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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MENDIGOS DE MILAGRES / C. V. Gheorghi
OS MENDIGOS DE MILAGRES / C. V. Gheorghi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

HÁ só dois clientes no terraço do hotel "Afrika Palast”. Passa da meia-noite. Está-se a meio de Dezembro. Esses dois clientes, que estão no terraço, são turistas. Estão sentados à mesma mesa. Um é negro, o outro é branco. O negro está instalado no hotel. Chegou de barco à capital do Trópico, no fim da semana anterior. O turista branco apareceu na cidade quase ao mesmo tempo. Não se sabe donde vem. Não vive no "Afrika Palast”.

Esperando a hora de fechar, os criados observam os dois clientes. Sabem que o negro parte, nessa mesma noite, para o interior. Aqui, na capital do Trópico, logo que um turista parte para o interior, toda a gente o sabe. Uma excursão ao interior - para a qual, na Europa, só se necessita de um bilhete de caminho de ferro - torna-se aqui, em África, uma verdadeira expedição. Assim, quando um turista do "Afrika Palast” sai numa excursão, toda a gente fica sabendo.

- A camioneta do negro está carregada de dezenas de aparelhos - diz um dos criados -, máquinas fotográficas, máquinas de filmar, máquinas de gravar. Trouxe-as da América. Veio a África para filmar as feras.

Os criados observam estes últimos clientes no terraço, o branco e o negro americano. Admiram-se de que dois indivíduos tão diferentes possam estar juntos.

São, talvez, amigos de infância. O branco e o negro separam-se bastante tarde. Quando se levantam, o negro fica no hotel para se deitar e o branco parte, sozinho. Ninguém sabe onde mora.

Algumas horas depois da sua chegada ao hotel, o negro teve uma crise de fígado. Uma crise terrível. Acordou todo o hotel. Devido a esta crise de fígado, os clientes e o pessoal do "Afrika Palast” conhecem, agora, perfeitamente, o turista negro. Chama-se Max Embilint. Está sentado a uma mesa, no terraço, as pernas cruzadas e olhando para o espaço. De tempos a tempos, bebe um gole de rum, do frasco que traz suspenso ao pescoço, num belo estojo de coiro, como se usam as máquinas fotográficas ou os binóculos.

 

 

 

  

 

 

 

O branco chama-se Stanislas Krizza. Tem à sua frente um copo e uma garrafa de água mineral. Lê. Ao contrário, o negro nunca lê. Max Embilint é um gigante, um colosso negro. Usa, exclusivamente, roupa de seda e fatos de boas fazendas, que muda todos os dias. No entanto apresenta um ar descuidado.

Stanislas Krizza é baixo e veste todos os dias o mesmo fato de fazenda cinzenta, como os pequenos funcionários do Trópico. Usa sapatos de lona e um chapéu de palha. Usa sempre luvas. Mesmo neste momento, à mesa, segura o livro nas mãos calçadas com luvas cinzentas, de algodão. As luvas, de má qualidade, conservam-se sempre abotoadas. O negro, esse, nunca usa luvas.

Max Embilint só fala americano. Stanislas Krizza responde, correctamente, na língua em que é interrogado. Diz-se que fala todas as línguas importantes. Pelo menos, uma dúzia de idiomas.

- Tu não estavas de serviço na noite em que o negro chegou? - pergunta o primeiro criado. - Eu acompanhei o médico ao seu quarto. Nunca esquecerei o que vi. O negro estava nu, somente com um pequeno slip branco. Com o corpo coberto de suor, estava deitado sobre os lençóis brancos. Stanislas Krizza estava em pé, junto do leito, com ar triste. Tinha os olhos cheios de lágrimas porque o negro estava doente. E, apesar disso, o outro estava irritado com ele. Atirava-lhe à cabeça a almofada, o copo, a toalha molhada, tudo o que apanhava à mão. Apesar disto, o branco não se arredou durante a noite. Foi então que compreendi o que é a verdadeira amizade.

- Todos nós tivemos pena do negro - continuou o primeiro criado. Acrescenta: - Aliás é frequente ter crises de fígado, quando se bebe um litro de rum por dia. O negro bebe mais que um litro. O barman confirmou-mo: todos os dias, um litro de rum branco.

Este criado do terraço, assim como todo o pessoal do "Afrika Palast” nunca esquecerão Max Embilint. Unicamente por causa da sua crise de fígado.

Uma camioneta cheia de bagagem pára diante do hotel. É uma camioneta descoberta. No fundo, dois negros estão sentados sobre as cantinas de lata. Os criados admiram-se que Max Embilint parta para o interior, somente acompanhado por dois criados negros. Isto não é habitual. Ao volante da camioneta está um motorista branco. Krizza levanta-se e dirige-se para a camioneta. O negro segue-o.

Logo nos primeiros passos, o negro hesita. Está embriagado. Mas ele não hesita como qualquer homem ébrio, mas, sim, como um felino que, mesmo quando perde o equilíbrio e cai, se levanta sempre. Como os gatos que caem sempre sobre as patas.

Diante dos degraus de mármore, Stanislas Krizza pára. Segura o negro pelo braço e ajuda-o a subir para a camioneta. O negro senta-se ao lado do motorista branco.

- Boa viagem, senhor Embilint - dizem os dois criados em coro.

Max Embilint não lhes responde. Nem mesmo olha para eles. O motorista branco afasta-se. O motorista branco afasta-se para lhe deixar o maior espaço possível. Max Embilint nem olha para o motorista branco. Nem mesmo a seu lado, repara na presença dele. Stanislas Krizza põe a sua mão, enluvada de cinzento, no ombro do negro. O negro fica indiferente ao gesto de amizade de Krizza. Procura, num movimento preguiçoso, o estojo de coiro, que traz pendurado ao pescoço. Tira a rolha do frasco e bebe. O carro parte.

- Uma única coisa não lhe é indiferente - diz o primeiro criado-; a cor do rum com que se embriaga. O negro não bebe senão rum branco.

Max Embilint partiu para uma região onde os turistas nunca se aventuram. Os turistas vão todos, sempre, para os mesmos lugares. Max Embilint partiu para o território dos canibais. É uma zona militar situada na fronteira da administração colonial do Trópico. Este território, com a superfície de um cantão suíço, é comandado pelo tenente Blank. É uma região selvagem. Os negros que a habitam vivem nus.

Duas semanas antes tinha lá chegado um grupo de quatro missionários do Reno. São os primeiros missionários que vêm para o território destes canibais.

Os missionários do Reno pertencem a uma seita local chamada "Os Portadores do Evangelho”. Chamam-se Mark, Bianka, Luka e Matei. Bianka é a irmã de um destes rapazes, Luka. Têm vinte anos, com excepção de Luka, que tem vinte e um. A chegada destes quatro jovens missionários ao Trópico é muito severa e desfavoravelmente comentada em todos os círculos. Os evangelistas são considerados como aventureiros e imprudentes.

Max Embilint conhece, exactamente, o local onde se encontram, neste momento, os missionários do Reno. É uma aldeia de negros canibais, chamada Icibolia. Na língua dos canibais, Tcibolia significa "noz vazia”.

Max Embilint partiu para Icibolia. O fim da sua viagem não era filmar as feras, como se dizia na capital do Trópico e no "Afrika Palast”. Max Embilint não conhece os quatro missionários. Nunca os viu, nem mesmo em fotografia. Contudo é para os matar que ele se dirige a Icibolia. Para matar os quatro, Luka, Mark, Matei e Bianka, antes do Natal, em conformidade com o plano estabelecido por Stanislas Krizza.

"Um quádruplo assassinato, pensa Max Embilint. "É uma tarefa suja" Uma tarefa de negro" Um branco não aceitaria uma tal tarefa"”

Os dados estão jogados" Já não pode recuar" O negro procura o frasco de rum branco, pendurado ao seu peito no belo estojo de coiro. Bebe.

A observação dos criados do "Afrika Palast” é justa. Max Embilint não se embriaga senão com rum branco. Mas não foi senão depois de ter conhecido Stanislas Krizza. Antes de conhecer o branco, bebia fosse o que fosse. Depois de se ter tornado amigo de Stanislas Krizza, que decidiu a morte dos evangelistas, o negro Max Embilint só bebe, para se embriagar, rum branco" Rum branco e forte, como a lógica branca.

Max Embilint não conhecia o motorista branco que conduzia a camioneta. Nunca o viu.

- Foi-me impossível encontrar um motorista negro - disse Krizza. - Foi necessário arranjar um branco. Importas-te que o motorista seja branco?

- No - respondeu Max Embilint.

Isto foi tudo. Não se discutiu sobre a cor do motorista. O negro deixara as mãos livres a Stanislas Krizza para organizar, em todos os pormenores, o assassinato dos evangelistas. Tinha concordado com todas as decisões de Stanislas Krizza. Mas, neste momento - pela primeira vez - tem qualquer coisa a objectar. Qualquer coisa o incomoda. O motorista do carro é branco. Isto não agradou a Max Embilint. Mas é muito tarde para mudar de motorista. Estão a caminho de Icibolia. Na noite, a camioneta roda a toda a velocidade para o país dos canibais.

Max Embilint volta a cabeça. Olha para as bagagens. A camioneta descoberta está carregada de cantinas metálicas, pintadas de verde. No fundo do carro, encolhidos em cima das cantinas, vão os criados negros. Dormem. A camioneta é nova. Foi construída especialmente para as estradas tropicais. Apesar da suspensão especial, os solavancos são violentos. Os criados negros não os sentem. Dormem. São dois negros muito jovens. Dois adolescentes. Os dois pertencem à tribo onde se encontram os missionários que devem ser assassinados. Foram bem escolhidos porque foi Stanislas Krizza quem os escolheu e Krizza escolhe sempre muito bem. Pode-se confiar na sua escolha. Sobretudo quando se trata de homens.

Nem o motorista branco nem os criados negros sabem do crime. Julgam, tal como o pessoal do "Afrika Palast”, que o negro vai filmar feras. Desde o momento que Stanislas Krizza o disse, assim é.

Os adolescentes negros que dormem ao fundo da camioneta estão vestidos com calções e blusões de caqui, novos e vistosos, comprados por Stanislas Krizza.

Max Embilint sabe que um dos negros se chama Xkon-Goa-Xob e o outro Nakusanswa. Max, para saber qual deles se chama Xkon-Goa-Xob, chama:

- Xob!

Um dos negros levanta a cabeça.

- Dorme, imbecil - ordena Max Embilint.

Xob descansa novamente a cabeça negra na cantina verde e volta a adormecer.

Max Embilint conhece cerca de cento e cinquenta palavras da língua dos canibais. No bolso das suas calças tem um vocabulário escrito à máquina por Krizza. Estas cento e cinquenta palavras constituem todo o vocabulário dos canibais. São os homens mais pobres da terra. Não possuem nada. Os canibais são tão ricos como as raposas, os lobos e os crocodilos. Todos os seus bens terrenos se reduzem a uma cama improvisada, que abandonam em qualquer momento sem sombra de pena. Como todos os pobres, os canibais utilizam tudo em pequenas quantidades. O seu vocabulário é tão reduzido como a sua alimentação quotidiana. Os canibais constróem as suas frases sem utilizarem verbos. Colocam os substantivos uns a seguir aos outros sem os ligarem por verbos, tal como os homens da pré-história construíam as suas paredes sem argamassa, colocando simplesmente as pedras umas sobre as outras.

Max Embilint estende as pernas, demasiado compridas para esta camioneta. O motorista branco adivinha que o negro não está instalado comodamente.

- Deseja que baixe as costas da sua cadeira para poder dormir? - pergunta.

Como única resposta, Max procura, tacteando como um cego, a garrafa de rum branco no estojo de couro, que lhe pende do pescoço.

- Temos vinte horas de viagem até Icibolia - diz o motorista.

- Shut up-• ordena Max Embilint.

- Desculpe-me, sir - diz o motorista.

Tem uma voz cantante. Max não pode suportar esta voz. Bebe. O ódio invade bruscamente os seus pulmões. O dorso do negro alarga-se mais - dir-se-ia um tanque.

- Não tenho vontade de falar - diz. - Shut up!

- Yes, sir - responde o motorista branco. Este yes, sir, é muito para os ouvidos do negro.

Max não quer voltar a ouvir a voz do branco.

- Calas-te, ou queres que te feche a boca? - diz.

A voz de Embilint é seca, rouca e desagradável, como se arrastasse barras de ferro sobre o asfalto. O motorista branco cala-se, amedrontado.

Diferentemente dos negros selvagens de África, Max Embilint sabe odiar. Conhece uma infinidade de palavras que exprimem rancor, que aprendeu com os brancos. Estas palavras não se podem aprender senão com os povos brancos. A estrela que guia os passos do homem branco sobre a terra é a estrela da agressividade, da conquista e do domínio. O branco conquistou a terra, as águas e o espaço. Quando ama uma mulher, o branco conquista-a. Conquista, também, tudo o que odeia. O branco inventou, para seu uso, os deveres, depois encerrou-se neles como numa gaiola de ferro. Tudo o que o branco possui é resultado de uma conquista. Logo que nada mais tem a conquistar à sua volta, vence-se a si próprio, vence e conquista os seus próprios instintos, os seus próprios sonhos, os seus próprios pensamentos. Domina e administra a sua vida, exactamente como administra as suas colónias. Administra a sua fome, a sua sede, o seu sono e os seus sonhos. A existência do homem branco é uma sede de conquista e de domínio. O homem negro ignora completamente esta fúria de conquista que devora o branco e o consome como um incêndio.

Neste momento Max Embilint é devorado pela fúria, exactamente como um branco. Um ódio imenso impele-o a esmagar o branco. O ódio de Max Embilint contra o branco começou desde que subiu para a camioneta. Depois não fez mais que crescer, este ódio devido à presença de um branco.

Max Embilint deixou a Stanislas Krizza o cuidado de organizar, nos mais pequenos pormenores, o assassinato dos quatro missionários. É verdade que Krizza o prevenira de que o motorista seria branco. É verdade que tinha concordado. Era completamente indiferente a Max Embilint que o motorista fosse branco, negro ou amarelo. Nesta época da sua vida tudo era indiferente a Max Embilint.

Mas, assim que a camioneta tinha parado diante do terraço do "Afrika Palast” e logo que vira o rosto branco do motorista, uma dúvida germinara na cabeça de Max Embilint. Agora está persuadido de que o motorista branco foi encarregado por Stanislas Krizza de o espiar. A presença do branco prova que Stanislas Krizza não tem confiança em Max.

Bebe. Os pulmões do negro estão prestes a rebentar. Encerram demasiada revolta.

- Pára - ordena Max Embilint. - Pára.

A respiração do negro, bafejada de ódio e de rum, fustiga o rosto branco do motorista como um lança-chamas.

 

Porque é que não se arranjou um motorista negro? - pergunta Max Embilint.

A camioneta parou no meio do caminho. O motor continua a trabalhar. Os faróis estão acesos. O motorista branco chama-se Zeno, o valáquio. O medo faz-lhe cerrar os dentes.

Foste encarregado por Stanislas Krizza de me espiar? - diz Max Embilint. - Um negro deve ser sempre vigiado por um branco, não é verdade? Mas Krizza enganou-se. Eu vou matar-te. E logo que te tenha morto não serás branco, nem verde, nem azul. Não serás de qualquer cor.

O barulho do motor é abafado pelo arfar da respiração escaldante do negro. Max Embilint cheira a rum. O seu corpo tem um cheiro ácido. A cabeça de antracite de Max Embilint não está negra, mas violácea.

As suas mãos de gorila crispam-se. Max ergue, lentamente, as suas garras negras direitas à garganta branca do motorista. O motorista treme. Vê claramente as garras que o vão estrangular à luz amarela do conta-quilómetros. O negro sussurra entre dentes:

- É sempre preciso um branco para vigiar se um negro executa, convenientemente, a sua suja tarefa de negro... Sempre.

- Não, sir! - diz Zeno, o valáquio. - Eu não fui encarregado de o vigiar, sir.

As mãos negras estão imóveis contra a garganta do branco.

- Eu julgava que estava ao corrente, sir - diz o valáquio. - Contrataram-me para ser batido e esbofeteado por si, sir. Pensava que tinha conhecimento disto. Eu sou o branco a quem o senhor deve espancar diante dos canibais. É esta a minha missão, sir. Ser esbofeteado por si.

O motorista não mente. Max Embilint recorda-se. Em Icibolia, diante dos canibais, Zeno, o valáquio, deve deixar que o negro Max Embilint lhe bata, o esbofeteie e lhe escarre na cara, conforme o plano estabelecido por Stanislas Krizza. Os canibais, vendo o negro Embilint esbofetear um branco e escarrar-lhe na cara, terão por Max temor, admiração e respeito. Depois desta demonstração de força Max Embilint fará o que quiser dos canibais.

Os dedos crispados de Max Embilint descontraem-se. Procura o frasco. A sua fúria acalma-se. Leva o frasco à boca. À luz amarelada da camioneta, Zeno vê a maçã-de-adão do negro mexer-se no pescoço negro, largo, como um pneu de automóvel. Zeno, o valáquio, com a ponta da língua, faz um sinal-da-cruz no céu da boca e agradece ao Senhor ter afastado dele este perigo.

Enquanto bebe, Max Embilint põe a claro a situação. É um negro. Deve cumprir, uma missão ignóbil, uma missão de negro. Antes do Natal, os quatro jovens missionários que se encontram entre os canibais devem ser mortos. Estes missionários não fizeram mal algum a Max Embilint, mas isto não tem qualquer importância. Entre os missionários encontra-se, também, uma rapariga loira, Bianka. Isto tão-pouco tem importância, a evangelista loira será morta também. Max Embilint executará a suja tarefa. Depois do assassinato, esquecerá. E nada mais terá importância. Um facto esquecido deixa de ter importância.

O negro tapa o frasco e deixa-o cair sobre o peito, no seu estojo de coiro. Sente, bruscamente, piedade pelo motorista branco.

“Pobre branco, pensa o negro. A sua missão é tão ignóbil como a minha. Porque ele é ignóbil em se deixar bater por um negro, e receber bofetadas e escarros diante de uma tribo de canibais.”

Zeno tem a pele branca. Contudo, aceitou este trabalho. Aceitou deixar-se bater pelo negro, sangrar, encaixar os socos, perder os dentes, não protestar e, nem sequer, se defender. De nada dizer, ou, eventualmente, de dizer obrigado. Max Embilint diz para consigo:

“Eu, eu tenho uma tarefa suja a fazer. Devo cometer quatro assassinatos. Mas este branco não tem, também, uma missão honrosa. Ele tem, também, uma suja tarefa.”

- Desde há quanto tempo militas tu pelo Partido? - pergunta o negro.

A sua pergunta, seca e brutal, é lógica. Desde o momento que Zeno, o valáquio, se encontra aqui, no coração de África, não pode deixar de ser um homem do Partido. É certamente um militante de choque. Só um militante de choque pode cumprir uma missão que o obriga a receber bofetadas, escarros de um negro e a deixar-se maltratar por ele. Um militante de choque é um homem de ferro. Sem uma fé sólida como rocha, não se pode levar a cabo uma tal tarefa. Max Embilint cumpre uma tarefa suja porque é um negro. Um negro nunca deve fazer senão sujas tarefas. Um branco é diferente: quando cumpre uma tarefa suja, fá-lo por idealismo, por fé. Um branco tem a preferência. É por esta razão que é branco.

- Eu não sou do Partido - responde Zeno, o valáquio. - Nunca fui do Partido, de nenhum partido.

Zeno, o valáquio, sorri. O medo desapareceu. O negro acalmou-se, renunciou a estrangulá-lo.

Zeno tem motivos para se regozijar. Não tem, ainda, trinta anos. Max Embilint observa o rosto do branco. O motorista tem cara de homem subalimentado. É a primeira vez que o negro olha para a cara do motorista branco. Mesmo quando tinha querido estrangulá-lo, não tinha olhado para ele. Há já bastante tempo que Max Embilint não olha para homem algum. Não olha para nada, nem para ninguém. As pessoas e as coisas que o rodeiam são-lhe, completamente, indiferentes.

Contudo, o negro tem piedade deste motorista branco. Uma piedade súbita e bizarra.

- O que é que tu fazes aqui, então, se não és do Partido? - pergunta.

- É por dinheiro, sir - diz Zeno, o valáquio. - Todos os homens trabalham por dinheiro. O senhor Krizza ofereceu-me este trabalho bem pago. Fiquei satisfeito em o aceitar. Tenho necessidade de dinheiro para pagar o bilhete de barco. Agora já o tenho. É tudo. Porque mo pergunta, sirf

Max Embilint não responde.

- Compreendi logo porque fui contratado - diz Zeno, o valáquio. - O senhor Krizza não teve necessidade de muitas palavras para mo explicar. Vi logo do que se tratava. O senhor tem necessidade de prestígio aos olhos dos selvagens. Devem obedecer-lhe e ter medo de si. Era preciso um branco a quem pudesse maltratar diante deles. Bater num branco dá prestígio a um negro... Permita-me uma observação, sir: o plano é excelente. O seu prestígio aos olhos dos canibais está assegurado... Com estes selvagens não há outro meio.

Zeno, o valáquio, vê em tudo intenções nobres, coisas belas e inteligentes. É impossível convencê-lo do contrário.

- Donde és tu? - pergunta o negro.

- De longe - responde Zeno, o valáquio.

Carrega no acelerador.

- Nunca ouviu falar do meu país, sir. Sou valáquio.

- Tu pensas que, por eu ser negro, ignoro a Geografia? - diz Max Embilint. - Julgas que só um branco conhece a Geografia?

Max Embilint bebe de novo. Vê na resposta de Zeno uma alusão à inferioridade da raça negra.

- Há negros que sabem mais Geografia que os brancos - diz Max Embilint. - Eu, por exemplo. Frequentei cursos em todas as Universidades dos E.U.A. Em seguida viajei. Sou negro, mas conheço mais Geografia que os brancos. Queres que to prove?

O negro faz um esforço de memória. A pele negra da sua testa enruga-se. Diz, como se lesse na Enciclopédia Britânica:

- O teu país está situado na Europa, ao norte de um rio chamado Danúbio. População: vinte milhões de habitantes. Povo de origem latina. Riquezas: petróleo e trigo. Outras características: a beleza das suas mulheres, de fama mundial. Não é assim?

Zeno, o valáquio, levanta, levemente, o pé do acelerador. A camioneta pára. Zeno larga o volante. As suas mãos pequenas e brancas procuram a mão direita do negro, uma mão negra, de gorila, que desejou estrangulá-lo, alguns minutos antes. Aperta a mão do negro com uma gratidão sincera e profunda.

- Obrigado, sir - diz o valáquio.

- Obrigado, porquê? - pergunta o negro.

- O senhor é o primeiro homem que sabe o que é um valáquio, o primeiro homem que sabe que os Valáquios existem. Toda a gente ignora que nós existimos. O senhor sabe-o. Isso faz-me chorar, sir. Estou tão contente que tenho vontade de chorar...

Zeno, o valáquio, tem os olhos cheios de lágrimas.

- Cada vez que digo a alguém que sou valáquio, é como se me insultassem: “O que é um valáquio? Nunca ouvi falar em tal coisa. Existe um povo de valáquios? É bizarro!” É o que me dizem. O senhor sabe, sabe mesmo que as mulheres valáquias são bonitas. Porque elas são bonitas, sir...

- Shut up! - ordena Max Embilint.

A amizade do valáquio irrita Max Embilint. O negro está furioso e desconfiado. Sabe que todas as vezes que um branco declara a um negro que é seu amigo, o negro deve esperar uma catástrofe.

- Arranca, boca suja - ordena Max Embilint.

Zeno, o valáquio, arranca. Não está zangado por o negro lhe chamar “boca suja”. É feliz. Encontrou um homem que sabe o que é um valáquio. Zeno diz tudo o que tem no coração.

- Um valáquio é um cristão, sir - diz Zeno, com entusiasmo. - Isto é o principal. Todo o resto é secundário.

O valáquio conta que, durante a segunda guerra mundial, os valáquios lutaram contra os sovietes.

- Eu, também me bati, sir. Durante quatro anos. Bati-me em toda a Rússia, na Ucrânia, na estepe Nogai. Por toda a parte. Um milhão de valáquios morreram por Cristo. Bati-me, estive prisioneiro na Sibéria, por Cristo. Poderia eu deixar de defender Cristo? Se nós, os cristãos, não defendemos o Filho de Deus, quem O defenderá?

Zeno, o valáquio, fala de Cristo, familiarmente, como de um irmão mais velho. Na boca de Zeno, a Igreja é a casa do Bom Deus e os cristãos são os seus guardiões. Defendem este bem terrestre contra os sovietes.

Max Embilint ouve, distraidamente.

- Dorme, sir? - pergunta Zeno, o valáquio.

O negro não dorme. Reflecte. Max Embilint compreende, perfeitamente, Zeno, o valáquio. Para compreender um valáquio é preciso ser negro e para compreender um negro é preciso ser valáquio.

Para compreender um negro ou um valáquio é preciso ter vivido milhares de anos na injustiça e na impossibilidade de agir.

- Sinto-me feliz por estar consigo, sir - diz Zeno, o valáquio. - É uma grande sorte para mim. Pode bater-me tanto quanto quiser. Fui espancado durante toda a minha estadia na Rússia. Estive prisioneiro na Sibéria. Não pode imaginar como os russos batem nos seus prisioneiros. Todos os polícias me bateram. Por toda a parte onde me encontrei, e sempre sem qualquer motivo. Neste momento sou feliz, sir.

- Tu és feliz porque vais ser espancado? - pergunta o negro.

- É a primeira vez que serei espancado por alguma coisa, sir - diz Zeno, o valáquio. - Até agora fui espancado por nada. Sem motivo e sem fim. Agora sei porque serei espancado. Serei espancado porque o senhor tem prestígio.

À luz do conta-quilómetros, o negro vê o rosto pálido do motorista valáquio, um rosto miúdo, de homem subalimentado, com um olhar triste. O negro está comovido.

- Meu pequeno valáquio, sabes tu que o rosto humano é uma cópia fiel do rosto divino e que é um pecado abandonar o rosto do bom Deus, isto é, o teu rosto receber bofetadas e escarros? Se tu deixas bater no teu rosto, é o rosto do Senhor que é esbofeteado. Tu deves defender o rosto de Nosso Senhor. Tu deves defender o teu rosto.

- Não se incomode com isso, senhor Embilint - diz Zeno. - Todos me escarraram na cara. Se o senhor, por sua vez, escarrar onde outros escarraram, isso não tem importância. Esbofeteará um rosto que todos esbofetearam. Sou valáquio. Os valáquios são como vós, os negros, sir. Pode espancar sem receio. Isto impressionará os canibais, dar-lhe-á prestígio. Não pense em mim. É para isso que eu estou aqui. Para as bofetadas e os escarros. Unicamente para isso, sir. O papel de motorista é secundário.

- Tu sabes porque é que vou a Icibolia? - pergunta, bruscamente, Max Embilint. - Stanislas Krizza disse-te porque é que vou ter com os evangelistas? Disse-te ele o que é que eu devo fazer junto dos missionários?

- Há coisas que não se explicam, sir - diz Zeno. - Certamente que sei. Não conheço os pormenores. Mas, em princípio, conheço o motivo que o faz ir até junto dos evangelistas.

É a primeira vez que Zeno, o valáquio, tem uma tal segurança na voz.

Sabe que Max Embilint vai para junto dos canibais com a intenção de matar os quatro missionários? Por conseguinte, Stanislas Krizza mentiu quando disse ao negro que os dois criados e o motorista ignoravam todo o plano?

- Tu julgas que é belo o que vou fazer? - pergunta o negro. - A tua consciência de cristão não está revoltada?

- A minha consciência está tranquila, sir - diz Zeno, o valáquio. - É bom que se passe assim. Muito bom mesmo.

Max Embilint procura o frasco de rum. O negro tem necessidade de rum para esquecer que vai matar quatro missionários. É um pensamento que não pode suportar. Tem de beber para não pensar mais nisso.

- Então, tu sabes e afirmas que está bem... - diz o negro.

Deixa cair a garrafa no estojo, sobre o peito.

- É o idealismo puro, sir - diz o valáquio. - Compreendo o seu gesto. Nós, os Valáquios, não somos estúpidos. Compreendemos sem palavras. Se me pedir para o conduzir ao café, sei que deseja beber qualquer coisa. Pede-me para o conduzir junto dos quatro missionários que arriscam a vida para converter os negros canibais. O senhor é, também, um negro. Eles cristianizam as pessoas da sua cor. O senhor vai para junto deles. É um acto de idealismo, e não se engana. Merecem que se dirija para junto deles.

Zeno, o valáquio, sorri, satisfeito.

“Ele ignora todo o plano, pensa o negro. Stanislas Krizza nunca mente. Desde o momento em que Krizza disse que o motorista não sabe nada, é porque não sabe nada.”

- Que prenda pensas tu que vou oferecer aos missionários? - pergunta Max Embilint.

- Não conheço os pormenores - responde o valáquio. - Mas sei que tornará felizes esses bravos missionários.

Max Embilint continua a beber. Já não ouve o que diz o valáquio. Sente que este está feliz, contente com ele, e com a sua lógica. Zeno possui uma lógica tipicamente valáquia, uma lógica fundada, exclusivamente, na confiança dos homens. O motorista é incapaz de imaginar que um homem possa ir à igreja, não para rezar, mas para roubar os objectos do culto ou assassinar o padre. Não passa pela cabeça de Zeno, o valáquio, que o negro se dirige para junto dos missionários, a fim de os matar. Um homem não vai procurar missionários senão com pensamentos piedosos. Tal é a sua lógica. A cabeça de Zeno, o valáquio, é muito pobre para imaginar o Mal. Zeno será, sem dúvida, condenado por cumplicidade no assassinato dos missionários de Icibolia. Conduz a camioneta do assassino negro. Parece impossível que ele ignore o plano do crime. Contudo, ignora. Não sabe nada. É um doente.

A doença de Zeno, o valáquio, é ele não poder imaginar o Mal, mesmo que o veja com os seus próprios olhos.

 

QUE se passa, sir?

Zeno pára bruscamente. Tenta acalmar o negro, que grita, agarra-se, com as duas mãos, ao assento da camioneta e lamenta-se imóvel, como uma estátua gigante, de antracite. Os olhos de Embilint parecem inchados e saem das órbitas. O branco está estriado de filamentos vermelhos, semelhantes a minúsculas flores de sangue. O assassino negro grita. É um grito que brota da carne, dos ossos, das entranhas e de todos os poros da sua pele negra.

- Sir, suplico-lhe! - diz Zeno, o valáquio.

Abre as duas portas e desce. Procura Xkon-Goa-Xob e Nakusanswa. Os criados, que dormiam no fundo da camioneta, desapareceram. Zeno, o valáquio, está só.

Até então Zeno não tinha ainda ouvido os gritos do negro. Stanislas Krizza, ele, conhecia-os. Todos os hoteleiros que tinham hospedado Max Embilint conheciam as suas queixas. Por vezes o negro agarrava-se com as duas mãos aos caixilhos das janelas e gritava como um animal enjaulado.

Então vinham os médicos. Diziam sempre:

- Delirium tremens.

Examinavam Max Embilint, depois corrigiam:

- O álcool é um factor importante no destrambelhamento e na intensidade das crises, mas não se trata de delirium tremens, nem de loucura alcoólica.

Os médicos não conheciam a doença de que sofria Max Embilint. Stanislas Krizza era um dos poucos homens sobre a terra que sabiam por que motivo gritava o negro.

- Porque grita, sir? - pergunta, sem interrupção, Zeno, o valáquio.

Está só e desesperado por nada poder fazer, as mãos nos ombros do negro. O grito parou tão bruscamente como começou. Na testa, faces e peito do negro, o suor jorra. A sua camisa de seda branca está ensopada. Leva o frasco de rum à boca. Bebe todo o rum do frasco, e estende-o a Zeno, o valáquio. O motorista abre uma cantina e enche o frasco. No momento de fechar a tampa da cantina, vê Xkon-Goa-Xob e Nakusanswa, que fugiram espavoridos no momento em que o negro tinha começado a gritar. Sobem para a camioneta, colocam de novo as cabeças sobre as cantinas e voltam a adormecer.

Max Embilint pega no frasco cheio e coloca-o no estojo. Está sossegado. Parece mais jovem dez anos.

- Porque é que gritou, sir? - pergunta Zeno. - Está doente, senhor Embilint!

- Let's go! - ordena o negro.

A camioneta arranca. Mas o grito do negro continua infiltrado na carne do valáquio. Durante a guerra da Rússia, Zeno viu morrer muitas pessoas. Ouviu os feridos lançarem gritos dilacerantes, homens chorarem e pedirem socorro, desesperadamente, pessoas rangerem os dentes de dor, quebrando os maxilares. Zeno, o valáquio, ouviu as queixas dos prisioneiros torturados durante noites inteiras, nas prisões. Mas nenhum de todos estes gritos se assemelhava ao do negro Max Embilint. Só os antepassados do negro deviam ter gritado assim quando tinham sido perseguidos em África e vendidos aos negreiros para serem levados para a América.

Max Embilint não sabe de que região de África são os seus antepassados. Nenhum negro da América possui árvore genealógica. Tudo o que Max sabe da sua família e dos seus antepassados resume-se nisto: depois de três gerações, a família Embilint possui uma fortuna de vários milhões de dólares.

Depois de quatro gerações, quer dizer, depois que os negros foram libertados, a família Embilint é proprietária de uma vasta empresa de Préstitos Fúnebres, para uso dos negros. Um excelente negócio.

A firma Embilint possui os seus cemitérios próprios, onde os mortos são enterrados sob contrato - por um período que vai da sua morte ao juízo final. Possui, também, oficinas onde se fabricam todos os artigos relacionados com a morte: caixões, flores artificiais, esquifes, cruzes, cartões de visita tarjados de negro, véus de crepe.

Max Embilint nasceu desta dinastia de coveiros milionários. Normalmente, deveria, neste momento, encontrar-se num dos sumptuosos escritórios da firma. Ele é - nominalmente - coveiro chefe e milionário. No entanto, encontra-se numa camioneta com um motorista valáquio, com Nakusanswa e com Xkon-Goa-Xob, e vai assassinar quatro jovens missionários.

Max Embilint é um assassino negro. Um assassino, apesar dos seus milhões. Um assassino como qualquer negro miserável e sem um dólar!

Mesmo milionários, os negros são feiticistas. Depois de quatro gerações, estes coveiros milionários desejam, com paixão, ter um intelectual na família, mas nenhum Embilint antes de Max tinha conseguido obter um diploma universitário.

Max Embilint tinha sido enviado pela família, com Cadillac e motorista, a todas as Universidades americanas onde um estudante negro podia entrar. Aí adquiriu todas as espécies de diplomas.

Max tem vinte e seis anos. Possui diplomas, de milhões de dólares, é um atleta e um belo rapaz. Na vida de Max Embilint aparece, então, como que para coroar todos estes êxitos, uma jovem de pele branca.

Chama-se Blanche Knorr. É uma colega da Universidade de Max. Blanche está apaixonada pelo negro. Ama-o loucamente. Contudo é impossível saber se Blanche está apaixonada pelos milhões de Max, pela cultura de Max, ou pela pele negra de Max.

- Não posso viver sem ti, Max querido - diz Blanche Knorr. - Quero ser tua mulher, Max, amo-te.

Ela diz a Max Embilint uma infinidade de coisas ternas. Conhece de cor o reportório das raparigas apaixonadas e recita-o com ardor a Max Embilint. Max está encantado, como o pode estar um negro adorado por uma jovem branca.

- Se tu não casas comigo, mato-me, Max - diz Blanche.

- Serei feliz por me casar contigo - diz Max Embilint.

Ele não tem coragem de dizer que existem certas dificuldades, mas Blanche responde-lhe, antecipadamente.

- Desde que dois jovens se amam, não há diferença de raça, de religião e de cor da pele que tenham - diz ela. - Todos os romances mostram que o amor é sempre o mais forte.

Blanche Knorr é filha de um agente de polícia. Tem dois irmãos, também agentes de polícia. O avô de Blanche Knorr é um agente de polícia, aposentado. Da mesma forma como na família negra de Max Embilint todos são coveiros, de pais a filhos, na família branca de Blanche Knorr todos são polícias, de pais a filhos. Nas veias dos homens Knorr corre sangue de polícia, como nas veias de Max sangue de negro. Blanche Knorr é a polícia. Max Embilint é o cemitério. A polícia e o cemitério são dois terminus. A polícia é o terminus da liberdade. O cemitértro é o terminus da vida. Mas a liberdade e a vida são a mesma coisa. A liberdade sem a vida e a vida sem liberdade são dois contra-sensos.

O negro nunca foi convidado para casa dos polícias brancos. Os Knorr vivem nos subúrbios, numa pobreza extrema, porque são avarentos.

Blanche Knorr vem, regularmente, a casa dos negros.

A mãe de Max Embilint chama-se Afrika Embilint. Todos os membros da família lhe chamam “Mãe Afrika”. Blanche Knorr passa horas inteiras com Mãe Afrika.

A mãe de Max Embilint é uma bela negra. É pequena, um pouco rechonchuda e coberta de brilhantes. É extremamente elegante. Blanche Knorr instala-se sobre o tapete, perto da poltrona de Mãe Afrika. Segura a mão da negra entre as suas mãos brancas e diz:

- Estou de tal maneira apaixonada por Max, Mãe Afrika.

Levanta os olhos. Blanche tem olhos azuis. Verdadeiras miosótis. Repete:

- Estou de tal maneira apaixonada por Max. Prometo-lhe fazer dele o marido mais feliz da terra.

- O céu faça com que vocês sejam felizes - diz Mãe Afrika.

Está comovida com o amor desta rapariga branca pelo seu filho negro. Mas Mãe Afrika tem medo. Mãe Afrika teria preferido ver Max apaixonado por uma rapariga negra.

A família Embilint habita uma vila sumptuosa numa cidade de praia, uma casa de três andares, de pedra de cantaria, com escadas de mármore e um parque.

Os Embilint recebem com prazer Blanche Knorr em sua casa. Sentem mesmo orgulho em que uma branca os visite diariamente. Só Mãe Afrika vive com receio.

- Todas as vezes que Blanche vem a nossa casa, tenho medo - diz Mãe Afrika. - É estúpido. Mas sempre que vejo a sua pele branca, como creme de chantilly, estremeço.

A mãe de Max tem boas razões para ter receio sempre que vê a pele branca e os olhos azuis de Blanche Knorr. Durante quatro gerações, a dinastia de gatos-pingados Embilint conduziu ao cemitério milhões de negros. A família Embilint está bem colocada para saber como morrem os negros. Mãe Afrika sabe que o número de negros mortos de cancro não é menos elevado que o número de negros mortos de morte violenta, porque eles tinham tido “histórias” com mulheres brancas. Os registos da Casa das Pompas Fúnebres não mentem.

Mãe Afrika sabe que: “homem negro + mulher branca = morte de homem negro”. É quase uma fórmula química.

- Os tempos mudaram - diz a irmã de Mãe Afrika.- Max e Blanche casar-se-ão legalmente. O resto é história antiga. Alguns jornais não escrevem que a legalidade entre os brancos e os negros é um facto consumado? Que a segregação já não existe?

Mãe Afrika dá o seu consentimento ao casamento de Max. Os polícias Knorr também. Só pediram uma coisa: que o casamento fosse celebrado na Europa.

- A fim de evitar complicações - diz o polícia pai. - Há, ainda, os espíritos retrógrados. É melhor casarem-se na Europa. Ali toda a gente é civilizada.

 

Max Embilint e Blanche Knorr partirão sós para a Europa. As suas famílias não assistirão ao casamento. No seu regresso de Roma, os Knorr e os Embilint festejarão o acontecimento com um banquete, de forma que nesta ocasião se encontrarão reunidas toda a família branca da polícia e toda a família negra do cemitério. Blanche encomendou o seu vestido de casamento e os seus fatos de viagem. Não comprarão nada na Europa. As suas malas estão prontas. Faltam três dias para a partida do barco.

As duas famílias estão felizes. Os jovens também. O casamento anuncia-se cheio de promessas de felicidade. Mesmo as angústias de Mãe Afrika desapareceram.

- Eu fui estúpida - diz Mãe Afrika. - Glória a Jesus! Nós vivemos num século civilizado.

É sábado. Blanche Knorr está fatigada. Há várias semanas que a bela noiva branca faz os seus preparativos de casamento. Todos os dias percorre as joalharias, as modistas, os costureiros, os sapateiros, os cabeleireiros.

Max foi extremamente generoso. Despendeu, sem contar, sem olhar, os cheques que assinava. Pode-se extinguir a luz em casa dos Knorr, sem se ficar na escuridão por completo: por toda a parte cintilam os diamantes de Blanche, as jóias de casamento, prendas de Max.

- Quero passar o fim de semana sozinha com Max - diz Blanche Knorr.

Está sentada no tapete, perto da poltrona de Mãe Afrika.

- Quero estar só com ele. Mais ninguém senão nós. Estou cansada.

- No barco estarão sozinhos os dois. Ninguém mais que vocês. Sozinhos. Sempre juntos. É natural que Max fique connosco antes da partida. Depois da vossa partida, ele será só teu, Blanche. Deixa-mo durante estes três dias. Não partam em fim de semana...

Mas Blanche resistiu.

Max tem um Porsche vermelho. Instala-se ao lado de Blanche. Atrás deles, as suas duas malas. Fora da cidade há uma estalagem isolada. Max e a noiva passaram já aí vários fins de semana. Max roda depressa. Gosta de conduzir. Blanche colocou a sua pequena mão branca sobre o ombro negro de Max Embilint.

A viagem não foi longa. A estalagem diante da qual o carro pára é isolada e tranquila. É um verdadeiro ninho para amorosos.

As duas primeiras salas do primeiro andar, onde a criada de quarto coloca as malas, comunicam entre si. Estão mobiladas com gosto. Não se podem chamar, propriamente, quartos de hotel. O dono aluga-os apenas a pessoas conhecidas.

Além do dono, da mulher e da criada de quarto, que arruma as malas nos quartos do primeiro andar, há, ainda, o cozinheiro. É um europeu, recentemente imigrado nos E.U.A. Sai da cozinha - blusa branca e barrete branco - para saudar Max Embilint e a noiva.

- Fico sempre satisfeito de vos ver em nossa casa - diz o cozinheiro.

Os jovens entram no restaurante da estalagem. Não há outros clientes.

- Hoje trabalho, exclusivamente, para vós - diz o chefe.

- Escalopes vienenses! - diz Blanche Knorr. - Dentro de três dias embarcaremos para a Europa. Assegurar-nos-emos se, em Viena, os schnitzels são melhores que os seus.

A quinta personagem do hotel entra na sala. É o jardineiro, que presta o serviço de porteiro.

- O carro está guardado - diz o porteiro. O patrão liga o pick-up. Conhece os discos preferidos por Max e por Blanche.

- Dança-se? - pergunta Blanche Knorr.

Está muito alegre. Os seus braços envolvem como dois véus a figura gigante do negro. Dançam. O chefe prepara os escalopes vienenses, a sua especialidade.

Pela janela, Max distingue um carro que entra no pátio da estalagem. É uma velha viatura descoberta, da cor dos carros militares. No automóvel estão dois irmãos de Blanche Knorr e dois outros rapazes. Max Embilint conhece um deles. É um campeão desportivo.

- São os teus irmãos - diz Embilint. - É amabilidade da sua parte virem.

A porta abre-se.

Os polícias do mundo inteiro não se divertem senão quando metem medo àqueles que os rodeiam. Os irmãos de Blanche Knorr e os seus amigos entraram no restaurante, os rostos encobertos com casulas. Max olha-os a rir. Continua a dançar.

Os quatro mascarados aproximam-se de Max Embilint. O negro finge medo. Max Embilint gosta de brincar. Todos os negros adoram brincar. Max Embilint deixa-se levar pelos quatro rapazes mascarados. Comporta-se, exactamente, como um negro que fosse tirado dos braços da rapariga com quem dança por verdadeiros membros do Ku-Klux-Klan.

Max Embilint ri às gargalhadas, enquanto os jovens o levam.

O disco continua a girar. O patrão, a mulher, a criada de quarto, o cozinheiro e o jardineiro aparecem à porta do restaurante e riem às gargalhadas. Blanche finge medo, também, chama os irmãos pelos seus nomes e experimenta - por brincadeira - salvar o negro. A chegada destes rapazes provocou uma verdadeira explosão de riso, de juventude e de alegria.

- Divertem-se - diz o patrão. - São muito alegres, estes Knorr.

Ri às gargalhadas. A brincadeira continua. É a farsa dos negros e do Ku-Klux-Klan.

Max é levado para fora do restaurante pelos homens de casula. É atirado para o carro descoberto. No momento em que os jovens o atiram para o carro, no lugar de trás, batem-lhe na cabeça. Ele grita:

- Sufoco! Parem!

Um dos irmãos Knorr coloca a mão enluvada na boca de Max Embilint. O negro não pode gritar. Debate-se. Consegue libertar a boca e grita:

- Vocês partem-me a cabeça, selvagens! - diz.

O irmão de Blanche Knorr consegue amordaçar de novo o negro com a sua luva de coiro castanho. Max sente uma nova pancada na nuca. Os rapazes continuam a brincar, apesar das contorções de Max.

- Vocês partem-me a cabeça, selvagens! - diz Max Embilint.

Liberta-se de novo e debate-se no fundo do automóvel. As suas pernas agitam-se no ar. Está de costas.

A mão enluvada amordaça, de novo, a boca de Max. Desta vez o negro irrita-se. É um colosso, duas vezes mais forte que qualquer dos quatro brancos.

Atiraram-no para o carro porque não opôs resistência. Pode lutar com quatro brancos. Embilint é um verdadeiro chimpanzé. Agora o chimpanzé está furioso. Já basta de brincadeira. É demasiado brutal.

Uma nova pancada - dir-se-ia uma coronhada de revólver - faz-lhe perder os sentidos.

Ao fim de algum tempo, uma luz que cega brilha diante dele. Uma luz de relâmpago. Uma luz súbita, de flash de fotógrafo. Uma luz de néon, com reflexos verdes. Max Embilint vê milhares e milhares de estrelas verdes, e compreende, bruscamente, que está nu. O seu corpo nu está estendido sobre o asfalto da estrada. Max sente o cheiro do alcatrão.

