retorquiu ela. - Recomendei que lhe bordassem flores de martírio, mas as costureiras são tão indolentes!

Passou a andorinha sobre o rio e viu as lanternas que pendiam dos mastros dos navios. Passou sobre a judiaria e viu os seus habitantes a traficarem uns com os outros e a pesarem dinheiro em balanças de metal. Por fim chegou à casa modesta e espreitou para dentro. O pequeno agitava-se na cama, cheio de febre, e a mãe, de cansada, adormecera em cima do trabalho; a ave entrou, depôs o rubi na mesa, ao lado do dedal da costureira, e em segui­da voou em torno do leito, suavemente, refrescando com as asas a testa da criança.

            - Que fresco que eu sinto! - exclamou esta. – Devo estar a melhorar.

            E mergulhou em sono profundo.

            A andorinha voltou então para a estátua e contou ao Príncipe Feliz o que havia feito.

            - É curioso - observou ela. - Sinto agora calor, ape­sar de haver tanto frio.

            - Eis o resultado da boa acção que praticaste - repli­cou o Príncipe.

            A ave pôs-se a pensar e adormeceu: era coisa que sem­pre lhe dava sono!

            Ao romper a manhã, voou para o rio e tomou banho.

            - Cá está um fenómeno digno de menção - comentou um professor de Ornitologia, que passava na ponte. - Uma andorinha no Inverno!

E escreveu uma extensa carta para a gazeta local. Toda a gente a citava, pois era abundante de palavras difíceis, que ninguém compreendia.

            - Esta noite sigo para o Egipto - disse a andorinha, muito satisfeita com a ideia.

Visitou todos os monumentos públicos e esteve muito tempo no cimo do campanário da igreja. Por onde quer que passasse, os pardais chilreavam entre si (o que a ela dava grande prazer):

- Que estrangeira tão distinta!

Ao nascer da Lua, voltou ao Príncipe Feliz e pergun­tou-lhe:

            - Quereis alguma coisa para o Egipto? Vou partir ago­ra mesmo.

            - Minha querida andorinha, não me concedes a tua companhia por mais uma noite?

- Esperam-me lá - redarguiu ela. - Amanhã as mi­nhas amigas tencionam voar sobre a segunda catarata. Ali, entre os juncais, é que se deitam os hipopótamos, e se sen­ta o deus Mémnon sobre um imenso trono de granito. Contempla as estrelas a noite inteira, e, ao despontar da estrela de alva, solta um grito de júbilo e torna a emude­cer. Ao meio-dia, vêm beber à margem do rio leões de pê­lo flavescente. Seus olhos são verdes quais berilos, seu ru­gido é mais forte que o das cataratas.

- Minha querida andorinha - replicou o Príncipe-, vejo no extremo da cidade um rapaz numa água-furtada. Está debruçado sobre a mesa cheia de papéis, e a seu lado, num copo, há um ramo de violetas fanadas. Tem cabelos castanhos e ondulados, lábios rubros de romã, olhos gran­des e sonhadores. Tenta acabar uma peça para o empresá­rio do teatro, mas está muito frio para continuar a escre­ver. Não lhe arde lenha no fogão, a fome há-de obrigá-lo a desmaiar.

- Ficarei mais uma noite convosco - respondeu a an­dorinha, que na verdade possuía bons sentimentos. ­Quereis que leve outro rubi?

- Infelizmente não tenho mais nenhum - declarou o Príncipe Feliz. - Os olhos são tudo quanto me resta: compõem-se de duas safiras, trazidas da Índia há mil anos. Arranca-me um deles e leva a esse rapaz, que o venderá a qualquer joalheiro e poderá, assim, comprar comida e le­nha e acabar a peça.

- Ilustre Príncipe - volveu a andorinha -, não tenho coragem para fazer uma coisa dessas.

E começou a chorar.

- Minha querida andorinha, faze como te mando.

Então a avezita arrancou um dos olhos do Príncipe e voou para a água-furtada do estudante. Era fácil entrar lá, porque havia um buraco no telhado. Por aí se precipitou ela e chegou ao quarto. O rapaz tinha a cabeça apoiada nas mãos, pelo que não ouviu o sussurro das asas da andori­nha; mas quando ergueu os olhos descobriu a bela safira sobre as violetas fanadas.

«Começo a ser apreciado», murmurou. «Isto há-de ter vindo de algum grande admirador. Agora é que vou acabar a peça.»

Considerava-se inteiramente feliz.

No dia seguinte a andorinha desceu ao porto, pois ou no mastro dum navio enorme e observou o trabalho dos ma­rinheiros, que içavam do porão arcas muito pesadas.

- Vou para o Egipto! - gritou a ave, sem que ninguém lhe desse atenção. Ao nascer da Lua regressou à estátua do Príncipe Feliz.

            - Venho dizer-vos adeus - participou.

            Minha querida andorinha, não queres ficar comigo mais uma noite?

- É Inverno - replicou ela - e a neve frígida não tardará a cair aqui. No Egipto o sol é quente sobre as pal­meiras verdes, e os crocodilos refastelam-se no lodo, olhando preguiçosamente à sua volta. As minhas compa­nheiras constroem ninho no templo de Heleópolis, e as pombas brancas e róseas seguem-nas com a vista, arru­lhando entre si. Ilustre Príncipe, tenho de vos deixar, mas nunca me esquecerei de vós. Na Primavera próxima hei­-de trazer-vos duas lindas jóias para substituir aquelas de que vos desfizestes. O rubi será mais vermelho do que a rosa rubra, e a safira mais azul do que o imenso mar.

- Lá em baixo na praça - disse o Príncipe - está uma pequena vendedora de fósforos. Deixou-os cair na valeta e eles ficaram inutilizados. Se não levar dinheiro para ca­sa, o pai há-de bater-lhe, e é por isso que ela chora. Não tem sapatos nem meias e está de cabeça descoberta. Arranca-me o outro olho e leva-lho. Assim o pai já não lhe baterá.

- Ficarei convosco mais uma noite - explicou a an­dorinha - mas não tenho coragem de vos arrancar o ou­tro olho. Ficaríeis cego de todo.

            - Minha querida andorinha, faze o que te mando ­- ordenou o Príncipe.

A ave arrancou-lhe o outro olho e partiu com ele. Ao passar pela rapariga, deixou-lhe cair a jóia na palma da mão.

            - Que lindo bocadinho de cristal! - exclamou ela, correndo satisfeita para casa.

Regressou a andorinha à estátua e disse ao Príncipe:

- Agora estais cego. Ficarei convosco para sempre.

- Não, minha querida andorinha, tens de partir para o Egipto.

            - Ficarei convosco sempre - repetiu ela.

            E adormeceu aos pés do Príncipe.

No dia seguinte poisou-lhe no ombro e contou-lhe his­tórias do que vira em terras estranhas. Falou-lhe dos íbis encarnados que se conservam em longas filas nas margens do Nilo e com o bico apanham peixes oirescente; da Es­finge, que é tão velha como o mundo, e vive no deserto e tudo sabe; dos mercadores que caminham vagarosamente ao lado dos camelos e levam as mãos cheias de contas de âmbar; do Rei dos Montes da Lua, que é preto como éba­no e adora um cristal grandioso; da enorme serpente ver­de que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes a alimentá-la com bolos de mel; e dos pigmeus que navegam num grande lago, em cima de largas folhas chatas e andam sempre em guerra com as borboletas.

- Minha querida andorinha - disse o Príncipe Feliz -, tu contas-me coisas extraordinárias, mas o mais ex­traordinário de tudo é o sofrimento dos humanos. Não há mistério maior do que a Miséria. Voa sobre a minha cidade, andorinha, e vem dizer-me o que viste.

Então a andorinha voou sobre a extensa cidade, e viu os ricos divertirem-se em suas casas sumptuosas, enquanto os pedintes se sentavam nos portões. Voou sobre as vielas sombrias e viu faces pálidas de crianças esfomeadas, olhando distraídas para o vácuo. Sob o arco duma ponte estavam deitados dois rapazinhos, que se envolviam nos braços um do outro para se aquecerem.

- Que fome que nós temos! - diziam eles.

- Não podeis estar aqui! - replicou-lhes o guarda. E viram-se obrigados a ficar à chuva.

Voltou a andorinha e relatou ao Príncipe o que presen­ciara.

- Estou revestido de oiro - observou ele. ­Podias tirá-lo folha por folha e dá-lo aos meus pobres. Os vivos julgam sempre que o oiro os pode fazer felizes.

Folha atrás de folha, a andorinha foi arrancando o oiro da estátua, até que o Príncipe ficou todo cinzento e sem brilho. Folha atrás de folha, a andorinha levou o oiro aos pobres, e as faces das crianças tomaram cor, e elas riram e brincaram nas ruas.

- Agora já temos pão! - diziam todas.

            Por fim chegou a neve, e, após a neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, por causa da brancura e do res­plendor. Dos beirais das casas pendiam longos pingentes gelados, que semelhavam adagas de cristal. Toda a gente usava peles, e os rapazinhos, de barretes encarnados, pati­navam no gelo.

A pobre andorinha tinha cada vez mais frio, mas não desejava abandonar o Príncipe, a quem dedicava tanta es­tima. Ia apanhar migalhas à porta do padeiro, quando ele não estava a olhar, e tentava aquecer-se batendo as asas de contínuo.

No entanto, acabou por se convencer de que morreria, e mal teve forças de voar mais uma vez para os ombros do Príncipe.

            - Adeus, ilustre Príncipe - disse-lhe em voz baixa. ­- Permitis que vos beije a mão?

- Estimo saber que partes finalmente para o Egipto­retorquiu aquele.- Demoraste-te por cá muito tempo. Até podes beijar-me na boca, pois gosto bastante de ti.

- Não é para o Egipto que eu vou - respondeu a an­dorinha. - Vou para a Mansão da Morte. A morte é irmãdo Sono, não é verdade?

            E, assim falando, beijou o Príncipe nos lábios e caiu morta a seus pés.

Nesse momento, soou dentro da estátua um estalido misterioso, como se se houvesse quebrado alguma coisa. A verdade é que o coração de chumbo se partira em dois bocados. Devia estar um frio muito intenso...

