Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS MINEIROS DO ALASCA
Bennie e seu companheiro encontravam-se na parte mais agreste do vale. Era apenas meio dia, mas a luz do sol não chegava ao interior do desfiladeiro.
À direita e à esquerda daqueles homens, as espessas moitas e as trepadeiras tornavam mais escuro aquele local. Não se ouvia um único ruído, como era de esperar.
Os pássaros e outros animais tinham emudecido; só ao longe se distinguia o rumor de uma cascata.
Armando e Bennie escutavam atentamente, com as espingardas preparadas. Apesar de serem homens acostumados ao perigo, os seus rostos demonstravam certa inquietude causada pelo carácter inóspito do lugar onde se encontravam.
Começaram a ouvir, à sua direita, ruídos imprecisos, como se alguma pessoa ou animal os seguisse.
- Ouve esse ruído? - perguntou Armando ao seu companheiro.
- Sim, mas não vejo nada - respondeu Bennie.
- Aproxima-se alguém?
- E procura não fazer barulho.
- Será um animal?
- Provavelmente.
- Há índios nesta região? - perguntou Armando.
- Alguns, mas é raro encontrá-los aqui. Vivem nas planícies setentrionais. Espera!
- O que é, senhor Bennie?
- Cala-te! Pareceu-me ouvir um grunhido.
- Então é um urso.
- Também poderá ser um carcajú; são muito frequentes nestas montanhas.
- Que animais são esses?
- São parecidos com os texugos, mas mais fortes e robustos. Dizem que são muito vorazes e carniceiros, lutam com vantagem com o urso negro; porém eu não acredito.
- Escondemo-nos nesse bosque?
- Não, poderia ser perigoso. Talvez dentro do bosque se esconda alguma fera mais perigosa.
- Não oiço nada.
- Eu também não, Armando.
- Estará a espiar-nos.
- Provavelmente. Mas como não se quer deixar ver, continuemos.
E os dois caçadores continuaram o caminho, detendo-se de vez em quando para escutar e verem se alguém os seguia. O terreno tornava-se mais agradável e numerosos riachos ladeavam ambos os lados.
O canadiano e o italiano continuaram a sua marcha; mas rapidamente o primeiro estacou e disse:
- Agora tenho a certeza!
- O que se passa?
- Isto é uma brincadeira das grandes.
- Não percebi o que disse, senhor Bennie.
- Há qualquer coisa que nos segue!
- Por onde?
- Em dois minutos é a terceira vez que oiço os seus passos sobre as folhas secas.
- Mas, aonde?
- À nossa direita.
- Será o animal cujo grunhido ouvimos há pouco?
- Suponho que sim Armando, não é agradável que nos siga com esta insistência; talvez queira surpreender-nos.
- O que é que vamos fazer, senhor Bennie?
- Podes arranjar um refúgio de momento. Olha, ali, Armando! Serve-nos essa caverna.
Perto deles, na base de um dos lados do desfiladeiro, havia uma espécie de gruta ideal para morada de qualquer animal. Sem pensar nisso o canadiano adiantou-se e começou a afastar os ramos e os troncos, da entrada, quando um grunhido seco o deteve.
- Olha! Parece que esta gruta já tem inquilino. Por um pouco tinha que lutar com o seu ocupante. Bom estamos entre dois inimigos, qual deles será o pior?
Olhou com cuidado o interior da gruta, para tratar de distinguir de que animal se tratava.
- Tens o teu fuzil a postos, Armando?
- Tenho
- Cobre-me (1).
- O que é que vai fazer?
- Vou assustar esse animal.
- Cuidado Bennie.
- Não te preocupes. Estão a pisar as folhas?
- Não; mas pareceu-me ver algumas folhas mexer.
- Isto está a pôr-se mau, Armando.
E o canadiano que possivelmente já sabia de que animal se tratava, introduziu um pau na caverna e o animal que lá estava retrocedeu com um grunhido.
- Já sei o que é que está na gruta! É um carcajú! Não querias ver um?
- Não, Bennie. Sabe que animal nos segue?
- Não.
- Pois é um urso.
- Cinzento? - perguntou o canadiano.
- Sim, um verdadeiro urso cinzento.
- Agora mais do que nunca necessitamos dessa gruta! Dá-me o fuzil.
Bennie introduziu o cano da espingarda no interior da caverna. O bicho agarrou-o com os dentes e o homem disparou. A caverna encheu-se de fumo.
- Bennie, o urso vem aí!
- Rápido para dentro da caverna.
Sem se preocuparem com o animal que estava morto, penetraram à pressa na gruta. E ali estava contudo o carcajú, nas suas últimas convulsões.
Em seguida olharam para o exterior a ver se o urso os tinha seguido, mas nada viram. Onde se teria metido a fera? Ter-se-ia ocultado no bosque?
- Creio que nos metemos num grande sarilho - disse Bennie enxugando o suor.
Armando examinava o carcajú sem se dar conta do perigo em que ambos se encontravam.
- Deixa o morto, pensa mas é no urso.
- Que é que se passa, senhor Bennie?
- O urso não aparece.
- Melhor para nós.
- Não creio!
- Porquê?
- Porque deve estar escondido ao lado da entrada, à espera que deitemos o nariz de fora, para nos cair em cima.
(1) Forma de apoiar o avanço protegendo as costas.
- Pois tem muito que esperar!...
- Vê-se que não conheces a paciência destes animais.
- Esqueceu-se de que temos dois fuzis, um revólver e bons machetes? (1).
- Bah! São precisos canhões para derrubar essa montanha.
- Bolas! - disse Armando.
- Estamos presos, amigo.
- Sitiados.
- É o mesmo. A questão é que não podemos sair daqui até que esse maldito se vá.
--Temos víveres, senhor Bennie.
- Sim, resta-nos a língua de veado.
- E o 'texugo que você matou.
- O texugo! Não serve! Até mesmo os índios que são pouco escrupulosos com as carnes, só os comem em épocas de escassez.
- O que vamos fazer?
- Esperar que o urso apareça no morro para lhe meter uma bala na cabeça.
- Fica de guarda?
- Sim.
- Bom entretanto vou examinar este animal.
O canadiano encolheu os ombros admirado com a serenidade do seu companheiro, perante uma situação tão delicada.
Sem se preocupar com o urso cinzento, Armando acendeu um pedaço de mecha e dispôs-se a observar detalhadamente o carcajú. Era um animal de corpo maciço, pêlo forte e emaranhado, bastante feio.
Esta espécie de texugo, é muito comum no norte das possessões inglesas; os danos que causam são imensos e por isso os caçadores e os índios perseguem-os encarniçadamente, sem no entanto a sua carne, servir para grande coisa.
Aguardam em cima das árvores e caem sobre os cavalos; lutam com vantagem com ursos e lobos e caçam cervos e alces.
Depois do seu estudo, Armando aproximou-se de Bennie.
- Nada? - perguntou o italiano.
- Sim; o urso está num dos lados da entrada, como calculei. Oiço a sua respiração.
- Não há maneira de o fazer sair dali?
- Como? Mal deitássemos a cabeça de fora, caía-nos em cima.
- Será melhor esperar pela noite; mas e os nossos companheiros?
(1) Espécie de machado. (N. do T.).
- Esperam-nos no acampamento.
- Devem estar inquietos pela nossa demora.
- Bom! O meu companheiro Back, conhece-me perfeitamente e sabe que não há animal que consiga devorar-me. Aguardemos que o perigo passe.
Os dois homens estenderam-se sobre o texugo para se preservarem da humidade do chão, dispostos a esperar. O tempo passava e o urso que os seguira, achava-se à entrada da gruta.
Inclusive para o urso, o tempo devia parecer excessivamente longo e sentir-se-ia impaciente. As horas passavam e a noite aproximava-se.
Veja a noite que nos espera! - disse Armando.
- Não vamos pregar olho com um vizinho tão perigoso.
- É uma situação pouco invejável...
- Muito má, Armando!
- Temos que fazer qualquer coisa.
- Mas o quê?
- Tem a certeza de que o urso está à espreita?
- Suponho que sim.
- Pois façamo-lo mover-se.
- Como?
- Creio que tenho a solução.
- Qual?
- É fácil: tiro a jaqueta, ponho-a no cano da espingarda e com cuidado faço-a sair como se fosse eu que saísse. Se o urso estiver atento, saltará sobre ela; e você disparará para a cabeça.
- Óptimo! É uma boa ideia! Será um tiro estupendo, Armando!
- Parece-lhe boa ideia?
- Óptima.
- Então porque esperamos?
Armando colocou a sua jaqueta no cano do fuzil enquanto o caçador preparava a sua espingarda para disparar no momento oportuno.
- Preparado, senhor Bennie?
- Preparado.
- Vamos ao urso.
- Vamos!
O italiano fez deslocar o seu fuzil com a jaqueta, até ao exterior, mas para sua surpresa nada se moveu. Agitou-a fortemente para chamar a atenção do urso, se é que ele se encontrava ainda ali, mas em vão.
- Diabo! Terá ido embora? Se estivesse lá fora ter-se-ia atirado à jaqueta.
- Que é que vamos fazer?
- Bom, por agora veste a jaqueta, não te vás constipar. Depois vamos embora.
- Mas onde é que está o urso?
- Foi levado pelo Diabo.
Os homens, com grandes precauções, saíram da caverna; porém, no exterior, do urso nem rasto.
- Nada! - disse Bennie, tranquilo.
- E o urso?
- Cansou-se de esperar.
- À quanto tempo se terá ido embora?
- Quem sabe...
- E a angústia por que passámos!
- Confessa que passaste um mau bocado, Armando.
- É verdade.
- Também passei um mau bocado rapaz. Até um valente em certas ocasiões pode sentir medo.
- Onde terá ido o animal?
- Calhando foi beber água, talvez tivesse sede!
- Vamos embora.
- E continuaram com efeito, o caminho pelo desfiladeiro em direcção ao acampamento. A lua tinha saído e iluminava o caminho aos dois homens. Reinava um silêncio profundo e Bennie e o seu amigo andavam a passo largo, desejando abandonar quanto antes aquele lugar tétrico; de vez enquando paravam e escutavam atentamente não fora o urso segui-los!
Faltavam apenas trezentos passos para chegar a uma grande cascata, quando lhes pareceu ouvir um grito humano.
- Pelos cornos do bisonte! - exclamou Bennie.
- Que foi isto?
- Um grito humano!
- De certeza?
- Sim!
- Não será Back?
- Escutemos, Bennie.
Apesar da atenção que prestavam não se voltou a ouvir grito algum. Somente o rumor da água.
- Que estranho! Quem terá gritado?
- Um momento! Oiça!
Ouviu-se claramente um grito agudo seguido de duas detonações.
- Vamos, alguém está em perigo! - gritou Bennie.
Os dois homens desataram a correr pelo desfiladeiro. O terreno era estreito e coberto de moitas que dificultavam a corrida, mas os caçadores saltavam os obstáculos e nada os detia. De repente, diante deles levantou-se uma sombra gigantesca. Era um enorme urso, com mais de dois metros e meio de altura, que estava levantado sobre as patas traseiras e procurava subir ao alto de uma rocha. Parecia irritado, pois tinha o pêlo em pé. Os dois caçadores pararam.
- O urso! - disse Bennie.
O urso de ouvido apurado, ao aperceber-se da voz humana voltou-se com rapidez e chegou-se aos caçadores, com uma agilidade que ninguém suspeitaria, que uma massa tão grande pudesse ter.
Metia medo. Agitava as patas dianteiras e corria acercando-se dos dois homens.
- Armando, dispara depois de mim.
Ressoou um disparo que acertou em cheio no peito do urso. Mas o animal não caiu.
Enfurecido pelas feridas, corria cada vez mais depressa e como os caçadores não tinham tempo de carregar as armas, decidiram fugir. Entretanto carregavam as espingardas. Pouco depois ouviu-se um disparo e logo a seguir outro.
Finalmente o urso caiu. Bennie imprudentemente, aproximou-se do bicho. O animal levantou-se e procurou dar um abraço mortal; o outro correu em auxílio do seu amigo, porém aquele não tinha perdido a calma e disparou seis tiros com o seu revólver em pleno peito da fera que caiu morta.
- Está bem morto? - perguntou Armando aproximando-se.
- Está; não há nada a temer.
- Que susto!
- Pensei que tinha chegado o último momento da minha vida.
Ainda que os jaguares e tigres gozem a fama de serem os animais mais ferozes que povoam os continentes, o urso cinzento é sem dúvida o mais perigoso dos citados.
As feras como o tigre e o jaguar só atacam em caso de fome, ao contrário o urso cinzento, sem motivo algum ataca e despedaça. É selvagem e irritável e evita viver próximo de lugares habitados.
Preferem as montanhas rochosas onde procuram refúgio. Vivem também sós num vale que dominam, pois nada nem ninguém se atreve a penetrar no seu território. É maior que o urso branco e do que o negro; de estatura gigantesca e de corpulência excepcional, pode matar apenas com um abraço, as suas unhas fortes dilaceram com facilidade a pele de um bisonte.
Como todos os ursos, excepto o branco que só é carnívoro o cinzento alimenta-se de pinhões, ervas e raízes, mas quando prova a carne, já não se satisfaz com os antigos alimentos e torna-se facilmente num carnívoro.
Então lá no vale, onde se refresca e na planície onde caça alces e veados saceia a sua fome.
Chega por vezes a aproximar-se dos povoados, onde mata porcos, manjar muito suculento para ele.
Como é natural os ianques, que vivem nas cercanias das montanhas rochosas dão-lhe caça, até mesmo' quando se expõe a vários perigos. É conhecido por todos que para matar este urso são precisas pelo menos seis a sete balas.
Depois de terem carregado de novo as suas armas, Bennie e Armando aproximaram-se do animal para o contemplar mais detalhadamente e sem temor.
- Que grande animal! Mete medo! - disse Armando.
- Tivemos muita sorte em ter acabado com ele.
- Está ferido, senhor Bennie?
- Não, moço; porém se em vez de ter sido agarrado pelo cinturão, que é forte, me tivesse agarrado pelo pescoço, não estaria agora a falar.
- Acho que foi muito valente.
- Que querias que eu fizesse! Tratava-se de salvar a pele.
- E quem teria disparado os primeiros dois tiros?
- Ah, sim os de pistola.
- Eu diria que eram de espingarda.
- Não,- eram de pistola... esse homem teve medo e fugiu.
- Talvez o urso o tenha morto.
- Não; está vivo.
- Em que é que se fundamenta para afirmá-lo? - perguntou Armando.
- Baseio-me no facto, em que o urso teria atacado, caso não estivesse entretido com a sua presa. Vamos buscá-la.
Procuraram naquela parte do desfiladeiro onde tinham encontrado o urso e viram as moitas revolvidas, sinal de que por ali tinha passado alguém.
- Este homem fugiu pelos rochedos; devia ter uns músculos de ferro e uma agilidade que os monos invejariam. Um branco não podia ter feito isto - disse Bennie.
- Você pensa que seria um índio?
- Sim.
- Vamos procurá-lo?
- Para quê? É melhor que o pele vermelha siga o seu caminho e nós o nosso. Vamos cortar uma pata ao urso.
- É verdade que a carne do urso cinzento é boa?
- És esquisito, amigo... Asseguro-te que não fica atrás da do veado. Não perdemos o dia, temos a língua do veado e a perna do urso. Verás como ficarão contentes, o teu tio e Back, quando regressarmos ao acampamento.
Depois de bastante trabalho, o canadiano logrou cortar uma pata ao urso e ao terminar disse:
- Vamos para o acampamento. Devem estar impacientes com a nossa demora.
- Então vamos.
- Creio que estamos perto.
Pouco depois da saída do desfiladeiro e de terem cruzado uma planície distinguiram uma luz a Este.
- Lá está o acampamento. Daqui a um quarto de hora estamos lá, Armando.
- Dito isto, disparou um tiro de espingarda para o ar, feito isso voltou a carregar a espingarda, voltou a disparar e fê-lo pela terceira vez. Pouco depois ouviu-se um disparo procedente do acampamento. Lá, já sabiam que os dois homens estavam de regresso sãos e salvos.
Deixando para trás a planície internaram-se na floresta densa. Enormes árvores de grossos troncos, lianas e trepadeiras estorvavam-lhes cada passo e confundia-os a cada momento. Entretanto, Bennie ia atrás carregando a perna do urso. Armando com o machete separava as morfas que os impedia de passar e procurava não sair do caminho pois é fácil perder-se na floresta.
Pouco depois encontraram Back, que tinha saído ao encontro dos dois homens.
- O que é que se passou para voltardes tão tarde?
- Aventuras de arrepiar.
- Já jantámos há três horas.
- Então guardemos este pernil para amanhã.
Falcone tão pouco tinha podido dormir e quis ouvir as aventuras pelas quais os outros tinham passado. O caçador em poucas palavras narrou as aventuras, entretanto Armando acrescentava detalhes minuciosos.
- Não se podia desejar tanto.
- Bom! Não foi muito. Mas você pode-se orgulhar do valor e do engenho do seu sobrinho - disse Bennie.
Passado pouco tempo, todos dormiam, excepto Back, que estava de guarda até ao amanhecer.
Quando o sol se levantou, Bennie foi assar a perna do urso oferecendo aos seus companheiros pedaços da mesma para o pequeno-almoço. Todos acharam que era uma refeição esquisita, mas saborosa, mais saborosa do que a perna de porco.
Naquele dia nenhum dos quatro se afastou do acampamento, pois tinham víveres suficientes para alguns dias. Dedicaram-se a cozer as suas roupas.
Ao terceiro dia, depois da sua chegada ao acampamento após almoçar perna de urso, língua de veado, continuaram o caminho, ansiosos de chegar quanto antes às antigas terras russas, junto ao Yucão e que segundo se dizia, eram muito ricas.
Durante três dias andaram circundando as montanhas rochosas, pelo que não tiveram outro remédio senão as transpor, para chegar à região dos grandes gelos.
O frio veio rapidamente. Os picos nevados das montanhas mandavam ao rosto dos viajantes flocos de neve. Os animais que não estavam habituados àquelas temperaturas, sofriam e inclusive Back começava a estar desgostoso naquele lugar tão frio, pois nunca tinha avançado tanto para norte. Os outros suportavam bem o frio.
Tinham quarenta e oito horas de marcha, quando um vento ciclónico os obrigou a refugiarem-se numa gruta. Examinando-a cuidadosamente, encontraram no chão um crânio com marcas de uma ferida profunda e vários ossos humanos.
- Pelos cornos do bisonte!- exclamou o canadiano.
- É um crânio humano - disse Back.
- E esses ossos também o são.
- Foi um assassínio.
- Pode ter sido devorado por uma fera.
Falcone, o mecânico, profundamente afectado, tomou o crânio entre as mãos e examinou-o com cuidado.
- Foi um assassínio. O corte foi produzido por um machado.
- Pelos cornos do bisonte! Será esta gruta dum antropófago?
- Olhe que estamos na América do Norte e não na Oceânia - protestou o italiano.
- Por acaso não ouviu falar dos antropófagos das Montanhas Rochosas? - perguntou Bennie.
- Não e não acredito nisso.
- Bom, acendamos primeiro o fogo para aquecer esta geleira e depois contarei para vocês uma história verdadeira sobre antropófagos.
Não tardaram em obter um bom fogo, ao redor do qual se sentaram a jantar. Então, Bennie começou a falar.
- Parecerá raro, senhor Falcone; porém por estas latitudes deram-se casos de pessoas verdadeiramente ávidas de carne humana.
- Que diz, senhor Bennie.
- Aquilo que ouve, meu amigo. Parece que a pessoa que prova a carne humana a considera um manjar esquisito e não pode prescindir dela. Nas tribos selvagens de índios dão-se casos de antropofagia e eu conheci duas mulheres índias que eram antropófagas.
- Incrível!
- Quando eu estava no forte Saskachwam, levaram lá um índio acusado de ter comido a sua mulher e os filhos, durante umas jornadas invernais em que não se encontrava nada para comer na região onde habitavam. Foi condenado à morte.
- São frequentes esses delitos entre os índios?
- E não só entre eles, senhor Falcone. Todos recordam o caso de Palker e Bell.
- Quem eram?