Ao mesmo tempo, sente um clarão verde afundar-se nos seus olhos e uma faca enterrar-se nas suas entranhas, com um outro clarão verde. Sente um terrível sofrimento, depois a dor desaparece. Sai do corpo de Max como que uma corrente eléctrica. Concentra-se, inteiramente, insuportável, no seu sexo, e depois extingue-se, subitamente, como uma luz, não há mais nada...

Um automobilista telefonou à polícia que um negro tinha sido linchado e abandonado no meio da estrada.

- Pareceu-me morto - diz o automobilista. - Enviem o carro mortuário mais cedo que a ambulância.

Teve a ambulância e o carro funerário. E uma infinidade de automóveis cheios de polícias, amontoados, apertados nas viaturas como sardinhas em lata.

A polícia descobriu primeiro o carro do milionário Max Embilint, voltado e incendiado, numa estrada secundária.

Max Embilint está nu. Jaz, sem sentidos, a cara contra a terra, sobre o asfalto, no meio do caminho, a alguns metros do carro incendiado. Os polícias medem a distância entre o corpo nu do negro e o carro de sport, fotografam o negro, estendido nu sobre o asfalto, o carro carbonizado.

Max Embilint foi mutilado. O seu corpo negro não tem outro traço de violência. Ele foi emasculado, é tudo.

Os polícias estão muito impressionados. Não pela linchagem: a linchagem de um negro é um facto banal que já não impressiona ninguém. Os polícias estão impressionados porque o negro não está morto.

- Isto não é possível - diz o chefe - depois de uma mutilação efectuada em tais condições!

O chefe dos polícias inclina-se sobre o negro.

- Respira - diz. - Isto não é lógico.

Um polícia é uma pessoa lógica. Antigamente a lógica era um ramo da filosofia. Hoje, nos países verdadeiramente civilizados, a lógica tornou-se num ramo da polícia. Antigamente, quando a sociedade não era civilizada, os especialistas em matéria de lógica eram os filósofos. Hoje, nos países evoluídos, a lógica está reservada, exclusivamente, à polícia.

O polícia é o único indivíduo que tem o direito de aplicar, oficialmente, a lógica em sociedade. Aquele que não é polícia ou não raciocina, exactamente, como um polícia, não é uma pessoa lógica. Descartes dizia: “Eu penso, logo existo.” O comissário de polícia diz: “Eu sou polícia, logo sou a lógica.” Fora da polícia não há lógica.

Os polícias olham para o corpo mutilado do negro, com os seus olhos de virtuosos da lógica. O chefe diz:

- Mesmo que respire, não pode estar vivo. Tem o sexo cortado. Depois de uma tal mutilação, não pode viver.

- Não só respira, como o seu coração bate - diz o médico-polícia.

- O coração bate? - pergunta o chefe. - Isso não é lógico, doutor!

Entre os inquiridores, encontra-se um dos irmãos de Blanche Knorr. O agente de polícia, Knorr, está desconcertado com este acidente. Efectuou, com o irmão e os dois amigos, uma operação que conduz, logicamente - quer dizer, inevitavelmente-, à morte. Conforme o plano dos Knorr e dos seus cúmplices, o negro deveria estar morto, depois de tanto tempo. Estavam de tal maneira seguros, que nem sequer lhe deram o golpe de misericórdia. Agora, o agente Knorr lamenta, terrivelmente, a sua imprudência.

Um vivo pode falar. O negro poderá dizer o nome daqueles que o lincharam. Evidentemente, ninguém acredita no que conta um negro, mas seria melhor ele não falar. Tudo teria sido tão simples se o negro estivesse morto... Consola-se pensando que, logicamente, o negro deverá morrer antes de conseguir falar.

Durante este tempo, Max Embilint respira. Cobre de bafo todos os espelhos que os polícias colocam diante dos seus lábios roxos. Nas sociedades civilizadas de amanhã, os polícias procederão de outra forma. Estabelecerão, em caso semelhante, a lógica e a ordem, fechando, com uma bala de revólver, esta boca negra que continua a respirar. Mas os E.U.A. não estão, ainda, civilizados a este ponto.

Os polícias fazem círculo à volta do negro mutilado. Estão atordoados.

Para matar um negro, a polícia dos Estados modernos, verdadeiramente civilizados, deverá descobrir outros métodos. O caso de Max Embilint é eloquente. Não se pode matar um negro de uma forma tão simples.

Normalmente, nos casos de linchagem, os autores nunca são descobertos. No caso de Max Embilint é diferente. O negro denunciou aqueles que o mutilaram, dando os nomes, os apelidos e as moradas dos criminosos. As declarações de um negro não têm grande importância. Abriu-se, portanto, um inquérito. É evidente que os irmãos de Blanche Knorr são bandidos. Tentaram matar o negro para se apropriarem das jóias, do dinheiro e dos objectos de valor oferecidos por Max. Esponsais e projectos de casamento não eram senão uma disposição cénica desses vadios. Mas o inquérito não se ocupa do roubo: quando o negro é linchado por membros do Ku-Klux-Klan - como no caso presente - não se procuram outros motivos.

A pele negra é um motivo suficiente para provocar um linchamento. As autoridades não têm necessidade de outro motivo: se eles existem, sejam jóias, dinheiro ou objectos de valor, como no caso Embilint, não se contestam, mas são motivos secundários. Só interessa o essencial.

Os irmãos Knorr esperam todos os dias que lhes anunciem a morte de Max Embilint. Os médicos são formais: “Depois de uma tal mutilação, o negro não pode viver.” Mas Max Embilint não está morto.

O inquérito começa. Max Embilint dirige-se, pessoalmente, a casa do juiz de instrução, acompanhado de advogados negros, advogados judeus e advogados católicos (os advogados judeus e os advogados católicos são os únicos que se prestam a uma acção tão baixa: defender um negro, acusando um branco).

Os advogados de Max Embilint pedem a detenção dos criminosos e o seu julgamento.

- Não se trata de um crime - responde o advogado da polícia. - Amputar a um negro alguns centímetros de carne e de pele negra, não é assassiná-lo.

- É lógico - diz o juiz.

Mas o juiz de instrução é um branco vicioso, o que é de notoriedade pública, nesta cidade do Sul. É alto, magro, doentio, e está possuído pelo vício da justiça. Tem a intenção de enviar diante dos tribunais os autores da linchagem. Sustenta que eles devem ser punidos, apesar da sua pele branca. Sustenta que a vítima tem direito à justiça, apesar da sua pele negra. Um tal argumento só pode ser o acto judicial de um indivíduo possuído pelo vício da justiça e da verdade. A justiça, a verdade e a virtude, se são normais, devem ser tomadas em pequenas doses. A justiça e a verdade são como o vinho. Nesta cidade rica, toda a gente bebe vinho, mas só os viciosos, os bêbados bebem em quantidades exageradas. Nesta cidade, todos os cidadãos são amantes de justiça, de verdade e de virtude, mas em pequenas quantidades. Só o juiz de instrução ama e pratica a justiça em doses anormais. É um vicioso, e os viciosos não conhecem a medida.

Por causa do seu vício ninguém ama o juiz. Nesta cidade, ninguém ama os viciosos. É uma cidade puritana.

Max Embilint emagreceu, mas é sempre um gigante. É sempre elegante. Apresenta-se ao juiz de instrução usando uma camisa de seda branca e um fato cinzento-azulado.

- Reconheci os irmãos de Blanche, logo que entraram na sala do restaurante, com as suas casulas - diz ele. - Ri e continuei a dançar. Toda a gente ria. Mas aquilo não era uma brincadeira.

Fazem vir o hoteleiro. Declara que nunca na sua vida tinha visto Max Embilint. Não o conhece. O juiz convida o hoteleiro a olhar atentamente para o negro.

O hoteleiro fita Max nos olhos, sem pestanejar, e diz:

- Nunca vi este homem. É impossível que me engane.

- Max Embilint tomou várias refeições na sua casa. Recorde-se - diz o juiz.

- Nunca - responde o hoteleiro.

O hoteleiro jurou dizer a verdade e nada mais que a verdade. O juiz sabe que o hoteleiro mente, mas não tem a prova.

Os juízes não fazem justiça ao que sabem, mas, sim, às provas que possuem. Só Deus sabe. Os juízes, que são, apenas, homens, não sabem. Devem apreciar a verdade, unicamente depois das provas.

O hoteleiro sai. Introduzem o cozinheiro, que tantas vezes preparou schnitzels à vienense, para Max Embilint e para Blanche Knorr.

O cozinheiro presta juramento. Olha Max Embilint, longamente, sem hesitar. Depois diz com uma voz melodiosa e clara:

- Nunca vi este homem.

O advogado de Embilint (um advogado judeu ou católico) diz:

- A testemunha talvez se tenha esquecido... Faça um esforço. A vítima foi várias vezes ao seu restaurante, sempre acompanhada de Blanche Knorr. Pediram-lhe para preparar schnitzels à vienense. Eles apreciavam-nas muito.

- Todos os clientes apreciam as minhas schnitzels - diz o cozinheiro. - Mas este homem, nunca o vi.

O cozinheiro sai. Não há prova alguma em como ele mente. Se existisse uma prova em como ele mente, o juiz detê-lo-ia. O juiz sabe, no entanto, que o cozinheiro mente. Mas o facto de ele o saber não lhe é útil em nada, falta de provas.

Está-se na presença do irmão de Blanche Knorr, aquele que conduzia o carro dos assassinos. Diz ao juiz com a sua segurança de polícia:

- Nesse dia, estive de serviço no comissariado. O meu chefe confirmou, por escrito, que não abandonei o comissariado em todo o dia.

- Isso é suficiente - diz o juiz.- Façam entrar o comissário principal.

O juiz é magro. Lê-se o vício na sua cara ossuda. A raça branca produziu inúmeros viciosos como este juiz. Tudo o que existe com respeito a progresso, ciência, cultura é obra destes viciosos, de pessoas consumidas pelo vício implacável da verdade. Estes indivíduos preferem deixar-se queimar vivos a dizer que dois e dois são cinco. Estão prontos a dar a sua vida por esta coisa sem importância. O vício da verdade é terrível.

O vício da verdade e da justiça faz emagrecer: este juiz de instrução não tem mais do que a pele e os ossos. A doença de que sofre corrói-o como um cancro do estômago ou uma tuberculose pulmonar. Tem o rosto emaciado dos grandes viciosos da verdade e da justiça.

- O agente Knorr está sob as minhas ordens - diz o comissário. - Não abandonou a repartição durante todo o dia. Um homem não pode estar presente, ao mesmo tempo, em dois lados situados a oitenta quilómetros um do outro. As declarações da acusação são absurdas. Só semelhante corja pode afirmar tais coisas.

A corja em questão são os advogados judeus, os advogados católicos, os advogados negros. Ele tem razão. Estas pessoas recusam-se a ser lógicas. Recusam-se a aceitar como única verdade a verdade da polícia, como fazem os cidadãos civilizados. Estes são os elementos perigosos.

O juiz folheia o registo do comissariado.

- Vê-se, claramente, pelo exame deste registo, que o agente Knorr esteve presente na repartição, sem interrupção - diz o juiz. - Agradeço o seu depoimento.

Um registo da polícia não pode mentir. O registo da polícia é o evangelho do Estado moderno.

É apresentado, por sua vez, um dos amigos dos agentes Knorr, um dos jovens que participaram na linchagem. Max Embilint reconhece-o. Lembra-se de o ter visto entrar na sala do restaurante, com os outros três.

- Nesse dia, eu estava no ginásio - diz o jovem. - Preparava-me para um combate. Sou pugilista profissional. O meu parceiro pode confirmá-lo.

- Não é necessário - diz o juiz. - O empresário, os massagistas e todo o pessoal da sala de ginástica confirmam as suas declarações.

O juiz não pode acusar o pugilista de mentira. Um pugilista é um desportista. É do conhecimento público que um desportista é um homem honesto e recto. Nos países civilizados diz-se: “Sê desportista” para dizer: “Sê honesto”.

- Façam entrar Blanche Knorr - diz o juiz. Faz-se um grande silêncio. Blanche Knorr traz um vestido cor-de-rosa, original. Usa uma capelina de seda branca, com grandes abas, guarnecida de flores cor-de-rosa como o vestido.

É uma rapariga de vinte e quatro anos, dois anos mais nova que Max Embilint. Anda como se estivesse em cena. Dir-se-ia uma heroína de opereta vienense.

- Não me recordo de ter falado com Max Embilint - diz Blanche Knorr. - Sei, por ouvir dizer, que um estudante chamado Max Embilint frequentava a mesma Universidade que eu, mas nunca lhe falei.

- Você foi muitas vezes a casa dele, ao domicílio da família Embilint - diz o juiz com gravidade.

- Não sei mesmo onde se encontra a casa de que me fala - responde Blanche Knorr, com candura. - Não tenho preconceitos raciais, mas nunca tive ocasião de entrar na casa de um negro. Nunca.

- A senhora Afrika Embilint, a mãe da vítima, declara que você frequentou, regularmente, a casa dela - diz o juiz.

- Nesse caso os vizinhos deveriam ter-me visto lá entrar - diz Blanche Knorr, com a sua voz terna e virginal. - Há algum que me tenha visto entrar nessa casa ou de lá sair?

- Ninguém disse tê-la visto - diz o juiz. - Nenhum cidadão desta cidade tem a coragem de vir aqui, para dizer a verdade. Os cidadãos desta cidade viram-na - quase todos - entrar na casa Ernbiliut. Apesar disso, guardam silêncio. Têm medo. São cobardes.

O silêncio reina, mas Blanche Knorr continua a sorrir. Assemelha-se às jovens virgens pintadas sobre as tampas das caixas de bombons.

- Uma outra pergunta - diz o juiz. - Reconhece ter estado noiva de Max Embilint, com quem devia partir para a Europa, a fim de celebrar o casamento?

- É impossível, senhor juiz - diz Blanche Knorr. - Como podia eu estar noiva de um homem que nunca vi?

- E não esteve, tão-pouco, com ele na estalagem, no dia do crime? - pergunta o juiz.

- As testemunhas declararam que nunca pus os pés nessa estalagem - diz Blanche Knorr.

Sorri sem parar, um sorriso fresco, como um botão de rosa.

A figura magra e ossuda do juiz alonga-se de dor, como as figuras dos mártires sobre os ícones bizantinos. É de uma magreza inverosímil, e continua a emagrecer, diante dos olhos das pessoas na sala. O juiz emagrece alguns gramas, após cada falso testemunho. É escravo do vício implacável da justiça e da verdade.

- Então, nunca foi àquela estalagem? - diz o juiz.

- Naquela tarde, fui a uma reunião - diz Blanche Knorr. -Estive com um grupo de cerca de vinte amigos e amigas.

- É verdade - diz o juiz. - Vinte jovens desta cidade declararam que, naquela tarde, dançou com eles, que não os deixou um só instante, que estiveram a dançar juntos até à meia-noite.

O juiz faz outra pergunta.

- Há uma lista de jóias, de sapatos, de modistas, de costureiros, onde Max Embilint comprou prendas de um valor inestimável. Estas prendas não foram compradas para si?

- Não - responde Blanche Knorr.

Cora e acrescenta: - Ele, provavelmente, comprou-as para alguma negra.

- Não compraram juntos os vossos bilhetes para o barco? - pergunta o juiz.

- Não - diz Blanche Knorr. - Isso é uma calúnia.

Blanche Knorr sai. Tem um andar modesto. Parece-se, exactamente, com as imagens pintadas nas caixas de bombons.

Fazem entrar o director da agência de viagens, que vendeu a Max Embilint e a Blanche Knorr os bilhetes para a Europa.

- Os registos da Companhia mostram que nunca vendemos a estas pessoas bilhetes para a Europa. Os bilhetes são estritamente pessoais. Nem o nome da menina Blanche Knorr, nem o do negro Max Embilint figuram na lista dos nossos clientes. Além disso, todos os bilhetes para a Europa estão vendidos há muito tempo. E a estação das viagens para a Europa.

- Está certo de não ter vendido bilhetes a Blanche Knorr e a Max Embilint? - pergunta o juiz.

- Absolutamente certo - responde o director da agência de viagens.

O juiz anuncia que a instrução do processo está encerrada. A queixa de Max Embilint não fica pendente por infundada. Não há nenhuma prova que o seja.

- As leis do nosso país são admiráveis - diz o juiz. - Concedem uma protecção igual a todos os cidadãos, sem diferença de cor.

Se todos os cidadãos de uma cidade se põem de acordo para infringir a lei, a lei é infringida. O juiz não pode nada. E a lei nada vale. É como se não existisse a lei.

 

Depois da conclusão dos autos de Max Embilint, os negros da cidade caíram numa tristeza mortal. Não há um único negro na rua. Todos se encerraram nas suas casas.

A casa da família Embilint está iluminada, mas todos os cortinados estão corridos. Na casa estão reunidos Mãe Afrika, Embilint pai, Max Embilint, os parentes e os conhecidos, os advogados negros, os pastores negros, os curas negros, os pregadores negros.

- É muito grave - diz um dos advogados negros.

Todos o escutam. Os negros estão no salão. Afirmam em coro:

- É grave.

Os criados negros servem aos convidados, em bandejas de prata, limonadas e diferentes bebidas, mas ninguém lhes toca. Os copos continuam cheios nas bandejas de prata. Os negros não têm senão uma palavra na boca: “É grave.”

Durante a segunda guerra mundial, os negros combateram ao lado dos brancos. Prometeram-lhes que teriam direitos iguais aos brancos. Mantivera-se a promessa. As leis existem. Mas a legalidade não tem o mínimo valor se ela está, unicamente, na letra da lei.

Max Embilint foi linchado, foi odiosamente mutilado, e, contudo, todas as testemunhas afirmam que não era verdade. O inquérito está encerrado, falta de provas.

Max Embilint, em casa, desrolha uma garrafa de rum e leva-a à boca. É a primeira garrafa de rum na vida de Max Embilint. Bebe a garrafa inteira. Bebe para esquecer onde se encontra, como um homem fecha os taipais da sua casa para não saber se é dia ou se é noite. Para nada saber do exterior, para romper as pontes com o mundo exterior. Max bebe como se cortasse o fio do telefone, para não ouvir qualquer voz vinda do exterior. Max Embilint está só. Todos os brancos da cidade estão contra ele. Sofreu um julgamento iníquo. Foi lançado na injustiça porque a sua pele é negra.

Ninguém entre os antepassados de Max Embilint, ninguém entre os seus irmãos de cor, ninguém entre centenas de milhões de negros que respiram na hora actual sobre a terra, ninguém, ainda, encontrou solução para impedir esta expulsão da cidade e este exílio na injustiça, na solidão, no desprezo. Este exílio, o pior de todos, é preciso ser-se negro para o conhecer.

Os negros lutaram para conseguir leis a seu favor. Estas leis existem, mas não servem para nada, tão-pouco como as boas intenções e os esforços dos juízes roídos pelo vício da justiça. O caso Embilint demonstra, uma vez mais, que as leis podem ser excelentes (e as leis dos E.U.A. são excelentes), mas os negros que fiquem sós, exilados fora do mundo da justiça. A falta deve-se à cor da sua pele.

A rapariga branca que Max amou, que beijou, a quem ofereceu prendas, disse: “Eu nunca vi este homem.” Por causa da sua pele. O hoteleiro jurou que nunca tinha visto Max. Tudo isto porque a pele de Max tem a cor da antracite.

Mas os negros têm, também, paciência e estão imunizados contra a dor.

Ora, na sala contígua ao salão há um aparelho de rádio e deste aparelho de rádio chega até ao salão uma voz estrangulada pela emoção. É a voz de um locutor que grita a plenos pulmões que Max Embilint tem razão.

Mãe Afrika levanta-se e volta o botão para aumentar o som:

- Milagre! - diz Mãe Afrika. - Eu bem sabia que há um Deus no céu que ama as pessoas, mesmo que sejam negros! Milagre!

Os habitantes da cidade recusaram render justiça a Max Embilint, mas nesta ocasião ouve-se uma voz na rádio que diz que Max tem razão.

O botão do posto aberto até ao fim, os criados negros, os milionários negros, os pastores negros estão imóveis.

Os lábios que, toda a noite, não tinham pronunciado senão uma só palavra (“É grave”) gritam agora em coro:

- Milagre!

- Max Embilint tem razão! - clama a voz no aparelho de rádio. - Todos ao lado de Max Embilint!

Os negros levantam-se, dirigem-se para o aparelho, fazem círculo à volta dele. Desejariam pôr-se de joelhos, beijar os pés do homem que disse que Max Embilint tem razão.

Mãe Afrika soluça, de joelhos, diante do aparelho. Arranca as pérolas que lhe rodeiam o pescoço, arranca os brincos das orelhas, os anéis de brilhantes e estende-os - de joelhos - ao homem que, na rádio, fala a favor de seu filho. Mãe Afrika grita:

- Milagre!

Todos os negros que a rodeiam repetem: “Milagre!” As negras milionárias imitam Mãe Afrika, tiram as jóias para as oferecerem ao homem que diz a verdade num momento extremamente grave, ainda que ninguém queira dizer a verdade.

Os homens levam a mão ao bolso. Desejariam deitar as suas carteiras, os seus livros de cheques, ao homem que diz a verdade.

A voz do microfone continua. Os negros calam-se. Seguram-se pelas mãos e escutam.

A voz diz que as testemunhas brancas mentiam, que os assassinos estavam em liberdade porque se trata de polícias, que Max Embilint é uma vítima, que todos os negros são vítimas.

- É preciso que isto mude! - grita a voz que defende os negros. - É preciso que cada negro tenha a sua ração de justiça. Os negros são homens. Todos, pela defesa dos negros! Pela defesa de Max Embilint!

No salão Embilint, os negros ouvem e choram.

- O drama negro deve ter fim - diz a voz da rádio. - O crime cometido contra Max Embilint não se repetirá. Hoje os negros não estão sós. Moscovo está com eles...

A voz torna-se firme e clara.

- Aqui, a voz de Moscovo. Irmãos negros de toda a terra, escutam a voz de Moscovo.

A família de Max Embilint é uma família de milionários. Excepto os pastores, os advogados e os criados, todos os negros deste salão são milionários. Mas reconhecem que Moscovo diz a verdade, e choram.

Há milhares de anos que ninguém ousava dizer a verdade. Não se diz a verdade senão nas igrejas - e nem sempre. Moscovo ousa. Os negros choram de alegria por já não estarem sós. Moscovo convida-os a saírem do subsolo da História e da Sociedade, a deixar os túneis da solidão e as trevas do exílio.

Na hora em que os negros não encontram senão uma palavra para dizer (“É grave”), na hora em que todas as pessoas da cidade, em que todos os jornais estão contra Max Embilint, só Moscovo diz a verdade. Os países da velha cultura da Europa não estão com Max Embilint, nem com os negros.

Os países da velha cultura são pobres. Mendigam dólares junto dos americanos. Não podem sacrificar estes dólares para defender os negros. Não há senão uma voz para os defender, é a Voz de Moscovo.

Mas isto não é tudo.

Durante toda a noite, Moscovo defendeu Max Embilint, em todas as línguas e em todos os comprimentos de onda.

A justa causa de Max Embilint foi defendida - uma noite inteira - por centenas e centenas de postos emissores, a fim de que a verdade relativa aos negros penetre em todos os ouvidos, para que as ondas da justiça penetrem nas pedras, na terra, nas paredes, na carne dos homens, na casca das árvores, no asfalto dos caminhos. A verdade sobre Embilint e sobre os negros foi clamada por toda a parte, a fim de que ela se enterre nos ouvidos daqueles que estão sobre o mar, que voam nos ares, que estão nas suas casas, que estão nos bares, nas montanhas, nas planícies...

- É preciso que isto mude! Max Embilint tem razão. Os negros têm direito à sua ração de justiça e de respeito. Os negros são homens!

Presentemente, os negros deixam as suas casas. Juntam-se na rua em grupos. Já não se sentem banidos da Sociedade. Nas ruas desta rica cidade termal, os cortejos de negros formam-se e dirigem-se para as igrejas, para os templos.

Todos os negros da cidade invadem a rua. Comprimem-se todos nas igrejas. Os ricos, os pobres, os milionários, os mendigos, todos, lado a lado, atiram-se para as igrejas e caem de joelhos.

Os negros da cidade suplicam à Virgem Maria e a Jesus a vitória, a felicidade de Moscovo.

Max Embilint, ele, está embriagado. Sai, no entanto, para a rua, segue o cortejo, chega à igreja. O milionário Max Embilint está de joelhos e pede à Virgem Maria e a Jesus, seu filho, pela vitória de Moscovo, embora saiba que Moscovo mata os milionários.

- Primeiro que milionário, sou um negro - pensa. - Os negros são uma raça de proletários. Mesmo que sejam milionários.

Max, o milionário, pede, contudo, pela vitória daqueles que matam os milionários.

E, no dia seguinte, Max Embilint escreve uma carta de agradecimento a Moscovo.

 

DESDE que Max Embilint escreveu para Moscovo a sua carta de agradecimento, duas semanas são passadas.

A resposta chega. Max Embilint foi convidado a ir a Moscovo, ao país onde a justiça é a mesma para os negros e para os brancos.

- Não partas, Max - suplica Mãe Afrika. - Eu tenho a certeza de que é mau partires.

- Nada ali pode haver de pior do que o que conheci.

Max está embriagado. Desde o fim do inquérito está sempre a beber. Depois de ser mutilado fala pouco, é brutal.

- Fica na tua pátria - diz Mãe Afrika. - Fica connosco.

- A minha pátria? - pergunta Max Embilint.

- Qual pátria? Onde é que se encontra a pátria dos negros?

- A América é a nossa pátria - diz Mãe Afrika.

- Ao princípio, nos E.U.A., havia um branco para cem negros.

- Um patrão branco e cem escravos negros - diz Max.

- É certo - responde Mãe Afrika. - Mas havia um branco e cem negros. A América é a nossa pátria.

Max já não a ouve.

No dia da partida todos os negros estão presentes, não só os negros da cidade, mas os de toda a região.

Cada negro tem a impressão de que é um pouco dele que parte, porque é um homem da sua cor que vai a Moscovo. Experimentam o mesmo sentimento que os fiéis de uma comunidade religiosa, quando um dos seus membros se dirige a Jerusalém: assim, todos os fiéis que ficaram em suas casas tem a impressão de se ajoelharem com o peregrino nos Lugares Santos.

O embaixador soviético vem cumprimentar Max Embilint. Pára a limusina preta diante da casa da família Embilint. Espera Max. Este desce os degraus, cambaleando, e sobe para a limusina, ao lado do embaixador. O negro está sentado à direita do embaixador. Atrás da limusina forma-se um cortejo composto por centenas e centenas de carros, ocupados por negros. Os negros acompanham Max ao aeroporto. O embaixador de Moscovo é aclamado como o seria Jesus, se voltasse à terra.

Mulheres negras aproximam-se da limusina onde estão sentados Max e o embaixador. Com gestos piedosos tocam com a ponta dos dedos o fato do embaixador, com tanto fervor como se tocassem relíquias milagrosas.

O avião com estrela vermelha está na pista. Um frémito de esperança percorre a multidão de negros, como uma corrente eléctrica. Começam a cantar. Balançam-se à medida que cantam cânticos religiosos e salmos.

O avião descola.

Os negros não pensam senão na muito pura e muito santa Virgem Maria. Olham para o céu. Não pensam em Max, nem no avião, mas em Jesus. O avião da estrela vermelha levanta-se para o céu.

Max Embilint está instalado no avião. Na véspera comprou um soberbo estojo de coiro, no qual colocou um frasco cheio de rum. O estojo com o frasco de rum cai sobre o peito de Max Embilint. Como pendem sobre o peito dos turistas as máquinas fotográficas.

Max Embilint bebe como um homem que corta o fio do telefone. Não deseja estar lúcido. Não espera mais nenhuma novidade do exterior. Bebe para se desligar do mundo exterior.

Max Embilint é recebido em Moscovo com flores e bandeiras. No aeroporto há delegações de trabalhadores e alunos de escolas empunhando cartazes. Uma multidão imensa. Jovens, sobretudo. Todos se deslocaram para receber o negro, para ovacionar Max, para saudar Max, para lhe desejar boas-vindas a Moscovo, para o aplaudir, a ele, o negro mártir, a vítima dos burgueses e dos capitalistas.

Max lê um cartaz redigido em inglês.

- Isto não é verdade - diz o negro. - Eu não sou uma vítima do capitalismo. O capitalista sou eu. O milionário sou eu. Os meus agressores são pequenos agentes de polícia. É necessário escrever no cartaz: “Um milionário martirizado por pequenos funcionários.”

- Nós saudamos o camarada proletário. Max protesta. Nunca ninguém chamou “proletário” a um Embilint milionário.

- Eu não sou um proletário - diz.

- Todo o negro é um proletário - afirma o intérprete. - A raça negra é uma raça de proletários. Todos os negros são proletários.

- É verdade - diz Max. - A noção de proletário deve ser vasta. Nós, os milionários, somos, também, proletários, se somos negros. À vossa saúde!

Max Embilint bebe rum pela garrafa suspensa do seu pescoço. Está contente por ter comprado este estojo. Terá muitas vezes necessidade de beber.

A recepção em honra de Max é organizada pela polícia. Os estudantes vieram ao aeroporto por ordem. Os jornais falaram do caso Embilint. Em Moscovo, toda a gente conhece Max. As pessoas vieram ao aeroporto, porque nunca viram um negro de perto.

- Porque choram estas crianças? - pergunta Max Embilint ao intérprete.

Passa entre duas filas de pequenos estudantes, que trazem cartazes e ramos de flores em sua intenção. Algumas meninas choram e olham para o chão.

- É por causa dos sofrimentos dos negros - diz o intérprete.

Mas as crianças de Moscovo não choram por causa da situação dos negros nos E.U.A., nem porque Max Embilint tenha sido mutilado pelo Ku-Klux-Klan. As crianças de Moscovo ouvem falar, diariamente, de torturas, de carnificinas, de mutilações monstruosas. Vertem grandes lágrimas porque Max Embilint é negro. Mesmo os soldados, levados neste turbilhão de ternura, têm lágrimas nos olhos, logo que vêem Max mais de perto. Todas as presentes no aeroporto são solidárias do negro. Choram porque têm piedade dele e têm piedade dele porque ele tem a pele assim tão negra.

Na Rússia, beleza é sinónimo de brancura. Ser belo significa ter as faces brancas. As mulheres de Moscovo utilizam, unicamente, pó branco. Quanto mais branca é a sua cara, mais bonita é a mulher. Ser negro quer dizer ser feio. A pele negra é sinónimo de hediondez.

As pessoas de Moscovo choram de piedade por Max Embilint, que é tão feio, isto é, tão negro, e a sua piedade transforma-se em afeição.

Desde o princípio Max é amado como se amam os deserdados da sorte, aqueles a quem falta o nariz, ou as pernas, ou os olhos. É feio.

Os desconhecidos testemunham-lhe a sua amizade ardente e sincera e a sua solidariedade, a soberba solidariedade humana para com aqueles que a natureza desfavoreceu.

Max Embilint não tinha imaginado que os brancos pudessem amar um negro a este ponto, unicamente porque ele é negro. Em Moscovo tudo é o contrário do que se passa noutra parte. Em Moscovo, julgar-nos-íamos noutro planeta.

O drama de Max Embilint provém do facto de Max ser negro e nascido nos E.U.A. Se ele tivesse visto pela primeira vez o dia noutro país, Max Embilint não teria sido emasculado. Mas os americanos não suportam o negro, como os touros não suportam o vermelho.

Em Moscovo dá-se o contrário. A pele negra de Max Embilint torna-se num motivo de amor. Os moscovitas detêm Max Embilint na rua e dizem-lhe:

- Nós temos uma grande simpatia por si.

- Mas não me conhecem - diz Max.

- Nós amamo-lo porque tem a pele negra - diz o russo.

O russo não mente. Mas é uma sensação bizarra para um negro dos E.U.A. que se ouça dizer tais palavras por um branco. Em Moscovo, a cor preta não provoca no branco a sede do crime.

Os moscovitas comem à mesma mesa que Max Embilint. Dormem no mesmo hotel que Max. E os brancos de Moscovo não se levantam, de noite, devorados pela sede de matar o negro. Max é tratado com o carinho que se dedica às crianças doentes.

Se Max Embilint tivesse quatro orelhas ou duas bocas, gozaria da mesma simpatia, porque ser negro é uma infelicidade igual à de ter duas bocas ou quatro orelhas.

No entanto, a vida do negro, em Moscovo, complica-se, por outros motivos, de ordem política. Max tem simpatia sincera pelos comunistas. Mas, apesar disso, torna-se numa preocupação para a polícia.

Todas as vezes que o negro passeia pelas ruas, homens, mulheres que ele não conhece, detêm-no, para lhe provar a sua simpatia relativamente aos negros. Max agradece-lhes. Discute com os brancos de Moscovo. Os russos fazem perguntas com gentileza. Mas estas conversas tornam-se perigosas. Os russos perguntam a Max:

- A injustiça de que sofrem os negros nos E.U.A. é terrível?

- Sim, terrível - responde Max Embilint.

- Nós, os soviéticos, somos civilizados. Amamos os negros. Não somos racistas. Você sentir-se-á à vontade entre nós.

Max Embilint agradece. Ouve a pergunta seguinte, uma pergunta que se faz entre amigos:

- O salário dos negros é muito inferior ao salário dos brancos, nos E.U.A.?

- Bastante inferior - responde Max. - Confiam-se aos negros os trabalhos ignóbeis, humilhantes e mal retribuídos, os trabalhos que nenhum branco desejaria executar.

Os russos estão indignados porque os americanos mandem os negros limpar as latrinas e desentupir os esgotos.

- Qual era o seu salário nos E.U.A.? - pergunta o russo.

- Pessoalmente, era bem pago - responde Max.

- Quanto ganhava? - insiste o russo. - Quantos dólares por dia?

O russo quer saber tudo deste homem negro pelo qual sente simpatia. O russo faz a pergunta de maneira mais concreta.

- Quantos pares de sapatos podia comprar com o seu salário de um ano?

- A minha situação pessoal é um pouco especial - diz Max Embilint. - Poderia comprar todos os meses vagões cheios de sapatos com o dinheiro que ganho. Faço parte de uma família de milionários.

- A sua família não é negra? - pergunta o russo. - O seu pai e a sua mãe não são negros?

- O meu pai e a minha mãe são negros - responde Max.

- Haverá, então, negros milionários nos E.U.A? - pergunta o russo.

- Sim. Eu, por exemplo, sou um milionário negro.

- E a polícia não confisca os seus milhões? - pergunta o russo. - A polícia não confisca os milhões dos negros?

- Não - responde Max-, a polícia não confisca os milhões dos negros.

- Mas, então, os negros não são perseguidos nos E.U.A.? - pergunta o russo.

Chegada a este ponto, a discussão torna-se dramática. Max Embilint ama os russos. Os russos amam Max Embilint. Contudo, não se podem compreender. Um russo não pode compreender que um indivíduo possa ser, ao mesmo tempo, perseguido e milionário. Se um homem é perseguido, começa-se por se lhe confiscar o dinheiro, a casa, os móveis, o vestuário. Na Rússia, é assim. O primeiro sinal da perseguição é a confiscação dos bens. O segundo é a prisão, o envio para a Sibéria, Manchúria ou Urales. Se a perseguição se agrava, o indivíduo é fuzilado. Sem estes três sintomas, a confiscação dos bens, a prisão e, eventualmente, a morte, não existe perseguição. Um russo não concebe que um indivíduo possa ser perseguido sem ser preso.

- Não lhe é permitido ir aos hotéis? - pergunta o russo. - Se um negro chega, de noite, a uma cidade, é obrigado a ficar na rua, mesmo em pleno inverno. (Os negros não têm autorização de ficar nos hotéis dos brancos: está escrito na Enciclopédia soviética.)

- É verdade - diz Max Embilint. - Os negros não têm autorização de entrar nos hotéis dos brancos. É terrivelmente humilhante. Mas há hotéis para os negros.

- Os hotéis para os negros devem ser miseráveis, sem janelas, sem aquecimento, sem luz. Nós imaginamos o que será um hotel para negros.

- Há hotéis de toda a espécie para os negros - diz Max Embilint. - Há hotéis miseráveis, mas há, também, palácios, tão bons como os melhores hotéis para brancos.

Os russos não compreendem. Visto que os negros possuem palácios, isto quer dizer que não são perseguidos.

- As crianças negras são obrigadas a ficar analfabetas, visto que não têm autorização para irem às escolas - diz o russo.

- Há escolas para negros - diz Max Embilint.

- Escolas para todas as classes. Eu próprio frequentei cursos nessas escolas.

- Mas as leis dos E.U.A. perseguem os negros? É uma perseguição sangrenta? - diz o russo.

- As leis americanas consideram os negros como iguais aos brancos - responde Max Embilint. - As leis americanas não perseguem os negros. São os brancos que impõem a segregação e que perseguem os negros. Não são as leis, mas os homens.

Os russos calam-se. Não compreendem que um cidadão possa infringir a lei. Se a lei e a polícia declaram que uma coisa é assim, a coisa é assim. Ninguém pode deixar de executar a vontade da polícia. Tudo o que chega à Rússia é por vontade da polícia. É inconcebível que os cidadãos possam pensar ou fazer outra coisa que não seja o que ordena a polícia. Max Embilint fala aos russos de coisas incompreensíveis para um russo. Por sua vez, os russos contam coisas inconcebíveis para um americano. Desejam, ardentemente, compreender-se, mas é impossível. A única coisa que lhes resta fazer é separarem-se e calarem-se.

Max Embilint afasta-se do grupo dos brancos, que o olham com ar desconfiado. Atravessa a rua. O negro está só, de novo. Bebe. O estojo de coiro pende do seu pescoço como uma máquina fotográfica. Desde que Max não pode ter contacto com as pessoas de Moscovo, não é preciso estar lúcido. Bebe, portanto, rum. Cada vez mais.

É, talvez, o destino do negro estar só - pensa Max Embilint. Acaricia o estojo de coiro, que encerra o frasco de rum. Está só.

Mas, além desta solidão, outra coisa o preocupa: é a amputação do seu sexo. Não se trata de uma cicatriz. A ferida está fechada e não faz doer. Trata-se de uma coisa bem mais grave. Uma vez este pedaço de carne amputado, Max Embilint mergulhou na tristeza.

O homem vive com um só pulmão, com um só rim, com um só olho, ou, mesmo, sem olhos. Mas a amputação sofrida por Max Embilint provoca um sofrimento no espírito. Levaram-lhe, ao mesmo tempo, os seus sonhos, o seu entusiasmo, a sua ânsia de viver e os seus desejos. Toda esta febre que se chama “viver” tem a sua origem neste pormenor anatómico.

- Assassinos - diz Max Embilint. - Teriam feito melhor se me matassem.

A vida de Max Embilint é cinzenta. Os médicos não podem ajudá-lo. Moscovo possui grandes médicos. Examinaram Max Embilint. Os médicos têm à sua disposição olhos sobressalentes, pés sobressalentes. Mas o que Max perdeu não pode ser substituído.

Max continua a beber rum. Um litro por dia. Bebe como se fechasse os estores das janelas, e fica só, nas trevas.

 

A solidão e a desgraça do negro agravam-se, de dia para dia. Moscovo é para Max Embilint um lugar de sofrimento.

- Tu sentes-te infeliz porque não tens nada que fazer - diz o director dos Negócios Negros, de Moscovo. - Porque não trabalhas?

- Não tenho necessidade de dinheiro - responde Max Embilint. - Para que trabalhar?

- Tu és negro e deves trabalhar - diz o director. - Para que possa viver, não é suficiente que um negro tenha dinheiro. Tu tens milhões e, apesar disso, foste linchado, castrado. À parte o dinheiro, os negros têm, também, necessidade de liberdade, de igualdade. Os milhões de dólares não livram um negro da lei de Lynch, nem das humilhações, nem da emasculação.

- É justo - diz Max Embilint. - Mas eu não posso mudar a face do mundo. Não posso fazer com que os brancos amem os negros. Não posso obrigar os brancos a comer à mesma mesa que os negros sem que sintam náuseas, nem a receber os negros nos seus hotéis sem ter insónias e sem que sejam tomados duma febre homicida. Não posso nada. Não passo de um negro, um negro solitário, mutilado e alcoólico.

- Deixa de estar só - diz o director dos Negócios Negros. - Um homem solitário é, antecipadamente, um vencido. Os negros devem abolir a solidão; de outra forma estão definitivamente perdidos.

- Um negro está condenado à solidão na vida - diz Max Embilint. - Como posso eu acabar com a minha solidão?

- Deves alistar-te - diz o director. - Existe um Departamento de Negócios Negros. Recuperar-te-ão. Colocar-te-ão. Serás integrado.

Mas pergunta a si próprio que género de trabalho os soviéticos podem oferecer a um negro.

Nos Estados Unidos, se Max tivesse pedido trabalho, ter-lhe-iam dado um extenuante e humilhante, um trabalho que um branco recusaria fazer. Em Moscovo será diferente?

- O Departamento Negro tem necessidade de agentes - diz o director. - Os preparativos com vista à emancipação da raça negra começaram. Deves alistar-te. É doentio mandriar assim. Um homem solitário está desequilibrado. Não se pode gozar uma vida normal senão em colectividade.

Max tem vontade de rir. A emancipação da raça negra? Na América, rir-se-iam na cara de qualquer pessoa que falasse assim. Em Moscovo é diferente. Em Moscovo, trabalha-se nos escritórios, em estaleiros, a horas fixas, como nos ministérios, na realização de planos que, no mundo livre, são considerados como sendo da autoria exclusiva dos alienados mentais e de autores de romances.

- Nós emancipámos, recentemente, vários povos pré-históricos, da fronteira asiática - diz o director. - Certamente, as perdas nas vidas humanas são mais elevadas que nas operações de deportação, mas esperamos que, de futuro, o indivíduo resistirá melhor.

Alguns dias mais tarde, Max Embilint é convidado pelo director da Secção Tropical dos Negócios Negros. Isso diverte-o, aguça-lhe a curiosidade. Não vê qual possa ser a sua actividade no quadro de um tal plano.

- Com que ferramenta deverei trabalhar?

Pela primeira vez, depois da conclusão da investigação, Max está divertido, intrigado e interessado por qualquer coisa.

No Departamento Negro, o director da Secção Tropical chama-se Stanislas Krizza. Max Embilint entra no escritório dele, tão perturbado como se lesse Júlio Verne ou se desembarcasse num outro planeta. Stanislas Krizza aborda, directamente, o assunto.

- Desde sempre, ao longo da História, tem havido deportações no espaço. Povos, grupos de homens foram deslocados de um ponto do globo ao outro. Tais deportações são banais. O nosso plano diz respeito às deportações no tempo. Vê-se, por vezes, indivíduos nascerem na idade do bronze. Deixam esta época. Queimam todas as etapas. Entram nas sociedades modernas. Passam por escolas e por Universidades, aprendem todas as técnicas da sociedade contemporânea e evoluem à mesma cadência que os homens de hoje. Estes indivíduos percorrem, numa única vida humana, três mil anos de História. Mas chegam exaustos ao fim. Desejamos transportar grupos e povos inteiros, sistematicamente, desejamos evitar-lhes todas as doenças inerentes a esta deslocação no tempo. A História é semelhante à atmosfera. As diferenças de pressão têm efeitos sobre o organismo humano, sobre o espírito. Estudámos a questão. Estamos, agora, na fase prática das deportações no tempo numa grande escala. As experiências resultaram. Tomámos tribos de homens pré-históricos da fronteira asiática e deslocámo-los - com os seus velhos, com as suas crianças, com tudo o que possuíam - em plena contemporaneidade. É um empreendimento apaixonante. Temos homens vindos da pré-história, que ouvem os concertos de Prokofieff, que circulam de motocicleta e lêem as obras completas de Staline. São superiores aos americanos de Wall Street. É apaixonante, sobretudo para si, que é um negro. Você trabalhará a preparar a deportação da raça negra do Trópico para a contemporaneidade.

Stanislas Krizza brinca com a ficha biográfica de Max Embilint.

- No Trópico, temos necessidade de agentes negros “contemporâneos” - diz Stanislas Krizza. - Estou encantado por você ter manifestado o desejo de partir para o Trópico.

- Eu não manifestei o desejo de partir para o Trópico - diz Max Embilint. - Aceitei trabalhar. É tudo. Não foi questão do Trópico.

- Uma vez que você me foi enviado, isto quer dizer que você é bom para o Trópico. Os negros contemporâneos de que temos necessidade para este plano recrutamo-los unicamente nos Estados Unidos e na Europa. A África não fornece negros “contemporâneos”. Você partirá dentro de algumas semanas.

Max Embilint sofre de uma inflamação no fígado. Preferia não partir para a África. O calor faz-lhe horror. Além disso, em Moscovo, ele é, apenas, um convidado. Ninguém o pode obrigar a partir para o Trópico.

- Não sou um homem de acção - diz Max Embilint. - Você enganou-se na escolha. No Trópico, serei fulminado pela insolação. Não sou um negro tropical. Sou americano.

- Sou um homem do Norte - diz Stanislas Krizza. - Os meus pais são originários de Riga em Koenigsberg, a cidade natal de Kant. Apesar disso, o meu campo de acção é o Trópico. Não há incompatibilidade geográfica em matéria de actividade humana. A dificuldade é outra. A nossa actividade é uma actividade de joalheiros, de relojoeiros. É um trabalho delicado, um trabalho de ourives.

O frasco do negro está vazio.

- Não creio em teorias - diz ele. - Não creio em nada. Você enganou-se, tendo-me escolhido. Não sou um combatente. Os negros americanos só combatem no ringue. Se eu puder ser-lhe de alguma utilidade, estou à sua disposição. Mas não aceito partir para o Trópico. Sou bastante indolente para ir para ali. Além disso, tenho sede. De momento o principal é isto. Tenho uma sede terrível. Stanislas Krizza toca a campainha. Um homem em uniforme de polícia traz uma garrafa de vodka. Krizza não bebe. Despeja o vodka no copo de Max Embilint.

- Agora pode falar - diz Max, depois de ter bebido.