Cedo, na manhã seguinte, o presidente do Município passava na praça em companhia dos vereadores. Ao che­garem defronte da coluna, ergueram a vista para a está­tua.

            - Meu Deus! O Príncipe tem tão mau aspecto! - dis­se o presidente.

- De facto, de facto - concordaram os outros, que es­tavam sempre de acordo com aquele. E subiram para ver a estátua de perto.

- Caiu-lhe o rubi da espada. Perdeu os olhos e já não há vestígios de oiro - declarou o presidente. - Não está muito melhor que um mendigo.

- Pior até - acrescentaram os vereadores.

- E há um pássaro morto, entre os pés - continuou o primeiro. - Temos de publicar uma postura a proibir que os pássaros venham morrer aqui.

O secretário apontou a sugestão no seu livrinho de notas. A estátua do Príncipe Feliz foi apeada.

- Visto que já não é belo, também já não é útil - sen­tenciou o professor de Arte da Universidade.

Então fundiram a estátua num forno de alta tensão, e o presidente convocou uma reunião da Câmara para decidi­rem o destino que deviam dar ao metal.

            - Precisamos de fazer outra estátua - disse ele. - Po­deria ser a minha...

            - Ou a minha - disse cada um dos vereadores, sobre o que disputaram.

            Da última vez que ouvi falar deles, ainda estavam a dis­cutir sobre o caso.

- Que coisa esquisita! - observou o capataz da fundi­ção. - Este coração de chumbo, partido, não é capaz de fundir. O melhor é deitá-lo fora.

            E atiraram-no para um montão de lixo onde jazia o ca­dáver da andorinha.

 

            - Traze-me as duas coisas mais preciosas dessa cidade - disse Deus a um dos seus anjos.

            E o anjo trouxe-lhe o coração de chumbo e a andorinha morta.

- Fizeste boa escolha - observou o Senhor. - No meu jardim do Paraíso esta avezinha cantará eternamente. E na minha áurea cidade o Príncipe Feliz me renderá seu culto.

 

                     O ROUXINOL E A ROSA

- Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas encarnadas - declarou o moço estudante -; mas no meu quintal não há uma única rosa encarnada.

O rouxinol, que estava no seu ninho da azinheira, ou­viu o que o rapaz dizia e olhou, admirado, entre a folha­gem.

- Não há uma única rosa encarnada no meu quintal! ­repetiu ele, já com os olhos rasos de lágrimas. - De quan­tas ninharias depende a felicidade! Li tudo o que os sábios escreveram, possuo todos os segredos da Filosofia. No entanto, por causa duma rosa rubra, a minha vida torna­-se calamitosa.

«Ora ali está um apaixonado sincero», observou o rouxi­nol. - «Noite após noite ando eu a cantar acerca deste es­tudante, ainda antes de o conhecer. Noite após noite relatei a sua história às estrelas. Agora vejo-o finalmente. Tem ca­belo escuro como a flor do jacinto, lábios vermelhos como a rosa do seu desejo; mas a paixão tornou-lhe o rosto páli­do talo marfim, e a dor marcou-lhe o seu sinal na testa.»

- O príncipe oferece um baile amanhã à noite - conti­nuou o rapaz - e a que eu amo é uma das convidadas. Se eu lhe levar uma rosa rubra, ela dançará comigo até romper a aurora. Se lhe levar uma rosa encarnada, estreitá-la-ei nos braços e ela apoiará a cabeça no meu ombro, e eu apertarei a sua mão na minha. Mas não há rosas vermelhas no meu quintal, e por isso ficarei sozinho, e ela passará sempre, sem sequer me olhar, e o coração estalar-me-á de dor.

«Ora aí temos um verdadeiro apaixonado», comentou o rouxinol. «Eu canto e ele sofre, e a razão é a mesma. O que para mim é alegria, para ele é aflição. O amor é, sem dúvida, uma coisa extraordinária, mais precioso do que as esmeraldas, mais caro do que as opalas. Não se compra com pérolas nem com granadas, nem sequer se encontra à venda no mercado. Como o poderiam comprar os merca­dores, e pesá-lo na balança?»

- Sentar-se-ão os músicos na galeria - continuou o estudante. - Tocarão os seus instrumentos de corda e a minha amada vai dançar ao som da harpa e do violino. Dançará com tanta leveza que os seus pés mal poisarão no soalho, e à volta dela os cortesãos, de engalanados trajes, farão vertiginosos corrupios. Mas comigo é que não há-de dançar, pois não tenho a rosa vermelha que deseja.

            Assim monologando, deixou-se cair no chão e ocultou o rosto orvalhado de lágrimas.

           - Por que está ele a chorar? - murmurou um lagarti­nho, ao passar nesse instante e a agitar a cauda.

            - Sim, porquê? - observou uma borboleta, que voava atrás dum raio de sol.

            - Porquê, porque? - repetiu em voz baixa uma prí­mula à sua vizinha do lado.

            - Chora por causa duma rosa encarnada - explicou o rouxinol.

            - Por uma rosa encarnada! - exclamaram todos. – É ridículo.

E o lagarto, que era um tanto cínico, riu sem rebuço. O rouxinol, porém, compreendia a razão dessa mágoa do estudante, e ficou silencioso na sua árvore, reflectindo sobre o mistério do amor.

De repente, estendeu as asas e lançou-se voando pelo espaço. Atravessou a alameda, como uma sombra, e como uma sombra percorreu o jardim. Ao centro dum alegrete ostentava-se uma viçosa roseira; mal a viu, correu para lá e poisou-lhe num dos ramos.

            - Dá-me uma rosa encarnada - suplicou. - Cantar­-te-ei a minha canção mais suave.

            Mas a roseira abanou as folhas.

            - As minhas rosas são brancas - disse ela -, tão brancas como a espuma do mar e mais brancas do que a neve das montanhas. Entretanto procura a minha irmã que vive junto ao relógio de sol. Talvez te possa dar o que pretendes.

            De maneira que o rouxinol buscou a roseira indicada, à qual repetiu o pedido.

            Ela, porém, abanou igualmente as folhas.

- As minhas rosas são amarelas - respondeu. - Ama­relas como os cabelos das sereias que se sentam em tronos de âmbar, mais amarelas do que os narcisos que florescem no prado antes que o segador apareça com a sua foice. Mas vai procurar a minha irmã, que está por baixo da janela do estudante, e talvez ela te conceda o que pretendes.

            De modo que o rouxinol se dirigiu à roseira indicada, à qual falou assim:

            - Dá-me uma rosa vermelha e eu cantarei para ti a mi           nha canção mais suave.

            Mas a roseira abanou as folhas

            - É verdade que as minhas rosas são encarnadas, tanto como os pés das pombas, mais do que os grandes leques de coral que ondulam nas cavernas do oceano. O Inverno, porém, gelou-me a seiva, a geada queimou-me os botões, o temporal partiu-me os ramos. Este ano não darei flor.

- Tudo o que desejo é só uma rosa encarnada! - in­sistiu o rouxinol. - Uma só! Não haverá forma de a ob­ter?

            - Há um único processo - respondeu a roseira -,          mas é tão terrível que não me atrevo a aconselhar-to.

            - Revela-o. Eu não tenho medo.

- Se queres uma rosa encarnada tens de a extrair da música, ao luar, e tingi-la com o sangue do teu próprio co­ração. Deverás cantar para mim com o peito apoiado num dos meus espinhos. Cantarás toda a noite, o espinho traspassar-te-á o coração, e o sangue da tua vida correrá para as minhas veias, transformando-se na seiva de que preciso.

- A morte é preço excessivo para dar por uma rosa en­carnada - retorquiu o rouxinol- e a vida é coisa que to­dos nós muito amamos. Gosta-se tanto de estar no bos­que, a ver o Sol no seu carro de oiro e a Lua no seu carro de pérolas! Suave é o aroma do espinheiro e deliciosas as campainhas azuis que se ocultam no vale, e a urze que cresce na colina. No entanto, o amor é melhor do que a vi­da, e o que é o coração dum pássaro comparado com o dum homem?

Abriu então as asas, ergueu-se no espaço. Passou pelo quintal como uma sombra e como uma sombra voou so­bre a alameda. O estudante estava ainda caído no chão, onde o deixara, e as lágrimas cintilavam-lhe nos olhos, por não se terem secado.

- Regozija-te! - exclamou o rouxinol. - Terás a tua rosa encarnada. Criá-la-ei com música, ao luar, e ficará tinta com o sangue do meu coração. Tudo quanto te peço, em paga, é que sejas um apaixonado verdadeiro, pois o amor é mais sábio do que um filósofo e mais resistente que o Poder. As suas asas são ígneas na cor, de cor de fo­go é o seu corpo também. Os lábios têm a doçura do mel e o hálito o perfume do incenso.

O estudante levantou a cabeça e pôs-se a escutar, mas não podia compreender o que o rouxinol lhe dizia, por­que só era do seu conhecimento aquilo que estava escrito nos livros.

Entendeu-o, porém, a azinheira, e entristeceu, pois era muito amiga da avezita que construíra o ninho entre os seus ramos. E pediu-lhe:

- Canta-me a tua derradeira canção. Quando desapa­receres hei-de sentir-me bastante só.

Cantou, portanto, o rouxinol, em honra da árvore, e fê­-lo numa voz que era um murmúrio de água que cai dum jarro de prata. Quando terminou, o estudante pôs-se de pé e tirou da algibeira um caderno de apontamentos e um lápis.

Passeando depois na alameda, o rapaz dizia de si para consigo:

«O rouxinol tem estilo, não se lhe pode negar. Mas terá sentimentos? Desconfio que não. É, na realidade, como a maior parte dos artistas: estilo sem sinceridade. Jamais se sacrificaria fosse por quem fosse. Ocupa-se apenas de mú­sica, e ninguém ignora o egoísmo que existe em todas as artes. Temos de confessar, todavia, que produz notas mui­to belas. Que pena serem isentas de significação e inteira­mente destituídas de proveito!»

            Foi para o seu quarto, deitou-se sobre o mísero enxer­gão e começou a pensar na amada. Daí a pouco adormecia.