- Uns ianques, a história é conhecida por todos os aventureiros das pradarias. Isto aconteceu em 1874. Estes dois mineiros que eu mencionei, junto com outros três, foram às Montanhas Rochosas em busca de ouro. Desgraçadamente extraviaram-se e foram surpreendidos nas montanhas na época das neves, em que não se encontra um único animal para comer. Antes de se resignarem a morrer, Palker saiu para caçar; quando voltou não trazia nada e viu Bell cozinhando carne. Adivinhou o sucedido e Bell correu ao seu encontro ameaçando-o com uma acha. Palker não teve outro remédio senão defender-se e disparou contra o peito do seu companheiro. Horrorizado pelo espectáculo que encontrou na caverna fugiu espavorido. Bell tinha morto os seus amigos, e estava a comê-los aos poucos. Porém, mais tarde acossado pela fome, Palker voltou àquele lugar tétrico, provou a carne humana e passou o resto do inverno alimentando-se com os restos dos companheiros. Na primavera saiu dali e nada se soube do que se tinha passado até há dez anos atrás quando se encontraram os restos humanos numa caverna. Palker foi condenado a quarenta anos de prisão.
- Está certo - disse Back - mas deixemos essas histórias e vamos comer. Asseguro-vos que esta noite não vamos comer carne humana.
Durante quatro dias os nossos amigos estiveram sitiados na gruta por causa do vento e da neve que caía sem cessar. Por precaução, tinham-se prevenido com lenha em abundância pelo que não tiveram necessidade de sair.
No quinto dia saíram para continuar o caminho e chegar o mais cedo possível ao Alasca. Porém, o caminho estava cheio de gelo e várias vezes tiveram que o quebrar para que os cavalos pudessem avançar com facilidade.
No dia vinte e quatro de Maio chegaram ao rio Lewes. Passaram para a outra margem crendo que ali encontrariam melhor caça, pois tinham-se acabado as provisões.
- Por aqui encontraremos gamos, e aves de todas as espécies- disse Bennie.
- Não haverá ursos? - perguntou Armando.
- Esses também não faltam.
- Vamos caçar, entretanto Back e meu tio montam o acampamento e fazem o comer.
- Que façam somente para eles, pois nós comemos onde caçarmos.
Depois de ter recomendado ao mecânico e ao mexicano que vigiassem atentamente, porque naquela zona abundavam índios, Bennie e Armando dirigiram-se a um bosque de abetos que bordeavam o lago que formava o rio Lewes em qualquer lugar.
Tinham andado cerca de doze quilómetros, deixaram os cavalos presos a uns abetos, escondendo-se em seguida perto dali, para observar.
- Por aqui deve haver cisnes; embora a sua carne não seja tão boa como a dos patos, não se deve desperdiçar - disse Bennie.
- Há peixes por estes lados?
- Todos os lagos desta região são ricos em peixe. Há trutas brancas, trutas normais, salmões, barbos e outras espécies.
Naquela altura ouviu-se um ruído parecido com um silvo que procedia do canavial perto dos caçadores.
- É um cisne - disse Bennie- e de certeza que não está só. Armando, atira uma pedra para o centro dessas canas.
Assim fez o italiano. Ao contacto da pedra com as canas, um grupo de cisnes levantou voo, desaparecendo no alto. O sétimo e o oitavo cisnes que eram mais lentos e pesados voaram rente ao solo.
Bennie disparou e o cisne maior, que parecia dirigir-se aos outros, caiu no solo a pouca distância donde estavam os caçadores. O canadiano em dois saltos chegou-se-lhe junto, colheu-o e exclamou entusiasmado.
- Óptimo! Já temos trinta libras (1) de carne!
- Estupendo, Bennie, por que é que não tratamos de apanhar outro?
- Os cisnes são demasiado espertos para caírem duas vezes na mesma armadilha.
- Então o que é que vamos caçar agora? - perguntou Armando.
- Rapaz não sejas 'tão impaciente. Acabámos de apanhar um magnífico exemplar e pensas derramar mais sangue inocente. Tens muita sorte.
- Porque diz isso?
- Porque perto daqui passou um comedor de madeira.
- O que é isso?
- Um moose.
- Um quê?...
- Não sabes o que é?
- Não.
- É um animal parecido com um gamo.
- E porque é que lhe chama um comedor de madeira?
- Porque se alimenta quase exclusivamente de ramos de larico.
- Podem-se caçar facilmente?
- Não muito.
- Devem ter bons dentes...
- Não. Têm cornos largos e afiados. Vamos procurá-los. Bennie, depois de colocar o cisne morto num ramo para recolher no regresso e de dar ervas frescas aos cavalos para
(1) Medida de peso, inglesa, equivalente a: 453,592 gramas. (N. do T.).
que comessem à vontade, internou-se com Armando no interior do bosquezito.
- Onde é que o podemos encontrar? - perguntou Armando.
- Os comedores de madeira gostam muito dos nenúfares, pelo que não se afastam muito da água. Encontrá-los-emos por aqui.
- Bennie em vez de olhar para o chão, olhava para as ramas das árvores para ver onde podiam estar roídas. Ao chegar a uma clareira, uma águia branca distraiu-o.
- Que está a ver essa águia? Calhando uma possível vítima.
Efectivamente a águia lançou-se rapidamente a um sítio no bosque. Os caçadores viram um ninho de mooses.
- Bennie, disparou rapidamente a um e o outro ocultou-se entre os arbustos. Então saiu do bosque um gamo moose de enorme tamanho parecido com o veado europeu.
O animal corria em direcção a Armando, este em vez de fugir esperava de pé firme apontando com a espingarda à cabeça do agressor. Porém deu um passo em falso num poço dum metro de profundidade, possivelmente uma armadilha de carcajú.
O italiano ao ver o perigo agachou-se, de maneira que o gamo passasse por cima dele e estranhou por não ver o seu inimigo. Bennie então gritou:
- Não te mexas, Armando! Eu encarrego-me dele! Apontou a sua espingarda e disparou-a. Porém em vez de acertar na cabeça do animal, acertou-lhe na base de um corno, este desprendeu-se e o animal cada vez mais enfurecido, empreendeu o ataque sem dar tempo que Bennie carregasse de novo a arma.
Armando seguiu o seu amigo e o gamo, que se tinham internado no espesso bosque, chamando aos gritos o seu companheiro. Ninguém lhe respondia. Pouco depois ouviu um disparo ao longe e tranquilizou-se, pensando: foi o Bennie. Está salvo.
E seguiu à procura do seu amigo, chamando-o aos gritos. Chegou a uma clareira por onde deslizava um riacho; bebeu água. E decidiu ir em linha recta na direcção onde lhe pareceu ouvir o tiro.
Uma coisa não sabia o jovem Armando, numa espessa floresta, quando parece que se anda em linha recta, segue-se à direita ou à esquerda, de maneira que se vá em círculo.
Depois de uma hora de marcha Armando achou-se no mesmo sítio onde tinha bebido água.
"Que estranho, penso que ando em linha recta, mas estou de novo no mesmo sítio. Será que volto os passos sem me dar conta."
E foi por outro caminho. Como na floresta nem sequer se vê o sol, para orientação e depois os obstáculos do caminho e a monotonia da paisagem impedem tomar qualquer ponto de referência.
Passadas três horas, Armando deu-se por vencido.
"Não há dúvida; estou perdido. Não vou poder sair desta floresta sozinho. O melhor é refugiar-me e passar a noite aqui; amanhã será outro dia."
Como tinha muita fome procurou nos bolsos e encontrou dois biscoitos que devorou avidamente. Preferia comer um bocado de carne, mas não sabia onde estava o cisne que tinham caçado e não 'tinha nenhum animal à vista.
Numa clareira da floresta, sentiu que um corpo pesado caíra nas suas costas, e rapidamente sacudiu os ombros para se desembaraçar do peso, que supunha ser um animal.
Efectivamente, era um animal peludo de um metro e meio de largo e meia altura. Era muito gordo e em vez de voltar a atacar o jovem, retrocedia lentamente enquanto bufava.
Creio que este animal é um glutão. Sabia que atacavam as renas e os veados, mas nunca pensei que atacassem o homem. Confundiu-me com um alce ou terá caído sem querer.
A massa peluda que estava no chão não se decidia a atacar, mas num momento, sabendo que estava perdida se não se lançava contra o seu adversário o bicho colheu o seu antagonista de surpresa, o italiano disparou a espingarda falhando o tiro.
Mas uma coronhada abriu a cabeça ao glutão e este caiu no chão fulminado. A carne destes animais é dura e gomosa, mas Armando aproveitou a pele que poderia ser útil durante a noite.
"Nunca pensei que um animal tão pequeno seria capaz de atacar-me."
O rapaz tinha razão, pois os glutões, que respeitam os homens, atacam as renas, os veados e vencem-nos apesar daqueles serem maiores. Caem sobre eles, atirando-se das árvores, cortando-lhes as veias do pescoço.
Têm sempre fome e comem até rebentarem. Em épocas de escassez atrevem-se a baixar aos povoados índios para lhes roubar comida. São muito prudentes e por isso é difícil caçá-los através das armadilhas que os índios têm no bosque.
Armando, depois de esfolar o glutão, afastou-se daquele lugar, acomodando-se no alto de uma árvore para passar a noite. Então apercebeu-se de que não tinha cartuchos para a espingarda, pois quando caiu no buraco frente ao alce moose, se espalharam pelo chão os que levava no alforge e não os apanhou para ir em busca do seu amigo.
Não obstante, procurou na bolsa e achou dois perdidos. Carregou a espingarda com um e pensou: "Bom, tratarei de economizar estas duas balas que me sobram. Agora sinto não ter aproveitado a carne do glutão, embora sendo má, ao menos mataria a fome que tenho agora. Enfim, irei buscá-la amanhã de manhã se esta noite não a comerem os ursos.
O último raio de sol desapareceu da floresta. O aparente silêncio do dia, passou a estranhos rumores e às vezes silvos ou lamentos lançados por uma alcateia de lobos que vão à caça, ou por aves que se dirigem ao lago.
As ervas agitavam-se na escuridão e bufidos sufocados inquietavam Armando. Passadas umas horas, ao pé da árvore onde se encontrava, sentiu passos e distinguiu penosamente um vulto grande. Sem dúvida, por baixo do rapaz estava passando um animal.
Com a esperança de que fosse um dos cavalos que tinham deixado na borda do lago, inclinou-se demasiado sobre o ramo e caiu no vácuo.
Mas com grande surpresa sua, encontrou-se no lombo daquele animal, que, assustado começou a correr com grande velocidade. Armando só teve tempo de se agarrar à larga crina e, antes de poder dar-se conta do sucedido, sentiu-se arrastado numa corrida vertiginosa.
O animal sem dúvida assustado, saltava por cima dos troncos caídos e atropelava a cada momento as moitas. O italiano, apesar da surpresa, tinha cuidado em não cair, pois, se se soltasse corria o risco de se estatelar no chão.
Armando com o rosto arranhado pelas ramas, agachou-se sobre o corpo da besta para evitar que um tronco lhe batesse na cabeça. Pouco a pouco, o animal fraquejava, diminuindo a velocidade e respirava roncando, em sinal de esgotamento.
"Agora é o momento de me deixar cair", pensou Armando.
Mas deu-se conta de que um pouco mais adiante a floresta clareava e sentindo que chegava a um lugar iluminado exclamou:
- Ânimo, corcel! Leva-me até ao limite da floresta. E depois verei que espécie de animal és.
As árvores estavam mais distantes umas das outras e o terreno começava a ser mais plano. Então, Armando pôde ver em cima de que animal tinha caído.
Como tinha suposto, tratava-se de um alce enorme, parecido com um veado, mas com uma corpulência semelhante à ao cavalo.
O alce, assustado por não saber que animal levava em cima, ao ver-se na pradaria sacudiu a cabeça violentamente para a frente e para trás, com a intenção de se libertar do seu inimigo e atacante.
Armando caiu então na erva fofa dando um par de cambalhotas, de modo a que não lhe acontecesse mal algum. Enquanto caía, o rapaz ouviu um grito atroador e ao levantar-se, deu-se conta que havia ali um grupo de pessoas e, que o alce caía de patas para o ar.
- Gaita! Quem terá morto a minha montada? Aproximou-se do alce brandindo a espingarda e viu que o animal tinha uma azagaia cravada no peito.
Cinco homens de baixa estatura com cabelo comprido e negro, o rosto pintado de várias cores e com muitos penduricalhos ao pescoço, aproximavam-se.
O chefe deles ou o feiticeiro levava pendurado, um colar com dentes de glutão e de lobo e no cinturão, uma lata de sardinhas ou de pimentos vazia.
As atitudes e os olhares destes homens não eram tranquilizantes.
Os cinco homens olhavam para Armando desconcertados; aquele, temendo um ataque, entrincheirou-se por detrás do cadáver do alce com a espingarda preparada.
O chefe ou feiticeiro, aproximou-se donde se encontrava o italiano e dirigiu-lhe umas palavras que o jovem não entendeu.
- Faça o favor de se explicar melhor, porque não percebi nada!
- Ah! - disse o feiticeiro e logo falou em mau inglês - o rosto pálido vai embora!
- Um momento amigo! Antes comerei um bocado desta carne, porque tenho muita fome.
- O rosto pálido que se vá!
- E eu digo ao meu amigo vermelho que não quero ir!
- O rosto pálido faz troça de mim?
- Um bocado!
- O rosto pálido não conhece Kotcha-Kutchim?
- Não.
- Nem Tatanckok, o feiticeiro dos Tananas?
- Também não. E não me interessam. O alce é meu e quero comer um bocado de carne!
- A paciência não é uma virtude de Kotcha-Kutcha.
- De Armando Falcone, também não.
- Eu matei esse alce com a minha lança!
- Pois eu ia em cima dele e tinha direito a matá-lo!
- O alce não é um cavalo! É um animal livre da floresta e pertence a quem o mata! Vai-te embora rosto pálido.
- Tenho fome e quero comer!
- Os Tananas não mantêm os brancos.
- Pois bem! Vem buscar o alce se te atreveres.
E o feiticeiro hesitou um pouco ao ver que o jovem se preparava para enfrentá-lo com a espingarda; sem dúvida que conhecia armas de fogo. Mas logo exclamou:
- O feiticeiro da tribo dos Tananas terá essa arma.
- Queres também a faca?
E o feiticeiro, lançando um grito agudíssimo, lançou-se contra Armando com o machado levantado. O jovem não sabia o que fazer. Quando o homem chegou perto dele, esquivou-se de um golpe, saltando para o lado e disparou um chumbo no peito do feiticeiro.
Este levou as mãos à ferida e fugiu urrando pela pradaria, levando toda a sua gente. Armando apressou-se a correr na direcção oposta. Ouviu umas detonações perto dali e foi resolvido a queimar o último cartucho em sua defesa, quando viu com alegria que Bennie e seu tio se aproximavam a todo o galope.
- Eh, Armando! Que fazes? Há duas horas que te procuramos.
- Tio!
- Pelos cornos do bisonte! Que te aconteceu? - disse Bennie.
- Perdi-me na floresta.
- Parece-me que sim.
- Alegro-me por o ver senhor Bennie. Conseguiu matar o gamo suponho.
- Já comemos, um bom pedaço de carne.
- Pois vamos ao acampamento, que eu tenho umas ganas de comer. Tenho uma fome atroz.
- Pobre Armando! Passaste mal esta noite - disse o senhor Falcone.
- Não só mal, tio. Por pouco matavam-me.
- Que se passou? - perguntou Bennie.
- Fui atacado pelos índios.
- Pelos cornos do búfalo! Então essa detonação que ouvimos era tua?
- Sim.
- Mataste algum?
- Penso que sim.
- Um a menos. Não te preocupes. Conta-nos o que se passou.
Armando contou então o que se tinha passado e Bennie pareceu ficar preocupado.
- Rapaz! Isso pode ser mau. Os Tona nas são vingativos e não deixarão impune a morte do seu feiticeiro. O caso pode trazer-nos más consequências.
- Acha que sim?
- Assim o creio.
- Mas eu tive que o fazer! Era a sua vida ou a minha.
- Não! Não te estou a censurar. Eu tinha feito o mesmo ou pior, mas a questão, é que me inquieta... ainda mais tenho em conta que dentro em breve atravessaremos o território dos Tananas. Enfim! Não é necessário preocuparmo-nos demais. Se nos atacarem afastamo-los com uns quantos tiros.
Apesar do ânimo que Bennie pretendia infundir-lhes, tio e sobrinho inquietavam-se. Cortaram um pedaço do alce e dirigiram-se imediatamente ao acampamento.
Ali, Armando comeu um bocado de moose, que considerou esquisito e em seguida levantaram o acampamento, para seguir viagem, pois temiam os Tananas.
Bennie escolheu uma trilha que os punha fora do alcance dos Tananas, mas era muito estreita, pois tinham que atravessar o nervo principal das Montanhas Rochosas.
Tinham que passar por lugares que os cavalos apenas podiam escalar. Uma semana demoraram a cruzar aquela zona. Muitas vezes tiveram que desmontar os cavalos e levá-los à rédea, mas mesmo assim perderam um, que caiu no abismo.
Donde se econtravam, avistava-se um esplêndido panorama. Os montes mais altos da América do Norte estavam ali. Sam Elias de 5520 metros, o Cook de 4900 e o Fairweather de 4700 metros.
Os seus picos estão permanentemente cobertos de neve e parecem chegar ao céu.
No oitavo dia da sua partida, quase sem provisões, decidiram acampar no limite da antiga província russa, perto da região das fabulosas minas de ouro.
O Alasca é uma região que era quase desconhecida e agora faz palpitar o coração dos mineiros da Califórnia e da Austrália por se ter descoberto nessa terra minas de ouro duma riqueza incalculável.
O Alasca está separado da Ásia por um pequeno estreito chamado de "Behring" e que de inverno, quando o mar gela/ pode-se atravessar a pé.
A superfície do Alasca é de 1 300 000 quilómetros quadrados e os seus habitantes até há pouco tempo não passavam de 50 000 homens, entre índios, mexicanos e russos; mas pode dizer-se que em poucos meses triplicou o número da população, esta constituída por mineiros de todos os lugares da América do Norte que ali ocorreu em busca de fortuna.
Até ao princípio do século XIX ninguém pensou ocupar aquelas terras geladas. Somente os russos, com o espírito comercial deram-se conta que ali viviam numerosos animais de ricas peles, que se dedicaram a comercializar.
Construíram alguns fortes nas margens do rio Yucão e criaram uma importante companhia peleira, que chegou a exportar anualmente grandes quantidades de pele de castor, lontra e de raposa.
Mas no ano de 1867, o governo russo, farto já dos constantes problemas que lhe causavam os índios Tananas e os Coyones que atacavam os seus fortes, venderam o território aos Estados Unidos por 520 000 dólares. Na realidade, naquela época, parecia que o Alasca não valia mais do que isso.
No Alasca,, no inverno, às vezes a temperatura chega a atingir 50 ° negativos e pelo contrário o verão é muito quente/ só que muito curto. Os seus rios estão na maior parte do tempo gelados, pelo qual são inúteis para a navegação. E os seus portos recebem poucos barcos pela mesma razão.
Quando os ianques passaram a governar a região, esta melhorou rapidamente. Fundaram várias cidades nas margens do Yucão e também uma companhia de navegação "North American Transportation; e tratou-se de explorar as minas e as ricas fontes.
Depressa se deram conta de que aquele território era muito mais rico do que os russos julgavam. Numerosos rios e afluentes do Yucão, banham toda esta terra. Existe pesca e caça em abundância e finalmente descobriram os filões de ouro.
No ano de 1858 deu-se a primeira notícia. Uns mineiros tinham descoberto ouro entre as arenas do Fraser, em Colum-bia. 30 000 mineiros californianos dirigiram-se então para aquele lugar, com o ambição de se tornarem ricos, mas a maioria decepcionada voltou ao seu país.
Só uns quantos continuaram explorando, encontrando por fim, nos lugares mais inóspitos, ricos filões de ouro. Ignora-se quantos homens conseguiram chegar àquele famoso Eldourado, que durante anos procuraram pacientemente. Muitos deixaram os seus ossos pelo caminho, mas os que tiveram a sorte de chegar entusiasmaram-se com o descobrimento.