- A libertação dos povos pré-históricos não pode efectuar-se senão depois da sua deportação na contemporaneidade - diz Stanislas Krizza. - Lutamos para que se tornem livres. Antes de os libertar devemos reconduzi-los na História. Na hora actual, os negros dos Trópicos têm um estatuto fora da lei. Não podemos incitá-los a pedir a sua liberdade, nem a fazer a revolução para quebrar-lhes as cadeias. Estão organizados em associações secretas e criminosas. Pedindo a sua independência e a sua libertação do jugo colonialista, pediríamos, automaticamente, o reconhecimento de uma associação fora da lei. O direito internacional não o permite. Não se pode conceber os Estados independentes fora da lei. Você concebe um Estado independente de canibais? Não é possível. Devem, contudo, ser reconduzidos na História, viver a mesma hora que os suíços e os holandeses... A civilização aprende-se, como se aprende a conduzir um automóvel. As leis da vida em sociedade são mais fáceis que as leis do código da estrada. Depois de ter conduzido os primitivos ao mesmo nível que os holandeses e que os suíços, poderemos pedir para eles - ou incitá-los a pedir - a independência, a igualdade e tudo o que se segue. A primeira coisa é a sua deportação no tempo. Para transportar um grupo de homens no espaço, não são precisos senão homens e vagões plúmbeos. A transportação no tempo - sobretudo se se trata de alguns milhares de anos - é um trabalho difícil. Os nossos indivíduos devem ser apanhados onde se encontram, isto é, na pré-história, e transportados vivos até ao presente, à era atómica. É um trabalho de ourives. A dificuldade reside no facto de estes pré-históricos se encontrarem nas colónias. As forças coloniais devem ser expulsas dos Trópicos, a fim de que nós não sejamos incomodados no nosso trabalho. Dentro de algumas semanas você partirá, portanto, para o Trópico. Eu conduzi-lo-ei, pessoalmente. Tenho necessidade de um negro “contemporâneo” para uma acção importante junto dos canibais.

- Você faria um melhor negócio contratando um outro negro - diz Max Embilint. - Sou um homem liquidado. Não se pode contar comigo.

Max Embilint levanta-se. Dirige-se para a porta. Stanislas Krizza detém-no.

- Visto que você está aqui - diz o director -, convido-o a visitar o museu da raça negra. É único no mundo.

- Os museus não me interessam - diz Max Embilint. - No entanto, pode-se ver...

Stanislas passa adiante, o negro segue-o. A visita começa. Max Embilint aborrece-se.

Há centenas de secretárias, de colunas, de galerias, de ascensores. Um arranha-céus, onde milhares de pessoas trabalham como formigas. Tudo o que diz respeito à existência do homem negro sobre a terra está coligido, armazenado, classificado, comentado, e, por vezes, exposto neste imóvel de doze andares. Há vasos gregos e romanos nos quais se vêem negros acorrentados. Desenhos egípcios, baixos-relevos persas com negros acorrentados. Sempre negros acorrentados. No Departamento Negro recolhe-se tudo o que se relaciona com os negros, desde os tempos mais remotos até aos últimos despachos relatando a exterminação dos Mau-Mau no Quénia.

- A história dos negros difere, completamente, da história dos outros povos - diz Stanislas Krizza. - A história dos negros não é feita de conquistas, de derrotas e de vitórias. A história dos negros não é feita de factos, mas de algarismos.

Vêem-se baixos-relevos, vasos, desenhos trazidos pelos agentes do Departamento Negro. Sobre estas peças exumadas na Grécia, na Ásia Menor, na Itália ou no Egipto, vêem-se negros acorrentados. - A história dos negros é um imenso registo de comércio - diz Stanislas Krizza. - É monótona, mas toda a história dos negros é isto: uma sucessão de algarismos. Os pontos essenciais da vida dos homens negros? Quanto pagava uma dama romana para comprar um negro púbere, um negro antes da puberdade, um negro castrado, um negro não castrado? Quanto custava, na Pérsia, um negro que soubesse ler e escrever? O preço de um homem de cor na bolsa da Europa, na Sublime Porta otomana, na corte dos czares? Quanto pagava Madame de Pompadour por um pajem negro? Quanto pagavam os árabes? Eis aqui toda a história dos negros. O nosso plano é fazer sair os negros dos registos de comércio.

- Hoje já não se faz comércio de negros - diz Max Embilint.

Está furioso. O espectáculo não é divertido, sobretudo para um negro.

- Engana-se - diz Stanislas Krizza. - Na sociedade moderna, o comércio tomou outras formas. No passado, os consumidores de carne compravam o boi inteiro. Hoje compram a retalho. Não se compram senão certas partes do boi. Mesmo ali, onde os negros deixaram os registos de comércio, entraram, imediatamente, no subsolo da Sociedade e da História. Ainda hoje os negros vivem no isolamento, vítimas da segregação. Os negros deixaram os registos de comércio para se tornarem mendigos de milagres em todas as avenidas da diplomacia internacional. Todos os meios internacionais formigam de mendigos negros mal desenvolvidos. Mendigam; mendigam milagres, quer dizer, a igualdade, a independência; mendigam o respeito, mendigam a autonomia e a liberdade. É humilhante. Este género de milagres não se mendigam. A mendicidade é anti-social.

Stanislas Krizza detém-se. Max Embilint quer partir. Diz que voltará. Por agora não tem necessidade de cultura!

- Estou-me nas tintas para a cultura. Há muitos estudantes negros que desejam conhecer o seu passado. Você perde o seu tempo comigo. Os museus não são o meu género.

- Um instante, e voltaremos a descer - diz Stanislas Krizza.

Oferece a Max Embilint uma cadeira metálica. Instala-se numa outra cadeira. Uma rapariga de blusa à enfermeira observa Max com um olhar irónico. Max range os dentes. Depois de ser mutilado não suporta o olhar das mulheres. Parece-lhe que as mulheres troçam dele porque é um eunuco.

- É a minha pele negra que a diverte ou outra coisa, camarada? - pergunta Max.

Está disposto a fazer escândalo.

Ela faz girar a fita de um magnetofone.

Nos quatro cantos do tecto estão fixados quatro alto-falantes. Em todos os quatro ouve-se a fricção da fita do magnetofone.

Subitamente, uma voz. Max estremece. Levanta-se. Ouve-se a voz de Blanche Knorr.

"- Não me lembro de ter falado a Max Embilint.”

A voz de Blanche Knorr, que declarou tantas vezes o seu amor a Max, diz agora, nos quatro alto-falantes do Departamento Negro:

“- Eu sei, por ouvir dizer, que Max Embilint frequentava a mesma Universidade que eu. Mas nunca lhe falei. Nunca.”

“- Blanche Knorr, você foi várias vezes a casa da família Embilint.”

Max reconhece a voz do juiz, a voz seca do branco devorado pelo terrível vício da virtude. Max sente prazer ao ouvir a voz do juiz, uma voz cortante como uma lâmina de barba. Ouve-se, de novo, a voz de Blanche Knorr.

“- Eu nem sequer sei onde fica a casa de que me fala. Não tenho preconceitos de raça. Contudo nunca entrei numa casa de negros. Nunca.”

“- A mãe da vítima, a senhora Afrika, declarou, sob juramento, que você ia a casa dela todos os dias” - diz o juiz.

Ele cala-se. Blanche Knorr fala, de novo.

“- Se eu frequentasse a casa desses negros, como afirma, os vizinhos ter-me-iam visto. Há algum homem, nesta cidade, que me tenha visto entrar na casa dos negros, ou sair de lá?”

Max Embilint tem a cabeça entre as mãos. Tapa os ouvidos. Não deseja ouvir mais a voz de Blanche Knorr. Estas declarações, ouviu-as já uma vez. Isso bastou-lhe.

Stanislas Krizza está imóvel, na sua cadeira metálica. Dos alto-falantes sai a voz de uma mulher, que soluça.

“- Mãezinha!” - diz Max Embilint. - “Mãe Afrika. Mãezinha Afrika...”

A mãe de Max Embilint chora em grandes soluços nos quatro alto-falantes.

“- É minha a culpa se Max foi mutilado. É minha a culpa. Eu sou sua mãe. Fui eu que o fiz negro. Por minha causa, ele foi linchado. Se não o tivesse feito negro, não teria sido linchado...”

Max Embilint apoia-se contra o armário, as suas grandes mãos negras, de gorila, cobrem-lhe o rosto. Nunca soluçou como neste momento. Mesmo quando era criança, nunca. Chora como uma criança negra. As nuvens do álcool dissipam-se.

- É trágico ser negro - diz a rapariga vestida de enfermeira.

Ela fala alto. Poisa a mão sobre o ombro enorme do negro. Sem ternura. Fala duramente. Como em caserna.

- É trágico ser negro - diz. - Mas eu, se fosse negra, não sofreria como a sua mãe. Vocês, os negros, são cobardes. Os negros americanos não lutam. Não lutam senão no ringue, como Joe Louis, como Sugar Robinson. Os outros mendigam nos corredores da diplomacia internacional.

Max Embilint endireita-se. Parece crescer mais. É duas vezes mais alto que Stanislas Krizza, duas vezes mais alto que a rapariga com blusa de enfermeira. Os seus ombros são mais largos que os armários. Os seus punhos parecem dois martelos gigantes. Ao lado do negro, Stanislas Krizza parece um anão. Max já não chora.

- Que posso fazer? - pergunta a Stanislas Krizza.- Que posso eu fazer de construtivo, para que isto mude?

- Muito - responde Stanislas Krizza. - Um homem pode muito, mas, só em conjunto.

- Não esqueça que sou doente - diz Max Embilint. - Serei doente, mesmo em conjunto. Sou alcoólico. Serei alcoólico, mesmo em conjunto. Sou mutilado, tenho os nervos destrambelhados. E serei assim, mesmo em conjunto.

Max Embilint cerra os maxilares.

- Isto não tem qualquer sentido - diz. - Sou um homem liquidado. Let's go!

Max sai. Stanislas Krizza segue-o. Entra num outro escritório. Aqui há, apenas, um alto-falante. A garrafa de vodka está em cima da mesa. Max enche um copo. Stanislas Krizza nunca protesta quando Max bebe.

- Crê, realmente, que eu posso fazer alguma coisa de positivo? - pergunta Max Embilint. - Surpreende-me que eu seja bom para alguma coisa.

- Você pode ser útil - diz Stanislas Krizza. - Nós utilizamos todas as espécies de pessoas. Trabalhamos com o que temos, tudo o que encontramos, mesmo os abandonados. Todos os construtores do universo utilizam os abandonados e os perdidos. Nós servimo-nos mesmo dos inimigos. No país dos Valáquios, para construir o socialismo, empregámos um rei. Ele vigia a aplicação da doutrina de Marx e de Lenine. Utilizamos todos os abandonados. Tudo.

- Que deverei fazer? - pergunta Max Embilint. - Quero saber se sou capaz. Responder-lhe-ei, abertamente, se posso ou não posso.

- Você deverá fazer uma coisa extremamente simples - diz Stanislas Krizza. - No começo será muito simples. Mais tarde, veremos. Desejamos recuperá-lo, dar-lhe confiança, enquadrá-lo.

- Não posso saber, desde já, de que se trata?

- Não - diz Stanislas Krizza. - Afirmo-lhe que é uma acção muito simples. Ela faz parte dos trabalhos preliminares do plano. Uma acção muito simples, a mais simples que um homem pode cumprir. Não pede qualquer preparação, e está dentro das possibilidades seja de quem for.

 

Seis dias depois de Max Embilint ter encontrado Stanislas Krizza, ainda lhe não tinha sido confiada qualquer tarefa. Procura imaginar o género de trabalho que ele terá de realizar. Max recorda-se das palavras de Krizza: “Um trabalho muito simples... Qualquer o pode fazer... Não é necessária uma preparação especial.”

Max dirige-se, regularmente, ao Departamento Negro. Presentemente, aquilo interessa-o. Para um negro, esta instituição é mais importante que o Louvre, o Prado ou o British Museum. Cada assunto encontra-se relacionado com a pele de Max Embilint, com a pele negra.

Cada manhã, entrando no edifício, Max Embilint pergunta ao porteiro fardado de polícia:

- Stanislas Krizza não me convocou?

- Nietj tovaritch Embilint - responde o porteiro. Uma tarde, há uma recepção para o pessoal do Departamento Negro: homenageiam-se os agentes que voltam da América Central. Max Embilint é convidado. Possui agora um cartão de livre trânsito no Departamento Negro, ainda que não exerça qualquer actividade.

Um jornalista, que se encontra ao lado de Max, na recepção, surpreendido, com uma sanduíche na mão, exclama:

- Mas é Stanislas Krizza! Em carne e osso! É extraordinário.

Max olha para Stanislas Krizza. Observa o jornalista, que dirige uma revista publicada, unicamente, para o estrangeiro. Está petrificado. Vê Krizza e a surpresa imobiliza-o.

- O que é que é extraordinário?

- Que Stanislas Krizza ainda esteja vivo - diz o jornalista. - Deveria estar morto. Devia ter sido fuzilado, há três meses. Eu mesmo o tinha riscado da lista das assinantes. Desejo vê-lo mais de perto.

- É ele - diz Max Embilint. - Asseguro-lhe que é ele. Conheço-o. Trabalho com ele.

- Você trabalha com ele? (A figura do jornalista ilumina-se.) As minhas felicitações!

- Porque me felicita? - pergunta Max.

- Você trabalha com um homem magnífico - responde o jornalista. - Um homem de elite. É uma sorte trabalhar sob as ordens de um tal homem.

- Você diz que Stanislas Krizza deveria ter sido fuzilado há três meses e felicita-me por trabalhar com ele. Você afirma que ele é um homem magnífico. É um homem de elite ou um homem para abater? Ou melhor, é um homem para abater porque é um homem de elite?

Max Embilint é irónico. Conhece agora a lógica russa. Os Russos raciocinam como se andassem no trapézio voador.

- Vocês, os burgueses, não compreendem nada - diz o jornalista. - Absolutamente nada. O pensamento das pessoas dos países burgueses é destituído de toda a lógica... Stanislas Krizza dirigiu a revolta dos negros “Heri Rom” ou “Dorminhocos do bosque”, em África. A revolução malogrou-se. Os “Dorminhocos do bosque” foram exterminados pelos europeus. Krizza foi condenado à morte pelos seus chefes hierárquicos. Foi chamado a Moscovo para ser fuzilado, como convinha.

- Fuzilado? Por que motivo? - pergunta o negro.

- Porque a revolução se malogrou. Ele era o chefe. A derrota culpava-o. Uma revolução é uma máquina. Se não funciona bem, o defeito é atribuído a quem a conduz. O condutor da máquina é fuzilado. No entanto Krizza está vivo. Isso significa que ele foi perdoado. Um condenado à morte perdoado é o ser mais extraordinário jamais produzido pela espécie humana. O próprio Evangelho promete os melhores lugares do Paraíso aos grandes pecadores arrependidos. Os grandes pecadores arrependidos são, realmente, os melhores homens da espécie humana. O lugar que se lhes oferece no Paraíso não é uma graça, é um lugar merecido.

- Se é essa a vossa receita para criar elites, porque não começam por perdoar aos condenados à morte? - pergunta Max Embilint.

- Os verdadeiros arrependidos são mais raros que os elefantes brancos - diz o jornalista. - No nosso país, a maioria dos condenados à morte suplica que os executem. Satisfazemos sempre esse pedido, porque a maior parte faz batota, implorando a morte. Stanislas Krizza foi chamado para ser fuzilado. Encontrava-se a dez mil quilómetros de Moscovo. Veio no primeiro avião. Foi perdoado. Não fez batota. Indubitavelmente não fez batota. É uma natureza de elite. Felicito-o por trabalhar com ele. Como é que não percebeu, desde o começo, visto que os factos são tão lógicos? Deixe-me dizer-lhe: vocês não possuem o mínimo de lógica, nos países burgueses.

- Bom dia, senhor Embilint - diz uma voz.

É Stanislas Krizza. Agarra o braço do negro. Saem da sala, atravessam um corredor, entram num escritório.

- Sente-se - diz Krizza.

Krizza senta-se.

Max Embilint está, ainda, sob a impressão da sua conversa com o jornalista. Olha para Stanislas Krizza com outros olhos. Krizza encontra-se a dez mil quilómetros de Moscovo. Recebe um telegrama que lhe ordena que volte ao seu país para ser fuzilado. Krizza toma o primeiro avião e desembarca no seu país para ser executado.

“Eu não teria conseguido fazer isto, pensa Max Embilint. A maior parte dos homens não teria podido fazer o que fez Krizza. Com toda a certeza.”

- A última vez que conversei consigo sentia-me completamente arrasado - diz Max Embilint. - Recusei trabalhar consigo para não lhe criar embaraços. Eu sabia que não era capaz de fazer nada.

- Está melhor? - pergunta Krizza.

- Não - responde Max -, não estou melhor. Estou exactamente como antes. Mas, há uma pequena mudança: presentemente sou capaz de executar um trabalho que me seja ordenado. Sem ilusões, sem entusiasmos, como um sonâmbulo, mas sou capaz de o executar correctamente. Não consigo fazer mais. É o máximo.

Stanislas Krizza ouve, calmamente, e diz:

- Não é necessário que sinta entusiasmo. Eu tinha prometido confiar-lhe, de princípio, um trabalho simples, um trabalho que poderia ser executado, sem a mínima preparação, por qualquer homem.

- Obrigado - diz o negro.

- Vejamos de que se trata - prossegue Stanislas Krizza.- Você parte para o Trópico. Eu irei, também. É aí que vivem os canibais que fazem parte do grupo de negros que nós emanciparemos nos anos futuros. Junto desses canibais vive, desde a primeira quinzena de Novembro, um grupo de quatro jovens evangelistas das margens do Reno. Mostrar-lhe-ei as suas fotografias. Jovens de vinte anos, gente nova, sem nenhuma experiência nem preparação. Temos de os matar, aos quatro, de uma forma espectacular, que emocione a opinião pública. Espalharemos a notícia do assassinato dos missionários nas edições especiais de Natal de todos os jornais. É, exactamente, o que é necessário para as edições especiais de Natal dos jornais burgueses: canibais, fé, juventude, mártires, Trópico, crueldade, exotismo...

Stanislas Krizza pega na sua agenda. Diz:

- Devemos despachar-nos. Amanhã são 6 de Dezembro. O assassinato deve ser cometido cinco dias antes do Natal, na noite de sábado, 20 de Dezembro, para que a notícia apareça nas edições especiais de Natal. Você, Max Embilint, está perfeitamente indicado para esta missão. Um branco deixa rasto entre os negros. Em África é difícil encontrar os rastos de um negro. Este caso assenta-lhe como uma luva. Você parte e executa o meu plano. É extremamente simples.

- Repita - diz Max Embilint. - Que devo eu fazer? Não compreendo absolutamente nada.

- Você deve matar, com a ajuda dos canibais, os quatro missionários - diz Stanislas Krizza. - Eles têm a intenção de converter os canibais. O que importa é que a sua morte tenha lugar exactamente na data fixada, para que os repórteres, os cineastas, os operadores da televisão possam chegar ao Trópico. Você toma o avião amanhã. Depois apanhará o barco. Todo o seu itinerário está estabelecido. Encontrar-nos-emos na capital do Trópico.

Stanislas Krizza consulta, atentamente, a sua agenda. - Difundiremos a notícia de que os missionários foram devorados pelos canibais. Todos os repórteres vão precipitar-se no Trópico.

Max Embilint levanta-se. Endireita-se.

- Você acredita no que diz? - pergunta Max.

- Evidentemente - diz Krizza. - Tudo foi previsto até aos mínimos pormenores.

O negro sente um desgosto imenso. Krizza desgosta-o, e todo o Departamento Negro e a sua estupidez de negro. Dirige-se para a porta.

- Procure outro - diz Max Embilint. - Comigo, você perde o seu tempo.

Max Embilint fala secamente. Pela primeira vez na sua vida, Max Embilint tem reflexos brancos sobre a pele. A sua pele, que, normalmente, é negra e brilhante como antracite, está pálida agora.

- Dizem que você é um homem inteligente - diz Max Embilint. - Você não é inteligente, Stanislas Krizza, se pensa que eu posso matar quatro homens. Adeus.

Max Embilint treme de emoção. As suas pernas estão dormentes. Fica um segundo muito direito, a fim de voltar a si. Coloca a mão no fecho da porta.

- Max Embilint um assassino? - diz o negro. Tem uma vertigem. Diz:

- Max Embilint não é um assassino. Max Embilint é um negro emasculado e alcoólico, mas não é assassino.

- Porque não? - pergunta Stanislas Krizza. - Você verá como é simples. Eu organizarei tudo. Você viajará confortàvelmente.

Stanislas Krizza sorri. Encontrou o que procurava na sua agenda. Diz:

- A aldeia chama-se Icibolia. É ali que se encontram os quatro missionários. É exactamente no Trópico. É a aldeia dos canibais negros.

- Eu nunca matei - diz Max Embilint - e nunca matarei. Nunca.

A palavra “nunca” faz mal a Max. Ouve Blanche Knorr dizer: “Eu nunca vi este homem.” Ouve o hoteleiro que diz: “Nunca.” Ouve a criada de quarto que o olha fixamente e diz: “Eu nunca vi este homem.” Max Embilint repete:

- Eu nunca matei, nunca.

- Não seja estúpido - diz Stanislas Krizza.

Levanta-se. Segura Max por um braço e fá-lo sentar-se numa cadeira metálica, castanha. O braço enorme do negro está mole.

Max embrenha-se nos seus próprios pensamentos, exactamente como os pugilistas no ringue, depois de terem recebido uma avalanche de socos. Esquecem-se que estão no ringue, exactamente como Max esqueceu que se encontrava no Departamento Negro.

Os pugilistas deixam de saber o que devem fazer. Ouvem o público gritar. Vêem o árbitro que se move. Mas os pugilistas esquecem o que devem fazer. Exactamente como Max. Está abatido na cadeira, mas sabe que há qualquer coisa a fazer.

- Você disse que me empregariam na realização do plano de deportação da raça negra na contemporaneidade - diz Max.

- Nos trabalhos preliminares do plano - diz Krizza. - Por agora não se trata senão de trabalhos preliminares. - De acordo, trabalhos preliminares - diz Max. - Mas agora diz-me para assassinar os evangelistas. Isso é outra coisa.

Max Embilint esfrega a testa e diz:

- Recuso. Recuso-me a cometer um assassínio. Não sou um assassino. Propôs-me trabalhar num plano. Que relação há entre a emancipação da raça negra e o assassínio dos evangelistas?

Stanislas Krizza sorri. Um homem de uniforme traz uma garrafa de vodka. Stanislas Krizza continua a explicar. As explicações de Stanislas Krizza são extremamente claras.

Meia hora mais tarde, Max Embilint está instruído. Está convencido de que os quatro missionários devem, absolutamente, ser mortos, que o assassínio deve ser cometido por ele, pessoalmente, tal como Stanislas Krizza o decidiu. Este quádruplo assassinato é um trabalho preliminar, absolutamente necessário à emancipação da raça negra.

- Agora, é perfeitamente claro - diz Max Embilint. - É claro como a água.

Max Embilint está atormentado. Há coisas tão claras que não têm necessidade de demonstração. O assassínio dos missionários é absolutamente necessário. Nem é preciso explicar porquê. É bastante claro.

- Teremos, iportanto, um assassínio espectacular, que aparecerá nos jornais burgueses de Natal. A emoção e a consternação serão gerais. Todos esperam os pormenores sobre os acontecimentos do Trópico. Mas, em Icibolia, os repórteres não encontrarão o menor sinal de missionários, nada para filmar, nada para televisionar, nada para fotografar. Nada verão e nada poderão contar. Nada. Icibolia será, exactamente, o que o seu nome significa na língua dos canibais: uma noz oca, uma concha vazia.

- Para que fazer ir os repórteres ao Trópico, se nada há para ver, filmar ou fotografar? - pergunta Max Embilint.

- Filmarão outra coisa - diz Stanislas Krizza. - Filmarão as represálias. O crime dos canibais, o assassínio dos missionários, ocasionará represálias sangrentas. Os repórteres estarão lá. Filmarão os soldados europeus ocupados no fuzilamento dos negros, e projectar-se-á isto em todas as telas do mundo. A imprensa nunca fala dos massacres cometidos pelos europeus nas colónias. As objectivas cinematográficas, que nunca se deslocam para filmar o massacre dos indígenas, fá-lo-ão desta vez. Virão todos. E filmarão as represálias.

- Isso é formidavelmente engenhoso - diz Max Embilint.

- As fotografias dos soldados europeus, que, do seu helicóptero, atiram sobre os pobres negros nus e sem defesa, serão espalhadas pelo mundo inteiro. O mundo verá os europeus ocupados a caçar os negros, exactamente como se caçam lebres ou feras. Difundir-se-ão as cenas macabras. A Europa cobrir-se-á de vergonha. A Europa é um continente que vive do seu prestígio de berço da cultura, da justiça e da humanidade. Pessoalmente não creio que os europeus sejam uma raça superior. O seu génio explica-se economicamente. A Europa tem duzentos milhões de habitantes. Para cada europeu, dez homens, aproximadamente, trabalham nas colónias. De 1945 a 1957, em doze anos, a Europa perdeu vinte e quatro povos, ou seja, oitocentos milhões de servidores. Resta ver se a Europa, sem oitocentos milhões de servidores, tem, ainda, génio. De momento restam-lhe, apenas, uns escassos seiscentos milhões, três servidores por europeu. Isso é pouco. Os europeus vivem, sobretudo, do seu prestígio de homens justos e cultos. As represálias exibidas em todas as telas e publicadas em todos os jornais, com fotografias para prova, farão duvidar deste humanitarismo, deste espírito de justiça. Se a Europa perde o seu prestígio, nada mais lhe resta. Torna-se numa espécie de Icibolia, uma “concha vazia”, e somos nós que tomamos o seu lugar no Trópico. Então, começaremos a aplicar o nosso plano de emancipação das raças negras. Você efectuará, portanto, um trabalho preliminar, absolutamente necessário.

- É claro - exclama Max Embilint. - É claro e extremamente engenhoso.

Ele compreendeu. Nunca as suas ideias tinham sido tão claras. É um verdadeiro milagre, como se tivesse tomado qualquer droga. O que Stanislas Krizza expõe é inteligente, claro e lógico. Mas é como nos laboratórios de química: é muito claro e muito lógico. Ko mundo livre, as pessoas não pensam e não falam deste modo. Moscovo é uma cidade de um outro planeta. Em Moscovo pensam-se e fazem-se coisas que os homens do resto do mundo não pensam nem fazem, porque elas “não se fazem”. Sem outro motivo. As coisas expostas por Krizza, por exemplo, “não se fazem”. Ele diz que o assassínio destes quatro missionários economiza a vida de um quarto de milhão de combatentes de guerrilhas. O cálculo de Krizza é justo. Mas no resto do mundo não se pratica esta espécie de economia. No mundo livre não se assassinam quatro missionários, mesmo que o seu assassínio economize vidas. Isso “não se faz”.

- Aqui estão as fotografias dos missionários - diz Krizza. - Pode guardá-las, se quiser.

Estende ao negro as quatro fotografias. Max Embilint volta a cabeça. Não pode ver as fotografias. Repele-as com a mão.

- Não é necessário - diz ele.

Krizza volta a colocar os retratos dos quatro jovens na gaveta. Repete:

- Não é necessário, é verdade.

Max Embilint deixa o Departamento Negro, convencido. Tudo é lógico.

Mas, a partir desse dia, aumenta a sua ração de álcool. Agora não bebe senão rum branco. Branco e forte como a lógica dos homens brancos.

A dificuldade, para Max, depois desta entrevista, é que ele não se pode desembaraçar, nem de dia nem de noite, da imagem dos quatro jovens missionários. Não lhes pode escapar. Max não viu as fotografias. Contudo, tem no espírito a imagem de três cabeças de rapazes louros, de olhos azuis, e de uma cabeça de rapariga, parecida com a Lorelei, dos livros de contos. Mesmo fechando os olhos, vê as quatro cabeças louras.

Executará a sua missão. Os quatro “Portadores do Evangelho” são assassinados durante a noite do dia 20 de Dezembro, um sábado. Max sabe que isto é indispensável à emancipação da raça negra. Se não os matar, haverá sempre negros mutilados e linchados, como ele, e negros que mendigarão o milagre da independência e da liberdade. Mas sempre que pensa em todas estas coisas, Max vê diante dos olhos - embora nunca as tivesse visto - as cabeças louras, com olhos azuis, de Mark, de Matei, de Luka e de Bianka.

Ele erra, solitário, pelas ruas. Bebe. Mas as quatro cabeças louras estão sempre diante dos seus olhos.

Então o negro bebe cada vez mais.

 

Os missionários estão ali - diz Zeno, o valáquio. - Olhe, senhor Embilint. Os missionários vêm cumprimentá-lo.

O negro abre os olhos. A camioneta parou diante de uma curiosa casa de bambu. As paredes não estão acabadas. Max Embilint está em Icibolia.

À volta da camioneta estão quatro jovens, de cabeças louras, com chapéus coloniais, usando calções de caqui e sapatos de lona. Os fatos dos missionários são novos. Zeno, o valáquio, está no meio do grupo dos evangelistas. Dir-se-ia que faz parte do seu grupo, como se ele mesmo fosse um evangelista. O negro olha-o, surpreendido.

- Este é Luka - diz Zeno, o valáquio.

Poisa a mão sobre o mais alto e mais magro dos jovens. Luka aproxima-se do negro e estende a mão a Max Embilint.

- Grüss Gott, senhor Embilint - diz Luka.

Aperta a mão enorme do negro.

- Esta é Bianka - diz Zeno. - A irmã de Luka.

- Deus o abençoe, senhor Embilint - diz Bianka. Os seus cabelos são louros, como o ouro, a pele branca, os lábios cor-de-rosa. Usa tranças. Max Embilint olha-a nos olhos e diz:

- How do you do?

- Estes são gémeos - diz Zeno. - Mark e Matei.

O negro solta a mão de Bianka, uma mão imaterial.

- How do you do? - diz Max Embilint.

Os gémeos são idênticos. Têm as faces vermelhas, rechonchudas, cabelos louros, sorrisos como as imagens piedosas. Max Embilint reconhece-os. Nunca os viu, nem mesmo em fotografia, mas adivinhou-os, em espírito, exactamente como são na realidade. Pensa: “São estes quatro que devo matar.”

- Deus o abençoe - dizem os missionários gémeos.

- How do you do? - responde o negro.

Os “Portadores do Evangelho” têm vinte anos, salvo Luka, que tem vinte e um. As suas pernas são altas e magras. Não são ainda pernas de homens adultos. Bianka não é uma rapariga nem uma criança. Está entre as duas idades. Bianka aparenta ter catorze anos.

Max Embilint olha para os pés dos missionários. Somente os pés, para evitar olhá-los nos olhos.

- Chegámos há perto de duas horas, sir - diz Zeno, o valáquio.

Sente-se em família, entre os evangelistas, como se acabasse de encontrar os seus irmãos. Continua:

- Não desejávamos acordá-lo. Pensámos que seria melhor que descansasse.

Embilint não olha já para as pernas altas, magras e brancas dos missionários. O negro olha para os canibais. Reuniram-se perto da Casa do Evangelho. Há duas ou três dúzias de canibais, completamente nus, amontoados uns contra os outros. No meio do grupo estão Nakusanswa e Xkon-Goa-Xob. Os criados de Max Embilint estão no seu meio. Max reconhece-os nos seus calções de caqui.

Xob conta qualquer coisa aos canibais. Os canibais escutam-no e olham de lado para Max Embilint. Os missionários afastam-se com Zeno, o valáquio, da camioneta. Olham para Max.

O negro Max Embilint sente-se, de repente, terrivelmente só. Zeno partiu com os brancos. Xob e Nakusanswa estão com os canibais. E Max está só, tão só como na América e em Moscovo. Max tem a boca amarga. Bebe rum. Os canibais e os missionários olham para Max em silêncio.

Bianka adivinha que o negro não está bem. Aproxima-se da camioneta e diz:

- Pedimos-lhe que se considere aqui como em sua casa. Zeno disse-nos que vinha filmar feras.

- Já sabe que ele se chama Zeno? - pergunta Max.

Está ciumento. Mark e Matei seguram Zeno pela mão, como um irmão. Os brancos são irmãos entre si.

- Estamos aqui porque amamos os negros - diz Bianka. - Decidimos passar toda a nossa vida entre os negros.

- Pregará mais tarde - diz Max Embilint. - Não se fatigue. Já sou baptizado.

Max está irritado. Bianka diz “Amamos os negros”, exactamente como Blanche Knorr dizia “Eu amo os negros.” As mesmas palavras. Max Embilint salta da camioneta. As suas belas calças estão amarrotadas.

- Let's go - ordena Max.

Dirige-se para a casa de bambu, de folhas e de palha, que se chama a Casa do Evangelho. Atrás de Max vêm os missionários, segurando Zeno, o valáquio, pela mão. Max não os vê, mas sente que se seguram pela mão.

Ao fundo, à direita da Casa do Evangelho, estão os canibais, colados uns contra os outros. Xob conta-lhes qualquer coisa. Os canibais riem-se.

- Que contas tu, Xob? - pergunta Max.

Max dirige-se para os canibais. Tem necessidade de desopilar os nervos em qualquer deles.

Os canibais endireitam-se. Todos olham para Max Embilint com receio. Os missionários seguram Zeno pelo braço. Pararam. Olham para Max.

- Xob, vem cá e diz-me o que contas aos selvagens - ordena Max Embilint.

Xob olha para Max Embilint. Gira bruscamente sobre os calcanhares e procura fugir. Max dá um pulo e agarra Xob pela garganta. Aperta o pescoço do adolescente negro. Xob chora de dor, aos pés do negro.

- Que contas tu aos selvagens? - pergunta Max Embilint.

- Xob conta que durante a viagem o senhor gritou - diz um velho negro. - Xob conta que durante a viagem gritou como um “Ya-mou”.

O rosto do negro congestiona-se. Max está encolerizado. Aperta a garganta de Xob, com força.

“Eles troçam de mim”, pensa Max. “Ya-mou” significa, provavelmente, bêbado ou eunuco.”

Max Embilint não sabe o que quer dizer “Ya-mou”, mas adivinha que deve ser qualquer coisa desagradável.

“Ya-mou” significa, provavelmente, doente. Eles troçam de mim porque bebo rum, porque sou um eunuco ou porque sou doente.”

Xob chora com o aperto de Max. Rolou como uma bola aos pés de Max.

- Não esteja encolerizado contra ele - diz Bianka. - Deixe Xob tranquilo, senhor Embilint.

A evangelista poisa as mãos nos braços de Max Embilint. Queria livrar Xob.

- Xob nada fez de mal, sir - diz Luka.

Max Embilint não quer soltar o pescoço de Xob. Xob chora. Os canibais nus comprimem-se uns contra os outros. Observam o espectáculo. Vêem Max torturar Xob. Os canibais têm uma vocação nata para espectadores. Têm-no sido sempre. Nunca foram actores. O seu papel no universo é observar.

Os evangelistas e o valáquio intervêm. Querem libertar Xob das mãos de Max.

- Assim mata-o, sir - diz Zeno, o valáquio.

Os canibais rompem, bruscamente, o silêncio. Começam a gritar em coro, olhando, fixamente, para Max Embilint:

- Ya-mou! Ya-mou M'Bilint!

Os gritos de Xob são abafados pelo grito ritmado dos canibais:

- Ya-mou M'Bilint! Ya-mou M'Bilint!

Os canibais ficam no mesmo lugar, como que petrificados, e continuam a gritar o mais forte que podem:

- Ya-mou! Ya-mou!

Max Embilint larga a garganta de Xob. Este levanta-se e refugia-se junto dos canibais. Esconde-se atrás deles e grita também:

- Ya-mou! Ya-mou!

- Impressionou-os, sir - diz Mark.

Os missionários seguram Max pelo braço. Entram todos na Casa de Oração.

Fora, os negros gritam cada vez com mais força:

- Ya-mou! Ya-mou M'Bilint!

- Chamam-lhe Ya-mou, sir. Não deve fazer-lhes mal.

- O que é que significa isso? - pergunta Max.

- Ya-mou significa “meu bebé” - explica Luka.

Max desrolha o frasco de rum e bebe. Diz:

- O que é que eu tenho de bebé? Com duas rajadas de metralhadora, calo-lhes aquelas bocas sujas!

- “Ya-mou” é o mais alto título de nobreza que um canibal pode conceder a um homem - diz Luka. - O senhor impressionou-os, eles respeitam-no.

Os missionários explicam a Max Embilint que “Ya-mou” é o equivalente de “Vossa Majestade”, de “Todo-Poderoso”, de “Caudilho”, de “Mein Führer”.

- É o mais alto título de nobreza, sir - explica Bianka. - Nós também lhe chamaremos “Ya-mou”.

Os missionários desatam a rir. Riem como na escola. Parecem ainda mais jovens. Zeno, o valáquio, ri com eles. Por fim, faz o mesmo. Os missionários explicam que - segundo os canibais - um monarca absoluto é um bebé. Um chefe é vestido pelos servos, alimentado, distraído como um recém-nascido.

- Todos os cidadãos se reúnem à volta do chefe supremo, prontos a servi-lo, exactamente como os adultos à volta de uma criança de peito. Se o chefe acorda de noite e grita, como uma criança, toda a gente se levanta e grita. Os caprichos do chefe, como os caprichos de uma criança de peito, fazem lei. Ninguém contradiz uma criança de peito ou um chefe. Ninguém procura a lógica junto de um tirano ou junto de uma criança de peito. Todos desejam obedecer a seu bel-prazer. É tudo.

- Deveria estar contente, sir - diz Zeno, o valáquio. - Adquiriu o maior prestígio aos olhos dos canibais.

Zeno, o valáquio, pensa que não será espancado pelo negro. O negro tem prestígio aos olhos dos canibais. O valáquio não será obrigado a receber bofetadas para que Max Embilint adquira prestígio. Fora os canibais gritam, cadenciadamente:

- Ya-mou M'Bilint! Ya-mou M'Bilint!

Os missionários e Zeno, o valáquio, bebem chá. Max Embilint bebe rum. Tem a cabeça pesada. Recorda-se que veio aqui para matar estes quatro adolescentes. “É-me indiferente, pensa Embilint, Os brancos mutilaram-me. Depois de ter sofrido isto, tudo me é indiferente. Se não me tivessem mutilado, teria tido preferências. Não me seria indiferente matar os missionários. Agora matá-los-ei e ser-me-á indiferente.”

Max Embilint bebe. Lembra-se das palavras de Krizza: “Você é um apóstolo dos negros, Max. Os apóstolos têm o direito de matar. Está escrito nos Evangelhos que o homicídio é permitido aos apóstolos: “Para uns, nós, os apóstolos, espalhamos um odor de morte e que conduz à morte. Para outros, espalhamos um odor a vida e que conduz à vida.” São Paulo, II Cor 2,16...”

“Isso é-me indiferente, pensa Max. Tudo me é indiferente.” Pergunta:

- A quantos estamos hoje, valáquio?

- Quarta-feira, 17 de Dezembro, sir - responde Zeno.

“Dentro de três dias, sábado, 20 de Dezembro à noite, os missionários estarão mortos. Então, tudo estará O. K.” - pensa Max. Isso é-lhe indiferente.

- Eu quero dormir - diz.

Zeno vai preparar-lhe a cama de campanha. Tem tudo o que é preciso para dormir. Os missionários convidam Max a deitar-se na cama do evangelista Mark, um dos gémeos.

O negro aceita. Antes de se meter na cama, nota, em cima de uma caixa de madeira, que serve de mesa de cabeceira, alguns romances policiais. Mark é um missionário que gosta de romances policiais. Este pormenor não deixa Max Embilint indiferente. O negro teria preferido matar um missionário que não gostasse de romances policiais.

 

Max Embilint dorme no quarto do missionário Mark. Usa, apenas, um slip azul. As paredes da casa são feitas de bambu e de folhas. Faz imenso calor.

O negro senta-se, bruscamente, na cama. As paredes tremem. Ouvem-se gritos.

No quarto de Max, os canibais entram pelas duas portas. Gritam, gesticulam e encostam-se uns aos outros. Os canibais não prestam atenção a Max. Embilint levanta-se. Grita-lhes para saírem. Mas os canibais continuam a empurrar-se, a gritar. O quarto de Max está cheio de corpos nus de canibais. Max sente-se apertado no seu lugar. A cama é desfeita.

Pela janela, Max distingue a camioneta estacionada diante da Casa de Oração. Perto da camioneta há agora um jeep. O jeep tem uma bandeirola, como se vê nos carros dos soberanos, nos dias de parada. Um homem novo, em fato de ténis, desce do jeep. Usa o novo fato dos oficiais coloniais. Sobre o pull-over de tenista tem um galão dourado, um galão de tenente. O oficial é novo, não tem trinta anos, a idade de Zeno, o valáquio. É um belo rapaz. Alto, delgado e moreno. Salta do jeep com ligeireza e dirige-se para a Casa de Oração, seguido de quatro negros, de pés descalços e armados. O único vestuário destes quatro negros é um calção de caqui. Têm um cinturão com cartuchos. Ao ombro usam uma grande espingarda, como as dos soldados de Napoleão.

Os missionários vão ao encontro do tenente. Este ri. Aperta as mãos dos evangelistas.

O tenente chama-se Blank. Zeno, o valáquio, aperta-lhe a mão. Dir-se-iam velhos conhecidos.

Os quatro negros estão alinhados, em sentido, atrás do tenente. Constituem a guarda pessoal do tenente Blank.

- O que é que estes selvagens fazem em casa? - pergunta o tenente.

Olha para a janela onde Max Embilint deitou a cabeça.

- Eles viram-no chegar - diz Luka. - Entraram aqui, para nos anunciarem a chegada do tenente Blank.

As paredes da Casa de Oração estão quase a desmoronar-se. O quarto de Max Embilint está cheio de selvagens, que gritam, histèricamente, “o tenente Blank chegou” e que se empurram.

- Estes são os rapazes - explica Bianka. Indica Zeno e explica ao tenente Blank:

- O senhor Zeno está aqui de visita. Veio filmar os animais dos Trópicos.

- Ah, não é missionário? - diz o tenente. - É cineasta? Encantado por conhecê-lo.

O tenente aperta de novo a mão de Zeno, o valáquio. Depois volta-se para os quatro negros de pés descalços:

- Os negros para fora da casa! - ordena.

- Os negros para fora da casa - repetem os quatro guardas.

Fecham os olhos. Depois partem, rápidos, ao assalto da casa. Todos quatro gritam, cada vez com mais força:

- Os negros para fora da casa! Os negros para fora da casa!

O tenente Blank segura Zeno, o valáquio, pelos ombros. Diz a rir:

- Para estar certo de que eles não esquecem o que têm de fazer, uso um novo método. Os guardas repetem a ordem em voz alta, até que a tenham executado.

Os guardas chegaram à soleira da porta. Carregam sobre os canibais e apressam-se a tomar de assalto a Casa de Oração, gritando:

- Os negros para fora da casa! Os negros para fora da casa!

Os canibais que se encontram no interior batem em retirada diante das enormes espingardas. Recuam no quarto de Max Embilint, empurrando-o. Max Embilint é um gigante. Com uma só mão pode deitar ao chão três canibais. Mas eles são muitos. Os canibais formam uma verdadeira parede de carne negra à volta de Max Embilint. Os guardas estão agora no quarto. Os canibais saem pela segunda porta. Max respira. Na soleira da porta, os quatro guardas descalços e armados com grandes espingardas gritam:

- Os negros para fora da casa! Os negros para fora da casa!

Max Embilint senta-se na cama do evangelista. Os guardas negros do tenente Blank aproximam-se de Max, segurando as suas espingardas, como para o ataque. Cercam Max, e olham-no, assustados. Gritam:

- Os negros para fora da casa! Os negros para fora da casa!

- Dirty monkeys! - diz Max. - Macacos sujos! Arranca a arma das mãos de um negro e quer bater-lhe. O negro agarra-se à coronha da espingarda, com todo o seu peso. Max grita:

- Sons of a bitch! Filhos de puta!

Os guardas negros tremem de medo. Os olhos saem-lhes das órbitas. Gritam com mais força, para terem coragem:

- Os negros para fora da casa! Os negros para fora da casa!

Os canos das três espingardas estão dirigidos para o corpo de Max. Assim que Max quer bater, sente uma dor terrível trespassar-lhe as entranhas, uma dor que queima a cicatriz deixada pelos irmãos Knorr. Os canos das três espingardas batem o corpo de Max.

- Dirty monkeys! - diz Max Embilint.

O corpo de Max Embilint amolece. Foi espancado cobardemente, com um golpe baixo.

A arma que segurava pelo cano cai-lhe da mão. Está vencido. Max Embilint sente-se empurrado para fora da Casa do Evangelho pelos guardas negros, que lhe dão pontapés e coronhadas.

Max Embilint é negro. Os guardas do tenente Blank receberam ordem de pôr os negros fora da casa. O corpo negro de Max Embilint, enorme como o tronco de um carvalho, é abandonado pelos guardas, atrás da Casa de Oração. A terra está cheia de formigas. As formigas amarinham pela cabeça negra de Max Embilint, mordem a pele negra de Max Embilint. Ele não as sente. Max está vencido. Da sua boca corre um fio de sangue, um fio delgado e vermelho. O sangue do negro brilha como um rubi à luz do sol. Mas o fio de sangue que jorra dos lábios roxos depressa é coberto pelas formigas vermelhas. "- Parem - ordena o tenente Blank.

Segura Zeno, o valáquio, pelos ombros. Os missionários rodeiam o tenente Blank. A evacuação da casa durou alguns minutos. Ao chamamento do tenente Blank, os negros com as grandes espingardas e descalços cessaram de gritar. Perfilam-se diante do tenente, dos missionários e de Zeno, o valáquio.

- Os negros a cinquenta metros - ordena o tenente Blank.

- Os negros a cinquenta metros - repetem os guardas, em coro.

Saúdam e, brandindo, de novo, as armas, gritam:

- Os negros a cinquenta metros da casa! Os negros a cinquenta metros da casa!

- É uma operação que eles executam muito frequentemente - explica o tenente Blank. - Assim que chego a uma localidade do meu território, os negros precipitam-se para mim e eu fico impossibilitado de me mexer. Então ordeno: os negros a cinquenta metros. E eis o que acontece.

Um negro de pés descalços começa a contar os passos, partindo da parede da Casa de Oração e dirigindo-se para o norte. Segura a arma como no tempo dos ataques de cidadela medieval.