            Quando nasceu a Lua, o rouxinol voou para a roseira e encostou o peito a um dos espinhos da planta. Toda a noi­te cantou, com o peito unido ao espinho, e o frio astro de cristal parecia inclinar-se para ouvir. Toda a noite cantou, e o espinho foi-se-lhe enterrando mais e mais no peito, e das suas veias o sangue foi-se-lhe escoando lentamente.

Primeiramente cantou a origem do amor no coração de dois jovens. No ramo mais alto da roseira começou a de­sabrochar uma rosa esplêndida, pétala atrás de pétala, na sequência das canções. Era pálida de início, como a névoa que paira sobre o rio, pálida como os dedos da manhã e prateada como as asas da aurora. Qual a sombra duma ro­sa num espelho argênteo, ou na superfície dum lago, assim era a flor que desabrochava no mais alto ramo da roseira.

            Mas esta ordenou ao rouxinol que se apertasse com mais força contra o espinho.

            - Aperta-te, rouxinol, ou então nascerá o dia antes que a rosa esteja completa.

Assim fez a ave, e foi cantando sempre em voz mais cheia, pois agora relatava o despertar da paixão na alma da mulher e na do homem. E um rubor delicado cobriu as pétalas da rosa, como o rubor na face do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho não chegara ainda ao coração do rouxinol, e por isso o âmago da rosa conti­nuava branco. Só o sangue da avezita poderia carminar o âmago da rosa.

            Então a roseira ordenou ao rouxinol que se chegasse mais.

            - Aperta com mais força, ou então nascerá o dia antes que a rosa esteja acabada.

Obedeceu o rouxinol, apertando-se mais de encontro ao espinho, e este chegou-lhe ao coração, produzindo-lhe violenta dor em todo o corpo. Amarga, amaríssima era a dor, e cada vez mais cheio o canto, pois cantava o amor divinizado pela morte, o amor que não morre no túmulo.

E a bela rosa tornou-se rubra, rubra como o céu ao poente. As pétalas eram dum tom carmesim, e carmesim o coração da flor. Entretanto enfraquecia a voz do rouxinol, as asitas começavam a debater-se, velava-lhe os olhos uma névoa. Enfraquecia-lhe a voz e ele sentiu na garganta qualquer coisa que o sufocava.

Soltou então a última nota de música. Ouviu-a a bran­ca Lua, que se esqueceu da alvorada e se deteve no céu. Ouviu-a a rosa vermelha, que estremeceu de prazer e abriu as pétalas à fresca aragem da manhã. Levou-a depois o eco para a sua caverna purpurina e com ela despertou dos seus sonhos os pastores adormecidos. E a nota flu­tuou entre os canaviais do rio e este arrastou para o mar a mensagem do rouxinol.

            - Olha, olha! - gritou a roseira. - A rosa já está com­pleta.

            Mas a ave não respondeu, porque jazia morta no chão, com o espinho cravado no peito.

            Ao meio-dia o estudante abriu a janela e olhou para fora.

            - Que sorte! - exclamou. - Aqui está uma rosa en­carnada. Nunca vi nenhuma como esta em toda a minha vida. É tão bela que há-de ter, forçosamente, um nome la­tino muito comprido.

            Debruçando-se, colheu-a. Em seguida pôs o chapéu e correu a casa do professor, segurando a rosa na mão.

            A filha do professor estava sentada à porta, a dobar um novelo de seda azul, e tinha um cão deitado aos pés.

- Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa encarnada - bradou o estudante. - Aqui tens a rosa mais encarnada do mundo. Usá-la-ás ao peito, esta noite, e, enquanto dançarmos, ela te falará do meu amor.

Mas a rapariga, com ar carrancudo, respondeu:

- Parece-me que não vai condizer com o meu vestido.

Além disso, o sobrinho do mordomo-mor enviou-me umas jóias verdadeiras, e toda a gente sabe que as jóias custam mais do que as flores.

            - Palavra de honra que és muito ingrata! - respon­deu, zangado, o rapaz.

            E atirou a rosa para a rua, onde foi cair numa valeta, sendo logo esmagada pela roda de um carro.

- Ingrata? - repetiu a rapariga. - O que te digo é que és muito grosseiro. No fim de contas, quem és? Não pas­sas dum estudante. Nem creio que tenhas fivelas de prata nos sapatos, como o sobrinho do mordomo-mor.

Disse isto, ergueu-se da cadeira e foi para dentro de ca­sa.

- Que estúpida coisa é o amor! - murmurou o estu­dante, afastando-se. - Não tem a utilidade da Lógica, pois com ele nada se prova, e está sempre a sugerir-nos coisas que afinal não acontecem, ao mesmo tempo que nos faz crer que são verdadeiras. De facto, não é prático e, numa época de utilidade como esta, acho preferível voltar à Filosofia e estudar a Metafísica.

De modo que regressou ao seu quarto, tirou um calha­maço poeirento e principiou a ler.

 

 

                   O GIGANTE EGOÍSTA

Todas as tardes, ao voltarem da escola, as crianças cos­tumavam ir brincar para o jardim do Gigante.

Era um jardim grande e bonito, coberto de relva macia e verde. Aqui e ali, entre essa relva, desabrochavam flores lin­das como estrelas; havia uma dúzia de pessegueiros que ao vir a Primavera floresciam de cor-de-rosa e de tons de pérola, e no Outono se carregavam de frutos opulentos. As aves poi­savam nas árvores e cantavam com tanta doçura que os pe­quenos interrompiam os seus jogos para ficarem a escutá-las.

- Que bom que é estar aqui - diziam uns para os outros. Certo dia o Gigante regressou. Fora visitar o seu amigo Papão da Cornualha, e demorara-se lá sete anos. Ao fim desses sete anos havia dito tudo o que tinha a dizer, por­que a sua conversa era limitada, e resolveu voltar ao caste­lo que lhe pertencia. Quando chegou, viu as crianças a brincarem no jardim.

            - Que estais aqui afazer? - exclamou com voz ira­cunda. E os pequenos fugiram.

- Este jardim é muito meu - declarou. - Que todos o fiquem sabendo. Não consinto que ninguém venha pa­ra cá divertir-se, a não ser eu próprio.

Edificou então um muro muito alto em toda a roda e colocou nele este aviso:

 

                   SERÃO CASTIGADOS OS INTRUSOS

 

Era bastante egoísta, esse Gigante.

Os desgraçados dos petizes não tinham já onde brin­cassem. Tentaram fazê-lo na estrada, mas havia aí muita poeira e calhaus aguçados, o que lhes desagradava. Va­guearam então em volta do alto muro, depois das aulas, conversando acerca do belo jardim que existia do outro lado.

- Que bom que era estar lá! - diziam uns para os ou­tros.

Veio a Primavera e por todo o país abriram flores e can­taram pássaros: só no jardim do Gigante continuava In­verno. As aves não se importavam de ir para ali chilrear, porque não havia crianças, e as árvores esqueceram-se de florir. Uma vez houve uma florinha que levantou a cabe­ça acima da relva, mas deu logo com a vista na tabuleta do aviso e teve tanta pena da petizada que de novo se ocultou rente ao chão, e adormeceu. Os únicos entes satisfeitos eram a Neve e a Geada.

- A Primavera esqueceu-se deste jardim - comenta­vam elas. - De maneira que podemos ficar cá todo o ano.

A Neve cobriu os relvados com o seu imenso manto branco, e a Geada pintou de prata todas as árvores. Con­vidaram depois o Aquilão a viver com eles, e ele aceitou o convite. Andava embrulhado em peles e bramava todo o dia pelo jardim, derrubando as chaminés da residência.

- Magnífico lugar - dizia ele. - Temos de convidar também o Granizo.

Veio, pois, o Granizo, e diariamente, durante três horas, começou a rufar no telhado do castelo até quebrar grande parte das ardósias. Em seguida corria de roda do jardim, com a maior velocidade de que dispunha. Vestia de cin­zento e tinha um hálito frio como gelo.

«Não percebo porque é que a Primavera tarda tanto», pensava o Gigante Egoísta sentado à janela, a olhar para o seu parque branco de neve. «Espero que o tempo acabe por mudar.»

Mas a Primavera nunca veio, nem o Verão. O Outono amadurecia fruta em todos os quintais, menos no do Gi­gante. «É muito egoísta», explicava. Ali era sempre Inverno, e o Aquilão, e a Neve, e o Granizo, e a Geada dança­vam de contínuo ao redor das árvores.

Certa manhã estava o Gigante ainda na cama, porém já acordado, quando ouviu deliciosa música. Soava-lhe tão agradavelmente aos ouvidos que até julgou serem os mú­sicos do rei que passavam por lá. Mas era apenas um pin­tarroxo que lhe cantava perto da janela. Havia já tanto tempo que não escutava o canto dos pássaros no seu jar­dim que achou aquilo a mais bela música do mundo. O Granizo deixou de rufar-lhe nos telhados, o Aquilão ces­sou de rugir e, pela janela aberta, chegou-lhe às narinas um perfume inebriante.

- Parece que, enfim, se resolveu a vir a Primavera! ­- exclamou o Gigante.

Saltou da cama e olhou para fora.

E que viu ele?

Viu um espectáculo soberbo. Através dum buraco pe­quenino do muro, as crianças haviam entrado e estavam agora empoleiradas nos ramos das árvores. Em todas as árvores via ele uma criança. E as árvores sentiram-se tão contentes com o regresso da petizada que se cobriam de flores e lhes ondulavam suavemente os ramos por cima das cabecitas. Em torno voavam pássaros, chilreando sa­tisfeitos, e as flores espreitavam do meio da relva, sacudi­das pelo riso. Era uma cena encantadora, e só num recan­to mais afastado do jardim permanecia o Inverno. Ali es­tava um miúdo que não conseguia trepar à árvore e que chorava de desgosto; e a pobre da árvore continuava cheia de neve, enquanto por cima dela uivava o Aquilão.

- Sobe, meu filho - disse a árvore, inclinando os ra­mos o mais que pôde. Mas a criança era pequenina de mais.

            O coração do Gigante enterneceu-se quando olhou pa­ra fora.

            - Tenho sido tão egoísta! - exclamou. - Agora percebo o motivo por que a Primavera não aparecia cá. Vou colocar aquele miúdo em cima da árvore e depois derru­bar o muro. E o jardim será para sempre o lugar de recreio das crianças.