Parece que a primeira mina em que se trabalhou, foi na Cassiar Bar, no curso superior do Yucão e entre os montes inacessíveis. Era necessário seis meses para que o correio chegasse àquele lugar.
Em 1885 começou a circular a notícia. Dizia-se que os mineiros ganhavam de 500 a 600 libras por dia; mas poucos homens se atreviam a fazer a viagem devido aos numerosos perigos que corriam, a falta de comunicações e a possibilidade de se encontrar com os índios.
Mas com o passar do tempo, as notícias tornavam-se mais fantásticas e começou a emigração.
Depressa começou a correr ouro e alguns homens tornaram-se ricos, mas mais nas casas de jogo, a tiros de revólver, do que nas minas. Os ianques fundaram várias cidades, abriram casas de bebida e pensões de maneira que também teriam a sua parte na ganância colectiva.
No fim do ano de 1876 tinham-se extraído 800 milhões de quilos de ouro puro e em 1897, mais de 100 milhões. Os que haviam estudado estes lugares asseguravam que nos montes Sam Elias se ocultavam tesouros maiores do que se conseguiram achar antes em qualquer lugar e por isso Falcone e seus companheiros atreveram-se a ir àqueles montes perigosos.
Perto do local onde se tinham estabelecido os nossos mineiros, corria um riacho cristalino. Não tinham mais do que dois sacos de farinha, duas libras de tasajo índio, que os americanos chamam Pemmican e um pouco de açúcar.
- Como não podemos renovar as provisões, teremos que fazer dieta - disse Bennie.
- Não me parece que neste lugar abunde muita caça, senhor Bennie.
- Mas Armando, tu crês que os animais se vêm pôr na tua caçarola.
- Homem! Não peço tanto, mas creio que este lugar é pouco favorável.
- Bom; em todo o caso, se não encontrarmos animais terrestres, sempre podemos ir pescar uma truta.
- Claro!
- Então vamos à pesca.
Eu vou também com vocês - disse Falcone.
- Back fica de guarda ao acampamento.
- E como pescaremos?
- Faremos arpões com as nossas facas, atadas a um pau, como os peixes são grandes não será difícil pescá-los. Tenho pescado muito assim.
Deixando Back encarregado do acampamento, os três homens empreenderam a marcha até a um lugar próximo onde o rio fazia um pequeno lago. Quando Bennie se dispunha a cortar canas para fazer arpões, distinguiu um objecto escuro perto dali.
- Que será aquilo? - disse Bennie.
- Parece uma canoa - respondeu o mecânico, depois de observar um bocado.
- Olha! Se é uma canoa, vamos fazer uma boa pescaria! Chegaram ao local. E Falcone não se tinha enganado.
Atada com uma correia achava-se uma canoa índia em bastante bom estado e de tamanho regular. As embarcações ligeiras que os índios constróem, constam de um sólido casco de salgueiro coberto com largos pedaços de cortiça de videiro, unidos com raízes de abeto calafetadas com resina. Podem navegar nelas três pessoas. Se bem que muito ligeiras podem enfrentar as rápidas correntes e até mesmo ondas. O canadiano exclamou:
- Vamos dar uma volta pelo lago e pescamos trutas.
- Creio que os índios a deixaram para nós - disse Falcone.
Com efeito, um pouco mais longe do lugar donde se encontravam, os índios tinham preparado as suas armadilhas para pescar. Os Tananas e os Coyones desconhecem as redes, mas utilizam para pescar uma espécie de cestas em forma de funil feitas de vimeiro. Quando começa o inverno implantam uns paus a que prendem as cestas. Quando o rio gela, muitos peixes atraídos pela luz que há no buraco das cestas, metem-se nelas e ficam prisioneiros.
Quando os nossos amigos chegaram ao lugar onde se encontravam as cestas, com grande surpresa de todos, que as julgaram cheias, só encontraram três esturjões, nas três cestas.
- Os preguiçosos devoram os restantes - disse Bennie com assombro.
- Armando! Mata esse cisne, que vale mais do que os peixes - disse Falcone ao ver como uma ave desse tipo descia sobre o rio.
Mas quando Armando ia a disparar, este deu-se con'ta de que a ave, com a cabeça metida na água, agitava desesperada-mente as asas.
- O que é que o animal tem!
- Sei lá! Foi apanhado por um habitante do lago.
- Mas que bicho é que se atreve a atacar o cisne?
- Talvez haja crocodilos - alvitrou Armando.
- Não. Foi um esturjão - afirmou Bennie.
- Um esturjão atreve-se com um cisne? É absurdo!
- É melhor irmos para ver o que se passou com esse cisne - disse Falcone.
E assim fizeram. O canadiano começou a remar na direcção do animal, que continuava a fazer esforços desesperados para se soltar, até que ficou imóvel.
- Está morto! - disse Armando.
E Bennie, temendo que ele submergisse, apressou-se a agarrá-lo. Efectivamente, o que tinha morto o cisne tinha sido um esturjão de grande tamanho, que ao ver a cabeça do cisne por baixo de água julgou que se tratava de algum peixito.
Mas morrera sufocado ao tentar tragar a cabeça da ave. "Assim de uma cajadada estavam mortos dois coelhos", pois apanharam o cisne e o esturjão.
- A quem contarmos isto, vai-se rir nas nossas barbas - disse Armando.
- Não penses nisso, quem conhecer os esturjões, não vai estranhar-replicou o tio.
- São assim tão vorazes estes peixes?
- São os mais batalhadores e audazes de água doce e, por isso lhe chamam lobo marinho. São de tamanho médio, mas não hesitam em atacar qualquer animal marinho; às vezes atrevem-se com cães e vencem.
- Parece impossível.
- Também lutam com as lontras, as que tentam tirar-lhes as presas.
- Nada pode viver tranquilo onde houver esturjões.
- Com efeito. Certo senhor meu conhecido teve a má ideia de deitar num viveiro um esturjão de trinta libras que tinha para que engordasse um pouco. Nunca o devia ter feito pois ao fim de um ano tinham desaparecido todos os habitantes do viveiro, à excepção de uma grande carpa e até esta estava em muito mau estado devido às feridas recebidas na pele pelo esturjão.
- Vai uns peixes, tio!
- Em dois dias consomem o seu peso em alimentos. Mais que nenhum outro peixe.
- É verdade, tio, que no interior dos esturjões, encontram-se objectos preciosos?
- Sim, deram-se casos desses.
- Como pode ser isso?
- Parece que os esturjões engolem de propósito, objectos pesados que ficam no interior deles, pois foram apanhados uns, com chumbo das redes dentro deles.
Entretanto, tio e sobrinho pairavam animadamente, Bennie levava a canoa até à margem a fim de voltarem ao acampamento, pois considerava suficientes as presas que tinham conseguido naquela viagem.
Uma vez em terra, para cortar caminho dispuseram-se a cruzar um pequeno bosque de pinheiros, quando de repente viram que cinco lobos se aproximavam.
Armando já se dispunha a defender-se à coronhada, quando Bennie se aproximou de uma das árvores para evitar ser atacado pelas costas, enquanto gritava:
- Cuidado! Estes lobos estão raivosos.
Ao verem que Bennie, que era tão valente, retrocedia ante um perigo como aquele, os dois homens encostaram as costas a mesma árvore a que Bennie fizera o mesmo a fim de se guiarem pela experiência do canadiano.
Vendo que os homens se retiravam, os cinco lobos detiveram-se indecisos. Eram de grande tamanho, mas estavam muito fracos. O seu pêlo estava eriçado e o seu olhar agressivo,- pela boca saía-lhes espuma, sinal característico dos animais raivosos.
- Não deixem que eles vos toquem ou estais perdidos - gritou Bennie.
- Estão raivosos? - perguntou Armando.
- Sim. Quando atacarem batam-lhes sem piedade.
- Dispararemos - disse Falcone.
- Não podemos com todos. Esperemos que ataquem. Nestes momentos é mais eficaz a coronha do que o tiro.
Entretanto os cinco lobos, que deviam estar ardendo de desejos de se acercar dos homens para devorá-los, não se atreviam a atacar e davam voltas em redor da árvore formando um círculo quase perfeito.
Os três homens aguardavam, dispostos a vender cara a sua vida. Assim passaram alguns minutos e as feras foram alargando o círculo, até que acabaram por desaparecer por entre a floresta.
- Tiveram medo de nós - disse Armando dando um suspiro de alívio.
- Não nos fiemos - anotou Bennie - talvez estejam perto à espera que abandonemos esta posição estratégica para atacarem.
- Você disse que eles estão raivosos? - perguntou Falcone.
- Tenho a certeza.
- Não sabia que os lobos enraiveciam.
- Todo o habitante desta região o sabe. Nos anos 1872, 1879 e 1886, houve grandes epidemias de raiva.
- Pelo que vejo as epidemias hidrófobas repetem-se de sete em sete anos.
- Exacto, senhor Falcone.
- A que é devido isso?
- Não se sabe!
- Um homem que seja mordido por um lobo raivoso, morre?
- Sempre.
- Como é que soube que estes estavam?
- Em primeiro lugar pelo seu aspecto e depois pela sua valentia. Os lobos nunca se atrevem a atacar se não for em grupo. Mas quando estão raivosos atrevem-se a tudo.
- Já devem ter ido embora - disse Armando.
- Não sei...
- Em último caso dispararemos.
- É isso que temos a fazer. Vamo-nos, porque não vamos ficar aqui toda a vida.
- Afastaram-se das árvores que os havia protegido e caminharam com precaução, vigiando qualquer movimento no bosque. Já iam a deixá-lo para entrar na planície quando viram que os lobos estavam a uns sessenta metros por trás deles.
Eles tinham sido seguidos passo a passo através do bosque, mas não se atreviam a atacar. Então, Bennie exclamou:
- Ah, malditos! Não querem deixar-nos em paz! Pois vereis.
Levando o fuzil à cara apontou ao maior dos lobos. Entretanto, Armando apontava ao mais fraco e ambos dispararam ao mesmo tempo, caindo os dois lobos. Os outros uivaram tristemente.
Então, Back contou-lhes que teve de rechaçar um par de lobos que por pouco levavam um dos cavalos.
- Isto significa que temos que levantar o acampamento o mais depressa possível, já que esta zona tem demasiados lobos.
Durante o resto do dia estiveram ocupados a curar trinta quilos de carne de cisne e os peixes que naquele dia tinham apanhado. Como a carne não estava em condições de se conservar, decidiram continuar a operação à noite para poderem partir na manhã seguinte.
- Como medida de precaução conttra os lobos, acenderam várias fogueiras em redor do acampamento e fizeram
(1) Hidrofobia, medo da agua.
(2) Epidemias hidrófobas, são causadas por falta de água no organismo. (N. do T.).
vigilancia por pares. O primeiro turno era constituído por Back e Armando e o segundo, por Bennie e Falcone.
Depois da ceia os dois últimos encostaram-se, Back e Armando tomavam algumas canecas de café o fim de ficarem despertos. Tinham decorrido duas horas de guarda, quando sooou um triste e prolongado uivo.
- Que foi isto? - perguntou Armando.
- Um lobo esfomeado que pede comida. Dentro de pouco todo o vale vai estar cheio destes uivos.
Os cavalos começaram a 'tremer e apertavam-se uns contra os outros. Pouco depois soou outro uivo no outro extremo do vale.
- Chamam-se! Pode ser que nos ataquem...
- É possível, tendo em conta que estão raivosos.
- Mas os lobos não temem o fogo?
- Os uivos ouviam-se cada vez mais perto, como alcateias se lançassem sobre o acampamento.
- São pelo menos cem - disse Armando.
- Talvez mais.
- O que é que vamos fazer?
- De momento atiçar o fogo.
Assim fizeram. Formaram também uma espécie de barricada com troncos. E esconderam as provisões dentro de uma tenda.
Entretanto os uivos sentiam-se cada vez mais perto, até que se tornaram ensurdecedores. À luz das fogueiras, viam-se muitos pontos escuros correndo em direcção ao acampamento.
- Já aqui estão! - disse Back com voz trémula. - São muitos e acreditam no triunfo!
Então Bennie e Falcone saíram da tenda.
- São os lobos? - perguntou o primeiro.
- Sim, e são muitos.
- De onde vêm?
- Do sul.
- Vão dar-nos uma má noite. Os cavalos estão bem presos? E as provisões?
- Não te preocupes, está tudo bem - disse Back.
- Bom, resta-nos disparar sobre esses bichos e recebê-los como merecem.
- Não poupem balas.
Os primeiros lobos tinham chegado, levados pelo impulso, alguns tinham-se lançado contra as fogueiras, queimando os olhos e as patas. Retiraram-se então, juntando-se ao grosso da alcateia.
O fogo tinha-os afugentado momentaneamente. Mas continuaram em volta do acampamento e dispuseram-se a esperar sentados, a'té que se apagassem as fogueiras para poderem entrar e apoderarem-se dos homens dos cavalos e dos víveres. O aspecto daqueles cem lobos famintos fazia tremer o mais valente e inclusive Bennie vacilava em dar ordem de fogo. Não fossem aqueles lobos raivosos entrar no acampamento através da barreira de fogo.
- Pelos cornos do bisonte! Isto está mau.
Com efeito, ali estavam os animais com dentes afiados e a boca aberta, esperando o momento oportuno para saciar a fome.
- Começamos o fogo - perguntou Armando.
- Não, é melhor não os irritar.
- Talvez, se virem que as fogueiras não se apagam, se vão embora...
- Se tiverem muita fome, não vão.
- Temem o fogo, não?
- Pelo menos detém-os.
- Porque não lhes atiramos troncos a arder? - propôs Falcone.
- Duvido que os faça partir.
- Porque não experimentamos?
- Seja! - disse Bennie.
E os quatro homens, deixando as espingardas ao alcance das mãos, começaram a atirar tições aos lobos, que retrocederam alargando o círculo. Mas não se foram.
- Temos que disparar. Faremos a dois e dois para não gastar demasiados cartuchos. Tu o farás comigo, Armando.
Enquanto os homens disparavam, os lobos caíram em cima dos companheiros mortos e feridos para devorá-los. Rapidamente, dispararam sobre o monte que se formara, causando verdadeiros estragos.
Mas depois de oito descargas, os lobos começaram a separar-se e sete dos mais audazes penetraram no acampamento por uma parte em que uma fogueira se estava a apagar.
Iam a lançarem-se sobre os cavalos quando Back se aproximou deles, matando dois à coronhada. Bennie agarrou um pela cauda e lançou-o numa fogueira. Outro foi morto pelos coices dos cavalos e os restantes pereceram a tiros de Bennie e de Armando.
Os lobos, bastante dizimados, não tiveram outro remédio do que fugirem uivando.
- Esta é uma lição que não esquece.
- Matámos uns trinta.
- Não há perigo de voltarem? - perguntou Armando.
- Não creio. Os uivos afastam-se cada vez mais.
- Bom, boas noites senhor Bennie.
- Boas noites rapaz.
E ficaram de guarda Falcone e Bennie, entretanto os outros foram descansar. Nada turvou a paz do resto da noite e de manhã, depois de comerem abundantemente, continuaram viagem para norte até chegar ao Yucão, que a julgar pelo adiantado da época já devia estar navegável.
Durante quatro dias levaram os cavalos a galope, fazendo breves paragens. No quinto dia o senhor Falcone, depois de ter feito os cálculos precisos, ao meio dia, graças ao sol, deu-lhes a boa notícia que distavam do Forte Scelkirk aonde se dirigiam, oitenta milhas.
- Dentro de três semanas estaremos em Dawson, donde embarcaremos; dentro de quatro estaremos à beira do Klondyke.
- E apanharemos o ouro às pazadas- anunciou Bennie.
- E podemos comprar rebanhos e terras.
- Seremos ricos!
- Se queres que te diga a verdade, Bennie - disse Back-; creio que se fosse rico pouco me importaria ter um rebanho, pradarias e vaqueiros.
- Pois eu creio que o homem que viveu a vida livre da pradaria, não pode renunciar tão facilmente a ela.
O maior rio da antiga província russa, é o Yucão que cruza o Alasca em toda a sua longitude. Este rio resultaria muito mais útil se não permanecesse durante sete ou oito meses gelado, sendo impossível a navegação pelas suas águas.
Nasce no Noroeste e logo corre para Norte, recebendo as águas do lago Hootalinkwa, assim como a de muitos afluentes, como o Salman, o Pelly e o MacMilIam. Pela esquerda recebe as águas do rio Tanana.
Desemboca no estreito de Bhering, no Oeste. No seu curso superior, o Yucão tem poucos fortes, sendo o mais importante o Leverves, o Scelkirk e o Yucão, que é o centro mais importante da companhia peleira. Mas, no seu curso inferior há numerosas cidades como Dawson, Nulato, Auvik e Andrejeusk.
Pode dizer-se que todos os habitantes do Alasca vivem nas margens deste grande rio.
Os futuros mineiros tinham chegado a uma passagem muito bonita onde o rio formava uma enseada bordeado por bosques de salgueiros e moitas floridas. Naquele lugar abundavam aves, mas não se encontrava de animais de pêlo para caçar.
- Não faz mal! - disse Bennie- mesmo não havendo caça passaremos aqui a noite e amanhã seguiremos caminho.
- Não nos restam muitas provisões, senhor Bennie - disse Armando - e com o frio e as marchas forçadas depressa se nos acabam.
- Daremos uma batida pelos arredores.
- Espera encontrar algum animal grande?
- Talvez um urso, ou ao menos um cisne.
- Vamos então à caça?
- Olha, ali há caça. São cisnes!
Os olhos do canadiano seguiram atentamente o vulto dos cisnes. De improviso disse:
- Armando, não gostarias de uma tortilha em vez de um assado?
- Claro que sim!
- Então, dentro em pouco vais comê-la.
- Encontrou um galinheiro?
- Não. Mas creio que encontrei um ninho com ovos e maiores que os de galinha.
- Vamos buscá-los!
- Vem comigo!
E depois de dizer a Back que acendesse uma fogueira e limpasse a frigideira, Bennie e Armando adiantaram-se pelo bosque de salgueiros. Era um sítio delicioso; as moitas verdes e numerosas plantas de lindas cores se lhes deparavam. Chegaram perto do rio onde se ouviam silbidos característicos de cisnes.
- Vamos com cuidado. Talvez, para além da tortilha ganhemos um assado.
- Mas os cisnes fugiram, senhor Bennie.
- Nem todos fogem. As fêmeas defendem os seus ninhos.
- Contra os homens?
- Sim; atrevem-se também com águias e estas não levam a melhor.
- Mas o bico dos cisnes não é suficientemente duro para produzir feridas.
- Não; a força destes animais reside nas asas. De uma sapatada podem matar uma raposa se esta tentar atacar os seus ninhos.
Já tinham chegado ao fim do bosque na mesma margem do rio. Ali encontravam-se dúzias de cisnes que se levantavam e alisavam as penas.
Bennie e Armando dispararam ao mesmo tempo e dois cisnes caíram. Os outros assustados pelos disparos, fugiram rapidamente. As fêmeas, pelo contrário avançaram gritando até onde estavam os homens. Mas ao vê-los, pararam indecisas, pois não se atreviam a lutar com os caçadores.
Bennie carregou de novo a sua espingarda e disparou. Mas elas estavam já fora do alcance do tiro.
- Óptimo, já temos a tortilha e o assado! Aproximaram-se dos buracos que serviam de ninho aos cisnes e encontraram seis ovos em cada um. Eram maiores que os ovos de pata e a casca era branca-esverdeada.
- Talvez sejam muito velhos - objectou Armando.
- Nada disso! Não têm mais do que três dias.
Dirigiram-se ao acampamento com a caça, quando a cinquenta passos escutaram um som que parecia ser proveniente de um tambor.
- Que será isto? - interrogou Armando.
- Hum, talvez seja Back.
- E porquê? Nunca gostou de música. Temo que sejam índios.
- Apertaram o passo e chegaram ao acampamento no instante em que entravam nele dois índios parecendo pertencer a uma tribo Tanana. Falcone e Back dirigiram-se a eles a passo. Começaram a travar uma animada conversa, sem que se entendessem uns com os outros, qundo Bennie se acercou.
- Que querem?
- Não sabemos; estes índios não percebem inglês.
- Vamos ver se os entendo...