Max Embilint, que jazia ao pé da parede da Casa de Oração, volta a si. Ouve os gritos dos guardas descalços.

- Sons of a bitch! - diz Max Embilint. - Filhos de puta! Agora, mato-os. Aos quatro. Macacos sujos! Dirty monkeys!

Max Embilint apoia-se sobre um cotovelo. O seu corpo está coberto de formigas. A cicatriz deixada pela mutilação cometida pelos brancos faz-lhe doer.

Max não se pode levantar. Arrasta-se para a camioneta. Na cantina que contém as garrafas de rum branco encontra-se, também, uma pistola automática, uma verdadeira metralhadora em miniatura, made in Italy, a mais bela arma de fogo da terra.

- Eu abato-os, aos quatro - diz Max Embilint. Respira com dificuldade. Está nu. Tem, apenas, o slip de seda azul. As formigas continuam a mordê-lo, mas ele não as sente. Quer segurar o revólver para abater os macacos das grandes espingardas. Ninguém o viu.

Max vê a roda da frente da camioneta a alguns metros dele. Arrasta, como um tronco de árvore, o corpo enorme e impotente. As suas mãos tocam o pneu da roda da frente. Quer trepar. Mas o seu corpo enorme, negro e sujo, está muito pesado. Não se pode levantar. As forças abandonam-no. Cai. A cabeça e o peito estão agora debaixo da camioneta. É tudo o que pode fazer. As formigas, as moscas e milhares de insectos tomam, de novo, posse do corpo de Max Embilint. O negro geme docemente. Os guardas negros, de pés descalços e de grandes espingardas, do tenente Blank, berram, inutilmente, automaticamente, em direcção dos quatro pontos cardeais. Max não os ouve. Está aniquilado. Vencido.

 

Os missionários nada sabem da desventura de Max Embilint.

- O senhor Embilint dorme? - pergunta Bianka.

- Dorme no meu quarto - responde Mark. - Fechei a porta para que esteja em sossego.

Os missionários estão na Casa de Oração com o tenente Blank. Falam em voz baixa, para não acordarem Max Embilint. Os missionários e Zeno estão alegres. Nem sequer imaginam que os guardas negros tenham batido em Max, que Max jaz debaixo da camioneta, sem sentidos, devorado pelas formigas.

O tenente Blank toma chá com o valáquio e os missionários. É um homem de vinte e seis anos, licenciado em direito, inteligente e belo rapaz, é o comandante supremo do território onde vivem os canibais. Edita as leis e aplica-as, é o chefe religioso, político e militar. O tenente regozija-se com a vinda dos missionários para o seu território, onde não há outro branco. Travou conhecimento com os missionários no dia da sua chegada. Depois procurou um pretexto para os visitar. O tenente Blank tem a nostalgia dos rostos brancos. Diante dos seis jovens brancos - os missionários, Blank e Zeno - há seis chávenas de chá. Fora ouvem-se os guardas de pés descalços e grandes espingardas gritar:

- Os negros a cinquenta metros da casa!

Os canibais foram recuados a cinquenta metros da casa. De outra forma estariam encostados às portas, às janelas, e o tenente não teria podido falar com os missionários.

- Vocês são os primeiros missionários que encontro no meu território - diz o tenente. - Venho dar-lhes alguns conselhos indispensáveis. Eles evitar-lhes-ão eventuais acidentes e nós pouparemos desgostos. Primeiro: aos olhos dos canibais, eu, tenente Blank, sou um ser de essência divina. Não sorriam. Tal atribuição seria ridícula em qualquer outra parte do globo. Aqui ela é necessária. Não lhes peço para confirmarem aos canibais que sou um ser sobrenatural. Um missionário não pode afirmar que um tenente é de essência divina. Mas evitem qualquer discussão sobre este assunto. Deixem os canibais crer que eu sou uma criatura sobrenatural.

Zeno, o valáquio, morde os lábios para não desatar a rir. O tenente está extremamente sério. Diz:

- Vocês têm liberdade para contar aos canibais que, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o Evangelho, eles são iguais, perante Deus e a O.N.U., aos outros homens da terra. Isso é legal. Não discutiremos acerca disso. Todos os homens e todos os povos são iguais entre si. Os canibais são iguais aos holandeses e aos suíços. Todo o canibal, tem, perante Deus e o secretário-geral da O.N.U., os mesmos direitos que Einstein e Charles Chaplin. Perante Deus e a O.N.U., os canibais são iguais aos membros da Academia Francesa e aos laureados do prémio Nobel. Deus e a O.N.U. não fazem diferença entre os homens. Vivam eles nas árvores, como os macacos, ou vivam nos arranha-céus, os homens são iguais. É uma bela concepção do homem. Vocês podem, por conseguinte, participá-lo aos canibais. Cada canibal saberá que é igual a qualquer homem sobre a terra. Mas proíbo-lhes - sob pena de expulsão imediata - de lhes sugerir que eles são iguais ao tenente Blank. Eu sou o único homem sobre a terra que não sou seu igual. É necessário que eles aceitem esta pequena excepção.

- Humilha-o assim tanto ser considerado como seu igual? - pergunta Bianka, ironicamente.

- Não se trata disso - diz o tenente. - Trata-se de manter a ordem. O homem civilizado não tem vaidade. Submete-se a um igual. Os canibais não se submetem aos seus iguais, mas, somente, aos seus superiores. São muito orgulhosos para se submeterem aos homens. É necessário que eu seja considerado como um deus, a fim de ser escutado e obedecido.

O tenente sorri. O uniforme fica-lhe bem.

- O segundo ponto diz respeito às armas. Trouxe-lhes duas caixas de armas e de munições.

O tenente conta a Zeno que os missionários vieram para o Trópico sem uma única arma.

- Na Europa as pessoas não andam armadas - diz Zeno. - Lá o uso de armas é proibido.

- No Trópico, o uso das armas é obrigatório - diz o tenente. - Eu tenho o dever de verificar se os brancos que entram em território canibal estão convenientemente armados.

- Nós somos missionários - diz Mark. - Não temos nada a defender com armas. Não temos que defender as mercadorias ou o dinheiro, como os comerciantes, e não temos território a defender, como os soldados. Não possuímos bens terrenos, não temos necessidade de armas.

- Têm as vossas vidas a defender - diz o tenente Blank.

- O maior perigo para um cristão não é a morte, mas o pecado. Para nos defendermos do pecado, as armas de fogo são ineficazes.

- Não se esqueçam que se encontram entre canibais.

- Não há nenhuma prova que eles sejam canibais - responde Mark. - Você tem alguma prova material em como os homens que nós viemos converter são canibais?

- Eu tenho coisas mais sérias a fazer do que recolher provas materiais do seu canibalismo - diz o tenente.

- Sem provas, não pode afirmar que os indígenas são canibais - diz Mark. - A acusação de canibalismo usada contra os povos primitivos é, muitas vezes, uma invenção da polícia para desculpar o seu massacre. “Nós massacrámo-los porque eles eram selvagens e canibais.” É um termo de que se abusou de uma forma criminosa. Quando um jornalista visita uma população primitiva, escreve imediatamente: “Venho dos canibais.” É indigno.

- Em toda a extensão do território não existe um único cemitério - diz o tenente. - Comem os seus mortos. Se não os comem, onde estarão eles?

- Isso não é uma prova de canibalismo - diz Mark. - O facto de os mortos desaparecerem depois da sua morte é normal. Cada metro quadrado desta terra está povoado de milhões de seres minúsculos. Esta terra viva não espera senão um cadáver para o engolir a toda a pressa. As formigas, os vermes, as moscas, todos estes pequenos animais executam os trabalhos de limpeza no Trópico. É natural que os guardas do tenente Blank nunca encontrem os restos dos mortos. Mas isso não é uma prova de canibalismo.

- Trouxe-lhes armas - diz o tenente. - Ofereço-vo-las. Mesmo que não se sirvam delas, os canibais saberão que as têm e não vos atacarão.

- Não desejamos armas na Casa do Evangelho - diz Bianka.

- Se forem mortos, a opinião pública afirmará que eram jovens imprudentes e que mereceram a morte. Serão censurados.

- Sob o ponto de vista policial, a fé foi sempre uma imprudência - diz Bianka. - De resto, nós temos a convicção de que estas pobres pessoas que nós viemos cristianizar não são canibais.

- De acordo - diz o tenente. - Admitamos. Mas a lei proíbe aos brancos que se dirijam para o território de uma tribo que, de notoriedade pública, é canibal.

- Discutimos em vão, tenente - diz Luka. - Nós estamos armados. Para cada exército as suas armas. Nós somos os soldados de Cristo e temos as armas da fé. O regulamento está respeitado. Nós não viemos para o Trópico de mãos vazias.

- O regulamento não considera a fé como uma arma defensiva contra os canibais - diz o tenente.

- A História mostra-nos, a cada página, que as armas espirituais são mais eficazes do que as armas de fogo - diz Mark.

- Para lhes agradar, aceito crer que estão armados - diz o tenente. - Reconheço o valor das armas morais que possuem. Mas, na minha qualidade de comandante do território, declaro que têm necessidade de um equipamento suplementar de armas de fogo.

- Não aceitamos armas - diz Bianka.

- Adivinho o vosso desejo de se tornarem mártires - diz o tenente. - O regulamento proíbe-me de os autorizar a realizar esse sonho. É ilegal consentir que uma pessoa se entregue, voluntariamente, às feras ou aos canibais. É uma nobre intenção, mas expressamente proibida. Se desejam tornar-se mártires, procurem outro território.

Max Embilint recupera os sentidos. Os seus primeiros pensamentos são pensamentos de vingança. Continua estendido debaixo da camioneta. Enxuga o suor da testa. A boca de Max está enlameada. Desembaraça-se das formigas que se lhe colam à pele. Quer pôr-se de pé, mas não consegue. A dor que sente nas entranhas é como que uma âncora. Ela mantém-no colado à terra.

“É preciso que eu os mate - pensa Max. - Se não me levanto, partem e eu não poderei matá-los, esses filhos de puta.”

Max Embilint ouve vozes. A cabeça e metade do corpo estão sob a camioneta. Abre os olhos. Perto das rodas da camioneta distinguem-se pernas brancas. Max reconhece as pernas altas e magras dos quatro missionários, de Zeno, o valáquio, e do tenente Blank.

O tenente diz aos missionários:

- Os negros do Trópico não são animais. Há no território vizinho um sábio russo. Há vinte anos que ele tenta unir os negros com macacos, para demonstrar que o homem descende do macaco. Mas é impossível. A espécie humana é um círculo fechado. Um homem está - e fica - no círculo real da espécie humana. Os canibais não são animais, mas homens. Mas, com excepção da relação da espécie, eles não têm qualquer laço de parentesco connosco. São, talvez, interessantes para os médicos, para os antropólogos e para os administradores coloniais. Vocês, os missionários, chegaram muito cedo para eles. Dirijam-se para uma tribo mais civilizada.

"Com os canibais perdem o vosso tempo.

- Os negros canibais têm necessidade urgente do Evangelho - diz um missionário. - Têm necessidade de Jesus, com toda a urgência. Estão em perigo de morte. Vivem em plena pré-história. O homem branco veio para o território deles. Sempre que duas civilizações se encontram e são obrigadas a viver no mesmo lugar, sofrem as mesmas leis implacáveis que, no domínio da física, os líquidos dos vasos comunicantes. Elas devem atingir o mesmo nível. No nosso caso, estes negros devem atingir o nível do homem contemporâneo. Se assim não acontece, o homem primitivo morre. Em dez anos, centenas de grupos desaparecem da terra unicamente porque eles se encontraram em contacto com a civilização dos brancos. Nós viemos ajudá-los. Só o Evangelho os pode ajudar.

Agora, é o tenente Blank quem fala. Max Embilint ouve-o. O tenente diz:

- Chegaram muito cedo, meus amigos. Os negros canibais não compreendem nada. Eles têm necessidade do Evangelho, estou de acordo. O homem tem sempre necessidade do Evangelho. Julgam vocês que o homem que viveu antes do nascimento de Cristo não teve necessidade do Evangelho? Claro que teve! Mas Jesus não veio à terra, nem quando os homens viviam nas árvores, nem quando viviam nas grutas, nem quando viviam nas cavernas, na idade da pedra. O Filho de Deus esperou que os homens tivessem atingido um certo grau de civilização. Na Palestina, há dois mil anos, os homens não viviam nus como os vermes, nem nas árvores. Porque querem fazer mais e melhor que Deus? Porque vieram para junto dos canibais, quando ainda é tão cedo?

- Estes homens estão em perigo- diz Luka. - É por isso que nós viemos para junto deles. Correm um perigo mortal. Um perigo iminente.

Max Embilint ouve a discussão. As pernas dos brancos estão perto da camioneta sob a qual ele jaz. Reconhece as pernas do tenente Blank, pernas de jogador de futebol.

- Jesus não virá agora junto dos canibais, como não veio no passado - diz o tenente. - É muito cedo. Os negros só sabem dormir, como os porcos, debaixo dos carros. Olhem! Olhem o corpo deste negro. Julgam que Jesus vinha à terra por ele? Julgam que Jesus tenha subido o Gólgota por este pedaço de carne negra, que dorme debaixo da camioneta, como um cão?

Max Embilint sente um pontapé na anca. O tenente é um bom jogador de bola. Bateu nos rins de Max Embilint.

- Eu bato-lhe e ele não se mexe - diz o tenente.

- Como querem vocês que este negro seja sensível ao Evangelho, quando ele não é sensível aos pontapés? Vocês perdem o vosso tempo com eles.

Max Embilint não se mexe. Recebeu o pontapé do tenente Blank, rangendo os dentes. Os seus punhos crisparam-se. Como uma fera, calculou a distância. Quer saltar à garganta do tenente, agarrá-lo com as duas mãos.

“Por mim, pelo negro Max Embilint, Jesus não desce à terra. Sou muito selvagem e muito negro para que o Filho de Deus se incomode por mim. Mas eu, eu quero incomodar-me pelo tenente Blank...”

Está quase a saltar, os músculos retesados como dois arcos de aço. Apoia-se nos punhos. Está como uma flecha pronta a tomar o seu voo. Mas nas suas entranhas qualquer coisa acaba de se romper, bruscamente. A dor irrompe do interior, como de um vulcão. O corpo tenso amolece. Os músculos distendem-se. Deixa-se cair.

As pernas brancas do tenente Blank afastam-se da camioneta. Max ouve o barulho do motor. O tenente está instalado no jeep. Antes de partir repete:

- O próprio Jesus não se incomodaria pelos negros. É muito cedo. Adeus, meus amigos.

O tenente mostra aos missionários o corpo de Max Embilint, que jaz sob a camioneta.

"Mesmo a mais perfeita criatura do céu, mesmo Jesus, não se incomodaria por mim” - diz Max. Cerra os dentes, morde a terra, como se mordesse a injustiça. Um dos molares quebra-se. Max cospe-o como se ele não lhe pertencesse. O sangue do dente partido corre-lhe da gengiva. Ouve o valáquio anunciar aos evangelistas que vai ver se o patrão não está acordado.

- Vou ver o que se passa com o senhor Embilint - diz Zeno. - Talvez tenha necessidade de mim.

O silêncio reina. Max Embilint sente que vai morrer. Chora. Como um Cristo solitário, não sobre o Gólgota, mas sob uma camioneta escaldante.

 

Max Embilint barbeia-se. O tenente Blank e os seus guardas negros, de pés descalços e de grandes espingardas, partiram há várias horas.

Zeno, o valáquio, segura o espelho. O negro não diz uma palavra. O valáquio tem medo. A cada instante o negro coloca o pincel e a navalha de barba sobre a cantina, pega na garrafa e bebe. A sua respiração é escaldante como um lança-chamas.

Max Embilint ignorava as humilhações de um negro dos Trópicos. Pensa:

“Os guardas do tenente Blank teriam podido matar-me. É por um simples acaso que estou vivo. Se eu estivesse morto, teria sido devorado pelas formigas, as moscas e os vermes. Ninguém teria dito nada. Nunca se diz nada quando morre um negro. Mas estou de pé. Os negros têm chumbo no ventre. Caem sempre sobre as patas, como os gatos.”

Max Embilint sente, na carne, a condição do negro dos Trópicos. Lastima ter vindo. Um negro não deveria nunca ir aos Trópicos.

- Quem é que deu aos guardas ordem para me expulsarem de casa? - pergunta Max Embilint. - Quem lhes deu ordem para me matarem?

- Ninguém, sir - diz Zeno, o valáquio. (O espelho treme-lhe nas mãos.) - Ninguém podia imaginar que fosse atacado por esses macacos de grandes espingardas. O tenente ordenou que caçassem, somente, os negros.

- E eu não sou negro? - pergunta Max. - Eu não estava na casa?

- Yes, sir - diz Zeno. - Nós julgávamos que dormia. Ninguém sabia que tivesse sido atacado por esses brutos negros.

- Shut up - ordena Max Embilint. Pensa: “Porque eu sou negro e porque me encontro no Trópico, qualquer pé descalço da guarda de um oficial branco, anónimo, tem o direito de me matar. Não importa qual.”

- Tu estavas com os brancos quando o tenente ordenou a minha expulsão da casa, não é verdade? O branco ordenou: “Os negros para fora de casa! Os negros a cinquenta metros de casa.” Não é verdade? Tu estavas com eles. Vocês, os brancos, querem ficar entre nós. Vocês não querem misturar-se com os negros. Não é verdade?

Com o punho, Max Embilint bate no espelho que o valáquio segura. O espelho faz-se em estilhaços. Zeno baixa-se para os apanhar. Max Embilint segura-o e bate com força no rosto do valáquio. Zeno cai de joelhos.

- Os negros para fora da casa, não é? - pergunta Max Embilint. - Os negros a cinquenta metros da casa, não é?

A segunda bofetada estala no rosto pálido e mal alimentado de Zeno, o valáquio.

- Os negros a cinquenta metros da casa! - diz Max.

Nova bofetada. O nariz do valáquio sangra.

O negro não pode dominar-se. Zeno, o valáquio, não é um atleta. Mas tem bastante força para deter a mão do negro. Agarra-se, com todas as forças, à mão direita de Max Embilint.

Uma vez, nos Cárpatos, Zeno, o valáquio, foi atacado por um urso. Zeno estava só, no meio do bosque. Agarrou o urso como acaba de agarrar o negro, nesta ocasião. Zeno, o valáquio, venceu o urso. Não é um atleta e contudo foi mais forte que o urso. E o negro não pode bater mais. Mas, bruscamente, Zeno, o valáquio, lembra-se que foi contratado para se deixar bater por Max Embilint. Zeno, o valáquio, larga a mão do negro.

- Desculpe-me, sir - diz o valáquio. - Peço-lhe que me desculpe.

Uma saraivada de socos abatem-se sobre a sua cabeça. Não se defende. Livres, as mãos de Max batem. Zeno enxuga o sangue sobre o queixo. Cai de joelhos. Lágrimas correm-lhe dos olhos. Através das lágrimas distingue o rosto do negro, branco de espuma de sabão, um rosto sinistro.

- Porque não vieste defender-me? - pergunta Max Embilint.

A mão apertada pelo valáquio faz-lhe doer. Todos os acontecimentos do dia fazem-no sofrer. O golpe vibrado pelos guardas das grandes espingardas, o pontapé do tenente, o rir dos canibais, a solidão.

- Tu és o meu criado - grita Max. - Eu não te contratei para que passes o teu tempo a falar com os brancos.

Zeno levanta-se. Espera outras bofetadas, conforme o seu contrato de trabalho.

- É uma sova a valer, uma verdadeira! - grita o negro. - Não é para manter as aparências. Eu não te bato para impressionar os selvagens, mas porque tu o mereces!

Os evangelistas rodeiam Zeno, o valáquio, e defendem-no de Max, formando à volta dele um círculo com os seus corpos. Zeno, o valáquio, enxuga as lágrimas e o sangue do rosto. Um sorriso aparece-lhe nos lábios.

“A partir de agora, sou livre, pensa Zeno, o valáquio. Paguei a minha dívida. Recebi os socos e as bofetadas pelos quais já estou pago. Foi duro. Mas agora estou livre!”

Zeno, o valáquio, está contente por ter tido força para não se defender. É uma das coisas mais difíceis deixar-se bater sem ripostar. “Se eu tivesse batido no negro, ele não teria prestígio aos olhos dos canibais, pensa Zeno, o valáquio. Mas não lhe bati. Fiz o meu dever e agora o negro tem prestígio.”

O sangue corre do nariz de Zeno sobre os lábios e sobre o queixo. Enxuga-o com a mão e a palma fica toda vermelha.

- O seu motorista não é absolutamente nada culpado, sir - diz Luka. - Você bate-lhe injustamente. Nós estávamos persuadidos de que estava a dormir no quarto de Mark. Durante toda a visita falámos em voz baixa para não o acordar.

Bianka estende um lenço branco, de assoar, a Zeno para que ele possa enxugar o rosto coberto de sangue.

- Nós não sabíamos que esses brutos guardas o tinham atacado - diz Mark. - Não sabíamos nada.

- Porque não chamou, sir? O primeiro a defendê-lo teria sido o próprio tenente Blank. Não consentiria que o maltratassem. Escrever-lhe-emos hoje mesmo e ele apresentar-lhe-á as suas desculpas. Estamos certos de que lastimará o incidente. É um homem civilizado.

- Porque é que o tenente me deu um pontapé enquanto eu jazia sob a camioneta? - pergunta o negro.

- O tenente não sabia que era em si que batia - diz Mark. - Se o tenente soubesse que era em você, não teria batido.

Max Embilint deita fora a garrafa de rum.

- Ele viu pele negra e bateu! - grita Max. - Bate-se num negro como num cão. Basta ser negro para receber pontapés.

Max treme como uma árvore imensa e negra, sacudida por todas as tempestades do ódio e da vingança.

- O vosso tenente Blank bateu-me ao explicar-vos que Jesus nunca desceria à terra pelo negro Max Embilint. Eu sou bastante negro. Mesmo Jesus não se incomoda por um negro.

Max Embilint volta-se, ameaçador, para os quatro missionários. Cerra os punhos. O seu rosto negro tem manchas brancas de espuma de sabão. Max mete-lhes medo. Grita aos evangelistas com a sua voz enrouquecida:

- Jesus virá pelos negros! Se Jesus tem as mesmas ideias que o vosso tenente e se ele não quer incomodar-se por Max Embilint e pelos outros negros, então nós usaremos da força! Nós, os negros, subiremos ao Céu, e traremos, à força, Jesus, à terra. E, desta vez, para mais ninguém senão para nós, os negros. Nós o conduziremos à força para o Gólgota para que seja crucificado mais uma vez, somente por aqueles que não são brancos. É absolutamente necessário que ele o faça. Ele não se poderá recusar! E é preciso que o faça depressa! Porque o tempo foge, é urgente! Ámen!

- Você deveria ter dito quem era, sir - diz Mark. - O tenente não lhe teria batido.

- Não se deve dar pontapés a qualquer negro! - grita Max Embilint. - Nunca! Pouco importa de que negro se trate! Até agora temos mendigado a piedade, temos mendigado a igualdade, temos mendigado a liberdade, temos mendigado todas as espécies de milagres. Agora, vamos fazer-lhes medo, e não nos baterão mais. Não espancarão mais os negros. Nenhum negro! Nunca! Porque terão medo! Só o medo faz milagres!

Max Embilint enxuga o sabão da cara. Já não se barbeia. Grita a Zeno:

- Eu parto. Preciso de dez carregadores.

- Fique connosco, sir - diz Luka. - Aqui, estará bem. Fique connosco, peço-lhe.

Max Embilint não responde. Sabe que é 17 de Dezembro, uma quarta-feira. O assassinato deve ser cometido no sábado 20 de Dezembro. Não há tempo a perder.

 

ZEno, tu ficas aqui, com os missionários - ordena Max Embilint. - Tem a camioneta pronta para a partida. Partiremos sábado à tarde. Se eu tiver necessidade de ti, chamar-te-ei. Dez canibais, transportando as cantinas, aguardam a partida. Max Embilint parte. Zeno, o valáquio, fica com os missionários.

- Tenho pena que me não leve consigo, sir - diz Zeno, o valáquio.

- Tu estarás mais à vontade aqui - diz Max. - Tu és branco. Deixo-te com os missionários brancos.

Luka, Matei, Mark e Bianka estão incomodados. O negro chegou à tarde. Dormiu algumas horas na camioneta. Alguns instantes depois do seu despertar, chegou o tenente Blank. Houve o incidente dos guardas do tenente. Houve o pontapé do tenente. Houve as bofetadas de Zeno, o valáquio. Um dia bem mal sucedido.

- Fique até amanhã, senhor Embilint - insiste Bianka.

- Vim para trabalhar - responde Max.

- Eu não o posso deixar só com os canibais, sir - diz Zeno, o valáquio. - É muito perigoso.

- Não - responde Max Embilint.

Todos os canibais desejaram ser os carregadores de Max Embilint e partir com ele para o interior. Ele escolheu dez. Entre estes dez, dois usam calções de caqui. São Xkon-Goa-Xob e Nakusanswa.

Os outros usam, apenas, uma tanga de bambu que lhes cobre o sexo.

Max parte só com os seus dez canibais. Na algibeira, meteu a metralhadora miniatura made in Italy. Max está vestido com uma camisa vermelho vivo. De cabeça descoberta. Não tem necessidade de capacete. O facto de ele estar de pé, algumas horas depois de ter sido brutalizado pela guarda negra, permite-lhe pensar que está, realmente, imunizado contra a dor. Leva debaixo do braço um chicote de couro vermelho, que lhe foi oferecido por Stanislas Krizza. Chama-lhe knout. Ao pescoço, Max usa o belo estojo de couro que contém o frasco de rum branco. Os canibais com as bagagens vão à frente, em fila. Max segue-os. O seu andar tem o balancear do do tigre. Está calor. De tempos a tempos, Max bebe. Pensa:

“Estamos a quarta-feira. Sábado, à tarde, os missionários estarão mortos.” Lembra-se das palavras de Krizza:

“Max, você é um defensor da justiça. Para que ela triunfe, é preciso que depois do crime venha a expiação. Você começou por expiar. Resta-lhe cometer o crime. A par da justiça, você é devedor do crime pelo qual foi mutilado e injustamente humilhado.”

Max bebe. Não pensa em mais nada. O sol está baixo, um sol vermelho, enorme. Os negros cantam. Max ordena:

- Parem! As cantinas à roda.

As cantinas estão abertas. Monta-se a tenda. Cava-se uma vala à volta da tenda. Max comanda. Os canibais executam as ordens. Icibolia está a três horas de caminho. Max Embilint ordena aos negros para se sentarem, para fazerem círculo à volta dele. Pergunta a Akpatabgalo, o feiticeiro dos canibais, se os dez carregadores prestaram juramento de guardar segredo e ser fiéis. É uma formalidade sobre a qual Stanislas Krizza muito insistiu: “Se os negros juram diante do seu feiticeiro guardar segredo e ser fiéis, pode ter-se confiança neles.”

Akpatabgalo confirma: os negros comeram terra e juraram ser silenciosos como a terra e fiéis como ela.

- Se Ya-mou Embilint ordena aos homens para morrerem, eles morrerão. Juraram obedecer.

A tenda sob a qual Max Embilint vai dormir está pronta. Ele foi escuteiro nos E.U.A. Sabe acampar. Xob queima ervas no interior, a fim de destruir os insectos que se tenham alojado na tenda. Max está em pé, a sua camisa é vermelha. O sol a pôr-se é vermelho. A terra de África é vermelha. Toda a terra do Trópico é vermelha.

Akpatabgalo, o feiticeiro, tem os cabelos grisalhos. É pequeno e magro. Max lembra-se das palavras de Stanislas Krizza:

“Quando um negro jura ser fiel diante do feiticeiro, ele é, realmente, fiel. No Quénia, os europeus esfolaram vivos os seus prisioneiros negros. Os oficiais cortaram-lhes o nariz, as orelhas, o sexo, mas os prisioneiros negros não falaram. Nenhum negro divulga um segredo se prestou juramento.”

- Todos juraram, Ya-mou - confirma Akpatabgalo.

- Escutem atentamente - diz Max Embilint. - Eu posso fazer milagres que mais nenhum homem sobre a terra pode fazer.

Max Embilint não mente. Está persuadido, neste momento, que, na sua qualidade de colaborador no plano quinquenal da emancipação dos negros, ele pode fazer milagres.

-Qual é o maior milagre que um homem pode fazer sobre a terra? - pergunta Max.

- O milagre supremo é a ressurreição dos mortos- diz Xob.

- A ressurreição dos mortos - respondem os canibais, em coro. - A ressurreição dos mortos é o maior dos milagres!

- Imbecis! - diz Max Embilint. - Vocês levam a vida mais miserável que se pode imaginar, vocês são mais miseráveis do que os cães, que os lobos e que as hienas, e consideram como um milagre voltar a esta vida depois da vossa morte? A ressurreição de um negro é uma calamidade, porque a sua vida é uma calamidade.

Max Embilint está furioso.

- África está cheia de Kugbadzo (1) - diz Max Embilint. - Não sejam idiotas. Qualquer branco, nos seus hospitais, pode matar um homem, tirar-lhe o mal e depois ressuscitá-lo. A ressurreição dos mortos é um pequeno milagre. Não existe senão um verdadeiro milagre. E só eu posso fazê-lo. Só eu, Max Embilint.

 

Nota 1: O-homem-que-morreu-e-ressuscitou. (N. do T.).

 

Logo que ouviram o seu nome os negros começaram a tremer. Cada vez que ouvem este nome (que eles pronunciam M'Bilint) os negros sentem terror, respeito e veneração.

- Eu posso tornar os negros brancos! - diz Max Embilint. - Posso mudar a pele dos negros em pele branca. Eis o maior milagre!

Os canibais escutam imóveis. Os seus olhos esbugalham-se. Nos seus peitos negros, o coração bate forte como um martelo.

- Posso tornar branco qualquer negro - diz Max Embilint. - Qualquer pele negra, posso torná-la branca como a pele dos missionários. Posso fazer os olhos azuis. E os cabelos pretos torná-los dourados. Posso dar a cada negro vestuário de branco, calçado de branco, relógios de pulso. Posso dar-lhes um chapéu de branco e óculos de branco.

Os canibais estão em êxtase. Max Embilint deixa-os deleitar-se. Pensa nas palavras de Krizza:

“O único milagre que o homem negro deseja, quer seja canibal, milionário, sábio ou vedeta de music-hall, é mudar de pele. Todo o negro deseja tornar-se branco. Mas, entre os canibais, ser branco significa, sobretudo, ter relógios de pulso, sapatos, óculos de sol, ter automóveis e aparelhos de rádio, como os brancos. Ser branco, para os canibais, é sinónimo de tomar o comboio, de ter sapatos de sola de borracha. Não fale aos negros da emancipação política ou económica, de igualdade, de autonomia e de progresso. Diga-lhes que se tornarão brancos. Ser branco significa ser livre, ser um homem. E é a única coisa que eles desejam: ser homens, quer dizer, ser iguais aos brancos.”

- Se tu podes, faz-nos brancos! - diz Xob. - Porquê tantas palavras?

- Não, Xob - diz Akpatabgalo. - Porquê torná-lo branco a ele? É a mim que deves fazer branco. "Eu sou o mais velho. Tu deves começar por mim.

Akpatabgalo levanta-se. Segura Xob pelos ombros e empurra-o para longe.

- Tu és muito novo para te tornares branco - diz o feiticeiro. - Tu tens tempo de ser branco.

Os dez corpos negros movem-se. Levantam-se todos. Desejam todos tornar-se brancos. Aqueles que não estão levantados seguram pelos pés os que se atiram para Max. Os negros têm a certeza de que não se podem tornar brancos, se estiverem de pé.

- Sentem-se! - ordena Max Embilint.

Embilint ameaça os canibais com o seu chicote vermelho. Krizza diz que os negros receiam mais o knout do que o revólver. Mas, desta vez, não têm medo, estão prontos a suportar todos os golpes, contanto que sejam transformados em brancos, isto é, em homens. Os negros prostram-se de joelhos diante de Max Embilint.

- Começa por mim, Ya-mou! - suplica Akpatabgalo.

- Faz-me branco! - implora Nakusanswa.

Os canibais beijam os pés de Max Embilint. Ele não os pode afastar. Lembra-se das palavras de Krizza:

“Os negros prostrar-se-ão de joelhos para lhe suplicar que os faça brancos. Mendigarão esta brancura. Na realidade, pedem a mais pequena coisa que lhes é devida: ser tratados como homens, porque são homens.”

- Brancos! Brancos! Brancos! - imploram os negros. Max Embilint levanta o chicote vermelho e bate nas costas negras e brilhantes dos homens que beijam os seus pés. O sangue salta das costas dos negros. A pele negra é mais dura que a pele branca. Ela estala sob as chicotadas.

- Deitados! De barriga para baixo! - ordena Max Embilint.

Os negros deitam-se sobre a barriga aos pés de Max. Os seus corpos assim estendidos formam dez pétalas de uma margarida negra.

Max Embilint bebe e enxuga o rosto coberto de suor.

O sol do Trópico, como uma bandeira vermelha, ilumina as dez pétalas da margarida negra, que espera tornar-se branca.

- Um milagre é uma coisa difícil - diz Max Embilint. - É por isso que Akpatabgalo está magro, velho e doente. Vocês, que não fazem milagres, estão gordos como porcos. Só o fabricante de milagres Aka é magro. Um milagre é um trabalho esgotante. Para curar um pé, para tirar o mal de um olho, para mudar um homem em pantera ou para outros pequenos milagres, são precisos vários dias de trabalho. Eu vou fazê-los todos brancos. É preciso serem pacientes e guardar segredo. Em seguida serão brancos, terão sempre que comer e terão sapatos.

Max Embilint não está comovido com os negros que estão estendidos de barriga para baixo, deitados a seus pés e que mendigam a graça de se tornarem brancos, de se tornarem homens. Antes da sua mutilação, Max Embilint era terno, sentimental, propenso à piedade. Agora os seus olhos estão secos. As glândulas lacrimais, como as que fazem nascer a barba e o bigode, atrofiam-se nos eunucos. E a piedade atrofia-se ao mesmo tempo que as glândulas. Max bebe rum branco, e na sua cabeça há uma lógica forte, branca como o rum, a lógica branca de Stanislas Krizza. Max Embilint diz, com dureza:

- Aquele que deseja tornar-se branco não deve dormir até que eu lhe dê ordem.

- Não dormiremos - diz Akpatabgalo. - Se tu nos fazes brancos não dormiremos mais.

- Não dormiremos - respondem os negros, em coro. - Não dormiremos mais, Ya-mou!

- Assim que o milagre estiver pronto, chamá-los-ei pelo tanta. Tenho que preparar o ouro e a luz para vo-los despejar na pele. O milagre pode estar pronto de dia, de tarde ou à noite. Fiquem acordados, a fim de poderem ouvir o tanta. Se dormirem, não ouvirão o tanta. E ficarão negros.

Stanislas Krizza dissera a Max:

“Os negros têm palavra. Para estar certo que eles assassinarão os evangelistas, é preciso, antes, mantê-los em estado de alerta. Não os deixe dormir. Esgote-os fisicamente. Não há melhor instrumento que um homem fatigado. O homem fatigado torna-se um autómato.”

- Que toda a gente se levante e parta - ordena Max. - Voltem para a aldeia. Estejam vigilantes, estejam onde estiverem, noite e dia.

Os negros levantam-se. Desaparecem a correr. Têm pressa de voltar para Icibolia, para as suas casas, onde receberão a mensagem que lhes anunciará que estão brancos.

Max fica só, perto das cantinas e da tenda. Só, como o está sempre um negro.

 

ZENO, o valáquio, não pode dormir. É a sua primeira noite em território canibal. Os missionários prepararam-lhe uma cama na Casa de Oração, mas Zeno prefere dormir na camioneta.

- Tenho medo que os selvagens destruam a camioneta - disse Zeno. - Sou responsável por ela.

Mas, mesmo na camioneta, Zeno, o valáquio, não pode dormir, tem medo1 por Max Embilint. O negro partiu só, com dez canibais. À tarde, os carregadores canibais de Max Embilint voltaram para as suas casas. Disseram que Max Embilint tinha ficado só.

“Eles pareciam estranhos, pensa Zeno, o valáquio. Talvez estes dez canibais tenham já morto o senhor Embilint? Talvez já o tenham comido? Eu não devia deixá-lo só. Deveria ter partido com ele”. Zeno, o valáquio, acende os faróis da camioneta. Está escuro. Há muito tempo que passa da meia-noite. À luz dos faróis, Zeno, o valáquio, nota que os canibais passeiam à volta da Casa de Oração. Os missionários também não podem dormir. Eles, também, ouvem os canibais, que passeiam à volta da casa.

Zeno, o valáquio, acende os faróis várias vezes de seguida. De cada vez, aparecem na luz corpos negros, que fogem. Isto dura até de madrugada. O valáquio esforça-se por não adormecer. Sente que se passa qualquer coisa de suspeito.

De madrugada diz ao evangelista Mark (aquele que lê os romances policiais):

- Passa-se qualquer coisa de suspeito. Os canibais passearam toda a noite à volta da Casa de Oração.

Zeno está cansado de não ter dormido.

- Crê que eles tenham morto o senhor Embilint? - pergunta Zeno.

- Ouviu o tanta, de madrugada? - pergunta Mark, por sua vez.

Conta a Zeno que, logo depois do tanta, Xkon-Goa-Xob, Nakusanswa e alguns outros deixaram a aldeia, a correr. Desapareceram num segundo. Eram inúmeros. Tramam, sem dúvida, uma conspiração.

- Tenho a convicção de que os canibais cometeram um crime ritual. Velaram toda a noite. Depois, houve o tanta, de madrugada, e a sua partida precipitada - diz Mark.

- Se os canibais devoraram o senhor Embilint, a culpa é minha - diz Zeno. - Toda a minha vida terei a sua morte na consciência. Eu não deveria tê-lo deixado partir sozinho.

- Nós rezámos toda a noite - diz o evangelista Mark. - Desde que estamos no Trópico, nunca tivemos medo, como esta noite. Bianka, Luka e o meu irmão Matei não querem confessar que tiveram medo, mas eu vi-os rezar. Não dormiram de noite. Crê que o senhor Embilint tenha sido comido pelos canibais?

Um negro surgiu, junto da camioneta, suando e arfando. É Xob.

- Embilint chama-te - diz Xob. - Chama-te com urgência.

A fisionomia de Zeno, o valáquio, ilumina-se. Volta-se para Este e persigna-se.

- Obrigado, meu Deus, por teres guardado a vida ao senhor Embilint! Daqui em diante, nunca mais o deixarei sozinho. Nunca mais.

- Eu também vou - diz Mark.

Instala-se junto de Zeno, na camioneta. Zeno põe o motor a trabalhar.

- Sozinho, e sem camioneta! - grita Xob. - É a ordem de M'Bilint! “O motorista só e sem carro.”

Xob está cansado. Ele, também, não dormiu de noite.

- É uma cilada - diz o evangelista Mark.

Inclina-se para o ouvido de Zeno e diz-lhe:

- Não vá. É uma armadilha dos canibais. Talvez eles tenham morto o senhor Embilint. Querem matá-lo a si, também.

- Mesmo que seja uma cilada, eu vou - diz Zeno, o valáquio.

Salta da camioneta e pergunta a Xob onde está Max Embilint. Xob indica com a mão a direcção tomada por Max Embilint, na véspera.

- Eles mataram o senhor Embilint - diz Mark.

- Não vá!

- A minha vida é o meu único capital - diz Zeno, o valáquio. - Aquele que me tirar a vida não enriquecerá, e eu não perderei grande coisa.

- Suplico-lhe, não parta - diz Mark. - Se partir, eu vou também.

- O senhor Embilint ordenou que eu fosse só - responde Zeno.

O valáquio parte. Aperta a mão do evangelista que gosta dos romances policiais. Os outros evangelistas chegam ao pátio. Zeno diz adeus a todos. Sabe que talvez não volte. Mas parte acompanhado por Xkon-Goa-Xob.

Max Embilint espera o motorista junto da aldeia dos canibais. Zeno vê-o de longe e corre para ele. Zeno está feliz por Max estar vivo. Zeno nota, em primeiro lugar, a camisa vermelha de Max. Max está em pé, sozinho, a cabeça descoberta, em pleno sol. Xob corre, ao lado do valáquio, para Max Embilint. - Não preciso de ti - diz Max Embilint a Xob. - Volta para a aldeia.

Zeno desejava beijar o negro, tanto ele estava contente por o encontrar com vida.

- Quais são as notícias? - pergunta Max.

Max chamara o motorista para saber se os canibais não tinham sido indiscretos, se os missionários não duvidam de nada.

- Toda a noite receei por si, sir - diz o valáquio. - Os canibais passearam à volta da Casa de Oração e à volta da camioneta, como sonâmbulos. Nem um dormiu.

- E os missionários? Que fizeram eles? - pergunta Max.

- Tiveram medo, também - responde Zeno. - Rezaram toda a noite. É natural que tenham medo, são homens. Agora estão ocupados a decorar a Casa de Oração para o Natal.

Max está convencido da discrição dos negros.

- Os canibais só falam em si, sir - diz Zeno, o valáquio.

- Que dizem eles?

- Bem, sir. O senhor tem, aos olhos deles, um prestígio enorme.

- Eu tenho prestígio porque te bati ontem? - pergunta Embilint. - Tenho prestígio porque sou negro e porque maltratei um branco?

- Não, sir - diz Zeno. - A correcção não serviu para nada. Os canibais disseram aos missionários que não existem dois homens na terra como o senhor.

Max Embilint tem medo que os negros não se tenham mostrado discretos.

- Estes canibais disseram aos missionários que eu fazia milagres? - pergunta ele.

- Não, sir. Os canibais respeitam-no porque o senhor se chama Embilint.

O motorista conta que, desde a chegada deles a Icibolia, os canibais aproximam-se dele e dos missionários para os ouvirem falar do senhor Embi-lint”.

- Os canibais perguntaram se o senhor se chama, de facto, Embilint.

- Abrevia - ordena o negro. - Qual é a relação entre o meu nome e o respeito?

- É por causa do seu nome que eles o respeitam. Para eles o senhor é tão grande como Deus. Assim que ouvem este nome, os negros ficam boquiabertos de admiração.

- Todo o homem usa o nome que herdou dos seus pais - diz Max.

- É o que os missionários lhes explicaram. Logo a seguir à sua partida, os negros vieram à Casa de Oração. Falámos de si. Os missionários explicaram que, na Europa e na América, um homem herda o nome dos pais. Os canibais não o crêem. Sustentam que cada homem tem um nome, como tem uma vida própria. Entre eles, sir, o nome é uma etiqueta, um cartão de identidade.

- Eu sei - diz Max. - Continua. Que significa para eles o meu nome?

- Embilint, na língua deles - desculpe-me, sir - significa “o homem que comeu as suas próprias entranhas”.

Max Embilint empalidece. Os irmãos Knorr e os dois outros brancos somente o desapossaram de algumas glândulas e não das entranhas. Contudo, a coincidência choca-o. Nenhum canibal sabe que Max é eunuco.

- Agora vai-te - ordena Embilint. - Quando tiver necessidade de ti, chamar-te-ei. Fica junto dos missionários. Não te esqueças que partimos no sábado.

- Yes, sir - diz Zeno.

Ele não se mexe.

- Ordenei-te que partisses - diz o negro.

A sua cólera contra os brancos desencadeia-se contra Zeno, o valáquio.

- Desejo, ainda, dizer-lhe uma coisa, sir - diz Zeno. - Ninguém tem mais prestígio aos olhos dos canibais que um M'Bilint, quer dizer, um homem sem entranhas. É por causa disso que eles o respeitam. Os missionários dizem que há uma parte de verdade nesta crença, que um homem sem entranhas - se existisse - seria um super-homem. Todas as fraquezas, todos os pecados do homem têm a sua origem nas entranhas. A gula, a embriaguez, a luxúria têm a sua origem nas entranhas. É por isso que os canibais respeitam, mais que tudo no mundo, um homem sem entranhas.

- Eu sei - diz Max. - Agora, vai-te.

- Desta vez, ainda, sir, fui espancado para nada - diz Zeno. - Não era necessário que me batesse. Mas é a minha estrela de valáquio que o quer. A estrela dos valáquios é como a estrela dos negros. Espero as suas ordens, sir.

Zeno afasta-se a passos lentos. O negro fica só, no território da sua família. Está no país dos seus antepassados.

 

NA quinta-feira, depois do meio-dia (dois dias antes do assassinato), Max Embilint manda Xob procurar Zeno.

Max está completamente embrutecido pelo álcool. Não pensa no assassínio dos missionários. Está impressionado pelo facto de pertencer à raça dos canibais. A cor da sua pele, o seu sangue e o seu nome ligam-no aos canibais. Bebe. Deseja falar com alguém. Tenta falar aos canibais, mas é impossível.

- Não posso falar com vocês - diz Max, furioso. - Tenho o mesmo sangue, a mesma cor, a mesma origem que vocês, o meu nome prova-o. Mas entre nós há três mil anos de distância. Não nos compreendemos.

Max Embilint vai ao encontro de Zeno, para que o valáquio não saiba onde ele acampa.

“Os negros da América são negros de hoje, pensa Max Embilint. Com os negros da América posso entender-me. A escravidão foi-nos proveitosa. Se o meu antepassado não tivesse sido levado como escravo, hoje eu seria um negro canibal do Trópico. Sofreria nu, como um animal, aqui, no Trópico. Mesmo os judeus não teriam descoberto o único Deus, se não tivessem vivido na escravidão e no exílio.”

Zeno, o valáquio, chega a correr.

- Senhor Embilint, houve um crime na Casa do Evangelho! - diz. - Nós algemámos Akpatabgalo e encerrámo-lo. Os evangelistas querem chamar o tenente Blank e entregá-lo.

- Akpatabgalo matou alguém? - pergunta Max.

A chegada do tenente Blank inquieta-o: Akpatabgalo não divulgará o segredo, mas será preferível que não seja detido.

- Responde, quem é que ele matou? Porque é que os missionários o algemaram e encerraram?

- Akpatabgalo arrancou os dentes de Nakusanswa.

Zeno está impressionado.