Arrependia-se deveras do que fizera até aí. Desceu, pois, a escada, abriu de mansinho a porta e chegou ao jar­dim. Quando, porém, o lobrigaram os pequenos, de tal modo se assustaram que fugiram a sete pés, e o Inverno regressou ao jardim. Só o tal petiz é que não fugiu, porque tinha os olhos rasos de lágrimas e não viu entrar o Gigan­te. Este foi muito devagar por trás dele, pegou-lhe com to­do o cuidado e pô-lo em cima da árvore. E a árvore ime­diatamente se encheu de flores, e os pássaros vieram can­tar, e o rapazinho, estendendo os braços, abraçou o Gi­gante e beijou-o. As outras crianças, vendo isto, com­preenderam que o Gigante já não era mau e vieram a cor­rer, e a Primavera veio atrás delas.

- Este jardim, agora, é vosso, meus filhos - declarou o dono.

Pegou então numa picareta colossal e demoliu o muro. Quando as pessoas da terra se dirigiam ao mercado, ao meio-dia, viram o Gigante a entreter a petizada no mais belo jardim que os seus olhos tinham contemplado.

            E todo o dia brincaram, e, ao anoitecer, foram ter com o Gigante para se despedirem dele.

- Onde está o vosso companheiro pequenino? - per­guntou o dono da propriedade. - Aquele que eu pus em cima duma árvore...

            Estimava-o muito, porque fora o que lhe dera um beijo.

            - Não sabemos - retorquiram os miúdos. – Deve ter-se ido embora.

            - Então dizei-lhe que não tenha receio e que volte amanhã.

            - Não sabemos onde é que ele mora. Nunca o vimos antes.

            Esta resposta entristeceu o Gigante.

            Todas as tardes, ao saírem da escola, vinham os peque­nos brincar com o Gigante. Aquele, no entanto, de quem o Gigante mais gostava, esse não tornou a ser visto. O do­no do jardim mostrava-se muito bondoso para com todos, mas suspirava sempre pelo seu primeiro amiguinho, de quem falava bastantes vezes.

- Gostava tanto de o tornar a ver! - repetia. Passaram os anos e o Gigante envelheceu e enfraqueceu muito. Como já não podia brincar, sentava-se numa pol­trona enorme a admirar o seu jardim e a ver os jogos das crianças.

            - Tenho flores lindíssimas - dizia ele -, mas as crian­ças são ainda mais bonitas.

Certa manhã de Inverno, enquanto se vestia, olhou pela janela. Já não embirrava agora com o Inverno, pois sabia que era apenas o sono da Primavera e o repouso das flores.

De súbito, esfregou os olhos, espantado, olhou e tornou a olhar. Não havia dúvida de que era uma coisa estranha. No canto mais afastado do jardim estava uma árvore com­pletamente revestida de flores alvacentas. Eram áureos os ramos e argênteos os frutos que pendiam. E debaixo da árvore estava o rapazinho de quem ele gostava tanto.

Desceu o Gigante a escada, cheio de alegria, e penetrou no jardim. Foi a correr por cima da relva e chegou aonde estava o pequeno; mas, ao vê-lo, indignou-se, e pergun­tou:

            - Quem se atreveu a magoar-te? Dize-me sem demo­ra, para que eu o mate com a minha espada.

            - Estas - volveu a criança - são as feridas do Amor.

            - E tu quem és? - continuou o Gigante, invadido por   um estranho sentimento e ajoelhando ao lado da criança.

            Ela sorriu e respondeu:

            - Deixaste-me um dia brincar no teu jardim. Hoje vi­ rás comigo para o meu, que é o Paraíso.

E quando, nessa tarde, as crianças apareceram lá, en­contraram o Gigante morto, debaixo da árvore, e todo co­berto de flores alvacentas.

 

 

                   O AMIGO FIEL

Certa manhã a velha ratazana deitou a cabeça de fora do buraco. Tinha olhinhos vivos como contas e bigodes cin­zentos muito rijos; quanto ao rabo, parecia um fio com­prido de borracha preta.

No lago nadavam patinhos, que semelhavam um bando de canários. A mãe deles, que era muito branca e de per­nas encarnadas, tentava ensiná-los a se equilibrarem de ca­beça para baixo e patinhas no ar.

- Jamais sereis recebidos na alta sociedade - dizia ela - se não aprenderdes esta prenda.

Ela própria mostrava como se fazia. Mas os patinhos não lhe prestavam atenção. Eram ainda tão novos que não compreendiam as vantagens de se pertencer à alta socie­dade.

            - Que pequenos desobedientes! - comentou a rataza­na. - Era bem feito que se afogassem.

            - Ora essa - replicou a pata. - Tem de se começar pelo princípio e os pais necessitam de muita paciência.

- Quanto a sentimentos maternos, não entendo nada - retorquiu a outra. - Sou solteira e nunca pensei em ca­sar. O amor é, de certo modo, coisa muito boa, mas dou maior importância à amizade. Francamente, não conheço nada no mundo que valha um amigo fiel.

- Que ideia fazes das obrigações dum amigo fiel? ­inquiriu um pintarroxo, que ouvira a conversa, empolei­rado num ramo de salgueiro.

- Era isso justamente o que eu queria saber - decla­rou a pata, nadando para o extremo do lago e pondo-se de cabeça para baixo, a fim de dar exemplo aos filhos.

- Que pergunta estúpida! - retorquiu a ratazana. ­Um amigo fiel é aquele que me presta bons serviços. Nem mais.

- E tu que lhe darias em troca? - perguntou o passa­rinho, baloiçando-se num ramo prateado e agitando as asas pequenas.

- Não te percebo!

- Pois então vou contar-te uma história que diz res­peito a isso.

            - Que diz respeito a mim? Sou todo ouvidos. Gosto imensamente de histórias.

            - Pode-se aplicar a ti - asseverou o pintarroxo.

            Desceu e veio para a margem do lago, onde contou a história do Amigo Fiel.

 

            - Era uma vez - começou o pintarroxo - um ho­menzinho sério chamado Hans.

            - Pessoa distinta? - interrompeu a ratazana.

            - Não me parece que o fosse, excepto pela bondade do seu coração e pelas faces redondas, engraçadas, de tipo bem-humorado. Vivia sozinho numa cabana e todos os dias trabalhava no seu quintal. Em toda a redondeza não havia quintal mais bem tratado. Ali cresciam cravos, goi­vos, bolsas-de-pastor, bocas-de-Iobo; havia rosas brancas e amarelas, lilases, violetas. Na altura própria floriam as columbinas, as manjeronas, as prímulas, os manjericos, os narcisos e as cravinas, conforme passavam os meses. Uma flor tomava o lugar doutra, de maneira que se viam sem­pre coisas bonitas e se aspiravam aromas deliciosos.

«o nosso Hans tinha muitos amigos, mas o mais fiel era o corpulento e rico moleiro Hugo. Era na verdade tão fiel e dedicado ao seu Hans que nunca passava pelo quintal deste sem se debruçar sobre o muro para colher um bra­çado de flores ou para encher as algibeiras de ameixas e ce­rejas, caso fosse tempo de fruta.

            «- Os amigos sinceros - dizia ele - deviam ter tudo em comum.

            «Hans fazia que sim com a cabeça, sorrindo, e sentia-se orgulhoso de ter um amigo com ideias tão elevadas.

«É certo que muitas vezes os vizinhos achavam esquisi­to que nunca o moleiro, sendo tão rico, desse qualquer coi­sa em troca ao amigo Hans, apesar de possuir cem sacos de farinha arrecadados no moinho, e seis vacas leiteiras, e um grande rebanho de ovelhas lãzudas. No entanto o Hans ja­mais se preocupava com isso, e nada lhe dava maior gosto do que ouvir os discursos extraordinários que o outro cos­tumava fazer a respeito do altruísmo e da amizade sincera.

«Hans trabalhava sempre no seu quintal. Durante as três primeiràs estações do ano podia dizer-se que vivia fe­liz; mas quando chegava o Inverno e ele não tinha nem flores nem fruta que levasse ao mercado, passava o seu bo­cado de frio e fome e não era raro deitar-se sem ter comi­do mais que umas peras passadas e meia dúzia de nozes. Além disso, ficava muito só, porque nessa altura o molei­ro nunca o ia visitar.

«- Não vale a pena ir a casa do amigo Hans enquanto durar a neve - explicava o moleiro à mulher. - Quando as pessoas estão em apuros, convém deixá-las sozinhas, sem serem importunadas. Esta é pelo menos a minha opi­nião acerca da amizade, e julgo que tenho razão. Portan­to, esperarei pela Primavera e então irei visitá-lo. Ele já me poderá dar, nessa ocasião, um cabaz de margaritas, com que se há-de sentir contentíssimo.

«- Estás sempre a pensar nos outros - respondia a mulher, confortavelmente sentada numa poltrona, junto da lareira onde ardia um bom lume de pinhas. - Ralas-te de mais. Mas é agradável escutar as tuas ideias sobre a amizade. Estou convencida de que o prior não seria capaz de dizer coisas tão bonitas como tu, embora viva em casa de três andares e use anel de oiro no dedo.

«- Não se podia convidar o amigo Hans a vir para cá? - atalhou uma vez o filho mais novo do moleiro. - Se ele está atrapalhado, eu dou-lhe metade do meu prato de aveia e mostro-lhe os meus coelhinhos brancos.

«- Sempre és muito palerma! - exclamou o pai. - Não sei, realmente, de que serve mandar-te à escola. Parece que não aprendes nada. Pois se o amigo Hans viesse para cá, e visse o nosso lume farto, e a nossa boa ceia, e o nosso es­plêndido barril de vinho tinto, podia ficar com inveja, e a inveja é uma coisa tremenda, corrompe as melhores nature­zas. E eu não hei-de querer que se corrompa a natureza do meu amigo Hans. Sou o seu melhor amigo, sempre o tenho vigiado e não o deixarei sucumbir às tentações. Demais, se Hans vivesse cá, seria capaz de me pedir, a crédito, um pou­co de farinha, pedido a que eu não poderia aceder. A fari­nha é uma coisa, a amizade é outra: não devem confundir­-se, as palavras pronunciam-se de modo diferente, têm sig­nificados diversos. Isto entra pelos olhos de toda a gente!