E Bennie começou a falar um dialecto, composto por palavras francesas e inglesas. O Chinuk, que todas as tribos do Alasca compreendem e utilizam no tráfico de peles.
Um dos índios ao ouvir Bennie falou imediatamente.
- Viemos pedir aos brancos que nos ajudem a curar o chefe da nossa tribo.
- Não tendes feiticeiro?
- Temos dois, mas o mais velho foi fazer uma longa viagem e o outro é muito jovem e não sabe curar.
- Feriram-no?
- Não!
- O que é que se passou com o vosso chefe?
- Tem espíritos malignos.
- Nós não temos relações com espíritos malignos e não podemos fazer nada por ele.
- Recebi ordem de levar os dois brancos comigo e vou fazê-lo.
- Estou-te a dizer que não conhecemos o espírito de lado nenhum.
- Os brancos sabem fazer coisas maravilhosas.
- Vai para a tua aldeia.
- Não conheces os Tanana? Podem fazer-te pagar caro o recusares a vir comigo.
Bennie conhecia-os bem; os Tananas eram valentes e resolutos e ele compreendia que não conseguia convencê-los. Assim, disse aos índios que esperassem uma hora, pois tinham desejos de provarem os ovos que tinham trazido.
Depois de comerem, empreenderam todos a viagem até chegarem a um regato afluente do Yucão, perto do qual havia aldeia de umas cinquenta tendas de pele, de forma cónica e pintadas com muitas cores.
Havia também umas choças de madeira e ramas. Ao chegarem, os cães começaram a ladrar furiosamente e as mulheres e os miúdos juntaram-se para contemplarem os brancos.
As mulheres estavam cobertas com umas capas de pele tingidas de cores vivíssimas e algumas levavam às costas os seus filhos, que iam metidos numa espécie de caixa de madeira que os segurava desde o ventre até aos pés.
Aproximou-se em seguida o feiticeiro, um homem muito alto, coisa estranha, já que os Tananas costumam ser de baixa estatura. Levava o rosto pintado de vermelho e as orelhas de negro: dois ossos atravessavam-lhe as cartilagens do nariz.
Deu aos nosso amigos as tradicionais boas vindas e despediu-se da tribo, fazendo entrar os brancos numa cabana entrando ele atrás. Como fechou a porta e a cabana não tinha janelas, o feiticeiro deu a Bennie um objecto para que este o acendesse.
Falcone e Armando não puderam conter uma exclamação, ao verem que Bennie sustinha um peixe incendiado pela cauda. Com efeito, por ali haviam uns peixes muito gordos cuja gordura era superior à da oliva, os quais acesos na cauda proporcionavam um par de horas de uma luz clara e brilhante.
O feiticeiro, muito amável, deu aos brancos uma garrafa de genebra que provavelmente tinha conseguido na troca de uma pele, no Fort Scelkirk e, em seguida passou a contar-lhes o mau estado do chefe. Tinha experimentado todas as maneiras para tirar o espírito maligno do corpo, mas tinha sido inútil. Agora toda a tribo estava segura de que os brancos curariam o seu chefe.
- Que passarão! - disse Bennie. - Para que não o culpem da morte do chefe, põem em perigo as nossas peles, mas vamos ver quem ganha.
- Que é que vamos fazer? - perguntou Falcone.
O feiticeiro levou os brancos à tenda onde se encontrava o chefe enfermo. Oito guerreiros jovens escoltaram-nos. O pobre homem jazia num leito de peles, rodeado de amuletos. Devia ter pelo menos oitenta anos e estava enrrugadíssimo e muito magro. Padecia de uma forte tosse que lhe sacudia todo o corpo.
- Que lhe parece? - perguntou Bennie ao mecânico.
- Este homem não tem remédio, é muito velho e o pior é que apanhou uma pneumonia.
- Não haverá maneira de pô-lo de pé, mesmo que dure algumas horas, só para podermos partir?
- Não passa desta noite. Amanhã estará morto.
- Bolas para o feiticeiro! Quer que nós tomemos a responsabilidade e assim ficará livre de toda a culpa.
E voltando-se para o feiticeiro, disse:
- O chefe está mal.
- Eu sei. Mas os brancos vão curá-lo.
- Só há uma medicina que o poderá curar e eu não a tenho.
- No Forte Scelkirk.
- Está muito longe.
- Com os nossos cavalos chegamos lá em quatro horas.
- É impossível!
- Tu não conheces os nossos cavalos.
- Bom, mas se não voltares? Mandarei um dos meus guerreiros.
- O chefe do forte só dará a medicina aos brancos. E depois nem tu nem os teus guerreiros sabem montar.
- Pode ir um de vós - O chefe do forte pensaria que nos tinhas feito cair numa cilada tão pouco dava a medicina.
- Então eu irei também.
- De acordo.
- Vamos!
- O canadiano pensou para consigo: "Já verás que lindo salto te farei dar assim que sairmos da aldeia, bandido."
Já estavam recolhendo as suas coisas e dispondo-se para montar, quando entraram na aldeia cinco homens, a quem as mulheres rodearam em seguida. Puseram-se a chorar, golpeando-se no peito.
- O que se passa? - perguntou Falcone.
- Parece que morreu um feiticeiro - contou Bennie.
- Será o velho que estava fazendo uma grande viagem?
- Parece que sim.
Rapidamente os cinco guerreiros recém chegados se precipitaram sobre Armando ameaçando-o com as facas e os machetes. Um deles voltou-se para o povo e disse:
- Este é o homem que matou o nosso feiticeiro!
Bennie exclamou:
- Arranjámo-la bonita.
E ajudado pelos outros, investiu a patadas e a murro contra os guerreiros que colhidos de surpresa não raciocinaram a tempo e soltaram Armando.
- Vinde! - disse Bennie então. - Vinde ou estamos perdidos.
E entraram os quatro numa cabana.
Rapidamente Bennie deu-se conta do enorme perigo que corriam.
Foi Armando o que tinha disparado aquela bala sobre o feiticeiro quando saiu do bosque montado no alce pelo qual susteve uma discussão com os índios.
Antes que os índios se refizessem da surpresa, já os brancos estavam entrincheirados no armazém das peles e dispostos a vender caras as suas vidas.
Os índios, ao verem onde se tinham escondido os brancos, armaram-se. O feiticeiro parecia ter muito interesse em capitanear a luta, pois assim ser-lhe-ia fácil dizer que os brancos tinham morto o chefe lançando-lhe um malefício.
- Pelos cornos do bisonte! A coisa está feia.
- São mais de cem - disse Falcone.
- Mas nós temos armas de fogo. Que dizes Armando?
- Não espero mais do que as suas ordens para abrir fogo.
- Espera. Vem aí o feiticeiro, parece que quer parlamentar. Efectivamente, o feiticeiro aproximou-se da casa, Bennie saiu com o revólver no cinto e ambos os homens se puseram frente a frente.
- Escuta homem branco; vai falar um chefe.
- Escuto.
- O mais novo dos teus amigos cometeu um grave delito. - Ah sim?
- Matou o nosso feiticeiro.
- É verdade. Mas sabes porquê? O feiticeiro queria matá-lo por ele não ceder um alce que não pertencia ao Tanana.
- Isso não sei.
- Mas é verdade.
- Pode ser que seja verdade, mas deve morrer porque matou um sacerdote Tanana.
- Pensas que vamos deixar que o matem? Ele matou um Tanana para se defender, e tu sabes bem que nós também temos armas de fogo para nos defender. Podes ir dizer isto aos teus guerreiros.
- O homem branco fala como um miúdo.
- Mas o homem branco está acostumado a lutar com índios.
- Somos muitos.
- Mas nós temos espingardas.
- O homem branco quer guerra?
- Não; mas se não houver outro remédio.
- Há outra maneira de evitar o derramamento de sangue - disse o feiticeiro.
- Qual?
- Curar o nosso chefe, depois deixá-los partir.
- Amigo, já sabes que o chefe morrerá, não há nada para curá-lo.
- Mas disseste que no forte Scelkirk havia uma medicina para ele.
- Não era verdade.
- Mas o que é que queriam?
- Que nos deixassem em paz! Já te podes ir embora! Que nos deixem passar livremente ou enfiamos uma bala na vossa cabeça!
O feiticeiro apressou-se a reunir-se com os guerreiros, contando-lhes o mau resultado da entrevista. Começaram a pular e os brancos não' querendo ser os primeiros a começar as hostilidades, lançaram uma descarga para o ar.
- Os Tananas apressaram-se a correr para trás das cabanas.
- Não parecem muito valentes - disse Armando.
- Não digas isso. Os Tananas têm fama de serem muito valentes e os Russos bem sabem. Tiveram que lutar com eles durante muitos anos - disse Bennie.
- Mudaram de planos - anunciou Back.
- Que dizes?
- Que se preparam para sitiar-nos.
- Acha que sim?
- Tens razão, Back - disse Bennie - estão a esconder-se por detrás das tendas e vigiam-nos.
- Porque não saímos de improviso?
- É uma asneira. São mais de cem e agarram-nos logo.
- Que podemos fazer Bennie? - perguntou então o mecânico.
- Tentar fugir de noite.
- Confiamos em si Bennie.
- Ainda mais, tenho uma ideia na cabeça.
- Qual é? - perguntou Armando sempre impaciente.
- Já a verás. Tenho que a amadurecer.
Trancaram as portas e abriram dois buracos para poderem ver o que passava no exterior e poderem sacar e disparar as armas. Acenderam também alguns peixes-velas e já se dispunham a fazer a ceia pois tinham algumas provisões, quando foram sobressaltados por uns uivos impressionantes.
Crendo que os Tananas os iam atacar, aproximaram-se com rapidez dos buracos para se defenderem, mas viram que se tratava de uma nova tentativa por parte do feiticeiro para tirar o espírito do corpo do chefe.
Para isso haviam feito grandes preparativos. Acenderam quatro enormes fogueiras, no centro das quais colocaram o chefe sobre umas peles. O pobre tossia convulsivamente.
Os índios começaram a cantar e, entretanto, o feiticeiro gritava gesticulando como um louco, agitando os braços e as pernas como procurando agarrar o espírito maligno que rondava o chefe enfermo.
Umas vezes agarrava-o e tratava de o apertar contra o seu peito, mas sempre se escapava. Subitamente desatou a correr como um condenado, era sinal que o espírito se tinha apoderado do corpo do feiticeiro, fazendo com que se rebolasse no solo e lhe saíssem os olhos das órbitas e sair espuma pela boca.
Mas no fim, o feiticeiro pôde libertar-se e voltou para junto do chefe. O pobre velho, que tinha uma confiança cega no sacerdote, levantou-se com toda a sua boa vontade; deu uns passos, mas imediatamente caiu morto.
Os Tananas começaram a gritar de dor, entretanto o feiticeiro fugiu por pensar que o culpariam. Bennie viu-o e disse-lhe:
- Ah, farsante! Agora tratas de te pôr ao fresco,- quando vês que não podes utilizar-nos para os teus fins...
- Que se passará agora?
- Enterram o chefe morto e elegem outro.
- E que vão fazer de nós?
- Pode ser que sejamos ainda mais vigiados.
- Mas o que é que nós temos com a morte do chefe.
- Devem pensar que o não quisemos curar e que lhe lançamos um malefício. Quem é que sabe o que eles pensam... O pior é sacrificarem-nos.
- Sacrificam seres humanos sobre a tumba do chefe?
- Fazem-no algumas tribos Khutsco. Sacrificam as velhas e os escravos para que acompanhem o chefe na sua longa viagem.
- Vão-nos fazer isso?
- Não te preocupes, Armando. Tenho uma pequena surpresa para os Tananas esta noite. Só queria saber onde estão os nossos cavalos.
- Estupendo. Então vamos jantar e não nos preocupemos mais com os índios.
Como não tinham lenha, Back e Bennie acenderam uns quantos peixes-velas e cruzaram uns ferros; sobre eles, colocaram um pedaço de cisne. Preferiam cozê-lo, mas como não tinham água tiveram que o comer assado.
Entretanto os mineiros faziam a ceia. Os italianos olhavam pelos buracos as cerimónias do enterro. Eram bem simples. Na frente da tenda do morto tinham plantado uma árvore, pintada de cores vivas e cujos ramos tinham pendurados facas, dentes de animais, peles de lontra, de marta e de lobo. As roupas do defunto iriam ser repartidas pelos parentes mais próximos.
Colocaram a tumba, que era uma espécie de canoa de bétula, no meio do lago e acenderam numerosas fogueiras sobre as quais puseram grandes pedaços de urso e de peixe para assar, pois é costume deste povos comer antes de enterrar os mortos.
Começava a fazer-se noite, quando Bennie reuniu os seus amigos.
- Há que pensar no momento da fuga.
- Que podemos fazer?
- Um baile de máscaras.
Os dois italianos olharam-se com espanto, entretanto Back, que tinha captado a ideia do seu companheiro, riu-se.
- Explique-se.
- Venha comigo!
Aproximaram-se todos de um canto onde estavam amontoadas muitas peles. Bennie pegou numa de urso e pô-la por cima de si, agachou-se e começou a andar a quatro patas e a grunhir como um urso.
- Que me dizem? Não pareço um verdadeiro urso cinzento?
- Um pouco baixo; mas de noite...
- Pois bem, estou seguro de que vamos produzir um efeito excelente.
- Pensas assustar os Tananas?
- Penso que sim! Verem-se atacados por nada mais nada menos, que por quatro ursos cinzentos...
Riram-se todos contentes ao verem-se já quase salvos.
- Bom, vamos a isso - disse Bennie. - Em primeiro lugar abramos um buraco na parte posterior da cabana; não seria bom sair pela porta.
- Veriam que éramos nós disfarçados de ursos.
Bennie, antes de dar ordens para começar o trabalho acercou-se de uma vigia para ver o que é que os índios faziam.
O momento não podia ser melhor: todos estavam a dançar e a cantar em redor do túmulo, despedindo-se do chefe.
Abriram com os machetes uma abertura na parte posterior da cabana e logo, como puderam, ocultando as espingardas, envoltos nas peles saíram do esconderijo e ocultaram-se atrás de umas moitas.
Os índios estavam distraídos com danças, quando os quatro futuros mineiros se levantaram e trataram de imitar o grunhir dos ursos cinzentos, os mais temíveis do Alasca.
Os índios estavam tão entusiasmados com as suas danças e gritos que não se aperceberam da presença dos supostos ursos; mas logo largaram um unânime grito de terror.
Todos os habitantes da aldeia empreenderam uma fuga desesperada, derrubando os assados e saltando sobre as fogueiras. Nos primeiros momentos ninguém pensou em apanhar as armas, devido à surpresa que lhes causou a presença das quatro feras.
Como a aldeia ficou completamente abandonada, Bennie e seus amigos puderam cruzá-la com facilidade. Chegaram até ao sítio onde se encontravam os cavalos e ali tiraram as peles, carregaram os alforges e montaram em seguida.
Os índios, dando-se conta do engano, saíram rapidamente dos seus esconderijos, raivosos por terem sido enganados pelos brancos, dispostos a impedir a fuga.
Três ou quatro dos mais novos índios correram rapidamente a segurar nos cavalos, entretanto outros tentaram com as lanças acertar no corpo dos cavalos. Bennie, compreendeu que se não tomasse uma decisão rápida, estavam perdidos, disparou à queima roupa, matando dois índios. Os outros retrocederam de momento, o que Bennie aproveitou para dar ordem de partida.
- A galope! Rápido!
Os ginetes saíram velozmente, perseguidos pelos índios, que são excelentes corredores. Os futuros mineiros não se preocupavam com a perseguição, já que confiavam na ligeireza dos seus cavalos; mas de vez enquando voltavam-se para disparar ao vulto, pois a escuridão era grande e nada se distinguia.
Poucos minutos depois, os nossos amigos chegaram à floresta e internaram-se nela. Ouvia-se cada vez mais longe os gritos dos índios! Pois por mais rápidos que fossem não podiam competir com os cavalos. Pouco depois deixaram-se de ouvir completamente.
- Voltaram para trás, vendo que não podiam alcançar-nos - disse o canadiano. - Pensaram que nos podiam deter? Coitados!
- Para onde vamos Bennie?
- Sempre para norte. Quando chegarmos ao Yucão tomaremos a direcção do forte.
- Pensa que os Tananas voltarão a molestar-nos?
- Não creio. Voltaram para enterrar o seu chefe morto.
- Paramos para descansar durante a noite?
- Não temos outra solução. Os cavalos estão esgotados para continuar e com esta escuridão corremos o perigo de cair nalgum buraco ou metermo-nos num pântano, seguimos um pouco, mais devagar e depois descansaremos.
Deram dez minutos de descanso aos cavalos e recomeçaram de novo a marcha que durou cerca de uma hora, ao cabo da qual se detiveram numa corrente que ia de Norte a Noroeste; um provável afluente do Yucão.
Não se atreveram a entrar na água, pois não sabiam se era profunda e a corrente parecia muito rápida. Assim decidiram parar ali e descansar o resto da noite.
Desmontaram e estenderam as mantas muito juntas, pois a noite era excessivamente fria. Não tiraram nem os arreios nem as cargas aos cavalos, para o caso de terem de fugir de improviso.
Tão pouco se atreveram a acender uma fogueira para não delatar a sua presença no caso de alguns índios os terem seguido. Aquela noite foi mais desagradável do que se pode imaginar. Fazia um frio terrível e Back, que não estava habituado àqueles rigores, não parava de bater o dente.
Ao amanhecer, acenderam uma pequena fogueira para aquecer água e fazer chá. Bennie estava saboreando aquela bebida, que ia aquecer os corpos, quando os cavalos começaram a relinchar.
- Que se passa senhor Bennie? - perguntou Falcone alarmado.
- Será um animal... - disse Bennie.
- Pode ser que sejam os Tananas.
- Outra vez?
- Pode ser que nos seguissem sem gritar.
Pegou na espingarda e em seguida Bennie desapareceu por entre as árvores.
Havia uma neblina muito densa que flutuava perto do rio, mas o canadiano não era homem que se perdesse facilmente.
Os seus companheiros tomaram chá, prenderam os alforges nos cavalos e aguardaram dispostos a montar quando Bennie regressasse. Este tardou uns dez minutos a chegar e vinha acalorado e excitado.
- A cavalo! Rápido!
- São os Tananas?
- Já aí estão!
Montaram de seguida e saíram a galope, precedidos pelo quinto cavalo que levava as provisões. Depressa deram conta de que não podiam atravessar a corrente que era muito forte.
- Vamos por esta margem! - disse Bennie. - Talvez encontremos alguma passagem.
E assim o fizeram. Mas a situação estava a pôr-se difícil. O caminho da margem ia-se fazendo mais estreito. O rio tornava-se mais bravo e cheio de remoinhos, não havia esperanças de encontrar um vau nem ponte que permitisse fugirem do alcance dos seus perseguidores.
Bennie, intranquilo pensava:
- Temos de chegar ao Yucão para encontrar uma ponte? Os nossos cavalos não resistirão por muito tempo este passo, com o nosso peso e a carga por cima.
De vez em quando os quatro homens olhavam para trás para ver se já distinguiam os seus perseguidores, mas até àquele momento ainda não tinham aparecido.
Um pouco mais adiante, Bennie distinguiu uma linha negra no horizonte. Seria uma ponte? Algumas palavras de Armando desviaram a sua atenção - Vejo uns vultos lá em baixo atrás de nós.
Eram os índios. Ao verem os brancos lançaram um enorme grito, seguros já da vitória. A única esperança de salvamento era aquela linha negra sobre o rio, fosse uma ponte ou uma passarela.
- Façamos um último esforço! - pediu Bennie.
Esporearam os cavalos que redobraram os esforços e chegaram até à passarela. Esta era formada por três troncos bastante velhos e inseguros, mas não era o momento de vacilar.
- Quando chegarmos à outra margem cortaremos os troncos. Vamos amigos!
Bennie, pegando no cavalo de carga, conduziu-o através da passarela. O animal relinchou com medo, quando viu que por baixo das suas patas corria furiosamente o rio, mas o caçador, segurando-o fortemente pelo freio obrigou-o a passar.
Os outros fizeram o mesmo. Bennie voltou a cruzar a ponte para ir buscar o seu cavalo, quando os índios estavam só a cinquenta metros. Os outros estavam preparados com as machetas para cortar a ponte no momento em que Bennie estivesse a salvo com eles.