- É terrível, sir - continua Zeno. - Assim que viram uma tal ferocidade, os missionários tiveram medo. É possível que deixem os canibais. Têm medo.

Max Embilint acompanha Zeno, o valáquio, à Casa de Oração. Os missionários vêm ao encontro dele.

- Que fez Akpatabgalo? - pergunta Max.

- Deus o abençoe, senhor Embilint - diz Luka.

- Deixe-me em paz com as suas saudações ridículas - diz Max. - Onde está Akpatabgalo? Que fez ele?

- Nós encerrámo-lo - diz um dos gémeos. - Vamos chamar o tenente Blank.

- Malandros! - diz Max Embilint. - Falam do Evangelho e chamam a polícia para prender os negros? Onde está Aka?

Max considera-se, de repente, como um negro da tribo. Defende os da sua tribo contra os brancos.

- Sabemos que o mal é curável graças ao Evangelho, sir - diz Luka. - Mas, desta vez, tivemos que empregar a força. Esta manhã, encontrámos Nakusanswa com os dentes arrancados, com as gengivas e as faces inchadas. Alguns minutos mais tarde, apareceu um segundo adolescente com as faces inchadas. Ele também tinha os dentes arrancados. Os dentes da frente. Dois em cima e dois em baixo. Ao fim de um quarto de hora, descobrimos um terceiro rapaz a quem Akpatabgalo tinha arrancado os dentes. Há, provavelmente, outros. Entretanto, o velho Akpatabgalo chegou à Casa de Oração. Vinha procurar outros adolescentes. Queria, também, arrancar-lhes os dentes. Interrogámo-lo. “Não fizeram nada, disse. Mas o momento chegou de lhes arrancar os dentes.”

- Então, para impedi-lo, encerraram-no? - pergunta Max. - E porque ele ameaçou arrancar os dentes, apesar disso, quando estiver livre, decidiram chamar o tenente Blank?

- Exactamente, sir - diz Luka. - É uma barbaridade. Com o tempo, graças ao Evangelho, este costume feroz desaparecerá. Por agora não pudemos salvar os dentes dos outros jovens senão enclausurando Akpatabgalo. Todas as nossas orações e todas as nossas promessas foram inúteis.

- Eu, também, supliquei a Aka - diz Zeno. - Expliquei-lhe que os próprios animais não arrancam os dentes às suas crias. Ele não quis ouvir-me. O senhor talvez o consiga. A si ele escuta-o porque o senhor se chama Embilint.

Com a ajuda dos missionários, Zeno amarrou os braços e as pernas de Akpatabgalo. O feiticeiro canibal jaz num quarto da Casa de Oração.

- Salve, Aka - diz Max Embilint.

Desde que sabe que usa um nome da tribo, Max está familiarizado com os canibais.

- M'Bilint, Ya-mou - diz Akpatabgalo.

Aka sente-se muito feliz por ver Max. É um velho negro muito magro. O seu mister de fabricante de milagres cansa-o. O pai de Akpatabgalo era, também, fabricante de milagres. Um dia, o tenente branco, que comandava o território, chegou a Icibolia com os seus guardas negros, de pés descalços, e perguntou onde estava o cadáver de uma mulher, morta alguns dias antes.

- O cadáver foi devorado pelas formigas, como todos os cadáveres - respondeu o pai de Akpatabgalo.

- Foste tu que comeste o cadáver da mulher, não as formigas - diz o tenente branco. - Vocês são canibais.

O tenente branco ordenou aos seus guardas negros para porem a ferros o pai de Aka. O fabricante de milagres foi conduzido à cidade, sob escolta. Ali, foi encerrado, só, num quarto vazio, numa cela da prisão, e ninguém voltou a vê-lo. O filho do fabricante de milagres foi chamado “o homem fechado num quarto vazio”, Akpatabgalo, em memória de seu pai e do seu drama.

- Mandem entrar Nakusanswa e os outros jovens a quem arrancaram os dentes - ordena Max Embilint.

Os missionários vão procurar os adolescentes dos dentes arrancados. Entram no quarto onde se encontram Max e Akpatabgalo.

- Abram a boca - ordena Max Embilint.

Os jovens obedecem. Os mesmos dentes faltam aos três adolescentes. Os dentes da frente. Max Embilint tem um estremecimento de revolta.

- Fechem a boca - ordena Max. - Agora saiam os três. - O negro pede aos missionários e a Zeno para saírem também. Fica só com o velho feiticeiro. Os missionários estão cheios de pavor. Vêem o revólver na algibeira de Max e o chicote vermelho, que ele faz voltear, nervosamente.

- Sir, não o mate! - diz Zeno, o valáquio. - Aka também é um homem. O senhor cometeria um pecado, matando-o, mesmo que ele seja um criminoso e um canibal.

- Daqui para fora! - ordena Max ao motorista. - Fecha a porta. Agora, Max Embilint está só com Akpatabgalo.

- Eis-te aqui, Akpatabgalo. Eis-te aqui, “homem encerrado num quarto vazio”. Exactamente como teu pai - diz Max. - Arrancaste ou não os dentes a estes rapazes?

- Arranquei, M'Bilint Ya-mou - responde o feiticeiro.

- Viste tu - além de mim - algum outro homem que tenha comido as suas próprias entranhas - pergunta Max.

- Nunca - responde Aka.

- Não sou o único homem a ter comido as próprias entranhas. Os meus amigos também o fizeram. É por isso que nós podemos fazer milagres. Podemos fazer os negros brancos. Só os homens sem entranhas podem fazer verdadeiros milagres. Se tu não respondes, far-te-ei sofrer todas as torturas. Um homem que comeu as suas entranhas sabe fazer tudo, ele sabe, também, torturar. Responde: porque arrancaste os dentes aos adolescentes?

- Estão na idade em que se lhes deve arrancar os dentes - responde Aka. - Eis tudo. Eu devo arrancar-lhes os dentes.

Max Embilint convida Aka a beber rum da sua garrafa. O velho aceita com prazer.

- Os jovens que não arrancam os dentes são levados como escravos - diz Aka. - É por isso que lhos arrancámos.

Aka não é idiota. Dá explicações lógicas. Todos os mercadores de escravos eliminam os negros desprovidos de dentes.

- Um escravo sem dentes não pode comer - diz Aka. - Se um escravo não come, não tem forças, não serve para nada. Na nossa tribo, arrancamos os dentes a todos os adolescentes machos. E se eles escaparam à escravidão é porque estão sem dentes.

Max Embilint está impressionado. Pensa: “Os meus antepassados foram escravos na América, unicamente porque se tinham esquecido de mandar arrancar os dentes...”

Max Embilint oferece de beber ao negro Aka. Max bebe depois do canibal. Depois Embilint desata a corda com a qual está amarrado o velho canibal. Max agarra o velho pelo braço como o fazia com o pai e a mãe. Sai para o pátio da Casa de Oração, segurando o braço de Akpatabgalo.

Os missionários e Zeno estão estupefactos. Embilint passa ao lado dos missionários. Não os olha. Depois volta-se para eles:

- É verdade que Akpatabgalo arranca os dentes dos adolescentes. Todos os homens desta terra têm cuidado com os seus dentes. Os canibais arrancam os dentes, exactamente como nós, nos países civilizados, nos vacinamos contra o tifo ou contra a varíola. Estes infelizes negros do Trópico fazem arrancar os dentes para se imunizarem contra a escravidão. É uma vacina contra as algemas, contra a deportação. Hoje a escravidão não existe, mas o medo ficou e eles continuam a arrancar os dentes. E arrancá-los-ão até que o medo dos brancos tenha desaparecido...

Bianka chora. Os outros evangelistas têm os olhos húmidos.

- Há regiões onde as mães abrem os lábios das filhas, à nascença, para as desfear, porque só as raparigas feias escapam à escravidão.

Max Embilint bebe. Depois, bochecha a boca com rum., - O arrancar dos dentes tem uma só vantagem: sem dentes, os negros pronunciam, perfeitamente, o artigo inglês the. Os ingleses, certamente, não notaram até que ponto a ausência de dentes ajuda a pronunciar bem the!

 

SEXTA-FEIRA, VÉSPERA DO CRIME

SEXTA-FEIRA, 19 de Dezembro. Um dia antes do assassinato dos quatro “Portadores do Evangelho”

Os missionários decoram a Casa de Oração para as festas de Natal. Ignoram tudo. No entanto, estão inquietos. Os negros guardaram segredo. O próprio Zeno, o valáquio, não se apercebe de nada.

Às três horas da tarde, ouve-se o tanta. Os negros de Icibolia correm para o local do encontro. Max Embilint está só, de pé. O sol queima como ouro em fusão.

Os canibais sentam-se em círculo à volta de Max Embilint. Eles não se interessam por ele. Aquele que faz o milagre não tem importância, só o milagre conta.

- Olhem para as vossas mãos - ordena Max Embilint.

Os canibais observam os braços e os dedos das mãos. Esperam que a pele se torne branca.

- As vossas mãos tornar-se-ão brancas - diz Max.

Os canibais esperam. Olham a sua pele sem arregalarem os olhos, sem pestanejar.

- A vossa cara, o vosso peito, as vossas costas tornar-se-ão brancas - diz Max Embilint. - A vossa pele toda tornar-se-á branca. Vocês não terão uma única mancha preta.

Os canibais observam-se pelo canto do olho. Cada um assegura-se que o seu vizinho não se tornou branco. Cada um deseja tornar-se branco antes do seu vizinho.

Embilint deixa os negros contemplarem a pele. Recorda-se das palavras de Stanislas Krizza:

“Os negros não são idiotas. São obrigados a crer no milagre. Está na natureza humana esperar qualquer coisa. É tão necessário ao homem esperar como respirar. Os negros não têm nada em que possam ter confiança. O branco crê na Sociedade, na família, na justiça, numa imensidade de coisas que ele criou. A História forçou os negros a não se fiarem nas coisas exteriores. Os seus amigos venderam-nos. Os estrangeiros algemaram-nos. A justiça é um instrumento de tortura nas mãos dos tiranos. A Sociedade é uma instituição que faz mal e que mói. Os negros não podem crer em nada. Mas são homens, e devem crer em qualquer coisa. Entre as coisas visíveis, nenhuma merece confiança. Então esperam milagres. Não crêem nos milagres por ingenuidade, nem por estupidez. Crêem por uma espécie de desespero, porque eles não têm nada a esperar.”

Os negros, à volta de Max Embilint, esperam o milagre. Max deixa-se tomar pelo ambiente, e espera também que todas estas peles se tornem brancas.

- Vocês serão todos brancos - diz Max Embilint. - Os negros serão mais brancos do que os missionários, mais brancos do que a “Portadora do Evangelho”. O vosso branco será completamente novo. A brancura dos missionários não será brilhante como a vossa, porque é uma brancura já usada.

Não existe no mundo uma alegria mais intensa do que a esperança de um milagre que se deve produzir com certeza. Mas o milagre da pele que se tornará branca excede todos os outros milagres do universo porque ele se cumpre na própria pele de cada indivíduo. Os canibais sorriem, extáticos. Gozam a voluptuosidade da esperança. É o momento supremo que precede o milagre. Vêem já o branco da sua própria pele, um branco semelhante ao ouro, semelhante ao Sol, semelhante à Lua. Esperam todos ter a sua pele, a luz, o ouro, o Sol e a Lua. Eles sorriem de volúpia.

- Alguns de entre vós ficarão negros - diz Max Embilint.

Os negros levantam os olhos para Max.

- Aquele que divulgar o segredo fica negro.

Max está duro. É brutal. Sabe que nada disto é verdade e está furioso por não o ser; que a sua pele negra não se torne nunca branca.

- Compreenderam? - pergunta Max Embilint.

Os canibais não respondem. Olham a própria pele. Abrem uns olhos imensos. Os canibais perderam a voz. Não tem importância que a tenham perdido, mesmo que tivessem de ficar mudos para a eternidade isso não os incomodaria, contanto que o milagre chegasse.

- Levantem-se e partam - ordena Max Embilint. - Partam e estejam atentos ao tanta.

Os canibais não se mexem. Sentem-se bem. Na sua essência, a vida é a esperança de um milagre.

A luz do Trópico cai sobre o grupo dos canibais, escaldante e branca como ouro fundido. Mas a esperança do milagre é ainda mais escaldante.

Com o chicote vermelho, fustiga. O sangue borboteja. Os canibais ficam imóveis. As chicotadas não os fazem sofrer.

Quando se espera um milagre, está-se imunizado contra a dor.

 

ZENO, o valáquio, adormeceu na camioneta. Acorda bruscamente. Perto dele está Mark, o missionário que gosta de romances policiais. Mark abriu a porta da camioneta e sacode o motorista pelo ombro. Está assustado.

- Zeno, meu amigo, nós partimos - diz Mark. - Acorde. Não temos tempo a perder.

Zeno, o valáquio, salta da camioneta. Bianka e os dois outros missionários tiram as malas da Casa de Oração, a toda a pressa, exactamente como se houvesse um incêndio. Em cima das cantinas empilham-se imagens piedosas, livros, loiça e vestuário. Os canibais ajudam os evangelistas. Todos os canibais de Icibolia estão presentes. Todos, salvo os dez que estão junto de Max Embilint e que esperam tornaç-se brancos. Os canibais gritam e pulam. Têm medo.

- As formigas vermelhas! - explica Mark. - Uma vaga de formigas vermelhas dirige-se para nós. Os negros viram-na. Vêm para Icibolia.

Zeno, o valáquio, não compreende. Adivinha o perigo, mas não vê nada. Os missionários e os negros atiram objectos fora. Estão todos apavorados, como se houvesse um incêndio, ou como se um dique tivesse rebentado em qualquer lado e a chegada das águas ameaçasse engoli-los.

- Nós partimos - diz Mark. - Ajude-nos.

Os missionários e os canibais estão apavorados.

- Despache-se, Zeno - diz Mark.- É um mar de formigas vermelhas. Os canibais viram-no. Vêm directamente para Icibolia. Dentro de meia hora, passar-nos-ão por cima. Venha. Partamos.

Zeno ajuda os missionários a carregar as cantinas na camioneta. Os missionários estão desesperados por esta mudança forçada. Tinham decorado as paredes da Casa de Oração com gravuras. Dentro de alguns dias é Natal, e eis que têm de partir e abandonar a Casa de Oração.

- O caminho das formigas é como um rio - diz Luka. - As formigas nunca abandonam o leito do rio. Mas não nos devemos encontrar no seu caminho.

Os filhos dos canibais choram. Têm medo. Os negros não têm nada para levar. Agarram nos filhos, numa cobertura de trapos, numa panela, e em alguns adornos. A maior parte não possui, mesmo, isso. Têm as mãos vazias. Os canibais são as pessoas mais pobres da terra. São pobres como os lobos, as lebres e as raposas. Só têm uma cama, e agora têm que abandoná-la.

- O rio vivo está a um quilómetro de nós - diz Matei. - Devemos partir.

A camioneta está carregada. Os missionários estão em pé. Só Mark está na camioneta, ao lado de Zeno, o valáquio.

- Não posso partir sem o senhor Embilint - explica Zeno. - O senhor Embilint deu-me ordem para não abandonar a Casa de Oração e esperar as suas ordens aqui.

- É um caso de força maior - explica Mark. - Aqui, no lugar da Casa de Oração, não haverá nada. Nós deslocar-nos-emos alguns quilómetros. Instalar-nos-emos, de novo, depois de termos observado o itinerário exacto das formigas. Elas mudam sempre de direcção.

O tempo passa. A camioneta continua diante da Casa de Oração. As notícias relativas às formigas variam.

- Vamos ver - diz Zeno.

Os missionários hesitam, depois decidem-se. Partem com a camioneta. À saída de Icibolia, algumas dezenas de canibais olham. Os missionários e Zeno aproximam-se deles.

- Não se aproximem com a camioneta! Não se aproximem!

- Dir-se-ia a lava de um vulcão - diz Bianka. - Dir-se-ia metal incandescente.

Um rio vermelho como cobre fundido, flameja, serpenteando, sob a luz forte. O rio tem a largura de um metro. Corre para Icibolia, lentamente. O meio do rio é mais vermelho, tal como a pele das serpentes é mais escura nas costas, ao longo da espinha.

- As formigas! - gritam os canibais. - As formigas! Saltam. - Um negro atira, de longe, um fruto que cai no meio do rio incandescente e desaparece imediatamente nas vagas vermelhas, ondulantes. Alguns segundos depois, o fruto reaparece, vermelho como as ondas de formigas.

Pouco a pouco o fruto coberto de formigas, como uma concha de cobre, desaparece. Flutua sobre as ondas vivas de formigas vermelhas e diminui cada vez mais.

- Nunca se soube onde é que estas ondas vivas têm a sua origem - diz Matei.

É o sábio da equipa de missionários. O rio vivo, formado por milhões de insectos vivos, corre como uma lava.

- Elas rolam como uma torrente no seu leito - diz Matei -, mas não é mais que uma ilusão. A terra está infestada por esta bicharia, sobre centenas de metros, ao longo das duas margens desta torrente viva. Atrás desta torrente, não fica nada.

Um canibal traz aos missionários uma formiga vermelha na palma da mão. Matei observa-a com uma lente.

- As hienas, os tigres e as outras feras do Trópico constituem um perigo menor que este monstro em miniatura - diz Matei. - Este, a mosca tsé-tsé, milhões de moscas, sanguessugas, serpentes minúsculas, vermes, térmites. Não são os crocodilos nem as hienas. O inferno dos grandes pintores ocidentais está incompleto. Aquele que conhece as formigas vermelhas não pode conceber o inferno sem elas. Os monstros apocalípticos de Goya, de Bosch, os animais fantásticos de Salvador Dali e de Picasso são seres inofensivos comparados com estas formigas tropicais.

Os missionários observam a formiga, imobilizada sob a lupa.

- É, apenas, uma boca - explica Matei. - O seu corpo reduz-se a uma boca, uma garganta mais feroz do que as dos tubarões ou dos crocodilos. Os outros membros do corpo de uma formiga são, apenas, anexos desta boca que devora, rói, corta como uma serra minúscula tudo o que encontra.

- O fruto desapareceu - diz Luka. - Foi devorado em sete minutos, precisamente.

Matei continua:

- Assim que não tem mais nada para devorar, a formiga tropical devora a terra. E a terra passada pelos maxilares e o estômago da formiga, torna-se estéril para a eternidade. Nunca cresceu qualquer coisa na terra que elas tenham devorado. Nada lhes resiste. A sua boca devora a madeira, a pedra, as unhas, os cabelos. Elas correm como um rio. Este rio tem, com certeza, a sua fonte no inferno, e é no inferno que ele desagua, como no oceano do terror. Infeliz do animal que se aproxime das suas margens! Seja ele ave, serpente, gazela ou elefante, ele é devorado.

Zeno atira um torrão de terra sobre o rio de cobre vermelho e incandescente. As formigas deixam-no soçobrar, depois enviam-no à superfície. O torrão tornou-se vermelho. Ele voga. Lentamente, muito lentamente, o torrão é devorado, como o fruto de ainda há pouco.

- Tenho medo - diz Bianka.

- Elas vão para o Sul! - gritam os canibais. - Dirigem-se para o Sul!

A torrente vermelha desviou-se. Se ela toma esta direcção, a aldeia de Icibolia e a Casa de Oração estão salvas. Mas a torrente vermelha muda, sem cessar, de direcção e de velocidade.

- Quando chegámos aqui, estávamos convencidos de poder suportar tudo - diz Mark. - Agora não o sabemos. A perspectiva de sermos devorados por estes milhões de formigas é uma ameaça maior do que a nossa fé... Existem mártires devorados por leões, por tigres, mas não por formigas.

- Partamos - diz Luka. - Rezaremos e Deus dar-nos-á coragem.

Bianka chora. A perspectiva de semelhante martírio é muito assustador para ela. Ela é, apenas, uma mulher e tem medo.

Os canibais estão contentes porque a torrente viva segue nova direcção. Não vem para Icibolia. A torrente viva corre, contudo, muito perto da Casa do Evangelho. Muito perto.

 

Sábado, 20 de Dezembro. Segundo o plano de Stanislas Krizza, é o dia do assassínio dos quatro evangelistas.

Zeno, o valáquio, despede-se dos portadores do Evangelho. Lastima ter de separar-se dos missionários.

- Tenho que me despachar - explica Zeno. - O senhor Embilint espera-me. Vamos rodar toda a noite e amanhã todo o dia.

- Não esqueça as cartas - diz Mark.

Os missionários confiaram a Zeno, o valáquio, as suas primeiras cartas do Trópico.

- Fiquem descansados - diz Zeno. - Metê-las-ei logo no correio, assim que chegue à capital, amanhã, à tarde.

Zeno põe o motor em andamento, mas não parte. Os quatro missionários estão junto da camioneta.

- Não se admirem se me virem voltar um dia aqui, a Icibolia, para viver convosco - diz-lhes o valáquio. - Vocês são as melhores pessoas que encontrei sobre a terra. Se um dia estiver desgostoso de tudo, voltarei para junto de vós. Adeus.

Zeno, o valáquio, parte. Estes três dias passados com os missionários encantaram-no. Os valáquios também são cristãos. Mas o valáquio mais beato nunca pensaria em deixar tudo para ir converter canibais. Os quatro missionários produziram uma grande impressão sobre Zeno. Contaram-lhe que eram filhos de mineiros do Reno, que toda a vida trabalharam para obras de beneficência. Órfãos, os quatro, tinham sido educados com o auxílio das sociedades de beneficência.

- Vindo para junto dos canibais, continuamos a nossa obra de assistência - diz Mark.

O valáquio acelera. Esquece os missionários. Max Embilint marcou-lhe encontro para o pôr do Sol. O local do encontro fica a uma hora de caminho de Icibolia.

- Venha dizer adeus aos evangelistas, antes de partir - disse Zeno, o valáquio, na véspera.

- Não - respondeu o negro.

Zeno tem pena.

“O senhor Embilint é um homem valente - pensa Zeno. - É um homem admirável, mas é um homem estranho, sempre contrariado, irritado, violento.”

A camioneta chega ao lugar do encontro. O negro não está lá.

“O senhor Embilint disse-me para não me inquietar se ele tardasse. É preciso que espere tranquilamente. Tem qualquer coisa de importante a filmar.”

O valáquio pára o motor.

“Eu próprio não tenho que me preocupar com as bagagens -pensa Zeno, o valáquio. - O senhor Embilint tem dez canibais com ele. Os negros transportarão as cantinas. Não tenho outra coisa a fazer senão esperar, tranquilamente.”

O valáquio estende as pernas. Acende um cigarro, e, como sempre, quando tem um momento de liberdade, pensa no país dos valáquios. No seu país.

Max Embilint está no meio dos negros. Há uma meia hora que o Sol se pôs. Durante o dia bebeu uma dupla ração de rum. Como de costume, quando está com os canibais, Max fica de pé. Mas, neste momento, está muito bêbado para se aguentar de pé. O rum branco amoleceu-lhe os músculos. Tem a língua pastosa.

“Eu não devia ter bebido tanto - pensa Max. - Hoje, devo executar a coisa mais importante... Antes de tudo é, talvez, melhor que eu esteja bêbado. Será mais fácil.”

- Hoje vocês tornar-se-ão brancos - diz Max Embilint. - Vocês serão brancos, todos.

Nos lábios de Max Embilint as palavras amolecem, alongam-se como pastilha elástica. As últimas sílabas das palavras ficam-lhe entre os dentes.

- Hoje é o dia do grande milagre - repete Embilint.

É noite. Os negros sentados à volta de Max Embilint parecem mais negros que o carvão. As mulheres destes negros são negras, também. Os filhos dos negros são negros. A pobreza dos canibais é uma pobreza negra. A existência de um negro é negra. Só a sede do milagre brilha, cegamente, na existência de um negro. Neste sábado, 20 de Dezembro, os negros esperam um milagre mais deslumbrante que o Sol, que a Lua, que a claridade em pleno meio-dia: a sua pele tornar-se-á branca.

- As nossas mulheres embranquecerão também, ou ficarão negras? - pergunta um canibal. - Como serão as nossas mulheres, depois de nos tornarmos brancos?

- As vossas mulheres tornar-se-ão brancas - diz Embilint.

O rum torna-o generoso.

Um estremecimento de felicidade percorre, como uma corrente eléctrica, os corpos negros. Encontrarão, quando voltarem, mulheres brancas, mulheres de cabelos louros, de olhos azuis, vestidas com roupa fina, como todas as brancas.

- Até amanhã de manhã, vocês tornar-se-ão todos brancos - promete Embilint.

Tem imensa sede. Bebe rum.

- Idiotas! - grita, de repente, Embilint. - Vocês já viram os brancos andarem nus? Os que não tiverem vestuário de branco, deixá-los-ei negros.

Os canibais esqueceram, efectivamente, que, para se tornarem brancos, deviam ter fatos.

- De pé! - ordena Max Embilint.

Ele fica sentado. Os negros levantam-se.

- Dez passos para trás!

Os negros recuam. O seu coração bate com força. Julgam que se trata de exercícios preliminares.

- Que os caçadores de crocodilos saiam da fila - ordena Max.

Stanislas Krizza disse a Max que os canibais são notáveis caçadores de crocodilos. Mergulham na água e caçam os crocodilos à mão desarmada, procedendo assim: o negro assinala um crocodilo solitário, mergulha nas águas pantanosas e tépidas; os crocodilos desta região são muito grandes, e os maxilares medem mais de um metro; o canibal aproxima-se do crocodilo solitário, por detrás, nadando sem barulho, até que o seu corpo esteja paralelo aos maxilares do crocodilo.

O negro lança-se, então, sobre a cabeça do crocodilo e aí se instala, escarranchado. Os dedos enterram-se nos olhos, nas narinas e no focinho do crocodilo, fechando, como um cadeado, os maxilares da fera. Os dedos do negro, comprimindo certos nervos cranianos, paralisam o crocodilo. O seu corpo torna-se mole como a cera. Então o negro volta-o de barriga para cima, e condu-lo para a margem, como um barco ou um tronco de árvore. Tudo isto é uma questão de rapidez. Os negros sabem asfixiar um crocodilo com a rapidez de um relâmpago. Chegado à margem, o negro põe ao ombro o crocodilo ainda vivo, mas mole como um trapo.

- Nós somos todos caçadores de crocodilos - responde Akpatabgalo.

- Nesse caso, partam todos - ordena Max. - Procederão exactamente como para a caça aos crocodilos.

- Quantos crocodilos devemos trazer, Ya-mou Embilint? - pergunta Akpatabgalo.

Ele sabe, por experiência, que, para a execução de um milagre, o feiticeiro tem necessidade de uma imensidade de coisas. Max Embilint tem necessidade de crocodilos vivos para fazer os negros brancos.

- Entrem na Casa de Oração - diz Max. - Entrem silenciosamente, como se entrassem na água. Sem barulho, a fim de não acordarem os brancos. Aproximem-se das camas, exactamente como costumam aproximar-se dos crocodilos. Agarrem os brancos pela garganta, pela boca, pelas narinas e pelos olhos, exactamente como os crocodilos. Repitam!

- Agarramos os brancos pela boca, pelo nariz e pela garganta. Exactamente como os crocodilos.

- Exactamente como os crocodilos - diz Max. - Para que eles sufoquem. Para que não gritem. É preciso que se tornem inertes, como os crocodilos. Assim que os seus corpos estejam moles, vocês colocá-los-ão aos ombros, sempre como os crocodilos, e trazem-nos para aqui.

Os negros compreendem. Estão habituados a esta espécie de operação. Não pensam que são brancos que trarão como crocodilos. Pensam que, à chegada, eles estarão brancos. É isso o essencial.

- Vêem estes quatro postes? - pergunta Max.

À luz da Lua distinguem-se quatro postes brancos, colocados perto da estrada viva das formigas vermelhas. Os quatro postes foram colocados ali, nas margens da torrente vermelha, à tarde. Os negros olham-nos.

- Vocês atarão os evangelistas a estes quatro postes, em cima do caminho das formigas.

Max Embilint olha para os canibais. No seu rosto, nenhuma reacção. Os negros estão alegres e sorridentes. Não por causa do crime, nisso nem pensam. Sorriem porque se tornarão brancos. Só pensam no milagre. O caso dos evangelistas é secundário. Não pensam na morte dos adolescentes, mas, unicamente, na brancura da sua pele. Max disse-lhes para procederem exactamente como com os crocodilos. Isso diverte-os. Os canibais nunca caçaram brancos.

- Aquele que chegar primeiro com o seu branco ao ombro, tornar-se-á branco antes dos outros. Partam!

Os negros partem a correr para a Casa do Evangelho. Cada um quer tornar-se branco antes dos outros. Só há quatro brancos. Quatro negros chegarão transportando brancos aos ombros. Seis voltarão de mãos vazias.

Max Embilint fica só. Olha os quatro postes brancos.

Alguns meses antes, o exército colonial colocou postes telegráficos no território dos canibais. Os homens trabalharam para o exército. À tarde Max Embilint pediu aos canibais para colocarem quatro postes na estrada das formigas vermelhas. Os canibais conhecem este trabalho. Foi a única coisa que aprenderam com os brancos.

Max observa os postes, consulta o relógio e bebe rum. Passeia. Uma hora passa. Depois duas. É quase meia-noite. “Os canibais esperam que os brancos adormeçam - pensa Max. - Esperam, também, que os crocodilos adormeçam. Só, então, mergulham. Os canibais nunca atacam um crocodilo acordado. Só caçam crocodilos adormecidos. Os negros esperam, sem dúvida, que os evangelistas estejam adormecidos, como os crocodilos...”

Max Embilit não quer imaginar a cena. Está ali, sem pensar, os olhos fixando os postes brancos.

Bruscamente, os dez canibais surgem na noite. Max vê-os, de longe, à luz prateada da Lua. Distingue as manchas brancas aos ombros dos negros.

“É belo, o branco - pensa Max. - Como a neve...”

Os negros aproximam-se. Quando estão a vinte passos dele, Max estremece.

“São pequenos como crianças - pensa Max.- Nunca pensei que os brancos fossem tão pequenos.”

Os negros aproximam-se dos postes. Têm os corpos dos brancos aos ombros, os dedos profundamente enterrados nos olhos, no nariz, na boca e nas orelhas dos missionários.

“Estão mortos - pensa Max. - Estão mortos, os quatro.”

Max Embilint olha, então, para outro lado. Não quer ver de perto os mortos brancos. Notou, contudo, que estavam nus. É tudo. De longe, Max Embilint não viu os mortos. Só viu manchas brancas como a neve.

- Atem-nos aos postes - ordena Max.

Max viu - sem querer - de perto, os pés nus de um dos brancos.

“São uns pés muito pequenos - pensa Max Embilint. - Devem ser os pés da rapariga, de Bianka.” Pensa, em seguida, que todos os brancos têm pés pequenos. Trata-se, talvez, de Mark, o evangelista que gostava de romances policiais. Os negros trouxeram os brancos como os crocodilos, a cabeça caída sobre o peito.

Max Embilint volta as costas ao caminho das formigas. Os negros comprimem-se à volta dele. Os canibais acabaram de amarrar os missionários. Fazem círculo à volta de Max. Deitam um violento cheiro a suor, o mesmo cheiro das formigas esmigalhadas, o cheiro que tem o circo depois de um número de feras. Aquele odor eleva-se por cima do grupo dos canibais, como uma nuvem de violência.

“É o cheiro do crime” - pensa Max Embilint. À volta dele ergue-se uma parede de carne negra. Max está como que encerrado numa cela de paredes de carvão molhado e brilhante, como na galeria de uma mina.

- Agora faz-nos brancos! - grita um canibal. - Faz-nos brancos!

Os negros arquejam. A sua respiração tem o cheiro do adultério, do pecado, o cheiro que paira nos quartos das prostitutas, o cheiro dos leões quando dilaceram uma presa.

- Faz-nos brancos, Ya-mou M'Bilint - gritam os canibais. - As formigas estão a devorar os homens brancos. É a nossa vez de nos tornarmos brancos!

- Quando as formigas acabarem de devorar os brancos, vocês terão todos a pele branca - diz Max Embilint. - Vão buscar todos as bagagens deles. Tragam-nas com vocês. Vistam-se com os fatos deles. Tragam tudo. Incendeiem a casa. Depois, partam e esperem tornar-se brancos.

Os negros começam a soltar gritos de alegria. Saltam, dançam, pulam. Os canibais estão extenuados, mas a fadiga e a emoção excitam-nos, como o álcool. O crime excita como o álcool. Depois de ter cometido um crime, o assassino fica embriagado, como se tivesse bebido rum.

- Vão buscar as bagagens dos brancos - ordena Max. - Partam.

Os negros desaparecem na noite, saltando, gritando e dançando.

Max Embilint fica só. Observa o caminho das formigas. Não se vêem os corpos brancos: tornaram-se vermelhos. Os brancos desapareceram. Não há senão quatro postes.

Max embilint volta ao acampamento. Despeja petróleo sobre as cantinas, a tenda, sobre tudo, depois deita fogo. Tudo o que o negro possuía, arde. E ele fica só, com a sua camisa vermelha, as calças beiges, com o frasco de rum no belo estojo que pende sobre o peito, e com o chicote vermelho. Max Embilint dirige-se para o local do encontro, onde Zeno o espera, na camioneta.

Max Embilint vai a passos lentos e pensa:

“Não penses em nada, Max. É a única solução, Max. Não penses...”

 

Zeno, o valáquio, está inquieto. Há cinco horas que ele espera o patrão, na camioneta, e Max Embilint não chega. Zeno deixou os faróis acesos. Para não descarregar a bateria, acende uma fogueira.

“O senhor Embilint perdeu-se - pensa Zeno. - Talvez os canibais o tenham morto. Talvez esteja embriagado e caído em qualquer parte. Ou, talvez, os leões e os tigres o tenham devorado...”

O valáquio queria partir à procura do negro.

“O senhor Embilint ordenou-me que o esperasse aqui - pensa ele. - Não posso ir.”

Depois da meia-noite, está tão claro como em pleno dia. A silhueta do negro acaba de aparecer. Max está só. Dirige-se para a camioneta. Zeno está contente. O negro avança, lentamente.

“O senhor Embilint não anda como os outros homens - pensa Zeno. - Os negros andam com o corpo todo. É assim que andam os leões, os tigres e as panteras.”

- Deus o abençoe, senhor Embilint - diz Zeno, o valáquio.

O negro está a cinquenta passos da camioneta. Max arranca o estojo de coiro que traz ao pescoço e lança-o a Zeno, o valáquio.

- -Enche-o - ordena o negro.

Zeno enche a garrafa de rum branco. O negro bebe em silêncio. Sobe para a camioneta.

Zeno, o valáquio, tem medo. O negro está fechado em si mesmo, como numa sepultura. Cala-se. Esta noite emana do negro um cheiro intenso, um cheiro estranho, um cheiro de rum, de guerra e de pecado. Um cheiro de crime.

- Arranca - ordena Max Embilint.

Zeno, o valáquio, arranca. Antes de partir, diz:

- As cantinas e os aparelhos, sir... Os carregadores ainda não chegaram com as cantinas.

- As cantinas estão perdidas - diz Max. - Afundadas. Na água. Arranca.

- Os negros, sir - diz Zeno. - Não levamos Xob e Nakusanswa?

- Os negros ficam com as mães - diz Max. - Arranca.

A camioneta põe-se em andamento, todos os faróis acesos, para a capital. A Lua brilha. O Trópico está branco, como se tivesse nevado, neve de prata..

- É pena, as cantinas e os aparelhos - diz Zeno, o valáquio. - Se eu estivesse consigo, tê-los-ia salvo.

- Shut up - ordena Max.

Max Embilint está completamente ausente. Contudo, não dorme.

- Quanto tempo ainda estarei ao seu serviço, sir? - pergunta Zeno, o valáquio.

O valáquio não tem um nariz muito apurado. Suporta o cheiro do rum. Suporta o cheiro dos pés mal lavados. Na frente, no momento dos ataques, os soldados eram obrigados a ficar dias e dias sem lavarem os pés. Os soldados cheiravam mal. Zeno suportava tudo. Mas o cheiro que se desprende do enorme corpo do negro não é suportável. Não é um cheiro mau, mas é um cheiro muito forte.

- Quando estivermos de volta, ficarei, ainda, ao seu serviço, sir? - pergunta, de novo, o valáquio.

- Porque perguntas isso? - diz Max. A voz do negro está enrouquecida.

- Se não me quiser, voltarei para os missionários, sir - diz Zeno.

Começa a falar dos quatro evangelistas, a dizer como eles são valentes, honestos, como deve ser.

- São verdadeiros santos, sir. Estive três dias com eles, agora conheço-os. São como os santos do calendário. Gostaria de ser seu criado, servi-los toda a minha vida. Servindo Luka, Bianka, Mark e Matei, julgaria servir Pedro, Gabriel, Constantino e todos os santos do calendário. Ser criado dos santos é a mais bela coisa do mundo. Diga, sir, uma vez na capital do Trópico, ficarei, ainda, ao seu serviço? Senão, voltarei para Icibolia. Viverei com os missionários.

Zeno, o valá,quio, cala-se. Está decidido a voltar para os missionários, para junto dos quatro santos. Zeno não tem medo de nada, nem dos leões, nem das formigas, nem dos crocodilos. Volta a cabeça para o negro.

Max tem os olhos muito abertos. Está imóvel e olha fixamente para a frente. Dos seus olhos correm lágrimas, brilhantes como pérolas.

- Porque chora, sir? - pergunta Zeno, o valáquio.

- Cala-te - diz Max.

Continua a chorar. Continua a olhar, fixamente, para a frente. Zeno, o valáquio, cala-se. A camioneta corre para a capital do Trópico.

Há um único cliente no terraço do hotel “Afrika Palast”. É dia 21 de Dezembro. Passa da meia-noite. Esse cliente é Stanislas Krizza. Lê. Sobre a mesa, à frente dele, há uma garrafa de água mineral e um copo. Os criados esperam a hora de fechar, a partida de Stanislas Krizza.

- A última vez que ele veio aqui, foi quando da viagem do negro - diz um criado.

- Depois da partida do negro, Krizza não voltou. Stanislas Krizza nunca cruza as pernas para não amachucar as calças. Está vestido com o mesmo fato de algodão cinzento. As mãos estão sempre enluvadas.

Os criados olham as janelas iluminadas da sala de festas, onde os operários instalam a árvore de Natal.

Uma camioneta pára em frente do terraço. Stanislas Krizza levanta-se. Deixa o livro em cima da mesa, junto da garrafa de água mineral.

Da camioneta desce o motorista branco de Max Embilint. Os criados reconhecem-nos. O motorista ajuda o negro a descer. Stanislas Krizza agarra o negro pelo braço. O negro está vestido com uma camisa vermelha, umas calças beiges e traz, suspenso ao pescoço, o estojo de coiro, contendo o frasco de rum. As calças estão amarrotadas e manchadas de lama.

- Boas noites, senhor Embilint - dizem os criados, em coro.

O negro não responde. Titubeia.

- Está embriagado, exactamente como à partida - diz o primeiro criado.

Embilint sobe, com dificuldade, os degraus de mármore que conduzem ao terraço.

Stanislas Krizza segura o amigo pelo braço. Embilint senta-se em frente de Krizza. Cruza as pernas, conforme é seu hábito, e olha para longe. Os criados apuram os ouvidos. O negro e o branco calam-se. Os carregadores do “Afrika- Palast” dirigem-se para a camioneta, a fim de descarregarem as bagagens do negro.

- Perdemos as bagagens, ao atravessarmos uma ribeira - diz o motorista. - Todas as bagagens estão no fundo da ribeira.

- E os aparelhos? - perguntam os carregadores.

- Os aparelhos afundaram-se também?

- Todos - responde Zeno. - Não pudemos salvar nada. Era uma ribeira infestada de crocodilos. Foi impossível salvar fosse o que fosse.

- Os negros afogaram-se? - pergunta um carregador. - Levaram dois negros. Afogaram-se também?

- Os negros alcançaram a margem - diz Zeno. - Para eles, o perigo eram os crocodilos. Os negros estão, agora, com as mães. Não tínhamos necessidade deles.

Zeno, o valáquio, não mente. Acreditou em tudo o que Max Embilint lhe contou. Zeno, o valáquio, podia contar, durante horas, como se afundaram as cantinas e como Xob e Nakusanswa nadaram entre centenas de crocodilos.

Os carregadores voltaram para o vestíbulo do hotel com as mãos vazias. O regresso precipitado do negro compreende-se. Perdeu as suas bagagens, portanto não tem nada a fazer no interior do país. A culpa é dos criados negros. Stanislas Krizza não contratou criados e guias qualificados, como fazem os outros turistas.

- Zeno, vai jantar - diz Stanislas Krizza. - Instala-te, sozinho, a uma mesa. Estarás mais à vontade.

Dirige-se, com muita delicadeza, aos criados:

- Podem servir qualquer coisa ao nosso amigo motorista? Não é muito tarde?

- Nunca é tarde, quando se trata de clientes - diz o criado.

Olha para o negro e acrescenta:

- Pedimos ao senhor Embilint para acreditar no nosso pesar pelo acidente. A culpa é dos criados negros. É impossível fiar-se neles.

Zeno, o valáquio, come com apetite. Noutra mesa, Stanislas Krizza e Max Embilint estão sentados em frente um do outro, silenciosos. O branco lê. Espera que o negro fale. Pergunta, por fim:

- Houve algum contratempo?

Krizza está tenso como o espectador de uma corrida de cavalos, durante os últimos segundos que precedem a chegada à meta.

- Não houve nenhum contratempo - diz Max Embilint. - Tudo foi O.K.

- Você próprio verificou? Você viu-os com os seus próprios olhos?

- Nada resta dos brancos - diz Max Embilint.

- Estão os quatro mortos. Atados aos postes, no caminho das formigas. Fiquei, ainda, dez minutos. As formigas cobriam os corpos. Nada resta. Nem uma migalha de branco. Tudo está O.K. As cantinas e as bagagens foram queimadas. Agora queria dormir.

Os olhos de Stanislas Krizza brilham de felicidade. Empurra a garrafa de água mineral, estende a mão enluvada de cinzento, aperta a mão de Max Embilint, uma mão enorme e negra como uma pata de gorila.

- Temos bilhetes de avião para amanhã, de manhã - diz Stanislas Krizza.

- O. K. - diz Max Embilint. - Agora queria dormir.

- Uma pergunta, ainda - diz Krizza. - Qual é a situação do valáquio? Ele sabe de alguma coisa?

- De nada - responde Max Embilint. - O valáquio não desconfia de nada.

- Ele tem cartas dos missionários?

- Provavelmente - responde o negro. - May be. Não lhe perguntei. Que quer fazer do valáquio?

O negro espera a resposta. Stanislas Krizza reflecte. Segundo o plano, Zeno, o valáquio, deve ser morto. É natural que, com o decorrer do tempo, o motorista acabe por desconfiar de alguma coisa, que fale. A lógica exige que ele morra. Segundo o plano, Zeno deve ser eliminado.

Stanislas Krizza observa Zeno. O valáquio come com apetite uma sanduíche de presunto, enquanto olha os operários que colocam bolas de cor na árvore de Natal, na sala de festas do “Afrika Palast”.

“Não será necessário - pensa Stanislas Krizza.

- Foi expressamente por isso que escolhi um valáquio.

São quase todos doentes. Sofrem de uma espécie de daltonismo. Participam numa acção e não vêem nada.”

O valáquio contempla a árvore de Natal. Abre uns grandes olhos maravilhados. Admira as luzes coloridas. O valáquio ignora tudo sobre a morte dos missionários. Viverá.

- Criado! - grita Stanislas Krizza. Um criado aproxima-se.

- O motorista dorme cá - diz Stanislas Krizza. - Peça para lhe prepararem um quarto. Julgo poder conseguir-lhe um bilhete de avião para amanhã.

Stanislas Krizza paga a garrafa de água mineral e a refeição de Zeno. Explica ao criado:

- O motorista salvou a vida do meu amigo, o senhor Embilint. Deu provas de uma fidelidade e de uma coragem excepcionais. Levo-o, para a Europa, comigo. Devemos recompensar, sempre, a fidelidade, não é verdade?

 

Max Embilint vai deitar-se. Para o quarto no “Afrika Palast”, um quarto isolado e tranquilo, foi guiado por Stanislas Krizza. O negro deixa-se conduzir. Não repara que é o mesmo quarto que ocupou antes da partida. Durante a estadia em Icibolia, Max Embilint viveu no mundo exterior. Saiu da casca, como um caracol. Agora, a sua missão está terminada. Está, de novo, encerrado na sua solidão.

A camioneta em que chegou está em frente do hotel. No decorrer da manhã, será levada à garagem.

Depois da partida do negro, Krizza volta ao terraço. Acaba o capítulo interrompido com a chegada de Max. Depois fecha o livro e faz um sinal a Zeno. Este vem instalar-se na cadeira onde estivera sentado o negro.

- Tu cumpriste a tua missão com dedicação - diz Krizza.

Tira da carteira e estende ao motorista um maço de notas de banco.

- O senhor Embilint está muito contente contigo.

- Não foi por minha causa que as cantinas se perderam - diz Zeno. - Se eu estivesse com o senhor Embilint no momento do acidente, ter-me-ia lançado à água. Ou afogava-me ou salvava-as.

Depois diz:

- Não tem necessidade dos meus serviços?

- Não - responde Stanislas Krizza. - Não tenho necessidade dos teus serviços. Que vais fazer? Quais são os teus projectos? Dizias que querias ir para o Canadá.

As janelas da sala de festas estão iluminadas a giorno. No interior os operários guarnecem a árvore de Natal. Zeno olha para as luzes multicores e suspira.

- Já não parto, sir - diz o valáquio. - Nem para o Canadá nem para a Europa.

- Ficas no Trópico?

- Sou obrigado a ficar, sir, não há outra solução. Zeno, o valáquio, olha para a árvore de Natal e explica:

- Nós, os valáquios, somos sentimentais, sir. Compreende? Sou um sentimental. Sei que não é bom, mas sou assim.

- É por isso que ficas no Trópico? - pergunta Krizza.