«- Falas muito bem - opinou a mulher, servindo-se duma caneca de cerveja morna. - Até me dá vontade de dormir! É como se estivesse na igreja.

«- Há muitas pessoas que procedem bem - retrucou o moleiro -, mas poucas falam como deve ser, o que pro­va que o falar é o mais difícil dos dois predicados, e tam­bém o mais bonito. - Dizendo isto, olhou para o filho, com ar severo, e o rapaz sentiu-se tão envergonhado que baixou a cabeça, corou e até verteu algumas lágrimas den­tro do chá. Mas podia encontrar desculpa na sua extrema verdura de anos.»

- Acabou a história? - perguntou a ratazana.

- É claro que não. Estou ainda no princípio - repli­cou o pmtarroxo.

- Então estás muito atrasado. Actualmente um bom narrador começa pelo fim, depois chega ao princípio e en­tão conclui pelo meio. Este é que é o novo método. Sou­be tudo a este respeito, outro dia, da boca dum crítico que passeava à volta do lago em companhia dum mancebo. Fa­lou durante muito tempo sobre o assunto, e acho que ti­nha razão, pois usava óculos fumados e era calvo e, sem­pre que o rapaz lhe observava qualquer dúvida, ele exclamava: «Essa agora!» Mas continua com a tua história. Gosto bastante desse moleiro. Eu própria sou dotada dos melhores sentimentos, de maneira que noto afinidades en­tre nós dois.

- Pois bem - prosseguiu o pintarroxo, saltitando ora sobre uma perna ora sobre outra. Logo que passou o In­verno, e as florinhas desabrocharam cá e lá, o moleiro dis­se à mulher que ia visitar o seu amigo Hans.

«- Que bom coração que tu tens! - declarou ela. ­Estás sempre a pensar nos outros. Não te esqueças de le­var o cabaz maior, para trazeres flores.

«o moleiro, então, prendeu as asas do moinho com uma corrente de ferro e desceu a colina, levando um ces­to grande, vazio.

«- Bom dia, amigo Hans.

«- Bom dia - retorquiu este, apoiado à enxada e sor­rindo de orelha a orelha.

            «- Como passaste o Inverno? - inquiriu o recém­-chegado.

«- Assim, assim... É muito amável, realmente, o teu interesse. Para falar verdade, não foi lá muito bom, mas agora temos a Primavera e eu sinto-me feliz. As flores me­dram todas muito bem.

            «- Falámos de ti bastantes vezes, este Inverno, Hans. Pensávamos como estarias...

            «- Vocês são umas jóias! Receava que se houvessem esquecido de mim.

«- Que ideia, Hans! A amizade nunca se esquece. É o que ela tem de mais extraordinário. Mas tu, se calhar, não compreendes a poesia da vida. A propósito, as tuas mar­garitas estão lindíssimas.

«- Na verdade, não estão feias. É uma sorte para mim ter tantas. Tenciono levá-las ao mercado e vendê-las à fi­lha do burgomestre. Com esse dinheiro resgatarei o meu carrinho de mão.

            «- O quê? Queres dizer com isso que o empenhaste? Fizeste um disparate!

«- Pois vi-me obrigado a fazê-lo. O Inverno, como sa­bes, foi rigoroso, e eu em boa verdade não tinha com que comprar pão. Comecei por empenhar os botões de prata do meu fato de ver a Deus, depois a corrente, também de prata, a seguir o cachimbo, e por último o carrinho de mão. Mas agora vou reaver tudo isso.

«- Hans - disse o moleiro - vou dar-te o meu carri­nho de mão. Já não está muito novo. Para falar franca­mente, falta-lhe um dos lados e há qualquer coisa que não me parece certa lá nos raios duma roda. Mas, apesar de tudo isso, vou dar-to. Sei que é grande generosidade da mi­nha parte, e há-de haver quem me acuse de perdulário. Mas não sou como os outros; entendo que a generosidade é a essência da amizade, e além disso tenho um carrinho novo para meu uso. Não te preocupes mais, conta com o carrinho de mão.

«- És muito generoso, palavra de honra! - exclamou Hans, com aquela cara tão pândega iluminada por um ri­so de prazer. - Poderei consertá-lo facilmente, porque tenho uma tábua em casa.

«- Uma tábua! - bradou o moleiro. - É precisamen­te do que eu necessito para o telhado do celeiro. Há lá um grande buraco e, se o não tapar, o trigo molha-se todo. Ainda bem que falaste nisso. É curioso como uma boa ac­ção provoca outra. Eu dei-te o meu carrinho, e agora tu vais dar-me a tua tábua. Já se sabe que o carrinho vale mais do que a tábua, mas a verdadeira amizade não olha a essas coisas. Vai já buscá-la, que eu hoje mesmo começarei a trabalhar no celeiro.

«- Com todo o gosto - respondeu Hans, que foi a correr ao telheiro a fim de trazer a tábua.

«- Não é muito grande - observou o moleiro, olhan­do para ela - e desconfio que, depois de arranjar o telha­do, não vai ficar bocado nenhum para consertares o carri­nho. Enfim, a culpa não é minha. E agora, já que te ofere­ci o meu carrinho, estou certo de que, em paga, me darás algumas flores. Tens aqui o cesto. Vê se o enches todo.

«- Todo? - repetiu Hans desconsolado, pois o cesto era na verdade dos maiores e ele sabia que, se o enchesse, não lhe sobejariam flores para vender no mercado. E esta­va tão impaciente de reaver os seus botões de prata!

«- Pensando bem - observou o moleiro - não acho que esteja a ser exigente, uma vez que te dei o meu carri­nho.

Ou eu me engano muito, ou a amizade, a verdadeira amizade, é isenta de qualquer egoísmo.

«- Meu caro Hugo! Como és também o melhor dos amigos, podes dispor de todas as flores do meu quintal. Para mim mais vale a boa opinião que faças de mim do que todos os botões de prata do mundo.

            «Dizendo isto, apressou-se a colher todas as margaritas que encontrou e com elas encheu o cabaz do moleiro.

            «- Adeus, Hans - volveu o outro, que tornou a subir a colina com a tábua às costas e o cesto a abarrotar na mão.

            «- Até à vista - replicou Hans, que voltou a cavar a terra, muito satisfeito com a ideia do carrinho.

 

«No dia seguinte estava ele a colocar uns pregos sobre a porta, a fim de prender os ramos de madressilva, quan­do ouviu a voz do moleiro a chamá-lo da estrada. Desceu logo o escadote, atravessou o quintal e espreitou por cima do muro. O amigo trazia um saco enorme de farinha, às costas.

            «- És capaz de me levar este saco ao mercado? - per­guntou o moleiro.

«- Tenho imensa pena - redarguiu Hans -, mas ho­je estou muito ocupado. Preciso de segurar as trepadeiras, regar as flores, tosquiar a relva...

«- Está muito bem, mas a verdade é que, atendendo a que eu vou dar-te o meu carrinho de mão, me parece pou­co amigável essa tua recusa...

            «- Não digas isso! - atalhou Hans. - Por nada des­te mundo desejarei mostrar-me ingrato.

            «Foi imediatamente pôr o chapéu e partiu carregado com o saco.

            «O dia estava bastante quente e a estrada era poeirenta ao máximo. Antes que o amigo Hans houvesse calcorrea­do seis milhas, já o cansaço o obrigava a sentar-se para re­pousar um pouco. Todavia continuou daí a instantes, com todo o heroísmo, e por fim alcançou o mercado. Depois de esperar muito tempo, conseguiu vender a farinha por bom preço, e voltou então para casa, temendo que, vindo a noite, os ladrões lhe saltassem ao caminho.

«- O dia foi realmente duro para mim - disse con­sigo quando recolheu à cama. - Mas estou satisfeito. Não recusei um favor ao moleiro, que é o meu melhor amigo e, demais a mais, vai oferecer-me o seu carrinho de mão.

            «Muito cedo, ao outro dia, veio o moleiro pelo produ­to da venda. O amigo Hans, porém, com a estafa da vés­pera, encontrava-se ainda deitado.

«- Palavra de honra! - exclamou o visitante. - Sem­pre és muito mandrião! Sabendo que eu te vou dar o car­rinho, bem podias trabalhar um pouco mais. A preguiça é um grande pecado, e eu não gosto que os meus amigos se­jam preguiçosos. Não leves a mal esta franqueza com que te falo, pois se o faço é por seres meu amigo. Ora de que serviria a amizade se não fosse para a gente dizer o que pensa? Qualquer pessoa é capaz de papaguear coisas bo­nitas, para agradar e lisonjear, mas o amigo verdadeiro, o amigo fiel não se importa de pôr o seu coração à mostra. Sendo amigo deveras, prefere esta forma de proceder, pois sabe que o faz apenas por bem.

«- Desculpa-me - retorquiu Hans, esfregando os olhos e tirando o barrete de dormir. - Eu estava tão can­sado que pensei não haver mal em ficar mais um bocadi­nho na cama, a ouvir cantar os pássaros. Não sabias que trabalho melhor depois de os pássaros cantarem?

«- Não, mas folgo muito saber - respondeu o molei­ro, batendo amigavelmente no ombro de Hans. - Dese­Java que viesses ao moinho para me consertares o celeiro. Veste-te depressa.

«O desgraçado estava ansioso por trabalhar no seu quintal, pois havia quarenta e oito horas que não regava as flores. Mas não queria dizer que não ao moleiro, que era tão seu amigo.

            «- Zangavas-te se eu dissesse que tinha muito que fa­zer? - arriscou ele a medo.

«- Pensando bem, não achei que fosse exigir muito, atendendo a que te vou dar o meu carrinho de mão. No entanto, se recusas, eu mesmo me encarregarei da tarefa...

            «- Ah, isso é que não! - exclamou o amigo Hans.

            «Saltou da cama, vestiu-se e foi para o celeiro, onde consertou o buraco do telhado, trabalhando até ao pôr­-do-sol. Nessa ocasião chegou o moleiro, para ver em que altura ia a obra.

«- Já acabaste, Hans?

«- Está tudo pronto - respondeu o interpelado, des­cendo a escada.

«- Ah, não há trabalho mais consolador do que aque­le que se faz para os outros! - sentenciou o dono do moi­nho.