Estava a metade da ponte. O canadiano quis passar com o cavalo à sua frente, animando-o com a sua voz. Então ouviu nas suas costas uma voz conhecida que lhe dizia:
- Morre, homem branco!
Era o feiticeiro que com um machado na mão estava disposto a cortar os troncos da ponte.
- Disparem! - gritou Bennie.
Mas antes que os seus companheiros apontassem, o feiticeiro descarregou um terrível golpe e o tronco em que Bennie ia, precipitou-se no abismo. Este abraçou-se estranhamente ao tronco. O cavalo com um salto chegou ao outro lado.
Então, Armando disparou e o feiticeiro caiu morto. Cortaram os restantes troncos para que os índios os não seguissem.
Ouviram então a voz de Bennie que gritava:
- Não larguem o tronco! Fujam!
Armando e os outros montaram sem fazer caso dos índios, que gritavam do outro lado e lhes lançavam uma chuva de flechas.
Sobre a rápida corrente do rio ia Bennie montado sobre o tronco e com a espingarda, que tinha conseguido conservar às costas, para ter as mãos livres e poder dirigir o tronco até à margem.
Os companheiros seguiam a corrente do rio com esperança de recuperar o seu amigo; o mesmo faziam os índios, que, vendo o seu principal inimigo esperavam que um remoinho o tragasse, ou rebentarem-lhe a cabeça antes que conseguisse chegar à outra margem.
Os brancos, fazendo correr os cavalos, chegaram onde estava Bennie e lograram ultrapassá-lo.
- Ânimo, amigo! - gritou Falcone.
- Lança-me uma corda! A corrente arrasta-me!
Back, que era muito habilidoso com o laço, como todo o mexicano, desenrolou uma corda de fibra grossa e lançou-a até onde estava Bennie, conseguindo agarrá-lo por um braço. O canadiano vendo-se seguro, saltou do tronco e Back, ajudado por Armando, içaram o amigo que estava todo molhado.
- Pelos cornos do bisonte! - disse o caçador ao achar-se em terra. - Estou gelado.
O senhor Falcone tinha aberto um dos alforges e oferecia uma garrafa a Bennie.
- Beba; é Genebra da melhor, reservada só para as grandes ocasiões.
- E esta é uma boa ocasião!
Entretanto, e recompondo-se um pouco, os índios, que tinham chegado à sua frente na outra margem do rio, aproveitaram aquela ser mais estreita, para lançar flechas. Uma delas roçou o ombro de Back e então Armando disparou, matando alguns índios.
Os outros, atemorizados e vendo que não podiam ripostar àquelas armas de tanta precisão e eficácia, retiraram-se para o bosque.
- A cavalo! - disse Bennie.
- Você está gelado. É melhor aquecer-se.
- Bah! Tenho a pele muito dura e estou acostumado a banhos deste tipo, não é verdade Back? É melhor continuarmos o caminho até acharmos um bom sítio para acampar.
Montaram outra vez, dirigiram-se para a floresta que havia ao Norte e acamparam numa clareira rodeada de pinheiros. Deste lado dominava-se a margem oposta do rio.
Em pouco tempo montaram a tenda e acenderam uma fogueira para assar um pedaço de cisne; entretanto, Bennie, desapossado das suas roupas e envolvido numa manta; saboreava tragos de genebra para acabar com o frio.
Depois de terem comido, tinham esgotado as provisões, mas estenderam-se para descansar depois de tantas aventuras. O mexicano ficou encarregado da primeira guarda enquanto os outros dormiam na tenda.
Os índios não apareceram em toda a noite e ao amanhecer, já recompostos, homens e animais, dispuseram-se a continuar viagem até ao forte Scelkirk.
Naquela zona parecia não haver muita caça, mas Armando conseguiu um pato silvestre e Back encontrou uma dúzia de ovos de cisne abandonados. Isto fez a ceia dos futuros mineiros.
Na manhã seguinte chegaram ao forte Scelkirk.
O forte Scelkirk, tinha sido fundado já há alguns anos,-estava situado na margem esquerda do Yucão e a pouca distância do MacMillan, que é um dos afluentes mais importantes.
Igual aos outros fortes da região, estava rodeado por uma espécie de muralha composta por troncos aplainados toscamente, mas muito altos e fortemente cravados no solo, para servirem de protecção no caso dos índios atacarem.
Bennie e seus companheiros, foram recebidos amavelmente pelos caçadores que lá habitavam.
O interior do forte compunha-se de várias casas de madeira, com o telhado formado por cinco troncos. Umas eram armazéns de peles que serviam para o comércio com os índios e as outras, vivendas dos caçadores e ainda as dos representantes da companhia peleira americana.
Em seguida, os futuros mineiros trataram de arranjar uma chalupa, trocando-a pelos cavalos, para poderem cruzar o rio e evitar assim uma grande curva do Yucão naquele sítio. Mas para sua desilusão o comandante disse-lhes que só tinha uma embarcação, mas que lhe era necessária para cruzar o rio em serviço do forte; aconselhando-os a venderem os cavalos em Dawson, onde eram muito estimados, chegando-se a pagar por um mau cavalo 400 dólares.
Tinham que esperar que a embarcação fosse à outra margem para os levar. Para mais as notícias referentes às minas de ouro eram boas. Tinham-se descoberto filões perto do rio Klandyke e vários homens tinham-se tornado ricos em poucas semanas.
Estas notícias tinham feito partir dezassete homens da população do forte, indo em busca do ouro, e o pobre comandante receava que os onze que restavam fizessem o mesmo.
Os futuros mineiros ficaram quatro dias no forte. Bem apetrechados com víveres, cordas, enxadas e também ferramentas próprias para a extracção de ouro, fizeram-se transportar para a outra margem com os cavalos.
Uma vez ali, empreenderam a marcha para Oeste através de terrenos áridos e pantanosos, onde apenas se distinguia vegetação. Também a caça era escassa. Só de vez enquando viam uma mofeta, Skunk como lhe chamavam os índios.
Não são animais perigosos, mas para se libertarem dos perseguidores lançam uma espécie de líquido fétido; e que mantém durante várias semanas o estômago revolto.
Já levavam dois dias de viagem quando:
- Que é aquilo? Olhe bem, senhor Falcone - disse Bennie detendo o seu cavalo.
- Parece uma floresta de árvores brancas.
- Serão árvores petrificadas? Já se encontraram algumas.
- Mas parecem ursos - disse Back.
- Quem sabe. Será verdade a lenda de Jorge Hughes?
- Quem era Jorge Hughes, senhor Bennie?
- Depois falaremos disso; agora vamos averiguar se são árvores, ursos, ou ossos de animais da época dos mastodontes.
Lançaram os cavalos a galope e pouco depois encontravam-se no meio de uma espécie de gigantesco funil onde estavam amontoados esqueletos enormes. Era uma embrulhada de costelas, presas, ossos, crâneos e espinhas dorsais.
Parecia que milhares de animais pré-diluvianos se tinham reunido naquele local para morrerem juntos, isto há milhões de anos. Entre aqueles ossos, Falcone pôde distinguir esqueletos de cervos gigantes, animais pertencentes a uma raça já extinta há milhões de anos; estes animais eram parecidos com os alces, mas eram grandes como os elefantes e tinham uns enormes cornos.
Havia também mastodontes, outros animais de grande porte; cinco metros de altura e cinco de largo, com patas de dois metros e meio de circunferência e o corpo coberto de placas ósseas.
Igualmente podiam distinguir-se dinossauros, espécie parecida com os mastodontes, mas com largas costelas curvadas até abaixo e mamutes, espécie de elefantes, de tamanho três vezes maior que os actuais. Encontraram-se destes animais pela primeira vez na Sibéria.
- Quanta riqueza perdida! - exclamou Falcone. - Há aqui marfim suficiente para nos tornar ricos sem necessidade de ir para as minas de ouro.
- É verdade, mas precisamos de centenas de cavalos para poder fazer o transporte e nós não os temos.
- E também enormes barcos.
- Foi por aqui que Jorge Hughes deve ter feito fortuna. Julguei que se tratava de uma lenda, mas parece-me que é verdade o que ouvi.
- Quer contar-nos a história de Jorge Hughes, senhor Bennie? - perguntou Armando.
- Era um pesquisador de ouro que, quase moribundo, foi recolhido pelos índios e adoptado pela tribo. Ao fim de alguns anos descobriu um cemitério de animais pré-diluvianos, ajudado pelos seus amigos índios, transportou-o até à costa onde o embarcou. Depois vendeu-o aos Estados Unidos por milhões.
- Só nós é que não encontramos uma tribo de índios que nos ajudem a transportar estes ossos...
- Já vimos que não temos sorte com os índios, é melhor continuar o nosso plano e deixarmos estes restos a outros que tenham menos pressa em abandonar estas terras.
Com certa pena deixaram aquele lugar, que os poderia tornar tão ricos como o ouro também o podia fazer. Depois seguiram a sua marcha até ao rio Klondyke.
Explorando os arredores em busca de caça encontraram alguns poços, feitos sem dúvida por pesquisadores de ouro. Ali havia algumas pepitas de ouro, mas tão poucas que não valia a pena recolhê-las. Mas este descobrimento animou-os muito e Bennie disse:
- Parece-me que estou a começar a ter a febre do ouro. Quem sabe quantas riquezas se ocultam no interior destas terras!
- Dir-se-ia que a terra americana está cravejada de ouro e prata, porque desde o dia em que se descobriu está dando incessantemente preciosos metais - disse Falcone. - Sem exagero pode-se dizer que antes dos europeus pisarem estas regiões Peru, Brasil, Venezuela e México transbordavam de ouro e prata. O Botosi deu prata ao mundo durante três séculos e com ela se cunharam moedas de todo o mundo.
- Pelos cornos do bisonte!
- Em Caracas recolheram-se durante muitos anos pepitas de prata tão grandes que os índios lhe chamavam papa. No Chile também houve filões de prata. Calcula-se que foi durante dois séculos, o período que a América produziu e deu cerca de noventa por cento dos metais preciosos ao mundo.
- Que minas tão ricas! Mas isso faz com que baixe o preço dos metais preciosos, no mercado.
- É verdade, Bennie, e prefere-se o ouro à prata.
- Senhor Falcone, eram muitos escassos esses metais?
- No tempo dos romanos não havia escassez, pois calcula-se que possuíam mil milhões de quilos, mais do que quando circulavam pela Europa na Idade Média. No final desta, aqueles metais eram raros, devido sem dúvida a terem-se deixado de explorar as minas de então. Quando se descobriu a América, a coisa mudou por completo e pôde-se dizer que no ano de 1850, a produção de ouro era de 4 752 070 quilos e a prata de 149 026 790 quilogramas.
- Pelos cornos do bisonte! Devia ser muito das minas do Colorado e da Califórnia.
- Efectivamente, Bennie, se bem me recordo, a produção de ouro e prata nessas zonas desde 1870 a 1885 elevava-se a cento e dez milhões de dólares.
- E as do Alasca?
- Ainda não se sabe quanto dinheiro podem dar, mas parece que cada dia produzem mais.
- Que sorte se descobrimos uma boa mina!
- E porque não? Dispomos de bons recursos.
- A que se refere senhor Falcone?
- Verá quando chegarmos. Temos um instrumento que os outros não têm.
- Mas é melhor regressar ao acampamento porque não há caça por aqui.
- Por acaso temos provisões suficientes para chegar a Dawson.
- Do mal o menos.
Naquela noite, durante o sono, Bennie sonhara que se encontrava rico e via montanhas de ouro e de prata. Era proprietário de umas minas repletas do precioso metal.
No dia seguinte chegaram a Dawson.
Dawson está situada nos mesmos limites que separa o Alasca das possessões do noroeste. Era uma cidade nova, pois no ano de 1876 não havia naquele lugar nem uma cabana, mas a descoberta dos jazigos de ouro nas proximidades fizeram com que em pouco tempo se erguesse uma cidade com tendas, correios, casas de jogo e bares, com uma população de 3500 habitantes.
Inclusive contava com um periódico: o Klondyke News (As notícias de Klondyke), que durou pouco tempo, pois dizia-se que os redactores e impressores deixaram o trabalho para irem para as minas.
O dinheiro circulava com rapidez nesta cidade. Calcula-se que um par de ovos fritos custavam em qualquer bar vinte e cinco cêntimos e um bife com osso, de lobo ou de raposa, cerca de meio dólar.
Em Dawson estavam também jogadores e comerciantes desejosos de depenar quantos incautos lhes caíssem nas mãos com pepitas de ouro.
Mais tarde os ianques instalaram ali um teatro, um hospital e grandes armazéns para a Alaska Comercial Company e para a North American Transportations and Trade Company, poderosas companhias navegadoras, que possuidoras de sete vapores cruzavam as águas do Yucão durante os quatro meses no ano em que este rio não estava gelado, dando provisões à cidade e transportando até ela os homens tocados pela febre do ouro.
Ao chegar a Dawson, Bennie e seus camaradas decidiram dormir numa estalagem e continuar alguns dias depois até Klondyke, adquirindo o necessário para a viagem.
Entre todos, tinham uns mil dólares e contavam vender os cavalos por bom preço, ficando já com bastante dinheiro. A maior estalagem era composta por um só piso, construída com tábuas e dividida em compartimentos com cortinas de lona.
Pediram-lhes dois dólares a cada um por cada cama e o jantar custou-lhes também um dinheirão.
- Pelos cornos do bisonte! - exclamou Bennie, indignado.- Se ficássemos muito tempo nesta cidade, ficávamos lisos.
- O que vale, é que vamos embora depressa.
- O mais rápido possível!
- Creio que no máximo dentro de três dias.
O estalajadeiro ficou com os cavalos, dando-lhes trezentos e trinta dólares por cada cavalo. Uma vez com o dinheiro no bolso, os futuros mineiros começaram a indagar quais seriam os melhores terrenos auríferos e a pensar em comprar o necessário para a exploração das minas.
Foram a uma barbearia onde lhes cortaram o cabelo e a barba, e também lhes cobraram uma barbaridade. E ficaram mudos de assombro quando lhes pediram vinte dólares para ferrar dois dos cavalos com que tinham ficado.
Adquiriram mais tarde quinhentas libras de farinha, cem de feijão, cinquenta de carne de porco, trinta de café, cem de açúcar, vinte de chá, pimenta, sal, chumbos, balas; enfim, gastaram grande parte do seu dinheiro.
Em Dawson tudo era muito caro. Os artigos de primeira necessidade, tais como os alimentos, as roupas e os serviços médicos alcançavam preços exorbitantes.
Os futuros mineiros estiveram todo o dia entretidos com as compras,- jantaram na pensão, e logo decidiram visitar alguns desses locais de vício e de jogo, para se inteirarem dos últimos descobrimentos auríferos. Mas como não ignoravam que naqueles lugares haviam gentes de toda a espécie e eram frequentes as rixas, armaram-se com os seus revólveres para o caso de haver peleja. Naquela cidade não havia qualquer espécie de autoridade civil e cada um fazia valer os seus interesses.
A principal casa de Dawson chamava-se "Rio de Ouro"; e nela entraram os nossos amigos. Não era mais do que uma grande sala com muitas mesas rústicas rodeadas de tamboretes feitos com troncos de árvores cortadas.
O proprietário, um homenzarrão, alto e forte com uma barba ruiva que lhe chegava ao peito, trazia na cintura dois revólveres. Dois negros, também altos e com dentes brancos, serviam apressadamente as mesas onde se encontravam uns trinta mineiros. Todos pálidos, de barba e cabelo revolto, que lhes dava um ar selvagem. Nenhum estava desarmado, todos tinham os revólveres à cintura, também 'tinham bolsas que poderiam estar cheias de pepitas de ouro.
Também bebiam muito; uns bebiam taças de uísque ou genebra; outros, copos de brande e também uns líquidos ardentes que emanavam aromas que nenhum dos nossos amigos conhecia. Talvez misturas fabricadas pelo taberneiro para produzir sensações novas naqueles paladares alcoolizados!
À volta de uma mesa estavam oito ou dez mineiros, que jogavam aos dados. Em frente de cada um deles havia montinhos de pó de ouro ou pepitas, e ao lado de cada uma dessas riquezas estava uma faca ou um revólver para salvaguardar os tesouros.
Estes homens, com as suas grandes barbas e os seus trajes esfarrapados, mais pareciam bandidos do que mineiros. Quando os nossos amigos se acercaram do grupo, parecia estar ganhando um jovem de vinte e cinco anos que se destacava do grupo.
Era um rapaz vistoso, de olhos negros, pele morena e elegante. Trazia um chapéu de aba larga. Pelas suas feições parecia sul-americano, talvez mexicano. O seu rosto permanecia impassível e ressaltava por entre as feições exaltadas dos seus camaradas de jogo. Fumava com tranquilidade e estava impassível perante a fortuna que tinha ganho.
- Eis ali um homem com sorte - disse Bennie, acercando-se com seus amigos à mesa. - Deve estar a ganhar seis ou sete mil dólares.
- Oito mil e quatrocentos - respondeu o mexicano.
- Bonita soma!
- Pode ser que me custe cara, no Alasca a fortuna é perigosa.
Um dos jogadores, baixo e gordo, levantou a cara e disse:
- O que é que o senhor quer dizer com isso?
- Nada.
- Giro! Depois de nos roubar ainda nos insulta.
- O que é que você disse? Roubou-nos?
- Sim disse isso; e estes senhores pensam como eu - respondeu o homem gordo.
- Mente! - disse o jovem.
- Que o digam os restantes jogadores!
- Pois que o digam!
Os restantes deram um grunhido que tanto poderia ser uma afirmação como uma negação. Somente um disse secamente:
- Não é verdade.
- Eu joguei com honestidade, mas se não pode perder tanto estou disposto a reembolsá-lo.
- Não reclamo o ouro, afirmo só que és um ladrão. Bennie, que se encontrava junto do jovem mexicano, achou que era chegada a oportunidade de intervir.
- Senhor, devo dizer-lhe que já há um quarto de hora estou observando o jogo e posso assegurar-lhe que este cavalheiro fez um jogo limpo.
- Os mirones não têm que meter o nariz nos assuntos do jogo--disse o homem gordo.
- Senhor, eu falo quando julgo conveniente e se alguém me fala aos berros, tenho meios para o fazer falar mais baixo.
O jovem mexicano interpôs-se:
- Obrigado pela sua intervenção, senhor, mas para dar uma lição a este porco, eu chego.
- Vem dar a lição, mexicano!
E sacou do revólver, mas antes de ter tempo para disparar, o taberneiro, que se tinha apercebido da questão, colheu com força o pulso ao gordo mineiro e fez saltar a arma.
- Aqui são permitidos duelos, mas nunca assassinatos. Já posso soltar-te.
- Quero lutar com ele!
- Deixe-o, senhor. Estou disposto a dar-lhe uma lição - disse o mexicano.
- A mim?
- Sim.
- Vou-te matar! - gritava o mineiro.
Um amigo do mineiro deu-lhe uma faca. Back sacou da sua navalha e ofereceu-a ao mexicano, dizendo:
-Tome a navalha. Isto é melhor para os mexicanos.
O rapaz agradeceu com um sorriso e quando se ia a preparar para a luta, o mineiro gordo disparou dois tiros à traição. Por sorte só acertou nalgumas garrafas e vidros. Antes que o jovem tivesse tempo de persegui-lo, o mineiro pôs-se em fuga, protegido pelos seus amigos das iras do taberneiro.
- Já te agarro, canalha! - gritava o mexicano.
- Deixe-o, senhor - disse Back. - Vá com cuidado agora, pode ser que ele lhe prepare uma emboscada.
- Não se preocupe, que nós vigiaremos.
- Como? Porque se preocupam comigo? Sabem que posso matá-los?
- Nós temos o peito duro, não é verdade Back? - disse Bennie.
- Vocês são mineiros?
- Seremos.
- Quando chegaram?
- Esta manhã.
- Vieram no vapor?
- Não,- viemos a cavalo.
- Fizeram uma viagem muito difícil.
- Bastante, e também perigosa.
- Vieram à procura de ouro, não?
- Viemos.
- Já trabalharam nalguma mina?
- Back, que é mexicano como o senhor e eu, tem trabalhado.
- Conhecem Klondyke?
- Não.