- É, sir - responde Zeno, o valáquio. - Enquanto o senhor Embilint filmava as feras, fiquei em Icibolia com os missionários. O senhor Embilint ordenou-mo. A princípio pensei que os evangelistas eram desmiolados, doidos. Quatro jovens que têm instrução, que são inteligentes, bem comportados e que não encontram nada de melhor na vida do que ir para junto de canibais, não é normal! Mas, com o decorrer do tempo, reconheci que eram verdadeiros santos. Querem o bem dos negros. Têm razão. Se não vêm em auxílio dos negros, estes morrerão ou cairão na dependência dos comunistas. Presentemente, só os evangelistas fazem qualquer coisa pelos negros. Os países civilizados, a América e a Europa, só lhes enviam mercadorias. As mercadorias são piores que o comunismo e piores que a morte. Só querem fazer dinheiro com o trabalho dos negros, com a carne dos negros, com o sangue dos negros. Os evangelistas sabem-no. São santos e ajudam, realmente, os negros. Tornei-me amigo deles.

- Por conseguinte, tu queres voltar para junto dos evangelistas? - pergunta Krizza.

- Amanhã, de manhã, sir, partirei para lá. Se não quiser manter-me ao seu serviço, bem entendido.

- E que queres tu fazer junto deles? Tornares-te missionário?

Zeno, o valáquio, ri. Diz:

- Não, sir, quero servi-los. Servindo Bianka, Luka, Matei e Mark, é como se servisse São Constantino e Santa Helena, São Jorge e São Gabriel. Há alguma coisa de mais belo, sir, que servir santos?

- O senhor Embilint e eu tomaremos amanhã, de manhã, o avião para a Europa. Se quiseres vir connosco, levamos-te. Dar-te-emos trabalho. Tu és o motorista perfeito. O senhor Embilint está contente contigo. Convidando-te, recompenso os teus méritos e a tua fidelidade. Se queres vir, vem. Se queres voltar para junto dos teus santos e dos seus canibais, à tua vontade.

- A sua oferta honra-me - diz o valáquio. - O senhor é generoso. Mas disse-lhe que sou um sentimental. Não irei consigo, porque o meu coração diz-me para voltar para junto dos evangelistas. Prometi-lhes voltar.

Stanislas Krizza terminou o seu interrogatório. Sabe que não é necessário matar Zeno, o valáquio. O valáquio nada sabe quanto ao assassínio dos evangelistas. Zeno pode ser torturado até à morte, nunca dirá que Max Embilint matou os missionários.

- Os evangelistas entregaram-te cartas para deitares no correio? - pergunta Krizza. - Eu estarei amanhã na Europa. Posso deitá-las. Chegarão mais depressa. Penso que os missionários estarão impacientes por verem chegar as suas cartas.

- Muito obrigado, sir.

Tira o pacote de cartas confiadas pelos missionários e dá-o a Krizza.

- Agora vai dormir - diz Stanislas Krizza. - Reservei-te um quarto no “Afrika Palast”. Vem ver-me amanhã, antes de partires, às oito horas, estarei no vestíbulo do hotel.

- Boa noite, sir, e obrigado - diz o valáquio. Entra no hotel. Está encantado. Pede a chave do quarto ao porteiro. O rapaz do elevador abre-lhe a porta. O valáquio sente-se bem:

- Nunca sonhei que dormiria num palácio - pensa Zeno.

 

Oito horas da manhã, no dia seguinte ao da chegada de Max Embilint e de Zeno, o valáquio.

Stanislas Krizza aparece no vestíbulo do hotel do “Afrika Palast”. Traz o mesmo fato cinzento, o mesmo chapéu de palha, os mesmos óculos, as mesmas luvas de algodão cinzento, completamente abotoadas. Dirige-se para a secretária do porteiro.

- Queira anunciar ao senhor Embilint que Stanislas Krizza o espera no vestíbulo.

- Lamento, mas o senhor Embilint não está aqui - diz o porteiro. - O senhor Embilint foi transportado esta noite, às três horas, de ambulância, ao Sanatório Tropical. Esta manhã, às seis horas, o senhor Embilint foi operado a um tumor do estômago. Tive notícias pelo telefone, dez minutos antes da sua chegada.

Stanislas Krizza não está surpreendido. Ouve a notícia com calma, como se a esperasse.

Pensa: “Não é de admirar. Todas as vezes que utilizo homens, calculo os inconvenientes que pode apresentar este material. Os três defeitos do material humano são: a morte, a doença e a loucura. Calculo sempre exactamente os acidentes que podem resultar destes três grandes defeitos do material humano, de forma que nunca fico surpreendido. Max Embilint está doente. Não ficarei surpreendido se ele morrer ou se cometer algum disparate. A loucura humana é tão inevitável como a morte.”

- O estado do senhor Embilint é grave? - pergunta Stanislas Krizza.

- Os médicos não podem pronunciar-se antes de quarenta e oito horas - responde o porteiro. - Em todo o caso, a operação foi bem sucedida.

- É meio caminho andado - diz Stanislas Krizza.

Acrescenta:

- Queira dizer ao motorista que estou no vestíbulo.

- O motorista acompanhou o senhor Embilint ao Sanatório Tropical - diz o porteiro. - Mostrou-se nesta circunstância extremamente corajoso, extremamente fiel. Ficou todo o tempo junto do senhor Embilint. A conduta do valáquio foi irrepreensível.

Stanislas Krizza ouve. Reflecte, como se contasse pérolas. A segunda peça de reserva não se encontra no hotel.

- Tenha a amabilidade de me ligar à clínica - diz Krizza. - Como se chama essa clínica?

- Sanatório Tropical - responde o porteiro.

Marca um número. Chama o médico-chefe. Stanislas Krizza agarra no telefone com a sua mão enluvada e ouve o médico.

- É perfeitamente claro, doutor - diz Krizza. - Se não houver nenhuma complicação, o meu amigo Max Embilint deve ficar na cama durante uns dez dias. Muito obrigado, doutor. Posso falar ao motorista que acompanha o seu doente?

Zeno vem ao telefone. A sua voz é cansada e triste.

- Compreendo a tua mágoa - diz Stanislas Krizza. - Mas se falares e chorares ao mesmo tempo, não percebo o que dizes. Chorarás quando desligares. Agora está melhor. Compreendo. Não voltas para junto dos missionários?

- Irei para junto dos missionários, logo que o senhor Embilint esteja curado - diz Zeno, o valáquio. - Não posso deixá-lo só, por agora. Fico com o senhor Embilint. Ele não tem ninguém. Seria desumano abandoná-lo.

- De acordo - responde Krizza. - Eu parto. O meu avião descola dentro de uma hora. É inútil eu passar pela clínica. O médico disse-me que não se pode falar a Embilint. Quando ele voltar a si, dir-lhe-ás que o virei procurar dentro de dez dias.

Zeno, o valáquio, aproveita o silêncio de Stanislas Krizza para lhe dar pormenores. Conta que, durante a noite, tinha sonhado que Max estava doente, que saltou da cama, que foi à porta do quarto de Max e que ouviu o negro gemer.

- Contar-me-ás tudo isso daqui por dez dias, quando eu voltar - diz Krizza. - Agora, adeus.

Krizza desliga, enquanto Zeno continua a falar.

Stanislas Krizza pagou adiantado o quarto de Zeno, o valáquio, por dez dias. Pegou na mala. Cumprimentou, delicadamente, e partiu. Stanislas Krizza tem assuntos urgentes. Os missionários estão mortos. Agora, segundo o plano, Krizza e os serviços da Europa podem expedir para o Trópico o maior número possível de jornalistas, de cineastas, de fotógrafos e de repórteres da televisão. Os repórteres não encontrarão traço de missionários em Icibolia. Filmarão o que virem, quer dizer, a repressão. É natural que o exército e a polícia colonial desencadeiem uma acção de represálias contra os canibais e punam os assassinos. Tudo isso será filmado, televisionado e fotografado. É para isso que os quatro missionários foram assassinados.

Mas no hotel “Afrika Palast” e na capital do Trópico, as pessoas ignoram, ainda, tudo acerca do assassínio dos quatro missionários.

 

22 de Dezembro. Stanislas Krizza deixou, por avião, a capital do Trópico. Max Embilint foi operado às seis horas da manhã.

É meio-dia, agora. Max Embilint recuperou os sentidos. Jaz - semelhante a um tanque negro - deitado nos lençóis brancos, no Sanatório Tropical. Zeno, o valáquio, está no corredor, diante da porta do quarto, onde jaz o negro. Não se mexeu desde que ele está ali. Zeno, o valáquio, pede a Deus para que o negro não morra. Fecha na mão uma pequena cruz de metal dourado, que os missionários lhe ofereceram. Na pequena cruz está escrito: “Que Deus te proteja.” Zeno detém o enfermeiro que entra no quarto do negro:

- É inútil insistir - diz o enfermeiro, enervado. - Não se lhe pode falar. Ainda não recuperou os sentidos. É preciso esperar.

- Peço-lhe para colocar esta pequena cruz à cabeceira da cama dele - diz Zeno, o valáquio. - Estou certo que ela lhe dará sorte. Foi-me dada pelos quatro missionários do Trópico.

- De acordo - diz o enfermeiro. - Mas é inútil ficar todo o tempo no corredor.

- Eu sei que é inútil - responde o valáquio. - Não estou aqui por utilidade. Estou por amizade.

O enfermeiro encolhe os ombros. Entra no quarto do doente. O negro continua inconsciente, mas não está morto. O enfermeiro coloca a pequena cruz na mesa de cabeceira e sai. O valáquio espera-o diante da porta.

- Não lhe pode falar hoje - diz o enfermeiro. - A coisa, quero dizer, a cruz, coloquei-a em cima da mesa do negro. Vê-la-á ao acordar, se o seu negro um dia acordar. É grave, sabe? É parente?

O enfermeiro examina a cara do valáquio e depois diz:

- Não, não pode ser parente, logo se vê. Ele é negro e o senhor é branco.

- Não somos parentes - diz Zeno -, somos companheiros de viagem.

O enfermeiro vai-se embora. Entra no quarto dos outros doentes. Depois volta e diz a Zeno:

- Vejo que se ocupa de assuntos religiosos. Dê um salto até ao “Afrika Palast”, à festa do Natal do governador para os proletários brancos do Trópico. Tome um convite. Eu não tenho tempo de lá ir. Quando chamarem pelo nome, apresentar-se-á e receberá o embrulho.

Zeno, o valáquio, pega no cartão.

- Você aceitará o embrulho - diz o enfermeiro. - Dividi-lo-emos. Não o espera grande coisa, é uma árvore de Natal para os trabalhadores brancos.

Zeno não pode recusar a oferta do homem que trata Max Embilint. Parte imediatamente.

À volta do “Afrika Palast”, há sentinelas em uniforme de gala. Zeno mostra o cartão com o nome do enfermeiro. O polícia nem vê o convite. Diz:

- Entra, meu velho. É inútil provar que és branco. Vê-se logo.

Zeno, o valáquio, entra. A cor da pele serve de cartão de identidade e de cartão de convite para a árvore de Natal. A cara de Zeno serviu para uma imensidade de coisas. Sua mãe acariciou-lhe o rosto.

Os polícias bateram-lhe no rosto. Agora, a cara branca do valáquio serve-lhe de cartão de identidade para assistir à árvore de Natal.

Na sala dos banquetes, não há um único negro. O governador oferece esta festa aos “pequenos brancos” do Trópico. Na sala, há criadas brancas, motoristas brancos, jardineiros brancos, pequenos funcionários e operários. O governador está representado pelo coronel Jolyheart e pelo adjunto deste, o major Borman. O coronel Jolyheart é o comandante militar do Trópico. Está junto da árvore de Natal, o adjunto a seu lado.

Logo que entrou na sala, os seus olhos pousaram na árvore de Natal e nas suas luzes multicores. Imediatamente ao pé da árvore de Natal, notou o coronel Jolyheart. O coronel conserva-se tão direito como o pinheiro de Natal afastado do público branco. Todos estes homens brancos, que nunca usam gravata, porque são proletários, puseram hoje uma. Os únicos homens sem gravata são o coronel Jolyheart e o seu adjunto. O coronel usa uma camisa de colarinho aberto, e as suas calças seguram-se nas ancas sem a ajuda de um cinto. A sua patente só está indicada no bivaque, que substitui o quépi e que meteu na algibeira das calças. O coronel usa umas calças e uma camisa de caqui. Não tem dragonas. Isso surpreende Zeno.

“No meu país - pensa Zeno -, só os desertores não têm nem dragonas nem insígnias.”

Lança um olhar ao Pai Natal, depois senta-se junto da árvore de luzes multicores, e perto do coronel. Jolyheart fala ao major Borman.

- Meu caro amigo, parto amanhã, às seis horas, para a Europa - diz. - Você fica senhor do Trópico. São as minhas primeiras férias na Europa, depois do meu segundo casamento.

O coronel Jolyheart tira uma fotografia da carteira. Na fotografia há três mulheres, com vestidos floridos.

- Ao centro está Madalena, a minha mulher - explica o coronel. - A minha segunda mulher. Estamos casados há um ano. A minha primeira mulher morreu num acidente de automóvel. À sua direita, Marta; à sua esquerda, Maria. São as minhas filhas, dezasseis e catorze anos.

O major Borman chegou na véspera para substituir Jolyheart durante a sua ausência.

- A minha mulher veio, várias vezes, aqui - diz o coronel Jolyheart. - Nunca pôde ficar mais que dois ou três dias. Não suporta o calor tropical, mas espero obter a minha transferência para a Europa.

O coro das crianças brancas canta. Zeno, o valáquio, encontra-se ao lado de Jolyheart. Vê as fotografias que este mostra ao major. Zeno reconhece o coronel numa fotografia tirada diante do “Afrika Palast”, com as duas filhas e a mulher. Na fotografia, os pés estão calçados com pantufas. Os novos sapatos dos militares parecem as pantufas que os doentes usam nos hospitais. O exército moderno não anda a pé. Não tem necessidade de botas. O exército já não anda a cavalo. Não tem necessidade de botas. Quer estejam num tanque, num avião, num jeep ou num helicóptero, os pés dos militares estão em repouso. As calças e a túnica foram substituídas por um conjunto com fecho de correr, estudado para o corpo em repouso. O uniforme militar atingiu a perfeição, imitando o vestuário dos bebés. Só a cor difere.

- Amanhã estarei com elas, na Europa - diz o coronel Jolyheart, mostrando ao major outras fotografias. - Nunca estive tão feliz por ter férias, nem mesmo quando estava na Escola Militar.

- Desculpe-me, coronel - diz uma mulher vestida de preto, aproximando-se de Jolyheart. Pelo seu aspecto, é uma mulher com poucos meios. Todos os brancos na sala são pobres. São "os pequenos brancos” do Trópico.

- É verdade, coronel, o que acabam de anunciar na rádio? - pergunta a mulher. - É verdade que os negros estão revoltados e que matam os brancos?

- Quem é você? - pergunta o coronel.

A mulher tenta declinar a sua identidade, mas outras pessoas reúnem-se à volta deles.

- Ouvi-o com os meus próprios ouvidos - diz um homem. - Há dois minutos anunciaram na rádio que a revolução acaba de rebentar em território negro e que os negros matam os brancos.

- É verdade - confirmam outras vozes.

Os brancos têm caras apavoradas. São numerosos os que ouviram a notícia. Todos os postos da Europa anunciam a insurreição dos negros e o massacre dos brancos. Os coros das crianças calaram-se. Todas as pessoas fazem círculo à volta do coronel Jolyheart e do major Borman.

- Acalmem-se - ordena o coronel. - Nada aconteceu. Sou o comandante militar do Trópico. Sou o mais categorizado para saber se se passa alguma coisa.

- Muitas pessoas ouviram a rádio anunciar a revolta dos negros - diz um homem.

É um operário branco.

O coronel interrompe-o:

- Não é digno de um branco divulgar tais boatos - diz o coronel. - Os negros riem-se de vocês. Um pouco de compostura e de dignidade, peço-lhes. Vocês são cidadãos brancos.

O silêncio reina, agora. Os brancos sabem que devem ter dignidade. Mas na capital do Trópico, há mil negros para um branco. Se, de facto, a insurreição rebenta, os brancos estão perdidos, apesar de toda a sua dignidade.

- E, agora, a distribuição das prendas! - grita o Pai Natal, empoleirado numa caixa.

Uma religiosa branca ajuda-o. Zeno, o valáquio, ouve gritar:

- O Sanatório Tropical? Não há ninguém do Sanatório Tropical?

Zeno apresenta-se. Agarra o embrulho, uma caixa de cartão, atada com um fio dourado. Zeno está impressionado com a notícia da revolução. À volta dele os brancos discutem. Estão inquietos.

Diante da janela da sala de festas o porteiro negro do “Afrika Palast” passeia. Os brancos, na sala, olham-no com pavor. O porteiro negro mede bem dois metros. Usa um uniforme de marechal napoleónico, com oiro, galões e um boné. Um verdadeiro general. Ele passeia tranquilamente. Os brancos voltam a cabeça para não o verem.

Zeno, o valáquio, sai da sala e vai ao hospital, pensando que Max Embilint talvez tenha recuperado os sentidos e tenha necessidade dele.

Depois da partida de Zeno, o valáquio, outros rumores circulam. Comunicaram-nos ao coronel Jolyheart. A tribo que desencadeou a insurreição negra é a dos canibais. Os primeiros brancos mortos são quatro missionários da seita dos “Portadores do Evangelho”.

O Pai Natal recebeu ordem para distribuir os embrulhos a toda a pressa. O tenente Blank faz a sua aparição na sala, sempre vestido com o seu uniforme de corredor ciclista. Correu. As pessoas seguem-no com o olhar. Mas o tenente não traz notícias da revolta negra. Pára diante do coronel Jolyheart e dá-lhe um embrulho tão pequeno como um sobrescrito.

- Meu coronel - diz o tenente Blank -, sei que parte amanhã para a Europa. Trouxe-lhe um pequeno embrulho para a minha noiva. Prometeu-me levar-lho. Que tenha a sorte de partir!

O coronel Jolyheart corta a palavra ao tenente. Pergunta, grave:

- Vem, directamente, do seu sector?

- Directamente, meu coronel.

- Circulam, há uma meia hora, boatos relativos a uma insurreição de negros e a um assassínio de quatro missionários. Que pensa?

- Tecnicamente, é impossível - diz o tenente Blank. - Deixei o posto há três horas, por avião. Estava tudo calmo. Estes canibais são alguns milhares que vivem no estado selvagem. Não possuem nada. Vivem num território deserto. Se se tratasse de uma outra tribo, não digo, mas os meus canibais são os últimos que podiam provocar uma insurreição.

A distribuição das prendas terminou. O Pai Natal e algumas dezenas de brancos fazem círculo à volta de um jornalista americano.

Mas todos os olhos estão fixos no coronel Jolyheart, no major Borman, no tenente Blank e na árvore de Natal, que se encontram isolados na extremidade da sala de festas. Diante da janela, enorme como um animal pré-histórico, o porteiro negro do “Afrika Palast”, em uniforme de marechal do Império, passeia a passos lentos.

- É verdade que no território dos canibais se encontram quatro missionários - diz o tenente. - Conheço-os. Levei-lhes armas há dois dias.

- Na sua opinião, uma revolta destes canibais é impossível? - pergunta o coronel.

- Tecnicamente, esta probabilidade deve ser excluída - responde o tenente. - São os negros mais primitivos de África. Não possuem armamento algum. Se se tratasse de uma outra tribo, seria aceitável. Mas daquela, não.

- A possibilidade de um crime ritual está excluída também? - pergunta o major Borman. - Pode ser que os canibais tenham morto os missionários para os comer?

- No momento actual não há crimes rituais - diz o tenente. - Pode ser, mesmo, que os verdadeiros crimes rituais nunca tenha existido.

“Os negros mataram homens, certamente, e comeram-nos. Mas foram impelidos pela fome. Comeram e comem, certamente, cadáveres, ainda hoje. Mas é sempre porque têm fome, como os marinheiros náufragos que comem o cadáver de um camarada.

- Você é o mais qualificado para apreciar a autenticidade desses boatos - diz o coronel.

Ele queria estar calmo. Dominar a situação. Na sala, os brancos estão assustados e agitam-se como pessoas que tivessem bebido muito.

- É possível que os missionários tenham sido mortos pelos negros, meu coronel - diz o tenente Brank. - Preveni os missionários de que podiam ser mortos. Foi por isso que lhes levei armas.

- Isso poderia acontecer? - pergunta o major. - Então o rumor é, talvez, fundado?

- Se é verdade que os missionários foram assassinados, é um acidente - diz Blank. - Há uma diferença entre uma revolução e um drama. A sua presença entre os canibais, a sua falta de preparação eram outras tantas provocações. Procuravam a morte. Se foram mortos, foi porque quiseram, não porque os negros estejam revoltados! A ideia de uma revolta entre os canibais deve ser excluída.

Um soldado entra na sala de festas, aproxima-se da árvore de Natal, perfila-se, saúda e estende um sobrescrito ao coronel Jolyheart. As figuras de duas ou três dúzias de brancos alongam-se. Os lábios murmuram:

- Os negros estão revoltados. Os negros mataram os brancos. O coronel acaba de ser avisado.

O coronel apresenta calma, mas empalidece ao ler o telegrama. É um telegrama proveniente da Europa.

“Comunique com urgência medidas tomadas para localizar insurreição canibais. Comunique se outros brancos mortos além quatro missionários.”

O coronel estende o telegrama ao major Borman. Este leu-o e torna-se pálido. As suas mãos tremem. Estende, por sua vez, o telegrama ao tenente Blank. O tenente torna-se, também, branco, como uma folha de papel.

- Venho do território dos canibais - diz Blank. - Há três horas, estava, ainda, lá. Não sei nada, e a Europa conhece, mesmo, os nomes dos mortos! É estranho.

- Tem a sua moto? - pergunta o coronel Jolyheart ao soldado que trouxe a mensagem.

O coronel pega na caneta do major Borman e escreve:

“Família Jolyheart. Partida anulada por razões técnicas. Segue carta. Feliz Natal e bom Ano Novo.”

- Transmita este telegrama - diz o coronel. - Dentro de alguns minutos estarei na repartição.

O coronel faz sinal ao major Borman e ao tenente Blank que tem tempo de partir.

Um coronel não parte para férias quando a revolução rebenta no seu território.

Os brancos da sala estão reunidos à volta dos três oficiais. O coronel quer sair. Os brancos não o deixam passar.

- Diga-nos qualquer coisa - diz o Pai Natal em voz baixa.

Tirou a máscara. Está com o seu fato vermelho. O Pai Natal é motorista numa empresa de cultura de amendoins.

- Em que qualidade me interroga? - pergunta o coronel, secamente.

O ex-Pai Natal arranca a máscara com raiva. É um violento.

- Na qualidade de branco do Trópico, coronel - diz o ex-Pai Natal. - É uma pergunta que nos interessa a todos nós, os brancos, a de saber se todos os negros estão revoltados e se matam os brancos.

O coronel não responde. Deixa a sala, seguido do major Borman e do tenente. O ex-Pai Natal atira a máscara e grita:

- Temos o direito de saber!

Mas os três oficiais já deixaram a sala.

- Não há insurreição negra - grita o jornalista americano.

Está só, a uma mesa. Toda a noite bebeu cerveja. Grita aos brancos que passam, inquietos, junto dele:

- Merry Christmas! Não há insurreição negra. Vivo no Trópico há vinte anos. Sei que não há insurreição negra.

O público partiu. Só estão na sala alguns celibatários. Ouvem falar o jornalista americano. O americano é o único que está calmo. Convida toda a gente para a sua mesa.

- É Natal - diz o jornalista. - Bebam comigo. Não acreditem. Os negros não fazem revolução. Juro-vos que não têm nenhum motivo de inquietação.

Os criados trouxeram outras garrafas de cerveja. Apagaram-se as velas do pinheiro de Natal. Só estão acesas as pequenas lâmpadas eléctricas. O americano fala:

- Olhem este gigante negro com galões de marechal - diz, designando o porteiro gigante do “Afrika Palast”

- É o único marechal do Trópico. Não tenham medo: enquanto os marechais guardarem as portas, não há perigo. O que é grave, meus concidadãos brancos, é que os negros também têm músculos. Vejam este porteiro: tem músculos. Multipliquem-nos por meio milhar, e saberão a quantidade de energia que representa o povo negro. Nenhuma raça tem músculos semelhantes. Quando olho os negros, penso nos imensos mares de petróleo que jazem no fundo da terra. Este petróleo pode fazer mover, durante cem anos, todos os motores do mundo. Mas estes mares de petróleo não foram, ainda, descobertos. Exactamente como os negros. São oceanos de energia desconhecida. A massa dos negros sobre o planeta é um oceano desconhecido de amor e de ódio, um enorme jazigo de energia, de caridade, de piedade, de ódio e de vingança. Tudo isso está neles, não refinado. Um dia isso brotará como o petróleo. Mas não esta noite, nem este ano. Esta noite podemos beber. Merry Christmas!

O americano pede outras garrafas de cerveja. Enquanto os brancos bebem cerveja oferecida pelo americano, olham o porteiro negro em fato de marechal. Pela primeira vez calculam e traduzem a energia do negro em quilovátios de ódio e de amor. Multiplicam por meio milhar para calcular os quilovátios de ternura e de vingança que encerram as massas negras, uma energia apocalíptica, equivalente a centenas de Niágaras de ódio e de amor. Quilovátios de piedade e de vingança.

Não há um único branco ao pé do americano. Comprimem-se todos à volta de uma mesa, ao fundo da sala. Um moço atravessa a sala a correr. Diz ao americano:

- É verdade! Os negros sublevaram-se. Os brancos estão mortos!

Liga-se o rádio. O locutor anuncia da Europa:

- Atenção! Atenção! Quatro missionários foram assassinados pelos canibais do Trópico. Trata-se, provavelmente, de um crime ritual. A localidade onde o drama se produziu chama-se Icibolia, o que significa “noz oca”. A notícia produziu uma viva emoção em todas as capitais. O governo prepara um comunicado oficial. Centenas de repórteres estão a caminho do Trópico.

- Mesmo se os negros comeram estes evangelistas - diz o americano -, não é revolução, meus caros concidadãos brancos! Convido-os a beber cerveja. Merry Christmas!

Mas fica sozinho. Os brancos e os negros da capital do Trópico estão angustiados. Na cidade, todos os aparelhos de rádio estão abertos. Ao menor ruído, as pessoas debruçam-se à janela e olham para a rua. Têm medo de ver rebentar sobre a cidade, como uma torrente de alcatrão e de petróleo, a massa transbordante de negros em revolta.

- Eu sou ianque! - grita o americano. - Nós também temos negros. Conhecemo-los. Farão a revolução. Mas não esta noite. Esta noite podemos beber cerveja e podemos dizer Merry Christmas, meus concidadãos brancos. Eu sei-o. - Nós também, os americanos, temos negros nos E.U.A...

 

A notícia do assassínio dos missionários foi difundida por Stanislas Krizza. A emoção é profunda. Na noite de 22 de Dezembro, a imprensa publicou os primeiros telegramas referentes à revolta da tribo canibal. O homicídio dos missionários é um assunto apaixonante. Na atmosfera de véspera de festa, a notícia toma amplitude. Fala-se de cristianismo, de exotismo tropical, de juventude, de aventura, de sacrifício, de costumes sangrentos. Todos os ingredientes que compõem um melodrama, segundo uma velha receita.

Mas toda a infelicidade tem as suas repercussões políticas. O ministério das Colónias pediu reunião secreta de um conselho de ministros. Deste melodrama podem tirar-se vantagens políticas.

O conselho está reunido. O ministro das Colónias diz, em suma:

- Quatro missionários foram devorados pelos canibais. Dir-me-ão que este acontecimento não merece uma reunião de um conselho de ministros na véspera de Natal. Têm razão. Não é um acontecimento político. Mas podemos torná-lo político.

- Os negros canibais comeram os missionários porque tinham fome - diz o ministro dos Telefones - ou por motivos religiosos. Será difícil provar que os negros comeram carne humana por motivos políticos.

- Permitam-me - diz o ministro das Colónias. - O facto passou-se numa das nossas colónias. As vítimas são quatro jovens, cujos nomes leram nos jornais. Oficialmente, não possuímos nenhuma informação, mas a imprensa é categórica. O assunto é extremamente emocionante para as almas sensíveis. Mas a nós - o Governo - não é o seu aspecto sensacional e sentimental que nos interessa. Não negamos que estamos comovidos por este drama, mas o que é capital para nós é o facto de, na vizinhança destes canibais, se encontrarem grandes plantações de cacau. São limítrofes do território dos canibais que assassinaram os missionários. Noventa por cento do cacau consumido na Europa provém deste território. As plantações pertencem-nos. Mas os terrenos situados nas colónias são terrenos movediços. “De 1945 até hoje - isto é, no decorrer destes últimos doze anos - perdemos vinte e quatro povos, oitocentos milhões de indivíduos que trabalhavam para nós, ou seja, para a cultura e para a civilização. Presentemente, estes oitocentos milhões de indivíduos não trabalham para nós, os europeus, mas para eles. Tal é a situação. Contudo, não exageremos, isso não é catastrófico. Temos, ainda, meio milhar de milhões de homens que nos servem, fielmente, em todas as latitudes e todas as longitudes. Entre este meio milhar de milhões de indivíduos que trabalham para a civilização e para bem da humanidade, isto é, para nós, os europeus, encontram-se, também, negros do Trópico, onde temos as nossas principais plantações de cacau. Por causa das intrigas americanas e russas na O.N.U., perderemos bem cedo estas colónias. Devemos encarar as coisas com realismo. Sabemos que as perderemos, mas é nosso dever perdê-las o mais tarde possível. Trabalhando para conservar as colónias, ajudamos estes homens a viver uma vida digna, quer dizer, a trabalhar para um continente que possui Universidades e ruínas gloriosas. O assassínio dos evangelistas permite-nos retardar a perda da nossa colónia tropical, onde se encontram as nossas plantações de cacau. O sangue dos evangelistas não terá sido derramado em vão e nós damos provas de realismo. O sangue dos mártires pode servir para a conservação das plantações de cacau. No dia em que os negros do Trópico viverem para eles, em lugar de viverem para a cultura e para a civilização, isto é, no dia em que eles se tornarem independentes, não teremos mais cacau. Para a Europa, será dramático.

- Não exageremos - diz o ministro dos Telefones. - O cacau, podemos comprá-lo. Não nos custará mais caro. Em política, há sempre meio de nos entendermos. No princípio da sua independência, os povos têm necessidade de divisas. Os negros não bebem cacau com leite como nós, os civilizados. Eles venderão o cacau. Mesmo independentes, os negros serão selvagens, não comerão chocolate. Venderão o cacau e nós comprá-lo-emos por baixo preço.

- A Europa não poderá comprar o cacau das suas velhas colónias - diz o ministro das Colónias. - Os sovietes comprarão todo o cacau. Comprá-lo-ão, expressamente, para nos privarem dele. Eles sabem que o cacau nos é indispensável. Os sovietes dá-lo-ão aos chineses, que nunca o provaram. Os mongóis e os quirguizes comerão chocolate, mesmo que não gostem dele, unicamente para no-lo tirarem. Todos os selvagens aprenderão a beber cacau e a comer chocolate, arriscando-se a vomitá-los, para que nós não os tenhamos.

- Plantaremos cacau noutra parte - diz o ministro dos Telefones. - No decorrer da história, a Europa tem feito tantos milagres!

- Esse é impossível - diz o ministro das Colónias. - A Europa tem génio, é incontestável. O génio da Europa continua grande, mesmo agora que perdeu quase um bilião de servidores. A teoria soviética, segundo a qual o génio da Europa se mede pelo número dos seus servidores, não é fundada. Mas, apesar de todo o nosso génio, não nos atreveremos nunca a plantar cacau nas margens do Sena, do Tamisa ou do Reno.

- Substituiremos o cacau por outra coisa - diz o ministro dos Telefones. - O cacau faz parte integrante da cultura da Europa - responde o ministro das Colónias. - Uma cultura não é feita somente de bibliotecas, de museus e de Universidades. Uma cultura é um conjunto. O cacau faz parte deste conjunto que é a nossa cultura, a única verdadeira. O cacau significa: chocolate, pequeno almoço, primeira comunhão, baptizado, casamento, aniversário. O cacau está, também, ligado à nossa cultura como o vinho, o petróleo e a electricidade, como o latim ou o direito romano. Ele será salvo, graças ao sangue dos quatro mártires europeus.

- Nem sempre vejo a relação entre os mártires e o cacau - diz o ministro dos Telefones.

- Ao assassinarem os missionários, os negros do Trópico, eles próprios, assinaram o estatuto dos fora-da-lei. Comeram os evangelistas. São canibais. Não podem mendigar nos corredores da diplomacia internacional a independência e a autonomia. As tribos não podem ser independentes. Reconhecer a independência e a autonomia de um povo significa reconhecer, também, os seus ritos e os seus costumes. O corpo diplomático acreditado junto de uma nação canibal arriscar-se-ia a ser convidado para as festas nacionais, quer dizer, para uma refeição de carne humana, sem poder recusar. Vêem o núncio apostólico convidado a comer um pedaço de homem grelhado?

O ministro das Colónias conclui:

- Devemos aproveitar este acto de canibalismo para ficar no Trópico. Devemos ajudar os negros a constituir, com urgência, um registo criminal de canibais, de criminosos, de assassinos, que nós brandiremos, todas as vezes que eles pedirem a sua independência. Devemos enviar ao Trópico - à custa do Estado - a imprensa, a rádio, a televisão, os cineastas, os repórteres, toda a espécie de testemunhas. Este acto de canibalismo deve ser difundido por todos os meios de que dispõe uma grande nação. E nós somos uma grande nação.

O conselho de ministros votou a proposta do ministro das Colónias. Nessa noite mesmo, o Governo pôs à disposição da imprensa aviões militares para o seu transporte ao Trópico. O coronel Jolyheart recebeu ordem para dar à imprensa todas as facilidades possíveis e de nada economizar. O processo dos negros deve ser constituído com urgência.

Nessa noite, o Governo publica o seguinte comunicado:

“Confirma-se, oficialmente, o assassínio pelos canibais dos missionários Matei, Luka, Mark e Bianka. Apesar das informações recebidas pelas autoridades, não se pode estabelecer, com precisão, se os missionários foram comidos vivos ou se foram entregues às formigas vermelhas. Se este último facto for confirmado, será a primeira vez na história do cristianismo que os mártires foram entregues às formigas para serem devorados vivos.

O efeito deste comunicado foi considerável. As pessoas choravam. Os leitores dos jornais perguntavam se não teria sido mais humano da parte dos negros comerem os missionários, em vez de os entregarem, vivos, às formigas. Todas as famílias estão tristes, como se os canibais tivessem devorado um dos seus membros.

A Europa é sensível, solidária, humana. Prevê-se um Natal triste, um Natal numa atmosfera de cruzada. A Europa está disposta a defender de novo Cristo, como os cruzados o fizeram, há mil anos. Cada europeu sente acordar nele um São Luís.

Por outro lado, o ministro das Colónias está certo de que, graças aos mártires cristãos, o cacau necessário às crianças europeias estará assegurado por dez anos, pelo menos.

 

A capital do Trópico regurgita de repórteres. Os jornais publicam artigos patéticos sobre a morte dos missionários.

Zeno, o valáquio, dirigiu-se, mais uma vez, ao Comando militar. Desde a difusão da notícia, ele vai, regularmente, ali, mas o coronel Jolyheart ainda não o recebeu, até agora. O coronel está sobrecarregado de trabalho. Transporta, diariamente, centenas de repórteres, que conduz, em seguida, para a capital. Os enviados especiais do mundo inteiro chegam, em ondas. Por outro lado, o coronel Jolyheart recebeu ordem de prender, com urgência, os canibais que cometeram os quatro assassínios.

Zeno, o valáquio, dirige-se, diariamente, ao Comando para dizer que os quatro missionários eram seus amigos, que esteve três dias com eles, que tinha a intenção de voltar para junto deles, que os missionários eram santos.

- Tenho alguma coisa a dizer - diz Zeno, o valáquio, ao adjunto do comandante.

- Sabe alguma coisa relativa à morte dos mártires? - pergunta o adjunto.

- Era seu amigo - diz Zeno. - Estes mártires eram meus amigos. Eram verdadeiros santos. Os quatro.

- Sabe quem os matou e conhece as circunstâncias da sua morte?

- Isso ninguém sabe - diz Zeno, o valáquio.

Os jornais dizem que foram os canibais, e que os fizeram devorar pelas formigas.

- Eles sabiam que seriam assassinados? - pergunta o adjunto.

- Eles acreditavam que Deus os protegeria - diz Zeno.

- Você, pessoalmente, sabia que os missionários seriam assassinados?

- Se o tivesse sabido, sir, tê-los-ia defendido. Ter-me-ia deixado matar, mas tê-los-ia defendido.

- Se não sabe nada relativo ao seu assassinato, volte noutra ocasião - diz o oficial. - Nós estamos muito ocupados. Procuramos os assassinos. Conhece os nomes dos assassinos?

- Não, sir - responde Zeno. - Eles não mataram homens. Mataram santos.

Zeno, o valáquio, está despedido. Volta ao Sanatório Tropical. Zeno lastima não conhecer os nomes dos assassinos. Se conhecesse os seus nomes, o coronel Jolyheart tê-lo-ia recebido, e ele teria podido contar-lhe que criaturas extraordinárias eram os missionários.

O enfermeiro de Max Embilint detém o valáquio e diz-lhe:

- - O teu companheiro negro pede para te ver. Vai ao quarto dele. Não o faças falar muito tempo.

Max Embilint está imóvel sobre a neve dos lençóis, como uma rocha de carvão. Emagreceu. Zeno, o valáquio, aproxima-se do leito, na ponta dos pés. O negro tem os olhos fechados. Zeno, o valáquio, senta-se perto da cama. Coloca na mesa de cabeceira um caderno com capa de tela preta. Na capa está escrito em bonitas letras vermelhas: “A morte dos Santos mártires do Trópico”. Na primeira página estão coladas as fotografias de Mark, Matei, Luka e Bianka, recortadas dos jornais. Nas páginas seguintes estão colados todos os artigos, todas as reportagens, os telegramas recortados, também, dos jornais. Da mesa de cabeceira do negro Zeno tirou a tesoura e um frasco de cola. Recorta e cola no caderno tudo o que trata dos seus santos amigos. Zeno olha para o negro. Olha para as fotografias dos evangelistas. Volta as páginas com cuidado.

Zeno, o valáquio, tem lágrimas nos olhos. Observa o negro através das lágrimas. O negro respira dificilmente. O corpo de antracite de Max Embilint está envolvido em ligaduras.

No quarto paira um cheiro violento a medicamentos. Cada vez que o negro acorda, Zeno começa a contar-lhe as últimas notícias publicadas pelos jornais. O negro interrompe-o. Ele não quer ouvir nada sobre a morte dos mártires.

- Shut up - ordena Max Embilint. - Isso não me interessa.

É sempre a mesma coisa.

Zeno continua a sua leitura. Como de costume, ele lê enquanto o negro dorme. Zeno volta a página:

“Últimas notícias do território onde os mártires foram supliciados: o nosso enviado especial desembarcou no decorrer da manhã com os pára-quedistas do coronel Jolyheart na cidade de Icibolia. Icibolia é uma extensão desolada de terra vermelha, coberta por montes de cinza. Mesmo as latas de conserva e os objectos assinalados ontem, de helicóptero, nas cinzas da Casa de Oração desapareceram. O nosso correspondente procurou o caminho das formigas, mas elas desapareceram, exactamente como desapareceram os canibais. Resta, apenas, o leito por onde correu este rio vermelho. No lugar onde as formigas passaram, a terra está limpa e brilhante, polida - dir-se-ia - brilhante como o traço deixado por um ferro em brasa na garupa de um animal.”

“Pobres missionários!”, pensa Zeno, o valáquio. Coloca o caderno no seu lugar, na mesa de cabeceira do negro. Depois cruza os braços e olha para Max.

O valáquio tornou-se amigo dos missionários. Os missionários estão mortos. Tornou-se amigo do negro. E o negro está doente. Além disso, o negro não quer ouvir as histórias dos missionários.

O negro abre de repente os olhos. Olha à volta dele, com medo. Mas vê Zeno e diz-lhe:

- How do you do?

- A sua operação ainda o faz sofrer, sir? Esta noite, fez-lhe doer muito?

- Fala de outra coisa - diz o negro.

- Os evangelistas, o que lhes deve ter feito doer, quando as formigas os comeram vivos! Os jornais dizem que quando se é comido pelas formigas se sofre muito mais do que se se fosse devorado por um tigre ou por uma hiena. Pobres santos! Devem ter sofrido atrozmente.

- Não sofreram - diz Max Embilint. A sua voz é seca e dura.

- Não sofreram. Os jornais mentem. Os repórteres são imbecis. Só os merceeiros e os negociantes de queijo sofrem quando morrem. Os santos morrem com o sorriso nos lábios. Dá-lhes prazer morrer. Os mártires não sofrem quando morrem.

- Os mártires também sofrem, sir - diz o valáquio. - Como pode crer que Bianka e Mark não sofreram quando as formigas os devoraram, milímetro por milímetro?

- Shut up - diz o negro. - Isso não me interessa.

Zeno, o valáquio, cala-se. O negro respira dificilmente, irregularmente. Está enervado. Não quer ouvir falar dos missionários. Pensa: “Um dia, vou gritar a verdade na cara do valáquio. Dir-lhe-ei: Fui eu que matei os teus santos. Tu conduziste o carro do assassino que ia matar os missionários. Tu és cúmplice do assassino que matou os teus santos. Não te lamentes mais...” Mas o negro não diz nada. Está comovido com a figura triste, magra e humilde do valáquio. O negro pensa:

“Zeno, o valáquio, é a imagem da ignorância pura. Não sabe nada. Toda a sua concepção do mundo resume-se nisto: um homem é um homem. Com isso não se podem constituir catedrais, uma cultura, não se pode compor uma canção. E, apesar de tudo, é admirável. É maravilhosamente belo só possuir esta ideia: um homem é um homem...”

- Disse-me que tinha milhões de dólares, sir? - pergunta Zeno, o valáquio.

- Yes - diz o negro. - Possuo milhões de dólares.

- Tem um pai e uma mãe, sir?

- Yes - responde o negro. - Tenho uma mãe bela e boa como o bom pão. E um pai admirável.

Zeno suspira.

- Porque me perguntas isso? - diz o negro.

- Visto que tem uma casa, uma família e de que viver com os seus nessa casa, porque erra, como um perdido, nestas regiões selvagens, sir?

- Porque sou negro - responde Max Embilint. - Para um negro não basta ter dinheiro para estar tranquilo.

Max Embilint agita o seu corpo enorme. Lembra-se dos irmãos Knorr, do julgamento, de Moscovo, do assassínio dos evangelistas, de tudo o que lhe aconteceu, unicamente porque ele é negro. Sobre a mesa de cabeceira há uma fotografia de sua mãe. É uma negra pequena, rechonchuda, muito bonita, com muitas pulseiras, colares e anéis.

- Sir, posso, ainda, perguntar-lhe uma coisa?

- Pergunta - diz Max.

- Como se chama a sua mãe, Sir?

- Toda a gente lhe chama “Mãe Afrika”, ou “Mãezinha Afrika” - responde o negro.

- Mãezinha Afrika seria feliz se houvesse sobre esta terra um homem verdadeiro, sir, um homem que o segurasse pela mão, que voltasse consigo a casa, que batesse à porta dos seus pais e que perguntasse:

“É aqui que mora “Mãezinha Afrika” ? Eu queria falar à “Mãe Afrika”. Encontrei-lhe o filho que errava, só e triste, nos países distantes. E trago-lho para casa porque sei como o ama”. “Mãe Afrika” agarrá-lo-ia pelo pescoço. Beijá-lo-ia. Choraria de alegria. E diria ao homem que o conduzisse à sua casa: “Senhor, é um verdadeiro cristão. O que fez é a acção de um verdadeiro cristão...”

- Isso não é possível - diz o negro.

- Porquê, sir? O caminho de regresso, sir, é o único caminho que não pede esforço. É o mais curto e o mais belo caminho da vida de um homem. Quando eu ia à cidade de carro, os nossos cavalos faziam um trajecto numa hora. Passávamos todo o dia na cidade. À noite, no regresso, os cavalos estavam cansados. Apesar da sua fadiga, faziam o caminho só em meia hora. O caminho que leva a casa é tão fácil para os cavalos como para os homens.

O negro tem lágrimas nos olhos. - Virás comigo, se eu voltar a casa? - pergunta ele.

- Ganhei bastante dinheiro para comprar um bilhete para a Europa ou para a América. Irei à América para o levar a casa, sir.

Nessa noite, Max Embilint escreveu à “Mãezinha Afrika” que voltaria a casa, e deu a Zeno dinheiro para comprar bilhetes de barco.

- Partiremos logo que o médico me permita deixar a clínica - diz Max Embilint.

Já se via na América.

- A sua mãe é crente, sir?

- Muito crente e muito piedosa - responde Max. - Porque me perguntas isso?

- Contar-lhe-ei como os santos missionários foram assassinados, sir. Ela ouvir-me-á.

Mas, nem Zeno, o valáquio, nem Max Embilint contaram com Stanislas Krizza.

 

HÁ, exactamente, dez diz que Max Embilint entrou no Sanatório Tropical. Dez dias depois da partida de Stanislas Krizza. Dez dias depois que a notícia do assassinato dos quatro missionários foi difundida.

Zeno, o valáquio, desce do seu quarto do “Afrika Palast”. São oito horas. Todos os dias Zeno dirige-se ao hospital, como se se dirigisse ao trabalho. Max Embilint não pode, ainda, deixar a cama. Dentro de cinco dias, a ambulância transportá-lo-á ao barco. Os médicos consentiram em deixar partir o negro no dia 4 de Janeiro. Zeno está feliz por poder reconduzir Embilint a casa. Primeiro, o negro recusou. Agora, só sonha com a sua partida. Encomendou malas, fatos, objectos de viagem. Quando compra alguma coisa, o negro compra-a em duplicado.

Zeno desce ao vestíbulo do hotel e dá a chave ao porteiro.

- Senhor, o seu quarto está pago, até hoje - diz o porteiro. - Foi pago adiantado, como sabe, pelo senhor Stanislas Krizza. Continua hospedado aqui ou parte?

Zeno, o valáquio, hesita. Faltam cinco dias para a partida do barco.

- Parto - diz Zeno, o valáquio. - Eu subo a ir buscar a minha mala e deixo o hotel.