«- Só o prazer de te ouvir falar assim!... - comentou o amigo Hans, sentando-se e enxugando o suor da testa. - Nunca serei capaz de ter conceitos tão bonitos como os teus!

«- Eles virão - asseverou o moleiro -, mas tens de fazer maior esforço. - Por enquanto estás apenas com a prática da amizade; mais tarde possuirás também a teoria.

«- Achas que sim, francamente?

«- Não tenho a menor dúvida. E agora, que acabaste de consertar o telhado, é preferível ires para casa descansar, pois amanhã gostava que me levasses as ovelhas ao monte.

«O amigo Hans não teve coragem de fazer qualquer co­mentário. No dia seguinte de manhã o moleiro apresen­tou-se na cabana com o rebanho, e Hans foi para o mon­te com os animais. Gastou o dia inteiro na ida e na volta, e, quando regressou, sentiu-se tão fatigado que adorme­ceu na cadeira e só acordou já com dia claro.

«- Agora é que eu vou passar uns dias agradáveis no meu quintal! - disse ele consigo. E meteu logo mãos ao trabalho.

«Mas a verdade é que não podia ocupar-se das suas flo­res, porque o amigo moleiro vinha sempre importuná-lo com pedidos de recados ou de ajudas lá no moinho. Às vezes, Hans sentia-se desmoralizado e temia que as flores supusessem diminuição de interesse da parte dele. Consolava-o, porém, a ideia de que o moleiro era o seu melhor amigo. Além disso, pensava na oferta do carrinho que o outro lhe ia fazer, e compreendia quão generoso aquele continuava sendo.

«Deste modo Hans trabalhava para o moleiro, e o molei­ro proferia sentenças adequadas sobre o valor da amizade, tantas e tão boas que ele costumava anotá-las numa agenda e decorá-las à noite, pois gostava muito de se instruir.

«Ora aconteceu que uma ocasião estava Hans sentado à lareira quando ouviu baterem fortemente à porta. Era uma noite agreste: o vento soprava e rugia de roda da ca­sa tão furioso que, a princípio, Hans supôs fosse apenas efeito da tempestade aquela batucada na porta. Mas a coi­sa repetiu-se, e ainda terceira vez, sempre com mais força, de maneira que se levantou e foi abrir.

            «Ali estava o moleiro, de lanterna na mão e um pau comprido ao ombro.

            «- Amigo Hans - disse ele -, estou bastante apoquentado. O meu pequeno caiu do escadote e feriu-se.

Eu vou chamar o médico; mas vive tão longe e a noite está tão ruim que me lembrei de te pedir que fosses em meu lugar. Sabes que vais ter o meu carrinho de mão: não é exigir muito que faças alguma coisa em paga desse favor.

«- Com todo o gosto - replicou Hans - e acho que foste muito amável em teres vindo procurar-me. Irei ime­diatamente. O que te peço é que me emprestes a tua lan­terna, porque a noite está de breu e eu tenho medo de cair no fosso.

«- Desculpa - volveu o outro - mas a lanterna é no­va e, se alguma coisa lhe sucedesse, seria grande prejuízo para mIm.

«- Não faz mal, passarei sem ela - declarou Hans. «Foi buscar uma peliça, enfiou o gorro, atou um lenço em volta do pescoço, e partiu.

«Que noite pavorosa! Tão negra que ele mal enxergava um palmo adiante do nariz. O vento era tão forte que às vezes quase o derrubava. Hans, todavia, tinha coragem e, depois de haver andado cerca de três horas, chegou à resi­dência do médico e bateu à porta.

«- Quem é? - perguntou aquele, espetando a cabeça pela janela do quarto.

«- O Hans, senhor doutor.

«- Que deseja?

            «- O filho do moleiro caiu do escadote e magoou-se, e o pai desejava que o senhor doutor fosse tratá-lo sem de­mora.

«- Está bem - respondeu o físico.

            «Mandou que lhe aparelhassem o cavalo e lhe trouxes­sem botas altas e uma lanterna. Uma vez montado, partiu em direcção à casa do moleiro, com o Hans a lhe trotar na peugada.

«Mas o temporal redobrava de furor, a chuva caía a cântaros, e o amigo Hans não podia ver o caminho nem acompanhar o cavalo. Acabou por se extraviar e foi ter aos pântanos, lugar perigosíssimo, onde o desgraçado se afundou. No dia seguinte uns pastores descobriram o ca­dáver a flutuar num grande charco, e levaram-no para a cabana.

            «Toda a gente compareceu no enterro, pois o defunto era muito popular. Foi o moleiro quem levou o luto.

            «- Visto que eu fui o seu melhor amigo, cabe-me com justiça desempenhar-me deste encargo.

«E seguiu o cortejo, todo vestido de preto, enxugando de tempos a tempos os olhos num vasto lenço que tirava do bolso.

«- A morte do Hans foi uma perda muito grande para todos - disse o ferreiro, depois do enterro, quando já es­tavam confortavelmente sentados na estalagem, a beber vinho e a comer bolos.

«- Principalmente para mim - acudiu o moleiro. ­- Imaginem que levei a minha generosidade ao ponto de lhe oferecer o meu carrinho de mão. Agora não sei o que hei­-de fazer dele. Atravanca-me a casa e precisa de tantas re­parações que não haverá ninguém que mo compre. Nun­ca mais dou nada seja lá a quem for! Ser generoso sai sem­pre muito caro.»

 

- E depois? - perguntou a ratazana.

- Não sei mais nada - respondeu o pintarroxo. ­- Não sei nem me importa saber.

            - Vê-se bem que não és dotado de sentimentos com­passivos - volveu a ratazana.

            - O que me parece é que não percebeste a moralidade da história.

            - Pretendes insinuar que a história tem a sua morali­dade?

            - Está visto que sim!

            - Pois então - retorquiu furiosa a ratazana – devias ter-me prevenido com antecedência. Se o houvesses feito, eu com certeza te não escutaria até ao fim. Teria dito co­mo o tal crítico: «Essa agora!» E talvez ainda esteja a tem­po de o dizer.

E, soltando um «Essa agora!» com quantas forças pôde, deu um jeito à cauda e retirou-se para o seu buraco.

- Que te parece a ratazana? - indagou a pata, daí a pouco, enfiando pela água adiante. - Pode ter muita es­perteza, mas eu cá sou mãe de família e condoo-me sem­pre das solteironas.

- Oxalá não a tenha ofendido - observou o pintarro­xo. - O certo é que lhe contei uma história que tem a sua moralidade.

            - É sempre arriscado fazer uma coisa dessas - repli­cou a pata.- Eu estou inteiramente de acordo com ela.

 

 

                   O FOGUETE DE LÁGRIMAS

Ia casar o filho do rei, de modo que o regozijo era geral no país. Ele esperara pela noiva um ano inteiro, mas por fim ela chegara: era uma princesa russa e viera, desde a Finlândia, em trenó puxado por um grupo de seis renas. O trenó tinha a forma dum imenso cisne dourado, e entre as asas do cisne sentava-se a princesa. Chegava-lhe até aos pés a longa capa de arminhos, na cabeça exibia um gorro prateado, e mostrou-se tão pálida como o Palácio da Ne­ve onde até aí sempre vivera; tão pálida que toda a gente, ao vê-la passar nas ruas, se admirava e dizia:

- Parece uma rosa branca.

E atiravam-lhe flores das janelas.

A porta do castelo comparecera o príncipe, a fim de a receber. Tinha olhos sonhadores, azuis-escuros, e cabelos semelhantes a fios de oiro. Quando a viu, pôs um joelho em terra e beijou-lhe a mão.

- O vosso retrato era um encanto - murmurou. ­

Sois, porém, mais bela ainda que o retrato.

Ao ouvir isto, a princesa corou.

- Há pouco era igual a uma rosa branca - disse um dos pajens ao seu vizinho. - Agora é como uma rosa escarlate.

A corte gostou muito desta imagem, sem excepção de ninguém.

Nos dias seguintes ouvia-se repetir-se a cada canto: «Rosa branca, rosa escarlate; rosa branca, rosa escarla­te...» O rei ordenou que o salário do pajem fosse dupli­cado. Como não recebia salário nenhum, a ordem pouco lhe aproveitou, mas a coisa foi considerada bastante hon­rosa e saiu impressa na gazeta oficial.

Passaram-se três dias, ao fim dos quais se realizou o ca­samento. Foi uma cerimónia magnífica. O noivo e a noi­va caminharam de mãos dadas, debaixo dum pálio de ve­ludo roxo bordado a pérolas. Depois houve um banquete de gala, que demorou cerca de cinco horas. O príncipe e a princesa tomaram assento no extremo do salão e beberam por uma taça de cristal limpidíssimo. Só os verdadeiros apaixonados se podiam servir dela, pois que, se lhe toca­vam lábios perjuros, ficava escura e enevoada.

- É claro que se amam - disse o pajem. - Claro co­mo cristal.

Novamente o rei lhe duplicou o salário.

- Que honra! - exclamaram os cortesãos.

A seguir ao banquete houve baile. O noivo e a noiva de­viam dançar a «dança da rosa» e o rei prometera tocar flauta. Tocava muito mal, mas ninguém jamais se atrevera a dizê-lo, visto tratar-se do rei. Em boa verdade, só sabia duas árias e nunca tinha a certeza de qual era a que toca­va. Mas isso importava muito pouco: podia fazer o que quisesse, todos no final aplaudiam com calor.

O último número do programa consistia numa exibição de fogo-de-artifício, que devia principiar exactamente à meia-noite. A princesinha nunca vira fogo-de-artifício, de forma que o rei determinara ao pirotécnico régio que es­tivesse de serviço no dia da boda.

- Como é? - perguntou ela ao príncipe, certa manhã, quando passeavam no terraço.

- Assemelha-se a uma aurora boreal - explicou o rei, que respondia sempre às perguntas dirigidas aos outros. ­- Com a diferença de que parece mais natural ainda. Por mim, prefiro isso às estrelas, porque se sabe de antemão quando vai aparecer, e porque tem a mesma beleza que evocam os meus solos de flauta. Haveis de ver qualquer dia.