- Pois eu terei muito prazer em vos ensinar. De momento ofereço-vos um ponche. Suponho que aceitam o convite.
Poucos minutos depois, os dois italianos, o canadiano e os mexicanos encontravam-se sentados em torno de uma mesa. O jovem mexicano contou-lhes a sua história. Tinha chegado ao Alasca já há onze meses; chamava-se Pablo Corrêa e trabalhou durante meses em volta do Bonanza e Barem, afluentes do Klondyke.
Associou-se com dois homens e ganhou bastante dinheiro, mas doente teve que regressar a Dawson, onde a doença e o médico lhe tiraram quase todo o ouro que tinha.
Agora estava já curado e pensava regressar de novo para as minas, pois conhecia um local onde se encontrava o ouro à flor da terra.
- Se conseguir voltar, serei o homem mais rico do mundo.
- Então, por acaso conhece algum filão?
- Sim. Uma tarde salvei a vida a um mineiro que morreu pouco depois numa briga. Antes de morrer porém deu-me as indicações precisas. Iremos aí explorar se quiserem vir.
- É muito longe?
- Perto de Barem. Tenho dados tão precisos que é impossível enganar-me.
- Estamos dispostos a associarmo-nos consigo.
- Aceito. Conhecemo-nos à pouco, mas aprecio-os como merecem. Onde estão instalados?
- Não pensão de Calkraff- disse Bennie.
- Sei onde é. Têm as coisas prontas?
- Temos, só falta carregar os cavalos.
- Têm cavalos? Eu tenho dois.
- E não só - disse Falcone.
- Então parece que em dois meses ficaremos ricos. Vamos, senhores. Amanhã poderemos partir para Dawson.
- Um momento, Dom Pablo - disse Bennie. - Venha dormir à nossa pensão. Aquele homem que há pouco tentou matá-lo talvez o tente de novo, com alguma emboscada.
- Acho que sim. Esse selvagem do Korthan é capaz de me matar.
- Ah! Conhece-o?
- Conheço. É um homem desprezível. Já me prometeu..
- Porquê?
- Porque uma vez cometi o deslize de lhe dizer que sabia onde ficava uma mina e em seguida ofereceu-se como sócio. Eu não o quis aceitar porque me pareceu um bandido. Desde então tornou-se meu inimigo mortal.
- Tem que se precaver contra ele. É capaz de nos seguir.
- Estaremos alerta - disse um dos nossos amigos.
Os cinco homens saíram do bar com os revólveres nas mãos.
A noite estava muito escura e os nossos amigos só com dificuldade acharam o caminho para a pensão. Dawson era uma cidade muito mal iluminada; mas o mexicano que tinham acabado de conhecer podia ir a qualquer lugar até de olhos fechados.
Os cinco homens seguiam pelo meio das ruas para evitar surpresas e iam com os revólveres nas mãos. Assim percorreram a maior parte do caminho; mas estavam quase a chegar à pensão quando umas silhuetas humanas lhes surgiram na frente.
Ignorando se eram pacíficos viajantes ou bandidos que esperavam a melhor altura para os atacarem, Bennie, empunhando o seu revólver, perguntou:
- Quem vem lá?
Uma voz conhecida do jovem mexicano, respondeu:
- São eles!
Os nossos amigos lançaram-se rapidamente ao chão e naquele instante soaram detonações, as balas passaram sobre as cabeças de Bennie e dos seus companheiros, sem sequer lhes roçar.
- Tomem bandidos! - disse Bennie.
E disparou a sua arma, seguido pelos amigos. As formas humanas desapareceram por entre a neblina.
- Vamos, senhores! Para a pensão, rápido!
E guiados pelo mexicano chegaram imediatamente à pensão, cujo dono lhes abriu de imediato a porta. Deu uma cama a Dom Pablo, que era composta por uma tábua e uma pele de urso pelo preço de um dólar.
- Faça o favor de me despertar às quatro - disse Pablo.
- Vai-se embora muito cedo... Não é boa altura para ir para as minas.
- Vamos para muito longe e estamos preparados para partir.
- Vão a Klondyke? - perguntou o dono da pensão.
- Não, vamos ao monte Cuarzo. Se alguém perguntar por nós, dê-lhe esta direcção.
- Está bem; boas noites!
Quando o proprietário saiu, Bennie disse:
- Você fez muito bem em não dizer a verdade.
- É possível que o mineiro que jurou vingar-se de mim, venha aqui perguntar pelo nosso paradeiro e se pretende seguir-nos irá ao monte Cuarzo e não voltaremos a vê-lo.
Encontravam-se a dormir e todos sonharam que se tinham tornado ricos. Algumas horas antes do amanhecer, já se encontravam a pé; tomaram café e compraram na pensão algumas garrafas de uísque e de genebra para a viagem.
Quase do outro lado da cidade, o mexicano tinha os cavalos e alguns apetrechos prontos. Recolheram todo o equipamento e rumaram em direcção a Sudeste, para chegarem quanto antes à desembocadura do Klondyke.
A neblina, muito densa, possivelmente se dissiparia quando o sol nascesse. Pablo ia à frente para guiá-los, pois ele conhecia perfeitamente o caminho que bordeava o Yucão e os levaria ao seu destino.
Falcone caminhava a seu lado e os demais encarregavam-se de levar os cavalos. A manhã era fria e em intervalos soprava um vento muito desagradável que fazia gemer as ramas das árvores,- do rio subiam uns vapores que humedeciam as vestes dos caminhantes.
- Que país! - disse Falcone.
- É certo que os arredores de Dawson não são muito atractivos, mas também ainda não começou a boa época.
- Disseram-me que só se pode trabalhar nas minas durante três ou quatro meses durante o ano.
- Somente durante dois meses - disse Pablo. - Mas neste tempo trabalha-se muito, é tempo de fadigas e penalidades, porém qualquer homem pode suportar.
- Deve ser muito fatigante...
- A certa profundidade a terra está sempre gelada. Há que ter sempre fogueiras acesas no interior dos poços.
- Mas quando se encontra ouro, a fadiga é esquecida, não é verdade?
- Sim. As vezes, com um golpe de azedume, descobrem-se centos de pesos. Um mineiro, certa vez, descobriu uma pepita de catorze libras.
- Uma fortuna!
- E ganhou em cinco minutos. Não perdi a esperança de achar algo assim.
- Em Klondyke?
- Nas fontes do Barem. O mineiro que me disse onde se achava a mina, encontrou em três semanas noventa quilos de ouro.
- É incrível!
- E creio que no fundo das cataratas se encontram pepitas de maior tamanho. Com a sua peneira acharemos ouro em grandes quantidades.
- Sempre que nada se interponha no nosso caminho.
- Quem?
- Esqueceu-se do mineiro de ontem à noite?
- Sim, é possível que esse homem nos siga - disse Pablo para si. - Quando souber do que dissemos em Dawson e sabendo que eu sei onde fica o filão é possível que faça tudo para nos seguir. Mas esperemos que nos perca.
- Como?
- Em primeiro lugar seguiremos pelo caminho menos frequentado.
- Isso demorará mais tempo.
- Sim, mas dá-nos vantagem.
- Qual?
- Libertar-nos-á dos bandidos.
- Abundam por aqui?
- Sim, senhor Falcone. Em todas as regiões mineiras há quadrilhas de ladrões. Veja, sempre é mais fácil colher o ouro dos mineiros do que irem buscá-lo às minas.
- E ninguém os persegue?
- Algumas vezes os mineiros reúnem-se e organizam uma bdrida para se livrarem deles; mas quando uns são enforcados, aparecem outros. Não há solução.
- E há muitos foragidos? - Disseram-me que este ano há muitos, especialmente nos arredores de Klondyke.
- Teremos que ter muito cuidado.
- À partida os nossos cavalos são mais importantes para os bandidos que o ouro. Se os virem, tentarão logo apoderarem-se deles.
- Viemos bem armados, e Bennie e meu sobrinho são muito bons atiradores.
E sempre falando daquela maneira chegaram à desembocadura do Klondyke às dez da manhã. Um brilhante sol iluminava o Yucão e o seu afluente. A paisagem era bela. Árvores frondosas de diversas espécies lançavam-se sobre o rio de ambos os lados. No rio iam algumas pequenas canoas de índios que levavam provavelmente, peles para venderem em Dawson; colunas de fumo, anunciavam nas proximidades acampamentos de Coyones.
Numerosas aves sulcavam o espaço: martin-pescadores, águias de cabeça branca, cisnes e patos selvagens. Nas copas das árvores estavam os pássaros das neves cujo cantar se ouvia.
Depois de uma paragem para almoçar, os nossos amigos cruzaram o rio numa piroga, conduzidos por um índio velho, e pouco depois empreenderam uma agradável viagem para Oeste.
O Klondyke era um pequeno rio que tinha sido descoberto há muito pouco tempo. Poder-se-ia dizer que era o mais pequeno afluente do Yucão. Nascia no sopé do Quay, monte situado nos territórios ingleses, numa região completamente deserta na qual jamais homem algum tinha pisado.
A corrente era impetuosa e corria para poente, recebendo água de três afluentes: o Sachlouit, o Barem e o Bonanza.
Como estava gelado a maior parte do ano, não era navegável, mas em compensação está pleno de ouro.
As suas margens têm ouro em pó, mas os mineiros desprezam-no em abono do que encontram nas minas, em pepitas.
Parece que o ouro vem do sopé do Quay, do Dom e do Sold Quay, três grupos de montanhas; quem sabe se não será o único rio onde abunda o ouro; é possível que o índio, outro afluente do Yucão, também o tenha em grande quantidade; porém até aquele momento a exploração tinha sido limitada ao Klondyke e seus afluentes.
Como Pablo Corrêa queria enganar o mineiro para o caso de ele os seguir, tomou um caminho que os desviava para o sul, para passar num vão o Bonanza. Mas à medida que se afastavam do Klondyke, o caminho tornava-se mais pesado e penoso, o que resultava duro para homens e cavalos.
O terreno não era o mais indicado para uma marcha, pois as pedras e os musgos obrigavam a dar largos círculos em busca de sítios mais cómodos e menos perigosos.
O lugar parecia selvagem e abandonado. Não se viam índios, nem mineiros, nem sequer animais. Só uma vez conseguiram descobrir um mocho e o grito de um lobo.
Após muitas fadigas, chegaram ao cair da noite ao sopé de uma cordilheira rodeada por picos milenários. Fazia muito frio. Dos cumes gelados chegava uma aragem fria. Uivos penetrantes faziam tremer homens e cavalos.
Os mineiros, cansados pelo caminho, apressaram-se a recolher ramos secos, com os quais podiam fazer fogueiras, montando por entre elas as tendas. Jantaram abundantemente presunto e outras iguarias como acompanhamento, em seguida tomaram umas canecas com chá.
Enquanto comiam, o jovem mexicano contou-lhes histórias de bandidos. Muitos mineiros foram assaltados poucos meses antes; isto deu lugar a que se organizasse uma expedição em busca dos foragidos, que foram apanhados e enforcados nas árvores mais altas.
- Não me admiraria encontrar por aqui esqueletos de alguns deles - disse o mexicano.
- Teriam ficado por aqui alguns desses tipos? - perguntou Armando.
- Creio que não; mas como os mineiros já os não encontravam nas margens do Bonanza, foram para outros lugares, também levados pela falta de ouro aqui. Mas pelo sim pelo não é melhor vigiar atentamente para que não nos roubem os cavalos e as provisões.
- O primeiro que aparecer mato-o - disse Armando, impulsivamente.
Terminado o chá recostaram-se todos, excepto Bennie e Armando, que se encarregaram da primeira guarda. Cada um se pôs diante de uma fogueira esperando que se acabasse o turno para irem descansar, quando a segunda guarda os substituísse.
Aquela noite foi muito tranquila, somente os lobos famintos se atreveram a aproximar, mas um tiro que matou o mais audaz, dispersou os restantes.
Depois do pequeno almoço, os nossos amigos iniciaram de novo a marcha, entrando numa floresta que os levava até às ribeiras do Bonanza. Como o terreno era menos acidentado que o da véspera, podiam ir a bom passo; mas um pouco mais adiante as espessas moitas que cresciam entre os picos e abetos dificultavam a marcha.
Vendo que o terreno era bom para caçar, Bennie, e Armando, que eram os encarregados de prover a comida à expedição, decidiram ir em busca de algum animal, indo eles à frente, com as suas espingardas preparadas.
Abundavam por aquele sítio vestígios de alces, lobos, carcajús, ovibos, espécie de bois selvagens de formidáveis cornos. Tinham percorrido umas dez milhas através da floresta, quando Bennie mostrou a seu companheiro umas enormes pegadas.
- São recentes, apenas há uma hora que as fizeram.
- De que animal são?
- De um ovibo.
- Vale a pena segui-lo?
- Vale sim, rapaz!
- Então, vamos.
- Espero que os nossos companheiros sigam o caminho e nós seguiremos este rasto.
- Não nos perderemos?
- Esqueceste-te que sou um velho caçador?
A uns quinhentos metros do caminho, Bennie acautelou o passo; conhecendo como certos animais são assustadiços, não queria que algum lhe escapasse por falta de precaução. Bastaria o mais pequeno ruído para fazer o ovibo saltar para um lugar seguro.
As pegadas que seguiam eram cada vez mais recentes.
- Armando, não ouves nada?
- Sim, uns mugidos...
- São os bois. Devem estar naquela moita.
- Parece que sim.
- Então vamos, sem fazer barulho.
Com o dedo no gatilho das espingardas, ambos os caçadores caminharam na ponta dos pés, perto das espessas moitas. Viram então sair dois enormes quadrúpedes por trás das moitas.
Os ovibos são uns animais que pertencem a uma raça de transição, entre a lanar e a bovina; são muito maiores que os bois europeus e americanos; patas curtas, cabeça peluda, focinho curto e obtuso, boca estreita e dois cornos impressionantes curvados para a frente. O seu pêlo é bastante bonito, branco e com manchas.
Antigamente estes animais abundavam no Alasca, onde era fácil encontrar rebanhos de setenta ou oitenta cabeças, mas agora eram escassos, pois tinham destruído quase todos, restando alguns na orla setentrional. Previa-se contudo a sua extinção.
A carne destes animais, não é tão boa como a dos bois europeus, mas não é de todo má; quando exposta ao ar perde grande parte do odor e sabor amismado, o que a torna desagradável.
Os dois ovibos, ao saírem das moitas e ao darem de caras com os caçadores, desataram a correr ao mesmo tempo que emitiam mugidos desesperados, como que de aviso para os seus companheiros que não deviam estar longe.
Os dois caçadores levaram as armas à cara, mas antes que tivessem tido tempo de disparar, já os animais tinham desaparecido. Não é em vão que se diz, que correm mais que os melhores cavalos.
- Pelos cornos do bisonte! Escaparam. Nunca pensei que animais tão corpulentos corressem tanto.
- Perdemos tempo.
- Não te preocupes, encontraremos algo.
- Vamos ter com os outros?
- Vamos.
Meteram as espingardas ao ombro e encaminharam-se para sul ao encontro dos companheiros, que tinham seguido caminho. Ouviam o relinchar dos cavalos. Quando ao dar uma volta a uma rocha, ouviram uma voz que lhes disse:
- Eh! Alto, cavalheiro!
Os dois homens, surpreendidos, procuraram a pessoa que lhes falara, mas não conseguiram ver o dono da voz. A floresta por aqueles lados era muito densa e não era difícil para alguém, esconder-se. Começaram de novo a andar, quando de novo a voz os deteve:
- Alto, senhores, ou faço fogo!
- Vá para o diabo! Onde está? Mostre o nariz, amigo.
- Aqui estou, senhores.
- Continuo sem o ver.
- Não tem importância.
- Para nós é que é importante!
- Não queiras saber do que sou capaz, mas se quiseres!
- O quê? Bom deixem o vosso ouro nesse tronco.
- Está enganado, ladrão, porque ainda não fomos às minas.
- Então deixem as espingardas.
- Vem buscá-las, se te atreves!
E Bennie advertiu em voz baixa, rapidamente, a Armando:
- Prepara-te, rapaz. Corre para trás desse tronco, que nos sirva de barricada e dispara quando eu te disser.
O bandido, entretanto tinha repetido a sua ordem, ameaçando disparar se se opusessem a fazer o que ele pedia. A isto os nossos amigos responderam com uma gargalhada, escondendo-se em seguida por entre um tronco e as moitas.
Mal tinham acabado' de se esconder, quando uma bala passou roçando a cabeça de Armando. Bennie, pondo-se de pé e correndo o risco de ser alvejado, disparou para o sítio onde ainda se via fumo por trás das moitas; mas nada devia ter acontecido, porque não se ouviu nenhum ruído ou grito.
- Pelos cornos do bisonte! Onde estará esse bandido?
- Viu-o, Bennie?
- Não.
- Que podemos fazer?
- Esperar.
Ouviram por trás deles alguns ruídos.
- Querem pôr-nos entre dois fogos! - disse Bennie.
- Estão também nas nossas costas?
- Creio que sim.
- Que vamos fazer?
- Olha.
Então viram sair por entre umas moitas Back e o jovem mexicano, com as armas preparadas. Ocultaram-se com rapidez atrás do tronco dos seus amigos.
- São bandidos? - perguntou Pablo.
- São.
- Quantos são?
- Até agora, só ouvimos um.
- E meu tio?
- O senhor Falcone ficou a guardar os cavalos muito perto daqui.
Então ouviu-se de novo a voz do bandido gritando:
- Decidem-se ou não, senhores?
- A quê?
- A renderem-se?
- Não vamos render-nos tão facilmente.
- Fuzilá-los-emos!
- Como queiras!
- Olhe que somos sete.
- E a mim, isso não me rala, ladrões! - gritou Bennie.
Mal este tinha acabado de falar, quando soou uma descarga. Cinco ou seis balas, cravaram-se no tronco em que estavam os mineiros. O canadiano ia a ripostar, mas Armando advertiu-o:
- Espere que confiem e assim talvez os consigamos ver. Mais nada se ouviu. Pablo e Bennie vigiavam atentamente, não fosse os que os cercavam, rodeá-los plenamente, mas nada se ouvia. Os homens começaram a inquietar-se; era raro os bandidos desistirem tão facilmente.
- Não podemos ficar aqui mais tempo - disse o canadiano.- Temos que atacá-los.
- Seria uma imprudência - disse Back.
Pablo Corrêa apanhou então o chapéu e pô-lo no cano da espingarda; mal tinha feito isto, quando soaram quatro tiros.
- Parece-lhes uma boa prova, cavalheiros? Passaram alguns instantes e o bandido voltou a falar.
- Estais mortos ou quê? Pois se estão, apanharemos as vossas roupas e espingardas.
Ouviu-se uns rumores vindos de uns arbustos e um homem dos seus quarenta anos, delgado, de cabelo comprido e barba emaranhada, vestido com trapos, saiu do seu esconderijo. Saíra, porque vira os mineiros e quisera esconder-se deles nas moitas.
Bennie pôs-se de pé e disparou, ouvindo-se então um grito de dor.
- Ah, canalha! Acertei-te!
E dando um salto chegou ao sítio onde estava o bandido; este, porém, já lá não estava.
- Pelos cornos do bisonte! Onde se terá metido?
- Ali está! - gritou Armando.
- Fogo! - ordenou Pablo.
O bandido estava perto das rochas. O italiano e o mexicano dispararam, mas não acertaram no homem, que corria. Este escondeu-se então atrás de um tronco e disparou. Apenas deu tempo aos nossos amigos de se esconderem.
Quando se levantaram já não se via nem sombra do bandido.
- É melhor largá-lo! É preciso contar com os seus companheiros, talvez nos dêem mais trabalho.
- Pelos cornos do bisonte! Já devia saber que ele estava só, e não estaria tanto tempo encurralado se tivesse pensado nisso; ele actuava como se tivesse um batalhão às suas ordens.
- É uma velha artimanha dos salteadores. Vamos ter com Falcone, deve estar impaciente com a nossa demora.
Durante quatro dias os futuros mineiros seguiram o caminho que existia entre a ribeira direita do Yucão até à esquerda do Bonanza, através de uma floresta muito densa e escalando rochas difíceis.
Decidiram parar para caçar, pois as provisões estavam no fim, e, de repente, dobrando um rochedo do caminho, deram com uma centena de mineiros de todas as nacionalidades, explorando as margens do rio.