Cinco minutos mais tarde, Zeno, o valáquio, deixa o “Afrika Palast” com a mala. Entra na agência de viagens, onde marcou os bilhetes de barco.

- Os dois bilhetes de primeira classe para Zeno, o valáquio, e Max Embilint - diz Zeno.

- A partida do Europolis está fixada para 4 de Janeiro - diz o empregado.

Estende os sobrescritos com os bilhetes. Zeno mete-os na algibeira. Sorri aos cartazes sobre as paredes, cartazes com catedrais, palmeiras, ilhas e mares azuis.

Todos os dias Zeno ouve ler nos jornais que os sovietes deixaram o país dos valáquios, para voltarem para o seu país. Ele não volta a casa porque a sua casa foi ocupada por outros. Esperando, vive como numa sala de espera. Tudo o que faz é provisório. Tudo o que empreende arrisca-se a ser interrompido a todo o momento porque, no momento em que ele souber que os estrangeiros evacuaram a sua casa e o seu país, voltará a casa. Por conseguinte, Zeno não sabe qual será a duração da sua estadia nos E.U.A.

Com a mala na mão, entra no Sanatório Tropical. Zeno dirige-se para o quarto do negro, como faz todos os dias. Entra no escritório do ecónomo e coloca a mala no chão.

- O senhor ofereceu-me, um dia, contrato como motorista de ambulância - diz Zeno. - Quando me propôs eu recusei. Não tinha vontade de nada. Agora, aceito. Posso contratar-me por cinco dias, porque parto dentro de cinco dias e já não tenho quarto no “Afrika Palast”.

Diz que podia pagar um quarto no “Afrika Palast”, mas o preço é de tal maneira elevado que é imoral.

- É dinheiro deitado pela janela fora, sir - diz Zeno. - É mais honesto dormir no Sanatório e trabalhar até à minha partida. O senhor ainda tem necessidade de um motorista?

O ecónomo contrata Zeno como motorista provisório e condu-lo a uma mansarda. Zeno está encantado.

- Entro em funções imediatamente - diz Zeno. - Vou cumprimentar o senhor Embilint e entregar-lhe os bilhetes de barco. Em seguida estou à sua disposição.

Zeno deixa a mala, sem abrir, no seu quarto, pequeno e limpo. Desce a escada a correr, entra no quarto de Max. Max Embilint está agitado e nervoso.

- Que Deus o guarde, senhor Embilint - diz Zeno.

O negro não responde. Em cima da cama está um jornal desdobrado. Embilint lê uma reportagem sobre a morte dos missionários.

- Nunca leu nada sobre a morte dos missionários, sir - diz Zeno, surpreendido.

O negro cala-se. Leu, avidamente. Está pálido.

- Já mão leio os jornais, sir - diz Zeno. - Agora já não se escrevem bonitas coisas sobre a morte dos santos do Trópico. Nem mais um só artigo sobre a morte dos mártires, como ao princípio. Agora, há artigos sobre o exército, nos quais se conta como os soldados exterminam os negros. Nem mais uma palavra sobre os santos mártires.

O negro deixa cair o jornal. Zeno apanha-o e dobra-o. O artigo que o negro lia tem por título: “Os outros assassinos do Trópico.”

- Porque lê os jornais, se isso o enerva? - pergunta Zeno. - Veja como as suas mãos tremem, sir.

- Li, por causa do título - diz o negro. - Eu sei que os assassinos do Trópico são os canibais. Tu julgas que há outros?

- Os assassinos que mataram os santos mártires são os canibais - explica Zeno. - Os outros assassinos do Trópico são os soldados que fuzilam os negros. O exército.

O negro teve medo. Assim que viu o título “Os outros assassinos do Trópico”, foi tomado por um pavor como nunca conhecera na sua vida. Esperava ler os nomes de Max Embilint e de Stanislas Krizza. Mas tratava-se, apenas, do exército. O exército fuzilava os negros. Max Embilint acalma-se, mas o seu corpo continua a tremer.

- Eu queria que partíssemos o mais cedo possível - diz Max. - Tenho medo que nos aconteça alguma coisa.

- Partimos no dia 4 de Janeiro, de manhã - diz Zeno.

- É estranho que Stanislas Krizza não esteja, ainda, aqui. Ele disse que voltaria dentro de dez dias. Isto significa que lhe aconteceu qualquer coisa.

Max Embilint tem medo. Julga que Stanislas Krizza foi preso. Se prenderam Krizza, prendê-lo-ão a ele também.

- Com certeza que aconteceu alguma coisa a Krizza - diz Max Embilint. - Tenho medo.

- Nada receie, sir - diz Zeno. - A partir de hoje, vivo aqui. Fui contratado como motorista, até à sua partida. E tenho um quarto aqui.

O negro vê os bilhetes de barco. Coloca-os ao lado da fotografia de “Mãezinha Afrika”. Quando pensa na mãe e no regresso a casa, o negro sente-se fraco. Sentia-se forte quando não tinha nenhum plano, nenhum desejo.

- Podias conservar o teu quarto no “Afrika Palast” - diz. - Ter-te-ia dado dinheiro.

- É melhor eu estar aqui - diz Zeno. - Estamos sob o mesmo tecto. Não somos amigos, sir?

- Um branco só é amigo de um branco - diz Max. - Porque és amigo de um negro?

- Julga que o deveria deixar, só porque é infeliz, porque tem a pele negra? Um homem não faz uma coisa dessas, sir. Estava ao seu lado quando esta desgraça lhe aconteceu. É natural que eu fique ao pé de si.

- Um branco não é amigo de um negro. Nunca. Algumas vezes pergunto a mim mesmo se tu és verdadeiramente branco.

Zeno, o valáquio, desata a rir.

-Evidentemente, sir! - diz Zeno. - Vê-se, ao longe, que sou branco! Olhe para mim. Foi assim que a minha mãe me fez. Branco. Aliás, no dia em que fui ao “Afrika Palast” para a festa da árvore de Natal, os polícias nem olharam para o convite. Disseram-me: “Entra, bem se vê que és branco.” Vê-se ao longe. Não é preciso justificação escrita. E a minha cara serviu-me de cartão de identidade. Evidentemente que sou branco!

- Vês esta fotografia? - pergunta o negro. Mostra a Zeno, num jornal, um retrato do Negus.

- Este homem é branco ou preto?

De novo Zeno desata a rir.

- Mesmo uma criança veria que é preto, sir - diz Zeno. - Toda a gente o conhece. É o Negus, o imperador da Abissínia. Como é possível que o imperador da Abissínia seja branco?

Zeno, o valáquio, diverte-se como uma criança.

- O Negus é branco - diz Max. - Interroga os médicos. Procura numa enciclopédia. Os abexins são de raça branca, embora tenham a pele negra. E os senegaleses também são brancos, embora a sua pele seja mais negra que a minha. Não esqueças que está escrito na Bíblia: “Desconfiai das coisas visíveis.”

- Não gosto de o ouvir falar assim, sir - diz Zeno. - Tem qualquer coisa no coração. Qualquer coisa o atormenta. Posso ajudá-lo no que quer que seja, sir?

- Queria que partíssemos mais cedo - diz o negro.

Um enfermeiro entra no quarto. Diz a Zeno:

- Valáquio, é preciso conduzir, com urgência, uma camioneta com cobertores ao Comando militar.

O enfermeiro dirige-se a Max:

- Desculpe-me, sir, mas o Comando pede, com urgência, que se lhe remetam todos os cobertores de que dispomos.

- Há, então, tantos feridos? - pergunta Max Embilint. - Em que região, os combates?

- Não sei de nada, sir - diz o enfermeiro. - Pediram-nos, com urgência, todos os cobertores disponíveis. Para os feridos, certamente. Vem, Zeno.

Max Embilint fica só, com os bilhetes de viagem, com a fotografia de “Mãe Afrika”, com o jornal em que se lê: aOs outros assassinos do Trópico”.

O negro tem medo. Um medo terrível. Medo, como todos os assassinos, depois do crime.

 

ZENO, o valáquio, só sabe que o exército pediu ao Sanatório Tropical “todos os cobertores disponíveis”.

- Temos ordem para os transportar, com urgência. Dentro de uma hora, o máximo, todos os cobertores devem ser enviados ao Comando.

Zeno, o valáquio, e dois criados do Sanatório carregam cobertores para uma camioneta-ambulância. Os cobertores cheiram a naftalina. Zeno, o valáquio, lembra-se da guerra na Rússia.

- Se não defendemos o Filho de Deus, nós, os cristãos, quem o defenderá? - diz Zeno, que pensa no Filho de Deus como num irmão mais velho.

Ele pensa na Igreja cristã como num bem material que pertence à família. São os cristãos que ele defendeu contra os pagãos, contra os sovietes. Os cobertores do hospital, que ele transporta do armazém para a camioneta-ambulância, lembram-lhe a guerra. Na frente, ele transportou nos braços dezenas de soldados feridos. Alguns morreram nos braços de Zeno. Na frente, por vezes, semanas passavam sem que houvesse um único ferido. Depois surgiam cem, duzentos, trezentos, ao mesmo tempo. Não havia camas, não havia cobertores.

“Agora deve ser a mesma coisa - pensa Zeno, o valáquio. - Como na frente, há muitos feridos que chegam ao mesmo tempo, e o exército pede emprestados os cobertores aos hospitais civis.”

A ambulância pára diante do Comando militar.

Um sargento e dois soldados, com as mãos nos bolsos, falam, despreocupadamente, com as sentinelas.

- Descarreguem depressa - grita o sargento.

Zeno entra com uma pilha de cobertores na sala de festas do Comando militar. Zeno espera encontrar centenas de soldados feridos, mas, na sala de festas, não há um único. Zeno procura com o olhar. Escuta. Não se ouve uma queixa. Nada. Em lugar de soldados feridos, com chagas na cabeça, com as mãos esfaceladas pelos estilhaços de granadas, com as pernas arrancadas pelas explosões, como ele viu na Rússia, Zeno, o valáquio, só vê na sala do Comando militar dois soldados e um sargento. Fazem parte, os três, da companhia de radiotransmissão. Não são enfermeiros. Não usam braçadeiras com a cruz vermelha. Os soldados e o sargento têm um galão dourado bordado na manga.

- Onde estão os feridos? - pergunta Zeno, atirando a pilha de cobertores sobre o soalho brilhante. - Os feridos ainda não chegaram?

- Quais feridos? - pergunta um dos dois soldados.

- Os feridos para os quais trouxemos os cobertores! - explica Zeno. - Quando chegam os feridos?!

Os dois soldados e o sargento desatam a rir.

- Os cobertores não são para os feridos, meu velho - diz o sargento. - És motorista no Sanatório?

- Motorista da ambulância do Sanatório - diz Zeno. - Porque é que pediram cobertores, com urgência, pois se não há feridos?

- Os cobertores devem servir para a insonorização da sala, meu velho - explica o sargento. - Dentro de uma hora, nem mais um minuto, relógio em punho, devemos transformar a sala em estúdio insonoro.

Outros soldados aparecem. Fazem rolar peças de caqui, de pano de calças. Desdobram-nas no soalho.

Trabalha-se depressa. Os soldados têm ordens precisas. Sabem o que devem fazer. Dois pregos pregados na parede com duas marteladas fixam um cobertor. Mas são precisos cinco cobertores, uns sobre os outros, para cobrir toda a parede, do chão ao tecto. Ao fundo da sala há uma mesa de pinho. Cobrem-na de cobertores de caqui. Três alto-falantes estão colocados sobre a mesa. Atrás há três cadeiras. Sobre cada cadeira coloca-se um cobertor que cobre o assento e o espaldar. Diante da mesa uma outra cadeira. Junto desta colocou-se um microfone fixado a um varão de metal cromado. Ao fundo da sala, colocou-se uma tela de cinema, estendida sobre os cobertores. Um pouco atrás, outros soldados trabalham para regular um aparelho de projecção.

- É isto o exército moderno - diz o sargento. - Assim que tivermos terminado o nosso serviço militar, poderemos ir para Hollywood. Somos campeões! Numa hora - relógio em punho - construímos um estúdio.

Meia hora mais tarde, tudo está terminado. O sargento e os dois soldados retiram-se para uma pequena dependência camuflada ao lado da sala grande do Comando. Zeno está com eles. Os soldados acendem cigarros. Instalam-se nas cadeiras. Estão como num camarote, no teatro. Vê-se toda a sala. A seus pés ergue-se um microfone cromado, como o que está ao pé da mesa. Zeno está sentado junto dos soldados. Não compreende o que se passa. Nada perguntou. Sabe - desde que esteve na Rússia - que nunca se devem fazer perguntas aos militares! “Quando se tem um negócio com os militares, nunca se pergunta nada - pensa Zeno. - Um militar está persuadido de que tudo o que faz é um segredo de Estado.”

- Aqui, teremos, também, a nossa ração de segredo - diz o sargento.

O sargento fuma o seu cigarro com volúpia.

Cruza as pernas e olha para a sala, como um espectador num camarote.

- Que segredo? - pergunta o valáquio.

- Três juízes chegaram da Europa - explica o sargento. - Tu vais vê-los, primeiro porque nos ajudaste a insonorizar a sala. Vêm da Europa expressamente para julgar os assassinos do Trópico. Veremos o coronel Jolyheart em pessoa. É ele o chefe dos assassinos do Trópico.

- Não é um julgamento - diz o primeiro soldado. - É um simples inquérito.

- Cala a boca - diz o sargento.

Esfrega as mãos e observa, atentamente, a sala. Pela porta principal, oculta pelos cobertores, aparecem três civis em fato domingueiro. Avançam sobre o soalho coberto de caqui. Sentam-se nas três cadeiras junto da mesa, diante dos três microfones. Os soldados, o sargento e Zeno vêem tudo o que se passa na sala, sem serem vistos. O soldado esfrega as mãos com volúpia. Aguarda o espectáculo que vai começar.

- Estes três gajos formam a comissão de inquérito mais importante do exército - diz o sargento, voltando-se para Zeno. - Na tua vida não viste, nem verás e não ouvirás coisas tão sensacionais. Ultra, ultra-secretas. Tu tens direito porque foste prestável. É preciso estar sempre bem com o exército.

O valáquio levanta-se. Quer partir. O sargento obriga-o a sentar-se, de novo, na cadeira. Os soldados do serviço de transmissão e o sargento têm ordem para efectuarem as eventuais reparações. Mas camuflaram-se de maneira a ouvirem e a verem tudo na sala.

- Não quero ouvir nenhum segredo - diz Zeno, o valáquio. - Não quero correr perigo.

- Idiota! - diz o sargento. - Que perigo? Vais ouvir coisas sensacionais, quer queiras, quer não. Agora, é muito tarde para partires. Só podes sair passando pela sala. As portas estão fechadas. És obrigado a ficar. Podes tapar os ouvidos, é tudo o que podes fazer.

- Não quero saber segredos - diz Zeno, o valáquio. - A vida do homem está em perigo sempre que ouve um segredo. Só o homem que ignora os segredos é feliz. Sei isto pelo meu pai.

- Era preciso dizê-lo antes - diz o sargento. - Nós queremos ouvir. É muito tarde para te ires embora.

Zeno, o valáquio, senta-se entre os soldados. Está triste.

“A culpa é minha - pensa Zeno. - Devia ter descarregado os cobertores e ir-me embora. Tenho um coração muito sensível. Quando os soldados me pediram para os ajudar, não pude recusar. Também fui soldado. Por causa disso, agora tenho que ver e ouvir coisas secretas.”

A mesa rectangular está encoberta por um cobertor do Sanatório Tropical. Os três civis têm as têmporas grisalhas. Estão vestidos com cuidado e elegância.

“São pessoas que usam todos os dias os seus fatos de domingo - pensa o valáquio. - Para eles, todos os dias é domingo. Mudam de camisa e de fato todos os dias, como as outras pessoas mudam só aos domingos.”

O coronel Jolyheart apareceu diante da mesa rectangular. Senta-se na cadeira, em frente dos três homens elegantes. O coronel Jolyheart puxa para ele o microfone de pé cromado. Zeno, o valáquio, reconheceu-o imediatamente. Esteve perto dele quando da árvore de Natal. Zeno viu as fotografias da mulher e das filhas. O coronel devia partir para a Europa no dia seguinte ao da árvore de Natal. Ficou no Trópico por causa dos acontecimentos de Icibolia.

- Os Jolyheart são a mais antiga família de militares do país - diz o segundo soldado. - Os seus antepassados têm uma estátua em todas as praças. Agora, vai ver-se a sua verdadeira natureza. Tudo será registado na fita e difundido. O malandro.

- Porque é que o coronel Jolyheart é um malandro? - pergunta Zeno.

- Todo o assassino é um malandro - responde o soldado. - Não lês os jornais, meu velho? O coronel Jolyheart é o chefe dos assassinos do Trópico. É ele o assassino de Icibolia.

- Não é verdade - diz Zeno. - Os assassinos de “Icibolia são os canibais. Os canibais assassinaram os missionários. Conheci os missionários. Luka, Matei, Mark e Bianka eram meus amigos. Santos.

- Deixa-nos em paz - diz o sargento. - Não se trata de missionários. Os evangelistas foram assassinados pelos canibais. Nisso estamos de acordo. Mas o coronel Jolyheart assassinou...

No microfone colocado aos pés dos soldados ouve-se uma voz clara que diz:

- Coronel Jolyheart, estamos aqui para recolher o seu depoimento referente a certos acontecimentos em que, pessoalmente, participou ou provocou.

É o civil do meio que fala. A sua voz é clara. Zeno ouve-lhe, mesmo, a respiração, como se ele lhe falasse ao ouvido.

- Isto, é insonorização! - diz o sargento, com orgulho. - Hollywood deveria contratar-nos!

- Quais acontecimentos? - pergunta o coronel Jolyheart.

Mantém-se diante dos três civis com dignidade. Zeno curva o tronco também. O valáquio adora as pessoas que têm dignidade.

- Dar-lhe-emos a ler o documento que provocou o inquérito - diz um dos civis.

Ele diz: “No dia 21 ou 22 de Dezembro, quatro missionários, Matei, Luka, Mark e Bianka, foram assassinados pelos negros.

“Estes missionários tinham chegado, duas semanas antes, a esta tribo que desejavam cristianizar.

Na opinião da comissão jurídica é que não devia ter sido concedida a estes quatro jovens autorização para se instalarem entre os indígenas. Eram muito novos. Não tinham preparação técnica alguma.”

- Os missionários tinham a fé - diz o coronel Jolyheart.

A sua voz de barítono é bela, musical. Diz: - No exército, como na religião, os melhores são os que têm a fé. Os missionários tinham-na. O civil do meio diz, com uma voz calma e fria:

- A comissão jurídica não partilha da sua opinião, coronel. Um missionário deve ter uma preparação séria. Estes quatro jovens não a tinham. Os principais responsáveis são os que concederam a estes jovens aventureiros a autorização para se deslocarem ao Trópico.

“A imprensa de Natal apossou-se destes factos dramáticos e deu-lhe uma publicidade lamentável, - prossegue o civil. - Mas o Governo é ainda mais culpado que a imprensa. Para demonstrar à opinião mundial que os negros do Trópico não estão maduros para a independência e que, por consequência, devem conservar um estatuto de colonizados, o Governo cometeu a imprudência de exagerar o incidente de Icibolia. O Governo fez tudo o que estava ao seu alcance para constituir aos negros do Trópico um processo de canibais, de assassinos, de fora-da-lei. O Governo transportou para o Trópico centenas de cineastas, de fotógrafos, de repórteres e de operadores da televisão. Esta acção do Governo, que tem por fim a manutenção das colónias do Trópico, foi a causa dos dramáticos acontecimentos que se seguiram. Os repórteres não encontraram no Trópico nenhum vestígio dos missionários. Nada puderam filmar, fotografar ou televisionar que estivesse em ligação com o drama. Então, as objectivas das câmaras e os olhos de todos os repórteres registaram a única acção que se desenrolava no Trópico, à sua chegada: as represálias do exército. Os repórteres voltaram do Trópico com quilómetros de películas nos quais se vê o exército caçar os negros como se se tratasse de feras.

- Protesto - diz o coronel Jolylieart. - O exército do Trópico não caçou os indígenas como feras.

- Coronel Jolyheart, estamos aqui porque a situação é extremamente grave. Os nossos inimigos acusam-nos do crime de genocídio. Os nossos amigos, se não nos acusam, lamentam-nos pela nossa nefasta acção. Os nossos cidadãos são insultados, quando viajam no estrangeiro. As mães cujos filhos cumprem serviço militar no Trópico estão desoladas porque eles foram transformados em assassinos. Durante séculos, fomos campeões da justiça, do humanitarismo e da cultura. Presentemente, somos acusados de genocídio, de massacre de populações sem defesa e de outros crimes monstruosos. Estas acusações dirigidas contra nós são comprovadas por fotografias, por filmes e por documentos. Viemos aqui para registar o seu testemunho. Pedimos-lhe para nos dizer a verdade. Devemos esclarecer o caso. Projectaremos dois documentos que nos acusam de selvajaria e de crueldade. Registaremos o seu testemunho em toda a objectividade. Será decidido ulteriormente se a pátria toma sobre ela a responsabilidade dos actos que lhe são atribuídos, ou se a pátria se desliga de si e dos seus subordinados, tornando-o, pessoalmente, responsável.

A luz apaga-se. Um dos homens fala.

- Durante as suas incursões em avião e em helicóptero sobre território habitado pelos canibais, convidou, sempre, operadores de cinema, de televisão e fotógrafos. É verdade, coronel?

- Era à ordem do Governo.

Na tela do fundo da sala, vê-se, filmada de um helicóptero, a região dos canibais. Zeno, o valáquio, reconhece-a.

- Ali, é Icibolia - diz Zeno, olhando para a tela. - À direita, é o caminho que conduz à casa dos evangelistas. Pobres evangelistas!

- Que se passou? - pergunta um civil.

Na tela, vê-se a terra desolada onde vivem os canibais.

- Uma acção de polícia - diz o coronel Jolyheart. - Lembro-me perfeitamente. Tinha ordem de deter os autores do massacre dos evangelistas. Assim que cometeram o assassinato, os canibais incendiaram a aldeia e desapareceram para as regiões desertas da vizinhança. Aconteceu-me assinalá-los, de avião ou de helicóptero. Logo que viam os aviões fugiam e escondiam-se. Nunca abri fogo contra eles. Os militares que estão sob as minhas ordens não são criminosos. Decidimos capturá-los vivos. Era muito difícil. No decorrer da primeira operação devíamos sobrevoar o território e assinalar os canibais. Depois de os ter assinalado, devíamos tentar capturá-los. Mas, quando aterrámos, tinham desaparecido.

Enquanto o coronel Jolyheart fala, na tela aparecem os negros, conpletamente nus, que fogem assustados pela presença dos aviões e dos helicópteros. Zeno observa tudo bem. Tenta reconhecê-los. Cerra os punhos e diz:

- Xob!

No meio de um grupo de negros que se escondem, Zeno reconheceu Xko-Goa-Xob e Nakusanswa.

- Não perderam os calções - diz Zeno. - Meus amigos...

- Silêncio - diz o sargento.

Zeno sente-se feliz por ter visto Xob e Nakusanswa, os jovens negros que dormiam no fundo da camioneta. Zeno vê que Max Embilint não mentiu, que os dois negros não se afogaram ao mesmo tempo que as cantinas. “Eu deixei-os com as mães” - disse Max. - Agora Xob e Nakusanswa fogem dos aviões. Alguns instantes mais tarde, Zeno tem a impressão de que reconheceu o velho Akpatabgalo, aquele que arrancava os dentes dos adolescentes. O filme foi tirado de muito alto. Os negros aparecem e desaparecem, rapidamente, sobre a tela. Zeno não pode identificar os seus amigos com precisão. Se ele visse a sequência várias vezes, poderia pronunciar-se com certeza, mas está quase seguro de ter reconhecido Xob e Nakusanswa, os únicos canibais que usavam calções.

- Os negros - como vê - estão nus, quase todos - diz o coronel Jolyheart. - Vivem como animais. Não possuem nada. Erram pelo mato. Com a nossa aparição escondem-se em aberturas na terra, em grutas e cavernas.

- Porque é que não experimentaram um reconhecimento do terreno com as tropas? - pergunta um civil.

- As perdas em homens e em material teriam sido muito elevadas - diz o coronel Jolyheart. - E a acção teria durado muito tempo. Pediram-me para deter os autores do assassinato, com toda a urgência. A opinião pública reclamava a captura e a punição dos assassinos. Assinalei-os do meu helicóptero. Mas, antes, mesmo, que tivesse aterrado, desapareceram como raposas, como panteras ou como hienas nos buracos e nas cavernas. Não se encontravam.

Na tela, vê-se sempre os negros a esconderem-se. Aparecem na tela durante alguns segundos, depois desaparecem. Dir-se-ia que se evaporam.

- Se eu tivesse ido a cavalo teria carregado sobre eles - diz o coronel. - Tentei carregar sobre eles com o helicóptero e colocar-me ao lado deles.

- Escute agora o comentário que acompanhou este filme, em todas as salas de espectáculos - diz um dos três civis. - Escute atentamente.

O coronel cala-se. Na tela vê-se um grupo de negros, completamente nus, que correm numa superfície deserta. Um negro começa a coxear, um espinho ou uma ponta de rocha deve tê-lo ferido.

Coxeia cada vez mais e fica para trás do grupo, abandonado pelos camaradas, que se escondem. Um helicóptero de Jolyheart volteja por cima do negro ferido, como uma águia. O helicóptero desce cada vez mais. De repente pousa sobre o corpo do negro ferido e esmaga-o como a um insecto. O comentador do filme diz:

- Este infeliz negro, que talvez nada tenha com o assassinato dos evangelistas, tenta fugir. Está ferido. Os seus camaradas não o podem salvar. Abandonam-no. O helicóptero volteja sobre ele como uma ave de rapina. A angústia do negro é cada vez maior. Alguns instantes mais tarde, o negro ferido e solitário é esmagado como um mosquito pelo helicóptero, que se colocou sobre ele.

- É um acidente - diz o coronel Jolyheart. - É um acidente que eu lastimo.

Prossegue com uma voz entrecortada:

- Em virtude das leis militares tinha o direito de carregar sobre eles com o meu cavalo, com um tanque ou com um helicóptero. Se o matei, foi por causa de um acidente mecânico. Tinha a intenção de o capturar vivo. No momento de aterrar, o aparelho não funcionou, de maneira que matei o negro. Mas não se deve ver ali outra coisa senão um simples acidente.

- Pobres negros! - diz um dos três civis. Pergunta ao coronel:

- Depois desta experiência mudou de táctica, não é verdade?

- Para evitar uma repetição do acidente ao qual assistiram, experimentei, efectivamente, uma outra táctica - diz o coronel Jolyheart. - Decidimos voar muito baixo com os nossos helicópteros e capturar os negros a laço. A captura a laço pareceu-me mais humana.

- Não o felicitamos, coronel - diz um dos civis. Estes três inquiridores do exército não usam, somente, fatos domingueiros, as vozes são, também, vozes domingueiras. Na tela vêem-se, de novo, negros que correm e que se escondem. Um helicóptero paira, como uma ave de rapina, e desce sobre os negros. Está muito perto da terra. Um soldado lança um laço do helicóptero. O negro, capturado como um cavalo selvagem, ou como um touro das pampas sul-americanas, debate-se. Atira-se por terra. Na tela vêem-se os esticões do corpo negro que tenta, desesperadamente, desembaraçar -se do laço. O helicóptero desce à altura do homem. O negro levanta-se. Tenta fugir. O laço está enrolado à volta do tronco. O negro tira-o. Salva-se. O soldado atira, de novo, o laço. Desta vez, o nó corredio aperta o pescoço ao negro. O negro debate-se. O helicóptero, de repente, toma altura. Sob o helicóptero que se eleva, o corpo do negro pende, amarrado pelo pescoço. Está inerte. O helicóptero toma cada vez mais altura, com o corpo do negro que balança.

- Este homem, talvez inocente, está morto, pendurado no seu helicóptero - diz um dos inquiridores. - O documento é autêntico. O filme foi tirado de um outro helicóptero que voava próximo. Esta cena é projectada em todas as salas de espectáculos do mundo. - Responda, coronel Jolyheart! Está orgulhoso?

- Trata-se de um acidente - responde o coronel.

- Sempre a mesma explicação - diz um inquiridor. - Sempre acidentes! Encontre uma explicação mais aceitável. É um acto monstruoso. Um acto horrível. Um acto que faz esquecer ao espectador os nossos mil anos de cultura e de civilização!

- Repito que é um acidente - diz o coronel Jolyheart. - Além disso, reconheço que operações militares não se prestam para ser filmadas. Contudo, aqui, trata-se de um acidente. Passe ainda mais uma vez a sequência. Note que, diante do helicóptero, há um montículo. Este acidente de terreno forçou o piloto a tomar, bruscamente, altura.

- A realidade, coronel, é que o negro foi morto, pendurado no seu helicóptero - diz um dos civis. - O helicóptero do coronel Jolyheart, com as cores do nosso país, leva nas suas garras homens, como uma ave de rapina. Veja!

Acendem-se as luzes na sala. Zeno, o valáquio, esfrega os olhos. Chorou pela morte do negro. O valáquio diz bruscamente, esquecendo onde se encontra:

- Conheço o negro que está morto pendurado no helicóptero. Chama-se...

- Silêncio - diz o sargento.

O civil do meio diz, solenemente:

- A cena que acaba de ver na tela produziu uma forte emoção no mundo inteiro, coronel. A emoção é tão grande no nosso país como no estrangeiro. Temos centenas de cenas como aquela. Ninguém se ocupa hoje da morte dos evangelistas. Quando se diz “os mártires do Trópico”, o mundo pensa nos negros mortos pelo exército. Os mártires do Trópico são os negros pendurados nos helicópteros, esmagados por eles, caçados por avião como tigres. Os assassinos do Trópico são os militares que massacram, como se acaba de ver nestes documentos.

- Atenção! - grita o sargento. - Ouvem-se passos.

O microfone que estava aos pés dos soldados foi escamoteado, a cobertura que servia de cortina tirada. Não se via nada na sala. Não se pode ouvir mais nada na sala. O sargento atira um baralho de cartas para cima da mesa. O oficial entra no reduto.

- Quem ganha? - pergunta o oficial. - Continuem a jogar. Dentro de alguns minutos a sessão vai terminar. Desmontem os aparelhos e dobrem os cobertores.

Os soldados, o sargento e Zeno, o valáquio, estão perfilados. O oficial sai.

O sargento agarra o valáquio pelo braço e diz-lhe:

- Se divulgas alguma coisa dos segredos que acabas de ouvir, estás perdido. Em duas horas, o tribunal militar condena-te à morte, e és fuzilado nos dez minutos que seguem o veredicto. Tudo o que acabas de ouvir é secreto. Nem uma palavra. Nada viste nem ouviste.

- Nada vi nem ouvi - diz o valáquio.

Começa a dobrar os cobertores do Sanatório.

- Conta bem - diz o sargento. - Que o hospital não venha dizer-nos amanhã que o exército lhe roubou cobertores. O exército não rouba cobertores.

- Eu sei como se chamava o negro que foi morto, pendurado no helicóptero - diz Zeno, o valáquio. - Chamava-se Omutia. Falei-lhe.

Os soldados desmontam os fios, os microfones e os aparelhos de projecção. Não ouvem o que diz o valáquio.

- Tens todos os teus cobertores? - pergunta o sargento. -Vamos ajudar-te a carregá-los na ambulância. A tua opinião sobre a sessão? Um espectáculo de gala! A vedeta na tela e na sala. O assassino em carne e osso e na tela! Isto é cinema!

 

3 de Janeiro, véspera da partida. Depois da sessão a que, infelizmente, assistiu, o valáquio está triste. Já nem lê os jornais. Pelo contrário, embora nem possa deixar a cama, o negro está alegre. Amanhã estará no Europolis.

- Zeno, serias capaz de matar um homem com as tuas próprias mãos?

- Não me fale mais de mortos, sir - diz o valáquio.

Pensa nos missionários, nos negros pendurados nos helicópteros ou esmagados por eles, como moscas. Lembra-se do milhão de valáquios mortos na Rússia, por Cristo.

O enfermeiro entra no quarto. Está congestionado.

- Desta vez é grave - diz o enfermeiro. - Zeno! Sobe para a ambulância e parte a toda a pressa para o Comando militar.

- Ainda cobertores? - pergunta Zeno, o valáquio.

Tem horror aos cobertores, ao cinema, ao Comando militar.

- Passa pela cozinha para levares o teu farnel. Ficarás no Comando todo o dia. Partes com a ambulância e com a equipa de desinfecção. Despacha-te.

- O que é que há para desinfectar? - pergunta Zeno.

- A ordenança do coronel Jolyheart apanhou lepra - diz o enfermeiro. - E os dois criados do coronel também têm lepra. O coronel vivia com três leprosos. O coronel era servido à mesa por leprosos, que lhe faziam a cama, escovavam os fatos e ele não sabia nada. É horrível.

- O coronel tem lepra?

- Isso não se sabe - diz o enfermeiro. - Por enquanto, não. Pelo menos, a mesma lepra que as ordenanças. Talvez seja uma outra espécie de lepra, mas não se vai discutir isso. O coronel está de quarentena. Transformámos o Comando militar em leprosaria. É preciso desinfectar tudo. Tudo.

Zeno sai. A ambulância está carregada de aparelhos.

- São aparelhos para a sulfatagem das vinhas - observa Zeno. - Aparelhos como aqueles de que se servem para combater o míldio ou as lagartas nas árvores de fruto. Em que altura se desencadeou esta epidemia de lepra no Comando militar? - pergunta ele.

O enfermeiro militar que está ao seu lado não tem tempo de responder. A ambulância de Zeno entra no parque da Residência. Um parque enorme. A vivenda do Comando militar tem uma escada monumental de mármore branco. As paredes são brancas. Em frente da moradia há lagos, piscinas, cuja água azul se assemelha a pedaços de céu. A vivenda branca está rodeada por uma dupla vedação de arame. Entre as duas vedações um espaço com a largura de dois metros, aproximadamente. O fio de arame foi instalado durante a noite. Vêem-se sobre a terra, recentemente remexida, os sinais deixados pelos que colocaram os postes. Há quatro sentinelas armadas de baioneta de cano. O coronel está isolado com o adjunto, o cozinheiro, as duas ordenanças, a cozinheira e a criada branca.

- Ontem à noite, o coronel viu que um dos negros tinha uma mancha suspeita - diz o enfermeiro militar. - Os médicos militares vieram. Examinaram o negro. Era lepra. Os dois outros negros também a tinham.

Na vivenda do coronel Jolyheart, nada se mexe, como se estivesse abandonada. O valáquio e os enfermeiros militares descarregam os aparelhos, os bidões de desinfecção, os tonéis metálicos.

- Começarás pelas áleas - diz o enfermeiro-chefe. Dá a Zeno uma pá perfurada como um regador. - Espalharás sobre o cascalho e sobre a areia das áleas uma camada de pó anti-séptico - diz o enfermeiro militar. - Uma camada espessa como geada branca no fim do Outono.

O enfermeiro leva uma pàzada de pó branco e deixa-a cair em chuva sobre a álea, como se se tratasse de açúcar fino. Depois dá a pá perfurada a Zeno, o valáquio. A lepra esconde-se em todo o lado. A lepra é dissimulada. A lepra esconde-se, talvez, na areia, no cascalho das áleas. Leva-se na sola dos sapatos. As aves podem levar a lepra e transportá-la, sabe Deus para onde. Os cães, os gatos também.

Os dois camiões acabam de entrar no parque. Camiões enormes, donde descem jovens. Dispersam-se pelo parque. Assustam as aves de plumagem multicor e caçam-nas num canto do parque.

- São os homens do jardim zoológico - explica um militar. - Vêm buscar os pavões e as outras aves do parque. Submetê-las-ão a observação.

- Mesmo as aves podem ter lepra? - pergunta Zeno.

Olha as asas multicores.

- As aves podem ser os agentes transmissores da lepra - diz o homem com a cruz vermelha. - Desde o momento em que há aqui três leprosos, tudo se torna suspeito. A lepra pode encontrar-se na areia, nas árvores, nas aves, no mármore.

Zeno, o valáquio, olha as áleas polvilhadas de anti-séptico. Atrás dele, a areia e o cascalho pare.

cem cobertos de orvalho. Esta brancura cintila ao sol. O pó branco anti-séptico é inodoro. No parque flutua um perfume perturbador de plantas e flores. Zeno continua a orvalhar as áleas. As equipas de enfermeiros espargem as paredes, as portas, a vedação e o arame farpado com que se cercou a residência do comandante militar. Os enfermeiros militares enrolam gaze à volta dos fechos das portas. Cada fecho parece um dedo ou uma mão ferida e pensada.

- O exército faz trabalho sério - diz o enfermeiro. - Não somos como os civis.

O perfume das flores e das plantas do parque começa a misturar-se com o cheiro forte dos desinfectantes. Só o pó branco que Zeno espalha nas áleas é inodoro. Todo o parque tem o mesmo cheiro que o quarto de Max Embilint, quando o negro foi operado.

- Ninguém se pode aproximar de um negro ou de uma negra, sem correr o risco de apanhar a lepra - diz o enfermeiro. - Os negros têm a lepra no sangue. Os criados do coronel eram obrigados a lavar-se todos os dias, e, apesar disso, apercebeu-se de que eles tinham lepra, os três. Se isto se confirma, o pobre coronel tem-na, também. A lepra é dissimulada. Fica escondida. É clandestina, Quando aparece, é muito tarde. Pobre coronel...

O coronel Jolyheart aparece na escada de mármore, à frente da vivenda. De longe, parece mais novo. Está de blusão e calções brancos. O coronel Jolyheart fuma. Parece nervoso. Olha a dupla fila de arame que cerca a Residência. Não lhe agrada.

O coronel acende um outro cigarro. É um desportista. É belo. Os enfermeiros olham-no com piedade.

- A lepra é terrível - diz o enfermeiro. - Antigamente, quando um homem tinha lepra, a família conduzia-o, com grande pompa, à igreja. O padre dizia a missa de defuntos, em intenção do doente, depois amarrava-se-lhe um guizo ao pescoço e mandava-se o leproso morrer sozinho. Agora é diferente. Mas não é mais agradável viver cercado de arame, como o coronel e o pessoal da Residência.

- Sobretudo quando a mulher e as filhas chegam hoje - diz um outro enfermeiro. - A família do coronel chegou sem prevenir. As três mulheres estão no aeroporto. Chegam da Europa para lhe fazer uma surpresa. E vêm encontrá-lo encerrado aqui, como um leproso.

- É a vida, meu velho - diz o enfermeiro. - Elas quiseram fazer-lhe uma surpresa. O coronel Jolyheart devia deslocar-se à Europa, pelo Natal. Não pôde gozar as férias, por causa dos missionários. Ficou aqui para prender os assassinos. Agora, é a mulher que vem cá, mas ele não poderá estar com ela. Ela dormirá no “Afrika Palast”. O seu quarto e os das filhas estão reservados. O coronel dormirá aqui, sozinho, como um leproso. É a vida, meu velho.

- Nem tem o direito de beijar a mulher - diz um soldado.

Os enfermeiros têm pena do coronel.

O coronel está com azar neste momento. É a série negra. Como se os evangelistas tivessem necessidade de se fazerem comer pelos canibais, exactamente na véspera da sua partida para férias. Como se eles não pudessem fazer isso mais tarde! E estes criados negros que apanharam a lepra ontem à noite, quando a mulher e as filhas do coronel vinham de avião para o ver!

Zeno, o valáquio, sabe que o coronel tem, ainda, outros aborrecimentos. Espalha o pó branco pelas áleas do parque, à volta da casa. Zeno, o valáquio, tem as faces empoadas de branco, como um palhaço.

Volta a cabeça. Um automóvel entra no parque da Residência. Traz o distintivo do governador. Dentro, estão três mulheres. Usam capelinas com grandes abas, guarnecidas de flores. Olham a vedação de arame que cerca o palácio branco da Residência. O coronel está nos degraus de mármore.

As três mulheres descem do carro. O motorista abre-lhes a porta.

Duas destas mulheres são muito jovens, adolescentes. A mulher do coronel aproxima-se da vedação e coloca a mão enluvada sobre o arame farpado. O coronel está a dois metros da mulher. Pousa a mão na segunda vedação de arame farpado. Entre o coronel e a mulher há duas carreiras de arame farpado e um espaço de dois metros. Eles olham-se.

- É cruel mantê-los assim separados - diz o enfermeiro.

Os militares estão apiedados. Todos param o trabalho e olham a cena.

- O coronel não tem lepra - diz Zeno. - Só os negros a têm. Porquê isolá-lo como um leproso, quando ele não o é?

- Ninguém sabe se o coronel tem lepra ou não - diz o enfermeiro. - Os médicos mesmo não o sabem. A lepra é diabólica. Você tem-na quando julga não a ter e vice-versa.

O coronel e a mulher são obrigados a falar alto. Zeno e os enfermeiros ouvem a conversa.

- Estou contente por vê-las - diz o coronel. - Contudo, fiquei aborrecido por não me terem anunciado a chegada. Depois houve isto... De qualquer maneira encontrar-me-iam de quarentena. Só descobri a lepra ontem, à noite. Nessa altura, já estavam a caminho do Trópico.

As filhas do coronel calam-se. Estão de mãos dadas e olham as áleas que Zeno, o valáquio, polvilhou de branco.

- Sinto-me culpado - diz o coronel. - Sei que estou aqui por nada e, no entanto, não tenho a consciência tranquila. A sorte qui-lo assim. Foi melhor que eu tivesse descoberto a lepra dos negros ontem à noite. Isso tem-me afastado de vocês, mas vocês estão em segurança.

- Paizinho - diz Maria, a filha mais nova - nós queríamos trazer-te flores. As flores tropicais são tão bonitas! Mas pensámos que não era conveniente.

- Levam-se sempre flores aos doentes de quarentena ou nos hospitais - diz o coronel. - Isso dar-me-ia prazer.

- Pensámos que seria inconveniente chegar à tua casa com flores.

Marta e Maria estão coradas de emoção. Olham para o chão. A senhora Jolyheart tem os olhos húmidos de lágrimas.

- Mudámo-nos. Vivemos no campo - diz ela. - As tuas filhas e eu moramos, agora, numa aldeia. Encarreguei uma agência de alugar o nosso apartamento da capital.

Maria desata em soluços. Maria é a mais nova, a que queria trazer flores ao coronel. Maria adora o pai.

- Não chores, Maria, minha querida - diz o coronel. - Esta quarentena é desagradável, mas não vai durar. Estar de quarentena por causa da lepra, não é sinónimo de ter lepra.

- Não é por causa disso que Maria chora - diz a mulher do coronel.

Madalena Jolyheart morde os lábios. O seu olhar é severo. Madalena Jolyheart tem trinta e cinco anos, mas, neste momento, parece velha, irritada.

- Que te aconteceu, Madalena querida? - pergunta o coronel.

O coronel pensa nas infelicidades que podem acontecer à família, nas grandes dores, na morte, na doença. Mas não se trata disso. Elas estão as três vivas e de boa saúde. Olha meigamente para Madalena, Maria e Marta. Ele ama as três mais do que tudo no mundo, mais que a própria vida.

- Queria tanto apertá-las contra o meu coração - diz o coronel. - Mas estes animais negros acharam por bem ter lepra justamente nesta altura. Dir-se-ia que o fizeram expressamente para que eu não as pudesse apertar nos meus braços.

- As pequenas já não vão à escola - diz a mulher do coronel com uma voz cada vez mais seca. - Não podemos ir a parte alguma.

- Não compreendo o que dizes - diz o coronel.

- Porque é que as minhas filhas não vão à escola?

- Tu sabe-lo melhor do que nós.

- Madalena, fala claramente - implorou o coronel. - Nós sempre nos compreendemos perfeitamente. É a primeira vez que não compreendo nada do que dizes, absolutamente nada.

Madalena Jolyheart chora. Diz:

- Viajámos sob um nome falso. Não teríamos podido subir para o avião se a hospedeira tivesse pronunciado o nome Jolyheart.

- Não compreendo - diz o coronel.

- Disse-te que moramos no campo - diz a mulher do coronel. - Disse-te que as nossas filhas não vão à escola. Mesmo no campo, onde fomos obrigadas a refugiar-nos, é-nos impossível sair para comprar pão e leite, para dar um passeio. Assim que saímos, injuriam-nos.

- Por que razão?

- Querido - diz a mulher do coronel - sabes bem que todos os jornais, todas as revistas, todos os postos de rádio, a televisão, não falam de outra coisa. De nada senão disso. Sempre e ainda. Não podemos suportar. Sempre o mesmo.

- Qual “mesmo”? - pergunta o coronel. - Explica-te.

- Da tua acção no Trópico - diz a mulher do coronel.

Ela tem os olhos muito abertos. Chora. Quando o homem chora com os olhos muito abertos, é porque atingiu o limite da dor. A senhora Jolyheart olha, através das lágrimas, as paredes brancas, a escada de mármore. Vê o parque, a vedação, os maciços de flores. Vê Zeno, o valáquio, que polvilha as áleas com um produto anti-séptico.

- Não falemos mais - diz Madalena Jolyheart.

- Desculpa-me por te ter falado nisto. Agora tudo correrá bem. Aqui, ninguém nos vê. Seríamos tão felizes por estar no teu lugar, isoladas do mundo, por duas ordens de arame farpado, por estar de quarentena por causa da lepra.

Maria levanta o rosto banhado em lágrimas e olha fixamente para o pai.

- Paizinho, queria perguntar-te uma coisa - diz Maria.

- Pergunta, minha querida filha. Tu sabes que vocês são a grande alegria da minha vida.

- Paizinho, diz-me que isto não é verdade - diz Maria.

- O que é que não é verdade, minha querida?

- Quero saber se o que se mostra no cinema é verdade, paizinho - diz Maria. - Quero ouvir dos teus lábios que isto não é verdade. Acreditaremos no que nos disseres. Só acreditaremos em ti, paizinho querido. Juro-te que só acreditaremos no que nos disseres.

- Que mostram no cinema, Maria? - pergunta o coronel.

- Mostram como tu matas os negros - diz Maria. O coronel lembra-se do filme projectado diante dele e diante da comissão de inquérito. A comissão concluiu que era um acidente. Pelo filme viu-se claramente que era um acidente.