Assim, ao fundo do parque, haviam construído uma bar­raca para o efeito. Logo que o pirotécnico régio dispôs tu­do como devia ser, os fogos começaram a dialogar entre si.

- O mundo é sem dúvida muito bonito - disse um busca-pés. - Olhai para aquelas túlipas amarelas. Se fos­sem uns autênticos petardos não seriam mais adoráveis. Estou muito contente por ter viajado. Viajar instrui o es­pírito e desfaz os nossos preconceitos.

- O parque real não é o mundo, meu busca-pés pate­tinha! - replicou um fósforo de cor. - O mundo é vas­tíssimo e, para o ver todo, não gastavas menos de três dias.

- O lugar que nós amamos é que é o mundo - acudiu uma roda-de-fogo, que se sentia feliz na caixa em que a guardavam e que sofrera bastante com a separação. ­

Mas o amor passou de moda, os poetas deram cabo dele. Escreveram tanto a esse respeito, que já ninguém acredita. E não é para admirar. O verdadeiro amor sofre em silên­cio. Recordo-me que uma vez... Mas deixemos isso. São coisas passadas!

- Que tolice! - replicou o fósforo. - O sentimenta­lismo não morre; vive sempre, como a Lua. O noivo e a noiva, por exemplo, amam-se deveras. Ouvi esta manhã a história, contada por um papel de embrulho que por acaso estava na mesma gaveta que eu e que sabe todas as no­vidades da corte.

Mas a roda-de-fogo abanou a cabeça.

- O sentimentalismo morreu - afirmou ela três vezes. Era daquelas criaturas que julgam tornar uma coisa ver­dadeira só pelo facto de a repetirem amiúde.

De súbito, ouviu-se uma tossezinha seca e todos olha­ram naquela direcção. O ruído provinha dum foguete grosso e arrogante, amarrado à extremidade duma cana. Tossia sempre antes de falar, para ver se atraía as atenções.

- Ham! Ham! - fez ele, e todos ouviram excepto a roda-de-fogo, que estava ainda a abanar a cabeça e a mur­murar: «O sentimentalismo morreu...»

- Ordem! Ordem! - bradou um petardo. Tinha algo de político e, como tomava sempre parte nas eleições lo­cais, sabia quais eram as expressões parlamentares em uso.

- Sim, morreu - balbuciou ainda a roda-de-fogo. E pôs-se a dormir.

Logo que se estabeleceu profundo silêncio, o foguete tossiu pela terceira vez e começou a falar. Fê-lo com voz distinta, como se recitasse as suas memórias, e constante­mente a olhar por cima do ombro do indivíduo a quem se dirigia. Possuía, de facto, boas maneiras.

- Que sorte para o filho do rei - notou ele - ter ca­sado no próprio dia em que eu vou subir ao ar. Se fosse tu­do combinação, não teria dado melhores resultados. O que se vê é que os príncipes têm sempre sorte.

- Meu Deus! - interrompeu o busca-pés. - Parece que é precisamente o contrário. Nós é que vamos ser queimados em honra do príncipe.

- Isso pode ser contigo - replicou o foguete. - Te­nho mesmo a certeza de que é assim; no que me respeita, porém, o caso é diverso. Sou um foguete importante, des­cendente de outros de igual categoria. Minha mãe foi no seu tempo uma roda-de-fogo notável, famosa pelo modo como girava. Quando fez a sua aparição em público, ro­dopiou dezanove vezes antes de rebentar, e de cada vez lançava ao ar sete estrelas cor-de-rosa. Tinha um metro de diâmetro e era feita da melhor pólvora. Meu pai foi um fo­guete como eu, de marca francesa. Subia tão alto que re­cearam não tornasse a descer; mas desceu, porque tinha bons sentimentos, e fez uma descida assombrosa, no meio de chuva de oiro. Os jornais referiram-se ao caso em ter­mos elogiosos. A própria gazeta oficial lhe chamou «um triunfo da arte pilotécnica».

- Pirotécnica, é o que queres dizer - atalhou um fogo-de-bengala. - Sei que é assim porque vi escrito na minha própria caixa.

            - Dizia eu... - prosseguia o foguete. - Dizia eu o quê?

            - Falavas a teu respeito - explicou o fósforo de cor.

- Já se sabe. Devia forçosamente estar a discutir qual­quer assunto interessante quando fui interrompido tão sem-cerimónia. Detesto a má-criação e tudo o que não se­jam boas maneiras, pois sou sensível ao máximo. Estou convencido de que não há no mundo ninguém mais sen­sível do que eu.

            - O que é ser sensível? - perguntou um petardo à roda-de-fogo.

- É quem, sofrendo dos calos, anda sempre a pisar os dos outros - respondeu baixinho a interpelada. O petar­do quase rebentava a rir.

- De que te ris, ó tu? - indagou o foguete. - Eu não disse nenhum gracejo.

            - Rio-me porque estou contente!

- É um motivo egoísta. Que direito tens de estar con­tente? Devias antes pensar nos outros. Ou melhor: devias pensar em mim. Eu penso em mim a toda a hora e espero que os outros façam o mesmo. É o que se chama mostrar interesse. Esplêndida virtude, que eu possuo em alto grau! Suponhamos, por exemplo, que me sucedia qualquer coi­sa esta noite: que desgosto para todos! O príncipe e a princesa nunca mais seriam felizes e ficariam com a sua vi­da conjugal estragada para sempre. Quanto ao rei, estou certo de que não resistiria a semelhante contrariedade. Francamente, quando penso na importância da minha si­tuação, comovo-me até às lágrimas.

            - Pois será melhor que elas não te molhem, se queres dar prazer à assistência - retorquiu-lhe o fósforo de cor.

- Decerto - concordou o fogo-de-bengala, que esta­va agora mais consolado. - É apenas uma questão de bom senso.

- Bom senso! - volveu indignado o foguete. - Ora essa! Esqueces-te de que sou um ente singular, um indiví­duo superior à craveira comum? Qualquer tipo é capaz de ter bom senso, uma vez que não possua imaginação. Eu cá tenho imaginação, pois nunca aceito as coisas como elas são realmente. Vejo-as sempre de maneira diversa. Quan­to a não me molhar... há aqui alguém que saiba apreciar um temperamento emotivo? O que me vale é não rpe ra­lar com essa ausência, de criaturas sensíveis. O que 'nos sustenta na vida é a consciência da enorme inferioridade dos outros: eis um sentimento que não me canso de culti­var. A verdade é que nenhum de vocês tem coração. Divertem-se, riem, só porque o príncipe e a princesa se ca­saram!

- E por que não? - observou um balãozito. - Por que não? Trata-se dum sucesso feliz. Quando eu subir ao ar, não me esquecerei de fazer o relato da festa às estrelas. Vocês hão-de vê-las piscar os olhos quando eu lhes falar da linda noiva.

- Que visão tão trivial da vida! - exclamou o foguete. - Mas não se podia esperar outra coisa. Dentro de ti que há senão vento. És um cérebro oco. Lembrem-se de que o príncipe e a princesa podem ir viver para um lugar onde haja um rio profundo, que podem ter um filho único, que esse filho pode nascer loiro e de olhos azuis como o pai; que talvez um dia ele vá passear com a sua aia, e esta ador­meça debaixo duma árvore...; o pequenito pode cair ao rio e afogar-se! Que horrível desgraça! Que infelizes pais, que ficam sem o seu filho único! Nunca me esquecerei duma tragédia como esta...

- Mas ainda não perderam o filho! Nem sequer o tive­ram - acudiu a roda-de-fogo. - Por enquanto não lhes aconteceu nenhuma desgraça.

- Eu não disse que o tivessem perdido - volveu o fo­guete. - Disse que podia suceder. Se já houvesse aconte­cido isso, não valeria a pena falar do caso. Embirro com os que se lamentam sobre o irremediável. Mas, quando pen­sam que podiam ficar sem o filho único, ah, então, a coisa afecta-me bastante.

            - Pudera! - gritou o fogo-de-bengala. - Se tu és tão afectado!

            - E tu um malcriadão. Jamais compreenderás a amiza­de que dedico ao príncipe.

            - Nem sequer o conheces! - resmungou o fósforo de cor.

- Não disse que o conhecia. Se o conhecesse, talvez não fosse seu amigo. Há sempre perigo em conhecermos os nossos amigos.

            - O melhor é não começares a chorar. Isso é que é im­portante - aconselhou o balão.

            - Importante para vocês, isso sei eu. Mas, se eu quiser, hei-de chorar.

E começou logo a soltar lágrimas, que tombavam como chuva em torno da cana e quase afogaram dois escarave­lhos que por ali seguiam em procura dum lugar seco onde instalassem casa.

            - Deve ser muito sentimental - comentou a roda-de­-fogo. - Chora sem motivo!

Mas o fósforo de cor e o fogo-de-bengala estavam fu­riosos. Eram indivíduos muito práticos e não compreen­diam tamanha pieguice.

Então nasceu a Lua, que se assemelhava a um enorme broquel de prata. As estrelas principiaram a cintilar e do palácio real chegaram sons de música.

O príncipe e a princesa abriram o baile. Dançavam tão bem que as altas açucenas se ergueram mais a fim de os es­preitar pela janela. As papoilas rubras, baloiçando a cabeça, puseram-se a marcar o compasso. O relógio anunciou as dez horas, depois as onze e, à última pancada da meia­-noite, vieram todos para o terraço e o rei mandou com­parecer o pirotécnico régio.

            - Pode começar o fogo - disse o monarca.

O pirotécnico fez uma larga vénia e encaminhou-se pa­ra o fundo do parque. Acompanhavam-no seis subalter­nos, levando cada um deles um archote na mão.

            Foi um espectáculo deveras surpreendente.

            A roda-de-fogo, girando sem parar, fazia um zumbido ensurdecedor. Os fósforos de cor iluminavam o espaço com variegados clarões. Os busca-pés correram por toda a parte, e o fogo-de-bengala tornou, de repente, toda a at­mosfera escarlate.

            - Adeus! - exclamou o balão, começando a subir elargando pequenas faúlhas azuis.