Aquela região tinha sido descoberta há pouco tempo e muitos homens se tinham tornado ricos. Umas quarenta tendas alinhadas formavam o refúgio daqueles homens.
Quem sabe se muitos daqueles homens, não eram já ricos, mas nada se poderia dizer, vendo o aspecto miserável em que eles se encontravam. Sujos, rotos, pálidos e magros, devido ao trabalho que tinham e às privações que sofriam.
O acampamento, estava em plena actividade, enquanto soprava um vento vindo do Norte, que tornava o trabalho penoso, devido à sua frigidez; o rio arrastava enormes pedaços de gelo.
Os mineiros tinham aberto um grande número de poços perto do rio Bonanza e encontravam ouro misturado com argila, pelo que era necessário lavá-lo nas águas geladas do rio.
Com aquele frio, o trabalho era muito penoso, e ainda mais penoso era para aqueles que estavam a lavar o ouro; aqueles desgraçados, como não tinham botas de borracha, nem impermeável, tinham que estar metidos até à cintura na água gelada do rio e ali permaneciam os poucos minutos que suportavam para separar o ouro.
Para conseguirem o ouro puro, usavam uma peneira; isto era um método bastante antigo. A peneira era um objecto de madeira dura, circular, em forma de prato de sopa, e suportava uns dez quilos de peso; tinha um diâmetro de meio metro e uns dez centímetros de fundo.
Tinha-se que submergir a peneira e dar-lhe movimentos circulares, de forma a que toda a argila e impurezas agarradas ao ouro se soltassem e viessem à superfície, deixando o ouro no fundo da peneira. Uma segunda passagem eliminava por completo as impurezas.
Isto não era uma operação difícil, mas requeria muita prática, não fosse o ouro escapar-se. Os pobres homens que faziam este trabalho voltavam às tendas em estado lastimável. Alguns caíam no solo extenuados e tinham que ser arrastados até as tendas, para aquecerem.
- Este barro é muito rico em ouro - disse Bennie. - Estes homens devem ganhar uns dez dólares por dia, cada um.
- Sim; e se eu não tivesse a certeza de encontrar na nascente do Barem riquíssimos filões, propunha que ficássemos aqui - disse Pablo.
À tarde, o céu encobriu-se e levantou-se uma espessa névoa. Os nossos amigos renunciaram a irem ao sítio onde se serviam bebidas e retiraram-se para a sua tenda. Temendo que alguns mineiros menos escrupulosos lhes levassem os cavalos, ataram-nos a um dos paus da tenda, na frente da qual, acenderam uma fogueira.
Armando, que era o primeiro a fazer guarda aos cavalos, viu formas humanas que se aproximavam, fingindo que se tinham perdido do seu caminho. Não havia dúvida de que os espiavam, e ao partir seria conveniente tomar precauções, para que os não seguissem.
Nenhum outro acontecimento perturbou o sono dos futuros mineiros. Ao despertar, no outro dia, enquanto Pablo e Falcone iam ao campo de ouro, Bennie e Armando internaram-se na floresta à procura de caça.
Depois de várias horas, só conseguiram apanhar algumas lontras, animais nada maus, se se tiver em conta o valor da sua pele e da sua carne, apesar do seu pequeno tamanho.
Bennie e Armando, com a sua caça, dispuseram-se a atravessar o campo mineiro em direcção à sua tenda, quando do bar saiu o clamor de gritos. Sem dúvida que se tratava de uma luta por causa do jogo, como era natural por aqueles lados e não era de estranhar, o facto de haver algum morto.
Como eles não se interessavam por coisas daquele género, seguiram o seu caminho, quando lhes pareceu ouvir a voz de Pablo Corrêa.
- Pelos cornos do bisonte! - disse Bennie. - Estarão em perigo os nossos amigos? Vamos ver o que se passa, Armando!
- Vamos, Bennie!
- Levas a espingarda carregada?
- Levo.
- Então está alerta. Nunca se sabe o que pode acontecer com esses mineiros.
Rapidamente chegaram à porta do bar. Ouviram a voz clara de Pablo dizendo:
- Mentes! Não sou ladrão nem assassino!
- Calma! Calma! - disse o canadiano, entrando no bar. Estavam na tenda que servia de bar uns quarenta mineiros, que formavam um círculo em torno de Pablo e do senhor Fal-cone, os quais tinham à sua frente um tipo que nem Armando nem Bennie reconheceram à primeira vista.
Era um homem duns quarenta anos, fraco, alto, com uma barba negra emaranhada e vestia farrapos sujos. Trazia uma espingarda ao ombro. Aquele homem grunhia como um urso pardo e dizia:
- Juro-lhes senhores, que este homem tentou roubar e matar-me em plena floresta! Ainda tenho no corpo uma bala com que me acertou!
Bennie e Armando chegaram naquele momento ao centro do círculo e, para sua surpresa, reconheceram o bandido que tinha tentado atacá-los em plena floresta, poucos dias antes.
- O bandido do bosque! -disse Bennie, assombrado. O homem, sem se modificar na sua atitude, exclamou:
- E estes são os seus cúmplices! Reconheço-os perfeitamente! Peço que se lhes aplique a lei de Linch! (1)
Quando o bandido disse isto, o canadiano atirou-se sobre o bandido.
- Malvado! Vou-te fazer engolir as palavras!
E apontou-lhe o revólver; mas os outros mineiros interromperam-no.
- Senhor, aqui não queremos assassinatos.
- Juro-vos que este fulano é um bandido!
- De acordo, mas ele também afirma que você o assaltou em plena floresta.
- É mentira!
- Isso veremos, como aqui não há polícia nem juizes, nós seremos os jurados. E aplicaremos ao culpado a lei de Linch.
- Isso! Isso! - gritaram muitos mineiros. - Apliquem a lei de Linch.
- Aceito - disse o bandido. - Vou apresentar uma prova que me dará razão.
(1) Lei de Linch, era o castigo utilizado durante muito tempo. Era por enforcamento. (N. do T.).
- Miserável! - rugiu Pablo.
- Um momento! - disse uma voz.
E adiantou-se dos outros homens, um tipo que os nossos amigos conheciam perfeitamente: o mineiro gordo, que os tinha ameaçado em Dawson.
- Eu acuso estes senhores de serem ladrões. A mim assaltaram-me perto do Yucão e tiraram-me cento e vinte onças de ouro.
Os quatro amigos gritaram em uníssono:
- Canalha!
Bennie e Corrêa precipitaram-se sobre ele, mas os restantes mineiros impediram-os de tal.
- Calma senhores! O júri fará justiça; porém, deveis mostrar a vossa inocência, sem fazer uso das armas.
- Esse homem é companheiro desse bandido - disse Pablo Corrêa. - Este homem tentou assassinar-me, um destes dias, nas ruas de Dawson.
- O jurado decidirá.
O senhor Falcone acalmou-se e adiantando-se disse, pondo a mão no peito:
- Juro que tudo o que os meus companheiros disseram é verdade.
Os mineiros, comoveram-se ante o aspecto sincero da declaração de Falcone; olharam, então para os bandidos e viram que o mais fraco tinha empalidecido e que o outro, não parecia tranquilo. Um dos mineiros, que parecia mandar, aproximou-se de Falcone e disse-lhe ao ouvido:
- Não se preocupe, cavalheiro; confie em mim e verá como acaba isto.
Depois outro, disse:
- Doze homens para formar o júri, que aplicará a lei de Linch!
Ainda que o dono do bar se opusesse, pois não queria que o mastro da sua tenda se transformasse em forca, o que era provável, em poucos minutos foram elegidos os doze homens que fariam parte do júri: o décimo terceiro foi o que até ao momento tinha falado e se mostrava um homem culto. Foi eleito como presidente.
Colocaram uma mesa em torno da qual se sentaram os membros do júri, pedindo algumas garrafas de genebra para refrescar a boca. Os outros sentaram-se junto da porta para impedir que os processados fugissem.
A lei de Linch proclamou-se nos arredores da Califórnia para refrear os roubos e os assassinatos. Os juizes improvisados ditavam a sentença após breve interrogatório e a sua decisão era a lei.
Depois, também se adoptou esta lei na Austrália e mais tarde no Alasca e na África do Sul; onde não houvesse autoridades havia esta lei.
Sempre deu resultado, e se por vezes causava vítimas inocentes, muitas vezes libertava a sociedade de indesejáveis.
Os nossos amigos, assim como os bandidos, sentaram-se frente aos jurados, mas, uns à direita e outros à esquerda e devidamente distanciados; ofereceram-lhes genebra e o presidente anunciou que o julgamento começara.
- Senhores, estes homens acusam-se uns aos outros de bandoleirismo; mas nenhum deles apresenta provas. Devemos averiguar quem são os verdadeiros culpados. Pode algum dos senhores dizer algo a esse respeito?
Todos permaneceram calados; o presidente aguardou uns segundos e depois continuou:
- Depois disto, teremos que seguir as vossas palavras; por favor, que tem o senhor a dizer em relação aos seus amigos? - perguntou, dirigindo-se a Falcone.
- Nós somos homens honrados e esse homem que nos acusa, assaltou na floresta os meus companheiros, a umas trinta milhas do Bonanza. O outro tentou assassinar-nos à saída de Dawson. Juro, que o que disse é certo, juro-o pela minha honra.
- Mente! - gritou o mineiro gordo.
- Silêncio! - disse o presidente. - Você falará quando se lhe perguntar!
- Repito que mente! - insistiu o mineiro gordo. - Nunca assassinei ninguém, nem nunca o tentei, e nunca estive em Dawson.
- Onde tem vivido até aqui? - perguntou o presidente.
- Nos arredores de Klondyke.
- Pois bem, quase todos estes mineiros vieram de lá. Algum de vós viu este homem lá?
- Não, nunca - disseram os mineiros.
- Vê-se, senhor, que está a mentir.
- Não estou a mentir; eu trabalhava num sítio muito afastado dos afluentes - disse o mineiro gordo.
- E tão afastado! - disse um homem que entrava naquele momento no bar.
Todos se voltaram e viram um mineiro que se adiantava para à mesa do júri.
- Conheço este homem; chama-se James Korthan, é da Califórnia e roubou-me trinta onças em ouro num barengue em Dawson.
- Mentes! Nunca te tinha visto! - gritou o mineiro.
- Atreves-te a negar que te chamas Korthan e que nunca estiveste em Dawson? Jura-o se és capaz!
- Não pode fazê-lo. Graças a si, cavalheiro - disse Pablo Corrêa. - Graças a si, se demonstra que estes homens mentiram e que são bandidos, por isso merece a forca.
- Enforcar-me? - disse o mineiro gordo.
Então os bandidos sacaram das suas pistolas e dispararam contra os nossos amigos que saltando para o lado, não foram apanhados pela surpresa. Um dos mineiros ia a lançar-se contra os homens, quando um deles cortou o pau que sustinha a tenda e esta veio abaixo!
Antes que Bennie e Armando tivessem tido tempo de sair daquela confusão, já os bandidos tinham escapado.
Naquela mesma noite, aproveitando uma espessa névoa que pairava sobre o acampamento, os nossos amigos partiram sem se despedirem, evitando assim que alguém os seguisse.
Guiados por uma bússola, caminharam toda a noite em direcção a Este, tomando inúmeras precauções para evitar que o californiano e o seu compincha os seguissem.
Ao nascer do sol, encontravam-se a duas milhas do Bonanza; fizeram uma paragem para descansar e seguiram logo, dispostos a não acamparem antes de chegarem a Barem.
Esta caminhada, foi a mais fatigante desde que saíram de Dawson, já que tiveram que cruzar terrenos pantanosos, águas quase geladas e encostas, também quase a pique.
Quando acamparam de novo, homens e cavalos estavam cansados.
- Mais uma hora e volto para casa! Dá ganas de esquecer o ouro, depois de uma caminhada como esta! - disse Bennie.
- Mas era preciso. Se tivéssemos vindo por outro caminho mais perto tínhamos que nos encontrar com mineiros e isso não interessava - respondeu Corrêa.
- Talvez o californiano e o seu companheiro já nos tenham alcançado - disse Armando.
- Seguiram-nos? - perguntou Back.
- É possível.
- Pelos cornos do bisonte! Que querem esses homens? Que os matemos?
- Querem ter ouro sem trabalhar.
- Tenho a certeza que se querem vingar de mim. É melhor estarmos alerta.
- Não creio que se atrevam a enfrentar-nos.
- Seguiram-nos de Dawson a Bonanza apesar das precauções, pode ser que nos sigam também agora.
- Gostava que os tivessem pendurado? - disse Back.
- Que não nos preguem nenhuma partida.
- Estaremos sempre alerta - disse Armando.
- Teremos de andar de olhos abertos.
- E dormiremos de olho aberto.
- Sim! Sim!
- Falta muito para chegar ao Barem? - perguntou o senhor Falcone.
- Uns três dias.
- E apanharemos ouro às pazadas?
- Se não for às pazadas, pelo menos é às mãos cheias.
- Tem a certeza de encontrar o ponto exacto?
- Descreveram-me tão bem que não me posso enganar. É um vale com altos picos que dominam o Dom e tem duas cataratas aos lados.
- Então vamos descansar e amanhã poderemos andar todo o dia, enquanto as nossas pernas aguentarem. A estação é breve e há que aproveitá-la.
Os cavalos relincharam e os homens perguntaram:
- Que será?
- Se calhar ouviram algum inimigo?
Dom Pablo, com a espingarda carregada, inspecciona os arredores. Bennie pergunta:
- Nada?
- Nada. Parece que tudo está deserto.
- O perigo vem do rio. Olhem as orelhas dos cavalos - disse Back.
- Pois vamos ver. Armando, dom Pablo: venham comigo. E tu e o senhor Falcone, deixem-se ficar de guarda ao acampamento.
Nenhum rumor estranho chegava até aos ouvidos dos exploradores, que procuravam atentamente por entre as árvores e moitas. Era noite cerrada e nada conseguiam distinguir.
- Enganaram-se os cavalos... - disse Corrêa.
- Os seus talvez, mas os nossos são cavalos da pradaria e nunca se enganam.
- Mas não se vê nada perigoso.
- Um momento! - pediu Armando.
- Alguém está no rio - observou Bennie. Lançaram-se à procura, na margem, mas não distinguiram nada nas águas. - Seria um animal?
- Talvez.
- E por que não um homem?
- Um índio?
- Ou um califomiano.
- Pelos cornos do bisonte, dom Pablo! É possível que nos tenha já alcançado?
- Oxalá que não seja! Mas esse homem é capaz de nos ter seguido.
- Que fazer? - Voltemos ao acampamento e vigiemos.
Exploraram uns metros e regressaram à tenda. Como não sabiam que espécie de inimigo os espreitava, acenderam uma fogueira e encarregaram a primeira guarda a Back e Armando.
O vaqueiro e o italiano, acenderam os cachimbos, envolveram-se em mantas e sentaram-se tranquilamente. Não se ouvia nenhum ruído. Até o vento tinha parado. E assim se passaram duas horas.
Subitamente, Back reparou que o cavalo de Bennie levantava as orelhas.
- Passa-se qualquer coisa! - disse o mexicano, pondo-se em pé.
O cavalo lançou um relincho e soltou-se da corda que o prendia ao pau da tenda. Armando deu-se conta.
- Back!
- Que é?
- O cavalo está inquieto.
- E os outros também. Passa-se qualquer coisa.
- Aproxima-se alguém?
- Parece que sim.
- Quem se atreverá a andar pela floresta a esta hora, e com este tempo?
- Não se vê nada.
- Há uma névoa muita espessa. Não se vê um palmo à frente do nariz.
- Avisamos os outros?
- Espera um pouco.
Durante aquelas duas horas de guarda tinha caído uma névoa tremendamente espessa que impedia de ver um tronco a dois passos. Os nossos amigos tinham-se afastado um pouco da tenda para tentar ver, com que inimigo tinham que contar.
- Não se ouve nada, Back...
- Não. Estúpido país de névoas!
- Eh!
- Back, um grunhido de um urso cinzento!
- É!
- Quererá surpreender-nos?
- Vamos despertar os outros. Contra uma fera dessas nunca somos demais.
Era inútil despertá-los. Ao chegarem perto da tenda, Bennie estava cá fora; tinha ouvido o grunhido da fera.
- É um urso cinzento, não é verdade Back? - Preferia o californiano. Onde está?
- Passeia-se por entre as moitas.
- Esta névoa não deixa ver nada.
- Cuidado! - gritou Back. Por entre a névoa distinguia-se uma forma gigantesca que procurava aproximar-se da fogueira. Bennie e dom Pablo, que eram os que estavam mais perto, dispararam as espingardas.
Ouviu-se um uivo e depois nada.
- Terá caído! '.
- Não o vi.
- Suponho que sim, se tivesse ferido, teria-se lançado sobre > nós.
- Vamos procurá-lo! - disse Armando.
E foram ao sítio onde tinham visto o urso, Armando, seguido de Bennie e Corrêa. Mas quando lá chegaram, nada viram.
- Procuremos! - disse o canadiano.
- Com cuidado! - advertiu o mexicano. - Estes animais são muito perigosos.
Bennie deu uma volta e quando ia em busca dos outros, duas patas caíram sobre os seus ombros. Tentou virar-se e disparar, mas só o que conseguiu, foi cair ao chão e gritar por socorro.
Armando e Pablo, lançaram-se em auxílio do canadiano. ^ O urso, ao ver os atacantes, soltou Bennie, que aproveitou para se esquivar e lançando as garras preparadas para Armando, que disparou assim como Pablo à queima roupa.
Os homens correram para a tenda para junto da fogueira. Bennie tinha perdido a espingarda e pegou num revólver e ali estavam todos dispostos a enfrentar de novo a fera.
O urso parecia não ter interesse em atacar. Ouviu-se um grunhido nos arredores e parecia que se afastava.
- Está ferido, Bennie?
- Não, só me aleijou um pouco nos ombros. Que susto me pregou! Mas espero vingar-me.
- Parece que ele resolveu ir-se embora.
- Não tardará a regressar?
- Talvez não, tio, talvez o tenhamos assustado.
- Silêncio!
Ouviu-se um chapão, parecido com aquele de há umas quantas horas antes.
- Ter-se-ia atirado ao rio...
- Deve ter a gruta, do outro lado do Barem...
- Provavelmente.
- Então podemos dormir tranquilos.
- Tranquilos, não, só com um olho!
- E a sua espingarda, senhor Bennie?
- Irei procurá-la amanhã de manhã.
Convencidos de que a fera já tinha partido, encostaram-se todos tranquilamente, excepto Armando e Back, que continuaram com o turno de guarda. A noite correu sem alarmes.
Na manhã seguinte, depois de tomarem chávenas de chá, propuseram-se atravessar o rio a vau. Como temiam novo encontro com o urso seguiram a corrente durante uns seiscentos metros, só depois atravessando o rio.
Era um vau excelente que não tinha mais de um metro de profundidade, mas as águas estavam muito geladas. Pablo aconselhou a montarem-se nos cavalos para não se molharem. Os animais, apesar do peso e do frio atravessaram sem incidentes o Barem.
Mas aconteceu que, quando dom Pablo ia a penetrar na floresta com o seu cavalo, este voltou para trás relinchando desesperadamente.
- Que se passa com o seu cavalo? - perguntou Bennie. Pablo Corrêa não teve tempo para responder. O urso saiu por trás de uma moita e lançou-se sobre o cavalo, derrubando ambos. Provavelmente o urso tinha estado a espiá-los e ao ver que cruzavam o rio decidiu atacá-los.
O urso, em vez de atacar directamente o mexicano e seu cavalo, que estavam no solo, lançou-se contra todo o grupo. Os cavalos, aterrados, precipitaram-se no rio, derrubando os cavaleiros.
O momento era crítico. Bennie e Armando estavam na água. Back caiu num ponto em que a corrente era muito forte e tinha que nadar para não ser arrastado. O senhor Falcone estava atrapalhado debaixo do cavalo que montava sem se poder levantar.
O canadiano, chamou Armando e saiu da água com um revólver e um machete. O jovem italiano agarrou num machado que levava colocado num dos cavalos e ambos lançaram-se sobre a fera.