- Se soubesses, paizinho querido! - diz Marta.

- Os jornais escrevem que tu ordenas aos soldados para matar, que tu perverteste os soldados, que os forçaste ao crime, que exterminas as pacíficas populações indígenas. Fala-se de massacres, de negros pendurados nos teus helicópteros, de negros esmagados como moscas pelos teus helicópteros. O nome Jolyheart é sinónimo de terror, de massacre. E nós chamamo-nos Jolyheart, paizinho, nós chamamo-nos Jolyheart!

As raparigas refugiam-se junto da madrasta, agarrando-se pela cintura.

- A minha consciência está limpa - diz o coronel Jolyheart.

Ele está seguro de si. A sua voz é firme e categórica.

- É, então, verdade, paizinho? É verdade? Não o negas?

- A minha consciência está limpa - repete o coronel.

No parque da Residência entra um jeep, com duas sentinelas e o major Borman. As sentinelas e o major Borman têm um capacete de aço. Estão em uniforme de campanha. Param na álea polvilhada, branca e cintilante como a neve.

- Os vossos quartos estão reservados no “Afrika Palast” - diz o coronel. - Madalena, leva as pequenas, vão para o hotel. Descansem. Esperem que eu as chame. Tudo se arranjará.

- É tudo o que tens para nos dizer? - pergunta a senhora Jolyheart.

- Falaremos mais tarde. Ordeno-lhes que voltem para o “Afrika Palast”. Se têm dúvidas e desgosto, pensem que eu sou o vosso defensor, porque sou o vosso pai e porque sou militar. Serão defendidas. Agora vão-se embora.

O coronel não olha nem para as filhas nem para a mulher. Chama o major Borman e diz-lhe, como no campo de batalha:

- Agora, ocupemo-nos de coisas sérias.

 

O major Borman anuncia que está tudo pronto para o lançamento de um importante destacamento de pára-quedistas em território canibal. Os indígenas serão cercados.

- Em vinte e quatro horas, capturá-los-emos todos - diz o major. - Estarei conhecedor do terreno para comandar as operações. Os homens, o material, está tudo pronto para a partida. Vim preveni-lo que descolamos dentro de uma hora.

- A acção contra os canibais está anulada - ordena o coronel Jolyheart. - Os soldados e o material que se encontram no campo devem ser trazidos para a capital. Imediatamente.

- Mas os assassinos dos missionários não foram ainda presos, meu coronel! - diz o major. - Temos ordem para os capturar com urgência!

- A partir deste momento cessa toda a acção contra os negros - ordena o coronel. O major cala-se.

- Não está de acordo? - diz o coronel, irónico.

- Estou às suas ordens - diz o major. - Confesso, contudo, que não compreendo.

- Não é necessário - diz o coronel. - O exército não é uma instituição democrática. No exército há um chefe. O chefe manda e compreende. Só ele. E o chefe sou eu.

- Às suas ordens, meu coronel - diz o major.

Borman chegou há pouco tempo ao Trópico. Empregou todas as suas esperanças na captura dos canibais que tinham assassinado os missionários, e eis que a acção é, subitamente, anulada. Mas esta medida é contrária às ordens recebidas: o coronel tinha ordem para capturar os canibais.

- Major Borman, peço-lhe para tomar conta: esta noite, o paquete Europolis chegará ao porto. Deste barco desembarcará um indivíduo de cinquenta anos, aproximadamente, baixo, usando óculos com lentes grossas, um fato de algodão cinzento e luvas. Deixá-lo-á desembarcar, depois detê-lo-á. Utilizará todas as forças de polícia do porto para esta detenção. O indivíduo é bastante hábil. Barre todas as saídas e todos os caminhos; de contrário, ele escapar-lhe-á. A sua detenção deve ser efectuada no maior segredo. Logo que tudo esteja terminado, voltará aqui. Penso que tudo estará terminado por volta das três horas da manhã. Esperá-lo-ei. Antes do amanhecer dois outros indivíduos deverão ser detidos. É preciso, primeiro, prender o indivíduo que chega por barco. Chama-se Stanislas Krizza. É tudo, por hoje.

O major queria partir. Não tem coragem.

- Deixamos, então, em liberdade, os assassinos dos missionários? - diz o major. -Interrompemos toda a acção contra eles?

- O assassino dos missionários é Stanislas Krizza, que deterá esta noite. Os nomes dos seus cúmplices, comunicar-lhos-ei logo que o tenha detido. É ele o chefe dos assassinos do Trópico.

- Os assassinos dos missionários são os canibais - diz o major Borman. - É oficial.

- Os canibais não eram mais que assassinos assalariados. O assassino é Stanislas Krizza. O homem que prenderá. Continuei a acção contra os canibais para deixar o verdadeiro Stanislas Krizza desembarcar sem receio. Se tivesse cessado toda a acção contra os canibais, ele não voltaria a pôr os pés no Trópico. Teria sabido que o esperavam. Lastimo estar fechado aqui. Teria, eu mesmo, o prazer de o prender. Há dez dias que o espero.

- Os missionários não foram assassinados pelos canibais? - diz o major. - Não se trata de um crime ritual?

- O assassino dos missionários é Krizza - diz o coronel. - Ele fê-los matar para nos filmar, a nós, os militares, enquanto cumpríamos o nosso dever.

O coronel suspira.

- Foi ao cinema, major Borman? Viu o filme? A sua opinião?

- Se me permite, meu coronel, não me pareceu bom. Não me senti orgulhoso.

- Um exército pode ser posto fora de combate pelas câmaras - diz o coronel. - É a táctica do inimigo, um novo cavalo de Tróia. Um exército nunca deve ser filmado em acção. A maior parte das profissões exercidas pelos homens não suportam ser filmadas sobre a película: tornam-se odiosas, sinistras. Se se filmassem os homens no trabalho e se se mostrassem estes filmes às mulheres e aos filhos, as mulheres não poderiam mais dormir na mesma cama com os maridos, os filhos teriam medo dos pais e não poderiam suportar as suas carícias. Sentiu a consciência pesada, ao ver as cenas projectadas?

- Não fiquei orgulhoso - responde o major Borman.

- Se os grandes capitães e os heróis que têm estátuas nas praças públicas tivessem sido filmados - como nós - nunca haveria nem estátuas nem capitães, nem livros de História. Não se pode filmar uma carga de cavalaria. Nem, mesmo, um duelo. Se o tivessem feito, não se falaria hoje de Napoleão, de César ou de Alexandre, o Grande. Nem nisso pensávamos. Mas não se tenha, por isso, a consciência pesada.

O coronel Jolyheart tira uma fotografia da carteira.

- Este é Stanislas Krizza - diz ele. - O tipo é diabólico. Pode ser que três ou quatro pessoas, cujos sinais correspondam aos de Krizza, desembarquem, esta noite. Melhor será ter a sua fotografia, para poder detê-lo com toda a certeza. Está sempre em guarda... Queria dar-lhe a fotografia, sem lhe transmitir a lepra.

- Não exageremos - diz o major.

Estende a mão para agarrar a fotografia, mas a distância é muito grande.

- Todas as precauções são poucas - diz o coronel. - Remeter-lhe-ei esta fotografia, depois de a ter desinfectado.

O coronel chama a equipa de enfermeiros que desinfectam as paredes.

- Desinfectante sobre esta fotografia - diz o coronel.

Envolve a fotografia numa folha de papel, com uma pedra, e atira-a. A fotografia, levada pelo vento, cai. Zeno, o valáquio, coloca-lhe o pé em cima.

- Não lhe toques, antes de estar desinfectada!

- grita o coronel. - Queres apanhar lepra?

Zeno, o valáquio, levanta o pé. Debaixo da sola do sapato, sobre o pó branco, vê a cara de Stanislas Krizza. Os soldados aproximam-se, munidos de pulverizadores. Espargem a cara de Krizza.

Inclina-se. Apanha o retrato de Krizza e estende-o ao major Borman.

- É uma cara conhecida - diz o major Borman.

- Nunca imaginaria que fosse ele o assassino do Trópico. É, contudo, verdade que ele tem uma cabeça de assassino.

- Podes partir - ordena o coronel.

Olha Borman com um ar de reprovação: o major falou de mais diante de Zeno, o valáquio.

- Teria jurado que o crime tinha sido cometido pelos canibais - diz o major. - É um crime tipicamente canibal.

- Os canibais foram simples executantes - afirma o coronel. - O assassino, ei-lo aqui.

Zeno, o valáquio, ouviu o bastante. Afasta-se sobre as áleas brancas, como um homem embriagado. Senta-se em cima da relva. A cabeça anda-lhe à roda. Levanta-se e vai procurar o chefe da equipa.

- Eu queria partir - diz Zeno. - Não me sinto bem.

- Fica aqui - diz o enfermeiro. - É o efeito do desinfectante. Os anti-sépticos são inofensivos, mas, desde que destroem o germe da lepra, pergunto se não fazem mal, também, ao homem. O homem não é mais forte nem mais diabólico que a lepra. Estes desinfectantes “garantidos como inofensivos” causam, na realidade, náuseas, enxaquecas. O homem não pode ser mais forte do que a lepra.

- Eu queria partir - implora Zeno, o valáquio.

Assim que o coronel afirmou que Stanislas Krizza era um assassino, o valáquio não deixou de perguntar a si mesmo, um só instante, se esta acusação era verdadeira ou falsa. Ela emanava do coronel Jolyheart, isto é, da autoridade. No país dos valáquios, como em todos os países ocupados, a autoridade é um instrumento de opressão. A intervenção da autoridade significa o desencadeamento das forças do mal e da iniquidade, que esmagam o homem, inevitavelmente, quer ele esteja inocente ou culpado. Vendo desencadearem-se as forças organizadas da opressão, isto é, a autoridade, o valáquio só tem um pensamento: salvar, com toda a urgência, o homem ameaçado, salvar Stanislas Krizza e os que estão à volta de Krizza, especificando, Max Embilint e ele próprio. A autoridade é como a peste, como o incêndio e a inundação; assim que a autoridade aparece, as pessoas devem ser avisadas, para que possam pôr-se a salvo, o mais longe possível. Tal é o dever de homem e de cristão do valáquio.

- Não posso ficar aqui - diz Zeno. - Tenho que partir.

Pensa: “O barco chega esta noite. Max e eu embarcamos amanhã, de manhã, para os E.U.A. Se Krizza é preso, Max e eu seremos interrogados. Não somos culpados, mas será preciso que sejamos interrogados e não apanharemos o barco.” Além disso, Zeno sabe que Krizza não é culpado e ele próprio também não. As prisões transbordam de pessoas inocentes e acusadas injustamente. Zeno, o valáquio, quer avisar Max. Quer salvar Krizza. Quer praticar uma boa acção.

- Tenho que partir - diz Zeno.

- Ninguém abandona os lugares antes das dez horas da noite - diz o enfermeiro. - Terminamos o serviço às sete horas. Às sete e meia tomamos um banho desinfectante. Tudo deve ser desinfectado. Queres pegar a lepra aos lá de fora?

Zeno não pode partir. Está prisioneiro. O enfermeiro grita-lhe:

- Ninguém tem o direito de levar a lepra lá para fora. Ninguém!

 

NO dia 3 de Janeiro, enquanto Zeno, o valáquio, está na Residência do Comando militar com a equipa de desinfecção, Stanislas Krizza faz a sua aparição no Sanatório Tropical. Está, como de costume, com fato cinzento, luvas de algodão, chapéu de palha e sapatos de lona.

- Sou Stanislas Krizza - diz. - Quero falar ao meu amigo Max Embilint.

O enfermeiro indica-lhe o quarto de Max.

- A partida do senhor Embilint é para amanhã? - pergunta Stanislas Krizza. - O embarque está para que horas?

- O Europolis chega esta noite - diz o enfermeiro. - Ali conduziremos o senhor Embilint, amanhã, de manhã, em ambulância. Ele não pode andar. O barco parte ao fim da tarde.

Stanislas Krizza entra, muito sorridente, no quarto de Max Embilint. O negro dorme. Krizza faz o inventário das mudanças ocorridas na vida de Max. Sobre a mesa de cabeceira está a fotografia da Mãe Afrika Embilint, a mãe de Max. Ao lado da fotografia, a pequena cruz dada a Zeno pelos missionários e dada, seguidamente, por Zeno a Max. Junto da cruz e da fotografia, os dois sobrescritos da agência de viagens. Sobre um, o nome de Zeno, o valáquio. Sobre o outro, o de Max Embilint. São bilhetes de primeira classe para os E.U.A., no Europolis.

- How do you do? - diz o negro, abrindo os olhos. - Prazer em vê-lo.

Desintoxicado o negro parece mais novo. Está alegre.

- Devia chegar esta noite, no Europolis - diz Stanislas Krizza. - No último momento, renunciei ao embarque. Apanhei o avião.

- O Europolis - diz Max. - É o barco em que devo ir.

- Depois dos acontecimentos em que participámos, é prudente desconfiarmos - diz Krizza.

- Anuncio-lhe que parto amanhã e não diz nada? - pergunta o negro.

- Você procede como eu - responde Krizza. - Está muito bem. Você diz que parte amanhã para os E.U.A., no Europolis, e, na realidade, parte esta noite, comigo, por avião, e numa outra direcção.

- Parto amanhã para os E.U.A., no Europolis - diz o negro.

- Está a brincar?

- Juro-lhe que parto amanhã - diz Max. - Parto com Zeno. Escrevi a minha mãe. Comprei os bilhetes. Ei-los.

- Você não pode partir - diz Krizza.

- Porquê? Quem me impediria de partir?

- Ninguém - diz Krizza. - Mas sabe que, se embarcar, arrisca-se a ser preso.

- Não fiz nada na América - diz o negro.

- Mas fez alguma coisa aqui - diz Stanislas Krizza. - Se um canibal escapou vivo ao exército e se ele fala? Dirá que lhe ordenou o assassinato dos missionários. As autoridades coloniais pedirão a sua extradição. Os americanos entregá-lo-ão, com prazer. Só esperam isso.

Max Embilint nunca pensou que pudesse ser preso nos E.U.A. e ser entregue às autoridades do Trópico, para ser executado.

- Pouco me importam os riscos - diz o negro.

- Estarei entre os meus. Não peço mais.

- Não estará entre os seus - diz Krizza. - Nem chegará, mesmo, aos E.U.A. Será detido e reenviado para aqui, para morrer no Trópico.

- Julgava que lhe tinha acontecido alguma coisa - diz o negro. - Porque não voltou?

- Disseram-me que não estava ferido. Estamos numa situação delicada. Não era prudente vir. Agora chego e levo-o. Esta noite mesmo mandá-lo-ei buscar por um carro. E apanharemos o avião na cidade vizinha.

- Para onde iremos?

- Para o único país donde não receará ser extraditado - diz Krizza. - Só Moscovo não o entregará.

- No - diz Max Embilint.

O negro é sacudido por soluços histéricos. Stanislas Krizza estende-lhe um frasco cheio de rum.

- Isto levantá-lo-á - diz Krizza.

- Desde que aqui entrei, não tornei a engolir uma gota de álcool - diz o negro.

Os olhos brilham-lhe, mas agarra no frasco com as suas grandes mãos negras. Leva-o à boca. Todo o corpo lhe treme de voluptuosidade.

- Moscovo espera-o - diz Krizza. - A nossa acção teve um êxito admirável. No mundo inteiro não se fala senão nos infelizes indígenas exterminados pelos europeus. Todo o europeu tem a consciência pesada. Você desempenhou um papel importante neste êxito. Bem cedo empreenderemos, efectivamente, a deportação dos negros do Trópico na contemporaneidade. Os trabalhos preliminares estão quase terminados. Os europeus ir-se-ão embora.

- Parto para a América - diz, bruscamente, o negro.

- Com o risco de ser preso e extraditado, para ser julgado e executado no Trópico?

- Sim - diz o negro.

Pega na carta da mãe. Desdobra-a. Assim que vê a letra, Max vê a mão que a escreveu, a mão carregada de anéis e de brilhantes de sua mãe, uma pequena mão meiga, rechonchuda e negra, uma mão cujas carícias são ternas.

- É uma carta de minha mãe - diz Max Embilint. - Minha mãe espera-me.

- Max, você não é um negro canibal - diz Stanislas Krizza. - Você é um negro contemporâneo. Você foi mutilado. Sofreu a injustiça. Suportou tudo o que um homem pode suportar sobre a terra. Não tem o direito de ser idiota. Ninguém contesta que uma mãe seja uma coisa importante. Mas há outras coisas. Coisas que, por vezes, são mais importantes que uma mãe.

- Não - diz o negro. - Você é inconsciente, Krizza. Nada há melhor, nem mais importante que uma mãe.

Stanislas Krizza levanta-se. Diz:

- Em todos os meus planos, tive sempre em conta os três defeitos do material humano: a morte, a doença e a loucura. Espero sempre ver a loucura brotar de qualquer indivíduo. Ela existe em cada um de nós. Creio que os homens devem ser salvos à força. Mas a sua loucura não a medi no seu justo valor, Max. É preciso ser dotado de uma quantidade enorme de loucura para fazer o que você faz, para tudo sacrificar e lançar-se de boa vontade nos braços da polícia, porque ama a sua mãe... Compreendo agora porque é que vocês são os mendigos da História. Voltarei a buscá-lo ao amanhecer. Esqueçamos esta discussão. Estou certo de que virá. Nenhum homem pode ser louco a este ponto.

- Não irei - responde o negro.

- Daqui até às três ou quatro horas da manhã tem tempo de reflectir. Embora negra, a noite é inteligente. Ela aconselhá-lo-á. Durma.

Stanislas Krizza sai. Pára no escritório da clínica e agradece, delicadamente, os cuidados de que o seu amigo negro, Max Embilint, foi alvo.

 

ZENO, o valáquio, chega ao Sanatório Tropical às dez e meia da noite. Não lhe foi possível libertar-se mais cedo. Está desinfectado. Os cabelos, as sobrancelhas, as unhas, as botas, o fato, tudo foi desinfectado. No quarto de Zeno as malas estão prontas para a partida. Mas, durante toda a tarde, Zeno só teve um único pensamento na cabeça: “O assassino dos missionários é Stanislas Krizza.” O valáquio sabe que é uma acusação injusta, mas é grave.

“Tenho que avisar o senhor Embilint e Krizza - pensa ele. - Temos que nos precaver. O exército é estúpido, mas não se pode lutar contra ele.”

O valáquio deixa a luz acesa no seu quarto das águas-furtadas do Sanatório Tropical. Desce ao quarto de Max Embilint.

- Esta noite, todas as visitas ao negro estão interditas - diz o enfermeiro.

- Uma crise? - pergunta Zeno.

- As visitas estão interditas. Nada mais sei - responde o enfermeiro.

- Você pode dizer, ao menos, se ele está vivo ou morto?

- Não sei - responde o enfermeiro de serviço.

Zeno volta para o seu quarto. Tenta, em vão, dormir.

Por volta da meia-noite, Zeno, o valáquio, levanta-se. Está de pijama e pantufas e pôs um casaco sobre os ombros. Sai para o corredor, deixa a porta do quarto aberta, desce a escada e avança para o corredor, onde se encontra o quarto de Max Embilint. O enfermeiro de serviço tem a cabeça sobre a mesa. Dormita. Zeno descalça as pantufas. Faltam, ainda, vinte passos até ao quarto de Max Embilint. Zeno fá-los, cautelosamente, segurando as pantufas na mão. Faz girar o fecho da porta e entra no quarto de Max Embilint.

“Devem ser duas horas da manhã” - pensa Zeno, o valáquio.

Os estores estão abertos. A lua cheia prateia as paredes do quarto do negro.

“Que cheiro intenso” - pensa Zeno. As janelas estão abertas. Mas, no quarto do negro, reina um cheiro forte, acre, um cheiro a álcool.

Zeno, o valáquio, aproxima-se, na ponta dos pés, da cama de Max. No seu sono, o negro geme e queixa-se.

- Max - diz Zeno, o valáquio -, senhor Embilint, acorde, sir!

O valáquio coloca a mão no ombro do negro, sacode-o. À luz da Lua, vê a boca entreaberta do negro, que se queixa e diz:

- Nakusanswa...

É a palavra que significa, ao mesmo tempo, “odiar” e “amar”. Max Embilint tem um pesadelo. Da boca, corre-lhe um fio de sangue, sobre o queixo. E os lábios manchados de sangue murmuram: “Nakusanswa”.

- Senhor Embilint, peço-lhe - diz Zeno.

O tronco do negro está nu. À luz da Lua, parece uma foca gigante.

“Voltou a beber - pensa Zeno. - É por isso que me impediram de o ver. Bebeu e sentiu-se mal.”

- Que há? - pergunta o negro.

Abre os olhos e vê junto da cama Zeno, o valáquio, assustado.

- What's the matter? - diz o negro.

- Qualquer coisa de grave, sir - diz o valáquio.

Max Embilint fecha os olhos. Está quase a adormecer de novo.

- Não durma, sir - diz o valáquio. - Peço-lhe, não adormeça outra vez. Passa-se qualquer coisa de grave. O coronel Jolyheart deu ordem ao major Borman para prender Stanislas Krizza. O coronel diz que o senhor Krizza é o assassino dos missionários. Ouvi-o com os meus próprios ouvidos.

O negro abre os olhos. Os músculos do seu corpo enorme crispam-se, os maxilares cerram-se. Max Embilint levanta a mão. Enxuga o fio de sangue e de saliva que lhe corre da boca.

O negro levanta-se. Só tem as cuecas. Está descalço sobre o soalho. Procura os seus objectos.

- Quer que acenda a luz, sir? - pergunta o valáquio.

- Psiu - faz o negro.

Coloca o dedo sobre os lábios. Procura a camisa na escuridão, abre o armário, atira a Zeno umas calças, uma camisa, veste-se rapidamente. O valáquio não compreende o que lhe quer o negro. Mas Max faz-lhe sinal para não abrir a boca.

- Veste-te - diz o negro.

Indica a Zeno as calças, a camisa e as sandálias que acaba de tirar do armário.

- É muito grande, sir - diz o valáquio. - Eu vou vestir-me ao meu quarto...

- Psiu - diz o negro. - Veste-te.

Zeno agarra nas calças do negro, que é duas vezes maior. Apanha-as, mete as calças e a camisa debaixo do braço. Max aproxima-se da janela. Agarra os varões de ferro, experimenta, em vão, dobrá-los, volta ao quarto.

As suas mãos de gorila agarram dois varões de ferro. Ouve-se um som surdo. À luz da Lua vê-se os varões dobrarem-se, saltarem com o caixilho da janela e com o cimento que os segurava. Mas Embilint alargou o espaço entre os dois varões. Volta-se para Zeno, o rosto e a testa escorrem de suor. Leva um dedo aos lábios e diz:

- Segue-me, sem ruído.

Trepa pela janela, como um gato, salta para o jardim (o seu quarto é na sobreloja). Não faz barulho a cair. Ei-lo no parque da clínica. Assobia docemente, lentamente, à maneira das serpentes. Zeno encontra-se na moldura da janela e olha. O negro faz-lhe sinal para o imitar, mas Zeno não tem coragem. Zeno fecha os olhos e deixa-se deslizar ao longo da parede. Não é alto, aproximadamente dois metros do solo. Zeno cai nos braços do negro, que o obriga a deitar-se no chão. O negro levanta a cabeça e escuta. No porto, ouve-se uma sereia. É, provavelmente, o Europolis que chega à capital do Trópico.

- Com cuidado, segue-me - diz o negro.

Max Embilint começa a rastejar, como uma serpente, através do parque. - Partimos, sir?

- Yes - diz o negro.

- Não voltaremos mais à clínica? - pergunta o valáquio.

O negro continua a rastejar. Arrasta Zeno atrás dele e cada vez que Zeno se ergue, espalma-o com a palma da mão, como uma pá.

- E as nossas malas, sir?

- No - diz o negro.

Atingiram a saída do parque. O negro coloca a mão no ombro do valáquio. Este pára. O negro apura o ouvido. Nenhum ruído. Saem do parque. À direita é o porto. Ali avista-se no mar um barco branco. É o Europolis. Mas o negro dirige-se para a esquerda, para a floresta, para a orla da cidade. Agarra Zeno pelo ombro do pijama. E partem os dois, a pé, desta vez. Param debaixo de uma árvore. O negro respira com dificuldade. É a primeira vez que se levanta, depois da operação.

- Não se volta mais à clínica, sir?

- Não - diz o negro.

Olha na direcção da floresta. Para o interior das terras. Sorri.

- Porque fugimos, sir? - pergunta Zeno, o valáquio. - Nada fizemos de mal.

O negro respira dificilmente. Dir-se-ia uma máquina quase a rebentar.

- Porque fugimos, senhor Embilint? - pergunta, de novo Zeno, o valáquio. - Fizemos nós alguma coisa de mal? Diga-mo. Sou seu amigo. Mesmo que tenha feito mal serei seu amigo.

O negro não responde.

- Porque fugimos? Tem alguma mancha na consciência, sir?

O negro volta a cabeça enorme e banhada de suor e diz ao ouvido do valáquio:

- Yes. Tenho manchas. Mas as manchas de um negro são brancas.

 

MAX Embilint e Zeno, o valáquio, desapareceram do Sanatório Tropical sem deixar rasto. Avisou-se a polícia. Fizeram-se todas as espécies de suposições.

Mas Max Embilint e Zeno, o valáquio, reapareceram na capital do Trópico. Estão hospedados num hotel, sob falsas identidades. O negro vestiu-se com outro fato, comprou camisas e pijamas de seda. O negro é novamente elegante. O valáquio usa, também, camisas de seda, como o negro. Nos jornais não há mais nada sobre os evangelistas, nem sobre o massacre dos negros. Tudo voltou à normalidade.

Max Embilint e Zeno, o valáquio, aguardam um barco para voltarem para os E.U.A. Hoje, ainda, o valáquio ignora tudo quanto ao assassinato dos missionários. Sabe, unicamente, que Max é procurado pela polícia, por motivos políticos.

- Não tem necessidade de me explicar, sir - diz o valáquio. - Compreendi que é uma vítima. Sou seu amigo. Assim que chegarmos aos Estados Unidos, tudo acabará. Estará na sua casa. E, então, será muito melhor.

Max Embilint e o valáquio embarcarão num iate particular. É mais discreto. Este barco estará ali dentro de uma semana. Eles esperam. O negro continua a beber.

Uma manhã, às oito horas, Zeno, o valáquio, desceu à cidade. Vai ali todas as manhãs e admira as montras. É a primeira vez na sua vida que Zeno, o valáquio, vive sem nenhuma preocupação, como as pessoas que têm dinheiro. O valáquio não voltou ao hotel para tomar, como de costume, o pequeno almoço, às nove e meia, na companhia do negro. Max Embilint espera-o. O valáquio tarda. Às dez horas ainda não voltou, nem à hora do almoço.

Max Embilint compreende que o valáquio foi preso. Deixa o quarto do hotel, sem as malas. Passeia. Está decidido a mudar de hotel ou de localidade. Usa umas calças beiges e uma camisa creme. Um novo estojo de couro, contendo um frasco de rum, pende-lhe do pescoço. Anda com o seu passo, que lembra o passo dos tigres e das panteras. Um passo balanceado, felino.

“Zeno foi preso - pensa Max Embilint. - Zeno levará, automaticamente, os polícias ao hotel. Não voltarei lá. Se não voltar, a polícia não me encontrará.”

Está calor. Diante do negro, um grupo de pessoas olha um cartaz que acaba de ser colado. Max Embilint vê no cartaz o seu nome e a sua fotografia. É um cartaz enorme, cor de laranja. Nele lê-se: "100 moedas de ouro de recompensa à pessoa que indicar onde se encontra o negro Max Embilint, um dos assassinos dos quatro missionários de Icibolia.” Os transeuntes não prestam atenção a Max Embilint. Olham a fotografia e, sobretudo, a cifra: “100 moedas de ouro.”

Max Embilint afasta-se. De cem em cem metros, outros grupos de pessoas lêem outros cartazes. Max Embilint enxuga a testa. Dirige-se para a saída da cidade.

- Querido - diz alguém.

Uma mão de mulher segura o braço de Max Embilint. Ele volta a cabeça. É uma mulher muito bonita. Usa um vestido vermelho escarlate. Tem uma boca com lábios vermelhos e carnudos, um rosto oval. O vestido aberto ao lado molda-lhe o corpo.

Max entra num bar. A mulher entra atrás dele. A sua profissão não deixa dúvida alguma.

Max está instalado no bar, sobre um banco. A mulher está ao lado dele, noutro banco. O seu corpo lembra os rios desenhados nos mapas, faz meandros, curvas e sinuosidades. Max deixa o bar. A rua está barrada pelos soldados, que verificam os papéis de identidade dos negros. Max toma outra direcção. Atrás dele continua a mulher do vestido vermelho, de dentes em forma de amêndoa e de corpo parecido com os rios nos mapas.

- Querido - diz ela. - Querido, tem confiança em mim.

- Deixa-me em paz - diz Max Embilint.

O medo é um sentimento próprio dos vivos. Mas Embilint não tem medo. Quer atravessar o cordão de soldados. O medo de Max está morto desde que os irmãos de Blanche Knorr o mutilaram. Um outro medo foi morto no dia em que foi julgado injustamente. Outras parcelas de medo desapareceram em Moscovo, no dia em que foi contratado para assassinar os evangelistas.

Max Embilint tornou-se refractário ao medo. Apesar disso, uma hora antes, quando viu a sua fotografia nas paredes, Max sentiu um medo imenso. Foi o último medo que conheceu. Ele desapareceu completamente e para sempre. Quando leu que a sua vida valia cem moedas de ouro, o último sopro de medo deixou o seu corpo. Agora está como uma estátua negra. Pensa nas palavras de Stanislas Krizza:

“A história dos negros é um imenso registo de comércio, onde estão inscritos os preços oferecidos por um homem de cor.”

“Raramente se vendeu um negro por cem moedas de ouro - pensa Max. - Cem moedas de ouro por um negro adulto e castrado é um bom preço. Um crime aumenta o valor-ouro de um negro. Eu valho cem moedas de ouro porque assassinei quatro missionários.

De contrário os brancos não dariam um pataco por mim.”

- Querido, pára - diz a mulher.

Pousa a mão no braço de Max.

- Todas as ruas estão fechadas, meu querido - diz a mulher.

Ela tem um perfume forte como as flores tropicais. É muito nova e muito bonita.

- Vamos para minha casa - diz a mulher.- Chamo-me Lola. Poderás descer quando os soldados tiverem partido. Por agora, corres perigo.

Um grupo de negros é empurrado a golpes de baioneta para um camião da polícia.

- Max querido, vem - diz ela.

- Tu reconheceste-me? - pergunta o negro. - Tu sabes que me chamo Max. Queres apanhar as cem moedas de ouro.

A mulher ri, com os seus lábios vermelhos como cerejas maduras, e dentes brancos como miolo de amêndoas e olhos incandescentes de luz.

Sob o vestido vermelho, a carne de Lola estremece como a folhagem dos choupos. Sob o vestido vermelho cada músculo é como uma folha de choupo. Sempre em movimento, como as ondas de um rio.

- Não é pelo dinheiro, Max querido.

Os soldados aproximam-se.

- É estúpido deixares que te apanhem - diz Lola. - Todos os negros são presos. Sobe.

Max segue-a. Sobe ao primeiro andar da casa mobilada.

- Agora vai procurar a polícia - diz Max Embilint.

- Atira-se para um divã. Bebe rum do frasco fechado no estojo de couro. Não há cadeiras no quarto. Somente uma cama e um divã. Há, também, espelhos, muitos espelhos, e almofadas de veludo.

Lola desabotoa o vestido vermelho. Sob o vestido não tem nem combinação, nem soutien, nada.

- Não te mandei subir para te entregar à polícia, Max, meu querido - diz ela. - Chamei-te para mim, não para a polícia.

- Tu reconheceste-me nos cartazes? - pergunta Max. - Desagradas-me. Tu és o vício. Queres arriscar-te por um assassino. Tu queres um amante que matou quatro evangelistas, não é verdade?

- juro-te que não - diz Lola. - Quando te vi, não sabia quem tu eras. Há dez minutos, apenas, que te reconheci, no cartaz. Quando te desejei, ao princípio, não o sabia! Juro-te que não sabia. Tu és o homem que espero. É tudo.

Lola aproxima-se de Max Embilint. Ele afasta-a.

Lola vestiu um roupão azul, transparente como o fumo de um cigarro.

- És mulata? - pergunta Max Embilint, olhando os lábios vermelhos.

Sob o véu semelhante ao fumo de tabaco louro, o corpo de Lola tem reflexos escuros.

Lola diz:

- Sou negra para o homem que amo e que me quer negra. Sou branca para quem me quer branca. Verdadeiramente branca e verdadeiramente negra. Não engano. Sou tal como me desejam. Sou da cor que deseja o homem que me ama. Só as mulheres frias ou velhas têm uma só cor. Para ti serei, de momento a momento, de todas as cores. Amo-te. Sei-o. Reconheci-te logo. Sei que isto não durará uma eternidade. Não te amarei, talvez, mais que um dia, talvez uma noite só, mas, é quanto basta. A intensidade não tem necessidade de duração.

- Sou um negro - diz Max.

- A cor da pele é secundária - diz Lola.

Max Embilint levanta-se. Bebe rum.

- Queres champanhe, meu querido? - per finita Lola.

- Não - responde o negro. - Tenho que partir.

- Não partirás - diz a mulher. - Há uma eternidade que te espero. Tu és o homem para quem vim ao mundo. O único fim da minha existência. Todos os homens que tenho conhecido e amado pareciam-se contigo. E foi, unicamente, porque eles se pareciam contigo que os amei. Mas não eras tu.

- Tenho que partir - diz Max.

O negro compreende que Lola não o fez subir para o denunciar, nem porque ele seja um criminoso. Ele, Max Enxbilint, assemelha-se ao homem dos seus sonhos.

- Não quero fazer-te sofrer - diz Max. - Mas tenho que partir.

- Não - diz Lola.

Senta-se aos pés de Max Embilint, sobre a almofada azul. Beija os joelhos e as sandálias do negro.

- Se é verdade que me amas, deves saber que os grandes amores nunca são partilhados. O teu amor não é partilhado, talvez porque é muito grande. É a regra.

- Não partas - suplica Lola. - É preciso que partilhes o meu amor. Quero que fiques. É tudo.

- É impossível - diz Max Embilint.

O corpo de Lola estremece, como o corpo dos animais assustados pelo barulho do vento nas folhas.

- Não te peço nada - diz Lola. - Chamei-te para te dar tudo. Não te peço nada. Fica.

- É impossível - diz Max Embilint. - Isso não tem sentido. Que farei eu aqui, se ficar?

- Love. Amor. Amore - diz Lola.

- Impossível - diz Embilint. - Sou emasculado.

O corpo de Lola cai sobre a almofada azul, aos pés de Max Embilint, como as aves, mortalmente atingidas, caem aos pés dos caçadores.

- Não! - diz Lola. - Não é verdade!

- É verdade - diz Max Embilint. - Sim, é verdade.

Lola chora. Ela ama sinceramente Max Embilint. O seu amor por ele foi repentino. Lola não chamou Max porque era uma prostituta. Ela tê-lo-ia chamado, mesmo que tivesse um lar, filhos. Teria deixado tudo. As verdadeiras mulheres, as que não são de uma só cor, são assim.

Lola chora, aos pés de Max Embilint. Acredita no que ele lhe disse. Uma mulher apaixonada acredita em tudo o que o homem amado lhe diz. Nunca pede provas.

- Foram os médicos que te fizeram isso? - pergunta Lola.

- Não - responde o negro.

- Quem, meu pobre querido? Quem?

- Os brancos - responde Max Embilint.

Lola soluça sobre a almofada de veludo azul.

- Porquê, meu querido? Porque o fizeram?

- Porque sou negro - diz Max. - Porque sou um negro.

Max Embilint levanta-se. Quer partir. Lola enrola-se-lhe às pernas, como uma trepadeira. Os cabelos soltos de Lola caem sobre as sandálias do negro.

- Os brancos teriam podido fazer isso a todos os negros do universo, meu amor, mas não a ti! A ti deviam poupar-te! Porquê justamente a ti? Que falta cometeste para que eles tenham agido dessa forma? Em que és culpado?

- Os brancos fazem isso aos negros - diz Max. - Tu não lês os jornais? No Quénia, os militares fizeram isso a todos os prisioneiros negros.

- Mas, porquê a ti, precisamente?

Max Embilint afasta de si o corpo ondulante de Lola. Sai para a rua. Deixa-a sozinha, em lágrimas. Max Embilint não olha para trás. Na rua já não há soldados. A razia terminou, mas os vendedores de jornais surgem por toda a parte, a gritar:

- A prisão de Zeno, o valáquio, o assassino dos missionários do Trópico! A prisão de Zeno, o valáquio! O homem que matou quatro santos! A prisão de Zeno, o valáquio...

 

O coronel Jolyheart levanta-se, deixa o seu gabinete e vai para a casa de banho. Olha-se no espelho que se encontra por cima da bacia de mármore. Este hábito de se levantar várias vezes ao dia para ir ver-se ao espelho da casa de banho, apanhou-o o coronel Jolyheart depois da quarentena. Mira-se ao espelho para ver se não tem manchas de lepra, para ver se a carne não lhe apodrece sobre os ossos. A lepra é uma doença que aparece de improviso. Aparece-nos infiltrada na carne quando menos o esperamos. A lepra é a doença mais traiçoeira. Não a identificamos senão quando as suas raízes estão profundamente enterradas na carne e ela aparece sobre a epiderme. Os médicos nada podem dizer. A consciência do coronel não está tranquila. Só saberá, com certeza, que tem lepra, quando a doença aparecer sobre a pele. Os seus três criados têm lepra. Volta para o gabinete, olha as fotografias da mulher e das filhas. As filhas já vão, novamente, à escola. As calúnias cessaram. A vida tornou-se normal.

No escritório do coronel Jolyheart acaba de entrar uma ordenança.

- É um negro que lhe quer falar, pessoalmente - diz o soldado.

- Um negro? - pergunta o coronel. - Um negro quer falar-me, pessoalmente?

A admiração do comandante militar do Trópico é natural: os negros nunca entram no gabinete do coronel Jolyheart.

- É um turista negro - diz o soldado-, um negro vestido com elegância e que traz ao pescoço uma máquina fotográfica. É um “Senhor” negro.

- Que entre - diz o coronel.

O coronel está sozinho.

Um gigante negro entra no gabinete. É duas vezes mais alto que o coronel Jolyheart. Usa uma camisa de seda natural e umas calças de flanela. Não usa gravata. O pescoço do gigante sai do colarinho branco da camisa de seda como uma coluna de granito preto. Um estojo de couro pende do seu pescoço. O negro está embriagado. Entra no gabinete, cambaleando. Mas não balanceia como qualquer ébrio: é um balancear felino que, mesmo que perca o equilíbrio, cai sempre sobre as patas.

O negro aproxima-se da secretária de acaju do coronel Jolyheart, com a elasticidade ondulante de um gato que desliza por uma porta entreaberta.

- Chamo-me Max Embilint - diz o negro. Mantém-se direito. Imóvel. Enorme. A partir do instante em que ele parou, em pé, encostado à secretária, o corpo do negro Max Embilint mantém-se cada vez mais direito. O peito, os ombros, o pescoço do gigante aumentam a cada instante. Torna-se cada vez mais largo, cada vez mais alto, cada vez maior.

As frases do negro são breves, secas, como se quebrasse uma barra de ferro entre os dentes.

- Em que posso ser-lhe útil? - pergunta o coronel.

Não compreendeu o nome do negro.

- Sou Max Embilint - diz o negro. - Sou o assassino dos quatro missionários.

Max Embilint tem os olhos injectados de sangue. O seu corpo está imóvel. Os braços de Max, compridos e negros como os braços de um gorila, levantam-se, lentamente. São mãos que se levantam para estrangular. Mãos de criminoso.

O coronel olha, com angústia, para o botão da campainha. Está atento a estas mãos negras e enormes que se levantam, prestes a apertar-lhe o pescoço.

Agora os braços do negro estão estendidos horizontalmente.

- O que é que espera? - diz Max Embilint. - Chame os guardas. Que tragam as algemas. Digo-lhe que sou Max Embilint, o negro que assassinou os missionários.

O coronel carrega no botão da campainha. O negro está ali, com os dois braços estendidos para o pescoço do coronel, as mãos estendidas para a garganta do coronel, ao nível da maçã-de-adão, que mexe nervosamente, como um relógio avariado, ao longo do pescoço branco do comandante militar do Trópico.

- Dois guardas e algemas - ordena o coronel.

A ordenança desaparece. Alguns instantes depois, dois soldados mestiços aproximam-se de Max Embilint com as algemas. Mas estas são muito pequenas. Os aros não podem cingir os pulsos do negro.

- Saiam e esperem à porta - ordena o coronel. Embilint fica sozinho com o coronel. Deixou cair os braços ao longo do corpo. Não é culpa sua que as algemas do exército sejam muito estreitas. Estão à medida dos negros do Trópico. Max Embilint sabe que daqui a alguns dias encomendar-se-ão algemas à sua medida.

- Interrogatório de identidade - diz o coronel. - Diz chamar-se Max Embilint.

- Sim.

- É o assassino dos missionários do Trópico?

- Não o assassino - rectifica Max Embilint. - Sou o executante da morte dos quatro missionários.

- É a mesma coisa - diz o coronel.

- Não é bem assim - diz Max Embilint. - Sou o executante. Somente o executante. É uma tarefa de negro.

- Cometeu os quatro crimes com as suas próprias mãos? - pergunta o coronel.

A sua sensibilidade de branco está chocada.

- Não - responde Max Embilint. - A execução foi efectuada por outros negros, contratados por mim. Mas foi sob as minhas ordens que eles mataram. Fui eu que dirigi o assassinato, nos lugares, para que tudo fosse perfeitamente executado.

- Contratou, então, outros assassinos. Assalariados? Sempre negros?

- Exactamente - diz Max Embilint.

- Quantos assassinos tinha?

- Dez - responde Max Embilint. - Negros, os dez.

- Como é que os missionários foram mortos?

- Estrangulados - responde Max Embilint.

O negro está indiferente. Fala em termos concisos, com precisão.

- Ordenei aos meus assassinos para os estrangularem durante o sono. Para procederem como se se tratasse de crocodilos. Depois ordenei que lançassem os cadáveres às formigas vermelhas.

- Horrível! - exclama o coronel. - E você estava presente? E não teve estômago... Deixemos isso. Você é o mais odioso dos monstros.

O coronel pára um instante. A sua sensibilidade de homem branco e civilizado foi sujeita a uma rude prova, - Como se chamam os dez assassinos?

- Não lhes perguntei os nomes - diz Max Embilint.

- Qual foi o salário desses selvagens?

- O salário prometido não foi um salário em dinheiro. Como preço destes quatro assassinatos, prometi-lhes torná-los brancos.

- E eles acreditaram em si? - pergunta o coronel.

- Acreditaram - diz Max Embilint. - Evidentemente.

- É escandaloso - exclama o coronel Jolyheart. - No século vinte, ainda existem sobre esta terra homens que assassinam a sangue-frio quatro missionários, quatro santos, e que pedem por salário serem tornados brancos. É incrível! Mesmo há dez mil anos, tal barbaridade não teria sido possível. Pior que as feras! E você teve a sinistra coragem de lhes prometer que os tornaria brancos?

- Porque não? - responde Max Embilint.

- Prometia-lhes uma coisa impossível. Não os podia fazer brancos. - Eles estão-se nas tintas para ter a pele branca - diz Max. - Os negros não querem ter a pele branca, pela cor. Preferimos a pele negra. A pele branca cheira a podre, sobretudo a pele dos pés e dos sovacos. Mas os negros suportariam, quando muito, ter a pele branca, para terem, ao mesmo tempo, uma reacção normal de respeito. Foi por causa disso que eles se contrataram para matar. Por causa disso, ter a pele branca: merecer um mínimo de consideração. Quanto à cor da pele, estamo-nos nas tintas. Preferimos o negro.

- O plano de assassinato é seu?

- É sempre um branco que faz os planos - diz Max Embilint. - O negro executa. Eu sou negro. Não podia conceber um plano. Fui contratado como um simples assassino negro.

- Sem dúvida, foi pago?

- Sim - responde Max Embilint.

- Qual o preço?

- Prometeram-me um mínimo vital de igualdade com os outros homens da terra. É tudo. O mesmo preço que, por minha vez, prometi aos outros dez assassinos. A igualdade estritamente necessária, sem a qual não se pode andar na vida.

- E pagaram-lhe?

- Ainda não - responde Max Embilint. - Mas nada prova que eu tenha sido enrolado. Não pude esperar o pagamento, é tudo.

- Não pôde esperar que lhe pagassem e veio entregar-se? - pergunta o coronel.

- Exactamente - responde o negro.

- Sentiu remorsos e veio entregar-se? Para pedir, pesoalmente, o seu castigo. É isto?

- Não é isso - responde Max Embilint.

- Não lastima o que fez? - pergunta o coronel. - Não se entregou para expiar?

- Expiei a minha pena antes de cometer os quatro assassinatos - diz Max Embilint. - Tive o meu castigo. Fui castrado. Fui julgado injustamente. Fui contratado pelos brancos de Moscovo como assassino. Expiei adiantado. Toda a minha família expiou e os meus antepassados. Toda a minha raça. Não tenho que incorrer em castigo. A minha consciência está tranquila. Estou em ordem com a justiça.

- Não há castigo que preceda um crime - diz o coronel.

- Sou negro - diz Max. - Para os negros, é diferente. Somos punidos sem ter cometido crime. Desde há séculos. Não faço excepção.

- Porque veio entregar-se, visto que afirma que a sua consciência não o reprova em nada?

- Deixe-me em paz com as suas histórias de consciência - grita Max. - Vim aqui para que me enforquem. É a única coisa que vocês ainda não me fizeram. Para que o trabalho seja bem feito, isso compete-lhe a si. Os brancos civilizados gostam assim do trabalho bem acabado!

Max Embilint mostra os dentes, dentes soberbos, dentes de carnívoro. Continua a aumentar. O seu corpo negro ocupa toda a casa.

- Ao trabalho, coronel! - diz Max Embilint. - O que lhe resta fazer, no que me respeita, é simples. E, desta vez, é legal.

 

                                                                               Constantin Virgil Gheorghiu 

 

 

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