            - Pum! Pum! - ressoavam os petardos, que se diver­tiam à doida. Todos alcançaram grande êxito, excepto o foguete de lágrimas. Estava tão húmido por ter chorado que não conseguia arder. A melhor coisa que ele possuía era a pólvora, e esta, assim molhada, já não prestava para o efeito. Os seus parentes pobres, a quem ele só falava com ar desdenhoso, esses subiram ao céu como belas e gi­gantescas flores de oiro, que desabrochavam pétalas de lu­me. A corte batia palmas e a princesa ria satisfeitíssima.

            - Calculo que me reservem para outra grande ocasião - disse o foguete. - É com certeza o que isto significa.

            E mostrou-se mais orgulhoso do que nunca.

            No dia seguinte os operários vieram desmanchar a bar­raca.

            - Há-de ser uma deputação - pensou o foguete. ­- Vou recebê-los com a dignidade do costume.

Arrebitou o nariz, franziu as sobrancelhas e tomou to­do o aspecto de quem magica num assunto transcendente. Eles, porém, não lhe prestaram atenção. Só no momento de se retirarem é que um gritou:

- Olha! Um foguete! Não prestou.

E atirou-o, por cima do muro, para o fosso.

- Não prestou? É impossível! O homem disse outra coisa, com certeza; eu é que não ouvi bem.

Em todo o caso, caiu na lama.

            - Isto aqui não é muito cómodo - murmurou. - To­davia estou certo de que se trata dum sítio elegante, algu­mas termas em moda. Mandaram-me para cá na esperan­ça de me restituírem a saúde. De facto, tenho os nervos abalados e preciso de repouso.

            N essa altura uma rã, de olhos brilhantes e casaco verde sarapintado, chegou-se nadando até onde ele estava.

- É um recém-vindo - disse ela. - No fim de contas, não há como a lama. Dêem-me tempo de chuva e um fos­so e eu estarei nas minhas sete quintas. Achas que vai ­ chover? - indagou, dirigindo-se ao foguete. - Oxalá que sim. O pior é este céu azul, sem nuvens. Que pena!

- Ham! Ham! - tossiu o foguete.

            - Que linda voz! exclamou a rã. - Lembra o nosso coaxar, que é o som mais musical do mundo. Vais ouvir esta noite o nosso agrupamento coral. Sentamo-nos no charco dos patos, perto da residência do caseiro, e, logo que a Lua despontar, nós iniciamos o concerto. É tão ar­rebatador que todos ficam acordados só para nos ouvi­rem. Ainda ontem dizia a mulher do caseiro: «Não pre­guei olho em toda a noite, por causa das rãs.» Consola sa­ber que somos assim conhecidas.

- Ham! Ham! - repetiu o foguete, irritado. Estava aborrecido porque não o deixavam falar.

- Bela voz, efectivamente - insistiu a rã. – Conto que vás até ao charco. Mas deixa-me ir ver as minhas filhas: são seis e tenho medo de que aquele peixe grande as encontre. É mesmo um monstro, e não fará cerimónia em as comer a todas ao primeiro almoço. Adeus, adeus. Gos­tei muito da nossa conversa, palavra de honra.

            - Chamas a isto conversa! Falaste pelos cotovelos e eu não abri a boca.

- Alguém terá de escutar - retorquiu a rã - e eu por mim aprecio muito dar à língua. Poupa-me tempo e evita discussões.

            - Pois eu gosto das discussões.

            - Isso é muito plebeu. Na boa sociedade todos temos exactamente a mesma opinião. Mais uma vez adeusinho. Já ali vejo as minhas filhas.

            E a rã foi-se embora.

            - Que pessoa tão impliquenta! - murmurou o fogue­te. - E, além disso, mal-educada. Detesto as pessoas, co­mo tu, que falam de si quando nós desejamos falar de nós; é a isso que eu chamo egoísmo, e o egoísmo é a coisa mais execrável que existe, em especial para os indivíduos do meu temperamento. Todos me conhecem pelo meu génio compassivo. Bem podias tomar-me como exemplo: não há-de haver melhor modelo em toda a terra. E agora, já que tiveste uma oportunidade como esta, devias aproveitá-la. Olha que eu volto em breve para a corte, on­de sou muito apreciado. Por sinal que o príncipe e a prin­cesa se casaram ontem em minha honra. É claro que não percebes nada destas matérias, provinciana como és.

- Não vale a pena continuares a falar - atalhou uma libélula, que estava poisada no alto dum junco. - A rã já se foi embora.

- Tanto pior para ela, que para mim é o mesmo - re­plicou o foguete. - Não vou deixar de falar lá porque não me prestam atenção. Gosto de me ouvir. Isso constitui um dos meus prazeres predilectos. Muitas vezes sustento lon­gas conversas comigo mesmo, e sou tão inteligente que, em certas ocasiões, não percebo uma única palavra do que digo.

- Nesse caso, por que não dás lições de Filosofia? ­observou a libélula, que nesse momento desdobrou um par de lindas asas transparentes e voou para o céu.

- Foi estúpida em não ter ficado aqui - comentou o foguete. - Estou convencido de que não terá outra opor­tunidade de se cultivar. Mas isso é lá com ela. Génios como o meu, mais tarde ou mais cedo acabam por ser apreciados. Assim monologando, enterrou-se mais na lama.

            Passou-se algum tempo e então veio a nadar para ele um pato branco, de pernas amarelas e pés largos, que era con­siderado uma beldade por causa do seu saracoteio.

- Quá, quá, quá - disse o pato. - Que feitio tão pa­tusco! Nasceste assim ou foi desastre que tiveste em criança?

- Bem se vê que viveste sempre no campo, aliás sabe­rias quem sou. Mas desculpo a tua ignorância. Seria pou­co natural esperar que os outros fossem tão ilustrados co­mo eu. Vais cair das nuvens quando souberes que sou ca­paz de voar até ao céu e de descer em chuva de oiro.

- É coisa que me não deslumbra - redarguiu o pato. - Que vantagem pode haver nisso? Seria diferente se soubesses lavrar, como os bois, ou puxar carros, como os cavalos, ou guardar rebanhos, como os cães de pastor.

- Já vejo - declarou o foguete, dando à voz uma in­flexão mais orgulhosa ainda -, já vejo que pertences às classes mais baixas. Uma pessoa na minha situação nunca é útil. Basta que tenhamos certos predicados. Eu por mim não simpatizo com nenhum emprego e muito menos com esses que tu pareces recomendar-me. Sempre achei que os trabalhos rudes só servem para refúgio dos que não têm mais nada que fazer.

- Está bem, está bem - disse o pato, que era de carác­ter dócil e não gostava de contrariar ninguém. - Cada qual tem o seu gosto. Em todo o caso, espero que venhas fixar-te aqui.

- Isso é que não! - exclamou o foguete. - Sou ape­nas visitante, o que se chama um visitante ilustre. Para fa­lar verdade, considero isto por cá muito enfadonho. Não há sociedade nem isolamento. Um verdadeiro arrabalde! Voltarei provavelmente para a corte, pois sei muito bem que estou destinado a causar sensação no mundo.

- Eu também já um dia pensei entrar na vida pública. Há muitas reformas a fazer. Até tomei parte numa assem­bleia, há anos, e aprovámos várias moções que condena­vam tudo quanto não era do nosso agrado. O efeito não foi o que se esperava. Agora só me interessam os proble­mas domésticos.

- Eu cá fui feito para a vida pública, como todos os meus parentes, ainda os mais humildes. Ainda não me es­treei, mas, quando o fizer, há-de ser um êxito! Quanto aos assuntos domésticos, envelhecem-nos depressa e desviam-nos a atenção de coisas mais elevadas.

            - Ah, as coisas elevadas! - repetiu o pato. - Isso faz­ -me lembrar que estou cheio de fome.

            E afastou-se a nadar, enquanto dizia várias vezes «quá, quá».

            - Não te vás embora! - gritou o foguete. – Tenho muito que te contar. - O pato não fez caso, e ele conti­nuou: - Ainda bem que se foi. Decididamente, é uma mentalidade burguesa.

E enterrou-se mais na lama, pensando no isolamento a que estão votados os génios. De repente apareceram dois pequenos de bibes brancos. Vinham pela margem, carre­gados com achas de lenha e uma cafeteira.

            «Agora é que é uma deputação - pensou o foguete. ­- Convém que me mostre cheio de dignidade.»

            - Vês isto? - exclamou um dos rapazitos. - Uma ca­na estragada. - Como teria vindo parar aqui?

            E tirou o foguete de dentro do fosso.

            - Cana estragada? - repetiu aquele. - Deve ser enga­no. Com certeza que não ouvi bem.

            - Vamos pô-la na fogueira - sugeriu outro pequeno.

- Ajudará a ferver a água.

            Empilharam as achas, colocaram o foguete em cima e chegaram-lhe fogo.

            - Óptimo! - bradou o foguete. - Vão lançar-me ao ar em pleno dia, para que todos possam admirar-me.

            - Agora, vamos dormir - disseram os rapazes. ­- Quando acordarmos, a água já estará a ferver.

            Deitaram-se no chão e fecharam os olhos.

O foguete estava bastante húmido, de maneira que levou muito tempo a arder. Afinal, sempre lhe pegou o lume.

- Pronto, vou subir! - declarou a si mesmo, estican­do-se quanto podia. - Tenho a certeza de que irei mais alto que as Estrelas, mais alto que a Lua, mais alto que o     Sol. Irei tão alto que...

Ouviu-se um zumbido e ele despegou para a atmosfera. - Estupendo! - exclamou. - Continuarei assim para todo o sempre! Que grande êxito!

Mas ninguém o viu.

Começou então a sentir um formigueiro esquisito por todo o corpo.

«Vou explodir - pensou. - Vou incendiar o mundo inteiro e produzir tal estrondo que ninguém falará noutra coisa durante um ano.»

            De facto, explodiu.

            Não havia dúvida: a pólvora manifestara-se. Mas nin­guém o ouviu, nem sequer os dois pequenos, que dor­miam profundamente.

            Por fim o que restou dele foi apenas uma cana, a qual veio cair em cima dum ganso que passava na borda do fosso.

            - Deus do Céu! - exclamou o ganso. - Estão a cho­ver paus!

            E atirou-se à água.

            - Eu bem sabia que causava sensação - murmurou o foguete de lágrimas, arfando. E morreu.

 

                                                                                Oscar Wilde  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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