Pablo Corrêa tinha apanhado a espingarda e disparara para a cabeça do urso, mas uma bala não era o suficiente para derrubar tamanha montanha e o urso voltou-se para o mexicano furioso, rugindo de dor.
- Hui! - gritou Bennie.
E tratou de disparar; mas os cartuchos do revólver, assim como os das espingardas, estavam molhados, inutilizados.
Pablo, num par de saltos refugiou-se por trás de uma árvore. O animal perseguia-o tenazmente e o mexicano, dando voltas à árvore, fugia, enquanto tentava carregar de novo a espingarda.
Os outros faziam o mesmo, carregavam as espingardas com cartuchos secos. Mas não podiam disparar pois Pablo estava tão perto do animal que temiam acertar no companheiro em vez de acertarem na fera.
- Afaste-se, Pablo!
- Não.
- Não podemos disparar porque podemos acertar em si.
- Eu dispararei.
- Tem a espingarda carregada?
- Tenho!
- Então dispare agora!
Pablo voltou-se e disparou no urso, que se encontrava a três passos dele, imediatamente deu um salto para trás e recebeu quatro tiros. O urso deteve-se, lançou um grito mortal e caiu no solo.
- Ganhámos o jantar! Temos um par de presuntos, melhores que os de porco. Pelos cornos do bisonte! Que susto!
Três dias depois os mineiros chegavam aos afluentes do Barem e pouco depois descobriram o vale das duas cataratas, perto dos cumes do Dom.
Aquele lugar, raramente frequentado pelos seres humanos, nem sequer pelos índios, era uma região selvagem. Picos majestosos bordeavam-no. As montanhas, com os seus picos nevados, encobriam o soberbo vale, em cujo centro corria o rio que se precipitava espumante e quase gelado, saltando de rocha em rocha e serpenteando, arrastando consigo tabuleiros de gelo e formando perigosos remoinhos.
O fragor da cascata atroava o vale e ensurdecia os viajantes. O senhor Falcone e seus companheiros admiraram durante um bom bocado aquela paisagem com surpresa pelo imponente espectáculo que se lhes oferecia aos olhos.
- É aqui que se encontra o ouro?
- É. A montanha em frente; as duas cataratas do Barem, o rio a meio. O mineiro não me enganou.
- Despachemo-nos! Quero ver o nosso ouro! - disse Bennie, entusiasmado.
- Calma, Bennie. Ninguém vai levar o nosso ouro.
- Já sinto o ouro debaixo dos nossos pés.
- Penso que sim, mas não há que ter pressa. O vale é grande e não sabemos quais são os terrenos auríferos.
- Claro; temos que fazer ensaios e provas - disse Pablo.
- E montar o Sluice.
- E acender o fogo para fazer o almoço. Ainda não comemos hoje - disse Bennie.
Os outros desataram a rir.
- Riam, riam! Não sentem a febre do ouro?
- Ainda não, mas não tardará. Dizem que é contagiosa.
- Vamos; armemos a tenda e comamos.
Como tinham que ficar ali uma série de meses, até que terminasse a boa estação, escolheram com cuidado o melhor sítio para acampar: um lugar resguardado dos ventos gelados das montanhas e que oferecesse boas condições para o eventual ataque dos índios.
Montaram o acampamento numa rocha furada com muitas rachas que lhes serviam de esconderijos e donde podiam avistar a outra margem do rio. À frente construíram uma espécie de cavalariça para os animais, que eles queriam conservar para o regresso.
Durante todo o dia andaram atarefados, preparando uma boa provisão de musgos para fazer as camas, ramos de árvores para o fogo e armazenando caixas de material.
No dia seguinte armaram o Sluice, que é uma espécie de crivo montado sobre dois sólidos postes. O seu interior está dividido em várias secções. A água passa por ele, há que o colocar numa corrente. A primeira secção recebe a terra aurífera; através dos seus furos se filtra o ouro e a terra de tamanho mais pequeno, no segundo filtra-se de novo e assim sucessivamente até que o último, onde se encontra uma certa quantidade de mercúrio, atrai o ouro, não se perdendo nem um átomo deste.
Assim estariam seguros de não se perder nada, enquanto que, com o sisltema antigo, muitas partículas de ouro de tamanho bastante reduzido, passavam pelo crivo arrastadas pela corrente.
No terceiro dia começaram a trabalhar, dispostos a tornarem-se ricos. Abriram um poço perto do rio e pouco depois Bennie, que estava cavando, lançou um grito entusiasta. Tinha descoberto ouro.
Puseram várias pazadas de terra no Sluice para verem se lhes convinha seguir com a exploração daquele veio recém descoberto, ou não. Passado um bocado e depois de todos as filtrações, sacaram um monirão de ouro misturado com mercúrio. Com o ouro' recém apanhado encheram um saco.
- Porque é que o metem no saco? - perguntou Armando.
- Para separar o ouro do mercúrio.
- E depois, veremos o ouro?
- Sim; mas não vale a pena ter pressa.
O canadiano pegou no saco e começou a entorná-lo sobre um caldeiro, de modo que o mercúrio saísse pelos poros de uma tela. Uma vez realizada a operação, Bennie abriu o saco ante a olhadela espectante dos seus companheiros.
- Pelos cornos do bisonte!
Dentro do saco via-se pelo menos meio quilo de ouro.
- Caramba!
- É um filão riquíssimo!
- O seu amigo não o enganou, dom Pablo!
- Tudo isto é ouro? - disse Armando assombrado. - E só de umas pazadas de terra?
- Não é tudo ouro, rapaz; ainda tem algum mercúrio - disse-lhe o tio. - O filão que achámos é de uma riqueza extraordinária.
Back, entretanto, tinha acendido uma fogueira e pousou sobre as chamas uma frigideira de ferro; Bennie pegou num bloco e meteu-lhe dentro. Passado pouco tempo o mercúrio fundiu-se e o ouro ficou no fundo da frigideira.
- Tanto ouro! É uma fortuna.
Nenhum dos presentes julgou possível, que seis pazadas de terra dessem ouro em tal quantidade.
- Não podia ser melhor.
- Estamos num vale riquíssimo.
- Vamos ser tão ricos como desejávamos. Quantas coisas poderemos comprar!
- Temos que continuar, para ver se o filão contnua rendendo ao mesmo ritmo.
Durante todo o dia continuaram o trabalho com ardor e entusiasmo e à noite tinham conseguido extrair doze quilos de ouro puro. Tinham trabalhado durante dez horas apenas, sem interrupção. O resultado não podia ter sido melhor.
Para celebrar, comeram o presunto que lhes sobrara do urso cinzento e beberam uma das garrafas de uísque que traziam.
Durante catorze dias os mineiros continuaram com o seu trabalho e lograram acumular grande quantidade de ouro; no dia seguinte tropeçaram com uma rocha de quartzo duríssima e não puderam continuar aquele poço.
A massa com que depararam era tão grande e dura que não a puderam brocar; assim que saíram à superfície cavaram novos poços.
Dois dias depois deram-se conta de que aqueles poços não eram tão ricos como os anteriores. Em dois dias só colheram dois quilos de ouro, resultando assim um saldo de cinquenta dólares por dia.
- Pelos cornos do bisonte! Parece que esta mina é rica, mas para nós que estamos acostumados a mais, é muito pouco. Assim não seremos ricos!
- Creio que é óptima. Você é demasiado exigente, senhor Bennie!
- Tu é que sabes, Armando! É muito pouco.
- Tem razão, para nós que estamos habituados a cem dólares por dia, isto é uma miséria.
- Isto é uma miséria?
- Senhor Falcone, quanto é que apanhámos nestes dias?
- Cento e setenta quilos.
- E em dólares.
- Oito mil e quatrocentos.
- Em quinze dias!
- Pensava que seria mais.
- O quê, parece-lhe pouco, senhor Bennie? - disse Armando assombrado.
- Calha mil e seiscentos dólares a cada um. Não se compra uma cidade com isso.
- Pois encontraremos mais, amigos.
- Explique-se, Bennie.
- Uma pergunta antes; senhor Falcone, você diz que o Barem arrasta ouro?
- Sim; encontra-se pó nas arenas.
- E donde vem esse ouro?
- Dos lados do Dom.
- Já viu a catarata maior?
- Já.
- Na sua base formou-se uma enorme bacia, provavelmente muito profunda.
-Sim.
- Pois sabem o que penso?
- Diga.
- Que dentro da bacia deve haver grande quantidade de ouro acumulado, levado para ali pela água da cascata.
- Sim, é possível - disse o senhor Falcone.
- Então vamos apanhar essa fortuna...
- Tem razão, camarada! - disse Pablo. - Talvez haja uma bacia acumulada durante séculos e tudo em ouro.
- Vamos buscá-lo.
- Vamos!
- Um momento amigos - disse Falcone. - Primeiro temos que ver como é que vamos deitar a mão a esse ouro. E a catarata?
- Desviá-la-emos.
- E depois?
- Vazamos a bacia.
- Isso representa uns meses de trabalho e não dispomos deles. Quanta pólvora temos?
- Doze quilos, sem contar com os oitocentos cartuchos de espingarda - disse Bennie.
- Então vamos lá!
Foram até à cascata e ali observaram atentamente para ver se era possível realizar os seus intentos. O rio caía na bacia, de uma altura de setenta metros e produzia um barulho ensurdecedor. Depois de um atento exame, Falcone deu-se conta, de que eram possíveis as intenções a que se propunham.
- Faremos um buraco na base dessa rocha que dificulta o passo livre da água, e a bacia ficará seca.
- Mas teremos que desviar a catarata.
- Vamos tentar fazer outro buraco.
- O vale vai-se inundar, - As águas juntar-se-ão em seguida com as do Barem.
- Siga-me- ordenou o mecânico.
Foram até ao ponto, onde se reuniam os dois afluentes do Barem. E encontrando o lugar propício, chegaram à conclusão de que seria ali que se abriria uma nova passagem para a nova corrente que se formaria depois de desviada a cascata.
- Deve ser suficiente este vão...
- Talvez sejam precisos dois, mas terão que ser utilizados ao mesmo tempo.
- Sim, se o conseguirmos, seremos milionários.
Depois de um estudo, abriram os vãos nos locais adequados e fizeram estalar as rochas, quando era já noite, pois tinham estado todo o dia ocupados com este trabalho.
Um ruído ensurdecedor ressoou por todo o vale; a cascata cessou; as águas impulsionadas com fúria, foram dar ao Barem, seiscentos metros mais abaixo.
Dirigiram-se para a bacia da cascata. A maior parte da água tinha desaparecido, mas ainda restava bastante, pois a bacia possivelmente era muito profunda.
- Amanhã faremos desaparecer também esta água.
- Apenas um vão e já estará.
- E seremos muito ricos.
- Não se precipite, Bennie.
- Não duvide, senhor Falcone?
- Não,- mas até ver se efectivamente em seu interior há ouro não creio com tanta segurança.
- Está bem, homem, está bem. Já o veremos!
- É a febre do ouro.
Como todos estavam muito cansados, jantaram e deitaram-se em seguida, sem se preocuparem de formar um turno de guarda. Nos dias anteriores não se tinha vislumbrado, nem sombras de homens ou animais, pelo que os mineiros não temiam um ataque de surpresa.
Dormiram tranquilos durante várias horas. O canadiano despertou ao amanhecer; acostumado à vida da pradaria, qualquer som o despertava. Desta vez foram os relinchos dos cavalos. Levantou-se de um salto, agarrando a espingarda e disse para si:
- Se os cavalos relincharam, é porque se aproxima algum perigo.
Não queria alarmar os outros e saiu sem os despertar. A lua brilhava ainda mas o céu e as estrelas estavam cobertos por nuvens; mas a débil luz do amanhecer deixava ver que os quatro cavalos estavam de pé, inquietos.
- Pelos cornos do bisonte! Se o meu cavalo relinchou, é motivo para alarmar-me.
Aproximou-se das cavalariças e tropeçou nuns pedaços de lenha amontoados, e Bennie estava seguro que no dia anterior não estavam ali.
- Diabo! Quem terá trazido isto para aqui? E para quê? Tenho que descobrir isto!
Foi à tenda e despertou os seus amigos, que se sobressaltaram.
- O que é que se passa, Bennie?
- Coisas inexplicáveis.
- Diga.
- Qual de vocês levou lenha para as cavalariças?
- Eu não.
- Eu também não.
- Nenhum de nós.
- Têm a certeza.
- Absoluta.
- Bom, pois alguém quis incendiá-las.
- Como?
- Quem?
- Serão os índios?
- Não creio, e porque o fariam?
- Para roubar-nos o ouro e os cavalos.
- Para roubar-nos o ouro e os cavalos!!!
- Os índios não conhecem o valor do ouro.
- Então quem foi?
- Calhando, algum mineiro que nos seguiu e queria deixar-nos sem víveres e sem cavalos.
- Onde se terá escondido?
- Terá fugido.
- Senhores, há que velar todas as noites?
- Estabeleceremos de novo um turno de guarda.
- Vigiaremos os arredores.
- Iremos até ao bosque.
- Se encontrar o bandido, ele paga-as - disse Bennie.
Verificaram os arredores e como não acharam nada, voltaram à tenda; mas dois homens ficaram de guarda, com a esperança de surpreender o estranho visitador.
Na manhã seguinte, antes de ir à bacia ver o seu interior, Bennie, Armando, Pablo e Back dirigiram-se ao bosque em busca do visitador ou visitadores da noite anterior.
Enquanto os mexicanos se dirigiram à montanha, o canadiano e o italiano procuraram nos bosques de pinheiros e moitas, avançando com precauções para não serem surpreendidos.
Quando chegaram a um terreno menos rijo, distinguiram marcas no solo.
- São dois homens - disse Bennie.
- Não será o californiano e o bandido?
- É possível, pois este calçado é europeu. Internaram-se mais no bosque, e mais adiante depararam com uma parede rochosa que era fácil de escalar. Na parte alta desta parede avistava-se uma espécie de entrada natural, bastante grande.
- Parece uma galeria - disse Armando.
- Será a sua guarita? Olha, Armando! Sai fumo da caverna.
- Então, são eles!
- E não esperam a nossa visita.
- Se suspeitassem de alguma coisa, não tinham acendido o lume.
- Vamos surprendê-los?!!
- Como queira, Bennie.
Em poucos minutos chegaram à entrada da caverna, escalando pela parede. Então entraram de roldão, gritando:
- Alto ou sereis mortos!
Porém a surpresa foi enorme quando viram que no interior não havia nada. Só os restos de uma fogueira meio apagada. Penduradas nas paredes, haviam redes de pescar, facas e flechas e dois pares de sapatos especiais que os índios usam para andar na neve.
Bennie lançou um grito.
- Cem mil cornos de bisonte! Olha para isto!
- Aqui não vivem homens brancos, Bennie?
- Não; está claro que isto é a guarita de índios.
- Então enganámo-nos.
- Sim.
- E onde estão os habitantes desta caverna?
- Saíram para caçar.
- E as marcas, de quem são?
- Dos índios.
- Mas as marcas são de botas como as nossas.
- Talvez os índios usem botas como as nossas.
- Pode ser!
- Alegro-me com esta descoberta. Dos índios não temos nada a temer.
- E a lenha encontrada à porta da cavalariça?
- Talvez um índio que nos tivesse ido espiar. Mas não temos nada a temer. Os índios destas regiões, são boas pessoas e respeitam o branco. Voltemos para desaguar a bacia.
Chegaram pouco depois ao acampamento, aonde já tinham chegado os outros, e contaram a sua aventura; como os mexicanos não descobriram nada, comeram com rapidez para irem em seguida à bacia da cascata.
Ali prepararam tudo para que a água saísse por um buraco após a explosão. Depois de três horas de trabalho lançaram fogo às mechas enquanto subiam por uma corda até à parte superior da bacia, já que tinham descido ao seu interior.
Como a mecha demorava cinco minutos, Armando, que fora o primeiro a subir, instalou-se numa plataforma intermédia para ajudar os seus amigos. Quando estavam todos reunidos e se dispunham a continuar a subida, uma risada gelou-lhes o coração.
No alto da bacia estava o californiano, que acabava de cortar a corda que levava à superfície.
- Vão saltar com as rochas! Ah! Ah! Ah! Ah!
- Canalha! - gritou Bennie, tentando subir pela rocha lisa, sem o conseguir.
Os nossos amigos deram-se conta do terrível perigo que corriam. As duas mechas iam-se consumindo aos poucos. Para cúmulo o californiano saíra rapidamente, tirando-lhes a corda. A sua última esperança tinha-se perdido.
- O bandido partiu com o nosso ouro e cavalos!
- Que importância tem agora isso?
- Devíamos saltar!
- Estatelarmo-nos-íamos contra as rochas! Têm mais de sete metros?
Quando estavam quase resignados com a morte, ouviram uma voz humana no alto das rochas. Já estava Bennie disposto a disparar, julgando que se tratava do regresso do californiano, quando viram que eram quatro índios que se aproximavam do abismo.
Falcone gritou:
- índios! Amigos! Amigos! Bennie gritava:
- Deitem uma corda, rápido.
Os índios que olhavam com curiosidade aqueles cinco homens, atenderam ao pedido de Bennie e um deles desatou uma larga correia que levava à cintura e deixou-a cair.
- Tu primeiro, Armando, pronto!
Um a um, os nossos amigos foram içados e, sem agradecerem aos seus salvadores, correram a refugiarem-se da explosão. Armando foi o primeiro a chegar ao acampamento, gritou:
- Fomos roubados!
Três cavalos vinham até ele. Os outros provavelmente tinham sido levados pelo californiano. Bennie, Armando e dom Pablo montaram, enquanto ficaram a guardar o acampamento e o resto das provisões, Back e Falcone.
Os três cavalos fizeram um louco galope na perseguição do criminoso. Um pouco mais à frente viram o californiano e o foragido que montavam duas bestas muito cansadas levando à rédea o cavalo de dom Pablo e o de Back, carregados de ouro.
Os bandidos ao verem-se perseguidos, trataram de se esconderem no bosque. Bennie, saltou do cavalo e gritou:
- Alto ou sereis mortos!
- Nunca! - responderam-lhe.
Bennie apontou cuidadosamente ao californiano, que caiu morto. Ao ver isto, o outro homem soltou os cavalos e escondeu-se atrás dumas rochas.
- Rende-te! - gritou Pablo.
- Não!
- Se não te rendes, morres!
- Isso veremos!
E num descuido do bandido, dom Pablo e Armando dispararam ao mesmo tempo; e o homem ferido, talvez pelas duas balas, caiu para não mais se levantar.
Quando os três mineiros chegaram ao acampamento, encontraram Falcone e Back na borda da cascata. Ao ouvirem a enorme explosão os índios tinham fugido aterrorizados, apesar da voz apaziguadora que lhes dirigiam os nossos amigos.
Depois de terem guardado o ouro e os cavalos e de contarem a aventura, voltaram à bacia para verificar se as suas esperanças não teriam sido frustradas.
A água tinha desaparecido pelos buracos abertos e no interior da bacia estavam montes de pepitas de ouro, acumuladas ali há muitos séculos.
A recolha foi muito boa. Sem muito esforço reuniram mais de trezentos e quarenta quilos do precioso metal.
Contentes com o resultado, decidiram explorar também a outra cascata, ou melhor a bacia; mas desta vez colheram menos do que da anterior.
Um pouco mais de um mês depois de chegarem ao vale do Barem, empreenderam o regresso a Dawson, carregados de ouro. Aquela viagem foi tranquila, e sem incidentes tão perigosos como os da ida.
Trocaram toda aquela fortuna em letras de câmbio e pouco depois embarcaram num dos navios da North American Transportation and Trading Company e desceram o Yucão até a sua desembocadura.
Em Seatle repartiram o dinheiro, calhando a cada, um milhão de dólares, enfim uma pequena fortuna!
Por fim, em San Francisco, separaram-se depois de muitos e carinhosos abraços.
Os dois mexicanos, tornaram ao seu país. Bennie foi para o Canadá e o mecânico e seu sobrinho estabeleceram-se na capital californiana. Os dois italianos tornaram-se donos de uma das mais importantes fábricas a vapor de serrar madeira que houve em San Francisco, e acumularam uma importante fortuna, graças àquela fabulosa aventura que tiveram nas distantes regiões do Alasca.
Emílio Salgari
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